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Everton Bortotti
I – Aperitivo
II – Os dois lados da cidade
III – Formigas e nuvens
I – Aperitivo
Nessa derradeira parte do teste cada candidato recebia uma senha, ficávamos no
saguão esperando e iam nos chamando pelo número da senha, cada candidato entrava no
teatro e submetia-se a um exame. Eu não tinha lido as determinações na ficha de
inscrição mas decidido a me tornar um astro quaisquer que fossem as cláusulas para isso
eu aceitaria de bom grado. Daí nos avisaram:
– E lembrem-se de que não pode ser monodrama.
Tinha uma multidão ali, na maioria gente que acompanhava os candidatos.
Parentes, amigos, diretores e até psicólogos contratados para acalmar os candidatos.
Tinha mais gente fazendo assessoria aos candidatos do que candidatos propriamente e
foi com um desses que me inteirei sobre o significado da palavra “monodrama”, era um
diretor teatral em início de carreira que me explicou ser “monodrama” uma cena solo,
ele tinha sido contratado para dirigir a cena de um dos candidatos e após sua explicação
fiquei com o problema de que não tinha nenhum réplica para evitar o monodrama e
todos os presentes ali tinham trazido os seus réplicas, já tinham tudo ensaiado e mais
ensaios faziam pelos corredores e banheiros e escadarias e em alguns casos sob a
proteção de cordões de isolamento.
Então tentei convencer uma família inteira, seus diretores artísticos, seus amigos,
seu psicólogo, seus seguranças, seus ancestrais, toda a árvore genealógica da família, de
me aceitarem para fazer a cena com seu candidato, falei o mesmo com um por um e
inclusive o motorista do carro e a matriarca e o psicólogo, mas eles não queriam
amansar minha consciência alegando que já tinham um ator contratado para fazer a
réplica o qual tinha sido escolhido pelo diretor artístico contratado que já tendo ensaiado
a cena por meses não ia alterar os planos em cima da hora por causa de um
desconhecido sem réplica.
E foi o próprio candidato, um garoto de seus dezesseis anos, que tomou a
decisão de me substituir por seu réplica contratado; convenceu sua família de que com
aquela sua atitude desprendida podia somar pontos a seu favor para a comissão
julgadora, que afinal a comissão julgadora preferia mesmo analisar dois atores numa só
cena do que um em cada cena. Sentamos os dois num fundo do saguão para acertarmos
os detalhes.
– Eu ensaiei uma cena da tragédia antiga – ele disse. – Mas fazer isso pra mim é
uma tragédia, sou tímido e isso é antigo.
Me abstive de comentário e ele riu por educação, reiterou o que havia dito e me
passou um livro de tragédias antigas, me disse que estava ali pelo sonho da família.
Fiquei a ler o livro sem entender nada do que estava escrito.
– É melhor apenas ler – falou o garoto – sem se importar com o conteúdo.
Seus familiares estavam lá no saguão nos olhando e querendo se aproximar, lá
também seu réplica contratado estava indignado e esbravejava:
– Aquele intruso vai estragar tudo!
Seu diretor artístico contratado também mostrava inconformação e aderia ao
réplica contratado:
– Se aquele intruso estragar tudo não venham pôr a culpa na minha direção!
Intruso! Intruso!
Havia trezentos olhos em nossa direção e nisso o garoto me disse que se fosse
possível a gente trocaria de posição e, no momento seguinte, talvez amparado pelo que
tinha acabado de dizer, me falou:
– Faça o teste por mim.
Seguindo nisso ele me deu as instruções que havia recebido para fazer a cena.
– O próximo!
Adentramos o teatro, passamos pela platéia quase vazia e subimos no palco. Os
membros da comissão julgadora estavam sentados na primeira fileira e um deles
perguntou:
– Qual cena vão fazer?
Com o livro nas mãos relatei qual cena íamos fazer, uma cena de tragédia antiga.
– Podem começar... – disseram.
De acordo com as instruções que o garoto havia me passado para se interpretar
tragédias antigas a gente devia ficar com uma mão no próprio ombro para dar idéia de
estar segurando um pano que seria hábito daqueles tempos, então pus uma mão no
ombro e segurando o livro com a outra iniciei a leitura, segundos depois veio uma
pergunta da comissão julgadora me interrompendo:
– O que está fazendo com a mão?
Eu não sabia o que dizer.
– Asseguro que está com a mão no ombro – disseram –, mas qual o sentido
dramático de tal posição?
– É pra segurar o pano? – perguntei.
Lá debaixo eles se entreolharam e riram e cochicharam; voltei a ler e novamente
fui por eles interrompido:
– O que está fazendo com a mão?
– Minha outra mão? – falei. – Estou segurando o livro pra ler.
– Não decorou o texto?
– Não tive tempo. Ando muito ocupado.
Riram novamente e pensei que talvez usassem o riso como recurso de
descontração para os candidatos. Daí dirigiram-se ao garoto:
– Você não faz nada?
O garoto tinha-se escondido atrás de mim, devia ser sua primeira experiência
num palco e estava em pânico.
– Ele é tímido – falei.
Tímido era eu; o garoto estava muito além disso. Dessa vez a comissão
julgadora gargalhou em conjunto e fiquei com medo de que eles aprovassem o garoto ao
invés de mim só para que as coisas dessem erradas para nós dois.
– Então vamos lá – disseram –, esqueça o livro e a cena, esqueça de tuas
pretensões e que está fazendo um teste, faça qualquer coisa e seja você mesmo.
Era muito pedido ao mesmo tempo e em pouco espaço de tempo. Ficou em
minha memória sua última colocação e respondi:
– A única coisa que posso ser é eu mesmo, né? Ou não?
Eu falei sério mas talvez o que era sério para mim fosse tão banal para eles a
ponto de rirem novamente e, quando pensei em rir também, já estavam introduzindo
novo assunto:
– Tá, nos surpreenda.
Tudo que consegui fazer foi cara de plástico. O garoto ao meu lado tremia feito
vara verde.
– Qual a motivação pra isso? – perguntaram.
Sem ter resposta mantive a cara de plástico, também pensei em qualquer coisa
como as quebradas do subúrbio. Eles ficaram um pouco em silêncio e depois nos
mandaram esperar lá fora.
Portanto chegando de manhã para o primeiro dia junto ao novo grupo logo
fomos por Deni recebidos que, após nos levar para dentro teatro e nos indicar a platéia
para sentar foi também sentar-se numa poltrona da primeira fila. Fiquei sentado mais
atrás e ao meu lado veteranos fizeram velados comentários carregados de ódio a
respeito do mestre. O problema do ódio é jogar para fora.
Quando o mestre chegou foi acompanhado de sua namorada, uma moça bem
mais nova do que ele e que me pareceu um tanto desorientada com dois olhos tão
afastados um do outro que parecia jamais estar concentrada no que quer que fosse. Após
subir no palco o mestre acendeu seu charuto e passou a fazer uma bélica dissertação de
gênio enquanto sua namorada, ao seu lado no chão do palco, de vez em quando dava o
ar da sua graça soltando uma espécie de suspiro sonoro:
– Ahrrr!
Um sonoro acima do que seria um suspiro normal, e dali para cima. Dependendo
da altura do suspiro o mestre entrecortava sua dissertação e inclinava-se para ela, os
dois conversavam um pouco em voz baixa e depois o mestre voltava-se para nós e
reiniciava a dissertação. Estou contando dessa forma que é para encurtar.
– Ahrrr!
O mestre parava, debruçava-se para a namorada, discutia um pouco com ela,
depois voltava:
– Muito bem...
O que o mestre mais demonstrava em sua dissertação era o envidraçamento de
valores, apesar do válido tema não gostei do seu tom e isso levou quase toda manhã,
quando ele terminou:
– Muito bem, agora vocês ficarão a cargo do Deni.
– Ahrrr!...
O casal ainda embaçou mais um bocado antes de ir embora, discutindo frente ao
corredor da platéia sob a aquiescência de todos como se aquilo fosse parte da etiqueta
da casa. Após saírem alguém ao meu lado disse que o mestre só parava de discursar
quando concluía que seus cabelos e barba e unhas já tinham crescido o suficiente, nem
fiz questão de ver quem era.
– Muito bem – disse Deni –, todos de pé. Todos aprendendo a ficar em pé...
Nesse momento faltava coisa de meia hora para o fim do expediente, os
supervisores já estavam se retirando mas Deni queria nos adiantar o ensino, ficamos em
pé no corredor ao lado das poltronas e pensei nas atrizes em suas malhas apertadas bem
como nos intervalos e banheiros limpos em todos os andares, também havia o café e
rosquinhas e coisinhas crocantes que elas comiam. Ouvi Deni:
– Vocês não sabem como ficar em pé...
Deni nos monitorava com determinada severidade. Não estava nada convencido
de que a natureza e nossas mães tinham feito um bom trabalho. Para encerrar ele disse:
– Estamos iniciando o aprender a andar.
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Tão logo saí porta afora vi Deni no corredor me aguardando, ansioso queria
saber das notícias. Eu, que ainda tinha a cabeça no último ato, lhe falei:
– Estou indo embora.
Deni tinha seus impulsos, ficou até alterado:
– Você quer perder a grande chance da tua vida?!
Minha vida nunca foi da conta do Deni nem de ninguém naquele prédio, mas
não é fácil se livrar de pessoas como o mestre e sendo Deni uma extensão dele no
caminho da despedida havia essa pedra:
– Não! Pelo devir, não seja uma sombra na escuridão! Se hoje você se excedeu
pode fazer outro teste!, se arrancar de dentro e se reencontrar!, e digo isso porquê outro
dia ouvi o mestre dizendo que você tem chance!
Deni tinha mania de voltar para ir. Fui andando pelo corredor com ele atrás
falando, por um momento me perguntou se eu queria me tornar um “bípede bestificado”
e como nada respondi ele seguiu na sua questão:
– E pra aproveitar tua chance você tem de parar de mediocrizar com marcação
de touca!, tem de tirar as minhocas da cabeça pra tirar a barriga da miséria!, de cabeça
feita deixa de ser um nenhumamente!
Ao chegar frente ao elevador apertei o botão de chamada comentando que ele
tinha técnica vocal apurada e planeava cada sílaba, ele continuou falando e comentei
que também era importante dar alguma atenção ao significado do que dizia, ele
continuou falando e quando a porta do elevador se abriu nele entrei, pensei no bom de
haver no mundo tantas portas.
A ascensorista do elevador tinha uma boca perfeita que nem usou para me
perguntar se eu ia descer no térreo, ela usava uniforme com tons vermelhos e no
momento só havia nós dois no elevador, em questão de segundos pensei que poderia ser
sete andares na sua companhia mas quando a porta do elevador foi se fechar ouvimos lá
fora:
– Descendo?
Eu conhecia aquela voz e logo em seguida seu intruso dono entrou, o Deni:
– Descendo, né?
A porta se fechou e agora, já sendo impossível uma particular e romanesca
descida com a ascensorista, ainda por cima fomos ouvindo Deni a me falar:
– Ao menos mais uma grande chance na tua vida você pode ter, basta se auto-
aturar. Digo isso na propriedade de quem, se já estudou a técnica de... e já fez cursos
de... desde que entrei aqui descobri que nada sei, estou recomeçando a aprender de
verdade... Ou por acaso você acha que também não tenho problema com os ombros?
Tenho, mas já muito conquistei pra ele, e o próprio mestre disse que meu ombro está
evoluindo. Meu maior problema são os joelhos, não consigo mantê-los por muito tempo
frouxos, fico tonto...
Deni andou um pouco dentro elevador para demonstrar como era andar do jeito
mais ou menos correto, ao meu ver seus joelhos estavam bons mas eu não ia debater a
questão; depois Deni pegou no meu braço para perguntar se eu tinha entendido como
era andar do jeito mais ou menos correto e educadamente lhe falei:
– Tira a mão do meu braço.
Deni tirou a mão do meu braço e chegamos ao térreo, fiquei esperando Deni
desembarcar na frente para que eu tivesse o privilégio de olhar a ascensorista pela
última vez mas Deni não arredava o pé dali e, ainda fez questão, volteou as mãos num
trejeito cavalheiresco para que eu saísse na frente, então a contragosto desci e fui
andando pelo corredor rumo à saída do prédio, pensei que ao menos estava terminando
sem ossos quebrados e pensei mais um pouco na ascensorista, então ouvi:
– Ei, espere aí! Que pressa é essa? Se aqui você ainda não nasceu significa que
também não morreu!
Que sarna. Deni me alcançou e andando do meu lado do jeito mais ou menos
correto foi falando justamente sobre o jeito mais ou menos correto de andar, quando
saímos para fora do prédio ele seguiu do meu lado andando do jeito mais ou menos
correto e ainda falando do jeito mais ou menos correto de andar enquanto pensei que se
nunca tivesse entrado naquele prédio não teria visto a bela ascensorista do elevador,
quando Deni mudou de assunto foi influenciado pela discussão entre seu mestre e a
vesga:
– Um tiro no peito não dói nem um minuto de vida.
Pensar na ascensorista do elevador chegava a me ferir mas não de modo
doloroso, eu nunca mais a veria mas isso também não seria motivo de dor.
– Apenas uma derrota é pouco... – Deni ia falando.
– Tudo começou com a fome – comentei.
Eu estava com um pouco de fome e Deni se envolveu na questão, falou que a
fome seria a maior cumplicidade entre todos e sobre ser o medo da fome maior que o da
morte, depois me perguntou se o que tinha dito era clichê e como eu não sabia se era
clichê lhe falei que não sabia se era clichê, pensei que na pensão minha marmita devia
estar pronta e perguntei ao Deni aonde ele estava indo, ele disse que ia para uma estação
de metrô próxima e então paramos numa esquina na espera do sinal abrir, a estação do
metrô para onde Deni ia estava no percurso da longa caminhada até a Vila Egressa mas
eu podia evitá-la mudando o trajeto para uma quadra a mais, nesse momento Deni
colocou sua mão meu braço para declarar:
– E se um dia você ficar famoso não se esqueça que deve isso a nós.
Achei que Deni devia entender a diferença entre dentro e fora do prédio do
Cafeteria e, baixando os olhos para o chão, tanto pedi quanto avisei:
– Tira a mão do meu braço, senão vou quebrar tua cara.
Imediatamente Deni tirou a mão do meu braço e a escondeu atrás de si; para lhe
dar mais um auxílio falei:
– Tem gente que, só de você olhar na cara, arranca tua língua, no melhor dos
casos manda você sair andando sem olhar pra trás. Mas o ambiente que você frequenta é
diferente. Eu acho que, se você por acaso ouvir alguém usar o termo Dois Centímetros,
não vai saber ao certo como agir devido ao ambiente. Se o corpo acompanha as
palavras, existe comum acordo. Nesse momento me disciplino pra afugentar instintos,
farei uma inversão e serei eu a sair andando sem olhar pra trás, mas vou andar do meu
jeito.
Dei os ombros e segui por uma quadra a mais. Nunca mais vi o Deni
pessoalmente e por um período cheguei a ler seu nome em algum lugar até que nunca
mais.
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Finados era o único dia em que a cidade praticamente parava; na pensão nem se
fazia refeições. Falando alto no meio da rua eu imaginava o dia em que pudesse alugar
um quarto solo para poder cozinhar lá dentro e falar alto, quem sabe nele receber a
visita de alguma garota bem viva.
Por falar nisso eu estava perto da farmácia, fui até lá e conferi que estava de
plantão, subi na balança e a morena por detrás do balcão me falou:
– Teu peso está legal.
Levemente olhei sua compleição, ela tinha braços e mãos firmes, nariz angular e
olhos negros abaixo de sobrancelhas fortes. Atrás dela o cartaz com anúncio vencido
tinha sido retirado da parede, lhe falei:
– Estive aqui algum tempo atrás, pensei que um cartaz era pista.
– Tipo presságio? – ela era rápida, olhos rápidos acompanhavam boca rápida. –
Hoje é feriado e isso pode ser bom presságio, fecho às cinco.
O balcão nos separava e a distância aumentava o desejo. Eu havia curtido à beça
quando ela subira a escada para apanhar um veneno contra pulgas na prateleira, agora
curtia sua rapidez em falar:
– Tem quem acredita em mortos interativos e tem quem diz que toda morte é
muda, tem quem fecha a tampa dos túmulos. O amor é interativo e não se fecha.
Pensei que podia ir até o distante shopping da avenida Capital para ver se estava
aberto, mas lembrei que lá o pessoal da segurança já me conhecia de visitas em seus
banheiros. Ela estava sorrindo e falou:
– O amor é único porquê não sabe copiar.
Ao meu ver ela podia ter entre dezessete a dezenove anos, se assim fosse teria
cara da sua idade, pensei em lhe perguntar a respeito mas a timidez me impediu. Botões
faltavam na minha camisa e os tênis gastos nas laterais das solas me deixavam torto; ao
menos as meias furadas não daria para ela ver.
– Daqui a pouco vai dar cinco – seu rosto era sugestivo –, vou tomar umas na
descontração, curtir coisas intrínsecas.
Talvez ela conhecesse algum boteco aberto, ou então ia beber em casa. Desci da
balança e saí andando com os pés fora do prumo; seria outro dia que faria meu desfecho
particular por aquela morena que nunca mais vi.
II – Os dois lados da cidade
“Puxa vida, que jardim arrumado, que cachorro imenso, nossa, cada mulher que
está chegando aí, ah, são as atrizes.”
Saindo do saguão do teatro passei pela lateral do jardim, mais uma vez entrei na
adega porquê nela tinha aberto uma garrafa de vinho e havia o compromisso de lhe
consumir inteira, reparei que a garrafa ainda estava pela metade e arrematei mais um
copo, depois fui dar mais uma passada na cozinha dos fundos da casa em função de
salvar algo antes do lixo.
“Puxa vida, que comida gostosa a cozinheira faz, que empregada doméstica
apetitosa, eu sou eletricista e se uma delas quiser é só me chamar que faço uma
estupenda instalação elétrica, dá satisfação quando a gente faz bem feito.”
Voltando para o saguão vi que mais gente tinha chegado, em sua maioria eram
jovens e um deles me perguntou:
– Você vai fazer o teste?
– Só um momentinho...
Eu tinha me lembrado que no teatro havia um saco de detritos para ser levado
para fora, entrei nele e curti o cheiro de coisa nova, pensei que sendo meu serviço de
instalação básica se Letícia quisesse eu podia acertar com ela um novo preço para
conforme observei ser necessário instalar interruptores de duas fontes bem como um
pára-raios de boa potência, também seria preciso afinar os espotes de luz e medir a
frequência na caixa de entrada e além do mais iriam precisar de um operador de luz e
som, contemplando o espaço eu sabia que minha mão estava ali e pensei em até mesmo
em cuidar dele como um todo, ali me sentia auto-suficiente e ainda por cima ia fazer um
teste para ator, pus o saco de detritos nas costas e de repente Letícia entrou pela porta de
entrada bem estabanada, veio em minha direção meio doida:
– O nosso diretor chegou!
Mulher estranha, já inclusive me pegava nos braços desesperada, alucinada e
ridícula:
– Rápido, o nosso diretor chegou! É hora do teste! Você está preparado?
“Você tem de ser paciente com ela”, pensei. “Seja um profissional e lembre-se
que está aqui por um propósito.”
– Faça o teste com confiança em você, não fique nervoso, ouviu!
Que mulher rica e burra do cacete, nem tripas devia ter. Eu nunca lhe disse que
não tinha confiança em mim ou que estava nervoso por causa do teste.
– Acredite! Acredite! – dizia a anta.
Ao meu ver ela tinha mais ambição que talento, podia ser revirada pelo avesso
que seria a mesma coisa. A gente vive tendo de manter-se numa posição inferior para
sobreviver, procura alguma sombra e ali fica.
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Ali todo portão tinha seguranças que os abria após identificação de quem
chegava, e os dois tinham entrado pelo portão que dava no corredor direto até o teatro,
eram o diretor e seu amante que ao entrar conferiram com os olhos as condições do
ambiente recém-construído e depois foi o diretor sentar-se numa poltrona à frente já
logo acendendo um incenso seguido pelo incenso que em pé seu amante acendeu, daí os
dois acenderam mais outros dois incensos um cada um e a cada incenso aceso diziam
palavras de comunhão demonstrando respeito pelos mortos, quando me viram com o
saco de detritos nas costas pronto para sair foi o diretor que me apontou dizendo:
– Quem é?
– É o eletricista – respondeu Letícia. – Ele também quer participar do
espetáculo.
– Sem fazer o teste ele não pode integrar a montagem – ele falou.
Seria impossível me esquecer que ia fazer o teste; saí do teatro e deixei o saco de
detritos lá fora, voltei ao saguão e fiquei esperando junto aos atores, enquanto eles
conversavam entre si logo descobri: o teste tinha sido até divulgado em jornais de
bairro, contudo ninguém tinha aparecido para ele por força dessa divulgação, nisso
concluí que: uma vez que eles todos já estavam incluídos no grupo, eu seria o único a
ser testado.
Mas, após algum tempo de espera, saíram Letícia e o diretor discutindo: ela
agora resolvera que eu não ia mais fazer o teste, eles discutiam na nossa frente e nisso
se pode colocar uma meia hora sem exagero algum, daí finalmente os dois entraram
num acordo: eu iria realmente fazer o teste, estava tudo resolvido. Voltaram a entrar no
teatro e esperamos.
Ao meu lado os atores conversavam, alguns comentavam que só tendo aparecido
eu para fazer o teste certamente iria sobrar personagens para que vários deles fizessem
mais de um e ainda por cima havia as figurações, outros comentavam que haviam sido
reprovados no teste do grupo do Deus do Charuto e outros zombavam daqueles que
tinham feito vários testes no grupo do Deus do Charuto e tinham sido reprovados,
quando comentaram que Letícia havia sido reprovada no teste do grupo do Deus do
Charuto uma grande diversidade de vezes ninguém zombou e de repente alguém
comentou que: o diretor que estava lá dentro do teatro foi aprendiz do Deus do Charuto
por anos a fio.
Aqueles atores sabiam muitas coisas a respeito do meio teatral, sabiam uns da
vida dos outros. Todavia ninguém sabia que eu já havia estado no grupo do Deus do
Charuto e não seria eu a dizer.
O próximo a colocar a cabeça para fora da porta do teatro foi o amante do
diretor. Me falou o que eu já sabia:
– Pode entrar. Você vai ter de fazer o teste.
Entrei e Letícia estava logo na porta, ela me deu uma piscadela e tanto, a maior
piscadela desde o surgimento das pálpebras, e ainda disse bem alto no meu ouvido:
– Você já é do clã. Não tema.
Ela era nepotista, me transformou num pelego sem ao menos me perguntar se
era isso que eu queria. Eu ia fazer um teste no qual já sabia que seria aprovado.
5
Fiquei ali no centro do palco esperando o que viesse, à mercê me coçando, até
parecia que só de subir no palco as pulgas meio que se ouriçaram em meu couro, se
multiplicaram, bem que poderia ser bocas de certas fêmeas.
Com todos os incensos renovados e acesos, o diretor sentou-se na poltrona
central e disse aquelas velhas palavras:
– Me surpreenda.
– Não sei como te pegar desprevenido daqui – respondi.
– Tente – ele insistiu. – Me mostre o que nunca vi.
Cocei o pescoço e as costas por causa das pulgas me roendo o corpo, aquelas
que baseavam-se na pensão e que eu tinha trazido para conhecer o primeiro mundo.
– Qual a motivação disso? – ele perguntou.
– Ah, tudo tem um motivo, né?
– Motivação. Se você faz um movimento, tem de haver motivação.
De repente me dei conta de que aquele cidadão era uma extensão do Deus do
Charuto, mesmo considerando-se que o próprio Deus do Charuto pudesse ser uma
extensão de uma outra extensão.
– Em que mundo você vive? – ele insistiu. – Eu perguntei sobre teu gesto.
Claro que eu não ia brigar com o cara só por causa dele estar me perguntando o
motivo de eu me coçar, nem ia lhe dizer que me coçava era por causa das pulgas que
não era ele quem tinha posto na minha roupa. Tinha um banheiro bem ali no camarim,
eu já tivera usado, conhecia aquele teatro de cabo a rabo.
– Onde você vai? – ele perguntou.
– Ao banheiro...
Fui ao banheiro e me cocei, tirei todas as peças de roupa e revirei-as no vaso
sanitário, vi as pulgas boiando por ali e dei descarga, pus toda a roupa novamente e
novamente senti as picadas, principalmente nas regiões íntimas. Voltei ao palco e eles
estavam eles em silêncio na platéia, nenhum movimento a não ser a fumaça adocicada
dos incensos destinado a exus, serafins e cosminhos.
– Podemos prosseguir agora? – ele perguntou.
– Creio que sim.
– Gostei da tua performance...
– Performance?
– Não me interrompa quando eu estiver falando, sim?
– Desculpe.
– Tua performance foi boa, você está aprovado, parabéns.
– Obrigado, de coração.
– Agora você já faz parte do elenco e, agora, aguarde instruções pra definir os
papéis.
– Isso é muito bom, diretor.
– Meu nome é Diógenes.
– Ok, Diógenes.
– Continue se esforçando porquê estou sentindo firmeza em você.
– Se está bem pra você...
– Aguarde lá fora.
– Tá.
6
A palavra de ordem ali era orixás, influência de Diógenes, e os atores me
explicaram que Diógenes tinha estreitas ligações sensoriais com os orixás e que ali os
orixás não se comunicavam com todo mundo mas apenas com Diógenes, contudo pela
hierarquia primeiro viriam os orixás como comandantes e depois Diógenes como porta-
voz de modo os orixás estariam por trás de tudo e inclusive, disseram os atores,
Diógenes havia dito que até mesmo o nosso encontro ali teria sido planificado pelos
orixás.
Até onde pude contar foram uns quatro ou cinco testes cada qual destinado a
determinada avaliação de atores com critérios que iam de medidas de tipos físicos até
timbres vocais, tudo em função de definir os papéis. Então a gente entrava no teatro
fazia mais uma etapa do teste, voltava para o saguão do teatro e esperava.
Nesses intervalos eu descia para a adega e depois dava uma passada na cozinha
para beliscar algo, voltava cada vez um pouco mais alterado mas ninguém se dava
conta, eu achava que não havia nada demais, minha relação com a adega e a cozinha
crescia em intimidade.
– Agora entrem todos juntos – veio nos anunciar o amante de Diógenes.
Entramos teatro adentro e dessa vez já eram centenas de incensos pelo teatro
todos acesos, teríamos a etapa final do teste e nós os atores ficamos aguardando na
platéia. O amante de Diógenes tocava uma sineta intermitentemente para lá e para cá ao
mesmo tempo em que carregava uma lata de defumação enquanto Diógenes num canto
do palco em meio a incensos fumegantes fazia uma espécie de ritual junto a velas e
pequenas nuvens de fumaça, quando Diógenes terminou seu ritual o amante ainda
manteve alguma defumação e sineta em certos intervalos, quando Diógenes passou a
apontar cada ator o amante passou a dizer ao ator em questão:
– Que suba você!
O ator em questão ia até Diógenes para conversar um pouco com ele, quando
terminava a conversa o ator voltava para a platéia e de acordo com o apontamento de
Diógenes o amante dizia:
– Que suba você!
Na minha vez subi no palco e fui até Diógenes que pegando em minhas mãos
introspectivo perscrutou meus olhos. Minha visão já não estava muito aprazível por
causa dos vinhos e eu via dois, três Diógenes. A gente ficou naquela história de olho no
olho por uns bons minutos com as pulgas me picando pelo resto do corpo fora do olho e
eu sem me coçar, subitamente Diógenes abaixou a fronte e respirou profundamente,
ficou olhando o chão por algum período de tempo e então me disse abruptamente:
– Estou sentindo que é você, estou recebendo, estou quase ouvindo e... é você, o
protagonista. Deixe os cabelos e a barba crescerem. – Balbuciou algumas palavras ao
vazio, os olhos compenetrados. – Você será o notório Hipnotizador2. Você vai dar um
ótimo Hipnotizador2.
– Se você está dizendo...
– Eu vou te mostrar o caminho, é minha missão.
Ele não largava as minhas mãos e me instruía que eu permitisse que os orixás
fizessem o trabalho porquê tudo tinha de ser feito em consenso com eles, que só deveria
decorar o texto e acender duas velas brancas por dia, que esse seria tipo um trato.
– Agora pode ir – liberou Diógenes, me dando um calhamaço do texto para
decorar. – Vai que os orixás estão contigo.
Saí dali e voltei para a adega pensativo, falando até alto: “Veja lá o que vocês
estão fazendo, hein orixás?” Sentei num barril e dando goles no vinho dei uma lida no
texto. Aquele projeto segundo informações largamente divulgadas pelos corredores
tinha a ver com o conhecido conto do ladrão – o Hipnotizador1 – que hipnotizou o
Comerciante para lhe roubar e na fuga foi morto, pelo texto original chamaram outro
hipnotizador – o Hipnotizador2 – para despnotizar o Comerciante e isso foi resolvido
mas, como Diógenes resolveu fazer uma “livre adaptação”, pela sua versão o
Hipnotizador2 teve dificuldade em fazer o serviço devido a não saber qual “sugestão” o
Hipnotizador1 tinha usado e a partir daí, ao invés de despnotizar, o Hipnotizador2
passou a repnotizar o Comerciante diversas vezes e, entrando numa de deus, fez do
Comerciante uma espécie de monstro feliz, uma vez bem-sucedido o Hipnotizador2 saiu
pelas ruas a hipnotizar quem pudesse “pra fazer um mundo feliz” e daí diversas
ocorrências, em meio a isso Diógenes, em sua “livre adaptação”, fez diálogos e
monólogos em forma de confabulações abstratas que não acabavam mais e também quis
dar ao texto um tom de fábula enfiando nele uma série de cenas com elementos tais
como gnomos, duendes e fadas, e as instruções para a representação dos atores, feitas
entre parênteses, eram de tal modo carregadas de bolinações mentais que me perdi em
dúvidas, não me parecia coisa de orixá ou qualquer similar.
Tonéis e garrafas de vinho de toda origem, um ambiente tranquilo. Olhei as
paredes e dei mais goles na boca da garrafa, pensei num dilema que de fato não era
dilema, Diógenes tinha falado das velas mas não me as dera, eu não tinha condições de
conseguir duas velas todo santo dia, então que Diógenes e os eventuais orixás me
perdoassem mas aquele trato bem lá dentro do coração eu sabia que não ia nem começar
a cumprir, duas por dia significavam sessenta por mês e além do mais com tanto ladrão
na pensão iam levar as velas brancas com certeza, eles levavam até as vermelhas,
realmente seria impossível.
Eu tinha chegado de manhã e já era mais de dez da noite, da adega voltei ao
teatro e estavam encerrando as atividades, as instruções finais foram dadas por Letícia:
diferentemente daquele nosso primeiro encontro, num domingo, nossos ensaios se
dariam de segunda a sexta-feira à noite, ela explicou que o dia tinha de ficar livre para
atividades de produção e estudos dos atores.
Todos nós tínhamos nossos compromissos durante o dia.
10
Ali naquela pensão também era possível encontrar alguma mitologia, embora
não pudesse ser identificada de pronto. Não seria uma mitologia igual a de certas
abordagens de Diógenes, que queria traduzir símbolos de outras culturas para
correspondentes nacionais, e mesmo que alguns daqueles peões da pensão lhe
explicasse segundo seus sentimentos mais puros, ou se a dona da pensão lhe explicasse
tecnicamente, ele iria entender, porquê Diógenes só entendia as coisas segundo sua
própria teoria e seu espetáculo era algo irremediavelmente preso na teoria, mesmo
quando falava de prática estava teorizando e os exus que apresentava em sua proposta
eram moças refinadas em relação ao que havia naquela pensão, ele só não podia ser
comparado a Letícia e sua turma cuja teoria era gritantemente brutal, queriam dar gritos
em vitrine e bancavam as aparências para rechear a farsa, caíam do cavalo logo na
largada.
Algumas armas da subnutrição não são feitas para ferir, talvez nem para
defender, apenas buscam catar grãos, de resto buscam se ocultar e na pensão eram
valiosas, ali se exigia um teatro bem convincente de invisibilidade e entre conciliador e
perigoso, inofensivo e imprevisível, passar batido sempre foi a melhor opção. O
currículo de observações selvagens acumulado ali exigia o personagem mais difícil, era
preciso manter distância das brigas quase cotidianas e quem tinha de tomar as
providências era a dona da pensão e seu filho. Guardar os próprios problemas era coisa
de adulto e o transcorrer dos dias revelava quem era quem. Assassinos não agem toda
hora e sequestradores não se interessariam por nós; os ladrões pequenos agem com mais
frequência, e se naquele quarto eu tinha certa segurança já dos quartos vizinhos podia-se
esperar tudo e inclusive em aparentes períodos de tranquilidade que é quando os ladrões
mais gostam de agir, pois para o ladrão a tranquilidade significa vacilo e não deixa de
ter sua razão. Era trabalhoso à dona da pensão e seu filho descobrir a verdade por trás de
roubos e brigas, determinar quem deveria ser penalizado e de que modo, podia surgir
erros de interpretação ou falhas nos julgamentos, as penas envolviam remanejamentos
para quartos piores ou expulsões, eventualmente era necessário chamar a polícia, acho
que ela conseguia manter aquela pensão mais na linha que Diógenes a seus atores.
Teve um quarentão, branco oriundo de uma pequena cidade, que foi remanejado
para o quarto em que eu estava, ele já me conhecia de conversar um pouco quando me
via sentado no muro frente à pensão, já tinha sido bem-sucedido mas caíra vários
degraus e agora trabalhava num pequeno escritório, tinha se separado da mulher e
sempre achei que ele tinha direito de se dar bem em alguma coisa. O centro-sulino
roubou ele.
O centro-sulino, um rapaz em torno de vinte anos, morava noutro quarto e
roubava descaradamente. Tinha seu rádio toca-fitas e, se aos meios de semana
imperavam os rádios à pilha a noite toda, aos finais de semana os rádios toca-fitas eram
retirados dos armários e guarda-roupas para ouvir músicas e, conforme as ouvíamos no
rádio, íamos gravando as músicas que nos interessavam em fitas-cassetes. O centro-
sulino gatuno me pedira uma fita-cassete emprestada para ouvir as músicas que eu tinha
gravado no meu rádio toca-fitas, quando eu fui lhe pedir de volta ele disse: “Já devolvi”,
eu apontei seu rádio toca-fitas, em que ele ouvia exatamente a fita que eu lhe
emprestara, e ele disse que era coincidência, rodou a fita e tocou algumas músicas,
algumas eu já conhecia e outras ele estava gravando por cima direto do rádio. Ele
bancava o simpático comigo, já tinha criado sua relação de reciprocidade comigo. Para
não criar caso o evitei dali em diante.
Toalhas penduradas no varal podiam sumir na madrugada mas, deixá-las dentro
do guarda-roupas, dava mofo e incomodava os pertences dos demais com quem se os
dividia. Lavar roupas aos finais de semana exigia que se ficasse assistindo-as secar para
não sumir. O quarentão trabalhava absolutamente todo dia e o centro-sulino roubava
absolutamente todas as suas toalhas, a cada toalha nova que ele comprava o centro-
sulino roubava, tinha o centro-sulino desenvolvido por ele certa fixação e queria as
toalhas dele, isso se repetiu tanto que estava todo mundo falando: o centro-sulino rouba
todas as toalhas do quarentão, a questão foi ficando pessoal demais e se o centro-sulino
podia roubar de outros fitas-cassetes e demais pequenos objetos era sempre uma só vez,
para não criar rancor por demais, mas do quarentão ele queria todas as toalhas e toda
vez que o quarentão chegava ao final de mais um dia de trabalho nada de toalha, vivia
tendo de se enxugar com suas camisetas.
Um final de semana entra o centro-sulino dentro do meu quarto com a boca
sangrando, quase chorando me fala:
– Olha aqui o que o teu amigo fez!
O meu amigo seria o quarentão. Eu achei foi pouco. O centro-sulino saiu dali e
nunca mais apareceu; aquele quarentão nos livrou do traste. O centro-sulino pelo que
deu para perceber não sentia culpa alguma porquê de algum modo não se sentia
culpado, ele achava que era seu direito roubar o quarentão, e por uns dias os caras mais
velhos da pensão fizeram especulações de que ele devia ter motivos estranhos e que
talvez o quarentão lhe remetesse à sua primeira vítima ou a alguém que ele sempre
quisera se vingar.
Contudo depois disso aquele quarentão, mesmo que aquele murro na boca que
deu no centro-sulino nem se comparasse a certas agressões que ocorriam ali, recebeu
consideração de alguns residentes dizendo que ele tinha “imposto respeito no ambiente”
e até mesmo de ladrões presentes dizendo odiar “ladrão no ambiente”, essa
consideração fez com que não mais sumissem suas toalhas do varal embora, quando ele
me via sentado no muro frente à pensão, me dizia que, “após ter entrado em evidência”,
isso lhe incomodava.
E aquele incômodo do quarentão iria terminar com sua saída da pensão, isso
coincidiu com um incidente me envolvendo. Numa das tardes de final de semana, em
que fui junto a outros residentes num forró de um bairro próximo, bebi tanto que ao
voltar tão logo deitei na cama fui tomado pela necessidade de vomitar e, estando o
banheiro lá fora com fila, para evitar o vômito no quarto fui vomitar no banheiro
destinado à dona da pensão exclusivamente, o banheiro que ficava ao lado do seu
quarto, após a cozinha, no vômito errei o vaso indo parte para o chão do banheiro e na
tontura sequer lembrei de dar descarga, dia seguinte acordei com ela entrando no quarto
a mandar o quarentão limpar seu banheiro porquê algum residente tinha lhe dito que um
“branco” vomitara lá, eu ainda estava sonolento foi só após os dois saírem que pulei do
beliche na intenção de explicar a ela que quem vomitara tinha sido eu mas, quando saí
do quarto, ao passar pelos beliches da sala rumo à cozinha um peão que dormia ali,
chamado Silvino, me falou:
– Fica na tua!
Silvino tinha me visto chegar bêbado no dia anterior e sabia que era eu que tinha
vomitado no banheiro.
– O cara já está limpando, já está resolvido – ele falou. – Se você se entrega, ela
te manda pra um quarto pior.
Fiquei na minha e voltei para a cama, e aquela foi a única vez que dei trabalho
naquela pensão ao sujar o banheiro proibido que o outro branco teve de limpar e, tão
logo terminou, o quarentão veio ao quarto e fez a mala comentando que era injusto
limpar a sujeira de outro, me deu a cópia da chave do cadeado do guarda-roupa que
dividia comigo e foi embora para algum outro lugar, coisa de cinco minutos depois
Silvino foi falar com a dona da pensão na cozinha e pediu a ela para ser remanejado
para o lugar do quarentão no que ela autorizou que ele levasse suas coisas para lá
naquele momento. Sem dúvida o quarto onde eu morava era muito mais seguro e
tranquilo que os beliches da sala e quando dei a cópia da chave do cadeado do guarda-
roupa para Silvino lhe falei:
– Você falou pra eu ficar na minha e deixar outro limpar meu vômito senão eu
iria pra um quarto pior, isso de fato podia ocorrer. Mas você podia estar querendo que o
quarentão fora daqui pra ocupar o seu lugar.
Eu falei isso mas não acreditava nisso, na real eu estava me culpando pelo que
ocorrera. Silvino era boa pessoa e isso transparecia, ele explicou:
– Se você admite o que fez na frente de todo mundo a dona da pensão teria de te
punir pra dar exemplo, ia criar um problema em cima de uma solução. Ela sabe que foi
você que vomitou, apenas usou isso como argumento pra tirar o quarentão, e o tirou pra
que ele não corresse risco na mão do centro-sulino, ela conhece o centro-sulino e sabe
que ele poderia voltar pra se vingar do quarentão.
Silvino era peão de construção e tinha quebrado o braço em acidente de trabalho,
estava encostado e ficava o dia todo lendo a Bíblia com dificuldades, era semi-
analfabeto. Conforme nossos dias passavam ali a gente conversava na medida do
possível, ele era boa convivência e certa vez me confessou quem é que tinha dito à dona
da pensão que um “branco” tinha vomitado no banheiro: a Neide.
A Neide era uma empregada que a dona da pensão tinha contratado
recentemente, eu me dava bem com ela que eventualmente me cantava músicas bregas
para que eu aprendesse as letras, ela achava engraçado minha curiosidade pelas letras e
a dona da pensão quando via isso também achava.
Mas a Neide em termos de gostar o que mais gostava mesmo era de bandido e o
próprio Silvino sabia ou desconfiava disso, ele olhava para ela com cautela e me dizia
que meu tratamento com ela era adequado dentro de limites, que eu não fosse além dos
limites de dentro da pensão porquê a Neide fora da pensão tinha certa “fama”, Silvino
sabia ou intuía algo sobre a Neide e a dona da pensão, sabendo ou não que a Neide
gostava de bandido, tinha a Neide ali por falta de uma melhor contratação ou porquê
gostando de bandido podia oferecer alguma proteção extra, seja como for de tudo que a
Neide podia fazer acabou fazendo o que jamais devia, a Neide roubou qualquer coisa do
quarto de macumba da dona da pensão e isso foi inadmissível para a dona da pensão que
a mandou embora, a Neide foi embora sem medo de macumba.
O Silvino nunca teve provas, mas sempre me disse no particular que aqueles
assaltantes que vieram a aparecer lá durante uma noite só podiam ter sido mandados
pela Neide.
Eles chegaram num horário adequado, justamente quando o filho da dona da
pensão não estava e que poderia reagir. Era domingo de manhã e eu tinha ido até a feira
comprar umas frutas, horário em que a maioria devia estar dormindo, quando retornei
da rua percebi um estranho silêncio já logo no quintal e quando abri a porta estavam
sentados, no banco à mesa e no chão e embaixo da mesa e ao lado do fogão e
acumulados em cada centímetro da cozinha, aqueles residentes todos fossem os aqueles
que dormiam ali no chão ou que passaram por ali naquele instante mais os que já tinham
sido acordados dos outros quartos e trazidos até ali.
– Que foi? – pergunto.
Treze bilhões deles em todos os espaços preenchidos me cochicharam:
– Os caras, os caras...
Basicamente ciciavam e, logo em seguida, um dos caras chegou à cozinha vindo
de um dos cômodos lá dentro, tinha um revólver na mão e apontou para mim, falou:
– Cadê o trabuco?!
Pura perda de tempo dele, só balanço a cabeça em negativa. O segundo logo
aparece por trás do outro, eram dois. Já tinham revirado os quartos lá dentro em busca
de um “trabuco” e nos mandam sentar no chão com as cabeças abaixadas, dois menores
de idade que já tinham um “trabuco” e queriam outro, um para cada um, daí voltaram
juntos para os cômodos de dentro para procurar o “trabuco” e arrebentando cadeados de
armários e guarda-roupas ficavam a conversar entre protestos, não estavam conseguido
achar o “trabuco”.
A dona da pensão estava sentada à mesa, ao lado Silvino resmungava baixo que
só podia ser a Neide, a dona da pensão balançou a cabeça em concordância enquanto o
dois continuavam arrebentando tudo lá dentro e, a partir de certa altura, passaram a
concluir:
– Acho que esse negócio de trabuco foi uma roubada. Vamos levar o que der.
Se quisessem meu rádio toca-fitas podiam levar, naquele momento eu não ia
reclamar. A gente ouvia os dois infratores conversando enquanto enchiam os sacos
plásticos com nossas posses e ainda estavam no quarto do meio, não haviam chegado
até o que eu dormia. Enchendo os sacos com tralhas dos residentes eram rádios à pilha o
que mais dava peso. Pensei que pouco tinha usado meu rádio toca-fitas.
De repente tocou um celular, dei uma esticada no pescoço para ver e um dos
ladrões atendia, era um celular enorme e raridade na época, acho que o nome ainda nem
era celular e dava meio tijolo, tinha até antena de uns trinta centímetros que o ladrão
esticou para pegar a frequência melhor mas, como a frequência estava ruim, ficou
andando com aquilo na mão em busca de um ponto onde recebesse melhor a ligação, foi
para a cozinha e ali a frequência melhorou.
– Alô?... Sei... Não, agora não vai dar... Mais tarde... Tá... Só vou terminar um
serviço aqui... Tá, eu sei, é foda, o cara já tinha brageado dez gramas, ainda tinha cro à
vontade pro cachimbo, e ainda deu uma de dizer que tava deprimido. Esses
modernosos... Tá... Já tenho aquela encomenda... Passo aí mais tarde... Tá... um beij...
O ladrão ia falar um beijo mas olhou feio para os lados e interrompeu o fim da
palavra, ficou até um pouco constrangido e voltou para os quartos de dentro, nesse
momento estávamos todos quietos mas, se Silvino e a dona da pensão falassem, diriam
que a “encomenda” era para a Neide.
Chegam, de repente, dois outros residentes, vindos da rua, abrem a porta e não
sabem o que está acontecendo, alguns residentes-reféns cochicham:
– Assaltoooo!
Os dois voltam a sair enquanto os dois ladrões prosseguem fazendo uma limpa lá
dentro meio destrambelhados, lá enchem sacos de pequenas posses dos residentes e,
enquanto isso, começam a desenvolver um diálogo:
– ...Aquele otário deu entrevista pra tevê no viaduto 3x4, ao vivo, logo ele que é
procurado por causa daqueles chassis adulterados da zona austral... Foi grampeado meia
hora depois...
– ...Duro foi o otário da favela, desconfiado com peso a menos da brag foi
confirmar na balança da farmácia, foi gravado pela câmera, tinha até timbre de facção
no pacote...
– Duro? E o otário que roubou bijuteria pensando que era de ouro e, quando
descobriu, voltou na loja pra reclamar?
Estão para lá de dopados, ao passo que a polícia da Capital é muito eficiente e
ainda mais numa região movimentada, chega após pouco tempo. Fiquei até com dó
daqueles dois menores.
– Ei! – ouço alguém gritando lá fora.
Estou de frente para a janela basculante e ao olhar por ela tem um policial
apontado seu revólver bem entre os meus dois olhos:
– Você!
Os dois menores vêm correndo de lá de dentro, me apontam o seu revólver:
– Quem é?!
– Polícia – respondo.
– Diga que é briga de família – ordenam.
– É briga de família – digo trêmulo aos policiais.
– Todo mundo pra fora!
Os policiais deram sua ordem mas nem esperaram a gente tomar alguma
iniciativa, abriram a porta com um bicudo:
– Todo mundo pra fora!
Nós do chão nos levantamos e fomos saindo, recebemos o comando para pôr as
mãos na parede e não nos mexer, depois os policias foram caçar os assaltantes dentro da
casa e dos dois um levou um tiro na perna, depois apanharam um bocado e foram
trazidos para fora, atirados ao chão de barriga para baixo foram algemados e, dali,
arrastados para camburão.
Quando voltamos para dentro da casa as paredes estavam chapiscadas de sangue,
peguei meu rádio toca-fitas de volta e fui para a cama gravar algumas músicas
aproveitando minhas horas de folga, dia seguinte teria oitenta peças para fabricar.
Do que ficamos sabendo, os assaltantes não entregaram a Neide na delegacia. Eu
nunca mais vi a Neide.
11
Meu chefe andava tendo uns modos mais educados para comigo nos últimos
tempos, se aproximando de mim com tamanha cordialidade que chegava a preocupar, e
ainda bem que naquela manhã descobri que suas intenções a meu respeito eram apenas
intermediárias.
Eu tentava tirar as lascas de ferro grudadas no rosto frente a um caco de espelho
acima de uma grande pia onde os peões ao final do expediente se lavavam e davam uma
ajeitada no visual, foi nesse momento que ele se aproximou:
– Vai se limpar antes de se sujar?
Sua cordialidade foi em forma de pergunta que não respondi, apenas deixei o
caco de espelho pronto para começar o serviço, daí ele perguntou:
– Verdade que você sabe escrever?
– Sim, chefe.
– Pode escrever uma carta? É pra minha pretendida.
– Sim.
Na verdade eu havia documentado, além do curso incompleto de torneiro,
apenas ginasial incompleto ao preencher a ficha para aquele emprego, achei que se eles
soubessem de meu um ano de faculdade poderiam não me contratar por excesso de
conhecimento, também considerando certo temor em ser discriminado entre aquela
gente analfabeta da fábrica. Mas parece que o ginasial incompleto impressionou meu
chefe que, também analfabeto, devia ter tomado conhecimento de meu currículo junto à
secretária do escritório.
– Depois te chamo.
– Sim, chefe.
Por toda a manhã ele nem mais se aproximou de mim, sequer deu as caras no
galpão, não ouvi seu grito sequer de longe e, no almoço, quando eu estava ali no chão
do pátio iniciando o desjejum ao lado do Gordinho ele gritou de lá da sua “sala”:
– Vem cá!
Era assim, ele gritava “vem cá!” e a pessoa à qual ele estava chamando tinha de
descobrir que estava sendo chamada.
– Vem logo!
Se o cidadão fosse chamado mais de três vezes e não atendesse podia preparar a
munheca para assinar o aviso prévio ou, melhormente, o dedão para a impressão digital
já que muita gente ali não sabia assinar nem o próprio nome.
– Tô falando com você!
Eu tinha comido somente metade do arroz e da farinha, o ovo frito eu estava
guardando para o final, do jeito que estava deixei a marmita no chão e saí correndo,
ainda ouvi o Gordinho gritando:
– Posso ficar com o ovo?
Isso não carecia de resposta porquê ele ia comer o meu ovo de qualquer jeito e,
depois, ainda era capaz que dissesse: “Pensei que cê já tinha terminado.”
A “sala” do chefe era uma espécie de jaula de concreto e sem janelas no rabo da
fábrica, tinha duas cadeiras e uma mesa enlameada de piche e graxa, ele estava ali
sentado e um bocado ansioso mas, antes de iniciarmos a redação da carta, ele fez
questão de me oferecer a metade da sua comida, devia estar sendo bem difícil para ele,
foi uma marmitex que ele dividiu comigo e “dividiu” mesmo, pegou a marmitex e a
rachou com as mãos exatamente pela metade me dando uma das partes, não podia haver
maior declaração de amizade, e ainda por cima ofereceu um resquício do seu
refrigerante, comemos juntos enquanto ele me dava uma audiência sobre o que queria
que eu escrevesse para a sua “pretendida”, apresentava certa dificuldade de expressar o
que queria por meio de palavras e em seu complexo dialeto micro-regional setenta por
cento do que dizia não dava para decodificar, ele tinha um vasto mundo para botar para
fora só não sabendo dar forma adequada a isso e eu ainda estava mastigando o final da
sua comida quando ele já veio empurrando aquele papel já permeado de perfume barato
por cima da mesa em minha direção no que peguei a caneta com a mão ainda
encharcada de óleo de ovo frito passando a escrever as ensaiadas declarações de amor
que ele soltava sem escrúpulos com seu hálito de fritura saturada, do que dava para
entender era de arrepiar o que ele dizia, de meu toicinho de porco para lá, escrevi me
inspirando em suas expressões faciais e tentando traduzir o que ele dizia além de
acrescer elementos da minha vida social, pelo conjunto encontrava palavras como
“estou com vontade de sair da firma e me firmar com você, meu toicinho de porco,
estou com vontade de chorar de emoção e medo, eu sei que não é fácil ser gostado por
alguém porquê é o que há de mais duro na vida porquê tem gente que gosta da gente e
logo nos escraviza com requintes bem especiais porquê tem gente que precisa aprender
a controlar o que ama e assim, meu toicinho sagrado, deixemos de ser pássaros presos
em gaiolas ou animais presos em coleiras ou humanos presos em jaulas, deixemos de
passar tanto tempo obrigados a fazer a dor e a alegria alheia, tanto tempo subordinado
aos sonhos e pesadelos alheios, porquê nisso aí chega uma hora que não se consegue
acordar mais, sejamos toicinhos livres ao sol...”, quando o papel ficou todo preenchido
eu lhe disse que faltava o nome do remetente e da “pretendida”, no que ele me mandou
calar a boca e disse que os dois nomes ele mesmo sabia escrever, depois:
– Volte ao trabalho. Amanhã tem mais.
12
Pensei que talvez fosse por causa dos abraços que algumas delas me davam
durante os ensaios e nos debates aos finais dos ensaios, por vezes até mesmo na sala de
ginástica quando eu estava passando, nisso ocorria de fazerem confissões junto a
lágrimas e até piadas faziam dizendo que eu servia de apoio para confessionário ou
apoio de intervalo ou qualquer coisa assim. Abraços de ensaios e lágrimas de debates e
abraços de coxia e lágrimas de coxia, abraços molhados de suores de ergométrica e
olhos marejados num vale de lágrimas luxuosas mescladas a um bom perfume. Mas
logo pensei que não era isso, que isso era só uma situação cristalizada e tantas vezes
falsa feito perfume doce demais feito prisão.
Eu nunca fiz um exercício naquela sala de ginástica, já tinha as minhas seções na
fábrica de balanças, só via elas tonificando músculos animadas e soltando línguas a
colocar seus grilos para fora e inclusive prevendo o pior, pressagiando o fracasso do
projeto e confessando seus planos substitutos já preparadas para uma eventual e nova
imersão a um novo grupo e a uma renovação de suas verdades, já em outros momentos
tinha aquelas que eram aprofundadas em complexos sofismas e simbolismo e arquétipos
exportados e cartilhas mentalmente embaralhadas que geralmente eram para mim sons
ocos feito sinfonia monocórdia contudo por vezes me forneciam algum aprendizado e
surpreendido eu entrava com elas em idílios sem que elas soubessem enquanto as via
caminhar em esteiras como se não precisassem chegar a lugar algum, quase todas
costumavam entrar em questões como “receitas de fama” feito uma rasante lhe
atingindo talvez pelo fluxo sanguíneo subindo ao cérebro e nessas horas eu me entupia
de silêncio ou contribuía com a causa as chamando de “glóricas estrelas glóricas e
centralizadoras de energias glóricas plugando-se ao futuro glórico” e elas, animadas, me
diziam:
– Basta querer ser e você vai ver.
– Quando garoto – certa vez falei em teste – eu sonhava em ser jogador de
futebol. Tinha minhas dúvidas sobre minha capacidade como jogador, mas tentava
acreditar nisso.
– Não é assim – me explicaram. – Você tem de acreditar como se já tivesse
ocorrido. Faça isso toda vez que acordar, sem rótulos nem réstias.
Claro que eu não iria falar sobre acordar, ainda menos sobre prosseguir. Claro
que não era por causa daquela sala de ginástica nem do suor que elas esvaiam na
ergométrica. Num tabuleiros todas as peças devem se mover nem que no mesmo lugar
desde que algo esteja movendo ao redor delas.
Talvez tenha sido pelo fracasso em minha interpretação do Soldado9, ou que
fosse do Marinheiro17, ou dos dois, ou ainda simplesmente por causa da interpretação
do gnomo, que no conceito de Diógenes não estavam bons. Mas não acredito nisso.
Aqueles personagens podiam ser suprimidos que nada afetaria o todo. Ou talvez fosse
pelo que eu não acreditava, no meu conceito Diógenes dizia acreditar tanto mas eu não
acreditava que ele estava acreditando tanto assim e ainda menos estava sabendo lidar
com aquela gente embora talvez para aquela gente não existisse um modo certo de lidar,
no meu conceito que não interessava a Diógenes caso ele quisesse se impor já teria sido
enxotado a muito tempo e no meu conceito Diógenes não sabia diferenciar focinho de
porco de tomada, seu amante era um quadrúpede e Letícia era tão orelhuda que não sei
como se mantinha sobre os dois pés, aquela turma de Letícia era ou se fazia de ainda
mais grosseira para acompanhá-la sem a contrariar e ela não admitia ser liderada, fazia
questão de dar ordens por capricho e queria ser estrela e proteger aos seus cupinchas e
fazer uma psicoterapia e ser paparicada tudo ao mesmo tempo através do teatro sem
jamais ser questionada e intocável, a maioria dos atores queriam um sucesso bombástico
a ser pago com esteiras e lágrimas e sem sair do invólucro aos quais estavam
condicionados, herdeiros queriam a própria insurreição.
Contudo não faltando ali conceitos não seria os conceito de um eletricista que
iriam lhes interessar. Sendo Diógenes o rei dos conceitos e a maioria deles apreendidos
do Deus do Charuto com o qual trabalhara e motivo pelo qual tanto impressionava
Letícia ficavam eles se debatendo nisso, ela ia pegá-lo de carro todos os dias na
rodoviária de onde ele vinha de uma pequena cidade-satélite e chegavam se debatendo
entre conceitos, ela certamente pagava suas passagens até a rodoviária tanto quanto para
ser o seu diretor e se tudo desse certo elevá-la ao ansiado status de celebridade pela
crença de que o Deus do Charuto tinha uma esteira lhes atingindo com o que havia de
melhor, já os demais em sua maioria embora também os conceitos de modo geral lhes
atormentassem e eventualmente até algumas horas de seu sono junto à tantas horas de
ergométricas igualmente lhes pareciam inevitavelmente necessários à fama e essa
combinação era vista em forma de sacrifício, tinham de chorar. Por todos os conceitos
do mundo discutiam todas as noites e não haveriam se ser torpes, a energia
condicionada na ginástica não haveria de ser torpe e também seus debates paralelos não
haveriam de ser torpes, podia haver detalhes bestiais e grupos divididos e motivos
débeis e podia prosseguir jorrando pelos olhos uma infinidade de choros desconexos e
descer tinta de maquiagem junto a lágrimas mas não haveriam de ser torpes, podiam até
ser absurdamente perplexos e inclusive de forma enfastiada e desalentadora e podiam
desencarcerar suas mentes e corpos em arsenais de morbidez desordenada que não
chegava nunca a lugar algum mas não haveriam de ser torpes.
O eletricista não entendia muito bem a choradeira e ainda menos tanto barulho
para isso em tanta evidência na frente de todos, isso por vezes lhe dava certo tédio
misturado a agonia misturado a dúvidas, mas não haveria também ele de ser torpe. O
eletricista poderia facilmente dizer que a comida e a adega seriam as provas mais
contundentes em sua insistência em ficar, afinal locais onde bebida e comida jamais se
acabam lhe permitiam se fartar até quase estourar feito pulga e não haveria de ser torpe,
de resto se seu destino à sombra da miséria lhe parecia descabido e errante feito pena ao
vento em atalhos flutuantes de trilhas certeiras em direção ao penhasco do chão também
não haveria de ser torpe tanto quanto não haveria de ser torpe sua certeza de coisas que
não mudam no lamaçal entre pontes e na abdicação de si mesmo e no constrangimento
por causa das pulgas quando o pessoal se coçava, ele já até tinha dito certa vez:
– Este teatro tem de ser dedetizado!
Putz. Um teatro novinho daqueles. Não haveria de ser culpa daquele espaço nem
do outro feito noutro mundo trazido ao presente, feito por todos que o queriam fazer no
direito de todos de o fazer e na vontade independente de classe, culpa nenhuma haveria
e nem haveria de ser torpe.
Mas acontece que, indo para trás, para o início, tinha um motivo específico do
qual o eletricista não conseguia se livrar. Letícia ainda não lhe havia pago por seus
serviços, ela o embromava toda vez que ele cobrava, ela dizia sempre a mesma coisa
feito esteira rolando no mesmo lugar, que ia lhe pagar semana que vem, semana que
vem...
Devia ser por isso.
13
14
Dentro da viatura da polícia fui naquele assento duro onde os presos são
conduzidos, chegando à delegacia outro banco duro me fez aguardar para preencher a
papelada de praxe por horas tal era o movimento da noite como se as bruxas estivessem
soltas, estava cheio do sono e preocupado com a condição física para trabalhar após o
amanhecer.
Pouco antes do sol dar as caras a polícia trouxe das ruas um elemento recém-
preso e o deixaram ali no banco ao meu lado com as mãos algemadas para trás, ele já
sofrera algum espancamento para começar e esperava sua vez de ser fichado para
encaminhamento a uma cela, tinha uma dura cara dúbia e veio arrastando-se pelo banco
até encostar-se ao meu lado.
– Coceira é foda – reclamou. – Dá pra coçar pra mim?
Ele tentava coçar as costas esfregando-as na parede e dizia que a parede não
tinha o mesmo efeito que uma unha. Pus a ponta de uma unha em suas costas pruridas e
lhe dei uma força enquanto ele dizia “mais pra cima, mais pra baixo, ahhh...”, daí eu
parei com aquilo deixando-o que se virasse com sua coceira, no que ele voltou a
relacionar-se com a parede gemente e morfético, “ahhh, que delícia”, e depois simpático
passou a me falar da suas experiências pessoais bem como a me fazer perguntas
comparativas às tais experiências:
– Dar o cu só dói na primeira vez. Você já deu? Já comeu? Já comeu, né? Já foi
preso?
– Só pernoite.
– Você tem cara de quem come. Eu tenho cara de quem dá. É isso que distingue
as pessoas e, quem dá, dá porquê acostuma, enquanto quem come só come porquê não
dá, eu se dou vou agora me esbaldar e ainda por cima vou comer, comida, de graça, que
vão dar pra mim, e vou dormir de graça, dormindo também vou dar e, de dar, só o que
me enfeza é neguinho com a unha do dedão do pé comprida, porquê aquilo machuca o
calcanhar da gente, eu só dou pra unha cortada.
– Certo.
– A barriga batendo nas costas não dá pra evitar a quem dá, mas a unha tem que
cortar antes de comer, e se o cara é estripado só por causa de uma unha, aprende a
comer, daí quem dá ensina a comer.
– Sei.
– Quem dá, dá, e não é só porquê dá que é baitola.
Ficou ali o elemento falando sobre sua concepção, e olhando sua cara eu tinha
dúvidas se ele realmente estava gostando da idéia de ser preso, parecia mais querer se
convencer disso. Me lembrei das atrizes do espetáculo de Diógenes que choravam ao
estarem fazendo algo que por tese deviam gostar e o mundo delas me parecia
desencaixado, pareciam elas sofrer de graça feito modus operanti, mas não seria eu que
iria coibir isso nelas mesmo porquê não seria capaz e, vai ver, elas realmente
precisavam disso.
Por uma questão de prioridade primeiro ficharam o elemento, depois o levaram
para dentro das grades e daí chegou minha vez. Eu nem tinha novidades para dizer ao
delegado além do que já tinha dito aos policiais e falei que o peão incendiário estava
para lá do mundo, que queria brigar comigo na cozinha e que atrapalhou minha janta.
– O que você faz? – ele quis saber.
Pensei em dizer “torneiro mecânico” ou “eletricista”, mas acabei dizendo que
era “ator” na intenção de impressionar o homem da lei que, me olhando de soslaio, deu
lá o seu riso na idéia:
– Quantos anos você tem?
– Uns vinte, pra mais ou pra menos.
– Nesta idade – ele encerrou – eu já era cabo.
Uma vez liberado meu caminho dali era o trabalho, onde pegava às oito horas na
fábrica. Oitenta peças.
15
A gente entra na roda e depois fica tentando não pensar mais nela, tenta dar
corda e seguir em frente no eflúvio, tem outros fazendo nossa comida e defendendo
nossos direitos, alguns cuidam da nossa ficha e todos dão duro no ganha-pão, qualquer
problema é só lembrar que tem uma turba imprensada lá fora querendo entrar, aqueles
envilecidos pela carestia e refocilados pelo ócio fazem complôs mirabolantes para tomar
nosso lugar e estão dispostos a leiloar suas almas, fazem rostos dóceis e lacrimosos e já
baixaram o próprio preço, não vêem a hora do nosso tombo, qualquer transtorno é só
borrifar os gráficos e qualquer canseira os dados nos alertam que a gente pode capotar.
Por aqueles dias o meu chefe não tivera me chamado para escrever cartas
durante o almoço, o que era mesmo uma pena em se tratando da perda diária da metade
da sua marmitex. A marmita que eu trazia da pensão era cheia de furinhos no seu fundo
devido à corrosão dos anos e como ela ficava na água do aquecedor elétrico da empresa
junto às marmitas dos demais trabalhadores quando na hora da refeição o que sobrava
dela era uma papa aguada, assim a farinha ajudava a endurecer um pouco aquele gosto
de ferrugem de metal e de resto a fome resolvia tudo.
Uma vez frente ao torno pus o ferro cilíndrico na castanha e o liguei, tinha
passado a noite em claro e o sono queria me dominar para além do inferno de um
conjunto hiperbólico e abracadabrante de moedores giratórios em meio a metais insanos
junto a máquinas extirpadoras de braços e cérebros, meu corpo pedia água e meus olhos
atordoados viam em demasia tudo tudo disforme e demolidor, o ensurdecedor barulho
da fábrica ao invés de me acordar só feria meus ouvidos e eu buscava a perfeição da reta
pela limitação na exigência do ofício.
– EI!
Isso eu ouvi bem distante como se não tivesse ouvido. Além do barulho eu
costumava usar bolinhas de estopa enroladas nos ouvidos justamente para atenuar o
barulho.
– ESTOU FALANDO COM VOCÊ, ESTRUPÍCIO!
Percebi que a coisa era mesmo comigo e para ouvir melhor arranquei as bolinhas
de estopa dos ouvidos, depois me virei para o lado e meu chefe olhava as duas bolinhas
de estopa em minhas mãos.
– CHEGA DE ESTOPA!
– O senhor tem razão, chefe.
Ele estava a cinco centímetros do meu rosto, berrava feito animal raivoso
ensopado de saliva.
– JÁ TEM BASTANTE PARAFUSO! QUER ENCHER A FÁBRICA COM
PARAFUSOS INÚTEIS, SEU INÚTIL?!
Desliguei o torno e depois de me dizer mais corriqueiras coisas assim lindas para
despertar meu ânimo pessoal ele ficou mais vermelho que antes por causa de uma raiva
maior que sempre. Aproveitando a ocasião eu lhe perguntei:
– Quer escrever carta hoje, chefe?
– NADA DE CARTA, SEU LAZARENTO DOS QUINTOS DOS INFERNOS!
Ele parou para respirar um pouco e ficou bufando, furibundo e vermelho. Falei:
– Não quer escrever pra pretendida, chefe?
Ele me olhou com angústia e asco e alucinação e indigestão e remorso.
– O TEU NARIZ, SEU MONTE DE ENTULHO SEM VERGONHA!
– Você que manda, chefe.
Meu estômago raciocinava e torcia para que ele recuperasse seu romantismo e
me chamasse novamente para sua “sala” no almoço, assim eu comeria mais ovos fritos e
até mesmo um bom bife de vez em quando; enquanto isso ele estava tão nervoso que
havia esquecido o que viera ali fazer, respirou um pouco para retomar a ordem do dia e
então me disse:
– É DIA DE PESAR BALANÇAS, SEU INÚTIL!
Pesar balanças era atividade realizada de tempos em tempos e exigia superação
quase inumana, coisa para atletas de alto nível. Eu não tinha dormido, via coisas
monstruosas.
– Chefe, dá pra me substituir hoje?
– PORQUÊ SUBS-TI-TU-TI? – ele estranhou a palavra e o motivo dela.
– Não estou muito bem.
– DESCE LOGO PRO OUTRO GALPÃO E NÃO ME ENCHE O SACO!
Sem mais conversa desci até o outro galpão para me encontrar com o Gordinho e
o Pesador das balanças, era com eles que a coisa seria feita, pedi ao Pesador que
intercedesse junto ao chefe para me dispensar naquele dia e ele apontou o Gordinho:
– Se o Gordinho aguenta, você também.
O Gordinho já tinha tentado ser dispensado naquele dia alegando fortes cócegas
na cabeça do pênis, tivera seu pedido recusado e agora estava ali semi-agonizando em
certo gozo.
– Dor na cabeça do pinto... – me falou.
Já estava todo mundo sabendo, o Gordinho estava com dor na cabeça do pinto,
daqui e dali uns gritavam ser gonorréia, outros preferiam gritar sífilis e outros optavam
por aids, todos sabiam que era por causa de prostituta.
– Nada de corpo mole – disse o Pesador. – Deixa de pachorra.
Fomos em direção às balanças a serem pesadas ouvindo o galpão tonitruoso
sobre nossas cabeças. Pesar balanças era a etapa final da fabricação.
– E se a gente der o fora? – gritei ao Gordinho.
– Tá louco? – ele respondeu.
Se o Gordinho ia encarar o serviço com dor no pinto, eu também tinha de
encarar com sono.
– Hoje é que vai ser divertido! – disse o Pesador.
Nos posicionamos para a pesagem e cada peso de ferro tinha uns trinta
centímetros pesando vinte e cinco quilos, eram quadrados para evitar o risco de se
moverem e tinham uma alça no meio para a gente os pegar. Ficamos nas duas
extremidades de cada balança com os pesos no chão ao nosso lado, ao centro o Pesador
dizia:
– Quinhentos quilos! Mais duzentos quilos!
A gente punha duzentos e cinquenta quilos de cada lado da balança gigante,
depois punha mais cem quilos cada um e assim por diante. Aquela pesagem envolvia
toneladas para se calibrar a precisão das balanças.
– Tira tudo!
A gente tirava tudo e carregava para outra balança para repetir o processo, cada
balança regulada recebia uma etiqueta e o galpão contava com várias a serem
etiquetadas nesse dia.
No intervalo do almoço os comentários dos peões eram estridentes, que o
Gordinho estava com gonorréia, que eu não ia passar daquela semana, que o chefe era
um corno. Eu e o Gordinho comemos nossas marmitas no chão com os braços
anestesiados, todos os músculos do corpo doíam esfalfados, depois demos uma
desmaiada ali mesmo.
Acordei com o chefe abanando o cartão de ponto na minha cara e dizendo que
ele estava preto de graxa, que a secretária estava reclamando:
– LAVA A MÃO PRA BATER ESSE CARTÃO! ACHA QUE TODO
MUNDO É PORQUEIRA IGUAL A VOCÊ?!
– Vou pegar bem na pontinha dele, chefe.
– SEU IRRESPONSÁVEL DESTERMORREGULADO! A SECRETÁRIA
NÃO TEM QUE SUJAR AS MÃOS POR CAUSA DA TUA PORQUICE!
O Gordinho acordou bem na hora em que o chefe pensava numa maneira de me
crucificar, desviou a atenção do homem dando uma gemida séria e falou:
– Tá piorando, chefe. Saí com uma mulher aí e acho que peguei doença.
– PORQUÊ NÃO PEGA MULHER DECENTE, SEU SACO DE TITICA?!
Após mais alguns gemidos o chefe disse que logo traria um SUBS-TI-TU-TI
para ele, deu uma ajeitada no cabelo jogando a mecha da frente para trás e ajeitou o
chapéu, chamou o Gordinho de ESTERCO e o levou até seus superiores para que eles
resolvessem, vi quando os dois sumiram pelo pavilhão em direção ao escritório na
frente da fábrica, mau saíram de vista e os comentários dos trabalhadores vieram:
– Corno.
– Sem dúvida.
– Acha que só ele que manda.
– Não manda nada, quem manda são as máquinas, são elas que punem os mais
fracos.
– Maldito galpão, malditos estrondos – falei. – Estamos mortos.
Aqueles caras se davam bem com sua loucura e não viam a minha como a deles,
eles me estranhavam e me disseram:
– Morto aqui é você.
– Pronto, encontramos um apelido, Morto.
– Então, Morto, agora o chefe não tem mais motivos pra te manter aqui. Ou
achava que ele te mantinha aqui pra quê? Era só porquê você sabe escrever.
– É, Morto, agora tua viadagem de escrever carta foi por água abaixo. O chefe-
corno veio pra cá e sua pretendida arranjou um amante lá.
Logo estavam abrangendo suas opiniões e fiquei pequeno para elas, tendo o
chefe como foco tinham mais a dizer:
– Se fosse eu, trazia a pretendida pra cá nem que fosse no tapa. Mas ele fica
tentando trair pretendida com a secretária da firma. Reparou que ele vive arranjando um
motivo pra ir falar com a secretária? Ele lava as mãos e o rosto, passa até perfume pra
falar com a secretária. Aquele perfume é coisa de corno.
– E antes de falar com a secretária penteia o cabelo pra trás e no caminho
repenteia várias vezes, lá fora usa aquele caco de espelho antes de entrar na sala dela. A
secretária gosta é de cabelo pra trás.
– É isso que dá esse negócio de amar. Odiar é muito mais fácil e não precisa
pedir licença.
A demora do chefe em voltar fez com que quando tocou a sirene de fim de
almoço nos conduzíssemos aos postos de trabalho desmazelados e sem ritmo, no galpão
ficamos eu e o Pesador frente às balanças esperando o chefe voltar com o substituto do
Gordinho e os demais demoravam para ligar suas máquinas o suficiente para que nós
dois tivéssemos uma conversa de “pois é” e “pois então” sendo que de minha parte o
“pois então” queria progredir rumo a uma decisão que eu estava querendo tomar mas,
como me demorei para falar, as máquinas foram sendo ligadas e daí eu teria de gritar, eu
não queria gritar e ainda mais para falar dessa decisão que estava querendo tomar e que,
afinal, nem era da conta de ninguém e que, de repente, nem era mais uma decisão que
eu queria tomar mas sim uma decisão tomada, e já logo com o galpão virando aquele
hecatombe com tudo serpenteando ao redor coloquei o boné e fui em direção à saída,
ainda ouvi o Pesador gritando:
– Tá fugindo, Morto?!
Saí do galpão e atravessei o corredor lateral, ao passar do lado da sala da
secretária vi o Gordinho sentado num banco aos fundos gemendo enquanto o chefe
conversava de mansinho e galhardo com ela tendo numa mão o chapéu e com a outra
ajeitando o cabelo e, ela, por um momento virou o rosto e me viu e, rapidamente,
desviou os olhos, daí pensei que ela já devia ter descoberto que a letra das cartas era
minha ao compará-la com minha assinatura da carteira de trabalho e, quanto ao
remetente ou seu nome enquanto “pretendida”, duvido que o chefe escreveria isso nas
cartas sob o mesmo risco dela reconhecer sua letra embora, aposto, ela seria capaz de
identificar aquele perfume carregado sobre as cartas que era o mesmo perfume que ele
usava. O último olhar daquela secretária deixou claro que não queria nada comigo mas
de certo modo eu já sabia disso, eu havia pensado nela e em pensamento a gente
descobre algumas coisas, acho que eu havia me apaixonado por ela e sempre que
adotava sentimentalismo nas cartas fazia poemas emocionais que só podiam ser para
ela, seja como for era melhor que tudo ficasse por isso mesmo porquê em fantasias toda
duração é mais agradável. Na minha carteira de trabalho tinha alguns dias de trabalho
para receber e eles podiam ficar com isso, se ela quisesse podia tirar a foto da minha
carteira de trabalho para ficar consigo mas duvido que pensaria nisso.
16
Tinha dormido tipo em pequeno desmaio, nele sonhei que estava com sono. Ao
abrir os olhos vi uma garrafa pela metade na minha frente e não quis beber o resto,
queria voltar a dormir e quem sabe me incrustar ao sonho que existe dentro da garrafa,
mas não estava com sono o suficiente para continuar.
Dormira sentado num banco da adega, debruçado num tonel, era uma ótima
adega mas na casa de Letícia, e me sentia estranho como alguém que, não tendo um
lugar seguro para dormir, após ter dormido um pouco num lugar seguro estava me
sentido inseguro.
Dali rumo ao teatro caminhava-se uns trinta metros pelo corredor lateral, e da
porta do teatro até o palco mais uns quinze metros. Conforme me dirigia para lá fui
sentindo um tipo de desassossego que nunca sabe o que será de si mesmo. Meu corpo
tinha certa companhia do vinho que ainda fazia efeito, mas em termos de preenchimento
havia outras necessidades básicas além de alguns pequenos vazios e reticências tateando
paredes de buracos na ânsia de se levantar.
A gente anda pelo mundo e vê todo tipo de depressão, dentro e fora carrega ou
pode ser carregado por elas, as vê habitando pessoas e lugares e colando-se às coisas, e
quando cheguei na porta do teatro tentei tratar aquela que via como se não fosse
comigo, tentei jogar minha inquietude para fora como se não fosse parte de mim tanto
quanto como se eu mesmo não fosse parte de mim, procurei me ver apenas como algo
habitando algo sem motivos para muitas explicações, não querendo nada muito
permanente. Me encostei no batente da porta e ali fiquei, já era o suficiente para assistir
a mais recente ocorrência daquele lado da Capital, e seria até engraçado não fosse tão
pesado, mesmo que brilhantemente trivial, tanto a cena quanto a dor patética que se
expandia dali a partir deles quase todos, alguns até pareciam senis.
Diógenes de joelhos no palco, aos pés de Letícia e aos prantos, agarrava-se ao
vestido dela e também utilizava-se de palavras:
– Não faça isso! Eu preciso de você! Culpas e revoltas nunca são ocasionais!
Não me abandone!
Era mais uma vez a mesma cena que eu já tinha presenciado outras vezes entre
eles, só que dessa vez mais lúcido, era tudo que até então eu procurava ignorar e que
tinha se tornado a cena maior pelos fatos.
– É o projeto da minha vida!
O amante de Diógenes por alguma espécie de devaneio circulava ao redor dos
dois com a fiel lata de defumação dando-lhes incessantes banhos de descarrego ao
mesmo tempo que pedia a Diógenes para se humilhar no lugar dele e, também,
multifuncional clamava pelos orixás:
– Não se rebaixe! Seja prestimoso aos orixás!
Mas os orixás pelo jeito já não estavam dando aquela mesma suposta força do
início. Não tive disposição de entrar e o batente da porta me parecia o local adequado
para aquele momento.
– Larga meu vestido! Teu projeto é um fiasco!
Os atores estavam sentados nas poltronas abaixo e se olhavam entre
cumplicidades e murmúrios. Já não era de agora que muitos futricavam pelos corredores
e faziam rixas privadas, entravam em malevolências e tramóias, mas nesse momento
suas diferenças estavam por água abaixo porquê havia algo acima disso. A maioria
pertencia a Letícia e esperava o resultado da briga para ver o que viria depois.
Letícia havia decidido deixar Diógenes para sondar outro diretor que pudesse
realizar seu sonho de estrela e Diógenes fazia o que podia para fazê-la voltar atrás
prostrado aos pés dela e, se era assim, num dado momento o amante prostrou-se aos pés
de Diógenes.
Vendo a deprimente cena fiquei pensando no que seria de meus motivos ali.
Letícia não me pagava pelo meu serviço de eletricista e sempre dizia que a “produção”
ia me pagar “semana que vem” que nunca chegava. A “produção” consistia em Letícia e
Bruninha, ambas atrizes, Bruninha era a garota que conheci no coquetel e justamente
quem me apresentou Letícia e por causa de quem o dono da empresa de puxa-móbeis
também se aproximou me oferecendo trabalho na sua fábrica o qual que recusei. Ambas
sempre me davam uma desculpa para não pagar, estavam sempre com problemas
demais com suas personagens e com suas vidas e com o mundo de modo geral, sentiam-
se vivas quando eu lhes cobrava e seus olhos brilhavam, eu era um alimento ao seu
impulso no prazer doentio, talvez quisessem me puxar para o seu lado e me transformar
num monstro enquanto vivíamos aquela lengalenga teatral.
Aliás Bruninha particularmente me deu um outro calote que, embora de pouca
monta, tinha valioso peso sentimental. Numa eventual conversa na qual falamos de
música ela me pediu uma fita-cassete para gravar “algumas inesquecíveis” e levei a fita
para ela que era a única que eu tinha e na qual tivera gravado músicas especiais de
programas radiofônicos em meu precioso rádio toca-fitas inclusive tendo gravado umas
por cima de outras num processo de calcular o tempo mentalmente podendo cortar o
início da próxima ou sobrar o final da anterior o que inclusive gerava saudades,
Bruninha que era filha de latifundiários vivendo a defender os valores de sua família
contudo que pegava o que era dos outros e não devolvia tal como um pequeno objeto de
grande valor sentimental que foi aquela fita-cassete com a qual eu tinha um vínculo
histórico e ainda mais lembro bem ser uma fita 120 MINUTOS ESPECIAL que eu não
trocaria nem por seu fiofó limpinho de sua bunda seca se é que Bruninha tinha fiofó,
nunca mais vi aquela fita 120 MINUTOS ESPECIAL e bastou cobrar isso dela poucas
vezes para seu riso cínico deixar claro que eu nunca mais veria minha fita 120
MINUTOS ESPECIAL.
Bruninha a essas alturas havia se casado com o cara da empresa de puxa-móbeis
e ele inclusive estivera algumas vezes lá no teatro e inclusive falando comigo querendo
saber se eu estava disponível para fazer alguns trabalhos temporários para ele no que eu
lhe dissera que estava ocupado com o teatro de Letícia e meu emprego na fábrica de
balanças e no que ele sempre dizia: “Eu espero quando você estiver disponível. Mas não
posso te registrar em carteira, ok?” Tive sorte de não ter entrado na dele e prova disso é
que futuramente soube de processos movidos por ex-contratados os quais ele não
pagava os salários atrasados.
Em suma: após frequentar meses a bela casa eu sendo um caloteado já nem
conseguia mais falar a respeito disso com as caloteiras, aquelas duas conseguiram
formar o rabo de um monstro.
Quanto aos puxa-sacos de Letícia o meu papel naquele teatro já estava escolhido
por eles desde o início e eu próprio contribuíra com ele, era o papel pelo qual me
apelidaram: “Ô autista”, “Olhe o autista chegando”. Não chegava a ser ruim e não era
nada, só um apelido criado a partir de um paradigma e que virou uma anedota iniciada
por alguns espertinhos ali.
Eu agora antes da partida assistia mais uma cena do batente de mais uma de
tantas portas a que já estivera, até fiz alguma força de cego para entrever o que não
carecia ser compreendido, não havia nada a ser compreendido e de resto só o desgosto
maior de abandonar a sedução da adega e da cozinha e da empregada doméstica e da
cozinheira, de resto procurar o próprio barbante com fios todos bagunçados, só era
possível voltar pelo caminho percorrido.
– Não faça isso comigo!
– Não faça isso com ele!
– Faço o que quiser!
De todos eles ali por todo aquele tempo as pessoas que eu mais respeitava eram
o marido de Letícia, um intelectual franco-sulino que já tivera passado fome na vida e
conseguira enriquecer por méritos próprios, agora já velho e doente, eu o tinha visto
algumas vezes e de fato ele bebia muito e não me parecia exatamente por prazer, por
vezes bebeu conosco e ouvi suas idéias e histórias incríveis; e o sobrinho de Letícia, o
jovem Fabrício que era ator daquele projeto falido desde o início, ele jamais se dera bem
com seu pais e já a alguns anos tinha sido adotado pelo franco-sulino. Fabrício
conhecera o franco-sulino através de Letícia e o franco-sulino o pegara para trabalhar e
viver em sua casa o tendo como motorista e pau-pra-toda-obra, Fabrício tinha o franco-
sulino como sua maior referência de amigo e chefe e odiava Letícia, para mim
desabafava que ela era mulher baixa que não sabia nem se vestir, por vezes dizia que ela
praticamente não tinha alma e por vezes que ela não tinha alma, ele me contou que ela
era secretária quando conheceu o franco-sulino e a conceituava como “puta de
escritório”, que o franco-sulino a elevou de classe e em troca ela só trouxe desgosto na
vida dele, falou que “a gente se acaba de um jeito ou de outro mas o pior modo ainda é
quando deixamos os outros fazer isso por nós”, ele achava que os sentimentos do
franco-sulino o ferraram e que talvez, se o velho pudesse voltar atrás, trocaria tudo por
uma mulher de verdade.
Olhei a carne de algumas atrizes feito vício em suas malhas constritas, pareciam
um tanto atônitas e a dor ingrata parecia rodear as laterais de suas vidas naquele
momento, talvez se sentissem traídas por aquele projeto em detrimento de outros grupos
que lhes dariam melhor rumo e talvez estivessem assoladas pela dúvida de que se havia
um projeto que se lhes fosse destinado, talvez apenas estivessem absortas em desespero
vazio aquelas fêmeas sentadas nas poltronas falando aos cochichos, agora no fim eu as
podia desejar sem oscilações.
Então saí porta afora e cheguei até a cozinha da mansão, comi um prato
preparado pela cozinheira e passei a mão na cabeça do cachorro imenso, galanteei a
empregada na área de serviço.
– Folga na segunda?
– É.
– Firme?
– É.
– Que nem rocha?
– É.
Dei uma olhada para fora da área de serviço. Tinha puxado a extensão da rede
elétrica por ali, mais de sessenta metros de fio até o teatro, tinha sido uma bela
instalação e só faltava alguns retoques, urgente seria instalar um pára-raios na ponta alta
do teatro, era muita energia elétrica direcionada à construção. Daí ganhei a rua numa
inquieta liberdade.
III – Formigas e nuvens
Era umas nove da noite. Eu estava sentado no muro frente à pensão quando vi
Rojão chegando junto com um crioulo, o crioulo, aquele mesmo extraforte e espadaúdo
que cuspia álcool pela boca e causava labaredas de fogo no cuspe quase tendo
incendiado toda pensão e, aliás, sua pele ainda estava marcada pelo incêndio. Aquele
crioulo era zureta e, conforme constatei nessa mesma noite, realmente perigoso.
Vinham, os dois, chegando pela calçada a conversar animadamente. Dessa vez
foi só Rojão falar, razoavelmente embriagado (pinga, claro), “aí, Russo”, e em seguida
preparar-se para sentar ao meu lado no muro que o carro da polícia veio voando do
nada, freou bruscamente e expeliu os policiais.
Armas em punho, com ordens de comando os policiais instruíram que os dois a
colocar ambas as mãos apoiadas no camburão e nem se importaram com minha
presença, estavam com revólveres engatilhados e já tinha pista do que queriam, estavam
atrás de um suspeito e mandaram os dois baixar suas calças, nisso Rojão disse:
– Tô sem cueca, seu poliça.
– Cala a boca – foi a resposta.
O crioulo estava de cuecas e baixou a sua seguido por Rojão, daí os policiais
pediram seus documentos e quando Rojão dava o seu o crioulo disse:
– Num tenho.
O crioulo era doido mas não burro, dava uma de desaglutinado e garantia que
não tinha documentos.
– Num tenho. Nem rezistro de naiscimento. Nunca tive, juro.
Os policiais fizeram uma consulta pelo rádio enquanto Rojão tremia com seu
grande pinto azul encolhido pelo inverno e à mercê do vento por uns dez minutos e
levantando perfis logo fizeram uma identificação do crioulo sem necessidade de
documentos, enquadraram o crioulo de forma mais incisiva:
– E aí, quantas vítimas você já fez?
– Num fiz nada não, sinhô.
– Foi você, vagabundo, a gente já tá sabendo! Você abusou daquela moça do
3x4, vai falando!
– Não ataquei ninguém não, sinhô.
Cutucaram o crioulo por trás com o cassetete e lhe deram um peteleco na orelha.
O crioulo perdeu qualquer fibra e no cagaço se entregou:
– Foi só aquelas lá só, sinhô.
– Aquelas quantas? Então você estuprava e depois roubava as vítimas?
– Não, nunca roubei, não.
– Só estupro mesmo?
– Só estupu.
Mandaram o crioulo levantar as calças e depois lhe grampearam, foi introduzido
camburão adentro com algemas. Daí os policiais perguntaram para Rojão:
– Amigo teu?
– Nããão – respondeu Rojão veemente. – Só parceiro de pinga.
Nisso a vizinhança já se locomovia para os portões, uns alcovitavam e todos
diziam que o crioulo seria canibalizado na cadeia, nunca mais o vi e Rojão nunca me
falou sobre o que aconteceu com ele.
Talvez o fato de ter perdido seu companheiro de pinga fez com que Rojão se
aproximasse ainda mais de minha ilustre pessoa aproveitando-se da conveniência
geográfica e também no que se refere a nossos fusos horários bem similares; ele até foi
morar no mesmo quarto que eu valendo-se de uma vaga que ali surgira e de uma hora
para outra nos tornamos companheiros de quarto e de muro.
Raramente eu chegava por último, e quando isso acontecia ele divertia-se por
conta de meu cacoete dar tranco nos ombros os atirando para trás para ajeitar a coluna
ao caminhar.
– Ah, lá vem o Russo tentando voar – ele dizia rachando o bico.
Mas era geralmente ele quem chegava por último, estava sempre atrasado
porquê vinha parando no meio do caminho por conta de tomar pinga em botecos,
costumava chegar umas nove da noite e empoleirava-se no muro ao meu lado quando
ficávamos um tempo num bom silêncio, quando ele começava a narrar suas histórias
malucas algumas eram bem pungentes e havia um grande bom humor por trás de seu
passado triste, vinha vivendo no limite desde que nascera e usava a criatividade para
lidar com isso, ele era divertido.
– Que tipo de animal tem na Europa, Russo?
– ... Quê?
– Animal, bicho de quatro patas. Que tipo anda pela Europa?
– ... Vários.
– Vários é nome de algum animal?
– ... Não.
– Tá difícil conversar com você, Russo.
– ...
– Fala alguma coisa, Russo.
Ele andou encanado com a Europa, por vezes via graça só de a mencionar e por
vezes era só para puxar assunto.
– Qual a capital da Europa, Russo?
– ... Quê?
– Europa. Qual a capital?
– ... Europa não é país...
– Fala alguma coisa, Russo.
Sobre isso certa feita ele, não sei se acreditando ou não no que dizia, deu sua
opinião:
– Se liga, Russo. Europa é coisa inventada pelo pessoal da tevê e não existe. A
tevê é estrumbólica e fala de uma Europa estrumbólica que, se existisse, daí
estrumbolizava nós e o resto de tudo que tem de gente, daí a gente tava mesmo fudidos.
– E não estamos?
– Não como a tevê diz. A tevê diz que a gente tá fudido mas a tevê não sabe que
fudido é palavra sem nome.
– Certo, Rojão.
Noite após noite nos encontrávamos naquele muro para um breve bate-papo
antes de ir para a cama, também havendo silêncio ali sentados naquele muro nele uma
espécie de espera sem lógica e na maldição da esperança mais forte que nós um buraco
e tanto na indefinição nos esfiapando até a hora do sono forçado, por certo esperando
que as delinquências dentro dos quartos da pensão satisfizessem aos residentes por mais
uma noite para depois cada qual fazer sua despedida: eu ia ao quarto lá pelas dez e meia
ou onze horas encarar a cama de cima do beliche e ele ia fazer sua última visita ao
boteco da esquina para sua última pinga.
Ele nunca andava em linha reta após a pinga, voltava manquejando pelo quintal
e conversando com meio mundo por ali, tinha de baixar a voz potente para não acordar
quem dormia e ainda mais quando entrava na casa, no quarto se deitava e no sono todos
juntos entre pedidos de clemência incertos meio devotados e bem esfarrapados, ruidoso
era bem mais o que estava oculto embora só coisa do tipo que não leva a nada só porquê
quando saía em palavras ou grunhidos nada dizia além da raiva da pobreza, da raiva das
camisinhas vencidas jogadas no lixo, cada um na sua com sua meia dúzia de posses se
coçando por causa das pulgas e falando em sonhos o que de um jeito ou de outro tinha
de sair, o que não se ouvia se sentia e talvez junto também todos os fantasmas
inomináveis que a dona da pensão teimava em colocar no eixo em intermináveis seções
de macumba.
Rojão chegava no quarto trombando em tudo e pedindo passagem na base do
empurrão, reclamava de algum inexplicável ferimento novo e desmaiava até a tarde do
dia seguinte, de novo saía para beber e quando a noite chegava vinha me encontrar mais
uma vez no muro frente à pensão para um pouco de conversa até que eu fosse para o
quarto, daí ele voltava aos bares e chegava no quarto por vezes na madrugada quando
por vezes tentava conversar comigo antes de dormir, costumava reclamar pelo mesmo
motivo:
– Porquê a janela tá fechada?
Rojão sabia que a janela tinha de ficar fechada sobretudo para impedir que as
brigas de fora invadissem o quarto, sabia tudo há muito tempo mas queria conversar e
também, ousado, queria se opor à realidade:
– Abre a janela, Russo.
Certa vez ele disse que a janela fechada “engrossa a fila de atormentados”, a
janela que ficava ao encargo meu e de meu vizinho debaixo do beliche à qual por vezes
abríamos após os devidos ossos esfolados da noite no quintal.
– Boa noite, Russo.
É preciso ter colhão para dizer “boa noite” num local desses. Durante o semi-
sono ele costumava dialogar consigo em meio a pulgas e pregações dos líderes nos
programas radiofônicos e certa vez falou:
– É habitual. É o mesmo que corriqueiro.
Sua pronúncia foi perfeita e talvez estivesse se referindo à pinga.
O esquema de Rojão não durou muito. Sua ascensão social, como ele próprio
dizia, foi tão rápida que ele nem deve ter notado sua passagem. “Só veg”, dizia. “Odeio
brag”. A brag certamente lhe traria muito mais lucro, pode ser “rebatizada” e é mais
cara, vicia rapidamente e é consumida compulsivamente. Mas Rojão não queria saber de
brag, se dizia “da paz do veg” e que “ao mesmo tempo que uso veg atraio clientela”.
O problema é que Rojão pitava muito, atraindo “clientela” toda tarde ia pitar
num riacho abaixo da favela da vila Egressa onde era tratado com reverência pela
rapaziada e levava um pequeno pacote voltando sem nada, depois ainda costumava
beber e também pagava pinga para a “clientela”, era péssimo administrador e creio que
ainda teve sorte em não ter sido caguetado para a polícia pela “clientela”.
E ainda comprar o veg para pagar depois? Estava seguro demais sobre seu novo
esquema. Quando eu estava chegando à pensão, à noite, vi dois trafistas me olhando de
fora do boteco da esquina, ao me aproximar fui interpelado por eles:
– Cê que divide o guarda-roupa com o Rojão?
– É.
– Então pega tudo lá, porquê é nosso.
Fui para o quarto e fucei nas coisas dele dentro do guarda-roupa, além das suas
poucas posses havia boa quantidade de veg ali, “o cara guarda sua mercadoria aqui?!”
Ensaquei tudo, levei tudo para os trafistas e eles foram embora, fiquei pensando:
“Cadê o Rojão?” Voltei para o quarto e dessa vez era a dona da pensão que me
aguardava:
– Cadê o Rojão?
– Não tenho a menor idéia.
Eu não diria mesmo que soubesse. Ele era leal e nunca roubou nada meu, eu
retribuía na mesma moeda. Fiquei por ali esperando a noite crescer, daí fui ao muro
frente à pensão e já não era o mesmo muro, cheirava a perigo. Voltei para a cama e não
tinha sono, fiquei esperando e chega peão e sai peão, tomam banho e comem e falam e
dormem.
Lá pelas meia-noite, ele bateu na janela.
– Russo! Ô Russo!
Abri a janela do quarto. Rojão estava com a boca inchada e o rosto esfolado.
Bambeava nas pernas com um finzinho de retidão.
– Me arruma um lençol, qualquer coisa. Tá frio.
– Quer comer alguma coisa?
– Já comi. Comi o que sobrou da refeição da macumba.
Arrumei uma coberta, um pedaço de pano e uma blusa para ele.
– Bebi a pinga da macumba também – ele disse. – Será que faz mal?
– Aguenta firme, Rojão.
Ele pôs o pano no rosto e fechou a janela. Pulei do beliche e saí para fora da
casa, fui até o muro lá em frente.
Ele estava sentado no chão da calçada, embrulhado na coberta ouvia os carros
passarem e tateava o chão encarquilhado, olhava para cima.
– Rojão? Estão atrás de você. É melhor fugir.
– Não precisa, Russo. Já acertei as contas com os caras, já me levaram tudo o
que eu tinha e já me bateram, já estão satisfeitos. Nem vi, viu? Foi rápido. Agora não
tenho como comprar veg, não tenho como pagar a pensão...
Sentei ao seu lado; ele acendeu um cigarro e deu uns tragos. Ia cantar mas
desistiu, começou a falar:
– Quando eu era garoto não tinha tanta gente falando mal do cigarro. Tinha cada
propaganda de cigarro na tevê, o cigarro aparecia na mão de alguém andando de cavalo
mas cavalo não fuma, aparecia ao lado de um carro de corrida que também não fuma,
aparecia na mão de um cara rodeado de mulher e todos fumando. Mas nunca fumei por
causa da tevê. Só fumo porquê fumo.
Ele se esticou no chão e ficou olhando o céu, alheado e roto; depois tirou uma
casca de ferida seca do braço e a mastigou, voltou a olhar o céu e improvisou um
samba.
– Cooomo com certa elegâânciaaa... Cooomo com a cabeça no céééu e os olhos
no chããão... As formigaaas paaassam e as nuvens tambééém... O céééuuu ééé teeetoo de
iluuusãããoo, desaaabaa, soteeeraa...
– Tá se comendo, Rojão?
– ...Não dói. Ando perdendo dor, até de noite, logo nela onde tudo dói um pouco
mais. A gente vive indo até a noite, lá deixa um pouco de vida.
– Ida ruim...
– Quase todas são. Mas saber das coisas não muda nada porquê ninguém muda
nem melhora, a gente só tenta se safar de um extremo a outro.
– Então a vida é uma diagonal.
– Diag... quê?
– Nada. Eu estava tentando complicar o que você disse.
– Porquê? Cê tem estudo, né? Ah, cê tem... família... né Russo?
– Lembro deles de vez em quando...
– Mas nem por isso te quero mal. Houve um tempo que eu tinha inveja de quem
tem família mas isso já foi, ficou só um pouco de raiva lá atrás...
Ele queria continuar falando, mas não conseguia. Eu queria lhe falar algo e nisso
me veio algum vocabulário que usava em minha vida pregressa, ao lembrar disso lhe
falei:
– O vocabulário se limita perante o destino limitado, no escasso a gente odeia
certas palavras como se nos agredissem. O vocabulário é quase sempre um luxo e os
miseráveis odeiam quase tudo que os lembre que são miseráveis, passam a vida
esquecendo-se do significado das coisas porquê as coisas são tentáculos que os
tiranizam, porquê eles não têm coisas e têm motivos de sobra pra acreditar que jamais as
terão, eles fogem da maioria das palavras porquê a maioria delas correspondem à posses
que jamais terão, a sentimentos que não se completam, a dores que querem evitar, a
desejos que não saciam. Eu temo mais o silêncio que a loucura.
– Isso aí de ter medo – ele falou – é porquê a gente tem esperança. Mas eu tento
não ter muito esperança que é outra coisa dolorida, e também evito quase todo querer,
sei que pobre só depende e necessita. Você fala pouco e acaba de falar bonito, devia
falar mais sem qualquer esperança. E o que você teme é o silêncio criminoso. Quem é
você, Russo?
– Alguém que nasceu no mato.
– Hããã. E o que faz aqui?
– Foi a placa: Vagas para rapazes.
– Hããã. Não tem mulher?
– Não venho dando sorte com elas.
– Sabe, Russo. Isso não tem nada a ver com nada, como tudo mais tudo que não
tem a ver com nada. Eu... estive indo até uma praça da quebrada, pra vender um pouco
da mercadoria. Dormia lá de vez em quando, é um bom lugar pra dormir no verão. O
problema é que o inverno está cada vez mais frio. Sabe, eu ficava catando bitucas de
veg às seis horas da manhã na praça, mas o problema é que lá tem muita concorrência.
Mas esse negócio de ficar cismado com o adversário só atrapalha a gente... porquê eu
devia era me preocupar com a posição das sombras das árvores pra quando o dia chega,
evitar o sol que é outro que também mata... e, ficar abrindo caixas de fósforos e bitucas
de veg que os caras deixam depois de usar, não faz sentido. Mas também não faz
sentido nem as sombras das árvores, quer dizer, elas fazem sentido quando mudam a
posição e nos abandonam, quando o sol nos acorda e racha a cara da gente, daí a gente
lembra das árvores por causa da falta das sombras... – Começou a cantar as palavras que
dizia, bosquejando rimas: – Sombra de árvore não faz mal a ninguééém, nem ao Russo e
nem a eu tambééém...
Foi para o samba, parou um pouco na boemia, no brega, tentou o rap e sorriu,
parou, voltou ao samba, fechou os olhos improvisando samba, depois estalou o polegar
sem muito sofrimento, contraiu o beiço, a testa, a cara toda, e depois foi relaxando as
partes do rosto, desmilinguindo parte a parte, mas não totalmente, a testa continuava
franzida e o beiço contraído, falou mais um pouco feito samba falado e, conforme
falava, adormecia:
– E, também, teve um tempo, agora à pouco, quando tive mais lucro com o veg,
que eu até fui fazer exame de vista. Mas acho que eu estava meio bêbado naquele dia,
quase sempre estou meio ou inteiro bêbado, além do resto. No exame me explicaram
que era só tapar um olho de cada vez pra ler as letrinhas, e ver como estava a minha
vista. Mas se a cachaça mau me deixa enxergar com os dois olhos, imagine zarolho? E
de quê adianta ter olhos se não há nada pra ser visto? Ver, ir, pra quê? Pra onde? Pra
rua? A rua a rua a rua, na rua o mundo é ainda mais injusto quando a gente olha pra ela
e vê por baixo, de baixo, do chão. Os aaanjos da guaaarda estão preeesos no trânsito e
não chegarão à teeempo, as fichas celestiais foram extraviaaadas, a geeente vive numa
prisão que exige pagameeento, nascemos por licença da mooorte, viemos apenas pra
sorrir sem óóculoos...
Cantando ele ficou um pouco mais animado, mas a testa continuava franzida, daí
ele relaxou o beiço e depois adormeceu com a testa franzida na calçada da rua Lá Vai,
as costas apoiadas no muro.
Fiquei ali um tempo, depois cobri Rojão com o jornal que tinha na mão e fui
para o quarto. Ele era analfabeto.
...Depois disso só o vi mais uma vez, algum tempo depois na rua durante o dia.
Ele parecia apático, ausente feito um animal que sofrera uma retirada de cérebro,
caminhava em linha reta atrás do seu novo chefe de trabalho sem desamarrar a cara. Dei
um tranco nos meus ombros e segui.
Não sei se ele me viu. O inverno estava a toda.