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UMA TEOLOGIA FICCIONAL EM ‘O CONTO DA AIA’

Wilson Avilla1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar resumidamente a trama de ‘O conto da
aia’, identificando nela contextos extraídos da Bíblia, e relacionando-os a elementos de teologia
ficcional e teopoética.

Abstract: This article aims to briefly present the plot of 'The hadmaid’s tail', identifying in it
contexts taken from the Bible, and relating them to elements of fictional theology and theopoetics.

Palavras-chave: O conto da aia - Teologia ficcional – teopoética

1. A obra, autora e contexto


Margareth Atwood2 é uma aclamada escritora canadense que ganhou maior notoriedade
com a publicação de ‘O conto da aia’.3 O jornal El País entrevistou-a em 2019, abordando alguns
dos temas abrangidos por suas obras. Com aguda percepção da contemporaneidade, ela afirmou
que as circunstâncias que nos cercam se parecem mais com os anos 30 e 40, uma vez que há
extremismos de esquerda e direita, pensamento de grupo, polarização, demagogos tentando causar
medo e ganhar poder, o que assusta. No entanto, ela declarou também que não há nada de novo no
que ‘O conto da aia’ contempla como temática.

1 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Doutorando em Ciências da Religião.


2 Nasceu em 1939. No início de seus estudos no Victoria College, na Universidade de Toronto, com dezesseis anos, percebeu que
queria escrever profissionalmente. Formou-se em Artes (1961), e concluiu seu mestrado, em Radcliffe, um ano depois. Prosseguiu
no doutorado por mais dois anos, mas não concluiu seu trabalho de pesquisa. No website da Editora Rocco, que tem publicado
suas obras no Brasil (www.rocco.com.br), Margareth Atwood é denominada como uma das maiores escritoras de língua inglesa, e
consagrada pelos mais importantes prêmios internacionais, tais como o Man Booker Prize (2000) e o Príncipe de Astúrias (2008),
para mencionar apenas dois. Seus livros já foram publicados em mais de trinta idiomas, e seu talento é reconhecido como
romancista, contista, poetisa e ensaísta. Sua obra compreende dezoito livros de poesia, dezoito romances, onze livros de não ficção,
nove coleções de contos, oito livros para crianças, além de outras, sendo que muitas delas adaptadas para o cinema e televisão. Sua
atuação, no entanto, é ainda mais ampla, já que é reconhecida também como crítica literária, professora, ativista do meio-ambiente
e inventora. A temática de sua obra é variada, incluindo questões de gênero e identidade, religião e mito, o poder da linguagem,
mudanças climáticas, e poderes políticos. (https://en.wikipedia.org/wiki/Margaret_Atwood, acesso em 31/05/2021, às 15:35 h)
3 A obra foi adaptada para a televisão (streaming nos EUA), e estreou em abril de 2017. A quarta e mais recente temporada foi

apresentada neste ano. A série venceu os prêmios Programa do Ano e Série Dramática no Television Critics Association e
oito Prémios Emmy do Primetime, incluindo Melhor Série Dramática, em 2017.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Handmaid%27s_Tale_(s%C3%A9rie_de_televis%C3%A3o), acesso em 15/07/2021)

1
À época ela estava lançando ‘Os Testamentos’4. Perguntada sobre sua popularidade,
atribuiu-a ao que acontece no mundo em geral, e explicou que nas últimas três eleições nos Estados
Unidos ela subiu, fazendo do conto uma espécie de ‘visão profética’. Mas não foi assim nos anos
noventa, quando as pessoas diziam: “É coisa do passado, nada disso aconteceu, a Guerra Fria
terminou, vamos às compras!”.
Questionada sobre as “guerras morais” e sobre se esses critérios devem ser aplicados à
literatura e à arte, ela respondeu que esse é um presente para a direita. Quanto mais se fizer isso
mais parecerá censura e mais munição terão os ultraliberais. Já vimos tudo isso antes, veja o
estalinismo, e advertiu: ‘é preciso ler mais história’.
Falando à BBC, em 2020, ela opinou sobre o recrudescimento do fundamentalismo, e
exemplificou esse fenômeno com a derrota da Emenda dos Direitos Iguais5, que considerou como
um revés nos Estados Unidos. Nesse sentido, ela disse que o livro foi escrito para fazer várias
perguntas, tais como: se os Estados Unidos tivessem um totalitarismo ou uma ditadura, de que tipo
seria? Seria comunista? Seria fascista? Seria religiosa, responde ela mesma categoricamente.
Mesmo assim Atwood entende que é pouco provável que haja novas guerras civis religiosas
em território americano, mas que se houver, a religião dominante não será a da Igreja Católica, e
sim algo semelhante ao fundamentalismo puritano. Com isso ela afirmou seu interesse em como
as ditaduras e os totalitarismos evoluem, assegurando ter idade suficiente para lembrar de Hitler,
Mussolini, Franco e Salazar, além de outros.
Escrevendo em ‘O Estadão’ (2019), sobre o lançamento de ’Os testamentos’, Maria
Fernanda Rodrigues pontuou que ‘O conto da aia’ voltava à prateleiras, por assim dizer,
principalmente pela ascensão conservadora, representada também pela eleição de Donald Trump
à presidência dos Estados Unidos da América. Na ocasião, diversas manifestações irromperam,
aludindo à obra de Atwood. Tais como ‘faça Margaret Atwood ficção novamente’, satirizando o
slogan da campanha presidencial: ‘Make America great again’. Outra dizia que ‘O conto da Aia’
não era manual de instruções.6 Enquanto Margaret Atwood escrevia The Handmaid's Tale, Ronald

4 Considerada uma continuação de ‘O conto da aia’


5 Emenda constitucional americana que busca incluir a igualdade de gênero e está pendente há cerca de 48 anos, pela falta de
cumprimento de um requisito que foi satisfeito agora. A Emenda dos Direitos Iguais (ERA – Equal Rights Amendment) foi
aprovada pelo Congresso em 1972, com a condição de ser ratificada por trinta e oito estados da federação.
6 https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,margaret-atwood-faz-80-anos-e-da-sequencia-ao-seu-best-seller-

profetico,70003090998, acesso em 31/05/2021, às 15:00 h.

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Reagan era a autoridade máxima na América do Norte e a direita cristã estava em ascensão em
toda a América.7 Um fenômeno conservador cunhado à época como ‘Maioria Moral.8
Escrito em Berlim, em 1984, e publicado em 1985, ‘O Conto da Aia’ é tão controverso
quanto influente. Ele foi comparado favoravelmente com algumas das maiores obras distópicas9
de todos os tempos.10 Seus críticos mais mordazes admitem que o romance de Atwood deriva seu
poder de uma crítica precisa, embora perturbadora, das normas culturais contemporâneas.
Falando em outra ocasião ao jornal El Pais ela disse que toda distopia contém uma utopia
e vice-versa, e que toda distopia fala do presente, assim como o fizeram Huxley, nos anos trinta,
Orwell, em 1948, além das utopias escritas no século XIX. O século XX foi um século de distopias
porque foi marcado por guerras e totalitarismos. Ainda sob o argumento dela, ficou claro que essa
ideia da sociedade perfeita implica em massacre, inevitavelmente. Em tom profético ela afirmou
que as utopias voltarão porque precisamos imaginar como salvar o mundo.11
‘O conto da aia’ tem um caráter de crítica social marcadamente feminista12, no qual
Atwood exagera e projeta esses valores extremamente conservadores e os combina com o ethos
puritano para imaginar uma sociedade mais verossímil e de aproximação imediata, que muitos têm
denominado como distopia13. Os elementos bíblicos são a base da narrativa ficcional, e suas
interpretações teológicas constituem o âmago da expressão conceitual de estado, e de uma visão
de mundo.

7 Malise Ruthvan (2005) afirma que “o fundamentalismo… pode ser descrito como uma forma de ser religiosa em que crentes
sitiados tentam preservar sua identidade distinta como pessoa ou grupo em face da modernidade e da secularização”. Como
resultado, ele argumenta, os fundamentalistas veem o mundo em termos monoculturais e rejeitam a diversidade e a identidade
plural.
8 Mesmo nome dado à organização que se tornou um braço importante da direita americana. que tinha por pauta a oposição às

liberdades pessoais, dentre elas o direito do indivíduo de praticar a homossexualidade ou de uma mulher seguir uma carreira, ao
invés de ‘ter uma família e a vida em casa’. O nome ‘Maioria Moral’ foi cunhado pelo pastor evangélico Jerry Falwell (1933-2007).
Anos mais tarde, seu filho, Jerry Fallwell Jr. se tornaria um dos grandes apoiadores de Donald Trump em sua trajetória rumo à
Casa Branca.
9
O conceito filosófico de distopia foi utilizado pela primeira vez pelo filósofo e economista britânico John Stuart Mill (1806-1873),
em 1868, ao discursar no Parlamento do seu país. O significado foi contraposto ao de utopia pelo próprio Mill, portanto, um lugar
ruim, que causa mal-estar, privação e dor. Atwood não acata totalmente o rótulo para sua obra, mesmo porque entende que a
realidade que ela descreve é mais factível do que qualquer ficcionalidade distópica possa representar.
10 O que inclui ‘Nós’, de Yevgeny Zamyatin (1921), as obras do início do século XX de Franz Kafka, ‘Admirável Mundo Novo’

de Aldous Huxley (1932), e ‘1984’, de George Orwell (1949).


11 https://brasil.elpais.com/cultura/2021-05-29/margaret-atwood-as-utopias-voltarao-porque-precisamos-imaginar-como-salvar-o-

mundo.html, visualizado em 01/06/2021, às 15:07 h.


12 https://www.semanticscholar.org/paper/Margaret-Atwood%27s-The-Handmaid%27s-Tale-and-the-

Malak/16d835fcf8690012cd83ca232e3599dc7eaea326
13 Os padrões distópicos estão configurados na obra, segundo padrões observados por Malak, assim como: poder, totalitarismo e

guerra; fantasia e realidade, em contato próximo; polarização entre interesses individuais e coletivos; caracterizações de
personagens marcadas pela opressão; normas estáticas e ‘atemporais’; além de discurso ideológico sociopolítico.

3
2. Aspectos destacados da narrativa e suas fundamentações
Em ‘O conto da aia’14 Atwood parte de um ponto inicial em que há cada vez menos crianças
nascendo, além de um risco de uma crise mundial de fome e falta de recursos. Vários fatores desse
contexto anterior à revolução que instaura uma teocracia em parte do território dos Estados Unidos
da América são pontuados na narrativa como causas da nova realidade política. Guerra entre seitas
e tensões religiosas é um deles, mencionado em um único comentário, mas de inegável
importância, dado o teor da ficção.15 Dois comentários esparsos são feitos a respeito de batistas
como guerrilheiros e quacres como reacionários. Em um dos monólogos íntimos, a aia diz que por
vezes canta para si mesma, em sua cabeça; alguma coisa bem lúgubre, chorosa, presbiteriana –
Maravilhosa graça - e menciona que essas canções não são mais cantadas em público,
especialmente as que nas letras usam palavras como ‘livre’. São consideradas perigosas demais.
Pertencem às seitas proscritas.16
Mas a baixa taxa de natalidade ocupa lugar de destaque como causa do golpe de estado,
além da contaminação do meio ambiente. As probabilidades de uma criança nascer com vida são
de uma para cada quatro. Isso é demonstrado para as aias, por meio de gráficos, mostrando o
coeficiente de natalidade por mil, ao longo de anos e anos: uma encosta escorregadia, descendo
além da linha do zero de reposição, e havia a cepa mutante de sífilis que nenhum tipo de mofo
conseguia tocar.17 Existiam também tensões geradas por protestos de movimentos feministas, em
que foram queimadas revistas de pornografia – que objetificavam a mulher.18 A gravidade do
contexto ficou evidente em escolas fechadas depois da metade dos anos 80, por falta de crianças.19
Assim, uma nova sociedade foi idealizada, moldada por interpretações literais de trechos
da Bíblia, ou, mais especificamente, do Velho Testamento. Para evitar então que a espécie humana
entrasse em extinção rapidamente, um grupo religioso de extrema-direita, denominado The sons
of Jacob (Filhos de Jacó) impôs por força de um golpe de estado medidas autoritárias e nada
ortodoxas para que o cenário pudesse ser revertido nos Estados Unidos. Instaurou-se então um
novo regime teocrático e tirânico que anulou as liberdades individuais, estabeleceu castas,
distinguíveis pelas vestimentas principalmente, e fez das mulheres férteis servas, em um contexto

14 que poderia ser mais bem traduzido como ‘O conto da serva’ – título que há quem julgue mais adequado, e adotado em Portugal
15 p. 44
16 p. 55
17 p. 106
18 p. 40
19 p. 107

4
extremo de vigilância e punição, comuns aos estados totalitários.20 O presidente foi morto a tiros,
metralharam o Congresso, e o exército declarou um estado de emergência. Na época, atribuíram a
culpa a fanáticos islâmicos. Mantenham a calma, diziam na televisão. A fala de que tudo estava
sob controle, contrastava com o atordoamento e perplexidade generalizada. Foi então que
suspenderam a Constituição, em caráter temporário.21
As coisas continuaram naquele estado de animação suspensa durante semanas, embora
algumas de fato tenham acontecido. Os jornais foram censurados e alguns foram fechados, por
motivos de segurança, disseram. As barreiras nas estradas começaram a aparecer, e Identipasses.
Todo mundo aprovava isso, uma vez que era óbvio que não se podia ser cuidadoso demais. Eles
diziam que novas eleições seriam realizadas, mas que levaria algum tempo. A coisa certa a fazer,
diziam, era continuar como de costume.22
No plano pessoal, para a aia, que conta a história na primeira pessoa, a mudança se tornou
evidente em uma simples compra de cigarros, em que o cartão para pagamento foi recusado, o
banco não pôde ser contactado por telefone. Logo depois o aviso de dispensa no emprego.23 E de
uma hora para outra eles congelaram as contas bancárias. Qualquer conta com um F em vez de um
M. Tudo que precisaram fazer foi apertar alguns botões. Confiscaram tudo. Mulheres não podiam
mais possuir bens.24
Assim nasceu Gilead25, um estado teocrático, que sanciona suas tradições, marcadamente
exageradas, como paródias ou interpretações literais de histórias e orações do Antigo Testamento.
O contexto social reproduz o sistema poligâmico da era patriarcal. As liberdades individuais são
restringidas, especialmente no que concerne às mulheres, e às aias. O sistema penal tem como
regra a Bíblia e é essencialmente punitivo. O novo tecido social é formado por classes bem
definidas em suas funções, cujas denominações também são emprestadas do texto sagrado.
Os comandantes detêm o poder governamental. A eles são permitidas ilicitudes, como por
exemplo frequentar casas de prostituição (Casas de Jezabel), toleradas em função deles, de turistas

20 https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,margaret-atwood-faz-80-anos-e-da-sequencia-ao-seu-best-seller-
profetico,70003090998, acesso em 31/05/2021, às 15:00 h.
21 p. 161
22 p. 162
23 p. 164
24 p. 166
25 Significa ‘colina do testemunho’ - região israelita a leste do Jordão; famosa por seus rebanhos e especiarias; região da qual Jair,

Jefté e Elias (personagens bíblicos) vieram: 7.25; Juízes 17.1; Juízes 10.3; 11; 1 Reis 17.1; Cântico dos cânticos 4.1 (Manual Bíblico
SBB, p. 792) (Gênesis 3 (ALEXANDER & ALEXANDER, 2008, p. 792) A região montanhosa que vai do Monte Hermon para o
sul, ficou emblematizada pela menção nos textos bíblicos veterotestamentários como lugar de cura, já que nela foi localizada a
fabricação de medicamentos, que eram, inclusive, exportados para o Egito e Tiro. (Jeremias 8.22; Jeremias 46.11; Jeremias 51.8)

5
e de homens de negócios em visita ao país. Vivem em uma esfera de poder que ignora as
verdadeiras condições em que vivem os demais.26
As esposas dos comandantes são mulheres voltadas exclusivamente para suas famílias e
para algumas tarefas do lar. Ocupadas em rotinas frugais, tricotam e cuidam de seus jardins, por
vezes se reúnem durante horas, como nos dias em que suas iguais dão à luz. Nessas ocasiões, de
caráter festivo, abrem presentes, falam da vida alheia, se embebedam, e buscam fazer algo para
dissipar a inveja (das aias, obviamente).27
As aias são a riqueza da nação, vez que nelas reside a capacidade de procriação. Não são
concubinas, garotas gueixas, cortesãs. Pelo contrário, tudo o que era possível foi feito para
distanciá-las dessa categoria. Nenhum espaço deve ser permitido para o florescimento de luxúrias
secretas; nem quaisquer favores devem ser obtidos por persuasão, não devem existir quais
oportunidades ou atividades que possam dar ensejo ao amor. São consideradas como úteros de
duas pernas, isso é tudo: receptáculos sagrados, cálices ambulantes.28 Na nova constituição
familiar são caracterizadas por longos vestidos vermelhos e chapéus brancos. São forçadas a
abandonar seus contextos familiares originários para procriarem a serviço das famílias dos altos
escalões do poder, podendo inclusive serem dadas sexualmente a outros homens que colaborem
com a procriação sob o interesse do chefe da família. Nem todo comandante tem uma aia. Algumas
esposas têm filhos. E até nisso a Bíblia é invocada como base.29
Tia Lydia (uma das preceptoras do treinamento das aias em centros específicos) recomenda
que as elas tenham cuidado com as esposas, tentando imaginar o que sentem, afinal são mulheres
derrotadas. Não conseguiram.30 O futuro está nas mãos das aias.31 São levadas ao médico uma vez
por mês, para fazer exames: de urina, hormônios, preventivo de câncer, exame de sangue; os
mesmos que antes, só que agora isso é obrigatório no médico, há um lençol que impede que a aia
seja vista pelo rosto.32

26 p. 148
27 pp. 128-129
28 p. 129
29 “Cada um contribua segundo propôs no seu coração; não com tristeza, ou por necessidade; porque Deus ama ao que dá com

alegria.” (2 Coríntios 9.7) - mencionado na narrativa como sendo um trecho de Atos, e do apóstolo Paulo.
30 p. 47
31 p. 47
32 p. 60

6
As marthas cuidam das tarefas domésticas.33 São em geral, mulheres de mais idade, sem
condições de procriar, devotadas às rotinas dos lares dos comandantes.
Os guardiães são como soldados a serviço do sistema e dos comandantes. As tias zelam
pelo ensino e formação das aias. E os cidadãos comuns, raramente mencionados, por vezes como
contrários ao sistema, embora silentes. Há também as pessoas inservíveis (por critérios de saúde,
ideologia de gênero e políticos) relegadas às Colônias (núcleos de exclusão), e incumbidas do
descarte de lixo e material tóxico.
A linguagem da conversação diária mais formal consiste em expressões bíblicas (no
original em inglês): “blessed day”, “blessed be the fruit”, “may the lord open”, “praise be” and
“under his eye”34. Esta última em sentido literal, vez que todas as servas estão sob constante
vigilância. Além do mais, a linguagem ocupa uma posição central nas discussões das opressões
sofridas pelas personagens. A aia observa que o Comandante possui algo que as mulheres não
possuem: a palavra.
O conhecimento científico é renegado, quando conflitante com os ideais do estado e
religião, que são uma coisa só. Na expectativa da chegada de uma criança, por exemplo (a ser
gerada por Ofwarren), a possibilidade de conhecer o sexo antecipadamente com o uso de máquinas,
lembrada nostalgicamente por Offred, não existe mais. Pelos novos padrões de saúde pública isso
é considerado desnecessário, já que nenhum bebê pode ser tirado e toda gravidez deve ser levada
a termo. O contexto pré-revolucionário é condenado historicamente como um tempo em que as
mulheres eram drogadas, induzidas ao trabalho de parto, cortadas e costuradas. Isso não existe
mais. Nenhum anestésico tampouco, com a devida justificativa dos textos sagrados35.
Homens e mulheres têm seus papéis definidos com base nas interpretações de contextos
bíblicos. Os homens são compreendidos (tolerados) por seu desejo sexual, afinal, Deus os fez
assim. As mulheres não foram feitas com desejos, por isso devem impor limites, pelo que mais
tarde receberão agradecimento.36 Homens são máquinas movidas a sexo, como ensinado no
treinamento das aias, e não muito mais. Eles querem apenas uma coisa. Devem ser manipulados,

33 Marta pertencia a uma família de amigos de Jesus, e está retratada nos Evangelhos como alguém preocupada com as tarefas
domésticas, cf Lucas 10.41-42
34 “Os olhos do Senhor estão em todo lugar, vigiando os maus e os bons”. (Provérbios 15.3)
35 “À mulher, ele declarou: “Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu

desejo será para o seu marido, e ele a dominará.” (Gênesis 3.16)


36 p. 46

7
para o bem das aias e mulheres, e levados pelo nariz para onde quiserem. Uma forma metafórica
para dizer que é assim que a natureza funciona, é o plano de Deus, a maneira como são as coisas.37
Às mulheres compete a disciplina doméstica.38 Espera-se para todas elas um futuro de
harmonia, em que viverão juntas em uma única família. Ocasião em que não será mais necessário
transferir aias de uma casa para outra, porque haverá mulheres suficientes para todas. Os laços de
afeto serão verdadeiros.39
Na vida comum das cidades há mais carros, e eles também tem nomes bíblicos.
‘Tormentas’ (o modelo mais luxuoso) com seus choferes e seus ocupantes privilegiados, carros
inferiores dirigidos por homens inferiores, além de outros utilizados para os serviços estatais.40 A
gasolina é cara e escassa desde o início da guerra, e difícil de obter.41Os computadores são
mencionados indiretamente, designando funções de comunicação e organização, e apontando
também para sistemas de controle, tais como copofone, compubanco, compuconta, dentre outras.
As principais personagens são Offred42, que é tirada de seu contexto familiar originário,
em que era casada com Luke, e mãe de uma filha. O comandante Frederick R. Waterford, que tem
papel destacado no governo de Gilead, tendo sido um de seus principais idealizadores, é o senhor
da casa a quem Offred está submissa. Serena Joy, cujo nome era Pam antes da revolução. Tinha
projeção social e fazia discursos sobre santidade do lar, papel das mulheres em casa. Pelo olhar de
Offred está submetida a um sacrifício para o bem de todos.43 Moira, a principal amiga de Offred,
tanto no contexto pré-revolucionário, quanto na realidade atual da trama. E os serviçais da casa do
comandante – Nick (guardião e motorista), Rita (martha) e Cora (ajudante doméstica).
Todo o contexto religioso é determinado pelas interpretações de textos bíblicos. A Bíblia
é mantida trancada, da mesma maneira como as pessoas antigamente trancavam o chá, diz Offred,
para que os criados não o roubassem. É um instrumento incendiário.44
A religião institucionalizada é apresentada também pela menção de um lugar denominado
‘Escritos da Alma’, cuja vitrine é de vidro inquebrável. Atrás dela estão máquinas impressoras,
conhecidas como Holy Rollers, as Enroladoras Sagradas, um apelido desrespeitoso, na linguagem

37 p. 135
38 p. 129
39 p. 151
40 p. 158
41 p. 83
42 Cada aia recebe um ‘apelido’ formado pelo designativo de pertencimento ‘of’ (em inglês) e o nome de seu comandante.
43 p. 46
44 pp. 84-85

8
das aias. O que as máquinas imprimem são orações, rolo após rolo, preces saindo incessantemente.
Elas são encomendadas por Compufone, o que é considerado um sinal de devoção religiosa e de
lealdade ao regime. Existem cinco orações diferentes: para a saúde, para a riqueza, para uma morte,
para um nascimento, para um pecado, e o processo para a escolha é automatizado, em um menu
telefônico, e com a indicação da conta bancária, para débito. É possível ouvir as orações enquanto
são impressas, por vozes metálicas.45
Atos comuns, anteriormente próprios da intimidade familiar, foram ressignificados como
cerimônias religiosas.
O ato sexual é precedido de uma batida à porta, pelo qual o comandante pede autorização
para entrar no quarto em que se dará a conjunção carnal com a aia. A esposa permite a entrada.
Logo após o comandante toma a Bíblia e procede a leitura de trechos específicos relacionados à
procriação. Destaque feito à fala de Raquel, esposa de Jacó – ‘Dá-me filhos, senão eu morro’.46
Com base nesse episódio bíblico, em que a serva Bila é dada então ao marido de sua ama, o ritual
é procedido.47

Minha saia vermelha é puxada para cima até minha cintura, mas não acima disso. Abaixo
dela o Comandante está fodendo. O que ele está fodendo é a parte inferior do meu corpo.
Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular também seria
inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma está envolvida.
Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu não tenha
concordado formalmente em fazer.48

O parto também é um ritual não privado, assistido pelas esposas e pelas aias. Há um banco
especial para dar à luz, com assento duplo, o de trás levantado como um trono atrás do outro.49 A
aia que dá à luz é vista por todos como privilegiada e tem algumas regalias por isso. Mas não lhe
é permitido o convívio com o bebê que gerou, exceto em um período inicial de amamentação. O
envolvimento afetivo é severamente punido. Os filhos gerados pertencem às famílias a quem cada
aia serve com seu dom para procriar.
As execuções públicas são precedidas de discursos moralísticos. São mortos os rebeldes
religiosos, aias que cometeram crimes, e mais raramente esposas nessa mesma condição. Nas

45 pp. 155-156
46 Gênesis 30.1-5
47 p. 90
48 p. 90
49 p. 111

9
execuções de aias seus pares tomam parte no enforcamento, chamado de particicução (pelo caráter
participativo na aplicação da pena).
As rotinas domésticas incluem leituras de trechos bíblicos, como as beatitudes, na hora do
almoço.50 Todo esse verniz religioso, no entanto, não reprime os anseios básicos do ser humano,
que assumem uma dualidade – de humanização ou de desumanização - em face das perspectivas
cotidianas, e convicções diante do sistema estatal religioso. Esses anseios perpassam todas as falas
de Offred, caracterizando o esforço que ela faz para preservar sua identidade, suas memórias e sua
sanidade.
Em seus monólogos íntimos ela lida com a multiplicidade de suas pessoalidades, afirmando
que pode ser mais de uma pessoa, que pode significar milhares.51 Sobre seu nome, fator inerente à
individuação, ela diz:

Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a
mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o número de seu telefone,
útil apenas para os outros; mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância
sim. Mantenho o conhecimento desse nome com algo escondido, algum tesouro que
voltarei para escavar e buscar, algum dia. Penso nesse nome como enterrado.52

Ela repete então seu nome antigo, recorda a si mesma do que outrora podia fazer, de como
era vista.53 Aquilo a que chama de si mesma é uma coisa que agora tem que ser composta, como
se compõe um discurso, não algo nascido.54
Ela lida com suas angústias sem nenhuma esperança. Sabe onde está, quem é, em que dia
está. Esses são os testes de sanidade, um bem valioso, a ser amealhado e guardado escondido como
as pessoas antigamente amealhavam e escondiam dinheiro. A sanidade deve ser economizada, de
maneira que seja tida suficiente, quando chegar a hora.55 Articulando pensamentos desconexos, a
partir de palavras simples como ‘cadeira’, por exemplo, ela constrói suas litanias, em monólogos,
para se compor.56
Com seu próprio corpo, Offred tem uma relação de estranhamento. A nudez já lhe parece
fora de época. Ela evita olhar para baixo, não tanto porque seja vergonhoso ou impudico, mas

50 p. 86
51 p. 42
52 p. 82
53 p. 94
54 p. 67
55 p. 103
56 p. 104

10
porque não quer vê-lo. Não quer olhar para alguma coisa que a determine tão completamente.57
Ainda assim precisa tomar alguns cuidados básicos, como o banho, uma exigência, mas também
um luxo. Nele, o simples fato de tirar a pesada touca com as abas brancas e o véu, de sentir o
próprio cabelo de novo, com as mãos, é um luxo igualmente. O cabelo agora é comprido, sem
corte, e assim tem que ser, por causa de São Paulo, como diz Tia Lydia, raspado rente.58
A expectativa por uma gravidez é demonstrada na vigilante espera de sangue, a cada mês,
temerosamente, pois sua ausência significa fracasso.59
O corpo é também o locus de punição. É nos pés que batem as tias, em caso de primeira
ofensa. Usam cabos de fios de aço, com as pontas distorcidas. Depois disso batem nas mãos. O
sistema não se importa com o que é feito nos pés e mãos das aias, mesmo se permanente. Tia Lydia
sempre reforça que para os objetivos pretendidos (de procriação) os pés e mãos não são
essenciais.60
O anseio por relacionamentos pessoais, inerentes à existência humana, é expresso na frase
‘sinto-me como as palavras em pedaços, quero estar com alguém’, e pela compreensão de que
ninguém morre pela falta de sexo, mas por falta de amor. Ela se frustra ao constatar que não há
ninguém que possa amar. Todas as pessoas que ela poderia amar estão mortas ou em outro lugar.61
A luta contra o tédio é constante. Ela diz que é como um quarto onde outrora as coisas
aconteciam e agora nada acontece, exceto o pólen das ervas que crescem do lado de fora da janela
que entra trazido pelo vento, com a poeira espalhada pelo chão.62 E o tédio ajuda a compor a vida
minimalista, em que o prazer é um ovo, exemplifica Offred. Graças divinas que podem ser
contadas nos dedos de uma única mão. Se tem um ovo, por que mais querer? Em condições de
vida reduzidas o desejo de viver se prende a estranhos objetos, um animal de estimação, um
passarinho, ou um gato.63
O anseio pela mãe, mesmo que reconhecendo as dificuldades de relacionamento que havia,
é tão latente quanto o anseio pela liberdade, concretizado na fuga de Moira do centro de
treinamento. Ele é a amiga idealizada por seu apreço pela liberdade.64

57 p. 63
58 p. 63
59 p. 73
60 p. 89
61 p. 98
62 P. 99
63 p. 104
64 p. 126

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Ler e escrever, atos dos mais elementares, são banidos. Na realidade de Gilead mulheres
não sabem somar, diz o comandante. Mas em um dos encontros furtivos (e ilegais) com ele, Offred
tem permissão para ler, e em certa ocasião escreve algo, descreve então a sensação de ter a pena
entre os dedos como sensual, viva, e que permite sentir o poder que as palavras contêm.
Em um dos pontos mais tocantes, provavelmente no auge da angústia, Offred imerge em
suas reflexões espirituais concluindo que aquilo pelo que oram é pelo vazio, de modo que possam
ser preenchidas com graça, com amor, com abnegação, sêmen e bebês. E nesse devaneio ela
parafraseia a conhecida oração do ‘Pai Nosso’:

Meu Deus. Que estás no Reino dos Céus, que é interior. Gostaria que me dissesses Teu
Nome, quero dizer o nome verdadeiro. [...] Gostaria de saber o que Tu estiveste fazendo.
Mas seja lá o que for, ajuda-me a suportá-lo, por favor. [...] Tenho o pão de cada dia
suficiente, de modo que não perderei tempo com isso. Não é o problema principal. [...]
Agora chegamos ao perdão. Não te preocupes em perdoar agora. Existem coisas mais
importantes. [...] Livra-nos do mal. Então há Reino, poder e glória. É preciso muito para
acreditar neles agora. [...] Ó Deus, ó Deus. Como posso continuar vivendo?65

A aspiração de futuro, amalgamada com o anseio pela liberdade, é por vezes potencializada
por pequenos vislumbres de normalidade no cotidiano, como um pano de prato branco com listras
azuis, iguais ao que sempre foram. Por vezes esses lampejos de normalidade apanham de través,
como emboscadas. O comum, o costumeiro, um lembrete, como um chute,66 de uma vida a ser
vivida novamente, talvez.

3. Considerações finais
Seguindo a tese de Northrop Frye67, que, aliás, foi professor de Atwood, a Bíblia pode ser
compreendida como código de intepretação da cultura ocidental. Lopes cita Blake para recordar o
elevado caráter literário da Bíblia, que ele chama de ‘o grande código’, como repositório de temas,
expressões e personagens, sem o qual seria impossível decifrar a literatura ocidental, à semelhança
de Frye.
E sem dúvida o ‘Conto da aia’ é um constructo que faz do texto bíblico, expressamente, o
substrato básico de seus temas, como entende Cantarela (p. 214).

65 pp. 188-189
66 p. 49
67 Crítico literário canadense, um dos mais célebres no século XX.

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A modernidade que aprofundou a separação entre a expressão literária e a teológica como
consequência dos efeitos do processo emancipação que levou ao desgaste a identificação da cultura
com a teologia cristã, paradoxalmente, principalmente a partir do período oitocentista, significou
para a teologia uma oportunidade de rever-se e abrir-se para o diálogo com outros saberes, o que
construiu o caminho para uma reaproximação que rendeu frutos significativos, sobretudo vistos
desde a segunda metade do século XX, com outros estudos que têm ajudado a teologia a repensar
a forma e o conteúdo de seus discursos.
Nesse sentido, a reflexão teológica é desafiada a perceber, mesmo em linguagens que, num
primeiro momento, podem lhe parecer estranhas e até mesmo antagônicas, uma interpelação
legítima e, por que não dizer, uma autêntica fonte.
A teologia ficcional que se vislumbra em ‘O conto da aia’, portanto, é indicativa do
substrato teológico que o romance possui por meio de sua capacidade interpretativa da vida e do
poder imaginativo, como entende Lopes.
Ainda segundo Lopes, a ficção é, pois, de maneira mais ampla, a característica de certos
gêneros literários dentre os quais figura o romance que, em geral, pode ser caracterizado como
uma narração longa em prosa que mesmo se baseando numa conexão com fatos reais também é
fruto da imaginação do autor. Neste sentido, por mais que Atwood resista à rotulação de sua obra
como ficcional, pela proximidade com a realidade, ela continua sendo ficção, tão somente porque
foi imaginada por ela como expressão literária de uma visão não consagrada por inteiro na
concretude da realidade temporal.
A referência à “teologia ficcional”, diz Lopes, enfatiza a substância teológica que há na
ficção a partir da força imaginativa que compõe o gênero romanesco frente à teologia de caráter
conceitual. Desse modo, é necessário dizer que a tarefa de falar sobre Deus e sobre a fé não é
exclusividade da teologia conceitual.
Os ficcionalistas defendem a legitimidade moral e intelectual de se envolver com um
campo de discurso para narradores que não acreditam que as frases desse discurso sejam
verdadeiras, enquanto outros ficcionalistas, religiosos, propõem que o ficcionalista, sem acreditar
que um enunciado religioso é verdadeiro, pode dizê-lo com base em que é verdadeiro dentro de
alguma tradição religiosa.
Através do romance a teologia pode se reconciliar com suas próprias raízes, porque, como
salienta Mendonça, “acreditar em Deus é também imaginar Deus. O Cristianismo é também um

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patrimônio de imaginação”. No decorrer do tempo, a teologia se pronunciou a partir de um
conjunto de certezas definidas num espaço conceitual. Com isso, esqueceu-se de que não dispõe
do objeto sobre o qual pretende falar, deve aprender da literatura, especialmente do romance, que
a estética da linguagem está vitalmente ligada ao conteúdo. No entanto, isso só pode se realizar se
a teologia deixar-se ser interpelada pela literatura e se não a cooptar como se fosse apenas um
ornamento para um discurso já pré-fixado. A teologia deve se perguntar como os romances, até
mesmo aqueles que partem da negação da fé cristã, podem ajudar a pensar o mistério do ser
humano e de Deus. Nada mais adequado à compreensão do conteúdo de ‘O conto da aia’.
E quanto à teopoética? Em que forma o conto de Atwood deve ser considerado por essa
perspectiva? Cantarela afirma que não há como classificar uma determinada publicação como
teopoética apenas em apenas um dos tipos que ele mesmo apresenta. Os modelos mostram-se
imbricados. Ele afirma que quando aparecem nas publicações, as justificativas teóricas para as
interlocuções entre literatura e teologia são buscadas, em geral, em duas fontes distintas: na
tradição fundadora da Teopoética e em teorias críticas. Cantarela cita Bultmann, Guardini, von
Balthasar, e tillich e outros teólogos por seus esforços em compreender a literatura sob a
perspectiva teológica, destacando obras literárias como a ‘literatura cristã’, atribuindo a elas o
caráter de revelação.
Mais recentemente, afirma ele ainda, essa tendência de correlação radical entre teologia e
literatura dá espaço a um modelo de diálogo criativo em que as obras literárias, que na sua
autonomia adquirem relevância para a reflexão sobre o fato religioso. Há finalmente, hoje, uma
tendência que anuncia o esgotamento e a impossibilidade do diálogo. (p. 208)
Com isto em mente, é possível considerar que a falsa religião de Gileade não é apenas uma
teocracia, mas também uma teonomia na qual as leis judiciais do Antigo Testamento são
praticadas. Na teologia que serve de fundamento para o estado e sua religião oficial não há graça,
e em uma estranha mistura de ideologia do “olho por olho” com a lei Sharia, os pecados não são
“perdoados” sem abuso e punição. Na realidade, eles não são perdoados de forma alguma. Em vez
disso, existe o medo da religião verdadeira. Daí porque a ficção ‘da aia’ é tão próxima da realidade
atual.
Em um dos encontros secretos com o comandante Waterford, Offred ouve dele uma
justificativa para a ‘revolução’ – “eu só queria um mundo melhor”. Melhor para ele significa que
será pior para outros. Está explícito em seu arrazoado que não há império sem escravidão. E nessa

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ânsia de resolver o mundo, a falsa compreensão da Imago Dei leva a Gilead. Um arremedo que
demonstra a péssima justificativa da imposição de verdades a título de propiciar o bem a todos, no
qual escorregou o cristianismo também.
Em sua essência, o conto comunica que a ignorância quanto à Imago Dei em outro ser
humano sempre leva à crueldade e à brutalidade, em atos que desumanizam abusados e abusadores.
A história é profética em seus avisos para ficarmos atentos a qualquer mecanismo
carcerário que se manifeste ao nosso redor. Em The Handmaid’s Tale, Offred explica que nada
muda instantaneamente: em uma banheira gradualmente aquecida, seria possível morrer fervido
antes de perceber. Ela admite que estava dormindo antes, e foi assim que deixaram acontecer. E o
fervor de gente que se incumbe de estabelecer um mundo melhor, segundo seus próprios critérios,
à custa da vida de outros, não pode passar desapercebido.

Referências bibliográficas

ALEXANDER, P., & ALEXANDER, D. (2008). Manual Bíblico. São Paulo: Sociedade Bíblica
do Brasil.
ATWOOD, M. E. (2017). O conto da aia. Rio de Janeiro: Rocco.
CANTARELA, A. G. (04 de 06 de 2018). A produção acadêmica em Teopoética no Brasil:
pesquisadores e modelos de leitura. Teoliterária, 8(15). doi:10.19143/2236-
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FRYE, N. (2014). Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix.
LOPES, M. C. (2017). POR UMA TEOLOGIA FICCIONAL: a (des)construção teológica na
reescritura bíblica de José Saramago. Rio de Janeiro.
MALAK, A. (1987). Margaret Atwood's "The Handmaid's tale and the dystopian tradition.
Canadian literature.
SOHNGEN, C. d., & BORDIGNON, D. M. (2019). Entre palavras e muros: a violência
simbólica em O conto da aia. Anais do VII CIDIL - Narrativas e desafios de uma
constiuição balzaquiana.
STEIN, S. (1996). Margaret Atwood's modest proposal. Fonte:
https://digitalcommons.uri.edu/eng_facpubs/2/

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