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Paleografia

Maria Cecília Jurado de Andrade*

1. A Paleografia e o Documento-

1.1. Conceito de Paleografia1

A Paleografia (etimologicamente, do grego Palaios, significando an ti­


go, e Grapbien escrita) é conhecida como a ciência que estuda a escrita
antiga.
N um sentido mais genérico e am plo, a Paleografia, em sua voca­
ção de explicare (do latim , decifrar), ansiaria representar o estudo de
todas as escritas antigas e seus desenvolvimentos, inscritos sobre todos

* Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Sao Paulo, com Pós-dou-


torado em Etnohistóría e Especialização em P aleografia pela U n iversidade
Complutense de Madri, com pesquisa junto aos arquivos históricos espanhóis.
Membro da equipe diretiva do Instituto Fe y Desarrollo de Valladolíd, Espanha.
** A primeira parte do livro representa um roteiro orientativo, que estruturei ao
estilo de Manual, para o curso de Paleografia por m ini ministrado no prim eiro
semestre de 2008 através de Curso de Extensão Cultural promovido pelo CEDHAL.
Sua estrutura básica se encontra refletida em CD*Rom de minha autoria editado
pela Associação dos Arquivistas de Sao Paulo em outubro de 2008, quando do
curso de Paleografia que ministrei para o projeto Com o Fazer, Oficina 6, “C om o
ler e transcrever manuscritos históricos dos séculos XVI ao XIX".
1 Este su b c a p ítu lo , C o n c eito de P a le o g ra fia , p r io r iz o u a b ib lio g r a f ia :
CoNTRERAS, Luis Nunez. M anual d e P aleografia'. Fundam entos e H isto ria de
la Escritura Latina Hasta el Siglo VIII. M adri: C átedra, 1994. p. 15-26; M a s a i ,
François. La Paléographie gréco-latine, ses taches, ses m éthodes. R e v is ta
S crip to riu m , Bruxelas, Cem rc d’Etude des M anuscrits, n. 10, 1956. p. 281-302;
C a m p a n a , Augusto. Paleografia Oggi. R apporti, P roblem i e P rospettive di
A n d rad e, Maria Cecília Jurado de. Paleografia.

os tipos de suportes materiais que contenham uma escrita ou outros


registros gráficos.
Desejaria abordar escritos e escritas como testemunhos de expres­
sões humanas distribuidos no tempo e no espaço, em seus vínculos
sócio-culturais, através da particularidade e universalidade das cultu­
ras como pane da história.
N um sentido m ais específico e restrito, a Paleografia está
identificada com a H istória da Escrita para o estudo da escrita antiga
e de seu desenvolvimento que se apresenta, através de diversos cam­
pos gráficos, sobre os suportes moles da escrita (pergaminho, papel,
tecidos, etc.).
Outras ciências se ocuparão do estudo da escrita antiga e de ou­
tros registros gráficos, sob todos os seus aspectos, gravados, entretan­
to, sobre os suportes duros da escrita: a Epigrafia (mármores, pedras,
bronze, ladrilhos, etc.) e a Numismática (moedas, medalhas, outras
peças relacionadas com as mesmas, etc.).
A Sigilografia, por sua vez, estuda todos os aspectos que consti­
tuem os selos (de cera, de metal, etc.) e a Papirologia se ocupa do
estudo da escrita antiga e de outros registros gráficos, sob todos os
seus aspectos, que se apresentam sobre o papiro.
A Codicologia, ciência recente dos anos 40, surgida da Paleogra­
fia, busca priorizar o estabelecimento de uma metodologia, a partir
do estudo de Códices, para o estu d o tota l dos manuscritos, entendidos
cada um como realidade única. Une-se, especificamente, com a Paleo­
grafia no exame da cronologia de documentos e outras datações, das
palavras escritas erroneamente, da origem e da confecção de docu­
mentos e da procedência dos mesmos imediatamente anterior ao lu­
gar onde se conservam.

una coraggiosa disciplina. In: S tndi U rbinati d i Sto n a , F ilosofia e L etteratnra (Studi
in onore di A n uro Massolo), n. 41, nuova serie B , n. 1-2, Vol. II, 1967. p. 1013-
1030; B a t t e l u , Giorgio. L czioni d i P aleografia. 3.ed. Cidade do Vaticano: Scuola
Vaticana di Paleografia e Diplomacica, 1949. p. 3*14; T a l l a f ig o , Manuel Romero,
L i á n e z , Laureano Rodríguez e G o n z á l e z , Antonio Sánchez. A rte d e L eer Escri­
tu r a s A n tigu a s: P aleo grafia de L ectura. H uelva: U n iversid ad de H uelva
Publicaciones, 1995. p. 13, 14.
Cursos e Eventos (Nova Serie, n. 5), p.9-146, 2010

A Ciência Diplomática estuda os D iplom as (documentos de Pri­


vilégios Eclesiásticos e Reais, Cartas de Confirmação de Privilégios,
Cédulas e Provisões Reais, Cartas de Nomeação, etc.), entendidos como
documentos antigos, sob todos os seus aspectos e desde o ponto de
vista jurídico e o diplomático.
Junto a essas ciências, entre outras existentes que se ocupam da
escrita antiga dentro do universo dos escritos e da escrita, a Paleografia
encontra um campo fértil e significativo, quero lembrar, para um es­
tudo interdisciplinar sobre a escrita antiga. A Paleografia é uma ciên­
cia que caminha (como a letra...) em boa companhia.2
Embora a Paleografia, legitimamente, se interesse, segundo ob­
serva MasaP, por todos os escritos e escritas sem distinção de suporte,
não significa que possa esgotar o estudo de todos os testemunhos es­
critos e que absorva e resuma em si as ciências acima citadas ou todos
aqueles materiais que portam uma escrita.
Algumas características dessas ciências se tornam cruciais para
contextualizar a Paleografia e o trabalho do P a leógra fo H istoria d or da
Escrita em um de seus conceitos comumente aceitos nos dias de hoje.
A Epigrafia, a Codicologia, a Papirologia e a Diplomática, con­
forme lembra Masai'1, têm em comum o estudo de escritos antigos e se
ocupam somente de certos grupos de escritos antigos, mas sempre em
sua totalidade, sob todos os seus aspectos. A Paleografia, por sua vez,
trata das escritas antigas. Aonde quer que seja que a escrita se encontre

A Paleografia, na relação com outras ciências, aufere e aporta benefícios.


Relaciona-se de um modo especial com a D iplom ática, a C od icologia, a
Papirologia, a Epigrafia, a Sigílografia e a Numismática, considerando o estudo
das escritas antigas, seus testemunhos escritos, seus suportes, etc. e os tipos de
abordagem com que operam como ciência. De modo próximo, se relaciona com
a Arquivologia, a Biblioteconomia, a Museologia, a Etnohistória, a Lingüística,
a Crítica Textual, a Genealogia, o Direito, etc. E com o Historiador, o Paleógrafo
guarda, é evidente, grande proximidade.
y M a s a i , François. La Paléographie gréco-latine, ses taches, ses méthodes. R evista
Scriptorium , Bruxelas, Centre d’Étude des Manuscrits, n. 10, 1956. p. .286.
4 M a s a i , François. La Paléographie gréco-latine, ses taches, ses méthodes. R evista
Scriptorium , Bruxelas, Centre d’Éiude des Manuscrits, n. 10, 1956. p. 286.

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A n d rad e, Maria Cecília Jurado de. Paleografia,

nos escritos, a Paleografia se ocupa só de um aspecto, só de uma forma­


lidade, sua escrita e somente como fenômeno gráfico.
Segundo Contreras5, a existência de diversas concepções de his­
tória e a diversidade de fins que apontam, condicionam em cada caso
sua metodologia. Sendo assim, não seria possível estabelecer um úni­
co método para a Paleografia identificada com a História da Escrita.
Mas, sim, é possível estabelecer algumas linhas gerais que sejam váli­
das como princípios metodológicos, os quais admitiriam, ainda, os
diversos enfoques existentes sobre a escrita.
Um dos princípios metodológicos da Paleografia, buscando uma
objetividade para essa ciência, quero destacar, se basearia na concepção
da realidade do processo gráfico como forma de conhecimento e como
uma, entre muitas, das expressões humanas que sobrevivem no tempo.
Os traçados essenciais e as formas de grafias características seriam sele­
cionados e examinados no marco sócio-cultural que os originou.
A Paleografia, na reconstrução do processo gráfico, pode conse­
guir se identificar com a realidade do mesmo, podendo, assim, ainda,
alcançar, conforme observa Campana6, e somente assim, um conheci­
mento pleno, histórico e crítico; e crítico porque é conhecimento
histórico das singulares formas gráficas.

1.2. Histórico do Paleografia7

As escritas antigas começaram a ser objeto de estudo no século XVII.


Até entao, o conhecimento das escritas antigas se limitava à leitura,
com uma ou outra tentativa e algumas notas que giravam em tomo de

C o n t r e r a s , Luis Nunez. Manual d e P aleografia: Fundamentos c Historia de la


Escritura Latina Hasta el Siglo VIII. Madri: Cátedra, 1994. p. 50,51.
6 C a m p a n a , Augusto. Paleografia Oggi. Rapporti, Problemi e Prospettive di una
coraggiosa disciplina. In: Stitdi U rhinati d i Storia, Filosofia e L etteratura (Studi in
onore di Arturo Massolo), n. 41, nuova serie B, n. 1-2, Vol. II, 1967. p. 1023.
7 Este subcapítulo, Histórico da Paleografia, priorizou a bibliografia: B a t t e l u ,
Giorgio. Lezioni d i Paleografia. 3.ed. Cidade do Vaticano: Scuola Vaticana di
Paleografia e Diplomatica, 1949. p. 11-18; M a r t í n e z , Tomás Marín e A s e n c i o ,
José M anuel R uiz (D irs.). P a le o g ra fia y D ip lo m á tica . Tomos I e II.
Cursos e Kventos (Nova Série, n. 5), p.9*146, 2010

questões classificatórias da escrita, abreviaturas, etc, Nao havia uma


classificação dos escritos quanto às suas datações.
Até grandes humanistas (entre eles Petrarca), adm iradores das
claras e belas letras de documentos encontrados nas bibliotecas de
mosteiros italianos, cairam em erro quando acreditaram que se trata­
va de escritas da era romana e as chamaram de a n tiq u a s, quando, na
verdade, eram letras carolinas de documentos do século X.
Em 1675, o jesuita holandês Daniel von Papenbroeck, na in tro ­
dução de um volume das A cta Santorum - volumosa história dos san­
tos, publicada por jesuitas franceses liderados por Jean Bolland - de­
clarou ser falsa a maior parte de antigos diplomas m erovíngios que se
conservavam no mosteiro de Saint-Denis, em Paris.
Essa acusação atingia, sobretudo, os beneditinos que eram os
guardiães e estudiosos desses documentos e fez com que o m onge
beneditino francês Jean M abillon se pusesse a estudá-los, publicando,
em 1681, em Paris, um a obra em seis volum es in titu la d a D e r e
diplom atica lib ri sex, aceita com quase unanim idade po r eruditos e
historiadores.
A publicação dessa obra assinalou a data do nascimento da D iplo­
matica, assim como da Paleografia, demonstrando a ligação entre ambas.
Ainda que, nela, tratasse principalmente da Diplomática, através da crí-

Madri: UNED, 1 9 9 6 . p . 45-51; M a n t e c ó n , José Ignácio e M i l l a r e s C a r l o ,


Agustín. Á lbun de P aleografia H ispanoam ericana d e lo s S iglos XVI y XVII. Bar­
celona: Ed. El Albir, Tomos I, Imroducción y Transcripciones, e II, Lâm inas,
1975. p. 3-7; C o n t r e r a s , L u í s Nunez. M anual d e P a leo g ra fia : Fundam entos e
Historia de la Escritura Latina Hasta el Siglo VIII. M adri: C átedra, 1994. p. 26-
30; G a r c í a V i l l a d a , Z acarias. P a le o g r a fia E sp a n o la : P re c ed id a de una
Introducción sobre la Paleografia Latina.. Barcelona: Ed. El A lb ir, Tom os I,
Texto, e II, Facsimiles, 1974. p. 6 - 8 ; A r a u z , Ligia C avallini de. E lem en tos d e
Paleografia H ispanoam ericana. San José: Editorial de la U niversidad de C osta
Rica, 1986. p. 19,20; T a l l a f i g o , Manuel Romero, L iá iv ie ? ., Laureano R odriguez
e G o n z á l e s , Antonio Sánchez. A rte d e L eer E scrituras A ntigu as: Paleografia de
Lectura. Huelva: Universidad de Huelva Publicaciones, 1995. p. 14, 15; B e l l o t o ,
Heloísa Liberalli. C om o Fazer A nálise D ip lom á tica e A nálise T ip o lógica d e D o­
cu m en to d e A rquivo. Sao Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo e Imprensa
Oficial do Estado, 2002. p. 15, 16.

13
Avdrm>£, Miria Cecília Jurado de. 1'jlmgrafu.

uca de documentos, Mabillon se dedicou também à análise das escritas.


O capítulo XI do livro I distinguia os gêneros das escritas, classificando-
as e determinando a época dos manuscritos e o livro V era uma coleção
de íac-símiles com suas transcrições. Assim, haveria dois tipos de escri­
ta; a Literária dos Códices (conforme os romanos chamavam os manus­
critos em pergaminho e papiro em forma de livro) e a Diplomática dos
Documentos. A Literária seria subdividida em: Romana antiga, Gótica,
Franco-Gálica, Longobárdica e Saxônica. As quatro últimas seriam pro­
duto dos povos bárbaros que foram se assentando nas diversas regiões,
o que o teria feito chamá-las de nacionais.
Muitas dessas assertivas não estavam corretas e foram coi rrigidas
com o tempo como, por exemplo, acreditar na independência mútua
dessas escritas, julgando-as como invenções espontâneas dos povos cujos
nomes levavam. Mas, deve-se dar a Mabillon o merito da criação da
base dos estudos paleogrático-diplomáticos, uma vez que sua obra foi
a primeira a estabelecer uma classificação quanto ao gênero e datação
das escritas.
Suas teses pareceram tão convincentes que o próprio Papenbroeck
as reconheceu como verdadeiras em uma carta datada de 1683, em
Ambères. Tiveram repercussão cm vários países da Europa, como se
pode ver atravcs das publicações do beneditino espanhol Juan Pérez
em 1688, do inglês Thomaz Maddox em 1702 e do alemão Giorgio
Bessel em 1732. Esses estudos, entretanto, eram meras reelaborações
dos juízos de Mabillon.
Mabillon nunca usou o termo Paleografia em suas obras. Quem
o fez pela primeira vez foi outro monge beneditino francês da abadia
de Saint-Germain-des-Pres, Hernard de Monlfaucon que, em 1708,
publicou, em Paris, uma obr.i denominada Paleografia Grega ott da
origem e desenvolvim ento das letras. Essa obra, referindo-se somente a
letras gregas, tinha uma natureza exclusivamente paleográfica. Nela,
Montfaucon criava um método para o estudo gráfico dos manuscri­
tos, estabelecendo listas que agrupavam e caracterizavam os documen­
tos de acordo com as datações existentes. Assim, estabelecia alguns
critérios para a classificação das escritas no tempo e no espaço e para o
estudo da evolução dos elementos gráficos.
Cursos e Evímos (Nova Série, n. 5), p.9-146, 2010

Um terceiro monge erudito veio se unir a Mabiilon e Montfaucon


na criação das bases da Paleografia como ciência: o veronês Scipione
Maffei que, em 1713, descobriu uma coleção de importantes manus­
critos na Biblioteca da Catedral de Verona e publicou, em 1727, em
Mantua, a obra História D iplomática que serve d e introdução à a n e
crítica em tal matéria. Nela, o autor fazia importantes observações,
discordando de Mabiilon quanto à classificação da escrita. Para ele,
havia uma única escrita, a rom ana, em três formas distintas: maiúscu­
la, minúscula e cursiva. Assim, todas as escritas européias derivavam
da latina, idéia com a qual abriu caminho para a Paleografia M oderna.
Nos anos que se seguiram, o ensino da Paleografia e o da Diplo­
mática foram introduzidos nas Faculdades Jurídicas das Universida­
des. Na Universidade de Gõttingen, Christopher Gatterrer, na sua
obra, Elementos das Artes Diplomáticas Universais, publicada em 1765,
se destacou pela forma como classificou e subclassificou as diferentes
escritas, usando uma nomenclatura bastante peculiar, com termos uti­
lizados pelas ciências naturais. Por exemplo, subdividiu os rem os por
classes, ordem, séries, generos e espécies. Fundou, na Universidade de
Gõttingen, o mais antigo gabinete de Paleografia e Diplomática de
que se tem notícia.
Nessa mesma Universidade, Karl Schonemann, sucessor de
Gatterer na Cátedra de História de Direito e no Gabinete de Paleo-
grafia e Diplomática, publicou, em 1802, em Hamburgo, a obra En­
saio Geral cie Diplomática, em dois volumes. Foi o primeiro a apontar
a necessidade de se separar Paleografia e Diplomática, considerando-
as disciplinas distintas uma da outra.
Em 1862, William Wallembach publicou seu Manual d e Paleo-
grafia Latina e, em 1869, a obra A escrita da Idade Média, inaugurando
um período de modernização da Paleografia, para o qual também
contribuíram, na segunda metade do século XIX, outros fatores como
a criação de instituições para a pesquisa histórica e o aparecimento de
técnicas para reproduzir os modelos de escritas amigas, dentre as quais
a mais importante foi a fotografia.
Começaram a surgir centros de pesquisa como o Instituto de Altos
Estudos de Florença, com sua Escola de Paleografia e Diplomática, a
15
A n drade. Maria Cecília Jurado de. Paleografia.

Sociedade Paleográfica de Londres, a Escola Superior de Diplomática


de M adri e a Escola de Paleografia da U niversidade de Rom a e se
increm en to u o ensino da P aleo grafia na Escola de D ocum entos
(L’Ecole des C hartes) fundada, em Paris, em 1821.
N o início do século XX, a Paleografia, que chegara à sua plenitude
como ciência auxiliar da história, começou a se im por com uma nova
dimensão como Ciência da Escrita. O alemão Ludwig F. Traube, da
Universidade de M unique, e o italiano Luigi Schiaparelli, aluno de Cesar
Paoli da Escola de Paleografia de Florença, foram figuras de destaque na
prim eira metade do século X X , ao reunirem, no estudo da Paleografia,
as concepções do campo gráfico e seu sentido histórico.
Em m eados desse século, foi fundado, em P aris, o C om itê
Internacional de Paleografia que se ocupava de reuniões e congressos
periódicos. Em 1952, Jean M allon publicou, em M adri, a sua obra
P a leogra fia R o m a n a , na qual a Paleografia era considerada como ciência
da linguagem escrita, independente das demais ciências.
Essas conclusões são hoje geralm ente aceitas pelos paleógrafos,
entre os quais se destacam François M asai e L. Gilissen. E aceitos pe­
los paleógrafos, tam bém , são os enfoques sobre a escrita, enquanto
fenômeno cultural e hum ano, entre os quais se destacam G. Cencetti
e Fichtenau.

1 .3. Conceito Diplom ático de Documento*

N um sentido mais am plo, docum ento é algo que nos inform a sobre
um acontecim ento, podendo ser um f o l i o , um a pedra entalhada, uma
gravação, etc.
Tendo em conta o suporte em que o documento foi escrito, para
precisar melhor o conceito diplomático de documento, temos que
descartar os materiais duros que são objeto de estudo de outras ciênci­

* E sle su b cap ítu lo , C o n ce ito D iplom ático do D o cum ento, p rio rizo u a bibliogra­
fia: T a m a y o , A lb erto . A rch iv ís tica , D ip lo m á tica y S ig ilo g ra fia . M adri: Cátedra,
1996. p. 55-60.

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Cursos c Eventos (Nova Serie, n. 5), p.V-146. 201

as, enquanto os documentos próprios da Diplomática são os escritos


sobre materiais moles: pergaminho, papel, papiro, cera, etc.
Assim, o documento, em um sentido mais restrito, como objeto
de estudo da Diplomática, é todo relato de um acontecimento social
de carater jurídico ou não, escrito sobre suporte mole.
E, em um sentido mais restrito, ainda, o documento é o escrito
onde consta o relato de um ato ou negócio pelo qual se cria uma situ­
ação jurídica nova ou se modifica ou extingue uma já existente.
Tipos d e D ocu m en to
Ao classificar os documentos, é necessário ter em mente que um
documento pode ser considerado sob o ponto de vista J u r íd ico ou
D ip lom á tico.
Levando-se em conta o ponto de vista ju r íd ic o , os documentos
podem ser: D ispositivos ou Não D ispositivos, S olenes, C om p robatórios,
Públicos ou Privados.

D ocu m en to D ispositivo nu D ig m itm


Os proprios termos utilizados definem o caráter dispositivo do docu­
mento: o autor dispõe, manda, ordena, criando uma nova situaçao jurí­
dica. Quando isso não ocorre, trata-se de documento Não D ispositivo.

E aquele cuja outorga é condição imprescindível para a realização do


negócio jurídico. Por exemplo, uma hipoteca voluntária que só pode
ser constituída por instrumento público é um documento solene.

E o que dá testemunho, comprova a realizaçao de um ato jurídico. P o r


exemplo: uma certidão de casamento comprova a realização desse ato.

E o que procede da autoridade competente para expedir o documento


no exercício de sua função. Os seus efeitos se produzem diante de
todos, ainda que seu conteúdo diga respeito apenas a uma determ ina­
da pessoa. Por exemplo: um passaporte, uma certidão de nascimento
expedidos pela autoridade competente são D o cu m en to s P úblicos.
Axi>rai>é. Mana C íciIu Jura3o dc. P jleogrjfia.

É o que é feito por iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas privadas


p ir aatender a seus interesses. Por exemplo: um contrato de venda e
compra de imóvel, entre particulares, que não seja uma escritura pú­
blica, e um documento privado.
Do ponto de vista D iplomático, os documentos podem ser classi­
ficados levando em conta a Forma Exiema de sua Redação ou a Naiure-
zs do documento.
Por sua Forma Externa de RedaçãoTpodemos agrupar os docu­
mentos de acordo com os tipos e denominações que receberam ao
longo do tempo, classificando-os como Mandados, Provisões Reais,
P nrilégios Rodados (que trazem os signos rodados), Canas Reais e Ecle-
íií.CíCis' abertas e boladas (seladas com bolas de chumbo), etc. e, no
caso dos documentos contemporâneos, Certidões, Escrituras, etc.
De acordo com sua Natureza, os documentos podem ser classifi­
cados como Originais ou Cópias.
O rig in a i
E o documento outorgado diretamente pelas partes para realizar um
negócio, jurídico ou não, cumprindo todos os requisitos legais e cuja
forma material fica inalterada para sempre.
O Documento Original pode ser Múltiplo
D ocumento O rinnal Múltiplo
E aquele que preenche todos os requisitos para ser considerado como
original mas que não é exemplar único, ou seja, foi produzido em dois
ou m a is exemplares, todos de igual valor jurídico ou diplomático. Em
atividades administrativas de Caráter Público, quando é necessário diri­
gir um Mandado a diversos organismos, fazem-se tantos exemplares
quantos sejam os organismos aos quais ele se dirige. Os Contratos Par­
ticulares entre pessoas físicas ou jurídicas, elaborados em duas ou mais
vias, todas assinadas pelas partes, são documentos originais múltiplos.
Cópia
Uma Cópia é um escrito posterior (pode ser, inclusive, uma cópia
xerográfica) no qual se reproduz o documento original.
Há dois tipos de Cópia: Cópia Simples e Cópia Autenticada.
Cursos t Eventos (Nova Sénc, n . 5), p.^-í+C, ZZ1Z

A C ópia Simp les reproduz pura e simplesmente o documento


original, não constando nela nenhum sinal de validação. N a m aioria
dos casos, carece de interesse do ponto de vista diplomático. Pode, às
vezes, ser valiosa se íor cópia fiel de um origina] perdido no todo ou
em parte.
As Cópias A uten tica d a ! possuem sempre fórm ula de validação
ou autenticação. Nelas, constam a assinatura e carimbo de um funcio­
nário revestido de autoridade para validação de documentos. Tém valor
de original.
Dentre as Cópias A utenticadas, temos as V idimos, documentos
assim chamados por começarem por essa palavra latina que quer dizer
vim os, tem os visto. Na Chancelaria francesa do século XIII. o uso des­
sa expressão indicava que o copista tinha o originai diante dele.
No século XVI, a cópia autorizada foi substituida pelo T rasla­
d o. Era uma cópia notarial, testemunho fiel do docum ento que era
reproduzido, onde constavam rubrica e selo de quem autorizava a
autenticação.
Havia duas formas de Traslado na Diplomática H istórica: o N or­
m a l ou P rop ria m en te D ito e o Traslado em fo r m a d e A ta N otarial.
O Traslado N orm al começava com um cabeçalho que continha a
indicação de que era o Traslado de um original, o nom e da autoridade
que outorgava o Traslado e o nome de quem o autorizava. Frequente­
mente, constavam, também, o suporte onde tinha sido escrito o origi­
nal e a indicação de que era uma cópia literal.
O Traslado Ata N otarial começava com a data e a indicação do
lugar em que estava sendo feito, em seguida, assinalava-se a presença
do escrivão que o autorizava, o comparecimento do solicitante e o
nome e endereço das testemunhas. Seguia-se a cópia literal do origi­
nal, com o cabeçalho semelhante ao do Traslado N orm a l, concluindo
com uma cláusula que continha a petição da cópia por p ane do inte­
ressado, dirigida à autoridade competente. A seguir, constava o M an­
dado expedido por essa autoridade para que se fizesse o Traslado, cons­
tando, ainda, a presença das testemunhas com seus nomes e endereços
e a assinatura, rubrica e selo do notário, como garantia da fiel corres­
pondência do original transcrito.

19
A n drade, Maria Cecília Jurado de. Paleografia.

Para uma análise diplomática de documentos, há que lembrar


que cada tipo de documento segue uma estrutura especifica, ou pelo
menos tem uma estrutura muito parecida com a usual, mesmo quan­
do as partes dessa estrutura, embora presentes, estejam fora de ordem.
E há que citar os casos em que o documento, sendo cópia totalmente
autêntica, pode se apresentar de form a simplificada, isto é, não apre­
sentando integralmente no texto, como ocorre no original, uma ou
mais panes da estrutura desse documento. Algumas partículas de en­
lace que unem as partes não aparecem e saltam-se partes intermediári­
as como, por exemplo, a cópia simplificada de uma Provisão Real em
que o texto salta da titulação do protocolo inicial para a parte dispositiva
do corpo do documento, eliminando, no protocolo, a direção e a sau­
dação e, no corpo do documento, os preâmbulos e a parte expositiva.
Isto é de muita importância para o paleógrafo, sobretudo quando o
traçado é muito cursivo, com muitas ligaduras, enlaces, nexus, etc. O
paleógrafo, para uma interpretação paleográfica mais correta, precisa
buscar conhecer os tipos de documento e sua estrutura para melhor
identificar o documento que tem em mãos.
Cabe lembrar que, na Diplomática, existe uma referência histó-
rico-crítica interpretativa que distingue entre autenticidade diplomá­
tica (signos validativos, selos, etc.) e autenticidade histórica do docu­
mento, esta última representando a averiguação dos fatos que cons­
tam nele, escritos como verdadeiros ou falsos. Um documento pode
ser autêntico diplomaticamente e falso historicamente, como no caso
de um documento autêntico, por ser expedido com todas as formali­
dades legais, cujo texto contém dados falsos por erro ou malícia. Ou,
ao contrário, pode não ser autêntico diplomaticamente e ser verdadei­
ro historicamente, como, por exemplo, uma cópia que tenta se fazer
passar por original, repetindo um texto com os dados históricos ver­
dadeiros. Caberia lembrar, ainda, que na distinção entre originais e
cópias, no caso de falsidade, a Diplomática verifica se houve substitui­
ções (por deterioração ou perda) ou a intenção de causar dolo.
Escrivão e paleógrafo se encontram em um texto e se deparam
muitas vezes com o escrito e o não escrito. Entretanto, ao segundo
cabe apenas dizer, e de forma pontual, o que consta inscrito. Se dialo-
Cursos e Eventos (Nova Serie, n. 5), p.9-146, 2010

gassem, quem sabe aquelas doze arrobas de trigo registradas que vie­
ram em mulas desde Orihuela e entraram em Valladolid pela p u en te
m ayor não tivessem, na realidade, sido quinze ao invés de doze e com
isso os impostos de circulação mais altos. Isto também seria história. „
Mas, o paleógrafo nunca transcreve o que não consta registrado. Ou,
ainda, haveria aquela anedota sobre o pequeno artesão dos ofícios da
prata da calle de la Platería de Valladolid que, no século XVI, ia obten­
do recursos pouco ortodoxos, pretendendo estabelecer um banco pri­
vado com um dos Almirantes de Castela de Medina d ei R io Seco. E
teria sido preso mais tarde e isso teria sido registrado. Uma ou outra
aventura humana e muitos feitos não cabem nos textos que o paleógrafo
lê, examina e transcreve. Num outro ambiente, talvez sem o rigor das
escribanias de uma chancelaria, numa taverna por exemplo, possivel­
mente se vislumbraria aquilo que o paleógrafo nunca lerá porque não
passou por nenhum expediente e não ficou inscrito. Assim, uma his­
tória social pode reunir o escrivão e o paleógrafo em um texto no que
é delineado e não revelado em seus traços.
A escrita é moldada pelo estilo e escola caligráfica em uso por
uma determinada administração real, civil ou eclesiástica que pos o
documento em marcha. O escrito se acomoda às formas de procedi­
mento decorrentes de determinações, atribuições de funções e ações
institucionais e administrativas que também se organizam, é evidente,
em torno de um protocolo. E a estrutura de um documento evidencia
as diretrizes e a legitimidade dessas formas de administração.
O exercício da paleografia não encerra nenhum mistério quando
sai em busca do manuscrito e da escrita antiga. É tarefa simples, árdua
e permanente. Mas, algumas metáforas, acredito, relacionariam ma­
nuscrito histórico, paleografia e encontro de novas aportações signifi­
cativas. Gosto de lembrar de manuscrito como sal terrae que é derra­
mado no folio pelo escrivão através de traços há muito refletidos como
se fosse por primeira vez. O pesquisador criterioso há de entrar no
texto e decifrá-lo, como se navegasse sem nenhuma cartografia, como
se reescrevesse o que já foi escrito, já que vai conhecendo uma história
como se fosse pela primeira vez numa reinterpretação do há muito já
vivido e interpretado. Aqueles, então, que falam, não são os mesmos
sobre os quais se fala. A memória atualiza os fatos, ao revitalizar o
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A n d ra d e, Maria Cecília Jurado de. Paleografia,

passado que, no texto, se mantém e preserva. E, no ambiente escritu-


rário de uma época, o escrivão é levado a configurar personagens,
motivos, ações, deveres, cenário, símbolos, etc. Uma vez lido o texto,
e corretamente, todo o resto já será buscado dependendo da formação
e vocação de cada um.

2. Produção da Escrita

2.1. Elementos Constitutivos da Escrita.9

Os elementos que constituem a escrita e que se referem à estrutura


dos signos sao: Morfologia, Ângulo} Ductus, Modulos, Ligaduras e
Nexits.

Moifologia.
É o aspecto exterior do alfabeto que possibilita o conhecimento da
Jetra e que é comum a todos os que escrevem num mesmo sistema
gráfico.

Angula
E a relaçao entre a posição do instrumento com que se escreve com a
línha imaginária da escrita.

* Esie subcapítulo, Elementos Constitutivos da Escrita, priorizou a bibliografia:


T a u .a f jc ío ,Manuel Romcro, LiÁisin/., Laureano Rodríguez e G o n z á l e z , Anto-
nio Sánchcz. Arte d e Leer Escrituras A ntiguas: Paleografia de Lectura. Huelva:
Universidad de Iluelva Publicaciones, 1995. p. 45-49, 52*56; CoNTRF.RAS, Luis
Nunez. M anual d c Paleografia: Fundamentos e Historia de la Escritura Latina
Hasta el Siglo VIII. Madri: Cátedra, 1994. p. 37-44; C o r t ê s , Vicenia Alonso. La
Escritura y Io Escrito: Paleografia y Diplomática de Espana y Am érica en los
Siglos XVI y XVII. Madri: Instituto dc Cooperación Iberoamericana, 1986. p. 9-
U ; T f r r f r o , Ángel Riesco (Ed.) et aL I n tro d u cà ón a la P a le o g r a fia y Ia D iplom á­
tica General. Madri: Símesis, 2004. p. 111*147, 257-284.

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