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Pedro Chambel ● A Evolução do Bestiário Letrado Medieval – uma síntese

A Evolução do
Bestiário Letrado Medieval –
uma síntese

Pedro Chambel
Novembro 2006
Divulgada on line em
http://www.fcsh.unl.pt/iem/investigar-iem.htm

Na Idade Média, a natureza impunha-se à sociedade, marcando os seus ritmos,


quotidianos e a própria sobrevivência das comunidades. Na verdade, a sociedade
medieval, sendo maioritariamente rural, receava a natureza e as consequências muitas
vezes negativas que ela podia trazer à estabilidade económica e social. Em grande parte
temida, era por isso respeitada e sacralizada no âmbito duma mentalidade
fundamentalmente mágica, mesmo quando os clérigos se referiam à força e aos poderes
da natureza como manifestações e revelações que remetiam para o Criador e para a
sagrada capacidade de dispensar graças e punições

Ora, não obstante a omnipresença da natureza e dos seus seres na vida quotidiana das
populações, os letrados medievais não manifestaram, no geral, um interesse pelos
animais em si. Na verdade, estes eram entendidos, antes de mais, como manifestações
da potência criadora da divindade. De facto, na Patrística Ocidental, S. Agostinho
concebia o mundo como um livro de origem divina que, à semelhança das Sagradas
Escrituras, precisava de ser lido e descodificado em função do seu Demiurgo e Criador.
No entanto, o pensamento de S. Agostinho, de profunda influência e repercussão na
Alta Idade Média, privilegiava uma via de interiorização mística que afastava qualquer
tentativa de olhar o mundo físico como realidade a analisar e manipular. Entretanto, na
Patrística Oriental, sobretudo a partir de Orígenes, desenvolveu-se um pensamento que
acentuava a leitura alegórica e moral, que juntamente com a literal e anagógica, devia
ser utilizada para entender as Sagradas Escrituras e, por extensão, era utilizado na
percepção do próprio mundo natural.

Neste sentido, os letrados cristãos da Alta Idade Média procuraram, através de uma
abordagem simbólico-alegórica, descortinar nos seres naturais os sinais que o Criador

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neles tinha inscrito. Assim, procurava-se, a partir dos seus comportamentos e


características, entender, tanto os ensinamentos morais a serem seguidos pelos cristãos,
como a explicação dos mistérios teológicos.

Desenvolveu-se, portanto, uma visão letrada da natureza, segundo a qual esta era
entendida como constituída por um conjunto de símbolos e sinais que deviam ser lidos e
descodificados de forma a entender os desígnios divinos da Criação.

Coloca-se, assim, com pertinência a questão das fontes que transmitiram aos clérigos
medievais as informações sobre os animais, uma vez que nos seus escritos não
encontramos um olhar próprio sobre a natureza e os seus seres. Um exemplo da
determinante influência das fontes na transmissão do conhecimento do mundo animal,
encontra-se na grande enciclopédia medieval do século VII, do bispo sevilhano Isidoro
de Sevilha, As Etimologias, onde os conhecimentos herdados do helenismo tardio e da
cultura romana nela se encontravam sistematicamente explicados por um método
etimológico-analógico que acentuava e desenvolvia o suposto carácter teofânico das
manifestações naturais.

Nela, a propósito da migração das cegonhas, S. Isidoro descreve as que se realizavam na


Ásia, seguindo os dados recolhidos nas obras dos autores da Antiguidade Clássica, mas
não faz qualquer referência às que se efectuavam periodicamente nos céus de Espanha,
quando as aves se deslocavam do Norte de África para a Gália1. Este exemplo é bem
elucidativo da visão do mundo natural da Alta Idade Média, neste caso, apresentada a
partir do legado transmitido pelos escritos dos antepassados dos autores cristãos, ou
seja, segundo um processo que marcou todo o pensamento sobre a natureza da Alta
Idade Média.

Iremos, portanto, referir, inicialmente, de forma necessariamente sucinta, as principais


fontes de informação sobre o conhecimento do mundo animal utilizadas pelos clérigos.

Assim, em primeiro lugar, abordaremos o legado bíblico. Para o analisar temos de ter
em conta, como referimos, que a leitura das Escrituras era efectuada não só no seu
sentido literal e histórico, como também no moral e alegórico, sendo estes dois aspectos
de primordial importância na transmissão do bestiário bíblico. No mesmo sentido,

1
J. Voisenet, Bestiaire Chrétien. L’Image Animal des Auteurs du Haut Moyen Age (Vº - XIº s.), Toulouse,
Presses Univ. du Mirail, 1994, p.17

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convirá assinalar que o Antigo Testamento, o que mais informação sobre os animais
forneceu para os escritos medievos, era entendido como um anúncio do Novo. Ou seja,
lido de forma simbólica, os acontecimentos narrados neste último encontravam-se já
expressos na tradição veterotestamentária.

Nesta última, destaca-se o Génesis. Nele narra-se a criação dos animais, que antecede a
do homem, seguindo-se, após ao surgimento de Adão, a nomeação destes efectuada pelo
primeiro homem, o que marca a superioridade ontológica do ser criado com alma sobre
o conjunto das bestas. A seguir à queda e expulsão do Paraíso, desenvolve-se a
caracterização dos animais em função das necessidades humanas, narrando-se os
processos que levaram à sua utilização no vestuário, na caça, na pastorícia, agricultura e
alimentação, assim como para a efectuação dos sacrifícios oferecidos à divindade. Neste
sentido, com o Génesis, estabelece-se a relação homem-animal, que, em última
instância, traduz e justifica o modo de vida do povo eleito na sua interacção com a
natureza.

Depois do Génesis, no Deuterónimo e no Levítico, surgem as prescrições alimentares e


sacrificiais, e a divisão entre animais puros e impuros. Ora, não obstante o cristianismo
não ter acolhido tal herança, ela não deixou de estar presente na apreciação alegórico-
simbólica dos animais. Como exemplo, podemos citar o porco que, não obstante ter sido
consumido pelas populações medievais, nunca deixou de ser associado a uma
simbologia marcadamente negativa.

Outro importante legado bíblico para o bestiário medievo foi constituído pela presença
dos animais nos milagres, onde surgiam como instrumentos da divindade, ora para punir
os inimigos dos israelitas ou os pecadores, ora para proteger os homens santos, ou ainda
para restabelecer a ordem divina e fazer prevalecer os desígnios de Deus. Como
exemplos marcantes para a Idade Média, podemos referir, entre outros, os episódios das
pragas lançadas por Deus sobre o Egipto, o do asno de Balaão, o dos corvos que
alimentaram Elias, as narrativas de Daniel na cova dos leões, da baleia onde Jonas
permaneceu ou a do leão que protegeu o corpo do santo homem que desobedeceu às
ordens do Senhor e que por isso foi morto pelo animal. Ora, os episódios bíblicos foram
entendidos segundo um processo exegético que privilegiava a leitura simbólico-
alegórica das manifestações divinas, explicando-se, deste modo, as narrativas.

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Os animais surgem, ainda, na Bíblia associados às profecias veterotestamentárias que


foram consideradas como realizadas no Novo Testamento. Assim, a ovelha levada ao
tosquiador sem se manifestar ou rebelar da profecia Isaías, simboliza Cristo levado
pelos seus algozes para ser crucificado, o lobo que viverá em paz com o cordeiro,
anuncia o futuro reino de Cristo na Terra, que restabelecerá a original harmonia entre os
seres da natureza, enquanto o leão de Judá referenciado por Jacó, quando abençoa os
filhos, foi entendido como o anúncio do advento do Salvador.

Para além dos animais presentes nos contextos que referimos e que foram interpretados
com um acentuado valor simbólico, o Velho Testamento referencia, igualmente, outros,
como os do quotidiano judaico e o dos povos vizinhos, ou seja, os animais domésticos e
de pastoreio, assim como, as bestas feras que constituíam um perigo para as populações.
Ainda da tradição veterotestamentária, salientam-se os animais presentes nos Livros dos
Salmos, dos Provérbios e no dos Cânticos, que, igualmente foram interpretados de
forma simbólico-alegórica e, por vezes, profética.

Neste sentido, podemos afirmar que o Antigo Testamento transmitiu um amplo bestiário
aos autores medievais, constituído por animais de diversas espécies e portadores de
diferentes funções, para além de ter dado a conhecer animais estranhos à fauna do
Ocidente medieval. Por outro lado, na Bíblia, raramente são mencionados animais
fabulosos.

Não obstante ter sido a tradição veterotesmentária a que mais contribuiu para o bestiário
medieval, também o Novo Testamento transmitiu fortes imagens animais para os
letrados medievais. Neste sentido, destaca-se a sua presença nos milagres, nas parábolas
e nas frases de Cristo e dos seus discípulos, como a pomba que surge durante o
baptismo de Jesus, símbolo do Espírito Santo, mas também podemos referenciar o
milagre da expulsão dos demónios do possesso, efectuado por Cristo, que os enviou
para uma vara de porcos que depois se lançaram num precipício. Dos seus
ensinamentos, salientam-se as referências aos cães que lambem as feridas de Lázaro, os
porcos apascentados pelo filho pródigo ou os pardais de baixo preço. Quanto às frases
atribuídas a Jesus, destacamos a comparação de Herodes a uma raposa, as pérolas que
não devem ser dadas aos porcos, a sua identificação com a serpente de bronze e, após a
Ressurreição, o anúncio aos apóstolos do poder que passaram a usufruir sobre os

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animais venenosos. Por fim, assinalamos a expressão de Pedro, “o cão voltou ao seu
próximo vómito”, para designar os cristãos que renunciaram à sua fé.

Destas muito sumárias referências, podemos aferir como os animais assinalados na


tradição neotestamentária constituíram um rico repositório para a exegese bíblica
efectuada pelos pensadores cristãos, e como se poderiam posicionar segundo conotações
negativas ou positivas em função do contexto em que eram citados.

Por fim, no Livro do Apocalipse, atribuído a S. João Evangelista, destacam-se algumas


imagens animais que se revelaram marcantes para a Idade Média. Referimo-nos às
figuras híbridas dos quatro Viventes, com formas de homem, boi, águia e leão, que a
partir de S. Irineu simbolizaram, tanto os quatro evangelistas, como os principais
momentos da vida, paixão e ressurreição de Cristo e que foram objecto de inúmeras
representações figurativas durante toda a medievalidade. De igual conteúdo simbólico,
revestiu-se a referência ao cordeiro imolado associado simbolicamente ao próprio
Cristo.

Também os apócrifos do Novo Testamento contribuíram de forma marcante para a


constituição do bestiário medieval. Na verdade, na Idade Média, tais textos foram
assimilados aos bíblicos, sendo considerados como reportando-se à mesma tradição.
Iremos a seu propósito fazer uma breve referência, devido ao facto de eles apresentarem
características a nível do imaginário animal que os individualizavam dos textos bíblicos.
Em traços muitos gerais assinalamos como a participação dos animais nos milagres é
muito maior. Por outro lado, estes últimos apresentam um conteúdo marcadamente
prodigioso e maravilhoso o que os afasta dos narrados no Novo Testamento. Neste
sentido, neles, os animais falam, pedem a benção aos santos, são ressuscitados e
encontram-se ao serviço dos eleitos, chegando mesmo a narrar-se como Jesus em
criança teria fabricado pássaros a partir de argila. Como refere Jacques Voisenet,
tratam-se, no geral, de milagres “gratuitos” que não se encontram ao serviço de uma
mensagem evangélica, mas antes se caracterizam por acentuarem o maravilhoso e o
prodígio2.

Para além do legado bíblico, as obras dos autores da Antiguidade Clássica revelaram-se
de extrema importância para a concepção da natureza e dos seus seres, encontrando-se

2
Idem, pp.42-48.

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as informações por eles transmitidas presentes nos escritos dos letrados da Alta Idade
Média. Na verdade, foi por seu intermédio que estes herdaram conhecimentos, não só de
diversos animais, como sobre os seus comportamentos e características, que,
interpretados segundo o método alegórico-simbólico, contribuíram para enriquecer os
bestiários e as enciclopédias, entretanto elaboradas. Tal influência estendeu-se por toda
a Idade Média. É certo, porém, que muitas das descrições de animais transmitidas pelos
autores pagãos revelavam-se fantasistas e fabulosas, assim como deles foi recebido um
bestiário constituído por monstros e animais prodigiosos. No entanto, nunca os autores
da Alta Idade Média questionaram as informações herdadas da Antiguidade, dados os
seus autores serem considerados como “autoridades”, no que respeitava ao
conhecimento do mundo animal.

Entre estes destacam-se os naturalistas, ou seja, os autores que elaboraram obras sobre
a natureza e os seus seres. O mais importante foi Aristóteles. O filósofo grego dedicou
uma importante parte da sua obra ao estudo dos animais, nomeadamente, aos seus
comportamentos, características, constituição e procriação. Aristóteles manifestou, na
sua abordagem ao mundo natural, um espírito crítico, privilegiando a observação dos
seres, assim como a sua classificação. É certo, porém, que recolheu, igualmente, dados
provenientes de diversas fontes, pelo que não deixou de transmitir informações
erróneas. No entanto, o espírito crítico que desenvolveu, a observação que praticou,
assim como o desinteresse manifestado pelos animais fabulosos e as tradições
fantasistas sobre o comportamento animal, tornou-o o fundador da zoologia,
estendendo-se a influência da sua obra muito para além do período medieval. Mas, esta
apenas começou a ser conhecida de forma sistemática pelos autores medievais, a partir
das traduções árabes efectuadas no século XIII. Neste sentido, os letrados da Alta Idade
Média tiveram, da ampla obra do Estagirita sobre os animais, apenas acesso às
informações transmitidas através dos dados recolhidos e divulgados por outros
naturalistas, nomeadamente Plínio, enquanto lhes foi totalmente estranho o método
desenvolvido por Aristóteles no que respeita à observação e ao rigor no estabelecimento
de uma classificação dos animais.

Assim, durante a Alta Idade Média, foram as obras dos latinos Plínio, Solino e do
helénico Eliano, as que obtiveram maior divulgação. Estes, no entanto, limitaram-se a
recolher informações de diversas fontes, não revelando um espírito crítico sobre os

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conhecimentos que transmitiram. Na verdade, nos seus escritos encontram-se relatos de


comportamentos animais muitas vezes fantasistas e prodigiosos, transmitindo, assim,
aos autores medievais um bestiário fabuloso. É certo, porém, que algumas das
informações que legaram aos autores medievais revelavam-se correctas, nomeadamente
aquelas que recolheram de Aristóteles, enquanto Plínio manifestou, por vezes, certas
reservas perante determinadas características e comportamentos de animais, assim como
revelou alguma incredulidade no que respeitava à possibilidade da real existência de
alguns seres fabulosos, mas tal espírito crítico não foi herdado pelos autores da Alta
Idade Média.

Em suma, os naturalistas antigos legaram aos autores cristão um amplo conjunto de


obras sobre a natureza e os seus seres. Nestas, transmitiram conhecimentos sobre um
vasto número de animais, muitos deles estranhos à fauna do Ocidente europeu,
descrevendo os seus pretensos comportamentos e características. Sublinha-se, ainda, o
seu contributo na divulgação da suposta existência dos seres híbridos e das raças
monstruosas que habitariam os longínquos locais do orbe.

Outros autores antigos que contribuíram de forma decisiva para o bestiário medieval
foram os poetas gregos e latinos. Destes destacamos Homero, Virgílio e Ovídeo, dado o
necessário carácter sucinto da nossa exposição. No que respeita à sua influência sobre
os autores da Alta Idade Média, convirá esclarecer dois pontos de decisiva importância.
Assim, salienta-se, por um lado, o facto de as suas obras nem sempre terem sido
conhecidas directamente, e, por outro, o processo de cristianização operado nestas pelos
letrados medievais, enquanto os seus autores, nomeadamente Virgílio, foram, muitas
vezes, considerados como profetas do cristianismo. Neste sentido, nas Bucólicas, a
idílica idade de ouro descrita por este último autor, onde reinava a harmonia entre os
seres naturais, associada ao nascimento de uma criança, foi entendida, tal como a
profecia de Isaías que mencionámos, como um anúncio profético do reino de Cristo na
Terra. Por seu lado, a narrativa de Ulisses preso ao mastro, de ouvidos tapados para não
ouvir os cânticos tentadores das sereias, relatada na Odisseia de Homero, foi assimilado
à imagem de Jesus crucificado, alheio às seduções terrenas e sensuais que as sereias
simbolizavam. Neste sentido, os episódios narrados nas grandes epopeias antigas
acabaram por ser objecto da exegese cristã, o que permitiu a sua assimilação pelos

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autores medievos, contribuindo as imagens animais nelas transmitidas para a


constituição do bestiário da Alta Idade Média.

Quanto à influência de Ovídeo, ela deu-se por via das Metamorfoses, onde o autor
descreve abundantes transformações de deuses e homens em animais. Mais uma vez, foi
o processo de leitura alegórica cristã que permitiu que a obra do poeta romano fosse
utilizada pelos letrados medievais. Como exemplo, podemos salientar a referência à
Fénix, o animal fabuloso que renascia das próprias cinzas, e que foi interpretado como
um símbolo de Cristo ressuscitado3.

É certo que obras de outros poetas se revelaram importantes fontes para os autores
cristãos no que respeita à transmissão do conhecimento de espécies e comportamentos
animais, como foram o caso das de Marcial, Lucano ou Servius, entre outros4. Mas
foram os que referimos de forma mais pormenorizada, aqueles que exerceram maior
influência nos escritos dos autores cristãos. Das suas obras, os letrados medievais
herdaram, não só os animais fabulosos associados à mitologia clássica pagã, como as
imagens animais que, descritas de forma poética, caracterizavam as atitudes e os
comportamentos dos heróis, constituindo um vasto reportório de informações sobre as
supostas características de diversos animais.

Ora, o legado antigo revelou-se, portanto, de uma importância decisiva para os autores
da Alta Idade Média. Na verdade, foi um enorme conjunto de seres animais e fabulosos
que lhes foi transmitido, associado às descrições dos seus comportamentos e
características físicas, reais ou imaginárias. Perante esta abundante informação, os
letrados medievos não desenvolveram uma atitude crítica. A sua acção sobre tão
importante herança consistiu, fundamentalmente, em cristianizar as informações obtidas
através, nomeadamente, do método simbólico-alegórico, o que permitiu enquadrar o
legado antigo nas obras escritas pelos clérigos, nomeadamente nas de conteúdo moral e
educativo.

Podemos ainda mencionar outro tipo de escritos legados pela herança pagã antiga como
os tratados de agronomia, de pesca e de caça, as obras dos polígrafos e os tratados de
medicina e farmacopeia.

3
Idem, pp.72-75, 79,80.
4
Idem, pp.73,74.

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No que respeita ao importante legado dos filósofos, destaca-se o de Platão, não obstante
a sua obra, no geral, não ter sido directamente conhecida, o de Cícero e o de Séneca. Do
primeiro, destaca-se a associação das imagens dos animais selvagens aos vícios
humanos, e a ideia da “metamorfose” que animaliza os pecadores, para além da
influência, através dos filósofos neoplatónicos, nos escritos da tradição Patrística. Do
segundo, salientam-se os exemplos morais com a referência aos animais, enquanto o
terceiro, considerado um “precursor inconsciente do cristianismo”5, desenvolveu uma
atenção particular aos comportamentos animais considerados numa óptica moral6.

Por fim, iremos referir um género literário desenvolvido na Antiguidade e que gozou de
particular receptividade na Idade Média. Tratam-se das fábulas cuja origem foi
atribuída, ainda no período clássico, a Esopo. Posteriormente, as fábulas esópicas foram
recolhidas e desenvolvidas por outros autores, nomeadamente Fedro, Aviano e Babrios.
Ora, terá sido um autor do século V, Rómulos, o responsável pela transmissão dos
escritos de Esopo e dos seus divulgadores e continuadores aos autores medievais7. É
certo, porém, que também no Oriente surgiram fábulas que os letrados medievais
conheceram e divulgaram, embora se revele problemático o estudo das vias da sua
transmissão para o Ocidente.

A fábula caracteriza-se por ser um conto curto de conteúdo moral e onde predominam,
como personagens, os animais. Estes surgem referenciados com características
antropomórficas, manifestando atitudes e comportamentos humanos. Deste modo, as
suas acções pretendem caracterizar as dos homens, com o fim de transmitir
ensinamentos morais, surgindo os animais nelas descritos de uma forma estereotipada.
No entanto, as principais características com que surgiam nas fábulas e que os
individualizavam enquanto espécie, foram amplamente assimiladas ao bestiário
medieval.

Deste modo, o lobo surge como um animal maligno que não hesita em servir-se de
todos os meios ao seu alcance para atingir os seus fins, nomeadamente na tentativa de se
alimentar dos mais fracos e indefesos, enquanto a raposa é mencionada como um animal
manhoso e matreiro. O sucesso das fábulas na Alta Idade Média, revelou-se através da

5
Idem, p.94.
6
Idem, pp.90-95.
7
Idem, pp.82,83.

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sua utilização nos escritos dos Padres da Igreja e nos sermões, assim como na presença
de representações iconográficas. No geral, elas foram assimiladas e reutilizadas pelos
autores cristãos sem sofrerem acentuadas modificações. Na verdade, as lições morais
por elas transmitidas adequavam-se aos ensinamentos cristãos, podendo, quando tal não
fosse o caso, serem reformuladas e acrescentadas. É certo, porém, que alguns animais
sofreram modificações no que respeita à sua original “personalidade”, mas tal não
implicou profundas mudanças nos conteúdos morais. A influência mais marcante deste
género literário residiu na possibilidade da sua utilização nos tratados de conduta moral,
nas homilias e nos sermões, através de um processo de cristianização dos exempla
transmitidos pelas narrativas.

Outro legado marcante para os autores medievais foi o transmitido pelos primeiros
grandes pensadores cristãos, os Padres da Igreja. Tendo vivido, ora no período tardio da
Antiguidade, ora nos alvores da Idade Média, eles manifestaram nas suas obras a
influência da herança clássica, enquanto contribuíram decisivamente para a elaboração
dos dogmas cristãos, influenciando os seus escritos toda a cultura letrada da Alta Idade
Média. Neste sentido, os conhecimentos sobre os animais transmitidos pelos autores
antigos foram por eles alvo da exegese cristã, contribuindo tal processo para a visão
medieval do mundo natural. Já nos referimos muito sumariamente a S. Agostinho e a
Orígenes. Vejamos, agora em particular, na Patrística latina, Ambrósio, Jerónimo e
Agostinho. O primeiro revela nos seus escritos, tanto a influência do bestiário bíblico,
como o transmitido pelos autores antigos, manifestando uma interpretação imaginativa
na descrição da natureza, e em particular da fauna, uma vez que a utilizou para o ensino
da moral cristã. Neste sentido, desenvolveu nos seus textos doutrinais um alegorismo
espiritual, inspirando-se, para tal, frequentemente, no bestiário transmitido pelos autores
clássicos, e acrescentando, quando necessário, novas propostas interpretativas dos
comportamentos animais.

Quanto a Jerónimo, para além da importância dos seus textos hagiográficos, salienta-se
as traduções e comentários da Bíblia, utilizando, para estes, uma exegese inspirada nas
propostas de Orígenes, privilegiando o sentido alegórico, após a referência à explicação
literal ou histórica das narrativas das Sagradas Escrituras. Neste sentido, os animais
bíblicos foram objecto, por parte de Jerónimo, de uma interpretação moral e mística,
encontrando-se, assim, ao serviço da leitura exegética dos textos sagrados.

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Por fim, S. Agostinho influenciou todo o pensamento teológico da Alta Idade Média. Já
nos referimos à sua ideia sobre a natureza como um livro de origem divina que à
semelhança das Sagradas escrituras devia ser lido e descodificado para entender e
louvar a obra do Criador. Por outro lado, para Agostinho a cultura legada pelos autores
clássicos podia ser utilizada pelos pensadores cristãos e posta ao serviço da
evangelização, desde que não pusesse em causa os dogmas e a doutrina da Igreja. Neste
sentido, o bispo de Hipona utilizou nos seus ensinamentos doutrinais diversas tradições
sobre o mundo animal, numa perspectiva exegética cristã. Assim, adaptou, tanto o
bestiário bíblico como o clássico, à apologética do cristianismo, a partir de diversas
imagens, comparações e símbolos. Ainda de relevante importância, foi o estudo que
dedicou às raças monstruosas que os autores antigos tinham divulgado, no sentido de
estabelecer uma definição de critérios de humanidade8.

No que respeita aos Padres orientais, a sua influência no pensamento dos autores
medievais do Ocidente foi dificultada pelo facto dos seus escritos terem sido elaborados
em línguas pouco conhecidas destes. No entanto, embora seja difícil estabelecer a sua
influência no imaginário animal da medievalidade do Ocidente, as traduções efectuadas
de algumas das suas obras do século IV ao VI acabaram por contribuir para a visão dos
animais que se desenvolveu na Cristandade ocidental. Iremos apenas referir Orígenes,
cuja exegese bíblica, fundada nas leituras histórica ou literal, moral, alegórica e
espiritual obteve uma determinante influência na abordagem aos textos sagrados
praticada pelos letrados cristãos. Na verdade, para Orígenes por detrás das narrativas
bíblicas, encontrava-se um sentido espiritual que permitia entender a verdadeira
mensagem divina. Deste modo, desenvolveu uma exegese que privilegiava a abordagem
alegórica das Sagradas Escrituras, em detrimento da histórica, como via de alcançar o
verdadeiro sentido do ensinamento bíblico. Neste processo manifestava-se a influência
da filosofia de Platão, tendo Orígenes elaborado uma síntese entre o pensamento do
filósofo grego e o cristianismo.

Entre outros Padres orientais que marcaram o imaginário animal da Idade Média,
podemos ainda citar Basílio de Cesareia e Gregório de Nissa9.

8
Idem, pp.115-122.
9
Idem, pp.125,126.

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Para além dos Padres da Igreja, também os primeiros poetas cristãos e os homilistas
desenvolveram um importante contributo para o bestiário da Alta Idade Média, mas
devido ao carácter sucinto da nossa exposição não os iremos referir em particular.

Ainda do início do cristianismo, outro conjunto de textos que tiveram uma influência
determinante na formação do imaginário animal medieval foram os relatos
hagiográficos. Os primeiros a serem elaborados narravam os martírios dos cristãos,
confrontados com as autoridades pagãs, e as vidas dos padres do deserto. No que
respeita ao género hagiográfico, ele apresenta características específicas que convirá
explicitar de forma a entender o papel dos animais nele presentes. Assim, um dos
aspectos fundamentais da hagiografia medieval é a sua estreita relação com os textos
bíblicos, incluindo os apócrifos, actuando os milagres como uma reactualização e
rememoração dos narrados nestes, originando este processo a validação da suposta
veracidade da efectivação da acção miraculosa dos santos. Por outro lado, os relatos
hagiográficos tinham uma forte componente pedagógica de transmissão dos
ensinamentos dos textos bíblicos, nomeadamente para os fiéis incultos, uma vez que
estes, ao contrário dos clérigos e dos letrados, não tinham acesso às Sagradas Escrituras.
Neste sentido, ao relatarem os milagres de um santo medieval, os clérigos transmitiam,
implicitamente, pelo menos uma parcela das mensagens naquelas expressas10. Assim, a
função dos animais nas hagiografias medievais, na sua generalidade, reenvia para a dos
textos bíblicos.

No que respeita às vidas dos eremitas do Oriente, os santos vivendo num ambiente
hostil e deserto, confrontavam-se com as bestas feras, por vezes assimiladas a tentações
demoníacas, assim como, embora mais raramente, com seres fabulosos provenientes da
tradição pagã. Mas era também devido ao contacto com os animais, que a sua condição
de eleitos da divindade se manifestava, como era o caso do apaziguamento dos animais
perigosos que efectuavam, da sua convivência pacífica com estes, da vitória que
alcançavam sobre os ferozes e venenosos ou, ainda, quando os animais lhes obedeciam,
acompanhando-os, servindo-os e trazendo-lhe alimentos, tal como sucede nas narrativas
dos milagres presentes nos textos bíblicos e nos apócrifos.

10
P. Chambel., Os Animais na Literatura Clerical Portuguesa dos Séculos XIII e XIV – Presença e
Funções, Lisboa, Dissertação de Doutoramento, F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa, 2002, pp.10-
12.

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Nos relatos dos martírios dos primeiros cristãos, surgem referidas as bestas feras que
protegem os santos, não ousando tocar o corpo dos eleitos, enquanto se revoltavam e
atacavam os seus algozes. Neste sentido, a modificação dos comportamentos
expectáveis dos animais surgia como uma prova de santidade e da protecção que sobre
os cristãos perseguidos exercia a divindade. Destes primeiros relatos hagiográficos
sobressai um bestiário constituído por animais que na sua maioria eram estranhos à
fauna do Ocidente medieval, nomeadamente os do Oriente.

Ora, a influência das primeiras narrativas hagiográficas nas posteriores vidas de santos
da cristandade ocidental, aliada à influência do bestiário bíblico, acabou por originar
que nestas surgissem frequentemente referências a animais estranhos ao espaço
geográfico do Ocidente, como os leões ou os camelos, para além dos animais fabulosos,
sem que a sua insólita presença suscitasse a incredulidade dos leitores e ouvintes.

Ainda da herança paleo-cristã, destaca-se um texto escrito no século II em Alexandria


ou no IV em Cesareia, de autor anónimo, que influenciou de forma decisiva toda a visão
do mundo animal da Idade Média, e inaugurou um novo género literário, o dos
“bestiários”. Trata-se do Physiologus, ou seja, O Naturalista. Escrito em grego, o seu
sucesso originou o aparecimento de versões em diversas línguas, nomeadamente em
etíope, arménio, sírio e latim. Nesta última língua conhecem-se várias versões,
multiplicando-se estas a partir do século V. Ao longo de toda Alta Idade Média foi alvo
de enorme interesse e divulgação, tendo sido considerado como um dos textos mais
lidos depois da Bíblia. Por outro lado, vários foram os escritores cristãos que o citaram
ou recomendaram a sua leitura, como Ambrósio, Rufino, S. Agostinho ou S. Isidoro de
Sevilha. No Physiologus surgem referidos cerca de quarenta animais, dependendo o seu
número das diversas versões entretanto efectuadas, conjuntamente com algumas
referências a plantas e pedras. A quase totalidade dos animais nele referenciados
pertencem ao domínio dos selvagens, sendo escassos os domésticos e os mais familiares
ao homem, enquanto também se encontram presentes animais fabulosos. Cerca de 40%,
dos animais citados são estranhos à fauna do Ocidente medieval11.

Ora, a novidade do Physiologus consistiu no facto de apresentar os seres naturais


segundo uma estrutura binária. Assim, surge mencionada, inicialmente, a suposta

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realidade empírica dos traços fundamentais dos comportamentos e características de


cada animal a que se segue, por um processo de leitura simbólico-alegórica, a
significação moral, dogmática ou religiosa de cada uma das “naturezas” antes
referenciadas. Estas apresentam, quer a influência do legado pagão, quer do bíblico,
enquanto nalguns casos se revela a própria imaginação do anónimo autor, encontrando-
se, ainda, em cada capítulo diversas referências à Bíblia.

Vejamos o exemplo do leão presente numa das versões gregas do Physiologus. Depois
de ser referido como o rei dos animais e citadas as palavras de Jacó ao seu filho Judá,
denominando-o cria de leão, afirma-se que o animal possui três “naturezas”. A primeira
consiste em apagar com a cauda as suas pegadas, quando se sente perseguido pelos
caçadores. Segue-se a explicação simbólica-alegórica, pela qual o animal simboliza
Cristo que apagou o seu rasto espiritual, ou seja, a sua divindade, para se tornar homem,
nascendo da Virgem, e salvar a humanidade. A segunda natureza reporta-se à suposta
característica do leão dormir de olhos abertos, permanecendo vigilante, o que, segundo
o anónimo autor, remete para a crucificação de Cristo, durante a qual, enquanto o seu
corpo padecia, a sua natureza divina velava pela humanidade à direita de Deus-Pai. Por
fim, os leões nascem mortos, permanecendo em tal estado durante três dias, ao fim dos
quais o pai, com o seu rugido, bafeja as crias fazendo-os viver. Ora, do mesmo modo
Deus, todo-poderoso, ressuscitou o Filho ao terceiro dia. O capítulo do leão termina,
com uma nova referência às palavras de Jacob12.

Para além de se reportar aos dogmas da Igreja através das naturezas dos seres naturais,
o Physiologus também transmite exemplos morais a serem seguidos pelos fiéis. Neste
sentido, o castor que se castra pois sabe que é caçado pelas virtudes medicinais dos seus
genitais é interpretado como um comportamento a ser observado pelos cristãos, que
devem retirar os pecados das suas condutas para não serem perseguidos pelo diabo, o
predador das almas13.

No entanto, nem todos os animais apresentam uma simbologia exclusivamente positiva


ou negativa. Na verdade, consoante as suas naturezas podem apresentar ambas, como é

11
J. Voisenet, Op. Cit., p.109.
12
“Fisiólogo” in Pseudo Aristóteles, “Fisignomía”, Anónimo, “Fisiólogo”, T. Martínez Manzano, C.
Calvo Delcán (eds.)., Madrid, Editorial Gredos, 1999, pp.137-139.
13
Idem, pp.176,177.

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o caso da serpente que, tanto simboliza o demónio, como o homem que pela
mortificação do corpo alcança a salvação14.

Neste sentido, as informações zoológicas transmitidas pelo Physiologus constituem


pretextos para ilustrar lições morais e doutrinais. A suposta realidade natural apenas
interessa ao seu autor na medida em que reflecte uma significação sobrenatural. Por
outro lado, na maior parte dos capítulos, a descrição das “naturezas” dos animais e a sua
explicação não se distinguem claramente, surgindo antes estreitamente unidas, até
porque se conjugam e se auto-justificam.

Na verdade, nas diversas versões do Physiologus, privilegia-se o interesse pelas


denominadas “naturezas” dos seres, pois são elas que permitem as leituras simbólico-
alegóricas. Neste sentido, as imagens que ilustram algumas versões, transmitem uma
muito esquemática figuração dos animais, procurando apenas acentuar um ou dois
traços que os individualizam, de forma a contribuir para a explicitação do texto que as
acompanha, sendo apenas salientadas certas partes dos corpos, como as garras ou os
bicos das aves. Em suma, a leitura e observação das diversas versões não proporcionava
um real conhecimento sobre os animais referenciados, uma vez que tal intenção era
estranha ao propósito da obra. Na verdade, era o sentido alegórico-simbólico das
supostas características animais que originava a possibilidade do ensino moral e
doutrinal. No entanto, ao fornecer as “naturezas” dos seres, o Physiologus acabou por
ser a principal fonte de informação do mundo animal para os letrados da Alta Idade
Média.

Se o Physiologus, para além de referenciar os animais, também menciona as


propriedades das plantas e minerais, foi-se desenvolvendo nas posteriores versões um
interesse exclusivo pelo mundo animal, enquanto surgiam separadamente os herbários e
os lapidários. Por outro lado, outros animais foram sendo acrescentados, associados,
como os originais, a propriedades que permitiam a exegese simbólico-alegórica,
enquanto as enciclopédias, entretanto elaboradas, utilizavam a mesma aproximação ao
mundo natural.

Finalmente, em Inglaterra, no início do século XII, um clérigo, Philippe de Thaön,


traduziu a obra para língua vulgar, surgindo, pela primeira vez a designação de

14
Idem, pp.155-157.

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“bestiário” que viria a ser adoptada para as obras com características semelhantes que se
lhe seguiram. A versão de Philippe de Thaön encontra-se dividida em três grupos, sendo
o primeiro dedicado aos animais da terra, o segundo às aves e o terceiro às pedras. No
primeiro, sucedem-se os animais que simbolizam Jesus Cristo e o diabo, no seguinte, as
aves que remetem para o Salvador e para o homem, enquanto no terceiro se
desenvolvem as questões relativas ao homem, à divindade, à vida santa e respectivas
recompensas celestes. À sucessão, bestas, aves, pedras corresponde uma hierarquia
baseada no facto das primeiras viverem com a cabeça direccionada para a terra,
procurando apenas a alimentação, remetendo para uma imagem da infância humana, as
segundas, que voam no céu, encontram-se conotadas com os homens que aspiram por
Deus, enquanto as pedras pelas suas características de solidez, estabilidade e
permanência, simbolizam o homem que não se desvia do bem, surgindo, assim
simbolicamente referenciados os três estados espirituais do cristão15.

No século seguinte, numa ordem difícil de estabelecer, surge o bestiário em prosa de


Pierre de Beauvais, e os de Guillaume le Clerc e de Gervaise. As características
tradicionais do bestiário mantêm-se, embora os seus autores lhes forneçam um certo
cunho pessoal, patente, ora na escolha dos animais, ora nos comentários. Entretanto,
continuaram a surgir bestiários em latim, como o de De Bestiis et aliis rebus de Hugo de
Folieto, dedicado, essencialmente, às aves e que foi traduzido para português já no
século XIV. Em França, em meados do século XIII, surgiu um bestiário original de
inspiração cortesã, que introduziu uma renovação nas regras do funcionamento do
simbolismo animal, o Bestiaire d’amour, escrito por um erudito poeta lírico, Richard de
Fournival. Nele, as naturezas dos animais são utilizadas para ilustrar uma filosofia e
uma estratégia de conquista amorosa, surgindo a obra apresentada sob a forma de uma
ficção aventurosa e pessoal. O livro do poeta francês gozou de um imenso sucesso,
originando outros elaborados noutras línguas vernáculas, inaugurando, assim, um novo
género de bestiário, marcado pela influência do amor cortês16.

15
J. Bichon, L’Animal dans la Litteraru Francaise au XIIème e tau XIIIème Siècles, Paris , Thèse
Présentée devant l’Université de Paris, Tome I, pp.67,68.
16
G. Bianciotto, (ed.), Bestiaires du Moyen Age, s. l., Éditions Stock, 1992, pp.9,10.

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No entanto, os bestiários irão sofrer significativas mudanças a partir do século XIII, mas
antes de a elas nos referimos, iremos ainda mencionar a influência de outros legados
que contribuíram para a visão do mundo animal da Idade Média.

Ora, os clérigos da Alta medievalidade confrontaram-se, igualmente, com a herança dos


povos pagãos que posteriormente se cristianizaram, como foi o caso dos de origem celta
e germânica. No que respeita às fontes que a transmitiram, só muito tardiamente
surgiram escritas as suas epopeias e lendas. No entanto, a estreita ligação que estes
povos estabeleceram com o mundo animal acabou por influenciar a cultura clerical.
Num primeiro momento, dado o facto da sua interacção com a natureza se manifestar,
quer através de uma visão mágica, quer através da sacralização de alguns animais,
nomeadamente através de práticas totémicas, originou a condenação e repressão da
Igreja. Foi, portanto, a sua cristianização que acabou por permitir uma certa assimilação,
por parte dos clérigos, da forma como encaravam o mundo animal, embora tal processo
se tenha, na sua generalidade, revelado marginal, uma vez que apenas adquiriu
relevância nas zonas da cristandade onde a presença dos povos de origem celta e
germânica se manifestou de forma mais intensa. Assistiu-se, assim, a um fenómeno que
se pode caracterizar como de repressão-assimilação, patente numa escolha entre animais
que passaram a ser encarados de uma forma positiva e benevolente, e os que
continuaram a manifestar conotações negativas.

Do legado celta, destacam-se as vidas dos santos onde em interacção com os eleitos da
divindade surge uma nova fauna, oriunda do substrato cultural dos povos que o
constituíam. Assim, nas hagiografias salientam-se, por um lado, uma considerável
presença dos animais, nomeadamente nas de origem irlandesa, e por outro, um respeito
perante estes, provavelmente devido à inicial função sagrada atribuída a certos animais.
Neste sentido, a forma positiva como certos animais selvagens foram concebidos pelo
legado celta, como o cervo ou certos aves, nomeadamente as migratórias, acabaram por
ser como tal assimilados pelos letrados cristãos, enquanto outros como o lobo ou o
corvo, continuaram a manifestar uma conotação marcadamente negativa, sendo o
primeiro associado ao diabo e às forças maléficas, enquanto o segundo, que na tradição
exegética veterotestamentária foi considerado como uma ave necrófaga, a partir do
relato do Dilúvio, manteve a sua condição de ave nefasta e portadora de maus augúrios.

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No que respeita aos animais que se encontravam ao serviço do homem, a visão


favorável do cavalo nunca foi aceite pelos clérigos, tendo a sua conotação positiva
apenas surgido posteriormente nos romances de cavalaria e nas gestas medievais, ou
seja na literatura de origem profana. Quanto ao cão, o simbolismo negativo que herdou
das tradições bíblicas e pagãs e que surge manifestado na literatura clerical, não
obstante a sua tradicional conotação com a fidelidade, sempre se sobrepôs à visão
favorável presente na tradição celta.

No que respeita ao legado germânico, ele revelou-se de influência menos marcante, uma
vez que os clérigos sobre ele exerceram uma maior repressão. Neste sentido, podemos
referir o exemplo do urso que tendo sido, inicialmente, assimilado com uma conotação
positiva por parte dos autores cristãos, acabou por sofrer do processo de diabolização
que se manifestou, sobretudo no século XII e que atingiu, igualmente, outros animais.
Assim, se num primeiro momento chegou a rivalizar, nos escritos da Alta Idade Média
Ocidental, com o leão como rei dos animais, acabou por ser encarado de forma
depreciativa pela literatura clerical. No entanto, a sua presença em escudos heráldicos,
acaba por reflectir o aspecto positivo que o animal alcançou durante a Alta Idade Média.
De resto, nos milagres narrados nos Diálogos de Gregório Magno o urso surge com
conotações antagónicas, uma vez que, ora é referido como auxiliar e companheiro de
santos, ora como um animal selvagem e nocivo, o que acaba por transmitir como a sua
presença nos registos hagiográficos foi marcada pelo cepticismo e incerteza quanto ao
seu papel e função.

Em suma, como refere Jacques Voisenet, o aspecto positivo e a disposição benevolente


perante o animal patente na tradição dos povos oriundos do mundo celta e germânico
acabou por se restringir às áreas da cristandade onde a sua influência era maior e apenas
com o movimento franciscano tal atitude acabou por ser retomada. Por outro lado, neste
processo, que muito sumariamente referimos, teremos de ter em conta, por um lado, a
incompreensão por parte dos clérigos perante certas práticas pagãs, muitas vezes mal
interpretadas17 e, por outro, a negação consciente da ligação homem-animal por eles
operada, a partir da distinção ontológica entre os seres patente no cristianismo e na
tradição judaica.

17
J. Voisentet, Op. Cit., pp.137-171.

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No que respeita ao legado oriental, já observámos como ele se revelou marcante nos
primeiros tempos do cristianismo. Não obstante as condições históricas se terem
transformado ao longo da Idade Média, nomeadamente no que respeita à inicial estreita
ligação entre o Oriente e o Ocidente, a influência da visão do mundo animal patente no
primeiro nunca deixou de influenciar a dos letrados ocidentais Na verdade, tal encontra-
se manifesto na arte ocidental, registando-se os motivos animais de influência copta, da
Síria ou da Arménia. Também fábulas e contos onde os animais surgem como
protagonistas revelam a influência oriental, assim como os relatos hagiográficos a que
nos referimos18. A presença nas vidas dos santos dos animais, quer pela função que
ocupam, quer pelo espaço geográfico de que são originários, atesta a importância do
legado oriental na Alta Idade Média.

No entanto, para a análise da sua real influência, ter-se-á de ter em conta as vias de
transmissão que a tornou possível, pois só assim se poderá verificar se para um
determinado tema de suposta origem oriental se justifica tal atribuição.

Podemos, porém, afirmar que o Oriente forneceu ao mundo Ocidental um vasto


bestiário portador de um rico simbolismo que sempre fascinou os autores medievais. Na
verdade, dele surgiam as informações sobre os animais exóticos e fabulosos,
“carregados” de um forte significado simbólico-alegórico. Afastado do Ocidente
europeu pelas condições políticas e geográficas, o Oriente manifestava-se como o local
onde se tornava possível a existência dos prodígios que alimentavam a imaginação dos
letrados ocidentais que cristianizaram os motivos que lhes foram transmitidos.

Por fim, resta-nos sublinhar a influência do conjunto de produções culturais não


materiais como os costumes, os ritos agrários, as festas, os cultos, os contos, as lendas,
as crenças e as superstições próprias dos grupos sociais dos povos do Ocidente europeu,
particularmente dos camponeses, que elaboraram, assim, uma cultura popular, que é
própria de todas as civilizações19. Ora, neste sentido, certos temas animais da Alta Idade
Média revelam a influência de tais práticas e crenças que se manifestaram no espaço
europeu. O conhecimento que delas temos provém, em grande parte, do processo de
cristianização efectuada pelos clérigos, o que lhes permitiu utilizá-las na evangelização
das populações pagãs. No entanto, a actuação das autoridades cristãs não pôs em causa a

18
Idem, pp.179-181.

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influência do folclore europeu na visão do animal. Na verdade, a necessidade da


intervenção efectuada pelos clérigos sublinha e revela a permanência das suas práticas e
tradições.

Em suma, durante a Alta Idade Média, a visão dos animais transmitida pelos letrados
revela-se estereotipada. Os seres naturais foram concebidos e assimilados pela cultura
cristã da época, fundamentalmente, em função dos legados bíblicos e antigos. O animal
em si não provocou o interesse dos autores medievais, não se desenvolvendo um
processo de observação da natureza de forma a alcançar um conhecimento objectivo
sobre o comportamento animal. Prevaleceu, neste sentido, uma visão letrada da
natureza, surgindo os seus seres referenciados em função do que podiam transmitir aos
homens, nomeadamente, no que respeita à transmissão dos dogmas cristãos e dos
ensinamentos morais, que neles teriam sido inscritos pelo Criador. Privilegiou-se,
assim, um processo exegético das suas “naturezas”, entendidas como as propriedades
que os caracterizavam. É com tais funções que os animais surgem referenciados nas
homilias, nos bestiários, na exegese bíblica ou na vida dos santos. Na verdade, apenas
conseguimos encontrar alguma variação de temas no bestiário letrado transmitido pelos
autores anteriores a meados do século XII, a partir da menção a novos animais,
nomeadamente, através da assimilação de outros legados culturais, o que permitia novas
leituras alegórico-simbólicas, assim como algumas inovações nas funções atribuídas aos
animais. No geral, predominou nos textos dos autores cristãos, então elaborados, uma
repetição dos temas e das propostas interpretativas no processo de abordagem aos seres
do mundo natural. Por outro lado, manifesta-se uma quase ausência de interesse pela
descrição física dos animais, surgindo as suas características referidas de forma sumária
e esquemática.

No século XII, a expansão rural permitida pelas grandes arroteias e o paralelo


desenvolvimento das vilas e cidades, possibilitou a progressiva afirmação de um novo
olhar sobre a natureza, feito a partir das comunidades urbanas onde a dependência social
e económica destas tende a ser menos forte do que a vigente no mundo rural tradicional.
A natureza passa então a associar-se às matérias-primas que podiam e deviam ser
obtidas, trabalhadas e comercializadas, começando, portanto, a ganhar forma a

19
Idem, p.181.

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progressiva distanciação homem- natureza que iria despertar o lento desenvolvimento


de uma visão racionalizante do mundo.

Entretanto, ao possibilitar a prática do enfrentamento com as forças inóspitas do mundo


natural, o movimento das arroteias também começara a marcar as comunidades rurais
com a ideia de um seu possível triunfo sobre a natureza, tal como então o demonstrava a
acção da ordem de Cister que, num labor de ordenação natural, construía os seus
mosteiros nos lugares outrora dominados pelas incontroladas e temidas forças naturais.
Ao mesmo tempo que os espaços das grandes florestas passavam agora a ser
progressivamente habitados por comunidades que tinham tido como percursores os
eremitas, os religiosos que neles se refugiaram para viver uma vida de reclusão e de
contemplação bem longe dos tumultos das cidades20. Como afirma Jacques Le Goff, é a
partir do século XII que a “própria floresta está toda ela marcada por signos cristãos”21.

De acordo com Aron I. Gurevitch, assiste-se a partir de então aos começos de uma
irreversível “«reabilitação» do mundo e da natureza”22. Mais habilitados a agir sobre o
mundo circundante, os homens do século XII começam a considerá-lo mais
atentamente, ao mesmo tempo que o estudo e a explicação da natureza suscitam um
interesse crescente. Contudo, não se tratava de uma visão da natureza concebível em si
mesma, fora da condição de criação de Deus e como forma de o glorificar.

Com efeito, quando os filósofos do século XII falam da necessidade de estudar a


natureza, referem-se à necessidade de a conhecer para o homem nela se descobrir a si
próprio e de, através desse conhecimento, progredir rumo à compreensão da ordem
divina e do próprio Deus. No fundo, a observação da natureza processa-se no âmbito da
fé na unidade da beleza do mundo, e de que este fora criado por Deus para fornecer ao
homem o lugar central. Citando mais uma vez Gurevitch, a “natureza era compreendida
como um espelho no qual o homem podia contemplar a imagem de Deus”23. Segundo o
poeta do século XII, Alain de Lille, “todas as criaturas do universo são para nós como
um livro, um quadro, um espelho”24, enquanto Hugo de S. Victor, no mesmo século,

20
P. Chambel, Op. Cit., p.4.
21
Jacques Le Goff, O Imaginário Medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p.206.
22
A. Gurevitch, As Categorias da Cultura Medieval, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, p.77.
23
Idem, p.78.
24
Citado por A. Gurevitch, Idem, p.79.

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afirmava que “este mundo sensível é como um livro escrito pela mão de Deus(…)e as
criaturas são como figuras, não reveladas ao sabor da vontade humana, mas dispostas
pelo arbítrio divino, a fim de manifestarem a sapiência invisível de Deus”25. Seria,
então, através da natureza que o homem podia comunicar com Deus, partindo da
observação da sua criação para sobre ela meditar e assim alcançar o conhecimento de si
próprio, ou seja, do centro da obra divina e da própria divindade. Para tal, muito
contribui a teoria, então desenvolvida, a partir de pressupostos já antes elaborados, da
analogia entre microcosmos e macrocosmos, que se encontra na base da concepção
filosófica da natureza que se desenvolveu no século XII.

Porém, paralelamente, a grande penetração de textos letrados de origem greco-romana


e, em particular, as traduções e comentários árabes dos tratados de Aristóteles,
sobretudo intensas a partir do último quartel do século XII, marcaram, decisivamente, o
desabrochar de uma nova cosmovisão. Segundo José Acácio Aguiar de Castro, “para a
medievalidade, tratava-se não só do contacto de um novo sistema” de organização e
funcionamento do Universo, “mas sobretudo de uma reformulação completa dos
princípios de abordagem de fenómenos naturais, dando primazia ao princípio da
causalidade física, à descoberta organicista e mecanicista dos fenómenos naturais”26. Na
verdade, assistiu-se então, à difusão de uma monumental obra teórica, baseada na
observação dos fenómenos naturais e pronta a criar roturas no método simbólico-
alegórico de decifração da natureza.

De facto, foi entre os letrados urbanos que se começaram a abrir novos caminhos e
perspectivas de análise dos fenómenos e elementos naturais, advogando-se e praticando-
se várias propostas experiencialistas para encontrar e enunciar as leis que regiam a
natureza e o mundo. Contudo, se as cidades do século XII marcam os primórdios da
afirmação de uma visão racionalizante do mundo, nunca a sociedade medieval deixou
de permanecer tributária de uma concepção simbólico-alegórica da natureza, mesmo
durante a Baixa Idade Média27.

Na verdade, num primeiro momento, as informações fornecidas pela ampla obra


aristotélica, contribuiu para fornecer aos bestiários novos dados sobre o comportamento

25
Citado por J. Castro, O Simbolismo da Natureza em Santo António de Lisboa, Porto, Universidade
Católica Portuguesa, 1997, p.30.
26
J. Castro, Idem. P. 41.

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animal, tendo estes sido objecto da exegese que privilegiava a abordagem simbólico-
alegórica. Entretanto, nas enciclopédias do século XIII surgiram inovações na
caracterização e na visão dos seres que constituíam o mundo animal. Nestas,
normalmente iniciadas com o relato da Criação a que se seguia uma história do mundo
através da interligação entre os relatos bíblicos e os transmitidos pelos autores da
Antiguidade, incluindo as narrativas míticas, incluía-se uma descrição do mundo, onde
eram referenciados os seres da natureza e a sua classificação. Assim, os animais
surgiam agrupados, quer em função das zonas geográficas de que eram originários, quer
a partir dos quatro elementos que se encontrariam na origem da sua criação e que os
caracterizavam, ou através das afinidades zoológicas. Neste sentido, revela-se uma
substituição do agrupamento dos animais a partir do processo de analogias das
naturezas e suas significações, pela classificação de propriedades afins e comuns aos
animais ou pela sua origem geográfica. Por outro lado, as explicações simbólico-
alegóricas começam a ser omitidas, privilegiando-se a descrição das características
físicas e comportamentais dos animais.

Ora, tal processo marca o surgimento de uma nova concepção na abordagem ao mundo
natural. No entanto, os letrados medievais não deixavam de manifestar nos seus escritos
a dependência dos legados antigo e bíblico, repetindo as informações por eles
transmitidos. Torna-se, no entanto, patente, nos autores das enciclopédias do século
XIII, um certo espírito crítico e, por vezes, uma atitude de cepticismo perante os dados
fornecidos pelas heranças referidas, não obstante, continuarem a mencionar os prodígios
e os seres fabulosos, assim, como os supostos comportamentos que caracterizariam os
seres da fauna estranha ao mundo ocidental, e mesmo dos que neste habitavam. No
entanto, às informações transmitidas não deixam de, por vezes, se encontrar associados
os comentários que justificariam a possibilidade da existência e características dos seres
exóticos. Neste sentido, elaboram-se tentativas de explicação das maravilhas que
povoariam, nomeadamente, as longínquas zonas geográficas do mundo então
conhecido, em função das características físicas e climatéricas de tais zonas. Na
verdade, elas justificariam a existência dos prodígios, conjuntamente com a capacidade
criativa omnipotente do Demiurgo.

27
P. Chambel. Op Cit., pp.5,6.

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Salientam-se, entre as enciclopédias produzidas no século XIII, a Imagem do Mundo de


Goussoin de Metz, o Livro do Tesouro de Brunetto Latini e o Livro das Propriedades
das Coisas de Jean Corbechon. Ora, o processo de aproximação ao mundo natural
desenvolvido pelos enciclopedistas, manifesta-se, igualmente nas versões da história
bíblica, incluída nas histórias do mundo que pretendiam compilar os grandes
acontecimentos que tinham marcado a história da humanidade desde a Criação, sendo a
dos seres da natureza explicada em função da teoria dos quatro elementos, justificando-
se, assim, a afinidade dos animais que constituíam os grandes grupos criados segundo a
ordem divina28.

Entretanto, a emergente literatura dirigida a um público que frequentava as cortes


feudais europeias, iria também contribuir para uma nova visão do mundo natural. Se é
certo que este surge, muitas vezes, referenciado de uma forma estereotipada, como a
menção aos seres naturais na poesia cortesã, a partir da repetição de motivos que se
inscrevem nas próprias regras de elaboração dos poemas, as canções de gesta, as
crónicas e os romances, posteriormente prosificados iriam determinar uma reavaliação
das conotações de alguns animais. Neste sentido, os ligados ao mundo cortesão, como
os cavalos, os cães e as aves de caça, assim como os que eram objecto da actividade
venatória e que se revelavam ferozes oponentes daqueles e dos caçadores, como os
javalis ou os veados, passaram a ser mencionados de uma forma positiva. Por outro
lado, os romances, nomeadamente os de temática antiga, suscitavam, através da
referência aos prodígios e aos animais fantásticos da tradição clássica, o interesse pelas
maravilhas com que os heróis se deparavam e que, por vezes, tinham de enfrentar.

No que respeita ao processo de divulgação das obras aristotélicas sobre a natureza e os


seus seres ele revelou-se como o marco mais importante para o desenvolvimento de
uma nova cosmovisão, como referenciámos. Para além dos vastos conhecimentos
recolhidos sobre os comportamentos e características dos animais, começa-se a
assimilar os seus métodos de observação e classificação. É neste contexto que surge a
marcante obra de Alberto Magno, o De animalibus, onde o mestre de S. Tomás de
Aquino utiliza para o estudo dos animais, suas características e comportamentos, a
observação dos seres e privilegia uma atitude crítica perante os dados fornecidos pela

28
J. Bichon, Op. Cit., pp.760-772.

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tradição antiga. É certo, porém, que não deixa de transmitir as informações divulgadas
pelos autores pagãos da Antiguidade, como os prodígios e os animais imaginários, mas
na sua obra torna-se patente um espírito crítico, revelado, nomeadamente na credulidade
manifestada perante certos comportamentos animais, e nas questões que coloca sobre as
possibilidades de existência dos seres fabulosos, procurando explicações lógicas que os
justifiquem ou rejeitando tais prodígios.

Ora, não obstante as limitações da obra do dominicano inglês, ela contribuiu de forma
decisiva para uma nova maneira de encarar a natureza e os seus seres. O método
experiencialista que propôs, acabou por se encontrar na origem, juntamente com o
contributo dos mestres da escola de Oxford, que, igualmente, manifestaram uma
profunda influência da obra aristotélica no estudo da natureza, através de uma nova
abordagem à visão do mundo, dos seus seres e fenómenos. Destaca-se, nomeadamente o
contributo de Roger Bacon, devido à primazia que concedeu ao estudo da matemática
para a explicação dos fenómenos naturais, vindo, assim, o conjunto de tais contributos a
lançar as bases de um verdadeiro espírito científico que se viria a desenvolver na época
moderna. No entanto, para os autores medievais a Criação continuou a ser entendida
como uma manifestação da potência criadora de Deus e o estudo da natureza, uma
forma de alcançar uma aproximação aos seus desígnios.

Dos discípulos aristotélicos medievais, destaca-se, igualmente, o franciscano,


Bartolomeu, o Inglês, autor do Liber de proprietatibus rerum, que serviu de fonte às
informações sobre a generalidade dos animais presentes na obra do autor português
anónimo do Horto do Esposo, uma obra onde ainda se manifesta a influência dos
bestiários tradicionais, uma vez que os dados recolhidos na obra de Bartolomeu são
objecto de uma exegese simbólico-alegórica e enquadrados em narrativas e exemplos
morais.

Como afirmámos, não obstante a influência da obra de Aristóteles nos letrados


medievais, a sociedade medieval não deixou de permanecer tributária de uma concepção
simbólico-alegórica da natureza, bem patente na continuação da elaboração de
bestiários, inspirados na tradição do Physiologus, assim como se continuou a manifestar
o interesse por este, e pelas obras da Antiguidade tardia, onde se privilegiava a
descrição mítica e fabulosa dos seres naturais, como é o caso do sucesso suscitado pela

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obra de Cauis Júlio Solino, Colectania rerum memorabilium, e a utilização de imagens


animais na prédica, nos exempla e nas hagiografias, ou seja, nomeadamente, na
literatura de origem clerical.

Por fim, nesta breve apresentação da visão do mundo animal transmitida pelos autores
medievais, iremos mencionar um conjunto de obras que pelas suas características
inovadoras na abordagem de que foram alvo alguns animais merecem ser assinaladas.
Referimo-nos aos tratados de alveitaria e falcoaria. Nestes, escritos ora por nobres, ora
pelos tratadores dos seus animais de caça e transporte, os autores divulgavam a forma
de criação e adestramento, nos primeiros, dos cavalos, e, nos segundos, das aves
predadoras utilizadas na caça, assim como descreviam os métodos de tratamento de
diversas doenças dos animais e o da utilização das aves na prática venatória. Os tratados
revelam um saber empírico, baseado no contacto e na experiência do trato com os
animais, expondo, no que se refere ao tratamento destes, os remédios e as mezinhas que
os poderiam curar. Se é certo que se revela nos seus diagnósticos e nos tratamentos
propostos a teoria dos humores, eles não deixam de manifestar um saber adquirido pela
prática e pela experiência. Redigidos inicialmente em latim, desde o século XII, embora
o primeiro tratado de falcoaria conhecido remonte ao século X, manifestam a influência
dos tratados árabes antes elaborados. Ora, pelas suas características de comunicação dos
saberes sobre os animais, baseados na experiência empírica, e segundo um princípio
utilitário, eles distinguem-se dos restantes tratados animais da época. Dado o âmbito
restrito do seu público e da sua finalidade, o carácter inovador na aproximação à visão
dos animais sobre os quais se debruçavam, não se manifestou, desde logo, nas obras,
dos seus contemporâneas.

No entanto, a sua influência estendeu-se a obras de alguns letrados de origem clerical,


como foi o caso de Alberto Magno. Na verdade, não obstante a caça com aves de rapina
e com cães ter sido interdita aos eclesiásticos, ela não deixou de por eles ser praticada,
nomeadamente pelos detentores de altos cargos clericais, cuja origem nobre é
conhecida. Neste sentido os tratados de alveitaria e falcoaria revelam características
inovadoras na abordagem ao mundo animal que justifica a sua referência. Em Portugal,
para além de uma muito abreviada versão do Livro de Caça do rei Dancus, foram
elaborados até ao século XV, o Tratado de Falcoaria de Pêro Menino e o Tratado de

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Alveitaria de Mestre Giraldo, onde se manifesta a influência da inovadora obra sobre a


adestramento e tratamento dos equídeos de Jordanus Rufo.

Nesta sucinta exposição, procurámos expor as linhas gerais da evolução do bestiário


letrado medieval, sendo este entendido como a visão do mundo animal presente nas
obras dos autores da época, e não apenas nos denominados “bestiários”, procurando
evidenciar as características mais marcantes de cada período e explicar as inovações que
se foram manifestando, através de uma breve referência aos contextos sócio-
económicos, culturais e mentais que as tornaram possíveis. Demos especial atenção à
visão dos seres naturais na Alta Idade Média, com o intuito de procurar perceber as
importantes etapas que se seguiram, e, assim, contribuir para uma aproximação ao
estudo do bestiário da época românica. Por fim, pareceu-nos oportuno referir ainda as
condições que vieram a possibilitar o surgimento de um novo olhar sobre o mundo
natural, iniciado a partir de finais do século XII, e que se encontra na origem de uma
visão mais racional da natureza que se viria a desenvolver nos séculos seguintes.

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