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Memória Coletiva

e Justiça Social
Myrian Sepúlveda dos Santos (org.)

Memória Coletiva
e Justiça Social
Copyright © dos autores, 2021

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ABIN Agência Brasileira de Inteligência
ABREMEC Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários
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ANAP Associação Nacional dos Anistiados Políticos, Aposentados e
Pensionistas
APAC Associação Pinacoteca Arte e Cultura
APP Áreas de Preservação Permanente
CAAF Centro de Antropologia e Arqueologia Forense
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CBA Comitê Brasileiro de Anistia
CDDH Centro de Defesa dos Direitos Humanos
CDHM Comissão de Direitos Humanos e Minoria
CDN Companhia Dramática Nacional
CEJIL Centro pela Justiça e o Direito Internacional
CEMDP Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
CENIMAR Centro de Informações da Marinha
CIA Agência Central de Inteligência
CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos
CIE Centro de Informações do Exército
CISA Centro de Informações da Aeronáutica
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNV Comissão Nacional da Verdade
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CONDEPHAAT Conselho de Defesa de Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico do Estado de São Paulo
DEIP Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda
DEOPS/SP Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado
de São Paulo
DOI-CODI/SP Destacamento de Operações de Informação – Centro de
Operações de Defesa Interna
DOPS Departamento de Ordem Política e Social
8 Me mó ria Co le t iva e J ust iça Social

FAPERJ Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro


FCP Fundação Cultural Palmares
FINEP Fundação Financiadora de Estudos e Projetos
GTIT Grupo de Trabalho Interdepartamental para preservação do
patrimônio cultural de terreiros
GTMAF Grupo de Trabalho Interdepartamental para preservação do
patrimônio cultural de Matriz Africana
GTNM Grupo Tortura Nunca Mais
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRAM Instituto Brasileiro de Museus
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade
ICMP International Commission on Missing Persons
ICOM Conselho Internacional de Museus
IDG Instituto de Desenvolvimento e Gestão
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IML Instituto Médico Legal
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPEAFRO Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros
IPHAN Instituo de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ISER Instituto de Estudos da Religião
LGBTs Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros
MAN Museu de Arte Negra
MAR Museu de Arte do Rio de Janeiro
MASP Museu de Arte de São Paulo
MEL Museu da Escravidão e da Liberdade
MHN Museu Histórico Nacional
MINC Ministério da Cultura
MINOM Movimento Internacional para uma Nova Museologia
MJ Ministério da Justiça
MLPJ Memorial da Luta pela Justiça
MNU Movimento Negro Unificado
MP Museu Paulista
MUNCAB Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira
PNDH Programa Nacional dos Direitos Humanos
OAB Ordem de Advogados do Brasil
OBAN Operação Bandeirantes
OEA Organização dos Estados Americanos
9

OS Organização social
OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PCR Partido Comunista Revolucionário
Pina Pinacoteca do Estado
PNC Plano Nacional de Cultura
PNPI Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
PPP Parceria Público Privada
PROIN Projeto Integrado do Arquivo do Estado de São Paulo
PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
PUC Pontifícia Universidade Católica
REMUS-RJ Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro
SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos
SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial
SNC Sistema Nacional de Cultura
SNI Sistema Nacional de Informações
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
STF Supremo Tribunal Federal
TEN Teatro Experimental do Negro
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UMNA Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia
UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura
UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira
USP Universidade de São Paulo
Agradecimentos

Este livro é o resultado de reflexões novas e antigas sobre memória coletiva.


Ele faz parte de uma trilogia que teve início com a defesa de minha tese de
doutorado, Memória coletiva e teoria social, defendida em 1993, na New School
for Social Research e publicada no Brasil anos depois (Santos 2009). Partindo
da percepção de que temos várias formas de nos lembrar e esquecer do pas-
sado, ou seja, diferentes tipos de memória e, também de que essas formas se
transformam ao longo do tempo, trabalhei em 2013, com os usos e aplicações
da memória na formação de identidades coletivas. O título Memória coletiva
e identidade nacional trata basicamente de políticas da memória travadas no
contexto brasileiro em que identifiquei a presença forte do Estado. A memória
oficial da nação pouco se modificou embora novos espaços tenham sido abertos
para memórias identitárias de grupos específicos que passaram a coexistir e
influenciar a formação da identidade nacional.
Este terceiro volume, Memória coletiva e justiça social, reflete uma nova
etapa da pesquisa. Ele reúne uma série de artigos, alguns publicados em parceria
com companheiros de pesquisa. Acrescentei um estudo sobre relatos e teste-
munhos durante a pandemia, realizado por Paulo Gajanigo e Rogério Souza,
devido à atualidade e importância do tema. A tentativa de tornar visível um
passado silenciado continua presente, mas neste livro os artigos trazem à tona
o novo paradigma relacionado ao cuidado com a dor do “outro” e às medidas
reparatórias no presente. Os artigos apontam para uma nova percepção de
temporalidade, uma vez que a ênfase no momento presente pauta as novas
abordagens teóricas. O presentismo, característico das últimas décadas, reno-
va-se ao apresentar marcas, fraturas, sentimentos e determinações oriundas
do passado. A partir de práticas de reparação e justiça passado e presente se
entrelaçam. Embora o diálogo se faça com as novas abordagens à memória, o
intuito é de incorporação de novas matrizes e tendências às análises históricas
e sociais, priorizando a memória, mas sem abandonar os processos seletivos
entre o lembrar e o esquecer, bem como a formulação de projetos e utopias.
Na década de 1990, os estudos sobre a memória coletiva ainda eram muito
incipientes no Brasil; acredito que os artigos “Objeto, Memória e História” e
“O pesadelo da amnésia coletiva” – publicados por mim, respectivamente, na
revista Dados e na Revista Brasileira de Ciências Sociais em 1992 e 1993 – tenham
sido pioneiros ao abordar questões sociais relacionadas à memória. Nos últimos
vinte anos houve uma explosão de estudos sobre a memória. O crescimento
do interesse pelo tema aumentou simultaneamente ao fortalecimento de novos
movimentos sociais que reescreveram suas histórias. Predominaram nestes
estudos as chamadas guerras culturais. As disputas em torno da reconstrução
do passado no Brasil não são fáceis, uma vez que versões consagradas têm o
aval de grupos sociais que detêm grande poder econômico, social e político.
No Brasil, o imaginário nacional foi construído tendo por lema o olhar para o
futuro em detrimento da importância de todos os eventos e injustiças passadas.
Este livro é o resultado de seminários, de debates e de trocas acadêmicas
entre os membros do grupo de pesquisa “Arte, Cultura e Poder”, bem como, no
âmbito da UERJ, das várias disciplinas ministradas em que estudantes contri-
buíram com as questões levantadas. Entre os temas trabalhados ao longo deste
livro, destacamos: escravidão, ditadura civil-militar, sistema penitenciário e a
pandemia do novo coronavírus. Os suportes da memória relacionados a estes
temas estão presentes em instituições específicas, como arquivos e museus,
mas também na arte, na literatura, no cinema, nas práticas culturais de toda
ordem e nas novas tecnologias de informação.
Alguns dos capítulos deste livro são resultado de parcerias acadêmicas,
outros de reflexões que estão mais diretamente ligadas à minha trajetória pes-
soal de pesquisa. Em todos os casos, o trabalho de pesquisa é sempre coletivo
e agradeço a todos aqueles que tornaram o trabalho acadêmico uma jornada
também de amizade e companheirismo. Agradeço aos alunos, bolsistas, orien-
tandos, professores e pesquisadores especialmente aos que trabalham comigo
no Grupo de Pesquisa “Arte, Cultura e Poder” e àqueles que compartilham a
aventura chamada “museus afrodigitais”, pois com estes a troca e o aprendizado
são contínuos. Agradeço também à Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), instituição que nos dá os instrumentos necessários ao ensino, à pesquisa
e aos trabalhos de extensão. Em tempos em que políticas do governo redu-
zem drasticamente os investimentos em educação, ciência e tecnologia, acho
importante registrar a importância do ensino público e gratuito. A pesquisa
atual e os meios de sua divulgação foram possíveis graças aos financiamentos
obtidos junto às agências de fomento CNPq e FAPERJ, que têm cumprido, nos
últimos anos, importante papel no apoio ao ensino e à pesquisa.

Myrian Sepúlveda dos Santos


Rio de Janeiro, 30 de junho de 2021
Sumário
Introdução............................................................................................................................ 15

I. Memória e desigualdade social.....................................................................................23


1.1. A crise da memória involuntária.......................................................................25
1.2. As políticas da memória.................................................................................... 28
1.3. Esferas públicas fragmentadas...........................................................................33

II. Os arquivos da ditadura militar..................................................................................39


2.1. Arquivos e sociedade civil................................................................................. 40
2.2. Os arquivos oficiais.............................................................................................43
2.3. Trauma e testemunho........................................................................................ 49
2.4. A comunidade de apoio.....................................................................................53
2.5. Vladimir Herzog ................................................................................................. 55

III. Museus da Resistência.................................................................................................57


3.1. Memória e justiça.................................................................................................58
3.2. Os lugares da tortura..........................................................................................61
3.3. O Memorial da Resistência................................................................................ 68
3.4. O Memorial da Luta pela Justiça (MLPJ)........................................................74

IV. O patrimônio prisional................................................................................................77


Myrian S. Santos & Viviane T. Borges
4.1. A construção do patrimônio carcerário..........................................................77
4.2. A estética da dor e seus fetiches........................................................................82
4.3. Murais do sofrimento.........................................................................................85
4.4. Representações da dor....................................................................................... 88

V. Memória afro-brasileira................................................................................................93
Myrian S. Santos & Gabriel V. Cid
5.1. A africanidade dos brasileiros...........................................................................93
5.2. A construção do patrimônio cultural ............................................................ 96
5.3. Os museus afro-brasileiros..............................................................................102
5.4. A disputa pelo espaço urbano........................................................................106

VI. Abdias do Nascimento e o Museu de Arte Negra..................................................113


Myrian S. Santos & Maurício B. Castro
6.1. O criador do MAN: Abdias do Nascimento ................................................. 114
6.2. A coleção ........................................................................................................... 119
6.3. O Museu de Arte Negra ...................................................................................124

VII. Memória e Literatura................................................................................................131


7.1. Memória e Esquecimento................................................................................ 132
7.2. A memória-testemunho.....................................................................................135
7.3. A memória de nossos pais................................................................................ 139
7.4. A memória dos ancestrais................................................................................ 141

VIII. Memória e tecnologias digitais.............................................................................149


8.1. Democratização de produção e acesso...........................................................149
8.2. Limites da mercantilização...............................................................................155
8.3. Limites tecnológicos.......................................................................................... 157
8.4. A nova temporalidade digital.......................................................................... 159

IX. Pandemia, relatos do cotidiano e testemunho....................................................... 165


Paulo Gajanigo e Rogério Souza
9.1. Relatos do Cotidiano durante a pandemia da covid19 e os caminhos
da pesquisa. ..............................................................................................................166
9.2. Fragmentos de um diário coletivo da pandemia.......................................... 172

Considerações finais......................................................................................................... 179

Referências bibliográficas................................................................................................ 185

Autores............................................................................................................................... 203
Introdução
O oposto de esquecer não é lembrar, mas sim fazer justiça.
Yerushalmi 1982: 117

Autores de diferentes campos disciplinares identificaram uma época de exaltação


à memória e ao passado a partir do final dos anos 1980, tendo como marco a
queda do muro de Berlim (Huyssen 1995, 2003; Lavabre 2000; Hartman 2000).
Além da multiplicação de arquivos, museus, monumentos, biografias, filmes e
romances históricos, as novas tecnologias de informação modificaram as práticas
cotidianas e trouxeram a promessa de uma guarda quase infinita de dados. Se
durante grande parte do século XX os olhares estiveram voltados para o futuro
e para a promessa de superação das mazelas deixadas pelas grandes guerras,
nos últimos quarenta anos as atenções se direcionaram para a preservação
do passado. Após 40 anos de hegemonia da ênfase no dever ético e político
de testemunhar para que os erros do passado não se repitam, críticas e visões
mais céticas sobre o papel a ser desempenhado pela memória em sociedades
contemporâneas voltam a ter repercussão (Sarlo 2007, Traverso 2017).
Os movimentos sociais das últimas décadas trouxeram com eles a questão
identitária, diretamente ligada à revisão da historiografia oficial, à reivindicação
da memória e às políticas reparatórias. Fatos ausentes da história oficial foram
descobertos e revistos, bem como vozes que estavam sendo silenciadas. As
memórias coletivas, compreendidas em termos gerais como representações
coletivas hegemônicas, passaram a ser alvos de verdadeiras guerras culturais.
Apesar de algumas construções identitárias serem mais enraizadas ou terem
suportes oficiais que lhes garantem maior estabilidade, diversos movimentos
sociais têm operacionalizado um conceito de identidade que não é fixo, pois
não importam mais as características atribuídas, que podem se modificar de
contexto a contexto, mas, sim, os processos de lutas relacionados às reparações
das injustiças anteriormente cometidas.
Uma atenção especial dos novos estudos da memória foi dada aos eventos
violentos e traumáticos, que se tornaram um novo paradigma para pensarmos
o passado. Inicialmente estas reflexões surgiram associadas ao Holocausto,

15
16 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

período em que milhares de judeus foram exterminados pelos nazistas du-


rante a II Guerra Mundial (LaCapra 2001, Yerushalmi 1982). Os estudos sobre
o massacre do povo judeu proporcionaram bases epistemológicas e filosóficas
para abordagens que se diversificaram rapidamente, passando a envolver de-
núncias relacionadas às violações de direitos humanos ocorridas em diversas
partes do mundo e em diferentes períodos históricos. Políticas de patrimônio
e demandas por reparação se multiplicaram. As memórias deixaram de estar
associadas à procura da revelação de um passado verdadeiro e se voltaram para
a produção de solidariedade e justiça (Olick 2007, Sodaro 2019).
Essas foram transformações que alcançaram o Brasil. Os diversos movi-
mentos de grupos sociais que se identificaram com afrodescendentes e povos
indígenas ganharam protagonismo, história e singularidade em consideração
às diferenças étnicas e culturais. A partir dos últimos mandatos presidenciais
de Fernando Henrique Cardoso, tiveram início as políticas de cotas nas uni-
versidades públicas, que logo se expandiram e atualmente favorecem grupos
raciais, étnicos, sócio-econômicos, de gênero, sexualidade ou com deficiência
física considerados em desvantagem na conquista de oportunidades. Desde a
Constituição de 1988, grupos indígenas e quilombolas conquistaram o direito
às terras. Este é um processo dinâmico e político em que grupos se organizam
e fazem demandas em função de suas formações identitárias, denunciando
concomitantemente ciclos históricos repetitivos de exploração e genocídio
(Arruti 2006, French 2009). Neste período, o Estado reconheceu a escravidão
como crime contra a humanidade e leis foram promulgadas contra o racismo
e o feminicídio. Políticas públicas, principalmente nos governos do Partido dos
Trabalhadores (PT) entre 2003 e 2016, atenderam parcialmente as demandas
do movimento negro e de mulheres. Secretarias com competência ministerial
foram criadas para atender demandas específicas, como a Secretaria de Políticas
de Promoção para a Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria das Mulheres.
Políticas educacionais procuraram efetivar a lei que tornava obrigatório o ensino
da história da cultura africana e afro-brasileira. O tema “memória, verdade e
justiça” também entrou na pauta de políticas de transição para a democracia
e tem sido defendido por movimentos sociais e políticas públicas.
No campo acadêmico, as abordagens se tornaram mais interdisciplinares e
a revisão do passado esteve presente em várias frentes relacionadas às políticas
de reparação e justiça. A história oral e a história do tempo presente foram
definitivamente incorporadas ao campo disciplinar mais tradicional (Rousso
2016). As novas abordagens são mais atentas às temporalidades diferenciadas
e à relação sempre dinâmica entre o passado e o presente. No campo das
ciências sociais, diversas revisões de paradigmas foram feitas. Fortaleceu-se
I n tro d u çã o 17

a denúncia ao mito da democracia racial (Almeida 2018) e à crença de que


a ditadura militar teria sido mais branda no Brasil que em outros países da
América Latina (Santos, Teles e Almeida 2009). As narrativas sobre o caráter
cordial e amistoso do povo brasileiro (Schwarcz 2019) e a ideia moderna de
democracia foram colocadas em questão (Mbembe 2018). O direito à fala e ao
protagonismo das populações oprimidas – que se estendem dos cantões do
mundo rural, passando pelo feminismo negro e alcançando até os hediondos
cárceres modernos – tem sido destacado em uma série de obras acadêmicas
(Stolcke 1986, Ribeiro 2018, Borges 2018b).
Arquivos e museus, instituições dedicadas à preservação da memória,
questionaram as antigas narrativas oficiais, as representações herdadas da co-
lonização e o repertório habitual de vitimização de povos oprimidos (Santos
2007, Revert 2017). Uma maior sensibilidade surgiu associada às formas de
apresentação daqueles que outrora apareciam como o “outro” do processo
civilizatório. No mundo das artes, as autorias deixaram de ser consideradas
neutras e as curadorias passaram a incorporar lideranças anteriormente pre-
teridas em exposições, procurando reverter o apagamento daqueles que eram
silenciados. Museus surgiram entre quilombolas, povos indígenas, bairros
periféricos e favelas. Além disso, redes e parcerias se estruturam em torno
das novas agendas. Cabe destacar que o Museu da Diversidade Sexual,1 uma
pequena sala instalada em uma estação do metrô em 2012, tem conseguido se
manter entre os museus mais acessados virtualmente de São Paulo.
Esses processos de construção de memória associados à garantia de direitos
entraram em crise recentemente em diversas partes do mundo, acompanhando
a crise econômica e social gerada pelas políticas neoliberais. No Brasil, obser-
vamos um processo mais amplo de destruição da memória, à medida em que
o governo eleito em 2018 tem provocado o sucateamento geral dos dados e
estatísticas de diversas instituições governamentais. Em órgãos associados à
defesa do meio ambiente, registros históricos coletados pelo Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre desmatamento na Amazônia e no Pantanal
geraram crise com o governo e o diretor foi exonerado. Apesar do apoio de
autoridades e instituições científicas do país, a descontinuidade de financia-
mento e o bloqueio de informações têm sido a regra. Queimadas da floresta
amazônica em grandes proporções voltaram a acontecer, com deslocamento e
assassinato dos povos locais, facilitados pela destruição de áreas de mapeamento
e controle da região. Também foi suspenso, por uma alegada falta de verbas, o

1 Instituição vinculada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo e gerida pela
Organização Social Amigos da Arte.
18 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

censo demográfico do país, por dois anos consecutivos, conforme anunciado


pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem o
levantamento do perfil socioeconômico do país e dados estatísticos sobre de-
semprego, renda e escolaridade, políticas públicas tornam-se mais arbitrárias
e alheias ao controle social.
O mesmo tem acontecido em relação às instituições voltadas para a preser-
vação da memória histórica e cultural: cortes de verba, exoneração e substituição
de diretores e de profissionais qualificados. O presidente atual da Fundação
Cultural Palmares – criada em 1988 para promoção da afro-brasilidade e apoio
à luta antirracista – declara não haver racismo no país, procura desqualificar
as personalidades negras homenageadas, insulta o movimento negro e censura
os livros da biblioteca. Também foram exonerados quatro dos sete membros
da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e coloca-
dos em seu lugar militares, coibindo desta forma a continuidade do trabalho
de certificação de responsabilidade das mortes e identificação dos corpos de
militantes que foram assassinados pelo regime militar. Em meio à pandemia
causada pelo novo coronavírus, observamos ações constantes por parte do
governo para inviabilizar a coleta e divulgação de dados sobre a propagação da
doença. As notícias diárias sobre totais de pessoas infectadas, mortas e vacinadas
são realizadas por um consórcio de veículos de imprensa. A desqualificação
da memória faz parte de um projeto político, no qual se afirma hoje o que foi
negado ontem, sem qualquer compromisso com a verdade. O governo federal
rejeitou a compra de vacinas, defendeu a cura por remédios sem comprovação
científica e duvidou da eficácia de máscaras e vacinas durante todo o ano de
2020, mas, sem constrangimento, autoridades afirmam, no ano seguinte em
Comissão Parlamentar de Inquérito, o comprometimento com o combate à
covid-19 e com a compra das vacinas.
O uso ideológico do passado, em suas diversas nuances, sempre foi uma
característica de governos autoritários, capazes de destruir evidências, proibir
vozes dissidentes e impor narrativas políticas unificadoras em seu próprio
benefício. No Brasil atual, a censura e a falsificação da história ocorrem cotidia-
namente. O governo brasileiro passou a negar que tenha ocorrido violação de
direitos humanos no período da ditadura militar (1964-1986) e tem celebrado
oficiais das Forças Armadas associados à tortura, em desrespeito aos que foram
assassinados e violentados, bem como ao conjunto de cidadãos que com eles se
solidariza.2 Em um país com um dos maiores índices de assassinato de jovens

2 Disponível em https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-torturador-brilhante-ustra-e-
-um-heroi-nacional/. Acesso 30/09/2020.
I n tro d u çã o 19

negros, LGBTs e de feminicídios, as autoridades negam a existência dessas ques-


tões e assumem posturas racistas, sexistas e patrimonialistas. A referência ao
passado, com claro teor político, passou assim a ser realizada por ministros e
pelo chefe de Estado sem qualquer referência a documentos, arquivos, análises
de especialistas, e em claro confronto com testemunhos.
A política de apagamento da memória pavimenta o caminho de destrui-
ção das conquistas de direito à cultura, ao trabalho e à vida digna. Práticas
genocidas obtêm apoio de parte da população, não só pelas artimanhas e
falsificações da verdade, mas também pelo incentivo à criminalização e morte
daqueles “outros” que são os pobres, indígenas, negros, favelados, sem-tetos e
sem-terras (Mbembe 2018). Para tornar ainda mais profunda a crise brasileira,
há de ser considerada a falta de controle sobre o uso das novas tecnologias de
comunicação, que tem provocado sectarismo, intolerância e a produção de fake
news em grande escala. Embora a instrumentalização da história não seja uma
novidade, cabe sempre a perplexidade frente ao contexto atual e a pergunta: o
que, afinal, conseguimos aprender a partir de passado? Ou, ainda, que instru-
mentos temos para enfrentar as novas falsificações da história?
Este livro se volta para as políticas e suportes da memória construídas com
o apoio de movimentos sociais e de setores da sociedade civil que resistem às
normas e narrativas impostas pelo poder. O objetivo é investigar a relação entre
movimentos sociais, instituições constituídas e suportes materiais. Memórias
constituídas coletivamente influenciam formas de agir, sentir e julgar. Quando
imersas em situações de ampla participação, elas direcionam de forma posi-
tiva o relacionamento conflituoso entre passado e presente, sendo capazes
de promover processos de reparação. Em diversas abordagens do passado
contemporâneas, o oposto do esquecimento não é a lembrança, mas a justiça
(Yerushalmi 1982: 117).
Contudo, nem sempre o trabalho da memória tem a capacidade de evitar
contranarrativas e a repetição de atrocidades cometidas no passado. Não só
temos diferentes tipos de memórias coletivas – uns mais ativos, outros mais
passivos –, como eles se modificam ao longo do tempo e de acordo com relações
de poder. A memória coletiva é resultante de um processo seletivo que envolve
necessariamente o esquecimento. O termo memória coletiva indica tanto as
diferentes formas interativas de pensar e agir sobre o passado, como os objetos
e sítios que nos fazem lembrar. Arte, literatura, teatro, relatos testemunhais,
narrativas, filmes, documentários, biografias, arquivos, parques, bibliotecas,
videotecas, monumentos e museus, todos são suportes de memórias. Nós nos
lembramos do passado em pensamentos, mas também a partir do álbum de
família ou da leitura de um romance (Santos 2003, 2013).
20 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

No primeiro capítulo deste livro, o foco está colocado sobre a relação entre
memória e sociedades contemporâneas. Walter Benjamin nos deixou algumas
definições sobre diferentes tipos de memória e os relacionou às transformações
na experiência da modernidade. Para o autor, a memória involuntária, capaz de
trazer o passado para o presente, associada à capacidade de aprendizado com o
passado pela transmissão de experiências vivenciadas entre indivíduos, não faz
mais parte da experiência moderna. O diagnóstico de Benjamin tem pontos em
comum com abordagens contemporâneas que associaram a memória coletiva
ao que o autor denominou memória voluntária. São numerosas e diversas as
construções e disputas sobre o passado, realizadas por grupos sociais no presente.
A partir da crise das democracias liberais e da crença nos valores posi-
tivos da modernidade, tornou-se evidente que não é mais possível restringir
os estudos da memória às diversas negociações ocorridas na esfera pública.
Encontramos também nos escritos de Benjamin o ceticismo em relação à
racionalidade moderna e sua descrição sobre a experiência do choque. O pas-
sado deixa de ser transmitido enquanto fonte de ensinamentos e abre espaço
para respostas imediatas em que tanto a construção como a manipulação do
sentido se tornam realidade.
O segundo e terceiro capítulos têm por objeto os arquivos e museus
construídos sobre o período da ditadura militar. Os processos de criação de
arquivos, monumentos e museus brasileiros sobre o tema envolvem conflitos
e disputas pelo poder. Poucas instituições, sítios históricos e organizações civis
se voltaram, nas últimas décadas, para as denúncias de torturas, execuções,
mortes e desaparecimentos. Estas iniciativas, contudo, têm um papel impor-
tante a desempenhar, pois, tal como em outras partes do mundo, voltam-se
para a denúncia de violações de direitos humanos e apontam a necessidade
de reparações.
Em seguida, serão analisadas as histórias e memórias prisionais, um
exemplo de histórias difíceis de serem narradas por envolverem sentimentos
de humilhação, dor e sofrimento. Prisões brasileiras continuam com práticas
próximas à barbárie que se sustentam pelo falso aceno de políticas governa-
mentais à segurança, mas também pela invisibilidade da pena. A produção de
reflexão crítica sobre a violência perpetrada nos espaços prisionais é um passo
ainda distante das instituições da memória que se voltam para esse tema. Em
parceria com a historiadora Viviane T. Borges, abordamos essas dificuldades.
Apagamentos de memórias sofridas se coadunam com um passado trans-
mitido de forma fetichizada. O desafio das novas políticas de patrimônio é
provocar a reflexão social frente aos problemas que envolvem a experiência
de encarceramento.
I n tro d u çã o 21

O quinto capítulo, escrito em parceria com o sociólogo Gabriel da Silva


Vidal Cid, tem por objetivo a análise da relação entre movimentos sociais, polí-
ticas patrimoniais e instituições da memória que se voltam para a luta contra o
racismo. Novos tombamentos, registros de práticas culturais, arquivos e lugares
da memória têm sido criados em nosso país associados ao movimento negro.
A construção do passado das populações negras e afrodescendentes tem se
modificado, dando espaço à recuperação de novos personagens e narrativas.
Estas são iniciativas que enfrentam uma antiga estrutura patrimonial e mu-
seológica, ainda responsável por discursos arcaicos sobre a escravidão e sobre
o período pós-abolicionista.
A transmissão da memória depende dos diversos meios de comunicação,
desde vídeos, programas de rádio e TV, filmes, teatros e livros até as novas redes
sociais. Novos meios de comunicação trazem continuamente novos desafios
à preservação da memória, pois embora tenham enormes potenciais, como o
de maior armazenamento de dados, facilmente escapam ao controle público.
Os capítulos seguintes ressaltam a importância da arte, literatura, cinema e
novos meios de comunicação na preservação da memória. O capítulo seis,
escrito em parceria com o historiador e curador Maurício Barros de Castro,
analisa o caso precursor do Museu de Arte Negra (MAN), organizado pelo
ativista escritor e pintor Abdias do Nascimento. A arte tem desempenhado
um papel decisivo ao propiciar novas experiências sobre o que chamamos
de passado difícil, e Nascimento foi um grande incentivador da produção
e registro da arte que tem por fundamento a experiência de resistência dos
afrodescendentes.
Narrativas literárias e seu entrelaçamento com relatos biográficos e au-
to-biográficos de pessoas próximas submetidas a graves violações de direitos
humanos, sejam elas relacionadas à ditadura militar ou à pobreza do sertão, são
poderosos transmissores experiências passadas. As memórias não são valori-
zadas por serem fieis a datas e fatos, mas sim porque são potentes no que diz
respeito à transmissão de experiências vivenciadas. Eventos que provocaram
traumas, ausências e silêncio não deixam registros articulados, pois estes são
danificados devido à violência inerente à situação, mas ainda assim as marcas
deixadas propiciam aprendizado para aqueles que estão próximos e sensíveis
à dor do outro.
O oitavo e penúltimo capítulo deste livro analisa a transmissão da me-
mória que tem por apoio as novas tecnologias digitais. O exemplo utilizado
é a criação e manutenção do Museu Afrodigital Rio de Janeiro. Os desafios
que hoje nos colocam questões como os algoritmos e os grandes conjuntos de
dados comercializados como Big Data precisam ser enfrentados.
22 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

Por último, trouxemos as reflexões de dois autores, Paulo Gajanigo e


Rogério Souza, que iniciaram uma pesquisa na plataforma Facebook sobre
relatos do cotidiano durante a pandemia do novo coronavírus. Embora os
estudos tenham avançado em resultados que podem ser conferidos em ou-
tras publicações, aqui nos interessaram as indicações relativas à literatura de
testemunho e à construção da memória cultural. Um dos autores deixa ainda
conosco sua memória comovente do período de recuperação da covid, quando
passou de investigador a objeto de seu próprio estudo.
I
Memória e desigualdade social
A amnésia total ainda é relativamente rara. A escolha
de judeus como de não judeus não é ter ou não um passado,
mas sim - que tipo de passado alguém deve ter.
Yerushalmi 1982: 99

Este primeiro capítulo se voltará para uma análise da memória frente a algumas
teorias contemporâneas. Inicialmente, teremos como base algumas reflexões
de Walter Benjamin sobre diferentes tipos de memória e a experiência da mo-
dernidade, tendo como principal referência seu texto “Sobre alguns motivos
na obra de Baudelaire” (Benjamin 2019: 103-149). Para o autor, a memória
involuntária, capaz de trazer o passado para o presente, não é mais possível
para nós modernos. Sua análise coincide, até certo ponto, com abordagens
contemporâneas que, embora acriticamente, já consideram as construções
e disputas do presente como única possibilidade da memória. São muitos os
autores que associam o tempo da modernidade tardia, para utiliza um termo
de Anthony Giddens (1990), ao momento do presente.
A segunda parte deste capítulo analisará as abordagens teóricas que se
voltam especificamente para as políticas da memória. Os diversos conflitos
que se travam por uma determinada memória do passado, a partir da premissa
de que o lembrar é sempre seletivo, têm sido objeto de diversos estudos nas
últimas décadas. Pensadores das mais variadas vertentes procuraram com-
preender disputas nas construções do passado, denunciar os silenciamentos e
recuperar testemunhos em contraposição às diversas versões oficiais do pas-
sado (Hobsbawm & Ranger 1983; Ferraz & Campos 2018). Esses são estudos
que abrandaram as fronteiras entre história e memória e movem-se a partir
da valorização do conceito de memória voluntária, ou seja, das escolhas e do
momento presente.
Os estudos sobre memórias difíceis de serem narradas trouxeram de
volta as questões do inconsciente e do trauma na lembrança do passado. A
ênfase na memória voluntária deixou de ter prioridade quando bloqueios psi-
cológicos, sintomas e repetições passaram a ser noções utilizadas nos estudos

23
24 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

sobre situações de violência e violações de direitos humanos. Termos como


história difícil, trauma, pós-memória e memória negativa têm sido utilizados
para dar conta das novas abordagens (Olick 2007, Hirsh 2008, Sodaro 2018).
Desestabilizando a primazia do indivíduo racional na construção de seu passado,
está o conceito de inconsciente em suas diversas vertentes (Freud 1953-1974,
Lacan 1973), bem como as críticas de Nietzsche e Foucault aos usos e abusos
do passado (Nietzsche 2003, Foucault 1979). Estas são abordagens que abriram
uma nova frente de investigações em que fragmentações e ambiguidades são
incorporadas, não mais à construção do passado, mas às relações fluidas e
instáveis que ocorrem entre passado e presente.
Se a visão da realidade nos tempos atuais nada tem de simples, aquela
que se dirige ao passado pode ser considerada mais complexa ainda. História e
memória são duas formas de acesso ao passado. Tradicionalmente, as aborda-
gens históricas procuram a neutralidade do saber e lidam com fontes escritas e
com o distanciamento entre passado e presente, enquanto a memória tem por
base testemunhos e traz o passado para o presente de uma maneira imediata e
seletiva (Rousso 1998). Ainda assim, são abordagens que não podem ser vistas
de forma rígida e antagônica, pois em termos absolutos não é possível nem o
distanciamento completo em relação ao passado e nem sua presença sem as
diversas determinações do presente. A história tem adquirido novos métodos
e perspectivas envolvendo o estudo de testemunhos, lugares da memória, e
tem se voltado para o tempo presente. Também as formas de memorização
de experiências passadas são múltiplas e se transformam. Testemunhos pes-
soais são gravados, passados para a forma escrita e divulgados maciçamente
através dos novos meios de comunicação. Nas diversas abordagens ao passa-
do, observamos um contínuo na costura feita entre história e memória, com
momentos de maior distanciamento e aqueles em que os dois polos analíticos
se aproximam. À medida em que os membros de um grupo social se inserem
em diferentes espaços e contextos culturais, as interpretações que são feitas
dos eventos vivenciados se diversificam. As memórias coletivas que têm maior
permanência ao longo do tempo e do espaço se apoiam em suportes ou meios
de transmissão que se transformam de forma dinâmica.
Na última parte deste capítulo, foram abordadas questões inerentes à
transmissão da memória em condições de desigualdade social e econômica.
Diversos estudos têm por objeto os processos de transmissão de narrativas sobre
o passado a partir de posições de poder, instituições e objetos consagrados. Não
basta apenas pensarmos em que memória está sendo construída, mas também
em como ela é transmitida, preocupação que requer algumas considerações
sobre estruturas sociais e meios de comunicação. Em sociedades desiguais como
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 25

a brasileira, precisamos estar atentos às esferas públicas fragmentadas e suas


formas comunicativas. Os autores pós-coloniais têm observado que o modelo
ocidental não pode ser universalizado, apontando a coexistência de diversas
formas de temporalidade (Appadurai & Breckenridge 2007). Esta observação
é útil e será desenvolvida para pensarmos as reproduções da memória na
sociedade brasileira.

1.1. A crise da memória involuntária

A memória é usualmente associada à capacidade que temos de preservar


o passado. Contudo, a memória tem muitos significados: temos muitas formas
de nos lembrar do passado e elas sempre envolvem o esquecimento. Sem querer
fazer uma abordagem fenomenológica da memória, que já foi realizada com
muita competência por diversos autores de diversos campos do saber (Ricoeur
2000, Assmann 2011), gostaria de apontar uma importante diferenciação que foi
analisada pelo ensaísta, crítico cultural e filósofo Walter Benjamin em seus estudos
sobre transformações da percepção e sensibilidade no mundo industrializado
e capitalista. Em “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire” – analisando a
obra do escritor e sua relação com a modernidade a partir de estudos como os de
Henri Bergson, Marcel Proust e Sigmund Freud –, Benjamin fez uma distinção
entre memória voluntária e involuntária, diagnosticando não só a separação
entre as duas formas de conexão com o passado, como o declínio da memória
involuntária e do fenômeno da aura em seu tempo (Benjamin 2019). Estes es-
critos datam do final da década de 1930, pouco antes de sua morte por suicídio
em 26 de setembro de 1940, quando, na fronteira entre França e Espanha, ele viu
frustrada a sua tentativa de escapar das forças nazistas que invadiam a Europa.
A memória involuntária foi associada por Benjamin à experiência da re-
miniscência, que constitui a tradição e mantém a continuidade entre presente
e passado. O retorno de imagens do passado, que ocorre independentemente
da vontade, traz com ele experiências já vivenciadas e representa o encontro
entre passado e presente, condição essencial para uma reflexão mais profunda
da realidade. Experiências já vivenciadas poderiam ser transmitidas através
do tempo e estariam presentes em gestos, pensamentos e atos. Neste sentido,
alguma coisa torna-se uma experiência não apenas à medida em que é viven-
ciada no presente, mas à medida em que traz uma impressão especial que lhe
dá continuidade. Há uma diferença entre seu conceito de experiência e o agir,
uma vez que este último não envolve continuidade com o passado.
A memória voluntária, por sua vez, seria aquela dos tempos modernos;
ela se colocaria a serviço do intelecto e seria uma atividade capaz de trazer
26 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

para o presente eventos passados a partir da intencionalidade. Ao descrever


a memória voluntária como possibilidade de o indivíduo ter a recordação de
um acontecimento específico do passado, Benjamin destacou que esse tipo de
memória não permitiria nenhuma percepção de continuidade temporal. Essa
intencionalidade ou racionalidade capaz de trazer para o presente elementos
de um fato passado é suscetível às influências, bias, determinações e desvios
inerentes à vida no presente.
Benjamin procurava compreender as transformações que aconteciam na
estrutura da experiência a partir das mudanças sociais e econômicas ocorridas
desde meados do século XIX. O indivíduo moderno se tornava cada vez mais
incapaz de concentração, interesse e receptividade. O modo de vida acelerado
pelas máquinas e os transportes cada vez mais rápidos provocava o isolamento
dos indivíduos, que se aglomeravam em multidões sem, contudo, se comunica-
rem entre si. A memória involuntária seria a exceção nas grandes metrópoles
e no cotidiano do citadino. O filósofo francês Henri Bergson em Matéria e
memória, teria descrito essas duas formas de percepção, mas acreditou que
a alternância entre elas fosse resultado da escolha do indivíduo. O escritor
francês Marcel Proust, no romance À procura do tempo perdido teria traba-
lhado exaustivamente com a experiência da reminiscência, capaz de propiciar
a reflexão a partir de aprendizados do passado, mas esta estava em declínio no
mundo acelerado das máquinas. Diferentemente do que foi apresentado pelo
escritor, o encontro entre passado e presente, possível ao saborear a mesma
guloseima, a madeleine, não teria muitas chances em um mundo onde tudo se
transforma em velocidade cada vez mais rápida. A modernidade e seu ritmo não
permitem mais a continuidade ou mesmo o encontro entre passado e presente.
A cisão entre memória voluntária e involuntária, com o predomínio da
primeira, seria parte do ritmo da modernidade. Somente em Freud Benjamin
conseguiu instrumentos para caracterizar a experiência moderna. Em Além do
princípio do prazer, escrito em 1921, o psicanalista procurou explicar o retorno
do trauma após experiências de extrema violência. Para Freud, a lembrança seria
essencialmente destrutiva em relação ao passado, uma vez que ela é constituída
no lugar da marca mnemônica, que se evapora na tomada de consciência. O
passado se transforma à medida que é refeito à luz do presente. Em situações
traumáticas, contudo, o mecanismo de apreensão dos estímulos externos seria
outro. Indivíduos não teriam capacidade de responder aos estímulos, e estes
ficariam marcados no sistema nervoso, propiciando um processo doentio em
que os estímulos retornariam ao indivíduo independentemente da vontade.
Benjamin utilizou a descrição do trauma feita por Freud para caracterizar a
experiência em sociedades modernas. Estas trazem uma imensidade de estímulos
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 27

aos quais os indivíduos não têm mais como reagir. Passam a responder ao
que acontece ao seu redor quase como autômatos, com pequena capacidade
reflexiva e, praticamente, nenhuma relação com o passado.
A distinção realizada por Benjamin entre uma memória voluntária
que pouco acesso tem ao passado e outra capaz de trazer consigo imagens e
aprendizados do passado foi reiterada recentemente pela filóloga alemã Aleida
Assmann. Em seus escritos, ela diferencia a memória como “arte mnemônica”
da memória como “potência”. A memória é tanto o ato de decorar – deliberado,
resultado da vontade, o que é feito no presente a partir da razão –, quanto o
ato de lembrar do passado, que ocorre de forma involuntária, sem que seja
possível o controle, o treinamento. E, segundo a autora, a associação entre
saber verdadeiro e saber mnemônico não existe mais (Assmann 2011: 31-36).
A obra de Benjamin é de difícil interpretação, não só porque ele morreu
tragicamente, sem oportunidade para debater algumas das reflexões deixadas,
mas também porque teve grande preocupação com estilo e forma, expressan-
do-se por meio de ensaios e aforismos para que seu texto não se fechasse às
interpretações. Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, ensaio
publicado pela primeira vez em 1935, Benjamin traz considerações mais otimistas
em relação aos desafios da modernidade (Benjamin 2012). Esse é o texto mais
reproduzido e comentado por autores marxistas, devido às referências a Marx,
à luta de classes e à proposição de alternativas como as apontadas em relação
à arte cinematográfica. O que é pouco percebido é que, à medida que o autor
descreve o fim do aqui e do agora da obra de arte, de sua existência única, de sua
autenticidade, também aponta para a atrofia da experiência na modernidade.
Ao escrever sobre Baudelaire, Benjamin irá reiterar a dificuldade de apreen-
são, compreensão da poesia lírica, da expressão de sentimentos e emoções. O
autor tem plena consciência de que, em grandes períodos históricos, a forma
de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que
seu modo de existência.
O indivíduo da modernidade, para ele, não tem mais a capacidade de per-
ceber a relação entre passado e presente, sua continuidade e permanência. Nesse
contexto, a saída encontrada em A obra de arte é o controle da reprodutibilidade
pela arte, o que se dá na criação do que será reproduzido, na montagem, na
combinação de reproduções. A arte cinematográfica é possível porque, após a
fragmentação da representação do artista, os episódios podem ser combina-
dos de acordo com a intenção do autor. Na construção do real, a arte se une à
técnica e permite a ampliação da visão sobre o cotidiano. O cinema, enquanto
arte, não é capaz de revelar a verdade, espelhar o mundo real: ele cria a ilusão
da verdade. O cinema produz o que as massas demandam, distração – não
28 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

há mais a possibilidade do enriquecimento pessoal nos moldes do passado


através da contemplação da obra de arte. Benjamin, ao apontar para um novo
modo de comunicação que funciona como um projétil para atingir as massas,
incapazes de fruição individual, estava ciente de que esta poderia ser uma
arma também nas mãos dos fascistas – e denunciou a estetização da política de
guerra. O autor escreveu nos anos 1930 e, certamente, foi precursor de diversas
teses sobre novas formas de ser e agir no mundo da produção industrial que se
acelerava. A técnica da montagem tem sido revisitada em iniciativas artísticas
contemporâneas que procuram mostrar, justamente, os laços tênues da arte
com a realidade e sua potência em repercutir posições ideológicas.
Benjamin, portanto, juntamente com outros pensadores da Escola de
Frankfurt, foi crítico da razão que predominava no mundo industrial capitalista,
denunciando a forma de pensar e agir, imediata e positivista, que se adaptava à
produção das mercadorias e se expandia por todos os domínios da vida. Para
o autor, o capitalismo havia gerado o mundo das fantasmagorias, conceito
alargado do fetichismo das mercadorias diagnosticado por Karl Marx em seu
livro O Capital (Marx 2013). Como sabemos, para o revolucionário alemão
a presença dos produtos finais da fábrica no mercado teria a capacidade de
seduzir o comprador e ocultar todos os vestígios do processo de produção e
exploração do trabalhador. É bem conhecida a crítica de Adorno e Horkheimer
à racionalidade moderna, em que a ilusão predomina envolta em certeza, im-
paciência com a natureza do aprendizado, experimentos parciais e fetichização
das palavras. A incapacidade da razão crítica na modernidade faria os homens
serem controlados pela técnica ao invés de seu contrário, o que levaria a huma-
nidade ao estado de guerra (Adorno & Horkheimer 1979). Em Benjamin, nos
dois textos analisados, não encontramos um diagnóstico tão devastador, pois
ele aponta estratégias possíveis para enfrentar o fetichismo (Benjamin 2012,
2019). Todavia, não se distancia da crítica frankfurtiana à razão, que se baseia
no cálculo e na utilidade e perde o poder de aprendizado com seu passado.
Como afirma ele, no país da técnica, a visão da realidade tornou-se uma flor
azul, ou seja, uma flor inexistente na natureza.

1.2. As políticas da memória

Embora as teorias frankfurtianas tenham causado algum impacto nos


anos 1970, na década seguinte, quando se iniciou o crescimento acelerado dos
estudos sobre memória coletiva, as chamadas ciências sociais se voltaram para
uma agenda positiva com a formação de sínteses teóricas, nas quais os concei-
tos-chave de ação social e estrutura não se colocavam mais em oposição, mas
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 29

como complementares. Mesmo considerando como algo inerente às sociedades


contemporâneas o distanciamento entre indivíduos trazido pelo capitalismo,
autores importantes do pensamento social como Jürgen Habermas, Anthony
Giddens, Ulrich Beck e Pierre Bourdieu defenderam a possibilidade de co-
nhecimento científico sobre sociedades em sua fase de modernidade tardia.
Todos estes autores, que construíram aparatos analíticos importantes sobre as
sociedades contemporâneas, apontaram os limites, cada um à sua maneira,
tanto das formas de conhecer o mundo como das de agir e pensar, muito em-
bora estas tenham sido avaliadas positivamente. Tratava-se de definir os limites
da reflexividade frente aos obstáculos encontrados, continuando o indivíduo
reponsável por seus atos e desejos e por sua interpretação da realidade. Suas
posições não implicaram uma crítica radical às formas de conhecimento do
presente e, tampouco, do passado.
Autores como Giddens e Beck associaram os processos de destradicio-
nalização, analisados em diferentes graus (Heelas, Lash & Morris 1996), ao
aumento da capacidade de escolha e de reflexividade. Os indivíduos estariam
livres da tradição e do poder coercitivo exercido anteriormente por instituições
como religião, família e sistema político. Haveria um nova forma de “encaixe”
dos indivíduos na sociedade individualizada, que lhes daria maior liberdade
de escolha. As condições institucionais que condicionariam atos e desejos não
seriam mais externas a eles, mas resultado de suas ações, sempre conscientes dos
riscos inerentes a qualquer tomada de decisão. Embora fosse ressaltado o perigo
da padronização, os avanços técnicos também foram avaliados positivamente,
por serem capazes de aumentar a velocidade da informação e a formação de
sociedades plurais, colocando em xeque processos anteriores de socialização
que não davam autonomia e liberdade de expressão a seus membros (Beck
1986, Giddens 1990, 1994).
Habermas, ainda utilizando parte do aparato conceitual dos frankfurtia-
nos, manteve a crítica à razão que chamou de instrumental, mas a situou em
esferas específicas como mercado e Estado, defendendo o conceito da ação
comunicativa para assegurar as mediações entre mundo sistêmico e mundo
da vida (Habermas 1984). Em que pese a grande contribuição do autor aos
estudos sobre o surgimento das esferas públicas burguesas, a setorização que
fez da razão instrumental foi incapaz de explicar questões prementes como o
racismo e o sexismo. Estas questões foram associadas a formas de opressão
secularmente reiteradas e trouxeram à tona uma nova dimensão para as abor-
dagens historiográficas.
Bourdieu, mais próximo do estruturalismo, trabalhou os conceitos de ha-
bitus e campo ou, ainda, estruturas estruturantes e estruturadas, para lidar com
30 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

os constrangimentos à ação social. Não trabalhou com o conceito de ação social,


mas, sim, com o de habitus, que indica a presença de determinadas disposições
para o agir social. Para o sociólogo francês, as estruturas, as representações e
as práticas são constituídas e constituem o social de forma contínua (Bourdieu
1987). No seu livro mais prestigiado, sobre a distinção social, apontou a relação
entre as disposições para o agir e a formação de hierarquias e desigualdades
sociais (Bourdieu 1979). Seu aparato conceitual teve uma relação profícua com
a historiografia, ao chamar atenção para os anacronismos e generalizações, bem
como para relações mecânicas entre as disposições do agir e determinações
do campo, princípios desenvolvidos entre aqueles que se identificam com a
história das mentalidades (Bourdieu & Chartier 2011).
O objetivo da apresentação extremamente simplificada desses autores,
que embasaram grande parte dos estudos e pesquisas no campo da Sociologia
contemporânea, é mostrar que as orientações teóricas presentes nestas obras
também fizeram parte dos estudos realizados sobre memórias coletivas nas
últimas décadas do século XX. Enquanto representações coletivas, imaginários
sociais foram relacionados a ações estratégicas, processos interativos, reprodu-
ções estruturais e conflitos. As disputas e guerras culturais entre grupos sociais
ou entre estes e forças hegemônicas, como Estado e mercado, foram analisadas
sempre a partir de relações de poder que se davam no presente. A catástrofe
civilizacional identificada por Benjamin foi substituída pelo otimismo advindo
com o fim da Guerra Fria e pela ênfase nas novas formas do agir reflexivo. As
novas formas de agir e pensar a partir do tempo presente pareciam ter vindo
para ficar.
O sociólogo Maurice Halbwachs, que havia escrito sua principal obra, Os
quadros sociais da memória em 1925, foi recuperado como precursor dos estudos
sobre políticas da memória. Halbwachs, contemporâneo de Walter Benjamin,
também foi vítima do nazismo. Foi deportado para o campo de Buchenwald
após a ocupação de Paris e lá morreu em 1945. Apesar dos tempos sombrios,
sua teoria se voltou, de forma positiva, para a explicação do que compreendeu
ser a coesão social. Halbwachs havia estudado filosofia com Bergson, mas deu
uma virada teórica em sua abordagem e se voltou para os estudos de Sociologia
de Émile Durkheim. Estabeleceu as bases investigativas sobre a construção e
reprodução de representações coletivas, que, para ele, seriam determinantes
sobre quaisquer lembranças individuais. Opondo-se à primazia do indivíduo,
afirmou que qualquer pensamento sobre o passado, por mais que parecesse
uma lembrança estritamente individual, teria que ser associado a quadros
sociais da memória, como a linguagem, formados coletivamente. Segundo o
autor, a sociedade seria sempre anterior aos indivíduos que se recordam; estes
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 31

construiriam lembranças no presente, mas sempre a partir de quadros sociais,


que dariam coerência e sentido de continuidade às recordações Halbwachs 1994
[1925]). É interessante observar que o trabalho mais amplamente resgatado do
sociólogo foi Memória coletiva, publicado postumamente em 1950, no qual ele
procura responder a seus críticos e tornar suas teses mais flexíveis no que diz
respeito às determinações coletivas (Halbwachs 1968). Nessa obra, o processo
de construção da memória aparece associado às interações e práticas de indi-
víduos pertencentes a grupos sociais, como família e sindicatos.
Mesmo no interior de tradições do pensamento marxista, não houve mais
procuras de um passado capaz de resistir à distorção de valores e significados
no presente. Abordagens como as de Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1983)
voltaram-se, por exemplo, para a denúncia do uso de tradições inventadas
como meio de legitimar os estados nacionais ou grupos dominantes. No tra-
balho do sociólogo austríaco Michael Pollak, que trabalhou algum tempo com
Bourdieu e sua equipe, as disputas se complexificaram, uma vez que grupos
sociais minoritários tinham o poder de manter memórias coletivas próprias,
resistentes às memórias hegemônicas e oficiais. Em referência às teorias do
sociólogo Maurice Halbwachs, o autor criticou a perspectiva funcionalista pela
qual memórias individuais são sempre consideradas em conformidade com as
coletivas. As memórias subterrâneas foram associadas a traumas e humilhações
sofridas, situações que as impediam de disputar livremente seu direito de ex-
pressão em esferas públicas. Memórias minoritárias podem se opor ao caráter
opressor e resistir às tentativas de imposição de uma versão uniformizadora
(Pollak 1989). Em quaisquer desses exemplos, memórias coletivas se associam
às práticas sociais de disputa por hegemonia e poder. As abordagens que prio-
rizaram a reconstrução do passado por atores sociais tornaram-se dominantes
nos estudos sobre a memória e acabaram por influenciar também os estudos
historiográficos. Nessas abordagens, o passado é sempre o objeto que pode ser
constituído no presente por indivíduos do presente.
Um dos limites claros às construções das memórias coletivas que tem por
base os diversos movimentos sociais do presente é sua dificuldade de perceber
as relações entre passado e presente. O passado aparece congelado e reificado
nas diversas memórias que se constituem sem que sejam considerados retornos,
estruturas e determinações entre diversos momentos da história e no interior
de cada um desses momentos. As críticas de Nietzsche (2003) e Foucault (1979)
aos usos e abusos da história exerceram forte impacto tanto na disciplina da
História como nas Ciências Sociais. Esses autores denunciaram o estabeleci-
mento arbitrário de uma origem, a permanência temporal ou mesmo a noção
de finalidade aplicada à história, e proporcionaram um amplo debate sobre a
32 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

relação entre história, memória e poder, abrindo novos caminhos para a in-
vestigação acadêmica. A natureza do objeto de análise se modificou, uma vez
que cada momento do passado deixou de ser singular e autônomo em relação
ao tempo presente.
O filósofo francês Jacques Derrida desenvolveu suas análises sobre o
tempo na tradição deixada por Nietzsche e Foucault e também trouxe em
suas reflexões as indeterminações da memória devido à relação fluida entre
passado e presente. Seja em relação à história, seja em relação à memória,
há para Derrida a incapacidade de o discurso sobre o passado – se pensado
enquanto um momento que antecede o presente e, portanto, distinto deste
último – representar o passado de forma coerente e verdadeira. Para ele, é
uma tarefa impossível para a memória recuperar o passado, seja em termos
da objetividade do passado seja em termos da subjetividade do presente, neste
último caso porque aquele que lembra sofre determinações do passado e está
em constante transformação. Portanto, além de estabelecer como impossível a
identidade entre passado e presente, Derrida chamou a atenção para o fato de
que se a memória é incapaz de resgatar um passado real, também está longe de
ser uma mera faculdade psicológica capaz de recriá-lo por si mesma. “Re-criar”
o passado é impossível, porque o movimento que fazemos de interiorização
do outro mantém em nós vida, pensamento, corpo, voz, olhar e alma do outro,
embora em forma de sinais, símbolos, imagens e representações mnemônicas,
que são apenas fragmentos lacunares, dispersos e separados (Derrida 1996).
No campo das Ciências Sociais, em substituição às teorias que restringiram
os estudos da memória às guerras culturais travadas no presente, fortalece-
ram-se abordagens que apontam limites sobre o pensar e o agir em sociedades
contemporâneas. As novas críticas se concentram nas estruturas de linguagem,
classificações e exclusões, ou seja, em elementos capazes de invisibilizar alguns
dos sentidos inerentes às práticas sociais. Em suma, as novas teorias culturais,
muitas delas precedidas pelo prefixo “pós”, reformularam a definição da natureza
dos objetos e dos sujeitos da história. O poder assumiu várias faces, o tempo
se tornou caótico e imprevisível, o real se desprendeu de suas representações
e o foco tem sido retirado dos indivíduos e de suas experiências partilhadas.
As novas abordagens voltam suas análises para os sistemas de imaginários
coletivos, com noções de temporalidade e de subjetividade mais complexas e
caracterizadas pela transitoriedade.
A percepção da instabilidade no conhecimento do passado foi sem
dúvida um avanço, se consideramos as abordagens que restringiam o pas-
sado a um objeto passivo. Contudo, as ilusões e fantasmagorias produzidas
por sua dominação, como previu Walter Benjamin, podem voltar à cena
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 33

procurando um vínculo entre fato e representação, ainda que sob a forma de


uma iluminação que acontece em um momento de perigo (Benjamin 1985).
Nesse novo contexto, o foco no passado de violências, silêncios e traumas
tornou-se um desafio teórico e uma questão política importante para autores
que impuseram limites à razão. Passada a era da celebração da memória,
podemos dizer que as lembranças são difíceis de serem narradas, gravadas e
transmitidas entre pares e gerações. Como veremos nos próximos capítulos,
denúncias de violências extremas ocorridas no passado multiplicaram-se e
aparecem relacionadas ao combate às diversas formas de violação de direitos
humanos. Mas são iniciativas que se depararam com o desafio de narrar a
violência política do passado, muitas vezes silenciada, e de lidar com as suas
consequências no presente, como através de programas de reparação, que
nem sempre são aceitos. Além disso, continua a pairar como um fantasma
do passado a promessa de novas utopias, que não foi totalmente eclipsada
pelo presentismo atual.

1.3. Esferas públicas fragmentadas

No final dos anos 1990, os alemães Aleida e Jan Assmann desenvolveram


a classificação de três níveis de memória: individual, comunicativa e cultural.
Se através da memória formamos uma consciência individual de quem nós
somos, também na esfera coletiva isso acontece. Os autores trabalharam com
uma distinção, que atualmente é bastante utilizada, entre a memória comuni-
cativa ou de grupo e a memória cultural. A primeira seria aquela constituída
através da interação entre pessoas que convivem em um mesmo espaço. A
memória compartilhada por grupos, que podem ser pequenos núcleos fami-
liares ou comunidades específicas, é uma reconstrução do passado que ocorre
no presente por meio de representações coletivas. Trata-se de memórias com-
partilhadas e reproduzidas coletivamente, presentes entre crenças locais, mas
também na própria língua oficial de uma nação, tal como foi descrito pelo
sociólogo Maurice Halbwachs (1925). São elas as responsáveis por uma cadeia
de transmissão entre gerações. A memória cultural, por sua vez, seria aquela
mediada por especialistas e instituições de preservação, e armazenada em
suportes simbólicos externas e duráveis (Assmann 2008, Assmann 2011). Em
sociedades contemporâneas, com ritmos acelerados de vida e impessoalidade
crescente, as memórias culturais exercem um papel fundamental na constru-
ção de identidades. Além disso, a transmissibilidade da memória nesses casos
atravessa gerações e tem um maior impacto coletivo. Que memórias são essas,
e quais seus impactos sociais?
34 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

Benedict Anderson, em Comunidades imaginadas, analisou o surgimento


de sentimentos compartilhados pelos membros de uma nação por meio da
convergência entre estruturas simbólicas comuns, tecnologia de imprensa e
a emergência da esfera pública. O surgimento de mapas, censos, registros,
gravuras, selos etc. e a criação de instituições como arquivos e museus com
suas liguagens técnicas específicas fizeram parte da construção dos imagi-
nários coletivos das diferentes nações (Anderson 1983). Anderson trabalhou
em sua análise as nações europeias como comunidades integradas, mas as
formações nacionais, contudo, não seguem os mesmos padrões. O indiano
Partha Chatterjee chamou a atenção para o fato de que mais de 2/3 da po-
pulação mundial não se encaixam no modelo de nacionalismo ocidental e
criticou as abordagens que universalizaram esse modelo e o associaram de
forma mecânica à industrialização e à democracia liberal. Conceitos como
nação e modernidade precisam considerar as políticas opressivas em termos
de classe, raça ou etnia como parte intrínseca de seu processo (Chatterjee
1993). Em Provincializing Europe, Dipesh Chakrabarty, outro intelectual
indiano, denunciou a construção, pelas Ciências Sociais, de uma Europa
mítica como origem e exemplo de modernidade capitalista, em oposição
à incompletude do processo de modernização em outros locais. Procurou
também desmitificar a crença de que haveria uma determinada experiência
espaço-temporal que caracterizasse todas as sociedades contemporâneas
(Chakrabarty 2000).
Os indianos Arjun Appadurai e Carol A. Breckenridge escreveram um
interessante artigo mostrando que os museus construídos na Índia tinham
significados muito distintos daqueles presentes nos países ocidentais. Os
autores destacaram em primeiro lugar que o conhecimento, para grandes
parcelas da população indiana, ainda está ligado ao aprendizado prático e à
socialização informal e não ao sistema educacional formal. Apontaram, ainda,
que para essa parcela da população o passado não tinha autonomia em relação
ao presente, não fora objetificado e não era percebido de forma distanciada.
Ao contrário, o passado estava presente na transmissão oral do conhecimento,
nas narrativas familiares sobre práticas ancestrais. O terceiro ponto levantado
pelos autores foi sobre a esfera pública. Se no Ocidente os modos de expor e
observar objetos podem estar ligados às formações identitárias e a uma esfera
pública já existente, o mesmo não acontecia na Índia, onde museus foram
criados como parte de interesses políticos, intelectuais e comerciais das clas-
ses médias. Nesse caso, os museus não cumpriam o papel de atendimento de
uma demanda do público existente, mas, sim, de criar um público específico
(Appadurai & Breckenridge 2007).
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 35

O argumento central desses autores indianos pode ser melhor compreen-


dido a partir do clássico estudo de Edward Said (1990) sobre as relações de
poder inerentes aos imaginários coletivos partilhados na India colonizada
pelos ingleses. Imaginários ou representações coletivas se impõem e con-
vivem com imaginários locais. Mais do que isso, formas de agir e interagir
também se modificam de contexto a contexto e, com elas, diferentes formas
de temporalidade. O pensamento pós-colonial pode ser desdobrado para
pensarmos a sociedade brasileira. Para além das relações de poder entre o
Norte e o Sul global, utilizando a terminologia de Boaventura de Sousa Santos,
um dos elementos centrais que marca o Brasil no seu processo de formação
nacional é a grande desigualdade social e econômica que está presente a
partir da chegada dos europeus ao continente (Sousa Santos & Meneses
2010). Podemos, a partir desta constatação, analisar os diferentes processos
de transmissão do passado e a diversidade de imaginários que constituem
um determinado passado.
O historiador José Murilo de Carvalho, uma referência no estudo dos
elementos formadores da imaginário republicano, ao destacar a influência da
imprensa e de símbolos ocidentais como os da Revolução Francesa, também
enfatizou que enquanto os setores médios da população tinham acesso à im-
prensa em geral, outros símbolos e rituais eram destinados às classes populares
(Carvalho 1990).
As relações de poder presentes na sociedade se traduzem em ações po-
líticas, na memória política, na formalização de instituições e entidades civis,
no poder dos meios de comunicação e em leis e práticas dos tribunais. No
Brasil, os programs de televisão exercem um papel importante na socializa-
ção de valores e representações. Stuart Hall utiliza o conceito de hegemonia
para analisar não apenas o controle entre classes, mas de diferentes clivagens
sociais. Considera ainda uma relação dinâmica entre diversas causalidades e
imaginários constituídos (Hall 2003). É necessário, portanto, analisarmos os
processos de construção da memória, bem como formas de transmissão e de
apropriação. Alguns temas – reestruturação do sistema penal com penas alter-
nativas e menor encarceramento para pequenos delitos, ou ainda, a memória do
período da ditadura civil-militar –, apesar de serem bastante trabalhados nos
meios acadêmicos, alcançam pequena repercussão na população. É importante
analisarmos os meios de informação utilizados, assim como as diferentes for-
mas de apropriação das mensagens veiculadas. Os altos níveis de desigualdade
econômica e social no país fazem com que as prioridades sejam diferentes para
os grupos sociais existentes que, embora tenham algumas linguagens comuns,
têm também necessidades e desejos bem diferenciados.
36 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

Arquivos, museus e bibliotecas, assim como hinos, monumentos, está-


tuas, nomes de rua e de escolas, trazem um imaginário de um país unificado
e dos heróis deste processo de construção da ordem. Como ainda há pouca
ou nenhuma percepção social de que os imaginários compartilhados muitas
vezes são impostos, apagando e silenciando diversas vozes, eles costumam
ser reproduzidos sem qualquer debate. No Brasil, os movimentos recentes,
observados em diversos países, de derrubada ou pichação de monumentos a
personagens ligados à colonização e a práticas racistas não tiveram grande re-
percussão. Os meios de comunicação associam os monumentos à preservação
necessária do passado, e este argumento é predominante entre setores médios
da população. Contudo, o combate às diversas formas de dominação cresce,
e com ele surgem novas vozes e formas de relacionarmos presente e passado.
Ailton Krenac, por exemplo, tem denunciado o isolamento, dominação e
genocídio perpretado pelo Estado brasileiro sobre os diversos povos indígenas,
que não encontram espaço e não se adequam às esferas político-partidárias. O
conceito ocidental de memória é estranho à maior parte dos povos indígenas,
uma vez que para eles a relação com o passado não está nos indivíduos e nem
no presente, mas na presença da ancestralidade, na relação com a natureza, na
dimensão de tempo que envolve a preocupação com a longa jornada da expe-
riência humana. Não há um tempo separado da natureza, como não há vida
fora dela (Krenac 2020). Nas religiões de matriz africana espalhadas por todo
o país, o tempo é energia, é circular, e também não se separa da natureza; está
presente na maturação das sementes e no tempo da colheita (Simas e Rufino
2018). Nestes e em outros exemplos, a tradição oral predomina em memórias
transmitidas entre gerações, desafiando não só as memórias oficiais, mas a pró-
pria concepção de tempo da modernidade. O Brasil, apesar da industrialização
e da conexão com países ocidentais, ainda convive com modos de vida alheios
ao antropocentrismo e ao modo ocidental de organizar o tempo.
Certamente há zonas de contato entre os diversos segmentos da sociedade
e suas memórias. Voltando ao tema de museus e patrimônio, encontramos
povos indígenas responsáveis pela curadoria e manutenção de seus próprios
museus, bem como práticas tradicionais inseridas em instituições modernas,
como foi o caso das bonecas Karajás que obtiveram o registro de patrimônio
imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
e alcançaram um mercado expandido pelo território nacional. Marie Louise
Pratt, em sua abordagem interdisciplinar da formação de identidades culturais
e linguísticas em países da América Latina, descreveu a formação de espaços de
encontros coloniais nos quais povos separados pela Geografia e pela História
entram em contato e estabelecem relações, que podem envolver negociação,
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 37

coerção e conflitos (Pratt 2007). Seu conceito é próximo daquele explicitado pelo
filósofo Michel Foucault ao descrever heterotopias (Foucault 2001). Relações
desiguais definem os desdobramentos destes encontros.
Quando afirmamos que é preciso lembrar para não repetir os erros do
passado, precisamos considerar, em sociedades complexas, o que é lembrado,
como determinadas lembranças ecoam em determinados grupos e quais suas
consequências. Os massacres e os genocídios têm se repetido nos últimos
anos, apesar de todos os registros realizados sobre eventos traumáticos do
passado. Não se trata apenas de lembrar, uma vez que lembranças dependem
de compartilhamentos e estruturas de reprodução. Memórias coletivas que se
reproduzem a partir de suportes midiáticos requerem a democratização de todos
os seus processos, da produção à seleção e disseminação de seus conteúdos.
II
Os arquivos da ditadura militar
a família Rubens Paiva não é vítima da ditadura, o país que
é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva.
Paiva 2015: 39

Movimentos conservadores radicais têm se fortalecido na última década e com


eles a tentativa de apagamento e falsificação do passado. Governos autoritários e
totalitários tiveram o poder tanto de construir monumentos em homenagem a
seus ditadores, como também de apagar personagens e fatos históricos que não
lhes fossem favoráveis. Entre 1964 e 1976, ditaduras militares se consolidaram
na maioria dos países da América Latina. Nos diversos contextos pós-dita-
duras, testemunhos, movimentos sociais, instituições, leis e políticas públicas
cumpriram papéis importantes junto aos processos de transição para a demo-
cracia, denunciando, julgando, punindo e tornando a ameaça de falsificação
da história – que requer o silenciamento de vozes dissidentes – mais difícil.
Neste capítulo serão analisadas as formações de arquivos sobre o pe-
ríodo da ditadura militar no Brasil, que têm tido avanços e limites ao longo
das últimas décadas. A análise cuidadosa desses processos de transmissão
da memória é essencial, pois não só estão entrelaçados a contextos políticos
econômicos e sociais mais amplos, como são agentes de mudança (Jelin 1994,
2003). As fontes de dados utilizadas para a análise desenvolvida se encontram
em documentos produzidos por organizações governamentais e da sociedade
civil, leis promulgadas, meios de comunicação, sítios eletrônicos, instituições
visitadas, bem como em algumas entrevistas realizadas.
É importante reiterar que as memórias coletivas se constituem e são
transmitidas de diferentes formas, têm alcances e potenciais distintos, maior
ou menor duração no tempo e são reproduzidas em esferas locais, nacionais
e/ou transnacionais. Memórias coletivas podem ser pensadas tanto a partir de
memórias individuais, da comunicação entre grupos de pessoas e gerações,
como também por meio de suportes proporcionados por uma diversidade de
formas simbólicas, quando os distanciamentos são maiores. Em sociedades
contemporâneas em que o ritmo da vida e as novas tecnologias dificultam os

39
40 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

encontros e permanências, já não falamos tanto de memória comunitária ou


de grupo, mas, sim, de memórias culturais, que são exteriorizadas e armaze-
nadas a partir de seus suportes (Assmann 2008, 2011; Assmann 2008b). Os
arquivos, priorizados neste capítulo, estão diretamente ligados à transmissão
de memórias por períodos maiores de tempo. Ainda assim, como veremos
adiante, os diversos mecanismos de transmissão da memória se entrelaçam
em múltiplas combinações.

2.1. Arquivos e sociedade civil

Os arquivos são formados por especialistas e, embora estejam abertos à


pesquisa, não são acessados pelo grande público, pois requerem um conheci-
mento especializado. Mas são essenciais na formação de uma memória coletiva.
O arquivo é um suporte da memória de grande complexidade, pois, apesar de
ser resultado de processos seletivos e de ser um instrumento de poder, guarda
um excesso de resíduos do passado que poderão ser ou não disputados enquanto
fontes de legitimação (Assman 2008). A formação de arquivos, por mais falhos
que sejam, é crucial para futuras gerações.
Entre as décadas de 1960 e 1980, os países da América Latina passaram por
ditaduras militares, responsáveis pela violação da justiça e dos direitos humanos
através de crimes e abusos de todos os tipos. Uma das marcas desses regimes foi
a tortura e o assassinato de milhares de pessoas que se opuseram aos governos
autoritários, acompanhados de ocultação de cadáveres, sequestro de crianças,
inquéritos com provas forjadas, imposição do medo e censura generalizada.
No Brasil, a ditadura militar, que contou com o apoio de setores da sociedade
civil estendeu-se de 1964 até 1985. No período anterior à abertura democráti-
ca, grupos e instituições foram criados com o intuito de denunciar os atos de
exceção praticados pelo governo. Três iniciativas surgidas na sociedade civil
se destacaram: o Projeto Brasil Nunca Mais, o Comitê Brasileiro de Anistia e
o Grupo Tortura Nunca Mais.
O Projeto Brasil Nunca Mais foi conduzida por lideranças religiosas,
o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright, contando com
o apoio do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo.
Pesquisadores obtiveram acesso e analisaram, ao longo de seis anos, 850 mil
páginas de processos que transitaram pela Justiça Militar entre 1964 e 1979.
A documentação produzida trouxe denúncias sobre a tortura rotineira, as
mortes e os desaparecimentos ocorridas no período. Em 1985, a Arquidiocese
de São Paulo publicou um relatório reduzido do material analisado revelando
a extensão da repressão política. O livro Brasil Nunca Mais, publicado pela
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 41

Editora Vozes, exerceu um papel fundamental na denúncia de perseguições,


torturas, prisões e assassinatos ocorridos em unidades militares, delegacias
e locais clandestinos. Os relatórios e toda a documentação do projeto foram
doados ao Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp, no início dos anos 1990.
Em 2013, a versão digital do arquivo foi lançada, disponibilizando documentos,
fotografias, vídeos, depoimentos e reportagens sobre o tema.1
O Comitê Brasileiro de Anistia (CBA) foi fundado em 1978, no Rio de
Janeiro, por iniciativa do Movimento Feminino pela Anistia. Exerceu um
papel crucial ao denunciar os atos de violação dos direitos humanos e lutar
pela anistia ampla, geral e irrestrita de todos aqueles atingidos pelo regi-
me. A organização se multiplicou, manteve-se presente em vários estados,
além de obter grande repercussão no exterior. O arquivo do CBA, que reúne
documentos do período de 1978 a 1985, também está disponibilizado pela
internet,2 em sítio eletrônico que faz parte do Projeto Marcas da Memória,
do Ministério da Justiça e também se encontra no Arquivo Edgar Leuenroth.
O fundo tem diversos documentos, desde aqueles relativos às atividades
administrativas, até os de divulgação e de apoio aos presos e a seus familia-
res, manifestações de apoio e solidariedade recebidas e informações sobre
o regime carcerário.
A Lei da Anistia (Lei nº 6.683) foi sancionada ainda durante a ditadura,
em 1979, após uma ampla mobilização social de que participaram organizações
de familiares de presos e desaparecidos políticos e entidades influentes como
a Ordem de Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa
(ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A anistia concedeu
perdão às penas anteriormente imputadas a alguns dos perseguidos políticos
e permitiu o retorno dos exilados. Importantes lideranças políticas, entre as
quais Luís Carlos Prestes, Miguel Arraes, Francisco Julião, Paulo Freire, Leonel
Brizola, Vladimir Palmeira e Fernando Gabeira, retornaram ao país reorgani-
zando a estrutura partidária vigente.
Contudo, a lei promulgada não foi ampla nem irrestrita, e anistiou não só
os torturados, mas também os torturadores. A pretensa reciprocidade protegeu
os agentes do Estado que haviam cometido crimes de tortura e assassinato, bem
como toda sorte de violações de direitos humanos. Há uma ampla bibliografia
já consolidada que aborda a variedade das ações políticas surgidas no período
ditatorial e as diferentes concepções de anistia em disputa. Cabe ressaltar que,
ao não requerer o julgamento dos responsáveis por assassinatos e torturas, a lei

1 Disponível em http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso 05/05/2020.


2 Disponível em http://memorialanistia.org.br/comite-brasileiro-pela-anistia/. Acesso 05/05/2020.
42 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

foi associada a um acordo político que envolveu o esquecimento dos conflitos


e arbitrariedades vivenciadas durante o regime militar. Estes são itens que
continuam nas pautas reivindicatórias de movimentos sociais em defesa dos
direitos humanos (Reis 2001; Rodeghero 2009).
A terceira iniciativa a ser destacada foi a criação do Grupo Tortura Nunca
Mais (GTNM) em 1985, por ex-presos políticos e familiares de mortos e desa-
parecidos. O grupo foi criado inicialmente no Rio de Janeiro e se multiplicou
por vários estados, mantendo conexões com organizações internacionais e
tendo um papel crucial na formação de pesquisas, relatórios e dossiês sobre
os mortos e desaparecidos. 3 O grupo se mantém ativo e tem feito denúncias
constantes sobre a incapacidade dos governos civis pós-ditadura de desen-
volverem pesquisa sobre o paradeiro de mortos e desaparecidos, punição dos
agentes governamentais, políticas reparatórias de maior alcance e abertura
incondicional de todos os arquivos da repressão sob jurisdição do Estado
(Ferraz & Campos 2018).
Além da divulgação de dossiês detalhados sobre os mortos e desaparecidos,
o GTNM mantém contato com entidades internacionais, promove manifestações
coletivas e divulga suas campanhas através de publicações e sites na internet.4
O GTNM/RJ e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos/
SP participaram, por exemplo, da petição iniciada em 1995 pelo Centro pela
Justiça e o Direito Internacional (CEJIL)5 e pela organização Humans Rights
Watch/Americas, em nome de pessoas desaparecidas na guerrilha do Araguaia
como resultado de operações do Exército na década de 1970. A ação teve como
resultado a condenação do Estado brasileiro, em novembro de 2010, pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA).6 O julgamento obteve
visibilidade em âmbito transnacional, embora não tenha alcançado grande
repercussão internamente (Santos 2010: 21).
Esses primeiros arquivos formados com dados sobre as torturas, assassina-
tos e desaparecimentos durante a ditadura militar tiveram um caráter político
muito forte e foram fundamentais na defesa de direitos humanos, na luta pela
anistia e na oposição ao autoritarismo político daquele momento.

3 Informação obtida por meio da entrevista realiza com Joana Ferraz, membro da direção colegiada do
GTNM/RJ em 30/09/2020.
4 Disponível em https://www.torturanuncamais-rj.org.br/. Acesso 05/05/2020.
5 Disponível em https://cejil.org/es/amici-curiae. Acesso 05/05/2020.
6 Disponível em http://www.cidh.org/demandas/11.552%20Guerrilha%20do%20Araguaia%20Brasil%20
26mar09%20PORT.pdf. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 43

2.2. Os arquivos oficiais


Há um conjunto importante de estudos sobre as práticas e conflitos relacio-
nados à construção da memória da ditadura militar por órgãos governamentais
nos períodos subsequentes (Santos, Teles & Teles, 2009; Teles & Safatle, 2010;
Teles 2015). O objetivo atual é rever esse caminho em função do legado deixado
em arquivos, acervos, livros e documentações disponibilizadas pela internet.
Nesta seção, quatro iniciativas serão destacadas: a publicação do livro Direito
à memória e à verdade, produzido pela Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos/CEMDP; o programa Memórias Reveladas — Centro de
Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), desenvolvido pelo Arquivo
Nacional em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH);
o projeto Marcas da Memória, vinculado ao Ministério da Justiça; e o relatório
final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Em 1995, dez anos após o início da abertura política e durante o mandato
presidencial de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), foi decretada a Lei
dos Mortos e Desaparecidos (Lei 9.140/1995), reconhecendo a responsabilidade
do Estado pelos desaparecimentos de presos políticos. Além disso, foi criada a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), ligada à
Secretaria de Direitos Humanos.7 A Comissão foi constituída por sete membros,
dentre os quais um representante das Forças Armadas. Embora a Comissão
tenha reconhecido formalmente em certidões de óbito que a ditadura cometeu
crimes contra a humanidade, possibilitando que famílias pudessem regularizar
questões de propriedade e herança, não obteve o poder de julgar aqueles que
violaram os direitos humanos, impedimento que dificultou investigações mais
aprofundadas sobre os crimes cometidos (Teles 2001; González 2002). Em
2007, o livro Direito à memória e à verdade foi publicado, relatando o trabalho
desenvolvido pela CEMPD. Na apresentação, assinada pelo Ministro da SEDH
e pelo presidente da CEMDP, é declarada a intenção de busca da concórdia e
sentimento de reconciliação.8
Ao longo dos governos petistas (2003-2016), informações obtidas pelo
governo sobre violações cometidas ao longo da ditadura militar alcançaram
maior divulgação. Ainda assim, o caminho de produção de dados foi marca-
do por conflitos. Em 2005, o governo sancionou a lei do sigilo eterno (Lei nº
11.111), na contramão do direito à memória e do acesso a informações. Nesse

7 Duas leis ampliaram o campo de ação da CEMDP: a lei 10.536/2002 ampliou o período de responsabilidade
do Estado de 1964 a 1979 para 1961 a 1988 e a lei 10.875/2002 permitiu reparação aos que cometeram
suicídio para evitar tortura e prisão.
8 https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/bitstream/192/459/1/BRASIL_Direito_2007.pdf. Acesso
05/05/2020.
44 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

mesmo ano, contudo, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) ganhou


status de Ministério, dando início a diversas iniciativas. Em 2009 foi criado o
programa Memórias Reveladas — Centro de Referência das Lutas Políticas no
Brasil (1964-1985), a ser desenvolvido pelo Arquivo Nacional, com o objetivo de
fazer valer o direito à verdade e à memória ao denunciar a censura, a violação
dos direitos políticos, as prisões, as torturas e as mortes.
Na abertura do portal Memórias Reveladas lemos a frase “Para que não se
esqueça, para que nunca mais aconteça” e, nas informações relativas ao banco
de dados, lemos o seguinte:

O “Memórias Reveladas” coloca à disposição de todos os brasileiros os arquivos


sobre o período entre as décadas de 1960 e 1980 e das lutas de resistência à dita-
dura militar, quando imperaram no País censura, violação dos direitos políticos,
prisões, torturas e mortes. Trata-se de fazer valer o direito à verdade e à memória.9

Os documentos são classificados em entradas como “censura”, “exilados”,


“Ato Institucional AI-5” e “desaparecidos políticos”. Diversas ações são imple-
mentadas com o intuito de expandir o número de instituições parceiras. Em
2011, por exemplo, o Arquivo Nacional lançou o “Prêmio de Pesquisa Memórias
Reveladas”, concurso monográfico de trabalhos que utilizam fontes documentais
do período da ditadura.
Para a formação do fundo organizado pelo Arquivo Nacional, desde
2006, o governo havia solicitado a todos os ministérios o encaminhamento
ao Arquivo Nacional de acervos relacionados à atuação do Sistema Nacional
de Informações (SNI). Também foram encaminhados dados de universidades
empresas públicas, delegacias, divisões de ordem política e social dos estados,
Polícia Federal e também da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), que
mantinha em custódia os arquivos dos extintos SNI, Conselho de Segurança
Nacional e Comissão Geral de Investigações. 10
De acordo com o diretor do Arquivo Nacional, Jaime Antunes da Silva,
não obstante todo o empenho de parte do governo, nenhum documento, in-
formação ou dado oriundos dos centro militares (CENIMAR, CISA, CIE) chegou
à instituição.11 Esclareceu ainda que, a partir da Lei 8.159/1991, tornou-se proi-

9 http://www.memoriasreveladas.gov.br/index.php/institucional Acesso em 5 maio 2020.


10 Disponível em http://www.memoriasreveladas.gov.br/index.php/institucional Acesso 05/05/2020.
11 Ver depoimento do diretor do Arquivo Nacional, Jaime Antunes da Silva, no Seminário “Direito à
Memória e à Verdade”, promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados em 2012. Disponível em https://www2.camara.gov.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/
edições. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 45

bido eliminar documento público das instâncias federais sem autorização do


Arquivo Nacional e informou que este não havia recebido solicitação deste teor
de nenhum órgão da Administração Pública. Para o diretor, havia possibilidade
de os documentos dos centros militares existirem, embora estes últimos órgãos
públicos fizessem “ouvidos de mercador ao recolhimento desse material, com
indicativos de que foram incinerados”.
Em 2017 houve uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF)
para que os documentos, principalmente aqueles relacionados a julgamentos
militares, fossem liberados ao público.12 A determinação não foi cumprida.
As Forças Armadas acumularam poder suficiente para manter os documentos
classificados de “ultrassecretos” em sigilo. Um fato ocorrido em 2018 relativo
à documentação exemplifica a importância da documentação ausente. Um
pesquisador brasileiro encontrou, quase por acaso, pois não procurava pelo
documento em questão, um memorando da Agência Central de Inteligência
(CIA) dos Estados Unidos, disponível em site público, no qual se lê o aval dos
generais Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo ao cumprimento de execu-
ções sumárias de presos políticos. O documento obteve imensa repercussão
no Brasil, pois a “descoberta” evidenciou os limites inerentes à pesquisa do
período a partir de fontes internas.13
O Ministério da Justiça (MJ) teve atuação destacada nas demandas por
reparação e justiça. A Comissão de Anistia foi criada em 2001, ainda no go-
verno de Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo promover a reparação,
indenização e recondução a cargos públicos para aqueles que tiveram direitos
fundamentais violados entre 1946 e 1988. A Comissão de Anistia, nos gover-
nos subsequentes, promoveu as “Caravanas da Anistia”, levando o processo
de avaliação das petições por anistia aos locais onde ocorreram as violações.
Diversas ações foram tomadas com o propósito de envolver a sociedade civil,
os movimentos sociais e grupos historicamente excluídos na agenda dos di-
reitos humanos.
Em 2009, o governo aprovou a implementação do Programa Nacional
dos Direitos Humanos (PNDH-3),14 com o objetivo de defender a garantia dos
direitos humanos de forma universal, a cidadania plena e o fortalecimento de
uma cultura de direitos. A possibilidade da revisão da Lei da Anistia entrou

12 Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/stf-ordena-que-tribunal-militar-libere-arquivos-
-secretos-da-epoca-da-ditadura.ghtml. Acesso 5 mai 2020.
13 Disponível em https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/2018/05/11/e-preciso-abrir-os-
-arquivos-militares.ghtml. Acesso 05/05/2020.
14 Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdf/pndh3_programa_nacional_direitos_huma-
nos_3.pdf. Acesso 05/05/2020.
46 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

novamente em pauta e, com ela, os conflitos interministeriais. Por um lado,


a SEDH e a Comissão de Anistia/MJ acatavam demandas sobre a revisão da
lei e, por outro lado, o Ministério da Defesa e a Advocacia Geral da União
(AGU) defendiam o esquecimento do passado em nome da estabilidade polí-
tica (Santos 2010). Em 2010, frente a petições oriundas da sociedade civil, o
Supremo Tribunal Federal manteve os termos da Lei de Anistia promulgada,
impedindo o julgamento de militares.
Ainda no ano 2010, expressando a ambiguidade inerente às políticas go-
vernamentais do período, foi lançado o projeto Marcas da Memória, a partir
da parceria entre Ministério da Justiça e diversas entidades da sociedade civil.
A criação prevista do Memorial da Anistia Política do Brasil, na cidade de Belo
Horizonte, nunca se concretizou, mas diversas outras atividades tiveram sucesso.
Com o apoio do Projeto foram realizados documentários, filmes, livros, peças
de teatro exposições e oficinas.15
Dentre as publicações deste período, podemos destacar três livros que
se encontram disponíveis na internet: Livro dos Votos da Comissão de Anistia:
verdade e reparação aos perseguidos políticos no Brasil,16 Caravanas da Anistia:
o Brasil pede perdão17 e Justiça de Transição para uma transição para a justiça.18
Insere-se, ainda, nas iniciativas tomadas neste período, o projeto Marcas
da Memória: História Oral da Anistia no Brasil, constituído a partir de um
convênio com universidades federais. Com o objetivo de mobilizar professo-
res, pesquisadores e alunos das universidades a produzirem acervos de fontes
orais e visuais e divulgarem seus resultados em fóruns acadêmicos, foram
produzidos documentários sobre o período da ditadura militar no país. A
equipe foi constituída pelos professores Antonio Montenegro (UFPE), Carla
Rodeghero (UFRGS) e Maria Paula Nascimento Araújo (UFRJ). Depoimentos
de pessoas que foram perseguidas pela ditadura militar, familiares de mortos
e desaparecidos e militantes de movimentos sociais foram gravados, filmados
e transcritos, constituindo fontes primárias para a historiografia do período.
Também foi publicado um livro com avaliações sobre a luta pela anistia e
seus desdobramentos na história recente do país (Montenegro, Rodeghero
& Araújo 2012).

15 Todas as iniciativas financiadas pelo projeto podem ser encontradas em: https://www.justica.gov.br/
acervo_legado/anistia/projetos/marcas-da-memoria-i-2010. Acesso 05/05/2020.
16 Disponível em https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro-dos-votos-ver-
sao-final-20-08-2013.pdf. Acesso 05/05/2020.
17 Disponível em https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro_caravanas_anis-
tia_web.pdf. Acesso 05/05/2020.
18 Disponível em https://www.justica.gov.br/acervo_legado/anistia/anexos/acesso_-livro-em-baixa-re-
solucao.pdf. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 47

No primeiro mandato presidencial de Dilma Rousseff (2011-2014) ela


própria torturada durante a ditadura, foi instalada a Comissão Nacional da
Verdade (CNV), com a competência de apurar as violações de Direitos Humanos
ocorridas entre 1946 e 1988, sem ter, contudo o poder de encaminhar julga-
mentos e punições (Lei 12.528/2011). A Comissão enfrentou a oposição das
forças armadas e de setores conservadores, a sociedade civil não participou
de sua constituição, e o apoio administrativo oficial foi débil (Weichert 2014:
114-5; Seixas & Souza 2015). Ainda assim, a Comissão obteve apoio de mais de
uma centena de comissões em estados, municípios, universidades, sindicatos
e organizações estudantis e profissionais. Uma subcomissão se formou no
Congresso: a Comissão Parlamentar de Memória, Verdade e Justiça (CPV),
ligada à Comissão de Direitos Humanos e Minoria (CDHM).
O primeiro relatório da CNV, entregue à presidência da República em 2014,
denunciou nominalmente um número maior de torturadores e elucidou casos
de violações, mortes e desaparecimento de corpos. Dentre as proposições tam-
bém constava a proibição de realização de eventos oficiais em comemoração ao
golpe militar, a criação de medidas relacionadas à abertura e disponibilização
de arquivos, a preservação de sítios históricos ligados às violações de direitos
humanos, a instalação de um Museu da Memória e, também, a alteração da
denominação de logradouros, vias de transporte e instituições públicas.19 Povos
indígenas e camponeses ficaram à margem dos processos de reparação (Novais,
2015), e a proposta de criação de um museu não foi adiante. A documentação
relacionada às pesquisas realizadas pela CNV foi entregue ao programa Memórias
Reveladas, do Arquivo Nacional.
Em 2016, dois anos após a divulgação do relatório da CNV, ocorreu o im-
peachment da presidente Dilma Roussef. Se havia alguma expectativa de que
as recomendações da CNV se efetivassem, esta foi desfeita nos governos subse-
quentes. A Lei da Anistia não foi revisada, agentes do Estado que praticaram
violações de direitos humanos continuaram impunes, os arquivos em poder das
Forças Armadas não se tornaram públicos, muitos casos de repressão, tortura
e morte não foram elucidados, sítios históricos, memoriais e museus sobre o
período continuaram sem apoio governamental. Nomes de logradouros e de
imóveis urbanos em homenagem à ditadura continuaram intocados.
Em 2017, ocorreu uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF)
para que os documentos, principalmente aqueles relacionados a julgamentos
militares, fossem liberados ao público, mas a determinação, uma vez mais, não

19 Para uma análise detalhada do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, com seus avanços e
limites, ver, entre outros, Weichert 2014.
48 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

foi cumprida. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH),


formado em 2019, foi criado em substituição à Secretaria de Direitos Humanos
(SDH), à Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e à Secretaria Especial
de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR). O novo ministério tem
impedido as denúncias oficiais das violações aos direitos humanos durante o
período militar. É também omisso em relação às violações atuais. Não há garantias
de que todas as iniciativas e projetos desenvolvidos em períodos anteriores e
aqui citados continuem a ser divulgados pelos meios de comunicação oficiais.
Em agosto de 2019, uma semana após a emissão de documento reconhe-
cendo a morte de Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e caracterizando-a como “não natural, violenta,
causada pelo Estado brasileiro”, foram trocados quatro dos sete integrantes da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.20 As certidões de
óbito foram finalmente suspensas, com o seguinte esclarecimento, publicado
em janeiro de 2020:

A respeito da emissão de atestados de óbito, a Comissão nunca poderia emiti-los,


por se tratar de um ato privativo a médicos. De acordo com o artigo 77 da Lei
de Registros Públicos (Lei 6.016/73), apenas médicos ou, na ausência deles, duas
testemunhas que presenciaram o óbito podem atestar a morte de alguém. Essa
foi mais uma irregularidade corrigida por este Ministério.21

Medidas que estavam sendo tomadas desde 1995 para reparar familiares das
vítimas pelos assassinatos cometidos por agentes da repressão foram suspensas.
Aqueles que foram mortos durante o regime militar e estão sem atestado de
óbito continuarão constando como desaparecidos, e suas famílias prosseguirão
em sua via crucis sem direito ao luto dos entes perdidos e sem documentação
oficial que lhes permita legalizar a morte. Retorna integralmente à sociedade
civil o dever de memória durante o período de exceção, tanto em relação às
denuncias de bárbaries anteriormente cometidas, como de busca pelos corpos
de vítimas e de preservação dos lugares da memória desta história ainda difícil
de ser contada.

20 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/01/governo-troca-integrantes-de-comis-
sao-sobre-mortos-e-desaparecidos.htm. Acesso 05/05/2020.
21 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/janeiro/nota-de-esclarecimento-comissao-
-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 49

2.3. Trauma e testemunho


Como dissemos inicialmente, as diferentes formas de transmissão da me-
mória se entrelaçam. Memórias individuais se configuram a partir de memórias
coletivas e estas são constituídas a partir das lembranças compartilhadas por
indivíduos. Não há uma dinâmica única que estruture esses encontros. Enquanto
as memórias coletivas de grupos são responsáveis por uma cadeia de trans-
missão entre gerações, as memórias culturais são aquelas que necessitam de
suportes físicos e materiais e são transmitidas por períodos maiores de tempo.
A memória individual que está relacionada a eventos traumáticos não é
facilmente narrada pelos que sobreviveram à violência a que forma expostos,
não é facilmente compartilhada entre pares e sua presença em arquivos tam-
bém é problemática. Esta seção se volta para a relação entre testemunhos de
violações de direitos humanos e arquivos. Estas são memórias de sofrimento
que estão presentes em diferentes formas, podendo veicular informações atra-
vés de gravações, vídeos, arquivos, livros, filmes entre outros meios de guarda
e comunicação. Contudo, sempre nos questionamos até que ponto elas são
capazes de trazer o passado para o presente de forma efetiva.
A transmissão do passado através de testemunhos e narrativas pessoais é
muito antiga e foi colocada à margem do conhecimento quando novas práticas
de registro e técnicas para análise de fontes se tornaram preponderantes nos
estudos históricos. A partir das novas tecnologias, que permitem registros ime-
diatos, precisos e de grande porte, poderíamos imaginar o desaparecimento dos
testemunhos. Contudo não só um novo caminho se abriu para historiadores,
mas também nas abordagens das chamadas ciências sociais, que incorporaram
falas, crenças, ditos e testemunhos em suas análises. Os testemunhos são abor-
dagens de especial valor quando lidamos com histórias difíceis de ser narradas
devido ao seu caráter violento e traumático. Os testemunho, sejam individuais
ou coletivos, trazem indignação e uma postura ética sobre violências ocorridas
capazes de proporcionar políticas de reparação.
Primo Levi deixou um dos mais fortes testemunhos já escritos sobre a
Shoah. Na abertura de seu livro Os afogados e sobreviventes, descreveu a in-
credulidade do público diante das primeiras informações sobre os campos de
concentração. Um dos grandes desafios para quem sofreu o trauma é narrá-
-los para um público ampliado, correndo o risco de que, através do olhar do
outro – cético, incrédulo, indiferente –, a dor sofrida se reinstale. Além disso,
o autor nos mostra a dificuldade de lembrar para si mesmo situações repletas
de sofrimento, dor, humilhação e culpa (Levi 2016). Essas são memórias que,
se não esquecidas, trazem tanta dor que podem levar a pessoa que lembra a
cometer suicídio. A fala nem sempre traz a cura para o sofrimento. Ainda
50 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

que imparciais e repletas de censuras, apagamentos e desvios, as memórias


dos testemunhos têm sido veiculadas para que um público mais amplo tenha
noção das barbáries cometidas. Críticas são feitas à priorização da memória e
dos testemunhos por estas não serem capazes de uma abordagem distanciada e
crítica ao passado (Traverso 2017). Como reiterado nos capítulos precedentes,
a abordagem que desenvolvemos aqui considera memória e história em suas
diferentes matrizes, como formas complementares de acesso ao passado.
As memórias traumáticas, portanto, são aquelas que trazem sofrimento
aos que passaram por violência e maus tratos contra seus corpos e mentes.
Muito se tem escrito sobre possibilidades de transmissão dessas memórias,
principalmente após os anos 1980 (Seligmann-Silva 2000; Hartman 2000; Olick
2007; Sodaro 2019). Uma vertente importante dos estudos sobre memórias
coletivas teve lugar nas abordagens ao Holocausto que, a partir da década de
80, foi resgatado como o trauma central do século XX. A morte de milhares
de judeus em campos de concentração trouxe novas formas de abordagem às
violências e violações de direitos humanos. A denúncia de atrocidades enfrenta
o desafio da comunicação e a difícil tarefa de conectar experiências vivenciadas
de sofrimento e dor, muitas vezes insuportáveis e bloqueadas pelos sobrevi-
ventes. As testemunhas têm muita dificuldade em superar o luto provocado
pelas violências sofridas devido ao difícil contato com a lembrança do que
foi vivido. É frequente que indivíduos bloqueiem lembranças, uma vez que o
recordar pode implicar a continuidade do martírio. Nesses casos, a transmis-
são de informações sobre o acontecido para um público maior e diferenciado
ocorre com enorme dificuldade.
Nas tentativas de explicar a reação da psique humana à dor e sofrimento,
alguns conceitos psicanalíticos têm sido utilizados. Ao trabalhar com o con-
ceito de inconsciente, Sigmund Freud contribuiu com a nossa compreensão do
significado de sonhos, lembranças e pesadelos. Segundo Freud, no confronto
cotidiano com estímulos externos, os indivíduos têm a capacidade de neutrali-
zá-los, fazendo a seleção do que lembrar e do que esquecer segundo o princípio
do prazer, mecanismo neurológico que seria responsável pela proteção da psique.
Ao analisar os pesadelos em sobreviventes de guerra, Freud percebeu que as
manifestações repetitivas de pânico estavam em contradição com o mecanismo
descrito anteriormente. Por que pacientes traumatizados não esqueciam o que
os fazia sofrer? Em Para além do princípio do prazer, Freud explicou que aqueles
estímulos externos muito fortes, capazes de causar um trauma, teriam rompido
ou atravessado o aparato psíquico protetor do indivíduo, cuja função seria
produzir respostas para os estímulos recebidos. Os novos estímulos deixariam
de ser externos e fariam parte da psique do indivíduo (1953-1974 [1920-1922]).
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 51

O trauma pode ser definido como o resultado tanto da natureza devastadora


dos eventos sobre o indivíduo como da incapacidade do sistema psíquico deste
último de lidar com os eventos vivenciados (Jacobus 1998).
O conceito de Freud tem sido objeto de interpretações diversas. Alguns
autores trabalham com a teoria freudiana para explicar depoimentos capazes
de retratar o real que parece ter sido gravado nas mentes humanas pratica-
mente sem interpretações, uma vez que a experiência ultrapassou qualquer
possibilidade de resposta cognitiva. Alguns gatilhos geralmente associados
às emoções seriam capazes de liberar imagens gravadas. Compreende-se que
aquele que vivencia uma situação traumática não incorpora a experiência de
forma consciente e não tem capacidade para perceber o sentido do ocorrido.
Há um colapso ou ruptura entre experiência e representação, mas ainda assim a
tarefa do historiador é se voltar para os eventos históricos reais (LaCapra 2001).
O psicanalista Jaques Lacan proporcionou uma mudança importante na
psicanálise ao enfatizar a ordem simbólica da linguagem. A psicanálise lacaniana
privilegia o estudo do sentido presente em sintomas e não nas experiências
vivenciadas. Quando a capacidade de responder ao estímulo recebido é pre-
judicada, o indivíduo passa a desenvolver sintomas; pesadelos, pensamentos e
atos compulsivos passam a direcionar o compasso da vida, independentemente
da vontade. Nessa nova abordagem psicanalítica, não se trata, portanto, de
identificar estímulos e respostas ou analisar a experiência vivenciada, mas,
sim, perceber os conflitos presentes na ordem simbólica. Estas são abordagens
que partem do princípio que há sempre a impossibilidade de mediação entre o
consciente e o real. Certos acontecimentos evidenciam o vazio de significação
ou opacidade, e trazem dor e sofrimento (Lacan 1973, Laplanche 1987).
De qualquer forma, são estudos que apontaram alguns caminhos de in-
vestigação sobre o que passou a ser conhecido como um passado difícil de ser
narrado. O trauma individual deixa marcas e as lembranças surgem indepen-
dentemente do desejo. Na transmissão de experiências sensíveis é fundamental
que aquele que escuta seja solidário ao que narra os eventos. Sociedades são
heterogêneas e respondem às experiências traumáticas de diferentes maneiras.
Pactos políticos, caminhos e alianças são continuamente refeitos, e novas gera-
ções surgem ao longo do tempo. A encenação de um passado sofrido, embora
extremamente importante para alguns, pode não ter significado para muitos
outros que não tiveram ligações pessoais com aquele passado e dele sentem-se
distanciados. Surgem então, diversas estratégias para que as memórias pessoais
possam ter impacto sobre coletividades.
Dentre os registros de testemunhos sobre violações de direitos humanos
podemos citar o memorial Yad Vashem, que é a instituição oficial da memória
52 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

de Israel. Nele encontramos o Museu da História do Holocausto, vários outros


memoriais, um instituto de pesquisa, um centro educacional, uma biblioteca e
uma editora, entre outras iniciativas. Em 1953, o parlamento de Israel aprovou
a criação desse memorial para que ninguém se esquecesse da Shoah. A base de
dados, que está acessível on-line, disponibiliza ao público mais de 3,3 milhões
de nomes de vítimas; os arquivos têm mais de 74 milhões de páginas, 350 mil
fotografias e mais de 46 mil testemunhos gravados em áudios e vídeos.
Geoffrey Hartmann, professor emérito de literatura comparada na
Universidade de Yale, nasceu na Alemanha e foi enviado para os Estados Unidos
ainda criança para escapar do regime nazista. Influenciado por autores como
Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin, entre outros, ele participou do projeto
de cinema “Sobreviventes do Holocausto” e fundou o Arquivo Fortunoff de
Vídeos de Testemunho do Holocausto. Seu objetivo era acordar a memória
das vítimas do Holocausto por meio da arte. Tendo como objetivo evitar que
a lembrança do Holocausto se extinguisse ou fosse banalizada e deturpada,
trabalhou com dinâmicas capazes de recuperar o passado de forma que ele
servisse a gerações futuras.
Hartmann partiu do princípio de que a testemunha se torna incapaz de
compreender o que aconteceu, dado o grau de violência, reprimindo ou distor-
cendo suas memórias involuntariamente. Também partiu do princípio de que o
evento nunca fora vivenciado integralmente, porque a pessoa não tinha condições
de assimilá-lo; o evento que passa a ser reprimido ou negado reaparece apenas
em um momento posterior, através de manifestações de sintomas diversos. O
trauma leva à impossibilidade de interpretação. Contudo, segundo o autor, a
produção de vídeos com as testemunhas teria a possibilidade de proporcionar
um aprendizado não do fato em si, mas das emoções que foram reprimidas.
O sintoma é capaz de indicar o grau de violência sofrida, trazer empatia entre
narrador e ouvinte, e proporcionar o encontro entre passado e presente.
A proposta de construção de um arquivo de depoimentos gravados tem
sido utilizada em diversas iniciativas contemporâneas que procuraram preservar
a memória em casos de experiências traumáticas. Procuram ultrapassar, com
estas novas experiências, o colapso da comunicação produzido pela violência
do evento. A iniciativa proposta por Hartmann explora a possibilidade nar-
rativa do trauma a partir do encontro da testemunha com o público e do uso
da imaginação. Quando vários indivíduos relatam o mesmo episódio a partir
de suas perspectivas para um público diferenciado, é possível a construção do
que o autor denomina “narrativa de testemunho”. O narrador é ele próprio o
principal ator dentro da narrativa que se constrói com o público. A transmissão
de emoções e a empatia são produzidas no encontro.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 53

2.4. A comunidade de apoio


A busca pela justiça e reparação permitiu que um grupo de pessoas
compartilhasse experiências difíceis de serem narradas a partir de atividades
comuns. Antigos militantes políticos e familiares de mortos e desaparecidos
organizaram-se em coletivos diversos, de alcances locais, nacionais e até mesmo
internacionais. Há redes de mães, pais, irmãos e demais tipos de familiares que
se formam em torno de propostas que vão da anistia às demandas por repa-
ração. Há grupos que se organizam a partir de afinidades políticas, amizades
pessoais ou em ambientes de trabalho. Os grupos têm uma agenda comum
ao procurarem mobilizar instâncias jurídicas, organismos governamentais
e associações da sociedade civil. Precisam estar atentos às notícias e atuar
coletivamente, obtendo apoio e estabelecendo laços com movimentos sociais.
Estes grupos são essenciais para que uma determinada construção do passado
permaneça viva e não seja esquecida.
Arquivos são lugares coletivos da memória que têm se voltado, nas úl-
timas décadas, para o que denominamos de histórias difíceis, com o intuito
de evitar a repetição de atrocidades. O que motiva determinados indivíduos
a se lembrarem de passados sofridos que causam dor, desconforto e vergonha
é a possibilidade de promover justiça, para evitar que outros sofram o que já
vivenciaram. A memória tornou-se uma forma de resistir à injustiça, uma
vez que o reconhecimento da culpa se contrapõe à repressão da verdade e ao
silêncio. Lembrar também pode promover a cura da dor, seja individual ou
coletiva, pois permite àqueles que se sentem vítimas de injustiças reinterpre-
tar o passado à luz do presente, substituir o ódio e ressentimento por novas
emoções e práticas. Em suma, o objetivo é, sempre que possível, reelaborar
continuamente os traumas passados, perceber que é possível sair do papel de
vítima e seguir adiante com novas experiências de vida.
No que diz respeito às iniciativas de grupos da sociedade civil que envolvem
familiares, citamos o Instituto Vladimir Herzog, uma Organização da Sociedade
Civil de Interesse Público (OSCIP), criada em 2009, e também o lançamento do
Acervo Vladimir Herzog em 2021. A presidente deste instituto é Clarice Herzog,
que foi casada com o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV
Cultura, até a morte de seu marido em 1975, após ser torturado e assassinado
nas dependências do DOI-CODI em São Paulo. Viúva aos 34 anos, ela negou a
mentira forjada pelo Exército de que a morte fora por suicídio e enterrou seu
marido na parte central do cemitério judaico, o que não seria permitido em
caso de suicídio. A fotografia forjada de Herzog enforcado por um cinto em
uma cela ficou registrada no imaginário coletivo como símbolo da opressão
e da mentira. A cena grotesca do suicídio voltou-se contra o Estado graças à
54 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

ação de Clarice, que atuou incessantemente para que a farsa fosse desmasca-
rada. Como aconteceu com outros familiares das vítimas, ela recebeu diversas
ameaças e não recuou, conseguindo, ainda em 1978, uma sentença histórica
que condenou o Estado a indenizar a família pela morte do jornalista.
A luta de Clarice continua até os dias atuais. Em 2009, a família Herzog
ganhou um processo contra o Estado brasileiro encaminhado à Corte
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos
(CIDH/OEA), com apoio do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL),
abrindo caminho para outras famílias de mortos e desaparecidos políticos. Em
2013, obteve a retificação do atestado de óbito, certificando que o morto fora
vítima da violência do Estado brasileiro.
A principal missão do Instituto Vladimir Herzog, organização da socie-
dade civil comprometida com a trajetória de vida de Vladimir Herzog, é a luta
pelos valores da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
Atuante na denúncia de ações policiais truculentas contra a sociedade civil e
em ataques diversos à democracia e aos direitos dos brasileiros, a organização
se destaca ainda por editar um dos maiores acervos online sobre a história da
ditadura no Brasil.22 O instituto tem não só Clarice Herzog como presidente,
mas também uma família ampliada nos conselhos deliberativo e consultivo,
constituída por parentes, companheiros, jornalistas e ex-presos e perseguidos
políticos que celebram sua trajetória.
O Acervo Vladimir Herzog, com apoio do Itaú Cultural, foi lançado
em 2020, disponibilizando mais de 1.700 itens do jornalista, sendo que parte
substantiva destes está voltada para a defesa da democracia. A trajetória de
Herzog, interrompida por seu assassinato pelo aparelho repressivo do Estado,
é construída a partir de sua luta em favor dos direitos humanos e da cons-
trução de um projeto de país mais justo. A farsa em torno do seu assassinato
evidencia a importância de se conhecer o passado para romper seus ciclos de
violência. O filho de Herzog, Ivo, presidente do Conselho, relata como parte
de sua história pessoal o choro de estudantes comovidos pela trágica morte
de seu pai. Inegavelmente, no atual panorama político brasileiro o lançamen-
to do Acervo cumprirá o papel de resistência às iniciativas negacionistas e à
violência de Estado.
No sítio eletrônico da Instituição Vladimir Herzog encontramos a seguinte
declaração do jornalista, que reitera a epígrafe que abriu este capítulo:

Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas

22 Disponível em http://memoriasdaditadura.org.br/. Acesso 05/05/2021.


Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 55

contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos


civilizados.

2.5. Vladimir Herzog 23

Embora os estudos sobre memórias coletivas tenham surgido com o


interesse voltado para tudo aquilo que estava fora da lógica da historiografia
tradicional, utilizando registros pessoais, traumáticos, associados a emoções, as
fronteiras entre história e memória são fluidas. No caso do Holocausto, milhares
de testemunhos pessoais foram transformados em textos escritos e armazenados
em grandes arquivos – como, por exemplo, o Yad Vashem, memorial oficial de
Israel, ou ainda o Yale Fortunoff Video Archive for Holocaust Testimonies, nos
Estados Unidos. No Brasil não foi diferente. Os testemunhos daqueles que so-
breviveram à repressão exercida pelos governos militares têm sido essenciais até
os dias atuais. Os atos de memória têm sido privilegiados, apesar de subjetivos
e pessoais, porque transmitem a dor e indignação daqueles que passaram por
situações que jamais deveriam ocorrer novamente. São formadores não só de
extensa documentação, que será passada a diversas gerações, mas cumprem o
papel de promover uma conexão entre os depoentes e o público mais amplo,
sedimentando uma cultura que valorize os Direitos Humanos.

23 Disponível em https://vladimirherzog.org/o-instituto/. Acesso 05/05/2021.


III
Museus da Resistência
A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se
refugia está ligada a este momento particular da nossa história
(...) O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais.
Nora 1984: XVII

Lugares da memória, monumentos e museus, que exerceram durante muito


tempo um papel celebrativo, têm se voltado contemporaneamente para a lem-
brança de massacres, genocídios e demais violações de direitos humanos que
se sucederam ao longo da história, com o intuito de proporcionar aprendiza-
do, reparação e mudança (Sodaro 2019).1 São lugares da história associados
a acontecimentos do passado que podem servir como gatilhos para eventos
silenciados, tornando-se um forte obstáculo ao esquecimento. Trazem com eles
traços de um passado que não existe mais e são portadores de uma lembrança
que ultrapassa em duração e amplitude a memória individual.
Como a memória da dor e do sofrimento pode ser narrada, uma vez que
eventos históricos traumáticos são de difícil transmissão. Há lembranças que
muitos preferem esquecer, pois sua reiteração tem como consequência a volta
de sentimentos angustiantes difíceis ou impossíveis de suportar. Como veicular
essa experiência para um público maior, muitas vezes distante e insensível ao
ato que é narrado, ou pior, conivente com a agressão perpetrada? Este tema
se torna crucial no Brasil à medida que elogios e homenagens a torturadores
tornaram-se parte de programações oficiais.
É sempre relevante observarmos que lembramos o passado de diferentes
maneiras e de acordo com condições dadas por contextos e períodos históricos.
A memória, seja ela individual ou coletiva, é um processo seletivo que depende
de condições sociais mais amplas. Neste sentido, podemos dizer que lugares
da memória e museus são capazes de celebrar a dominação, como também

1 Ver, por exemplo, a Coalização Internacional de Sítios de Consciência, uma rede mundial formada em
1999 que conecta sítios históricos, museus e memoriais que trabalham com memória em consonância
com a lutas atuais em defesa dos direitos humanos. Disponível em https://www.sitesofconscience.org/
en/who-we-are/about-us/. Acesso 15/06/2020.

57
58 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

de potencializar as denúncias de violações de direitos humanos, exercendo


papéis educativos no respeito à vida e à diferença, formando valores como
solidariedade e justiça e propiciando a reflexão ética sobre o significado de
igualdade. Os museus são instituições que veiculam narrativas sobre o pas-
sado. De modo geral eles reproduzem os discursos dos poderes dominantes,
mas sempre há espaço para o surgimento de construções alternativas. Além
disso, os objetos preservados pelos museus, tal como os arquivos, trazem com
eles um excesso de significados, ou seja, têm o potencial de permitir leituras
distintas ao longo do tempo.
Neste capítulo, o objetivo será mostrar algumas tentativas feitas por mu-
seus brasileiros de trabalhar com a dor do outro. Alguns temas são cruciais em
nossa sociedade, como os lidam com o racismo e genocídio indígena.

3.1. Memória e justiça

Apesar de todos os avanços, no Brasil ainda não temos iniciativas de


grande impacto social no campo dos museus sobre a memória da ditadura
militar, que não foi um período qualquer e merece destaque nos discursos
sobre a nação. Como já foi dito no capítulo anterior, uma das marcas desses
regimes foi a de prisão, tortura e morte de milhares de pessoas que se opuse-
ram ao governo. Antes da abertura democrática, que ocorreu a partir de 1985,
importantes grupos e instituições denunciaram os atos de violação dos direitos
humanos praticados pelos militares. O projeto Brasil: Nunca Mais, o Comitê
Brasileiro de Anistia e o Grupo Tortura Nunca Mais destacaram-se ao denun-
ciar as violações de direitos humanos cometidas no período. A Lei de Anistia
foi decretada em 1979 de forma controversa, conforme bem explicitado pela
historiadora Maria Paula Araújo:

A Lei de Anistia de 1979 não representou os anseios do amplo movimento que


sustentou a bandeira dessa luta. O governo conseguiu impor a sua proposta e
uma anistia limitada e parcial foi aprovada. Mais do que isso: o texto da lei dava
margem a um entendimento de “reciprocidade” que tinha por intuito proteger os
agentes de Estado que haviam cometido crimes de tortura e assassinato e violações
de direitos humanos. Além disso, nada foi esclarecido sobre essas violações, nada
foi dito sobre os mortos e desaparecidos.
A anistia no Brasil tem, portanto, um caráter complexo. Ela representou uma luta
importante da sociedade brasileira contra a ditadura. A Lei de Anistia – imper-
feita e restrita – foi, no entanto, vista como uma vitória parcial pela sociedade
brasileira. Ou, pelo menos, uma parte dela. O retorno dos exilados representou
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 59

um momento de esperança e euforia. Mas os familiares de presos e desaparecidos


nada tinham a comemorar.2

Somente em 1995, dez anos após o início do período de democratização,


o Estado brasileiro reconheceu a morte de dezenas de pessoas por participação
política em oposição à ditadura militar e criou a Comissão Especial sobre Mortos
e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituição ligada à Secretaria de Direitos
Humanos. E só em 2012, no governo da presidente Dilma Rousseff, ela própria
torturada durante a ditadura, foi instalada a Comissão Nacional da Verdade
(CNV) com a competência de apurar as violações de direitos humanos ocorridas
no passado. A comissão teve caráter provisório e investigativo, sem autoridade
para encaminhar punições. O primeiro relatório da Comissão, entregue à presi-
dência da República em 2014, causou um impacto importante, pois confrontou
os arquivos militares, denunciou nominalmente diversos torturadores e eluci-
dou casos de violação, assassinato e desaparecimento de corpos. O documento
trouxe a recomendação imperativa de que as Forças Armadas reconhecessem
sua responsabilidade institucional nas graves violações ocorridas ao longo dos
anos de ditadura, uma vez que houve uma ação generalizada e sistemática de
crimes contra a humanidade perpetrada pelo Estado. Dois anos depois se deu
o impeachment da presidente Dilma Roussef e, a partir de 2018, com a eleição
de Jair Bolsonaro, a denúncia das atrocidades perdeu fôlego e houve a volta de
militares a diversas posições de poder.
A facilidade pela qual instituições e narrativas em defesa de direitos hu-
manos foram desestabilizadas e apagadas a partir do governo eleito em 2018
requer uma avaliação cuidadosa das diversas iniciativas anteriores visando
ao fortalecimento de valores que envolvem diversidade, igualdade, inclusão e
cidadania em nosso país. Estratégias e medidas que não acataram as demandas
levantadas por movimentos sociais pela punição de torturadores e identificação
do paradeiro de desaparecidos precisam ser revistas. Certamente são diversos
os itens a analisar, uma vez que foram muitas as reformas administrativas,
jurídicas e institucionais, bem como iniciativas em termos de educação, pes-
quisa e políticas públicas que tiveram o objetivo de denunciar e julgar práticas
oficiais abusivas e criminosas em prol da construção cidadã da nossa sociedade.
O objetivo deste capítulo é resgatar as reivindicações ao direito à memória e à
verdade associadas a monumentos e museus.
A recuperação da memória que foi censurada ou mesmo deixada de lado no
período da democratização é crucial, pois esclarecer fatos deturpados e ausentes

2 Disponível em https://www.corteidh.or.cr/tablas/r33083.pdf. Acesso 15/06/2020.


60 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

da cena pública permite a aplicação da justiça e de novas bases para a construção


de um governo garantidor de direitos. O combate às medidas abusivas do pas-
sado por parte do Estado aponta a necessidade de revisão de diversas atuações
deste último no presente, como por exemplo a violência policial permeada de
preconceitos raciais e homofóbicos em bairros pobres e na estrutura carcerária.
A denúncia das violações aos direitos humanos ocorridos durante a ditatura
civil e militar no Brasil não tem sido suficientemente divulgada pelos museus. A
proposta de trabalhar com documentos e testemunhos e discutir a metodologia
de construção do conhecimento histórico tem alcançado especialistas, mas não
parte substantiva da população. Livros e filmes têm sido produzidos, mas ainda
voltados para um público restrito e sem grande alcance popular. Lugares da
memória e museus têm enfrentado diversos desafios e se adaptado às diversas
transformações sociais e culturais expandindo seu potencial comunicativo.
Precisam, contudo, dar novos passos no combate às injustiças sociais.
Nas últimas décadas, organizações como a Comissão de Anistia e a
Comissão Nacional da Verdade propuseram a instalação de museus e memoriais,
e também a revisão da denominação de lugares da memória. A maior parte dos
projetos não foi adiante. O Memorial da Anistia, por exemplo, inicialmente
apoiado pelo Ministério da Justiça e encaminhado pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), apesar dos quase R$30 milhões investidos no projeto,
teve sua construção suspensa pelo novo Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos. O Memorial da Resistência, que será analisado adiante, é o
único museu estabelecido com o objetivo explícito de trabalhar com a história
da ditadura. Outras iniciativas estão em curso, e outras ainda foram abortadas.
Os museus foram criados paralelamente ao surgimento dos Estados na-
cionais, com papel destacado na construção identitária das nações. No Brasil,
como em outras partes do mundo, os grandes museus têm servido como su-
porte aos mitos e narrativas históricas oficiais da nação, ao mesmo tempo em
que fornecem normas de comportamento para um público emergente. Esses
museus continuam a enaltecer líderes e personagens oficiais.
Contudo, a partir da década de 1970 os museus passaram por mudanças
importantes. Frente à globalização da economia, renovaram seus discursos,
deixaram para trás as grandes narrativas da nação, e novos discursos foram
criados, em consonância tanto com novos movimentos sociais como com as
demandas do mercado consumidor. Museus de circuito aberto e com propostas
interativas se adaptaram a corpos menos condicionados e com maior liberdade
de movimentos. Os museus em geral adaptaram-se aos processos de gentrifica-
ção urbana, sendo muitas vezes a estrela do espetáculo como entretenimento.
Ainda assim, referendaram os novos movimentos políticos que se fortaleciam
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 61

e enfrentaram o que hoje denominamos de história difícil. A representação do


outro passou a ser questionada, e curadorias partilhadas se tornaram comuns.
Os museus trabalham com testemunhos gravados, que são utilizados para
denúncia de violações de direitos humanos. Para as novas estratégias expositi-
vas, o julgamento e a condenação do público às arbitrariedades cometidas não
dependem tanto de evidências factuais, mas da capacidade de transmissão de
martírios sofridos. Para isso, são fundamentais os testemunhos, mas também
os “lugares da memória”. Este termo ficou conhecido a partir de uma coletânea
organizada pelo historiador francês Pierre Nora com diversos artigos sobre a
formação da nação francesa. Considerando que a memória já não era mais
repassada entre gerações, Nora defendeu a ampliação das abordagens histo-
riográficas para aqueles lugares que trariam com eles a consciência da ruptura
com o passado, ao mesmo tempo em que se confundiriam com o sentimento
de uma memória esfacelada (Nora 1984). Os lugares da memória, quando bem
preservados, têm um papel importante na luta contra o esquecimento, pois há
imagens e sentimentos associados ao local que perduram. Alguns locais po-
dem ser associados à sensação de inacessibilidade à dor que ali foi vivenciada
outrora. O desejo de voltar ao local que remete às barbáries do passado, para
quem não vivenciou o trauma, surge da procura de uma resposta ao que não
se faz compreensível (Assmann, 2011: 348-366).

3.2. Os lugares da tortura

Monumentos, prédios, ruas, celas, objetos de toda ordem, até lápides em


cemitérios, fazem a mediação entre passado e presente. No caso da ditadura
militar, há diversos prédios e locais que trazem a lembrança de que indivíduos
foram presos sem processo, torturados, assassinados, e de que seus corpos
foram ocultados ou destruídos. Esses locais, pontos de referência do vivido,
conseguem dar legitimidade a uma narrativa, tarefa cada vez mais difícil no
mundo da pluralização de vozes. Eles têm sido reivindicados, prioritariamente,
por familiares dos mortos e desaparecidos e por ex-presos políticos, grupo
social cuja luta contra o esquecimento é incessante. Familiares reivindicam o
direito milenar de sepultar seus entes queridos. O fato de terem sentido o peso
da repressão diretamente faz com que sejam testemunhos diretos e indiretos
do passado e que sejam reconhecidos como comunidade política e moral.
Há diversos movimentos sociais3 que lutam pela preservação de sítios que

3 Entre os movimentos que assinam os manifestos pela transformação do prédio em espaço de memória
da resistência e das lutas sociais estão: Anistia Internacional Brasil, Associação Nacional dos Anistiados
62 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

foram ocupados pela repressão.4 O Ocupa DOPS/RJ5 reivindica a transformação


do prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/RJ), loca-
lizado na esquina formada pelas ruas da Relação e dos Inválidos, em espaço de
memória da resistência e das lutas sociais. O órgão público foi criado em 1924,
para combater inicialmente a vadiagem e a capoeira. Durante o Estado Novo
e o período da ditadura militar, voltou-se para o combate aos movimentos de
oposição, principalmente aqueles considerados comunistas ou de esquerda.
A demanda de diversas organizações políticas e sociais é que o prédio seja
destinado pelo estado do Rio de Janeiro à defesa de Direitos Humanos.
O Grupo Pró-Memorial Casa da Morte e o Centro de Memória do Sul
Fluminense Genival Luiz da Silva reivindicam, respectivamente, a preservação e
abertura ao público da Casa da Morte em Petrópolis e do 1º. Batalhão de Infantaria
Blindada em Barra Mansa. A Casa da Morte foi um local clandestino montado
pelo Centro de Informações do Exército (CIE) para torturar e matar militantes
que lutaram contra a ditadura. Inês Etienne Romeu foi a única sobrevivente da
Casa da Morte, local que foi seu calvário por noventa e seis dias. Sua memória
privilegiada possibiliou a identificação não só do local, como do médico Amílcar
Lobo, de mais seis dos seus torturadores e carcereiros e de nove presos que foram
executados. Enquanto testemunha, cumpriu um papel excepcional ao se dedicar
à denúncia e esclarecimento dos crimes lá cometidos, permitindo que amigos e
familiares pudessem finalmente ter notícias de muitos desaparecidos. Em julho
de 2020, o Ministério Público Federal pôde denunciar e pedir a perda dos cargos
públicos de três militares pelo sequestro e tortura de Paulo de Tarso, um dos
militantes que foi morto e torturado cujo corpo desapareceu.
Os movimentos sociais que lutam pela transformação desses locais em
centros de resistência são diretórios estudantis, conselhos profissionais, coletivos

Políticos, Aposentados e Pensionistas (ANAPAP), Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis
(CDDH-Petrópolis), Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), Coletivo RJ Memória, Verdade
e Justiça, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ, Fórum de Reparação e
Memória do Rio de Janeiro, Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro, Instituto Augusto Boal, Instituto
de Estudos da Religião (ISER), Justiça Global, Levante Popular da Juventude do Rio de Janeiro, Núcleo de
Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Partido Comunista
Revolucionário (PCR), Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA). Disponível em http://
coletivorj.blogspot.com/?fbclid=IwAR0vkd4h3ALSBvK8Hdff2rPWhUj_5BIpplC2DGvlhsQqf8AIWE4Kn-
t4jNPE. Acesso 15/06/2020.
4 Para um levantamento destes sítios, ver a publicação da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade
(org.) da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Memórias Resistentes, Memórias
residentes: Lugares de Memória da Ditadura Civil-Militar no Município de São Paulo (2017), o Guia dos
Lugares Difíceis de São Paulo (Cymbalista 2019), ou, ainda, a palestra da historiadora Deborah Neves,
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TbyejAZFYow&t=1545s. Acesso 26/07/2020
5 Disponível em http://ocupa-dops.blogspot.com/. Acesso 15/06/2020.
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 63

e partidos políticos diversos, bem como de órgãos como Anistia Internacional,


Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ, Grupo
Tortura Nunca Mais (GTNM), Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
Políticos (CEMDP) e Justiça Global. São inúmeras as mobilizações, audiências
públicas, investigações e campanhas para preservação de locais associados às
torturas e desaparecimentos. Esses locais são descritos pelos diversos teste-
munhos daqueles que foram presos ilegalmente e torturados. Muitos ficaram
com graves sequelas ou morreram após os interrogatórios e toda sorte de
violência física e mental. Nesses locais eram submetidos a espancamentos,
afogamentos, choques elétricos, paus-de-araras; eram arrastados por carros em
movimento, obrigados a ingerir grande quantidade de sal, encarcerados nus
em celas, literalmente, com cobras e jacarés. Havia as tentativas reiteradas de
desestruturação mental do outro através da delação que era obtida, da conversão
política forçada, da transformação da vítima em culpada pela própria morte e
a de seus companheiros e familiares. As mulheres, além de todas as sevícias já
citadas, eram humilhadas, com gracejos e obscenidades, despidas e, como no
caso de Inês, estupradas. Muitos tentaram suicídio durante e após a tortura,
que permanece viva em corpos e mentes. Não há a escolha entre lembrança e
esquecimento. Os sobreviventes buscam o equilíbrio entre a lembrança e a vida.
Na academia, diversos estudos, muitas vezes agregando equipes numerosas,
voltaram-se para a investigação, sistematização, identificação e mapeamento
dos lugares da memória relacionados a violações de direitos humanos. Esses
trabalhos denunciaram a falta de informações sobre o que ocorria nesses
locais e destacaram a importância dos testemunhos. De maneira geral, esses
estudos são relacionados ao direito à memória, verdade e justiça, e procuram
compreender as lembranças de passados traumáticos; eles revelam a história e
as memórias esquecidas e silenciadas (Gomez 2018, Cymbalista 2019).
Considerando todas as denúncias existentes, como explicar que esses sítios
continuem silenciando seu passado de horrores? Dentre os diversos fatores, há
a dificuldade tanto de narrar como de escutar atos de barbárie contra a vida
humana. No filme “Que bom te ver viva”, de Lucia Murat, são reiteradas as de-
clarações de que é impossível descrever o que se passou, e muito difícil querer
escutar. O filme traz o depoimento de oito mulheres que foram barbaramente
torturadas. Há um hiato entre narrador e ouvinte, um abismo que dificulta a
comunicação. Os filhos, parentes e amigos mais próximos praticamente exigem
que o tema seja esquecido, pois não conseguem entrar em contato com aquele
passado, não conseguem imaginar seus entes queridos submetidos a tanta dor
e sofrimento. Também eles continuam a ser torturados. Contudo, apesar das
dificuldades, muitos se unem aos sobreviventes na tentativa de superação de
64 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

um trauma que é individual e coletivo, pois se transform- em ação nas diversas


lutas pelo direito à memória e à verdade, onde é denunciada a barbárie dos atos
cometidos sob tutela do Estado. Há diversas iniciativas para que se estruture
um roteiro de lugares de memória da ditadura (Núcleo Memória, 2017: 38-9).
Tarefa mais difícil é a comunicação com os mais distantes, que não têm coragem
de discutir o tema e fogem da memória que constrange a todos. Aqueles que
foram torturados dizem que estão marcados, que carregam estigmas, man-
chas, marcas, e são silenciados pelo coletivo. São bruxos, poluídos, rejeitados
socialmente. Suas narrativas mostram um lado do ser humano que é difícil de
ver e de admitir que existe. Os testemunhos tornam aparentes não só a alma
torpe dos torturadores, mas também a anuência e o consentimento de uma
população inteira com a tortura. De frente ao espelho, muitos preferem tapar
olhos e ouvidos. Não ocorre o esquecimento, mas a ignorância consentida, que
tem como suporte o apoio de narrativas oficiais que justificam a tortura como
forma de defesa da segurança nacional.
Nas práticas de tortura, havia ameaças constantes de morte, mas também
os fuzilamentos e sumiços de corpos. Em 1990, quando ainda não existia um
reconhecimento oficial dos desaparecimentos políticos, foi divulgada a exis-
tência de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus
em São Paulo, da qual foram retirados ossos dispersos e 1.049 sacos fechados,
sem etiquetas, de osssadas humanas. Para este cemitério eram levados jovens
assassinados pelo regime militar. Os corpos passavam pelo Instituto Médico
Legal (IML), onde eram identificados com o “T” de terrorista e enterrados com
nomes falsos. Entre 1975 e 1976 houve uma exumação em massa. Os corpos su-
miram dos livros de registro e foram jogados na vala comum usada para enterro
de indigentes sem identificação.6 Um trabalho incessante tem sido realizado
desde então para identificar os militantes desaparecidos através das ossadas
encontradas. Após trinta anos de esforços, cinco famílias tiveram descanso na
busca de seus filhos, pais, irmãos, tios e avós. Mais de uma geração procurando
enterrar seus mortos. A descoberta e a divulgação da vala clandestina abriu o
caminho para que restos mortais de desaparecidos políticos fossem procurados
em outros cemitérios (Soares e Funari 2015: 291-314). O Grupo Tortura Nunca
Mais/RJ tem um projeto para identificação de restos mortais no Cemitério de
Ricardo de Albuquerque, onde inaugurou um Memorial em homenagem aos 14
militantes lá enterrados. Entidades como o Centro de Antropologia e Arqueologia
Forense (CAAF)7 e a International Commission on Missing Persons (ICMP),

6 Disponível em http://memoriasdaditadura.org.br/vala-de-perus-uma-biografia/. Acesso 15/06/2020.


7 Disponível em https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/. Acesso 15/06/2020.
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 65

entidade internacional com sede em Haia, atuam como parceiras nos grupos
de trabalho formalizados. A insistência na descoberta dos corpos faz parte de
uma tradição milenar e do direito universal dos familiares e comunidades de
sepultar e honrar seus mortos.
Os lugares onde ocorreu a tortura são lugares da memória. O processo
de tombamento do prédio que abrigou o Departamento Estadual de Ordem
Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP), localizado no Largo General
Osório, no centro da cidade de São Paulo levou à construção do Memorial da
Resistência, o que representa uma grande conquista, pois é o único museu aberto
ao público no país a ter como um de seus principais objetivos a denúncia de
violações de direitos humanos durante a ditadura. A trajetória desse processo
traz alguns elementos importantes que nos permite melhor compreender o
potencial de lugares da memória.
O tombamento do prédio ocorreu inicialmente devido ao valor histórico
e arquitetônico do edifício, que foi construído no início do século XX para ser a
sede da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (1914-1940). O processo teve início
em 1976, quando o DEOPS ainda ocupava as diversas dependências do prédio,
e foi efetivado em 1999 pelo Conselho de Defesa de Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT).
O DEOPS foi criado em 1924, para controlar e reprimir movimentos políti-
cos e sociais e fiscalizar a entrada de imigrantes. Entre 1937 e 1983, ano em que
foi extinto, ocupou os cinco andares do prédio, com uma ampla estrutura que
incluía as delegacias de ordem social, de estrangeiros, de explosivos e armas
e de ordem econômica, além de diversas dependências de apoio, como sala
de reuniões, copa, cozinha, ambulatório, garagem, oficina e, paralelamente às
instâncias regulares, as lúgubres salas de interrogatório e tortura. Nos anos
1970, a instituição foi denunciada e reconhecida pela truculência e tortura
durante interrogatórios. O prédio do DEOPS, depois de desocupado em 1997,
foi repassado à Secretaria de Estado da Cultura. Na época da desocupação, o
prédio era utilizado pelo Departamento de Polícia do Consumidor (DECON).
O tombamento do prédio em questão fez parte de um projeto urbano que
tinha por objetivo a revitalização da área central da cidade e foi responsável
pela instalação de equipamentos culturais nos grandes edifícios históricos
que se encontravam na região. No final da década de 1990, houve a reforma
da Pinacoteca de São Paulo, museu de artes visuais que ocupa a antiga sede
do Liceu de Artes e Ofícios, um edifício projetado no final do século XIX. A
Pinacoteca, como as demais instituições culturais da região, é gerida por uma
organização social (OS) - ou seja, uma instituição privada sem fins lucrativos -
que atua em conjunto com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. A
66 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

Associação Pinacoteca Arte e Cultura (APAC) foi criada em 1992 com objetivo
de apoiar o funcionamento do museu e, em 2005, tornou-se uma organização
da sociedade civil. Dando continuidade ao projeto de revitalização, em 2000
foi cedido para a Secretaria de Cultura o prédio da Estação da Luz, cuja ar-
quitetura inglesa do início do século XX passou a abrigar o Museu da Língua
Portuguesa, com grande afluência de público. A instituição era administrada
pela OS Cultura Poiesis e, após um incêndio devastador em 2015, passou a ser
gerido pela OS IDBrasil. Também se encontram no entorno da região o Museu
de Arte Sacra e a Sala São Paulo.
Vários projetos foram considerados para a ocupação do prédio centenário
que fora tombado: entre outros, uma escola de música, a Universidade Livre
da Música e uma escola de teatro voltada para ópera, artes cênicas e circo. A
intervenção arquitetônica, ocorrida entre 1997 e 2000, gerou inúmeras polêmicas,
pois seus responsáveis não preservaram as marcas deixadas pelo DEOPS, como
as inscrições feitas nas paredes pelos indivíduos que lá foram encarcerados.
Contudo, em agosto de 1999, comemorando os vinte anos da Lei da Anistia
foi aberta ao público a exposição “Anistia 20 Anos”, organizada pelo Arquivo
Público do Estado de São Paulo com apoio da Secretaria de Estado da Cultura
e da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania. Textos, cartazes e reproduções
de documentos procuravam mostrar ao público o contexto político durante
a ditadura civil-militar e detalhar o processo de luta pela anistia (Menezes &
Neves 2009: 29-38).
Ainda no mesmo ano de 1999, também com suporte das mencionadas
Secretarias de Cultura e de Justiça, foi encenada no andar térreo a peça Lembrar
e resistir, com texto de Izaías Almada e Analy Alvarez. A capa do programa
trazia a frase de Adorno e Horkheimer, “Não se trata de conservar o passado,
mas resgatar as esperanças do passado”, indicando que os autores tinham a
intenção de resgatar as promessas que para eles continuavam vivas. A peça en-
cenou violações e tratamentos bárbaros softidos pelos presos políticos durante
a ditadura. Na técnica teatral utilizada, o espectador tornava-se parte da cena,
ocupando em diversos momentos o lugar dos personagens. Logo ao chegar
ao prédio, por exemplo, ele era identificado por meio do preenchimento de
antigos prontuários de entrada e o registro da impressão digital.
Ao longo da peça, o clima de tensão se aprofundava. O ator que represen-
tava o personagem “Marcelo Estradas” era o último a entrar na sala. A partir
de então o ator-carcereiro coagia e amedrontava não só o ator, mas também o
público. Havia gritos de mulheres supostamente torturadas. Os espectadores
eram conduzidos pelos corredores e entravam nas celas onde, como indiví-
duos submetidos à prisão, se identificavam com o medo e a dor dramatizados
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 67

pelos demais atores que lá estavam. Em cada uma das quatro celas visitadas
era encenada uma situação específica descrita por aqueles que haviam sobre-
vivido ao cárcere e à tortura. Na primeira, havia um único homem que fazia
poesia para manter a sanidade na solitária; na segunda, mulheres narram às
companheiras os dramas de deixarem seus filhos e como estes foram utilizados
pelos torturadores para obter confissões e informações; na terceira, dois padres
procuram sobreviver física e psicologicamente à dor e à prisão; e na última,
o público volta a se deparar com “Marcelo” escutando com ele os relatos de
tortura de um companheiro e sofrendo com ele a dúvida de sua capacidade
de resistir ao ser chamado pelos policiais. De volta à antessala da carceragem,
os atores encenam a euforia dos presos políticos ao saberem do sucesso da
ação que levou ao sequestro de um embaixador. Uma carta foi divulgada pela
imprensa, e companheiros seriam trocados pelo embaixador. O padre, que será
liberado, não esconde sua angústia. Uma das mulheres que aparecia na cela 2
e que cantarolava ao longo da cena também será liberada. Ela é trazida numa
maca suja de sangue, e o policial comenta que “a vaca comunista não canta
mais”: tinham cortado suas cordas vocais. A última cena reproduzia o falso
suicídio produzido por autoridades para encobrir o assassinato do jornalista
Vladimir Herzog e seu desmentido. O público era convidado então a conversar
e refletir sobre o que fora apresentado.8
Atores e plateia de Lembrar e resistir encenaram um passado que não
queriam esquecer. A encenação teatral significou uma possibilidade de catarse
depois de anos de opressão e silêncio. Diretores, atores e público disseram não
ao pacto do silêncio estabelecido pela Lei da Anistia, denunciaram a tortura,
comemoraram a solidariedade, a esperança e a liberdade, e propuseram a
continuidade de suas lutas. A peça estava programada para uma temporada
curta, de um mês, e ficou um ano e meio em cartaz. Foi também encenada no
Rio de Janeiro.
Se a memória das lutas, da dor e da resistência foi reprimida e censura-
da durante a ditadura, sobrevivendo de forma subterrânea à esfera pública,
para utilizar o termo de Pollak (1989), no momento de abertura política ela
explode e arrebata seguidores. Havia um vínculo forte entre diretores, atores
e plateia, e muitos entrevistados compartilhavam os sentimentos encenados
(Almeida, 2004). Atores e público se identificavam na busca de uma sociedade
mais justa e na luta contra o Estado autoritário. Os “terroristas” do discurso
oficial eram humanizados e assumiam seus papeis na cena pública em claro
confronto com o estigma dado a eles pelos militares. Foi o momento em que

8 Para uma descrição e análise da encenação da peça de teatro Lembrar e resistir, ver Almeida 2004.
68 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

as memórias militares se tornaram subterrâneas, uma vez que estes deixaram


o poder e voltaram para os quartéis mantendo sua própria versão da história.
Embora unidos por uma catarse inicial, havia diferenças e divergências
entre os participantes do grupo teatral. Um dos autores da peça, por exemplo,
ficou indignado com a substituição, pelos atores e pelo público, do canto da
Internacional Comunista pelo Hino Nacional (Almeida, 2004, p. 86). Para
parte do grupo que se aglutinou em torno da peça Lembrar e resistir, a memória
do passado tinha continuidade com a luta política que travavam no presente.
Contudo, novos pactos políticos foram feitos e novos caminhos e alianças se
constituíram pelos diversos grupos de esquerda ao longo da abertura demo-
crática. Houve, portanto, não só um enfrentamento com militares para que a
memória das violações pudesse ter lugar, mas também uma disputa interna
pelo significado a ser recuperado das lutas do passado e de sua relação com
o presente.

3.3. O Memorial da Resistência

A peça Lembrar e resistir e a exposição “Anistia 20 Anos”, organizada pelo


Arquivo Público do Estado de São Paulo, foram essenciais na recuperação do
prédio como memória do regime ditatorial. Essas iniciativas foram complemen-
tares, pois enquanto a exposição organizada pelo Arquivo Público apresentava
documentos ao público, a encenação da peça de teatro priorizava a produção de
uma experiência capaz de proporcionar afetos, emoções, empatia e ação política.
Esta é uma estratégia que está presente em diversos museus contemporâneos.
Exposições, instalações e performances produzem espaços experenciais onde
rituais de cidadania e de respeito à diferença são encenados. Alison Landsberg
denominou essa nova forma de “ver” o passado como “memória protética”, isto
é, a produção de uma consciência pessoal e profunda de um evento passado
não vivenciado (Landsberg 2004).
Em 2002, com as obras de restauração totalmente concluídas, foram as-
sinados dois decretos-lei, o primeiro criando o Museu do Imaginário do Povo
Brasileiro (46.507/2002), voltado para a coleta e preservação da arte popular
brasileira e sob responsabilidade do artista plástico Emanoel Araújo, e o segun-
do, o Memorial do Cárcere (46.508/2002). Algumas realizações aconteceram
na inauguração do novo espaço cultural, todas elas remetendo à violência e
à repressão. O artista plástico Siron Franco foi responsável pela exposição
“Intolerância”, que ocupou parte do segundo andar e era constituída por dez
esculturas e 880 figuras humanas (preenchidas com espuma) como referên-
cia explícita às violências ocorridas no prédio. No quarto andar, a exposição
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 69

“Cotidiano Vigiado – Repressão, resistência e liberdade nos Arquivos do DOPS


1924-1983”, coordenada pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, era com-
posta por imagens fotográficas e documentos dos arquivos da Polícia Política.
O Memorial do Cárcere, que ocupava a antiga área prisional, foi substituído
pelo Memorial da Liberdade (Decreto-Lei 46.900/2002), instituição que se
manteve sob administração do Arquivo Público do Estado de São Paulo e
praticamente com o mesmo objetivo, preservar os símbolos da resistência à
repressão e difundir valores democráticos. Nas antigas celas foram colocados
computadores que permitiam a consulta da documentação do DEOPS, que fora
digitalizada a partir do Projeto Integrado (PROIN) desenvolvido pela parceria
entre o Arquivo do Estado e a Universidade de São Paulo.9 Em 2006, nova
exposição ocupou o Memorial da Liberdade, dessa vez como resultado dos
dez anos de pesquisa do PROIN sobre os anos de ditadura. “Vozes Silenciadas
– fragmentos da memória” manteve-se aberta ao público até novembro de
2008 (Neves 2014: 178).
Com a transferência do Arquivo Público para a Casa Civil, em 2007, o
Memorial da Liberdade passou a ser gerenciado pela Pinacoteca do Estado
(Pina). Os andares superiores do prédio do DEOPS já eram administrados pela
Pinacoteca do Estado, que rapidamente se consolidou como um dos museus
de artes visuais mais importantes do país. Ao assumir a responsabilidade pelo
Memorial da Liberdade, o diretor da Pinacoteca, Marcelo Mattos Araújo, formou
uma equipe interdisciplinar de trabalho e mostrou-se sensível às demandas de
um grupo de ex-presos políticos que se organizava no Fórum Permanente dos
ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo.10 Esse grupo fora
formado em 2001 com o objetivo de auxiliar presos políticos em suas deman-
das por reparação econômica junto ao governo. Reivindicavajunto com outras
entidades, desde a década anterior, o processo de tombamento e ocupação do
prédio do DEOPS. A possibilidade de trabalho conjunto com os profissionais
do museu proporcionou uma nova dinâmica para todos.
Há uma nova museologia que enfrenta a tarefa de sensibilizar seus visi-
tantes, não só com textos e informações, mas também com ambientações que
despertam os diversos sentidos, de forma a chamar a atenção para o sofrimento
e a tragédia que são narradas. Museus são suportes da memória diretamente
ligadas à cultura de entretenimento, mas também ao sistema educacional.
Muitas das novas instituições têm se voltado para as memórias de eventos

9 http://www.usp.br/proin/home/index.php. Acesso 7 mai 2020.


10 Para a história de criação do Memorial, ver Araújo & Bruno 2009; Memorial da Resistência de São
Paulo 2018; e a página na internet, disponível em: http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/.
Acesso 26/07/2020.
70 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

traumáticos, formando redes, associando-se a movimentos sociais e promo-


vendo valores ligados à cidadania e ao direito à diferença. Essa é uma nova
forma de memória pública cultural, que procura proporcionar experiências
que estreitem o distanciamento histórico e permitem aprendizados políticos
(Landsberg 2004; Sodaro 2019).
Museus, se bem construídos e direcionados, são capazes de captar a
atenção dos visitantes e criar novas experiências a partir de suas exposições.
O conhecimento afetivo visa aproximar passado e presente e proporcionar a
construção de juízos de valor. Os museus contam ainda a seu favor com as
práticas educativas junto ao público mais jovem, fortalecendo a memória pro-
cedural, que envolve o hábito e as práticas não reflexivas. A materialidade de
sítios históricos e dos acervos que os compõem têm o potencial de sensibilizar
o público sobre os seus múltiplos significados. Museus que lidam com histórias
traumáticas não se restringem a serem informativos: procuram proporcionar
um encontro sensorial com o passado no intuito de aumentar a intensidade e a
qualidade da compreensão sobre este. Técnicas são utilizadas pela museologia
para veicular a história através dos sentidos, do que chamam memória expe-
riencial. Os processos comunicativos multiplicam-se para alcançar públicos
diferentes, sendo capazes de sensibilizar crianças, jovens, adultos, velhos, bem
como curiosos, políticos, famílias, grupos de amigos, vizinhos, especialistas
e também os que tiveram relações próximas com o sofrimento perpetrado
(Sodaro 2019; Assman 2011: 348-366).
O grupo de trabalho interdisciplinar responsável pela inauguração do
Memorial foi composto pela museóloga Maria Cristina Bruno, pela historiadora
Maria Luiza Tucci Carneiro (2009, pp. 181-197) e pela educadora Gabriela Aidar.
Contou, ainda, com a participação da futura coordenadora Kátia Felipini e de
membros do Fórum de ex-presos políticos. Segundo a historiadora Maria Luiza
Tucci Carneiro, os eixos temáticos, utilizados anteriormente na documentação
sob guarda do Arquivo Público e escolhidos pelo grupo para orientar a expo-
sição foram três: “cidadão sob controle” (vigilância, crime político, geopolítica
do controle, autorização prévia, atestados de antecedentes e controle atual);
“repressão política institucionalizada” (censura, toque de recolher, estado de
sítio, expulsão, banimento, tortura, desaparecimento e morte); e “resistência”
(propaganda, manifestação pública, resistência artística, luta armada, mobi-
lização social exílio). O Memorial da Resistência foi inaugurado em 2009,
com propostas mais genéricas: a missão de se voltar para as memórias da re-
sistência e da repressão políticas do período republicano, contribuindo para a
reflexão crítica da história contemporânea e para a valorização dos princípios
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 71

democráticos, do exercício da cidadania e da conscientização sobre os direitos


humanos (Memorial da Resistência de São Paulo 2018: 152-3).
As exposições procuram proporcionar informações e se afastam de repre-
sentações traumáticas, que envolvam emoções e sentimentos. Uma passagem
da entrevista de Maurice Politi esclarece bem esse ponto:

... mas me lembro que a gente discutiu: “Vamos fazer uma sala com instrumento
de tortura?” E foi a Cristina Bruno quem disse: “Não. Não é lugar para mostrar a
tortura. Podemos falar sobre a tortura, mas não vamos entrar em detalhes sobre
ela. Isso fica para os educadores. (Memorial 2018: 103)

Em seguida Politi conta que eles, ex-presos, concordaram porque queriam


um lugar agradável de ser visitado. Criticou o antigo Memorial da Liberdade
pela falta de informações e didática. Queria um lugar onde se contasse história.
Na entrevista dada por Cristina Bruno, há uma passagem elucidativa em que
ela explicita como foi implementada uma mudança no que chama personali-
dade da instituição:

Quer dizer, o Memorial não pode entrar, por exemplo em uma questão de política
partidária. Ele, ao contrário, tem que estar um pouco acima disso e acolher todas
essas ideias, sempre permitir o debate, que é muito difícil nos tempos atuais.
(Memorial 2018: 70)

Esses são dilemas para quem tem a responsabilidade de narrar histórias


ou memórias difíceis, que trazem dor e sofrimento. Para muitos a história é
distante e neutra, enquanto a memória é viva e traz sentimentos (Nora 1984).
Atualmente, as diversas abordagens da história se confundem com a memória.
Em ambos os casos procura-se não aumentar a dor da vítima, mas também
não escapar do sentimento. A lembrança que traz a dor é aquela que une as
pessoas pela emoção e cria solidariedade. Politi admite que suas lembranças
são parciais:

Se você me perguntar: Que lembranças você tem? A única lembrança que eu tenho
mesmo é a da sala de interrogatório. Mas tinha dezenas de salas... (Memorial
2018: 105)

Interessante observar que os membros do Fórum de ex-presos políticos,


apesar de serem testemunhas das violações cometidas, defenderam uma abor-
dagem mais distanciada ao passado, procurando dar um caráter informativo
72 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

ao novo museu, tal como estava sendo proposto pela equipe interdisciplinar.11
Uma das demandas do grupo foi a mudança do nome, uma vez que para eles
a denominação “Memorial da Liberdade” era insólita e distante da realidade.
A nova proposta elegeu a palavra “verdade” num novo direcionamento para
o memorial. As exposições se afastaram de representações traumáticas, como
salas com instrumentos de tortura e evocações ao sofrimento, e também de
políticas partidárias. Maurício Politi, um dos membros do Fórum que colaborou
com o projeto do novo museu, defendeu que ali fosse o local onde se conta
história, mas que fosse agradável de ser visitado (Memorial da Resistência de
São Paulo 2018: 70-103). Podemos entender a proposta como fruto do desejo de
construção de narrativas capazes de se comunicar com um público mais amplo
e diferenciado que, embora não apresentasse identidade com o tema, pudesse
ser envolvido por ele.12 Passadas algumas décadas do período de repressão,
os compromissos anteriores foram revistos e uma unidade política menor
permanece entre os que querem manter viva a memória do passado. Além
disso, observa-se também a tentativa de retirar aqueles que foram torturados
do papel de vítimas, tentativa esta que também encontramos em produções
literárias e cinematográficas.
A exposição de longa duração do Memorial da Resistência é composta
por quatro módulos. O primeiro deles apresenta a história do edifício a partir
das diversas intervenções ocorridas. Em seguida há a apresentação de uma
linha do tempo com eventos de repressão e resistência ao longo da República.
No final desta sala e no início do corredor que leva às celas, há fotografias an-
tigas dos espaços prisionais e, também, um corredor estreito que leva à antiga
área de banho de sol dos detidos. No terceiro módulo, o conjunto prisional
é apresentado em quatro celas e um corredor principal. Encontramos, nas
celas, uma referência direta a presos políticos que estiveram encarcerados no
DEOPS; uma representação cênica do que seria uma cela, com seus objetos; e
a disponibilização de gravações de testemunhos. A terceira cela tenta criar
uma autenticidade perdida, incorporando inclusive a escrita recente de pre-
sos políticos, sem explicar que elas não são de época. Não há um tratamento
destacado para homenagear os quatro militantes que lá morreram. A tortura é
mencionada, mas não se encena o sofrimento causado pelas salas insalubres e
superlotadas, nem o terror imposto aos detentos. Na saída das celas é possível

11 Depoimentos sobre a criação do projeto podem ser encontrados em Memorial da Resistência, 10 anos:
Presente! (Memorial da Resistência de São Paulo 2018). Sobre a criação do projeto museográfico, ver
depoimento de Cristina Bruno na mesma publicação (63-71).
12 Cf. entrevista realizada com Oswaldo Santos Jr. e Maurice Politi, diretores do Núcleo Memória em
15/07/2019.
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 73

ver as silhuetas dos frades dominicanos que lá ficaram presos celebrando um


culto religioso, bem como uma janela destinada ao “lado de fora”, onde apare-
cem projeções de fotografias e sons procurando mostrar diferentes formas de
apoio aos detidos. Encerrando, há um espaço com equipamentos multimídia
disponibilizando documentos provenientes do antigo DEOPS/SP. O Memorial
ainda disponibiliza exposições temporárias, de curta duração, com temáticas
relacionadas.
Embora a opção escolhida tenha sido manter uma narrativa informativa
e não utilizar o potencial de sensibilização que os atuais museus têm em mãos,
as antigas celas continuam a ser os locais mais procurados. Certamente isso
acontece porque, apesar de toda a descaracterização sofrida, elas remetem à tor-
tura. E foi importante a ida dos ex-presos à cela em suas performances, fazendo
inscrições com seus nomes e palavras de ordem, como “Abaixo a Ditadura” em
suas tentativas de conexão com o lugar do passado. O Memorial deve ao público
a apresentação desses eventos. A memória que o prédio guardou enquanto
centro de tortura se impôs. O museu, que surgiu quase inadvertidamente,
ocupando uma área pequena do complexo Pinacoteca, encontra-se atualmente
em décimo segundo lugar no ranking de visitação do estado, recebendo cerca
de oitenta mil visitantes por ano e superando a visitação das demais exposições
do museu de artes.
Ainda cabe destacar de positivo no Memorial da Resistência todo o seu
programa museológico, que envolve ações educativas, pesquisa envolvendo
a coleta de testemunhos, ações culturais e o programa Lugares da Memória.
Este último tem por objetivo expandir o alcance preservacionista por meio
da identificação, inventário e musealização dos lugares da memória da re-
sistência e da repressão políticas do estado de São Paulo.13 Em dezembro de
2018, o Memorial fez uma ampla convocação para o debate: “Quem conta
a história da ditadura?” A proposta era trabalhar com documentos e teste-
munhos e discutir a metodologia de construção do conhecimento histórico
alcançado por especialistas, mas que não fazia parte do conhecimento agre-
gado da população. A possibilidade de trabalho conjunto dos profissionais
do museu com os ex-presos políticos certamente proporcionou uma nova
dinâmica para ambos.

13 Ver, sobre esse trabalho, a publicação da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade (org.) da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Memórias Resistentes, Memórias residentes:
Lugares de Memória da Ditadura Civil-Militar no Município de São Paulo (2017), bem como o recente
Guia dos Lugares Difíceis de São Paulo (Cymbalista 2019).
74 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

3.4. O Memorial da Luta pela Justiça (MLPJ)


Após participação no projeto de criação do Memorial da Resistência, alguns
membros do Fórum criaram o Núcleo de Preservação da Memória Política
(Núcleo Memória) em 2008, tendo como um de seus diretores Maurice Politi,
ex-preso político. Os objetivos do Núcleo são próximos aos do Memorial, ou
seja, promover ações de preservação da memória das violações de direitos hu-
manos ocorridas no Brasil. Em 2010, o Núcleo Memória solicitou o tombamento
do DOI-CODI/SP. O prédio da rua Tutóia nº 921 é sinônimo de terror para uma
geração. Lá o Exército estabeleceu um centro que operava clandestinamente,
a Operação Bandeirantes (OBAN), que foi institucionalizado. Militares e civis
atuaram em interrogatórios violentos, nos quais morreram dezenas de militantes
submetidos a torturas físicas e psicológicas. Falsos laudos e certidões de óbito
ocultavam a forma pela qual os presos eram executados (Politi, Santos Junior &
Salles 2017: 35). O prédio foi tombado em 2014, mas ainda é ocupado por uma
delegacia de polícia. Como não conseguiu tornar o antigo lugar da repressão
um sítio histórico, o Núcleo promove atividades no local. Diversas entidades
lá realizam, todo primeiro de abril, dia do golpe militar, o ato “Ditadura Nunca
Mais”, procurando sensibilizar autoridades e população para a importância de
construção de um memorial no local. Outra frente de trabalho do Núcleo é
transformar o prédio da Auditoria Militar em lugar de memória. A edificação
foi cedida para a construção do Memorial da Luta pela Justiça (MLPJ), projeto
que ainda não foi implementado. Desde 2013, o Núcleo Memória e a OAB/SP
promovem uma atividade no local. O Núcleo realiza também cursos e deba-
tes regulares sobre lugares da memória e direitos humanos no Brasil, alguns
deles alcançando aproximadamente 500 visualizações por apresentação.14 É
um trabalho constante, fundamental, mas ainda com um público limitado. O
curso sobre ditadura militar promovido recentemente pelo jornal Folha de São
Paulo, por exemplo, teve em média, 130 mil acessos.15
As memórias são falhas, influenciáveis e subjetivas e, ainda assim, são cada
vez mais importantes porque trazem do passado eventos e significados que não
foram registrados, mesmo na época em que novas tecnologias tornaram quase
infinitas as possibilidades de formação de arquivos. Em seu depoimento sobre
a passagem no antigo prédio do DEOPS/SP, Politi observa que a única lembrança
que tem do prédio é a da sala de interrogatórios embora lá houvesse inúmeras
salas (Memorial da Resistência de São Paulo 2018: 105). Entretanto, através
de sua memória, é capaz de reconstituir a via crucis dos presos políticos que,

14 https://www.youtube.com/watch?v=keF235YZxfA. Acesso 26/07/2020.


15 https://ooquefoiaditadura.folha.uol.com.br. Acesso 26/07/2020.
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 75

nos anos de chumbo, passava por quatro locais: DOI-CODI, DEOPS, Presídio
Tiradentes e Auditoria Militar. Os presos eram torturados inicialmente no DOI-
CODI, espaço invisível pois não admitia oficialmente a detenção. Em seguida,
os presos – já reconhecidos oficialmente – eram levados para o DEOPS, onde
novos interrogatórios eram realizados com tortura. De lá, passavam ao Presídio
Tiradentes e aguardavam o julgamento. Por último, eram julgados pelas audi-
torias militares, que condenavam todos aqueles que eram considerados uma
ameaça à ordem política, procurando dar legitimidade às prisões arbitrárias
daqueles que sobreviviam aos interrogatórios.
Em suma, ao longo deste capítulo, analisamos a formação de arquivos,
a preservação de sítios da memória e a criação de museus relacionados às
disputas e conflitos na construção da memória das perseguições, torturas e
assassinatos do período da ditadura civil-militar. Como vimos, ainda durante
o período ditatorial organizações civis denunciaram as torturas, assassinatos
e ocultamento de corpos. Essas denúncias foram veiculadas por documentos
e publicações que se encontram organizadas em arquivos. No período subse-
quente, políticas públicas foram responsáveis por diversas iniciativas no sentido
de aprofundar as investigações sobre as violações ocorridas e também formar
um aparato institucional em prol da memória, verdade e justiça. Os desafios
e obstáculos foram expressivos, apesar da volumosa documentação obtida
comprovando violações de direitos de todos os tipos. Entretanto, as forças
militares não só mantiveram sua própria versão do passado,16 como não dis-
ponibilizaram documentos da repressão política, o que obstruiu investigações
e, consequentemente, a atribuição de responsabilidade ao Estado, o que indica
fragilidade das instituições democráticas (Jelin 1994: 48-51).
Como vem sendo enfatizado, museus têm procurado um público maior e
diversificado a partir de dispositivos que incluem desde encenações, passando
por expressões artísticas, imagéticas e sensoriais, até o uso mais recente das
novas tecnologias de informação. Contudo, no que diz respeito ao tratamento
das violações de direitos humanos, os museus brasileiros ainda precisam ca-
minhar bastante para sensibilizar o público presente e ausente das instituições,
uma vez que está cada vez mais condicionado pelo consumo e imediatismo.
Diferentemente de outros países da América Latina, temos um único museu
vinculado ao tema “memória, verdade e justiça”, o Memorial da Resistência.17

16 Ver, por exemplo, as denúncias realizadas no Seminário Direito à Memória e à Verdade da Câmara
dos Deputados em 2012, sobre a publicação de nome Orvil. Disponível em www2.camara.gov.br/do-
cumentos-e-pesquisa/publicacoes/edições. Acesso 15/06/2020.
17 Sobre instituições que trabalham na recuperação e construção da memória de violações aos direitos
humanos em países da América Latina e do Caribe, ver http://sitiosdemoria.org/pt/. Acesso 15/07/2019.
76 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

Diversas iniciativas importantes não conseguiram o apoio necessário, como


os projetos do Memorial da Anistia em Belo Horizonte e do Memorial da Luta
pela Justiça em São Paulo. No Brasil, apenas cinco instituições fazem parte da
rede Coalização Internacional de Sítios de Consciência, e apenas duas estão
voltadas diretamente para a denúncia da violência do Estado no período militar,
o Memorial da Resistência e o Núcleo Memória. 18 Os museus de história de
caráter nacional, como o Museu da República ou o Museu Histórico Nacional,
pouca ou nenhuma informação proporcionam sobre o período.
Sítios históricos e instituições associados à memória de violações e da
imputação de torturas e assassinatos impunes continuam ameaçados, apesar
de serem capazes de armazenar informações que ultrapassam o uso imediato
e que podem ser disponibilizadas e reinterpretadas por várias gerações. Como
vimos, a integridade dos sítios, prédios, documentos, objetos e imagens que
guardam informações sobre a ditadura militar precisa ser defendida como parte
de políticas mais amplas, pois o dever da memória pode trazer aprendizados
e evitar repetições. Memoriais e museus fazem parte da construção de pontos
de referência que servem como denúncia às arbitrariedades perpetradas no
passado e precisam superar desafios e obter o apoio de um público maior.

18 As três outras instituições brasileiras que participam da rede são Museu da Imigração/SP, Casa do Povo/
SP e Memorial das Lutas e Ligas Camponesas/PB.
IV
O patrimônio prisional
Myrian Sepúlveda dos Santos e Viviane Trindade Borges

(...) todavia, é tão forte em nós – talvez por razões que


remontam a nossas origens de animais sociais – a exigência
de dividir o campo entre “nós” e eles”, que este esquema, a
bipartição amigo-inimigo, prevalece sobre todos os outros.
Levi 2016: 31

O objetivo deste capítulo é apresentar os debates e pesquisas estão tratando o


tema do patrimônio prisional, salientando a incipiência da categoria nas dis-
cussões a respeito do patrimônio cultural. Entendemos que a categoria abarca
não apenas as edificações, mas também a complexidade dos aspectos imateriais
que as cercam, a dimensão imaterial da experiência prisional, as rotinas e as
práticas institucionais, inscritas nas memórias dos sujeitos envolvidos no co-
tidiano prisional: os detentos, seus familiares e os que lá trabalham. Engloba
ainda a necessidade de preservação dos acervos prisionais em seus diferentes
suportes (documentais, objetos tridimensionais, fotográficos etc.), incluindo
aqui os objetos apreendidos, as criações proibidas dos sentenciados, vestígios
deixados por estes durante o período de reclusão. A ausência de políticas pú-
blicas voltadas para a preservação deste patrimônio alimenta o desinteresse
por parte de grande parte das instituições em preservá-lo, ocasionando a per-
da de fontes fundamentais para pensar a história das prisões no Brasil e suas
especificidades nos diferentes estados brasileiros. 1

4.1. A construção do patrimônio carcerário

A noção de “patrimônio carcerário” ou “patrimônio prisional” encontra-se


ainda em construção. O termo surgiu na França, marcado pelos desafios que
cercam a elasticidade adquirida pelo conceito de Patrimônio Cultural a partir
dos anos 90. A configuração dessa nova categoria patrimonial vem ocorrendo
nos últimos dez anos, motivada pelas sucessivas destruições de edificações

1 Ver a primeira versão deste artigo em Borges e Santos (2019).

77
78 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

prisionais francesas e por tentativas de debates públicos envolvendo a partici-


pação de historiadores e pesquisadores ligados ao patrimônio (Borges 2018a).
A patrimonialização dos espaços prisionais tem trilhado caminhos con-
troversos. De um lado, apagamentos coadunam com um passado transmitido
de forma fetichizada. De outro, observamos tentativas de provocar a reflexão
social frente aos problemas que envolvem a experiência de encarceramento.
Intencionamos aqui analisar como as formas de preservação do patrimônio
podem estar associadas a dois aspectos a respeito deste embate: por um lado,
a estetização do sofrimento atrelada a alguns processos de monumentalização,
que tornam o patrimônio prisional objeto de fetiche e vazio de significados;
e, por outro lado, caminhos trilhados pelo patrimônio que permitem e/ou
instigam a empatia e a conexão com o presente.
É importante lembrarmos que masmorras medievais, fortalezas e cadeias
coloniais tornaram-se patrimônio cultural associados a castelos e prédios his-
tóricos. A Torre de Londres é um caso exemplar. No Brasil, diversas cidades
mantêm em seu núcleo histórico o prédio que abrigava a Câmara Municipal e
os órgãos a ela ligados, como a cadeia pública. Casas de Câmara e Cadeia eram
muitas vezes a primeira e única edificação pública das antigas vilas. Enquanto
patrimônio, voltam-se para o registro de uma época que apresenta poucos
traços em comum com o presente.
No século passado, algumas prisões que já podem ser consideradas moder-
nas tornaram-se locais públicos de visitação. O caso mais emblemático é sem
dúvida a prisão de Alcatraz. A prisão foi construída em 1847 e desativada em
1963. Seu destino foi o mesmo de algumas prisões em todo o mundo; tornou-se
aberta à visitação e parte do patrimônio histórico. No caso específico de Alcatraz,
há duas datas importantes: 1976, quando obteve o registro do National Register
of Historic Places, e 1986, ano em que a edificação com todo o seu entorno foi
declarada patrimônio histórico (National Historic Landmark District).
Em todos esses casos, as prisões foram limpas, modernizadas e adapta-
das à recepção de um grande público, proporcionando uma infraestrutura
crescente aos visitantes, acostumados a comodidades como banheiros, cafés,
lanchonetes e lojas de souvenirs. Contudo, também nestes museus carcerários
que antecedem os anos 1990 observamos mudanças significativas nos objetivos
das instituições ao longo do tempo. Embora inicialmente seu foco estivesse nos
antigos prisioneiros, reconhecidos por seus crimes e fugas heroicas, recente-
mente são instituições que trazem questionamentos sobre a irracionalidade do
sistema de enclausuramento, trabalho e castigo imposto aos presos, com clara
conexão com dias atuais. Em Alcatraz ,entre setembro de 2014 e abril de 2015,
por exemplo, instalações do consagrado artista chinês Ai Weiwei exploravam
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 79

questões sobre direitos humanos e liberdade de expressão, provocando os vi-


sitantes a considerarem as implicações sociais do sistema de encarceramento.2
Nos últimos anos, é evidente que a preocupação com a preservação de
edificações prisionais se articula aos embates ligados à memória e à dimensão
mais sensível e pessoal da experiência de confinamento (Borges 2018a, 2018b).
Em 2014, o jornal francês Libération publicou uma reportagem-manifesto in-
titulada “As prisões também fazem parte de nosso patrimônio”, corroborando
um debate ainda inconcluso a respeito destes patrimônios incômodos.
O trabalho de patrimonialização que apreende tais lugares perpassa um
processo que os torna imbuídos de significados dúbios, pois evocam aquilo
que a sociedade deseja esquecer, trazendo à tona o indesejado, o incômodo. A
patrimonialização desses espaços está ligada à possibilidade de ampliação da
noção de patrimônio cultural, que possibilitou a inclusão de histórias difíceis
de serem narradas e de patrimônios cuja dificuldade de visitação é notória.
Nesse processo, observa-se a busca por um difícil equilíbrio entre o dever de
memória e o direito ao esquecimento (Ricoeur 2000: 17). Podemos sempre nos
perguntar se, nesses casos, há um direito ao esquecimento, ou uma tentativa
de apagamento de memórias incômodas. É possível falarmos de uma justa
memória relacionada às prisões?3
Como alguns autores têm ressaltado, o entendimento desses espaços como
patrimônio assume um caráter controverso, uma vez que, para muitos, as exi-
bições não provocam orgulho, mas sim vergonha.4 Ainda assim, esses espaços
são aceitos como a herança incômoda, mas necessária. Desta forma, “os embates
que cercam a patrimonialização das prisões trazem à tona uma herança que
provoca questionamentos à memória e aos usos do passado, desestabilizando
as certezas das práticas de seleção e preservação” (Borges 2018a: 210).
Presenciamos reverberações da “cultura da memória” (Huyssen 1995), com
a proliferação de lugares para o depósito de lembranças em diferentes locais,
como órgãos públicos e privados, clubes, escolas, hospitais e prisões. Essa pos-
sibilidade de dar a ver a memória das prisões trilha contornos contraditórios.
Como expor esse passado ainda é uma grande questão. Dentre as preocupa-
ções mais recentes, podemos destacar a importância de compreender lógicas
arquitetônicas, vestígios ligados ao cotidiano institucional, como grafismos ou

2 Disponível em https://www.nps.gov/goga/planyourvisit/aiweiwei.htm. Acesso 05/01/2020.


3 Sobre memória e esquecimento, ver cap. 6.1.
4 Ver Logam, William & Reeves, Keir. (2008), Places of pain and shame: dealing with “difficult heritage”,
British library, 2008. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=TOp9AgAAQBAJ&print-
sec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso
05/01/2020.
80 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

escritas murais, armas e utensílios produzidos pelos internos, cartas e códigos


inventados para permitir a comunicação intramuros. São artefatos que trazem
uma outra dimensão estética às edificações preservadas e têm um papel im-
portante na denúncia da violência intramuros; apelam aos nossos sentidos e
permitem compreender não apenas as normas institucionais, mas também as
diversas práticas constituídas pelos sentenciados nesses espaços.
No Brasil, acompanhamos, a partir dos anos 1990, um processo crescente
de patrimonialização de sítios prisionais em que novos elementos estéticos e
narrativos são considerados. Alguns desses locais se transformaram em museus,
memoriais, centros de visitação e parques históricos e nacionais. As iniciati-
vas voltadas para a preservação de estabelecimentos prisionais brasileiros são
difíceis de mapear frente ao número elevado de prisões existentes e ao fato de
que nem sempre essas iniciativas estão vinculadas às instituições de memória.
Identificamos, por exemplo, a criação, a partir dos anos 2000, do Museu do
Cárcere da Ilha Grande (2009), do Memorial da Resistência em São Paulo
(2009), do Museu Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (2011), do Museu
Penitenciário Paulista (2014) e do Museu Penitenciário Frei Caneca (2017).
Somam-se a estas iniciativas os incontáveis memoriais e museus informais
criados dentro dos espaços prisionais - por iniciativa, quase sempre, de funcio-
nários - com o objetivo de abrigar documentos, fotografias e objetos antigos.
Um dos maiores problemas do sistema penitenciário brasileiro é a su-
perlotação, pois o país tem a quarta maior população carcerária do mundo.5
A política de encarceramento é antiquada, a justiça é morosa e não faz uso
de penas alternativas à prisão. Os presídios e penitenciárias são locais que
mantêm pessoas apinhadas sem condições dignas de sobrevivência, sujeitas a
doenças como tuberculose e HIV, vulneráveis à dependência de álcool e drogas.
São colocados no mesmo espaço, sem supervisão adequada, indivíduos que
não foram julgados, aqueles que cumprem sentenças curtas por infrações de
menor gravidade e os que têm muitos anos a cumprir. As péssimas condições
desses estabelecimentos é responsável também pelo controle interno dos
serviços por organizações criminosas. A reincidência no crime alcança 70%
dos que deixam as penitenciárias. Todo esse sistema é sobrecarregado por
uma política governamental que aponta o encarceramento indiscriminado
como solução ao crescimento do crime. Frente à insegurança social, políticos
ganham votos apelando para o combate do bem contra o mal, que envolve o

5 Segundo dados do Infopen, a população prisional no Brasil em 2019 era de 755.274, incluindo os presos
em delegacias. Disponível em https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/noticias/depen-lanca-infopen-
-com-dados-de-dezembro-de-2019. Acesso 05/01/2020.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 81

apelo à evangelização da sociedade e o “endurecimento” das forças policiais


contra os “bandidos”.
Para os órgãos do governo, a preservação desses lugares, que se encontram
em estado precário e trazem memórias de maus tratos, violência e dor, não
são bem vistos. Como passado e presente se encontram, até mesmo o público
prefere esquecer o que acontece intramuros, uma vez que certamente sente-
-se parcialmente responsável pelo que lá acontece. Neste artigo, objetivamos
analisar algumas práticas expositivas a respeito desse patrimônio controverso.
Há escolhas que fazem com que o patrimônio prisional seja visto como mais
um objeto de fetiche e vazio de significados. Nesses espaços, muitas vezes a
violência ocorrida no passado é suprimida ou apresentada aos olhos dos visi-
tantes como um fato excepcional e distante do presente. Procura-se produzir
emoções fortes para fins de diversão. Nesse caso, é comum que exposições
naturalizem separação entre a vida intra e extramuros, reforçando estigmas e
a separação entre os mundos da ordem e da desordem.
Se seis em cada dez brasileiros concordam com o teor da frase “bandido
bom é bandido morto”, como sensibilizar a sociedade a respeito da necessidade
de preservar o patrimônio prisional? Os objetos ou vestígios físicos do pas-
sado não são guias autônomos para épocas remotas, mas auxiliam a iluminar
o passado quando já sabemos que lhe pertencem; se seguirmos apagando os
vestígios relacionados às prisões, como poderemos “iluminar” este passado
ainda presente e refletir sobre ele?
Nesta seara, a memória pública relacionada aos presos e às prisões comuns
nos leva a outros contornos, ou seja, aos jovens, negros ou mestiços, pobres,
com pouca ou nenhuma escolaridade, analfabetos, sem acesso à imprensa, à
justiça ou aos espaços de participação política que são lembrados pela sociedade
extramuros quando a violência das rebeliões invade os telejornais (Santos 2015).
O desafio relacionado à constituição dos novos patrimônios prisionais é
proporcionar uma maior reflexão sobre as políticas penais existentes, que são
em sua grande maioria ineficazes, tanto no objetivo de retornar ao convívio
social o indivíduo que cumpre pena, como de evitar estigmas e reincidência
criminal. A manutenção das prisões se vale da crença difundida de que o mal
está contido no seu interior, o que permite que aqueles que estão em liberda-
de se identifiquem com o bem, reforçando estereótipos e preconceitos. Tais
discussões possibilitam que a função original desses espaços siga imbricada
aos sentidos históricos e patrimoniais a eles atribuídos, contribuindo para a
desestigmatização dos sujeitos confinados, para que se reflita e se discuta sobre
a prisão. Há tentativas de transmissão da experiência prisional que trilham
novos caminhos. Em alguns casos, a transmissão do passado permite e/ou
82 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

instiga a empatia e a conexão com o presente. É necessário que a exposição se


mostre sensível às memórias difíceis exibindo a experiência do confinamento
sem que esta seja reduzida a objeto de fetiche.

4.2. A estética da dor e seus fetiches

É importante considerarmos, inicialmente, que não há contemporaneamen-


te um consenso sobre políticas de encarceramento, que ainda são responsáveis
por práticas de maus tratos e humilhação. Observamos em muitos casos uma
tentativa sistemática de apagamento de traços do passado. Das prisões nada se
quer guardar. Assim, se não há políticas de encarceramento, não há políticas
patrimoniais claras a respeito desta tipologia tão específica de patrimônio. No
Brasil, por exemplo, complexos penitenciários reconhecidos por terem sido
palco de chacinas e violações humanitárias de toda ordem, como Instituto
Penal Candido Mendes (1994), Carandiru (2002) e Complexo Frei Caneca
(2007), têm sido sistematicamente destruídos com cobertura midiática para
simbolizar a chegada de uma nova era, a qual, contudo, não se fez ainda pre-
sente. Espetáculos de destruição desses complexos promoveram uma catarse
política ao permitir a manutenção do duplo sentido da instituição sem que
houvesse qualquer responsabilidade coletiva pela miséria humana produzida
(Santos 2015).
De forma geral, há uma tensão entre a realidade prisional e narrativas
constituídas para seduzir o público. No Brasil, os museus penitenciários apre-
sentam a recriação de ambientes e a exibição de uniformes (tanto de guardas
como de presos) de forma muito distanciada dos ambientes degradados e dos
uniformes gastos e sofridos do passado. Poucas escritas murais se salvam da
vertente higienizadora e modernizante. Utensílios criados por detentos, como
máquinas de fazer tatuagens, facas artesanais e cordas feitas de lençóis podem
mostrar como os indivíduos aprisionados enfrentavam as regras e normas de
vigilância e como se mantinham frente aos limites impostos pelo confinamento.
Objetos são expostos sem serem contextualizados e com o intuito de
causar encantamento, chocar, arrebatar quem os observa em uma miríade
de sentimentos permeada por um misto de fascinação e medo. Esses objetos,
como outros expostos em museus, independentemente de seu significado ori-
ginal, transmitem um sentimento arrebatador de intensidade. Estes objetos do
cárcere são apresentados como manifestações de astúcia e exibidos como uma
simples curiosidade alegórica para o deleite dos visitantes. Trata-se de propos-
tas esvaziadas de reflexão a respeito da vida no cárcere e das necessidades que
motivaram a criação de tais objetos. Essas narrativas não motivam a reflexão a
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 83

respeito dos problemas ligados à prisão na atualidade, não estabelecem pontes


entre o visitante e a realidade prisional, colocam esta como algo à parte, uma
realidade exterior que não o sensibiliza porque a ele não pertence (Borges
2018b). Ao tecerem narrativas que estetizam a vida atrás das grades, os espaços
destinados à memória prisional acabam, de forma voluntária ou involuntária,
banalizando a experiência do confinamento e, em muitos casos, a violência e
o sofrimento que ela envolve.
A ausência de políticas patrimoniais a respeito deste tipo tão específico e
contraditório de patrimônio marca um vazio de critérios para a preservação e
aquisição de acervos. Em 2017, um ex-funcionário do Carandiru anunciou que
possuía um “acervo particular” de cerca de cinco mil peças referentes à peni-
tenciária, reunido na década de 1990, e que sua intenção era criar um museu.
“Fotos, vídeos, objetos apreendidos com detentos, como facas e celulares e até
algumas peças do mobiliário”,6 seriam peças de um acervo pessoal? Ou reflexo
da ausência de definições a respeito do que é considerado patrimônio prisional?
A vontade dessas instituições de guardar e exibir o passado permite perceber
o que entendem como história institucional, um processo que não parece buscar
na rememoração o entendimento do que foram para assim compreenderem
como são - e como se tornaram o que são - na atualidade, mas sim buscar
no passado aquilo de desejam ser. Um passado idealizado, narrado de forma
evolutiva e elogiosa. No Museu Penitenciário Paulista, por exemplo, a narrativa
sobre a história da Penitenciária do Estado (1920) corrobora a ideia de que
houve uma instituição “modelar” em sua época, minimizando um cotidiano
perpassado por uma série de problemas expressos na distância do discurso com
a prática, um cotidiano marcado por punições internas e arbitrariedades, que
contradizem a imagem de uma instituição exemplar (Salla 1999). Ao mostrar
a evolução do sistema penal através de narrativas que procuram enaltecer a
tecnologia prisional, a prisão deixa de ser percebida como um problema do
presente, criando uma memória-fetiche que tece a prisão como algo à parte.
Tal estrutura narrativa evita assuntos polêmicos, ou então os silencia ou
dilui em tentativas de apaziguamento. No Museu Penitenciário Paulista, a pala-
vra “motim” é utilizada evitando a escolha do termo “massacre” para definir o
ocorrido no Carandiru em 2001. Uma escolha que busca atenuar as dimensões
do episódio que repercutiu nacional e internacionalmente (Borges, 2018b). De
forma semelhante, o Espaço Memória do Carandiru, criado em 2007 e que tem
como função, conforme o decreto que institui sua criação, “oferecer ao público

6 Disponível em http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2016/02/agente-diz-ter-acervo-
-de-5-mil-itens-do-carandiru-em-casa-no-interior-de-sp.html. Acesso 05/01/2020.
84 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

em geral informações de caráter histórico, social e cultural sobre o Carandiru”


(Decreto estadual n. 52.112, de 30/8/2007), acaba tratando o “episódio de forma
isolada, como um espetáculo descontextualizado do passado, mostrando o
Carandiru e sua história como exceções” (Borges 2018b: 317).
No Brasil ainda não é comum a apropriação dos espaços prisionais pela
indústria do turismo por meio de atividades de espetacularização, como as
atrações assombradas que ocorrem nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos,
país que lidera o ranking mundial em número de presos, as tentativas de usar os
espaços de memória prisional para criticar e humanizar o sistema penal cami-
nham juntamente com estratégias caricatas de espetacularização (como atrações
assombradas em dias de halloween) que contribuem para a ausência de reflexão
e esvaziamento de sentidos (Borges 2018b). No entanto, o ocorrido em 2016 no
Presídio do Ahú, no Paraná, mostra que facilmente poderemos trilhar este cami-
nho. O espaço prisional estava abandonado havia cerca de 10 anos, e o governo
previa a demolição de parte das edificações; meses antes do início das obras, uma
emissora local promoveu um “reality show fictício” durante uma visita noturna.
Antigos agentes penitenciários guiaram os visitantes pelas edificações, contando a
história do lugar perpassada por histórias assustadoras acompanhadas por gritos,
sustos e encenações de atores caracterizados como fantasmas. As vagas para a
noite de visitação do Ahú ficaram esgotadas em poucas horas.7
Nos museus prisionais, as tentativas de recriar o ambiente prisional oscila
por caminhos tortuosos. No Museu Penitenciário Paulista existe a reprodução
de celas de castigo onde o visitante pode se trancar, bem como uma fotografia
de grandes dimensões do Pavilhão 9, palco principal do massacre do Carandiru,
onde é possível tirar uma selfie. Observa-se a ausência de elementos gráficos
originais e a descaracterização da arquitetura do cárcere, reconfigurada en-
quanto espaço de visitação. As sucessivas demolições de espaços prisionais nas
ultimas décadas têm impedido o estudo dos elementos gráficos deixados por
detentos, as inscrições de confinamento, vestígios deixados pelos sentenciados
durante o período de reclusão inscritos na arquitetura prisional. Esses vestígios
possuem uma dimensão sensível, são expressões de e sobre seres humanos em
privação de liberdade. O apagamento dos espaços prisionais no Brasil vem
conduzindo também ao apagamento desses “vestígios frágeis” ou “arquivos
sensíveis” (Vimont 2014).
Se a empatia é um elemento importante na configuração da rememoração,
como colocar-se no lugar do outro se esse outro é aquele que se deseja esquecer?

7 Disponível em http://gshow.globo.com/RPC/noticia/2016/10/quer-sentir-o-clima-do-supermax-em-
-curitiba-rpc-te-convida-conhecer-o-presidio-do-ahu.html. Acesso 05/01/2020.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 85

Frente a esses contornos, como tornar o patrimônio prisional uma ferramenta


para uma discussão politizada a respeito do sistema penal? De forma geral, a
transmissão do passado ligado às prisões, especialmente no caso dos presos
comuns, não parece capaz de afetar o visitante, não desperta a empatia, não
possibilita conexões com a experiência de sofrimento do outro, não provoca o
envolvimento moral do visitante (Boltanski 1999). A maneira como esse passa-
do vem transmitido permite problematizar como a sociedade tem lidado com
essa dimensão incomoda que o passado prisional ainda provoca no presente.

4.3. Murais do sofrimento

Em muitos aspectos, os espaços prisionais podem ser entendidos como


lugares de sofrimento, noção esta que liga o patrimônio às memórias rela-
cionadas com as grandes tragédias, a violência e a exclusão. “Patrimônios
marginais” (Borges 2016a, 2016b), “patrimônio da dor” (Meneguello 2014: 54),
ou “patrimônios incômodos” (Prats 2005), “repertórios patrimoniais politica-
mente incorretos ou atualmente indesejáveis” (Prats 2005: 26): tais categorias
perpassam patrimônios ligados aos direitos humanos.
Neste sentido, uma das escolhas dentro do processo de patrimonialização
das prisões é pautada pela história política e pela história dos direitos civis e da
violência de Estado. Museus e memoriais voltados para a denúncia de mortos
e desaparecidos por regimes fascistas e ditatoriais constituem um ramo impor-
tante dos patrimônios em questão, embora nem sempre ocupem instalações
de centros prisionais. De arquivos e museus do Holocausto no pós-guerra aos
diversos memoriais às vítimas das ditaduras militares na América Latina, são
todas instituições voltadas para a memória das vítimas da repressão e para
um imperativo político, social e ético que se coloque em prol da liberdade, da
justiça e da democracia.
O desafio está colocado também para as estratégias expositivas, pois
sabemos que história é processo e que não há como parar o tempo. A trans-
formação e modernização radical dos lugares de memória contribuem para o
apagamento de marcas que podem ser importantes à reflexão. A convivência
entre marcas do passado em que são preservados seus significados e os pro-
cessos de reconstrução em que se modernizam estruturas coloca-se como um
desafio de nosso tempo.
No Brasil, a prática de destruição das antigas estruturas carcerárias é
comum, restando muito pouco da antiga arquitetura prisional para ser apre-
sentada ao público. Em Vigiar e punir, contudo, Michel Foucault nos mostra a
importância de compreender o confinamento a partir de suas edificações; ele
86 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

analisa a estrutura arquitetônica do Panóptico de Bentham e argumenta que


as disposições das celas e corredores permitem uma prática de vigilância con-
tínua, uma vez que aquele que está preso não sabe quando está sendo vigiado
pelo guarda que está no centro da estrutura (Foucault 2006). A preservação
das estruturas carcerárias é, portanto, de extrema importância para perceber-
mos as diversas situações de confinamento. Nem sempre se dá importância às
edificações, muitas vezes pesadas e sem aparente atrativo.
No caso do Museu do Cárcere da Ilha Grande, por exemplo, os mu-
ros, apesar do evidente valor simbólico que carregam, foram destruídos e
transformados em entulho para cobrir os sulcos deixados na estrada pelas
chuvas (Santos 2015). Apesar do caráter de confinamento de algumas celas e
estruturas de vigilância, é interessante observar que espaços são vivenciados
de diferentes formas, o que torna o trabalho de preservação bastante com-
plexo. A Ilha Grande, chamada de Caldeirão do Inferno na época em que
lá estava instalado o presídio, tem praias e matas e atualmente é associada
pelo turismo a um paraíso tropical. São frequentes os casos de antigas pri-
sões localizadas em ilhas que se transformaram em parques de visitação. No
livro Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, o caminho realizado a pé
ao longo de 10 Km em meio à mata, descrito como extremamente penoso, é
hoje uma trilha da Ilha Grande em que turistas sentem-se felizes e dispostos,
desbravando a natureza.
Outro aspecto pouco valorizado pelos museus carcerários são os diversos
tipos de registro escritos pelos antigos internos. Há diversos tipos de grafismo
a serem considerados no interior de uma prisão. Como parte do castigo é o
isolamento e a imposição do silêncio, a escrita em paredes, muros e chão,
como também em cartas e margens de livros, representa um grito de resistên-
cia e mostra de sobrevivência. Tais representações, contudo, muitas vezes são
apagadas no processo de preservação. No caso da Ilha Grande, por exemplo,
as edificações que resistiram à destruição passaram alguns anos como ruínas
entregues às intempéries e ao público visitante, que se divertia cobrindo as
escritas murais do presídio com seus próprios nomes, lembranças e datas.
Ainda assim, registros importantes permaneceram, mas escaparam ao olhar
dos responsáveis pela preservação.
No caso das cartas, nem sempre elas podem ser recuperadas ou expostas.
Cartas pessoais dificilmente são doadas para exposição; elas contêm denúncias,
mas também sentimentos, desabafos, expressões de carinho e paixão que são
guardadas em âmbito familiar. No entanto, muitas das cartas endereçadas às
famílias nunca chegaram ao seu destino, sendo anexadas aos prontuários dos
sentenciados não autorizados a enviarem ou receber cartas, por vezes também
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 87

servindo de prova de atos de desobediência. Ainda no caso do Museu do Cárcere


da Ilha Grande, há um conjunto de cartas que tem recebido atenção. É a corres-
pondência de coletivo de presos associado a uma organização criminosa com
lideranças que se encontravam em liberdade chefiando a distribuição de drogas
em áreas periféricas da cidade. Um dos guardas responsáveis pela segurança
guardou por muitos anos este conjunto de cartas que havia sido interceptado.
As cartas escritas pelas lideranças do crime entre os anos 1980 e 1990 trazem
inúmeras informações, relativas tanto à expansão da rede que se formava para
distribuição de drogas, como na forma em que se estruturavam. Ao analisar o
formato das cartas, a socióloga Yasmim Issa apontou a formalidade da corres-
pondência que, além de um carimbo, trazia repetidamente o mesmo padrão
de escrita, com cabeçalho próprio e despedida. As mensagens traziam palavras
codificadas, como o uso da palavra “fortalecimento” para indicar necessidade
de drogas e dinheiro. Um dos lemas da organização presente nos términos das
cartas, “Na crença de que o mal jamais vencerá o bem, desejamos Paz, Justiça
e Liberdade”, bem como o tratamento de “amigo irmão” e a identificação dos
grupos a “famílias” e alusões religiosas frequentes mostram que a identidade
formada para si pela organização criminosa se amparava em estruturas pre-
sentes nas instituições sociais (Issa 2018). Atualmente as cartas estão expostas
no Museu do Cárcere.
A museografia relativa ao surgimento do Comando Vermelho nas prisões
da Ilha Grande ainda não explora devidamente as evidências históricas, segun-
do antigos guardas e moradores locais. Nos livros da biblioteca da prisão, que
foram resgatados do lixo no início do processo de musealização das antigas
penitenciárias, há relatos e recados deixados por membros da organização
criminosa que precisariam ainda ser expostos e analisados. Em um deles lemos:

“Amigos leitores
O último companheiro a ler este livro foi embora dia 20/8/85 depois de muito
tempo que ninguém conseguia fugir deste inferno. Parabéns! Que este exemplo
se repita sempre pois a meta é uma só, liberdade.
Ass. Parceiro do próprio que se foi” 8

Ainda sobre escritas deixadas pelos detentos em prisões, devemos men-


cionar o estudo de Aquino (2019) na Penitenciária Tenente Zeca Rúben, em São
Raimundo Nonato, Piauí. A pesquisadora faz um levantamento de desenhos e
palavras deixadas nos mais variados suportes presentes em banheiros, pátio,

8 Conforme fotografia da página do livro em Rocha 2019:124.


88 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

paredes e teto de celas entre 1967 e 2007 e chama a atenção para as mudanças
ocorridas no espaço carcerário através das intervenções que trazem dois temas
de maior recorrência: apelo religioso e sexualidade. Salmos, rezas e diversos
pedidos de liberdade às figuras de Deus e Jesus Cristo mostram a manutenção
do vínculo dos internos com a religião. E também, segundo a autora, as figuras
da mulher e o teor erótico indica um processo de sublimação que se converte
em um recurso de poder do indivíduo sobre o espaço que ocupa (Aquino
2019: 104-105)

4.4. Representações da dor

Para além das inscrições de confinamento, a questão da apropriação dos


espaços envolve desdobramentos extremamente complexos. No Carandiru, dias
antes da demolição do Complexo, o fotógrafo Pedro Lobo registou 13 imagens
das celas dos presos. A exposição “Espaços aprisionados” mostrou a maneira
como os detentos ocupavam o lugar, como inscreviam marcas subjetividade no
ambiente de confinamento. Almofadas, flores de plástico, cortinas com babados
e bibelôs são tentativas de reproduzir a vida extramuros em suas comunida-
des, expressas também na maneira como se referenciam a celas, os “barracos”.
Segundo o artista, as imagens “não são a respeito de crimes, ou criminosos,
mas sim sobre seres humanos que se encontram, ou se colocaram em situações
extremamente adversas e que, apesar de tudo, decidiram não abandonar a luta
por uma existência digna”.9
André Cypriano é um fotógrafo que passou duas semanas convivendo
com os internos do Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, em 1993,
um ano antes do fechamento da instituição e registrou em imagens o cotidiano
da penitenciária. O trabalho de captar a rotina dos 600 indivíduos lá encar-
cerados lhe garantiu o prêmio da Mother Jones Fundation for Documentary
Photography e a publicação do livro Caldeirão do diabo, alguns anos mais tarde.
As imagens refletem o encontro de André com os líderes e o aprendizado dos
códigos locais, o que é desdobrado no livro com um relato na primeira pessoa
de seus encontros e desencontros no interior da penitenciária. É um trabalho
extremamente relevante, por apresentar os indivíduos que cumpriam penas
(Cypriano 2001).
Não há como não lembrarmos dos questionamentos feitos por Susan
Sontag sobre as fotografias de agonias de guerra. As imagens não são neutras,

9 Disponível em https://www.universoaa.com.br/lifestyle/arte-e-design/no-rio-pedro-lobo-exibe-expo-
-tocante-sobre-o-presidio-mais-emblematico-do-pais/. Acesso 05/01/2020.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 89

são construídas – diz Sontag em 2003. Para a autora, em contraposição ao


mundo da escrita, mais complexo, a fotografia tem uma linguagem única.
Compreender que fotografias enquanto linguagem específica não são janelas
transparentes, pois representam o ponto de vista de alguém sobre o objeto
fotografado, é o ponto de partida para lidarmos com novas formas de repre-
sentação. Apesar de considerar todo o perigo de formar um fluxo de notícias
veiculado por tabloides sensacionalistas, Sontag distingue a “fotografia de
guerra” por sua tentativa de angariar apoio para aqueles que estão submetidos
a situações de sofrimento e dor. Não se trata, portanto, do embelezamento
da pobreza, mas da construção de um instrumento capaz de produzir novas
formas de pensamento, de luto e de luta. As escritas, tal como as fotografias
e, como veremos adiante, os vídeos e os filmes, não nos fazem compreender
por encanto. As imagens nos fazem lembrar, mas é preciso associar este
lembrar às ações necessárias.
É desnecessário repetir que os processos de patrimonialização das prisões
podem ser entendidos a partir da chave dos patrimônios difíceis. São lugares
incômodos, que ameaçam penetrar no presente de forma perturbadora, expli-
citando problemas sociais marcados por embates éticos enfrentam o desafio
da comunicação. Os traumas, como vimos, são difíceis de ser transmitidos,
pois as memórias são bloqueadas e os sintomas não nos levam diretamente
ao fato anterior.10 Aquele que sofre violações físicas ou emocionais muitas
vezes não é capaz de construir representações sobre esses eventos, da mesma
forma que aquele que é o autor da narrativa pode produzir o esquecimento ou,
ainda, procurar ser eternizado, seja como vítima, bandido-herói ou vilão. As
lembranças da dor estão atravessadas por ausências, esquecimentos, discursos
padronizados e estratégias narrativas que nem sempre fazem justiça às coerções
e arbitrariedades que são reproduzidas institucionalmente. Temos chamado
a atenção, contudo, para a importância das intervenções artísticas, que têm
sido capazes de estranhar o que é naturalizado, associando-se às denúncias
de violação de direitos humanos, promovendo ações cívicas e intervenções
sociais (Borges & Santos 2019).
Duas performances da artista Berna Reale devem ser destacadas. A ar-
tista paraense, de 54 anos, também trabalha na Superintendência do Sistema
Penitenciário do Estado do Pará, no Centro de Perícias Científicas Renato
Chaves, e faz da arte uma forma de atrair a atenção do público para o que
acontece nos sistemas criminal e penitenciário. Suas performances são pro-
vocadoras e incômodas. Ela se formou em arte, na Universidade do Pará,

10 Sobre memórias traumáticas, ver cap. 1.3.


90 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

ainda jovem, mas começou a se dedicar à arte performática apenas em 2009,


quando registrava seu trabalho em fotografias. Atualmente as performances
são filmados e viajam pelo mundo em bienais e mostras artísticas e cultu-
rais. Berna traz em si a condição de unir mundos paralelos, o da arte e o do
sistema criminal. Preocupada porque a arte não alcança os mais pobres, ela
tem procurado produzir performances que dialoguem com os que enfrentam
cotidianamente a polícia e a ameaça do encarceramento. Como todo artista,
Berna procura mostrar que os seres humanos podem se ver nos “outros”, ainda
que estes últimos sejam estigmatizados.
A performance Americano foi produzida em 2013 e levou a artista à Bienal
de Veneza. Nela, a artista usa o próprio corpo para fazer sua arte. Corre com
roupa de ginasta e uma tocha olímpica nas mãos pelos corredores de uma pe-
nitenciária masculina. Os braços dos internos para fora da grande procuram
tocar seu corpo, que passa por eles impassível e de forma rítmica. A artista
conseguiu fazer uma denúncia impactante da precariedade e dos abusos do
sistema carcerário.
Ginástica da pele é uma das performances produzidas a partir de sua
observação atenta sobre as cenas cotidianas que presencia, denunciando a
discriminação racial e a pobreza. A maior parte dos internos do sistema penal
brasileiro é jovem, com idade entre 18 e 29 anos, e pode ser identificada pela
cor da pele – são declarados negros ou pardos.
Berna Reale selecionou jovens que já foram abordados pela polícia sem
motivos reais, como é comum acontecer com a juventude negra, que se não
é assassinada em batidas policiais acaba confinada nas prisões. O processo
de seleção foi também um aprendizado, pois houve conversa com os jovens
e compreensão da situação em que se encontravam, muitos fora das escolas e
desempregados.
Ela os organizou em filas e os fez marchar pelas ruas de Belém (PA) em
junho de 2019. Ao fazê-los reproduzir os movimentos de policiais em treina-
mento, procurou mostrar a ironia. As marchas reproduzidas são movimentos
da ordem estabelecida, mas a ironia é que quando o apito toca, os jovens colo-
cam a mão na cabeça e se ajoelham, como se aguardassem o momento em que
serão algemados. A performance é impactante e procura, a partir da ironia e da
contradição, trazer à tona a violência com que são tratados os jovens, princi-
palmente os pobres que são identificados como negros. Fotografias, instalações
e performances da artista têm provocado um novo olhar para um problema
social e político que costuma ser esquecido. O incômodo gerado traz para o
centro das atenções a violência que se reproduz por parte do Estado sem que
soluções sejam apontadas.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 91

Em suma, há estratégias que podem ser utilizadas para que o público


seja bem recebido pelas novas instituições da memória, sem que a distração
apague a reflexão. As novas formas de escrita, exposição e arte procuram,
através da construção da memória, expor os sentimentos de crueldade e
vingança que estão presentes em instituições carcerárias contemporâneas
e impedem que suas práticas sejam apropriadas para fins de consumo e
sensacionalismo.
V
Memória afro-brasileira
Myrian Sepúlveda dos Santos & Gabriel da Silva Vidal Cid

Nunca houve um monumento da cultura que não


fosse também um monumento da barbárie.
Benjamin 1985:225

Neste capítulo serão analisados os suportes coletivos da memória afrodescenden-


te – mais precisamente os equipamentos culturais relacionados ao patrimônio
e aos museus – que foram estabelecidos a partir de disputas ocorridas entre
Estado, mercado e movimentos sociais. Arquivos, museus, monumentos, sítios
históricos e todas as demais práticas relacionadas à preservação do patrimônio
cultural fazem parte de políticas públicas e privadas que ocorrem na esfera pú-
blica, servindo tanto à manutenção de hierarquias estabelecidas como também
àqueles que desafiam o status quo. Os artefatos da memória têm valor simbólico
e detêm grande importância na difusão de uma determinada representação de
mundo em que as relações sociais se formalizam. Walter Benjamin fez uma
forte crítica à história dos vencedores e aos documentos da cultura, os quais,
segundo ele, representavam a barbárie, a violência sobre os vencidos. O autor
nos ajuda a pensar a disputa ferrenha que ocorre nas esferas públicas sobre os
registros que são feitos do passado.

5.1. A africanidade dos brasileiros

Em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural,1 há poucos marcos de


referência relacionados aos povos e comunidades de matriz africana. O silêncio
é uma forma de invisibilizar o passado sob diferentes formas. Nas narrativas
encontramos tanto o silêncio como as formas estereotipadas, associando a
população afrodescendente ao carnaval e ao samba, como natureza única,
ou às imagens de homens, mulheres e crianças sob maus tratos, silenciando
movimentos de resistência e a própria estrutura de opressão.

1 Em nossa análise, consideramos a diferenciação entre o racismo individualista, institucional e estrutural,


como proposto por Almeida (2018).

93
94 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

Por “memória coletiva” podemos compreender tanto os processos de


construção de imaginários sobre o passado como as estruturas coletivas, a
exemplo da linguagem ou, ainda, lugares e objetos que funcionam como sím-
bolos de experiências passadas para uma coletividade. Para maior definição
da natureza do objeto de nossa pesquisa, iremos utilizar uma distinção, feita
pelos alemães Aleida e Jan Assmann, entre o que denominaram “memória
coletiva” e a “memória cultural”. Segundo os autores, a memória coletiva é
aquela que se forma através da interação e da comunicação entre indivíduos,
sendo transmitida por, no máximo, três gerações consecutivas. Ela tem por
base a tradição oral. A memória cultural, por sua vez, está presente em socie-
dades mais complexas e é reproduzida através da mediação de suportes com
propriedades simbólicas, como imagens, textos e monumentos. Este tipo de
memória atravessa diferentes épocas, necessita de especialistas em sua produ-
ção e reprodução, e pode ser armazenada em textos normativos e instituições
próprias. As memórias coletivas e culturais não são estanques, e precisam ser
analisadas com referência às dinâmicas dos grupos e das formações sociais
(Assmann 2008, Assmann 2011).
Certamente a “africanidade” da população brasileira está presente em uma
sociedade em que mais da metade da população se autodefine como negra e
parda. Há, no Brasil, um conjunto importante de análises, baseadas em pesqui-
sas etnográficas, sobre como comunidades indígenas e africanas “relembram”
suas origens a partir do encontro com políticas de patrimonialização (Arruti
1997, French 2009, Santos 2014, Noronha 2020). O passado, que é resgatado,
não é separado da intenção do presente e de seus referentes, e também não
tem uma relação linear e direta com as intenções propostas. A questão que se
coloca – como tão bem ressaltam todos aqueles que valorizam a relação dinâ-
mica entre atores e seu contexto, assim como a relativa autonomia entre esses
processos – é que o passado construído é também constitutivo da coletividade.
Este é o ponto deste capítulo, e esperamos que, assim, o levantamento realizado
sobre as memórias coletivas “armazenadas” a partir de políticas patrimoniais
e suportes oficiais possam nos oferecer caminhos para compreender parte do
que o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot chama de “conteúdo de
nosso armário” (Trouillot 1995: 38).
Duas observações são necessárias antes de desenvolvermos nossa análise.
Em primeiro lugar, é importante deixar claro que não é nosso objetivo discutir
os conceitos de raça e etnicidade. Estes têm sido objeto de intenso debate no
Brasil, principalmente a partir do início das políticas de cotas nos anos 2000.2

2 Para uma abordagem recente do tema, que recupera debates anteriores, ver, por exemplo, Hita (2017).
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 95

Neste trabalho, partimos das formulações de Stuart Hall, tanto sobre as cons-
truções políticas e sociais de raça como sobre a diáspora negra, mantendo o
foco na associação entre as diversas construções identitárias e as lutas contra
a segregação e intolerância (Hall 2003). Segundo Valter Silvério, a diáspora
deve ser pensada não meramente a partir do deslocamento dos africanos para
o Novo Mundo, mas também como criação e recriação de um sentimento de
pertencimento determinado por situações de opressão, rejeição, segregação e
discriminação (Silvério 2017:118). Portanto, para o nosso objetivo, utilizaremos
os conceitos de população “negra e afrodescendente” que são associados, no
Brasil, ao uso da identidade étnico-racial como instrumento de resistência e luta.
A segunda observação diz respeito ao significado de “Movimento Negro”.
Este também tem sido objeto de diversas análises, e não há um consenso sobre
sua formação em termos de história, base territorial, critérios de pertencimento
ou conteúdo político. Os atos de resistência não são uniformes; ao contrário,
são diversificados e circunstanciais (Pereira & Alberti 2007). Em 1978, ainda
durante a ditadura militar (1964-1986), surgiu na cena política – influenciado
por movimentos antirracistas dos Estados Unidos e África e, internamente,
por grupos socialistas –o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação
Racial (MNU). O novo movimento, de caráter nacional, aglutinou agremiações
culturais, jornais, centros de estudo e associações diversas.
Para esta pesquisa, é importante destacar a associação entre o movimento
e o conceito de identidade étnico-racial que, depois dos anos 1970, foi se tor-
nando hegemônica a partir de congressos e reuniões nacionais. Desde a criação
do MNU, fizeram parte da agenda política a crítica à ideologia da democracia
racial, a inversão da conotação pejorativa atribuída à palavra “negro” e o esta-
belecimento do dia 20 de novembro, data da morte do líder quilombola Zumbi,
como o Dia Nacional da Consciência Negra.3 É neste sentido que fazemos
referência às diversas formas de ativismo e resistência ao racismo ativas no
país como “Movimento Negro”.
Paralelamente à revisão da historiografia brasileira, novos marcos e sím-
bolos culturais foram criados. Entre outros temas polêmicos, foram colocados
em questão: as relações “cordiais” entre senhor e escravo no período colonial, o
protagonismo da princesa Isabel na Abolição, as políticas estatais de incentivo
à imigração e a invisibilidade dos negros livres no período pós-abolicionista.
A partir do processo de redemocratização do país, estigmas historicamente
associados às práticas de exclusão e racismo passaram a ter, gradualmente, seu

3 Dentre os muitos depoimentos e análises sobre o Movimento Negro, ver Gonzalez (1982: 9-66).
96 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

sentido trocado. Nesse processo, a historiografia oficial da nação foi criticada,


parcialmente reformulada, e ganhou novos símbolos e monumentos.
As políticas públicas de ação afirmativa ocorreram, majoritariamente,
durante os governos petistas (2003-2010), quando houve o reconhecimento da
necessidade de medidas compensatórias para combater desigualdades oriundas
das diversidades sociais e regionais. Em 2003 foi criada a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que manteve, sob a
liderança do Partido dos Trabalhadores, o diálogo com diversas entidades do
movimento negro.4 Data desse período a adoção de medidas de ações afir-
mativas por várias universidades públicas e a promulgação da Lei nº 10.639,
tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio, em resposta
às antigas reivindicações do movimento negro.
No Brasil, observamos iniciativas relacionadas ao patrimônio que gra-
dativamente têm ocupado espaço nas cidades ao afirmarem a legitimidade da
herança africana e combaterem discursos que sustentam a existência de uma
democracia racial. Em que medida, contudo, elas foram capazes de atender às
principais reivindicações da população negra ou afrodescendente? Nas seções a
seguir, apresentaremos as disputas na área de patrimônio em exposições museo-
lógicas e políticas culturais urbanas. Esta pesquisa parte de dados (estatísticas,
decretos, portarias) hoje disponíveis em sites oficiais, como os da Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural (IPHAN) e do Instituto Brasileiro
de Museus (IBRAM), bem como no levantamento de publicações na mídia e
na observação e análise de algumas exposições.

5.2. A construção do patrimônio cultural

A percepção de que experiências do passado trazem consequências


para o presente e de que há uma população de descendentes de escravizados
mantida à margem dos recursos e privilégios sociais, políticos e econômicos
tem provocado demandas por reparação no âmbito do patrimônio cultu-
ral.5 O patrimônio cultural pode ser entendido como um conjunto de bens
consagrados por meio de políticas de reconhecimento. Ele remete à cidada-
nia, ao configurar um direito expresso num conjunto de leis e deveres que

4 Há um grande número de publicações sobre esse período entre intelectuais e militantes do movimento
negro. Ver entre outros, Gomes (2012) e Silvério Op. cit.
5 Para um estudo sobre as lutas de indivíduos escravizados, libertos e de seus descendentes por reparações
em diversos períodos, especialmente a partir do final dos anos 1980, ver Araújo (2017).
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 97

compreendem ações de proteção e promoção. É importante percebermos


este conjunto de bens como um espaço em constante disputa expressando
concepções mais democráticas ou não. Deve ser visto também como um
elemento nas atuais disputas por ativos em processos de legitimação de
passados e denúncias de opressão.
A institucionalização das ações no âmbito do patrimônio cultural no
Brasil teve início no período da ditadura varguista, em 1937, com a criação do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual IPHAN, e
do instrumento do tombamento. A criação do SPHAN refletiu a articulação de
intelectuais modernistas com a estrutura política ditatorial, responsável pela
preservação da arte sacra majoritariamente, de antigos fortes e casarões colo-
niais, bem como das obras de alguns artistas destacados (Chuva 2009, 2011). As
políticas preservacionistas daquele momento trouxeram algumas mudanças,
mas em grande parte seguiram propostas anteriores do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838 e consagrador do projeto colo-
nizador, que priorizou a herança portuguesa, silenciando ou estigmatizando
os legados deixados por povos indígenas e pelos africanos aqui escravizados.6
As políticas de patrimônio nas primeiras décadas seguiram a narrativa de
uma história única, pouco afeita à diferença, partindo do “descobrimento” do
Brasil, consagrando heróis que estabeleceram a “união” nacional e eliminando
os conflitos existentes (Rubino 1996).
Ao longo do século XX, o campo do patrimônio cultural passou por um
processo de tensionamento e alargamento. Ainda que lento, houve um processo
de mudanças nas políticas de memória e ampliação do alcance do conjunto.
O alargamento do conceito de cultura implicou importantes transformações.
Na década de 1970, a noção de referências culturais, vinculada à atuação do
Centro Nacional de Referências Culturais – dirigido por Aloísio Magalhães,
posteriormente diretor da Fundação Nacional Pró-Memória – ampliou o sentido
das práticas patrimoniais (Fonseca 1996, 1997; Motta 2017). A consagração da
perspectiva do caráter multiétnico da nação foi expressa na Constituição de
1988.7 As ações patrimoniais, apesar de se pautarem em conceitos diferen-
tes, passaram a indicar o diálogo entre movimentos que giram em torno das
ideias de folclore, da cultura nacional-popular e da cultura popular. Em 2000,
a partir dessa aproximação do campo do patrimônio com práticas próximas

6 Sobre as concepções deste primeiro século de atuação do IHGB, ver Guimarães (1988).
7 Ver artigo 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (...)”.
98 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social

ao que anteriormente era classificado no âmbito do folclore,8 foi consolidado


o instrumento do “Registro” (Decreto-Lei nº 3.551/2000), na chave do patri-
mônio imaterial.
Esse movimento observado no Brasil seguiu um direcionamento que
ocorria no âmbito internacional. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a
Unesco deteve a liderança na definição e preservação da cultura, bem como
na promoção de políticas para a memória.9 Entre as diversas convenções, ci-
tamos entre outras, a Convenção do Patrimônio Mundial e Cultural e Natural,
de 1972 e a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial,
de 2003, por terem estabelecido novos paradigmas e diretrizes. As orientações
resultantes dessas convenções tiveram impacto sobre todos os países membros,
o Brasil inclusive, que passaram a fazer indicações de locais e sítios naturais e
culturais, disputando prestígio para ver seus marcos patrimoniais celebrados
por todo o mundo (Silva 2012).
A partir da década de 1980, a despeito da permanência de narrativas tra-
dicionais e da presença do racismo na sociedade brasileira, bens relacionados à
cultura dos afrodescendentes passaram a ser reconhecidos e tornarem-se objetos
de políticas patrimoniais. Podemos elencar algumas ações que simbolizam o
início desses processos, como os tombamentos da Pedra do Sal, na antiga zona
portuária da cidade do Rio de Janeiro, em 1984, da Serra da Barriga, onde se
situava o Quilombo do Palmares, também em 1984, e o do Terreiro da Casa
Branca, em 1985. Esses tombamentos ocorreram após amplo engajamento de
movimentos sociais e com significativa tensão no campo do patrimônio. Em
1986, após várias tentativas de lideranças do Movimento Negro, finalmente o
governo do estado do Rio de Janeiro inaugurou o monumento a Zumbi dos
Palmares, herói guerreiro, na avenida Presidente Vargas, onde ficava a Praça
Onze, um dos redutos da população negra, próximo à recém-inaugurada
Passarela do Samba (Soares 1999). Dos mais de mil monumentos da cidade do
Rio de Janeiro,10 destacamos apenas quatro em relação direta com a população

8 Sobre o Movimento Folclórico, que se estendeu entre o período de 1947-1964, tendo como marco a
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, de 1958, ver Vilhena (1997). Sobre o movimento nacional-
-popular e sua interface com a cultura, ver Chauí (1989).
9 Na esteira da atuação da UNESCO, foram criados o Conselho Internacional de Museus (ICOM) e o Centro
Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (ICCROM) que colaboram
na organização de um sistema internacional de proteção.
10 Ver a página “Inventário dos Monumentos RJ”, de Vera dias, arquiteta e ex-gerente da divisão Monumentos
e Chafarizes, da Secretaria Municipal. Segundo a autora, há na cidade do Rio de Janeiro 1.372 monu-
mentos entre fontes e chafarizes (142), lagos e recantos (19), personalidades (352) esculturas (275), obras
públicas (392), representações religiosas (66) e marcos e obeliscos (126). Disponível em http://www.
inventariodosmonumentosrj.com.br/index.asp?iMENU=home. Acesso 18 Jan 2021.
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 99

afrodescendente. Além do já citado Zumbi dos Palmares (1986), há homenagens


a João Cândido (2007), conhecido como Almirante Negro por liderar uma
revolta entre marinheiros contra a prática da chibatada em 1910; ao músico e
liderança de escolas de sambas Paulo da Portela (2012); e a Mercedes Baptista
(2016), bailarina e coreógrafa considerada precursora do balé de matriz africana
no Brasil, tendo atuado tanto no Teatro Experimental do Negro, idealizado por
Abdias do Nascimento em 1944, como no Teatro Municipal. A estátua de João
Cândido foi doada à cidade pela SEPPIR.
Como mencionamos acima, a noção ampliada de cultura associada
às políticas de patrimônio teve forte impacto na Constituição de 1988, que
estabeleceu as obrigações do Estado na proteção e incentivo à cultura e à
memória dos diferentes povos formadores da nação, garantindo o exercício
dos direitos culturais (artigos 215 e 216). Ao longo dos governos do Partido
dos Trabalhadores (2003-2016), as medidas de combate à desigualdade racial
e políticas afirmativas se fortaleceram.11 Houve um incremento das ações do
Ministério da Cultura (MINC), chefiado por Gilberto Gil, em consonância com
a criação da SEPPIR e o fortalecimento da Fundação Cultural Palmares, que
passou a ter a competência para emissão de certidão às comunidades quilom-
bolas (Lei nº 4.887/03). Data desse período a obrigatoriedade do ensino da
História da África e Afro-Brasileira nas escolas (Lei nº 10.639/03), bem como
o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10).
É importante destacar que houve necessidade de adequação da militância
negra aos órgãos públicos, bem como uma revisão do curso de ação destes
últimos a partir das pressões exercidas pelos movimentos sociais. Ao longo do
governo Lula, por exemplo, foram nomeados para a SEPPIR representantes do
Partido dos Trabalhadores, o que gerou tensão com ativistas da agenda racial
oriundos de Ongs, entidades civis e movimentos sociais que não encontraram
espaço na instituição.
Segundo a pedagoga Nilma Lino Gomes – que se tornou a primeira
mulher negra a ser reitora de uma universidade (Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira/UNILAB), em 2013, e que tem di-
versos estudos, artigos e livros sobre as ações afirmativas na área da Educação
– o processo de implementação das leis decretadas na área da educação não
corresponderam à radicalidade emancipatória das reivindicações que as ori-
ginaram (Gomes 2012). A UNILAB surgiu em 2010, baseada nos princípios de
cooperação solidária, principalmente, com países africanos (Lei nº 12.289).

11 As análises sobre o momento são diversas. Como exemplo, ver Domingues (2010), Alves (2011), Turino
(2013), Calabre, Rubim & Barbalho (2015) e Cid & Aguiar (2020).
100 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

As políticas de ação afirmativa por parte do governo petista estiveram longe


de alcançar unanimidade entre os militantes. Segundo Alicianne Gonçalves
de Oliveira e Alexandre Barbalho (2014), o descontentamento com o ritmo de
execução das políticas já estava evidente na I Conferência Nacional de Promoção
da Igualdade Racial (CONAPIR) em 2005. O ritmo de reconhecimento e titulação
das terras das comunidades quilombolas, parte de uma das reivindicações mais
prementes, pois envolvia a posse da terra, arrastou-se em ritmo muito lento
desde a promulgação da lei (Arruti 2009).
De qualquer forma, as medidas governamentais na área do patrimônio
foram muitas. Em 2007, foi instituída a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Lei nº 6.040/07). O IPHAN
implementou o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais de Matriz Africana 2013-2015 e instituiu em 2015, o
Grupo de Trabalho Interdepartamental para preservação do patrimônio cultural
de terreiros (GTIT), atualmente Grupo de Trabalho Interdepartamental para
preservação do patrimônio cultural de Matriz Africana (GTMAF).
Dentre os registros de bens entendidos como de caráter intangível ou
imaterial relacionados à identidade afro-brasileira, podemos citar o Samba de
Roda do Recôncavo Baiano (2004), o Ofício das Baianas de Acarajé (2005), o
Jongo do Sudeste (2005), o Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, com partido
alto, samba de terreiro e samba-enredo (2007), o Tambor de Crioula (2007),
a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira (2008), o Complexo
Cultural do Bumba-meu-Boi do Maranhão (2010), a Festa do Senhor Bom
Jesus do Bonfim (2014), o Maracatu Nação e o Maracatu baque solto (2014), o
Cavalo Marinho (2014), o Caboclinho (2014) e o Sistema Agrícola Tradicional
das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (2018). Embora esses re-
gistros sejam ações louváveis e necessárias para a consolidação da memória
afro-brasileira, cabe ressaltar a pouca capacidade protetiva do instrumento,
vinculado às ações de promoção. São necessários estudos mais amplos que
avaliem a efetividade das políticas de salvaguarda, no âmbito do patrimônio
imaterial.12
Medidas de preservação de maior alcance continuam subordinadas ao
IPHAN e a processos de tombamento. Nesse âmbito, se destaca o conjunto de
onze terreiros, alguns deles com memoriais constituídos: Terreiro da Casa
Branca (1986), Terreiro do Axé Opô Afonjá (2000), Terreiro Casa das Minas
Jeje (2005), Terreiro de Candomblé Ilê Iyá Omim Axé Iyamassé (Gantois)
(2005), Terreiro de Candomblé do Bate-Folha (2005), Terreiro do Alaketo, Ilê

12 Sobre o assunto, ver Salama e Vianna (2012) e Cid (2016).


M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 101

Maroiá Láji (2008), Terreiro de Candomblé Ilê Axé Oxumaré (2014), Terreiro
Culto aos ancestrais - Omo Ilê Agbôulá (2015), Terreiro Zogbodo Male Bogun
Seja Unde (Roça do Ventura) (2015), Terreiro Tumba Junçara da Nação Angola
(2018), Terreiro Obá Ogunté - Sítio do Pai Adão (2018).
Os terreiros de candomblé são muitos no Brasil e têm sido objeto de
reiterados ataques. A Secretaria de Direitos Humanos identificou 697 casos
de discriminação religiosa, a partir de denúncias, entre 2011 e 2015. Os dados
disponíveis indicam que ampla maioria é contra as religiosidades de matriz
afro-brasileira (Santos 2016). As medidas de proteção, embora tímidas, possuem
um papel fundamental na consolidação da memória africana e afro-brasilei-
ra. Não obstante a importância desses espaços religiosos na configuração do
escopo da memória nacional, ao analisarmos a Lista dos Bens Tombados e
Processos em Andamento (1938-2018)13 encontramos ainda 20 em processo
de instrução e 2 indeferidos. Chama a atenção o grande número de processos
abertos, alguns sem resposta há mais de uma década. Encontramos, em con-
traponto, 490 entradas relacionadas à palavra “igreja”, ou seja, uma quantidade
aproximadamente 15 vezes maior que a de terreiros, considerando também os
tombados (Cid 2019). O que se percebe é que ainda há um grande vazio nas
políticas de tombamento no que tange aos bens da memória afro-brasileira. No
site do IPHAN, há uma lista de 26 bens relacionados aos povos e comunidades
tradicionais de matriz africana, sendo 12 tombados e 14 registrados.14
Cabe lembrar os inventários que foram realizados, no âmbito das supe-
rintendências do IPHAN, no que tange à religiosidade afro-brasileira, muito
embora eles não possuam caráter de tombamento e capacidade protetiva: Rio
de Janeiro (Netto 2009), Distrito Federal e entorno (IPHAN 2012), Florianópolis
(Boaventura 2017), Boa Vista (Oliveira 2020) e Salvador, pela Secretaria Municipal
da Reparação (Teles 2008).
É interessante também analisar a proporção de sítios históricos e bens ima-
teriais de populações de matriz africana que obtiveram o título de patrimônio
mundial pela UNESCO. As indicações são feitas pelos diversos Estados nacionais,
que disputam o reconhecimento porque esses reconhecimentos significam
prestígio e grande afluxo do turismo mundial. A noção de lugar, ou sítio, é uma
categoria importante na definição da lista da Convenção de 1972, e nessa lista
o Brasil possui 15 inscrições.15 Destas, apenas 3 (Centro Histórico de Salvador,

13 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/BENS%20TOMBADOS%20E%
20PROCESSOS%20EM%20ANDAMENTO%202019%20MAIO.pdf. Acesso 18/01/2021.
14 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1938/. Acesso 18/01/2021.
15 Disponível em https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/expertise/world-heritage-brazil. Acesso
18/01/2021.
102 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

na Bahia; Sítio Arqueológico Cais do Valongo e Paraty e Ilha Grande, ambos


no Rio de Janeiro) destacam a experiência das populações de matriz africana
no Brasil. Nessa lista repete-se a narrativa da colonização europeia como pre-
dominante na definição da identidade e da memória coletiva do Brasil. Foram
indicados e obtiveram o título de patrimônio mundial os centros históricos e
cidades da época colonial (Ouro Preto, Olinda, Diamantina, Goiás, São Luís,
São Cristóvão), conjuntos arquitetônicos relacionados à Igreja Católica (Ruínas
de São Miguel das Missões, Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos),
marcos modernistas (Pampulha e Brasília) e símbolos da natureza e ancestra-
lidade do país (paisagem do Rio de Janeiro e Serra da Capivara).
Na lista de bens imateriais ou intangíveis, que seguem as diretrizes da
Convenção de 2003, o Brasil possui 7 inscrições.16 Analisando as descrições
disponíveis no site da UNESCO, encontramos o Samba de Roda do Recôncavo
Baiano e a Roda de Capoeira como práticas relacionadas à população de matriz
africana. Dentre as demais, estão as expressões orais e gráficas dos Wajapis,
o ritual do povo enawene nawe (Yaokwa), a procissão da imagem de Nossa
Senhora de Nazaré (Círio de Nazaré) e também duas expressões da cultura
popular: o frevo de Recife e o Bumba Meu Boi do Maranhão. Como dissemos
anteriormente, o registro de bens imateriais permitiu uma maior democrati-
zação do campo patrimonial, embora sua eficácia não substitua os processos
de tombamento de bens materiais.
Dentre as ações da UNESCO podemos destacar ainda o projeto Rota do
Escravo: Resistência, Liberdade e Herança, de 1993, e o reconhecimento da es-
cravidão e do comércio atlântico de escravos como crimes contra a humanidade
pela Conferência Mundial das Nações Unidas Contra Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban em 2001. No
Brasil, um inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escra-
vos e da história dos africanos escravizados no Brasil teve início em 2011, na
Universidade Federal Fluminense, desenvolvido pelos pesquisadores Hebe
Mattos, Martha Abreu e Milton Guran (2014). O desenvolvimento do projeto
Rota do Escravo teve como grande saldo positivo a construção da proposta
que levou à obtenção do título de patrimônio mundial pelo Cais do Valongo.

5.3. Os museus afro-brasileiros

Os museus cumpriram papéis sociais destacados nas construções dos


imaginários nacionais. Nos anos 1970, contudo, houve uma crítica generalizada

16 Idem.
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 103

à museologia tradicional – dedicada à conservação e sacralização dos objetos


que engrandeciam as suas respectivas nações – que teve repercussão no Brasil
e que foi responsável pelo fortalecimento de uma museologia voltada para
questões sociais. A partir do encontro em Santiago do Chile em 1972, a cha-
mada Nova Museologia deixou para trás a sacralização dos objetos e se voltou
para questões sociais.
No Brasil, com o início dos governos petistas em 2003, essa nova museo-
logia se fortaleceu, paralelamente às políticas de defesa da diversidade. Novas
políticas culturais atenderam tanto aos movimentos identitários como às de-
mandas de populações de baixa renda. Em 2004, foram criados, por exemplo,
os “Pontos de Cultura”, que fortaleciam o protagonismo de indivíduos que se
encontravam à margem da produção e consumo culturais. Em 2009, o IBRAM
obteve autonomia em relação ao IPHAN e estabeleceu uma agenda progressista,
com medidas voltadas para a democratização de distribuição de fundos e apoio
às iniciativas de preservação da memória por comunidades precarizadas.17
Atualmente, o governo federal é responsável por um conjunto expressivo
de 30 museus.18 A musealização de bens culturais faz parte de um processo mais
amplo de salvaguarda de bens patrimoniais, que atua por meio da preservação
de símbolos e de narrativas que remetem ao passado comum de determinado
grupo. A maior parte dos museus administrados pelo IBRAM traz em seu acervo
e estrutura arquitetônica e as marcas das diretrizes do então SPHAN. Os museus
de história trazem narrativas oficiais que têm início com o descobrimento do
país pelos portugueses e obedecem à sequência linear de períodos demarca-
dos política e economicamente como Colônia, Império e República. Os fatos
históricos estão ligados a esta periodização.
Dentre os 3.500 museus presentes no Cadastro Nacional de Museus,
encontramos aproximadamente o pequeno número de 30 dedicados aos afro-
descendentes.19 A metade destes museus é antiga e tem narrativas híbridas. A
dedicação ao “negro” é devida à presença de instrumentos de suplício ou de
itens religiosos existentes em instituições religiosas e antigos casarões coloniais.
O Museu do Negro, no Rio de Janeiro, por exemplo, foi aberto em 1969 e é uma
pequena instituição de natureza privada mantida pela Irmandade da Nossa
Senhora do Rosário e do São Benedito dos Homens Pretos. Enquanto centro
de religiosidade popular ligado à Igreja Católica, a instituição traz homenagens

17 Os pontos de memória deram lugar à Rede de Museologia Social (REMUS). Ver sobre o tema http://
rededemuseologiasocialdorj.blogspot.com.br. Acesso 18/01/2021.
18 Ver os trinta museus sob responsabilidade direta do IBRAM no site https://www.museus.gov.br/
os-museus/museus-ibram/. Acesso 18/01/2021.
19 Ver Cadastro Nacional de Museus em https://www.museus.gov.br/museus-do-brasil/. Acesso 18/01/2021.
104 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

à escrava Anastácia. Mas encontramos também no pequeno museu estandartes


das associações abolicionistas; uma réplica de gesso do mausoléu da Princesa
Isabel e de seu marido, o Conde D’Eu; objetos de ferro utilizados para tortura;
pinturas que retratam Anastácia, Zumbi e outros indivíduos escravizados;
instrumentos musicais como atabaques e tambores, e até fotografias de artistas
e políticos negros contemporâneos. Essa amálgama entre discurso oficial e
narrativas populares mantém-se até os dias atuais.
O Museu da Abolição, em Recife, é uma exceção nesse grupo, pois
procurou redimensionar sua coleção e construir um elo com movimentos
sociais. Em 1954, o museu foi criado com o objetivo de homenagear duas
figuras públicas, os abolicionistas João Alfredo e Joaquim Nabuco, ambos
figuras ilustres da sociedade pernambucana. A partir de 2005, houve uma
ruptura com o discurso anterior e a sociedade foi convocada para definir novos
objetivos. Em 2008, o museu abriu suas portas com a exposição “Campanha:
o que a Abolição não aboliu” e, em 2016, com a exposição “Mulher Negra
Protagonista”, consolidaram-se novas interpretações sobre o passado aboli-
cionista. A instituição, contudo, sofre por falta de verbas e tem se mantido
fechada por longos períodos. O Museu Afro-Brasileiro (Salvador/1974) tem
um trajeto singular, pois partiu da iniciativa de Pierre Verger, fotógrafo e
intelectual francês radicado no Brasil, que mantinha vínculos com intelec-
tuais ligados ao Museu do Homem em Paris e obteve apoio da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e do governo do estado. O museu acompanhou as
pesquisas de Verger, e suas exposições apresentaram o intenso fluxo cultural
que existia entre Brasil e África. A valorização da cultura afro-brasileira seguia
o caminho já traçado pela instituição francesa em sua tentativa de apresentar
todas as culturas como parte da humanidade.
Os museus que foram inaugurados nas últimas duas décadas, ainda que
poucos, em torno de quinze, têm apresentado exposições em oposição às
narrativas oficiais com o objetivo de valorizar a ancestralidade africana e o
protagonismo dos afrodescendentes. O fato de serem instituições novas per-
mite uma maior liberdade de expressão. Essas iniciativas mais recentes trazem
uma agenda positiva para os museus, mas não observamos em nenhuma delas
uma crítica à colonização europeia de nações e continentes, nem tampouco
uma ação mais contundente contra o racismo. Ainda assim, são instituições
que procuram apresentar ao público coleções de arte africana provenientes de
diversas regiões; indumentárias, instrumentos musicais estatuetas, cachimbos
e outros itens de cultos religiosos, respeitando o que pode ser aberto ao públi-
co; itens diversos que atestam a presença dos negros em todo o cotidiano das
cidades; imagens de grandes personagens públicos que tiveram sua herança
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 105

africana apagada; e instrumentos de suplício tratados com cuidado necessário


para não se tornarem mais um fator de dor e sofrimento.
Desse conjunto de museus mais recentes, alguns se tornaram mais conhe-
cidos, como o Museu Afro Brasil, inaugurado no dia 20 de novembro de 2003 -
Dia Nacional da Consciência Negra - no Parque do Ibirapuera, com o apoio dos
governos estadual e municipal de São Paulo. Seu diretor é o prestigiado artista
plástico Emanoel Araújo, que também já foi diretor da Pinacoteca do Estado de
São Paulo (1992-2002). Atualmente, o museu é administrado pela Associação
Museu Afro Brasil, qualificada como OSCIP (Organização da Sociedade Civil
de Interesse Público) em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de
São Paulo. Nesse museu, que tem a liberdade de compor seu acervo, a África,
através de objetos diversos, surge como influência importante na formação da
nação brasileira. Personagens de movimentos e lutas sociais são valorizados.
São expostos objetos, pinturas e esculturas de origem africana; imagens do
candomblé e de outras manifestações religiosas; e ferramentas que mostram
a técnica e capacidade intelectual dos africanos. O público também se depara
com representações de heróis, artistas escritores, intelectuais e políticos negros.
O período da escravidão é trabalhado com sensibilidade, como parte do que
denominamos história sensível; o navio negreiro é motivo de luto e reflexão, e
não mais um fato histórico na sequência de outros; a violência da escravidão
é apresentada ao lado de lutas de resistência.
Uma novidade no campo foi a criação do Museu Digital da Memória
Afro-brasileira e Africana (Salvador/BA/2009), por iniciativa do antropólogo
Livio Sansone, da Universidade Federal da Bahia, que logo agregou iniciativas
de outros estados em parceria. Financiado por universidades públicas, seus
diversos sítios eletrônicos procuram ampliar o acesso a documentos, arquivos,
vídeos e filmes relacionados à população afrodescendente. 20
Ainda há que se destacar que, no Brasil, novas articulações têm ocorrido
entre as políticas de memória e movimentos sociais das periferias urbanas. O
Museu Vivo de São Bento foi criado em 2008 e se caracteriza como museu
de percurso, contando com dez edificações e referências patrimoniais. Está
localizado no município de Duque de Caxias, fora do eixo cultural que abriga
a maior parte dos museus do estado. O Museu tem uma vocação educativa,
volta-se para a valorização do território e, nos últimos anos, tem se dedicado
à recuperação da longa presença de negros e afrodescendentes na região da

20 As diversas estações do museu estão disponíveis em: http://www.museuafrodigital.ufba.br/; http://


www.museuafro.ufma.br/; http://www.museuafrodigital.com.br/; e http://www.museuafrorio.uerj.br.
Acesso 18/01/2021.
106 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Baixada Fluminense. Praticamente todos os anos, o museu desenvolve expo-


sições sobre a cultura negra e afrodescendente, valorizando tradições culturais
e práticas religiosas (Revert 2017).

5.4. A disputa pelo espaço urbano

Contemporaneamente, políticas de memória mais inclusivas enfrentam


como obstáculo o modelo de desenvolvimento de cidades que se apoia em
equipamentos culturais construídos, prioritariamente, dentro de perspectivas
de entretenimento e lazer. Esses planejamentos urbanos, embora deem desta-
que à cultura e à memória como ativos, desconsideram em sua maior parte as
necessidades de setores periféricos destituídos de recursos básicos, centrando
as decisões na requalificação de espaços para reprodução do capital.21
Na cidade do Rio de Janeiro, as ações que envolveram a realização do
projeto Porto Maravilha,22 inseridas na preparação da cidade para os megae-
ventos (Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), demonstraram
o entrelaçamento entre políticas urbanas e criação de aparatos culturais de
grande envergadura. Foram desenvolvidas iniciativas a partir de parcerias
público-privadas (PPP), com intervenções no sistema viário, empreendimentos
imobiliários e intervenções culturais. Estas últimas envolveram lidar com os
achados arqueológicos no Cais do Valongo. Como já vimos, este sítio histórico,
reconhecido como patrimônio mundial em 2017, traz para o presente a barbá-
rie do sequestro e tráfico da população africana durante o sistema escravista.
Desde o fortalecimento do movimento negro e a abertura democrática,
na década de 1980, questionamentos sucessivos foram feitos às narrativas his-
tóricas tradicionais. A chamada virada cultural, também presente na história,
em que o foco econômico foi substituído pela ênfase aos aspectos culturais,
teve impacto nos estudos sobre a escravidão. Os indivíduos escravizados ga-
nharam protagonismo, interesses próprios e participação ativa no processo
abolicionista. Pesquisadores demonstraram que havia um número significativo
de pessoas negras libertas e com destaque na esfera pública no final do século
XIX (Chalhoub 1990). Estudos demonstram a complexidade envolvida na
organização de quilombos e resistências à escravidão (Gomes 2015). A vitimi-
zação tem dado lugar às memórias de resistência. A escravidão, a exemplo do
Holocausto, é considerada hoje como parte da história sensível da humanidade.

21 Sobre o modelo neoliberal de planejamento estratégico das cidades, ver Arantes, Maricato & Vainer
(2000).
22 O projeto Porto Maravilha foi lançado em 2009, em continuidade ao projeto Porto do Rio desenvolvido
entre 2001 e 2008. Sobre o tema, ver Pio (2017), Gonçalves & Costa (2020).
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 107

Neste sentido, a proposta de tornar o Valongo um patrimônio não só local,


mas de toda a humanidade, abriu grandes expectativas. Rodas de capoeira,
aulas públicas e visitas guiadas se tornaram frequentes no local (Teixeira 2015).
Esse movimento, junto à organização de movimentos em defesa da população
local frente ao Projeto Porto Maravilha, foi fortalecido na construção de um
imaginário de lugar da memória afrodescendente na região, que se insere no
que ficou conhecido entre pesquisadores e especialistas como “Pequena África”,
sendo tratada como o local de surgimento do samba. Desde os anos 1980 a
Pedra do Sal já era tombada pelo governo estadual, e na virada do século se
somou à valorização do local com rodas de samba, jongo, blocos de carnaval,
à recuperação do Jardim Suspenso do Valongo, à criação do Instituto do Pretos
Novos e à criação do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana.
O Cais do Valongo foi celebrado como nodal para uma nova narrativa da his-
tória da cidade e como espaço de reflexão e apropriação para os movimentos
em defesa da cultura afro-brasileira.
Como sítio de memória sensível, o Cais do Valongo materializa a memória
da escravidão moderna, requerendo um cuidado, próximo a bens como a cidade
de Hiroshima, no Japão e Auschwitz, na Polônia. Em manual para gestores, a
UNESCO afirma que esses sítios “são dotados de uma forte carga emocional e
simbólica e transmitem memórias e imagens geradas por um passado doloro-
so cujas consequências perduram até hoje”23. Esses lugares de memória vêm
recebendo uma atenção especial nas últimas décadas. A socióloga americana
Amy Sodaro identifica nessas ações a valorização do que o historiador Pierre
Nora identifica como um “dever de memória” (Sodaro 2018, Nora 1984). Se o
historiador associa o dever de memória à impossibilidade de transmissão de
memórias sem os lugares de memória, a socióloga compreende a necessidade
atual de estancar processos de violência e impedir que se repitam no futuro.
Constituem assim projetos políticos de uso da memória de conflitos, injustiças
e dores que antes eram apagados – agora como instrumentos de ação, com forte
adesão à pauta dos Direitos Humanos.
No entanto, na efetivação do Projeto Porto Maravilha, o Cais do Valongo
assumiu o lugar de apêndice em relação aos recursos alocados. A grande estrela
do complexo foi o Museu do Amanhã, inaugurado em 2015 pela Prefeitura do Rio
de Janeiro, também como parte da valorização da região portuária e inserido no
projeto Porto Maravilha. O museu, que atrai diariamente longas filas de visitantes,
está situado em um espaço de lazer que envolve, além do Circuito Histórico e

23 Legado da escravidão: um guia destinado aos gestores de sítios e itinerários de memória. Disponível em
http://www.lacult.unesco.org/docc/Legado_esclavitud_brochure_pt.pdf. Acesso 23/01/2021.
108 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Arqueológico da Herança Africana, o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR),


passarelas paralelas às docas e o trem VLT (veículo leve sobre trilho). Além disso,
as exposições são dinâmicas, formadas por grandes painéis visuais que atraem a
atenção. O museu não tem um acervo no sentido tradicional do termo e conta
com um imenso aparato tecnológico e exposições interativas.
O Museu é administrado pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG)
e patrocinado, majoritariamente, pelo Banco Santander, recebendo também
apoio de uma ampla rede de patrocinadores (Shell Brasil, IBM, Grupo Globo,
Lojas Americanas e Renner). O instituto é uma OSCIP, ou seja, formaliza a par-
ceria entre empresas privadas e órgãos públicos. O Museu foi originalmente
concebido pela Fundação Roberto Marinho, que também é copatrocinadora da
instituição. O arquiteto responsável pelo prédio foi Santiago Calatrava, conhecido
internacionalmente por projetos extravagantes e caros, capazes de modificar a
dinâmica urbana a partir da construção de prédios icônicos. O investimento
inicial foi muito superior a toda a verba destinada aos demais museus da cidade:
230 milhões de reais. A proposta da instituição é “explorar as oportunidades e
os desafios que a humanidade terá de enfrentar nas próximas décadas a partir
das perspectivas de sustentabilidade e da convivência”.24 Acompanhando as
exposições, percebemos a tentativa do museu de proporcionar reflexão sobre
a intervenção humana sobre questões como mudanças climáticas e outras alte-
rações do planeta. Em que pese a proposta anunciada, sua narrativa expositiva
está mais voltada para o entretenimento e consumo instantâneo de imagens do
que à reflexão mais aprofundada sobre mudanças ambientais.25
Em outra chave, experiências de lugares de memória de antigas fazendas
também vêm sendo postas em ação nas últimas décadas. A partir da década
de 1980, no Rio de Janeiro, um circuito de fazendas voltou-se para o turismo
representando a economia oitocentista do Vale do Café. Um conjunto de doze
fazendas foi tombado em 2008 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural,
e um inventário bem mais ampliado foi feito em 2010.26 O passado representado
volta-se bem mais para a opulência dos casarões e luxo do mobiliário que para
a denúncia da opressão aos escravizados. Em 2016, a Fazenda Santa Eufrásia,
em Vassouras, reencenou a escravidão contratando mulheres negras para que
se vestissem de escravas e servissem os visitantes. Foi denunciada, houve um
Inquérito Público e, no ano seguinte, um Termo de Ajustamento de Conduta
foi assinado.

24 Disponível em https://museudoamanha.org.br/pt-br/sobre-o-museu. Acesso 18 Jan 2021.


25 Sobre o projeto museológico do Museu do Amanhã, ver Bertoche 2020.
26 Inventário das Fazendas de Café do Vale do Paraíba Fluminense, disponível em http://www.instituto-
cidadeviva.org.br/inventarios/. Acesso 18/01/2021
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 109

Essas novas iniciativas não se voltam para a construção de uma narrativa


nacional, e nem mesmo para um determinado grupo social, seja ele territoria-
lizado ou não, mas para a produção de entretenimento por meio de questões
que chamam a atenção de um público genérico. Como exemplo, no Museu
da Língua Portuguesa – inaugurado em 2006 em São Paulo, administrado de
forma similar ao Museu do Amanhã – curiosidades sobre a formação da língua
levam cada visitante a procurar identificar-se com palavras e termos apresen-
tados. A população afrodescendente está presente a partir de sua contribuição
à formação da língua portuguesa no Brasil, sem haver, contudo, qualquer
referência a como ocorreu esse processo. Também no Museu do Amanhã,
todos os indivíduos aparecem como iguais e universais, e com as mesmas
possibilidades de intervir nas mudanças planetárias. Racismo, desigualdades
sociais e privação de serviços básicos, como fornecimento de água, não são
aspectos a ser considerados. Tanto no Museu da Língua Portuguesa como no
Museu do Amanhã há uma política de esquecimento de histórias de opressão
em instituições que se constituem em nome da memória.
Outro exemplo de apropriação simbólica e desarticulação de usos em
nome da construção de um espaço mais atrativo para captação de recursos,
como justificativa, é o caso do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Este,
um bem tombado, passou por evidente descaracterização e modificação de
seu caráter popular nas sucessivas reformas pelas quais passou nos últimos
anos, tendo como justificativa a preparação para os megaeventos, avalizada
na ideologia de retração do Estado na administração do interesse público.27
Dentro da perspectiva de apagamento das contradições do caráter político
de construção da cidade, formam-se exposições interativas e dinâmicas baseadas
em tecnologia de ponta, design moderno e uma série de atrativos para jovens
e adultos, sem a identificação tensões e conflitos sociais. A luta antirracista e a
denúncia perdem espaço para a fetichização do passado ou o esquecimento. O
abandono do Cais do Valongo por parte da atual administração municipal, e
sua incapacidade para realizar o próprio projeto, o Museu da Escravidão e da
Liberdade (MEL) evidenciam a invisibilidade destinada à memória afro-brasileira
no projeto atual de cidade.28 A despeito de sua potencialidade como lugar de
memória, a falta de interesse na região demonstra a permanência de limites nas
políticas de memória.

27 Ver Cid & Melo (2019).


28 Sobre o projeto do Museu da Escravidão e da Liberdade, ver Cáceres & Vassallo 2019.
110 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Conclusão
Frente às tensões postas às políticas identitárias, muitos se perguntam quais
serão os desdobramentos das relações ocorridas entre os movimentos sociais e o
Estado (Sansone 2020). Procuramos mostrar que, apesar dos conflitos existentes
nas políticas culturais no período pós-ditadura militar, houve um processo de
institucionalização importante da memória de negros e afrodescendentes nas
últimas décadas. Nos últimos anos, a política tem sido de desconstrução insti-
tucional, o que tem gerado algumas reações por parte da sociedade civil.29 Há
também que considerar a contínua interface entre as instituições e as práticas
culturais que marcam a cena pública.30 Embora não seja nosso objeto de estudo,
é notória a presença da marca identitária nas atividades práticas e políticas da
nova geração, que traz como novidade, além do uso frequente das novas mídias,
a interseção entre identidades sociais e sistemas de dominação.31 A recente
Coalizão Negra por Direitos, criada em 2019, reúne mais de 150 organizações do
chamado movimento negro, com uma agenda que se caracteriza pela associação
das demandas antirracistas às questões de gênero, sexo e classe, entre outras.32
Em suma, um novo mosaico de tensões e pautas se configura no país.
Este capítulo analisou as políticas implementadas nas últimas décadas no
Brasil para a preservação da memória de negros e afrodescendentes. Procuramos
mostrar como, principalmente, durante o período de governo do Partido dos
Trabalhadores (2003-2016), novos objetos e narrativas passaram a ser inseridos
em processos de registro e tombamento, como também em exposições, que
procuraram ampliar a comunicação com parcelas da população anteriormen-
te ausentes de seus circuitos. A transmissão oral, por exemplo, passou a ser
valorizada e a noção de patrimônio se modificou. As versões estereotipadas
que limitavam a participação da população afrodescendente à música e ao fu-
tebol, ou ainda, aos indivíduos escravizados no tronco, perderam espaço. Nas
palavras do militante, educador e pesquisador Amauri Mendes Pereira, que
foi o fundador da Sociedade de Intercâmbio Brasil-Africa (Simba) em 1977,

29 Um exemplo é o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural, uma organização de representantes


de entidades da sociedade civil que visa estratégias de enfrentamento ao atual desmonte das políticas de
patrimônio. Disponível em https://www.facebook.com/forumpatrimoniobr/. Acesso em 18 Jan 2021.
30 O historiador e professor Luiz Antônio Simas tem apontado a cultura criativa das “ruas” em uma série
de obras que têm se popularizado, como Simas e Rufino 2018, Simas 2019.
31 Citamos, por exemplo, os trabalhos de Djamila Ribeiro, Silvio de Almeida e Ale Santos; o espetáculo
“AmarElo é tudo pra ontem”, do compositor, cantor e rapper Emicida; a repercussão do assassinato de
Marielle Franco, vereadora negra, lésbica e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL); e a ampliação da
bancada negra e LGBTs nas últimas eleições. Erika Hilton, mulher trans negra, foi a mulher mais votada
na eleição de 2020 e ocupou o cargo de vereadora na Câmara de Vereadores da capital de São Paulo.
32 Disponível em https://coalizaonegrapordireitos.org.br/. Acesso 18/01/2021.
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 111

“tudo era uma forma de ver harmonia. E nós estávamos ali exatamente para
botar água nessa sopa.”33
A tecnologia de informação e comunicação e as redes sociais estão presentes
em todos os grandes museus e representam uma inovação e um atrativo para
os grandes empreendimentos comerciais. Ainda assim, a promessa de inclusão
social não aconteceu de forma significativa. O Museu Imperial em Petrópolis
(RJ) e o Museu da Inconfidência em Ouro Preto (MG), ambos símbolos nacio-
nais e situados em cidades turísticas, são os museus mais visitados desde sua
criação.34 Já nos museus criados nas últimas duas décadas, fortemente apoia-
dos por empresas privadas e com grande uso das novas tecnologias, o público
visitante é bem maior, mas trata-se de museus que não lidam com a questão
identitária eo público, embora um pouco maior, continua limitado aos setores
da sociedade de maior poder aquisitivo (Bertoche 2020).
As novas políticas de patrimônio associadas ao reconhecimento da diás-
pora africana nos mostraram arte, cultura e formas de ver e sentir o mundo,
descentralizando narrativas eurocêntricas. As religiões de matrizes africanas,
ao serem apresentadas com respeito e admiração, deixam de ser simplificadas
e negativadas. Como apresentamos, o silêncio sobre as maiorias trabalhadoras
escravizadas e a conscientização de que a barbárie da escravidão não está con-
finada ao passado e tem consequências para os descendentes de escravizados
passaram a fazer parte de diversas iniciativas. Essas mudanças também foram
possíveis com a participação de lideranças afrodescendentes no aparato ad-
ministrativo, nos processos de curadoria e de seleção do acervo. Ampliou-se
a produção de conhecimento, principalmente a partir da abertura de novos
caminhos patrimoniais, e abriu-se o diálogo com o passado ainda envolto em
sofrimento para aqueles que com ele se identificavam.
Há um grupo seleto de museus em que tradições, práticas culturais e
história dos povos africanos e de seus descendentes não são silenciadas e
estereotipadas. Nestes, a escrita do passado passa a inserir a população negra
na sociedade brasileira, de maneira a combater formas de submissão que têm
sido impostas sob diferentes modos e estratégias de poder. As exposições
têm uma agenda afirmativa clara e ressaltam não só a herança africana, mas
a contribuição dos africanos e de seus descendentes à formação da sociedade
brasileira. As exposições reconstroem as narrativas da nação no que diz respeito
à sua história, memória e arte.

33 Depoimento de Amauri Mendes Pereira, in Pereira & Alberti, op. cit., p. 258.
34 Para o levantamento dos visitantes de museus realizado pelo IBRAM em 2017, ver https://www.museus.
gov.br/museus-ibram-receberam-mais-12-milhao-de-visitantes-em-2017/. Acesso 18/ 01/2021.
112 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Apesar de alguns avanços nas representações, que vinham sendo reivindica-


das pelo Movimento Negro desde os anos 1970, os tombamentos e registros realiza-
dos pelo IPHAN, bem como as mudanças realizadas no campo museológico, foram
insatisfatórios para diversas lideranças. Nosso levantamento de ações realizadas
mostrou como as narrativas históricas dos museus nacionais ainda apresentam
ao público em tempos atuais um país definido por uma história linear rumo à
civilização, concebida nos moldes da Europa Ocidental. Essas instituições são
responsáveis pela conservação de um acervo relacionado às narrativas anteriores
e continuam em prédios e territórios consagrados pela elite dominante, muitas
vezes opressores para o povo da rua. O patrimônio cultural, majoritariamente,
também apresenta com destaque bens ligados à colonização, aos heróis nacionais,
às guerras, à Igreja Católica, ao cotidiano dos mais ricos e ao passado autoritário
do país. Narrativas coexistem, com predominância ainda da memória coletiva
que privilegia os marcos de referência da elite dominante do país.
Vale lembrar, ainda, que as rotas possíveis na luta contra o esquecimento
e na realização do dever de memória são sempre instáveis. As instituições e
políticas patrimoniais sob o controle do governo voltaram a celebrar a ideia
da democracia racial e negam a presença de racismo no país. A Fundação
Cultural Palmares – fundada em 1988 e desde então voltada para a promoção
da igualdade, valorização, preservação e difusão da cultura negra – tem hoje
em sua direção representantes que criticam o movimento negro e negam a
contribuição da população afrodescendente à cultura brasileira. Nos moldes
do discurso colonialista que valorizava apenas a herança europeia, falas e ati-
tudes do atual presidente da Fundação Palmares menosprezam e criminalizam
religiões de matriz africana, quilombos e lutas de resistência. Este ordenou,
recentemente, a retirada do site da Fundação de biografias, imagens e informa-
ções de personalidades e lideranças de destaque na memória afro-brasileira. 35
Como vimos, as iniciativas no campo do patrimônio histórico e de ações
e instituições de memória que se colocam contra o racismo representam uma
parcela muito pequena do imaginário coletivo, quando comparadas ao conjunto
de instituições, monumentos, práticas e exposições existentes. Essas iniciativas
estão cumprindo papéis importantes na sociedade, uma vez que, através de
um engajamento com o passado – que envolve a razão, mas também afeto e
emoção – elas são formadoras de indivíduos e cidadãos.

35 Disponível em http://www.palmares.gov.br/?page_id=95, https://www1.folha.uol.com.br/ilustra-


da/2020/06/fundacao-palmares-censura-biografias-de-liderancas-negras-historicas-em-seu-site.shtml;
e https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/02/sergio-camargo-presidente-da-fundacao-palmares-
-chama-movimento-negro-de-escoria-maldita-em-reuniao.ghtml. Acesso 18/01/2021.
VI
Abdias do Nascimento e o
Museu de Arte Negra
Maurício Barros de Castro & Myrian Sepúlveda dos Santos

(...) precisamos de todas as nossas instituições


da memória: da escrita histórica tanto quanto do
testemunho, do testemunho tanto quanto da arte.
Hartman 2000:215

O Museu de Arte Negra (MAN) foi um projeto do Teatro Experimental do


Negro (TEN) que se desenvolveu a partir de uma coleção que permaneceu sob
a guarda pessoal de um dos seus fundadores, Abdias do Nascimento, artista
e ativista político negro. A partir de um debate acerca do tema “Estética da
Negritude” no âmbito do 1º Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo
TEN em 1950, foi consolidada a ideia de criar o MAN com a perspectiva de tra-
zer para o grande público artistas negros que eram ignorados, inclusive por
estudiosos da história da arte. Uma das ações promovidas pelo TEN com este
objetivo foi o concurso Cristo da Cor, realizado em 1955.1
Anos mais tarde, em 1968, a discussão sobre a criação do MAN gerou um
amplo debate na imprensa envolvendo vários intelectuais e artistas visuais,
que apoiaram o projeto. Abdias do Nascimento publicou dois artigos sobre
a criação do MAN na revista Galeria de Arte Moderna (GAM) em 1968, um
dos quais ele reviu mais tarde, no seu clássico livro Quilombismo, lançado
em 1980 (Nascimento 1968a, 1968b, 1980). Nos artigos ele mapeia a coleção
do MAN e os artistas negros que nortearam a sua criação. Mas foi apenas
em 6 de maio de 1968 que o MAN conseguiu realizar uma exposição da sua
coleção, no Museu da Imagem e do Som, situado na Praça XV, no Rio de
Janeiro, no âmbito das comemorações dos 80 anos da abolição da escravatura.
Nesse mesmo ano, Abdias recebeu uma bolsa de intercâmbio nos Estados
Unidos e foi promulgado o AI-5. Diante da impossibilidade de retornar ao
país, Abdias permaneceu no exílio, e o projeto do MAN, assim como o TEN,
foi interrompido.

1 Ver a primeira versão deste artigo em Castro e Santos (2019).

113
114 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Neste artigo, buscamos recuperar a trajetória da coleção formada por


Abdias do Nascimento e contribuir para as discussões existentes sobre artes
visuais e relações raciais no Brasil. Vale apontar também para uma tomada
de posição do ativista e artista diante de um debate que permanece entre a
história da arte e a antropologia, na medida em que, para ele, a arte negra foi
constituidora da arte moderna ocidental, e não uma mera inspiração para as
vanguardas europeias do início do século XX. Assim, afirma que suas criações
são objetos de arte, negando a perspectiva antropológica que os rotula como
objetos etnográficos.
Com o objetivo de apresentar o contexto que envolveu a elaboração do
MAN como projeto e seus desdobramentos na atualidade, apresentamos uma
breve trajetória do seu criador, sem, obviamente, a pretensão de dar conta da
vida e de uma vasta obra como a de Abdias do Nascimento.

6.1. O criador do MAN: Abdias do Nascimento

A trajetória do Museu de Arte Negra (MAN), assim como aquela do Teatro


Experimental do Negro (TEN), confunde-se com a de Abdias do Nascimento
(1914-2011), considerado um dos maiores expoentes e difusores da arte e da
cultura negra no Brasil. Professor emérito escritor, ator, artista plástico, ele se
destacou também como político e ativista dos direitos civis. Nascido em 1914,
no seio de uma família negra da cidade de Franca, no interior do estado de
São Paulo, fez parte em sua juventude da Associação Integralista Brasileira
(AIB), onde passou a participar da política do país, bem como da Frente Negra
Brasileira, organização formada em 1931, que se transformou em partido po-
lítico em 1936, voltado para a obtenção de direitos para os negros e, em 1937,
foi colocado na ilegalidade.
O final do Estado Novo foi um período de grande mobilização popular
em torno de propostas nacionalistas de desenvolvimento urbano-industrial;
ativistas negros organizavam-se uma vez mais, e grandes conferências nacionais
reuniam lideranças de todo o país. Para alguns autores, esse período abrigou
a segunda fase do movimento negro (Pereira 2010: 89). Em 1944, Abdias do
Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), contando com
o apoio de artistas, intelectuais e ativistas como Léa Garcia, Ruth de Souza,
Sebastião Rodrigues Alves, Aguinaldo Camargo e Francisco Solano Trindade.
Muitos deles também participaram da criação do Comitê Democrático Afro-
brasileiro, braço político do TEN. A companhia de produção teatral teve por
objetivos a formação de uma nova subjetividade por meio da valorização de
artistas e autores negros, da reeducação do público, da formação de uma elite
Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 115

intelectual negra e de práticas diversas que envolviam a dramaturgia, mas que


a ela não estavam restritas. O jornal O Quilombo era o porta-voz do grupo e
publicou vários artigos defendendo a construção dessa nova subjetividade negra,
capaz de valorizar esteticamente o negro e livrá-lo de complexos e frustrações.
O TEN antecipou uma série de debates e reivindicações que se consolida-
vam entre lideranças voltadas para o combate à produção de estereótipos e de
sentimentos autodepreciativos incorporados pelos negros. O teatro apresentava
uma proposta de terapia coletiva, através da qual o negro poderia obter recursos
para enfrentar ressentimentos e negatividades.
A relação de Abdias Nascimento com as ideias da Négritude e dos pan-afri-
canistas nos permite uma melhor compreensão da formação e desdobramento
do Museu de Arte Negra entre as décadas de 1950 e 1980. O conceito de raça
e as defesas do pan-africanismo, já presente desde o início do século XX nos
escritos de W. E. B. Du Bois, por exemplo, foram rejeitadas inicialmente no
Brasil. Segundo o sociólogo Antonio Sérgio Guimarães, a ideia de raça foi utili-
zada pela imprensa negra paulista a partir de 1925, quando os negros começam
a abandonar expressões como “gente de cor” em prol do termo “raça”. Ainda
para o autor, a mudança se deveu à influência do pensamento sobre raça que
era produzido na Europa nos anos 1920 e 1930 (Guimarães 2005).
O intelectual norte-americano W. E. B. Du Bois (1868-1963) foi o autor
da obra clássica The Souls of Black Folk, escrita em 1903 e voz ativa na criação
e fortalecimento dos movimentos de direitos civis, bem como na formação do
pan-africanismo. Foi um dos fundadores em 1909, da National Association for
the Advancement of Colored People (NAACP), associação da qual se afastou
em 1948 por conflitos relacionados com suas posições marxistas. Em 1912,
o jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) fundou a UNIA (Universal Negro
Improvement Association), com as ideias de nacionalismo negro e da união
da diáspora negra, propostas que se fortaleceram nos Estados Unidos a partir
de sua chegada em 1916 (Ijere 1974). Du Bois foi, contudo, fortemente criticado
por Garvey e seus seguidores por seu intelectualismo, culturalismo e posições
socialistas. Os contrastes e afinidades entre as posições de Du Bois e Garvey
são importantes, pois estarão presentes em diversas disputas observadas no
interior dos defensores da diáspora negra, inclusive no Brasil.
É importante destacar também dois movimentos culturais que surgiram
na década de 1920, o Harlem Renaissance, de Nova Iorque, e o movimento
literário Négritude, iniciado na França, com o qual Abdias manteve maior
diálogo. Como destacou Guimarães (2005), foi importante para ele o contato
com poetas e escritores do movimento Négritude. Este teve início com Léon
Damas, da Guiana Francesa, Aimé Césaire, da Martinica e Léopold Sédar
116 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Senghor, que foi eleito o primeiro presidente da República do Senegal em


1960 e se manteve no cargo até 1980. A arte engajada estava no centro da ação
política, pois tratava-se de construir uma expressão genuinamente africana,
fosse na poesia, no teatro ou na música.
Logo após a queda do regime nazista, em outubro de 1945, 87 delegados,
representando 50 organizações, deram início ao V Congresso Pan-Africanista
em Manchester, Inglaterra, com o objetivo de garantir a independência para
as colônias africanas. Além de Du Bois (Garvey falecera em 1940), estiveram
presentes importantes lideranças africanas, como Jomo Kenyatta, primeiro
líder do Quênia, e Kwame Nkrumah, que conduziu a luta anticolonialista em
Gana. Data de 1947 a criação, por Alioune Diop, também presente no congresso
de 1945, do jornal Présence Africaine, responsável por publicar os trabalhos de
escritores africanos. Consolidava-se a denúncia da presumida superioridade da
cultura e civilização europeia sobre as demais, com o apoio de colaboradores
de prestígio no mundo ocidental como André Gide, Jean-Paul Sarte e Albert
Camus entre outros.
No Brasil, nos anos 1945 e 1946 foram organizados os encontros da
Convenção Nacional dos Negros em São Paulo e no Rio de Janeiro. No Manifesto
à Nação Brasileira, divulgado pela Convenção em 1945, os participantes rei-
vindicaram, entre outros itens, a criminalização do preconceito de cor (Silva
2005). Três anos mais tarde, em 1949, já contando com o patrocínio do TEN,
foi organizada a Conferência Nacional do Negro no Rio de Janeiro. A partir
dela formou-se uma comissão, composta por Abdias de Nascimento, Guerreiro
Ramos e Édison Carneiro, com o objetivo de organizar o Iº Congresso do Negro
Brasileiro, que foi realizado em 1950.
Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) e Édison de Souza Carneiro (1912-
1972) foram dois intelectuais que deixaram suas marcas tanto no mundo aca-
dêmico como na defesa de direitos civis. Ambos tiveram parte de sua trajetória
entrelaçada com a de Abdias Nascimento. Guerreiro Ramos, um cientista social
negro, baiano, atuou em várias esferas políticas. Na juventude foi militante da
Ação Integralista Brasileira e do Centro Católico de Cultura. No final dos anos
1930, durante o Estado Novo, trabalhou no setor cultural do Departamento
Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) em Salvador. No início da década de
1940, já no Rio de Janeiro, ingressou no curso de Ciências Sociais da Faculdade
Nacional de Filosofia e entrou em contato com a sociologia norte-americana
(Oliveira 1995; Maio 2015). Em 1949 associou-se ao TEN. Mais próximo de
Abdias, defendeu investigações sociológicas e psicossociais politicamente
orientadas para enfrentamento do racismo. Criticou a adoção do padrão es-
tético europeu, expressão do caráter patológico da sociedade brasileira, bem
Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 117

como os estudos academicistas que faziam dos negros e sua cultura objetos de
pesquisa, negando-lhes o papel de produtores do conhecimento. O seu projeto
de valorização da raça negra rejeitava o que denominava de folclorização de
práticas religiosas e festas de origem africana.
Etnólogo e jornalista, Édison Carneiro, que também era baiano e de famí-
lia de afrodescendentes, apresentava ideias que eram mais próximas daquelas
defendidas por intelectuais como Arthur Ramos e Costa Pinto, por sua ênfase
no estudo de instituições religiosas e culturais de matriz africana no Brasil.
Em 1937, Édison havia organizado, junto com Arthur Ramos, o IIº Congresso
Afro-Brasileiro que reuniu, na capital da Bahia, intelectuais, membros do mo-
vimento negro e representantes de religiões da diáspora africana. Próximo do
escritor Jorge Amado e filiado ao Partido Comunista, Édison Carneiro foi um
ativista em defesa das casas de candomblé, muito perseguidas nesse período.
O Iº Congresso do Negro Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro entre 26
de agosto e 4 de setembro de 1950, tinha por objetivo debater os problemas
oriundos das relações raciais no Brasil. Participaram dos debates, além dos
próprios organizadores que faziam parte do TEN, intelectuais brasileiros e es-
trangeiros, como Costa Pinto, Darcy Ribeiro, Charles Wagley e Roger Bastide,
e representantes de diversos movimentos sociais. Conflitos não faltaram entre
os participantes do Congresso. Havia os que priorizavam a formação de uma
elite intelectual negra, aqueles que dedicavam seus estudos à presença da cultura
africana no Brasil e, ainda, aqueles que reivindicavam melhoria imediata das
condições de vida da população negra, como alfabetização, postos de saúde,
moradia e apoio a empreendimentos diversos.
Alguns anos mais tarde, tornou-se pública a disputa entre os intelectuais,
artistas e ativistas do TEN e parte da intelectualidade brasileira. Na introdução
de O negro revoltado, livro que reuniu parte dos anais do Iº Congresso do
Negro Brasileiro e que só conseguiu publicar 18 anos depois do evento, Abdias
Nascimento acusou nominalmente Costa Pinto de ter publicado em 1953, sem
autorização dos organizadores e das lideranças do TEN, uma parte dos anais
do congresso no seu clássico livro O negro no Rio de Janeiro.
Praticamente no mesmo período em que aconteceu o Iº Congresso do
Negro Brasileiro, era organizado o projeto UNESCO, criado em 1949 com a
proposta de uma pesquisa sobre relações raciais no Brasil, uma vez que a tese
da existência de uma democracia racial brasileira era defendida por muitos
(Pereira 2007). Por indicação de Paulo Carneiro, representante brasileiro na
UNESCO, o Brasil foi escolhido como laboratório para os estudos de raças, e o
etnógrafo francês Alfred Metraux, como diretor do projeto. Este último subs-
tituiu Arthur Ramos, que falecera, na chefia do Departamento de Ciências
118 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Sociais. Do grupo de pesquisas do projeto UNESCO fizeram parte intelectuais


que haviam participado do Iº Congresso do Negro Brasileiro, como Costa Pinto,
Charles Wagley e Roger Bastide. As pesquisas foram realizadas nos anos de
1951 e 1952. Para a maior parte dos intelectuais que trabalharam no projeto, a
questão racial estava associada à questão social e tenderia ao desaparecimento
com o crescimento econômico do país.
Como corretamente enfatiza Maio (1999, 2015) em seus estudos sobre o
projeto UNESCO e a formação das ciências sociais no Brasil, no final dos anos
1940 se internacionalizava uma agenda antirracista, com diversas nuances e
desdobramentos, como resposta ao impacto do genocídio nazista e ao fortaleci-
mento dos movimentos de descolonização africano e asiático. Repercutiam no
Brasil fatos como o apartheid na África do Sul, a segregação racial nos Estados
Unidos, a luta pelos direitos civis e os movimentos de libertação nacional no
continente africano.
Em 1966 em Dacar, Senegal - então um país africano independente, que
tinha como presidente um dos líderes da Négritude, Leopold Senghor - foi
realizado o I Festival Mundial das Artes e das Culturas Negras. Abdias e os
integrantes do TEN, grupo mais próximo da Négritude no Brasil, não foram
convidados para fazer parte da comitiva brasileira organizada pelo governo
militar. Abdias escreveu a famosa “Carta aberta a Dacar”, na qual denunciou a
ausência de representantes negros na delegação do Brasil. Nessa carta, que teve
grande repercussão, Abdias já assume integralmente o discurso da negritude,
da valorização da herança africana e da necessidade de união dos povos da
diáspora.
Em 1968, ele recebeu uma bolsa de uma instituição norte-americana, a
Fundação Fairfield, e viajou para conhecer novas experiências do teatro e do
movimento negro. Devido à promulgação do AI-5, não retornou ao Brasil,
ficando fora do país por quase treze anos. Ao chegar aos Estados Unidos,
deparou-se com o fortalecimento da luta por direitos civis e teve mais contato
com os movimentos anticolonialistas africanos. Em 1968, o ativismo de líderes
norte-americanos como Martin Luther King, assassinado três anos antes, e
Huey P. Newton, fundador dos Panteras Negras, acompanhava o crescimento
de mobilizações sociais em torno do chamado Poder Negro (Black Power). É
também durante o exílio nos EUA que Abdias começa a pintar, dedicando-se
fundamentalmente a temas relacionados ao candomblé.
Abdias do Nascimento foi o principal intelectual brasileiro a denunciar o
racismo no Brasil em convenções e congressos internacionais. Evitou o termo
“afro-americano”, por compreender que os problemas das Américas não se
reduziam àqueles dos Estados Unidos, mas procurou a união dos povos negros
Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 119

de todas as Américas. Nos Estados Unidos, foi convidado a fundar a cadeira


“Culturas Africanas”, no Instituto Portoriquenho da Universidade do Estado
de Nova Iorque, em Buffalo, onde recebeu o título de professor emérito e seu
pensamento foi reconhecido. Em 1976, assumiu o cargo de professor visitante
da Universidade de Ifé, na Nigéria. Em O genocídio do negro brasileiro, livro
publicado em 1978, deixou claro que havia no Brasil uma dominação étnica
e racial associada à condição socioeconômica, capaz de hierarquizar raças e
etnias em posições fixas de superioridade e inferioridade. Manteve-se defen-
sor da busca da solidariedade de países estrangeiros na luta contra o racismo.
Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU), principal marco na
formação do movimento negro contemporâneo, foi criado em São Paulo a
partir da união de lideranças e militantes de organizações de vários estados,
já com uma agenda voltada para mobilização da população e para a denúncia
do “mito da democracia racial”. Abdias do Nascimento, liderança reconhecida
internacionalmente, esteve presente na sua fundação. Estabeleceu-se a ruptura
com o discurso hegemônico nacional por meio da criação de novos símbolos,
como o “Dia Nacional da Consciência Negra” em 20 de novembro, para ho-
menagear Zumbi dos Palmares.
Ao voltar ao Brasil em 1981, no âmbito da redemocratização do país,
Abdias criou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) e
fundou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro. Foi deputado federal em 1983
e senador da República em 1991 e 1997. Faleceu em 2011, aos 97 anos, após re-
ceber inúmeras homenagens e condecorações nacionais e internacionais por
sua luta contra o racismo.

6.2. A coleção

No site do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (IPEAFRO),2


durante a pesquisa realizada no final de 2018 encontramos três conjuntos de
pinturas na seção “acervo digital”. São as obras de Abdias do Nascimento, que
têm início na década de 1960; pinturas que fizeram parte do concurso Cristo
da Cor, ocorrido em 1955; e 50 imagens sob a denominação “obras MAN”, que
datam em sua grande maioria dos anos 1940 e 1950. Certamente as obras dos três
grupos estariam presentes no Museu da Arte Negra, caso este se formalizasse
em exposições permanentes e tivesse alcançado uma sede própria.3

2 Disponível em http://www.ipeafro.org.br. Acesso 30/04/2019.


3 Não sabemos ao certo quando o acervo que analisamos no site do IPEAFRO foi colecionado, o que pro-
vavelmente deve ter acontecido ao longo da vida de Abdias. De qualquer maneira, não houve condições
para averiguar a data de entrada de cada obra.
120 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

As obras que estão no terceiro grupo do acervo digital, sob a rubrica


do Museu da Arte Negra, fizeram parte da coleção pessoal de Abdias do
Nascimento e foram adquiridas, trocadas ou doadas a ele. Não há informações
precisas sobre a forma ou motivo de inclusão no acervo e nem mesmo a data
de todas as obras. A coleção, entretanto, nos dá algumas informações sobre
os critérios de seleção.
Há retratos de personagens negros, alguns conhecidos como o próprio
Abdias, Léa Garcia, Solano Trindade, Léon e Marietta Damas. Certamente a
pintura de Léon Damas e de sua esposa foram selecionadas pela importância
dos retratados, pois o autor é desconhecido. Há ainda pinturas sobre o cenário
de “Sortilégio”, peça de teatro de autoria de Abdias; deuses e oráculos; símbolos
afro-brasileiros e pessoas não identificadas.
Não temos informações sobre todos os autores que participam da coleção
com suas telas ou mesmo as datas das obras. Mas certamente há intenção de
valorizar alguns artistas negros. Na coleção há duas telas de um artista popu-
lar bastante renomado, Heitor dos Prazeres, de artistas que fizeram parte de
grupos e circuitos tradicionais das artes plásticas no circuito Rio-São Paulo,
como Santa Rosa, e de outros que tiveram trajetórias mais singulares como
Otávio Araújo, José de Dome e Yêdamaria.
O artista que mais telas tem nessa coleção, nove obras, é o mineiro Sebastião
Januário (1939), desenhista, pintor e cenógrafo. Membro do Ipeafro, ele incentivou
e testemunhou as primeiras pinturas de Abdias do Nascimento na década de
1960. Januário nasceu em um pequeno vilarejo, Dores de Guanhães, no interior
de Minas Gerais e teve uma carreira singular. Entrou para a Aeronáutica, onde
teve apoio de oficiais e tornou-se conhecido. Só bem mais tarde foi encaminhado
para uma formação no curso livre de pintura ministrado por Ivan Serpa no
MAM/RJ e em Paris. Sem estilo definido, sua pintura tem traços próprios e uma
diversidade de temas, e na maioria das vezes se caracteriza pelo figurativismo
e por cores fortes.
É o caso de Figuras Humanas Recortadas em Flor. Nessa obra de 1967, sem
papel e montada em eucatex, Januário se utiliza de materiais distintos, guache
misturado com protetor plástico incolor (selador de tinta de parede) para,
como aponta o título, apresentar corpos fragmentados que parecem flutuar
na tela cercados por flores. Um fundo negro é tomado principalmente pela
cor vermelha, que tinge o corpo curvilíneo localizado no centro do quadro,
aparentemente feminino, o sexo coberto por uma folha verde tal qual uma Eva,
enquanto a mão de um outro corpo sem cabeça, este masculino, um possível
Adão de sunga marrom situado no canto esquerdo da tela, enlaça seu quadril.
Ao mesmo tempo, um pé amarelo desce por seu corpo decepado e uma cabeça
Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 121

de rosto vermelho e cabelos loiros, sorridente, que parece pertencer ao corpo


rubro da mulher, flutua no alto da tela à direita. Um rosto sorridente de perfil
e outro corpo de mulher sem cabeça, apenas o torso e os seios nus à mostra,
cercam o rubro corpo no centro da imagem enquanto flores vermelhas e
amarelas preenchem os vazios do quadro de fundo negro. Januário, portanto,
apresenta o que poderia ser encarada como uma complexa representação da
história de Adão e Eva, sem lançar mão de símbolos mais óbvios como a maçã
e a serpente, que fazem parte deste mito fundador da humanidade. Ao mesmo
tempo, nossa leitura da obra segue apenas algumas pistas, sem que seja possível
confirmar que tenha sido este o caminho tomado pelo artista, uma vez que
isso não é indicado nem mesmo no título, o que confirma sua complexidade.4
Há duas telas de Heitor dos Prazeres (1898-1966), um artista popular que
teve suas carreiras artísticas, tanto de músico como de pintor, reconhecidas na
primeira metade do século XX. Como músico, fez parte de um seleto grupo
dos chamados “bambas” do início do século, como Donga, Sinhô, Noel Rosa,
Pixinguinha e Paulo da Portela. Sua presença marcante no circuito musical
certamente facilitou sua carreira como pintor. Em 1937 começou a exibir suas
pinturas que retratam a vida nas favelas e bairros pobres. Crianças brincan-
do, jovens dançando, rodas de samba, homens e mulheres em seus afazeres
cotidianos eram algumas das imagens prediletas. Foi premiado na I Bienal de
São Paulo, e suas telas ganharam cada vez mais prestígio no cenário nacional
(Filho & Lirio 2003). É considerado um dos principais tradutores da história
das primeiras gerações de negros do período pós-escravidão. Suas telas têm
um traço marcante e inconfundível, repletas de cores fortes e personagens
negros com suas faces retratadas lateralmente e sempre com o olhar para cima.
Grande parte das obras é de autoria de artistas que fizeram parte dos
grupos que se formavam em torno do modernismo nos anos 1940 e 1950. Os
artistas formavam grupos e frequentavam cursos e exposições no eixo Rio
de Janeiro e São Paulo. As pinturas tanto se aproximavam do cubismo, cuja
influência recebida da arte africana já fora apontada pela vanguarda europeia
desde o início do século, como apresentavam traços do expressionismo e da arte
abstrata. Embora poucos artistas reconhecidos desse período fossem negros,
eles aparecem representados na coleção do MAN.
Tomás Santa Rosa (1909-1956) nasceu em João Pessoa e morreu na Índia.
Autodidata, foi um dos primeiros, senão o primeiro, cenógrafo modernista no

4 Diante do grande número de obras da coleção do MAN presente no site do Ipeafro, decidimos analisar
e descrever apenas uma delas e fazer comentários mais panorâmicos sobre os demais artistas e obras.
Escolhemos uma obra de Sebastião Januário por ele ser, como já mencionado, o artista que mais telas
possui na coleção e por ter influenciado Abdias do Nascimento a se dedicar à pintura.
122 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Brasil e integrou o Teatro Experimental do Negro (TEN). Tem seu nome gravado
na cena teatral das décadas de 1940 e 1950, sendo responsável pela cenografia de
peças que marcaram o campo, como “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues,
ou “Orfeu”, de Jean Cocteau. A parceria com o diretor Ziembisnki consolidou
sua criatividade e sua contribuição artística. Foi cenógrafo da Companhia
Dramática Nacional (CDN) e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Crítico
de arte, colaborou em diversos jornais e revistas especializadas. Santa Rosa
parece ter sido um pioneiro em muitos sentidos.
Outros três artistas da coleção do MAN também estão presentes no catálogo
biográfico do Museu AfroBrasil,5 que destaca a presença de artistas negros:
Otávio Araújo, José de Dome e Yêdamaria. Os dois primeiros, como Januário,
formaram-se como artistas longe dos grupos e escolas de formação do eixo
Rio-São Paulo embora depois tenham se aproximado posteriormente.
Otávio Araújo (1926) obteve reconhecimento individual na década de 1950,
o que lhe possibilitou uma viagem à China em 1957. Entre 1960 e 1968 residiu
na União Soviética, onde foi influenciado pelo surrealismo em voga entre os
artistas dissidentes; como muitos de seu período, desenvolveu sua carreira em
uma diversidade de atividades inerentes às artes plásticas, produzindo trabalhos
como pintor, gravador, desenhista, ilustrador e artista gráfico. É dele o retrato
de Léa Garcia, atriz consagrada e primeira mulher de Abdias do Nascimento,
com quem teve dois filhos, que faz parte da coleção do MAN. O artista também
participou do concurso Cristo da Cor com o “Cristo favelado”. A obra foi exibida
recentemente em 2018, na emblemática exposição Histórias Afro-Atlânticas,
realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Instituto Tomie Ohtake.
José de Dome (1921-1982), ou José Antonio dos Santos, nasceu em Sergipe,
mas mudou-se cedo para Salvador, onde recebeu apoio de intelectuais como
Mário Cravo Júnior, que fez parte da primeira geração do modernismo baiano,
e de Carybé, pintor, escultor e gravador argentino que tem uma obra impor-
tante sobre orixás e cultura afro-brasileira. Transferiu-se para o Rio de Janeiro
em 1962 e se integrou ao meio artístico da cidade. A partir de então realizou
inúmeras exposições nos circuitos nacional e internacional.
Yêdamaria ou Yeda Maria Correia de Oliveira (1932-2016) se destaca por
ser uma das poucas mulheres artistas na coleção. Ela foi aluna e professora da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 1977 se-
guiu para os Estados Unidos para fazer seu mestrado, e a partir de então expôs
em várias mostras individuais e coletivas no Brasil, Estados Unidos e Europa.
Procurou trazer para seu trabalho a ancestralidade africana tanto através da

5 Disponível em http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa. Acesso 30/04/19.


Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 123

temática como do seu estilo e de técnicas variadas. Em 2015, suas obras fizeram
parte da programação do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab)
no mês da consciência negra.
Dentre os demais artistas, observa-se a predominância de modernistas
com estilos que se alternam entre cubismo, expressionismo e abstracionismo.
Certamente Abdias procurou incentivar não só artistas negros, mas um estilo
identificado à matriz africana, com cores fortes e temáticas da natureza e da
cultura afro-brasileira. Outros artistas presentes na coleção do MAN, como
Bonadei, Inimá de Paula, Enrico Bianco, Carlos Scliar, Ivan Serpa e Guima
fizeram parte do grupo de modernistas do qual participava Santa Rosa.
Aldo Bonadei (1906-1974), paulista, teve formação artística no Brasil e na
Itália. Foi pintor, gravador e figurinista. Professor em São Paulo, considerado
um pioneiro da arte abstrata no Brasil, ele também é conhecido pela sua par-
ticipação no grupo Santa Helena, cujos artistas - entre outros, Alfredo Volpi
- se caracterizaram pela pesquisa da arte moderna e do cubismo, com o uso de
figuras geométricas, cor e textura. A tela de Bonadei é de uma paisagem urbana.
Inimá José de Paula (1918-1999) nasceu em Itanhomi, MG e morreu em
Belo Horizonte, MG. Pintor e desenhista, conheceu e se relacionou com artistas
importantes de seu tempo, como Antonio Bandeira, Cândido Portinari e Aldemir
Martins. Suas obras são influenciadas pelo expressionismo, marcadas pelas
cores e pinceladas fortes, com alternância entre pinturas abstratas e figurativas.
Enrico Bianco (1918-2013), desenhista, gravador e pintor italiano, chegou
ao Brasil em 1937 e passou logo a trabalhar com Cândido Portinari, de quem foi
discípulo. Influenciado pelo modernismo, foi autor de inúmeras obras expostas
em galerias nacionais e internacionais. Está presente na coleção do MAN com
duas telas sobre a peça teatral “Sortilégio”, de Abdias do Nascimento.
Carlos Scliar (1920-2001) nasceu no Rio Grande do Sul. Foi desenhista,
gravador, pintor e ilustrador, teve sua formação no Brasil e na França. Destacou-
se pelas ilustrações para revistas, livros e cenários teatrais. Fazia parte de grupos
de artistas juntamente com Cândido Portinari, Burle Max e Enrico Bianco.
Uma das pinturas da coleção é de Ivan Serpa (1923-1973), artista plástico e
professor nascido no Rio de Janeiro que, com um trabalho identificado com a
abstração geométrica, obteve diversos prêmios ao longo da carreira. Participou
em 1957 da I Exposição Nacional de Arte Concreta do Rio de Janeiro. Fez
parte do Grupo Frente e, no início dos anos 1960, voltou-se para a figuração
de tendência expressionista.
Guima (1927-1993), ou Luis Moreira Castro Toledo de Souza Guimarães,
nasceu em São Paulo. Pintor, desenhista, gravador e poeta, ligou-se ao figu-
rativismo expressionista. Na década de 1950 mudou-se para o Rio de Janeiro,
124 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

frequentando a Escola do Povo e o Museu de Arte Moderna, onde encontrou


outros desenhistas, pintores e gravadores como Santa Rosa e Inimá de Paula.
Fazem parte ainda da coleção obras de gravadores de destaque. Livio
Abramo (1903-1993) nasceu em Araraquara, São Paulo e morreu em Assunção,
Paraguai. Gravador e desenhista, foi influenciado por gravadores expressionistas
e pelo modernismo brasileiro. Em Paris, na década de 1950, aperfeiçoou seu
trabalho de gravura em metal. Foi premiado na II Bienal de São Paulo em 1953,
e em 1962 mudou-se para o Paraguai. Maciej Antoni Babinski (1931) tornou-se
professor de gravura na UNB, e José Guyer Salles (1942) também teve momentos
de destaque em sua profissão.
A coleção do MAN tem também obras de autores que seguiram com estilos
próprios. Israel Pedrosa, mineiro, estabeleceu-se em Niterói desenvolvendo tra-
çados com linhas coloridas. Foi professor na Universidade Federal Fluminense.
José Gomes consolidou-se como o pintor de paisagens de Olinda. Benjamin
Silva (1927), Paulo Chaves (1921-1989), Júlio Vieira (1933-1999), Lóio Persio
(1927-2004) e José Tarcísio Ramos (1941) fizeram parte do circuito artístico
modernista e mantiveram essa formação em suas pinturas, sem qualquer com-
promisso firmado com a arte negra. Tunga, ou Antonio José de Barros Carvalho
e Mello Mourão (1952-2016), foi um desenhista, pintor e escultor consagrado
como autor de instalações e obras performáticas a partir dos anos 1980. Iniciou
sua carreira na década de 1970, a partir do contato com o modernismo. A obra
de Walter Lewy (1905-1995), alemão, é fortemente inspirada pelo surrealismo.
Em que pese a variedade de autores e estilos presentes no MAN, podemos
dizer que houve uma tentativa de valorização dos artistas negros existentes,
bem como da criação de obras que apresentassem em formas e cores a marca
da cultura africana.

6.3. O Museu de Arte Negra

A terceira parte do livro O Quilombismo, que reúne conferências e palestras


proferidas por Abdias do Nascimento, publicado em 1980, tem por conteúdo
questões relacionadas à recuperação e reafirmação de valores africanos da cul-
tura, religião, língua, filosofia, artes, história e costumes. Abdias faz menção à
criação do concurso, sugerido por Guerreiro Ramos, sobre o Cristo Negro, ou
Cristo de Cor em 1955. Reivindicando uma estética afro-brasileira, o concurso
propôs que os artistas retratassem a figura de Jesus Cristo com a cor e os traços
fisionômicos negros. A artista plástica Djanira ganhou o primeiro lugar, com
a obra Cristo na Coluna, mas essa obra não faz parte da coleção do MAN e seu
paradeiro é desconhecido.
Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 125

Abdias reproduziu, ainda, no livro citado, o segundo artigo que publicou na


revista GAM – Galeria de Arte Moderna, nº 15, de 1968, defendendo a criação do
Museu de Arte Negra. No texto, associou a proposta do museu às atividades do
TEN, como promoção de concursos de beleza e de artistas plásticos na produção
do Cristo Negro, voltadas para o combate ao padrão cultural branco europeu.
Atribuiu à tese de Mário Barata sobre a escultura de origem africana no Brasil,
no Iº Congresso do Negro Brasileiro em 1950, a motivação para a criação de um
museu de arte negra no Brasil (Nascimento 2002: 75). Na verdade, a criação do
MAN foi uma resolução aprovada no Congresso e, de acordo com depoimento
de Elisa Larkin, teve também grande influência de um dos fundadores do TEN,
Ironides Rodrigues. Assim, o MAN como projeto nasceu em 1950.
Abdias, nesse segundo artigo publicado na GAM, recuperou o encontro
da arte de vanguarda europeia do início do século XX com o colecionismo de
objetos etnográficos, como as máscaras africanas, em obras de artistas como
Braque, Matisse e Picasso. Sobre este último, citando sua obra Les Demoiselles
d’Avignon, afirmou tratar-se do “exemplo ilustre do cubismo nascido sob a
influência generosa e afetiva da escultura africana” (Nascimento 1980: 135).
Neste sentido, uma das agendas políticas do MAN era mostrar a importância
fundamental da arte africana para o surgimento da arte moderna da Europa
e para criação das suas obras mais emblemáticas.
Outro ponto importante era mapear e promover a produção de artistas
negros. Dois artistas são mencionados por Abdias no artigo do GAM por esta-
rem vinculados à ideia de uma estética negra: Rubens Valentim e José Heitor
da Silva. Abdias visitou na Universidade de Brasília o ateliê de Valentim, cujos
“relevos, esculturas e pinturas” expressavam uma conexão entre referências
eruditas e populares, em que elementos “afro-baianos se inserem dialetica-
mente em sua obra ao cânon artísitico europeu”. Dessa maneira, para Abdias,
“realiza-se um dos propósitos do MAN... tornar-se uma ponte cultural entre o
Brasil e a África Negra” (Nascimento 1980: 137). Curiosamente, porém, o MAN
não possui obras de Valentim.
José Heitor da Silva, também destacado por Abdias, ao contrário, é um
dos artistas negros revelados pelo MAN e possui obras importantes na coleção,
como as esculturas em madeira Proteção e Drama dos Mendigos Negros. De
acordo com Abdias: “Enquanto Rubens Valentim terça os refinados estilos,
José Heitor representa o autodidata e mágico criador, mais parece um artista
transviado em Além Paraíba (MG). Cada peça que esculpe tem o compromisso
de ato litúrgico e de função comunitária...” (Nascimento 1980: 137).
No primeiro artigo que publicou na GAM sobre o MAN, Abdias explicou
que a sua “célula mater” se constituiu a partir da “coleção particular obtida
126 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

com grandes sacrifícios – colaborações, compras, trocas etc”. Ao mesmo


tempo elencou obras e artistas que considerava como “padrão para o museu
nascente...” entre eles:

...uma cabeça de animal de Agnaldo dos Santos, um painel, de Julia van Roger,
o Cristo Favelado, de Otavio Araújo, os Omolus, de Cleoo, a capoeira, de Lucia
Fraga, o Logudedê de Manoel do Bonfim, o Exu de Aldemir Martins, o Rei Negro,
de José Barbosa, a casa vermelha, de José de Dome, a favela, de Iara, as crianças
brincando, de Agenor, o casamento, de Nilza Bentes, a via sacra, de Zu, as estrelas,
de Lito Cavalcanti, soltando balões, de Heitor dos Prazeres (Nascimento 1968: 21).

Ainda assim, Abdias explicou que o MAN contava com “a importante


colaboração de artistas influenciados pela presença do negro”, como Carlos
Scliar, Ivan Serpa, Manabu Mabe, Rubens Gerchman, Iberê Camargo, Fayga
Ostrower, Flávio de Carvalho e Volpi, entre muitos outros nomes importantes
do cenário artístico do país. Além disso, destacou que “o TEN agiu revolucio-
nariamente... voltando-se para o campo particular da manifestação plástica
e organizando departamento específico na forma de Museu de Arte Negra”
(Nascimento 1968: 21).
Criado oficialmente em 1950, a partir da resolução do Iº Congresso do
Negro, apenas em 1968 a criação do MAN alcançou uma ampla discussão na
imprensa, mais especificamente no Correio da Manhã, periódico opositor
ao regime dirigido por Niomar Sodré, que estimulou o debate e as notícias
“como forma indireta de também apoiar as lutas de descolonizações na África”
(Jaremtchuk 2018: 269).
Neste ponto, é importante ressaltar a articulação do criador do TEN com
interlocutores como Loio Pérsio. O pintor escreveu uma carta a Abdias em 18
de janeiro de 1968, afirmando que a “possibilidade de criação de um MUSEU
DE ARTE NEGRA (que eu preferia um Museu de Artes Negras), é um fato de
extrema importância, não somente para os artistas, mas, fundamentalmente,
para a cultura nacional”, e que o “problema das artes negras (e em grau menor,
o das artes índias) é um tema quase virgem para os nossos estetas e críticos de
arte” (Acervo IPEAFRO). Uma semana após a data da carta assinada por Loio
endereçada a Abdias, o Correio da Manhã publica, em 26 de janeiro de 1968,
a reportagem intitulada “Loio acha que chegou a hora da arte negra” em que
trechos da carta de Loio são transcritos como parte do texto do jornal.6 Nesse

6 Correio da Manhã, 26 jan. 1968, Caderno 1, p. 2.


Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 127

mesmo ano, o pintor produziu um quadro em homenagem ao amigo, intitulado


Retrato dos 20 aos 50 anos de Abdias.
A campanha na imprensa foi importante para que o MAN conseguisse
mostrar pela primeira vez sua coleção no MIS RJ, como já mencionado, em 6
de maio de 1968. De acordo com Abdias, foram exibidos, durante o mês de
maio, “mais de 140 trabalhos, entre pintura, desenho, gravura, arte popular
brasileira e peças africanas” (Nascimento 1968: 22).
No entanto, o projeto do MAN teve que ser interrompido após o AI-5,
promulgado em dezembro de 1968, que acirrou o autoritarismo e a violência
da ditadura militar. Como Abdias escreveu:

A ausência de liberdade e de garantias para um trabalho deste tipo, derivado do


reforço repressivo de fins de 1968, me conduziram aos Estados Unidos naquela
data e com isso o Museu de Arte Negra, como também o Teatro Experimental
do Negro, como instituições visíveis, deixaram de existir. Porém, visto de outra
forma, as atividades do TEN e do MAN tiveram prosseguimento noutro contexto,
na luta mais ampla do pan-africanismo (Nascimento 1980: 138).

Em 1980, no livro Quilombismo, ao rever o texto publicado em 1968 na


GAM, Abdias afirmou que faria dois reparos nesse artigo: não manifestaria tanta
esperança no apoio dos setores progressistas brancos e não citaria Leopold
Senghor. Assim, deixaria de lado uma proposta do MAN, presente no artigo de
1968, de “situar-se como um processo de integração étnica e estética. No cami-
nho daquela civilização universal de que nos fala Senghor”. Conforme escreveu:

Acreditamos que a civilização do universal jamais poderá ser atingida enquanto


a ação do colonialismo ou do neocolonialismo permanecer corroendo as bases
econômicas e políticas dos povos e países e a pura declaração cultural vazia,
conforme se tornou a Negritude do Presidente Senghor, mostrou na prática sua
carência de eficácia. Civilização do universal para mim, significa um universo
sem multinacionais ou transacionais, isto é, livre do capital monopolista, do
imperialismo e da guerra... (Nascimento 1980: 138).

Dessa maneira, Abdias se afastava da ideologia da negritude, “posição


intelectual” e se aproximava do pan-africanismo, “posição política”. Kabenguele
Munanga explicou as diferenças entre os dois projetos.

O pan-africanismo nasceu no início do século XX entre os negros de língua in-


glesa, particularmente dos Estados Unidos e das Antilhas Britânicas. A primeira
128 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

conferência pan-africana foi organizada em Londres em 1900 por um advogado


de Trinidad, Henry S. Williams. Depois da primeira Guerra Mundial ela se am-
plificou sob a iniciativa de Georges Padmore e W. E. B. Dubois. Em sua ótica, a
luta de um povo para sua independência nacional reforçava a luta dos outros e
vice-versa e era reforçada pela luta desses outros. Ou seja, o regime colonial deveria
ser combatido em conjunto e não isoladamente. A negritude, posição intelectual
e o pan-africanismo, posição política, convergiam ao afirmar respectivamente
que todos os africanos tinham uma civilização comum e que todos os africanos
deviam lutar juntos (Munanga 2016: 111).

Como dissemos anteriormente, durante o tempo em que esteve no exílio


Abdias ampliou sua atuação em congressos pan-africanistas realizados em
diversos países, tornando-se uma referência como ativista e militante. Da mes-
ma forma, intensificou sua produção artística, mantendo a interlocução com
artistas e recebendo doações. A coleção do MAN, hoje sob a guarda do Ipeafro,
reúne cerca de 500 obras de artistas diversos, como Iberê Camargo, Calazans
Neto emanoel Araújo, Carlos Scliar, Heitor dos Prazeres, Tunga, Regina Vater,
Faya Ostrower, entre muitos outros. Entre as mulheres presentes na coleção se
destacam Ana Bela Gaiger, que produziu um retrato de Abdias publicado na
folha de rosto do livro O negro revoltado e Cleo Navarro, artista negra revelada
no concurso Cristo da Cor.
É interessante comparar a proposta do Museu de Arte Negra à de outras
instituições museais do Brasil. Os museus brasileiros foram criados a partir da
percepção não racializada da construção da nação. Embora houvesse o discurso
de que tratamento não racial valorizava igualmente a produção de brancos e
negros, independentemente de cor, raça ou origem, o silêncio sobre diversi-
dades étnico-raciais predominou no imaginário coletivo. Os grandes museus
nacionais, por exemplo, trouxeram não apenas o silêncio sobre raça, mas uma
hierarquia de valores em que padrões estéticos e produções culturais de um
segmento populacional branco e elitizado se sobrepunham aos demais (Santos
2005). Nesse período, a exceção foi apenas o Museu do Índio, criado em 1953
por iniciativa do Marechal Cândido Rondon, presidente do Conselho Nacional
de Proteção ao Índio, e do antropólogo Darcy Ribeiro. A instituição teve como
objetivo destacar a cultura dos povos indígenas e combater o preconceito.
No segundo artigo que escreveu para a GAM, Abdias afirma que os trabalhos
selecionados para fazer parte da coleção do MAN constituíam “obras de pretos,
de brancos, de amarelos, dos homens de todas as raças e nacionalidades”, tendo
como princípio norteador a “presença do negro” (Nascimento 1980). Dessa
maneira, de acordo com a ideia de integração que norteou sua constituição, o
Ab d ias d o N a s ci m e n to e o M u s e u d e A rte N e g ra 129

MAN pode ser percebido como um museu que abriga obras de arte moderna e
contemporânea, de artistas negros, brancos e de diversas nacionalidades, mas
que tem como eixo principal a afirmação do protagonismo da estética negra
para a formação da arte moderna ocidental com objetivo de lançar luz sobre a
produção de artistas negros brasileiros, colocando-os em igualdade de condi-
ções com obras de artistas brancos do Brasil e de outros países.
Assim, é importante destacar o pioneirismo de Abdias e do grupo do
TEN ao formular o MAN, trazendo para o campo das artes visuais um debate
que se intensificou apenas nas últimas décadas, sobre o impacto das relações
raciais na produção de artistas negros e brancos, principalmente no que diz
respeito às temáticas de matrizes africanas, rompendo definitivamente com
o discurso da “autonomia” das poéticas frente à realidade social e, no caso, à
luta contra o racismo.
VII
Memória e Literatura
Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.
Kucinski 2011:11

Não acredito que exista arte neutra. Todo o ato humano


é um ato político e toda a arte é uma arte política.
Vieira Júnior 1

A memória não existe sem o esquecimento: ela opera através de um processo


seletivo. Em termos de coletividade, contudo, sabemos que há guerras culturais
e que nem todos têm acesso a todas as informações para fazerem suas escolhas.
Estado e mercado, duas forças políticas de nosso tempo, têm mecanismos
importantes para legitimar o que se deve lembrar e esquecer. Em governos
autoritários esse processo é devastador. Há esquecimentos que são impostos
ao conjunto de cidadãos, muito embora haja sempre memórias que subsistem
e que podem resistir ou não ao que é imposto.
Este capítulo tem como objetivo apresentar as lutas contra o esquecimento
através da literatura. O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera, já é um
clássico nos estudos sobre memória e resistência (1981 [1978]) e será lembrado
novamente. Dois outros livros, que também têm sido objeto de estudos não só
no campo literário, mas também na área das Ciências Humanas, são destacados
em seu importante papel de fazer-nos refletir sobre os crimes cometidos no
regime civil-militar: Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (2015) e K.:
relato de uma busca, de 2011, Bernardo Kucinski.2 Por último, procuro ressaltar
a questão das memórias tradicionais evocada no recente e aclamado trabalho
de Itamar Vieira Júnior, Torto arado (Vieira Júnior 2019). São livros que traba-
lham com o não dito, mas que está presente no nosso cotidiano de resistência.
Contra as falsificações da história, a literatura de testemunho tem de-
sempenhado um papel importante, pois como afirmou o historiador e crítico
literário Márcio Seligmann-Silva (2003: 8), nela temos a ver com um “real”

1 Ver a entrevista com o escritor Itamar Vieira Júnior em https://www.quatrocincoum.com.br/br/podcasts/


repertorio-451-mhz/a-bahia-e-o-meu-centro. Acesso 08/02/2021.
2 Análises anteriores dos livros de Kucinski e Paiva estão presentes no artigo Santos 2020.

131
132 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

que não se deixa reduzir. Mas não nos referimos aqui apenas à literatura de
testemunho. Há uma liberdade na literatura que não está presente nas narra-
tivas historiográficas e é capaz de contribuir para a compreensão do passado
ao apresentar uma alternativa à impossibilidade da representação, sempre
restrita às fontes existentes. Tanto na historiografia como na literatura, ou na
arte em geral, temos o autor que interpreta e cria seu texto. A criação, por mais
que pareça livre e capaz de trazer o novo, carrega consigo marcas do passado.
Nela há que ser considerada a escolha da interpretação, que pode vir através
de uma abordagem crítica para que o compromisso com o passado, também
compreendido como dever da memória, se cumpra em prol de uma postura
ética apta a lidar com responsabilidades e políticas de reparação. A arte pre-
cisa ser vista como uma linguagem importante que complementa o que não é
dito, seja pela ausência de registros, seja pela rigidez das análises acadêmicas.
Como tem sido enfatizado ao longo deste livro, as diferentes linguagens sobre
o passado propiciam contribuições específicas e precisam ser vistas como
complementares, e não em contradição.

7.1. Memória e Esquecimento

Diferentemente de arquivos e museus, a literatura tem um alcance do


público maior e diferenciado, e como instrumento de divulgação de ideias, com
narrativas que não são comprometidas com a revelação do real mas que dele
fazem parte, tem exercido um papel importante na resistência à falsificação
da história. Contra as falsificações da história, a literatura de testemunho tem
desempenhado um papel importante. São bem conhecidos os romances do
escritor Milan Kundera, por exemplo, que dedicou parte de sua obra à tarefa
de combater as deturpações da história feitas pelos governos autoritários. O
poeta e escritor nasceu em 1929, na antiga Tchecoslováquia. Em 1938 a República
caiu sob ocupação alemã e em 1945 foi libertada pelos soviéticos. Em 1946,
o Partido Comunista foi eleito e, dois anos depois, um golpe parlamentar,
com o apoio soviético, formou uma frente única. Era o início da guerra fria
entre Estados Unidos e União Soviética. Após 1948, o Partido Comunista da
Tchecoslováquia obteve o controle da polícia, das forças de segurança e dos
meios de comunicação. Milhares de dissidentes foram demitidos, presos ou
fugiram do país. Em 1968 eclodiu o movimento conhecido como Primavera
de Praga, que foi duramente reprimido com apoio dos exércitos dos países
do leste Europeu, sempre apoiados pela União Soviética. A Tchecoslováquia
permaneceu ocupada até 1989, quando foi formada uma república parlamentar
multipartidária.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 133

Kundera teve uma relação conturbada com o Partido Comunista e se


envolveu na Primavera de Praga. Em 1975 transferiu-se para a França. Em seus
contos e romances, a vida pessoal e cotidiana dos personagens se entrelaça com
a situação política do país. O Livro do riso e do esquecimento foi escrito em 1979
e é considerado como aquele que marcou sua narrativa pós-exílio.3 Embora
sua tarefa não fosse de historiador, voltado para a reconstituição do passado a
partir de uma busca impessoal e baseada em fontes, o autor denuncia em suas
narrativas as lutas que eram travadas para se retocar fotografias, reescrever
biografias e mudar o passado.
Em O livro do riso e do esquecimento, o primeiro conto se inicia com a
descrição do discurso do dirigente comunista checo, Klement Gottwald, assistido
por centenas de milhares de cidadãos em 1948. Kundera assinala que Vladimir
Clementis, uma das lideranças do Partido, foi acusado de traição quatro anos
mais tarde. As fotografias oficiais que retratavam a celebração da tomada de
poder foram retocadas de modo a que o traidor desaparecesse. O personagem
Mirek, contudo, lembrava-se não só de Clementis, mas do que restou de sua
presença, o gorro na cabeça de Gottwald. Detalhes que configuram a memória
(Kundera 1981 [1978]). O conto nos mostra que, apesar da tentativa de controle
da memória pelo discurso e propaganda oficial, havia aqueles que escolheram
publicizar suas memórias conflitantes.
O direito à memória deve sempre estar atrelado ao direito ao esqueci-
mento. Tzvetan Todorov denunciou os regimes totalitários do século xx , que
controlaram a memória utilizando-se de práticas como: censura; restrição da
circulação de informações e de formas não oficiais da memória, como narrativas
orais e poesia; intimidação para que a população não procure se informar; uso
reiterado da mentira e da propaganda; e destruição sistemática de arquivos e
documentos. Ainda assim, o autor ressalta que embora a luta pela memória e
verdade possa surgir como o reverso do apagamento da história em contextos
pós-ditatoriais, devemos sempre preservar igualmente o direito ao esqueci-
mento, pois o lembrar deve ser sempre uma opção e um direito (Todorov 1995).
As mensagens que alcançam o público ampliado não são desfeitas facil-
mente, pois são propagadas por meio de autoridades religiosas e governamentais
que exercem controle sobre meios de comunicação. No Brasil, temos também
uma imprensa controlada por grandes interesses econômicos e pouca diver-
sificação da informação. A internet não se mostrou tão democrática quanto

3 O escritor ganhou vários prêmios e seu trabalho mais conhecido, que teve uma versão cinematográfica,
foi A insustentável leveza do ser, de 1984. Após os anos 1990, suas obras se destacaram pelas reflexões
filosóficas.
134 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

eram as expectativas iniciais. A volta da direita radical na política pode ser


associada ao controle da internet na repressão de agendas identitárias e no
conservadorismo de costumes. As chamadas fake news se multiplicam e são
reproduzidas maciçamente pelos novos meios de comunicação. A retomada
dos valores deixados pela ditadura militar envolve falsificações intencionais
da história que desprezam testemunhos, documentação e estudos acadêmicos
acumulados.
Uma fonte de resistência às fake news está, inegavelmente, na produção
literária sobre o período em que a memória do passado está presente. Já vimos
que temos diferentes memórias, ou seja, diferentes formas de nos lembrar do
passado. Na literatura, as diferentes formas da memória estão presentes. É
bem conhecido o romance do escritor francês Marcel Proust Em busca do
tempo perdido, rico em lembranças e sentimentos, com sua contribuição para
o estudo da memória, principalmente da denominada memória involuntária,
que é a memória que volta do passado independentemente de nossa tentativa
de lembrar. Ficou eternizada a passagem em que o sabor do pequeno bolo
madeleine, quando mergulhado numa xícara de chá, desencadeou uma intensa
sensação e a volta do passado, uma forma específica do lembrar (Proust 2003).
Nos romances que veremos a seguir, diferentes tipos de memória foram
acionados na lembrança do passado. Antes, contudo, algumas observações
são importantes sobre dois tipos de memória que irão aparecer, a memória
cognitiva e a memória hábito. Paul Ricoeur (2000) procurou sistematizar as
diferentes formas da memória. Para alguns há, no seu trabalho, uma feno-
menologia da lembrança. Descreveu, inicialmente, a memória individual e a
memória coletiva, e mostrou que a atribuição de significados relacionados ao
passado não diz respeito ao indivíduo ou à sociedade, mas a processos em que
ambos estão entrelaçados. Outro par faz referência àquele descrito por Henri
Bergson, na obra Matéria e memória (Bergson (1985 [1896]): a “memória pura”
como lembrança de um acontecimento no passado e a “memória hábito” como
a memória que atualiza o passado a partir de ações e práticas que se automa-
tizam. Ricoeur chamou a atenção para o fato de que as formas de lembrar não
são estáticas, e sim dinâmicas e se entrelaçam.
É interessante constatar que estudos recentes da neurociência, feitos
por meio de imagens que detectam o funcionamento do cérebro, reiteram ba-
sicamente os tipos de memória descritos por Bergson ou Ricoeur. “Memórias
explícitas e implícitas” ou, ainda, “declarativas e procedurais” podem ser
relacionadas com o par “memória pura e memória hábito”. Em qualquer das
classificações, no primeiro caso indivíduos estão conscientes de eventos viven-
ciados, são capazes de construí-lo no presente e atribuir significados ao que se
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 135

passou. No segundo caso, experiências passadas são incorporadas e influenciam


ações do presente sem que os indivíduos tenham essa percepção. Nos estudos
da mente, a memória pura, declarativa e explícita ganha ainda muitas divisões,
diferenciando-se em auditiva, visual e sensorial (Schacter & Tulving 1994).
Dentre as especificidades da memória explícita, destaca-se aquela feita pelo
psicólogo Endel Tulving entre memória episódica e memória semântica. A
primeira se refere à lembrança de um episódio marcado no tempo e no espaço,
como uma data comemorativa, e a segunda, à lembrança do significado de uma
situação complexa vivenciada. Em consonância com os estudos de Ricoeur,
também para Tulving, quanto mais complexas e automatizadas se tornam as
lembranças, menos consciência temos delas e mais duradouras são (Tulving
1972).
A “memória”, portanto, envolve a preservação de traços da memória em
contextos distintos. A reiteração da lembrança pode ocorrer pela tentativa de-
liberada de recordar um determinado fato do passado, mas também por meio
de comemorações, quando determinados aspectos do passado são reiterados
coletivamente e – mais do que tudo – a partir de uma dimensão ética, quando
a intenção de quem se recorda é combater a falsificação da história.

7.2. A memória-testemunho

No Brasil, são muitos os relatos autobiográficos e biográficos sobre o


período de ditadura militar com clara intenção de denunciar o apagamento
na história oficial de parte do que foi vivenciado. Alguns foram escritos du-
rante o governo militar ou logo após 1985, outros são mais recentes. Entre os
primeiros, podemos citar lembranças sofridas e traumáticas, como Em câmara
lenta, de Renato Tapajós (1975). São narrativas de pessoas que participaram
da militância contra o governo, sobreviveram e deixaram lembranças de ex-
periências atravessadas pelas tensões do período. Uma outra leva de livros
foi publicada após a promulgação da Lei da Anistia, quando o exílio acabou
para muitos. Nesse grupo, citamos O que é isso, companheiro?, de Fernando
Gabeira (1979), Os carbonários, de Alfredo Sirkis (1980) e o Batismo de sangue,
de Frei Betto (1982). Esses foram livros que trouxeram memórias pessoais dos
acontecimentos políticos da época, mas já descritas a partir de um certo dis-
tanciamento dos fatos ocorridos. Um terceiro conjunto de livros, publicados
mais recentemente, apresenta uma reflexão com maior distanciamento ainda
dos eventos, tanto temporal como emocional, o que não os impede de ter um
forte caráter de denúncia de falsificações históricas ocorridas. Desta última
leva, destacamos o livro Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (2015).
136 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Marcelo Rubens Paiva ficou conhecido como escritor pelo seu primeiro
livro, Feliz ano velho, publicado 33 anos antes, quando enfrentou, após um
acidente, a condição de tetraplégico. Já nesse livro havia referências ao desa-
parecimento de seu pai, o deputado federal Rubens Paiva, torturado e morto
pelos militares em 1971, quando Marcelo tinha 11 anos (Paiva 1982). O ponto
de partida do novo relato autobiográfico é seu cuidado com a mãe, a advogada
Eunice Paiva, portadora de Alzheimer. A história que se desenrola nas páginas
do livro é a de uma mãe de cinco filhos que, a partir do sequestro do marido,
precisou se reinventar estudar e encontrar uma profissão para criá-los sozi-
nha. Em meio à dor e à luta contra um governo violento e ditatorial, Eunice se
tornou advogada, defensora de direitos humanos, em particular dos direitos
indígenas. A reconstrução da vida de Eunice se entrelaça com a do autor e de
sua família, e traz à tona a luta de pessoas, organizações e movimentos para
esclarecer a história da repressão política do período militar.
Marcelo é filho de um desaparecido. Relatos mais detalhados sobre a
prisão de seu pai são fornecidos apenas no final do livro, quando o autor rela-
ta o momento em que a doença da mãe avança e que novas informações são
fornecidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2014.4 A ironia é
que os dados sobre o passado surgem quando Eunice já tem perda significativa
da sua memória. Memórias que correm em direções opostas. O filho prevê a
morte da mãe, o que não acontece em relação ao pai, cuja perda ele sente como
um processo aberto a novas narrativas, sofrimento e dor.
Rubens Paiva não era membro de nenhum dos diversos partidos clan-
destinos que atuavam em oposição ao regime militar; ele havia sido eleito
deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido criado
por Getúlio Vargas que abrigava lideranças governistas como João Goulart, o
presidente deposto. Engenheiro e deputado federal cassado, e fazendo parte
uma rede de jornalistas e políticos que, embora afastados do poder, detinham
legitimidade junto às esferas de poder, ele acreditou estar imune aos atos de
tortura que recaíam com maior frequência sobre os militantes dos partidos que
defendiam o comunismo. Enganou-se. Como desreve o livro de Paiva (2015),
no dia 20 de janeiro de 1971 seis sujeitos armados em trajes civis cruzaram o
quintal da sua casa. Vestiu-se formalmente, colocou o relógio de pulso, umas
cadernetas no bolso. Foi com dois agentes, dirigindo o Opel da esposa, prestar
depoimentos. Dois dias depois estava morto. Prenderam também a esposa e
uma de suas filhas, que na época tinha 15 anos. Não houve qualquer ordem de

4 A CNV foi um órgão transitório instituído em 2012 pelo governo de Dilma Roussef para apurar violações
de direitos humanos, mas sem competência para encaminhar punições.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 137

prisão, foram sequestrados. Oficialmente não havia prisões, não havia torturas,
não havia mortos, nem desaparecidos.
A tortura violenta, assassinato e ocultamento do corpo de Rubens Paiva,
que foi enterrado e desenterrado várias vezes, foram atos confirmados por
depoimentos de militares à CNV, mais de 40 anos após sua morte. Os espan-
camentos e tortura foram de tal ordem que ele não conseguiu sobreviver ao
segundo dia. Por que mantiveram a esposa presa por 15 dias? Por que ela e a
filha ficaram encapuzadas no mesmo local em que ele estava sendo torturado?
Será que foram utilizadas para aumentar seu sofrimento? Silêncios e vazios de
uma história macabra.
Após o desaparecimento de Rubens Paiva, o governo começou a dar in-
formações contraditórias com notas negando o seu envolvimento – o que seria
desmentido, contudo, pela presença do automóvel do deputado próximo ao
local onde foi detido; alegavam a libertação imediata de Paiva e um assalto pos-
terior, notícia que também carecia de qualquer comprovação. Houve mentiras
de ministros e de autoridades encobrindo os crimes cometidos em instalações
militares (Centro de Informações da Aeronáutica e Destacamento de Operações
e Informações/DOI do I Exército) que serviram como centros de tortura e
morte durante o período militar. Olhando para trás, é difícil compreender a
falta de reação da sociedade, que a tudo se acomodou. Mas, como veremos
adiante, a denúncia feita no presente ainda não é tranquila. A CNV denunciou
os responsáveis pelas torturas e morte de Rubens Paiva, todos militares, mas
não teve poder de indiciar todos os envolvidos. Um deles, já falecido na época
da investigação, havia sido condecorado com a Medalha do Pacificador.5 O
filho lembra-se do pai como um homem calmo, bom, engraçado, simpático e
risonho, e nos traz as informações de seu desaparecimento em sua história de
vida. Em que medida são as memórias do filho confiáveis?
Ao procurar mmorizar diversos conjuntos de três letras que não apresen-
tavam qualquer sentido, o psicólogo Hermann Ebbinghaus (1999), estabeleceu
no final do século xix a curva do esquecimento em que a memória apresenta
um rápido declínio na primeira hora após o aprendizado, seguido de outro
mais lento e gradual. Seu experimento mostrou que há uma perda natural e
contínua da memória ao longo do tempo. Identificou ainda que a exposição
repetitiva dos grupos de letras favorecia a memória e que, no processo, as
últimas sequências gravadas provocavam esquecimento das anteriores. Seus
estudos continuam atuais. Recentemente, o psicólogo Daniel Schacter (2001),

5 Ver relatório de pesquisa da CNV, de 27/02/2014. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/


relatórios.html. Acesso 08/08/2019.
138 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

a partir de um balanço dos estudos sobre a memória, sistematizou sete falhas


principais: três relacionadas ao esquecimento (perda contínua da memória,
falta de atenção e bloqueio) e quatro inerentes às formas de lembrar (má in-
terpretação, sugestão, bias e persistência de memórias indesejáveis). Em suma,
memórias são limitadas e estão relacionadas à atenção que damos aos eventos
no momento em que os vivenciamos e podem ser bloqueadas por emoções,
como experiências traumáticas. Além disso, dependem das interpretações feitas
no presente. Por que confiar nas memórias?
O autor de uma biografia traz na memória as vivências pessoais, que
são partes de um contexto bem mais amplo e procura a unidade onde só há
fragmentos. Estes são interpretados e reinterpretados à medida que passado e
presente se encontram. Essa consciência do caráter incompleto e em mudança
contínua das biografias – presente em análises como as de Beatriz Sarlo (2007),
que se preocupou com a onda subjetivista e memorialista – aparece também
no livro de 2015 de Marcelo Rubens Paiva. Logo após descrever a detenção de
seu pai quando tinha apenas 11 anos, ele tece comentários sobre como um fato
que acontece hoje pode ser relido de outra forma amanhã e como pensamos
hoje com a ajuda de uma parcela pequena do nosso passado (Paiva 2015: 117).
Lembrar e esquecer são as duas faces do mesmo processo. Lembramos
porque temos um aparelho seletivo para as memórias, ou seja, a capacidade
de esquecer. Memórias não trazem o passado com a precisão de uma máquina
fotográfica. O relato biográfico é inegavelmente incompleto, pessoal e subje-
tivo. Ele não substitui e nem tem as mesmas características de uma narrativa
da história, que se preocupa com os vazios, inconsistências e veracidade da
leitura.6 O relato de Marcelo Rubens Paiva não tem a intenção de propiciar
a história da ditadura militar, aliás, seu foco principal é a relação com sua mãe.
Contudo, apesar do relato pessoal, o autor nos permite olhar para o passado que
não está presente no registro oficial. Através de sua procura por informações
relacionadas ao pai, percebemos sua indignação em presenciar uma versão
do passado que negava a tortura e a ocultação do cadáver, seu drama pessoal,
assim como a passividade da população que, segundo ele, aceitava a mentira
por medo, preguiça ou falta de caráter.
Como é sustentado pela família Paiva, o assassinato do deputado federal
Rubens Paiva pelo Estado não foi um crime apenas contra eles, mas contra o
país. Ao descrever a trajetória de sua família, Marcelo traz à tona as disputas,
conflitos e violações que estão presentes na sociedade. Não há como não perceber

6 Para uma análise mais aprofundada dos aspectos comuns e distintos entre história e memória nas
abordagens ao passado, ver capítulo 1.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 139

a história do filho, por mais pessoal que seja, como a história de uma nação.
Sua narrativa nos faz refletir sobre os valores e normas presentes na sociedade.

7.3. A memória de nossos pais

No romance K.: relato de uma busca, de 2011, Bernardo Kucinski conta


a história de um pai, “K.”, à procura da filha, desaparecida nos anos 1970 du-
rante a ditadura militar brasileira. O título K. remete ao nome do pai e pode
ser compreendido como uma metáfora do mundo incompleto e enigmático
responsável pelo desaparecimento da filha. Ana Rosa Kucinski, irmã do autor, e
seu marido Wilson Silva desapareceram em 1974, assim como outros militantes
presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança nacional. O romance
não traz os personagens reais, mas o fictício K. nos leva a uma imersão no
universo de arbitrariedades e atrocidades da ditadura militar.
K. foi traduzido para diversas línguas e tem sido o objeto de diversas
análises dentro do campo da crítica literária, que ressaltam o estilo da narra-
tiva entre o real e o fictício.7 O objetivo aqui é resgatar sua contribuição aos
estudos da memória. No Brasil, a anistia negociada no momento de transição
do governo militar para o civil garantiu a impunidade de criminosos e foi
responsável pelo apagamento de registros de torturas, mortes e ocultação
de cadáveres. Arte e ficção têm cumprido um papel fundamental nesse
contexto, pois podem tornar visíveis violações, traumas e sofrimentos que
não têm registro; em outras palavras, as escritas literárias têm ressuscitado
os mortos e desaparecidos.
Theodor Adorno (1998) afirmou a impossibilidade da poesia após
Auschwitz. No romance de Kucinski, K. admite não ser capaz de fazer litera-
tura com o desaparecimento da filha, um impedimento moral. Alguns autores
percebem a possibilidade da escrita do passado através de seus descendentes.
As experiências recalcadas pela dor da primeira geração não são narradas,
não são capazes de gerar poesia, mas são transmitidas para filhos e familiares
próximos e estes são capazes de escrever sobre elas. Ao escrever sobre a pós-
-memória, Marianne Hirsch (2008) enfatizou que o conhecimento do passado
aparece de maneira mais distanciada e reflexiva na segunda geração, superando
as lembranças reprimidas pela dor e sofrimento. Dentre os diferentes tipos de
memória, Ricoeur analisou também o par “evocação/recordação”. Desta vez,
trata-se de pensar não apenas os diferentes níveis de consciência presentes
na memória, mas a chegada do passado sem ser convocado (Ricoeur 2000).

7 Para uma análise literária do romance, ver, por exemplo, Russo 2017.
140 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Kucinski é jornalista e foi assessor da Presidência da República entre 2003


e 2006, durante o governo do Partido dos Trabalhadores. Contudo não é ele, o
irmão engajado, quem faz a denúncia do regime. Diferentemente de Paiva, ele
não trouxe seu testemunho como irmão, ou mesmo como filho, mas construiu
uma narrativa fictícia. Diferentemente de Kundera, por exemplo, o autor não
se confunde com seu personagem. K., pai da filha desaparecida, personagem
do romance, não era um militante, não participava de qualquer movimento
político e não era nem mesmo um crítico do regime. Mais que isso, ele não
fazia a mínima ideia do engajamento da filha com a oposição ao regime. Ao
utilizar o recurso ficcional da narrativa, o autor afasta-se do propósito de dar
seu testemunho ou mesmo de representar o real de forma “verdadeira”. Isto
seria impossível, devido até mesmo aos limites de fontes e testemunhos, uma
vez que sua irmã foi assassinada e não deixou depoimentos. Kucinski fez o
resgate do passado a partir de uma rede fictícia de tramas, que é mais densa
que qualquer descrição de fatos que tivesse por base o real. A fantasia, contudo,
apresenta-se em consonância com fatos políticos e sociais que se reconhecem
como verdadeiros. O sofrimento cotidiano do pai está no centro do romance
do filho. É através dele e junto com ele que o leitor vai sendo notificado dos
espancamentos brutais, dos gritos, da violação do corpo da filha, da intensa
crueldade e indignidade humana.
Marcelo Rubens Paiva e Bernardo Kucinski, em estilos diferentes, lidam
com o mesmo tema: a dor daquele que luta pelo direito de enterrar seu ente
querido. Os mortos precisam estar presentes para que o luto ocorra, mas o que
fazer quando os corpos desaparecem? Como um pai ou um filho pode lidar
com a perda contínua, ferida aberta que não se fecha? Em Kucinski, amor e
responsabilidade aparecem no romance através dos vários questionamentos
que o pai faz sobre seu relacionamento com a filha. Não deveria ter sido mais
presente, mais atento? Como pôde negligenciar o cuidado com aquela que lhe
era tão preciosa? Porque não soubera do casamento da filha?
Para ocultar os assassinatos, as autoridades faziam desaparecer os corpos.
Registros se mantiveram apenas entre os militares, que continuam até hoje com
controle sobre os arquivos daquele período. Até os dias atuais, familiares de
muitos daqueles que desapareceram ainda não têm conhecimento das circuns-
tâncias integrais dos desaparecimentos, assassinatos e do local onde poderão
ser encontrados eventuais restos mortais. Até hoje não houve um comprome-
timento com o acesso à verdade e à justiça por parte do Estado brasileiro, nem
reconhecimento dos assassinatos, nem fornecimento de atestados de óbitos,
nem julgamento dos autores dos crimes cometidos.
Kucinsky entrelaça testemunhos pessoais e situações coletivas. À medida
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 141

que K. vai batendo à porta das autoridades, das diversas instituições sociais
e religiosas, dos grupos profissionais e familiares, fica evidente que a lem-
brança de K. não diz respeito apenas a ele, mas a todos nós, pois traz de volta
a dignidade humana para todos que o seguem em sua jornada. A filha era
professora de química e K. denuncia o distanciamento de seus colegas, cujo
mal-estar aparece apenas pela impossibilidade de dar sequência à burocracia
universitária e ocupar a vaga da desaparecida. A imprensa não denunciava, as
testemunhas calavam-se.
No romance, K. chegara ao Brasil jovem, fugindo da ameaça nazista.
Como imigrante polonês e judeu, ele acaba por se deparar novamente com
a violência destruidora de um Estado, com contornos semelhantes aos da
catástrofe deixada para trás. Em algum momento desabafa, pois se vê diante
de uma situação inusitadamente cruel, pois até os nazistas, que reduziam suas
vítimas a cinzas, registravam os mortos. Denunciou a falta de sensibilidade de
um rabino, que não permitiu a colocação da matzeivá sobre o túmulo, sabendo
este que o corpo não estaria presente – o que era impossível –, mas que a lá-
pide permitiria a lembrança de sua filha. K. traz assim à tona a dificuldade de
autoridades religiosas, para as quais o passado do Holocausto estava presente,
responderem ao novo tipo de violência. Essa passagem nos mostra como uma
experiência passada pode não se abrir a novas experiências, constelações que
se formam, muito embora esteja presente como marca.

7.4. A memória dos ancestrais

Itamar Vieira Júnior ganhou o importante prêmio Leya de literatura


em 2018, pelo livro Torto arado, o que o permitiu publicar esse seu primeiro
romance. Recebeu ainda os prêmios Jabuti e Oceanos. A premiação, segundo
depoimento do próprio autor, possibilitou que seu livro tivesse projeção e apoio
de editoras; abriu portas em um país onde os recursos e incentivos públicos
ainda são muito direcionados para uma parcela privilegiada da população.8 E
aqui já começamos a tratar do tema do livro, que narra as trajetórias de vida
de Bibiana e Belonísia, a partir do olhar de um autor jovem e ciente da impor-
tância da arte na denúncia das injustiças impostas pela sociedade patriarcal.
O livro foi lançado em 2019 e, de acordo com as entrevistas dadas pelo
autor, é um trabalho de vida inteira. O título foi encontrado aos 16 anos nos
versos de Tomás Antonio Gonzaga, do poema Marília de Dirceu. Data da mesma

8 Ver a entrevista com o autor em https://www.geledes.org.br/toda-arte-e-politica-diz-itamar-vieira-ju-


nior-vencedor-do-premio-leya-2018/. Acesso 08/02/2021.
142 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

época o desenho da trama principal, que ganhou páginas posteriormente


perdidas. Foi preciso amadurecer por meio de uma formação ampliada para
que o autor pudesse dormir e acordar com os personagens. Estes cresceram a
partir das incursões em comunidades rurais, das idas às comunidades e das
observações sobre a liberdade e a violência exercidas sobre os corpos daqueles
que labutavam no campo.
A obra é ficcional, mas surgiu do trabalho dedicado de um escritor negro
que teve oportunidade nos estudos a partir da bolsa Milton Santos, oferecida
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Geógrafo, doutor em antropologia
e estudos étnicos, funcionário do INCRA (Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária) e com várias incursões ao interior do país, Vieira Júnior
teve a oportunidade de dar voz a personagens que são silenciados em nossa
sociedade. A partir de seu aprendizado e de sua vivência, ele nos oferece uma
descrição detalhada da vida de uma comunidade no interior do estado da
Bahia em sua luta pela sobrevivência, pela terra e por uma vida melhor. A
narrativa que é criada parte de uma memória afetiva do próprio autor, que
descreve os traços de seus personagens com uma delicadeza e uma ternura
que evidenciam sua proximidade com o universo descrito. Assim lemos que
a pele negra das irmãs ficava acobreada quando coberta pela polpa do buriti,
que os cabelos crespos de Crispina estavam enredados em pétalas de flores e
folhas secas, ou ainda que os lábios do pai eram grossos e antigos. Distante
das descrições estigmatizadas, o olhar afetuoso une os traços físicos à força e
resiliência dos diversos personagens. Essa escrita certamente tem ressonância
entre os brasileiros de diversas origens, principalmente entre aqueles que
estabelecem vínculos e conexões com o passado dos africanos.
A história é narrada por duas irmãs e por um ser encantado espiritual, que
atravessou o Brasil colonial e o período da escravidão, intervindo na realidade.
Logo nas primeiras páginas, um acidente marca as irmãs e nos acompanha
durante toda a leitura e o desenrolar do enredo. O drama das personagens
é narrado a partir da saga de uma comunidade que se localiza no sertão da
Bahia, em uma região demarcada por dois rios, Utinga e Santo Antonio, onde
o trabalho na terra está sempre presente. Limpar o terreno, arar a terra, plantar
e colher fazem parte do cotidiano, do modo de ser e de compreender a vida
dos moradores de Água Negra.
Principalmente pela voz de Belonísia, irmã para quem a relação com a
terra se mostrou mais forte, vamos seguindo as plantações de arroz nas margens
do rio; a resistência das vagens de feijão; os pés de tomate, quiabo e abóbora;
e as árvores sagradas do cerrado, como buritizeiro, umbuzeiro e jatobá, com
seus nomes de origem indígena, oferecendo raízes e frutos aproveitados na
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 143

alimentação. A vida também segue através da pesca nos rios e da caça de ani-
mais pequenos na mata. Contudo, é Salustiana, a mãe, parteira local, que nos
deixa a declaração mais forte do pertencimento à terra:

(...) Não sei se a senhora sabe, mas eu peguei em minhas mãos a maioria desses
meninos, homens e mulheres que a senhora vê por aí. Sou mãe de pegação deles.
Assim como apanhei cada um com minhas mãos eu pari esta terra. Deixa ver
se a senhora entendeu: esta terra mora em mim”, bateu com força em seu peito,
“brotuo em mim e enraizou.” “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da
terra. (...) No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da
senhora e de seu marido. (Vieira Júnior 2019: 229-230)

Para quem vive da terra, a seca é uma ameaça e aparece ao longo da história
trazendo tempos difíceis: o medo da expulsão da terra e o medo mais imediato
da fome. A plantação de arroz, às margens do rio, é a primeira a morrer, mas
depois definham a cana, as vagens de feijão e todo o roçado. Até as árvores
também secam, e são poucos os frutos, como os da frondosa jatobá, que se
aproveitam. No meio da penúria, os assentados, sem direito à terra, ainda são
submetidos aos saques do pouco que têm pelos donos da fazenda, que exigem o
pagamento. Da diminuição do volume das águas do rio até a seca total, quando
não há mais peixe para comer, nem mesmo os pequenos, os fortes laços de
parentesco e a solidariedade do vizinho estão presentes na divisão da farinha
e nas esperanças compartilhadas. Essa é a história do romance, da ficção, mas
que está presente na vida real.

Moradores da Comunidade São José no município de Lençóis (BA), se reuniram


na última quinta-feira (18) no leito do rio Utinga para denunciar a morte do rio
e os projetos de empresas de monocultura que vem deixando a população sem
água e causando as mortes dos animais e dos peixes.9

Esta notícia, dentre outras, foi publicada pela Comissão Pastoral da Terra
nacional, denunciando a seca do rio Utinga pela sétima vez entre 2016 e 2018.
Devido aos grandes empreendimentos de monocultivo e da criação de gados de
corte, houve o colapso da bacia hidrográfica do Rio Paraguaçu, na região central
do estado da Bahia. Subsistemas próximos, como o do rio Utinga, deixaram

9 Disponível em https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/4091-o-colap-
so-hidrico-da-bacia-hidrografica-do-rio-paraguacu-e-o-eminente-conflito-entre-os-usuarios. Acesso
08/02/2021.
144 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

centenas de famílias de assentados, pequenos agricultores, quilombolas, indí-


genas e pescadores endividados e passando fome. As políticas governamentais,
cada vez de forma mais direta, defendem o mito do desenvolvimentismo da
região através do agronegócio. Os grandes latifundiários são beneficiados por
políticas públicas, em detrimento das políticas ambientais.
A história da família de José Alcino, ou Zeca do Chapéu Grande, é também
uma história da desigualdade fundiária. Bibiana se apaixona por seu primo
Severo na adolescência e eles saem de Água Negra. Quando voltam, Severo, já
tendo frequentado sindicatos e ciente dos direitos à terra, torna-se uma lide-
rança local. Contudo, o jovem ativista respeita o papel desempenhado pelo pai
de Bibiana, Zeca do Chapéu Grande, guia religioso da comunidade respeitado
por todos, na mediação com os donos da terra e com Sutério, o capataz que
vigia a produção e impede as casas de tijolos. Após a morte do ancião, Severo
se torna a liderança local. Quando ele é assassinado, a polícia fecha o caso com
uma falsa acusação ao morto, que se torna o culpado pelo suposto plantio de
maconha e pela guerra do tráfico de drogas.
Os conflitos constantes, o assassinato de uma liderança e a impunidade,
como aparecem no romance, fazem parte da vida cotidiana dos trabalhadores
rurais no país. Nem sempre a imprensa dá destaque ao que acontece, mas ainda
assim não são poucas as notícias que nos chegam.

Foi enterrado na tarde de hoje (26) em Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia, o


corpo de Márcio Matos, 33 anos, dirigente do MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra) no estado. Marcinho, como era conhecido, foi assassinado
na última quarta-feira (24) em sua própria casa, no assentamento Boa Sorte em
Iramaia, na região da Chapada Diamantina.10

O assassinato de Márcio Matos, filho do ex-prefeito de Vitória da Conquista,


em 2018, ano em que Itamar Vieira Júnior ganhou o prêmio Leya, faz parte
da violência costumeira contra trabalhadores e trabalhadoras do campo no
Brasil, evidenciando que a luta pela terra é uma questão crucial para o país.
Temos um assassinato após o outro, e nada se modifica nesse cenário. A bru-
talidade no campo consegue ser ainda mais dramática que sua representação.
Márcio foi morto por cinco disparos de arma de fogo em sua própria casa,
na frente do filho de apenas seis anos. O assassinato de Chico Mendes – uma
morte anunciada ocorrida em 1988 – foi talvez a que tenha alcançado maior

10 Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/assassinato-de-li-
der-do-mst-na-bahia-foi-encomendado-afirma. Acesso 08/02/2021.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 145

repercussão, dada a projeção obtida pelo ambientalista e sindicalista em sua


luta pela reforma agrária e pela conservação do meio ambiente. Ainda assim,
a impunidade dos mandantes dos assassinatos, donos de terra e grileiros,
continua sendo a regra nesses casos.
A política de incentivo à geração de pastos para criação de gado e aos
grandes monocultivos, como os de eucalipto, soja e milho, tem sido responsável
pela devastação ambiental da Amazônia e do Cerrado, ocasionando desmata-
mento, seca de rios e o aumento das queimadas. Essa política se intensificou a
partir de 2019, com a flexibilização de leis e regras de proteção e de preservação
das áreas ambientais indígenas e com a desarticulação de instituições que se
voltavam para a defesa do meio ambiente, como Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Instituto Chico Mendes
de Conservação e Biodiversidade (ICMBio). Além de cortes nos orçamentos,
demissão e diminuição de funcionários dos órgãos de fiscalização ambiental,
há também uma construção discursiva que reitera a brutalidade existente e
responsabiliza de má fé povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos por todo o
desastre ambiental ocorrido. A certeza da impunidade tem estimulado a inva-
são de terras de reservas indígenas, Áreas de Preservação Permanente (APPs)
e assentamentos, colocando centenas de comunidades em risco.
No romance, o segundo proprietário de terras acena para a preservação da
mata em um ambientalismo conservador, que no entanto traz maior preocu-
pação à comunidade, pois o novo projeto de conservação ambiental envolve a
expulsão dos moradores de suas terras. Nem mesmo nesse momento de suposto
respeito à natureza o direito dos trabalhadores é respeitado.
Vieira Júnior evidencia como povos indígenas e quilombolas lutam por
seu pedaço de terra, sendo expulsos e vagando daqui para acolá, à procura do
reconhecimento de seus direitos. A trajetória da avó Donana, do alto do São
Francisco até as terras próximas ao rio Santo Antonio, mostra como os traba-
lhadores se tornam errantes e sujeitos à precariedade do trabalho. No trajeto
esses povos se identificam como indígenas ou quilombolas interagindo com as
legislações e políticas fundiárias do Estado. As identidades não são fixas, mas
flutuantes: elas se constroem em processos de luta pela sobrevivência, nutrem-se
de fragmentos do passado que ora são configurados de uma forma, ora de outra.
A trama da narrativa está associada à memória da ancestralidade desses
povos errantes e sofridos, a quem foi negado o direito à terra. Há uma tentati-
va de lembrança dos antepassados, mas estas não vão além de duas gerações.
Donana, a mais velha, lembra-se de Bom Jesus em Lagoa Funda. Sua avó
contava que os negros tinham chegado lá e se assentado, mas foram expulsos
pela Igreja, que dizia ter posse da terra, e pelos fazendeiros, que mostravam
146 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

documentos e cercavam as terras. Lá não se falava em escravidão, ninguém


queria falar sobre o assunto. Bibiana comenta que talvez fosse difícil falar de
coisas ruins, identificando o esquecimento entre os que vivenciaram experiên-
cias traumáticas. O passado, contudo, está presente todo o tempo na narrativa
através do Jarê, uma religião sincrética entre catolicismo rural e candomblé
que existe apenas na Chapada Diamantina. Os rituais que ocorrem na casa
de Zeca Chapéu Grande fortalecem os laços de parentesco e de solidariedade
entre os moradores, nos quais o cuidado com o outro está sempre presente.
São, ainda, os seres encantados do Jarê que possibilitam a continuidade entre
passado e presente.
A terceira e última parte da narrativa é feita pela Santa Rita Pescadeira,
entidade que, a partir da morte de Zeca Chapéu Grande e do fechamento do
Jarê, ficou sem “cavalo”, ou seja, sem uma pessoa que a incorporasse, para se
expressar. É ela quem conta como o rio de sangue corre do passado para o
presente, pois testemunhou todo tipo de crueldades desde o tempo da escra-
vidão: os senhores enforcando os escravos, mulheres incendiando seus corpos
por não aguentarem mais o cativeiro, mães retirando seus filhos do ventre para
que não fossem escravos, pais enlouquecendo por serem separados dos filhos
e as mãos decepadas na época do garimpo. Apenas a entidade tem o registro
da escravidão, das crueldades do tempo do garimpo e da peregrinação em
busca pela terra. Os moradores de Água Negra se lembram de alguns fatos
e personagens de forma episódica. O “coronel” Horácio de Matos surge nas
conversas, por ter sido o maior de todos os chefes de jagunços, aqueles homens
do sertão que, sob suas ordens e por meio da força, subjugaram mais de dez
mil trabalhadores.
A procura de diamantes na Chapada Diamantina teve início em meados do
século XIX e se estendeu até os anos 1970. A febre da mineração foi responsável
por duas correntes migratórias que entraram em confronto, uma originária do
vale do São Francisco e outra do Recôncavo Baiano, esta última trazendo os
mineradores que defendiam os interesses de Portugal. Entre os trabalhadores,
as práticas de candomblé se amalgamaram com as do catolicismo e com aquelas
dos povos indígenas. No início do século XX, a mineração entrou em decadên-
cia e com ela os centros urbanos que se formaram, como Lençóis, Andaraí e
Mucugê. A região foi dominada pelos coronéis. Com a exaustação das jazidas,
chegaram as dragas para a extração, poluindo os rios e, também, a extração
ilegal que se estendeu até o final do século XX (Teixeira 1998).
Em Torto arado, os males trazidos pelos garimpos na região da Chapada
Diamantina estão sempre presentes entre os personagens, mas os testemunhos
não existem mais. Os rituais desempenham um papel importante na transmissão
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 147

de tradições e práticas culturais de tempos imemoriais. Zeca Chapéu Grande


recebe a encantada Iansã, Santa Bárbara, nos rituais do jarê, vestindo roupas
de mulher a contragosto, mas não recusa seu papel e abre a casa para os ataba-
ques, para a presença dos encantados e para a ajuda aos que dele precisam. A
transmissão de tradições ocorre quando determinada performance ocorre ao
longo do tempo, quando práticas são reiteradas e reproduzidas. Fragmentos
do passado são mantidos vivos: a partir das reencenações que se renovam, eles
permanecem presentes nos corpos e mentes e em seu retorno são capazes de
forjar laços de solidariedade, de legitimar determinada coletividade, embora
o significado original tenha se perdido entre gerações. Nas práticas do Jarê
há a memória dos ancestrais compartilhada. Tradições são dinâmicas, elas se
transformam, se unem a novos significados, sofrem amálgamas, mas raramente
são perdidas por completo.
A nossa experiência do presente depende em grande parte das vivências
do passado. Comemorações que são performativas envolvem a noção de me-
mória-hábito, ou seja, do aprendizado que é adquirido na repetição de uma
ação pelo corpo, sem que os performers tenham consciência da origem de todas
as fases do processo. No caso dos rituais, as memórias são transmitidas, não
pela linguagem verbal ou escrita, mas, sim, pela linguagem corporal. O passado
é transmitido independentemente da vontade explítica de recordar, pois está
presente em gestos, em sentimentos, no movimento e no ritmo da música.
Podemos, portanto, compreender que a participação na comunidade do
jarê proporciona pertencimento. Ao seguir nos estudos, Bibiana é capaz de
substituir a história de heróis distantes, que tanto incomodaram Belonísia,
pela história do povo negro, uma história triste, mas bonita; procura incutir
nas crianças o respeito por suas próprias histórias. A mudança, nesse caso, da
inscrição do passado está associada ao sentido de pertencimento, reproduzidos
pelos ritos religiosos e pelos laços de parentesco. São nos encontros do jarê que
todos aqueles personagens se identificam enquanto parte de um todo.
No final da leitura, Santa Rita Pescadeira traz alento e justiça para a
comunidade fustigada pela continuidade da exploração: colonato, minera-
ção, o salário que não paga as compras da mercearia, a luta constante pela
sobrevivência básica. A pergunta que não cala é se a escravidão foi de fato
abolida. Em suma, no romance tudo é ficção, mas nele também encontramos
o que acontece na vida real, que nem sempre tem testemunhos ou está regis-
trado nos livros e documentos do passado. Santa Rita Pescadeira nos mostra
a importância da memória, mesmo a que se perdeu entre gerações, a partir
do resgate da ancestralidade. Divulga a fragilidade em que vive parte de nossa
população, a farsa da liberdade pós-abolição, a incapacidade que tiveram os
148 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

inúmeros regimes políticos deste país de proteger as populações ribeirinhas,


quilombolas e indígenas que dependem da terra. Mas, antes de tudo, ela nos
mostra que os moradores de Água Negra, tal como nós, anseiam por liberdade
e pelo direito à justiça.
VIII
Memória e tecnologias digitais
No país da técnica, a visão da realidade pura é uma flor azul.
Benjamin 2012:26

A escrita, as imagens e a cultura material têm cumprido o papel de transmitir


significados entre indivíduos distantes entre si. Documentos, livros, objetos,
sítios históricos e fragmentos materiais perdem seus contextos de origem e
adquirem novos significados quando são levados para arquivos, museus e
cidades históricas. A seleção desses objetos por especialistas e sua sacralização
ou monumentalização faz parte de relações de poder. Como já foi mencionado,
Walter Benjamin já advertia em suas teses sobre o conceito de história que
os documentos da cultura eram os registros da barbárie (Benjamin 1985). O
conjunto de objetos, sítios, museus e monumentos de uma nação tem reitera-
do a visão dos vencedores em detrimento de diversas manifestações culturais
que são marginalizadas. Além dos suportes tradicionais associados à história
e à memória, há um imenso conjunto de meios de comunicação que transmi-
tem significados ao longo do tempo. Romances, filmes, artigos acadêmicos,
programas de rádio e televisão e, nas últimas décadas, as diversas formas in-
terativas oferecidas pela internet cumprem os mesmos papéis de preservação
e transmissão de significados. É, de novo, Benjamin quem nos adverte sobre
a dificuldade de acesso à realidade por meio da tecnologia (Benjamin 2012).
Precisamos destacar não só que os significados e interpretações são atribuídos
por aqueles que selecionam objetos, ou seja, pelos mediadores entre passado
e presente, como também que o formato da mídia incide em novas interpre-
tações. As múltiplas interpretações e reinterpretações do passado fazem parte
dos processos históricos nos quais nos inserimos. Neste capítulo, nossa análise
recai sobre a relação entre memórias coletivas e as novas tecnologias digitais.

8.1. Democratização de produção e acesso

As novas tecnologias estão associadas à aceleração do ritmo de vida,


à produção descentralizada e à formação de redes sociais em níveis locais,

149
150 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

nacionais e transnacionais. Elas trazem diversas promessas de ampliação da


comunicação entre setores distantes no tempo e espaço. No caso da tecnolo-
gia digital, a capacidade de reprodução com baixo custo de acervos novos e
existentes possibilita a criação e divulgação de novas narrativas, histórias e
olhares para o passado.
A promessa de democratização das informações está relacionada à facilidade
de produção e transmissão de informações. Com a internet, uma informação
pode “viralizar” e ser influente entre milhões de pessoas, bastando para isso um
acesso à rede que muitas vezes é disponibilizado de forma gratuita. Os meios
de comunicação convencionais, como jornais, rádios e televisões, transmitem
informações a partir de investimentos públicos e privados de custo bastante
elevado. Indivíduos e grupos sociais podem aceitar ou rejeitar essas infor-
mações, mas seus pontos de vista podem ser facilmente eliminados da esfera
pública por um agregado de empresas de comunicação controlado por setores
dominantes da sociedade. A internet permite o rompimento desse controle. A
chamada generosidade digital atua positivamente nas áreas de armazenamento
e de divulgação de informações. Apesar das idealizações e promessas, o espaço
digital, como veremos a seguir, tem importantes limitações.
A democratização da informação depende do controle ao acesso à internet,
como também das plataformas e aplicativos existentes, que são diferenciados e
não se distribuem da mesma forma na sociedade. O controle sobre a internet
e sobre os usos de aplicativos recentes, como Facebook, está mais centralizado
que nunca, sendo que mesmo os Estados nacionais pouco conhecimento e
controle têm de seu funcionamento. Os estudos sobre a relação entre memória
e as novas tecnologias de informação apontam para situações extremas –con-
trole absoluto ou liberdade sem limites –, o que é bastante insatisfatório, pois
não fazem justiça nem à diversidade de formas de lembrar o passado nem ao
desenvolvimento complexo por que têm passado os sistemas de comunicação.
Como foi destacado em capítulos anteriores, o Brasil é um país atravessado
por desigualdades sociais e injustiças que hierarquizam e discriminam largos
setores da população, os quais passam a ter espaços de sociabilidade diferen-
ciados, bem como atividades culturais e linguagens próprias de resistência e
autovalorização. A análise de um caso concreto permite alguns avanços teóricos,
pois diminui o número de variantes a considerar. Portanto, investigaremos a
capacidade de democratizar a produção e o acesso ao passado pela mídia a
partir de um estudo de caso, a experiência do Museu Afrodigital Rio de Janeiro.
Não só a autora foi uma das coordenadoras iniciais do projeto, como alguns
artigos e livros já foram escritos sobre o tema, facilitando o acompanhamento
das questões levantadas (Ferretti 2012; Sansone 2013; Santos 2015b).
M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 151

O projeto teve início em 2009 e fez parte de uma iniciativa nacional,


coordenada pelo antropólogo Livio Sansone, professor e pesquisador da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). A partir de uma colaboração inicial
com o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), foi estabelecido o objetivo
de digitalizar arquivos não acessíveis à comunidade acadêmica e ao público
de países africanos e latino-americanos e disponibilizá-los através de mu-
seus ou exposições digitais. Além disso, a criação de cursos internacionais
à distância e a edição de livros virtuais ou impressos em diferentes línguas e
formatos estavam entre os propósitos a ser alcançados. Foram feitos contatos
com instituições nacionais e estrangeiras, como Biblioteca Nacional, Arquivo
Nacional, Smithsonian, Unesco e Melville Herskovits Library, para que os
documentos fossem digitalizados e disponibilizados ao público. Nesse mesmo
ano, se consolidaram as participações de outros grupos universitários (UERJ,
UFPE, UFMA, UFRN) que se organizaram com objetivos similares, mas de forma
relativamente autônoma e independente.
O Museu Afrodigital Rio de Janeiro teve início nesse período, com o
objetivo de selecionar e disponibilizar gratuitamente imagens e textos rela-
cionados às culturas afrobrasileira e africana. Pesquisadores e militantes de
diversas organizações e instituições se agregaram inicialmente à proposta,
desenvolvida por um grupo de professores da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Foram valorizadas pesquisas que se voltavam para revisões
históricas, práticas cotidianas da população afrodescendente e para o combate
ao racismo, na direção das demandas já presentes nos movimentos negros.
Destaco, entre outras, as pesquisas sobre capoeira, feira das Yabás, quintais
da grande Madureira, mandigueiros, quilombos, cultos a Iemanjá e a festa
de São Jorge. São pesquisas que trazem para o centro da atenção importantes
manifestações populares que estão presentes nos subúrbios e favelas cariocas,
mobilizando milhares de pessoas sem terem repercussão, no entanto, na grande
imprensa. Os temas são veiculados por meio de textos, imagens, vídeos e, em
alguns casos, material didático para o ensino médio.
As exposições sobre a cultura dos afrodescendentes trazem com elas ques-
tões políticas, como o hiato entre as comunidades quilombolas reconhecidas
e certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em número superior a
dois mil grupamentos, e as comunidades que conseguiram a propriedade da
terra certificada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), que se restringem a duas centenas. A tentativa dos pesquisadores de
dar protagonismo às comunidades que são objeto de investigação está presente
na maior parte das exposições. No caso da exposição “Quilombos do Rio”,
de autoria dos professores e pesquisadores Javier Lifschitz e Márcia Leitão
152 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Pinheiro, por exemplo estão presentes tanto a tentativa de proximidade com


as comunidades, como o foco comum na luta pelo direito à terra:

O material fotográfico em destaque, que compreende elaborações de pesquisa-


dores acadêmicos, bem como registros das comunidades por seus integrantes
explicita o visual como dimensão de discussão da luta por assegurar o direito à
terra, bem como às comemorações ligadas ao reconhecimento das comunidades.1

Esse trabalho de pesquisa universitário, que tem por foco comunidades


ribeirinhas, quilombolas, indígenas e das periferias urbanas está no centro das
iniciativas das outras plataformas digitais coordenadas pelas demais univer-
sidades citadas. Destaco o vídeo sobre a comunidade do Seridó, produzido
e divulgado pela plataforma criada pela equipe de professores e alunos da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).2 O vídeo tem como
base a pesquisa “Tronco, ramos e raízes: História e patrimônio cultura do
Seridó negro”, organizada pelos professores e pesquisadores Julie Cavignac
e Muirakytan K. de Macedo. O trabalho se inicia com o seguinte parágrafo:

Entre outros desdobramentos, a Constituição de 1988 obrigou a sociedade


brasileira a enfrentar o seu passado colonial e a refletir sobre as marcas que a
escravidão deixou de pois de quatro séculos de dominação e segregação racial.
Há ainda poucos avanços em particular no que diz respeito à aplicação dos
direitos constitucionais visando a reparação histórica; processo moroso e difícil,
sobretudo quando se trata de regularização fundiária. Boa Vista, comunidade
quilombola localizada no Seridó potiguar, iniciou uma longa jornada para
conseguir a titulação do seu território em 2004. Oferece a possibilidade de
conhecer o devir das populações africanas trazidas à força para o Brasil e que
em um certo momento da sua história, conquistaram a liberdade (Cavignac
& Macedo 2010: 9).

As exposições procuram trazer reflexões para um público ampliado,


tematizando acervos coletivos que se vinculam às contradições presentes na
sociedade. A problematização da diferença, da identidade e do reconhecimento
se vincula com as mobilizações religiosas, artísticas e políticas que resistem em
mais um espaço de luta e resistência.

1 Disponível em http://www.museuafrorio.uerj.br/?work=quilombos. Acesso 05/04/2021.


2 Disponível em http://museutronco.cchla.ufrn.br/videos/4320ebff-3208-4460-87ee-cfdf90d2082e. Acesso
05/04/2021.
M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 153

Ao serem criadas, as propostas delineadas estavam em consonância com


políticas culturais mais amplas. Em 2010, no âmbito federal, foram criados o
Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC) com
o intuito de potencializar a ação governamental. Além da manutenção da de-
fesa e da valorização do patrimônio cultural brasileiro, meta já presente nos
governos anteriores, foram eleitas como questões prioritárias a valorização das
diversidades étnica e regional e a democratização do acesso aos bens culturais.
A partir da premissa de que todo cidadão tem direito à cultura, surgiram os
programas de inclusão social, dentre os quais se destacou, desde 2014, o pro-
grama “Pontos de Cultura” que deu suporte a um grande número de projetos
locais, promovendo não só o acesso às novas tecnologias por populações de
baixo poder aquisitivo, mas o protagonismo cultural destes setores. O Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM) e o Estatuto de Museus foram criados em 2013,
passando o governo a atuar na distribuição de recursos para os museus a par-
tir de editais públicos. Desde 2009, o programa Pontos de Memória, que fora
criado em parceria com os programas Mais Cultura, do Ministério da Cultura
e do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (PRONASCI), do
Ministério da Justiça, procurava apoiar e fortalecer a gestão participativa em
iniciativas comunitárias.
Durante sua gestão no Ministério da Cultura (2003-2008), Gilberto Gil
não só defendeu como permitiu a apropriação social da informação (Biscalchin
2018). Embora o uso de softwares livres não tenha sido exclusividade dos
governos petistas, o impacto dessa medida no âmbito das artes foi relevante.
A política do governo foi um marco na área da cultura, bastante atrelada às
novas tecnologias de informação. O objetivo de possibilitar o acesso às novas
tecnologias para todos implica no desenvolvimento de ferramentas que não
se restringem a especialistas. Para se manter um sítio eletrônico (website, site)
ativo na internet são necessários um serviço de hospedagem e um programa
que permita a inserção de dados. A gratuidade e a socialização da produção
e uso destes serviços abre espaço para a inclusão digital.
A partir de 2013, houve um desmonte progressivo dessas políticas de
democratização da produção e acesso aos softwares.
O Museu Afrodigital fez parte de um conjunto de ações institucionais que
se voltaram para a democratização da produção e do acesso a documentos e
informações que eram importantes para a população afrodescendente e para
o combate à discriminação racial em todas as suas formas. Embora a proposta
tivesse surgido no meio universitário, o objetivo do projeto era extrapolar a
esfera acadêmica. O Museu inicialmente teve por objetivo incorporar à sua
direção a contribuição de lideranças religiosas, políticos, ativistas negros,
154 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

sindicalistas, escritores, historiadores, artistas plásticos, músicos (eruditos e


populares), mestres e capoeiristas, lideranças e participantes de quilombos.
Em tese, o arquivo digital seria capaz de armazenar fontes orais e escritas
pouco conhecidas e cruciais para a recomposição da memória afro-brasileira.
Fariam parte do acervo recortes de jornais, documentos pessoais, cartas, atas,
textos originais e não publicados, poesias, receitas culinárias ou da medicina
tradicional, fotos, iconografia, gravações e partituras de músicas, depoimentos
(já gravados ou produzidos), rezas, cantigas, reproduções de objetos ou artefatos
da cultura material, filmagens e gravações de eventos culturais ou políticos. As
expectativas em relação ao projeto eram muitas. Embora os museus tradicionais
tenham recursos e acesso às novas tecnologias, reproduzindo as imagens de
seus objetos e alcançando um público mais amplo, eles são determinados pela
estrutura administrativa, financiamento, acervo e pela linguagem institucional.
Os museus digitais, ao se constituírem no ambiente digital, poderiam alcançar
maior autonomia em relação aos patrocinadores e maior flexibilidade em sua
organização para desenvolver linguagens que estão à margem dos espaços de
poder.
No caso do Museu Afrodigital, há crescimento contínuo de usuários
desde a sua fundação, o que pode ser associado não só à expansão da internet
no país, como também ao interesse específico pelo tema tratado. Esse acesso
precisa ser compreendido a partir de dados ampliados sobre o acesso à internet.
Voltando à questão da grande desigualdade socioeconômica existente no país,
a democratização do uso de informações depende do acesso à internet, tanto
em termos de quantidade como de qualidade.
Segundo uma pesquisa de 2019, três em cada quatro brasileiros acessam a
internet, o que equivale a 134 milhões de pessoas, número que aumenta a cada
ano. Esse acesso varia de acordo com renda, gênero, raça e regiões. Quanto ao
grau de instrução, 97% dos usuários que têm curso superior acessam a rede, em
contraposição a 16% dos analfabetos ou com educação básica. No recorte por
renda, o acesso foi de 94% entre os que recebem acima de 10 salários mínimos
e de 61% para os que ganham menos de um salário mínimo. Os índices variam
bastante entre as pessoas que vivem em áreas urbanas (77%) e rurais (53%). Entre
mulheres (74%) e homens (73%) não há muita diferença. Brancos (75%), pardos
(76%), pretos (71%), amarelos (68%) e indígenas (65%) apresentam diferenças
quantitativas que não são muito grandes em termos de acesso. Mas as diferenças
aumentam à medida que são considerados outros dados, como frequência de
uso, capacidade do dispositivo utilizado – se smartphones, computadores ou
TVs – e tipo de informação acessado. O uso mais sofisticado da rede se concentra
nas mãos de pessoas de classe, renda e escolaridades mais altas. Na ausência
M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 155

de políticas públicas direcionadas, a infraestrutura tecnológica pode levar ao


aumento do distanciamento social, ao invés da tão sonhada inclusão digital. 3

8.2. Limites da mercantilização

No caso do Museu Afrodigital Rio de Janeiro, os entraves derivados do


financiamento representaram importantes limitações à proposta inicial. A
primeira dificuldade se relaciona com o pagamento de uma equipe especiali-
zada. Professores da Universidade assumiram o projeto, sem liberação de carga
horária, e apenas bolsistas foram colocados à disposição, o que dificultou muito
o desenvolvimento do trabalho, que necessita de funcionários com dedicação
permanente. O projeto tornou-se restrito a professores e estudantes universi-
tários, que encaminhavam as atividades em detrimento da dedicação às tarefas
essenciais de ensino e pesquisa. O resultado direto deste tipo de financiamento
foi que o material disponibilizado pelos museus passou a ser em grande parte
o resultado dos trabalhos de pesquisa de professores e alunos universitários.
Em alguns casos, mas não obrigatoriamente, esses trabalhos se vinculam a
comunidades locais e à produção de material didático para o ensino básico.
O segundo desafio foi encontrar um servidor gratuito, ou seja, um sistema
de computadores com processadores e bancos de memória capaz de receber
o programa do Museu. Ao se tornar um projeto universitário, toda a opera-
cionalização do programa passou a ser realizada a partir dos equipamentos
disponíveis pela universidade. Como consequência, a gestão conjunta com
movimentos sociais deixou de ser uma opção. Procurou-se também um pro-
grama que fosse de domínio público e com código aberto, isto é, que pudesse
ser usado, copiado e modificado livremente, sem custos. Após várias tentati-
vas, a equipe desistiu do uso do software livre, pois este requeria profissionais
especializados para inserção de dados, adaptações e modificações, tarefas que
os produtos industrializados oferecem de forma bastante acessível de maneira
a serem operacionalizados por um não especialista. A tensão entre projetos de
código aberto e direitos autorais restritivos foi resolvida nos outros projetos
desenvolvidos da mesma forma. Em suma, embora o software livre permitisse
diversos usos e adaptações às necessidades de cada grupo, os profissionais
capazes de operacionalizar esses programas precisam de um alto grau de es-
pecialização, sendo mão de obra cara e pouco disponível.

3 Para dados estatísticas e projeções sobre a internet no Brasil, ver https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/


noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-Internet-aponta-pesquisa#:~:text=Atualizado%20
em%2026%2F05%2F2020,%2C%20g%C3%AAnero%2C%20ra%C3%A7a%20e%20regi%C3%B5es. Acesso
30/03/2021.
156 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

A questão do financiamento também tem sido crucial, devido à rapidez


na mudança das tecnologias. Há necessidade de modernização das platafor-
mas periodicamente. A obsolescência do material implica no risco de perda
de todos os dados de pesquisa armazenados na página do Museu. A proteção
contra os constantes ataques de vírus digitais requer financiamento e atenção
contínuos, e não é rara a tarefa de recuperação de dados nessa situação. Em
suma, os museus afro-digitais necessitam de financiamento, infraestrutura e
profissionais especializados que se responsabilizem tanto pela parte tecnológica
como pela gestão, pesquisa, arquivo, atividades educativas e divulgação, tal
como qualquer outro museu. No caso do Museu Afrodigital, o financiamento
do projeto tem sido obtido a partir de editais abertos pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) em apoio às pesquisas acadê-
micas. O financiamento, contudo, é esporádico e não garante a continuidade
do projeto. Existe a tentativa neste museu, como nos outros da rede, de que
esses projetos – que surgiram a partir de iniciativas individuais de pesquisa-
dores e com a pretensão de ter uma gestão autônoma e ligada aos movimentos
sociais – passem à esfera administrativa das respectivas universidades. Em
2019, o Museu passou a ser um programa de extensão da UERJ, o que lhe dá
um pouco mais de estabilidade.
Diferentemente de iniciativas mais recentes, como a criação de museus
comunitários em que curadorias partilhadas fazem parte do processo, o Museu
Afrodigital Rio, apesar de se voltar para os diversos movimentos que lutam
contra o racismo, não pode contar com essas lideranças na gestão do projeto.
Como já dissemos, a seleção de temas e documentos a ser preservados e a
escolha de alguns deles para expor por meio de imagens são tarefas realizadas
por um grupo de professores e estudantes universitários. O pertencimento
ao mundo acadêmico tem permitido a manutenção e o suporte financeiro
do projeto, mas também tem limitado sua equipe gestora e sua proposta de
democratização.
O problema poderia ser minimizado se a plataforma que armazena e
expõe os documentos digitais possibilitasse uma interação com o público de
modo a que este pudesse intervir na narrativa produzida. No caso do Museu
Afrodigital Rio de Janeiro, embora a página criada na internet contenha
espaços para comentários e seja acoplada ao Facebook, o grau de interativi-
dade é limitado, pois o internauta não tem o poder de modificar ou interferir
no conteúdo disponibilizado. Embora alguns programas possibilitem uma
interação maior com o público, permitindo inclusive a atualização constante
das informações, esta não é a realidade da maior parte dos programas dis-
poníveis no mercado.
M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 157

8.3. Limites tecnológicos


A nova mídia tem o potencial de diversificar os suportes coletivos de
memória, fortalecer contramemórias e dar voz e visibilidade a novos atores
sociais. É inegável que a construção da memória cultural no mundo atual está
intrinsecamente relacionada às novas tecnologias de informação e comunica-
ção. Não obstante, a possibilidade de universalização do acesso à informação,
maior participação dos usuários e ativismo político à distância dependem
tanto de processos sociais de democratização, como do formato intrínseco às
novas tecnologias, pois este incide no processo de preservação dos dados, que
envolve a guarda de informações sobre o passado.
O projeto inicial “Museu digital da memória afrodescendente”, desenvolvido
em Salvador, conseguiu constituir uma coleção de documentos que foi digitali-
zada no sítio eletrônico www.arquivoafro.ufba.br para disponibilizar arquivos
relativos aos estudos afro-brasileiros, que hoje se encontram dispersos e muitas
vezes fora do alcance do público. O projeto, além de obter apoio financeiro
(Finep, Capes, CNPq), abriu contato com importantes instituições nacionais
e estrangeiras, como Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Smithsonian,
Unesco e Melville Herskovits Library. As primeiras atividades do projeto do Rio
de Janeiro estiveram centradas no levantamento de documentos da Biblioteca
Nacional, do Arquivo Nacional e da Biblioteca Edson Carneiro. Contatos foram
realizados com os responsáveis por algumas coleções específicas, como as de
Oracy Nogueira, Abdias Nascimento e Artur Ramos. Nos dois casos houve
intenção de disponibilizar informações que estavam em instituições públicas
e privadas. No Rio de Janeiro pouco se avançou, uma vez que as instituições
detentoras de documentos, públicas e privadas, não têm interesse em partilhar
seu acervo. As instituições nacionais voltadas para a preservação da memória
ainda não se abriram às novas demandas: a posse do acervo lhes dá prestígio,
ainda que se encontre imobilizado ou restrito ao uso de especialistas. Somente
uma mobilização maior da sociedade fará com que as instituições compartilhem
e abram seus acervos à população.
No âmbito internacional, as novas tecnologias têm possibilitado uma
disputa maior pelo controle e domesticação do conhecimento, a partir da
reprodução e divulgação de textos históricos. Fontes e documentos im-
portantes para a América Latina e África que se encontravam, há décadas,
parados e inutilizados em arquivos dos Estados Unidos e da Europa estão
sendo mobilizados. Os países do chamado eixo “Sul” procuram, através das
novas tecnologias, disponibilizar gratuitamente um conjunto importante de
documentos e informações que foram gerados por seus cidadãos e são do
interesse deles.
158 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Os direitos de imagem por instituições públicas e privadas caminham


na contramão da democratização e da repatriação cultural. O retorno dos
objetos de arte e cultura, como também a cópia ou digitalização sofisticada de
artefatos culturais que podem implicar em conhecimento, capital e poder, são
práticas a ser conquistadas. As dificuldades encontradas são muitas. No caso
do arquivo digital Aluka, por exemplo, que é uma iniciativa internacional que
tem por objetivo disponibilizar uma biblioteca digital da área acadêmica sobre
a África, as imagens estão disponíveis para associados ou assinantes, não são de
domínio público. O nome “Aluka” deriva de uma palavra em zulu que significa
“tecer”, aludindo à missão da Aluka de conectar recursos e acadêmicos de todo
o mundo.4 O projeto, que foi possível a partir de um grande financiamento da
Mellon Foundation, que intencionava torná-lo de domínio público, encontra-se
privatizado e associado à organização “sem fins lucrativos” ITHAKA/JSTOR, que
cobra pelo acesso a diversos títulos e imagens da plataforma. A digitalização
pode substituir a repatriação, mas os critérios e amplitudes de disponibilização
de dados, nesses casos, estarão sempre subordinados às políticas estabelecidas
pelas instituições que têm a posse dos documentos. A Universidade do Texas,
em Austin, e a Sala Latino-Americana da National Library em Washington
DC, por exemplo, têm disponibilizado gratuitamente uma série de importantes
arquivos oriundos da América Latina.
Diferentemente do que acontecia com os meios de comunicação anterio-
res, há ainda muita dificuldade de controle da nova tecnologia de informação
e comunicação. Isso acontece porque não há muito conhecimento sobre seu
funcionamento e por falta de vontade política de interferir em seus mecanis-
mos de atuação. O antropólogo brasileiro Gustavo Lins Ribeiro denominou
“economia da isca” um sistema de produção que oferece de forma aparente-
mente gratuita um serviço sofisticado e recebe, no processo, informações sobre
cada usuário que serão vendidas (Lins Ribeiro 2018). Vejamos a que tipo de
economia ele se refere.
As novas tecnologias têm um grande número de formatos. Servidores
da internet como Google e Firefox oferecem serviços de busca especializada.
Os usuários, ao fazerem suas buscas, fornecem informações sobre quem são e
sobre o que desejam. Os servidores detectam automaticamente as preferências
do usuário e respondem às demandas em um serviço aparentemente gratuito.
O lucro bilionário surge quando o servidor é pago por empresas para colocar
seus produtos no topo da lista de preferências de cada usuário. As propagan-
das são direcionadas e mais efetivas, e os usuários recebem os produtos das

4 Disponível em http://www.aluka.org. Acesso 30/03/2021.


M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 159

empresas que pagam mais pelos seus perfis. Segundo Lins, existe atualmente
um mercado competitivo por palavras-chave que se tornaram signos capazes
de ser facilmente encontrados (Lins Ribeiro 2018). Nesse processo, as diferenças
entre usuário, consumidor e mercadoria se desfazem, uma vez que os usuá-
rios tornam-se mercadorias quando seus perfis são vendidos para empresas.
Quando os perfis dos usuários/consumidores são vendidos para empresas
responsáveis por propaganda política, os resultados são desastrosos, como
aconteceu no escândalo em que estiveram envolvidos o Facebook e a empresa
Cambridge Analytica.
Em redes sociais como Facebook, que cumprem o papel de grandes media-
dores comunicacionais, há um mecanismo automático não só de propagandas,
mas também de seleção de mensagens por algoritmos. O aplicativo forma um
perfil com base em informações dadas pelos próprios usuários. Estes passam a
receber postagens de um número seleto de “amigos”, definidos automaticamente
por critérios estatísticos criados. Interferem no algoritmo o número de curtidas,
comunicação prévia e outros itens que não são do conhecimento ou critério do
usuário. A lógica continua a ser levar para os usuários apenas mensagens que
lhes sejam úteis ou desejadas. Mas, com esse mecanismo, se rompe a troca de
informações entre perfis distintos e as diferenças são cristalizadas.
Outro meio de comunicação bastante utilizado, o WhatsApp, tornou
gratuito o serviço de trocas de mensagens e não tem propaganda associada. O
formato facilita a viralização de mensagens e tem sido bastante criticado por ser
grande aliado da desinformação. Não há controle sobre o conteúdo de mensagens
que são disparadas de forma profissionalizada e se disseminam rapidamente
entre grupos de familiares e de amigos. A fonte confiável de uma mensagem
deixa de ser o especialista e passa a ser o áudio do familiar mais próximo. Essa
prática tem sido uma fonte importante de disseminação de fake news.

8.4. A nova temporalidade digital

São muitos os autores que identificam uma nova subjetividade que se


adapta às exigências do neoliberalismo. O novo empreendedor que acredita
ganhar sua liberdade como trabalhador autônomo, ainda que perca todas os
direitos conquistados pelos movimentos sociais do período industrial, percebe
e vive o tempo de forma também diferenciada. Nos processos modernos de
aceleração impulsionados pelos novos meios de comunicação, as relações en-
tre presente e passado se modificam. Não há consenso sobre o sentido dessas
mudanças. A partir de uma ênfase maior dada às estruturas da linguagem,
a partir dos anos 1980 passou-se a considerar as histórias e memórias não
160 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

apenas como construções sociais que entram em conflito, mas também que
se reproduzem com certa autonomia em relação aos seus agentes. Críticas im-
portantes começaram a questionar a capacidade que temos em tempos atuais
de dar sentido ao passado.
O historiador alemão Reinhart Koselleck analisou as mudanças ocorridas
na historiografia após a Revolução Francesa, sinalizou mudanças na estrutura
da experiência temporal e descreveu a substituição da história magna, que tinha
por base o aprendizado a partir do exemplo passado, por uma abordagem cien-
tífica que procurava a certeza a partir da análise de fontes e eventos singulares.
A história moderna e científica elegeu o distanciamento temporal e, com ele, o
singular e novo, possibilitando o surgimento da concepção de processo, segundo
a qual cada fato único é parte de uma totalidade que o contém. Depurou-se
da história o saber advindo de experiências transmitidas entre gerações e as
lembranças permeadas por sentimentos. O tempo subordinado às experiências
que eram transmitidas entre gerações deu lugar à temporalidade processual
voltada para o futuro (Koselleck 1985).
Essa história linear e que procura alcançar o status de ciência entrou em
crise no século XX. Em seu último texto, “Sobre o conceito de história”, escrito
em 1940, Walter Benjamin criticava com veemência a abordagem moderna de
tempo e história, que procurava ordenar fatos como se fossem contas de um
rosário (Benjamin 1985). As grandes narrativas que ordenavam e atribuíam
sentido e unidade a uma complexidade de fenômenos do passado não se sus-
tentavam em um mundo atravessado por movimentos sociais que passaram
a criticar e denunciar a violência inerente ao perigo da “história única”, termo
que se popularizou após o discurso de Chimamanda Adichie.5
Com intuito semelhante ao de Koselleck, o historiador francês François
Hartog procurou compreender as mudanças ocorridas com o tempo nas úl-
timas décadas do século XX. Segundo ele, a partir de 1989, ou seja, no período
posterior à queda do muro de Berlim e ao surgimento de novas tecnologias de
informação, passamos a conviver com uma nova dimensão espaço-tempo e com
um novo regime de historicidade, que foi denominado por ele de “presentismo”.
Para o autor, a aceleração maior do tempo na vida cotidiana provocada pelas
novas tecnologias provocou a descontinuidade entre passado e presente. Essa
fratura foi identificada na fragmentação das narrativas lineares da história e na
proliferação e excesso de estudos sobre a memória. Os estudos historiográficos
passaram à análise de estruturas simbólicas, procurando indícios do passado
para as novas identidades que se formavam. A experiência moderna do tempo,

5 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc. Acesso 30/03/2021.


M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 161

descontínua em relação ao passado, descolou-se de narrativas de progresso e


futuro e se voltou para o passado. Tanto a história como a memória se torna-
ram objetos de debates públicos, oferecendo instrumentos para identificação
e conflito (Hartog 2015).
Hartog associou o distanciamento, a ruptura entre passado e presente e a
celebração do passado ao “presentismo” ocorrido nas últimas décadas. Ainda
que o passado não tivesse a autonomia adquirida em finais do século XX, o
sociólogo Maurice Halbwachs já havia eleito, nas primeiras décadas do século,
o presente como forma de investigação do passado (Halbwachs 1994 [1925]).
O elo entre Halbwachs e autores da Escola dos Annales se consolidou através
do estudo de representações coletivas (Hutton 1988, 1993). Os estudos sobre
guerras culturais em que as diversas construções de passado são compreendi-
das a partir de disputas políticas econômicas e sociais elegem o presente como
palco de análise.
Também no século XX, a influência das teorias da linguagem, como aponta
o filósofo Richard Rorty, foi responsável por uma mudança importante no que
diz respeito aos estudos sobre história e memória, pois também foram questio-
nados a neutralidade e o distanciamento do pesquisador nos estudos sobre o
passado. A concepção de um tempo fluido e em constante movimento retirou
as certezas das análises positivistas, bem como a relação direta entre represen-
tação e o mundo real, estivesse ele no presente ou no passado (Rorty 1967).
Dentro do contexto da modernidade, a autoridade e a importância
dos arquivos tem sido bem analisada por diversos autores. Os arquivos são
compreendidos como instituições capazes de preservar um passado, muito
embora esse processo ocorra a partir de processos seletivos, apresente falhas
e seja constituído por fragmentos. O filósofo francês Jacques Derrida, em uma
palestra proferida em 1994, analisou a conexão entre os arquivos e a memória
ao examinar o trabalho de Sigmund Freud sobre as primeiras impressões
presentes no inconsciente. O filósofo associou o inconsciente a um arquivo
que não seria inato ao indivíduo. Pelo contrário, seria produto da construção
social e, portanto, marcado por relações de poder.
A febre do arquivo, título da palestra, representa a tentativa incessante de
preservar inscrições originárias, o que envolve uma contradição, pois ao mesmo
tempo em que essas tentativas reiteram a memória, também a destroem pela
repetição e reedição do que foi arquivado (Derrida 1996: 17). Michel Foucault,
em Arquelogia do conhecimento, já havia associado o arquivo à autoridade so-
bre o que pode ser dito e à atualização sempre inacabada. A distância entre a
autoridade ou lei inerente à linguagem do arquivo e àquela presente em nossas
palavras autoriza o trabalho da arqueologia do conhecimento (Foucault 1969:
162 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

171-173). Podemos compreender as postulações destes filósofos como uma


advertência às tentativas de releituras mecânicas e imediatas do passado que
ocorrem através do que foi inscrito.
Aleida Assmann reiterou parte dos argumentos de Foucault e Derrida
em seus estudos sobre memória cultural. Também para ela não há uma relação
direta entre o arquivo e a forma de lembrar, ou mesmo entre esta última e as
ações coletivas. O distanciamento entre a inscrição e a sua leitura não per-
mite o resgate do original, mas marca um excesso de significados que estará
sempre presente. Assmann destacou a alteridade que podem ter os arquivos
em relação ao presente. A capacidade de armazenamento dos arquivos supera
a capacidade de uso; os arquivos guardam uma “meta-memória” que garante
a pluralidade de interpretações e precisa ser mantida. Esse “excesso” inerente
aos arquivos os torna resistentes a uma versão única da história (Assmann
2008: 367-370).
Apesar de seus limites e ambiguidades, os arquivos foram valorizados
por possuírem um excesso de informações e resistirem aos diversos usos.
Esta é uma das funções que tem sido colocada em questão por trabalhos vol-
tados para as dinâmicas que envolvem a memória cultural e os novos meios
de comunicação. Das diversas observações interessantes que surgem a partir
do uso de sites e serviços como Facebook, Twitter e Youtube, a afirmação de
Hoskins de que o uso desses sistemas contribui para o surgimento de uma
nova vivência temporal merece ser destacada (Hoskins 2009: 91-106). Há
pouco consenso entre os autores que trabalham com o entrelaçamento entre
memória e mídia. Apesar de existirem apocalíticos e integrados, para utilizar
os termos de Umberto Eco, são autores que descrevem as diversas dinâmicas
e práticas compreendidas pelo termo “memória” e procuram contextualizar
e separar os diagnósticos relacionados às novas mídias (Zierold 2008 erll &
Rigney 2008, Garde-Hansen, Hoskins & Reading 2009).
As novas tecnologias são valorizadas por sua capacidade de armazena-
mento. Os arquivos têm como característica guardar um excesso que não é
operacionalizado em um processo que se distancia da dinâmica da memória
humana e abre um leque de interpretações para o futuro. Os textos e gravações
poderão ser acessados a cada época, a partir de sua própria perspectiva e com
significados e relevâncias correlatos. Além disso, as gravações que são realizadas,
a exemplo do registro escrito, retiram o conteúdo do ciclo da vida e do processo
de reedição, proporcionando congelamento e fixidez ao que foi selecionado.
Segundo Hoskins, as novas redes de comunicação mesclam as caracterís-
ticas anteriores. A transmissão de informações é constantemente atualizada,
apagando as diferenciações possíveis de uma informação anterior em relação
M e m ó ri a e te cn o l o g i a s d i g i ta i s 163

à atual. O argumento defendido é que a tecnologia digital proporciona uma


nova temporalidade, uma vez que passado e presente não mais se diferenciam.
Há uma atualização constante das informações, sem que se formem registros
de versões anteriores. Não há mais a datação que estava presente na escrita,
no filme ou no programa de televisão, capaz de proporcionar um certo senti-
mento de nostalgia pelo passado. Para Hoskins, por exemplo, os processos que
as nossas mentes têm de aprendizado contínuo com incorporação e mescla de
novos aprendizados passam a ser reproduzidos nas redes digitais. A separação
entre seleção, registro e acesso deixa de ter etapas fixas, e todo o processo se
automatiza. Diferentemente do que acontece com arquivos e museus, insti-
tuições que tornam a memória mais durável, as novas redes propiciadas pela
tecnologia desafiam as funções de registro (Hoskins 2009).
Na programação em tempo real, tendência atual em que programador e
usuário modificam o programa enquanto ele está funcionando, há um movi-
mento contínuo de edição de informações (Hoskins 2009). Essas plataformas
interativas permitem a interlocução constante entre produtor e público,
mas inviabilizam o registro de informações que foram veiculadas anterior-
mente ao tempo presente. No caso dos museus atrelados à rede de museus
afrodigitais mencionada, a programação em tempo real ainda não é uma
realidade, pois demanda avanços tecnológicos não disponíveis ou de difícil
acessibilidade no mercado nacional. No Museu Afrodigital Rio de Janeiro,
as imagens veiculadas funcionam de forma muito próxima aos marcadores
tradicionais da memória cultural, pois têm registro em dispositivos de back
up, que podem ser resgatadas. Os riscos de perda de dados existem devido
à entrada de vírus eletrônicos, destruição dos programas e falta de recursos.
Ainda assim, as novas configurações se superpõem às anteriores sem deixar
registro quando as plataformas são substituídas ou renovadas. Há, portanto,
restrições à disponibilização de dados que fazem parte do próprio formato
dos aplicativos e plataformas.
Em suma, são muitos os fatores que atuam na preservação e na destruição
da memória. Certamente as novas tecnologias e redes digitais exercem um
impacto importante na forma pela qual lidamos com o tempo. As imagens
digitais abrem um leque de possibilidades, inclusive políticas, como ficou evi-
denciado no caso do assassinato do cidadão norte-americano George Floyd
por policiais em Minneapolis, mas raramente são preservadas. A substituição
de uma mídia por outra provoca a perda irreparável de um número importante
de gravações, registros, memórias. O processo de programação em tempo real
modifica a natureza de nossa percepção temporal. As redes digitais tornam
as informações mais efêmeras, desprovidas de autoridade. As advertências à
164 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

amnésia coletiva, que já estavam presentes entre os frankfurtianos bem antes


da chegada da internet, voltam associadas ao temor à expansão automatizada
dos novos serviços, à vigilância maior que possibilitam e à perda dos registros.
Ainda assim, da mesma forma que tradições orais permanecem presentes até
hoje, os novos arquivos digitais coexistem com diversas outras formas de ar-
mazenamento de informações. Procuramos também mostrar que o controle
sobre os novos meios de comunicação está atrelado às próprias dinâmicas do
desenvolvimento tecnológico, mas não depende apenas dele.
IX
Pandemia, relatos do cotidiano e testemunho
Paulo Gajanigo & Rogério Souza

(...) uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo


tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim
como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as
camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes
de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente.
Benjamin 2000: 239-240

Em março de 2020, mais precisamente no dia 19, quatro dias depois da


implementação das primeiras medidas restritivas de circulação de pessoas
em várias regiões do país, criamos um grupo na plataforma do Facebook
destinado à produção e compartilhamento de relatos sobre o novo coti-
diano que abruptamente se instaurava com a pandemia da covid-19. Neste
capítulo, apresentamos um relato do trabalho com esse grupo, indicando
nossas motivações e as reflexões que fomos realizando em diálogo com as
leituras desses relatos que iam chegando juntamente com a nossa própria
vivência da pandemia. Ao longo da pesquisa, percebemos o surgimento de
diversas iniciativas semelhantes em âmbito nacional e internacional, refor-
çando a relevância das reflexões sobre a construção da memória cultural e
dos testemunhos, e, por sua vez, do trauma na experiência da pandemia.
Como forma de dar expressão a esses elementos, incluímos ao final alguns
relatos coletados por nosso projeto, sugerindo o aspecto de diário coletivo
que tomou forma a partir das postagens do grupo. E, por fim, incluímos
um relato-testemunho1 de um dos autores deste capítulo que, a partir
da memória de sua experiência pessoal com a doença e o tratamento da
covid-19, nos remete a um outro desdobramento contextual do cotidiano
pandêmico que persiste e assola o país, os desafios diários dos profissionais
de saúde e dos pacientes internados.

1 Ver primeira versão deste relato-testemunho em Souza, Rogério (2021), disponível em: Humanos,
demasiadamente humanos - Outras Palavras

165
166 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

9.1. Relatos do Cotidiano durante a pandemia da covid19 e os caminhos


da pesquisa.

Apesar de parecer catastrófica, a pandemia não tem a forma de uma ca-


tástrofe. Diferentemente de um evento explosivo, todos nós fomos percebendo
seu surgimento de forma paulatina. Fomos entendendo aos poucos quais eram
as ameaças e quais tipos de consequências teríamos nas nossas vidas. Esse
processo de compreensão foi se dando em conjunto com a sensação da aproxi-
mação da ameaça, questionávamos se o vírus já estava entre nós, se viveríamos
os mesmos problemas que estávamos vendo na China, depois Itália, Espanha
e EUA. Num primeiro momento, a pandemia não significou a destruição de
nossos planos, mas um estado de atualização constante deles, motivo pelo qual
recalculávamos a rota a cada dia.
Em fevereiro, nós, os autores deste texto, iniciamos o planejamento de um
projeto sobre coleta de registros da vida cotidiana. Nossa ideia inicial era formar
um grupo de estudantes para experimentar formas de coletar registros com o fim
de arquivar nossa vida cotidiana. A inspiração veio do trabalho de um de nós no
arquivo Mass Observation, um projeto de quase cem anos de coleta de fotografias,
diários, relatos da vida cotidiano britânica que trataremos mais à frente. Como muitos,
demoramos um pouco para entender que o projeto não seria apenas adiado por
algumas semanas. Em nosso caso, porém, acreditamos que a mudança do projeto
teve um impulso que nos tirou da espera das atualizações sucessivas. Sentimos que
havia uma urgência por relatos e registros da mudança ampla da rotina.
Decidimos fazer a coleta de relatos durante a pandemia por meio da
plataforma Facebook.2 A primeira adaptação do projeto foi lidar com a im-
possibilidade de encontros presenciais. Por isso, desenvolver o projeto em uma
rede social nos ajudaria a convocar voluntários e ter um espaço virtual em que
pudéssemos compartilhar os registros. No entanto, tínhamos uma preocupação
ao usar o Facebook. Como rede social configurada numa dinâmica de curtidas
e comentários, nosso temor era que a produção dos relatos fosse pressionada
pelos desejos e temores das reações imediatas do público. A solução pensada
foi criar um grupo privado com os colaboradores dentro da plataforma e não
permitir comentários nas postagens dos relatos. Além disso, permitimos relatos
anônimos. Dessa forma, tentamos criar uma dinâmica mais afastada daquela

2 Criamos no dia 19 de março de 2020 um grupo no Facebook intitulado “Relatos do cotidiano durante
a pandemia”. Atualmente, maio de 2021, o grupo conta com 538 (quinhentos e trinta e oito) membros
participantes. Com um total de 131 postagens relatos, separados em quatro categorias, a saber: relatos,
sonhos, artes (fotografias, vídeos etc) e inventários. Ver Relatos do cotidiano durante a pandemia |
Facebook.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 167

típica da plataforma digital e mais próxima das pesquisas tradicionais como a


de grupos focais. O que nos proporcionou também um aprendizado em relação
à realização da pesquisa tendo como ferramenta uma rede social.
Divulgando em nossas redes, em pouco tempo o grupo produziu muitos
relatos. De 19 de março de 2021, quando foi criado, a 20 de abril do mesmo
ano já tínhamos cinquenta relatos, até o final de maio chegamos a cem. Por
sugestões dos colaboradores ou nossa, coletamos também intervenções artísti-
cas, relatos de sonhos e inventário de fotografia de objetos. Aos poucos, fomos
percebendo que tanto o exercício de relatar como o de ler os relatos tinham
um efeito emocional. Nesse contexto de incertezas, ler as angústias dos outros
e poder contar para alguém o que se estava sentindo diminuíam a sensação de
isolamento. Não tínhamos pensado nisso, mas o grupo ganhou também uma
aura de trabalho emocional.
Nas primeiras semanas da quarentena, pulularam iniciativas de coleta
de relatos na imprensa. A princípio, isso não nos parece digno de nota, pois a
imprensa trabalha com relatos que, na verdade, compõem boa parte do que ela
oferece ao público. O instigante é que, de repente, a imprensa ficou inundada
de relatos sobre a vida ordinária das rotinas e hábitos. Isso porque, para além
de ter focos de intensidade como as portas de hospitais, os cemitérios, as filas
da Caixa Econômica Federal ou as coletivas das autoridades, a quarentena é um
evento sobre o ordinário, um evento de mudança de rotina e de hábitos. Não à
toa, recorreu-se ao formato do diário em que relatos se acumulam dia após dia,
como a iniciativa da Folha de S. Paulo - com a série “Diário de confinamento”.
É como se, por meio dos relatos diários, entenderíamos o que estamos vivendo
coletivamente. Aos poucos, fomos também percebendo que nosso projeto no
grupo do Facebook estava configurando um diário, um estranho diário que não
trabalhava na relação entre intimidade e individualidade, mas entre intimidade
e coletividade, pois foi sendo formado por uma sequência de dias escritos por
diferentes mãos e cujos autores escreviam lendo também os relatos anteriores
(ao final de nosso texto, como já foi dito, transcrevemos três relatos que nos
parecem indicar esse aspecto de diário coletivo).
As redes sociais têm alterado, há um bom tempo, a dinâmica entre intimi-
dade e coletividade. Se os meios de comunicação de mão única como o rádio3
e a TV significaram a entrada do público na intimidade do lar, os assistentes
pessoais digitais (smartphones, tablets etc.) realizaram dois movimentos novos:
permitiram que o público se embrenhasse ainda mais na vida doméstica - não

3 Aqui vale lembrar da forma como Brecht (2007) considerava o rádio. Para o autor, o rádio foi reduzido
de meio de comunicação a meio de emissão, ao retirar a possibilidade de resposta ao emissor.
168 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

há cômodo dentro da casa onde o aparelho celular não possa estar e muito
frequentemente está -; e como aparelho de mão dupla, o local de onde falamos
ao público também se alterou radicalmente, pois o discurso não só é produzido
na domesticidade, como tem sua estética. Se isto não estava evidente, ficou
escancarado durante o isolamento social. Do debate político jornalístico às
apresentações artísticas, tudo é produzido a partir da casa, com fragmentos de
intimidade sendo expostos. Ouvimos a infectologista, o comentarista político,
a jornalista falando de dentro de casa e os ouvimos em nossas próprias casas.
É como se o público fosse a soma das intimidades e não seu oposto.4
Em parceria com outro projeto, “Memória Digital: Arquivo e documen-
to histórico no mundo contemporâneo” (Unicamp), coordenado por Thiago
Nicodemo, estamos fazendo um mapeamento que identificou 28 projetos no Brasil.
Há um mapa produzido coletivamente por meio da Federação Internacional de
História Pública5 que contabiliza centenas de projetos pelo mundo. Boa parte
dos projetos se baseia no crowdfunding, ou seja, na alimentação de relatos feita
por não especialistas. Tal técnica ganhou relevância jamais vista graças à disse-
minação dos aparelhos como smartphones e também pelo contexto específico
da quarentena, que dificultou a ida de especialistas a campo para observação e
registro. Neste sentido, parece relevante que tenham surgido inúmeras iniciativas
pelo mundo de coleta de relatos da vida cotidiana, reforçando a ideia de que a
pandemia deve ser registrada por um olhar pedestre e íntimo.
A busca pelo registro histórico por meio de relatos de pessoas comuns não
é nova. O projeto britânico citado no início, por exemplo, coleta registros da
vida cotidiana feitos por voluntários desde 1936. Criado com o objetivo de ser
uma antropologia de nós mesmos quando a antropologia estava dedicada ao
estudo de sociedades não-ocidentais, uma das atividades iniciais do projeto foi o
recrutamento de “observadores” voluntários que foram incentivados a escrever
relatos, o que fizeram durante um ano no dia 12 de cada mês (Sheridan et al.,
2000, p.33). O projeto cresceu bastante durante a Segunda Guerra e recebeu
forte incentivo estatal nesse período. Para o governo, era importante ter um
“termômetro” da vivência da guerra feito por pessoas comuns.
No âmbito da produção literária, foi a partir do pós-guerra que se percebeu
um aumento significativo da chamada “literatura de testemunho”, gênero literário
onde sobreviventes narram em primeira pessoa as experiências dos campos
de concentração e dos crimes cometidos pelo aparelho estatal. O Holocausto

4 Sobre a relação entre privacidade e publicidade mediada por os novos aparelhos digitais, ver Mateus.
S (2015).
5 Disponível em https://ifph.hypotheses.org/3225 . Acesso 10/05/2021.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 169

ocupou, enquanto significante, o centro das narrativas testemunhais em torno


do qual gravitam inúmeras outras experiências em perspectivas similares, como
as do gulag nos regimes ditatoriais, dos campos de concentração, dos extermí-
nios étnicos no continente europeu e das mortes e torturas causadas pela ação
direta do aparelho de estado nas ditaduras latino-americanas. Em todos, as
obras trazidas pela literatura de testemunho tematizaram o “evento-limite” da
experiência humana ao problematizar “os limites da representação” do evento
traumático (Seligmann-Silva 2003). “O conceito de testemunho desloca o ‘real’
para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e
que exige um relato. Esse relato não é jornalístico, reportagem, mas é marcado
pelo elemento singular do ‘real’” (ibidem: 47).
Em voga nas três primeiras décadas do pós-guerra, a literatura de teste-
munho teve forte influência nas pesquisas sobre memória coletiva. Atualmente,
embora com uma ênfase menor no aspecto subjetivo, este tipo de literatura
continua presente nas pesquisas e trabalhos sobre memória cultural.
O campo da história oral também recebeu forte influência da literatura de
testemunho, principalmente na forma do relato pessoal que as autobiografias
traziam em suas estruturas textuais - ou seja, relatos autorais de testemunhas
vivas que experimentaram os acontecimentos históricos recentes. No Brasil, ,
com a reabertura democrática, as pesquisas de história oral, memória e crítica
literária experimentaram a partir dos anos de 1980-90 um aumento significativo
em suas produções.6
Uma marca na produção de conhecimento em torno da literatura de
testemunho se dá pelo trauma da experiência. Na literatura de testemunho,
as fontes orais, as testemunhas oculares e os relatos autobiográficos eram, na
maioria dos casos, de vítimas da violência do Estado, sobreviventes de traumas
históricos que trouxeram à tona histórias ocultas ou, como denomina Michael
Pollak (1989), “subterrâneas”, produzindo novos olhares e entendimentos sobre
o nosso tempo presente e, consequentemente, reescrevendo esse tempo. O
cotidiano dessas testemunhas da história, suas lutas, fadigas, perdas, supera-
ções e traumas ajudaram a rever e repensar o passado na busca por justiças no
presente. Ou seja, caminham na mesma direção de Walter Benjamin (1985),
numa história contada a “contrapelo”, colocando no centro da análise a vida e
os relatos daqueles que experimentaram o fato-limite.

6 Ver Ferreira & Amado (2006), que traz um balanço do campo da história oral no país e as inúmeras
discussões em torno da temática junto à História enquanto disciplina. Ver também Seligmann-Silva
(2003) para um balanço sobre as relações entre literatura de testemunho em relação aos trabalhos de
História e Memória. Sobre Memória Social e Coletiva, ver Souza & Gadea (2017), que traz um balanço
da produção acadêmica e de pesquisa no país sobre a temática da memória junto às Ciências Sociais.
170 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Isto pode ser evidenciado na obra de Primo Levi, um dos mais proemi-
nentes representantes da literatura de testemunho, cujo o legado até hoje é
objeto de estudos por diversos pesquisadores de variadas nacionalidades. Levi
(2016), em uma de suas últimas obras - Afogados e sobreviventes finalizado em
1986, um ano antes de sua morte - expressa sua intencionalidade em narrar a
si próprio e aponta de antemão a difícil missão:

Quero examinar aqui as recordações de experiências extremas, de ofensas sofri-


das ou infligidas. Neste caso atuam todos ou quase todos os fatores que podem
obliterar ou deformar o registro mnemônico: a recordação de um trauma, sofrido,
é também traumático, porque evoca-la dói ou pelo menos perturba; quem foi
ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; quem feriu expulsa
a recordação até as camadas profundas para dela se livrar, para atenuar seu sen-
timento de culpa (Levi 2016: 18).

Há que se avaliar qual a centralidade do trauma na produção dos relatos


que estão sendo coletados. O que salta aos olhos, quando comparamos com a
produção de testemunhos anteriormente, é o caráter antecipador dos projetos
sobre a pandemia. Trabalhamos em outro texto a noção de pré-trauma que parece
ter orientado, em alguma proporção, tanto as propostas de coleta quanto a produ-
ção de registros (Gajanigo; Souza, prelo). Ainda assim, há algo na experiência da
literatura de testemunho que pode nos ajudar a entender essa busca por registrar
nosso cotidiano. Muitas iniciativas de coleta falam da situação de estarmos viven-
do um momento histórico, uma mudança social única vivida por essa geração,
ou seja, o caráter de excepcionalidade. Numa convocação a esses registros pelos
franceses, Myriam Piguet e Caroline Montebello (2020) clamam por “uma história
ordinária do extraordinário”. A escrita no calor dos acontecimentos, diferente
do testemunho, que tem um forte caráter retroativo, não trata do trauma, mas
parece como uma medida profilática a ele. Se por trauma entendemos aquilo
que violentamente nos acomete e para o qual não formamos uma compreensão,
o impulso para o relato diário tenta evitar que o que nos acontece durante essa
pandemia fique sem significação. Isso nos ajuda a entender por que vemos, na
busca pelos relatos durante a pandemia, um forte caráter de expectativa e uma
busca pelos detalhes ordinários. O Royal College of Physicians, de Edimburgo,
por exemplo, ao sugerir que sejam mantidos diários neste momento, pede para
que se “registre o mundano assim como os grandes eventos” .7

7 Royal College of Physicians of Edinburgh. “RCPE recording COVID-19 / coronavirus”. Disponível em:
www.rcpe.ac.uk/heritage/rcpe-recording-covid-19-coronavirus. Acesso 12/06/2020.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 171

Essas convocações pedem uma postura que Benjamin (2006) enxergava


na figura do colecionador de miudezas, do trapeiro. O que dizem os farrapos
de uma pandemia? O que um conjunto de relatos de pessoas comuns nos re-
vela sobre esse evento histórico global? Diferentemente do ethos jornalístico, a
coleção de relatos que estamos discutindo não pretende ser o retrato mais fiel
dos fatos. Ela não compete com as reportagens sobre a situação dos hospitais,
as ações governamentais ou a adesão aos decretos. Também não concorre
com os gráficos de curvas exponenciais, picos, platôs e de curvas achatadas.
Os relatos diários das pessoas comuns nos permitem entrar em contato com a
forma como as pessoas vivem esse evento, como elaboram, como sentem, sob
qual ritmo e ambiente vivem.
No conjunto dos relatos postados pelos colaboradores em nosso grupo
no Facebook, é significativa a relação da vida ordinária com o momento his-
tórico. A escolha pelo tema do que se vai relatar se dá, na maioria das vezes,
pela força da contingência, de uma situação corriqueira que, numa situação de
normalidade, passaria sem nota, sem atenção, sem uma razão para ser elevada
à condição de registro escrito. No entanto, o momento da pandemia atrelado
ao estado de quarentena parece ter retirado o cotidiano do ordinário, elevan-
do-o ao nível de importância simbólica e emotiva necessário para o registro de
sua experiência junto ao grupo de relatos. Em sua grande maioria, os relatos
tratavam do dia a dia em casa e as rotinas dos afazeres domésticos; das ativi-
dades escolares; do trabalho, alguns em home office, outros expostos na rua;
das relações familiares e de amizade; e da vida na vizinhança do bairro ou na
cidade. Entretanto, esses rituais da cena cotidiana, que faz parte da vida de cada
um de nós, nos relatos colhidos tomam uma dimensão simbólica e afetiva ao
serem pensados e experimentados conjuntamente em nossa sociedade, tanto
antes como agora em nosso momento atual.
O número de relatos enviados variou bastante durante os meses da pande-
mia no ano de 2020. Foi durante os meses iniciais, com medidas mais severas
de quarentena, que recebemos mais relatos. O afrouxamento das medidas de
restrição e a diminuição do número de infectados e de mortes pela doença
coincidiu com uma forte diminuição no número de relatos. Podemos por ora
apenas sugerir algumas hipóteses. A importância que a expectativa de algo
desconhecido como a pandemia e a necessidade de reorganizar a rotina esti-
veram bastante presentes nas motivações dos relatos. A necessidade de viver a
incerteza compartilhando seus sentimentos e ações pode ter dado lugar tanto
ao tédio da mesmice, de uma rotina já estabelecida, quanto à expectativa pela
volta à normalidade, sensações pouca afeitas à busca do relato. Dos poucos
relatos recebidos a partir de agosto, percebe-se a preponderância da saudade.
172 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Já com o projeto em andamento, percebemos que a dinâmica de postagens e


leituras foi configurando um diário coletivo. Essa impressão foi corroborada
com a leitura de relatos postados no grupo, como também por respostas ao
questionário que aplicamos no mês de junho de 2020. Em um dos relatos, já
em agosto, lê-se:

Entrei neste grupo de relatos em meio à solidão da covid-19, vivendo a doença e


o isolamento sozinha em meu apartamento. O grupo foi um alento, ler os rela-
tos tornou-se um conforto com o passar do tempo. Escrever deu eco às minhas
angústias que foram acolhidas por quem sabia do que eu estava falando8.

As cenas narradas, de gestos, comportamentos, posições e atitudes se


engendram num circuito de sentimentos que parecem ter algo em comum - no
duplo sentido da palavra que fala tanto do compartilhado quanto do ordinário.
Temos medo, aflição, angústia, confiança, esperança, indignação, solidão, sau-
dade e tantos outros afetos entrelaçados ao cotidiano dos gestos mais simples,
como acordar e lavar a louça do dia anterior e perceber a vinda de um choro por
lembrar o distanciamento exigido entre as pessoas, por conta da quarentena.
Do medo de saber que alguém próximo pegou um resfriado e que isso pode
ser sinal de contaminação. Ou a desconfiança de ter que ir para o trabalho na
incerteza do grau de contaminação. O que os relatos apresentaram, e que se
tornaram dignos de investigação, foram as dimensões da experiência do agora,
do ordinário e do cotidiano tomados em conjunto com um evento único que
nos engloba de forma heterogênea enquanto sociedade.
A seguir, selecionamos três relatos extraídos do grupo no Facebook, pos-
tados no primeiro e no segundo semestre de 2020, e em seguida transcrevemos
o relato-testemunho de um dos autores do artigo, no ano de 2021.

9.2. Fragmentos de um diário coletivo da pandemia9

FÁBIO JOSÉ DE AZEVEDO ASSIS, CENTRO, CAMPOS DOS GOYTACAZES, 25 DE


MARÇO DE 2020
Desde do 1º caso de covid-19 se passou menos de um mês e o cenário que
vejo no Brasil e mais especificamente em Campos do Goytacazes é de uma pe-
culiaridade que lembra levemente os filmes pós-apocalípticos de hollywood, as

8 Relato postado em 06 de agosto de 2020.


9 Os relatos foram publicados tal como recebidos, mantendo suas grafias, no “Grupo de relatos do cotidiano
durante a pandemia” do Facebook. Disponível em https://www.facebook.com/groups/2261561834146786/.
Acesso 15/06/2021
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 173

ruas possuem muitas poucas pessoas, o transito está muito menos caótico do
que o normal para a cidade e os dias parecem eternos domingos tediosos para
todos que estão podendo seguir as orientações da OMS (Organização Mundial
da Saúde) e ficar em casa.
Quando fui ao mercado a uma semana atrás no dia 18/03 pude começar a
perceber a dimensão real do que estamos vivendo enquanto estava no mercado
pessoas com carrinhos cheios de mercadoria que dariam facilmente pra sobreviver
durante 2 a 3 meses sem precisar retornar ao supermercado, diversas pessoas com
mascaras em seus rostos e buscando evitar ao máximo o contato físico ou até
conversar com as outras, também pude perceber uma discussão bem tensa entre
2 senhores pois um deles estava levando quantidades absurdas de papel higiênico
e outro temia que faltasse pra ele e para as outras pessoas, acompanhei o começo
da discussão mas não consegui acompanhar seus desdobramentos pois precisava
ir pagar as coisas e voltar embora pra casa porém ainda no supermercado percebi
uma pequena peculiaridade os funcionários da rede de supermercados estavam
com luvas porém os empregados terceirizados não, intrigado com isso antes de
pagar o que tinha comprado perguntei a funcionária o motivo de alguns esta-
rem com luvas e outros não a resposta que recebi foi breve e bem direta dizendo
que o motivo era que alguns deles não trabalhavam diretamente para a rede
supermercados e sim eram terceirizados, voltando para casa ainda percebi que
o movimento nas ruas ainda eram grandes mesmo com caos que já estava os
supermercado, ainda se tinha alguns bares e lanchonetes abertos e o movimento
nas ruas era até algo próximo a normalidade.
Voltando ao mesmo supermercado no dia 22/03 já foi perceptível uma mu-
dança, nesse dia me reuni com amigos que não conseguiram voltar para as suas
cidades assim como eu e fizemos um almoço na casa de uma de nós, nesse dia
no momento em que sai de casa percebi uma mudança nas ruas, o cenário foi
exatamente o que descrevi no inicio do relato ruas absurdamente vazias porém
imaginei que era por ser domingo , no supermercado diversas pessoas de máscaras,
pessoas buscando ficar o mais distante possível uma das outras, ao sinal de uma
tosse de qualquer um todos olham e buscam se afastar da pessoa, diversas ainda
continua comprando grande quantidade de coisas temendo que os produtos acabem
ou que os preços subam assustadoramente graças a pandemia do covid-19, após
comprar os produtos necessários para o almoço vamos para casa de uma amiga,
o caminho até lá mesmo possuindo uma Avenida está assustadoramente vazio,
silencioso e há pouquíssimas pessoas na rua, chegando a casa dessa amiga eu ela e
mais um amigo começamos a fazer perspectivas do que possivelmente acontecerá
daqui pra frente nesse cenário que parece quase apocalíptico e assustadoramente
incerto, nos lembramos de alguns amigos nossos que são calouros e o quanto essa
174 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

pandemia e essa incerteza da volta as aulas e a normalidade irá os prejudicar


principalmente por a maioria deles não serem da cidade de Campos, também
falamos sobre o dano a saúde mental que esse isolamento social poderá causar
após isso buscamos falar de outros assuntos para quem sabe assim aliviar um
pouco o combo de incertezas causadas por essa pandemia.
Por último retornei ao supermercado mais recentemente no dia 25/03 ao sair
de casa percebi que o vazio que vi na rua no domingo iria realmente se repetir,
as poucas pessoas que restam nas ruas são pessoas que infelizmente não podem
seguir a recomendação da OMS de ficar em casa pois ou não tem casas como 2
moradores de rua que vi, ou por precisar de dinheiro pra por comida em sua casa
para seus filhos como uma mulher que encontrei no caminho vendendo doces,
isso um dia depois do presidente do país menosprezar o covid-19 e o reduzi-lo a
uma gripezinha em seu pronunciamento dizendo que devemos voltar a norma-
lidade; sua declaração não parece surtir muitos efeitos nas ruas de Campos que
permanecem praticamente fantasmas e o medo da população de serem vitimas
do covid-19 que já fez 57 mortos até o momento em todo país continua visível,
chegando ao supermercado fica evidente o quão assustadora é essas pandemia,
já existem diversos adesivos nos chãos pedindo pras pessoas ficarem distantes
umas das outras, se há grande dificuldade para achar até álcool comum para
comprar, é raro ver pessoas sejam funcionários ou clientes sem máscara, o preço
de algumas coisas já começam a subir, o cenário que vejo é só de completas in-
certezas e um pouco de medo de todos seja pelo receio de ser vitima do covid-19
ou por não saber como irá botar comida na mesa e pagar as dividas com cidade
e o país paralisado por essa pandemia que nos atinge.

KELLY ROBERTA, SÃO PAULO, SP – 23 DE JUNHO DE 2020

Sinto que o Brasil me adoece.


São 3h56 da manhã, deitei 00h30 e estou de pé fazendo as contas do saldo
que tenho disponível e do quanto preciso arrecadar, por meio dos freelas, até o
próximo dia 5.
Uma das abas abertas é uma pesquisa sobre a 3° parcela do auxílio emer-
gencial que ainda não tem uma data fixada.
Paisinho de bosta!
Penso nos meus pais, ambos incríveis em seus ofícios, sempre me inspiraram
a ter garra.
Ele é Pedreiro, um dos melhores que conheço, profissão que me foi apresentada
como “humilde” já que pra ser peão não precisa nem saber ler. Ele, analfabeto
funcional, de fato não o sabe.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 175

Ela é Cozinheira, uma das melhores que conheço, mesma história da profissão
humilde, só que um pouco mais valorizada. Lembro de ser chamada de “filha
da cozinheira” durante boa parte da minha vida e não ver maldade naquilo.
Ora eu sou filha da pessoa que estava proporcionando um momento incrível de
felicidade pra várias pessoas, por que isso seria ruim?
Só aos 16 anos essa questão foi respondida.
Ela me levou para trabalhar como sua auxiliar em um evento e dentre minhas
tarefas, ajudei a preparar os drinks. Era um almoço celebrando um aniversário.
Sempre fui uma pessoa muito comunicativa e espontânea, as pessoas que
iam ao bar pedir seus drinks, costumavam demorar um pouco pra jogar conversa
fora. Dentre eles, o aniversariante.
Ele havia me perguntado como estava a escola e o que eu queria fazer quando
saísse do ensino médio. Falamos sobre jornalismo esportivo, representatividade
feminina nesse campo e futebol. Uma conversa normal até que sua irmã, anfitriã
da festa, se junta a nós e ele relata com entusiasmo sobre a conversa ela encerra
o diálogo com “Ah ela é a filha da cozinheira.” O tom com que ela falou aquilo
e o olhar de constrangimento que ele lançou não saíram da minha cabeça. Eles
não voltaram mais ao balcão no decorrer do evento.
É esse país não valoriza aqueles que constroem casas e os que cuidam de
refeições. Por isso a insistência dos meus pais naquela coisa que, principalmente
para o meu pai, parecia etérea- o tal dos “Estudos”. Sempre me ensinaram que
eu deveria estudar e trabalhar em algo que não me desse calos nas mãos e nem
queimaduras nos braços. Honrei esse pedido.
Em 2018, como Desenvolvedora Jr. já recebia quase o dobro do salário da
minha mãe. Em 2020, mesmo após a demissão por conta da pandemia, mantenho
meu aluguel em um bairro no centro da cidade e ajudo com as contas da família.
Paisinho de bosta!
Acabei de receber uma mensagem sobre demissão em massa em uma das
universidades privadas sediada em São Paulo.
Não são só os pedreiros e cozinheiras que são tratados feito nada.
Retorno aos meus cálculos, fazia algumas que não chorava.
TAYNÁ SANTOS, SÃO DOMINGOS, NITERÓI, RJ - 15 DE AGOSTO DE 2020

Saudades - Parte I
Absolutamente tudo me dá saudade. Todas as práticas mais comuns da
vida cotidiana, como tomar uma café na padaria ou inventar uma desculpa
para passar na barraca de churros. Faz tantos meses que sinto saudade...
tantos dias que já não posso contar. Hoje as presas passo perto da barraca de
176 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

água de coco e sempre fecho os olhos na vontade incansável de acessar minhas


memórias. Faz meses- desde o início da pandemia - que evito comer fora, ou
estabelecer com a rua uma relação longa. A rua que já foi minha amiga, jã
não me reconhece, me perco nos caminhos mais comuns e habituais, acho
que não conheço mais os caminhos. Sinto saudades de ser amiga da rua, das
encruzilhadas, das esquinas. São tantas saudades, incontáveis. Desde ir ao
cinema até viajar. Sinto saudades dos amigos, de ir pra uma praça ou parque
brincar de malabares, bambolê e patins e me diverti como se tivesse 12 anos.
Hum...das tantas saudades que sinto, a praia e cachoeira sem dúvidas me dá
um aperto constante, não tem só um dia que não pense no mar ou em me
aventurar pelas pedras de alguma cachoeira. Saudades das quermesses, das
giras no terreiro, da cerveja gelada, da sinuca e do karaokê desafinado do bar.
Sinto aquela vontade incontrolável de acampar, de arrumar a cargueira, de
elaborar um mapa, de arrumar equipamentos e pegar caronas. São tantas
saudades e tantas incertezas que estou com aquele medo, aquele medo de
não saber mais forrozear quando tudo isso passar. saudades né minha filha?!
Saudades de arrastar o pé até não aguentar, de ser a primeira a chegar, de
reclamar daqueles que ficam no meio das pista de dança parados e resmungam
quando alguém esbarra. Saudades de conduzir e ser conduzida só por alguns
minutos nessa vida em que não se controla nada.
ROGÉRIO FERREIRA DE SOUZA, RIO DE JANEIRO, RJ – 14 DE ABRIL DE 2021

Humanos, demasiadamente humanos


Ao longo de grandes catástrofes, ou dos acidentes coletivos que nos atingem,
muitas vezes de forma inesperada, testemunhamos o trabalho de bombeiros,
policiais, médicos e uma gama de outros profissionais prontos a agir para salvar
vidas — ainda que muitas vezes coloquem as suas próprias em perigo. Por isso,
não é raro que os denominemos “heróis”, sobre-humanos, elevando-os à categoria
de seres extraordinários, quase como se fizessem parte de outro mundo que não
este nosso, tão humano, em que vivemos.
Durante a pandemia de covid-19, essa condição sobre-humana que confe-
rimos àqueles que se dispõem a zelar e a salvar nossas vidas tem se evidenciado
ainda mais. Costumamos referirmo-nos a eles como os “profissionais da linha
de frente” e, dentre estes, principalmente os profissionais de saúde intensivistas,
que atuam incansavelmente nos CTI’s (ou UTI’s) de todo o país, como “heróis”.
Ali esses profissionais se revezam para manter o tratamento dos doentes full
time; para eles, cada vida importa e cada vida é festejada quando o sucesso da
recuperação se concretiza; a recuperação, sabem eles, é a verdadeira recompensa
de seu trabalho árduo!
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 177

Durante a primeira onda da pandemia no país, em 2020, junto com Paulo


Gajanigo, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, desenvol-
vemos uma pesquisa sobre relatos do cotidiano durante o confinamento e a nova
rotina que nos foram impostos pela pandemia. Nessa pesquisa, publicada com o
título “A pandemia e o ordinário: apontamentos sobre a afinidade entre experiência
pandêmica e registros cotidianos”, analisamos como as pessoas experimentavam
e relacionavam suas rotinas com as mudanças advindas do isolamento social e
do aumento no número de casos e vítimas de covid-19.
Àquela altura, mal podia imaginar que passaria, em 2021, de pesquisador a
objeto de pesquisa. Há coisa de meses, fui diagnosticado com covid-19 e, devido
a um quadro que se agravou, precisei ser internado e intubado em um hospital
privado no Rio de Janeiro e passei vários dias no CTI. Esta, sem dúvida, foi a
mais terrível experiência de confronto com a morte que vivi até hoje. E foi ali,
em meio a esse confronto, ao retomar a consciência depois de dez dias intubado,
que meu empuxo de pesquisador me levou a observar, com esmero, o conjunto de
procedimentos e atividades necessários à reabilitação de pacientes que partilham
comigo a experiência desse confronto.
Essa condição, ora de paciente, ora de observador, permitiu-me acompanhar
a rotina de dentro do CTI, quase como se fosse mesmo um “trabalho de campo”.
Das atividades mais simples às mais complexas — todas igualmente importantes
porque, sim, no CTI, tudo é importante! — o que via não eram aqueles “heróis”
entronizados pela cultura do individualismo. Havia, ali, uma visão de conjun-
to, um coletivo de humanos, demasiadamente humanos — e demasiadamente
trabalhadores — empenhados em seu labor, dedicando-se ao máximo para fazer
o melhor e da melhor forma possível. Ali, nada pode dar errado, qualquer erro
pode ser fatal.
Nas conversas que tive com aqueles profissionais — exímios profissionais!
—pude ver, no entanto, que ali havia, de fato, mais do que trabalho técnico; havia
mesmo uma partilha de afetos de profissional para profissional, de profissional
para pacientes. Como resultado, vi uma síntese entre a boa, isto é, a melhor exe-
cução possível do trabalho técnico, conjugada ao mais afetuoso convívio entre a
equipe profissional e os pacientes.
Foi aquele convívio afetuoso que pôde reforçar, para mim, a importância
do trabalho como construção do ser social; só uma compreensão desse tipo pode
contribuir para uma sociedade mais justa edificante, menos desigual.
Diante dos descaminhos e tropeços da política governamental no que diz
respeito ao combate à pandemia, é necessário reconhecer, mais do que nunca,
que, a despeito da precarização do trabalho, da dupla (e às vezes tripla) jornada
desses profissionais, da péssima remuneração e outros tantos fatores, a estes
178 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

profissionais, não lhes falta o que há (ou deveria haver) de mais especial em
cada um de nós: humanidade. Diante deles, não estamos diante de “heróis”,
mas de humanos, demasiadamente humanos, para os quais o valor do trabalho
reside na certeza de que cada vida, por mais custoso que isto lhes seja, vale a
pena. E como vale!
Considerações finais
A história pode ampliar, completar, corrigir e até mesmo refutar
o testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo.
Ricoeur 2015: 505

Procuramos mostrar ao longo dos diversos capítulos deste livro que a memória
está relacionada a discursos e relações de poder. Contemporaneamente, me-
mória tem sido relacionada com noções de justiça e medidas reparatórias. Não
se trata apenas de recuperar a verdade do acontecido, mas o impacto deixado
por injustiças do passado no presente. As lembranças que temos do passado
são individuais e subjetivas, mas, como sabemos, os indivíduos e seus pensa-
mentos se constituem nas relações que têm entre si e a partir de seus contextos
ampliados. Construímos memórias, mas também somos constituídos por elas,
que forjam nossas identidades e, consequentemente, desejos e formas de agir.
As memórias que temos estão sempre relacionadas às narrativas, sistemas de
crença, jogos de linguagem e, voltamos a enfatizar, às relações de dominação
entre indivíduos e grupos sociais.
A relação de mão dupla entre memória individual e coletiva também
acontece entre memória e história, uma vez que continuam sendo essenciais
as análises mais distanciadas e explicativas de fenômenos ocorridos no passa-
do. Memórias contemporâneas se destacaram pela capacidade de trazer para
o presente elementos do passado sob a forma de reminiscências e traumas,
desestabilizando construções negociadas. Relações de poder sustentam hie-
rarquias e violência capazes de destruir atos de interpretação e compreensão.
Uma das características das memórias é que elas resistem a discursos de poder
por diversos meios e nos mostram os limites e impasses de novas linguagens
e categorias interpretativas.
No Brasil, o controle de informações em geral, mas principalmente de
dados acumulados sobre o passado, tornou-se muito claro a partir do governo
eleito em 2018, quando uma série de medidas foram tomadas visando ao apa-
gamento de dados acumulados em instituições diversas. Informações essen-
ciais à continuidade de políticas públicas foram destruídas ou invisibilizadas
em diversas áreas, com o intuito de dificultar o controle social, por exemplo,

179
180 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

sobre queimadas na Amazônia, sobre desemprego e índices econômicos ou,


ainda, sobre o número de pessoas infectadas, mortas e vacinadas durante a
pandemia do coronavírus. No que diz respeito à compreensão de diversos
períodos da história, uma avalanche de mensagens enviadas via WhatsApp
propagou a ideia de que os problemas econômicos e sociais do país, somados
ao liberalismo dos costumes, seriam resultado de governos de esquerda que
teriam dominado o Brasil no período posterior à ditadura militar. Ainda que
apareçam como motivo de controvérsia, a devastação ambiental, o crescimento
da pobreza e os traumas gerados pela perda de entes queridos não desaparecem
com o apagamento de registros e informações, e continuam a pavimentar os
caminhos que seguimos no presente.
No plano coletivo, portanto, são muitos os usos e abusos, tanto da me-
mória como da história. A memória que pretende trazer a verdade absoluta do
passado é tão suspeita quanto aquela que se arma de estratégias com a intenção
de reparar todas as violências e injustiças ocorridas. Apesar dos limites, preci-
samos continuar preservando história e memória em suas diversas frentes de
ação. Os diversos capítulos deste livro apresentam análises em que a noção de
memória é contingente, plural, contraditória e associada às múltiplas formações
sociais. Estratégias de representação transitam entre o lembrar, o esquecer, o
irrepresentável, a institucionalização da dor e as escritas do trauma. Passado
e presente se entrelaçam nas diferentes configurações sociais e históricas em
que eventos já vivenciados deixam marcas, cicatrizes, e incidem sobre o pre-
sente trazendo instabilidades, incertezas e, mais recentemente, cobranças de
reparação e justiça.
O primeiro capítulo deste livro explora as reflexões sobre memória e
modernidade presentes nas obras de Walter Benjamin. O autor nos mostra
que o termo memória envolve diferentes formas de relação com o passado.
Denominamos memória o ato voluntário da lembrança, as reminiscências
que chegam sem avisar, os hábitos adquiridos ao longo da vida, ou, ainda, o
monumento erguido em homenagem a algum personagem público. Benjamin
fez uma distinção inicial entre a memória voluntária, a memória involuntária
e a experiência do choque. Ao pensar o tempo em que vivia, mostrou que as
formas de pensar e agir se modificam e não são estáticas, identificando a exis-
tência de apenas um murmúrio do passado nas rememorações realizadas por
indivíduos modernos, bombardeados por estímulos externos e já incapazes
de um encontro e aprendizado com a vida anterior. Ao apontar o corte com a
tradição, Benjamin analisou tanto o que fora irremediavelmente perdido, como
as promessas de uma nova era de comunicação, sem nunca perder de vista as
mazelas e os perigos inerentes ao mundo da aceleração e da proliferação das
C o n s i d e ra çõ e s fi n a i s 181

informações. O autor trabalha com um conceito de constelação que nos per-


mite compreender que, à medida que transformações históricas acontecem,
em ritmos e rumos diferenciados, nós nos deparamos com a coexistência de
distintas formas de interação social em um mesmo espaço.
A partir da década de 1980, os estudos sobre a memória se expandiram
paralelamente à crise das teorias que postulavam o distanciamento entre passado
e presente. Benjamin, ao criticar o historicismo e a história linear, foi precursor
da virada teórica ocorrida na segunda metade do século XX. A conhecida frase
do historiador Pierre Nora, afirmando que falamos muito da memória porque
nos encontramos distantes dela, refere-se à perda da transmissão da memória
entre indivíduos em interação. Este autor também identificou a ruptura com a
tradição. Em sociedades onde predominava uma ordem estável e nas quais os
indivíduos reproduziam as normas e os valores que guiavam seus ancestrais,
experiências e aprendizados eram partilhados e transmitidos. Diferentemente,
nas sociedades contemporâneas as relações comunitárias e intergeracionais
deixaram de ser a regra e tornaram-se cada vez menos frequentes.
Diversos estudiosos, de diferentes campos disciplinares, apontaram, se
não o fim, pelo menos a atrofia da transmissão de experiências entre gerações
em nosso tempo. O processo de “destradicionalização” foi visto com euforia
por aqueles que o identificaram com a liberdade de ação e de reflexão, inclusive
para calcular os riscos e consequências que se desviavam das intenções iniciais.
No campo das chamadas Ciências Sociais, as pesquisas sobre memória coletiva,
desenvolvidas a partir da década de 1970, abandonaram as questões filosóficas
e as noções de temporalidade. A maior parte dos estudos se restringiu às análi-
ses de construções do passado negociadas por grupos sociais que procuravam
uma nova escrita de seu passado na formação de identidades coletivas. Ainda
assim, abordagens da memória influenciadas por autores tão diversos como
Benjamin, Nietzsche e Foucault foram capazes de trazer críticas à autonomia
do sujeito, resgatando as marcas e condicionamentos do passado. Também as
contribuições das análises dos pós-colonialistas à sociedade brasileira precisam
ser destacadas. Um dos grandes problemas das chamadas guerras culturais no
Brasil é que os símbolos do passado que são partilhados coletivamente não
ocupam os mesmos espaços. Livros, filmes e exposições que trazem na escrita
em imagens e objetos narrativas críticas ao discurso oficial de formação nacional
são partilhados por uma pequena elite intelectual.
O tema das disputas sobre narrativas que ocorreram no Brasil a partir
da década de 1980 está presente em diversos capítulos que têm por tema o
período da escravidão ou da ditadura civil-militar. Essas disputas estão sem-
pre contextualizadas e apresentam-se como parte de estruturas sociais mais
182 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

amplas. Uma das temáticas contemporâneas que gira em torno da violência


e da dominação em nosso país está presente na segregação étnica e racial
que se estende desde o período colonial. Nas últimas décadas do século XX,
comunidades afrodescendentes, indígenas e ribeirinhas organizaram-se em
movimentos por revisões históricas do passado colonial e escravocrata que
levaram às políticas reparatórias e de equidade.
Outro tema caro às disputas pelo passado é o da ditadura civil-militar. A
repressão política entre 1964 e 1986 foi capaz de matar, torturar e desaparecer
com corpos. Abusos da história e da memória estão presentes não em seu ex-
cesso, mas no apagamento de fatos difíceis de serem narrados e apreendidos.
A violência perpetrada pelo Estado durante a ditadura militar (1964-1986) foi
inicialmente silenciada pelo processo de anistia, que considerou torturadores e
torturados como partícipes de uma guerra comum. Desde meados da década de
1970, familiares dos mortos e desaparecidos, movimentos sociais e até mesmo
instituições governamentais criaram arquivos, museus e lugares da memória,
capazes de registrar e abrir as discussões sobre o período. Esses movimentos
têm sido cada vez mais reprimidos a partir de 2019, paralelamente ao desmonte
de instituições públicas, bombardeio pela internet de versões falsificadas da
história e com celebração da violência do período.
O elogio à violência recrudesce a barbárie imputada aos setores subalterni-
zados e colocados à margem de direitos ao longo da história do país. O sistema
penal no Brasil é conhecido pelo acentuado grau de violência e por seu caráter
seletivo. Setores precarizados da sociedade são alvo de políticas de repressão
que beira a barbárie. Parte considerável da sociedade silencia e compactua
com as medidas repressoras, não sendo rara a demanda de mais violência,
repressão e endurecimento de medidas penais. À medida que as prisões são
patrimonializadas, surge a dificuldade de preservar a memória da dominação,
dor e sofrimento de pessoas que têm sido estereotipadas e destituídas de sua
humanidade. Recentemente surgiram tentativas de memorizar as diversas
etapas da pandemia do coronavírus, com o intuito de enfrentar políticas ge-
nocidas que negam atos e responsabilidades e até mesmo a existência de uma
situação epidêmica. Este também é um registro que procuramos ressaltar no
último capítulo deste livro.
Indivíduos, comunidades, grupos e movimentos sociais conseguiram lidar
com traumas e humilhações, repudiaram versões oficiais da história e trouxeram
à tona novas abordagens e narrativas. Antigas identidades, unificadas por proces-
sos radicais e violentos de homogeneização, foram contestadas. Novas narrativas
foram construídas em torno do protagonismo da população afrodescendente
desde sua chegada ao novo continente. Apesar de subjetivas e pessoais, muitas
C o n s i d e ra çõ e s fi n a i s 183

vezes residuais apenas, algumas memórias foram capazes de desafiar os vazios da


historiografia e impedir que diferentes formas de dominação fossem esquecidas.
Construções paralelas, híbridas e de resistência estão presentes entre os que são
oprimidos, mas dificilmente contam com recursos para se institucionalizarem
e terem um maior poder de comunicação e transmissão de sentido.
As análises de Aleida e Jan Assmann permitiram a diferenciação analítica
entre memória coletiva e memória cultural. Para os autores, a memória cole-
tiva ou social se forma através da interação e da comunicação entre pessoas e
grupos sociais. Essa construção coletiva, que foi defendida inicialmente por
Halbwachs, pode ser transmitida, no máximo, pelo período de três gerações
consecutivas. Depois disso, ela se fragmenta e seu conteúdo dificilmente é
identificado. A memória cultural, por sua vez, é capaz de atravessar diferentes
épocas, pois é transmitida através de suportes ou mediadores, que podem ser
o próprio corpo ou, também, textos impressos, imagens e objetos da cultura
material (Assmann 2008, 2011; Assmann 2008b). O conceito de memória
cultural traz à tona a importância dos meios de difusão e consolidação de
representações coletivas.
Os capítulos 6, 7 e 8 deste livro se voltam especificamente para os meios
de comunicação, uma vez que temas importantes do passado alcançam um
público maior quando veiculados pela arte, literatura, cinema ou, ainda, pelos
novas tecnologias de informação. No Brasil, os processos de transmissão e pre-
servação da memória – através dos diversos meios de comunicação, produções
artísticas e instituições especializadas – alcançam setores distintos da população
e estão vinculados a estratégias de inclusão e exclusão. A iniciativa de Abdias
do Nascimento de criar o Museu do Negro e potencializar o que denominou
arte negra aponta a importância dos espaços públicos para aqueles que lutam
por reconhecimento. Na literatura e no cinema, a ficção traz à imaginação os
eventos do passado que não foram registrados, propiciando dessa forma uma
interpretação possível do que não pode ser reconstruído com documentos e
testemunhos. Essas são formas de comunicação que ampliam a audiência e dão
maior visibilidade aos traumas coletivos. As novas tecnologias de comunicação
e informação têm a capacidade de multiplicar imaginários coletivos diversi-
ficados e permitir uma disputa maior entre narrativas. A contrapartida aos
avanços tecnológicos é que a comunicação por meio da internet, por exemplo,
leva a um descolamento das narrativas em relação ao que se pretende que seja
a realidade. A percepção de que não há um passado real e verdadeiro a ser
lembrado em sua totalidade, ao invés de refinar os métodos de investigação
para que interpretações fiquem o mais próximo possível do passado, incentiva
o descaso sobre a veracidade das narrativas.
184 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social

Embora possamos atribuir especificidades às memórias subjetiva, coletiva


e cultural, é importante destacar que elas estão presentes e entrelaçadas nas
diversas construções de passado. Os testemunhos, que certamente receberam o
apoio das diversas comunidades em que se inserem, foram escritos e gravados,
divulgados por meio de livros e filmes e preservados em arquivos, museus e
memoriais.
Como não há um movimento linear da história, após décadas de um avanço
lento mas contínuo na conquista de direitos e na diminuição da desigualdade
social, medidas governamentais efetivadas após 2019 têm desestabilizado as
instituições associadas à luta antirracista, ao direito de povos indígenas, ao
controle da violência policial e à conquista da cidadania. Todas essas medidas
se associam a tentativas de apagamento de dados e informações sobre o pas-
sado. Como vimos anteriormente, para Benjamin - que escreveu no período
em que a Europa estava sob o controle do nazismo - os vencedores ainda não
haviam parado de vencer (Benjamin 1985).
No Brasil, país marcado pela desigualdade social e econômica, a memória
oficial continua sendo aquela registrada em instituições que majoritariamente
estão sob o controle de setores dominantes da sociedade. A dificuldade de
preservar no Brasil importantes eventos e situações do passado diz respeito,
portanto, não só às características inerentes à aceleração do tempo e à moderni-
dade. Para contrapor as versões oficiais da “História no Brasil”, os movimentos
sociais procuram dar voz àqueles setores da sociedade que foram silenciados.
Grupos se estabilizam e ganham normatividade através dos novos meios de
comunicação. Ao longo deste livro procuramos mapear os avanços, recuos e
instrumentos de recordação de setores da sociedade que sofreram toda sorte
de violência e nem sempre tiveram meios para manter vivas suas lembranças
e tradições.
Apesar de toda a atenção dada à “memória” nas últimas décadas, conti-
nuamos a enfrentar intolerância, conflitos étnicos, ódio, fanatismo, bem como
usos e abusos da memória. O controle da memória pelo silenciamento ou por
práticas celebrativas tem estado presente ao longo de séculos. Procuramos mos-
trar que é necessário um trabalho constante de democratização de informações,
reinterpretação coletiva dos fatos ocorridos e reparação de violências sofridas,
pois sem isso as memórias não servirão de aprendizado às gerações futuras. É
importante, portanto, manter vivas as memórias do passado, o que demanda
um esforço repetitivo e envolve um processo seletivo em que o esquecimento
também deve ser contemplado, bem como manter acesa a vontade de justiça
em relação aos silenciados, àqueles que são estigmatizados e, principalmente,
aos violentamente subjugados.
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Autores

Gabriel da Silva Vidal Cid


Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos de Sociologia e Política (IESP/
UERJ). Pós-doutorando da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ). Coordenador
do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Poder (www.artecultpoder.org). E-mail:
gabrielsvcid@gmail.com
Maurício Barros de Castro
Doutor em História pela USP. Professor adjunto do Instituto de Artes da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Programa de Pós-graduação
em Artes (PPGArtes/UERJ) e Programa de Pós-graduação em História da Arte
(PPGHA/UERJ). E-mail: barrosdecastro@yahoo.com.br.
Myrian Sepúlveda dos Santos
Doutora em Sociologia pela New School for Social Research. Professora Titular
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ).
Coordenadora do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Poder (www.artecultpoder.
org). E-mail: myrian@uerj.br.
Paulo Gajanigo
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Associado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades
(PPCult/UFF), Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (PPGSP/
UENF). E-mail: paulogajanigo@id.uff.br
Rogério Ferreira de Souza
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor Adjunto e Coordenador do Instituto de Pesquisa Universitária
do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da
Universidade Candido Mendes (IUPERJ-UCAM). E-mail: rogeriosouza@iuperj.br.
Viviane Trindade Borges
Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora
do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC), do Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente
(UDESC?PPGH). Coordenadora do Projeto de Extensão Arquivos Marginais.
E-mail: vivianetborges@gmail.com.

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