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Bruno Ercole1
Resumo: Nos séculos XII e XIII ocorrem importantes transformações na região que
conhecemos como Ocidente Latino. As Cruzadas, a Reforma Gregoriana, o
desenvolvimento das Universidades e o Renascimento do século XII são alguns dos
marcos deste período. Obras circulam neste território durante toda a Idade Média,
muitas delas trazendo o conhecimento vindo da Antiguidade Clássica, como é o
exemplo do Physiologus, texto escrito em Alexandria entre os séculos II e IV da era
Cristã, e que conta com descrições de animais, reais e imaginários, relacionadas a
lições do Cristianismo. Observa-se no século XII a transformação deste texto em
uma obra mais abrangente que, acrescentando trechos de alguns outros autores,
mais notadamente as Etimologias escritas por Isidoro de Sevilha no século VII, será
classificada como Bestiário Medieval. Abandonando-se as lições religiosas e as
substituindo por trechos de cunho moral, esses códices serão classificados em
diversas famílias, que vão desde obras que pouco diferem do Physiologus até
exemplares que se estruturam de maneiras bastante distintas e apresentam uma
quantidade maior de informações do que o texto que originalmente as inspirou. Com
base nessas informações, pretende-se nesta pesquisa, fazendo uso dessas obras e
da bibliografia específica, entender como ocorre essa transformação e como o texto
dos Bestiários está de acordo com uma proposta de universalidade medieval.
Palavras-chave: Physiologus; Bestiário Medieval; Imaginário
Introdução
1
Graduando em história pela UFPR e membro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos NEMED – UFPR.
obras, que estão inscritas em séculos em que se observam grandes transformações
que impactam no âmbito da cultura medieval.
Em seguida, tratamos do modo pelo qual os escritos que acabariam por se
configurar como Bestiários se desenvolveram ao longo de todos os séculos da
medievalidade, vindos dede a Antiguidade. Assim, abordamos duas obras em
específico: o texto do Physiologus grego, produzido nos espaços orientais do mundo
romano e considerado a base para os Bestiários Medievais, e as Etimologias de
Isidoro de Sevilha, produzidas no século VII no espaço da Península Ibérica.
A partir da análise dessas duas obras citadas acima, entramos na discussão
acerca dos Bestiários, apresentando algumas problemáticas que os pesquisadores
têm levantado sobre estes documentos. Por fim, tratamos especificamente do
Bestiário de Aberdeen, manuscrito produzido na Inglaterra entre os séculos XII e
XIII, considerado um dos melhores exemplos preservados deste tipo de obra, e que
é de especial interesse para este artigo. Analisando sua estrutura e influências,
pretendemos entender um pouco mais da maneira pela qual os textos anteriores
influenciaram a produção deste manuscrito.
Antecedentes: o Physiologus
Although their theologies were very different, the Cristian and pagan
allegorists, especially in Egypt, shared much common ground in discerning
within the operation of the natural world “a portion of the beauty of the
Intelligence by wich the universe is guided”. Both systems exploit certain
natural processes as a symbolic language whose vocabular itself bears an
explicit correspondence to the nature of the Creator (CURLEY, 2009: XIV).
De acordo com Curley (2009), “Physiologus was one of the most popular and
widely read books of the Middle Ages” (2009: IX). Essas lendas pagãs, para o autor,
que falam de animais, pedras e plantas, são tão antigas quanto os relatos de
Heródoto, e apresentam uma adaptabilidade aos diversos contextos que foi
responsável pela sua popularidade, chegando ao mundo cristão.
Com relação a este alcance do texto, Curley (2009) nos fala que a primeira
tradução foi do original grego para o etíope, no século IV, recebendo, na sequência,
sua tradução para o sírio e para o armênio. Quanto a uma versão latina, pode ser
que tenha surgido no século IV, havendo a possibilidade de ter sido citada no
Hexaemeron de Ambrósio de Milão. No entanto, as versões latinas mais antigas do
texto ainda preservadas datam dos séculos VIII, IX e X, ainda que se acredite que
estivesse em circulação no Ocidente, pelo menos, desde o século VI. Em vernáculo,
no Ocidente, a primeira tradução é a do inglês medieval, datada do século VIII.
Conforme variaram as traduções, surgiram novas versões do texto, com
numero diferente de seres. Embora, conforme comenta Curley (2009), a versão Y
seja a que mais se aproxima do original grego – do o qual não se conhece nenhum
manuscrito atualmente – a versão B foi a que inspirou os Bestiários Medievais.
Exemplo do texto da versão B do Physiologus que figura nos Bestiários é a narrativa
que se faz do castor:
Hay um animal que se llama castor, muy manso, cuyos testículos son útiles
em medicina para diversas enfermedades. El Fisiólogo describió su
naturaliza diciendo que cuando um cazador rastrea su pista, va atrás él;
pero el castor, al mirar hacia atrás y ver el cazador que viéne seguiéndolo,
imediatamente se corta los testículos de um mordisco y lo arroja ante la
cara del cazador y así se escapa e huye. El cazador, por su parte, llega y
los recoge y ya no sigue perseguiéndolo y se aleja de él. Y si vuelve a darse
el caso de que outro cazador lo rastree y dé com él y lo persiga, él, viendo
que ya no puede escaparse, se yergue y mustra sus genitales al cazador.
Éste, a su vez, al ver no que tiene testículos, se aleja de él
(PHYSIOLOGUS, 2005: 119).
O Bestiário Medieval
O Bestiário de Aberdeen2
2
O Bestiário se encontra digitalizado, transliterado e traduzido para o inglês desde 1994.
do autor indicam que seus últimos fólios foram terminados quase um século depois
desta data.
Iniciando seu texto está o Ciclo da Criação, obra de Ambrósio de Milão que,
para Varandas (2006), se encontra em apenas seis manuscritos preservados. Ao
Ciclo da Criação, seguem o livro das bestas, das serpentes, das aves, dos vermes,
dos peixes, das plantas, do homem, das pedras e dos metais. A estrutura do texto é
bastante influenciada pelas Etimologias de Isidoro de Sevilha, havendo até mesmo
uma iluminura do bispo trabalhando em seu scriptorium, além de citações diretas de
seu nome.
Seu primeiro registro data do ano de 1542, sendo inscrito no inventário da Old
Royal Library, do palácio de Westminster, criada por Henrique VIII para receber as
obras provenientes da dissolução dos mosteiros. Contudo, a biblioteca abrigava
também obras que sempre pertenceram à família real, então não há como saber se
o bestiário já estava na coleção ou não, ainda que marcas de uso indiquem uma
possível aplicação didática. No século XVII ele é cedido, junto com outros
manuscritos, e passa a compor o acervo do Marischall College que, em 1860, é
anexado à Universidade de Aberdeen.
Como exemplo de texto do Bestiário de Aberdeen podemos apresentar um
trecho que fala do dragão:
The dragon is bigger then all other snakes or all other living things on earth.
For this reason, the Greeks call it dracon, from this is derived its Latin name
draco. The dragon, it is said, is often drawn forth from caves into the open
air, causing the air to become turbulent. The dragon has a crest, a small
mouth, and narrow blow-holes through which it breathes and puts forth his
its tongue. Its strenght lies not in its teeth but in its tail, and it kills wth a blow
rather than a bite. It is free from poison. They say that it does not need
poison to kill things, because it kills anything around which is wraps its tail.
From the dragon, not even the elephant with is huge size, is safe. For lurking
on paths along which elephants are accustomed to pass, the dragon knots
its tail around their legs and kills them by suffocation. Dragons are born in
Ethiopia and India, where it is hot all year round. The Devil is like ter dragon;
he is the most monstruous serpent off all; he is often aroused from his cave
and causes the air to shine because, emerging from the depths, he
tranforms himself into the angel of light and deceives the foolish with hopes
of vainglory and wordly pleasure. The dragon its said to be crested, as the
Devil wears the crown of the king of pride. The dragon’s strenght lies not in
its teeth but its tail, as the Devil, deprived from his strenght, deceives with
lies those whom he draws to him. The dragon lurks around paths along
which elephants pass, as the Devil entangles with the knots of sin the way of
those bound of heaven and, like the dragon, kills them by suffocation;
because anyone who dies fettered in the chains os his offences is
condemned without doubt to hell (BESTIÁRIO DE ABERDEEN, 1994).
Essa passagem do Bestiário não consta no Physiologus. No entanto,
demonstra a maneira pela qual os textos das Etimologias de Isidoro de Sevilha
foram incluídos nos manuscritos, e também como eles receberam uma moralização
cristã que não constava na obra de autoria do bispo ibérico.
Já comentamos ao longo deste artigo, não há certeza com relação à função
de um Bestiário. No caso do manuscrito de Aberdeen, ricamente iluminado e que
ainda contém traços do ouro que servia de fundo para as suas imagens, também
não podemos fornecer mais do que uma resposta hipotética. Ele pode ter
apresentado alguma função didática – tanto texto quanto imagens –, mas não há
consenso entre os pesquisadores com relação a isso. Contudo, qualquer que tenha
sido a necessidade que os homens medievais sentiram em criar tal obra, podemos
perceber a maneira pela qual ela articula os vários conhecimentos que estavam
presentes no Ocidente e que não deixaram de existir com o estabelecimento do
Cristianismo.
É com o Bestiário de Aberdeen que podemos perceber a ligação entre as
outras obras que, em seu contexto, tiveram influência na sua elaboração. Quando
retomamos as ideias de Eco (1989) de que a Idade Média preservou conhecimento
da Antiguidade, mas que também o inovou, é com os Bestiários que essa afirmação
nos parece mais clara. Com base em um texto cerca de mil anos mais antigo, eles o
incorporaram a um contexto já cristão, incluindo na seleção de animais originais do
Physiologus outros seres citados por autores como Isidoro de Sevilha, além dos
seus próprios espécimes de um contexto europeu.
Considerações finais
Referências
ECO, H. Arte e Beleza na Estética Medieval. Tradução Mario Sabino Filho. 2 ed. Rio de
Janeiro: Globo, 1989;