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Políticas e práticas
de cuidado em
HIV/Aids: diálogos
interdisciplinares
SAÚDE EM DEBATE
A revista Saúde em Debate é uma publicação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Ligia Giovanella – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (https://orcid.
org/0000-0002-6522-545X – ligiagiovanella@gmail.com)
Luiz Augusto Facchini – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS), Brasil (https://
EDITORA-CHEFE | EDITOR-IN-CHIEF
orcid.org/0000-0002-5746-5170 – luizfacchini@gmail.com)
Maria Lucia Frizon Rizzotto – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel (PR), Luiz Odorico Monteiro de Andrade – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil
Brasil (https://orcid.org/0000-0003-3152-1362 – marialuciarizzotto@gmail.com) (https://orcid.org/0000-0002-3335-0619 – odorico@saude.gov.br)
Maria Salete Bessa Jorge – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil
(https://orcid.org/0000-0001-6461-3015 – maria.salete.jorge@gmail.com)
EDITORES CIENTÍFICOS | SCIENTIFIC EDITORS
Mario Esteban Hernández Álvarez – Universidad Nacional de Colombia, Bogota,
Colombia (https://orcid.org/0000-0002-3996-7337 – mariohernandez62@gmail.com)
Ivia Maksud – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (https://orcid.org/0000-
Mario Roberto Rovere – Universidad Nacional de Rosario, Rosario, Argentina (https://
0002-3465-151X – iviamaksud@gmail.com)
orcid.org/0000-0002-6413-2120 – roveremarior@gmail.com)
Jorginete de Jesus Damião – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ),
Paulo Marchiori Buss – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (https://
Brasil (https://orcid.org/0000-0001-6591-3474 – jorginete.damiao@gmail.com)
orcid.org/0000-0002-9944-9195 – paulo.buss@fiocruz.br)
Mónica Franch-Gutiérrez – Universidade Federal da Paraíba (PB), Brasil (https://orcid.
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal do Pará, Belém (PA), Brasil
org/0000-0003-3845-3841 – monicafranchg@gmail.com)
(https://orcid.org/0000-0002-1969-380X – pttarso@gmail.com)
Fatima Rocha – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (https://orcid.
Rubens de Camargo Ferreira Adorno – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP),
org/0000-0002-5500-7061 – fatimrocha@gmail.com)
Brasil (https://orcid.org/0000-0002-8772-3222 – radorno@usp.br)
Sandra Lúcia Filgueiras – Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
Sonia Maria Fleury Teixeira – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
(RJ), Brasil (https://orcid.org/0000-0003-2971-734X – filgueiras.sandralucia@gmail.com)
(https://orcid.org/0000-0002-7678-7642 – profsoniafleury@gmail.com)
Mônica Villela Gouvêa – Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ), Brasil (https://orcid.
Sulamis Dain – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
org/0000-0002-6552-8004 – monicagouvea@id.uff.br)
(https://orcid.org/0000-0002-4118-3443 – sulamis@uol.com.br)
Eduardo Melo – Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ) e Fundação Oswaldo Cruz,
Walter Ferreira de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis
Rio de Janeiro (RJ), Brasil (https://orcid.org/0000-0001-5881-4849 – eduardo.melo@
(SC), Brasil (https://orcid.org/0000-0002-1808-0681 – wfolive@terra.com.br)
ensp.fiocruz.br)
117 Política sexual e ativismo de HIV/Aids: a 169 Profilaxia Pós-Exposição sexual no Sistema
experiência da Loka de Efavirenz Único de Saúde: cuidados possíveis na
Sexual politics and HIV/AIDS activism: the prevenção do HIV
experience of Loka de Efavirenz Post-sexual Exposure Prophylaxis in the Unified
Pisci Bruja Garcia de Oliveira, Júlio Assis Simões Health System: possible cares in HIV prevention
Sandra Lúcia Filgueiras
129 Mulheres jovens que nasceram com HIV:
comunicação da soropositividade aos 182 Construção e validação de instrumento para
parceiros avaliação do cuidado a prisioneiros que
Young women born with HIV: communication of vivem com HIV/Aids
seropositivity to partners Construction and validation of an instrument to
Clarissa Bohrer da Silva, Maria da Graça Corso da assess the care for prisoners living with HIV/AIDS
Motta, Renata Bellenzani, Crhis Netto de Brum, Aline Fernando Henrique Apolinario, Silvia Justina Papini,
Cammarano Ribeiro Wilza Carla Spiri
DOI: 10.1590/0103-11042022E700
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 5-11, DEZ 2022
6 Maksud I, Damião JJ, Franch-Gutiérrez M, Rocha F, Filgueiras SL, Gouvêa MV, Melo E
constitucionais viraram despesas em geral”. Ruben estava ali problematizando a relação entre
recursos (de toda ordem), direitos e cuidados. Dessa forma, ensinava:
[...] cuidado não é produto do serviço de saúde a ser objeto de gerência. É um conjunto de práticas sociais
que vão muito além dos serviços de saúde ou dos profissionais de saúde.
Como era de seu estilo, nessa que foi uma de suas últimas falas públicas sobre HIV/Aids,
conclamou todos para uma luta contra os retrocessos e as ameaças de direitos, valorizando
a militância e a invenção de possíveis formas de resistência apesar da desfavorável e con-
servadora conjuntura à época3. Logo após esse seminário, o mundo assistiu e foi engolido
pela pandemia da Covid-19 – nós inclusive. Assim, em meio a tantas perdas, Ruben fez sua
passagem; contudo, deixou-nos uma obra tão extensa e densa quanto sua capacidade de
instigar. Sua vida segue como fonte de inspiração para várias gerações de pesquisadores,
profissionais e ativistas no campo do HIV/Aids e, certamente, entre os que aqui vieram
contribuir para este número.
Em 40 anos de epidemia de Aids, o impacto social da epidemia nas primeiras décadas
foi uma pauta central para a política de Aids no País, que ficou conhecida como ‘a resposta
brasileira ao HIV/Aids’. Hoje, vulnerabilidades ainda vivenciadas pelas PVHA, como
estigma, discriminação, iniquidade e exclusão social, continuam sendo desafios, dificul-
tando o acesso ao cuidado e comprometendo sua qualidade.
Considerar a equidade do sistema de saúde, compreender e atender às necessidades dos
sujeitos e grupos sociais e construir práticas de cuidado capazes de se contrapor aos pro-
cessos de vulnerabilização vivenciados exige de nós analisar as características da epidemia,
as políticas e o cuidado de saúde oferecidos e os retrocessos em conquistas alcançadas
na resposta à epidemia de HIV/Aids, como a ênfase na biomedicalização e o abandono
da perspectiva dos direitos humanos4. Cabe inserir também no debate o impacto do acir-
ramento das desigualdades na distribuição dos novos casos pelo mundo, as implicações
do recrudescimento de conservadorismos, autoritarismos, afetos políticos mortíferos e a
intensificação do neoliberalismo diante de suas próprias crises. A esse cenário, somam-
-se ainda os diversos impactos advindos da pandemia da Covid-19, que, nos anos de 2020
e 2021, fizeram-se sentir em todas as áreas envolvendo o cuidado em HIV/Aids, desde a
diminuição da procura por testes diagnósticos até o espaçamento maior das consultas e
a dificuldade de acesso ao atendimento por parte das PVHA. Embora sejam problemas
que atravessam todo o País, as singularidades de cada contexto regional e local adquirem
relevância também na maneira como a epidemia de Aids ganha forma e é enfrentada nos
diversos territórios.
Foi visando refletir de modo mais aprofundado as complexidades do contexto atual
que propusemos o presente número temático, que tem como mote principal a reflexão
e a divulgação de estudos sobre políticas e práticas de cuidado em uma perspectiva
interdisciplinar. No entanto, assim como integralidade, o cuidado também é um termo
polissêmico5, e configura-se como objeto de atenção não apenas da saúde coletiva, mas
de diversas outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a enfermagem, a filosofia
e as ciências sociais6.
Ao falarmos de cuidado, tanto podemos lançar um olhar para os sistemas e serviços de
saúde, observando o modo como ocorrem as relações entre os vários sujeitos na prática
da atenção em saúde (gestores, profissionais, usuários) em seus diversos níveis, como
podemos incluir as redes de apoio e a organização cotidiana do cuidado no interior de
método no diálogo com a antropologia das emoções, permitindo às autoras revisitar o campo
do cuidado, relações e prática em perspectiva crítica e reflexiva. Por sua vez, ‘Um ensaio sobre
a cronicidade do viver com HIV/Aids na infância, adolescência e juventude’ recolhe reflexões
decorrentes de trajetórias de duas décadas de pesquisa e atuação no campo do HIV/Aids de
três autores/as: Claudia Cunha, Marcelo Maciel e Martha Cistina Nunes Moreira. Partindo das
noções de experiência, memória e perturbação, o ensaio discorre sobre a cronicidade do viver
com HIV/Aids para crianças, adolescentes e jovens, com atenção para as vulnerabilidades e as
limitações nas circulações e nos afetos da vida cotidiana.
O número temático traz ainda um Relato de Experiência escrito por Daniele Souza, Carla
Pereira e Juan Raxach, que apresentam o livro ‘E se fosse com você? Histórias vividas de
estigma e discriminação em 40 anos de HIV/AIDS’, publicação da Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids (Abia) que reúne relatos emocionados, em forma de conto, de dez
sujeitos afetados diretamente pelo HIV/Aids. Seu intuito é estimular a solidariedade com
esse grupo, abordando os desafios do julgamento moral, transfobia, violências LGBTQIA+,
capacitismo, entre outros, mas também trazendo históricas de reinvenção da própria vida.
Finalizamos o número temático com a entrevista ‘Políticas de HIV/Aids, ativismo e antropologia:
conversando com Richard Parker’, da qual participaram, além do entrevistado, Mónica Franch, Luziana
Silva, Geissy Reis, Marcos Carvalho e Vagner Almeida. Richard Parker é antropólogo e ativista que
se configura como um dos atores centrais da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids. Na entre-
vista, o entrevistado fala sobre sua trajetória como antropólogo e sua aproximação com a temática
da Aids. Em paralelo, faz uma reflexão sobre os 40 anos da epidemia, dando ênfase às conquistas
e aos desafios no seu enfrentamento e denunciando o acelerado desmonte sofrido pelas políticas e
serviços voltados ao HIV e à Aids nos últimos anos. A reflexão sobre os aprendizados nesse caminho
nos inspira e convoca à produção de novas formas de resistir.
Este número temático celebra a manutenção da pauta dos estudos e intervenções sobre
o tema HIV/Aids em uma conjuntura que lhe foi muito desfavorável. Esperamos que esta
publicação contribua como mais um instrumento inspirador para as práticas de cuidado às
PVHA, bem como para as políticas que as suportam na perspectiva de equidade, promoção de
saúde e defesa da vida, em um cenário de retomada de uma vida mais democrática perante os
retrocessos e a violação dos últimos tempos. É oportuno registrar que iniciamos a produção
deste número temático em um momento de ameaça à democracia e à ciência, e que este projeto,
com todos os desdobramentos que teve, incluindo a produção desta coletânea, alimentou-nos
e contribuiu para as nossas resistências cotidianas por muitas vezes. Finalizamos o processo
após as eleições presidenciais que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República,
e depositamos nesta atual conjuntura esperança e expectativas de mais investimentos na área
da saúde, na retomada da participação da sociedade civil organizada, nos recursos para as
universidades, na produção de conhecimento movida à reconstrução e à retomada do projeto
de reforma sanitária. Publicá-lo na revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
é, para nós, motivo de imensa alegria.
Agradecimentos
O processo de produção deste número temático envolveu não só editores e autores como
também um conjunto grande de pareceristas convidados que contribuíram com pareceres que
subsidiaram a seleção dos textos aqui apresentados. Agradecemos ainda a Katia Ovídia José de
Souza que colaborou na assistência aos editores.
Financiamento
Projeto de Incentivo à Pesquisa – PIP III – do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança
e do Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, no âmbito do projeto O
‘cuidado’ às PVHA na rede de atenção à saúde, coordenado por Ivia Maksud e Eduardo Melo.
Colaboradores
Maksud I (0000-0002-3465-151X)*, Damião JJ (0000-0001-6591-3474)*, Franch-Gutiérrez M
(0000-0003-3845-3841)*, Rocha F (0000-0002-5500-7061)*, Filgueiras SL (0000-0003-2971-
734X)*, Gouvêa MV (0000-0002-6552-8004)* e Melo E (0000-0001-5881-4849)* contribuíram
igualmente para a elaboração do manuscrito.
Referências
1. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma “nova 4. Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e
saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas?. precarização da vida: momento político contempo-
Rev Saúde Pública. 1998; 32(4):299-316. râneo da resposta brasileira à aids. Interface (Botu-
catu). 2016; 20(57):293-304.
2. Mattos RA. Os Sentidos da Integralidade: algumas
reflexões acerca de valores que merecem ser defen- 5. Camargo Junior K. Epistemologia numa hora dessas?
didos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os (Os limites do cuidado). In: Pinheiro RM, Araujo R,
sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralida-
saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS; Abrasco; 2006. de. Rio de Janeiro: CEPESC; UERJ/IMS; ABRASCO;
184 p. 2006.
3. Maksud I, coordenadora. Debate sobre os desafios 6. Longhi M, Mon AD. Dossiê “os cuidados” em sua di-
do cuidado nas redes de atenção à saúde no municí- mensão prática e afetiva. Apresentação. Áltera. 2020;
pio do Rio de Janeiro. In: Anais do Seminário Coro 3(11):11-19.
de Vozes numa teia de significados: sobre o cuidado
às pessoas vivendo com HIV/AIDS na rede de aten- 7. Barros N. Cuidado emancipador. Saúde Soc. 2021;
ção à saúde; 2020 fev 11-12; Rio de Janeiro: Fundação 30(1). *Orcid (Open Researcher
Casa de Rui Barbosa. and Contributor ID).
DOI: 10.1590/0103-11042022E700I
THE PUBLICATION WE HAVE IN OUR HANDS RESULTED from the meeting of a group of researchers
and health professionals from various teaching and research institutions with the objective of
1 Fundação
knowing, gathering, and making visible academic research and analysis of experiences on HIV/
Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Instituto AIDS care in the current context.
Nacional de Saúde da As a field of knowledge and practices1, organized by the Associação Brasileira de Saúde
Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes Coletiva (ABRASCO) in three areas – social sciences and humanities in health, planning, and
Figueira (IFF) – Rio de epidemiology –, collective health is in permanent construction over time, choosing as themes
Janeiro (RJ), Brasil.
iviamaksud@gmail.com from aspects linked to policies, work organization and health systems, to micropolitics and
2 Universidade do Estado
people’s everyday experience. Therefore, side by side with the production of data and systematic
do Rio de Janeiro (Uerj), surveys, the biographical aspects of the various interlocutors (whether they are researchers,
Instituto de Nutrição – Rio professionals, and/or research participants, in interaction) have also been relevant to configure
de Janeiro (RJ), Brasil.
and reconfigure the perspectives on such topics. Initially, therefore, this group of editors, crossed
3 Universidade Federal by epistemological and disciplinary diversity and constant dialogue, represents the meeting
da Paraíba (UFPB),
Departamento de Ciências of many voices and backgrounds, as well as the willingness to renew and challenge itself, in
Sociais, Programa de constant action, just like the field of collective health itself.
Pós-Graduação em
Antropologia e Programa As Ruben Mattos2 – to whom we dedicate this thematic issue – taught us so well – in what
de Pós-Graduação em would become one of his best-known texts (‘The senses of integrality’), the confrontation of
Sociologia – João Pessoa
(PB), Brasil. HIV/AIDS was initially configured as a policy designed to respond to the needs of specific
4 Fundação
groups, integrating prevention and care actions. As the late professor wrote, “the Brazilian
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional government response to AIDS has always been guided by respect for the rights of those who live
de Saúde Pública Sergio with this disease” and “encompassed a wide range of strategies and interventions”, including
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. “the various groups affected by the problem, respecting their specificities”2(65).
5 Secretaria de Estado de
Many years after having written this text, Ruben was with us at the seminar on the care for
Saúde do Rio de Janeiro People Living with HIV/AIDS (PLWHA) in the health care network, held in Rio de Janeiro in
(SES-RJ), Gerência de IST/ February 2020, and drew attention to the crisis that began with the removal of President Dilma
Aids – Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Rousseff from the Presidency of the Republic of Brazil, underlining the fact that the Social State
6 Universidade Federal
has become, under the Temer administration (onwards, we would add), “an expenditure problem”,
Fluminense (UFF), Instituto with Constitutional Amendment No. 95, the “CA of the public spending cap”. From then on, as
de Saúde Coletiva (ISC) – he stressed in his speech, “social expenditures that were thought of from a constitutional rights
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
This article is published in Open Access under the Creative Commons Attribution
license, which allows use, distribution, and reproduction in any medium, without
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 12-18, DEZ 2022 restrictions, as long as the original work is correctly cited.
HIV/AIDS care policies and practices: interdisciplinary dialogues 13
perspective became expenses in general”. Ruben was there problematizing the relationship
between resources (of all kinds), rights, and care. In this way, he taught:
[...] care is not a product of the health service to be managed. It is a set of social practices that
go far beyond health services or health professionals.
As was his style, in what was one of his last public speeches on HIV/AIDS, he called on
everyone to fight against setbacks and threats to rights, valuing militancy and the invention
of possible forms of resistance despite the unfavorable and conservative conjuncture at
the time3. Soon after this seminar, the world watched and was swallowed by the COVID-19
pandemic – us included. Thus, in the midst of so many losses, Ruben passed away; however,
he left us a work as extensive and dense as his capacity to instigate. His life is still a source
of inspiration for several generations of researchers, professionals, and activists in the
field of HIV/AIDS, and certainly among those who came here to contribute to this issue.
In 40 years of the AIDS epidemic, the social impact of the epidemic in the first decades
was a central guideline for AIDS policy in the country, which became known as ‘the
Brazilian response to HIV/AIDS’. Today, vulnerabilities still experienced by PLWHA,
such as stigma, discrimination, inequity and social exclusion, continue to be challenges
to their care, hindering access to care and compromising its quality.
Considering the equity of the health system, understanding and meeting the needs of
subjects and social groups, and building care practices capable of opposing the processes
of vulnerability experienced, require us to analyze the characteristics of the epidemic,
the policies and health care offered, and the setbacks in achievements in the response to
the HIV/AIDS epidemic, understood as the emphasis on biomedicalization and the aban-
donment of the perspective of human rights4. It is also important to include in the debate
the impact of the intensification of inequalities in the distribution of new cases around
the world, the implications of the resurgence of conservatism, authoritarianism, deadly
political affections, and the intensification of neoliberalism in the face of its own crises.
To this scenario, we can also add the several impacts from the pandemic of the COVID-19,
which, in the years 2020 and 2021, were felt in all areas involving HIV/AIDS care, from
the decrease in the demand for diagnostic tests to the greater spacing of consultations
and the difficulty of access to care by PLWHA. Although these are problems that cross the
entire country, the singularities of each regional and local context also acquire relevance
in the way the AIDS epidemic takes shape and is faced in the various territories.
In order to reflect more deeply on the complexities of the current context, we propo-
sed this thematic issue, which has as its main motto the reflection and dissemination of
studies on care policies and practices from an interdisciplinary perspective. However,
just like integrality, care is also a polysemic term5, and it is an object of attention not
only in the field of collective health, but also in several other fields of knowledge, such
as psychology, nursing, philosophy, and the social sciences6. When we talk about care,
we can look at health systems and services, observing how the relationships among the
various subjects in the practice of health care (managers, professionals, users) occur in
their different levels, or we can include support networks and the daily organization of
care within families, neighborhoods, communities, and movements. When it comes to
HIV/AIDS, talking about care implies taking into consideration the historical record,
the importance of solidarity and welcoming within the most affected communities at the
beginning of the pandemic, and the current moment in which chronicity imposes new
challenges for individual and collective management of the infection, while changes in
the field of prevention open differentiated possibilities and challenges for different social
groups. It is also about the importance of the hidden work and its gender dimension, the
affections and moralities involved in the care relationships, as well as its emancipatory
possibilities7. Based on this interdisciplinary – as well as intersectional, intergenerational,
and intersectoral – approach, we thought of a set of questions that we hoped to address
through the publication of this issue:
What is care in HIV/AIDS? In what spaces is care produced? Which actors are part of
this construct? How has HIV/AIDS care been produced in different Brazilian contexts?
How does it relate to people’s access to health networks and services? What social markers
and axes of analysis are important in an analysis of care in HIV/AIDS? (Gender? Sexual
identity and orientation? Class? Color/race/ethnicity? Religion? Age? Body? Sexuality?
Technology? Management? Work processes? Others?) What/how do policies entail HIV/
AIDS care? How do the experiences of people/subjects/individuals/users/patients arti-
culate themselves in these threads?
Similarly, the article ‘Sexuality, sociability, work, and HIV prevention among vulnerable
populations during the COVID-19 pandemic’, authored by Carla Rocha Pereira, Marly
Marques da Cruz, and Vanda Lúcia Costa, addresses the impact of COVID-19 on the access
of Men who have Sex with Men (MSM) and transgender women to HIV prevention te-
chnologies in Curitiba/PR. The data discussed in the article comes from qualitative research
with semi-structured virtual interviews and also addresses issues related to sexual practices,
sociability and work in the pandemic context.
‘The suffering of women living with HIV and inner love as a revolutionary practice’, by
Eliane Oliveira de Andrade Paquiela, Eluana Borges Leitão de Figueiredo, Marcela Pimenta
Guimarães Muniz and Ana Lúcia Abrahão, discusses the effects of stigma associated with HIV,
using Federici’s loneliness and bell hooks’ inner love as categories of analysis. The analysis of
the narratives of a group of women allows us to reflect on the need for care by health profes-
sionals and to consider listening to the suffering experienced by them. In the sequence, the
article ‘Leather on leather’: men with homosexual practices and HIV prevention in the Recife
Metropolitan Region’, written by Luís Felipe Rios, Karla Galvão Adrião, Amanda Albuquerque
and Amanda França Pereira, addresses the sexual practices and HIV prevention in MSM circuits
in the Metropolitan Region of Recife. With a quanti-qualitative methodology, the article gives
visibility to regimes of pleasure dissident from heterosexuality and presents paths for possible
preventive actions that incorporate these practices and their meanings for the researched group.
Although the research was conducted in a combined pre-prevention period (in 2016 and 2017),
the results dialogue with the current context of the epidemic and bring up issues often hidden
in hegemonic discourses linked to prevention.
The article ‘Travesti sisterhood is our cure’: sisterhood among travestis e and transgender
women in accessing health care and HIV prevention’, by Aureliano Lopes da Silva Júnior,
Mauro Brigeiro and Simone Monteiro, discusses the strategies for access to public health
services and HIV prevention developed by transvestites and trans women in the metropolitan
region of Rio de Janeiro. The article emphasizes the responses generated by the group in the
face of imposed human rights violations and presents us the agency of transvestites and trans
women as a way to face the barriers of access to health care, building a strong network of
solidarity – sisterhood – in which mediates the relationship with the territory, health devices
and experience with HIV/AIDS.
The generational discussion stands out in the texts from different perspectives. Aiming to
contribute to the understanding of new forms of activism in HIV/AIDS that emerged in the
decade of 2010 in Brazil and its relationship with processes of subjectivation and construction of
informal care networks, Pisci Bruja Garcia de Oliveira and Júlio Assis Simões analyze, in the text
‘Sexual politics and HIV/AIDS activism: the experience of Loka de Efavirenz’, how participants
of this collective (female) perceive, experience and face the effects of HIV/AIDS in their daily
lives. The analysis unveils the intertwining of stigma with the social markers of gender, race and
class. In the sequence, the article ‘Young women born with HIV: communication of seropositivity
to partners’ gathered the researchers Clarissa Bohrer da Silva, Maria da Graça Corso da Motta,
Renata Bellenzani, Crhis Netto de Brum, and Aline Cammarano Ribeiro, who, from an analysis
based on the vulnerability and human rights frameworks, discuss the communication of the
HIV status to partners and claim for care and support practices in intersubjective and structural
contexts. Finally, the authors of the article ‘Frontline health professionals’ perceptions about
HIV and youth’ – Maria Izabel Sanches Costa, Gabriela Lotta, Juliana Rocha Miranda, Laura
Cavalcanti Salatino, Elisabete Agrela, Maria Cristina Franceschini, and Marco Akerman – aim
to understand how professionals from specialized and primary care operate with categories of
risk behavior and youth in an institutional context of ambiguity in protocols and problematize
if such perceptions are in line with public policies.
The biomedical technologies appear in two articles that address ‘sexual PEP’ as a care
strategy, allowing us to contrast the strategy in different regions. In ‘If you drink, do not have
sex’: questioning the discourses in the offer of Post-Exposure Prophylaxis (PEP)’, Willian
Nathanael Cartelli de Paula and Gustavo Zambenedetti problematize the power relations
from the discourses and knowledge of health professionals who work with the effectiveness of
sexual PEP in a medium-sized city in the central region of Paraná, concluding the importance
of qualifying access to sexual PEP and affirming it as a practice of freedom. Sandra Filgueiras,
in turn, in ‘Post-sexual Exposure Prophylaxis in the Unified Health System: possible cares in
HIV prevention’, analyzes, in the light of integrality, the ways of applying sexual PEP in a public
health service, reflecting on challenges to be faced, so that the search for prophylaxis is a care
device, which ensures access to preventive technologies, from informed choices, according to
the needs of people at different times and contexts of their lives.
Finalizing the articles section, the care for people with HIV/AIDS deprived of freedom is
the highlight of the text ‘Construction and validation of an instrument to assess the care for
prisoners living with HIV/AIDS’, by Fernando Henrique Apolinario, Silvia Justina Papini, and
Wilza Carla Spiri. This is a methodological development study with the objective of building
and validating indicators for health care, based on five dimensions: Physical Structure; Human
Resources; Work Process Organization; Health Records; and Treatment Adherence.
The thematic issue is also composed by five essays that dialogue in a strong way with (varied)
concepts of care. In ‘Vulnerability, Care, and integrality: conceptual reconstructions and current
challenges for HIV/AIDS care policies and practices’, José Ricardo Ayres analyzes the challenges
of the response to AIDS in the current sociopolitical scenario, mapping logics and technologies
in dispute (including in the field of prevention), as well as conceptual reconstructions necessary
for the new moment. In a convergent way, ‘Remaking HIV prevention in the 5th decade of the
epidemic: lessons from the social history of AIDS’, written by Gabriela Junqueira Calazans,
Richard Parker and Veriano Terto Jr., analyzes the challenges and responses to AIDS in its 40
years. From the history in the field of prevention, the authors suggest priorities for prevention
in the coming 5th decade, present ethical-political principles that were the basis for successful
responses to AIDS in Brazil, pointing ways to, as they wrote, ‘reimagine prevention’. Focusing
on old challenges, ‘Biopolitical government of AIDS: the homosexuality as a social dangerou-
sness’, Luiz Barp, Myriam Mitjavila, and Diego Diz Ferreira reconstruct homosexuality in
light of the notion of biopolitics (precisely the management of sexuality), problematizing the
representation of danger (linked to sexual practices) that is attributed to it as well as possible
updates in current care devices.
The biographical perspective can be seen strongly in the final essays. ‘Memory and experience
with children and young people living with HIV/AIDS: an autoethnographic essay’, authored
by Mariana de Queiroz Rocha Darmont and Martha Cistina Nunes Moreira, proposes autoe-
thnography as a method in dialogue with the anthropology of emotions, allowing the authors
to revisit the field of care, relationships and practice in a critical and reflective perspective.
In turn, ‘An essay on the chronicity of living with HIV/AIDS in childhood, adolescence, and
youth’ collects reflections resulting from two decades of research and performance in the field
of HIV/AIDS by three authors: Claudia Cunha, Marcelo Maciel and Martha Cistina Nunes
Moreira. Based on the notions of experience, memory, and disturbance, the essay discusses the
chronicity of living with HIV/AIDS for children, adolescents, and youth, with attention to the
vulnerabilities and limitations in the circulation and affections of daily life.
The thematic issue also brings an Experience Report written by Daniele Souza, Carla Pereira,
and Juan Raxach, who present the book ‘What if it was with you? Lived Stories of Stigma and
Discrimination in 40 Years of HIV/AIDS’, a publication of Brazilian Interdisciplinary AIDS
Association (ABIA) that brings together moving accounts, in short story form, of ten subjects
directly affected by HIV/AIDS. Its intention is to stimulate solidarity with this group, addressing
the challenges of moral judgment, transphobia, LGBTQIA+ violence, empowerment, among
others, but also bringing stories of reinvention of life itself.
We end this thematic issue with the interview ‘HIV/AIDS Policies, Activism, and Anthropology:
A talk with Richard Parker’, in which participated, besides the interviewee, Mónica Franch,
Luziana Silva, Geissy Reis, Marcos Carvalho and Vagner Almeida. Richard Parker is an anthro-
pologist and activist who is one of the central actors in the Brazilian response to the HIV/AIDS
epidemic. In the interview, the interviewee talks about his trajectory as an anthropologist and
his approach to the theme of AIDS, as an activist and researcher. In parallel, he reflects on the
40 years of the epidemic, emphasizing the achievements and challenges in its confrontation
and denouncing the accelerated dismantling suffered by policies and services aimed at HIV
and AIDS in recent years. The reflection on the lessons learned along this path inspires us and
calls us to produce new forms of resistance.
This thematic issue celebrates the maintenance of the agenda of studies and interventions
on the theme of HIV/AIDS in a conjuncture that was very unfavorable to it. We hope that this
publication contributes as another inspiring instrument for the care practices of PLHA, as
well as for the policies that support them in the perspective of equity, health promotion and
defense of life, in a scenario of resumption of a more democratic life in the face of setbacks
and violation in recent times. It is appropriate to register that we started the production of this
thematic issue in a moment of threat to democracy and science, and that this project, with all
the developments it has had, including the production of this collection, has fed us and con-
tributed to our daily resistances for many times. We finalize the process after the presidential
elections that elected Luiz Inácio Lula da Silva President of the Republic, and in this current
conjuncture we place hope and expectations for more investments in the health area, in the
resumption of the participation of organized civil society, in the resources for universities,
in the production of knowledge driven to the reconstruction and resumption of the sanitary
reform project. To publish it in the journal of the Brazilian Center for Health Studies (CEBES)
is, for us, a reason for immense joy.
Acknowledgements
The production process of this thematic issue involved not only editors and authors but also a large
group of invited referees who contributed with opinions that subsidized the selection of texts presented
here. We would also like to thank Katia Ovídia José de Souza who collaborated in assisting the editors.
Financing
Research Incentive Project – PIP III – of the Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança
e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, within the scope of the project
O ‘cuidado’ às PVHA na rede de atenção à saúde (Care for PLWHA in the health care network),
coordinated by Ivia Maksud and Eduardo Melo.
Collaborators
Maksud I (0000-0002-3465-151X)*, Damião JJ (0000-0001-6591-3474)*, Franch-Gutiérrez
M (0000-0003-3845-3841)*, Rocha F (0000-0002-5500-7061)*, Filgueiras SL (0000-0003-
2971-734X)*, Gouvêa MV (0000-0002-6552-8004)*, and Melo E (0000-0001-5881-4849)* have
equally contributed for the elaboration of this manuscript.
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pio do Rio de Janeiro. In: Anais do Seminário Coro 3(11):11-19.
de Vozes numa teia de significados: sobre o cuidado
às pessoas vivendo com HIV/AIDS na rede de aten- 7. Barros N. Cuidado emancipador. Saúde Soc. 2021;
Fatima Rocha1, Eduardo Melo1,2, Rafael Agostini3, Ana Carolina Maia4, Ivia Maksud5
DOI: 10.1590/0103-11042022E701
RESUMO A interação entre Atenção Primária à Saúde (APS) e especializada é tão relevante quanto crítica.
O cuidado às Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA), que era realizado em ambulatórios especializados,
recentemente, passou a se dar também pela APS, considerando seu potencial de ampliar o acesso. A partir
de estudo de caso realizado em uma região municipal do Rio de Janeiro entre 2018 e 2019, discutiu-se
tal problemática, destacando como resultados: desconhecimento/hesitação dos profissionais da atenção
especializada sobre a atenção básica quanto à sua capacidade de cuidar das PVHA; priorização de inves-
timento material, simbólico e político na atenção básica; quase inexistência de canais de diálogo entre
serviços; entre outros. Na experiência estudada, a interface entre APS e atenção especializada tem se dado
mais em uma lógica binária e de isolamento que em uma perspectiva de interação e gestão (compartilhada)
do cuidado, que seria esperada em uma conformação de rede de atenção. Apesar dos potenciais ganhos
de acesso e ‘racionalização’ do uso do especialista (infectologista), tais resultados indicam a necessidade
de fortalecer processos e mecanismos de comunicação e interação entre profissionais de diferentes
tipos de serviços, além de dispositivos de coordenação dos cuidados, como apoio matricial e prontuário
eletrônico integrado em rede.
1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional PALAVRAS-CHAVE Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Colaboração intersetorial. Atenção
de Saúde Pública Sergio secundária à saúde. Atenção Primária à Saúde. Assistência integral à saúde.
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
fatimrocha@gmail.com ABSTRACT The interaction between Primary Health Care (PHC) and specialized care is as relevant as it is
critical. The care for people living with HIV/AIDS (PLWHA), carried out in specialized outpatient clinics,
2 Universidade Federal
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 19-30, DEZ 2022
20 Rocha F, Melo E, Agostini R, Maia AC, Maksud I
rua; 2 equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da do Rio de Janeiro, como em outras regiões do
Família (Nasf ); e 1 Policlínica Especializada15. estado, a rede de saúde sempre foi bastante
O universo da investigação foi delimitado a heterogênea, os SAE tiveram capacidade de
um dos SAE e a duas unidades da APS nas quais resolutividade distintas e com diversas mode-
havia, à época, 13 das 75 Equipes de Saúde da lagens e as especialidades médicas contavam,
Família (EqSF). A área selecionada possui o em alguns territórios, com infectologistas para
maior número de infectologistas da cidade provimento desse cuidado.
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Na segunda década do ano 2000, a APS,
Foram realizadas: observação participante nas orientada pela proposta da Estratégia Saúde
unidades, entrevistas formais e informais com da Família (ESF), apresentou-se como lócus
profissionais de saúde e gestores dos serviços, de referência para implantação desse pro-
bem como grupo focal que reuniu Médicos de cesso a partir da capilaridade de suas ações
Família e Comunidade (MFC) e infectologistas. e proximidade com os territórios. A rede se
A pesquisa produziu cerca de 80 entrevistas, reorganizou tendo a APS como sua coorde-
entre as individuais e as grupais, que foram nadora e como a porta de entrada do cuidado
gravadas e transcritas. A análise foi pautada à saúde das PVHA. Cada Coordenação de
por referenciais teóricos sobre redes, gestão Área Programática possui como referência
do cuidado e integralidade. Os dados produ- um centro especializado em HIV/Aids16, e
zidos foram organizados segundo as seguintes as unidades de APS estão preparadas para
dimensões: a) os significados dos pontos da o diagnóstico e o monitoramento dos casos
RAS sob diferentes perspectivas; e b) a (contra) assintomáticos, com a dispensação de medica-
referência como quimera: vazio de interação mentos e a coleta de exames específicos para
no cuidado às PVHA. o HIV – notadamente a carga viral e a conta-
A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de gem de CD4 – podendo ser feitos nas próprias
Ética em Pesquisa da instituição proponente unidades de APS ou em serviços próximos17.
e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Com a priorização da APS na década ante-
Janeiro sob pareceres de número 2.309.404 e rior, as unidades especializadas, que já vinham
2.559.884 respectivamente. de experiências de estagnação e esvaziamento
histórico18, mantiveram seu ciclo de baixos
investimentos. Durante o trabalho de campo,
Resultados e discussão observou-se que, na contramão do movimento
de expansão da APS, no âmbito do SAE, os ser-
Para compreender o modelo atual de atenção viços atravessaram processo de desvalorização,
em HIV/Aids no município do Rio de Janeiro como infraestrutura precária e diminuição de
e os imbricamentos da área especializada com profissionais.
a APS, vale contextualizar que o cuidado às Conforme dados da gerência do programa
PVHA foi centralizado inicialmente nos municipal de HIV/Aids do Rio de Janeiro, 50%
centros de referência dos hospitais universi- das PVHA do município eram acompanhadas
tários, cujo principal desafio era a ampliação na APS. Com efeito, mesmo diante da dimi-
da oferta de internação aos pacientes. A espe- nuição dos especialistas do SAE, o tempo de
cialidade de infectologia, tradicional nessas espera para a infectologia vem sendo reduzido;
unidades de saúde, assumiu predominante- e, com frequência, os profissionais da APS
mente a clínica desses usuários. Nos anos de relatam a facilidade para a realização do agen-
1990, os antigos Centros Municipais de Saúde damento para infectologia, por vezes, para a
(CMS) passaram a ofertar consultas às PVHA mesma semana. A demora para conseguir uma
em um modelo de ação programática com marcação de consulta com infectologista que
médicos infectologistas nos SAE. Na cidade imperava antes da descentralização – e que foi
apresentada pela gestão municipal como uma barreiras significativas à interface entre os
das principais razões que a ensejaram – parece serviços de APS e SAE no que tange ao cuidado
ter sido superada. das PVHA.
No entanto, se o acesso ao infectologista Na atenção especializada, observou-se, ini-
parece ser bastante trivial quando se faz ne- cialmente, uma certa nostalgia sobre o passado
cessário, o acesso a algumas especialidades e a desse serviço em termos do protagonismo
exames complementares, como, por exemplo, desempenhado no início da epidemia de HIV.
oftalmologia e endoscopia digestiva, consti- Sobre o presente, há um isolamento em relação
tuem gargalos importantes na rede de saúde. aos outros serviços de saúde e um descon-
Isso vale também para as internações, como tentamento elaborado em termos de certo
destaca uma das MFC: abandono da gestão municipal nos últimos
anos e, também, da perda de autonomia – in-
falta muito na questão hospitalar, sempre que eu clusive sobre a própria agenda e sobre acesso
tenho um paciente que está com debilidade [...] – a recursos assistenciais – e pouca valorização,
já tá fazendo não só HIV, mas Aids mesmo – e eu quando comparado à APS, que agora, similar-
preciso de uma internação, eu tenho dificuldade. mente, passou a ‘ficar com os pacientes’ que
antes seriam apenas da atenção especializada.
O arranjo institucional para garantir esses Tendem a duvidar, da mesma forma, da capa-
encaminhamentos passa pela regulação do cidade da APS, vista como ‘o postinho’ que lida
acesso em sistema informatizado, operada a com distintos públicos e problemas de saúde
partir da APS. Em termos formais, na atenção e, agora, também com HIV.
especializada, pode-se apenas solicitar con- A necessidade dos infectologistas de orien-
sultas de retornos. tar os usuários a buscarem a APS para ter
acesso a exames e aos demais especialistas
solicitados é vista como burocratização e certo
Os significados da RAS sob desrespeito ao seu saber. Uma das entrevista-
diferentes perspectivas das no SAE formula a ideia de que o cuidado
no serviço especializado é mais integral do
A concepção de rede tem sido abordada que na APS:
por autores a partir de diferentes sentidos.
Cecílio19 propõe que a imagem de uma pirâ- [...] sei lá, acho que a gente, aqui [SAE], tem uma
mide para representar os níveis de atenção da compreensão maior do que é saúde integral. Penso
rede de saúde seja substituída pela imagem de isso. E, lá [na APS], eu acho que fica uma coisa
um círculo, que comporte múltiplas portas de bem mais fragmentada.
entrada e centre sua governança nas neces-
sidades dos usuários. Mendes3 aponta para Esse olhar encontra eco em algumas análi-
uma noção de redes como sistemas menos ses que ressaltam que a inflexão do modelo de
centralizados, tendo na APS o centro de co- atenção às PVHA para a APS pode ter limites
municação privilegiado e a ampla participação importantes no cuidado integral com difi-
social. Merhy20 oferta a noção de ‘redes vivas’, culdades na articulação técnica do trabalho,
tendo como centro a perspectiva dos usuários diferentemente do SAE que foi concebido para
nos seus movimentos de produção de vida e atuar na lógica da clínica ampliada em termos
colocando em xeque qualquer lógica de redes do HIV21,22.
pensada em perspectivas racionalizadoras. Em Apesar do processo de precarização do
maior ou menor grau, tais ideias ainda não se SAE, a equipe multiprofissional permanece
refletem nos olhares e nas experiências dos no serviço, com ofertas de cuidado além das
trabalhadores entrevistados, evidenciando consultas médicas, porém com diminuição da
integração entre os profissionais. Outro dado APS é considerada por eles como tendo alta capa-
é que a maioria dos profissionais da atenção cidade resolutiva e abordagem integral, centrada
especializada entrevistados não conhecia na pessoa. Em alguns casos, ponderaram que
pessoalmente as unidades de APS da região. seria uma quebra de vínculo encaminhar para o
Por sua vez, a fala de uma profissional na especialista. Até mesmo situações com indicação
função de gestão expressa o poder dos infec- clara para encaminhamento continuaram sob
tologistas: “o HIV [diferentemente de outras cuidados do MFC, seja pela fragmentação do
doenças]... é um agravo [deles]”. Não menos manejo na atenção especializada, seja por consi-
importante foi a menção que ela faz a uma derar que o encaminhamento para outro serviço
rede específica de infectologistas, atuando comprometeria a continuidade do cuidado: “a
em diferentes serviços e com forte articulação gente segurou na mão na hora que estava chorando,
entre si: a gente vai mandar pro especialista esse cara?
ah, nossa. Eu sou meio possessivo com os meus
[...] eles são quase que sempre os mesmos, são pacientes”, como expressa um MFC.
muitos, que você sempre ouve falar... são pessoas Alguns MFC se referem aos especialistas,
que tem o saber consistente com relação ao HIV, incluindo os infectologistas, como ‘especialis-
que acompanharam a epidemia desde o seu tas focais’, identificados como
começo.
[...] um profissional, que eu considero super capa-
Historicamente, os infectologistas contri- citado, tinha resposta técnicas pra todas as minhas
buíram para o direito ao acesso à saúde com dúvidas técnicas, que é o que a gente espera de
padrão de qualidade como um bem inalienável um especialista focal.
das PVHA e com o reconhecimento do serviço
simbolizado pela marca de respeito, escuta e Essa denominação é usada para diferenciá-
experiência para com as populações vulnera- -los de si, os ‘especialistas em gente’, prati-
bilizadas que o acessam mais. Nesse processo, cando uma medicina integral e a quem cabe,
legitimaram-se e tentam assegurar para si o por isso, a coordenação do cuidado24. Se tal
domínio do cuidado no campo ao HIV/Aids. expressão pode, é verdade, ter uma conotação
Cabe, no entanto, observar a ausência de pejorativa que desqualifica, a priori, os especia-
arranjos institucionais que pudessem articular listas e ilustra um entendimento instrumental
os pontos de atenção23 na busca de um cuidado da relação, é preciso reconhecer também que
integral às PVHA. Além disso, como já obser- isso se dá na esteira de uma busca dos MFC por
vado, o contato entre os SAE e a APS fica mais legitimação e reconhecimento perante uma
concentrado no processo de regulação, o que concepção dominante entre os demais espe-
faz com que a APS – responsável por inserir cialistas de que estes seriam ‘apenas’ médicos
solicitações no Sisreg – acabe sendo vista como generalistas, os ‘médicos do postinho’.
mera transcritora de exames, ainda que fluxos Por outro lado, um dos MFC enfrenta a
informais para acesso a exame ou especialista dicotomia e afirma que: “a gente usa o termo
por fora do sistema, às vezes facilitados por especialista focal, mas a gente [médicos] é espe-
relações de proximidade, tenham sido men- cialista em construir o vínculo, [mas] não quer
cionados pelos interlocutores. dizer que todo mundo vai conseguir”. Assim
Na APS, por sua vez, especialmente na unidade como os MFC por vezes observam os infec-
com mais especialistas em MFC e onde há uma tologistas com certa suspeição, o trabalho dos
residência médica nessa área, observou-se que, médicos de família parece ser desconhecido
para a maioria dos MFC, ‘dar conta’ dos usuários por alguns especialistas que atuam na atenção
com HIV é quase uma questão de honra, pois a especializada:
Medicina de Família de Comunidade praticada na
Eu não fui formada na época de clínica da família, mútuo, alteridade e novos pactos, tanto entre
eu não tenho muita noção da abrangência de vocês. trabalhadores quanto entre gestores dos servi-
Em vez do que você falou de ficar encaminhando ços, operando em dimensões subjetivas, sim-
para cardiologista, vou encaminhar direto para a bólicas, operacionais e nas relações de poder e
clínica da família. saber. A colocação do usuário ‘no centro’ pode
ser, nesse sentido, uma boa direção.
É interessante notar que atores de ambos
os tipos de serviços dizem fazer uma atenção
mais integral do que o outro. Sobre isso, em A (contra)referência como
que pese haver diferenças de ofertas e de quimera: vazio de interação
práticas de cuidado entre esses serviços,
nenhum deles (primário e especializado) é
no cuidado às PVHA
capaz de garantir atenção integral sozinho;
não se a integralidade for pensada a partir das A integração e a continuidade dos cuidados
diferentes necessidades de saúde, como ter entre serviços e profissionais de saúde têm sido
boas condições de vida, acesso a tecnologias, pensadas na literatura em diferentes âmbitos,
vínculo com profissionais, autonomia e direito como, por exemplo, o trabalho interprofissio-
à diferença25 ou, ainda, a partir de dimensões nal31, o compartilhamento de informações clí-
como práticas profissionais, organização dos nicas por meio de instrumentos eletrônicos32,
serviços e políticas públicas26; ao passo que a protocolização de condutas e fluxos33, as
ambos – SAE e APS – podem ser fundamentais práticas matriciais de interação entre respon-
para construir uma atenção o mais abrangente sáveis pelo cuidado direto e especialistas ou
possível se articulados em rede27. consultores6 e as práticas colaborativas34. Ao
De fato, pareceu que o SAE, pela história explorar tais tópicos no curso da pesquisa,
e experiência, tem, além da competência constatou-se que, na esteira da descentraliza-
clínica especializada, mais ofertas grupais ção, cada um deles é atravessado por tensões,
relativas ao viver com HIV e maior capaci- ainda que de modo heterogêneo.
dade de ‘manejo’ com a diversidade sexual Do ponto de vista da composição do trabalho
enquanto a APS parece ter na facilidade de em equipe, as duas unidades de APS estudadas
acesso (pela proximidade geográfica) e na atuavam com médicos, enfermeiros, técnicos
maior compreensão minuciosa das condições de enfermagem e agentes comunitários de
de vida das pessoas (pela inserção territo- saúde. Nenhuma das duas, todavia, contava
rial) uma grande potência. A própria noção de com suporte de Nasf, embora ambas tenham
linha de cuidado tem sido pensada justamente desenvolvido estratégias para lidar com isso. Em
como caminho percorrido pelo usuário para uma delas, que funciona como APS tradicional,
a satisfação de necessidades, ‘consumindo’ a gerente organizou com os especialistas do
diferentes tipos de ofertas (da prevenção à serviço o que chamou de um ‘Nasf improvisa-
reabilitação) e transversalizando diferentes do’ para dar retaguarda às EqSF; a outra, que
serviços se necessário28,29. se configura como saúde da família modelo
Assim, parece haver, na experiência estu- A – apenas com a equipe da ESF –, funcionava
dada, importante fragilidade nesse sentido, como campo de estágio da graduação e da re-
predominando uma lógica dicotômica, con- sidência em MFC por meio de parceria com a
correncial e distanciada ao invés de uma lógica Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que
colaborativa e de aproximação30. A mudança garantia matriciamento em algumas especia-
desse quadro, se for desejada, parece requerer lidades oferecidas pela universidade.
atenção aos seus condicionantes, bem como Em ambas, perceberam-se também des-
iniciativas capazes de produzir conhecimento contentamentos de profissionais de diferentes
categorias com os raros casos de especialis- do termo, seja pela própria natureza desse
tas – infectologistas ou não – que devolvem a procedimento, fazendo dele uma evocação
chamada guia de ‘referência e contrarreferên- que quase nunca se realiza19,38.
cia’ respondida para a APS. É frequente, como O manejo clínico de PVHA tem especificida-
afirmou um entrevistado, o envio de des, inclusive no que se refere a medicamentos,
que podem gerar dúvida nos médicos da APS,
carta pedindo algumas considerações, algumas apesar da existência de protocolos clínicos que
ideias, tentar vincular com esse médico e criar um são frequentemente acessados por eles. Isso
link para conversar e expondo quais são as dúvidas, gera insegurança ou mesmo condutas inapro-
o que está gerando angústia, [o] porquê eu estou priadas nos profissionais não habituados a
encaminhando essa pessoa, [o] porquê quero que manejar determinados tipos de antirretrovirais
ele avalie [e] o que eu preciso de ajuda. ou comorbidades em uma PVHA. Até mesmo
os usuários acompanhados pelo infectologista
Apesar disso, é recorrente (com variações podem precisar da APS para tratar de outros
de acordo com a especialidade, o serviço e o problemas de saúde. Na descentralização do
próprio profissional) que recebam apenas um acompanhamento, portanto, é muito relevante
papel em branco de modo que fique a cargo do a existência de canais por meio dos quais os
próprio usuário relatar como foi a consulta, o profissionais tenham a possibilidade de dis-
que foi realizado nela e, principalmente, quais cutir dúvidas, casos, condutas.
os próximos passos na visão do especialista. Uma MFC narra que encaminha, com fe-
Além das falas que apontam tal problema, licidade, as PVHA que atende para a infec-
observou-se que o prontuário eletrônico uti- tologia, já que considera reconfortante ter a
lizado na APS não era acessado pelos especia- retaguarda do especialista em casos que “não
listas (estes sequer dispunham de computador obteve resposta, não melhorou carga viral, [...] de
nos consultórios), e que os prontuários escritos repente não se adapta à medicação, eu não vou
dos especialistas não eram vistos pelos MFC. fazer esquemas alternativos”. A médica relata
Teve-se a impressão de que o Sisreg se consti- também que, muitas vezes, o encaminhamento
tuiu na única interface de informações clínicas é uma demanda do paciente.
utilizada, mas apenas nos casos encaminhados Isto torna ainda mais delicada a situação que
para a atenção especializada e, mesmo assim, se encontra no campo, pois, em entrevistas com
sem a possibilidade de troca de informações profissionais de ambos os tipos de serviços,
entre os profissionais dos diferentes serviços essa interação parecia não existir. Ademais,
por meio dessa ferramenta. sequer a possibilidade de contato telefônico
Historicamente, é necessário reconhecer ou por e-mail foi mencionada. Percebeu-se
que o SUS produziu e produz uma haver apenas capacitações eventuais sobre
HIV para a APS, mesmo assim sem a presença
tensão constitutiva entre atenção básica e dos infectologistas dos serviços de referência,
especializada, já que, por um lado, a atenção mas somente daqueles ligados ao programa
básica requer do apoio da especializada, mas, ou área técnica de HIV/Aids da Secretaria
por outro, não precisa necessariamente trans- Municipal de Saúde.
ferir os cuidados para lá35(356). Um dos MFC, no entanto, relatou uma
experiência de interação com infectologista
Problemas como qualidade das referências considerada positiva, mas em outra região da
e não envio de contrarreferências, entre APS cidade, onde trabalhava anteriormente. No
e atenção especializada, têm sido frequentes caso relatado, pareceu haver um importante
no Brasil36,37, com alguns autores colocando suporte ao MFC, dentro de um arranjo que
em dúvida essas noções, seja pelo desgaste previu a inserção do ‘especialista focal’ no
[...] e a dificuldade que eu vejo em alguns mo- e a regulação de sistema tão complexo demanda
mentos é de o paciente desaparecer, chega num uma forte coordenação e integração entre as dife-
determinado momento que era complexo demais rentes esferas para que a equidade de acesso seja
para eu cuidar, eu preciso do apoio, e aí eu preciso perene. Nesse cenário, o cuidado compartilhado
do apoio. em HIV entre as diversas instâncias não é simples,
necessitando de sintonia entre elas. Entre a in-
tenção e o gesto de ampliar o acesso à rede de
Considerações finais saúde para as PVHA pela APS, é preciso investir
no acolhimento adaptado às suas demandas e
No caso estudado, a interface entre serviços necessidades que fez parte do cuidado dentro
básicos e especializados se expressou preca- do SAE. Por sua vez, é esperado que as áreas
riamente por artifícios materiais, tais como os especializadas atuem como canal efetivo de apoio
protocolos clínicos e o sistema eletrônico de à atenção primária, com papel mais bem definido
regulação do acesso, o Sisreg, operando como da sua responsabilidade sanitária.
referência de conduta técnica e meio por onde Como se verifica, são muitos os desafios
são encaminhados os usuários ao especialis- colocados para a efetivação do cuidado com-
ta. A descentralização do cuidado às PVHA partilhado. As fragilidades descritas na rede
para a APS e a sua interface com a atenção de atenção ao HIV/Aids convocam ao forta-
especializada, na experiência estudada, têm lecimento de uma política pública de saúde
se dado mais em uma lógica binária (entre resolutiva e responsiva. A reconstrução das
alguns profissionais de diferentes serviços) do práticas de saúde para um cuidado efetivamen-
que em uma perspectiva de interação e gestão te integral depende, portanto, da participação
compartilhada do cuidado. dos trabalhadores e dos usuários no processo
As relações entre os diferentes pontos de de construção de um sistema que se aproxime
atenção à saúde (especializada e APS) são mar- do território da vida dos sujeitos.
cadamente hierarquizadas, com valorações dis-
tintas de saberes e poderes, produzindo fraturas,
isolamento e solidão no cuidado gerado nos ser- Colaboradores
viços de saúde. Os critérios técnicos definidos
para o cuidado à saúde das PVHA na APS foram Rocha F (0000-0002-5500-7061)* contribuiu
centrados na lógica biomédica, em que os infec- para concepção e delineamento do estudo,
tologistas ficam responsáveis pelos casos mais coleta e análise dos dados, redação, revisão
graves. Apesar de potenciais ganhos de acesso e crítica do manuscrito e formatação da versão
‘racionalização’ do uso do especialista (infecto- final a ser publicada. Melo E (0000-0001-
logista neste caso), há necessidade de construir 5881-4849)* contribuiu para concepção e
e facilitar processos e mecanismos formais e in- delineamento do estudo, coleta e análise de
formais de comunicação e interação entre pro- dados, redação e revisão crítica do manus-
fissionais desses diferentes serviços. É preciso crito. Agostini R (0000-0001-8071-9362)*
também alargar a compreensão dos trabalhadores contribuiu para concepção e delineamento
sobre o cuidado à saúde que produzem na rede do estudo, coleta e análise dos dados, redação
e a potência de um trabalho horizontal entre os e revisão final do manuscrito. Maia AC (0000-
diversos pontos de atenção; e, sobretudo, que a 0002-4144-0526)* contribuiu para concepção
gestão do cuidado em rede estabeleça arranjos e delineamento do estudo, coleta e análise
institucionais que promovam sua integralidade. de dados e redação de manuscrito. Maksud
Superar a fragmentação sistêmica histórica I (0000-0002-3465-151X)* contribuiu para
em uma rede imensa como a da cidade do Rio interpretação dos dados, edição do texto e *Orcid (Open Researcher
de Janeiro exige um enfrentamento importante, co-coordenação do projeto. s and Contributor ID).
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Recebido em 21/04/2022
Aprovado em 10/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042022E702
ABSTRACT This article aimed to evaluate the implementation of a decentralized care model for People
Living With HIV/AIDS (PLWHA) in the city of Rio de Janeiro, by analyzing the context that enabled it
and the degree of its implementation at the end of the time frame studied (2013-2016). During this period,
infectologist-centered HIV/AIDS care was replaced by one centered in Primary Health Care (PHC), in the
context of strengthening the Family Health Strategy. By interviewing administrators and analyzing secondary
data, we studied the process from city health managers’ viewpoint, described its main characteristics and the
degree to which decentralization measures were implemented. As a result, we observed how national guidelines
1 Secretaria Municipal de influenced the implementation of changes in the municipal PHC structure, especially in the restructuring of
Saúde do Rio de Janeiro
(SMS-RJ) – Rio de Janeiro
HIV care, and the tensions among key players (administrators, PHC doctors, infectologists, and PLWHA).
(RJ), Brasil. Among the characteristics of the new model, increasing healthcare access, enhancing integrality and coordi-
bernardolagoalves@gmail. nation of care were features most commonly cited in the interviews. Finally, the degree of implementation of
com
the decentralization policy was found to be heterogeneous, being more advanced in the fields of prevention,
2 Fundação Oswaldo Cruz diagnosis and access to medication, and less in comprehensive care and coordination of care.
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
KEYWORDS Primary Health Care. Health evaluation. HIV. AIDS.
Janeiro (RJ), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 31-47, DEZ 2022
32 Alves BL, Lago RF, Engstrom EM
Gráfico 1. Realização de testes rápidos para HIV e expansão da cobertura da ESF 2013-16
20000 80,00%
15000 60,00%
10000 40,00%
5000 20,00%
0 0,00%
2013/Jan
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2016/Dez
município tem pelo menos um MFC. Então, eu tenho prescrição de ARV e acompanhamento dos
uma grande quantidade de unidades que, sequer, parâmetros de tratamento.
tem um médico de família. Isso dificulta muito.
E4 – [Os MFC] viam assim, com certa desconfian-
Além disso, foram feitas críticas à pouca ça: – Mais uma coisa que querem que eu faça. Já
carga horária reservada ao cuidado às PVHA faço de A a Z e ainda querem mais isso, paciente
nos programas de residência, além da dis- complicado, paciente não sei o quê.
tância entre o planejamento programático
dos cursos e a gestão, dificultando feedbacks A respeito dos infectologistas, destacaram-
do serviço para o aprimoramento curricular. -se os relatos dos questionamentos éticos sobre
Também foram limitantes a ausência de outras como seria possível garantir o sigilo médico,
ferramentas de apoio assistencial no período, preocupação esta que, segundo entrevistados,
especialmente a inexistência de serviço de sobrepujava considerações de competência
teleconsultoria ou de infectologistas nos clínica dos profissionais da APS.
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf ),
ao contrário das iniciativas contemporâneas E1 – [...] eles [infectologistas] acham que a APS é
de cidades como Curitiba ou Porto Alegre3. um lugar inseguro para o paciente com HIV. Não é
Ao se abordar a rediscussão dos papéis inseguro do ponto de vista biomédico, é inseguro do
assistenciais às PVHA, dois aspectos se des- ponto de vista ético. Eles acham que não há a menor
tacaram: as dificuldades no itinerário entre a condição de se manter o sigilo sobre o diagnóstico.
rede primária e secundária e a percepção de
indefinição dos papéis do médico da APS e Por fim, foram relatadas resistências dos
do infectologista. próprios usuários à redefinição dos papéis
Sobre as dificuldades no itinerário, por um assistenciais. Muitos deles já estariam vincu-
lado, reconheceu-se que havia disponibilidade lados a seus infectologistas, compartilhavam
satisfatória de consultas de infectologistas nos de suas dúvidas sobre sigilo, além de estarem
ambulatórios de especialidades da cidade; por inseguros sobre a capacidade clínica dos pro-
outro, sua distribuição geográfica era desigual, fissionais da APS.
concentrada nas áreas ao centro, sul e norte,
próximas aos hospitais universitários. Esse E5 – Teve uma [usuária] que fez ‘notinha’ [Carta
problema era ainda mais acentuado no caso de do Leitor em jornal], [...], que a gente estava
atendimentos mais específicos em infectologia, entregando pérolas aos porcos. Os pacientes de
como consultas em HIV/Aids para gestantes HIV como pérolas e os porcos como as equipes
ou crianças, localizadas exclusivamente nas de Saúde da Família. [...]. E a gente sabia que ela
regiões mais favorecidas da cidade ou próxi- estava falando exatamente da gente [APS] porque
mas aos centros terciários e, portanto, distantes ela é usuária do programa.
da maior parte da população.
No que se refere às novas atribuições dos A preocupação com a manutenção do sigilo
envolvidos na atenção às PVHA, embora é destacada em outros trabalhos sobre a des-
houvesse definições nas normativas muni- centralização do cuidado ao HIV/Aids para a
cipais, foram identificadas dificuldades na APS24,25, que também apontam a permanência de
aceitação por parte de profissionais da ESF e fortes vínculos com a atenção especializada26. Na
especialistas dessas novas funções. Boa parte relação com os usuários, os entrevistados citaram
dos profissionais da APS, já sobrecarregados entraves na interação com associações de PVHA
com outras atividades, tinham objeções sobre referentes ao sigilo clínico e possíveis prejuízos ao
como conduzir o cuidado às PVHA, principal- seguimento clínico e estabelecimento de vínculo.
mente quanto às ações mais complexas, como Entretanto, os participantes não mencionaram
iniciativas da gestão municipal e/ou local que oferta dos testes, nas entrevistas com gestores
tivessem sido tomadas, à época, para discutir transpareceram ressalvas à capacitação pro-
com usuários as mudanças no modelo de atenção. fissional para a testagem, bem como relatos
de dificuldade de acesso do usuário ao teste
Análise do grau de implantação (horários específicos, ou usuários sendo ‘agen-
dados’ para realização do TR). Dessa forma,
Para realizar a avaliação da implantação da considerou-se que essa dimensão estava par-
descentralização da atenção às PVHA, as in- cialmente implantada.
formações quantitativas e qualitativas foram
sistematizadas e apresentadas em uma matriz ATENÇÃO INTEGRAL
de julgamento, sendo o resultado categorizado
em três gradientes segundo o grau de implan- A expansão da ESF foi selecionada por ex-
tação no ano de 2016, a saber: implantado, pressar o modelo preferencial de constru-
parcialmente implantado ou não implantado. ção da APS pela PNAB15, ratificado no Plano
A matriz considerou as dimensões do modelo Municipal de Saúde do Rio de Janeiro27, e foi
lógico: prevenção, diagnóstico, integralidade, avaliada segundo os critérios da cobertura
assistência farmacêutica e coordenação do populacional (meta estabelecida pelo Plano =
cuidado, apresentadas no quadro 1. 70% da população) e do percentual de equipes
completas. Dados obtidos na Subsecretaria
PREVENÇÃO em 2016 evidenciaram que a cobertura foi de
69,1%, com 99,56% de equipes de ESF com-
A dimensão Prevenção foi analisada segundo pletas, razões pela qual se considerou esse
dois critérios: distribuição de métodos de critério como implantado.
barreira e oferta de Profilaxia Pós-Exposição A qualificação dos médicos na APS munici-
(PEP) ao HIV, ambos normatizados e regu- pal foi também analisada: como dito anterior-
lados pela Carteira de Serviços para a APS mente, a cobertura populacional pela ESF ao
municipal14. O primeiro previa a distribuição fim de 2016 era próxima de 70%. Nessas áreas
de preservativos em 100% das unidades e foi cobertas, pesquisa de 2015 estimou que 48,6%
considerado implantado, tendo em vista o dos médicos nas equipes tinham residência,
relato de gestores e relatórios da SMS-RJ. A sem discriminar o tipo de residência reali-
realização de PEP, também prevista para 100% zada28. Esse número se aproximava do valor
das UBS14, foi considerada implantada em citado em uma das entrevistas. Utilizando-se
função de confirmação pela Gerência de DST/ como referencial a determinação, pela PNAB,
Aids de que todas as unidades contavam com o de que o médico de equipe deve preferencial-
kit medicamentoso para PEP e pela existência mente ter formação na área15, considerou-
de normativas13 para sua realização, acessível -se esse critério parcialmente implantado.
na plataforma da Subsecretaria de Promoção Deve ser lembrado que, segundo dados das
da Saúde Atenção Primária e Vigilância de coordenações dos três maiores programas
Saúde (Subpav). de residência em MFC na cidade do Rio de
Janeiro, a rede municipal contava com 155
DIAGNÓSTICO preceptores ao início de 2017, tornando o MRJ
o maior centro formador dessa especialidade
Esta dimensão foi analisada segundo a nor- no País.
mativa da SMS-RJ14 de que fossem ofertados Foi analisada também a presença de nor-
TR para HIV em todas as unidades de APS. Se, mativas para a linha de cuidado HIV/Aids.
por um lado, os dados da Gerência de DST/ Foram considerados normas técnicas o Guia
Aids mostravam uma cobertura de 100% na de Referência Rápida – Infecção por HIV/Aids
Quadro 1. (cont.)
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pessoas vivendo com HIV na atenção primária à saú-
de: reconfigurações na rede de atenção à saúde? Cad.
Recebido em 23/04/2022
Saúde Pública. 2021; 37(12):e00344120. Aprovado em 14/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
25. Damião JJ, Agostini R, Maksud I, et al. Cuidando de
Pessoas Vivendo com HIV/Aids na Atenção Primá-
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nerabilidades? Saúde debate. 2022; 46(132):163-74.
DOI: 10.1590/0103-11042022E703
RESUMO Desde 2010, vem-se observando um desmonte de políticas na área da saúde e dos direitos
sexuais e reprodutivos. Este artigo objetivou recuperar a memória de intervenções sociais voltadas para
o enfrentamento do HIV/Aids. Para tanto, analisou dois projetos sociais com jovens, desenvolvidos por
organizações governamentais e não governamentais, na década de 2000, na favela da Maré, no Rio de
Janeiro. Trata-se de um estudo socioantropológico que envolveu análise documental e entrevistas com
as coordenadoras dos projetos, visando identificar princípios norteadores, abordagens metodológicas e
lições. Os achados indicam que o trabalho de prevenção ao HIV/Aids considerou as demandas dos(as)
jovens e abordou, de forma participativa, concepções sobre direitos, sexualidade, gênero e vulnerabilidade.
O estímulo à atuação juvenil na produção de intervenções e as parcerias institucionais resultaram em
atividades sobre temas do cotidiano vinculados, direta ou indiretamente, à prevenção ao HIV. Tal enfoque
se contrapõe aos modelos de ação preconcebidos, muitas vezes impostos em contextos de vulnerabilidade
social. Os projetos não estiveram isentos de tensões nas relações adulto vs jovens. Todavia, os desafios
foram narrados a partir de uma perspectiva de aprendizagem, indicando a importância da recuperação
da experiência pela memória, que ajuda a identificar lições aprendidas e a orientar ações futuras.
ABSTRACT Since 2010, there has been a dismantling of sexual and reproductive health and rights. This article
aims to recover the memory of social interventions aimed at fighting HIV/AIDS. To this end, it analyzes
two social projects with young people, developed by governmental and non-governmental organizations in
the 2000s, in the favela of Maré, in Rio de Janeiro. It is a socio-anthropological study that involved desk
review and interviews with the project coordinators, aiming to identify guiding principles, methodological
approaches, and lessons. The findings indicate that the HIV/AIDS prevention work considered the demands
of young people and addressed, in a participatory way, conceptions on rights, sexuality, gender, and vulner-
1 Fundação Oswaldo Cruz ability. The stimulation of youth activities in the production of interventions and institutional partnerships
(Fiocruz) – Rio de Janeiro resulted in activities on everyday topics linked, directly or indirectly, to HIV prevention. This approach is
(RJ), Brasil.
vnfonseca@gmail.com
opposed to preconceived models of action, often imposed in contexts of social vulnerability. The projects
were not exempt from tensions in adult vs. youth relationships. However, the challenges were narrated from
2 Fundação Oswaldo
a learning perspective, indicating the importance of retrieving the experience through memory, which helps
Cruz (Fiocruz), Instituto
Fernandes Figueira (IFF) –
to identify lessons learned and guide future actions.
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
KEYWORDS HIV. Adolescent. Favelas. Community participation.
3 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Instituto
Oswaldo Cruz (IOC) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 48-61, DEZ 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Aids e prevenção: um olhar retrospectivo sobre projetos sociais com jovens no Rio de Janeiro 49
Quadro 1. (cont.)
relacionada com o acolhimento sem julga- heterossexuais, como relatado pelas coorde-
mento de diversas orientações e práticas nadoras dos projetos. Isso não significava a au-
sexuais. A partir de seus relatos, identificou- sência de atenção aos episódios de homofobia
-se a concepção de solidariedade engajada24, entre os participantes. Destaca-se que as situ-
baseada nos direitos humanos e na crítica às ações de discriminação foram abordadas com
desigualdades sociais e aos lugares de poder acolhimento por parte dos/as profissionais do
– o que permitia produzir ajustes necessários projeto, bem como pela aproximação entre
nas práticas reducionistas dos projetos sociais pares, estímulo ao engajamento em movimen-
atravessados pelo contexto neoliberal25. tos relacionados com a diversidade sexual e de
gênero, e atividades que lhes permitissem ex-
Gênero e sexualidade pressar criticamente a violência sofrida, como
o teatro. Era, portanto, no cotidiano das ações,
O debate sobre gênero, na pauta dos direitos a partir dos conflitos e discriminações contra
humanos, foi incorporado pelos dois projetos jovens LGBT (como denominado na primeira
e, possivelmente, influenciado pela extensa metade dos anos 2000), que a abordagem de
literatura da época sobre as consequências gênero se ampliava. Como demonstrado em
das iniquidades entre homens e mulheres nas outras pesquisas, a formação de um grupo
interações afetivo-sexuais e nas condições que tinha em comum situações de discrimi-
de vulnerabilidade ao HIV e demais IST26. nação funcionou como espaço de resistência
No projeto B, cujo objetivo principal era o à opressão e ao preconceito15. O estímulo ao
empoderamento de mulheres jovens, buscava- engajamento dos/as jovens LGBT no enfren-
-se debater o conceito de gênero a partir do tamento da intolerância sofrida igualmente
que era “aprendido, desfeito, refeito” a respeito resultou em organizações e lideranças desse
dos comportamentos masculinos e femini- movimento social.
nos, conforme afirma Coord4. No projeto A,
voltado para a saúde de forma ampla, a crítica Dialogicidade, participação e
às desigualdades de gênero emergiam de forma engajamento juvenil
transversal, no planejamento das atividades,
em que abusos percebidos contra mulheres, Nos dois projetos, o enfrentamento dos obs-
conflitos nos grupos de jovens e desafios à táculos impostos pelo contexto de desigual-
negociação do preservativo com o parceiro dades sociais, marcado por pobreza, racismo,
tornavam o tema inevitável. Desse modo, machismo e homofobia, caracterizava-se por
a abordagem da prevenção não escapava à uma perspectiva ético-política centrada no
análise das condições sociais que a atravessam. estímulo à participação ativa dos/as jovens
Embora ambos os trabalhos incluíssem os na produção de intervenções para seus pares,
homens, o que era inovador até então, na abor- comum a diversos projetos sociais em favelas28.
dagem de gênero dos projetos, as entrevistadas “Era uma época de muita efervescência desses
reconheceram o predomínio de uma perspec- projetos com jovens” (Coord3); “a participação
tiva binária. Tal concepção não incorporava dos/as jovens era um atrativo para angariar
discussões, posteriores à época dos projetos, recursos” (Coord4). Esse enfoque se contra-
questionadoras da noção de gênero como uma põe às abordagens centradas na divulgação
ordem compulsória e constante, que exige de informações, currículos de atividades ou
coerência entre os genitais e os desejos, ao técnicas de intervenção, definidas a priori.
mesmo tempo que produz uma hierarquia A participação aqui é concebida como pers-
entre o masculino e o feminino27. pectiva ético-política por compreender uma
Ainda nessa direção, as ações propostas crítica aos lugares tradicionalmente atribuídos
abordavam predominantemente práticas aos/às jovens, bem como seu engajamento
a ver com sexualidade, [...] mas com uma forma crítico e do entusiasmo para tratar temas do
de perceber a sua comunidade, o seu papel aqui [a dia a dia. À medida que os/as jovens eram
peça], só pelo título, não fazia um juízo de valor, engajados/as na criação de estratégias para a
então eles reconheciam as diferentes populações saúde, eram questionados/as sobre aspectos
da Maré. [...] essa postura conseguiu com que relativos ao seu cotidiano e condição social,
eles tivessem trânsito. [...] Então não era só um ampliando o debate sobre as condições de
conteúdo técnico. Tinha todo um compromisso vulnerabilidade ao HIV. A possibilidade de
realmente com a formação, com a postura desses elaboração e expressão de situações vividas,
jovens. (Coord1). por meio de vários canais, abriu, assim, opor-
tunidade para a experiência, compreendida
O trabalho da ONG local “de valorização aqui como o que acontece com as pessoas, o
da identidade do morador ficou muito forte que as toca32.
pra eles também, de poderem se apresentar Para que a experiência tenha lugar, é ne-
como morador” (Coord1). Ser estimulado/a a cessário parar para pensar, olhar e escutar,
afirmar com orgulho sua origem não era um ou fazê-lo mais devagar32. Portanto, contra-
trabalho pontual; estava ligado ao acesso à riando a necessidade de respostas rápidas e
história de lutas do local, bem como à oferta reducionistas das ações em saúde, o tempo
de ferramentas diversas de expressão, acesso e foi o principal fator na aprendizagem para
problematização dos espaços mais reconheci- a superação dos limites presentes nas ações,
dos socialmente. Tais ações contribuíam para que incluíam abordagens restritivas de gênero,
o enfrentamento da discriminação sofrida por saúde e prevenção de HIV:
jovens oriundos de favelas e, consequente-
mente, para o cuidado com a saúde, tanto pelo O projeto começou muito nessa vertente da sexu-
trânsito facilitado entre os serviços de saúde alidade [...] com uma cara assim de trabalho com
quanto pelo reconhecimento de seus direitos métodos [de prevenção], com DST, com coisas
ou pela motivação em estar bem. muito caretinhas e restritas, e pouco a pouco a
A possibilidade de vínculos com organiza- gente foi percebendo que isso não era o foco prin-
ções de diferentes naturezas dentro da comu- cipal [...] é importante na vida do jovem, mas não
nidade, como ligadas às artes, foi fundamental o retrato do jovem, de tudo que o jovem pensa e
para estimular o interesse e engajar jovens de faz. Eu acho que essa foi uma metodologia que foi
diversos perfis. Ademais, a questão da Aids mostrando isso. [...] Que ser escutado, que planejar
poderia ser abordada por ângulos diversos. junto, avaliar junto, opera muito mais mudanças
[...] que ter uma vivência integral, artística, de
eles tinham acesso a uma formação que não era autoconhecimento, de diálogo com os pares, é
a gente do projeto que oferecia. Foi via parceria. muito mais potente do que qualquer informação.
Então, eles tinham aula de teatro, [...] tinha um Informação aparece, vem. (Coord3).
grupo que trabalhava com maculelê. Então esses
diferentes conteúdos também ajudavam a enrique-
cer os conteúdos da Saúde. (Coord1).
Considerações finais
A partir das redes locais, a saúde pôde ser
abordada por meio de uma perspectiva de Este artigo pretendeu ressaltar as condições
direitos, para além do acesso aos serviços. As que facilitaram a realização dos projetos
ferramentas de expressão e problematização sociais analisados, caracterizadas pelo cenário
da realidade, facilitadas pela articulação com favorável para debates sobre sexualidade
organizações locais, mostraram-se instrumen- juvenil, bem como dos princípios ético-polí-
to potente para a formação do pensamento ticos que possibilitaram escapar das amarras
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Recebido em 30/03/2022
Aprovado em 10/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
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Suporte financeiro: Programa INOVA Fiocruz
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leira; 2008.
DOI: 10.1590/0103-11042022E704
RESUMO O advento da pandemia da Covid-19 restringiu o acesso à prevenção e aos serviços de HIV/
AIDS, ocasionando efeitos nas condições de vida e saúde dos indivíduos. O objetivo foi analisar o acesso de
Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) e mulheres trans/travestis às tecnologias de prevenção do
HIV, suas práticas sexuais, de sociabilidade e de trabalho no contexto da Covid-19 em Curitiba/PR. Foram
realizadas entrevistas semiestruturadas virtuais, e utilizado o referencial conceitual da vulnerabilidade.
A análise foi viabilizada pelo software MaxQDA. Os resultados apontaram que muitos HSH conseguiram
se isolar socialmente, restringindo as parcerias sexuais, alguns perderam o emprego, e a diminuição da
renda girou entre os autônomos ou profissionais liberais. As mulheres trans/travestis profissionais do sexo
tiveram que interromper o isolamento social para retornarem ao trabalho sexual, expondo-se ao novo
coronavírus. A Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) foi utilizada entre aqueles(as) que já estavam em uso. A
oferta da PrEP e da Profilaxia Pós-Exposição (PEP) foram mantidas, mas sofreram mudanças. Os serviços
especializados adequaram o atendimento, mas geraram exposição dos(as) usuários(as) e revelação do status
sorológico. Como conclusão, destaca-se a necessidade de serviços de HIV contínuos em emergências de
saúde pública, entendidos como um direito que deve ser garantido pelo Estado.
ABSTRACT The COVID-19 pandemic has restricted access to HIV/AIDS prevention and services, affecting
individual living and health conditions. We aimed to analyze the access of Men Who Have Sex with Men
(MSM) and transgender women to HIV prevention technologies, their sexual, sociability, and work practices
during the COVID-19 pandemic in Curitiba (PR), Brazil. We implemented virtual semi-structured interviews
and adopted the conceptual framework of vulnerability. The MaxQDA software facilitated the analysis. The
results showed that many MSM managed to isolate themselves socially, restricting sexual partnerships
while some lost their jobs, and income decline revolved among self-employed or freelancers. Female/trans
sex workers had to stop social distancing to return to sex work, exposing themselves to the coronavirus.
Pre-Exposure Prophylaxis (PrEP) was adopted by those already using it. The of PrEP and Post-Exposure
Prophylaxis (PEP) offer was preserved but modified. Specialized services adapted the attendance but gener-
ated users’ exposure and serological status disclosure. In conclusion, we highlight the need for continuous
HIV services in public health emergencies, a State-guaranteed right.
1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional KEYWORDS Disease prevention. HIV. Vulnerability analysis. Sexual and gender minorities. COVID-19.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
carlaperei@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 62-74, DEZ 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Sexualidade, sociabilidade, trabalho e prevenção do HIV entre populações vulneráveis na pandemia da Covid-19 63
tratamento e ‘navegar’ na rede de saúde. As o áudio, e cada pessoa recebeu um código para
entrevistas de Curitiba abarcaram 11 HSH e garantir a confidencialidade. As entrevistas
5 mulheres trans/travestis que eram ou foram foram transcritas, e os trechos, separados em
usuários(as) de PEP e PrEP, além de uma lide- 11 grandes categorias e algumas subcategorias,
rança das mulheres trans/travestis da cidade, mas no artigo será analisada a categoria ‘Covid-
totalizando 17 entrevistas. Foi gravado somente 19 e suas implicações’ (figura 1).
Quadro 1. Perfil sociodemográfico das 17 pessoas entrevistadas para a pesquisa. Curitiba, 2020-2021
Para a análise dos dados, foi utilizado o em função do isolamento social, mas houve
software MaxQDA, que possibilitou a siste- conscientização da sua necessidade para evitar
matização das categorias desenvolvidas. Os a infecção pelo novo coronavírus.
dados foram analisados no bojo do projeto
a partir do campo conceitual da vulnera- [...] quando começou a pandemia, eu acho que
bilidade20,21. A pesquisa foi aprovada pelo eu estava lidando muito bem com tudo isso, como
Comitê de Ética em Pesquisa da Ensp/Fiocruz era um curto período de tempo. Com o passar do
(CAAE: 25761719.6.0000.5240) e da Secretaria tempo, comecei a ficar muito ansioso, assim, por
Municipal de Saúde de Curitiba (CAAE: não ter a opção, né, de ver as pessoas que você
25761719.6.3001.0101). gosta [...] também pela preocupação diante do
número de óbitos, diante da gravidade dos casos,
dos leitos de UTI começarem a ficar lotados. Agora
Resultados e discussão eu acho que eu tô bem de novo, aceitando a situ-
ação [...]. (1GEduardo25).
problemas de saúde mental, sendo preocupan- [...] porque eu pensei assim, poxa vida, não vou
te entre aqueles com pensamentos suicidas22. transar, vou tá aqui na pandemia, recluso, então
No que tange à vulnerabilidade da popula- vou ficar tomando esse remédio aqui [...], mas aí eu
ção LGBTQIA+ durante a pandemia da Covid- pensei, poxa, daqui a pouco vai acabar, daí eu vou
19 no Brasil, houve pesquisas que indicaram ter que retomar, então eu vou continuar tomando
pontos convergentes e relacionados com: o [...]. (2GDanel49).
trabalho e a renda; a saúde física e mental
(abarcando a violência); e a solidariedade, Após os primeiros meses, alguns HSH fle-
vinculada a redes de apoio e ao pertencimento xibilizaram o isolamento e se relacionaram
comunitário6. Uma saída encontrada no país sexualmente com pessoas já conhecidas ou
para auxiliar a saúde mental da população reduziram o número de encontros casuais
LGBTQIA+ foi a realização de atendimento de (por aplicativo de ‘pegação’, como o Grindr).
psicólogos e terapeutas por videoconferência, Conhecer o parceiro sexual ou saber de sua
como o apoio de diversas Organizações Não situação de saúde e confinamento também era
Governamentais (ONGs) que disponibilizaram uma forma de selecionar aqueles com os quais
as redes sociais e o contato por telefone para poderiam se relacionar sexualmente.
auxiliar e receber contribuições6, até mesmo
fornecendo cestas básicas e insumos de pro- [...] ele falou que estava difícil para ele, eu falei,
teção para o novo coronavírus. tá difícil também. Ah, vamos se encontrar, então
Para determinados entrevistados, conse- tá. E ele trabalha com, não é com saúde direta-
guir realizar uma rotina mínima de atividades mente, mas é com ecologia, alguma coisa assim.
também foi uma saída para manter a saúde Então ele tá ligado nos protocolos e tudo mais.
física e mental. Cuidar da alimentação, rea- (8GAdriano29).
lizar exercícios físicos, manter um horário
para acordar e até mesmo reservar um horário Esse achado corrobora as sugestões inter-
específico para o trabalho ajudaram os HSH nacionais de proteção do HIV em tempos de
nos primeiros meses de confinamento. Covid-19, sendo que selecionar os parceiros
sexuais entre os conhecidos e saber sobre o
Então eu comecei a trazer a minha rotina que status de saúde e confinamento, em 2020, era
eu tinha antes de volta para dentro da minha importante para reduzir as possibilidades de
casa, então passei a acordar cedo de novo, passei infecção do novo coronavírus, como recomen-
a começar a fazer os meus treinos em casa, de dado por órgãos internacionais, sobretudo
manhã, e comecei a repetir toda a minha rotina em uma realidade de falta de vacinas para
de antes para dentro de casa [...]. (4GNino34). a imunização11. As relações virtuais foram a
solução para a prevenção da Covid-19 e, con-
sequentemente, do HIV. O uso de sexting e
Implicações sexuais e no trabalho de camming (sexo por vídeo) foi uma forma
segura de atividade sexual durante o distan-
No que se refere ao uso da PrEP, somente um ciamento social e realizado pela população
entrevistado havia deixado de utilizá-la por LGBTQIA+22. Aplicativos de pegação, como
perder uma consulta com o infectologista o Tinder, tiveram aumento no número de
pouco antes do início do afastamento social, acessos em 15% nos Estados Unidos e de
procurando repetidas vezes a PEP em função 25% na Itália e na Espanha, além de conver-
de relações sexuais desprotegidas. Outros até sas de bate-papo ficarem 30% mais longas.
pensaram em parar o uso da PrEP, mas, como Esse tipo de aplicativo, que oferta meios para
acreditavam que em pouco tempo iriam voltar relacionamentos, sejam românticos, sexuais e
a tomar a profilaxia, continuaram com seu uso. interpessoais, também foi e é utilizado como
ferramenta para debater diversos temas, como pudesse proporcionar ou não o distanciamen-
questões de saúde mental22. Dessa forma, é to social a partir das disparidades sociais21.
possível pensar que o uso de aplicativos e de Carrara25, ao abordar o campo das ciências
ferramentas de internet foi uma saída para que sociais na análise da Covid-19, debateu sobre
a população LGBTQIA+ pudesse se relacionar como o confinamento não foi o mesmo para
sexualmente. diversas populações. Em seu artigo, lembrou
No Brasil, faltou o fornecimento de in- de algumas ONGs, de ativistas e de pesqui-
formações sobre métodos de prevenção em sadores que trabalharam a ‘corporificação’
torno das práticas sexuais seguras no contexto das estatísticas no começo da epidemia de
da Covid-1923. Isso ficou a cargo das ONG/ AIDS e que pensaram além da quantidade de
AIDS, que fizeram lives e bate-papos on-line, pessoas infectadas pelo HIV; ressalta-se a im-
como também o desenvolvimento de material portância de pautar os direitos humanos pela
educativo. Como exemplo, destaca-se a car- necessidade do respeito à dignidade da pessoa
tilha desenvolvida pela Associação Brasileira humana como também para a ‘promoção da
Interdisciplinar de AIDS (ABIA), que, além responsabilidade social ante a doença’, sendo
de repassar informações importantes sobre a importante na discussão de epidemias25.
prevenção da Covid-19, ainda indicou medidas Desde o começo da pandemia da Covid-19,
para reduzir o risco do novo coronavírus estudos indicaram que pessoas em países de
durante as relações sexuais24. baixa e média renda sofreram adversidades
A maioria dos entrevistados estava traba- durante esse período, com o aumento das de-
lhando remotamente, apesar de alguns terem sigualdades de saúde e pela infecção do novo
permanecido com os empregos presenciais, coronavírus entre idosos e grupos vulneráveis,
sendo que os autônomos tiveram uma piora na com a necessidade de realizar o rastreamento
situação financeira. Um entrevistado fechou do status socioeconômico e de gênero entre as
sua empresa e outro foi demitido, mas ambos pessoas mais afetadas. Também foi indicado
conseguiram uma recolocação no mercado o aumento das desigualdades e que os países
de trabalho. Houve também mudanças no mais ricos priorizariam a vacinação do seu
mercado de trabalho, impactando negati- próprio povo – o que realmente aconteceu
vamente aqueles cujo salário dependia de –, e lições de resposta ao HIV poderiam ser
comissão (agente de modelos) ou que eram empregadas no combate à Covid-19, como a
profissionais liberais, havendo a diminuição mobilização comunitária, a proteção social e
de clientes ou mesmo pausa no trabalho (como a prestação de cuidados de saúde26.
psicólogo, dentista, arquiteto). Aqueles que Entre as mulheres trans/travestis, também
eram empregados formais ou que eram fun- houve a interrupção de atividades de socia-
cionários públicos estavam em home office, e bilidade. Uma entrevistada ficou 15 dias em
poucos estavam trabalhando de forma presen- isolamento na casa de sua mãe, muitas ficaram
cial. Esse achado é ratificado por uma pesquisa em suas casas e outra nem cogitou em ficar na
que indicou que 52% das famílias LGBTQIA+ sua cidade natal com a família com medo de
sofreram com demissões ou redução da carga que faltasse assistência caso fosse infectada
de trabalho em função da pandemia22. pelo novo coronavírus. Contudo, elas ficaram
Entender a vulnerabilidade individual e poucos dias ou meses em isolamento em
social20 relativa ao HIV e ao novo coronavírus função do trabalho sexual, e todas relataram
– exposição aos vírus – dependeu do entendi- perda financeira pela diminuição de clientes.
mento de cada entrevistado(a) sobre as formas Elas dependiam dos programas para se sus-
de prevenção como a interseção de fatores tentar e, ao pararem por um ou dois meses,
que abarcaram as relações econômicas, de houve acúmulo de dívidas, por isso, voltar ao
exclusão social, de gênero, entre outras, que trabalho sexual era a opção.
A entrevistada que trabalhava na rua foi a álcool em gel, colocação do sapato dos clientes
única que não parou com os programas e não fora de casa; uma, inclusive, trabalhava de
fez nenhuma prevenção contra a Covid-19 ao máscara. Algumas também perguntavam para
se prostituir, como o uso de máscaras. os clientes sobre o status de quarentena e as
condições de saúde, como se fosse uma espécie
[...] já peguei e já sarei porque não uso máscara de investigação para ponderar se poderiam
na rua, né, só quando eu saio para resolver alguma marcar ou não o programa, sobretudo no início
coisa e tal, aí tem que usar né, mas na rua não uso da pandemia da Covid-19. Houve diversos de-
não [...] Eles, às vezes, param e depois, quando a poimentos em relação a métodos de prevenção
gente vai fazer o programa, eles tiram [a máscara]. da Covid-19 nos programas.
(3TBruna21).
[...] primeiramente o álcool em gel na entrada,
Houve relatos de pesquisas nacionais relati- sapatos fora do apartamento. Já entra descalço,
vos à diminuição de clientes que procuraram as né? E aí todo aquele cuidado, não tira a máscara,
mulheres trans/travestis trabalhadoras do sexo eu não tiro a minha e todos aqueles cuidados.
em função do distanciamento social, refletin- Ninguém conversa, não trocamos diálogos, nada.
do no desamparo financeiro dessa população Só ele vem se satisfazer, se satisfaz e vai embora.
e na potencialidade de situações extremas (2TCarmem41).
de vulnerabilidade, impactando na sobrevi-
vência delas7. Uma saída seria o lançamento Na minha casa, com todo o cuidado, com tudo,
de estratégias, pelo governo brasileiro, para álcool em gel na entrada, máscara, evito, muitas
facilitar o acesso das mulheres trans/travestis vezes, ainda de ter contato através de beijo, relação
à renda emergencial, além de protocolos espe- sempre com preservativo, com toda a seguran-
cíficos relativos à Covid-19 para aquelas que se ça, é uma coisa que eu prezo muito também.
prostituíam7, o que não ocorreu, sendo que o (Nu5TAline47).
governo federal dificultou o acesso ao auxílio
emergencial de determinados trabalhadores, Esses relatos assemelham-se às práticas
aumentando a vulnerabilidade social13. utilizadas também pelos HSH entrevistados,
O Unaids chamou atenção para a tentativa, pois selecionavam os parceiros sexuais em
de alguns países, de aumentar as penalidades função do status de saúde, como a realização
criminais em relação à transmissão do HIV, de protocolos de segurança para a diminuição
como também o uso de poderes de polícia da possibilidade de infecção pelo novo coro-
para atingir os trabalhadores(as) do sexo, os navírus. Em 2021, havia mais de 38 milhões
usuários de drogas, as PVHA e a população de trabalhadores informais no País que não
LGBTQIA+. A criminalização é geralmente acessaram as políticas nacionais de renda27.
empregada em pessoas vulneráveis e estigma- Por isso, uma grande parcela da população teve
tizadas na comunidade, sobretudo em períodos que se expor ao Sars-CoV-2, com possibilidade
de limitação de direitos, como durante a emer- de adoecimento e transmissão do vírus, para
gência de saúde pública, o que não ajuda na sobreviver. A máxima ‘estamos no mesmo
resposta à Covid-19. O que deve ser garantido barco’, que ecoava na sociedade brasileira, não
são direitos relativos à não discriminação com valia para todos, visto que a pandemia expôs as
base no status de HIV, sexo, saúde reprodutiva, desigualdades, as discriminações estruturais
identidade de gênero, entre outros27. e escancarou as necessidades tanto de saúde
Visando à proteção da Covid-19, algumas quanto sociais existentes no Brasil28.
entrevistadas selecionaram clientes e deram O material da ABIA, já mencionada ante-
preferência para os antigos/conhecidos, além riormente, adaptou as recomendações indica-
de tomarem certos cuidados como o uso de das pela Austrália e pela Nova Zelândia para
Mesmo com a restrição de acesso no COA e com os(as) usuários(as), que podem ter escolhido
no e-COA, houve preocupação de não parar a aqueles(as) que tinham uma melhor relação com
entrega da PrEP para aqueles(as) em uso. No o COA e o e-COA. Mesmo assim, houve críticas
que se refere à vulnerabilidade programática19,20, por parte dos(as) entrevistados(as) aos serviços
houve exposição daqueles que estavam acessando de saúde de Curitiba.
o e-COA, podendo gerar estigma e discriminação Enfim, torna-se necessário estudos abor-
caso fossem reconhecidos, como a quebra do dando práticas sexuais, sociais e de prevenção
sigilo do diagnóstico das PVHA e protegido pela do HIV entre HSH e mulheres trans/travestis
Lei no 14.289/2022, que garante a confidenciali- em futuras pesquisas durante o período da
dade em serviços de saúde. O impedimento de pandemia da Covid-19, principalmente para
novos usuários de PrEP no início da pandemia que as vulnerabilidades possam ser analisadas
da Covid-19 foi um obstáculo na prevenção do e até mesmo para serem pensadas possíveis
HIV no Brasil, sendo que o lockdown e o medo de intervenções para mitigar as iniquidades que
entrar em ambiente médico em função do novo foram acirradas neste período. O direito à
coronavírus evidenciaram o receio do acesso aos prevenção do HIV, como a testagem e as tec-
serviços de HIV no mundo31. nologias de prevenção, além do tratamento
para as PVHA, deve ser assegurado durante
períodos de emergências de saúde, diminuindo
Considerações finais o impacto da vulnerabilidade programática. A
reorganização dos serviços durante a pande-
A Covid-19 trouxe um novo olhar para diversas mia, como no COA e no e-COA, e, provavel-
possibilidades de exercícios da sexualidade sem mente, outros serviços do SUS, serviu para
contato físico, proporcionando aos entrevista- que, em futuras emergências de saúde pública,
dos praticarem desejos e prazeres. Entretanto, as equipes possam agilizar adequações para
também mostrou a insegurança que a falta da garantir os serviços prestados em torno do
PrEP pode causar, impactando no uso repetido HIV e, assim, permitir o contínuo acesso ao
de PEP. As tecnologias de prevenção do HIV direito à prevenção, que deve ser de qualidade
continuam a ser desejadas e utilizadas, mesmo e garantido pelo Estado.
com a reestruturação do serviço especializado
de Curitiba e pelas dificuldades de atendimen-
to nos primeiros meses de pandemia. Para as Agradecimentos
mulheres trans/travestis, a vulnerabilidade se
manteve, sobretudo pela necessidade da volta Aos linkadores do COA e e-COA, por viabili-
rápida ao trabalho sexual e pela impossibilidade zarem as entrevistas em forma virtual.
de realizar o isolamento social pela sobrevivência.
A disparidade entre os marcadores sociais das
duas populações ressaltou como as iniquidades Colaboradoras
sociais e de saúde aumentaram durante a Covid-
19, sobretudo para as mulheres trans/travestis. Pereira CR (0000-0003-4692-0665)* foi a
É importante assinalar como uma das limi- pesquisadora responsável pela concepção,
tações do estudo o fato de que a pandemia da análise e interpretação dos dados. Cruz MM
Covid-19 impactou na demora para a efetivação (0000-0002-4061-474X)* foi a supervisora
das entrevistas semiestruturadas, sendo rea- da pesquisa, contribuindo para o desenvol-
dequadas para contemplar a sua realização no vimento do estudo e revisão crítica do texto.
formato virtual. Além disso, a escolha dos(as) Cota VL (0000-0002-6823-9304)* participou
*Orcid (Open Researcher
participantes da pesquisa foi viabilizada pelos da revisão crítica do texto e da aprovação final
and Contributor ID). linkadores do PAHA, pelo vínculo estabelecido do artigo. s
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Eliane Oliveira de Andrade Paquiela1, Eluana Borges Leitão de Figueiredo1, Marcela Pimenta
Guimarães Muniz2, Ana Lúcia Abrahão2
DOI: 10.1590/0103-11042022E705
RESUMO O estudo teve como objetivo discutir sobre os sofrimentos presentes nas narrativas de mulheres
que vivem com HIV e os entraves sociais que as colocam em lugares desprivilegiados em suas existências.
Trata-se de pesquisa descritiva, exploratória, com abordagem qualitativa a partir do levantamento de
narrativas de participantes integrantes do grupo de saúde mental voltado para mulheres que vivem com
HIV. Os dados foram analisados percorrendo as fases de pré-análise, exploração do material e tratamento
dos dados à luz das autoras feministas Federici e hooks. A partir das narrativas das mulheres, emergiram as
seguintes categorias de análise dos dados: o desamparo afetivo e social experimentado após o diagnóstico
do HIV; e o sentimento de impotência e de desapropriação do próprio corpo diante da soropositividade.
O estudo mostrou os efeitos do estigma associado ao HIV e os sofrimentos que deles decorrem. A partir
dos conceitos de solidão e amor, foi possível refletir sobre a necessidade de o cuidado dos profissionais
de saúde considerar, além dos aspectos biológicos, a escuta do sofrimento vivido por mulheres com
diagnóstico positivo para HIV.
PALAVRAS-CHAVE Angústia psicológica. Solidão. Amor. Soropositividade para HIV. Assistência integral
à saúde.
ABSTRACT The study aims to discuss the suffering in the narratives of women living with HIV and the social
obstacles that place them in underprivileged places. This descriptive, qualitative and exploratory research was
based on the survey of narratives from participant members of the mental health group focused on women
living with HIV. The data were analyzed through pre-analysis, material exploration, and data processing in
light of the feminist authors Federici and hooks. The following categories of data analysis emerged from the
women’s narratives: the affective and social helplessness experienced after the HIV diagnosis and impotence
and dispossession of one’s own body in the face of seropositivity. The study showed the effects of the stigma
associated with HIV and the resulting suffering. Based on the concepts of loneliness and love, we could
1 Universidade
reflect on the need for health professionals’ care to consider biological aspects and listen to the suffering of
do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj), seropositive women.
Faculdade de Enfermagem
(Fenf) – Rio de Janeiro KEYWORDS Psychological distress. Loneliness. Love. HIV seropositivity. Comprehensive health care.
(RJ), Brasil.
aneoandrade3@gmail.com
2 Universidade Federal
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 75-84, DEZ 2022
76 Paquiela EOA, Figueiredo EBL, Muniz MPG, Abrahão AL
da saúde, uma importante referência para (re) Para tanto, estabeleceu-se como critério
pensar o cuidado é justamente a possibilidade de inclusão: mulheres, maiores de 18 anos
de considerar que a saúde da mulher não se e integrantes do coletivo de saúde mental
restringe apenas a seios, colo do útero, gravi- voltado para pessoas que vivem com HIV.
dez, cânceres e IST. Não houve critério de exclusão, tendo sido
Para pensar os desafios enfrentados por feito o convite a todas as mulheres que
mulheres que convivem com HIV foi que se frequentam o grupo por meio de ligação
convidaram as referenciais teóricas bell hooks, telefônica. Assim, a escolha da população
representante do movimento feminista negro de estudo se deu de forma intencional pelas
nos Estados Unidos, e Silvia Fredericci, filóso- pesquisadoras. Ao total, oito participantes
fa, ativista feminista de origem italiana e cofun- integraram a pesquisa.
dadora do International Feminist Collective. A coleta de dados ocorreu de outubro de
Considerando o exposto, emerge a seguinte 2020 a outubro de 2021 por meio da trans-
questão: como os conceitos de amor interior e crição das narrativas das componentes do
de solidão se aplicam na prática do cuidado em estudo durante os encontros virtuais que foram
saúde aos sofrimentos expressos por mulheres gravados com expressa autorização das parti-
que vivem com HIV? cipantes. Foram utilizados nomes de deusas
Este estudo tem como objetivo discutir gregas como codinomes visando preservar a
sobre os sofrimentos de mulheres que vivem identidade das integrantes.
com HIV e os entraves sociais que as colocam A partir do conteúdo das narrativas das
em lugares desprivilegiados em suas existên- participantes, foi feita a construção de duas
cias a partir dos conceitos de solidão e de amor categorias temáticas, a saber: a solidão como
interior em Federici e hooks. desamparo afetivo e social experimentado
após o diagnóstico do HIV; e o sentimento de
impotência e de desapropriação do próprio
Material e métodos corpo diante da soropositividade. Os dados
foram agrupados de acordo com a recorrência
Trata-se de estudo descritivo, exploratório, com nas falas, percorrendo as fases de pré-análise
abordagem qualitativa. Para elaboração, seguiu- e exploração do material segundo Minayo5.
-se a recomendação dos Critérios Consolidados A discussão dos dados foi realizada à luz das
para Relatar Pesquisa Qualitativa (Coreq)4. autoras Federici e hooks.
O cenário do estudo foi um grupo de saúde A presente pesquisa atendeu à Resolução
mental voltado para mulheres que vivem com nº 466/2012 que versa sobre os princípios
HIV. O grupo foi proposto por docentes da éticos de estudos envolvendo seres humanos
Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa do Conselho Nacional de Saúde. A coleta de
da Universidade Federal Fluminense (EEAAC/ dados iniciou-se após aprovação do Comitê
UFF) e ocorre quinzenalmente com duração de Ética em Pesquisa do Instituto de Atenção
de 1 hora e meia. Os encontros se deram em à Saúde São Francisco de Assis/Universidade
ambiente virtual na plataforma Google Meet, Federal do Rio de Janeiro (CEP/Hesfa/UFRJ)
uma ferramenta de videochamada que usa o e aprovado com o número de parecer 4.292.759
Gsuite da UFF, utilizada durante a pandemia em setembro de 2020.
da Covid-19.
Desataca-se que o recrutamento para a for-
mação do grupo de saúde mental foi feito nas Resultados
redes sociais por meio da Campanha Covid e
HIV realizada pelo Movimento Nacional das Ao total, oito participantes que vivem com HIV
Cidadãs PositHIVas (MNCP). integraram a pesquisa, sendo 7 mulheres negras
(duas pretas e cinco pardas) e uma branca, com É importante ressaltar que se sentir
faixa etária de 37 a 56 anos. Ressalta-se que sozinha foi uma percepção presente nas
todas são mães, três são residentes da região narrativas das participantes juntamente
Nordeste, e cinco, da região Sudeste. Salienta- com a sensação de falta de redes de apoio
se que uma é casada e que somente três delas e de solidariedade. Esse ‘andar sozinha na
estão no mercado de trabalho. vida’ foi demonstrado nas seguintes falas:
“Nunca fui amada e nunca amei” (Atena);
A solidão como desamparo afetivo “Tô muito insegura para fazer as coisas em
e social experimentado após o casa e ir para a rua sozinha” (Héstia).
diagnóstico do HIV Na mesma direção, falou Gaia:
Referente ao sentimento de desamparo afetivo Eu nunca fui de andar com celular, mas agora eu
e social experimentado pelas mulheres após o descolei uma bolsinha para colocar no pescoço car-
diagnóstico do HIV, evidencia-se nas falas das regando o celular porque se eu passar mal estando
participantes que antes de serem diagnostica- sozinha eu tenho ali o celular para pedir ajuda.
das com a doença elas tinham maior inclusão
social como pode ser visto nos depoimentos Eos disse:
de Afrodite:
Eu penso ‘se eu cair doente, quem vai me so-
Antes do HIV, eu era sempre a primeira convidada correr?’. Ninguém. Ninguém se importa comigo
das festas porque a cabeça da alegria era eu. E [chorando]. Eu vou morrer na cama se eu pegar
depois que eu adquiri o HIV, nunca mais fui. uma doença oportunista.
O mesmo sentimento foi descrito por Ressalta-se, ainda, que as mulheres vi-
Deméter ao dizer que: venciam o sentimento de desapropriação do
próprio corpo, ou seja, um movimento de au-
Eu não quero mais viver essa situação com ele todepreciação e desintegração de seus corpos
[filho] usando droga e brigando em casa. Não em relação as suas naturezas, como mostra a
quero mais. Quero viver o restinho de vida que eu fala de Atena:
tenho. Porque eles não têm noção... eles não ligam
para o tanto de problema que eu tenho. Então eles Meu genro não gostou que eu dei um beijo no filho
não ‘tão’ nem aí. (Deméter). dele, meu neto... Ele acha que porque eu tenho HIV
eu não posso beijar, abraçar uma criança. Como
se eu fosse suja... Antes não era assim.
O sentimento de impotência e de
desapropriação do próprio corpo Perséfone mostra em sua narrativa o senti-
diante da soropositividade mento de desintegração de seu próprio corpo
após o HIV ao dizer que:
No âmbito das relações familiares, as parti-
cipantes relatam falta de apoio e desinvesti- Eu era uma ‘mulata’ bonita, com corpão! Por causa
mento naquilo que podem fazer e construir do HIV, eu sou agora sem curva nenhuma no corpo,
na vida. Demonstram sentimentos de tristeza horrível. Eu fiquei com cara de velha, toda enruga-
e incapacidade como descrito nos relatos de da, não tenho carne no rosto, no corpo.
Deméter: “Por causa desses problemas de saúde
da gente, a gente se torna tão fragilzinha... e a O apagamento do próprio corpo após a des-
gente não vê a capacidade que tem”. coberta do HIV está presente na fala de Gaia ao
Esse mesmo sentimento é relatado por Gaia: referir que: “Depois do HIV e dos remédios, meu
corpo sumiu. Tô acabada, olha só que horror!”.
Se eu falo assim: ‘ó, eu ‘tô’ sem dinheiro... Eu vou Sentimento similar foi descrito por Héstia: “Eu
vender um crochê ou vou vender um quadro...’, aí evito olhar no espelho. Porque eu olho para o
eles [os familiares] já começam a dizer assim: ‘ah, espelho e fico triste. Não sou mais eu”.
vai dar errado, isso não vai dar certo’.
esse ‘andar sozinha’ na vida enquanto mulher. Logo, pode-se afirmar que mulheres não
Vale ressaltar que o ‘Boletim Epidemiológico são acostumadas com o amor. Mulheres não
HIV/Aids’ publicado no ano de 2018 demons- aprendem a valorizar seus desejos. Mulheres
tra que os problemas psicossociais experimen- vivem com a escassez do amor desde suas
tados pelas pessoas com HIV são responsáveis primeiras aparições no mundo. Isso significa
por um aumento das taxas de progressão da dizer que o amor interior proposto por hooks
doença7. Logo, se as mulheres com HIV são não é a falta de amor do outro, mas sim em
abandonadas e sentem-se sozinhas (solidão) como as mulheres, de maneira geral, aprendem
como sugere este artigo, pode-se concluir pela estrutura (social e cultural) a desprezar, a
que esses sofrimentos advindos das questões menosprezar as suas próprias necessidades1.
psicossociais citadas complicam o quadro de A dimensão de solidão para Federici6, re-
saúde dessas mulheres no que se refere ao HIV. corrente nas falas das mulheres do grupo, é um
Federici6 aponta em seus estudos de gênero tema em que os trabalhadores da saúde podem
que há na divisão do trabalho doméstico uma tomar como um alerta em suas práticas de
organização automática para que mulheres cuidado, visto que os sofrimentos das mulheres
sejam responsabilizadas pelas tarefas e que em ‘sentir-se só’ é só a parte visível diante de
essa cultura atinge todas as mulheres sem dis- uma existência marcada pelo silenciamento.
tinção. Trata-se de um sistema social e cultural Ao mencionar o silenciamento, não é mera-
que favorece os homens e que, em nome das mente apontar que mulheres emitem poucas
‘relações’ e do ‘casamento’ (até mesmo para opiniões. Não se trata desse aspecto, ao contrário,
aquelas que não são casadas), o trabalho do- o que se percebe na cultura machista é o entendi-
méstico deve ser naturalizado e sexualizado, mento equivocado de que: mulheres ‘falam muito’
tornando-se um atributo da mulher. e ‘reclamam demais’. E aqui é justamente o fato
Ante ao exposto, destaca-se que as mu- que se quer apontar: o silenciamento não implica
lheres participantes da pesquisa não foram um não falar, e sim, às vezes, o falar em demasia
poupadas desse lugar de serventia imposto sem ser ouvidas, ter opiniões emitidas, mas não
socialmente. Percebe-se então que, para as serem consideradas, ou esvaídas e esvaziadas.
mulheres que convivem com HIV, esses afa- Ter desejos e ver suas prioridades serem adiadas,
zeres se tornam ainda mais intensos, rever- colocadas de escanteio diante das necessidades
berando em sentimento de culpa, medo e de dos outros. Essas e muitas outras formas de si-
não mais servir à família, tornando-se mais lenciamento produzem o efeito da solidão das
sobrecarregadas com as tarefas domésticas mulheres, que aparecem em todos os espaços e
do que antes do diagnóstico. Como apontam situações muitas vezes manifestas em ansiedade,
Ceccon e Meneghe8, o trabalho doméstico depressão e tristeza. No caso das mulheres do
imposto pela estrutura patriarcal é mais uma grupo com HIV, não foi diferente.
das facetas das violências invisíveis que a so- Diante disso, entende-se que a identifica-
ciedade impõe a essas mulheres que convivem ção dos potenciais riscos psicossociais que
com HIV/Aids, uma vez que são considera- afetam a saúde das mulheres que convivem
das pessoas sujas e, portanto, excluídas dos com o estigma associado ao HIV e os atra-
espaços e convívios sociais. vessamentos impostos a essas mulheres pela
Assim, o tema da solidão que aparece re- estrutura machista e patriarcal são aspectos
corrente nas falas das participantes não está importantes no cuidado. Os resultados mos-
separado da sobrecarga das atividades do- traram que a solidão pode ser caracterizada
mésticas, visto que a própria estrutura social, por uma experiência da pessoa em sentir-se só
patriarcal e masculinizante forja nas mulheres e evidenciada pela deficiência ou fragilidade
uma maneira de perceber suas necessidades em suas redes afetivas, tornando-se um desafio
como ‘caprichos’. para os profissionais de saúde9.
Nesse contexto, foi possível observar esses Diante disso, o presente artigo propõe o
riscos psicossociais a partir de um olhar mais conceito de amor diferente da ideia de cari-
atento às narrativas dessas mulheres durante o dade, vocação religiosa ou mesmo do amor
grupo terapêutico. No grupo, foi possível notar como autoestima, sentimento ou emancipa-
que as mulheres se viam diante da necessidade de ção, ao contrário, apresentando-o como uma
serem fortes para suportar dores e sofrimentos. ética revolucionária e como prática emanci-
Mesmo diante da dor de um diagnóstico de HIV padora que, quando efetivamente praticados
em que elas teriam que reivindicar cuidado (de e percebidos, resultam em, respectivamente,
si)10, ou de se amar antes de tudo, elas experimen- autoconfiança, autorrespeito e autoestima.
tam o abandono e ainda continuam a suprir as hooks1 diz que o amor interior é aquele
necessidades dos outros. Ou seja, essas mulheres capaz de produzir formas existenciais mais
sentem-se culpadas por não poderem fazer pelos afirmativas, que se constituem como uma
outros o que faziam antes. Por consequência, ética afetiva aprendida no campo social,
sentem-se desvalorizadas. Para receber algum podendo esta ser exercitada em qualquer
cuidado, elas continuam reafirmando o lugar da momento e contexto por quem quer seja,
serventia, que lhes foi imposto historicamente, inclusive por mulheres que vivenciam uma
como se falou anteriormente. doença, tal como o HIV13.
Posto isso, neste estudo, não se está propon- Logo, caso se entenda que amar é uma
do a ideia de reivindicação do olhar do outro prática e que o campo social interfere nas
para com essas mulheres, como se elas fossem relações humanas, irá se entender no campo
apenas abandonadas. Ao contrário, aqui se está da saúde que inclusive as manifestações bio-
apontando que é um fenômeno social/cultu- lógicas do HIV na vida das mulheres carecem
ral. A escassez do amor está intrinsecamente também de aberturas de espaços para manifes-
ligada às marcas do machismo nos corpos tação de suas próprias demandas e valorização
das mulheres, e isso pode ter repercussões de seus sentimentos.
na saúde mental daquelas que vivem com HIV. Um dos sentimentos que muitas vezes
Depreende-se pela via do cuidado que o aparece de forma tímida nas consultas rea-
amor não é muito bem compreendido pelos lizadas pelos profissionais de saúde e que, se
trabalhadores de saúde já que, no processo valorizado, pode qualificar a saúde mental
histórico de algumas profissões, sobretudo, dessas mulheres é a autodepreciação dos seus
a da enfermagem, a ideia de ‘amor’ tem uma próprios corpos.
relação com a assistência segundo os padrões O descobrir-se com uma doença como o
religiosos de vocação caridosa e de cuidado HIV pode trazer à tona toda uma miséria exis-
dadivoso10. Todavia, vale lembrar que há um tencial que é imposta socialmente, sobretudo,
esforço acadêmico em se distanciar dessas se vier entrecruzadas com outras opressões,
noções de cuidado enquanto amor e vocação, tais como desigualdades raciais, econômicas,
buscando pensar o cuidado por uma perspec- opressão sexual e de idade14. É a chegada de
tiva ligada aos conceitos de Determinantes um acontecimento trágico, tal como um diag-
Sociais de Saúde (DSS) e aos fenômenos de nóstico de uma doença grave que, por vezes,
cuidado sensíveis, não mais do ponto de vista torna esses processos sociais adoecidos dentro
cristão11. Entretanto, essa relação entre amor e das mulheres muito mais aparentes. Silvia
cuidado ainda é nebulosa nos espaços de saúde. Federici6(60) coloca essa questão da desapro-
Marinho aponta que essas aprendizagens cul- priação dos corpos das mulheres de maneira
turais e sociais são barreiras criadas ao longo de muito clara em seus estudos, como a seguir:
muito tempo12 e são as marcas da escassez da ética
do amor afirmadas por bell hooks que aparecem É da aparência do próprio corpo que depende se
no discurso das participantes. vamos conseguir um emprego bom ou ruim (no
casamento ou fora de casa), se poderemos con- mulheres. É para esse efeito que as autoras
quistar algum poder social, alguma companhia deste artigo afinam sua escuta e sua análise
para enfrentar a solidão que nos espera na velhice ancoradas no conceito de amor interior em
– e, muitas vezes, também na juventude. E sempre hooks e de solidão em Federici para pensar
existe o medo de que nosso corpo se volte contra maneiras mais potentes de cuidado às mu-
nós, pois podemos engordar, ter rugas, envelhecer lheres que vivem com HIV refletindo com
rapidamente, tornar as pessoas indiferentes a nós, elas os entraves sociais que as colocam em
perder nosso direito à intimidade, perder a chance lugares desfavorecidos pelo simples fato de
de ser tocada ou abraçada. serem mulheres. Sim, o amor cura!
que oprime mulheres em quaisquer condições a uma reconexão de si, enquanto mulher,
de existência, sendo o diagnóstico uma dessas ainda que vivendo com HIV.
condições, e não a única.
A partir disso, a apropriação do concei-
to de amor interior em hooks como uma Colaboradoras
ética afetiva e como prática transformado-
ra pode ser usada como ferramenta para Paquiela EOA (0000-0002-0916-9203)*,
os profissionais de saúde na produção Figueiredo EBL (0000-0002-5462-3268)* e
de um cuidado mais sensível. Tal prática Muniz MPG (0000-0002-8615-7513)* contri-
pode colocar essas mulheres em condições buíram igualmente para a elaboração do ma-
existenciais mais afirmativas. Portanto, há nuscrito com as seguintes etapas: concepção do
urgências na construção de estratégias de estudo, coleta de dados, análise e interpretação
cuidado pautadas em uma lógica do amor dos dados, discussão dos resultados, redação
interior para consigo mesma. O amor como e/ou revisão crítica do conteúdo e revisão e
um exercício ativo surge como possibilidade aprovação final da versão final. Abrahão AL
potente de existência revolucionária diante (0000-0002-0820-4329)* contribuiu para a
das adversidades da vida e dá passagem revisão e aprovação final da versão final. s
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/?format=pdf&lang=pt#:~:text=Considera%C3%A7
%C3%B5es%20Finais%3A%20a%20pesquisa%20
Recebido em 23/03/2022
interfer%C3%AAncia,produzidos%20no%20cam- Aprovado em 14/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
po%20de%20pesquisa.
Suporte financeiro: não houve
Luís Felipe Rios1, Karla Galvão Adrião1, Amanda Albuquerque1, Amanda França Pereira1
DOI: 10.1590/0103-11042022E706
RESUMO O texto aborda as práticas sexuais e a prevenção do HIV nos circuitos de Homens que fazem
Sexo com Homens (HSH) da Região Metropolitana do Recife, embasados em inquérito comportamental
com 380 HSH de idade de 18 a 51 anos, e entrevistas com 20 dos respondentes. Os dados analisados foram
coletados entre janeiro de 2016 e fevereiro de 2017, quando a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ainda não
estava disponível e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) era pouco conhecida (51,8%) e utilizada (1,3%). O Sexo
Anal Desprotegido (SAD) (50,6% em parcerias fixas, 30,2% em casuais) ocorria, geralmente, com parceiros
presumidamente negativos para HIV. As sorologias eram inferidas pelos vínculos (estranho, conhecido,
amigo, namorado). As emoções (medo, tesão, amor, confiança, nojo, carência) eram importantes na con-
figuração do SAD, normalmente articuladas às vinculações. Observaram-se regimes de prazer dissidentes
da heteronormatividade: boca-ânus e boca-pênis; sexo a três e em grupo. Considerando a forte presença
de SAD e a alta prevalência de HIV em Recife (21,5%), constatou-se a necessidade de ações educativas que
apresentem técnicas da prevenção combinada (camisinha, PrEP, PEP, soroescolha, segurança negociada
etc.) mediante narrativas que incorporem vínculos, emoções e regimes de prazer dissidentes, para que,
ao se aproximarem dos contextos de usos, possibilitem escolhas mais seguras.
ABSTRACT In this text we address sexual practices and HIV prevention in the circuits of men who have sex
with men (MSM) in the Metropolitan Region of Recife (RMR), based on a behavioral survey with 380 MSM,
aged between 18 and 51 years, and interviews with 20 of the respondents. The analyzed data were collected
between January 2016 and February 2017, when Pre-Exposure Prophylaxis (PrEP) was not yet available
and Post-Exposure Prophylaxis (PEP) was little known (51%) and used (1.3%). Unprotected Anal Sex (UAS)
(50.6% in steady partners, 30.2% in casual partners) generally occurred between partners who were presumed
to be HIV-negative. Serologies were inferred by ties (stranger, acquaintance, friend, boyfriend). Emotions
( fear, lust, love, trust, disgust, neediness) were important in UAS configuration, almost always linked to
attachments. We observed dissident pleasure regimes of heteronormativity: mouth-anus and mouth-penis;
threesome and group sex. Considering the strong presence of UAS and the high prevalence of HIV in Recife
(21.5%), we found the need for educational actions that introduce combined prevention techniques (condoms,
PrEP, PEP, serochoice, negotiated safety etc.) through narratives that incorporate dissident bonds, emotions,
and pleasure regimes, so that, when approaching the contexts of use, they enable safer choices.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 85-102, DEZ 2022
86 Rios LF, Adrião KG, Albuquerque A, Pereira AF
Tabela 1. Perfil sociodemográfico, uso da camisinha no sexo anal e testagem para HIV
Categoria N %
1.1 Perfil Sociodemográfico
Raça Branca 95 25,2
Negra 247 65,5
Outras 35 9,4
Total 377 100,0
Faixas de idade 18-25 287 75,6
26-30 81 21,3
Mais de 41 12 3,2
Total 380 100,0
Religião Católica 84 22,3
Outras religiões 17 4,5
Sem religião 226 59,9
Total 377 100,0
Tabela 1 (cont.)
Categoria N %
Escolaridade Fundamental* 40 10,5
Médio ** 94 24,7
Superior * 246 64,7
Total 380 100,0
Situação laboral Empregado 178 47,0
Empregador/autônomo 24 6,3
Não trabalha 177 46,7
Total 379 100,0
Estilo corporal Efeminado 120 31,8
Másculo 88 23,3
Não sabe 169 44,6
Total 377 100,0
Posição sexual Exclusivamente passivo 30 8,0
Versátil mais passivo 85 22,7
Versátil 163 43,5
Versátil mais ativo 65 17,3
Exclusivamente ativo 32 8,5
Total 375 100
Situação conjugal Vive com homem 33 9,0
Namora com um homem 95 25,0
Namora com uma mulher 3 1,0
Solteiro 248 65,0
Total 379 100,0
1.2 Sexo anal nos últimos 6 meses
Parceria fixa Sim 223 56,7
Não 157 41,3
Total 380 100,0
Parceria ocasional Sim 235 62,0
Não 144 38,0
Total 379 100,0
1.3 Uso da camisinha
Alguma vez (fixa) Sim 162 73,0
Não 60 27,0
Total 222 100,0
Alguma vez (ocasional) Sim 215 92,9
Não 19 8,1
Total 234 100
Todas as vezes (fixa) Sim 92 56,8
Não 70 43,2
Total 162 100
Todas as vezes (ocasional) Sim 162 76,1
Não 51 23,9
Total 213 100,0
Consistência (fixa) Sim 92 41,4
Não 130 56,6
Total 222 100,0
Consistência (ocasional) Sim 162 69,8
Não 70 30,2
Total 232 100,0
Tabela 1 (cont.)
Categoria N %
1.4 Testagem
Realização Sim 286 75,3
Não 94 24,7
Total 380 100
Quando fez o teste Menos de 6 meses 142 50,4
Entre 6 meses e 1 ano 88 31,2
Mais de 1 ano 52 18,4
Total 282 100
Resultado do Teste Positivo 4 1,4
Negativo 280 97,9
Não quis responder 2 0,7
Total 286 100,0
Motivo de realização Solicitação do empregador 9 3,2
Pré-natal 3 1,1
SAD conhecido/amigo 38 13,5
SAD parceiro fixo/traição 8 2,8
SAD parceiro fixo e/ou relaciona- 12 4,3
mento acabou
SAD estranho que parecia saudável 13 4,6
Curiosidade 97 34,4
Parceira(o) pediu 3 0,1
Indicação médica 34 12,1
Outro motivo 65 23
Total 282 100
Fonte: elaboração própria.
* Completo e incompleto; ** Completo.
Tabela 2. (cont.)
Foram entrevistados 20 dos 380 responden- as, especialmente os/as responsáveis pela coleta,
tes ao questionário, de modo a aprofundar os interferem na produção dos dados. É possível que
modos como lidam com a prevenção do HIV, alguns voluntários da pesquisa tenham desisti-
recolocando em discussão alguns padrões do de participar da segunda etapa ao saber que
interacionais identificados na primeira onda seriam entrevistados por uma mulher. Do mesmo
de entrevistas13. Entrevistamos pessoas que modo, entrevistados podem descrever diferen-
se mostraram interessadas a dar mais uma cialmente eventos de seus cursos de vida sexual
contribuição para a pesquisa. Para garantir o em função do sexo-gênero dos entrevistadores.
sigilo e o anonimato, utilizamos nomes fictícios Assim, informar a organização da repartição
para nos referirmos a eles (quadro 1). Como as das funções na coleta por sexo-gênero, de uma
vinculações dos respondentes com a pesquisa equipe composta por homens e mulheres, ajuda
já haviam sido formadas, as entrevistas foram a melhor situar o leitor sobre a qualidade dos
conduzidas por jovens mulheres, estudantes de dados33. A pesquisa foi submetida ao Comitê de
graduação em psicologia. Nas pesquisas sobre se- Ética em Pesquisa da universidade de filiação
xualidade, o sexo-gênero dos/as pesquisadores/ dos autores.
Quadro 1
de alta prevalência para o HIV17, apenas 1,3% que eu sou um homem muito forte e corajoso de
dos HSH (5) afirmaram já ter recorrido à PEP dizer tudo a ele no primeiro encontro. E que ele
quando realizaram sexo inseguro. jamais iria dizer ‘não’ a mim.
antes de saber ser portador do HIV não fazia se tinha alguma doença, fazia todas as precauções
diferença entre parceiros fixos e casuais na necessárias porque eu confiava nele e ele confiava
disposição para o uso do preservativo mas- em mim. Então tipo, a gente já tinha estabelecido
culino. A grande maioria de nossos interlo- essa relação, a gente já sabia que tipo, não ofe-
cutores tende a tirar a camisinha com alguém recia nenhum risco. Mas, pouco tempo depois de
que conhece, em uma ordem em que o SAD é terminar com ele eu peguei uma infecção no meu
mais recorrente com parceiros fixos, amigos pênis [...]. Depois da infecção eu disse ‘eu não vou
e conhecidos13,18. transar sem camisinha’. (Davi).
Juliano (21 anos, branco, versátil mais ativo)
disse que sempre usa, mas imediatamente Juliano, o mesmo que disse usar camisinha
pondera: “na medida do possível que estou quando está sóbrio, e que não a usava com o ex-
sóbrio”. Ele prosseguiu relativizando: -namorado, justificou, também pela confiança,
ter tido mais uma cena de SAD, dessa vez com
[...] não com parceiros fixos. Com parceiros fixos, um amigo de faculdade. Eles não chegaram a se
como só tive um, eu não usava camisinha, até testar antes, como relataram ter feito Roberto,
acabar e ficar nas recaídas. A partir das recaídas, Davi e Luís. O argumento de Juliano era o
às vezes era com camisinha, às vezes era sem, de que o parceiro era virgem – assim diziam
dependia do momento. integrantes da rede de relações comum aos
dois. Acompanhemos o relato:
Roberto (20 anos, negro, versátil), Luís (22
anos, negro, versátil) e Davi (18 anos, branco, [...] a questão de [a camisinha] incomodar e tal
versátil) também exemplificaram o SAD com e eu confiava no cara, [...] e quando ele cedeu pra
parceiros fixos, recorrendo a enredos vividos ficar comigo e daí eu digo não, não vou fazer no
com ex-namorados. Roberto contou que, por primeiro momento, na primeira dele, eu não vou
ser da área de saúde, tinha mais possibilidade transar com camisinha com ele e tal.
de realizar a testagem e convenceu o namora-
do a fazerem periodicamente. “O meu último Humberto (19 anos, negro, versátil mais
foi em dezembro do ano passado, de 2016 [...] passivo) conheceu o amigo de um amigo em
e ele também fez”. Mesmo com o namoro uma festa universitária. Relatou que não queria
estando estremecido, os dois continuaram se realizar o SAD, “mas aí ele foi conversando
testando juntos e transando sem camisinha comigo e tal, e num momento lá e no auge, né?
eventualmente. Do negócio, eu acho que me liberei mais assim,
Luís e Davi falaram da confiança que tinham né? E aconteceu”. Mais adiante, durante a en-
nos ex-namorados, que também passava pelo trevista, ele disse que, até aquele momento (a
fato de eles e dos parceiros realizarem juntos transa foi em 2013), não fez o teste por “morrer
os cuidados de saúde sexual: de medo do resultado”.
Durval (24 anos, indígena, versátil) teve um
Nós sempre nos preservamos juntos, a gente faz relacionamento aberto.
exame, a gente vai a médico. [Entendi.] Então, eu
confio muito nele e vice-versa. [Vocês passaram A gente tem um acordo de se preocupar não só com
quanto tempo juntos?] A gente passou um ano a própria saúde, que é importante, mas com a do
e dois meses. [...]. (Luís). outro. [...] [Tu sempre transas com camisinha?]
Com ele não, a gente fez exame, a gente transa
Com meu ex, a gente não usava tanto por questões sem camisinha.
do tipo, eu não sei colocar camisinha [risos]. Então,
a gente não usava muito. Mas eu sempre buscava Luís, que como Juliano também transou
ter cuidado tipo, ele ia para o urologista pra saber com um amigo, contou que a penúltima vez na
qual teve sexo anal “foi com camisinha porque casuais. No que se refere às posições sexuais,
a gente só tinha contato na faculdade, eu não 22,9% relataram ser exclusivamente ativos;
conhecia ele, a vida sexual dele nem vice-versa”. 32,9%, exclusivamente passivos; e 20%, ver-
Márcio (21 anos, negro, versátil mais ativo) sáteis (tabela 2).
disse que não transa com ninguém sem ca- Luís mencionou ter se arrependido de uma
misinha, seja qual for a vinculação. Ele tem transa sem camisinha com um rapaz que co-
muito medo do HIV e da Aids. nheceu em um aplicativo e disse que, logo em
Os dados do inquérito são sintonizados seguida, foi fazer o exame. Ele prosseguiu:
com as modalidades de experiências de SAD
mais relatadas nas entrevistas. Ser praticante Teve outras, mas não foi sexo propriamente dito,
de barebacking (definido como sexo sem ca- né? Eu tive uma com meu melhor amigo já, [...]
misinha como uma decisão intencional dos mas não teve penetração, só foi o sexo oral mesmo.
parceiros)22 foi a explicação para um quarto [...] Fiz um com a minha amiga quando eu estava
dos que realizaram SAD com parceiros fixos, muito bêbada, que também foi sem camisinha, mas
denotando, como nos casos acima relatados, ela toma remédio, ela se cuida. (Luís).
que os parceiros ‘sabiam o que faziam’ quando
o SAD acontecia. Em adição, um grande per- Ele disse que costumava se testar regu-
centual (45,4%) respondeu saber que o par- larmente. Nos momentos em que transa sem
ceiro possuía resultado negativo para o HIV. camisinha e ‘bate o desespero’, ele relatou que
Ainda no que se refere às parcerias fixas, a procura o seu pai, médico. Este, por sua vez, o
tabela 2 mostra que confiança (76,2%), fideli- encaminha para um amigo de profissão, que
dade (46,9%), tesão (56,6%), apaixonamento solicita a testagem. A entrevistadora questio-
(32,3%) e amor (32,3%) foram as emoções que nou se ele conhece a PEP. Ele respondeu que
justificaram a última cena de SAD, e, também, não. Chama atenção, aqui nesse relato, a falta
as mais presentes entre os nossos interlocuto- de conhecimento, não apenas do rapaz, mas
res das entrevistas. Gozar fora foi uma medida dos médicos, uma vez que, diferentemente da
preventiva que aconteceu com cerca de 41% PEP que tem eficácia de impedir a infecção, a
dos respondentes – e lembrou as interações testagem apenas apazigua o medo.
sexuais vividas por Júnior, namorado de Paulo,
com o ex que era PVH. Foi relatado por metade VÍNCULOS E EMOÇÕES
desse agrupamento não ter sido a primeira vez
que transou sem camisinha com o mesmo par- As narrativas de nossos interlocutores e a
ceiro. No que se refere às posições sexuais, 30% descrição de vínculos e emoções da cena do
relataram serem exclusivamente ativos; 30,8%, sexo desprotegido no inquérito reiteram os
exclusivamente passivos; e 23,1%, versáteis. achados anteriores13 e permitem afirmar que
Nas cenas de SAD com parceiros casuais, quanto mais confiança o vínculo produza
estas tenderam a ser com conhecidos (58,8%) (por conhecimento e/ou por amor), maiores
e amigos (35,7%). Tesão (51,4%) e confiança as chances de a camisinha sair do cardápio
(35,7%) foram as principais emoções que moti- sexual18. Uma confiança que é inferida a partir
varam o SAD. Também, para esse grupo, gozar do conhecimento sobre a pessoa e seus hábitos,
fora foi uma medida preventiva muito recor- especialmente os sexuais19,24,25.
rente (41%). Em acordo com o chiste de Juliano Assim, pode-se afirmar que predominam
e a cena pós-festa relatada por Humberto, práticas de soroescolha presumidas, e, em
estar sobre o efeito de álcool e outras drogas alguns casos, quando há acordos explícitos
(28,6%) e não ter camisinha (27,7%) na cena entre os parceiros, a ‘segurança negociada’.
da interação foram motivos bastante presentes Não obstante, é preciso ponderar que as moti-
entre os praticantes de SAD com parceiros vações e os critérios para o SAD são frutos de
reflexões, a posteriori, sobre cenas evocadas alguém que quer muito ter um parceiro fixo,
em situação de entrevista. Na vida prática, as e, de certa forma, precede e/ou sustenta o
decisões são tomadas de modo não volitivo, na apaixonamento (32,3%) e o amor (32,3%). Faz
tensão/‘tesão’ da própria experiência sexual13. parte do enredo do amor romântico, atualizado
E nos parece que quanto maior o ‘tesão’, mais nos melodramas gays, a cena do mocinho em
difícil é fazer a camisinha entrar, ainda que os perigo que é salvo pelo príncipe encantado40,41.
‘paus’ estejam em riste. Talvez, seja justamente a carência que
Chama atenção o relato de Paulo. Antes de potencialize a sensação das vinculações se
se descobrir PVH, parecia haver como que uma realizando muito rapidamente, de modo que
onipotência expressa em enunciados como “Eu uma conversa de Facebook por três noites
pensava que podia pegar todo mundo, menos consecutivas já indique um estreitamento de
eu”. Em todo caso, vê-se que outras emoções laços, levando Paulo a acionar defesas (relatar
são muito presentes em sua narrativa daquele ser PVH no primeiro encontro) para não se
tempo, especialmente o ‘tesão’ crônico, expres- ferir. Ou, ainda, que ele se desloque de Recife
so na ideia de “cachorra”, e “viçar”, que, aliada à à divisa com Alagoas para um dia de “cachor-
onipotência e à ausência de camisinha, o tornou rada” com alguém que ele não conhecia pre-
especialmente suscetível à infecção pelo HIV. sencialmente, mas acreditou que “ia ficar com
Nas entrelinhas, ele comentou sobre outro ele pro resto da vida”.
estado afetivo: a ‘carência’. A nossa interpre-
tação da categoria vai por dois caminhos: 1) Prazeres sexuais dissidentes
sinaliza o desamparo vivido por HSH e outros
dissidentes da heteronorma38, relacionado No que se refere às práticas sexuais já reali-
com a estigmatização; e 2) remete ao amor zadas algumas vezes na vida, as mais men-
romântico, dispositivo para formar casais, cionadas no inquérito foram o sexo oroanal
adotado em sociedades em que os sistemas (‘cunete’) receptivo (81,6%) e insertivo (73,4%),
de parentesco perderam força39. e o barebacking sex (63,2%). O sexo com mais
Paulo relatou sobre cenas de estigmati- de uma pessoa também se mostrou prática
zação na infância e adolescência, na escola, recorrente, com alguma variação percentual
na vizinhança e na família, que culminaram para as suas diferentes modalidades: 36,6%
na sua expulsão de casa e na mudança para relataram ter feito sexo a três sem presença
a casa da sua avó, que o acolheu. Comentou de parceiro fixo, 25,3% evidenciaram sexo em
que os mesmos garotos que o xingavam, por grupo. Práticas grupais que envolvem parcei-
ser efeminado, eram aqueles com quem tinha ros fixos foram menos relatadas, mas, ainda
sexo às escondidas. assim, cerca de um quinto dos respondentes
Sobre a segunda interpretação, que não já teve alguma experiência com elas. Tiveram
exclui a primeira, mas a fortalece, carência relacionamento aberto 22,4% dos responden-
é descrita como um estado afetivo próprio a tes; e sexo a três, 21,6% (gráfico 1).
BDSM 20,8
Em grupo 25,3
Barebacking 63,2
O gráfico 2 mostra as práticas sexuais con- O ‘boquete’ insertivo (ser chupado) (91,2%)
forme atribuição de valor. O sexo com mais e o receptivo (chupar) (87,1%) sem camisinha
de duas pessoas é relatado como prazeroso também foram práticas muito presentes nas en-
por mais da metade deles (68,1%), ainda que trevistas. No contexto dos usos da boca durante o
tenham aparecido pouco nas entrevistas – que sexo, as práticas de menor percentual de aprecia-
enfocavam as últimas experiências sexuais dores foram o ‘boquete’ insertivo (34,8%) e o re-
dos interlocutores. Também não exploramos ceptivo (29,9%) com camisinha. Chama atenção,
devidamente nas entrevistas as práticas orais entretanto, que o sexo anal insertivo (84,2%) ou
que envolvem o ânus, as quais, conforme os receptivo (83,8%) com camisinha sejam descritos
interlocutores do inquérito, são bastante como mais prazerosos que o insertivo (77,6%) ou
prazerosas, tendo o ‘cunete’ receptivo (ser receptivo (70,7%) sem camisinha – o que, certa-
chupado) com 83,2%; e o insertivo (chupar), mente, tem um profundo impacto da Aids e das
com 75%. campanhas sobre sexo mais seguro42.
0 20 40 60 80 100 120
Prazeroso Desprazeroso
‘chuca’ direito, por ‘nojo’ das fezes. Juliano Do mesmo modo, as relações duais são o
disse que incomoda utilizá-la. E completa: “às foco dos materiais ainda que o sexo em grupo
vezes escapa, né? Ela fica saindo do pau, você produza ‘tesão’ para dois terços dos responden-
tem que ficar vigiando pra colocar de volta e tes. É preciso parar de criticar essa modalidade
tal”. Ele continuou: de parceria sexual como vilã da infecção pelo
HIV31 e pensar em estratégias preventivas que
Não sei para a parte do passivo como é que fica a possam reconhecê-las e incorporá-las na pre-
situação, mas como é que sente porque eu nunca... venção enquanto formas legítimas de prazer.
Quando fiz [passivo], estava namorando, estava Essas práticas e parcerias precisam aparecer
aquela coisa de amor e tudo mais, aí eu não usei nos materiais, nos aconselhamentos e nas oficinas
camisinha quando eu fui passivo. Mas, ao ser ativo de sexo seguro, em cenas que produzam reflexões
com outras pessoas é muito incômodo, muito in- e possibilitem que as decisões pelo sexo anal sem
cômodo mesmo a camisinha. Você não sente bem camisinha considerem não apenas os vínculos
nada. É bom o couro no couro. e as emoções, mas também incorporem uma
série de tecnologias já disponíveis e realmente
EROTIZANDO A PREVENÇÃO eficazes, mas pouco conhecidas — como a PrEP
e a PEP11,37,49. Nesse âmbito, é preciso reconhe-
Os materiais instrucionais voltados para po- cer a variação nos contextos intersubjetivos dos
pulação HSH, sobretudo os produzidos por casais e outros arranjos de parcerias (trisais etc.),
organizações governamentais, ainda estão e criar estratégias para “seguranças negociadas”5
localizados dentro de uma lógica heteros- que incluam a testagem e o respeito às janelas
sexual43. Muito da eroticidade que o inqué- imunológicas, e reflexões nas quais os acordos
rito dimensiona é dissidente das narrativas entre parceiros possam ser congruentes com a
sobre sexualidade que a concebem como dinâmica do vírus37.
naturalmente reprodutiva – repronarrati- Um olhar especial precisa recair sobre a
vas e reprossexualidades –, que sustentam a camisinha, uma vez que muitos participan-
heteronormatividade32,44. tes mencionaram dificuldades no uso dela. A
Práticas sexuais que tensionam, por indústria já avançou bastante no gosto e na
exemplo, a monogamia e as mimetizações sensibilidade, mas as que são distribuídas gra-
masculino/pênis/penetrante e feminino/ tuitamente continuam sendo não adequadas
vagina/ânus/penetrado45. Nesse âmbito, o para o sexo oral. Embora seja insignifican-
‘cu’ e a boca têm uma centralidade que, por te a possibilidade de infecção do HIV pelo
vezes, borra e, por vezes, reorganiza as re- ‘boquete’, este tem um papel importante no
presentações e práticas de HSH em relação enredo sexual e poderia facilitar sua perma-
às reprossexualidades46–48. O ‘boquete’ e o nência para momentos de maior risco se a
‘cunete’, ainda que não sejam importantes na camisinha já fosse colocada nos momentos
infeção pelo HIV, o são para muitas outras IST, iniciais das transações sexuais.
além de serem práticas bastante presentes na
obtenção de prazer.
Outro exemplo que borra as representa- Considerações finais
ções de sexo-gênero44,45 mais comuns é o da
versatilidade (Sari) nas posições sexuais1,27, Neste texto discutimos a gestão de risco para
relatada por 83,5% dos respondentes do in- o HIV entre HSH da RMR. A coleta ocorreu
quérito, independentemente de estilizações de em um contexto de alta prevalência de HIV,
gênero. Ou seja, os prazeres do baixo corporal quando a PrEP ainda não estava disponível
deslocam os homens das representações bi- e a PEP era pouco conhecida e utilizada.
nárias masculino/ativo e feminino/passivo48. Analisamos cenas sexuais produzidas por
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RESUMO Diversos estudos descrevem as condições de vulnerabilidade social das pessoas trans e suas
experiências de discriminação nos serviços de saúde. Tais situações dificultam o acesso dessa população à
promoção e ao cuidado em saúde e, no caso particular da Aids, resultam na baixa adesão à prevenção e ao
tratamento. Este artigo discute as estratégias para o acesso aos serviços públicos de saúde e à prevenção ao
HIV desenvolvidas por travestis e mulheres trans da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A reflexão
baseou-se em dois estudos: um sobre testagem de HIV e outro sobre o uso das tecnologias biomédicas de
prevenção (PrEP, PEP). Os achados, decorrentes da observação participante e de entrevistas, demonstram
que a produção do cuidado em saúde desse grupo se constrói alicerçada em uma certa solidariedade política,
aqui denominado de irmandade, que medeia a relação de travestis e mulheres trans com o território, os
dispositivos de saúde e a experiência com o HIV/Aids. Tais dados sugerem a importância de as políticas
de saúde considerarem as condições de vulnerabilidade das pessoas trans, as demandas concernentes
à: autonomia e autodeterminação na produção de saúde; legitimação de suas formas de subjetivação e
cuidado de si; especificidade da relação entre pares.
ABSTRACT Several studies describe the conditions of social vulnerability of transgender people and their
experiences of discrimination in health services. Such situations make it difficult for this population to
access health promotion and care and, in the particular case of AIDS, result in low adherence to prevention
and treatment. This article discusses the strategies for accessing public health services and HIV prevention
developed by travestis and transgender women in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro. The reflection
is based on two studies, one on HIV testing and the other on the use of biomedical prevention technologies
(PrEP, PEP). The findings, resulting from participant observation and interviews, indicate that the production
of health care for this group is built from a certain political solidarity, here called sisterhood, which medi-
ates the relationship of travestis and transgender women with the territory, the devices of health, and the
1 Universidade Federal experience with HIV/AIDS. Such data suggest the importance of health policies considering the conditions of
Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ) – Seropédica (RJ), vulnerability of trans people, the demands concerning: autonomy and self-determination in the production of
Brasil. health; legitimation of their forms of subjectivation and self-care; specificity of the relationship between peers.
aurelianolopes@gmail.com
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Cruz (Fiocruz), Instituto
Oswaldo Cruz (IOC) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 103-116, DEZ 2022
104 Silva Junior AL, Brigeiro M, Monteiro S
política entre sujeitos identificados ou autoi- projetos contaram com aprovação dos Comitês
dentificados como trans. de Ética em Pesquisa das instituições envol-
A partir daqui, será abordada a solidarie- vidas, CAAE: 16076619.2.0000.5248 e CAAE:
dade política no universo estudado por meio 45267315.9.0000.5248 respectivamente.
da categoria “irmandade travesti”, reiterada As duas pesquisas compartilhavam da pre-
por Nascimento19, que parece melhor dizer da ocupação em entender as mudanças sociais
agência ético-estético-política de travestis e derivadas da virada biomédica nas respostas
de mulheres trans na sua relação com o setor à epidemia de Aids na última década, com o
saúde no Brasil: apagamento das fronteiras entre o que é da
ordem da prevenção e do tratamento e a pre-
Durante toda minha vida, eu me senti sozinha dominância dos princípios, recursos e espaços
quando não estava entre as minhas e os meus, clínicos na concepção e prática preventiva.
entre travestis e transexuais, momentos em O projeto Testagem buscou refletir sobre as
que mais me sinto humana, acolhida, abrigada implicações sociais da estratégia de controle
e protegida. [...] a irmandade travesti, que é o da epidemia por meio da testagem massiva de
nosso modo de exercer o que bell hooks (2019) HIV em populações vulneráveis (geralmente
e o feminismo de modo geral compreendem aquelas sexualmente marginalizadas), con-
como sororidade – a construção de solidarie- forme as políticas globais do Testar e Tratar.
dade política. Não por acaso, Sophia Rivera O projeto PrEP/PEP analisou à implementa-
(2020b) afirma que a irmandade travesti é a ção da PrEP e da Profilaxia Pós-Exposição
nossa cura!19(10–12). (PEP) no Brasil, os significados que lhes foram
atribuídos por diferentes atores sociais e sua
relação com a sexualidade. Em tais estudos,
buscou-se conhecer os efeitos da biomedicali-
Material e métodos zação da prevenção tanto na organização dos
serviços de atenção básica e especializados,
As reflexões desenvolvidas neste artigo como nos modos de subjetivação de pessoas
derivam de duas pesquisas orientadas pela pertencentes aos segmentos priorizados por
perspectiva socioantropológica, feitas no con- tais políticas.
texto pré-pandemia da Covid-19 e coordena- As entrevistas abordaram o perfil social,
das pela terceira autora. Ambas envolveram a trajetória de vida e as experiências com os
trabalho de campo e reuniram 22 entrevistas serviços de saúde, sendo realizadas presen-
com mulheres autodeclaradas trans e travestis cial e individualmente e gravadas em áudio,
da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. mediante autorização e assinatura do Termo
Entre as participantes dos estudos, 13 foram de Consentimento Livre e Esclarecido. Além
entrevistadas pelo primeiro e o segundo autor desse material empírico, foram realizadas
no âmbito do projeto (NN 2019-2020), do- observações em serviços públicos de saúde
ravante denominado projeto PrEP/PEP. As especializados, no caso do projeto PrEP/PEP,
outras nove foram entrevistadas por uma pes- e de contextos de trabalho sexual e espaços de
quisadora do projeto (NN 2015-2018), daqui sociabilidade, no caso do projeto Testagem.
em diante chamado de projeto Testagem, sob Os nomes adotados no texto são fictícios, e
supervisão do segundo e da terceira autora. Os os perfis foram descritos nos quadros 1 e 2.
Local de
Nome Autodefinição Idade Raça/Cor Escolaridade Trabalho Renda mensal residência Onde soube da PrEP
1. Jéssica Mulher trans 24 Branca Superior incompleto Garota de R$ 4.000 Zona Oeste, Movimento social/institui-
(cursando) programa Rio de Janeiro ção de pesquisa
2. Sandra Mulher trans 36 Branca Superior incompleto Funcionária do R$ 5.000 Zona Norte, Rio Movimento social/institui-
(trancado) Poder Legis- de Janeiro ção de pesquisa
lativo
3. Sheilla Travesti 26 Negra Superior incompleto Bolsista R$ 1.500 Zona Norte, Rio Movimento social/institui-
(cursando) de Janeiro ção de pesquisa
4. Fabiana Mulher 31 Mulata Superior completo Garota de R$ 7 a 10.000 Zona Oeste, Rede de amigas
programa Rio de Janeiro
5. Thaísa Mulher 28 Branca Ensino Médio completo Garota de R$ 7 a 10.000 Zona Oeste, Rede de amigas
programa Rio de Janeiro
6. Fernanda Travesti 33 Parda/ Superior incompleto Bolsista R$ 1.000 Zona Norte, Rio Cartaz na universidade
cabocla (cursando) de Janeiro
7. Natália Travesti 18 Negra Ensino Fundamental Sem ocupa- Sem renda Abrigamento Rede de amigas
incompleto (abando- ção LGBTQIA+
nou)
8. Jaqueline Travesti 26 Negra Ensino Fundamental Sem ocupa- Sem renda Abrigamento Movimento social/institui-
incompleto (abando- ção LGBTQIA+ ção de pesquisa
nou)
9. Fabíola Travesti 25 Negra Ensino Técnico comple- Sem ocupa- Sem renda Abrigamento Rede de amigas
to e Superior incomple- ção LGBTQIA+
to (trancado)
10. Gabriela Mulher 33 Negra/ Ensino Médio incom- Dançarina/ R$ 4 a 5.000 Zona Oeste, Movimento social/institui-
mulata pleto (abandonou) empresária Rio de Janeiro ção de pesquisa
11. Marlene Mulher trans 25 Branca Ensino Médio incom- Sem ocupa- Sem renda Abrigamento Serviço de saúde
pleto (abandonou) ção LGBTQIA+
12. Sueli Travesti Não infor- Branca Não informado Ativista inde- Não informado Abrigamento Movimento social/institui-
mado pendente LGBTQIA+ ção de pesquisa
13. Mariana Mulher trans 38 Negra Superior incompleto Ativista e Não informado Centro, Rio de Movimento social/institui-
(abandonou) coordenadora Janeiro ção de pesquisa
comunitária
Fonte: elaboração própria.
Nome Autodefinição Idade Raça/Cor Escolaridade Trabalho Renda mensal Local de residência
1. Andressa Mulher transexual 35 Indígena Ensino Médio técnico com- Programa rio sem R$ 900/mês + Campo Grande
pleto homofobia bolsa família
2. Hillary Mulher transexual 31 Não informado Ensino Médio completo Auxiliar de cozinha/ R$ 1.000 Duque de Caxias
merendeira
3. Iris Travesti 43 Negra Ensino Superior em curso Assistente adminis- R$ 1.300 Duque de Caxias
trativa
4. Gracy Travesti 45 Critica a classifica- Ensino Médio completo Renda de aluguéis e (+ ou – R$ 4.000 Duque de Caxias
ção cor/raça ajuda companheiro
5. Ellen Mulher transexual 41 Branca Ensino Médio em curso Copeira no Centro de R$ 1.020 Duque de Caxias
Referência LGBT
6. Crislene Mulher transexual, 38 Parda/negra Ensino Médio incompleto Renda de aluguéis R$ 3.000 Dique de Caxias
mulher trans
7. Dayanne Trans 23 Negra Ensino Médio incompleto Cabelereira e este- Não informado Duque de Caxias
ticista
Quadro 2 (cont.)
Nome Autodefinição Idade Raça/Cor Escolaridade Trabalho Renda mensal Local de residência
8. Bárbara Mulher trans com 25 Negra Ensino Médio completo Atendente disque R$ 1.200/mês + Campo Grande
identidade de cidadania LGBT Bolsa Família
travesti
9. Jeniffer Trans 25 Branca Ensino Fundamental incom- Cabelereira e profis- R$ 2.000 a R$ Belford Roxo
pleto sional do sexo 3.000
Fonte: elaboração própria.
Das 13 entrevistadas do projeto PrEP/PEP, três e/ou serviços diversos. Três delas, na faixa de
foram contatadas nos serviços de PrEP na Região 38-45 anos, relataram experiências no mercado
Metropolitana do Rio de Janeiro; cinco, pelas sexual europeu. A renda de seis entrevistadas
redes pessoais dos entrevistadores; e cinco, em girava em torno do salário mínimo à época (entre
uma ocupação LGBTQIA+ num bairro carioca. R$ 900 e R$ 1.300), as demais relataram renda
Todas residiam na cidade do Rio de Janeiro. As entre R$ 2 e R$ 4 mil. Quatro tinham trânsito em
cinco moradoras da ocupação tinham de 18 a 26 instituições governamentais e/ou organizações
anos, e três se autoidentificavam como negras/ sociais voltadas para questões LGBTQIA+. Três
pretas. Além da baixa escolaridade, esse grupo viviam com o HIV.
se caracterizava pela falta de renda e condições Após a transcrição das 20 entrevistas, foi reali-
materiais precárias. Duas delas viviam com HIV. zada uma leitura exaustiva do material, visando à
As outras sete entrevistadas tinham de 24 a categorização e à interpretação dos depoimentos,
36 anos; três se autodeclararam como brancas, orientadas pelo método de análise de conteúdo20.
três como negras/pretas e uma como parda/ Tal processo envolveu a sistematização do mate-
cabocla; quatro completaram o curso superior rial em blocos temáticos, seguida da análise das
completo e uma não chegou a finalizar. Todas relações entre as unidades identificadas. Foram
viviam em casas ou apartamentos alugados. Cinco definidas as seguintes categorias analíticas: 1)
informaram renda mensal entre R$ 4 e 10 mil: situações de discriminação ou receio da estig-
três eram trabalhadoras sexuais; uma era fun- matização no âmbito dos serviços de saúde; 2)
cionária do Poder Legislativo e uma trabalhava vulnerabilidades e exclusão social; e 3) estratégias
em espetáculos e estabelecimentos de beleza. de resposta às discriminações no cuidado em
Duas recebiam bolsas de R$ 1.000 a 1.500 como saúde. A análise dos achados buscou entender
estudantes universitárias. como a irmandade entre as travestis e as mulheres
As nove entrevistadas do projeto Testagem trans se manifestava tanto na relação delas com
foram contatadas por intermédio do Centro os serviços de prevenção e testagem anti-HIV
de Cidadania LGBTI da Baixada Fluminense e quanto nos cuidados gerais com a própria saúde.
abarcavam a faixa entre 23 e 45 anos. Quatro se
autodeclararam como negras, duas como brancas,
uma como indígena e duas não relataram. Sete Resultados e discussão
viviam em municípios da Baixada Fluminense e
duas, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Quatro cursaram o Ensino Médio completo; Discriminação e estigmatização nas
uma, o Ensino Superior e quatro tinham Ensino trajetórias de vida
Fundamental ou Médio incompletos. Seis re-
lataram passagens pela prostituição. Em geral, Ao analisar as entrevistas com as travestis e
o trabalho sexual era exercido de forma con- as mulheres trans, os depoimentos de profis-
comitante à função de auxiliar em instituições sionais e gestores e as observações de campo,
A noção de irmandade travesti expressa ao [...] é aquela coisa, né? ‘De mulher pra mulher,
mesmo tempo uma forma de subjetividade, Ma.ri.sa’. É tipo assim, se uma travesti for numa
de formação de rede e/ou filiação e modos festa onde tem um montão de travesti, ela já chega
de transitar pelo meio social. Essa irmandade aberta. Quando ela chega num lugar muito hete-
se dá sempre em função de a transgenerida- rossexual ou, aparentemente, tudo heterossexual,
de ser cotidianamente percebida e reiterada na cabeça dela é isso: ‘Será que vão me ver? Será
como moralmente subordinada ao padrão que vão falar? Será que vão aceitar?’.
cisgênero, concretizando-se como um modo
de existência coletiva em face dessa posição Ao descreverem suas experiências com os
social inferiorizada. Apesar de sua potência, serviços de saúde, elas ressaltam que o estabe-
essa irmandade travesti não se dá sem confli- lecimento de confiança com os profissionais
tos, disputas e/ou tensões entre suas partici- e a compreensão das informações sobre os
pantes e o contexto que a possibilita, muitas cuidados oferecidos dependem da intera-
vezes marcado pelo trabalho sexual. Mesmo ção entre elas. Acerca do uso da PrEP, por
que não nomeada como irmandade travesti, exemplo, a grande maioria das usuárias trans
essa forma de relação e constituição de si tem e travestis afirmou ter tido informações ou
sido frequentemente referida pela literatura acesso ao serviço de saúde que ofertavam esse
etnográfica11,15,21–24. método preventivo por meio de uma amiga
Embora a exclusão, a violência e as demais trans. Thaisa [branca, 28 anos] nos descreveu o
situações de vulnerabilidade social façam parte fluxo por intermédio do qual sua rede chegou
da trajetória da grande maioria das travestis e ao uso da PrEP:
das mulheres trans entrevistadas, a solidarie-
dade sob o signo da irmandade travesti fun- Eu já ouço falar do PrEP tem um tempo, inclusive eu
ciona como protetiva em diversos âmbitos da que inseri minha amiga que mora comigo porque
vida. No que tange às formas de evitar discri- outras amigas me inseriram, aí todas nós fazemos
minações cotidianas, a entrevistada Fernanda uso juntas. [...] Elas foram primeiro, conseguiram
[cabocla, 33 anos] explicou-nos que prefere agendar [para] elas, eu e Tereza e a Fabiana pra
sair acompanhada de outras mulheres trans: depois. Aí eu voltei com a Fabiana, porque eu já
sabia como era. [...]. Como eu moro junto com a
teve um tempo que eu tava evitando sair muito, Fabiana., a gente vai juntas, é longe, a gente racha
sair na rua, é... quê que eu faço mais?! Tem várias Uber, faz tudo junto e volta.
coisas que a gente faz, sair acompanhada sempre,
sair sozinha é bem ruim. Além da discriminação social, um dos
maiores desafios relatados para o acesso aos
O aprendizado sobre a prevenção ao HIV serviços de saúde é o estigma do HIV associado
ocorre também em contextos de sociabilida- a elas11,27. Como destacou Gracy:
de. Jeniffer [branca, 22 anos] relatou que as
informações que ela tinha sobre o HIV foram Mas você queria que o meu vizinho me visse en-
obtidas na casa em que vivia, no centro da trando no carro do SUS? Entendeu? Meu vizinho
cidade, com outras travestis. A potência desse que, de repente, saiu comigo. [...] Se botar o nome
processo coletivo de identificação que confor- ‘SUS/Travesti’, já é doença.
ma uma irmandade travesti foi destacada por
Gracy [45 anos] ao responder se a presença Esse estigma é reiterado pela própria co-
de uma travesti em uma equipe de testagem munidade trans, algumas vezes internalizado
como uma “possibilidade latente”10, ou algo irmandade travesti, reitera uma forma de agir
naturalizado, como indica Natália [negra, 18 coletivamente e de se apoiar, empregada para
anos]: “mas pra mim é aquilo, se depois eu con- afrontar o estigma relacionado com o HIV e
traísse, querido, eu ia viver igual, eu ia continuar possíveis discriminações nos serviços. Nesse
me cuidando, eu ia tomar meu remédio, e vida sentido, destaca-se o relato de Sueli [branca,
que segue”. ...], uma travesti ativista coordenadora da ocu-
Autores27 têm apontado a existência de uma pação LGBTQIA+, acerca do apoio social na
política do segredo em torno do HIV/Aids conformação do cuidado:
entre as travestis, possivelmente relacionada
com o medo da discriminação, a exclusão do Eu tô na rua. Pego as pessoas em vulnerabilidade.
cuidado e/ou de relações sociais. Esse silen- Pergunto várias coisas, né? Se toma algum me-
ciamento impacta tanto a política de saúde dicamento. Se não toma. Se já ouviu falar sobre
que, ao tentar fugir da associação direta entre preservativo se tem o costume de se prevenir, se não
travestis e Aids, pode acabar negligenciando tem. Como é que a relação? Se é só com homem. Se
essa população, como as possibilidades coti- é só com mulher? Se é homem, mulher ou travesti.
dianas de construção do cuidado integral que Homem trans e/ [...] Eu acho que tudo isso a gente
conjugue a travestilidade e a soropositividade precisa de mais afeto, sabe? Tipo assim, falar com
para HIV27. Justamente para fugir do estigma as pessoas. Entender as pessoas. [...] todo dia eu
do HIV e/ou pelo medo de se descobrir soro- tô aqui. [...]: ‘Oi. Como é que você tá se sentindo?
positiva, haja vista a alta prevalência de HIV/ E tá bem?’. Eu acho que o trabalho de base que
Aids nessa população7,8, muitas delas evitam eu enquanto ativista faço, [...] até chegar no posto
a realização da testagem, como afirmou Íris de saúde meu amor, você já passou por Sueli. [...].
[negra, 41 anos]: Você já passou pela rede toda.
Porque, às vezes, você não sabe. Às vezes, você A irmandade travesti não apenas facilita a
passa mal, você vê ‘Aí, vamos fazer um teste de entrada nos serviços de saúde como também
HIV’? ‘Não. Não vou, não quero’. Que, às vezes, possibilita o estabelecimento de relações com
essa pessoa não quer saber. Então é por isso, Organizações Não Governamentais (ONG)
entendeu? que promovem ações de prevenção e cuidado
ao HIV como referido por Crislene [parda/
Nesse cenário, mesmo as entrevistadas negra, 38 anos]:
que utilizam de estratégias de prevenção de
forma contínua e recorrente – e especialmente Olha, tem, o último [teste] que eu fiz tem menos
quem exerce o trabalho sexual – relatam a de dois meses, né? Foi na reunião que teve no Pela
presença do medo advindo daquela possibi- Vidda [uma ONG-Aids]. No Pela Vidda, né? Isso.
lidade latente. Thaísa [branca, 28 anos], ao Lá eu fiz a testagem da saliva.
buscar a PEP após uma situação em que se
sentiu exposta, foi com duas amigas ao posto As ONGs fazem também o encaminhamento
de saúde, que ficaram com ela para instituições e serviços de saúde, como
descrito por Sandra [branca, 36 anos]:
[...] o dia todo, aproveitaram e também fizeram
exames [testagem para HIV], uma quase morreu Numa dessas idas ao Grupo Arco-íris, aquele ‘quero
do coração porque tinha medo do resultado, mas saber’ ou era ‘fique sabendo’, o programa de tes-
deu tudo certo, ninguém tem nada. tagem gratuita, eles me indicaram pra Fiocruz pra
participar do processo de pesquisa da PrEP e aí
O acesso ao serviço de saúde em pares, a fiquei dois ou três anos como voluntaria da PrEP.
partir de uma configuração identificada como
As meninas lá são muito minhas amigas. As não adianta você bater na porta de uma travesti
meninas que trabalham no posto de saúde. Elas [falando] ‘vai fazer exame’. Entendeu? Ela tem que
fazem visita pra todas as travestis que moram ali ouvir da conhecida dela, da amiga dela, daquela
na Lapa, no Casarão. [...] Tudo meu, perguntava que ela confia, entendeu?
às meninas: ‘Eu posso isso? Eu posso aquilo? Ah,
esse hormônio é bom? Ah, isso é bom?’ Tudo per-
guntava, entendeu? Tudo, qualquer coisinha. Uma Considerações finais
dor de barriga em mim, já pegava e perguntava às
meninas: ‘Meninas, o que que eu tenho que fazer?’. Os achados reafirmam que a irmandade tra-
vesti se mostra fundamental nos processos
Nomear as profissionais de saúde como de subjetivação e na relação entre travestis
‘meninas’ parece algo extremamente signifi- e mulheres transexuais como atestado pela
cativo, haja vista ser essa a forma como usu- literatura. A possibilidade da reprodução e do
almente a maioria das entrevistadas se refere uso dessa lógica pelas mulheres trans e travesti
às amigas de sua rede, formada por travestis e no âmbito dos serviços de saúde contribui
mulheres trans. Considera-se que transladar para a percepção de acolhimento dessa po-
o termo ‘meninas’ do universo trans para o pulação nesses dispositivos. Seria um esforço
das profissionais dos serviços de saúde indica de, como apregoa Teixeira et al.27, “descer ao
o reconhecimento destas como pessoas de cotidiano”, o que significa “trazer a prática de
referência, com quem se pode contar. Ou seja, cuidado para os lugares onde ela é necessária
uma ‘cis aliada’ amiga que tem autorização e e no contexto de interação das pessoas”27(480)
autoridade para integrar o âmbito dos cui- e, consequentemente, promover uma maior
dados em saúde desde dentro de sua rede de integração social a partir do acesso a bens e
irmandade travesti. serviços de cidadania28.
Cabe ressaltar que se utilizou a noção de Como demonstrado, a quase totalidade dos
amizade, proposta por Rezende29, como a acessos das mulheres trans e travesti aos servi-
criação e a manutenção de relações de afini- ços de saúde na Região Metropolitana do Rio
dade e afeto a partir de: de Janeiro se dá em função da rede de contatos
entre amigas transgênero. Isso significa dizer
Semelhanças que aproximam, mediando dife- que a lógica do cuidado entre travestis e mu-
renças e criando laços (no caso, de amizade) lheres trans ocorre de forma encarnada por
entre pessoas. [...] Afinidade pode assim ser dentro daquele coletivo e/ou rede que ela faz
referida a uma noção de indivíduos iguais por parte. Assim, tópicos relativos ao HIV/Aids, às
princípio, mas não necessariamente29(243). tecnologias preventivas (preservativos, PrEP e
PEP), aos prazeres e erotismo, às dificuldades
Essa noção de amizade dialoga com a e alegrias de ser uma mulher transexual e/ou
proposta transfeminista anteriormente travesti parecem mais tangíveis ou mesmo
mencionada de criação de solidariedade possíveis dentro da irmandade travesti. Em
política e uma política que pode se basear suma, os laços de solidariedade política que
no afeto e no cuidado, ao mesmo tempo que conformam a irmandade travesti cumprem um
não busca minimizar e/ou apagar a dife- importante papel na ampliação do acesso aos
rença. Os laços de amizade/solidariedade serviços de saúde, particularmente naqueles
estendidos às profissionais de serviços de caracterizados por um atendimento humani-
saúde parecem indicar bom acolhimento, tário e não discriminatório.
maior vinculação e, consequentemente, As reflexões sobre a autonomia e a auto-
maior adesão à prevenção ao HIV28. Como determinação das pessoas trans e o cuidado
bem destacou Gracy: de si, a partir da relação entre pares, podem
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DOI: 10.1590/0103-11042022E708
RESUMO Este artigo descreve e analisa, de uma perspectiva etnográfica, como as pessoas participantes
da Coletiva Loka de Efavirenz percebem, vivenciam e enfrentam os efeitos da Aids em seu cotidiano, com
vistas a contribuir para o entendimento das novas formas de ativismo em HIV/Aids que emergiram na
década de 2010 no Brasil e sua relação com processos de subjetivação e construção de redes informais
de cuidado. Mostra-se como os membros da Loka se articulam como sujeitos atravessados pelo estigma
de HIV/Aids, reivindicando o exercício de suas sexualidades e identidades marcadas por gênero, raça e
classe. Desse modo, adentram a disputa por direitos por meio da produção de conhecimento e de ações
que adquirem força na produção de uma rede de cuidado para além dos serviços de saúde. A análise
das práticas e elaborações da Coletiva realça a Aids como lente privilegiada para situar desafios, lutas,
discussões e debates que atravessam os modos de regulação das práticas erótico-sexuais e das expressões
de gênero, refletindo tensões e transformações sociais mais amplas.
ABSTRACT This article describes and analyzes, from an ethnographic perspective, how people participating
in the Loka de Efavirenz Collective perceive, experience, and face the effects of AIDS in their daily lives, in
order to contribute to the understanding of the new forms of HIV/AIDS activism that emerged in the 2010s
in Brazil and their relationship as processes of subjectivation and construction of informal care networks. We
show how the members of Loka articulate themselves as subjects crossed by the HIV/AIDS stigma, claiming
the exercise of their sexualities and identities marked by gender, race, and class. In this way, they enter the
dispute for rights through the production of knowledge and actions that acquire strength in the production of
a network of care beyond health services. The analysis of the Collective’s practices and elaborations highlights
AIDS as a privileged lens to situate the challenges, struggles, discussions, and debates that cut across modes
of regulating erotic-sexual practices and gender expressions, reflecting broader social tensions and changes.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 117-128, DEZ 2022
118 Oliveira PBG, Simões JA
Nascimento e Renan Moser. Esse curso, pro- performances e outras intervenções em uni-
movido pela Rede de Jovens São Paulo Positivo, versidades, conferências nacionais e inter-
em parceria com a Coordenação Estadual de nacionais, em festas de sexo em São Paulo,
DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de assim como a escrever e refletir em diversas
São Paulo (SES-SP) e com apoio do Programa plataformas digitais. A Loka passou a compor
Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ outros espaços institucionais, como a própria
Aids (Unaids), reuniu jovens com o objetivo Rede de Jovens São Paulo Positivo, e a cons-
de construir mobilizações diante dos novos truir articulações e intervenções políticas na
desafios da epidemia. Foi nesse espaço que a Assembleia Legislativa (Alesp) e na SES-SP.
maioria dos integrantes atuais se conheceu e Alguns membros retornaram à universida-
passou a construir coletivamente uma rede de de, para terminar a graduação ou iniciar um
apoio afetiva, de fortalecimento material e de mestrado. Ademais, chegaram até a angariar
reconstrução subjetiva. recursos de editais públicos, como VAI 2019, da
No início, não era ‘só’ a Aids que as afetava, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo,
mas também a pobreza, a fome, os efeitos em que desenvolveram o projeto ‘Avivamento
colaterais das medicações, entre outras vul- do Corpo PositHIVo’, ao longo do primeiro
nerabilidades. Morando ‘ilegalmente’ no ano da pandemia da Covid-19.
Conjunto Residencial da Universidade de Boa parte dos integrantes da Loka nome-
São Paulo (Crusp), por muitas vezes, as que aram esse processo de construção e fortifi-
possuíam vínculo com a universidade dividiam cação coletiva como ‘aquilombamento’, uma
seu ‘bandejão’ com as que não tinham o que estratégia ancestral de organização social e
comer. Ou, quando isso não era possível, iam de produção de tecnologias que possibilitou
até o Ceasa atrás de uma ‘xepa’, buscando e pessoas negras e indígenas sobreviverem ao
coletando legumes e frutas caídas no chão genocídio. Conforme Beatriz Nascimento25, a
para alimentar o ‘bonde’. Assim, os laços foram palavra ‘quilombo’, significando ‘união’, remete
sendo construídos, por meio da alimentação e a uma instituição social africana que permitia
do compartilhamento das dores e alegrias de incorporar pessoas por meio de relações de
vidas atravessadas por muita violência. A união ‘iniciação’ que cortavam transversalmente
foi necessária para que atravessassem vivas os as estruturas de linhagem. No contexto da
momentos de maior dificuldade. As Lokas, em diáspora e da escravidão, o quilombo tornou-se
suas palavras, juntaram-se para sobreviver. símbolo da resistência negra à opressão e da
Durante esse processo de quase três anos projeção de uma forma autônoma de orga-
(entre 2016 e 2019), a Loka foi se construindo nização social. Assim, traduzindo vínculos
como grupo de partilha e intervenção, criando criados por intermédio da ‘iniciação’ de viver
uma página no Facebook24 alimentada pelas com HIV/Aids em instrumento de afirmação
reflexões coletivas. As discussões, na grande e resistência, muitas das Lokas puderam se
maioria sobre Aids, levavam horas – e acon- reerguer, alimentar sonhos e prospectar futuro.
teciam, sobretudo, no momento especial Assim como em outras experiências regis-
em que cozinhavam, que as impulsionava a tradas pela literatura sobre ativismos de HIV/
‘colocar a Aids na fogueira e transformar as Aids, o ato de compartilhar memórias e signi-
dores em piada’. O deboche, característica ficados abriu novos horizontes e perspectivas
que atravessa a Loka desde sempre, é um meio para o que parecia ser um único trajeto. Com
de ‘amenizar as dores’ e ajudar a ‘cicatrizar a construção de espaços seguros, de troca,
as feridas da vida’. Várias oportunidades de de manutenção do cuidado e de produção
ações começaram a nascer além do Facebook: de conhecimento, a Loka também transitou
surgiram convites para debater sobre Aids do ‘HIV-profecia’ para o ‘HIV-território’, da
e desenvolver atividades sobre sexo seguro, maldição para o acesso a cuidados em saúde,
corrente sanguínea por meio do uso regular e de vivendo com HIV, muito provavelmente eu já
dos medicamentos e se evita o quadro de Aids tinha voltado a trabalhar.
e a própria transmissão do vírus. São processos
que se valem do estigma para controlar con- Ao compreender que a Aids não pode ser
dutas sexuais e sociais das PVHA em nome da resolvida apenas com remédios, mas com
‘ordem social’7,37. A intersecção entre transfobia, políticas de reparação social e combate ao
aidsfobia e racismo faz com que as experiências estigma, a Loka criticou sistematicamente
sociais, sexuais e afetivas de Carolina Iara sejam o enfoque biomedicalizante da epidemia
permeadas por essas tensões: presente na última década, que alimentou
a ideia do ‘fim da Aids’ como estratégia
[...] depois que transicionei, acho que aumentou o possível até 203040–42. O próprio nome da
medo de ser criminalizada. Houve uma perda de Coletiva questiona esse direcionamento e
liberdade sexual, de algumas coisas que eu fazia busca retomar o debate interrompido em
no âmbito da sexualidade que não faço mais. E torno dos efeitos colaterais dos fármacos43,
isso por puro e simples medo de ser estuprada, simbolizados no Efavirenz, antirretrovi-
medo de uma série de questões. A transfobia tem ral muito utilizado no Brasil na forma de
um papel nisso. dose tripla combinada em uma só pílula.
De forma debochada, a Loka se apresentou,
Nos processos criminais de transmissão por muito tempo, por meio de sua foto de
do HIV julgados em segunda instância em avatar nas redes sociais com pílulas enfia-
quatro estados (São Paulo, Rio de Janeiro, das no nariz e na boca, problematizando
Minas Gerais, Rio Grande do Sul) e no Distrito o conselho médico rotineiro de que ‘é só
Federal, analisados desde o início da epidemia tomar um remedinho’.
até o final de 2019, em nenhum desses casos, Todavia, isso não significa que a Loka não
o uso do discurso biomédico pelo judiciá- reconheça a grande importância que o uso dos
rio conseguiu avançar além do preservativo antirretrovirais teve na própria reconstrução
como prevenção e da falsa ideia de que não de suas subjetividades e na possibilidade de re-
se morre mais de Aids7. A indetectabilidade começar a pensar um futuro. Lili Nascimento,
e a intransmissibilidade adquiridas pelo uso pessoa que nasceu com HIV, trouxe para a
dos antirretrovirais não foram consideradas conversa a questão das diferenças que sente
para absolver quaisquer casos de supostas em relação a quem soroconverteu em algum
transmissões do HIV até a referida data7. momento da vida. Ela pontua que “quem des-
Ainda sobre a esfera jurídica e seus enten- cobre depois fica muito tempo nisso de ‘nossa,
dimentos da epidemia, Carolina Iara contou vou lá buscar remédio’, ‘nossa, a aids…’, ‘nossa,
que iniciou um processo na justiça para obter não consigo nem falar disso…’”, e contrapõe
afastamento do trabalho (em hospital) durante a com o que tem sentido como pessoa sempre
pandemia da Covid-19, e acredita que este só lhe viveu com HIV:
foi concedido devido à forma como o judiciário
ainda compreende a vivência com HIV/Aids. Eu acho que a transmissão vertical tá vindo num
outro movimento... Acho que a gente consegue
Eu acho que no judiciário, a noção ainda é do ‘ai- celebrar as revoluções, tá ligado? Acho que por ter
dético’. Eu vejo pelo processo que tô tendo com a passado pelo AZT, a gente chega nesse momento
prefeitura. Em todo momento, eu não sou tratada agora, é muito mais concreto pra gente… o viver
como pessoa vivendo com HIV, eu sou tratada como com HIV, essa mudança do ‘aidético’ para o viver
‘portadora de Aids’. Inclusive é essa noção que me com HIV. A gente sentiu historicamente, a gente
mantém afastada do trabalho neste momento, cresceu com isso, né?! Acho que é aí que mora a
porque se entrasse a noção de indetectabilidade principal diferença de um grupo para outro.
Nesse cenário, persiste uma dimensão de vidas precarizadas, formou-se uma rede
cotidiana da criminalização das PVHA, que afetivo-política, de produção de conhecimento
transformam situações aparentemente simples e de elaboração de estratégias de enfrenta-
em grandes problemas, constrangimentos e mento das múltiplas formas de segregação,
aflições, tais como realizar os testes para HIV, desmoralização e desumanização das vivên-
retirar medicamentos, relacionar-se sexual e cias com HIV/Aids. Desde meados da década
afetivamente, ir à escola, trabalhar, frequen- passada, a Loka tem se articulado e desenvolvi-
tar banheiros, dividir objetos, e até mesmo do estratégias de fortalecimento coletivo, hoje
falar sobre Aids. A persistência do estigma em consideradas referência no ativismo juvenil
relação às PVHA nas relações sociais e no trato em HIV/Aids. Ao se apoiarem cotidianamente
institucional, a despeito de todo avanço biotec- em múltiplas esferas, construíram uma rede
nológico e de produção de saber do movimento de cuidado a partir da construção de relações
social de Aids, apresenta-se fortemente aliada seguras e de espaços de compartilhamento
à produção e ao cultivo do ódio contra alguns voltados a forjar novas possibilidades de vida.
grupos e populações, marcados especialmen-
te por suas expressões sexuais e de gênero,
na defesa de uma moralidade específica que Colaboradores
não barra o avanço da criminalização, mas a
produz e dela se retroalimenta. A epidemia Oliveira PBG (0000-0001-6864-3422)* parti-
de Aids não está em recrudescimento porque cipou da concepção do estudo, coleta, análise e
jovens perderam o medo da Aids, mas porque interpretação dos dados, redação, revisão crítica e
não são reconhecidos como sujeitos de sua aprovação da versão final do manuscrito. Simões
sexualidade nem têm seus direitos à saúde JA (0000-0002-9000-3621)* participou da con-
integral garantidos. cepção do estudo, análise e interpretação dos
É nesse cenário de disputas morais e polí- dados, redação, revisão crítica e aprovação da
ticas que surgiu a Loka de Efavirenz. A partir versão final do manuscrito. s
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Conflitos de interesses: inexistente
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Pessoal de Nível Superior (Capes) e Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Clarissa Bohrer da Silva1, Maria da Graça Corso da Motta2, Renata Bellenzani3, Crhis Netto de
Brum4, Aline Cammarano Ribeiro5
DOI: 10.1590/0103-11042022E709
ABSTRACT The objective was to understand the aspects involved in the communication of their own clini-
cal condition to their partners by young women born with HIV. This is qualitative research, developed in a
1 Universidadedo Estado Specialized HIV Care Service in the southern region of Brazil with ten young people who were born with HIV,
de Santa Catarina (Udesc)
– Chapecó (SC), Brasil.
using the individual interview, from June 2017 to March 2018. An anchored psychosocial analysis was used
clabohrer@gmail.com within the Framework of Vulnerability and Human Rights. Two groups emerged: the first composed of young
women who chose to communicate with their partners at the beginning of affective relationships; and the
2 Universidade Federal do
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 129-141, DEZ 2022
130 Silva CB, Motta MGC, Bellenzani R, Brum CN, Ribeiro AC
Figura 1. Dimensões do Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos na trajetória de comunicação do HIV das mulheres jovens
Situação Duração do
Jovem Idade Escolaridade Trabalho Criação Religião conjugal relacionamento Nº Gestação
P3 19 Ensino Médio Não Genitora Evangélica Separada do 5 anos Duas (do mesmo
completo companheiro parceiro)
P5 23 Ensino Médio Não Familiar Católica Convive com 4 anos Uma
completo companheiro
P7 22 Ensino Não Genitor Não tem Convive com 3 anos Três (de parceiros
Fundamental companheiro diferentes)
incompleto
P8 23 Ensino Não Familiar Batuqueira Convive com 3 anos Uma
Fundamental companheiro
completo
P9 22 Ensino Médio Não Instituição Evangélica Separada do 3 anos Uma
incompleto de acolhi- companheiro
mento
P10 21 Ensino Médio Não Instituição Evangélica Convive com 3 anos Uma
incompleto de acolhi- companheiro
mento
Além de vivenciar as dificuldades cotidianas tu contar depois e a pessoa não te querer mais por
envolvendo a própria soropositividade ao HIV, causa disso, tu vais ficar sofrendo mais ainda por
as jovens necessitam comunicar a sua condição causa da doença e por causa da perda, duas coisas
clínica aos seus parceiros. Por ser um assunto horríveis. (P3).
delicado, esse momento é marcado pelo medo
da reação do parceiro – as mais temidas e Fiquei com medo da reação dele, vai que ele não
geradoras de sofrimento são a rejeição e o queira mais, mas quem gosta realmente ama
término do relacionamento. Todas relataram do jeito que a pessoa é. Porque quando a gente
que preferiram revelar logo no início do rela- gosta de uma pessoa, não vai adivinhar que ela
cionamento, quando sentiram que esse ficaria tem [HIV], não está ‘escrito’ na nossa cara. (P5).
mais ‘sério’ (namoro), na tentativa imaginária
de evitar possíveis sofrimentos e decepções Eu achei que a reação dele seria bem diferente,
decorrentes. mas foi tranquilo. Claro, dá medo porque a gente
não sabe a reação da pessoa, o que ela vai pensar.
Foi bem no começo do namoro [antes da relação Mas eu falei antes de ter relação [sexual] e tudo
sexual], já queria contar porque caso ele não pra não ter perigo depois. (P8).
ficasse comigo pra eu não ficar sofrendo. Imagina,
Se, por um lado, reconhecem que é neces- medicamentos e consultas médicas regulares,
sário proteger o parceiro da possibilidade internações ou óbitos dos familiares), até se
de infectar-se pelo vírus, por outro, revelar chegar à ocasião propriamente de comunicar
sua condição e ser discriminada apresenta- a soropositividade.
-se como um acontecimento possível e que
poderá lhe ocasionar sofrimento. Nesse pro- A gente começou a se conhecer e namorar. Daí
cesso, a tendência é contar quando tiverem eu fiquei doente, internei, não estava tomando
uma confiança estabelecida na relação, a medicação direito [...] não me preparei para
condição fundamental para se expor a uma falar, a gente estava conversando, ele começou
possível rejeição. a perguntar da minha mãe e do meu pai, porque
Acerca das estratégias de comunicação eles morreram, daí eu falei, tinha que falar. Ele
utilizadas por esse grupo, evidenciaram- perguntou se provavelmente eu tinha, e eu res-
-se duas situações: a decisão de contar com pondi que sim. (P8).
certa preparação prévia e a espontaneidade
do diálogo diante os sinais velados. Na pri- Ele já via que eu tomava remédio, ele já sabia.
meira situação (três participantes), existiu Um dia ele chegou e perguntou: ‘por que tu toma
uma preparação prévia das jovens para con- esse remédio?’, daí eu falei que: ‘eu tenho HIV, eu
duzir a conversa com o parceiro, geralmente sou soropositiva, eu nasci assim’. (P9).
pautadas na estabilidade do relacionamento
amoroso e na necessidade de revelar antes da As reações dos parceiros à comunicação de
relação sexual. Ocorreu a tomada de decisão soropositividade nesse grupo de participantes
de a própria jovem contar ou com suporte de foram acolhedoras, o que se revelou por não
terceiros para auxiliar na comunicação diante emitirem juízos condenatórios baseados em
das dificuldades encontradas. preconceitos, e, também, ao assumirem papel
de incentivadores na adesão aos cuidados
Eu decidi contar por que eu não tava mais aguen- terapêuticos e clínicos, como o uso correto
tando esconder, até porque se a gente tivesse uma da medicação.
relação, imagina, e depois ele descobrir [...] Daí
eu contei. Tive que contar. (P3). Ele aceitou numa boa. [...] Ele disse que não tinha
nada a ver, é só a gente se cuidar. [...] Ele me ajuda
Contei antes da relação junto com a minha tia. com o remédio, me lembra. (P7).
Eu falei, expliquei tudo. (P5).
Ele começou a vir nas consultas comigo, queria
Ele foi no abrigo, as funcionárias me perguntaram saber de tudo, queria cuidar dos meus remédios.
se podiam contar pra ele que eu era soropositiva e (P8).
eu falei que podia, porque eu não tenho vergonha
de falar. Elas conversaram separado pra ver qual Ele me apoia e me acompanha no médico, ele
seria a reação dele e depois me chamaram. (P10). que pega meus remédios. Ele não tem precon-
ceito. Ele disse que me amava e que ia continuar
Na segunda situação (três participantes), comigo. (P10).
decorreram diálogos mais espontâneos na
comunicação da soropositividade aos par- A partir da comunicação do HIV e do
ceiros sorodiferentes. Esses diálogos se acolhimento solidário pelos parceiros,
deram sem preparações prévias, entretanto, evidenciou-se o desenvolvimento de con-
identificou-se que eram antecedidos por si- dutas sexuais preventivas pelos casais. Em
tuações veladas, que envolviam omitir infor- sua maioria (quatro jovens), com a utili-
mações sobre a própria saúde (cotidiano de zação regular do preservativo e alguma
Duração do
Jovem Idade Escolaridade Trabalho Criação Religião Situação conjugal relacionamento Gestações
P1 19 Ensino Médio Não Genitora Batuqueira Separada do 2 anos Uma
incompleto companheiro
P2 19 Ensino Sim, Órfã, situação Não tem Com companheiro 3 anos Uma
Fundamental reciclagem habitacional (em situação
incompleto insalubre presidiária)
P4 19 Ensino Não Genitora Evangélica Convive com 2 anos Duas (de
Fundamental companheiro parceiros
completo diferentes)
P6 22 Ensino Médio Sim, Órfã, criada por Não tem Convive com 5 anos Uma
incompleto atendente familiar companheiro
As quatro jovens comunicaram sua condição tal situação ocasiona na vida dessas jovens,
clínica aos seus parceiros após a relação sexual resultando no adiamento dessa revelação.
e a constatação da gravidez, sendo que uma
jovem compartilhou a condição soropositiva no É bem difícil tu conseguir convencer uma pessoa
curso da gestação, e três jovens, somente após o que tu namoras, ou que tu cases com ela, tentar
nascimento dos filhos. A dificuldade de comu- explicar para ela que tu não tens culpa daquilo,
nicação da condição clínica de soropositividade mesmo tu tendo, é uma coisa que as pessoas não
ao HIV nesse grupo é substanciada pelo receio veem, mas acontece. [...] [após a comunicação
de situações de estigma, seja pelo parceiro, seja da soropositividade] eu continuei mostrando
pela família dele, a partir do julgamento de para ele que eu não queria que ele tivesse [HIV]
‘culpa’. Essa situação denota o sofrimento que também. (P1).
Ele até tem que vir fazer o teste [HIV] de novo, medos mais típicos de realização da testagem
porque a gente só fez o teste quando descobriu a e da possibilidade de saber-se infectado pelo
gravidez e depois não mais. (P4). HIV. É importante que os serviços acolham as
jovens e seus parceiros quando, ao reconhecer
Além disso, segundo os relatos das jovens, a suscetibilidade da infecção atravessando os
em especial da P2, tem-se a impressão de um planos reprodutivos, busquem orientações e
reconhecimento pessoal muito incipiente, da recursos para a suspensão segura do uso do
maioria dos parceiros, quanto ao risco real da preservativo e a adoção de medidas preven-
infecção pelo HIV, por meio de relações des- tivas apropriadas que garantam os direitos
protegidas e/ou uso de drogas. Percebe-se que reprodutivos.
não houve uma abordagem do parceiro para a Na intersubjetividade das jovens, nas cenas
realização da avaliação e possível diagnóstico. cotidianas relatadas, percebem-se valores,
desejos e crenças em conflito, perpassado por
Ele [parceiro] não vem em hospital, ele não quer um cenário cultural de estigmatização e dis-
saber de nada. [...] Aposto que o dia que ele fica criminação sistemáticas2, por vezes associadas
mal, ele vai direto tomar meus remédios. Não está ao não acesso a outros direitos sociais. Se, por
nem aí. Ele é bem sem vergonha. Se ele viesse aqui um lado, as jovens reconhecem que é necessá-
seria mais fácil, ele consultava, pegava os remédios rio proteger os parceiros da possibilidade de
dele, seria melhor. (P2). infectarem-se pelo vírus, sobretudo quando
esses desconhecem a condição soropositiva
delas, por outro, o medo de serem discrimi-
nadas e rejeitadas afetivamente ao revelar sua
Discussão condição antecipa sofrimento e dificulta a
comunicação com o parceiro. Estudo desen-
O processo de comunicação da condição so- volvido na África do Sul teve como resultado
ropositiva ao HIV para os parceiros afetivos que a não revelação da condição clínica do
e sexuais constitui-se um assunto delicado HIV entre parceiros sexuais está associada
e permeado por dilemas para as jovens que ao estigma e à discriminação de ter o vírus, e
nasceram com HIV. Ao decidir revelar o diag- está diretamente relacionada com os compor-
nóstico, as jovens livram-se do peso do silen- tamentos de risco de transmissão do HIV7. O
ciamento, mas convivem amedrontadas pelo temor do abandono advindo do preconceito
preconceito e estigma. Lidar com o ímpeto de e da convicção de que o segredo, quando con-
perder o parceiro no contexto de uma relação fiado ao outro, poderá não ser mantido resulta
afetiva envolve lidar psicologicamente com a na tendência de contar apenas quando tiverem
representação de muitos riscos, inseguranças uma confiança estabelecida no relacionamen-
e, em alguns contextos, de ameaças, não só da to. Saber o melhor momento e decidir em quem
transmissão potencial do HIV, mas especial- confiar são questionamentos acompanhados
mente da possibilidade de rejeição6. por angústias e inquietações8.
Uma análise de vulnerabilidade mais Dessa forma, as jovens transitam entre o
acurada2 – para compreender em profundi- desejo de compartilhar o segredo, o medo da
dade o contexto das dificuldades nessas par- rejeição e a culpa por esconderem a verdade.
cerias de efetivar o sexo protegido com maior Seja por decisão consciente, seja em uma
regularidade e, assim, ofertar o cuidado – deve conduta pouco refletida de manter o silen-
levar em conta o contexto específico de uma ciamento acerca da soropositividade, o que
relação estável entre jovens, com planos de se evidenciam são situações de dificuldade e
futuro, afetos e anseios ligados à esfera re- tensão com relação a revelar o seu diagnóstico,
produtiva e à constituição familiar – além dos pois fazê-lo tem o sentido de revelar-se, e isso
não é simples9. Dos relatos das jovens deste estigmatização ao HIV/Aids que demonstram
estudo sobre o medo da rejeição iminente, violação de direitos humanos2. As mulheres,
pode-se aventar uma metáfora: a de que, na aprisionadas em uma sociedade de controle,
visão delas, poderá haver um ‘efeito dominó’ enredadas em relações de poder desiguais
após a comunicação da soropositividade ao pela ideologia machista que incide sobre suas
HIV, com várias perdas subsequentes. Assim, mentes e corpos12, necessitam de apoio para
a adaptação positiva perante um contexto de sua melhor adesão às medidas preventivas
dificuldade, pode proporcionar uma qualida- necessárias para evitar a transmissão do HIV.
de de vida melhor em relação à vivência do Para prevenir a transmissão viral, é essencial
estigma e da exclusão social diante da infecção que exista o acolhimento das jovens, espe-
pelo HIV10. cialmente por parte dos serviços de saúde, e
O grupo de mulheres jovens que poster- a construção de uma noção de corresponsabi-
garam a comunicação, expondo o parceiro lização entre os envolvidos. Isso pode ocorrer
ao risco de infecção nas relações sexuais sem por meio de espaços de reflexão, elaboração, e
preservativo, denota uma transgressão, tendo planejamento, considerando, além dos aspec-
em vista que o parceiro tem o direito de saber. tos clínicos, as histórias e os planos de vidas,
Assim, a não revelação é percebida como os sentidos dos relacionamentos em cursos,
atitude prejudicial ao outro1. Dentre as jovens ou seja, a subjetividade2 envolvida na comu-
que postergaram a comunicação ao parceiro, nicação do diagnóstico, bem como os impactos
evidenciam-se menor escolaridade e nível de sociais e psicológicos associados a estigmas
conhecimento para atitudes preventivas, tendo e preconceitos que ainda permeiam o HIV.
em vista que aquelas, cientes da sua condição Entende-se que o processo de comunicação
clínica, não efetivaram essas atitudes. é um caminho construído, no qual a jovem vai
O conhecimento, como constructo psicos- se tornando mais inventiva e apta a improvisar
social, é um importante preditor da vulnerabi- soluções9. Nas estratégias de comunicação da
lidade à infecção pelo HIV, visto que pessoas soropositividade do HIV ao parceiro relata-
com menos conhecimento sobre os meios de das pelas participantes, foi possível perceber
transmissão do vírus tendem a exercer práticas iniciativas que demonstram veladamente es-
sexuais que apresentam maior risco10. forços, por meio de comunicação verbal/não
A comunicação do HIV já no início das re- verbal ou com o apoio de terceiros (familiares
lações, como ocorreu com a maioria das parti- ou de profissionais da saúde). Para auxiliar
cipantes, corrobora estudo com adolescentes nesse processo, estudo aponta que os profis-
canadenses, que aponta que as mulheres são sionais geralmente elegem ações centradas
mais preocupadas, entendem que as relações no próprio paciente, sendo as mais comuns: a
sexuais não são concebíveis a menos que seus ameaça (tentativa de coerção, anunciando pos-
parceiros sejam informados sobre o estado síveis sanções e implicações legais e judiciais
sorológico delas6. Estudo realizado na Etiópia da não revelação); a campanha (investimento
mostrou que saber que o parceiro sexual tem em discursos para dissuadir e convencer); o
o vírus resulta em maior uso do preservativo, conselho (interação para o esforço interpesso-
maior apoio social e ter um bom relaciona- al); a cumplicidade (oferecimento para parti-
mento com o parceiro11. Considera-se, assim, cipar/realizar o processo de comunicação); e
que o diagnóstico compartilhado pode resultar o grupo de discussão (enriquecer o repertório
em melhorias na vida do casal. argumentativo por meio da explicitação de
Para tanto, a preocupação por parte das mu- experiências de terceiros)13.
lheres também é decorrente, em parte, das re- O processo de comunicação não é tão
lações afetivo-sexuais marcadas pelas normas simples, implica, geralmente, fase prévia
regulatórias de gênero e pelos processos de em que, em termos de processo psicológico,
ocorre uma significativa mobilização emo- do Supremo Tribunal Federal, acerca da trans-
cional-cognitiva sobre como e quando revelar missão do vírus como transmissão de moléstia
a soropositividade, demandando uma certa grave, e não como tentativa de homicídio; e
preparação e uma tomada pessoal de decisão1. pela definição da doença como agravo crônico,
A proposta de uso das estratégias que investem e não como ‘sentença de morte’. Depreende-se
na construção (e reconstrução) de repertórios que, juridicamente, a comunicação da soropo-
argumentativos amplia as possibilidades de sitividade ao(à) parceiro(a) sexual é central
diálogo acerca da comunicação aos parceiros13. no julgamento acerca da responsabilidade
Nesse aspecto, a noção de cuidado2 remete à pela transmissão do HIV. Todavia, o mesmo
importância de conciliar o compromisso de estudo aponta alguns retrocessos, como a ten-
êxito técnico em saúde com o horizonte exis- tativa de implementar leis que criminalizam
tencial do paciente, levando em conta as subje- a transmissão do vírus com penas severas
tividades e os contextos sociais, assim como as que desconsideram as atuais tecnologias de
experiências prévias de rejeição e desamparo9, prevenção e tratamento e reforçam a estig-
a fim de alcançar práticas efetivas de saúde. O matização, reiterando o medo16.
estigma e a discriminação relacionados com Dessa forma, a condenação moral das
o HIV, como constructos psicossociais, estão pessoas que vivem com HIV persiste. Ainda
associados à não divulgação do estado de HIV há necessidade de fomentar o debate na so-
aos parceiros sexuais; e a não divulgação está ciedade sobre os efeitos da criminalização
intimamente associada a comportamentos de da transmissão do HIV à luz do atual cenário
risco de transmissão do HIV. da epidemia no Brasil e no mundo, os quais
Felizmente, para algumas das jovens, em tendem a afastar a população da testagem e,
suas parcerias, a revelação produziu sentidos consequentemente, do tratamento, afetando
de afeto, solidariedade e renovação das con- a saúde pública16.
cepções do viver e conviver. Estudo aponta que Do ponto de vista da prevenção ao HIV,
essa experiência positiva fortalece os arranjos o diagnóstico em tempo oportuno, em tese,
conjugais com mais cumplicidade na relação14, aumentaria a responsabilidade e os cuidados
tornando-se a soropositividade ao HIV um com o uso de preservativo para proteger os par-
‘segredo conjugal’ na tentativa de proteger o(a) ceiros8. Porém, isso não é colocado em prática,
parceiro(a) de retaliações sociais e reforçar o com facilidade, pelas jovens participantes, em
vínculo entre o casal. decorrência da postergação da comunicação ao
Entretanto, a culpa de ter HIV era vivencia- parceiro ou por não a compreender como uma
da por boa parte das participantes, especial- exposição ao HIV. Estudo aponta que casais
mente quando as jovens pressupunham que tendem a abandonar o preservativo, mesmo
existia um culpado pela sua infecção via trans- cientes do status sorológico de seus compa-
missão vertical. Além disso, o receio de um nheiros16, por um pacto de assumir os riscos
processo judicial por causa da infecção revela ou por passividade à vontade do parceiro3.
a magnitude do significado social fortemente Assim, denota-se também a dimensão
disseminado: de que, de fato, há um culpado, programática2 nos elementos que compõem
mesmo que em potencial, no caso do risco de o contexto dessas jovens, no que se refere à
transmissão do HIV para o parceiro. No Brasil, importância de acompanhamento continuado
tanto a transmissão como a exposição ao HIV da saúde também desses parceiros, para a pro-
são crimes que podem ser enquadrados nos moção de orientações de condutas preventivas
arts. 130 e 131 do Código Penal15. e a oferta do teste anti-HIV, visando ao diag-
Estudo que analisou a criminalização da nóstico precoce para o início do tratamento em
transmissão do HIV no Brasil aponta que caso de infecção. Reforça-se a necessidade da
houve avanços, expressos pela jurisprudência divulgação da oferta de testagem na atenção
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Recebido em 01/03/2022
Aprovado em 14/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
13. Silva NEK, Ayres JRCM. Estratégias para comunica-
Suporte financeiro: o presente trabalho foi realizado com apoio da
ção de diagnóstico de HIV a parceiros sexuais e prá- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001
ticas de saúde. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(8):1797-
806.
Maria Izabel Sanches Costa1, Gabriela Lotta2, Juliana Rocha Miranda2, Laura Cavalcanti Salatino2,
Elisabete Agrela3, Maria Cristina Franceschini3, Marco Akerman3
DOI: 10.1590/0103-11042022E710
RESUMO A temática do HIV ainda é permeada de estigmas e culpabilização de indivíduos por seus
comportamentos. Políticas públicas, incluindo a de HIV/Aids, são baseadas em categorias políticas que
geram efeitos simbólicos, reproduzindo ou enfrentando estigmas. A literatura afirma que Trabalhadores
da Linha de Frente (TLF) mobilizam valores pessoais e profissionais nas interações com os usuários, que
podem incluir categorias sociais ou políticas. Este artigo objetivou compreender como TLF operam tais
categorias em contextos institucionais de ambiguidade, bem como analisar se suas percepções com relação
às categorias de comportamento de risco e juventude estão em consonância com as políticas públicas.
Foram analisadas 8 normativas e entrevistados 42 trabalhadores de 6 serviços de saúde. Os materiais foram
codificados, as categorias oficiais foram comparadas, e as práticas, identificadas. As conclusões sugerem
que as categorias sociais e políticas têm influência mútua. As categorias políticas ainda são legitimadas por
meio de percepções sociais de normalidade e risco, especialmente ao lidar com populações prioritárias.
As categorias sociais, operadas na implementação reforçam estigmas e julgamentos morais sobre alguns
jovens, como os negros e pobres, as mães solteiras e a comunidade LGBTQIA+. Os serviços especializados
utilizam mais as categorias políticas do que os serviços de atenção primária.
ABSTRACT The HIV issue is still permeated by stigma and blaming individuals for their behavior. Public
policies, including those for HIV/AIDS, are based on political categories that generate symbolic effects,
reproducing or facing stigma. The literature says that frontline workers mobilize personal and professional
values in interactions with users, using social or political categories. This article aims to understand how
workers operate such categories in an institutional context of ambiguity in the protocols, as well as to analyze
whether their perceptions regarding the categories of risky behavior and youth are in line with the policy.
Eight regulations were analyzed and 42 workers from 6 health services were interviewed. The materials
were coded and then the official categories and identified practices were compared. The findings suggest
1 Secretaria
that social and political categories are mutually influential. Political categories are still legitimized through
Estadual de
Saúde de São Paulo (SES- social perceptions of normality and risk, especially when dealing with the priority population. The social
SP), Instituto de Saúde (IS) categories operated in the implementation reinforce stigmas and judgment with some young people, such
– São Paulo (SP), Brasil. as blacks and the poor, single mothers, and the LGBTQIA+ community. Specialized services use political
belcost@gmail.com
categories more than primary care services.
2 Fundação Getúlio Vargas
(FGV) – São Paulo (SP), KEYWORDS Public policy. Adolescent. Occupational groups. Social stigma. HIV.
Brasil.
3 Universidade de São
Paulo (USP), Faculdade de
Saúde Pública (FSP) – São
Paulo (SP), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 142-156, DEZ 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Percepções dos profissionais de linha de frente da saúde sobre HIV e juventudes 143
limitação de recursos e pressão por resul- ou seu público-alvo. Categorias sociais repre-
tados5. Em uma perspectiva sociológica, o sentam noções socialmente compartilhadas e
processo de categorização resulta da prática conhecimentos frequentemente referenciados
cognitiva de julgamento social2, e os TLF cate- em estereótipos5,14.
gorizam cidadãos baseados em racionalidades Assim, os processos sociais de categori-
e julgamentos2,7. zação constroem atributos considerados
Os TLF mobilizam seus repertórios – de como comuns e naturais dessas categorias,
regras, valores pessoais, percepções sociais, e os ambientes sociais estabelecem exigên-
trajetória profissional, entre outros – quando cias que precisam ser preenchidas. Será con-
uma decisão precisa ser tomada7,14. Essa ati- siderado um estranho aquele que tiver um
vidade interpretativa pode gerar incertezas atributo diferente, como um sujeito menos
devido a ambiguidades, conflitos e dilemas desejável, perigoso ou fraco, sendo reduzido
sobre o que fazer, quando os TLF confron- a uma pessoa arruinada. Assim constitui-se
tam diretrizes oficiais e valores pessoais15. um estigma quando uma pessoa, um grupo ou
Os TLF classificam os usuários dos serviços uma comunidade carregam atributos sociais,
e, potencialmente, agem de acordo com as cujo valor é pejorativo, de descrédito ou ne-
categorias que os atribuem7. Esse julgamento gativo. Tais atributos são considerados como
social pode informar decisões e ações volta- defeito, fraqueza ou uma discrepância. Diante
das aos cidadãos, com graus de atenção que da dificuldade em lidar com a diferença, é
variam desde extraordinária – para aqueles constituído um caminho de exclusão, em que
entendidos como ‘bons’ cidadãos – até ajuda a identidade incorpora o tal atributo de valor
mínima ou mesmo violação de direitos – para social negativo16.
aqueles tidos como ‘maus’ cidadãos7. Em polí- Pesquisas na área da saúde revelam as re-
ticas preventivas, essa tarefa interpretativa é lações entre estigma e adoecimento em suas
central para explicar as concepções dos TLF dimensões social e política. O estigma está
e suas percepções de risco5. relacionado com as políticas públicas, as prá-
Nessa discussão, a perspectiva sociológica é ticas cotidianas nos serviços, o adoecimento, o
útil por dois motivos: ilumina a reivindicação sofrimento e o enfrentamento de seus agravos,
de que os processos de categorização não são podendo reduzir ou dificultar o acesso aos
exclusivamente condicionados por estruturas serviços de saúde17.
administrativas e organizacionais, mas repro- Nos discursos relativos ao tema de HIV/
duzem informação socialmente disponível Aids, persistem metáforas fatalistas, como
sobre cidadãos; e evidencia como o processo a da morte iminente, e a associação com a
de categorização não é somente ancorado em sexualidade. Há ainda dificuldade de profis-
direitos, mas também em moralidades, resul- sionais de saúde em lidar com as dimensões
tando em separações entre aqueles que têm psicológicas e sociais do cuidar nesse tema,
direito e aqueles que o merecem segundo as ainda que, formalmente, tenham como tarefa
concepções individuais dos TLF2. desfazer essas metáforas que contribuem para
A divisão entre merecedores e titulares de a estigmatização e marginalização das pessoas
direitos, com frequência, reflete as operações que vivem com HIV/Aids18. Ou seja, os TLF
de categorias políticas e sociais, sendo as pri- acabam reproduzindo desigualdades que de-
meiras relacionadas com o sistema político- veriam combater19.
-administrativo, e as demais, atreladas a outros A literatura aponta para a permanência, no
sistemas e práticas sociais14. Categorias polí- discurso de profissionais da saúde, da vincula-
ticas são oficiais, definidas em textos norma- ção de identidades LGBTQIA+ ao conceito de
tivos. Contêm as fronteiras entre cidadãos grupo de risco, associada a comportamentos
incluídos ou excluídos das políticas públicas, moralmente condenáveis, como causadora de
doenças e transtornos mentais. A possibilidade sobre o tema, desde que em consonância com
de adoecer é ligada a atributos em que o sujeito a orientação nacional. A política de HIV/Aids
normal reconhece o estigmatizado20. Esse – termo aqui utilizado de forma a abranger o
aspecto está profundamente ligado à história conjunto de instrumentos, ações, programas
do HIV/Aids e ao processo de desqualificação e projetos relacionados ao tema HIV/Aids – é
moral das pessoas soropositivas21. As catego- implementada por diferentes serviços e níveis
rias relacionadas com estas eram de pessoas de atenção à saúde, em particular, na atenção
promíscuas, prostitutas, criminosas ou que primária e secundária à saúde. A APS concen-
estavam com os dias contados. tra-se na promoção da saúde e prevenção de
A literatura sobre a construção social de enfermidades, com serviços descentralizados
grupos-alvo de risco na linha de frente das po- e longitudinais que acompanham os cidadãos
líticas preventivas indica a predominância de em seus territórios27.
categorias sociais, percepções de normalidade No Brasil, a política de HIV/Aids foi criada
e estereótipos no processo de categorização. A no final dos anos 1980. No entanto, seu foco,
distinção entre cidadãos normais e aqueles em sua linguagem e o modo como deve combater
risco é explicada pela não conformidade com os preconceitos sociais têm sido alvo de dis-
convenções sociais mais amplas8. Ademais, a putas28. Até recentemente, as políticas eram
distância social entre os TLF e os cidadãos concentradas em serviços especializados, o
é uma fonte importante de definição sobre que significa menor foco na prevenção e maior
o senso de normalidade6 e a potencial (re) no tratamento e cuidado de públicos-alvo27.
produção de desigualdades, por meio da es- Isso pode explicar a dificuldade dos serviços
tigmatização ou da reiteração de estigmas en- de APS em focar em públicos-alvo específicos
frentados pelos usuários dos serviços. Como – uma vez que fornecem serviços universais
discutido, o estigma merece atenção na análise e generalistas11, com grande demanda a di-
das percepções dos TLF, já que constitui um versos programas de atenção básica a serem
tema central para o processo saúde-doença, ao implementados.
promover adoecimento e sofrimento psíquico Os grupos mais afetados pelo HIV eram
e social de determinados grupos sociais22. tradicionalmente estigmatizados e com acesso
dificultado aos serviços de saúde. Dessa forma,
a política de HIV/Aids e seus públicos-alvo
Política de prevenção ao têm sido historicamente invisibilizados nos
HIV no Brasil serviços de APS. No entanto, nos últimos
anos, novas políticas foram elaboradas para
Considerando a organização do Sistema Único dar maior destaque à APS no tratamento de
de Saúde (SUS) em diferentes níveis de atenção, serviços de HIV e mais atenção preventiva.
tem-se na Atenção Primária à Saúde (APS) a A política atual tem como cerne a integra-
responsabilidade por tratamento, reabilitação, lidade da atenção à saúde e a garantia dos
prevenção e promoção da saúde em Unidades direitos dos portadores de HIV. Apesar da
Básicas de Saúde (UBS), por meio de serviços resistência de muitos grupos, a política traz
generalistas e trabalhadores de saúde nas várias novas tecnologias de prevenção organiza-
categorias. O governo federal tem forte protago- das sob a estratégia denominada ‘prevenção
nismo na regulação da APS, que é implementada combinada’29,30, que é baseada no paradigma
principalmente pelos municípios. da prevenção e da autonomia do usuário. No
Assim, a esfera federal, por meio da Política entanto, diversos conflitos giram em torno
Nacional de DST/Aids, formula princípios, desse novo paradigma, e os serviços respon-
diretrizes e estratégias, enquanto as esferas es- sáveis nem sempre possuem informações su-
taduais e municipais podem formular políticas ficientes sobre como implementá-lo. Como
classificação dos jovens, incluindo aqueles que possível, identificou-se o que era especí-
que se enquadram nos regulamentos e nas fico para os jovens.
categorias políticas. Foram entrevistados 42 TLF entre os seis
Para compreender o processo de categori- serviços, incluindo médicos, enfermeiros,
zação em diferentes serviços, analisaram-se psicólogos, assistentes sociais, técnico de
as categorias políticas disponíveis na regula- enfermagem, agentes comunitários de saúde
mentação, as categorias sociais operadas pelos e terapeutas ocupacionais. Foi uma amostra
TLF e a relação entre elas. Coletaram-se dados por conveniência, ou seja, entrevistaram-se
de duas fontes: dos regulamentos da política e trabalhadores disponíveis para a pesquisa e
dos TLF dos serviços selecionados. cujas funções estivessem relacionadas com a
Selecionaram-se os regulamentos nacio- política de HIV/Aids. O roteiro de entrevis-
nais atuais sobre políticas de prevenção de ta continha questões sobre: conhecimento
HIV, assim como os regulamentos da cidade sobre a política de prevenção de HIV em
de São Paulo. Buscava-se verificar se o muni- jovens; percepções sobre comportamento
cípio adaptou ou alterou as regulamentações de risco dos jovens; compreensões sobre
nacionais adotando diferentes categorias po- prevenção e novas tecnologias; e perspecti-
líticas. Por mais que o objetivo fosse analisar vas sobre os usuários jovens. As entrevistas,
especificamente a prevenção do HIV entre a conduzidas virtualmente pelos pesquisa-
população jovem, cabe ratificar que não há dores durante o horário de trabalho dos
normativas específicas para esse público-alvo. profissionais, foram gravadas e transcritas
Analisaram-se, assim, as normativas e, sempre na íntegra.
pela regulamentação. Assim, diferenciaram-se pela dinâmica social local. De acordo com as
as categorias políticas e sociais e comparou- normas, por já apresentarem vulnerabilida-
-se sua utilização entre os diferentes tipos de des socioeconômicas, são considerados mais
serviços. Posteriormente, repetiu-se o proce- suscetíveis à infecção e devem ser priorizados
dimento com ‘comportamento de risco dos na política. Cabe ratificar que a população
jovens’, comparando as categorias oficiais e jovem se encontra nesse subgrupo e é defini-
as práticas relacionadas com comportamentos da segundo sua vulnerabilidade. Entretanto,
de risco dos jovens entre os tipos de serviços isso não significa que não haja jovens com as
aqui analisados. características das que são apresentadas no
público-alvo, ou seja, os jovens se encaixam
em ambas as categorias políticas.
Resultados Identificaram-se dois achados na análise
dos regulamentos. O primeiro é que as ca-
tegorias políticas utilizadas são ambíguas,
Categorias sociais e políticas especialmente aquelas relativas aos grupos
prioritários. Ao incluírem a maior parte da
Todos os regulamentos analisados definem que população brasileira, criam espaços para in-
a política de prevenção de HIV deve ser dire- terpretações sobre quem deve ser priorizado.
cionada a dois grupos: ‘grupo-alvo’ (homens Isso reforça a identificação de que os jovens
gays, Homens que fazem Sexo com Homens – podem ser encaixados em todas as categorias.
HSH, usuários de drogas, profissionais do sexo O segundo é que, ao justificar as categorias
e pessoas transgênero) e ‘população prioritária’ políticas dos grupos-alvo sobre as taxas de
(população negra, população em situação de infecção, as políticas reforçam o preconceito.
rua, população indígena e população jovem), Assim, as categorias políticas, como foram
definidos como tal nos regulamentos. criadas, não são capazes de combater cate-
O primeiro grupo é composto por catego- gorias sociais e podem também reforçá-las.
rias políticas muito específicas, enquanto o Dessa forma, tornou-se importante analisar
segundo é muito geral e abarca a maioria da como os TLF operam essas e outras categorias.
população brasileira. O primeiro grupo se jus- Ao analisar as categorias operadas pelos
tifica pela maior taxa de infecção entre pessoas TLF, foram encontrados três grupos de ca-
desses segmentos populacionais. O segundo tegorias: as baseadas em comportamentos;
grupo é definido entre aqueles que também são as baseadas no perfil socioeconômico; e as
afetados desproporcionalmente, considerando baseadas em gênero e sexualidade. Algumas
toda a população. No entanto, diferentemente dessas categorias são inspiradas por categorias
do primeiro grupo, suas taxas de infecção são políticas, e outras não. O quadro 2 descreve as
explicadas não pelo seu comportamento, mas categorias encontradas nas entrevistas.
A análise sugere que os TLF usam categorias sobre sociabilidade. Para os TLF, os jovens que
políticas e sociais ao classificar os usuários. frequentam festas ou atividades sociais têm
Ao comparar serviços, os de atenção primária maior chance de contágio.
tendem a operar mais categorias sociais do Os dados também mostram que a classe
que os demais, especialmente em relação às social importa na categorização dos jovens: 24
categorias de comportamento21. Os TLF do entrevistados, em diferentes tipos de serviços,
serviço especializado em HIV utilizam mais acreditavam que os jovens de classe social
categorias políticas – principalmente aquelas mais baixa e com menor escolaridade têm
baseadas em gênero e sexualidade. Assim, mais chance de contágio.
tendem a categorizar os jovens alinhados Finalmente, identificou-se o uso diferen-
com as regulamentações políticas. Finalmente, cial de categorias sobre gênero. Enquanto os
os TLF dos serviços de atenção psicossocial TLF da APS e dos equipamentos de saúde
propendem a misturar categorias políticas e mental pensam em jovens genéricos, sem
sociais, especialmente aquelas diretamente perfis específicos associados aos regulamentos
ligadas à especialidade do serviço, como uso (como mulher e homem), os TLF da política
de drogas e características socioeconômicas. de HIV pensam nas categorias de gênero pro-
Os dados também mostram a alta prevalên- postas pelas políticas como grupo-alvo, como
cia de categorização do comportamento em LGBTQIA+ e HSH.
comparação com os outros tipos de categorias.
Considerando os regulamentos e as evidências Percepções sobre comportamentos
sobre a doença, espera-se que os TLF mobili- de risco
zem categorias associadas ao uso de drogas e
ao comportamento sexual. No entanto, 34 deles Analisaram-se também as percepções dos TLF
mencionam categorias sobre comportamentos sobre os chamados ‘comportamentos de risco’
que não estão no desenho de políticas: aqueles dos jovens. Esse conceito tornou-se central
outro comportamento, como o uso de drogas ou de drogas são arriscados. A ideia de que as festas
álcool, que tornam os jovens mais vulneráveis. são fatores de risco não é mencionada nos regu-
O quadro 5 apresenta as diferentes percep- lamentos. No entanto, para os entrevistados dos
ções dos entrevistados sobre a conduta como serviços de HIV e Psicossocial, a sociabilidade
um comportamento de risco. Na APS, a maioria não foi considerada arriscada, sendo o risco as-
sugere que a sociabilidade, a sexualidade e o uso sociado à sexualidade e ao uso de drogas.
parte dos TLF comumente ultrapassa o uso serviços da atenção primária em comparação
de categorias políticas, criando um cenário com aqueles com foco em IST, e aparecem
potencial para a reprodução de desigualdades. de forma secundária nos serviços de atenção
Ao usar categorias sociais com base em psicossocial. Assim, o exercício da discricio-
julgamentos sobre o comportamento social nariedade tem diferentes efeitos sobre o pro-
e sexual, os TLF introduzem questões polí- cesso de categorização e sobre as categorias
ticas relacionadas com a não conformidade mobilizadas pelos trabalhadores.
dos usuários com convenções sociais mais Em relação ao comportamento de risco
amplas, incluindo noções do que entendem dos jovens, os serviços de especializados de
como ‘sexualidade desviante’ ou sobre uso de IST/Aids frequentemente apontavam para a
drogas. Complementam a definição política sexualidade enquanto os equipamentos es-
do grupo-alvo com impressões sociais com- pecializados de saúde mental consideravam
partilhadas sobre quem é mais vulnerável ou o risco de uso de drogas, e os trabalhadores
exposto a vírus, o que pode reforçar precon- da atenção básica faziam menções a condutas,
ceitos. Por exemplo, ao categorizar os usuários algumas incluídas na política e outras não. Esse
para descrever o jovem típico em risco, alguns fato pode estar relacionado com o grupo-alvo
entrevistados mencionaram critérios como de intervenção de cada serviço: nos serviços de
‘festeiros’ ou características como ‘imaturo’ IST/Aids, os trabalhadores lidam com jovens
ou ‘negligente’. Ao falar de sexualidade, alguns que buscam prevenção ou tratamento de IST;
mencionaram o número de parceiros ou sexo e nos serviços de saúde mental, os TLF lidam
casual, em lugar de questões preventivas como com jovens com questões vinculadas à saúde
o uso de preservativo, como preconizado pela mental, incluindo o abuso de drogas. Isso
política. Essas evidências vão ao encontro do significa que, em serviços voltados a IST, o
que já é apontado pela literatura sobre estigma público para ações preventivas é concreto, no
e HIV de que os profissionais da saúde ainda sentido de que os trabalhadores não têm que
associam o que consideram comportamentos escolher quem aconselhar ou oferecer um teste
moralmente condenáveis à Aids20. ou informação de prevenção de HIV. Esse é
Além do uso dos estereótipos, há uma dife- o centro de seus trabalhos, e cada usuário é
rença importante entre os trabalhadores nos submetido a essas intervenções.
serviços analisados que marca a forma de uso das Nos serviços de atenção psicossocial, o
categorias: a quantidade de políticas e diretrizes público é mais ‘filtrado’ que na atenção pri-
oficiais com as quais devem lidar em seus traba- mária, porém, por não ser concentrado na
lhos diários. Nos serviços voltados à prevenção prevenção ao HIV, os profissionais também
e ao cuidado de IST, as ações preventivas são terão algum grau de escolha dos usuários a
direcionadas especificamente para o público que quem irão propor a prevenção de HIV. Por
os procura. Por outro lado, os trabalhadores dos fim, os trabalhadores dos serviços da atenção
serviços da atenção primária estão, ao mesmo primária estão promovendo a prevenção entre
tempo, lidando com ações preventivas contra os públicos potenciais, e têm que escolher e
hipertensão, diabetes, arboviroses e outras ques- decidir quem precisa de informações e serviço
tões sob a competência da APS. sobre cada tipo de política.
Já nos serviços de atenção psicossocial, A necessidade de selecionar o grupo-alvo,
há um público pré-selecionado: pessoas com associada a categorias políticas já marcadas
questões de saúde mental. Porém, a política por ambiguidades e a consolidação de catego-
de prevenção ao HIV não é parte cotidiana rias sociais de comportamento sexual e raça,
de suas rotinas, atravessando de forma lateral por exemplo, favorece o processo de catego-
os atendimentos e as questões tratadas. As rização fundamentado em percepções sociais.
categorias políticas tornam-se ‘diluídas’ em Uma vez que os TLF precisam escolher com
base em seu conhecimento comum e perspec- com os jovens. As categorias políticas são mais
tivas, o uso de categorias sociais pode ser (e utilizadas entre os serviços especializados do
provavelmente será) construído em julgamen- que entre aqueles com abordagens da atenção
tos e estereótipos. As conexões feitas entre a primária, criando espaço para ainda mais uso
percepção sobre os potenciais beneficiários e de categorias sociais.
suas famílias ou os espaços de sociabilidade
frequentados pelos jovens mostram como os
trabalhadores operam o processo de categori- Considerações finais:
zação, relacionando pobreza e vulnerabilidade a influência mútua das
com a exposição ao vírus.
Como já apontado pela literatura3,10, em um
categorias políticas e sociais
contexto de grandes desigualdades, o estudo da
(re)produção da desigualdade na implementa- Este artigo analisou os processos de catego-
ção de políticas sociais é, em parte, em torno rização dos jovens desenvolvidos na imple-
do próprio desenho da política. Cristaliza ca- mentação da política de prevenção ao HIV
tegorias sociais mergulhadas em estereótipos em um bairro vulnerável da cidade de São
e imprecisões. Conforme o evidenciado por Paulo, buscando observar especificidades em
Bastos18 e Cazeiro et al.22, tais características três diferentes tipos de serviços: APS, serviços
resultam da trajetória de conflito da política especializados em HIV e serviços de saúde
de HIV/Aids nos debates sociais e políticos. Na mental. O objetivo foi entender como os TLF
esteira da epidemia dos anos 1980, o HIV era operam categorias sociais e políticas diante
um tema chocante, permeado por polêmicas de um quadro institucional de ambiguidades e
em torno da moralidade. Após anos de cam- conflitos nas regras e diretrizes que norteiam
panhas e conquistas dos movimentos sociais, seu trabalho cotidiano.
o cenário institucional atual é de proteção e Os resultados sugerem que as categorias
reconhecimento de direitos das pessoas in- sociais e políticas têm influência mútua. Em
fectadas pelo HIV. No sistema de saúde, isso primeiro lugar, a despeito das mudanças na
se traduz tanto em serviços de tratamento, legislação sobre o tema e os crescentes debates
quando a infecção já aconteceu, quanto em sobre a construção de normativas menos estig-
políticas preventivas. matizantes, as categorias políticas ainda são
É inegável que o sistema de saúde brasilei- legitimadas por meio de percepções sociais
ro possui políticas específicas de proteção e de normalidade e risco, especialmente ao lidar
redução de desigualdades para determinados com a população prioritária, como os negros,
grupos e doenças, como a política de HIV/ por exemplo. Isso significa que a reprodução de
Aids. No entanto, o potencial de reprodução estereótipos começa na normativa, mas pode
de desigualdades é uma herança do conflito e ser ampliada na implementação de políticas.
das ambiguidades que marcaram sua formu- Isso acontece devido à ambiguidade das
lação. Quando se trata dos TLF, eles podem normas que delegam aos serviços a escolha de
reproduzir as desigualdades já apresentadas quem será o verdadeiro grupo-alvo. Há uma
na formulação de políticas. Além disso, consi- diferença especial entre os serviços: os serviços
derando a ambiguidade das categorias políti- especializados lidam com usuários concretos,
cas, elas também podem introduzir categorias enquanto os da atenção primária, com poten-
sociais adicionais baseadas em julgamentos e ciais usuários; e os TLF precisam identificar
preconceitos que reforçam as desigualdades. quem está mais vulnerável à infecção pelo
Isso é ainda mais evidente quando se com- HIV. Esse fato influencia a forma como os
param serviços da atenção primária e espe- TLF utilizam as categorias em seu trabalho,
cializados nas ações de prevenção de HIV uma vez que os serviços especializados em IST
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Recebido em 29/04/2022
29. Brasil. Ministério da Saúde. Cinco passos para a pre- Aprovado em 14/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
venção combinada ao HIV na Atenção Básica Saúde.
Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Brasília, DF: MS; 2017. Científico e Tecnológico (CNPq). Chamada HIV AIDS 2019,
projeto 442740/2019-0
DOI: 10.1590/0103-11042022E711
RESUMO A Profilaxia Pós-Exposição (PEP) para o HIV constitui-se como uma tecnologia biomédica,
ofertada em casos de violência sexual e acidente ocupacional desde o início dos anos 2000, tendo sua
oferta ampliada para as situações de relações sexuais consentidas após 2010. Apesar de classificada como
biomédica, sua oferta e sua execução são mediadas por tecnologias relacionais, perpassadas por sentidos
socialmente construídos. Este trabalho teve como objetivo interrogar os discursos produzidos acerca da
oferta da PEP sexual entre trabalhadoras de saúde. A pesquisa possui inspiração na perspectiva genea-
lógica de Michel Foucault, com base na necessidade de problematizar as relações de poder a partir dos
discursos e conhecimentos dos profissionais de saúde que atuam com a efetivação da PEP sexual em um
município de médio porte da região central do Paraná. Foram realizadas 12 entrevistas com gestoras da
política de HIV/Aids e trabalhadoras dos serviços que ofertam a PEP sexual. Discutem-se os discursos que
permeiam a PEP sexual, colocando em evidência tanto o direito ao seu acesso e ampliação de possibilidades
preventivas quanto os discursos prescritivos que perpassam e constrangem a sua oferta. Conclui-se que
é necessário qualificar o acesso à PEP sexual, afirmando-a como uma prática de liberdade.
ABSTRACT Post-Exposure Prophylaxis (PEP) for HIV is a biomedical technology, offered in cases of sexual
violence and occupational accidents since the early 2000s, with its offer expanded to situations of consen-
sual sexual relations after 2010. Despite being classified as biomedical, its offer and execution is mediated
by relational technologies, permeated by socially constructed meanings. This study aimed to question the
discourses produced on the offer of PEP among health workers. The research is inspired by Michel Foucault’s
genealogical perspective, based on the need to problematize power relations in the discourses and knowledge
of health professionals who work with the implementation of PEP in a medium-sized city in the central region
of Paraná. Twelve interviews were carried out with managers of the HIV/AIDS policy and workers in the
services that offer PEP. The discourses about the PEP are discussed, highlighting both the right to access and
expansion of preventive possibilities and the prescriptive discourses permeating and constraining its offer. In
conclusion, it is pointed out the necessity to qualify the access to PEP, affirming it as a practice of freedom.
1 Universidade Estadual do
Centro-Oeste (Unicentro)
– Irati (PR), Brasil.
willian.ncp@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 157-168, DEZ 2022
158 Paula WNC, Zambenedetti G
Nesse sentido, destaca-se a experiência de mu- o que está disponível e a efetividade de cada
nicípios como Florianópolis (SC), que iniciou método, proporcionando que os indivíduos em
a descentralização da atenção em HIV/Aids, risco de exposição recebam mais do que com-
incluindo a disponibilização da PEP na atenção primidos em seus corpos, mas que se sintam
básica a partir de 20158. empoderados da decisão de prevenir-se da
A PEP é uma tecnologia biomédica que forma que mais fizer sentido10.
consiste na utilização de medicamentos con- Cabe ressaltar que a sexualidade continua
trolados, que pode ser apropriada de diversas sendo abordada hegemonicamente na perspec-
maneiras, como recurso político com vistas a tiva do risco, e não do direito, entendendo-se
garantir ou depreciar direitos sexuais; o que as práticas e vivências sexuais como um pro-
está em jogo é o quanto ela é ou não compre- blema que pode levar à Aids; nessa lógica, um
endida como fruto de uma política pautada comportamento classificado como desviante
no respeito aos direitos humanos. Para evitar ou transgressor pode levar o sujeito a infectar-
riscos à saúde e orientar a tomada de decisão, -se por um vírus. Tais convicções influenciam
é necessária a análise da situação de exposição o profissional de saúde a buscar o controle da
da/o usuária/o ao HIV, por meio de um relato vida sexual das pessoas, impossibilitando um
detalhado da prática que a/o levou a procurar trabalho pautado pela perspectiva de sexuali-
a PEP. Entretanto, percebe-se que trabalhado- dade como um direito4.
ras e trabalhadores da saúde têm dificuldade Lima, Almeida e Vieira11 procuraram pensar
em abordar as práticas sexuais, assim como sobre a medicação da Aids e a adesão à Tarv em
pacientes têm dificuldade em relatá-las, o que uma perspectiva das biopolíticas, realizando
demonstra que o assunto sexo não é natural. uma crítica ao modelo brasileiro de assistência
Além disso, muitos profissionais da saúde, a por não oferecer acolhimento nem considerar
despeito de atuarem em programas públicos as singularidades dos pacientes, o que leva à
voltados à sexualidade, acabam atuando com prescrição de condutas gerais e distancia o pa-
base em valores pessoais, mesclando saberes ciente do protagonismo e do direito ao próprio
científicos, religiosos, morais etc.9. Outro corpo. Para os autores, com o surgimento da
aspecto a ser analisado é que, apesar de a PEP Aids, cresceu o desafio de pensar em políticas
ser considerada uma tecnologia biomédica, públicas de saúde que não ocasionem uma
o acesso a ela é perpassado por tecnologias redução da subjetividade e da sexualidade
relacionais e aspectos psicossociais diversos. humanas a discursos biomédicos11.
Nesse sentido, a PEP pode ser lida não apenas Diante disso, será utilizada a noção de dis-
como uma estratégia biomédica, mas como postivo12 como um emaranhado de saber-po-
uma estratégia a serviço de diferentes forças, der estabelecido entre discursos, instituições,
de acordo com os usos dela pelos profissionais decisões, leis, pressupostos científicos, entre
envolvidos. o dito e o não dito, sendo sua compreensão
Os melhores métodos de prevenção sempre de fundamental importância para a análise
serão aqueles que se adéquam às necessidades que se pretende desenvolver neste artigo.
dos usuários e que consideram os contextos nos O dispositivo é um conceito versátil, o qual
quais estão inseridos, sendo ainda mais vanta- será utilizado para entender a sexualidade e a
josos por proverem os meios para intervenções Aids entrelaçadas nas relações de poder entre
estruturais e individuais3. Ao estruturar uma Estado como vigilante dos corpos das pessoas
Pedagogia da Prevenção10, pesquisadores da que (con)vivem ou potencialmente podem se
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids expor ao HIV.
(Abia) afirmam que, para que haja efetividade Em ‘A história da sexualidade: a vontade de
em oferecer múltiplas abordagens preventivas, saber’, Foucault13 procura definir o Dispositivo
há que se garantir acesso e informação sobre da Sexualidade, que poderia ser descrito como
algo que encadeia a estimulação dos corpos, que fazem parte de um ‘grupo de risco’ instituído
a intensificação dos prazeres, a incitação do por convergências, afinidades e homogeneização
discurso, a formação dos conhecimentos, o de interesses, o qual consiste na causa da con-
reforço dos controles e das resistências a partir taminação e precisa, portanto, ser higienizado.
de grandes estratégias de poder e saber e pro- Diante disso, há que se problematizar essas prá-
cedimentos discursivos; parte de um esquema ticas higienistas e estigmatizadoras que afetam
de transformação com necessidade de ser en- não somente as pessoas vivendo com HIV como
tendido como estratégia global que depende também todas as outras consideradas pelo Estado
de relações precisas e tênues de suporte e de como parte de uma população mais vulnerável.
fixação, articuladas nos discursos que veiculam Posto isso, salienta-se que as políticas públi-
e produzem o poder, mas também o minam, cas sobre HIV são avanços, do ponto de vista da
e nos segredos e silêncios que, na mesma afirmação do direito e acesso à cidadania, mas
medida, dão guarida e interditam e afrouxam devem ser problematizadas, especialmente
laços, dando margem a tolerâncias. Não há, pelas forças de sujeição que podem produzir:
de fato, censura sobre o sexo, mas incentivo à se, por um lado empreendem-se esforços para
produção de discursos sobre ele, com ênfase a positivação das identidades soropositivas,
na dualidade lícito-ilícito13. por outro, o dispositivo da Aids traz em sua
Além disso, Michel Foucault permite des- memória processos de estigmatização ainda
naturalizar o sexo, evidenciando que nenhuma fortes, adquirindo traços confessionais13 e, de
relação seria – embora, geralmente, monogâ- alguma forma, instrumentos disciplinadores
mica – apenas entre duas pessoas. O Estado faz dos quais o Estado se apropria.
parte dessas relações, procurando controlar Diante disso, esta pesquisa tem como obje-
o sexo, definindo qual é bom e qual é mau, tivo interrogar os discursos produzidos acerca
em busca de uma higienização de práticas da oferta da PEP sexual entre trabalhadoras
consideradas arriscadas à vida. da saúde em um município da região central
Néstor Perlongher14, baseado nos estudos do Paraná.
de Foucault, cunhou o termo dispositivo da
Aids, que está relacionado com o que chama de
‘antiga confissão’, mas agora no consultório é Material e métodos
que se deveria falar tudo sobre o sexo. Segundo
o autor, esse dispositivo se refere Este estudo utiliza dados de uma pesquisa
maior intitulada ‘Reagindo ao HIV: o atendi-
[...] não a doença em si, mas a moralização mento de emergência pós-exposição sexual
desencadeada em torno dela [...] exige como nos serviços de um município da região central
pré-requisito que tudo o que diz respeito à cor- do Paraná’, vinculada à dissertação de mes-
poralidade possa ser dito, mostrado exibido, trado defendida e orientada respectivamente
assumido; a partir disso é que se pode diag- pelo primeiro e segundo autores deste artigo.
nosticar e regulamentar [...]14(74). A pesquisa teve um viés qualitativo, com ins-
piração na perspectiva genealógica de Michel
Para que seja possível essa regulação, o disposi- Foucault: “Fala-se de um período genealógico
tivo da Aids se exerce quando conselhos médicos de Foucault para fazer referência àquelas obras
procuram disciplinar as práticas sexuais, “espe- dedicadas à análise das formas de exercício
cialmente as homossexuais”14(70). O controle que do poder”15(184). A escolha justificou-se na
o Estado opera, quando deposita atenção no uso necessidade de problematizar as relações de
dos corpos e prazeres, dá a entender que alguns poder a partir dos discursos e conhecimentos
gozos são mais legítimos que outros, atribuindo dos profissionais que atuam com a efetivação
a acusação de irresponsabilidade aos indivíduos da PEP sexual.
A pesquisa teve seus dados produzidos saúde que atuam no Serviço de Atendimento
entre julho de 2019 e novembro de 2020 em Especializado/Centro de Orientação e Apoio
um município de médio porte, na faixa entre Sorológico (SAE/Coas) e as enfermeiras e
150 e 200 mil habitantes, da região central a médica que atuam como plantonistas nas
do estado do Paraná. As participantes foram unidades de urgência e emergência mu-
duas profissionais representando a gestão nicipais e nos atendimentos de urgência
do Departamento de Atenção Especializada, relacionados à exposição sexual ao HIV.
que realiza a gestão da política de HIV no Para este artigo, o recorte foi feito conforme
município, a gestora e as profissionais de o quadro 1:
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo não se resume à linguagem. Isso significa que
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade o discurso se materializa em forma de texto,
Estadual do Centro-Oeste, Campus Irati, sob de imagem, de línguas verbais e não verbais,
número do parecer 3.417.298, de 26/06/2019. sempre sob determinações históricas16.
A participação na entrevista somente ocorreu Para chegar a essa linha de análise, reali-
após assinatura no Termo de Consentimento zou-se a leitura das entrevistas, primeiro na
Livre e Esclarecido (TCLE). ordem em que aconteceram, o que fez com que
Como método de análise, o estudo apoiou-se alguns discursos se destacassem, e, conforme
na Análise de Discurso Foucaultiana. Nunca esses iam se relacionando com o objetivo da
tendo sido um projeto de Foucault que houves- pesquisa, passou-se a tratá-los como linha de
se uma teoria de análise de discurso, o autor análise; em um segundo momento, à medida
apenas considerou que seu trabalho devesse que se realizou a análise e se integraram os
ser tratado como uma caixa de ferramentas: discursos das entrevistas com a teoria, voltou-
nessa caixa, o discurso é um conceito fundan- -se à leitura das entrevistas, de modo que as
te de seu pensamento, articulando todo um ações se complementaram.
sistema conceitual que perpassa pela, mas
relação rápida como é um atendimento de a possibilidade de que esse ‘dar-se por conta
urgência, de fazer esse tipo de inferência, uma depois’ seja acolhido por ações em saúde que
vez que não há, ainda, vínculo entre paciente possibilitem também uma forma de prevenção.
e trabalhador, devendo a relação de confiança A política brasileira de prevenção ao HIV foi
ser construída. Cabe destacar a presença de centrada, ao longo de sua história, na oferta
parâmetros objetivos: o PCDT da PEP estabe- do preservativo masculino como principal
lece que, quando o resultado do teste rápido de ferramenta de prevenção17, moldando uma
HIV é inconclusivo, a PEP deve ser prescrita cultura preventiva. Entretanto, na década
e fornecida ao paciente. Trazendo isso para o de 2010, houve um incremento do leque de
caso narrado pela Enfermeira 2, percebe-se a opções preventivas, representado na imagem
necessidade de uma escuta atenta da história da mandala da prevenção combinada18, que
do paciente, que estabelecerá – juntamente se constitui por um conjunto de estratégias
aos critérios constantes no PCDT da PEP – as com diferentes possibilidades de combina-
bases para a decisão sobre a prescrição. ção, visando à ampliação da autonomia e ao
A Enfermeira 2 encerra o relato analisado protagonismo dos sujeitos na construção da
anteriormente dizendo: prevenção. Elas exigem uma reconfiguração
da cultura preventiva: enquanto o preserva-
Mas parece que não existe o medo antes, existe tivo envolve um ‘chegar antes da relação’ (é
o medo depois, medo depois da relação e de ter necessário ter o preservativo e inseri-lo antes
se contaminado e tal. Ela deu sorte! Porque se der da penetração) para efetivar a prevenção, a
um positivo aí já é tarde. (Enfermeira 2, 2019). PEP compreende ‘chegar depois da relação’,
mas antes de ocorrer o processo de infecção.
Essa segunda parte da fala da trabalhadora Assim, exige uma torção do sentido tradicio-
pode ser analisada sob dois aspectos: o primei- nalmente atribuído à prevenção. Talvez por
ro diz respeito ao medo, e o segundo, à sorte. esse motivo, muitos profissionais se esqueçam
Retomando a pesquisa realizada por Paiva9, a da PEP e considerem que não há mais o que
pessoa entrevistada, L. (1987) diz: fazer quando alguém relata uma relação sexual
desprotegida.
O momento em que eu peguei o vírus da AIDS, O segundo aspecto discursivo é a ‘sorte’
eu não estava ali me contaminando… era muita de a paciente não ter se infectado com HIV,
paixão! Foi um momento de alegria, de prazer, o que não é apenas uma suposição possível
tanto tempo desejado… Prazer corporal, mas es- de saber, já que ela fez o teste rápido no dia
piritual também. Queria viver aquele meu amor, da exposição na unidade de urgência e, pelo
repetir outros momentos iguais àquele9(642). protocolo informado, não foi acompanhada
pela unidade de urgência, e sim pelo SAE ou
Dessa forma, não é um pressuposto uni- pela Unidade Básica de Saúde. Existem diver-
versal que uma pessoa pense em HIV, Aids sas motivações para pessoas terem sexo sem
ou outras IST na hora do sexo; então, de fato, preservativo, sendo uma delas a iminência
é compreensível que o medo só venha depois, da possibilidade de ser infectado com HIV19.
sendo o papel da profissional de saúde abordar Outro aspecto abordado com as participan-
os acontecimentos da vida cotidiana, incluindo tes da pesquisa foi com o objetivo de compre-
o sexo. O discurso expresso na fala da profissio- ender a abordagem aos possíveis usuários de
nal está ligado a uma pressuposição normativa: PEP. Segundo uma das participantes:
ao fazer sexo, as pessoas deveriam pensar em
doença e, portanto, prevenirem-se. O que está É… A gente pergunta qual é o comportamento
‘fora’ dessa normatividade parece surpreender. sexual, se ela costuma ter vários parceiros, se
A PEP sexual, entretanto, incorpora justamente naquela noite ela esteve com outros também, né?
E aí ela acabou falando que não foi só ele naquela É importante considerar que, diferente-
noite, que ele esteve com outro rapaz também, por mente da equipe do serviço especializado em
conta de ter bebido e tal. Aí a gente já fica um pouco HIV/Aids, a equipe dos serviços de pronto
mais preocupado e até aconselhamos e orientamos atendimento tem como característica uma
mais incisivamente a procurar o SAE. Agora se a maior diversidade de profissionais, em escalas
pessoa foi até lá, aí a gente já não sabe, né? Mas de plantões, configurando maior rotatividade
a gente orienta que vá. (Enfermeira 2, 2019). e dificuldade de efetivação de processos de
educação permanente.
A fala da médica sobre como realizar o Ainda, destaca-se a fala da profissional
atendimento de uma pessoa que se expôs ao acerca das resistências iniciais de alguns pro-
HIV e que poderia utilizar a PEP ilustra isso: fissionais em relação à implantação da PEP
nos serviços de urgência:
Eu não lembro mais a metade disso, mas eu sei
mais ou menos como é. Mas a gente faz nossas A gente teve muita resistência em relação aos
consultas, temos nossas ferramentas e aplicativos médicos, porque eles não queriam admitir que isso
médicos para consultar. Porque ter tudo assim na era uma urgência médica até a gente mostrar ‘tá
primeira prateleira da cabeça… são coisas que a escrito aqui, ó’ . (Gestora 1, 2020).
gente não mexe todo o dia. A gente não é pego
tão desprevenido assim caso for preciso fazer. A fala de outra profissional evidencia que os
(Médica, 2019). fluxos e as compreensões em torno da PEP nos
serviços de urgência ainda não estão sedimen-
A trabalhadora cita uma ferramenta até tados no cotidiano das unidades de urgência:
então não abordada por outros profissionais:
aplicativo para celular. O Ministério da Saúde7 Eu já tive muito paciente que não pegou a PEP,
se refere à simplificação do protocolo da PEP voltou aqui e falou assim: ‘eu não vou pegar porque
como a instituição de um algoritmo único para eu não vou ficar 3, 4 horas sentado lá esperan-
todos os tipos de PEP; tanto o excerto da fala do’. Então, sobre esse assunto a gente foi várias
da médica quanto o documento do Ministério vezes falar com os médicos e com as enfermeiras,
da Saúde denotam uma implicação racional/ então parece que agora já tá quase que um pouco
administrativa, com ênfase na utilização de melhor, a gente não tem mais tanta reclamação;
ferramentas que possibilitem a objetividade mas quando eu voltei do afastamento da pandemia,
do atendimento, configurando esse tema como eu lembro que a farmacêutica me comentou: ‘nós
apenas mais um assunto a ser abordado, como temos que conversar de novo com o pessoal da
qualquer outro, de modo asséptico. UPA, porque tem muita gente voltando, dizendo
Essa assepsia vai sendo contraposta por que não tá sendo atendida ou que não recebeu a
outras falas, como a seguinte: medicação, e a medicação estava lá’. (Gestora
2, 2020).
E a gente sabe que daí eles puseram outras pessoas
pra fazer a entrega da medicação, as enfermeiras De modo complementar, nas entrevistas
das unidades de urgência precisaram fazer treina- com profissionais da enfermagem, observou-se
mento pra fazer o teste; o médico, a gente levou os que não há um consenso acerca da classificação
protocolos, deixou em cima da mesa do médico pra do tempo de espera das pessoas que acessam
que ele soubesse que isso é uma urgência médica. as unidades em busca da PEP. Isso evidencia
Só que, às vezes, o paciente ainda vem aqui na que, mesmo com a existência de protocolos
segunda-feira e fala que não foi atendido [no e orientações, a garantia do acesso à PEP em
pronto atendimento]. (Gestora 1, 2020). tempo adequado e a abordagem do aconselha-
mento nem sempre ocorrem, resultando na
resistência. Uma fala que chamou atenção Seria possível, então, associar isso ao
expressa-se como ilustrativa do que se coloca enunciado da liberdade para Foucault, que só
como esse discurso prescritivo: existe com base nas relações de poder. Castro15
compila e explica como funciona a liberdade
A gente sempre orienta e sempre fala, né? O que para Foucault:
eu sempre falo pra todos, homens ou mulheres: se
for sair beber, não tenha relação. Quando for sair Qualificadas como livres aquelas formas de
com a vontade de ter uma relação sexual, só saia relação entre sujeitos que, negativamente, não
pra isso. Bebida e relação sexual não combina, estão bloqueadas e, positivamente, aquelas em
não dá certo. Porque às vezes vai lá… a maioria que se dispõe de um campo aberto de possi-
das relações acaba não dando muito certo, que bilidades; isto é, relações que são suscetíveis
os preservativos rompem, que acontece isso, é de modificação15(246).
que misturou bebida e sexo e não dá certo. (Téc.
Enfermagem 1, 2020). O discurso prescritivo, presente na orien-
tação da trabalhadora, pode ser ouvido por
Essa fala é atravessada por uma perspectiva diversos sujeitos, que têm a liberdade de seguir
prescritiva e normativa: ‘se beber, não transe’. ou não, podem ser capturados ou resistir. É
Parte-se de prescrições, mais do que de tenta- importante ressaltar que, nas relações que
tivas de compreender ou de buscar construir, são concebidas por processos de liberdade,
com o sujeito, o que é o melhor e/ou possível coloca-se ao lado do outro, não no lugar nem
para ele, entendendo que o referido discurso sobre o outro, buscando construir relações de
prescritivo poderia estar inscrito: diálogo, que auxiliem a pensar sobre si mesmo
(não prescrever ao outro), reconhecendo o
[...] nos modelos clássicos de explicação do protagonismo na produção da saúde. Essa
processo saúde-doença, pressupostos que perspectiva dialoga com a redução de danos
sustentam a prescrição de comportamentos e riscos, prevista como uma das abordagens
tecnicamente justificados como únicas escolhas expressas na mandala da prevenção18. Sob
possíveis para o alcance do bem-estar de todos essa perspectiva, é possível ampliar possibili-
os indivíduos, independentemente de sua inser- dades que protejam o sujeito, a partir daquilo
ção sócio-histórica e cultural. Por esse caminho, que está ao seu alcance, de suas condições e
foi incorporada à nossa cultura sanitária a supo- necessidades.
sição de que comportamentos ‘não educados’
por esses padrões são insuficientes, insalubres
e inadequados (tanto do ponto de vista técnico- Considerações finais
-sanitário quanto do moral), constituindo o que
vem sendo nomeado, contemporaneamente, O estudo constatou que a PEP foi implantada
como ‘comportamentos de risco’21(1336). no município, ampliando as possibilidades
de estratégias preventivas ao HIV para a po-
Assim, entende-se que pulação. Apesar disso, há ainda aspectos que
constrangem a oferta da PEP, destacando-se
[...] o apoio e a resposta social que se busca controvérsias em torno de sua classificação
alcançar envolvem a comunicação entre dife- dentro dos critérios de classificação de risco
rentes, que não objetiva a homogeneização de e situações em que usuários não obtiveram
formas de pensar e levar a vida, mas a cons- atendimento nos serviços de urgência, recor-
trução e o fortalecimento de cumplicidades na rendo ao SAE/Coas após encerrado o prazo
busca de proteção21(1336). para prescrição de PEP.
As políticas públicas são atravessadas por prevenção entre diversas disponíveis, desta-
um jogo de forças e discursos construídos so- cando-se a PEP. Defende-se que ela seja ofer-
cialmente. Assim como muitos desses discursos tada como um modo de ampliar as relações de
veiculam acolhimento, não julgamento, viés liberdade, permitindo aos sujeitos maximizar
participativo, há também discursos prescritivos: seus graus de autonomia e protagonismo na
‘se beber, não transe’, forjando uma dietética efetivação do exercício da prevenção.
sexual e insinuando-se sobre os corpos dos pro-
fissionais da saúde e dos usuários dos serviços
de saúde, abrindo um campo de experiências Colaboradores
possíveis nesse jogo de forças.
Indica-se a necessidade de uma reconfi- Paula WNC (0000-0002-9714-2616)* e
guração da cultura preventiva, incorporando Zambenedetti G (0000-0002-7372-9930)*
a noção de prevenção combinada, na qual o contribuíram igualmente para a elaboração
preservativo é só mais uma das estratégias de do manuscrito. s
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DOI: 10.1590/0103-11042022E712
RESUMO Este artigo discute os modos de aplicação da Profilaxia Pós-Exposição sexual (PEP sexual) ao
HIV em um serviço público de saúde no estado do Rio de Janeiro. Os dados resultam de um estudo de caso
e foram produzidos a partir de entrevistas com usuários da PEP sexual e profissionais responsáveis por
esse atendimento. Referenciais teóricos sobre integralidade foram utilizados como parâmetros para análise.
Ainda que os resultados tenham apontado práticas pautadas em uma relação dialógica que favorecem
um cuidado singularizado, predominaram práticas médico e procedimento centradas atravessadas por
padrões morais discriminatórios. Desafios ainda precisam ser enfrentados para que o direito de as pessoas
conhecerem e se beneficiarem das medidas preventivas, a partir de escolhas esclarecidas e de acordo
com suas necessidades, possa ser assegurado. Investimentos em uma formação profissional, que produza
reflexões e interrogações sobre as práticas de saúde e organização dos serviços, podem contribuir para
o desenvolvimento de ações orientadas pelos princípios do Sistema Único de Saúde – permitindo que o
atendimento para PEP sexual possa constituir-se como um dispositivo de cuidado para prevenção do HIV.
ABSTRACT This article discusses the forms of application of sexual Post-Exposure Prophylaxis to HIV in
a public health service in the state of Rio de Janeiro. Data result from a case study and were produced from
interviews with users of the prophylaxis and professionals responsible for such care. Theoretical references
on integrality were used as parameters for analysis. Although the results have shown practices centered in
a dialogical relationship that favored a singularized care, medical and procedure centered practices crossed
by discriminatory moral standards prevailed. Hurdles still need to be overcome so that the people’s right to
know and benefit from the preventive interventions, based on informed choices and according to their needs,
can be assured. Investments in a professional training, that provoke reflections and questions about health
practices and organization of services, can contribute to the development of health actions guided by the
Unified Health System (SUS) principles – allowing that the assistance for people who search for the sexual
PEP can become a care device for HIV prevention.
1 Secretaria Estadual de
Saúde do Rio de Janeiro
(SES-RJ) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
filgueiras.sandralucia@
gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 169-181, DEZ 2022
170 Filgueiras SL
Esse cenário pode inviabilizar a realização Depende muito da pessoa que atende. [...] o pessoal
de uma atenção integral à saúde sexual, além vai sempre chegar aqui e falar que a camisinha
de comprometer a adesão aos ARV prescritos estourou. Depois de todos esses bloqueios, o cara
para profilaxia e o vínculo dessas pessoas com vai falar ‘a gente estava transando sem camisinha?’
o serviço13. Demonstra ainda uma preocupação [...] ajusta o discurso pra levar um esporro menor.
com a compensação de risco, especialmente
quando a profilaxia é disponibilizada em situ- Os comentários de Ivo sinalizam a exis-
ações de exposição sexual consentida, sendo tência de barreiras ao estabelecimento de
mais bem aceita quando indicada em casos de uma relação dialógica profissional-usuário
‘acidente sexual’, induzindo a condutas profis- implicada na construção compartilhada de um
sionais que não consideram como direitos17 o cuidado singularizado e contextualizado à vida
livre exercício da sexualidade e o acesso à PEP dos usuários. Sugere a possibilidade de efeitos
em situações de exposição sexual consentida. danosos provenientes de atravessamentos de
Diferentes estudos sobre a implantação da ordem pessoal/moral na prática médica. De
PEP sexual em serviços de saúde evidenciaram forma similar sugere a médica Helena sobre
a preocupação com a compensação de risco o atendimento de um rapaz, formado em psi-
e com a reincidência no uso da profilaxia18,19. cologia, que trabalhava em um programa de
Ferraz e Paiva20(100), todavia, chamam redução de danos:
atenção para a existência de dados que
mostram que a compensação de risco não jus- [...] ele teve um relacionamento com um paciente
tifica a limitação da oferta de novas tecnologias e veio pra cá alegando que o preservativo tinha se
biomédicas na rede. Por outro lado, mesmo em rompido. [...] no meio da conversa com o rapaz eu
condições sociais de extrema vulnerabilidade, disse pra ele: ‘olha só [...] eu acho que você não
em alguma medida, cada indivíduo é sujeito está bem preparado pra trabalhar neste progra-
de sua sexualidade e, assim, ma porque você esqueceu a primeira regra – que
médico, psicólogo, psiquiatra não devem manter
manejará e reinventará/adaptará os discursos um relacionamento íntimo com o seu paciente. Se
preventivos, se tiver acesso a eles e aos insumos você vem buscar a PEP pra tentar evitar a contami-
para realizá-los. Não cabe, portanto, buscar nação, você deveria estar informado desse quesito
estratégias para controlar a experiência sexual. que ele [referindo-se ao paciente fonte] deveria
estar aqui com você pra fazer um teste anti-HIV’.
tornar obstáculos para a garantia do direito para produção de saúde, inclusive responden-
aos cuidados de saúde e acesso às tecnologias do à demanda apresentada pelo usuário. No
de prevenção do HIV. entanto, verifica-se que não houve nenhuma
Demonstram ainda que a perspectiva dos tentativa do profissional em direção a uma
usuários (o que eles sabem, pensam e sentem ‘ausculta mais ampliada’14 do usuário, criando
a respeito da sua saúde) era desconsiderada condições para que ele pudesse refletir sobre
nos atendimentos, que pareciam se caracte- sua percepção de risco, sobre outras possibi-
rizar mais como uma intervenção sobre um lidades de prevenção como a PrEP, ou o uso
objeto, ao contrário da reflexão estimulada por do preservativo com parcerias eventuais e, por
Ayres sobre o cuidado em saúde. Para o autor, fim, ter uma decisão mais esclarecida sobre a
esse é construído por meio do diálogo entre utilização da PEP.
o profissional e o usuário, “onde os objetos Merhy8–10, atento aos modos de realizar
da intervenção, os meios para realizá-la e as as ações de saúde, reflete sobre o ‘trabalho
finalidades visadas são definidos com saberes e vivo em ato’ e a configuração tecnológica do
experiências, científicos e não científicos”16(15) trabalho em saúde (tecnologia dura, tecnologia
de ambos os interlocutores. Implica posturas, leve-dura e tecnologia leve). O autor conceitua
atitudes e ações que são regidas por um tipo tecnologia leve como aquilo que se produz nas
de saber “que não cria objetos, mas realiza ‘relações intercessoras’ entre os profissionais
sujeitos diante dos objetos criados no e para de saúde e os usuários, e é fruto do trabalho
seu mundo”22(119), o que denomina ‘sabedoria humano quando está sendo executado: o ‘tra-
prática’22, a qual depende, sobretudo, de um balho vivo em ato’. Dependendo de como se
encontro entre sujeitos de direito. organiza, o arranjo tecnológico no momento
O usuário Marcos é casado e fez a profila- assistencial pode gerar relações burocráticas
xia por duas vezes em menos de seis meses. e prescritivas. Quando organizado segundo as
Conforme relatou, seu risco foi o rompimento necessidades dos usuários, a partir de tecno-
do preservativo durante o sexo vaginal com logias leves e pautado por resultados gerados
mulheres “normais”, ou seja, que não eram em benefícios para seus usuários, o arranjo
profissionais do sexo. Ele comenta: tecnológico pode produzir relações de con-
fiança, vínculo, aceitação e responsabilização
Eu cheguei, expliquei como é que tudo aconteceu, pelo problema do usuário10.
qual a situação que eu me encontrava e na mesma A partir dessa perspectiva conceitual, é pos-
hora ela fez a receita, eu fui na farmácia, peguei sível questionar se o atendimento de Marcos
e fui embora. foi sumário e burocrático, se sua condução
careceu de ‘tecnologia leve’ e do diálogo es-
Caso os médicos do serviço tivessem sencial para formação de vínculo e desenvol-
seguido a recomendação técnica do MS: “sexo vimento de cuidado integral.
vaginal insertivo com parceria de sorologia A situação relatada pela usuária Denise
desconhecida e de população de baixa pre- ilustra outra natureza de relação profissional-
valência – não recomendar”3(62), Marcos não -usuário, na qual a médica demonstrou uma
teria indicação para a profilaxia. No entanto, postura aberta ao diálogo, capaz de potencia-
essa já era a segunda vez que ele estava fazendo lizar a ação de cuidado.
a PEP sexual.
Pensando na articulação assistência e pre- Eu já estava fazendo um acompanhamento de
venção necessária à construção da integra- acidente perfurocortante com a doutora. E por
lidade no contexto das práticas de saúde15, ela ser muito acessível a pessoa se sente mais à
a conduta profissional restringiu-se à oferta vontade e comentei com ela que havia transado
da profilaxia, o que poderia ter sido suficiente com uma pessoa que depois que eu fui ver que era
bem galinha. Já havia passado o tempo de fazer a vivências do usuário no processo de cuidado
profilaxia, ela fez os exames só pra me deixar mais podem contribuir para o alcance de seu ‘sucesso
tranquila. Eu falei com a doutora isso, porque me prático’23 – como sugere Denise ao destacar a
sinto à vontade com ela. importância de se sentir à vontade para falar
com o profissional sobre suas práticas sexuais,
Denise desconhecia a possibilidade de realizar trazendo “informações que podem ser importan-
a profilaxia para situações de exposição sexual tes para o tratamento”, viabilizando assim uma
consentida. Esse encontro com a médica demons- construção compartilhada do cuidado.
trou que a atenção recebida estava assentada Outra questão que chamou atenção diz res-
em uma relação dialógica entre sujeitos. Denise peito à definição do fluxo para PEP sexual
teve oportunidade de refletir sobre seus riscos, no âmbito do serviço e a não realização do
conhecer diferentes medidas de prevenção e TRD para o HIV no ‘paciente exposto’. Os
abrir caminhos para refletir sobre estratégias entrevistados comentam:
preventivas viáveis para si. A médica lançou mão
de outros dispositivos de prevenção (no caso o Eu acho que não tem que fazer teste rápido no
exame de HIV) e potencializou ainda mais o acidentado. O objetivo do teste rápido é a gente
cuidado em curso. saber se a fonte é portadora de HIV pra gente
Sobre aspectos relativos à relação profis- decidir se tem que fazer a profilaxia. Pro acidentado
sional-usuário, Denise chama atenção mais a gente não pede porque se der positivo eu vou ter
uma vez: que contar a ele e aí já virou mais uma consulta
diagnóstica de HIV. O objetivo no atendimento é
O profissional precisa deixar o paciente mais à definir se vai fazer uma profilaxia. (Elaine, médica
vontade, porque às vezes eles se limitam a fazer infectologista).
perguntas e você a responder. Às vezes fez sexo
vaginal, sexo oral e sexo anal, a pessoa vai se limitar Peço a sorologia, mas não com o teste rápido. O
a falar que fez o sexo vaginal que é a forma mais problema é que o resultado nunca sai na hora.
normal do sexo. Informações que podem ser im- Vai demorar algumas horas e eu pelo menos não
portantes para o tratamento, ela não vai falar. fico mandando a pessoa ficar aí esperando horas
para liberar o ARV. Isso serve como ferramenta de
Essa situação remeteu às reflexões de bloqueio. (Ivo, médico infectologista).
Ayres sobre a importância do ‘êxito técnico’
e a necessidade do ‘sucesso prático’ para a Remetendo novamente aos sentidos da inte-
produção de saúde. O primeiro refere-se à gralidade sublinhados por Mattos14, o relato da
“capacidade de identificar e executar possi- profissional Elaine indica uma conduta profis-
bilidades de intervenção instrumental para sional centrada especificamente no protocolo
a prevenção, tratamento ou recuperação de instituído no serviço. Para ela, essa era a forma
agravos à saúde”23(18), e só se concretiza na adequada de conduzir essas situações. Atenta
vida do usuário se estiver configurado ao seu ao ‘êxito técnico’23 e considerando apenas que
modo de entender como devem ser a vida e o “objetivo no atendimento é se vai fazer a pro-
a saúde no cotidiano, gerando, dessa forma, filaxia”, não reconhece a importância de uma
o ‘sucesso prático’23. O autor enfatiza que o ‘ausculta mais ampliada’14 e de aproveitar a
‘sucesso prático’23 não prescinde da com- oportunidade desse encontro para potencia-
petência técnica, mas conclama a sabedoria lizar ações de prevenção combinada.
que nasce no encontro, no diálogo, na relação O relato de Elaine sugere a presença de prá-
humana entre profissional-usuário23. ticas profissionais que podem se constituir em
A partir das concepções de Ayres, compre- barreiras para o cuidado, conforme apontam
ende-se que o reconhecimento e a inclusão das Massa et al.13(13), quando
mas sim para compreender que é “da pre- Trabalho como um lugar de aprendizado, uti-
servação e do fortalecimento do SUS que lizando os desafios e desconfortos sentidos
depende o potencial que terão essas tecno- pelos profissionais (espontaneamente ou sob
logias no controle da epidemia no país”5(160). provocação) como matéria prima para mudança
Em consonância com a política de preven- do processo de trabalho.
ção preconizada no Brasil1,3, Cohen18 destaca
a necessidade de reforçar a divulgação da A reflexão das equipes de saúde sobre seus
PEP sexual entre segmentos da população fazeres profissionais pode ser um instrumento
de vulnerabilidade acentuada para o HIV. Sem potente para o desenvolvimento de práticas
dúvida, a divulgação contínua dessa tecnolo- orientadas pelos princípios do SUS – integra-
gia preventiva, assim como do conjunto de lidade, equidade e universalidade.
métodos que compõem a prevenção combi- Fortalecido em seus princípios, o SUS
nada, é fundamental e deve compor o rol de potencializa a articulação entre saúde e ci-
ações programáticas para sua expansão na dadania, propiciando encontros dialógicos
rede de saúde. entre sujeitos de direito (profissionais e usu-
Entretanto, além de investimentos em ários), em que a ‘sabedoria prática’9,23 possa
divulgação, a expansão qualificada da oferta se afirmar. Somados à competência técnica,
dos métodos preventivos no SUS exige um esses encontros podem germinar “escolhas
olhar atento para o papel dos serviços de mais adequadas sobre o que saber e o que fazer
saúde nesse processo. Considera-se que a em cada situação de cuidado”23(20), viabili-
consolidação da integralidade como diretriz zando um acesso qualificado às tecnologias
do cuidado e da organização dos serviços, de prevenção.
assim como o fortalecimento do debate
sobre direitos sexuais e de acesso às tec-
nologias de prevenção, pode trazer apro- Considerações finais
ximação à qualidade almejada na expansão
da PEP sexual e dos demais dispositivos da A oferta da PEP sexual e dos demais disposi-
prevenção combinada na rede de saúde. tivos da prevenção combinada no SUS é es-
A oferta de métodos preventivos do HIV no sencial para garantir o direito das pessoas se
SUS e o uso eficaz destes são dependentes da prevenirem do HIV. A qualidade dessa oferta
possibilidade de diálogo sobre sexo e sexua- depende de como são realizadas as práticas
lidade, não apenas com informações técnicas, de saúde e como os serviços são organizados.
mas incluindo o respeito à diversidade e o Os profissionais de saúde são fundamentais
enfrentamento da estigmatização, que cria nesse processo, porque lhes cabe a mediação
maiores vulnerabilidades para o HIV20. entre o cidadão e as tecnologias preventivas19,
Nesse sentido, reforça-se a necessidade entre o conhecimento científico e a vida das
de investimento programático na formação pessoas. O diálogo é matéria-prima para cons-
profissional2,4,5,24,25 para redução da lacuna trução de um cuidado singularizado e atento a
existente entre as políticas e as práticas coti- como as pessoas vivem sua sexualidade, para
dianas nos serviços de saúde. que a reflexão sobre o uso da PEP sexual e das
Reconhece-se a educação permanente demais medidas preventivas tenha sentido em
como uma estratégia potente nessa direção suas vidas20.
à medida que coloca o trabalho e as práticas Os dados do estudo evidenciaram práticas
cotidianas em análise, promovendo mudan- ‘médico e procedimento’ centradas, atraves-
ças no cotidiano do serviço e buscando maior sadas por padrões morais discriminatórios,
resolutividade26. Nessa perspectiva, Melo e revelando uma lacuna entre a política e o co-
Mattos27(107) destacam o tidiano dos serviços. Por outro lado, também
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https://www.scielo.br/j/sausoc/a/QZX9gH7KmdD-
Recebido em 09/05/2022
vBpfDBSdRVFP/abstract/?lang=pt Aprovado em 14/09/2022
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042022E713
RESUMO Este artigo objetivou construir e validar indicadores para o cuidado à saúde dos privados de
liberdade com HIV/Aids, sendo um estudo de desenvolvimento metodológico realizado em duas etapas.
Na primeira, houve a construção dos indicadores por meio de revisão da literatura nas bases de dados
nacionais e internacionais. Na segunda, realizaram-se a validação do conteúdo e a aparência utilizando o
método da técnica Delphi; dez juízes especialistas no cuidado à pessoa que vive com HIV/Aids e atuação
prática no ambiente prisional participaram dessa etapa, sendo a maioria enfermeiros atuando em unidades
prisionais. Após, foi realizada a análise de consistência interna, desta feita, o instrumento foi aplicado
a dez gestores de saúde de unidades prisionais e calculado do coeficiente alfa de Cronbach; a escolha
dos gestores versou por meio de sorteio. O instrumento resultou em cinco dimensões: Estrutura Física;
Recursos Humanos; Organização do Processo de Trabalho; Prontuários de Saúde; e Adesão ao Tratamento.
O instrumento obteve 80% de concordância dos juízes com relação ao conteúdo e a aparência. O alfa
de Cronbach geral foi de 0,90. O instrumento foi validado em aparência, conteúdo e consistência para
avaliação do cuidado ao privado de liberdade com HIV/Aids.
ABSTRACT This study aimed to build and validate indicators for the health care of those deprived of freedom
living with HIV/AIDS, being a methodological development study carried out in two stages. In the first stage,
there was the construction of indicators through a literature review in national and international databases.
In the second stage, the content and appearance validation were performed using the Delphi technique
method; ten judges specialized in the care of the person living with HIV/AIDS and practical performance
in the prison environment participated in this stage, most of them being nurses working in prison units.
After that, the internal consistency analysis was performed, and the instrument was applied to 10 health
managers of prison units, and the Cronbach’s alpha coefficient was calculated. The instrument resulted in
five dimensions: Physical Structure; Human Resources; Work Process Organization; Health Records; and
Adherence to Treatment. The instrument obtained 80% of agreement from the judges regarding content and
appearance. The overall Cronbach’s alpha was 0.90. The instrument was validated in appearance, content,
and consistency for the evaluation of care to those deprived of freedom living with HIV/AIDS.
1 Universidade Estadual KEYWORDS Prisoners. Health care quality. Program evaluation. Acquired Immunodeficiency Syndrome.
Paulista (Unesp), Validation studies.
Faculdade de Medicina
(FM) – Botucatu (SP),
Brasil.
fh.apolinario@hotmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 182-195, DEZ 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Construção e validação de instrumento para avaliação do cuidado a prisioneiros que vivem com HIV/Aids 183
para avaliação dos fatores de risco para outros Considerando o exposto, este estudo teve
agravos crônico-degenerativos13. Porém, na por objetivo construir e validar indicadores
unidade prisional, esse modelo assume con- para avaliação do cuidado à saúde das pessoas
tornos ainda maiores, mediando o resgate da privadas de liberdade com HIV/Aids no con-
condição de vida digna dessas pessoas, tanto texto da prisão.
do ponto de vista biológico quanto do social e
psicológico, proporcionando conforto e bem-
-estar, minimizando iniciativas que estimulem Material e métodos
a discriminação ou o preconceito, respeitando
os princípios éticos e legais, com vistas a res- De acordo com os Padrões de Excelência no
gatar o sentido da existência humana dentro Relato de Melhorias de Qualidade (Standards
da perspectiva do direito constitucional de for Quality Improvement Reporting Excellence
cada indivíduo, resultando em uma assistência – SQUIRE), o presente estudo foi desenvolvido
íntegra e com qualidade13. em fases sequenciais, de construção e valida-
Do ponto de vista legal, a atenção à saúde ção de instrumento de avaliação do sistema de
da população privada de liberdade está sendo saúde prisional no cuidado à saúde dos priva-
consolidada, porém, o desafio é de operaciona- dos de liberdade que vivem com HIV/Aids no
lização prática, de forma a abordar o conceito estado de São Paulo, Brasil. Para tal, foi adotado
ampliado de saúde e a organização da atenção o referencial teórico proposto por Donabedian,
integral desses sujeitos, em função da diver- que apresenta três categorias para avaliação:
sidade e da complexidade dos problemas de estrutura, processo e resultado. A partir dos
saúde-doença e vulnerabilidade social dessa trabalhos de Donabedian, as avaliações na
população14,15. Ainda, existe uma carência de área de saúde ganharam direcionamento no
estudos que forneçam subsídios relacionados conceito de qualidade, imputando novos con-
com o tema em ambientes prisionais; e é ex- tornos teórico-metodológicos, tornando siste-
tremamente relevante identificar os fatores mática uma série de características relativas
facilitadores e as barreiras existentes dentro aos efeitos do cuidado (eficácia, efetividade,
do universo prisional, a fim de formular um impacto), aos custos (eficiência), à disponibi-
planejamento da assistência voltado para a lidade e alocação dos recursos (acessibilidade,
realidade das unidades, bem como após a equidade) e à percepção dos usuários sobre a
liberdade do indivíduo. Contudo, as muitas assistência recebida16.
fragilidades verificadas na realização prática O estudo consistiu em duas fases. Para a pri-
da organização do serviço de saúde prisional meira fase e fundamentação e análise teórica
refletem na assistência. do instrumento, foi realizada revisão da litera-
No tocante à promoção de qualidade de tura científica a partir da questão norteadora
vida aos privados de liberdade que vivem ‘Quais são as estratégias de cuidado ao privado
com HIV/Aids, a assistência à saúde é fun- de liberdade com HIV/Aids desenvolvidas no
damental – e para conhecer essa realidade, é âmbito prisional?’. Os descritores utilizados,
necessário que se realizem estudos que avaliem de acordo com a base de dados Descritores
esses serviços. Para isso, faz-se necessário um em Ciências da Saúde (DeCS), foram: Prisons,
instrumento capaz de avaliar a qualidade do Prisoners, HIV Infections, HIV, Acquired
serviço de saúde prisional prestado ao privado Immunodeficiency Syndrome, AIDS-Related
de liberdade que vive com HIV/Aids, baseado Opportunistic Infections, Comprehensive
nas características da doença do privado de Health Care, Health Services, combinados
liberdade, bem como da especificidade do local entre si por operadores booleanos AND e OR.
a ser avaliado. Dessa forma, este trabalho se Foram consultadas as bases de dados Web of
justifica pelo seu ineditismo na temática. Science, PubMed, Lilacs, Scopus, Embase e
Cinahl. A seleção dos artigos foi realizada a compostas por 9 itens denominados padrões;
partir da leitura dos resumos, considerando os Adesão ao Tratamento com Antirretroviral
critérios de inclusão, as publicações disponí- (Atarv): 7 perguntas compostas por 34 itens
veis completas, nos idiomas inglês, português denominados padrões.
e espanhol, com delimitação do período de As perguntas do instrumento compostas
publicação de 2000 a 2018. Foram excluídas pelos itens padrão que formaram cada dimen-
as publicações que se repetiram nas bases de são foram descritas no instrumento de forma
dados e as que não se relacionavam com o interrogativa, e as respostas foram do tipo ‘sim’
objeto de estudo descrito na questão norteado- ou ‘não’. Outras 17 perguntas com respostas
ra. Para complemento dessa fase, buscaram-se abertas compuseram o instrumento a fim de
informações nos manuais técnicos sobre o caracterizar o serviço, sendo essa forma mais
processo organizacional de trabalho do serviço fácil para análise e compreensão do estudo.
de saúde e do serviço de saúde prisional nos A segunda fase consistiu na validação do
protocolos clínicos do Ministério da Saúde e conteúdo, na aparência e na consistência do
da Organização Mundial da Saúde. instrumento, utilizando dois métodos: análise
A construção do questionário ocorreu de e julgamento dos juízes e análise psicométri-
julho de 2018 a novembro de 2018, sendo ca. Para análise dos juízes, foi utilizado como
que, para tal procedimento e operacionaliza- referencial metodológico o método Delphi23,
ção, foram considerados: conceito, objetivos, que se propõe a buscar e a conseguir consen-
equação, população/amostra, tipo e fonte de sos de especialistas sobre determinado tema
informação e cenário. Os indicadores foram por meio de validações articuladas em fases
construídos com base em: produções científi- ou ciclos, sendo obtidos na coletividade de
cas nacionais e internacionais sobre a temática; opiniões de especialistas que podem também
protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para ser chamados de peritos ou juízes. Essa técnica
manejo da infecção pelo HIV em adultos17; pode ser utilizada em estudos qualitativos
manual de cuidado integral às pessoas que e quantitativos, constituindo-se como uma
vivem com HIV pela Atenção Básica18; manual estratégia apropriada para estabelecer valida-
de estrutura física das Unidades Básicas de de de conteúdo e aparência de instrumentos,
Saúde19; caderno de boas práticas para or- sendo muito utilizada nas ciências da saúde23.
ganização de serviços de atenção básica20; Para a análise de consistência e confiabilidade
recomendações de boas práticas da assistên- do instrumento, foi calculado o coeficiente de
cia ambulatorial em Aids no SUS21; Política alpha de Cronbach, que é um dos mais impor-
Nacional de Atenção Integral a Saúde no tantes testes difundidos em pesquisas que en-
Sistema Prisional22. volvem a construção de testes e sua aplicação
O instrumento foi constituído por cinco e que permitem verificar a correlação entre
dimensões – Estrutura Física do Núcleo de respostas de um questionário24.
Atendimento à Saúde Prisional (Efinasp): 9 A escolha dos juízes ocorreu de forma in-
perguntas compostas por 54 itens denomina- tencional, de novembro de 2018 a fevereiro de
dos padrões; Recursos Humanos do Núcleo de 2019, utilizando dois métodos não probabilís-
Atendimento à Saúde Prisional (RHNASP): ticos – o primeiro a partir da análise de currí-
26 perguntas compostas por 109 itens deno- culos existentes na base de dados do Conselho
minados padrões; Organização do Processo Nacional de Desenvolvimento Científico e
Assistencial no Núcleo de Atendimento à Tecnológico (CNPq), e o segundo sendo o
Saúde Prisional (Opanasp): 12 perguntas com- método bola de neve, em que os especialistas
postas por 128 itens denominados padrões; selecionados para compor o estudo indicam
Prontuários do Núcleo de Atendimento à novos participantes que possuam caracterís-
Saúde Prisional (Prontnasp): 3 perguntas ticas comuns ao interesse da investigação25.
Instrumento de avaliação
do Núcleo de Saúde Prisional
1ª versão
Instrumento Avaliação
do Núcleo de Saúde Prisional
versão final
IC ≥ 80% VALIDADO
Para análise do alpha de Cronbach, o instru- e fornece evidências de uma escala interna-
mento foi aplicado aos gestores do Núcleo de mente consistente28.
Atendimento à Saúde das Unidades Prisionais. O estudo foi desenvolvido após aprova-
As unidades prisionais no estado de São Paulo ção pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
são organizadas e divididas em cinco coorde- Universidade Estadual Paulista – Unesp de
nadorias; para a escolha das unidades prisio- Botucatu, mediante o parecer nº 2.937.404, e a
nais e seus respectivos gestores do núcleo de aprovação pelo Comitê de Ética da Secretaria
saúde participantes deste estudo, foi realizado da Administração Penitenciaria do estado de
sorteio eletrônico de duas unidades prisio- São Paulo, por meio do parecer nº 2.995.757.
nais de cada coordenadoria, totalizando dez Foram garantidos o anonimato e o esclare-
gestores de saúde das unidades prisionais sor- cimento de todas as etapas da pesquisa aos
teadas. Realizou-se o contato telefônico com juízes. Aos que aceitaram participar, foi soli-
os respectivos gestores e feito o convite para citada a assinatura do TCLE.
participar do estudo; em seguida, o instrumen-
to em formato eletrônico de link foi enviado
por e-mail. Os participantes acessavam o link Resultados
por uma página na web, preenchiam o TCLE
e criavam um login e uma senha. Após o TCLE Completando a avaliação do instrumento,
devidamente preenchido, o participante tinha participaram deste estudo dez juízes. A ca-
acesso ao questionário, podendo entrar por racterização dos juízes participantes quanto
qualquer computador ou aparelho eletrônico ao sexo foram: 9 femininos e 1 masculino; em
conectado à internet. O acesso poderia ocorrer relação a formação foram: 5 enfermeiros, 1
conforme a disponibilidade de tempo, per- médico, 1 assistente social, 1 psicólogo, 1 farma-
mitindo a saída e posterior retorno, bastando cêutico e 1 geografo; grau de formação foram: 6
somente salvar as respostas realizadas. Todos mestres e 3 doutorados; área de atuação foram:
os gestores convidados participaram do estudo. 4 na assistência, 4 na gestão e 2 na pesquisa e
Para o tratamento dos dados, foi realiza- ensino; tempo de formação e tempo de tempo
da a análise quantitativa por meio do nível de atuação a maioria dos juízes apresentaram
de consenso dos peritos ou juízes. O nível 10 anos ou mais e a natureza jurídica da insti-
de consenso é estabelecido por um índice tuição foi 100% instituição pública.
de validação de conteúdo mínimo, também O procedimento de validação de conteú-
conhecido como Índice de Consenso (IC) ou do e aparência possibilitou captar o parecer
de Favorabilidade. Estudos adotam o IC entre dos especialistas em relação aos indicadores
70% e 80%26,27. Adotou-se, neste estudo, o IC apresentados em cada dimensão e subsidiou
maior ou igual a 80%. Para análise do alpha de a reformulação dos itens e dos indicadores
Cronbach, adotou-se o valor ≥ 0,70, que é con- propostos. A análise quantitativa do IC das
siderado aceitável para estudos exploratórios dimensões segue descrito nas tabelas 1 e 2.
Tabela 1. Análise de concordância das dimensões do instrumento de avaliação – Núcleo de Saúde Prisional. Botucatu, São
Paulo, Brasil, 2022
Tabela 2. Análise de concordância das dimensões do instrumento de avaliação – Núcleo de Saúde Prisional. Botucatu, São
Paulo, Brasil, 2022
Prontnasp Atarv
Critérios de avaliação: Freq. % de concordância Freq. % de concordância
Clareza e Objetividade
Concordo 9 90 8 80
Discordo 0 0 1 10
Não concordo nem discordo 1 10 1 10
Pertinência
Concordo 9 90 8 80
Discordo 0 0 0 0
Não concordo nem discordo 1 10 2 20
Aparência
Concordo 10 100 9 90
Discordo 0 0 00
Não concordo nem discordo 0 0 1 10
Precisão
Concordo 10 100 10 100
Discordo 0 0 0 0
Não concordo nem discordo 0 0 0 0
Quadro 1. Estrutura física do Núcleo, Recursos Humanos e Organização do processo assistencial no Núcleo de
Atendimento à Saúde Prisional. Botucatu, São Paulo, Brasil, 2022
A quarta dimensão, Prontnasp, obteve a con- Com relação à análise de alpha de Cronbach,
cordância entre os juízes de 90% nos itens Clareza o instrumento foi aplicado a dez gestores do
e Objetividade, e Pertinência. Nos itens Aparência Núcleo de Atendimento à Saúde das unidades
e Precisão, atingiu os 100%. Finalmente, na quinta prisionais do estado de São Paulo sorteadas.
dimensão, Atarv no Núcleo de Atendimento à Para avaliar a consistência e a coerência do
Saúde Prisional, nos itens Clareza e Objetividade, questionário, os resultados de alpha são apre-
o IC foi de 80%; o item Aparência alcançou 90%; sentados na tabela 3.
e Pertinência, 100%.
Tabela 3. Valores de alfa de Cronbach para o questionário proposto no geral e por domínios. Botucatu, Brasil, 2022
Geral Alpha
Considerando 259 itens 0,91 todos os itens (259)
Considerando 172 itens 0,91 retirando os itens com a mesma respos-
ta (0 ou 1 em todos os itens) (152)
Por domínios
Estrutura Física 0,79
RH -
Organização do Processo 0,86
Prontuário do Núcleo de Atendimento à Saúde 0,67
Adesão ao Tratamento com Antirretroviral. 0,69
Fonte: elaboração própria.
Os resultados da tabela 3 apresentam a fide- liberdade que vivem com HIV/Aids. O proces-
dignidade dos construtos, que foram testados so de avaliação da atenção à saúde pauta-se no
por meio do cálculo de alpha de Cronbach. compromisso das instituições e dos profissio-
Considerando-se todos os itens das pergun- nais de atuarem com base nas diretrizes das
tas, retirando aqueles com a mesma respos- políticas públicas de saúde preconizadas pelo
ta, ou seja, itens redundantes, obteve-se um Ministério da Saúde, respeitando as particula-
valor alto de Cronbach. Tendo em conta cada ridades locais do cenário prisional e exercendo
domínio, nota-se que, no domínio Estrutura ações que priorizem a promoção da saúde e a
Física e Organização do Processo de Trabalho, prevenção de doenças, bem como ofertando
obtiveram-se valores altos ou quase perfeitos. um atendimento eficaz e de qualidade. Assim,
Contudo, RHNASP não obteve valores de alpha a validação é uma etapa importante e essencial
de Cronbach que pudessem avaliar a consis- no desenvolvimento de um instrumento desti-
tência e coerência. Para tanto, nos domínios nado à avaliação, porquanto permite verificar
Prontnasp e Atarv, os valores foram baixos o quanto os itens incluídos correspondem à
em relação ao valor aceitável para este estudo. construção teórica que fundamenta o ins-
trumento, a fim de tornar possível avaliar o
fenômeno de interesse29.
Discussão A utilização de indicadores relativos à assis-
tência à saúde tem sido considerada imprescin-
Após a análise dos dados, verificou-se que o dível para avaliação de serviços de saúde. Para
instrumento construído foi considerado válido tanto, utiliza-se desse princípio para avaliação
para utilização no processo de avaliação do do serviço de saúde prisional aos privados de
serviço de saúde no cuidado aos privados de liberdade que vivem com HIV/Aids, de modo
que a avaliação e a análise constantes desses estruturado pode resultar em baixa resolubi-
indicadores resultem em informações utiliza- lidade na atenção primária29,30.
das para garantir a priorização da promoção Os registros das informações relativas à
e da prevenção de doenças e agravos. Os itens assistência no prontuário do paciente con-
incluídos no instrumento são representativos solidam, de forma escrita, as informações
e relevantes para abranger o fenômeno e o necessárias à continuidade do cuidado, de
cenário de saúde no sistema prisional. forma que expressam condições observadas
Os juízes que compuseram este estudo apre- e/ou mensuradas do processo assistencial
sentaram grande conhecimento e expertise capazes de fornecer dados para o seguimento
sobre o assunto, relativos à prática, gestão, da assistência, para ensino, pesquisa, audito-
ensino e pesquisa, contribuindo com sugestões rias e planejamento dos serviços de saúde,
de alterações, tornando o instrumento mais além de constituírem instrumento de defesa
sensível e compreensível ao fenômeno e ao legal. Contribuem, ainda, para detecção de
cenário a que se propõe. novos problemas, uma vez que a avaliação
A construção dos indicadores do instru- da qualidade da assistência das informações
mento de avaliação da assistência ao privado registradas no prontuário de saúde do privado
de liberdade que vive com HIV/Aids, em suas de liberdade possibilita a comparação das res-
dimensões Efinasp e RHNASP, tem como postas do usuário aos cuidados prestados pela
propósito fazer a avaliação das condições e equipe de saúde31.
características da estrutura predial, equipa- O acesso ao tratamento com antirretroviral,
mentos, insumos e recursos humanos. A in- garantido pelo SUS, possibilitou a redução
disponibilidade de insumos e equipamentos, da mortalidade, a diminuição das interna-
a falta de recursos humanos e de capacitações ções hospitalares e a redução da incidência
para a oferta de atenção à saúde do privado de de infecções oportunistas e da transmissão
liberdade resultam em um comprometimento vertical do HIV, acarretando o aumento da
da qualidade da assistência. Uma estrutura qualidade de vida das pessoas que vivem com
física comprometida ou inadequada pode in- HIV/Aids. Entretanto, é possível que ocorra
viabilizar a efetivação da integralidade, prin- uma importante diminuição desses indica-
cípio este assegurado na criação do SUS. Esse dores à medida que a pessoa que vive com
princípio implica o desenvolvimento de ações e HIV abandona o tratamento medicamentoso
serviços voltados para a garantia da promoção, ou o faz de modo incorreto, tornando-a mais
proteção e reabilitação, e é compreensível que vulnerável às infecções oportunistas. Assim,
a estrutura física interfira de forma direta na a adesão ao tratamento acaba assumindo
continuidade do cuidado à saúde. contornos sociais e políticos muito evidentes.
A organização do trabalho em saúde na Cumpre salientar que diversos fatores podem
atenção primária é essencial para as equipes influenciar, de modo favorável ou desfavorável,
de saúde de modo geral, sendo a ordenadora a Atarv. Dessa forma, é importante combinar
do cuidado e integração aos demais níveis de métodos diferentes para alcançar a adesão
atendimento. Assim, a dimensão Opanasp foi e seu monitoramento satisfatório. Portanto,
constituída na perspectiva de avaliar a integra- a dimensão Avaliação da Atarv objetivou
ção da atenção entre o Núcleo de Atendimento analisar a adesão ao tratamento dos privados
Prisional e as Redes de Assistências, bem como de liberdade que vivem com HIV/Aids, bem
avaliar o processo de trabalho em relação a como os métodos utilizados para o respectivo
ações de promoção e prevenção de saúde monitoramento32,33.
e às políticas públicas do cuidado à pessoa A análise de alpha de Cronbach possibili-
com HIV/Aids, com o objetivo de melhoria tou verificar a consistência e a confiabilidade
da assistência. Um processo de trabalho mal do instrumento, uma vez que esse método
Considerações finais
Limitações do estudo
A metodologia proporcionada pela técnica
A limitação do estudo decorre da escassez de Delphi, aplicada no processo de validação do
referências teóricas pelo pequeno número de instrumento, foi relevante para a construção dos
publicações na área de saúde e cuidados a in- indicadores especificamente no cenário prisional.
divíduos privados de liberdade. Outro aspecto A contribuição e as experiências dos juízes,
identificado foram as dificuldades na etapa a partir do seu respectivo campo de atuação
de validação relativa à técnica Delphi, que se assistencial, gestão, pesquisa e docência,
configuram em uma ferramenta de coleta de tornaram o processo ainda mais completo e
dados que não permite o contato presencial assertivo, uma vez que este reuniu consen-
com os especialistas, pois requer dedicação e so teórico-prático em relação ao universo
tempo para avaliar os indicadores. O estudo estudado. A análise de alpha de Cronbach
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Suporte financeiro: não houve
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DOI: 10.1590/0103-11042022E714
RESUMO As práticas de saúde de modo geral, e a resposta à epidemia de HIV/Aids em particular, atra-
vessam período crítico e desafiador no contexto social e político do Brasil no momento atual. O presente
ensaio teve como objetivo discorrer sobre alguns desses desafios e os construtos conceituais que se julgam
relevantes como recursos para seu enfrentamento. A reflexão destaca a resistência à biomedicalização,
às abordagens individualizantes e ao abandono da perspectiva dos direitos humanos como grandes
desafios do combate à Aids e discute como os conceitos reconstrutivos de vulnerabilidade, Cuidado e
integralidade, desenvolvidos no ambiente da reforma sanitária, da conformação do Sistema Único de
Saúde e da própria construção da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids, podem trazer subsídios
relevantes para a resistência ao desmonte das conquistas alcançadas e à construção de novos caminhos
emancipadores para a saúde coletiva.
ABSTRACT Health practices in general, and the response to the HIV/AIDS epidemic in particular, are going
through a critical and challenging period in Brazil’s current social and political context. This essay aimed
to discuss some of these challenges and the conceptual constructs that are considered relevant as resources
for facing them. The reflection highlights resistance to biomedicalization, to individualizing approaches and
to the abandonment of the perspective of human rights as major challenges in the fight against AIDS, and
discusses how the reconstructive concepts of vulnerability, care, and integrality, developed in the context of
the health reform, the conformation of the Unified Health System (SUS), and the very construction of the
Brazilian response to the HIV/AIDS epidemic can bring relevant subsidies to resist the dismantling of the
achievements conquered and the construction of new emancipating paths for collective health.
KEYWORDS Acquired Immunodeficiency Syndrome. Human rights. Health vulnerability. Integrality in health.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 196-206, DEZ 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Vulnerabilidade, Cuidado e integralidade: reconstruções conceituais e desafios atuais para as políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids 197
O contexto que vivemos hoje é desafiador. Ao diferentes sujeitos no campo da prática e que
mesmo tempo que ainda temos muito o que retornam a essa prática fornecendo horizontes
caminhar para debelar, ou ao menos controlar, a éticos, políticos e técnicos. A esses conceitos,
pandemia de HIV/Aids, somos interpelados por chamarei aqui de reconstrutivos, por entender
outra pandemia devastadora, como a da Covid- que não são ‘invenções’, no sentido habitual da
19; e tudo isso em um cenário de retrocesso palavra, mas partem de conceitos e práticas já
das políticas sociais, de ameaças e constantes de algum modo existentes e os reconfiguram,
desrespeitos aos direitos humanos e em uma abrindo outros horizontes e possibilidades
onda de deletério conservadorismo político. de ação. Conceitos que, se não encontram no
Este cenário, que, em larga medida, é mundial, é momento as melhores condições de aplicação
particularmente grave no Brasil, embora tenha- prática, funcionam ao menos como formas
mos uma perspectiva não muito distante, mas de resistência à descaracterização da grande
nem por isso menos desafiadora, de mudanças conquista civilizatória representada pelo SUS
contextuais que nos trazem esperança. e pela resposta brasileira à epidemia de Aids.
No caso específico da resposta à epidemia Podem servir de base para não perdermos de
de HIV/Aids no Brasil, apesar de retrocessos e vista quais são as adversidades que precisamos
obstáculos experimentados nos últimos anos, enfrentar; no mínimo, alertar-nos para o que
temos a nosso favor acúmulos políticos, técnicos não podemos deixar acontecer para poder
e conceituais que ainda nos deixam em posição voltar a avançar.
privilegiada em relação a outros países, e que Nesse sentido, não será difícil perceber que
nos inspiram e dão recursos para insistirmos em a ‘biomedicalização’ da resposta ao HIV/Aids
reconstruções necessárias e, talvez, facilitadas é um dos problemas que precisamos enfren-
por eventuais mudanças no cenário político. Já tar. Por este termo, referimo-nos aos recentes
desde a presença do Sistema Único de Saúde debates que ampliam e requalificam a dis-
(SUS), que vem demonstrando cabalmente cussão da medicalização desenvolvida nos
sua importância no cenário da pandemia da anos 1970. Para além da tendência de patolo-
Covid-19, até os modelos já experimentados gização e medicamentalização das necessi-
de parcerias entre estado e Organizações Não dades de saúde, a biomedicalização refere-se
Governamentais (ONG), passando por referên- a processos de construção de subjetividade e
cias conceituais que se foram cristalizando no conformação de padrões de comportamento
campo da saúde coletiva ao longo das últimas e sociabilidade moldados pela exponencial
quatro décadas, construímos no Brasil uma base produção e incorporação às políticas e práticas
para continuar apostando na revitalização do de saúde de tecnologias altamente desenvol-
inspirador lema da VIII Conferência, de que a vidas de manejo e ‘gestão’ dos processos vitais
‘Saúde é um Direito’ e para construir um ‘inédito por intermédio de seu substrato biológico1.
viável’, como diria Paulo Freire, base que, em A crítica à biomedicalização não implica
meio a cenário tão desfavorável, permite-nos qualquer tipo de demonização das tecnoci-
insistir nesse ideal. ências. Ao contrário, tecnologias biomédicas
No presente ensaio, vou me ater a comentar no campo do HIV/Aids, como Profilaxia Pós-
o aspecto conceitual. Desde o início da epi- Exposição (PEP), Profilaxia Pré-Exposição
demia de HIV/Aids no Brasil, e na esteira da (PrEP), profilaxias e tratamentos medicamen-
consolidação do SUS, gestores, trabalhadores tosos, são recursos preciosos e, em muitos as-
da saúde, ativistas, formuladores de políticas, pectos, potencializam a promoção e a proteção
sociedade civil organizada e comunidade aca- de direitos sexuais e reprodutivos, bem como
dêmica fomos construindo uma série de con- a redução de vulnerabilidade ao HIV/Aids. O
ceitos que expressam e sistematizam debates, problema é a ilusão de que a pura existência
reflexões e ações decorrentes do diálogo entre desses recursos vá, por si só, resolver a questão
de saúde participem mais ativamente com de capacidade de escolha. Na saúde não é di-
seus saberes práticos. Um objeto coconstruído, ferente, embora o embasamento científico de
entre sujeitos, na interação entre saberes di- suas práticas às vezes dê a ilusão de que elas
versos e necessários: essa é a ideia do Cuidado. não dependem de escolhas. Na saúde, estamos
O conceito reconstrutivo de Cuidado almeja todo o tempo fazendo escolhas técnicas que
a formulação de uma atenção que não de- têm implicações éticas, morais e políticas14.
sapareça com os sujeitos, que não reduza o Além disso, para essas escolhas, não há regras,
profissional de saúde a um aplicador acrítico e não há lei, não há regularidade que nos permita
mecânico de conhecimentos tecnocientíficos, de antemão saber tudo o que precisamos para
tampouco reduza o demandante da atenção agir e o resultado das nossas decisões. Nossos
a um objeto medicalizado. Almeja que não saberes científicos nos permitem antecipar e
se ignore também os aspectos afetivos, emo- controlar parte dos efeitos instrumentais de
cionais, sociais e contextuais que estão antes, nossas técnicas, mas não nos possibilitam as-
através e depois dos encontros cuidadores, segurar quais serão as decisões mais virtuosas
acessíveis apenas na voz dos seus sujeitos. sobre o que fazer, isto é, aquelas mais capazes
Essas diferentes vozes em interação per- de responder aos projetos de felicidade da-
mitirão relacionar de forma mais profunda queles de quem cuidamos. As únicas formas
e fecunda a perspectiva de êxito técnico das de fazê-lo serão buscar caminhos dialogica-
ações de saúde, ou seja, os efeitos positivos mente construídos nos espaços de prática e
almejados pela aplicação dos saberes tecno- nos apoiarmos na sabedoria prática acumulada
científicos, com o horizonte do seu sucesso em horizontes normativos abertos também à
prático, ou seja, aquilo que, de fato, vai fazer construção dialógica do bem comum, ainda
sentido para as pessoas, responder às suas que com limites, como apontamos acima: os
necessidades na vida cotidiana. Em outras direitos humanos.
palavras, busca-se nesse encontro dialógico Essa perspectiva dialógica do Cuidado nos
desenvolver processos de trabalho que articu- lembra, ademais, que qualquer interação cui-
lem êxito técnico e sucesso prático tomando dadora será sempre produzida em contextos
como seu horizonte normativo os projetos de intersubjetividade, e que isso envolve di-
felicidade de pessoas, populações, grupos iden- mensões ‘micro’ e ‘macro’ desses contextos.
titários; processos de trabalho orientados para Abarca a questão da relação interpessoal: qual
o que move as pessoas, o que, efetivamente, é a melhor forma de chegarmos até as pessoas,
importante para elas, para o que elas querem de produzirmos efetivo e simétrico diálogo
construir nas suas vidas. Isso sempre pensado entre os envolvidos nos processos de trabalho
como um projeto existencial singular, mas em saúde. Entretanto, a possibilidade de esses
sempre relacional, constantemente entendido diálogos acontecerem dependem também de
a partir das diferentes situações de sujeitos em aspectos macroestruturais: como é possível
seus contextos de intersubjetividade. pensar em Cuidado, em sujeitos plenos se
As ciências da saúde têm muito a contribuir encontrando e construindo conjuntamente
para os projetos de felicidades que construí- ações de saúde, se não houver um sistema de
mos em compartilhamento, mas, como apon- saúde que permita o acesso universal e equi-
tamos ao discutir a vulnerabilidade, as ciências tativo a essas ações? Então, embora o concei-
sociais e humanas e os saberes práticos são to de Cuidado e sua base dialógica tendam
também indispensáveis aqui. Ademais, não há a nos remeter mais facilmente ao aspecto
como deixar de lembrar, igualmente, embora interpessoal, às relações entre profissionais
não caiba um maior desenvolvimento do tema e destinatários das ações de saúde, não se pode
aqui, o necessário exercício de uma sabedoria subdimensionar a importância do seu apelo
prática. Nós, humanos, somos seres dotados reconstrutivo nos planos macroestruturais
entre variados níveis de atenção do setor de Cuidado, com necessidades ricas e contextu-
saúde e diversos outros setores para além da alizadas e com ações diversas e pertinentes
saúde. Aqui vive-se a desafiadora situação do ponto de vista prático.
de descentralizar a formulação de políticas e Em síntese, e como palavras finais deste
ações de combate à Aids, para que os diversos ensaio, gostaria de acentuar a importância que
contextos de vulnerabilidade possam receber teve a experiência da construção de respos-
leituras mais profundas e particularizadas de tas à epidemia de HIV/Aids no Brasil, na sua
necessidades e ações pertinentes, ao mesmo sinergia com o processo de consolidação do
tempo que se busca construir articulações de SUS, como fonte de motivação e de subsídios
profissionais e de setores dos quais dificil- para o exercício teórico de aperfeiçoamento
mente se pode dispor na escala dos serviços dos meios e fins na apreensão e na compreen-
descentralizados. Tal articulação depende são da determinação social dos processos de
de uma construção de linhas de cuidado, de saúde-doença-cuidado, não apenas no âmbito
redes assistenciais e de consórcios de serviços específico do HIV/Aids, mas também para as
que enfrenta barreiras não apenas culturais, práticas de saúde de modo geral. Por outro
decorrentes da dinâmica própria dos diferen- lado, procurei apontar a relevância que podem
tes territórios e suas formas de sociabilidade, assumir quadros conceituais reconstrutivos
mas também político-partidárias, fruto das para um retorno solidário ao plano das prá-
disputas de poder no âmbito das diversas ticas, com vistas a potencializar o alcance
municipalidades. dos ideais que de lá os provocaram. É preciso
Por fim, o eixo das interações. Esse talvez manter claro, contudo, que essa fecundidade
seja o mais básico e difícil eixo de recons- generosa e criativa das práticas e seus cor-
trução relacionado com a integralidade. respondentes construtos conceituais não são
Aspecto que tem sido trabalhado também imunes a retrocessos e destruições. A história
pelas políticas de humanização, esse eixo diz nos mostra que as conquistas emancipatórias
respeito à construção de efetiva dialogia nas não são definitivas e que seus valores estão
interações envolvidas nas ações de saúde. Na sempre em disputa. A experiência vivida nos
perspectiva da humanização, muitas vezes as últimos anos no Brasil não poderia dar-nos
propostas se prendem excessivamente, no mais trágico e eloquente testemunho disso. Por
nível local, à questão do bom trato interpes- isso, tanto do ponto de vista da prática quanto
soal e no desenvolvimento de empatia entre da teoria, no campo da Aids como fora dele,
profissionais e usuários dos serviços, não não há desafio mais urgente do que resistir à
obstante a Política Nacional de Humanização violência, à intolerância e ao autoritarismo;
seja bem mais radical em suas proposições. Na e avançar, não temer, insistir, com práticas e
perspectiva da integralidade como princípio conceitos, em construir solidariamente o novo
reconstrutivo dos processos de trabalho, o segundo nossos melhores e mais democráticos
grande desafio é criar arranjos e dispositivos valores emancipatórios.
tecnológicos que estimulem a presença dos
diversos sujeitos e a produção de contextos
tais de intersubjetividade, entre profissionais Colaborador
e destinatários da atenção à saúde e entre os
trabalhadores de saúde entre si, que permi- Ayres JR (0000-0002-5225-6492)* é respon-
tam uma efetiva coconstrução de objetos de sável pela elaboração do manuscrito. s
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Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042022E715
RESUMO A chegada da 5ª década da epidemia de Aids sob o impacto da pandemia da Covid-19 trouxe
importantes desafios para a prevenção do HIV/Aids. Este ensaio buscou sistematizar as reflexões produzidas
em projeto desenvolvido pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids que conjugou debates sobre
o momento presente das respostas à epidemia com o resgate da história social da Aids e da prevenção.
Trata-se da história social da epidemia de Aids nos seus 40 anos e abordaram-se lições no campo da
prevenção relevantes para repensar a prevenção na 5ª década. Apresentam-se princípios ético-políticos
que fundamentaram respostas bem-sucedidas à Aids no Brasil, bem como apontam-se caminhos futuros,
recomendando abordagens a serem adotadas e um pacote mínimo de recursos preventivos de acesso
universal. Para evitar o desperdício da rica experiência acumulada ao longo da história social da Aids,
propõe-se valorizar e recuperar lições aprendidas ao longo da história da prevenção, como a articulação
de estratégias culturais e estruturais – fundamentadas em direitos e mobilização social – às estratégias
de prevenção biomédicas e comportamentais e a combinação dos conceitos de vulnerabilidade e de di-
reitos humanos, instrumentais para analisar os determinantes da epidemia e propor intervenções social
e culturalmente apropriadas.
ABSTRACT The arrival of the 5th decade of the AIDS epidemic under the impact of the COVID-19 pandemic
has brought important challenges for HIV/AIDS prevention. This essay sought to systematize the reflections
produced in a project developed by the Brazilian Interdisciplinary AIDS Association that combined current
debates on the responses to the epidemic with the rescue of the social history of AIDS and prevention. We
deal with the social history of the AIDS epidemic in its 40 years and address lessons in the field of preven-
tion that are relevant to rethinking prevention in the 5th decade. We present ethical-political principles that
underpin successful responses to AIDS in Brazil, as well as point out future paths, recommending approaches
to be adopted and a minimum package of preventive resources for universal access. To avoid wasting the
1 Universidadede São Paulo
(USP) – São Paulo (SP),
rich experience accumulated throughout the social history of AIDS, we propose to value and recover lessons
Brasil. learned throughout the history of prevention, such as the articulation of cultural and structural strategies
gajuca@usp.br – based on rights and social mobilization – with biomedical and behavioral prevention strategies and the
2 Columbia University – combination of the concepts of vulnerability and human rights, instrumental in analyzing the determinants
New York, United States. of the epidemic and proposing socially and culturally appropriate interventions.
3 Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids
KEYWORDS HIV. Acquired Immunodeficiency Syndrome. Disease prevention. Social sciences. History.
(Abia) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 207-222, DEZ 2022
208 Calazans GJ, Parker R, Terto Junior V
foram feitas apresentações que revisitaram sua distribuição, tendendo a dar menor ênfase
diferentes aspectos das respostas à epidemia às questões sociais. Mesmo no caso da epide-
de Aids no Brasil. Também foi apresentada miologia social latino-americana, tradição que
uma sistematização da experiência da Abia aborda mais fortemente as questões sociais,
com a pedagogia da prevenção, que reuniu isso se dá por meio dos determinantes sociais
importantes aprendizados das trocas com os da vulnerabilidade perante o HIV/Aids. Neste
participantes de inúmeros eventos e atividades ensaio, procuramos examinar uma dimensão
realizados pela Abia. Tendo partido, ainda, da complementar, mas distinta: as diversas manei-
perspectiva de que o campo da Aids integra as ras em que a sociedade brasileira se mobilizou
respostas coletivas produzidas, articuladamen- e se organizou para enfrentar a epidemia. São
te com as comunidades, por ativistas, pesqui- os processos sociais e políticos desencadeados
sadores, profissionais e gestores, realizamos pela chegada do HIV/Aids, construídos ao
encontros com esses atores para ouvir lições longo das mais de quatro décadas da epidemia
da sua experiência. A partir das contribuições no País, que nos interessam.
dessas diferentes experiências, foi elaborado O segundo termo que queremos precisar é o
um documento de sistematização com reco- de ‘ondas’. Tratamos de ondas, aqui, no sentido
mendações para a prevenção na 5ª década da de Betinho: as ondas da resposta social9. Diante
epidemia de HIV/Aids7. da Aids como evento social, como a sociedade
se organiza, a cultura conceitua e a política
define estratégias para seu enfrentamento?
História social da epidemia Argumentamos, assim, que podemos identi-
de Aids ficar em cada uma das quatro décadas dos 40
anos de Aids um período distinto de respostas
Nesta seção, tratamos da história social da sociais à epidemia. Nomeamos esses períodos
epidemia de Aids, enfocando os diferentes como ondas, pois, como uma onda, é difícil
momentos da epidemia, desafios e respostas precisar exatamente quando uma começa e
ante a Aids nos seus 40 anos. Em seguida, outra termina10.
partimos desse pano de fundo histórico mais Tais ondas têm características demarcado-
geral para abordar lições especificamente no ras e, apesar de considerarmos períodos apro-
campo da prevenção, que nos dão pistas para ximados, há acontecimentos que as delimitam,
pensar prioridades para a prevenção na 5ª como indicado a seguir. De 1981, quando o
década que está se iniciando. primeiro caso de Aids foi diagnosticado pela
Queremos, inicialmente, enfatizar alguns medicina, até aproximadamente 1991, temos
aspectos importantes em relação à linguagem. uma primeira onda que pode ser descrita como
Quando falamos, neste artigo, em epidemia, ‘anos de crise’; marcada também por grande
estamos nos referindo a um evento social, e não resistência por parte das comunidades e popu-
simplesmente viral ou epidemiológico. Uma lações mais afetadas, que tinham que resistir
das primeiras lições de Betinho, um dos fun- não somente ao vírus, mas também ao estigma
dadores da Abia, na década de 1980, é que uma e à discriminação, bem como às políticas nem
epidemia é um evento social, um processo que sempre adequadamente delineadas ou efeti-
cria respostas sociais8. Em cada contexto, a so- vadas. Definimos o começo da segunda onda
ciedade conceitua o que é uma epidemia, lan- em torno de 1991, culminando em 2001 com
çando respostas de diferentes tipos. Devemos, a ‘Sessão Especial da Assembleia Geral das
portanto, atentar a essa resposta social para Nações Unidas sobre HIV/AIDS’ (Ungass) e a
entender uma epidemia. A epidemia de que Declaração de Doha. Esse período foi marcado
a epidemiologia trata pode restringir-se mais pelos esforços para constituir um movimen-
aos modos de transmissão, aos modos virais e to global contra a Aids. No meio dessa onda,
segunda metade dos anos 1980. Um exemplo social e programática; e a noção de ‘grupos
que merece destaque é a campanha pelo con- de risco’ foi criticada de forma contundente.
trole do sangue, cujo lema foi ‘Salve o Sangue A proposição do conceito de vulnerabilidade
do Povo Brasileiro’, na qual a Abia esteve ocorreu no cenário internacional original-
muito envolvida por causa de Betinho e de mente no livro ‘AIDS in the world’, publicado,
seus irmãos, dado o grande impacto dos bancos em 1992, por iniciativa da Coalizão Global
clandestinos de sangue, não fiscalizados, para de Políticas contra a Aids e organizado por
as pessoas vivendo com hemofilia. Tratou- Jonathan Mann, Daniel Tarantola e Thomas
se de uma grande mobilização que acabou Netter23. No Brasil, a Abia publicou uma tra-
resultando na proibição da comercialização dução parcial no livro ‘A Aids no Mundo’, em
de sangue e hemoderivados na Assembleia 199324. A noção de vulnerabilidade encontrou
Constituinte, em 1988, bem como no esta- ampla receptividade por aqui, tanto pelo con-
belecimento do controle público sobre esse texto social e político da redemocratização
setor. Não obstante, essa campanha foi ini- como pela ação e pelas reivindicações de dis-
ciada alguns anos antes e mobilizou inúmeras tintos movimentos sociais em suas lutas por
parcerias dos ativistas de Aids com os mili- direitos25. Posteriormente, contribuições dos
tantes da reforma sanitária, ensinando-nos campos da medicina social e da saúde coletiva
sobre o caráter eminentemente político da brasileiras possibilitaram seu adensamento
prevenção, que só pode se efetivar com forte conceitual, assegurando relevante centrali-
mobilização social e política. A disponibili- dade, acadêmica e política ao conceito25. A
dade de recursos técnicos, como o teste para Abia, por sua vez, desenvolveu reflexões e
detecção do HIV nos bancos de sangue, não análises concebendo a vulnerabilidade social
era suficiente para assegurar o controle da como uma forma de violência estrutural26.
transmissão sanguínea do vírus. Foi essencial Teve início, assim, a teorização do que se
intensa articulação política juntamente com tinha aprendido com a campanha para o con-
vigorosa mobilização social para assegurar a trole do sangue, compreendendo de que forma
tomada de decisão política sobre o necessário intervenções estruturais poderiam enfrentar
controle público desse setor. O controle do os determinantes sociais da vulnerabilidade e
sangue configurou-se como uma das primeiras da violência estrutural27 com base no conceito
intervenções estruturais, que dependeu do e na prática dos direitos humanos. O desenvol-
estabelecimento de uma legislação e de uma vimento desse referencial teórico-conceitual
série de políticas públicas, para assegurar o na prevenção foi uma grande inovação concei-
controle efetivo da transmissão da infecção tual, pois as concepções sobre epidemia e os
do HIV por meio de transfusão de sangue e seus motores são fundamentais para definir o
de outros hemoderivados11,22. que é necessário para confrontá-la.
Na segunda década da epidemia, nos anos A proposição da noção de intervenção es-
1990, também surgiram novidades que valem trutural contra a vulnerabilidade foi sendo
a pena sinalizar. Pela primeira vez, interven- arquitetada em meados da segunda década
ções comportamentais fundadas em teorias da epidemia, quando o acesso a medicamen-
da psicologia foram articuladas para tentar tos eficazes começou a surgir. Rapidamente,
ensinar como reduzir, ou melhor administrar, compreendeu-se que a existência dos medi-
os riscos de infecção. O próprio conceito de camentos não teria significado e efetividade
risco foi questionado nessa década como caso não houvesse acesso. Entretanto, para
fundamento para a prevenção. Nesta revisão assegurá-lo, era necessário enfrentar a vulne-
crítica, o conceito de vulnerabilidade foi arti- rabilidade social e a violência estrutural, que
culado como uma alternativa à ideia de risco impunham barreiras ancoradas em diferenças
individual, dando destaque às dimensões de geografia, realidade socioeconômica, entre
no controle do sangue e na garantia do acesso saúde, como Covid-19, monkeypox e uma série
universal ao tratamento, de forma que não de outras condições crônicas e transmissíveis.
existiria TcP, um dos pilares da prevenção bio- Enfim, a prevenção combinada pode articu-
médica, se não tivesse ocorrido anteriormente lar não só abordagens para enfrentar a Aids,
a luta política travada por ativistas e aliados mas – considerando o caráter sindêmico que
para garantir acesso como um princípio de di- combina vulnerabilidades igualmente à Covid-
reitos humanos para todos. Compreendemos, 19, à tuberculose, ao HIV e a outras – também
assim, que as dimensões cultural, comunitária, combinar a prevenção de outras condições
política e social precisam ser reenfatizadas no de saúde. Nesse sentido, é um conceito que
âmbito da prevenção combinada. apresenta vantagens e não deve ser despre-
Por fim, a prevenção combinada não tem zado, mas é importante superar os limites das
contemplado adequadamente as preocupações perspectivas vigentes e empobrecedoras da
relacionadas com as metodologias de trans- prevenção combinada39. Para evitar o desper-
missão de conhecimentos sobre prevenção. dício da rica experiência acumulada ao longo
Abordagens pedagógicas construcionistas, que da história social da Aids, é preciso valorizar
possibilitem a construção conjunta de conhe- e recuperar as lições aprendidas ao longo da
cimentos sobre prevenção, não têm integrado história da prevenção.
os modelos de como colocá-la em prática. Pelo
contrário, a prevenção tem adotado pedago-
gias caracterizadas, pela educação popular Recomendações para
brasileira e latino-americana, como ‘educação que possamos refazer a
bancária’36, tratando os destinatários das po-
líticas de prevenção como contas bancárias
prevenção do HIV na 5ª
vazias, nas quais os especialistas depositam os década
conhecimentos ‘corretos’. Nessa perspectiva,
se as pessoas seguissem as orientações dos Como produto deste projeto, foi elaborado
especialistas, tudo daria certo. Diferentemente um documento7 para ampla disseminação,
do que se fez no âmbito do tratamento com que sistematizou os aprendizados derivados
as pedagogias de tratamento em discussão da experiência compartilhada das respostas
desde o começo das políticas de acesso, não à Aids no Brasil e as recomendações para a
tem havido esforços de criação de uma pedago- prevenção na 5ª década. Nele, arrolamos os
gia adequada à prevenção, o que traz grandes princípios éticos e políticos que fundamentam
dificuldades para que a prevenção combinada as experiências bem-sucedidas de políticas de
possa avançar37,38. Aids no País:
contextos sociais das práticas – sexuais, de uso efetivamente fazendo, pensando e falando;
de drogas, de prevenção e cuidado –, de forma valorizando a escuta sobre conhecimentos,
que sua transformação dependa de ações sentidos e significados e práticas; reconhe-
integradas intersetoriais e interdisciplinares; cendo a dimensão comunitária da prevenção;
mobilizando redes de profissionais de saúde
• compreensão de que desigualdades, injus- e de atores da sociedade civil; e
tiças sociais e processos de estigmatização e
discriminação configuram-se como relações • a redução de vulnerabilidades, que atribui
de poder e devem ser enfrentados; e centralidade à dimensão social, em seu
caráter estrutural – como iniquidades, pro-
• gestão participativa que articula as pró- cessos de discriminação e estigmatização –,
prias comunidades afetadas, ativistas, es- bem como aos princípios de direitos humanos
pecialistas, gestores e pesquisadores na e justiça social buscando assegurar a rees-
construção, desenvolvimento e controle das truturação da prevenção combinada, sem
respostas político-institucionais ante a aids. abandonar as outras dimensões.
Considerações finais
Colaboradores
Tomamos como inspiração, neste projeto,
respostas culturais e sociais à epidemia de Calazans GJ (0000-0003-2414-1281)* e Parker
HIV/Aids que já mobilizaram transformações R (0000-0003-3796-0198)* contribuíram para
profundas na sociedade brasileira. Apostamos concepção e delineamento; redação do artigo;
que as lições aprendidas com esta experiência e aprovação da versão a ser publicada. Terto
acumulada podem contribuir para a reinven- Junior V (0000-0002-4446-9914)* contri-
ção da prevenção no contexto crítico da 5ª buiu para concepção e delineamento; revisão
década da epidemia, fortalecendo ações e crítica; e aprovação da versão a ser publicada. s
políticas integradas ao SUS. Ao elaborarmos
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jan2016.pdf.
Recebido em 11/05/2022
Aprovado em 14/09/2022
Conflitos de interesses: inexistente
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Suporte financeiro: projeto desenvolvido com o apoio do
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DOI: 10.1590/0103-11042022E716
RESUMO Este trabalho discute aspectos da construção da homossexualidade masculina como parte da
gestão biopolítica da sexualidade associada ao aparecimento e aos desdobramentos da epidemia do HIV/
Aids. Nesse sentido, identificou-se como a homossexualidade possui uma trajetória que a vincula histo-
ricamente à híbrida noção de periculosidade social, fundamentalmente a partir da categorização médica
da penetração anal entre homens como prática desviante e, portanto, socialmente perigosa. Em anos mais
recentes, mecanismos inéditos de sujeição e subjetivação têm ampliado o repertório de mecanismos de
controle social da homossexualidade a partir de estratégias de prevenção ao HIV/Aids, a exemplo da
camisinha e, mais recentemente, da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV.
ABSTRACT This study addresses aspects of the construction of male homosexuality as part of the biopolitical
management of sexuality associated with the appearance and consequences of the HIV/AIDS epidemic. In
this sense, it was identified how homosexuality has a trajectory that historically links it to the hybrid notion
of social dangerousness, fundamentally from the medical categorization of anal penetration among men as
a deviant practice and, therefore, socially dangerous. In more recent years, unprecedented mechanisms of
subjection and subjectivation have expanded the repertoire of mechanisms for social control of homosexuality
based on HIV/AIDS prevention strategies, such as condoms and, more recently, Pre-Exposure Prophylaxis
(PrEP) to HIV.
1 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
barp.lf@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 223-236, DEZ 2022
224 Barp L, Mitjavila M, Ferreira DD
Muito embora não houvesse qualquer personagem que nas décadas passadas mate-
dúvida acerca de que a epidemia do HIV/Aids rializou a anormalidade sexual.
constituía um problema de saúde pública a Com a espetacularização midiática da
ser enfrentado, há de se questionar o perigo doença, o homossexual foi desdobrado na
imediato direcionado quase exclusivamente figura do aidético: homem jovem que, por
à homossexualidade. Na verdade, a medicina, fazer sexo com outros homens, tornava-se
enquanto instituição de controle social21, não um doente terminal, magro, acometido por
tinha superado a perda de autoridade sobre diferentes sinais de um sistema imunodepri-
a homossexualidade, principalmente porque mido24. Ser homossexual tornava o indivíduo
sequer conseguiu comprovar sua etiologia potencialmente aidético. Receber o diagnós-
nem propor algum tratamento efetivo para tico de Aids, por sua vez, resultava na expo-
o que considerou uma doença. A emergência sição de uma sexualidade homossexual, ou
do HIV/Aids caiu como uma luva para que ela seja, desviante e perversa. E tão logo essas
mesma se redimisse do fracasso anterior; logo, notícias foram disseminadas, rapidamente
é de se questionar que se a Aids não existisse, instalaram-se debates sobre a criminalização
talvez precisaria ser inventada15. da transmissão do HIV.
À medida que a homossexualidade precisou A mídia obviamente adquiriu importância
ser ‘tolerada’, dado o fracasso da medicina em enunciativa entre as décadas de 1980 e 1990 ao
tratá-la, o HIV/Aids possibilitou uma nova utilizar amplamente termos estigmatizantes,
forma de governá-la. Para além do complexo produzindo uma divisão entre os ‘culpados’
conjunto de mecanismos profiláticos comuns pelas infecções (homossexuais, prostitutas e
às doenças epidêmicas, extraiu-se dela uma usuários de drogas) e os ‘inocentes’ (hemofí-
mais-valia moral, caracterizada pela atuali- licos, crianças). Por mais de uma década, as
zação do problema da periculosidade. Dessa matérias que abordavam aspectos de transmis-
vez, porém, o poder de disciplinar o corpo e são do HIV enfatizavam como certos grupos
organizar a população a partir de valores morais de soropositivos eram considerados perigosos
se estilhaçou em diferentes instituições que se em função da possibilidade de funcionar como
uniram em uma réplica moderna do modelo agentes transmissores25.
Panóptico direcionado à sexualidade anormal. Nesse mesmo período, o saber jurídico foi
No Brasil, para a disseminação das orienta- influenciado pela alta letalidade da Aids, pela
ções preventivas, houve um esforço ardiloso da ausência de um tratamento eficaz, bem como
imprensa para repercutir os desdobramentos pela construção midiática do homossexual-
da doença que, diante de um acontecimen- -aidético-perigoso, e utilizou-se de dois crimes
to novo, alimentava-se pelo imediatismo da tipificados do Código Penal Brasileiro para
informação22. Pode-se pensar que se medi- analisar possíveis denúncias: art. 130 (contágio
cina ocupou a função prescritiva a respeito venéreo) e art. 131 (contágio de moléstia grave)
do perigo do HIV/Aids, a mídia ocupou o para tratar a questão25,26. Juristas passaram a
antigo espaço da justiça no que se refere a discutir se, ao transmitir o vírus, há ou não a
uma punição moral pelos excessos perversos. intenção de matar, aumentando ainda mais a
Teóricos chegam a chamar a Aids de ‘mal de densidade social do estereótipo de perigoso
folhetim’23, pois mesmo com um cunho noti- que recaia sobre o infectado.
cioso sério, respaldadas no saber científico, as Com a rápida disseminação do HIV/Aids em
informações divulgadas nos anos iniciais da termos epidemiológicos, midiáticos, jurídicos
doença tinham um tom espetacularizado. Em e, principalmente, discursivos, a doença tor-
muito se falou midiaticamente sobre um vírus nou-se um problema de saúde pública, mobi-
criado em laboratório, orgias, promiscuidade, lizando esforços científicos em todo o mundo.
quase sempre com o protagonismo do mesmo Devido ao seu caráter incurável, agravado pela
final de 2017, por meio da Portaria nº 21, de epidemia. Justificou-se a seletividade a partir
25 de maio de 2017, tornou-se o primeiro país de relatórios técnicos que identificam nesses
da América Latina a implementar um novo grupos prioritários taxas de prevalência do
recurso preventivo chamado Profilaxia Pré- vírus superiores à média nacional de 0,4%34.
Exposição (PrEP) ao HIV. Esse recurso busca Esse argumento, em muito, apoia-se na fragili-
reduzir as chances de adquirir o vírus causador dade da prática sexual anal, pois documentos
da Aids, configurando-se, então, como uma institucionais também apontam nas práticas
medicação de uso contínuo direcionada aos sexuais anais, receptivas e ativas, respectiva-
que não foram infectados pelo vírus HIV. Em mente, as maiores chances de infecção33. Nesse
termos mais específicos, a PrEP se configura sentido, o novo recurso preventivo sustenta-
pela combinação de dois antirretrovirais e deve -se, entre outros elementos, na fragilidade
ser ingerida diariamente. Sua oferta do ponto biológica do ânus e na sua direta associação
de vista social, muito diferente da camisinha, com a prática homossexual.
ainda pode ser considerada uma incógnita em Com a implementação da PrEP, é possível
des(construção), pois, se recente é sua imple- identificar o surgimento de uma nova figura
mentação, alguns trabalhos já se direcionam homossexual. Não se trata de um homossexu-
para compreendê-la30–32. al diretamente patológico, tal como o vimos
Sua importância ultrapassa a óbvia ligação ‘nascer’ e ‘morrer’ entre os séculos XIX e XX.
com a prevenção ao HIV/Aids, na medida em Também não diz respeito a um homossexu-
que está também vinculada com a gestão da pe- al aidético ou potencialmente aidético, que
riculosidade homossexual. Isso porque, muito assumiu a figura de doente a partir dos anos
similar ao que ocorreu com a camisinha, no de 1980. Nasce agora o homossexual (PrEP)
sentido de uma recomendação direcionada arado que, em alusão ao nome da medida pro-
aos sujeitos cujas práticas sexuais escapam filática, é considerado por seu pertencimento
às normas sociais, nos cinco primeiros anos, a um grupo prioritário no que se refere ao
a PrEP é ofertada especificamente a ‘grupos tratamento preventivo e medicamentoso do
prioritários’: gays e outros Homens que fazem HIV/Aids15. Propõe o discurso institucional
Sexo com Homens (HSH), pessoas transexuais, que ele deva estar preparado para lidar com
profissionais do sexo e parcerias sorodiscor- a infecção; e, para isso, oferece um recurso
dantes para o HIV, isto é, quando um possui preventivo que auxilie nessa tarefa.
o vírus e o outro não33. Os valores que sustentaram sua inclusão
Em setembro de 2022, uma mudança no como categoria prioritária, entretanto, em
Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas muito se assemelham àqueles que, no curso
para a PrEP alterou seus critérios de indicação, da história, tornaram o homossexual um ser
incluindo a recomendação da profilaxia a todos perigoso e perverso em virtude da anormalida-
os adultos e adolescentes sexualmente ativos de das práticas sexuais anais a ele associadas.
sob o risco aumentado de infecção pelo HIV. Ainda assim, apesar de o acesso à PrEP ser uma
Devido à mudança recente, este trabalho se possibilidade de oferta equitativa de recursos
concentra em discutir os cinco primeiros anos para os grupos mais expostos, a proposta inicial
da oferta da PrEP no Brasil, mas destaca que de oferta via Sistema Único de Saúde (SUS) foi
essa alteração pode possibilitar novas com- recebida com receio e críticas, como narram
preensões em trabalhos futuros. os principais envolvidos com o processo de
Inicialmente, a justificativa institucional implementação no Brasil35.
para a oferta da PrEP aos grupos prioritá- Independentemente de qualquer conside-
rios foi de que esses segmentos populacio- ração sobre a eficácia e a segurança da PrEP
nais estão sob maior risco de se infectar pelo como intervenção farmacológica para fins de
HIV, em diferentes contextos sociais e tipos de prevenção do HIV/Aids, o fato de inicialmente
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Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 237-250, DEZ 2022
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desconsiderar a intencionalidade dos afetos transmissão vertical, órfã da Aids, que cresceu
e reconhecer a legitimidade da dor e enfren- na história com sua experiência de tratar-se
tamentos desses jovens. O amálgama dessas de HIV/Aids. A lembrança é da menina, hoje
memórias – nas quais se localiza a primeira jovem com 25 anos.
autora – produz um testemunho qualificado4, As emoções transversalizadas nessa
que representa a escrita compartilhada deste memória se beneficiam de um diálogo com
ensaio, no encontro com aquilo que durante Rezende e Coelho 8 e Víctora e Coelho 9
anos foi matéria-prima de trabalho. ao revisitar perspectivas teóricas sobre a
A memória tem uma duração, mas não tem Antropologia das Emoções. Entretanto, é no
nenhuma pretensão de uma palavra verdadei- lugar das emoções no trabalho de campo e
ra, como um retrato imóvel. As memórias pro- como via de acesso à compreensão do outro
piciam versões de uma história que se deseja que Coelho10 nos fará dialogar com narrativi-
contar, registrar e tornar ou não testemunho dade, experiência, memória, emoção e conhe-
público5. Ou seja, sobre o vivido, produzem-se cimento; e neste ensaio com a autoetnografia
interpretações. Se o vivido, a experiência6, é o como método.
plano da primeira ordem, a interpretação que Partimos do argumento de que as emoções
se dá no retorno às memórias é a interpretação ocupam um espaço importante na produção
de segunda ordem, permeada por emoções, do conhecimento antropológico, contando
reflexividade, crítica e análise. com a interpretação de segunda ordem das
A verdade não é uma; diante da complexidade memórias e das experiências de cuidado, em um
humana, existem múltiplas formas de interpretar exercício autoetnográfico. Nesse caso, o campo
as falas e os relatos das pessoas7. Como Lubbs7(271) de pesquisa é a reflexividade das autoras, no
enfatiza, “tanto a realidade como a ciência são artesanato de memórias e experiências revisi-
interpretadas pelos seres humanos”. tadas, nesse exercício de rememoração muitas
Antes de proceder ao argumento e ao obje- vezes acionados por mensagens recebidas via
tivo que sustentará este ensaio, vamos colocar WhatsApp. Esse exercício de reflexividade re-
em análise três movimentos instigantes na lacional, distante temporalmente das cenas e
mensagem de Dandara, tornada epígrafe: 1) do tempo em que se deram os encontros, exige
o primeiro remetido à saudade; 2) o segundo da autoria uma parceria cuidadosa com aportes
referente ao reconhecimento da ‘beleza’ como teóricos e reuniões de estudo e orientação. Não
uma estética; 3) e o terceiro relativo à ação do se dá solitariamente, em um vazio ou como um
verbo ‘interrogamos’. As expressões emocio- ‘não trabalho’, mas exige um labor sobre si,
nais de saudade e beleza não são incompatíveis dobras da experiência com memórias. Isso para
com essa ideia de que no encontro residia um colocar no centro as implicações e as emoções
‘interrogamos’; um exercício do ‘nos’ que evoca que emergem, em um movimento que preserva
reciprocidade, mas que não pode descartar um os personagens de outrora – crianças, jovens,
possível ‘interrogatório’. Vale situar o leitor famílias, profissionais – de novos acionamentos.
que um psicólogo popularmente é o profissio- Por esse ângulo, há nessa tessitura a preocu-
nal autorizado a acessar os segredos, em um pação de produção de conhecimento tendo como
misto de confessor, interrogador ou penetrador matéria-prima tudo o que ficou arquivado em
da intimidade. A ‘sala da psicologia’ repre- diários, cadernos de anotações, fotos das ativi-
senta socialmente a autoridade profissional dades de grupo, dos passeios, e das festividades,
de ‘interrogar’ e ‘acolher’ as emoções com resumos de casos, revistas com foco no ativismo
autoridade sobre o segredo. Uma assimetria juvenil e atendimento especializado aos adoles-
reside nessa autoridade e nas diferenças entre centes vivendo com HIV/Aids, das quais alguns
o encontro da psicóloga ‘lindíssima’ branca, de jovens e/ou primeira autora participaram, repor-
classe média, e a menina negra, periférica, de tagens de época, que compuseram material de
trabalho com os jovens. Tais materiais, reunidos, e convidaram a primeira autora a estar, ou
e cuidadosamente arquivados como um campo mensagens enviadas no WhatsApp de forma
memorial preservado, ofereceram um cimento privada. Por fim, menos como um objetivo, e
de experiência. Esse campo de outrora não ‘é’, mais com uma operação, este ensaio visa pro-
ele ‘está’ como suporte para releituras baseadas duzir um diálogo sincrônico com um artesana-
na reflexividade. to de pesquisa em curso, cujo método se dirige
Esses arquivos memoriais foram relacionais à construção de conhecimento assentado na
e intersubjetivamente construídos, logo, são atenção e pesquisa produzida com crianças,
datados, e não se ocupam de um ‘encontro adolescentes, jovens vivendo com HIV/Aids
com uma verdade’. No entanto, assumem- e seus círculos de referência institucionais
-se como retorno a um outro momento para (família, atenção à saúde, amizade).
reinterpretá-lo com outras ferramentas teó- Assim sendo, este ensaio teórico é costurado
ricas, apoiando o exercício de reflexividade, no encontro das memórias, diários e anotações
triangulando a autoria. A posição da primeira dos anos de cuidado às crianças, adolescen-
autora hoje não é da psicóloga na atenção e tes, que hoje são jovens vivendo com HIV/
cuidado, mas da mestranda, pesquisadora, Aids, e o exercício de rememoração dessa
retornando às suas memórias e experiências trajetória, construída e constituída com os
em um exercício autoetnográfico. jovens, evocadas a cada acionamento feito de
O objetivo do artigo é – em formato de forma privada ou compartilhada no grupo de
ensaio teórico – produzir um diálogo com a WhatsApp. Cabe ao ensaio “elaborar a relação
Antropologia das Emoções, articulando ex- entre experiência e subjetividade, e entre ex-
periência e memórias da primeira autora na periência e pluralidade”6(31). No exercício de
atenção e pesquisa com crianças e adolescentes exterioridade e reflexividade, dá-se o encon-
vivendo com HIV/Aids, durante 20 anos, e tro com a segunda autora, a fim de resgatar
encerrada em março de 2020, em diálogo com a a qualidade das narrativas como construção
segunda autora. A população que habita as me- de um testemunho, em que as memórias se
mórias das autoras comparece como aquela das tornam objeto legítimo para conhecimento
classes sociais populares, periféricas, em que crítico e reflexivo.
a raça negra dos pretos e pardos predomina.
Falamos aqui da passagem entre os anos 1990
e 2000. Há também um objetivo associado a O lugar das emoções no
esse primeiro, que diz respeito a valorizar que contexto da memória e da
memórias e experiências, sentimentos, bem
como arquivos de diários, mensagens recebidas
experiência
após a saída presencial do campo de atenção,
também componham suporte para reflexivi- Ao acionarmos as emoções no contexto auto-
dade nos relatos autoetnográficos destacados etnográfico, levamos a sério as memórias e as
pelas autoras a partir de suas experiências de experiências como campo. Um campo no qual
muitos anos de trabalho com essas crianças, a pesquisadora se coloca em questão, mas não
hoje jovens que convivem com HIV/Aids. em um processo encapsulado, todavia, com
Nesse ponto específico, destacamos que, as lentes da interação, simbolismos que não
findos os 20 anos de atenção e pesquisa no podem descartar o recurso à antropologia das
serviço, relações com as crianças e os ado- emoções10. Com esse diálogo teórico, opera-
lescentes de outrora – hoje jovens e adultos mos com a reflexividade do conhecimento e
– permaneceram em espaços virtuais de troca, da compreensão do nosso lugar nas relações
como nas páginas do Facebook, nas mensagens de alteridade na produção de interpretações
em um grupo que esses jovens construíram e análises.
Ao escrevermos sobre as emoções, é preciso razão se articulam com o que se entende por
deixar claro sobre o que entendemos por pensamentos incorporados. É preciso sentir
emoção, e atentar para a forma de escrevê- para entender, para que então a escrita se
-las, para não as transformar em limitadores, materialize. Nessa lógica, a escrita reflexiva
referidos a um individualismo encapsulado11. pode ser um método de investigação7. A partir
Escrever a partir das memórias e emoções nos desta, estimula-se o processo de articular o
clama uma responsabilidade para que isso pensamento e as emoções, refletindo sobre
não signifique um apagamento das diferentes lugares, poderes e privilégios. Refletir sobre
localizações sociais ocupadas, mas para a pos- quem somos na cena, na relação e no lugar que
sibilidade de trazermos a reflexividade como ocupamos, considerando inclusive o lugar de
esse jogo de análise, crítica, localização de autoridade sobre a produção do conhecimento
quem fala e escreve, dialogando com conceitos e intervenções nas cenas de cuidado. Esses
e interpretações. lugares atravessam as autoras deste ensaio
Gomes e Menezes12 e Magnani13, em seus e as impulsionam na aproximação com esse
artigos, tecem considerações sobre as emoções campo teórico nas fricções entre racionalidade
nos estudos etnográficos a partir de um novo e sensibilidade.
prisma que questiona a rigidez anteriormen- Não há automatismo nos encontros e aná-
te postulada para que uma etnografia fosse lises que constituem as pesquisas sociais e an-
considerada válida. Há que assumir a im- tropológicas. Mobilizar as emoções, os afetos
possibilidade de uma antropologia em que e os sentimentos é uma via metodológica que
o pesquisador esteja longe ou, posicionado une, mistura e incorpora os dados e os achados
de forma neutra. Como destaca Magnani13, é etnográficos com a biografia do pesquisador.
necessário estar “de perto e de dentro”13(11), É nessa encruzilhada que é possível com-
exercitando nessa dinâmica as possibilidades preender a experiência emocional do outro.
de fazer da proximidade e da familiaridade Reconhecer os sentimentos do pesquisador
mais um recurso crítico. O “estando ou sendo durante o trabalho de campo e a produção de
de dentro”12(1) dos universos pesquisados não conhecimento se torna uma aquisição no exer-
configura uma barreira à pesquisa etnográfi- cício autoetnográfico. Assim, na antropologia,
ca, mas um elemento a mais no processo de as emoções podem assumir seus espaços nos
reflexividade a ser cultivado. textos públicos, o que outrora era destinado e
Nos primórdios da história da antropolo- aceito apenas nos textos privados, a exemplo
gia, as emoções só eram aceitas em escritos dos diários10.
particulares, quase confessionais, estanques “O sentimento [comparece] como aquilo
de qualquer relação com os achados e discus- que pavimenta o caminho para a compreensão
sões, para a garantia de uma cientificidade, à la do outro”10(282), para pensarmos o pesquisador
modelo positivista de ciência. No entanto, a an- com suas dimensões humanas, considerando
tropologia das emoções reafirma a existência e os atravessamentos e produções, nessa fricção
a presença das emoções do pesquisador, rom- com o outro em suas humanidades.
pendo com a imagem da neutralidade asséptica Favret-Saada14 destaca as emoções no
da ciência, ou de uma atitude confessional. interior da pesquisa antropológica, a partir
O pesquisador é uma pessoa, e remetido ao da capacidade do pesquisador ser afetado,
campo das humanidades, pode exercitar um ao interagir com, e acessar a experiência do
olhar de reflexividade crítica sobre o campo outro. Para ela, a pesquisa apoiada no exame
dos afetos, das emoções e das afetações. reflexivo das emoções do pesquisador ocorre
Dialogando com Coelho 10 e Gomes e em três momentos: quando se deixa afetar,
Menezes12, não há pensamento ou produção quando a experiência é narrada e posterior-
dissociados da emoção, ou seja, a emoção e a mente na análise. Segundo a autora, os tempos
da experiência, da narrativa e da análise não para um lugar que não voltará a existir. Essa
se sobrepõem. reflexão comparece aqui, porque a primeira
A expressão das emoções pode seguir no e a segunda autora se dão conta em um de-
exercício de narrativas literárias, sem que isso terminado momento da construção de uma
implique reduzir o texto e as análises a uma formação como mestra, que fazer pesquisas
realidade subjetiva do pesquisador. A forma de pode significar colocar o pesquisador como a
trazer a emoção no contexto das memórias e fonte de produção de acervos para pesquisa.
da experiência se dá a partir do conhecimento Isso por meio do retorno a sua própria ex-
posicionado, levando em conta a intersubjeti- periência, com provocações de orientação e
vidade no processo de afetar-se e deixar afetar, estudo, organização de acervos físicos e de
trazendo uma experiência situada8. memórias, como notas atuais de um campo
A emoção antropológica é sempre situada, passado. Com isso, assume-se não reforçar ou
representada como elemento social. Ao anali- mesmo deflagrar uma esperança de retorno de
sá-la, temos acesso à cultura e às formas como uma relação que não pode mais se estabelecer
se estruturam as relações sociais. As emoções como anteriormente foi vivida por crianças e
também organizam espaços públicos e priva- jovens atendidos em um serviço e participantes
dos e tensionam os processos de individuação de uma pesquisa, conduzida e encerrada.
e pertencimento8. Dialogando com Coelho10 nisso que ela de-
Uma metodologia que considera as emoções nomina como nostalgia do método, questio-
como forma de conhecer e de acessar popu- namo-nos como o acionamento das memórias
lações vulnerabilizadas ou temas sensíveis, a e das experiências estabelecidas com esses
partir de um conhecimento posicionado, abre jovens durante tantos anos é submetido a um
fronteiras para novas formas de fazer pesquisa exercício de reflexividade ética contínua. Isso
e novas formas de narrar – além de ser potente porque essa nostalgia do método pode gerar
para pensarmos os processos de inclusão e uma expectativa irreal de retorno de algo que
exclusão ainda presentes nas experiências em se findou. No caso, a partir da função que esse
tela neste ensaio: de jovens que vivem com ensaio ocupa – conferir a possibilidade de
HIV/Aids. recuperar/acessar o que estava circunscrito
Coelho10(286) aborda a nostalgia como “mola na esfera de algo qualificado como ‘memórias
propulsora da antropologia”, conferindo a pessoais’ – de atribuir legitimidade, por meio
possibilidade de recuperar algo que está cir- de um esforço autoetnográfico, que assume o
cunscrito na nossa memória pessoal. Segundo próprio, o ‘pessoal’ como objeto.
a autora, o duplo da nostalgia é a esperança, Considerar eticamente a nostalgia antro-
pois, quando nos dobramos nas experiências pológica no interior do método nas pesquisas
passadas, pensamos e indicamos uma pers- sociais com populações vulnerabilizadas, ou
pectiva de futuro. É também uma forma de quando abordamos assuntos considerados
preservar, manter vivo algo que está prestes delicados, não é produzir um apagamento das
a desaparecer na esperança de reaver e recu- relações de poder que permeiam as relações
perar algo mesmo que circunscrito, muitas entre pesquisador e pesquisados, mas cuidar
vezes, ao campo da imaginação. para que essas relações não sejam produtoras
Retornando à primeira referência a Dandara de opressão, em uma ética relacional não he-
trazida na epígrafe que evoca a saudade, lida gemônica15. Em síntese, como dar legitimidade
aqui como nostalgia, vale refletir e questio- a um conhecimento cuja matéria-prima são as
nar sobre a validade e as dimensões éticas de memórias registradas em diários, arquivos, de
convocar/convidar esses jovens com quem uma profissional de saúde tornando-se pesqui-
foram estabelecidos vínculos outrora, em sadora? Como fazer desse exercício também
outro momento de experiências e memórias, um compromisso ético de não acionar jovens
para novas conversas com alguém que não mais de uma abordagem violenta. Ademais, com
será a ‘psicóloga bonita da sala a interrogar’? Ayres16, vale lembrar que o ato da linguagem,
Como reafirmar que memórias de cuidado como uma instância, pode diminuir ou au-
revisitadas a posteriori com reflexividade mentar as distâncias entre profissionais de
teórica, metodológica e conceitual podem saúde e sujeitos atendidos, assim como entre
gerar conhecimento de segunda ordem? pesquisadores e pesquisados.
As possíveis tentativas de respostas são Seguindo Larrosa3, o lugar de narradora
assumidas aqui na próxima seção ao discutir é um exercício de reflexão crítica na escolha
a autoetnografia como método para reunir de palavras que darão sentido às experiências
memória e experiência, embebidas na discus- e às memórias pregressas de cuidado. Dessa
são anterior sobre a antropologia das emoções. experiência encarnada que foi construída com
os jovens e suas relações de parentesco, as
palavras escolhidas dão dicas sobre os me-
Uma metodologia para canismos de subjetivação, na construção de
dialogar com memória e realidades e produção de sentido.
Valorizando as contribuições de Tanabe17 e
experiência: a proposta Moreira18, de que todo texto tem algo ficcional,
autoetnográfica reencontramos Favret-Saada14, relativizando
a ideia de que as declarações dos informantes
Retornamos aqui à expressão ‘interrogamos’ de em uma pesquisa, as falas e os relatos se cons-
Dandara na epígrafe do artigo. As emoções em tituam como verdades inabaláveis; ao mesmo
jogo na cena de atendimento clínico remetem tempo buscando valorizar um acervo vivo de
às assimetrias de posição entre a psicóloga e memórias que não precisam ‘ser dos outros’,
sua paciente, em um enquadre no qual não se posicionados como participantes de pesquisa.
pode deixar de considerar o que possivelmente Isso porque esses outros estão, estiveram, em
está em jogo na atenção a uma adolescente cenas nas quais a autora principal deste ensaio
vivendo com HIV/Aids. O acolhimento não estava. E naquele momento, ela não colocou
está dissociado de um exercício de investigar, sua experiência como objeto, mas vinculou ‘aos
interrogar, gerenciar e ter notícias sobre um outros’ – qualificados como aqueles vivendo
autocuidado, autocontrole, em que o exercício com HIV/Aids – o estatuto de participantes,
da sexualidade e a adolescência constroem ou protagonistas da experiência.
seus duplos, sofrem com exigências de po- A experiência vivida, encarnada, está na
derosas estruturas sociais, nas quais operam memória de quem outrora ‘interrogava’ e agora
estigmas e discriminações, exigências e regula- é a interrogada pelo exercício de reflexividade
ções. Como esse enquadre à época era também e exterioridade com uma interlocutora que
de uma pesquisa, precisamos assumir que um a provoca como segunda autora do ensaio. A
‘tempero de interrogatório’ nas questões a experiência encarnada é uma forma de estar no
serem respondidas a um protocolo aí também mundo e lidar com a realidade6. Vale ressaltar
se fizessem presentes. que vínculos com as outrora crianças e ado-
Nesse ponto Bourdieu1, nos lembra que toda lescentes, hoje jovens, perduram nos espaços
pesquisa – seja com metodologia qualitativa ou virtuais do grupo de WhatsApp que organiza-
quantitativa – deve ser compreendida no con- ram e incluíram a primeira autora, e nos perfis
texto das “interações sociais que ocorrem sob do Facebook e do Instagram. Ou seja, vínculos
a pressão das estruturas sociais”1(694). A dife- de afeto e contato têm uma duração, facilitada
rença entre os materiais econômicos, culturais pelas mediações das redes sociais virtuais.
e simbólicos entre pesquisadores e pesquisa- Faz-se necessário recorrer a uma pergun-
dos precisa ser considerada para a prevenção ta, que nos fez assumir a legitimidade de
memórias de quem pesquisou e cuidou, em um [...] a possibilidade de que algo nos aconteça,
lugar de primeira pessoa: quais são as ‘supostas ou nos toque, requer um gesto de interrupção,
verdades’ contidas nas falas, nas respostas das um gesto que é quase impossível nos tempos
entrevistas, nas observações participantes de que correm: requer parar para pensar, parar
um campo, ou nas observações etnográficas para olhar, parar para escutar, pensar mais
em cenas atuais, que não podem estar nas devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
memórias de quem hoje se permite resgatar, devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a
refletir e produzir conhecimento sobre elas? opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
Subvertendo a lógica da verdade, a entende- suspender o automatismo da ação, cultivar a
mos aqui como areia que escoa entre os dedos, atenção é a delicadeza.
que se movimenta, que se remodela, que abre
caminho para o novo. Propomos um deslo- Este convite feito por Larrosa3, de suspender
camento da visão positivista da ciência, que o automatismo da ação e dar-se tempo e espaço,
considera as falas e seus produtos a partir de pode nos servir como conexão a considerar a
uma perspectiva dualista, para pensar a partir memória reunida nos arquivos pessoais, nas
de uma “perspectiva política e crítica”3(19). notas e recordações, como também um lugar
Assumimos a comunicação, a interpreta- de encontro, a ser revisitado com outros olhos.
ção e a análise a partir das ambiguidades do Exatamente aqui recorremos à autoetnografia
que se situa no campo da afecção14 a partir como método e exercício de valorizar a experi-
de uma perspectiva antropológica dos afetos ência pregressa, decantada, revisitada.
e sofrimentos. O argumento que me direcio- Santos20 descreve a autoetnografia como
na “é como transformar a história do outro uma metodologia que bebe na fonte da etno-
como parte do vivido comum?”19. Partimos grafia, mas que se propõe construir um relato
do exercício de responder à pergunta do a partir de um lugar de pertencimento, situada
que motiva, afeta e está em jogo na escolha culturalmente, tendo a reflexividade um papel
de retornar aos jovens que foram atendi- fundamental para a avaliação dos conteúdos
dos durante 20 anos de uma experiência na relação intersubjetiva entre pesquisador e
anterior. Aquelas crianças e adolescentes pesquisados; entre pesquisador e suas memó-
memorializados possibilitam a geração de rias, na produção de textos literários, nos quais
um acervo material – de arquivos de eventos, as experiências biográficas são um recurso
recortes de jornais, diários reflexivos sobre relevante para transformar a experiência de
as práticas – exuberante, não trabalhado, outrora em objeto de estudo.
possível de ser revisitado. Isso sem imputar Como método, “reconhece e envolve a
a esses jovens de hoje novos os mesmos sen- subjetividade, a emotividade e a perspectiva
timentos de ‘interrogatórios’. do pesquisador sobre a investigação”20(224).
Pensar uma autoetnografia de acervos de A autoetnografia, além de método, pode ser
memórias e experiências pode permitir, como também uma técnica para a produção de dados
nos inspira Benjamin2, a distância e a proximi- em uma pesquisa com análise qualitativa,
dade do que se observa influenciando no que se assim como o próprio produto da pesquisa.
vê, que no cotidiano irrefletido impede o jogo A partir do diagrama de Santos20(219), a
de aproximação e distanciamento limitando o autoetnografia se equilibra em uma tríade,
que pode ser observado. A experiência, como sendo a etnografia, a orientação metodológica
fluido vital, estabelece-se na interioridade e a análise dos conteúdos, esses analisados
das relações e dos afetos3. Para a construção considerando a reflexividade intersubjetiva
de experiência e memória, é preciso tempo, para pensar tanto o pesquisador como os con-
contemplação, retorno, requer dobra. Segundo teúdos nos conteúdos autobiográficos; em que
Larossa3(21–25), a experiência representa: a interpretação precisa considerar os aspectos
respondentes de questionários. Foi possível que não se trata de restabelecer uma relação
pensar sobre o quanto retornar ao hospital que terapêutica, mas do lugar que a cena tera-
eles frequentavam, agora tornando-o um novo pêutica estabelece, e das memórias de uma
campo de pesquisa, não alimentaria uma ilusão experiência que interliga tempo e espaço. É o
da retomada de uma cena clínica, gerando que se perde, o que se rompe, o que se coloca
uma fantasia perniciosa de ‘reativar a sala hoje em suspensão quando quem dividia a respon-
com a luz apagada’, em um compromisso não sabilidade do cuidado pertencia à equipe de
mais realizável. saúde direta e agora esse cuidado se organiza
A fala de Dandara não é ingênua, não revela na exterioridade.
uma dificuldade com as normas formais da
língua portuguesa. “... A luz acesa pra inter- Tô aqui esperando ser atendido pela Dra. Muito
rogamos” sugere uma ambiguidade de quem ruim sem vc aqui. Lembro de vc constantemen-
interroga quem. Das relações de poder que te. Espero que esteja tudo bem. E espero que de
circulam nessa rede de relações, em que estar alguma maneira a gente volte a fazer a nossa
lá ativamente interrogando, extraindo infor- análise. (Enzo, 49 anos, em mensagem privada
mações pautadas em veracidade esperada de WhatsApp para primeira autora).
pela ciência, pode significar também estar
disponível para ser interrogada, para revelar Boa tarde! Tô aqui no hospital para atendimento,
verdades que a ciência possa ocultar. Ou ainda, e me lembrei de vc... aliás tenho me lembrado de
nesse hibridismo, ser parte dessa construção vc várias vezes... do tempo em que eu podia ter
intersubjetiva de viver, conviver e sobreviver desfrutado mais da sua companhia e ensinamento.
vivendo com HIV/Aids; ou mesmo nessa gan- Saudades das nossas terapias. Espero que esteja
gorra, nessa alternância de posição e circulação tudo bem com vc. (Enzo, 49 anos, em mensagem
de afetos e investimentos ou não em cuidado. privada de WhatsApp para primeira autora).
Essa mensagem que a epígrafe ilumina chega
após dois anos de encerrada a cena clínica, na Oi, como vai vc?!?! Tenho andado com dois sen-
qual crianças, adultos, gestantes e jovens que timentos profundos... arrependimento de não ter
vivem com HIV/Aids eram os concentradores aproveitado o máximo as nossas análises, pois vc
da atenção clínica e de pesquisa. A essa men- era a pessoa mais certa que encontrei, e saudade
sagem da epígrafe, ainda se reúnem memórias de colocar nossa sintonia em órbita, com toda
de outras mensagens, recebidas no WhatsApp sinceridade tenho vontade de enviar uma carta,
privado, atualmente, ou ainda compartilhadas texto... qualquer coisa para o seu departamento
nesse mesmo aplicativo em grupo: pedindo que vc volte, pois vc está fazendo muita
falta para os seus pacientes. (Enzo, 49 anos, em
Todas as vezes que vou ao hospital e me sento mensagem privada de WhatsApp para primeira
na sala de espera eu fico olhando para o corredor autora).
pensando que a qualquer momento você vai apa-
recer. Fico esperando vc virar o corredor, vestindo Essas mensagens foram endereçadas em
aquele jaleco e vir me chamar. Muito louco isso né? três momentos distintos, com espaço de um
(Valter, 47 anos. Fala endereçada para primeira ano entre a primeira e a última. Apesar de ter
autora, em um dia de atendimento remoto, por sido enviada por um homem adulto, revela
meio de ligação de vídeo pelo WhatsApp, que mais do que uma relação transferencial es-
ocorreu no mesmo dia de consulta médica). tabelecida. A ele, foi ofertada a continuidade
dos atendimentos remotos, após a primeira
A fala desse homem, cujos atendimentos mensagem, ou seja, fora do espaço hospitalar,
foram mantidos de forma remota após a saída mas ao contrário do que ele repete nas men-
da primeira autora do hospital, faz refletir sagens, sobre o desejo de retornar às ‘nossas
análises’, ele sumiu de cena quando esse novo Eu sei que vc não faz mais parte do hospital, porém
lugar foi proposto. Assim, mais do que a relação preciso de uma psicóloga com urgência pra mim
terapêutica, a materialidade espacial parece e para a minha filha. (Lúcia, 29 anos, em men-
garantir uma segurança de permanência da sagem privada de WhatsApp).
vida, uma estabilidade a partir do encontro
no local de cuidados. Acionamentos como esses fazem refletir até
O que chama atenção é a expressão usada que ponto retornar ao hospital como campo,
por ele ao se referir ao próprio processo tera- não mais no lugar de cuidados, mas para desen-
pêutico como ‘nossas terapias’, no caráter rela- volvimento de pesquisa, ou assumir um lugar
cional construído na clínica, na qual a primeira de pesquisadora que ‘interroga’, pode retroa-
autora deste ensaio se localiza como testemu- limentar uma relação que nesse momento se
nha, e remete a um diálogo com Favret-Saada14 restringiu a fazer parte do grupo de WhatsApp.
sobre a possibilidade de eficácia terapêutica Esse campo, ao mesmo tempo de proximidade
a partir do “trabalho realizado sobre o afeto e distância física, demarca ainda as memó-
não representado”14(155). rias da presença para eles. Uma duração e,
também, um controle do lugar que outrora
Eu estava passando por várias situações de era ocupado como psicóloga/pesquisadora, e
adulto kkkkkkkk. Maior trem doido, aí pensava, agora é a memória da primeira autora de antes.
vou procurar ‘x’ [primeira autora], mas não dava Vale perguntar sobre qual lugar que a pri-
tempo. (Solana, 26 anos, mensagem privada de meira autora de hoje ocuparia nessa relação
WhatsApp). desigual entre pesquisador e sujeitos de pes-
quisa, nesse reencontro com os jovens que
O que é soropositivo? É quando vc nasce? Com o vivem com HIV/Aids, sustentada pela pers-
vírus né? (Plínio, 28 anos, mensagem privada pectiva da responsabilidade? Para quem faz
de WhatsApp). sentido o retorno a esse campo?
Constituir um campo de pesquisa em um
Bom dia, essa noite eu bem sonhei com você. local em que inúmeros e vastos encontros foram
(Antônia, 28 anos, mensagem privada de áudio tecidos ao longo de 20 anos, no qual a presença
via WhatsApp). de outrora era da identidade da profissional de
saúde e pesquisadora, parece, neste momento,
Oi, seguida da foto da antiga sala de atendimento inadequado. Seguindo com Diniz19, refletindo
com a porta fechada e a luz apagada, seguida da sobre como fazer pesquisa com temas sensíveis,
mensagem: tristeza ver essa sala vazia. (Tiago, faz-se necessário pensar a nossa responsabili-
32 anos, mensagem privada de WhatsApp). dade diante do campo e das pessoas.
Essas mensagens recebidas em espaço de
Bom dia. Sabe me dizer se no hospital tem trata- sociabilidade digital acenderam o sinal de alerta
mento da PrEP? Tive relação hoje com camisinha, para a validade e a relevância de um possível
mas a camisinha rasgou e não vimos. (João, 22 retorno físico nos dias de hoje para outra pes-
anos, mensagem privada de WhatsApp). quisa. Considerando que o acionamento de me-
mórias que são dolorosas reativa em pesquisa
Tá aí um sorriso que sinto falta. (Verônica, 35 uma autoridade, uma assimetria de poder pode
anos, mensagem privada reagindo a mudança caracterizar uma relação predatória.
de foto de WhatsApp da primeira autora). Voltar a acionar esses jovens, com quem
ainda perdura uma relação de proximidade,
Boa tarde, consegui seu número com o João. pode reforçar essa assimetria de poderes na
Precisava conversar com você. (Camila, 28 anos, posição privilegiada em capital social e cul-
em mensagem privada de WhatsApp). tural; e eles, em gratidão a esse provisório
Referências
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Claudia Carneiro da Cunha1, Marcelo de Abreu Maciel2, Martha Cristina Nunes Moreira3
DOI: 10.1590/0103-11042022E718
RESUMO O presente ensaio trabalha nas dobras do tempo, acionando as noções de experiência, memória
e perturbação, a partir da perspectiva socioantropológica, para discorrer acerca da cronicidade do viver
com HIV/Aids na infância, adolescência e juventude. Seguindo as definições de ensaio, propôs-se um
artesanato conceitual que ofereça outro arranjo de olhar sobre estigma, precariedade, vulnerabilidade
e cronicidade. Apostou-se em um olhar que enfrente as barreiras do viver produzidas pelo estigma,
discutindo em que medida a cronicidade pode acentuar a precariedade que constitui os humanos, mas
que, para muitos, em virtude de sua localização social, pode significar maior precarização e vulnerabili-
zação; considerando que, quando se é criança, adolescente e jovem, essa precarização pode levar a uma
impossibilidade na circulação dos afetos, nas trocas cotidianas fundamentais dentro dos grupos, e a uma
sensação constante de inadequação.
ABSTRACT This essay works on the intertwining of time using the notions of experience, memory and
disturbance from a socio-anthropological perspective to discuss the chronicity of living with HIV/Aids
in childhood, adolescence and youth. Following the essay definitions, we propose a conceptual craftwork
that offers another way of looking at stigma, precariousness, vulnerability, and chronicity. We invested in
a perspective that faces the barriers of living produced by stigma, discussing to what extent chronicity can
accentuate the precariousness that constitutes humans, although for many, due to their social location, it can
mean greater precariousness and vulnerability; considering that, when one is a child, adolescent, and youth,
this precariousness can lead to an impossibility in the flow of affections, in the fundamental daily exchanges
within groups, and to a constant feeling of inadequacy.
1 Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
cunha.claudia@gmail.com
2 Universidade Federal
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 251-263, DEZ 2022
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de HIV/Aids, que têm como inflexão o surgi- Já a ‘Aids de agora’ faz uma virada no sentido
mento da Terapia Antirretroviral (Tarv) de de ressignificar toda uma experiência com a
Alta-Potência, o coquetel, como é conhecido. doença, que passou a ser pautada pela possi-
Este imprime uma diferença radical entre bilidade de vida e com qualidade, trazendo
morrer e viver. Tal mudança não só permite como emblemas o ‘futuro’ e o ‘potencial’ de
um giro radical nas experiências nos modos uma geração até então vista como inviável
de andar a vida, mas também passa a ditar as e marcada pela morte e pela invisibilidade.
políticas e as práticas de cuidado no campo A nova camada da ‘Aids de agora’ refere-
da infância, adolescência e juventude vivendo -se às recentes transformações nas diretri-
com HIV/Aids, construídas em meio a memó- zes e políticas de tratamento e prevenção,
rias e vivências encarnadas de nossos inter- forjando corpos ainda mais biomedicali-
locutores e de nós mesmos, profissionais de zados no interior da epidemia – e, de certa
saúde e pesquisadores, entre muitos êxitos, forma, vistos como ‘universais’, isto é, su-
fracassos e embaraços. postamente desentranhados de seus grupos
e marcas sociais de gênero, classe, cor/raça
e geração. Paradoxalmente, em alguns casos,
As configurações da Aids eles surgem aparentemente colados a deter-
na infância, adolescência e minados marcadores sociais da diferença,
com um visível predomínio da noção de
juventude: a ‘Aids de antes’ risco epidemiológico nessa compreensão
e a ‘Aids de agora’ e no redirecionamento das respostas à epi-
demia. Isso consubstanciado na expressão
A ideia de ‘duas Aids’, de antes e de agora, ‘população-chave’ – alguns segmentos po-
nasce em outro contexto de estudo5, sendo pulacionais tidos como ‘mais vulneráveis
agora retomada a partir de novos elementos. ao HIV/Aids’, uma vez que apresentariam
Como categorias êmicas, transformadas em ‘prevalência superior à média nacional’: tra-
categorias analíticas, pretendem interrogar vestis, transexuais, gays, homens que fazem
mudanças ensejadas no curso da epidemia, sexo com homens, pessoas que usam álcool e
notadamente após a introdução da Tarv, per- outras drogas; pessoas privadas de liberdade
mitindo passar de uma Aids em que se morria e trabalhadoras(es) sexuais.
para outra em que se vive. Tais categorias, Para compor nossas histórias e memórias
relativas às diferentes temporalidades da e incorporar as duas ‘Aids’, as construiremos
epidemia, aglutinam um conjunto de modifi- como ‘cenas’, compostas a partir de passagens
cações materiais e simbólicas que permitiram de campo que consideramos exemplares, no
construir, na ‘história da Aids’, uma ‘Aids de sentido de que encerram densidades temáti-
antes’, como uma ‘narrativa catastrófica’ que cas e emocionais no âmbito das interações,
compila falhas, frustração e sofrimento, e uma capazes de elucidar o cerne das questões em
‘Aids de agora’, como representante de uma jogo e de trazer a intensidade necessária a
‘história heroica’, das conquistas do saber que ponto de representar muitas outras observa-
se foram acumulando e permitindo crescentes ções realizadas no âmbito da pesquisa. Nas
níveis de intervenção sobre a realidade clínica cenas, valorizamos o ‘corte’ que encerra uma
e epidemiológica15(21). para dar início à outra. Seguimos, portanto,
Assim, propomos uma nova camada à ‘Aids as pistas de Deleuze e Guattari16(27) – “É um
de agora’. Ao retomar essas tipologias, percebe- todo, porque totaliza seus componentes, mas
mos que a ‘Aids de antes’ é marcada pela ideia um todo fragmentário” – para afirmar que o
de ‘ausências’: de respostas, de medicamentos conceito remete à questão de articulação, corte
e da possibilidade de continuidade da vida. e superposição.
Primeira cena: ‘a Aids de antes’ com ele se deu em uma das inúmeras interna-
ções que marcavam a sua tenra história de vida.
A nossa primeira experiência de pesquisa Naquele dia, Tim estava sem acompanhante,
remonta ao ano de 1999, quando começamos seu desalento era visível, e seus braços, arro-
um trabalho de assistência psicológica e estudo xeados de tantos acessos às veias. Por sugestão
com as então denominadas ‘crianças e adoles- dele, fomos para o corredor que dava para as
centes vivendo com HIV/Aids’, e suas famílias, enfermarias para passear com uma boneca em
na internação em um hospital de referência um carrinho de bebê de brinquedo. Ficávamos
para o tratamento de doenças crônicas e infec- andando de um extremo ao outro, brincando
ciosas graves. A investigação reuniu um acervo de sinal fechado e sinal aberto. Nesse percurso,
qualitativo com observações e entrevistas o menino sugeriu que tirássemos a boneca do
com o corpo de profissionais de saúde e com carrinho para que ela ficasse sobre uma linha
pacientes internados e seus acompanhantes, divisória no chão, como se estivesse atraves-
frequentemente mães e avós17. sando uma rua. Nessa segunda proposição, Tim
A situação de saúde das crianças e dos ado- vinha correndo e com toda força atropelava
lescentes era quase sempre muito grave. Eram a boneca com o carrinho, e, em seguida, ex-
frequentes os casos de descoberta da infecção clamava: “ela está toda arrebentada!”. Após os
pelo HIV após a abertura de um quadro sério sucessivos atropelamentos, o menino entrava
e penoso de adoecimento, resultante da mani- na enfermaria e, com os materiais da enferma-
festação da doença. A maioria das crianças e gem, fazia os ‘curativos’. Esse jogo foi repeti-
adolescentes encontrava-se em estágios avan- do por diversas vezes, e, posteriormente, os
çados da Aids, por problemas de ‘adesão’ ao papéis invertidos; ele segurava a boneca para
tratamento, em razão dos diagnósticos tardios que fosse atropelada pela terapeuta, e ambos
e da má evolução da doença. faziam os curativos.
Não raramente ouvimos queixas dos pacien- O caso do Tim compôs a nossa discussão
tes e familiares acerca dos fortes efeitos colate- sobre a função do brincar no contexto de hos-
rais das medicações, como diarreias, vômitos, pitalização, mas esse não é o nosso foco agora.
irrupções cutâneas, tonteiras, entre outros, que O que gostaríamos de destacar aqui é o quanto
os faziam interromper a medicação, além de essas crianças estavam ‘arrebentadas’ física e
aspectos como ter de lidar com dificuldades na emocionalmente, e que, no corpo a corpo com
administração das medicações de ‘sabor ruim’ elas – como profissionais de saúde e pesquisa-
e com situações de preconceito e discriminação dores –, não nos mantínhamos distantes das
decorrentes do estigma da doença. imagens do ‘contágio da Aids’,
Nosso contato com essas crianças e ado-
lescentes dava-se em situações sempre muito uma das imagens mais fortes do outro como
delicadas e desgastantes emocionalmente. fonte de ameaça e perigo, suscitando um medo
Muitos deles haviam perdido pais e irmãos, e a genérico em que o contato é percebido como
orfandade e a morte os avizinhavam. Inúmeras possibilidade de agressão18(98).
vezes, os encontrávamos calados, inapeten-
tes, esmorecidos e cansados das intervenções Era árduo para nós, a despeito do pleno
médicas e do convívio com o adoecimento, conhecimento das formas de transmissão
queixando-se da invasão que os procedimentos do HIV, reconhecer-se com medo ou receio
técnicos causavam em seus corpos. do contato pele-pele e com secreções como
Uma cena que traduz esse quadro foi pro- saliva, suor e lágrimas dessas crianças e ado-
tagonizada por Tim, um menino de 6 anos, no lescentes. Esse era um campo em que, ardu-
contexto de uma intervenção do brincar como amente, ‘pesquisávamos a dor’ de infâncias
instrumento terapêutico17. Nosso encontro e adolescências que pareciam viver sob o
signo da vida invertido: mais prevalecia a dor, Nesse contexto, o caso dos adolescentes
o sofrimento, do que a pujança da vida nas era particularmente emblemático. Por serem
representações comuns da infância. considerados pelos profissionais como essen-
Nesse cenário, faziam parte as ‘metáforas cialmente ‘problemáticos’, em razão da fase da
de guerra’ nos momentos de ‘revelação do vida em que se encontravam, ‘cheia de hormô-
diagnóstico’: histórias sobre soldadinhos maus nios, dúvidas e incertezas’, e por terem algum
(os vírus) e bons (os anticorpos). No entanto, ‘nível de consciência’ da soropositividade e
estávamos cientes de que “guerra não é uma do estigma que lhes pesava, estes eram vistos
inocente e casual metáfora”15(17), pois constrói como ‘rebeldes e revoltados’, inviabilizando
representações e dita o próprio curso da com- um tratamento satisfatório19.
preensão da doença e das respostas sociais e A relação entre ‘revelação do diagnóstico’
políticas a ela dirigidas. e ‘adesão’ era estreita. O conhecimento da
Nessa conjuntura em que profissionais de sorologia era a condição e o pressuposto de
saúde ‘combatiam a doença’, comparecia forte não ‘exposição de outros’, isto é, não transmitir
otimismo, ainda com fortes efeitos colaterais o vírus por via sexual. Todavia, é interessante
das medicações. O coquetel estava no auge. Sua que, mesmo fortemente cogitada, essa possibi-
disponibilização nos serviços de saúde públi- lidade ainda não era propriamente concebida
cos, de modo universal e gratuito, era recente. naquele momento como ‘uma realidade’, mas
A lembrança de terapias pouco eficazes e de sim projetada como um ‘futuro próximo’, ainda
difícil acesso para a população geral ainda era que já demandasse reflexões e preparos.
muito vívida. Bastava, portanto, muito pouco Os ‘problemas de adesão ao tratamento,
para se salvar mais e mais vidas; e o principal revelação do diagnóstico e prevenção’ apa-
critério era a ‘adesão’ ao tratamento, o que reciam interligados no campo, e construíam
dependia essencialmente do modo como os os próprios sujeitos morais5. A revelação do
pacientes iriam enfrentar essa questão. diagnóstico, por um lado, tinha como meta
Entretanto, a Aids não deixou de ser vista uma ‘consciência’ do adolescente quanto à
e sentida como uma doença grave e fatal. A sua compreensão, da extensa e intensa expe-
letalidade da doença ainda era muito enfa- riência de tratamento e internação hospitalar
tizada pelos profissionais de saúde. Dessa – aspecto quase sempre negligenciado para
forma, a morte era um horizonte, e doença a criança, no que se refere à ‘causa’, a Aids,
ainda matava e muito. configurando o segredo mantido pelas famí-
Da parte das mães e avós cuidadoras de seus lias e conduzido pela equipe de saúde. Por
filhos e netos, a adesão ao tratamento assumia outro lado, tida como um pressuposto para a
contornos diversos daqueles significados pela futura prevenção, ganha outros contornos da
equipe de saúde, permeada por estigmas e re- adolescência e da sexualização da vida, como
presentações negativas da Aids. Presentificava- se antes disso não o fosse.
se, ainda, um sentimento avassalador de culpa Fecham-se as cortinas.
por parte das mães em razão da transmissão
vertical (da mãe para o bebê), e de vergonha Segunda cena: ‘a Aids de agora’
por parte das avós em ter de gerir uma doença
ligada ao sexo e à promiscuidade. Assim, aderir “Vocês são o futuro!”. Conclamava com en-
ou não ao tratamento parecia ser menos uma tusiasmo uma ativista aos Jovens Vivendo
‘escolha’ para essas pessoas do que o resultado com HIV/Aids (JVHA) no bojo do Seminário
de uma luta de forças as mais diversas em face Prevenção Posithiva: estado da arte, realizado
da vergonha, do medo, da discriminação, da pela Associação Brasileira Interdisciplinar
pobreza e das crenças familiares e religiosas de Aids (Abia), no final de outubro de 2007,
provocadas e postas à prova pela doença. no Rio de Janeiro. Foi a partir dessa primeira
HIV recebam terapia antirretroviral; e 90% nas experiências sociais dos JVHA pela siner-
das pessoas recebendo tratamento possuam gia da condição sorológica com determinados
carga viral indetectável e não mais possam marcadores sociais da diferença, impactando a
transmitir o vírus), e dos princípios, nessa adesão ao tratamento e promovendo quadros
mesma direção, que desde o final de 2013 de adoecimento psíquico: abandono de trata-
vinham ditando as ações do governo brasi- mento com ansiedade e depressão, associados
leiro (testagem e tratamento precoce, e uso do à rejeição familiar e/ou de parceiros sexuais
tratamento antirretroviral como prevenção). pela sorodiferença. Isso alavanca a busca por
Dessa maneira, os corpos juvenis e infectados apoio em redes sociais, sobretudo virtuais, e
pareciam não mais precisar mostrar exempla- tratamento psicológico e/ou psiquiátrico22.
ridade na prevenção com discursos em torno Na atualidade, observa-se que os JVHA
do uso do preservativo. A exemplaridade transitam entre ‘dois mundos da Aids’: um
evocava o ‘jovem protagonista’ que cumpre tecnológico, que contempla a existência de
seu tratamento, logo a prevenção, se mantém grupos e redes virtuais de suporte, apoio e
com a carga viral indetectável (número de encontros nas redes sociais, com ampla difusão
cópias do vírus circulando no sangue) e ainda de tecnologias de comunicação, prevenção e
conquista novos jovens aos postos de testagem tratamento de cunho biomédico, capazes de
e tratamento21. intermediar os cuidados à saúde, o exercício da
Foi nesse contexto que os JVHA passaram sexualidade, a reprodução e forjar identidades
a se constituir como ‘detectáveis’ e ‘indetec- e coletivos; e outro que, apesar da existência
táveis’. As transformações das tecnologias dessa novas tecnologias, permanece mergu-
voltadas para a vida estruturadas nos novos lhado em questões básicas relacionadas com
medicamentos antiaids, cuja centralidade diagnóstico, tratamento e prevenção, resulta-
passou a orientar a testagem, o diagnóstico e do das profundas desigualdades sociais, com
a prevenção – tais como o Tratamento como desfechos indesejáveis, como adoecimento e
Prevenção; a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), até mesmo a morte prematura22.
que é o uso de Antirretrovirais (ARV) por uma Fim de cena, corte.
pessoa soronegativa para reduzir o risco de se
infectar pelo HIV; e a Profilaxia Pós-Exposição
(PEP), que previne a infecção pelo HIV, com a
ingestão de ARV após uma provável exposição Da relação nós e eles,
ao vírus –, além da equação Indetectável = para a relação nós com
Intransmissível (I=I), casos em que a pessoa
vivendo com HIV/Aids está com carga viral do
eles: a cronicidade como
vírus indetectável há pelo menos seis meses, perturbação e o lugar da
passaram a referendar, aos sujeitos e subje- experiência no ensaio
tividades que geram, a mais nova e recente teórico
camada da ‘Aids de agora’.
Contudo, os JVHA ainda enfrentam o Aqui, entendemos a experiência como algo
estigma da doença, o que provoca, muitas que não se confunde com percepção nem
vezes, a necessidade de manejo de um segredo muito menos com vivência. Há na experiên-
nos grupos sociais de pertença, somada às difi- cia a marca do que é reflexividade sobre o
culdades próprias do uso de ARV, implicando que se passa conosco na relação como o que
uma readequação da rotina, de estudo e/ou se passa com muitos, como o que nos passa,
trabalho, mudança de hábitos alimentares e de o que nos acontece, o que nos liga e nos atra-
sono, cuidados com o corpo e com a sexualida- vessa23. A experiência é o acontecimento
de, entre outros. Esses fatores são agravados encarnado na memória de uma construção
‘culpados’ em novas configurações da epide- e seus efeitos no campo das relações interpes-
mia e das ‘categorias de risco’, produzidas ao soais e dos cuidados com a saúde atualmente?
longo da história da doença. Essa questão é fundamental ao reconfigurar
Esse movimento de classificar vítimas e não só com relação ao HIV, mas também com
algozes no curso da epidemia – e de expo- uma série de condições crônicas e complexas
nenciar marcas aos corpos já acionados pelo de saúde das quais hoje ‘não se morre mais’,
estigma da infecção, e seus desdobramentos mas se vive na adversidade das lutas, e com
físicos – acompanhou a passagem dos cuida- estigmas29. Ou seja: o que fazer quando há a
dos com a infância e a adolescência vivendo possibilidade real de a vida prevalecer? Para
com HIV/Aids para a ‘juventude’, nascente a ‘obviedade’ da morte que se impunha, havia
em meados dos anos 20005. O tipo de trans- o luto, o desespero, o sofrimento; mas, e para
missão (via sexual versus transmissão vertical) a vida que emerge e se instala esperançosa-
acionou moralidades diferenciadas, já que mente? Podemos extrapolar o campo da Aids
os jovens infectados por transmissão sexual e convergir com o que se constrói em torno
seriam considerados ‘culpados’, como se hou- de outras condições de saúde raras, crônicas e
vessem ‘procurado’ a infecção, e os jovens complexas. O que é ser jovem/adulto vivendo
infectados por transmissão vertical, ‘vítimas’ com essas condições de saúde? Essa é uma
das circunstâncias9. Esse tipo de processo de questão que atravessou muitos personagens
classificação social possui efeitos biopolíti- da história com o HIV/Aids, pois muitos da-
cos27, de controle dos corpos individuais e do queles que acompanharam a morte de pais,
coletivo5, e organizam nas chaves modelares amigos, familiares e companheiros, mas que
da passagem da ‘Aids de antes’ para a ‘Aids de ficaram vivos devido a outras condições, pas-
agora’ a virada da condição daqueles que não saram a se interrogar sobre como prosseguir a
morreram e passaram a viver. partir dali, tendo outros desafios pela frente.
Como já mencionamos, as transformações Acionando Canguilhem30, afirmamos que
das tecnologias voltadas para a vida estrutu- se a vida não conhece reversibilidade, ela
radas nos novos medicamentos antiaids, cuja possibilita estados de inovações, reparações,
centralidade passou a orientar a testagem, fundamentais quando pensamos na cronicida-
o diagnóstico e a prevenção, começam a de como interdependência, reconhecimento
nortear os movimentos ativistas e a percep- e precariedade.
ção de si dos JVHA, com uma transição já Nesses marcos, falar de cronicidade signifi-
claramente definida de uma infância e uma ca perguntar sobre as lógicas sanitárias, políti-
adolescência outrora condenadas à morte19 cas, éticas e tecnológicas e os acontecimentos
para uma que vivencia uma bioidentidade na vida das pessoas que vivem gerenciando
e biossociabilidade28 em nome de uma vida suas interdependências e precariedades. Isso
‘saudável’, com qualidade, a partir do con- porque, nesse campo, alguns vão passar por
vívio com um vírus ‘indetectável’. processos ativos de precarização da vida –
Nesse caminho, as transformações na forma que, conforme nos inspira Butler11, não se
de nomeação e reconhecimento do viver com confunde com precariedade –, mas desuma-
HIV/Aids passam pela instauração de outras niza, elege quais humanos merecem ser ‘mais
identidades individuais e coletivas, no caso humanos’ e atenção. As estruturas do patriar-
de assumirem-se indetectáveis, como uma cado, do racismo, do sexismo, do etarismo
moeda simbólica para viver a vida dentro de e do capacitismo produzem precarizações
uma ‘normalidade’, atribuindo-lhe outros sen- ativas e não operam para algo fundamental
tidos. Entretanto, cabe ainda perguntar: o que que é o reconhecimento.
permanece como dramático entre a lógica da É nesse sentido que convocamos a ‘Aids
doença e aqueles que vivem com o HIV/Aids de antes’ e a ‘Aids de agora’ para pensar a
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Conflitos de interesses: inexistente
num_19_3_1525.
Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042022E719
PALAVRAS-CHAVE HIV. Estigma social. Discriminação social. Traços de história de vida. Brasil.
ABSTRACT Related to the activities of the Brazilian Interdisciplinary AIDS Association in 2021, the
project ‘What if it was with you? Lived Stories of Stigma and Discrimination in 40 Years of HIV/AIDS’
was developed. The project aimed gathering real stories of stigma and discrimination, but also presenting
the traumatic experiences lived by people with HIV/AIDS, and stimulating empathy and solidarity around
the group. This article is a report on the experience of the project, carried out by calling volunteers on the
social networks of the Association. Among the volunteers, ten individuals were selected, considering types of
situations experienced, age groups, genders, races, sexual orientations, and origin, trying to show different
aspects of living with HIV/AIDS in Brazil. To guide the interviews, a semi-structured script was prepared,
with dozens of questions adapted to the individualities of each participant, to address different life stories.
From the interviews, ten different stories were written, punctuating situations of stigma and discrimination,
in different moments of life, as well as frames of confrontation and resistance. On the occasion of World
AIDS Day in 2021, the book was launched at the same Association’s seminar ‘Refazendo a Prevenção’, and
it is available for free download.
1 Associação Brasileira
Interdisciplinar de AIDS
(ABIA) – Rio de Janeiro KEYWORDS HIV. Social stigma. Social discrimination. Life history traits. Brazil.
(RJ), Brasil.
danisorris@hotmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 264-276, DEZ 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Relatos sobre um livro com experiências de estigma/discriminação de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS no Brasil 265
Quadro 1. Perfil das pessoas entrevistadas para a construção do livro ‘E se fosse com você? Histórias vividas de estigma e
discriminação em 40 anos de HIV/AIDS’ – 2021
Assim, a noção de ‘risco’ também era utili- do mesmo e todas as situações de exposição
zada para as mulheres que desejavam ser mães mediante a quebra de sigilo.
no começo da epidemia. Hoje em dia, há um
avanço no debate sobre os direitos sexuais e O gerente descobriu sobre a minha consulta médica
reprodutivos daquelas que vivem com HIV/ e ficou insistindo para saber qual o problema. A
AIDS, sendo importante o acesso à informação gente conversava sempre, e eu terminei contando.
e o entendimento sobre os seus direitos, para E acabei demitido, mais uma vez, no dia seguinte,
que possam ter o controle dos próprios corpos via Recursos Humanos. (Conto Leonardo).
na tomada de decisão sobre a maternidade19.
Embora tenham surgido experiências posi- A demissão veio depois da licença-maternidade.
tivas de acolhimento, também foram narradas Antes mesmo, já tinha ouvido rumores de que os
diversas situações de estigma e discriminação, colegas de trabalho tinham sido avisados: ‘Não
com família, parceiros ou amigos: tomem chimarrão com ela’. A informação sobre
o diagnóstico tinha vazado na empresa. (Conto
Tudo ia bem até que, antes da relação sexual, ele Silvia).
resolveu contar sobre o diagnóstico. O cara sim-
plesmente fugiu, parou de atendê-lo e desapareceu. Conheço mais de 50 pessoas com HIV aqui que não
Nem quis conversar. (Conto Jean Vinícius). arrumam emprego. Só se não souberem, mas, se
isso chega ao ouvido de alguém no trabalho, logo
Nem tinha terminado de contar e o namorado já as pessoas são demitidas. (Conto José).
tinha acendido um cigarro, aberto a cerveja, com
muita irritação e ansiedade. ‘Você passou isso A quebra do sigilo do diagnóstico no traba-
para mim, agora a minha vida está arruinada. E a lho é considerada uma infração da legislação
minha família não tem dinheiro. O que vou fazer?’. protetiva de PVHA no ambiente laboral no
(Conto Octávio). Brasil, sobretudo a Lei nº 12.984/2014, cujos
incisos proíbem: negar emprego; exonerar ou
‘Brincadeiras’ com o diagnóstico positivo. demitir; segregar no ambiente de trabalho; e
‘Brincadeiras’ com o cabelo crespo dos outros. divulgar a sorologia20. Outra legislação que
‘Brincadeiras’ de chamar alguém de macaco. E protege a quebra do sigilo do diagnóstico é
até olhares e comentários velados. Ainda que não a Lei nº 14.289/2022, que torna obrigatório
conscientes, ou não assumidas como racismo ou o sigilo de algumas enfermidades, como o
discriminação, são muitas as situações ofensivas HIV, nos locais de trabalho21. Ambas as leis
e azucrinantes. (Conto Thaylla). também protegem as PVHA de discriminação
no ambiente de saúde. Há ainda a pressão feita
‘Como pode deixar isso acontecer, com tanto co- por empregadores para que as PVHA peçam
nhecimento?’. ‘Como pode ser tão idiota, tendo demissão, quando descobrem a sorologia; ou
tantos preservativos ao seu redor?’. Frases que mesmo a demissão supostamente por outros
ecoaram na cabeça de Alonzo por anos. Frases motivos, sem o registro de conversas compro-
proferidas justamente por uma pessoa experiente. metedoras; por isso, há dificuldade de com-
Uma pessoa de quem esperava acolhimento. Um provação da discriminação nos tribunais, além
professor querido da faculdade onde trabalhava. de obstáculos na reinserção dessas pessoas no
(Conto Alonzo). mercado de trabalho6.
Em muitos relatos, as pessoas sequer haviam
Os relatos dos entrevistados também trou- feito a revelação para amigos, familiares e par-
xeram vários momentos de angústia e receio: o ceiros, sendo uma constante de medo, para não
medo de não conseguir trabalhar em razão do sofrer. Quando feita, voluntariamente ou não,
diagnóstico, a perda de emprego pela revelação em muitos momentos, as pessoas enfrentaram
estereótipos negativos e reações adversas. Por houve muito acolhimento, pelo contrário, muita
outro lado, apesar de citarem muitos desses desinformação e discriminação. O tal rapaz era ex-
comentários e situações negativas relativas -namorado de Octávio e surgiu o disse me disse. As
aos próprios diagnósticos, os participantes não histórias de corredor. As fofocas. (Conto Octávio).
percebiam mudanças comportamentais, na
vida das pessoas que tinham reações negativas, Foi então que surgiu a ‘questão de ser gay’, mesmo
para prevenir uma possível autoinfecção. ouvindo do padrasto que quem é gay atrai ‘coisas
ruins’, como o vírus HIV. (Conto Thaylla).
Sabendo do diagnóstico, muitas pessoas o aco-
lheram. Algumas não acreditaram nele: ‘Você é Para além do escopo inicial, nas histórias
um negão tão bonito’. E outras o discriminaram: dos participantes, surgiram outros marcadores
‘Se ele tomar uma dose aqui, eu quebro o copo’. e temas transversais, tais como: preconceito
(Conto José). sexual; sexualidade; estupro; gênero; xenofo-
bia, transfobia e violências LGBTQIA+; sofri-
A minha vizinha, evangélica, casada há mais de 10 mento mental; racismo, assédio moral, lutas
anos, só transava com o marido e sem camisinha. trabalhistas e judiciais; repressão sexual e falso
Descobriu o diagnóstico dela e dele, que transava moralismo; fanatismo religioso; ativismo; ma-
sem camisinha fora do casamento. E tenho muitos ternidade; suicídio; capacitismo; deficiência; e
outros amigos que dizem o mesmo, não saem com sequelas de doenças oportunistas de pessoas
uma pessoa com HIV, mesmo se o cara estiver em com HIV.
tratamento, mas saem para ‘balada’ e transam Apesar de todas as situações enfrentadas,
com um parceiro desconhecido, sem camisinha. em muitos discursos, sobressaíam falas sobre
(Conto Leonardo). reinvenção, aprendizado, ressignificação da
própria vida, entre outras formas de lidar com
O julgamento moral em torno do HIV o recebimento do diagnóstico e os desafios
costuma recair no outro, sendo que as pessoas inerentes ao viver com o HIV.
próximas aos entrevistados nunca se preocu- Muitos entrevistados mencionaram o
param em refletir sobre as próprias relações caráter fundamental do envolvimento com o
sexuais que poderiam provocar também infec- movimento social, para aprender a lidar com
ção pelo vírus. Seria primordial a participação o diagnóstico e as situações relacionadas. Da
comunitária na criação de estratégias visando mesma maneira, o ato de conseguir falar sobre
à superação de obstáculos, para lidar com o o assunto livremente, nas entrevistas e no ati-
estigma da AIDS, principalmente com a pro- vismo, era dito como uma verdadeira ‘catarse’,
moção dos direitos humanos e com mudanças que ajudava o enfrentamento na própria vida.
importantes, atreladas à legislação e às práti-
cas discriminatórias18. No Brasil, conforme Ninguém quer o HIV! O nome reforça a questão
abordado, há avanços em torno da legislação do grupo de risco, que só tem HIV quem quer: isso
protetiva das PVHA, mas o problema está na é mentira. O que me interessa é que eu tenho esse
sua aplicação. ‘bagulho’ e eu quero me tratar. É o tratamento que
Exatamente por causa do julgamento moral, faz a diferença. (Conto Sandra).
muitas vezes, houve associações diretas, com
muita carga negativa, entre sexualidade, orien- E foi legal conhecer um ativista, abriu a minha mente.
tação sexual e HIV: Via aquela loucura dele lutando pela vida das pessoas
com HIV; meu lugar era aquele. (Conto José).
Para piorar, todo mundo ficou sabendo sobre o
diagnóstico de um rapaz da faculdade: positivo para Ao longo de seis anos, Jean esteve envolvido com
o HIV. E o rapaz acabou abandonando o curso. Não diversos movimentos sociais, inclusive o indígena, e
viajou, conheceu muitas pessoas e realidades dife- Como a maioria das entrevistas tinha sido feita
rentes. Entendeu que precisava dar outro significado on-line com vídeo, mas com gravação somente
a suas experiências para tentar construir uma cami- do áudio, já havia o registro observacional de
nhada política, com questões trabalhadas de uma muitos elementos não verbais associados a cada
forma mais integral, pensando no racismo, no direito à detalhe: olhos cheios d’água, pausas e silêncios,
saúde e em como as questões de gênero, sexualidade vozes tremidas, choros, tons de vozes diferentes.
e sorologia são alocadas. (Conto Jean Vinícius). Além disso, o próprio entrevistado também
trazia suas características: uma narrativa mais
O HIV já é parte da minha história hoje. O im- detalhada, histórias engraçadas ou de ativismo,
portante é que isso faz parte da vida, não é uma detalhes específicos, descrição de emoções, re-
sentença de morte. (Conto Alonzo). sistências, catarses etc.
Todos esses elementos verbais e não verbais
das entrevistas eram levados em consideração
para apresentar o personagem central, definir
Textos e gravuras a velocidade da narrativa, bem como sua ex-
tensão e nível de detalhe, para realmente trazer
Para facilitar a leitura, existia a previsão inicial um ‘personagem’ que fornecesse uma ideia do
de que, na medida do possível, os textos de cada caráter abrangente e especial de cada um desses
história não fossem demasiadamente longos, entrevistados, mesmo que sinteticamente em
para não cansar o leitor e instigar outras leituras. algumas páginas. Quanto mais pessoal e deta-
Além do mais, textos curtos poderiam permitir lhada a entrevista, mais subjetivo o texto, para
leituras isoladas ou seguidas. incluir emoções, frases e impressões da entrevista
Da mesma forma, havia a intenção de agregar e dos entrevistados.
valor imagético, ou seja, incluir recursos visuais, Depois da confecção de cada texto, ele era
com o intuito de despertar curiosidade e atenção revisado pelas entrevistadoras, por integrantes
para o livro. Inicialmente, a ideia era que fossem da equipe da ABIA, assim como era passado
feitos bonitos desenhos de cada personagem, ao entrevistado, de forma a corrigir possíveis
também relacionados, de alguma forma, com o erros e até mesmo para adequar orientações do
projeto gráfico do livro. Entretanto, já na busca movimento social, para evitar termos conside-
de ilustradores, ficou clara a opção por uma ilus- rados estigmatizantes. De uma forma geral, os
tradora que representasse os personagens por entrevistados solicitaram poucas revisões, mas
meio de gravuras, dado o potencial imaginativo aqueles que propuseram alterações ou omissões
e subjetivo delas. de conteúdo foram atendidos.
Depois da realização das três primeiras en- Durante esse processo de revisão, houve a pre-
trevistas, a autora dos textos do livro ouviu no- ocupação de utilizar aspas para palavras que são
vamente todas as entrevistas, repetidas vezes, mais estigmatizantes, embora sejam corriquei-
para organizar as narrativas apresentadas, ras na sociedade. Também houve o cuidado de
destacando tópicos esperados na confecção do agregar notas para determinados termos citados,
roteiro da entrevista (como infância, sexuali- relativos a tratamento, expressões e conceitos
dade, faixa etária, tipo de situação vivida etc.), – como PrEP, indetectável, cis –, com o intuito
tópicos trazidos pelos entrevistados (efeitos de esclarecer dúvidas e fornecer informações
colaterais dos remédios, tentativa de suicídio adicionais ao leitor interessado.
etc.) e todas as situações consideradas mar- Para as gravuras, existia a mesma preocupação:
cantes pelos entrevistados, positivas e negati- suscitar diferentes ideias ligadas ao personagem.
vas. Além disso, o método de organização das Por isso, foram realizadas reuniões com a ilus-
entrevistas em tópicos seguiu na composição tradora, para dar detalhes subjetivos e objetivos,
de todos os textos do livro. caracterizando cada personagem e sugerindo
elementos cruciais – de acordo com as entre- Quando todas as histórias estavam redigidas,
vistas: como ser da área da saúde, contador de o texto passou, também, por revisão final pela
histórias etc. Pode-se observar, na figura 1, a capa coordenação do projeto da ABIA e pela revisão
do livro, reunindo as ilustrações dos contos com da Unesco para aprovação técnica.
base em fotografias de acesso aberto.
Figura 1. Capa* do livro ‘E se fosse com você? Histórias vividas de estigma e discriminação em 40 anos de HIV/AIDS’ –
2021
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crime de discriminação dos portadores do vírus da
imunodeficiência humana (HIV) e doentes de aids.
Recebido em 15/03/2022
Diário Oficial da União. 2 Jun 2014. Aprovado em 20/09/2022
Conflitos de interesses: inexistente
Suporte financeiro: Organização das Nações Unidas para a
21. Brasil. Lei nº 14.289, de 03 de janeiro de 2022. Torna Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
obrigatória a preservação do sigilo sobre a condição
Richard Guy Parker1,2, Mónica Franch-Gutiérrez3, Luziana Marques da Fonseca Silva3, Wertton
Luís de Pontes Matias4, Geissy dos Reis Ferreira de Oliveira3, Marcos Castro Carvalho5, Vagner
João Benício de Almeida1
DOI: 10.1590/0103-11042022E720
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 7, P. 277-289, DEZ 2022
278 Parker RG, Franch-Gutiérrez M, Silva LMF, Matias WLP, Oliveira GRF, Carvalho MC, Almeida VJB
sobre essas questões e foi ele quem me incen- pela Vidda que existia no Rio e em São Paulo,
tivou a tornar a Aids uma questão de pesquisa. estivemos em Curitiba, embora não lembre se
Entre 1985 e 1986, quando terminei a tese de chegamos a financiar alguma organização lá. A
doutorado, resolvi levar essa sugestão adiante. gente tinha muito pouco dinheiro, alguns anos
Inicialmente, parti da pesquisa sobre sexuali- conseguíamos uns 50 mil dólares, em outros
dade e gênero no carnaval e escrevi um artigo anos, um pouco mais, esse valor era o mínimo
sobre Aids no Brasil, que foi publicado em 1987, para conseguir algum impacto. Além do in-
no segundo número da nova revista ‘Medical centivo financeiro às ONGs, Peter também
Anthropology Quarterly’. Na sequência, de queria estimular pesquisas sobre Aids nas
1987 a 1988, eu e Vagner resolvemos voltar ciências sociais. Ele tinha contatos com um
para o Brasil, porque Vagner já tinha esgotado grupo no Instituto de Medicina Social [IMS]
todas as possibilidades de renovar o visto de da Uerj: o Sérgio Carrara, que tinha feito mes-
estudante nos Estados Unidos. Eu escrevi um trado com ele, e a Andrea Loyola, com quem
projeto de pesquisa sobre políticas da Aids ele tinha contato na época em que o Peter
e consegui um pequeno financiamento, de trabalhava na Unicamp. Ele me pediu para
cinco a dez mil dólares, da fundação Wenner- facilitar esse projeto, várias conexões foram
Gren, que é a única fundação no mundo que acionadas e eles conseguiram uma bolsa de
só financia pesquisas antropológicas, além recém-doutor para mim, que me permitiu
de uma bolsa de pesquisa da Social Science ficar três anos como professor visitante no
Research Council, uma das principais fontes IMS. A expectativa era de que a Uerj abriria
de apoio para pesquisas nas Ciências Sociais um concurso e eu poderia ser efetivado, o que
nos Estados Unidos. E foi desse modo que, acabou acontecendo. Esse primeiro projeto do
em 1988, voltamos para o Brasil. Eu tinha um IMS foi basicamente composto por antropólo-
visto cultural de um ano para fazer a pesquisa, gos e pelo Jurandir Freire Costa, psicanalista,
mas, de fato, voltamos para ficar, vendemos e tinha também um projeto que financiou um
tudo nos Estados Unidos, e nosso cachorro estudo demográfico, feito pela Elza Berquó e
foi viver com a minha irmã. pelo grupo dela na Unicamp. Esse foi o meu
Aquele foi um momento bastante intenso primeiro núcleo de estudos sociais sobre a
na resposta à epidemia no Brasil. A Abia tinha questão da Aids.
sido criada em 1986 e tinha formalizado seu Nessa época, como a Aids estava explodin-
estatuto em 1987. O Peter Fry, que também era do e não tinha muitas respostas organizadas,
antropólogo e gay, portanto, com um interesse eu acabei me envolvendo em vários projetos.
muito forte na epidemia, estava atuando como Durante dois anos, fiquei praticamente na
representante no Brasil da Fundação Ford, que ponte aérea Rio-Genebra, pois a Organização
tinha começado a se preocupar com o tema. Mundial da Saúde [OMS] tinha criado o
O Peter tinha conseguido financiamento da Programa Global de Aids em Genebra. Eu
Ford para a Abia e estava interessado em criar trabalhava na unidade sobre pesquisa social
um programa sobre Aids, não um programa e comportamental, no incentivo a projetos e
formal, porque isso ainda não era possível, atividades de pesquisa qualitativa, porque eles
mas uma linha que permitisse financiar as tinham várias pesquisas quantitativas sobre
primeiras atividades das ONGs/Aids a partir comportamento sexual, mas queriam conhecer
dos outros programas existentes, como educa- as dimensões culturais da epidemia. Assim,
ção e raça. Peter me contratou como consultor além do meu trabalho na Uerj, viajava com
para ajudar a organizar esses financiamentos, regularidade para Genebra, onde também fiz
e eu passei alguns anos conseguindo recursos alguns estágios mais longos, de alguns meses.
para os Gapa em diferentes lugares, no Ceará, Era uma época muito interessante, embora
no Rio Grande do Sul, financiamos o Grupo muito incipiente, pois não havia nenhum
centro de pesquisa especializado em Aids. Então, no começo dos anos 1990, realmente
Na falta de uma iniciativa institucionalizada, as coisas explodiram de uma maneira muito
criou-se uma rede transnacional de pesqui- intensa no Brasil. As ONGs começaram a
sadores em Aids. Como sempre acontece, era ficar muito mobilizadas e críticas porque
mais difícil mobilizar pesquisadores em países a resposta do governo brasileiro à Aids era
do sul, os países mais industrializados tinham muito ruim, especialmente no governo Collor,
mais recursos e, portanto, tinham uma resposta embora no governo Sarney também tivesse
mais rápida. O Brasil, entretanto, foi pioneiro sido bem complicada. O Ministro de Saúde
nessa mobilização. O trabalho que o Peter Fry de Collor, Alceni Guerra, deu uma resposta
implementou na Fundação Ford, no qual eu à epidemia extremamente preconceituosa,
trabalhei, foi o primeiro financiamento para estigmatizante, com umas campanhas que
ONGs/Aids que a Ford fez em qualquer lugar, a gente chamava de terroristas, do tipo ‘Se
depois é que formalizaram iniciativas seme- você não se cuidar, a Aids vai te pegar’. E na
lhantes em Nova Iorque e em outros países. mobilização da sociedade civil para a saída de
E, no começo dos anos 1990, o campo explo- Collor, puxada pelo Movimento pela Ética na
diu de um jeito que é até difícil de descrever; Política, um dos articuladores mais importan-
poderíamos ficar aqui horas só falando sobre tes foi o Betinho. Foi ele quem subiu a rampa
isso. Foi um período muito intenso. do Congresso com a carta da sociedade civil
em mãos pedindo o impedimento de Collor. Foi
Marcos – Só uma pergunta, essa questão da um momento bastante emocionante porque
temporalidade, você começa a se inserir na OMS o Betinho estava muito frágil fisicamente e a
em que ano? figura dele subindo a rampa, fazendo a longa
marcha na Esplanada dos Ministérios, na sua
Richard – Em 1987 eu começo a publicar fragilidade, foi comovente. Voltando à questão
sobre Aids, em 1988 eu volto para o Brasil, e da Aids, graças à articulação do movimento, o
em 1988, começo esse trabalho, tanto com a Alcenir Guerra foi demitido, e quem assumiu
Ford no Rio quanto com a OMS em Genebra. o Ministério da Saúde foi o Adib Jatene, que
Eu só fiquei em Genebra até 1990, quando era do partido conservador, o então PFL, mas
ocorreu uma briga política muito forte entre era um homem um pouco mais esclarecido. Ele
o primeiro diretor do programa, Jonathan continuou no Ministério depois de Collor sair,
Mann, e a direção da OMS. Jonathan Mann já com Itamar Franco como presidente. Jatene
era epidemiologista, mas tinha uma visão restabeleceu o Programa de Aids, chamou o
muito progressista, acreditava que a ideia primeiro diretor de volta, o Lair Guerra, e
dos Direitos Humanos poderia revolucionar convidou uma série de pessoas com desta-
o trabalho com Aids. Por causa das suas ideias, que nacional naquela época. Paulo Teixeira,
acabou brigando com a direção da OMS e se que tinha dirigido o programa em São Paulo,
viu forçado a pedir demissão. No tempo em foi chamado para liderar a sociedade civil,
que o Jonathan esteve à frente do Programa, Celso Ramos do Rio de Janeiro também foi
ele chamou muitas pessoas das comunidades chamado, e eu fui convidado para chefiar a
mais afetadas pela epidemia para trabalhar unidade de prevenção. Esse foi um momento
com ele, ativistas de trabalhadores do sexo, importante porque realmente reestruturou o
homens gays, ex-usuários de drogas. Todas Programa de Aids, começou a transformar um
essas pessoas foram expulsas quando Jonathan programa estigmatizante em um programa
se demitiu. Levou um bom tempo até a OMS com base na perspectiva de direitos humanos,
reabrir as portas para as pessoas não tão um quadro conceitual que viria a ser aprofun-
desejáveis que tinham trabalhado naqueles dado posteriormente para renovar as políticas.
primeiros tempos. Esse período marca o começo do que seria a
resposta mais positiva que o Brasil conseguiu Outro aspecto sobre o qual tenho escrito, e
desenvolver ao longo dos anos 1990 e nos anos que vale a pena retomar aqui, é que o advento
2000. Na atual década, esses avanços estão da Aids aconteceu no Brasil em um momento
sendo minados, mas durante uns 20 anos, o histórico único, em plena abertura democráti-
Programa Nacional de Aids brasileiro foi um ca depois de 20 anos de ditadura. As pessoas
programa de bastante sucesso. que tinham sido importantes em mobilizar a
Eu percebi rapidamente que não tinha sociedade civil na resistência ante a ditadura
talento para operar dentro do Estado e saí foram as primeiras a se organizar no campo
do Ministério da Saúde em 1992, no mesmo da Aids, tanto na sociedade civil quanto no
ano em que Herbert Daniel morreu. Naquele Estado. Tinha a nata do movimento sanitá-
tempo, eu já havia feito um trabalho com a rio, que fez resistência ao longo da ditadura,
Abia nos bastidores, e com a morte do Daniel, o pessoas como Paulo Teixeira, que assumiu
Betinho me chamou para assumir uma parte da o programa estadual de Aids em São Paulo
direção da Abia. De 1992 a 1995, eu fiquei como no governo Montoro Franco, quando havia
coordenador geral da Abia, atuando efetiva- eleições diretas para os estados, mas ainda
mente como diretor executivo. Em 1995, entrei não nacionalmente. As pessoas envolvidas
no Conselho da Abia, como secretário geral. na resposta diante da epidemia viviam inten-
Em 1997, Betinho morreu, e na seguinte eleição samente o movimento de redemocratização.
interna, em 1998, eu entrei como presidente Por isso, costumo dizer que foi um acidente
da Abia, e continuo até hoje. Nesse período, a histórico que deu certo, no sentido de que
partir de 1991 e 1992, atuei simultaneamente havia no Brasil uma base política para pensar
em duas frentes: por um lado, construí minha uma resposta progressista perante a epide-
carreira acadêmica como pesquisador sobre mia. Levou algum tempo ainda para que esse
sexualidade, gênero e sobre Aids, por outro movimento chegasse até o governo federal,
lado, trabalhei no ativismo mais direto na Abia. porque ainda tinha Sarney, eleição indireta
Até acho que essa foi uma maneira de manter para Presidente, o movimento das ‘Diretas
minha sanidade mental; eram tempos ruins Já’ falhou, mas nos estados havia muita coisa
antes de existir qualquer medicamento, as positiva acontecendo. Depois do fracasso do
pessoas morriam com rapidez e de manei- governo Collor e do período de Itamar, final-
ras muito violentas, com muito sofrimento. mente a mudança chegou ao governo federal,
Então, eu continuava fazendo algumas pesqui- com a eleição de Fernando Henrique Cardoso,
sas sobre sexualidade que não tinham nada a uma eleição direta de alguém que, embora a
ver com Aids como uma maneira de escapar gente possa criticar pelo seu alinhamento à
da face mais dura da epidemia. Também me política neoliberal, tinha um compromisso
envolvi em projetos relacionados às políticas profundo com a democracia. O PSDB trouxe
de Aids, em que conseguíamos juntar ativismo uma série de pessoas, como o José Serra no
e pesquisa de uma maneira que deu muito Ministério da Saúde, que tinham trajetórias
certo. A Abia e o IMS fizeram parcerias ótimas importantes, e que ajudaram bastante na or-
que resultaram em livros, como ‘A Aids no ganização da política de Aids. Foi um período
Brasil’3 e ‘Quebrando o silêncio’4, ambos pu- muito interessante, em que foram estimula-
blicados pela extinta Relume-Dumará, uma das parcerias entre ONGs, sociedade civil e
editora do Rio que abria muito espaço para o academia, uma das características históricas
pensamento progressista. Eu penso que a par- da resposta brasileira à Aids. Muito do que a
ceria academia/ONG, como a que nós fizemos, gente conseguiu nesse tempo teve a ver com
foi um empreendimento muito positivo e que esse diálogo intersetorial. E eu acho que Abia
caracteriza o que eu chamaria de época de fez isso bem, convocando acadêmicos, lideran-
ouro da resposta ante a epidemia no Brasil. ças da sociedade civil, gestores, pessoas dos
disso, e o poder biomédico reagiu em direção em certas direções. Por exemplo, depois de
à busca de soluções simples, que poderiam ser 2005, ficou muito difícil conseguir recursos
‘vendidas’, quase como slogans publicitários: internacionais de pesquisa para questões
Testar e Tratar, Tratamento como Prevenção... sociais. Todos os recursos se voltam às novas
Essas tecnologias são apresentadas à socieda- tecnologias de prevenção, que são biomédicas.
de como ditados que poderiam se usar para Recursos para fazer o tipo de pesquisa que eu
vender detergente! De certa forma, muitos historicamente fiz, sobre políticas de respos-
atores do campo biomédico se convenceram ta à epidemia, somem quase por completo.
de que as pessoas não mudariam seu compor- Nós ainda conseguimos financiamento para
tamento e que somente super-heróis de jaleco uma pesquisa grande, de 2005 a 2010, sobre
branco poderiam resolver as coisas. E a história respostas religiosas à Aids, abordando as dife-
da Aids mostra que não é com super-heróis e rentes tradições religiosas: catolicismo, igrejas
balas mágicas que se enfrenta uma epidemia. evangélicas, religiões afro-brasileiras. Foi uma
pesquisa multicêntrica em colaboração com
Marcos – Muito legal isso que você colocou, do diversos pesquisadores: Fernando Seffner em
contraponto das ciências sociais a um ponto de Porto Alegre, Vera Paiva em São Paulo, Felipe
vista exclusivamente biomédico; mas, na sua Rios em Recife, Veriano Terto e o pessoal da
fala mesmo, você aponta que existiu também Abia no Rio de Janeiro. Esse tipo de pesquisa
uma cooperação naquele momento entre epi- que conseguimos financiar entre 2005 e 2010,
demiologistas, outros profissionais e antropó- com recursos do NICHD – National Institute
logos, no campo da saúde coletiva, incluindo of Child Health and Human Development, não
as ciências sociais, humanas e da saúde. Você é o tipo de pesquisa que hoje seria visto como
vê isso mudando? Porque o ponto de vista epi- interessante para os financiadores. Então a
demiológico não é um ponto de vista exclusi- onda foi realmente nessa direção das tecno-
vamente biológico, ele leva em consideração logias biomédicas que eventualmente podem
determinantes sociais. ser utilizadas para tentar responder à epide-
mia como se o problema fosse simplesmente
Richard – Claro! A epidemiologia no Brasil uma questão farmacêutica. Nisso realmente
e na América Latina tem essa perspectiva de o mundo mudou; e nós, das ciências sociais,
maneira mais marcante do que em alguns estamos na contramão da tendência atual.
outros lugares. De fato, diferentes países, di-
ferentes culturas, têm diferentes tradições, até Mónica – Pensando ainda sobre essa tendên-
dentro da saúde pública. Na África do Sul, por cia atual que você menciona, queria trazer um
exemplo, a epidemiologia é vista como uma pouco de nossa experiência e colocar uma
aliada na luta contra o apartheid, quase todos questão para continuar a conversa. O primeiro
os epidemiologistas foram ligados ao partido financiamento no Grupessc foi em 2007, para
comunista, que se alinhou contra o apartheid. uma pesquisa sobre casais sorodiscordantes,
No Brasil, tem a tradição da epidemiologia em que abordamos conjugalidade, sexualidade,
social, que é também muito forte. Já nos vulnerabilidade, risco, estigma, enfim, um leque
Estados Unidos e na maior parte dos países da de questões sociais sobre o viver e o conviver
Europa, essa tradição é bem menos marcada, a com HIV. Quase uma década depois, em 2015,
influência da biomedicina é maior, embora seja tivemos a oportunidade de acompanhar o X
possível encontrar pessoas adeptas a uma visão Congresso Nacional de HIV/Aids, que foi reali-
social da epidemiologia. Então, os campos zado aqui, em João Pessoa. Na ocasião, lembro
do saber não mapeiam o mundo de forma to- que nos surpreendeu muito o clima de ufanismo
talmente igual, mas, por outro lado, há pro- em torno da estratégia 90/90/90 e a ênfase
cessos políticos globalizados que pressionam no discurso sobre o ‘fim da Aids’. Parecia existir
uma confiança enorme no potencial dos avanços como se não se tratasse de um processo social
tecnológicos para superar qualquer barreira. E aí mais abrangente.
eu pergunto para você, por que você acha que Recentemente, nós temos falado muito
as ciências sociais desconfiam desse discurso? sobre isso na Abia, sobretudo a partir das expe-
O que faz com que a gente se situe, como você riências trazidas pelas pessoas da equipe mais
apontou, na contramão dessa tendência? diretamente envolvidas com os serviços, como
o Juan Carlos Raxach, um médico cubano
Richard – Basicamente, esse discurso é que veio para o Brasil nos anos 1990. Por ser
construído como se as diferenças sociais, eco- médico, ele trabalha muito com as pessoas
nômicas, políticas não existissem. A estratégia que estão em tratamento, e ele faz a seguin-
90/90/90, a cascata de cuidados, esses cons- te análise: no Brasil, temos acesso universal
tructos biomédicos são feitos quase sempre aos medicamentos, o que é superpositivo; e
a partir da experiência dos Estados Unidos e graças a esse acesso, temos menos casos de
dali aplicados como uma receita pronta para os Aids, mas estamos tendo mais infecções pelo
demais países. São descrições do que acontece HIV e, também, temos mais pessoas que não
em lugares desenvolvidos e ricos, onde muitas conseguem seguir a cascata, que não conse-
barreiras e impedimentos socioeconômicos guem se encaixar no 90/90/90 e, portanto,
não existem ou existem de uma forma diferen- estão morrendo. Essa morte é tratada como
te ao que ocorre em outros contextos, e depois falta de adesão do indivíduo, não como uma
são transformadas em modelos, passando de falta de acolhimento desse indivíduo pelo
descrições empíricas da realidade a políticas sistema. E quando falo sistema, refiro-me ao
públicas que deveriam ser implementadas preconceito, ao estigma que ainda existe nos
em outros países, mesmo quando as condi- serviços de saúde; é a falta de preocupação com
ções sejam extremamente diferentes. Então, o HIV, o julgamento das pessoas nos serviços
quando se transporta a cascata de cuidados que deveriam acolher, mas que são estigmati-
para um país como o Brasil, com um sistema de zantes, discriminatórios. No caso da PEP, no
saúde que funciona de uma maneira precária, Rio, é muito difícil conseguir informação, as
com os serviços muito menos estruturados pessoas não sabem o que é PEP, não sabem
para acolher as pessoas, o modelo não dá certo. te encaminhar, e quando a pessoa consegue
E como a biomedicina entende essa situação? finalmente achar um serviço que oferte a PEP,
Como um ‘treatment failure’, fracasso de tra- depois de muitas barreiras, é tratada como
tamento, ou seja, as pessoas são tratadas como alguém que fez alguma coisa errada. Depois
fracassadas porque elas não conseguem desen- de enfrentar esse tratamento estigmatizante
volver o seu tratamento de uma maneira que uma, duas, três vezes, as pessoas resolvem que
se encaixe no modelo elaborado nos Estados não vão mais procurar o serviço.
Unidos e transportado para o Brasil, ou para
a África do Sul, ou para outros países que têm Vagner – Trazendo essa reflexão para meu
condições e sistemas de saúde profundamente trabalho, gostaria de dar uma contribuição à
diferentes daquele do modelo. É uma forma nossa discussão. Eu trabalho diretamente com
de individualizar situações sociais, como se jovens em situação de extrema vulnerabilidade,
aquele indivíduo em particular não fizesse estrutural principalmente. E o que acontece
as coisas direito, como se ser aderente de- na prática é que, embora existam essas novas
pendesse apenas de sua vontade, não foi o seu tecnologias disponíveis e gratuitas – PrEP, PEP,
médico que fracassou, não foi o sistema de antirretrovirais –, os jovens com os quais eu
saúde que fracassou. Esse tipo de raciocínio trabalho não dão importância a elas porque
parte de uma perspectiva neoliberal, que joga a precisam enfrentar outras vulnerabilidades,
responsabilidade e a culpa sobre os indivíduos, como a violência estrutural, o desemprego, a
surgiram das comunidades afetadas. Essas me- não a sífilis, que está crescendo de uma maneira
todologias foram eficazes justamente porque assustadora. A gente tem escutado bastantes
faziam sentido para essas comunidades. As relatos de médicos nos serviços que não sabem
coisas mudaram quando especialistas em saúde discutir a PrEP, e que não têm nenhum interesse
pública, os experts em Aids, apropriaram-se em saber.
dessas metodologias e as transformaram em
intervenções tecnocráticas, arrancadas das Richard – E na atual situação, são os
comunidades. Nesse sentido, eu argumento médicos que fazem a triagem para escolher
que precisamos de um grande retorno para quem merece, quem precisa da PrEP. Não
as comunidades afetadas, trabalhar com elas, tem como as pessoas serem sujeitos de direito
para definir uma pedagogia da prevenção que dentro de um sistema organizado desse modo.
faça sentido na vida dessas pessoas. O perigo é As pessoas são tratadas como meros objetos do
tratar essas tecnologias como uma receita de poder médico, elas não escolhem. Eu entendo
bolo que um expert prescreve e que somente que essa limitação é dada porque os recursos
é preciso seguir todos os passos para que dê não são suficientes para ofertar a quantida-
certo. É isso que está acontecendo com a PrEP, de necessária, mas quando se estrutura um
que está sendo positiva para uma faixa muito sistema desse jeito, o problema é o sistema,
específica e pequena da população: pessoas não são as pessoas. E com isso, voltamos à
razoavelmente escolarizadas, com recursos questão sobre a contribuição da pesquisa an-
razoáveis, que conseguem minimamente tropológica para o campo da Aids. Eu penso
dominar o sistema, acessar e utilizar a PrEP. que o papel da antropologia em traduzir
Para os gays e homens que fazem sexo com sistemas culturais e conhecimentos é muito
homens mais pobres, mais marginalizados e importante neste momento. Clifford Geertz,
afetados por opressões, para as mulheres, para um antropólogo muito conhecido, que nunca
as travestis, para as trans, enfim, para todo trabalhou sobre medicina, muito menos sobre
esse conjunto que não é uma pequena faixa HIV e Aids, defendia que o exercício da an-
razoavelmente empoderada, a PrEP não está tropologia consiste na tradução de conceitos
funcionando, não está sendo acessada, não próximos da experiência das pessoas para os
está sendo seguida. Há problemas de adesão conceitos e a linguagem mais distanciados
que são absolutamente previsíveis se a opção das ciências sociais, usando esse percurso
pedagógica for por uma pedagogia bancária, na como uma maneira de oferecer uma melhor
linguagem de Paulo Freire, que trata as pessoas compreensão da experiência das pessoas em
como deficitárias de informação. seus contextos de vida. Nesse sentido, a an-
tropologia pode contribuir com o momento
Vagner – Além disso tudo, os técnicos nos ser- atual levando a sério a experiência das co-
viços não sabem trabalhar com a PrEP. O que munidades mais vulneráveis, entendendo
nós temos observado na nossa prática é que o mundo delas, para ajudar a desenvolver
os médicos têm um conhecimento muito raso trabalhos pedagógicos que falem mais ade-
dessas tecnologias e estabelecem um julgamen- quadamente com elas. Esse é um papel que
to moral sobre as pessoas que procuram a PrEP. a antropologia assumiu desde o começo da
Eles enxergam essas pessoas como sendo pro- epidemia, mas que, neste momento, poucas
míscuas e pensam que o governo está pagando pessoas continuam levando adiante. A Aids,
por uma promiscuidade que eles condenam definitivamente, saiu do cenário de priorida-
moralmente. Eles não discutem o HIV com des. Há trabalhos importantes sendo feitos
os usuários, não discutem outras [Infecções sobre gênero e sexualidade, que poderiam ser
Sexualmente Transmissíveis] IST, não informam ampliados para a saúde sexual e que, certa-
que a PrEP bloqueia a infecção pelo HIV, mas mente, dariam resultados práticos excelentes.
Geissy – A gente está fazendo pesquisa em um indetectável, posso transar sem camisinha?”. Por
serviço de atendimento especializado aqui em mais que você explique isso tecnicamente, que
João Pessoa, e eu, especificamente, discuto a você encaminhe material escrito, as pessoas
questão do TcP, do Tratamento como Prevenção. ainda têm uma imensa desconfiança. Se dentro
O que temos percebido é que, no serviço, o TcP do próprio meio tem desconfiança, quanto mais
não existe, os funcionários não fazem referência entre as equipes nos serviços, que não estão
a essa forma de prevenção. O TcP está no pro- inseridas em redes que tratem desse assunto!
tocolo do Ministério da Saúde, os funcionários A decisão de não usar camisinha passa por
conhecem a informação de que a pessoa com a outros lugares, passa pelo amor, pela paixão,
carga viral indetectável não transmite (embora pelo momento. Na hora de transar, você até pode
tenham suas ressalvas em relação a isso), mas saber dos riscos, mas você arrisca. A reflexão
elas não partilham essa informação com os vem depois, e nessa hora, cadê a informação
usuários. A gente entende que democratizar para ir procurar uma PEP, por exemplo?
essa informação é totalmente necessário para
que a pessoa possa acessar sua identidade de Richard – No Rio e em muitos outros
intransmissível, ressignificar sua condição de lugares, o que estamos assistindo é que o
pessoa vivendo com HIV, lidar melhor com o sistema que foi criado para lidar com o HIV
estigma e, no fim, ter uma vida melhor. O que está sendo desmantelado de uma forma
você pensa disso? trágica em todos os níveis: municipal, esta-
dual e federal. Às vezes, naquele lugar onde
Richard – Eu acho que você tem toda existia um serviço já não tem mais. Esta é a
razão sobre a falta de conhecimento do TcP outra realidade do nosso tempo: temos mais
no serviço. É uma das áreas menos pesqui- ferramentas hoje em dia do que em qualquer
sadas neste momento. Durante o último outro momento da epidemia que poderiam ser
ano, eu e mais quatro colegas de diferentes usadas para enfrentar o HIV de forma eficaz,
países fizemos um levantamento sobre pre- mas, ao mesmo tempo, há um conservadoris-
venção biomédica para um livro que estamos mo terrível, muitas vezes vinculado a valores
organizando sobre o assunto. Queríamos religiosos que nos levam de volta aos anos 1980,
incluir PrEP, TcP, I=I (Indetectável = e um desmonte das políticas e dos serviços
Intransmissível), e procuramos no mundo voltados ao HIV e à Aids. O bem-sucedido
inteiro pessoas para contribuir. Encontramos Programa Nacional de Aids agora faz parte de
muitas pesquisas interessantes sobre PrEP, um departamento de doenças crônicas. Essa é
mas não conseguimos quase nada sobre TcP, uma situação bastante grave que mostra como
sobre como o TcP está sendo vivido pelas as questões de sexualidade, de gênero, Aids,
pessoas no serviço. Também não encontra- saúde sexual se veem afetadas por conjuntu-
mos muitas pesquisas sobre I=I. É preciso ras políticas macro, que precisamos enfrentar
conhecer melhor essas dinâmicas e mostrar para preservar o que foi construído ao longo
como e por que ocorre essa falta de comuni- de 30 anos. O mais terrível disso tudo é que
cação, de diálogo, esses desencontros entre é preciso muito tempo para construir, mas
os pacientes e os profissionais, não apenas os é muito fácil e rápido desmontar o que foi
médicos, mas toda a equipe dos serviços de construído. Estou falando de um desmonte
saúde. Documentar o que está acontecendo que começou no governo Dilma, foi aprofun-
é fundamental para pensar melhor como tra- dado no governo Temer e hoje, no governo
balhar com o TcP. Bolsonaro, está avançando de maneira mais
rápida e intensa. E o que fazer com isso? Esse
Vagner – Eu faço parte de muitas redes de jovens, é um dilema para o qual nenhum de nós tem
e todo dia tem essa pergunta: “meu parceiro está a solução. Entendemos que a situação atual é
muito ruim, sabemos que temos pela frente entendemos também que são os princípios
uma longa luta de resistência e que precisamos ético-políticos que possibilitam avançar. Nesse
eleger novos governos que tentem reconstruir sentido, a solidariedade foi o ponto de partida
o que foi destruído. diante da epidemia desde o começo, e eu penso
que ainda continua sendo. Sem solidariedade,
Marcos – Vocês falaram da resistência, e isso a gente não vai para lugar nenhum; e eu acho
me lembrou que, nos anos 1980, um mote muito que o nosso dilema no momento é justamente
importante para a mobilização social em torno que as nossas lideranças políticas, não apenas
da Aids foi o apelo à solidariedade. Fiquei pen- no Brasil, mas também nos Estados Unidos e
sando: qual o papel da solidariedade hoje? outros países, têm o menor grau de solidarie-
dade da história da epidemia. Isso é trágico. A
Richard – Eu acho que a solidariedade hoje falta de solidariedade é o nosso maior inimigo.
tem um papel absolutamente fundamental. O É muito mais perigosa do que a epidemia.
ponto de partida para a solidariedade é a nossa
capacidade de compreender a dor e o sofri-
mento das outras pessoas. Nesse sentido, nosso Colaboradores
progresso moral depende da nossa capacidade
de estender essa compreensão para os outros Parker RG (0000-0003-3796-0198)* contri-
e para as violências que lhes afetam. A solida- buiu para o conteúdo da entrevista, ao res-
riedade implica nos comprometermos com ponder as questões e colaborou com a redação
a obrigação de lutar contra essas violências, final do texto. Franch-Gutiérrez M (0000-
mesmo que elas não nos afetem diretamente. 0003-3845-3841)* contribuiu para elaboração
Na história da Aids, a solidariedade surgiu das questões, realização da entrevista, edição
em um momento em que não havia nenhum do texto final.
recurso técnico a oferecer, não havia medi- Silva LMF (0000-0002-6596-2636)* contri-
camentos, nada que a medicina pudesse dar. buiu para elaboração das questões, realização
Diante disso, a solidariedade emergiu de uma da entrevista, edição do texto final. Matias WLP
maneira muito forte no pensamento de pessoas (0000-0002-9922-5925)* contribuiu para re-
como Herbert Daniel e Betinho. Inclusive, o alização e transcrição da entrevista, escrita da
Betinho falava da solidariedade como a única introdução. Oliveira GRF (0000-0002-0198-
vacina disponível ante o HIV, e eu penso que 1555)* contribuiu para elaboração das questões
essa analogia ainda vale para os dias de hoje. e transcrição do áudio. Carvalho MC (0000-
Atualmente, temos mais recursos técnicos 0002-4407-9190)* contribuiu para elaboração
do que tínhamos, mas a opressão não tem das questões, realização da entrevista, edição
remédio técnico, tem remédio ético-político. do texto final. Almeida VJB (0000-0002-9527-
Se entendemos os determinantes políticos, 4930)* contribuiu para o conteúdo da entrevis-
sociais, econômicos e culturais da opressão, ta, ao responder questões. s
Referências
1. Associação Brasileira Interdisciplinar de Políticas de 4. Parker RG, Galvão J. Quebrando o silêncio: mulhe-
Aids. Sobre nós. Rio de Janeiro: ABIA; [s.d.]. [aces- res e AIDS no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Duma-
so em 2022 mar 24]. Disponível em: https://abiaids. rá; 1996.
org.br/sobre.
Recebido em 10/05/2022
2. Parker RG. Within four walls: the cultural construc- Aprovado em 24/08/2022
Conflito de interesses: inexistente
tion of sexual meanings in contemporary Brazil. [tese].
Suporte financeiro: não houve
Berkeley: University of California System; 1988. 596 p.
A periodicidade da revista é trimestral, e, a critério dos editores, Antes de serem enviados para avaliação pelos pares, os artigos
são publicados números especiais que seguem o mesmo proces- submetidos à revista ‘Saúde em Debate’ passam por softwares de-
so de submissão e avaliação dos números regulares. tectores de plágio. Assim, é possível que os autores sejam ques-
tionados sobre informações identificadas pela ferramenta para
A ‘Saúde em Debate’ aceita trabalhos originais e inéditos que que garantam a originalidade dos manuscritos, referenciando
aportem contribuições relevantes para o conhecimento científico todas as fontes de pesquisa utilizadas. O plágio é um comporta-
acumulado na área. mento editorial inaceitável, dessa forma, caso seja comprovada
sua existência, os autores envolvidos não poderão submeter no-
A revista conta com um Conselho Editorial que contribui para a de- vos artigos para a revista.
finição de sua política editorial. Seus membros integram o Comitê
Editorial e/ou o banco de pareceristas em suas áreas específicas. NOTA: A produção editorial do Cebes é resultado de apoios insti-
tucionais e individuais. A sua colaboração para que a revista ‘Saú-
Os trabalhos submetidos à revista são de total e exclusiva respon- de em Debate’ continue sendo um espaço democrático de divul-
sabilidade dos autores e não podem ser apresentados simultane- gação de conhecimentos críticos no campo da saúde se dará por
amente a outro periódico, na íntegra ou parcialmente. meio da associação dos autores ao Cebes. Para se associar, entre
no site http://www.cebes.org.br.
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direitos autorais a ele referentes se tornarão propriedade da revis- ORIENTAÇÕES PARA A PREPARAÇÃO E SUBMISSÃO
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tivecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt) e a política de acesso
aberto, portanto, os textos estão disponíveis para que qualquer Os trabalhos devem ser submetidos pelo site: www.saudeemdebate.
pessoa leia, baixe, copie, imprima, compartilhe, reutilize e distribua, org.br. Após seu cadastramento, o autor responsável pela submissão
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permissão é necessária por parte dos autores ou dos editores.
Modalidades de textos aceitos para publicação
A ‘Saúde em Debate’ aceita artigos em preprints de bases de dados
nacionais e internacionais reconhecidas academicamente como o
SciELO preprints (https://preprints.scielo.org). Não é obrigatória a 1. Artigo original: resultado de investigação empírica que pos-
submissão do artigo em preprint e isso não impede a submissão sa ser generalizado ou replicado. O texto deve conter no máxi-
concomitante à revista ‘Saúde em Debate’. mo 6.000 palavras.
A revista adota as ‘Normas para apresentação de artigos pro- 2. Ensaio: análise crítica sobre tema específico de relevância e
postos para publicação em revistas médicas’ – International interesse para a conjuntura das políticas de saúde brasileira e/ou
Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), ‘Princípios de internacional. O texto deve conter no máximo 7.000 palavras.
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Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos
3. Revisão sistemática ou integrativa: revisões críticas da lite- resultados etc.), citações ou siglas, à exceção de abreviaturas re-
ratura sobre tema atual da saúde. A revisão sistemática sinte- conhecidas internacionalmente.
tiza rigorosamente pesquisas relacionadas com uma questão.
A integrativa fornece informações mais amplas sobre o assun- Palavras-chave: ao final do resumo, incluir de três a cinco pala-
to. O texto deve conter no máximo 8.000 palavras. vras-chave, separadas por ponto (apenas a primeira inicial maiús-
cula), utilizando os termos apresentados no vocabulário estrutu-
4. Artigo de opinião: exclusivo para autores convidados pelo rado (DeCS), disponíveis em: www.decs.bvs.br.
Comitê Editorial, com tamanho máximo de 7.000 palavras.
Neste formato, não são exigidos resumo e abstract. Registro de ensaios clínicos: a ‘Saúde em Debate’ apoia as políticas
para registro de ensaios clínicos da Organização Mundial da Saú-
5. Relato de experiência: descrição de experiências acadêmi- de (OMS) e do International Committee of Medical Journal Editors
cas, assistenciais ou de extensão, com até 5.000 palavras que (ICMJE), reconhecendo, assim, sua importância para o registro e di-
aportem contribuições significativas para a área. vulgação internacional de informações sobre ensaios clínicos. Nesse
sentido, as pesquisas clínicas devem conter o número de identificação
6. Resenha: resenhas de livros de interesse para a área da saú- em um dos registros de ensaios clínicos validados pela OMS e ICMJE,
de coletiva, a critério do Comitê Editorial. Os textos deverão cujos endereços estão disponíveis em: http://www.icmje.org. Nestes
apresentar uma visão geral do conteúdo da obra, de seus pres- casos, o número de identificação deverá constar ao final do resumo.
supostos teóricos e do público a que se dirige, com tamanho
de até 1.200 palavras. A capa em alta resolução deve ser en- Ética em pesquisas envolvendo seres humanos: a publicação de
viada pelo sistema da revista. artigos com resultados de pesquisas envolvendo seres humanos
está condicionada ao cumprimento dos princípios éticos contidos
7. Documento e depoimento: trabalhos referentes a temas na Declaração de Helsinki, de 1964, reformulada em 1975, 1983,
de interesse histórico ou conjuntural, a critério do Comitê 1989, 1996, 2000 e 2008, da Associação Médica Mundial; além
Editorial. de atender às legislações específicas do país no qual a pesquisa foi
realizada, quando houver. Os artigos com pesquisas que envolve-
Importante: em todos os casos, o número máximo de palavras ram seres humanos deverão deixar claro, no último parágrafo, na
inclui o corpo do artigo e as referências. Não inclui título, resumo, seção de ‘Material e métodos’, o cumprimento dos princípios éticos
palavras-chave, tabelas, quadros, figuras e gráficos. e encaminhar declaração de responsabilidade no ato de submissão.
Título: que expresse clara e sucintamente o conteúdo do texto, Conclusões ou considerações finais: que depende do tipo de
contendo, no máximo, 15 palavras. O título deve ser escrito em pesquisa realizada;
negrito, apenas com iniciais maiúsculas para nomes próprios. O
texto em português e espanhol deve ter título na língua original e Referências: devem constar somente autores citados no texto
em inglês. O texto em inglês deve ter título em inglês e português. e seguir os Requisitos Uniformes de Manuscritos Submetidos a
Revistas Biomédicas, do ICMJE, utilizados para a preparação de
Resumo: em português e inglês ou em espanhol e inglês com, referências (conhecidos como ‘Estilo de Vancouver’). Para maio-
no máximo 200 palavras, no qual fiquem claros os objetivos, o res esclarecimentos, recomendamos consultar o Manual de Nor-
método empregado e as principais conclusões do trabalho. Deve malização de Referências (http://revista.saudeemdebate.org.br/
ser não estruturado, sem empregar tópicos (introdução, métodos, public/manualvancouver.pdf) elaborado pela editoria do Cebes.
SAÚDE DEBATE
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos
A revista não utiliza sublinhados e negritos como grifo. Utilizar Todo original recebido pela revista ‘Saúde em Debate’ é subme-
aspas simples para chamar a atenção de expressões ou títulos de tido à análise prévia. Os trabalhos não conformes às normas de
obras. Exemplos: ‘porta de entrada’; ‘Saúde em Debate’. Palavras publicação da revista são devolvidos aos autores para adequação
em outros idiomas devem ser escritas em itálico, com exceção de e nova submissão.
nomes próprios.
Uma vez cumpridas integralmente as normas da revista, os ori-
Evitar o uso de iniciais maiúsculas no texto, com exceção das ab- ginais são apreciados pelo Comitê Editorial, composto pelo
solutamente necessárias. editor-chefe e por editores associados, que avalia a originalida-
de, abrangência, atualidade e atendimento à política editorial da
Depoimentos de sujeitos deverão ser apresentados em itálico revista. Os trabalhos recomendados pelo Comitê serão avaliados
e entre aspas duplas no corpo do texto (se menores que três por, no mínimo, dois pareceristas, indicados de acordo com o
linhas). Se forem maiores que três linhas, devem ser escritos tema do trabalho e sua expertise, que poderão aprovar, recusar e/
em itálico, sem aspas, destacados do texto, com recuo de 4 ou fazer recomendações de alterações aos autores.
cm, espaço simples e fonte 11.
A avaliação é feita pelo método duplo-cego, isto é, os nomes dos
Não utilizar notas de rodapé no texto. As marcações de notas de autores e dos pareceristas são omitidos durante todo o processo
rodapé, quando absolutamente indispensáveis, deverão ser so- de avaliação. Caso haja divergência de pareceres, o trabalho será
brescritas e sequenciais. encaminhado a um terceiro parecerista. Da mesma forma, o Co-
mitê Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer. Cabe
Evitar repetições de dados ou informações nas diferentes partes aos pareceristas recomendar a aceitação, recusa ou reformulação
que compõem o texto. dos trabalhos. No caso de solicitação de reformulação, os autores
devem devolver o trabalho revisado dentro do prazo estipulado.
Figuras, gráficos, quadros e tabelas devem estar em alta resolução, Não havendo manifestação dos autores no prazo definido, o tra-
em preto e branco ou escala de cinza e submetidos em arquivos balho será excluído do sistema.
separados do texto, um a um, seguindo a ordem que aparecem no
estudo (devem ser numerados e conter título e fonte). No texto, O Comitê Editorial possui plena autoridade para decidir sobre a acei-
apenas identificar o local onde devem ser inseridos. O número de tação final do trabalho, bem como sobre as alterações efetuadas.
figuras, gráficos, quadros ou tabelas deverá ser, no máximo, de cin-
co por texto. O arquivo deve ser editável (não retirado de outros ar- Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois da apro-
quivos) e, quando se tratar de imagens (fotografias, desenhos etc.), vação final do trabalho. Eventuais sugestões de modificações de
deve estar em alta resolução com no mínimo 300 DPI. estrutura ou de conteúdo por parte da editoria da revista serão
previamente acordadas com os autores por meio de comunicação
Em caso de uso de fotos, os sujeitos não podem ser identificados, a por e-mail.
menos que autorizem, por escrito, para fins de divulgação científica.
A versão diagramada (prova de prelo) será enviada, por e-mail,
Informações sobre os autores ao autor responsável pela correspondência para revisão final, que
deverá devolver no prazo estipulado.
A revista aceita, no máximo, sete autores por artigo. As informa-
ções devem ser incluídas apenas no formulário de submissão, OS DOCUMENTOS RELACIONADOS A SEGUIR DEVEM SER
contendo: nome completo, nome abreviado para citações biblio- DIGITALIZADOS E ENVIADOS PELO SISTEMA DA REVISTA
gráficas, instituições de vínculo com até três hierarquias, código NO MOMENTO DO CADASTRO DO ARTIGO.
Orcid (Open Researcher and Contributor ID) e e-mail.
1. Declaração de responsabilidade e cessão de direitos autorais
Financiamento
Todos os autores e coautores devem preencher e assinar a decla-
Os trabalhos científicos, quando financiados, devem identificar ração conforme modelo disponível em: http://revista.saudeemde-
a fonte de financiamento. A revista ‘Saúde em Debate’ atende à bate.org.br/public/declaracao.doc.
Portaria nº 206 de 2018 do Ministério da Educação/Fundação
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/ 2. Parecer de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
Gabinete sobre citação obrigatória da Capes para obras produzi-
das ou publicadas, em qualquer meio, decorrentes de atividades No caso de pesquisas que envolvam seres humanos, realizadas
financiadas total ou parcialmente pela Capes. no Brasil, nos termos da Resolução nº 466, de 12 de dezembro
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Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos
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Instructions to authors for preparation and submission of articles
Saúde em Debate The Journal adopts the ‘Rules for the presentation of papers
submitted for publication in medical journals’ – International
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Transparency and Good Practice in Academic Publications’
UPDATED IN FEBRUARY 2021 recommended by the Committee on Publication Ethics (Cope):
www.publicationethics.org. These recommendations, regarding
the integrity and ethical standards in the research’s development
and the reporting, are avaliable in the URL http://www.icmje.
org/urm_main.html. The portuguese version was published in
Rev Port Clin Geral 1997, 14:159-174. ‘Saúde em Debate’ follows
SCOPE AND EDITORIAL POLICY
the SciELO’s ‘Guide to Good Practices for the Strengthening of
Ethics in Scientific Publishing’: https://wp.scielo.org/wp-content/
The journal ‘Saúde em Debate’ (Health in Debate), created in uploads/Guia-de-Boas-Praticas-para-o-Fortalecimento-da-Etica
1976, is published by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde -na-Publicacao-Cientifica.pdf. Authors are advised to read.
(Cebes) (Brazilian Center for Health Studies), that aims to
disseminate studies, researches and reflections that contribute to
No fees are charged from the authors for the submission or publication
the debate in the collective health field, especially those related
of articles; nevertheless, once the article has been approved for
to issues regarding policy, planning, management, work and
publication, the authors are responsible for the language proofreading
assessment in health. The editors encourage contributions from
(mandatory) and the translation into English (optional), based on a list
different theoretical and methodological perspectives and from
of proofreaders and translators provided by the journal.
various scientific disciplines are valued.
The journal is published on a quarterly basis; the Editors may Before being sent for peer review, articles submitted to the journal
decide on publishing special issues, which will follow the same ‘Saúde em Debate’ undergo plagiarism-detecting softwares
submission and assessment process as the regular issues. Plagiarisma and Copyspider. Thus, it is possible that the authors
are questioned about information identified by the tool to
guarantee the originality of the manuscripts, referencing all the
‘Saúde em Debate’ accepts unpublished and original works that bring
sources of research used. Plagiarism is an unacceptable editorial
relevant contribution to scientific knowledge in the health field.
behavior, so if its existence is proven, the authors involved will not
be able to submit new articles to the journal.
The journal has an Editorial Board that contributes to the definition
of its editorial policy. Its members are part of the Editorial
NOTE: Cebes editorial production is a result of collective work and
Committee and/or the database of referees in their specific areas.
of institutional and individual support. Authors’ contribution for
the continuity of ‘Saúde em Debate’ journal as a democratic space
Authors are entirely and exclusively responsible for the submitted for the dissemination of critical knowledge in the health field shall
manuscripts, which must not be simultaneously submitted to be made by means of association to Cebes. In order to become an
another journal, be it integrally or partially. It is Cebes’ policy to associate, please access http://www.cebes.org.br.
own the copyright of all articles published in the journal.
‘Saúde em Debate’ accepts preprints from national and Types of texts accepted for submission
international databases that are academically recognized, such
as SciELO Preprint (https://preprints.scielo.org). The submission 1. Original article: result of scientific research that may be
of preprints is not mandatory and doing it does not prevent the generalized or replicated. The text should comprise a maximum
concomitant submission to the ‘Saúde em Debate’ journal. of 6,000 words.
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2. Essay: critical analysis on a specific theme relevant and of Abstract: in Portuguese and English or in Spanish and English,
interest to Brazilian and/or international topical health policies. comprising no more than 200 words, clearly outlining the aims,
The text should comprise a maximum of 7,000 words. the method used and the main conclusions of the work. It should
not be structured, without topics (introduction, methods, results
3. Systematic or integrative review: critical review of literature etc.); citations or abbreviations should not be used, except for
on topical theme in health. Systematic review rigorously internationally recognized abbreviations.
synthesises research related to an issue. Integrative review
provides more comprehensive information on the subject. The Keywords: at the end of the abstract, three to five keywords
text should comprise a maximum of 8,000 words. should be included, separated by period (only the first letter in
capital), using terms from the structured vocabulary (DeCS)
4. Opinion article: exclusively for authors invited by the available at www.decs.bvs.br.
Editorial Board. No abstract or summary are required. The text
should comprise a maximum of 7,000 words.
Clinical trial registration: ‘Saúde em Debate’ journal supports
the policies for clinical trial registration of the World Health
5. Case study: description of academic, assistential or extension
Organization (WHO) and the International Committee of Medical
experiences that bring significant contributions to the area. The
Journal Editors (ICMJE), thus recognizing its importance to the
text should comprise a maximum of 5,000 words.
registry and international dissemination of information on clinical
trial. Thus, clinical researches should contain the identification
6. Critical review: review of books on subjects of interest to
number on one of the Clinical Trials registries validated by WHO
the field of public health, by decision of the Editorial Board.
and ICMJE, whose addresses are available at http://www.icmje.
Texts should present an overview of the work, its theoretical
org. Whenever a trial registration number is available, authors
framework and target audience. The text should comprise a
should list it at the end of the abstract.
maximum of 1,200 words. A high resolution cover should be
sent through the journal’s system.
Ethics in research involving human beings: the publication
7. Document and testimony: works referring to themes of of articles with results of research involving human beings is
historical or topical interest, by decision of the Editorial Board. conditional on compliance with the ethical principles contained in
the Declaração de Helsinki, of 1964, reformulated in 1975, 1983,
Important: in all cases, the maximum number of words includes 1989, 1996, 2000 and 2008, of the World Medical Association;
the body of the article and references. It does not include title, besides complying with the specific legislations of the country in
abstract, keywords, tables, charts, figures and graphs. which the research was carried out, when existent. Articles with
research involving human beings should make it clear, in the last
paragraph of the ‘Material and methods’ section, the compliance
Text preparation and submission with ethical principles and send a declaration of responsibility in
the act of submission.
The text may be written in Portuguese, Spanish or English. It
should be typed in Microsoft® Word or compatible software, in The journal respects the authors’ style and creativity regarding
doc or docx format, to be attached in the corresponding field of the text composition; nevertheless, the text must contemplate
the submission form. It must not contain any information that conventional elements, such as:
makes it possible to identify the authors or institutions to which
they are linked. Introduction: with clear definition of the investigated problem
and its rationale;
Type in standard size page A4 (210X297mm); all four margins
2.5cm wide; font Times New Roman in 12pt size; line spacing 1.5.
Material and methods: objectively described in a clear and
objective way, allowing the reproductbility of the research. In case
The text must comprise: it involves human beings, the approval number of the Research
Ethics Committee (CEP) must be registered;
Title: expressing clearly and briefly the contents of the text, in no more
than 15 words. The title should be in bold font, using capital letters Results and discussion: may be presented together or separately;
only for proper nouns. Texts written in Portuguese and Spanish should
have the title in the original idiom and in English. The text in English Conclusions or final considerations: depending on the type of
should have the title in English and in Portuguese. research carried out;
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References: only cited authors should be included in the text and Funding
follow the Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to
Biomedical Journals, of the ICMJE, used for the preparation of The scientific papers, when funded, must identify the source of
references (known as ‘Vancouver Style’). For further clarification, the funds. The “Saúde em Debate” Journal meets the Ordinan-
we recommend consulting the Reference Normalization Manual ce nº 206 of 2018 from the Ministério da Educação/Fundação
(http://revista.saudeemdebate.org.br/public/manualvancouver. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/
pdf) prepared by the Cebes editorial. Gabinete sobre Citação obrigatória da Capes, for any work made
or published, in any medium, resulting from activities totally or
NOTES: partially funded by Capes.
In case there are photographs, subjects must not be identified, No additions or changes will be accepted after the final approval
unless they authorize it, in writing, for the purpose of scientific of the work. In case the journal’s Editorial Board has any sugges-
dissemination. tions regarding changes on the structure or contents of the work,
these shall be previously agreed upon with the authors by means
Information about authors of e-mail communication.
The journal accepts a maximum of seven authors per article. In- The typeset article proof will be sent by e-mail to the correspon-
formation should be included only in the submission form, con- ding author; it must be carefully checked and returned until the
taining: full name, abbreviated name for bibliographic citations, stipulated date.
linked institutions with up to three hierarchies, ORCID ID (Open
Researcher and Contributor ID) code and e-mail.
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1. Declaration of responsibility and assignment of copyright Upon acceptance, articles must be proofread by a qualified pro-
fessional to be chosen from a list provided by the journal. After
All the authors and co-authors must fill in and sign statement fol- proofreading, the article shall be returned together with a state-
lowing the models available at: http://revista.saudeemdebate.org. ment from the proofreader.
br/public/declaration.docx.
2. Statement of translation
2. Approval statement by the Research Ethics Committee (CEP)
The articles accepted may be translated into English on the au-
In the case of researches involving human beings, carried out thors’ responsibility. In this case, the translation shall be carried
in Brazil, in compliance with Resolution 466, of 12th December out by a qualified professional to be chosen from a list provided by
2012, from the National Health Council (CNS), the research ap- the journal. The translated article shall be returned together with a
proval statement of the Research Ethics Committee from the in- statement from the translator.
stitution where the work has been carried out must be forwarded.
In case the institution does not have a CEP, the document is-sued Correspondence address
by the CEP where the research has been approved must be for-
warded. Researches carried out in other countries: attach decla- Avenida Brasil, 4.036, sala 802
ration indicating full compliance with the ethical principles and CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
specific legislations. Tel.: (21) 3882-9140/9140
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Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos
La periodicidad de la revista es trimestral. Y de acuerdo al cri- Antes de que sean enviados para la evaluación por los pares, los
terio de los editores son publicados números especiales que si- artículos sometidos a la revista ‘Saúde em Debate’ pasan por soft-
guen el mismo proceso de sujeción y evaluación de los números wares detectores de plagio. Así es posible que los autores sean
regulares. cuestionados sobre informaciones identificadas por la herramien-
ta para garantizar la originalidad de los manuscritos y las referen-
‘Saúde em Debate’ acepta trabajos originales e inéditos que apor- cias a todas las fuentes de investigación utilizadas. El plagio es un
ten contribuciones relevantes para el conocimiento científico acu- comportamiento editorial inaceptable y, de esa forma, en caso de
mulado en el área. que sea comprobada su existencia, los autores involucrados no
podrán someter nuevos artículos para la revista.
La revista cuenta con una Junta Editorial que contribuye para la
definición de su política editorial. Sus miembros son integran- NOTA: La producción editorial de Cebes es el resultado de apoyos
tes del Comité Editorial y/o del banco de árbitros en sus áreas institucionales e individuales. La colaboración para que la revista
específicas. ‘Saúde em Debate’ continúe siendo un espacio democrático de
divulgación de conocimientos críticos en el campo de la salud se
Los trabajos enviados a la revista son de total y exclusiva respon- dará por medio de la asociación de los autores al Cebes. Para aso-
sabilidad de los autores y no pueden ser presentados simultánea- ciarse entre al site http://www.cebes.org.br.
mente a otra, ni parcial ni integralmente.
ORIENTACIONES PARA LA PREPARACIÓN Y LA SUJE-
En el caso de la aprobación y publicación del artículo en la revista, CIÓN DE LOS TRABAJOS
los derechos de autor referidos al mismo se tornarán propiedad
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lítica de acceso abierto, por lo tanto, los textos están disponibles su logín y clave para el acompañamiento del trámite.
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ta, reutilice y distribuya, con la debida citación de la fuente y la
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autoría. En estos casos, ningún permiso es necesario por parte de
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1. Artículo original: resultado de una investigación científica
La ‘Saúde em Debate’ acepta artículos en preprint de bases de que pueda ser generalizada o replicada. El texto debe contener
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como el SciELO Preprints (https://preprints.scielo.org). No es obli-
gatoria la proposición del artículo en preprint y esto no impide el 2. Ensayo: un análisis crítico sobre un tema específico de
envío simultáneo a la revista Saúde em Debate.
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relevancia e interés para la coyuntura de las políticas de salud sólo con iniciales mayúsculas para nombres propios. El texto en
brasileña e internacional. El trabajo debe contener un máximo español y portugués debe tener el título en el idioma original y en
de 7.000 palabras. Inglés. El texto en Inglés debe tener el título en Inglés y portugués.
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Conclusiones o consideraciones finales: que depende del tipo de sometimiento conteniendo: nombre completo, nombre abre-
investigación realizada; viado para citas bibliográficas, instituciones a las que están
vinculados con hasta tres jerarquías, código ORCID ID (Open
Referencias: Deben constar sólo los autores citados en el texto Researcher and Contributor ID) y correo electrónico.
y seguir los Requisitos Uniformes de Manuscritos Sometidos a
Revistas Biomédicas del ICMJE, utilizados para la preparación de Financiación
referencias (conocidos como ‘Estilo de Vancouver’). Para mayores
aclaraciones, recomendamos consultar el Manual de Normaliza- Los artículos científicos, cuando reciben financiación, deben
ción de Referencias (http://revista.saudeemdebate.org.br/public/ identificar la fuente de financiamiento. La revista ‘Saúde em
manualvancouver.pdf). Debate’ cumple con la Ordenanza Nº 206 de 2018 del Mi-
nistério da Educação/Fundação Coordenação de Aperfeiçoa-
OBSERVACIONES mento de Pessoal de Nível Superior/Gabinete sobre Citação
obrigatória da Capes, para obras producidas o publicadas, en
La revista no utiliza subrayados ni negritas para resaltar partes cualquier medio, que resulten de actividades financiadas total
del texto. Utiliza comillas simples para llamar la atención de ex- o parcialmente por la Capes.
presiones o títulos de obras. Ejemplos: ‘puerta de entrada’; ‘Salud
en Debate’. Las palabras en otros idiomas se deben escribir en PROCESO DE EVALUACIÓN
cursivas, con la excepción de nombres propios.
Todo original recibido por la revista ‘Saúde em Debate’ es so-
Se debe evitar el uso de iniciales mayúsculas en el texto, con la metido a un análisis previo. Los trabajos que no estén de acuer-
excepción de las absolutamente necesarias. do con las normas de publicación de la revista serán devueltos
a los autores para su adecuación y una nueva evaluación.
Los testimonios de sujetos deberán ser presentados igualmente
en cursivas y entre comillas dobles en el cuerpo del texto (si son Una vez complidas integralmente las normas de la revista, los ori-
menores de tres líneas). Si son mayores de tres líneas, deben ginales serán valorados por el Comité Editorial, compuesto por el
escribirse en de la misma manera, sin comillas, desplazadas del editor jefe y por editores asociados, quienes evaluarán la origina-
texto, con retroceso de 4 cm, espacio simple y fuente 11. lidad, el alcance, la actualidad y la relación con la política editorial
de la revista. Los trabajos recomendados por el comité serán eva-
No se debe utilizar notas al pie de página en el texto. Las luados, por lo menos, por dos arbitros indicados de acuerdo con el
marcas de notas a pie de página, cuando sean absolutamente tema del trabajo y su expertisia, quienes podrán aprobar, rechazar
indispensables, deberán ser numeradas y secuenciales. y/o hacer recomendaciones a los autores.
Se debe evitar repeticiones de datos o informaciones en las La evaluación es hecha por el método del doble ciego, esto
diferentes partes que componen el texto. es, los nombres de los autores y de los evaluadores son omi-
tidos durante todo el proceso de evaluación. En caso de que
Las figuras, gráficos, cuadros y tablas deben estar en alta re- se presenten divergencias de opiniones, el trabajo será enca-
solución, en blanco y negro o escala de grises, y sometidos en minado a un tercer evaluador. De la misma manera, el Comité
archivos separados del texto, uno a uno, siguiendo el orden Editorial puede, a su criterio, emitir un tercer juicio. Cabe a los
en que aparecen en el estudio (deben ser numerados y conte- evaluadores, como se indicó, recomendar la aceptación, re-
ner título y fuente). En el texto sólo tiene que identificarse el chazo o la devolución de los trabajos con indicaciones para su
lugar donde se deben insertar. El número de figuras, gráficos, corrección. En caso de una solicitud de corrección, los autores
cuadros o tablas debe ser de un máximo de cinco por texto. deben devolver el trabajo revisado en el plazo estipulado. Si
El archivo debe ser editable (no extraído de otros archivos) y, los autores no se manifiestan en tal plazo, el trabajo será ex-
cuando se trate de imágenes (fotografías, dibujos, etc.), tiene cluido del sistema.
que estar en alta resolución con un mínimo de 300 DPI.
El Comité Editorial tiene plena autoridad para decidir la acepta-
En el caso del uso de fotografías, los sujetos involucrados en ción final del trabajo, así como sobre las alteraciones efectuadas.
estas no pueden ser identificados, a menos que lo autoricen,
por escrito, para fines de divulgación científica. No se admitirán aumentos o modificaciones después de la
aprobación final del trabajo. Eventuales sugerencias de mo-
Información sobre los autores dificaciones de la estructura o del contenido por parte de los
editores de la revista serán previamente acordadas con los
La revista acepta, como máximo, siete autores por artícu-
autores por medio de la comunicación por e-mail.
lo. La información debe incluirse sólo en el formulario de
SAÚDE DEBATE
Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos
La versión diagramada (prueba de prensa) será enviada igual- la declaración indicando el cumplimiento integral de los principios
mente por correo electrónico al autor responsable por la co- éticos y de las legislaciones específicas.
rrespondencia de la revisión final y deberá devolverla en el
plazo estipulado. DOCUMENTOS OBLIGATORIOS QUE DEBEN SER EN-
VIADOS DESPUÉS DE LA APROBACIÓN DEL ARTÍCULO
LOS DOCUMENTOS RELACIONADOS A SEGUIR DEBEN
SER DIGITALIZADOS Y ENVIADOS POR EL SISTEMA 1. Declaración de revisión ortográfica y gramatical
DE LA REVISTA EN EL MOMENTO DEL REGISTRO DEL
ARTÍCULO
Los artículos aprobados deberán ser revisados ortográfica y gra-
1. Declaración de responsabilidad y cesión de derechos de autor maticalmente por un profesional cualificado, según una lista de
revisores indicados por la revista. El artículo revisado debe estar
Todos los autores y coautores deben llenar y firmar la declaración acompañado de la declaración del revisor.
según el modelo disponible en: http://revista.saudeemdebate.org. 2. Declaración de traducción
br/public/declaracion.docx.
Los artículos aprobados podrán ser, a criterio de los autores, tra-
2. Dictamen de Aprobación del Comité de Ética en Investigación ducidos al inglés. En este caso, la traducción debe ser hecha igual-
(CEP) mente por un profesional cualificado, siempre de acuerdo a una
lista de traductores indicados por la revista. El artículo traducido
En el caso de investigaciones que involucren a seres humanos debe estar acompañado de la declaración del traductor.
realizadas en Brasil, en los términos de la Resolución 466 del 12 Dirección para correspondencia
de diciembre de 2012 del Consejo Nacional de Salud, debe enviar-
se el documento de aprobación de la investigación por el Comi- Avenida Brasil, 4.036, sala 802
té de Ética en Investigación de la institución donde el trabajo fue CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
realizado. En el caso de instituciones que no dispongan de un CEP, Tel.: (21) 3882-9140/9140
deberá presentarse el documento del CEP por el cual fue aproba- Fax: (21) 2260-3782
da. Las investigaciones realizadas en otros países, deben anexar E-mail: revista@saudeemdebate.org.br
SAÚDE DEBATE
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)
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ISSN 0103–1104
CDD 362.1
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