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Em nossa inteligência, a ignorância substituiu a ciência infusa. O
primeiro homem recebera de Deus a revelação das verdades sobre-
naturais que seu estado de justiça comportava, assim como um con-
junto de conhecimentos sobre as coisas necessárias à vida, em razão
de sua condição de cabeça e educador do gênero humano. Como essa
ciência foi perdida, devemos remediar esse mal por meio da ciência
adquirida. Quando chegamos ao mundo, ignoramos tudo: nossa inte-
ligência se encontra tão nua quanto uma placa de mármore bem lisa
onde não há nada gravado, ou quanto um painel em branco, sobre
o qual nada está pintado. Tudo deverá começar a chegar a nós pelos
sentidos, e durante nossa vida inteira será preciso aprender.
Um duro e contínuo trabalho se impõe, pois a ignorância, sobre-
tudo a das verdades importantes para a direção de nossa vida moral
e de nossa vida espiritual, não é facilmente vencida. É um fato que
o a maioria dos batizados se mostra resistente a cultivar e desenvol-
ver em si os ensinamentos do catecismo. Contentam-se com pouco,
não compreendem que importaria nunca se desabituar do estudo das
verdades reveladas. Por isso, quantas deficiências, quantas lacunas,
quantos erros nos espíritos em matéria religiosa!
Mesmo naqueles que se dirigem decididamente ao conhecimento
de Deus e das coisas divinas, que se dedicam a reduzir tanto quanto
possível a ignorância nativa por meio da inteligência dos mistérios da
fé e pelas iluminações provenientes dos dons do Espírito Santo, uma
grande parte de obscuridade permanece. Avançam às cegas rumo à
plena luz reservada à gloria, sabendo bem que se entregam ao estudo
de uma ciência infinita, mas que produz sua beatitude neste mundo.
“Ó Senhor, suplicava santo Agostinho, que vossas Escrituras sejam sempre
minhas castas delícias. Que eu beba de vossas águas salutares, desde o começo
do Livro sagrado, em que vemos a criação do Céu e da terra, até o fim, onde
contemplamos a consumação do Reino perpétuo de vossa Cidade santa.” Santo
Agostinho era, no entanto, um grande gênio. O que pensar, então, de
nós mesmos e de nossas ignorâncias humilhantes?
Com a ciência infusa, o pecado original nos fez perder igualmente
o domínio sobre nossas paixões. A vontade de Adão inocente, espe-
cialmente fortificada pela graça, matinha facilmente a ordem em meio
às tendências das faculdades inferiores. “O poder da imagem de Deus na
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Quanto às duas outras feridas do pecado original, o sofrimento e
a morte, elas permanecem inelutáveis e implacáveis para todos. Deve-
mos comer nosso pão com o suor de nosso rosto, expostos às doenças
e enfermidades de toda sorte; esperando voltar um dia à terra da qual
fomos tirados. Mas aqui também, com a graça redentora usada provei-
tosamente, podemos santificar o sofrimento e suavizar o que a morte
comporta de pavoroso e de cruel. Lembremo-nos do que diz o Padre
de Montfort quanto à morte dos fiéis escravos de Maria: ela é doce e
tranqüila, tendo ordinariamente a assistência da Virgem para conduzi-
los pessoalmente às alegrias da eternidade. (V. D., n. 200.)
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mais ainda a desejar sempre ter razão, a não reconhecer seus erros,
a não considerar as advertências recebidas; a não se dobrar, a não
ceder; muito mais, a resistir a tudo e contra tudo. E diante de uma
resistência, irritam-se, indispõem-se, chegam às vezes à cólera, que faz
perder o controle das faculdades. Esse defeito, como vimos, era o do
apóstolo Simão Pedro, cabeça do colégio apostólico. Por não tê-lo
reconhecido, expôs-se à tentação sem precauções nem garantias, e
caiu em um triplo pecado grave. Acrescentemos, em seu louvor, que
depois de ter reconhecido e chorado suas negações, tornou-se o mais
humilde de todos, como testemunhou sua morte na cruz.
A ambição e o desejo de dominar derivam da mesma fonte. A natu-
reza ama e busca as honras, as dignidades. Quer chegar aos primeiros
cargos; e por isso, mostra-se lisonjeira, elogiosa, buscando o favor dos
que estão no alto. Quando ali chega de fato, para manter seu posto,
não pensa duas vezes antes de afastar as pessoas que a incomodam,
e cerca-se de outras que a adulam. A inveja ou o ciúme entram então
em jogo em relação a quem exerça uma ascendência capaz de destruir
sua situação elevada ou rivalizar com as qualidades brilhantes que
admira em si. Sofre ao ouvir louvar os outros; esforça-se por atenuar
esses elogios por meio de críticas malignas.
Tal é a triste demonstração do defeito de orgulho. Como vemos,
ele se opõe antes de tudo ao espírito de humildade.
A cobiça da carne leva-nos a amar o corpo mais do que devemos:
é uma tendência muito pronunciada a se dedicar excessivamente às
satisfações que o afetam. Aqueles em que domina esta cobiça têm de
lutar mais do que os outros contra a preguiça, a gula, e contra as afei-
ções sensíveis. A preguiça faz recuar diante de todo esforço corporal:
o trabalho assíduo, as obrigações, os empregos que reclamam uma
coragem perseverante. Por outro lado, ela se compraz no que favo-
rece o descanso do corpo, seu bem-estar, como o sono prolongado,
os banhos frequentes, o uso dos perfumes, as vestimentas delicadas,
os passeios agradáveis, as visitas sem razão. Essa preguiça, se não é
combatida, expõe a muitas tentações.
A gula revela um abuso do prazer legítimo que Deus quis rela-
cionar ao comer e ao beber: seja consumindo alimento ou bebida
sem necessidade, fora das refeições, pelo prazer de se satisfazer; seja
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O preceito evangélico da renúncia se impõe. Importa-nos, diz
Montfort, “renunciar às operações das faculdades de nossa alma”. (V. D., n.
81.) No que concerne à nossa INTELIGÊNCIA, renunciar a esse
mal que é a ignorância religiosa. Dediquemo-nos a conhecer o que diz
respeito a Deus, nosso fim derradeiro, e aos meios de chegar a ele.
Esse conhecimento é primordial: seria insensato se ocupar das ciên-
cias humanas e negligenciar a ciência da salvação. Quantos batizados,
muito instruídos neste ou naquele ramo do saber humano, têm um
conhecimento bastante imperfeito das verdades cristãs.
Renunciar a essa vã curiosidade, que busca antes de tudo e de
maneira excessiva as leituras agradáveis, como as dos romances, dos
jornais e de certas revistas da moda, onde a alma não encontra nada
que possa elevá-la ou enriquecê-la. Fazemos, assim, o agradável pas-
sar à frente do útil e do necessário, perdemos um tempo precioso,
transformamos o que devia ser momento de relaxamento em uma
ocupação vazia que se prolonga e prejudica grandemente o bom
emprego do dia.
Renunciar também e, sobretudo, a essa particularidade de orgulho
do espírito, que pretende bastar a si mesmo e se inclina com dificuldade
diante dos ensinamentos da fé ou das diretivas do Magistério, como
também diante da obediência devida aos Superiores. Argumentamos,
criticamos, agarramo-nos às nossas próprias ideias, não consultamos
a autoridade, só temos confiança em nosso julgamento, tratamos
com desdém as opiniões dos outros. Semeamos, assim, a divisão, em
vez de cultivar a paz e a concórdia.
No que concerne à VONTADE, que é em nós a faculdade mes-
tra, a causa de nossos méritos ou deméritos, devemos renunciar a
seguir as exigências das faculdades inferiores, a fim de sempre sub-
meter perfeitamente nosso querer ao de Deus; o que exige muitos
sacrifícios, em particular o sacrifício de nossos gostos, de nossos
caprichos, de nossos interesses naturais.
Renunciar à irreflexão que nos faz seguir o impulso do momento,
o arrebatamento ou mesmo a rotina. Não refletimos antes de agir,
não nos perguntamos o que Deus espera de nós.
Renunciar à displicência, à indecisão, à falta de força moral,
todas coisas que paralisam as forças da vontade. Importa adquirir,
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No que concerne às palavras contrárias à pureza ou à caridade,
se não podemos evitar ouvi-las, ao menos não as escutemos, não
ofereçamos a elas um ouvido atento; sobretudo, não interroguemos
para estabelecer ou prolongar uma conversação já perniciosa em si
mesma. É muito raro que conversações desonestas ou contrárias à
caridade não produzam efeitos desastrosos nos que as escutam. As
primeiras acendem desejos maus e provocam o pecado; as segun-
das conduzem a falatórios que prejudicam a reputação do próximo:
somos levados a repetir o que ouvimos. Apreciemos as conversações
que são luz e benevolência, ao mesmo tempo que sábia distração.
Assim usaremos deste mundo como se não usássemos, sabendo
que tudo nele é passageiro, caduco, efêmero. É o que São Paulo
denomina “morrer todos os dias”: Quotidie morior (1Cor 15, 31). Jesus,
recorrendo a uma comparação que lhe é familiar, já havia dito: “Se
o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer,
produz muito fruto.” (Jo 12, 24.) Se não morrermos para nós mesmos,
explica Montfort, e se nossas devoções mais santas não nos levam a
essa morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha
para a vida eterna, nossas devoções se tornarão inúteis, todas as nos-
sas obras de justiça serão manchadas por nosso amor-próprio e por
nossa vontade, o que fará que Deus abomine os maiores sacrifícios
e as melhores ações que possamos realizar. No momento de nossa
morte, nos encontraremos com as mãos vazias de virtudes e de méri-
tos; não teremos uma centelha do puro amor, que só é comunicado
às almas mortas para si mesmas, cuja vida está escondida com Jesus
Cristo em Deus. (V. D., n. 81.)
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