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Tradução:

Maria Helena da Rocha Pereira

AMA
PEDAGOGO
MEDEIA
CORO DAS MULHERES
CREONTE
JASÃO
EGEU
MENSAGEIRO
FILHOS DE MEDEIA
Página deixada propositadamente em branco
(A Ama só, em frente à casa de Medeia)

Quem dera que a nau de Argos1, quando seguia para a terra da Cólquida, nunca
tivesse batido as asas2 através das negras Simplégades3, e que nas orestas do Pélion4
não houvesse tombado o pinheiro abatido, nem ele tivesse dado os remos aos braços
dos homens valentes, que buscaram o velo de ouro para Pélias. Assim não teria 5

Medeia, a minha senhora, navegado para as fortalezas da terra de Iolcos, ferida no


seu peito pelo amor de Jasão5. Nem, depois de convencer as lhas de Pélias a matar
o pai6, habitaria esta terra de Corinto com o marido e os lhos, alegrando com a 10

sua fuga os cidadãos a cujo país chegara7, em tudo concorde com Jasão. Porque é
essa certamente a maior segurança, que a mulher não discorde do marido. 15

1
Argos era o nome da nau em que navegaram Jasão e os outros heróis (por isso chamados Argonautas)
até à Cólquida, onde, por ordem de Pélias, rei de Iolcos na Tessália, iam conquistar o velo de ouro.
2
Metáfora náutica para sugerir o erguer e baixar rítmicos dos remos, de um e de outro lado
da embarcação.
3
As Simplégades eram rochas à entrada do Ponto Euxino (hoje, Mar Negro). Segundo a lenda,
eram a princípio móveis e embatiam uma contra a outra, característica que transparece na etimologia
do seu nome. Depois da passagem de Argos – o primeiro navio que conseguiu transpô-las (feito que
já consta da Odisseia, XII. 69-70) – tornaram-se xas.
4
Montanha na Tessália, onde a nau fora construída.
5
Medeia, lha de Eetes, rei da Cólquida, tendo-se apaixonado por Jasão, ajudou-o, com as suas
artes mágicas, a vencer a prova que seu pai lhe impusera para poder levar o velo de ouro – lavrar a
terra com touros ignispirantes – e ainda a escapar ao dragão sempre vigilante que o guardava. Em
seguida, f ugiu com Jasão, depois de matar o irmão, Apsirto, e de espalhar os seus restos mortais, a
m de que o pai, ao colhê-los, se atrasasse na perseguição que movia ao par f ugitivo.
6
Chegada a Iolcos, Medeia convenceu as lhas do rei Pélias a cozerem o pai num caldeirão, com
ervas mágicas, para que ele recuperasse a juventude. Por mais este crime, viu-se na necessidade de
fugir para Corinto.
Sobre aquele tema, compôs Eurípides a tragédia perdida As Pelíades.
7
Segundo o escoliasta de Píndaro, Olímpicas, XIII.74, Medeia pôs termo à fome que lavrava em
Corinto. O texto está corrupto, mas o sentido geral é claro.
270 TRADUÇÕES DO GREGO

Agora tudo lhe é odioso, e aborrece-a o que mais ama. Traindo a minha senhora
e os seus próprios lhos, Jasão repousa no tálamo régio, tendo desposado a lha
de Creonte8, que manda nestas terras; e Medeia, desgraçada e desprezada, clama 20

pelos juramentos, invoca as mãos que se apertaram9, esse penhor máximo, e toma
os deuses por testemunhas da recompensa que recebe de Jasão. Jaz sem comer, o
corpo abandonado à dor, consumindo nas lágrimas todo o tempo, desde que se sen-
tiu injuriada pelo marido, sem erguer os olhos, sem desviar o rosto do chão. Como 25

uma rocha ou uma onda do mar, assim escuta os amigos, quando a aconselham.
A não ser quando alguma vez, volvendo o colo alvinitente, de si para si lamenta o pai 30

querido, a terra e a casa que traiu para vir com o homem que agora a desprezou. Sabe
a infeliz, oprimida pela desgraça, o que é não abandonar a casa paterna. Abomina 35

os lhos e nem se alegra com vê-los. Temo que ela medite nalguma nova resolução.
[É que o seu espírito é perigoso, e não suportará o sofrimento. Conheço o seu
carácter, e temo que enterre no coração uma espada a ada, entrando silenciosa no 40

palácio, onde está armado o leito; ou que mate o rei e a esposa, e em seguida sofra
alguma desgraça maior]10. É que ela é terrível, e quem a desa ar como inimiga não
alcançará facilmente vitória. 45

Mas eis que os lhos, acabadas as corridas, se aproximam, sem nada saber da
desgraça da mãe; é que a mente juvenil não gosta de sofrer.

Ó velha guardiã da casa da minha senhora, porque estás aqui à porta, nesta 50

solidão, a gritar alto a tua dor? Medeia, como quer que a deixes só?

8
Eurípides não dá nome à princesa de Corinto, embora já o argumento antigo da peça lhe chame
Glauce, apelativo que se conserva na tradição local como o de uma fonte da cidade, a cujas águas ela
se atirou, em busca de antídoto para os venenos de Medeia (Pausânias, 2.3.6). A par desse nome, os
autores tardios designam-na também por Creúsa. O krater-de-volutas de Munique, ao ilustrar este
tema, chama-lhe Creonteia, o que signi ca igualmente “ lha de Creonte”.
O juntar das mãos era parte do cerimonial do casamento. O normal era que o gesto fosse pra-
9

ticado pelo pai ou tutor da noiva e o noivo. Mas neste caso a promessa de delidade fora entre Jasão
e Medeia (cf. Mastronarde, 2002, 28-29). A tradução literal, segundo a acentuação adoptada no texto
seria: “invoca o penhor máximo da mão direita”.
Os parêntesis rectos assinalam, como é de regra, uma interpolação. Efectivamente, os vv. 38-43
10

são em parte uma antecipação do desenrolar dos acontecimentos, feita com frases que ocorrem mais
adiante no lugar próprio (assim, 40-41 = 379-380).
EURÍPIDES, MEDEIA 271

Vel ho compan heiro dos filhos de Ja são, aos escr avos f iéi s atinge-os 55

duramente a desgraça de seus amos, e do seu coração se apodera. A tal ponto


chegou a minha dor, que me veio o desejo de vir aqui clamar à terra e ao céu a
sorte da minha senhora.

Ainda a pobre não cessou de gemer?

Invejo-te; o mal está no começo, não vai ainda em meio. 60

Pobre louca – se dos amos é lícito dizê-lo – que nada sabe de males mais recentes.

Que é, ó ancião? Não te negues a dizê-lo.

Nada. Arrependo-me até do que já disse.

Não faças segredo, por quem és11, de uma companheira de servidão; sobre 65

isso manterei o silêncio, se tanto for preciso.

11
O texto diz exactamente “pelo teu queixo”, modo de implorar em relação com a atitude clássica
do suplicante: tocar com a direita na barba ou no queixo, e com a esquerda nos joelhos (cf. Ilíada,
I.500-501, e o quadro de Ingres, no Museu do Louvre, que ilustra esse passo).
272 TRADUÇÕES DO GREGO

A alguém ouvi dizer, sem parecer estar à escuta, quando passava no lugar
dos jogos de dados12 , onde afluem os anciãos, ju nto da linfa sagrada de Pirene 13,
que Creonte, senhor destas terras, queria expulsar do país de Corinto estas 70

crianças com a mãe. Se o que se disse é verdade, ainda não sei; quisera que o
não fosse.

E Jasão, apesar d a dissensão com a mãe, há-de consentir que os filhos 75

sofram tal?

O antigo parentesco cede ao novo, e ele não é amigo desta casa.

Estamos perdidos, se ao mal antigo ju ntamos um novo, antes de aquele


ter murchado.

Mas tu fica quieta e guarda silêncio, que não é o momento de a senhora saber. 80

Ó filhos, ouvis como é para vós o vosso pai? Não lhe desejo a morte é o meu
senhor. Mas a sua falsidade é a perdição dos seus.

É duvidoso se se tratava de um jogo de dados ou das damas, pois a di culdade em distingui-los


12

data já do texto de Homero (Odisseia, I.107). O segundo, que tem larga representação em vasos gregos,
vinha já dos tempos micénicos, e inclinar-nos-íamos para ele, sem reservas, se não fosse a nota do
escoliasta a este passo, que o identi ca com o primeiro.
A mais famosa fonte de Corinto, que, tal como a mencionada na n. 8, ainda hoje se conserva,
13

na forma que lhe deram os Romanos.


EURÍPIDES, MEDEIA 273

E quem não é assim dentre os mortais? Ainda agora é que sabes como cada 85

um se ama mais a si do que ao próximo, [uns justamente, outros devido ao lucro14]


ao ver que é por causa de novas núpcias que o pai os não estremece?

Ide, ó lhos, para dentro de casa, que lá tudo estará bem. E tu conserva-os à
parte o mais que for possível, e não te aproximes da mãe em delírio; que eu já a 90

vi olhá-los com os olhos bravos de um toiro, que vai fazer algo de terrível; nem
cessará a sua cólera, eu bem o sei, sem se abater sobre alguém. Que ao menos
recaia sobre os inimigos, não sobre os amigos. 95

Ai!
Desgraçada de mim e dos meus males.
Ai, ai de mim, que m será o meu?

Vêdes, caros lhos: a vossa mãe


o peito se lhe agita e move à ira.
Correi depressa p’ra dentro do palácio, 100

e não vos acerqueis da sua vista,


nem vos aproximeis, mas defendei-vos
do carácter selvagem, temeroso,
de um ânimo indomável.
Ide, então, correi céleres p’ra dentro. 105

(Os lhos de Medeia entram no palácio com o Pedagogo)

É bem claro, em breve com maior paixão


in amará a nuvem de gemidos
que começa a surgir; e que fará,

Já o escoliasta antigo notou que era supér uo o v. 87.


14

Do mesmo modo pensou Brunck, seguido por quase todos os editores modernos.
274 TRADUÇÕES DO GREGO

tão mal-ferida, e inaplacável,


um’alma mordida p’la desgraça? 110

Ai! Ai!
Sofri, desgraçada, sofri males muito para lamentar.
Ó lhos malditos de mãe odiosa,
perecei com vosso pai, e a casa
caia toda em ruínas.

Ai, ai de mim, desgraçada! 115

Porque entram as crianças na culpa


que é do pai? porque os odeias? Ai,
lhos, como eu temo que algo sofrais!
Duro é dos soberanos o querer
e, pouco mandados, podendo muito, 120

di cilmente mudam suas iras.


Melhor é o costume de viver
na igualdade; a mim me seja dada
velhice tranquila e sem grandezas.
Da mod’ração, val’nome mais que tudo, 125

dela usar é bem melhor para os mortais;


aos homens de nada serve passar tal medida.
Maior a pena da desgraça que sofrem, quando em fúria
o demónio anda em casa. 130

Ouvi, ouvi a voz e o clamor


da Cólquida infeliz e sem sossego.
Mas fala, ó anciã,
que já à minha porta e dentro do palácio 135

ouvi um gemido; e eu não folgo,


ó mulher, com as dores desta casa,
de quem quei amiga.
EURÍPIDES, MEDEIA 275

Casa – já não é; isso já lá vai,


que a um detém-no o régio leito, 140

ela consome no tálamo a vida,


a senhora, sem que falas amigas
confortem o seu peito.

Ai! Ai!
O fogo do céu me trespasse a cabeça.
De que vale ainda viver? Ai, ai! 145

Quem me dera deixar a vida odiosa,


pela morte libertada!

Ouvis, ó Zeus, ó Terra, ó luz,


que grito agora soltou essa esposa desgraçada? 150

Que desejo é esse das núpcias


que deves evitar15, ó louca?
Acaso tens pressa de chegar
ao termo da morte?
Não peças tal.
Se o teu esposo 155

faz honra a novo leito,


não te exasperes com ele;
Zeus te fará justiça.
Não te consumas, lamentando
demais teu companheiro.

Ó grande Témis16 , Ártemis venerável, 160

15
Alusão ao leito fúnebre.
16
Témis é a deusa da Justiça, quali cada logo adiante pela Ama como “patrona dos votos” (v. 169)
e como “guardiã dos juramentos” (v. 209). A invocação seguinte, a Ártemis, é mais difícil de explicar,
razão por que alguns comentadores têm proposto emendas ao texto. Torna-se clara, se admitirmos
que já se deu o sincretismo com Hécate, deusa das artes mágicas, pela qual Medeia muito apropria-
damente jura em 395-398.
276 TRADUÇÕES DO GREGO

vêdes o que eu sofro, eu que prendi a mim,


com grandes juras17 o esposo maldito!
Que eu um dia o veja
a arder com a própria casa,
ele e a sua noiva, que primeiro
ousou injuriar-me. 165

ó meu pai, ó minha terra que eu deixei,


matando com opróbrio meu irmão18 .

Ouvis como fala e grita


por Témis, patrona dos votos, e por Zeus,
que val’ como guardião das juras p’ra os mortais19 170

Não é com pouco que a minha senhora


acalmará a ira.

Como poderia ela vir A

à nossa vista, receber


das nossas palavras o som, 175

a ver se a pesada ira


e capricho abandonava?
Porque, dos amigos, o nosso zelo
não estará longe.
Mas anda, vai 180

dentro de casa
e leva-lhe estas palavras
amigas. Apressa-te já,
antes que o mal chegue
aos que lá moram; que a dor
já cresce, desmedida.

17
Cf. a a rmação da Ama nos vv. 21-22 e a n. 9.
18
Primeira referência explícita ao assassínio de Apsirto. Cf. supra, n. 5.
19
Desde a Ilíada (III.276-280 e XIX.258-260) se a rmara a noção de que Zeus castiga os perjuros.
EURÍPIDES, MEDEIA 277

Assim farei; mas temo não convencer 185

a minha senhora;
mas este penoso favor eu te concedo,
apesar de o seu olhar de leoa que pariu
ser bravo como um toiro para os servos, quando algum,
p’ra falar-lhe, se aproxima.
Se disseres inábeis e ignaros 190

os antigos mortais, não erras;


eles que para festas, banquetes e ceias
acharam da vida suaves acentos,
compondo hinos20.
Mas entre os mortais, nem um descobriu
como fazer cessar
com a musa e o canto multíssono,
o hórrido desgosto, donde sai a morte 195

e o fado terrível que abala as casas.


E contudo era bom
sarar com cantos os mortais.
Onde há lautos banquetes 200

p’ra que em vão levantam clamores?


Lá está a abundância do banquete
que em si tem deleite para os mortais.

Um grito ouvi 205

pleno de lamentos,
e agudos gritos de dor clamam
pelo esposo in el ao seu leito.

20
Segundo E. Fraenkel (apud Page, 1938, 85), uma alusão aos antigos aedos, que durante os banque-
tes entretinham os convivas com os seus cantos. Murray, The Medea of Euripides (London, 1913) 83-84,
encontra nestes versos a descrição da essência da tragédia. Ao citar o famoso helenista, Pucci, 1980,
21-45, acrescentou que nesta decisão de pôr na boca de uma escrava a versão de um mito heróico,
Eurípides quer degradar intencionalmente “a nobre e heróica poesia de Píndaro, herdeiro da tradi-
ção épica”, pois, se fosse uma história de poetas sensatos, seria também um mito sensato e ajudaria
os homens nos seus desgostos (p. 45). Parece-nos que o desígnio do dramaturgo terá sido formular a
questão, sempre latente, do poder consolador da poesia, tópico que surge em Hesíodo, Teogonia 94-103
e será repetido vezes sem conta.
278 TRADUÇÕES DO GREGO

A que sofreu o mal invoca a lha de Zeus,


dos juramentos guardiã, Témis 21,
a que a trouxe
à Hélade fronteira, 210

através do mar escuro da noite,


para a entrada marinha do Ponto sem limites22 .

Saí de casa, ó mulheres de Corinto, para que nada me censureis. Porque eu 215

sei que muitos dentre os mortais são arrogantes, uns longe da vista, outros à porta
de casa; outros, atravessando a vida com passo tranquilo, hostil fama ganharam
de vileza. Porque não há justiça aos olhos dos mortais, se alguém antes de bem 220

conhecer o íntimo do homem, o odeia só de o ver, sem ter sido ofendido. Força
é que o estrangeiro se adapte à nação; tão-pouco louvo o cidadão que é acerbo
para os outros, por falta de sensibilidade 23 .
Sobre mim este feito inesperado se abateu, que a minha alma destruiu. Fiquei 225

perdida e tenho de abandonar as graças desta vida para morrer, amigas. Aquele
que era tudo para mim (bem o sei) no pior dos homens se tornou – o meu esposo.
De quanto há aí dotado de vida e de razão, somos nós, mulheres, a mais 230

mísera criatura. Nós, que primeiro temos de comprar, à força de riqueza 24, um
marido e de tomar um déspota do nosso corpo – dói mais ainda um mal do que
o outro. E nisso vai o maior risco, se o tomamos bom ou mau. Pois a separação 235

para a mulher é inglória, e não pode repudiar o marido. Entrada numa raça e em
leis novas, tem de ser adivinha, sem ter aprendido em casa, de como deve tratar

Em Hesíodo, Teogonia, 901-906, Témis é esposa de Zeus, mãe das Horas e das Parcas. Ésquilo,
21

Prometeu Agrilhoado, 209-210, dá-a como mãe de Prometeu, identificando-a assim com a Terra. Vide
supra, n. 16.
Con ada no juramento de que a deusa era guardiã, é que Medeia abandonara a Cólquida e viera
para a Hélade.
22
O sentido exacto dos vv. 211-212 é muito discutido (vide Page 86-87 e Mastronarde 204-205). Tanto
Diggle como Mastronarde adoptam a emenda do poeta Milton, que substitui o acusativo ἀπείρατον
pelo genitivo ἀπειράτου (“sem limites”), que assim concorda com πόντου (o Ponto Euxino, hoje Mar
Negro). Mas persiste a di culdade quanto à geogra a da região, pois Medeia navegava em direcção ao
Helesponto (hoje Dardanelos), que não pode quali car-se de “sem limites”. Uma das hipóteses possí-
veis é que o Helesponto seja aqui considerado como um rio de vasta corrente, que atravessava aquele
estreito desde o Mar da Mármara ao Egeu (também Heródoto VII.35 lhe chamou “rio lodoso e salgado”).
23
Os vv. 219-224 são dados como não autênticos por Hübner, 1985, 20-22, com base na sua inade-
quação ao momento e em pormenores de estilo. Embora contenham, efectivamente, di culdades, os
argumentos aduzidos por esse autor não nos parecem decisivos.
24
Referência ao dote.
EURÍPIDES, MEDEIA 279

com o companheiro de leito. E quando o conseguimos com os nossos esforços, 240

invejável é a vida com um esposo que não leva o jugo à força; de outro modo,
antes a morte. O homem, quando o enfadam os da casa, saindo, liberta o coração
do desgosto [ou voltando-se para um amigo, ou para um companheiro] 25. Para 245

nós, força é que contemplemos uma só pessoa. Dizem: como nós vivemos em
casa uma vida sem risco, e eles a combater com a lança. Insensatos! Como eu
preferiria mil vezes estar na linha de batalha26 a ser uma só vez mãe! 250

Mas a vós e a mim não serve a mesma argumentação. Vós tendes aqui a vossa
cidade e a casa paterna, a posse do bem-estar e a companhia dos amigos. E eu,
sozinha, sem pátria, sou ultrajada pelo marido, raptada duma terra bárbara, 255

sem ter mãe, nem irmão, nem parente, para me acolher desta desgraça.
Apenas isto de vós quero obter: se alguma solução ou processo eu encontrar
para fazer pagar ao meu marido a pena deste ultraje [e ao que lhe deu a lha que ele 260

desposou]27, guardai silêncio. Aliás, cheia de medo é a mulher, e vil perante a força
e à vista do ferro. Mas quando no leito a ofensa sentir, não há aí outro espírito que 265

penda mais para o sangue.

Assim farei. Com justiça castigarás o teu marido, ó Medeia. Não me admiro
que deplores a tua sorte.
Mas vejo também Creonte, o príncipe desta terra, que se aproxima, mensageiro 270

de novas deliberações.

A ti, ó Medeia de olhar turvo, com teu esposo irada, eu digo que saias como
exilada deste país, levando contigo os teus dois filhos. E não hesites. Que eu sou 275

de tal ordem o árbitro, e não voltarei para minha casa antes de te expulsar dos
confins desta terra.

25
Verso interpolado, que já Wilamowitz condenou.
26
Literalmente, “colocar-me ao lado do escudo”. Os escudos dispunham-se em combate de ma-
neira a formar uma linha contínua.
27
O verso 262 foi considerado interpolado por Lenting e, na sequência dele, pelos melhores e mais
recentes editores, por razões de ordem linguística e também dramática (Medeia não iria revelar o seu
plano tão claramente antes de obter a promessa de silêncio por parte do Coro).
280 TRADUÇÕES DO GREGO

Ai! Ai! Desgraçada, que de todo estou perdida! O navio inimigo avança a todo o
pano, e não há saída deste mal, que seja fácil de abordar28. Mas, na minha desgraça, 280

mesmo assim te pergunto: porque me mandas embora desta terra, ó Creonte?

Eu temo – não vale a pena dissimular as palavras – que faças à minha lha algum
mal irreparável. Motivos de temor, há-os de sobra. Tu és por natureza astuta e sabe- 285

dora de muitos artifícios, e torturas-te por estares privada do tálamo conjugal. Oiço
dizer – e anunciam-mo – que algo ameaças fazer ao que dá em casamento, ao esposo
e à desposada. Disto me guardo, antes de o sofrer. Melhor é para mim mostrar-me
agora odioso, ó mulher, do que gemer depois de enfraquecido. 290

Ai! Ai! Não é agora a primeira vez, ó Creonte, mas já muitas vezes a fama me
foi nociva e me causou grandes males. Que jamais alguém, que seja por natureza
astuto, instrua os lhos mais do que o preciso, fazendo deles sábios. Porque, além 295

da mancha de inércia, que têm, ganharão malevolente inveja dos seus concidadãos.
É que, para a multidão ignara, quem for portador de uma nova sabedoria, passará
por inútil, e não por sábio. E quem, na cidade, for julgado melhor do que aqueles 300

que aparentem saber muitas coisas será tido como indesejável29.


De tal sorte também eu mesma participo. A minha ciência faz com que eu
para uns seja invejada, [para uns sou uma pessoa tranquila, para outros ainda
é outro o meu carácter] 30, para outros ainda desagradável. E, contudo, não sou 305

muito sábia. E então tu tens medo de mim? Medo de sofreres algo de desagradável?
Não estou na disposição – ai! não temas, Creonte – de me tornar culpada contra
quem governa. Pois tu que mal me fizeste? Deste a tua filha a quem o coração
te indicava. Ao meu esposo, a esse é que eu detesto. Tu – creio eu – procedeste 310

assim com sensatez. E agora, eu não invejo o teu bem-estar. Casai, sede felizes.
Mas deixem-me habitar neste país. Mesmo ultrajadas, calar-nos-emos, vencidas
pelos mais poderosos. 315

28
Uma das muitas metáforas náuticas da tragédia grega. Vide infra, vv. 523-524.
Este famoso passo, de 292 a 301, tem sido considerado como uma defesa do próprio poeta. Aliás,
29

Eurípides retomou várias vezes o tema dos inconvenientes da sophia.


O verso 304 é geralmente considerado espúrio, não só porque se repete, com pequenas variantes,
30

no v. 808, onde faz sentido, como porque prejudica a clareza da argumentação da heroína.
EURÍPIDES, MEDEIA 281

Dizes palavras brandas aos ouvidos, mas dentro da tua alma tenho o temor de
que premedites algum mal para mim, e tanto mais que antes acreditei em ti. Porque
a uma mulher irascível, tal como a um homem, é mais fácil guardá-la do que a um 320

sábio silencioso. Mas vai-te embora o mais depressa possível, não discutas. É assim
que convém, e não terás artes de car junto de nós, tendo más intenções contra mim.

Não, suplico-te31 pela tua lha há pouco desposada!

Estás a gastar palavras; nunca me convencerias. 325

Expulsas-me então e não te amerceias das minhas preces?

Não te amo mais a ti do que ao meu lar.

Ó minha pátria, como eu agora me lembro de ti!

Depois dos lhos, nada me é mais caro.

Ai! Ai! Que grande mal é o amor para os mortais! 330

31
Literalmente: “suplico-te pelos teus joelhos e pela tua filha há pouco desposada”. Vide supra,
n. 11.
282 TRADUÇÕES DO GREGO

Conforme a fortuna, ao que me parece.

Zeus, não vos escape o causador desta desgraça!

Vai-te, ó louca, e livra-me de trabalhos.

Trabalhos serão os nossos, e de mais não precisamos 32.

Em breve serás levada à força, nos braços dos escravos. 335

Isso, ao menos, não, suplico-te, Creonte.

Tu causarás di culdades, ao que parece, ó mulher.

Fugiremos; mas não era esse o objecto da minha súplica.

Page aceita o v. 334, tal como está nos manuscritos, e propõe para ele a versão que seguimos,
32

embora reconheça o seu carácter tautológico e arti cial. Van Looy também o aceita. Diggle assinala-o
como corrupto.
EURÍPIDES, MEDEIA 283

E então porque insistes e porque não largas a minha mão33?

Este dia só consente que eu fique, a pensar na maneira de nos irmos e na 340

direcção que hão-de tomar os meus filhos, já que o pai nada se importa com o
que se há-de arranjar para eles. Tem pena deles. Que tu também és um pai com
filhos. É natural que tenhas benevolência. Pelo que me diz respeito, não tenho 345

cuidados, quando nos formos, mas choro-os a eles, pela desgraça que os atingiu.

A minha vontade em nada é a de um déspota; mas muitas vezes arruinei a


situação, por ser compassivo. E agora eu vejo que erro, ó mulher, mas, mesmo 350

assim, ser-te-á concedido. Mas previno-te, se a luz do Sol 34 que há-de surgir te
vir e às crianças dentro dos confins desta terra, morrerás; esta é sentença ini-
ludível. [E agora, se é preciso ficares, fica por um dia; que não farás nada do mal 355

que eu temo.]35

Ai de ti! infeliz pela desgraça, 358

pobre mulher, 357

p’ra onde hás-de voltar-te? que hospitalidade 36,

33
Traduzimos de acordo com o texto de Diggle, que segue a emenda de Wilamowitz no v. 338
(χερός), a qual reforça a insistência de Medeia, melhor do que a lição dos manuscritos (χθονός), que
levaria a traduzir por “não te afastas desta terra”.
34
Literalmente: “o facho do deus” – perífrase para designar o Sol, dando maior solenidade ao
decreto que Creonte está a proclamar.
35
Os vv. 355-356 foram eliminados por Nauck, a quem segue Diggle, como supérfluos. Embora
dubitativamente, Van Looy conserva-os. Na verdade, o argumento da inocuidade de “um só dia” é
uma das ilusões de Creonte.
36
O Grego exilado pensava, em primeiro lugar, em recorrer àqueles a quem estava ligado pelo vínculo
da hospitalidade. Efectivamente, quem acolhia alguém sob o seu tecto, dando-lhe assim protecção, tinha
direito a esperar retribuição de favores, se um dia as posições se invertessem. Esta norma de etiqueta
social, já bem de nida nos Poemas Homéricos, enforma o ideal aristocrático de felicidade de Sólon:
Feliz o que tem lhos caros, cavalos monodáctilos,
cães de caça, e um hóspede em terra alheia.
(fr. 23 West)
A salvação de Medeia virá, de facto, da hospitalidade que Egeu há-de prometer-lhe, no terceiro episódio.
284 TRADUÇÕES DO GREGO

que casa, que país salva teus males37? 360

Como um deus te conduziu, ó Medeia,


por um mar sem m de calamidades.

De todos os lados a desgraça. Quem contestará? Mas ainda não ca assim,


não suponhais. Ainda há lutas para os noivos de há pouco; para os sogros, não 365

pequenos trabalhos. Ou pensais que, se o lisonjeei, não era para ganhar ou tramar
alguma coisa? Nem lhe falava nem lhe tocava com as minhas mãos38... E ele a tal 370

loucura chegou que, sendo-lhe dado tolher os meus planos, expulsando-me do


país, concedeu-me car este dia, em que dos meus inimigos farei três cadáveres:
o pai e a donzela e o marido – mas o meu. 375

Dispondo de muitos caminhos, para lhes dar a morte, não sei, amigas, qual
ensaiar primeiro. Se hei-de deitar fogo à casa nupcial ou enterrar no cora-
ção 39 uma espada afiada, entrando silenciosa no palácio, onde está armado o
leito. Mas uma só coisa me é adversa: se sou apanhada ao entrar em casa e ao 380

preparar o ardil, a minha morte dará motivo ao escárnio dos meus inimigos.
O melhor é pela via mais directa, na qual somos mais sábias, suprimi-los com
veneno. Seja. Eles estão mortos. E que cidade me receberá? Quem, oferecendo 385

uma terra imune de ofensa e uma casa dedigna, salvará o meu corpo com a sua
hospitalidade 40? Não há ninguém. Espero então ainda algum tempo, a ver se me
aparece algum baluarte seguro 41, e com o dolo e o silêncio executo este crime. 390

E, se uma sorte irreparável me atingir, eu mesma empunharei a espada, ainda


quando tenha de morrer, e os matarei, e seguirei os caminhos violentos da
ousadia. Porque, pela minha Senhora, a quem presto culto acima de todos, e que 395

escolhi para me ajudar, por Hécate 42 , a que habita no recesso do meu lar,
nenhum deles torturará incólume o meu coração. Amargos e funestos lhes farei

Entre este verso e o seguinte, omitiu-se o 361, constituído apenas por um verbo, “descobrirás”,
37

incompatível com a sintaxe da frase. Diggle coloca-o entre parêntesis.


Alusão à atitude de suplicante, que Medeia tomara no v. 324 (vide supra, n. 31). Quer esta expli-
38

cação, quer o delinear de um plano, de vv. 368 a 394, é dada como inautêntica por Hübner, 1985, 22-32.
Sendo assim, caríamos privados do desvelamento em cena do carácter e dos planos de Medeia, e o
discutido episódio de Egeu não caria previsto.
O texto diz “no fígado”. Entre os Gregos, “coração” e “fígado” empregam-se indiferentemente
39

para designar a sede da vida ou das emoções.


40
Medeia retoma e analisa as dúvidas do Coro. Vide supra, n. 36.
Insere-se aqui a motivação dramática da cena de Egeu – cena cuja relevância para a tragédia
41

tem sido objecto de larga discussão, como vimos na Introdução.


O juramento por Hécate, deusa das artes mágicas, é especialmente apropriado a este monólogo,
42

em que Medeia prepara o seu plano de vingança por meio de venenos.


EURÍPIDES, MEDEIA 285

os esponsais, amarga a aliança e a minha fuga destas terras. Coragem, Medeia, 400

não te poupes a nada do que sabes, agora que já deliberaste e arranjaste um


expediente. Avança para esse fim terrível; agora é a luta dos ânimos fortes. Vês
o que sofres? Não deves oferecer motivos de escárnio por causa destas núpcias
entre a raça de Sísifo 43 e Jasão, tu que descendes de um pai nobre e do Sol 44. 405

Bem o sabes. Além de que nascemos mulheres, para as acções nobres incapacís-
simas, mas de todos os males artí ces sapientíssimas.

P’ra trás volvem as águas dos rios sagrados 45,


ao contrário andam justiça e o mais; 410

nos homens, fraudulentas sentenças; nos deuses


não mais temos con ança.
A fama mudará, trazendo à minha vida 415

glória; a honra virá p’ra a raça das mulheres


e fama inglória não mais nos manchará. 420

Dos velhos aedos as musas cessarão


de celebrar do meu sexo a in delidade46.
O canto inspirado da lira, não o quis
Febo, senhor dos sons 47,
em nossa mente infundir48; que, se o zera, 425

43
Sísifo era o fundador da casa real de Corinto, à qual pertencia a noiva de Jasão.
44
O pai de Medeia, o rei Eetes, era lho de Hélios (o Sol).
45
Partindo de uma expressão proverbial para sublinhar a alteração da ordem natural das coisas,
o Coro signi ca o seu espanto perante a inversão de valores na ordem moral. Doravante, os homens,
e não as mulheres, serão acusados de falsidade.
46
As objurgatórias antifeministas surgem em vários passos de Hesíodo e têm a sua expressão mais
violenta na chamada “Sátira contra as Mulheres”, composta no séc. VI a.C. por Semónides de Amorgo.
O próprio Eurípides era acusado de misoginia pelas suas contemporâneas, como o prova a
esfusiante paródia de Aristófanes na comédia As mulheres que celebram as Tesmofórias. É certo que
muitas das peças conservadas (nomeadamente Andrómaca, Hécuba, Hipólito) abundam em tiradas
antifeministas; mas, por outro lado, a Medeia, embora inclua algumas (veja-se, por exemplo, o final
do monólogo que termina o primeiro episódio e vv. 889-890), toma f requentemente a defesa dos
direitos da mulher (cf. a primeira fala da protagonista, a partir do v. 230), a ponto de os seus ver-
sos terem sido cantados, no século passado, pelas Inglesas participantes no chamado movimento
sufragista (vide Murray, Euripides and his Age, 1965, 18). Todos estes factos servem para nos advertir
do perigo de confundir a verdade dramática com a verdade do autor.
47
Já na Ilíada Febo Apolo era deus do canto e da música.
A Literatura Grega regista uma série de nomes que invalidam a a rmação destes versos sobre a
48

incapacidade poética da mulher. Porém, anteriormente a Eurípides, só duas alcançaram notoriedade,


286 TRADUÇÕES DO GREGO

eu comporia um canto contra os homens.


Deles e de nós tem que dizer o longo Tempo. 430

Tu da casa paterna navegaste,


coração tresloucado, separando
do mar os dois escolhos 49,
em terra estranha habitas, 435

o tálamo deserto;
infeliz, p’ra o exílio,
sem honra, te atirarão.

Do juramento partiu a lealdade;


na Grécia magna a vergonha nos ares 440

se evolou. Tu, coitada,


a pátria casa não tens,
p’ra refúgio das penas,
mas outra mais potente
reinará em teu lar. 445

Não é esta a primeira vez, mas já muitas eu vi como a cólera violenta é um


mal irremediável. Era-te permitido estar neste país e nesta casa, se suportasses
bem os desígnios dos mais poderosos, mas pelas tuas palavras estultas serás
expulsa desta terra. Eu não tenho nada a ver com isso. Não cessarás nunca de 450

dizer que Jasão é o pior dos homens? Mas, quanto ao que disseste contra os
soberanos, ca sabendo que é para ti grande lucro ser a fuga o teu castigo. E eu
sempre a tentar dissipar as iras dos reis enfurecidos, e a querer que tu casses; e 455

tu sem desistires da tua insensatez, sempre a dizer mal dos soberanos. Por isso
serás expulsa desta terra. Venho, não obstante, depois disto, sem me negar aos
amigos, olhando pela tua sorte, ó mulher, para que não vás daqui para fora com 460

as crianças, indigente ou necessitada. Muitos males carrega consigo o exílio.


E, ainda que tu me odeies, jamais eu seria capaz de te querer mal.

Safo e Corina (se é que esta última não é mais tardia, como sustenta com bons argumentos, D. L. Page,
Corinna, London, 1953). Compare-se com a restrição feita adiante, vv. 1085-1089.
49
Nova referência à travessia das Simplégades, mencionada no começo do drama.
EURÍPIDES, MEDEIA 287

Bandido dos bandidos – que esta é a pior injú ria que a minha língua tem 465

para a tua covardia – tu vieste ter connosco, tu vieste, odiosa criatura [para os
deuses e para mim e para toda a raça humana?]50 Isto já não é atrevimento, isto já
não é ousadia – olhar de frente para os amigos a quem se fez mal – mas a maior de 470

todas as enfermidades humanas, a falta de vergonha. Mas zeste bem em vir. Porque
eu, injuriando-te, aliviarei a minha alma, e tu, ouvindo-me, passarás pela tortura.
Pelo princípio principiarei a dizer. Fui eu quem te salvou, como sabem dos 475

helenos quantos embarcaram na mesma nau de Argos, quando te mandaram


pôr o jugo aos touros ignispirantes e semear o campo mortífero. E o dragão, que,
envolvendo o velo de ouro, enrolado em espiral, o guardava insone, matei-o 51, 480

levando à tua frente a luz da salvação.


E f ui eu que, traindo o meu pai e a minha casa, contigo vim para Iolcos
do Pélion, com mais paixão do que sensatez. E matei Pélias, da maneira mais 485

dolorosa, às mãos das suas lhas, e toda a casa destruí 52.


E, depois de teres recebido tais benefícios da nossa parte, tu, o mais celerado
dos homens, atraiçoaste-nos e contraíste novas núpcias, havendo lhos; se ainda 490

ao menos não tivesses descendência, seria perdoável teres-te enamorado de um


novo tálamo. Desvaneceu-se a fé nos juramentos, nem sei se crês que os deuses de
então já não governam, ou que há novas leis agora para os homens, já que ao menos
tens consciência de não teres sido el ao juramento que me zeste. Ai, minha mão 495

direita, que tantas vezes apertaste, e estes joelhos, como em vão se agarrou a eles,
como suplicante53, um homem perverso! Como falhámos nas nossas esperanças!
Mas vamos; conversarei contigo, como se meu amigo foras. Supondo que algum 500

bem me virá da tua parte? Seja como for. Sujeito a um interrogatório, mais infame
parecerás. E, agora, para onde hei-de voltar-me? Para a casa paterna e para a minha
pátria, que traí por amor de ti, vindo para este país? Ou para junto das desgraçadas
lhas de Pélias? Sem dúvida, elas haviam de receber-me bem na casa onde lhes matei 505

o pai... É assim mesmo. Aos da minha casa, que me eram caros, me tornei odiosa e,
naqueles a quem não devia fazer mal, criei inimigos, para te favorecer a ti. Foi assim

50
Este verso tem sido considerado espúrio a partir de Brunck, como antecipação desnecessária
do v. 1324. Van Looy aceita-o, embora dubitativamente.
51
Vide supra, n. 5.
52
Vide supra, n. 6. A partir do v. 490 até 515, Hübner, 1985, 32-38, dá tudo como interpolado, por
perturbar a unidade da fala, quer nos argumentos (repetidos, por vezes), quer no estilo, quer na
adequação. Não vemos, no entanto, que este acumular de motivos, entre os quais o do valor dos lhos
(496), seja estranho ao modo de ser da heroína.
53
Jasão fora suplicante de Medeia, mas esta agora não recebia a paga da sua generosidade. Sobre
a atitude da súplica, vide supra, nn. 11, 31 e 38. É provável que, como supõe Flory, 1978, 71, a meio do
v. 496 Medeia se voltasse para Jasão, para lembrar a sua anterior humildade.
288 TRADUÇÕES DO GREGO

que, em troca de tudo isto, me zeste feliz aos olhos das mulheres gregas. Admirável 510

é o marido que eu tenho – e el – desgraçada de mim! Se me expulsarem e eu fugir


desta terra, privada de amigos, sozinha, com os lhos, sozinhos, bela honra para
o recém-casado, que vão errantes, como mendigos, os teus lhos e eu – a que te 515

salvei. Porque seria, ó Zeus, que do ouro falso deste à humanidade indício claro, e
para conhecer nos homens a maldade não há contraste54 no corpo, que os distinga?

Terrível é a ira, e insanável, quando amigos contra amigos lançam a discórdia. 520

Força é, ao que parece, que eu não seja mau orador, mas, qual timoneiro de uma
nau valente, com os extremos das velas me furte à tua loquacidade temerária, ó 525

mulher. Eu, por mim, já que tanto exaltas o teu favor, creio que, dentre homens e
deuses, foi Cípria a única salvadora da minha viagem. Tu tens o espírito subtil, mas
é-te desagradável explicar como Eros te forçou com armas iniludíveis a salvar a 530

minha pessoa. Mas não vou insistir por demais nesse argumento. Fosse qual fosse
a tua ajuda, não está mal. Recebeste mais do que deste para me salvar, como te
vou demonstrar. Em primeiro lugar, habitas na terra dos helenos, em vez da dos 535

bárbaros, conheces a justiça e sabes usar das leis, sem recorrer à força 55. Todos os
gregos perceberam que eras sábia e tornaste-te famosa; se habitasses nos con ns 540

da terra, não se falaria de ti. Que eu não tivesse o oiro em casa, nem cantasse uma
melodia mais bela que a de Orfeu 56, se a fortuna insigne me não tocasse!
Tal é o que eu tenho para dizer dos meus trabalhos, já que tu preferiste uma 545

luta de palavras. Quanto ao que me censuraste sobre as núpcias reais, nisso te


mostrarei primeiro que fui sensato, depois que fui esperto, depois ainda que fui
um grande amigo, para ti e para os meus lhos. (Medeia faz um gesto de indignação.)
Mas está quieta. Desde que da terra de Iolcos para aqui passei, transportando mui- 550

tas desgraças irreparáveis, que solução podia achar mais acertada do que esta, de

54
Metáfora tirada da cunhagem das moedas.
Depois de a rmar que Medeia se limitara a obedecer à sua paixão – simbolizada aqui por Cípria
55

ou Afrodite (vide infra, n. 85) – Jasão aponta como primeiro benefício o tê-la trazido para a Grécia.
O tema da oposição entre bárbaros e helenos, posto em voga pelo so sta Antifonte (vide supra, n. 56
da Introdução), era corrente na segunda metade do séc. V a.C., e quase u m lugar comum das tra-
gédias de Eurípides. Geralmente, o contraste de nia-se a favor da superioridade grega, atribuída ao
conhecimento da Justiça – como aqui. Note-se, no entanto, a ironia dramática resultante do facto
de essas palavras serem postas na boca de Jasão.
Orfeu era um cantor mítico, que com a sua arte subjugava até a natureza. O facto de ele ter
56

sido um dos membros da expedição dos Argonautas não é certamente o motivo desta referência,
por trás da qual sentimos o ideal artístico do próprio poeta.
EURÍPIDES, MEDEIA 289

desposar a lha do rei, sendo um exilado? Não da maneira pungente que supões, 555

por abominar o teu leito, ou tomado pelo desejo de outra noiva, nem com a aspi-
ração de rivalizar com os que têm muita descendência. Bastam os que nasceram,
nada tenho a censurar. Mas – o que é mais importante – para que pudéssemos viver 560

bem, e não sofrêssemos privações, sabendo que todos os amigos fogem de quem é
pobre... e para criar os lhos como é devido à minha linhagem, dando-lhes irmãos,
às crianças de ti nascidas... para os colocar no mesmo grau e, aliando a raça, sermos
felizes. Pois tu para que precisas de lhos? A mim importa, com os que hão-de vir, 565

ser útil aos que já existem. Acaso pensei mal? Não eras tu que o dirias, se não te
dilacerasse o novo tálamo. Mas a tal ponto chegastes que, estando o consórcio em
boa ordem, vós, mulheres, supondes ter tudo; se, porém, surge algum contratempo 570

no matrimónio, das melhores e mais belas relações fazeis as mais hostis. Deviam
os mortais gerar os lhos de outra maneira, e não existir o sexo feminino57.
E assim não haveria mal para os homens. 575

Bem efeitaste, ó Jasão, tuas palavras; mas a mim se me a gura, se bem que
contra a tua opinião fale, que, traindo tua esposa, não zeste justiça.

É verdade que em muitas coisas sou diferente da maioria dos mortais. Para
mim, quem, sendo i njusto, é hábi l no dizer merece muito maior castigo 58 . 580

Com uma língua arti ciosa se gaba de enfeitar a injustiça e ousa cometer o mal;
mas ele não é tão destro como isso. É o teu caso. Agora vais mostrar que não és tão
hábil para mim, nem eloquente; porque uma só palavra te abaterá! Era preciso, se 585

não fosses malvado, que zesses esse casamento depois de me teres convencido,
e não a ocultas dos que te amam.

Belamente terias favorecido tal proposta, bem o creio, se eu te houvesse falado


do casamento, tu que nem agora te afoitas a depor a grande ira do teu coração. 590

57
Uma argumentação semelhante, embora em circunstâncias bem diversas, é usada por Hipólito
na tragédia homónima de Eurípides, vv. 616-629.
58
Tópico muito versado por Eurípides, especialmente na Hécuba, 1187-1194. Os perigos resultantes
da ausência de ligação entre a eloquência e a ética eram já apontados pelos inimigos dos Sofistas,
aos quais tal relação era indiferente.
290 TRADUÇÕES DO GREGO

Não foi isso o que te deteve, mas é que não te pareceu que, na velhice, um tálamo
bárbaro te seria glorioso.

Pois ca a saber duma vez para sempre: Não foi por amor de uma mulher que
eu z esta aliança com o leito real que agora tenho, mas, como já disse, com o desejo 595

de te salvar e de gerar lhos régios, da mesma origem dos mais, que sejam o sus-
tentáculo da casa.

Que não me caiba em sorte essa próspera vida de dor, nem essa felicidade, que
dilacera o meu espírito!

Tu sabes como hás-de mudar e mostrar-te mais sensata. Um dia o que é útil não 600

te parecerá doloroso, nem te julgarás infeliz, sendo afortunada.

Mostra-te insolente, tu que tens refúgio, que eu sozinha hei-de evadir-me


desta terra.

Tu mesma escolheste; não acuses mais ninguém. 605

Fazendo o quê? Casando, por ventura, e atraiçoando-te?

Lançando maldições molestas aos soberanos.

Sim, também para a tua casa eu sou uma fonte de maldições.


EURÍPIDES, MEDEIA 291

Não continuemos a questionar sobre isto. Mas, se algum auxílio queres dos 610

meus haveres, para os lhos ou para a tua partida, fala, que eu estou pronto a dar
com mão liberal, e a mandar senhas aos amigos 59, que te hão-de receber bem. E, se o
não quiseres, é loucura, ó mulher. Cessando a tua cólera, ganharás mais. 615

Da hospitalidade dos teus amigos não carecerei; nem receberei coisa alguma,
nem no-la dês; que a dádiva de um malvado não tem utilidade.

Mas eu tomo os numes por testemunhas de que quero fazer todo o bem, a ti e 620

às crianças. A ti não te agrada o que é bom, mas por orgulho rejeitas os amigos;
tanto mais há-de doer-te.

Corre. Tomar-te-á a saudade da donzela recém-desposada, se te demoras fora


de casa, longe da sua vista. Celebra as tuas núpcias; que ainda pode ser que, com o
auxílio do deus, se diga que casarás de maneira a chorares o casamento. 625

(Sai Jasão)

O amor, quando é forte60,


nem renome nem virtude
dá aos homens.
Ai! mas Vénus, quando é branda, 630

59
O texto diz “aos hospedeiros”. Jasão promete a Medeia que gozará da mesma hospitalidade a
que ele teria direito, segundo a etiqueta já mencionada em notas anteriores. Esta “transferência” da
hospitalidade equivale, grosso modo, à nossa moderna “carta de apresentação”.
Os antigos provavam a existência deste vínculo da hospitalidade por meio das “senhas” a que o
texto se refere, as quais, segundo o escoliasta, se formavam partindo um dado de osso; a metade do
hóspede devia acertar com a do hospedeiro.
60
No primeiro par de estrofes, o Coro faz votos por que lhe seja concedida uma união tranquila,
livre da ira, da discórdia, do adultério; que Afrodite não perturbe os casamentos felizes! O segundo
par de estrofes evoca as amarguras do exílio (tema que Eurípides retomará mais tarde nas Fenícias,
por exemplo) e censura veladamente a ingratidão de Jasão.
292 TRADUÇÕES DO GREGO

não há deusa mais graciosa!


Contra mim, nunca, senhora, tu lances
do arco doirado a seta inevitável
ungida de paixão. 635

Seja eu antes sensata,


é dos deuses dom mais belo; nunca, ferida
a minha alma pela ira adversa
e discórdia insaciável,
Vénus terrível me dê outro leito; 640

antes honrando uma união tranquila,


a distinga das outras.

Ó pátria, ó meu lar, 645

nunca eu de vós seja privada,


tendo na frente uma vida
impossível de viver,
misérrima em seus males.
A morte, a morte me vença antes 650

de chegar esse dia.


Dentre as penas maior não há
que ser da pátria arrancado.

Nós vimos, não soubemos


por outros o que nós pensamos. 655
Nem cidade nem amigo
do teu mal se condoeu,
que é dos males o pior.
Possa como ingrato perecer
quem não honra os amigos, 660
depois de dar da alma pura
as chaves. Para mim não é amigo.

(Entra Egeu)

Medeia, salve: que não há prelúdio mais belo do que este, para nos dirigirmos a
um amigo61.

Com as últimas a rmações do Coro, de censura ao amigo ingrato, forma contraste a intervenção
61

de Egeu. O facto evidencia-se logo na saudação, que repete a palavra “amigo”.


EURÍPIDES, MEDEIA 293

Salve tu também, ó lho do sábio Pandíon, Egeu 62. Donde vens para o solo 665

desta terra?

De Febo deixei o oráculo vetusto 63.

E porque ao centro da terra fatídico chegaste?

Buscando ter dos lhos a geração.

Ó deuses! Sem lhos chegaste até aqui? 670

Sem lhos somos, pelo fado de algum deus.

Tendo mulher, ou sendo estranho ao tálamo?

Não somos livres do leito nupcial.

62
Egeu, lho de Pandíon e pai de Teseu, era um dos rei míticos de Atenas, a quem, por tradição,
estava ligada a gura de Medeia. Eurípides compôs uma tragédia intitulada Egeu, que não se conserva.
63
O oráculo de Apolo em Delfos, o mais famoso da Grécia, donde vem Egeu, era consultado,
desde meados do século VIII a.C., por todos os Helenos e até veio a sê-lo por bárbaros. Dentro do
templo guardava-se, entre outras preciosidades, o omphalos (literalmente: “umbigo”) que os Gre-
gos diziam assinalar o centro da Terra. Os modernos pensam que se trata de uma ped ra adorada
pelos antepassados.
294 TRADUÇÕES DO GREGO

E que te disse Febo sobre lhos?

Palavras demasiado sábias para um homem entender. 675

Mas é lícito conhecermos o oráculo do deus?

Claro, tanto mais que ele pede um espírito subtil.

Que oráculo deu então? Diz, se é lícito ouvir.

Que do ventre eu não solte a parte proeminente.

Antes de fazer o quê ou de chegar a que terras? 680

... Antes de voltar a entrar no lar paterno.

E com que necessidade navegaste para esta terra64?

O acesso a Delfos, ainda hoje dif ícil, devido às altas montanhas em cujas encostas se situa,
64

faziam-no geralmente os antigos através do porto de Itea. Aí embarcara Egeu para efectuar a traves-
sia do golfo de Corinto, até ao Istmo. Daí seguirá para Trezeno, que fica a nordeste do Peloponeso.
EURÍPIDES, MEDEIA 295

Há um homem chamado Piteu, senhor da terra de Trezeno...

Filho ao que dizem, muito piedoso, de Pélops 65.

... Com ele quero conversar sobre a ordem divina. 685

Sábio é o varão e experimentado no assunto.

E a mim o mais caro de todos os companheiros de armas.

Que sejas bem sucedido e consigas o que desejas!

Mas porque tens esse olhar e essa cor66?

Egeu, de todos os maridos, o meu é o pior. 690

65
Pélops, filho de Tântalo, era o herói epónimo de toda a Península (“Peloponeso” é a “ilha de
Pélops”), antepassado dos Atridas, e primeiro vencedor dos Jogos Olímpicos.
66
Só neste momento Egeu repara na expressão de sofrimento de Medeia, que provavelmente a
máscara representava. De qualquer modo, na tragédia grega as rubricas de cena quase sempre se
deduzem do texto, como aqui sucede.
296 TRADUÇÕES DO GREGO

Que dizes? Conta-me claramente as tuas a ições.

Jasão me ultraja, sem que eu nada lhe tivesse feito.

E que fez ele? Explica-me com mais clareza.

Uma mulher está agora acima de nós, como senhora da casa.

Mas ele não ousou cometer esse feito tão vergonhoso? 695

Pois ca a saber que sim; desonrada está quem dantes era sua amada.

Mas ele apaixonou-se ou aborreceu o teu leito?

Uma grande paixão – e não é el aos que o amam.

Deixá-lo ir, se é um malvado, como dizes!

O seu desejo foi apoderar-se da glória de mandar. 700


EURÍPIDES, MEDEIA 297

E há alguém que lha dê? Completa a tua história.

Creonte, que é quem manda nesta terra de Corinto.

Compreensível era, ó mulher, a tua a ição.

Estou perdida. E, além disso, sou expulsa do país.

Por quem? Estás a falar de outros males ainda. 705

Creonte me expulsa, exilando-me da terra de Corinto.

E Jasão consente? Também o não louvarei.

Não o diz com palavras; porém, a sua vontade é consentir. (Toca-lhe com a
mão direita na barba e a esquerda nos joelhos). Mas imploro-te pelas tuas barbas
e pelos teus joelhos, como tua suplicante 67, compadece-te de mim que sou 710

uma desgraçada, e não olhes com indiferença a minha queda e o meu abandono,
mas recebe-me no teu lar, no teu país, na tua casa. Assim o desejo de ter filhos
seja atendido pelos deuses e tu morras feliz! Tu não sabes que achado fizeste. 715

Farei com que deixes de ser um homem sem descendência e far-te-ei gerar lhos.
Eu conheço esses remédios.

67
Novamente a atitude de súplica, já descrita na n. 11.
298 TRADUÇÕES DO GREGO

Por muitos motivos estou pronto a conceder-te essa graça, ó mulher, pri-
meiro por respeito aos deuses, depois pelos filhos cuja procriação anuncias. 720

Que eu para isso já de todo estou sem forças. Mas será assim: vindo tu ao meu país,
tentarei dar-te hospitalidade, segundo a justiça. [Aqui tens contudo, mulher, os
avisos que te dou: eu desta terra não quero levar-te.] Por ti mesma sairás desta 725

terra; mas tu é que, se fores por tua vontade para minha casa, carás livre de
ofensas, e não tenhas medo que a alguém te abandone. Pois até para os que me
deram a hospitalidade quero ser ileso de culpas 68. 730

Assim será. Mas se eu tivesse disso a fé, em tudo estaria de bem contigo.

Acaso não con as em mim? Ou que di culdade existe?

Con o. Mas inimiga é para mim a casa de Pélias69, e Creonte.


Ligado por estes juramentos, ainda quando quisessem levar-me à força da 735

tua terra, não me abandonarias. Ao passo que, sendo o nosso acordo só em palavras,
e sem juramento à face dos deuses, tornar-te-ias num amigo, que logo obedeceria
às proclamações do arauto70. Débil é o meu estado; ao passo que eles detêm a feli-
cidade e uma casa reinante. 740

Grande prudência mostram as tuas palavras. Mas, se assim te parece, não me


negarei a fazê-lo. Para mim é mais seguro mostrar aos inimigos que tenho um
pretexto, e a tua situação cará mais rme.
Nomeia tu primeiro os deuses. 745

Enquanto se encontra no território de Corinto, Egeu é hóspede de Creonte, motivo por que não
68

pode desrespeitar as suas ordens, sem faltar à lealdade que lhe deve.
Seguimos a ordem dos versos adoptada por Diggle, de acordo com um papiro de Oxirinco inédito
(II.11), o qual também omite os vv. 725-726.
69
A casa reinante da Tessália. Vide supra, n. 6.
70
O arauto que, em nome do rei de Corinto, iria reclamar a entrega de Medeia.
EURÍPIDES, MEDEIA 299

Jura pelo solo da Terra e pelo Sol71, pai do meu pai, e associando dos deuses
toda a raça.

E o que é preciso fazer ou não fazer? Diz.

Que jamais me expulsarás do teu país, espontaneamente, nem me abandonarás


com vida, por tua livre vontade, se algum dos meus inimigos desejar levar-me. 750

Juro pela Terra e pela luz brilhante do Sol e por todos os deuses manter-me
el ao que de ti ouvi.

Basta. E se não mantiveres o juramento, que terás de sofrer?

A sorte dos ímpios. 755

Podes ir-te em paz. Está tudo bem. Eu chegarei à tua cidade o mais depressa
que puder, depois de ter feito o que pretendo e de ter conseguido o que quero!

Possa o lho de Maia72, o deus que guia


as gentes, a casa levar-te, e assim 760

71
Sobre a ascendência de Medeia, vide supra, n. 44.
A Terra e o Sol costumavam ser invocados em primeiro lugar, para garantir os julgamentos. Assim
na Ilíada III.276-280 e XIX.258-260.
72
O lho de Maia (e de Zeus) é Hermes, o deus dos viajantes.
300 TRADUÇÕES DO GREGO

se cumpram teus desejos, ó Egeu,


tu, que homem tão nobre nos pareces.

Ó Zeus, ó Justiça, filha de Zeus, e luz do Sol 73, vitoriosas estamos agora, ó
amigas, sobre os nossos inimigos, e entrámos já no caminho. Agora há espe- 765

rança de fazer justiça sobre os nossos inimigos. Porque este homem, quando
penávamos na maior a ição, apareceu como um porto de abrigo das minhas
decisões. A ele prenderemos as amarras da popa74 , dirigindo-nos para a fortaleza
e cidade de Palas 75. Os meus planos, já tos vou dizer todos. Mas não recebas as 770

minhas palavras a título de deleite.


A Jasão alguém mandarei, dentre os meus servidores, pedindo-lhe que compa-
reça à minha presença. E, quando ele chegar, dir-lhe-ei palavras brandas, de como 775

também eu sou desse parecer76, que estão bem as núpcias reais, que, traindo-me, ele
celebra, e que belo é o partido e bem calculado. Pedirei que os meus lhos quem, 780

não para os deixar em terra hostil, [a m de serem maltratados pelos inimigos,]77


mas para matar ardilosamente a lha do rei. Mandá-los-ei então com presentes
nas mãos [para os levarem à noiva, e não saírem desta terra]78, um peplos subtil e 785

uma coroa de ouro lavrado. E quando ela pegar nesses enfeites e os cingir ao seu
corpo, terá uma morte horrorosa, assim como todo aquele que tocar na donzela.
Tais serão os venenos com que hei-de ungir os presentes! Mas neste ponto eu 790

suspendo as minhas palavras. Gemo ao pensar na acção que em seguida tenho


de praticar. Porque eu vou matar os meus lhos. Não há quem os possa livrar.
E, depois de ter derrubado toda a casa de Jasão, saio do país, fugindo do assassínio 795

dos meus lhos adorados, eu, que ousei a mais ímpia das acções. É que não se pode
tolerar que os inimigos escarneçam de nós, ó amigas.

Medeia invoca os deuses que protegem os juramentos, Zeus e Dike (a Justiça) – aqui sinónima
73

de Témis – e ainda o Sol, seu antepassado.


74
Outra metáfora náutica. Os navios gregos tinham, além das âncoras, amarras na popa, para
os prenderem à praia.
75
Atenas, cidade cuja divindade protectora era Palas Atena.
76
Texto sintacticamente duvidoso, mas cujo sentido geral é claro.
Brunck omitiu este verso, por repetir em parte o v. 780 e antecipar, também em parte, 1060-
77

1061. Diggle segue-o.


78
Desde Valckenaer que se omite este verso, que é um arranjo de 950, 940 e 943.
EURÍPIDES, MEDEIA 301

[Vamos. De que me vale viver? Não tenho pátria, não tenho casa, não tenho
refúgio para esta calamidade.]79 Errei uma vez, quando abandonei a casa pater- 800

na, con ada nas palavras de um grego, que, com a ajuda do deus, sofrerá a nossa
justiça. Porque não tornará a ver com vida doravante os lhos que de mim teve,
nem gerará nenhum da noiva recém-casada, porque será forçoso que essa má 805

tenha má morte com os meus venenos. Ninguém me suponha fraca e débil, nem
sossegada; outro é o meu carácter: dura para os inimigos, benévola para os amigos.
Porque de tais pessoas a vida é gloriosíssima80. 810

Já que tais desígnios nos comunicaste, nós, no desejo de te ajudar, e de acordo


com as leis dos mortais, não te aconselhamos a que cometas essa acção.

Não pode ser de outra maneira. Tu tens desculpa de assim falar, tu que não 815

sofreste, como eu, duramente.

Mas tu hás-de atrever-te a matar a tua descendência, ó mulher?

Nada morderá mais rijo no coração de meu marido.

E tu virás a ser, por certo, a mais desventurada das mulheres.

Na esteira de Leo, Diggle considera interpolados estes versos, que, na verdade, são inconsequentes.
79

O mesmo faz Mastronarde. Page, no entanto, pensa que Medeia terá no palácio de Egeu apenas um
refúgio contra o castigo, não contra a sua desgraça.
80
Era a doutrina corrente entre os antigos, não só em espíritos vulgares, como Arquíloco (fr.
126 West) ou Teógnis (vv. 869-872), como num homem a muitos títulos superior, como era Sólon
(fr. 13,5 West). A primeira derrogação a esta lei de Talião encontra-se no Críton (49c) de Platão,
posta na boca de Sócrates.
302 TRADUÇÕES DO GREGO

Vamos. Supérf luos são todos os argumentos que se meterem de permeio.


(Chamando uma aia) Mas, anda 81, corre a trazer Jasão, já que de ti nos servimos 820

para todas as missões de confiança. Nada digas das minhas decisões, se na


verdade queres bem aos teus amos e és mulher. (A aia sai).

Felizes são de há muito os Erectidas82,


lhos dos deuses bem-aventurados, 825

os da sagrada terra inviolada,


que da mais ilustre Ciência83 se nutrem,
e pelo ar do mais belo fulgor
movem seu passo leve, onde uma vez 830

as Musas puras, as nove Piérides,


criaram – é fama – a loura Harmonia84 .

E dizem que Cípria 85 ao pé do Ce so86 835

das belas águas que ela fez brotar,


largou sobre o país as brisas suaves
dos ventos moderados 87; de róseas ores 840

as comas com grinaldas odoríferas


enfeitadas, como é do seu costume,

Esta ordem é dada a uma das aias de Medeia. As palavras que se seguem sugerem que a en-
81

carregada do recado seja a Ama. Neste caso, seria a sua única presença em cena, depois do párodo.
Não nos parece necessário supor, como Gredley, 1987, 32 e n. 29, que o facto de no v. 180 o Coro dar
instruções à Ama para trazer cá fora Medeia sugira que a mesma reapareça como figura muda em
214 e permaneça ao fundo de cena até ser mandada procurar por Jasão em 820. Sobre a hipótese do
mesmo helenista, de que Medeia também sai da cena nesta ocasião, vide infra, nota 93, bem como
a nota 12 da Introdução.
O Coro canta o elogio de Atenas, a hospitaleira metrópole das artes e da ciência, onde Medeia
82

vai habitar.
Os Atenienses intitulavam-se Erectidas, como descendentes de Erecteu, fundador mítico da sua
cidade, o qual nascera da Terra. O conhecido templo da Acrópole dedicado a Erecteu só começou a
construir-se em 421 a.C., dez anos depois de estreada esta peça.
83
Aqui “Ciência” traduz o grego Sophia, que designa o conhecimento das Letras e das Artes.
84
A união das nove Musas, patronas de todas as formas de Sophia, produz a harmonia.
Um dos nomes de Afrodite, por ter abordado primeiro a ilha de Chipre, quando nasceu das
85

águas do mar (outra versão da lenda refere o mesmo em relação a Citera, donde o epíteto de Citereia).
86
O Ce so era um dos rios de Atenas. No v. 846 alude-se de novo a ele, bem como ao Ilisso (“dos
rios sagrados a cidade”).
87
Exaltação do clima de Atenas, como causa da sua excelência.
EURÍPIDES, MEDEIA 303

à Ciência mandou, para a acompanharem,


os Eros que das Artes 88 são estímulo. 845

Mas dos rios sagrados a cidade E

ou de amigos a terra hospitaleira


como há-de receber
a mãe que mata os lhos
ímpia, entre as demais? 850

Olha o golpe nos lhos,


olha o crime que fazes!
Nós te suplicamos e te imploramos:
não mates os teus lhos! 855

Onde a coragem na alma e na mão


terás, dos lhos89 contra o coração,
com audácia tremenda?
Como, volvendo os olhos, 860

a teus lhos, sem lágrimas,


darás sorte fatal?
Quando eles caírem, súplices,
não poderás tingir mão homicida
com ânimo constante. 865

Ao teu chamamento venho. Apesar da tua hostilidade, não deixarás certamente


de ser servida. Mas quero ouvir o que pretendes de novo da minha parte, ó mulher.

Rogo-te, Jasão, que perdoes as minhas palavras. É natural que suportes as minhas 870

iras, dadas as muitas provas de amor que trocámos. Eu entrei em discussão comigo
mesma, a mim censurei. Miserável, que insânia é esta, e que hostilidade para com

88
Afirma-se nestes versos que Afrodite mandou os Amores, bem como a Ciência (Sophia), pois
todos juntos levam à excelência na poesia, na música, na filosofia. É essa superioridade (em grego,
arete) que, por esse motivo, aqui traduzimos por “Artes”.
89
Di culdades sintácticas de vária ordem levam os editores a dar o texto como corrupto neste
passo. O sentido geral, porém, não oferece dúvidas.
304 TRADUÇÕES DO GREGO

quem me quer bem? E estou, como uma inimiga, contra os soberanos do país e 875

contra o marido, que fez o que havia de mais conveniente para nós, desposando
uma rainha e gerando irmãos para os meus lhos? Não hei-de eu libertar-me desta
ira? Porque me a ijo, se os deuses dão providências desta maneira? Não tenho eu
os lhos e não sei que temos de abandonar esta terra e que são escassos os amigos? 880

Nisto re ectindo, compreendi que fora estulta e em vão me enfurecera. Agora eu


louvo-te e pareces-me sensato em nos arranjar este parentesco, e eu insensata, 885

eu que devia tomar parte nestas decisões e ajudar a levá-las a bom termo, e estar
ao lado do teu tálamo e regozijar-me por prestar à noiva e a ti os meus cuidados.
Porém nós somos como somos, não direi más, mas mulheres; mas não deves igualar- 890

-te na maldade, nem a uma loucura responder com outra. Pedimos-te este favor
e admitimos que errámos há pouco, mas agora pensámos melhor.

Ó filhos, filhos, vinde cá, deixai a nossa casa. (Os filhos entram.) Saí, vinde 895

beijar o vosso pai e dizer-lhe adeus comigo e, ao mesmo tempo, abandonai a


antiga aversão contra os inimigos, tal como a vossa mãe. Porque tréguas já fi-
zemos e a ira aplacámos. Tomai-lhe a mão direita. (As crianças pegam na mão do
pai.) Ai de mim, como eu penso nos males dissimulados! (As crianças estendem os 900

braços para o pai.) Ó filhos meus, ainda por muito tempo podereis assim estender
os braços caros? (Medeia chora.) Desgraçada de mim, como eu estou propensa às
lágrimas e cheia de temor! Agora, en m, que erradiquei a inimizade ao pai, esta
cena de ternura encheu-me os olhos de lágrimas. 905

Também a mim aos olhos vem um pranto vivo. Oxalá o mal não avance mais
do que agora!

Isso louvo, ó mulher, e aquilo não censuro. Porque é natural que o sexo
femin ino se enf ureça contra os maridos quando eles contraem núpcias 910

estranhas 90 . Mas o teu ânimo mudou para melhor e, embora só com o tempo,
reconheceste a decisão que prevaleceu. Esse procedimento é de uma mulher
sensata. Para vós, ó filhos, conseguiu vosso pai, não sem cuidados e com o
auxílio dos deuses, perfeita segurança. Penso, na verdade, que haveis de ser 915

O v. 910 aparece em quase todos os manuscritos com uma sintaxe certamente errada, e o único que
90

difere não oferece um texto seguro. Das muitas emendas propostas nenhuma é totalmente satisfatória.
EURÍPIDES, MEDEIA 305

ainda, com vossos irmãos, os primeiros desta terra de Corinto. Crescei, que
o resto vos arranjará vosso pai e quem dos deuses vos for propício. Possa eu ver-
-vos chegar f lorescentes ao termo da juventude, superiores aos meus inimigos! 920

(Medeia volta a cara e chora novamente).


Mas tu, porque de lágrimas abundantes banhas teus olhos, volvendo para
o lado o branco rosto, e sem prazer recebes as minhas palavras?

Não é nada. Pensava nestas crianças. 925

Está descansada. Eu velarei por elas.

Assim farei. Nem eu descon arei da tua palavra. Frágil é a mulher e nascida
para as lágrimas.

Mas porque tanto gemes por estes lhos?

Eu lhes dei o ser. E, quando tu fazias votos por que os pequenos vivessem, 930

invadiu-me um sentimento de piedade, se assim viria a acontecer ...


Quanto aos motivos que te trouxeram a falar comigo, uns foram já ditos, dos
outros vou fazer menção. Já que aos soberanos parece conveniente mandar-
-me embora do país (e que é melhor para mim – reconheço-o bem – que eu não 935

habite demasiado perto de ti e dos senhores desta terra, pois que me consideram
maléfica para a casa deles), nós fugiremos destes lugares; mas as crianças, pede a
Creonte que sejam educadas por tuas mãos e que não sejam exiladas desta terra. 940

Não sei se o convencerei; é preciso tentar.

Mas, ao menos, manda a tua esposa pedir ao pai que as crianças não saiam do país.
306 TRADUÇÕES DO GREGO

Sim, imagino que, a ela, sempre a poderei convencer, se realmente é uma


mulher como as outras91. 945

Mas também nessa diligência eu te ajudarei. Vou-lhe mandar uns pre-


sentes, que em beleza excederão em muito o que se usa, creio eu, [um peplos
subtil e uma coroa de ouro lavrado] 92 , e que serão levados pelas cr ianças.
(Chamando para dent ro de casa.) É preciso que um dos criados traga aqui o
adereço a toda a pressa93. E ela será feliz não uma, mas mil vezes, por lhe ter 950

cabido em sorte por companheiro um homem excelente, como tu, e por possuir
um adereço que outrora o pai do meu pai, o Sol, deu aos seus descendentes. 955

Tomai estes dons nupciais em vossas mãos, ó lhos e, levai-os, para os dardes à
feliz noiva real, que não receberá dádiva desprezível.

Insensata! Para que deixas tuas mãos vazias destes bens? Julgas que o palácio real 960

é escasso em peplos, escasso em ouro? Guarda essas coisas, não as dês. Se, na verdade,
alguma consideração tem por nós a esposa, colocar-nos-á acima dos dons, eu bem o sei.

Não me digas isso. Há um provérbio que diz que os presentes até aos deuses
convencem. O ouro é para os mortais mais potente que mil argumentos. Dela é o 965

génio protector, é a ela que o deus dá agora a prosperidade, é jovem e é soberana.

91
Uns manuscritos atribuem este verso a Jasão, outros a Medeia, outro ainda omite-o. A verdade é
que tem uma certa relevância dramática, e, sob o ponto de vista formal, parece mais apropriado que
Jasão responda à mulher com o mesmo número de versos. A hipótese de esta restrição vir de Medeia
contribuiria para acentuar a falsidade da atitude que assume em todo o episódio.
92
Em verso é apenas a repetição de 786, pelo que Bothe, seguido por Diggle, o deu como interpolado.
A ordem aqui dada por Medeia é prontamente realizada, pois cinco versos adiante já ela faz entrega
93

das dádivas aos lhos. Como a protagonista nunca sai da cena até ao v. 1250, não cou oportunidade
para ungir os presentes com venenos, conforme anunciara no v. 789. A maior parte dos comentadores,
entre eles Page, explica o facto como uma pequena inconsequência do dramaturgo.
Outros, como Gredley, 1987, 33, entendem que os venenos anunciados em 789 têm de ser realmente
aplicados pela protagonista, e que a acção se realiza enquanto o Coro entoa a ode de elogio a Atenas.
EURÍPIDES, MEDEIA 307

E o exílio dos meus lhos, por ele eu dava a vida, que não ouro apenas. Ó lhos,
entrai os dois no rico palácio e suplicai à nova esposa de vosso pai, e minha se- 970

nhora, implorai-lhe que não vos expulse desta terra, e dai-lhe o adereço, porque
o mais necessário é que estes dons sejam recebidos pelas próprias mãos dela. Ide
o mais depressa que puderdes. Sede bem recebidos, para serdes para vossa mãe
os arautos da boa-nova, que ela anseia por que aconteça. 975

Não mais tenho, não mais


esperança que vivam
as crianças: p’ra a morte
já caminham.
Dos adereços de ouro
a noiva o mal recebe.
Oh! Recebe!
E na loira cabeça 980

co’as próprias mãos


o enfeite mortal colocará.

A beleza esplendente
e a graça divina
lhe farão pôr o peplos
e a coroa
dourada; sob a terra
em breve noivará. 985

Desgraçada,
tal a rede fatal,
onde ela há-de cair.
E não pode fugir a tal desgraça.

E tu, ó desgraçado, mal-casado, 990

genro do soberano, sem saberes,


morte funesta, horrível,
aos lhos, à mulher, a ti preparas.
Ilusão, infeliz, é teu destino. 995

Contigo gemo ainda a tua dor,


mãe desgraçada de lhos, que matas,
308 TRADUÇÕES DO GREGO

por causa de um noivado,


que celebra teu marido, vivendo 1000

com uma companheira, contra a lei.

(Entra o Pedagogo com as crianças)

Senhora, teus lhos que aqui estão escaparam ao exílio e a noiva real com prazer
recebeu os presentes das suas mãos; daquele lado haverá paz para as crianças. (Medeia
mostra-se a ita e volta o rosto.) Mas então? Como estás perturbada, quando tudo corre bem? 1005

[Porque volves para o lado o branco rosto, e sem prazer recebes as minhas palavras94?]

Ai! Ai!

Os lamentos não estão de acordo com tão boas notícias.

Ai! Ai! Digo eu ainda.

Acaso anunciei uma desgraça sem saber, e me enganei, julgando trazer


boas-novas? 1010

O dito está dito; não te censuro. (Baixa os olhos e chora.)

Então porque baixas os olhos e choras?

Estes versos, que repetem com pequenas variantes 923-924, são considerados uma interpolação
94

desde Valckenaer.
EURÍPIDES, MEDEIA 309

Fortes razões tenho, ó ancião; porquanto os deuses e eu pensámos mal, quando


planeei este acto95.

Tem con ança; ainda um dia hás-de partir para junto dos teus lhos. 1015

Antes disso, outros farei partir96, coitada de mim!

Não és só tu que te separas dos filhos. E quem é mortal tem de suportar


melhor a desgraça.

Assim farei. Mas tu vai dentro de casa e prepara aquilo de que as crianças
necessitam todos os dias97. 1020

Ó lhos, lhos, vós tendes país e tendes morada, na qual, depois de terdes
abandonado esta desgraçada, habitareis, para sempre privados de vossa mãe.
Eu tenho de partir para o exílio, para outra terra, antes de ter gozado a vossa
companhia e de vos ter visto felizes, antes de ter adornado o leito, e a noiva, e o 1025

tálamo, e de ter pegado nos fachos nupciais 98.

95
A responsabilidade dos seus actos é suficientemente nítida para Medeia, para a levar a este
aparente anacoluto de usar a primeira pessoa do singular, depois de ter principiado por falar dos
deuses como sujeito da acção. Esta é também a interpretação de Page, comm. ad loc. Pelo contrário,
Knox, 1977, 205, considera que este passo é mais um exemplo de como Medeia pensa sempre ter
os deuses a seu lado. Diferentemente, Mastronarde, 2002, 332-333, entende que é a partir daqui
que Medeia se apresenta “como compelida por circunstâncias exteriores a levar o seu plano até
à sua amarga conclusão”.
96
Jogo de palavras sinistro sobre o sentido de “partir”.
97
Medeia manda o Ped agogo sair para cumprir a sua tarefa diária de tratar das coisas das
crianças – tarefa que ela sabe não mais será necessária. É provável, como pensa Hübner, 1984, 402,
que ele estivesse em cena desde o v. 894.
98
Série de cerimónias nupciais que pertencia à mãe do noivo executar.
310 TRADUÇÕES DO GREGO

Oh! Desventurada que eu sou, por ser tão indomável! Não era para isto que
eu vos tinha criado, ó filhos, não foi para isto que eu sofri trabalhos e passei 1030

torturas, suportando as dores agudas de dar à luz.


Coitada de mim, que em tempos tive tanta esperança em vós, que havíeis de
amparar-me na velhice, e que, depois de morta, me havíeis de arranjar por vossas
mãos, piedosamente, causando inveja aos homens; e agora se foi o doce pensamento. 1035

Porque, privada de vós, eu levarei uma vida amarga, e para mim dolorosa. E vós
nem sequer ao menos vereis a vossa mãe com esses queridos olhos, porque tereis
passado a outro género de vida99.
Ai! Ai! Porque fitais em mim os olhos, ó lhos? Porque sorrides pela última 1040

vez? Ai! Ai! Que hei-de eu fazer? O ânimo fugiu-me, mulheres, desde que vi o olhar
límpido dos meus lhos. Não, eu não seria capaz. Deixá-las ir, as minhas decisões
anteriores. Levarei desta terra os lhos, que são meus. Para que hei-de eu, para 1045

a igir o pai deles com a sua desgraça, in igir a mim duas vezes os mesmos males?
Não, eu não, por certo. Deixá-las ir, as minhas decisões.
E contudo, que se passa em mim? Quero provocar o escárnio dos meus inimigos,
deixando-os sem castigo? Tenho de me atrever. Ah! Mas que vileza a minha, ter 1050

sequer admitido pensamentos de brandura no meu espírito! Ide, ó lhos para


casa 100 . A quem não agradar assistir aos meus sacrifícios, é consigo. O meu braço
não estará enfraquecido. 1055

Ai! Ai! Mas não, meu coração, tu, ao menos, não farás isso. Deixa-os, ó desgraçada,
poupa as crianças. Vivendo lá connosco, eles serão a tua alegria.
Juro pelos génios da vingança, que estão no Hades101, nunca acontecerá que eu 1060

entregue os meus filhos aos inimigos para lhes sofrerem as insolências. É absoluta
a necessidade de os matar, e, já que é forçoso, matá-los-emos nós, que os gerámos.
É assim, absolutamente, e não há que fugir-lhe. E é certo que com a coroa na
cabeça, envolta no peplos, a noiva perecerá, eu bem o sei. Mas eu sigo pelo 1065

caminho mais desgraçado, e a estes vou mandá-los por um ainda pior! Quero
dizer adeus aos meus filhos. Deixai-me, ó filhos, deixai à vossa mãe apertar a
vossa mão direita. 1070

99
Novamente um jogo de palavras que alude ao destino que espera as crianças.
Murray entende que os lhos saem de cena neste ponto e regressam, chamados pelos servos,
100

no v. 1069. Page e outros supõem que as crianças hesitam, mas não chegam a retirar-se, neste v. 1053.
A edição de Diggle, ao considerar interpolados os v v. 1056-1080, exclui esta última hipótese. Me-
rece especial relevo a solução proposta por Dodds 1952, 13-18, ao escrever que “as palavras παῖδας
προσειπεῖν βούλομαι não são instruções para escravos visíveis, mas parte integrante do seu soliló-
quio”. Mais recentemente, Hübner, 1984, 403, vai ainda mais longe, ao colocar a saída das crianças
em 1020, juntamente com a do Pedagogo. Barlow, 1989, 166, reconhece que a sua presença em cena
é crucial, visto que conf ronta Medeia com uma realidade que ela não é capaz de evitar. Refira-se
ainda, neste ponto, a observação de Foley, 1989, 84, de que “o contraste visual entre a perturbada
mãe e as crianças inocentes produz um efeito cénico que vale a pena prolongar”.
101
O inferno grego.
EURÍPIDES, MEDEIA 311

Ó mão tão querida, ó boca mais cara de todas, e gura e rosto nobre dos meus
lhos, gozai de felicidade, mas lá; que a daqui vosso pai vo-la tirou. Ó doce abraço,
ó tenro corpo e sopro suavíssimo dos meus lhos! 1075

Ide, ide. Já não estou em estado de olhar mais para vós, que sou dominada pelo
mal. E compreendo bem o crime que vou perpetrar, mas, mais potente do que as
minhas deliberações, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais102. 1080

(Os filhos saem)

Muitas vezes já,


tenho usado de razões mais subtis
e entrado em disputas mais altas
do que é dado ao sexo das mulheres.
Mas também para nós há uma Musa, 1085

connosco anda p’ra nos ensinar.


Mas não com todas. Talvez entre muitas,
poder-se-á <alguma>103 encontrar,
não estranha às Musas.

Dentre os mortais, quem lhos nunca teve 1090

nem experimentou, digo eu que está


no melhor caminho da felicidade,
mais que quem os teve.

Quem não tem lhos nem experimentou,


seja isso um bem, seja isso um mal 1095

para os mortais – não tendo descendência,


muita dor evitam.

Mas aqueles p’ra quem dos lhos em casa


existe o doce rebento, eu vejo

102
A edição de Diggle segue aqui a opinião de Bergk, segundo a qual todo este passo (1056-1080) é
uma interpolação. Gredley, 1987, coloca aqui a segunda saída de cena de Medeia. Do muito que sobre
este texto se tem escrito, veja-se, em especial, Kovacs, 1986, e Michelini, 1989, e o que dissemos na
Introdução.
A emenda é de Elmsley, por comparação com Heraclidas 327-328. Quanto à ideia, confronte-se
103

com o que o Coro disse supra, 424-426, e a nossa nota 48.


312 TRADUÇÕES DO GREGO

o tempo em tormento passar. 1100

Como criá-los da melhor maneira,


depois, da vida deixar-lhes os meios.
Depois, se p’ra o bem, se p’ra o mal os criam,
e para isso se esforçam,
Até isso é incerto.

De todos os males, guardei p’ra agora


um só que é pior pr’a todos os homens. 1105

Na vida acharam bem-estar bastante,


à or da juventude eles já chegaram,
e nobres são; mas a sorte o decide,
os tira do caminho e a morte lhes leva
dos lhos pr’a o Hades os corpos belos. 1110

Pr’a que serve então aos homens que os deuses,


além dos outros males, um desgosto,
mais forte que todos,
por causa de ter lhos, lhes acrescentem? 1115

Amigas, há muito que eu aguardo os acontecimentos, com o ânimo atento ao


que há-de vir de acolá. Mas eis que vejo um dos criados de Jasão aproximar-se.
A sua respiração arquejante indica que vai anunciar uma nova desgraça. 1120

[Ó tu, que cometeste uma acção terrível e fora da lei]104, ó Medeia, foge, foge,
não desprezes navio que te leve ou carro que ande sobre o solo!

Que aconteceu que exija a minha fuga?

Vários manuscritos omitem este verso, que Lenting, seguido por Diggle, deu como interpolado.
104

Deste modo a fala do Mensageiro torna-se mais abrupta e incisiva, e justi ca-se melhor a aparente
surpresa de Medeia.
EURÍPIDES, MEDEIA 313

Morreu há pouco a princesa e Creonte, que a gerou, por causa dos teus venenos. 1125

Disseste as palavras mais belas, e entre os benfeitores e amigos meus para


sempre te contarei.

Que dizes? Estarás no teu juízo, ou estarás louca, ó mulher, tu que, depois 1130

de arruinar a casa dos soberanos, te comprazes em ouvi-lo e não te atemorizas?

Também tenho algo para responder às tuas palavras. Mas não tenhas pressa,
amigo, conta. Como morreram? Porque nos deleitarás duplamente, se eles morreram
na maior a ição. 1135

Depois que os teus dois lhos chegaram com seu pai e entraram nos aposentos
nupciais, regozijámo-nos, nós, os escravos, que com teus males nos havíamos a igido.
Logo se murmurava com insistência que tu e teu marido vos tínheis reconciliado da
vossa prévia dissensão. Beija um a mão, outro a loira cabeça das crianças. Eu mesmo, 1140

era tal o prazer, que segui com elas para os aposentos das mulheres.
A senhora que nós agora veneramos na tua vez, antes de tar os teus dois lhos,
tinha o olhar ardente preso em Jasão. Depois, cobriu os olhos e voltou para o lado 1145

a face branca, tocada pela aversão que lhe causara o ingresso das crianças. Porém
o teu marido dissipa as iras e a fúria da donzela, dizendo-lhe assim: – Não sejas 1150

hostil a quem me é caro, aplaca a tua ira, torna a volver o rosto, e tem por amigos
aqueles que o são para teu esposo; recebe estes presentes e roga a teu pai que perdoe
o exílio a estas crianças, por amor de mim. 1155

E ela, ao ver o adereço, não resistiu, e deu ao marido o seu consentimento para
tudo. E, mal se tinham afastado de casa o pai e teus lhos, pegou no peplos matizado
e vestiu-o e, colocando a áurea coroa sobre os anéis do cabelo, compõe o pentea- 1160

do a um espelho brilhante, sorrindo à imagem inanimada do seu corpo. E depois,


levantando-se do trono, passeia pela casa, caminhando leve, com seus alvos pés,
muito feliz com as dádivas e, muitas e muitas vezes, retesando a perna, olhava para 1165

trás, a ver se caía bem.


314 TRADUÇÕES DO GREGO

Então um espectáculo terrível se pôde ver: a cor se lhe muda, e avança cambale-
ante, os membros trementes, e a custo consegue deixar-se cair sobre o trono, antes 1170

de tombar por terra.


Uma das criadas antigas, crendo que vinham aí as iras de Pã 105 ou de algum
dos deuses, soltou um grito, antes mesmo de ver pela boca golfar alva espuma,
as meninas dos olhos reviradas e o corpo exangue. Então um grande lamento em 1175

contrário respondeu àquele grito. Logo uma se precipitou para a casa do pai, outra
para o esposo de há pouco, a contar a fatalidade da noiva. E toda a casa ressoava
com o ruído das correrias apressadas. 1180

Já então um corredor veloz, movendo-se num dos lados de uma liça de seis ple-
tros, teria tocado na meta106 . E ela, no meio do seu silêncio e de olhos semi-cerrados,
despertou, pobre donzela, com um gemido.
Uma dupla a ição a atacava: o diadema de ouro, colocado na cabeça, a largar 1185

uma torrente mágica de fogo omnívoro, e o peplos subtil, dádiva dos teus lhos,
lacerava as brancas carnes da desventurada.
Do trono se ergue, em chamas, agitando o cabelo e a cabeça em todas as direcções, 1190

querendo arrancar a coroa. Mas, solidamente, o ouro retinha a sua presa, e o fogo,
depois de ela sacudir a cabeça, brilhava com outro tanto fulgor. Cai no solo, vencida 1195

pela desgraça, perfeitamente irreconhecível, excepto a quem a gerara. Pois já nem dos
olhos era visível a bela forma, nem a nobreza do seu rosto, mas sangue à mistura com
fogo que gotejava do alto da cabeça, e dos ossos as carnes lhe escorriam, tal a lágrima 1200

que cai do pinheiro, consumidas pelas fauces ocultas dos venenos – um espectáculo
pavoroso! Todos tinham medo de tocar no cadáver. A sorte fora a nossa mestra.
Mas eis que o infeliz pai, da desgraça ignaro, entra de súbito em casa e cai sobre 1205

o cadáver. Logo um grito soltou, e cingindo-a com os braços, beija-a, exclamando:


– Ó desventurada filha, quem dos deuses te perdeu desta forma ignominiosa? Quem
priva de ti este velho, ao pé da sepultura? Ai de mim! Possa eu, ó lha, contigo sucumbir! 1210

Depois que cessou gemidos e lamentações, querendo erguer o velho corpo,


cava aderente ao peplos subtil, como a hera aos ramos do loureiro, e era uma luta
temerosa. Ele tentava levantar o joelho, e ela retinha-o. E cada vez que zesse força 1215

separava dos ossos as suas velhas carnes. Por m, desistiu e exalou, o infeliz, o seu

O escoliasta explica: “Antigamente os homens supunham que quem sucumbia de repente era
105

porque o seu espírito fora atingido por Pã, sobretudo, e por Hécate.” Algo desta noção prevalece
ainda nas expressões modernas “medo pânico” ou “ser tomado de pânico”.
106
Texto pouco seguro (Diggle adoptou a emenda de Lenting, ἀνελθὼν para ἀνελκὼν dos ma-
nuscritos, em 1181, e a de Musgrave, ἂν ἥπτετο para ἀνθήπετο no v. 1182), mas no qual se percebe
claramente a metáfora tirada das corridas, para sugerir o breve lapso de tempo decorrido. Um pletro
equivalia a pouco mais de 30 m. Portanto, o corredor teria percorrido um dos lados do estádio, ou
seja, pouco mais de 90 m.
EURÍPIDES, MEDEIA 315

espírito, pois já não era superior ao mal. Jazem os cadáveres, o da lha e o do velho 1220

pai [ao pé um do outro, uma desgraça que clama pelas lágrimas]107.


E, para mim, o teu caso está fora de discussão. Tu mesma descobrirás a maneira
de te subtraíres ao castigo. As coisas dos mortais, não é agora a primeira vez que as
tenho por uma sombra, nem sinto temor de dizer que aqueles dentre os homens que 1225

têm fama de sábios e de arti ciosos nos seus discursos, esses mesmos merecem o maior
dos castigos. Dos mortais, não há um só homem que seja feliz. Pode, se sobrevier a
prosperidade, ser um mais bem sucedido do que o outro; mas feliz, não é nenhum108. 1230

(Sai o Mensageiro)

Parece que muitos foram os males que com justiça o nume in igiu a Jasão neste
dia. [Ó desgraçada, como lamentamos a tua desventura, ó lha de Creonte, que
partiste para a mansão de Hades por causa das núpcias de Jasão!]109 1235

Amigas, decidida está a minha acção: matar os lhos o mais depressa que puder
e evadir-me desta terra, não vá acontecer que, cando eu ociosa, abandone as crian-
ças, para serem mortas com mão mais hostil. É absoluta a necessidade de as matar, 1240

e, já que é forçoso, matá-las-emos nós, nós que as gerámos. Mas vamos, arma-te,
coração! Porque hesitamos e não executamos os males terríveis, mas necessários?
(Erguendo a mão.) Anda, ó minha desventurada mão, empunha a espada, move-te para 1245

a meta110 dolorosa da vida, não te deixes dominar pela cobardia, nem pela lembrança
dos teus lhos, de como eles te são caros, de como os geraste. Mas por este breve

107
O v. 1221 apresenta uma construção obscura, que tem suscitado várias tentativas de emenda
e a rejeição total de Reeve, a quem Diggle segue.
108
Depois de verberar os perigos da sabedoria e da eloquência (vide supra, n. 58), e de lamentar
a triste condição do homem, o Mensageiro abandona a cena.
109
Já Wilamowitz (Hermes, XV, 485 seqq., apud Page 1938, 166) declarou estes três versos interpo-
lados por “um actor sentimental que entendeu que a atitude do Coro para com a noiva inocente era
demasiado impiedosa”.
110
Outra metáfora tirada das corridas. Vide supra, n. 106. Quanto à espada, Gredley, 1987, 38, supõe
que podia ser um objecto visível, trazido por Medeia no v. 1116, quando da reentrada em cena que atribui
à protagonista nessa ocasião. A formulação do texto não obriga, porém, a essa hipótese. Mais provável
parece a suposição de Flory, 1978, 71, de que Medeia aqui faria um gesto com a mão direita, para reforçar
o efeito dramático.
316 TRADUÇÕES DO GREGO

dia, ao menos, olvida, que depois os chorarás. Porque, mesmo matando-os, eles te
são sempre caros e eu – que desgraçada mulher que eu sou 111! 1250

Ó Terra, ó raios
do Sol coruscantes112 ,
vêde, oh! vêde esta mulher perdida,
antes que com mão suicida 113
ela ataque os próprios lhos.
Da tua dourada estirpe 1255

ela procede114, e os mortais


temem derramar o sangue de um deus.
Detém-na tu, ó luz, lha de Zeus!
Desta casa arranca o crime infeliz
e a vingança da Erínia115! 1260

Em vão o trabalho
dos lhos, em vão
a descendência cara tu geraste.
Tu, que sem medo passaste
das Simplégades o estreito
com as suas rochas negras116.
Porquê, desgraçada, a ira 1265

pesada na alma te cai e o crime


hostil vem? Mancha que não se redime

Medeia sai por algum tempo de cena, onde se tinha mantido sem interrupção desde a primeira
111

entrada, ao começar o primeiro episódio.


112
As mesmas invocações do v. 148.
113
“Mão suicida”, porque, destruindo a sua descendência, se aniquilava também a si.
114
Vide supra, n. 44.
As Erínias eram divindades subterrâneas, que vingavam os crimes cometidos contra pessoas
115

do mesmo sangue.
O texto grego apresenta várias di culdades, entre as quais a expressão ὑπ’ἀλαστόρων, que Page
emendou para ὑπαλάστορον e Diggle coloca entre cruces, pois é sintacticamente inaceitável. Quanto
ao alastor, um daimon malé co que está próximo da esfera de acção das Erínias, vide E. R. Dodds, The
Greeks and the Irrational (Berkeley, 1951) 39-40.
116
Vide supra, n. 3.
EURÍPIDES, MEDEIA 317

em casas genocidas, onde cai


dos deuses a maldição117. 1270

Ai de mim! 1270

Ouves este grito?


Ouves as crianças? 1273

Ai que desgraçada,
mulher de má sorte! 1274

Ai, que farei? P’ra onde fugir à mãe? 1271

Não sei, querido irmão, perdidos estamos. 1272

Entramos? 1275

Salvemos do crime
estas crianças.

Sim, pelo deuses, salvai-nos, precisamos.

117
Tradução aproximada de um texto corrupto.
318 TRADUÇÕES DO GREGO

Como a ponta da espada já está perto! 1280

Desgraçada, eras de pedra


ou de ferro, tu que os lhos,
esses frutos que geraras,
com a própria mão mataste!

Uma só mulher
uma só ‘té agora
ouvi, que p’ra os lhos 1285

levantasse a mão.
Foi Ino118 que os deuses enlouqueceram,
quando Hera119 de casa a quis expulsar.
No mar cai a pobre,
pelo ímpio crime 1290

dos próprios lhos,


estendendo o pé para além da margem,
morre, consigo os dois lhos levando.
Que horror pode vir ainda?
Ó tálamo feminil,
causa de tantos trabalhos,
que mal tens feito aos mortais!

Segundo a versão mais corrente, Ino, filha de Cad mo, lançou-se ao mar com o seu filho
118

Melicertes, fugindo à perseguição de seu marido, o rei Atamante, que, tendo enlouquecido, matara
já o outro filho, Learco. Ino foi depois divinizada, com o nome de Leucoteia, e outro tanto aconteceu
a Melicertes, que passou a chamar-se Palémon. Nesta peça, é Ino que, tomada de loucura, matou
os dois filhos e saltou para o mar. Provavelmente seria esta a versão adoptada por Eurípides na
sua tragédia perdida, Ino.
O texto diz precisamente “a esposa de Zeus”, que, por conveniência métrica, substituímos
119

por “Hera”.
EURÍPIDES, MEDEIA 319

Mulheres, que estais junto destes tectos, por ventura ainda se encontra nesta
casa a autora de tantos horrores, Medeia, ou conseguiu ela fugir? Pois força é que 1295

ela se oculte debaixo da terra ou que asas lhe levantem o corpo para o ar profundo,
se não quer pagar a pena à casa real. Estará ela convencida de que, depois de matar
os soberanos do país, lhe será dado fugir incólume desta casa? 1300

Mas não venho tanto por cuidado nela, como nas crianças.
Aquela que fez mal, o pagará com a desgraça. Eu vim para salvar a vida dos
meus lhos, não vão os parentes fazer-lhes alguma coisa para vingar o ímpio
crime materno. 1305

Ó desgraçado, que não sabes a que ponto chegaram teus males, Jasão! Se não,
não proferirias tais palavras.

Que é? Acaso também quer matar-me, a mim?

Teus lhos estão mortos pela mão de sua mãe.

Ai de mim, que dizes? Como tu me deitaste a perder, mulher! 1310

Pensa em teus lhos, como seres que já não existem.

Onde os matou então? Dentro ou fora de casa?

Abre essas portas, verás os teus lhos assassinados.


320 TRADUÇÕES DO GREGO

Correi já as fechaduras120, ó servos, soltai essas trancas, para eu ver a dupla 1315

desgraça, [os que morreram... e aquela a quem eu farei pagar as culpas.]121

(Medeia aparece na mechane, 122 em plano mais elevado, no carro do Sol, com os
cadáveres dos filhos)

Para que abalas e tentas destrancar essas portas, procurando os cadáveres e a


mim, autora dessa obra? Cessa esse trabalho. Se precisas de mim, fala, se quiseres,
que com a mão nunca me tocarás. O Sol, pai de meu pai, me deu este carro como 1320

meio de defesa contra mãos inimigas.

Ó abominada, ó mais que todas odiosa mulher, para os deuses e para mim e
para toda a raça humana, tu que quiseste enterrar a espada nos filhos que geraras, 1325

e me deitaste a perder, deixando-me sem descendência! E depois de fazer isto,


ainda contemplas a luz do Sol e a Terra, tendo executado a mais ímpia das acções?
Quem dera que morresses! Vejo agora o que então não via, quando de uma
casa e de um país bárbaro te trouxe para um lar helénico, a ti, grande flagelo, que 1330

atraiçoaste o pai e a terra, que te criara 123. O teu génio da vingança, os deuses o
assestaram contra mim 124. Depois de teres matado o teu irmão junto do próprio
lar, embarcaste na nau de Argos, de bela proa. 1335

Medeia tinha fechado e trancado as portas, razão por que o Coro estava sicamente impossi-
12 0

bilitado de intervir. Agora, Jasão tem de chamar pelos servos, para abrirem a casa. Não é, portanto,
aos criados que o acompanhavam que ele dá esta ordem.
A tradição manuscrita apresenta aqui variantes, das quais a de L e P é a mais satisfatória:
121

τίσωμαι δίκην. Mesmo assim, Diggle, na esteira de Schenkl, assinala o verso como interpolado, e Van
Looy também. Por sua vez, Mastronarde entende que o verso em causa permite uma transição mais
fácil para a fala de Medeia.
Enquanto Jasão tenta forçar a porta, Medeia aparece na mechane (maquinismo que colocava
122

em cena as figuras num nível mais elevado). Vem no carro do Sol, que, segundo os comentadores
antigos, era puxado por serpentes. Este carro está presente no famoso krater-de-volutas de Munique
(Pfuhl, g. 795), que ilustra, com pequenas variantes, a peça de Eurípides. Sobre a sua descrição e
interpretação, veja-se Page, 1938, LX-LXIII.
123
Vide supra, n. 5. Regressa aqui a antinomia gregos e bárbaros (supra, n. 55), mas agora sem ironia.
A vingança divina, que devia ter-se exercido sobre Medeia, atingiu o próprio Jasão. A palavra
124

usada é alastor, sobre a qual vide supra, n. 115.


EURÍPIDES, MEDEIA 321

Tais foram os teus princípios. Casando com este homem, e gerando-me lhos,
às núpcias, ao leito os imolaste. Não há mulher alguma na Grécia que queira jamais
fazer tal, essas às quais eu te dei preferência como esposa, contraindo uma aliança 1340

odiosa e funesta para mim, tu, que és leoa, não mulher, dotada duma natureza mais
selvagem do que a Cila Tirrénica125.
Mas a ti nem mil impropérios seriam capazes de te morder. Tal é o impudor 1345

inato que possuis. Desaparece, desavergonhada assassina de teus lhos! A mim


cabe-me em sorte lamentar-me, a mim, que nem gozarei do novo leito nupcial, nem
me é dado dizer adeus ainda em vida aos lhos que gerei e criei, pois que os perdi. 1350

Podia alongar-me muito a refutar os teus argumentos, se o pai Zeus não sou-
besse o que de mim sofreste, o que de mim ganhaste. Tu não havias de gozar uma
doce vida, depois de teres desprezado o meu leito, escarnecendo de mim. Nem a 1355

soberana, nem o que te propôs o casamento, Creonte, de expulsar-me incólume


desta terra. Depois disto, chama-me leoa, se quiseres, chama-me Cila, a que habita
o rochedo tirrénico,126 que o teu coração, eu atingi como cumpria. 1360

Mas também sofres esta tortura e participas da desgraça.

Fica sabendo bem. A dor se esvai, desde que não podes rir-te de mim.

125
Cila era um grande escolho marinho, em frente a outro mais temível ainda, Caríbdis. Segundo
a Odisseia (XII.85-94), era um monstro horrível, com doze pés disformes, seis pescoços compridos, cada
um com sua cabeça, e três las serradas de dentes; até meio corpo, estava metida numa caverna, e
apenas deitava de fora as cabeças, ladrando de maneira temível. Nunca os navios passavam por ela
incólumes, pois Cila arrebatava-os e devorava a tripulação. Assim fez a seis dos companheiros de
Ulisses, que viu então a cena mais lamentável de toda a sua viagem de regresso.
Como todos os sítios homéricos, este veio também a ser localizado. Seria o estreito de Mes-
sina, que dá acesso ao Mar Tirrénico. Daí viria talvez o qualif icativo do texto que já o escoliasta
explicava como vindo do Mar Tirrénico (ou dos Etruscos). É provável que, como sugerem alguns
comentadores, houvesse aqui também uma alusão aos actos de pirataria do povo etrusco, conhe-
cidos do próprio Eurípides (Ciclope, 11 -12).
126
Verrall, que considerou este verso interpolado, objectou que é uma imitação de 1342 e que,
além disso, “Cila não morava em solo tirrénico, nem em solo nenhum [...] nem Eurípides teria dado
esta precisão à sua geografia poética”. Seguiu-o Diggle. Tal como a Mastronarde e Van Looy, parece-
-nos natural esse eco de 1342.
322 TRADUÇÕES DO GREGO

Ó filhos, que mãe perversa vos coube em sorte!

Ó filhos, como a loucura paterna vos perdeu!

Não foi contudo a minha dextra que os imolou. 1365

Mas a tua insolência e as tuas novas núpcias.

E por causa do tálamo entendeste dar-lhes a morte?

Crês que isso é pequena calamidade para uma mulher?

Se for sensata; mas para ti é tudo perverso.

Eles já não existem. É o que te há-de pungir. 1370

Eles existem, ai de mim, como génios da vingança sobre a tua cabeça.

Sabem os deuses quem deu início às calamidades.


EURÍPIDES, MEDEIA 323

Sabem sem dúvida como a tua mente é execranda.

Odeia-me. Também eu detesto o azedume da tua voz.

E eu o da tua. Mas é fácil a separação. 1375

Como assim? Que tenho a fazer? Também eu a desejo ardentemente.

Que me concedas dar sepultura a estes cadáveres e chorá-los.

Isso não, que eu mesma com minhas mãos lhes darei sepultura, levando-os
para o templo da deusa Hera Akraia 127, para que nenhum inimigo os profane, 1380

revolvendo os túmulos. E nesta terra de Sísifo128 instituiremos uma festa e


ritos sagrados para sempre, em compensação deste crime ímpio. Quanto a mim,
vou para a terra de Erecteu, habitar com Egeu, filho de Pandíon. E tu, como é 1385

natural, mau, de má morte acabarás, ferido na cabeça por um fragmento da


nau de Argos129, depois de ter visto das minhas núpcias o amargo fim.

127
O templo de Hera A kraia ou “Hera do promontório” seria o que ficava num cabo em frente
de Sícion, próximo de Corinto, segundo Elsmley; ou o que existiria na acrópole de Corinto, segundo
o escoliasta.
128
Vide supra, n. 43. Medeia, comportando-se como um deus ex machina, anuncia a instituição do
culto dos lhos em Corinto. Sobre este assunto, veja-se o que cou dito na Introdução.
129
Devia tratar-se de um fragmento da nau, que Jasão consagrara num templo.
324 TRADUÇÕES DO GREGO

Dos lhos a Erínia130 e a Justiça,


que vinga os crimes, te façam perecer. 1390

Quem te ouvirá, dos deuses ou demónios,


a ti que és perjuro e falso aos hóspedes131?

Ai, execranda assassina dos lhos!

Vai para casa enterrar a tua esposa.

Vou, mas privado de ambos os meus lhos. 1395

Não chores ainda; aguarda a velhice...

Ó lhos tão queridos!...

À mãe, não a ti.

130
Sobre a função da Erínia, vide supra, n. 115.
Mais uma vez, Medeia insiste na gravidade dos crimes de Jasão: violação do juramento e das
131

leis da hospitalidade. Jasão fora hóspede da casa de Medeia na Cólquida.


EURÍPIDES, MEDEIA 325

... Que depois mataste?

Para te castigar.

Ai de mim, que a boca querida dos lhos


eu queria, desgraçado, agora beijar. 1400

Agora lhes falavas, e os beijavas,


então expulsaste-os.

Dá-me, pelos deuses,


que eu toque dos lhos no tenro corpo.

Não pode ser; em vão gastas palavras.

Ouvis isto, ó Zeus, como nos afastam, 1405

o que nós sofremos desta execranda


infanticida, não mulher, mas leoa?
Ah! Mas até onde é dado e eu posso,
hei-de lamentar-me, invocando os deuses.
Os numes tomarei por testemunhas 1410

de como tu me impedes de tocar,


de sepultar os lhos que mataste,
os lhos que quem dera eu não gerasse
e nunca mortos por ti visse.
326 TRADUÇÕES DO GREGO

De muita coisa é Zeus no Olimpo o Senhor, 1415

e muita coisa os deuses fazem sem se contar.


Vimos o que se esperava não se realizar.
P’ra o que não se sabia o deus achar caminho.
Assim vistes o drama terminar132.

Com estes mesmos cinco versos (salvo umas alterações no primeiro) terminam mais quatro
132

peças de Eurípides: Alceste, Andrómaca, As Bacantes, Helena. Outro grupo de dramas (I génia entre os Tauros,
Orestes, As Fenícias) tem também nais iguais entre si. Destes factos parece lícito tirar a conclusão de
que o poeta não atribuía signi cado especial ao remate das suas peças.
De qualquer modo, este nal é apropriado ao desfecho do drama, e “no lugar certo”, como observou
Knox, 1977, 205. Por isso o mantemos, a despeito de a edição de Diggle, bem como a de Mastronarde,
o dar como acrescentado.

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