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THÁLYA NOVAES MARTINEZ

Após 1950, ano em que Lacan anuncia seu “retorno a Freud”, o autor formaliza
conceitos que serão recursos pelos quais irá trilhar o caminho de esmiuçar a obra de Freud a
seu modo. Em 1953 Lacan apresenta “Função e campo da palavra e da linguagem”, porém,
em 1964 surge o seminário denominado Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise,
trazendo consigo a particularidade de não ser restrito aos textos de Freud. Nesse ano, Lacan
anuncia sua “excomunhão”, como denominada por ele, sendo proibido pela Associação de
Psicanálise Internacional (IPA) de compor como participante as formações ofertadas pela
instituição, além de sofrer ataques com relação a sua prática associada à duração variável das
sessões, prática compreendida como oposta àquela proposta por Freud. A partir daí, Lacan
funda a Escola Freudiana de Paris, com base em sua compreensão de que a IPA estava
distanciando-se dos ensinamentos de Freud – o criador da Psicanálise (JORGE; M. A. C;
FERREIRA, N. P; 2005)

Lacan apontava o distanciamento dos conceitos fundamentais da psicanálise, que


estariam sendo desprezados pelos pós-freudianos. Um deles seria o inconsciente, visto que
estes acreditam ser a segunda tópica (Id, Ego e Superego) substituta da primeira (inconsciente,
subconsciente e consciente). Lacan o estuda, no seminário 11, como aquilo que pulsa, em um
movimento de abertura e fechamento. Na compreensão dos pós-freudianos, a repetição, outro
conceito posto entre os fundamentais, estaria demasiadamente emaranhado ao de
transferência. A pulsão seria um conceito compreendido pelos pós-Freudianos como
indiferenciado de “instinto”, devido à tradução inglesa, aspecto prontamente apontado por
Lacan em sua época, o que levaria a uma compreensão associada ao fator biológico, se
distanciando do que foi apreendido por Freud. (JORGE; M. A. C; FERREIRA, N. P; 2005)

Quando Lacan propõe o questionamento acerca dos deslizes e distanciamentos em


relação à Psicanálise Freudiana, o mesmo aponta para as deformações ocorridas ao longo do
tempo, como as citadas anteriormente – distanciamento e desconsideração do conceito de
inconsciente, tradução do conceito Trieb (pulsão) por impulso, associando este a um elemento
biológico, entre outras (FERREIRA, R. M; CASTILHO, P. (org) 2017).

No que se referem às críticas de Lacan a respeito aos pós-freudianos, aponta ainda


para o fato de o estudo de Freud ter se tornado acessório, visto que muitos estudiosos o
estudavam por meio de outros autores. Ao mesmo tempo em que Lacan preserva conceitos
como o de Trieb, observou-se seu emprenho em realizar novas formulações. Ainda que hoje
se compreendam que estas já estivessem na obra de Freud, ao serem denominadas e apontadas
inseriram no campo novas problemáticas. (JORGE, M. A, C; 2000)

A despeito dos desvios realizados pelos pós-freudianos no que concerne a


Psicanálise, há de nos questionarmos a respeito de como compreensões de conceitos
destituídas de considerações sobre o contexto são perigosas. Cabe considerar o que
Roudinesco (2011) menciona em seu livro denominado “Lacan a despeito de tudo e de
todos”:

[...] é evidente que o homem e sua obra continuam a ser objeto das
interpretações mais extravagantes, quando as gerações tendem a esquecer o que
aconteceu antes delas, dispostas a celebrar a anterioridade patrimonial e genealógica
de uma pretensa "idade do ouro", em lugar de uma reflexão sobre o passado
suscetível de esclarecer o futuro [...]

Entre os pós-freudianos Lacan foi exceção – abriu vistas ao alicerce filosófico,


distanciando a psicanálise de seus elos com o biológico, cuidadosamente, sem que isso
implicasse em uma modificação desta o algo análogo à espiritualidade. Posteriormente Lacan
se opôs a esse posicionamento, denominando-se como “antifilósofo” (ROUDINESCO, E;
2011).

O que houve pode ser descrito como uma tentativa de adaptação da Psicanálise,
empreendida por estudiosos da psicologia do Ego – as quais tinham a intenção de fazer com
que o ego do analista sirva de modelo ao ego do paciente, aliando o ego do analista a parte
desprovida de conflitos do analisando – na qual objetiva chegar ao equilíbrio (SANTOS, L. A.
R; 2011).

O retorno a Freud objetivado por Lacan, especificamente pós a excomunhão da IPA,


influencia no surgimento de um psicanalista característico, diferente do que havia no
imaginário social desse tempo – um psicanalista apático e silencioso (SANTOS, L. A. R;
2011)

No que concernem aos conceitos, como aponta Alexandre Simões, estes são
analisados somente em relação à prática, ao passo que são à base do manejo do Psicanalista.
A base conceitual atua como um apoio à atuação do Psicanalista, porém, há de se considerar
que o âmbito clínico também tem influências sobre o conceitual, fazendo com que um ou
outro conceito se sobressaia ou ocorra a destituição do mesmo em relação à sua importância
(FERREIRA, R. M; CASTILHO, P. (org) 2017).
Em 1953, no discurso de Roma, Lacan propõe que identifiquemos em nossos “atos”
uma linha, localizável, que regula a prática analítica (JORGE; M. A. C; FERREIRA, N. P;
2005). Especialmente a partir da consideração de conceitos, o horizonte baliza e indica o que
é possível de ser visto, apontando para a questão de que há algo que não é possível de ser
visualizado, ou seja, aponta para uma tensão constituinte de que o horizonte que delimita a
prática, a bordeja, é formado por aquilo que se encontra ali e simultaneamente não está
(FERREIRA, R. M; CASTILHO, P. (org) 2017).

Essas ditas “balizas” demarcaram a presença de Lacan junto à Psicanálise no Brasil,


fazendo com que analistas utilizassem indistintamente a sessão de tempo variável (SANTOS,
L. A. R; 2011).

Como referido por Marco Antonio Coutinho Jorge (2000), a introdução do ensino de
Lacan no Brasil seguiu as especificidades regionais, realizando-se fundamentalmente em
relação com a prática clínica.

A cidade do Rio de Janeiro foi a que incitou a divulgação da obra do autor com
maior assiduidade, sendo precursora de publicações das obras de Lacan uma célebre editora
carioca denominada Jorge Zahar. Uma das instituições pioneiras foi o Colégio Freudiano do
Rio de Janeiro, fundado em 1975. Com o passar do tempo houve a criação de outras
instituições, devido também ao distanciamento de alguns estudiosos do Colégio Freudiano.
Embora houvesse polêmicas associadas à instituição, esta foi responsável por difundir os
fundamentos da teoria lacaniana no Brasil. Esta transmissão foi caracterizada por retorno à
“letra” de Freud, fazendo com que analistas se interrogassem a respeito de sua prática
(JORGE, M. A, C; 2000).

Além das consequências já mencionadas, como o uso indiferenciado das sessões


curtas, outra consequência na qual podemos destacar desse primeiro momento do ensino de
Lacan no Brasil pode ser compreendida como o ato de simplificar a interpretação como um
mero “jogo de palavras”, distanciando-se claramente da experiência analítica proposta pelo
autor. Em contrapartida, tudo o que era mantido e defendido pelos analistas de modo
categórico passou a ser questionado, dentre tais questionamentos, se encontrava a reflexão do
autor no que concerne à ética da psicanálise (JORGE, M. A, C; 2017)

Desde os primórdios de seu ensino, Lacan recoloca na origem da Psicanálise o


aspecto fundamental da palavra, fato abandonado pelos pós-freudianos. Por meio de seus
Escritos, referido por alguns como de difícil compreensão, o autor propõe que os leitores
abarquem a si mesmos no ato da leitura, aproximando-se desta de modo singular. Dentre as
críticas do autor, é fundamental considerar aquela relacionada à “contratransferência do
analista”, transmitida pelos esforços de Heinrich Racker e compreendida como sentimentos e
concepções suscitados no analista pelo analisando. Esta se baseia no pressuposto de que
surgiria uma relação intersubjetiva entre analista e analisando. Porém, essa pressuposição está
relacionada ao entendimento da análise como uma relação entre eu-eu (analista e analisando),
objetivando que o analisando identifique seu eu ao eu do analista, conservando a alienação
que a análise busca eliminar. Esta desorientação em relação à prática proposta por Lacan
estaria relacionada à noção recorrente entre analistas pós-freudianos no que concerne a análise
das resistências (JORGE, M. A, C; 2017).

Diante do exposto, conclui-se que ao propor o retorno a Freud, Lacan revela o


distanciamento dos pós-freudianos no que se refere às proposições de Freud. Tal
distanciamento promoveu deformações na teoria e prática, que reverberaram – e reverberam –
até hoje no contexto clínico. Com seu ensino, Lacan foi capaz de romper com práticas e
conceituações propostas pela IPA que “engessavam” a análise, e propor questionamentos que
refletem na atuação e formação de analistas.

Depreende-se que, assim como proposto por Lacan o retorno a Freud, considera-se
fundamental retornar à Lacan, visto que, devido à dificuldade de alguns no que se refere à
leitura e compreensão, estes buscam somente a leitura de autores comentadores. A restrição à
leitura de autores comentadores retira da obra de Lacan a relevância de suas formalizações e a
singularidade destas.

[...] “Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise


dispõe de apenas um meio: a fala do paciente.” [...] – LACAN (1988; P.248)
REFERÊNCIAS

FERREIRA, R. M; CASTILHO, P (org.). Psicanálise em nosso tempo. Belo Horizonte.


(MG): Letramento, 2017.

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. vol.1:


as bases conceituais. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2000, 2ª. edição.

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Freud com Lacan: a psicanálise hoje. Reverso, Belo
Horizonte, v. 39, n. 73, p. 15-25, jun. 2017. Disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
73952017000100002&lng=pt&nrm=iso

JORGE, Marco Antonio Coutinho; FERREIRA, Nadiá Paulo; Lacan o grande Freudiano.
Ed. 2005., Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2005.

LACAN, J. (1953a). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Em Escritos. Rio


de Janeiro: Zahar, 1998.

ROUDINESCO, Elisabeth. Lacan, a despeito de tudo e de todos. Jorge Zahar, Rio de


Janeiro, 2011.

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