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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A câmara nupcial como chave hermenêutica


do
Evangelho de Tomé

Ricardo Gomes

Tese orientada pelo Prof. Doutor José Augusto Ramos,


especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em
História e Cultura das Religiões.

2019

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Resumo

O evangelho de Tomé tem sido lido e relido ao longo dos séculos, as leituras têm sido
literais, figurativas ou simbólicas. Desde os seus primórdios este texto apresenta-se ao
seu leitor envolto numa aura de mistério e enigma com mensagens por desvelar e
significados por desvendar. No âmbito do mestrado de História e Cultura das Religiões
foi desenvolvido um esforço de investigação que terá como objetivo situar as vivências
e mentalidades do evangelho de Tomé. Vivências estas diretamente associadas ao
desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaço geográfico da Síria oriental
nomeadamente em Edessa. Esta investigação procura responder às seguintes questões:
qual foi o contexto histórico deste evangelho, o seu espaço social, os seus vínculos
sociais e as suas vivências e mentalidades; qual é o núcleo da sua mensagem e quais são
as caraterísticas específicas da linguagem e da experiência no cristianismo primitivo de
Edessa a leste do Eufrates. Espera-se assim dar um contributo à compreensão histórica
do desenvolvimento do espaço mental cristão no primeiro século. O evangelho de
Tomé, em especial a sua cristologia e antropologia, forma uma nova perspetiva a partir
da qual será possível observar as origens do movimento cristão e a forma como a figura
de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaços geográficos do mundo
antigo.

Palavras Chave: Evangelho de Tomé, mentalidades, vivências, espaço simbólico,


figura de Jesus, cristianismo primitivo.

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Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries, the readings have
been literal, figurative, or symbolic. From its beginnings this text presents itself to its
reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings
to unveil. In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions, a
research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of
the Gospel of Thomas. These experiences are directly associated with the development
of early Christianity in Eastern Europe, especially in Edessa. This research seeks to
answer the following questions: what was the historical context of this gospel, its social
space, its social ties and its experiences and mentalities; what is the core of his message
and what are the specific characteristics of language and experience in the early
Christianity of Edessa east of the Euphrates. It is hoped, therefore, to contribute to the
historical understanding of the development of the Christian mental space in the first
century. The Gospel of Thomas, especially its christology and anthropology, forms a
new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian
movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social
contexts and geographical spaces of the ancient world.

Key words: Gospel of Thomas, mentalities, experiences, symbolic space, figure of


Jesus, primitive Christianity.

10
Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus, pоr ser essencial na minha vida, como
mistério e enigma, como deslumbre e amor. Agradeço ao meu orientador, professor José
Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusão deste projeto. A
sua paixão pelo mundo bíblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu
intelecto para buscar estar entre os melhores. Agradeço à minha mãe o seu apoio e o seu
sonho de me levar longe, um obrigado também à minha noiva e uma homenagem à
minha tão doce Virgem Maria.
Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades
maternais, nada foi duro ou difícil com estas tremendas fontes de inspiração e beleza.

“Ó mistérios verdadeiramente santos! Ó luz diáfana! Levo tochas para contemplar Deus
e os céus; torno-me santo ao ser iniciado: o Senhor é o hierofante e marca o iniciado
com o sinal da cruz, conduzindo-o à luz e apresenta ao Pai aquele que creu, para que Ele
o guarde eternamente.
Essas são as festas báquicas dos meus mistérios; se tu o queres, recebe tu, também, a
iniciação e tomarás parte com os anjos, em torno do Deus único e verdadeiro, incriado e
imortal, enquanto o Logos de Deus se unirá a nossos hinos. Esse é o eterno Jesus, o
único e sumo sacerdote do Deus único, também seu pai; ele roga pelos homens e os
exorta: "Escutai, tribos inumeráveis" ou melhor, todos os que, dentre os homens, são
racionais, bárbaros e gregos; eu conclamo toda a raça humana, sendo eu o criador, pela
vontade do Pai.”

Clemente de Alexandria, Exortação aos Gregos 12,1-2

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Índice

Introdução.................................................................................................................................. 14
1. Tratamento de Fontes Históricas e Metodologia ............................................................ 19
2. O Simbolismo da Câmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo ....................... 20
Literatura Profética .................................................................................................................. 21
Literatura Sapiencial Judaica .................................................................................................. 21
Os Quatro Estágios da Câmara Nupcial ................................................................................. 22
O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Éden ............................................................................ 23
O Simbolismo Nupcial no Tempo do Êxodo e no Sinai.......................................................... 24
União Nupcial no Templo ......................................................................................................... 24
Ben Sirá 24 “O Cântico da Senhora Sabedoria” .................................................................... 25
O Simbolismo Nupcial em Textos Apócrifos e Pseudepígrafos ............................................. 31
Uma leitura introdutória do termo «câmara nupcial» no Evangelho de Tomé .................. 33
3. O Contexto Histórico do Evangelho de Tomé..................................................................... 36
Os Manuscritos .......................................................................................................................... 37
A Língua Original de Tomé...................................................................................................... 37
A Data de Tomé ......................................................................................................................... 38
A Origem do Evangelho de Tomé ............................................................................................ 39
Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomé..................................................................... 41
4. O Evangelho de Tomé no Espaço e no Tempo.................................................................... 47
Vivências e Mentalidades na outra Margem do Eufrates...................................................... 52
O Evangelho de Tomé e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristão .............................. 62
5. A Experiência Mística Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomé .................... 65
A Glória do Trono ..................................................................................................................... 69
O Templo.................................................................................................................................... 70
A Merkavá ................................................................................................................................. 72
O Misticismo do Evangelho de Tomé ...................................................................................... 77
Exposição do Lógion 37 ............................................................................................................ 79
O Misticismo Visionário no Mundo Antigo: o Horizonte Religioso Histórico ..................... 85
Exposição do Lógion 50 ............................................................................................................ 86
Misticismo Visionário em Tomé: Logia 15,83 e 59 ................................................................. 92
6. O Quadro Simbólico do Evangelho de Tomé e a centralidade do Templo no seu mundo
simbólico..................................................................................................................................... 95
O Simbolismo Místico do Templo de Jerusalém .................................................................... 97
Éden .......................................................................................................................................... 100

12
O Grande Mar ......................................................................................................................... 102
A Fonte da Vida ....................................................................................................................... 106
Os Rios do Paraíso .................................................................................................................. 108
O Véu ........................................................................................................................................ 110
Por Detrás do Véu ................................................................................................................... 114
A Grande Luz .......................................................................................................................... 118
A Exegese de Tomé a Génesis 1.............................................................................................. 122
A Imagem e a Luz ................................................................................................................... 125
Síntese da Cosmologia de Tomé e a Protologia e Deificação da Câmara Nupcial ............ 130
Experiência Ascética como Interioridade Luminosa ........................................................... 138
7. O Evangelho de Tomé e o Pensamento Gnóstico.............................................................. 143
As variedades da experiência gnóstica .................................................................................. 147
O Pensamento de Tomé e o Pensamento Gnóstico ............................................................... 150
8. A Câmara Nupcial como chave hermenêutica no Evangelho de Tomé .......................... 154
9. Síntese Hermenêutica da Interpretação Simbólica e Textual de Tomé.......................... 166
Bibliografia .............................................................................................................................. 175

13
Introdução

“Jesus disse: Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e, reparai, conservo-o até que se alumie”.
Log. 10

O Evangelho de Tomé expressa-se por enigmas, figuras e conceitos, convidando o olhar


a uma reflexão para lá da leitura. Dividido em 114 ditos, este evangelho não menciona
os milagres, a morte e a ressurreição de Jesus. A chave para a salvação da alma reside
nos ensinamentos mistéricos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos
alcança a vida eterna. Vários estudos e leituras têm sido propostos no mundo académico
para uma interpretação mais adequada dos ditos de Tomé.
Numa fase inicial não estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canónicos,
por motivos de força maior, nomeadamente a questão entre a escatologia desses
evangelhos e a protologia do evangelho que será nesta tese estudado.
Várias das metáforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenções, uma vez que o
simbolismo a estas associado, não provém do mesmo espaço simbólico.
Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado, será proposta uma chave
hermenêutica para interpretar vários ditos do evangelho, que aludem à cosmologia,
cristologia e protologia apresentada por Tomé.
Serão apresentados os vários elementos simbólicos da narrativa de Tomé, devidamente
interpretados de forma a confluírem numa nova leitura mais consciente das dimensões
simbólicas do texto.
Deste modo esta tese é um esforço de trabalho exegético e hermenêutico a todo o
panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomé e pelos textos que agreguem
valor a esta linha de interpretação e de busca de sentido textual.
Designaremos esta abordagem de grelha simbólica e optamos por desenvolver uma
linha orientadora que prepare o leitor à compreensão do simbolismo da câmara nupcial
no Evangelho de Tomé.
Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete tópicos que num esforço de síntese
apresentam as várias conclusões no oitavo tópico.
No primeiro tópico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes históricas e a
metodologia que iremos utilizar. No segundo tópico abordaremos o simbolismo da
câmara nupcial na literatura do Segundo Templo, culminando com uma questão
pertinente, acerca do papel da tradição sapiencial judaica, nas representações simbólicas
do gnosticismo presente na textualidade de Tomé.

14
Em terceiro lugar, serão apresentados os vários elementos históricos necessários para
contextualizar devidamente o documento, concluindo essa secção com uma breve
discussão dos conceitos religiosos do documento.
No quarto tópico, aprofundaremos o tópico anterior, não estamos focados apenas na
história material do texto, mas sim na sua história imaterial, situando o documento no
espaço e no tempo. Desenvolvendo o tópico das mentalidades e da estrutura social que
influenciou a forma como o evangelho foi redigido. Este tópico conclui-se com uma
importante reflexão comparativa entre o evangelho de Tomé e os fragmentos do
Evangelho Judaico-Cristão. Comparação esta que atesta a antiguidade do documento e
serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referências documentais
judaicas, como fontes de interpretação para os ditos do nosso documento.
No quinto tópico este trabalho introduzira uma reflexão fundamental para toda a
compreensão desta tese, primeiramente analisaremos a experiência mística da
linguagem no evangelho de Tomé e abordaremos com vários exemplos tirados do
próprio evangelho o fenómeno do misticismo visionário.
Para que o leitor não tome posições precipitadas, quanto ao uso do termo «misticismo»,
fica desde já assente a nossa definição de misticismo: “Jesus é um místico e um
mensageiro. Seu misticismo, como a maioria dos misticismos, é caracterizado pelos
dois conceitos de Presença e Transformação. Os logia de Jesus como palavras sagradas
são a chave para várias portas, para entender a boa mensagem. Alguns termos cruciais
da lógica devem ser entendidos em diferentes níveis de compreensão.”1
Conforme as palavras deste autor o fenómeno do misticismo é uma realidade transversal
a qualquer experiência religiosa e que remete aquilo que é místico à consciência
humana. A capacidade de perceção da presença divina e a transformação que se
manifesta pela perceção dessa presença, são a definição de misticismo assumida por
este trabalho. Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do
evangelho de Tomé, aumentar a sua perceção em relação ao divino e alcançar um senso
de presença interior.
Serão evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as
temáticas de experiências do foro místico de interioridade visionária na experiência
religiosa do evangelho de Tomé.

1
Lohuizen, Wali Van. (2011). 3

15
No sexto tópico serão apresentados os símbolos que constituem o panorama simbólico
que permitirá ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e até à própria
forma como o evangelho de Tomé foi redigido. Serão aqui naturalmente mencionadas as
realidades cosmológicas do Templo de Jerusalém e como estas influenciaram os ditos
cosmológicos de Jesus em Tomé. Após redigirmos um comentário a cada um dos
símbolos e ao significado geral do Templo no espaço mental dos escribas. Iniciaremos o
processo de reconstrução textual do pensamento de Tomé, provando que este evangelho
é uma exegese típica de uma forma típica de interpretar a história da criação do ser
humano em Génesis 1. Várias evidências serão reunidas para fundamentar estas
afirmações, assim o leitor terá facilidade em compreender o texto de Tomé como uma
produção literária unificada. Com temas unificados em torno de símbolos transversais à
sua realidade, mas convergentes com várias tradições exegéticas do seu tempo.
O nosso sétimo tópico abrirá a discussão sobre o papel e o significado do gnosticismo
no evangelho de Tomé, procurámos antes de mais explanar de forma sintetizada o que é
a experiência gnóstica por si só, explorando as variedades desta experiência e as suas
atitudes para com o conhecimento. Concluímos que aqui o gnosticismo de Tomé é um
gnosticismo tipicamente seu, centrado na sua textualidade e que não se insere
facilmente noutras escolas gnósticas, por ausência de mitologia gnóstica.
Por fim a nossa conclusão vai apresentar o tema da câmara nupcial no evangelho de
Tomé e vai sintetizar toda a conclusão até aqui reunida desta hermenêutica e desta
exegese.
Podemos afirmar que esta tese é um esforço de enquadramento histórico, dos meios
mentais e criativos assim como hermenêuticos e exegéticos do autor que compôs o texto
de Tomé.
Um percurso de comentários e análises aparentemente isoladas de alguns temas são uma
realidade de força maior, se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta
conclusão.
Unir estes temas é uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho
de Tomé.
O tema proposto como chave hermenêutica será a Câmara Nupcial, temática presente no
pensamento do judaísmo de II Templo.
Repensar o texto, a partir das suas principais ideias, dará originalidade a este trabalho ao
ser estudado as várias relações entre as diferentes correntes de tradições bíblicas e a

16
compreensão da dimensão histórica do simbolismo nupcial no antigo pensamento
judaico e no Evangelho de Tomé.
Este estudo intertextual interpretará os significados místicos de vários ditos e
aprofundará a linguagem simbólica, comparando-o com várias realidades textuais do
seu contexto.
Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do
Evangelho de Tomé, pareceu-nos necessário sublinhar o enquadramento e receção deste
texto na literatura primitiva do cristianismo siríaco.
O Evangelho de Tomé enquadra-se na agenda teológica da literatura siríaca primitiva
dos séculos II-III d.C. partilhando perspetivas teológicas, simbolismos e linguagem
técnica. Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradição e no qual podemos
enquadrar Tomé são: Odes de Salomão, Hino da Pérola, Atos de Tomé, Ad graecos de
Taciano e Livro de Tomé.
Existem dois pontos de interseção na tradição de Tomé que podem ser de grande ajuda
na sua interpretação: a tradição da sabedoria personificada por um lado e a tradição
cristã siríaca de redentor divino por outro.
O Evangelho de Tomé corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da
doutrina cristã que surge na teologia dos textos siríacos tardios. Para suportar esta
opinião podemos aferir que Tomé se apresenta como uma coleção de ditos aleatórios
reunidos sem um plano de composição unificador.
Os paralelos literários mais próximos são o livro de Provérbios, o tratado mishnáico de
Pirkei Avot, com coleções similares a aparecerem no livro de Ben Sirá, Sabedoria de
Ahiqar e textos sapienciais de Qumran.
Durante o segundo século estes géneros de composições foram gradualmente sendo
substituídos por géneros literários mais elaborados como os Hinos de Salomão e o Hino
da Pérola que datam aproximadamente do 3 século e.c. refletindo assim um estágio
posterior no desenvolvimento da literatura siríaca.
Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
época histórica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomé, tendo como suporte a
caraterização histórica da sociedade de Edessa onde o evangelho terá sido escrito.
Definindo a questão literária e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento
filosófico que inspirou a textualidade de Tomé.

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Como hipótese apresentamos metodologicamente a exegese do judaísmo helenista no
período intertestamental, a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de
interpretação do pensamento filosófico de Tomé.
Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a tradução da Bíblia de
Jerusalém em todas as passagens citadas, nalguns casos no capítulo 5 utilizamos a
versão do Génesis traduzida por André Chouraqui, quanto ao evangelho de Tomé
recorremos à tradução presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da edição Ésquilo. As
obras de Fílon de Alexandria foram traduzidas do inglês por mim a partir da publicação
completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc.
As restantes passagens de apócrifos, deuterocanónicos, literatura rabínica e samaritana
assim como gnóstica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglês e
devidamente identificadas nas passagens traduzidas.

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1. Tratamento de Fontes Históricas e Metodologia

As fontes históricas propostas para a análise comparativa deste projeto consistem numa
seleção de textos, cujo pensamento filosófico e os termos linguísticos e simbólicos
influenciaram a textualidade de Tomé.
Estes textos estão presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo: Ben Sirá,
Sabedoria de Salomão. Outros textos da literatura siríaca primitiva: Odes de Salomão,
Hino da Pérola, Atos de Tomé, Ad graecos de Taciano, Livro de Tomé e os Evangelhos
de João e Filipe.
Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta
época histórica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomé, caraterizando
historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho terá sido escrito.
O simbolismo da câmara nupcial será o elo de ligação necessário entre as diferentes
tradições para uma compreensão do símbolo dentro do texto de Tomé.
A nossa investigação inicial irá tratar da metáfora nupcial nos profetas da Bíblia
Hebraica e na Literatura Sapiencial.
Esta breve análise tornará possível realizar o resto do estudo, que terá como foco alguns
dos textos nupciais mais relevantes do Período do Segundo Templo e períodos rabínicos
posteriores.
Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincrónico de textos selecionados, como
Ben Sirá 24, o texto de Fílon de Alexandria à figura do Querubim no Templo, textos
pseudepígrafos e algumas exegeses rabínicas ao Cântico dos Cânticos.
Após realizarmos um estudo temático que organize os motivos observados nos nossos
textos iremos desenhar uma síntese que será utilizada para interpretar os temas nupciais
no Evangelho de Tomé.

19
2. O Simbolismo da Câmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metáfora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa, no pacto entre


Deus e Israel, cresceu no fértil solo mitológico de vários mitos do mundo antigo que
envolviam uniões sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano.
As tradições bíblicas apresentam um modelo único no sentido divino escolher entrar
num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo específico.
Na literatura profética2 Deus é marido de Israel, a sua noiva e esposa. Como
marido ele é monogâmico mesmo quando a sua noiva é infiel. A poligamia era uma
realidade comum, mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o
retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar à fidelidade do
matrimónimo com o divino.
Mas qual o papel da imagética nupcial nos antigos textos judaico-cristãos? O
que é que eles pretendiam retratar na sua essência profunda? Será plausível a nossa
leitura os tratar como mera metáfora, uma descrição alegórica e ilustrativa do amor de
Deus pelo seu povo? Ou será como alguns autores sugerem3, uma tentativa de descrição
da união mística, substancial e metafisica entre o humano e o divino?
Várias evidências mostram que nalguns círculos no período do Segundo Templo, a
imagem nupcial representava um ato de “fusão espiritual” entre Deus e o ser humano,
uma “transfusão da energia divina para o mundo” por meio de que o noivo, ao unir-se
com a humanidade levantou-a para o céu de onde ele procedeu4.
Desde a literatura sapiencial, aos escritos paulinos e rabínicos, parece surgir um padrão
recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a torná-lo santo. O Evangelho de
Tomé, a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnósticos,
inserem-se neste mesmo padrão.
Segundo o autor André Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta união como um
processo que ocorre em quatro estágios distintos da história.
Os textos nupciais recordam um estado idílico primitivo que foi perdido, um estado
“nupcial” existente no momento paradísiaco da existência humana. Momento este que
se perdeu dando lugar a um estado de separação entre o divino e o humano.

2
Oseias, Jeremias e Ezequiel.
3
Cf. Villeneuve A, (2016), 3.
4
Idem.
5
Cf. Idem.

20
Este estado foi recuperado por um momento singular, um terceiro estágio salvífico, num
evento de redenção único, retratado como casamento. Este evento nupcial é estendido
no tempo através da adoração litúrgica, recordando e reencenando o casamento redentor
nas vidas das gerações subsequentes.
A adoração litúrgica antecipa a final, o cumprimento escatológico do casamento divino-
humano no final da história.
Estes quatro estágios da união nupcial correspondem simbolicamente a quatro estágios
da história de salvação de Israel: A criação e o jardim do Éden, o êxodo e o monte Sinai,
o Templo de Jerusalém no Monte Sião e o final dos tempos.

Literatura Profética

Na literatura profética, a metáfora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns
profetas de Israel (Oseias, Jeremias, Ezequiel e Isaías). Nestes textos o casamento é
direcionado para uma restauração futura com a esperança de retornarem a uma perfeição
intocada. O registo mais antigo a nível bíblico da metáfora nupcial encontra-se em
Oseias 1-3 e foi redigido por volta do século VIII a.C, pouco antes da queda do Reino
do Norte6.
O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma
união mística percetível com o divino. Permanece sempre como uma alegoria simbólica
da aliança entre Deus e o seu povo, vivida nos parâmetros da fidelidade religiosa aos
preceitos da lei, a observância apropriada do culto no Templo e uma ética irrepreensível
para com o próximo.

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Provérbios é relatada a origem divina da Sabedoria7. No livro da


Sabedoria de Salomão, Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanação de Deus
identificada com o espírito divino8. Neste tipo de literatura a relação da Senhora
Sabedoria com o homem é descrita frequentemente numa linguagem nupcial, muitas
vezes reminiscência do Cântico dos Cânticos: a sua beleza é exaltada, ela é desejada e

6
Cf. Villeneuve A. (2016), 5.
7
Pr 8:22-31.
8
Sb 7:25-26.
21
amada como uma noiva; Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma
sedutora para comerem à sua mesa, prometendo riquezas, honras e vida abundante.
A imagem nupcial apresentada pela literatura profética difere da imagem nupcial
apresentada pela literatura sapiencial.
Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do
casamento era o próprio Deus retratado como marido.
Na literatura sapiencial a protagonista feminina é a quase divina figura da Senhora
Sabedoria, e os humanos que ela corteja são implicitamente masculinos.
É importante sublinharmos estas diferenças a fim de compreendermos a evolução da
crença, onde a coletividade típica dos profetas hebreus deu lugar à individualidade de
cada pessoa que é chamada pela Sabedoria para ter comunhão com ela.
A metáfora nupcial contém um triângulo amoroso peculiar9, constituído por Deus, pela
Sabedoria e pelo ser humano. Já não existe uma relação direta entre Deus e o seu povo,
antes a Sabedoria age como intermediária entre Deus e os seres humanos.
É uma espécie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhão
com o homem.
Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaço à
cristalização do papel da Sabedoria como figura mediadora, casada com Deus nas
dimensões celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre.
Convidando o ser humano a casar-se com ela, a relação nupcial com Sophia imitava a
união de Deus com ela, e isto era a experiência pessoal do sábio com o divino.

Os Quatro Estágios da Câmara Nupcial

Esta breve introdução permite-nos discernir uma certa convergência temática no


tratamento histórico da metáfora nupcial nos profetas da Bíblia Hebraica e na Literatura
Sapiencial, abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento
no livro de Ben Sirá, nalguns textos do Novo Testamento, em textos apócrifos e
pseudepígrafos selecionados bem como em alguma exegese rabínica antiga do Cântico
dos Cânticos.
Através desta análise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Câmara
Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomé e de Filipe.

9
Cf. Villeneuve A. (2016), 33-34.
10
Cf. Idem, 29.
22
Nas fontes judaicas a metáfora nupcial associa-se frequentemente à história da salvação
ao apresentar a criação (Éden) ao protótipo ideal do casamento entre Deus e Israel,
fundamentado na experiência singular do Êxodo e na revelação no Sinai, liturgicamente
transportada através do tempo para a adoração no tabernáculo e no templo, tendendo
para o cumprimento escatológico no final dos tempos, na Idade Messiânica11.
Na literatura neotestamentária é possível discernirmos um padrão semelhante de
simbolismo nupcial: o casamento entre Cristo e a Igreja é frequentemente relacionado
com a tipologia de Adão e Eva. Este casamento fundamenta-se no sacrifício pascal
redentor de Cristo. É aplicada à vida do fiel ou da igreja coletiva através da tipologia
sacrificial e do templo, sendo manifesta através dos sacramentos do batismo e da
eucaristia. Por fim aguarda a sua consumação plena na eternidade12.

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Éden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel é frequentemente


associado ao jardim do Éden. No Novo Testamento as passagens nupciais
frequentemente estão associadas à tipologia de Adão e Eva, descrevendo a ordem da
criação até ao dano causado pelo pecado de Adão e de como este foi reparado por
Cristo, o novo Adão.
Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situação geográfica, o próprio Éden e o
Novo Testamento apontar para uma situação antropológica (Adão e Eva), ambos os
temas se referem à mesma tradição edénica de um ideal primordial. O primeiro
casamento da criação, seguido da rotura e da desordem13.
Algumas questões devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os
nossos textos. Foi o casamento de Cristo (novo Adão) e da Igreja (nova Eva) algo com
que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauração da humanidade ao
estado primordial do Éden? Como é que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes
no Judaísmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de
Tomé?

11
Idem, 35.
12
Villeneuve A. (2016), 35.
13
Idem.
23
Poderemos discernir uma relação intertextual entre estes textos que nos esclareça o
significado da câmara nupcial, como metáfora explicativa da antropologia e cosmologia
destas tradições?

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Êxodo e no Sinai

Nas tradições cristãs e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por
um único momento na história da redenção. Na tradição judaica esse tempo foi o tempo
do Êxodo14, considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel.
No Novo Testamento o evento que marca a redenção para a aliança nupcial é o mistério
pascal sacrificial de Jesus, inspirado na narrativa do Êxodo.

União Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um único evento redentor, o simbolismo
nupcial é perpetuado na história do povo de Deus através da adoração litúrgica.
Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai
é reencontrado na história da nação no Tabernáculo do deserto e o Templo de
Jerusalém, enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se
relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo, ganhando expressão nos sacramentos
do batismo e da eucaristia.
Em ambas as tradições, o templo, quer seja físico ou espiritual, é uma extensão
litúrgica, uma comemoração e atualização ao longo do tempo do verdadeiro pacto
nupcial (selado no Sinai ou no Gólgota) entre Deus e o seu amado povo.
O templo é o lugar de antecipação da consumação escatológica do casamento sagrado.
Ao compreendermos o papel do templo, como espaço do casamento místico no Antigo
Israel, torna-se mais percetível a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo
Testamento.
A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no
templo poderá lançar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14
A literatura rabínica sempre deu ênfase aqui á travessia do mar Vermelho e a teofania do
Sinai.
24
místico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado através dos ritos litúrgicos
do batismo e da eucaristia15.

Temas Simbólicos da Câmara Nupcial


O Tabernáculo e o Templo como Câmara Os templos de vários povos antigos
Nupcial consideravam o Templo, especialmente o
Santo dos Santos, como o lugar
simbólico que representava a Câmara
Nupcial.
O Tabernáculo e o Templo como uma O Tabernáculo e o Templo serviram para
atualização perpétua da liturgia do Sinai perpetuar a teofania do Monte Sinai entre
o povo de Israel.
O Templo como microcosmos O Templo de Jerusalém estava imbuído
de simbolismo cósmico, sendo
considerado um microcosmos que
representava o universo inteiro. Também
é relevante a ideia antiga do homem
como microcosmo e templo, uma ideia
encontrada no Novo Testamento onde o
fiel é o Templo do Espirito Santo e o
“lugar” onde a união nupcial acontece
entre o humano e o divino.
O Templo como o Jardim do Éden O Templo de Jerusalém era considerado a
fonte da bênção divina, edénica, o lugar
onde habitava a Shekináh, a presença do
divino na terra.

Ben Sirá 24 “O Cântico da Senhora Sabedoria”

Neste capítulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a


tradução da Bíblia de Jerusalém.
Este é um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simbólicos
necessários para podermos interpretar e compreender o uso da metáfora nupcial.
As suas interpretações criativas de vários motivos da Bíblia Hebraica tornam-no uma
ponte de ligação entre esta e a imagética nupcial do Novo Testamento.
A escolha deste capítulo do livro de Ben Sirá deve-se não somente ao facto de este ser o
capítulo central do livro, mas também é um tempo marcado pelo seu caráter nupcial em
todas as ressonâncias.

15
Cf. Villeneuve A. (2016), 37.
16
Cf. Villeneuve A. (2016), 56.
25
O poema permeado com alusões ao Cântico dos Cânticos descreve a figura
personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se
a si, numa comunhão íntima onde a “bebem” e “comem” (vv.19-21).
Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela é a parte
feminina da relação e o ser humano, a parte masculina.
Como referimos anteriormente esta tendência já aparece na literatura sapiencial judaica.
O capítulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo
da história israelita, especialmente presente no Éden, no Sinai, no Templo e no final dos
tempos.
Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descrição da Senhora Sabedoria
encaixa nos “4 momentos” da história da salvação.

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv.1-7)

“A Sabedoria faz o seu próprio elogio, ela se exalta no meio de seu povo.
Na assembleia do Altíssimo abre a boca,
ela se exalta diante do seu Poder.
‘Saí da boca do Altíssimo e como a neblina cobre a terra.
Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens.
Só eu rodeei a abóbada celeste,
eu percorri a profundeza dos abismos, as ondas do mar, a terra inteira,
reinei sobre todos os povos e nações.
Junto de todos estes procurei onde pousar
e em qual herança pudesse habitar.”

Os primeiros dois versos deste poema são uma introdução, na terceira pessoa, ao cântico
da Senhora Sabedoria. Ela irá elogiar-se a si própria (literalmente – elogiar a sua alma
ψυχὴν αὐτῆς)17.
O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo, na assembleia do Altíssimo. A tradição
de uma personificação pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na
tradição sapiencial mais antiga, especialmente os capítulos 8-9 do Livro de Provérbios.
No verso 3 inicia-se o cântico da Sabedoria; nos versos 3-7 ela descreve a sua origem
em Deus e a sua universalidade.
Ela procedeu da “boca do Altíssimo, cobrindo a terra como neblina”.
Existe aqui uma simbólica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificação com a
palavra de Deus, associada originalmente à profecia18, desenvolvendo-se mais tarde

17
Cf. Villeneuve A. (2016), 57.
26
como o Logos joanino (Jo 1:1-3). O versículo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria
“desde o princípio, e para sempre…”, ela estava presente no tempo da criação quando
“as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava, a superfície das águas.” (Gn
1:2).
O tema “como neblina” (ὁμίχλη) a cobrir a terra é um reminiscente da escuridão caótica
que reinava no início da criação19.
Neste capítulo de Ben Sirá20, a Sabedoria habitava “nas alturas”21devido ao lugar central
do santuário e do Templo.Talvez esta seja uma alusão aos lugares altos celestiais e
terrenos, uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma
réplica do santuário no céu.
O trono da Sabedoria localiza-se numa “coluna de nuvens” aludindo à mesma coluna
que guiou os israelitas através do deserto e pousava acima do santuário do Tabernáculo
e do Templo como um sinal da presença de Deus22.
A ocorrência da expressão στῦλος [τῆς] νεφέλης na Bíblia Hebraica refere-se sempre à
coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23.
Fílon de Alexandria comentou que a nuvem “suavemente derrama sabedoria sobre as
mentes que estudam a virtude”24.
Isto confirma a dupla localização da habitação da Sabedoria, nos céus e na terra, tendo a
nuvem como uma ponte entre as duas esferas.
A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no céu e descendo à terra e a sua
identificação com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomão: “Aos santos deu a
paga de suas penas, guiou-os por um caminho maravilhoso: de dia, serviu-lhes de
sombra e à noite, de luz de astros. Fê-los passar o mar Vermelho, conduziu-os por águas
caudalosas; ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismo.”25
Os versículos 5 e 6 ressaltam a universalidade cósmica da Sabedoria, as suas origens
primordiais no tempo e a sua omnipresença no espaço e na criação.
A Sabedoria “rodeou a abóbada celeste” e “caminhou nas profundezas do abismo”.

18
Is 45:23; 48:3; 55:11.
19
Cf. Villeneuve A. (2016), 29.
20
Especialmente os vv.10-11.
21
Esta expressão “nas alturas” pode ser inspirada “nos lugares altos” da passagem de Pr 8:2, na
referência àmontanha santa do Senhor, “Sião, minha montanha sagrada” (Sl 2:6).
22
Cf. Villeneuve A. (2016), 58.
23
Ex 13:21–22; 14:19, 24; 19:9; 33:9–10; 40:34–38; Nm 12:5; 14:14; Dt 31:15; Ne 9:12, 19; Sl
98:7.
24
Quis. rer. div. heres. 24 c.f. Yonge D. (1993)
25
Sb 10:17-19.
27
O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 22:14 como o lugar onde Deus caminha, e o
termo ἄβυσσος é a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico “escuridão”, a
escuridão primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princípio da criação
(Gn 1:2)26.
Ben Sirá ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princípio estando
presente em tudo, fazendo alusão a Provérbios27.
O seu domínio total expressa-se em quatro dimensões polares que enquadram todo o
universo: verticalmente, os dois extremos dos céus e do abismo, e horizontalmente, os
dois elementos do mar e da terra.
Apesar da sua omnipresença e universalidade cósmica, a Sabedoria procurou um lugar
específico onde pudesse habitar num “lugar de repouso”.
Este paradoxo é uma ponte entre o universalismo dos versículos 3-6 e o particularismo
dos versículos 8-12. A tensão e o paradoxo entre estes dois polos diferentes são dignos
de nota28.
A Senhora Sabedoria, infinita e eterna, orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o
universo no espaço e no tempo. No entanto a sua ilimitabilidade não a satisfaz e ela
deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular, limitando-se a si mesma pelos
limites do tempo e do espaço em Israel, mais concretamente no Tabernáculo do monte
Sião, num ato de auto contração. Num movimento de descida e concentração, a Senhora
Sabedoria caminha numa jornada entre os céus e a terra, da boca de Deus para Israel.

A Habitação da Senhora Sabedoria em Israel (vv. 8-12)

“Então o criador de todas as coisas deu-me uma ordem,


aquele que me criou armou a minha tenda e disse:
‘Instala-te em Jacó, em Israel recebe a tua herança.’
Criou-me antes dos séculos, desde o princípio,
e para sempre não deixarei de existir.
Na Tenda Santa, em sua presença, oficiei;
deste modo, estabeleci-me em Sião
e na cidade amada encontrei repouso,

26
Cf. Villeneuve A. (2016), 59.
27
Pr 8:15-16 e 29; Sl 24:1-2; 104:2-6.
28
Cf. Villeneuve A. (2016), 59.
28
meu poder está em Jerusalém.
Enraizei-me num povo cheio de glória,
no domínio do Senhor se encontra minha herança.”

Esta secção retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez, onde esta deixou o
céu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens.
Os primeiros versos (8-12) descrevem como é que a Senhora Sabedoria se contraiu da
sua universalidade sobre toda a criação e da sua existência eterna à limitada esfera de
Israel.
No verso 8, Deus designa um local para a “tenda” da Sabedoria, ordenando-lhe que
habitasse em Israel.
O verso 9 interrompe a descrição do movimento através do espaço da Sabedoria e volta-
se para a esfera do tempo, afirmando que pela sua existência desde o princípio até ao
fim da criação, o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal é total assim como o seu
reino sobre a esfera espacial.
“Criou-me antes dos séculos, desde o princípio, e para sempre não deixarei de existir”
(vv.9). O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusão do seu
processo de tzimtzum29à medida que ela se instala no Tabernáculo.

Senhora Sabedoria, árvores e especiarias (vv.13-17)

“Cresci como o cedro do Líbano,


Como o cipreste no monte Hermon.
Cresci como a palmeira em Engadi,
Como roseira em Jericó,
Como formosa oliveira na planície,
Cresci como plátano.
Como a canela e o acanto aromático exalei perfume,
Como a mirra escolhida exalei bom odor,
Como o gálbano, o ônix, o estoraque,
Como o vapor do incenso na Tenda.

29
O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulação metafísica acerca do processo da
criação da realidade. Nesta especulação, o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a
um espaço conceitual finito. A percepção relativa comum aceita a existência das coisas apenas
por causa dos seus limites. Cf. Smith D. (2010), 21.
29
Estendi os meus ramos como o terebinto,
Meus ramos, ramos de glória e graça.
Eu, como a videira, fiz germinar graciosos sarmentos
E minhas flores são frutos de glória e riqueza.”

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado.


A descrição das árvores, a rica vegetação e especiarias, bem como a flora ligada à terra
de Israel é a linguagem do Cântico dos Cânticos.
Grande parte das metáforas sobre árvores e flores, assim como a sua respetiva
localização geográfica, ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cântico dos
Cânticos.
No Cântico dos Cânticos as vigas da casa dos amantes são feitas de cedro (Ct 1:17), o
palanquim de Salomão é feito de madeira do Líbano e o topo de Hermon (Ct 4:8)
associado ao domínio das árvores ciprestes em Sir 24:13.
A fragrância das suas vestes é como a fragrância do Líbano (Ct 4:11), o semblante do
rei é “como o Líbano, excelente em cedros” (Ct 5:15).
Digno de nota ainda é a menção ao terebinto (τερέμινθος/ τερέβινθος, 24:16) que se
trata de uma alusão indireta à atividade sexual. Na literatura bíblica o terebinto é
associado à prostituição cultual em santuários idólatras30.
A Senhora Sabedoria aparece como “roseira” (Sir 24:14) e a sua “floração” (Sir 24:17)
também nos lembra as imagens abundantes de flores no Cântico dos Cânticos, onde a
noiva é chamada “rosa de Saron” e “lírio dos vales” (Ct 2:1-2).
Ben Sirá 24:15 faz eco aos odores e fragrâncias de especiarias e óleos presentes no
Cântico dos Cânticos, acentuando assim a sua insinuação erótica.
O cântico menciona logo de início a fragrância dos bons unguentos da amada (Ct 1:3).
Ele é para a sua noiva a montanha de mirra, e a colina de incenso (Ct 1:13; 4:6).
As suas faces são “canteiros de bálsamo, e colinas de ervas perfumadas” e os seus lábios
são lírios com mirra, que flui e se derrama.” (Ct5:13).
A imagem das árvores, flores e especiarias nestes versículos evoca o paraíso: a Senhora
Sabedoria, localizada em Jerusalém, prospera como o primeiro jardim do Éden.

30
Cf. Villeneuve A. (2016), 63.
30
O Banquete da Senhora Sabedoria (vv.19-22)

“Vinde a mim todos os que me desejais,


Fartai-vos de meus frutos.
Porque a minha lembrança é mais doce do que o mel,
Minha herança mais doce do que o favo de mel.
Os que me comem terão ainda fome,
Os que me bebem terão ainda sede.
Quem me obedece não se envergonhará,
Os que trabalham por mim não pecarão.”

Nesta última parte a Sabedoria convida “todos os que a desejam” para um banquete
sumptuoso, para comerem os frutos que ela produz.
Existe uma alusão a Provérbios 9:1-5, onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o
vinho, convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu pão e beberem o seu
vinho31.
O amor erótico era frequentemente associado ao comer e festejar, sendo um símbolo
universal do vínculo de amizade e comunhão, atividades que tiveram lugar no Éden,
Monte Sinai e no Templo32.

O Simbolismo Nupcial em Textos Apócrifos e Pseudepígrafos

Na presente secção iremos analisar alguns textos selecionados dos livros


pseudepígrafos cristãos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no
primeiro século da era comum.
As Odes de Salomão (30-150 d.C.) são uma coleção de hinos judaico-cristãos que
datam do primeiro século. Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do
fiel por Deus. Este amor concretiza-se numa união entre o amante humano e o seu
amado (Deus): o homem, através da união com o “Filho”, também se torna um filho de
Deus participante na sua imortalidade:

31
Cf. Sir 1:14-15; 6:19; 15:2-3.
32
Cf. Villeneuve A. (2016), 73.
31
“Eu amo o Amado e eu mesmo o amo, onde está o seu descanso, também eu estou (…)
Eu fui unido a Ele, porque o amante encontrou o Amado, porque eu amo Aquele que é o
Filho, eu me tornarei um filho. Na verdade, aquele que está unido àquele que é imortal,
verdadeiramente será imortal”
Ode de Salomão 3:5-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissão de vida divina para o ser
humano, recorrendo a uma linguagem incarnacional. O Amado assume a forma humana
para unir-se à humanidade: “Ele tornou-se como eu, para que o receba. Em forma ele foi
considerado como eu, para que pudesse colocá-lo” (Ode 7:4-6).
Este amor vivificante é expresso numa linguagem nupcial através de um “abraço ou
beijo sagrado” entre o ser humano e o divino, dando vida imortal ao humano através do
Espírito Santo33.
“E a vida imortal abraçou-me e beijou-me. E naquela vida está o espírito que está dentro
de mim. E não pode morrer porque é vida.” (Ode 28:7-8).
Noutra instância as odes descrevem a união em termos nupciais: “Eu lancei sobre eles o
jugo do meu amor. Como o braço do noivo sobre a noiva, também é o meu jugo sobre
aqueles que me conhecem. E como a câmara de noiva é espalhada para fora pela casa
nupcial do par, também é o meu amor por aqueles que acreditam em mim.” (Ode 42:7-
9).
Noutros lugares a imagem da união entre o ser humano e o divino são descritas como
sendo o Paraíso. O jardim do Éden é assim identificado com o santo dos santos dos
escritos contemporâneos, onde ambos são conhecidos como fontes de correntes de
águas vivas.
As Odes de Salomão descrevem uma união mística entre Deus e o fiel através da figura
mediadora do messias. Esta união tem lugar na ‘Câmara Nupcial’ entendida neste
contexto como sendo o Templo espiritual e o ‘Paraíso’.
Nesta Câmara Nupcial/Templo/Paraíso, correntes de águas vivas e fontes de leite e mel
procedem dos ‘lábios do Senhor’.
Tocando nos lábios dos seus amados, matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34.

33
Villeneuve A. (2016), 277.
34
Cf. Idem, 279.
32
Uma leitura introdutória do termo «câmara nupcial» no Evangelho de Tomé

Após uma síntese nestas tradições apresentadas do simbolismo nupcial, iremos proceder
a uma leitura introdutória do mesmo simbolismo no evangelho de Tomé.
Apesar da abrangência desta interpretação ser apresentada nas discussões de resultados
e na conclusão do trabalho. É importante como ponto de partida estabelecermos alguns
elementos na nossa linha de pensamento que não permitam desvios interpretativos e
posições alienadas com a investigação que procuramos desenvolver.
O título deste trabalho é: A Câmara Nupcial como Chave Hermenêutica do Evangelho
de Tomé, só pelo título estamos a pressupor que a câmara nupcial, como expressão
textual, como elemento simbólico e como conceito filosófico, antropológica e teológico,
reúne por si só o princípio interpretativo fundamental do evangelho de Tomé.
Primeiramente o leitor será convidado a ler o evangelho como um documento literário
unificado com um pensamento subjacente, excluímos assim a hipótese que se trata de
um texto com vários ditos aleatórios que não dispõe de qualquer ligação entre si.
Existem duas referências à câmara nupcial nos 114 ditos do evangelho, a primeira
encontra-se no log 75 “Jesus disse: Há muitos que estão junto à porta, mas os unificados
(monachos) são os que entrarão na câmara nupcial”. E o log 104 “Disseram-lhe: Vem,
hoje, para que oremos e jejuemos. Jesus disse: Qual foi o pecado que cometi, ou em que
é que fui vencido? Só quando o esposo sair da câmara nupcial, então que se jejue e que
se ore!”.
A câmara nupcial é a expressão síntese que enquadra o pensamento teológico e
antropológico do evangelho de Tomé, sendo assim a chave interpretativa da sua
mensagem. Podemos afirmar que o termo monachos, traduzido por unificado, revela
perfeitamente a mensagem de Tomé. Neste evangelho entrar na câmara nupcial é o
mesmo do que entrar no Reino dos Céus, nos evangelhos canónicos. Ao entrar na
câmara nupcial, o leitor entrava no lugar da salvação, da união, o lugar da vida.
Entrar na câmara nupcial era regressar ao Éden, ao estado original primordial da
existência e da organização do ser, idealmente unificado sem conflitos nem divisões.
Haviam porém certas condições, que dificultavam esta entrada, o evangelho de Tomé,
ao contrário dos evangelhos canónicos, não parte do pressuposto que o problema
existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcançar o
Reino dos Céus.

33
Em Tomé o problema da existência humana é a sua desintegração existencial, uma
identidade dividida e em constante conflito interior e exterior. Daí o termo unificado ser
fundamental para compreendermos a hermenêutica da câmara nupcial. Neste evangelho
o problema da humanidade é a sua eterna divisão, constante geradora de conflitos e
responsável por um estado de ausência de gnose (gnose aqui entendida como a perceção
natural do divino na consciência).
O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de género, em
termos de interioridade e exterioridade, em termos de imagem e luz.
A pessoa que transcende estas divisões interiores e alcança o verdadeiro significado das
palavras de Jesus, alcança a imortalidade e não experimenta a morte.
Esta pessoa unificada supera a divisão de género e é uma nova espécie de ser humano
espiritualizado que se tornou como Jesus, pois entrou na câmara nupcial e bebeu da sua
boca. Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado, para enquadrarmos
melhor este pensamento, é justamente a ação que ocorre na câmara nupcial que nos
revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomé. Este lado começa quando
colocamos esta questão, qual é a finalidade ideológica deste texto?
Por vezes lêmos ou ouvimos certas interpretações que afirmam que o enquadramento e
o discurso ideológico de Tomé não se afastam muito do enquadramento dos evangelhos
canónicos.
Para começar a realidade de uma deificação é completamente absurda nos evangelhos
canónicos, para além disso a finalidade de o discípulo entrar na câmara nupcial é o
retorno ao paraíso original. Ou seja, em Tomé, o discípulo tem um objetivo, restaurar
em si a imagem divina que perdeu, uma imagem primordial unificada e deificada.
E ainda temos a crença de regressar ao início, ao tempo antes do tempo, ao paraíso.
O lugar onde a luz procedeu de si mesma, esta luz é Jesus.
Nos evangelhos canónicos o discurso assume os contornos apocalípticos e escatológicos
do final dos tempos, existe a ideia de um julgamento e uma ânsia por cada discípulo
entrar numa época em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz
e justiça beneficia os justos e castiga os ímpios.
Temos aqui duas teologias opostas, uns sonham em entrar no paraíso nesta vida, porque
para eles não existe final, não existe desfecho absoluto. Para eles existe iluminação
interior, perceção do reino do Pai da luz entre todas as coisas. Estão de passagem por
este mundo, enquanto buscam entrar na câmara nupcial.

34
No contexto canónico, a finalidade teológica é a perceção do Filho de Deus, como cada
um o vai entender e receber, vai determinar o seu destino salvífico.
Evitar o caminho da injustiça para beneficiar de um estado de justiça e paz na
eternidade é a ideia que transparece que o paraíso começa onde termina a terra. São
duas realidades separadas, quando existe ainda a questão de abordarmos uma espécie de
comunhão mística na linha da unio mystica dentro da câmara nupcial entre Jesus e o
discípulo. Várias dificuldades rapidamente surgem, primeiro o objetivo da unio mystica
é uma unificação sacramental em que a alma é noiva de Jesus.
Este estado de misticismo cristão que é definido como o quarto estágio no caminho do
misticismo cristão, não existia na época em que o evangelho de Tomé foi escrito, pelo
menos não existia nos termos que assumiu na forma medieval.
A finalidade da unio mystica não pressupõe obrigatoriamente a deificação ou
divinização da alma, tornando esta semelhante à alma de Jesus. A união que ocorre
dentro da câmara nupcial no evangelho de Tomé pressupõe sem qualquer sombra de
dúvida este fenómeno que embora estejamos longe de o compreender, não devemos
sacrificar a afirmação do texto para satisfazer a fome por definições académicas mais
simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussão.
A nossa investigação não nega que o misticismo do mundo antigo, definido no nosso
trabalho com a sua vertente visionária e extática, teve lugar na textualidade e na
experiência hermenêutica do evangelho de Tomé. No entanto apenas recorre às
manifestações místicas que existiam no seu tempo e não pretende adoptar formas de
misticismo mais tardias como a unio mystica.
O conceito de deificação em Tomé no interior da câmara nupcial está mais orientado
para a deificação e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um
processo de iluminação gnóstica. Com isto refiro-me à aquisição de gnose, se
entendermos que a gnose é o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
conhecimento da identidade pessoal. Então faz sentido pegarmos na nossa leitura
inicial: “Jesus disse: Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e
o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que façais o masculino
e o feminino num só, para que o masculino não seja masculino nem o feminino seja o
feminino; quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma mão em lugar de uma mão,

35
e um pé em lugar de um pé, uma imagem em lugar de uma imagem, então entrareis no
Reino.”35
A unificação do ser humano no seu íntimo e a transcendência da sua essência é a
explicação deste texto e com este texto podemos arriscar propor não uma unio mystica
no interior da câmara nupcial. Mas uma união unificada que leva à iluminação e à fusão
completa com Deus, se a ideia de Jesus é ele ser uma figura que beneficia de algum tipo
de fusão e união com o divino que a humanidade comum não possuí, então a camâra
nupcial iria abordar estes benefícios e esta união àqueles que nela entrassem.
Só me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas serão explorados com
profundidade, e que não estamos perto de compreender com toda a certeza o que
acontece dentro da câmara nupcial, dentro da mentalidade original do autor.

3. O Contexto Histórico do Evangelho de Tomé

O objetivo do presente capítulo é situar o Evangelho de Tomé no espaço e no tempo.


Procurando as sensibilidades filosóficas e culturais que envolveram a sua palavra.
O significado dos seus ditos no contexto histórico do segundo século e o impacto da sua
reflexão na audiência que os escutava.
A perspetiva religiosa de Tomé assenta no ambiente da sua composição. A nossa
investigação pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode
ser interpretado legitimamente como tal36.
A unidade textual notada no razoável grau de semelhanças existentes entre os textos
gregos e coptas, e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possível
defender uma abordagem baseada na consistência de Tomé.
Segundo o texto de Pístis Sophia37, Jesus, após ter ressuscitado comissionou Filipe,
Mateus e Tomé a registarem as suas palavras por escrito.
No imaginário da tradição cristã, Tomé era considerado o fiador dos ensinos orais de
Jesus para poder elaborar um evangelho. Um trabalho literário com o seu nome -
“Evangelho de Tomé” - é conhecido na tradição desde o terceiro século.
Hipólito ano duzentos e trinta e dois d.C. no seu relato aos Naassenos menciona o
Evangelho de Tomé e cita várias passagens do texto.

35
Log 22
36
Cf. Gathercole Simon (2014), 10.
37
Capítulos 42 e 43
36
O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos célebres autores do
cristianismo: Jerónimo, Ambrósio e o Venerável Beda. Na língua grega Eusébio de
Cesareia situou o Evangelho de Tomé no grupo dos apócrifos de caráter puramente
heterodoxo, entre o Evangelho de Pedro e de Matatias.

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomé é uma coleção de ditos atribuídos a Jesus, que existem


num manuscrito copta bem preservado e em três fragmentos gregos. O manuscrito copta
termina com a expressão “o Evangelho segundo Tomé”. Os manuscritos fragmentados
gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897; o London Daily Graphic
publicou uma notícia de um rapaz de oito anos, Sabr’ Sair, “o rapaz que encontrou os
Logia”. Estes três fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus.
O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi, Egito em 1945, fazia parte de uma
coleção de doze códices. O Evangelho é o segundo texto do Codex 2, onde é precedido
por uma cópia do Apócrifo de João e do Evangelho de Filipe.
O papiro grego data do ano duzentos d.C. e o documento copta data da metade do
século IV d.C. Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidências para um
evangelho escrito mais antigo, originalmente em grego ou siríaco, provavelmente
proveniente da comunidade judaico-cristã falante de grego na Antioquia siríaca38.
Meio século depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto
de Nag hammadi. O texto copta divide-se em 114 ditos, com um prólogo no início e um
título - “o Evangelho segundo Tomé” - no final39.

A Língua Original de Tomé

A linguagem de Tomé começou a ser debatida com o surgimento do texto copta


onde alguns académicos consideraram que o copta era a língua original da composição
do evangelho40. Esta proposta foi refutada, e as três opções mais viáveis para a maioria
dos estudiosos são o aramaico ocidental, o siríaco e o grego41.

38
Cf. Valantasis R. (2007), 3.
39
"Thomas, Gospel of." In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible. ,edited by
Stevan
Davies. Oxford BiblicalStudies Online, (accessed 13-April-2017).
40
Cf. Gathercole Simon (2014), 91.
37
Existem alguns problemas a nível metodológico para identificarmos semitismos nos
textos gregos e coptas de Tomé. Primeiro porque muitos semitismos são insignificantes
num argumento para a composição de uma linguagem semita. Seria necessário que a
frase em questão não fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que
reciprocamente fosse aramaica ou siríaca do período da sua composição. Isto é difícil
uma vez que existem poucas inscrições siríacas dos primeiros dois séculos42.
O Evangelho de Tomé pode assim ter sido escrito originalmente em grego, existindo
alguns pontos que podem sustentar esta afirmação.
Existem 27 palavras gregas nas seções paralelas da versão copta. No manuscrito copta
encontramos uma densidade considerável de palavras gregas praticamente por todo o
texto.
Podemos ainda considerar o testemunho de Tomé e as evidências materiais dos
manuscritos. O facto de termos três fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a
língua grega a língua de origem de muitos trabalhos antigos, preservados em
manuscritos coptas, indica que o grego pode ser a língua original do Evangelho de
Tomé.
A maioria dos evangelhos daquele período foi composta em grego; apenas os
evangelhos tardios começaram a ser escritos em latim e copta, mas esses não são
relevantes para o período histórico de Tomé.
O Evangelho de Marcos, Lucas e João foram redigidos originalmente em grego, e os
documentos relacionados com Tomé também são considerados originalmente gregos: o
Evangelho de Judas, o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria; o Evangelho de
Filipe também é atestado como composição grega apesar de ter interesses em temas
siríacos43.
Podemos assim concluir que a existência de manuscritos gregos e a ausência de
manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomé originalmente é um texto grego, sem
originais siríacos ou aramaicos.

A Data de Tomé

41
Cf. Idem, 91.

42
Cf. Idem, 92.
43
Gathercole Simon (2014), 97.
38
Situar o Evangelho de Tomé no espaço temporal tem-se revelado uma tarefa
complexa para os académicos44. Os dados papirológicos reunidos até então tendem a ser
datados até ao terceiro século. O testemunho histórico mais antigo está em Hipólito,
onde “o Evangelho segundo Tomé é mencionado, e uma citação simples é fornecida”,
em Refutatio 5.7.20-2145. O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta
e cinco d.C.
Por estes elementos o Evangelho de Tomé situa-se entre duzentos a trezentos d.C. de
acordo com vários autores46; o melhor espaço histórico para situar o Evangelho de
Tomé, encontra-se no tempo após centro e trinta e cinco d.C. e antes do ano duzentos
d.C.
Esta linha temporal estabelece-se devido às influências literárias presentes no texto e à
confiança na não reconstrução do templo no lg. 71.
O papiro e a menção do Evangelho de Tomé em Hipólito fornecem-nos um terminus
ante quem de duzentos d.C início do terceiro século. As afinidades de certos elementos
de Tomé com outras obras literárias do segundo século são também pontos de segurança
para atestarmos esta datação.

A Origem do Evangelho de Tomé

Iremos agora tratar da proveniência do Evangelho de Tomé.


A maioria dos académicos situa Tomé na Síria47 e uma minoria propõe o Egito.
Faremos um breve comentário situando o evangelho na Síria, nomeadamente em
Edessa.
Quatro argumentos são essenciais para situar o Evangelho de Tomé em Edessa: (1) a
origem siríaca do nome ‘Judas Tomé’; (2) a receção siríaca de Tomé; (3) as afinidades
de Tomé com as formas textuais siríacas (4) as afinidades de Tomé com a literatura
siríaca como as Odes de Salomão e os Atos de Tomé.

O nome Judas Tomé

44
Gathercole Simon (2014), 113.
45
Citado em Gathercole Simon (2014), 113
46
Idem, 124.
47
A grande maioria dos académicos localizou a origem de Tomé na cidade de Edessa, na Síria.

39
Esta forma particular do nome indica uma proveniência siríaca, este nome duplo
aparece nos Atos de Tomé e no Livro de Tomé.
Apesar da diferente natureza destas obras, estão relacionadas entre si de uma forma
particular. Surgiram na Síria Oriental onde as tradições ligadas ao nome ‘Judas Tomé’
eram amadas e as obras literárias assim como as lendas eram associadas a este irmão
gémeo de Jesus48.
Judas Tomé ou Judas o Dídimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siríaco
Oriental. As versões siríacas do evangelho de João 14:22 leem “Tomé e Judas Tomé”
em vez de “Judas não o Iscariotes”. Isso demonstra que os escribas sírios identificaram
o outro Judas no Evangelho de João, ‘Judas o filho de Tiago’, em Lc 6:16 e At 1:13
com Tomé, que não tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradição cristã
ocidental.
O nome também aparece em fontes de origem siríaca como a lenda de Abgar, a História
da Igreja de Eusébio e a doutrina de Addai 5.
Os Atos de Tomé também originários da Síria Oriental e provavelmente escritos em
siríaco relatam a história do apóstolo Judas que é descrito como o ‘gémeo’ de Jesus49.
O nome Tomé é a transliteração da palavra aramaica que significa ‘gémeo’. Não
encontramos evidências que este nome era usado como nome próprio no grego,
aramaico ou hebraico pré-cristão e há claras indicações que foi entendido como um
apelido na tradição cristã siríaca50.
Podemos assim concluir que a tradição de Judas o irmão gémeo de Jesus terá nascido
provavelmente na Síria.
A nível da receção siríaca de Tomé o uso de Tomé nos Atos de Tomé, nos Atos de João
e no Evangelho de Filipe testificam que a influência de Tomé foi forte e até notável
nalguma literatura maniqueísta.
Existem vários paralelismos entre Tomé e as versões siríacas dos evangelhos.

As afinidades de Tomé com a literatura siríaca

48
Cf. Uro R. (2003), 9.
49
Atos de Tomé 31 e 39.
50
Cf. Uro R. (2003), 10.
40
As semelhanças teológicas entre a literatura síriaca e Tomé são impressionantes
nos trabalhos de cunho místico e ascético. Isto inclui literatura siríaca antiga como as
Odes de Salomão, Oratio de Taciano e os Atos de Tomé assim como depois alguma
literatura tardia, como é o exemplo da literatura de Macarius o Grande.
Alguns dos traços comuns entre o Evangelho de Tomé e os Atos de Tomé encontram-se
na figura do apóstolo Tomé. Em ambos os documentos o apóstolo teve “o privilégio de
ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesus” (Atos Tomé. 10,39, 47 e 78)

“Não ficarei mais coberto, visto “Quando vos despirdes e não vos
que o manto da vergonha me foi envergonhardes e tomardes os
tirado” vossos vestidos e os colocardes sob
os vossos pés…”
Atos de Tomé. 14.
Evangelho de Tomé 37b

O livro de Tomé e o Evangelho de Tomé afirmam apresentar as ‘palavras secretas’ que


Jesus disse a Judas Tomé.

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomé

Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomé tem sido uma


problemática desafiante entre os académicos. Isto por causa da brevidade de Tomé, o
seu conteúdo e a sua forma. Tomé tem sido considerado um documento do gnosticismo,
do judaísmo cristão encratita, da teologia sapiencial ou até uma expressão de
radicalismo social51.
Outros identificam Tomé como um produto do cristianismo siríaco primitivo, um
misticismo unitivo ou um produto valentiano.
No geral a tendência académica é encaixar o Evangelho de Tomé numa determinada
escola de pensamento. O problema é que Tomé não se enquadra em nenhuma das
‘heresias’ que chegaram até nós. É importante observar o documento nos seus próprios
termos, na sua própria mensagem, mesmo que isso implique existirem limitações.
O objetivo do nosso estudo é arrumar as crenças e as reflexões de Tomé, apresentando a
sua teologia central.

51
Cf. Gathercole Simon (2014), 144.
41
Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent:
Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo
significativo à leitura de Tomé.
A teoria da linguagem no contexto místico leva-nos a inquirir o significado da
linguagem e da poética da palavra na criação da realidade interior:
“E ele disse: Aquele que encontrar a interpretação destes ditos não saboreará a morte.”53
Existe logo na sua afirmação inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto,
pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontrará a imortalidade, o que nos leva a
ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomé; como mais à frente
será mostrado, este evangelho apresenta uma exegese feita a Génesis 1.
Abordando o relato da criação, o evangelho faz alusão à narração mais sagrada do
judaísmo rabínico, o relato da criação. Os judeus acreditavam que o nome da divindade
tinha poder, acreditavam também que quando a divindade falava, as suas palavras
continham um poder especial como aquele que aprenderam na história da criação em
Génesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida à existência.
Para um escriba familiarizado com estas tradições e estas crenças acerca dos poderes
divinos, se Deus criou o mundo através do discurso, que lições poderão tirar os exegetas
da história acerca do potencial uso criativo da linguagem?
No lg. 15 Tomé escuta três palavras da boca de Jesus que não pode revelar aos outros
discípulos: “se eu vos dissesse uma só palavra que me disse, apanharíeis pedras para
lançá-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiria”.
A palavra em Tomé transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte,
onde a interpretação proveniente de uma busca íntima e profunda permite ao fiel
desvelar novas realidades.
Assim a teologia do Evangelho de Tomé é fundamentalmente uma soteriologia54 assente
na interpretação dos ditos de Jesus. Não se trata apenas da sabedoria comum; os eleitos
têm a sua origem no reino da luz, o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomé fornece as
instruções necessárias para cada um retornar ao reino desse Pai.
A figura do Pai é uma figura proeminente no Evangelho de Tomé sendo mencionada 21
vezes. Não é caraterizado como um agente em contraste com Jesus, o texto carateriza-o
como “um movimento e um repouso” como o eleito (lg 50).

52
Cf. Janowitz Naomi (1989).
53
Ev Tm lg 2.
54
Cf. Gathercole Simon (2014), 145.

42
O Pai tem uma “imagem de luz” (lg 83), ele tem uma “vontade” (lg 99) e um Reino (lg
57; 76; 96-99; 133).
Nos evangelhos sinóticos o Reino foi “preparado” por Jesus (Mc 10:40; Mt 25:34;
Mc10:40; Mt 20:23). Tomé fala de um Reino paradisíaco de luz pré-existente, ausente
de localizações geográficas no cosmos. Este reino é associado com a “luz” (lg 49-50),
estando dentro e fora dos eleitos (lg 3); eles vieram e voltarão para lá (lg 49).
Este reino pode ser achado (lg 27a; 49), é possível entrar nele (lg 22; 99; 114; cf. 39;
64;75), e é possível estar longe dele (lg 82).
Quando os discípulos falam sobre a vinda do reino (lg 113), Jesus respondeu-lhes que o
reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113).
Em Tomé o Reino é o paraíso primordial sempre presente (lg 18-19), que não pertence
aos ricos nem aos poderosos, mas aos pobres (lg 54) e àqueles que são como as crianças
(lg 22; 46)55.
Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) é uma realidade visível embora se
encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113).
A criação do mundo em Tomé está apresentada numa elaborada exegese às narrativas
da criação no livro de Génesis56.
Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos
no texto, sem considerar os simbolismos e as especulações filosóficas da exegese a Gn
1. Nalgumas ocasiões o criador é referido em termos femininos: “Adão chegou a ser por
um grande poder e uma grande riqueza”57, “a minha mãe verdadeira deu-me a vida”58.
Esta mãe é aqui apresentada como a verdadeira mãe de Jesus; este termo assim como ‘a
mãe’ no lg 105 podem sugerir a figura do Espírito59, envolvida na criação.
O tratamento da queda no Evangelho de Tomé expressa-se em duas esferas: queda
desintegrada e queda para baixo60. Em relação à primeira Jesus afirma, “no dia em que
éreis um chegastes a ser dois”61. Jesus veio do lugar indivisível (lg 61), e não é um
divisor (lg 72).

55
Cf. Idem, 146.
56
Cf. Pagels H. E (1999).
57
Ev Tm lg 85.
58
Ev Tm lg 101.
59
Cf. Gathercole Simon (2014), 146.
60
Idem, 147.
61
Ev de Tm lg 11.
43
A conceção da queda como uma separação encontra-se presente no mito da criação
valentino e nas exegeses filosóficas helenistas ao mito da criação do Génesis.
Para Tomé a recuperação da unidade primordial é a tarefa chave para o discipulado do
eleito.
Quanto à segunda esfera da queda para baixo, esta relaciona-se com o espírito descer ao
corpo humano, como Jesus afirma: “Eu, no entanto, maravilho-me com isto: como esta
grande riqueza ficou nesta pobreza”62.
Isto relaciona-se de forma explícita com a queda de Adão e a sua morte (lg 85).
Encontramos aqui uma conceção da queda humana com implicações mundanas para o
ser humano. Contudo importa dizer que nada disto está explicitamente associado ao
conceito de pecado, um tópico pouco presente neste evangelho. A causa da queda é um
mistério, sem qualquer explicação.
No ambiente intelectual de Tomé existiam um número de opiniões sobre o assunto e
várias correntes de pensamento tentaram explicar porque é que as almas desciam aos
corpos.
Eram várias interpretações a duas obras da altura Timeu e Fedro. Alcino listou quatro
motivos: as almas seguiam o seu turno numa sequência numerada, ou pela vontade dos
deuses, pela intemperança, ou pelo amor do corpo; o corpo e a alma têm uma afinidade
entre si, como o fogo e asfalto63. Outro documento da mesma época Lamblichus’s De
Anima 2364 discute vários relatos das atividades que induzem a alma a descer
apresentando as seguintes: uma espécie de desejo por independência (Plotino), voo de
Deus (Empédocles), e o resto consiste na mudança (Heráclito), desarranjo e desvio
(gnósticos), e julgamento errado do livre arbítrio (Albinus).
Nesta riqueza de pensamentos torna-se difícil relacionar o pensamento de Tomé; é
necessário aludir estes dois pontos: “o todo proveio de mim” de Jesus (lg 77) que indica
que deu uma queda da luz ou do elemento pneumático e não foi um ato positivo da
criação65.
O segundo ponto atribuído por Lamblichus a Heráclito que as “almas viajam estrada
acima e estrada abaixo e para eles, permanecer num lugar é trabalho, mas mudar é
repouso” pode ser associado com a noção de “repouso e descanso” de Tomé.

62
Ev de Tm lg 29.
63
Cf. Gathercole Simon (2014), 147.
64
Dilon. (2002), 49
65
Cf. Idem, 148.

44
O “sinal do Pai” nos eleitos (lg 50) e como já foi referido o lg 77 fala de ambos “os que
proveem” de Jesus (cf. a “estrada abaixo”) e “estendem-se” para ele (cf. a “estrada para
cima”).
O mundo é retratado no Evangelho de Tomé como um cadáver (lg 56), implicando uma
ideia de morte. Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo, no ar ou no
mar (lg 3). Jesus lançou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia,
acrescentando “espada e guerra”.
Podemos afirmar na sua essência que o mundo é entendido como o objeto sobre o qual
os eleitos estão de passagem (lg 42); é um cadáver (lg 56) que deve ser renunciado (lg
110). Todos estes elementos atribuem uma conotação negativa ao conceito de mundo.
O “todo” proveio de Jesus e foi identificado com Jesus, e a “terra” é o lugar onde o
reino se expande (lg 113).
O pensamento que Tomé tem do corpo reflete a sua visão do mundo. Existe um certo
contraste entre a alma e o espírito por um lado e o corpo ou carne por outro.
Como já foi referido na discussão acerca da queda, Jesus expressa o seu
maravilhamento em relação ao facto da grande riqueza do espírito vir a ocupar uma
posição de pobreza na carne (lg 29.c).
Tomé sugere que esta habitação é uma doença, afirmando, no entanto, a múltipla
dependência da carne e da alma (lg 112). Existe um contraste entre o exterior a imagem
física de um lado, e a imagem espiritual pré-existente por outro lado (lg 84).
É importante sublinhar que estas duas realidades são apresentadas não como uma
oposição, mas como estados do ser66, o corpo é neutro na mundividência de Tomé.
A revelação de Jesus é apresentada em Tomé com caraterísticas únicas. Jesus é
encarnado: ele é fundamentalmente “luz” (lg 77), mas também entrou no mundo como
“carne” (lg 28).
Existe a noção de que o discípulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o discípulo
nunca deve chamá-lo “mestre” (lg 13), no entanto Jesus retém em si a transcendência.
Ele é o agente da eleição (lg 23) e do juízo (lg 10; 16), os eleitos são seus discípulos (lg
55) e estão debaixo da sua liderança (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito
(lg 100). De forma suprema ele é a luz acima de tudo e em tudo (lg 77).
Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser
espiritual feminino (lg 105).

66
Cf. Idem, 151.

45
Central para a cristologia de Tomé é a sua identidade como revelador, Jesus é a única
fonte de revelação no evangelho (lg 38).
O formato do evangelho (Jesus disse…, Jesus disse…, Jesus disse…) chama a atenção
para este ponto67, as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta
revelação confiada a Tomé, que deve ser entendida corretamente como sendo um meio
para escapar da morte.
O conhecimento é o tema central no trabalho interpretativo de Tomé. Aparecem várias
variantes da palavra conhecimento no evangelho, sendo que das 25 vezes ocorrencias,
20 possuem um significado teológico68.
Há um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38). As
referências em especial ao autoconhecimento são discutidas pelos autores; por um lado
defendem a experiência profunda do autoconhecimento nas suas dimensões
psicológicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensão
do ser no grande esquema teológico das coisas70.
A salvação depende deste conhecimento acerca de si próprio que Jesus revela no
Evangelho de Tomé. O estado de salvação tem sido retratado de várias formas, tais
como, a visão do Pai, a ascendência sobre o cosmos, viver num estado de unidade e de
“repouso”.
Como será apresentado na experiência mística de Tomé, as experiências visionárias (lg
59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5; 15; 27; 37; 38; 84).
A interpretação textual e as técnicas místicas visionárias associadas a exegese mística
assumem uma pré-condição para a salvação no Evangelho de Tomé.
O “repouso” é uma noção importante (lg 51; 60; 90) ao sinalizar a libertação das
tentações mundanas e a liberdade do jugo do discipulado.
Concluímos assim o levantamento histórico das ideias que constituem o pensamento
religioso do Evangelho de Tomé. Este quadro temático constitui um guia para a teologia
de Tomé e também uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos
comportamentos, práticas e crenças associadas às comunidades que utilizavam este
evangelho.
Algumas das tradições presentes no Evangelho de Tomé são desde já reconhecidas por
estudantes de literatura siríaca como expressões de fé desenvolvidas no cristianismo
67
Cf. Gathercole Simon (2014), 152.
68
Idem.
69
Cf. Hartin P. J. (1999), 1001-1021.
70
Cf. Gathercole Simon (2014), 152.
46
oriental71. Alguns traços ideológicos presentes são a ausência da morte vicária de Cristo,
a ausência da ênfase no pecado e na redenção descrita com linguagem sacrificial ou
jurídica. A salvação é antes descrita como um retorno à condição paradisíaca original
que se perdeu na queda. Os escribas siríacos não viam uma interrupção radical entre
deus e o humano. Habitando num mundo de corrupção e morte, o ser humano era antes
encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino.
Edessa era uma importante confluência de rotas de caravanas. As vias de Antioquia para
Edessa e de Edessa para Nísibe e para a India transportaram para além de bens
materiais, pensamentos religiosos e filosóficos72.
Foi neste tipo de ambiente cultural e ideológico que o Evangelho de Tomé ganhou
forma, respirando conceitos, figuras, experiências e realidades contidas na sua
linguagem e nas suas palavras. Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas,
com o pensamento e a fé cristã, judaica e pagã.
Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora à análise do tipo distinto de
ensinamento religioso fornecido por Tomé.

4. O Evangelho de Tomé no Espaço e no Tempo

O Evangelho de Tomé deve ao ambiente do seu tempo a revolução do pensamento a sua


composição e a sua mensagem, isto porque antes de procurarmos relacioná-lo com o
misticismo judaico, ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar
quais são as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal
helenístico.
A ênfase no ‘eu’ individual, é sem dúvida a grande marca que como iremos demonstrar
iniciou uma série de mudanças no pensamento religioso.
Começaremos por apontar a transformação do pensamento religioso ligada ao fim do
sacrifício animal73, a extensão do domínio romano sobre o Médio Oriente74, o fenómeno
do misticismo visionário e a proeminência da exegese textual religiosa face ao rito,
assim como a interiorização do apocaliptismo.
O espaço geográfico de Tomé situa-se no antigo Médio Oriente, pelo que iremos apenas
mencionar alguns momentos chave da história da sua cultura e religião.

71
Cf. Uro R. (2003), 29-30.
72
Idem, 30.
73
Cf. Stroumsa G. Guy (2015).
74
Cf. Millar Fergues (1993).
47
Em duzentos a.C. após a estabilização política e o desenvolvimento económico, os
Selêucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Médio Oriente, o
Helenismo. Esta transformação cultural abraçou os níveis mais altos da sociedade, as
elites adotaram a língua grega e começaram a imitar a literatura, artes e arquitetura da
Grécia clássica.
Macedónios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas várias cidades existentes, os
nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis; estas
cidades tornaram-se centros da nova cultura e religião heterogénea helenista, com uma
profunda transformação cultural que manteve a sua influência até ao sétimo século com
a conquista islâmica75.
A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no
comércio, a diferença que encontramos não está na qualidade, mas na quantidade.
As condições climáticas favoráveis fomentaram a expansão da agricultura sobre regiões
extensas, incluindo franjas do deserto76.
Rotas comerciais foram estabelecidas para a Arábia e a China através da Pérsia e da
Ásia Central. Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selêucidas e os ptolomeus
que só viria a terminar com a anexação do Médio Oriente pelo Império Romano, este
período helénistíco foi um dos mais prósperos economicamente e a sua influência
cultural persiste até hoje.
O fim do sacrifício ritual apontou uma nova crítica ao ritual tradicional enfatizando a
nova importância central da ética na religião. Surgiram aqui as bases para a nova
dimensão universal da religião. Com a quebra do sistema tradicional ritualístico
surgiram as novas crenças e atitudes religiosas77.
Como acima referimos a possibilidade de difusão de ideias neste período histórico é
óbvia, assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo
helenistíco, as ideias e as crenças deslocavam-se no espaço e no tempo.
A mudança religiosa surgiu também pelas novas tecnologias, com a difusão dos
sistemas de escrita78; o desenvolvimento da escrita está diretamente relacionado com o
estabelecimento dos impérios e sociedades centralizadas79.

75
Idem, 206.
76
Millar Fergues (1993), 206.
77
Cf. Stroumsa G. Guy (2015), 25-27.
78
Cf. Idem, 27.
79
Idem.
48
Com o crescimento destas sociedades, a necessidade de elites escribas aumentou; educar
e treinar novas gerações de escribas permitiu à sociedade gerar livros que
posteriormente deram origem a livros sagrados. Estes livros eram tradições orais muitas
vezes esotéricas e pouco divulgadas.
A religião torna-se uma realidade inscrita no livro, torna-se uma religião portátil, que
viaja com o viajante.
De Jesus a Maomé assistimos a uma série de movimentos religiosos80 que brotam deste
meio cultural com os seus próprios livros sagrados. Creio que mais do que uma
revolução religiosa de novas possibilidades, estamos a falar de uma revolução textual.
Estas tradições geraram os seus próprios textos sagrados, redigiram comentários e
traduções a outros documentos. Toda esta tradição literária floresceu no espaço do
Médio Oriente e Mediterrâneo Oriental. Sendo assim necessário compreendermos como
é que o papel desempenhado pelo livro, rapidamente iria transformar todos os sistemas
religiosos deste espaço geográfico.
A criatividade destes documentos, e aqui sublinha-se a própria criatividade do
Evangelho de Tomé que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traços
velhas crenças e suposições.
O conceito de livro revelado contribui para grandes transformações na religião, os
primeiros séculos do Império Romano testemunharam a revolução mais radical na
história do livro até Gutenberg.
Esta revolução levou à passagem do rolo para o códex, no caso do cristianismo o códex
foi adotado instantaneamente. O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma
nova atitude perante o livro e os seus conteúdos introduzindo uma nova dignidade
reflexiva única para o seu leitor. Situação bastante privilegiada pelo Evangelho de
Tomé. Estas transformações apontam para a privatização da leitura, a relação entre o
texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos pública81.
Esta privatização permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenêuticas.
Por um lado, isto explica o ambiente criativo que gerou os vários textos religiosos deste
período. Quando pensamos na ênfase atribuída a um certo corpo literário tido como
divinamente revelado podemos começar a ver todo o tipo de implicações dramáticas
nesta revelação cultural da religião.

80
Por exemplo os cristãos, os judeus rabínicos, os gnósticos, os maniqueístas e os mandeus.
81
Cf. Stroumsa G. Guy (2015), 30.

49
O outro fator que moldou claramente o mundo das religiões e a sua cultura foi a
destruição do Templo de Jerusalém no ano setenta d.C.
A primeira consequência foi o nascimento de duas religiões que permanecem até aos
dias de hoje, o cristianismo e o judaísmo rabínico.
Este novo advento do judaísmo transformou a religião de Israel, tornou-se uma religião
sem sacrifícios, cujos sacerdotes perderam o seu papel. Os especialistas da religião
foram substituídos por uma elite intelectual de escribas.
O cristianismo assumiu-se como uma religião centrada no ritual do sacrifício celebrado
por sacerdotes, representada numa continuidade da religião de Israel. Este ritual era
chamado anamnesis a reactualização do sacrifício de Jesus.
Apesar de ser uma religião sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifício
de forma organizada por uma hierarquia, o vocabulário sacrificial de Israel foi mantido
pela igreja dos primeiros séculos.
Com a queda do Templo os rituais foram transformados: os sacrifícios diários foram
substituídos por orações. Como mais à frente iremos explorar, esta substituição e esta
dissolução do Templo no pensamento religioso judaico, levou a religião a cultivar uma
atitude mística e interior da busca do divino.
Sublinha-se o facto das ditas experiências visionárias e místicas estarem interligadas e
presentes em vários textos de tradições diferentes, os textos gnósticos, textos místicos
rabínicos, textos místicos cristãos e outras tradições pagãs.
O elo comum é o sentido de presença do divino, que pensando na questão da
individualidade e da experiência íntima da leitura, poderá ser uma consequência dessa
exegese interior.
A religião tornou-se mais internalizada e a participação religiosa passou a ser
intelectual, feita através da leitura82. No âmbito geral do Império Romano as formas de
ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras, que eram lidas e interpretadas,
oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal.
Em Roma a religião significara por muito tempo, quase exclusivamente, a observância
do ritual. A questão da verdade não estava presente na esfera religiosa. A internalização
e a individualização da religião transportaram o sagrado para a esfera privada.

82
Cf. Stroumsa. G. Guy (2015), 39.
50
Ao compararmos os evangelhos canónicos com Tomé, notamos algumas diferenças
significativas como as ausências da narrativa da paixão e morte de Jesus. Também não
encontramos os discursos apocalípticos e a retórica anti-judaica.
Porque é que estes elementos estão ausentes de Tomé? E porque é que estes elementos
estão presentes nos evangelhos canónicos?
Será Tomé apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradições primitivas
evangélicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova
perspetiva sobre as tradições?
A tradição apresentada nos evangelhos canónicos é tomada como garantida, original,
natural e normativa. A história canónica do cristianismo apresenta-se como a história
original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo, que foi rejeitado e crucificado,
ressuscitando ao terceiro dia. Esta é a narrativa histórica do Evangelho de Marcos, a
narrativa histórica dos sinópticos e também a narrativa do Evangelho de João.
O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomé na constituição da
história do cristianismo primitivo é percebermos aquilo que existe de comum entre os
evangelhos canónicos e o de Tomé.
O elo de ligação comum entre todos estes documentos é o facto de todos estes
documentos serem um reservatório de memórias cultivadas acerca da perceção que as
comunidades tinham da figura de Jesus.
Será que a memória canónica de Jesus foi a original, a história natural? Quando
recorremos às cartas de Paulo, também este enfatiza o nobre martírio e formula o seu
kerigma em função dessa memória.
Esta história foi interpretada num esforço para tornar significativa a memória de Jesus
num contexto cultural particular e à luz de uma experiência particular: a experiência de
ser dissidente no Império Romano83. Jesus foi executado como um dissidente do
império e esta memória era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam
relacionar. As suas histórias focaram-se assim no martírio de Jesus: na sua vida, morte e
ressurreição.
Mas será que esta foi a única forma como Jesus terá sido relembrado?
Neste capítulo a questão será respondida a partir de várias observações feitas ao
Evangelho de Tomé e a sua localização geográfica em Edessa, a região a leste do rio
Eufrates.

83
Cf. Patterson J. S. (2013), 10.
51
A memória de Jesus que foi cultivada neste evangelho é bastante diferente, e cremos
que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradição surgiu ser
completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canónicos84.
Edessa não era uma cidade romana, era uma cidade de estado independente, um espaço
comercial importante para as rotas de caravanas, onde pessoas de todo o levante se
encontravam. Estas diferenças refletem-se no texto e no contexto. O Evangelho de Tomé
parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham.

Vivências e Mentalidades na outra Margem do Eufrates

Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates, situando-se na


grande estrada que atravessava o deserto siríaco a sul e as montanhas da Arménia a
norte. Os seus habitantes falavam aramaico, sendo a cidade um centro de cultura
literária antes do advento do cristianismo85.
Ao longo da sua história até ao terceiro século Edessa passou por várias mudanças
políticas. O estabelecimento do governo selêucida na região sucedeu à dominação da
Pártia e à instauração de uma monarquia; depois seguiram-se a invasão de Trajano e a
subsequente rebelião, a invasão de Lúcio Vero, a rebelião de Abgar VIII e a sua
submissão a Septímio Severo. E finalmente a incorporação da cidade no Império
Romano como um município sobre o domínio de Caracalla em duzentos e doze e.c.86.
A resistência de Edessa ao domínio romano, durante o segundo século, pode ser
pensada em termos da sua afinidade com o “Oriente” – o reino Parta do qual foi aliado
durante dois séculos. A afinidade com Pártia desenvolveu-se durante o período em que
Edessa foi governada por uma série de reis com nomes árabes e falantes de língua
semita. A ligação a Pártia exerceu uma grande influência sobre a cultura de Edessa87.
A cultura de Edessa absorveu ainda assim traços da cultura helenista de outras cidades
siríacas. Em termos de fontes históricas, o registo literário começa com o trabalho de
Bardesanes de Edessa por volta dos inícios do terceiro século, quanto aos registos
físicos encontramos vários artefactos da Edessa pré-cristã, religião, arte arquitetura e a
organização da cidade. Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da
sociedade de Edessa e a sua cultura. No entanto não foi descoberto nada que dê uma
84
Cf. Idem, 11.
85
Cf. L. W Barnard (1968), 161-162.
86
Cf. Ross. K S. (2011), 83.
87
Cf. Idem.
52
evidência direta da situação antes do fim do segundo século 88. Em termos religiosos
Edessa possuía vários deuses gregos e semitas; a vida religiosa da Edessa pré-cristã teve
raízes profundas e as suas crenças e práticas não desapareceram com a chegada do
cristianismo. Os governantes de Edessa reverenciavam um panteão de divindades
semelhante àquelas que eram adoradas na Mesopotâmia e Síria, sendo possível
estabelecermos ainda ligações com a religião árabe e nabateia89. Os deuses babilónicos
importantes, Bel e Nebo, ocupavam um lugar de destaque no panteão de Edessa. Edessa
tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista. Os judeus em Edessa eram
recetivos ao cristianismo, isso refletiu-se na reminiscência histórica do cristianismo de
Edessa no seu desenvolvimento tardio. A localização de Edessa no tráfego comercial
das rotas norte/sul e este/oeste tornou a cidade num local multicultural no final do
primeiro século, onde elementos do oriente e do ocidente, norte e sul se encontraram e
se misturaram90.
Esta junção de judeus falantes do grego, que emigraram pelas rotas comerciais da Síria
– Palestina, foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Nísibis, onde nos
primeiros dois séculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura
intelectual e religiosa. O Evangelho de Tomé representa o desenvolvimento da tradição
de Jesus que teria sido no seu contexto, relevante no seu ambiente social. O texto
oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial, as fortunas
feitas e perdidas, a tentação do ser humano a emergir por completo na vida superficial
do comércio e dos seus vários prazeres efémeros.

“[Disse Jesus]: Se tendes dinheiro, não o empresteis a juros, mas dai-o […] àqu[ele] de
quem não recebereis91; Se não jejuais do mundo não encontrareis o Reino 92; Felizes os
pobres porque vosso é o Reino dos céus93; Jesus disse: estai de passagem94”

Podemos assim observar como Tomé fala do seu contexto cultural como um
entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida. A sabedoria contra cultural da
tradição de Jesus, revestida da filosofia platónica de renúncia ao mundo, é oferecida

88
Cf. Idem, 84.
89
Cf. Idem, 101.
90
Cf. Patterson. J S. (2013), 21.
91
Ev de Tm lg 95.
92
Ev de Tm lg 27.
93
Ev de Tm lg 54.
94
Ev de Tm lg 42.
53
como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente. Como já foi referido Edessa conseguiu
manter a sua independência face a Roma até duzentos e catorze e.c.; durante o tempo da
sua autonomia a cidade era um local relativamente pacífico onde judeus e cristãos
poderiam integrar-se na vida urbana, livres de conflitos com as autoridades cívicas. Esta
experiência foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram
no ocidente, no outro lado do Eufrates.
Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomé encontramos um ponto de
convergência entre a sua textualidade e as vivências e mentalidades dos seus leitores.
Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinóticos como a morte e a
ressurreição, o cenário apocalíptico, o situar a comunidade cristã no final dos tempos e
as polémicas com outros grupos judaicos (fariseus, saduceus e escribas) não estão
presentes em Tomé.
Estas coisas não estão presentes no Evangelho de Tomé porque não foram relevantes
para a realidade que o compôs. Aqueles que usaram este evangelho na Síria oriental a
leste do Eufrates não enfrentaram a morte nem a perseguição opressiva romana, por isso
não refletiram sobre a morte de Jesus. Eles não enfrentaram uma guerra cataclísmica
então não se voltaram para cenários apocalípticos que poderiam colocar este tipo de
violência num contexto teológico95. Parece-nos também que estes seguidores de Jesus
se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente
harmoniosa, sendo assim desnecessária a polémica anti-judaica nos seus textos.
O contexto fez a diferença, em Edessa a cidade comercial, um tipo diferente de
cristianismo cresceu encontrando uma ressonância nas vidas de homens e mulheres que
desejavam seguir a sabedoria de Jesus, de forma a escaparem da superficialidade da
vida mundana do comércio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e
valor a cada ser humano como “filho do Pai Vivente”.
O Evangelho de Tomé demonstra-nos que existiram múltiplas possibilidades de
interpretar a tradição de Jesus. A cruz e a ressurreição não eram o único foco possível
da pregação cristã primitiva, a vinda do apocalipse não era a única forma de imaginar o
futuro e a animosidade para com os judeus não era necessária para a definição da
identidade cristã.
A realidade influencia a religião que está ausente na narrativa de Tomé encontrando-se
claramente presente nos textos canónicos, narrando-se a história de Jesus como um

95
Cf. Patterson. J S. (2013), 25.

54
martírio, focando a fé nesse evento específico, fazendo parte de um drama cósmico no
qual os “judeus” são inimigos, não são apenas elementos naturais da tradição de Jesus.
Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado
dos acontecimentos contemporâneos e a experiência dos seguidores de Jesus como
dissidentes do Império Romano96. A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa
para Paulo porque ele interpretou a sua experiência desofrimento e humilhação, uma
experiência que ele acreditava em não ser possível evitar, se alguém quisesse abraçar
verdadeiramente a vida de Jesus97.
No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direção, outro mundo,
um mundo em que os seguidores de Jesus não eram dissidentes, não eram perseguidos
pelas autoridades, presos ou martirizados. As suas escolhas teológicas foram diferentes,
eles viram Jesus como um mestre de sabedoria, um anunciador de palavras este era o
Jesus destes cristãos, não era o messias crucificado, no qual Paulo encontrou a fé, este
Jesus era o “Jesus Vivente” cujo conhecimento podia guiar os fiéis até à fonte da vida, o
“Pai Vivente”. A fé de Jesus não se tornou apenas relevante para aqueles que se
encontravam no papel de discípulos dissidentes do messias dissidente crucificado.
A leste do Eufrates, para além das fronteiras do Império Romano a fé de Jesus tornou-
se relevante de outra forma, as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma sábia
de viver a vida, e sinalizou a esperança de que o mundo da compra e venda, do abraçar
da ambição e até a vida familiar não eram o fim de todas as coisas. Conhecer-se a si
próprio como “filho do Pai Vivente” representava uma escolha teológica bastante
diferente.
O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponíveis do
segundo século era profundamente influenciado pelo judaísmo cristão e o seu
pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulações antropológicas e
cosmológicas do neoplatonismo. O debate intelectual da época cercava os temas da
criação relatados no livro de Génesis. Sendo a exegese destes textos a base teológica da
crença religiosa do Evangelho de Tomé a um nível antropológico. Os padrões de
pensamento presentes no Evangelho de Tomé situam as suas ideias no judaísmo do
período intertestamental, nomeadamente nalguns textos escritos nesse período, sem os
quais a leitura de Tomé se torna difícil.

96
Cf. Patterson. J S. (2013), 26.
97
Cf. Idem, 30.
55
O tema de buscar e encontrar é muito frequente neste evangelho98; podemos afirmar que
esta temática é a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais
unificadores99.

O Pensamento de Tomé e o Platonismo

A localização geográfica do Evangelho de Tomé influenciou a sua textualidade e


o seu pensamento. Prova disso é a abordagem comum que partilha com os vários textos
cristãos primitivos de Edessa, que tendem a ler a tradição de Jesus de uma forma
platónica100.
Já apresentámos na secção 3.7 os elementos distintos da voz teológica de Tomé,
notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifício vicário e a teologia
centrada na interpretação e na iluminação dos ditos de Jesus. A distinção do espaço
geográfico de Edessa em relação ao Império Romano clarifica as mentalidades e as
vivências em ambos os contextos.
Os elementos fundamentais do pensamento de Tomé partem do seu núcleo primitivo,
assente no primeiro lógion: “Aquele que encontrar a interpretação destes ditos não
saboreará a morte”101. Tomé convida o seu leitor a uma certa hermenêutica de reflexão
sustentada, insistindo que “aquele que busca não cesse a sua busca até que encontre”102.
A estrutura textual de Tomé inclui no seu interior vários aforismos e parábolas, expostas
de forma a convidar o leitor à reflexão.
Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressão Tomé apresenta
apenas uma teologia sapiencial, contudo não temos aqui apenas um conjunto de ditos de
sabedoria.
A teologia sapiencial de Tomé encontra-se imbuída no pensamento platónico, em
concreto as variedades filosóficas do renascimento helenística do pensamento
platónico103.

98
Cf. Patterson. J S. (2013), 31.
99
Cf. Davies. L S. (1983), 37.
100
Cf. Patterson. J S. (2013), 14.
101
Ev de Tm lg 1.
102
Ev de Tm lg 2.
103
Cf. Patterson. J S. (2013), 15.
56
A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano: “o Reino está dentro de
vós e está fora de vós”104, “Conhece-te a ti mesmo” esta máxima de Delfos sublinha
corretamente a influência do platonismo em Tomé.
O contexto histórico do pensamento de Tomé sustenta-se na realidade das comunidades
de judeus helenizados, que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosófica.
Estas comunidades eram constituídas por judeus que falavam língua grega e liam a
Bíblia Hebraica em grego, a chamada Septuaginta ou tradução dos setenta. O aspeto
interessante desta dinâmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da
Setuaginta com a filosofia helenística do mundo greco-romano105.
Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Síria-Palestina para se
estabelecerem em cidades como Edessa e Nísibis. Adiabene com os seus reis e rainhas
judias situava-se mais a este106. Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros
dois séculos, desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que
prosperava nestas cidades107.
Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platão do outro; este interesse
filosófico também presente na textualidade de Tomé, expressa uma certa concorrência
entre Platão e Génesis.
Este ponto será abordado com mais detalhes na secção que trata a exegese de Génesis 1
na textualidade de Tomé .
Por agora podemos aferir que como Fílon de Alexandria, estas comunidades judaicas
helenistas interpretavam Gn 1:27 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era
masculino e feminino108. Era um ser andrógino, o masculino e feminino num estado
unificado do ser, era o estado paradisíaco primordial, para o qual um dia todos os seres
voltariam (lg 22)109.
Outra interpretação popular naqueles dias a Gn 2:7 apresenta ecos da antropologia
platónica: o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa
mistura complexa (lg 87; 112). Cada pessoa possui de igual forma um espírito, uma

104
Ev de Tm lg 3.
105
Cf. Patterson. J S. (2013), 16.
106
Cf. Idem, 21.
107
Cf. Jacob Neusner (1965).
108
Philo, Opif 134 em (Judaeus, 1993)
109
Cf. A.F.J Klijn, (1962), 271–278.
57
centelha de habitação divina que reside como estrangeira no íntimo do ser humano
mortal (lg 29)110.
Esta centelha também era considerada a imagem de Deus, o verdadeiro ‘eu’ escondido
dentro do ‘eu’ terreno (lg 84). Este conceito era familiar para o platonismo da época e
para os judeus helenistas dados à especulação filosófica111.
O objetivo desta tradição era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao
reino celestial do Pai, de onde todos os eleitos, ‘as crianças do Pai Vivente’
originalmente vieram (lg 49-50). Estes eleitos são o ‘povo da luz’ (lg 24; lg 61; 83),
“que vieram da luz” e um dia retornarão ao “lugar onde a luz procedeu de si mesma” (lg
50)112.
O Evangelho de Tomé representa assim um desenvolvimento da tradição de Jesus no
ambiente cultural, filosófico e religioso de Edessa. A sua textualidade oferece uma
perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial, as fortunas reunidas e
perdidas, a tentação de mergulhar na vida superficial e seus vários prazeres
passageiros113.
O pensamento de Tomé fala ao seu contexto cultural, com um claro entendimento de
vida bem vivida. Esta tradição de Jesus apresenta-se como uma sabedoria
contracultural, uma filosofia de traços platónicos que renuncia ao mundo.
Outras ideias como as de Taciano, Bardisano na segunda metade do segundo século e
os tardios Atos e Livro de Tomé, desenvolveram uma leitura platónica da tradição de
Jesus em Edessa114.
A linguagem e os conceitos platónicos foram assimilados nos primeiros dois séculos por
várias tradições filosóficas e religiosas. O Evangelho de Tomé inclui estas ideias: o
autoconhecimento, a presença do espírito divino que habita no íntimo do ser humano, a
identidade do eu interior com Deus – compreendida como a imagem de Deus ou a luz
divina de Deus, o objetivo espiritual do ‘repouso’ a ser alcançado no meio da vida
frenética e o retorno do espírito à sua origem celestial115.

“Quando vos chegueis a conhecer a vós próprios”

110
Cf. Patterson. J S. (2013), 16.
111
Cf. Jarl Fossum, (1985), 202–239.
112
Philo, Opif 70–71 em (Judaeus, 1993)
113
Cf. Patterson. J S. (2013), 22.
114
Cf. Patterson. J S. (2013), 22.
115
Cf. Idem, 37.
58
“Conhece-te a ti mesmo”, esta máxima délfica representa uma longa tradição na
filosofia grega, muito anterior a Platão. Podemos dividir esta tradição em duas
correntes: a mais antiga interpreta a máxima como uma limitação - conhece-te a ti
próprio, que és (apenas) humano - e a segunda em que Platão considerava esta máxima
à luz da perspetiva socrática, em que o verdadeiro ‘eu’, a alma, era como Deus. Nesta
interpretação o verdadeiro autoconhecimento só poderia surgir na contemplação da alma
no íntimo do ser humano.
Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de
Deus.
Esta interpretação enraizou-se entre os estóicos e os platonistas dos primeiros dois
séculos, como Posidónio e outros tantos que foram influenciados como Cícero, Séneca e
Epicteto. Para estes filósofos “conhece-te a ti mesmo” não era uma limitação, mas o
início da auto-transcendência, o ser humano ao conhecer-se a si mesmo, a sua parte
divina, ele conhecia o divino116.
Cícero oferece um exemplo ilustrativo:

“Pois aquele que se conhece perceberá, em primeiro lugar, que ele tem um elemento divino
dentro dele, e pensará em sua própria natureza interior como uma espécie de imagem
consagrada de Deus; E assim ele sempre agirá e pensará de uma maneira digna de um dom tão
grande dos deuses, e, quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo, ele vai entender
como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida, e que múltiplos meios que ele
possui para a obtenção e aquisição da sabedoria”117

Fílon de Alexandria, a voz judaica no reavivamento platónico, também abraçou este


entendimento acerca da mesma máxima:

“Conhece-te a ti mesmo, e as partes de que és composto, o que cada uma é, e para que é que foi
feita, e como se destina a trabalhar, e quem é que, todo invisível, invisivelmente coloca os
fantoches em movimento e puxa suas cordas. Quer seja a Mente que está em ti ou a Mente do
universo”118

116
Cf. Idem.
117
Leg 1.22.59. em (Judaeus, 1993)
118
De Fug 46 em (Judaeus, 1993)
59
Nesta passagem o autor expõe a sua ideia geral que a mente - νοῦς , em termos
platónicos, o elemento mais elevado da alma – permanece soberano sobre todos os
aspetos da existência sensorial e corpórea. Na sua exegese a Génesis 12:1-3, chamada
Migração de Abraão, interpreta alegoricamente a jornada, a mente, o ‘eu’ real despede-
se da existência corporal. A “terra” representa o corpo, o “parentesco” representa as
perceções dos sentidos e a “casa do teu pai” refere-se ao discurso. O ser deve despedir-
se de tais coisas, elevar-se acima delas e governá-las como um rei governa os seus
súbditos.
“Tu és um rei, escolhe-te de uma vez por todas para governar, não seres governado cada vez
mais, vens a conhecer-te a ti mesmo como Moisés te ensina em muitos lugares dizendo: ‘dá
ouvidos a ti mesmo’” 119

Somente deste modo a mente segundo Fílon de Alexandria começa a “conhecer-se e a


manter conversa com as coisas da mente”120. Nesta frase Fílon usa o termo platónico
mais caraterístico para o eu divino interior, mente (νοῦς). Ao discutir estes assuntos
noutras ocasiões121ele afirma que com disciplina é possível fazer com que a Mente se
retire para si mesma, abandonando o mundo do corpo e da perceção dos sentidos para o
mundo noético. Este mundo é o mundo da mente universal, e assim chegar á
contemplação daquele que é.
Neste processo o corpo tem pouco uso, é um cadáver, e a alma (ψυχή) é pesada por este
“casco de couro”122.
É neste oceano filosófico que se situa o pensamento de Tomé: a procura do verdadeiro
eu; a descoberta da verdadeira identidade com o divino, a depreciação do mundo e do
corpo como uma distração para o seu objetivo, e o uso de ascetismo e misticismo para
superar a existência corporal. Todas estas ideias e práticas compõem o platonismo dos
dois primeiros séculos.
Porém existem algumas sensibilidades históricas que não podemos ignorar, correndo o
risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomé.
Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem?
O grupo de Tomé adotou modos de expressão próprios do movimento de Jesus, não
empregando os termos técnicos do platonismo123.

119
MigAbr 8 (LCL: ConlsonandWitaker, trans.).
120
MigAbr 13 em (Judaeus, 1993)
121
Cf. Patterson. J S. (2013), 39.
122
LegAll 3.74; QuaestGen 4.77.
60
Eles não falam de “Mente”, mas de “espírito”. Falam de reinar, mas também de
descobrir o Império de Deus interior. Não afirmam tornar-se como Deus, mas afirmam
tornar-se como Jesus. Como ele, eles devem aperceber-se que são filhos do Pai Vivente.
O platonismo sem sombra de dúvidas deixou a sua marca no pensamento de Tomé.
Aqueles que cultivaram esta tradição especularam sobre a verdade acerca da natureza
humana e o seu destino.
O corpo e o mundo são os dois últimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do
pensamento platónico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomé.
“Jesus disse: Aquele que conheceu o mundo, encontrou o corpo, e o que encontrou o
corpo, o mundo não é digno dele.”124
Segundo o lg 80 o mundo é miserável porque é um corpo, tanto os platónicos como os
estóicos consideravam que o mundo era um corpo, ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125. Esta ideia
aparece primeira vez nos Diálogos de Platão, no pensamento da antiguidade o mundo
era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo. O mundo gerava os
nossos corpos, e uma vez que os nossos corpos teriam almas, o corpo do mundo
também era animado. Este conceito surge em Timeu onde o universo é chamado de
“céu” ou “terra”, por vezes é visível e tangível, por vez invisível. O mundo no
platonismo tinha duas constituintes, o corpo e a alma.
A leitura do lógion 80 faria assim numa primeira instância sentido à mente do leitor
antigo, o mundo tinha um corpo. Mas a segunda parte levantaria questões confusas, por
que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria alguém a concluir que o mundo era
miserável?
O lg 56 responde a essa questão: o mundo é miserável porque é um cadáver, um corpo
morto. O pensamento de Tomé alinha-se com o platonismo em relação ao mundo ser um
corpo, mas acrescenta que o mundo nada mais é do que um corpo.
Com isto o texto diz que o mundo não tem alma, não é um ser vivo, é um ser morto. E
esta mensagem é importante para o leitor de Tomé.

123
Cf. Patterson. J. S. (2013), 40.
124
Ev de Tm log 80.
125
Sextus Empiricus, Math. 9.79 = SVF 2.1013; Stoic. rep. 1054e–f: according to Chrysippus,
“the universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the
universe are not perfect, since their existence is not independent, but is their particular relation
to the whole” (trans. H. Cherniss); cf. Philo, Plant. 7: the world “is the largest of material bodies
(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί), and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material
bodies” (trans. F.H. Colsonand G.H. Whitaker).
61
Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contrário do
mundo ausente de vida, ele tem alma e é um ser vivo.
A compreensão que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o
discípulo mais digno do que o mundo.
A noção do mundo ser apresentado como um cadáver também era bastante popular no
pensamento platónico126.

O Evangelho de Tomé e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristão

A pertinência deste ponto de reflexão no presente trabalho deve-se a uma hipótese


apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomé se tornou disponível para a
investigação académica. O autor Gilles Quispel apresentou a hipótese de que um
montante significativo de lógia no Evangelho de Tomé era baseado num evangelho
judaico-cristão127.
Apesar de a hipótese não ter sido apoiada por muitos investigadores, o estudo
apresentado por Quispel apresentou semelhanças importantes entre o Evangelho de
Tomé e o evangelho da tradição judaico-cristã.
(1) Alguns dos logia de Tomé encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos
judaico-cristãos.
(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomé e dos evangelhos judaico-cristãos
incluem leituras paralelas nas tradições textuais ocidentais e siríacas.
(3) Alguns dos logia de Tomé baseiam-se em ditos semitas originais, o que sugere
uma ligação ao evangelho judaico-cristão.
(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomé (logia 12) e
no cristianismo judaico.
(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negócios.
Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependência literária entre
o Evangelho de Tomé e as tradições do evangelho judaico-cristão.

126
It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works: Epictetus’ Dissertationes
(1.19.9; 2.19.27; 3.10.15; 3.22.41) and Marcus Aurelius’ Meditationes (4.41; 9.24). As I have
already pointed out in chapter 2, Epictetus probably appropriated the notion that bodies are
corpses from contemporary Platonists; as for Marcus Aurelius, he explicitly states tha the
borrowed the notion from Epictetus. Cf. Clark, Seth A., "Know Yourself and You Will Be
Known: The Gospel of Thomas and Middle Platonism" (2014). CGU Theses &
Dissertations.Paper 92.
127
Cf. Luomanen Petri (2012), 200.
62
As seguintes passagens:

(1) Evangelho de Tomé, lg 2 (P.Oxy. 654. 5-9)/ /Clement, Strom. II IX 45.5; V XIV
96.3,
(2) Ev. Tomé. lg 99/Epifânio,Pan.30.14.5,
(3) Ev. Tomé, lg 39 (P.Oxy.655)/ Mateus 10:16. CodexNoviTestamenti 1424, ad
Mateus 10:16. Pseudo Clementinas. Rec. 1.54.6-7; Hom. 3.18.2-3.
(4) Ev. Tomé, lg 72/ Origen, comentário ev. Mateus. 15.14.

Faremos uma comparação linguística destes excertos e abordaremos dois aspetos da


Sabedoria e do Espírito que ligam os fragmentos judaico-cristãos aos escritos de Tomé:
a ideia de o Espírito ser a mãe de Jesus, e o próprio Jesus é a Sabedoria encarnada.
Esta tradição será a base para compreendermos a metáfora nupcial no Evangelho de
Tomé, sendo possível explorar as profundidades da experiência mística em Tomé.
Antes de iniciarmos esta análise é necessário discutirmos alguns dos pontos
estabelecidos em relação ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomé.
O Evangelho de Tomé situa-se na Síria mais concretamente em Edessa. A tradição do
nome do apóstolo Tomé relaciona o texto de Tomé com os Atos de Tomé e outras obras
de literatura siríaca. O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e é considerado
como o mais gnóstico dos três evangelhos judaico-cristãos128.
Este evangelho porém apresenta mais pontos de contato com as tradições de Tomé, isto
porque supostamente incluía um dito semelhante ao lg 2 de Tomé e P.Oxy. 654. 5-9
(ver Clemente, Strom. II IX 45.5; V XIV 96.3) e um dito que fala sobre o Espírito Santo
ser a mãe de Jesus (ver Orígenes, Comentário Evangelho Segundo João 2.12).
Este é um tema caraterístico do cristianismo siríaco proeminente nos Atos de Tomé (c.
7; 27; 39; 50). Algumas citações de Jerónimo em relação ao Espírito (ver Comentário
Isaías 11:1-3; Comentário Ezequiel 18.5-9 e em relação a Tiago o justo (ver Jerónimo,
Vir. Ill.2) também são atribuídas a este evangelho.
Os autores que se debruçaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o
judaísmo-cristão deste documento contém elementos gnósticos sincréticos.

128
Cf. Luomanen Petri (2012), 202.
63
Terei que discordar pois os elementos ditos gnósticos, como será demonstrado no
próximo ponto, enquadram-se na experiência mística judaica do primeiro e segundo
século.
A datação paleográfica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e
duzentos e cinquenta d.C.) e a data da citação de Clemente (duzentos e dois a duzentos e
quinze d.C.,) concordam mostrando que existem semelhanças antes do terceiro século.
Os cristãos judeus e os cristãos de Tomé utilizaram os produtos teológicos da mesma
cultura escriba, dando depois lugar à livre reinterpretação desses conteúdos.
Jesus é apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria; no lg 2 lê-se uma
exortação àquele que busca, para que continue a buscar até que encontre o repouso.
A descrição do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jerónimo ilustra
aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o
repouso em Jesus.

“Mas de acordo com o evangelho que foi escrito em língua hebraica e lido pelos nazarenos:
‘toda a fonte do espírito santo veio sobre ele’… Mais adiante no evangelho... ‘aconteceu então
quando o Senhor subiu da água, que toda a fonte do espírito santo desceu e descansou sobre ele
e disse-lhe: meu filho, eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria
descansar sobre ti, pois tu és o meu descanso, tu és o meu primogénito, que reinará na
eternidade”129

A descrição do batismo carateriza Jesus como o “repouso” ou descanso, e como “rei”.


Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcançou o estado ideal de todo
aquele que busca a Sabedoria – tal como é descrito no lg 2 e paralelos.
Não encontramos no Evangelho de Tomé alusões diretas ao batismo, mas no lg 90, onde
Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e “descanso” aos seus
seguidores.
Ainda no registo do episódio do batismo, os relatos sinóticos afirmam que se ouviu uma
voz “vinda dos céus”130. No fragmento do batismo de Jesus o Espírito Santo afirma ter
dado à luz Jesus, e esta afirmação assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho
dos Hebreus que descreve o Espírito Santo como sendo a mãe de Jesus.

129
Cf. Jerónimo, Comentário Isaías 11.1-2; N2GH: The Gospel of the Hebrews, minha tradução.
130
Mc 1:11; Mt 3:17 e Lc 3:22.
64
“Um instante atrás a minha mãe o Espírito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-
me para a grande colina, o Tabor.”131

O Espírito Santo também é caraterizado nos atos de Tomé como “mãe” (c. 7; 27; 39; 50)
geralmente associada como produto das tradições siríacas presentes no Evangelho de
Tomé. É importante referir que o Evangelho de Tomé não se refere diretamente ao
Espírito Santo como mãe, mas estabelece uma distinção clara entre a mãe terrena de
Jesus e a sua mãe verdadeira.
“…porque a minha mãe me gerou, mas a minha mãe verdadeira deu-me a vida.”132
Se identificarmos esta “mãe verdadeira” com o Espírito Santo, conforme está presente
nos fragmentos judaico-cristãos e nos Atos de Tomé, o lg 101 marcaria o início de uma
teologia do Espírito, teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomé.

5. A Experiência Mística Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomé

- Ele disse-lhes: o que tiver ouvidos para ouvir, que oiça. Há luz dentro de um homem de luz e
ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não ilumina, há trevas.
Lg 24b

O termo ‘misticismo’ longe de apresentar um significado específico tem várias


associações polimórficas. Sendo assim difícil isolar o seu sentido ao longo das eras e
culturas.
Podemos pensar no misticismo como o conjunto de práticas organizadas que foram
utilizadas para o contacto direto com a realidade divina. Como um ‘-ismo’, o termo
‘misticismo’ não é uma palavra êmica, nem uma palavra usada pelos antigos para
descreverem as suas experiências133.
Quando os judeus e os cristãos dos primeiros séculos da era comum descreviam as suas
experiências místicas eles utilizavam uma única palavra: apokalypsis, ‘apocalipse’ ou
‘revelação’.
A literatura deste período descrevia emicamente estas experiências religiosas, como
visões em vigília, sonhos, transes e experiências auditivas que podiam envolver uma

131
Orígenes, 2.12; N2GH: The Gospel of the Hebrews, minha tradução.
132
Ev de Tm lg 101.
133
Cf. De.Conick A. (2006), 2.
65
viagem ascensionária ou uma possessão. Estas experiências eram possíveis após certas
preparações e rituais serem realizados.
O culminar da experiência era transformador no sentido em que os místicos judeus e
cristãos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros
angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134.
É importante ressaltar que ‘misticismo’ é uma tipologia moderna, que faz parte do
nosso vocabulário analítico contemporâneo. Que temos vindo a impor às realidades
antigas para investigarmos a sua religiosidade.
O termo ‘misticismo’ no fenómeno religioso judaico é diferente daquele que utilizamos
para denotar o fenómeno cristão.
Não existe na língua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de
misticismo135.
O misticismo como categoria histórica permite-nos identificar uma tradição inerente ao
judaísmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar
antes da sua morte de forma direta e imediata, a realidade divina, ou como experiência
extática ou como prática provocada.
No âmbito historiográfico procuramos inquirir de que modo e com que meios, estas
expressões místicas moldaram as religiões e as culturas do seu tempo.
Estes místicos não distinguiam os êxtases repentinos das experiências provocadas por
eles próprios. Toda a experiência era ‘apokalypsis’, pura revelação, não havia a noção
de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristão.
O misticismo do Evangelho de Tomé é antes de mais a sua reflexão sobre a ‘revelação’
interior que o leitor alcança ao interpretar os ditos de Jesus.
Esta revelação interna assume dois pilares importantes para crescer na audiência de
Tomé.
Primeiramente existe a presença da exegese mística, esta exegese é mística porque
pretende na sua execução alcançar a imortalidade. Esta crença de que a exegese a um
texto sagrado pode levar o sábio ou o escriba a alcançarem revelação interna já está
presente no Judaísmo do II Templo.
A linguagem mística na tradição judaica está intimamente ligada às exegeses do relato
da criação no livro de Génesis, que como iremos ver é a exegese que compõe a maioria
do texto do Evangelho de Tomé136.

134
Idem.
135
Cf. Dan Joseph (2002), 7.
66
O segundo pilar é a experiência visionária, fenómeno que está desde os seus inícios
ligado à exegese de textos visionários da tradição judaica.
Temos assim três elementos usados no judaísmo do II Templo e presentes nos primeiros
três séculos nas tradições rabínica, cristã e até gnóstica.
Uma tradição mística bilateral fluiu do judaísmo e do cristianismo durante os seus anos
formativos. Após a destruição do Templo no ano de setenta d.C. a imagem visionária do
templo celestial, com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Essénios, era agora a
realidade para o cultivo da noção da presença de Deus em ambas as religiões.
As tradições cristãs e judaicas que emergiram nesta época deixaram as suas marcas na
literatura apocalíptica judaico cristã, nos escritos do teólogo judeu Fílon de Alexandria,
na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da
Palestina de Yohanan ben Zakkai137.
Estas correntes de misticismo apresentam traços comuns que foram a base da Mercavá e
da especulação hekhalot138.
Estas tradições foram absorvidas nas trajetórias farisaicas e tanaítas, nalgumas formas
de cristianismo, em escolas gnósticas e em materiais cabalísticos tardios.
Como já tínhamos discutido na secção da transformação da religião, o aumento da
literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulação
hermenêutica. Esta vasta literatura mística que no modo como chegou até nós,
representa as várias opiniões, interpretações e experiências das diferentes comunidades,
muitas das quais não tinham uma ligação histórica direta com a religião do judaísmo do
II Templo mas foram influenciadas pela simbólica do Templo.
A crença fundamental desta época era que o divino podia ser experimentado, os cristãos
fundamentavam esta crença na sua leitura e exegese das escrituras. Foi esta crença que
levou os cristãos e os judeus nos períodos formativos a produzirem novos textos que
iriam caraterizar como escrituras “reveladas”. Estes textos continham gnosis celestial,
os razim ou “mistérios” de Deus. Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e

136
Cf. Pagels, E. H. (1999), 477- 496.
137
Cf. De.Conick. A. (2006), 3.
138
Hekhalot carateriza a experiência mística judaica em que um ser humano ascende ao céu
numa carruagem divina, ele olha diretamente para Deus e é transformado numa criatura que
vagueia pelos rios de fogo celestial. A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos
esotéricos e revelatórios judaicos produzidos entre a antiguidade clássica tardia e os inícios da
Idade Média.
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa “palácios”. Sendo assim a literatura dos
palácios celestiais, é de notar a forte ligação que estes documentos têm com a literatura gnóstica
e apocalíptica, descrevendo a experiências espirituais autoinduzidas. Cf. Davilla. (2001), 2.
67
cristãos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas
bíblicas sob a autoridade de uma revelação entregue por um anjo celestial ou uma
autoridade primeva139. Estes textos de várias formas são contra relatos dos textos
tradicionais, recompondo as histórias a partir de uma nova hermenêutica para uma
audiência contemporânea.
Nestes novos textos, os cristãos e os judeus partilharam as suas revelações das coisas
ocultas do passado, presente e futuro, reinterpretando e reescrevendo o passado de modo
a que este servisse as suas experiências presentes e as suas esperanças futuras.
A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade é o núcleo daquilo que
podemos chamar a textualidade mística de Tomé.
Ao que parece o conhecimento do sagrado provém da experiência direta de Deus,
conhecendo-o face a face. Este encontro era tido como experimental, e transformativo,
situando o seu adepto para além dos limites comuns da perceção e dos sentidos.
Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua fé a novas compreensões e
revelações, permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histórias
encobertas no interior das suas escrituras sagradas.
É aqui que surge a linha de interseção entre a exegese e a experiência.

Aspetos específicos da experiência mística judaica

A tradição mística judaico-cristã primitiva baseava-se numa hermenêutica distinta,


tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais: Gn 1-3; Ex 24:33; Ez 1:8; 10;
40-48; Dn 7 e Is 6.
Ao longo da história as ênfases e os elementos desta hermenêutica variaram na literatura
produzida, mas vários temas cosmológicos destacaram-se em todos os períodos.
A proeminência destes temas pode ser traçada nos textos canónicos e extra canónicos e
na literatura apocalíptica do período do Segundo Templo. Estando ainda nos
Manuscritos do Mar Morto, em Nag Hammadi, e no corpus da Mercavá e hekhalot.
Não é possível traçar com exatidão histórica uma progressão linear desta abundância de
temas num material tão vasto. O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da
evolução das noções culturais é o sublinhar da constante repetição de ideias e temas em
textos de épocas diferentes.

139
Cf. De Conick A. (2006), 7.
68
Estas temáticas representam coletivamente a ‘cosmovisão’ ou a cosmologia que sustenta
as discussões místicas do judaísmo e cristianismo formativos. Esta cosmologia está
associada às antigas tradições sacerdotais e à mística do Templo140.

A Glória do Trono

A Glória de Iahweh é a primeira temática no debate místico judaico, o ponto central


desta cosmologia é a crença de que Deus tem um ‘corpo’, chamado ‘Glória’.
Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas, particularmente
secções do profeta Ezequiel que descrevem as suas visões de uma figura entronizada
“com a aparência de um homem (adam)”, um homem cuja semelhança parecia o “fogo”
com “resplendor ao seu redor”. Esta era a “aparência da semelhança da Glória (Kavod)
de Iahweh”141. Esta figura era a própria manifestação do Iahweh oculto, retratado nas
escrituras como uma figura antropomórfica de fogo ou luz142.
É retratado a presidir sobre a ordem criada, sentado na sua Mercavá, um trono especial,
feito por dois querubins.
No período literário que estamos a estudar, o Deus que está sentado no trono celestial é
apresentado como a manifestação de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristãos.
Descrições luminosas e antropomórficas do Deus “oculto” são o culminar de várias
histórias que descrevem viagens celestiais e visões de Iahweh entronizado. A luz está
sempre presente nas descrições e imagens destes textos.
O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente, a sua face emite
brilhos143. Os textos descrevem o haluq em que o robe é descrito como o mais santo,
assustador e terrível, emitindo tremores, terror e vibração. No interior e no exterior desta
veste, do topo para o fundo, o tetragrama encontra-se gravado.
Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras
cristologias cristãs. Paulo descreve Jesus como a “imagem” ou a “forma” de Deus (2 Co
4:4, Col 1:15; Fp 2:6). No Evangelho de João, Jesus é retratado como a Glória de Deus
que desceu dos céus à terra (João 1:14; 2:11; 11:40; 12:23, 28, 41; 13:32; 17:1-5, 22-

140
Cf. Elior Rachel (2004).
141
Ez 1:28.
142
Ez 1:27-28; Is 6:1-4.
143
1 En 14:18-21; 2 En 22:1-4; 39:3-8.
69
23). Também encontramos descrições de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do
templo celestial (Hb 3:1; 4:14-16; 5:1-10; Ap 5:6-14; 7:13-8:1; 14:1-5)144.

O Templo

A dimensão celestial era compreendida como uma versão celestial do Templo de


Jerusalém. Os vários céus eram as várias salas ou santuários dentro do templo, os
Hekhalot. Ao aproximar-se do céu mais elevado, cada sala sucessiva é mais santa do
que a última, o Santo dos Santos era o espaço onde a manifestação de Deus residia.
Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete. A associação com o número sete
parece combinar com as sete esferas planetárias com aspetos do Templo. Sete portais,
sete degraus, os sete braços da menorá145.
E até sete níveis enumerados pelo Rabi José: a área dentro da balaustrada, o átrio das
mulheres, o tribunal de Israel, a corte dos sacerdotes, a área entre o altar e a entrada do
templo, o santuário e o Santo dos Santos146.
A dimensão mística do pensamento para lá do véu do Templo, o apokalypsis,
desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristãos às promessas escatológicas
não realizadas.
As suas raízes situam-se no mito judeu do período do Segundo Templo acerca da
criação da humanidade.
Esta leitura de Génesis 1:3 em grego interpretou a palavra phos que significa “luz” e
“homem”, quando Deus disse: ‘Haja phos!” Ele criou o luminoso homem celestial de
luz147.
Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adão Cósmico sendo
percebido como a imagem de Deus. Segundo esta exegese também presente no
Evangelho de Tomé esta imagem foi trazida à existência no primeiro dia da criação. As
tradições místicas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser
Bereshit como “o criador no início”.148

144
Cf. De Conick A. (2006), 14.
145
Antiguidades Judaicas 3.6.7; Guerras Judaicas 5.5.5; 7.5.5 Cf. (Josefo, 2004)
146
Cf. Neher André (1951), 73-76.
147
Cf. De Conick A. (2006), 19.
148
Cf. Idem.
70
Este mito defendia que o ser humano foi criado à semelhança do Anthropos, como o
primeiro ser humano foi criado à imagem de Deus no relato de Génesis; Adão deve ter
sido um reflexo da Kavod.
Os mitos que surgiram à volta desta exegese redefiniram o pensamento gnóstico.
Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do
que o Sol149. O seu corpo era semelhante ao Anthropos cósmico, imenso ao ponto de
encher todo o universo de um extremo ao outro150

“Quando o Santo, bendito seja Ele, criou Adão, Ele o criou hermafrodita [bi-sexual],
pois é dito: Macho e fêmea os criaram e chamaram de Adão (Génesis 2, 2). R. Samuel
b. Nahman disse: Quando o Senhor criou Adão Ele o criou de dupla face, então Ele o
despedaçou e o fez de duas costas, uma de volta deste lado e outra de volta do outro
lado (...) R. Joshua b. R. Nehemiah e R. Judah b. R. Simon no nome de R. Leazar disse:
Ele o criou enchendo o mundo inteiro. Como sabemos que ele se esticou de leste a
oeste? Porque é dito, 'Vós me formastes atrás (ahor) e antes (kedem)”151

Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adão, sendo então a prioridade do
pensamento religioso retornar a esta imagem radiante, da glória antes da queda. Muitos
cristãos e judeus pensavam nos primeiros séculos que a piedade era a chave
transformadora da alma. Ao viverem uma vida de obediência aos mandamentos
conseguiriam restaurar a glória de Adão na morte; isto ensinavam pela doutrina da
ressurreição dos mortos. A outra doutrina que é enfatizada pelas tradições místicas e
também no Evangelho de Tomé é a restauração da pessoa por completo num corpo de
forma angélica que reflete a Imagem de Deus152.
Para estes judeus e cristãos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da
morte, o paraíso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente.
Este paradigma mitológico era vivido fora do contexto literário, quando examinamos os
Manuscritos do Mar Morto, os relatos de Fílon de Alexandria sobre os Terapeutas e as
epístolas paulinas. Encontramos testemunhos em primeira mão de comunidades
envolvidas em atividades religiosas direcionadas à transformação mística do corpo no
momento presente. Tendo como consequência a elevação do adepto à adoração na

149
Cf. Idem, 20.
150
Génesis Rabbah 8:2; 21:3; 34:2; Levítico Rabbah 14:1; 18:2. Minha tradução.
151
Génesis Rabbah 8:1-3.
152
Cf. De Conick A. (2006), 21.
71
liturgia dos anjos. Muitos dos primeiros cristãos contemplaram as suas próprias
ascensões ao céu e as transformações corporais, acreditando que a exaltação e
transformação de Jesus abriu-lhes os céus153.
Estas foram algumas das experiências que os cristãos promoveram: viagens celestiais
antes da morte e uma total transformação no momento presente (Evangelho de Tomé:
15; 19; 37; 50; 59; 83; 84; 108).
As experiências apocalípticas deslocaram-se para o interior do místico, moveram-se da
esfera do futuro para o presente e do evento apocalíptico externo e cósmico para uma
experiência interior. Nestas experiências o visionário inicia um processo de
transfiguração.
Neste pensamento místico o templo não “estava” no céu, os seus sete santuários são os
céus. Nestas fontes a ascensão ao céu era vista como uma viagem através das dimensões
de um templo cósmico até ao seu santuário mais íntimo onde Deus aparece na forma de
uma vasta figura masculina de fogo ou luz, chamada de “poder” ou “glória”, sentada no
trono de glória, também chamado “carruagem”154.

A Merkavá

O termo Merkavá deriva de 1 Crónicas 28:18, onde refere a “carruagem do querubim”


que transportava a arca da aliança no Santo dos Santos. O texto central desta tradição
mística tardia foi Isaías 6, onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos
Santos do Templo. O serafim que Isaías viu acima do trono correspondia ao querubim
de 1 Crónicas 28:18 cujas asas se estendiam sobre a arca.
O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca, como
as fontes esotéricas mais tardias referem155.
Algumas das raízes da Mercavá estão relacionadas com a ausência física do Templo de
Jerusalém. Quando no exílio da Babilónia os judeus não tinham acesso ao templo físico
de Jerusalém, as visões do profeta Ezequiel descreveram a “Glória entronizada”, que se
movia em rodas maravilhosas povoadas por “seres viventes” identificados em Ezequiel
10:14-15 com o querubim do Templo.

153
Cf. Idem.
154
Cf. Jones-Morray R.A Christopher. (2006), 145.
155
Cf. Scholem. G Gershom. (1965), 20-30.
72
Esta visão tem uma ideologia poderosa, foi uma resposta à negação do acesso à
presença judaica ao seu templo. Ezequiel deu uma garantia de que era possível aceder-
se ao templo por outros meios156.
A ocorrência mais antiga que temos do termo Mercavá associada à visão de Ezequiel
encontra-se em Ben Sirá 49:8: “Ezequiel contemplou uma visão de glória, que Deus lhe
mostrou sobre o carro dos querubins”. O primeiro relato detalhado que temos sobre uma
ascensão ao céu ocorre em 1 Henoque 14:8-25.
Nesta viagem Henoque entra num templo que é uma estrutura tripla, que consistia em
duas casas concêntricas cercadas por um muro. Esta estrutura corresponde ao santuário
de Jerusalém, as duas “casas” correspondem ao edifício do santuário e ao Santo dos
Santos, o muro corresponde ao muro dos pátios interiores. As rodas do trono de Deus
identificam-se com a Mercavá de Ezequiel e o querubim do mesmo verso é o ser
vivente do profeta Ezequiel.
A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de três céus,
o céu mais elevado é o lugar da “grande glória” o Santo dos Santos. A ideia de o
universo ser um templo que corresponde à estrutura do Templo de Jerusalém manteve-
se presente nesta literatura157.
Como Fílon de Alexandria afirmou “o universo inteiro deve ser considerado como o
mais elevado e, na verdade, o santo Templo de Deus. Como santuário tem o céu, a parte
mais sagrada da substância das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas
como sacerdotes, tem anjos, ministros de seus poderes.”158
É neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e
a adaptação destas tradições do judaísmo rabínico. Nestes textos são dadas instruções e
descrições da viagem visionária através dos sete canais159, “palácios” ou “templos”
concêntricos até ao Santo dos Santos celestial onde a Glória aparece sobre a Mercavá.

156
Cf. Jones-Morray R.A Christopher. (2006), 147.
157
Cf. Himmelfarb Martha (1993), 72.
158
Cf. Philo, Spec. 1.66, trans. Hayward C T. (1996), 109.
159
No primeiro século da era comum, a cosmologia séptupla tinha substituído o modelo
tripartido, apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraíso (Santo dos Santos)
com o terceiro céu. O modelo séptuplo encontra-se nas fontes rabínicos, embora menções aos
três céus também estejam presentes. Como já tinha indicado acima a correspondência entre o
cosmos e a estrutura do templo está implicada em m. Kelim 1:6-9 pelo Rabi José: (1) a área
dentro da balaustrada, (2) a corte das mulheres, (2) o tribunal de Israel, (3) a corte dos
sacerdotes, (4) a área entre o altar e (5) a entrada do templo, (6) o santuário e o (7) Santo dos
Santos.
73
O espaço sagrado é concetualizado em áreas concêntricas de “santidade” ao redor da
arca ou carruagem onde a Glória de Deus é entronizada. Esta estrutura séptupla também
alude “a aparência da semelhança da Glória do Senhor”, conforme está descrita em
Ezequiel 1:28: “a aparência desse brilho, ao redor, era como a aparência do arco que,
em dia de chuva, se vê nas nuvens. Era algo semelhante à Glória de Iahweh. Ao vê-la,
caí com o rosto em terra e ouvi a voz de alguém que falava comigo”.
Os sete céus ou cortes do templo podem corresponder às faixas do arco-íris, que
rodeavam numa espécie de aura o corpo da Glória no trono160.
Esta hipótese pode ser sustentada por duas descrições nos Hodayot, cânticos de
Qumran, no cântico 12: “Como uma substância radiante de cores gloriosas,
maravilhosamente matizadas e puramente misturadas, são os espíritos dos ‘lohim vivos
que se movem continuamente com a Glória das maravilhosas carruagens”161
Encontramos outra descrição em Hekhalot Zutarti: “É como a aparência de fogo, mas
não é fogo (Ezequiel 1:27). Em vez disso, é como chamas ardentes de todos os tipos de
cores misturadas, e o olho não pode dominar suas semelhanças”.162
Os métodos empregues pelos “místicos visionários” da Mercavá incluíam a recitação de
hinos e orações muitos parecidos em conteúdo e tom com aqueles já existentes dos
Cânticos do Sabbat163.
Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva, devem ser conhecidos e
recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura. Também era
necessário conhecer os nomes dos anjos guardiões e mostrar os selos mágicos corretos
que eram inscritos com os nomes secretos de Deus.
As câmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idênticas aos sete níveis celestiais, o
templo e o cosmos eram estruturas opostas.
As câmaras de pureza do Templo eram concêntricas sob o Santo dos Santos, “ascender”
a estes níveis equivalia a viajar “interiormente” em direção ao centro. E a ascensão para
o céu dava-se exteriormente distanciando-se da terra, de modo a que a esfera de grande
santidade é atribuída à periferia.

Estes são os sete níveis de santidade do templo, estrutura séptupla reflete as sete esferas
planetárias da cosmologia grega e os sete céus encontrados nos textos mágicos da Babilónia e
da Suméria.
160
Cf. Jones-Morray R.A Christopher. (2006), 170.
161
Cf. 4Q405 20:21-22 in Newsom (1985), 303.
162
Cf. Jones-Morray R.A Christopher. (2006), 170.
163
Cf. Idem.
74
Esta mudança dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa “interior”
era maior do que a casa “exterior”. Os termos da hekhalot e da Mercavá descrevem
quase sempre a viagem visionária como uma ascensão e uma descida164, Alan F.
Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma “descida” pode estar associado com
a posição “fetal”, que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos
praticantes de hekhalot.

“Podes estar ciente de que muitos sábios eram da crença de que um indivíduo possuidor de
certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavá e os palácios dos
anjos celestiais tem métodos para conseguir isso. Ele deve sentar-se em jejum por um certo
número de dias e colocar a cabeça entre os seus joelhos e sussurrar para o chão muitos hinos e
canções cujas palavras são conhecidas da tradição. Ele então olha para os aposentos e câmaras
interiores como se estivesse a ver os sete palácios com seus próprios olhos, e como se estivesse
viajando de um palácio para o outro e vendo o que está lá.”166

Esta postura física descrita por Hay corresponde à postura corporal do profeta Elias no
Monte Carmelo em 1 Reis 18:42. As fontes rabínicas afirmam que o milagreiro do I
século Haninaben Dosa usou a mesma posição para orar pela vida de um filho de um
rabino importante (b. Ber. 34b; b. ‘Abod. Zar. 17a)167.
A ideia de que o Templo de Jerusalém representa a estrutura do universo encontra-se
bem documentada nas fontes rabínicas e em Flávio Josefo168.
A pedra de fundação por debaixo do altar possui os atributos do umbigo cósmico. O
Santo dos Santos é visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criação,
assim a pedra do santuário é identificada com a colina primordial que emergiu das águas
do caos no terceiro dia169.
Josefo reporta que a cortina à entrada do santuário representa o firmamento que foi
criado no dia dois. Várias outras fontes midráshicas enriquecem este modelo:

164
Cf. Idem, 171.
165
Cf. Segal Paul. (1990), 322.
166
Cf. Tratado escrito no século 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow, Chagiga and
Maschkin in Otzarha-Geonim vol. 4. Haifa. Hebrew University Press Association. Part 2, 13-15.
167
Cf. Jones-Morray R.A Christopher. (2006), 172.
168
t. Yoma 4:6; b. Yoma 54b; GenRab. 1:4; Tanh. Qed. 10.
169
Génesis rabbah 3:4; Tanh. Buber, Bereshit 112; Pesiq. RabKah 21.
75
“Na hora em que o Santo, bendito seja Ele, disse a Moisés: Faz-me um santuário (Êxodo 25:8),
Moisés disse: Como vou saber como fazê-lo?
O Santo, bendito seja Ele, disse: Não tenhas medo. Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo,
assim tu farás o tabernáculo.
De onde sabemos que é assim? Tu encontras no tabernáculo que as estruturas foram fixadas nas
bases, e no corpo as costelas são fixadas nas vértebras, e assim no mundo as montanhas são
fixadas aos fundamentos da terra. No tabernáculo, a armação estava coberta de ouro, e no corpo
as costelas estavam cobertas de carne, e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de
terra. No tabernáculo havia parafusos na armação para mantê-lo reto e os membros e nervos do
corpo são estendidos para manter um homem ereto, e no mundo árvores e plantas são estendidas
na terra. No tabernáculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados, e no corpo
uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados, e no mundo
os céus cobrem a terra em ambos os seus lados. No tabernáculo há o véu que divide o santuário
do Santo dos Santos, e no corpo o diafragma divide o coração do estômago, e no mundo é o
firmamento que divide as águas superiores das águas inferiores, como foi dito: "... e divida as
águas das águas" (Gen 1:6)170

Esta tripla correspondência entre o mundo, o templo e o corpo humano encontra-se bem
documentada na literatura midráshica e é fundamental para compreendermos o
pensamento místico do Evangelho de Tomé.
O Midrash Tanhuma declara: “O templo corresponde ao mundo inteiro e à criação do
homem que é um mundo pequeno”. Isto sugere que ao realizar a “ascensão” pelos
vários níveis do templo celestial até ao firmamento mais elevado, alguns místicos
poderiam concetualizar também uma “descida” ao interior do templo dos seus próprios
corpos. Em direção ao Santo dos Santos interior, onde, como no templo exterior do seu
próprio corpo, a Glória divina (ou imagem de Deus) habitava.
Se até aqui a nossa reflexão estiver correta, e a postura corporal das práticas da Mercavá
estar associada à “descida” isto sugere que as “ascensões” místicas pelos céus eram
compreendidas como “descidas” no interior do corpo humano.
O tema da transformação nas tradições apocalípticas e de Mercavá mostra o papel do
corpo na experiência mística. Encontramos inúmeras referências nos apocalipses nos
escritos hekhalot, nas tradições midráshicas e nos relatos de ascensão celestial. Todas
estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do místico para uma forma purificada e
angelical de fogo ou luz, que reflete a imagem da Glória divina. Isto está

170
Cf. Midrash bereshit rabbati.
76
frequentemente associado à ideia de que o místico “assume” ou “veste-se” com o Nome
divino171.
Nos últimos três capítulos de Hekhalot Rabbati, no clímax da ascensão mística o
místico é instruído a cantar uma série de hinos pronunciados pelo próprio Trono na
presença de Deus a cada dia. O místico identifica-se com a Mercavá e pede que Deus se
entronize nele, ele oferece-se como um veículo corpo para a manifestação da Imagem
Divina da Glória.
O horizonte religioso do Evangelho de Tomé é o ambiente religioso geral no qual o
autor e a sua comunidade existiram e respiraram. No caso do cristianismo primitivo,
este incluiria o judaísmo e o ambiente religioso e filosófico helenística.
No seu processo de textualização da ideologia o autor articulou de forma coerente com
este ambiente reinterpretando símbolos e imagens. Desta forma a sua escrita que na
atualidade pode ser de difícil compreensão, era compreendida e persuasiva para o
público a que se destinava.

O Misticismo do Evangelho de Tomé

O misticismo do Evangelho de Tomé deve numa primeira instância ser explicado e


interpretado dentro do seu pensamento interno. A coerência textual dos logia permite
definir as suposições básicas dos seus conteúdos face à experiência mística.
Através da hermenêutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por
si mesmo o estado adâmico paradisíaco que possuía antes da queda.
Este estado é uma realidade existente para lá do espaço e do tempo, uma dimensão
primordial anterior à criação, pelo que em vez de buscar uma realização escatológica no
final dos tempos, devem buscar o início de todas as coisas.
“Os discípulos disseram a Jesus: Dizei-nos qual será o nosso fim. Jesus disse: Haveis
descoberto já o começo para que procureis o fim? Onde está o início, ali estará o fim.
Feliz aquele que se colocar no começo, porque conhecerá o fim e não provará a morte.”
(Lg18)
A vida do discípulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaço e do tempo,
que é como iremos ver a Câmara Nupcial. Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial
que procedeu de si mesma e que se manifesta através das imagens gravadas nas almas
dos filhos da luz. Este lugar é o lugar por detrás do véu na cosmologia do Templo, que

171
Cf. Jones-Morray R.A Christopher. (2006), 175.
77
representa o estado de Unidade “Jesus disse: Não tardará a perguntar o Ancião dos Dias
a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viverá. Porque muitos dos
primeiros serão os últimos. E chegarão a ser um só.” (Lg 4)
Neste lugar temos duas dimensões semelhantes aos textos da Mercavá e apocalipses,
por um lado uma realidade ascensionária exterior que é por outro lado uma experiência
de interiorização progressiva. “Os seus discípulos disseram: Mostra-nos o lugar em que
estás, uma vez que nos é necessário procura-lo. Ele disse-lhes: O que tiver ouvidos para
ouvir, que oiça. Há luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro. Se
ele não ilumina, há trevas.” (Lg 24).
Esta busca envolve uma jornada visionária onde o adepto fala com os seres celestiais
respondendo a três perguntas para poder passar até ao lugar da Vida. “Disse Jesus: Se
vos perguntarem: de onde vindes? dizei-lhes: Viemos da Luz, de onde a Luz procedeu
de si mesma, manteve-se e revelou-se nas suas imagens. Se vos perguntarem: quem
sois? dizei: somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente. Se vos perguntarem:
qual é o sinal do vosso Pai em vós? dizei-lhes: É um movimento e um repouso.” (Lg 50)
Jesus ainda fornece mais instruções complementares à realização desta experiência
visionária. “Jesus disse: Feliz daquele que era antes de chegar a ser. Se vos tornais meus
discípulos e escutais as minhas palavras, estas pedras vos servirão. Porque tendes cinco
árvores no paraíso que não se alteram nem no Verão nem no Inverno nem as suas folhas
caem. Aquele que as conhecer não provará a morte.” (Lg 19)
Este lugar é o próprio paraíso representado de forma simbólica por vários traços
místicos do simbolismo do Templo de Jerusalém. A questão das árvores no paraíso situa
esta realidade no jardim do Éden.
Para entrar neste lugar o discípulo deve se tornar como Adão era antes da queda, uma
criança assexuada. “Jesus viu crianças que mamavam. Disse aos seus discípulos: estas
crianças que mamam são semelhantes aos que entram no Reino. Disseram-lhe: então, se
nos tornarmos crianças entraremos no Reino?
Jesus disse: Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o
exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que façais o masculino e
o feminino num só, para que o masculino não seja masculino nem o feminino seja
feminino; quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma mão em lugar de uma mão
e um pé em lugar de um pé, uma imagem em lugar de uma imagem, então entrareis no
Reino.” (Lg 22)

78
Como iremos atestar na consulta a várias fontes o misticismo de Tomé tal como as
várias experiências místicas encontradas nas diversas tradições textuais emergem de um
tema comum: a restauração da humanidade ao seu estado paradisíaco.
No Evangelho de Tomé a realização interior passa por ver o Jesus Vivente, por isso os
discípulos também lhe perguntam: “Os seus discípulos disseram: Em que dia te
revelarás a nós e em que dia te veremos? Jesus disse: Quando vos despirdes e não vos
envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos pés como
as crianças pequenas e os espezinhardes, então vereis o Filho do Vivente e não
temereis.” (Lg 37).
O discípulo tem que se despir das suas “vestes de carne” abandonando os controlos do
corpo, de modo a poder ascender e ver Jesus. “Jesus disse: Eu vos darei o que os olhos
não viram e o que os ouvidos não escutaram e o que mão não tocou e o que nem subiu
ao coração do homem.” (Lg 17)
A leitura esotérica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que
a separação em dois originou o estado de queda fora do seio da luz “Quando estiverdes
no seio da luz, o que é que fareis? No dia em que éreis um chegastes a ser dois. Mas
quando chegueis a ser dois, o que é que fareis?” (Lg 11)
Os elementos míticos encontrados nas exegeses esotéricas combinadas com a filosofia
platónica ao relato da criação em Génesis, têm como pano de fundo as doutrinas
simbólicas do Templo de Jerusalém.
Não há mística judaico-cristã nos primeiros 3 séculos da era comum sem o referencial
do Templo de Jerusalém, a realidade do Templo ascendeu aos céus, onde o Templo
Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus.
O Éden como iremos explorar era o Templo de Jerusalém, mais propriamente a Câmara
Nupcial.

Exposição do Lógion 37

“Os seus discípulos disseram: Em que dia te revelarás a nós e em que dia te veremos?
Jesus disse: Quando vos despirdes e não vos envergonhardes e tomardes os vossos
vestidos e os colocardes sob os vossos pés como as crianças pequenas e os
espezinhardes, então vereis o Filho do Vivente e não temereis”

79
Na exposição deste lógion iremos discutir as várias temáticas do misticismo judaico que
apresentámos anteriormente. A estrutura deste dito divide-se em três motivos principais:
1) despir a roupa sem vergonha; 2) pisá-la como crianças; e 3) obter a capacidade de ver
o Filho de Deus sem ter medo.
Este lógion descreve assim as preparações necessárias para a salvação e a ascensão ao
céu numa linguagem encratita172.
Começando então pelo primeiro motivo: despir as vestes sem vergonha é uma metáfora
comum na literatura judaica e cristã para referir a remoção do corpo físico. Esta noção
baseava-se nas especulações exegéticas referentes a Gn 3:21.
Nesta passagem como consequência do pecado de Adão e Eva, Deus fez-lhes “vestes de
peles, e eles vestiram-nas”.
Antes da queda Adão e Eva eram seres luminosos, a sua luz ultrapassava a luz do Sol173.
Esta luz era a veste perdida por causa da queda, como compensação Deus fabricou
“vestes de pele”, sendo estas identificadas pelos judeus e os cristãos como a carne e o
sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcançar o estado paradisíaco.
Existem rituais simbólicos na liturgia batismal onde a roupa é removida, no entanto é
difícil localizarmos referências anteriores ao quarto século.
Na epístola de Jerónimo a Fabíola ele descreve que o candidato remove as “túnicas de
pele” e “subindo do batismo” veste a “roupa de Cristo”.
Um texto anterior a Jerónimo é o Evangelho de Filipe que refere: “Enquanto estamos
neste mundo convém-nos adquirir a ressurreição, para que quando nos despojemos da
carne sejamos encontrados no repouso e não tenhamos de deambular na Medianidade”.
O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam “este mundo”, “a água vivente é
um corpo.”174e “é necessário que nos revistamos do homem vivente”175.
Segundo Filipe para o homem se tornar vivente “quando desce à água despe-se para se
revestir desta.”176
Outro texto importante para a nossa exposição são as Odes de Salomão 21:3-4; 25:8-9
que contêm muitas tradições primitivas siríacas.

E eu abandonei a loucura lançada sobre a terra,

172
Cf. Conick. D April and Fossum Jarl (1991), 123.
173
Ver páginas 53-54 deste trabalho.
174
Cf. Ev de Flp 75.
175
Cf. Ev de Flp 75:20.
176
Idem.
80
E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim.

E o Senhor renovou-me com a sua roupa,


E me possuiu com a sua luz.

E do alto me deu descanso imortal,


E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos.

E eu despi-me da escuridão,
E vesti a luz.

E até eu mesmo adquiri membros.


Neles não havia enfermidade, aflição ou sofrimento.

E fui coberto com a cobertura do teu espírito,


E eu removi de mim as minhas vestes de pele.

Porque a tua mão direita me ressuscitou,


E fez com que a doença passasse de mim177.

Não podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomé para falarmos de um


ritual de batismo antigo, o que está aqui latente é a ideia de transformação e de
libertação das roupas precedentes às vestes de luz concedidas por Deus.
Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificação ascética.
Os versos desta ode de Salomão falam de um ritual simbólico de remoção das vestes de
pele do corpo, um ritual de unção antes do batismo.
A ode 4 diz “Porque o seu selo é conhecido; E suas criaturas são conhecidas. E os teus
anfitriões o possuem, e os arcanjos eleitos estão vestidos com ele.” Este "sinal" ou
"selo" que é colocado pelos arcanjos provavelmente é idêntico à "graça" que, quando
"vestida", torna aceitável diante de Deus
Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo é uma referência à unção
com óleo que no caso do cristianismo siríaco era feita antes da imersão batismal.
No relato dos Atos de Tomé, uma obra da mesma época e proveniência que as Odes de
Salomão, apresentam várias evidências do efeito da unção pré batismal transmitido o
“selo” no Nome178.
Esta unção preparatória para a ascensão é indicada na Ode 21 onde depois do autor “ter-
se despido da escuridão” e “se vestido de luz”, ele adquiriu um novo corpo “membros”
ausentes de aflição dizendo: “E eu fui levantado na luz, e passei diante de Seu rosto. E
eu estava constantemente perto Dele, enquanto louvava e confessava.”
177
Minha tradução.
178
Cf. Conick. D. April and Fossum Jarl (1991), 126.

81
Ao despir-se do corpo e ser ungido, adquire um corpo glorioso elevado ao céu e
transformado num anjo da face.
“Ele ungiu-me com perfeição e eu tornei-me num daqueles que estão perto dele.”179
Fílon de Alexandria também deixou elementos acerca desta ideia: “as túnicas de pele
[Gn 3,21] são simbolicamente a pele natural do corpo”.180 Devem ser despidas para
ascensão aos céus: “a alma que ama Deus despiu-se do corpo e voou”181.
Fílon também descreve uma das três maneiras de fazer a alma nua “Aqueles que fizeram
uma trégua com o corpo são incapazes de lançar fora deles o vestido de carne”182 “A
nossa alma se move, muitas vezes por si mesma, despojando-se de toda a carga do
corpo.”183
O despir das vestes no lg 37 é qualificado com uma expressão adicional: as vestes têm
que ser despidas sem vergonha.
O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raízes na história do Génesis.
Em Gn 2:25 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adão e
Eva estavam nus e não sentiam vergonha disso. Após a queda, Gn 3:7 afirma que os
olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus, sentindo vergonha.
Assim o Evangelho de Tomé neste logion interpreta o relato de Génesis afirmando que
ao despir o corpo mortal, o ser retorna ao estado pré-adâmico à experiência de não se
sentir envergonhado antes dos olhos de Adão e Eva serem abertos.
O colocar as vestes sob os pés é um ato simbólico de renúncia do corpo mortal, este dito
específico é encontrado numa discussão de Clemente de Alexandria. O autor afirma que
o líder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomé para fundamentar o seu
ensino sobre a renúncia às tendências sexuais. Nesta doutrina procurava-se criar uma
criatura assexuada, a “veste de vergonha” era entendida como o corpo que era
controlado pelos impulsos sexuais184.
A veste que foi dada ao homem como consequência da sua queda, ou intercurso sexual,
deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado pré-
caído ausente de vergonha.

179
Odes de Salomão 36:6 cf. (Wright, 2007)
180
Quaest. In Gen. 1,53.
181
Leg. All. 2,33; 56.
182
Quo Deus sitimm. 56.
183
De somn. 1,43.
184
Cf. Conick. D April and Fossum Jarl (1991), 134.

82
Esta imagem de assexualidade é enfatizada pela imagem da pequena criança que pisa as
vestes de vergonha. O ato de renunciar ao corpo do desejo é comparado ao ato de uma
pequena criança. Nos lg 21 e 22185 os encratitas são referidos como crianças, Jesus ainda
dá outro elemento sobre o ser assexuado:
“Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o de cima como o de baixo de modo que façais o masculino e o feminino num
só, para que o masculino não seja masculino nem o feminino seja feminino; quando
fizerdes olhos em lugar de um olho e mão em lugar de uma mão e um pé em lugar de
um pé, uma imagem em lugar de uma imagem, então entrareis no Reino.”
Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adão no paraíso onde ele é descrito como
sendo uma “criança”, um “inocente”.
Irineu afirmou que Adão era “virgem” e não tinha qualquer tipo de compreensão do que
era a procriação de crianças, porque era necessário que Adão e Eva crescessem para a
idade adulta em primeiro lugar186.
Noutra discussão de Irineu com Teófilo de Antioquia sobre a árvore do conhecimento
ele afirma: “Na sua idade real, Adão era velho como um bebé”187.
De acordo com Teófilo Deus quis que Adão permanecesse solteiro e puro por um longo
período de tempo, permanecendo na infância188.
Clemente de Alexandria também acreditava que Adão no estado anterior à queda era
uma criança no paraíso. No paraíso Adão “brincou sem restrições como uma criança”,
foi apenas quando ele “caiu na luxúria”, que “a criança se tornou o homem”189.
Esta breve contextualização lança luz sobre estas três lg 37, 21 e 22, aquele que
renuncia ao seu corpo é comparado à pequena criança que retorna ao estado adâmico
pré queda, onde o primeiro homem era uma criança inocente sem concupiscência190.
Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion, a questão introdutória colocada
pelos discípulos foi em que dia o veriam.

185
“Disse Maria a Jesus: Com quem se parecem os teus discípulos? Ele disse: São semelhantes
a uns meninos pequenos, instalados num campo que não é seu. Quando vierem os donos do
campo dirão: «Deixai o nosso campo». Eles se despirão na sua presença para o receberem e
devolver-lhes o seu campo (…) Jesus viu crianças que mamavam. Disse aos seus discípulos:
Estas crianças que mamam são semelhantes aos que entram no Reino. Disseram-lhe: Então, se
nos tornarmos crianças entraremos no Reino?”.
186
Adv. haer. 3,22,4.
187
Ad Autolycum 2,25.
188
Idem.
189
Prot. 11,111,1.
190
Cf. Conick. D April and Fossum Jarl (1991), 135.
83
As indicações deste logia dadas por Jesus foram as indicações necessárias para a
experiência visionária neste contexto. Olhar para Deus ou para a hipóstase divina era o
objetivo dos apocalípticos e dos místicos ao ascenderem aos céus.
Isto é aparente em textos místicos como 1 Enoque 14:67, muitas vezes Fílon de
Alexandria descreve a ascensão de Moisés como uma experiência de “ver” Deus191.
Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto, o primeiro texto De
mutatione nominum descreve Moisés a entrar nas trevas, interpretadas por Fílon como a
existência invisível incorpórea. Nesta dimensão celestial, Moisés buscou por toda parte
e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele, o objeto de anseio.
Fílon insiste que Deus não pode ser visto pela sua própria natureza. No segundo texto
retirado de De fuga et inventione, explica “O homem que deseja fixar seu olhar sobre a
essência suprema, antes de vê-lo será cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redor.”
Fílon defendia assim que a condição da mortalidade humana é um estado no qual o
homem é incapaz de ver Deus192. Sendo que a única hipótese de o homem ascender à
esfera celestial para “ver” Deus é na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo
material.
Na narrativa de 2 Enoque no capítulo 22 encontramos outra narrativa de ascensão onde
Enoque vê Deus e cai para o chão. Ao levantar-se Deus diz-lhe, “não temas”, Enoque
despe-se das suas “vestes terrenas”, sendo ungido e transformado num anjo.
Temos aqui ideias comuns, o despir das vestes e o ver Deus sem medo, estas ideias
estão ligadas ao ritual da unção193.
O ritual da unção transformou Enoque num dos anjos, ele tornou-se "Como um dos
gloriosos, e não houve diferença observável" para que ele pudesse "ficar na frente do
rosto de meu Deus para sempre"194.
Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto é a Ascensão de Isaías, onde Isaías
ascende ao céu para poder “ver” Deus e o Filho. Nesta ascensão ele teve que abandonar
o seu corpo.

191
Em De Posteritate Caini, Fílon afirma que Moisés anseia ver Deus e anseia ser visto por
Deus. Moisés pede a Deus que lhe revele a sua presença. Fílon relata que Moisés ascendeu a
Deus ao entrar “nas densas trevas onde Deus estava (Ex 20:21) estas trevas simbolizam as
conceções sobre o ser existente que pertencem à região inacessível onde não há formas
materiais.”
192
Cf. Conick. D April and Fossum Jarl (1991), 136.
193
Idem.
194
2 Henoque 22:7-10.
84
O anjo que lhe apareceu informa-o que não lhe vai transmitir conhecimento do seu
nome angélico porque Isaías tem que voltar para o seu corpo terreno após a experiência
visionária.
No sétimo céu Isaías tinha uma “veste” à sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque
que estava despido das suas vestes de carne. Eles estavam vestidos nas suas “vestes
celestiais” e eram como “os anjos que estão perante a grande Glória”195.

O Misticismo Visionário no Mundo Antigo: o Horizonte Religioso Histórico

Existia no mundo greco-romano uma noção popular de ascensão extática pré-


escatológica, inserida em experiências visionárias. Premissa esta que se encontra
sumarizada num texto do segundo século encontrado em Nag Hammadi, o Evangelho
de Filipe 1. 34-35:

“Porque o que vires, nisso mesmo te transformarás.”

Esta frase reflete uma experiência fundamental da experiência mística: a identificação


total de si mesmo com o objeto que se encontra. A experiência visionária ocorria desta
forma porque segundo as crenças, a imagem ‘vista’ entra no vidente através do seu olho
transformando a sua alma.

“O prazer que vem da visão penetra nos olhos e habita no peito; levando consigo
sempre a imagem...imprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagem”

No mundo antigo o encontro místico era uma realidade visual onde o ser abandonava o
mundo físico e ascendia até às zonas sagradas do céu. Uma vez nessa dimensão sagrada
encontrava o divino que lá reside. O resultado deste encontro traduz-se numa
experiência em que se sofria uma completa transformação tornando-se semelhante à
entidade divina que tinha visto.
O misticismo visionário é aquilo que podemos definir como deificação, sendo uma
crença antiga presente no mundo antigo196.

195
Cf. Conick. D April and Fossum Jarl (1991), 137.
196
Cf. DeConik. D April. (2001), 42.
85
Estes são alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua
experiência religiosa.

Exposição do Lógion 50

“Disse Jesus: Se vos perguntarem: de onde vindes?, dizei-lhes: Viemos da Luz, de onde a Luz
procedeu de si mesma, manteve-se e revelou-se nas suas imagens.
Se vos perguntarem: quem sois?, dizei: somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente. Se
vos perguntarem: qual é o sinal do vosso Pai em vós?, dizei-lhes: É um movimento e um
repouso.”

O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetível se for compreendido como um


fragmento de experiencia de ascensão cristã primitiva197. Esta ascensão consiste na
interação verbal entre os anjos e o místico. Jesus ensina três respostas para três possíveis
perguntas que serão colocadas durante o processo de ascensão visionária.
Neste logion Jesus começa por falar da luz, a luz é uma realidade pré-existente que se
manifesta durante a criação. A experiência ascensionária dos seguidores de Jesus era
segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz.
A luz é o “lugar de onde a luz procedeu de si mesma” e era uma entidade auto gerada
primordial e pré-existente que se manifestou durante a criação.
Vários textos judaicos aludem à pré-existência da luz; 4 Esdras 6:39 fez a exegese a Gn
1:3 desta forma: “Então tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus
tesouros”. De acordo com este texto a luz não foi criada pela ordem de Deus, “Haja
luz”, mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criação.
Fílon de Alexandria também ensinou que a luz existia antes da criação, em Quod Deus
sit Immutabilis 58, estabelece uma distinção entre a “luz criada” e a luz que existia antes
da criação. Fílon explicou que Deus não precisava de olhos e “que sem a luz não tinham
o poder da perceção”. Essa luz foi criada, porque Deus viu antes da criação sendo Ele a
sua própria luz198.
Noutro texto In De OpificioMundi 55, Fílon refere-se à luz não criada, que existia antes
da criação do universo. Esta luz vem à existência e manifesta-se na criação através da
imagem do Logos.

197
Cf. Deconick. D April (1996), 64.
198
Cf. Idem, 66.
86
A descrição da criação em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradição semelhante, Deus
explica que: “Antes que as coisas visíveis viessem a existir, e a luz ainda não tivesse
sido aberta, eu, no meio da luz, passei pelas coisas invisíveis”.
De acordo com este relato a luz é pré-existente, Deus encontra-se rodeado desta luz
primordial, Ele ordenou que “as coisas invisíveis” se tornassem visíveis.
O logion ainda afirma que a luz se revelou “nas suas imagens”, aqui o logion refere-se
aos interrogadores, neste caso os anjos199. As imagens dos anjos manifestam-se nos
seres humanos; o homem nesta perspetiva foi criado à imagem dos anjos.
Na tradição rabínica em Exodus Rabba 30:16, “o homem foi criado sob a forma dos
anjos”. Outra declaração em Numeros Rabba 16:24 declara que os humanos são como
os anjos imortais: “Eu disse: Vós sois seres divinos, e vós todos filhos do Altíssimo (Sl
82: 6), como os anjos ministradores, que são imortais. Eis que o homem era como um
de nós (Gn 3:22). Da mesma forma, e Deus criou o homem à Sua própria imagem (Gn
1.27)”.
O targum samaritano de Gn 9:6, “Deus fez o homem à sua imagem”, diz: “Não criei o
homem à imagem dos anjos?”
Com estes textos parece que existe uma ligação entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 1:26,
que afirma que a Luz se manifesta através de uma imagem coletiva.
Mencionando ainda a teologia do discípulo de Valentino, Marcos, este aluno brilhante
também discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam através de
“formas” e “anjos”.
A sua teologia está intimamente ligada à literatura mística judaica e representa uma
forma primitiva do segundo século de Shiur Komah, a teologia de Marcos baseia-se no
nome divino, nas suas recitações e nas descrições da forma mística de Deus200.
Na sua descrição da origem do ser humano ele disse:
“Quando, no princípio, o pai sem pai, que não é compreendido pela mente nem tem uma
substância e que não é nem homem nem mulher, queria expressar o seu ser inefável e
tornar invisível o seu ser visível, abriu a boca e produziu uma palavra, que se
assemelhava a Ele. Ao chegar a Ele, mostrou-lhe que se estava tornando manifesto
como a forma do invisível.”201

199
Idem.
200
Cf. Deconick. D April (1996), 69.
201
Ireneu., Adv. Haer. 1.14.1; Epiph., Pan.34.4.3.
87
O Deus que não é “homem nem mulher” tornou-se visível através do som de certas
letras do alfabeto. Neste pensamento o primeiro ser humano, o Anthropos, é chamado
de “corpo da verdade” e é composto de “letras” ou “formas” do alfabeto. Estas formas
eram os “anjos” que “continuamente contemplavam a face do Pai” (Ireneu., Adv. Haer.
1.14.1; Epiph., Pan. 34. 4.7).
Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele, o nome
divino de Deus, o invisível tornava-se manifesto. Este ser humano primordial
manifestava sons que eram da forma dos anjos. E desta forma os seres humanos eram
pronunciados à sua imagem202.
O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de
Jerusalém, a Câmara Nupcial. Como acima foi referido, no esquema simbólico atribuído
ao templo pelos pensadores hebreus, o Santo dos Santos foi o sítio de onde saiu toda a
luz do universo.
No texto de Tomé o lugar de onde a luz procedeu de si mesma, também é chamado de
lugar da vida (lg 4) “não tardará a perguntar o Ancião dos Dias a um menino pequeno
de sete dias pelo lugar da Vida e viverá.”. No lg 24 Jesus habita neste lugar “Mostra-nos
o lugar em que estás, uma vez que nos é necessário procura-lo”.
Este lugar não foi pensado neste contexto como um lugar após a morte, mas como uma
realidade que devia ser buscada pelos discípulos enquanto estavam vivos. Sendo
alcançando por meios de ascensão visionária e conhecimento interior.
Num diálogo entre Jesus e os seus discípulos registado num livro apócrifo, o Diálogo do
Salvador203Mateus disse: “Senhor, desejo ver esse lugar de vida, esse lugar que não tem
trevas, mas sim luz pura. Disse o Senhor: Irmão Mateus, não poderás vê-lo enquanto
estiveres revestido de carne. Mateus disse: Senhor, ainda que não possa vê-lo, permite-
me conhecê-lo. Disse o Senhor: todo aquele que se conheceu a si mesmo já o viu.”
(128:27-30)
O lg 50 define a relação entre os membros da comunidade de Tomé e a Luz, eles são
filhos da luz. Eles proveem da luz (lg 50), estão cheios de luz (lg 24, 60 e 33) e vão
regressar à luz (lg 18, 19, 46, 49, 114).
Regressar à Luz é regressar ao início no lg 18 “Jesus disse: Haveis descoberto já o
começo para que procureis o fim? Onde está o início, ali estará o fim. Feliz aquele que
se colocar no começo, porque conhecerá o fim e não provará a morte.”

202
Cf. Deconick. D April (1996), 70.
203
Pinero, A., Torrents, J. M., & Bazán, F. G. (2005), 175-176
88
Este dito afirma que é necessário entrar no Paraíso e que para isto o discípulo tem que
regressar ao início. No lg 19 “Jesus disse: Feliz daquele que era antes de chegar a ser. ...
porque tendes cinco árvores no paraíso que não se alteram nem no Verão nem no
Inverno nem as suas folhas caem. Aquele que as conhecer não provará a morte.”
O ensino é expandido, para além de ser necessário regressar à condição pré queda de
Adão, ascendendo ao paraíso também é necessário encontrar misticamente as cinco
árvores.
Esta noção de ascender ao paraíso e tornar-se familiarizado com as cinco árvores do
Éden para ultrapassar a morte é uma ideia encontrada nas tradições herméticas204.
Para o ser humano poder ascender ao paraíso, ele tem que se livrar dos vícios que
constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual. Este é
o renascimento do verdadeiro ‘eu’, no lg 19 as cinco árvores referem-se às cinco
virtudes concedidas ao discípulo que abdicar do homem material. Ao fazê-lo o discípulo
alcança virtude e imortalidade.
As Odes de Salomão 11:16 relatam a ascensão de um místico que foi ao Paraíso usando
vestes de luz:

E ele levou-se ao seu Paraíso, onde está a riqueza do prazer do Senhor.


Contemplei árvores florescentes e frutíferas, e as suas coroas cresceram.
Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam; suas raízes eram de uma terra imortal.
E um rio de alegria irrigava-os, e a região ao redor deles na terra da vida eterna.

Estas árvores são depois associadas às pessoas justas que foram plantadas na terra
imortal de Deus, tomando o seu lugar no Paraíso (Ode 11:18). Apesar de não haver
nenhuma interpretação das árvores como sendo virtudes, esta ode alegoriza as árvores
como sendo pessoas justas e estabelece a contemplação destas árvores no contexto da
ascensão mística ao Paraíso.
Outra tradição cristã encontrada no texto Physiologus 34:18-20 relaciona as virtudes
com o conceito da árvore da vida. Mencionando apenas uma árvore, a árvore da vida, o
autor entende que os quatro frutos desta árvore são as quatro virtudes do paraíso: gozo,
domínio próprio, paz, e paciência205.

204
Cf. Deconick. D April (1996), 83.
205
Cf. Deconick. D April (1996), 83.
89
É importante referir ainda os textos de Fílon de Alexandria, em que as árvores do
paraíso são virtudes que Deus plantou para a alimentação da alma e para a aquisição da
imortalidade.
Ele interpreta assim a passagem de Gn 2:16 "De todas as árvores que estão no jardim
comerás livremente nela", indicando que a alma deve beneficiar “não apenas de uma
árvore ou de uma única virtude, mas de todas as virtudes” (Leg. All. 1.97). O propósito
de comer estes frutos era alimentar a alma “pela aquisição de coisas nobres e a prática
de coisas legítimas” (1.98)206.
As árvores do jardim do Éden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a
alma de Adão no estado antes da queda, dando-lhe imortalidade. A consequência do
pecado e da expulsão do Paraíso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e
corpórea, associada às coisas opostas a estas virtudes. Estes vícios contrários às
virtudes, levavam ao caminho da morte, aquilo que era pensado como redenção nestas
leituras era cada ser humano abandonar os vícios e regressar ao estado antes da queda
adâmica.
E isso ascendendo ao Paraíso e tornando-se cultivador das cinco árvores de virtudes lá
existentes. Ao comer desses frutos ele não conhecerá a morte e alimentará a sua alma
com as virtudes paradisíacas.
O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleição, os filhos do Pai Vivente são eleitos porque
vieram da Luz. No Evangelho de Tomé a noção de eleição está intimamente associada
ao termo monachos no lg 41 “Jesus disse: Felizes sois os solitários (monachos) e os
eleitos, porque encontrareis o Reino; já que haveis saído dele, a ele regressareis
novamente.”
No lg 23 “Jesus disse: Eu vos escolherei, um de entre mil e dois de entre dez mil e
manter-se-ão como um só.” Outro logia importante para esta análise é o lg 16
“…porque haverá cinco numa casa: três estarão contra dois e dois contra três: o pai
contra o filho e o filho contra o pai e se manterão entre si como se fossem solitários
(monachos).”
O aspeto mais importante destes monachos é o estado de “permanecer solitário”, este
“permanecer” não é apenas associado ao celibato, também encontramos referências com
a mesma expressão associadas ao comportamento dos anjos.

206
Idem, 85.
90
Os anjos “permanecem celibatários” nos textos judaicos, mas também “permanecem”
diante de Deus nas visões apocalípticas207.
Quando o solitário ascende e se transforma, ele toma o seu lugar entre os anjos
“permanecendo” diante do trono de Deus.
Ser transfigurado implica participar no serviço cúltico dos anjos diante do trono
celestial, por isso em 2 Henoque 22:10, Enoque transforma-se num anjo e é-lhe
ordenado que “permaneça”, diante da face de Deus por toda a eternidade.
Nas tradições samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma
situação, num hino samaritano lemos:

Ele Deus permanece para sempre;


Ele existe até a eternidade.
De pé [Anjos] e mortais estão sob Seu domínio.
Quando Moisés ascendeu para receber a Torá, "ele se juntou com os anjos", como
Deuteronómio diz: "Fique comigo agora" (Memar marqa 4.12)208

Nas tradições samaritanas Deus e os seus anjos são seres imperecíveis, quando Moisés
se transforma num “que permanece”, isto significa que ele é elevado à condição de ser
angélico, mas também é participante da natureza divina.
Teremos então os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomé o estatuto
angelical imperecível? Esta suposição pode ser suportada pelo lg 18 que afirma “Feliz
aquele que se colocar no começo, porque conhecerá o fim e não provará a morte.”
Ou seja, já tínhamos discutido que o “começo” refere-se ao Paraíso, o lógion 18 está
paralelo ao lg 19 e deduz que o discípulo deve ascender ao paraíso a fim de se tornar
uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Éden.
Estas árvores não se alteram, representando de algum modo a natureza “permanente” e
inalterável das virtudes divinas. Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraíso e
adquire as virtudes inalteráveis de Deus, adquire para si a natureza imperecível de Deus
e não experimenta a morte. No lg 18 a mesma linha de raciocínio, quando o discípulo
“permanece” no princípio, ele regressa ao Paraíso como um ser justo e alcança o estado
angelical. Quando o monachos “permanece” diante de Deus ele está a participar na
natureza imperecível de Deus e não experimenta a morte.

207
Ver 1 En 39:12; 40:1; 47:3; 68:2; 2 En 21:1; Testamento de Abraão 7-8.
208
Cowley. E A (1909), 27:18.
91
Misticismo Visionário em Tomé: Logia 15,83 e 59

Nesta secção iremos analisar quatro temas da experiência visionária mística judaica
encontrados nas descrições místicas do trono de Deus. A primeira caraterística é a
manifestação divina que está sentada no trono, rodeada pela corte celestial. Quando o
místico entra na sala do trono e vê Deus entronizado, ele prostra-se no chão e adora-o.
A Kavod é sempre descrita em termos antropomórficos como uma figura de um homem
cujo corpo emite fogo ou luz. A viagem do místico é recompensada quando este
encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos céus. Esta experiência deve ser
alcançada antes da morte. Para além do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no título
desta secção também tratam dos vários elementos da experiência mística visionária.

“Jesus disse: Quando virdes aquele que não nasceu da mulher, prostrai-vos sobre o
vosso rosto e adorai-o: esse é o vosso Pai.” (lg 15)

“Jesus disse: As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que há nelas oculta-se na


imagem da luz do Pai. Manifestar-se-á e a sua imagem ficará oculta pela sua luz.”
(lg 83)

A visão do Pai descrita no lg 15 utiliza vários elementos dos textos místicos judaicos
que descrevem a sala do trono divino. Quando o místico entrava na sala do trono ele
prostrava-se diante do rei divino a adorá-lo.
Por exemplo em 1 Henoque 14:24 o místico entrou diante da presença da corte celestial
e adorou Deus, prostrando-se perante ele. No segundo livro de Henoque, 2 Henoque
22:4, Henoque vê a face luminosa de Deus e prostra-se para adorá-lo209.
O termo “não nasceu de mulher” alude ao termo “nascido de mulher” frase judaica
presente em Job 14:1 e 15:14, esta expressão descreve a condição degradada da
humanidade.
Num dos relatos da ascensão de Moisés os anjos objetaram que ele continuasse a subir
por causa de “ser nascido de mulher”210. De acordo com Megillah 13b este termo

209
Cf. Deconick. D. April (1996), 100.
210
Cf. Sukkah 52.1; Ma’ayanha- Hokmah 60-61; Pesik. R. 20,98a, 25, 128a.
92
relaciona-se com a mortalidade. A condição mortal deve-se ao facto de se ser nascido
no ventre de uma mulher.
“Aquilo que não nasceu da mulher” aplica-se assim a Deus porque ao contrário dos
humanos este é auto gerado. Este conceito vai de encontro à ideologia do lg 50 onde a
luz gera-se a si mesma.
O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretação, aqui o evangelho discute que a
imagem de Deus se encontra escondida, contudo Jesus afirma que “não há nada oculto
que não seja revelado” (lg 5). Provavelmente isto seria entendido como a Kavod
escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiência ascensionária. Na
tradição mística judaica também surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que
se revelava aos místicos211.
Em Hekhalot Zutrati 45b: “Deus que está além da visão de Suas criaturas e oculto aos
anjos que O servem, tem-se revelado a R. Akiba na visão do Merkabah ".
A imagem de Deus nestas tradições era oculta pela luz que irradia em torno de Deus,
esta teologia pode ser traçada em 1 Henoque 14:20, que descreve a sua visão da
“Grande Glória”.
A Glória vestia-se com uma veste “mais brilhante do que o sol”, ao ponto de “nenhum
dos anjos o conseguir ver”. De acordo com Enoque isto acontecia porque “o fogo
flamejante estava ao redor dele, e um grande fogo estava diante dele.”212
Nesta tradição a forma de Deus mantém-se escondida por detrás da sua luz, o visionário
só ganha acesso à visão do divino através da luz que o divino emana213.
Outra visão em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento: o Arcanjo Miguel levou
Enoque à presença do Senhor, ele “permanece diante da face de Deus” e diz que “viu a
aparência da face do Senhor” (2 Henoque 22:1).
A sua descrição não é a descrição literal da face antes descreve a face como se a tivesse
visto através de uma tela de luz. A face era “como o ferro queimado quente em fogo e
trazido para fora, e emite faíscas e é incandescente”.
Fílon de Alexandria atesta também esta tradição na sua obra De mutatione nominum 7,
ele descreve a visão que Moisés teve de Deus após ter ascendido ao céu em Êxodo 33.
De acordo com Fílon, Moisés “entrou na escuridão” que era a existência invisível e
incorpórea. Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forças, no

211
Cf. Deconick. D April (1996), 103.
212
Cf. Nicklesburg. W.E. George and Vanderkam. C James (2012), 35.
213
Cf. Deconick D April (1996), 104.
93
entanto, não conseguiu vê-lo. Fílon explica que Deus na sua natureza não pode ser visto,
“o homem que deseja colocar seu olhar sobre a essência suprema, antes de vê-lo será
cegado pelos raios que irradiam ao redor dele”214.
Mais uma vez encontramos a tradição judaica que acreditava que a essência de Deus era
abrangida pela sua luz.
Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte
verso: “Tu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeita”. O termo “poder” é uma
alternativa ao nome da Glória de Deus, esta passagem indica que a essência de Deus não
pode ser percebida diretamente.
Deus revela-se, o seu “poder” ou a sua “Kavod” através da manifestação da luz, no lg
83 de Tomé encontramos assim estas noções místicas, a Kavod ou imagem de Deus está
oculta na sua própria luz215.
No lg 59 menciona-se o contexto de alcançar a visão da deidade, uma visão extática,
que de forma bastante clara é considerada importante e necessária durante a vida do
discípulo e não após a sua morte.
“Jesus disse: contemplai o vivente enquanto estais vivos, para que não morrais e
procurando vê-lo e não sejais capazes de o ver”. (lg 59)
Trata-se de uma experiência extática e não de uma vivência escatológica, os discípulos
devem contemplar o Deus vivente enquanto estão vivos.
Jesus instruí os seus seguidores a serem místicos, a buscarem uma visão de Deus
durante as suas vidas como uma visão de superarem a morte e alcançarem a
imortalidade.
Esta ideia influenciou o místico siríaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas
homilias, onde ensinava que era necessário “olhar continuamente” para Cristo.
Até que Cristo “Fora do seu espírito, da substância da própria luz, da luz inefável” pinta
uma “imagem celestial” e concede-a à alma do discípulo (Hom. 30.4). Quando esta
imagem “é carimbada” na alma, a pessoa pode entrar no Reino; se a alma não tiver a
imagem não pode entrar no Reino. Seria então necessário contemplar Cristo, e
aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito “aqui na terra” porque “enquanto
nesta terra não procurou e não recebeu a vida pela sua alma, ou seja, a luz divina do

214
De Fuga et inventione 165.
215
Cf. Deconick D April (1996), 105.
94
Espírito, quando se afasta do seu corpo, já está separado nos lugares das trevas do lado
esquerdo” (Hom.30.6)216.
Esta tradição que advoga a busca da visão durante o tempo de vida dos crentes é
paralela na tradição mística judaica. O Evangelho de Tomé insiste que a ascensão é uma
experiência estática e não escatológica. O estado do ser humano é entendido como
diferente da condição divina. Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua própria
luz, a imagem do ser humano é visível exteriormente, mas a luz está oculta no seu
interior. Esta luz, alma, “grande riqueza” como Jesus se referiu à alma, ganhou um
corpo denso por causa do pecado de Adão. Este habitar divino, o verdadeiro ‘eu’ deve
ser trazido à superfície do discípulo. O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o
conhecimento deste verdadeiro ‘eu’, afirmando que é esta parte do ser humano que abre
as portas para o Reino e para a coparticipação completa no divino.

5. O Quadro Simbólico do Evangelho de Tomé e a centralidade do Templo no


seu mundo simbólico

Jesus disse: Há muitos que estão junto à porta, mas os solitários são os que entrarão na Câmara
Nupcial.
Lg 75

Após termos discutido várias temáticas do evangelho de Tomé, nomeadamente as suas


ideias religiosas, as suas interpretações textuais aos mitos da criação situados em
Génesis. E termos elaborado uma análise incisiva sobre os aspetos da experiência
visionária e mística, nos nossos termos da palavra, é agora importante facultarmos o
conjunto de informações e factos sobre o simbolismo inerente ao texto.
A narrativa deste evangelho tem como chave hermenêutica a câmara nupcial, este é o
maior símbolo, que sem uma descrição adequada do seu contexto emergente,
levaríamos o leitor a uma leitura incompleta.
Nesta seção será assim apresentado o mundo simbólico que sustenta a narrativa de
Tomé, o evangelho é aqui espaço simbólico de metáforas e enigmas que precisa de um
fio condutor para uma apreciação da sua mensagem.

216
Cf. Maloney G A. (1992), 191-192.
95
O mundo simbólico que propomos neste trabalho é o mundo simbólico do Templo de
Jerusalém, nomeadamente a forma como este símbolo foi percecionado por judeus e
cristãos numa fase emergente.
As tradições simbólicas do Templo, ecoam por todas as escrituras, certamente as
encontramos nos profetas, nos salmos, nos evangelhos, nas epístolas e no livro de
Apocalipse. Na leitura à vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar
Morto, encontramos exactamente as mesmas referências, as mesmas tradições, a
natureza de uma metáfora que se apega à sua ancestralidade e à memória de um povo.
Podemos afirmar que aquilo que torna a religião dos hebreus única, é o seu apego e a
sua devoção à memória, todos estes textos inclusive o evangelho de Tomé, herdaram o
peso e a grandeza desta memória.
Cada palavra, cada referência, transportam-nos a uma memória que não se perdeu, mas
que de facto comunica uma interpretação alinhada com uma textualidade sincronizada
sem excessos ou divagações.
Em toda a narrativa do Evangelho de Tomé, na totalidade dos seus 114 logia, apenas
uma vez é referido o conceito da Câmara Nupcial.
Existe uma ausência notável deste termo no Evangelho de Tomé, mas ainda assim a
investigação desta tese baseia-se neste dito, tendo-o como pedra angular para decifrar as
mensagens contidas nos outros logia.
A Câmara Nupcial no judaísmo do II Templo e como verificamos noutros documentos
do mesmo período, não era apenas um termo poético, teológico ou metafórico.
A Câmara Nupcial era uma conceção cosmológica do tempo, era uma memória do
Templo de Jerusalém, mais concretamente uma memória dos significados do Éden.
O pensamento acerca do estado da humanidade, das suas origens e da sua queda, do
percurso de regresso ao seu estado original. É em grande parte suportado e elaborado
nesta base ideológica que podemos identificar como Câmara Nupcial.
Para acedermos ao pensamento e à forma como os textos seriam entendidos, teremos
que inquirir as raízes das questões e a origem das respostas.
Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos? Quais seriam
as escolas e os currículos dos editores desses textos?
Porquê falar de um mito da criação e não de outro mito? Porquê mencionar um Deus
criador e personagens com nomes hebraicos?
Se atribuirmos ao hermetismo, ao platonismo, ao pensamento gnóstico, todas estas
questões, ficaria por esclarecer a presença de nomes e conceitos hebraicos nesses textos.

96
Nas próximas secções muitas destas questões serão respondidas, importa referir que
antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmológico do pensamento de
Tomé, devemos situar Tomé no seu quadro mental.
As doutrinas referentes à criação do homem, à experiência visionária de Deus e à
obtenção de conhecimentos celestiais, são doutrinas judaicas diretamente ligadas ao
Templo de Jerusalém.
O lugar da vida, o espaço onde a Luz procedeu de si, é o Éden, o Santo dos Santos do
Templo a nível simbólico.
O homem é transformado quando contempla Deus, como o sumo-sacerdote era
transformado quando entrava no Santo dos Santos. Estas e outras crenças compuseram
os textos que hoje estudamos; os académicos daquela época pensaram e debateram estes
conhecimentos. Elaboraram exegeses metafísicas aos textos tradicionais e ao longo
deste processo revolucionaram as suas religiões.
Neste capítulo será tratada a realidade simbólica do Templo de Jerusalém e como esta
influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos. De igual modo
apresentaremos a exegese de Tomé ao mito da criação em Génesis 1, explorando a
simbólica da Câmara Nupcial no texto de Tomé.

O Simbolismo Místico do Templo de Jerusalém

Em Jerusalém, o Templo é lugar memória, mas memória de quê? Poderíamos


questionar. Memória do Éden, reflexo da ordem cósmica. Quem olhava para o Templo,
olhava para a representação da duração do tempo, o tempo do tempo, a continuação dos
ciclos da vida.
A divina presença imbuída na criação, o Templo era a conjunção entre o céu e a terra, o
encontro entre a ordem macro cósmica refletida nos ciclos diários da natureza e a
adoração microcósmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217.
A importância dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num
calendário solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas,
formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estações218.
O tempo no Templo era dividido em duas divisões: visíveis e audíveis, sendo estas
combinadas e sincronizadas.

217
Elior Rachel. (2009), 309.
218
Cf. Idem.
97
A ordem das divisões visíveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do
sol e das quatro divisões do ano219. As divisões celestes audíveis e as divisões rituais do
ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos séptuplos, consecutivos e pré-
calculados220. Juntos, eles constituíram a essência do eterno calendário solar sacerdotal
preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e
ciclo sacrificial221.
A realidade histórica do Templo durante os seus primeiros dois períodos é mais
complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou até nós poderá
traçar. A historiografia do Templo de Jerusalém é uma fusão de história com mito,
memória ritual, escrituras sagradas e várias tradições historiográficas diferentes222.
Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradições acerca do
Templo, existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento
simbólico da realidade do Templo.
Estava implícita a perceção do céu e a terra como uma unidade no serviço sagrado, de
modo que se poderia postular a existência de uma relação mútua entre a cíclica cósmica
do reino eterno, incorpóreo, divino e ocíclico ritual estabelecido no reino material e
terrestre pelo serviço sagrado223.
O Templo era a encarnação terrena da ordem cósmica cíclica, apesar do espaço físico do
Templo ter sido destruído no ano setenta d.C. o seu espaço simbólico no imaginário dos
escribas judeus e cristãos permaneceu e ampliou-se.
Após a destruição do Templo a tradição rabínica moldou as visões do passado e
reinterpretou os significados da adoração religiosa.
Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica, à parte do espaço
físico do Templo e de qualquer outro centro cúltico. A velha ordem caraterizada pelo
ritual e pelo conhecimento esotérico, dos sacerdotes e dos anjos, do Templo e dos
ritmos litúrgicos. E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a
redigir escrituras inspiradas foi substituída por uma nova ordem cuja autoridade
centrava-se na lei oral, nos rabinos e nos novos académicos224.

219
Os ciclos naturais de dias e noites, as quatro estações, divididas ainda mais por equinócio
vernal e outonal e os solstícios de verão e inverno.
220
Sábados, sete "tempos designados pelo Senhor" nos primeiros sete meses do ano, Sabbats de
cada sétimo ano jubilar e Jubileus.
221
Elior Rachel. (2009), 309.
222
Elior Rachel (2004), 3.
223
Cf. Idem.
224
Cf. Idem, 6.
98
Os sábios substituíram gradualmente o ritual do Templo, as tradições dos anjos, e da
inspiração de revelações celestiais sobre a tradição escrita. A adoração passou a basear-
se na observação dos mandamentos e no estudo académico da lei escrita. A noção de
tempo sagrado foi substituída por um tempo humano decidido pela interpretação do
calendário.
A literatura excluída desta reforma foi catalogada como apócrifa, pseudepígrafa e não
canónica. Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simbólica do
Templo e dos seus rituais. Os dois maiores blocos literários que preservaram a memória
viva do serviço no templo as tradições sacerdotais: a literatura de hekhalot225 e
Mercavá226, e os Manuscritos do Mar Morto, assim como os livros de Enoque.
Estas tradições em concreto estão relacionadas com o funcionamento do serviço dos
anjos no Templo celestial. Preservam também tradições referentes à linguagem sagrada
dos cânticos, hinos de louvor, bênçãos e nomes sagrados, associados a anjos ou
sacerdotes. Muitas tradições não sobreviveram só nestes textos, mas deixaram a sua
marca na própria liturgia da sinagoga. Como a recitação de uma passagem bíblica que
descreve o incenso sagrado; a bênção sacerdotal e a designação semanal dos 24 círculos
sacerdotais; a recitação da fórmula Kedusha (‘santo, santo, santo’) perante os anjos;
soprar o shofar e prostrarem-se227.
O Templo era uma representação do mundo celestial, as suas decorações representavam
os mundos celestes. Nalgumas circunstâncias as decorações do templo tornaram-se
vivas:
“E a semelhança dos «deuses» vivos é gravada nos vestíbulos pelos quais o Rei entra, figuras
espirituais luminosas de esplendor, há obras de arte de maravilhosas cores, figuras dos «deuses»
vivos nas gloriosas câmaras do Templo mais interior, a estrutura do santíssimo santuário nas

225
Esta literatura preserva a continuidade do serviço sagrado ao removê-lo do tempo e do
espaço. Estes textos transferem o Templo para o plano celestial, onde os sacerdotes são anjos
ministradores nos Templos superiores. O serviço sacramental nestes santuários celestiais é
descrito em termos ritualistas do Templo terrestre. Esta metamorfose desenvolve-se através da
terminologia do misticismo da mercava. É uma combinação da memória consagrada do ritual
com a imaginação criativa e a inspiração visionária, elementos que estabelecem uma ponte entre
a realidade ‘revelada’ e aquilo que está ‘oculto’.
226
Apesar da breve introdução já feita (página.55) importa referir que a tradição da Mercavá
ganhou a sua forma no período do Primeiro Templo, as suas atitudes face aos rituais realizados
antes e depois da destruição do Templo e o lugar dessa tradição no contexto da tradição mística
e litúrgica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto, que unem intimamente os
sacerdotes e os anjos, para lá do espaço e do tempo. A experiência transformacional mística do
êxtase visionário torna esta tradição na sua representação da realidade divina, um dos traços
perdidos das tradições do Templo.
227
Cf. Elior Rachel (2004),13.
99
câmaras mais interiores do Rei, desenhos de «deuses» semelhança com (…) santíssimo (…) as
câmaras do Templo do Rei (…) figuras dos «deuses» e da semelhança com (…) do Santo dos
Santos (…)
As figuras dos «deuses» louvá-lo-ão, os espíritos santíssimos (…) de glória; o chão das
maravilhosas câmaras mais interiores, os espíritos dos deuses eternos, todos (…) figuras da
câmara mais interior do Rei, as obras espirituais do maravilhoso firmamento são purificadas
com sal, espíritos de conhecimento, verdade e justeza no Santo dos Santos, formas dos «deuses»
vivos, formas dos espíritos multicolores, figuras artísticas dos «deuses», gravadas a toda a volta
dos seus maravilhosos tijolos, gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-
todas as suas obras de arte são «deuses» vivos, e as suas figuras artísticas são anjos sagrados.”228

Neste cântico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida, porque o
cântico descreve o templo celestial. A mente moderna procura na leitura destes textos
separar o céu da terra, algo que a mente antiga não faria nem teria em consideração. O
espaço e o tempo são conceitos ambíguos quando o ritual no templo terreno era parte de
uma realidade eterna.
Os mitos e as histórias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que
aconteceu num passado distante, sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente.
Os mitos não eram histórias primitivas, mas afirmações dos principais princípios numa
forma simbólica e narrativa229.

Éden

O Templo de Jerusalém era o Gan-Eden, jardim do Éden e os seus rituais


interagiam com esta crença fundamental sobre a criação. O Templo encontrava-se assim
como o Éden, entre o céu e a terra, com acesso aos mundos divino e material: "E o
paraíso está entre corruptibilidade e incorruptibilidade" (2 Henoque 8:3-5).
Assim, foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a
partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presença do divino. Em torno do
Éden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma
humana porque lhes faltava a imagem de Deus. O mar era o caos sem forma da
mortalidade de que, de acordo com Génesis 1, o Espírito de Deus extraiu a criação
estável. Os relatos bizarros da criação nos textos gnósticos posteriores têm suas raízes

228
Cf. 4Q405 14-15, i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii, 56) in Vermes Geza (2006), 323.
229
Cf. Barker Margaret (1990), 57.
100
na mitologia do templo. Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo através
do véu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem
criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior: "E quando este espírito se
manifestou, o arconte separou para um lado a substância das águas, colocando o seco do
outro lado. E a partir da matéria construiu para si um habitáculo próprio e chamou-lhe
céu. E a partir da matéria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra" (Sobre a
Origem do Mundo)230.
A exegese ao mito da criação é a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomé,
a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao
Éden.
Se os discípulos de Tomé tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai
Vivente, o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memória.
Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano, à imagem e semelhança
do divino, era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caótico.
Será que todas estas crenças e interpretações eram a lembrança de uma crença mais
antiga em que a presença divina passou dos céus, pelo véu do templo para o caos
aquático que cercava o santuário?231
Nos sistemas gnósticos o ser divino que passava pelo véu era mau e a sua criação,
como resultado também era má. Historicamente consideramos este mito uma inovação
gnóstica. Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capítulo de Génesis mostra que o mito
da criação enfatiza que o mundo material é bom. Existirá algum elemento polémico
neste capítulo? Teria existido outro ponto de vista, mais antigo que a interpretação dos
gnósticos?
Que mundo material exterior ao santuário do Éden era mau? Certamente alguns traços
constituintes da visão "má" da criação sobreviveram.
Quem vivia no Éden eram os anjos, seres imortais, que foram expulsos do Éden, e que
tal como o príncipe de Tiro (Ezequiel 28:9) se tornaram mortais e pereceram.
Adão e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o
significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao pó depois de terem
deixado o Éden (Génesis 3:19-20).

230
Cf. Pinero, António Torrents, M. José Bazán, G Francisco (2005), 367.
231
Cf. Barker Margaret (1990), 102-103.

101
O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos, cardos e dor, dificilmente poderia ser
considerado bom como o Éden inicial.
O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questões será sempre de caráter
especulativo. Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado, não
havendo, por isso, exatidão histórica, mas consideramos, contudo, que este esforço
poderá tornar-se mais frutífero do que tratar o mito como história factual.
O Éden no pensamento hebreu nunca foi um espaço físico numa época histórica, mas
sim um ideal sempre presente, o além. Esta conceção da realidade é a espinha dorsal da
textualidade de Tomé, evangelho no qual os lábios de Jesus melhor expressaram o
sentimento hebreu para com o Éden:
“Os discípulos disseram a Jesus: Dizei-nos qual será o nosso fim.
Jesus disse: Haveis descoberto já o começo para que procureis o fim? Onde está o
início, ali estará o fim. Feliz aquele que se colocar no começo, porque conhecerá o fim e
não provará a morte” (Lg 18)
“Os seus discípulos disseram-lhe. Em que dia virá o Reino? Jesus disse: Não virá numa
expetativa, nem dirão: Olhai para aqui ou olhai para ali; mas sim, que o Reino do Pai
está difundido sobre a terra e os homens não o veem.” (Lg 113)

O Grande Mar

A realidade simbólica do Templo era uma declaração acerca da ordem natural como os
israelitas a viam, estava intimamente associada ao mito da criação. Este mito, não era
apenas uma descrição da origem do mundo num tempo distante, mas também uma
descrição de como o mundo foi continuamente formado e mantido.
O Templo situava-se na intersecção da terra com o céu, e, como tal, foi o primeiro lugar
do qual o mundo material foi ordenado. No antigo Oriente este lugar era normalmente
considerado como uma montanha cósmica que mantinha o céu, a terra e o submundo
unidos. Era o lar dos deuses, o Templo do grande deus criador construído no topo da
montanha cósmica
O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o
firmamento situado nos mares de onde a criação surgiu. Havia uma bacia de bronze
enorme no pátio do Templo que deve ter dominado a área desde que era a metade da
largura do próprio Templo. Era, significativamente, chamado 'o mar' e provavelmente
representava as águas primitivas no ritual. Havia uma crença estabelecida de que o pátio

102
era o mar que cercava a terra estável. Uma tradição atribuída ao rabino Pinhas benYa'ir,
que viveu no século segundo dC, descreve o Templo assim: "A casa do Santo dos
Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos céus. A Casa Santa exterior foi feita
para corresponder à terra, e o pátio foi feito para corresponder ao mar".232
Os comentadores da Torá disseram: "O tribunal envolve o Templo exatamente como o
mar envolve o mundo" (Números Rabá XIII.19). O Talmude babilónico recorda que o
mármore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se às ondas do mar (b,
Sukkah 51b). Todos estes são textos posteriores à destruição do Templo, mas Flávio
Josefo, conhecedor do Templo e descendente de uma família de sacerdotes, também
afirmou que o pátio exterior representava o mar.
Ele disse que o tabernáculo se baseou num modelo que foi dividido em três partes: "e
entregando dois deles para os sacerdotes, como um lugar acessível e aberto a todos.
Moisés simboliza a terra e o mar, uma vez que estes também são acessíveis para todos;
Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o céu também é inacessível aos
homens” (Antiguidades Judaicas, III, 181).
Para além destes testemunhos, vários textos que se referem ao Templo de Salomão
associam o Templo aos mares subjugados antes da criação e, portanto, é muito possível
que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro século, como Fílon
de Alexandria e Flávio Josefo, não fosse uma interpretação posterior.
O salmo 93, por exemplo, descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade,
estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar. O salmo
29,10 é semelhante: O Senhor está entronizado sobre o dilúvio; O Senhor permanece
entronizado para sempre. Uma vez que o trono estava no Templo, este é um retrato do
criador que triunfou e é literalmente entronizado em seu santuário sobre as inundações
que ele subjugou. O salmo 24 afirma “Que o Senhor estabeleceu o mundo sobre os
mares, e imediatamente pergunta: "Quem subirá ao monte do Senhor?" (Salmo 24,3),
sugerindo que o lugar estabelecido é o monte sagrado, o lugar de segurança para o seu
povo. O antigo poema agora incorporado no Êxodo (cântico do mar, êxodo 15) descreve
o Senhor trazendo o povo através de um mar terrível (daí sua inclusão nesta história),
mas não termina com o resto da história do Êxodo. No seu contexto original, este poema
não descrevia os acontecimentos do Êxodo, o poema conta de facto a antiga história da
criação: “Tu os trarás e os plantarás no teu próprio monte, o lugar, ó Senhor, que fizeste

232
Citado em Barker Margaret (1990), 61.

103
para a tua morada, o santuário, ó Senhor, que as tuas mãos estabeleceram.”
(Êxodo15.17)
Este, aliás, é um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento
hebreu, os acontecimentos da história estabelecem-se num quadro existente e a criação
do povo escolhido como resultado do Êxodo é contada em termos da criação do mundo
a partir dos mares primitivos.
Existem muitos outros exemplos de descrições do Senhor subjugando os mares do caos
primordial233.
O mar que cercava o Templo, o lugar do trono divino, também apareceu em várias das
visões proféticas que tinham o Templo como pano de fundo. A visão do profeta Daniel
de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visão baseada nos rituais antigos de
entronização.
Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domínio, quatro bestas
surgiram do "grande mar" (Daniel 7.2-7). Uma foi morta, e as restantes foram
autorizadas a viver por um tempo, mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 7,11-12).
Neste contexto, os quatro animais representavam quatro impérios, mas seus
antecedentes foram os monstros caóticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e
derrotado (Isaías 51,9).
O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situação (Daniel 7,17), em
tempo de crise, foi assim que os acontecimentos foram explicados. Não era nem novo
nem alheio, como às vezes é implícito. Uma visão similar do Templo é registrada em 4
Esdras. Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na
qual luta contra os inimigos invasores. Este é o antigo mito da criação, a formação da
montanha santa do meio do mar, sendo aqui interpretada para o leitor.
O padrão esperado de criação, isto é, o mito subjacente a toda a realidade é aqui
aplicado à criação (ou resgate) do povo de Deus da situação de caos em que se
encontram atualmente. O paraíso, descrito como o jardim ou como o lugar do trono
celestial, também era cercado por mar. Um texto do primeiro século d.C. relatou como é
que Adão foi levado de volta ao paraíso pelo Arcanjo Miguel. Ele congelou as águas ao
redor do Paraíso, para que pudessem atravessar (Vida de Adão e Eva 28.4).
Uma imagem mais familiar é a descrição do mar ao redor do trono celestial no Livro do
Apocalipse: "e diante do trono há como um mar de vidro, como cristal" (Apocalipse 4,6)

233
Cf. Salmos. 33,7; 74,13; 89,9; Jeremias 5,22.
104
ou diante do Templo celestial: "E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado
com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o número de seu
nome, estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas mãos " (Apocalipse
15,2).
O Templo, o lugar do trono de Deus, situava-se no meio dos mares, e representava o
firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo.
O Templo como Éden foi decorado com árvores e flores de ouro, eram joias como o
jardim de Deus no livro de Ezequiel.
Nem existe qualquer utilidade em procurar alcançar uma compreensão histórica literal
do mito do Éden. Os profetas aguardavam com expectativa uma época em que o Fim
seria como o Início, e tudo seria restaurado ao seu estado original, mas não tinham em
mente uma visão da história linear como uma expressão da sua crença de que a criação
material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino, e que era sempre
necessário restabelecer a correspondência.
O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes. O Éden era
frequentemente ligado a Jerusalém como o ideal que um dia seria alcançado.
Assim, Isaías esperava o tempo em que Sião desfrutaria da harmonia da montanha
sagrada, governada pelo rei davídico (Isaías 11). O segundo Isaías esperava o tempo em
que o deserto de Sião se tornaria Éden, o jardim do Senhor (Isaías 51.3). O Terceiro
Isaías esperava o tempo em que Jerusalém seria recriada como a nova montanha santa
(Isaías 65.17-25), um tempo em que a serpente do Éden de Génesis não teria poder ('e o
pó será o alimento da serpente', Isaías 65,25)234.
Quando Jerusalém foi destruída pelos romanos, o profeta Baruque registrou as suas
explicações para o desastre. A Jerusalém terrena não tinha sido a verdadeira cidade,
disse ele; isto foi no céu, a cidade revelada a Adão no Paraíso antes de pecar, a Abraão
quando ofereceu os sacrifícios da aliança, e a Moisés no Sinai (2 Bar.4,2-7).
Jerusalém foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor, e este, por sua
vez, foi representado pelo Templo. Que a cidade inteira foi vista como uma extensão do
Templo pode ser vista nas dimensões enormes do pátio exterior do Templo previsto no
Rolo do Templo. Existem numerosas indicações de que o Templo representava
simbolicamente o Éden, tanto nas descrições do primeiro Templo, como na maneira
como os escritores posteriores descrevem o céu como Éden e como templo.

234
Cf. Barker Margaret (1990), 61-69.
105
De acordo com Génesis 2, Éden era o jardim de Deus, um lugar de árvores, rios,
querubins e uma serpente maligna. Quando Adão e Eva foram expulsos, querubins e
uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portão.
Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo, as descrições do
templo, entretanto sugerem que era o Éden. Ezequiel descreveu um templo construído
numa montanha alta (Ezequiel 40.2), cujos pátios foram decorados com palmeiras
(Ezequiel 40.31, 34). O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel
41.17), e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 47.1-
12). Ezequiel apresentou assim características semelhantes ao Éden, mencionadas em
outras partes da Bíblia Hebraica.

A Fonte da Vida

Porque contigo está a fonte da vida; na tua luz vemos a luz.


Salmo 36:7-9

Depois de ter passado uma noite no santuário a vara de Arão "gerou brotos, floresceu e
até produziu amêndoas". Os cedros que Hirão, rei de Tiro, enviou a Salomão para a
construção do templo, assim que o incenso do santuário os atingiu, reavivaram o verde,
e ao longo dos séculos deram frutos, por meio dos quais os jovens sacerdotes se
sustentaram. Foi só após Manassés ter introduzido ídolos no Santo dos Santos, que estes
cedros secaram e deixaram de dar fruto. O terceiro incidente foi o alongamento dos
varais da Arca quando Salomão colocou-os no Santo dos Santos, e os varais, depois de
ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos, de repente se estenderam até que
tocaram a cortina235. O autor L. Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material
lendário associado ao Templo, e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em
todas as suas elaborações sobre o tema, os expositores posteriores não perderam de vista
o significado original do templo, nem ignoraram a sua simbologia. Quando Moisés
recebeu as instruções sobre a construção do santuário, ele queria saber como Deus
poderia habitar num lugar tão pequeno. O Senhor disse que não exigia o que lhe era

235
Cf. Ginzberg Louis (2003), 162.
106
devido, mas somente o que seu povo podia oferecer. Ele traria a sua presença para o
santuário por causa deles. O relato de Ginzberg continua:
“Deus estava realmente ansioso para ter um santuário erguido para ele, era a condição
em que ele os levou para fora do Egito, sim, em certo sentido a existência de todo o
mundo dependia da construção do santuário, pois quando o santuário se tinha erguido, o
mundo permaneceu firmemente fundado, enquanto até então sempre andava de um lado
para o outro. Por isso o tabernáculo em suas partes separadas também correspondeu ao
céu e à terra, que haviam sido criados no primeiro dia. Como o firmamento foi criado no
segundo dia para dividir as águas que estavam debaixo do firmamento, das águas que
estavam acima; assim havia uma cortina no Tabernáculo para dividir entre o santo e o
mais santo. Como Deus criou o grande mar no terceiro dia, assim que ele nomeou a pia
no santuário para simbolizá-lo, e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como
alimento para o homem, assim ele agora exigiu uma mesa com pão no Tabernáculo. O
candelabro no Tabernáculo correspondia aos dois corpos luminosos, o sol e a lua,
criados no quarto dia; E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas, o
Sol, Vénus, Mercúrio, a Lua, Saturno e Marte. Correspondente aos pássaros criados no
quinto dia, o Tabernáculo continha os querubins, que tinham asas como pássaros. No
sexto, o último dia da criação, o homem foi criado à imagem de Deus para glorificar o
seu criador, e também foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernáculo diante
de seu Senhor e criador”236.
A referência mais antiga ao templo como fonte de fertilidade está no profeta do século
VI, Ageu, onde ele se dirige aos exilados recém-retornados que se tinham concentrado
em construir as suas próprias casas e não tinham restaurado o templo. Houve más
colheitas e seca por toda a terra. A existência do templo e dos seus rituais era vital para
o bem-estar da terra: "O esplendor desta casa será maior do que o primeiro, diz o Senhor
dos Exércitos; E neste lugar darei prosperidade, diz o Senhor dos exércitos "(Hg 2,9).
Na época da monarquia, o rei também tinha desempenhado um papel na manutenção da
fertilidade da terra; Ele tinha sido o canal da justiça de Deus e do dom da prosperidade:
“Ele julgue o teu povo com justiça, e teu pobre com justiça! Os montes levem
prosperidade para o povo e os outeiros, em justiça.” (Salmo 72.2-3)

236
Cf. Ginzberg Louis (2003), 150.
107
Os Rios do Paraíso

Do Éden fluía um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em


quatro para regar toda a terra (Génesis 2,10). Este aspeto do mito de Éden ocorre muitas
vezes nos textos mais antigos do templo, nestas descrições o templo estava sempre
associado a um rio sobrenatural que fluía para dar vida ao mundo.
O salmo 46:4 diz: Há um rio cujos rios alegram a cidade de Deus, a santa habitação do
Altíssimo. Os rios estão presentes no capítulo 33 de Isaías, esta passagem refere-se a
um momento de crise, o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos.
Seguindo-se o que parece ser uma visão do céu; alguém ascende à montanha santa e fica
no meio dos fogos eternos (Isaías 33.14). Nos próximos versículos encontramos várias
semelhanças com o salmo 24:4, descreve o homem que pode estar em segurança na
montanha sagrada; faria sentido ler esta passagem de Isaías da mesma maneira. Aquele
que está no monte santo "vê o rei em sua beleza" (Isaías 33.17) e com sua majestade há
um lugar de rios largos e córregos (Isaías 33.21). Incêndios ardentes, o Senhor em
majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas
visões de Enoque, onde fazem parte da visão do céu: "Além disso, naquele lugar eu vi a
fonte da justiça, que não se esgota e é cercada completamente por fontes numerosas da
sabedoria” (1 Henoque 48.1). Joel, também, esperava que uma fonte fluísse do Templo
no Dia do Senhor (Joel 3.18). A descrição mais detalhada desse rio encontra-se no livro
de Ezequiel na sua visão do templo restaurado, uma visão que ocorreu no Ano Novo,
isto é, na época da Festa dos Tabernáculos (Ezequiel 40.1). Ezequiel viu a água fluir da
porta do templo (Ezequiel 47.1) e para fora para o leste. Ela fluía para o Mar Morto e
tornava as águas doces (Ezequiel 47.8). Os pescadores trabalhavam lá, e as árvores
cresciam nas margens do rio, que produziam frutos todos os meses, porque "a água para
eles flui do santuário" (Ezequiel 47.12). Esta é uma referência precoce ao tema da
fertilidade que ocorre em vários textos posteriores. Ezequiel associou esta fertilidade
com o retorno do Senhor ao Templo; a glória do Senhor entrou no Templo pela porta
oriental (Ezequiel 43.4). Zacarias também associou a água do templo ao tempo da vinda
do Senhor. Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica
a leste da cidade no Monte das Oliveiras: 'Naquele dia fluirão águas vivas de Jerusalém,
metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental; continuará no
verão como no inverno.
108
E o Senhor se tornará rei sobre toda a terra; naquele dia o Senhor será um e seu nome
um " (Zacarias 14.8-9).
O capítulo termina com todas as nações que vêm a Jerusalém para celebrar os
Tabernáculos. A Revelação de João também tinha a Festa dos Tabernáculos como seu
cenário (Apocalipse 7:9), a realidade celestial que os rituais do templo representavam.
No final de sua visão, João viu o rio da vida, "brilhante como cristal, fluindo do trono de
Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade; também, de ambos os lados do rio, a
árvore da vida com as doze espécies de fruto, dando o seu fruto a cada mês; E as folhas
da árvore eram para a cura das nações " (Apocalipse 22:1-2).
Então ele viu a grande luz no Templo, não como se fosse o enorme candelabro dos
pátios do Templo, mas a luz do Senhor Deus em seu meio.
No Evangelho de João, Jesus tinha tido essa visão da grande realização dos
Tabernáculos. O quarto Evangelho registra um incidente na festa (João 7:14) quando
ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernáculos: "No último dia da
festa, o grande dia, Jesus levantou-se e proclamou:" Se alguém tem sede, que venha a
mim e beba, quem crê em mim, como diz a Escritura, de seu coração fluirão rios de
água viva. "Ora, isto ele disse sobre o Espírito, que os que nele creram foram receber "
(João 7.37 -9).
O Evangelho de João não interpreta de forma singular e exclusiva o símbolo dos rios
serem como o Espírito, no período em questão as águas do Éden tinham vindo a
simbolizar o Espírito de Deus ou, mais frequentemente, a Sabedoria de Deus, que era
quase sinónimo do Espírito.
"Tinha chegado" faz uma pergunta, uma vez que implica que as águas do Éden tinham
adquirido esse significado; é possível que elas sempre tenham simbolizado o espírito de
Sabedoria que deu vida à criação. A ideia do Espírito como agente da criação (Génesis
1:2 e 2.7) ou de recreação (Joel 2.2 3-8) era muito antiga. Da mesma forma, a Sabedoria
foi o agente da criação (Provérbios 8.22-31) e da recreação (Sabedoria. 7.27).
Ben Sirá descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a
com os quatro rios do Paraíso: "No sacrário sagrado eu ministrara diante dele"
(Eclesiastes 24.10). "Como cássia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de
especiarias, e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradável, como galbanum,
onycha e stacte, e como a fragrância do incenso no tabernáculo "(Ben Sirá 24:15).
A Lei é então comparada à Sabedoria: "Enche os homens de sabedoria, como o Pison, e
como o Tigre no tempo das primícias. Ele os torna cheios de entendimento como o

109
Eufrates, e como o Jordão na época da colheita. Faz a instrução brilhar adiante como a
luz, como o Gihon na época da vindima' (Ben Sirá. 24:25-7).
Além do Jordão, estes são os quatro rios em que o rio Éden se dividiu enquanto fluía
para regar a terra (Génesis 2:10-14) Sirá continua: "Saí como um canal de um rio e
como um canal de água para um jardim, e disse: "Vou regar o meu pomar e encharcar o
meu jardim", e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar
"(Ben Sirá 24:30-31). Este é o rio do templo de Ezequiel, a sabedoria fluía como os rios
do Éden e como as águas do templo. As duas passagens nas visões de Enoque
confirmam esta associação.
Na segunda visão do trono celestial e do Filho do Homem, Enoque viu diante do trono:
"Além disso, naquele lugar eu vi a fonte da justiça, que não se esvazia e é cercada
completamente por fontes numerosas da sabedoria" (1 Henoque 48:1). Diante do Filho
do homem no trono, "assim a sabedoria flui como água e glória é imensurável perante
ele pelos séculos dos séculos" (1 Henoque 49.1). Tanto Génesis Rabá como Enoque
dizem que os rios fluíram do pé da árvore da vida: A árvore da vida cobriu uma viagem
de quinhentos anos, e todas as águas primitivas se ramificaram em riachos sob ele.
(Génesis 15.6). E no meio deles estava a árvore da vida, naquele lugar onde o Senhor
descansa. E dois rios saem, uma fonte de mel e leite, e uma fonte que produz óleo e
vinho. E é dividido em quatro partes (2 Henoque 8, 3, 5).

O Véu

“O que é falado é a obra dos materiais entrelaçados, que são quatro em número e são símbolos
dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo, dos quais Coisas sublunares são feitas, enquanto a
esfera celestial [é feita] de uma substância especial, das coisas mais excelentes que foram
reunidas... E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser
tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de, [sendo] o templo universal que [existiu]
antes do templo sagrado.”
Fílon de Alexandria (Perguntas sobre Êxodo, 11.85)

Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina, o véu que ocultava o trono
dos querubins. Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no, mesmo
que nas fontes do Êxodo e do livro de Crónicas existam descrições bastante detalhadas.
Na mitologia do Templo o véu tornou-se o meio de expressar crenças no limite da
experiência humana. O véu em si, simplesmente como peça de bordado, deve ter sido

110
uma obra-prima da antiguidade, não é, pois, de surpreender que fosse levado como
saque, juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido.
As vestes do sumo-sacerdote eram inseparáveis do véu, estas eram elaboradamente
tecidas e bordadas, quase como o véu. O véu e as vestes complementavam-se. O véu
representava tudo o que se situava entre a perceção humana e a visão de Deus, com as
vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que também a ocultava.
Assim, o véu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristãos a ideia da
encarnação.
O hekal representou a terra e o debir os céus, entre estes estava o véu que separava o
lugar santo do santíssimo (Êxodo 26.33), o véu representava a fronteira entre o mundo
visível e o invisível, entre o tempo ea eternidade.
As ações realizadas dentro do véu não eram deste mundo, mas eram entendidas como
parte da liturgia celestial. Aqueles que passaram pelo véu foram os mediadores, divinos
e humanos, que funcionaram em ambos os mundos trazendo as orações e a penitência
do povo para Deus e a bênção e presença de Deus para o povo.
Todo este sistema foi expresso por intermédio de um simbolismo intrincado.
Simbolismo este que terá que ser reconstruído a partir dos fragmentos que chegaram aos
dias atuais. Apesar das inúmeras lacunas no nosso conhecimento, nesta secção faremos
alusão a vários dos elementos constituintes desta realidade intrínseca à mística do
templo.
O véu do templo não é mencionado no relato do Templo de Salomão em 1 Reis 6-8,
mas é mencionado na passagem correspondente em 2 Crónicas: "E fez o véu de azul, de
púrpura, de carmesim e de linho fino, e fez nele querubins" (2 Cr 3,13).
Nada é dito sobre o seu significado. A cortina do tabernáculo do deserto é descrita da
mesma forma: 'E fareis um véu de azul, púrpura e carmesim, e fino linho torcido;
Em obra qualificada [trabalho de mangueira] será feito, com querubins '(Êxodo 26.3 1,
ver Êxodo 36.3 5). Também aqui, nada é dito do seu significado.
Verificámos a existência de quaisquer debates, após a destruição do templo, sobre se
havia algum véu no primeiro templo. A Mishná diz que no dia da Expiação o sumo-
sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas até chegar à arca. Mas, diz o
comentário sobre esta passagem: "A que estamos nos referindo aqui? Se fosse o
primeiro santuário, haveria então uma cortina? Novamente, se é para o segundo, havia
então uma arca? (B. Yoma 52b). O que nos leva a constatar que havia uma tradição de
duas cortinas no segundo templo, que foram penduradas a um côvado de distância, de

111
modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas: "A cortina exterior foi
colocada no lado sul e o interior no lado norte. Ele foi junto entre eles até chegar ao lado
norte; quando chegou ao lado norte, virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina à sua
esquerda até chegar à arca” (Mishná, Yoma 5.1). Devem ter existido várias dessas
grandes cortinas no templo, eram tecidos muito valiosos. "O véu era de um palmo de
espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas, e sobre cada vara havia
vinte e quatro tópicos. O seu comprimento era de quarenta côvados e a sua largura de
vinte côvados; foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em
cada ano " (Mishnah, Shekalim 8.5).
Tanto Antíoco quanto Tito tomaram um véu do templo entre seus espólios em cento e
sessenta e nove aC. Antíoco Epífanes levantou-se contra Jerusalém "com uma força
forte, ele arrogantemente entrou no santuário e tomou o altar de ouro, o candelabro para
a luz, e todos os seus utensílios. Ele tomou também...a cortina" (1 Macabeus 1,21). Este
véu pode ter sido levado para o templo de Zeus, Antíoco rededicou o templo de
Jerusalém ao Zeus Olímpico (2 Macabeus 6,2), e no segundo século d.C Pausânias
descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Olímpia: "Em Olímpia
há uma cortina de lã, adornada com tecelagem assíria. É roxo fenício, que foi dedicada
por Antíoco “(Pausânias, Descrição da Grécia, V. 12.2).
Não há nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusalém, mas é uma possibilidade
viável. Do mesmo modo, em setenta d.C., Tito tomou a cortina do templo entre os seus
despojos juntamente com uma grande quantidade de lã azul e púrpura. Ele ordenou que
a cortina fosse mantida no seu palácio de Roma (Josefo, Guerra Judaica VII.162), onde
um rabino do segundo século a viu.
Vendo também manchas de sangue do dia da Expiação: 'Disse R. Eleazar b. R. Yose,
"Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele, e ele disse-me: 'Estas
são as gotas de sangue do Dia da Expiação'" (Tosefta, Kippurim 2. 16).
No primeiro século d.C. Flávio Josefo sabia que o véu representava o mundo criado:
“Antes destas portas pendiam um véu de igual comprimento, de tapeçaria babilónica,
com bordados e linho fino, de escarlate também e de púrpura, trabalhados com uma
habilidade maravilhosa. Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado místico,
tipificando o universo, em que o escarlate parecia o emblema do fogo, o linho fino da
terra, o azul do ar e a púrpura do mar.”

112
Josefo em dois casos compara a cor: linho fino e púrpura pela sua origem como uma
que é produzida pela terra e outra pelo mar. Retratando nesta tapeçaria um panorama
dos céus, excetuando os sinais do zodíaco (Guerra Judaica, V. 212-13).
Esta é a descrição da cortina exterior, com Josefo a afirmar que o véu interior era igual.
Não conseguimos identificar a origem deste simbolismo. Seria um acrescento recente à
sabedoria do templo, ou era algo antigo?
A sua descrição, do véu do tabernáculo do deserto, é semelhante: "O tabernáculo foi
coberto com cortinas tecidas de linho fino, em que os tons de roxo e azul e carmesim
foram misturadas... Esta cortina era de grande beleza, sendo adornada com cada
espécime de flor que a terra produz, e entrelaçada com todos os outros projetos que
poderiam emprestar a seu adorno, exceto somente as formas de criaturas vivas"
(Antiguidades Judaicas, III.124, 126).
As tapeçarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais: "Assim, o
linho fino parece tipificar a terra, porque dela brota o linho e a púrpura do mar, uma vez
que está encarnado com o sangue de peixe; O ar deve ser indicado pelo azul e o
carmesim será o símbolo do fogo" (Antiguidades Judaicas, III.183).
Todo o tabernáculo representava o universo em seus diferentes aspetos: "Na verdade,
cada um desses objetos tem a intenção de recordar e representar o universo"
(Antiguidades Judaicas, III 180). Fílon de Alexandria também menciona este
simbolismo: "O mais elevado, e no sentido mais verdadeiro, o santo templo de Deus é,
como devemos crer, todo o universo, tendo para o seu santuário a parte mais sagrada de
toda a existência. Adorna as estrelas, para seus sacerdotes os anjos" (Leis Especiais,
1.66). Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado: “O
que é falado é a obra dos materiais entrelaçados, que são quatro em número e são
símbolos dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo, dos quais Coisas sublunares são
feitas, enquanto a esfera celestial [é feita] de uma substância especial, das coisas mais
excelentes que foram reunidas... E assim ele achou certo que o templo divino do Criador
de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de,
[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagrado.” (Perguntas sobre
Êxodo, 11.85)
Fílon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do véu que
separa a terra do céu e que separa a hekal do debir: "Pois no universo, o céu é um
palácio da mais alta santidade, e a terra é a região externa, estimável em si mesma, mas
quando comparada com o éter, tão inferior a ela quanto a escuridão é à luz e a noite ao

113
dia e corrupção à incorrupção e o homem mortal a Deus"(Vida de Moisés, 11.194). Este
véu separava a mudança do imutável: "Indica partes mutáveis do mundo, que são
sublunares, e sofrem mudanças de direção, e a região celestial que não tem eventos
transitórios e é imutável" (Perguntas sobre Êxodo, 11.91). O mobiliário do hekal, tal
como a mesa e a menorá, representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos: "E
são colocados fora do véu porque as coisas no recesso interior são invisíveis e
inteligíveis, enquanto aqueles que são externos são visíveis e sensíveis percetíveis"
(Perguntas sobre Êxodo, 11.95).
A lâmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substância mais pura, o próprio céu
(Perguntas sobre Êxodo, 11.73). Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da
cor ao explicar o significado místico do tabernáculo: "E a cobertura eo véu eram
vareados com azul, púrpura, escarlate e linho. E assim foi sugerido que a natureza dos
elementos continha a revelação de Deus. Porque a púrpura é da água, o linho da terra,
azul, sendo escuro, é como o ar, o escarlate é como o fogo" (Stromata, V.6). A cortina
também apareceu nos escritos dos místicos judeus. No Livro Hebraico de Henoque (3
Henoque), Metatron revelou a R. Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo
Santo. Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensão celestial, a cortina foi
descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do céu. O
véu dividia este mundo do além, para Fílon o véu era o limite entre a criação visível e a
invisível. Em 3 Henoque o véu é empregue no sentido temporal. O autor fala-nos de
como o véu representou toda a história da humanidade simultaneamente no mundo além
do tempo. Todos os elementos da história podiam ser vistos no véu assim como todos os
elementos do mundo criado. Esta visão da história do além é importante para a nossa
compreensão dos textos proféticos e apocalípticos. Em termos da mentalidade e da
vivência destes leitores, a visão do futuro era a visão da eternidade, um vislumbre da
realidade subjacente ao tempo237.

Por Detrás do Véu

Para lá do véu estava o mundo fora do tempo, o santuário interior era o lugar
onde ocorriam as visões provenientes da eternidade e sobre o que era eterno. O que era

237
Cf. Barker Margaret (1990), 104-107.

114
eterno era oculto, as palavras hebraicas para 'eternidade' e 'esconder' vêm da mesma raiz
'lm.
Às vezes estas visões eram descritas com imagens de julgamento, às vezes eram
apresentadas como panoramas da história. As visões do santuário nos textos posteriores
descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu
toda a criação, tanto no tempo quanto no espaço, simultaneamente diante dele.
O exemplo mais explícito desta tradição encontra-se presente no 3 Henoque, um texto
que embora tardio, preservou muitas crenças antigas. No seu relato rabi Ismael tinha
sido levado pelos céus pelo grande anjo Metatron, que antigamente era o vidente
Henoque. Ele registrou sua experiência, uma das quais foi ver o véu celestial:
"Rabi Ismael disse: Metatron disse-me: Vem, e eu te mostrarei a cortina do
Omnipresente que está espalhada diante do Santo, bendito seja Ele, e sobre o qual estão
impressas todas as gerações do mundo e todas as suas obras, realizadas ou por realizar,
até a última geração" (3 Henoque 45:1). Após esta visão segue-se uma longa descrição
da história de Israel desde os primeiros tempos até os dias do Messias ainda por vir.
"Todo o resto dos líderes de toda geração e de toda ação de toda geração, tanto de Israel
quanto dos gentios, realizadas ou por realizar no tempo vindouro, por todas as gerações,
até o fim dos tempos, foram impressas na cortina do Omnipresente" (3 Enoque 45:6).
O véu filtrou todas as limitações do tempo e do espaço e deu ao místico visionário uma
visão da criação a partir do trono divino. Aqueles que passaram além do véu
ultrapassaram as limitações impostas pelo que este representava.
Ecos desta ideia ressoam na experiência cristã primitiva, que descreveu Jesus como o
verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das
vestes que complementavam o véu. Atravessando o véu da sua carne através dos céus, o
escritor da epístola aos hebreus concluía que Jesus era uma parte do mundo para lá do
véu: "Jesus Cristo é o mesmo ontem e hoje e para sempre” (Hebreus 13:8).
Muitas das visões proféticas na Bíblia Hebraica ligam-se diretamente à simbólica do
véu, os profetas reivindicaram ter uma visão especial dos caminhos de Deus:
"Certamente o Senhor não faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos, os
profetas?" (Amos 3.7). A primeira referência que encontramos a uma visão panorâmica
da história da altura do santuário encontra-se em 1 Henoque. Três dos arcanjos
agarraram a mão de Henoque, "e levaram-me das gerações da terra, elevando-me para
um lugar alto, e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram

115
pequenos. Um deles disse-me: "Permanece aqui até veres tudo o que acontecerá" (1
Henoque 87:3-4).
A torre era uma descrição comum do Santo dos Santos, a referência mais antiga à torre
como um lugar de visão encontra-se no profeta Habacuque: “Ficarei de pé em meu
posto de guarda, me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me dirá
e o que responderá à minha queixa. Então Iahweh respondeu-me, dizendo: ‘Escreve a
visão, grava-a claramente sobre tábuas, para que se possa ler facilmente. Porque é ainda
visão para tempo determinado. Ela aspira por seu termo e não engana; se ela tarda,
espera-a porque certamente virá e não falhará” (Habacuque 2:1-3).
Em 1 Henoque, quando os exilados retornaram construíram uma torre alta e ofereceram
pão, na mesa diante da torre (1 Henoque 89:73). Este pão deve ter representado
simbolicamente o pão da proposição que foi estabelecido no hekal diante do santuário.
Outro documento visionário, a Assunção de Moisés, refere que "o Deus do céu fará o
pátio do seu tabernáculo e a torre do seu santuário" (Ass. Mos 2:4).
O cântico da vinha no profeta Isaías (Is 5:1-7) identificou a vinha do Senhor dos
Exércitos com a casa de Israel. Uma interpretação atribuída a R. Yosi no início do
segundo século d.C. acrescenta: "E ele construiu uma torre no meio dela...este é o
santuário" (Tosefta, Sukkah, 3.15)
As visões no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuário. Quando questionado sobre
o desastre que tinha acontecido a Jerusalém, ele disse: "Longe de mim abandonar-te ou
retirar-me de ti, eu só irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relação a ti
e a respeito de Sião, se em algum aspeto eu deva receber mais iluminação" (2 Baruque
34). Mais tarde, o profeta descreve o estado final dos abençoados: “Pois eles verão o
mundo que agora é invisível para eles, e eles verão o tempo que agora está escondido
deles: E o tempo não mais os envelhecerá. Pois nas alturas daquele mundo habitarão, e
se tornarão semelhantes aos anjos, e serão iguais às estrelas...porque ali se espalharão as
extensões do Paraíso, e lhes será mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que
estão debaixo do trono.” (2 Bar. 51: 8-10)
A Moisés tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presença de
Deus: “Porque ele mostrou-lhe muitas admoestações, juntamente com os princípios da
Lei e da consumação dos tempos...E também o modelo de Sião e suas medidas, no
modelo do qual o santuário do tempo presente deveria ser feito. Mas então ele mostrou-
lhe as medidas do fogo, também as profundezas do abismo, e o peso dos ventos e o

116
número de gotas de chuva... E a altura do ar e a grandeza do paraíso e da consumação
das eras e do início do dia do juízo”. (2 Bar. 59:4-5 e 8)
O véu era assim o meio de esconder e revelar o divino, representava o mundo material
e, portanto, ocultava, mas revestia o divino e assim tornava-o visível. "Saindo" da
presença de Deus, aquele que tanto revela como é revelado, é um dos grandes temas do
Quarto Evangelho (João 3.13; 6.38; 8.23). A Ascensão de Isaías enfatizou ainda mais
esta noção: "O Senhor realmente descerá ao mundo nos últimos dias [ele] que será
chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vão pensar
que Ele é carne e homem" (Asc. Isaías 9:13). A Epístola aos Hebreus menciona um que
fora enviado, e passou de volta pelo véu, "o sumo-sacerdote" (Hb 3:1).
Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia básica de passar do invisível
para o visível, do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo. O
debir era o lugar intemporal, o lugar dos mitos, os princípios sobre os quais a criação foi
construída e pelo qual ela deveria ser compreendida. Por uma nova atualização desses
mitos, um novo começo foi feito e um novo processo criativo começou238.
“Jesus disse: Eu vos darei o que os olhos não viram e o que os ouvidos não escutaram e
o que mão não tocou e o que nem subiu ao coração do homem.” (lógion 17).
Esta é a realidade oculta pelo véu, o símbolo da perceção limitada do ser humano.
Como já foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho várias representações
simbólicas, é o lugar onde a luz procedeu de si mesma, o lugar da vida, o Éden, o
próprio Jesus.
No simbolismo do templo a experiência visionária mística ocorria neste santuário mais
íntimo para lá do véu. Este era o lugar onde os visionários recebiam os segredos
celestiais, “Jesus disse: Costumo contar os meus mistérios aos que são dignos dos meus
mistérios.” (lg 62)
O talmude babilónico registou a crença de que os anjos traziam revelações através do
véu, muitas vezes mensagens de natureza importante: “Gabriel trouxe conselhos sobre o
imposto das apostas (Yoma 77a), e Satanás revelou um segredo a Abraão. Atrás da
cortina" (b. Sanhedrin 89b). A história foi contada de um homem que era repreendido
por sua esposa, que saiu e passou a noite num cemitério. Ele ouviu dois espíritos
falando entre si: Disse um: Minha querida, vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por
trás da cortina que sofrimento está vindo sobre o mundo. A sua companheira disse-lhe:

238
Cf. Barker Margaret (1990), 127-128.
117
Eu não sou capaz, porque estou enterrada numa esteira de juncos. Mas vai e tudo o que
ouvires conta-me. Então o outro foi e andou por aí e voltou. Disse-lhe seu companheiro:
Minha querida, o que ouviste por trás da cortina? Ela respondeu: Ouvi dizer que quem
semeia após a primeira chuva terá suas colheitas feridas pelo granizo. (B. Berakoth 18b)
O homem ouvindo no cemitério foi capaz de lucrar com esta informação! Em outros
lugares, a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete céus; Wilon, o
nome do primeiro céu, era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah
12b).

A Grande Luz

“Jesus disse: Eu sou a Luz. A que está acima de todos. Eu sou o Todo. O Todo
proveio de mim e o Todo chegou a mim. Trazei-me um madeiro. Eu estou ali. Levantai
a pedra e ali me encontrareis” (lóg 77)
“Jesus disse: o que conhece o Todo, está privado do conhecimento de si mesmo, está
privado do Todo.” (lóg 67)
No Evangelho de Tomé Jesus fala como um sábio, mas ele não é caraterizado apenas
como um sábio ele é por vezes a própria Sabedoria a falar. Íntima de Deus, agente na
criação, reveladora dos mistérios divinos, a luz dentro da qual a imagem de Deus se
oculta – estas são todas as caraterísticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de
Tomé. Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de
Deus que o precederam. Neste contexto concreto do lg 52239 a expressão “aquele que é
vivo” aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes três ditos são os únicos a utilizar esta
expressão. Jesus encoraja o discípulo a viver por aquele que é vivo, ele é a alternativa
para a morte. Aqueles que não olham para ele nem vivem por ele falham, “falam sobre
os mortos”, “morrem e falham em vê-lo”, e “experimentam a morte”. Pelo texto os
discípulos parecem não compreender a identidade de Jesus, ele partilha uma natureza
com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essência do tempo presente.

239
“Os seus discípulos disseram-lhe: Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram
por ti. Ele disse-lhes: Deixais na vossa frente aquele que é vivo e ponde-vos a falar dos mortos.”
240
“Jesus disse: Os céus enrolar-se-ão e também a terra, diante de vós, e aquele que é vivo
vindo do Vivo não verá a morte nem [medo]…”.
241
“Jesus disse: Olhai para aquele que é vivo, enquanto estiverdes vivos; não vá acontecer que
morrais, e tenteis então vê-lo, sem o poderdes ver.”
118
O lugar de Jesus em Tomé é o lugar da luz. Jesus habita naqueles que têm luz e é a luz
do mundo. Os discípulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus. Esta noção
deriva da tradição sapiencial e podemos chamá-la de cristologia sapiencial como
expressa o lg 77242. A figura de Jesus na textualidade de Tomé dificilmente se limita à
figura de um mensageiro sábio, ou de um amigo da sabedoria, ele é a própria Sabedoria,
criando, iluminando e penetrando todas as coisas.
Em referência à existência humana, Jesus é a Sabedoria, a luz interior daqueles que têm
a luz. “A sabedoria é mais ágil que todo o movimento; atravessa e penetra tudo graças à
sua pureza. Ela é um sopro do poder de Deus, uma irradiação límpida da glória do logia
Omnipotente; por isso, não se pode encontrar nela a menor mancha. Ela é o resplendor
da luz eterna, o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua
bondade."243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterização de Jesus em
Tomé, ele é uma luz interior e também exterior que atravessa todas as coisas num
movimento constante. Sendo uma imagem, da vida de Deus, é uma luz própria que liga
o humano ao divino, uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo
regressa.
Aqui não temos uma ideia panteísta, mas temos uma tradição sapiencial judaica que
atribui à Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma
imanência divina no mundo e no homem.
Em Provérbios 8:1-21 a Sabedoria chama o ser humano à instrução, pedindo que a
procure e encontre. Assim também Jesus aparece na terra em Tomé com um chamado
para os que são chamados a encontrá -lo. A vinda de Jesus neste contexto tem um
aspeto cosmológico. A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da
criação, este é o ponto central do poema da Sabedoria em Provérbios 8:22-31.
Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar à época
primordial, o tempo antes do tempo.
A vinda de Jesus/Sabedoria não tem tempo primordial e permite ao cristão que
encontrou a Sabedoria ou 'Aquele que vive' a existir no presente no início; Assim no lg
19 Jesus pode afirmar "Feliz aquele que já era antes de ter existido".

242
“Jesus disse: Eu sou a luz que os envolve a todos. Eu sou o Todo. O Todo saiu de mim, e o
Todo regressou a mim. Rachai madeira, aí estou eu; levantai uma pedra, aí me encontrareis”.
243
Sb 7:24-26.
119
O ambiente intelectual de Tomé pode aprofundar a nossa perceção da figura da luz, o
termo "luz" em Tomé é equivalente a "logos" e demonstra que Tomé interpreta Gn 1-2
da mesma forma que Fílon de Alexandria244.
A "luz" no Génesis descreve o início do início, a primazia do termo logos pressupõe
mais especulação filosófica no texto inaugural da bíblia. No primeiro dia tudo o que
existia era luz e na perspetiva de Tomé essa luz nunca partiu, os lg 24245 e
77246expressos em termos de logos declaram que o logos é aquilo de onde todas as
coisas proveem e se estendem. O logos é imanente no mundo e existe dentro do ser
humano, através de logos no interior do ser, o eleito apreende o logos presente no
interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma criança de
Deus (lg 3).
A imagem da grande luz é relevante para o estudo do Evangelho de Tomé, na medida
em que permite-nos aferir a representação da figura de Jesus e também a dimensão em
que este se situa e está presente.
Neste evangelho a figura de Jesus é concebida com a figura da Sabedoria na tradição
judaica, conceito este que assume múltiplas formas, de modo a Jesus também ser
concebido de várias formas no texto de Tomé.
Em Tomé não encontramos uma cristologia analítica e sistemática, o texto trabalha com
símbolos e metáforas que convidam à reflexão e esforço mental da interiorização.
Este evangelho não convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmática, antes
pressupõe uma autodescoberta, uma mudança de perceção da realidade e do divino
podendo uma metáfora de iluminação adequar-se ao momento de "conversão" no
Evangelho de Tomé.
O símbolo da luz no templo apresenta vários elementos esclarecedores do papel da luz
em todo o processo descrito no Evangelho de Tomé.

244
Cf. Davies L S (1992).
245
“Os seus discípulos disseram: Mostra-nos o lugar em que estás, uma vez que nos é
necessário procurá lo. Ele disse-lhes: O que tiver ouvidos para ouvir, que oiça. Há luz dentro de
um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não ilumina, há trevas.”
246
“Jesus disse: Eu sou a luz que os envolve a todos. Eu sou o Todo. O Todo saiu de mim, e o
Todo regressou a mim. Rachai madeira, aí estou eu; levantai uma pedra, aí me encontrareis”.
247
“Jesus disse: Se os vossos guias vos disserem: Olhai, o Reino está no céu, então os pássaros
do céu vos precederão. Se vos disseram: está no mar, então os peixes vos precederão. Mas o
Reino está dentro de vós e está fora de vós. Quando vos chegueis a conhecer a vós próprios,
então sereis conhecidos e sabereis que vós sois os filhos do Pai vivente. Mas se vós não vos
conhecerdes, então ficareis na pobreza e sereis a pobreza.” Lg 3
120
O equinócio de outono provavelmente poderá ser uma imagem frequentemente usada do
Senhor como Rei. “Que o teu rosto resplandeça sobre teu servo; salva-me no teu amor
leal” (Salmos 31.16) “De Sião, a perfeição da beleza, Deus brilha.” (Salmos 50.2) "Que
Deus tenha misericórdia de nós e nos abençoe e faça resplandecer seu rosto sobre nós.”
(Salmos 67.1) “Tu, que estás entronizado sobre os querubins, resplandece... Restaura-
nos, ó Deus, brilhe o teu rosto, para que sejamos salvos.” (Salmo 80:1, 3)
Os versos poéticos de Isaías são também parte deste cenário poético: “O povo que
andava em trevas viu uma grande luz.” (Isaías 9:2) “Levanta-te, resplandece; porque
vossa luz veio, e a glória do Senhor se levantou sobre vós. Pois eis que a escuridão
cobrirá a terra, E a escuridão os povos; mas o Senhor se levantará sobre vós, e a sua
glória será vista sobre vós.” (Isaías 60:1-2)
A mais antiga bênção conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras é uma
das últimas orações da Bíblia Hebraica; é a oração de Daniel escrita no século II a.C.
Ambas usam esta imagem de “O Senhor levante seu semblante sobre ti e te dê a paz.”
(Números 6:24-6),“Ó Senhor, faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuário, que é
desolado.” (Daniel9:17).
A porta do templo estava voltada para o leste. No equinócio de outono sugere-se que os
raios do sol nascente teriam brilhado através do portão e iluminado o grande trono
dourado no debir248. Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo. Encontramos este
simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a glória do Senhor retornando ao
templo.
A sua visão ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 40.1): "E eis que a glória do Deus de Israel
veio do oriente; e o som da sua vinda era como o som de muitas águas; e a terra brilhou
com a sua glória (…) Quando a glória do Senhor entrou no templo pela porta virada
para o oriente, o Espírito me levantou e me levou ao pátio interior; e eis que a glória do
Senhor encheu o templo" (Ezequiel 43:2, 4, 5). Zacarias também cantou esta aurora
quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo: 'O dia nos nascerá do alto para
iluminar os que se assentam nas trevas' (Lc 1,78-9).
Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior, não possuímos no presente os
meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e
evidências físicas significativas. As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente,
nos relatos e nas informações muitas vezes contraditórias. O padrão de significados está

248
Cf. Barker Margaret (1990), 148-150.
121
diretamente relacionado com as mentalidades e as vivências dos escribas e das classes
detentoras do conhecimento.
Uma das informações mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo
encontra-se no 2 livro de Reis 23:11 “Ele removeu os cavalos que os reis de Judá
tinham dedicado ao Sol, à entrada da casa do Senhor (…) e queimou os carros do sol”.
Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos
pagãos à escola deuteronomista. Alguns destes símbolos eram elementos constituintes
da religião do primeiro templo.
O ritual do templo tornou visível o mundo do templo celestial, a realidade divina, os
profetas viram isso no Santo dos Santos. O ritual do templo derivava do mundo das
visões dos profetas.
Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo. No
Santo dos Santos, no lugar do trono, a luz emanava da própria face do Senhor. Como
emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmações: “Jesus disse:
Conhece aquele que está diante de ti e o que está oculto ser-te-á desvelado. Porque não
há nada oculto que não seja revelado.” (lg 5)

A Exegese de Tomé a Génesis 1

A teologia do Evangelho de Tomé baseia-se nas narrativas da criação relatadas no


livro de Génesis, melhor dizendo, na exegese interpretativa destas histórias.
A exegese que o texto de Tomé apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporâneos, sendo até partilhada por vários grupos de leitores destas narrativas249.
Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta à luz da filosofia
grega251até pessoas envolvidas em práticas herméticas. A teologia de Tomé não
apresenta traços totalmente gnósticos, a sua exegese de Génesis articula convicções
generalizadas na exegese judaica e também partilhadas por Paulo (Romanos 1:19).
A sua exegese viaja através do tempo em busca do momento antes da criação cósmica,
abordando Gn 1:3 para explicar que quando a luz primordial apareceu no “primeiro

249
Cf. Pagels E H. (1999), 480.
250
Os judeus helenistas de Alexandria principalmente, Filon de Alenxadria representa o
pensamento vigente desta corrente judaica.
251
O pensamento Platónico, nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeus e Parménides.
122
dia”, depois da criação do mundo, apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial –
que o lg 77 de Tomé identifica com Jesus – de onde todas as coisas surgiram252.
Grande parte da teologia de Tomé baseia-se na interpretação de Gn 1:26-27 que
descreve a criação da humanidade à imagem de Deus. De acordo com o lg 84 Jesus
declara aos seus discípulos “quando virdes as vossas imagens, que chegaram a ser o
vosso começo…” o começo da criação do mundo, na luz primordial/antropos. Lg 22 e
61 sugerem que Gn 1:27b “macho e fêmea os criou” retratam a perda subsequente da
condição singular e original da humanidade e a sua substituição por uma condição
“dividida” privada da imagem divina.
Aqueles que superam esta divisão (exemplificada em especial por divisão sexual; lg 11
e 61) recuperam a sua identidade original com o “inteiro” – o singular primordial
anthropos (lg 4;11) – e assim reconhecem-se como “filhos do Pai vivente”.
As exegeses helenísticas e rabínicas, assim como Fílon e Poimandres apresentam
bastantes afinidades com este esboço exegético criado por Tomé253.

Ditos em Tomé que se referem às narrativas da Criação


Lg 4;11;18;19;37;49;50;77;83;84;85 e mais implicitamente Lg 22;24;61 e 70
Para traçarmos a exegese do Evangelho No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa: aquele
que conseguir interpretar os ditos não provará a morte (lg 1) o
de Tomé aos textos do mito da criação
poder que Adão provou e que fez cair todos os seus descendentes
presentes em Génesis devemos procurar (lg 85). Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca irá
recuperar o lugar de nascimento de Adão “reinará sobre o todo”
ler Tomé desde o início colocando a
(Gn 1:26-28). O contraste com Adão continua no lg 3 fazendo eco
hipótese que os ditos não estão a Gn 1:26-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram
atrás dos pássaros do céu e dos peixes do mar em vez de os
dispostos de forma aleatória.
governarem. Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos
como “filhos do Pai Vivente” ficarão na pobreza contrastando com
a situação de Adão que tinha grande poder e riqueza (lg 85). O Lg
4 continua a falar da situação de Adão: “a criança pequena de sete
dias” habita no lugar da vida, no princípio do tempo, no sexto dia
da criação. Assim como aqueles que são velhos devem renascer
(Jo 3: 5-6), aqueles que são muitos "se tornarão um e o mesmo",
um só, recuperando a imagem singular de Deus originalmente
concedida na criação (Gn 1:27). O princípio subjacente no lg 4 (e
relacionados, 22 e 61) é a inferência que seu autor compartilha
com Fílon de Alexandria, Poimandres e certos exegetas rabínicos
como R. Samuel bar Nachman, que Gn 1:27 descreve a criação
humana como um processo que ocorreu em duas fases. Quando
"Deus criou Adão à sua imagem", ele primeiro criou um ser
252
Cf. Pagels E H. (1999), 480.
253
Cf. Idem.
123
singular ("à imagem de Deus o criou"), mas logo depois disso, o
homem passou a ser uma espécie divida, dividida em macho e
fêmea, 1: 27b). Lg 11 descreve o dilema que essa evolução
causou: "No dia em que éreis um chegastes a ser dois. Mas quando
chegueis a ser dois, o que é que fareis?”
O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas
é a esperança do discípulo ser restaurado da sua existência
presente e dividida de volta à imagem do "único" original - a
unidade com os anthropos primordiais realçados no "lugar da luz"

Antes da criação humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial – a
luz que apareceu no “primeiro dia” (Gn 1:3). Esta luz primordial impregna e imbuí toda
a criação, estando debaixo das pedras ou dos madeiros. Antes da criação esta luz
manifestou-se de facto numa forma humana, porque a lg 77 personifica a luz divina que
fala na primeira pessoa com uma voz humana.
Esta exegese concebe a luz como um ser antropomórfico, tradição judaica, mas em
simultâneo retrata Jesus como sendo esse ser.
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial é humano ou divino? No lg 50
que também se refere a Gn 1:3, descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma.
“Poimandres” diz que de acordo com gn 1:3, Deus chamou-se a si próprio (ou a uma
emanação de si) à existência. O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa. O texto de Tomé tem o Jesus vivente a
falar através dessa luz divina que simultaneamente imbuí o universo, brilhando por
todos os lugares. O que Deus chamou à existência em Gn 1:3, é na exegese de Tomé,
uma emanação do seu próprio ser – luz que simultaneamente manifesta o divino, o
protótipo do ser humano e a energia manifesta em “todas as coisas”254.
A questão do lg 50 acerca da identidade dos discípulos também se enquadra de
modopertinenteem Gn 1:3 e 2:2, se o sinal do Pai é um movimento e um repouso. A
atividade de Deus durante a criação nestes versículos inicia-se com o movimento do
espírito de Deus sobre as águas que continua pelos seis dias da criação e o repouso
divino no sétimo dia.
Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus
através da imagem divina dada na criação. De acordo com o lg 24, Jesus repreende
aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar. Ao perguntarem o lugar onde Jesus se
encontrava ele redireciona a questão para a luz oculta no interior.

254
Cf. Pagels E H. (1999), 484.
124
“Há luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro” ele não direciona os
discípulos na direção dele como faz Jesus em Jo 14:6, mas em direção à luz oculta
dentro deles255. Se esta luz ilumina o mundo inteiro e é a luz primordial então essa luz é
ele. O lg 83 explica que “as imagens se revelaram ao homem e a luz que há nelas
oculta-se na imagem da luz do Pai. Manifestar-se-á e a sua imagem (ficará) oculta pela
sua luz.” Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina, o discípulo não
conseguirá ver a sua radiância completa. Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor
pelo menos até certo nível que o Evangelho de Tomé não tem o tom do mito gnóstico
que diz ao discípulo para procurar a sua “origem divina” de acordo com o qual a
humanidade ou alguma parte dela é naturalmente divina.
Em vez disso o discípulo é instruído a recuperar a forma da criação original. Aqui temos
duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II século.
A teologia de Tomé e a sua antropologia não pressupõe um mito gnóstico genérico, a
fonte da sua convicção religiosa é Gn 1, e a exegese que nele realizou, que como vimos
era bastante comum no seu tempo.

A Imagem e a Luz

“Quando fizerdes…uma imagem em lugar de uma imagem, então entrareis no Reino.”


Lg 22

A imagem e o símbolo na metáfora poética da narrativa escrita permitiram aos escribas


da antiguidade expressarem a sua imaginação inspirada. Uma criatividade arrebatada
pela metáfora do sonho alegórico e pela busca dos significados profundos da vida.
Antes de prosseguirmos a uma análise dos conceitos de “imagem” e “luz” no Evangelho
de Tomé, iremos contextualizar algumas das tradições textuais que influenciaram estes
conceitos.
Fílon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1.227-232 descreve uma
experiência visionária, acerca de uma passagem da versão grega de Génesis 31:13 “Eu
sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deus”.
Fílon comentou a frase “no lugar”, explicando que “para almas que ainda têm um
corpo”, Deus assume “a semelhança de anjos”. A natureza divina nunca muda, o ser

255
Cf. Idem.
125
humano apenas a encontra numa forma diferente. O autor ainda argumenta que alguns
pensam que quando veem esta “imagem (εικόνα)”, estão a ver a própria forma original
arquetípica.
Aqueles que forem “incapazes de ver o próprio sol vêm o seu "brilho" e confundem-no
com o sol”256. Fílon ainda comenta que não é surpreendente que Agar tenha confundido
o anjo que a encontrou no deserto, como sendo o próprio Deus257.
Apesar dos anjos não serem descritos como “gémeos” dos seres humanos, Fílon de
Alexandria estava ciente da tradição que conhecia os anjos como “imagens”. Ele
argumentou a existência de um processo de individualização desses anjos ou ‘imagens’,
sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano. Nestas passagens encontramos
evidências para situar a noção dos anjos como imagens celestiais, como uma parte do
judaísmo anterior ao pensamento judaico cristão258.
“Jesus disse: Quando virdes o que vos assemelha, alegrai-vos; mas quando virdes as
vossas imagens, que chegaram a ser o vosso começo, que nem morrem nem se revelem,
quanto suportareis?”259
O lg 84 apresenta os vários elementos da mitologia da separação e do retorno ao estado
primordial. Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a
existir antes do corpo humano. Esta era a imagem perdida de Adão, escondida da
pessoa. Neste logión a linguagem mítica descreve o transcendente como sendo um
objeto exterior. Uma imagem divina na esfera celeste, selada ao contacto do ser
humano. No lg 83 a linguagem é empregue em termos psicológicos tratando o elemento
divino como uma realidade oculta dentro da pessoa. Em ambos os casos estes logia
afirmam que houve uma separação entre o transcendente e o divino.
Jesus alude a esta separação no lg 11: "No dia em que éreis um chegastes a ser dois.
Mas quando chegueis a ser dois, o que é que fareis?”
De acordo com este logión a divisão envolve o ser existir separado da sua imagem
celestial, esta mitologia enquadra-se na tradição judaica referente ao primeiro homem
criado à imagem e semelhança de Deus260. Este homem continha em si uma parte da
Kavod de Deus, mas o esplendor foi-lhe retirado após a queda, em Génesis Rabbah 11,
Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam:

256
De somniis 1.239.
257
De somniis 1.240.
258
Cf. Deconick D April (1996), 156.
259
Lg 84.
260
Deconick D. April (1996), 158.
126
“A glória de Adão não se manteve durante a noite com ele. Qual é a prova? Mas Adão
não passou a noite em glória (Salmos 49:13). Os rabinos mantêm: Sua glória morou
com ele, mas no término do sábado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim
do Éden, como está escrito: Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job
14:20)”
De modo semelhante em b. MoedKatan 15b, BarKappar ensinou aparentemente sobre
Adão e Eva: "a minha semelhança eu lhes tinha dado, mas através dos seus pecados eu
mudei".261
Estes comentários antigos refletem a crença presente tanto em círculos judeus como
cristãos de que Adão era um ser luminoso no jardim antes da queda. A sua luz era tão
brilhante que até superou o brilho do sol.262
Esta compreensão de Adão está enraizada na especulação sobre Gn 3:21 onde Deus
criou "vestidos de pele e os vestiu" a Adão e Eva. De acordo com essa tradição, antes da
queda, Adão e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequência da queda.
Adão é a Luz ou Lâmpada do mundo no Talmude Palestino, Sab. 5b:
"O Primeiro Homem era a Luz do Mundo, como está escrito (Provérbios 20:27)" O
espírito de Adão era a lâmpada de Deus". E Eva trouxe a morte sobre ele ".
O significado original desta passagem é que Adão se origina da Luz e sua ligação com a
Luz é cortada pelo pecado dele e de Eva.263
Essa noção parece estar por trás da tradição rabínica de que existem seis coisas que
foram perdidas e que serão restauradas ao homem:
(1) A radiância perdida264. Especulações sobre a história de Génesis originaram uma
interpretação imaginativa da criação: O homem originalmente existia ligado à luz e a
sua queda causou-lhe a separação, pelo menos nível temporário, desse começo
luminoso. O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertença a este meio que
imaginou Adão a ser separado de sua radiância divina por causa de seu pecado.
No entanto neste lógion, o elemento divino é especificamente a "imagem" divina. Existe
uma antiga tradição samaritana que ensinou que Adão perdeu a sua "imagem."
De acordo com os samaritanos, Adão rejeitou a forma de Deus no Jardim do Éden,
então quando Moisés subiu ao Monte Sinai, ele recebeu a imagem de Deus que Adão

261
Génesis Rabbah 23 (Génesis 4:24).
262
Deconick D. April (1996), 158.
263
Cf. Idem.
264
Genesis rabbah 12, Tanch Buber Bereshit 18.
127
tinha perdido. Assim, quando estes textos falam de Moisés ter sido revestido pela Luz,
eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adão.
Lê-se em Memar marqa 5.4: "Ele [Moisés] foi revestido com a Forma que Adão lançou
no Jardim do Éden, e seu rosto resplandeceu até o dia de sua morte".265Ainda no verso
6:3: Ele [Moisés] se aproximou da santa e profunda escuridão onde estava o Divino, e
viu as maravilhas do invisível - uma visão que ninguém mais podia ver. Sua imagem
estava sobre ele. Quão aterrorizante para quem vê e ninguém é capaz de ficar diante
dela!”266
Esta temática representa uma especulação anterior sobre a história do Génesis, já que
encontramos o conto no Apocalipse de Moisés em que Adão e Eva foram originalmente
vestidos com a Kavod, glória ou imagem de Deus. Mas foram separados da glória que
tinham quando as suas vestes de glória foram despojadas como consequência do
pecado. No capítulo 20, depois de Eva ter pecado o autor refere que "eu sabia que
estava nú da justiça que eu tinha vestido". Eva chora, clamando: "Tenho-me escondido
da minha glória com o que eu estava vestida". De acordo com o Capítulo 21 Eva está
perturbada porque a transgressão foi um grande desafio para Adão. Embora não seja
claro que Adão realmente perdeu a glória, depois que Adão come da árvore diz a Eva:
"Tens-te afastado da glória de Deus".267
O objetivo central desta exegese seria o de retornar à imagem divina através de um
processo de reunificação. Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como
resultado do pecado, então a redenção só se torna possível no reencontro dessa imagem.
Esta é a teologia do Evangelho de Tomé, como analisamos no lg 37 a salvação implica
um despojar do corpo material, renunciando. Ao renunciar-lhe, o discípulo acreditava
retornar ao estado pré adâmico, “fazer dos dois um”, tema mencionado nos lg 22 e 106
ilustra esta realidade interna. No lg 22, o discípulo entra no Reino quando faz dos dois
um, quando a sua imagem humana é substituída pela sua luz celestial.
A salvação concede-se apenas aos que se unirem à sua imagem divina, quando fizerem
“uma imagem no lugar de uma imagem”, formando “olhos em lugar de olhos”, e uma
“mão no lugar de uma mão”. No lg 106 Jesus afirma que quando o discípulo fizer dos

265
Cf. Macdonald John (1963), 209.
266
Cf. Idem, 223.
Esta exegese a Génesis 1-3 contém os elementos que temos vindo a abordar ao longo do
trabalho e ainda apresenta esta crença de que Adão perdeu a imagem divina. Esta crença é mais
antiga do que a menção que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomão 2:23 “Deus criou o
homem para a incorruptibilidade e o fez à imagem da sua eternidade”.
267
Cf. Deconick D April (1996), 160.
128
dois um, ele torna-se Filho do Homem. O termo Filho do Homem é identificado com a
Kavod de Deus, sendo também bastante associada às tradições angélicas. O que se
depreende destas associações é que o ser humano une-se à sua imagem celestial e
adquire um estatuto angelical, uma existência paradisíaca268.
Os termos luz e imagem assumem em Tomé múltiplos significados, sendo assim
necessário tratá-los à luz de outros logia que utilizem termos semelhantes.
“Jesus disse: As imagens revelaram-se ao homem e a luz que há nelas oculta-se na
imagem da luz do Pai. Manifestar-se-à e a sua imagem ficará oculta pela sua luz.”269
“Jesus disse: Quando virdes o que vos assemelha, alegrai-vos; mas quando virdes as
vossas imagens, que chegaram a ser o vosso começo, que nem morram nem se revelem,
quanto suportareis?”270
“Adão chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e não chegou a ser
digno de vós. Porque se tivesse sido digno não teria provado a morte.”271
Estes três logia enquadram-se num contexto temático específico, em que Jesus discute
Gn 1:26-27, onde Adão foi criado à “imagem” e “semelhança” de Deus. No lg 84 as
imagens são descritas como aprovações do não-manifesto; no lg 83 as imagens estão
num estado inicial de manifestação. Na última linha do lg 83 surge uma imagem não
manifestada, o que nos sugere que o termo “imagem” tem um duplo sentido272.
O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao discípulo: a “semelhança” e a “imagem”
relacionados com o lg 22, onde o discípulo deve transformar a imagem (semelhança)
numa imagem (imagem), para entrar no Reino.
No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que há nelas oculta-se na imagem
da luz do Pai. O homem vê o mundo, constituído por imagens, sem ver a luz dentro das
imagens: “as imagens revelaram-se ao homem e a luz que há nelas oculta-se”. O mundo
pode assim ser apreendido no modo de luz ou não apreendido de todo, esta leitura leva-
nos a considerar o lg 24: “Há luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo
inteiro. Se ele não ilumina, há trevas.”
Neste lógion a luz pode ou não vir a ser manifesta e a sua iluminação tem implicações
cósmicas. No lg 83 lê-se que a luz presente no interior das imagens irá tornar-se

268
Cf. Idem, 162.
269
Lg 83.
270
Lg 84.
271
Lg 85.
272
Cf. Davies S. (1983), 63.
129
manifesta à imagem da luz do Pai, estabelecendo uma distinção entre a luz do Pai e a
imagem dessa luz273.
Da presente discussão destes lg (83,84,85,24 e 22) podemos tirar as seguintes
conclusões: o ser humano tem a capacidade de ver as imagens, que são os elementos
que constituem o mundo. Estas imagens contêm em si a luz (a imagem da luz do Pai),
esta luz pode tornar-se manifesta. O ser humano tem em si a luz interior, como todas as
outras coisas que constituem a realidade do mundo. Esta luz pode ser manifestada no ser
humano de luz, e assim ele ilumina o mundo inteiro. Quando o ser humano manifesta a
luz do seu íntimo ele apreende a luz intrínseca em todas as coisas. Todo aquele que
falhar neste processo, encontra-se na escuridão, ciente apenas da sua semelhança, e
condenado a provar a morte274.
O discípulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem, porque “a
imagem está oculta na luz”, e esta imagem é a semelhança de Deus. Quando o lg 84
menciona “as vossas imagens, que chegaram a ser o vosso começo” relembra duas
beatitudes nas lg 18b e 19a:
“Feliz aquele que se colocar no começo, porque conhecerá o fim e não provará a
morte.”275 “Feliz daquele que era antes de chegar a ser.”276
Estas passagens referem-se à criação primordial, o lugar do Reino.

Síntese da Cosmologia de Tomé e a Protologia e Deificação da Câmara Nupcial

“Ele disse: Senhor, há muitos em volta do poço, mas nenhum no poço.”277


“Jesus disse: há muitos que estão junto à porta, mas os solitários são os que entrarão na
Câmara Nupcial.”278
A Câmara Nupcial é o núcleo central que unifica as várias temáticas do Evangelho de
Tomé. Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Câmara Nupcial e
retorna para lá. Como identificámos acima os quatro estágios da Câmara Nupcial estão
subjacentes no processo de retorno à origem primordial apresentado pelo Evangelho de
Tomé. A Câmara Nupcial nestes dois lg (74;75) é apresentada como a crença central que

273
Cf. Idem, 65.
274
Davies S. (1983), 63.
275
Lg 18b.
276
Lg 19a.
277
Lg 74.
278
Lg 75.
130
interliga a cosmologia e a protologia do evangelho; no lg 74 o ‘poço’ é uma imagem da
‘água espiritual’ (lg 13; 108). Este lógion estabelece um contraste com duas
proposições279: muitos têm acesso ao conhecimento verdadeiro e à revelação (‘à volta
do poço’), mas são poucos os que entram nessa revelação (‘no poço’).
Jesus é o poço no lg 13, ele pede aos discípulos para cada um lhe dizer com quem é que
ele se assemelhava. Tomé afirmou a sua incapacidade de definir o mestre, e Jesus
responde-lhe: “Eu não sou teu mestre, uma vez que bebeste e te embriagas do poço que
borbulha, que eu mesmo escavei.”. Noutro logia Jesus disse: “O que beber da minha
boca chegará a ser como eu. Eu também chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-
lhe-ão reveladas.”280
Ao entrar no poço, o discípulo entra em Jesus, ao beber do poço o discípulo bebe as
palavras que saem da boca de Jesus, chegando a tornar-se como Jesus. A Câmara
Nupcial é neste contexto o interior desse poço, o interior de Jesus. O lg 75 (ver. 108)
estabelece uma união entre o discípulo e Jesus na Câmara Nupcial281. Este discípulo é
designado de monachos, solitário. A Câmara Nupcial é o lugar da salvação,
representada também pelo ‘poço’ no lg 74; Jesus é o noivo como está referido no lg 104
e cada alma unir-se-à a ele.
Simbolicamente a Câmara Nupcial retrata a união entre o divino com o humano num
processo que ocorre em quatro estágios distintos. Os textos nupciais recordam um
estado idílico primordial que foi perdido, um estado nupcial. Este estado foi recuperado
por um momento redentor único que é retratado como casamento. Este evento nupcial
estende-se no tempo através da adoração litúrgica, relembrando e reencenando o
casamento redentor nas vidas das gerações subsequentes. A adoração litúrgica antecipa
o estágio final, o cumprimento escatológico do casamento divino-humano no final da
história.
Como acima referimos estes quatro estágios da união nupcial correspondem
simbolicamente aos quatro estágios da história de salvação de Israel: A criação e o
jardim do Éden, o êxodo e o monte Sinai, o Templo de Jerusalém no Monte Sião e o
final dos tempos.
Não existe a noção de escatologia no Evangelho de Tomé, mas existe a recordação do
estado primordial da humanidade, o estado de união com a imagem divina “No dia em

279
Comparamos a posição ‘estar junto à porta’ com ‘estar no poço”.
280
Lg 108.
281
Cf. Gathercole Simon (2014), 487.
131
que éreis um chegastes a ser dois.” (lg 11) “Porque encontrareis o Reino; já que haveis
saído dele, a ele regressareis” (lg 49).
Existem implicitamente nestes logia a noção da queda e da perda deste estado de
unidade.
Estabelecem-se então os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e
por outro revelam quais são as atitudes necessárias para regressar à origem. Existem três
grandes uniões ou metamorfoses no Evangelho de Tomé, que fazem parte do processo
transformativo do discípulo. Não é de todo possível assegurar com toda a certeza qual é
a ordem sequencial destas uniões, mas podemos partir dos textos para o demonstrar: a
união do género, a união crística e a autounião. Na medida em que o Evangelho de
Tomé descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separação, entre
o masculino e o feminino, entre o interior e o exterior, entre a imagem e a luz. Também
procurou estabelecer alguns processos de unificação destas mesmas problemáticas.
Até aqui temos a descrição feita à exegese de Gn 1, referente, portanto ao estado nupcial
primordial de unidade, seguindo-se a descrição do estado de separação, morte e
ignorância. Nesta sequência descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomé
não está ligado à morte de Cristo, mas antes à sua revelação da luz primordial que se
oculta no ser humano e que é Cristo. Ao revelar essa luz dentro do seu interior o
discípulo salva-se “Quando gerardes o que está em vós, isso que tendes vos salvará, mas
se não o tendes em vós, isso que não tendes em vós dar-vos-à a morte.” (lg 70). “Ele
disse-lhes: O que tiver ouvidos para ouvir, que oiça. Há luz dentro de um homem de luz
e ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não ilumina, há trevas.” (lg 24)
É no momento de epifania em que o discípulo se conhece a si mesmo e descobre a luz
oculta no seu íntimo, este é o segundo estágio da Câmara Nupcial.
O uso do simbolismo litúrgico do templo para reproduzir e relembrar o momento
salvífico redentor de Israel é aplicado no Evangelho de Tomé de forma semelhante.
Também em Tomé encontramos uma experiência ascensionária com elementos
litúrgicos. Esta experiência emprega vários conceitos do misticismo judaico que
estendem as suas raízes ao simbolismo litúrgico do templo de Jerusalém.
Ao lermos o lg 50, lemos vários dos outros logia que tratam a questão da ascensão e da
experiência visionária, observando que a terminologia empregue se origina no templo
de Jerusalém. Neste terceiro estágio o discípulo de Tomé vivia um processo de
preparação para a derradeira união mística com Jesus na Câmara Nupcial. Ele recebe
instruções de como jejuar, orar, e comportar-se nas realidades celestiais.

132
No último estágio não encontramos uma noção escatológica comum à literatura
analisada e aos evangelhos sinóticos.
O Reino, a Câmara Nupcial, o poço que borbulha são realidades presentes aqui e agora,
acessíveis a todos os que as buscarem.
Neste âmbito as promessas feitas por Jesus àqueles que entram na Câmara Nupcial,
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria, são promessas protológicas de
deificação.
No Evangelho de Tomé o ‘final do tempo’ substitui-se pelo tempo ‘sem começo e sem
fim’, porque o tempo é a substância do Reino que está difundido por toda a terra, mas os
homens não o veem (lg 113).
O símbolo proeminente no mundo simbólico de Tomé é a ‘luz’, a luz primordial auto
gerada que imbuí toda a criação escondida na imagem presente dentro do ser humano.
Essa luz é o próprio Jesus Vivente, que terá que ser encontrado pelos discípulos no
interior com o autoconhecimento. O poço e a Câmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma. A sua boca é o poço que
borbulha palavras de sabedoria que o discípulo íntimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente. A Câmara Nupcial é o lugar onde se celebra esta união íntima entre Jesus
e o discípulo, para o discípulo entrar na câmara ele tem que entrar no poço.
Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poço e junto à
porta da câmara, e existiam os solitários que entravam dentro do poço (dentro da boca
de Jesus) e entravam na porta da Câmara Nupcial. Neste último estágio eles
transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz.
Alcançar esta meta é a grande finalidade do Evangelho de Tomé, todo o seu esforço
hermenêutico e exegético, todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direção.
O Éden (e o estado adâmico, nupcial) é um reflexo da luz primordial e auto gerada, a
Câmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 é um reflexo destas duas
imagens anteriores. O poço que borbulha águas de sabedoria celestial é um reflexo
destas três realidades antecedentes. Por fim o Jesus Vivente é uma imagem destes
quatro reflexos ou metáforas.

“Em relação a isto digo: Se o discípulo chega a ser igual encher-se-à de luz, mas se chega a
282

estar dividido, encher-se-à de trevas.” (lg 61).


133
Em suma o ser humano veio da Câmara Nupcial onde a sua imagem estava unida à sua
luz, quando ambas se separaram ele perdeu-se. O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida, unindo novamente as duas.
A Câmara Nupcial é o eixo cosmológico de Tomé, neste evangelho a queda do homem é
pensada como uma desintegração da realidade em opostos binários. O evangelho
carateriza a sua audiência como sendo ‘dois’ (lg 11), o lg 22 foca-se na divisão
interior/exterior; em cima/em baixo, masculino/feminino. Faz-se também a distinção
entre a ‘imagem’ interna e a ‘semelhança’ externa (lg 84).

“Jesus disse: Aquele que está próximo de mim, está próximo do fogo, e o que está longe
de mim está longe do Reino”283

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformação
mística, uma experiência de ascensão transformadora. Ao subir ao céu o místico
encontrava a luz de Deus, escondida na sua kavod; a tradição judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos. Como encontramos em Pesikta rabbati 11:7284
“Neste mundo, Israel apega-se ao Santo, bendito seja Ele, como se diz: "Mas vós que
vos apegastes ao Senhor" (Deuteronómio 4: 4). Mas no tempo vindouro eles se tornam
como (Ele). Assim como o Santo, bendito seja Ele, é fogo consumidor, segundo o que
está escrito: "Porque o Senhor é fogo consumidor" (Deuteronómio 4:24), assim
consumirão fogo, segundo o que está escrito: e a luz de Israel será para o fogo e o seu
Santo para a chama." (Isaías 10:17)”
Ao serem transformados, os justos seriam conformados à kavod ou à manifestação da
imagem de Deus. As tradições sobre Moisés sugerem que, para o ser humano estar na
presença de Deus e das hostes celestiais, é necessário que a carne seja transformada em
fogo. Metatron levanta objeções diante de Deus: "Moisés é incapaz de resistir aos anjos,
pois os anjos são príncipes de fogo, enquanto ele é carne e sangue". Então Deus manda
Metatron "mudar sua carne em tochas de fogo". Consequentemente, Metatron mudou a
carne de Moisés "para tochas de fogo, e seus olhos para rodas de Mercavá, e sua força
para a de Gabriel, e sua língua para chama"285.

283
Lg 82.
284
Cf. Deconick D April (1996), 105.
285
Cf. Idem, 162.
134
Aparentemente, essa tradição mosaica é bastante primitiva, já que o comentário de Fílon
sobre o Êxodo indica que, mesmo no primeiro século, acreditava-se que Moisés sofreu
uma transformação em luz quando subiu ao Monte Sinai. Fílon relata que Moisés levou
consigo primeiro a Aarão, Nadab e Abiú. Mas estes homens não podiam suportar os
raios emanados por Deus porque como Fílon refere, há apenas alguns indivíduos que
gostam de salamandras e podem viver no fogo, a região interior de Deus (Quaest, Ex
2.27-28, ver Mig. 166). Foi Moisés quem foi para além do céu em Deus (Quest, Ex
2.40), ali Moisés tornou-se mente, unindo-se com Deus, tornando-se o seu próprio logos
luminoso (Ibid 2.44).286 Da mesma forma, as tradições sobre o paradigma místico de
Henoque sugerem que uma transformação ígnea está ligada a motivos de ascensão.
Assim, quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15, ele afirma:

“De repente minha carne se transformou em chamas, meus nervos em fogo ardente,
meus ossos em carvão de junípero, meus cílios em relâmpagos, meus olhos em tochas
ardentes, os cabelos da minha cabeça em chamas quentes, todos meus membros em asas
de fogo ardente, e a substância de meu corpo em fogo ardente.”

Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 3:4, é afirmado que os olhos de


nenhuma criatura podem contemplar o Vestuário de Deus, incluindo os anjos:
“Pois quem o contempla - sim, quem olha e vê os seus olhos se acendem e giram ao
redor: seus olhos lançam fogo e vomitam tochas ardentes, e o prendem em chamas e o
queimam - Homem que o contempla e o põe em chamas e o queima.”
Este motivo não é propriedade exclusiva das tradições judaicas. Segundo o Corpus
hermeticum 10, a experiência visionária transforma um homem num ser imortal.
Esta visão é tão deslumbrante que o místico quase é cego pela visão. Assim, em 10.4
Tat diz a Hermes: "Você nos encheu de uma visão, pai, que é bom e muito belo, e o
olho da minha mente está quase cegado em tal visão". Hermes explica que esta visão
traz consigo a imortalidade. Além disso, ele suprime o medo de Tat que esta visão
causará dano ao místico. Ele explica que aqueles que estão preparados para a visão
acharão que eles irão sondá-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de
fogo do sol, mas não fará nenhum dano: Sim, mas a visão do bem não é como o raio do
sol que, por ser ardente, deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar. Pelo contrário,

286
Cf. Idem, 106.
135
ilumina na medida em que é capaz de receber a influência do esplendor intelectual pode
recebê-lo. Ele sonda mais agudamente, mas não faz mal, e está cheio de toda a
imortalidade (αθανασίας) (10.4).
No Corpus Hermeticum 10.5-6, Hermes continua a ensinar a Tat que "estamos ainda
muito fracos agora para esta visão", mas a pessoa que é capaz de ver o bem e assim
conhecê-lo "não pode entender mais nada". Hermes descreve a consequente
transformação: “Ele permanece imóvel, todo o sentido corporal e o movimento
esquecido. Tendo iluminado toda a sua mente, esta beleza acende toda a sua alma e, por
meio do corpo, a puxa para cima, e a beleza transforma toda a sua pessoa em essência.
Pois quando a alma olhou para a beleza do bem, minha criança, ela não pode ser
deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humano.”287
Assim, no Hermetismo, encontramos um misticismo transformacional associado à
experiência visionária. A visão é descrita usando a linguagem da luz: a visão do Bem
não causará nenhum dano ao místico preparado, mas o examinará mais agudamente do
que os raios de sol e brilho do sol. Essa visão deificou o místico. Não é improvável que
a tradição judaica esotérica do misticismo do fogo esteja associada às noções herméticas
sobre ascensão e visão transformadora288.
É neste contexto que o lg 82 poderá ser lido com maior compreensão, aqui Jesus
estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o
"fogo" ou o "Reino" que são uma e a mesma coisa.
Além disso, Jesus afirma estar nesse mesmo espaço onde esses dois pontos se
encontram, este lógion pode ser interpretado da seguinte maneira: o discípulo que está
perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo, onde Jesus agora é, o Reino celestial.
Esse lugar feito de fogo e de luz, feito de sons e de glória, constituído pelo elemento
central do trono, é a Câmara Nupcial, o Santo dos Santos.
Quem não está perto de Jesus, ainda não ascendeu a esse lugar. Esta interpretação é
ainda mais intrigante quando se leva em consideração o lg 83 que menciona a visão da
"imagem da luz do Pai".
Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto, não há dúvida de que o fogo se associa à luz
da imagem de Deus. Jesus é representado como alguém que está no Reino ou na
presença da luz ou do fogo de Deus. Sendo necessário que os seguidores de Jesus
ascendam a esse lugar para estarem com Ele. Embora o lg 82 não mencione o poder

287
Cf. Deconick D April (1996), 108.
288
Deconick D April (1996), 108.
136
transformacional do fogo diretamente, é provável que os primeiros seguidores
estivessem familiarizados com o tema da transformação pelo fogo de sua herança
judaica e hermética. Uma vez na presença de Jesus e do fogo de Deus, eles poderiam
esperar ser transformados numa figura angelical, semelhante à luz do próprio Deus.
O lg 108 confirma, pelo menos em parte, que Tomé estava familiarizado com esta forma
de misticismo transformacional.
“Jesus disse: O que beber da minha boca chegará a ser como eu. Eu também chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-ão reveladas.”289
Na literatura judaica a metáfora da bebida era empregue nas experiências de ascensão; a
revelação da sabedoria oculta durante a ascensão é descrita em termos metafóricos
como “beber”290. Em 1 Henoque 48:1, o autor, descreve: “Naquele lugar eu vi a fonte
da justiça, e ela era inesgotável, e muitas fontes de sabedoria a cercaram; e todos os
sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria; e as suas moradas estavam com os
justos, os santos e os escolhidos.”
Depois de beberem destas fontes, as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos
santos, justos e eleitos. A ascensão a este Reino torna-se possível, e são dados os
segredos do céu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria.
“Porque a sabedoria foi derramada como água, e a glória não falhará em sua presença
pelos séculos dos séculos. Porque ele é poderoso em todos os segredos da justiça; E a
injustiça desaparecerá como uma sombra, e não terá lugar para ficar.”291
Esta sabedoria é derramada como água; encontramos outro exemplo em 4 Esdras 1:47,
em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteúdo dos setenta livros “porque neles
está a fonte do entendimento, a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimento”. Outras
tradições relataram que quando Moisés recebeu a Torá no Monte Sinai, ele também
recebeu “a raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do
conhecimento”292.
Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moisés bebeu de sete fontes “gloriosas” no
lugar onde ascendeu até aos céus293.

289
Lg 108.
290
Cf. Deconick D April (1996), 109.
291
1 Henoque 49:1.
292
2 Br 59:7.
293
Cf. Macdonald John (1963), 81.

137
A nossa investigação confirma que a imagem ascensionária do ato de beber e a
aquisição de conhecimento secreta estão intimamente ligadas à imagem do fogo e à
linguagem metamórfica. Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junção numa visão
em 4 Esdras 14:38-41:
“…uma voz chamou-me dizendo: ‘Esdras, abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a
beber.’ Então eu abri a minha boca, e contemplei, uma taça cheia foi-me oferecida;
estava cheia de algo semelhante a água, mas a sua cor era como fogo. E eu tomei e bebi;
e quando eu bebi e quando a bebi, o meu coração derramou adiante compreensão, e a
minha sabedoria cresceu no meu peito, pois o meu espírito recuperou a sua memória e a
minha boca foi aberta e jamais fechada.”
Nesta visão Esdras recebe uma taça de água com fogo e ao bebê-la ele adquire
conhecimento que até esse momento lhe estava oculto. A linguagem usada para
descrever esta metamorfose, no coração e no espírito, é poética e desafiante. A sua boca
é aberta, a linguagem da bebida congelou-se com a transformação da linguagem do
fogo.
Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a
condição da transformação no fogo. Fílon de Alexandria em Legum Allegoriae 1.82-84,
explica que, louvando a Deus, a pessoa "está isenta de corpo e matéria", por outras
palavras, o louvor "tira um homem de si mesmo" e permite que a mente saia "de si
mesma e se ofereça" a Deus. Depois de ascender, esta pessoa “é permeada pelo fogo...e
é bêbeda com embriaguez sóbria ".294
A Ode 11 das Odes de Salomão testificam este ponto de que "estar bêbedo" e encontrar
"fogo" são metáforas equivalentes que descrevem a transformação mística no divino.
Nessa ode, o hinário fala de uma experiência de ascensão onde "as águas falantes
tocaram meus lábios da fonte do Senhor generosamente, e assim bebi e tornei-me
intoxicado, da água viva que não morre" (11.6-7)295.

Experiência Ascética como Interioridade Luminosa

“Jesus disse: Quando gerardes o que está em vós, isso que tendes vos salvará, mas se
não o tendes em vós, isso que não tendes em vós dar-vos-á a morte”296

294
Cf. Deconick D April (1996), 111.
295
Idem.
296
Lg 93.
138
As mentalidades e as vivências deste evangelho registam-se numa experiência
comunitária. A ascese em Tomé é interna onde o cristão experimenta uma oposição que
emana do mundo que o rodeia; e experimenta uma luta interna para se descobrir a si
mesmo297.
Abordar o tema do asceticismo em Tomé, passa por abordar a imagem do corpo humano
no Evangelho de Tomé, com todas as suas conotações físicas e simbólicas298.
Durante este período os filósofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da
existência, desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo. Os teólogos cristãos
conceberam o “corpo sofredor”, pronto para renunciar-se e morrer. Este clima
intelectual dos primeiros dois séculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem
do corpo no Evangelho de Tomé299.
O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomé, é cosmológico e
antropológico. Significando em si uma distinção entre o mundo criado e o Deus
supremo, assim como uma distinção entre a alma e o corpo ou a carne e o espírito.
O “eu” verdadeiro, existe separado do corpo, que pertence ao mundo físico, uma fonte
de morte. A alma ou ‘centelha divina’ no interior do ser humano encontra-se
aprisionada no corpo humano.
O corpo é considerado inferior ao interior espiritual, sendo descrito como ‘pobreza’ na
qual a ‘grande riqueza’ habitou (lg 29). O desapego do corpo é uma temática
interessante que surge no texto: as pessoas não se devem preocupar com as suas vestes
(lg 36). Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78). Em
Tomé o que importa é o ser interior, é isso que salva as pessoas, se for “gerado”.
Esta atitude em relação ao corpo era comum em várias ideologias do mundo antigo,
sendo que as ideias religiosas e filosóficas presentes em Tomé estão presentes no mundo
cultural helénico.
Existem, porém, certos pormenores que não devem ser negligenciados no estudo desta
temática.
A relação do corpo com o mundo físico em Tomé necessita de ser relida primeiramente
com o método de análise que temos vindo a usar. É na estrutura interna do texto que
encontramos a coerência necessária para reconstruirmos uma ideologia e uma

297
“Jesus disse: Feliz do homem que teve de penar, pois encontrou a vida.” Lg 58
298
Cf. Uro R. (2003), 54.
299
Uro, R. (2003), 54.
139
compreensão das imagens simbólicas. O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e
enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento.
Apesar de existirem vários logia que referem que o mundo não tem qualquer valor (lg
56,80,21), existem outros que atribuem ao mundo conotações positivas (lg 12,28,113).
O mundo físico não é a fonte do mal nem é um produto do mal, este esclarecimento
afasta o Evangelho de Tomé da categoria ‘gnóstica’ tal como hoje é entendida.
Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre “corpo” e “alma”, “carne” e
“espírito” está presente. A metáfora do “despir” o corpo, discutida acima 300 na
exposição do lg 37 será enquadrada na presente secção como esforço de
contextualização da visão do corpo no Evangelho de Tomé.
“Jesus disse: Ai da carne que depende da alma! Ai da alma que depende da carne!”
(Lg 112)
“Jesus disse: Miserável é o corpo que depende de um corpo e miserável é a alma que
depende destes dois.” (Lg 87)

O aviso que Jesus dá no lg 112, contra a dependência da alma em relação à carne,


sugere uma ideia já existente na obra de Platão Phaedo (66B, D-E):
“Desde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal, nunca iremos
alcançar o que desejamos, isto é a verdade...o corpo está constantemente a investigar os
nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusão... E, na verdade, percebemos
que, se alguma vez devemos conhecer algo completamente, devemos estar livres do
corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da alma”.
Platão considerava que a alma ‘fraca’ daquele que não era sábio, tinha dificuldade de
escapar do corpo após a morte e manter a sua pureza. Nas suas obras República e
Timeu, Platão já fornece uma descrição mais positiva na relação entre o corpo e a alma.
Tema recorrente na literatura greco-romana é o corpo ser descrito como a força que
“puxa para baixo” a alma. Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomé, na sua primeira
afirmação Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma. Ao afirmar que o corpo
será prejudicado se depender da alma, existe uma lógica implícita que o corpo poderá
ser feliz se não existir nenhuma relação desequilibrada entre o corpo e a alma301.
Muitos dos seus leitores contemporâneos provavelmente interpretariam este dito como
uma referência a uma dependência desequilibrada ou uma inclinação a que se devia

300
Ver páginas, 66-71.
301
Cf. Uro R. (2003), 59.
140
resistir. A visão hostil entre corpo e alma, com uma negligência total do corpo seria
entender de forma forçada o literalismo das palavras, sem ter em conta a dinâmica da
filosofia greco-romana302.
O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112. Ambos falam do corpo e da alma
condenando a sua dependência. No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo
que depende de um corpo. Alguns interpretam isto como a atração sexual entre dois
corpos, mas ao referir-se à dependência da alma em relação aos dois corpos, esta
interpretação perde todo o sentido303.
Uma possível interpretação encontra-se no lg 80 onde o mundo é retratado como um
corpo, no lg 56 o mundo é um corpo sem vida, mais concretamente um cadáver.
Estes termos figurativos (mundo, corpo, cadáver) estão entrelaçados no Evangelho de
Tomé; para o leitor do seu tempo a metáfora do cosmos como corpo humano era natural.
Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo, explicamos de forma
plausível os dois corpos do lg 87. Este lógion condena um corpo individual que depende
do corpo-mundo, a alma é amaldiçoada porque depende do corpo individual e do corpo
universal.
A alma nunca deve depender do mundo físico, quer este se manifeste na forma de um
indivíduo, sociedade ou do cosmos universal. Por isso é que em Tomé a ideia do
asceticismo é uma realidade interior em que a alma vai procurar não depender de várias
restrições e limitações da realidade exterior.
Os logia assinalados demonstram que os cristãos em Tomé são chamados a
descobrirem-se através das decisões que tomam no seu dia-a-dia. Eles escapam do
mundo concentrando-se em si mesmos. Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas
lutas internas, descobrem a sua verdadeira natureza. Os impulsos para uma
compreensão correta do ser, esta nova perceção concede-lhes o que lhes permite não
experimentarem a morte. Todo o processo de interiorização e de oposição aos valores
sociais exteriores leva a uma vivência de sofrimento e conflito. Quem se conhece a si
mesmo, conhece que é filho do Pai Vivente, esta é a mensagem situada no coração de
Tomé; a interpretação dos seus ditos leva a vivências de sofrimento e à realização
pessoal.
“Jesus disse: Felizes são os que foram perseguidos no seu coração. São esses os que
conheceram o Pai em verdade.

302
Cf. Idem, 60.
303
Cf. Idem.
141
Jesus disse: Quando o tiverdes gerado em vós, o que é vosso vos salvará; se não o
tiverdes em vós, o que não tendes em vós vos matará.” (Lg 69a e 70).
Tomé torna a solitude uma condição explicita para a salvação (lg 49) apesar dos
intérpretes dos ditos enigmáticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a
vida eterna, que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente.
Esta interpretação é solitária e interiorizada não sendo um processo comunitário304.
O Evangelho de Tomé em termos sociais não se apresenta como um documento
preocupado e atento às problemáticas da formação de comunidades cristãs. Antes foca-
se num conjunto de atitudes e práticas habituais que sucediam para além dos
“movimentos de Jesus”.
Tomé enfatiza a necessidade de seu leitor esforçar-se e trabalhar: “Jesus disse: Feliz o
homem que sofreu. Encontrou a vida.”305. O tema da busca ativa e a descoberta são
apresentados em Tomé como um processo, uma série de estágios ou camadas de
perceção306. Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito, sabe
que existe mais trabalho a ser feito, mais segredos a serem revelados.
De acordo com o lg 2: “Jesus disse: Que aquele que busca não cesse a sua busca até que
encontre e quando encontrar se perturbará e quando se perturbar se maravilhará e
reinará sobre o Todo.”
São prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto, estando
sempre implícito que a tarefa não é fácil nem rápida. A inovação em termos sociais mais
notória deste evangelho é o facto de não existir a suposição de que os ditos de Jesus
existem na sua forma concreta como um texto escrito.
A ênfase que Tomé dá ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituído
por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete
repetidamente no seu significado.

“Jesus disse: Se a carne se fez pelo espírito, é uma maravilha; mas se o espírito pelo
corpo é a maravilha das maravilhas. Eu, no entanto, maravilho-me com isto: como esta
grande riqueza ficou nesta pobreza.” (lg 29)

304
Cf. Arnal William E. (2013), 271- 81.
305
Lg 58.
306
Cf. Arnal William E. (2013), 273.
142
Este logia apresenta um dualismo antropológico entre o ‘espírito’ e a ‘carne’ ou ‘corpo’;
Como vimos o termo ‘corpo’ pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano. Qual
será a conotação do termo ‘carne’? “Se a carne se fez pelo espírito, é uma maravilha”
esta afirmação aproxima-se de várias correntes filosóficas e mitos religiosos desta
época, a ideia platónica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a
realidade física em termos de origem307.
Detetamos aqui outra linha exegética do relato da criação em Gn 2:7, segundo o qual o
homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um hálito de
vida e o homem se tornou um ser vivente. A primeira afirmação de Jesus no lg 29
corresponde à origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 1:26-27, em que
o homem é criado à imagem de Deus. O espírito que ‘veio a ser’ no lg 29 refere-se à
animação do corpo na criação do homem308, que não esteve em conflito com a
prioridade cosmológica da realidade espiritual expressa no lg 29309. Outra passagem que
atesta a exegese de Génesis neste dualismo antropológico encontra-se no facto de a
‘grande riqueza’ (lg 29) aparecer no contexto da criação de Adão no lg 85310.
Em suma não existem em Tomé regulações comunitárias, nem referências a batismos,
eucaristias, ou observações literais do sábado. No entanto encontramos uma forte ênfase
em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6), o mandamento de amar o irmão e
guardá-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum ‘do mundo’, um jejum social
(lg 69). A oração é condenada com o jejum no lg 14, mas no lg 104 ambas as coisas são
autorizadas.

6 O Evangelho de Tomé e o Pensamento Gnóstico

Ao elaborarmos uma reflexão crítica sobre a presença de elementos gnósticos no


evangelho de Tomé tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnóstico inserido
na categoria do gnosticismo311. Surge a necessidade de apurarmos os elementos

307
Cf. Uro R. (2003), 63.
308
Cf. Lg 19.
309
Cf. Uro, R. (2003), 63.
310
“Adão chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza…” lg 85.
311
A natureza e o significado do Gnosticismo têm sido uma questão controversa desde os seus
inícios até aos dias atuais. Muitos dicionários definem “gnose” como “conhecimento das coisas
espirituais; conhecimento místico”, e o gnóstico é entendido como “membro de qualquer seita
existente no cristianismo primitivo, que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que
explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeça divina”. A definição
de “gnose” não se torna assim clara o suficiente e não expressa que o conhecimento gnóstico era
143
gnósticos quanto à sua natureza e particularidade, buscando uma definição precisa de
gnosticismo, e compreendendo as variantes desta categoria.
Quando falamos de gnosticismo não falamos de religião, mas sim de experiência
gnóstica. A gnose na sua essência é uma experiência fundamentada numa iluminação
interior, iluminação esta que concede ao gnóstico o conhecimento interior que o pode
salvar, a certeza existencial do gnóstico resume-se em poucas palavras por: Eu venho de
Deus, eu participo da essência divina, eu vou regressar a ele312.
O gnóstico tem assim que conhecer a essência divina através do verdadeiro
autoconhecimento da sua essência. Esta é o conceito fundamental da experiência
gnóstica, o conhecimento liberta o gnóstico da matéria e dirige-o a Deus, a redenção não
é uma expiação do pecado, mas uma eliminação da ignorância.
Como essência a gnose libertadora é simultaneamente o autoconhecimento e o
conhecimento de Deus.
Estes dois tipos de conhecimentos são sublinhados nas diversas fontes gnósticas
disponíveis em Nag Hammadi:
“Porque o que não se conheceu a si mesmo não conheceu nada, mas o que se conheceu
a si mesmo começou já a ter conhecimento sobre a profundidade do Todo.” (T At)313
“Desta maneira o que possui o conhecimento é do alto. Se é chamado, escuta, responde
e volta-se para quem o chama para ascender até Ele. E sabe como se chama. Possuindo
o conhecimento faz a vontade de quem o chamou, quer comprazê-lo e recebe o repouso.
O seu nome próprio aparece. O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de
onde vem e para onde vai. Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da
sua embriaguez, voltou a si mesma e corrigiu o que lhe é próprio.” (EvV 22,13-20)314
A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visão espiritual concebia o ser
humano como um ser divino no seu núcleo mais profundo. Apercebendo-se da sua
realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino.

considerado revelação. Esta revelação só era compreendida por aquele que “conhecia” a
sabedoria espiritual e o entendimento necessário para interpretá-la. A definição de “gnóstico”
contempla o facto histórico de os primeiros gnósticos encontrados na literatura que possuímos
estarem relacionados com o movimento cristão. No entanto não levam em consideração
religiões gnósticas como o maniqueísmo e o mandeísmo. Cf. Grant. (1961), 13.
312
Cf. Broek. (2013), 136.
313
Cf. NHC II7 Livro de Tomé o Atleta in Pinero, Torrents,& Bazán, Evangelhos Gnósticos.
(2005), 264.
314
Cf. NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero, Torrents, & Bazán, Evangelhos Gnósticos
(2005), 149.
144
Na vivência gnóstica o ser humano não alcança esta perceção espiritual por si próprio, a
iluminação da mente e a remoção do véu da ignorância abrem o olhar humano para as
realidades divinas no seu núcleo mais profundo.
O período histórico onde se dá esta experiência é em si um período de grandes mutações
no quadro das mentalidades. O período helenístico possibilitou a facilitação da difusão
de ideias, carruagens e bens, estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as
ideias e crenças passam a deslocar-se no espaço e no tempo.
Esta realidade trouxe implicações para a mudança religiosa, as novas tecnologias como
a difusão dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas gerações de
escribas. Aumentou a necessidade de elites escribas a educação e treino destas novas
gerações criaram o ambiente propício para o surgimento de novos livros. Livros estes
que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnóstico. Estes
livros eram tradições orais de cariz esotérico e pouco divulgadas.
A religião torna-se uma realidade inscrita no livro, torna-se portátil e necessita de
interpretação. Existiram de Jesus a Maomé vários movimentos religiosos que brotaram
deste meio cultural com os seus próprios livros sagrados315.
Estes factos devem ser sublinhados na presente discussão, o gnosticismo não foi apenas
uma revolução religiosa de novas possibilidades, foi uma revolução textual.
As tradições gnósticas redigiram os seus próprios textos sagrados, elaboraram
comentários e traduções de outros documentos relevantes no mundo das religiões da
antiguidade.
Esta tradição literária floresceu no espaço do Médio Oriente e Mediterrâneo Oriental,
influenciando profundamente a sua realidade histórica. O livro desempenhou um papel
transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaço geográfico.
A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomé está contemplado
apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traços crenças antigas.
Os documentos sagrados dos gnósticos reuniam em si vários elementos tidos como
verdadeiros para as suas comunidades, mas necessitavam de diferentes interpretações.
O gnosticismo leu e interpretou as grandes histórias das tradições judaica e cristã, em
concreto as narrativas da criação em Gn 1-3 e os evangelhos, também encontramos
leituras aos filósofos gregos e à mitologia grega.

315
Por exemplo os cristãos, os judeus rabínicos, os gnósticos, os maniqueístas e os mandeus.
145
Estas novas escrituras são em si exegeses gnósticas realizadas a escrituras antigas, a
novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religião passa pela interiorização
da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido.
Quando pressupomos que a gnose é uma experiência interior assente no
autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino, devemos compreender
que este processo de conhecimento era tido até determinado grau como uma revelação.
Este conhecimento marcadamente esotérico e apenas disponível aos seus membros
revestia-se de uma aura de revelação metafísica, as escrituras tradicionais só seriam
entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose. Os percursos gnósticos estavam
assim imbuídos de criatividade e inovação intelectual.
A reconfiguração dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produção textual
gnóstica desafiante para o leitor moderno. A forma como o mito da criação é tratado até
à forma como a humanidade é concebida levaram este pensamento criativo e veloz a
difundir-se pelo mundo antigo, na forma de diversas seitas e escolas de pensamento
distintas.
Poderemos falar de uma homogeneidade gnóstica?
Certamente que não, será difícil apresentar uma homogeneidade cristã propriamente dita
no mesmo período histórico. O pensamento teológico e a leitura das escrituras ainda se
encontravam no processo de formação de ideias e conceitos, não existindo assim uma
ortodoxia definida.
Introduzindo esta reflexão com a questão essencial de captar a essência do que seria a
experiência gnóstica, chegamos à conclusão que a gnose seria uma experiência interior
de perceção e compreensão da realidade. A partir de um conhecimento iluminado e
adquirido por revelação. Neste panorama mental o gnóstico abre-se a um infinito quadro
de especulações e meditações acerca da existência, da realidade divina e das escrituras
sagradas das tradições religiosas influentes.
É nesta especulação e na produção textual do esforço exegético dos gnósticos que
surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros
contextos.
Por alguns dos textos detetamos que a especulação e o esforço interpretativo levaram o
gnosticismo a certos pontos que caíram no extremo e no excesso. Ainda que isto não
signifique que a experiência gnóstica na sua génese e na sua estrutura interna não se
assenta na perceção básica que define este processo de busca e retorno à origem.

146
Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomé numa categoria que em si não
se encontra definida de forma geral pelos especialistas da área no meio académico316
será uma tarefa árdua e não totalmente exata. A fim de apurarmos os elementos que
possam assegurar uma maior exatidão no estudo, iremos apresentar os traços da
experiência gnóstica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta
temática317.
O nosso ponto de partida não passa por discutir a presença ou ausência de determinadas
doutrinas gnósticas na textualidade de Tomé. Antes será tomada uma postura mais
abrangente na investigação, queremos determinar os princípios gerais da visão espiritual
do evangelho de Tomé, a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino são
apresentados. A forma como os discípulos são encorajados a buscar a sua salvação e
como é que a podem alcançar. Estes traços gerais do pensamento levam-nos a uma
questão mais importante: até que ponto o texto de Tomé não é também em parte uma
exegese às narrativas da criação presentes em Génesis, sendo uma exegese com
revelação gnóstica para aqueles que a conseguirem compreender?

As variedades da experiência gnóstica

Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta é o facto de até há bem
pouco tempo atrás este ser definido exclusivamente pelos seus opositores. Muito do
conhecimento reunido acerca desta temática encontra-se escrito pelos seus inimigos do
segundo, terceiro e quarto séculos. Irineu (130-200), Tertuliano (160-240), Hipólito
(170-263) e Epifânio (310-403), as perspetivas destes autores influenciaram a
interpretação da mentalidade gnóstica. Sendo esta interpretação desafiada com a
descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi. Neste ponto de viragem da
história podemos ouvir os gnósticos nas suas próprias vozes, sem o esforço mediador
dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteúdos.
Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomé vamos definir o
gnosticismo na sua génese sem recorrer às leituras filtradas dos seus críticos. Se existem
algumas tendências extremas no pensamento gnóstico, na sua especulação acerca da
matéria e da criação. É possível detetar um processo evolutivo no discurso e no
pensamento gnóstico, a sua leitura e os seus mitos, a formação de vários grupos, todo

316
Cf. Grant. (1961), 13.
317
Broek (2013); Grant (1961).
147
este cenário formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a
alguns fatores que não têm que ser forçosamente extremos. Á medida que o pensamento
evoluiu surgiram algumas questões mais complexas.
Primeiramente temos que ter em conta que o termo “gnóstico” tinha na antiguidade uma
conotação positiva318.
O termo “gnóstico” – gnósticos em grego – é um termo positivo na antiguidade, este
adjetivo não era aplicado a pessoas, mas a capacidades, atividades intelectuais e
operações mentais319. Esta capacidade ou atividade gnóstica levava sempre à gnose, o
conhecimento que não era prático ou teórico, mas imediato e intuitivo.
Este termo estava assim presente em várias religiões e movimentos filosóficos, que
alegavam oferecer gnose aos seus adeptos, esta entendida como um entendimento de
Deus e das verdades superiores.
O autor cristão da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter
trazido a “gnose imortal” e ele orou para que a pessoa abençoada tivesse “a habilidade
de declarar a gnose”320. Na epístola de Barnabé o ensinamento cristão é referido como
“a gnose que nos foi dada”321.
Nestes dois documentos não localizamos doutrinas que os antigos heresiólogos e os
académicos modernos atribuam aos gnósticos ou ao gnosticismo. Representam antes
uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose não pode ser uma caraterística
definidora do “gnosticismo”. A pretensão de providenciar gnose era comum e esperada,
chamar as pessoas de gnostikoi, “gnósticas” não era comum, mas inovador322.
Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino “adaptou os princípios
fundamentais da escola de pensamento gnóstica ao seu próprio sistema”323. Noutro
lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os “gnósticos -
falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobre”324. Daqui podemos concluir
que Irineu acreditava que os gnósticos eram um grupo específico que podia
perfeitamente ser diferenciado de outros grupos. Mais concretamente do grupo de
Valentino e a sua escola.

318
Cf. Valantasis. (2006), 11.
319
Cf. Brake (2010), 30.
320
Cf. Brake (2010), 30.
321
Cf. Idem.
322
Cf. Idem, 31.
323
Cf. Idem.
324
Cf. Idem.
148
Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando também os gnósticos dos
valentinianos. No seu tratado Contra os Valentinianos, Tertuliano afirma: “e então, as
doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnósticos”.325
Estes dois autores compreendiam assim “os gnósticos” como sendo um grupo
específico, de certa forma relacionado, mas, contudo, distinto dos valentinianos.
O termo “gnóstico” encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma
designação positiva, tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria.
Este autor trabalhou como professor e filósofo nas últimas décadas do segundo século,
num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento, a cidade de Alexandria.
Clemente instruía na virtude e na filosofia cristã, utilizando neste contexto o termo
“gnóstico” como sendo algo a alcançar pelo cristão ideal. Para Clemente o “gnóstico”
era o cristão, que através do treino da virtude e do estudo das escrituras cristãs,
conseguia avançar no conhecimento de Deus.
Ele não afirmava assim que era gnóstico ou fazia parte da escola de pensamento
gnóstica: “O nosso gnóstico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque
preserva a correta linha de ensinamentos apostólicos e eclesiásticos - vive mais
corretamente de acordo com o Evangelho. Enviado pelo Senhor, ele encontra as
manifestações que ele procura na Lei e nos Profetas. Para a minha mente, a vida dos
gnósticos não é senão feitos e palavras que seguem a tradição do Senhor.”326
No pensamento de Clemente de Alexandria o termo “gnóstico” aplicava-se aos cristãos
espiritualmente avançados, sendo um termo positivo. Ele também não criou o termo,
mas apropriou para a realidade cristã do seu ensino frisando “o nosso gnóstico”, noutro
lugar referiu que os cristãos que seguiram um professor chamado Pródico chamavam-se
a eles próprios de gnósticos, mas não mereciam esse título327.
A partir destas fontes concluímos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por
gnósticas. Muitos filósofos, intérpretes da bíblia judeus e professores cristãos assim
como os adeptos das religiões antigas e herméticos utilizavam o termo “gnose”328.
Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de
situações. O termo “gnosticismo” não está evidente em nenhum texto da antiguidade,
foi apenas a partir da segunda metade do século dezoito que os académicos usaram a

325
Cf. Idem, 32.
326
Cf. Brake (2010), 33.
327
Cf. Idem.
328
Cf. Idem, 12.
149
designação como um meio de unificação do complexo conjunto de movimentos
orientados em relação à gnose329.

O Pensamento de Tomé e o Pensamento Gnóstico

Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento, intuição,


perceção, introspeção e aprendizagem, os gnósticos são aqueles que estão orientados
para o conhecimento e a compreensão, a perceção e a aprendizagem, como uma forma
particular de viver a vida.
Em todas as gerações surgem aqueles que não aceitam nem acham satisfação nas
respostas padronizadas para as derradeiras questões da existência humana.
Estes indivíduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionários, algo
para lá daquilo que eles percebem como o nível mais baixo de compreensão.
Na atitude gnóstica há a busca de uma maior profundidade de compreensão, os
gnósticos investigaram a religião à luz das tradições intelectuais mais complexas do seu
tempo.
Estas pessoas abraçaram a ciência do seu tempo procurando compreender as ligações
entre os domínios espirituais e a dimensão física.
Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite. Os gnósticos
sentiam orgulho de terem acesso a informação que não era consumida por um público
geral, mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses
conhecimentos esotéricos.
Em termos gerais os gnósticos representam aqueles que buscam intelectualmente e
espiritualmente conhecimentos superiores.
O pensamento intelectual gnóstico alcançou o seu auge na leitura e compreensão dos
primeiros três capítulos do livro do Génesis. Este facto tal como se apresenta nas
escrituras gnósticas advém da intuição gnóstica dos primeiros cinco séculos da era
comum.
Neste período o gnóstico sentia-se prisioneiro no seu próprio corpo no mundo físico,
isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeção e conhecimento, ou gnose, que o
gnóstico desejava. A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram

329
Cf. Idem.
150
problemas e impedimentos, isto porque o gnóstico entendia que o mundo físico estava
separado e dividido do mundo espiritual. O mito gnóstico da criação descreve as origens
deste dualismo, o mundo material é um lugar de prisão, o mundo espiritual é um lugar
de libertação.
Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnósticos
tinham que ter a gnose, o conhecimento secreto e misterioso.
O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas, a Bíblia, o
conhecimento gnóstico surgiu da interpretação de passagens bíblicas específicas.
No Antigo Testamento, foi sobretudo a criação do mundo e do primeiro ser humano,
nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomé e o seu pensamento, a
salvação em Tomé advém da correta interpretação dos ditos de Jesus.
Estes ditos contêm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que têm
conhecimento. A introspeção e a busca em direção à gnose no interior pressupõem em
Tomé o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente.
A temática principal de Tomé é a compreensão religiosa do ser humano, os vários ditos
descrevem o estado pré adâmico, o estado pós adâmico e quais são as instruções para
voltar ao estado da imagem divina no corpo humano.
No fundo esta divinização do ser humano retirada de uma exegese esotérica de cariz
gnóstico ao mito da criação bíblico, e a proposta de uma interiorização e uma busca de
iluminação para alcançar a verdade no interior, tornam o evangelho de Tomé num texto
perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnóstico do seu tempo.
Porém algumas ressalvas devem ser indicadas, este evangelho não apresenta o mito
gnóstico da criação nem apresenta o dualismo gnóstico.
O gnosticismo de Tomé é o gnosticismo nos seus próprios termos como coordenada de
pensamento. O documento apresenta um itinerário de interiorização e de busca de
conhecimentos espirituais por meio da revelação do Jesus Vivente.
O próprio convite à interpretação dos ditos de Jesus são uma indicação que estamos a
lidar com um público que medita os seus textos religiosos, interpreta-os e procura
encontrar diversos significados na mensagem da sua religião, isto demonstra a natureza
gnóstica do evangelho de Tomé.
O lógion 50 deste evangelho retrata a preocupação gnóstica existencial da origem
humana, o conhecimento acerca da origem do adepto, a sua identidade e o seu destino
são uma preocupação latente no pensamento de Tomé e no pensamento gnóstico.

151
Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o próprio também expressou
na essência este ensino captando assim os elementos gnósticos tão próprios ao seu
pensamento:

“O batismo sozinho não nos salvou.


Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde começamos,
onde nós fomos e o que nos tornamos, para onde estamos indo e o que nos libertou, o
que constitui um renascimento [real].”
- Clemente de Alexandria, Excertos de Teódoto 78:2

Na conclusão desta reflexão crítica resta-nos especificar alguns pormenores concretos


do mito da criação presente em Tomé e como este difere do mito gnóstico da criação.
A ideologia do evangelho de Tomé resulta de uma junção de várias tradições, a sua
mensagem não se baseia no mito gnóstico da criação330 mas na exegese que desenvolve
em torno das narrativas da criação relatadas em Gn 1-3.
A exegese que o texto de Tomé apresenta era amplamente conhecida pelos seus
contemporâneos, sendo até partilhada por vários grupos de leitores destas narrativas.
Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta à luz da filosofia grega332,
até pessoas envolvidas em práticas herméticas. A sua exegese viaja atrás no tempo antes
da criação cósmica, abordando Gn 1:3 para explicar que quando a luz primordial
apareceu no “primeiro dia”, depois da criação do mundo, apareceu nessa luz a forma do
antrophos-phos primordial – que o lg 77333 de Tomé identifica com Jesus – de onde
todas as coisas surgiram. Grande parte da teologia de Tomé baseia-se na interpretação

330
O mito gnóstico implica a figura de um deus inferior que criou uma criação imperfeita –
Demiurgo – e governa o mundo através de forças malignas que afetam a alma humana e
dominam o corpo. Em Tomé não existe um tratamento negativo para com a criação,
encontramos ditos enigmáticos inseridos no contexto das tradições sapienciais de Israel. Uma
criação perfeita a partir de uma luz primordial. Pela investigação realizada até à data podemos
apreciar o Evangelho de Tomé como um exemplo entre muitos de uma variedade de
Cristianismo autêntico que surgiu numa interseção crítica de vários percursos do cristianismo
primitivo. Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de João e as cartas de Inácio,
metodologicamente será prudente não o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia, mas tratá-
lo como uma manifestação do cristianismo primitivo.
331
Os judeus helenistas de Alexandria, principalmente Fílon de Alexandria, representam o
pensamento vigente desta corrente judaica, em Alexandria.
332
O pensamento Platónico, nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de
Timeu e Parménides.
333
Lg 77: Jesus disse: Eu sou a luz que os envolve a todos. Eu sou o Todo. O Todo saiu de mim,
e o todo regressou a mim. Rachai madeira, aí estou eu; levantai uma pedra aí me encontrareis.
152
de Gn 1:26-27 que descreve a criação da humanidade à imagem de Deus. De acordo
com o lg 84 Jesus declara aos seus discípulos “quando virdes as vossas imagens, que
chegaram a ser o vosso começo…” o começo da criação do mundo, na luz
primordial/antrophos. Lg 22 e 61 sugerem que Gn 1:27b “macho e fêmea os criou”
retratam a perda subsequente da condição singular e original da humanidade e a sua
substituição por uma condição “dividida” privada da imagem divina. Aqueles que
superam esta divisão (exemplificada em especial por divisão sexual; Lg 11 e 61)
recuperam a sua identidade original com o “inteiro” – o singular primordial antrophos
(lg 4;11) – e assim reconhecem-se como “filhos do Pai vivente”. Antes da criação
humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial – a luz que apareceu
no “primeiro dia” (Gn 1:3). Esta luz primordial impregna e imbui toda a criação,
estando debaixo das pedras ou nos madeiros. Antes da criação esta luz manifestou-se de
facto numa forma humana, porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira
pessoa com uma voz humana. Esta exegese concebe a luz como um ser antropomórfico.
Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial é humano ou divino? No lg 50
que também se refere a Gn 1:3, descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma.
Poimandres diz que de acordo com Gn 1:3, Deus chamou-se a si próprio (ou a uma
emanação de si) à existência. O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial
como anthropos e theos de forma misteriosa. O texto de Tomé apresenta Jesus vivente a
falar através dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo, brilhando por todos
os lugares. O que Deus chamou à existência em Gn 1:3, é na exegese de Tomé, uma
emanação do seu próprio ser – luz que manifesta o divino, o protótipo do ser humano e
a energia manifesta em “todas as coisas”. A questão deste lg 50 acerca da identidade dos
discípulos é ainda pertinente de se enquadrar em Gn 1:3 e 2:2, se o sinal do Pai é um
movimento e um repouso. A atividade de Deus durante a criação nestes versículos
inicia-se com o movimento do espírito de Deus sobre as águas que continua pelos seis
dias da criação e o repouso divino no sétimo dia. Assim o grupo de logia que
interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus através da imagem divina
dada na criação. De acordo com o lg 24334, Jesus repreende aqueles que tentam procurar
Deus noutro lugar. Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a
questão para a luz oculta no interior. “Há luz dentro de um homem de luz e ele ilumina

334
“Os seus discípulos disseram: Indica-nos o lugar onde estás, porque temos necessidade de o
procurar. Ele disse-lhes: Quem tiver ouvidos, oiça! Há luz dentro de um homem luminoso, e
ilumina o mundo inteiro. Se não ilumina, é escuridão.” Lg 24
153
o mundo inteiro” ele não direciona os discípulos na direção dele como faz Jesus em Jo
14:6 mas em direção à luz oculta dentro deles. Se esta luz ilumina o mundo inteiro e é a
luz primordial então essa luz é ele. O lg 83 explica que “as imagens se revelaram ao
homem e a luz que há nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-à e a sua
imagem (ficará) oculta pela sua luz.” Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem
divina, o discípulo não conseguirá ver a sua radiância completa. Ao analisar estes versos
nota-se que o Evangelho de Tomé não tem o tom do mito gnóstico que diz ao discípulo
para procurar a sua “origem divina” de acordo com o qual a humanidade ou alguma
parte dela é naturalmente divina. Em vez disso o discípulo é instruído a recuperar a
forma da criação original. Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no
quadro do pensamento do II século. A teologia de Tomé e a sua antropologia não
pessupõe um mito gnóstico genérico, a fonte da sua convicção religiosa é Gn 1 e a
exegese que nele realizou, que como vimos era bastante comum no seu tempo335.
À parte desta questão específica o texto de Tomé tem um caráter gnóstico na sua
ideologia religiosa.

7. A Câmara Nupcial como chave hermenêutica no Evangelho de Tomé

Se não fizerdes do sábado um sábado, não vereis o Pai336

Ao completarmos o nosso estudo textual, propomos uma reflexão teológica


sistemática dos vários contributos do tema da câmara nupcial na espiritualidade do
evangelho de Tomé. A primeira questão que se levanta é se de facto é pertinente
considerarmos esse tema relevante, uma vez que o mesmo só tem duas referências
diretas em todos os 114 logia. A resposta a essa questão é afirmativa, porque apesar de
não encontrarmos múltiplas referências diretas, encontramos um padrão simbólico
descrito em forma de jornada interior. Esta jornada composta por quatro fases
fundamentais evoca um processo transformacional da perceção do leitor de Tomé.
A questão de partida será identificarmos o papel da imagética nupcial no texto de Tomé
e tentarmos perceber até que ponto esta não descreve uma união mística, substancial e
metafísica entre o ser humano e o divino.

335
Cf. Pagels H. E. (1999), 477-496.
336
Log 27
154
A proposta de uma nova tradução levada a cabo pelo professor José Augusto Ramos
também será necessária, uma vez que o termo monachos é um dos elementos
fundamentais da nossa interpretação nesta tradução alinha-se com as linhas gerais do
nosso pensamento.
No seu comentário a este evangelho o autor refere que o conhecimento é sacramento da
unificação do humano com o divino337. O dualismo é a preocupação gnóstica por
excelência, mas muitas vezes os estudiosos não encaram esta problemática no prisma
correcto. Isto porque o dualismo é tratado pelos gnósticos como ideal metafísico e
antropológico oposto ao ideal que conduz à gnose. Sendo assim um estado de existência
ausente de gnose e de liberdade, é um estado de conflito e tensão, somente o
conhecimento facultado pela gnose e pela identificação do ser com as realidades
superiores propostas pelo evangelho de Tomé poderão transitar o ser dual para um ser
unificado. É neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que
não se trata de um termo aplicado aos solitários que optam pela ascese, mas antes a todo
aquele que se unifica acima das suas tensões e conflitos para tornar-se espelho da
gnose338.
O conceito de monakhós, palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de
Tomé, exprime por um lado a superação da dualidade ética e antropológica dentro da
experiência do místico asceta como também se refere a ultrapassar a dualidade
antropológica e sexual entre homem e mulher, bem como superar a dualidade
metafísico-teológica proposta em termos de messianismo existente339.
Em termos práticos parece que a gnose promete uma superação pelo menos a nível da
perceção de todos os limites e contornos definidos pela experiência humana, não
reconhecendo divisões a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os
fenómenos da existência.
Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangência a afirmação de Jesus
quando este refere que só o monakhós entrará na câmara nupcial.
Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas
várias tensões ideológicas e existenciais pode apreender o conceito de permanência e de
gnose.

337
Ramos (1992), 25
338
Ramos (1992), 110
339
Idem
155
Toda a leitura elaborada até aqui não terá sido em vão uma vez que o conceito de
solidão é na minha leitura apenas um esforço metafórico para o autor descrever o
processo de interiorização e busca gnóstica no seu íntimo, os intérpretes que defendem a
solitude devem apenas lê-la nos termos psicológicos da busca interior e da meditação
dos ditos enigmáticos de Tomé e contemplação da literatura gnóstica em geral.
Sendo que o conceito de unificação é digamos o resultado óbvio e lógico que o processo
gnóstico inicia com a sua interioridade e sua reflexão e a sua hermenêutica meditativa.
Não podemos no nosso estudo perder o conceito em análise, limitando a nossa leitura a
um pormenor do processo, a necessidade de apresentar o princípio proposto por Tomé,
os meios e por fim a conclusão devem ser os elementos necessários para definirmos o
conceito de monakhós e o conceito de câmara nupcial.
Neste evangelho, Jesus o vivente começa por lembrar ao leitor que este no seu estado
atual perdeu a glória que outrora já teve num estado paradisíaco. Ao longo do texto os
temas da perda, retorno à origem, unificação, separação, são constantes e estão
associados à revelação final, a entrada na câmara nupcial.
A câmara nupcial é assim o símbolo que representa a finalidade do evangelho de Tomé,
é o regresso ao início onde o leitor chega a ser o que já era (log 19).
Num esforço de fundamentação textual desta hipótese iremos apresentar o padrão de
pensamento nupcial existente até à época do nosso texto e iremos demonstrar este
padrão na composição do evangelho.
O padrão de pensamento de Tomé herda muito da criatividade e da interioridade da
tradição sapiencial judaica, num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de
Sabedoria e procura levar os discípulos a uma forma de realização pessoal.
No livro da Sabedoria de Salomão, encontramos alguns traços relevantes para o tema
da câmara nupcial. Os termos que descrevem a união da Sabedoria com Deus
correspondem de forma aproximada à descrição da união entre a Sabedoria e o aluno340.
Isto implica que o objetivo do ser humano é unir-se a Deus, neste contexto específico
essa união só seria possível através da Sabedoria de Deus.
Neste verso: “Refletindo assim, de mim para comigo, e meditando em meu coração que
a imortalidade está no parentesco com a Sabedoria”341, entendemos que a união com a
Sabedoria era possível por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma
mente racional, permeada na sua vastidão pelo espírito inteligente da Sabedoria.

340
Winston D. (1979), 41
341
Sab 8:17
156
“incoercível, benfazejo, amigos dos homens, firme, seguro, sereno, tudo podendo, tudo
abrangendo, que penetra todos os espíritos inteligentes, puros, os mais sutis.
A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e
penetra.”342

Assim como em Tomé a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e é descrita
com vários dos atributos enumerados nesta citação (log 77), é ainda mais evidente que a
Sabedoria está presente na mente do ser humano, no livro da Sabedoria de Salomão, ela
aparece como entidade imanente e transcendente, e no evangelho de Tomé a presença do
Reino e da luz do Reino estão dentro e fora dos eleitos, como realidades imanentes e
transcendentes.
A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomão quando trata da busca da Sabedoria
e dos dons que esta promete, alude de alguma forma à experiência mística, através da
qual o homem será capaz de unir-se até certo ponto com a divindade, pelo menos no seu
aspeto de Sabedoria343.
Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumação
mística se alcança através de formas especificas de oração e de revelações esotéricas
O que encontramos como ponto central da possibilidade mística é a devoção incessante
à busca da Sabedoria no coração. Ao lermos estes textos empregamos termos para nós
fáceis de generalizar, mas difíceis de aprofundar, este texto de Salomão não trata
obviamente de um misticismo como o entenderíamos nas tradições judaico-cristãs
tardias. Antes evoca já de forma madura e trabalhada um esforço de transferir a carga
ética da religião e os seus princípios para o interior do ser humano.
Deus já não é apenas uma fonte suprema de autoridade, mas uma figura que instruí,
esclarece e nutre sentimentos de pureza interior. Acima de tudo regista-se a ênfase da
racionalidade, o pensar a religião, o meditar no coração os assuntos superiores:
“Refletindo assim, de mim para comigo, e meditando em meu coração que a
imortalidade está no parentesco com a Sabedoria”344.

342
Sab 7:23-24
343
Winston D. (1979), 42
344
Sab 8:17
157
Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomé, meditar no
coração, refletindo para consigo, o leitor é convidado a ser um exegeta, um intérprete do
seu interior.
Sem esta base de interioridade e de reflexão não será possível compreendermos o valor
da câmara nupcial em Tomé, uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes
exemplos, esta consumação mística que em Tomé apela à divinização só se torna
possível por intermédio de uma figura que em si retém tudo aquilo que possa significar
a sabedoria e o conhecimento de Deus.
O tema nupcial presente nos profetas, na literatura sapiencial e na literatura
intertestamental dividem-se em quatro estágios. O primeiro estágio recorda um estado
idílico primitivo tido como perdido, um estado nupcial existente na experiência
paradisíaca do ser humano. Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de
separação entre o divino e o humano.
Como resposta a esta separação o próximo estágio procura redimir e salvar a
humanidade desta separação através de um momento singular inserido na história
humana, o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai. Como continuação
deste processo surge o conceito do Templo, é neste espaço central ao pensamento
religioso, e sensível ao pensamento místico que o evento redentor estabelecido no Sinai
é perpetuado na memória do povo. A adoração litúrgica é uma declamação incessante
deste casamento, a liturgia é a última grande resistência à destruição do Templo, o seu
papel de unir a terra ao céu, acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o
sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da fé. As raízes da eucaristia e
do batismo assim como a reencenação do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel
e Deus, fundamentam-se todas na adoração do Templo.
Num estágio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatológico, no
pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias, no Novo Testamento
Jesus celebra as núpcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial. Esta perspetiva é
de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de
Tomé.
Ao contrário do cristianismo ortodoxo, o evangelho de Tomé aproxima o seu
pensamento das sensibilidades rabínicas e da literatura profética. Para Tomé a
escatologia não será realizada no céu num final dos tempos anunciados, antes é uma
realidade terrestre presente por descobrir como se de um mistério alcançável se tratasse.

158
Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial, apresentaremos agora os quatro
estágios comentados por Jesus em Tomé e daremos início ao debate de algumas
doutrinas importantes que constituem este padrão de pensamento, sendo tratadas como
conclusão.
Ao referir a questão do simbolismo nupcial no evangelho de Tomé345, apontamos
as possíveis três uniões simbólicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de
Tomé. Ao refletirmos nos sentidos teológicos e no papel temático que a metáfora
nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipóteses:
A finalidade da câmara nupcial surge como o alcance da luz primordial
assinalada na entrada do reino e representada pela união mística com a figura de Cristo.
Em termos de interpretação isto leva-nos a estabelecer com primeiro estágio da
linguagem nupcial, a realidade do reino como memória paradisíaca.
Neste evangelho o reino é apresentado como um reino paradisíaco de luz pré-
existente346, não é localizado geograficamente no cosmos, mas é associado com a ‘luz’
(log 49-50). Nas suas definições Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e
fora dos eleitos (log 3), lugar de onde vieram e para onde regressarão (log 49).
Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissolúvel de
todos os conceitos apresentados por Jesus, todos os grandes temas desta narrativa
evocam como génese o conceito do Reino primordial, a luz que esclarece o eleito, tudo
é discutido à luz deste conceito. Sendo assim este o primeiro estágio temático da câmara
nupcial em Tomé, texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser
humano grande e glorioso: “Quando estiverdes no seio da luz, o que é que fareis? No
dia em que éreis um chegastes a ser dois. Mas quando chegueis a ser dois, o que é que
fareis?”347.
A logia mais direta, no entanto refere a ideia do princípio primordial: “Os discípulos
disseram a Jesus: Dizei-nos qual será o nosso fim. Jesus disse: Haveis descoberto já o
começo para que procureis o fim? Onde está o início, ali estará o fim. Feliz aquele que
se colocar no começo, porque conhecerá o fim e não provará a morte.”348

345
Ver capítulo 6.4
346
Gathercole S. (2014), 145
347
Log 11
348
Log 18
159
Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realização do primeiro mandamento
de Jesus neste evangelho: “Aquele que encontrar a interpretação destes ditos não
saboreará a morte.”349
Deste discurso surge a ideia que a exegese é tratada como um ato interior de se colocar
no começo, o eleito abandona a dimensão comum do espaço e do tempo elevando o seu
pensamento ao começo, onde não procura o fim, mas o início.
A ideia do estado paradisíaco do homem é em Tomé apontada como um sonho que se
alcança no despertar da mente, a exegese é esse trabalho interior que dirige o pensador à
eternidade envolta numa luz incandescente. Seria impossível lermos Tomé sem estarmos
atentos à sua poética, é no encontrar o começo que o leitor abdica do final, é no
conhecer-se a si próprio que conhece o Pai Vivente.
A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o
inicio primordial do todo e o inicio de o próprio ser como alvo do conhecimento e da
compreensão.
A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom mistérico sem, contudo, perder a sua
lucidez, há um motivo para esta busca, conhecer o princípio, conhecer o divino,
conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade.
Os processos estão interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da
interiorização, do tomar o corpo como texto, para compreender os enigmas do sábio
Jesus Vivente.
Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradições bíblicas, o esforço
da interiorização, a imaginação e a criatividade que associaram as éticas aos órgãos do
corpo. E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como
intermediária do conhecimento e da revelação, mas o sábio de Israel não será apenas um
conhecedor, ele é um santo apaixonado pela sabedoria de Deus, ele é o exemplo que
inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento.
Em Tomé o eleito torna-se ele próprio Jesus, torna-se uma imagem dessa sabedoria que
inunda o espaço de Tomé como luz primordial presente em tudo, permeando a criação.
Claramente a figura de Jesus assemelha-se à figura da Sabedoria, as implicações da
leitura são óbvias, deparamo-nos com uma religião por natureza interior, atenta à
consciência e à reflexão, embelezada por metáforas e ditos enigmáticos.

349
Log 1
160
Acima de tudo uma religião que se perde nas páginas de um livro, nos enigmas e nos
duplos sentidos, o ritual e a simples obediência a mandamentos não bastam para a sede
de compreensão apresentada por estes adeptos da sabedoria.
Se o primeiro estágio nupcial é no nosso texto esta saudade pelo estado paradisíaco, um
reino de luz primordial em que o ser humano era majestade.
O segundo momento desta reflexão recria uma nova unificação entre o divino e o
humano num processo de perceção da realidade. O discípulo é cheio de luz porque se
unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24,
61).
Chamamos a este processo do discipulado de Tomé de auto união, o evangelho descreve
os problemas do ser humano nunca em termos de faltas, mas em termos de separação.
Há uma separação entre o masculino e o feminino, entre o interior e o exterior, entre a
imagem e a luz.
Note-se que aqui temos três separações que levantam várias questões complexas pelo
menos a imagem e a luz constituem um desafio que já abordamos anteriormente.
Como linha interpretativa não podemos deixar de referir que o segundo estágio da
câmara nupcial é uma resposta à perda do primeiro estágio, ou seja, se no primeiro
estágio ocorreu uma separação, no segundo ocorrerá uma unificação. Quando
analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristã, é na entrega da lei, no pacto
do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido.
Tomé emprega a linguagem do ‘eleito’, este escolhido é filho do Pai Vivente e vai
receber aquilo “que os olhos não viram e que os ouvidos não escutaram e o que mão não
tocou e o que nem subiu ao coração do homem.”350
A questão aqui não é tentarmos de forma alguma sugerir que Tomé entende algum dos
seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiência da lei mosaica.
Mas, no entanto, não será absurdo afirmar que Tomé entendia que os seus ensinos eram
revelações destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua
imortalidade.
A figura mediadora destas revelações era o Jesus Vivente, assim como a Sabedoria
assume esta figura na literatura sapiencial. Mediadores do quê? Poderíamos questionar,
mediadores do divino com o humano, através de que processo? Certamente um processo

350
Log 19
161
mental de interpretação de algo escrito, um pensamento critico que provocou uma
interiorização da religião e um despertar da criatividade e da imaginação.
A câmara nupcial é o psicopompo destas literaturas, o centro que precisamos de refletir
para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o
casamento ou a unificação com a deidade.
Não encontramos fora destes conceitos a ausência de uma figura mediadora que vai dar
forma ao esforço mental de adequar a perceção, aquilo que seria a interpretação do
divino. Nisto o evangelho de Tomé enquadra-se perfeitamente na coordenada de
pensamento sapiencial do Antigo Médio Oriente, precisamos de mostrar agora as
implicações deste segundo estágio das núpcias.
Primeiramente a luz interior é a revelação, porque essa luz é o próprio Jesus Vivente,
em Tomé a redenção não se encontra ligada à morte de Cristo, mas antes à sua revelação
como luz primordial que se oculta na humanidade. Ao revelar essa luz dentro do seu
interior o discípulo salva-se (log 70).
Esta epifania não influencia apenas a questão da imagem e da luz, mas também o
exterior e o interior e o masculino e o feminino, como a luz primordial resplandece
sobre a presente realidade, todas as sombras de confusão são dissipadas e a realidade
alinha-se em conformidade com essa luz primordial.
No terceiro estágio referimos que o simbolismo litúrgico do templo foi entendido como
ferramenta de suma importância para reproduzir e recordar o momento salvífico de
Israel.
Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de
Tomé. Como discutimos em capítulos anteriores, Tomé descreve uma experiência
ascensionária com elementos litúrgicos. Esta experiência parte do simbolismo do
templo de Jerusalém, no logia 50 encontramos assim a ascensão visionária.
Esta ascensão visionária era um estágio de preparação para uma derradeira união
mística com Jesus na câmara nupcial, instruções de como jejuar, orar e comportar-se nas
realidades celestiais.
Em termos de tradição literária nupcial o terceiro estágio é o momento da espera, o
momento da celebração e da evocação da derradeira realização escatológica.
Em Tomé não existe escatologia, mas sim protologia, pelo que podemos afirmar que a
união final com Jesus e a sua transformação mística nesta figura torna o eleito apto a
unir-se com o divino.

162
No log 27 Jesus fala do jejum e da observação do sábado, não da forma comum aos
evangelhos sinóticos, mas atribuindo um sentido mais profundo a estas práticas
religiosas. “Se não jejuais do mundo não encontrareis o Reino. Se não fizerdes do
sábado um sábado, não vereis o Pai.”351
A diferença deste logia para o logia 14 “se jejuais gerareis pecado em vós e se rezais
sereis condenados…” Pode ser explicada na questão do motivo que leva estas atividades
a serem feitas, no primeiro caso o jejum não é uma privação alimentar, mas uma
privação mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstáculo à procura do
Reino.
O sábado certamente terá algum tipo de memória associada, mas também será entendido
como uma condição para o eleito ver o Pai. Noutra bem-aventurança Tomé atribui aos
lábios de Jesus: “Felizes são esses que foram perseguidos no seu coração. Eles são os
que conheceram o pai de verdade.”352
O sábado poderá assim representar um estágio do discipulado, em que a perseguição
ocorre dentro do próprio coração do eleito e deste modo ele contempla Deus.
“Jesus disse: contemplai o vivente enquanto estais vivos, para que não morrais e
procurando vê-los e não sejais capazes de o ver.”353
A contemplação aqui tratada como ponderação interior, imaginação e especulação feita
a estes ditos, pode ter provocado um fenómeno de interioridade muito parecido com o
terceiro estágio da metáfora nupcial. Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua
memória e a sua história, desde o exilio paradisíaco até a um trabalho interior de
unidade e iluminação, anseiam agora pela união derradeira com a figura crística,
expressando estes atos de louvor que em Tomé nunca teremos a certeza do nível da sua
organização.
Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no
coração, quem aí for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69).
Ao que parece a introspeção poderia explicar este fenómeno, o nosso texto ainda
reformula o que é o jejum e o que é o sábado, para Tomé o jejum é uma abstenção do
mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coração. O sábado não será só aquilo
que os contemporâneos deste autor entenderiam como sábado, mas também uma

351
Log 27
352
Log 69
353
Log 59
163
meditação profunda “fazer do sábado um sábado”, talvez um percurso de contemplação
visionário que levasse à visão do Pai.
A exposição do log. 50 encontra-se no capítulo 5.5 no capítulo 5 o misticismo no
Evangelho de Tomé é comentado e lá são tratados com mais detalhes todos os
elementos relacionados aos temas de ascensão visionária e experiência mística relatados
em Tomé.
Em tom de conclusão falaremos do quarto estágio nupcial tal como este se
encontra referido em Tomé. A união crística abre-nos um conjunto de possibilidades
interpretativas como o tema da deificação.
Porém torna-se necessário colocarmos mais uma questão a esta nossa inquirição,
o que é que representa em termos de símbolo a câmara nupcial?
O texto fala de uma câmara nupcial, mas será que apresenta uma estrutura, um cenário
concreto onde ela se localize?
Na verdade, caminhamos mesmo no âmbito da metáfora e da alegoria, a câmara não é
um espaço físico, mas é um edifício em constante mutação, conforme a consciência de
quem a aborda ela expande-se ou contrai-se.
Sabemos que é o espaço onde o eleito se une à figura de Jesus: “o que beber da
minha boca chegará a ser como eu. Eu também chegarei a ser como ele e as coisas
ocultas ser-lhe-ão reveladas.”354
A assimilação que este texto retrata é mais intensa do que a forma como Paulo entendia
o crente estar em Cristo, aqui encontramos um misticismo unitivo.
A câmara nupcial tem como figura o próprio Jesus vivente, o jardim do Éden, o poço
que borbulha e as palavras que desse poço procedem.
Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de
Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual específico355.
Neste âmbito as promessas feitas por Jesus àqueles que entram na Câmara Nupcial,
bebendo da sua boca as palavras de sabedoria, são promessas protológicas de
deificação.
No Evangelho de Tomé o ‘final do tempo’ substitui-se pelo tempo ‘sem começo e sem
fim’, porque o tempo é a substância do Reino que está difundido por toda a terra, mas os
homens não o veem (lg 113).

354
Log 108
355
Gathercole S. (2014), 591
164
O símbolo proeminente no mundo simbólico de Tomé é a ‘luz’, a luz primordial auto
gerada que imbuí toda a criação escondida na imagem presente dentro do ser humano.
Essa luz é o próprio Jesus Vivente, que terá que ser encontrado pelos discípulos no
interior com o autoconhecimento. O poço e a Câmara Nupcial aparecem como conceitos
semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma. A sua boca é o poço que
borbulha palavras de sabedoria que o discípulo íntimo pode beber a fim de se tornar no
Jesus Vivente. A Câmara Nupcial é o lugar onde se celebra esta união íntima entre Jesus
e o discípulo, para o discípulo entrar na câmara ele tem que entrar no poço. Como vimos
nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poço e junto à porta da câmara,
e existiam os solitários que entravam dentro do poço (dentro da boca de Jesus) e
entravam na porta da Câmara Nupcial. Neste último estágio eles transformavam-se no
Jesus Vivente sendo seres repletos de luz.
Alcançar esta meta é a grande finalidade do Evangelho de Tomé, todo o seu esforço
hermenêutico e exegético, todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta
direção.
O Éden (e o estado adâmico, nupcial) é um reflexo da luz primordial e auto gerada, a
Câmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 é um reflexo destas duas
imagens anteriores. O poço que borbulha águas de sabedoria celestial é um reflexo
destas três realidades antecedentes. Por fim o Jesus Vivente é uma imagem destes
quatro reflexos ou metáforas.
Em suma o ser humano veio da Câmara Nupcial onde a sua imagem estava unida à sua
luz, quando ambas se separaram ele perdeu-se. O objetivo da humanidade passa por
restaurar essa imagem perdida, unindo novamente as duas.
A Câmara Nupcial é o eixo cosmológico de Tomé, neste evangelho a queda do homem é
pensada como uma desintegração da realidade em opostos binários.
O evangelho carateriza a sua audiência como sendo ‘dois’ (lg 11), o lg 22 foca-se na
divisão interior/exterior; em cima/em baixo, masculino/feminino. Faz-se também a
distinção entre a ‘imagem’ interna e a ‘semelhança’ externa (lg 84).

“Jesus disse: Aquele que está próximo de mim, está próximo do fogo, e o que está longe
de mim está longe do Reino”357

356
“Em relação a isto digo: Se o discípulo chega a ser igual encher-se-á de luz, mas se chega a
estar dividido, encher-se-á de trevas.” (lg 61).
357
Lg 82.
165
Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformação
mística, uma experiência de ascensão transformadora. Ao subir ao céu o místico
encontrava a luz de Deus, escondida na sua kavod; a tradição judaica ensinou que os
justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos
anjos. Como encontramos em Pesikta rabbati 11:7358
A camâra nupcial desempenhava assim nas tradições gnósticas uma espécie de
experiência ou comunhão entre os crentes e as realidades superiores. Estes modos
místicos de união exigiam uma preparação prévia em termos éticos, mas também a nível
contemplativo e de meditação. Como foi referido no início deste capítulo, acreditamos
que os traços nupciais de Tomé herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma
como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o
divino. Neste tipo de pensamento religioso é fácil notar a ênfase atribuída à experiência
interior, a meditação, a contemplação e a reflexão dos ditos enigmáticos são um traço
comum que deu origem a esta expressã religiosa centrada numa perceção íntima e num
desejo de transcendência.

8. Síntese Hermenêutica da Interpretação Simbólica e Textual de Tomé

A imagem de Jesus no evangelho de Tomé ao longo deste trabalho tem sido explorada,
sendo agora necessário elaborar uma síntese hermenêutica que aponte a convergência
dos vários resultados apresentados.
Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma
hermenêutica diversificada do evangelho de Tomé. A partir daquilo que podemos
entender como o seu contexto espacial e ideológico, apontámos certas temáticas comuns
na época da sua redação. Temáticas estas direcionadas para as grandes questões da
existência humana, a sua origem e o seu destino final.
Comprovamos que a textualidade de Tomé não se limita apenas à especulação
metafísica e filosófica tão comum do seu tempo, mas abrange a noção do místico e do
secreto.
A experiência visionária na aquisição da gnose situa este evangelho nas franjas da
tradição mística judaica da Palestina do primeiro século.

358
Cf. Deconick D April (1996), 105.
166
Muitas críticas poderão ser levantadas quanto a esta perspetiva, se por um lado o
evangelho reúne as leituras do judaísmo helenístico realizadas ao mito da criação na
Bíblia Hebraica, por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da
literatura sapiencial judaica e de tradições místicas rabínicas.
Existe uma convergência entre o discurso gnóstico do evangelho de Tomé e o discurso
sapiencial da Sabedoria.
Torna-se também difícil prosseguir esta discussão sem enquadrar o simbolismo do
Templo de Jerusalém na cosmologia de Tomé.
O mito da criação que é a base teológica de Tomé foi alvo do esforço exegético por
parte dos leitores gnósticos, a simbólica do Templo preservava as tradições orais sobre a
forma como o mesmo mito era interpretado.
O mundo rabínico não se concilia com o mundo helenístico, mas ambos olhavam para
as tradições do templo e viam na sua realidade simbólica uma metáfora para o Éden.
Metáfora esta trabalhada pela exegese dos textos da criação por parte de rabinos e de
gnósticos.
A tradição do templo era assim a relíquia em forma de memória das páginas do Génesis
aludindo às suas realidades paradisíacas, enquadrando-se no espaço mental destes dois
mundos que convergiam neste debate.
O misticismo transformacional como proposta de salvação depende da entrada do
adepto na câmara nupcial. Como foi demonstrado a câmara nupcial representa o espaço
mais íntimo do Templo, o Santo dos Santos, nesse lugar que corresponde ao espaço
mais íntimo do Jesus Vivente o discípulo experimenta uma intimidade com o seu
mestre.
“Jesus disse: O que beber da minha boca chegará a ser como eu. Eu também chegarei a
ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-ão reveladas.” (lg 108)
Dá-se uma fusão e uma deificação entre o discípulo e Jesus.
A simbólica do Templo de Jerusalém é fundamental nesta noção de deificação, neste
lógion o tema é suplementado por uma reinterpretação do símbolo do templo em termos
de misticismo de Mercava, isto é, em termos de uma experiência extática da presença
divina interpretada com o simbolismo do templo.
Jesus é na sua própria pessoa a essência da presença de Deus, constituindo também o
santuário celestial, onde o discípulo acede para experimentar as realidades divinas.
Esta experiência mística permite ao discípulo contemplar a realidade divina de forma a
se transfigurar na mesma.

167
A câmara nupcial é o lugar da luz primordial, é também o lugar da revelação por de trás
da cortina do tempo. Os vários elementos simbólicos do templo discutidos nesta tese
facultam as ferramentas necessárias para uma interpretação mais aprofundada do
significado da câmara nupcial no evangelho.
É ainda necessário estabelecer um elo comparativo com o evangelho de João, onde
existe um esforço de conjugar dois fenómenos bastante documentados na época da sua
redação: a afirmação do tabernáculo no deserto contra o templo de Herodes em
Jerusalém com base em 2 Samuel 7 e a experiência mística da adoração do templo
celestial através do misticismo da Mercava359. Nos manuscritos do Mar Morto
encontramos o mesmo fenómeno, isto indica que nas suas próprias palavras o autor do
evangelho de João expressou ideias contemporâneas a um vórtice de tradições acerca do
templo impuro e um templo celestial alcançado por uma experiência mística.
Estas tradições partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7, este texto foi fundamental
na formação do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina, que se situa na
tradição das jornadas no deserto e a presença de Deus na Tenda da Presença, em
oposição às pretensões do templo de Jerusalém e o seu sacerdócio. Apesar do autor do
evangelho de João não ter citado diretamente esta tradição exegética de 2 Samuel 7, a
sua temática e os seus tópicos demonstram que esta tradição era conhecida e foi usada
como base ideológica360.
No caso do evangelho de João, Jesus é apresentado como o tabernáculo vivo em carne
onde a glória de Deus estava presente, em contrapartida o templo de Jerusalém era
impuro e ausente da glória divina. Os discípulos acediam ao templo celestial que era o
próprio Jesus, porque este abriu um caminho até esta realidade.
Quando o prólogo proclama que a palavra fez a sua habitação no meio dos homens,
afirma que a carne de Jesus Cristo é a nova localização da presença de Deus na terra,
Jesus é o substituto do antigo tabernáculo. Este evangelho apresenta-nos Jesus como
uma substituição do templo (Jo 2:19-22).
Em Tomé o mesmo tema encontra-se refletido com outras metáforas centradas na
câmara nupcial, o Santo dos Santos, Jesus apresenta-se como este espaço sagrado onde
tudo começou. Ele é a luz primordial que brilha nesta dimensão, é também o próprio
poço que borbulha, a diferença entre João e Tomé consiste na forma como cada um vai
tratar o resultado dessa experiência. Em João a experiência mística leva a um

359
Cf. Draper (1997), 270.
360
Cf. Draper (1997), 274.
168
reconhecimento de que Jesus é o filho de Deus, esse conhecimento não é apenas
teológico, o discípulo apreende a presença da glória de Deus dentro de Jesus, como
Israel sentia a presença da glória de Deus na tenda da revelação no deserto.
Em Tomé o resultado desta experiência leva a deificação361, conceito importante para
entendermos as formas de transcendência no judaísmo e cristianismo primitivos.
Este evangelho apresenta uma forma de deificação cristã primitiva paralela ao discurso
de deificação no evangelho de João, no entanto em Tomé a deificação é uma natureza
divina interna, uma identificação com o Jesus divino.
Neste documento a questão da deificação é essencial para entendermos vários dos
outros temas subjacentes ao evangelho de Tomé.
A noção da luz interior, a preexistência cristã, a identificação com o salvador, a
unicidade ou igualdade com Deus e a ascensão transformativa para ver Deus.
A deificação como expressão da câmara nupcial é assim a doutrina chave para
integrarmos a estrutura do pensamento em Tomé acerca da salvação.
A natureza divina de Jesus é comparada com a natureza dos cristãos de Tomé, no lógion
22 “quando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o
de baixo de modo que façais o masculino e o feminino num só, para que o masculino
não seja masculino nem o feminino seja feminino; quando fizerdes olhos em lugar de
um olho e uma mão em lugar de uma mão e um pé em lugar de um pé, uma imagem em
lugar de uma imagem, então entrareis no Reino.”
A alusão a transformação de uma imagem em outro é algo reminiscente da
transformação paulina, a linguagem da “iconificação”362.
Em 2 Co 3:18 o apóstolo fala do cristão transformado à “mesma imagem” de Cristo,
com a correspondência exata do olho a olho e pé com pé enfatiza-se esta “mesma
imagem” referida por Paulo, em todos os aspetos363.
No evangelho de João esta ideia não aparece de forma explícita, o autor nunca chama a
Jesus, imagem de Deus. De qualquer forma esta noção encontra-se presente nas
seguintes palavras: “quem me vê a mim, vê o pai” (Jo 14:9). Neste evangelho Jesus é a
imagem eterna de Deus, ao tornar-se carne ele não deixa de ser essa imagem. O que

361
A deificação contém quatro ideias básicas: (1) não há diferença infinita entre o divino e os
humanos; (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades; (3) os seres
humanos podem participar dessas qualidades e até mesmo compartilhar a identidade de um ser
divino particular; (4) e essa participação é “realista” no sentido de que os humanos realmente
fazem parte da classe “Deus/seres divinos”. Cf. Litwa. (2015), 428.
362
Cf. Litwa (2015), 437.
363
Cf. Idem, 438.
169
concluímos desta mensagem é que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem
divina, os seus discípulos nunca são convidados a tornarem-se a “mesma imagem” que
Cristo é.
Em Tomé por outro lado os cristãos e Cristo tornam-se a mesma imagem, conforme o lg
22, esta noção é apresentada num caráter mistérico. Se lermos atentamente o evangelho,
não é dado ao leitor nenhuma indicação direta sobre a que imagem cada um está a ser
assemelhado. Se os seres humanos foram feitos à imagem da Luz, então eles estão a ser
transformados à imagem de Jesus, “a Luz” acima do Todo (lg 77).
A “imagem” funciona como um arquétipo e todas as imagens referentes a Jesus no
evangelho terão o seu reflexo nos discípulos. No lg 22 ao afirmar “quando fizerdes dos
dois um”, Jesus evoca o princípio ensinado no lg 106: “quando fizerdes dos dois um,
chegareis a ser filhos do homem.” Estes “filhos do homem” possuem no evangelho uma
natureza divina, têm luz interior (lg 24), ascendem aos céus (lg 50,59) e habitarão no
seio da luz (lg 11).
Esta sucessiva semelhança do arquétipo de Jesus com o cristão de Tomé culmina numa
situação de igualdade entre os dois. Esta igualdade radical com Jesus leva o discípulo à
identificação. O lg 108 sublinha a centralidade desta temática na teologia de Tomé,
estando também diretamente ligada ao simbolismo da câmara nupcial, lugar onde a
derradeira transformação ocorre para que haja a identificação plena entre o discípulo e o
mestre.
“O que beber da minha boca chegará a ser como eu. Eu também chegarei a ser como ele
e as coisas ocultas ser-lhe-ão reveladas.” (lg 108) A identificação entre Jesus e o eleito
ocorre por meio de um beijo íntimo, através do qual as águas da vida fluem da boca de
Jesus para a boca do discípulo. O gesto iniciático do beijo alude claramente à simbólica
da câmara nupcial: “Há muitos que estão junto à porta, mas os solitários são os que
entrarão na câmara nupcial” (lg 75)
O papel da exegese nos leitores de Tomé não pode ser posto de parte, a primeira
instrução neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretação dos
ditos de Jesus para poder alcançar a imortalidade. Será que a experiência mística e de
traços visionários (lg 50) descrita em Tomé resume toda a atividade espiritual destes
leitores? Como é que para eles a deificação era compreendida?
Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulações podemos sucintamente
descrever como é que a exegese aos textos sagrados era realizada na época em que
Tomé foi escrito e interpretado pelos seus leitores.

170
Um breve estudo torna-se necessário uma vez que não foi inserido no corpo do trabalho,
por não fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes.
Estas informações são pertinentes na conclusão porque demonstram a necessidade de
compreendermos a mente simbólica da antiguidade e como esta lidava com os seus
textos de forma alegórica e criativa. Ao mencionarmos o valor simbólico das tradições
orais e das memórias do templo e quem sabe o estado primordial do Éden, notamos que
estes ecos surgem nos textos que chegaram até nós na forma de mitos, relatos
apocalípticos e episódios biográficos de heróis que representam autênticos arquétipos.
Ninguém pode afirmar que os traços míticos e simbólicos da memória do templo de
Jerusalém não se encontram presentes no livro do Apocalipse, ou no livro de Enoque.
Da mesma forma o evangelho de João e o evangelho de Tomé não abdicaram até certo
grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu próprio tempo para criarem os seus
textos. Ao referirem o estado primordial, a luz primordial, referem-se ao mito do Éden
que por sua vez era representado no Templo de Jerusalém.
Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe
permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam
despercebidos por não serem, técnicos nas fontes primárias da história, mas por se
ocultarem nas memórias e nos significados perdidos das palavras. Teremos que
prosseguir a nossa investigação não tanto nos significados alegóricos, mas mais nos
processos que os produziram. Como é que o pensamento exegético funcionava? O que
era válido e lícito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomé?
A salvação era o conhecimento, a perceção interior da luz divina, mas isto só seria
possível através da correta leitura e interpretação dos ditos de Jesus. Qual então a forma
que estes leitores consideravam adequada?
No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espírito exercia na
variedade de textos judaicos. Vários autores judeus acreditavam que a verdadeira
interpretação dos textos era um processo inspirado, um fenómeno carismático364.
É em autores como Fílon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento, Fílon
descreve em Som. 2.252 a voz invisível que escutava quando estudava as escrituras:
“Eu ouço mais uma vez a voz do espírito invisível, o inquilino secreto familiar, dizendo:
"Amigo, parece que há uma questão grande e preciosa de que tu não conheces nada, e
isso, de boa vontade, mostrar-te-ei, porque muitas outras lições eu te dei.’”

364
Cf. Levison, (1999), 38.
171
Fílon acreditava que a mente era o espaço da atividade do espírito, a verdade era o
propósito da inspiração espiritual sendo que a conjetura e orientação são os métodos da
atividade espiritual. Encontramos esta crença no excerto em Vit. Mos. 2.264-65:
“Moisés, quando ele ouviu falar sobre isto (o maná) e também o viu, ficou
impressionado e guiado não tanto por uma inspiração enviada por Deus, fez um anúncio
do Sábado. Eu não preciso de dizer que estes tipos de conjeturas são próximos das
profecias. A mente não poderia ter feito um objetivo tão direto se não houvesse também
o espírito divino guiando-a para a própria verdade.”
Fílon emprega a palavra conjetura em vários contextos relacionados com o pensamento,
as opiniões e a adivinhação365. Por exemplo em Gaius 21 ele refere que “a mente
humana na sua cegueira não percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer é levar
conjeturas e suposições como guia em vez do conhecimento.”
O modelo para esta forma de inspiração pode ser traçado até à memória de Sócrates,
Fílon retrata Sócrates como “aquele que ficou apaixonado pela beleza agora” (Plant 65).
O aspeto mais interessante nestes dois autores é o conceito do espírito que leva à
inspiração, Platão deu especial atenção ao daimonion inspirador de Sócrates366.
Sócrates descreveu-o “…eu pensei ter ouvido uma voz dele…” (Phaedrus 242C),
reunimos aqui os similares neste conceito de inspiração. Fílon descreve a comunicação
a partir do espírito em Vit. Mos. 2.265; Teócrito entendia que o daimonion de Sócrates
era um guia (Gen. Socr. 580 C). Fílon utiliza o verbo guiar para descrever a direção do
espírito divino em Vit. Mos. 2 265 e a principal função do daimonion de Sócrates
corresponde à principal função da inspiração na introdução que Fílon faz ao dom
profético de Moisés em Vit. Mos. 2. 187 292. Os assuntos do daimonion iluminados,
inescrutáveis para a sabedoria humana só se alcançam pela inspiração, por isso Moisés
como profeta “declarou por inspiração o que não pode ser apreendido pela razão”
(2.187)367
De forma a concluirmos esta breve apresentação do pensamento de Fílon de Alexandria
iremos dirigir a nossa atenção a outro trabalho exegético deste autor onde ele afirma ter
recebido uma interpretação bíblica específica. Neste texto Fílon discute a “palavra
elevada”, o sentido alegórico dos dois querubins:

365
Cf. Idem, 44.
366
Cf. (Euthyphro 3B; Apologia 40A).
367
Levison (1999), 46.
172
“Mas há um pensamento mais elevado que estes. Ele vem de uma voz na minha própria
alma, que frequentemente é possuída por Deus e diviniza-se onde não sabe. Este
pensamento gravarei em palavras se puder. A voz disse-me que, enquanto Deus é
realmente um, seus poderes superiores e regentes são dois, até mesmo a bondade e a
soberania, e a beneficência da Causa, tu entenderás como essas potências não
misturadas são misturadas e unidas, como, onde Deus é bom, todavia, a glória da sua
soberania é vista em meio à beneficência, como, onde se reina através da
soreveignidade, a beneficência ainda. Assim tu podes ganhar as virtudes incluídas

destas potências, uma coragem alegre e reverente reverência para com Deus.” (Cher.
27-29)
A questão colocada nesse texto diz respeito à existência dos dois querubins, o autor
afirma que aprendeu uma clara lição acerca da soberania e beneficência da Causa. Com
estas reflexões autobiográficas Fílon de Alexandria esboça um retrato vívido da sua
experiência inspirada como intérprete da Torá. Fílon ouve uma realidade exterior
expressa na forma de uma voz ou espírito que ensina a sua mente a partir do interior,
dirigindo-o ao conhecimento que não seria de outra forma alcançado. O “pensamento
elevado” da Torá, segundo Fílon, “surge de uma voz na minha própria alma” (Chr.27);
as soluções para as dificuldades exegéticas surgem quando “o espírito invisível” fala
(Som. 2.252)368.
Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menção à obra de Plutarco De genio Sócratis,
onde Símias descreve um ensino que alega ter ouvido de Sócrates “que as pessoas
revindicavam a comunicação visual com o céu eram impostoras, enquanto, aquelas que
afirmavam ter ouvido uma voz, ele prestou muita atenção e indagou com insistência
sobre os detalhes.” (588C)
A interpretação da escritura era na antiguidade uma experiência espiritual, em que o
intérprete abria a sua mente à novidade da revelação. Algo que está inerente à tradição
sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de
revelações visionárias e ensinamentos de conteúdo gnóstico. Estas tradições convergem
naquilo que se pode pensar como a experiência interna do indivíduo durante a sua busca
pelo divino. Em Tomé a ideia da exegese é tão importante como a ideia da realização da

368
Levison (1999), 50.
173
verdadeira identidade. Ler Tomé terá sido abrir e projetar a mentalidade para patamares
de consciência que se materializassem numa mudança radical da identidade e das
vivências. Não estamos perante um autor que facilita o acesso à informação, temos
antes um autor que promove o mistério, suscitando dúvidas a cada lógion.
Não seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato. É antes um guia
de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderá ser no íntimo do
filho da luz.

174
Bibliografia

Fontes Primárias
Darei detalhes de algumas traduções feitas por mim

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Apócrifos Judeus e Pseudoepígrafos

1 Henoque é extenso documento etíope, com fragmentos enccontrados em aramaico e


grego em Qumran. É um livro que tem cinco seções: o livro dos vigilantes, as parábolas,
o livro de astronomia, as visões e sonhos e o livro de admoestações.
Fragmentos de todas as seções foram encontrados em Qumran, excepto a seção das
parábolas. O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro século a.C., mas
a literatura de Henoque é muito mais antiga, podemos assumer isso por referências
indirectas a Henoque no livro de Isaías.
James, N. W. (2012). 1 Enoch The Hermeneia Translation. Fortress Press.
O Livro de Jubileus também conhecido como Pequeno Génesis é mencionado nos
Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28; 1Q17-18; 2Q19-20,
3Q5, 4Q482, 11Q12), data do segundo século a.C. na sua grande maioria sobreviveu em
etíope, existem contudo fragmentos em grego, síriaco e latim.
In Vermes, G. (2006). Manuscritos do Mar Morto. Ésquilo. 507
Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto
de no lado judaico da história, não possuíamos de todo uma perspetiva bem
documentada e digamos nós até abrangente das ideias religiosas e das várias formas de
interpretar os textos religiosos. Isto porque os rabinos do século I e do século II D.C.
nao permitiam que textos religiosos da época chegassem até nós a não ser se estivessem
em total conformidade com as suas ideias e crenças, embora alguns desses textos
tivessem sido preservados por cristãos (nomeadamente os apócrifos e os
pseudepigráficos). Várias das experiências ditas “místicas” ou extáticas, assim como o
symbolismo do Templo a composição textual, propostos por este trabalho, encontraram
eco nestes manuscritos.
Vermes, G. (2006). Manuscritos do Mar Morto. Ésquilo.
A Assunção de Moisés é um texto que refere as últimas palavras de Moisés a Josué,
relaciona-se de perto com Deutoronómio 31-34.
Charles, R. (1913). The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament, vol.2, ed. Oxford:
Oxford.

176
A Vida de Adão e Eva é um texto que corresponde a várias tradições hermenêuticas
antigas acerca do mito da expulsão do paraíso.
Charles, R. (1913). The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament, vol.2, ed. Oxford:
Oxford.
Memar Marqah é um tratado homilético samaritano que desenvolve um texto de várias
camadas simbólicas e um misticismo semita muito próprio do seu tempo.
Macdonald, J. (1963). Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I: The Text.
Verlag Algred Toperlmann.
Macdonald, J. (1963). Memar Marqah The Teaching of Marqah 2. BZAW.
Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot, Cânticos do Sabbath, é um documento
importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar,
onde os homens ascendem aos céus e adoram a Deus, lado a lado, com os anjos. Em
termos de simbolismos místicos, visionários e de ascensão, até à questão do eixo
simbólico do Templo, revela-se um texto indispensável para compreendermos por
exemplo a Log. 50 do evangelho de Tomé.
Newsom, C. (1985). Songs of the Sabbath Sacrifice. Michigan: Scholars Press.
Vermes, G. (2006). Manuscritos do Mar Morto. Ésquilo. 316
ha-Geonim, tratados rabinicos referentes à oração e às práticas meditativas.
ha-Geonim vol. 4. Haifa Hebrew University Press Association.
Liturgia Samaritana a liturgia samaritana, reúne vários dos seus simbolismos textuais
associados ao Templo e à cosmologia que também se encontra presente em Tomé.
Cowley, A. E. (1909). The Samaritan Liturgy Vol. I. Oxford At The Clarendon Press.
Torá Samaritana é a versão samaritana do Pentateuco.
Os Salmos de Salomão forneceram vários elementos simbólicos da tradição literária do
cristianismo siríaco à luz dos quais foi possível induzir e interpretar vários dos símbolos
e das metáforas presentes na textualidade de Tomé.
Wright, R. B. (2007). The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text. New
York: T&t Clark.

Outros autores judeus

Fílon de Alexandria (cerca do ano vinte a.C. – cinquenta d.C.) este autor tornou-se
fundamental para estabelecermos o quadro simbólico de significados presentes no
evangelho de Tomé e em vários outros documentos utilizados na exegese dos logia.

177
Este autor pertencia a uma família de linhagem sacerdotal, estava familiriazado com os
significados símbolicos e cosmológicos do Templo de Jerusalém. Assim como as suas
associações literárias à riqueza da filosofia platónica, algo conveniente uma vez que
Tomé absorveu elementos da filosofia platónica do seu tempo na sua textualidade. Ao
longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vários excertos dispersos pelo
corpo textual de Fílon de Alexandria. As traduções foram elaboradas à minha
responsabilidade a partir desta compilação em língua inglesa.
Judaeus, P. (1993). The Works of Philo: Complete and Unabridged, New Uptadet
Edition. Massachusetts: Hendrickson Publishers Marketing.
Flávio Josefo (anos trinta e cinco a cem e.C,) este segundo autor presenciou a guerra
judaica e foi contemporâneo de Jesus, este autor contribuiu para o escopo deste trabalho
no sentido simbólico e metafísico das suas leituras do Templo. Também foi a partir do
elemento interpretativo de Flávio Josefo que conseguimos reunir, fontes e aspetos
fundamentais para interpretarmos elementos simbólicos de Tomé.
Josefo, F. (2004). História dos Hebreus 8ªedição. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das
Assembléias de Deus.

Textos Rabínicos

Mixná foi mencionado nalgumas citações circunstânciais em contextos de discussão


literária e comparação de textos. A mixná é um conjunto de tratados rabínicos que
permitem-nos ter uma perceção de como a bíblia era lida naquela época. Uma vez que o
interesse do nosso trabalho foi «captar» a forma como os textos foram lidos, os textos
eram lidos com o intento de se redigirem novos textos. A lei escrita deu lugar a esta «lei
oral», algo aqui pode ser tomado como exemplo na redação de textos religiosos.
A maioria dos textos religiosos são elaborações e interpretações, acima de tudo
releeituras das tradições anteriores.
Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomé começa com a leitura e a interpretação
da narrativa da criação da humanidade em Génesis, elaborando a partir desses versos a
sua interpretação cosmológica do texto. Textos como a mixná e os vários tratados
homiléticos rabínicos daquela época são nos úteis, porque foram escritos com o mesmo
sentido. Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo único
que originou a sua textualidade. Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente à
escrita, os elementos simbólicos e os principios interpretativos.

178
Tr. H. Danby. (1933). The Mishnah, Oxford.

Midrashim

Genesis Rabbah, é um midrash exegético compilado na Palestina talvez no inicio do


quinto século c.E, contudo com conteúdos e ecos mais antigos. Na mesma linha de
pensamento acima referida, a forma como a leitura era realizada e eventualmente
textualizada foi a razão pela qual optámos por este universo literário judaico. No caso
destas homilias acerca do Génesis a abundância e a riqueza de materias é uma
circunstância feliz. Ainda que a datação possa ser um ponto inicial de debate, esta tese
responde com o facto de apenas termos utilizado referências a conteúdos mais antigos,
ressurgentes em textos mais antigos. Toda a informação extraída dos midrashim para
explicar ou fundamentar o evangelho de Tomé, foi selecionada de acordo com a sua
antiguidade e a sua mênção em documentos mais antigos que remontam ao período
histórico em discussão.
Freedman. H. and Simon Aurice. (1961). Midrash Rabbah Genesis I. London. The
Soncino Press

Exodus Rabbah, este documento divide-se em duas partes, sendo a primeira uma
exegese homilética a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40, o
capítulo 11 não está contemplado.
Tr.S.M. Leherman, (1939) Exodus Rabbah, London

Leviticus Rabah, este midrash reúne em si as ideias e as tradiçoes dos académicos da


Palestina, o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que
tenham brotado desse solo. A datação do documento é incerta, mas surge na sua forma
complete no século doze.
Tr.J. Israelstam and J.J.Slokti (1939) Leviticus Rabbah, London

Literatura de hekhalot

Esta literatura preserva a continuidade do serviço sagrado ao removê-lo do tempo e do


espaço. Estes textos transferem o Templo para o plano celestial, onde os sacerdotes são
anjos ministradores nos Templos superiores. O serviço sacramental nestes santuários

179
celestiais é descrito em termos ritualistas do Templo terrestre. Esta metamorfose
desenvolve-se através da terminologia do misticismo da mercava. É uma combinação da
memória consagrada do ritual com a imaginação criativa e a inspiração visionária,
elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade ‘revelada’ e aquilo que está
‘oculto’. Hekhalot carateriza a experiência mística judaica em que um ser humano
ascende ao céu numa carruagem divina, ele olha diretamente para Deus e é
transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial. A literatura de
hekhalot constitui um aglomerado de textos esotéricos e revelatórios judaicos
produzidos entre a antiguidade clássica tardia e os inícios da Idade Média.
O nome deriva de uma palavra hebraico que significa “palácios”. Sendo assim a
literatura dos palácios celestiais, é de notar a forte ligação que estes documentos têm
com a literatura gnóstica e apocalíptica, descrevendo a experiências espirituais
autoinduzidas.
Davila. R. Davila (2013) Hekhalot Literature in Translation. Brill. Boston

Bibliografia e Fontes Secundárias mencionadas no texto

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