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Uma proposta de estudo sobre a materialização do poder em diferentes registros de

tempo: dos grafismos rupestres aos diagramas de Isidoro de Sevilha.

Cíntia Jalles1

O exercício do poder e suas manifestações têm sido objeto de pesquisa desde que se passou a
identificá-lo em diferentes tipos de registros (geralmente escritos), oriundos de diferentes
períodos e sociedades conhecidas historicamente.

O presente trabalho propõe confrontar o material referente aos registros obtidos ao analisar a
obra de Isidoro de Sevilha, com outro tipo de material, relacionado a povos ágrafos,
proveniente de descobertas arqueológicas. Trata-se de uma comparação entre sociedades de
realidades distintas, em espaços e tempos distanciados, que têm em comum o fato de
possuírem uma subsistência essencialmente dependente das alterações ambientais.

O conhecimento da dinâmica celeste e de suas consequentes alterações era essencial para


garantir o uso adequado do tempo e o bom desempenho dos empreendimentos e tarefas a ele
relacionados, nestas distintas sociedades. Seu controle – reproduzido na forma de calendários
- foi utilizado não só para administrar as alterações ambientais, como também, e
principalmente, como instrumento de poder, exclusivo de alguns, para exercer o controle
sobre seus contemporâneos.

O registro do tempo e seu controle é o foco desta proposta. Buscamos problematizar as


relações de poder estabelecidas em torno do conhecimento e controle do tempo em sociedades
organizadas antes do advento da alta tecnologia que, com seus aparatos, ampliou
imensamente a capacidade de observação dos fenômenos astronômicos.

Recuperando a história do conhecimento astronômico a partir de diferentes períodos da


História, quase sempre nos deparamos com textos elaborados a partir de descobertas
astronômicas. Buscando a origem para a formação do conhecimento anterior que propiciou
tais descobertas, chegamos, sem muito esforço, aos primórdios da humanidade.

1
Pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências afins (MAST/MCTI) e doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ).
A Arqueologia, que nasceu como ciência no século XVIII com as escavações de Pompéia, na
Itália (PROUS, 1992:5) vem tentando identificar e conhecer aspectos do desenvolvimento de
sociedades humanas (incluindo comportamento, adaptações e mesmo simbolismos), a partir
dos vestígios remanescentes. É imprescindível para o conhecimento de sociedades ágrafas e
bastante útil no estudo de sociedades contemporâneas – tendo em vista a sua capacidade de
estudar o comportamento humano em seus aspectos não registrados pela escrita.

A Arqueoastronomia, que envolve uma parceria mais direta da Arqueologia com a


Astronomia, “Tem por objetivo compreender o papel que a Astronomia tinha na vida
cotidiana dos povos antigos, como ela influenciava a sociedade, como as culturas observavam
o céu e de que forma materializavam estas observações” (JALLES, C.;SILVEIRA, M.
I.;NADER, R.V. 2013:36).

Com o avanço das pesquisas arqueológicas, temos a noção – e aqui cabe ressaltar o papel da
pesquisa etnográfica que, no mínimo, amplia os nossos horizontes – da enorme diversidade de
grupos que habitaram o nosso território e que geraram, por assim dizer, uma infindável
quantidade de conhecimentos que começamos a descobrir e que ainda representam uma
parcela mínima de sua ciência.

Em contraste com os povos ágrafos, identificados unicamente através dos vestígios materiais
remanescentes da sua cultura, estabeleceremos como ponto de comparação, documentos
escritos no exercício pleno da erudição, elaborados nos momentos iniciais da sociedade
medieval. E, como a erudição era um aspecto restrito aos clérigos nesta sociedade rural,
partiremos da análise dos registros elaborados por Isidoro de Sevilha, que apresentam uma
visão de mundo do seu tempo, apontando os referenciais astronômicos reguladores do
funcionamento da sociedade em questão.

Destacaremos como objeto (aqui, literalmente o objeto físico) os calendários que, repletos de
simbologias, são provavelmente os melhores representantes das relações de poder
estabelecidas pelo uso e controle do tempo. Estas relações de poder foram constituídas não só
no contexto de Isidoro, como também provavelmente o foram para as sociedades ágrafas que
elaboraram os diversos registros astronômicos identificados nos painéis rupestres espalhados

2
pelo mundo e que foram objeto inicial de estudo básico para a construção da nossa História da
Astronomia.

Com relação às populações ágrafas, muitos são os autores que dedicaram boa parte de suas
pesquisas ao estudo e discussão pertinente aos conteúdos apresentados nos diversos registros
elaborados por nossos ancestrais. Configurados por pinturas e gravuras - encontrados em
suportes variados como paredes de grutas, cavernas, abrigos, blocos, etc. – são englobados
pelo termo “arte rupestre”.

Só no nosso território, citando as palavras de Joaquim Perfeito da Silva em relação ao


levantamento bibliográfico realizado por André Prous2 para a Arqueologia Brasileira, “[...]
verificaram-se 275 títulos, cujas referências se faziam diretas às pinturas e gravuras rupestres
do Brasil.” Sem contar a grande quantidade de trabalhos com títulos mais gerais, que muito
provavelmente contêm informações sobre este tipo de vestígio também (PERFEITO da
SILVA, 2004:1).

Apesar de ser um tema de grande interesse para os arqueólogos, assim como muito atrativo
para os leigos em geral, ainda é um objeto de estudo que necessita – mais do que a maioria
dos vestígios – de uma enorme gama de informações externas ao objeto em si. Como
salientava Annette Laming-Emperaire, são os únicos vestígios deixados consciente e
voluntariamente pelos homens pré-históricos (PROUS, 1992:509). E, provavelmente por esta
mesma razão, são os mais complexos e difíceis de estudar.

Assim como diversos outros estudiosos, os autores Jean Clottes e David Lewis-Wiliams
atribuem aos xamãs a tarefa de elaboração dos registros rupestres. No livro “Los chamanes de
la prehistoria” os autores dedicam uma parte à arte dos San, tribo sul-africana cujas
manifestações artísticas realizadas pelos xamãs, têm sido comparadas à arte paleolítica
(CLOTTES; LEWIS-WILLIAMS, 2001).

Já as possibilidades para o tempo medieval são bem maiores e muitas incluem o estudo do
calendário. O tempo, definido em calendário pela religião cristã, buscava organizar todas as
atividades sociais, políticas e religiosas. E, como estudar o calendário no período medieval
2
Em 1980 e 1985 o arqueólogo André Prous publicou importantes levantamentos sobre a história da pesquisa e
da bibliografia arqueológica no Brasil, que até hoje servem de referência para diversos outros trabalhos.

3
está diretamente associado ao estudo dos eventos religiosos, a história eclesiástica também é
de extrema importância.

Com relação a Isidoro de Sevilha, muitas são as discussões historiográficas relacionadas, não
só à sua obra mais conhecida, Etimologias,3 cujos conhecimentos reunidos representam a
parte mais substancial dos saberes da época, como também, principalmente, à própria pessoa
de Isidoro que foi uma das figuras mais importantes da Espanha visigótica, exercendo uma
enorme influência tanto em seu tempo, como na educação ao longo da Idade Média. Sua vasta
erudição e dívida para com os clássicos latinos o levaram a ser considerado o último estudioso
do mundo antigo.4

Os documentos básicos de pesquisa para as populações ágrafas serão os registros rupestres


com referências astronômicas, bem como os relatórios das pesquisas a eles relacionados,5
principalmente nos casos em que a pesquisa arqueoastronômica, especificamente, não foi
realizada, não havendo, portanto, publicações com esse enfoque.

Para o período medieval, serão utilizados como referência dois documentos elaborados por
Isidoro de Sevilha. O primeiro, Etymologiae (Etimologias), é uma obra de forma
enciclopédica – composta por vinte livros - que reúne e apresenta, de forma sistemática, todos
os campos do saber acumulados até o período da sua publicação, por volta de 634. Bastante
significativa, entre outras razões, por registrar a transformação do conhecimento desde a
Antiguidade até o século VII. Foi fundamental para a propagação da cultura greco-latina na
Espanha visigoda, além de ser uma das principais fontes de assimilação dos trabalhos de
Aristóteles e de outros gregos por toda a Europa. Outra obra, De Rerum Natura (Sobre a
natureza das coisas), dedicada ao rei Sisebuto, embora seja uma obra considerada menos
importante de Isidoro de Sevilha,6é um manual de tratamento sistemático das ciências físicas
que responde perguntas sobre pontos obscuros, sobre os elementos e sobre fenômenos

3
Considerada como a primeira grande enciclopédia cristã. Embora baseada nos saberes pagãos, foi elaborada
para auxiliar a formação cristã dos clérigos.
4
Tornou-se importante, não só por todo o conhecimento que sistematizou, como também pela citação de textos
de outros autores, dos quais não temos mais vestígios além dos fragmentos presentes em sua obra.
5
Todo sítio arqueológico que possui autorização para pesquisa, gera uma grande quantidade de documentos que
normalmente só são levados a público após o término das pesquisas, conforme as questões levantadas pelo
pesquisador/equipe responsável.
6
Não possui edições acessíveis como as versões disponibilizadas para Etimologias, por exemplo.

4
naturais. Como é comum na abordagem de Isidoro, essa obra faz referência tanto aos
conhecimentos clássicos pagãos quanto aos ensinamentos cristãos, ambos tratados como
autoridades.

O conhecimento astronômico identificado nestas obras de Isidoro – que até hoje desperta
interesse entre os estudiosos da área - apresenta a visão de mundo do seu tempo. E é a partir
dessa visão de mundo que pretendemos iniciar nossa investigação e destacar o papel da
ciência astronômica na Europa medieval. E os calendários – uma materialização do modelo
vigente, aceito pelas autoridades eclesiásticas - são, sobretudo, instrumentos de poder
institucional e religioso.

O “poder simbólico” é definido por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1989:7-8) como “o poder
invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que
lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Assim, consideramos fundamental à nossa
pesquisa o reconhecimento sobre as formas que legitimam e sancionam os mecanismos de
poder a partir da compreensão do mundo social, que não se define em função de uma única
sociedade, nem se destina apenas ao entendimento do mundo atual.

A história da Astronomia “antiga” recuperada a partir dos vestígios arqueológicos, afeta ao


campo da Arqueoastronomia, remete-nos a uma discussão mais geral sobre a assim
denominada “arte rupestre” – principal especialidade da Arqueologia envolvida na pesquisa
arqueoastronômica, particularmente em regiões/sítios onde há pouco ou nenhum outro tipo de
vestígio remanescente da cultura a ser estudada.

“A aplicação de novas técnicas, como a arqueoastronomia e a arqueologia da


paisagem, entre outros, mostram que os registros rupestres foram elaborados com
um propósito diferente do puramente expressivo ou estético e estão intimamente
ligados ao ambiente físico e astronômico em que foram
desenvolvidos”7(BUSTAMANTE DÍAZ, 2005).

A questão das interpretações é um dos aspectos mais controversos para quem estuda arte
rupestre, sendo inclusive o título de um artigo publicado por um arqueólogo brasileiro que,

7
La aplicación de nuevas técnicas como la arqueoastronomía y la arqueología del paisaje entre otras,
demuestran que las obras rupestres fueron construidas con una finalidad diferente de la puramente expresiva o
estética, y que están estrechamente ligadas al entorno físico y astronómico en el cual fueron elaboradas

5
habilmente assume a necessidade de aceitarmos “[...] a possibilidade de jamais chegarmos a
compreender o sentido mais profundo e correto da arte rupestre.[...]”. Lembrando, contudo,
que o estudo desse objeto específico da Arqueologia e dos sistemas simbólicos atuais nos
auxiliarão na compreensão do comportamento humano, “[...] na medida em que a comparação
não se centre no entendimento dos significados, mas num objetivo mais abrangente, o da
organização da mensagem.” (SEDA, 1997:144). No caso da Arqueoastronomia, a parcela da
arte rupestre diretamente relacionada é ainda menor e o número de questões, entretanto, bem
maior, tendo em vista o número reduzido de pesquisas anteriores a esta que estamos nos
propondo desenvolver.

A comparação em História sempre se fez necessária desde que, a partir dos nossos
referenciais - apreendidos durante toda nossa existência - tentamos entender o outro, ainda
desconhecido e com o qual possuímos pouca familiaridade. Em Arqueologia, esta necessidade
torna-se ainda mais marcante, não só pelo “novo” em si, como também pela total ausência de
documentos/relatos escritos elaborados pelos “contemporâneos” das sociedades passadas que
pretendemos estudar.

Com o intuito de conhecer uma sociedade em seus diferentes aspectos, os arqueólogos sempre
se associaram a outros pesquisadores - de outras áreas inclusive - e compararam períodos,8 no
intuito de compreender o funcionamento dos diversos aspectos envolvidos em sua
composição.

O período isidoriano, em contraste com o das populações ágrafas, é rico em documentações


escritas e foi responsável pela sistematização do conhecimento adquirido por todas as culturas
anteriores (clássicas, pagãs) e sua reordenação de forma cristianizada, sendo o próprio Isidoro
de Sevilha, o porta-voz autorizado da Igreja, representante símbolo do poder episcopal
(SILVA, L. R. 2004. p. 2).

O material contido nos calendários – e sua devida correlação com o entorno social a que
pertencem - é prova substancial deste poder materializado em forma de documento, que se
pode obter no registro rupestre das populações ágrafas e nos calendários elaborados no

8
Como o apresentado anteriormente (página 3), sobre a tribo sul-africana San (CLOTTES; LEWIS-WILLIAMS,
2001).

6
período medieval inicial, aqui com imenso suporte de documentos elaborados principalmente
por Isidoro de Sevilha.

Os trabalhos com enfoque arqueoastronômico têm trazido à tona uma enorme quantidade de
material arqueológico que - apesar de representar, indiscutivelmente a importância e
necessidade desse referencial para a organização das diferentes sociedades - têm levantado
mais questões que propriamente apresentado conclusões. As particularidades relatadas em
diferentes estudos de caso apontam aspectos esclarecedores que, se divergem em muito na sua
forma, convergem na interdependência do ser humano não só com o ambiente que o cerca,
mas também, fortemente, com o grupo a que pertence.

Ao escolhermos trabalhar os registros elaborados em duas sociedades rurais distantes no


espaço-tempo, pretendemos estabelecer uma conexão que vai além da relação entre grupos
semelhantes, cuja proximidade estabelece parâmetros naturalmente mais identificáveis. Ao
discutirmos as diferenças e semelhanças sobre o uso e o controle do tempo nestas distintas
sociedades rurais, pretendemos contribuir tanto para o campo da Arqueologia – enfocando os
registros rupestres (e mesmo outros tipos de vestígios) que evidenciam o conhecimento
astronômico das populações ágrafas – quanto para o da História, com destaque para o
fortalecimento do poder episcopal nos reinos bárbaros, identificando e analisando aspectos da
contribuição de Isidoro de Sevilha na transmissão do conhecimento científico astronômico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.

BUSTAMANTE DÍAZ, Patricio. ¿Arte? Rupestre, Análisis de la eficacia de un concepto


actualmente en uso. En Rupestreweb, http://rupestreweb.tripod.com/obrasrupestres.html.
2005.

CLOTTES, J., LEWIS-WILLIAMS, D. Los Chamanes de la Prehistoria, Madrid, Editorial


Ariel, 2001.

ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías. Madrid: Edición Bilingüe Latín-Español, de J. Reta e


M. A. M. Casquero, con introducción de Manuel C. Díaz y Díaz. Madrid: BAC, 1982.

7
ISIDORO DE SEVILLA. De Natura Rerum Liber. Editado por Gustavus Becker, Amsterdam: Verlag
Adolf M. Hakkert, 1967.

JALLES, C.; SILVEIRA, M.; NADER, R. Olhai pro céu, olhai pro chão. Astronomia e
Arqueologia. Arqueoastronomia: o que é isso? Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e
Ciências Afins, 2013.

PERFEITO DA SILVA, Joaquim. “ARTE RUPESTRE”: conceito e marco teórico. Em


Rupestreweb, HTTP://rupestreweb.tripod.com/conceito.html. 2004.

PROUS, André. Arqueologia Brasileira. 1ª. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1992. 613p

SEDA, Paulo. A questão das interpretações em arte rupestre no Brasil. CLIO. Série
Arqueológica (UFPE), Recife: UFPE, v. 1, n.12, p. 139-167, 1997.

SILVA, Leila Rodrigues da. A normatização da sociedade peninsular ibérica nas atas
conciliares e regras monásticas: as concepções relacionadas ao corpo (561-636) – um projeto
em desenvolvimento. Jornada de Pesquisadores do CFCH, 6, 2004, Rio de Janeiro. In: Atas ...
Rio de Janeiro: CFCH, 2004. (meio digital). ISBN 85-99052-01-2.

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