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EDWARD E EDINGER ~O ARQUETIPO CRISTAO Um comentario junguiano sobre a vida de Cristo O ARQUETIPO CRISTAO — Um comentario junguiano sobre a vida de Cristo Edward F. Edinger Aguilo que ocorre na vida de Cristo ocorre em todos 0s momentos ¢ locais. No argué- fipo cristo, todzs as vides de certo modo extdo prefiguradas. ©.G. JUNG Este livro apresenta uma interpretacdo muito necessdria das imagens ¢ eventos essenciais do mito cristio, que pode ser com- preendido simbolicamente em termos da individuacéo da mulher do homem modernos. O processo de individuacdo, quando acontece com uma pessoa, pode levar tanto 4 salvacZo como ao infortinio. O leitor encontrard aqui uma amplificacao ordenada e vivida desse pro- ‘cesso arquetipico. P Com textos extraidos da Escritura Sagrada ¢ quadros cui dadosamente selecionados da arte cristd tradicional, o autor ilus- tra alguns estagios essenciais — da Anunciacdo 4 Cmucificacdo ¢ 4 Ressureigio —, tanto na vida de Cristo como na vida daqueles que, querendo ou mio, se véem imenes no seu proprio destino psicoldgico. Edward F. Edinger, analista junguiano, é professor no Insti- tuto C. G. Jung de Los Angeles. Alguns dos livros que o tomaram conhecido jd integram © catdlogo da Editora Culirix: A criscao da consciéncia: o mito de Jung para o homem modermo; Ego ¢ arquétipo: individuagdo ¢ funpio religiosa da psique e Anatomia dg psique: o simbolismo aiguimico na psicoterapia. EDITORA CULTRIX EDWARD F. EDINGER O ARQUETIPO CRISTAO Um Comentario junguiano sobre a vida de Cristo Traducio ADAIL UBIRAJARA SOBRAL > EDITORA CULTRIX $30 Paulo Titulo do original: ‘The Chuistian Archetype Copyright © 1987 by Edward F, Edinger COLECAO ESTUDOS DE PSICOLOGIA JUNGUIANA POR ANALISTAS JUNGULANOS, Capa: Face anterior da pedra de Bollingen, esculpida por C. G. Juag. A pequena figura no centro ¢ a pupila (vocé mesmo) que vocé vé no olho dé outra pessoa, A inserigdo grega, traduzida por Jung, diz o seguinte: “O tempo é uma crianga — brincande como uma crianga — brincando sobre um tabuleire de xadrez —‘o reino da crianga, E Tclésforo, que erra pelas regides sombrias do cos- mos c brilha como uma estrela élevando-se das profundezas. Ela indica o caminho para as portas do sol ¢ para a terra dos sonhos,” (Memories, Dreams, Reflections, p. 227.) Ano $-10-11-12-18-14 -HQ-B9-00-B1-92-90-0¢-08 Direitos reservados EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mirio Vicente, 374 - 04270 Sio Paulo, SP - Fone: 63 3141 Impresso nas oficinas grdficas da Editora Pensamento. SUMARIO Ilustragdes 9 Prefacio 13 Intredugio 15 . Anunciagao 19 . Natividade 31 . Fuga para o Egito 39 . Batismo 47 Entrada triunfal em Jerusalém 57 - A Ultima Ceia 63 . Gethsemani 71 . Prisdo ¢ julgamento 81 . Flagelagao e escdrnio 9] 10. Crucifixdo 97 11. Lamentagao e sepultamento 109 12. Ressurreicdo ¢ ascenséo 115 13. Pentecostes 125 14. Assuncao e coroagao de Maria 133 OOD be to Bibliografia 14] Indice Analitico 145 Anunciacdo. (Roger van der Weyden) Frontispicio. Aguila que ocorre na vida de Cristo ocorre em todos os momentos ¢ locais. No arquétipo cristdo, todas as vidas dessa espécie estdo prefiguradas. C. G. Jung, Psychology and Religion. ILUSTRACOES Frontispicio. ANUNCIACAO. Roger van der Weyden. Metropolitan Museum of Art, Nova Torque, Flamengo, c. 1400-1464. 1. Nn wa ww ANUNCIACAO. Retirado de The Belles Heures of Jean, Duke of Berry, Nova lorque, George Braziller, 1974. Claus- tros, Metropolitan Museum of Art. Fol. 30. Francés, c. 1410... - ANUNCIACAO. Desenho de Rembrandt, Retirado de Rembrandt's Life of Christ, Nova Torque, Abradale Press, sid, p. 5. Musée C GOS ese ong ae - ANUNCIACAO. Giovanni di Paolo, National Gallexy of Art, Washington, D.C. Sienés, c. 1445 NATIVIDADE. Retirado de The Belles Heures of Jean, Duke of Berry, Nova lorque, George Braziller, 1974. Claus- tros, Metropolitan Museum of Art. Fol. 48V, Francés, a OS oie eh raids Bacio ep J Ok ot A ADORACAO DOS MAGOS E A CRUCIFIXAQ. Diptico em marfim. Victoria and Albert Museum, Londres, Francés, peut O30 errr teri ers Mey ae FUGA PARA O EGITO. Mestre Boucicaut. Musée Jaque- mart-André, Paris, MS. 2, fol. 90V. Francés, ¢. 1400...... . 20 24 25 32 37 40 . FUGA PARA © EGITO, Retirado de The Belles Heures of Jean, Duke of Berry. Nova lorque, George Braziller, 1974, Claustros, Metropolitan Museum of Art. Fol. 63. Francta;coi4 WOs ee eane see seperti csi Teaver siete . BATISMO, Retirado de The Grandes Heures of Jean, Duke of Berry. Nova lorque, George Braziller, 1971. Estampa 89. Bibliothéque Nationale, Paris, Fol. 86. Francés, 1409 .... . . BATISMO, Desenho de Rembrandt, Retirado de Rem- brandt’s Drawings and Etchings for the Bible. Filadélfia, Pilgrim Press, 1969, Figura 163. Kupferstichkabinett, Dres- den, Holandés, co 1650045 .2n ict acer aes aie es . ENTRADA TRIUNFAL EM JERUSALEM. Retirado de The Grandes Heures of Jean, Duke of Berry. Nova lorque, George Braziller, 1971. Estampa 78. Bibliothéque Natio- nale, Paris. Fol. 61. Francés,c. 1409, ................ . CRISTO EXPULSANDO OS VENDILHOES DO TEMPLO. Gravura em fgua-forte. Retirado de Rembrandt's Drawings and Etchings of the Bible. Filadélfia, Pilgrim Press, 1969. Figura 214. Holandés, 1635. . A ULTIMA CEIA. Retirado de The Hours of Catherine of Cleves. Nova lorque, George Braziller, s/d. Estampa 77. The Guennol Collection e Pierpont Morgan Library. G-Fi42V, Holandés,c. 1440. 0.0... cee eee eee . ULTIMA CEIA DOS PRIMEIROS CRISTAOS. Mosaico. Santo Apolindrio Novo, Ravena. ,....... saa . AGONIA NO JARDIM, Retirado de The Hours of Catherine of Cleves. Nova Torque, George Braziller, s/d. Estampa 16. The Guennol Collection ¢ Pierpont Morgan Library, M-P120, Holandés) 14405) nao ig oa tnee rrr ree 45 48 51 58 61 64 68 CRISTO CONSOLABO POR UM ANJO, Desenho de Rem- brandt, Retirado de Rembrandt's Drawings and Etchings for the Bible, Filadélfia, Pilgrim Press, 1969, Figura 217, Graphische Sammlung, Munique. Holandés, c. 1635. . 5. CAPTURA DE CRISTO. Retirado de The Hotrs of Cathe- rine of Cleves, Nova lorque, George Braziller, s/d, Estampa 17. The Guennol Collection e a ae pee G-F47, Holandés, c. 1440. ............ eaee . CRISTO DIANTE DE CAIRAS. Desenho de Rembrandt. Retirado de Renmtbrandt’s Drawings end Etchings for the Bible. Filadélfia, Pilgrim Press, 1969. Figura 224 ons ferstichkabinett. Berlim, Holandés, c. 1649-1650 . . FLAGBLACAQ DE CRISTO, Retitado de The Hours of Catherite of Cleves. Nova Torque, George Braziller, s/d. Estampa 22. The Guennol Collection e¢ Pierpont Morgan Library. G-F6OV, Holandés, c. 1440. .....0.......... . ESCARNIO DE CRISTO, Desenho de Rembrandt. Retirado de Rembrandt's Drawings and Etchings for the Bible. Fila- délfia, Pilgrim Press, 1969. Figura 227. Pierpont Morgan Library, Nova lorque. Holandés, ¢, 1652-1653, ......... CRUCIPIXAO. Iluminura de um manuserito. Beato de Gerona (975 d.C.), Retirado de John Williams, Zarly Spanish Manuseript Mlumination. Nova lorque, George Braziller, 1977, Estarmpa 29, Catedral de Gerona. MS. 7, fol. 16V. ... . CRUCIFIXAO. Capa dos Evangelhos de Echternach. Mar- fim, ouro laminado, esmalte ¢ pedras preciosas. Germa nisches National Museum, Nuremberga, ¢. 990, 2.2.2.0... . A CRUZ COMO ARVORE. Iuminura de uma Biblia, Pacino di Bonaguida, Biblioteca Trivulziana, Mildo. MS. 2139, C. F300. Seer eer ee i r 82 87 92 94 98 102 103 30, . CRUCIFIXAO, Entalhe de Direr. Retirado de Willi Kurth, The Complete Woodcuts of Albrecht Diirer, Nova lorque, Dover Publications, 1963. Figura 88. Alemfo, c. 1400. ... . . SEPULTAMENTO. Retirado de The Hours of Catherine of Cleves, Nova Torque, George Braziller, s/d. Estampa 30. The Guennol Collection e Pierpont Morgan aca G-F73¥. Holandés,¢.1440., 20.0000... 00.200. ene, . DESCIDA PARA © LIMBO. Retirado de The Grandes Heures of Jean, Duke of Berry. Nova lorque, George Braziller, 1971. Estampa 88. aes Nationale. Paris, Fol, 84. Francés, ¢, 1409, een meer a peoe eer esi . RESSURREICAO. Retirado de The Hours of Catherine of Cleves. Nova lorque, George Braziller, s/d. Estampa 31 The Guennol Collection e Pierpont ee Library. G-F74. Holandés, c. 1440. . ASCENSAG. Pintura de Rembrandt. Alte Pinakothek, Munique. Holandés, 1606-1669. .... . PENTECOSTES. Retirado de The Trés Riches Heures of Jean, Duke of Berry. Nova lorque, George Braziller, 1969. Estampa 76, Musé Condé, Chantilly. F-79, Francés, 1416. . . . COROACAO DA VIRGEM. Retirado de The Trés Riches Heures of Jean, Duke of Berry, Nova lorque, George Bra- diller, 1969. Estampa 59. Musé Condé, Chantilly, F60V, Brances S14 Grate tenets Cn oe cere erence COROAGAO DA VIRGEM MARIA E EXTRAGAOQ DO MERCURIO. Retirado de Keusner, Handora (1588). Re- produzido em Jung, eee and cae CW 12, Figura 232. ‘ 106 110 113 116 123 126 134 138 PREFACIO Este livro é€ uma tentativa de apresentar de forma orga- nizada a interpretagdo dada por C. G. Jung ao mito cristdo. Jung preecupa-se em resgatar para o homem moderno os te- souros espirituais que a religifo tradicional jd néo pode veicular. Para muitas pessoas, Deus abandonou sua primitiva morada nas igrejas e nao é provavel que venha a retornar. “Vivemos naquilo que os gregos denominavam kairos — 0 momento certo — para uma ‘metamorfose dos deuses’, dos principios e simbelos fundamentais.”! O nuniinosum busca uma nova encarnagao. Podemos alimentar a esperancga de encontrar ajuda na compre- enséo desse evento, por meio do exame deste grande mito da encarnacdo, a vida de Cristo. 1, Jung, “The Undiscovered Self”, Civilization in Transition, CW 10, pat. 585. [CW refere-se, a0 longo do livro, a The Collected Works of C. G. Jung.] INTRODUGAO O drama da vida arquetipica de Cristo descreve, em imagens simbdlicas, os ever- tos da vida consciente — assim como da wide que tramscende a consciéneia — de um Romem que joi transformado pelo seu destino superior.’ A vida de Cristo, entendida em termos psicoldgicos, re- presenta as vicissitudes do Sitnesmo em sua encarnagéo num ego individual, bem como as vicissitudes do ego no proces- so de participaggo nesse dratna divino. Em outras palavras, a vida de Cristo representa o processo de individuacfo. Esse processo, quando sobrevém a um individuo, pode significar salvagado ou tragédia. Quando é parte de uma igreja ou cre- do religioso, o individuo é poupado dos perigos envolvidos na experiéncia direta. Mas, uma vez que ndo esteja vincula- do com um mito religioso, ele se torna candidato a indivi- duagao. Escreve Jung: Na medida em que o contefido arquetipico do drama cris- tHo teve condigdes de dar expressdo satisfatoria ao inquie- to ¢ clamoroso inconsctente da multiddo, 0 consensus omnium elevou esse drama a uma verdade universalmente acelta — nao, com certeza, por um ato de julgamento, mas pelo fa- 1.Jung, “A Psychological Approach to the Trinity", Psychology and Religion, CW 11, par. 233. 1s to itracional da possessdo, que é muito mais eficaz. Assim, Jesus tornou-se a imagem tutelar ou o amuleto contra as forgas arquetipicas que ameagavam apossar-se de todos. A Boa Nova anunciou: “Aconteceu, mas nda mais aconte- cerd a vocé porquanto vocé acredita em Jesus Cristo, 0 Fi- tho de Deus!” No entanto, isso podia e pode acontecer a todas as pessoas nas quais a dominante crista tenha regre- dido. Por essa razdo, sempre h& pessoas que, nao satisfei- tas com as dominantes da vida consciente, empenham-se — de forma disfargada e por caminhos tortuosos, para sua destruigio ow salvacdo — em obter a experiéncia direta das raizes eternas e, seguindo o fascinio da ineansivel psique. inconsciente, encontramse no deserto — no qual, tal co mo Jesus, levantam-se contra o filho das trevas.* Ao longo dos séculos, uma série de imagens foi se cris- talizando, a partir da psique coletiva, para servir 4 funcdo de “amuleto contra as forgas arquetipicas”, Esses pontos nodais da arte e da experiéncia cristds expressam os estdgios essenciais da vida de Cristo, selecionados pela propria psique objetiva, o consensus omnium. Nao hd um ntimero determi- nado de imagens dessa espécie. Escolhi quatorze das mais proeminentes dentre elas — que correspondem aos quator- ze capitulos deste livro — para submeter 4 consideragdo, a partir de um ponto de vista psicoldgico. Essa série de ima- gens descreve o desenvolvimento do mito cristdo, que po- de ser resumido da seguinte forma: © Filho preexistente e tmico de Deus esvazia-se de sua divindade e se encarna como homem por intermédio do Es- pirito Santo, que impregna a Virgem Maria. Ele nasce num ambiente humilde, cercado de eventos de cunho numinoso, e sobrevive a grandes perigos iniciais. Quando alcanca a ida- de adulta, submete-se ao batismo de Jodo Batista e testemu- nha a descida do Espirito Santo, que indica a sua voca¢do, Ele sobrevive A tentacio do Demdnio e leva a bom termo seu ministério, que proclama a existéncia de um Deus bene- 2. Psychology anc Alchemy, CW 12, par. 41. 16 volente e amoroso. Apés passar pela agonia da incerteza, acel- ta o destino que lhe cabe e deixa-se prender, julgar, flagelar, escarnecer e crucificar. ApOs passar trés dias no timulo, de acordo com vdrias testemunhas, ¢ ressuscitado. Durante qua- renta dias caminha e fala com seus discipulos e, em segui- da, sobe aos céus. Dez dias depois, no Pentecostes, o Espi- tito Santo, o Pardclito prometido, desce. A seqiiéncia de imagens que constitui o mito cristdo se inicla e se encerra com a mesma imagem — a descida do Espirito Santo. Isso sugere que a seqgiiéncia pode expressar um processo circular que pode ser organizado da seguinte forma: O CICLO DE ENCARNACAQ Pentecostes 13 1 Anunciagdo Ressurreigdo Ascenso 2 Natividade Lamentagioe 4; sepultamento 3 Fuga para 0 Bgito “4 Assungio e coroagio de Maria a 6A Ultima Cola Crucifixiio 10 4 Batismo Flagelagao ¢ esedtnio 9 5 Entrada triunfal Prisdo e julgamento 8 7 Gethsemani GO Pentecostes é uma segunda Anunciagao. Da mesma forma como a primeira Anunciagdo é seguida pelo nascimento de Cristo, assim também a segunda Anunciagio é seguida pelo nasci- mento da Igreja.? A Igreja como corpo de Cristo é destinada, 3. O Pentecostes ¢ considerado como o aniversdrio da Igreja. portanto, a viver coletivamente a mesma seqiiéncia de ima- gens vivida por Cristo. Segundo Hugo Rahner, “O destino terreno da Igreja como corpo de Cristo toma como mode- lo © destino terreno do préprio Cristo, Isso significa que a Igreja, no curso de sua histéria, dirige-se para a morte”.* A morte da Igreja como agente coletivo do processo abre seu ciclo arquetipico 4 compreensdo psicologica e transfere seu simbolismo para o individuo. Eis o que Jung denomina “en- earnagao continua”. Na medida em que representa aquilo que acontece com as pessoas, esse ciclo descreve o processo por meio do qual © ego atinge a censciéncia. Todavia, na medida em que re- presenta aquilo que ocorre com Deis feito homem, descre- ve a transformacio de Deus.’ Esse duplo processo se encon- tra, neste momento, no campo da experiéncia consciente dos individuos. Mais uma vez, o Espfrito Santo desce, des- ta feita para promover uma “cristificagdo de muitos”.® Pa- ra 0 individua, isso significa, nfo uma “Imitagdo de Cristo”, mas seu exato oposto: uma assimilagio da imagem de Cristo em seu proprio ser... JA no se trata de um esforgo ou de um trabalho intencional de busca da imitagdo, mas, antes, uma experiéncia involun- taria da realidade representada pela lenda sagrada.” 4. Citade em Jung, Mysterium Coniunctionis, CW 14, pat. 28, nota 194. 5. Veja-se Edinger, A criapéo da consciénela, pp, 89 4s. 6. Jung, “Answer to Job”, Paychology and Religion, CW 11, par. 758 7. Jung, Mysterium Coniunctionis, CW 14, pat. 492. 18 1 ANUNCIACAG A andlise deve lberar uma experiéncia que nos aprisiona ou nos advém de cima, uma experiéncia que tem substincia e corpo, tal coma as coisas que ocorreram coi os antigos. Se tivesse de simboli: ew escolheria a Anunciacdo.' 1, Jung, Seminar 1925, p. 111. la, E, NO SEXTO MES,” FOI ENVIADO POR DEUS 0 AN- JO GABRIEL A UMA CIDADE DA GALILELA CHA- MADA NAZARE, A UMA VIRGEM DESPOSADA COM UM HOMEM QUE SE CHAMAVA JOSE, DA CASA DE DAVI; E O NOME DA VIRGEM ERA MARIA. E O AN- JO ENTROU ONDE ELA ESTAVA, E DISSE-LHE: DEUS TE SALVE, CHEIA DE GRACA; 0 SENHOR E CONTIGO: BENDITA ES TU ENTRE AS MULHERES. E ELA, QUANDO © VIU, TURBOU-SE DO SEU FA- LAR E DISCORRIA PENSATIVA QUE SAUDACAO SERIA AQUELA, ENTAO O ANJO LHE DISSE: NAO TEMAS, MARIA: POIS ACHASTE GRACA DIANTE DE DEUS. EIS CONCEBERAS EM TEU VENTRE, E DARAS A LUZ UM FILHO, E POR-LHE-AS 0 NOME DE JESUS. ELE SERA GRANDE E SERA CHAMADO FILHO DO ALTISSIMO: E 0 SENHOR DEUS LHE DA- RA O TRONO DO SEU PAI DAVI; E REINARA ETER- NAMENTE NA CASA DE JACO, E SEU REINO NAO TERA FIM, E DISSE MARIA AQ ANJO: COMO SE FA- RA ISSO, SE EU NAO CONHECO HOMEM? E O ANJSO RESPONDEU, E LHE DISSE: 0 ESPIRITO SANTO DESCERA SOBRE TI, E 0 PODER DO ALTISSIMO TE COBRIRA COM A SUA SOMBRA; E POR ISSO MESMO O SANTO, QUE HA DE NASCER DE TI, SERA CHA- MADO FILHO DE DEUS, B EIS QUE TAMBEM ISABEL, TUA PRIMA, CONCEBEU UM FILHO NA SUA VELHI- CE, E ESTE E O SEXTO MES DA QUE SE CHAMAVA ESTERIL. PORQUE A DEUS NADA E IMPOSSIVEL. ENTAO DISSE MARIA: EIS AQUI A SERVA DO SE- NHOR; FACA-SE EM MIM SEGUNDO A TUA PALA- VRA. EO ANJO AFASTOU-SE DELA. (Le 1,26-38)° * (Frontisptcio) 1. Anunciagdo. 2, Da gravidez de Isabel, The Belles Het ; 3, Exeete quando houver outra indicagao, todas as citagdes biblicas sio retiradas ‘ insures Chusen) Duha ORE) da Versio Autorizada (Biblia do Rei James). * As citacdes bfblicas em portugués foram adaptadas da tradugio do padre Antonio Pereira de Figueiredo, salvo quando houver indicacio em contratio. (¥.7.) 21 Os quadros costumam mostrar o Espirito Santo des- cendo como uma pomba sobre Maria, indicando que a con- cep¢do ocorre simultaneamente com a Anunciacdo, (Figura J) “O Espirito Santo descerd sobre ti, e o poder do Alifs- simo te cobriré com a sua sombra.” A expresso “te cobri- ra com a sta sombra’ (episkiazo) refere-se ao ser envolvido numa nuvem pela presenga divina.* A nuvem é brilhante quan- do vista do exterior, mas provoca o escurecimento quando se € envolvido nela (skid, sombra, escuriddo). Assim, duran- te a transfiguracio de Cristo, “‘veio uma nuvem, e os cobriu [epeskiazen]: e tiveram medo, entrando eles na nuvem”. (Lc 9,34) © fato de Maria permitir que a nuyem de Jahweh ne- la permanega torna-a simbolicamente sindnimo do sagrado taberndcula do deserto ou do templo de Salomdo, que abri- ga a presenga de Iahweh. Taumaturgo Gregorio faz Deus di- zer ao anjo da Anunciac&o: “Vai ao santudrio preparado pa- ta mim; vai ao vestibulo da encarnacdo; vai a camara pura da minha geracdo apés a carne. Fala nos ouvidos do meu re- positério racional [espiritual ou simbélico].”* O aspecto sombrio do ser “coberto” pela nuvem de Iahweh nao se acha elaborado no material canonico. Todavia, escre- ve Charles Guignebert, Na antigiiidade, judeus e pagdos competiain na invengao de histérias que atacavam a honra de, Maria, vista por eles como adiltera, ou mesmo como prostituta profissional. Os préprios samaritanos participavam desse coro ofensivo. .. [Jesus é deserito por uma expressio que] ¢ interpretada 4.No Antigo Testamenta, a nuvem 6 manifestacdo caracteristica de Iahweh. Du rante a jornada no deserto, as israelitas foram guiados por uma coluna de nu- vem (Ex 13,21). lshweh apresentou-se a Moisés, no Monte Sinai, numa nuvem (Ex 24,15-16). Quando o taberndculo foi erigkdo, a nuvem o cobriv (Nm 9,15), Quando o templo de Salomfo ficou pronto, “uma nuvem encheu a casi do Se- nhor® (1Rs 8,10). 5. The Ante-Nicene Fathers, vol. 6, p. 66. 22 por Clermont-Gannean, a partir da forga de uma tradugao arabica, como tendo o sentido de “filho da cortesa”.® Origenes fala de uma historia referente 4 mae de Jesus, contada por Celso, segundo a qual “quando gravida, ela foi expulsa de casa pelo carpinteiro de quem estava noiva, sob a acusagdo de adultério, e. . . deu 4 luz um filho de um cer- to soldado, Pantera”.” Esse material lendario ajuda na descrigio da Anuncia- ¢ao considerada como experiéncia humana, O lado sombrio da Anunciacdo reside no fato de ocorrer uma gravidez ile- gitima numa época em que o adultério era passivel de ser punido com a morte. Poucos dentre os intimeros quadros da Anunciacdo mostram o aspecto sombrio do ser “cober- to pelo Altfssimo”.® Ha aqueles que o fazem de forma bas- tante involuntdria, ao colocarem a Anunciagdo lado a lado com a expulsio de Addo e Eva do Jardim do Eden. Esses quadros tém origem no fato de a obediéncia de Maria a Deus ter sido contrastada, com freqiiéncia, com a desobediéncia de Eva. Na Anunciagdo de Giovanni di Paolo (Figura 3), a divindade de asas negras aparece no céu, tanto quando da expulsio do Jardim do Eden, como no momento da Anun- ciacdo. Paulo estabelece um vinculo entre Cristo e Ad&o ao dizer: “BE assim como em Addo morrem todos, assim também todos sero vivificados em Cristo.” (1 Cor 15,22) Justino diz, Ele (Cristo) tornou-se homem por meio da Virgem, para que a desobediéncia que procede da serpente fosse destrufda da mesma maneira pela qual teve origem., Pois Eva, que era virgem e imaculada, criou a desobediéncia ¢ a morte ao ter concebido a palavra da serpente. Mas a Virgem Maria recebew f& ¢ jibilo quando o anjo Gabriel anunciou-the a Boa Nova de 6. Jesus, pp. 1275. J. “Origen against Celsus”, 1, 32, The Ante-Micene Fathers, vol. 4, p. 410. &, Uma das excegdes é um desenho de Rembrandt (Figura 2). 23 que o Espirito do Senhor viria sobre ela e de que o poder da Altissimo a cobriria com sua sombra.? 3. Anunciacao. (Giovanni di Paolo) No texto apécrifo Protoevangelho de Tiago, ao ouvir falar da gravidez de Maria, José exclama: Quem trouxe esse mal 4 minha casa e a conspurcou (a vir- hot gem)? Ter a histérla (de Adio) se repetide comigo? Pois 2. Anuneiagio. (Desenho de Rembrandt) quando Adao estava (ausente) na hora de suas oragdes, @ serpente veto ¢ encontrou Eva sozinha ea enganow (Gn 3,1) ¢ a conspurcou; assim também sucedeu comigo."° 9. “Dialogue with Trypho”, cap. 100, The Anie.Nicene Fathers, vol, 1, p. 249. 10, Edgar Hennecke, Mew Testament Apocrypha, val. 1, p. 381. 24 25 Gregorio, o Taumaturgo, diz que Gabriel € um substi- tuto da serpente. “Um anjo conversa com a Virgem para que a serpente ndo possa mais conversar com a mulher.”!! Estabelece-se um yinculo psicolégico entre duas imagens, tanto por contraste e oposicdo como por similaridade. A obe- diéncia de Eva a serpente e a obediéneia de Maria ao anjo da Anunciagao sao eventos paralelos, duas expressées simbdélicas para o mesmo acontecimento, percebidas como opostas, tendo em vista que ocorrem em diferentes estdgios do desenyolvi- mento do ego. A obediéncia de Maria ao chamado divino é expressa em sua réplica: “Eis aqui a serva [literalmente, escrava] do Senhor; faga-se em mim segundo a tua palavra.” Em termos psico- ldgicos, isso significa a aceitagio. pela alma, do encontro im- pregnadot com o numinosum, A conseqiléncia desse encontro € a subordinagao do ego ao Si-mesmo, que pode parecer escra- vidao. Hugo de Sao Vitor interpretou a obediéncia de Maria a Deus como uma expressdo de amor: O motivo de uma concepgao segundo a natureza ¢ o amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem. Por conseguinte, como ardia no coragfo da Virgem um amor singular pelo Espirito Santo, o amor do Espirito Santo produziu grandes coisas em sua carne. '* 0 amor entendido como uma preméncia da individuagdo representa uma restrigdo, tanto ao ego como ao Si-mesmo. Prossegue Hugo de Sao Vitor: Tens um grande poder, 6 Amor; tu, e somente tu, tens con- digao de fazer Deus descer do céu a terra, O, qudo forte é teu vinculu, que pude alingi alé menu a Deus, .. Aprisiv- naste-o em teus lacos e o feriste com tuas flechas, feriste aquele que era invulneravel, aprisionaste aquele que era inven- 11. The Ante-Nicene Fathers, vol. 6, p. 65. 12. Jacobus de Voragine, The Golden Legend, p. 206, 26 civel, derrubaste aquele que era inabaldvel, tornaste mortal oBterno. ,. 0 Amoz, quao grande é tua vitéria!'* A virgindade de Maria configura-sse como importante parte do simbolismo. Parece haver uma conexao arquetipica entre a virgindade ¢ a capacidade de lidar com a energia trans- pessoal (o fogo sagrado). Na Roma Antiga, as Virgens Vestais eram as guardias da chama sagrada. Entre os incas peruanos, mulheres virgens mantinham no templo um fogo santo. Esere- ve J, G. Frazer: Os incas do Peru celebravam um festival chamado Raymi.. . Era realizado em louver ao sal no solsticio, em junho. Durante tres dias antes do festival, as pessoas jejuavam, os homens ndo dormiam com as esposas © nao se acendia nenhum fogo em Cuzco, o capitélio. O sagrado novo fogo era obtido dire- tamente do sol, mediante a concentragdo dos raios deste sobre uma placa concava bem polida e através da reflexdo daqueles sobre um pequeno pedaco de 14 de algoddo. . . Porgdes do nove fogo eram. , .levadas ao templo do sol e ao convento das virgens sagradas, onde eram mantidas a arder durante todo o ano, sendo considerado um mau pressdgio a extingdo da chama sagrada.’* Diz o apéstolo Paulo: Ha diferenga entre a mulher casada [gyne] e a virgem [par- theros]. E a mulher solteira cuida das coisas que so do Senhor, para ser santa no corpo ¢ no espirito; mas a que é& casada cuida das coisas que sdo do mundo, de como agra- dard ao marido, (1€or 7,34) A virgindade psicolégica refere-se a uma atitude pura, no sentido de auséncia de contaminagdo pelo desejo pessoal. As prostitutas sagradas, que atuayam no exterior dos templos 13. Citado em Jung, Symbols of Transformation, CW 5, par. 97. 14, “Baldur de Beautiful”, The Golden Bough, vol. 1, p. 132. a] Deus me impregnou; seu Espirito a mim me cobre, Que ele em minh’alma se eleve ¢ minhas defesas dobre. da deusa do amor no Oriente Proéximo, podem ser conside- radas, dessa maneira, virgens psicoldgicas.'5 O ego virgem tem suficiente consciéncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem identificar-se com elas. Pilon [de Alexandria) diz: “Pois a unido de homens para a procriagfo de criangas faz de virgens, mulheres. Mas quando se associa com a alma, Deus faz aquela que era anteriormente mulher tornar-se vir- gem outra vez.”1* John Donne expressa a natureza paradoxal da castidade simbélica. Ser virgem significa ser prostituta de Deus: © “Deus te salve” de Gabriel nfo traz nenhum bem, A ndo ser que essa saudagdo seja dita a mim também.'® Batter my heart, three-person'd God, . . Except you ‘enthrall mee, never shall be free, Nor ever chast, except you ravish mee."? [Apossa-te do meu coragdo, Deus em trés pessoas. . .Toma-me para ti, aprisiona-me, pois eu/ A ndo ser que me escravizes, livre nunca serei,/ E jamais serei casta, a ndo ser que me violes.] E, de acordo com Angelus Silesius, Se o Espirito Santo de Deus te seduzir, A vida da Crianga Eterna ha de nascer de ti. Se fores como Maria, tio virginal ¢ pura, A impregnagio de tua alma por Deus é segura. 15. © significado da virgindade psicoldgica para as mulheres & discutide por Esther Harding em Women's Aiysteries, Ancient and Modern, pp. 124 ss. 16. Citado em ibid., p. 146 17. “Holly Sonnets”, n® 14. 18, Cherubinische Wandersmann, Ul, 101-104, citado em Jung, Mysterium Conti: unetionts, CW 14, par. 444. 28 29 2 NATIVIDADE O ego individual é a manjedoura na qual nasce o Menino Jesus.’ |. Observagio atribuida a Jung. 4, Natividade. (The Belles Heures de Jean, Duke of Berry) E ACONTECEU NAQUELES DIAS QUE SAIU UM EDITO DE CESAR AUGUSTO PARA QUE TODOS FOSSEM ALISTADOS. (ESSE PRIMEIRO RECEN- SEAMENTO FOI FEITO POR CIRINO, GOVERNA- DOR DA SIRIA.) E IAM TODOS A ALISTAR-SE, CADA UM A SUA CIDADE. E FOI TAMBEM JOSE DA GALILEIA, DA CIDADE DE NAZARE PARA A JUDEIA, A CIDADE DE DAVI, QUE SE CHAMAVA BELEM (PORQUE ERA DA CASA E FAMILIA DE DAVI), PARA SE ALISTAR COM SUA ESPOSA MARIA, QUE ESTAVA PEJADA. E ESTANDO ALI ACONTECEU COMPLETAREM-SE OS DIAS EM QUE HAVIA DE DAR A LUZ. E DEU A LUZ SEU FILHO PRIMOGENITO, E 0 ENFALXOU E O RECLI- NOU EM UMA MANJEDOURA; PORQUE NAO HA- VIA LUGAR PARA ELES NA ESTALAGEM. (Le 2,1-7) (Figura 4) A historia da Natividade comega com o decreto para que “todos fossem alistados” (apographesthai, registrados, recen- seados), isto é, real jase um censo. Um esforgo de registro da totalidade da cor ¢iéncia, do universus orbis ou cireulo do todo (Vulgata), /ucia o nascimento da crianga divina. O recen- seamento terreno que precede o nascimento de Cristo alude ao “registro no céu” que é consegiiéncia de sua vinda. Como diz Cristo aos seus discfpulos: “Nao vos alegreis do sujeita- rem-se-vos os espiritos; mas sim deveis alegrar-vos de que os vossos nomes estejam escritos [eggegraptai] no céu.”(Le 10,20) P, em Hebreus, os fitis sio descritos como uma igreja de pri- mogénitos, cujos nomes “esto escritos [apogegrammenon] nos céus”. (12,23) Embora o nascimento de Cristo tenha ocorrida em Belém, sua cidade natal era Nazaré, na Galiléia. Assim sendo, ele tem duas cidades de origem. Esse duplo aspecto do seu nascimento da ensejo 4 idéia lenddria de que Cristo era gemeo. O doce- tismo elaborou a nogao de um Jesus duplo — Jesus como ser humano e Cristo como o espirito divina que desceu sobre ele no batismo, viveu através dele durante seu ministério e o aban- 3) donou na cruz. A Pistis Sophia conta uma historia da infancia de Jesus na qual uma aparigdo se dirige a Maria, perguntando: “Onde se encontra Jesus, meu irmao, para que eu possa encon- tri-lo?” Quando eles se reuniram, “ele te (Jesus) pegou em seus bragos e te beijou, e tu também o beijaste. Vos vos tornas- tes um”.? De acordo com a lenda, o Messias teria uma dupla na- tureza: A tradigdo posterior, sobretudo a cabalistica, fala de dois Messias; o Messias ben José (ou ben Efraim) e o Messias ben Davi. Sao comparados com Moisés e Aaro, bem como com duas corgas, 4 luz de uma passagem do Ct 4,5: “Os teus dois peitos fo como dois filhos gémeos da gazela.” O Messias ben José ¢, de acordo com Dt 32,17, “seu touro primogé- nito”, @ o Messias ben Dayi monta num asno, O Messias ben José é © primeiro; o Messias ben Davi, o segundo. O Messias ben José deve morrer para “reconciliar 0 povo com Tahweh por meio do seu sangue’’. Caird na luta contra Gog © Magog e sera Armilo quem o matard, Armilo é o Anti-Mes- sias, gerado por Satands numa pedra de marmore, Ele serA morto, por sua ¥ez, pelo Messias ben Davi, Depois disso, ben Davi fara a nova Jerusalém descer do céu ¢ ressuscitaré ben José. Esse ben José exerce um papel estranho na tradi- gdo posterior, Tabari, o comentador do Cordo, menciona que o Anticristo sera um rei dos judeus; e, no Masheni'a Yeshu ‘ah, de Abarbanel, o Messias ben José & simplesmente © Anticristo. Assim, ele é caracterizado, nao apenas como Messias sofredor, em contraposigfo ao Messias vitorioso, mas chega até mesmo a ser concebido como seu antago- fista, O Messias ben José corresponde 9 Jesus nascido em Naza- té, Q aspecto pessoal do Si-mesmo. O Messias ben Davi cor- tesponde a Jesus nascido em Belém, a cidade de Davi. Ele é 2. Pistis Sophia, org. e trad, por G. R. 8. Mead, p. 101 3. Jung, Aion, CW Sil, par. 168. 34 filho de Davi, © espirito ancestral, o aspecto tranpessoal do Sismesmo. Uma imagem paralela é a dos Diéscuras Gemeos, Castor, o mortal, e Pélux, o imortal. “E deu a luz seu filho primogénito [profotokos, primei- ro a ser concebido].” Os “primogénitos” tém especial signi- ficagdo para Iahweh. A nao ser que. aleancem a redengdo, ressuscitados, devem ser sacrificados. ““Consagra-me todos os primogénitos, que abrem o Utero de sua mae entre os filhos de Israel, tanto de homens como de animais: todos eles so meus.” (Ex 13,2) As vitimas do sacriffcio, feito com o objetivo de produzir o Exodo, eram os primogénitos dos egfpcios. No Salmo 89(88), 27(28), considerado uma referéncia ao Messias, Jahweh anuncia: “Eu o constituirei meu primogénito, o mais elevado entre os reis da terra.” Paulo descreve Cristo, de um lado, como preexistente, “a imagem do Deus invisivel, o primogénito de todas as criaturas: Pois por ele foram criadas todas as coisas” (Cl 1,15-16) e, de outro, como um mortal que morreu e, ndo obstante, foi ressuscitado como “o primogénito dentre os mortos.” (Cl 1,18). Nesta ultima condigao, ele é ‘‘o primogéni 4 entre muitos irmfos (Rm 8,29), que erigira uma “igreja ¢ 48 primogénitos... [cujos nomes] estao escritos no eéu.” (E.6 12,23) Essas referéncias expressam a fenomenologia paradoxal do. Si-mesmo, que é, a um s6 tempo, temporal e eterno, tanto vitima sacrificial como rei dirigente, e que se destina, ao mesmo tempo, a morrer e a nascer de novo. © Menino Jesus foi “reclinado em uma manjedoura; por- que nado havia lugar para eles na estalagem”, O termo “esta- lagem” (katalyma, quarto de hdéspedes) é usado apenas numa outra ocasido no Novo Testamento. Aparece nas passagens paralelas de Mc 14,14 e Le 22,11, nas quais Cristo, prepa- rando-se para a Ultima Ceia, envia discipulos para pergun- tar: “Onde é 0 quarto de hospedes [Kafalyma] em que poderei comer a Pdscoa com meus discipulos?” Os gndésticos usaram a imagem da estalagem para se referirem a “‘estalagem deste mundo”. No “Hino da Pérola” gnéstico, o espirito encar- nado também desce do céu para hospedar-se no “'Egito” ¢ 35 se descreve a si mesmo como “um estranho Para o§ meus companheiros de estalagem”.* Nao ha espago “neste mundo” para .o nascimento do Si-mesmo. Esse nascimento deve ocorrer extra mundum, ja que € uma excegdo, uma aberragio ou até um crime, de acor- do com o status quo estabelecido. Quem ndo quiser ser uma vitima dos fatos brutos da existéncia fisica deve ter um ponto de vista que se encontre além do “mundo”. “E possivel ter uma atitude com relacdo as condigdes externas, t§o-somente, quando ha um ponto de referéncia que se encontre fora de- las."* O nascimento do Si-mesmo produz esse ponto de refe- réncia, mediante a geragdo da “experiéncia incontestdvel de uma relagdo intensamente pessoal e reciproca entre o homem € a autoridade extramundana, que atua como um contrapeso com relagdo ao ‘mundo’ e a sua ‘razdo’”.® O nascimento entre os animais significa que a vinda do Simesmo € um processo instintivo, uma parte da natureza viva enraizada na biologia do nosso ser. Como Jung disse a um paciente, uma experiéncia do Si-mesmo transpessoal, caso nao se queira que cause inflagdo, “requer uma grande humil- dade para contrabalancd-la. E preciso descer ao nivel dos tatos”.? A jungdo entre a humildade e a grandeza é repre- sentada pelos dois grupos de visitantes que vao adorar o me- nino Jesus: os pastores e os reis ou Magos. Segundo Mt 2,1s, “Eis que vieram do Oriente uns magos a Jerusalém, dizendo: Onde esta o rei dos judeus, que é nas- cido? Porque nés vimos no Oriente a sua estrela e viemos adora-lo.” (Figura 5) O numero de sibios ou Magos nao é especificado, Na arte crista primitiva, pode haver dois ou qua- tro ou, ainda, por vezes, seis. No final da Idade Média, o nu- mere foi fixado em trés.® Nos sonhos modermos, é mais 4. Hans Jonas, The Gnostic Religion, p. 103, Veja-se também Edinger, Feo & argues tipo, pp. 1193s, 3. Jung, “The Undiscovered Self”, Civilization in Transition, CW 10, par. 506, 6. Ibid., par. $09, 7. C.G, Jung, Eirrevistas e encontros, pp, 44-45, 8. James Hall, Dictionary of Subjects anid Symbols in Art, p. 6. 36 5. A Adoragao dos Magos e a Crucifixio. (Diptico em marfim) | prevdvel que sejam quatro.® Essa diferenga provavelmente decorre do fato de a psique medieval experimentar as imagens sagradas como hipéstases metafisicas, ao passo que o homem moderno se encontra preparado pata experimenté-las como realidade psiquica. O “problema do quarto” sempre reside entre a idéia de um fato psiquico e sua realidade experimentada. Os Pais da Igreja associavam a estrela da Natividade com a “estrela de Jac6”, mencionada na profecia de Balaao: “Nas- cera uma estrela de Jacé e levantar-se-4 um Cetro de Israel, e ferird os capitaes de Moab, e destruira todos os filhos de Set.” (Nm 24,17) Como o assinala Jung: Desde tempos imemoriais, nfo s6 no judafsmo como em todo o Oriente Proximo, o nascimento de um ser humano eminente era identificado com o surgimento de uma estrela. . . 9, Para um exemplo, veja-se Edinger, Ego ¢ arguétipo, p. 126. 37 A esperanga de um Messias aparece sempre associada com © aparecimento de uma estrela.'? Inacio de Antioquia diz, da estrela da Natividade: Uma estrela brilhou no céu sobre todas as existentes antes dela, © sua luz era inexprimtvel, tendo sua originalidade deixado os homens tomados de espanto. E todas as demais estrelas, incluindo o sol e a lua, formaram um coto para essa estrela, Ela excedia amplamente a todas elas em brilho.!! Uma estrela que brilha mais do que as outras representa “A Centelha ou ménada” entre as muitas luminosidades do inconsciente e “deve ser considerada como um simbolo do Si-mesmo”™."? A estrela que nasceu no céu, quando do nascimento de Cristo na terra, configura-se como exemplo do motivo do duplo nascimento. Ela tem o significado de uma contraparte césmica, de cardter transpessoal, de Jesus Esse teima se mani- festa em sonhos modernos.!? A Igreja estabeleceu o Natal, a festa da Natividade, no solsticio de inverno,* incorporando, dessa maneira, a imagem pagd do aniversirio do novo sol, que é simbolicamente equivalente a estrela da Natividade. 10, Aion, CW 9ii, pars. 179s 11. “Epistle to the Ephesians", The Ante-Micene Fathers, vol. 1, p. 87 12. Jung, “On the Nature of the Psyche”, The Seructire amd Dynamies of the Psyche, CW8, par, 388, 15, Para exemplos, voja-se Edinger, Bro ¢ arquétipo, p. 159, e Anatomy of the Payche, pp. 88s. * No hemisfério norte W,T.). 38 3 FUGA PARA 0 EGITO Quando se glcanga o auge da vida, quan- do o botdo se abre e, do menor, emer- ge @ maior, entio, como diz Nietzsche, “OQ Individuo torna-se Dois’ e a figura maior, que sempre fornos mas que per- manecerd invistvel, se manifesta diante da personalidede menor com a forca de r uma revelagdo,.. — um momento do peri- go mais mortal!’ I. Jung, “Concerning Rebirth”, The Archetypes and the Collective Unconscious, CW 94, par. 217 EIS QUE APARECEU O ANJO DO SENHOR, EM SONHO, A JOSE, E LHE DISSE: LEVANTA-TE, E TOMA O MENINO E SUA MAE, E FOGE PARA O EGITO, E FICA LA ATE QUE EU TE AVISE, PORQUE HERODES VAI BUSCAR O MENINO PA. RA O MATAR, JOSE, LEVANTANDO-SE, TOMOU DE NOITE 0 MENINO, E SUA MAE, E PARTIU PARA © EGITO. E ALI ESTEVE ATE A MORTE DE HERODES: PARA SE CUMPRIR O QUE PRO- FERIRA O SENHOR PELO PROFETA, QUE DIZ; DO EGITO CHAMEI A MEU FILHO. HERODES, ENTAO, VENDO QUE TINHA SIDO ILUDIDO PE- LOS MAGOS, FICOU MUITO IRADO POR ISSO, EB MANDOU MATAR TODOS OS MENINOS QUE HAVIA EM BELEM E EM TODO SEU TERMO, QUE TIVESSEM DOIS ANOS, E DAI PARA BAIXO, RE: GULANDO-SE NISTO PELO TEMPO QUE TINHA AVERIGUADO EXATAMENTE PELOS MAGOS. EN- TAO SE CUMPRIU © QUE ESTAVA ANUNCIA. DO PELO PROFETA JEREMIAS, QUE DIZ: EM RAMA SE QUVIU UM CLAMOR, UM CHORO, E UM GRANDE LAMENTO: ERA RAQUEL CHORAN- DO SEUS FILHOS, SEM ADMITIR CONSOLACAO PELA FALTA DELES. (Mt 2,13-18) (Figura 6) O nascimento do heréi ou crianga divina se faz acom- panhar, costumeiramente, por ameacas a sua vida? A auto- ridade psfquica dirigente (o atual rei) teme ser vencido pe- lo futuro rei. Assim, a autoridade maior recém-nascida sem- pre se encontra em perigo mortal, provocado pelo dominan- te dirigente da psique, jd que este se sente mortalmente amea- gado pelo primeiro. O rei Herades nao costuma ser tratada com simpatia nas representagoes artisticas, Uma excegfo é a drea de He- rodes, da épera L’Enfance du Christ, de Berlioz: 2. Cf, O nascimento de Dioniso, de Perseu, de Edipo, de Maisds, ete 41 Outra vez o sonho! Outra vez o menino que vein para me destronar. E nao saber o que pensar dessa profecia, que pde em risco minha gloria e existéncia! Oh, desdita dos reis! Reger ¢, no entanto, nao viver; fazer leis para todos, e, no entanto, desejar seguir © pastor para os confins da floresta! Noite impenetravel, que mantém o mundo profundamente imerso em sono, ao meu peito atormentada garante a paz por uma hora, © que tuas sombras toquem meu cenho franzido de angistia, , , Oh, desdita dos reis, efe, ‘ ‘Vios esforgos! ! Que o sono se afaste de mim; e meu initil lamento nao apresse tua maldig#o, noite sem fim. A partir desse estado de dnimo, ocorre o Massacre dos Inocentes. Trata-se, num certo sentido, de uma conseqilén- cia do temor pessoal de Herodes pela sua derrubada, mas, num sentido mais profundo, é¢ um coroldrio do nascimen- to de Cristo. O nascimento do Si-mesmo é um evento catas- trofico (literalmente, aniquilador), um dinamismo arquetf- pico marcado pelo perigo ¢ pela violéncia. E preciso, na@o apenas que a Sagrada Familia fuja pa- ta o Egito, a fim de evitar o massacre de Herodes, mas tam- bém que se cumpra “o que proferira o Senhor pelo profe- ta, que diz: Do Egito chamei a meu filho”. Em outras pa- lavras, um padréo predeterminado (arquetipico) dirige o curso dos eventos. E feita uma referéncia a Oséias 11,1: “Quando Israel era menino, eu o amei, e chamei do Egito a meu filho.” Eis um dos muites exemplos no Novo Testa- ay mento em que Cristo é@ colocado em substituigéo 4 Israel nacao. No Antigo Testamento, a nagaéo de Israel é 0 filho de lahweh, com o qual ele trata coletivamente. O Novo Testa- mento costuma juntar o sentido religioso carregado coleti- vamente pela nagdo de Israel e transferi-lo para a figura de Cristo, o Deus feito homem, que se torna a personificacdo individual de Israel. Trata-se de um passo na direcdo da psi- cologia individual, em contraposigéo a psicologia coletiva, de grupo. Todavia, o processo de individualizagdo permane- ce incompleto, tendo em yista que a imagem de Cristo é uma hipéstase metafisica impar. Cabe entéo a psicologia profun- da a complementagao do processo. O sentido transpessoal, carregado de inicio coletivamente pelos judeus e, mais tar- de, individualmente, pela figura metaffsica de Cristo, o Deus feito homem (ainda adorado coletivamente), deve ser trans- ferido, agora, para a experiéncia psiquica dos inviduos. © Massacre dos Inocentes tem atribuido um anteceden- te no Antigo Testamento na citagfo de Jr 31,15: “Em Ra- ma ouyiu-se um clamor, um choro, e um grande lamento: era Raquel chorando seus filhos, sem admitir consolagéo pe- la falta deles.” Em seu contexto original, esse texto signifi- ca que Raquel, sua ancestral, chora pelos homens de Efraim, Manassés e Benjamim, massacrados ou deportados pelos as- sirios.? A passagem citada é seguida imediatamente por uma promessa de resgate: “Isto diz o Senhor: Cesse ja do choro a tua voz, e de verterem ldgrimas os teus olhos: porque re- compensa hd para a tua obra, diz o Senhor: e eles voltardo da terra do inimigo.” (Jr 31,16) A fuga de Cristo para o Egito, bem como o chamado para qué retornasse, se acham prefigurados, nfo apenas pe- la éxodo de Israel do Egito, como também por sua restau- ragdo, apds a derrota e o cativeiro, conforme o relata Jere- mias. Essas prefiguragées ilustram o fato psicolégico de que algo de novo na psique sé pode ter ingresso na consciéncia mediante a observagao, passo a passo, de um padrdo previa- 1, Biblia de Jerusalém, Mt 2,17, nota v. 43 mente estabelecido. Assim ¢ que, por exemplo, as novas des- cobertas da psicologia profunda penetram na mente moder- na mediante a reinterpretacdo de imagens biblicas.* De acordo com a lenda, houve milagres no decorrer da jornada para o Egito. A passagem da Sagrada Familia, ido- los cafram dos seus pedestais (Figura 7), indicagdo do colap- so dos falsos valores com o nascimento do Si-mesmo. Um campo de trigo cresce miraculosamente; ¢ semeado pela ma- nha e fica pronto para a colheita 4 tarde. Essa histéria iden- tifica Jesus com © espirito da vegetacao ou prinefpio da fer- tilidade. Ela também exibe ind{cios relativos ao notavel fe- némeno da aberragao temporal que por vezes ocorre nas ad- jacéncias do Si-mesmo constelado. O tempo e a eternidade entram em intersecgdo e pode haver uma breve suspensdo das categorias usuais da consciéncia — tempo, espaco e cau- salidade. Para os gnésticos, o Egito representava ‘to corpo”, a regiao mais sombria do pecado e da\existéncia carnal.* No “Hino da Pérola”, o filho do pai ci desce no Egito pa- Ta recuperar uma pérola das presas fle uma serpente.* Tra- ta-se de uma coagulatio ou mito wa encarnacdo,’ da qual a Fuga para o Egito é uma variagdo. O fato de a “pérola de grande valor” dever ser encontrada no “Egito” sugere que o espirito precisa de um encontro total com a matéria, que o Si-mesmo (pérola) requer, para sua realizagdo, um ego egip- cio, vinculado com a terra. 4. "Toda renavagdo cujas rafzes ndo se encontrem profundamente fincadas na me- Thor tradigdu espiritual se reveste de um curdter efémero; mas a dominante que se desenvolve a partir de raizes histéricas atua como um ser vivo no interior de um homem Timitado pelo ego, O homem nio a possui; ela se apossa dele.” (Jung, Mysterium Coniunctionis, CW 14, par. S21). Abid, , par. 257 Veja-se Edinger, Ego e arquétipo, pp. 119 ss. . Veja-se Edinger, Anatomy of the Psyche, pp. 104 ss. aa 44 7, Fuga para o Egito. (The Belles Heures of Jean, Duke of Berry} 4 BATISMO O que, afinal de contas, induz 0 homem a seguir seu prdprio caminho e a elevar-se da identidade inconsciente conta massa, E agquilo a que se costuma dar o nome de vocagio... [que] atua como uma lei de Deus, da qual ndo se escapa... Todo aque- le que tem uma vocagdo ouve a vor do ho- ment interior: 6 chamado.! I. Jung, “The Development of the Personality”, The Development of the Persona- tity, CW 17, pars, 29's, 8. Ratisma “9 Grandes Heures of Jean, Duke of Berry) ENTAO VEIO JESUS DA GALILEIA TER COM JOAO, PARA SER BATIZADO POR ELE. POREM JOAO O IMPEDIA, DIZENDO: EU SOU © QUE DE- VO SER BATIZADO POR TI, E TU VENS A MIM? E, RESPONDENDO, JESUS LHE DISSE: DEIXA POR ORA: PORQUE ASSIM NOS CONVEM CUM- PRIR TODA A JUSTICA. ELE ENTAO O DEIXOU. E JESUS, DEPOIS DE BATIZADO, SAIU LOGO PARA FORA DA AGUA: B EIS QUE SE LHE ABRI- RAM OS CEUS, E ELE VIU O ESPIRITO DE DEUS, QUE DESCIA COMO UMA POMBA, E QUE VINHA SOBRE ELE. E EIS QUE SURGIU UMA VOZ DO CEU, QUE DIZIA: ESTE E O MEU FILHO AMADO, EM QUEM ME COMPRAZO, (Mt 3,13-17) (Figura 8) © batismo de Cristo representa uma provagdo inicia- toria de solutio,? um drama de morte e de renascimento, no qual o ego encontra seu destino transpessoal e com ele se compromete. Para a Igreja, 0 batismo de Cristo € 0 pro- totipo do sacramento do batisme, que significa a morte da velha vida da carne e o nascimento na vida eterna de Cristo. Como diz Paulo (Rm 6,4): “Fomos sepultados com ele pe- lo batismo na morte, para que, tal como Cristo ressurgiu dos mortos pela gléria do Pai, também nés andemos em novida- de de vida.” Seu batismo por Joao indica que Cristo era, inicialmen- te, seguidor de Jodo Batista. Ele submeteu-se a si mesmo A imersdo no inconsciente sob a orientagdo de outra pessoa. A isso se seguiu uma experiéncia da psique auténoma, a des- cida do Espirito Santo. Algo semelhante pode ocorrer quan- do um analisando se submete a transferéncia. Aquilo que comega como dependéncia pessoal e projegdo pode levar ao encontra pessoal, impar, com a psique ohjetiva. A disposi- cdo de Cristo para submeter-se ao batismo por Joao é expli- cada na enigmdatica frase: “Porque assim nos convém cum- prir toda a justiga.” A meu ver, isso significa que é justo e 2. Veja-se Edinger, Anatomy of the Psyehe, pp. 47 ss 49 correto que nos submetamos, de inicio, 4 autoridade exte- tior de outro, como preparagdo para a experiéncia do ‘‘ou- tro” transpessoal que se encontra em nosso interior. B ne- cessdrio passar pot um aprendizado psicologico. (Figura 9} De acordo com a heresia docética, a natureza divina de Cristo desceu sobre o homem Jesus quando do seu batis- mo e passou a utilizd-lo como instrumento. Assim, segun- do Ireneu, os gnésticos falam de dois batismos: Eles afirmam: aqueles que atingiram 0 perfeito conhecimento devem, por necessidade, ser regenerados no poder que esta acima de tudo. Porque, de outra maneira, 6 impossivel ser admitido no Pleroma, ji que essa [regeneragdo] é aquilo que os leva para as profundezas de Biton. Pois o batismo instituido pelo Jesus visivel destinava-se A remissio dos pecados, mas a redengfio trazida pelo Cristo que desceu sobre Ele destinava-se & perfeigao; e eles alegam que o primeiro é animal, mas o segundo espiritual, E 0 batismo feito por Jodo foi proclamado com a atengdo voltada para o arrependimento, mas a redencao feita por Jesus foi trazida em beneficio da perfeicao. E a isso se tefere Ele, quando diz: “Eu pois tenho de ser batizado num batismo, e qudo grande é a minha angtstia até que esteja consumado.” (Le 12,50)° Os dois batismos correspondem, em termos psicolégi- cos, ao batismo da confissdo (arrependimento) administra- do por outra pessoa, e o batismo da psique auténoma, no qual o individue toma consciéncia de que deve responder ao Si-mesmo. Assim, diz Jodo Batista: “Eu na verdade vos batizo em agua para vos trazer a peniténcia: porém, o que ha de vir depois de mim & mais poderoso do que eu, ¢ eu nao sou digno de lhe carregar as sandalias: ele vos batizard com o Espirito Santo, ¢ com fogo.” (Mt 3,11) Virios textos antigos mencionam a presenca do fogo sobre o Jorddo no momento do batismo de Jesus.* Diz Jus- 3, “Against Heresies", 1, XXI, 2, The Ante-Micene Fathers, vol. 1, p. 345 4, Vejase Jean Danigiou, The Theology of Jewish Christianity, p. 227. 50 9. Batismo, (Desenho de Rembrandt) tino: “Quando Jesus foi para o rio Jorddo, onde Joao bati- zava, e pisou na dgua, acendeu-se um fogo no Jorddo; e quan- do ele saiu da agua, o Espirito Santo desceu sobre ele sob a forma de uma pomba.”’* © tradutor diz, numa nota, que “a Shekinah provavelmente acompanhou a descida do Espirito Santo”. Todavia, Daniélou déThe uma outra versio: Nessa tradigdo, o fogo parece ser uma ilusfo do fogo des- truidor do Juizo, ¢ certo numero de textos o mencionam. O seguinte exemplo aparece nos Ordculos Sibilinos: “De- pois que ele (o Filho de Deus) tiver recebido um segundo nascimento de acordo com a came, sendo banhado na azu- 5. “Dialogue with Trypho”, cap. 88, The Ante-Nicene Fathers, vol. 1, p. 243. 51 lada e vagarosa corrente do Jorddo e tiver escapado ao fo- go, serd o primeiro a ver a vinda de um Deus favoravel, por meio do Espirito, nas asas de uma pomba branca.” (VI, 3-7) O texto por certo parece sugerir que Cristo foi libertado do fogo pelo batismo e que isso ocorreu no momento da descida do Espirito, uma visio bastante proxima do texto de Justino, no qual o fogo aparece sobre as aguas do Jor- ddo no momento em que Cristo pisou na 4gua. A idéia de que Cristo foi libertado do fogo quando do seu Batismo apareceu em outro ponto dos Ordcufos, numa passagem que fala do “Pai que se expandiu quando do Teu Batismo em pura agua, da qual Tu (a Palavra) apareceste, saindo do fogo”. (VII, 83-84) Essa mesma conceppao é encontrada nos Excerpta ex Theodofo, Clemente, relatando o ensinamento desse dis- cfpulo de Valentino, escreve: “Da mesma forma como o nascimento do Salvador nos libertou do (fluxo do) tornar-se e do Destino, assim também seu Batismo nos resgatou do fogo ¢ sua Paixdo nos resgatou da paixdo.” (76, I)® Outros textos falam de uma “grande luz’.” Entendidas em termos psicologicos, essas referéncias indicam que o fogo e a luz da Shekinah, a gloria de Iahweh, 9 fogo do Juizo Final e a pomba do Espirito Santo que des- ce sdo aspectos do mesmo fendmeno, a saber. a manifesta- go da psique autonoma.® Além do fogo e da luz, o batismo é acompanhado por uma voz. A “voz” carregada de autoridade por vezes apare- ce em sonhos, e exige o mais profundo respeito.? No caso considerado, ela diz: “Este é meu filho amado, em quem me comprazo.” Essa afirmago corresponde a uma declaracdo similar de Isaias 42,1, que proclama o “Servo de Iahweh’: 6, Danidlou, The Fheology of the Jewish Christianity, p. 228. 1. ibid, p. 230, §. © foga esti associado com o simbolismo da calcinatio, Veja-se Edinger, Anato- hy of the Psyche, pp. 17 38. 9. Tung faz referéncia a isso em Peychology and Alchemy, CW 12, pars. 11S ¢ 294. 52 “Eis aqui o meu servo, a quem ampararei; meu eleito, com © qual se compraz minha alma; sobre ele derramei o meu espirito.” Ela transmite a mensagem de que o ego, quando aceita sua vocac¢fo e seu destino, tem o amor e o apoio do Simesmo, Nos Salmos 74(73):13, lemos: “Com o vosso poder fen- destes o mar; esmagastes, entre as ondas, a cabega dos dra- goes.” Cirilo de Jerusalém aplicou esse texto ao batismo de Cristo: “Como, por conseguinte, era necessdrio fazer em pe- dagos as cabegas dos dragdes, Ele desceu e aprisionou esses poderosos nas dguas.”?° Daniélou nota que “o tema do dra- gio oculto nas d4guas da morte, assim como do batismo de Cristo como uma descida ao dominio do dragio, resistiriam na tradicdo”."’ Dai surgiu a notdvel idéia de que o batismo de Cristo produziu uma purificagao da dgua, ao destruir “as forgas demoniacas que a habitavam”.!? Inacio escreve: “Ele nasceu e foi batizado, para que, pela Sua paixdo, Ele pudes- se purificar a 4gua.”!? E Clemente de Alexandria diz: O proprio Senhor se fez batizar; n@o que ele necessitasse disso para si mesmo, mas para que pudesse santificar toda 4 a Agua para aqueles que nela sd0 regenerados, Dessa manei- ra, no apenas nossos corpos, mas também nossas almas, sao purificados; e a santificagdo das partes invis{veis do nos- so ser é indicada pelo fato de que mesmo os espiritos impu- ros que se apegam 4 nossa alma sejam expulsos quando do renascimento espiritual,™* A idéia da purificagdo e da santificagdo da dgua sugere a transformagdo do préprio inconsciente. O que antes ha- 10, “Cathechetical Lectures", Hl, IL, citado em Danidlou, The Theology of Jewish Christianity, p. 125. AL. fbid. 12, Ibid., p. 226. “Episile to the Ephesians”, cap. 18, The Ante-Nicene Fathers, vol. 1, p. $7 ‘clogae Propheticae”, 7, citado em Daniélou, The Theology of Jewish Chris- tianity, p. 227 33

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