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A Evolução do
Bestiário Letrado Medieval –
uma síntese
Pedro Chambel
Novembro 2006
Divulgada on line em
http://www.fcsh.unl.pt/iem/investigar-iem.htm
Ora, não obstante a omnipresença da natureza e dos seus seres na vida quotidiana das
populações, os letrados medievais não manifestaram, no geral, um interesse pelos
animais em si. Na verdade, estes eram entendidos, antes de mais, como manifestações
da potência criadora da divindade. De facto, na Patrística Ocidental, S. Agostinho
concebia o mundo como um livro de origem divina que, à semelhança das Sagradas
Escrituras, precisava de ser lido e descodificado em função do seu Demiurgo e Criador.
No entanto, o pensamento de S. Agostinho, de profunda influência e repercussão na
Alta Idade Média, privilegiava uma via de interiorização mística que afastava qualquer
tentativa de olhar o mundo físico como realidade a analisar e manipular. Entretanto, na
Patrística Oriental, sobretudo a partir de Orígenes, desenvolveu-se um pensamento que
acentuava a leitura alegórica e moral, que juntamente com a literal e anagógica, devia
ser utilizada para entender as Sagradas Escrituras e, por extensão, era utilizado na
percepção do próprio mundo natural.
Neste sentido, os letrados cristãos da Alta Idade Média procuraram, através de uma
abordagem simbólico-alegórica, descortinar nos seres naturais os sinais que o Criador
Desenvolveu-se, portanto, uma visão letrada da natureza, segundo a qual esta era
entendida como constituída por um conjunto de símbolos e sinais que deviam ser lidos e
descodificados de forma a entender os desígnios divinos da Criação.
Coloca-se, assim, com pertinência a questão das fontes que transmitiram aos clérigos
medievais as informações sobre os animais, uma vez que nos seus escritos não
encontramos um olhar próprio sobre a natureza e os seus seres. Um exemplo da
determinante influência das fontes na transmissão do conhecimento do mundo animal,
encontra-se na grande enciclopédia medieval do século VII, do bispo sevilhano Isidoro
de Sevilha, As Etimologias, onde os conhecimentos herdados do helenismo tardio e da
cultura romana nela se encontravam sistematicamente explicados por um método
etimológico-analógico que acentuava e desenvolvia o suposto carácter teofânico das
manifestações naturais.
Assim, em primeiro lugar, abordaremos o legado bíblico. Para o analisar temos de ter
em conta, como referimos, que a leitura das Escrituras era efectuada não só no seu
sentido literal e histórico, como também no moral e alegórico, sendo estes dois aspectos
de primordial importância na transmissão do bestiário bíblico. No mesmo sentido,
1
J. Voisenet, Bestiaire Chrétien. L’Image Animal des Auteurs du Haut Moyen Age (Vº - XIº s.), Toulouse,
Presses Univ. du Mirail, 1994, p.17
convirá assinalar que o Antigo Testamento, o que mais informação sobre os animais
forneceu para os escritos medievos, era entendido como um anúncio do Novo. Ou seja,
lido de forma simbólica, os acontecimentos narrados neste último encontravam-se já
expressos na tradição veterotestamentária.
Nesta última, destaca-se o Génesis. Nele narra-se a criação dos animais, que antecede a
do homem, seguindo-se, após ao surgimento de Adão, a nomeação destes efectuada pelo
primeiro homem, o que marca a superioridade ontológica do ser criado com alma sobre
o conjunto das bestas. A seguir à queda e expulsão do Paraíso, desenvolve-se a
caracterização dos animais em função das necessidades humanas, narrando-se os
processos que levaram à sua utilização no vestuário, na caça, na pastorícia, agricultura e
alimentação, assim como para a efectuação dos sacrifícios oferecidos à divindade. Neste
sentido, com o Génesis, estabelece-se a relação homem-animal, que, em última
instância, traduz e justifica o modo de vida do povo eleito na sua interacção com a
natureza.
Outro importante legado bíblico para o bestiário medievo foi constituído pela presença
dos animais nos milagres, onde surgiam como instrumentos da divindade, ora para punir
os inimigos dos israelitas ou os pecadores, ora para proteger os homens santos, ou ainda
para restabelecer a ordem divina e fazer prevalecer os desígnios de Deus. Como
exemplos marcantes para a Idade Média, podemos referir, entre outros, os episódios das
pragas lançadas por Deus sobre o Egipto, o do asno de Balaão, o dos corvos que
alimentaram Elias, as narrativas de Daniel na cova dos leões, da baleia onde Jonas
permaneceu ou a do leão que protegeu o corpo do santo homem que desobedeceu às
ordens do Senhor e que por isso foi morto pelo animal. Ora, os episódios bíblicos foram
entendidos segundo um processo exegético que privilegiava a leitura simbólico-
alegórica das manifestações divinas, explicando-se, deste modo, as narrativas.
Para além dos animais presentes nos contextos que referimos e que foram interpretados
com um acentuado valor simbólico, o Velho Testamento referencia, igualmente, outros,
como os do quotidiano judaico e o dos povos vizinhos, ou seja, os animais domésticos e
de pastoreio, assim como, as bestas feras que constituíam um perigo para as populações.
Ainda da tradição veterotestamentária, salientam-se os animais presentes nos Livros dos
Salmos, dos Provérbios e no dos Cânticos, que, igualmente foram interpretados de
forma simbólico-alegórica e, por vezes, profética.
Neste sentido, podemos afirmar que o Antigo Testamento transmitiu um amplo bestiário
aos autores medievais, constituído por animais de diversas espécies e portadores de
diferentes funções, para além de ter dado a conhecer animais estranhos à fauna do
Ocidente medieval. Por outro lado, na Bíblia, raramente são mencionados animais
fabulosos.
Não obstante ter sido a tradição veterotesmentária a que mais contribuiu para o bestiário
medieval, também o Novo Testamento transmitiu fortes imagens animais para os
letrados medievais. Neste sentido, destaca-se a sua presença nos milagres, nas parábolas
e nas frases de Cristo e dos seus discípulos, como a pomba que surge durante o
baptismo de Jesus, símbolo do Espírito Santo, mas também podemos referenciar o
milagre da expulsão dos demónios do possesso, efectuado por Cristo, que os enviou
para uma vara de porcos que depois se lançaram num precipício. Dos seus
ensinamentos, salientam-se as referências aos cães que lambem as feridas de Lázaro, os
porcos apascentados pelo filho pródigo ou os pardais de baixo preço. Quanto às frases
atribuídas a Jesus, destacamos a comparação de Herodes a uma raposa, as pérolas que
não devem ser dadas aos porcos, a sua identificação com a serpente de bronze e, após a
Ressurreição, o anúncio aos apóstolos do poder que passaram a usufruir sobre os
animais venenosos. Por fim, assinalamos a expressão de Pedro, “o cão voltou ao seu
próximo vómito”, para designar os cristãos que renunciaram à sua fé.
Para além do legado bíblico, as obras dos autores da Antiguidade Clássica revelaram-se
de extrema importância para a concepção da natureza e dos seus seres, encontrando-se
2
Idem, pp.42-48.
as informações por eles transmitidas presentes nos escritos dos letrados da Alta Idade
Média. Na verdade, foi por seu intermédio que estes herdaram conhecimentos, não só de
diversos animais, como sobre os seus comportamentos e características, que,
interpretados segundo o método alegórico-simbólico, contribuíram para enriquecer os
bestiários e as enciclopédias, entretanto elaboradas. Tal influência estendeu-se por toda
a Idade Média. É certo, porém, que muitas das descrições de animais transmitidas pelos
autores pagãos revelavam-se fantasistas e fabulosas, assim como deles foi recebido um
bestiário constituído por monstros e animais prodigiosos. No entanto, nunca os autores
da Alta Idade Média questionaram as informações herdadas da Antiguidade, dados os
seus autores serem considerados como “autoridades”, no que respeitava ao
conhecimento do mundo animal.
Entre estes destacam-se os naturalistas, ou seja, os autores que elaboraram obras sobre
a natureza e os seus seres. O mais importante foi Aristóteles. O filósofo grego dedicou
uma importante parte da sua obra ao estudo dos animais, nomeadamente, aos seus
comportamentos, características, constituição e procriação. Aristóteles manifestou, na
sua abordagem ao mundo natural, um espírito crítico, privilegiando a observação dos
seres, assim como a sua classificação. É certo, porém, que recolheu, igualmente, dados
provenientes de diversas fontes, pelo que não deixou de transmitir informações
erróneas. No entanto, o espírito crítico que desenvolveu, a observação que praticou,
assim como o desinteresse manifestado pelos animais fabulosos e as tradições
fantasistas sobre o comportamento animal, tornou-o o fundador da zoologia,
estendendo-se a influência da sua obra muito para além do período medieval. Mas, esta
apenas começou a ser conhecida de forma sistemática pelos autores medievais, a partir
das traduções árabes efectuadas no século XIII. Neste sentido, os letrados da Alta Idade
Média tiveram, da ampla obra do Estagirita sobre os animais, apenas acesso às
informações transmitidas através dos dados recolhidos e divulgados por outros
naturalistas, nomeadamente Plínio, enquanto lhes foi totalmente estranho o método
desenvolvido por Aristóteles no que respeita à observação e ao rigor no estabelecimento
de uma classificação dos animais.
Assim, durante a Alta Idade Média, foram as obras dos latinos Plínio, Solino e do
helénico Eliano, as que obtiveram maior divulgação. Estes, no entanto, limitaram-se a
recolher informações de diversas fontes, não revelando um espírito crítico sobre os
Outros autores antigos que contribuíram de forma decisiva para o bestiário medieval
foram os poetas gregos e latinos. Destes destacamos Homero, Virgílio e Ovídeo, dado o
necessário carácter sucinto da nossa exposição. No que respeita à sua influência sobre
os autores da Alta Idade Média, convirá esclarecer dois pontos de decisiva importância.
Assim, salienta-se, por um lado, o facto de as suas obras nem sempre terem sido
conhecidas directamente, e, por outro, o processo de cristianização operado nestas pelos
letrados medievais, enquanto os seus autores, nomeadamente Virgílio, foram, muitas
vezes, considerados como profetas do cristianismo. Neste sentido, nas Bucólicas, a
idílica idade de ouro descrita por este último autor, onde reinava a harmonia entre os
seres naturais, associada ao nascimento de uma criança, foi entendida, tal como a
profecia de Isaías que mencionámos, como um anúncio profético do reino de Cristo na
Terra. Por seu lado, a narrativa de Ulisses preso ao mastro, de ouvidos tapados para não
ouvir os cânticos tentadores das sereias, relatada na Odisseia de Homero, foi assimilado
à imagem de Jesus crucificado, alheio às seduções terrenas e sensuais que as sereias
simbolizavam. Neste sentido, os episódios narrados nas grandes epopeias antigas
acabaram por ser objecto da exegese cristã, o que permitiu a sua assimilação pelos
Quanto à influência de Ovídeo, ela deu-se por via das Metamorfoses, onde o autor
descreve abundantes transformações de deuses e homens em animais. Mais uma vez, foi
o processo de leitura alegórica cristã que permitiu que a obra do poeta romano fosse
utilizada pelos letrados medievais. Como exemplo, podemos salientar a referência à
Fénix, o animal fabuloso que renascia das próprias cinzas, e que foi interpretado como
um símbolo de Cristo ressuscitado3.
É certo que obras de outros poetas se revelaram importantes fontes para os autores
cristãos no que respeita à transmissão do conhecimento de espécies e comportamentos
animais, como foram o caso das de Marcial, Lucano ou Servius, entre outros4. Mas
foram os que referimos de forma mais pormenorizada, aqueles que exerceram maior
influência nos escritos dos autores cristãos. Das suas obras, os letrados medievais
herdaram, não só os animais fabulosos associados à mitologia clássica pagã, como as
imagens animais que, descritas de forma poética, caracterizavam as atitudes e os
comportamentos dos heróis, constituindo um vasto reportório de informações sobre as
supostas características de diversos animais.
Ora, o legado antigo revelou-se, portanto, de uma importância decisiva para os autores
da Alta Idade Média. Na verdade, foi um enorme conjunto de seres animais e fabulosos
que lhes foi transmitido, associado às descrições dos seus comportamentos e
características físicas, reais ou imaginárias. Perante esta abundante informação, os
letrados medievos não desenvolveram uma atitude crítica. A sua acção sobre tão
importante herança consistiu, fundamentalmente, em cristianizar as informações obtidas
através, nomeadamente, do método simbólico-alegórico, o que permitiu enquadrar o
legado antigo nas obras escritas pelos clérigos, nomeadamente nas de conteúdo moral e
educativo.
Podemos ainda mencionar outro tipo de escritos legados pela herança pagã antiga como
os tratados de agronomia, de pesca e de caça, as obras dos polígrafos e os tratados de
medicina e farmacopeia.
3
Idem, pp.72-75, 79,80.
4
Idem, pp.73,74.
No que respeita ao importante legado dos filósofos, destaca-se o de Platão, não obstante
a sua obra, no geral, não ter sido directamente conhecida, o de Cícero e o de Séneca. Do
primeiro, destaca-se a associação das imagens dos animais selvagens aos vícios
humanos, e a ideia da “metamorfose” que animaliza os pecadores, para além da
influência, através dos filósofos neoplatónicos, nos escritos da tradição Patrística. Do
segundo, salientam-se os exemplos morais com a referência aos animais, enquanto o
terceiro, considerado um “precursor inconsciente do cristianismo”5, desenvolveu uma
atenção particular aos comportamentos animais considerados numa óptica moral6.
Por fim, iremos referir um género literário desenvolvido na Antiguidade e que gozou de
particular receptividade na Idade Média. Tratam-se das fábulas cuja origem foi
atribuída, ainda no período clássico, a Esopo. Posteriormente, as fábulas esópicas foram
recolhidas e desenvolvidas por outros autores, nomeadamente Fedro, Aviano e Babrios.
Ora, terá sido um autor do século V, Rómulos, o responsável pela transmissão dos
escritos de Esopo e dos seus divulgadores e continuadores aos autores medievais7. É
certo, porém, que também no Oriente surgiram fábulas que os letrados medievais
conheceram e divulgaram, embora se revele problemático o estudo das vias da sua
transmissão para o Ocidente.
A fábula caracteriza-se por ser um conto curto de conteúdo moral e onde predominam,
como personagens, os animais. Estes surgem referenciados com características
antropomórficas, manifestando atitudes e comportamentos humanos. Deste modo, as
suas acções pretendem caracterizar as dos homens, com o fim de transmitir
ensinamentos morais, surgindo os animais nelas descritos de uma forma estereotipada.
No entanto, as principais características com que surgiam nas fábulas e que os
individualizavam enquanto espécie, foram amplamente assimiladas ao bestiário
medieval.
Deste modo, o lobo surge como um animal maligno que não hesita em servir-se de
todos os meios ao seu alcance para atingir os seus fins, nomeadamente na tentativa de se
alimentar dos mais fracos e indefesos, enquanto a raposa é mencionada como um animal
manhoso e matreiro. O sucesso das fábulas na Alta Idade Média, revelou-se através da
5
Idem, p.94.
6
Idem, pp.90-95.
7
Idem, pp.82,83.
sua utilização nos escritos dos Padres da Igreja e nos sermões, assim como na presença
de representações iconográficas. No geral, elas foram assimiladas e reutilizadas pelos
autores cristãos sem sofrerem acentuadas modificações. Na verdade, as lições morais
por elas transmitidas adequavam-se aos ensinamentos cristãos, podendo, quando tal não
fosse o caso, serem reformuladas e acrescentadas. É certo, porém, que alguns animais
sofreram modificações no que respeita à sua original “personalidade”, mas tal não
implicou profundas mudanças nos conteúdos morais. A influência mais marcante deste
género literário residiu na possibilidade da sua utilização nos tratados de conduta moral,
nas homilias e nos sermões, através de um processo de cristianização dos exempla
transmitidos pelas narrativas.
Outro legado marcante para os autores medievais foi o transmitido pelos primeiros
grandes pensadores cristãos, os Padres da Igreja. Tendo vivido, ora no período tardio da
Antiguidade, ora nos alvores da Idade Média, eles manifestaram nas suas obras a
influência da herança clássica, enquanto contribuíram decisivamente para a elaboração
dos dogmas cristãos, influenciando os seus escritos toda a cultura letrada da Alta Idade
Média. Neste sentido, os conhecimentos sobre os animais transmitidos pelos autores
antigos foram por eles alvo da exegese cristã, contribuindo tal processo para a visão
medieval do mundo natural. Já nos referimos muito sumariamente a S. Agostinho e a
Orígenes. Vejamos, agora em particular, na Patrística latina, Ambrósio, Jerónimo e
Agostinho. O primeiro revela nos seus escritos, tanto a influência do bestiário bíblico,
como o transmitido pelos autores antigos, manifestando uma interpretação imaginativa
na descrição da natureza, e em particular da fauna, uma vez que a utilizou para o ensino
da moral cristã. Neste sentido, desenvolveu nos seus textos doutrinais um alegorismo
espiritual, inspirando-se, para tal, frequentemente, no bestiário transmitido pelos autores
clássicos, e acrescentando, quando necessário, novas propostas interpretativas dos
comportamentos animais.
Quanto a Jerónimo, para além da importância dos seus textos hagiográficos, salienta-se
as traduções e comentários da Bíblia, utilizando, para estes, uma exegese inspirada nas
propostas de Orígenes, privilegiando o sentido alegórico, após a referência à explicação
literal ou histórica das narrativas das Sagradas Escrituras. Neste sentido, os animais
bíblicos foram objecto, por parte de Jerónimo, de uma interpretação moral e mística,
encontrando-se, assim, ao serviço da leitura exegética dos textos sagrados.
Por fim, S. Agostinho influenciou todo o pensamento teológico da Alta Idade Média. Já
nos referimos à sua ideia sobre a natureza como um livro de origem divina que à
semelhança das Sagradas escrituras devia ser lido e descodificado para entender e
louvar a obra do Criador. Por outro lado, para Agostinho a cultura legada pelos autores
clássicos podia ser utilizada pelos pensadores cristãos e posta ao serviço da
evangelização, desde que não pusesse em causa os dogmas e a doutrina da Igreja. Neste
sentido, o bispo de Hipona utilizou nos seus ensinamentos doutrinais diversas tradições
sobre o mundo animal, numa perspectiva exegética cristã. Assim, adaptou, tanto o
bestiário bíblico como o clássico, à apologética do cristianismo, a partir de diversas
imagens, comparações e símbolos. Ainda de relevante importância, foi o estudo que
dedicou às raças monstruosas que os autores antigos tinham divulgado, no sentido de
estabelecer uma definição de critérios de humanidade8.
No que respeita aos Padres orientais, a sua influência no pensamento dos autores
medievais do Ocidente foi dificultada pelo facto dos seus escritos terem sido elaborados
em línguas pouco conhecidas destes. No entanto, embora seja difícil estabelecer a sua
influência no imaginário animal da medievalidade do Ocidente, as traduções efectuadas
de algumas das suas obras do século IV ao VI acabaram por contribuir para a visão dos
animais que se desenvolveu na Cristandade ocidental. Iremos apenas referir Orígenes,
cuja exegese bíblica, fundada nas leituras histórica ou literal, moral, alegórica e
espiritual obteve uma determinante influência na abordagem aos textos sagrados
praticada pelos letrados cristãos. Na verdade, para Orígenes por detrás das narrativas
bíblicas, encontrava-se um sentido espiritual que permitia entender a verdadeira
mensagem divina. Deste modo, desenvolveu uma exegese que privilegiava a abordagem
alegórica das Sagradas Escrituras, em detrimento da histórica, como via de alcançar o
verdadeiro sentido do ensinamento bíblico. Neste processo manifestava-se a influência
da filosofia de Platão, tendo Orígenes elaborado uma síntese entre o pensamento do
filósofo grego e o cristianismo.
Entre outros Padres orientais que marcaram o imaginário animal da Idade Média,
podemos ainda citar Basílio de Cesareia e Gregório de Nissa9.
8
Idem, pp.115-122.
9
Idem, pp.125,126.
Para além dos Padres da Igreja, também os primeiros poetas cristãos e os homilistas
desenvolveram um importante contributo para o bestiário da Alta Idade Média, mas
devido ao carácter sucinto da nossa exposição não os iremos referir em particular.
Ainda do início do cristianismo, outro conjunto de textos que tiveram uma influência
determinante na formação do imaginário animal medieval foram os relatos
hagiográficos. Os primeiros a serem elaborados narravam os martírios dos cristãos,
confrontados com as autoridades pagãs, e as vidas dos padres do deserto. No que
respeita ao género hagiográfico, ele apresenta características específicas que convirá
explicitar de forma a entender o papel dos animais nele presentes. Assim, um dos
aspectos fundamentais da hagiografia medieval é a sua estreita relação com os textos
bíblicos, incluindo os apócrifos, actuando os milagres como uma reactualização e
rememoração dos narrados nestes, originando este processo a validação da suposta
veracidade da efectivação da acção miraculosa dos santos. Por outro lado, os relatos
hagiográficos tinham uma forte componente pedagógica de transmissão dos
ensinamentos dos textos bíblicos, nomeadamente para os fiéis incultos, uma vez que
estes, ao contrário dos clérigos e dos letrados, não tinham acesso às Sagradas Escrituras.
Neste sentido, ao relatarem os milagres de um santo medieval, os clérigos transmitiam,
implicitamente, pelo menos uma parcela das mensagens naquelas expressas10. Assim, a
função dos animais nas hagiografias medievais, na sua generalidade, reenvia para a dos
textos bíblicos.
No que respeita às vidas dos eremitas do Oriente, os santos vivendo num ambiente
hostil e deserto, confrontavam-se com as bestas feras, por vezes assimiladas a tentações
demoníacas, assim como, embora mais raramente, com seres fabulosos provenientes da
tradição pagã. Mas era também devido ao contacto com os animais, que a sua condição
de eleitos da divindade se manifestava, como era o caso do apaziguamento dos animais
perigosos que efectuavam, da sua convivência pacífica com estes, da vitória que
alcançavam sobre os ferozes e venenosos ou, ainda, quando os animais lhes obedeciam,
acompanhando-os, servindo-os e trazendo-lhe alimentos, tal como sucede nas narrativas
dos milagres presentes nos textos bíblicos e nos apócrifos.
10
P. Chambel., Os Animais na Literatura Clerical Portuguesa dos Séculos XIII e XIV – Presença e
Funções, Lisboa, Dissertação de Doutoramento, F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa, 2002, pp.10-
12.
Nos relatos dos martírios dos primeiros cristãos, surgem referidas as bestas feras que
protegem os santos, não ousando tocar o corpo dos eleitos, enquanto se revoltavam e
atacavam os seus algozes. Neste sentido, a modificação dos comportamentos
expectáveis dos animais surgia como uma prova de santidade e da protecção que sobre
os cristãos perseguidos exercia a divindade. Destes primeiros relatos hagiográficos
sobressai um bestiário constituído por animais que na sua maioria eram estranhos à
fauna do Ocidente medieval, nomeadamente os do Oriente.
Ora, a influência das primeiras narrativas hagiográficas nas posteriores vidas de santos
da cristandade ocidental, aliada à influência do bestiário bíblico, acabou por originar
que nestas surgissem frequentemente referências a animais estranhos ao espaço
geográfico do Ocidente, como os leões ou os camelos, para além dos animais fabulosos,
sem que a sua insólita presença suscitasse a incredulidade dos leitores e ouvintes.
Vejamos o exemplo do leão presente numa das versões gregas do Physiologus. Depois
de ser referido como o rei dos animais e citadas as palavras de Jacó ao seu filho Judá,
denominando-o cria de leão, afirma-se que o animal possui três “naturezas”. A primeira
consiste em apagar com a cauda as suas pegadas, quando se sente perseguido pelos
caçadores. Segue-se a explicação simbólica-alegórica, pela qual o animal simboliza
Cristo que apagou o seu rasto espiritual, ou seja, a sua divindade, para se tornar homem,
nascendo da Virgem, e salvar a humanidade. A segunda natureza reporta-se à suposta
característica do leão dormir de olhos abertos, permanecendo vigilante, o que, segundo
o anónimo autor, remete para a crucificação de Cristo, durante a qual, enquanto o seu
corpo padecia, a sua natureza divina velava pela humanidade à direita de Deus-Pai. Por
fim, os leões nascem mortos, permanecendo em tal estado durante três dias, ao fim dos
quais o pai, com o seu rugido, bafeja as crias fazendo-os viver. Ora, do mesmo modo
Deus, todo-poderoso, ressuscitou o Filho ao terceiro dia. O capítulo do leão termina,
com uma nova referência às palavras de Jacob12.
Para além de se reportar aos dogmas da Igreja através das naturezas dos seres naturais,
o Physiologus também transmite exemplos morais a serem seguidos pelos fiéis. Neste
sentido, o castor que se castra pois sabe que é caçado pelas virtudes medicinais dos seus
genitais é interpretado como um comportamento a ser observado pelos cristãos, que
devem retirar os pecados das suas condutas para não serem perseguidos pelo diabo, o
predador das almas13.
11
J. Voisenet, Op. Cit., p.109.
12
“Fisiólogo” in Pseudo Aristóteles, “Fisignomía”, Anónimo, “Fisiólogo”, T. Martínez Manzano, C.
Calvo Delcán (eds.)., Madrid, Editorial Gredos, 1999, pp.137-139.
13
Idem, pp.176,177.
o caso da serpente que, tanto simboliza o demónio, como o homem que pela
mortificação do corpo alcança a salvação14.
14
Idem, pp.155-157.
“bestiário” que viria a ser adoptada para as obras com características semelhantes que se
lhe seguiram. A versão de Philippe de Thaön encontra-se dividida em três grupos, sendo
o primeiro dedicado aos animais da terra, o segundo às aves e o terceiro às pedras. No
primeiro, sucedem-se os animais que simbolizam Jesus Cristo e o diabo, no seguinte, as
aves que remetem para o Salvador e para o homem, enquanto no terceiro se
desenvolvem as questões relativas ao homem, à divindade, à vida santa e respectivas
recompensas celestes. À sucessão, bestas, aves, pedras corresponde uma hierarquia
baseada no facto das primeiras viverem com a cabeça direccionada para a terra,
procurando apenas a alimentação, remetendo para uma imagem da infância humana, as
segundas, que voam no céu, encontram-se conotadas com os homens que aspiram por
Deus, enquanto as pedras pelas suas características de solidez, estabilidade e
permanência, simbolizam o homem que não se desvia do bem, surgindo, assim
simbolicamente referenciados os três estados espirituais do cristão15.
15
J. Bichon, L’Animal dans la Litteraru Francaise au XIIème e tau XIIIème Siècles, Paris , Thèse
Présentée devant l’Université de Paris, Tome I, pp.67,68.
16
G. Bianciotto, (ed.), Bestiaires du Moyen Age, s. l., Éditions Stock, 1992, pp.9,10.
No entanto, os bestiários irão sofrer significativas mudanças a partir do século XIII, mas
antes de a elas nos referimos, iremos ainda mencionar a influência de outros legados
que contribuíram para a visão do mundo animal da Idade Média.
Do legado celta, destacam-se as vidas dos santos onde em interacção com os eleitos da
divindade surge uma nova fauna, oriunda do substrato cultural dos povos que o
constituíam. Assim, nas hagiografias salientam-se, por um lado, uma considerável
presença dos animais, nomeadamente nas de origem irlandesa, e por outro, um respeito
perante estes, provavelmente devido à inicial função sagrada atribuída a certos animais.
Neste sentido, a forma positiva como certos animais selvagens foram concebidos pelo
legado celta, como o cervo ou certos aves, nomeadamente as migratórias, acabaram por
ser como tal assimilados pelos letrados cristãos, enquanto outros como o lobo ou o
corvo, continuaram a manifestar uma conotação marcadamente negativa, sendo o
primeiro associado ao diabo e às forças maléficas, enquanto o segundo, que na tradição
exegética veterotestamentária foi considerado como uma ave necrófaga, a partir do
relato do Dilúvio, manteve a sua condição de ave nefasta e portadora de maus augúrios.
No que respeita ao legado germânico, ele revelou-se de influência menos marcante, uma
vez que os clérigos sobre ele exerceram uma maior repressão. Neste sentido, podemos
referir o exemplo do urso que tendo sido, inicialmente, assimilado com uma conotação
positiva por parte dos autores cristãos, acabou por sofrer do processo de diabolização
que se manifestou, sobretudo no século XII e que atingiu, igualmente, outros animais.
Assim, se num primeiro momento chegou a rivalizar, nos escritos da Alta Idade Média
Ocidental, com o leão como rei dos animais, acabou por ser encarado de forma
depreciativa pela literatura clerical. No entanto, a sua presença em escudos heráldicos,
acaba por reflectir o aspecto positivo que o animal alcançou durante a Alta Idade Média.
De resto, nos milagres narrados nos Diálogos de Gregório Magno o urso surge com
conotações antagónicas, uma vez que, ora é referido como auxiliar e companheiro de
santos, ora como um animal selvagem e nocivo, o que acaba por transmitir como a sua
presença nos registos hagiográficos foi marcada pelo cepticismo e incerteza quanto ao
seu papel e função.
17
J. Voisentet, Op. Cit., pp.137-171.
No que respeita ao legado oriental, já observámos como ele se revelou marcante nos
primeiros tempos do cristianismo. Não obstante as condições históricas se terem
transformado ao longo da Idade Média, nomeadamente no que respeita à inicial estreita
ligação entre o Oriente e o Ocidente, a influência da visão do mundo animal patente no
primeiro nunca deixou de influenciar a dos letrados ocidentais Na verdade, tal encontra-
se manifesto na arte ocidental, registando-se os motivos animais de influência copta, da
Síria ou da Arménia. Também fábulas e contos onde os animais surgem como
protagonistas revelam a influência oriental, assim como os relatos hagiográficos a que
nos referimos18. A presença nas vidas dos santos dos animais, quer pela função que
ocupam, quer pelo espaço geográfico de que são originários, atesta a importância do
legado oriental na Alta Idade Média.
No entanto, para a análise da sua real influência, ter-se-á de ter em conta as vias de
transmissão que a tornou possível, pois só assim se poderá verificar se para um
determinado tema de suposta origem oriental se justifica tal atribuição.
18
Idem, pp.179-181.
Em suma, durante a Alta Idade Média, a visão dos animais transmitida pelos letrados
revela-se estereotipada. Os seres naturais foram concebidos e assimilados pela cultura
cristã da época, fundamentalmente, em função dos legados bíblicos e antigos. O animal
em si não provocou o interesse dos autores medievais, não se desenvolvendo um
processo de observação da natureza de forma a alcançar um conhecimento objectivo
sobre o comportamento animal. Prevaleceu, neste sentido, uma visão letrada da
natureza, surgindo os seus seres referenciados em função do que podiam transmitir aos
homens, nomeadamente, no que respeita à transmissão dos dogmas cristãos e dos
ensinamentos morais, que neles teriam sido inscritos pelo Criador. Privilegiou-se,
assim, um processo exegético das suas “naturezas”, entendidas como as propriedades
que os caracterizavam. É com tais funções que os animais surgem referenciados nas
homilias, nos bestiários, na exegese bíblica ou na vida dos santos. Na verdade, apenas
conseguimos encontrar alguma variação de temas no bestiário letrado transmitido pelos
autores anteriores a meados do século XII, a partir da menção a novos animais,
nomeadamente, através da assimilação de outros legados culturais, o que permitia novas
leituras alegórico-simbólicas, assim como algumas inovações nas funções atribuídas aos
animais. No geral, predominou nos textos dos autores cristãos, então elaborados, uma
repetição dos temas e das propostas interpretativas no processo de abordagem aos seres
do mundo natural. Por outro lado, manifesta-se uma quase ausência de interesse pela
descrição física dos animais, surgindo as suas características referidas de forma sumária
e esquemática.
19
Idem, p.181.
De acordo com Aron I. Gurevitch, assiste-se a partir de então aos começos de uma
irreversível “«reabilitação» do mundo e da natureza”22. Mais habilitados a agir sobre o
mundo circundante, os homens do século XII começam a considerá-lo mais
atentamente, ao mesmo tempo que o estudo e a explicação da natureza suscitam um
interesse crescente. Contudo, não se tratava de uma visão da natureza concebível em si
mesma, fora da condição de criação de Deus e como forma de o glorificar.
20
P. Chambel, Op. Cit., p.4.
21
Jacques Le Goff, O Imaginário Medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p.206.
22
A. Gurevitch, As Categorias da Cultura Medieval, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, p.77.
23
Idem, p.78.
24
Citado por A. Gurevitch, Idem, p.79.
afirmava que “este mundo sensível é como um livro escrito pela mão de Deus(…)e as
criaturas são como figuras, não reveladas ao sabor da vontade humana, mas dispostas
pelo arbítrio divino, a fim de manifestarem a sapiência invisível de Deus”25. Seria,
então, através da natureza que o homem podia comunicar com Deus, partindo da
observação da sua criação para sobre ela meditar e assim alcançar o conhecimento de si
próprio, ou seja, do centro da obra divina e da própria divindade. Para tal, muito
contribui a teoria, então desenvolvida, a partir de pressupostos já antes elaborados, da
analogia entre microcosmos e macrocosmos, que se encontra na base da concepção
filosófica da natureza que se desenvolveu no século XII.
De facto, foi entre os letrados urbanos que se começaram a abrir novos caminhos e
perspectivas de análise dos fenómenos e elementos naturais, advogando-se e praticando-
se várias propostas experiencialistas para encontrar e enunciar as leis que regiam a
natureza e o mundo. Contudo, se as cidades do século XII marcam os primórdios da
afirmação de uma visão racionalizante do mundo, nunca a sociedade medieval deixou
de permanecer tributária de uma concepção simbólico-alegórica da natureza, mesmo
durante a Baixa Idade Média27.
25
Citado por J. Castro, O Simbolismo da Natureza em Santo António de Lisboa, Porto, Universidade
Católica Portuguesa, 1997, p.30.
26
J. Castro, Idem. P. 41.
animal, tendo estes sido objecto da exegese que privilegiava a abordagem simbólico-
alegórica. Entretanto, nas enciclopédias do século XIII surgiram inovações na
caracterização e na visão dos seres que constituíam o mundo animal. Nestas,
normalmente iniciadas com o relato da Criação a que se seguia uma história do mundo
através da interligação entre os relatos bíblicos e os transmitidos pelos autores da
Antiguidade, incluindo as narrativas míticas, incluía-se uma descrição do mundo, onde
eram referenciados os seres da natureza e a sua classificação. Assim, os animais
surgiam agrupados, quer em função das zonas geográficas de que eram originários, quer
a partir dos quatro elementos que se encontrariam na origem da sua criação e que os
caracterizavam, ou através das afinidades zoológicas. Neste sentido, revela-se uma
substituição do agrupamento dos animais a partir do processo de analogias das
naturezas e suas significações, pela classificação de propriedades afins e comuns aos
animais ou pela sua origem geográfica. Por outro lado, as explicações simbólico-
alegóricas começam a ser omitidas, privilegiando-se a descrição das características
físicas e comportamentais dos animais.
Ora, tal processo marca o surgimento de uma nova concepção na abordagem ao mundo
natural. No entanto, os letrados medievais não deixavam de manifestar nos seus escritos
a dependência dos legados antigo e bíblico, repetindo as informações por eles
transmitidos. Torna-se, no entanto, patente, nos autores das enciclopédias do século
XIII, um certo espírito crítico e, por vezes, uma atitude de cepticismo perante os dados
fornecidos pelas heranças referidas, não obstante, continuarem a mencionar os prodígios
e os seres fabulosos, assim, como os supostos comportamentos que caracterizariam os
seres da fauna estranha ao mundo ocidental, e mesmo dos que neste habitavam. No
entanto, às informações transmitidas não deixam de, por vezes, se encontrar associados
os comentários que justificariam a possibilidade da existência e características dos seres
exóticos. Neste sentido, elaboram-se tentativas de explicação das maravilhas que
povoariam, nomeadamente, as longínquas zonas geográficas do mundo então
conhecido, em função das características físicas e climatéricas de tais zonas. Na
verdade, elas justificariam a existência dos prodígios, conjuntamente com a capacidade
criativa omnipotente do Demiurgo.
27
P. Chambel. Op Cit., pp.5,6.
28
J. Bichon, Op. Cit., pp.760-772.
tradição antiga. É certo, porém, que não deixa de transmitir as informações divulgadas
pelos autores pagãos da Antiguidade, como os prodígios e os animais imaginários, mas
na sua obra torna-se patente um espírito crítico, revelado, nomeadamente na credulidade
manifestada perante certos comportamentos animais, e nas questões que coloca sobre as
possibilidades de existência dos seres fabulosos, procurando explicações lógicas que os
justifiquem ou rejeitando tais prodígios.
Ora, não obstante as limitações da obra do dominicano inglês, ela contribuiu de forma
decisiva para uma nova maneira de encarar a natureza e os seus seres. O método
experiencialista que propôs, acabou por se encontrar na origem, juntamente com o
contributo dos mestres da escola de Oxford, que, igualmente, manifestaram uma
profunda influência da obra aristotélica no estudo da natureza, através de uma nova
abordagem à visão do mundo, dos seus seres e fenómenos. Destaca-se, nomeadamente o
contributo de Roger Bacon, devido à primazia que concedeu ao estudo da matemática
para a explicação dos fenómenos naturais, vindo, assim, o conjunto de tais contributos a
lançar as bases de um verdadeiro espírito científico que se viria a desenvolver na época
moderna. No entanto, para os autores medievais a Criação continuou a ser entendida
como uma manifestação da potência criadora de Deus e o estudo da natureza, uma
forma de alcançar uma aproximação aos seus desígnios.
Por fim, nesta breve apresentação da visão do mundo animal transmitida pelos autores
medievais, iremos mencionar um conjunto de obras que pelas suas características
inovadoras na abordagem de que foram alvo alguns animais merecem ser assinaladas.
Referimo-nos aos tratados de alveitaria e falcoaria. Nestes, escritos ora por nobres, ora
pelos tratadores dos seus animais de caça e transporte, os autores divulgavam a forma
de criação e adestramento, nos primeiros, dos cavalos, e, nos segundos, das aves
predadoras utilizadas na caça, assim como descreviam os métodos de tratamento de
diversas doenças dos animais e o da utilização das aves na prática venatória. Os tratados
revelam um saber empírico, baseado no contacto e na experiência do trato com os
animais, expondo, no que se refere ao tratamento destes, os remédios e as mezinhas que
os poderiam curar. Se é certo que se revela nos seus diagnósticos e nos tratamentos
propostos a teoria dos humores, eles não deixam de manifestar um saber adquirido pela
prática e pela experiência. Redigidos inicialmente em latim, desde o século XII, embora
o primeiro tratado de falcoaria conhecido remonte ao século X, manifestam a influência
dos tratados árabes antes elaborados. Ora, pelas suas características de comunicação dos
saberes sobre os animais, baseados na experiência empírica, e segundo um princípio
utilitário, eles distinguem-se dos restantes tratados animais da época. Dado o âmbito
restrito do seu público e da sua finalidade, o carácter inovador na aproximação à visão
dos animais sobre os quais se debruçavam, não se manifestou, desde logo, nas obras,
dos seus contemporâneas.
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