Você está na página 1de 8

INTERLOCUÇÕES ENTRE O PLANTÃO PSICOLÓGICO E O...

65

INTERLOCUÇÕES ENTRE O PLANTÃO PSICOLÓGICO E O


PSICODIAGNÓSTICO COLABORATIVO

DIALOGUE BETWEEN PSYCHOLOGICAL DUTY


AND COLLABORATIVE ASSESSMENT

Gohara Yvette YEHIA1

RESUMO

A busca de novas formas de atendimento psicológico em instituições, que


se preocupam com os serviços oferecidos à população que as procura,
resultou no desenvolvimento de práticas como o plantão psicológico, serviço
cada vez mais oferecido em instituições para acolher o cliente, e o
psicodiagnóstico colaborativo que se propõe a uma intervenção que,
tradicionalmente, é deixada para momentos posteriores, quando da
realização da psicoterapia, caso indicada. A partir de depoimentos de
alunos de um curso de aperfeiçoamento em psicodiagnóstico colaborativo,
oferecido no Serviço de Aconselhamento Psicológico da USP, onde
habitualmente são desenvolvidas as atividades referentes ao plantão
psicológico, o presente trabalho tem como objetivo focalizar as possíveis
interlocuções entre estas práticas, assim como sua contribuição para o
acolhimento do cliente e a formação do aluno.
Palavras-chave: Psicodiagnóstico colaborativo; plantão psicológico, práticas
psicológicas em instituição.

ABSTRACT

The search for new ways of psychological care in institutions worried about
the services offered to people who come for it, led to the development of
practices as psychological duty, a service that has been more and more
offered to receive the client, and the collaborative assessment that aims an
intervention, traditionally postponed when psychotherapy begins, when
necessary. Based on statements of students from an improvement course,
on collaborative assessment, at the Serviço de Aconselhamento Psicoló-

(1)
Doutora em Psicologia. Endereço para correspondência: E-mail: gohara1@terra.com.br

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


66 G.Y. YEHIA

gico – USP, where usually are developed activities related to psychological


duty, the present research aims to focus the possible dialogue between
these practices, and their contribution to the reception of the client and the
training of the students.
Key words: Collaborative assessment; psychological duty; psychological
care in institutions.

A partir de um convite do Laboratório de Um pouco do que está escrito a respeito


Estudos em Fenomenologia do Serviço de de - Plantão Psicológico
Aconselhamento Psicológico (SAP) da USP,
Entrei em contato pela primeira vez com a
ministrei no primeiro semestre de 1999 uma
questão do Plantão Psicológico no texto de
disciplina: Psicodiagnóstico em questão:
Ancona-Lopez, S. (1996) que discute as
diferentes práticas e pesquisas, no programa de
entrevistas de triagem propondo-se a torná-las
Pós-graduação do Departamento de Psicologia um momento significativo em si, para o cliente,
da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da independentemente do eventual encaminhamento
Personalidade do Instituto de Psicologia da USP, para outro tipo de atendimento. Esta autora
assim como um curso de aperfeiçoamento: menciona um texto de 1987, de Mahfoud, que se
Psicodiagnóstico fenomenológico-existencial: um refere ao Plantão Psicológico como um desafio,
processo colaborativo. propondo que seja um “momento significativo da
pessoa ante sua problemática” (1987, p. 82).
Para o curso de aperfeiçoamento, os
alunos usaram as dependências do SAP que Mais recentemente, no livro organizado
também fez a divulgação da oferta de atendimento por Morato, em 1999, há varias referências a
em psicodiagnóstico, o que permitiu a inclusão Plantão Psicológico, considerado como possibi-
lidade de um atendimento emergencial ou o início
de uma população não contemplada por este
de um processo que se estenderá por uma ou
setor até o momento: crianças e seus pais.
mais sessões, utilizado por quem o procure:
Assim sendo, os clientes que procuravam adulto, família, adolescente, em qualquer
atendimento infantil foram inicialmente atendidos instituição (clínica, judiciária, escolar, hospitalar)
por estagiários do curso de Psicologia que onde haja profissionais disponíveis para um
atuavam no Plantão Psicológico e os encaminha- atendimento psicológico.
vam aos alunos do curso de aperfeiçoamento em Nas palavras de Schmidt (1999), o Plantão
psicodiagnóstico colaborativo. Alguns destes Psicológico “está estruturado para que o cliente
alunos haviam concluído o curso de Psicologia seja acolhido por um espaço de escuta qualifi-
na USP e passado pela experiência do Plantão cada, no momento mesmo em que procura auxílio.
Psicológico. Este acolhimento exige a priorização da entrevista
psicológica (...) Esta entrevista não é pensada
Deste modo, nas aulas teóricas e nas
como triagem (...) mas como espaço propício à
supervisões foram sendo trazidas à luz e elaboração da experiência do cliente no que diz
discutidas convergências e divergências entre o respeito ao sofrimento psíquico que ele porta e às
Plantão Psicológico e o Diagnóstico Colaborativo, possibilidades ou vislumbres de ajuda que ele
o que nos levou a buscar uma primeira concebe. Assim, a entrevista de Plantão visa
formalização da possível interlocução entre estas facilitar que o cliente clarifique a natureza de seu
duas modalidades de atendimento. sofrimento e de sua demanda por ajuda.”2

(2)
Grifo meu.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


INTERLOCUÇÕES ENTRE O PLANTÃO PSICOLÓGICO E O... 67

Entende-se que o que define o plantão não expectativa em relação ao mesmo, é muito difícil
é a queixa trazida pelo cliente mas o modo de chegar a uma compreensão conjunta do que
lidar com a mesma, compreendida como “um possa estar acontecendo com a criança no
sintoma de uma demanda cujo esforço de contexto pessoal, familiar e social.
compreensão é feito na medida em que interesse Nesta proposta, a situação de psico-
ao cliente” (Morato, 1999). De fato, trata-se, em diagnóstico torna-se “uma situação de
vez de focalizar o sintoma do cliente, de acolher cooperação3 em que a capacidade de ambas
sua experiência, procurando tornar este encontro as partes de observarem, aprenderem, compreen-
significativo. derem constitui a base indispensável para o
trabalho” (Yehia, 1999, p. 120). O psicólogo
Psicodiagnóstico Interventivo/colaborativo compartilha com os pais sua própria experiência
com eles e com a criança, sugere alternativas de
Embora a prática do psicodiagnóstico venha ação, dá sugestões a respeito do que considera
sendo discutida há vários anos, ela ainda é capaz de promover um desenvolvimento mais
concebida em sua forma tradicional, ou seja, harmonioso, propondo um redirecionamento dos
como um atendimento que resulta em uma pais a partir da compreensão da criança e da
avaliação que poderá levar a uma indicação dinâmica familiar, com o objetivo de facilitar o
terapêutica mais bem fundamentada. relacionamento, propiciar novas formas de
Esse modo de realizar o psicodiagnóstico interação e abrir novas perspectivas experienciais.
faz com que haja uma separação nítida entre a Entretanto para que se possa estabelecer
etapa do diagnóstico (em que a proposta é a uma situação de cooperação entre psicólogo e
realização de uma investigação) e a devolução do cliente é necessário que haja uma demanda do
conhecimento e compreensão adquiridos a partir último. O que entendemos por demanda? Temos
da investigação. Este procedimento dificulta a um cliente que vem procurar um atendimento,
retomada de atitudes do paciente que possam muitas vezes após ter esgotado os recursos
contribuir para uma melhor integração do material disponíveis (vai passar, a criança vai crescer,
devolvido, já que o momento em que se dá a mudança de atitude em relação ao filho, etc.);
devolução se refere a acontecimentos passados. finalmente, surge o encaminhamento por parte
No psicodiagnóstico colaborativo, a de um terceiro ou a procura espontânea pelo
proposta é a explicitação da experiência do atendimento. Quando estamos no primeiro caso,
cliente, à medida que a ela se refere ou que vai é importante verificar como o cliente se posiciona
sendo percebida na relação estabelecida com o diante deste encaminhamento, pois no
psicólogo. “Quando se trata do psicodiagnóstico psicodiagnóstico colaborativo, se a demanda for
infantil, o trabalho com os pais visa explorar o de um terceiro e esta questão não for trabalhada
significado da queixa trazida, dos sintomas com os responsáveis, o trabalho fica praticamente
apresentados pela criança, a compreensão que inviabilizado. Dever-se-ia, então, procurar saber
eles têm de sua própria situação e de sua relação com este terceiro qual é a sua demanda e talvez
com o filho” (Yehia, 1998, p. 118). Mesmo quando trabalhar com ele. No segundo caso, quando há
o paciente designado é a criança, a participação procura espontânea pelo atendimento psicológico,
dos pais no atendimento é extremamente ainda é preciso saber, no caso de um psico-
importante sendo que, enquanto o atendimento diagnóstico infantil, se há demanda dos pais ou
psicológico proposto não tiver sentido para eles, se eles apenas estão querendo que o psicólogo
que se limitam a seguir a indicação de outro faça o que eles não estão conseguindo fazer:
profissional, submetendo-se à mesma, e sem resolver uma situação difícil.

(3)
Nesta apresentação escolhi me referir ao psicodiagnóstico como processo colaborativo, embora as publicações a respeito
da forma proposta para realizar este trabalho se refiram ao psicodiagnóstico interventivo.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


68 G.Y. YEHIA

Assim, no início do psicodiagnóstico colabo- A partir da posição humanista, a atitude do


rativo, é necessário desenvolver um trabalho com psicólogo é de acolhimento ao cliente de uma
os pais no sentido de ajudá-los a se apropriarem forma empática, buscando compreendê-lo,
da demanda, propondo-se a problematizar suas respeitando seus limites e procurando ampliar
relações com o filho, com eles mesmos, com os suas possibilidades.
outros. A explicitação dos pais em relação à A fenomenologia nos oferece um método
expectativa que eles têm de um atendimento de pesquisa para trabalhar com o fenômeno,
psicológico também deve ser focalizada, já que entendendo-o como aquilo que se mostra,
partimos do pressuposto que o psicólogo não desvelando aquilo que faz com que ele me
trabalha sozinho. Mesmo que ao final do processo pareça desta ou daquela maneira, ou seja,
se chegue à conclusão de que é a criança que explicitando os pressupostos que orientam a
necessita de tratamento, a colaboração dos pais compreensão daquilo que está sendo focalizado.
é imprescindível uma vez que a criança depende
O existencialismo nos traz a compreensão
deles e, em geral, seus sintomas são modos de
do homem como ser-no-mundo (sendo ser e
ela expressar “coisas que não vão bem”, não
mundo instâncias inseparáveis e que são um
apenas com ela mesma, mas também no seio da
neste indivíduo) com-os-outros. Desta maneira,
família.
não estaremos procurando os aspectos internos
Aqui já antevejo possibilidades de interlo- do cliente, que fazem com que tal ou qual coisa
cução entre o plantão psicológico e o diagnóstico se manifeste desta ou daquela maneira, mas
interventivo, pelo menos no que se refere a este trabalharemos sempre no entre (ser e mundo
início do relacionamento entre o psicólogo e o com os outros), no modo de como as coisas
cliente que vem buscar atendimento. aparecem, no significado que elas têm para o
psicólogo e para o cliente, considerando que
Para que os pais possam apropriar-se de
cada um de nós toma, o tempo todo, decisões
sua demanda, a ajuda do psicólogo é importante
pessoais, dando sentido à sua própria existência
no sentido de clarear expectativas, delimitar
(mesmo que não se dê conta disto). Mundo,
papéis, e envolver os participantes numa proposta
neste contexto, é a possibilidade de algo nos
de trabalho.
parecer como sendo isto ou aquilo, sistema de
Se pensarmos em termos da ansiedade do remissões possíveis, rede de significações em
cliente em relação aos problemas que vem que cada coisa é o que é, remetendo a outras.
enfrentando, muitas vezes o confronto com os Assim, as interpretações são desenvolvidas via
pressupostos que o trazem e que orientam sua interpretações-significados, vistos a partir de
compreensão de uma situação pode ajudá-lo a determinada perspectiva que trata de esclarecer
lidar melhor com a mesma, re-orientando sua e compartilhar já que a realidade humana é
demanda. sempre situada no mundo.
Para o psicólogo que se propõe a desen-
Abordagem teórica
volver um psicodiagnóstico colaborativo com
crianças e seus pais, vários conhecimentos são
Tanto o Plantão Psicológico como o
imprescindíveis, devendo muitas vezes ser
Psicodiagnóstico colaborativo partem de uma
perspectiva fenomenológico-existencial, o que resgatados:
leva a uma semelhança no que diz respeito à - noções de psicologia do desenvolvimento,
atitude diante do cliente e à concepção de saúde já que é importante situar a queixa em relação a
e doença. Ambas as práticas propõem-se a uma fase do desenvolvimento e a um momento
estimular os aspectos saudáveis presentes na de vida pelo qual a família passa. Por exemplo,
experiência do sujeito, e a não classificar ou uma criança que apresenta enurese noturna faz
rotular. com que o psicólogo se coloque uma série de

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


INTERLOCUÇÕES ENTRE O PLANTÃO PSICOLÓGICO E O... 69

perguntas: como se deu o ensino do controle relacionais e interventivas. Permitem que psicó-
esfincteriano, o que está acontecendo no logo e cliente observem a pessoa realizando
momento atual, a criança já havia adquirido o uma atividade. Situações semelhantes, ocorridas
controle e o perdeu, ou nunca o adquiriu? Cada no passado, tornam-se disponíveis para o cliente,
uma destas perguntas é orientada por podendo ser retomadas e revistas, abrindo-se
conhecimentos provindos de abordagens teóricas novas perspectivas e ampliando-se possibilidades.
que focalizam desenvolvimento individual, inserção
de um indivíduo na família, dinâmica familiar, A investigação preliminar
crescimento e regressão;
- conhecimentos oriundos das teorias a As questões colocadas a partir das
respeito de família, dinâmica familiar, bode discussões a respeito de psicodiagnóstico em
expiatório, relacionamento diádico, triádico, etc; geral e de psicodiagnóstico interventivo na
abordagem fenomenológico-existencial em
- conhecimentos de psicologia escolar
particular surpreenderam os alunos que, em sua
também são resgatados, uma vez que esta
maioria, partiam da concepção clássica do
criança freqüenta uma determinada escola que
psicodiagnóstico. Mesmo para aqueles que
foi escolhida por seus pais e tem uma determinada
haviam entrado em contato com textos a respeito
filosofia. Será que há coincidência entre a filosofia
do psicodiagnóstico como processo de interven-
da escola e dos pais? Será que a escola atende
ção, a abordagem fenomenológico-existencial
às necessidades desta criança? Como é o
não havia sido significativa.
tamanho da classe, como é a atitude da professo-
ra? De uma maneira geral, uma criança que não De fato, de uma maneira geral, a abordagem
tenha dificuldade adapta-se a qualquer tipo de fenomenológica ainda representa uma ruptura
escola e, portanto, estas perguntas não se em relação a posições tradicionais relacionadas
colocam. Mas quando há dificuldades da criança à cientificidade, ao conhecimento, à verdade,
na escola, antes de pensarmos apenas que a etc. De fato, a noção de relação intencional, de
questão se coloca na criança, é importante ser-no-mundo como unidade indivisível, ainda
pesquisarmos a relação entre a criança, a família acarreta certo estranhamento, já que a formação
e a escola. científica, até hoje, ainda mantém a separação
sujeito x objeto, sujeito x ambiente, teorias
Resumindo, examinam-se aspectos biológi-
verdadeiras ou falsas.
cos, biográficos, ambientais, em termos de suas
contribuições à situação atual da criança e de O humanismo enfatiza a questão do cuidado
e a questão da relação com o outro, que em
sua família.
situações terapêuticas são mais focalizadas. O
No psicodiagnóstico colaborativo o psicólo- psicodiagnóstico clássico, por outro lado, levanta
go utiliza-se dos instrumentos psicológicos a questão de se saber qual é a “verdade” em
disponíveis, sejam eles provindos da psicometria, relação a este sujeito, na medida em que
sejam testes projetivos, seja observação lúdica, tradicionalmente seu objetivo é compreender o
etc. que está acontecendo com ele, para chegar a
Assim, um conhecimento destes instru- uma indicação terapêutica melhor fundamentada
mentos é muito importante, já que ignorá-los e a um prognóstico.
seria desconsiderar várias possibilidades Assim, tendo em vista que se discutia a
oferecidas ao psicólogo e desenvolvidas com a questão da queixa, o esclarecimento da demanda
finalidade de melhor conhecer o cliente. Enten- e, principalmente, a co-constituição da compreen-
demos que eles funcionam como organizadores são daquilo que está acontecendo, a revisão da
de uma experiência e, quando não usados como posição do psicólogo, a atividade do cliente, é
anteparos entre o psicólogo e o cliente, podem que os alunos puderam começar a considerar o
ser dinamizadores de várias possibilidades psicodiagnóstico sob uma nova perspectiva.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


70 G.Y. YEHIA

-“Ler o psicodiagnóstico desta forma é -“O psicodiagnóstico poderia contribuir com


trazer o outro para a posição da gente. O processo o plantão na questão do esclarecimento da
perde o caráter tradicional, onde a pessoa é demanda daquele que procura o serviço.”
receptor passivo da ação de alguém.”
A questão do esclarecimento da demanda
-“O Psicodiagnóstico trabalha muitas é sublinhada, considerando que o trabalho com
coisas e não simplesmente rotula, o Plantão psicodiagnóstico trouxe a possibilidade de uma
também inicia um ‘tratamento’ que pode ser “organização mais objetiva” para quem faz
encerrado ou servir como clareador para um plantão. De fato, quando falamos em “esclarecer
encaminhamento.” demanda”, pensamos no que acontece quando a
-“É preciso uma resignificação do sentido atitude natural, a partir da qual lidamos com o
do psicodiagnóstico, considerando-o uma prática mundo sem nos perguntarmos a respeito do
de essência no cuidado com a pessoa do cliente.” significado de cada coisa, não é mais possível.
Os alunos começaram a se dar conta da Quando o mundo se torna obstrutivo (quando a
importância da relação estabelecida entre totalidade estruturada de significados e de
psicólogo e cliente, da co-responsabilidade no intenções inter-relacionadas perde o sentido),
desenvolvimento do trabalho, da mudança de quando surge a pergunta, é que é necessário
posição do psicólogo, não mais detentor do “tematizar” e debruçar-se sobre o fenômeno
saber, mas representante de um outro ponto de tematizado.
vista a ser compartilhado com o cliente. Entendemos por isto que, como dito
-“No psicodiagnóstico fenomenológico- anteriormente, é necessário que o psicólogo,
-existencial, o profissional também trabalha a junto com os pais, possa “explorar o significado
partir do básico: as relações humanas.” da queixa trazida, dos sintomas apresentados
-“O psicodiagnóstico fenomenológico- pela criança, a compreensão que eles têm de
-existencial e o plantão psicológico tratam a sua situação e de sua relação com o filho. (...)
relação cliente/psicólogo de um forma muito numa situação de cooperação em que a
semelhante.” capacidade de ambas as partes observarem,
-“O enfoque adotado pelo psicodiagnóstico apreenderem, compreenderem constitui a base
é muito próximo do plantão.” indispensável para o trabalho. Tanto os pais
como o psicólogo observam a si mesmos e ao
Penso que, pelo fato de o plantão psicológico
outro, tanto os pais como o psicólogo procuram
ter nascido e se desenvolvido no SAP que,
tradicionalmente, privilegia a abordagem humanis- compreender o que está sendo vivenciado, sendo
ta, a terapia centrada no cliente (avessa ao que a compreensão dos pais e a do psicólogo
psicodiagnóstico em sua acepção tradicional) é são equivalentes e compartilhadas”. (Yehia, 1998,
que, a partir do contato com o psicodiagnóstico pp. 118-120).
colaborativo, alguns alunos perceberam que o Embora fale de pais, pois nossa prática se
psicodiagnóstico poderia contribuir com a dá principalmente com crianças cujos pais
atividade de plantão: procuram um serviço psicológico, penso que é
-“sinto que o objetivo principal do plantão é possível trabalhar da mesma maneira com um
atender a necessidade emergencial que a pessoa adulto ou um adolescente que estejam procurando
tenha, seja ela qual for, quando procura um atendimento para si mesmos.
plantão. Esclarecer, ouvir, orientar, re-orientar a
Nas palavras de uma aluna:
pessoa na sua solicitação é já um psicodiagnós-
tico à medida que este olhar àquilo que a pessoa -“Acredito que o psicodiagnóstico poderia
traz demanda uma especificidade clínica e uma ajudar a ‘objetivar’ questões surgidas no plantão,
certa organização e direcionamento que a pessoa principalmente no que se refere ao esclarecimento
não está encontrando por si só.” da demanda daquele que procura o serviço.”

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


INTERLOCUÇÕES ENTRE O PLANTÃO PSICOLÓGICO E O... 71

-“O plantão atende toda a necessidade CONCLUSÃO


emergencial (atende tudo) que a pessoa tenha,
seja ela qual for. Se incorporar o psicodiagnóstico, A investigação preliminar permite dizer
teria a possibilidade de organização, de que, profissionais que têm contato com a prática
do plantão psicológico e que entram em contato
direcionamento daquilo que é trazido.”
com o psicodiagnóstico colaborativo, na aborda-
No que diz respeito aos recursos utilizados gem fenomenológico-existencial, dão-se conta
pelo psicólogo que realiza o psicodiagnóstico da oposição à postura tradicional em relação a
interventivo, estes também são vistos como conhecimento e verdade já que o enfoque teórico
possíveis auxiliares para a compreensão do está orientado na mesma direção (fenomenoló-
cliente que procura o plantão. gico-existencial), valorizando a relação com o
-“O plantonista ‘iluminado’ pela outro, focalizando a compreensão do que esteja
aprendizagem da proposta do psicodiagnóstico acontecendo consigo próprio e com o outro.
fenomenológico-existencial pode ampliar a Sabemos que o psicodiagnóstico fenome-
maneira de receber o cliente no plantão. O fazer nológico-existencial é proposto como uma prática
do psicólogo em psicodiagnóstico fenomeno- interventiva. Constituiu-se a partir da insatisfação
lógico-existencial abre-se para o uso de recursos de profissionais que se davam conta da ineficiência
como a anamnese, o material lúdico, os testes, dos procedimentos tradicionais para o
a visita domiciliar, a escolar, de uma maneira que atendimento aos clientes, propondo-se a torná-
isto ajuda a iluminar o fenômeno”. los mais participantes, estando o próprio psicólogo
mais engajado e ativo na relação estabelecida
De fato, inicialmente, houve uma certa
com os clientes.
resistência ao uso dos testes psicológicos,
principalmente os de nível intelectual, já que Neste sentido, podemos vislumbrar uma
estes, por definição, dão um resultado objetivo posição ético-política, na medida em que a
proposta é devolver ao cliente suas possibilidades
(QI), não sendo geralmente pensados como
de ser, ampliando suas possibilidades e
organizadores da experiência da criança naquele
horizontes, estimulando-o a assumir uma posição
momento e reprodução de situações de seu
de cidadania. Também, por parte dos
cotidiano (escola, casa), revelando os modos e a
profissionais, há uma apropriação de um fazer
eficácia da criança ao lidar com elas.
clínico, desde o início do atendimento ao cliente
O contato com o psicodiagnóstico colabora- (o fazer clínico, como já foi dito, era adiado para
tivo suscitou alguns comentários, dentre os quais depois do psicodiagnóstico). Por fazer clínico
o de que tal atendimento seria um “luxo”. Aqui, entendemos, retomando a etimologia da palavra
retomo algo em relação a que venho insistindo clínico, o inclinar-se para o sofrente, desde o
nos últimos 20 anos de prática em instituição, ou primeiro contato com este.
seja, que “o cliente, desde o primeiro momento Por outro lado, o psicodiagnóstico,
em que procura uma clínica-escola tem direito a compreendido como conhecer (gnose) através
um atendimento psicológico digno deste nome” de (dia), pode se dar a partir do encontro entre
(Yehia, 1983). psicólogo e cliente, propiciando, na medida do
possível, a abertura para novas possibilidades de
O sentido deste trabalho foi captado por
compreensão, a partir do estranhamento, saindo
uma das alunas:
do impessoal e apropriando-nos da experiência
-“é preciso uma resignificação do sentido vivida. Deste modo, o psicólogo se mantém em
do psicodiagnóstico, considerando-o uma prática contato com a experiência do cliente, “contato
não de ‘luxo’ mas de essência no cuidado com vivido, afetivo e intelectual”. (Figueiredo, 2000, p.
a pessoa do cliente”. 17).

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004


72 G.Y. YEHIA

Em texto de 1998, eu dizia que o processo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


psicodiagnóstico é referido por pais que por ele
passaram como “uma oportunidade para prestar ANCONA-LOPEZ, S. A.. Porta de Entrada - Da
atenção, perceber e pensar sobre o que está entrevista de triagem à consulta psicológica,
acontecendo”. Na medida em que o cliente tem Tese de Doutoramento, PUCSP, 1996
a oportunidade de “rever sua maneira de se
relacionar com o filho, perceber novos sentidos FIGUEIREDO, L.C. &Coelho Junior, Ética e
possíveis para as situações de interação com Técnica em Psicanálise, Escuta, São Paulo,
ele, reformulando sua forma de exercer seu papel 2000.
e, às vezes, seu desenvolvimento enquanto MAHFOUD, M., A Vivência de um Desafio:
pessoa”, o psicodiagnóstico colaborativo apresen-
plantão psicológico. In: Rozemberg, R.L. (org),
ta aspectos terapêuticos.
Aconselhamento Psicológico Centrado na
De fato, na medida em que o psicólogo Pessoa. São Paulo: EPU, 1987.
trabalha a partir da ruptura, que gera a pergunta
(Yehia, 1988 p. 117), o cotidiano é desnaturalizado MORATO, H.T.P. (org), Aconselhamento
e com a ajuda do psicólogo (seus questiona- Psicológico Centrado na Pessoa – Novos
mentos, intervenções, orientações), os pais vão Desafios, São Paulo, Casa do Psicólogo,
desenvolvendo sua capacidade de pensar, de se 1999.
colocar diante das questões que aparecem e de
tomar decisões. SCHMIDT, M.L.S., Aconselhamento Psicoló-gico
e Instituição: Algumas Considerações sobre
No plantão psicológico, cujo objetivo é o
o Serviço de Aconselhamento Psicológico do
atendimento emergencial à demanda, temos
IPUSP, in Morato, H.T.P. (org.) Aconselha-
uma proposta muito semelhante, embora esta
prática tenha se desenvolvido a partir de um outro mento Psicológico Centrado na Pessoa – No-
contexto, o de aconselhamento psicológico, “solo vos Desafios, São Paulo, Casa do Psicólogo,
para as tensões da existência do homem em 1999.
situação de vida no mundo com os outros, ou
YEHIA, G.Y., Reformulação do papel do psicólogo
seja das relações interpessoais” (Morato, 1999,
no psicodiagnóstico fenomenológico-existen-
p. 83), nem sempre visto como atividade clínica.
cial e sua repercussão sobre os pais, in
De fato, ambas as práticas nasceram e se Ancona-Lopes, M. (org) Psicodiagnóstico:
desenvolveram em contextos institucionais, fruto
Processo de Intervenção, São Paulo, Cortez,
da insatisfação de profissionais com o
1998(2ª ed).
atendimento oferecido aos clientes e que ousaram
debruçar-se sobre a experiência e criar! Ambas YEHIA, G.Y., Proposta de uma técnica alternativa
as práticas propõem-se dar acolhimento ao cliente de supervisão de estágio para a formação de
enquanto sofrente, trabalhando a partir de uma psicólogos, Dissertação de Mestrado,
compreensão mais ética do que técnica (a Psicologia Clínica, PUC-SP, 1983.
respeito deste tema vide Figueiredo, 2000),
permitindo o aparecimento de possibilidades
existenciais encobertas pela calcificação Recebido para publicação em 23 de abril de 2003 e
decorrente do predomínio do cotidiano. aceito em 7 de novembro de 2003.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 65-72, janeiro/abril 2004

Você também pode gostar