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VIDA VÃ – I, II e III

Everton Bortotti

I – Aperitivo
II – Os dois lados da cidade
III – Formigas e nuvens
I – Aperitivo

Alguns motivos me encorajaram a idealizar o quarto solo, inicialmente não havia


muitos detalhes estratégicos nessa formulação e ordinariamente seria um espaço vazio
onde eu ficaria em pé sorrindo, depois idealizei a cama e o resto.
Claro que pode ser duro aspirar melhoria quando em confronto com meses
passados na insalubridade de uma vaga de pensão barata, todavia dificuldade também
gera disposição e por mais estímulo eu tinha vários almejos que nascidos da desgraça se
vestiam de esperança os quais, quanto mais os sentia conscientes, mais afinco lhes
oferecia os tematizando de modo a evitar que me dominassem de forma desacertada e
devastadora, considerava que quando acordado era importante saber lidar com almejos
porquê não me largariam de qualquer jeito e me reavivava cultuando os bons como
argumentos de quem podia suportar a fantasia sem sucumbir à nefastidão de se tornar
um larápio ou violador, pensava que não devia me encher de sandices ou ilusões de
grandeza e sim pela seleção buscar um modo de primeiramente suprir almejos básicos
oriundos da carência acumulada no passado recente conjuminada à do mais antigo
sitiado por desacordos, usando isso feito reminiscências fortalecedoras de minha
ambição pelo quarto solo me pegava falando alto pelas ruas assaltado de fervor sendo
que na pensão jamais soltava uma palavra a esse respeito para que não se ofendessem,
quando me deitava naquela cama em silenciosa auto-disciplina imaginava ferozmente o
quarto solo feito tábua salvadora e tendo dezenove anos me dava ao direito de entender
essa tábua em forma de uma verdadeira causa de luta a se tornar um alicerce do
amplexo se prolongando até o cúmulo quando já podia até morrer sem querer e sem
saber, morria a cada noite no sono para dia seguinte acordar automaticamente tomando
por evocações de libertação pessoal e assim seguir ao largo das horas.
Vila Egressa, zona boreal. Ali os devaneios revelavam peripécias alvissareiras
amainando a vivência cruciante, dia após dia na propriedade da prevalência queria uma
vida de verdade dentro do quarto solo no qual poria em sua porta um bom cadeado e
inclusive não esquecendo que nele deveria haver banheiro interno de modo a nunca
mais ter de entrar noutro como aquele da pensão onde tinha de ouvir lá fora salafrário
dizendo “vamos logo aí porquê a fila aqui cresce” enquanto sem tocar as paredes
infectadas do cubículo sempre em pé tomava banho ou urinava ou evacuava ou fazia
certa necessidade íntima à qual chegava ao auge com uma mão enquanto a outra
impedia a invasão pela porta sem tranca, imaginava que uma vez estabelecido no quarto
solo com banheiro interno eu também faria questão de ver como é que ficaria a cara dos
seguranças dos shoppings quando eu passasse frente a eles loucos para me flagrar lá
dentro de seus banheiros só para me torrar o saco, eu riria na cara deles como que
dizendo que tirassem o cavalinho da chuva diante de quem tinha vencido na vida e
também rindo iria até as faculdades onde os seguranças eram desprovidos de piedade
pelo que haviam me feito passar quando me tiraram de um daqueles banheiros num
momento meu de extrema sensibilidade, daí sem ter de burlar mais qualquer segurança
minha cabeça estaria livre para ser toda preenchida do jeito que sempre deveria ter sido:
garotas.
E claro que uma vez com quarto solo seria possível justamente arranjar garotas
para preencher diversas outras partes do corpo, ou pelo menos uma delas bem disposta.
As visagens de garotas me perseguiam fossem imaginadas ou testemunhadas e quando
deitado naquela imunda cama de cima do beliche elas pareciam querer fugir mas
quando eu dormia nem mesmo a vastidão de pulgas locais conseguiam lhes deixar
distantes, eu sabia que sonhava com elas mesmo quando acordava sem lembrar dos
sonhos. Eu tinha o direito de querer ser alguém e encarava isso até mesmo com certa
paciência, certamente com furor e alucinação.
E por falar em garotas tinha também aquela morena balconista lá da farmácia,
numa avenida paralela à rua Lá Vai onde ficava a pensão; ela não iria acreditar quando
eu desse uma passada lá e a convidasse para conhecer minha nova residência. Eu a
conhecia de visitas constantes cujos intervalos nunca duravam mais de uma semana, me
pesava na balança enquanto a olhava por detrás do balcão só querendo adubar a paquera
e, ela, já tendo dado conta de minha existência, costumava perguntar:
– Que vai querer? Algum veneno pra pulgas de novo?
A meia dúzia de venenos que ela tinha me vendido não havia resolvido a questão
das pulgas mas isso eu nunca lhe disse, apenas ficava algum tempo sobre a balança a
olhando discretamente para memorizar mais de seus traços e inclusive pensava que as
próprias pulgas incentivavam meus ímpetos de melhoria já que foi por causa delas que
cheguei até aquela farmácia assim ficando enamorado pela morena, seguramente por ela
eu me sentia ainda mais estimulado ao: quarto solo.
Certamente que eu também tinha direito de me pesar na balança mas nunca
soube qual era meu peso. A morena era maravilhosa por trás daquele balcão e ficaria
ainda mais no quarto solo. Também tinha dias que eu repetia a dose subindo mais de
uma vez por dia naquela balança e mesmo nunca tendo visto a morena além daquele
balcão de modo a ter sua imagem somente na parte superior do seu tronco isso por ora
me era suficiente, ela tinha um maravilhoso sorriso no qual se via dentes brilhando
maliciosos e eu queria também quase todo o resto, ao descer da balança ia caçar um
banheiro desimpedido pela cidade e ela merecia o melhor dos carinhos.
E foi exatamente olhando aquela morena por detrás do balcão que um dia me
lembrei do que já tinha sido e do que ainda podia ser. Foi quando subi na balança e a
olhei por detrás do balcão discretamente de modo a trabalhar a visão em apanhado geral
que por um instante percebi um cartaz na parede interna da farmácia atrás dela, ele
devia ter sido afixado recentemente e anunciava: “GRUPO DE TEATRO CAFETERIA,
UM DOS MAIS RENOMADOS DO PAÍS, FAZ TESTE PARA NOVOS ATORES”,
depois vinha informações adicionais sobre as inscrições para o teste.
Sentindo de imediato uma excitação incorrer-se me vi redespertando anseios que
tivera ocultado entre receio e vontade, anseios dilatados e desmedidos que só haviam se
inflamado em minha negativa de admitir e perfilar e proclamar. Aquele cartaz reabriu-
me uma brecha; eu já tinha feito teatro por conta própria quando morava no Sul e
chegara na Capital pensando nisso, a partir do momento em que ao passar na frente da
pensão vi a placa Vagas para rapazes nela fui morar pensando nisso mas em questão de
poucas semanas naquela vivência tudo se me foi esbagaçando e até quase cego de
entendimentos fiquei, agora estava tudo de volta bem atrás da morena.
Eu tinha um dente frontal amarelado e outros aspectos fora de ordem, mas meus
dentes ainda davam conta de comer o pão que o diabo amassou e os outros aspectos
podiam esperar um pouco, valia-me agora entender que estava diante de uma porta
aberta aonde podia mostrar meus dons e olhando aquele cartaz meus pensamentos já até
encenavam teatro, “sou feito tanta gente que aqui chega, na pensão tem aqueles que
vieram fugindo de algo seja seca ou crime e de camuflados vão se revelando aos
poucos, tem aqueles que após o período negro de peleja saem vitoriosos e tem aqueles
que cheios de gás dizem que demora é coisa de feto, todos temos direito de nos
ressuscitar e me sinto embalado de iniciativa, tem uma bela balconista olhando pra mim
de um modo que até parece me pedir o quarto solo com banheiro interno e ela me
alavanca em forte impulso, na minha reacendida idéia é em silêncio que lhe prometo
não a esquecer pela garantia das arrasadoras alusões em banheiros diversos só pra
aplacar desejos momentâneos e quando estiver solidificado na carreira aqui voltarei
pronto pra lhe mostrar meu magnífico mundo interior que só vai ficar bem mesmo
quando apoiado num belo mundo exterior do belo quarto solo com seu belo banheiro
interno, aliás já até ouso imaginar uma kith e já até lhe vejo lá dentro, tenho certeza que
ela vai gostar.”

...Daí fomos nos reconduzindo de volta saindo dos fungos em direção a


organismos um pouco mais complexos, fizemos uma viagem por tudo ali e os
assistentes diziam:
– Não se esqueçam, vocês não têm sangue.
Eles queriam que a gente fosse tipo uma planta e a gente era tipo uma planta,
nosso sangue era seiva e os pêlos eram folículos, criamos raízes e nos aterramos no chão
virando um pomar ali no meio do salão.
– Agora vocês estão se transformando em...
Na travessia de evolução chegamos até os bichos mais primitivos, estivemos na
água e depois voamos, depois de volta ao solo já mais modernizados quase nos víamos
do lado de fora, quando como mamíferos estávamos loucos para virar humanos sendo
que foi num pulinho que o viramos contudo conforme nos alertaram “humanos
irracionais” e isso era bem mais fácil, sem pensar vivenciamos uma ressonância caótica
de impulsos e quando instruíram que nos soltássemos abrindo nossos reservatórios
particulares arrastamo-nos pelo chão e esfregamo-nos pelas paredes nos desbloqueando
a bel-prazer, voluntariamente rugimos sem qualquer necessidade de tradução. Havia
pelo menos uns dez assistentes nos monitorando e chegavam a nos tocar.
E quando determinaram que todo o bloco de atores passasse a trocar impressões
definitivas entre si formou-se instantaneamente uma massa de corpos em movimento e
inclusive cambiando eventuais abraços particulares, nos embolamos no palco para valer
e nos pegamos e nos comunicamos em línguas selvagens carcomidos por uma espécie
de efusão momentânea, uma catarse deleitosa de instintos e volúpias que infelizmente
acabou cedo demais.
– Ok. Já podem voltar pra si.
Abrandar os ânimos, nessa altura do campeonato.
– É apenas um exercício de aquecimento.
Daí mandaram a gente para o saguão do prédio e nos organizaram para fazer a
avaliação individual que, “segundo comentários de corredor”, conforme ouvi alguém
dizer, iria definir nossos destinos a partir dali.

Nessa derradeira parte do teste cada candidato recebia uma senha, ficávamos no
saguão esperando e iam nos chamando pelo número da senha, cada candidato entrava no
teatro e submetia-se a um exame. Eu não tinha lido as determinações na ficha de
inscrição mas decidido a me tornar um astro quaisquer que fossem as cláusulas para isso
eu aceitaria de bom grado. Daí nos avisaram:
– E lembrem-se de que não pode ser monodrama.
Tinha uma multidão ali, na maioria gente que acompanhava os candidatos.
Parentes, amigos, diretores e até psicólogos contratados para acalmar os candidatos.
Tinha mais gente fazendo assessoria aos candidatos do que candidatos propriamente e
foi com um desses que me inteirei sobre o significado da palavra “monodrama”, era um
diretor teatral em início de carreira que me explicou ser “monodrama” uma cena solo,
ele tinha sido contratado para dirigir a cena de um dos candidatos e após sua explicação
fiquei com o problema de que não tinha nenhum réplica para evitar o monodrama e
todos os presentes ali tinham trazido os seus réplicas, já tinham tudo ensaiado e mais
ensaios faziam pelos corredores e banheiros e escadarias e em alguns casos sob a
proteção de cordões de isolamento.
Então tentei convencer uma família inteira, seus diretores artísticos, seus amigos,
seu psicólogo, seus seguranças, seus ancestrais, toda a árvore genealógica da família, de
me aceitarem para fazer a cena com seu candidato, falei o mesmo com um por um e
inclusive o motorista do carro e a matriarca e o psicólogo, mas eles não queriam
amansar minha consciência alegando que já tinham um ator contratado para fazer a
réplica o qual tinha sido escolhido pelo diretor artístico contratado que já tendo ensaiado
a cena por meses não ia alterar os planos em cima da hora por causa de um
desconhecido sem réplica.
E foi o próprio candidato, um garoto de seus dezesseis anos, que tomou a
decisão de me substituir por seu réplica contratado; convenceu sua família de que com
aquela sua atitude desprendida podia somar pontos a seu favor para a comissão
julgadora, que afinal a comissão julgadora preferia mesmo analisar dois atores numa só
cena do que um em cada cena. Sentamos os dois num fundo do saguão para acertarmos
os detalhes.
– Eu ensaiei uma cena da tragédia antiga – ele disse. – Mas fazer isso pra mim é
uma tragédia, sou tímido e isso é antigo.
Me abstive de comentário e ele riu por educação, reiterou o que havia dito e me
passou um livro de tragédias antigas, me disse que estava ali pelo sonho da família.
Fiquei a ler o livro sem entender nada do que estava escrito.
– É melhor apenas ler – falou o garoto – sem se importar com o conteúdo.
Seus familiares estavam lá no saguão nos olhando e querendo se aproximar, lá
também seu réplica contratado estava indignado e esbravejava:
– Aquele intruso vai estragar tudo!
Seu diretor artístico contratado também mostrava inconformação e aderia ao
réplica contratado:
– Se aquele intruso estragar tudo não venham pôr a culpa na minha direção!
Intruso! Intruso!
Havia trezentos olhos em nossa direção e nisso o garoto me disse que se fosse
possível a gente trocaria de posição e, no momento seguinte, talvez amparado pelo que
tinha acabado de dizer, me falou:
– Faça o teste por mim.
Seguindo nisso ele me deu as instruções que havia recebido para fazer a cena.

– O próximo!
Adentramos o teatro, passamos pela platéia quase vazia e subimos no palco. Os
membros da comissão julgadora estavam sentados na primeira fileira e um deles
perguntou:
– Qual cena vão fazer?
Com o livro nas mãos relatei qual cena íamos fazer, uma cena de tragédia antiga.
– Podem começar... – disseram.
De acordo com as instruções que o garoto havia me passado para se interpretar
tragédias antigas a gente devia ficar com uma mão no próprio ombro para dar idéia de
estar segurando um pano que seria hábito daqueles tempos, então pus uma mão no
ombro e segurando o livro com a outra iniciei a leitura, segundos depois veio uma
pergunta da comissão julgadora me interrompendo:
– O que está fazendo com a mão?
Eu não sabia o que dizer.
– Asseguro que está com a mão no ombro – disseram –, mas qual o sentido
dramático de tal posição?
– É pra segurar o pano? – perguntei.
Lá debaixo eles se entreolharam e riram e cochicharam; voltei a ler e novamente
fui por eles interrompido:
– O que está fazendo com a mão?
– Minha outra mão? – falei. – Estou segurando o livro pra ler.
– Não decorou o texto?
– Não tive tempo. Ando muito ocupado.
Riram novamente e pensei que talvez usassem o riso como recurso de
descontração para os candidatos. Daí dirigiram-se ao garoto:
– Você não faz nada?
O garoto tinha-se escondido atrás de mim, devia ser sua primeira experiência
num palco e estava em pânico.
– Ele é tímido – falei.
Tímido era eu; o garoto estava muito além disso. Dessa vez a comissão
julgadora gargalhou em conjunto e fiquei com medo de que eles aprovassem o garoto ao
invés de mim só para que as coisas dessem erradas para nós dois.
– Então vamos lá – disseram –, esqueça o livro e a cena, esqueça de tuas
pretensões e que está fazendo um teste, faça qualquer coisa e seja você mesmo.
Era muito pedido ao mesmo tempo e em pouco espaço de tempo. Ficou em
minha memória sua última colocação e respondi:
– A única coisa que posso ser é eu mesmo, né? Ou não?
Eu falei sério mas talvez o que era sério para mim fosse tão banal para eles a
ponto de rirem novamente e, quando pensei em rir também, já estavam introduzindo
novo assunto:
– Tá, nos surpreenda.
Tudo que consegui fazer foi cara de plástico. O garoto ao meu lado tremia feito
vara verde.
– Qual a motivação pra isso? – perguntaram.
Sem ter resposta mantive a cara de plástico, também pensei em qualquer coisa
como as quebradas do subúrbio. Eles ficaram um pouco em silêncio e depois nos
mandaram esperar lá fora.

Tomei café e esperei e me cocei e pensei em ir ao banheiro, conversei com o


garoto e com a família do garoto, repeti oitocentas vezes para a família do garoto que eu
não tinha a menor idéia de como ele tinha se saído no teste, me cocei. Daí uma
assistente abriu a porta do teatro e veio ler os nomes aprovados, leu um por um entre
pausas e lamúrias dos presentes, numa lista de quinze pessoas o meu nome estava lá, ao
fim da leitura o garoto deu um grito de alívio por não estar incluso na lista, ele até me
abraçou e depois correu em direção à porta de saída aos pulos enquanto todo aquele
conglomerado de sua família e agregados soçobraram e os atores contratados e os
diretores artísticos que o vieram acompanhar balançaram a cabeça em negativa como
que dizendo “não falei?” e me rogaram pragas com os olhos como se eu fosse um
demônio travestido, depois foram todos embora para me odiar para o resto da vida.
Peguei mais um café e fiquei olhando a multidão de jovens reprovados irem embora,
alguns batiam as cabeças nas poltronas e nas paredes, chutavam o chão a faziam
juramentos semi-velados para toda a vida, outros protestavam contra a comissão
julgadora e prometiam passeatas, iam-se. Tomei mais meia dúzia de cafés enquanto
aguardava o prosseguimento das atividades do dia.
Daí fomos novamente organizados em função de preencher a ficha pessoal com
a secretária, em fila frente a uma saleta cada qual entrava na sua vez e a secretária fazia
perguntas digitando os dados no computador, no meu caso ficou telefone e endereço em
branco sob minha alegação de “tramitando” e, quando ela me olhou em dúvida, falei
que tinha fé de que um dia teria um quarto solo para morar, nisso creio que ela pensou
que era gracejo e me deu meio ou um quarto de sorriso enquanto eu já pensava numa
kith e quando findou seu sorriso eu já estava pensando num belo apartamento com dois
banheiros onde eu seria feliz, seja como for depois de preencher aquela ficha nunca
mais a vi.
Depois de mais um café fomos mais uma vez reorganizados e deixados sob a
incumbência de um assistente chamado Deni.

Eu já tinha ouvido a voz de Deni em forma de sussurro, quando tinha sido


“humano irracional”, ele possivelmente havia me tocado. Ele informou:
– Como é costume dizer, em se tratando de comentários de corredor, vocês estão
diante da fina nata...
Deni nos levou a passear por dentro das instalações locais, de andar em andar
conhecemos salas de ensaio e o escritório central, além de um andar inteiro destinado ao
grupo, subimos e descemos elevadores para conhecer todos espaços disponíveis ao
grupo Cafeteria, ele nos apontava prêmios e troféus, era impressionante.
Por fim Deni nos reconduziu de volta a uma sala de ensaios, nos agrupou num
canto e nos reagrupou noutro canto, nos re-reagrupou e mandou que todos sentassem no
chão, sentou-se numa cadeira e passou a fazer uma introdução sobre o que nos
aguardava:
– Disciplina é fundamental. Tem muitas coisas fundamentais, disciplina vem na
frente. Pra além de disciplina, se quiserem anotar...
Enquanto Deni falava alguns atores veteranos ao meu lado cochichavam, uns
diziam que ele era “uma comédia que não se enxerga”, outros diziam que ele “só sabe
repetir trechos de bons livros que não ficam tão bons assim em sua boca de dois
centímetros”, e ainda tinha os que diziam que Deni “não passa de capacho-mor, puxa-
saco convicto e conferente de tabuadas”, até pensei em fazer psiu para poder ouvir Deni
direito mas não quis arrumar desafetos. Deni se utilizava bastante das palavras “segundo
comentários de corredor” e comentava seus próprios comentários, dizia que “segundo
comentários de corredor vocês estarão delineados pelo futuro teatral dos próximos
séculos”, e para mim pensar em termos tão extensos no tempo era bem confortável, era
como fugir das pulgas e mesmo aquelas da minha roupa pareciam ficar mais
comportadas. Deni entre trechos de livros e a questão da disciplina também também
vivia se referindo a um tal de mestre e nesses momentos sua voz fremia em comoção,
nisso os cochichos de veteranos davam conta de dizer que “ele está procurando abrir ao
máximo sua boca de dois centímetros”.
– ...Antes de metamorfoseá-los à atores impecáveis – proferia Deni – primeiro o
mestre fará com que se tornem seres humanos irrepreensíveis...
Eu pensava formidável, vamos todos nos tornar homens dignos e atores
incríveis, é só seguir os ensinamentos do mestre de Deni.
Ao final daquele dia, saindo pelos corredores a conversar com atores novatos
que estavam ali há pouco tempo, entendi: dois centímetros era, na real, o apelido que
veteranos haviam dado a Deni: Dois Centímetros. Comentaram:
– Eles chegam na gente e perguntam: qual a propaganda caracterizante dele? É
tipo um teste. A gente tenta adivinhar e nunca acerta, daí eles dizem: é Dois
Centímetros.

Já logo ao chegar para a primeira tarde de atividades fiquei sabendo: eu estava


inserido num grupo-estepe que, “segundo comentários de corredor”, era “um imenso
passo no aprendizado” e através dele, “assim os atores nutrem esperanças”, podia-se
chegar até o grupo principal ministrado pelo mestre em pessoa nas manhãs, contudo
“segundo comentários de corredor” todo o trabalho ali desenvolvido vinha diretamente
dos preceitos desenvolvidos pelo mestre de modo que estávamos “sob a égide dos
grandes conhecimentos, segundo comentários de corredor”.
Lá estava o Deni que, além de assistente, também era ator, contudo acima dele
havia os supervisores que em nosso primeiro encontro nos deixaram bem à vontade na
sala de ensaios, eram pacientes e ouviram quem quis falar, fizeram de conta que
ouviram quando Deni falou e na frente de Deni chamavam Deni de Deni tanto quanto
todos os atores o faziam embora, pelos intervalos, quando Deni não estava presente os
atores chamavam Deni de Dois Centímetros e falavam mal dele e, se Deni chegava, o
chamavam de Deni sem falar mal dele, era como se a fama lhe acompanhasse pelas
costas aonde quer que ele fosse e eu, sabendo que poderia me confundir e chamar ele de
Dois Centímetros pela frente, preferi me manter lhe chamando de frente e pelas costas
de Deni, já os supervisores não sei se falavam algo do Deni ou de alguém, eram
discretos e ficavam em suas salas durante os intervalos.
Também nos intervalos ouvi, e até mesmo em excesso, tanto alguns atores
creditando uma série de virtudes ao mestre tipo dizendo que ele era capaz de “atualizar
nosso passado e antecipar nosso futuro” quanto outros, talvez a maioria, creditando
malefícios ao mestre tipo dizendo que “sua obsessão é por retirar nossa identidade, ele é
um monstro que odeia atores”, e de presenciar a contradição das opiniões fiquei curioso
acerca das minimizações e maximizações sobre o mestre cujo ponto em comum, me
pareceu, era o temor que por ele sentiam sobretudo aqueles que não o conheciam
pessoalmente e, também eu não conhecendo o mestre pessoalmente, pensei que querer
eliminar alguém nessa perspectiva daria mesmo um prévio medo desconhecido, seja
como for todos teriam direito de mudar opiniões ou isolar críticas.
Vários atores ao falarem do mestre utilizavam uma designação que não era
precisamente em tom de apelido, estava mais para um título que, para além do temor,
raspava entre admiração e ódio: Deus do Charuto. Contudo quando Deni estava presente
lhe chamavam apenas de mestre ou mesmo por seu nome próprio, me ficando entendido
que o mestre não gostava de ser chamado de Deus do Charuto o que também não
significava necessariamente que desgostasse da designação.
Nas atividades os supervisores começaram fazendo conosco exercícios cênicos
mais individuais semelhantes aos exercício de aquecimento que tivéramos feito durante
o teste, e para encerrar fizemos movimentos individuais em câmera lenta, depois fomos
dispensados sem ter feito uma unicazinha cena.
Infelizmente a partir da segunda tarde tudo ficou restrito exclusivamente à
câmera lenta que a cada dia foi ficando mais lenta, e em coisa de uma semana sequer
andávamos nos sendo exigido que parados fizéssemos o mínimo de movimentos, a
respeito disso os supervisores disseram:
– Toda base da atual fase consiste em aprender a andar, pra isso primeiro
devem desaprender, pra desaprender devem primeiro aprender a ficar em pé.
Eu já tinha ficado em pé muitas vezes, esperando alguém ou algo, só matando
tempo, no fundo tinha certeza de que sabia ficar em pé, contudo se era para ficar em pé
eu ficava em pé.
– É mais difícil – diziam os supervisores – desaprender que aprender.
Cada um pode ter opinião sobre cada coisa, vários podem ter opinião iguais
tanto quanto vários podem não ter opinião, e na minha opinião estávamos muito
devagar e quase parando, seja como for em termos de acontecimentos após mais
algumas tardes os supervisores nos disseram: ainda haveria eliminações a partir da
análise de nossas atuações.
Pela sequência a cada tarde atores passaram a ser convidados para a saleta e dali
saíam dispensados, ao sair davam várias justificativas tais como o fato de não terem
sido encaixados em projetos e garantiam que sua dispensa tinha sido feita gentilmente
sem qualquer negativa de que fossem maus atores; contudo aqueles que ficavam diziam:
Eles foram dispensados porquê não sabem ficar em pé.
Não sei se desaprendi alguma coisa suficientemente ao critério dos supervisores
mas, por cargas d’água deles, certo final de tarde vieram me dizer que eu seria
encaminhado ao grupo principal, assim a partir do dia seguinte deveria comparecer
durantes as manhãs.
Quando eu já estava esperando o elevador para descer passou o Deni que,
embora não o fosse pegá-lo, me disse que também participava do grupo principal e
inclusive mencionou qualquer coisa como “sumidade divina aclamado por críticos,
mitificado pela classe e ovacionado por um seleto público que faz cursos pra
compreender melhor seus espetáculos”.
Ele podia exagerar um pouco menos, evitaria tanta falação a seu respeito.

Portanto chegando de manhã para o primeiro dia junto ao novo grupo logo
fomos por Deni recebidos que, após nos levar para dentro teatro e nos indicar a platéia
para sentar foi também sentar-se numa poltrona da primeira fila. Fiquei sentado mais
atrás e ao meu lado veteranos fizeram velados comentários carregados de ódio a
respeito do mestre. O problema do ódio é jogar para fora.
Quando o mestre chegou foi acompanhado de sua namorada, uma moça bem
mais nova do que ele e que me pareceu um tanto desorientada com dois olhos tão
afastados um do outro que parecia jamais estar concentrada no que quer que fosse. Após
subir no palco o mestre acendeu seu charuto e passou a fazer uma bélica dissertação de
gênio enquanto sua namorada, ao seu lado no chão do palco, de vez em quando dava o
ar da sua graça soltando uma espécie de suspiro sonoro:
– Ahrrr!
Um sonoro acima do que seria um suspiro normal, e dali para cima. Dependendo
da altura do suspiro o mestre entrecortava sua dissertação e inclinava-se para ela, os
dois conversavam um pouco em voz baixa e depois o mestre voltava-se para nós e
reiniciava a dissertação. Estou contando dessa forma que é para encurtar.
– Ahrrr!
O mestre parava, debruçava-se para a namorada, discutia um pouco com ela,
depois voltava:
– Muito bem...
O que o mestre mais demonstrava em sua dissertação era o envidraçamento de
valores, apesar do válido tema não gostei do seu tom e isso levou quase toda manhã,
quando ele terminou:
– Muito bem, agora vocês ficarão a cargo do Deni.
– Ahrrr!...
O casal ainda embaçou mais um bocado antes de ir embora, discutindo frente ao
corredor da platéia sob a aquiescência de todos como se aquilo fosse parte da etiqueta
da casa. Após saírem alguém ao meu lado disse que o mestre só parava de discursar
quando concluía que seus cabelos e barba e unhas já tinham crescido o suficiente, nem
fiz questão de ver quem era.
– Muito bem – disse Deni –, todos de pé. Todos aprendendo a ficar em pé...
Nesse momento faltava coisa de meia hora para o fim do expediente, os
supervisores já estavam se retirando mas Deni queria nos adiantar o ensino, ficamos em
pé no corredor ao lado das poltronas e pensei nas atrizes em suas malhas apertadas bem
como nos intervalos e banheiros limpos em todos os andares, também havia o café e
rosquinhas e coisinhas crocantes que elas comiam. Ouvi Deni:
– Vocês não sabem como ficar em pé...
Deni nos monitorava com determinada severidade. Não estava nada convencido
de que a natureza e nossas mães tinham feito um bom trabalho. Para encerrar ele disse:
– Estamos iniciando o aprender a andar.

Nesse grupo principal havia mais supervisores do que no grupo-estepe, numa


sala de ensaio eles acompanharam o aprender a ficar em pé dos novatos e, quando
concluíam que alguns não estavam conseguindo ao mínimo, determinavam que eles
deviam sentar para observar antes de tentar de novo, se um novato ficasse sentado três
vezes e não aprendesse a ficar em pé era convidado para ir até a saleta onde era
dispensado.
A seguir os supervisores determinaram que os novatos deviam começar a
aprender a andar sem querer, quando concluíam que alguns não estavam conseguindo
ao mínimo determinavam que eles deviam sentar para observar antes de tentar de novo,
se um novato ficasse sentado três vezes e não aprendesse a andar sem querer ao mínimo
recebia o convite para ir até a saleta onde era dispensado.
Os atores veteranos frequentemente faziam atividades em outra sala e por vezes
vinham nos mostrar como era andar sem querer, contudo Deni sempre estava presente e
sendo de um estágio à nossa frente vivia nos falando que dentre as técnicas para andar
sem querer devia-se “manter os joelhos frouxos e tomar cuidado com os ombros”, ele
podia nos acompanhar mas não nos convidar para ir até a saleta para nos dispensar, à
certa altura passou a sentar por conta própria e nisso alguns novatos também passaram a
sentar por conta própria sendo que destes alguns foram convidados à saleta e
dispensados e, por resultado, os novatos presentes comentavam: O Deni sabe ficar
sentado do modo correto.
Eu sentia falta daquele primeiro teste grupal que tivera feito antes de entrar ali,
agora ao invés de tocar alguém eu é que eventualmente era tocado e sempre pelo
próprio Deni em momentos do aprendizado de andar.
– Fique parado – ele dizia.
Eu ficava parado; ele ajeitava meus ombros e dizia:
– Agora ande com os joelhos frouxos, e cuidado com os ombros.
Eu andava com os joelhos frouxos e sem querer, preocupado com os ombros.
– Não está mau – ele vaticinava. – Mas tem de melhorar. Olhe como eu faço...
Ele andava do jeito mais ou menos correto, às vezes ao seu lado surgiam
aplausos.
– Agora ande – ele ordenava.
Eu andava novamente tentando fazer do jeito dele e, ele:
– Não está mau. Mas teus ombros.
– O que há de errado com meus ombros?
– Você tem de resolver a questão dos teus ombros, senão nunca chegará a ser
ator.
– Oh...
Deni nunca me disse o que eu devia fazer com os ombros, apenas que devia
resolver a questão deles e com olhos sobranceiros me dizia para que eu não desistisse
porquê um ator devia se superar no decorrer da longa jornada, então eu fazia cara de
coitado e tentava andar de novo.
– Teus ombros estão cada vez piores.
– Sinto muito, Deni. Acho que me falta alguma coisa.
– Ser ator não é pra qualquer um...
Nos intervalos tomávamos café e alguns novatos enalteciam as regras e verdades
ali ditadas bem como outros delas reclamavam, com regras e verdades em choque eles
contudo não entravam em choque entre si. Eu tinha várias dúvidas sem respostas como
se meus ombros estivessem carecendo de cabeça, por falar neles nunca acreditei que
tivessem algum problema e, quanto a aprender a andar, entre a pensão e o Cafeteria eu
ia a voltava à pé, era uma caminhada de muitos quilômetros e mesmo me faltando
muitas coisas tal como um tênis novo eu não tinha dúvida de que sabia andar, seja como
for tentava do modo deles e como nunca me mandaram sentar bem como
particularmente nunca sentei por conta própria ia andando de joelhos frouxos sem
querer, eu só sentava quando eram reunidos novatos e veteranos para o comparecimento
do mestre que fazia discursos depois dos quais após ele sair os tons variavam com
alguns novatos cochichando “porquê aqui é preciso nascer de novo” e alguns veteranos
que “porquê é preciso morrer mais uma vez”, já Deni estimulado pelas palavras do
mestre dava nos intervalos extensas aulas teóricas repetindo as mesmas coisas que o
mestre havia dito e daí que os novatos nada diziam enquanto os cochichos dos veteranos
variavam em palavras, “repetindo mantras decorados feito ventríloquo preso ao
cabresto”, “na redoma do totem pelo fabulário de enxertos”, depois ao voltar a andar por
aquela estrada me era cada vez mais difícil evitar a idéia de que ela não seguia adiante e
ao contrário parecia voltar para antes do ponto de partida, mas na ânsia de tirar o pé da
lama eu seguia e quando o mestre chegava para mais um discurso eu me sentava.
Os discursos do mestre podiam se dar em até mais de dois por dia e muitas vezes
envolviam seu elaborado sistema de ensino no qual ele apresentava como uma de suas
grandes referências “a simplicidade dos antigos índicos” embora, para nossa leitura, ele
não indicava uma única obra do antigo índico mas sim uma série de autores embasados
em embasadores sobre antigos índicos e a partir dos quais suas versões verbais os
tornavam incompreensíveis levando nos intervalos e longe do Deni alguns veteranos a
dizer que o mestre pessoalmente nada tinha a acrescer mas sim suas referências de
leituras complexas “feitas por teses de terceiros e quartos que não significam nada do
ponto de vista prático, apenas delineamentos com presunção silogística e, quem quiser
uma cratera no encéfalo, tem seu dêmodê direito”, outros diziam que o mestre “nunca
menciona os originais porquê diante deles se sentiria inferior e isso atacaria a base de
sua frustração” e já os que defendiam o mestre diziam, inclusive perto de Deni, que o
mestre “não faz tais menções por excesso de respeito preferindo a categoria radical do
verbo em forma de proteção” ao passo que outros diziam que o mestre “evita mencionar
pra não interferir em nossas opiniões ou traumas”, já eu se em minhas crateras a respeito
do Cafeteria não identificava naquele prédio sem pulgas nenhum desespero com o qual
pudesse me corresponder ao menos quando li uma obra original desses antigos índicos
senti algo de sossego o que não era, sem dúvida, a natureza do mestre que, para além
dos seus discursos, quando vinha conferir o andamento do nosso aprendizado em si
enquanto tentávamos aprender a andar ele se utilizava por preceito os berros:
– O caminho é árduo! Fique tranquilo!
A gente ali tentando andar sem querer e praticamente sem andar e sem vontade
própria nem nada e só tentando manter-se naquele estado autômato, e ele berrando:
– Fique tranquilo! Fique tranquilo!
Longe da presença do mestre e de Deni alguns veteranos murmuravam pelos
cantos “haja paciência...”, outros o difamavam tanto quanto outros o exaltavam, na
divergência os novatos iam buscando se colocar e aos meus ouvidos o dilema entre
detrações e elogios era um exercício a mais sendo que na sala do café o esforço se
dobrava e, caso o mestre soubesse do que tanto falavam a seu respeito sem sua
presença, em geral mostrava-se de um modo que nada lhe atingia a não ser quando, aos
desabafos, falava sobre ter perdido atores para a tevê ou cinema de modo bem ranzinza
ocasiões em que dobrava o excesso de rédeas e cobranças sobre nós e particularmente
sobre os veteranos inclusive os xingando ao alegar não serem capazes de efetuar
devidamente suas “incorporações cênicas” no que eles mantinham seu auto-controle
sem reagir, estes estando por ali há um bom tempo embora já tendo recebido bons
personagens em montagens contudo reclamavam entre si que mesmo durante as
temporadas tinham sido pelo mestre atacados como se nunca estivessem devidamente
preparados para subirem no palco e que, ainda mais ataques recebiam, justamente
aqueles que estavam se direcionando para outras áreas tal como justamente a tevê ou
cinema, e eu mesmo querendo me tornar “ator definitivo” já estava pensando que não
teria tanta resistência à humilhações contudo, uma vez que comigo o mestre não mexia
muito, ia levando.
Todos me viam como um caipira e eu contribuía com eles, e o mestre
particularmente me chamava, não diretamente mas em forma de comentários sem foco
que eu sabia que era para mim, de “mascador de capim”, diante disso eu nem dava sinal
de vida não querendo me expor como ele, eu tinha um chão que ninguém ali conhecia e
mesmo que ele soubesse de minha origem pela minha ficha o significado de suas
palavras, “mascador de capim”, era só uma projeção de preconceito que não sendo
dirigido diretamente tinha a casca de anti-preconceito, seja como for não havendo
motivo suficiente para mim brigar com ele eu interpretava personagens ausentes e
observava sem saber que observava.
A gente dava um duro danado para andar sem querer e pelo quê nos corredores
Deni e alguns atores diziam que somente após ultrapassarmos aquela barreira “ao
mínimo” é que alguns poucos de nós seriam selecionados para aprender algumas outras
coisas mais, isso aumentava consideravelmente as hipóteses que os novatos faziam pelo
fato de que raramente se atingia a perfeição das “caminhadas” cênicas e alguns após
terem visto outros serem carregados para o hospital com convulsões devido ao esforço
feito iam tomando partido fosse de aversão suprema e dissimulada pelo mestre ou
chamando os hospitalizados de fracos, para ajudar na polêmica os veteranos longe do
Deni diziam que “haverá um motim de atores em proporções dantescas” ou que “temos
de retribuir às contribuições cafezistas”, já eu tinha de concordar que estando ali por
vontade própria talvez o ambiente me servisse em termos de auto-conhecimento que,
por falar nisso, não era opinião do mestre a quem o ator não precisaria de uma série de
coisas pertinentes ao ser humano justamente em prol de se tornar ser humano
irrepreensível e nesse sentido, embora nos exigisse o aprofundamento intelectual das
leituras, para simplificar seu método ele não raro nos dizia com todas as letras, e sempre
gritando:
– Ator é gado!
Daí a gente andava um pouco, tentando fazer do jeito que devia ser, e de repente
levava um susto: o mestre gritando no nosso ouvido, ele chegava de surpresa com seu
“Ator é gado!” e aqueles gritos inesquecíveis por vezes eram seguidos de premissas
incríveis baseadas num reformular que pelo jeito não ia acabar nunca, daí era só ele sair
da sala que o Deni fazia o seu próprio discurso e inclusive alegando que aqueles
chiliques do mestre era um “jogo” para “acordar” os atores e torná-los mais humildes e
atentos, que no fundo o mestre era um “derrubador de muros” tendo um passado
vincado na “liberdade interpretativa” e no “real aprumar de atores” entre como coisas
mais do mesmo naipe, nisso veteranos olhavam para ele demonstrando visivelmente não
lhe ouvir e alguns cochichavam que ele estava “aumentando a cauda do mito”.
O mestre sempre chegava com sua namorada a tiracolo e comentários de
corredor garantiam ser ambos chifrudos, aquela moça não fazia nem dizia nada e à mim
não dava tesão nem aversão, ela nunca levava bronca e sem parecer gente como nós
outros era só de vez em quando ensaiava uns passos de balé, uns dois ou três passinhos
para lá mais uns dois ou três passinhos para cá e pronto, daí ficava ao lado do mestre
feito ornamento quando ele estava sentando ou assistia sentada quando ele resolvia em
pé berrar duas frases ou uma manhã toda no ouvido de um ou vários atores chegando
mesmo a ficar possuído por um histerismo incontrolável embora também fosse capaz de
tecer elogios com mínimas palavras que por sinal eram muito melhor guardadas devido
ao menor volume e, se os atores diziam pelos corredores longe do Deni que ele era
cheio de “muito aborrecimento em relação aos atores e lisura a si mesmo” ou perto do
Deni que ele era “capaz de com um pequeno elogio gerar estímulo duradouro”, eu
achava que o mestre por mais que fosse taxado de deus era humano contudo chato,
contudo um chato genial contudo chato, e por demais intrometido sobre seus “atores-
gado”.
O mestre dizia que as técnicas estavam acima de tudo e que, sendo as técnicas a
base de seus princípios, tudo começaria com qualquer coisa como o “anti-sobrenatural”
por meio de esgotantes exercícios e esforços pessoais, depois se iria para o “pró-real”
em mais um exaustivo trabalho por ele acompanhado de perto até tudo findar numa
outra palavra cujo significado seria altamente “transcendente”, uma experiência de
altíssimo nível por iluminação tântrica, para acréscimos de conhecimento bastava os
intervalos para que veteranos ironizassem, sempre longe do Deni, que quanto mais
distanciado do “anti-sobrenatural” mais era necessário maquiagens e cenários bem
como mais luz e trilha sonora e que, no tocante ao “pró-real”, o resultado era atores sem
presença pessoal e sem sombra do que podiam ser e que, em relação ao “transcendente”,
era quando o mestre atingia seu máximo como manipulador de marionetes à exceção
que usava atores no lugar de bonecos mas que, “é preciso que se diga”, ao fazer isso era
excepcionalmente competente. Certa vez o mestre falou sobre “reconceituar situações
inalienáveis” logo a seguir mencionando “acima do bem e do mal” e lá fora seus
discípulos disseram que ele tinha falado sobre tanto sobre o caráter quanto sua
superação e, noutra ocasião, ele ao mencionar “índole” a tratou como absolutamente
dispensável no que lá fora seus discípulos disseram ser o modo da superação em si,
ainda noutra ocasião ele ilustrou seu raciocínio lendo o release de um de seus
espetáculos em que os personagens principais de referências-modelo eram dotados de
basicamente indiferença e enquanto lia o Deni quase teve um orgasmo na cadeira e, lá
fora, o Deni me confessou algo como “pro deleite de uma platéia iniciada dentro de um
elevado conceito metalinguístico!” Alguns veteranos longe do mestre e do Deni diziam
que o misterioso método que o mestre tinha desenvolvido ao largo de décadas de
intensas pesquisas teóricas e práticas resultara no conceito “anti-anti” já que o mestre
tinha a mania de dizer que os atores deviam apagar da cabeça tudo que pensavam a
respeito de interpretação antes de ali chegar, já os mais práticos diziam que qualquer um
ali poderia adequar, sigilosamente, o seu próprio modo de interpretar junto ao “anti-
anti”, e eu particularmente considerava que meu trabalho como ator no passado não era
da conta do mestre e inclusive já estava considerando que meu trabalho como ator no
presente não seria da conta dele.
Longe do mestre alguns veteranos também o xingavam e seus palavrões eram
piores do que os que o ele usava, eles falavam horrores de modo imensamente mais
ofensivo que tudo que eu pensava de pior do mestre embora o que eu pensava me
atormentava porquê não dizia a ninguém, outros veteranos diziam que a ranhetice do
mestre era defesa de sua vaidade e que ele era ninfomaníaco e masoquista, outros
diziam que não sendo possível dividir o mestre pagavam pelo seu melhor lado o preço
do pior e outros o viam apenas como sofrida piada que não gosta de risos; contudo se
eles só falavam mal do mestre longe dele ao passo que na presença dele seus olhos
jamais espelhavam isso seria também trabalho de ator, alguns estavam esperando
personagens prometidos embora o mestre, imprevisível, podia levar ainda meses para
começar a lhes ensaiar ou mesmo não começar nunca, quanto a nós novatos até então
nem um aceno dele rumo a qualquer pequeno personagem para quem sabe assim chegar
até a tevê embora isso não me fizesse odiá-lo tanto quanto não o odiava quando por
vezes ele se comportava de fato como um deus o que para mim era só um personagem
fazendo suas performances dentre algumas boas e outras péssimas e, quanto às
péssimas, eu não gostava de seus gritos e sobretudo os de “Ator é gado!” que,
infelizmente, ele os repetiu tanto que a certa altura isso passou a me exasperar, julguei
que ele tinha o direito de defender seus princípios numa boa e não com gritos porquê só
uma vez, susto, só duas vezes, susto, um milhão de vezes, sobressalto, pânico, paranóia,
assim aqueles gritos tão estridentes foram me dando nos nervos até me levar a um ponto
em que além da sua voz eu também já estava querendo encomendá-lo por inteiro ao
inferno.
Se o asco vence, a gente não pode fazer nada, e quando passei a desprezá-lo foi
uma ebulição contra seu jeito e sua existência para além de qualquer animal ou pessoa
ou objeto ou estação do ano ou planta que já houvera me ferido em minha vida
precedente, para mim ele era exatamente um homem mesquinho e eu queria um
distanciamento daquele lugar mas, por teste, queria saber se suportava mais até que ele
me tirasse dali e, antes disso, também poderia desprezar mais adequadamente alguns
atores-lacaios que se permitiam ao sórdido como o Deni e outros capados, eu queria no
desprezo de todo coração a seleção das espécies e enquanto estivesse fazendo isso teria
de aguentar os gritos chegando aos ouvidos.
Por um momento admirei meu silêncio, no momento seguinte ele me mostrou o
quanto estava me odiando.

10

No final da décima ou vigésima semana o nosso mestre apareceu de supetão com


sua namorada vesga, disse que o dia seria diferente e que devíamos nos preparar:
– Vocês vão conhecer uma atuação de verdade.
Daí ambos saíram e ficamos nas mão do Deni que, após falar por meia hora algo
que não lembro, nos levou para um teatro menor que ficava no sétimo andar, uma vez
dentro dele vimos o mestre numa poltrona da primeira fileira e nos sentamos em
poltronas da segunda fileira para trás.
Quando no palco se acendeu um foco ficamos por coisa de meia hora ouvindo
uns gritos da vesga na coxia, depois do último grito ela entrou em cena e ficou embaixo
do foco.
– Pode começar – autorizou o mestre.
A moça tinha se encharcado com tanto perfume que uma névoa saía dela e ia se
desfazendo foco afora, ela começou a fazer uma cena muda com pausas e expressões de
boneca inflável.
– Ela é atriz e bailarina do grupo – me cochichou um veterano ao lado. – Ela está
em crise porquê os críticos nunca mencionam seu nome.
Quando a moça começou a falar foi um texto de colagens avulsas, “o
exemplarmente discursivo do evasivamente perfeito”, “o estacionar a circulação no
pressuposto da pressuposição”, “o tal do tao tantamente necessário” e “o ódio mútuo
que fez o amor privado parar na privada”, e enquanto ela falava o veterano me
cochichou:
– Ela está experimentando seus efeitos através de nós, busca segurança pra
atingir os críticos, e tanto perfume também faz parte da experiência em chamar atenção
dos críticos.
A moça seguiu na sua base por coisa de meia hora até que o mestre empertigou-
se e subiu no palco onde desenvolveu com ela uma espécie de diálogo, “o clímax do
purgante só fala abobrinha”, “seu ideofrênico que só desce sarrafo”, “o ser humano é
machista desde que era macaco”, “a pilastra apedeuta não vem ao caso”, “teu simpósio
minimalista versus o giro da minha meca”, “aí tem” e “como não?”, ambas as
expressões variavam entre indiferença e agressividade e, de repente, começaram a falar
numa língua estrangeira.
– Entende? – me cochichou o veterano. – O mestre já disse várias vezes que
nossa língua não atinge flexões de impacto que outras oferecem. Durante a ditadura ele
só montou autores estrangeiros sem qualquer conteúdo arriscado, nunca teve problemas
com a censura. E sabe o que estão falando agora? Sobre a carruagem que ainda não
chegou por causa daquele livro debaixo da cama naquele dia daquela paquera descarada
que gerou aquela traição imperturbável, que um tiro no peito dói menos que meia hora
de vida contigo só compensada por tanto chifre cheio de osculação inesquecível. Estão
se denegrindo, entende?
O veterano entendia a língua que o casal falava, ainda fez algumas traduções aos
cochichos enquanto eu reparei na moça queimaduras redondas nos braços que aliás
eram as únicas partes visíveis de seu corpo já que costumava usar roupas mais fechadas,
para mim aquelas queimaduras pareciam marcas de charuto; quando em cena os dois
pararam de falar se beijaram na boca por alguns minutos numa posição em que
pudéssemos ver os olhos dela bem abertos que, sendo tão afastados um do outro, talvez
pudesse ver os dois extremos da platéia, naquele momento era basicamente uma boca
sendo beijada e dois olhos olhando quem olhava o beijo até que, ao final do beijo:
– Naná... – ele disse.
– Nenê... – ela respondeu.
Então ficaram os dois nos olhando em silêncio reprovador como se tivéssemos
uma séria dívida para com eles, isso deve ter durado pelo menos uns dez minutos e daí a
moça passou a fazer uns movimentos de ampla gesticulação, a partir de certa altura ela
em movimentos voltou a dialogar com o mestre de novo em português com um
conteúdo basicamente de ordem íntima, “aquela noite teve açoite”, “foi aquele cara não
tirava os olhos de você?”, “foi popurri anal em luau”, “o dele era tão maior assim?”,
“não está com dó de mim?”, “tenho compromissos atropelados por ser mau-
acostumado”, “hoje só amanhã pra temporã”, “agravantemente lá na frente”, “rufião põe
a mão na concisão”, num dado momento de novo se beijaram na boca por alguns
minutos.
– Naná...
– Nenê...
Após o beijo de novo nos olharam com grave reprovação e depois a moça foi
para a coxia no que o mestre passou a fazer um longo discurso, a partir de certa altura
dormi na cadeira e sonhei com as ascensoristas dos elevadores locais junto da secretária
local, daí acordei com o barulho das palmas dos atores e bati palmas, parei de bater
palmas e as palmas continuaram no que voltei a bater palmas, quando Deni parou de
bater palmas todos pararam.
O veterano ao meu lado cochichou que estava cheio de bater palmas para essas
coisas, ele se manteria ali por mais um período e futuramente eu o veria na tevê, já eu
não queria entender mais nada e sentia coceiras que iam além das pulgas, eu não tinha
nenhum plano de momento e apenas uma decisão.
Então esperei os atores saírem platéia afora e me aproximei do mestre enquanto
ele acendia um charuto, lhe falei:
– Vou sair.
Ele baforou a fumaça do charuto na minha cara, me olhou com a sobrancelha
içada e retrucou:
– Ok. Minhas oratórias sempre atingem afoitos. A porta está aberta, serventia da
casa.
– Tá – falei.
Sua namorada veio da coxia e tinha se encharcado com ainda mais perfume, me
deu uma olhada com profundo desdém e encostou-se no mestre dizendo “Nenê”, o
mestre falou “Naná” e de novo se beijaram na boca, assistindo o beijo pensei que já
fazia tanto tempo que eu não beijava que nem lembrava qual tinha sido a última garota,
como aquele beijo ali pelo andar da carruagem não tinha pressa para terminar enfiei a
mão por dentro de minha roupa forrada de pulgas para as ir tirando em unidades de
modo a fazer tanto seu julgamento quanto sentença e execução, uma a uma foram sendo
esmagadas com minhas unhas e, se aqueles dois idiotas desgrudassem suas bocas para
dizer que o vermelho de minhas unhas era esmalte, eu dava na cara dele só para ela
sentir ciúmes, por um momento pensei em lamber as unhas para repor um pouco do
meu sangue mas desisti da idéia e logo também desisti de continuar o massacre de
pulgas, fiquei assistindo o casal e pensei que afinal era um bom beijo embora longo no
que inclusive passei a pensar em diversas coisas que não lembro, como o beijo
continuava pensei sobre o mestre e pensando foi como se estivesse falando com ele:
“Te acho por demais teórico, e mesmo quando chamam o que estamos fazendo
de prática só vejo teoria. Você me chamou de mascador de capim, chama teus atores de
gado, se fosse o caso até bovino tem sensibilidade. Eu tenho certeza de que teus atores
nunca vão te chamar de Deus do Charuto pela frente, se você ouvisse entenderia muito
deles pelo tom de voz. Os atores que aqui prosperam são capazes de serem ofendidos
sem sentirem-se ofendidos, você pode dizer que ofensa é parte de teu método mas
qualquer um pode dizer que talvez não se julgue ator capaz de avanço de modo que se
vinga disso neles, de qualquer modo você como diretor me parece um ator enrolão e
vive testando um sistema sem fim pelo qual fala demais, então falo um pouco em
silêncio e aposto que os demais atores também falam em silêncio, todos porta-vozes de
todos te desprezam em silêncio e você dá o troco em todos incluso você próprio. Fique
aí. Eu vou.”
Quando eles terminaram o beijo:
– Naná...
– Nenê...
Riram para mim feito hienas, seus olhos não estavam no mundo que eu
conhecia. Dei os ombros e saí dali o mais rápido que pude.

11

Tão logo saí porta afora vi Deni no corredor me aguardando, ansioso queria
saber das notícias. Eu, que ainda tinha a cabeça no último ato, lhe falei:
– Estou indo embora.
Deni tinha seus impulsos, ficou até alterado:
– Você quer perder a grande chance da tua vida?!
Minha vida nunca foi da conta do Deni nem de ninguém naquele prédio, mas
não é fácil se livrar de pessoas como o mestre e sendo Deni uma extensão dele no
caminho da despedida havia essa pedra:
– Não! Pelo devir, não seja uma sombra na escuridão! Se hoje você se excedeu
pode fazer outro teste!, se arrancar de dentro e se reencontrar!, e digo isso porquê outro
dia ouvi o mestre dizendo que você tem chance!
Deni tinha mania de voltar para ir. Fui andando pelo corredor com ele atrás
falando, por um momento me perguntou se eu queria me tornar um “bípede bestificado”
e como nada respondi ele seguiu na sua questão:
– E pra aproveitar tua chance você tem de parar de mediocrizar com marcação
de touca!, tem de tirar as minhocas da cabeça pra tirar a barriga da miséria!, de cabeça
feita deixa de ser um nenhumamente!
Ao chegar frente ao elevador apertei o botão de chamada comentando que ele
tinha técnica vocal apurada e planeava cada sílaba, ele continuou falando e comentei
que também era importante dar alguma atenção ao significado do que dizia, ele
continuou falando e quando a porta do elevador se abriu nele entrei, pensei no bom de
haver no mundo tantas portas.
A ascensorista do elevador tinha uma boca perfeita que nem usou para me
perguntar se eu ia descer no térreo, ela usava uniforme com tons vermelhos e no
momento só havia nós dois no elevador, em questão de segundos pensei que poderia ser
sete andares na sua companhia mas quando a porta do elevador foi se fechar ouvimos lá
fora:
– Descendo?
Eu conhecia aquela voz e logo em seguida seu intruso dono entrou, o Deni:
– Descendo, né?
A porta se fechou e agora, já sendo impossível uma particular e romanesca
descida com a ascensorista, ainda por cima fomos ouvindo Deni a me falar:
– Ao menos mais uma grande chance na tua vida você pode ter, basta se auto-
aturar. Digo isso na propriedade de quem, se já estudou a técnica de... e já fez cursos
de... desde que entrei aqui descobri que nada sei, estou recomeçando a aprender de
verdade... Ou por acaso você acha que também não tenho problema com os ombros?
Tenho, mas já muito conquistei pra ele, e o próprio mestre disse que meu ombro está
evoluindo. Meu maior problema são os joelhos, não consigo mantê-los por muito tempo
frouxos, fico tonto...
Deni andou um pouco dentro elevador para demonstrar como era andar do jeito
mais ou menos correto, ao meu ver seus joelhos estavam bons mas eu não ia debater a
questão; depois Deni pegou no meu braço para perguntar se eu tinha entendido como
era andar do jeito mais ou menos correto e educadamente lhe falei:
– Tira a mão do meu braço.
Deni tirou a mão do meu braço e chegamos ao térreo, fiquei esperando Deni
desembarcar na frente para que eu tivesse o privilégio de olhar a ascensorista pela
última vez mas Deni não arredava o pé dali e, ainda fez questão, volteou as mãos num
trejeito cavalheiresco para que eu saísse na frente, então a contragosto desci e fui
andando pelo corredor rumo à saída do prédio, pensei que ao menos estava terminando
sem ossos quebrados e pensei mais um pouco na ascensorista, então ouvi:
– Ei, espere aí! Que pressa é essa? Se aqui você ainda não nasceu significa que
também não morreu!
Que sarna. Deni me alcançou e andando do meu lado do jeito mais ou menos
correto foi falando justamente sobre o jeito mais ou menos correto de andar, quando
saímos para fora do prédio ele seguiu do meu lado andando do jeito mais ou menos
correto e ainda falando do jeito mais ou menos correto de andar enquanto pensei que se
nunca tivesse entrado naquele prédio não teria visto a bela ascensorista do elevador,
quando Deni mudou de assunto foi influenciado pela discussão entre seu mestre e a
vesga:
– Um tiro no peito não dói nem um minuto de vida.
Pensar na ascensorista do elevador chegava a me ferir mas não de modo
doloroso, eu nunca mais a veria mas isso também não seria motivo de dor.
– Apenas uma derrota é pouco... – Deni ia falando.
– Tudo começou com a fome – comentei.
Eu estava com um pouco de fome e Deni se envolveu na questão, falou que a
fome seria a maior cumplicidade entre todos e sobre ser o medo da fome maior que o da
morte, depois me perguntou se o que tinha dito era clichê e como eu não sabia se era
clichê lhe falei que não sabia se era clichê, pensei que na pensão minha marmita devia
estar pronta e perguntei ao Deni aonde ele estava indo, ele disse que ia para uma estação
de metrô próxima e então paramos numa esquina na espera do sinal abrir, a estação do
metrô para onde Deni ia estava no percurso da longa caminhada até a Vila Egressa mas
eu podia evitá-la mudando o trajeto para uma quadra a mais, nesse momento Deni
colocou sua mão meu braço para declarar:
– E se um dia você ficar famoso não se esqueça que deve isso a nós.
Achei que Deni devia entender a diferença entre dentro e fora do prédio do
Cafeteria e, baixando os olhos para o chão, tanto pedi quanto avisei:
– Tira a mão do meu braço, senão vou quebrar tua cara.
Imediatamente Deni tirou a mão do meu braço e a escondeu atrás de si; para lhe
dar mais um auxílio falei:
– Tem gente que, só de você olhar na cara, arranca tua língua, no melhor dos
casos manda você sair andando sem olhar pra trás. Mas o ambiente que você frequenta é
diferente. Eu acho que, se você por acaso ouvir alguém usar o termo Dois Centímetros,
não vai saber ao certo como agir devido ao ambiente. Se o corpo acompanha as
palavras, existe comum acordo. Nesse momento me disciplino pra afugentar instintos,
farei uma inversão e serei eu a sair andando sem olhar pra trás, mas vou andar do meu
jeito.
Dei os ombros e segui por uma quadra a mais. Nunca mais vi o Deni
pessoalmente e por um período cheguei a ler seu nome em algum lugar até que nunca
mais.

12

Finados era o único dia em que a cidade praticamente parava; na pensão nem se
fazia refeições. Falando alto no meio da rua eu imaginava o dia em que pudesse alugar
um quarto solo para poder cozinhar lá dentro e falar alto, quem sabe nele receber a
visita de alguma garota bem viva.
Por falar nisso eu estava perto da farmácia, fui até lá e conferi que estava de
plantão, subi na balança e a morena por detrás do balcão me falou:
– Teu peso está legal.
Levemente olhei sua compleição, ela tinha braços e mãos firmes, nariz angular e
olhos negros abaixo de sobrancelhas fortes. Atrás dela o cartaz com anúncio vencido
tinha sido retirado da parede, lhe falei:
– Estive aqui algum tempo atrás, pensei que um cartaz era pista.
– Tipo presságio? – ela era rápida, olhos rápidos acompanhavam boca rápida. –
Hoje é feriado e isso pode ser bom presságio, fecho às cinco.
O balcão nos separava e a distância aumentava o desejo. Eu havia curtido à beça
quando ela subira a escada para apanhar um veneno contra pulgas na prateleira, agora
curtia sua rapidez em falar:
– Tem quem acredita em mortos interativos e tem quem diz que toda morte é
muda, tem quem fecha a tampa dos túmulos. O amor é interativo e não se fecha.
Pensei que podia ir até o distante shopping da avenida Capital para ver se estava
aberto, mas lembrei que lá o pessoal da segurança já me conhecia de visitas em seus
banheiros. Ela estava sorrindo e falou:
– O amor é único porquê não sabe copiar.
Ao meu ver ela podia ter entre dezessete a dezenove anos, se assim fosse teria
cara da sua idade, pensei em lhe perguntar a respeito mas a timidez me impediu. Botões
faltavam na minha camisa e os tênis gastos nas laterais das solas me deixavam torto; ao
menos as meias furadas não daria para ela ver.
– Daqui a pouco vai dar cinco – seu rosto era sugestivo –, vou tomar umas na
descontração, curtir coisas intrínsecas.
Talvez ela conhecesse algum boteco aberto, ou então ia beber em casa. Desci da
balança e saí andando com os pés fora do prumo; seria outro dia que faria meu desfecho
particular por aquela morena que nunca mais vi.
II – Os dois lados da cidade

Eu havia arranjado um trabalho de torneiro mecânico numa fábrica de balanças


para gado na zona boreal, próxima àquela mesma pensão que morava. Eu tentara, em
várias empresas próximas, conseguir trabalho de eletricista e inclusive apresentando
diploma, todavia não encontrando esse cargo à disposição me adequei ao de torneiro o
qual embora não tendo diploma por não ter terminado o curso era suficientemente
qualificado aos propósitos da fábrica.
Uma vez adaptado à essa rotina, em dias normais de segunda a sexta-feira,
passei a nos dias de folga me aplicar em prol da carreira de ator com o intuito de crescer
paulatinamente até me tornar exímio, ia nas bibliotecas consultar jornais e me inteirando
sobre os coquetéis da noite neles comparecia na tentativa de fazer contatos pertinentes e
claro que também para beber de graça.
São muitos os casos de gente que vive bebendo de coquetel em coquetel sem
conhecer ninguém nem ter recebido convites formais, boa parte não tem objetivo na
vida e se algum desses insistissem na minha companhia podiam ou receber meu olhar
de rechaço ou meu afastamento para outro ponto do espaço, buscando me otimizar nas
melhores colorações cumprimentava aqueles que julgava promissores e alguns
deduziam-me adequado a uma conversa no que, ao me dizer ator, eu contabilizava
sobretudo minhas atuações do Sul e, se estranhassem minha cara queimada por lascas
que pulavam do torno ou a sujeira com a qual ele me enodoava sem que eu a
conseguisse tirar por inteiro com o sabão-areia da fábrica, meu comentário era ser resto
de maquiagem da última performance o que embora não sendo fato também não feria
ninguém.
Nas conversas os primeiros convites que recebi para projetos me pareceram
verdes demais de modo que os recusei mentindo que já tinha encerrado a receptação de
propostas em prol de muitas a serem analisadas, nisso cheguei a ser acusado por
desfaçatez em vaidade aprisionada, em ocupado em me ocupar ou mesmo digno de
pena, contudo o que efetivamente mudou minha posição de ator requisitado foi cada
volta à pensão em que o aumento da violência por conta dos caras do perigo me deu
impressão de que aquele local queria me espremer para fora de si.
Então passei a comparecer nos coquetéis me apresentando a qualquer um logo
de cara como ator disponível devido a uma agenda que acabara de ser liberada embora,
ironicamente, diante disso ninguém mais fez propostas nem das mais verdes, daí
buscando ajustar minha natureza à conversas resolvi enfeixar outros elementos da área
me dizendo sonoplasta, iluminador, diretor teatral e outras atividades relacionadas,
todas elas por fato tendo sido feitas no Sul, essas novas tentativas geraram mais
curiosidade por parte de alguns no entanto nada foi efetivado de modo que fui
eliminando elementos do currículo tanto quanto acrescendo outros até o dia em que,
para facilitar a todos, tentei somente um e justamente o:
– Sou eletricista.
Foi uma atriz que tinha me perguntado o que eu era, após minha resposta ela
saiu do centro do salão onde eu estava exposto e foi para um canto transmitir a
informação para outra mulher, mais velha, com cara de “patroa” e rodeada por uma
turma de jovens atentos a tudo o que fazia e dizia, lá ficaram as duas conversando e me
olhando à distância enquanto eu pensava que talvez me tivesse escapado um tom esnobe
por me considerar eletricista virtuoso e incomparável.
Enquanto as duas conversavam me olhando surgiu ao meu lado um sujeito que
ficou as olhando discretamente, não demorou muito para ele me dizer que cobiçava
aquela atriz que havia falado comigo e agora conversava com a “patroa” mas que sentia-
se meio destoado e sem coragem o suficiente para travar com ela uma conversa íntima,
então procurei deixá-lo à vontade e lhe falei que destoamentos eram ondulações que
podiam atingiam qualquer um.
Ele tinha, segundo me relatou, uma empresa de “puxa-móbeis”, disse que tão
logo me viu havia se alinhado à minha modéstia sem me prejulgar e que todo
“miserando caçador de oportunidades” devia ser devidamente avaliado para evitar
perdas de talento e, quando lhe falei que ele havia me prejulgado corretamente ao me
chamar de “miserando caçador de oportunidades”, ele imediatamente reconheceu sua
indelicadeza e se desculpando falou que eu estava mais para “meticuloso” e eu, lhe
agradecendo por trocar várias palavras por uma só, lhe falei que ele podia me chamar
apenas por meu primeiro nome, quando lhe dei meu nome ele me deu o seu que não
guardei na memória e então ele me convidou para trabalhar sob seu comando de um
modo que inclusive me pareceu “meticuloso” embora com certa altivez longe de
“miserando”, quanto ao “puxa-móbeis” eu havia pensado ser o mesmo que fazer
carretos o que faria bem a quem gosta de vento na cara sob uma carroceria e, quando eu
ia lhe dizer que a proposta me seduzia, ele me explicou que “puxa-móbeis” eram
aquelas peças que são puxadas para abrir gavetas e portas de móveis e, ainda me sendo
proposta atraente do ponto de vista de que iria me sujar bem menos que com o torno na
fábrica de balanças, foi quando ele disse que não poderia me registrar em carteira que
desisti, pois por mais que o serviço com o torno me desgastasse lá tinha registro em
carteira e a idéia de não ter registro me pareceu por demais insegura, eu sequer conhecia
o sujeito na minha frente e recusei polidamente, então ele se despediu e foi embora.
Meio minuto depois a mulher mais velha, de fato “patroa”, me chamou dobrando
seu indicador para mim exatamente duas vezes o que foi suficiente. Fui até ela e a
cumprimentei com a cabeça.
– Sou Letícia – ela disse. – Estou precisando montar a iluminação do meu teatro.
Você pode fazer isso? Dinheiro não é problema.
Eu nunca tinha ouvido alguém dizer “meu teatro” na vida. Ela disse que aqueles
que a rodeavam eram todos atores e se postava feito podre de rica.
– Estou à tua inteira disposição aos finais de semana – respondi. – E também aos
meios de semana à noite. E também de madrugada. E também nos feriados.
Letícia me explicou que havia um projeto teatral em vias de andamento no qual
o grupo estava incompleto e pelo quê iria fazer testes para novos atores na noite do dia
seguinte quando precisariam da luz em seu teatro pronta, quando me deu a vez da
palavra lhe falei que era só ela me dar o endereço que eu estaria lá dia seguinte,
domingo, e aprontaria tudo, e me aproveitando da oportunidade acrescentei:
– E também sou ator.
– É? – o ceticismo encontrou a cara de Letícia.
Ela deve ter pensado que eu era um pretensioso ou coisa assim, o que era
compreensível, então me adiantei:
– Eu me apresento como eletricista e de repente já sou ator, desculpe por tanto.
Ela gostou do que eu disse, sua feição se tornou ostentosa:
– Ok. Se você quer participar do projeto, então é candidato e, tal como todos os
candidatos, tem de fazer o teste, ao fazer o teste tem de estar preparado pra ser
aprovado ou reprovado. Quer mesmo fazer o teste?
Aquela mulher não estava botando fé que eu era ator; vai ver eu não tinha cara
de ator. Ela me passou seu endereço e acertamos que eu iria fazer o serviço de eletricista
e, na medida do possível, faria o teste de ator.

Dia seguinte eu me prontificava logo de manhã à porta da casa de Letícia, no


bairro Decanto da zona austral, ela morava numa rua tão cheia de seguranças que muito
me admirou deixarem o ônibus urbano passar na sua esquina.
À bem da verdade era uma mansão, e chegando ali com a cara queimada e suja
causada pelo trabalho com o torno anunciando-me eletricista para os empregados da
residência ao interfone do tipo com câmera filmadora demorou-se um pouco para que a
burocracia dos serviçais tomasse ânimo de anunciar à senhoria que um emporcalhado
batia à sua porta, quando receberam autorização me instruíram a entrar pelo portão e
atravessar um corredor lateral da casa de modo a chegar diretamente até a cozinha dos
fundos, uma vez feito isso na cozinha encontrei a cozinheira e à espera de Letícia fiquei
tomando um café sentando à mesa, quando Letícia chegou eu ainda o tomava e ela me
disse que eu não precisava me levantar para cumprimentá-la, sorrindo alegou que ali
todos eram tratados como iguais e não havia “frescuras de cumprimento” de modo que
sem qualquer contato físico ela esperou que eu terminasse o café para depois me
conduzir por um ruazinha calçada no corredor lateral oposto ao que eu entrara, quando
chegamos num jardim passamos por um portão entre dois muros que dividiam a
propriedade particular do teatro particular e uma vez no lado de fora do teatro já vi
peões trabalhando por todo canto na finalização da obra, quando adentramos o espaço
também havia peões trabalhando e Letícia me disse que o local tinha sido uma grande
sala de dança quando quisera ser bailarina num tempo em que ali vinham professoras de
dança tanto para ela quanto suas amigas que também queriam ser bailarinas e que, uma
vez tendo resolvido ser atriz devidamente seguida por suas amigas, seu marido mandou
reformá-lo na função de se tornar teatro e que, além dele, também já haviam construído
salas acopladas rumo aos fundos da quadra e inclusive, com especial destaque e grande
frequência, uma sala de ginásticas com todos os equipamentos para as horas de
exercícios. E ela disse que:
– Quanto à você já reparei que tem necessidade de evitar a visão de grandes
dimensões numa casa tão bem cuidada, talvez isso te deprima um pouco no início mas
vai passar. Eu costumo dizer que o conjunto envolvendo a casa e ampliações dá pra
abrigar uma pequena favela inteira, e que minhas plantas recebem mais consideração
que todo o conjunto de favelados da Capital. Espaço não me falta, agora é só me tornar
atriz famosa.
Não sei se ela queria que eu risse de suas palavras, mas não me cobrou por isso.
Nesse momento eu olhava os peões e tinha vinte chefes para cada peão, a esse respeito
ela me disse que os havia contratado “de última hora e com urgência de prazo” porquê
uma empreiteira contratada para as obras havia se retirado sem as finalizar devido a
“desacordos contratuais” estando agora a rolar na justiça um processo entre ambas as
partes, depois num tom até emocionado disse que tudo o que aconteceu foi à mando do
destino porquê o fato de ter rompido contrato com a empreiteira permitiu com que
nossos destinos se cruzassem a partir do momento em que eu fui chamado para fazer a
eletricidade do local em detrimento do funcionário da empreiteira, e eu achei que o
destino estava me dando atenção demais ao remanejar o salário de um outro trabalhador
à mim que, afinal, já tinha um trabalho, mesmo que de baixo salário, na fábrica de
balanças.
– Fique à vontade – ela me disse. – Se precisar de alguma coisa, é só pedir pro
pessoal aí.
– Ok, deixa comigo.
Daí ela se foi e fiquei ali pensando no que fazer, avaliando altura e suporte do
varal, testando a fonte de energia, fazendo o mapa de instrumentação da mesa
operadora, analisando se o serviço deles estava bom para complementar com o meu,
isso levou boa parcela da manhã e quando fui iniciar a instalação propriamente dita,
subir o varal dos holofotes, fazer a conexão à fonte elétrica e instrumentar a mesa de
operação, convoquei alguns peões para me ajudar a subir o varal dos holofotes e nisso
eles reclamaram que era domingo e queriam descansar e, para lhes apoiar, vieram os
chefes querendo meter o bedelho no meu serviço a falar sobre isso e aquilo sem ter a
menor idéia do que é um foco de luz em teatro, no que para impor hegemonia usei
termos e perguntas técnicas de modo inclemente, a partir daí com ajuda dos peões
firmamos o varal rapidamente e os dispensei pouco antes do almoço para finalizar
sozinho. Tem de pensar antes de fazer, na hora de fazer ocorre de precisar de
brutamontes.
Ao término do serviço varri o chão e depois fui até o fundo da casa e me lavei
numa torneira, dali para a cozinha comi alguma coisa e tomei mais café, assuntei com a
cozinheira e empregada doméstica graduada em psicologia e brinquei com o cachorro
exportado que por ali apareceu e que elas temiam alegando “temperamento forte” mas
ele foi um que me tratou com civilidade, depois no fundo da casa sentei-me num canto e
redigi um orçamento do serviço feito, parte difícil, não sabia ao certo o quanto cobrar e
calculei por cima, até mesmo com certo abatimento. Quando a gente precisa está sempre
fazendo descontos.
Meia hora de inatividade depois Letícia veio da frente de lá de alguma sala da
mansão, queria saber se estava tudo ok e respondi que sem dúvida, lhe passei o papel
com o preço do serviço e ela disse “Ok”, eu disse “Ok” e sorri, ela perguntou se podia
me pagar na semana que vem e eu disse novamente disse “Ok” sorrindo mas aí já não
foi um sorriso tão convincente quanto o primeiro.
Daí ela perguntou se eu queria mesmo fazer o teste de ator e eu balancei a
cabeça em afirmativa, daí ela novamente perguntou:
– Você quer mesmo fazer o teste, tem certeza?
Ela estava grilada e tentei lhe acalmar:
– Escuta, Letícia, eu já até dirigi teatro no Sul.
Tais palavras minhas não soaram nada bem para ela que fez uma cara de cética
bem cética daquele tipo de cética bem burra, daquele tipo de burra que fica surda
quando é atingida por algum sopro de dúvida ou pelo medo da dúvida sem nem mesmo
saber que aquele medo que sente é de dúvida e muitos menos sabendo que é medo, me
olhou com medo que não sabia que era medo e ainda mais medo da possibilidade de
descobrir que o que sentia era medo e do quê, era um olhar imponente que só escondia
tanto medo oculto os quais foram melhor ocultados quando ela comentou:
– Tadinho...
– Como, Letícia?
– Olha... Faça o teste, ok? Acredite que você consegue...
“Tadinho” naquela entonação de Letícia era a mesma coisa que chamar o cara de
retardado, eu só podia ser retardado depois daquele “tadinho” e de um tipo tão retardado
que não sabia que era nem o quanto, e se até então minha presença na cidade era feita
basicamente de escanteio e borda e mofo agora vindo da miséria da zona boreal eu
finalmente era tratado como um enfermiço no nobre bairro Decanto, de resto tenho
certeza de que se eu insistisse um pouco mais naquela declaração desnecessária e
perigosa de já ter dirigido teatro nunca mais veria aquela mulher na minha frente, o
negócio agora era fazer um caminho absolutamente oposto e negar a mim mesmo, ser o
mais paquiderme possível para que a anta não se sentisse assim. Falei:
– O teatro que fiz foi bem fraquinho, Letícia. Estou aqui pra aprender.
Aprender a ser burro exige muito, e a gente nunca sabe o suficiente. Aquela anta
agora fazia questão de me contar que já tinha era uma atriz “quase” profissional por
causa de seu currículo que restringia-se exclusivamente a um curso pago de teatro que
ela fizera com “os que já estão pra chegar”, o curso durara alguns anos e durante todo
esse tempo nunca haviam apresentado um espetáculo em público, nisso lembrei que
mesmo sem ter feito curso algum eu no Sul já tinha feito mais de cem apresentações
teatrais inclusive com indicação para prêmios em festivais, ainda bem que ela não sabia
disso. A anta estava cheia de defensiva e para isso atacava com:
– Você vai aprender. Tadinho.
Em seu ataque a anta gostava de sentir dó e em sua dó já logo estava falando que
inclusive tinha ido com minha cara, por mim já logo pensei que a minha cara que ela
gostava não me representava bem mas resolvi a assumir por conta das contingências, era
uma cara fácil de fazer se eu estava fazendo sem saber. Com ares de mula falei:
– Posso tomar mais um café na tua cozinha?
– Claro – ela respondeu. – Gostei de você. Tadinho...
É o desespero faz bem isso mesmo com a gente, nos arranca as tripas e nos vira
do avesso, o desespero da fome vindoura que não tarda. Ser “tadinho” no sentido mais
pejorativo que isso possa conotar só para engolir o que vem de fora por ordem do
estômago, digerir e agradecer por medo de ficar sem nada. Eu estava ali e tudo ali
estava a mando dela, minhas idéias próprias deviam ser enterradas mas também concluí
que afinal esconder idéias era válido do ponto de vista de algum aprendizado.
3

“Puxa vida, que jardim arrumado, que cachorro imenso, nossa, cada mulher que
está chegando aí, ah, são as atrizes.”
Saindo do saguão do teatro passei pela lateral do jardim, mais uma vez entrei na
adega porquê nela tinha aberto uma garrafa de vinho e havia o compromisso de lhe
consumir inteira, reparei que a garrafa ainda estava pela metade e arrematei mais um
copo, depois fui dar mais uma passada na cozinha dos fundos da casa em função de
salvar algo antes do lixo.
“Puxa vida, que comida gostosa a cozinheira faz, que empregada doméstica
apetitosa, eu sou eletricista e se uma delas quiser é só me chamar que faço uma
estupenda instalação elétrica, dá satisfação quando a gente faz bem feito.”
Voltando para o saguão vi que mais gente tinha chegado, em sua maioria eram
jovens e um deles me perguntou:
– Você vai fazer o teste?
– Só um momentinho...
Eu tinha me lembrado que no teatro havia um saco de detritos para ser levado
para fora, entrei nele e curti o cheiro de coisa nova, pensei que sendo meu serviço de
instalação básica se Letícia quisesse eu podia acertar com ela um novo preço para
conforme observei ser necessário instalar interruptores de duas fontes bem como um
pára-raios de boa potência, também seria preciso afinar os espotes de luz e medir a
frequência na caixa de entrada e além do mais iriam precisar de um operador de luz e
som, contemplando o espaço eu sabia que minha mão estava ali e pensei em até mesmo
em cuidar dele como um todo, ali me sentia auto-suficiente e ainda por cima ia fazer um
teste para ator, pus o saco de detritos nas costas e de repente Letícia entrou pela porta de
entrada bem estabanada, veio em minha direção meio doida:
– O nosso diretor chegou!
Mulher estranha, já inclusive me pegava nos braços desesperada, alucinada e
ridícula:
– Rápido, o nosso diretor chegou! É hora do teste! Você está preparado?
“Você tem de ser paciente com ela”, pensei. “Seja um profissional e lembre-se
que está aqui por um propósito.”
– Faça o teste com confiança em você, não fique nervoso, ouviu!
Que mulher rica e burra do cacete, nem tripas devia ter. Eu nunca lhe disse que
não tinha confiança em mim ou que estava nervoso por causa do teste.
– Acredite! Acredite! – dizia a anta.
Ao meu ver ela tinha mais ambição que talento, podia ser revirada pelo avesso
que seria a mesma coisa. A gente vive tendo de manter-se numa posição inferior para
sobreviver, procura alguma sombra e ali fica.

4
Ali todo portão tinha seguranças que os abria após identificação de quem
chegava, e os dois tinham entrado pelo portão que dava no corredor direto até o teatro,
eram o diretor e seu amante que ao entrar conferiram com os olhos as condições do
ambiente recém-construído e depois foi o diretor sentar-se numa poltrona à frente já
logo acendendo um incenso seguido pelo incenso que em pé seu amante acendeu, daí os
dois acenderam mais outros dois incensos um cada um e a cada incenso aceso diziam
palavras de comunhão demonstrando respeito pelos mortos, quando me viram com o
saco de detritos nas costas pronto para sair foi o diretor que me apontou dizendo:
– Quem é?
– É o eletricista – respondeu Letícia. – Ele também quer participar do
espetáculo.
– Sem fazer o teste ele não pode integrar a montagem – ele falou.
Seria impossível me esquecer que ia fazer o teste; saí do teatro e deixei o saco de
detritos lá fora, voltei ao saguão e fiquei esperando junto aos atores, enquanto eles
conversavam entre si logo descobri: o teste tinha sido até divulgado em jornais de
bairro, contudo ninguém tinha aparecido para ele por força dessa divulgação, nisso
concluí que: uma vez que eles todos já estavam incluídos no grupo, eu seria o único a
ser testado.
Mas, após algum tempo de espera, saíram Letícia e o diretor discutindo: ela
agora resolvera que eu não ia mais fazer o teste, eles discutiam na nossa frente e nisso
se pode colocar uma meia hora sem exagero algum, daí finalmente os dois entraram
num acordo: eu iria realmente fazer o teste, estava tudo resolvido. Voltaram a entrar no
teatro e esperamos.
Ao meu lado os atores conversavam, alguns comentavam que só tendo aparecido
eu para fazer o teste certamente iria sobrar personagens para que vários deles fizessem
mais de um e ainda por cima havia as figurações, outros comentavam que haviam sido
reprovados no teste do grupo do Deus do Charuto e outros zombavam daqueles que
tinham feito vários testes no grupo do Deus do Charuto e tinham sido reprovados,
quando comentaram que Letícia havia sido reprovada no teste do grupo do Deus do
Charuto uma grande diversidade de vezes ninguém zombou e de repente alguém
comentou que: o diretor que estava lá dentro do teatro foi aprendiz do Deus do Charuto
por anos a fio.
Aqueles atores sabiam muitas coisas a respeito do meio teatral, sabiam uns da
vida dos outros. Todavia ninguém sabia que eu já havia estado no grupo do Deus do
Charuto e não seria eu a dizer.
O próximo a colocar a cabeça para fora da porta do teatro foi o amante do
diretor. Me falou o que eu já sabia:
– Pode entrar. Você vai ter de fazer o teste.
Entrei e Letícia estava logo na porta, ela me deu uma piscadela e tanto, a maior
piscadela desde o surgimento das pálpebras, e ainda disse bem alto no meu ouvido:
– Você já é do clã. Não tema.
Ela era nepotista, me transformou num pelego sem ao menos me perguntar se
era isso que eu queria. Eu ia fazer um teste no qual já sabia que seria aprovado.

5
Fiquei ali no centro do palco esperando o que viesse, à mercê me coçando, até
parecia que só de subir no palco as pulgas meio que se ouriçaram em meu couro, se
multiplicaram, bem que poderia ser bocas de certas fêmeas.
Com todos os incensos renovados e acesos, o diretor sentou-se na poltrona
central e disse aquelas velhas palavras:
– Me surpreenda.
– Não sei como te pegar desprevenido daqui – respondi.
– Tente – ele insistiu. – Me mostre o que nunca vi.
Cocei o pescoço e as costas por causa das pulgas me roendo o corpo, aquelas
que baseavam-se na pensão e que eu tinha trazido para conhecer o primeiro mundo.
– Qual a motivação disso? – ele perguntou.
– Ah, tudo tem um motivo, né?
– Motivação. Se você faz um movimento, tem de haver motivação.
De repente me dei conta de que aquele cidadão era uma extensão do Deus do
Charuto, mesmo considerando-se que o próprio Deus do Charuto pudesse ser uma
extensão de uma outra extensão.
– Em que mundo você vive? – ele insistiu. – Eu perguntei sobre teu gesto.
Claro que eu não ia brigar com o cara só por causa dele estar me perguntando o
motivo de eu me coçar, nem ia lhe dizer que me coçava era por causa das pulgas que
não era ele quem tinha posto na minha roupa. Tinha um banheiro bem ali no camarim,
eu já tivera usado, conhecia aquele teatro de cabo a rabo.
– Onde você vai? – ele perguntou.
– Ao banheiro...
Fui ao banheiro e me cocei, tirei todas as peças de roupa e revirei-as no vaso
sanitário, vi as pulgas boiando por ali e dei descarga, pus toda a roupa novamente e
novamente senti as picadas, principalmente nas regiões íntimas. Voltei ao palco e eles
estavam eles em silêncio na platéia, nenhum movimento a não ser a fumaça adocicada
dos incensos destinado a exus, serafins e cosminhos.
– Podemos prosseguir agora? – ele perguntou.
– Creio que sim.
– Gostei da tua performance...
– Performance?
– Não me interrompa quando eu estiver falando, sim?
– Desculpe.
– Tua performance foi boa, você está aprovado, parabéns.
– Obrigado, de coração.
– Agora você já faz parte do elenco e, agora, aguarde instruções pra definir os
papéis.
– Isso é muito bom, diretor.
– Meu nome é Diógenes.
– Ok, Diógenes.
– Continue se esforçando porquê estou sentindo firmeza em você.
– Se está bem pra você...
– Aguarde lá fora.
– Tá.

6
A palavra de ordem ali era orixás, influência de Diógenes, e os atores me
explicaram que Diógenes tinha estreitas ligações sensoriais com os orixás e que ali os
orixás não se comunicavam com todo mundo mas apenas com Diógenes, contudo pela
hierarquia primeiro viriam os orixás como comandantes e depois Diógenes como porta-
voz de modo os orixás estariam por trás de tudo e inclusive, disseram os atores,
Diógenes havia dito que até mesmo o nosso encontro ali teria sido planificado pelos
orixás.
Até onde pude contar foram uns quatro ou cinco testes cada qual destinado a
determinada avaliação de atores com critérios que iam de medidas de tipos físicos até
timbres vocais, tudo em função de definir os papéis. Então a gente entrava no teatro
fazia mais uma etapa do teste, voltava para o saguão do teatro e esperava.
Nesses intervalos eu descia para a adega e depois dava uma passada na cozinha
para beliscar algo, voltava cada vez um pouco mais alterado mas ninguém se dava
conta, eu achava que não havia nada demais, minha relação com a adega e a cozinha
crescia em intimidade.
– Agora entrem todos juntos – veio nos anunciar o amante de Diógenes.
Entramos teatro adentro e dessa vez já eram centenas de incensos pelo teatro
todos acesos, teríamos a etapa final do teste e nós os atores ficamos aguardando na
platéia. O amante de Diógenes tocava uma sineta intermitentemente para lá e para cá ao
mesmo tempo em que carregava uma lata de defumação enquanto Diógenes num canto
do palco em meio a incensos fumegantes fazia uma espécie de ritual junto a velas e
pequenas nuvens de fumaça, quando Diógenes terminou seu ritual o amante ainda
manteve alguma defumação e sineta em certos intervalos, quando Diógenes passou a
apontar cada ator o amante passou a dizer ao ator em questão:
– Que suba você!
O ator em questão ia até Diógenes para conversar um pouco com ele, quando
terminava a conversa o ator voltava para a platéia e de acordo com o apontamento de
Diógenes o amante dizia:
– Que suba você!
Na minha vez subi no palco e fui até Diógenes que pegando em minhas mãos
introspectivo perscrutou meus olhos. Minha visão já não estava muito aprazível por
causa dos vinhos e eu via dois, três Diógenes. A gente ficou naquela história de olho no
olho por uns bons minutos com as pulgas me picando pelo resto do corpo fora do olho e
eu sem me coçar, subitamente Diógenes abaixou a fronte e respirou profundamente,
ficou olhando o chão por algum período de tempo e então me disse abruptamente:
– Estou sentindo que é você, estou recebendo, estou quase ouvindo e... é você, o
protagonista. Deixe os cabelos e a barba crescerem. – Balbuciou algumas palavras ao
vazio, os olhos compenetrados. – Você será o notório Hipnotizador2. Você vai dar um
ótimo Hipnotizador2.
– Se você está dizendo...
– Eu vou te mostrar o caminho, é minha missão.
Ele não largava as minhas mãos e me instruía que eu permitisse que os orixás
fizessem o trabalho porquê tudo tinha de ser feito em consenso com eles, que só deveria
decorar o texto e acender duas velas brancas por dia, que esse seria tipo um trato.
– Agora pode ir – liberou Diógenes, me dando um calhamaço do texto para
decorar. – Vai que os orixás estão contigo.
Saí dali e voltei para a adega pensativo, falando até alto: “Veja lá o que vocês
estão fazendo, hein orixás?” Sentei num barril e dando goles no vinho dei uma lida no
texto. Aquele projeto segundo informações largamente divulgadas pelos corredores
tinha a ver com o conhecido conto do ladrão – o Hipnotizador1 – que hipnotizou o
Comerciante para lhe roubar e na fuga foi morto, pelo texto original chamaram outro
hipnotizador – o Hipnotizador2 – para despnotizar o Comerciante e isso foi resolvido
mas, como Diógenes resolveu fazer uma “livre adaptação”, pela sua versão o
Hipnotizador2 teve dificuldade em fazer o serviço devido a não saber qual “sugestão” o
Hipnotizador1 tinha usado e a partir daí, ao invés de despnotizar, o Hipnotizador2
passou a repnotizar o Comerciante diversas vezes e, entrando numa de deus, fez do
Comerciante uma espécie de monstro feliz, uma vez bem-sucedido o Hipnotizador2 saiu
pelas ruas a hipnotizar quem pudesse “pra fazer um mundo feliz” e daí diversas
ocorrências, em meio a isso Diógenes, em sua “livre adaptação”, fez diálogos e
monólogos em forma de confabulações abstratas que não acabavam mais e também quis
dar ao texto um tom de fábula enfiando nele uma série de cenas com elementos tais
como gnomos, duendes e fadas, e as instruções para a representação dos atores, feitas
entre parênteses, eram de tal modo carregadas de bolinações mentais que me perdi em
dúvidas, não me parecia coisa de orixá ou qualquer similar.
Tonéis e garrafas de vinho de toda origem, um ambiente tranquilo. Olhei as
paredes e dei mais goles na boca da garrafa, pensei num dilema que de fato não era
dilema, Diógenes tinha falado das velas mas não me as dera, eu não tinha condições de
conseguir duas velas todo santo dia, então que Diógenes e os eventuais orixás me
perdoassem mas aquele trato bem lá dentro do coração eu sabia que não ia nem começar
a cumprir, duas por dia significavam sessenta por mês e além do mais com tanto ladrão
na pensão iam levar as velas brancas com certeza, eles levavam até as vermelhas,
realmente seria impossível.
Eu tinha chegado de manhã e já era mais de dez da noite, da adega voltei ao
teatro e estavam encerrando as atividades, as instruções finais foram dadas por Letícia:
diferentemente daquele nosso primeiro encontro, num domingo, nossos ensaios se
dariam de segunda a sexta-feira à noite, ela explicou que o dia tinha de ficar livre para
atividades de produção e estudos dos atores.
Todos nós tínhamos nossos compromissos durante o dia.

Após descer do ônibus no terminal havia a caminhada de quilômetros rumo à


pensão, particularmente à noite por vezes encontrava-se no percurso seres de passos
miúdos com alma escamoteante exigindo adaptação aos contornos onde toda referência
se transforma, acompanhando o próprio movimento geralmente os instintos se
aperfeiçoam e melhor a rapidez para tirar do malandro tempo de rever planos.
Os lugares por onde a gente vai sempre deixam um pedaço de si colado na gente,
eles nos perseguem junto ao que ali encontramos, os cheiros e dores, o que resta de
sentimentos, e por tudo ali naquela parte da zona boreal seguindo para a vila Egressa
muita coisa já tinha se grudado em mim, comparando com tudo tão maquiado da zona
austral havia grande diferença contudo tendo a constante companhia das pulgas não
tinha muito como ser traído na raiz e, quanto ao alimento angariado naquela mansão e
merecedor de saudade, uma vez tendo o corpo sua própria comunicação elas agarradas
nele já estariam a par da comida aristocrata sem falar do sangue embebedado de bom
vinho para seu deglute no que certamente iriam informar as demais que me aguardavam
na pensão impacientes, seja como for eu já havia recomposto a fome a ser reconfortada
com a marmita me esperando. A fome é crua e maquiagem sai caro.
Uma vez chegando na frente da pensão já logo ao passar pelo portão de entrada
sempre aberto na lateral da casa ali pelos cantos os vultos no escuro do quintal podiam
exigir antecipação pelo desvio, e já mais à frente ao entrar na cozinha com gente
dormindo no chão mais desvios para não pisar em ninguém, dali para o corredor com
mais gente dormindo no chão mais desvios e na sala abarrotada de gente tanto em
beliches quanto no chão mais desvios, ao entrar no quarto com ninguém dormindo no
chão era só ir direto ao cadeado do guarda-roupa dividido com outros residentes que
sendo peões antigos e tranquilos faziam exceção na casa contudo sem exceção para o
mesmo percentual médio de pulgas, após abrir o cadeado o sabão era destinado ao bolso
da camisa e a escova de dentes ia para a cintura, daí após pegar a marmita sobre a cama
a próxima etapa era fazer o caminho de volta até a cozinha.
Após comer à mesa vinha a etapa cujo rumo lá fora quanto mais ao fundo do
quintal mais área de risco no escuro, havendo diversos cômodos de ambos os lados
todos lotados de beliches e com portas abertas o perigo podia sair deles por parte dos
piores dentre os piores residentes que no conceito da dona da pensão concorriam na fase
estagiária entre bicho e humano o que ao meu ver era uma posição bem otimista dela;
quando de minha chegada na pensão não havia todos aqueles cômodos no fundo mas
apenas um deles que na época era onde ela cultivava seus santos e demais instrumentos
de macumba bem como fazia seções em finais de semana tendo sido nele sob um pano
no chão em meio à velas e santos de gesso que dormi por algumas semanas em forma de
teste, no segundo teste fui dormir no chão da cozinha e depois fui remanejado ao quarto
dos peões antigos sendo que só depois disso levantaram aqueles cômodos bem como
disponibilizaram o quarto de macumba como dormitório.
Após a trincheira de perigo havia no fundo do quintal o banheiro entre o tanque
e a fossa, sendo o único disponível aos residentes ele sem tranca na porta nem vaso
tinha um buraco para evacuar e uma bica de água fria para o banho, resumia-se a um
cubículo coberto do chão ao teto por uma crosta gelatinosa onde lesmas se repastavam;
durante os dias, principalmente de manhã, nele sempre tinha fila e, durante as
madrugadas de sábados, outro tipo de fila se tornando uma extensão dos cômodos dos
fundos feito corrente de corpos ligada por pênis e ânus em fornicação, um tirando atraso
do outro ou mesmo coitos forçados com tanto constrangimento que alguns vitimados
virando mulheres da turma eram levados para dentro desses cômodos e servidos aos
demais por vezes findando por desabalar dali para a rua sem destino a tornarem-se
mendigos, mentecaptos, amnésicos – nessas especiais ocasiões de sábados se eu
quisesse banheiro utilizava outros pela cidade.
Após a etapa de urinar sentindo a fossa exalar carniça com sua promessa de ir do
nariz até a alma para não sair nunca mais na etapa seguinte ia escovar os dentes no
tanque e depois voltando pela passagem no comboio do abismo de novo cozinha e
cômodos até regressar ao quarto onde deixava escova e sabão no guarda-roupa para em
seguida subir no beliche, ali dentro com a janela geralmente fechada para evitar que a
escória no quintal não invadisse o ambiente também havia o motivo de que aberta
permitia a chegada de brisa externa fazendo narizes compará-la com os diversos e
concentrados cheiros internos, urina e bolor e bitucas de cigarro e respiração de pinga e
peidos, o supra-sumo do fedor pela quintessência do pesadelo, assim com janela fechada
os narizes logo se anestesiavam perante a podridão de bases específicas, um nariz que
sente cheiros gera vestígios de esperança e se a dor está acesa fica lancinante, latrina por
latrina a preferência por apodrecer aos pedaços.
Nas primeiras semanas morando ali eu bebia pouco, mas indo pelo sistema da
maioria a bebida mostrou-se capaz de sobretudo melhor suportar o hábitat natural das
pulgas de modo que aumentei as doses na medida do possível, todavia nem me
comparava a alguns residentes que bebiam todos os dias e atingiam um apagar tão
alcoolizados que até mesmo elas ficavam embriagadas com seu sangue chegando
algumas a desmaiar e outras doidas zanzando de cama em cama abraçavam corpos
humanos em êxtase, sempre havendo muitas delas ativas praticando picadas incessantes
oprimiam sonhos e faziam transfusões de sangue entre espécies, ali nossa pele era seu
refeitório e elas podiam explodir de tanto comer; teve um período precedente que os
residentes do quarto disseram que eu os ia matar devido à enxurrada de veneno que ali
joguei sem que elas partissem e depois parei com isso tomando ciência do mundo sem
volta, entendi que elas testemunhariam a chegada da funerária e ficariam para contar
nossa história sem uma única palavra, tudo que o verbo não pode.
Na etapa de dormir, o desafio maior. Não bastasse as pulgas viverem errando
pontos de captação nos fazendo as engolir pelo nariz em pleno sono para acordar
asfixiado também podia estourar encrencas nos demais quartos ou no quintal fosse sem
motivo ou por qualquer pequena desavença pessoal ou ainda justamente por raiva das
pulgas, cada vez mais frequente lá estavam eles se pegando e se estapeando, se
arrebentando pelas paredes e saltando por entre beliches, sobretudo a corja de pequenos
infratores, seviciados, saqueadores de supermercados, baderneiros, degenerados,
trapaceiros, pulhas, pederastas e pilhadores de cadáveres, no seu ringue quem não
estava nele participava da platéia por audição ou visual, todos se coçando. O filho da
dona da pensão dormia na sala, era um ano mais velho que eu e usava bigode, seu pai
ninguém nunca soube quem era e como homem da casa vivia apartando brigas e
expulsando desordeiros, levando bêbados caídos nos lugares errados para cama e
cobrando atrasados, durante o dia fazia um curso de funilaria e ao chegar na pensão
tinha selvagerias para resolver jamais tendo deixado de defender o espaço que sua mãe,
uma semi-aleijada, administrava da melhor forma que podia, ela mulher corajosa
geralmente fazia almoço e janta todos os dias já que suas empregadas nunca duravam
muito no local e tanto quanto todos na pensão nunca soube meu nome uma vez que ali
não havia ficha para os residentes, ela desde o início me chamou de Loro embora os
residentes me chamassem de Alemão, alguns de Russo, o filho dela me chamava de
Alemão, melhor assim porquê meu nome real seria impronunciável a quase todos e
ainda iam achar que era um nome metido demais, seja como for eu próprio já andava
esquecendo meu nome.
Ali no quarto os rádios à pilha todos ligados ao mesmo tempo e cada um num
programa diferente era o nosso aculturamento o que para as pulgas não significava nada,
num espaço repleto de picadas feito espinhos na carne os rádios impediam a morte
como animais sendo que os sintonizados em canais de músicas populares traziam algum
sentido no coração e os sintonizados nos comitês eleitorais dos religionários a despachar
sua campanha longe das pulgas falavam do direito à salvação, quando rádios estavam
sintonizados em diferentes programas religionários parecia uma discussão indireta entre
líderes uns falando mal dos outros e todos maldizendo o diabo, de tudo que diziam
nunca explicaram porquê falar em nome Dele com tanta raiva nem porquê dentre tantas
pragas logo as pulgas, quando se tratando das mulheres-líderes a dar o ar de sua graça
ao ouvir suas vozes alguns residentes caíam em tentação e daí que sendo tão gastos os
colchões de espuma a necessidade de quando de bruços manter a ereção entre as grades
da cama ou usar outra posição para se masturbar por baixo dos lençóis no que muitas
vezes, ao se arrepender na hora da ejaculação, eles desviavam o pensamento para
mulheres anônimas, depois de relaxar um pouco a tensão dormiam e ficando os rádios
ligados por vezes alguns inconscientes lançavam seu protesto contra as palavras
religionárias como se elas fossem chicotes de um ódio com forma gélida sobre um
destino condenado da vida muquirana e aferrolhada cobrando dízimo de quem nunca
teve nada, ela uma coisa besta ali na noite patinando no mesmo lugar como se a ameaça
fosse viver e não morrer, no sono a gente tentava voar mas tendo nossos corpos puxados
pelas pulgas todo vôo caía, elas não nos queriam cadáveres e sim sangue quente
circulando para encontrarem sua devida graça e nada se importavam sobre quem tinha
ali chegado de batalhas já perdidas pagando dívidas herdadas feitos filhos do cão, filhos
de pais endividados até o pescoço e filhos do Terceiro Mundo, filhos da puta sem
chance apanhando desde o feto e fugindo desde o tempo em que eram macacos,
resultados de erros sequenciais e ausência de planejamento familiar, frutos de estupro
paridos às pencas e às pressas em abortos clandestinos, abandonados em cestos e
servidos como escravos ainda no berço, expulsos do lar na maioridade e arruinados à
capricho da maldade, ainda por cima nós ali não sendo como os outros réus dos quartos
de fora que tendo se rebelado agora estavam desligados de qualquer sentido e podiam se
matar sem culpa na sucursal do demônio tínhamos de no medo do castigo manter o ódio
em inevidência, ali vegetando no limite da repugnância o ruim do fúnebre pregava suas
peças e o mundo perdido e o paraíso perdido era só pano de fundo aos pesadelos os
quais fazendo parte da história impossível conceber vida sem eles, por luta maior entre
álcool e plasma a busca por algum silêncio a ser admirado mas, como pulgas não
permitem silêncio, daí querendo oferecer a elas qualquer rendição por trégua mas, como
pulgas não aceitam rendição, então sem saber dando murros no ar querendo as acertar
sem conseguir, em golpes de perdedores a pele sempre dava a sentença final da lenta
morte aos pedaços.
Alguns residentes após longos períodos de sofrimento iriam conseguir uma
pensão melhor como se grande parte de uma vida em prostração lhes desse direito a
algum alívio, outros seguiriam daquele jeito e outros em total abandono iriam
degringolar de vez no encontro final da desistência, por ora quem quisesse se distanciar
um pouco ao menos da audição dobrava o travesseiro ao redor da cabeça até os ouvidos
ou qualquer recurso similar.
Eu até que dormia razoavelmente e sem despertador acordava infalivelmente às
6:40 para pular da cama e ir ao mesmo banheiro lá fora pegar a fila para o banho que só
podia durar coisa de um minuto, no mesmo reinício a vantagem da pensão ficar apenas a
algumas quadras do trabalho era feito uma corda curta na qual eu me pendurava.

As balanças menores tinham pelo menos três metros de comprimento e seriam


usadas para pesar gado de corte individualmente; as maiores tinham mais de dez metros
e pesariam os animais dentro de caminhões. Nosso trabalho ali era apenas manufaturá-
las, cada qual na sua função.
O torno com o qual eu trabalhava tinha idade avançada e tudo que nele se fazia
era sem necessidade de maior precisão, nos casos mais exigentes só por vezes fazia
botõezinhos ou retrabalhos sobre alguma bugiganga sendo que geralmente apenas
cortava uma vara fina e comprida de aço em oitenta pequenos pedaços para depois
desgastar suas pontas fazendo cabecinhas a partir do quê esse material, indo parar nas
mãos do Gordinho que era ajudante geral, com morsa e tarraxa fazia as roscas nas
cabecinhas.
A castanha do torno era frouxa e balanceava-se com tamanha violência que por
vezes eu temia que aquilo se desencaixasse dali e voasse furando o teto da fábrica até
cair noutro bairro da cidade, quando eu jogava óleo lubrificante sobre o metal sendo
sulcado saía um ímpar aroma de queimado junto a uma fumacinha branca bem mais
volátil que o incenso e por vezes pensava no quanto as coisas boas voam em conjunto
alado enquanto as regras duras ficavam para ser contadas individualmente, com tudo
bem marcado à ferro e fogo todos da fábrica sabiam que ninguém aguentava trabalhar
naquele trambolho por muito tempo e os operários inclusive faziam apostas sobre se eu
pediria as contas ou seria mandado embora feito excesso de peso tendo por troféu os
direitos trabalhistas de um demitido, alguns diziam que eu iria virar pedra e lápide a
qualquer instante.
Quase todos eles moravam no alojamento ao lado dos galpões da fábrica, a
maioria tinha vindo do interior do Estado de onde a fábrica houvera migrado e durante o
almoço enquanto comíamos as marmitas pelos cantos era às colheradas e sugões que
eles comiam, conversavam de boca aberta assoprando comida e farinha com sua meia
dúzia de dentes a mostrar toda sua etiqueta num falatório que frequentemente era sobre
si mesmos ou sobre mulheres que muitas vezes eram putas, diziam que um bebia demais
e outro era fanático demais por algum time e o outro era um punheteiro incorrigível, já
comigo quem mais conversava era o Gordinho e seus assuntos além de envolver o fato
ser fã de tubaína com pão com mortadela também incluía justamente as putas do seu
bairro que tinha comido por um custo que ia de cinco a dez reais a meia hora, certa vez
ele me disse que queria saber como seriam as mulheres normais de festinhas de finais de
semana no que lhe falei “aí sim, as festinhas e as garotas, empregadas domésticas e
operárias, ascensoristas de elevador e suas amigas, dá sempre pra se obter uma
encoxada num forró, um amasso no portão, volta e meia uma grávida rejeitada oferece
alguma chance”, nisso ele demonstrou me achar metido talvez devido à minha
conjugação verbal e certamente por eu ter mencionado as ascensoristas de elevador que
a ele seriam de um nível inalcançável de modo que andou por uns dias com cara fechada
para mim, contudo ainda tivemos oportunidade de nos acertar e quando voltamos a
conversar tanto piorei a conjugação quanto retirei ascensoristas de elevador da lista para
que nossos diálogos fluíssem sem problemas.
O Gordinho também costumava trabalhar na solda e quando de minha chegada
ali ele se encasquetou comigo pensando que eu queria tirar o lugar dele na solda e de
fato eu tivera esse projeto de vida para me livrar do óleo lubrificante e da graxa que o
velho torno esguichava feito mijo desvairado em todas as direções formando crostas de
sujeira tão insistentes que ao me olhar no espelho eu nem sabia mais qual era minha cor,
após alguns dias encasquetado o Gordinho me comentou algo em relação o meu
evidente interesse para com a solda no que lhe falei que estava passando a tratar minha
questão com aquele torno como um “inexorável a ser absorvido” no que a seu modo ele
me entendeu e me olhando com bom reconhecimento disse que “o inoxidável tem suas
dificuldades”.
Como eu só usava um óculos de proteção para os olhos credito a isso o fato de
não ter ficado cego, e aquelas lascas que saltavam da lâmina de corte em movimento
eram tão quentes que dava para sentir o cheiro da própria pele do rosto e pescoço se
queimando muitas vezes também caindo abaixo para queimar o peito, da pele por vezes
também saía fumacinha. O Gordinho costumava tirar sarro com minha cara ao me ver
azucrinado com o torno e por vezes chegava ao meu lado para tirar da minha cara
alguma pequena lasca de metal que o torno havia jogado nela nisso inclusive tendo dito
que eu tinha santo forte igual a ele, doutra vez disse que nunca viu alguém dizer ter
santo fraco.
O galpão da fábrica era a própria frigideira do capeta e eu suava bicas enquanto
xingava o torno, quando me mandavam fazer outra coisa era devido a haver peças
torneadas em demasia sendo geralmente o nosso chefe quem mandava, geralmente a
outra coisa era ajudar justamente o Gordinho:
– Já tem peças demais! Vai ajudar na solda!
Eu desligava o torno e ia ajudar o Gordinho, ficava segurando algum pino ou
vara de ferro para ele soldar e nunca tocava na solda devido ao ciúme que dele por ela,
mesmo não mandando na solda ele tinha ciúmes dela e mesmo nunca tendo me dito
acho que o que ele mais queria ali dentro era só ele mandar na solda, queria mandar em
alguma coisa e quando eu estava lhe acompanhando na solda ele ficava a falar de
tubaína, pão com mortadela e putas, raramente falava sobre a solda que tratava até com
certa devoção feito puta cara e eu certa vez lhe disse que ele tinha um “carma com a
solda” no que ele até feio me olhou dizendo que “não vou pra cama com a solda”, outra
vez sem querer comentei que “meu destino é a inércia” e ele me perguntou “e quanto é
que a inércia cobra por meia hora?”, doutra vez falei que a inércia além de não valer a
pena era muito careira.
Por vezes o chefe mandava eu e o Gordinho fazermos tarefas juntos em outro
galpão, seu modo de dar ordens era bem bruto e o Gordinho me dizia que ele tinha de
ser assim mesmo para lidar com brutos e putos. O chefe bruto andava pelos galpões
verificando tudo e também parecia um pouco revoltado acima da média de modo que os
operários mais velhos comentavam entre si que “se bobear ele tá levando chifre”, “sem
dúvida o chifrudo tá levando chifre”, eles nunca zoavam o chefe pela frente como
costumavam fazer entre si.
O chifrudo andava pela fábrica usando um chapéu country, volta e meia tirava-o
da cabeça e puxava os cabelos para trás para o recolocar, queria contrariar a natureza do
cabelo que insistia em cair para frente e era das antigas. O Gordinho dizia que o
problema do chefe era querer uma mulher normal.

Algum espírito estranho havia persuadido Diógenes de que o notório


Hipnotizador2 tinha tudo a ver com um cientista que usou uma pipa por experimento, e
tão logo ele anunciou a todos tal idéia já logo mencionou algo como “momento de
iluminação” tudo isso foi muito bem pontuado com muita vela acesa e muito sino
tocado por parte do seu amante que, inclusive, já logo também fez uma série de
referências sobre mitologia; em seguida Diógenes providenciou reuniões particulares
com os atores em função de determinar aspectos particulares de seus personagens e,
quando chegou a minha vez, ele ilustrou seu raciocínio a partir de uma série de
referências transcendentais e tergiversantes às quais estavam justamente relacionadas a
um barbante e, alegando “entrar em questões práticas”, retirou do bolso um rolo com
um comprido barbante recomendando que eu o manuseasse até chegar à maestria como
um “laboratório” para a composição do Hipnotizador2-pipador.
Durante semanas fiquei me relacionando com aquele barbante, amarrava uma
ponta dele em algum ponto alto e lhe trabalhava como se estivesse empinando uma pipa
enquanto Diógenes ensaiava outras cenas com os demais atores, eu também andava por
tudo ali desenrolando o barbante e fazendo um emaranhado até chegar à ponta final e
depois voltava enrolando-o até o início numa volta que sempre exigia mais cuidado e
revisão de percurso, isso até certa altura foi bem apreciado por Diógenes que inclusive
decidiu introduzir o empinamento de pipa ao fundo de algumas cenas que anteriormente
não contavam com a presença do Hipnotizador2-pipador, assim uma aparição figurativa
e sem texto.
Contudo a satisfação de Diógenes não perdurou e, à medida em que não obtinha
os resultados que desejava para o espetáculo como um todo, também o meu
Hipnotizador2-pipador logo encontrou depreciações de sua parte:
– Tua interação com o barbante não está a contento, você não está se dando bem
com ele.
Sua insatisfação com o meu Hipnotizador2-pipador-que-não-se-intera-com-o-
barbante foi se tornando cada vez mais crescente e, se ele também tinha desagrado com
os demais atores, por meu personagem ele tinha uma afeição muito particular. Teve um
dia que ele veio falar comigo até meio perturbado:
– Decorou a cena dois?
– Pensei que era pra decorar a cena um. A gente ainda não ensaiou a cena um.
– Decore a cena dois!
Saí dali com o texto na mão para decorar a cena dois, no caminho os
comentários pelos cantos diziam que que Diógenes estava preso a uma clarividência
fabulosa do próprio espetáculo a qual lhe fazia ver tudo grotesco nas mãos dos atores,
entrei na adega para decorar a cena dois e meia garrafa de vinho depois considerei que
já dava para encenar basicamente sem esquecer qualquer fala, então voltei ao teatro e
antes que eu dissesse que já tinha decorado a cena dois Diógenes disse que por enquanto
eu deixasse de lado a cena dois porquê havia resolvido que a gente iria primeiro ensaiar
a cena cinco e que era para mim decorar urgentemente a cena cinco, assim novamente
retornei rumo à adega para decorar a cena cinco e no caminho os comentários pelos
cantos aumentavam, diziam que Diógenes estava preso a um falido conceito de
revolução estética, na adega decorando a cena cinco arrematei o resto da garrafa e
alegremente voltei para o teatro, ao chegar falei alegremente a Diógenes que a cena
cinco já estava decorada mas ele disse que qualquer coisa como uma luz havia lhe dado
idéias através das quais iria reformular partes do texto daquela cena quanto introduzir
novos trechos a ela de modo que iria ficar aproximadamente o dobro do previsto.
A seguir Diógenes foi aplicar o mesmo processo de alterações com outros
personagens e outras cenas às quais eu não participava e isso se seguiu com o correr dos
dias, sempre havia personagens e cenas alteradas e, mais que isso, as alterações
passaram a sofrer novas alterações, Diógenes estava reformulando tudo e fazendo
reformulações por sobre reformulações e eu mesmo redecorei pelo menos umas vinte
vezes cenas que foram refeitas, reformulações geravam reformulações e
redirecionamentos eram feitos sobre redirecionamentos, assim vivíamos.
E eu ainda não havia dito em cena uma única palavra do Hipnotizador2-pipador-
nessa-merda-de-adaptação, a única coisa que fazia era o “laboratório” de esticar aquele
barbante e fazer visitas na adega e, justamente, foi numa vez após voltar da adega que
Diógenes me perguntou e até meio desaforado:
– Você anda bebendo?
– Só de vez em quando.
– Cadê o barbante?
Eu tinha perdido o barbante, lhe falei que tinha perdido o barbante mas tinha
uma forte impressão de onde ele estava. Em seguida chegou o amante de Diógenes com
o barbante na mão, falou que o tinha encontrado na adega, este andava me seguindo
como se tivesse um barbante amarrado entre nós e sabia meu trajetos. Diógenes pegou o
barbante da mão de seu amante e disse que de tudo que eu poderia perder jamais poderia
ser o barbante, então determinou:
– Vou substituir você.
– E qual personagem vou fazer agora?
– O Hipnotizador1. Você tem mais cara de Hipnotizador1.
– Ok.
– Você me parece meio desconcentrado, procure se concentrar antes de entrar
em cena, mas não perca a espontaneidade, não deixe a tensão atrapalhar você, procure
relaxar o ânus antes de entrar em cena.
– Tá bom, preciso ir ali e já volto.
– Volte logo porquê vamos ensaiar uma cena com o Hipnotizador1 daqui a
pouco.
– Tá.
A gente perde e ganha coisas. Um outro ator foi convocado para fazer o
Hipnotizador2-pipador-nessa-porcaria-de-projeto e depois também foi substituído por
outro e assim muitas outras substituições vieram para esse personagem que ao conceito
de Diógenes era extremamente difícil de se interpretar e, de tão difícil que era, Diógenes
achou por bem limar cada vez mais as aparições dele retirando-lhe cada vez mais os
textos a ele destinados e tornando-o um personagem cada vez mais raro em cena na
mesma medida em que era cada vez mais comentado em cena, assim o Hipnotizador2-
pipador-que-nenhum-ator-consegue-interpretar-porquê-nenhum-ator-ao-conceito-de-
Diógenes-consegue-se-inteirar-com-o-barbante-de-jeito-nenhum-e-ainda-menos-fazer-
outras-coisas-que-Diógenes-quer-dele-e-por-isso-esse-sacrifício-com-o-coitado-de-
ficar-cada-vez-mais-sem-texto foi se tornando devidamente tão mais importante quanto
intocável ao passo que novas cenas e mais trechos de textos eram produzidos para os
demais personagens sempre aumentando o tempo previsto inicialmente para o
espetáculo embora, em termos de dilema, surgiram outros, pois mesmo com ínfimas
aparições do Hipnotizador2-pipador-que-hipnotizou-Diógenes-de-um-modo-bem-
esquisito para Diógenes nenhum ator conseguia atingir a perfeição tão exigida que até
parecia o personagem inatingível e, inatingível por inatingível, chegou o dia que
Diógenes lhe suprimiu de cena definitivamente alegando que havia descoberto que o
propósito do espetáculo era mostrar “a periferia dos dilemas” e inclusive apresentou
uma sequência de novas cenas a serem introduzidas para tratar da “periferia dos
dilemas” de um tal modo que, juntando todos os acréscimos que ele vinha fazendo,
quase chegava a triplicar a inicial previsão de tempo para o espetáculo, enquanto para
mim, agora interpretando o Hipnotizador1, personagem menor, minhas visitas na adega
tomaram um tom até comemorativo e, fora dela, reparei que se quando me era
designado o extinto Hipnotizador2-pipador-que-Diógenes-considera-a-coisa-mais-
perfeita-do-mundo as atrizes me olhavam feito alguém que carregava peso excessivo
nas costas, se elas me assistiam à distância me levando a pensar ser culpa justamente do
personagem, logo vi que preferiam sempre me assistir à distância independentemente de
personagens.
Na adega eu tomava vinho e falava com as paredes, dava entrevista para as
paredes e por vezes escondia o resto da garrafa por baixo da blusa, voltava para o teatro
com o resto da garrafa por baixo da blusa e nessas alturas meu caminho andava
cruzando por demais com o amante de Diógenes, ele costumava fazer perguntas:
– Onde você foi?
– Vou mijar. Tá servido?
– Você está bebendo?
– Perdeu alguma coisa?
No banheiro ajeitava a garrafa por baixo da blusa e me olhava no espelho e não
era o mesmo rosto que tinha quando da última vez que olhara no espelho, a cada dia
meu rosto estava mais marcado e dele tirava algumas lascas de metal, ali em liberdade
me coçava por causa das pulgas e certa vez pensei: “O pessoal anda se coçando pelo
teatro. Meu auto-controle inclui não me coçar publicamente.”
No teatro sob intensa observação do amante de Diógenes ia para trás da coxia e
lá tinha guardado um copo de plástico, lá ao menos uma garrafa sempre estava amoitada
e quando Diógenes me chamava eu ia com o copo na mão, da vez que ele perguntou o
porquê do copo eu disse que era o Hipnotizador1 tomando água, ele aceitou o
incremento da água mas disse que a partir dali quem ia tomar água em cena no nome do
Hipnotizador1 seria outro ator porquê eu estava sendo substituído.
– Você agora é o Auxiliar do Comerciante – ele disse. – E também vai fazer uma
figuração no sonho de sublevação do Hipnotizador2.
Beber em serviço não presta mas se eu conseguia decorar os personagens
bebendo ia levando e, se Diógenes trocava meus personagens, minha vida estava
virando beber e decorar personagens cujo local ideal era tranquilidade da adega. Tudo
em nome da desculpa.
Todavia com o amante de Diógenes me seguindo estava cada vez mais difícil, é
duro beber sendo observado, decorar texto sendo observado, no conflito diminuí
drasticamente minhas idas na adega temendo ficar sem personagem algum e para
substituir o tempo vago passei a ir para a sala de ginástica e, se o amante de Diógenes
acompanhava meu rumo com os olhos, nem mais me dava bronca do delator, ele não me
seguia até a sala de ginástica porquê vai ver não gostava de ginástica ou de qualquer
coisa que havia naquela sala. Na sala de ginástica atores batiam o texto e alçavam pesos
e andavam o tempo todo no mesmo lugar, eu me sentia aliviado de não ter de fazer força
ali e cada qual fazia força onde pudesse, o que importava era que nossos corpos não
ficassem flácidos e um dia a mais em pé fazia bastante diferença, contudo
eventualmente ainda ia para a adega e era da sala de ginástica que eu dava a partida, dali
saía pela tangente e furtivo dava uma vigiada pelos corredores, uma vez na adega
acelerava minha estadia ali e depois voltava ao teatro, eventualmente trazia uma garrafa
por baixo da blusa para amoitar na coxia e às vezes percebia que havia mais de uma
garrafa ali, havia mais do que eu podia beber.
Na coxia agíamos em grupo e nunca nos perdíamos, diante de abelhas seminuas
eu sentia certo desapego e toda vez que Diógenes me chamava até o palco em função de
me dar algum alerta seu amante pigarreava, eu queria ser chamado ao palco somente
para ensaiar mas por vezes ele me chamava para dizer que eu não bebesse, eu agora só
conseguia olhar aqueles dois porquê tinha muita força de vontade e toda vez que ouvia
aquela sineta me parecia grilo inaudito, toda vez que via aqueles incensos todos acesos
me pareciam firmamento de grilo, teve uma vez que Diógenes disse que eu devia lhe
chamar de Diógenes e não de Did e eu não me lembrava de tê-lo chamado de Did, pedi
desculpas e ele perguntou se eu estava bêbado e, antes que eu respondesse que não
estava ou que perguntasse quem tinha sugerido que estava bêbado mesmo sabendo
quem tinha sugerido, ele determinou:
– Vou dar o Auxiliar do Comerciante pra outro ator fazer. Você é instável e me
deixa com a pulga atrás da orelha.
– Pulga? Onde? Que personagem vou fazer agora?
– Você vai ficar com o Soldado9 e o Marinheiro17, mas continua fazendo a
figuração no sonho de sublevação do Hipnotizador2 que, inclusive, vamos ensaiar
agora.
Essa figuração era a de um gnomo entre um bando de gnomos embolados no
meio do palco improvisando onomatopéias estrepitosas e fazendo movimentações
intermitentes. Antes de começarmos Diógenes fez sobre cena uma dissertação que nos
deixou animados a dar magnitude nas atuações e depois enquanto nos preparávamos na
coxia um ator chamado Fabrício, que era sobrinho de Letícia, brincou chamando a cena
de “pesadelo de sublevação do Hipnotizador2”, mas não concordei com ele num
primeiro momento porquê haveria as atrizes com um pano enrolado no corpo para a
cena e, não obstante meu hábito de direcionar energias ao trabalho, me impedindo de
me empolgar sexualmente, isso não queria dizer que o sexo não estivesse presente, e
com elas daquele jeito ali minha energia, num primeiro momento, aumentou
naturalmente para fazer a cena feito algo providencial e proveitoso, foi como amar
turistas exóticas de um país distante e no rastejar profano ou no ideal quimérico
inebriei-me com seus perfumes exportados e seus corpos lipoaspirados e seus rostos
com amiúdes plásticas e suas palavras pronunciadas por inteiro, mas a compensação
viável não progrediu e as fadas desvaneceram quando a necessidade profissional exigiu
controlar instintos a ponto de até mesmo certa indiferença pessoal que aliás também era
exigida quando eu perdia qualquer empolgação pelo trabalho.
Letícia andava fazendo cara feia pelas alternâncias sobre o elenco e pelas
supressões e sobretudo acréscimos no espetáculo que causava atrasos em realizações
mais concretas, mas resistia bravamente e, quando brava, cobrava Diógenes na frente de
todos, no que ele na frente de todos usava para ela termos como “você é nossa salvação
da lavoura!”, “você borboleteia nossas sístoles e diástoles!”, assim repassada a energia
entre eles era aos demais atores que ela a direcionava, queria estimular a todos e a cada
vez que alguém tinha seu personagem substituído, ou tinha texto suprimido ou alterado
e principalmente aumentado, lhe chamava para um canto e o convocava a persistir
bravamente e, para todos em geral, durante os ensaios, quando ela estava na platéia os
convocava a persistir em cena:
– Eu estou convosco!
E mais que isso ela os convocava a persistir em cena quando ela própria estava
em cena, comigo isso ocorreu algumas vezes e, mais repetidamente, em minha
figuração na tal cena dos gnomos em que ele fazia a personagem de uma espécie de
fada-mor, entrava vestida e maquiada de fada-mor com assistência de seus figurinistas e
maquiadores particulares e, no meio do texto da fada-mor, e eu tinha dúvidas se ela iria
fazer isso também durante as eventuais apresentações, simplesmente enfiava coisas
como:
– Você vai conseguir! Não se entregue! Eu acredito em você!
E a impressão é que ela estava tentando tentando convencer a si mesma.

10

Ali naquela pensão também era possível encontrar alguma mitologia, embora
não pudesse ser identificada de pronto. Não seria uma mitologia igual a de certas
abordagens de Diógenes, que queria traduzir símbolos de outras culturas para
correspondentes nacionais, e mesmo que alguns daqueles peões da pensão lhe
explicasse segundo seus sentimentos mais puros, ou se a dona da pensão lhe explicasse
tecnicamente, ele iria entender, porquê Diógenes só entendia as coisas segundo sua
própria teoria e seu espetáculo era algo irremediavelmente preso na teoria, mesmo
quando falava de prática estava teorizando e os exus que apresentava em sua proposta
eram moças refinadas em relação ao que havia naquela pensão, ele só não podia ser
comparado a Letícia e sua turma cuja teoria era gritantemente brutal, queriam dar gritos
em vitrine e bancavam as aparências para rechear a farsa, caíam do cavalo logo na
largada.
Algumas armas da subnutrição não são feitas para ferir, talvez nem para
defender, apenas buscam catar grãos, de resto buscam se ocultar e na pensão eram
valiosas, ali se exigia um teatro bem convincente de invisibilidade e entre conciliador e
perigoso, inofensivo e imprevisível, passar batido sempre foi a melhor opção. O
currículo de observações selvagens acumulado ali exigia o personagem mais difícil, era
preciso manter distância das brigas quase cotidianas e quem tinha de tomar as
providências era a dona da pensão e seu filho. Guardar os próprios problemas era coisa
de adulto e o transcorrer dos dias revelava quem era quem. Assassinos não agem toda
hora e sequestradores não se interessariam por nós; os ladrões pequenos agem com mais
frequência, e se naquele quarto eu tinha certa segurança já dos quartos vizinhos podia-se
esperar tudo e inclusive em aparentes períodos de tranquilidade que é quando os ladrões
mais gostam de agir, pois para o ladrão a tranquilidade significa vacilo e não deixa de
ter sua razão. Era trabalhoso à dona da pensão e seu filho descobrir a verdade por trás de
roubos e brigas, determinar quem deveria ser penalizado e de que modo, podia surgir
erros de interpretação ou falhas nos julgamentos, as penas envolviam remanejamentos
para quartos piores ou expulsões, eventualmente era necessário chamar a polícia, acho
que ela conseguia manter aquela pensão mais na linha que Diógenes a seus atores.
Teve um quarentão, branco oriundo de uma pequena cidade, que foi remanejado
para o quarto em que eu estava, ele já me conhecia de conversar um pouco quando me
via sentado no muro frente à pensão, já tinha sido bem-sucedido mas caíra vários
degraus e agora trabalhava num pequeno escritório, tinha se separado da mulher e
sempre achei que ele tinha direito de se dar bem em alguma coisa. O centro-sulino
roubou ele.
O centro-sulino, um rapaz em torno de vinte anos, morava noutro quarto e
roubava descaradamente. Tinha seu rádio toca-fitas e, se aos meios de semana
imperavam os rádios à pilha a noite toda, aos finais de semana os rádios toca-fitas eram
retirados dos armários e guarda-roupas para ouvir músicas e, conforme as ouvíamos no
rádio, íamos gravando as músicas que nos interessavam em fitas-cassetes. O centro-
sulino gatuno me pedira uma fita-cassete emprestada para ouvir as músicas que eu tinha
gravado no meu rádio toca-fitas, quando eu fui lhe pedir de volta ele disse: “Já devolvi”,
eu apontei seu rádio toca-fitas, em que ele ouvia exatamente a fita que eu lhe
emprestara, e ele disse que era coincidência, rodou a fita e tocou algumas músicas,
algumas eu já conhecia e outras ele estava gravando por cima direto do rádio. Ele
bancava o simpático comigo, já tinha criado sua relação de reciprocidade comigo. Para
não criar caso o evitei dali em diante.
Toalhas penduradas no varal podiam sumir na madrugada mas, deixá-las dentro
do guarda-roupas, dava mofo e incomodava os pertences dos demais com quem se os
dividia. Lavar roupas aos finais de semana exigia que se ficasse assistindo-as secar para
não sumir. O quarentão trabalhava absolutamente todo dia e o centro-sulino roubava
absolutamente todas as suas toalhas, a cada toalha nova que ele comprava o centro-
sulino roubava, tinha o centro-sulino desenvolvido por ele certa fixação e queria as
toalhas dele, isso se repetiu tanto que estava todo mundo falando: o centro-sulino rouba
todas as toalhas do quarentão, a questão foi ficando pessoal demais e se o centro-sulino
podia roubar de outros fitas-cassetes e demais pequenos objetos era sempre uma só vez,
para não criar rancor por demais, mas do quarentão ele queria todas as toalhas e toda
vez que o quarentão chegava ao final de mais um dia de trabalho nada de toalha, vivia
tendo de se enxugar com suas camisetas.
Um final de semana entra o centro-sulino dentro do meu quarto com a boca
sangrando, quase chorando me fala:
– Olha aqui o que o teu amigo fez!
O meu amigo seria o quarentão. Eu achei foi pouco. O centro-sulino saiu dali e
nunca mais apareceu; aquele quarentão nos livrou do traste. O centro-sulino pelo que
deu para perceber não sentia culpa alguma porquê de algum modo não se sentia
culpado, ele achava que era seu direito roubar o quarentão, e por uns dias os caras mais
velhos da pensão fizeram especulações de que ele devia ter motivos estranhos e que
talvez o quarentão lhe remetesse à sua primeira vítima ou a alguém que ele sempre
quisera se vingar.
Contudo depois disso aquele quarentão, mesmo que aquele murro na boca que
deu no centro-sulino nem se comparasse a certas agressões que ocorriam ali, recebeu
consideração de alguns residentes dizendo que ele tinha “imposto respeito no ambiente”
e até mesmo de ladrões presentes dizendo odiar “ladrão no ambiente”, essa
consideração fez com que não mais sumissem suas toalhas do varal embora, quando ele
me via sentado no muro frente à pensão, me dizia que, “após ter entrado em evidência”,
isso lhe incomodava.
E aquele incômodo do quarentão iria terminar com sua saída da pensão, isso
coincidiu com um incidente me envolvendo. Numa das tardes de final de semana, em
que fui junto a outros residentes num forró de um bairro próximo, bebi tanto que ao
voltar tão logo deitei na cama fui tomado pela necessidade de vomitar e, estando o
banheiro lá fora com fila, para evitar o vômito no quarto fui vomitar no banheiro
destinado à dona da pensão exclusivamente, o banheiro que ficava ao lado do seu
quarto, após a cozinha, no vômito errei o vaso indo parte para o chão do banheiro e na
tontura sequer lembrei de dar descarga, dia seguinte acordei com ela entrando no quarto
a mandar o quarentão limpar seu banheiro porquê algum residente tinha lhe dito que um
“branco” vomitara lá, eu ainda estava sonolento foi só após os dois saírem que pulei do
beliche na intenção de explicar a ela que quem vomitara tinha sido eu mas, quando saí
do quarto, ao passar pelos beliches da sala rumo à cozinha um peão que dormia ali,
chamado Silvino, me falou:
– Fica na tua!
Silvino tinha me visto chegar bêbado no dia anterior e sabia que era eu que tinha
vomitado no banheiro.
– O cara já está limpando, já está resolvido – ele falou. – Se você se entrega, ela
te manda pra um quarto pior.
Fiquei na minha e voltei para a cama, e aquela foi a única vez que dei trabalho
naquela pensão ao sujar o banheiro proibido que o outro branco teve de limpar e, tão
logo terminou, o quarentão veio ao quarto e fez a mala comentando que era injusto
limpar a sujeira de outro, me deu a cópia da chave do cadeado do guarda-roupa que
dividia comigo e foi embora para algum outro lugar, coisa de cinco minutos depois
Silvino foi falar com a dona da pensão na cozinha e pediu a ela para ser remanejado
para o lugar do quarentão no que ela autorizou que ele levasse suas coisas para lá
naquele momento. Sem dúvida o quarto onde eu morava era muito mais seguro e
tranquilo que os beliches da sala e quando dei a cópia da chave do cadeado do guarda-
roupa para Silvino lhe falei:
– Você falou pra eu ficar na minha e deixar outro limpar meu vômito senão eu
iria pra um quarto pior, isso de fato podia ocorrer. Mas você podia estar querendo que o
quarentão fora daqui pra ocupar o seu lugar.
Eu falei isso mas não acreditava nisso, na real eu estava me culpando pelo que
ocorrera. Silvino era boa pessoa e isso transparecia, ele explicou:
– Se você admite o que fez na frente de todo mundo a dona da pensão teria de te
punir pra dar exemplo, ia criar um problema em cima de uma solução. Ela sabe que foi
você que vomitou, apenas usou isso como argumento pra tirar o quarentão, e o tirou pra
que ele não corresse risco na mão do centro-sulino, ela conhece o centro-sulino e sabe
que ele poderia voltar pra se vingar do quarentão.
Silvino era peão de construção e tinha quebrado o braço em acidente de trabalho,
estava encostado e ficava o dia todo lendo a Bíblia com dificuldades, era semi-
analfabeto. Conforme nossos dias passavam ali a gente conversava na medida do
possível, ele era boa convivência e certa vez me confessou quem é que tinha dito à dona
da pensão que um “branco” tinha vomitado no banheiro: a Neide.
A Neide era uma empregada que a dona da pensão tinha contratado
recentemente, eu me dava bem com ela que eventualmente me cantava músicas bregas
para que eu aprendesse as letras, ela achava engraçado minha curiosidade pelas letras e
a dona da pensão quando via isso também achava.
Mas a Neide em termos de gostar o que mais gostava mesmo era de bandido e o
próprio Silvino sabia ou desconfiava disso, ele olhava para ela com cautela e me dizia
que meu tratamento com ela era adequado dentro de limites, que eu não fosse além dos
limites de dentro da pensão porquê a Neide fora da pensão tinha certa “fama”, Silvino
sabia ou intuía algo sobre a Neide e a dona da pensão, sabendo ou não que a Neide
gostava de bandido, tinha a Neide ali por falta de uma melhor contratação ou porquê
gostando de bandido podia oferecer alguma proteção extra, seja como for de tudo que a
Neide podia fazer acabou fazendo o que jamais devia, a Neide roubou qualquer coisa do
quarto de macumba da dona da pensão e isso foi inadmissível para a dona da pensão que
a mandou embora, a Neide foi embora sem medo de macumba.
O Silvino nunca teve provas, mas sempre me disse no particular que aqueles
assaltantes que vieram a aparecer lá durante uma noite só podiam ter sido mandados
pela Neide.
Eles chegaram num horário adequado, justamente quando o filho da dona da
pensão não estava e que poderia reagir. Era domingo de manhã e eu tinha ido até a feira
comprar umas frutas, horário em que a maioria devia estar dormindo, quando retornei
da rua percebi um estranho silêncio já logo no quintal e quando abri a porta estavam
sentados, no banco à mesa e no chão e embaixo da mesa e ao lado do fogão e
acumulados em cada centímetro da cozinha, aqueles residentes todos fossem os aqueles
que dormiam ali no chão ou que passaram por ali naquele instante mais os que já tinham
sido acordados dos outros quartos e trazidos até ali.
– Que foi? – pergunto.
Treze bilhões deles em todos os espaços preenchidos me cochicharam:
– Os caras, os caras...
Basicamente ciciavam e, logo em seguida, um dos caras chegou à cozinha vindo
de um dos cômodos lá dentro, tinha um revólver na mão e apontou para mim, falou:
– Cadê o trabuco?!
Pura perda de tempo dele, só balanço a cabeça em negativa. O segundo logo
aparece por trás do outro, eram dois. Já tinham revirado os quartos lá dentro em busca
de um “trabuco” e nos mandam sentar no chão com as cabeças abaixadas, dois menores
de idade que já tinham um “trabuco” e queriam outro, um para cada um, daí voltaram
juntos para os cômodos de dentro para procurar o “trabuco” e arrebentando cadeados de
armários e guarda-roupas ficavam a conversar entre protestos, não estavam conseguido
achar o “trabuco”.
A dona da pensão estava sentada à mesa, ao lado Silvino resmungava baixo que
só podia ser a Neide, a dona da pensão balançou a cabeça em concordância enquanto o
dois continuavam arrebentando tudo lá dentro e, a partir de certa altura, passaram a
concluir:
– Acho que esse negócio de trabuco foi uma roubada. Vamos levar o que der.
Se quisessem meu rádio toca-fitas podiam levar, naquele momento eu não ia
reclamar. A gente ouvia os dois infratores conversando enquanto enchiam os sacos
plásticos com nossas posses e ainda estavam no quarto do meio, não haviam chegado
até o que eu dormia. Enchendo os sacos com tralhas dos residentes eram rádios à pilha o
que mais dava peso. Pensei que pouco tinha usado meu rádio toca-fitas.
De repente tocou um celular, dei uma esticada no pescoço para ver e um dos
ladrões atendia, era um celular enorme e raridade na época, acho que o nome ainda nem
era celular e dava meio tijolo, tinha até antena de uns trinta centímetros que o ladrão
esticou para pegar a frequência melhor mas, como a frequência estava ruim, ficou
andando com aquilo na mão em busca de um ponto onde recebesse melhor a ligação, foi
para a cozinha e ali a frequência melhorou.
– Alô?... Sei... Não, agora não vai dar... Mais tarde... Tá... Só vou terminar um
serviço aqui... Tá, eu sei, é foda, o cara já tinha brageado dez gramas, ainda tinha cro à
vontade pro cachimbo, e ainda deu uma de dizer que tava deprimido. Esses
modernosos... Tá... Já tenho aquela encomenda... Passo aí mais tarde... Tá... um beij...
O ladrão ia falar um beijo mas olhou feio para os lados e interrompeu o fim da
palavra, ficou até um pouco constrangido e voltou para os quartos de dentro, nesse
momento estávamos todos quietos mas, se Silvino e a dona da pensão falassem, diriam
que a “encomenda” era para a Neide.
Chegam, de repente, dois outros residentes, vindos da rua, abrem a porta e não
sabem o que está acontecendo, alguns residentes-reféns cochicham:
– Assaltoooo!
Os dois voltam a sair enquanto os dois ladrões prosseguem fazendo uma limpa lá
dentro meio destrambelhados, lá enchem sacos de pequenas posses dos residentes e,
enquanto isso, começam a desenvolver um diálogo:
– ...Aquele otário deu entrevista pra tevê no viaduto 3x4, ao vivo, logo ele que é
procurado por causa daqueles chassis adulterados da zona austral... Foi grampeado meia
hora depois...
– ...Duro foi o otário da favela, desconfiado com peso a menos da brag foi
confirmar na balança da farmácia, foi gravado pela câmera, tinha até timbre de facção
no pacote...
– Duro? E o otário que roubou bijuteria pensando que era de ouro e, quando
descobriu, voltou na loja pra reclamar?
Estão para lá de dopados, ao passo que a polícia da Capital é muito eficiente e
ainda mais numa região movimentada, chega após pouco tempo. Fiquei até com dó
daqueles dois menores.
– Ei! – ouço alguém gritando lá fora.
Estou de frente para a janela basculante e ao olhar por ela tem um policial
apontado seu revólver bem entre os meus dois olhos:
– Você!
Os dois menores vêm correndo de lá de dentro, me apontam o seu revólver:
– Quem é?!
– Polícia – respondo.
– Diga que é briga de família – ordenam.
– É briga de família – digo trêmulo aos policiais.
– Todo mundo pra fora!
Os policiais deram sua ordem mas nem esperaram a gente tomar alguma
iniciativa, abriram a porta com um bicudo:
– Todo mundo pra fora!
Nós do chão nos levantamos e fomos saindo, recebemos o comando para pôr as
mãos na parede e não nos mexer, depois os policias foram caçar os assaltantes dentro da
casa e dos dois um levou um tiro na perna, depois apanharam um bocado e foram
trazidos para fora, atirados ao chão de barriga para baixo foram algemados e, dali,
arrastados para camburão.
Quando voltamos para dentro da casa as paredes estavam chapiscadas de sangue,
peguei meu rádio toca-fitas de volta e fui para a cama gravar algumas músicas
aproveitando minhas horas de folga, dia seguinte teria oitenta peças para fabricar.
Do que ficamos sabendo, os assaltantes não entregaram a Neide na delegacia. Eu
nunca mais vi a Neide.

11

Meu chefe andava tendo uns modos mais educados para comigo nos últimos
tempos, se aproximando de mim com tamanha cordialidade que chegava a preocupar, e
ainda bem que naquela manhã descobri que suas intenções a meu respeito eram apenas
intermediárias.
Eu tentava tirar as lascas de ferro grudadas no rosto frente a um caco de espelho
acima de uma grande pia onde os peões ao final do expediente se lavavam e davam uma
ajeitada no visual, foi nesse momento que ele se aproximou:
– Vai se limpar antes de se sujar?
Sua cordialidade foi em forma de pergunta que não respondi, apenas deixei o
caco de espelho pronto para começar o serviço, daí ele perguntou:
– Verdade que você sabe escrever?
– Sim, chefe.
– Pode escrever uma carta? É pra minha pretendida.
– Sim.
Na verdade eu havia documentado, além do curso incompleto de torneiro,
apenas ginasial incompleto ao preencher a ficha para aquele emprego, achei que se eles
soubessem de meu um ano de faculdade poderiam não me contratar por excesso de
conhecimento, também considerando certo temor em ser discriminado entre aquela
gente analfabeta da fábrica. Mas parece que o ginasial incompleto impressionou meu
chefe que, também analfabeto, devia ter tomado conhecimento de meu currículo junto à
secretária do escritório.
– Depois te chamo.
– Sim, chefe.
Por toda a manhã ele nem mais se aproximou de mim, sequer deu as caras no
galpão, não ouvi seu grito sequer de longe e, no almoço, quando eu estava ali no chão
do pátio iniciando o desjejum ao lado do Gordinho ele gritou de lá da sua “sala”:
– Vem cá!
Era assim, ele gritava “vem cá!” e a pessoa à qual ele estava chamando tinha de
descobrir que estava sendo chamada.
– Vem logo!
Se o cidadão fosse chamado mais de três vezes e não atendesse podia preparar a
munheca para assinar o aviso prévio ou, melhormente, o dedão para a impressão digital
já que muita gente ali não sabia assinar nem o próprio nome.
– Tô falando com você!
Eu tinha comido somente metade do arroz e da farinha, o ovo frito eu estava
guardando para o final, do jeito que estava deixei a marmita no chão e saí correndo,
ainda ouvi o Gordinho gritando:
– Posso ficar com o ovo?
Isso não carecia de resposta porquê ele ia comer o meu ovo de qualquer jeito e,
depois, ainda era capaz que dissesse: “Pensei que cê já tinha terminado.”
A “sala” do chefe era uma espécie de jaula de concreto e sem janelas no rabo da
fábrica, tinha duas cadeiras e uma mesa enlameada de piche e graxa, ele estava ali
sentado e um bocado ansioso mas, antes de iniciarmos a redação da carta, ele fez
questão de me oferecer a metade da sua comida, devia estar sendo bem difícil para ele,
foi uma marmitex que ele dividiu comigo e “dividiu” mesmo, pegou a marmitex e a
rachou com as mãos exatamente pela metade me dando uma das partes, não podia haver
maior declaração de amizade, e ainda por cima ofereceu um resquício do seu
refrigerante, comemos juntos enquanto ele me dava uma audiência sobre o que queria
que eu escrevesse para a sua “pretendida”, apresentava certa dificuldade de expressar o
que queria por meio de palavras e em seu complexo dialeto micro-regional setenta por
cento do que dizia não dava para decodificar, ele tinha um vasto mundo para botar para
fora só não sabendo dar forma adequada a isso e eu ainda estava mastigando o final da
sua comida quando ele já veio empurrando aquele papel já permeado de perfume barato
por cima da mesa em minha direção no que peguei a caneta com a mão ainda
encharcada de óleo de ovo frito passando a escrever as ensaiadas declarações de amor
que ele soltava sem escrúpulos com seu hálito de fritura saturada, do que dava para
entender era de arrepiar o que ele dizia, de meu toicinho de porco para lá, escrevi me
inspirando em suas expressões faciais e tentando traduzir o que ele dizia além de
acrescer elementos da minha vida social, pelo conjunto encontrava palavras como
“estou com vontade de sair da firma e me firmar com você, meu toicinho de porco,
estou com vontade de chorar de emoção e medo, eu sei que não é fácil ser gostado por
alguém porquê é o que há de mais duro na vida porquê tem gente que gosta da gente e
logo nos escraviza com requintes bem especiais porquê tem gente que precisa aprender
a controlar o que ama e assim, meu toicinho sagrado, deixemos de ser pássaros presos
em gaiolas ou animais presos em coleiras ou humanos presos em jaulas, deixemos de
passar tanto tempo obrigados a fazer a dor e a alegria alheia, tanto tempo subordinado
aos sonhos e pesadelos alheios, porquê nisso aí chega uma hora que não se consegue
acordar mais, sejamos toicinhos livres ao sol...”, quando o papel ficou todo preenchido
eu lhe disse que faltava o nome do remetente e da “pretendida”, no que ele me mandou
calar a boca e disse que os dois nomes ele mesmo sabia escrever, depois:
– Volte ao trabalho. Amanhã tem mais.
12

Pensei que talvez fosse por causa dos abraços que algumas delas me davam
durante os ensaios e nos debates aos finais dos ensaios, por vezes até mesmo na sala de
ginástica quando eu estava passando, nisso ocorria de fazerem confissões junto a
lágrimas e até piadas faziam dizendo que eu servia de apoio para confessionário ou
apoio de intervalo ou qualquer coisa assim. Abraços de ensaios e lágrimas de debates e
abraços de coxia e lágrimas de coxia, abraços molhados de suores de ergométrica e
olhos marejados num vale de lágrimas luxuosas mescladas a um bom perfume. Mas
logo pensei que não era isso, que isso era só uma situação cristalizada e tantas vezes
falsa feito perfume doce demais feito prisão.
Eu nunca fiz um exercício naquela sala de ginástica, já tinha as minhas seções na
fábrica de balanças, só via elas tonificando músculos animadas e soltando línguas a
colocar seus grilos para fora e inclusive prevendo o pior, pressagiando o fracasso do
projeto e confessando seus planos substitutos já preparadas para uma eventual e nova
imersão a um novo grupo e a uma renovação de suas verdades, já em outros momentos
tinha aquelas que eram aprofundadas em complexos sofismas e simbolismo e arquétipos
exportados e cartilhas mentalmente embaralhadas que geralmente eram para mim sons
ocos feito sinfonia monocórdia contudo por vezes me forneciam algum aprendizado e
surpreendido eu entrava com elas em idílios sem que elas soubessem enquanto as via
caminhar em esteiras como se não precisassem chegar a lugar algum, quase todas
costumavam entrar em questões como “receitas de fama” feito uma rasante lhe
atingindo talvez pelo fluxo sanguíneo subindo ao cérebro e nessas horas eu me entupia
de silêncio ou contribuía com a causa as chamando de “glóricas estrelas glóricas e
centralizadoras de energias glóricas plugando-se ao futuro glórico” e elas, animadas, me
diziam:
– Basta querer ser e você vai ver.
– Quando garoto – certa vez falei em teste – eu sonhava em ser jogador de
futebol. Tinha minhas dúvidas sobre minha capacidade como jogador, mas tentava
acreditar nisso.
– Não é assim – me explicaram. – Você tem de acreditar como se já tivesse
ocorrido. Faça isso toda vez que acordar, sem rótulos nem réstias.
Claro que eu não iria falar sobre acordar, ainda menos sobre prosseguir. Claro
que não era por causa daquela sala de ginástica nem do suor que elas esvaiam na
ergométrica. Num tabuleiros todas as peças devem se mover nem que no mesmo lugar
desde que algo esteja movendo ao redor delas.
Talvez tenha sido pelo fracasso em minha interpretação do Soldado9, ou que
fosse do Marinheiro17, ou dos dois, ou ainda simplesmente por causa da interpretação
do gnomo, que no conceito de Diógenes não estavam bons. Mas não acredito nisso.
Aqueles personagens podiam ser suprimidos que nada afetaria o todo. Ou talvez fosse
pelo que eu não acreditava, no meu conceito Diógenes dizia acreditar tanto mas eu não
acreditava que ele estava acreditando tanto assim e ainda menos estava sabendo lidar
com aquela gente embora talvez para aquela gente não existisse um modo certo de lidar,
no meu conceito que não interessava a Diógenes caso ele quisesse se impor já teria sido
enxotado a muito tempo e no meu conceito Diógenes não sabia diferenciar focinho de
porco de tomada, seu amante era um quadrúpede e Letícia era tão orelhuda que não sei
como se mantinha sobre os dois pés, aquela turma de Letícia era ou se fazia de ainda
mais grosseira para acompanhá-la sem a contrariar e ela não admitia ser liderada, fazia
questão de dar ordens por capricho e queria ser estrela e proteger aos seus cupinchas e
fazer uma psicoterapia e ser paparicada tudo ao mesmo tempo através do teatro sem
jamais ser questionada e intocável, a maioria dos atores queriam um sucesso bombástico
a ser pago com esteiras e lágrimas e sem sair do invólucro aos quais estavam
condicionados, herdeiros queriam a própria insurreição.
Contudo não faltando ali conceitos não seria os conceito de um eletricista que
iriam lhes interessar. Sendo Diógenes o rei dos conceitos e a maioria deles apreendidos
do Deus do Charuto com o qual trabalhara e motivo pelo qual tanto impressionava
Letícia ficavam eles se debatendo nisso, ela ia pegá-lo de carro todos os dias na
rodoviária de onde ele vinha de uma pequena cidade-satélite e chegavam se debatendo
entre conceitos, ela certamente pagava suas passagens até a rodoviária tanto quanto para
ser o seu diretor e se tudo desse certo elevá-la ao ansiado status de celebridade pela
crença de que o Deus do Charuto tinha uma esteira lhes atingindo com o que havia de
melhor, já os demais em sua maioria embora também os conceitos de modo geral lhes
atormentassem e eventualmente até algumas horas de seu sono junto à tantas horas de
ergométricas igualmente lhes pareciam inevitavelmente necessários à fama e essa
combinação era vista em forma de sacrifício, tinham de chorar. Por todos os conceitos
do mundo discutiam todas as noites e não haveriam se ser torpes, a energia
condicionada na ginástica não haveria de ser torpe e também seus debates paralelos não
haveriam de ser torpes, podia haver detalhes bestiais e grupos divididos e motivos
débeis e podia prosseguir jorrando pelos olhos uma infinidade de choros desconexos e
descer tinta de maquiagem junto a lágrimas mas não haveriam de ser torpes, podiam até
ser absurdamente perplexos e inclusive de forma enfastiada e desalentadora e podiam
desencarcerar suas mentes e corpos em arsenais de morbidez desordenada que não
chegava nunca a lugar algum mas não haveriam de ser torpes.
O eletricista não entendia muito bem a choradeira e ainda menos tanto barulho
para isso em tanta evidência na frente de todos, isso por vezes lhe dava certo tédio
misturado a agonia misturado a dúvidas, mas não haveria também ele de ser torpe. O
eletricista poderia facilmente dizer que a comida e a adega seriam as provas mais
contundentes em sua insistência em ficar, afinal locais onde bebida e comida jamais se
acabam lhe permitiam se fartar até quase estourar feito pulga e não haveria de ser torpe,
de resto se seu destino à sombra da miséria lhe parecia descabido e errante feito pena ao
vento em atalhos flutuantes de trilhas certeiras em direção ao penhasco do chão também
não haveria de ser torpe tanto quanto não haveria de ser torpe sua certeza de coisas que
não mudam no lamaçal entre pontes e na abdicação de si mesmo e no constrangimento
por causa das pulgas quando o pessoal se coçava, ele já até tinha dito certa vez:
– Este teatro tem de ser dedetizado!
Putz. Um teatro novinho daqueles. Não haveria de ser culpa daquele espaço nem
do outro feito noutro mundo trazido ao presente, feito por todos que o queriam fazer no
direito de todos de o fazer e na vontade independente de classe, culpa nenhuma haveria
e nem haveria de ser torpe.
Mas acontece que, indo para trás, para o início, tinha um motivo específico do
qual o eletricista não conseguia se livrar. Letícia ainda não lhe havia pago por seus
serviços, ela o embromava toda vez que ele cobrava, ela dizia sempre a mesma coisa
feito esteira rolando no mesmo lugar, que ia lhe pagar semana que vem, semana que
vem...
Devia ser por isso.
13

Nunca se podia esquecer a pensão onde tudo começava e terminava, lá o


irrevogável perigo podia ser logo de cara no imprevisto e em qualquer lugar desde a
entrada pelo portão, pelo corredor de fora, no banheiro, na cozinha, nos quartos, em
qualquer canto.
Mas outra vez foi bem na cozinha, logo quando eu estava chegando num meio
de semana, próximo da meia-noite, e foi tão logo a abrir a porta e lá estava ele, um
mastodonte encharcado de cachaça na cabeça mas ainda bem inteiro de corpo. A
cozinha e suas mil e uma novidades.
Era crioulo e devia ter acabado de chegar de alguma baiúca pestilencial, estava
ali em pé no meio da cozinha atravancando os passos da humanidade e era feio de dar
nó no estômago, tinha olhos vidrados e fixos na minha frente e dominado pelo álcool
não parecia consciente de nada. Eu nunca o tinha visto e não sabia o que fazer; se eu
faço uma oração ele podia reclamar ou querer tomar satisfações ou mesmo querer me
adorar e me perseguir para o resto da vida com sua adoração ou perseguir a qualquer um
que pensasse ser eu; melhor seria ficar invisível e passar batido que é o grande segredo
do mundo ou de pensões assim, embora uma iniciação à qual eu estava longe mesmo
com todo esforço. Sem querer acabei falando:
– Ôpa.
E ainda bem que logo após ter ouvido, ou antes que eu terminasse de falar “ôpa”,
ele pareceu já ter esquecido em sua curta memória quase fundida, de resto só ficando
mesmo sua vontade de arrumar uma encrenca bem grossa, assim empestado por uma
camada bem grossa de desgraças pessoais queria bater bem de frente com qualquer um e
podia brigar com um cara só e pensar que estava brigando com milhões, ou brigar com
um cachorro e pensar que era um batalhão de homens. Não havia rigorosamente nada
em comum entre eu e esse cidadão mas ele não saía do meio da cozinha para que eu
passasse e para piorar foi só eu dar um passo para o lado que ele deu dois em minha
direção e atirou suas mãos rumo ao meu peito feito rolo compressor, no que consegui
desviar a tempo e cruzei para o outro lado rapidamente, depois fui pelo canto da janela e
por trás da mesa atravessei a cozinha inclusive tendo de pular um dos recém-chegados
residentes que dormia ao lado de outros ali no chão, fui para dentro da casa e cheguei
até o quarto onde dormia, abri o guarda-roupa e peguei a escova de dentes e pus na
cintura, peguei a marmita sobre minha cama e voltei para a cozinha e vi que o cidadão,
após ter ido para cima de mim, tinha vivenciado alguma alteração brusca de caminho e
tinha ido parar lá do lado de fora, estava agora no escuro do quintal com a alma
escurecida.
Acendi o fogo no fogão e pus a marmita para esquentar. Um silêncio reinava no
quintal mas eu sabia que o cidadão estava lá. Um dos residentes que dormia no chão e
que eu tinha acabado de pular tirou sua cabeça debaixo da coberta e me fez uma
confidência:
– Tô tentando dormir mas ele não deixa, toda hora vem encher, é do tipo que
não adianta criar solto.
Este tinha chegado recentemente e junto aos demais no chão estava sendo
testados pela dona da pensão para conseguir direito a uma cama de beliche da
estrebaria. Eu guardara sua feição porquê ele estivera presente durante o assalto
frustrado dos dois menores pouco tempo atrás, estava se alfabetizando numa escola da
região e tinha ao lado do colchão um caderno para estudar.
– Tá com o espírito confuso – comentei.
– A gente dorme e treme, acorda e treme. A gente treme repentinamente porquê
essas coisas pegam a gente desprevenido e deixam a gente tremendo. Ele já saiu e
entrou várias vezes, fica vagando lá fora em silêncio perigoso e volta. Precisa ser
idiotizado num estábulo com um arreio bem reforçado.
– Se a gente cede ao medo – ajudei – vai ficar com medo pra sempre, mas se a
gente encara o perigo pode ter consequências ainda mais graves que podem trazer
medos mais graves. Vou comer de olhos abertos.
O residente sentou-se no colchão e passou a me contar suas dores, que tinha
fugido seca e que talvez o problema da seca talvez não mudasse nunca, depois abriu seu
caderno e leu um pouco em silêncio, depois falou:
– A gente aqui, e os ricos não estão aqui, muitos deles são bandidos temidos ou
trafistas de renome. Pra gente como nós uma pequena vitória não pode ser diminuída,
está dentro de boas estatísticas. Tem pobre que fica rico e vira contra-referência da
maioria. Se os sonhos nos alimentam, também nos corroem, e por vezes os pequenos
triunfos dizem muito mais que os grandes. Na seca a gente conhece a falta.
Eu não sabia se ele falava sobre o que havia lido ou já era outro assunto. Peguei
a marmita quente do fogão e pus na mesa, sentei e comecei a comer enquanto o
desabafo dele ia e voltava e sempre parava na seca, falava da saudade de sua terra com
seca e tudo sendo que suas últimas palavras à mim dirigidas foram sobre a tristeza da
seca para logo em seguida o bêbado possesso voltar para a cozinha lhe fazendo enfiar a
cabeça para dentro de sua coberta e virar um pedaço de pedra.
Quanto a mim foram no máximo mais umas três garfadas, a seguir o cidadão
sentou-se no banco do outro lado da mesa de frente para mim e ao olhar a cara dele
parecia não ser uma cara mas um conjunto purulências despregadas e independentes
cada uma mais horripilante que a outra e nenhuma delas se encaixando uma na outra,
era tão feio que eu estava mais assustado com sua feiúra do que com seu tamanho.
– Tá mi evitanu purquê? Foi cê né? Cê fez, cê fez, cê fez, cê fez...
Fechar os olhos também seria arriscado, restaria apenas o medo de suas ações. É
preciso aprender a olhar sem olhar, não-olhar de olhos abertos, e enquanto ele falava “cê
fez, cê fez...” ao mesmo tempo fazia barulho de saliva dentro da boca e salivas novas
para atrair a produção de mais salivas, assim eu mastigando a comida e ele fazendo
saliva até que a saliva transbordou-se e ficou esvaindo-se pelos cantos da sua boca e daí
ele fez a mira com um dos seus olhos que pareciam vinte olhando para tudo e nada ao
mesmo tempo e daí deu uma cusparada no que supunha ser a minha direção, queria me
atingir, me afogar, me emboscar, embora com a pontaria alimentada por cachaça o
enorme cuspe branco ficou a uns três centímetros da marmita sobre a mesa.
– Tá fazendo cu doce? Cê fez, cê fez, cê fez...
O quasímodo estava perto demais, deixei a comida de lado e enfiei a mão no
bolso na intenção de desviar sua atenção e, quando toquei na caixa de fósforos no bolso,
me veio a idéia de comprovar algo que tinha visto na minha infância entre bóias-frias
chapados de pinga, assim sob sua intensa observação tirei a caixa do bolso e acendi um
palito, levantei a chama na altura de seus olhos e a joguei sobre o seu cuspe,
comprovação imediata: o fósforo saltou para cima numa labareda de fogo.
– Cê tá mi tacandu fogo, tá mi tacandu, tá fogo, tá fogo!
O cidadão se debatia como se estivesse sendo escaldado, não compreendia que o
cuspe já não mais integrava seu corpo, me olhava com ódio inexplicável e já estava a
ponto de virar a mesa e sair dando cabeçada no que se movesse.
– Vô fazê tamém, vô fazê, vô fazê, vô fazê...
Se tinha gente que via meu silêncio como sinistro, aquele ali só via fogo e
vontade de fazer algo. Olhando para ele de relance afastei a marmita para o lado e
empurrei calmamente a caixa de fósforo em sua direção. O monstrengo ficou olhando a
caixa e dizendo que ia fazer, ia fazer, ia fazer. Deixei ele ali e fui me deitar sem escovar
os dentes.
Com o pior a gente esquece o ruim, toda diferença está na proximidade, a
natureza da incompreensão exige distância e ali deitado não era preciso pensar para
saber que entre falar e silêncio somente o silêncio tinha toda razão. As pulgas têm seus
direitos mas dessa vez algo as tinha vencido, era meu medo de que o cidadão chegasse
até ali atrás de mim ou da minha sombra.
Por um momento ainda tentei fugir para longe, qualquer lugar onde faltasse
pouco entre pulga e homem, mas o prognóstico do tédio não funciona bem para a pele e
ademais instantes depois o cidadão bêbado estava dando trabalho para o pessoal de um
quarto ao lado querendo deitar-se na cama errada, querendo conversar e brigar e fumar e
beber e ser ouvido. Alguns sujeitos do meu quarto reclamaram unânimes no escuro de
suas camas que tinham de trabalhar dia seguinte e eu também reclamei que tinha de
trabalhar no dia seguinte, por alguns minutos ainda ficamos a ouvir aquele tumulto que
vinha do quarto ao lado ao mesmo tempo que os rádios a pilha até que finalmente
cochilei num tempo que, e se durou uma meia hora, foi muito.
Quando se dorme se está totalmente entregue às desgraças e o tempo tem outro
ritmo e toda realidade parece lenta ou rápida demais, é a confusão dos sentidos onde um
pavor cobre o outro continuamente e inclusive vindo da realidade em forma de pulga ou
gente. De repente acordei de um sonho ruim quase vivo que nada tinha a ver com as
pulgas e ia além delas, havia um fuzuê no quarto vizinho e contava com gritos, abri os
olhos por um segundo e depois os fechei por uns instantes, depois a encrenca cresceu de
onde tinha surgido em forma de fogo.
No nosso quarto chegou primeiro em forma de cheiro de queimado, seguido por
uma fumaça invadindo as frestas da porta. O fogo é silencioso e creio que quando
atingiu aos mais próximos do quarto onde começou demorou-se pelo menos alguns
segundos para que acordassem. Um grito causado por queimadura é coisa de outro
mundo e se o inferno for feito de fogo está explicado, o fogo é muito eficiente em tirar o
torpor e jogar a realidade na carne.
Quando abrimos a porta do cômodo onde a deflagração iniciara-se vimos
cobertas incendiadas naquele razoável clarão que já tomava conta do local e sem dúvida
a combustão foi mais rapidamente conflagrada por conta dos inseticidas inflamáveis
largamente utilizados na guerra de humanos X pulgas em que estávamos perdendo. O
teste da intrepidez é ser pega desprevenida e havia marmanjos de três metros pulando
dos beliches aos bramidos num rompante de terror imediato, seus sonhos eróticos
suspensos instantaneamente faziam os paus amolecerem na marra e no medo,
embarafustando-se uns aos outros e grasnando em pesadelo real corriam apatetados casa
afora desapossados de si mesmos, em pedidos clementes aparvalhavam-se de cuecas e
nus, pululavam aos berros e mesmo aqueles os bêbados comprovaram a capacidade de
auto-defesa embora tenham sido os mais danificados, contudo ninguém morreu,
finalmente a salvação.
Enquanto pústulas esqueciam-se de baixos planos de vingança e desavenças por
ninharias, na iniciativa de apagar o fogo alguns caras da pensão correram para fora em
função de molhar cobertas no tanque e nesse momento chegava o valente filho da dona
da pensão que já logo encheu um balde de água. Enquanto arrastávamos armários para
não serem atingidos alguém disse que ia chamar a polícia e Silvino, ao meu lado, pediu
que também chamassem a ambulância para os atingidos, chegando polícia e ambulância
alguns residentes do quarto onde iniciou o incêndio foram atendidos indo para o
hospital com queimaduras embora alguns que também precisavam de cuidados já nem
mais estavam presentes por serem foragidos da justiça e mesmo tostados ou
parcialmente carbonizados tinham circuitado com pulgas estorricadas por sobre
queimaduras.
– Que galvanização, hein? – disseram os homens da lei ao adentrar a casa.
Os policiais tinham treinamento e em pouco tempo já tinham as informações
necessárias, confirmaram com os residentes de dentro que o cidadão bêbado se deitara
num colchão ali dentro e tinha acendido um cigarro na cama, depois dormira só
acordando com o fogo consumindo o colchão, a dona da pensão disse que o cidadão
bêbado se deitara no colchão errado porquê seu lugar era num dos quartos do fundo, ele
era residente novo e peão, já eu me apresentando deliberadamente para contar detalhes
do ocorrido falei o que sabia e ainda comentei querendo fazer uma média:
– O peão devia estar em seu dia de folga como burro de carga, dele eu só queria
alguns metros de equidistância divididos por várias paredes, mas não foi possível.
Os policiais disseram que eu tinha um vocabulário muito inadequado para o
ambiente, no que dei uma informação bem direta:
– Ele dever ter usado minha caixa de fósforos pra atear o fogo.
Os policias riram na minha cara e disseram que eu era uma espécie de cúmplice
indireto, disseram que eu era adequado para dar depoimento na delegacia.
– Desculpa minha boca grande – falei. – Mas tenho de trabalhar amanhã cedo,
podem me liberar do depoimento?
Os policiais riram mais um pouco, disseram que a vida é uma brasa e que a
burocracia necessária exigia a confecção de b.o. que inclusive seria bom para mim caso
eu viesse a sofrer futuras represálias por parte do próprio cidadão incendiário, no que eu
lhes disse que era um pouco de exagero deles já que do jeito que o cidadão estava
embriagado dificilmente se lembraria de coisa alguma ao recobrar os sentidos.
– Na possibilidade dele recobrar os sentidos – disseram os homens da lei.
Daí me informaram que no desespero irracional o cidadão havia corrido para a
rua e desarvorado foi pego pelo pára-choque de um carro na esquina onde uma outra
ambulância o estava atendendo, preferi nem pensar nos meus desejos naquele momento.
Fui para a delegacia sem saber que Silvino, naquele mesmo momento, estava
fazendo a mala para sumir da pensão, tanto quanto o cara da seca, e eu nunca mais os
veria. Mas a gente não gostava mesmo de despedidas. Lembrei que certa vez eu e
Silvino fomos a um clube de dança e quando o porteiro pediu meu nome para anotar na
comanda inventei um pseudônimo chique e Silvino, que sequer sabia meu nome
original, inventou o seu ao porteiro: “Silver”, depois disso quando a gente bebia eu
assim o chamava e ele achava engraçado. O cara da seca nunca me disse seu nome.

14

Dentro da viatura da polícia fui naquele assento duro onde os presos são
conduzidos, chegando à delegacia outro banco duro me fez aguardar para preencher a
papelada de praxe por horas tal era o movimento da noite como se as bruxas estivessem
soltas, estava cheio do sono e preocupado com a condição física para trabalhar após o
amanhecer.
Pouco antes do sol dar as caras a polícia trouxe das ruas um elemento recém-
preso e o deixaram ali no banco ao meu lado com as mãos algemadas para trás, ele já
sofrera algum espancamento para começar e esperava sua vez de ser fichado para
encaminhamento a uma cela, tinha uma dura cara dúbia e veio arrastando-se pelo banco
até encostar-se ao meu lado.
– Coceira é foda – reclamou. – Dá pra coçar pra mim?
Ele tentava coçar as costas esfregando-as na parede e dizia que a parede não
tinha o mesmo efeito que uma unha. Pus a ponta de uma unha em suas costas pruridas e
lhe dei uma força enquanto ele dizia “mais pra cima, mais pra baixo, ahhh...”, daí eu
parei com aquilo deixando-o que se virasse com sua coceira, no que ele voltou a
relacionar-se com a parede gemente e morfético, “ahhh, que delícia”, e depois simpático
passou a me falar da suas experiências pessoais bem como a me fazer perguntas
comparativas às tais experiências:
– Dar o cu só dói na primeira vez. Você já deu? Já comeu? Já comeu, né? Já foi
preso?
– Só pernoite.
– Você tem cara de quem come. Eu tenho cara de quem dá. É isso que distingue
as pessoas e, quem dá, dá porquê acostuma, enquanto quem come só come porquê não
dá, eu se dou vou agora me esbaldar e ainda por cima vou comer, comida, de graça, que
vão dar pra mim, e vou dormir de graça, dormindo também vou dar e, de dar, só o que
me enfeza é neguinho com a unha do dedão do pé comprida, porquê aquilo machuca o
calcanhar da gente, eu só dou pra unha cortada.
– Certo.
– A barriga batendo nas costas não dá pra evitar a quem dá, mas a unha tem que
cortar antes de comer, e se o cara é estripado só por causa de uma unha, aprende a
comer, daí quem dá ensina a comer.
– Sei.
– Quem dá, dá, e não é só porquê dá que é baitola.
Ficou ali o elemento falando sobre sua concepção, e olhando sua cara eu tinha
dúvidas se ele realmente estava gostando da idéia de ser preso, parecia mais querer se
convencer disso. Me lembrei das atrizes do espetáculo de Diógenes que choravam ao
estarem fazendo algo que por tese deviam gostar e o mundo delas me parecia
desencaixado, pareciam elas sofrer de graça feito modus operanti, mas não seria eu que
iria coibir isso nelas mesmo porquê não seria capaz e, vai ver, elas realmente
precisavam disso.
Por uma questão de prioridade primeiro ficharam o elemento, depois o levaram
para dentro das grades e daí chegou minha vez. Eu nem tinha novidades para dizer ao
delegado além do que já tinha dito aos policiais e falei que o peão incendiário estava
para lá do mundo, que queria brigar comigo na cozinha e que atrapalhou minha janta.
– O que você faz? – ele quis saber.
Pensei em dizer “torneiro mecânico” ou “eletricista”, mas acabei dizendo que
era “ator” na intenção de impressionar o homem da lei que, me olhando de soslaio, deu
lá o seu riso na idéia:
– Quantos anos você tem?
– Uns vinte, pra mais ou pra menos.
– Nesta idade – ele encerrou – eu já era cabo.
Uma vez liberado meu caminho dali era o trabalho, onde pegava às oito horas na
fábrica. Oitenta peças.
15

A gente entra na roda e depois fica tentando não pensar mais nela, tenta dar
corda e seguir em frente no eflúvio, tem outros fazendo nossa comida e defendendo
nossos direitos, alguns cuidam da nossa ficha e todos dão duro no ganha-pão, qualquer
problema é só lembrar que tem uma turba imprensada lá fora querendo entrar, aqueles
envilecidos pela carestia e refocilados pelo ócio fazem complôs mirabolantes para tomar
nosso lugar e estão dispostos a leiloar suas almas, fazem rostos dóceis e lacrimosos e já
baixaram o próprio preço, não vêem a hora do nosso tombo, qualquer transtorno é só
borrifar os gráficos e qualquer canseira os dados nos alertam que a gente pode capotar.
Por aqueles dias o meu chefe não tivera me chamado para escrever cartas
durante o almoço, o que era mesmo uma pena em se tratando da perda diária da metade
da sua marmitex. A marmita que eu trazia da pensão era cheia de furinhos no seu fundo
devido à corrosão dos anos e como ela ficava na água do aquecedor elétrico da empresa
junto às marmitas dos demais trabalhadores quando na hora da refeição o que sobrava
dela era uma papa aguada, assim a farinha ajudava a endurecer um pouco aquele gosto
de ferrugem de metal e de resto a fome resolvia tudo.
Uma vez frente ao torno pus o ferro cilíndrico na castanha e o liguei, tinha
passado a noite em claro e o sono queria me dominar para além do inferno de um
conjunto hiperbólico e abracadabrante de moedores giratórios em meio a metais insanos
junto a máquinas extirpadoras de braços e cérebros, meu corpo pedia água e meus olhos
atordoados viam em demasia tudo tudo disforme e demolidor, o ensurdecedor barulho
da fábrica ao invés de me acordar só feria meus ouvidos e eu buscava a perfeição da reta
pela limitação na exigência do ofício.
– EI!
Isso eu ouvi bem distante como se não tivesse ouvido. Além do barulho eu
costumava usar bolinhas de estopa enroladas nos ouvidos justamente para atenuar o
barulho.
– ESTOU FALANDO COM VOCÊ, ESTRUPÍCIO!
Percebi que a coisa era mesmo comigo e para ouvir melhor arranquei as bolinhas
de estopa dos ouvidos, depois me virei para o lado e meu chefe olhava as duas bolinhas
de estopa em minhas mãos.
– CHEGA DE ESTOPA!
– O senhor tem razão, chefe.
Ele estava a cinco centímetros do meu rosto, berrava feito animal raivoso
ensopado de saliva.
– JÁ TEM BASTANTE PARAFUSO! QUER ENCHER A FÁBRICA COM
PARAFUSOS INÚTEIS, SEU INÚTIL?!
Desliguei o torno e depois de me dizer mais corriqueiras coisas assim lindas para
despertar meu ânimo pessoal ele ficou mais vermelho que antes por causa de uma raiva
maior que sempre. Aproveitando a ocasião eu lhe perguntei:
– Quer escrever carta hoje, chefe?
– NADA DE CARTA, SEU LAZARENTO DOS QUINTOS DOS INFERNOS!
Ele parou para respirar um pouco e ficou bufando, furibundo e vermelho. Falei:
– Não quer escrever pra pretendida, chefe?
Ele me olhou com angústia e asco e alucinação e indigestão e remorso.
– O TEU NARIZ, SEU MONTE DE ENTULHO SEM VERGONHA!
– Você que manda, chefe.
Meu estômago raciocinava e torcia para que ele recuperasse seu romantismo e
me chamasse novamente para sua “sala” no almoço, assim eu comeria mais ovos fritos e
até mesmo um bom bife de vez em quando; enquanto isso ele estava tão nervoso que
havia esquecido o que viera ali fazer, respirou um pouco para retomar a ordem do dia e
então me disse:
– É DIA DE PESAR BALANÇAS, SEU INÚTIL!
Pesar balanças era atividade realizada de tempos em tempos e exigia superação
quase inumana, coisa para atletas de alto nível. Eu não tinha dormido, via coisas
monstruosas.
– Chefe, dá pra me substituir hoje?
– PORQUÊ SUBS-TI-TU-TI? – ele estranhou a palavra e o motivo dela.
– Não estou muito bem.
– DESCE LOGO PRO OUTRO GALPÃO E NÃO ME ENCHE O SACO!
Sem mais conversa desci até o outro galpão para me encontrar com o Gordinho e
o Pesador das balanças, era com eles que a coisa seria feita, pedi ao Pesador que
intercedesse junto ao chefe para me dispensar naquele dia e ele apontou o Gordinho:
– Se o Gordinho aguenta, você também.
O Gordinho já tinha tentado ser dispensado naquele dia alegando fortes cócegas
na cabeça do pênis, tivera seu pedido recusado e agora estava ali semi-agonizando em
certo gozo.
– Dor na cabeça do pinto... – me falou.
Já estava todo mundo sabendo, o Gordinho estava com dor na cabeça do pinto,
daqui e dali uns gritavam ser gonorréia, outros preferiam gritar sífilis e outros optavam
por aids, todos sabiam que era por causa de prostituta.
– Nada de corpo mole – disse o Pesador. – Deixa de pachorra.
Fomos em direção às balanças a serem pesadas ouvindo o galpão tonitruoso
sobre nossas cabeças. Pesar balanças era a etapa final da fabricação.
– E se a gente der o fora? – gritei ao Gordinho.
– Tá louco? – ele respondeu.
Se o Gordinho ia encarar o serviço com dor no pinto, eu também tinha de
encarar com sono.
– Hoje é que vai ser divertido! – disse o Pesador.
Nos posicionamos para a pesagem e cada peso de ferro tinha uns trinta
centímetros pesando vinte e cinco quilos, eram quadrados para evitar o risco de se
moverem e tinham uma alça no meio para a gente os pegar. Ficamos nas duas
extremidades de cada balança com os pesos no chão ao nosso lado, ao centro o Pesador
dizia:
– Quinhentos quilos! Mais duzentos quilos!
A gente punha duzentos e cinquenta quilos de cada lado da balança gigante,
depois punha mais cem quilos cada um e assim por diante. Aquela pesagem envolvia
toneladas para se calibrar a precisão das balanças.
– Tira tudo!
A gente tirava tudo e carregava para outra balança para repetir o processo, cada
balança regulada recebia uma etiqueta e o galpão contava com várias a serem
etiquetadas nesse dia.
No intervalo do almoço os comentários dos peões eram estridentes, que o
Gordinho estava com gonorréia, que eu não ia passar daquela semana, que o chefe era
um corno. Eu e o Gordinho comemos nossas marmitas no chão com os braços
anestesiados, todos os músculos do corpo doíam esfalfados, depois demos uma
desmaiada ali mesmo.
Acordei com o chefe abanando o cartão de ponto na minha cara e dizendo que
ele estava preto de graxa, que a secretária estava reclamando:
– LAVA A MÃO PRA BATER ESSE CARTÃO! ACHA QUE TODO
MUNDO É PORQUEIRA IGUAL A VOCÊ?!
– Vou pegar bem na pontinha dele, chefe.
– SEU IRRESPONSÁVEL DESTERMORREGULADO! A SECRETÁRIA
NÃO TEM QUE SUJAR AS MÃOS POR CAUSA DA TUA PORQUICE!
O Gordinho acordou bem na hora em que o chefe pensava numa maneira de me
crucificar, desviou a atenção do homem dando uma gemida séria e falou:
– Tá piorando, chefe. Saí com uma mulher aí e acho que peguei doença.
– PORQUÊ NÃO PEGA MULHER DECENTE, SEU SACO DE TITICA?!
Após mais alguns gemidos o chefe disse que logo traria um SUBS-TI-TU-TI
para ele, deu uma ajeitada no cabelo jogando a mecha da frente para trás e ajeitou o
chapéu, chamou o Gordinho de ESTERCO e o levou até seus superiores para que eles
resolvessem, vi quando os dois sumiram pelo pavilhão em direção ao escritório na
frente da fábrica, mau saíram de vista e os comentários dos trabalhadores vieram:
– Corno.
– Sem dúvida.
– Acha que só ele que manda.
– Não manda nada, quem manda são as máquinas, são elas que punem os mais
fracos.
– Maldito galpão, malditos estrondos – falei. – Estamos mortos.
Aqueles caras se davam bem com sua loucura e não viam a minha como a deles,
eles me estranhavam e me disseram:
– Morto aqui é você.
– Pronto, encontramos um apelido, Morto.
– Então, Morto, agora o chefe não tem mais motivos pra te manter aqui. Ou
achava que ele te mantinha aqui pra quê? Era só porquê você sabe escrever.
– É, Morto, agora tua viadagem de escrever carta foi por água abaixo. O chefe-
corno veio pra cá e sua pretendida arranjou um amante lá.
Logo estavam abrangendo suas opiniões e fiquei pequeno para elas, tendo o
chefe como foco tinham mais a dizer:
– Se fosse eu, trazia a pretendida pra cá nem que fosse no tapa. Mas ele fica
tentando trair pretendida com a secretária da firma. Reparou que ele vive arranjando um
motivo pra ir falar com a secretária? Ele lava as mãos e o rosto, passa até perfume pra
falar com a secretária. Aquele perfume é coisa de corno.
– E antes de falar com a secretária penteia o cabelo pra trás e no caminho
repenteia várias vezes, lá fora usa aquele caco de espelho antes de entrar na sala dela. A
secretária gosta é de cabelo pra trás.
– É isso que dá esse negócio de amar. Odiar é muito mais fácil e não precisa
pedir licença.
A demora do chefe em voltar fez com que quando tocou a sirene de fim de
almoço nos conduzíssemos aos postos de trabalho desmazelados e sem ritmo, no galpão
ficamos eu e o Pesador frente às balanças esperando o chefe voltar com o substituto do
Gordinho e os demais demoravam para ligar suas máquinas o suficiente para que nós
dois tivéssemos uma conversa de “pois é” e “pois então” sendo que de minha parte o
“pois então” queria progredir rumo a uma decisão que eu estava querendo tomar mas,
como me demorei para falar, as máquinas foram sendo ligadas e daí eu teria de gritar, eu
não queria gritar e ainda mais para falar dessa decisão que estava querendo tomar e que,
afinal, nem era da conta de ninguém e que, de repente, nem era mais uma decisão que
eu queria tomar mas sim uma decisão tomada, e já logo com o galpão virando aquele
hecatombe com tudo serpenteando ao redor coloquei o boné e fui em direção à saída,
ainda ouvi o Pesador gritando:
– Tá fugindo, Morto?!
Saí do galpão e atravessei o corredor lateral, ao passar do lado da sala da
secretária vi o Gordinho sentado num banco aos fundos gemendo enquanto o chefe
conversava de mansinho e galhardo com ela tendo numa mão o chapéu e com a outra
ajeitando o cabelo e, ela, por um momento virou o rosto e me viu e, rapidamente,
desviou os olhos, daí pensei que ela já devia ter descoberto que a letra das cartas era
minha ao compará-la com minha assinatura da carteira de trabalho e, quanto ao
remetente ou seu nome enquanto “pretendida”, duvido que o chefe escreveria isso nas
cartas sob o mesmo risco dela reconhecer sua letra embora, aposto, ela seria capaz de
identificar aquele perfume carregado sobre as cartas que era o mesmo perfume que ele
usava. O último olhar daquela secretária deixou claro que não queria nada comigo mas
de certo modo eu já sabia disso, eu havia pensado nela e em pensamento a gente
descobre algumas coisas, acho que eu havia me apaixonado por ela e sempre que
adotava sentimentalismo nas cartas fazia poemas emocionais que só podiam ser para
ela, seja como for era melhor que tudo ficasse por isso mesmo porquê em fantasias toda
duração é mais agradável. Na minha carteira de trabalho tinha alguns dias de trabalho
para receber e eles podiam ficar com isso, se ela quisesse podia tirar a foto da minha
carteira de trabalho para ficar consigo mas duvido que pensaria nisso.

16

Tinha dormido tipo em pequeno desmaio, nele sonhei que estava com sono. Ao
abrir os olhos vi uma garrafa pela metade na minha frente e não quis beber o resto,
queria voltar a dormir e quem sabe me incrustar ao sonho que existe dentro da garrafa,
mas não estava com sono o suficiente para continuar.
Dormira sentado num banco da adega, debruçado num tonel, era uma ótima
adega mas na casa de Letícia, e me sentia estranho como alguém que, não tendo um
lugar seguro para dormir, após ter dormido um pouco num lugar seguro estava me
sentido inseguro.
Dali rumo ao teatro caminhava-se uns trinta metros pelo corredor lateral, e da
porta do teatro até o palco mais uns quinze metros. Conforme me dirigia para lá fui
sentindo um tipo de desassossego que nunca sabe o que será de si mesmo. Meu corpo
tinha certa companhia do vinho que ainda fazia efeito, mas em termos de preenchimento
havia outras necessidades básicas além de alguns pequenos vazios e reticências tateando
paredes de buracos na ânsia de se levantar.
A gente anda pelo mundo e vê todo tipo de depressão, dentro e fora carrega ou
pode ser carregado por elas, as vê habitando pessoas e lugares e colando-se às coisas, e
quando cheguei na porta do teatro tentei tratar aquela que via como se não fosse
comigo, tentei jogar minha inquietude para fora como se não fosse parte de mim tanto
quanto como se eu mesmo não fosse parte de mim, procurei me ver apenas como algo
habitando algo sem motivos para muitas explicações, não querendo nada muito
permanente. Me encostei no batente da porta e ali fiquei, já era o suficiente para assistir
a mais recente ocorrência daquele lado da Capital, e seria até engraçado não fosse tão
pesado, mesmo que brilhantemente trivial, tanto a cena quanto a dor patética que se
expandia dali a partir deles quase todos, alguns até pareciam senis.
Diógenes de joelhos no palco, aos pés de Letícia e aos prantos, agarrava-se ao
vestido dela e também utilizava-se de palavras:
– Não faça isso! Eu preciso de você! Culpas e revoltas nunca são ocasionais!
Não me abandone!
Era mais uma vez a mesma cena que eu já tinha presenciado outras vezes entre
eles, só que dessa vez mais lúcido, era tudo que até então eu procurava ignorar e que
tinha se tornado a cena maior pelos fatos.
– É o projeto da minha vida!
O amante de Diógenes por alguma espécie de devaneio circulava ao redor dos
dois com a fiel lata de defumação dando-lhes incessantes banhos de descarrego ao
mesmo tempo que pedia a Diógenes para se humilhar no lugar dele e, também,
multifuncional clamava pelos orixás:
– Não se rebaixe! Seja prestimoso aos orixás!
Mas os orixás pelo jeito já não estavam dando aquela mesma suposta força do
início. Não tive disposição de entrar e o batente da porta me parecia o local adequado
para aquele momento.
– Larga meu vestido! Teu projeto é um fiasco!
Os atores estavam sentados nas poltronas abaixo e se olhavam entre
cumplicidades e murmúrios. Já não era de agora que muitos futricavam pelos corredores
e faziam rixas privadas, entravam em malevolências e tramóias, mas nesse momento
suas diferenças estavam por água abaixo porquê havia algo acima disso. A maioria
pertencia a Letícia e esperava o resultado da briga para ver o que viria depois.
Letícia havia decidido deixar Diógenes para sondar outro diretor que pudesse
realizar seu sonho de estrela e Diógenes fazia o que podia para fazê-la voltar atrás
prostrado aos pés dela e, se era assim, num dado momento o amante prostrou-se aos pés
de Diógenes.
Vendo a deprimente cena fiquei pensando no que seria de meus motivos ali.
Letícia não me pagava pelo meu serviço de eletricista e sempre dizia que a “produção”
ia me pagar “semana que vem” que nunca chegava. A “produção” consistia em Letícia e
Bruninha, ambas atrizes, Bruninha era a garota que conheci no coquetel e justamente
quem me apresentou Letícia e por causa de quem o dono da empresa de puxa-móbeis
também se aproximou me oferecendo trabalho na sua fábrica o qual que recusei. Ambas
sempre me davam uma desculpa para não pagar, estavam sempre com problemas
demais com suas personagens e com suas vidas e com o mundo de modo geral, sentiam-
se vivas quando eu lhes cobrava e seus olhos brilhavam, eu era um alimento ao seu
impulso no prazer doentio, talvez quisessem me puxar para o seu lado e me transformar
num monstro enquanto vivíamos aquela lengalenga teatral.
Aliás Bruninha particularmente me deu um outro calote que, embora de pouca
monta, tinha valioso peso sentimental. Numa eventual conversa na qual falamos de
música ela me pediu uma fita-cassete para gravar “algumas inesquecíveis” e levei a fita
para ela que era a única que eu tinha e na qual tivera gravado músicas especiais de
programas radiofônicos em meu precioso rádio toca-fitas inclusive tendo gravado umas
por cima de outras num processo de calcular o tempo mentalmente podendo cortar o
início da próxima ou sobrar o final da anterior o que inclusive gerava saudades,
Bruninha que era filha de latifundiários vivendo a defender os valores de sua família
contudo que pegava o que era dos outros e não devolvia tal como um pequeno objeto de
grande valor sentimental que foi aquela fita-cassete com a qual eu tinha um vínculo
histórico e ainda mais lembro bem ser uma fita 120 MINUTOS ESPECIAL que eu não
trocaria nem por seu fiofó limpinho de sua bunda seca se é que Bruninha tinha fiofó,
nunca mais vi aquela fita 120 MINUTOS ESPECIAL e bastou cobrar isso dela poucas
vezes para seu riso cínico deixar claro que eu nunca mais veria minha fita 120
MINUTOS ESPECIAL.
Bruninha a essas alturas havia se casado com o cara da empresa de puxa-móbeis
e ele inclusive estivera algumas vezes lá no teatro e inclusive falando comigo querendo
saber se eu estava disponível para fazer alguns trabalhos temporários para ele no que eu
lhe dissera que estava ocupado com o teatro de Letícia e meu emprego na fábrica de
balanças e no que ele sempre dizia: “Eu espero quando você estiver disponível. Mas não
posso te registrar em carteira, ok?” Tive sorte de não ter entrado na dele e prova disso é
que futuramente soube de processos movidos por ex-contratados os quais ele não
pagava os salários atrasados.
Em suma: após frequentar meses a bela casa eu sendo um caloteado já nem
conseguia mais falar a respeito disso com as caloteiras, aquelas duas conseguiram
formar o rabo de um monstro.
Quanto aos puxa-sacos de Letícia o meu papel naquele teatro já estava escolhido
por eles desde o início e eu próprio contribuíra com ele, era o papel pelo qual me
apelidaram: “Ô autista”, “Olhe o autista chegando”. Não chegava a ser ruim e não era
nada, só um apelido criado a partir de um paradigma e que virou uma anedota iniciada
por alguns espertinhos ali.
Eu agora antes da partida assistia mais uma cena do batente de mais uma de
tantas portas a que já estivera, até fiz alguma força de cego para entrever o que não
carecia ser compreendido, não havia nada a ser compreendido e de resto só o desgosto
maior de abandonar a sedução da adega e da cozinha e da empregada doméstica e da
cozinheira, de resto procurar o próprio barbante com fios todos bagunçados, só era
possível voltar pelo caminho percorrido.
– Não faça isso comigo!
– Não faça isso com ele!
– Faço o que quiser!
De todos eles ali por todo aquele tempo as pessoas que eu mais respeitava eram
o marido de Letícia, um intelectual franco-sulino que já tivera passado fome na vida e
conseguira enriquecer por méritos próprios, agora já velho e doente, eu o tinha visto
algumas vezes e de fato ele bebia muito e não me parecia exatamente por prazer, por
vezes bebeu conosco e ouvi suas idéias e histórias incríveis; e o sobrinho de Letícia, o
jovem Fabrício que era ator daquele projeto falido desde o início, ele jamais se dera bem
com seu pais e já a alguns anos tinha sido adotado pelo franco-sulino. Fabrício
conhecera o franco-sulino através de Letícia e o franco-sulino o pegara para trabalhar e
viver em sua casa o tendo como motorista e pau-pra-toda-obra, Fabrício tinha o franco-
sulino como sua maior referência de amigo e chefe e odiava Letícia, para mim
desabafava que ela era mulher baixa que não sabia nem se vestir, por vezes dizia que ela
praticamente não tinha alma e por vezes que ela não tinha alma, ele me contou que ela
era secretária quando conheceu o franco-sulino e a conceituava como “puta de
escritório”, que o franco-sulino a elevou de classe e em troca ela só trouxe desgosto na
vida dele, falou que “a gente se acaba de um jeito ou de outro mas o pior modo ainda é
quando deixamos os outros fazer isso por nós”, ele achava que os sentimentos do
franco-sulino o ferraram e que talvez, se o velho pudesse voltar atrás, trocaria tudo por
uma mulher de verdade.
Olhei a carne de algumas atrizes feito vício em suas malhas constritas, pareciam
um tanto atônitas e a dor ingrata parecia rodear as laterais de suas vidas naquele
momento, talvez se sentissem traídas por aquele projeto em detrimento de outros grupos
que lhes dariam melhor rumo e talvez estivessem assoladas pela dúvida de que se havia
um projeto que se lhes fosse destinado, talvez apenas estivessem absortas em desespero
vazio aquelas fêmeas sentadas nas poltronas falando aos cochichos, agora no fim eu as
podia desejar sem oscilações.
Então saí porta afora e cheguei até a cozinha da mansão, comi um prato
preparado pela cozinheira e passei a mão na cabeça do cachorro imenso, galanteei a
empregada na área de serviço.
– Folga na segunda?
– É.
– Firme?
– É.
– Que nem rocha?
– É.
Dei uma olhada para fora da área de serviço. Tinha puxado a extensão da rede
elétrica por ali, mais de sessenta metros de fio até o teatro, tinha sido uma bela
instalação e só faltava alguns retoques, urgente seria instalar um pára-raios na ponta alta
do teatro, era muita energia elétrica direcionada à construção. Daí ganhei a rua numa
inquieta liberdade.
III – Formigas e nuvens

A diversidade da fauna naquela pensão continuava de mal a pior. Animais


parecidos com seres humanos, seres humanos parecidos com animais, não parecia muito
distante uma coisa da outra. Eu sobrevivia às custas de duas marmitas diárias na cozinha
e alguma abstração interior.
Minha atividade noturna, após circular inócuo o dia todo pela megalópole em
busca de trabalho, era sentar-me no muro de um metro e meio de altura por dois de
comprimento frente à pensão e ali ficar lendo sob a fraca luz que vinha de um poste
geralmente jornais de embrulho que pegava pela cidade, volta e meia vendo os carros
passarem na Lá Vai rua plana de mão única ou proseando com os residentes que iam
chegando e ali davam um tempo, gente do país todo e de todas as cores, cada qual com
seu sotaque e manias e motivos, até mesmo gente estudada que tinha caído na desgraça
por causa de mulher, de família, de bancarrotas, ninguém ia parar ali porquê estava de
bem com a vida e eles surgiam na pensão à rodo todos os dias até serem drenados pela
cidade, arremessados para outras regiões, consumados em jaulas ou adestrados em
focinheiras, ia ficando quem podia e não conseguia outra opção. O filho da dona da
pensão, fazendo seu curso de funilaria de segunda a sexta-feira, sempre chegando e
saindo, resistia firmemente – aliás fazia na mesma escola que eu fizera um curso
incompleto de torneiro, embora ele fosse terminar o seu embora, eu, ao menos tivera
concluído o curso de eletricista que lá fizera nos finais de semana, um curso rápido mas
cujo diploma sempre me dera orgulho.
Contudo, o cara com o qual eu me encontrei mais vezes, e com o qual
desenvolvi boa amizade, este foi o Rojão, um bugre, residente então recém-chegado ao
estabelecimento e proveniente de algum descalabro anterior. Eu o avistei,
primeiramente, quando ele tentava derribar um bêbedo que aportara por ali. A voz de
Rojão era um trovão:
– Puxa, cê não cai mesmo, hein?!
Virei para ver. A coisa acontecia sob a luz da varanda externa da casa, poucos
metros quintal adentro. Rojão, corpo cheio de lesões, estatura média, negras coróides
com esclerótica avermelhada de pinga, estava frente a frente com um crioulo que por
sinal e conhecia, era o mesmo cidadão que me atacara na cozinha tempos atrás e que
quase incendiara a pensão depois tendo sido atropelado por um carro, a última notícia
que eu tivera do crioulo é que estava no hospital entre a vida e a morte mas sem dúvida
tinha sobrevivido, ele apresentava marcas de queimaduras no corpo.
– Vamos ver se agora eu consigo...
Rojão correu para cima do crioulo e pulou com os dois pés de prancha no peito
dele, nisso o crioulo recebeu tão bem o golpe que nem se moveu, apenas rangeu os
dentes e continuou estacado em pé com a respiração ofegante, os olhos sonambúlicos
feito zumbi.
– Puxa – Rojão se levantou –, cê tá mesmo possesso, hein? Vamos tentar de
novo...
Rojão andou para trás adquirindo distância e atirou-se novamente em direção ao
crioulo, dessa vez um golpe de lado com os dois pés, foi como bater numa rocha e o
crioulo só deu uma pequena arcada para trás sem sair do lugar. Rojão foi para o chão e
dei uma gargalhada sem querer, Rojão me viu e deu uma gargalhada também ironizando
a minha, depois veio mancando e sentou no muro ao meu lado, me olhou de alto a baixo
e falou:
– Tá rindo do quê, ô Russo?
Dei mais uma risada e fiquei calado, olhei os carros.
– O cara é meu parceiro – falou Rojão em relação ao crioulo. – Aqui na pensão
somente eu bato nele e, se outro encostar a mão, ele não gosta.
O crioulo agora perambulava pelo quintal zanzando em círculos feito exu
excomungado de terreiro. A todo instante eu olhava para trás preocupado com alguma
investida e Rojão me tranquilizou:
– Se ele vier, eu me resolvo com ele.
Ficamos ali sentados no muro a travar conhecimentos Rojão e eu, lhe perguntei
porquê ele estava com todos aqueles machucados nos joelhos e cotovelos e rosto e pé e
ele me garantiu que não sabia como surgiam todas aquelas lesões apenas sendo
constatadas a cada novo amanhecer.
– Quer que eu busque um mertiolate pra você passar aí? – perguntei.
Ele me olhou com carinho e carência, se apresentou:
– Me chamam Rojão e gosto de “Rojão” que não é meu nome mas gosto. Não
pergunte meu nome que não gosto e gosto de “Rojão”. E não gosto quando me tratam
por “Ô!”, “Psiu!”, “Psit!”
– Estou contigo – retruquei.
– Mora aqui?
– É.
– Então somos iguais e podemos nos tratar como iguais. Não dá pra confiar em
quem não está na mesma situação que a nossa. Cê fecha comigo.
Não demorou nada para que ele passasse a me contar seus causos urbanos,
incríveis e imaginativos aparentemente mesclados à fatos reais, tanto narrações
autobiográficas quanto na terceira pessoa ele contava muito bem com detalhes e
fantasias; depois nossa conversa foi para o rumo da sobrevivência e ele disse que era
servente de pedreiro que nunca teve um registro em carteira, se autodenominava de
peão.
– É um títuro. E títuros são mais importantes que pessoas. Então, sou peão por
indefinição.
Sua situação não era nada cômoda. Queria trabalhar e não estava conseguindo se
arranjar na sua área, suas últimas economias estavam se acabando.
– Perciso de trabalho, como peão sou ferramenta pra muitas coisas, mas não
arrumo trabalho.
No aspecto pessoal ele disse ser órfão de infância, abandonado pelos pais numa
maternidade e conduzido a um orfanato, teve uma infância em meio à delinquência e, na
adolescência, “por diversas vezes”, foi parar em casas de correção, “onde quase fui
adotado definitivamente, ou semi-adotado”, por diversas famílias. Não “adoções”
normais, documentadas, mas “adoções” parciais de gente que se afeiçoara a ele e queria
lhe ajudar.
– De certa forma tive alguns pais e algumas mães e algumas avós, ouviu Russo?
Mas, ouça, nunca tive um lugar que realmente pudesse chamar de lar... Ah, lar é apenas
uma palavra de algumas letras pra mim, três, né Russo? Não sei ao certo o significado
de lar além de que é uma palavra que acho que tem três letras...
Contudo, “ultimamente, Russo”, andava bebendo demais, “toda noite”, cada vez
mais, “e também pitando veg, todo dia.”
– Veg detona o cérebro mas, se a você é inevitável.
– É isso aí, Russo. Acho que sei o que é inivitávil. Concordo. Então, não é bom
que fique muito na minha companhia, eu não tenho muita serventia.
– Tá bom, Rojão, não conte comigo no teu enterro.
– Combinado.
– Mas se eu for antes, não compareça no meu.
– Certo, “condições iguais.” Aqui somos todos trabalhadores braçais, mesmo
aqueles que não pegam no pesado, porquê trabalho braçal é fazer força pros outros, é
fazer as coisas por obrigação, assim entendo. Mas o engraçado é que tem gente que faz
força de graça, na humilhação, e ainda acha bonito. Eu não. Eu só faço força se for pra
ganhar algum ou, às vezes, pelos amigos. Tenho meus critérios. Olha só, se a gente
ganha pra fazer força, tem de entender a diferença de cada serviço. Serviço braçal é
pegar uma tora de madeira, mas serviço braçal caro é pegar uma tora de madeira com
bosta.
– Não força, Rojão.
– É você que não está entendendo.
– Então tá.

Era umas nove da noite. Eu estava sentado no muro frente à pensão quando vi
Rojão chegando junto com um crioulo, o crioulo, aquele mesmo extraforte e espadaúdo
que cuspia álcool pela boca e causava labaredas de fogo no cuspe quase tendo
incendiado toda pensão e, aliás, sua pele ainda estava marcada pelo incêndio. Aquele
crioulo era zureta e, conforme constatei nessa mesma noite, realmente perigoso.
Vinham, os dois, chegando pela calçada a conversar animadamente. Dessa vez
foi só Rojão falar, razoavelmente embriagado (pinga, claro), “aí, Russo”, e em seguida
preparar-se para sentar ao meu lado no muro que o carro da polícia veio voando do
nada, freou bruscamente e expeliu os policiais.
Armas em punho, com ordens de comando os policiais instruíram que os dois a
colocar ambas as mãos apoiadas no camburão e nem se importaram com minha
presença, estavam com revólveres engatilhados e já tinha pista do que queriam, estavam
atrás de um suspeito e mandaram os dois baixar suas calças, nisso Rojão disse:
– Tô sem cueca, seu poliça.
– Cala a boca – foi a resposta.
O crioulo estava de cuecas e baixou a sua seguido por Rojão, daí os policiais
pediram seus documentos e quando Rojão dava o seu o crioulo disse:
– Num tenho.
O crioulo era doido mas não burro, dava uma de desaglutinado e garantia que
não tinha documentos.
– Num tenho. Nem rezistro de naiscimento. Nunca tive, juro.
Os policiais fizeram uma consulta pelo rádio enquanto Rojão tremia com seu
grande pinto azul encolhido pelo inverno e à mercê do vento por uns dez minutos e
levantando perfis logo fizeram uma identificação do crioulo sem necessidade de
documentos, enquadraram o crioulo de forma mais incisiva:
– E aí, quantas vítimas você já fez?
– Num fiz nada não, sinhô.
– Foi você, vagabundo, a gente já tá sabendo! Você abusou daquela moça do
3x4, vai falando!
– Não ataquei ninguém não, sinhô.
Cutucaram o crioulo por trás com o cassetete e lhe deram um peteleco na orelha.
O crioulo perdeu qualquer fibra e no cagaço se entregou:
– Foi só aquelas lá só, sinhô.
– Aquelas quantas? Então você estuprava e depois roubava as vítimas?
– Não, nunca roubei, não.
– Só estupro mesmo?
– Só estupu.
Mandaram o crioulo levantar as calças e depois lhe grampearam, foi introduzido
camburão adentro com algemas. Daí os policiais perguntaram para Rojão:
– Amigo teu?
– Nããão – respondeu Rojão veemente. – Só parceiro de pinga.
Nisso a vizinhança já se locomovia para os portões, uns alcovitavam e todos
diziam que o crioulo seria canibalizado na cadeia, nunca mais o vi e Rojão nunca me
falou sobre o que aconteceu com ele.

Talvez o fato de ter perdido seu companheiro de pinga fez com que Rojão se
aproximasse ainda mais de minha ilustre pessoa aproveitando-se da conveniência
geográfica e também no que se refere a nossos fusos horários bem similares; ele até foi
morar no mesmo quarto que eu valendo-se de uma vaga que ali surgira e de uma hora
para outra nos tornamos companheiros de quarto e de muro.
Raramente eu chegava por último, e quando isso acontecia ele divertia-se por
conta de meu cacoete dar tranco nos ombros os atirando para trás para ajeitar a coluna
ao caminhar.
– Ah, lá vem o Russo tentando voar – ele dizia rachando o bico.
Mas era geralmente ele quem chegava por último, estava sempre atrasado
porquê vinha parando no meio do caminho por conta de tomar pinga em botecos,
costumava chegar umas nove da noite e empoleirava-se no muro ao meu lado quando
ficávamos um tempo num bom silêncio, quando ele começava a narrar suas histórias
malucas algumas eram bem pungentes e havia um grande bom humor por trás de seu
passado triste, vinha vivendo no limite desde que nascera e usava a criatividade para
lidar com isso, ele era divertido.
– Que tipo de animal tem na Europa, Russo?
– ... Quê?
– Animal, bicho de quatro patas. Que tipo anda pela Europa?
– ... Vários.
– Vários é nome de algum animal?
– ... Não.
– Tá difícil conversar com você, Russo.
– ...
– Fala alguma coisa, Russo.
Ele andou encanado com a Europa, por vezes via graça só de a mencionar e por
vezes era só para puxar assunto.
– Qual a capital da Europa, Russo?
– ... Quê?
– Europa. Qual a capital?
– ... Europa não é país...
– Fala alguma coisa, Russo.
Sobre isso certa feita ele, não sei se acreditando ou não no que dizia, deu sua
opinião:
– Se liga, Russo. Europa é coisa inventada pelo pessoal da tevê e não existe. A
tevê é estrumbólica e fala de uma Europa estrumbólica que, se existisse, daí
estrumbolizava nós e o resto de tudo que tem de gente, daí a gente tava mesmo fudidos.
– E não estamos?
– Não como a tevê diz. A tevê diz que a gente tá fudido mas a tevê não sabe que
fudido é palavra sem nome.
– Certo, Rojão.
Noite após noite nos encontrávamos naquele muro para um breve bate-papo
antes de ir para a cama, também havendo silêncio ali sentados naquele muro nele uma
espécie de espera sem lógica e na maldição da esperança mais forte que nós um buraco
e tanto na indefinição nos esfiapando até a hora do sono forçado, por certo esperando
que as delinquências dentro dos quartos da pensão satisfizessem aos residentes por mais
uma noite para depois cada qual fazer sua despedida: eu ia ao quarto lá pelas dez e meia
ou onze horas encarar a cama de cima do beliche e ele ia fazer sua última visita ao
boteco da esquina para sua última pinga.
Ele nunca andava em linha reta após a pinga, voltava manquejando pelo quintal
e conversando com meio mundo por ali, tinha de baixar a voz potente para não acordar
quem dormia e ainda mais quando entrava na casa, no quarto se deitava e no sono todos
juntos entre pedidos de clemência incertos meio devotados e bem esfarrapados, ruidoso
era bem mais o que estava oculto embora só coisa do tipo que não leva a nada só porquê
quando saía em palavras ou grunhidos nada dizia além da raiva da pobreza, da raiva das
camisinhas vencidas jogadas no lixo, cada um na sua com sua meia dúzia de posses se
coçando por causa das pulgas e falando em sonhos o que de um jeito ou de outro tinha
de sair, o que não se ouvia se sentia e talvez junto também todos os fantasmas
inomináveis que a dona da pensão teimava em colocar no eixo em intermináveis seções
de macumba.
Rojão chegava no quarto trombando em tudo e pedindo passagem na base do
empurrão, reclamava de algum inexplicável ferimento novo e desmaiava até a tarde do
dia seguinte, de novo saía para beber e quando a noite chegava vinha me encontrar mais
uma vez no muro frente à pensão para um pouco de conversa até que eu fosse para o
quarto, daí ele voltava aos bares e chegava no quarto por vezes na madrugada quando
por vezes tentava conversar comigo antes de dormir, costumava reclamar pelo mesmo
motivo:
– Porquê a janela tá fechada?
Rojão sabia que a janela tinha de ficar fechada sobretudo para impedir que as
brigas de fora invadissem o quarto, sabia tudo há muito tempo mas queria conversar e
também, ousado, queria se opor à realidade:
– Abre a janela, Russo.
Certa vez ele disse que a janela fechada “engrossa a fila de atormentados”, a
janela que ficava ao encargo meu e de meu vizinho debaixo do beliche à qual por vezes
abríamos após os devidos ossos esfolados da noite no quintal.
– Boa noite, Russo.
É preciso ter colhão para dizer “boa noite” num local desses. Durante o semi-
sono ele costumava dialogar consigo em meio a pulgas e pregações dos líderes nos
programas radiofônicos e certa vez falou:
– É habitual. É o mesmo que corriqueiro.
Sua pronúncia foi perfeita e talvez estivesse se referindo à pinga.

No muro frente à pensão era comum Rojão me encontrar quando chegava,


geralmente de noite, ali ele me estimulava a falar e certa vez eu lhe disse que depois que
aprendi a falar houve períodos em que passei meses sem pronuncia uma única palavra.
Quando nas noites após ter tomado cachaça ele chegava ali e não me encontrava por
vezes ia até o quarto e acendia a luz, queria conversar.
– Fala alguma coisa, Russo.
Eu raramente falava algo dentro do quarto e se eu não me movesse ele saía, por
vezes eu saía para a gente conversar sentados no muro. Os demais residentes do quarto
quase nunca reclamaram dele acender a luz e embora gostassem de sua potente voz
grave e rouca por vezes pediam para ele falar baixo para não acordar outros.
Aos domingos eu tomava exatamente duas cervejas numa padaria do bairro
adjacente à noite, indo e voltando à pé; pelos meios de semana andava a cidade toda à
pé sem beber. Encontrando Rojão fosse qual dia fosse ele podia estar com a língua
mole, tinha bebido cachaça e por vezes ia até um boteco tomar outra “pra tirar o zinabre
da garganta”. Sentado no muro de vez em quando cantava samba de raiz e quando era
domingo sua voz ficava mais triste até parecendo blues.
Ao chegar no quarto ele tinha pedido para usufruir do guarda-roupas que eu
dividia com outros peões, então fui responsável pela sua introdução na sociedade do
guarda-roupa ao lhe dar uma cópia da chave do cadeado e se alguma coisa sumisse dali
eu seria responsabilizado, mas eu confiava nele. Quase toda noite nos encontrávamos no
muro frente à pensão com Rojão chegando cada vez mais torto.
– Dá um tempo na cachaça, Rojão.
Ele dormia no beliche abaixo do meu, usava algumas roupa penduradas em
varais em torno do beliche formando tipo uma tenda, por vezes dormia o dia todo e
acordava dizendo:
– Hoje vou beber. Não tenho nada pra fazer hoje.
Nos bares não era difícil para ele encontrar alguém que lhe pagasse as pingas,
mas tendo também de pagar a mensalidade da pensão ele com seu carisma logo
conseguir uma forma de ganhar algum. Isso aconteceu assim, de uma hora para outra:
– E aí, Russo?!
No muro frente à pensão vi Rojão chegando inacreditavelmente limpo, cabelo
penteado.
– Arranjou trabalho, Rojão?
– É.
Sentou-se ao meu lado no muro e fiquei até com vergonha; ele estava bem
arrumado e lavado, até a roupa era nova.
– Tô ajeitado – garantiu.
Me levou até o bar da esquina e benquisto por todos estava quase metido, pagou
adiantado, cerveja e várias. O que tinha acontecido com Rojão?
– Rojão amigão, homem bom, coração grande!
Rojão sorria ante elogios recebidos, tinha pago cerveja para nós mas preferia
tomar pinga. No caminho de volta à pensão Rojão me abre o jogo:
– Posso descolar o esquema pra você...
– É?
– É. Ilegal.
– Não quero.
– Deixa disso. Golpes de sorte acontecem...
– Golpes de azar também.
– Então tá, Russo.

O esquema de Rojão não durou muito. Sua ascensão social, como ele próprio
dizia, foi tão rápida que ele nem deve ter notado sua passagem. “Só veg”, dizia. “Odeio
brag”. A brag certamente lhe traria muito mais lucro, pode ser “rebatizada” e é mais
cara, vicia rapidamente e é consumida compulsivamente. Mas Rojão não queria saber de
brag, se dizia “da paz do veg” e que “ao mesmo tempo que uso veg atraio clientela”.
O problema é que Rojão pitava muito, atraindo “clientela” toda tarde ia pitar
num riacho abaixo da favela da vila Egressa onde era tratado com reverência pela
rapaziada e levava um pequeno pacote voltando sem nada, depois ainda costumava
beber e também pagava pinga para a “clientela”, era péssimo administrador e creio que
ainda teve sorte em não ter sido caguetado para a polícia pela “clientela”.
E ainda comprar o veg para pagar depois? Estava seguro demais sobre seu novo
esquema. Quando eu estava chegando à pensão, à noite, vi dois trafistas me olhando de
fora do boteco da esquina, ao me aproximar fui interpelado por eles:
– Cê que divide o guarda-roupa com o Rojão?
– É.
– Então pega tudo lá, porquê é nosso.
Fui para o quarto e fucei nas coisas dele dentro do guarda-roupa, além das suas
poucas posses havia boa quantidade de veg ali, “o cara guarda sua mercadoria aqui?!”
Ensaquei tudo, levei tudo para os trafistas e eles foram embora, fiquei pensando:
“Cadê o Rojão?” Voltei para o quarto e dessa vez era a dona da pensão que me
aguardava:
– Cadê o Rojão?
– Não tenho a menor idéia.
Eu não diria mesmo que soubesse. Ele era leal e nunca roubou nada meu, eu
retribuía na mesma moeda. Fiquei por ali esperando a noite crescer, daí fui ao muro
frente à pensão e já não era o mesmo muro, cheirava a perigo. Voltei para a cama e não
tinha sono, fiquei esperando e chega peão e sai peão, tomam banho e comem e falam e
dormem.
Lá pelas meia-noite, ele bateu na janela.
– Russo! Ô Russo!
Abri a janela do quarto. Rojão estava com a boca inchada e o rosto esfolado.
Bambeava nas pernas com um finzinho de retidão.
– Me arruma um lençol, qualquer coisa. Tá frio.
– Quer comer alguma coisa?
– Já comi. Comi o que sobrou da refeição da macumba.
Arrumei uma coberta, um pedaço de pano e uma blusa para ele.
– Bebi a pinga da macumba também – ele disse. – Será que faz mal?
– Aguenta firme, Rojão.
Ele pôs o pano no rosto e fechou a janela. Pulei do beliche e saí para fora da
casa, fui até o muro lá em frente.
Ele estava sentado no chão da calçada, embrulhado na coberta ouvia os carros
passarem e tateava o chão encarquilhado, olhava para cima.
– Rojão? Estão atrás de você. É melhor fugir.
– Não precisa, Russo. Já acertei as contas com os caras, já me levaram tudo o
que eu tinha e já me bateram, já estão satisfeitos. Nem vi, viu? Foi rápido. Agora não
tenho como comprar veg, não tenho como pagar a pensão...
Sentei ao seu lado; ele acendeu um cigarro e deu uns tragos. Ia cantar mas
desistiu, começou a falar:
– Quando eu era garoto não tinha tanta gente falando mal do cigarro. Tinha cada
propaganda de cigarro na tevê, o cigarro aparecia na mão de alguém andando de cavalo
mas cavalo não fuma, aparecia ao lado de um carro de corrida que também não fuma,
aparecia na mão de um cara rodeado de mulher e todos fumando. Mas nunca fumei por
causa da tevê. Só fumo porquê fumo.
Ele se esticou no chão e ficou olhando o céu, alheado e roto; depois tirou uma
casca de ferida seca do braço e a mastigou, voltou a olhar o céu e improvisou um
samba.
– Cooomo com certa elegâânciaaa... Cooomo com a cabeça no céééu e os olhos
no chããão... As formigaaas paaassam e as nuvens tambééém... O céééuuu ééé teeetoo de
iluuusãããoo, desaaabaa, soteeeraa...
– Tá se comendo, Rojão?
– ...Não dói. Ando perdendo dor, até de noite, logo nela onde tudo dói um pouco
mais. A gente vive indo até a noite, lá deixa um pouco de vida.
– Ida ruim...
– Quase todas são. Mas saber das coisas não muda nada porquê ninguém muda
nem melhora, a gente só tenta se safar de um extremo a outro.
– Então a vida é uma diagonal.
– Diag... quê?
– Nada. Eu estava tentando complicar o que você disse.
– Porquê? Cê tem estudo, né? Ah, cê tem... família... né Russo?
– Lembro deles de vez em quando...
– Mas nem por isso te quero mal. Houve um tempo que eu tinha inveja de quem
tem família mas isso já foi, ficou só um pouco de raiva lá atrás...
Ele queria continuar falando, mas não conseguia. Eu queria lhe falar algo e nisso
me veio algum vocabulário que usava em minha vida pregressa, ao lembrar disso lhe
falei:
– O vocabulário se limita perante o destino limitado, no escasso a gente odeia
certas palavras como se nos agredissem. O vocabulário é quase sempre um luxo e os
miseráveis odeiam quase tudo que os lembre que são miseráveis, passam a vida
esquecendo-se do significado das coisas porquê as coisas são tentáculos que os
tiranizam, porquê eles não têm coisas e têm motivos de sobra pra acreditar que jamais as
terão, eles fogem da maioria das palavras porquê a maioria delas correspondem à posses
que jamais terão, a sentimentos que não se completam, a dores que querem evitar, a
desejos que não saciam. Eu temo mais o silêncio que a loucura.
– Isso aí de ter medo – ele falou – é porquê a gente tem esperança. Mas eu tento
não ter muito esperança que é outra coisa dolorida, e também evito quase todo querer,
sei que pobre só depende e necessita. Você fala pouco e acaba de falar bonito, devia
falar mais sem qualquer esperança. E o que você teme é o silêncio criminoso. Quem é
você, Russo?
– Alguém que nasceu no mato.
– Hããã. E o que faz aqui?
– Foi a placa: Vagas para rapazes.
– Hããã. Não tem mulher?
– Não venho dando sorte com elas.
– Sabe, Russo. Isso não tem nada a ver com nada, como tudo mais tudo que não
tem a ver com nada. Eu... estive indo até uma praça da quebrada, pra vender um pouco
da mercadoria. Dormia lá de vez em quando, é um bom lugar pra dormir no verão. O
problema é que o inverno está cada vez mais frio. Sabe, eu ficava catando bitucas de
veg às seis horas da manhã na praça, mas o problema é que lá tem muita concorrência.
Mas esse negócio de ficar cismado com o adversário só atrapalha a gente... porquê eu
devia era me preocupar com a posição das sombras das árvores pra quando o dia chega,
evitar o sol que é outro que também mata... e, ficar abrindo caixas de fósforos e bitucas
de veg que os caras deixam depois de usar, não faz sentido. Mas também não faz
sentido nem as sombras das árvores, quer dizer, elas fazem sentido quando mudam a
posição e nos abandonam, quando o sol nos acorda e racha a cara da gente, daí a gente
lembra das árvores por causa da falta das sombras... – Começou a cantar as palavras que
dizia, bosquejando rimas: – Sombra de árvore não faz mal a ninguééém, nem ao Russo e
nem a eu tambééém...
Foi para o samba, parou um pouco na boemia, no brega, tentou o rap e sorriu,
parou, voltou ao samba, fechou os olhos improvisando samba, depois estalou o polegar
sem muito sofrimento, contraiu o beiço, a testa, a cara toda, e depois foi relaxando as
partes do rosto, desmilinguindo parte a parte, mas não totalmente, a testa continuava
franzida e o beiço contraído, falou mais um pouco feito samba falado e, conforme
falava, adormecia:
– E, também, teve um tempo, agora à pouco, quando tive mais lucro com o veg,
que eu até fui fazer exame de vista. Mas acho que eu estava meio bêbado naquele dia,
quase sempre estou meio ou inteiro bêbado, além do resto. No exame me explicaram
que era só tapar um olho de cada vez pra ler as letrinhas, e ver como estava a minha
vista. Mas se a cachaça mau me deixa enxergar com os dois olhos, imagine zarolho? E
de quê adianta ter olhos se não há nada pra ser visto? Ver, ir, pra quê? Pra onde? Pra
rua? A rua a rua a rua, na rua o mundo é ainda mais injusto quando a gente olha pra ela
e vê por baixo, de baixo, do chão. Os aaanjos da guaaarda estão preeesos no trânsito e
não chegarão à teeempo, as fichas celestiais foram extraviaaadas, a geeente vive numa
prisão que exige pagameeento, nascemos por licença da mooorte, viemos apenas pra
sorrir sem óóculoos...
Cantando ele ficou um pouco mais animado, mas a testa continuava franzida, daí
ele relaxou o beiço e depois adormeceu com a testa franzida na calçada da rua Lá Vai,
as costas apoiadas no muro.
Fiquei ali um tempo, depois cobri Rojão com o jornal que tinha na mão e fui
para o quarto. Ele era analfabeto.
...Depois disso só o vi mais uma vez, algum tempo depois na rua durante o dia.
Ele parecia apático, ausente feito um animal que sofrera uma retirada de cérebro,
caminhava em linha reta atrás do seu novo chefe de trabalho sem desamarrar a cara. Dei
um tranco nos meus ombros e segui.
Não sei se ele me viu. O inverno estava a toda.

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