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faço milagres
porque a disposição dos átomos não colabora
distribuo maravilhas
faço a ingenuidade dar certo
faço trocadilhos serem engraçados
faço lágrimas correrem na temperatura certa, e em público
trago a pessoa amada em 37 anos
faço gatinhos desaparecidos lerem cartazes em papel A4 feitos no word, colados em postes
os alienígenas
chamam todas as criaturas terrestres
de um mesmo nome, que na língua deles significa “bolsa de ar”
(mas no planeta deles
não existe ar)
os alienígenas
acham as coisas parecidas com seus nomes
mas na língua deles
os nomes são as próprias coisas
os alienígenas
quando ficam tristes
se dividem em dois
a mulher invisível come tudo antes, e mesmo se você comer antes, a mulher invisível come o cookie
antes dentro da sua alma
come a sua memória de ter comido o cookie, te devolve o brócolis que você almoçou antes do cookie
come o cookie que você tinha se permitido comer amanhã
come o cookie quando a médica disser que você nunca mais poderá comer cookies
portanto não adianta sair pra comprar cookies, porque a mulher invisível vai comer todos os cookies
antes, até o minuto da sua morte
e não sair pra comprar cookies também não adianta, porque se não tem cookies a mulher invisível
come
linguiça crua
queijo ralado na colher
cubo de caldo de galinha
pasta de cebola direto do vidro
portanto não há como discutir com a mulher invisível.
gengibre
toda essa colônia era desentupida com o arrancamento da raiz pelo braço de gengibre
prosseguia-se ao escoamento das sujeiras, um enxágue que durava vários anos
a garganta dos séculos dizia um ahã, um meu deus, um nossa.
dique
enquanto você amarrava as botas pra ir embora, precisei tirar duas fotos dos seus pés
esqueci de te dar um beijo nítido, definitivo (digno
de talvez ser o último)
por isso fumei a casa inteira, com medo
de você concluir que eu só queria sua imagem pra me masturbar
tem um coração
dentro do outro
o de dentro
fica boiando num fluido
pra não ser contaminado
só se usa em situações periclitantes
o de fora é pra bater
tem um fôlego
fora do outro
o de dentro
fica protegido por um material isolante
pra não vazar antes da hora
só se usa em situações periclitantes
o de fora dá pro gasto (dá pro gosto).
voa, framboesa
pela possibilidade de
você gostar de menino
faço meu cavalinho esperar na chuva
enquanto ele não se gripe
ó fúria de procurar
amor emburrecida
procurando só estopa
e tapete de barriga
ó fúria de procurar
amor desnorteada
procurando só confete
e punho sobre espada
ó fúria de procurar
amor inconsequente
procurando só coceira
calção e água quente
ó fúria de procurar
amor desinformada
preparando sanduíche
de pão e pão e nada
ó fúria de procurar
amor esparadrapo
procurando em buraquinhos
e selvas de sovaco
ó fúria de procurar
amor sem heroísmo
procurando peito grátis
e pétalas de umbigo.
pinguim
de travesseiro em você
(pinguim)
parto desse
dia curto
em que ganhei dinheiro
e se for assim
que eu entenda logo
e aceite
obrigado outubro
por existirem os meus
contemporâneos (alguns deles
às vezes mostrando o pau).
desculpem a personalidade
o medo de acharem
que eu sou orgulhoso
também se chama orgulho
o medo de acharem
que eu sou exibido
também é um exibicionismo
o medo de saberem
que eu sou ignorante
é o nome da ignorância
“How much she wanted it — that people should look pleased as she came in,”
“Como ela queria isso — que as pessoas parecessem gostar quando ela entrava,”
afetos comuns
que os cães também têm
ciúme preto
vontade de agradar
vontade de agradar a ana luiza
vontade de entrar
de ser convidado
bárbaros e héteros
colchão de palha e campanha, úmido de ladrão
meus heróis indiferentes, minhas uvas verdes
deito junto com vocês
por linhas de projeção
no penúltimo capítulo
os leitores entendiam
que era ele o tempo todo
quem tinha razão (e eu não)
a solidão de adão
com os cães
(e com deus) antes de eva
a solidão de deus
com o caos
antes de eva e adão
a feiura é enfraquecedora
e insidiosa, permeia
nossa síntese (e resta
quando os noves fora)
a ideia (bisturi)
espontaneamente
nas bordas do encostável
(vigária de
outros medos
ou a eles contígua?)
bisturi
bisturi
e seus correlatos —
estilete
cortador de vidro
folha de papel bem fina.
berlã
pulo e corte
halo e sombra
adeus, cruel
mas os paramédicos na beira:
não
vai embora
hoje à noite
(botafogo
guanabara)
antes bundando
que
fazendo merda
(catavento, mafagafo
nem todo tempo é tempo
alfabeto, aldebarã)
alvastadt
mirabel
tintagel
sanabil
...
eles não sentem mais fome nem vontade de fumar, mas continuam observando tudo
e sim: ainda ficam felizes e tristes
e isso é o que, na terra, eles chamavam de medo, sorte, esperança etc.
só que agora eles não tentam fazer mais nada a respeito
portanto
continue fazendo exercícios de respiração
e fortalecimento dos músculos da barriga
porque chegará o dia em que isso não vai mais fazer diferença
(abra uma casa dentro da casa, onde você possa morar, isso é instantâneo)
as bruxas estão tentando falar com você
te entrego minha mão no peito, os meus dois braços
pode fazer o que quiser com eles
você diz que vamos cruzar essas pontes quando chegarmos nelas, mas quanto
da sua mesada você está apostando que vai haver pontes sequer?
uma ponte implica que alguém já esteve lá antes
o que raramente é o caso, quando o contexto é específico o
suficiente
muitas vezes sou a kelly kapoor do the office que disse agora eu sou super
inteligente, você poderia me perguntar kelly
qual é a maior empresa do mundo e eu ia dizer
blá blá blá, blá blá blá blá blá
te dando exatamente a resposta certa
miguilim
chapolin
fridolin
míchkin.
“O Inferno
são os outros
mas o Céu
também”
As traduções das epígrafes são minhas, exceto a de Wisława Szymborska, que é de Regina Przybycien,
ed. Companhia das Letras, 2011.
A citação no poema “uvas verdes” é de John Milton, Paradise Lost, Book IX.
Alguns destes poemas foram publicados originalmente nas revistas Rosa, Lado 7, modo de usar & co.,
escamandro, stadtsprachen magazin, Leopardskin & Limes.