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A Comuna de Paris (1871)

Robert Ponge

O ano de 1996 marca o 125º aniversário da Comuna de Paris (1871). A data

propicia uma ocasião para debruçar-se — mesmo que rapidamente — e refletir

sobre algumas das divergências de interpretação que ainda agitam o mundo

dos historiadores e demais estudiosos das ciências sociais acerca da

insurreição parisiense. Não é porém inútil relembrar, inicial e brevemente, a história

daquele evento. Os fatos: o que provocou o "assalto ao céu" (Karl Marx) do povo

parisiense (18 de março a 28 de maio de 1871)?

CRISE E QUEDA DO II IMPÉRIO

Instituído através do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 (e "legalizado",

com amplo apoio, através de plebiscito, em 21/12/1851), o regime, de tipo

bonapartista, de Napoleão III veio para, externamente, garantir a paz e,

internamente, assegurar a autoridade, a ordem, a tranqüilidade contra a instabilidade

demonstrada pela II República (1848-51) e contra o perigo da revolução social —

operária, comunista — que, pela primeira vez, se manifestou, de forma concreta e

ameaçadora, nas Jornadas de Junho de 1848.

A partir do final dos anos 50 e início dos anos 60, entre as bases de apoio de

Napoleão, começam a surgir queixas, questionamentos a sua política (mas

não ao regime); estes desacordos nas cúpulas facilitam o renascimento de

oposições, tanto republicanas como socialistas, que o Imperador procura

esvaziar com algumas semi-medidas de cunho liberalizante. No decorrer dos


anos 60, as dificuldades crescem no terreno econômico. Na política externa e

militar, acontecem reveses (Itália, México); o Império já deixou de ser o

regime da paz. Primeira grande onda de greves em 1864, ano de outras

semi-medidas liberalizantes (entre as quais, o reconhecimento do direito de

coalizão; o direito de reunião será reconhecido apenas em 1868). Cresce

sobremaneira a oposição liberal e republicana; cresce também, mas em

outro compasso, menos impetuoso, mais cauteloso, a organização do

movimento operário, apoiando-se, inclusive, embora limitadamente, na

Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT, também conhecida como

"Internacional"), fundada em 1864, em Londres. Em 1867, nova grande onda

de greves, que se repete em 1869-70. Nas eleições de 1869 (24 de maio), as

oposições conseguem granjear mais de 40% dos votos: uma autêntica

vitória, celebrada com manifestações em Paris. Novas medidas liberalizantes

de Napoleão III (em 6 de setembro, são aumentados os poderes das duas

Assembléias), que também negocia a formação de um novo governo, dirigido

pelo ex-oposicionista moderado Émile Ollivier; este assume em 2 de janeiro

de 1870. Em 10 de janeiro, Victor Noir, jornalista do La Marseillaise, o

periódico dos republicanos mais radicais, é assassinado pelo príncipe Pierre

Bonaparte, primo do Imperador; uma multidão de cem, quiçá duzentas, mil

pessoas comparece a seu enterro: uma imponente manifestação política.

Procurando retomar a iniciativa, Napoleão III decide antecipar-se. Em 21 de

março de 1870, anuncia uma profunda reforma constitucional; concedida em

20 de abril, esta transforma o regime numa espécie de monarquia

parlamentar. O novo curso liberalizante do regime não o impede, entretanto,

de recorrer à repressão: em 30 de abril, sob o pretexto de controlar supostos


"complôs", o governo manda prender e processar todos os membros da

Internacional na França. Em 8 de maio, as reformas são submetidas a um

plebiscito; como não podia deixar de ser, são maciçamente aprovadas (sim:

7.350.000; não: 1.538.000), embora Paris, oposicionista, tenha votado

contra. As oposições ficam desnorteadas. É quando, na política interna,

intervém o fator da política externa. Desde 1864, vinham se deteriorando as

relações entre os governos da Prússia e da França, em decorrência da

política de unidade alemã desenvolvida por Bismarck e das mal sucedidas

tentativas de Napoleão III de obter dele algumas vantagens territoriais

(política das "gorjetas"). Finalmente, por ocasião da sucessão ao trono da

Espanha, Bismarck monta uma armadilha, na qual Napoleão apressa-se em

cair: apesar dos alertas de vários setores, burgueses e operários,1 o governo

francês declara, "de coração leve",2 guerra à Prússia, em 19 de julho de

1870. Apoiada pela imprensa, cujo lema é "a Berlim!", a decisão recebe um

amplo apoio da opinião pública, provoca cenas entusiásticas de chauvinismo

popular, inclusive de setores do movimento operário. Em 2 de agosto,

os embates começam. A superioridade do armamento, do treinamento e do

comando da tropa prussiana não demora para comprovar-se. Os erros

franceses encadeiam-se numa sucessão de derrotas, que leva à derrubada

de Ollivier e de seu ministério, sacrificados como bodes expiatórios. Em 1º de

setembro, começa a Batalha de Sedan que, no dia 2, termina em capitulação

francesa, incondicional; as cifras do desastre: três mil mortos, 14 mil feridos,

mais de oitenta mil prisioneiros, entre os quais 39 generais e o próprio

Imperador. Outrossim, a derrota de Sedan "implicava, cedo ou tarde, a perda

do exército [refugiado] em Metz e o sítio de Paris".3 A notícia do


desastre de Sedan levanta a população de Paris que, no dia 4, invade a

Câmara, exigindo a queda do regime; sob a pressão popular, o Império é

derrubado, a República proclamada e formado um Governo de Defesa

Nacional. A guerra, poderosa incubadora e acelerador social, deu cria à

revolução, época em que os prazos e ritmos políticos e sociais precipitam-se

violentamente. O GOVERNO DE DEFESA NACIONAL Presidido pelo

general Trochu e formado, principalmente, por deputados eleitos por Paris ao

Corpo Legislativo do II Império, o Governo de Defesa Nacional (GDN) é

composto por monarquistas (que controlam a polícia e as forças armadas) e

por republicanos burgueses que — Marx não esquecerá de lembrá-lo —

haviam ficado, quase todos, traumatizados e chamuscados pelas Jornadas

Revolucionárias de Junho de 1848. Na noite do próprio dia 4 de setembro,

uma reunião conjunta da seção parisiense da AIT e da Câmara Federal das

Sociedades Operárias define, como linha política, que "o governo provisório

não será atacado, devido à existência da guerra e, também, devido ao

pequeno grau de preparo das forças populares, ainda inorganizadas", mas

que serão reivindicados, "com urgência", a abolição imediata da polícia

imperial, a supressão da chefatura governamental de polícia em Paris, a

organização da polícia municipal, a revogação de todas as leis contra a

imprensa e contra os direitos de reunião e de associação, a eleição imediata

da representação municipal — vereadores e prefeito — de Paris (de que a

capital francesa está, até então, desprovida), o armamento imediato de todos

os franceses e o alistamento em massa para fazer frente à ofensiva das

tropas do rei da Prússia, etc.,4 decidem, ainda, impulsionar a constituição de

um Comitê Municipal formado por delegados de cada uma das vinte regiões
administrativas (arrondissements) de Paris. No dia seguinte, para viabilizar

esta última decisão, numa reunião a que comparecem cerca de quinhentas

pessoas (sinal dos tempos!), decidem lutar pela constituição de um Comitê

Republicano por cada região administrativa; cada Comitê delegará quatro de

seus membros para a formação de um Comitê Municipal. Decisões de

primeira ordem que incidirão sobremaneira sobre o curso dos

acontecimentos, ainda mais a partir do dia 11 de setembro, quando o Comitê

Municipal passará a existir, sob o nome de Comitê Central Republicano de

Defesa Nacional das Vinte Regiões de Paris. O GDN não se opõe às

reivindicações da reunião do dia 4; alegando que a vanguarda prussiana está

se aproximando de Paris, apenas argumenta que "a questão capital é ... a

resistência à invasão", 5 pede tempo (chegará a prometer eleições

municipais para o dia 28 de setembro e eleições gerais para o 2 de outubro),

mas já nomeia os prefeitos (com seus vices) das vinte regiões.

Posteriormente, descobrir-se-á que a grande maioria dos homens do

governo, a começar pelo seu Presidente, não acreditava nas possibilidades

de resistência frente às tropas prussianas. Em 15 de setembro, através de

cartazes afixados nas ruas da capital (o primeiro dos "cartazes vermelhos"

que se tornarão o veículo de informação de massas), o Comitê Central

Republicano — que havia começado a organizar Comissões para debruçar-

se sobre os mais diversos assuntos: polícia, subsistência, alojamento,

trabalho, etc. — divulga um manifesto no qual informa a população de sua

existência, bem como daquela dos Comitês Regionais ("de Defesa e

Vigilância"); dá, ainda, a conhecer a longa lista de medidas, propostas e

reivindicações que havia apresentado ao GDN. Este, por sua vez, no mesmo
dia, inicia negociações com a Prússia, com o intuito de obter o fim da guerra

em condições que não fossem humilhantes; em 19 de setembro, o ministro

francês das Relações Exteriores, Jules Favre, chegará a encontrar Bismarck,

cuja inflexibilidade impedirá o acordo (Marx observará que o governo

prussiano que, inicialmente, apresentara sua postura como "defensiva",

passara a adotar uma política de conquistas). Em 18 de setembro, as tropas

da Prússia alcançam Paris; totalmente cercada a partir do dia 19, a cidade

está, contudo, relativamente preparada para o sítio: o governo vinha, desde

agosto, constituindo provisões de farinha, arroz e trigo planejadas para

permitir à capital subsistir 71 dias; ainda conta com trinta mil cabeças de

gado e 180 mil carneiros, além das provisões providenciadas por

particulares!6 Quanto à tropa e ao armamento, não são desprezíveis, embora

de constituição desigual: 128 baterias de artilharia, cerca de 2700 canhões,

uma tropa regular de cerca de 75 mil homens e a tropa da Guarda Nacional

(inicialmente com cerca de noventa a cem mil homens, sobe para trezentos a

350 mil homens com o alistamento em massa).7 Existe, na cidade de Tours

(centro da França), uma Delegação do GDN, incumbida de representar o

governo e de reunir tropas encarregadas de desbloquear Paris, atacando os

prussianos por trás. Há uma pequena tentativa parisiense de furar o cerco em

19 de setembro, novamente no dia 29 e ainda no dia seguinte. Os reveses

confirmam o general Trochu, presidente do GDN, em sua opinião de que é

impossível romper o sítio. Em 23 de setembro, a cidade de Toul capitula

diante dos prussianos; no dia 29, será a vez da cidade de Estrasburgo. Em

24 do mesmo mês, o GDN desmarca sine die as prometidas eleições,

municipais e gerais. Verificam-se reações imediatas de protesto: do Comitê


Central Republicano e, no dia 26, de 140 chefes de batalhões da Guarda

Nacional; outras sucedem-se, com reivindicações idênticas (defesa sem

tréguas e eleições municipais): em 5 de outubro, são os batalhões do bairro

de Belleville; nos dias 6 e 7, os blanquistas das 13ª e 14ª Regiões; no dia 8, o

Comitê Central Republicano. Sem resultado nenhum; seu porte desigual e

ainda limitado (manifestações de vanguarda) impedem-nas de ser eficientes:

o GDN as ignora. Tentando justificar sua existência, a delegação do

GDN em Tours manda três colunas atacar em Toury; os prussianos contra-

atacam; derrota francesa em Orléans (10 de outubro). Em 11 de outubro, o

enérgico ministro Gambetta escapa de Paris, de balão, para reforçar e

dinamizar a delegação governamental; em quatro curtos meses, conseguirá

alistar, armar e equipar cerca de seiscentos mil homens, com 1.400 canhões.

Novas tentativas, limitadas, de romper o cerco à Paris ocorrem

localizadamente, redundando em fracasso. No dia 30 de setembro, correm

boatos de que o GDN estaria começando negociações de paz; ao mesmo tempo,

chega a Paris a notícia da capitulação do marechal Bazaine, sitiado em Metz,

que entregara, com a posição, em torno de 150 mil soldados, cerca de cinco

mil oficiais e cinqüenta generais! Paris é então percorrida por ondas de

perplexidade, descontentamento e revolta, que resultam em várias

manifestações, porém ainda de volume limitado (a massa popular está

ausente), desorganizadas, desconexas. Há uma malsucedida tentativa

blanquista de derrubar o governo,8 no entanto, sob a pressão, o GDN marca

a eleição municipal parisiense para os dias 5 e 7 de novembro, fazendo-as,

habilmente, anteceder de um plebiscito, no dia 3: "O Povo de Paris confia no

Governo de Defesa Nacional?". Como esperado, acontece uma esmagadora


vitória do sim. Porém, os resultados da eleição municipal revelam um relativo

equilíbrio entre os eleitos favoráveis ao governo e aqueles que o criticam e já

começam a contestá-lo. Novembro registra um decréscimo da atividade de

massas em Paris; sitiada, a cidade está como que concentrando todas as

suas forças em simplesmente manter-se inexpugnável e esperar que as

tropas de Gambetta a libertem. Desde Tours, este esforça-se para, não sem

dificuldades, lançar ofensivas visando furar o cerco prussiano à capital. No

final do mês (29/11/1870), Paris tenta uma saída maciça com uma tropa de

cem mil homens; sem sucesso. Persistente, Gambetta elabora novos planos,

colocando em ação três exércitos (o do norte, o do leste e o do rio Loire)

durante o mês de dezembro e parte de janeiro; novamente, sem êxito.

Estoicamente, a população parisiense agüenta o sítio, o frio, a falta de

combustíveis, de comida, a fome (o racionamento foi imposto tardiamente; os

ratos são vendidos a 2 francos-ouro a peça) e os bombardeios, iniciados em

5 de janeiro de 1871 pelo comando prussiano, para acelerar a rendição da

cidade. Na noite do 5 para o 6, a delegação das vinte regiões administrativas

afixa um cartaz vermelho denunciando a incapacidade do GDN: "A política, a

estratégia, a administração de 4 de setembro, na continuidade do Império,

estão julgadas. Lugar ao povo, lugar à Comuna!". Em 18 de janeiro de 1871, o

rei da Prússia é proclamado Imperador da Alemanha, em Versalhes: escolha

extrema e provocadoramente simbólica! Em 19 de janeiro, só para constar, o

GDN lança uma tropa de noventa mil homens na enésima tentativa de furo

do cerco; é a sangrenta Batalha de Buzenval. Nova derrota; resultado que

Trochu devia esperar: servia como uma luva para justificar a tão desejada

rendição. O fracasso de Buzenval provoca nova manifestação da vanguarda


militante de Paris e um esboço de levante, frustrado por falta de apoio

popular. No dia seguinte, 23 de janeiro, enquanto o governo inicia a repressão

contra seus oposicionistas (fechamento dos clubes políticos, proibição dos

jornais, prisões, etc.), o ministro Jules Favre desloca-se para Versalhes para

negociar com Bismarck. Em 28 de janeiro de 1871, é assinado um

draconiano armistício: cessação das hostilidades em praticamente todas as

frentes, rendição de Paris, que ficará desarmada (com exceção de uma tropa

de 12 mil homens e da Guarda Nacional), pagamento de um tributo de

duzentos milhões de francos; como a Alemanha só aceita negociar a paz com

um governo legitimamente eleito, o armistício é previsto para um prazo de

três semanas, necessárias para a eleição de uma Assembléia Nacional que

decidirá se aceita as condições de paz ou não. O governo — que não é mais

de "Defesa Nacional" — marca as eleições para o dia 8 de fevereiro. Não

faltam os protestos parisienses. Sem resultados. O que alimenta a frustração

popular que, posteriormente, transformar-se-á em ira. A votação do dia 8 tem

um duplo sentido: a favor ou contra a paz, mas também contra ou a favor da

República vigente. Durante a campanha eleitoral, a seção francesa da AIT, a

Câmara Federal das Sociedades Operárias e o Comitê das Vinte Regiões

Administrativas lançam um manifesto posicionando-se "pelo advento político

dos trabalhadores, pela queda da oligarquia governamental e do feudo

industrial".9 Tendo a França rural e interiorana votado maciçamente pela paz,

resulta do pleito uma Assembléia conservadora: 360 monarquistas, uns 15

bonapartistas e 150 republicanos convictos (entre os quais apenas quarenta

favoráveis à continuação da guerra); Paris, porém, votou maciçamente pela

república e contra o armistício; as demais grandes cidades também votaram


majoritariamente pela república. O GOVERNO DE THIERS Em

17 de fevereiro de 1871, reunida em Bordéus (sudoeste da França), a

Assembléia elege Adolphe Thiers (ex-ministro do rei Luís Felipe durante a

Monarquia de Julho), "chefe do poder executivo da República Francesa",

porém apenas "enquanto não for tomada uma decisão relativa às instituições

da França". Fórmula algebricamente aberta que enche os monarquistas de

esperança. No final de fevereiro, Thiers apresenta à Assembléia (ainda em

Bordéus) o projeto liminar do tratado de paz: entrega da Alsácia e de parte da

Lorena à Alemanha, pagamento de uma indenização de cinco bilhões de

francos, ocupação, pelas tropas alemães, de 43 départements (unidade

territorial que divide administrativamente a França), até a ratificação do

tratado. Na capital, acontecem manifestações, em particular contra a cláusula

que prevê a ocupação de parte da cidade por trinta mil soldados alemães.

Dos bairros que serão ocupados, a população retira os canhões fundidos

graças às subscrições populares, instalando-os nos bairros populares, aos

cuidados da Guarda Nacional. No dia 1º de março, a tropa alemã entra em

Paris, desfila nos Campos Eliseos, desertos, evita os bairros populares,

acampa nos bairros chiques, abandonando a cidade no dia seguinte, em

cumprimento ao acordo (ratificado, na véspera, pela Assembléia, por 546

votos, contra 107). Em 15 de fevereiro, a Assembléia havia lembrado que os

15 centavos diários de soldo para os praças da Guarda Nacional eram

devidos apenas àqueles que podiam comprovar o estatuto de carente;

medida humilhante em tempos de crise. Em 7 de março, a Assembléia

decreta o fim das moratórias relativas aos aluguéis e aos contratos

comerciais, as quais vigoravam desde meados do ano anterior, ou seja,


desde o início da crise econômica gerada pela guerra. "A medida chocou a

pequena e média burguesia, que passou para o lado dos descontentes",

comenta o historiador Jacques Rougerie.10 Finalmente, em 10 de março, por

487 votos, contra 154, a Assembléia toma a decisão de deixar Bordéus,

porém para instalar-se em Versalhes, e não mais em Paris, como era a

tradição desde a jornada de 4 de outubro de 1789. No dia seguinte, o

governador nomeado de Paris, Vinoy, decreta a suspensão de seis jornais

republicanos; também, são condenados à morte três ativistas (Flourens,

Blanqui e Levraud) processados pela sua participação na tentativa de levante

blanquista de 31 de outubro. Todas essas medidas são sentidas como

provocações, ataques mesquinhos, humilhantes e insultantes contra os

parisienses e contra Paris, que não está nem um pouco desorganizada:

alguns dias antes (3 de março), uma Assembléia dos delegados de duzentos

batalhões da Guarda Nacional havia fundado a Federação Republicana da

Guarda Nacional, votando os estatutos da mesma e nomeando uma

Comissão Executiva. Como a grande maioria (217 em 270) dos batalhões da

Guarda Nacional opta pela adesão à Federação, sua fundação é ratificada,

em 13 de março, e seu Comitê Central constituído (composto por quatro

delegados de cada região administrativa). Qual é o programa da Federação?

Leiamos o preâmbulo de seus Estatutos: A República, sendo o único

governo de direito e de justiça, não pode estar subordinada ao sufrágio

universal. A Guarda Nacional tem o direito absoluto de nomear todos os

seus chefes e de revogá-los assim que perderem a confiança de quem os

elegeu; entretanto, [apenas] depois de uma investigação preliminar

destinada a salvaguardar os direitos sagrados da justiça.11


Vejamos agora o manifesto que afixa nas ruas da capital: Somos a barreira

inexoravelmente erguida contra qualquer tentativa de derrubada da

República. Não queremos mais as alienações, as monarquias, os

exploradores nem os opressores de todo tipo que, chegando a considerar

seus semelhantes como uma propriedade, fazem-nos servir à satisfação de

suas paixões mais criminosas. Pela República Francesa e, depois, pela

República Universal. Chega de opressão, de escravidão ou de ditadura de

qualquer tipo; pela nação soberana, com cidadãos livres, governando-se

conforme sua vontade. ... Então, o lema sublime: Liberdade, Igualdade,

Fraternidade, não será mais uma vã palavra.12 Um problema vem

preocupando o governo de Thiers: Paris está armada (cerca de quinhentos

mil fuzis e 417 peças de diversos calibres — 146 metralhadoras, 271

canhões. Como desarmá-la? Como livrar-se da Federação e de seu Comitê

Central? Como controlar a Guarda Nacional? O governo já fez algumas

tentativas localizadas (no dia 8, depois entre os dias 11 e 16), de tirar

canhões das mãos da Guarda Nacional. Sem outro resultado que provocar a

irritação da população que considera os canhões como "seus" (vale lembrar

que haviam sido fundidos graças às subscrições populares!). Finalmente, o

governo decide-se por uma operação cirúrgica: no dia 17, afixa um apelo à

população parisiense, alertando-a contra certos "homens mal intencionados"

que "roubar[am] canhões do Estado", "constituíram-se em senhores de uma

parte da cidade", exercem sua ditadura através de um "comitê oculto", tendo

a pretensão de "formar um governo em oposição ao governo legal instituído

pelo sufrágio universal"; o manifesto encerra chamando os "bons cidadãos" a

"separar-se dos maus". Durante a noite de 17 para 18 de março, o governo


afixa outro apelo, de conteúdo similar, desta vez dirigido especificamente à

Guarda Nacional; ao mesmo tempo, empreende uma operação de grande

envergadura, com cerca de 15 mil homens, centrada na retomada dos

canhões guardados nos bairros de Montmartre e de Belleville (o "bastião

vermelho"), e na ocupação dos bairros Saint-Antoine e Bastilha. A população,

porém, lança um grito de alarme, toma conta das ruas, cerca a tropa;

pressionada, esta confraterniza, recusa-se a atirar. Barricadas são erguidas

(dois generais governistas serão fuzilados, as únicas baixas do dia, além de

um Guarda Nacional morto pela tropa governamental por ter dado o alarme

em Montmartre). O Governo ordena que sua tropa bata em retirada. Tudo

isto durante a manhã do dia 18, fruto da reação espontânea da população e

de iniciativas isoladas de chefes de batalhões locais da Guarda. Durante a

tarde, acontece a contra-ofensiva popular: a partir de ações inicialmente

isoladas, depois com alguma orientação do Comitê Central da Federação,

batalhões da Guarda tomam edifícios públicos, ministérios, a prefeitura,

estações de trens, quartéis, etc. Às 16 horas, o governo de Thiers decide

fugir, ordenando a todos os serviços governamentais (tropa e administração)

abandonar, evacuar totalmente Paris e transferir-se para Versalhes, adotada

então como nova sede do governo (e cidade onde a Assembléia Legislativa

já estava instalada). A Guarda Nacional não os persegue. À meia-

noite, o Comitê Central da Guarda Nacional reúne no Hôtel-de-Ville (a

prefeitura). Com a jornada de 18 de março de 1871, a revolução iniciada em

4 de setembro de 1870 retoma e aprofunda seu curso, abrindo-se uma nova

fase. Se quisermos colocá-lo em termos de analogia com 1917, fecha-se a

época do "Fevereiro"; começa o "Outubro Vermelho": está nascendo a Comuna!


A COMUNA O Comitê Central começa por abolir o estado de sítio na cidade,

suprimir os tribunais militares, decretar a anistia geral dos delitos políticos e a

imediata libertação dos presos, restabelecer a liberdade de imprensa,

nomear responsáveis pelos ministérios e pelos serviços administrativos e

militares essenciais. No dia 19, fixa para o dia 22 as eleições para a Comuna,

depois postergadas para o dia 26, por pressão dos prefeitos. Por sua vez, o

governo de Versalhes delega, provisoriamente, a administração de Paris à

assembléia dos prefeitos das regiões administrativas: junto com os

deputados eleitos por Paris (para a Assembléia Nacional, em 8 de fevereiro),

condenam o Comitê Central, depois tentam funcionar como mediadores junto

a Versalhes, no sentido de uma volta negociada à normalidade. No dia 21 de

março, a Assembléia Nacional condena o "governo faccioso" de Paris.

No dia 22, acontece, em Paris, uma pequena manifestação contra o Comitê

Central; também os batalhões da Guarda Nacional dos bairros ricos colocam-

se sob a direção de lideranças fiéis ao governo de Versalhes. O que leva o

Comitê Central a adotar algumas medidas enérgicas, em particular, a dotar-

se de uma direção militar e a tomar o controle das prefeituras das regiões

administrativas. Cabe aqui assinalar que, entre 22 e 26 de março, são

também instaladas Comunas, mais ou menos fugazes, em algumas outras

cidades (Lyon, Marselha, Narbonne, Toulouse, Saint-Étienne, Le Creusot).

No dia 23, o Comitê Central lança um manifesto em que define suas

perspectivas: O princípio de autoridade está doravante impotente para

restabelecer a ordem na rua, para fazer renascer o trabalho nas oficinas, e

esta impotência é sua negação ... A independência da Comuna é a garantia

de um contrato, cujas cláusulas, livremente debatidas, porão um fim ao


antagonismo das classes e assegurarão a igualdade social ... Hoje, o povo

de Paris é clarividente ... Rejeitará qualquer prefeito, qualquer

representante do poder central imposto por um Governo estranho a suas

aspirações.13 Apesar de indecisões, pressões e contrapressões, as

eleições acabam confirmadas e realizadas no dia 26 de março. A taxa de

abstenção (mais de 60%) é altíssima nos bairros burgueses. Mesmo assim,

votam 229.267 parisienses, o que não é nada mau. No dia 28, o Comitê

Central da Guarda proclama os resultados, instala a Comuna e declara

abdicar de seus poderes em prol desta. São 86 eleitos (entre os quais 25

operários); 15 de seus membros, afinados com os prefeitos, abandonam a

Comuna quase imediatamente, seguidos, pouco depois, por quatro outros.

Para substituí-los, serão realizadas eleições complementares em 16 de abril.

No dia 29 de março, a Comuna organiza-se em dez comissões, tendo como base

de referência os ministérios até então existentes (menos o dos cultos, que é

suprimido): Militar, Finanças, Justiça, Segurança, Trabalho, Subsistência,

Indústria e Trocas, Serviços Públicos, Ensino — coroadas por uma Comissão

Executiva. Nesse meio tempo, Versalhes não ficara inativo. Trouxe para a

região parisiense tropas oriundas do interior; como o armistício autorizava a

França a manter apenas quarenta mil soldados na região parisiense, Thiers

negociou, com os alemães, a autorização para ali concentrar mais tropas,

com o fim de restabelecer a ordem. Bismarck foi muito compreensivo: o

acordo de 28 de março autorizou oitenta mil homens. Após outras

negociações, Versalhes obterá, posteriormente, a autorização de concentrar

170 mil homens, dos quais cerca de cem mil serão prisioneiros gentilmente

libertados pelos alemães para este fim específico. No dia 30, o governo de
Versalhes começa a investir contra Paris, apoderando-se do município

fronteiriço de Courbevoie. Em 2 de abril, ocorre o primeiro confronto entre as

tropas de Paris e as de Versalhes, com o revés dos parisienses; os

prisioneiros são fuzilados pelos Versalheses. A notícia agita Paris. Cedendo à

pressão popular, a Comuna decide enviar tropas contra Versalhes. Mal

organizada, com ilusões de que os soldados de Versalhes não ousariam

atirar contra os "federados" (a Guarda Nacional, os parisienses), a iniciativa

resulta em um sério revés. Em 5 de abril, a Comuna toma a decisão de

executar três reféns por cada federado executado por Versalhes (o decreto

só será aplicado nos últimos dias da Comuna). A luta militar entra numa fase

de guerra de bombardeios à distância, com escaramuças de vez em quando.

Versalhes afirma várias vezes que não aceita qualquer pacificação ou

conciliação, apenas a rendição pura e simples de Paris. Em 19 de

abril, é votada, quase por unanimidade (apenas um voto contra), uma

Declaração ao Povo Francês, que apresenta o programa da Comuna e sua

proposta de Constituição Comunalista, que, comentou Marx, teria "começado

a regeneração da França".14 Em 21 de abril, há uma reestruturação das

Comissões, que passam a ser encabeçadas por um delegado — os nove

delegados constituindo a Comissão Executiva. Como isto não basta para

fortalecer e agilizar a ação da Comuna, é criado um Comitê de Salvação

Pública, de cinco membros, "responsável apenas diante da Comuna"

(proposta que encontrou a oposição de uma importante minoria, entre os

quais os membros da AIT). O novo comitê não terá o efeito mágico esperado

por seus proponentes. A partir de 26 de abril, os federados começam a perder

posições: Les Moulineaux naquele dia; as fortificações de Moulin-Saquet em


4 de maio; perda de Clamart no dia seguinte; revés de Vanves, em 6 de

maio; perda das fortificações de Issy no dia 8, dia em que Thiers lança um

ultimato aos parisienses. Em 9 de maio, o Comitê de Salvação Pública

sofre uma renovação, na esperança de melhorar sua ação efetiva. Por sua

vez, no dia 10, o governo de Thiers assina a paz com a Alemanha em

Frankfurt. No dia 20, os versalheses entram em Paris: um traidor lhes abriu

uma porta; 130 mil homens começam a penetrar na cidade. O alerta é dado;

iniciativas individuais de resistência são tomadas. No dia 22, o Comitê de

Salvação Pública lança um apelo geral às armas. Os bairros populares

enchem-se de barricadas. Pratica-se a guerra de ruas; para dificultar o

avanço do adversário, incendeiam-se os edifícios na hora de abandoná-los.

Os versalheses ver-se-ão obrigados a conquistar a cidade quarteirão por

quarteirão. Em 24 de maio, a Comuna abandona o Hôtel-de-ville, para

instalar-se na Prefeitura da 11ª região administrativa. No dia 25, acontece a

última reunião da Comuna. No dia seguinte, resiste apenas um bolsão no

bairro Saint-Antoine e arredores. A última barricada, na rua Oberkampf, é

tomada pelos versalheses às 13 horas do dia 28 de maio. Um total de 877

homens das forças de Thiers morreram durante os enfrentamentos; cerca de

quatro mil dos combatentes federados. Com a queda da Comuna, termina a

chamada Semana Sangrenta; as cortes marciais dos versalheses não

cessam, contudo, de trabalhar e as execuções sumárias duram mais outra

semana. O general Mac-Mahon reconheceu oficialmente 17 mil execuções;

foram no mínimo vinte, talvez 25 mil. Uns dez mil federados conseguiram

fugir para o exílio. Houve ainda 43.522 presos, que foram processados

judicialmente; 91 foram condenados à morte, cerca de quatro mil à


deportação na Nova Zelândia, uns cinco mil a penas variadas, de prisão, etc.

Algumas questões de interpretação CAUSAS DA COMUNA Os

historiadores mais rígida e fielmente a serviço da burguesia sempre contam

com duas inevitáveis explicações para a ocorrência de movimentos

revolucionários: são fruto de um complô, de uma conspiração secreta, ou

senão, do extremismo, forma de loucura que pode até se tornar coletiva. A

Comuna não escapou deste tipo de compreensão, principalmente (embora não

apenas) no próprio ano em que aconteceu e naqueles que o seguiram. Assim,

em uma entrevista realizada com Karl Marx, em 3 de julho de 1871, um dos

temas ao qual volta insistente e sintomaticamente o entrevistador é o do

papel pretensamente conspirativo atribuído, pelos jornais e governos, à

Internacional nos acontecimentos parisienses.15 Em outro exemplo revelador

das opiniões vigentes naquela época, o escritor Émile Zola, no final de seu

La débâcle, caracteriza a Comuna como a "parte louca" da França, em

contraposição ao campesinato, sua "parte sã ... sensata, ponderada ...". Mas,

o que provocou mesmo o movimento de 1870-1? As causas imediatas da

Revolução de 4 de Setembro de 1870 encontram-se na crise do II Império.

As causas da Revolução de 28 de março de 1871 encontram-se na política

capitulacionista, anti-republicana e antipopular do Governo de Defesa

Nacional e, depois deste, do governo de Thiers. Tudo que antecede o fato

mostra-o e comprova-o. Isto não pode levar a negar que, por outro lado, e ao

mesmo tempo, a Comuna finca raízes na Revolução Francesa de 1789. Não

realmente por causa da persistência dos chamados "jacobinos" de 1870-1

em reutilizar a terminologia ("Comitê de Salvação Pública", etc.) de 1792-93 e

em querer copiar, reviver a "Grande Revolução". Mas porque, desde a


restauração monarquista de 1815, ela é a grande lembrança que mantém

viva a esperança na volta da República, ela é o grande exemplo que alimenta

a chama da luta pela República — reivindicação central do povo parisiense

em 1870-1. Ou seja, a "velha toupeira" de que fala Marx, após vir à tona em

1830 e 1848, aparece novamente à luz do dia em 1870. Pela mesma

reivindicação: o enterro definitivo da monarquia e a afirmação, não menos

definitiva, da República. Porém, com algumas diferenças essenciais,

qualitativas, em relação ao passado. A classe trabalhadora experimentou, em

toda Europa, durante os anos 30 e 40, inclusive e particularmente na França,

um desenvolvimento intenso, e começou a organizar-se; além disso, Paris

conheceu as Jornadas de Junho de 1848 e pôde, na mesma ocasião, conhecer a

insensibilidade e a fúria repressoras da burguesia. Outrossim, os

desenvolvimentos do capitalismo a partir de 1850 provocam o crescimento da

quantidade e densidade da classe trabalhadora, no bojo do qual a vanguarda

procura reorganizar-se após as derrotas de 1848. Como já foi mostrado, os

anos 60 são o contexto de um crescimento do movimento operário europeu,

quantitativo e qualitativo, em particular com os Congressos da AIT (o de

fundação em 1864, em Londres, e o segundo, em 1868, em Eisenach) e o

desenvolvimento assaz considerável das lutas de classes nos últimos anos

do II Império. De tal maneira que a palavra de ordem "República", gritada nas

ruas de Paris, tem não somente um sentido antimonarquista, mas ainda o

conteúdo de "República social", como fica claro à leitura das diversas

declarações, manifestos e apelos, tanto do Comitê Central (CC) das vinte

regiões, como do CC da Guarda Nacional ou ainda da própria Comuna.

Embora atendo-nos ao estudo da rebelião parisiense, ao abordar o conteúdo


do anseio e da reivindicação pela República, acabamos entrando na questão

do significado deste acontecimento, assunto que concentra todos os

problemas e ao qual terminam levando todos os debates, mesmo que se

detenham apenas neste ou naquele ponto, por exemplo, como vimos, nas

causas da Comuna, ou na sua obra, ou na sua caracterização. Comecemos

por nos situarmos a respeito desta última questão. ALGUMAS

CARACTERIZAÇÕES dA COMUNA Qual foi o significado da Comuna? A

indagação coloca-se a todos os historiadores na conclusão de seus livros e

continua sendo tão debatida quanto aquela que se questiona se a Revolução

Francesa derrapou a partir de outubro de 1789 e de derrapagem em

derrapagem acabou guilhotinando a cabeça do coitado do Luís XVI que não

pretendia fazer mal a ninguém, mesmo se, mal aconselhado, conspirava

intensamente com os monarcas em guerra contra a França. Vejamos como

alguns historiadores responderam à questão. No decorrer de seu livro, de

1953, no qual sintetiza os estudos que vem desenvolvendo desde o início do

século sobre a Comuna, Georges Bourgin define esta como "uma tentativa

de Governo do povo pelo povo", como "algo novo na história da morfologia

governamental" (destacando a supressão das forças armadas permanentes,

"um dos símbolos [sic] mais típicos" do Estado tradicional); salienta ainda,

entre outros aspectos, a adoção de "uma política social ... apenas esboçada

mas que ... representava um passo coletivo na direção de um ideal". Em

suma, Bourgin parece ir no sentido das análises de Marx, adotando inclusive

algumas de suas formulações. No entanto, em sua conclusão, deixa claro o

limite que atribui a estas colocações. Por um lado, qualifica de "mito" a tese

segundo a qual a Comuna teria sido um "governo proletário, exemplo e


esboço daqueles que a classe operária quer criar e criará". Por outro lado,

reduz a Comuna apenas à expressão "da vontade do povo de Paris ... que

desejava firmemente: a República, a guerra até o final contra os alemães, a

autonomia municipal", reivindicações que estavam "mais ou menos envoltas

em uma ideologia socialista e em um anti-burguesismo mais ou menos

nítido".16 No final de seu Les communards, Winock e Azéma reconhecem no

militante da Paris de março-maio de 1871 o "primeiro revolucionário da era

industrial", o qual, animado por certo "socialismo" e alguma "consciência de

classe", coloca "em questão a prepotência capitalista e nutre a esperança de

um mundo radicalmente novo". Objetam porém que se tenha tratado de um

"governo operário", restringindo sua novidade à "democracia" que garantiu

("cada um detém o direito de palavra, o direito de controle e o direito de

crítica!") e ao internacionalismo que efetivou ("o homem da Comuna foi

cidadão da República Universal").17 No mesmo ano, 1964, na conclusão de

seu Procès des communards, Jacques Rougerie, dedicado historiador da

Comuna, define esta da seguinte maneira: "Crepúsculo, e não aurora".

Crepúsculo porque o homem da Comuna pertence quase totalmente à pré-

história do movimento operário, do socialismo. A Comuna é apenas a

última revolução do século XIX, o ponto último, e final, da gesta

revolucionária francesa do século XIX.18 Em outras

palavras, Rougerie nega qualquer possibilidade de que a Comuna possa ter

sido a "aurora da revolução social" (Marx),19 o "presságio de uma revolução

proletária mundial" (Trotsky),20 limitando-se a ver no levante parisiense a

última expressão do ciclo das revoluções burguesas — ciclo iniciado, na

França, pela Revolução de 1789 e que inclui as Revoluções de 1830 e 1848.


Porém, em seu Paris livre, 1871, publicado no primeiro semestre de 1971,

Rougerie flexibiliza sua posição: "Crepúsculo sobretudo! Aurora, talvez!".21

Pouco depois, em maio do mesmo ano, durante um seminário comemorativo

ao centenário do levante parisiense, ele caracteriza a Comuna como "um

governo operário" e uma "revolução social, socialista", embora sublinhe —

"de maneira talvez excessiva", reconhece ele — as "semelhanças" que

encontra entre o movimento de 1871 e as Revoluções de 1793, 1830 e

1848.22 Tratar-se-ia de uma evolução? Se evolução houve, foi passageira. A

reimpressão, em 1978, de seu Procès des communards reproduz, tal qual, a

análise de 1964: "Crepúsculo, e não aurora". Em 1988, no livro em que

sintetiza seus trabalhos anteriores, Rougerie parece inovar ao apresentar a

Comuna como "o modelo de uma República por vir", [a] República

democrática e social: aquela que imaginam, esperam e constróem os

Republicanos desde 1830 ou 1840. [uma República que] transcende todas

as classes e todos os grupos, que reconcilia o povo consigo mesmo,

inclusive os ricos burgueses e os miseráveis.23 Na verdade, a

formulação confirma que Rougerie não enxerga a Comuna como uma aurora

das revoluções proletárias. Posição que seu último livro, Paris insurgé: la

Commune de 1871 (1955), não coloca em questão. Pelo contrário. Às

posições de Rougerie, Charles Rihs respondera em 1973 (na reedição de

seu livro de 1955): A Comuna é um "crepúsculo" enquanto fato

revolucionário, sem dúvida nenhuma, mas no espírito de seus

combatentes, era uma "aurora".24 O que pensar de tudo isto?

Procuremos entender a Comuna. A OBRA DA COMUNA A primeira e

maior tarefa que foi incumbida à Comuna foi defender-se, investir homens,
tempo, energias, recursos, no esforço de defesa. Faltou, essencialmente,

disciplina, organização, unidade de comando. Nenhum dos três delegados

que se sucederam à cabeça da Comissão Militar conseguiu resolver este(s)

problema(s): nem Cluseret, um aventureiro (que fora ajudante-de-ordens nas

tropas de Garibaldi), nem o enérgico Rossel, ex-capitão de artilharia, eleito

coronel na Guarda Nacional, nem, obviamente, o jornalista Delescluze.

Quanto ao Comitê Central da Guarda Nacional, contrariamente a sua

declaração de 29 de março, não abdicou, na prática, de sua vontade de

dirigir militarmente o movimento. Constituindo-se, assim, num poder

concorrente da Comuna, num "fator de anarquia",25 desempenhando um

papel desorganizador. O que pensar da atividade da Comuna nos outros

domínios? Todos convêm que ela "conseguiu assegurar o funcionamento da

enorme máquina administrativa parisiense",26 abandonada por muitos

funcionários, sobretudo pelas chefias. Aos trancos e barrancos, mas

conseguiu: os correios, os trens, a gráfica nacional, a receita, as escolas, etc.

continuaram a funcionar; ainda conseguiu a façanha de manter a Guarda

Nacional com os soldos em dia e equipada. Neste aspecto, comportou-se como

uma autêntica prefeitura municipal, mas extrapolou esta função — em termos

de tradição francesa na qual a justiça é privilégio do poder central — ao

nomear juízes e outros funcionários da pasta da justiça. A Comuna não

descuidou do terreno do simbólico: derrubou a Coluna de Vendôme (cujo

bronze provinha de canhões tomados ao inimigo por Napoleão I), por ser "um

símbolo de chauvinismo e de ódio contra os povos";27 também, substituiu a

bandeira tricolor pela bandeira vermelha, queimou a guilhotina e decidiu pela

demolição da Capela Expiatória erguida à memória do rei Luís XVI (deposto


e executado pela Revolução Francesa, por traição). Essas medidas não

podiam deixar de exasperar a mui monárquica Assembléia Nacional, a quem

uma mera faixa tricolor provocava insuportável alergia. No terreno

político e social, a Comuna comportou-se com um governo de fato, invadindo

os domínios que são tradicionalmente de competência nacional, seja do

executivo, seja do legislativo. Quais foram suas medidas políticas?

Em 29 de março, sua primeira medida foi suprimir o alistamento: "Todos os

cidadãos válidos fazem parte da Guarda Nacional";28 extinguiu assim o

exército profissional permanente, substituindo-o pelo povo armado. Em 2 de

abril, aboliu o orçamento dos cultos e decretou a separação entre a Igreja eo

Estado, "considerando que ... a liberdade de consciência é a primeira das

liberdades ... que o clero tem sido o cúmplice dos crimes da monarquia

contra a liberdade".29 Outrossim, suprimiu o juramento político-profissional

que os funcionários deviam prestar e, "considerando que sua bandeira é a da

República Universal",30 reconheceu os direitos políticos dos estrangeiros —

foram numerosos (o húngaro Frankel, os poloneses Dombrowski e Wrobleski,

o italiano Cipriani, etc.) — presentes e atuantes em Paris; alguns foram, até,

eleitos para a própria Comuna. Além de suprimir o ensino da religião, a

Comuna ainda procurou criar o "ensino gratuito, laico e obrigatório";31 uma

Comissão foi instituída para transformar o ensino privado confessional em

ensino laico, bem como para organizar e desenvolver o ensino profissional; a

falta de tempo impediu que seus planos fossem levados a cabo, mas, mesmo

assim, a Comuna conseguiu abrir duas escolas profissionais: uma para

moços e outra para moças. O campo do ensino foi um daqueles em que a

Comuna agiu com maior "vigor e continuidade".32 Será que, em que pesem
as aparências político-administrativas, a Comuna já não estava entrando no

terreno social? Aliás, como que para confirmá-lo, cabe assinalar que a

Comuna esforçou-se em providenciar aos professores "uma remuneração

condizente com suas importantes funções"33 e ainda, pela primeira vez,

proclamou a isonomia entre docentes, independente de seu sexo! No

terreno social, a Comuna começou (decreto de 2 de abril) por fixar em seis

mil francos anuais o teto do ordenado dos funcionários e membros do

governo, igualando-o com o salário operário; também proibiu a acumulação

de cargos; um decreto de 20 de abril proibiu o trabalho noturno nas padarias,

outro, de 27 de abril, proibiu, tanto nas empresas particulares como na

administração pública, as multas e deduções sobre o salário dos

trabalhadores. A Comuna também preocupou-se em anular o decreto do

Parlamento de Bordéus que havia, no início de março, extinguido as

moratórias relativas aos aluguéis e aos contratos comerciais; considerando

"justo que a propriedade assumisse sua parcela dos sacrifícios",34 o decreto

de 30 de março suprimiu, de maneira total e geral, os aluguéis para o período

de outubro de 1870 a abril de 1871; outro decreto, de 17 de abril, concedeu a

moratória, até o 15 de julho, aos contratos comerciais vencidos, e um prazo

de três anos para seu pagamento. Um decreto de 7 de maio obrigou a Caixa

de Penhores à restituição gratuita de certos objetos (roupas, móveis, livros,

etc.) e dos instrumentos de trabalho penhorados (entre 12 e 25 de maio,

foram restituídos 41.928 itens, no valor total de 323.407,80 francos). Cabe,

finalmente, destacar que, em 16 de abril, foi promulgado um decreto que

obrigou à reabertura e funcionamento das oficinas e fábricas abandonadas

pelos seus donos; estudou-se a forma de viabilizar sua entrega aos


trabalhadores organizados em cooperativas. Como comenta o historiador

Georges Bourgin, sem dúvida, uma indenização é prevista para os donos;

mesmo assim, trata-se de uma espécie de ataque à propriedade individual,

cabendo admitir que a Comuna deu, então, um passo na via do comunismo

concreto.35 Embora acuada pela premência das tarefas de defesa,

embora à cabeça de uma cidade sitiada, isolada, em vias de

estrangulamento, embora tenha durado parcos 72 ou 73 dias, a Comuna

creditou-se, perante a História, com uma obra política e social, certamente

embrionária, mas, mesmo assim ousada, radical, revolucionária. E, cabe

salientá-lo, o fez garantindo um extremo grau de liberdade e de democracia.

Em suma, a Comuna esboçou "um governo do povo pelo povo" (K. Marx) e

iniciou as tarefas específicas de um governo deste quilate. Por

reduzidas que sejam — e não podiam deixar de sê-lo: em 72 parcos dias, em

condições de carestia, sob o canhonaço dos versalheses —, as realizações

da Comuna nunca deixaram de ser elogiadas, exaltadas, pelo movimento

operário e pelos historiadores afinados com este. Por outro lado, as correntes

políticas e os estudiosos identificados com a luta pelo socialismo fizeram

também questão de apontar suas insuficiências, suas omissões, em suma, o

que a Comuna deixou de fazer, mas poderia e deveria ter feito. Repassemos

algumas. O primeiro erro — "decisivo", segundo Marx — aconteceu no próprio

dia inicial da Comuna, em 18 de março, quando o governo de Thiers evacuou

Paris. O Comitê Central deveria, sem demora, ter ordenado à Guarda

Nacional a marchar sobre Versalhes, "então inteiramente indefesa".36

Também o Comitê Central deixou o exército regular abandonar Paris;

certamente, suas tropas haviam confraternizado com a população parisiense


e sua causa, mas serão posteriormente retomadas em mãos pela oficialidade

e utilizadas contra Paris. E por quê a Comuna não perseguiu Thiers? Por

debilidades, indecisão. Um estudioso da questão, P. Luquet, avança que foi

sobretudo por ilusões: a crença na possibilidade de chegar a um acordo com

Thiers! De tal maneira, conclui ele, que "o decreto de morte da Comuna foi ...

assim pronunciado no próprio dia de sua vitória, pelo Comitê Central".37

Outra crítica à Comuna refere-se a ela ter recuado diante da medida de

apossar-se do Banco Central da França, em vez de limitar-se a tomar

emprestado do mesmo, enquanto o governo de Thiers continuou usando-o

tranqüilamente. Também se censura a Comuna por ter descuidado do apoio

às lutas operárias da província e, particularmente, às Comunas que surgiram

em algumas grandes cidades do interior ("para levantar a França, foi alocado

no máximo cem mil francos", queixa-se Lissagaray, um dos combatentes da

Comuna, depois preciso historiador da mesma); a Comuna não conseguiu

compreender o papel eminentemente impulsionador e centralizador que

poderiam desempenhar diretivas suas, que, por exemplo, ela poderia tentar

promover uma coalizão dos diversos movimentos municipais contra o governo

de Versalhes; nem mesmo percebeu o que representaria a busca de atividades

e movimentos de solidariedade à sua luta: a possibilidade de abertura de

novos focos de luta; no mínimo, a possibilidade de esclarecer, desfazer as

mentiras de Versalhes, inclusive e sobretudo junto ao campesinato (então a

esmagadora maioria da população da França). Para o historiador e marxista

francês Talès, a Comuna demonstrou: que, num país agrícola como a

França, uma revolução não pode ser uma espécie de "Robinson",

abandonado em sua ilhota urbana; mas, que, para ter sucesso, lhe é
necessário, no mínimo, contar com a benevolência, senão com a ajuda

efetiva dos camponeses.38 O descuido da Comuna para com o

movimento operário internacional não foi menor; certamente, havia uma

comissão encarregada de manter as relações com o "exterior", mas esta

esqueceu quase totalmente o resto do mundo. Por toda a Europa, a classe

operária bebia avidamente as novas de Paris, combatia de coração com a

grande cidade, que adotara como sua capital, multiplicava os comícios, as

passeatas, os apelos. Seus jornais, quase todos pobres, lutavam

corajosamente contra as calúnias da imprensa burguesa. O dever da

Delegação [Comissão para o exterior] era de alimentar estes preciosos

auxiliares. Ela não fez quase nada. Alguns jornais estrangeiros

endividaram-se até a falência para defender esta mesma Comuna de Paris

que deixava seus defensores perecerem, por falta de apoio.39 Isto é,

a Comuna não soube alimentar nem explorar as simpatias e esperanças que

despertava. As críticas às hesitações e ilusões da Comuna desembocam, em

geral (não sempre), numa conclusão lógica: faltou à Comuna uma

organização — um partido — com a clara consciência das tarefas a

desenvolver, ou seja, um partido capaz de enxergar acima e para além do

turbilhão dos acontecimentos imediatos e apresentar ao movimento

propostas, diretivas corretas e necessárias; em outras palavras, vencer as

tarefas com as quais se defrontava e preparar-se, armar-se, no sentido

político do termo, para aquelas que, mais cedo ou mais tarde, viriam

inevitavelmente — conforme a experiência histórica já ensinara antes de

1870 (e, aliás, continuou a ensinar até hoje). Não se pode deixar de

observar que uma das conseqüências políticas quase imediatas à derrota da


Comuna foi a dissolução da AIT, que propiciou a constituição da II

Internacional — majoritariamente marxista; e que, dentro desta, algumas

lideranças souberam melhor compreender, assimilar os ensinamentos da

derrota da Comuna: Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Lenin, Trotsky.

A COMUNA: CONSTITUIÇÃO DOS TRABALHADORES EM CLASSE E

CONQUISTA DO PODER O historiador Jacques Rougerie começa um

capítulo de um de seus livros com uma citação de Marx: "A primeira obra da

Comuna foi sua própria existência". Rougerie ironiza aquilo que

considera uma "elipse fácil" por parte do "brilhante panfletário"; bastaria Marx

simplesmente reconhecer "que, por óbvia falta de tempo, a obra da

Assembléia Comunal foi mince [pequena, pouco espessa].40 Enquanto

historiador, Rougerie deveria confiar menos em sua memória e antes verificar

suas citações. O que realmente escreveu Marx? "A grande medida social da

Comuna de Paris foi sua própria existência e sua ação". Não é difícil

perceber a diferença. Marx, aliás, acrescenta: "Suas medidas específicas [da

Comuna] podiam apenas indicar a tendência de um governo do povo pelo

povo". 41 Segue a lista das medidas concretas e específicas que a Comuna

tomou (abolição do trabalho noturno para os assalariados nas padarias, etc.).

Para quem leu A guerra civil na França fica fácil (para quem leu alguns outros

textos dele, fica ainda mais fácil) entender o que quis dizer Marx. Tentemo-lo,

mesmo tomando-se a citação na sua forma amputada por Rougerie. No

Manifesto comunista (1847), Marx e Engels definem os objetivos do

movimento operário nos seguintes termos: "constituição dos proletários em

classe, derrubada da dominação burguesa, conquista do poder político pelo

proletariado".42 O artigo 1º dos Estatutos da AIT (1864) define, como objetivo


da entidade, "o progresso da classe trabalhadora e sua completa

emancipação". Será que a "mera existência" da Comuna não representava,

simplesmente, um imenso progresso da classe trabalhadora? Será que a

Comuna não propiciou a organização dos trabalhadores (nascimento de um

sem-número de organismos e organizações, inclusive de mulheres)? Será

que a Comuna não elevou a classe trabalhadora a um altíssimo estágio de

constituição em classe? Será que não marcou o início da conquista do poder

político, o seu primeiro passo, abrindo a possibilidade de sua manutenção,

de seu fortalecimento, da conseqüente derrubada da dominação burguesa, o

que permitiria avançar no sentido da completa emancipação do proletariado?

Será que isto, independentemente das medidas específicas, particulares

(relativas a tal ou qual questão) que a Comuna viria a tomar, não bastou para

garantir a importância histórica da Comuna? Obviamente que sim, ainda

mais que, na linha seguinte, Marx caracterizava a Comuna como "um

governo do povo pelo povo".43 Abramos um parêntese que tem tudo

a ver com o assunto em tela. No início de outro capítulo do mesmo livro,

Rougerie irrita-se, novamente, com Marx. Este ousara caracterizar a Comuna

como a antítese do II Império. Marx não é mais culpado de uma elipse, mas

de um "julgamento seguramente excessivo, nem que fosse apenas em

função da desproporção entre os dois fatos".44 O professor Rougerie não

explica como ele aprecia, mede, a proporção e desproporção dos fatos

históricos, de maneira que o leitor fica na dúvida se é pela duração, pelo

tamanho do território, pela espessura da obra, ou ... Por sua vez, Marx não

compara nem proporções nem desproporções, apenas caracteriza. Por que a

Comuna é a "antítese direta"45 do Império? Antes de mais nada e mui


simplesmente, porque nem o GDN, nem o governo de Thiers são parecidos

com antíteses do Império e porque, embora de maneira retardada, a Comuna

nasce da crise e derrubada do regime de Napoleão, o Pequeno, como

desaguadouro e fruto necessários (embora atrasados e não inevitáveis) da

Revolução de 4 de Setembro. A Comuna é também a antítese do II Império

porque a cada característica apontada por Marx, em seu A guerra civil na

França, a respeito daquele regime, corresponde uma característica da

Comuna. Por exemplo, o Império é o governo do bando de 2 de dezembro de

1851, enquanto a Comuna é o governo do povo pelo povo; o Império é a

ditadura de um Bonaparte em nome da burguesia sobre o povo, enquanto a

Comuna é a ditadura do povo pelo povo sobre a burguesia; etc. Como se vê,

o parêntese levou-nos a abordar as características, as qualidades daquele

fato cuja simples existência constitui para Marx uma obra, um feito

monumental, que basta para lhe justificar um lugar de extremo destaque na

história. Continuemos, então, as caracterizações de Marx: a grande medida

social da Comuna de Paris foi sua própria existência porque era

essencialmente um governo da classe operária, o resultado da luta da

classe dos produtores contra a classe dos apropriadores, a forma política

enfim encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do

trabalho.46 Em outras palavras, porque a Comuna "é o ‘impossível’

comunismo", a forma política enfim encontrada que permite avançar rumo

àquilo que as classes dominantes taxam como impossível, como uma utopia

inalcançável Mas quais são os traços qualitativamente distintivos,

diferenciadores, que distinguem a Comuna? Marx assinala que "a

classe operária não pode limitar-se a tomar tal qual a máquina do Estado e
fazê-la funcionar em proveito próprio".47 Como a Comuna resolveu este

problema? Essencialmente, de duas maneiras, em dois níveis: através,

justamente, desta forma política enfim encontrada, que Marx descreve nos

seguintes termos: "A Comuna devia ser, não um órgão parlamentar, mas um

corpo que agisse, executivo e legislativo ao mesmo tempo". Por outro

lado, através dessa ação a que se refere Marx como a "grande medida" da

Comuna (junto com sua própria existência). Em que consistiu essa ação? Em

quebrar a máquina do Estado, que a classe trabalhadora não pode fazer

funcionar tal qual. Marx destaca que "o primeiro decreto da Comuna foi ... a

supressão do exército permanente, e sua substituição pelo povo em

armas".48 Supressão seguida de outras que Marx lista imediatamente a

seguir: supressão, abolição, destruição e transformação da máquina da

polícia, da justiça, da administração, etc.49 Lenin soube sintetizar o sentido

dessas medidas: a Comuna parece apenas substituir a máquina do Estado

que destruiu por uma democracia mais completa: supressão do exército

permanente, elegibilidade e revogabilidade de todos os funcionários sem

exceção. Porém, na verdade, este apenas representa a gigantesca

substituição de certas instituições por outras de um tipo absolutamente

diferente. Trata-se justamente de um caso de transformação de quantidade

em qualidade: ao ser realizada da maneira mais completa e conseqüente

que se possa imaginar, a democracia burguesa converte-se em

democracia proletária; o Estado (força especial de repressão de uma

classe determinada) transforma-se em algo que já não é mais um Estado

propriamente dito.50 Em suma, a supressão do exército permanente

era a ação necessariamente inicial para que a Comuna pudesse então tomar
as medidas particulares, específicas que concretizariam o governo do povo

pelo povo, mas que, por falta de tempo, puderam ser alcançadas apenas de

maneira embrionária ou incipiente. Notas (1) No jornal Réveil, de

12 de julho, os membros parisienses da Internacional publicaram um

manifesto de protesto contra as "ambições políticas [que] ameaçam a paz do

mundo": "Trabalhadores franceses, alemães, espanhóis, que nossas vozes

se unam num grito de condenação à guerra! ... nós queremos a paz, o

trabalho e a liberdade!". (Citado por MARX, K. Première adresse do conseil

général de l’Association Internationale des Travailleurs sur la Guerre Franco-

allemande. In: MARX. La guerre civile en France (1871). Paris: Ed. Sociales,

1972. p.277-81. (2) OLLIVIER, E. Citado por PLESSIS, A. De la fête impériale

au mur des fédérés (1852-1971). Paris: Le Seuil, 1976. p.222. (3)

BOURGIN. G. La Commune. Paris: PUF, 1975. p.9. (4) Ver ROUGERIE , J.

Quelques documents. In: Mouvement social, n.37, p.3. Citado por BOURGIN,

op. cit., p.16. Também ROUGERIE. Paris libre, 1871. Paris: Le Seuil, 1971.

p.31. (5) Citado por ROUGERIE, idem, ibid. (6) Segundo BOURGIN, G.

La Guerre de 1870-1871 et la Commune. Paris: Flammarion, 1971. p.90.

(7) Os dados variam segundo os autores; ver ROUGERIE. La Commune de Paris.

Paris: PUF, 1992. p.24; BOURGIN, 1971, op. cit., p.90 (segundo este, haveria

ainda uns 115 mil homens da Guarda Móvel, porém muito mal adestrados e

comandados). (8) Os blanquistas, que não participavam da AIT, eram adeptos

de uma teoria conspiratória da revolução. (9) Citado por BOURGIN,

1975, op. cit., p.20. (10) ROUGERIE, 1992, op. cit., p.46. (11) Citado por

ROUGERIE, 1971, op. cit., p.93. (12) Trechos citados por ROUGERIE, 1992,

op. cit., p.50; por BOURGIN, 1971, op. cit., p.158; e por ROUGERIE, 1971,
op. cit., p.96. (13) Excertos citados por THOMAS, É. Commune de Paris. In:

Encyclopédie universalis. Paris: s. n., 1990. t.6, p.192; e por BOURGIN,

1975, op. cit., p.30-1. (14) MARX, op. cit., p.44. (15) MARX, K.

Entrevista a R. Landor. Brasil Revolucionário, n. 21, p.26-30, 1996.

(16) BOURGIN, 1975, op. cit., p.63-64 e 125. (17) WINOCK, M., AZEMA, J. P.

Les communards. Paris: Le Seuil, 1964. p.178-80. (18) ROUGERIE, J.

(Éd.). Procès des communards. Paris: Gallimard/Julliard, s. d. p.241.

(19) MARX, 1871a, op. cit. (20) TROTSKY, L. Les leçons de la Commune. La

commune de 1871. Paris: Spartacus, 1971. p.168. (21) ROUGERIE,

1971, op. cit., p.6. (22) ROUGERIE. Mil huit cent soixante et onze. In: ______.

La Commune de 1871, actes du colloque universitaire tenu à Paris les 21, 22

et 23 mai 1971. Paris: Éditions Ouvrières, 1972. p.76-7; 83; 91; 93.

(23) ROUGERIE, 1992, op. cit., p.122; 124. Grifo meu. (24) RIHS, C. La

Commune de Paris (1871): sa structure et ses doctrines. Paris: Le Seuil,

1973. p.16. (25) THOMAS, op. cit., p.192. (26) ROUGERIE, 1992, op.

cit., p.66. (27) Citado por LUQUET, P. et al. A Comuna de Paris. Rio de

Janeiro: Laemmert, 1968. p.37. (28) Citado por ROUGERIE, 1992, op.

cit., p.67. (29) Idem, ibidem. (30) Citado por LUQUET, op. cit., p.36.

(31) Citado por BOURGIN, 1971, op. cit., p.259. (32) THOMAS, op. cit., p.192.

(33) Citado por BOURGIN, 1971, op. cit., p.259. (34) Citado por BOURGIN,

1975, op. cit., p.58. (35) Idem, p.55. (36) MARX, 1871a, op. cit., p.36.

(37) LUQUET, op. cit., p.24. (38) TALÈS, C. La Commune de 1871. Paris:

Spartacus, 1971. p.164. (39) LISSAGARAY P. Histoire de la Commune de

1871. Paris: Maspéro, 1976. Em português, História da Comuna de 1871;

duas edições: São Paulo: Ensaio, e Lisboa: Dinossauro. (40)


ROUGERIE, 1992, op. cit., p.65. (41) MARX, 1871a, op. cit., p.50. (42)

MARX, K. Manifeste du Parti Communiste. In: MARX, K., ENGELS, F.

Œuvres choisies. Moscou: Éditions du Progrès, 1976. p.123. (43) MARX,

1871a, op. cit., p.50. (44) ROUGERIE, 1992, op. cit., p.5. (45) MARX,

1871a, op. cit., p.41. (46) Idem, p.45. Grifado por Marx. (47) Idem, p.38.

(48) Idem, p.41. (49) Idem, p.41-2. (50) LENIN, V. L’État et la

Révolution. In: _____. Œuvres complètes. Moscou: Éd. du Progrès, 1968.

Neste, ver capítulo III. Ver também _____. La Comuna de Paris. Moscou:

Progresso, 1982. Robert Ponge é graduado e pós-graduado em Letras pela

Universidade de Paris, doutor em Letras pela USP e professor do Instituto

de Letras da UFRGS. [e-mail] topo A Comuna de Paris (1871)In:Olho

da História No. 4Página Principal

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