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22 > IN T RO D U Ç Ã O Â C RÍTIC A TEXTUAL

Um inseto cava
cava sem alarme
perfumando a terra
sem achar escape.

comenta o crítico: “A escavação do inseto perfuma a terra,


mas a escava sem perfurar, sem achar escape” (itálico de Lima).
Considerando a estrofe tal qual acima reproduzida, não há
absolutamente nada que se possa objetar em relação ao co­
mentário do crítico. O problema está, porém, no fato de que
essa estrofe apresenta um erro, pois a forma que Drummond
(cf. Andrade, 1945: 54) havia lhe dado, como se verifica na
primeira edição da obra em que veio a lume (A Rosa do
Povo), tinha como terceiro verso o trecho “perfurando a ter­
ra” . C om o se vê, diante do texto genuíno, o comentário do
crítico deixa de ter validade: o choque de idéias assinalado,
i. é ,“escava sem perfurar” , simplesmente não existe naquela
estrofe —há, na verdade, um reforço, pois o inseto cava e, por
conseqüência, perfura. C om o não consta em Lima (1968) a
edição utilizada como modelo para a transcrição que reali­
zou, nao é possível verificar a origem da forma não-genuí­
na. Independentemente da origem, ê fato que a forma “per­
fumando” não parece ser atribuível a Drummond, o que
significa que não pode ser considerada em uma análise de
abordagem sócio-histórica, em que se leva em conta a von­
tade autoral.

1.5. TRANSDISCIPLINARIDADE

U m a das características mais instigantes da crítica textual


é sua transdisciplinaridade. Para o efetivo exercício da fixação
de textos é sempre necessário um conjunto muito diversifi­
cado de conhecimentos, o que obriga o trânsito por diversas
áreas do conhecimento.
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Há algumas áreas em especial que têm impacto direto so­


bre a atividade do crítico textual: a paleograjia, a diplomática,
a codicologia, a bibliografia material e a lingüística.

1.5.1. Paleografia

A paleograjia pode ser definida, de uma forma bastante bá­


sica, como o estudo das escritas antigas. Modernamente, apre­
senta finalidade tanto teórica quanto pragmática. A finalida­
de teórica manifesta-se na preocupação em se entender como
se constituíram sócio-historicamente os sistemas de escrita;
já a finalidade pragmática evidencia-se na capacitação de lei­
tores modernos para avaliarem a autenticidade de um do­
cumento, com base na sua escrita, e de interpretarem ade­
quadamente as escritas do passado.
Sua constituição como campo de conhecimento sistema­
tizado costuma ser situada no século X V II. Em viagem pela
Europa, o jesuíta Daniel van Papenbroeck (1628-1714) teria
constatado a existência de muitos documentos falsos, o que
o teria levado a escrever a obra Propylaeum Antiquarium circa
Veri ac Faísi Discrimen in Vetustis Membranis (Antuérpia, 1675),
onde apresenta critérios para discernir documentos falsos de
verdadeiros: como subsídio a esse julgamento, Papenbroeck
apresenta uma classificação das diferentes escritas.Tentando
responder às críticas deste aos documentos da Abadia de Saint-
Denis, o monge beneditino Jean Mabillon (1632-1707) redi­
gia a obra D e R e Diplomatica Libri I V (Paris, 1681), em que
avança ainda mais na investigação dos tipos de escrita. O
termo que nomeia esse campo de estudo só apareceria com
a obra Palaeographia Graeca Sive de Ortu et Processu Litterarum
Graecarum (Paris, 1708), escrita pelo também beneditino B er-
nard de M ontfaucon (1655-1741).
A relevância da paleografia para o crítico textual é bas­
tante evidente: para se fixar a forma genuína de um texto,
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é necessário ser capaz de decodificar a escrita em que seus


testemunhos estão lavrados. E muito comum, aliás, existirem
edições de texto que apresentam falhas decorrentes de equí­
voco na leitura do modelo por parte do editor.
Dada a importância das informações de natureza paleo-
gráfica para a compreensão da leitura das fontes realizada pelo
crítico textual, pode-se incluir em edições de texto mais eru­
ditas uma breve seção dedicada a comentários dessa natureza.
Nessa seção costuma-se abordar aspectos como os seguintes:
a) classificação da escrita, localização e datação;
b) descrição sucinta de características da escrita, a saber:
a morfologia das letras (sua forma), o seu traçado ou ductus (or­
dem de sucessão e sentido dos traços de uma letra), o ângulo
(relação entre os traços verticais das letras e a pauta horizontal
da escrita), o módulo (dimensão das letras em termos de pau­
ta) e o peso (relação entre traços finos e grossos das letras);
c) descrição sucinta do sistema de sinais abreviativos em­
pregado na referida escrita;
d) descrição dos outros elementos não-alfabéticos exis­
tentes e de seu valor geral: números, diacríticos, sinais de pon­
tuação, separação vocabular intralinear e translinear, paragra-
fação, etc.;
e) descrição de pontos de dificuldade na leitura e as so­
luções adotadas.
Embora haja hoje em dia disponível no mercado biblio­
grafia introdutória em paleografia relativamente variada (p.
ex.,Batelli, 1999; Stiennon, 1999; Cencetti, 1997; Bischoff,
1997;Terrero, 1999), obras em língua portuguesa ou voltadas
para a escrita latina no mundo lusófono são muito raras: den­
tre os textos mais gerais, podem-se citar Cruz (1987), Santos
(1994,2000) e Berwanger & Leal (1995). Sua leitura, porém,
deve ser complementada com a prática efetiva de contato com
textos lavrados nas mais diferentes escritas, o que pode ser
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feito utilizando-se as reproduções fac-similares presentes nos


álbuns de paleografia6 voltados para documentos portugue­
ses e/ou brasileiros, tais como Burnam (1912-1925); Costa
(1997);Valente (1983); Nunes (1984); Dias, Marques & R o ­
drigues (1987); e Acioli (1994) — infelizmente quase todos
esgotados, mas encontráveis em bibliotecas acadêmicas.

1.5.2. Diplomática

Pode-se definir basicamente a diplomática como o estudo


de documentos (em especial, os jurídicos). Deve-se entender
aqui por documento, em um sentido estrito, toda notícia escrita
de algum acontecimento.
As origens da diplomática estão fortemente entrelaçadas
com as da paleografia, já que os tratados mais antigos visavam
a orientar a avaliação da autenticidade de documentos legais,
tanto através de sua escrita quando de sua forma e de seu con­
teúdo. Seu estabelecimento como campo de conhecimento
sistematizado remonta, assim, à já mencionada disputa entre
Papenbroeck e Mabillon (podendo ser atribuída a este, em sua
já referida obra de 1681, a cunhagem do nome desse campo).
Os conhecimentos diplomáticos são especialmente rele­
vantes para o crítico textual que edita documentos. A decifra-
ção e a reprodução de um documento podem ser realizadas
com mais segurança e propriedade quando se tem consciên­
cia de como eram produzidos os documentos, em que clas­
ses se distribuíam e como se estruturavam internamente, so­
bretudo porque apresentavam constantes formais em termos
tanto estruturais quanto lingüísticos.

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6 . D e mui ca utilidade são tam bém os dicionários de abreviaturas: para abreviaturas


latinas, pode-se consultar Cappelli (1 9 9 5 ); e para portuguesas, N unes (1 9 8 1 ) e F le-
ch or (1 9 9 1 ).
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Tratados introdutórios modernos de diplomática aplica­


dos especificamente a documentos portugueses parecem ine-
xistir, mas podem-se obter informações relevantes em M ar­
ques (1963-1971, vol. \: 8 2 3 -8 ),Berwanger & Leal (1995) e
Cruz (1987); uma visão histórica recente dessa disciplina em
Portugal aparece em C oelho (1991). Dada essa escassez no
domínio lusófono, pode-se recorrer à leitura de obras basea­
das especialmente no domínio hispânico, o que permite ain­
da que se tenha uma visão ibero-românica do tema: atual­
mente encontram-se disponíveis manuais espanhóis como o
deTamayo (1996) eTerrero (1999).

1.5.3. Codicologia

A codicologia consiste basicamente no estudo da técnica do


livro manuscrito (i. é, do códice). Esse termo, que tem sua pa­
ternidade reivindicada por Dain (1975: 76), é empregado
atualmente, porém, em um sentido mais estrito do que aque­
le postulado por quem o cunhou. Dain (1975:77) conside­
rava como missões e domínio da codicologia a história do ma­
nuscrito, a história das coleções de manuscritos, investigações
sobre a localização atual dos manuscritos, problemas de cata­
logação, repertórios de catálogos, o comércio dos manuscritos,
sua utilização, etc., sendo do escopo dapaleografia o estudo da
escrita e da matéria escriptória, da confecção do livro e de sua
ilustração, e o exame de sua “arquitetura”; mas obras mais re­
centes tendem a redistribuir as tarefas dos dois campos do co­
nhecimento mencionados: Lemaire (1989:3) postula dever as
codicologia fixar-se sobretudo em compreender os diversos
aspectos da confecção material primitiva do códice.
VA

Para o crítico textual, a codicologia é de grande relevân­


cia, pois fornece informações que permitem compreender al­
gumas das razões pelas quais os textos se modificam no pro­
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cesso de sua transmissão. Saber, p. ex., que nos antigos recin­


tos em que se realizavam as cópias (chamados scríptoria) havia
o hábito de se desmembrar um códice para que suas partes
(os cadernos) pudessem ser reproduzidas simultaneamente
por diferentes copistas permite ao crítico textual elaborar hi­
póteses sobre por que certas cópias têm seu texto em ordem
diferente de outras: possivelmente porque, ao se recompor o
códice utilizado como modelo, teriam ocorrido equívocos
na ordenação de suas partes.
Além de permitir uma compreensão mais profunda do
processo dê transmissão dos textos, os conhecimentos codico-
lógicos também são utilizados mais pragmaticamente na des­
crição de códices, a qual deve constar na edição de textos pre­
servados em manuscritos. Com o orientação para essa descri­
ção codicológica, apresenta-se na página seguinte um guia
básico7 (outros modelos podem ser consultados em Bohigas,
Mundó & Soberanas, 1973-1974, e em Ruiz, 1988: 316-40).
O guia de descrição apresentado a seguir cobre aspectos es­
senciais de um códice, mas pode naturalmente ser estendido
com a inclusão de detalhes que a tornem mais abrangente: po­
de-se, p. ex., incluir um diagrama com a composição dos ca­
dernos, identificando a natureza das faces dos pergaminhos
(carne x pêlo), rebarbas de fólios sem sua parte solidária, ir­
regularidades, etc.; podem-se ainda acrescentar o incipit e o
explicit de cada texto, aspecto importante para textos até en­
tão desconhecidos; e diversos outros aspectos. Por outro lado,
é possível, em nome da concisão, suprimir alguns dados e eli­
minar os títulos dos itens de descrição, organizando assim as
inform ações em um parágrafo bastante com pacto (sistema
corrente em grandes catálogos de manuscritos).

7 . C ertam en te m uitos dos term os em pregados neste guia não são de dom ínio geral,
mas grande parte deles será explicada na seção 3 .2 , mais adiante.
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Guia Básico de Descrição Codicológica

1. Cota: cidade em que se encontra o códice; nome da insti­


tuição; coleção de que faz parte; e número ou sigla de
identificação.
2. Datação: explícita (transcrever, informando fólio e linha
em que consta) ou inferida (apresentar justificativa).
3. Lugar de origem: explícito (transcrever, informando fó­
lio e linha em que consta) ou inferido (apresentar justifi­
cativa) .
4. Folha de rosto: transcrição.
5. Colofao: transcrição.
6. Suporte material: papiro (papiráceo), pergaminho (mem-
bra-náceo) ou papel (cartáceo) —sendo membranáceo, infor­
mar animal, espessura, cor e obediência à Lei de Gregory;
sendo cartáceo, informar tipo, linhas-d’água (direção e dis­
tância entre pontusais e vergaturas), filigrana (descrição da
figura).
7. Composição: número de fólios; número e estrutura dos ca­
dernos (bínio, témio, quatemo, etc.); formato (in-fólio, in-4°, in-8°,
etc.) e dimensão dos fólios (altura x largura, em milímetros).
8. Organização da página: dimensão da mancha; número
de colunas; número de linhas; pautado; numeração (foliação
[número só no recto do fólio] ou paginação [número no rec­
to e no versó\)\ reclamos (ausência ou presença, localização
na página e freqüência); assinaturas (presença ou ausência,
sistema).
9. Particularidades: miniaturas (capitulares ornamentadas);
iluminuras; marcas especiais (carimbos, ex-libris, assinaturas
pessoais, etc.).
10. Encadernação: tipo (original ou não-original); dimensão;
material; natureza e cor da cobertura; decoração; texto na
capa; nervos no lombo.
11. Conteúdo: identificação dos textos do códice por fólio(s),
informando autor e obra.
12. Descrições prévias: bibliografia.
INTRODUÇÃO ■ 29

C om o sugestão bibliográfica introdutória sobre codi­


cologia, podem-se citar Dain (1975), Petrucci (1984), R u iz
(1988) e Lemaire (1989), além dos ricos vocabulários da área
preparados por MuzereUe (1985), em francês, mas já com
tradução para o espanhol datada de 1997, e por ArnaU i Juan
(2002), em catalão, porém com índice de correspondência
para o espanhol, francês e italiano. N o domínio lusófono, o
único volume publicado com dados afins parece ser o de Nas­
cimento & D iogo (1984).

1.5.4. Bibliografia material

U m campo de conhecimento análogo ao da codicologia


é a bibliografia material, que consiste no estudo da técnica do li­
vro impresso.
Embora os estudos sobre imprensa em si não sejam tão re­
centes, data de pouco a constituição de uma abordagem des­
se tema diretamente ligada aos problemas de transmissão dos
textos. Muitos dos trabalhos que contribuíram para essa nova
abordagem derivam especialmente da experiência de estudio­
sos de língua inglesa na prática de edição e análise de textos
literários dos sécs. X V I e X V II. Dentre esses estudos, certa­
mente destacam-se trabalhos como Greg (1914),M cK errow
(1927), Bowers (1 9 4 9 ,1 9 5 9 , 1964) e Gaskell (1972).
C om o já disse metaforicamente Greg (1914 [1967:47]),
é apenas através da aplicação de um método bibliográfico
rigoroso que a última gota de informação pode ser extraída
de um documento literário. Dentre os instrumentos desse
método, incluem -se naturalmente as técnicas de descrição
bibliográfica, as quais já foram minuciosamente tratadas por
Bowers (1949).Embora não haja aqui espaço para discutir de­
talhadamente os diversos aspectos a que se deve dar especial

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