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TEIA DE PENELOPE José Pedro Serra Universidade de Lisboa Se, de’ entre os ventos levantados pelas perguntas ¢ pelos mitos gre- gos, alguma amena brisa nos envolve, dela faz parte certamente a histéria de Ulisses e Penélope, tal como a narra Homero. Este suave rasto da Odisseia resulta da impressio deixada pelo desenho de um amor “conse- guido”, em grande parte realizado, amor que cavalga as inconstancias do tempo e as circunstincias do mundo, que se eleva por isso acima da roda da fortuna, e que, pela vinculago a uma meméria decisiva, se subtrai & voragem do esquecimento que tudo reduz a cinzas. E conhecido 0 destino e 0 sofrimento do heréi de mil ardis, que, apés dez anos de combate & volta das muralhas de Tréia, destrufda a cidade, andou perdido dez anos mais, errando pelos sinuosos caminhos do mar, até que os deuses decre- taram para ele 0 momento do seu regresso A Patria, a ftaca, & sua casa de alto tecto!. Af, muito embora nio impune aos estragos do tempo, mas ainda bela, a avaliar pelo intenso desejo que a sua presenga faz despertar nos pretendentes, espera-o fielmente a sua esposa Penélope, que por ele aguarda teimosamente, numa espera que transcende os limites de uma vulgar esperanga, alicergada na legitimidade de uma razoiivel expecta tiva. Hao longo desta demorada ¢ avessa espera que Penélope, constran- gida a escolher um outro marido entre os pretendentes, maquinou o estratagema da teia com a intengio de manter afastado o casamento por ela nio desejado. De acordo com o plano imaginado, fez montar um grande tear nos seus aposentos ¢ prometeu casat-se apés ter terminado a teia que projectava tecer. Durante o-dia tecia e a noite desfazia o que tinha tecido. E assim, adiando habilmente 0 casamento que a aborrecia, se passaram mais de trés anos até que os nobres de ftaca, informados por uma serva que a traira, surpreenderam Penélope, denunciaram o logro de 1 Ver, por exemplo, I, 16-18; Il, 157-170; V, 105-115. ‘As Teias que as Mulheres Tecem, Lisboa, Edigées Colibri, 2003, pp. 17-26 José Pedro Serra que eles préprios eram vitimas e forgaram-na a concluir a obra, Que significado tem, entio, a teia de Penélope? Como surge neste canto épico? Que sentido ou que sentidos alberga mais ou menos veladamente? Sobre que simbolos se apoia e para que realidades aponta? Estas so, {julgo, perguntas que nos orientam para a subtil mas densa complexidade ‘com que nos 6 apresentado o astuto estratagema da filha de Icdtio. episédio da teia surge por trés vezes ao longo da Odisseia. No canto IP, 0 relato é feito por um dos pretendentes, Antinoo, que, na assembleia convocada por Telémaco, rejeita os crimes e as culpas de que este 0s acusa, remetendo para Penélope a verdadeira causa da dissipagZo ruinosa dos bens de sua casa, uma vez que ela tarda a decidir-se, como 0 demonstra a Gltima artimanha que © seu espirito imaginou — e neste momento introduz o episédio da teia. No canto XIX}, & a pr6pria Pené- ope que narra ao estrangeiro com aspecto de mendigo, a quem esté ainda longe de reconhecer o préprio Ulisses, a dificil situagio em que agora se encontra, depois de ter sido descoberto o logro que preparara para os pretendentes. No canto XXIV, quando as almas dos pretendentes mortos sio ja conduzidas ao Hades, 6 a vez de Anfimedonte narrar 0 artificio da teia, em resposta A pergunta de Agamémnon que quis saber a razio. da entrada conjunta de tantos homens ilustres no reino sombrio da morte. Todos os passos, pese embora a diferente contextualizacao, alids deter- minante para a férti! polissemia do episédio, integram um relato idéntico, ou, mais rigorosamente, com diferengas minimas que se devem a altera- go do sujeito que o profere. Todos eles afirmam que Penélope fez. mon- tar’ “um grande tear no palicio, para tecer uma teia fina e excelsa. Entiio dizia-Ihes: “Jovens meus pretendentes, j4 que morreu o divino Ulisses, apesar da pressa que tendes, dilatai os meus esponsais, para eu acabar esta teia, e no se me estragarem os fios leves como o vento. E uma mortalha para o heréi Laertes, para quando o dominar a Moira funesta da morte que deita por terra. E para que nenhuma das mulheres aqueias me censure entre 0 povo, se viesse a jazer sem sudirio quem possufa tantos bens.” Assim falei; e o seu espirito arrogante obedecia. Entio durante 0 dia tecia no grande tear. A noite, punha archotes ao pé e desfazia tudo. Deste modo rodaram trés anos. insuspeitos; os Aqueus acreditavam.” Seguidamente, os tr€s textos apresentam algumas diferencas respeitantes 2.CF. wy. 85-128, 3.CF. wy, 123-163, CF. wy, 121-190. 5 Cf. XIX,139-150, A tradugdo deste passo € de Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade, Coimbra, 1995, p. 79. Para ilustrar, cito 0 relato de Penélope, mas, como afirmei, as diferengas em relago aos outros passos referidos sdo minimas endo significativas, A Teia de Penélope a deniincia das servas ¢ & reacgdo dos pretendentes quando a surpreende- ram (mais vigorosa ¢ até brutal no discurso de Penélope ¢ menos nos outros relatos), mas todos eles acrescentam um verso idéntico: “assim tive de acabar, nfio por querer, mas forgada”®, 0 episédio da teia, inserido nos diferentes passos, tem sido julgado diferentemente pelos fildlogos?. Uns, considerando que 0 canto XXIV é uma colagem posterior e que a Odisseia terminaria no verso 296 do canto XXILL# concentram o seu interesse na questio filolégica da identificagio da redacdo mais antiga. Outros, vendo no artificio da teia uma ingbil alu- sio a um antigo tema do folclore, olham-no com algum desinteresse, con- siderando-o gratuito, initil e ineficaz no contexto do desenvolvimento narrativo do poema. A esta luz, compreende-se 0 palido estatuto atribui- do a Penélope, personagem descolorida, passiva, aguarelada de uma entediante virtude que aborrece, insonsa presenga feminina cuja fungio se restringe a uma mera referéncia das nobres e magnificas aventuras do heréi ?, Ainda nesta perspectiva, as aparigdes de Penélope criam fracturas na coeréacia ¢ harmonia do poema, constituindo um bom exemplo das anomalias estruturais da Odisseia. Tais interpretagdes resultam da redu- ‘cdo do significado do artificio da teia a um arbitrério ¢ inepto expediente Titerdrio. O episédio da teia, porém, tem um significado mais amplo e profundo e, a seu modo, serve até de chave interpretativa do poema. Imediatamente perceptivel, 0 trago mais evidente, mais obviamente marcante desta narrativa diz respeito a astiicia, ao engenho de Penélope que se expressa mediante 0 pensamento e a acco com que engana os pretendentes. Ao desenhar-se astuciosamente, a emprestar aos seus gestos esta capacidade de lograr, Penélope faz. sua a qualidade que bem caracteriza 0 herdi dos mil artificios, comrespondendo analogamente, por que em termos femininos, ao grande mérito do comportamento heréico de Ulisses. Esboga-se assim, desde o inicio e claramente, uma essencial relagiio de naturezas € comportamentos entre Ulisses e Penélope, espécie de contraponto de uma melodia herGiea, que rasga um sentido e orienta a imerpretagdo. Ao contrdrio de Aquiles, figura exemplar do heréi na Iifa- da, para quem © herofsmo se esculpe na agucada consciéncia de uma 6 CF. IH, 110; XIX, 156; XXIV, 146. 7'Ver Steven Lowenstam, “The Shroud of Laertes and Penelope's Guile”, The ‘Classical Journal, vol. 95, n.2 4, April-May 2000, pp. 333-348. 8 Este jutzo, que tem ratzes na Antiguidade, expressa-se também em comentadores moder- nos. Vet, por exemplo, Victor Bérard, fniroduction a U'Odyssée, 1, Paris, 1924-25; D. Page, The Homeric Odyssey, Oxford, 1955. 9 Ver M.-M. Mactoux, Pénélope. Légende et Mythe, Annales litegraives de l'Université de Besangon 175, 1975; B. Delebecque, Construction de I’ Odyssée, Paris, 1980. 20 José Pedro Serra morte inevitavel, olhar de fogo no seio do qual o humano gesto se ofe- rece grande ¢ generoso ao brénzeo sono, Ulisses niio caminha seguro, ciente e decidido para a morte fatal ¢ 0 seu herofsmo, nem se realiza nessa vocagdio, nem se traduz na celebracao ritual de um derradeiro tempo que se escoa e que tudo abraga num quente aceno de despedida. Ulisses encontra-se nmiltiplas vezes no limiar da morte, numa situagio \ em que a entrevé, em que ela se insinua, ameagadora, mas por forga do : seu engenho ¢ da sua astticia o herdi consegue sempre escapar-he, Muito significativamente, enquanto no canto I da Zlfada se garante que Aquiles nasceu para uma curta vida'® — ideia continuamente afirmada —, no canto primeiro da Odisseia garante-se que Ulisses chegard a ftaca, embora nao tenham ainda chegado ao fim as suas tribulagdes. Desloca-se assim a aco herdica do confronto com a morte para a fuga A morte, da célera funesta ¢ da virtude bordada no manto de Hades, para a habilidade dos mil ardis, 0 sofrimento e a superacao de todos os perigos. “Canta-me, 6 Musa, o homem fértil em expedientes, que muito sofreu...”, assim come- i ga a Odisseia, Ora, a astiicia de Penélope é 0 eco, ou melhor, a voz femi- nina que acolhe o gesto ¢ responde aos méritos de Ulisses. Ao agir com uma finura que ludibria os inimigos, a filha de Icério identifica-se com a arie de Ulisses e dispde-se igualmente & fama e A gléria, privilégio por todos reconhecido. ‘A sagacidade de Penélope nao se manifesta apenas na teia que vai tecendo e desfazendo; a atitude tomada em relagfio aos pretendentes ilustra a amplitude da trama congeminada. Antinoo diz que ela a “todos dé esperanga, ¢ a cada homem faz promessas, enviando mensagens, mas outros pensamentos guarda para si"; © Anfimedonte, no canto XXIV, afirma que Penélope “nem recusava o detestavel casamento, nem se decidia a aceité-lo”!?, Este amb{guo comportamento, no qual uma certa tradig&o viu indicios de deleites menos figis, mostra, a0 contrério, uma imensa ¢ ardilosa habilidade, pois o que Penélope faz, num outro plano, é fiar e desfiar as esperancas, nem as definhando até 4 extingZo, o que cer- tamente desencadearia uma brutal reacgo, nem as conduzindo até & con- sumaco do casamento, o que representaria para si a pordic&io. Os preten- dentes sio mantidos & distincia ideal, a tinica possivel, nem exclufdos, nem accites; e assim se alarga a trama de Penélope. A astticia de Penélope esconde ainda mais subtilezas. Ao mandar colocar um grande tear no paldcio, a mulher de Ulises confessa ao men- 10 CE. 1, 352-354; 414-418. Ui CEM, 91-92 12 CE XXIV, 126. A Teia de Penélope 19 A demiincia das servas e & reaccfo dos pretendentes quando a surpreende- ram (mais vigorosa ¢ até brutal no discurso de Penélope ¢ menos nos outros relatos), mas todos eles acrescentam um verso idéntico: “assim tive de acabar, nao por querer, mas forgada”®, 0 episédio da teia, inserido nos diferentes passos, tem sido julgado diferentemente pelos fildlogos’. Uns, considerando que o canto XXIV & uma colagem posterior ¢ que a Odisseia terminaria no verso 296 do canto XXIILS concentram o seu interesse na questo filolégica da identificagio da redagio mais antiga. Outros, vendo no artificio da teia uma inabil alu- sao a um antigo tema do folclore, olham-no com algum desinteresse, con- siderando-o gratuito, imitil e ineficaz no contexto do desenvolvimento narrativo do poema. A esta luz, compreende-se 0 pélido estatuto atribui- do a Penélope, personagem descolorida, passiva, aguarelada de uma entediante virtude que aborrece, insonsa presenca feminina cuja fung&o se restringe a uma mera referéncia das nobres.e magnificas aventuras do herdi °. Ainda nesta perspectiva, as aparic&es de Penélope criam fracturas na coeréncia e harmonia do poema, constituindo um bom exemplo das anomalias estruturais da Odisseia. Tais interpretagdes resultam da redu- iio do significado do artificio da teia a um arbitrério e inepto expediente literdrio. O episédio da teia, porém, tem um significado mais amplo e profundo e, a seu modo, serve até de chave interpretativa do poema. Imediatamente perceptivel,.o traco mais evidente, mais obviamente marcante desta narrativa diz respeito 2 astticia, ao engenho de Penélope que se expressa mediante o pensamento ¢ a acedo com que engana os pretendentes. Ao desenhar-se astuciosamente, ao emprestar aos seus gestos esta capacidade de lograr, Penélope faz sua a qualidade que bem caracteriza 0 herdi dos mil artificios, correspondendo analogamente, por- que em termos femininos, ao grande mérito do comportamento herdico de Ulisses. Esboga-se assim, desde o inicio e claramente, uma essencial relagdo de naturezas e comportamentos entre Ulisses ¢ Penélope, espécie de contraponto de uma melodia herdica, que rasga um sentido e orienta a interpretagiio. Ao contrério de Aquiles, figura exemplar do heréi na Ilia- da, para quem o herofsmo se esculpe na agugada consciéncia de uma Ct. M,, 110; XIX, 156; XXIV, 146. 7 Ver Steven Lowenstamn, “The Shroud of Laertes and Penelope's Guile”, The Classical Journal, vol, 95, 1.2 4, April-May 2000, pp. 333-348. 8 Este jufzo, que tem rafzes na Antiguidade, expressa-se também em comentadores moder- nos. Ver, por exemplo, Victor Bérard, Introduction a 1'Odyssée, I, Paris, 1924-25; D. Page, The Homeric Odyssey, Oxford, 1955. °'Ver M.-M, Mactoux, Pénélope. Légende et Mythe, Annales littraires de I’ Université de Besangon 175, 1975; E, Delebecque, Construction de ¥’ Odyssée, Paris, 1980. José Pedro Serra morte inevitivel, olhar de fogo no seio do qual 0 humano gesto se ofe- rece grande e generoso ao brénzeo sono, Ulisses ndo caminha seguro, ciente ¢ decidido para a morte fatal ¢ seu heroismo, nem se realiza nessa vocagéo, nem se traduz na celebracao ritual de um derradeiro tempo que se escoa e que tudo abraga num quente aceno de despedida. Ulisses encontra-se miltiplas vezes no limiar da morte, numa situagio em que a entrevé, em que ela se insinua, ameacadora, mas por forga do seu engenho e da sua astticia o her6i consegue sempre escapar-lhe. Muito significativamente, enquanto no canto I da Hiada se garante que Aquiles nasceu para uma curta vida'® ~ ideia continuamente afirmada -, no canto primeiro da Odisseia garante-se que Ulisses chegard a ftaca, embora nao tenham ainda chegado ao fim as suas tribulagdes. Desloca-se assim a acco herdica do confronto com a morte para a fuga & morte, da cdlera funesta e da virtude bordada no manto de Hades, para a habilidade dos mil ardis, 0 sofrimento e a superagio de todos os perigos. “Canta-me, & Musa, o homem fértil em expedientes, que muito sofreu...”, assim come- gaa Odisseia, Ora, a astticia de Penélope € 0 eco, ou melhor, a voz femi- nina que acolhe 0 gesto e responde aos méritos de Ulisses. Ao agir com ‘uma finura que ludibria os inimigos, a filha de Icdrio identifica-se com a arte de Ulisses e dispde-se igualmente & fama e A gldria, privilégio por todos reconhecido. ‘A sagacidade de Penélope nio se manifesta apenas na tela que vai tecendo e desfazendo; a atitude tomada em relagio aos pretendentes ilustra a amplitude da trama congeminada. Antinoo diz que ela a “todos dé esperanga, e a cada homem faz promessas, enviando mensagens, mas outros pensamentos guarda para si”"!; e Anfimedonte, no canto XXIV, afirma que Penélope “nem recusava o detestével casamento, nem se decidia a aceité-lo”!?, Este ambiguo comportamento, no qual uma certa tradigfo viu indicios de deleites menos figis, mostra, ao contrério, uma imensa e ardilosa habilidade, pois 0 que Penélope faz, num outro plano, & fiar e desfiar as esperancas, nem as definhando até A extingo, 0 que cer- tamente desencadearia uma brutal reacco, nem as conduzindo até & con- sumagao do casamento, o que representaria para si a perdicio. Os preten- dentes so mantidos 4 distancia ideal, a Gnica possivel, nem exclufdos, nem aceites; ¢ assim se alarga a trama de Penélope. A astticia de Penélope esconde ainda mais subtilezas. Ao mandar colocar um grande tear no palécio, a mulher de Ulisses confessa ao men- 10 Cf. 1, 352-354; 414-418, 1 CE HL 91-92 12 CE. XXIV, 126.

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