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As três Semanas

A PRIMEIRA SEMANA
CONHECIMENTO DE SI MESMO

PRIMEIRO DIA
CONHECER-SE PARA RENUNCIAR A SI MESMO

A
primeira Semana de nossos Exercícios preparatórios à Per-
feita Consagração deve ser empregada, segundo o conselho
de São Luís Maria de Montfort, a adquirir o conhecimento de
nós mesmos (V. D., n. 228). Perguntemo-nos, imediatamente, qual
é a razão de ser desse novo trabalho; em que difere do trabalho dos
doze dias preliminares?
A PALAVRA de Nosso Senhor: “Se alguém quer vir após de mim,
negue-se a si mesmo” (Lc 9, 23) será, nesta meditação, nossa maior luz.
Um duplo EXEMPLO do Evangelho, o do apóstolo Judas e o
do apóstolo Simão Pedro, fornecer-nos-á depois sua eloquente con-
firmação.
Imploremos o auxílio da Santíssima Virgem, e não deixemos de
repetir-lhe, durante os seis dias desta primeira Semana: O Domina,
noverim me! Ó divina Mãe e Senhora, ajudai-me a me conhecer bem, a
fim de bem renunciar a mim mesmo.
I

A PALAVRA de Nosso Senhor: “Se alguém quer vir após de mim,


negue-se a si mesmo”. Conhecemos há muito tempo essa palavra do
divino Mestre, convidando-nos a segui-lo em seu caminho evangé-
lico; mas será que percebemos que essas duas partes da frase cor-
respondem exatamente ao duplo trabalho pedido por Montfort no
início de seus Exercícios?
Primeiro, “SE ALGUÉM QUER VIR APÓS DE MIM”...
Querer seguir Jesus, isto é, escolhê-lo deliberadamente como único
Senhor, ele e não Satanás, o Príncipe do mundo; aceitar com gratidão
dar-lhe todo o nosso amor, sem associação, sem concessões, sem
comprometimentos com as seduções do tentador; encontrar-nos
muito felizes por caminhar após ele no reto caminho de seus ensi-
namentos e na luz dos exemplos que ele não deixou de dar durante
os trinta e três anos de sua vida terrena; estar decididos a levar uma
vida de modo perseverantemente cristão, em oposição declarada com
a vida mundana, e em conformidade com as promessas de nosso
santo Batismo, não foi a isso que visaram as meditações de nossos
doze dias preliminares?
Querer seguir Jesus... em sua vida penitente e sofredora, em seu espí-
rito de desapego em relação aos bens deste mundo, em seu amor pela
humildade e pela obediência. Ele não proclamou bem-aventurados os
corações puros que têm horror pelo pecado, e os pobres de espírito,
isto é, os que carregam dentro de si mesmos uma alma de pobreza?
E ele não se mostrou no meio de nós o Senhor manso e humilde,
aquele que quis se fazer obediente até a morte, e morte da Cruz?
O caminho traçado por ele é luminoso e plenamente seguro.
Podemos testemunhar-nos tê-lo fielmente seguido?... E se nos afas-
tamos dele por causa de ofensas mais ou menos graves, será que
voltamos a ele com um coração contrito e com a firme resolução de
não mais deixá-lo?... Caminhamos agora após nosso divino Salvador,
profundamente convencidos de que ele é a Sabedoria eterna e encar-
nada, de que tudo o que ele quer é se comunicar a nós, com todos os
seus tesouros de graças e de virtudes?

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Desejamos possuí-lo cada vez mais intimamente? Oramos a ele inces-
santemente, tanto em nossas tristezas quanto em nossas alegrias,
tanto no fervor quanto nos momentos de tentação ou de desenco-
rajamento, sem medo de importuná-lo, antecipadamente certos de
ser socorridos da melhor maneira em nossos interesses espirituais?
Somos também fiéis ao nos cercar da muralha da mortificação cristã,
vigiando sobre nossos sentidos, nossas leituras, nossas conversações
e convívio (pois o mundo está sempre à nossa porta, e o demônio
ronda ao nosso redor, buscando uma presa que possa devorar)?
Acima de tudo, estimamos, como o maior meio de perseverança,
uma verdadeira devoção a Maria, tal como São Luís Maria de Montfort
no-la descreveu, com as características que a distinguem das falsifi-
cações das quais o demônio se serve para enganar muitas almas; tal
como, sobretudo, no-la revelará sua perfeita Consagração?
Se chegamos a esse ponto, devemos reconhecer com toda since-
ridade que o trabalho dos doze dias preliminares é coisa cumprida ou
em bom caminho para se cumprir, e que é preciso continuar a nos
empenhar. Pois atingimos somente a indispensável primeira etapa: a
vida manifestamente cristã, oposta à vida mundana.
_______________

É preciso, agora, começar e conduzir corajosamente a luta contra


nós mesmos, isto é, contra o inimigo interior: é a obra da RENÚNCIA.
O mundo, agente do demônio, é o inimigo exterior: ele nos atrai
do exterior por meio do engodo dos prazeres, das riquezas e das
honras. Mas no interior de nós mesmos há – e como o experimenta-
mos! – o eu natural, sempre levado a visar e satisfazer a si mesmo, em
detrimento do trabalho da graça.
A graça, que vem de Deus, não pode senão nos atrair para o alto,
rumo à prática das virtudes. Nossa natureza decaída, e que perma-
nece ferida pelo pecado original, nos arrasta pra baixo, em direção ao
pecado atual. É preciso resistir, combater, se não queremos cair. É
preciso negarmos a nós mesmos. É a luta contra nós mesmos, luta
penosa com peripécias diversas; luta que, praticamente, só terminará
no momento de nossa morte.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


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Como ensina São Paulo (Ef 4, 22, 24), há em nós dois homens:
o homem regenerado pelo batismo e fortificado pela Confirmação,
o homem novo com tendências sobrenaturais, divinas, que o Espírito
Santo produz em nossa alma; tendências às quais nos esforçamos
para corresponder por meio de nossa fidelidade à oração e o recurso
aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Mas, ao lado, há o
homem natural, o homem carnal, o velho homem com suas tendên-
cias perniciosas que o batismo não retirou de nossa alma.
O batismo nos purifica do pecado original, fazendo-nos renascer
para a vida da graça; mas deixa em nós, como veremos, esse foco
de cobiça que chamamos de concupiscência, cuja característica é tender
incessantemente para o mal. Ela não é o pecado, mas vem do pecado
e nos leva ao pecado. É por isso que se encontra, com mais ou menos
força, mesmo nas almas que não têm ou não têm mais o espírito do
mundo. Seu esforço deve se dirigir a essa luta contra si mesmo, a fim
de poder avançar na prática das virtudes e merecer a coroa eterna.
Pois não haverá coroados, definitivamente, além daqueles que tive-
rem corajosamente combatido.
É, pois, às almas decididas a seguir Jesus no caminho de seus
mandamentos e também de seus conselhos evangélicos, que incumbe
esse trabalho da negação de si mesmo.
_______________

Mas para negar a si mesmo importa, antes de tudo, CONHE-


CER-SE bem. Como lutar com sucesso contra as tendências perni-
ciosas de nossa natureza, se não as conhecemos? Tanto mais porque
em cada um de nós há uma que domina as outras e que nos atrai mais
imperiosamente ao mal na medida em que já a tenhamos satisfeito.
E como aceitar reconhecer essa má tendência dominante, assim
como nossos outros defeitos, sem um grande espírito de humildade, sem
confessar que, entregues a nós mesmos, não valemos nem podemos
nada? Não temamos, pois, meditar sobre as fortes verdades fundamen-
tais que nos propõe o Padre de Montfort.
Com ele, consideraremos, antes de tudo, nosso inteiro pertencimento a
Jesus Cristo: nós fomos resgatados pelo preço de seu sangue; não somos,
pois, senhores de nós mesmos, dependemos da graça redentora.

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Em seguida, dedicar-nos-emos a conhecer melhor:

• nossa queda original e as tristes conseqüências que ela acarreta


para cada um de nós;
• nossa miséria de pobres pecadores e a profunda necessidade que
temos do socorro de Maria Medianeira;
• nossa fraqueza pessoal face aos inimigos de nossa salvação, se
não confiamos a Maria nosso tesouro de graças.
• Descobriremos assim as razões que nos obrigam a negar a
nós mesmos:
• renunciar a tudo o que seria contrário às obrigações decor-
rentes de nosso pertencimento a Jesus Cristo;
• renunciar, se não queremos perder o mérito de nossas boas
ações, ao que sentimos subir das partes mais baixas de nossa
natureza como consequência do pecado original e de nossos
pecados pessoais;
• renunciar a todo pensamento de autossuficiência, a todo sen-
timento de prazer em nós mesmos; o que nos levaria a negli-
genciar o maior Meio de nos unir a Jesus Cristo;
• renunciar também a essa louca confiança de pretender sal-
vaguardar, com a ajuda de nossas limitadas habilidades, o
tesouro de graças e de virtudes que carregamos em vasos
frágeis.

Em último lugar, felicitar-nos-emos ao constatar que escolhemos,


segundo o conselho de nosso mestre espiritual, a forma de devoção
a Maria que mais nos conduz a essa negação e que a facilita. Veremos
que ela é a melhor e a mais santificadora: é o nosso “segredo de graça”,
que se apressam em agarrar as almas humildes e obedientes ao Espí-
rito Santo.
Tal será o trabalho de nossa primeira Semana, durante a qual
Montfort nos recomenda “fazer tudo em espírito de humildade” (n. 228).
Como vemos, ele se anuncia muito diferente daquele dos doze Dias
preliminares. É bem superior a ele. Uma coisa é renunciar a Satanás
e ao mundo; outra coisa é caminhar nos passos do Cristo, negando a
si mesmo. Estamos aqui no trabalho da vida verdadeiramente cristã,

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trabalho que exige constantes esforços para a aquisição do Reino
de Deus.
Se nos recusamos a realizar esses esforços, não somente não pro-
grediremos, mas, quando se apresentar a ocasião de pecar, sucum-
biremos; e este será talvez o começo de uma série de quedas que
mancharão as páginas de nossa vida.
Como importa, pois, conhecer bem a si mesmo, a fim de saber
lutar contra si mesmo, sobretudo nos momentos de tentação.

II

O duplo EXEMPLO do apóstolo Judas e do apóstolo Simão


Pedro vai nos mostrar agora, de maneira concreta, de um lado, a
desgraça de uma alma que se deixou tomar pelo espírito do mundo;
e, de outro lado, o grande perigo ao qual se expõe a alma que não
nega a si mesma.
JUDAS, chamado a seguir Jesus na qualidade de apóstolo, tinha
começado bem. Ocupava até mesmo uma posição privilegiada na
pequena comunidade apostólica, visto que era seu tesoureiro, o que
era um sinal de confiança.
Por que ele não perseverou? Como explicar sua decadência? É
que ele logo dirigiu sua visão para algo limitado, vil e desprezível: o
proveito honorífico e lucrativo que ele podia retirar de seu título de
apóstolo e de sua colaboração na obra de Jesus. Como muitos de seus
compatriotas, ele havia sonhado com um Messias glorioso e vence-
dor, que seria o Rei temporal de Israel. Esperava, pois, alcançar uma
situação muito vantajosa no reino, libertado, ao mesmo tempo, dos
romanos e da raça usurpadora dos Herodes.
Os exemplos, a pregação do Salvador, e sua intimidade com ele,
deveriam tê-lo afastado do desenvolvimento de semelhante espe-
rança e de tão louca ambição. Não foi o que aconteceu.
Os pensamentos de Judas foram desmascarados no dia seguinte
ao do grande milagre da primeira multiplicação dos pães. Jesus havia
aproveitado esse milagre para anunciar ao povo, em termos precisos e
com insistência, a maravilha ainda maior de sua Eucaristia. “Eu sou o pão
da vida. A minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente

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bebida. O que come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu
o ressuscitarei no último dia.” (Jo 6.)
Diante de tais afirmações, os espíritos que o orgulho cegava se
rebelaram; e muitos judeus, que tinham seguido o Salvador até então,
encontraram um pretexto para se afastar dele definitivamente. Em face
dessa deserção, Jesus, voltando-se aos seus Apóstolos, propôs-lhes cla-
ramente a questão de confiança: “Quereis vós também retirar-vos?”.
Simão Pedro tomou então a palavra em nome de seus irmãos:
Ah! Senhor, a quem iríamos? Somente vós tendes todos os segredos
da vida eterna, e no-los revelais em vossas palavras. Não há outro
Mestre além de vós. Sabemos que sois o Cristo, o Filho de Deus.
Admirável afirmação de fé! Se Jesus já havia feito tantos milagres,
seu amor todo-poderoso bem poderia cumprir também o milagre
eucarístico. Não se podia, pois, duvidar de sua palavra.
Mas, entre os Apóstolos, Judas não pensava assim. Grande fora
sua decepção ao ouvir o Salvador prometer, não uma felicidade ter-
rena, mas o alimento de uma vida sobrenatural que não seria outra
senão Ele mesmo. Visto que Jesus não tratava de suas intenções, ele
só podia deixá-lo. Por isso, sua apostasia era coisa decidida; e, na
falta de um lugar lucrativo no reino de seus sonhos, retiraria anteci-
padamente tudo o que pudesse do caixa apostólico, para assegurar
seu futuro temporal. Tornou-se ladrão. A palavra é do apóstolo São
João (12, 6). A paixão do dinheiro chegará ao ponto de conduzi-lo à
traição e ao deicídio.
Em vão Jesus tentará fazê-lo refletir sobre seus atos, tendo em
vista o horror mesmo do que visava fazer: Não fui eu que vos escolhi, a
vós os doze?, diz ele aos seus Apóstolos. No entanto, apesar dessa esco-
lha de predileção, um de vós é um demônio, isto é, semelhante ao diabo,
que, de bom, se fez mau. (Jo 6, 71.)
Outras advertências se seguirão, às quais o desgraçado não dará
nenhum valor. Ir-se-á, com a cabeça baixa, rumo à danação. Na
noite da instituição da santa Eucaristia, Judas consumará sua aposta-
sia, entregando o divino Mestre por trinta moedas de prata. Depois
disso, louco de desespero, enforcar-se-á. Triste fim de uma alma que
preferiu obstinadamente o espírito do mundo ao espírito de Jesus.
Oh! Agradeçamos ainda a São Luís Maria de Montfort por ter-nos

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tão fortemente protegido desse pernicioso espírito que sempre con-
duz à danação eterna.
_______________

O apóstolo SIMÃO PEDRO nunca se deixara tomar pelo espí-


rito do mundo. Seu amor por Nosso Senhor era sincero; seu devo-
tamento, sem igual; sua fé, acima de todo elogio. Acabamos de vê-lo
confessar a divindade de Jesus em uma circunstância aparentemente
trágica para o sucesso da pregação evangélica.
Um pouco mais tarde, em Cesareia de Filipe, não longe das fon-
tes do Jordão, outra confissão de Simão Pedro será ainda mais explí-
cita. Vendo-se sozinho com seus apóstolos, Jesus os interroga: “Quem
dizem os homens que é o Filho do homem?”. As apreciações são variadas,
respondem eles. Uns vos tomam por João Batista ressuscitado, outros
por Elias ou por Jeremias, ou ainda por algum dos antigos profetas
que voltou sobre a terra.
“E vós, prossegue o Salvador, quem dizeis que eu sou?”. Sem uma
sombra de hesitação, Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus
vivo.” Nada de mais completo se poderia formular. O Apóstolo não
diz: estimamos, cremos, estamos convencidos; sua resposta afirma
o que é. Vós, Senhor, que nossos olhos contemplam na realidade
de vossa natureza humana, vós sois, para além do que aparece aos
olhares, sois o Filho eterno do Deus vivo; sois o Cristo, isto é, o
Ungido de Deus, o Messias esperado, Filho de Deus, do único Deus
verdadeiro.33
Asserção tão bela e tão plena que, incontinenti, Jesus declara-lhe
que ele será a pedra fundamental de sua Igreja: “E eu, por minha
vez, como recompensa de tua fé, digo-te que tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.”
(Mt 16.)
Como explicar então a queda, nas horas dolorosas da Paixão, de
um apóstolo tão fortemente ligado ao seu divino Mestre?...
Pedro não conhecia o ponto fraco de sua natureza impetuosa.
Tinha uma confiança em si mesmo que chegava até à presunção; e

33 Ver Dom Delatte, O Evangelho de Nosso Senhor, p. 431.

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seus privilégios no seio do Colégio apostólico não o garantiam contra
as tentações que podiam sobrevir.
O próprio Jesus teve o cuidado de adverti-lo quanto a isso. Na
última Ceia, falara da separação próxima, e da impossibilidade, para
os discípulos, de segui-lo aonde ele ia, isto é, ao martírio, à cruz.
“Para onde vais, Senhor?”, perguntou Pedro, ansioso. “Para onde vou,
respondeu Jesus, não podes me seguir agora, mas me seguirás mais tarde.” E
Pedro insistia: “Por que não posso te seguir desde agora? Eu daria minha vida
por ti!”.
– Ah! Simão, Simão, continua Jesus, não sabes que Satanás recebeu
permissão, pois é sua hora, para vos sacudir como o trigo que se depura? Todos
vós sereis escandalizados nesta noite por causa de mim.”
Pedro tenta, então, se justificar, tão seguro está de si mesmo e de
seu amor pelo Salvador: “Ainda que todos os outros se escandalizassem a
vosso respeito, eu não me escandalizaria!”
“Em verdade te digo, afirma Jesus, tu, tu, Simão, hoje, nesta noite, antes
que o galo cante duas vezes, ter-me-ás negado três vezes.”
Essa asserção é intolerável ao Apóstolo; ele contesta fortemente,
ousa contradizer seu divino Mestre, que é a própria Verdade: “Mesmo
que tivesse de morrer convosco, não, eu não vos negaria. Senhor, eu estou pronto a
ir contigo para a prisão e para a morte.” (Lc 22, 33.)
Em face de tamanha presunção, Jesus se cala. Esperará a lição dos
acontecimentos que se desenrolarão. Depois de sua prisão no jardim
das Oliveiras, todos os Apóstolos haviam começado a fugir. Pedro,
entretanto, tem outra opinião, e seguindo de longe a tropa, consegue
entrar no pátio do palácio de Caifás, onde servos e guardas se aque-
ciam ao redor de um fogo de brasa. De modo imprudente, juntou-se
a eles e quis esperar para ver como o julgamento terminaria.
Mas a porteira, aproximando-se do grupo e olhando Pedro com
atenção: “Tu também, disse-lhe ela, és um dos discípulos desse Nazareno?
– Não, respondeu o Apóstolo. Eu não sei, não compreendo o que queres
dizer.”
Um primeiro canto do galo ressoa, ao qual Pedro não dá atenção.
E eis que outra serva anuncia aos que se aqueciam que aquele homem
estava realmente com Jesus, o Nazareno. Pedro negou uma segunda
vez, e até com juramento: “Não conheço o homem do qual me falais.”

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Cerca de uma hora se passa. O infeliz Pedro não podia se decidir
a sair e tomava parte na conversação. Alguns lhe disseram, então:
“Mas seguramente és galileu, teu modo de falar te traiu”. Um dos servos do
Pontífice chegou a precisar: “Eis que te vi com ele no jardim.” Pedro afir-
mou com juramento e imprecação que ignorava o que queriam dizer,
que de modo algum conhecia aquele homem.
As denegações perduravam ainda quando o galo cantou pela
segunda vez. O Apóstolo se lembrou, então, da predição do Senhor:
“Antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes.” Ai de mim!
Estava feito. E eis em que quedas lamentáveis podemos incorrer,
ainda que não tendo o espírito do mundo, quando não conhecemos
e não negamos a nós mesmos.
Simão Pedro não desejara reconhecer a fraqueza de sua vontade
uma vez entregue a si mesma. Bem ao contrário, ele se afirma com
força, chegando a se exaltar acima dos outros e a acreditar ser impe-
cável. A principal culpabilidade de Pedro está nessa louca estima que
tem por si mesmo: em vez de se humilhar diante das advertências de
Jesus, ele cai na presunção e na temeridade. O resto se segue, logo
que a ocasião se apresenta.
Esse pecado do Apóstolo deve nos mostrar, mais do que todas as
considerações e razões, a conformidade de nossa primeira Semana.
Empregando-a ao conhecimento de nós mesmos, em um grande
espírito de humildade, atacamos a causa de quedas sempre possíveis.
Prevenimos essas quedas porque, com a graça de Deus que não falta
àquele que a pede, facilitamos as renúncias que se impõem para resis-
tirmos às tentações e permanecermos fiéis a Jesus.
_______________

Não temamos, pois, projetar a luz sobre nós mesmos. Esse tra-
balho espiritual é indispensável. Que sua austeridade não nos assuste.
Para nos encorajar, pensemos desde agora na alegria das duas Sema-
nas que seguirão, nossa meditação fixada então sobre a Santa Virgem
e sobre Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa Consagração a esses Mes-
tres divinos exige que comecemos por nos humilhar e nos libertar
do obstáculo do “eu” egoísta, do apego ao nosso espírito próprio e à
nossa vontade própria.

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Se, em nosso passado, temos a deplorar faltas que lembram o
pecado de fraqueza do apóstolo Simão Pedro, imitemos seu arrepen-
dimento, confiando no Coração sempre amoroso do Salvador. Um
olhar bastou para fazer romper em lágrimas o apóstolo infiel e para
dissipar para sempre a orgulhosa estima que ele tinha por si mesmo.
Por isso, quando Jesus lhe pedir um triplo juramento de amor, em
compensação da tripla negação: “Simão Pedro, tu me amas, me amas
mais do que os outros?”, o Apóstolo não responderá diretamente à ques-
tão. Não se elevará mais, não se comparará mais, não afirmará mais
nada de sua pessoa; não se derramará mais em vãs afirmações, em
promessas verbais ilusórias. Terá renunciado a tudo isso e se conten-
tará a apresentá-lo ao testemunho e à ciência infinita de seu Mestre:
Sim, Senhor, vós que ledes no fundo do meu coração, sabeis bem que
vos amo, e não mais “eu”, como outrora.
A humildade – uma humildade profunda – havia entrado em sua
alma com a triste experiência de sua queda e o conhecimento de seu
defeito dominante. O mesmo se dará conosco. O conhecimento que
adquiriremos de nossas fraquezas e de nossas tendências defeituosas
fará caírem nossas ilusões. Ela nos encaminhará a essa virtude de
humildade que é a única que pode favorecer de modo eficaz a renún-
cia a si exigida por Nosso Senhor.
Peçamos ao Espírito Santo que nos ilumine, recitando suas Lita-
nias todos os dias desta Semana, como prescreve nosso Padre de
Montfort. Recorramos também, todos os dias, à Santíssima Virgem,
por meio da recitação da Ave, maris Stella e de suas Litanias, para
“pedir-lhe esta grande graça (o conhecimento de nós mesmos) que deve
ser o fundamento das outras”. (V. D., n. 228.)

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 24: Discurso aos Apóstolos


sobre a ruína de Jerusalém e a segunda vinda do Cristo.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro II, cap. II: Da humilde submissão de
si mesmo.

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