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Letramento e escolarização

Magda Soares¹

Tradicional e consensualmente, considera-se que o acesso ao mundo da escrita é incumbência e


responsabilidade da escola e do processo que nela e por ela se dá — a escolarização . Em outras palavras,
considera-se que é à escola e à escolarização que cabem tanto a aprendizagem das habilidades básicas de
leitura e de escrita, ou seja, a alfabetização, quanto o desenvolvimento, para além dessa aprendizagem básica,
das habilidades, dos conhecimentos e das atitudes necessários ao uso efetivo e competente da leitura e da
escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, isto é, o letramento. A cada vez que se denunciam
níveis precários de alfabetização, em crianças, jovens ou adultos, a questão é invariavelmente relacionada com
a escola e o fracasso escolar em alfabetização; da mesma forma, a cada vez que se identificam dificuldades no
uso da língua escrita ou desinteresse pela leitura, em crianças, jovens ou adultos, apontam-se, como causas,
deficiências do processo de escolarização, fracasso da escola no desenvolvimento de habilidades de uso social
da leitura e da escrita e na promoção de atitudes positivas em relação à leitura.

Pode-se afirmar que já estão relativamente bem caracterizadas, em pesquisas e farta literatura, as relações
entre alfabetização e escolarização; o mesmo não ocorre, porém, com as relações entre letramento e
escolarização, ainda pouco estudadas: as discussões que vêm sendo desenvolvidas nas últimas décadas, tanto
no campo da Educação quanto na área da Mídia, sobre problemas de letramento da população brasileira ainda
pouco avançaram na análise das relações entre esses problemas e o processo de escolarização, isto é, entre o
papel da escola no desenvolvimento de habilidades de uso social da leitura e da escrita e as competências, ou
as incompetências, demonstradas por crianças, jovens e adultos em situações de participação em práticas
sociais que envolvem a língua escrita.

O objetivo deste texto é, lançando mão sobretudo do que sugerem alguns dados do Indicador Nacional de
Alfabetismo Funcional (lnaf) 2001, levantar algumas hipóteses sobre essas, ainda pouco investigadas, relações
entre letramento e escolarização. Entretanto, como são fluidos, dúbios, imprecisos os conceitos que estes
termos — letramento, escolarização — designam, sobretudo quando associados a este outro termo —
alfabetização —, é necessário que se estabeleça, inicialmente, o sentido com que cada um deles é aqui tomado.

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Alfabetização é vocábulo de uso corrente, cujo sentido não suscita dúvidas nem desperta polêmicas; o mesmo
não ocorre com o vocábulo letramento, de sentido ainda pouco claro e impreciso, porque introduzido
recentemente no léxico das Ciências Sociais, particularmente da Pedagogia e da Sociologia da leitura e da
escrita. Porque alfabetização e letramento são conceitos freqüentemente confundidos ou sobrepostos, é
importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária
porque a introdução, no campo da Educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a
especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o
processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito de
letramento, como também este é dependente daquele.

Embora correndo o risco de uma excessiva simplificação, pode-se dizer que a inserção no mundo da escrita se
dá por meio da aquisição de uma tecnologia — a isso, chama-se alfabetização — e por meio do
desenvolvimento de competências (habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia em
práticas sociais que envolvem a língua escrita — a isso, chama-se letramento².

Nesse sentido, define-se alfabetização — tomando-se a palavra em seu sentido próprio³ — como o processo de
aquisição da “tecnologia da escrita”, isto é, do conjunto de técnicas — procedimentos, habilidades —
necessárias para a prática da leitura e da escrita: as habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de
decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita (alfabético, ortográfico); as
habilidades motoras de manipulação de instrumentos e equipamentos para que codificação e decodificação se
realizem, isto é, a aquisição de modos de escrever e de modos de ler; aprendizagem de uma certa postura
corporal adequada para escrever ou para ler; habilidades de uso de instrumentos de escrita (lápis, caneta,
borracha, corretivo, régua, de equipamentos como máquina de escrever, computador…); habilidades de
escrever ou ler, seguindo a direção correta da escrita na página (de cima para baixo, da esquerda para a
direita); habilidades de organização espacial do texto na página; habilidades de manipulação correta e
adequada dos suportes em que se escreve e nos quais se lê — livro, revista, jornal, papel sob diferentes
apresentações e tamanhos (folha de bloco, de almaço, caderno, cartaz, tela do computador…). Em síntese ,
alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e
para escrever, ou seja: o domínio da tecnologia — do conjunto de técnicas — para exercer a arte e a ciência da
escrita.

O exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se letramento4 que implica habilidades
várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos — para informar ou informar-
se, para interagir com outros, para imergir no imaginário, no estético, para ampliar conhecimentos, para seduzir
ou induzir, para divertir-se, para orientar-se, para apoio à memória, para catarse…; habilidades de interpretar e
produzir diferentes tipos e gêneros de textos; habilidades de orientar-se pelos protocolos de leitura que marcam
o texto ou de lançar mão desses protocolos ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita, tendo
interesse e prazer em ler e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informações e
conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada, segundo as circunstâncias, os objetivos, o
interlocutor…

Alfabetização e letramento são, pois, processos distintos, de naturezas essencialmente diferentes; entretanto,
são interdependentes e mesmo indissociáveis. A alfabetização — a aquisição da tecnologia da escrita — não
precede nem é pré-requisito para o letramento, isto é, para a participação em práticas sociais de escrita, tanto
assim que analfabetos podem ter um certo nível de letramento: não tendo adquirido a tecnologia da escrita,
utilizam-se de quem a tem para fazer uso da leitura e da escrita; além disso, na concepção psicogenética de
alfabetização que vigora atualmente, a tecnologia da escrita é aprendida não como em concepções anteriores,
com textos construídos artificialmente para a aquisição das “técnicas” de leitura e de escrita, mas através de
atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e de escrita.

Analfabetos podem ter um certo nível de letramento: não tendo adquirido a tecnologia da escrita, utilizam-se de
quem a tem para fazer uso da leitura e da escrita.

Esclarecido o sentido que se atribui neste texto às palavras alfabetização e letramento, cabe agora buscar as
possíveis relações entre esses dois processos e este outro processo, a escolarização. Entretanto, como essa
palavra é, também ela, como as outras duas, sujeita a diferentes interpretações, é necessário começar por
esclarecer o sentido que aqui a ela se atribui.

ESCOLARIZAÇÃO

A palavra escolarização é um substantivo derivado do verbo escolarizar, que é um verbo transitivo direto, isto é,
exige um complemento; este pode ser de duas naturezas: ou pode designar um ser animado — escolarizar
alguém, escolarizar pessoas — ou pode designar um ser inanimado, uma “coisa”, um conteúdo — escolarizar
um conhecimento, uma prática social, um comportamento.

Em geral, dá-se ao verbo e, portanto, ao substantivo apenas o sentido que tem quando seu complemento são
pessoas; aliás, é apenas esse sentido que está dicionarizado. Tomando-se, por exemplo, o recente Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa (2001), encontra-se que escolarização é o “ato ou efeito de escolarizar” e, de
forma um pouco tautológica, que escolarizar é “fazer passar por processo de escolarização, por aprendizado em
escola”; escolarizado é aquele “que passou por processo de escolarização, de aprendizado escolar”.
Mas o complemento do verbo e do substantivo pode também ser, como já se adiantou, uma “coisa”, um
conteúdo: não só pessoas são escolarizadas, passam por aprendizado em escola, sendo, nesse e por esse
processo, transformadas; também conhecimentos e práticas sociais são escolarizados, passam a objetos de
aprendizagem na escola, sendo, também eles, nesse e por esse processo, transformados.

Neste texto, para refletir sobre as relações entre letramento e escolarização, a palavra escolarização é
considerada em ambos os sentidos: por um lado, a fim de discutir as relações entre níveis de aprendizado
escolar e níveis de letramento, toma-se a palavra com o complemento “pessoa”, considera-se a escolarização
da criança, do jovem, do adulto; por outro lado, em busca das relações entre práticas sociais e práticas
escolares de leitura e de escrita, toma-se a palavra com o complemento “conteúdo” — considera-se a
escolarização da escrita como objeto de aprendizagem.

ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E ESCOLARIZAÇÃO

Antes de buscar possíveis relações entre letramento e escolarização sugeridas por dados do Inaf 2001, é
necessário considerar os vínculos que comumente são estabelecidos entre alfabetização, letramento e
escolarização.

Como já afirmado no início deste texto, tradicional e consensualmente vincula-se alfabetização e letramento a
escolarização. O vínculo entre alfabetização e escolarização, mais que o vínculo entre letramento e
escolarização, é considerado natural e inquestionável: tanto para o senso comum quanto mesmo para a área da
Educação, é na escola que se ensina e que se aprende a tecnologia da escrita. O processo de alfabetização é
visto não só como um componente essencial da escolarização inicial, como, mais que isso, esta é mesmo
comumente confundida com aquele: a concepção corrente é a de que a criança vai para a escola “para aprender
a ler e a escrever”.

Esse vínculo entre alfabetização e escolarização pode, porém, ser questionado e criticado sob vários aspectos;
embora esse questionamento e essa crítica ultrapassem os objetivos e limites deste texto, convém destacar pelo
menos alguns desses aspectos. Em primeiro lugar, se à escola cabe, realmente, alfabetizar, cabe-lhe muito
mais que isso, mesmo na etapa inicial de escolarização; em segundo lugar, vincular alfabetização a
escolarização é ignorar que, como já comprovaram numerosas pesquisas (ver, por exemplo, Street 1995b ),
também se aprende a ler e a escrever em instâncias não-escolares: na comunidade, na família, no trabalho, na
igreja.

Cabe ainda lembrar que esse vínculo consensual e tradicional entre alfabetização e escolarização tem tido
conseqüências negativas sobre processos de alfabetização em instâncias formais não-escolares, como
acontece com freqüência em programas de alfabetização de jovens e adultos: não só os alfabetizados em geral
esperam, e até solicitam, ser alfabetizados segundo o modelo escolar de alfabetização — inadequado, porque
se destina a crianças, não a jovens e adultos —, como os próprios programas e alfabetizadores tendem a
replicar esse modelo inadequado. O vínculo entre alfabetização e escolarização é tão forte que a alfabetização
escolar, apenas uma das possíveis modalidades de alfabetização, é considerada o padrão para todas as demais
modalidades; de certa forma, é a alfabetização escolar que legitima toda e qualquer atividade que vise à
aprendizagem da leitura e da escrita.

Em programas de alfabetização de jovens e adultos, não só os alfabetizandos esperam ser alfabetizados


segundo o modelo escolar de alfabetização — inadequado, porque se destina a crianças —, como os próprios
programas e alfabetizadores tendem a replicar esse modelo.

Como anteriormente dito, o vínculo entre letramento e escolarização não parece tão natural e óbvio quanto o
vínculo entre alfabetização e escolarização; ao contrário, o que é considerado natural e óbvio é o vínculo entre
letramento e alfabetização. É que a concepção — não só no âmbito do senso comum, mas até mesmo no
âmbito da própria escola — parece ser a de que da aquisição da tecnologia da escrita decorreria, naturalmente,
seu uso efetivo e eficiente em práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, o letramento seria uma
conseqüência natural da alfabetização. Tanto assim é que dificuldades de uso competente da língua escrita —
problemas de letramento — são freqüentemente atribuídas a deficiências do processo de alfabetização.

Talvez a concepção de que é natural e óbvia a vinculação entre alfabetização e escolarização se explique pelo
fato de que a aquisição da tecnologia da escrita — o processo de alfabetização — tem resultados visíveis e
evidentes (como, aliás, a aquisição de qualquer tecnologia): embora alfabetização seja um contínuo, e o nível de
domínio da tecnologia da escrita possa variar de indivíduo a indivíduo, é sempre possível determinar se uma
criança ou um jovem ou um adulto sabe ou não sabe ler e escrever — trata-se de ter ou não ter a posse de uma
tecnologia.

O mesmo não acontece com o desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita — o processo de
letramento. Como são muitas e variadas as práticas, tanto sociais quanto escolares, que demandam o uso da
escrita, são também muitas e variadas as habilidades, os conhecimentos, as atitudes necessárias para o
exercício dessas práticas (cf. Soares, 1998). Alfabetizado e analfabeto podem ser considerados termos
dicotômicos, não sendo impossível classificar as pessoas em um ou outro desses dois grupos excludentes, mas
entre letrado e iletrado não há dicotomia, os dois termos não constituem categorias distintas e opostas.
Alfabetização é um contínuo, mas um contínuo, de certa forma, linear, com limites claros e pontos de
progressão cumulativa, que podem ser definidos objetivamente; letramento é também um contínuo, mas um
contínuo não-linear, multidimensional, ilimitado, englobando múltiplas práticas com múltiplas funções, com
múltiplos objetivos, condicionadas por — e dependentes de — múltiplas situações e múltiplos contextos, em
que, conseqüentemente, são múltiplas e muito variadas as habilidades, os conhecimentos, as atitudes de leitura
e de escrita demandadas, não havendo gradação nem progressão que permita fixar um critério objetivo para
que se determine que ponto, no contínuo, separa letrados de iletrados. Do processo de alfabetização, pode-se
esperar que resulte, ao fim de determinado tempo de aprendizagem, em geral prefixado, um “produto” que se
pode reconhecer, cuja aquisição, ou não, atesta ou nega a eficiência do processo de escolarização; ao contrário,
o processo de letramento jamais chega a um “produto” final, é sempre e permanentemente um “processo”, e não
há como decidir em que ponto do processo o iletrado se torna letrado.

A conseqüência dessa diferente natureza de alfabetização e letramento é que, enquanto as relações entre
alfabetização e escolarização se evidenciam com relativa clareza e facilidade, as relações entre letramento e
escolarização se ocultam sob considerável imprecisão e complexidade. Advém disso a dificuldade de
estabelecer confronto ou comparação entre as medidas de letramento e o processo de escolarização. Em
seguida, busca-se enfrentar essa dificuldade, com reflexões sugeridas por dados do Inaf 2001, que permitem
relacionar níveis de habilidade — denominados no âmbito dessa pesquisa como níveis de alfabetismo — e
escolarização.

HABILIDADES DE LETRAMENTO E GRAU DE INSTRUÇÃO

No quadro dos conceitos de alfabetização e de letramento propostos anteriormente, pode-se dizer que as
medidas censitárias, no Brasil, têm avaliado índices de alfabetização, isto é, têm buscado identificar a posse, ou
não, da tecnologia da escrita, quer pelo critério do “saber ou não saber assinar o próprio nome”, como foi feito
até o Censo de 1940, quer pelo critério do “saber ou não saber ler e escrever um bilhete simples”, como passou
a ser feito a partir do Censo de 1950. Embora em ambos os critérios estejam pressupostas práticas sociais de
escrita (assinar o nome e fazer uso de bilhete), a avaliação5 da capacidade de ler e escrever um bilhete simples,
prática, sem dúvida, um pouco mais complexa que a assinatura, já representou um avanço em direção a
medidas de letramento, avanço incentivado pela Unesco, que, no final dos anos 1970, passou a sugerir, para as
estatísticas educacionais, a avaliação da alfabetização funcional. Entretanto, além de assinar o próprio nome e
ler e escrever um bilhete serem práticas elementares e extremamente simples de uso da escrita, e mesmo
exatamente por isso, ambos os critérios se baseiam numa dicotomia, nesse caso, sem dúvida possível: saber ou
não saber escrever e ler, ter ou não ter a posse da tecnologia, o que caracteriza, segundo argumentos
apresentados anteriormente, muito mais o fenômeno da alfabetização que o do letramento.

Um critério que busca aproximar-se mais de medidas de letramento é o estabelecimento de uma equivalência
entre nível de escolarização (atribuindo-se aqui a essa palavra o complemento “pessoa”) e capacidade de fazer
uso efetivo e competente da leitura e da escrita, isto é, a relação entre número de séries escolares concluídas
pelos indivíduos, ou seu grau de instrução6, e nível de letramento. Esse critério fundamenta-se no pressuposto
de que, atingido um certo grau de instrução, o indivíduo terá não só adquirido a tecnologia da escrita, isto é, terá
se tornado alfabetizado, mas também terá se apropriado das competências básicas necessárias ao uso das
práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, terá se tornado letrado.

Para avaliar letramento pelo critério de grau de instrução, uma alternativa tem sido estabelecer, por inferência,
uma equivalência entre determinado grau de escolaridade e um nível de letramento considerado satisfatório —
um e outro definidos de forma relativamente arbitrária. É a alternativa que tem predominado na bibliografia
brasileira sobre alfabetização, analfabetismo e letramento: tem-se tradicionalmente considerado que à
conclusão da 4a série do Ensino Fundamental corresponderia um nível satisfatório de letramento,
provavelmente por influência da antiga organização do ensino, que estabelecia o ensino primário de quatro
séries como a etapa obrigatória e suficiente para a formação do cidadão. Assim, o IBGE tem definido índices de
analfabetismo funcional, considerando analfabetas funcionais as pessoas com menos de quatro anos de
escolaridade.

Recentemente, Ferraro (2002) tornou mais preciso e menos arbitrário o critério de avaliação de níveis de
letramento em função de grau de instrução, não só propondo três níveis de letramento, correspondentes a três
cortes na escala de anos de escolaridade7, mas também caracterizando cada um desses três níveis de
letramento8. Assim, aos indivíduos com um a três anos de escolaridade, é atribuído o nível 1 de letramento,
descrito como a “ultrapassagem do analfabetismo” pela aquisição do “mínimo dos mínimos em termos de
alfabetização e letramento”; aos indivíduos com quatro a sete anos de escolaridade, é atribuído o nível 2 de
letramento, em que um domínio mínimo das práticas letradas terá sido alcançado, possibilitando a participação
nelas na vida social; finalmente, aos indivíduos com oito anos ou mais anos de escolaridade, é atribuído o nível
3 de letramento, em que terão sido atingidas as competências letradas que constituem o mínimo estabelecido
para a educação básica tal como definida constitucionalmente.

A identificação de níveis de letramento por meio da definição de equivalência entre graus de instrução atingidos
e competências de leitura e de escrita adquiridas se faz por um processo de inferência ou suposição: presume-
se que, atingido determinado grau de instrução, terá sido atingido determinado nível de letramento. Uma
segunda alternativa para relacionar letramento e grau de instrução é percorrer o trajeto inverso, isto é, em vez
de partir de graus de instrução para deles deduzir níveis de letramento, partir, ao contrário, de níveis de
habilidades de letramento identificados por meio de verificação direta e relacionar esses níveis com os graus de
instrução que a eles correspondem.

Esse trajeto inverso — de níveis de alfabetismo a graus de instrução — pode ser traçado com os dados do Inaf
2001, que utilizou não só um teste de avaliação de habilidades de leitura e escrita9, cujos resultados levaram à
classificação dos indivíduos que compuseram a amostra em três níveis de alfabetismo, mas também um
questionário, que informou, entre outros dados, o grau de instrução desses indivíduos. Assim, em vez de buscar
a relação entre escolarização e letramento inferindo que a um certo grau de instrução corresponderá um certo
nível de habilidades de letramento (alfabetismo), pode-se, neste caso, determinar essa relação verificando que
grau de instrução tem o indivíduo que demonstra ter certo nível de alfabetismo.

Ao permitir identificar que graus de instrução têm os indivíduos classificados em cada nível de alfabetismo,
definido este pelos resultados obtidos no teste, a pesquisa comprovou uma significativa relação entre essas
duas variáveis: enquanto 88% do grupo classificado no nível 1 de alfabetismo não tem o Ensino Fundamental
completo, 82% do grupo classificado no nível 3 tem Ensino Fundamental completo ou mais10.

Essa conclusão se confirma quando se refina um pouco mais a análise, buscando a relação entre número de
séries de escolaridade cursadas e níveis de alfabetismo. A percentagem dos que estão no nível 1 de
alfabetismo decresce à medida que aumenta o número de anos de escolaridade; 63% têm apenas de um a três
anos de escolarização, 55% têm quatro anos de escolarização e 29% têm de cinco a sete anos de
escolarização. Aqui, é interessante notar que está no nível mais baixo de alfabetismo mais da metade dos que
atingiram a conclusão da 4ª série do Ensino Fundamental, grau de instrução que, como dito anteriormente, tem
sido freqüentemente considerado como indicador de um nível satisfatório de alfabetismo, o que aponta para a
impropriedade desse critério para a medida de índices de “alfabetismo funcional”.

Ainda buscando refinar um pouco mais a análise, toma-se a distribuição, por níveis de alfabetismo, dos
indivíduos da amostra que atingiram a conclusão do Ensino Médio, verifica-se que apenas 6% estão no nível 1
de alfabetismo, 36% estão no nível 2 e 58% estão no nível 3; da mesma forma, considera-se o grupo dos que
têm grau superior completo: 78% estão no nível 3, e apenas 4% no nível 1 de alfabetismo.

A conclusão é que, quanto mais alto o grau de instrução, mais alto o nível de alfabetismo, de acordo com o que
foi verificado no teste. Como, além disso, muitas outras práticas de leitura e escrita (de livros, jornais, revistas,
documentos de trabalho, etc.) também estão significativamente associadas a níveis mais altos de escolarização,
pode-se inferir que há uma evidente correlação entre letramento e escolarização; ou que a escolarização é fator
decisivo na promoção do letramento.

Entretanto, é necessário analisar o avesso dos dados, pois não são desprezíveis os números que indicam a
negação de uma relação entre letramento e escolarização: surpreende que 42% dos que completaram o Ensino
Médio e não completaram o Ensino Superior, ou seja, dos que têm de onze a catorze anos de escolaridade, não
tenham atingido o nível 3 de alfabetismo e, ainda, que 22% dos que têm curso superior completo estejam nos
níveis 1 e 2.

Assim, embora os dados permitam concluir que a escolarização cumpre um papel fundamental na promoção de
habilidades associadas ao letramento, indicam também que, em um número não desprezível de casos, é
negada a relação entre escolarização e tais habilidades. Para explicar essa discrepância entre grau de instrução
e nível de letramento, a atitude mais freqüente é a de responsabilizar a escola, explicação que deve ser posta
sob suspeita, à luz de pelo menos duas hipóteses.

Em primeiro lugar, é preciso considerar a possibilidade da ocorrência de um retorno ou reversão a níveis de


habilidades inferiores àqueles atingidos por via do processo de escolarização, em decorrência de pouco ou
nenhum uso da leitura e da escrita fora da escola, seja por falta de oportunidades, seja por falta de interesse.

Em segundo lugar, é preciso considerar que um período longo de tempo pode estar interposto entre a época em
que ocorreu a escolarização e o momento da avaliação das habilidades de leitura e escrita, de modo que, ao ser
submetido a um teste de leitura, ou o indivíduo pode estar afastado por muitos anos da situação “teste”,
demonstrando um desempenho deficiente por estranheza diante dessa situação, ou as habilidades de leitura
avaliadas pelo teste podem não ser mais aquelas desenvolvidas pela escola na época em que o indivíduo a
freqüentou.

Há ainda uma terceira hipótese a considerar, como possível explicação para os casos de ausência de relação
entre grau de instrução e níveis de letramento, esta talvez indicando uma relativa responsabilidade do processo
de escolarização, uma hipótese que será desenvolvida nos tópicos seguintes deste texto, mas que já se adianta
aqui: a obtenção de um mau resultado num teste de avaliação de habilidades de leitura e escrita por indivíduos
com alto grau de instrução pode se explicar por um possível distanciamento entre o letramento escolar — as
habilidades de leitura e de escrita desenvolvidas na e pela escola — e o letramento social — as habilidades
demandadas pelas práticas de letramento que circulam na sociedade.

Entre as duas alternativas aqui apresentadas para a discussão das relações entre grau de instrução e
letramento — a inferência de níveis de letramento a partir de graus de instrução ou, ao contrário, a identificação
dos graus de instrução correspondentes a níveis de habilidades de letramento (ou alfabetismo) definida por meio
de verificação direta —, a segunda alternativa, que o Inaf permite explorar, parece mais adequada, não só
porque evita a arbitrariedade da escolha de um certo grau de instrução como indicativo de um certo nível de
letramento, mas também porque foge ao pressuposto bastante discutível de que natureza e qualidade da
escolarização promovem realmente as necessárias e pertinentes habilidades e práticas de leitura e de escrita,
na seqüência apropriada ao longo dos ciclos e séries de instrução, e de forma uniforme entre as muitas escolas,
de modo a poder-se inferir que o mesmo nível de letramento seja alcançado nos mesmos pontos do processo
de escolarização em todas as escolas.

É discutível o pressuposto de que a escolarização promove realmente as necessárias e pertinentes habilidades


e práticas de leitura e de escrita, na seqüência apropriada e de forma uniforme entre as muitas escolas.
Entretanto, um outro pressuposto, que merece reflexão, fundamenta a correspondência que se pode estabelecer
entre graus de instrução e níveis de alfabetismo empiricamente definidos por meio de teste de habilidades de
leitura e escrita: o pressuposto de que o nível de alfabetismo revelado pelo teste se explica pelo
desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita ao longo do processo de escolarização. Um confronto
entre avaliações escolares e a avaliação não-escolar do Inaf 2001 permite levantar hipóteses sobre a existência,
ou não, de correspondência entre o desenvolvimento do letramento na escola e as demandas sociais de leitura
e escrita. É o que se discute no próximo tópico.

MEDIDAS ESCOLARES E MEDIADAS NÃO-ESCOLARES DE


HABILIDADES DE LETRAMENTO

A partir da última década — os anos 90 do século recém-findo —, as políticas públicas na área da Educação
vêm dando grande ênfase à avaliação dos sistemas escolares, nos três níveis de ensino. Foge aos limites deste
texto discutir as causas desse fenômeno e caracterizar o contexto em que ele surge e que o explica11; o que
aqui interessa é destacar que essa ênfase tem se concentrado, sobretudo na avaliação do rendimento escolar
dos alunos — a própria Lei atual de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada naqueles anos 1990
(em dezembro de 1996), estabelece que a União deve assegurar o processo nacional de avaliação do
rendimento escolar nos ensinos Fundamental, Médio e Superior, com a cooperação dos sistemas, objetivando a
definição de prioridades e a melhoria da qualidade de ensino (art. 92, inciso VI). Essa ênfase em avaliação do
rendimento escolar gerou várias iniciativas: nacionais, como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica (Saeb), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o Exame Nacional de Cursos (o “Provão”);
estaduais, como o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) e o Sistema
Mineiro de Avaliação da Educação Pública (Simave); e ainda gerou a participação do Brasil em avaliações
internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Em todas essas iniciativas,
tem recebido especial destaque a avaliação do rendimento em leitura e escrita, isto é, níveis de habilidades de
letramento nos diferentes graus de ensino.

É elucidativo o confronto entre as habilidades de leitura e escrita privilegiadas em avaliações escolares e as


privilegiadas na avaliação não-escolar feita pelo Inaf.

Para a reflexão que neste texto se vem desenvolvendo sobre as relações entre níveis de escolarização e níveis
de letramento, seria certamente elucidativo um confronto entre as habilidades de leitura e escrita privilegiadas
nessas avaliações escolares e as privilegiadas na avaliação não-escolar feita pelo Inaf. Sem a pretensão de
aprofundar nesse confronto, para cuja fundamentação ainda não foram realizadas pesquisas, apresentam-se
aqui apenas algumas hipóteses que podem ser levantadas com base em características das provas do Saeb em
comparação com características do teste utilizado no Inaf.

Para a discussão e o aprofundamento dessa questão, ver duas obras recentes, muito elucidativas: Franco
(2001) e Bonamino (2002).

Em primeiro lugar, os dois instrumentos de avaliação — provas do Saeb, aplicadas a cada dois anos a uma
amostra nacional de alunos de escolas públicas e particulares da 4ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e da 3ª
série do Ensino Médio, e teste utilizado no Inaf, aplicado em 2001 a uma amostra nacional de 2 mil pessoas de
15 a 64 anos — distinguem-se quanto ao suporte em que os textos de que decorrem questões de leitura12 são
apresentados. Enquanto os textos para leitura, no teste do Inaf, foram apresentados em uma revista de
variedades construída especialmente para essa finalidade, mas semelhante às que circulam na sociedade,
revista que os jovens e adultos folheavam e consultavam, para responder à maioria das questões propostas, os
textos para leitura, nas provas do Saeb, são reproduzidos no próprio caderno da prova, afastados de seu
portador original, cada um deles seguido de uma ou mais questões de compreensão e interpretação.

Em segundo lugar, e, em parte, em decorrência da diferença entre os suportes acima mencionada, os dois
instrumentos distinguem-se quanto ao gênero dos textos. Embora em ambos os casos sejam propostas a leitura
e a interpretação diferentes de gêneros de texto, as provas do Saeb incluem número significativo de textos
literários, ausentes no teste da pesquisa sobre alfabetismo funcional, que privilegiou gêneros que têm presença
ampla nas práticas sociais de leitura, sobretudo na mídia impressa. Além disso, a seleção dos textos, nas
provas do Saeb, obedece a determinados critérios internos ao próprio texto: a estrutura do texto — simples ou
complexa — e sua organização interna — estrutura dos períodos, tamanho das frases, organização dos
elementos coesivos, tipo de linguagem, forma de abordagem do assunto e tópico selecionado, adequando-a à
série avaliada (Inep 2001). Já no teste do Inaf, a seleção dos textos foi feita por critérios de uso social,
compondo-se a revista com textos típicos da mídia impressa, com a estrutura e a organização interna que os
caracteriza, sem se levar em consideração simplicidade ou complexidade e aspectos lingüísticos de organização
sintática ou discursiva.

Um terceiro aspecto que diferencia os dois instrumentos de avaliação é o modo de ler e de compreender que
cada instrumento impõe aos indivíduos a ele submetidos. No teste de avaliação utilizado na pesquisa sobre o
alfabetismo funcional, as perguntas sobre os textos foram questões abertas, quase todas formuladas oralmente
pelo entrevistador — a situação, embora, sem dúvida, artificial, procurou aproximar-se de situações reais de
leitura, em que o leitor busca resposta a perguntas que ele mesmo se faz ou alguém lhe faz, sob a forma de
uma frase interrogativa, explicitamente formulada ou apenas intuída, e cuja resposta deve ser encontrada por
ele próprio. Ao contrário, nas provas do Saeb, as questões sobre os textos devem ser lidas pelo próprio aluno e
são de escolha múltipla: uma frase incompleta que o aluno deve completar, assinalando a alternativa correta
entre várias opções — situação bastante diferente do modo de ler e de compreender em práticas reais de
leitura, em que dúvidas do leitor não se apresentam sob a forma de frases incompletas nem são resolvidas por
meio de escolha de uma resposta entre várias alternativas propostas.

Considera-se, para esta análise, a área da leitura, uma vez que as provas do Saeb avaliam apenas habilidades
nessa área, também predominante no teste utilizado na Pesquisa Nacional de Alfabetismo Funcional.

Finalmente, os dois instrumentos se diferenciam, e este aspecto explica, de certa forma, os anteriores, quanto
aos pressupostos que orientam a seleção das habilidades de leitura a serem avaliadas. A construção dos itens
de prova do Saeb baseia-se em uma matriz de descritores “concebidos e formulados como uma associação
entre conteúdos curriculares e operações mentais desenvolvidas pelos alunos, que se traduzem em certas
competências e habilidades” (MEC. Inep, 2001); o pressuposto que orienta a construção das provas é, pois, que
elas devem avaliar habilidades que resultem de uma articulação entre conteúdos curriculares nas áreas da
leitura e das operações intelectuais. Decorre daí que, como afirmam Bonamino, Coscarelli e Franco (2002: 100),
essa concepção (do Saeb) reflete uma visão muito escolar da leitura, que utiliza como parâmetro o que o aluno
consegue fazer com o texto, e não exatamente uma concepção voltada para a valorização dos usos sociais da
linguagem13. Ao contrário, são os usos sociais da escrita que orientam o teste utilizado na Pesquisa Nacional
de Analfabetismo Funcional, que busca, como esclarece Ribeiro (2001:296–297), verificar habilidades de leitura
com base em matrizes relativas às esferas de práticas de letramento: a esfera doméstica, […] a do trabalho, a
do lazer, a da educação, a da participação social e política e a da religião, tendo-se optado, com base nessas
“matrizes, pela verificação das habilidades mais recorrentes nas diversas práticas, […] tentando aproximar ao
máximo os textos e as tarefas àquelas mais freqüentes no cotidiano”. Assim, enquanto as provas do Saeb
orientam-se pelos conteúdos escolares, o teste da pesquisa sobre o alfabetismo funcional orientou-se pelos
usos que são feitos da leitura no contexto social; enquanto as provas do Saeb buscam avaliar as competências
cognitivas que os conteúdos escolares devem desenvolver, o teste da pesquisa sobre o alfabetismo funcional
buscou avaliar as habilidades necessárias ao desempenho de tarefas de leitura freqüentes nas práticas sociais.

Para uma análise mais ampla da natureza escolar das provas do Saeb, ver o capítulo V da obra de Bonamino
(2002).
Em síntese, um confronto, ainda que superficial, entre as provas do Saeb e o teste utilizado no Inaf 2001
evidencia que as primeiras remetem a situações de instrução na área da leitura, representativas de práticas
escolares de leitura, enquanto o segundo procurou aproximar-se o mais possível de situações reais de leitura,
representativas de práticas sociais que envolvem a escrita. Subjacentes a esses dois instrumentos, estão, pois,
conceitos diferentes de letramento, que se concretizam em diferenças significativas em relação aos objetos de
leitura — portadores e gêneros de texto, aos modos de ler e compreender, aos pressupostos para a definição
das habilidades relevantes para uma prática de leitura; enfim, pode-se concluir que há um conceito escolar de
letramento que difere de um conceito não-escolar de letramento. Essa conclusão sugere dois temas de
discussão: primeiro, suscita uma reflexão sobre as diferenças entre práticas escolares e práticas sociais de
leitura e de escrita, que é o que se fará no próximo tópico; segundo, provoca uma dúvida — se são diferentes os
conceitos e as práticas de letramento na escola e na sociedade, o que explica a correlação positiva entre níveis
de escolarização ou graus de instrução, e níveis de letramento avaliados com base nas práticas sociais de
letramento? Possíveis respostas a essa dúvida constituirão o tópico final deste texto.

LETRAMENTO ESCOLAR E LETRAMENTO SOCAIL: EVENTOS E PRÁTICAS

A partir dos anos 1980, às perspectivas psicológica e histórica predominantes nos estudos e nas pesquisas
sobre letramento somou-se uma perspectiva social e etnográfica, de que são obras seminais Ways with words,
de Shirley Heath (1983) e Literacy in theory and practice, de Brian Street (1984). Essa perspectiva, que se
consolidou nos anos 1990 sob a denominação de New Literacy Studies, trouxe, além de novos princípios e
pressupostos teóricos, alguns instrumentais para a análise do fenômeno do letramento, entre os quais se
destacam dois pares de conceitos: de um lado, dois “modelos” de letramento, o modelo autônomo em confronto
com o modelo ideológico; de outro lado, dois componentes básicos do fenômeno do letramento, os eventos e as
práticas de letramento14. Embora fosse elucidativo comparar, sob a perspectiva dos modelos autônomo e
ideológico, o letramento que se desenvolve na escola com o que ocorre fora da escola15, são os conceitos de
eventos e práticas de letramento que sobretudo permitem fundamentar a distinção anteriormente feita entre um
letramento escolar e um letramento não-escolar, aqui denominado, talvez impropriamente, letramento social16.

Por eventos de letramento, designam-se as situações em que a língua escrita é parte integrante da natureza da
interação entre os participantes e de seus processos de interpretação (Heath, 1982:93), seja uma interação face
a face, em que pessoas interagem oralmente com a mediação da leitura ou da escrita (por exemplo: discutir
uma notícia do jornal com alguém, construir um texto com a colaboração de alguém), seja uma interação à
distância, autor–leitor ou leitor–autor (por exemplo: escrever uma carta, ler um anúncio, um livro). Por práticas
de letramento, designam-se tanto os comportamentos exercidos pelos participantes num evento de letramento
quanto as concepções sociais e culturais que o configuram, determinam sua interpretação e dão sentido aos
usos da leitura e/ou da escrita naquela particular situação (Street, 1995a:2).

A distinção entre eventos e práticas de letramento é exclusivamente metodológica, já que são duas faces de
uma mesma realidade. O conceito de eventos de letramento, dissociado do conceito de práticas de letramento,
não ultrapassa, segundo Street (2001:11), o nível da descrição, embora tenha a vantagem de orientar o
pesquisador ou estudioso para a observação de situações que envolvem a língua escrita e para a identificação
das características dessas situações; não revela, porém, como são construídos, em determinado evento, os
sentidos e os significados, produtos não só da situação e de suas características específicas, mas também das
convenções e concepções que as ultrapassam, de natureza cultural e social. É o uso do conceito de práticas de
letramento como instrumento de análise que permite a interpretação do evento para além de sua descrição.
As observações anteriormente feitas sobre as diferenças entre um
instrumento de avaliação do letramento escolar e um instrumento de avaliação do letramento social já apontam
para diferenças entre os eventos e as práticas escolares e os eventos e as práticas sociais de letramento,
pressupostos nas questões propostas. Para evidenciar essas diferenças, sugere-se a comparação de eventos e
práticas de letramento na vida cotidiana e na escola, facilmente reconhecíveis:

Na vida cotidiana, uma narrativa, um poema aparecem em um livro que atrai pela capa, pelo autor, pela
recomendação de alguém; folheia-se o livro, examina-se o sumário, a orelha, a quarta página, escolhe-se um
trecho, um poema, começa-se a ler, abandona-se a leitura, por desinteresse ou por falta de tempo, continua-se
depois, ou não; na escola, a narrativa ou o poema estão na página do manual didático ou reproduzidos numa
folha solta, desligados de seu portador original, não há escolha, devem ser lidos e relidos, haja ou não interesse
nisso, questões de compreensão, de interpretação são propostas — é preciso determinar a estrutura da
narrativa, o ponto de vista do narrador, caracterizar personagens ou identificar estrofes, versos, rimas do poema,
interpretar metáforas.

Na vida cotidiana, um anúncio publicitário é visto de relance em um outdoor, ao se atravessar uma rua, ou em
uma página impressa, ao se folhear uma revista, e é lido casualmente, em geral, superficialmente,
eventualmente comentado com alguém; na escola, o anúncio publicitário aparece reproduzido numa página do
manual didático, fora de seu contexto original; deve ser analisado, interpretado; questões devem ser
respondidas, respostas são confrontadas e discutidas.

Na vida cotidiana, o jornal é folheado em casa, no ônibus, no banco da praça, o leitor escolhe, levado por
interesses pessoais ou profissionais, uma determinada reportagem ou notícia, graficamente apresentada em
colunas, acompanhada de fotos, e lê com maior ou menor atenção, para logo em seguida passar a outras
páginas; na escola, a reportagem ou notícia aparece reproduzida no manual didático ou em folhas soltas, com
outra apresentação gráfica, e, haja ou não interesse, deve ser lida com atenção, deve ser interpretada,
pressupostos devem ser identificados, inferências devem ser feitas.

Em cada um dos exemplos acima, descrevem-se eventos e práticas de letramento em que o “material escrito”
envolvido é essencialmente o mesmo: texto literário, anúncio publicitário, reportagem ou notícia de jornal;
entretanto, são eventos e práticas fundamentalmente diferentes: na vida cotidiana, eventos e práticas de
letramento surgem em circunstâncias da vida social ou profissional, respondem a necessidades ou interesses
pessoais ou grupais, são vividos e interpretados de forma natural, até mesmo espontânea; na escola, eventos e
práticas de letramento são planejados e instituídos, selecionados por critérios pedagógicos, com objetivos
predeterminados, visando à aprendizagem e quase sempre conduzindo a atividades de avaliação. De certa
forma, a escola autonomiza as atividades de leitura e de escrita em relação a suas circunstâncias e usos
sociais, criando seus próprios e peculiares eventos e suas próprias e peculiares práticas de letramento. É a
pedagogização do letramento, nos termos de Street (1995b:106, 118), processo pelo qual a leitura e a escrita,
no contexto escolar, integram eventos e práticas sociais específicas, associadas à aprendizagem, de natureza
bastante diferente de eventos e práticas associados a objetivos e a concepções não-escolares.

De certa forma, a escola autonomiza as atividades de leitura e de escrita em relação a suas circunstâncias e
seus usos sociais, criando seus próprios e peculiares eventos e suas próprias e peculiares práticas de
letramento.
Essa pedagogização da leitura e da escrita — dos eventos e das práticas de letramento — é, porém, inerente à
necessária e inevitável escolarização de conhecimentos e práticas (atribuindo-se aqui a escolarização um
complemento “coisa”, não “pessoa”), resultado da transposição didática de práticas e saberes, nos termos de
Chevallard (1997/1991); consideradas como “saber a ensinar”, a leitura e a escrita sofrem transformações que
Perrenoud (1993:25) assim caracteriza:

A escola submete os saberes e, de uma maneira global, as práticas e as culturas, a um conjunto de


transformações para os tornar ensináveis. Podem distinguir-se três fases:

Dos saberes doutos ou sociais aos saberes a ensinar (ou, de uma forma mais geral, da cultura extra-escolar ao
currículo formal).

Dos saberes a ensinar aos saberes ensinados (ou do currículo formal ao currículo real).

Dos saberes ensinados aos saberes adquiridos (ou do currículo real à aprendizagem efetiva dos alunos).

No caso da leitura e da escrita, trata-se de práticas sociais de letramento transformadas em práticas de


letramento a ensinar (no sentido atribuído a “práticas” na expressão práticas de letramento, acima conceituada);
estas, por sua vez, transformam-se em práticas de letramento ensinadas que, finalmente, resultam em práticas
de letramento adquiridas. Em outras palavras, práticas de letramento a ensinar são aquelas que, entre as
numerosas que ocorrem nos eventos sociais de letramento, a escola seleciona para torná-Ias objetos de ensino,
incorporadas aos currículos, aos programas, aos projetos pedagógicos; concretizadas em manuais didáticos17.
Práticas de letramento ensinadas são aquelas que ocorrem na instância real da sala de aula, pela tradução
dos dispositivos curriculares e programáticos e das propostas dos manuais didáticos em ações docentes,
desenvolvidas em eventos de letramento que, por mais que tentem reproduzir os eventos sociais reais, são
sempre artificiais e didaticamente padronizados; práticas de letramento adquiridas são aquelas, de que, entre
as ensinadas, os alunos efetivamente se apropriam e levam consigo para a vida fora da escola.

Alguns dados coletados por meio do questionário que, além do teste de avaliação de habilidades de letramento,
foi aplicado à amostra, no Inaf 2001, revelam claramente os resultados da “transposição didática” das práticas
de leitura e escrita e a “pedagogização” do letramento no contexto escolar.

Diante de uma lista de práticas de leitura e escrita, entre as quais os elementos da amostra que eram
estudantes deveriam indicar as que costumavam realizar na escola ou faculdade, as que obtiveram mais altas
porcentagens de indicação foram fazer trabalhos em grupo (72%), fazer redação ou trabalhos (65%), copiar
matérias, textos e exercícios do quadro-negro e estudar ou preparar-se para provas e avaliações (ambos 64%);
responder questionários ou fazer exercícios (63%); verifica-se que são práticas essencialmente escolares,
raramente ou nunca exercidas fora do contexto de ensino e aprendizagem.

Da mesma forma, diante de uma lista de tipos de textos, entre os quais os estudantes participantes da amostra
deveriam indicar os que costumavam ler, na escola ou faculdade, obtiveram indicação muito superior aos
demais os livros didáticos (59%) e as apostilas (56%); para todos os demais tipos de texto, as indicações foram
inferiores a 50%, sendo que textos de presença forte no contexto social, como jornais, obtiveram indicações em
número bem inferior (28% para jornais) e textos menos didáticos, como os livros técnicos, teóricos ou ensaios,
não ultrapassaram 20% de indicações.

Para vários estudiosos (ver, por exemplo, Cook-Gumperz, 1986, Street, 1995b), o letramento escolar, resultado
da pedagogização do letramento social, acaba por dominar o letramento social: ultrapassa as paredes da
escola, como conseqüência do prestígio dessa instituição como instância social e cultural, de tal forma que o
conceito escolar de letramento contamina os eventos e as práticas no contexto extra-escolar, impondo
comportamentos escolares de letramento e marginalizando outras variedades de letramento próprias desse
contexto. Segundo esses estudiosos, é como se o letramento social, passando pelo crivo da escolarização,
retornasse à sociedade “corrompido” pelo letramento escolar. Ocorreria aqui algo semelhante ao que ocorre
com o vínculo entre alfabetização e escolarização, mencionado anteriormente, em que a alfabetização escolar
se torna padrão e parâmetro para as modalidades de alfabetização não-escolar.

O conceito escolar de letramento contamina os eventos e as práticas no contexto extra-escolar, impondo


comportamentos escolares de letramento e marginalizando outras variedades de letramento próprias desse
contexto.
Essas relações entre letramento escolar e letramento social têm sido objeto de estudos e pesquisas de natureza
etnográfica em comunidades de outros países (Heath, 1983, Street, 1995b), mas ainda não vêm sendo
desenvolvidas no contexto brasileiro; alguns resultados do Inaf 2001 permitem, porém, algumas reflexões sobre
a influência do letramento escolar sobre as práticas sociais de letramento, mais especificamente, sobre as
práticas de leitura.

Ao ser solicitado aos participantes da amostra que indicassem os tipos de material escrito que possuíam em sua
residência, o maior número de indicações recaiu sobre registros memorialísticos — álbum de família, fotos
(89%) — e impressos de controle do tempo — calendários e folhinhas (89%) —, opções de caráter individual e
social, certamente não resultantes do trabalho escolar com a leitura — o dado parece negar uma pedagogização
do letramento social. Também grande número de indicações recaiu sobre Bíblia, livros sagrados ou religiosos
(86%), superando em muito o número de indicações de materiais mais diretamente ligados ao letramento
escolar — dicionário (65%), enciclopédia (35%), livro didático (59%) —, revelando que a religião talvez exerça
influência maior sobre o letramento social que a escola.

Por outro lado, e contraditoriamente, é interessante observar que, considerando a categoria livros, recebe maior
número de indicações de posse o livro didático (59%), mais que qualquer outro tipo de livro, o que
provavelmente tem relação com a freqüência com que livros didáticos são lidos na escola, como mencionado
anteriormente; outros tipos de livros recebem um número bem menor de indicações — livros de
literatura/romances (44%) e livros técnicos (34%) —, o que talvez reforce o argumento em favor de uma
pedagogização do letramento social, permitindo aventar a hipótese de que a escola leva a uma valorização
excessiva do livro didático, em detrimento de outros livros menos efêmeros. Isso se confirma com os dados
sobre o número de livros existentes na residência dos participantes da amostra: um número significativo de
participantes — mais de um terço (37%) — declarou possuir um número muito pequeno de livros: menos de dez.

Outro resultado do Inaf 2001 significativo para uma reflexão a respeito da possível influência do letramento
escolar sobre o letramento social são os dados a respeito dos materiais que os participantes que responderam
gostar de ler declararam preferir, na leitura “Para se distrair ou passar o tempo”. As respostas parecem
contrariar o argumento a favor de uma pedagogização do letramento social, porque mostram que os gêneros e
portadores de textos preferidos pelo conjunto dos participantes que gostam de ler não são aqueles privilegiados
na escola: 49% das indicações recaem em revistas, 44%, em jornais, portadores que, em geral, não têm grande
presença nas práticas escolares de letramento; além disso, confirma-se aqui, para o conjunto dos participantes
que declararam gostar de ler, a influência da religião superando a da escola, pois Bíblia, livros sagrados ou
religiosos são indicados por 43% deles como leitura de lazer preferida.

Entretanto, surgem argumentos a favor da influência da escolarização sobre o letramento social quando se
relacionam os dados com o grau de instrução. Assim, se os dados sobre o número de livros existentes na
residência dos participantes são cruzados com as informações sobre graus de instrução, verifica-se que apenas
1% dos que têm curso superior incompleto ou mais declararam possuir menos de dez livros, enquanto 60%
declararam possuir mais de cinqüenta livros, ou seja: quanto mais alto o grau de instrução, mais importância é
atribuída à posse de livros. Da mesma forma, relacionando os dados sobre preferências quanto à leitura de lazer
com os dados sobre graus de instrução, constata-se que a preferência pela leitura de revistas e jornais cresce à
medida que aumenta o grau de instrução — 64% para revistas e 53% para jornais, entre os que tinham curso
superior incompleto ou mais, ao passo que a leitura de Bíblia, livros religiosos e sagrados decresce bastante,
baixando para 23% entre os que tinham curso superior incompleto ou mais, o que permite supor que o grau de
instrução tem influência significativa sobre a leitura para o lazer.

RETOMANDO AS RELAÇÕES ENTRE ESCOLARIZAÇÃO E LETRAMENTO

As reflexões feitas ao longo deste texto sobre as relações entre escolarização e letramento parecem conduzir a
um paradoxo: de um lado, há diferenças significativas entre o letramento escolar e o letramento social; de outro
lado, há uma correlação positiva entre grau de instrução e níveis de letramento. Em outras palavras,
consideradas as diferenças entre os eventos e as práticas escolares de letramento, não se poderia esperar que
o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e atitudes de leitura e de escrita no e pelo processo de
escolarização habilitasse os indivíduos à participação efetiva e competente nos eventos e nas práticas sociais
de letramento; no entanto, os dados mostram que, de maneira significativa, embora não absoluta, quanto mais
longo o processo de escolarização, quanto mais os indivíduos participam de eventos e práticas escolares de
letramento, mais bem-sucedidos são nos eventos e nas práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita.
Esse paradoxo talvez possa ser esclarecido, reconhecendo-se, no quadro teórico dos New Literacy Studies, em
primeiro lugar, que há múltiplos letramentos, isto é, os eventos e as práticas de letramento são muitos e diversos
(Street, 1995), e talvez se pudesse falar de letramentos escolares e de letramentos sociais, no plural; em
segundo lugar, que esses letramentos são “situados” (Barton, Hamilton e Ivanic, 2000), isto é, estão inseridos
em determinados espaços e determinados tempos, o que lhes dá, a cada um, uma especificidade, embora
sempre imersos em processos sociais mais amplos; em terceiro lugar, e como conseqüência dessa inserção em
processos sociais mais amplos, que as habilidades de participação em eventos e práticas de letramento são
conseqüência mais de experiências sociais e culturais em situações que envolvem a leitura e a escrita que
propriamente do desenvolvimento formal dessas habilidades (Street, 1995). A hipótese aqui é, então, que
letramento escolar e letramento social, embora situados em diferentes espaços e em diferentes tempos, são
partes dos mesmos processos sociais mais amplos, o que explicaria por que experiências sociais e culturais de
uso da leitura e da escrita proporcionadas pelo processo de escolarização acabam por habilitar os indivíduos à
participação em experiências sociais e culturais de uso da leitura e da escrita no contexto social extra-escolar.

Não mais que uma hipótese — na verdade, é preciso reconhecer que as relações entre letramento e
escolarização são ainda imprecisas e obscuras —, este texto pretendeu sobretudo indicar algumas dessas
imprecisões e obscuridades. É necessário que pesquisas sejam desenvolvidas para caracterizar e confrontar
letramento escolar e letramento social, para buscar as relações entre um e outro, para, enfim e sobretudo,
compreender as conseqüências da escolarização, da leitura e da escrita sobre as práticas e o uso sociais de
leitura e de escrita, temas que, neste texto, foram objeto de apenas algumas reflexões e hipóteses.

O letramento escolar e o letramento social, embora situados em diferentes espaços e em diferentes tempos, são
partes dos mesmos processos sociais mais amplos

1 Professora Titular Emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

2 Antes do surgimento da palavra letramento, e ainda hoje, usava-se/usa-se apenas a palavra alfabetização
para referir-se à inserção do indivíduo no mundo de escrita, tornando-se sempre necessário, nesse caso,
explicitar que por alfabetização não se estava/está entendendo apenas a aquisição da tecnologia da escrita,
mas, mais amplamente, a formação do cidadão leitor e escritor. O uso da palavra letramento vem distinguir os
dois processos, por um lado garantindo a especificidade do processo de aquisição da tecnologia da escrita, por
outro lado atribuindo não só especificidade, mas também visibilidade ao processo de desenvolvimento de
habilidades e atitudes de uso dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita. Para
programas de inserção de indivíduos no mundo da escrita, essa distinção é útil, sobretudo em países que ainda
enfrentam altos índices de analfabetismo, como é o caso do Brasil; em países onde praticamente já não existem
analfabetos, a distinção parece tornar-se desnecessária: na literatura de língua inglesa, uma única palavra,
literacy, designa o processo de inserção no mundo da escrita, referindo-se tanto à aquisição da tecnologia
quanto ao seu uso competente nas práticas sociais de leitura e de escrita.

3 Entende-se por alfabetização, em seu sentido próprio, o uso da palavra para referência exclusivamente à
aquisição da tecnologia da escrita; a restrição aqui feita se justifica porque a palavra vem sendo freqüentemente
utilizada em sentido ampliado, em geral seguida de adjetivo caracterizador, para referir-se à aquisição de
tecnologias de outra natureza: alfabetização numérica, alfabetização digital, alfabetização científica,
alfabetização musical, etc.

4 Tal como ocorre com a palavra alfabetização (cf. nota 2), também a palavra letramento tem sofrido uma
ampliação de seu significado original, ou para destacar a multiplicidade das práticas sociais de leitura e escrita
(cf., por exemplo, Street, 1995a) ou para designar práticas de interação de outra natureza, além das práticas
“visuais” que são a leitura e a escrita (interação pelas linguagens musical, corporal, gestual, etc.); enquanto,
porém, no caso da alfabetização, a ampliação de sentido vem indicada pelo uso de adjetivos caracterizadores;
no caso do letramento, tem-se optado pelo uso da palavra no plural: é freqüente o uso de literacies em
bibliografia recente de língua inglesa e o uso do plural illettrismes em bibliografia de língua francesa. Dados os
objetivos deste texto, não se discute a pertinência dessa ampliação do sentido de letramento e usa-se aqui a
palavra sempre no singular.

5 Embora seja uma questão que foge aos objetivos deste texto, convém lembrar que, na verdade, não se trata
propriamente de avaliação, mas de auto-avaliação, uma vez que os censos se baseiam na declaração do
informante, sem qualquer verificação, o que traz conseqüências para a confiabilidade dos dados.
6 É necessário lembrar que pode não haver equivalência entre número de anos de aprendizagem escolar, ou
seja, de escolarização, e grau de instrução, e freqüentemente não há em países em que, como no Brasil, as
taxas de repetência e retenção escolar ainda são altas, de modo que ter atingido um certo grau de instrução
pode representar uma permanência na escola por mais anos que o número de anos necessários para atingir
esse grau. Embora reconhecendo que seria interessante trabalhar com essa diferença, a fim de confrontar as
relações entre, de um lado, anos de escolarização e níveis de letramento e, de outro lado, grau de instrução e
níveis de letramento, neste texto, em função das possibilidades oferecidas pelos dados coletados no Inaf 2001,
ignora-se essa diferença e trabalha-se apenas com dados sobre grau de instrução.

7 É necessário esclarecer que a intenção original do autor era considerar quatro, e não três níveis de
letramento, com cortes em quatro momentos do processo de escolarização: na 1ª, na 4ª e na 8ª séries do
Ensino Fundamental e na 3ª série do Ensino Médio, com o objetivo de identificar o número de percentagem de
brasileiros em cada um desses quatro momentos e, portanto, em cada um de quatro diferentes níveis de
letramento. Seu estudo, porém, considerou apenas três momentos e, portanto, três níveis, porque os dados
estatísticos disponíveis agrupam todas as séries do Ensino Médio, não separando os concluintes dos que ainda
cursavam esse grau, impossibilitando, assim, a análise do nível 4.

8 O artigo de Alceu Ferraro publicado neste livro também trata dessa problemática (nota da editora).

9 Embora o teste tenha focalizado predominantemente as habilidades de leitura, uma vez que a análise de
produção escrita, quando se trata de número grande de indivíduos, como foi o caso, seria extremamente
trabalhosa e dispendiosa, várias das tarefas propostas exigiam que a resposta fosse escrita pelo próprio
respondente, permitindo, assim, uma avaliação também de habilidades de escrita.

10 Como se discute neste texto a relação entre escolarização e letramento, para o cálculo das percentagens, foi
excluído da população pesquisada o grupo de indivíduos que nunca freqüentaram escola: 134 em 2 mil — 114
analfabetos e vinte que, embora não tendo freqüentado escola, revelaram saber ler e escrever. Entretanto, é um
dado significativo que, entre os vinte sem escolarização, nove atingiram o nível 1 de letramento, seis o nível 2 e
um o nível 3, o que vem em apoio à afirmação anteriormente feita de que a escola nãoé a única instância de
alfabetização e de letramento. (Nota da editora: o artigo assinado por Marta Kolh de Oliveira e Cláudia Vóvio,
neste volume, analisa mais detidamente alguns desses casos de entrevistados que tiveram bom desempenho
no teste — níveis 2 e 3 —, apesar de não terem nenhum grau de instrução completo.)

11 Para a discussão e o aprofundamento dessa questão, ver duas obras recentes, muito elucidativas: Franco
(2001) e Bonamino (2002).

12 Considera-se, para essa análise, a área da leitura, uma vez que as provas do Saeb avaliam apenas
habilidades nessa área, também predominante no teste utilizado na Pesquisa Nacional de Alfabetismo
Funcional.

13 Para uma análise mais ampla da natureza escolar das provas do Saeb, ver o capítulo V da obra de
Bonamino (2002).

14 O binômio modelo autônomo–modelo ideológico foi proposto por Street (1984); esse mesmo autor, nessa
mesma obra, desenvolveu o conceito de práticas de letramento, já anteriormente utilizado como unidade de
análise em Scribner e Cole (1981); o conceito de evento de letramento foi proposto por Heath (1982 e 1983);
uma discussão recente sobre os dois conceitos e suas relações pode ser encontrada em Barton (1994) e em
Street (2001).

15 A hipótese é que a escola trabalha fundamentalmente no quadro do modelo autônomo de letramento, isto é,
tende a considerar as atividades de leitura e de escrita como neutras e universais, independentes dos
determinantes culturais e das estruturas de poder que as configuram, no contexto social, o que o modelo
ideológico nega; a predominância do modelo autônomo no processo de escolarização será, talvez, uma das
razões das diferenças que se manifestam entre o letramento escolar e o letramento social.

16 Pode-se buscar em Street (1995) suporte para o uso da expressão letramento social: esse autor justifica o
uso do adjetivo social no título de seu livro — Social literacies — com o argumento de que é necessário enfatizar
a natureza social do letramento, em oposição à tendência dominante de considerar letramento como um
fenômeno essencialmente “técnico” e individual. Aqui, o uso de letramento social tem apenas o objetivo de
contrastar o letramento que ocorre no contexto escolar (que, é obvio, é parte integrante do contexto social e,
portanto, é também social) com o letramento que ocorre fora da escola, em situações da vida cotidiana.

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