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TERCEIRO DIA

SOMOS GRANDES FERIDOS

É-nos permitido, agora, dedicar-nos ao conhecimento de nossas misérias.


Há, primeiro, aquelas que derivam em linha direta do pecado original.
Esse pecado deixou em nosso ser natural FERIDAS profundas. Consi-
deremo-las uma após a outra. Quanto mais as conhecermos, mais nos
dedicaremos a aplicar-lhes os REMÉDIOS da ascese cristã.
Continuemos a invocar o Espírito Santo e sua Esposa imaculada.
Em razão de sua preservação do pecado original, Maria – muito mais
profundamente do que nós – é capaz de compreender nossa miséria
moral; e toda a sua maternal compaixão só pede para nos socorrer.

As FERIDAS do pecado original. Adão, no estado de inocência,


não possuía somente a graça santificante em sua alma; ele gozava
ainda, por uma abundância de graça, privilégios magníficos que aper-
feiçoavam sua natureza e o tornavam mais apto a viver com segu-
rança e alegria seu papel de cabeça do gênero humano.
Esses privilégios – dons absolutamente gratuitos – eram a ciência
infusa, que o aproximava dos anjos; o domínio sobre as paixões, isto é, a
isenção da concupiscência ou da inclinação ao mal; a impassibilidade,
isto é, a exclusão da enfermidade e de todo sofrimento; a imortali-
dade, isto é, a isenção da morte corporal. Tendo transcorrido o tempo
da prova, Adão devia passar sem dificuldade do paraíso terrestre ao
paraíso celestial. Mas, por sua desobediência grave, ele perdeu de
uma só vez a graça santificante e todos os privilégios que Deus lhe
havia concedido.
O sacramento do batismo nos devolve a graça santificante com
o direito à felicidade do Céu; mas não nos restitui os dons preter-
naturais que a acompanhavam. Permanecemos, assim, num estado de
decadência, de desgraça, de empobrecimento, sofrendo em nossa natu-
reza o que denominamos as feridas do pecado original: a ignorância, a
concupiscência, o sofrimento e a morte.

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Em nossa inteligência, a ignorância substituiu a ciência infusa. O
primeiro homem recebera de Deus a revelação das verdades sobre-
naturais que seu estado de justiça comportava, assim como um con-
junto de conhecimentos sobre as coisas necessárias à vida, em razão
de sua condição de cabeça e educador do gênero humano. Como essa
ciência foi perdida, devemos remediar esse mal por meio da ciência
adquirida. Quando chegamos ao mundo, ignoramos tudo: nossa inte-
ligência se encontra tão nua quanto uma placa de mármore bem lisa
onde não há nada gravado, ou quanto um painel em branco, sobre
o qual nada está pintado. Tudo deverá começar a chegar a nós pelos
sentidos, e durante nossa vida inteira será preciso aprender.
Um duro e contínuo trabalho se impõe, pois a ignorância, sobre-
tudo a das verdades importantes para a direção de nossa vida moral
e de nossa vida espiritual, não é facilmente vencida. É um fato que
o a maioria dos batizados se mostra resistente a cultivar e desenvol-
ver em si os ensinamentos do catecismo. Contentam-se com pouco,
não compreendem que importaria nunca se desabituar do estudo das
verdades reveladas. Por isso, quantas deficiências, quantas lacunas,
quantos erros nos espíritos em matéria religiosa!
Mesmo naqueles que se dirigem decididamente ao conhecimento
de Deus e das coisas divinas, que se dedicam a reduzir tanto quanto
possível a ignorância nativa por meio da inteligência dos mistérios da
fé e pelas iluminações provenientes dos dons do Espírito Santo, uma
grande parte de obscuridade permanece. Avançam às cegas rumo à
plena luz reservada à gloria, sabendo bem que se entregam ao estudo
de uma ciência infinita, mas que produz sua beatitude neste mundo.
“Ó Senhor, suplicava santo Agostinho, que vossas Escrituras sejam sempre
minhas castas delícias. Que eu beba de vossas águas salutares, desde o começo
do Livro sagrado, em que vemos a criação do Céu e da terra, até o fim, onde
contemplamos a consumação do Reino perpétuo de vossa Cidade santa.” Santo
Agostinho era, no entanto, um grande gênio. O que pensar, então, de
nós mesmos e de nossas ignorâncias humilhantes?
Com a ciência infusa, o pecado original nos fez perder igualmente
o domínio sobre nossas paixões. A vontade de Adão inocente, espe-
cialmente fortificada pela graça, matinha facilmente a ordem em meio
às tendências das faculdades inferiores. “O poder da imagem de Deus na

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alma era tamanho, escreve Bossuet, que sobre tudo tinha controle.” O corpo
estava submisso à alma, como a alma estava submissa a Deus.
Com o desaparecimento da graça, o domínio sobre as paixões
também desapareceu. Nossas faculdades reclamam, às vezes impe-
riosamente, suas satisfações. Nossos sentidos exteriores, nossos olhares,
por exemplo, dirigem-se com avidez ao que agrada à curiosidade;
nossos ouvidos escutam com zelo as novidades que se apresentam;
nosso tato busca as sensações agradáveis, e isto, amiúde, para além
dos limites permitidos pela lei moral. O mesmo se dá com nossos
sentidos interiores: a imaginação representa para nós toda sorte de cenas
mais ou menos sensuais; a sensibilidade cobiça fruições inferiores.
Todos esses sujeitos revoltados tentam arrastar o consentimento da
vontade. É a tirania da CONCUPISCÊNCIA, a inclinação violenta
ao mal, a atração desordenada pelo prazer proibido.
Seguramente, a vontade pode resistir; mas ela mesma experimenta
os efeitos da desobediência de nosso primeiro pai. É difícil para ela
se submeter a Deus e aos seus representantes sobre a terra. Tem
pretensões à independência; de bom grado pensa bastar a si mesma.
Por isso, quantos esforços são-lhe necessários para vencer os obstá-
culos que se opõem à realização do bem. Quanta fraqueza, quanta
inconstância nesses esforços! Quantas vezes ela se deixa arrastar pelo
sentimento e pelas paixões!
São Paulo (Rom 7, 19-25) descreveu, em termos tocantes, essa
deplorável fraqueza: “Eu não faço o bem que quero, mas faço o mal que
não quero... Vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito,
e que me faz escravo da lei do pecado, que está nos meus membros. Infeliz de
mim! Quem me livrará deste corpo de morte?...”.40 É a luta da carne con-
tra o espírito. Todo filho de Adão a experimenta vivamente em sua
alma. A graça batismal, desenvolvendo-se em uma vida cristã verda-
deiramente virtuosa, corrige, atenua essa propensão ao pecado; mas
nunca a cura inteiramente. O domínio sobre eles mesmos, quase sem
falha, que admiramos nos santos, é o resultado de lutas heroicas e de
pacientes esforços, sustentados por uma graça poderosa.

40 Ver Tanquerey, Compêndio de teologia ascética e mística, n. 74 e 75.

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Quanto às duas outras feridas do pecado original, o sofrimento e
a morte, elas permanecem inelutáveis e implacáveis para todos. Deve-
mos comer nosso pão com o suor de nosso rosto, expostos às doenças
e enfermidades de toda sorte; esperando voltar um dia à terra da qual
fomos tirados. Mas aqui também, com a graça redentora usada provei-
tosamente, podemos santificar o sofrimento e suavizar o que a morte
comporta de pavoroso e de cruel. Lembremo-nos do que diz o Padre
de Montfort quanto à morte dos fiéis escravos de Maria: ela é doce e
tranqüila, tendo ordinariamente a assistência da Virgem para conduzi-
los pessoalmente às alegrias da eternidade. (V. D., n. 200.)

II

Os REMÉDIOS da ascese cristã. Conhecendo as feridas que car-


regamos em nossa natureza humana, importa-nos não somente crer
no dogma do pecado original, mas, em consequência disso, desen-
volver em nós, de maneira habitual, uma grande humildade de espírito.
Essa humildade será o primeiro remédio para a nossa miséria nativa:
é impossível conceber seres decaídos que se exaltam.
Sem dúvida, nossa natureza não está corrompida em si mesma.
As expressões, geralmente fortes, da tradição cristã sobre a deca-
dência original, devem ser entendidas sobre o homem em relação
à sua condição primeira, não da natureza considerada em si mesma.
Esta, mesmo após o pecado, não é intrinsecamente má; ela conserva
seu livre-arbítrio, é ainda capaz de algum bem em sua ordem. Resta,
contudo, que somos seres enfraquecidos, empobrecidos, degrada-
dos, desfigurados, privados de dons magníficos: a natureza era feita
para a graça. Quando dizemos privação, falamos de uma coisa que
falta, enquanto devia estar presente; e, por isso mesmo, é um mal,
é uma desordem essa ausência. É uma desordem diante de Deus, é
a desordem do pecado original acarretando todas as consequências
que assinalamos.41 Ainda que, pessoalmente, não sejamos culpados
por ele, devemos nos humilhar. Essa é a atitude que nos convém: ela
vai nos ajudar, agora, a melhor conhecer as tendências perniciosas

41 Ver Ecclesia (Bloud e Gay, 1929), p. 116, 2ª coluna.

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que predominam em nós e se opõem à aquisição das virtudes. Elas
são a causa mais frequente de nossos pecados atuais.
Essas tendências, chamadas comumente de defeitos dominantes, não
são outra coisa senão o apego a si mesmo, enraizado mais fortemente
em uma ou outra das três grandes cobiças que nos arrastam para o
mal: o orgulho, a cobiça da carne e a dos olhos. Importa conhecê-las
bem, a fim de estar em condições de melhor combatê-las.42
O orgulho nos arrasta a um amor excessivo por nossa pessoa. Esse
amor se manifesta de diversas maneiras: sob a forma de egoísmo, ou de
vaidade, ou de presunção, ou ainda de ambição com desejo de dominar.
Certas naturezas são de um egoísmo muito acentuado, sempre
pronto a se mostrar: o eu vem em primeiro lugar. Tudo está con-
centrado em si mesmo, não há preocupação ou inquietação senão
em relação a si, a natureza fecha-se em si mesma como se fosse seu
próprio centro. Não pensa nos outros, não se interessa por eles, não
desenvolve simpatia. Esse defeito traz muito sofrimento aos que a
cercam. Não podeis dizer nada, nem sobre uma dificuldade, nem
sobre uma alegria, nem evocar uma lembrança ou relatar vossas
impressões, sem que vosso interlocutor, de imediato, sem dar ouvi-
dos a nada, vos dirija ao que ele mesmo viu, conheceu, experimentou:
eu isto, eu aquilo... É sempre o eu posto adiante.
Outras naturezas são vaidosas: buscam a estima, a aprovação, o
louvor. A exibição não as constrange: falam de si com vantagem, de
sua inteligência, de suas capacidades, de seus talentos, de sua habili-
dade; e também de sua família, de suas relações, de seus sucessos, que
sempre superaram os sucessos dos outros. Gostam também de atrair
sobre si a atenção por certas maneiras de agir, de se vestir, de apare-
cer, por uma pompa que manifestam sempre que há ocasião, ou por
singularidades que se permitem. Medíocres satisfações que privam a
alma de muitos méritos.
Outros apresentam o defeito de presunção: trata-se de uma con-
fiança ilimitada em si mesmo, em suas faculdades naturais, em sua
ciência, sua força, e até mesmo em suas virtudes. Donde a tendência
a se elevar acima dos outros, a querer fazer coisas surpreendentes; e

42 Ver Tanquerey, obra citada, n. 818 e seguintes.

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mais ainda a desejar sempre ter razão, a não reconhecer seus erros,
a não considerar as advertências recebidas; a não se dobrar, a não
ceder; muito mais, a resistir a tudo e contra tudo. E diante de uma
resistência, irritam-se, indispõem-se, chegam às vezes à cólera, que faz
perder o controle das faculdades. Esse defeito, como vimos, era o do
apóstolo Simão Pedro, cabeça do colégio apostólico. Por não tê-lo
reconhecido, expôs-se à tentação sem precauções nem garantias, e
caiu em um triplo pecado grave. Acrescentemos, em seu louvor, que
depois de ter reconhecido e chorado suas negações, tornou-se o mais
humilde de todos, como testemunhou sua morte na cruz.
A ambição e o desejo de dominar derivam da mesma fonte. A natu-
reza ama e busca as honras, as dignidades. Quer chegar aos primeiros
cargos; e por isso, mostra-se lisonjeira, elogiosa, buscando o favor dos
que estão no alto. Quando ali chega de fato, para manter seu posto,
não pensa duas vezes antes de afastar as pessoas que a incomodam,
e cerca-se de outras que a adulam. A inveja ou o ciúme entram então
em jogo em relação a quem exerça uma ascendência capaz de destruir
sua situação elevada ou rivalizar com as qualidades brilhantes que
admira em si. Sofre ao ouvir louvar os outros; esforça-se por atenuar
esses elogios por meio de críticas malignas.
Tal é a triste demonstração do defeito de orgulho. Como vemos,
ele se opõe antes de tudo ao espírito de humildade.
A cobiça da carne leva-nos a amar o corpo mais do que devemos:
é uma tendência muito pronunciada a se dedicar excessivamente às
satisfações que o afetam. Aqueles em que domina esta cobiça têm de
lutar mais do que os outros contra a preguiça, a gula, e contra as afei-
ções sensíveis. A preguiça faz recuar diante de todo esforço corporal:
o trabalho assíduo, as obrigações, os empregos que reclamam uma
coragem perseverante. Por outro lado, ela se compraz no que favo-
rece o descanso do corpo, seu bem-estar, como o sono prolongado,
os banhos frequentes, o uso dos perfumes, as vestimentas delicadas,
os passeios agradáveis, as visitas sem razão. Essa preguiça, se não é
combatida, expõe a muitas tentações.
A gula revela um abuso do prazer legítimo que Deus quis rela-
cionar ao comer e ao beber: seja consumindo alimento ou bebida
sem necessidade, fora das refeições, pelo prazer de se satisfazer; seja

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buscando nas refeições o que há de melhor, os pratos mais bem pre-
parados, como fazem os gastrônomos; seja consumindo uma quan-
tidade exagerada de alimentos, com o risco de comprometer a saúde
(quantas enfermidades provêm dos excessos à mesa!); seja, ainda,
comendo com avidez, um pouco como os animais que se precipi-
tam sobre o que lhes dão. Quantas faltas cometemos assim contra a
mortificação.
As afeições ou amizades sensíveis, buscadas por si mesmas, sem outra
razão senão a satisfação do coração, são sempre perigosas, pois o limite
é rapidamente ultrapassado, e passa do sensível ao sensual, e do sen-
sual ao carnal. Entregamo-nos, não vigiamos nossa imaginação, nossa
sensibilidade, nossos olhares e sobretudo o sentido do toque. Esse é
o defeito dominante de certas naturezas que podem ser muito ricas,
mas que são, ao mesmo tempo, muito fracas. É preciso saber colocar
ordem nisto desde o começo, senão correremos ao encontro de quedas
lamentáveis. Essas espécies de afeições são permitidas somente entre
os que têm a liberdade e a intenção de se unirem em matrimônio.
A cobiça dos olhos inclina à avareza, que entendemos aqui como o
apego exagerado aos bens que se possui ou dos quais se pode dispor.
Temos a tendência de guardar de modo ciumento nosso dinheiro
uma vez adquirido. Gastamos com pesar, com mesquinharia. Recu-
samos ajudar os nossos, não damos nada ou quase nada aos pobres
e às boas obras. Em vez de economizar sabiamente, capitalizamos
com exagero, por medo de que venha a faltar, e sem confiar no Pai
dos Céus, que cuida de nossas necessidades. Assim, pouco a pouco,
os olhos se cravam na terra, como se fôssemos permanecer nela para
sempre. Amemos doar, amemos dar a esmola.
Todos esses defeitos não são pecados em si mesmos, mas nos
fazem cometer muitas faltas, em geral veniais; e à medida que os
satisfazemos, eles se fortificam e se tornam cada vez mais exigen-
tes. Podem, então, arrastar-nos aos pecados graves, e até se transfor-
mar em hábitos viciosos, tirânicos. É então que, às consequências do
pecado original, somam-se as consequências muito mais acentuadas
dos pecados pessoais.
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O preceito evangélico da renúncia se impõe. Importa-nos, diz
Montfort, “renunciar às operações das faculdades de nossa alma”. (V. D., n.
81.) No que concerne à nossa INTELIGÊNCIA, renunciar a esse
mal que é a ignorância religiosa. Dediquemo-nos a conhecer o que diz
respeito a Deus, nosso fim derradeiro, e aos meios de chegar a ele.
Esse conhecimento é primordial: seria insensato se ocupar das ciên-
cias humanas e negligenciar a ciência da salvação. Quantos batizados,
muito instruídos neste ou naquele ramo do saber humano, têm um
conhecimento bastante imperfeito das verdades cristãs.
Renunciar a essa vã curiosidade, que busca antes de tudo e de
maneira excessiva as leituras agradáveis, como as dos romances, dos
jornais e de certas revistas da moda, onde a alma não encontra nada
que possa elevá-la ou enriquecê-la. Fazemos, assim, o agradável pas-
sar à frente do útil e do necessário, perdemos um tempo precioso,
transformamos o que devia ser momento de relaxamento em uma
ocupação vazia que se prolonga e prejudica grandemente o bom
emprego do dia.
Renunciar também e, sobretudo, a essa particularidade de orgulho
do espírito, que pretende bastar a si mesmo e se inclina com dificuldade
diante dos ensinamentos da fé ou das diretivas do Magistério, como
também diante da obediência devida aos Superiores. Argumentamos,
criticamos, agarramo-nos às nossas próprias ideias, não consultamos
a autoridade, só temos confiança em nosso julgamento, tratamos
com desdém as opiniões dos outros. Semeamos, assim, a divisão, em
vez de cultivar a paz e a concórdia.
No que concerne à VONTADE, que é em nós a faculdade mes-
tra, a causa de nossos méritos ou deméritos, devemos renunciar a
seguir as exigências das faculdades inferiores, a fim de sempre sub-
meter perfeitamente nosso querer ao de Deus; o que exige muitos
sacrifícios, em particular o sacrifício de nossos gostos, de nossos
caprichos, de nossos interesses naturais.
Renunciar à irreflexão que nos faz seguir o impulso do momento,
o arrebatamento ou mesmo a rotina. Não refletimos antes de agir,
não nos perguntamos o que Deus espera de nós.
Renunciar à displicência, à indecisão, à falta de força moral,
todas coisas que paralisam as forças da vontade. Importa adquirir,

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desenvolver as convicções de fé, que estimulam nosso querer e o
determinam a escolher o que se conforma ao querer divino.
Renunciar ao medo do fracasso: ele é uma falta de confiança, e, por
isso mesmo, diminui singularmente nossas forças. Importa, ao con-
trário, lembrar-nos de que com o auxílio da graça temos a certeza de
alcançar bons resultados.
Renunciar também a esse outro medo que é o respeito humano:
temendo as críticas ou as zombarias dos outros, apoiamo-nos menos
sobre o julgamento de Deus, o único que importa; nossa vontade é,
assim, enfraquecida.
Quanto aos maus exemplos, devemos resistir-lhes com força, pois nos
arrastam mais facilmente na medida em que correspondem a uma pro-
pensão de nossa natureza. Vimos em nossas meditações dos dias preli-
minares que é Nosso Senhor que devemos imitar, e não o mundo.
_______________

É preciso, além disso, diz-nos Montfort, “renunciar às operações dos


sentidos de nosso corpo”, isto é, “devemos ver como se não víssemos,
ouvir como se não ouvíssemos, nos servir das coisas deste mundo
como se não o fizéssemos”. (V. D., n. 81.) Essa é a doutrina do após-
tolo São Paulo em sua primeira Epístola aos Coríntios (7, 29-31).
Decorre disso que devemos renunciar aos olhares gravemente cul-
pados, aqueles que são comandados por maus desejos. Nosso Senhor
reprova-os energicamente quando diz: “Se o teu olho direito é para ti
causa de queda, arranca-o e lança-o para longe de ti, porque é melhor
para ti que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo
seja lançado na geena.” (Mt 5, 29.) O que não quer dizer que deve-
mos furar nossos olhos, mas que é preciso saber arrancar seu olhar da
visão de pessoas ou objetos que são motivo de escândalo.
Mas devemos também renunciar aos olhares simplesmente curio-
sos: eles podem suscitar tentações; são sempre causa de uma multidão
de lembranças e de imagens que dissipam a alma, obstruem a memó-
ria e ocasionam a maior parte de nossas distrações na oração. Purifi-
quemos nossos olhares, pousando-os sobre tudo o que é de natureza
a elevar nossa alma e a nos fazer bendizer o Criador.

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No que concerne às palavras contrárias à pureza ou à caridade,
se não podemos evitar ouvi-las, ao menos não as escutemos, não
ofereçamos a elas um ouvido atento; sobretudo, não interroguemos
para estabelecer ou prolongar uma conversação já perniciosa em si
mesma. É muito raro que conversações desonestas ou contrárias à
caridade não produzam efeitos desastrosos nos que as escutam. As
primeiras acendem desejos maus e provocam o pecado; as segun-
das conduzem a falatórios que prejudicam a reputação do próximo:
somos levados a repetir o que ouvimos. Apreciemos as conversações
que são luz e benevolência, ao mesmo tempo que sábia distração.
Assim usaremos deste mundo como se não usássemos, sabendo
que tudo nele é passageiro, caduco, efêmero. É o que São Paulo
denomina “morrer todos os dias”: Quotidie morior (1Cor 15, 31). Jesus,
recorrendo a uma comparação que lhe é familiar, já havia dito: “Se
o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer,
produz muito fruto.” (Jo 12, 24.) Se não morrermos para nós mesmos,
explica Montfort, e se nossas devoções mais santas não nos levam a
essa morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha
para a vida eterna, nossas devoções se tornarão inúteis, todas as nos-
sas obras de justiça serão manchadas por nosso amor-próprio e por
nossa vontade, o que fará que Deus abomine os maiores sacrifícios
e as melhores ações que possamos realizar. No momento de nossa
morte, nos encontraremos com as mãos vazias de virtudes e de méri-
tos; não teremos uma centelha do puro amor, que só é comunicado
às almas mortas para si mesmas, cuja vida está escondida com Jesus
Cristo em Deus. (V. D., n. 81.)
_______________

Tenhamos, pois, a coragem, com a graça divina, de não recuar


diante do austero preceito da negação de si mesmo: ele é a con-
dição primeira e indispensável de nossa caminhada após o divino
Mestre. Mas, como a graça divina não nos é dada senão por Maria,
as meditações que seguirão – ainda continuando a descobrir nos-
sas misérias – nos mostrarão que poderoso socorro é a Santíssima
Virgem, quando sabemos fazer bom uso de seu papel providencial

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de Mediadora. Longe de nos apoiar somente sobre nossos esforços
pessoais, nos dedicaremos a recorrer continuamente à sua ajuda e
intercessão. Assim, cultivaremos e desenvolveremos em nós a virtude
da humildade; e Maria estará presente para fortificar nossa vontade
na luta contra nós mesmos e contra os inimigos que se opõem ao
nosso progresso espiritual.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 25, 31-46: Descrição do Juízo


final.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro III, cap. 8: Da pequena estima por si
mesmo aos olhos de Deus.

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