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QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DA ARTE COMO LINGUAGEM DA RELIGIÃO

Wilson Avilla1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo suscitar algumas discussões


epistemológicas sobre a arte como linguagem da religião, a partir de reflexões sobre os
conceitos que constituem o seu arcabouço argumentativo, relacionando-os às
proposições de valoração epistêmica da arte de Aleksandra Sherman2 e Clair Morrisey3
4.

Abstract: This article aims to raise some epistemological discussions about art as a
language of religion, based on reflections on the concepts that constitute its
argumentative framework, relating them to the propositions of epistemic valuation of art
by Aleksandra Sherman5 and Clair Morrisey6 7.

Palavras-chave: Linguagem da religião – epistemologia da arte – religião e arte

Introdução
A linguagem é uma condição antropológica essencial do ser humano, já que a
racionalidade que o caracteriza é construída pela mediação da palavra em sentido
amplo. Mas, é evidente que ela, a linguagem, tem sede mais além do locus que situa o
que pode ser escrito ou verbalizado. Ela tem endereço no constructo cultural,
integralmente considerado, no qual inquestionavelmente residem também a religião, a
estética e a arte, manifestações humanizadoras preponderantemente, amplamente
interrelacionadas e inerentes a todos os decursos civilizatórios.

1 Bacharel em Música, Bacharel em Direito, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Doutorando em Ciências da Religião.
2 Associate Professor, Cognitive Science; Advisory Committee, Neuroscience; B.A., Rutgers University; Ph.D., Northwestern
University; Department Chair, Cognitive Science - https://www.oxy.edu/academics/faculty/aleksandra-sherman (acesso em
01/08/2021, às 14:00 h.)
3 Associate Professor, Philosophy; B.A., University of Michigan, Ann Arbor; M.A., University of North Carolina, Chapel Hill;

Ph.D., University of North Carolina, Chapel Hill - https://www.oxy.edu/academics/faculty/clair-morrissey (acesso em 01/08/2021,


às 14:05 h.)
4 Cf. “What is Art Good for? The Socio-Epistemic Value of Art”
5 Associate Professor, Cognitive Science; Advisory Committee, Neuroscience; B.A., Rutgers University; Ph.D., Northwestern

University; Department Chair, Cognitive Science - https://www.oxy.edu/academics/faculty/aleksandra-sherman (acesso em


01/08/2021, às 14:00 h.)
6 Associate Professor, Philosophy; B.A., University of Michigan, Ann Arbor; M.A., University of North Carolina, Chapel Hill;

Ph.D., University of North Carolina, Chapel Hill - https://www.oxy.edu/academics/faculty/clair-morrissey (acesso em 01/08/2021,


às 14:05 h.)
7 Cf. “What is Art Good for? The Socio-Epistemic Value of Art”

1
São campos vastos e complexos, é verdade, de arrumações discursivas e
entrecruzamentos simbólicos e éticos, segundo o entendimento de Magalhães. Não há
limite para os processos bricolares, pensa ele, já que as transversalidades podem ser
surpreendentes e as práticas podem apontar para os vários pertencimentos dos sujeitos
e fazeres culturais, destruindo a seriedade de estudos da religião que tentem reduzi-la a
qualquer ser essencializado, e o que tem relevo nesta conexão argumentativa: tentando
apresentar um ordenamento definitivo que a religião em suas diferentes linguagens
desconhece. (MAGALHÃES 2018, 1035)

Conexões conceituais
Articular esses campos vastos e complexos é sempre desafiador, pelos riscos de
divagação em face da profundidade que cada um encerra, de hierarquização indevida,
ou de ausência de reconhecimento dos planos conceituais mais elevados.
Provas nesse sentido são vistas há mais de dois milênios - a filosofia buscou
definir tudo em sua volta de modo a trazer ao ser humano a compreensão de seu mundo
- é patente que nesse processo milenar, a arte (tanto quanto a religião) também foi
submetida à lógica geradora de definições, embora sempre escapando aqui e ali de uma
completa compreensão. (CAMARGO 2009, 11)
Nas interações entre esses campos conceituais, até por uma questão de
precedência, as discussões sobre arte em algum momento se voltam para o campo da
estética, muito embora ela tenha perdido seu encanto, ou seja, pelos que assim
entendem, vista como não mais que um registro de curiosidades históricas. Camargo
assim observa, e cita Jean-Marie Schaeffer8, renomado teórico francês da estética como
exemplo, que intitulou um de seus livros com a sentença “Adeus à estética”. A
encruzilhada que se abre diante da estética se apresenta de maneira um tanto
peremptória, preleciona Camargo - ou a estética abandona a tradição que compartilha
com os fundamentos básicos da filosofia, argumenta ele, para se transformar em uma
reflexão a posteriori das experiências e dos objetos estéticos (abolindo inclusive os

8Filósofo francês (1952- ) das artes da linguagem (https://fr.wikipedia.org/wiki/Jean-Marie_Schaeffer), (acesso em 30/07/2021,


17:30 h.)

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limites entre o que é ou não arte), ou se mantém como ancilla philosophiae servindo na
busca da verdade, como ferramenta auxiliar da razão. (CAMARGO 2009, 12-13)
Seja como for, Rodrigues sugere que a estética parece oferecer a possibilidade
de uma experiência de transcendência em um mundo laicizado, onde vigoram as leis
abstratas e impessoais do mercado, no qual a obra de arte aparece envolta em uma aura
misteriosa, na qual um conceito-chave é a contemplação. (RODRIGUES 2008, 119)
Embora entendida historicamente sob o abrigo da estética, a conceituação da arte
também não é louvada com unanimidade, tanto quanto, e especialmente, como
linguagem religiosa. Tal tarefa exige esforço e inteligência, dadas as multifacetadas
conexões disciplinares, multiplicadas exponencialmente em suas problemáticas na
contemporaneidade.
Bosi, filosoficamente define arte como
produção de um ser novo, que acrescenta aos fenômenos da natureza, [...] na
poética do Barroco [...] se deu ênfase à artificialidade da arte, ou seja, à distinção
nítida entre o que é dado por Deus aos homens e os que estes forjam com o seu
talento. No século XX, as correntes estéticas que se seguiram ao impressionismo
levaram ao extremo a convicção de que um objeto artístico obedece a princípios
estruturais, que lhe dão o estatuto de ser constituído, e não de ser dado,
“natural”. (BOSI 1986, 14)

Em bem elaborada investigação histórica, Camargo elabora a ideia de que a


pergunta ‘o que é arte’ conduz obrigatoriamente a um conceito, que distingue as coisas
identificáveis compreendidas numa extensão (definição). Tais coisas devem possuir
propriedades comuns (idem=mesmo) que não existem naquelas que são externas ao
conjunto. Encontrar quais são as propriedades necessárias e suficientes, que possam
identificar as características da arte numa coisa ou num evento sempre foi um desafio.
(CAMARGO 2009, 2)
Hoje, a estética como filosofia da arte ainda se vê debatendo o principal problema
da filosofia, qual seja o de definir tudo em conceitos abstratos para normalizar o mundo.
Desse modo, a definição do que seja a arte tornou-se preocupação primeira, talvez uma
obsessão entre os estetas e filósofos da arte. Os manuais de filosofia insistem em que
ninguém pode ter domínio sobre qualquer tema ou saber, sem antes defini-lo necessária
e suficientemente, com precisão. Assim, ninguém poderia ser artista ou pensar a arte,
desconhecendo o que se define como arte.

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Camargo adverte que todos esses fracassos na procura de uma definição de arte
levaram alguns estetas a olhar o problema de outra forma. Assim, em vez de pugnarem
por uma definição, deslocam as suas preocupações para a questão meta-estética de
saber se a questão ‘o que é arte?’ faz sentido.
Em sua análise histórica das definições de arte, Camargo faz referência à
elevação conceitual do fenômeno estético, atribuindo-a à Escola de Frankfurt,
especialmente aos trabalhos de Theodor Adorno, que se opôs às estéticas kantiana e
romântica, por considerar tais teorias excessivamente abstratas e idealistas para lidar
com o lado concreto do mundo da arte. Ele salienta que a arte não é apenas uma
comunicação de emoções, mas também a constituição de conhecimentos sensíveis
capazes de promover o entendimento de uma parcela do mundo que nenhuma outra
reflexão silogística poderia alcançar. (CAMARGO 2009, 5-6) Por esse raciocínio ele
conclui que reduzir a obra de à comunicação de emoções não contribui muito para seu
entendimento ou eventual definição.
Nesse mesmo sentido, Nogueira afirma que a arte diz respeito aos mais diferentes
experimentos feitos com a realidade. Ele invoca Shklovski, um dos expoentes do
formalismo russo, pela atenção que ele dá ao fato de que a complexidade de uma obra
de arte tem como função nos tirar do automatismo da vida quotidiana, ao nos devolver o
papel de sujeitos intérpretes, que precisam construir sua leitura/observação da obra.
Nesse processo, a dificuldade que a obra impõe ao intérprete tem a função de fazer com
que ele se detenha no processo da interpretação. (NOGUEIRA 2016, 215)
Nogueira afirma ainda que na arte – e no caso do experimento ficcional literário –
as arbitrariedades das construções de mundo sobre as quais repousam nossas práticas
quotidianas são explicitadas e testadas em conexões inesperadas. (NOGUEIRA 2016,
256)
Nesse mesmo intuito de estabelecer algumas delimitações conceituais
preambulares, no que concerne à religião, a argumentação de Usarski tem lugar
privilegiado. Ele entende que não é adequado definir religião em caráter fechado, mas
recomenda um conceito aberto, capaz de superar um entendimento pré-teórico que
generaliza fenômenos religiosos, sobretudo os de origem cristã, com os quais estamos
acostumados. Tanto que ele exemplifica seu argumento mencionando que chineses,

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hindus e muçulmanos não têm em suas línguas sinônimos que correspondam à nossa
ideia de religião. Assim, ele articula seu conceito dividindo-o em quatro elementos –
plausibilidade própria, afirmação subjetiva do indivíduo religioso, multi-dimensionalidade,
funcionalidade individual e social. (USARSKI 2006, 125)
Rubem Alves, no entanto, não evita a tarefa de propor um conceito de pronto.
Com sua característica argúcia intelectual, ele o faz dizendo que nenhum fato, coisa ou
gesto é encontrado já com as marcas do sagrado. Coisas e gestos se tornam religiosos
quando os homens os balizam como tais. Com o poder de dar nomes às coisas, a
discriminação entre o que tem importância secundária e aquelas nas quais seu destino,
vida e morte se dependuram, o ser humano assume por abstração de sentimentos e
experiências pessoais que acompanham o encontro com o sagrado, e se depara com o
sagrado, a religião que se apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede
de símbolos. (ALVES s.d., 24)
Coerente com esse entendimento, Nogueira afirma que a linguagem estrutura a
religião, e qualquer experiência religiosa só pode ser tornada social por meio das
convenções linguísticas. (NOGUEIRA 2016, 243) Para delimitar melhor a busca pelas
relações entre religião e linguagem, de modo que não se repita a cada momento que
uma não se reduz à outra, ainda que sejam independentes, Nogueira opta por um
conceito de linguagem proveniente da semiótica da cultura de Iuri Lotman. Isso porque
o pensador russo entende que as linguagens da cultura emulas as línguas naturais,
constituindo-se em estruturas superiores de modelagem de mundo, que ele chama de
“sistemas modelizantes de segundo grau”. Sob esse raciocínio, Nogueira conclui que a
língua não tem um papel de reproduzir o real, antes ela o molda, tornando-o possível.
(NOGUEIRA 2016, 244)
Nogueira faz questão de justificar conceitualmente a separação entre língua
natural e linguagem da cultura, de segundo grau, por seu valore heurístico. Ele alega
que as pessoas religiosas não se dão conta disso, pois em suas práticas cultura e
linguagem estão imbricadas uma na outra. O importante, adverte ele, é que ao usar os
conceitos seja percebida a religião como um poderoso sistema de ordenamento do
mundo. Nogueira também repete que a área de estudos Linguagens da Religião não se
reduz ao estudo do código linguístico, incluindo diferentes processos semióticos em

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relação uns com os outros. (NOGUEIRA 2016, 243) Ele exemplifica: numa única missa
ou sessão temos a palavra falada, cantada, os sons de instrumentos, os gestos, as
imagens, a arquitetura, as sequências temporais de ações e falas. E o sujeito religioso,
com todas as variações de seus códigos específicos, interage e cria nova textualidades.
(NOGUEIRA 2016, 246)
Nogueira entende que a linguagem, e mais especificamente as linguagens da
religião são construídas sobre o tripé gesto, imagem e narrativa. A cultura humana não
pode prescindir de nenhuma delas, mas nem por isso se constituem em sistemas
semióticos isolados. A linguagem é uma componente essencial de todo o ato humano
integralmente considerado. (NOGUEIRA 2016, 250)
Os conceitos compartilhados para tal intento, ou seja, de encontrar caminhos
epistemológicos para considerar a arte como linguagem da religião, formam trama
intrincada, e para compreendê-la o primeiro esforço é de identificação de correlações,
coerente com a demonstração de nexo pretendida por este estudo. Camargo, fazendo
caminho investigativo semelhante afirma que por mais de dois milênios a filosofia buscou
definir tudo em sua volta de modo a trazer ao ser humano a compreensão de seu mundo;
nesse processo milenar, a arte também foi submetida à lógica geradora de definições,
embora sempre escapando aqui e ali de uma completa compreensão. (CAMARGO 2009,
11)
É falaciosa qualquer ambição por uma compreensão completa, especialmente
porque os problemas surgem e se renovam com rapidez maior que a capacidade para
dimensioná-los, no mínimo. No foro desta discussão, três deles são dignos de nota por
serem considerados os mais agudos. Baitello Jr. refere-se a Walter Benjamin,
concordando com ele quando, de maneira assustadoramente visionária, define a perda
da aura (da obra de arte) trazida pela reprodutibilidade técnica e a consequente
substituição do “valor de culto” pelo “valor de exposição”. (BAITELLO JR. s.d., 4)
Se este pode ser o primeiro dos grandes problemas, o segundo é vislumbrado na
citação que Baitello faz de Dietmar Kamper9 (“Unmögliche Gegenwart” – “Presente
impossível”), sobre um “triunfo do olho sobre os outros sentidos humanos”. [...] Dentre

9Pensador alemão (1936-2001) dedicado à Antropologia Histórica, Sociologia e Filosofia, reconhecido por seus estudos sobre
corpo, imagem, cultura e crítica do Ocidente. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Dietmar_Kamper, acesso em 29/07/2021, às 14:31 h.)

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as instâncias sem dúvida mais atingidas por esse processo de crescente transferência
de valor, por um lado, agregação de desvalor, por outro, pensa ele, está o próprio corpo,
em sua motricidade, em sua comunicabilidade, em suas qualidades biofísicas e em suas
qualidades culturais, de arquivo vivo e memória da história e da cultura humanas.
(BAITELLO JR. s.d., 4)
No que pode ser considerado o terceiro problema, mencionado em uma entrevista
concedida por Baitello Jr.10, ele aponta, por meio de uma trajetória histórica, figuras
emblemáticas para o pensamento do nosso tempo e suas questões. Falando sobre
Flusser, uma destas figuras, alguém de difícil enquadramento disciplinar, ele destaca a
capacidade do pensador em elaborar cenários de futurologia. Baitello cita outra figura,
Aby Warburg, como um criador de conceitos inexistentes à sua época, na mesma
condição de Edgar Morin. E com isso fica demonstrada o desgaste dos ambientes e
processos hodiernos, dada sua incapacidade para lidar com cenários futuros (a
pandemia presente é dada como exemplo).
Calvani, citando Max Weber em sua famosa palestra sobre a ciência como
vocação, vale-se da ideia do grande sociólogo, de que na ciência cada qual sabe que
aquilo que produziu ficará antiquado dentro de dez, vinte ou cinquenta anos. Tal é o
destino, o sentido do trabalho científico (...) toda ‘realização’ científica significa novas
‘questões’ e quer ser ultrapassada, envelhecer. Quem pretende dedicar-se à ciência tem
de contar com isto. (CALVANI 2018, 35)
Calvani também previne que o “objeto-religião” é vivo, dinâmico, fluído, afirma e
desafirma, fala e logo depois se contradiz. É este “objeto” (as experiências religiosas)
que determina a pesquisa e não propriamente os pesquisadores que afirmam o que ele,
o “objeto-religião”, deva ser. (CALVANI 2018, 8)

Questões epistêmicas
Com todas essas conexões conceituais em mente, as questões formuladas por
Sherman e Morrissey podem ser relacionadas ao contexto da arte como linguagem da
religião. As pesquisadoras afirmam inicialmente que cientistas, humanistas e amantes
têm se ocupado com a arte, valorizando-a não apenas por sua beleza, mas também por

10 https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/106667 (acesso em 28/07/2021, às 10:13 h.)

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sua importância social e epistêmica. Elas se propuseram a investigar o valor sócio
epistêmico da arte, não se detendo em questionamentos definitórios, mas partindo da
pergunta ‘para que serve a arte’?. (SHERMAN e MORRISSEY 2017, 1)
Em princípio, considerando as ideias de Usarski, Alves, e Camargo, e mais o
escopo do presente estudo, uma resposta imediata para a pergunta de Sherman e
Morrissey seria – serve como linguagem religiosa, provavelmente uma das razões mais
salientes na história da humanidade. Mas isso seria um reducionismo muito elementar,
e fugidio em relação à proposição investigativa das acadêmicas. Daí a necessidade de
uma análise acurada, que contemple as implicações epistêmicas de todo o universo
mediatório que se estabelece nas relações entre religião e arte, que aliás, não pode ser
comportada pela dimensão deste estudo de natureza exordial. E não se deslinda tal
universo sem o conhecimento de cada uma de suas configurações estelares, por assim
dizer, no uso da metáfora já aproveitado. Portanto, algumas premissas de Sherman e
Morrissey são utilizadas no presente artigo como plataformas de lançamento para as
lucubrações aqui propostas, e eventuais investigações posteriores.
No percurso investigatório elas adotam questionamentos introdutórios para
construir as premissas maiores:
a) O que acontece quando uma obra de arte é experimentada? Especificamente,
quais são as percepções, processos emocionais e cognitivos que mediam as
respostas à arte?
b) Pode-se explicar as variações de gosto? E se sim, como sua psicologia e
biologia contribuem para aquelas preferências?
c) O que é comum sobre as experiências que alguém tem através de diferentes
formas de arte? O que é distinto?
d) As respostas à arte são universais ou culturalmente situadas historicamente?
e) As experiências de arte são prazerosas e como suas respostas são distintas
de outras experiências agradáveis?
Com esse pano de fundo indagatório, amplamente correlacionado às questões da
religião e sua linguagem, em seu caráter epistêmico, Sherman e Morrissey dão direção
ao seu estudo. Elas afirmam que tradicionalmente, a discussão sobre a natureza das
artes e seu papel no cotidiano e na vida das comunidades está dentro do alcance da

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crítica, história da arte e filosofia. No último século, tem havido um interesse crescente
de psicólogos, e mais recentemente, de neurocientistas, em investigar cientificamente as
experiências e a apreciação da arte. (SHERMAN e MORRISSEY 2017, 1)
As pesquisadoras americanas compreendem o engajamento com a arte, e
especificamente a apreciação artística, como socio-epistemologicamente valoráveis.
São processos comunicativos, dialógicos, dinâmicos e principalmente transformativos,
ao invés de passivos e contemplativos do belo, agradável ou esteticamente interessante.
Segundo o entendimento delas, é possível haver uma arte como prática social,
em um enquadramento mais relevante, interessante e psicologicamente rico, além do
enquadramento tradicional da arte, reduzida à experiência estética.
As práticas sociais são definidas como forma coerente e complexa, socialmente
estabelecidas, de atividade humana cooperativa, por meio das quais são buscados
padrões de excelência, e concepções dos fins e bens envolvidos, sistematicamente
entendidos. Como formas de atividade cooperativa humana, eles existem dentro grupos
sociais, grandes e pequenos, e persistem ao longo do tempo.
Seguindo essa ênfase nas artes como práticas, a ênfase se desloca da apreciação
da arte como concepção de recepção passiva de informação perceptual de objetos de
arte para a participação ativa na construção dos significados. À margem de teorias ou
definições da arte são buscadas as tradições em antropologia e sociologia, e no valor
que emprestam à apreciação e criação artísticas, culturalmente situadas nos contextos
das comunidades humanas. Tal constatação encontra aderência na observação de
Simmel, quando afirma que as relações de pessoa a pessoa, que constituem o princípio
vital dos pequenos círculos, são incompatíveis com a distância e a frieza das normas
objetivas e abstratas, sem as quais o grande grupo não pode subsistir (HERVIEU-
LÉGER e WILLAIME 2009, 144-145).
Em ‘What Is Art Good For?’ a apreciação da arte é uma habilidade intrinsecamente
valiosa que permite cultivar "excelências de caráter", porque o engajamento nas artes
praticadas permite imaginar melhor e examinar criticamente não apenas as qualidades
estéticas das obras de arte, mas também “originalidade artística, expressão emocional,
percepção e moral entendimento." Tal noção de habilidade tem algumas características
que importam muito para uma expansão empírica programa de pesquisa: (1) a

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apreciação da arte é aprendida através prática sustentada, sugerindo sua relação
intrínseca com o cultura e comunidade, ou, pelo menos, para outras pessoas; (2) é um
capacidade que é desenvolvida ao longo de períodos de tempo não triviais; e (3) pode
ser relevante para outros domínios, pois as habilidades podem ser transferíveis;
caracterizado assim o foco no que as autoras denominam de habilidade sócio
epistêmicas. Incluídas nesta categoria podem estar capacidades como bom julgamento,
sensibilidade mais rica em detalhes, ou, seguindo Hume, ‘delicadeza de imaginação,
bom senso, experiência comparativa, e liberdade de preconceito. O que torna essas
habilidades sociais são suas relações com a capacidade de melhor entender a si mesmo
e às outras pessoas, e potencialmente propiciar uma revisão de compromissos morais,
políticos ou sociais. Isto apesar dos mecanismos para uma melhor compreensão de si
mesmo e dos outros não serem totalmente teorizados na literatura filosófica.
Sherman e Morrissey afirmam que escolheram destacar a autocompreensão e a
compreensão do outro porque se alinham bem com o que muitos pensam na apreciação
da arte como fazer - ajudá-los a ver outros e o mundo sob um ponto de vista diferente,
alterando suas perspectivas e ajudando-os a entender mais sobre eles próprios (por
exemplo, o que os move, ou o que os torna desconfortável). Ao mesmo tempo, elas não
querem se comprometer com quaisquer vias causais específicas ou diretas entre tais
processos. Em vez disso, pretendem identificar isso como uma área aberta de muito
necessária investigação. Posturas perfeitamente coerentes com esta investigação sobre
arte como linguagem da religião, posto que correlatas com os mesmos enfoques.
Valendo-se de estudos científicos fica demonstrado pelas pesquisadoras que
apreciação e criação artísticas têm sido objeto de programas empíricos que cooperam
com a conclusão de que elas estão associadas a um maior bem-estar (como medido
pela percepção de saúde, satisfação com a vida e ansiedade e scores de depressão.
Realidades novamente aderentes às concepções da religião e sua linguagem, no que
concerne à arte.
No percurso argumentativo do estudo em tela são usadas discussões filosóficas
para enquadrar e sugerir duas linhas de investigação empírica dentro esta orientação
teórica das artes como práticas sociais. O primeiro, a autocompreensão, discussão que
é nascente em ambas as literaturas, psicológicas e filosóficas, pergunta se e como a

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apreciação da arte como prática pode levar a um rico compreensão e apreciação dos
próprios valores morais, compromissos e concepção de quem e do que se é. Em
segundo lugar, a compreensão dos outros, mais plenamente desenvolvida em ambas as
literaturas, pergunta se e como a apreciação da arte como prática pode levar a uma
melhor compreensão do aspecto emocional e cognitivo estados de outros, e o potencial
valor moral e social de tais um entendimento.

Considerações finais
Assim, há que se estimular o debate epistemológico sobre a arte como linguagem
da religião, sob pena de ficarem perdidos elementos essenciais ao que chamamos
humano. Usando as palavras de Baitello Jr., também se pode considerar que jamais o
gesto civilizatório do olhar, a visão e sua hipertrofia tenham causado efeitos tão
devastadores sobre a cultura e a existência humanas. Tal qual o olho de um furacão. Ele
se refere a Flusser, mencionando o processo de desmaterialização do corpo, na perda
crescente das dimensões do espaço do corpo e do seu tempo de vida. Além do que, são
imprevisíveis os efeitos sobre a pluralidade da existência sensorial. (BAITELLO JR. s.d.,
6-7)
Não poucos pensadores têm alertado para os riscos dessas perdas conceituais.
Maraschin corrobora com esse pensamento ao afirmar que depois da metafísica e da
teologia que morreram ou que estão morrendo asfixiadas pela falta de ar sobre a alegria
e a fruição da arte. E elas estão morrendo porque foram encerradas em grandes caixas
de metal cuidadosamente fechadas com ferrolhos e parafusos de dogmas racionais, de
princípios e de fundamentos sólidos e irrefutáveis e de certezas feitas de chumbo.
(MARASCHIN 2004, 125)
Por outra perspectiva, Tillich abordou a questão, falando especificamente da
religião, acentuando que ela tem oscilado entre diferentes funções espirituais e até que
ponto foi rejeitada. Ele observa que a religião tem perseguido um lugar no âmbito do
espírito humano. Como numa busca, ele narra a trajetória e seus pontos – ética, moral,
cognição, dimensão estética, sentimento. E conclui que a religião não encontrou lugar
por causa da trágica alienação da vida espiritual em face de seu fundamento e
profundidade. Ainda como parte da conclusão ele diz que

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A religião revela a profundidade da vida espiritual, encoberta, em geral, pela
poeira de nossa vida cotidiana e pelo barulho de nosso trabalho secular. Dá-nos
a experiência do sagrado, intangível, tremendamente inspirador, significado total
e fonte de coragem suprema. Eis aí a glória do que chamamos de religião.
(TILLICH 2009, 45)

E não seriam essas mesmas palavras aplicáveis à arte, como linguagem da


religião? Não são mais que urgentes e necessárias as articulações entre arte, religião e
ciência, para uma dialética que supere as oposições entre elas, e que reconheça a
efetividade da arte com linguagem da religião?

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