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Malala - Infantojuvenil - Malala Yousafzai
Malala - Infantojuvenil - Malala Yousafzai
Sobre a obra:
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SUMÁRIO
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Sumário
4. Dedicatória
1. 4. Mulá FM
2. 5. Convivendo com o terrorismo
8. Parte Três: Encontrando minha voz
Landmarks
1. Cover
2. Body Matter
3. Table of Contents
4. Copyright Page
Às crianças do mundo todo que não têm acesso à
educação; aos professores que, com valentia,
continuam a lecionar; e a todos que já lutaram por seus
direitos humanos básicos e pela educação.
As palavras em negrito ao longo do texto constam no glossário.
Prólogo
••••
Eu sou Malala
••••
Aquele dia de outubro de 2012 devia ser um dia comum. Eu
tinha quinze anos, estava no nono ano na escola e havia
perdido a hora porque tinha ficado acordada até tarde na
noite anterior, estudando para a prova.
Minha mãe sacudiu meu ombro de leve.
— Acorde, pisho — ela disse, me chamando de “gatinha”
em pachto , a língua falada pelo nosso povo. — São sete e
meia e você está atrasada para a escola!
Fiz uma prece rápida para Deus. Se esse for seu desejo,
Alá , posso tirar a melhor nota na prova , por favor? Ah, e
obrigada pelo meu sucesso até agora !
Engoli o café da manhã enquanto meu irmão mais novo,
Atal, choramingava. Ele reclamou que estavam me dando
atenção demais depois que falei em público sobre meninas
terem o mesmo direito de ir à escola que os meninos.
— Quando Malala for primeira-ministra, você pode ser o
secretário dela — brincou meu pai.
— Não! — gritou Atal, o palhacinho da família. — Ela é que
vai ser minha secretária!
Corri porta afora e rua abaixo a tempo de ver o ônibus
cheio de outras meninas a caminho da escola.
Nunca mais vi minha casa.
••••
À tarde, minhas colegas e eu encarávamos nossas provas,
tentando pensar em meio às buzinas e ao barulho das
fábricas da cidade de Mingora. Ao fim do dia, eu estava
cansada, mas feliz. Sabia que tinha me saído bem.
Pedi para minha melhor amiga, Moniba, esperar comigo o
último ônibus, para que pudéssemos conversar mais um
pouco.
Contamos piadas e rimos até a hora de entrar na dyna ,
uma caminhonete branca aberta nos fundos que era o
“ônibus” da Escola Khushal.
Como sempre, nosso motorista, Usman Bhai Jan, tinha um
truque de mágica para nos mostrar. Naquele dia, ele fez um
pedregulho desaparecer. Não importava o quanto
tentássemos, nunca conseguíamos descobrir seu segredo.
Dezenove meninas, duas professoras e eu balançávamos
ao longo da estrada Haji Baba, em meio a uma mistura de
riquixás, mulheres em trajes esvoaçantes e homens de
moto buzinando e costurando no trânsito. Nosso veículo não
tinha janelas, só um plástico amarelado que se agitava na
lateral.
Estávamos a menos de três minutos da minha casa
quando o ônibus da escola parou de repente. Parecia
estranhamente silencioso lá fora.
— Está tudo tão calmo hoje — eu disse a Moniba. — Cadê
todo mundo?
Não lembro de mais nada depois disso.
O que me contaram que aconteceu foi:
Dois jovens em trajes brancos se colocaram na frente da
caminhonete. Um deles veio para a parte traseira e se
aproximou de nós.
— Quem é Malala? — ele perguntou.
Ninguém disse nada, mas algumas meninas olharam na
minha direção. O homem levantou o braço e apontou para
mim. Algumas meninas gritaram, e eu apertei a mão de
Moniba.
Quem é Malala? Eu sou Malala, e esta é minha história.
PARTE UM
••••
Antes do perigo
1
••••
Livre como um pássaro
••••
Desde que me lembro, nossa casa sempre esteve cheia de
gente, em um fluxo sem fim de vizinhos, parentes e amigos
do meu pai. Uma das partes mais importantes de ser pachto
é sempre abrir a porta para uma visita.
Nos fundos de casa, minha mãe e as mulheres se reuniam
para cozinhar, rir e falar sobre roupas novas, joias e as
outras mulheres da vizinhança. Meu pai e os homens
ficavam na sala de visitas, tomando chá e falando de
política.
Eu às vezes me afastava das brincadeiras de criança,
passava na ponta dos pés pelo grupo das mulheres e ia me
juntar aos homens na sala, onde absorvia cada palavra que
diziam sobre o vasto mundo além do nosso vale.
Depois de um tempo, eu voltava para as mulheres, para
ouvir seus cochichos e suas risadas. Minha parte preferida
era que ninguém usava lenço ou véu ali. Era encantador ver
seus cabelos escuros e compridos e seus rostos bonitos
pintados de batom e hena.
No lugar onde cresci, as mulheres seguiam a prática da
purdah : eram separadas dos homens e precisavam se
cobrir em público. Algumas, como minha mãe, cobriam o
rosto com um lenço. Outras se cobriam com vestes pretas
compridas e esvoaçantes, às vezes usando luvas e meias
pretas também. Elas escondiam cada centímetro de pele —
e até mesmo os olhos.
Mas quando não havia homens, as mulheres podiam
mostrar seus lindos rostos — e eu descobria um mundo
totalmente novo. Sempre me perguntava como era viver se
escondendo.
Ainda pequena, eu disse a meus pais que, independente
do que as outras meninas fizessem, eu nunca ia cobrir meu
rosto daquele jeito. Minha mãe e alguns dos nossos parentes
ficaram chocados. Mas meu pai disse que eu poderia fazer
como quisesse.
— Malala vai viver livre como um pássaro — ele disse a
todo mundo.
Eu sabia que era a preferida do meu pai. Algo raro para
uma menina paquistanesa.
No Paquistão, quando um menino nasce, é motivo de
celebração. Deixam presentes no berço do bebê. Escrevem
seu nome na árvore genealógica da família. Quando uma
menina nasce, ninguém nem visita os pais.
Meu pai não se importava com aqueles costumes. Vi meu
nome — em tinta azul brilhante — bem ali, em meio aos
homens na nossa árvore genealógica. Foi o primeiro nome
de mulher incluído em trezentos anos.
Às vezes, quando eu pensava no futuro, as competições de
empinar pipa que fazíamos quando pequenos me vinham à
mente. Os meninos que queriam vencer tentavam cortar o
fio da pipa das outras crianças. Eu sempre ficava meio triste
ao ver pipas tão bonitas indo ao chão.
Eu tinha medo de que meu futuro pudesse ser cortado
como o fio daquelas pipas só porque eu era menina.
Conforme Safina e eu ficássemos mais velhas, esperariam
que cozinhássemos e limpássemos para nossos irmãos. Não
poderíamos ser advogadas ou engenheiras, estilistas ou
artistas — ou a maioria das coisas com que sonhávamos. E
não permitiriam que saíssemos de casa sem a companhia de
um parente homem.
Às vezes me perguntava quão livre realmente poderia ser.
Meu pai seguia esperançoso.
— Olha só essa menina — ele disse com orgulho quando
aprendi a ler. — O céu é o limite para ela!
Eu tinha muito mais sorte do que a maioria das garotas por
outro motivo também: meu pai era dono de uma escola, a
Khushal. Era um lugar humilde, que ficava perto de um rio
fedorento e contava com pouco mais que lousas e giz. Mas,
para mim, era o paraíso.
Meu pai fazia tudo na escola. Era professor, diretor e
zelador. Depois que pagava as contas do lugar, não sobrava
muito dinheiro para comprar comida. Mas a escola era o
sonho dele, e todos ficávamos felizes por ser realidade.
Meus pais dizem que, assim que aprendi a andar, eu
entrava nas salas vazias e dava aulas no meu próprio
linguajar de bebê. Quando cresci, passei a assistir algumas
aulas. Mal podia esperar para usar o uniforme que via as
meninas mais velhas usando todos os dias ao chegar:
shalwar kamiz — uma bata comprida azul-escura com
calça branca solta — e um lenço branco na cabeça. Quando
finalmente chegou a hora de me tornar estudante, mal podia
conter a empolgação.
Dá para dizer que cresci na escola. A escola era meu
mundo, e meu mundo era a escola.
2
••••
O lápis mágico
O que é Ramadã?
O que é Eid ul-Fitr?
O que é Eid ul-Azha?
•••••••••
Ramadã é o nono mês do calendário islâmico. É considerado o mês sagrado,
no qual muçulmanos de todo o mundo refletem sobre sua fé rezando com
ainda mais devoção, lendo o Sagrado Corão , passando o tempo com a
família, fazendo caridade e jejuando todos os dias do nascer ao pôr do sol.
(As famílias às vezes fazem uma refeição juntas quando o sol se põe.)
O Eid ul-Fitr, também conhecido como Pequena Celebração, dura três
dias e marca o fim do Ramadã. Envolve banquetes, visitas familiares e
presentes — principalmente para as crianças.
No Dhu al-Hijjah, o décimo segundo mês do calendário islâmico, é
realizado o Eid ul-Azha, o festival do sacrifício, também conhecido como
Grande Celebração. Nele, é lembrado o sacrifício do profeta Abraão em
nome de Alá. O espírito do Eid ul-Azha envolve compartilhar as bênçãos de
Alá com seus entes queridos e com os menos privilegiados à sua volta.
••••
Em casa, comecei a servir o chá para meu pai e os homens
que o visitavam de modo a ouvir suas discussões sem que
notassem.
Naqueles dias, as conversas se concentravam em dois
assuntos: a Mulá FM e a guerra do outro lado da fronteira, no
Afeganistão. Nos anos anteriores, os Estados Unidos e outros
países travavam uma batalha para derrotar o governo talibã
no Afeganistão, que protegia a Al-Qaeda , outro grupo
perigoso que tinha crenças parecidas.
Talibã . Assim que ouvi a palavra, lembrei da conversa que
havia tido com meu pai quando estávamos em Shangla.
Naquela época, o Talibã parecia algo muito distante, algo
ruim acontecendo em outro lugar. Mas Fazlullah era
paquistanês e estava ligado ao Talibã. Meu pai alertou os
outros homens de que logo aquele movimento chegaria ao
nosso vale.
Pela primeira vez, me ocorreu que nosso mundo mudava
diante dos meus olhos, e não para melhor.
••••
A Mulá FM lançou a sombra escura do medo sobre nosso vale.
Cheguei à escola um dia e encontrei todas as minhas
amigas reunidas num canto, falando sobre o programa da
noite anterior. Fazlullah havia anunciado que as escolas para
meninas eram haram — proibidas pelo Sagrado Corão.
Então, em julho de 2007, ele convocou as pessoas a se
opor violentamente contra o governo.
Meu pai disse que nossa família devia fazer o melhor para
ignorar o que o mulá pregava.
— Devemos levar uma vida plena, ainda que só em nosso
coração — ele falou.
Assim, nossas conversas durante o jantar continuaram a
girar em torno de Einstein e Newton, poetas e filósofos, e
outros assuntos intelectuais. Meus irmãos e eu
continuávamos brigando pela posse do controle remoto da
televisão, sobre quem tirava as melhores notas, sobre tudo e
qualquer coisa.
Então Fazlullah uniu forças com outro grupo do Talibã e
anunciou que as mulheres estavam proibidas de sair em
público. De repente, onde quer que eu olhasse, talibãs
pareciam brotar como erva daninha.
Havia rumores de que os homens da Mulá FM ficavam
ouvindo o que se passava do outro lado das portas. Se
identificassem o som de alguém vendo televisão, o que
consideravam pecado, invadiam a casa e destruíam o
aparelho.
Meus irmãos e eu não compreendíamos por que lutadores
com nomes engraçados ou um menininho com um lápis
mágico eram tão ruins. Mas nos assustávamos toda vez que
alguém batia na porta.
Em determinado momento, colocamos a televisão dentro
do armário. Assim, se desconhecidos entrassem, não a
veriam.
Como Fazlullah tinha ficado tão poderoso? E por que
ninguém estava preparado para desafiar o mulá?
••••
Quando Fazlullah começou a anunciar em seu programa o
nome de meninas que continuavam estudando, minha mãe
insistiu que eu não fosse mais à escola sozinha. Ela tinha
medo de que membros do Talibã me vissem de uniforme.
A Escola Khushal estava sob a sombra da Mulá FM . A cada
dia, eu notava que mais colegas tinham ficado em casa. Um
professor avisou meu pai que não ensinaria mais meninas.
Eu estremecia ao ouvir as histórias sobre os homens de
Fazlullah punindo homens e mulheres que os
desobedecessem. O que estavam fazendo com minha
cidade? O que estavam fazendo conosco?
Deus , eu dizia na hora de ir para a cama, por favor,
proteja minha cidade e o povo.
••••
Meu pai foi a uma reunião para se pronunciar contra o Talibã.
Depois, viajou para Islamabad para pedir ao governo que
protegesse seus cidadãos. Enquanto estava fora, tomei o
costume de fazer a ronda pela casa uma, duas e até três
vezes para me certificar de que todas as portas e janelas
estivessem trancadas.
Às vezes, meu pai só voltava bem tarde. Às vezes, dormia
na casa de um amigo, para o caso de estar sendo seguido.
Ele nos protegia mantendo distância, mas não tinha como
evitar que nos preocupássemos. Naquelas noites, eu ouvia
minha mãe rezar até bem tarde.
Meu pai era apenas um diretor de escola, mas parecia um
falcão, ousando voar aonde outros não iam. Já minha mãe
mantinha os pés firmes no chão.
••••
Um dia, deparamos com uma mensagem para meu pai
grudada no portão da escola. Dizia:
Sua escola é ocidental e infiel. O senhor ensina meninas e
seu uniforme vai contra o islã. Pare com isso ou criará
problemas, e suas crianças vão chorar pelo senhor.
A assinatura a seguir dizia: Fedaim do islã — devotos do
islã.
O Talibã tinha ameaçado meu pai. Agora eu estava com
medo.
No dia seguinte, ele deu sua resposta ao Talibã através de
uma carta publicada num jornal. Por favor, não machuquem
os alunos , meu pai escreveu, porque o Deus em que vocês
acreditam é o mesmo Deus para o qual eles rezam todos os
dias.
Nosso telefone não parava de tocar naquela noite. Eram
amigos ligando para agradecer a meu pai pela carta.
Ele sempre tinha sido um homem ocupado. Mas, agora,
toda vez que saía de casa eu me perguntava: Será que vai
voltar?
Meu pai decidiu que os uniformes escolares iam mudar. Os
meninos não iam mais usar o uniforme “ocidental”,
composto por camisa e calça comprida — passariam a usar o
conjunto tradicional de túnica e calça chamado shalwar
kamiz. Eu ainda usava meu shalwar kamiz azul e branco,
mas o talibã dizia que as meninas não podiam usar a calça
branca para não ficarem parecidas com meninos. O uniforme
que eu amava agora fazia com que me sentisse uma
criminosa.
••••
Uma noite, ouvimos um anúncio que não compreendemos.
Bati na parede que dava para a casa de Safina para que
alguém viesse nos explicar o que era “toque de recolher”.
Ela, a mãe e o irmão nos disseram que significava que
tínhamos que ficar dentro de casa durante certos horários
do dia e toda a noite.
Mais tarde, fortes luzes brancas varreram o céu,
iluminando nossos quartos. Então: bum! Um baque fez o
chão tremer. Meus irmãos e eu corremos até nossos pais e
ficamos todos abraçados, tremendo enquanto ouvíamos as
bombas caírem. Toda vez que escutávamos um barulho, nos
agarrávamos com ainda mais força, até que acabamos
pegando no sono.
Esperávamos que o barulho significasse que o Exército
tinha derrotado o Talibã. Meu pai saiu para descobrir o que
havia acontecido e voltou com a testa franzida. Sentimos
um aperto no coração quando ele nos deu a notícia: o Talibã
tinha assumido o controle do vale.
O conflito entre o Exército e o Talibã se arrastou por um
ano e meio. Com meus irmãos, não sobrava espaço para
mim na cama dos meus pais, então eu tinha que dormir em
uma pilha de cobertores no chão. (Mesmo em meio à
guerra, odiava que meus irmãos roubassem meu lugar!) Por
mais estranho que pareça, nos acostumamos com os
bombardeios.
Eu costumava falar com Deus, deitada no chão do quarto
dos meus pais. Abençoe e proteja a gente , eu dizia. Pedia
paz para todos. E, especialmente, para o Swat. Tentava
tampar os ouvidos e visualizar minhas preces flutuando até
Deus.
De alguma maneira, acordávamos a salvo todas as
manhãs. Então, um dia, minhas preces foram respondidas.
O Exército não tinha vencido, mas pelo menos havia
conseguido forçar o Talibã a se esconder, se não a ir
embora.
••••
As portas da nossa escola não estiveram abertas durante
todo o conflito, mas sempre que possível eu estava lá.
Conforme eu e minhas amigas crescíamos, a competição
amistosa que havia entre nós ficava mais séria. Não
queríamos apenas tirar boas notas; queríamos tirar as notas
mais altas.
Embora todas quiséssemos ser a melhor, o que mais
importava para cada uma de nós era o elogio de um
professor. Aquilo nos fazia acreditar que tínhamos futuro.
Em um país onde tantas pessoas consideram um
desperdício mandar meninas à escola, são os professores
que nos ajudam a acreditar nos nossos sonhos. Nossa
diretora, a sra. Maryam, era inteligente e independente —
tudo o que eu queria ser. Ela havia feito faculdade. Tinha
um trabalho e recebia seu próprio salário.
Tínhamos nossas aulas normais, como álgebra, química e
física, mas naquela época conversávamos bastante sobre o
Exército e o Talibã. O povo do Swat estava encurralado entre
os dois. Uma amiga gostava de me irritar dizendo:
— O Talibã é bom, o Exército não.
Eu sempre dizia a ela que, quando se estava preso no
meio de uma guerra, nenhum dos lados era “bom”.
••••
O caminho para ir e voltar da escola agora era assustador,
então quando eu estava a salvo em casa só queria relaxar.
Um dia, cheguei antes dos meus irmãos e liguei a televisão,
mas só apareceu estática. Tentei todos os canais. Nada
além de estática.
A princípio, achei que fosse uma queda de energia —
vinham ocorrendo muitas delas —, mas naquela noite
descobrimos que os homens de Fazlullah tinham cortado
todos os canais a cabo. Sem nada para ver além da rede
governamental, estávamos praticamente isolados do
mundo.
Outro dia, encontrei meu pai com as mãos na cabeça.
— Ah, jani — ele disse. — Todo mundo enlouqueceu.
Então meu pai contou que os homens de Fazlullah tinham
destruído uma escola para meninas em uma cidade
próxima.
Senti o coração apertado. Não conseguia imaginar por que
alguém ia querer tirar das crianças a chance de aprender a
ler e escrever. Por que um edifício escolar era tamanha
ameaça para o Talibã?
Por favor, Deus , rezei, nos ajude a proteger nosso vale e
a impedir essa violência.
Todos os dias, os homens de Fazlullah atingiam um novo
alvo. Lojas, estradas, pontes. E escolas. A maior parte dos
ataques ocorria fora de Mingora, mas foram ficando cada
vez mais próximos. Um dia, eu estava lavando a louça na
cozinha quando uma bomba explodiu tão perto que a casa
inteira tremeu e o ventilador em cima da janela caiu.
Eu tinha crescido ouvindo a palavra “terrorismo”, mas só
agora compreendia do que se tratava. Terrorismo é
diferente de guerra, na qual soldados se enfrentam cara a
cara numa batalha. Terrorismo é ir dormir à noite sem saber
que horrores o dia seguinte vai trazer. É andar pela sua
própria rua sem saber em quem pode confiar. É quando o
inimigo está em todo lugar e ataca vindo do nada.
Nossa família cumpria uma rotina toda vez que ouvíamos
uma explosão. Ligávamos um para o outro para nos
certificar de que estávamos todos bem. Então ficávamos
esperando pelas sirenes. E rezávamos.
Ainda assim, esse tipo de terror aleatório nos levava a
fazer coisas estranhas. Meu pai começou a pegar um
caminho diferente para casa todas as noites, caso alguém
estivesse estudando sua rotina. Minha mãe evitava o
mercado, e meus irmãos ficavam dentro de casa mesmo
nos dias de sol. Como eu estava na cozinha nas duas vezes
em que uma bomba explodira perto de casa, procurava me
manter o mais longe possível daquele cômodo. Mas como
alguém pode viver com medo de um cômodo da própria
casa?
A noite era o pior horário.
Era quando os homens de Fazlullah realizavam a maior
parte de seus ataques — especialmente a destruição de
escolas. Só em 2008, o Talibã atacou duzentas delas. Todas
as manhãs, antes que eu virasse a esquina da rua da
Khushal, fechava os olhos e fazia uma prece — com medo
de abri-los e descobrir que minha escola havia sido reduzida
a destroços durante a noite. Conviver com o terrorismo era
assim.
Uma noite, quando ocorreu uma explosão bem perto de
casa, fui até meu pai.
— Você está com medo? — perguntei.
— À noite nosso medo é grande, jani — ele disse. — Mas
pela manhã, com a luz do dia, reencontramos nossa
coragem.
PARTE TRÊS
••••
Encontrando minha voz
6
••••
Uma chance de falar
••••
Eu me perguntei o que faria se não pudesse ir à escola.
Passaria o resto da vida dentro de casa, longe de vista, sem
televisão para ver e sem livros para ler? Como ia completar
meus estudos e me tornar médica, que era meu maior
sonho na época?
Tentamos desfrutar dos dias antes de 15 de janeiro, mas,
a cada manhã, alguém chegava na escola com outra
história terrível sobre os homens de Fazlullah atacando
gente que não vivia da maneira como o Talibã determinava.
Agora, seríamos proibidas de ir à escola.
Uma tarde, ouvi meu pai falando ao telefone.
— Todas as professoras recusaram — ele disse. — Estão
com muito medo. Mas vou ver o que posso fazer.
Ele desligou e saiu de casa depressa.
Fiquei sabendo que um amigo que trabalhava na BBC, a
poderosa corporação britânica de radiodifusão, havia pedido
que ele indicasse uma professora ou aluna mais velha para
escrever um diário relatando como era a vida sob o regime
talibã. As professoras já haviam recusado. Uma aluna mais
velha tinha concordado, mas o pai dela disse que era
arriscado demais.
Meu pai sabia que os talibãs eram cruéis, mas teve
vontade de dizer que nem eles machucariam uma criança.
No entanto, respeitou a decisão do pai da garota e se
preparou para ligar para a BBC com más notícias.
Eu tinha onze anos. Sabia que queriam uma menina mais
velha, mas disse:
— Por que não eu?
Olhei para meu pai, que tinha uma expressão
esperançosa — e aflita — no rosto. Eu sabia que o diário
poderia ser lido por gente de fora do Paquistão. Afinal de
contas, era a BBC.
Meu pai sempre tinha me ajudado. Poderia eu ajudá-lo?
Sabia que era capaz. Faria o necessário para poder
continuar indo à escola. Mas primeiro fomos falar com
minha mãe. Se não tivéssemos o apoio dela, não
seguiríamos em frente.
Minha mãe respondeu com um verso do Sagrado Corão.
— A mentira deve morrer — ela falou. — E a verdade deve
prevalecer.
Deus ia me proteger, minha mãe disse, porque minha
missão era digna.
Nossa família não olhava para a vida e via perigo. Todos
víamos possibilidades. Acreditávamos na esperança.
— As coisas só vão melhorar se erguermos a voz — disse
minha mãe.
Eu não sabia como escrever um diário, então o jornalista
da BBC me ajudou. Preocupado com minha segurança, ele
sugeriu que eu usasse um nome falso, para que o Talibã não
soubesse quem estava escrevendo. Ele escolheu o
pseudônimo Gul Makai, que significa centáurea-azul (uma
flor) e é o nome da heroína de um conto do folclore pachto.
Meu primeiro texto saiu com data de 3 de janeiro de 2009,
cerca de duas semanas antes do prazo final do ultimato de
Fazlullah. O título era: “Tenho medo”. Escrevi sobre como
era difícil estudar ou dormir à noite com o som constante de
combates nas montanhas nos arredores da cidade. E contei
que caminhava para a escola todas as manhãs olhando por
cima do ombro, com medo de que um talibã estivesse me
seguindo.
A história do que vinha acontecendo no Swat tinha ido
parar em um blog na internet, onde o mundo inteiro poderia
ver. Era como se Deus tivesse finalmente concedido meu
desejo de ter um lápis mágico.
••••
Meu segundo texto falava de como a escola era o centro da
minha vida e do quão orgulhosa eu ficava ao andar pelas
ruas de Mingora usando meu uniforme. O jornalista da BBC
me pediu então que na publicação seguinte eu escrevesse
um pouco sobre o conflito na região. Aquilo era novidade
para ele, mas para mim, que convivia diariamente com o
problema, não.
Às vezes, era como se eu não tivesse medo. Só que, um
dia, a caminho da escola, ouvi passos atrás de mim. Meu
coração parou, mas de alguma forma meus pés seguiram
em frente, cada vez mais rápido, até ganhar distância. Corri
para casa, fechei a porta e, alguns segundos depois, dei
uma olhada do lado de fora. Lá estava o homem, gritando
ao celular com alguém, sem nem ligar para mim.
Ri um pouco comigo mesma. Malala , pensei, há motivos
reais para ter medo. Não precisa imaginar o perigo onde
não tem.
A verdadeira preocupação, me parecia, era que me
descobrissem. É claro que foi Moniba a primeira a adivinhar
a identidade de Gul Makai.
— Li um diário na internet — ela disse um dia no recreio.
— Parecia a nossa história e o que está acontecendo aqui na
escola. É você, não é? — ela perguntou.
Eu tinha que contar a verdade à minha amiga. Mas aquilo
só a deixou mais brava.
— Como pode dizer que é minha melhor amiga e guardar
um segredo tão importante de mim?
Ela me deu as costas e foi embora. Ainda assim, eu sabia
que não contaria a ninguém que era eu.
Quem acabou revelando nosso segredo foi meu pai, sem
querer. Ele disse a um jornalista que só ir e voltar da escola
a pé já era muito perigoso para as crianças. Sua própria
filha, continuou, achara que um homem que apenas falava
ao celular pretendia machucá-la. Quase todo mundo
reconheceu aquele relato do diário, e em abril meus dias
como Gul Makai já estariam acabados.
Mas o diário cumpriu sua função. Agora inúmeros
jornalistas acompanhavam a tentativa de Fazlullah de
fechar as escolas para meninas no Paquistão, incluindo um
homem de um importante jornal nos Estados Unidos, o New
York Times .
8
••••
Classe dispensada?
••••
Meu pai queria que eu continuasse treinando meu inglês.
Então me incentivou a assistir um DVD que um dos jornalistas
tinha me dado, de uma série de TV chamada Betty, a feia.
Eu amava Betty, com seu aparelho nos dentes e seu
coração grande. Ficava maravilhada vendo-a passear
livremente pelas ruas de Nova York com suas amigas — sem
véu cobrindo o rosto e sem necessidade da companhia de
homens. Minha parte favorita, no entanto, era ver o pai de
Betty cozinhar para ela, em vez do contrário!
Enquanto via Betty e suas amigas perambulando por aí,
nós ficávamos presas em casa sem nada para fazer.
Aquele tempo todo, eu continuava escrevendo o diário,
que assinava como Gul Makai.
Quatro dias depois do fechamento de todas as escolas
para meninas, os homens de Fazlullah destruíram outras
cinco instituições de ensino. Estou bastante surpresa ,
escrevi. As escolas já estavam fechadas. Por que precisavam
ser destruídas também?
••••
Durante aqueles dias sombrios e tediosos, ouvimos rumores
sobre conversas secretas com o Talibã. Então, do nada,
Fazlullah fez um anúncio surpreendente: não havia
problemas em meninas mais novas irem para a escola, mas
ele insistia que as acima de dez anos permanecessem em
casa, respeitando a purdah .
Eu tinha onze, mas não ia deixar que aquilo me impedisse.
Além do mais, passaria facilmente por uma menina de dez.
A sra. Maryam mandou uma mensagem para todas as
meninas mais velhas: se quisessem quebrar as regras, ela
abriria as portas da escola. No dia seguinte, saí de casa com
meus livros escondidos debaixo do lenço e a cabeça erguida.
Mas Mingora havia mudado no mês em que a escola ficara
fechada. As ruas estavam silenciosas, as lojas tinham sido
fechadas, as casas se mantinham escuras. Mais de um terço
da população havia fugido.
Minhas amigas e eu estávamos um pouco assustadas, mas
tínhamos um plano: se um talibã nos parasse, diríamos
apenas:
— Estamos no quarto ano.
Quando chegamos ao portão da escola, a sra. Maryam nos
esperava lá. Deu um abraço em cada uma de nós e disse
que éramos muito corajosas. Ela também corria um grande
risco só de estar ali.
— Esta escola secreta é nosso protesto silencioso — a sra.
Maryam disse.
9
••••
Deslocada
••••
Fiquei no telhado, olhando para as montanhas, para os
becos onde costumávamos jogar críquete, tentando
memorizar cada detalhe caso nunca mais visse minha casa.
Então desci para começar a fazer a mala. Na pressa, peguei
calças de um shalwar kamiz e túnicas de outros, então
acabei ficando com roupas que não combinavam.
Quase chorei quando minha mãe me disse que eu teria
que deixar meus livros da escola para trás. Eu amava a
escola, e meus livros eram tudo para mim!
Éramos crianças, afinal — crianças com preocupações
infantis, mesmo com uma guerra acontecendo.
Botei meus livros em uma sacola e escondi no quarto de
hóspedes, que parecia o lugar mais seguro. Sussurrei alguns
versos do Sagrado Corão para protegê-los. Em seguida a
família inteira se reuniu, e fizemos algumas preces juntos
para deixar nosso doce lar sob a proteção de Deus.
Estávamos prestes a nos tornar pessoas deslocadas
internamente, ou IDP s, na sigla em inglês. É o termo que
usam para aqueles que precisam deixar seu lar porque é
perigoso demais ficar, mas se mantêm no mesmo país.
Deslocados internos. É o que somos agora, não
paquistaneses, não pachtos. Nossa identidade foi reduzida a
três letras: IDP.
Do lado de fora, as ruas estavam tomadas pelo tráfego:
pessoas com malas, pacotes de arroz e sacos de dormir.
Famílias inteiras equilibradas em motos, outras correndo
pelas ruas só com a roupa do corpo. Ninguém sabia
exatamente para onde estava indo, só que precisava ir
embora. Dois milhões de pessoas fugiam de casa. Era o
maior êxodo da história pachto.
A viagem, que em geral levava algumas horas, se
estendeu por dois dias. Meu pai parou em Peshawar porque
sentia que era seu dever alertar as pessoas para o que
estava acontecendo. Minha mãe, meus irmãos e eu
seguimos em frente.
Quando finalmente chegamos a Shangla, nossos parentes
ficaram chocados ao nos ver.
— Por que vieram para cá? — perguntaram.
O Talibã tinha deixado as montanhas há pouco tempo,
mas havia boatos de que logo retornaria.
Para deslocados internos, nenhum lugar era seguro.
••••
Fui para a escola da aldeia, sabendo que ficaria na mesma
classe que minha prima Sumbul. Quando cheguei, vi que
havia apenas três meninas na sala dela. A maioria das
garotas de Shangla interrompe os estudos depois que
completa dez anos, então as poucas que permaneciam na
escola aprendiam junto com os meninos.
Eu chamava a atenção naquela turma: não cobria o rosto
como as outras meninas, falava livremente e fazia
perguntas.
Ah, como sentia saudade de casa. E da minha antiga
escola. E dos meus livros. E até mesmo de Betty, a feia .
Em maio, o Exército enfrentou o Talibã em Mingora
durante quatro dias. Pelo rádio, era impossível dizer quem
estava vencendo. Ao fim, um combate direto teve início nas
ruas.
Tentei imaginar aquilo: talibãs lutando no beco em que
jogávamos críquete.
O Exército finalmente anunciou que os talibãs haviam
fugido, então pudemos respirar um pouco melhor. Mas nos
perguntávamos para onde o Talibã iria agora. Retornaria às
montanhas?
••••
Meu aniversário de doze anos chegou quando ainda
aguardávamos para voltar para casa. Foi estranho. Esperei o
dia inteiro por uma festa — mas tinha tanta coisa
acontecendo que ninguém lembrou da data. Foi difícil não
comparar com meu aniversário de onze anos. Eu tinha
comido bolo com minhas amigas, havia bexigas e eu tinha
feito um pedido pela paz no nosso vale.
Fechei os olhos e repeti aquele pedido no meu aniversário
de doze anos.
10
••••
Uma paz estranha
••••
O Swat finalmente estava em paz. O Exército permaneceu
ali, mas as lojas reabriram, e as mulheres andavam
livremente nos mercados. Plantei um caroço de manga do
lado de fora de casa. Sabia que levaria bastante tempo para
que uma árvore crescesse e desse frutos, mas era meu
modo de dizer que estava esperançosa por um futuro longo
e pacífico em Mingora.
Uma das minhas maiores preocupações naquela época
era minha altura. Por volta da época em que completei treze
anos, parei de crescer. Antes, eu era uma das meninas mais
altas da classe, mas agora estava entre as mais baixas.
Andava fazendo muitos discursos, e tinha medo de que
minha altura tornasse mais difícil chamar a atenção das
pessoas!
No começo de 2010, nossa escola foi convidada para
participar de uma assembleia que englobaria todos os
distritos. Sessenta alunos do Swat inteiro foram escolhidos
como membros. A maioria eram meninos, mas onze
meninas da minha escola tinham sido incluídas. Quando
fizemos uma eleição para ver quem seria a porta-voz, eu
ganhei! Era estranho ficar ali no palco enquanto as pessoas
se dirigiam a mim como “sra. oradora”, mas levei aquela
responsabilidade muito a sério.
A assembleia se reuniu quase todos os meses por um ano,
e passamos nove resoluções. Decidimos que nenhuma
criança deveria ser forçada a trabalhar. Pedimos ajuda para
colocar crianças de rua ou com deficiência nas escolas.
Exigimos que todas as escolas destruídas pelo Talibã fossem
reconstruídas. Assim que concordamos quanto às
resoluções, elas foram enviadas ao governo — e algumas
foram até levadas adiante. Estávamos sendo ouvidos,
estávamos fazendo a diferença, e a sensação era boa.
••••
No começo de 2011, ouvimos falar que mais escolas
haviam sido destruídas e que os talibãs estavam
ameaçando quem os criticava.
Por volta da mesma época, chegou em casa uma carta
anônima endereçada ao meu pai. Você nos criticou, e vai
encarar as consequências.
Começava a parecer que o Talibã nunca havia ido embora
de verdade.
Tentei dizer a mim mesma que aquela carta terrível era só
uma ameaça vazia. Mas ainda assim rezava pela segurança
do meu pai todos os dias. Rezava para que minha escola
permanecesse aberta e para que as escolas destruídas
fossem reerguidas. E rezava para crescer. Se ia me tornar
uma política e trabalhar pelo meu país, disse a Deus,
precisava pelo menos enxergar acima da tribuna.
11
••••
Enfim, boas notícias
••••
Na primavera, houve um pequeno milagre na campanha pela
educação dentro da minha própria casa. Minha mãe
começou a aprender a ler.
Enquanto meu pai e eu estávamos ocupados falando por
todo o vale do Swat, ela tinha começado a ter aulas com
uma das professoras do primário da Khushal. Logo minha
mãe já era capaz de ler a língua nacional paquistanesa, o
urdu — e tinha começado a aprender inglês também.
Minha mãe gostava de estudar ainda mais do que eu, se é
que isso é possível. Muitas vezes fazíamos a lição de casa
juntas à noite, tomando chá — duas gerações de mulheres
pachtos alegremente debruçadas sobre seus livros.
••••
Eu sentia que meu aniversário de quinze anos seria um
ponto de virada para mim. Já era considerada adulta — na
nossa sociedade, deixamos a infância aos catorze anos. Mas
era hora de pensar no meu futuro. Tinha certeza de que
queria ser uma líder política. E começava a me preocupar
com todos os prêmios que vinha recebendo. Via tantas
crianças sofrendo — como podia desfrutar de festas de gala
e cerimônias?
Eu disse a meu pai que queria gastar parte do dinheiro que
havia recebido ajudando pessoas necessitadas. Nunca tinha
esquecido das crianças que vi no lixão tantos anos antes.
Queria ajudar crianças como aquelas. Então organizei uma
reunião com 21 meninas da escola, e discutimos como
poderíamos ajudar todas as meninas no Swat a receber
educação. Decidimos que focaríamos em crianças em
situação de rua ou trabalho infantil. O plano era continuar
conversando a respeito e, no outono, decidir exatamente o
que fazer.
••••
No começo de agosto, meu pai recebeu a assustadora
notícia de que Zahid Khan, um amigo próximo que também
criticava o Talibã, tinha sofrido um ataque. Haviam dito para
a gente que o Talibã tinha fugido, mas ainda havia violência
no vale. As pessoas que mais corriam risco eram aquelas
que pediam paz.
Por algum milagre, Zahid Khan sobreviveu. Depois daquilo,
no entanto, notei uma mudança no meu pai. Antes que ele
entrasse na escola, olhava para um lado e para o outro da
rua quatro ou cinco vezes para se certificar de que não
estava sendo seguido. À noite, entrava no meu quarto com a
desculpa de que queria me dar boa-noite, mas na verdade só
queria conferir se todas as janelas estavam trancadas.
— Se os talibãs quisessem me matar — eu dizia a ele —
teriam feito isso em 2009. Aquela era a hora.
Então ele balançava a cabeça para mim e dizia:
— Não, você tem que ficar em segurança.
Às vezes eu me preocupava que alguém pudesse pular o
muro e entrar em casa. Às vezes, depois que todo mundo já
tinha pego no sono, eu saía na ponta dos pés e ia verificar se
o portão da frente estava mesmo trancado.
13
••••
Um dia como qualquer outro
••••
Depois da prova, fiquei procurando meu irmão Atal
enquanto conversava com Moniba, porque ele iria para casa
comigo naquele dia. Mas conforme as meninas se reuniam
para ver nosso motorista fazer um truque de mágica,
esqueci completamente das instruções da minha mãe em
relação a meu irmão.
Sentamos nos nossos lugares de sempre na dyna : Moniba
ao meu lado e o resto das minhas amigas à nossa frente, no
outro banco. Uma menininha chamada Hina pegou o
assento do meu outro lado, onde minha amiga Shazia
costumava ficar, obrigando Shazia a sentar no banco que
ficava ao meio, onde em geral ficavam nossas mochilas.
Shazia pareceu tão infeliz que pedi a Hina que trocasse de
lugar com ela.
Quando o ônibus escolar estava prestes a sair, Atal
chegou correndo. As portas estavam fechadas, mas ele
pulou e se agarrou à tampa da traseira. Era um truque novo
e perigoso, se segurar ali.
— Sente lá dentro, Atal — disse o motorista.
Mas ele não quis saber.
— Sente lá dentro com as meninas, Atal Khan Yousafzai,
ou não vou levar você! — o motorista disse, com mais força
dessa vez.
— Prefiro ir andando pra casa do que nesse ônibus! —
gritou Atal. Ele pulou e saiu correndo, bravo.
Estava quente e grudento lá dentro, enquanto
chacoalhávamos pelas ruas lotadas de Mingora na hora do
rush. Uma das meninas começou a cantar para passar o
tempo. O ar estava denso, com o cheiro familiar de
combustível, pão e carne misturado ao fedor do córrego
próximo, onde todo mundo jogava lixo. Como sempre,
viramos na via principal na altura do posto de controle do
Exército e passamos pelo pôster em que se lia: TERRORISTAS
PROCURADOS.
Depois que deixamos a fábrica de salgadinhos para trás, a
rua ficou estranhamente quieta. O veículo reduziu a
velocidade até parar. Não lembro do jovem que bloqueou o
caminho e perguntou ao motorista se aquele era o ônibus
da Escola Khushal. Não lembro do outro homem entrando
pela traseira e se aproximando de nós. Não o ouvi
perguntar:
— Quem é Malala?
E não ouvi o bang, bang, bang das três balas.
A última coisa de que me lembro é de estar pensando na
prova. Depois, tudo ficou escuro.
PARTE QUATRO
••••
Uma nova vida, longe de casa
14
••••
Um lugar chamado Birmingham
••••
Quando abri os olhos, estava em uma sala verde sem
janelas e com luzes muito fortes. Um médico falou comigo
em urdu. A voz dele saía abafada, mas compreendi que
estava a salvo e que ele havia me trazido do Paquistão.
Tentei falar, sem sucesso. Uma enfermeira me deu papel e
caneta, mas eu não conseguia escrever direito. Então ela
escreveu o alfabeto inteiro em um pedaço de papel para
que eu apontasse para as letras.
A primeira palavra que soletrei foi “pai”. Depois “país”.
Onde estava meu pai? Eu queria saber. E que país era
aquele?
Eu ainda tinha dificuldade de ouvir a voz do médico, mas
ele parecia dizer que eu estava num lugar chamado
Birmingham. Eu não sabia onde ficava. Só depois descobri
que estava na Inglaterra.
Por que o médico não tinha dito nada sobre meu pai? Me
movi para soletrar “pai” de novo e senti uma pontada na
cabeça. Era como se houvesse uma centena de lâminas
dentro do meu crânio, se debatendo e retinindo. Tentei
respirar. A enfermeira levou um pano à minha orelha e ele
ficou manchado de sangue. Meu ouvido estava sangrando?
O que havia acontecido comigo?
Enfermeiros e médicos entravam e saíam, lançando-me
perguntas. Eu fazia que sim e que não com a cabeça em
resposta. Eles perguntaram se eu sabia como me chamava.
Assenti. Perguntaram se eu conseguia mexer a mão
esquerda. Balancei a cabeça em negativa. Tinham muitas
perguntas, mas não respondiam às minhas.
••••
Uma mulher entrou e me disse que era a dra. Fiona
Reynolds. Falou comigo como se fôssemos velhas amigas.
Ela me entregou um ursinho de pelúcia verde — eu
estranhei um pouco a cor — e um caderno rosa. A primeira
coisa que escrevi foi: Obrigada.
Então escrevi: Por que meu pai não está?
Olhei para todos os equipamentos médicos complicados à
minha volta e escrevi: Meu pai não tem dinheiro. Quem vai
pagar por isso?
— Seu pai está bem — ela disse. — Ele está no Paquistão.
Não se preocupe com o pagamento.
Se meu pai estava bem, por que não estava comigo? E
onde estava minha mãe?
As palavras de que eu precisava não me vinham à mente.
Ela pareceu compreender aquilo.
— Uma coisa ruim aconteceu com você — a dra. Fiona
disse. — Mas está a salvo agora.
O que tinha acontecido? Tentei lembrar. Durante aqueles
primeiros dias no hospital, eu oscilava entre o mundo real e
um mundo de sonhos. Imagens variadas vagavam pela
minha cabeça.
Eu via uma multidão reunida à minha volta enquanto me
mantinha deitada em uma cama, ou talvez uma maca. Não
conseguia ver meu pai. Tentava gritar: Onde está aba, onde
está meu pai? Mas não conseguia falar. Então o via, e ficava
feliz e aliviada.
Eu estava em uma maca, e meu pai estendia os braços
para mim.
Eu tentava acordar, ir para a escola, mas não conseguia.
Então via a escola e minhas amigas, mas não conseguia
alcançá-las.
As imagens pareciam muito reais, mas eu sabia que nem
todas eram. De alguma forma, tinha ido parar em um lugar
chamado Birmingham, em uma sala cheia de máquinas, só
com o ursinho verde ao meu lado.
Achava que talvez tivesse levado um tiro, mas não tinha
certeza. Eram sonhos ou lembranças?
Eu não conseguia lembrar das palavras. Escrevi aos
enfermeiros pedindo um arame para limpar os dentes.
Então notei que meu ursinho de pelúcia tinha sumido. No
lugar dele havia aparecido um branco. Mas o ursinho verde
tinha ficado ao meu lado; ele tinha me ajudado. Peguei o
caderno e escrevi: Cadê o ursinho verde?
Ninguém me deu a resposta que eu queria. Só disseram
que aquele era o mesmo ursinho que a dra. Fiona havia me
dado. As luzes e as paredes tinham lhe emprestado um
brilho esverdeado, mas o ursinho era branco, insistiam.
Sempre tinha sido branco.
As luzes fortes no quarto eram como adagas quentes nos
meus olhos. Parem as luzes , implorei no meu caderno.
Os enfermeiros faziam o que podiam para escurecer o
ambiente, mas assim que a dor aliviava um pouco, minha
cabeça voltava à mesma questão: onde estava meu pai?
Toda vez que um médico ou enfermeiro diferente entrava
no meu quarto, eu entregava meu caderno e apontava para
as perguntas sobre meu pai. Eles diziam que eu não
precisava me preocupar.
Mas eu me preocupava. Não conseguia evitar.
Tinha certeza de que os médicos e enfermeiros estavam
todos comentando:
— Malala não tem dinheiro. Malala não pode pagar pelo
tratamento.
Um médico parecia estar sempre triste, então escrevi um
bilhete para ele. Por que você está triste? , perguntei. Achei
que era porque ele sabia que eu não podia pagar a conta do
hospital. Mas ele respondeu:
— Não estou triste.
Quem vai pagar? , escrevi. Não temos dinheiro.
— Não se preocupe — o médico falou. Depois daquilo, ele
sempre sorria quando me via.
••••
A dra. Fiona entrou no meu quarto e me entregou um
recorte de jornal. Era uma foto do meu pai ao lado do chefe
do Exército do Paquistão. Meu pai estava vivo! E ao fundo
da foto estava Atal!
Sorri, agradecida. Então notei uma figura coberta com
lenço sentada ao fundo da foto, perto do meu irmão. Só
dava para identificar seus pés. Eram os pés da minha mãe!
Essa é minha mãe! , escrevi para a dra. Fiona.
Dormi um pouco melhor naquela noite, embora meu sono
ainda fosse permeado de sonhos estranhos. Eu acordava e
olhava em volta em busca do ursinho verde. Mas só
encontrava o branco.
Agora que eu sabia que minha família estava a salvo,
passava o tempo todo me preocupando com uma maneira
de pagar pelo tratamento. Estaria meu pai em casa,
vendendo nossas poucas posses? Ligando para os amigos
para pedir dinheiro emprestado?
Mal consegui acreditar quando o homem que havia falado
comigo em urdu, o dr. Javid Kayani, entrou com o celular na
mão e disse:
— Vamos ligar para os seus pais. — Então ele continuou,
de maneira firme, mas bondosa: — Não chore. Seja forte.
Não vai querer que sua família fique preocupada.
Assenti. Não tinha chorado nem uma vez desde que
acordara. Meu olho esquerdo lacrimejava o tempo todo,
mas aquilo não era choro.
Depois de uma série de bipes, ouvi a voz querida e
familiar do meu pai.
— Jani? — ele disse. — Como está se sentindo, minha jani
?
Eu não conseguia responder, por causa do tubo na minha
garganta. E não podia sorrir, porque meu rosto estava
dormente. Mas sorria por dentro, e tinha certeza de que
meu pai sabia.
— Vou chegar logo — ele disse. — Agora descanse. Em
dois dias estaremos aí.
Sua voz estava alta e animada. Talvez um pouco animada
demais.
Então me dei conta: também tinham dito a ele para não
chorar.
15
••••
Uma centena de perguntas
••••
Fiquei olhando para o relógio no quarto enquanto esperava
pela minha família. Acompanhar a movimentação dos
ponteiros me reassegurava de que eu estava mesmo viva.
Também me ajudava a contar os minutos até minha família
chegar.
O relógio sempre tinha sido meu inimigo em casa —
roubando meu sono pela manhã quando tudo o que eu
queria era me esconder debaixo do cobertor. Eu queria só
ver quando minha família ouvisse que eu finalmente havia
feito as pazes com ele — e que, pela primeira vez na vida,
estava acordando cedo! Todas as manhãs, esperava
avidamente pelas sete horas, quando amigos como Yma,
que trabalhava no hospital, e os enfermeiros da ala infantil
vinham me fazer companhia.
Quando eu já estava conseguindo enxergar bem o
bastante, eles me levaram um aparelho de DVD e uma pilha
de filmes.
Tinham ligado a televisão nos primeiros dias, mas minha
visão ainda estava tão embaçada que eu havia pedido que
desligassem. Agora meus olhos tinham melhorado, embora
eu ainda estivesse com um pouco de visão dupla. Minhas
opções eram Driblando o destino, High School Musical,
Hannah Montana e Shrek. Escolhi Shrek . Gostei tanto que vi
a sequência logo em seguida.
Uma enfermeira descobriu que se cobrisse meu olho
machucado com um pedaço de gaze o problema da visão
dupla era amenizado. Assim, passei o dia com um ogro
verde e um burro falante enquanto esperava que meus pais
chegassem à Inglaterra.
••••
Depois de alguns dias no hospital, o tubo na minha garganta
foi removido, e recuperei minha voz. Então comecei a fazer
minhas perguntas à dra. Fiona. Era como estar de volta às
aulas de biologia na escola.
Fiquei sabendo que, no Paquistão, os médicos disseram a
meus pais que eu não sobreviveria a menos que fosse
levada para um hospital melhor. Meus pais concordaram
que o dr. Javid e a dra. Fiona me levassem. Os dois médicos,
que estavam no Paquistão a trabalho, tinham sido
chamados para ajudar no meu tratamento e haviam ficado
ao meu lado por quase duas semanas. Não era à toa que se
comportavam como se me conhecessem há muito tempo.
Havia uma última coisa que eu queria saber:
— Eu fiquei em coma — disse. — Por quanto tempo?
— Uma semana — a dra. Fiona me disse.
Eu tinha perdido uma semana da minha vida. Nesse
período, levei um tiro, fui operada e levada para o outro
lado do mundo. A primeira vez que peguei um avião e saí do
Paquistão foi em um jatinho particular para que salvassem
minha vida.
O mundo não parou de girar, e eu não sabia nada do que
tinha acontecido. Me perguntei o que mais teria perdido.
16
••••
Preenchendo as lacunas
••••
— Está tudo bem. Estamos todos aqui agora — meu pai
dizia quando eu perguntava o que havia acontecido comigo.
Então tentava mudar de assunto, e eu deixava.
Um dia, quando estávamos sozinhos, ele pegou minha
mão, com os olhos cheios de lágrimas.
— Jani , eles me ameaçaram tantas vezes. Você levou
minha bala. Deveria ter sido eu. — Depois de uma pausa,
meu pai continuou: — As pessoas passam por alegrias e
sofrimento na vida. Você teve todo o sofrimento de uma vez
só, e o resto da sua vida vai ser cheio de alegria. — Ele não
conseguiu falar mais.
Eu queria dizer a meu pai que não estava sofrendo — e
que não queria que ele sofresse. Abri outro sorriso torto e
disse apenas:
— Aba .
Era tão injusto que meu pobre cérebro danificado não
conseguisse escolher as palavras certas diante de uma
pessoa que eu amava tanto.
Mas meu pai compreendia. Ele sorriu de volta, apesar dos
olhos úmidos.
Um pouco mais tarde, minha mãe estava me ajudando no
banheiro quando a vi dar uma olhada no meu reflexo no
espelho. Nossos olhos se encontraram por um momento,
então desviou o olhar.
— Seu rosto — sussurrou depois. — Vai melhorar?
Contei à minha mãe o que os médicos me disseram: em
algum momento, meu rosto ia melhorar. Mas nunca seria
como antes.
Quando ela me acompanhou de volta à cama, olhei para
meus pais.
— É o meu rosto, e eu o aceito. Vocês precisam aceitar
também — falei, com delicadeza.
Eu queria dizer tantas outras coisas a meus pais. Tivera
tempo de me acostumar com meu novo rosto. Mas para eles
ainda era um choque. Quando você vê a morte , eu queria
dizer, as coisas mudam. Não importava se eu não conseguia
piscar ou sorrir. Ainda era eu, Malala.
Sabia que minha recuperação era uma bênção, um
presente de Deus e de todas as pessoas que haviam se
preocupado comigo e rezado por mim. Então me sentia em
paz. Mas enquanto eu melhorava em Birmingham, vendo
Shrek e seu burro falante, meus pobres pais tinham estado
a milhares de quilômetros de distância, lidando com sua
própria dor.
A partir daquele dia, nossa família passou a se curar
unida.
••••
Aos poucos, meus pais me contaram tudo o que havia
acontecido nos dezesseis dias entre o ataque e o nosso
reencontro.
O que descobri foi:
Assim que o motorista do ônibus escolar, Usman Bhai Jan,
se deu conta do que havia acontecido, me levou direto para
o Hospital Central do Swat. As outras meninas gritavam e
choravam. Eu estava deitada sobre Moniba, sangrando.
Naquele dia, meu pai estava em um encontro da
Associação de Escolas Particulares, no qual faria um
discurso. Quando soube o que havia acontecido, correu para
o hospital. Ele me encontrou lá dentro, deitada numa maca,
com a cabeça enfaixada, os olhos fechados e o cabelo todo
bagunçado.
— Minha filha, minha corajosa filha, minha linda filha —
meu pai me disse de novo e de novo, como se aquilo
pudesse me despertar. Acho que, de alguma maneira, eu
sabia que ele estava comigo, mesmo inconsciente.
Os médicos disseram a ele que a bala não tinha chegado
perto do cérebro e que o ferimento não era grave. Logo o
Exército tomou conta da situação, e às 15h eu estava em
uma ambulância a caminho de um helicóptero que ia me
levar para outro hospital, na cidade de Peshawar. Não havia
tempo para esperar minha mãe, então a sra. Maryam, que
havia chegado ao hospital pouco depois do meu pai, insistiu
em ir junto caso eu precisasse de ajuda de uma mulher.
— Não chorem — minha mãe dissera às vizinhas à beira
das lágrimas. — Rezem. — Enquanto o helicóptero
sobrevoava nossa cidade, ela correu para o telhado. Tirou o
lenço da cabeça, um gesto raro para uma mulher pachto, e
o ergueu para o céu. — Deus, eu a confio ao Senhor —
minha mãe disse.
Os canais paquistaneses mostravam fotos e vídeos meus,
com preces e poemas. O pobre Atal ligou a televisão depois
da escola, ouviu a notícia e se deu conta de que se não
tivesse ficado bravo por não poder ir agarrado na traseira,
teria estado naquele ônibus também.
Enquanto isso, eu estava em Peshawar, onde um médico
descobriu que meus ferimentos eram bastante sérios. Ele
me operou, então os dois médicos britânicos — a dra. Fiona
e o dr. Javid — assumiram meus cuidados.
A dra. Fiona insistiu que eu receberia melhor tratamento
no hospital do dr. Javid em Birmingham, na Inglaterra: o
Queen Elizabeth. Mas eu precisaria ser levada
imediatamente — em no máximo dois dias. Minha família
não poderia ir comigo. O dr. Javid garantiu ao meu pai que
eles tomariam conta de mim.
— Não é um milagre que vocês por acaso estivessem aqui
quando Malala levou um tiro? — meu pai comentou.
— Sou da opinião de que Deus manda a solução primeiro
e o problema depois — respondeu o dr. Javid.
••••
Eu tinha perdido tanta coisa! No entanto, enquanto meus
pais me explicavam o que havia acontecido, acrescentando
que o mundo inteiro estava acompanhando as notícias, era
quase como se estivessem me contando uma história. Como
se aquelas coisas tivessem acontecido com alguma outra
menina que não eu.
Talvez seja porque eu não me lembre de nada sobre o
ataque. Absolutamente nada.
Os médicos e enfermeiros tinham explicações
complicadas para isso: o cérebro nos protege de lembranças
dolorosas demais. Ou, diziam, o meu podia ter desligado
assim que fui ferida. Amo a ciência, mas não preciso que me
explique por que não lembro do ataque.
Na verdade, eu sei o motivo: Deus foi bom para mim.
Ninguém me entende quando digo isso. Imagino que, se
você nunca chegou perto de morrer, não tem como
entender mesmo. Mas eu e a morte estivemos bem
próximas. Só que a morte, ao que parece, não me quis.
••••
Quando finalmente assisti ao telejornal, descobri que um
porta-voz de Fazlullah havia dito que o Talibã tinha sido
“forçado” a atirar em mim porque eu não parava de criticar
o movimento.
Eles tinham me alertado, tinham ido à imprensa, e eu não
havia parado.
Meus outros crimes eram defender a educação e a paz.
Nos termos deles, eu defendia a educação ocidental, que,
na opinião dos talibãs, era contra o islã.
E o Talibã tentaria me matar de novo, dissera Fazlullah.
— Que isso sirva de lição.
Era uma lição, de fato. Minha mãe estivera certa ao citar o
Sagrado Corão. A mentira deve morrer, ela me dissera
tantos anos antes, quando eu estava considerando escrever
o diário para a BBC. E a verdade deve prevalecer.
A verdade sempre triunfará sobre a mentira. Essa é a
verdadeira crença islâmica, que nos guiou em nossa
jornada.
O Talibã atirou em mim para tentar me silenciar. Mas
agora o mundo todo estava ouvindo minha mensagem.
17
••••
Mensagens do mundo todo
••••
Em dezembro, depois de quase dois meses hospitalizada,
finalmente permitiram que eu fizesse meu primeiro passeio:
ao Jardim Botânico de Birmingham. Fomos eu, minha mãe e
duas enfermeiras. Meu pai não foi: ele tinha aparecido tanto
na televisão que estava com medo de chamar a atenção das
câmeras.
Fui no banco de trás do carro, virando a cabeça de um lado
para o outro no caminho, louca para absorver tudo daquele
país totalmente novo.
Eu não estava acostumada ao vento forte e ao ar frio. Mas
as plantas eram lindas! E familiares!
— Temos dessa lá no vale também — eu disse a uma das
enfermeiras. — E dessa também!
Minha mãe ficou tão animada que ligou para meu pai.
— Pela primeira vez — ela disse —, estou feliz.
Àquela altura, minha família estava morando em um
prédio alto de Birmingham e me visitava todos os dias. A
vida estava mesmo voltando ao normal, já que meus irmãos
estavam me deixando louca de novo! Depois de mais ou
menos um dia me tratando como uma boneca de porcelana,
tinham voltado a ser irritantes.
— Por que tanta onda com a Malala? — Atal disse uma vez.
— Eu a vi. Ela sobreviveu.
— Deixem os dois em casa! — implorei aos meus pais. —
Eles só fazem barulho e ainda querem ficar com meus
presentes.
Eu finalmente era capaz de ler de novo, e a linguagem e as
lembranças começaram a voltar. Embora eu ainda tivesse
dificuldade de lembrar os nomes de algumas das minhas
amigas, estava fazendo bastante progresso, e me animava a
cada dia.
Naquele mesmo mês, recebi minha primeira visita que não
era da família: Asif Ali Zardari, presidente do Paquistão.
O hospital tinha medo de que a visita atraísse muita
atenção dos jornalistas, mas eu tinha que recebê-lo. O sr.
Zardari havia prometido que o governo cobriria todas as
minhas despesas médicas.
Eu vesti um casacão roxo e escapei do prédio pela saída de
funcionários. Passamos de carro por um aglomerado de
jornalistas e fotógrafos, que nem nos notaram. A cena
parecia saída de um livro de espionagem.
Fomos levados a um escritório. Enquanto esperávamos,
Atal, Khushal e eu brincávamos com um joguinho eletrônico
chamado Elf Bowling. Era a primeira vez que eu jogava, e
mesmo assim ganhei dos dois. Prova de que a velha Malala
estava de volta.
Quando o presidente entrou, levou a mão à minha cabeça,
um gesto de respeito no meu país. Ele falou que havia
conseguido um emprego para meu pai em Birmingham. Tudo
ficaria bem, disse. Meu trabalho era focar na minha
recuperação.
Depois, o sr. Zardari disse que eu era “uma menina
extraordinária e um orgulho para o Paquistão”.
Foi um dia incrível. O líder do meu país me tratava com
respeito e todas as minhas preocupações relativas a dinheiro
tinham sido resolvidas.
Mas, ah, foi um dia agridoce. Porque então eu entendi: não
voltaríamos para casa por um bom tempo.
18
••••
Milagres
••••
Eu sentia muita falta de casa. Tinha saudade das minhas
amigas da escola, das montanhas, das cachoeiras, do lindo
rio Swat, dos campos verdes exuberantes. Então foi duro
quando descobri que algumas pessoas no Paquistão me
criticavam. Elas questionavam a honestidade da minha
família. Havia até quem dissesse que meu pai havia atirado
em mim só para que pudéssemos viver em meio ao luxo no
exterior.
Também recebi notícias da escola. Pelo Skype, Moniba me
disse que sentia muito minha falta e que nenhuma outra
menina poderia ocupar o lugar que eu havia deixado em seu
coração. Ela também me disse que Shazia e Kainat já tinham
se recuperado e estavam de volta à escola. E que minhas
amigas haviam guardado um lugar para mim na sala.
— Ah, aliás — Moniba disse —, você acertou tudo na prova
de estudos paquistaneses.
Era a que eu havia feito na manhã do ataque.
••••
Fiz muitas cirurgias, incluindo uma para melhorar minha
audição. Um dispositivo eletrônico bem pequeno foi colocado
atrás da minha orelha para me ajudar a escutar. Algumas
semanas depois, um receptor foi encaixado, e ouvi um leve
bipe. Então outro. Então veio o som da voz do médico. A
princípio, todo mundo soava como um robô, mas logo minha
audição melhorou.
Como Deus é grande! Ele nos deu olhos para ver a beleza
do mundo, mãos para tocá-la, um nariz para sentir sua
fragrância, e um coração para desfrutar de tudo. Mas não
nos damos conta de como nossos sentidos são milagrosos
até perdermos um.
O retorno da minha audição era só um milagre.
Um talibã dera três tiros à queima-roupa atingindo três
meninas em um ônibus escolar — mas nenhuma de nós
morreu.
Uma pessoa tentou me silenciar. E milhões ergueram sua
voz.
Tudo isso eram milagres também.
19
••••
Este novo lugar
••••
Conforme o primeiro aniversário do ataque se aproximava,
os jornalistas voltaram a me entrevistar. Descobri que eu não
estava nem de perto tão chateada quanto alguns deles em
relação ao que havia acontecido comigo. Acho que vejo
minha situação de maneira diferente. Se dissesse a mim
mesma: “Malala, você nunca vai poder voltar para casa
porque é alvo do Talibã”, eu viveria em sofrimento.
Encaro tudo da seguinte maneira: posso ver! Posso ouvir!
Posso falar! Estou vivendo a vida que Deus quer para mim.
Os jornalistas também me perguntam se tenho medo. Digo
que não. E é verdade.
Fico frustrada quando eles querem focar no ataque, e não
na minha luta pela educação das meninas. Eu até
compreendo. Mas na minha cabeça, a violência e a tragédia
criaram uma oportunidade.
Nunca esqueço dessa oportunidade, especialmente
quando penso na organização que criei para ajudar outras
crianças, o Fundo Malala, e lembro de todo o bem que fez e
continuará a fazer. Estamos ajudando meninas no Swat que
não receberam educação porque foram forçadas a trabalhar.
Estamos ajudando crianças refugiadas em todo o mundo. É
nosso dever garantir que essas crianças tenham comida,
abrigo e educação. E vamos fazer isso.
badal : vingança
jani : querido(a)
pisho : gatinho(a)
PATRICIA McCORMICK foi duas vezes finalista do National Book Award e é autora
de diversos romances aclamados para jovens, entre eles Cut , Sold e Never Fall
Down . Para mais informações, acesse <patriciamccormick.com >.
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