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rafael mantovani

mas o Céu também


1. qualquer outro bicho
braços compridos o bastante

braços compridos o bastante


pra já lavar toda a louça da semana seguinte
pra riscar tarefas em listas que ainda não são necessárias
pra espanar móveis em apartamentos onde eu ainda não moro
pra garantir comida suficiente até a próxima encarnação
pra jogar fora todos os livros que eu jamais vou ler e não gostar
pra digitar mensagens aceitando convites
de todos os homens da internet que me pareçam assassinos

pra reservar abraços pra todas as notícias tristes futuras


pra aprender toda a matéria de cor antes que seja a prova
pra que tudo esteja arrumado quando o furacão chegar.
hoje segundo o que tem pra hoje

hoje eu vou ter que ser deus


porque você não veio
porque hoje não veio mais ninguém

faço milagres
porque a disposição dos átomos não colabora
distribuo maravilhas
faço a ingenuidade dar certo
faço trocadilhos serem engraçados
faço lágrimas correrem na temperatura certa, e em público
trago a pessoa amada em 37 anos
faço gatinhos desaparecidos lerem cartazes em papel A4 feitos no word, colados em postes

reembaralho remorsos e mutilações


canto por cima de desconfianças
deflagro o choro e o ranger de dentes em festinhas
danço em cima do seu túmulo
danço there is a light that never goes out em cima do seu túmulo

dou bigodes aos que não têm boca


e vice-versa.
poema em formato de garrafa

os alienígenas
chamam todas as criaturas terrestres
de um mesmo nome, que na língua deles significa “bolsa de ar”
(mas no planeta deles
não existe ar)

os alienígenas
acham as coisas parecidas com seus nomes
mas na língua deles
os nomes são as próprias coisas

os alienígenas
quando ficam tristes
se dividem em dois

demoraria muito pra eles chegarem aqui


mas não se já estiverem vindo faz tempo

pra eles o tempo é reversível


o espaço não é

isso significa que chegando aqui


eles não vão mais poder voltar
(mas vão poder nunca ter vindo).
por via das dúvidas

por via das dúvidas, sempre


paro de andar quando passo
por uma loja de brinquedos
ou de aparelhos ortopédicos

por via das dúvidas, sempre


sinto fome quando passo por
sacos de 5 kg de ração pra cachorro
em lojas de coisas para o lar

por via das dúvidas, sempre


termino e-mails de trabalho com pontos de
exclamação, significando “ao vivo
sou mais entusiasmado do que isto”

por via das dúvidas, sempre


sei exatamente o que diria se encontrasse numa festa
pessoas pra quem nunca mais escrevi
mas poderia escrever agora, se quisesse.
feder de vez

quando sou pessimista, não sou comprometidamente pessimista


mas sim me incomoda ver de novo
que meu otimismo tem uma mancha
não sei limpar só essa mancha
por isso deixo tudo de molho
(sou otimista porque é óbvio)

sou otimista mas nem por isso deixo de ter inveja


da situação alheia
e do nome alheio grafado em publicações e passagens aéreas
e invejo o fato de que essas pessoas são menos invejosas
e portanto comem a própria comida com mais gosto

(isto é expurgar no suor


é deixar feder de vez antes do banho).
sair pra comprar cookies

não adianta sair de casa pra comprar cookies


porque a mulher invisível que tem dentro da casa come tudo antes

não adianta sair pra comprar cookies


porque os cookies não duram nem o caminho desde o supermercado
a mulher invisível também está dentro da rua, ela come todos os cookies antes
ela enfia a mão na sua sacola antes de chegar em casa

a mulher invisível come tudo antes que você rasgue o pacote


come antes de você desgrudar o primeiro cookie
antes de os pedacinhos de chocolate derreterem na sua língua
antes de só ter metade dos cookies dentro do pacote
antes de o pacote estar vazio, e uma coruja piar na face silenciosa de deus

a mulher invisível come tudo antes, e mesmo se você comer antes, a mulher invisível come o cookie
antes dentro da sua alma
come a sua memória de ter comido o cookie, te devolve o brócolis que você almoçou antes do cookie
come o cookie que você tinha se permitido comer amanhã
come o cookie quando a médica disser que você nunca mais poderá comer cookies
portanto não adianta sair pra comprar cookies, porque a mulher invisível vai comer todos os cookies
antes, até o minuto da sua morte

e não sair pra comprar cookies também não adianta, porque se não tem cookies a mulher invisível
come
linguiça crua
queijo ralado na colher
cubo de caldo de galinha
pasta de cebola direto do vidro
portanto não há como discutir com a mulher invisível.
gengibre

o braço divino de gengibre


entrava pela boca muito aberta
(aberta até dar cãibra)
arrancava do pulmão uma raiz marrom espessa
peguenta
que se destacava com resistência e ruído, como ventosas
ou pelos sendo arrancados à cera

não estava ali o manancial das vontades


mas estava ali toda a extensão da colônia de vícios
(os vícios eram fungos, instalados em volta)
ali estava a cidade inteira dos vícios
e seus prédios úmidos de muitos andares, suas infinitas pontes e depósitos
e ruas e lixões, dormitórios, usinas onde funcionavam os extratores de vontade
laboratórios onde os vícios projetavam outros vícios mais eficientes, autossustentáveis
onde armazenavam seus diferentes modelos, alguns praticamente obsoletos
seus grossos dutos de alimentação

toda essa colônia era desentupida com o arrancamento da raiz pelo braço de gengibre
prosseguia-se ao escoamento das sujeiras, um enxágue que durava vários anos
a garganta dos séculos dizia um ahã, um meu deus, um nossa.
dique

só dói ou é gostoso enquanto


passa no
buraco
(não dói quando contido)

a economia dos diâmetros, o


exercício diário
balizamento inconsútil
entre o inútil e o não-inútil

(cuidados ora medos


burrice ou esperança
prazeres ora vícios)

tudo questão de abrir e fechar


orifícios
(como o trabalho de vida
que cabe a qualquer outro bicho).
acontecer ou bruxas

ou você faz acontecer


ou você fala com as bruxas
parece hoje o conselho mais útil que eu já recebi

é um conselho tão bom que não é um conselho


é uma constatação de que estas duas opções existem
e que elas são diferentes

doze anos depois, ainda não consigo


imaginar nada melhor de se dizer por telefone
pra uma pessoa desesperada.
2. limão e sal
saco de pão, linguiça

ando perfumado com limão e sal


suo só pra que tomara queiram me lamber
li uma novela nos pelos de um loiro babão
busco na mão um toco de pau não-oco
rezo com uma só vela pra santo-estrela
agradeço que ainda exista a quem talvez eu agrade
não se sirva, diz ela, mas à vontade.
o quarto maior do victor

calço minhas meias claras no escuro, são


maus tempos pra discursos pretensamente líricos e cantos possíveis
do quanto um menino nomeado victor dá vontade de
abraçar gemendo, uma bunda sem dissimulação alguma
com pelos mais grossos do que na cabeça
nós às vezes conseguindo deixar de saber
quem está segurando por onde, por que peito, por
dentro, por quê

mas qualquer ode agora soaria como mera ostentação


de um privilégio geográfico individual
como richard brautigan querendo falar do seu pênis e seus peidos
e das coisas que amantes de gênero feminino subentendido fazem
voluntariamente ao redor do seu pênis
procuro se também há trechos em que elas entram
pela porta de trás desse lirismo

passo a acreditar mais em milagres porque


são o único jeito que passa a parecer possível
deve ser por isso
que pessoas se agarram às exceções conforme se aproximam da velhice
porque vão vendo o túnel/corredor
ficar mais apertado do que olhando de longe, as portas
estavam fechando tão devagar que parecia
fazer pouca diferença

gustav von aschenbach fala antes de ir


pra morte em veneza que não percebemos
a reserva de areia ficando menor na parte de cima
da ampulheta enquanto ainda tem muita, porque
o buraquinho é tão estreito.
a via láctea

tentei escrever mentalmente um poema


quando estava sentado na sua cara
o título era
lugares onde estou quando estou sentado na sua cara
os primeiros versos eram

sentado no mar de língua


molhado no cavalo de deus
rolando na via láctea
dormindo no castelo na chuva, sozinho
sentado diante da morte, com o mundo inteiro embaixo de mim

mas estava ficando péssimo


implorei (não sei pra quem) por uma ideia melhor, não tive
por isso disse eu te amo
você não curtiu
eu também não

enquanto você amarrava as botas pra ir embora, precisei tirar duas fotos dos seus pés
esqueci de te dar um beijo nítido, definitivo (digno
de talvez ser o último)
por isso fumei a casa inteira, com medo
de você concluir que eu só queria sua imagem pra me masturbar

escrevi imediatamente no whatsapp


volta, você esqueceu uma coisa aqui
você respondeu como assim, o quê
eu respondi não sei, mas volta
pra gente descobrir.
sobrevivência

tem um coração
dentro do outro

o de dentro
fica boiando num fluido
pra não ser contaminado
só se usa em situações periclitantes
o de fora é pra bater

tem um fôlego
fora do outro

o de dentro
fica protegido por um material isolante
pra não vazar antes da hora
só se usa em situações periclitantes
o de fora dá pro gasto (dá pro gosto).
voa, framboesa

a feiura dos cabelos


cortados me fez bem

sigo investindo abertamente


em formas improváveis
(não sei se há jardim)

sou insistente enquanto convém


sou amoroso como ninguém
não sou feliz mas tenho macarrão

mundo mundo nem tão vasto


mas vem a devastação.
cavalinho, passarinho

pela possibilidade de
você gostar de menino
faço meu cavalinho esperar na chuva
enquanto ele não se gripe

pouco sei da fiação


subterrânea dos desejos
e sou bruto demais
pra transcrever sinais

porém a chance que exista


de você ser bicha
vale (em qualquer escuro) a aposta
e a ficha

nunca vi seu passarinho


e não sei pra onde ele voa
mas minha mão tem outra
noção de valores.
pernoite no sítio

durmo com quem durmo


e com quem dorme comigo
(umbigo — e umbigo)

porto amor não salva


mas salva por enquanto
(em volta — espanto)

porta amor não salva


mas esta noite salva
(o muro — e a selva)

puto amor não salva


mas hoje não me perco
(o escuro — o cerco)
sonho 42

sonhei que eu e você íamos foder


o clima era por que não decidimos isso antes
eu ia lamber seu sovaco estava cheio de gergelim
perguntei por que você passava gergelim no sovaco
não lembro o que você respondeu.
por linhas tortas, só que tocos

e porque a estrela disse: também tem anjos


violentos de pinto grande que vêm te carinhar pelo avesso até nas horas paliativas
mesmo durante a idiotice
não obstante a cagação de regras, mesmo carecendo
de ênfase, mesmo
que as estocadas não consigam acordar sua luz de bruços

porém que isso bombeie o seu passo


e que ele seja musculoso dentro dos tênis e das mensagens de texto
dentro dos esforços e o que assim te pareça
porque a estrela diz abraços (tantos quantos existam domingos)
e dedos alisando os pavores menos necessários
porque o rochedo de carne: hoje na presença
de exatamente ninguém, porém dormir com o maciço
da espécie inteira, desde o ovo
ejaculado, só que mais: de todo o projeto animalista, na melhor das hipóteses

milagre dos muitos amassos: a eternidade


suficientemente investida, encaixando-se
e alargando o caminho de todas as precedentes, cutucando
preenchendo cavidades e orifícios
sentindo a manhã crescer de encontro à sua bunda
dando de graça de novo o pacote do perto, um saco de ferro, celebrando
provisoriamente o desmerecimento

disse: você desejou fielmente


e em tese isso te daria direito só a um prêmio de consolação
só que talvez não exista diferença.
acordei às dez da noite

ó fúria de procurar
amor emburrecida
procurando só estopa
e tapete de barriga

ó fúria de procurar
amor desnorteada
procurando só confete
e punho sobre espada

ó fúria de procurar
amor inconsequente
procurando só coceira
calção e água quente

ó fúria de procurar
amor desinformada
preparando sanduíche
de pão e pão e nada

ó fúria de procurar
amor esparadrapo
procurando em buraquinhos
e selvas de sovaco

ó fúria de procurar
amor sem heroísmo
procurando peito grátis
e pétalas de umbigo.
pinguim

de travesseiro em você
(pinguim)
parto desse
dia curto
em que ganhei dinheiro

não me detenho em ser


assim
meus prazeres
são mais truco
do que trunfos verdadeiros

sei que amanhã me encaixo


(de volta)
na engrenagem dos defeitos

mas passo o envelope por baixo


da porta
com a foto da chave dentro.
amor

nem todos os furos


viram poços

nem todos poços


chegam ao manancial

e talvez nem exista o manancial

talvez cada gota esteja


onde está cada gota, ou presa
num poro do chão
e é só na língua que se juntem
e a própria sede (só que vista
do avesso) era o manancial

e se for assim
que eu entenda logo
e aceite

obrigado outubro
por existirem os meus
contemporâneos (alguns deles
às vezes mostrando o pau).
desculpem a personalidade

o medo de acharem
que eu sou orgulhoso
também se chama orgulho

o medo de acharem
que eu sou exibido
também é um exibicionismo

o medo de saberem
que eu sou ignorante
é o nome da ignorância

num dia em que eu percebi isso


meu esfíncter se abriu.
3. pânico do fechamento de portões

“Whatever the hope,


here it is lost.

Because we coveted our difference,


this is the cost.”

“Se havia esperança,


aqui perdeu-se.

Porque cobiçamos nossa diferença,


o custo é este.”

Robert Creeley, “The Mirror”

“Torschlusspanik [Pânico do fechamento de portões] designa coloquialmente um medo de deixar


algo passar. Em especial, designa o temor de não atingir objetivos ainda não realizados, e por
isso tomar decisões precipitadas. Esta expressão remonta à Idade Média, em que os portões da
cidade eram fechados por motivos de segurança com a chegada da escuridão. Moradores que
até então não tinham voltado de seus passeios eram forçados a pernoitar diante das muralhas,
assim ficando indefesos, à mercê de ladrões e animais selvagens.”

adaptado da Wikipédia em alemão

“How much she wanted it — that people should look pleased as she came in,”

“Como ela queria isso — que as pessoas parecessem gostar quando ela entrava,”

Virginia Woolf, Mrs. Dalloway


zero zero

afetos comuns
que os cães também têm

ciúme preto
vontade de agradar
vontade de agradar a ana luiza
vontade de entrar
de ser convidado

leio ricardo domeneck


com a wikipédia do lado
leio a previsão do tempo
com uma agulha e um machado.
historiografia

às vezes você abre o livro das suas derrotas


como se fosse um cardápio de restaurante

ali estão listadas pra diversos apetites


(em ordem mais ou menos decrescente)
ignorâncias sinceras — erros burros — descuidos
erros conscientes — repetidos — ignorâncias fingidas
preguiças — acidentes — deparações
com limites inegociáveis — vitórias de pirro
vitórias em batalhas específicas demais — gestos
legítimos e contingentes, mais ou menos exemplares, trazidos
de volta da rua — resultados inconclusos

ali está listado o nome de uma pequena divindade


que não aceitou o prato de leite na sua porta
que escolheu soltar seus dedos quando a onda veio
que não te reconheceu no recreio do dia seguinte
que te entregou de volta labaredas e escorpiões
que por trinta e oito horas desdobrou no tapete
seu mapa de futuros endereços
mas decidiu dobrar de novo, e é isso
que você escolhe comer hoje

(não existem no cardápio das derrotas coisas que


você não pode pedir porque acabaram
(sempre tem tudo)
na cozinha sabem todos os seus gostos e encostos
suas horas mais famintas
e a dieta mais robusta pro seu estômago
(é ali também que se prepara
sua manhã possível de heroísmo, sua permanência
confirmada em territórios)).
uvas verdes

(o último, os cães mordem)

bárbaros e héteros
colchão de palha e campanha, úmido de ladrão
meus heróis indiferentes, minhas uvas verdes
deito junto com vocês
por linhas de projeção

sou um dos bichos pedestres que assistem e invejam a serpente


(all other beasts that saw, with like desire
longing and envying stood, but could not reach)
hoje acredito em satã, que está mais perto
ele me fez companhia no deserto

fred stiller, robert krohn


nunca passar a noite
embaixo da sua atenção
(eu sou as virgens da metrópole
grávidas dos homens-cão)

eu sou uma puta à janela


entre verdades donzelas
que nem elas, eu dependo
de que um soldado me queira
(cada um por si, deus contra todos)

era uma vez um lobo que


(manco, estéril, fraco)
quis ser devorado em pele de cordeiro
mas não conseguiu disfarçar o cheiro.
carma

ele virava rei


pela vontade geral
e me escolhia primeiro
pra mandar pro paredão

no penúltimo capítulo
os leitores entendiam
que era ele o tempo todo
quem tinha razão (e eu não)

ele tinha (em oito anos)


construído arquibancadas promovido festas
onde defendera pertinentemente
a minha aniquilação.
lamarckiana

o esforço faz um pescoço


mais longo, um passo mais ereto
ou talvez um gesto
maior, mas não muito maior

calos e feridas endurecem


mas não chegam a
virar carapaça, jamais realizam
o sonho quelônio

o ganho mal e mal faz diferença


e é improvável ser você quem vai alcançar
a fruta, apanhar
o peixe, ou levantar voo

este exercício brutal (a galinha, o ovo)


tanto arroz, tanta vigília
tantos fantasmas e monstros
pra tão pouco peito/osso.
ninguém no éden

a solidão de adão
com os cães
(e com deus) antes de eva

a solidão de deus
com o caos
antes de eva e adão

eva (e adão), pois é:


mesmo depois de eva
você continua só

com a livre escolha entre o fruto


permitido
ou o crime cometido sem cumplicidade

o crime começado e posto


de lado, o fruto que alimenta pela
metade

(e deus vê você assim


e diz que assim está bom
mas você acha que não).
lieber frieren

agora entendo por que aquele poeta


teve horror às pregas antiquadas
na camisa nova em que ia se casar
(ódio à costureira obstinada do interior)

a feiura é enfraquecedora
e insidiosa, permeia
nossa síntese (e resta
quando os noves fora)

cada prega na camisa


(e deixar fotografá-la)
custa ao artista dez anos
de dieta e palinódia.
são os outros

emigrar em vias públicas de rosto


em rosto, alheios como se fossem pontes
a noite mais comprida

(não se adquire sem brilho


cidadania ou exílio
não se pede sem pedágio
um abraço pro inimigo)

os outros: esse amor pelo nosso não


o esbanjamento daquilo que nos falta
seu suor limpo e a irmandade
na indiferença por nós
os outros e seus urros
de outros prazeres e da procura
por coisas que não estão em nós

os outros e seu calor de ladrão


os outros e sua inteligência em outra língua
os outros e sua mão quente, matutina
e seu punhado de cal
os outros e seu martelo
os outros e seu endereço
seu chuveiro que às vezes dá choque
sua lata de café
seu frasco de shampoo
sua pornografia preferida
sua caixinha de band-aid.
uma segunda-e-meia chance

pedia a deus uma segunda chance


deus me dava uma chance segunda-e-meia
era que nem uma segunda chance, só que
já usada por outra pessoa, uma chance amassada nas pontas
uma chance apanhada do chão, e batida pra tirar a sujeira

não brilhava colorida como uma chance nova


não vinha dentro do plástico pra eu mesmo poder rasgar
tinha gordura de dedos de quem tinha usado antes
não tinha a consistência firme de uma chance recém-saída da máquina do mundo
pro que você quer, ainda serve, deus me dizia

eu aceitava sem olhar no rosto


não agradecia nem deixava de agradecer
tentava sorrir
ia embora atravessando a longa selva, voltava
pro quarto onde deus não me via

no caminho olhava embaixo


das árvores, pensava o diabo quem sabe
estivesse por ali.
e não

e não, o diabo não quer fazer um pacto com você


disse que não está interessado na sua alma
disse que é um modelo de alma comum demais, que ele já tem várias parecidas
e usa todas elas como papel de rascunho

disse: muitos imbecis tentam


me vender a alma depois que ela já se corrompeu sozinha

não agradece sua proposta


e informa que está rindo da sua cartinha junto com belzebu e os outros
e que vai contar para deus que você se ofereceu.
4. o rosto enfiado num funil
medicine ball

sem interferência (digo, sem ruído)


é viável
ser triste
(com o peso bem equilibrado entre as mãos)

deixo que a tristeza desdobre o pano


que sempre quis me mostrar
entendo seu orgulho de tecelã, o esmero
e a coesão do seu urdume
as promessas estavam todas ali
(ela estava escutando
o tempo todo)

deixo que a tristeza me apresente


o homem que escolheu pra mim
meu vizinho de prédio
meu vizinho de infância
(ele passou perfume, trocou de cueca e comeu
antes de sair, não tem
que acordar cedo amanhã, não se importa
com as sujeiras e fedores da rua augusta).
homeopatia

(essa farmácia executava ainda


a prescrição do dr. nietzsche
pro estômago difícil:
engolir um sapo por dia

o empurrão fazia endorfina


o chorão serotonina
porco bode boi galinha
deixavam a casa mais vazia

a gaia ciência entendia


de sangrias e purgantes
a aurora dependia
da noite escura que vem antes.)
bisturi

hoje não consigo


não pensar em bisturi
ontem não dei alegria
portanto não recebi
(sei que não é assim que funciona
mas hoje parece que é)

a ideia (bisturi)
espontaneamente
nas bordas do encostável
(vigária de
outros medos
ou a eles contígua?)

bisturi
bisturi
e seus correlatos —
estilete
cortador de vidro
folha de papel bem fina.
berlã

alguma coisa acontece no meu coração


que saio à procura de amor em kottbussetão
é mais fácil encontrar uma sombra pra fazer xixi
pergunto quem são os clientes da loja de flores
que fica aberta a noite inteira entre o olfe e o roses

amiga o david bowie não vem mais aqui


(ou só pra inaugurar exposição)
alguma coisa acontece na minha bunda
que não acontecia na estação barra funda

tentei te sorrir mas você desviou o seu rosto


achei você tosco, alemão, gostoso mas tosco
eu que já vi seus pentelhos pelo gayromeo
narciso morreu afogado porque o salva-vidas não era gay
vou-me embora pra pasárgada, lá sou amigo do rei

se fosse questão só do preço


da cerveja ou do ingresso
mas quem não pode chorar por falta de catarse
acorda mais tarde com tempo de suicidar-se
só porque é possível possível possível possível

na simon-dach tem farofa, cuvrystraβe tem favela


na rossmann tem tudo que você precisa mas você não precisa de nada
a moça do caixa não quer que saibam o nome dela
eu vejo astronautas mendigos subindo pro espaço
tuas camisetas de ir em festa, teu cavalo na chuva

idílio de adultos aspirantes, arcádia do electrobrega


berçário de start-ups ou viveiro de zumbis
e os brasileiros comprando palmilhas pra neve
e nem parece o mesmo céu onde o sol já esteve.
o rosto enfiado num funil

você foi mais artista do que eu


eu não pretendo mais
estou com o rosto enfiado num funil

seu nome não me deixou ver o céu


acordo sempre pra trás
acordo com o rabo enfiado entre as pernas e o pau

se só a inveja me leva a tentar salvação


lutar ou correr
eis a questão.
numeroso

no dia em que endereço nenhum


vale a distância

pulo e corte
halo e sombra
adeus, cruel
mas os paramédicos na beira:

não
vai embora
hoje à noite
(botafogo
guanabara)

ninguém gostava dele ativamente


mas toda a espécie sabe o precipício

(se fosse só comprar uma passagem


de ônibus pra outra cidade).
contenção de estragos, ou aldebarã

antes bundando
que
fazendo merda

(catavento, mafagafo
nem todo tempo é tempo
alfabeto, aldebarã)

mas não por muito tempo


porque os bundões de hoje
serão os cuzões de amanhã.
mirabel

deus entregava em mãos o inventário


(definitivo até segunda ordem
mas que eu tratasse como definitivo)

nele tinha uma lista do que eu podia jogar fora


e uma lista do que eu precisava guardar
tinha uma lista do que eu teria que jogar fora
e uma lista do que era melhor eu guardar
tinha uma lista do que era impossível jogar fora
e uma lista do que eu já tinha perdido

o que eu já tinha perdido


deus ia acomodar dentro dos nomes
que tinham sobrado quase sem usar

alvastadt
mirabel
tintagel
sanabil
...

eu via ele desplugar os nomes um por um


me dava arrepio.
tabique

todo medo é o mesmo medo de conhecer o diabo


é o medo de abrir um olho que não vai fechar nunca mais
o medo da boca divina dizendo um verbo no pretérito, como
desandou, perdeu ou cortado

depois que alguns precedentes foram abertos


todos os insetos começam a entrar pelo buraco.
(dizia minha tia alemã

acordar tarde no inverno


é acordar cedo no inferno.)
5. porque sabem tudo

“(...) mesmo se longa, sempre será curta.


Curta demais para se acrescentar algo.”

Wisława Szymborska, “A curta vida dos nossos antepassados”


mortos

os mortos, porque sabem tudo


não levam mais sustos

não se pode mais surpreendê-los nem enganá-los


não se pode mais esconder nada deles, não se pode mais lhes contar mentiras
mas eles também não mais se chocam nem se ofendem, não mais têm pudor
eles conhecem todos os pintos e bundas
conhecem todas as desculpas
conhecem todas as ignorâncias
eles não conhecem o futuro, mas o futuro, quando acontece, lhes parece óbvio

eles não acham que nada seja uma ameaça iminente


mas também não acham que nossas preocupações sejam ridículas
não acham que os vivos estejam desperdiçando o tempo
eles sabem que qualquer obra pode ser retomada ou desfeita, como uma peça de costura

eles não sentem mais fome nem vontade de fumar, mas continuam observando tudo
e sim: ainda ficam felizes e tristes
e isso é o que, na terra, eles chamavam de medo, sorte, esperança etc.
só que agora eles não tentam fazer mais nada a respeito

eles observam e sabem tudo, apaixonadamente


porque é a única coisa que eles conseguem fazer
e porque não conseguem parar de fazer isso
e se pudessem, sugeririam que os vivos fizessem o mesmo
(mas isso seria o mesmo que desejar a morte dos vivos
mas isso lhes caberia bem, porque eles têm inveja
mas eles também têm amor, e gostariam de ajudar)

eles gostariam de ajudar


mas eles sabem tudo, menos o que fazer
fazer não é a especialidade dos mortos
eles fazem ruídos, mas são ruídos amorfos, como os de um bebê

eles nos ajudariam com informações se pudessem


mas não acreditam em espiritismo.
algumas coisas estão bem

não, não vai necessariamente ficar tudo bem


necessariamente não vai ficar tudo bem
(você lembra de quando estava tudo bem?)
algumas coisas estão bem, e é melhor que isso baste
chegará o dia em que nada estará bem
depois chegará o dia em que nada estará
e nesse dia, é melhor que isso baste

portanto
continue fazendo exercícios de respiração
e fortalecimento dos músculos da barriga
porque chegará o dia em que isso não vai mais fazer diferença
(abra uma casa dentro da casa, onde você possa morar, isso é instantâneo)
as bruxas estão tentando falar com você
te entrego minha mão no peito, os meus dois braços
pode fazer o que quiser com eles

algumas coisas foram plantadas enquanto você não estava olhando


algumas delas cresceram, estão fazendo corpo
carregue com você essas flores estranhas, antes que não faça diferença
porque nesse dia vai fazer diferença.
arqueologia do mundo antigo

a mesma resposta pra diversas


perguntas será: “porque
você é outra pessoa”

a internet é uma cidade


sem rua: só existem as casas
dos outros e a sua

quantos fracassos que agora


não se pode mais dizer
que a culpa foi da distância

o portão da lei não estava


livre nem fechado.
armazenamento

a cidade guarda os ossos dos seus mortos


como se não estivesse convencida
de que nunca mais vai precisar deles

nunca se sabe, ela exclama, ela é uma mãe de mãos sujas


não permitiria simplesmente jogá-los pros cães
vai saber, o tempo é grande, pode chegar o dia em que eles sirvam

a cidade guarda nas partes de baixo


aquilo que seria desejável só nas (o inferno
ou uma câmara de magma, por exemplo) circunstâncias mais
específicas, porque existem tantos talvezes

as coisas inclusive pessoas


começa a ficar mais improvável
que alguém venha a querer encostar nelas, mas
não se sabe a partir de quando.
noite longa, noite curta

a diferença entre a noite


longa e a curta é nenhuma

ambas a mesma promessa


(desembarcar na outra margem)
ambas o risco: voltar
pro ponto de partida

(fio de que antes eu só via a ponta


aventura e abantesma)

(tiro de revólver, tiro de balestra


lâmpada
estrada
sereia).
o protocolo

toleramos o frio pensando que podia estar ainda mais frio


que isso, e que já esteve, e vai estar

você diz que vamos cruzar essas pontes quando chegarmos nelas, mas quanto
da sua mesada você está apostando que vai haver pontes sequer?
uma ponte implica que alguém já esteve lá antes
o que raramente é o caso, quando o contexto é específico o
suficiente

se não houver uma ponte, você


vai se estender sobre a brecha e deixar nós andarmos
em cima das suas costas? (e essa não é
uma pergunta retórica)
quanto peso você calcula que o seu bom senso aguenta?

tentamos pensar numa vida que não seja baseada


em negociações com todos os outros números
no termômetro, mas parece valer tão menos o esforço depois que descartes provou
(e com zero dados empíricos, aliás) que um ser humano jamais vai conceber
nada que já não existisse desde antes

muitas vezes sou a kelly kapoor do the office que disse agora eu sou super
inteligente, você poderia me perguntar kelly
qual é a maior empresa do mundo e eu ia dizer
blá blá blá, blá blá blá blá blá
te dando exatamente a resposta certa

muitas vezes sou a lynette scavo do


desperate housewives que disse que a única coisa pior que só
seguir o protocolo pra manter o romance
vivo é nem se dar ao trabalho de seguir
o protocolo.
nem toda a verdade

agradeço à cerveja, que nos abre as pequenas


frestas, e as
saliências e as grandes

agradeço à punheta, que nos concede o amor


dos homens héteros, dos distantes
e fictícios

agradeço aos amigos, cujo amor é


acessível (como a praia
é para o pico)

e agradeço a este livro (de søren


kierkegaard) que (acho que) anteontem (11/04/2011)
me valeu um suicídio.
o presente é o pasto

se o êxtase proporciona a ocasião


e a conveniência determina a forma
recorrerei a ti, marianne moore
como quando na cama com dois desconhecidos
entendi a frase pintada na porta
estava escrito — e acho que repito as palavras exatas
o clímax
é o próprio desfecho (o resto
é lavar o rosto, conferir os bolsos, e sair sem quebrar nada).
sobre mim

miguilim
chapolin
fridolin
míchkin.
“O Inferno
são os outros
mas o Céu
também”

Adília Lopes, Caderno


Notas:

As traduções das epígrafes são minhas, exceto a de Wisława Szymborska, que é de Regina Przybycien,
ed. Companhia das Letras, 2011.

A citação no poema “uvas verdes” é de John Milton, Paradise Lost, Book IX.

Alguns destes poemas foram publicados originalmente nas revistas Rosa, Lado 7, modo de usar & co.,
escamandro, stadtsprachen magazin, Leopardskin & Limes.

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