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O PARDO

COMO
DILEMA
POLÍTICO
80 MEU MULATO INZONEIRO
Luiz Augusto Campos
Cientista político

N
uma pacata praça da zona sul carioca, uma Provavelmente, cenas análogas a essa se repetiram
adolescente passeia com sua elegante avó por décadas, mas com os termos e sinais trocados. Até
TXDQGR HVWD H[FODPD ³ROKD DOL ¿OKD QmR p bem pouco tempo atrás, não era de bom tom referir-se a
DTXHOHVHXDPLJRPXODWLQKR"´'HLPHGLDWR QmREUDQFRVFRPWHUPRVHQIiWLFRVFRPR³QHJUR´2PLWR
a frase altera o semblante da jovem, que re- da democracia racial gozava de tanta legitimidade que so-
preende a avó com dureza: “mulato não, vó; ava “politicamente incorreto” ressaltar as clivagens de cor
negro! Negro!”. A expressão de desconforto da avó após ou raça em situações amigáveis. Apesar de sempre ter feito
a repreensão denunciava a distância geracional entre as parte do vocabulário corrente, o termo “negro” funciona-
GXDVSHUVRQDJHQV2³PXODWLQKR´GLWRHPWRPPDWHUQDO va como uma espécie de xingamento, o que tornava seus
pela distinta senhora branca, contrastava com o “negro” HTXLYDOHQWHV HXIHPtVWLFRV ³SUHWR´ ³SUHWLQKR´ ³PXODWR´
enfático e decidido da sua jovem neta, igualmente branca. “escuro” etc.) bem mais palatáveis.

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Desde o primeiro censo,


a categoria “pardo” foi
incluída para dimensionar
o estrato da população
que não se classificaria
nem como branco, nem
como preto

2OXJDUHDIXQomRGRPHVWLoRQDIRUPDomRVRFLDOGR YDQGRDVSROtWLFDVD¿UPDWLYDVDGRWDGDVQRSDtVSRGHPRV
Brasil sempre foi objeto de disputa entre os estudiosos. notar uma tensão entre diferentes formas de conceber e,
Ainda no século XIX, Nina Rodrigues rivalizava com Silvio sobretudo, nomear os mestiços, ora chamados de “par-
5RPHUR DR GHIHQGHU TXH D PHVWLoDJHP HUD VLQ{QLPR GH GRV´RUDLQFOXtGRVQRUROGH³QHJURV´
degeneração, e não um meio para o branqueamento (e re- $ GLIXVmR GH Do}HV D¿UPDWLYDV UDFLDLV QR %UDVLO WHYH
denção) da população brasileira. De motivo de vergonha, como um de seus catalizadores uma aliança entre cientis-
RPHVWLoRVHFRQYHUWHHPVtPERORGHXPDEUDVLOLGDGHRU- tas sociais, dedicados a demonstrar estatisticamente a exis-
JXOKRVDGHVLQDVREUDVGHDXWRUHVFRPR*LOEHUWR)UH\UHH tência de discriminação racial aqui, e militantes do movi-
0DQRHO%RQ¿P mento negro que se serviram desses dados para demandar
Nos anos 1940, contudo, os trabalhos de Florestan SROtWLFDV HVSHFt¿FDV SDUD DV YtWLPDV GHVVD GLVFULPLQDomR
Fernandes e sua equipe de pesquisadores começaram a (Htun, 2004; Schwartzman, 2009; Maio e Santos, 2005).
contestar esse suposto estatuto privilegiado do mestiço. Contudo, a despeito dessa cooperação, os estudiosos das
0DLVGRTXHXPDHQWLGDGHKtEULGDHPHVVrQFLDRPHVWLoR GHVLJXDOGDGHV UDFLDLV PRELOL]DYDP FDWHJRULDV GH FODVVL¿-
é encarado como um trânsfuga de sua condição de origem, cação racial diferentes daquelas usadas pelos movimentos
LVWR p XP QHJUR TXH SRU UD]}HV VRFLRHFRQ{PLFDV FRQVH- QHJURV(QTXDQWRRVSULPHLURVIDODYDPGDVGHVLJXDOGDGHV
guiu ascender socialmente e, por isso, pode reivindicar existentes entre “brancos” e “ não brancos” ou apenas en-
R WtWXOR GH PHVWLoR )HUQDQGHV   7XGR LVVR SDUHFH tre “brancos”, “pretos” e “pardos”, os segundos se serviam
FRQ¿UPDU R GLDJQyVWLFR GH (GXDUGR 2OLYHLUD H 2OLYHLUD GHVVHVGDGRVSDUDMXVWL¿FDUXPPRGHORGHFODVVL¿FDomRUD-
(1974): o mestiço é o principal “obstáculo epistemológico” cial calcado na valorização da identidade “negra”.
para a compreensão das relações raciais brasileiras. (VVD GLIHUHQoD WHUPLQROyJLFD HUD LUUHOHYDQWH DWp D
(PYH]GHWUDQVFHQGHUHVVHREVWiFXORHSLVWHPROyJLFR LQWURGXomR GDV Do}HV D¿UPDWLYDV UDFLDLV &RQWXGR DSyV
DUHFHQWHLQWURGXomRGHDo}HVD¿UPDWLYDVUDFLDLVQDVXQL- DGLIXVmRGHVVDVPHGLGDVXPDVpULHGHPRGHORVFODVVL¿-
YHUVLGDGHV EUDVLOHLUDV R WUDQVS{V SDUD D SROtWLFD 2EVHU- catórios diferentes surgiu para denominar os potenciais

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EHQH¿FLiULRVGDSROtWLFD0DLVGRTXHXPHOHPHQWRSURFH- tiplicidade de rótulos, cerca de 90% das pessoas ouvidas


dimental secundário, a escolha dos rótulos raciais usados HPVHFODVVL¿FRXXVDQGRFDWHJRULDVDSHQDV³EUDQ-
SRUHVVHVSURJUDPDVGH¿QHSDUDTXHPDVDo}HVD¿UPDWL- ca”, “morena”, “parda”, “negra”, “morena clara”, “preta”,
vas são feitas e, assim, quais são os objetivos e as intenções “amarela”, “brasileira”, “mulata”, “mestiça”, “alemã”, “cla-
que a motivam. UD´³LWDOLDQD´H³LQGtJHQD´1.
Nosso objetivo neste texto é demonstrar como as dife- 1mRpGHKRMHTXHDFODVVL¿FDomRUDFLDOGRVEUDVLOHLURV
UHQWHVIRUPDVGHQRPHDURVEHQH¿FLiULRVGDVFRWDVUDFLDLV coloca problemas para a ações estatais. A cor dos brasilei-
expressam visões distintas das desigualdades existentes URVVHPSUHIRLXPDTXHVWmRVHQVtYHOGXUDQWHDRUJDQL]D-
no Brasil e, simultaneamente, esperanças diferentes em ção dos censos nacionais. Para avaliar os impactos demo-
UHODomR jV FRQVHTXrQFLDV GDV Do}HV D¿UPDWLYDV 3DUD WDO JUi¿FRVGDHVFUDYLGmR HGRSRVVtYHO¿PGHOD R,PSpULR
dividiu-se o que se segue em cinco seções. A primeira de- RUGHQRXTXHRFHQVRGHRSULPHLURUHDOL]DGRQRSDtV
ODVGLVFXWHFRPRDGH¿QLomRGHFDWHJRULDVGHFODVVL¿FDomR LQFOXtVVHXPDTXHVWmRVREUHUDoD4XDWURFDWHJRULDVIRUDP
racial por parte das instituições estatais sempre foi uma usadas na época: “branca”, “preta”, “parda” e “cabocla”,
WDUHIDSHUPHDGDSRUWHQV}HVSROtWLFDVRTXH¿FDHYLGHQWH VHQGRTXHDFDWHJRULD³SDUGD´IRLLQFOXtGDVREDDOHJDomR
quando observamos a história dos recenseamentos nacio- de que ela captaria o número de descendentes de escravos
QDLV TXH LQFOXtUDP D YDULiYHO FRU RX UDoD $ VHJXQGD VH- alforriados ou já nascidos livres (Camargo, 2009).

I
ção mostra como alguns sociólogos conseguiram, a partir
desses censos, compilar evidências da discriminação racial QÀXHQFLDGR SHODV LGHLDV HXJHQLVWDV R FHQVR GH
brasileira e, assim, contribuir decisivamente para a politi- 1890, realizado depois da Abolição e da Proclama-
zação da questão racial no Brasil. A terceira parte discute ção da República, trocou a categoria “pardo” pelo
como o movimento negro instrumentalizou essas infor- LQGLFDGRU UDFLDO ³PHVWLoR´ &XULRVDPHQWH D LQÀX-
PDo}HVVRFLROyJLFDVQmRDSHQDVSDUDGHPDQGDUSROtWLFDV ência do eugenismo levou à supressão da questão
de equalização das oportunidades, mas também para a sobre raça no censo de 1920, pois seus organiza-
politização da própria negritude. A quarta seção explora GRUHVDFUHGLWDYDPTXHDSHUJXQWDGL¿FLOPHQWHFDSWDULDD
RVUHÀH[RVGHVVHSURFHVVRQDVSULPHLUDVH[SHULrQFLDVFRP “verdadeira raça” dos brasileiros, sobretudo da maioria da
Do}HVD¿UPDWLYDVQRSDtV$RWHUPRGHOLQHDPRVDOJXPDV população que, segundo eles, buscava então se “embran-
conclusões parciais sobre o processo de politização das eti- quecer” (Camargo, 2009, p. 373). Pelo mesmo motivo que
quetas raciais. em 1920, os organizadores do censo de 1940 acreditavam
TXH D SRSXODomR PHVWLoD WHQGHULD D VH FODVVL¿FDU FRPR
AS CATEGORIAS ESTATÍSTICAS DE CLASSIFICAÇÃO RACIAL EUDQFD H SRU LVVR QmR LQFOXtUDP QHQKXPD FDWHJRULD LQ-
A despeito do sem-número de termos existentes no WHUPHGLiULDGHFRU$TXHOHVTXHQmRVHFODVVL¿FDYDPFRPR
SDtVSDUDFODVVL¿FDUDFRURXDUDoDGDVSHVVRDVDTXDQWL- ³EUDQFR´RX³SUHWR´HUDPFRPSXWDGRVFRPRLQGLYtGXRVGH
dade de categorias usadas mais frequentemente é limita- ³FRUQmRLGHQWL¿FDGD´0DVSDUDDVXUSUHVDGRVHVWDWtVWLFRV
GD8PDVRQGDJHPIHLWDHPSHOR,%*(SHUJXQWRXD de então, cerca de 20% da população escolheu essa “não
uma amostra de brasileiros qual termo eles usariam para FDWHJRULD´RTXHIH]FRPTXHDFODVVL¿FDomR³SDUGR´YRO-
GH¿QLUVXDFRURXUDoD$TXHVWmRDEHUWDFRPSLORXFD- tasse ao censo de 1950.
tegorias diferentes (Petruccelli, 2000), dado comumente Desde o primeiro censo, a categoria “pardo” foi in-
FLWDGRTXDQGRVHSUHWHQGHGHVWDFDUDÀXLGH]GR³VLVWHPD´ FOXtGD QRV FDVRV HP TXH IRL LQFOXtGD  SDUD GLPHQVLRQDU
GHFODVVL¿FDomRUDFLDOGREUDVLOHLUR &DUYDOKR 3RU o estrato da população que, de acordo com os organiza-
outro lado, uma exploração mais profunda desses dados GRUHV GRV FHQVRV QmR VH FODVVL¿FDULD QHP FRPR EUDQFR
PRVWUDH[DWDPHQWHRRSRVWR(PERUDVHMDJUDQGHDPXO- QHPFRPRSUHWR/RJRHODVHPSUHIRLSHQVDGDFRPRXPD

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categoria residual ou mesmo como um não rótulo. Mesmo Tais obstáculos pareciam difusos pela sociedade e, so-
GXUDQWHDVHQWUHYLVWDVIHLWDVSHOR,%*(QRVGLDVGHKRMH bretudo, constantes no tempo, o que contestava a inter-
é comum que pessoas tenham dúvidas em relação ao sig- pretação de que a desigualdade racial no Brasil seria um
QL¿FDGRGRWHUPR³SDUGR´RTXHLQGLFDTXHHODDLQGDQmR UHVTXtFLRGRSDVVDGRHVFUDYRFUDWDDVHUVXSHUDGRSHODLQ-
é uma categoria de uso frequente na linguagem cotidiana GXVWULDOL]DomRGRSDtV
(Schwartzman, 1999). Não é gratuito, por exemplo, que no Mas além de utilizar métodos inovadores e chegar a
questionário utilizado no último censo, a opção “pardo” conclusões inéditas para a época, os livros de Hasenbalg e
apareça depois da opção “branco” e “preto”, sugerindo que Silva contêm outro diferencial metodológico. Para medir a
a escolha por ela deve ser feita somente após a recusa das diferença de mobilidade dos grupos de cor captados pelo
alternativas polares .
2
,%*(RVGRLVSHVTXLVDGRUHVIXQGLDPDVFDWHJRULDV³SDU-
da” e “preta” num só agregado, chamado de “não branco”.
AS DESIGUALDADES RACIAIS E O MOVIMENTO NEGRO (PERUDRVGRLVUDUDPHQWHH[SOLFLWHPRPRWLYRGHWDODJUH-
Desde a década de 1940, os pesquisadores contrata- JDomR HOD VH MXVWL¿FD GLDQWH GD GLPLQXWD TXDQWLGDGH GH
GRVSHOD81(6&2SDUDHVWXGDUDVXSRVWDKDUPRQLDUDFLDO DXWRGHFODUDGRV ³SUHWRV´ QDV SHVTXLVDV GR ,%*( 6y SDUD
brasileira constataram, entretanto, a presença de racismo se ter uma ideia, apenas 7,4% da população nacional se
disseminado na sociedade (maio, 1999). Mas apesar de declarou “preta” no último censo de 2010; contra 47,9%
LGHQWL¿FDU SUiWLFDV UDFLVWDV HVVHV GLIHUHQWHV HVWXGLRVRV de autodeclarados “brancos”; 43,2% de autodeclarados
FRVWXPDYDPWUDWiODVFRPRPDUJLQDLV $]HYHGRH:DJOH\ “pardos”; 1,1% de autodeclarados “amarelos” e 0,5% que
1955) ou considerá-las como uma sobrevivência arcaica do VHGL]HPLQGtJHQDV4.
SHUtRGRHVFUDYRFUDWDDTXDOVHULDQDWXUDOPHQWHVXSHUDGD

D
SHODPRGHUQL]DomRGRSDtV )HUQDQGHV  epois dos estudos de Hasenbalg e Silva, pra-
2VGDGRVREWLGRVSHORVFHQVRVQDFLRQDLVIRUDPWUDGL- ticamente todas as pesquisas sobre raça e
cionalmente utilizados por esses autores. Porém, é somen- mobilidade social no Brasil mantiveram tal
WHQR¿PGDGpFDGDGHTXHDVLQIRUPDo}HVHVWDWtVWLFDV estratégia metodológica, agregando “pretos”
FROHWDGDVSHOR,%*(VHWRUQDPREMHWRGHXPWUDWDPHQWR H ³SDUGRV´ QXPD Vy FDWHJRULD HVWDWtVWLFD $
HVWDWtVWLFRPDLVUHEXVFDGR&DUORV+DVHQEDOJH1HOVRQGR PDLRULDGHODVWDPEpPFRQ¿UPDDVGLIHUHQoDV
Vale Silva foram os primeiros sociólogos a utilizar os dados entre as chances de vida dos grupos de cor em diferentes
do censo para medir não apenas as desigualdades de classe QtYHLV VRFLDLV +HQULTXHV  6RDUHV  2VyULR
entre os grupos de cor, mas também as desigualdades de 5LEHLUR 2XWUDVHPHOKDQoDHQWUHHVVHVWUD-
oportunidades entre eles. Comparando a classe de origem balhos é o fato de eles apontarem para o acesso ao ensino
das pessoas com suas classes de destino, Hasenbalg e Silva superior como uma das principais barreiras à ascensão so-
FRQFOXtUDPTXHKiXPGLIHUHQFLDOVXEVWDQWLYRQDVWD[DVGH cial dos “não brancos” brasileiros, o que contribuiu subs-
mobilidade social dos autodeclarados “brancos” e dos “não WDQWLYDPHQWH SDUD D DGRomR GH Do}HV D¿UPDWLYDV UDFLDLV
brancos” (Hasenbalg, 1979; Silva, 1978). Para eles, mesmo em território nacional.
quando comparamos pessoas com a mesma origem socio- Tudo isso contribuiu para que as análises de Hasen-
HFRQ{PLFD PHVPD FODVVH QtYHO HGXFDFLRQDO UHQGD HWF  EDOJ H 6LOYD YDOLGDVVHP FLHQWt¿FD H R¿FLDOPHQWH DOJXPDV
as chances de ascensão social dos brancos chega a ser o das bandeiras históricas dos movimentos negros brasilei-
dobro daquela dos “não brancos”. URV ³&LHQWL¿FDPHQWH´ SRUTXH HOHV PRELOL]DUDP WpFQLFDV
(VVHV HVWXGRV VREUH PRELOLGDGH VRFLDO VHUYLUDP SDUD HVWDWtVWLFDV DYDQoDGDV SDUD FRQWHVWDU R PLWR GD GHPR-
atestar estatisticamente os obstáculos que se interpõem FUDFLDUDFLDO³R¿FLDOPHQWH´SRUTXHHOHVXWLOL]DUDPGDGRV
à ascensão social dos autodeclarados “pardos” e “pretos”. produzidos por uma instituição estatal, reconhecida como

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politicamente neutra, justamente para contestar a imagem estudados por Hasenbalg e Silva, é de pessoas que se per-
R¿FLDO TXH R JRYHUQR EUDVLOHLUR ID]LD GR SDtV $VVLP RV cebem como “pardas” e não como “pretas”. Ainda assim,
trabalhos dos dois serviram de base para uma verdadeira esses “pardos” costumam possuir, segundo os autores,
DOLDQoDSROtWLFDHQWUHFLrQFLDVVRFLDLVHPRYLPHQWRQHJUR XPD VLWXDomR VRFLRHFRQ{PLFD VLPLODU jTXHOD GRV TXH VH
Carlos Hasenbalg, por exemplo, coeditou um livro sobre as declaram “pretos” e, simultaneamente, uma condição so-
GHVLJXDOGDGHV UDFLDLV QR %UDVLO FRP /pOLD *RQ]DOH] XPD cial muito distinta daqueles que se declaram “brancos”
histórica militante negra (Gonzalez e Hasenbalg, 1982). (Hasenbalg e Silva, 1988).
Contudo, enquanto os estudos sociológicos se satis- Para alguns militantes negros, esses dados provam
faziam em denunciar a discriminação racial brasileira, os que o brasileiro que se declara “pardo” é visto pelos outros
movimentos negros paulatinamente adicionaram a essas FRPR³QHJUR´HSRULVVRPHVPRpXPDYtWLPDGHUDFLVPR
denúncias uma pauta mais reivindicatória e propositiva Portanto, haveria no Brasil uma vergonha de ser negro que
6DQWRVS $SDUWLUGHVVDVHVWDWtVWLFDVDOJXQV impediria as pessoas que assim são percebidas de se en-
militantes começaram a sustentar que um dos obstáculos [HUJDUHPFRPRWDO(pMXVWDPHQWHSRULVVRTXHDVGLVFUL-
à luta por igualdade racial seria justamente a parca consci- PLQDo}HVUDFLDLVWHQGHULDPDVHULGHQWL¿FDGDVSHODVVXDV
ência identitária do negro brasileiro. YtWLPDVFRPRH[SUHVV}HVGHHOLWLVPRRXSUHFRQFHLWRVRFLDO
Como já foi dito, a maior parcela dos “não brancos”, e não racial. Ao termo, tudo isso contribuiria para a fraca

Tabela 1
as categorias de classificação de cor/raça empregadas nos censos nacionais
1991
1950
1872 1890 1920 1940 19703 1980 2000
1960
2010
Nome da variável no Questão Questão
Raça Raça Cor Cor Cor Cor ou raça
questionário ausente ausente
Branca
Branca Branca Branca Branca Branca
Preta
Categorias de classificação Preta Preta Preta Preta Preta
Parda
empregadas Parda Mestiça – Parda Parda
Amarela
Cabocla Cabocla Amarela Amarela Amarela
Indígena
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
http://www.ibge.gov.br/

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FRQVFLrQFLDGDTXHVWmRUDFLDOH[LVWHQWHQRSDtV “negros”) se dá apenas na metade da década de 1990. É


Contra essa “vergonha da negritude”, o movimento nessa época que um grupo de pesquisadores ligados ao
QHJURFRPHoRXMiQDGpFDGDGHDGHPDQGDUSROtWLFDV ,QVWLWXWR GH 3HVTXLVD (FRQ{PLFD $SOLFDGD ,3($  yUJmR
capazes de promover o “orgulho negro” e, assim, inverter ligado ao governo federal, começa a se dedicar ao estudo
R VHQWLGR QHJDWLYR GHVVD FDWHJRULD GH FODVVL¿FDomR UDFLDO GDVGHVLJXDOGDGHVUDFLDLVEUDVLOHLUDV,QÀXHQFLDGRVSHORV
(Nascimento e Nascimento, 2000). A instituição da Fun- trabalhos de Hasenabalg e Silva, pesquisadores como Ri-
GDomR3DOPDUHVSHORJRYHUQRGH-RVp6DUQH\SRGHVHUYLV- FDUGR+HQULTXHV  6HUJHL6RDUHV  /XFLDQDGH
ta como consequência dessa articulação que demandava Jaccoud e Nathalie Beghin (2002) incorporam as técnicas
XPDSROtWLFDGHYDORUL]DomRGDQHJULWXGHHGHVXDVSURGX- HVWDWtVWLFDVHPSUHJDGDVSHORVSULPHLURV&RQWXGRHPYH]
ções culturais. de utilizarem a dicotomia “brancos” e “não brancos”, os
Ainda que os dados trabalhados por Hasenbalg e Silva SHVTXLVDGRUHVGR,3($SUHIHUHPFKDPDURVHJXQGRJUXSR
WHQKDPFRQWULEXtGRVREUHPDQHLUDSDUDVXVWHQWDUHVVDFRQ- de “negro”, em consonância com a nomenclatura defendi-
clusão do movimento negro, há aqui uma sutil mudança da pelo movimento negro.
de nomenclatura e, como veremos depois, de diagnóstico. (VVHUHHQTXDGUDPHQWRSURPRYLGRSHORVSHVTXLVDGR-
(QTXDQWRRVVRFLyORJRVSUHIHULDPUHVSHLWDUDVFDWHJRULDV UHVGR,3($IRLFHQWUDOGXUDQWHRVSUHSDUDWLYRVSDUDD,,,
do censo, falando em “não brancos” ou simplesmente em Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
“pretos” e “pardos”, o movimento negro defende que todos Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância
os “não brancos” sejam chamados de “negros”. )U\DS RUJDQL]DGDSHOD218HUHDOL]DGDHP
$ FRQVDJUDomR DFDGrPLFD GHVVH PRGHOR GH FODVVL¿- 2001 na cidade sul-africana de Durban. Foi a partir da
cação racial do movimento negro (que opõe “brancos” e Conferência de Durban que o movimento negro se arti-

O estado do Rio de Janeiro


foi o primeiro a impor
às suas universidades um
sistema de cotas raciais
logo após a Conferência
de Durban

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FXORXGHIRUPDPDLVVyOLGDSDUDGHPDQGDUSROtWLFDVFRP- total 90% das vagas para cotistas.


pensatórias (Alves, 2002; Santos, 2009). 2XWURSRQWRSROrPLFRGDOHLÀXPLQHQVHIRLRIDWRGH
A delegação enviada para a África do Sul pelo governo HODGHQRPLQDURVEHQH¿FLiULRVGDSROtWLFDFRPR³SDUGRV´
brasileiro contava com inúmeros acadêmicos e, frequente- H³QHJURV´&RPRYLPRVRPRGHORGHFODVVL¿FDomRGHFRU
mente, militantes do movimento negro. Participaram dela UDoD DGRWDGR SHOR ,%*( XVD DWXDOPHQWH DV FDWHJRULDV
mais de 200 membros de organizações não governamen- ³EUDQFD´ ³SDUGD´ ³SUHWD´ ³DPDUHOR´ H ³LQGtJHQD´ -i R
tais do movimento negro, fazendo da delegação brasileira modelo adotado pelos militantes negros e pelos pesquisa-
a mais numerosa comitiva na Conferência (Alves, 2002, p. GRUHVGR,3($UHGX]DVFDWHJRULDVDGXDV³EUDQFD´H³QH-
 2SHVRGHVVDGHOHJDomRFRPELQDGRjIRUoDGRPR- JUD´VHQGRTXHHVWDVHJXQGDFRQJUHJDWRGRVRVFODVVL¿FD-
YLPHQWRQHJURQRVHXLQWHULRUFRQWULEXLXSDUDTXH(GQD dos como “pretos” e “pardos”. Portanto, ao propor cotas
5RODQGjpSRFDGLUHWRUDGD21*)DOD3UHWDIRVVHHVFR- para “pardos” e “negros”, o estado do Rio mesclava dois
lhida relatora-geral da conferência. PRGHORVGLVWLQWRVGHFODVVL¿FDomRUDFLDO

E
Foi durante a Conferência de Durban que a delegação
EUDVLOHLUDGHFODURXR¿FLDOPHQWHDLQWHQomRGRJRYHUQRIH- videntemente, essa mistura categorial não
GHUDOHPLPSODQWDUSROtWLFDVGHDomRD¿UPDWLYDUDFLDOQR HVFDSRXjVFUtWLFDV$RFRORFDURWHUPR³QHJUR´
%UDVLO $OYHV eQHVVHSHUtRGRWDPEpPTXHRHQWmR ao lado do termo “pardo”, a lei sugeria que
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, de- ³QHJUR´GHYHULDVHUWRPDGRFRPRVLQ{QLPRGH
clara num programa de televisão dominical o apoio a esse “preto”. Se essa equivalência é perfeitamente
WLSRGHSROtWLFDDFRQWHFLPHQWRTXHFRORFRXRWHPDQDSDX- usual na linguagem, ela confronta a nomen-
ta do debate midiático. clatura e a bandeira de revalorização da negritude levan-
Contudo, não foram envidados grandes esforços do tada pelo movimento negro. Além disso, alguns gestores
SUHVLGHQWHGD5HS~EOLFDTXHHVWDYDHP¿PGHPDQGDWR universitários destacaram que a ambiguidade da catego-
SDUDDHIHWLYDomRGDVSURPHWLGDVDo}HVD¿UPDWLYDVUDFLDLV ria “parda” abriria margem para que pessoas percebidas
no ensino superior. Por isso, as primeiras iniciativas par- FRPREUDQFDVVHEHQH¿FLDVVHPIUDXGXOHQWDPHQWHGDSROt-
tiram dos governos estaduais e de universidades federais tica. Por tudo isso, a lei corretiva 4.151, de 2003, suprimiu
DXW{QRPDV $RV SRXFRV DV FRWDV UDFLDLV VH LPSXVHUDP DFDWHJRULD³SDUGD´GDOLVWDGHEHQH¿FLiULRVLPSODQWDQGR
FRPR PRGDOLGDGH GH DomR D¿UPDWLYD SUHGLOHWD GDV XQL- cotas apenas para “negros” (20%) e oriundos de escola pú-
YHUVLGDGHV3RUpPDIRUPDGHGHQRPLQDURVEHQH¿FLiULRV blica (20%)5.
dessas cotas não contou com o mesmo consenso. Ainda em 2003, as universidades estaduais de três
RXWUDV XQLGDGHV IHGHUDWLYDV DGRWDUDP Do}HV D¿UPDWLYDV
AS AÇÕES AFIRMATIVAS RACIAIS raciais. Foi também no mesmo ano que a primeira univer-
2HVWDGRGR5LRGH-DQHLURIRLRSULPHLURDLPSRUjV VLGDGH IHGHUDO D 8QLYHUVLGDGH GH %UDVtOLD 8Q% DGRWRX
suas universidades um sistema de cotas raciais logo após a XPSURJUDPDGHFRWDV(PERUDD8Q%WHQKDRSWDGRSRU
Conferência de Durban. Mas embora tenha sido aprovada adotar um sistema de cotas para negros como aquele im-
em 2001, a lei de cotas do Rio de Janeiro só foi implan- SODQWDGR QD 8(5- H QD 8(1) VHX SURJUDPD DSUHVHQWD
tada em 2003. Além da enorme polêmica suscitada pela algumas nuances importantes. Além de ter sido adotado
LQLFLDWLYD DOJXPDV LPSUHFLV}HV GD OHL FRQWULEXtUDP SDUD autonomamente pela universidade, e não por meio de uma
o retardo na implantação da medida. Um problema de re- lei exterior à burocracia universitária, o programa da UnB
dação da lei, por exemplo, fazia com que a reserva racial QmR FRPELQRX XPD DomR D¿UPDWLYD UDFLDO FRP RXWUD VR-
de 40% das vagas se somasse a outra preexistente de 50% FLRHFRQ{PLFDFRPRRFRUUHXQRHVWDGRGR5LRGH-DQHLUR
para alunos oriundos de escolas públicas, perfazendo um &RQWXGRSDUDQRVVRV¿QVLPSRUWDJULIDUTXHD8Q%DGR-

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WRXXPPRGHORGHFODVVL¿FDomRUDFLDOLGLRVVLQFUiWLFRSDUD SDUHFHWHUVLGRGHVGHRLQtFLRFRQWULEXLUSDUDDSROLWL]D-
QRPHDURVEHQH¿FLiULRVGDVFRWDV ção da negritude.
Segundo o manual de inscrição do vestibulando da A despeito das semelhanças, os sistemas de cotas ra-
UnB, “o candidato [à cota racial] deve ser preto ou pardo e FLDLVDGRWDGRVSHODVXQLYHUVLGDGHVHVWDGXDLVÀXPLQHQVHV
se declarar como negro” (citar). De um lado, esse enuncia- H SHOD 8QLYHUVLGDGH GH %UDVtOLD H[SUHVVDP GRLV HQWHQGL-
GRVXJHUHTXHRVEHQH¿FLiULRVSRWHQFLDLVGDVFRWDVVmR³GH mentos muito distintos das relações raciais brasileiras e
IDWR´SUHWRVRXSDUGRVFRPRR,%*(GL]3RURXWURODGRR GR SDSHO TXH DV Do}HV D¿UPDWLYDV GHYHULDP WHU HP VHX
HQXQFLDGRVXJHUHTXHWDO³FRQGLomR´QmRpVX¿FLHQWHSDUD LQWHULRU3RGHVHGL]HUTXHRPRGHORDGRWDGRSHOD8(5-
se candidatar às cotas, pois é necessário ainda que o can- H8(1)WUDGX]XPDSHUVSHFWLYDTXHEXVFDDWDFDUEDVLFD-
GLGDWRVHGH¿QDDXWRQRPDPHQWHFRPR³QHJUR´3RUWDQWR PHQWH DV GLVSDULGDGHV VRFLRHFRQ{PLFDV H DV GHVLJXDOGD-
SDUDD8QLYHUVLGDGHGH%UDVtOLDVHU³QHJUR´pXPDHVFROKD des de oportunidades entre brancos e não brancos. Não
suplementar à condição factual de ser da cor “preta” ou VXUSUHHQGH SRUWDQWR TXH D UHGDomR ¿QDO GD ~OWLPD OHL
“parda”. GHFRWDVVHUH¿UDDRVEHQH¿FLiULRVFRPR³FDUHQWHV´ )U\

S
2005b, p. 235), além de combinar cotas raciais. Por tudo
RPDVHDHVVHPRGHORFODVVL¿FDWyULRRIDWRGH LVVRpQRPtQLPRH[DJHUDGRFRQHFWDUDVFRWDVGD8(5-H
a UnB ter adotado uma polêmica comissão de GD8(1)DXP³QRYRSURMHWRUDFLDOHPTXHRFUHVFLPHQ-
YHUL¿FDomR UDFLDO LQFXPELGD GH ³FHUWL¿FDU´ D to da consciência negra [...] teve um papel importante”
negritude dos candidatos às cotas por meio de (Schwartzman, 2009).
entrevistas e da avaliação de fotos. A combina- A UnB, por outro lado, adotou um modelo de cotas ra-
omRHQWUHHVVHSHFXOLDUPRGHORGHFODVVL¿FDomR ciais que buscou traduzir a posição comumente propalada
FRP D LQVWLWXLomR GH XPD FRPLVVmR GH YHUL¿FDomR UDFLDO pelo movimento negro. Mais do que uma medida redistri-
sugere que a preocupação fundamental das cotas da UnB butivista, a função primordial desse programa seria con-
QmRHUDDSHQDVLGHQWL¿FDURVHVWXGDQWHVSUHWRVRXSDUGRV verter a vergonha de ser negro em orgulho étnico e, mais
PDVVLPHQFRUDMDUDDGRomRDXW{QRPDGHXPDLGHQWLGDGH ainda, politizar a adesão a dada identidade racial negra.
pWQLFD/RJRR³QHJUR´pHQFDUDGRSHOD8Q%FRPRDTXHOH Por isso, a instituição não se contentou em estabelecer co-
“preto” ou “pardo” que é capaz de se conscientizar de sua WDVSDUD³SDUGRV´H³SUHWRV´HH[LJLXTXHHVVHVEHQH¿FLiULRV
identidade racial e defendê-la perante uma comissão que, potenciais se reconhecessem como “negros” diante de uma
aliás, é composta basicamente por membros do movimen- comissão composta em grande medida por militantes.
to negro (Maio e Santos, 2005, p. 194). As cotas das universidades estaduais do Rio de Ja-
É verdade que essa comissão foi adotada em oposição neiro e da UnB foram indubitavelmente as mais discuti-
à recomendação feita por José Jorge de Carvalho e Rita GDV SHOD JUDQGH PtGLD QDFLRQDO )HUHV -~QLRU &DPSRV H
Segato, dois antropólogos da instituição que redigiram o 'DÀRQ &RQWXGRHVVHVGRLVPRGHORVQmRIRUDPRV
projeto de cotas adotado. Mas a despeito disso, essa con- PDLVXVXDLVQRSDtV'HQWUHDVXQLYHUVLGDGHVS~EOLFDV
FHSomR GD DomR D¿UPDWLYD UDFLDO FRPR LQVWUXPHQWR GH TXHDGRWDUDPDo}HVD¿UPDWLYDVUDFLDLVXWLOL]DYDPVR-
politização da negritude não é estranha ao pensamento PHQWHDFDWHJRULD³QHJUR´SDUDLGHQWL¿FDURVEHQH¿FLiULRV
GRVDQWURSyORJRV1XPDFUtWLFDjFULDomRGDFRPLVVmRGH Do outro lado, somente oito universidades adotam ações
YHUL¿FDomRUDFLDO&DUYDOKRVHGL]³FRQWUiULRjVIRWRV´MXV- D¿UPDWLYDV SDUD ³QHJURV´ HQWHQGLGRV FRPR D VRPD GH
tamente porque elas “despolitizam o posicionamento do ³SUHWRV´H³SDUGRV´FRPRID]D8Q%2XWUDVRLWRXQLYHUVL-
sujeito ao transferir a responsabilidade de assumir sua GDGHVXWLOL]DPRPRGHORGR,%*(SXURLVWRpHVWDEHOHFHP
condição racial para a comissão” (Carvalho, 2005, p. 244). SROtWLFDVLQFOXVLYDVSDUD³SUHWRV´H³SDUGRV´VHPPHQFLR-
Portanto, a intenção original do sistema de cotas da UnB QDUDFDWHJRULD³QHJUR´HPVHXVHGLWDLV3RU¿PVHWHXQL-

88 MEU MULATO INZONEIRO


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tabela 2
modelos de classificação racial adotados pelas
universidades brasileiras (em 2011)
N %
Negros 15 38,5%
Negros (pretos + pardos) 8 20,5%
Pretos ou pardos 8 20,5%
Afrodescendentes 7 17,9%
Negros ou pardos* 1 2,6%
Total 39 100%
Fonte: Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa
http://gemaa.iesp.uerj.br
*As universidades estaduais do Rio de Janeiro utilizaram esse modelo antes de
2003. Mas como não houve seleção de acordo com ele, essas instituições não são
levadas em conta nesta tabela.

versidades adotam as categorias afros (“afrodescendente” dessas vagas deve-se obedecer a proporção de autodecla-
ou “afro-brasileiro”), enquanto apenas uma universidade UDGRVSUHWRVSDUGRVHLQGtJHQDVQDSRSXODomRGDXQLGDGH
DGRWRXRSULPHLURPRGHORFODVVL¿FDWyULRGR5LRGH-DQHL- GD)HGHUDomRRQGHHVWiLQVWDODGDDLQVWLWXLomR /HL
ro: “negros” e “pardos”. GH   /RJR D OHL IHGHUDO QmR VRPHQWH REULJRX WRGDV
A Tabela 2 deixa evidente a preferência das universi- as universidades federais brasileiras a usarem o modelo
dades públicas brasileiras pela categoria “negro”. Pode-se FODVVL¿FDWyULRGR,%*(FRPRWDPEpPVXEVXPLXDVFRWDV
GL]HUTXHLVVRUHÀHWHRUHODWLYRVXFHVVRGRPRYLPHQWRGH raciais à reserva de vagas para estudantes de escolas pú-
UHYDORUL]DomRGRWHUPR³QHJUR´OLJDGRjDEHUWXUDGR(V- blicas.
tado à militância negra, principalmente na área cultural.
Como destacam Paiva e Almeida (2010), o movimento ne- CONSIDERAÇÕES FINAIS
gro teve uma importante atuação na divulgação das ações 2VHVWXGRVGH&DUORV+DVHQEDOJH1HOVRQGR9DOOH6LO-
D¿UPDWLYDVUDFLDLVjVXQLYHUVLGDGHVEUDVLOHLUDVRTXHFRQ- YD FRQVWUXtUDP XPD HTXLYDOrQFLD HVWDWtVWLFD HQWUH RV DX-
¿UPDQRVVDLQWHUSUHWDomR todeclarados “pretos” e “pardos” no censo ao chamá-los
Porém, esse sucesso da categoria “negro” foi apenas VLPSOHVPHQWHGH³QmREUDQFRV´(VVDDJUHJDomRHVWDWtVWLFD
momentâneo. Depois de inúmeras idas e vindas, foi apro- viabilizou a denúncia de um tipo de discriminação racial
YDGR HP  R 3URMHWR GH /HL  R TXDO WRUQD DV que oblitera a ascensão social dos “não brancos” brasilei-
cotas raciais mandatórias em todas as universidades fede- URVGLVFULPLQDomRHVVDTXHSDUHFHLPSHUFHSWtYHODRVROKRV
UDLV 0DV DR FRQWUiULR GR PRGHOR PDLV DGRWDGR QR SDtV GD PDLRU SDUWH GH VXDV YtWLPDV 2V PRYLPHQWRV QHJURV
a lei de cotas obriga as instituições federais de educação por seu turno, transpuseram tais conclusões da academia
VXSHULRUDUHVHUYDUHP³QRPtQLPRGHVXDVYDJDVSDUD SDUDDSROtWLFDDRWUDQVIRUPDUHPDGHQRPLQDomRQHJDWLYD
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino “não branco”, criada pelos sociólogos, para uma denomi-
médio em escolas públicas”, sendo que, no preenchimento nação positiva e identitária: “negro”. Finalmente, outros

OUTUBRO ‡ NOVEMBRO ‡ DEZEMBRO 2013 89


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cientistas sociais, alguns deles ligados a instituições esta- Não surpreende, portanto, que a lei de cotas tenha
WDLVFRPRR,3($FRQVDJUDUDPFLHQWL¿FDHR¿FLDOPHQWHWDO SUHIHULGR R PRGHOR TXH HPSUHJD DV FDWHJRULDV GR ,%*(
mudança de nomenclatura ao denominar como “negros” a H DVVXPH XP HVStULWR PDLV UHGLVWULEXWLYLVWD DR LQFOXLU DV
soma dos “pardos” e “pretos” recenseados. FRWDVUDFLDLVGHQWURGDFRWDGHFRUWHVRFLRHFRQ{PLFR3R-
'HSRLV GHVVD VpULH GH DJUHJDo}HV H UHGH¿QLo}HV RV UpP DR ID]HU WDO RSomR R (VWDGR SDUHFH QmR UHFRQKHFHU
movimentos negros puderam falar em nome do interesse que a discriminação racial sofrida pelos não brancos não
da metade dos brasileiros que é, ao mesmo tempo, a parte se restringe às classes baixas, mas, ao contrário, atinge
mais pobre da população. Graças a isso, eles conseguiram mormente os pretos e pardos de classe média. Pesquisas
GHQXQFLDUDRPLVVmRGR(VWDGRHPUHFRQKHFHURSDSHOGD como a de Ribeiro (2006) contêm evidências convincentes
discriminação racial na manutenção das desigualdades so- de que a ascensão social dos não brancos é mais fortemen-
ciais, o que redundou na legitimação e na posterior intro- te obliterada justamente na passagem das classes médias
GXomRGDVDo}HVD¿UPDWLYDVUDFLDLVQRSDtV&RQWXGRVHRV às classes altas. Se isso for verdade, a submissão das cotas
movimentos negros podem hoje falar em nome do interes- UDFLDLVjVVRFLRHFRQ{PLFDVPDQWHUiXPDGLVWULEXLomRGH-
se da metade dos brasileiros ditos “negros”, a maior par- sigual das oportunidades para aqueles que estão no meio
te dessa população não se reconheceria enquanto tal caso da pirâmide.
RV TXHVWLRQiULRV GR ,%*( DEULJDVVH D FDWHJRULD ³QHJUR´ De todo modo, nenhum dos dois modelos é perfeito
Como algumas pesquisas demonstram, só pequena parte TXDQGRVHREMHWLYDLQVWDXUDUXPDSROtWLFDGHDomRD¿UPD-
GRJUDQGHFRQWLQJHQWHGHDXWRFODVVL¿FDGRVFRPR³SDUGRV´ WLYD TXH SRU GH¿QLomR p XPD VROXomR SUDJPiWLFD SDUD
QRV FHQVRV VH FODVVL¿FDULDP FRPR ³QHJURV´ VH HVVD IRVVH XP FRQWH[WR GH LQMXVWLoD H[WUHPD (PERUD PDLV HVWXGRV
XPDDOWHUQDWLYD 6LOYDH/HmR  tenham que ser produzidos para avaliar até que ponto o
'LDQWHGLVVRTXDOVHULDDPHOKRUIRUPDGHFODVVL¿FDU PRGHOR DGRWDGR SHOR JRYHUQR VHUi H¿FLHQWH D RSomR SRU
RV EHQH¿FLiULRV GDV Do}HV D¿UPDWLYDV UDFLDLV" )XQGLU RV HOH UHÀHWH XP SUDJPDWLVPR SUySULR GD LQFHUWH]D TXH FD-
autodeclarados “pretos” e “pardos” e chamá-los apenas de UDFWHUL]D D SROtWLFD HP VL $LQGD TXH WDO VROXomR SDUHoD
“negros” é uma forma de reconhecer a condição social se- acertada diante do contexto atual, tudo indica que o pardo
melhante desse contingente e, sobretudo, subverter aquilo deixou de ser um simples obstáculo epistemológico para
que historicamente foi visto como mácula em motivo de DVFLrQFLDVVRFLDLVSDUDVHWRUQDUGLOHPDSROtWLFRSDUDR(V-
orgulho. Por outro lado, quando tal fusão desliza para a tado brasileiro.
SROtWLFDS~EOLFDR(VWDGRDVVXPHSDUDVLDIXQomRGHXP
pedagogo identitário, encarregado de “conscientizar” as
2DXWRUpGRXWRUHP6RFLRORJLDSHOR,(638(5-HSURIHVVRUGD(VFROD
massas de um interesse que, a rigor, é objeto de disputas GH&LrQFLD3ROtWLFDGD81,5,2
SROtWLFDV lascampos@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

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1mRKRXYHXPDMXVWL¿FDomRR¿FLDOSDUDDVXSUHVVmRGDTXHVWmRQR
de policiais civis, militares, bombeiros militares e de inspetores de se-
JXUDQoDHDGPLQLVWUDomRSHQLWHQFLiULDPRUWRVHPUD]mRGRVHUYLoR´
FHQVRGHSULPHLURUHDOL]DGRQDGLWDGXUDPLOLWDU3RUpP6FKZDUW-
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90 MEU MULATO INZONEIRO


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