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e Justiça Social
Myrian Sepúlveda dos Santos (org.)
Memória Coletiva
e Justiça Social
Copyright © dos autores, 2021
OS Organização social
OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PCR Partido Comunista Revolucionário
Pina Pinacoteca do Estado
PNC Plano Nacional de Cultura
PNPI Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
PPP Parceria Público Privada
PROIN Projeto Integrado do Arquivo do Estado de São Paulo
PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
PUC Pontifícia Universidade Católica
REMUS-RJ Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro
SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos
SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial
SNC Sistema Nacional de Cultura
SNI Sistema Nacional de Informações
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
STF Supremo Tribunal Federal
TEN Teatro Experimental do Negro
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UMNA Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia
UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura
UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira
USP Universidade de São Paulo
Agradecimentos
V. Memória afro-brasileira................................................................................................93
Myrian S. Santos & Gabriel V. Cid
5.1. A africanidade dos brasileiros...........................................................................93
5.2. A construção do patrimônio cultural ............................................................ 96
5.3. Os museus afro-brasileiros..............................................................................102
5.4. A disputa pelo espaço urbano........................................................................106
Autores............................................................................................................................... 203
Introdução
O oposto de esquecer não é lembrar, mas sim fazer justiça.
Yerushalmi 1982: 117
15
16 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
1 Instituição vinculada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo e gerida pela
Organização Social Amigos da Arte.
18 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
2 Disponível em https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-torturador-brilhante-ustra-e-
-um-heroi-nacional/. Acesso 30/09/2020.
I n tro d u çã o 19
No primeiro capítulo deste livro, o foco está colocado sobre a relação entre
memória e sociedades contemporâneas. Walter Benjamin nos deixou algumas
definições sobre diferentes tipos de memória e os relacionou às transformações
na experiência da modernidade. Para o autor, a memória involuntária, capaz de
trazer o passado para o presente, associada à capacidade de aprendizado com o
passado pela transmissão de experiências vivenciadas entre indivíduos, não faz
mais parte da experiência moderna. O diagnóstico de Benjamin tem pontos em
comum com abordagens contemporâneas que associaram a memória coletiva
ao que o autor denominou memória voluntária. São numerosas e diversas as
construções e disputas sobre o passado, realizadas por grupos sociais no presente.
A partir da crise das democracias liberais e da crença nos valores posi-
tivos da modernidade, tornou-se evidente que não é mais possível restringir
os estudos da memória às diversas negociações ocorridas na esfera pública.
Encontramos também nos escritos de Benjamin o ceticismo em relação à
racionalidade moderna e sua descrição sobre a experiência do choque. O pas-
sado deixa de ser transmitido enquanto fonte de ensinamentos e abre espaço
para respostas imediatas em que tanto a construção como a manipulação do
sentido se tornam realidade.
O segundo e terceiro capítulos têm por objeto os arquivos e museus
construídos sobre o período da ditadura militar. Os processos de criação de
arquivos, monumentos e museus brasileiros sobre o tema envolvem conflitos
e disputas pelo poder. Poucas instituições, sítios históricos e organizações civis
se voltaram, nas últimas décadas, para as denúncias de torturas, execuções,
mortes e desaparecimentos. Estas iniciativas, contudo, têm um papel impor-
tante a desempenhar, pois, tal como em outras partes do mundo, voltam-se
para a denúncia de violações de direitos humanos e apontam a necessidade
de reparações.
Em seguida, serão analisadas as histórias e memórias prisionais, um
exemplo de histórias difíceis de serem narradas por envolverem sentimentos
de humilhação, dor e sofrimento. Prisões brasileiras continuam com práticas
próximas à barbárie que se sustentam pelo falso aceno de políticas governa-
mentais à segurança, mas também pela invisibilidade da pena. A produção de
reflexão crítica sobre a violência perpetrada nos espaços prisionais é um passo
ainda distante das instituições da memória que se voltam para esse tema. Em
parceria com a historiadora Viviane T. Borges, abordamos essas dificuldades.
Apagamentos de memórias sofridas se coadunam com um passado trans-
mitido de forma fetichizada. O desafio das novas políticas de patrimônio é
provocar a reflexão social frente aos problemas que envolvem a experiência
de encarceramento.
I n tro d u çã o 21
Este primeiro capítulo se voltará para uma análise da memória frente a algumas
teorias contemporâneas. Inicialmente, teremos como base algumas reflexões
de Walter Benjamin sobre diferentes tipos de memória e a experiência da mo-
dernidade, tendo como principal referência seu texto “Sobre alguns motivos
na obra de Baudelaire” (Benjamin 2019: 103-149). Para o autor, a memória
involuntária, capaz de trazer o passado para o presente, não é mais possível
para nós modernos. Sua análise coincide, até certo ponto, com abordagens
contemporâneas que, embora acriticamente, já consideram as construções
e disputas do presente como única possibilidade da memória. São muitos os
autores que associam o tempo da modernidade tardia, para utiliza um termo
de Anthony Giddens (1990), ao momento do presente.
A segunda parte deste capítulo analisará as abordagens teóricas que se
voltam especificamente para as políticas da memória. Os diversos conflitos
que se travam por uma determinada memória do passado, a partir da premissa
de que o lembrar é sempre seletivo, têm sido objeto de diversos estudos nas
últimas décadas. Pensadores das mais variadas vertentes procuraram com-
preender disputas nas construções do passado, denunciar os silenciamentos e
recuperar testemunhos em contraposição às diversas versões oficiais do pas-
sado (Hobsbawm & Ranger 1983; Ferraz & Campos 2018). Esses são estudos
que abrandaram as fronteiras entre história e memória e movem-se a partir
da valorização do conceito de memória voluntária, ou seja, das escolhas e do
momento presente.
Os estudos sobre memórias difíceis de serem narradas trouxeram de
volta as questões do inconsciente e do trauma na lembrança do passado. A
ênfase na memória voluntária deixou de ter prioridade quando bloqueios psi-
cológicos, sintomas e repetições passaram a ser noções utilizadas nos estudos
23
24 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
aos quais os indivíduos não têm mais como reagir. Passam a responder ao
que acontece ao seu redor quase como autômatos, com pequena capacidade
reflexiva e, praticamente, nenhuma relação com o passado.
A distinção realizada por Benjamin entre uma memória voluntária
que pouco acesso tem ao passado e outra capaz de trazer consigo imagens e
aprendizados do passado foi reiterada recentemente pela filóloga alemã Aleida
Assmann. Em seus escritos, ela diferencia a memória como “arte mnemônica”
da memória como “potência”. A memória é tanto o ato de decorar – deliberado,
resultado da vontade, o que é feito no presente a partir da razão –, quanto o
ato de lembrar do passado, que ocorre de forma involuntária, sem que seja
possível o controle, o treinamento. E, segundo a autora, a associação entre
saber verdadeiro e saber mnemônico não existe mais (Assmann 2011: 31-36).
A obra de Benjamin é de difícil interpretação, não só porque ele morreu
tragicamente, sem oportunidade para debater algumas das reflexões deixadas,
mas também porque teve grande preocupação com estilo e forma, expressan-
do-se por meio de ensaios e aforismos para que seu texto não se fechasse às
interpretações. Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, ensaio
publicado pela primeira vez em 1935, Benjamin traz considerações mais otimistas
em relação aos desafios da modernidade (Benjamin 2012). Esse é o texto mais
reproduzido e comentado por autores marxistas, devido às referências a Marx,
à luta de classes e à proposição de alternativas como as apontadas em relação
à arte cinematográfica. O que é pouco percebido é que, à medida que o autor
descreve o fim do aqui e do agora da obra de arte, de sua existência única, de sua
autenticidade, também aponta para a atrofia da experiência na modernidade.
Ao escrever sobre Baudelaire, Benjamin irá reiterar a dificuldade de apreen-
são, compreensão da poesia lírica, da expressão de sentimentos e emoções. O
autor tem plena consciência de que, em grandes períodos históricos, a forma
de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que
seu modo de existência.
O indivíduo da modernidade, para ele, não tem mais a capacidade de per-
ceber a relação entre passado e presente, sua continuidade e permanência. Nesse
contexto, a saída encontrada em A obra de arte é o controle da reprodutibilidade
pela arte, o que se dá na criação do que será reproduzido, na montagem, na
combinação de reproduções. A arte cinematográfica é possível porque, após a
fragmentação da representação do artista, os episódios podem ser combina-
dos de acordo com a intenção do autor. Na construção do real, a arte se une à
técnica e permite a ampliação da visão sobre o cotidiano. O cinema, enquanto
arte, não é capaz de revelar a verdade, espelhar o mundo real: ele cria a ilusão
da verdade. O cinema produz o que as massas demandam, distração – não
28 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
relação entre história, memória e poder, abrindo novos caminhos para a in-
vestigação acadêmica. A natureza do objeto de análise se modificou, uma vez
que cada momento do passado deixou de ser singular e autônomo em relação
ao tempo presente.
O filósofo francês Jacques Derrida desenvolveu suas análises sobre o
tempo na tradição deixada por Nietzsche e Foucault e também trouxe em
suas reflexões as indeterminações da memória devido à relação fluida entre
passado e presente. Seja em relação à história, seja em relação à memória,
há para Derrida a incapacidade de o discurso sobre o passado – se pensado
enquanto um momento que antecede o presente e, portanto, distinto deste
último – representar o passado de forma coerente e verdadeira. Para ele, é
uma tarefa impossível para a memória recuperar o passado, seja em termos
da objetividade do passado seja em termos da subjetividade do presente, neste
último caso porque aquele que lembra sofre determinações do passado e está
em constante transformação. Portanto, além de estabelecer como impossível a
identidade entre passado e presente, Derrida chamou a atenção para o fato de
que se a memória é incapaz de resgatar um passado real, também está longe de
ser uma mera faculdade psicológica capaz de recriá-lo por si mesma. “Re-criar”
o passado é impossível, porque o movimento que fazemos de interiorização
do outro mantém em nós vida, pensamento, corpo, voz, olhar e alma do outro,
embora em forma de sinais, símbolos, imagens e representações mnemônicas,
que são apenas fragmentos lacunares, dispersos e separados (Derrida 1996).
No campo das Ciências Sociais, em substituição às teorias que restringiram
os estudos da memória às guerras culturais travadas no presente, fortalece-
ram-se abordagens que apontam limites sobre o pensar e o agir em sociedades
contemporâneas. As novas críticas se concentram nas estruturas de linguagem,
classificações e exclusões, ou seja, em elementos capazes de invisibilizar alguns
dos sentidos inerentes às práticas sociais. Em suma, as novas teorias culturais,
muitas delas precedidas pelo prefixo “pós”, reformularam a definição da natureza
dos objetos e dos sujeitos da história. O poder assumiu várias faces, o tempo
se tornou caótico e imprevisível, o real se desprendeu de suas representações
e o foco tem sido retirado dos indivíduos e de suas experiências partilhadas.
As novas abordagens voltam suas análises para os sistemas de imaginários
coletivos, com noções de temporalidade e de subjetividade mais complexas e
caracterizadas pela transitoriedade.
A percepção da instabilidade no conhecimento do passado foi sem
dúvida um avanço, se consideramos as abordagens que restringiam o pas-
sado a um objeto passivo. Contudo, as ilusões e fantasmagorias produzidas
por sua dominação, como previu Walter Benjamin, podem voltar à cena
M e m ó ri a e d e s i g u a l d a d e s o ci a l 33
coerção e conflitos (Pratt 2007). Seu conceito é próximo daquele explicitado pelo
filósofo Michel Foucault ao descrever heterotopias (Foucault 2001). Relações
desiguais definem os desdobramentos destes encontros.
Quando afirmamos que é preciso lembrar para não repetir os erros do
passado, precisamos considerar, em sociedades complexas, o que é lembrado,
como determinadas lembranças ecoam em determinados grupos e quais suas
consequências. Os massacres e os genocídios têm se repetido nos últimos
anos, apesar de todos os registros realizados sobre eventos traumáticos do
passado. Não se trata apenas de lembrar, uma vez que lembranças dependem
de compartilhamentos e estruturas de reprodução. Memórias coletivas que se
reproduzem a partir de suportes midiáticos requerem a democratização de todos
os seus processos, da produção à seleção e disseminação de seus conteúdos.
II
Os arquivos da ditadura militar
a família Rubens Paiva não é vítima da ditadura, o país que
é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva.
Paiva 2015: 39
39
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3 Informação obtida por meio da entrevista realiza com Joana Ferraz, membro da direção colegiada do
GTNM/RJ em 30/09/2020.
4 Disponível em https://www.torturanuncamais-rj.org.br/. Acesso 05/05/2020.
5 Disponível em https://cejil.org/es/amici-curiae. Acesso 05/05/2020.
6 Disponível em http://www.cidh.org/demandas/11.552%20Guerrilha%20do%20Araguaia%20Brasil%20
26mar09%20PORT.pdf. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 43
7 Duas leis ampliaram o campo de ação da CEMDP: a lei 10.536/2002 ampliou o período de responsabilidade
do Estado de 1964 a 1979 para 1961 a 1988 e a lei 10.875/2002 permitiu reparação aos que cometeram
suicídio para evitar tortura e prisão.
8 https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/bitstream/192/459/1/BRASIL_Direito_2007.pdf. Acesso
05/05/2020.
44 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
12 Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/stf-ordena-que-tribunal-militar-libere-arquivos-
-secretos-da-epoca-da-ditadura.ghtml. Acesso 5 mai 2020.
13 Disponível em https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/2018/05/11/e-preciso-abrir-os-
-arquivos-militares.ghtml. Acesso 05/05/2020.
14 Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdf/pndh3_programa_nacional_direitos_huma-
nos_3.pdf. Acesso 05/05/2020.
46 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
15 Todas as iniciativas financiadas pelo projeto podem ser encontradas em: https://www.justica.gov.br/
acervo_legado/anistia/projetos/marcas-da-memoria-i-2010. Acesso 05/05/2020.
16 Disponível em https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro-dos-votos-ver-
sao-final-20-08-2013.pdf. Acesso 05/05/2020.
17 Disponível em https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro_caravanas_anis-
tia_web.pdf. Acesso 05/05/2020.
18 Disponível em https://www.justica.gov.br/acervo_legado/anistia/anexos/acesso_-livro-em-baixa-re-
solucao.pdf. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 47
19 Para uma análise detalhada do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, com seus avanços e
limites, ver, entre outros, Weichert 2014.
48 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
Medidas que estavam sendo tomadas desde 1995 para reparar familiares das
vítimas pelos assassinatos cometidos por agentes da repressão foram suspensas.
Aqueles que foram mortos durante o regime militar e estão sem atestado de
óbito continuarão constando como desaparecidos, e suas famílias prosseguirão
em sua via crucis sem direito ao luto dos entes perdidos e sem documentação
oficial que lhes permita legalizar a morte. Retorna integralmente à sociedade
civil o dever de memória durante o período de exceção, tanto em relação às
denuncias de bárbaries anteriormente cometidas, como de busca pelos corpos
de vítimas e de preservação dos lugares da memória desta história ainda difícil
de ser contada.
20 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/01/governo-troca-integrantes-de-comis-
sao-sobre-mortos-e-desaparecidos.htm. Acesso 05/05/2020.
21 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/janeiro/nota-de-esclarecimento-comissao-
-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos. Acesso 05/05/2020.
Os a rq u i vo s d a d i ta d u ra m i l i ta r 49
ação de Clarice, que atuou incessantemente para que a farsa fosse desmasca-
rada. Como aconteceu com outros familiares das vítimas, ela recebeu diversas
ameaças e não recuou, conseguindo, ainda em 1978, uma sentença histórica
que condenou o Estado a indenizar a família pela morte do jornalista.
A luta de Clarice continua até os dias atuais. Em 2009, a família Herzog
ganhou um processo contra o Estado brasileiro encaminhado à Corte
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos
(CIDH/OEA), com apoio do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL),
abrindo caminho para outras famílias de mortos e desaparecidos políticos. Em
2013, obteve a retificação do atestado de óbito, certificando que o morto fora
vítima da violência do Estado brasileiro.
A principal missão do Instituto Vladimir Herzog, organização da socie-
dade civil comprometida com a trajetória de vida de Vladimir Herzog, é a luta
pelos valores da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
Atuante na denúncia de ações policiais truculentas contra a sociedade civil e
em ataques diversos à democracia e aos direitos dos brasileiros, a organização
se destaca ainda por editar um dos maiores acervos online sobre a história da
ditadura no Brasil.22 O instituto tem não só Clarice Herzog como presidente,
mas também uma família ampliada nos conselhos deliberativo e consultivo,
constituída por parentes, companheiros, jornalistas e ex-presos e perseguidos
políticos que celebram sua trajetória.
O Acervo Vladimir Herzog, com apoio do Itaú Cultural, foi lançado
em 2020, disponibilizando mais de 1.700 itens do jornalista, sendo que parte
substantiva destes está voltada para a defesa da democracia. A trajetória de
Herzog, interrompida por seu assassinato pelo aparelho repressivo do Estado,
é construída a partir de sua luta em favor dos direitos humanos e da cons-
trução de um projeto de país mais justo. A farsa em torno do seu assassinato
evidencia a importância de se conhecer o passado para romper seus ciclos de
violência. O filho de Herzog, Ivo, presidente do Conselho, relata como parte
de sua história pessoal o choro de estudantes comovidos pela trágica morte
de seu pai. Inegavelmente, no atual panorama político brasileiro o lançamen-
to do Acervo cumprirá o papel de resistência às iniciativas negacionistas e à
violência de Estado.
No sítio eletrônico da Instituição Vladimir Herzog encontramos a seguinte
declaração do jornalista, que reitera a epígrafe que abriu este capítulo:
1 Ver, por exemplo, a Coalização Internacional de Sítios de Consciência, uma rede mundial formada em
1999 que conecta sítios históricos, museus e memoriais que trabalham com memória em consonância
com a lutas atuais em defesa dos direitos humanos. Disponível em https://www.sitesofconscience.org/
en/who-we-are/about-us/. Acesso 15/06/2020.
57
58 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
3 Entre os movimentos que assinam os manifestos pela transformação do prédio em espaço de memória
da resistência e das lutas sociais estão: Anistia Internacional Brasil, Associação Nacional dos Anistiados
62 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
Políticos, Aposentados e Pensionistas (ANAPAP), Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis
(CDDH-Petrópolis), Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), Coletivo RJ Memória, Verdade
e Justiça, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ, Fórum de Reparação e
Memória do Rio de Janeiro, Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro, Instituto Augusto Boal, Instituto
de Estudos da Religião (ISER), Justiça Global, Levante Popular da Juventude do Rio de Janeiro, Núcleo de
Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Partido Comunista
Revolucionário (PCR), Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA). Disponível em http://
coletivorj.blogspot.com/?fbclid=IwAR0vkd4h3ALSBvK8Hdff2rPWhUj_5BIpplC2DGvlhsQqf8AIWE4Kn-
t4jNPE. Acesso 15/06/2020.
4 Para um levantamento destes sítios, ver a publicação da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade
(org.) da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Memórias Resistentes, Memórias
residentes: Lugares de Memória da Ditadura Civil-Militar no Município de São Paulo (2017), o Guia dos
Lugares Difíceis de São Paulo (Cymbalista 2019), ou, ainda, a palestra da historiadora Deborah Neves,
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TbyejAZFYow&t=1545s. Acesso 26/07/2020
5 Disponível em http://ocupa-dops.blogspot.com/. Acesso 15/06/2020.
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 63
entidade internacional com sede em Haia, atuam como parceiras nos grupos
de trabalho formalizados. A insistência na descoberta dos corpos faz parte de
uma tradição milenar e do direito universal dos familiares e comunidades de
sepultar e honrar seus mortos.
Os lugares onde ocorreu a tortura são lugares da memória. O processo
de tombamento do prédio que abrigou o Departamento Estadual de Ordem
Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP), localizado no Largo General
Osório, no centro da cidade de São Paulo levou à construção do Memorial da
Resistência, o que representa uma grande conquista, pois é o único museu aberto
ao público no país a ter como um de seus principais objetivos a denúncia de
violações de direitos humanos durante a ditadura. A trajetória desse processo
traz alguns elementos importantes que nos permite melhor compreender o
potencial de lugares da memória.
O tombamento do prédio ocorreu inicialmente devido ao valor histórico
e arquitetônico do edifício, que foi construído no início do século XX para ser a
sede da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (1914-1940). O processo teve início
em 1976, quando o DEOPS ainda ocupava as diversas dependências do prédio,
e foi efetivado em 1999 pelo Conselho de Defesa de Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT).
O DEOPS foi criado em 1924, para controlar e reprimir movimentos políti-
cos e sociais e fiscalizar a entrada de imigrantes. Entre 1937 e 1983, ano em que
foi extinto, ocupou os cinco andares do prédio, com uma ampla estrutura que
incluía as delegacias de ordem social, de estrangeiros, de explosivos e armas
e de ordem econômica, além de diversas dependências de apoio, como sala
de reuniões, copa, cozinha, ambulatório, garagem, oficina e, paralelamente às
instâncias regulares, as lúgubres salas de interrogatório e tortura. Nos anos
1970, a instituição foi denunciada e reconhecida pela truculência e tortura
durante interrogatórios. O prédio do DEOPS, depois de desocupado em 1997,
foi repassado à Secretaria de Estado da Cultura. Na época da desocupação, o
prédio era utilizado pelo Departamento de Polícia do Consumidor (DECON).
O tombamento do prédio em questão fez parte de um projeto urbano que
tinha por objetivo a revitalização da área central da cidade e foi responsável
pela instalação de equipamentos culturais nos grandes edifícios históricos
que se encontravam na região. No final da década de 1990, houve a reforma
da Pinacoteca de São Paulo, museu de artes visuais que ocupa a antiga sede
do Liceu de Artes e Ofícios, um edifício projetado no final do século XIX. A
Pinacoteca, como as demais instituições culturais da região, é gerida por uma
organização social (OS) - ou seja, uma instituição privada sem fins lucrativos -
que atua em conjunto com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. A
66 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
Associação Pinacoteca Arte e Cultura (APAC) foi criada em 1992 com objetivo
de apoiar o funcionamento do museu e, em 2005, tornou-se uma organização
da sociedade civil. Dando continuidade ao projeto de revitalização, em 2000
foi cedido para a Secretaria de Cultura o prédio da Estação da Luz, cuja ar-
quitetura inglesa do início do século XX passou a abrigar o Museu da Língua
Portuguesa, com grande afluência de público. A instituição era administrada
pela OS Cultura Poiesis e, após um incêndio devastador em 2015, passou a ser
gerido pela OS IDBrasil. Também se encontram no entorno da região o Museu
de Arte Sacra e a Sala São Paulo.
Vários projetos foram considerados para a ocupação do prédio centenário
que fora tombado: entre outros, uma escola de música, a Universidade Livre
da Música e uma escola de teatro voltada para ópera, artes cênicas e circo. A
intervenção arquitetônica, ocorrida entre 1997 e 2000, gerou inúmeras polêmicas,
pois seus responsáveis não preservaram as marcas deixadas pelo DEOPS, como
as inscrições feitas nas paredes pelos indivíduos que lá foram encarcerados.
Contudo, em agosto de 1999, comemorando os vinte anos da Lei da Anistia
foi aberta ao público a exposição “Anistia 20 Anos”, organizada pelo Arquivo
Público do Estado de São Paulo com apoio da Secretaria de Estado da Cultura
e da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania. Textos, cartazes e reproduções
de documentos procuravam mostrar ao público o contexto político durante
a ditadura civil-militar e detalhar o processo de luta pela anistia (Menezes &
Neves 2009: 29-38).
Ainda no mesmo ano de 1999, também com suporte das mencionadas
Secretarias de Cultura e de Justiça, foi encenada no andar térreo a peça Lembrar
e resistir, com texto de Izaías Almada e Analy Alvarez. A capa do programa
trazia a frase de Adorno e Horkheimer, “Não se trata de conservar o passado,
mas resgatar as esperanças do passado”, indicando que os autores tinham a
intenção de resgatar as promessas que para eles continuavam vivas. A peça en-
cenou violações e tratamentos bárbaros softidos pelos presos políticos durante
a ditadura. Na técnica teatral utilizada, o espectador tornava-se parte da cena,
ocupando em diversos momentos o lugar dos personagens. Logo ao chegar
ao prédio, por exemplo, ele era identificado por meio do preenchimento de
antigos prontuários de entrada e o registro da impressão digital.
Ao longo da peça, o clima de tensão se aprofundava. O ator que represen-
tava o personagem “Marcelo Estradas” era o último a entrar na sala. A partir
de então o ator-carcereiro coagia e amedrontava não só o ator, mas também o
público. Havia gritos de mulheres supostamente torturadas. Os espectadores
eram conduzidos pelos corredores e entravam nas celas onde, como indiví-
duos submetidos à prisão, se identificavam com o medo e a dor dramatizados
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 67
pelos demais atores que lá estavam. Em cada uma das quatro celas visitadas
era encenada uma situação específica descrita por aqueles que haviam sobre-
vivido ao cárcere e à tortura. Na primeira, havia um único homem que fazia
poesia para manter a sanidade na solitária; na segunda, mulheres narram às
companheiras os dramas de deixarem seus filhos e como estes foram utilizados
pelos torturadores para obter confissões e informações; na terceira, dois padres
procuram sobreviver física e psicologicamente à dor e à prisão; e na última,
o público volta a se deparar com “Marcelo” escutando com ele os relatos de
tortura de um companheiro e sofrendo com ele a dúvida de sua capacidade
de resistir ao ser chamado pelos policiais. De volta à antessala da carceragem,
os atores encenam a euforia dos presos políticos ao saberem do sucesso da
ação que levou ao sequestro de um embaixador. Uma carta foi divulgada pela
imprensa, e companheiros seriam trocados pelo embaixador. O padre, que será
liberado, não esconde sua angústia. Uma das mulheres que aparecia na cela 2
e que cantarolava ao longo da cena também será liberada. Ela é trazida numa
maca suja de sangue, e o policial comenta que “a vaca comunista não canta
mais”: tinham cortado suas cordas vocais. A última cena reproduzia o falso
suicídio produzido por autoridades para encobrir o assassinato do jornalista
Vladimir Herzog e seu desmentido. O público era convidado então a conversar
e refletir sobre o que fora apresentado.8
Atores e plateia de Lembrar e resistir encenaram um passado que não
queriam esquecer. A encenação teatral significou uma possibilidade de catarse
depois de anos de opressão e silêncio. Diretores, atores e público disseram não
ao pacto do silêncio estabelecido pela Lei da Anistia, denunciaram a tortura,
comemoraram a solidariedade, a esperança e a liberdade, e propuseram a
continuidade de suas lutas. A peça estava programada para uma temporada
curta, de um mês, e ficou um ano e meio em cartaz. Foi também encenada no
Rio de Janeiro.
Se a memória das lutas, da dor e da resistência foi reprimida e censura-
da durante a ditadura, sobrevivendo de forma subterrânea à esfera pública,
para utilizar o termo de Pollak (1989), no momento de abertura política ela
explode e arrebata seguidores. Havia um vínculo forte entre diretores, atores
e plateia, e muitos entrevistados compartilhavam os sentimentos encenados
(Almeida, 2004). Atores e público se identificavam na busca de uma sociedade
mais justa e na luta contra o Estado autoritário. Os “terroristas” do discurso
oficial eram humanizados e assumiam seus papeis na cena pública em claro
confronto com o estigma dado a eles pelos militares. Foi o momento em que
8 Para uma descrição e análise da encenação da peça de teatro Lembrar e resistir, ver Almeida 2004.
68 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
... mas me lembro que a gente discutiu: “Vamos fazer uma sala com instrumento
de tortura?” E foi a Cristina Bruno quem disse: “Não. Não é lugar para mostrar a
tortura. Podemos falar sobre a tortura, mas não vamos entrar em detalhes sobre
ela. Isso fica para os educadores. (Memorial 2018: 103)
Quer dizer, o Memorial não pode entrar, por exemplo em uma questão de política
partidária. Ele, ao contrário, tem que estar um pouco acima disso e acolher todas
essas ideias, sempre permitir o debate, que é muito difícil nos tempos atuais.
(Memorial 2018: 70)
Se você me perguntar: Que lembranças você tem? A única lembrança que eu tenho
mesmo é a da sala de interrogatório. Mas tinha dezenas de salas... (Memorial
2018: 105)
ao novo museu, tal como estava sendo proposto pela equipe interdisciplinar.11
Uma das demandas do grupo foi a mudança do nome, uma vez que para eles
a denominação “Memorial da Liberdade” era insólita e distante da realidade.
A nova proposta elegeu a palavra “verdade” num novo direcionamento para
o memorial. As exposições se afastaram de representações traumáticas, como
salas com instrumentos de tortura e evocações ao sofrimento, e também de
políticas partidárias. Maurício Politi, um dos membros do Fórum que colaborou
com o projeto do novo museu, defendeu que ali fosse o local onde se conta
história, mas que fosse agradável de ser visitado (Memorial da Resistência de
São Paulo 2018: 70-103). Podemos entender a proposta como fruto do desejo de
construção de narrativas capazes de se comunicar com um público mais amplo
e diferenciado que, embora não apresentasse identidade com o tema, pudesse
ser envolvido por ele.12 Passadas algumas décadas do período de repressão,
os compromissos anteriores foram revistos e uma unidade política menor
permanece entre os que querem manter viva a memória do passado. Além
disso, observa-se também a tentativa de retirar aqueles que foram torturados
do papel de vítimas, tentativa esta que também encontramos em produções
literárias e cinematográficas.
A exposição de longa duração do Memorial da Resistência é composta
por quatro módulos. O primeiro deles apresenta a história do edifício a partir
das diversas intervenções ocorridas. Em seguida há a apresentação de uma
linha do tempo com eventos de repressão e resistência ao longo da República.
No final desta sala e no início do corredor que leva às celas, há fotografias an-
tigas dos espaços prisionais e, também, um corredor estreito que leva à antiga
área de banho de sol dos detidos. No terceiro módulo, o conjunto prisional
é apresentado em quatro celas e um corredor principal. Encontramos, nas
celas, uma referência direta a presos políticos que estiveram encarcerados no
DEOPS; uma representação cênica do que seria uma cela, com seus objetos; e
a disponibilização de gravações de testemunhos. A terceira cela tenta criar
uma autenticidade perdida, incorporando inclusive a escrita recente de pre-
sos políticos, sem explicar que elas não são de época. Não há um tratamento
destacado para homenagear os quatro militantes que lá morreram. A tortura é
mencionada, mas não se encena o sofrimento causado pelas salas insalubres e
superlotadas, nem o terror imposto aos detentos. Na saída das celas é possível
11 Depoimentos sobre a criação do projeto podem ser encontrados em Memorial da Resistência, 10 anos:
Presente! (Memorial da Resistência de São Paulo 2018). Sobre a criação do projeto museográfico, ver
depoimento de Cristina Bruno na mesma publicação (63-71).
12 Cf. entrevista realizada com Oswaldo Santos Jr. e Maurice Politi, diretores do Núcleo Memória em
15/07/2019.
M u s e u s d a R e s i s tê n ci a 73
13 Ver, sobre esse trabalho, a publicação da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade (org.) da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Memórias Resistentes, Memórias residentes:
Lugares de Memória da Ditadura Civil-Militar no Município de São Paulo (2017), bem como o recente
Guia dos Lugares Difíceis de São Paulo (Cymbalista 2019).
74 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
nos anos de chumbo, passava por quatro locais: DOI-CODI, DEOPS, Presídio
Tiradentes e Auditoria Militar. Os presos eram torturados inicialmente no DOI-
CODI, espaço invisível pois não admitia oficialmente a detenção. Em seguida,
os presos – já reconhecidos oficialmente – eram levados para o DEOPS, onde
novos interrogatórios eram realizados com tortura. De lá, passavam ao Presídio
Tiradentes e aguardavam o julgamento. Por último, eram julgados pelas audi-
torias militares, que condenavam todos aqueles que eram considerados uma
ameaça à ordem política, procurando dar legitimidade às prisões arbitrárias
daqueles que sobreviviam aos interrogatórios.
Em suma, ao longo deste capítulo, analisamos a formação de arquivos,
a preservação de sítios da memória e a criação de museus relacionados às
disputas e conflitos na construção da memória das perseguições, torturas e
assassinatos do período da ditadura civil-militar. Como vimos, ainda durante
o período ditatorial organizações civis denunciaram as torturas, assassinatos
e ocultamento de corpos. Essas denúncias foram veiculadas por documentos
e publicações que se encontram organizadas em arquivos. No período subse-
quente, políticas públicas foram responsáveis por diversas iniciativas no sentido
de aprofundar as investigações sobre as violações ocorridas e também formar
um aparato institucional em prol da memória, verdade e justiça. Os desafios
e obstáculos foram expressivos, apesar da volumosa documentação obtida
comprovando violações de direitos de todos os tipos. Entretanto, as forças
militares não só mantiveram sua própria versão do passado,16 como não dis-
ponibilizaram documentos da repressão política, o que obstruiu investigações
e, consequentemente, a atribuição de responsabilidade ao Estado, o que indica
fragilidade das instituições democráticas (Jelin 1994: 48-51).
Como vem sendo enfatizado, museus têm procurado um público maior e
diversificado a partir de dispositivos que incluem desde encenações, passando
por expressões artísticas, imagéticas e sensoriais, até o uso mais recente das
novas tecnologias de informação. Contudo, no que diz respeito ao tratamento
das violações de direitos humanos, os museus brasileiros ainda precisam ca-
minhar bastante para sensibilizar o público presente e ausente das instituições,
uma vez que está cada vez mais condicionado pelo consumo e imediatismo.
Diferentemente de outros países da América Latina, temos um único museu
vinculado ao tema “memória, verdade e justiça”, o Memorial da Resistência.17
16 Ver, por exemplo, as denúncias realizadas no Seminário Direito à Memória e à Verdade da Câmara
dos Deputados em 2012, sobre a publicação de nome Orvil. Disponível em www2.camara.gov.br/do-
cumentos-e-pesquisa/publicacoes/edições. Acesso 15/06/2020.
17 Sobre instituições que trabalham na recuperação e construção da memória de violações aos direitos
humanos em países da América Latina e do Caribe, ver http://sitiosdemoria.org/pt/. Acesso 15/07/2019.
76 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
18 As três outras instituições brasileiras que participam da rede são Museu da Imigração/SP, Casa do Povo/
SP e Memorial das Lutas e Ligas Camponesas/PB.
IV
O patrimônio prisional
Myrian Sepúlveda dos Santos e Viviane Trindade Borges
77
78 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
5 Segundo dados do Infopen, a população prisional no Brasil em 2019 era de 755.274, incluindo os presos
em delegacias. Disponível em https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/noticias/depen-lanca-infopen-
-com-dados-de-dezembro-de-2019. Acesso 05/01/2020.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 81
6 Disponível em http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2016/02/agente-diz-ter-acervo-
-de-5-mil-itens-do-carandiru-em-casa-no-interior-de-sp.html. Acesso 05/01/2020.
84 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
7 Disponível em http://gshow.globo.com/RPC/noticia/2016/10/quer-sentir-o-clima-do-supermax-em-
-curitiba-rpc-te-convida-conhecer-o-presidio-do-ahu.html. Acesso 05/01/2020.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 85
“Amigos leitores
O último companheiro a ler este livro foi embora dia 20/8/85 depois de muito
tempo que ninguém conseguia fugir deste inferno. Parabéns! Que este exemplo
se repita sempre pois a meta é uma só, liberdade.
Ass. Parceiro do próprio que se foi” 8
paredes e teto de celas entre 1967 e 2007 e chama a atenção para as mudanças
ocorridas no espaço carcerário através das intervenções que trazem dois temas
de maior recorrência: apelo religioso e sexualidade. Salmos, rezas e diversos
pedidos de liberdade às figuras de Deus e Jesus Cristo mostram a manutenção
do vínculo dos internos com a religião. E também, segundo a autora, as figuras
da mulher e o teor erótico indica um processo de sublimação que se converte
em um recurso de poder do indivíduo sobre o espaço que ocupa (Aquino
2019: 104-105)
9 Disponível em https://www.universoaa.com.br/lifestyle/arte-e-design/no-rio-pedro-lobo-exibe-expo-
-tocante-sobre-o-presidio-mais-emblematico-do-pais/. Acesso 05/01/2020.
O p a tri m ô n i o p ri s i o n a l 89
93
94 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
2 Para uma abordagem recente do tema, que recupera debates anteriores, ver, por exemplo, Hita (2017).
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 95
Neste trabalho, partimos das formulações de Stuart Hall, tanto sobre as cons-
truções políticas e sociais de raça como sobre a diáspora negra, mantendo o
foco na associação entre as diversas construções identitárias e as lutas contra
a segregação e intolerância (Hall 2003). Segundo Valter Silvério, a diáspora
deve ser pensada não meramente a partir do deslocamento dos africanos para
o Novo Mundo, mas também como criação e recriação de um sentimento de
pertencimento determinado por situações de opressão, rejeição, segregação e
discriminação (Silvério 2017:118). Portanto, para o nosso objetivo, utilizaremos
os conceitos de população “negra e afrodescendente” que são associados, no
Brasil, ao uso da identidade étnico-racial como instrumento de resistência e luta.
A segunda observação diz respeito ao significado de “Movimento Negro”.
Este também tem sido objeto de diversas análises, e não há um consenso sobre
sua formação em termos de história, base territorial, critérios de pertencimento
ou conteúdo político. Os atos de resistência não são uniformes; ao contrário,
são diversificados e circunstanciais (Pereira & Alberti 2007). Em 1978, ainda
durante a ditadura militar (1964-1986), surgiu na cena política – influenciado
por movimentos antirracistas dos Estados Unidos e África e, internamente,
por grupos socialistas –o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação
Racial (MNU). O novo movimento, de caráter nacional, aglutinou agremiações
culturais, jornais, centros de estudo e associações diversas.
Para esta pesquisa, é importante destacar a associação entre o movimento
e o conceito de identidade étnico-racial que, depois dos anos 1970, foi se tor-
nando hegemônica a partir de congressos e reuniões nacionais. Desde a criação
do MNU, fizeram parte da agenda política a crítica à ideologia da democracia
racial, a inversão da conotação pejorativa atribuída à palavra “negro” e o esta-
belecimento do dia 20 de novembro, data da morte do líder quilombola Zumbi,
como o Dia Nacional da Consciência Negra.3 É neste sentido que fazemos
referência às diversas formas de ativismo e resistência ao racismo ativas no
país como “Movimento Negro”.
Paralelamente à revisão da historiografia brasileira, novos marcos e sím-
bolos culturais foram criados. Entre outros temas polêmicos, foram colocados
em questão: as relações “cordiais” entre senhor e escravo no período colonial, o
protagonismo da princesa Isabel na Abolição, as políticas estatais de incentivo
à imigração e a invisibilidade dos negros livres no período pós-abolicionista.
A partir do processo de redemocratização do país, estigmas historicamente
associados às práticas de exclusão e racismo passaram a ter, gradualmente, seu
3 Dentre os muitos depoimentos e análises sobre o Movimento Negro, ver Gonzalez (1982: 9-66).
96 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
4 Há um grande número de publicações sobre esse período entre intelectuais e militantes do movimento
negro. Ver entre outros, Gomes (2012) e Silvério Op. cit.
5 Para um estudo sobre as lutas de indivíduos escravizados, libertos e de seus descendentes por reparações
em diversos períodos, especialmente a partir do final dos anos 1980, ver Araújo (2017).
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 97
6 Sobre as concepções deste primeiro século de atuação do IHGB, ver Guimarães (1988).
7 Ver artigo 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (...)”.
98 Me mó ria Co le t iva e J ustiça Social
8 Sobre o Movimento Folclórico, que se estendeu entre o período de 1947-1964, tendo como marco a
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, de 1958, ver Vilhena (1997). Sobre o movimento nacional-
-popular e sua interface com a cultura, ver Chauí (1989).
9 Na esteira da atuação da UNESCO, foram criados o Conselho Internacional de Museus (ICOM) e o Centro
Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (ICCROM) que colaboram
na organização de um sistema internacional de proteção.
10 Ver a página “Inventário dos Monumentos RJ”, de Vera dias, arquiteta e ex-gerente da divisão Monumentos
e Chafarizes, da Secretaria Municipal. Segundo a autora, há na cidade do Rio de Janeiro 1.372 monu-
mentos entre fontes e chafarizes (142), lagos e recantos (19), personalidades (352) esculturas (275), obras
públicas (392), representações religiosas (66) e marcos e obeliscos (126). Disponível em http://www.
inventariodosmonumentosrj.com.br/index.asp?iMENU=home. Acesso 18 Jan 2021.
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 99
11 As análises sobre o momento são diversas. Como exemplo, ver Domingues (2010), Alves (2011), Turino
(2013), Calabre, Rubim & Barbalho (2015) e Cid & Aguiar (2020).
100 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
Maroiá Láji (2008), Terreiro de Candomblé Ilê Axé Oxumaré (2014), Terreiro
Culto aos ancestrais - Omo Ilê Agbôulá (2015), Terreiro Zogbodo Male Bogun
Seja Unde (Roça do Ventura) (2015), Terreiro Tumba Junçara da Nação Angola
(2018), Terreiro Obá Ogunté - Sítio do Pai Adão (2018).
Os terreiros de candomblé são muitos no Brasil e têm sido objeto de
reiterados ataques. A Secretaria de Direitos Humanos identificou 697 casos
de discriminação religiosa, a partir de denúncias, entre 2011 e 2015. Os dados
disponíveis indicam que ampla maioria é contra as religiosidades de matriz
afro-brasileira (Santos 2016). As medidas de proteção, embora tímidas, possuem
um papel fundamental na consolidação da memória africana e afro-brasilei-
ra. Não obstante a importância desses espaços religiosos na configuração do
escopo da memória nacional, ao analisarmos a Lista dos Bens Tombados e
Processos em Andamento (1938-2018)13 encontramos ainda 20 em processo
de instrução e 2 indeferidos. Chama a atenção o grande número de processos
abertos, alguns sem resposta há mais de uma década. Encontramos, em con-
traponto, 490 entradas relacionadas à palavra “igreja”, ou seja, uma quantidade
aproximadamente 15 vezes maior que a de terreiros, considerando também os
tombados (Cid 2019). O que se percebe é que ainda há um grande vazio nas
políticas de tombamento no que tange aos bens da memória afro-brasileira. No
site do IPHAN, há uma lista de 26 bens relacionados aos povos e comunidades
tradicionais de matriz africana, sendo 12 tombados e 14 registrados.14
Cabe lembrar os inventários que foram realizados, no âmbito das supe-
rintendências do IPHAN, no que tange à religiosidade afro-brasileira, muito
embora eles não possuam caráter de tombamento e capacidade protetiva: Rio
de Janeiro (Netto 2009), Distrito Federal e entorno (IPHAN 2012), Florianópolis
(Boaventura 2017), Boa Vista (Oliveira 2020) e Salvador, pela Secretaria Municipal
da Reparação (Teles 2008).
É interessante também analisar a proporção de sítios históricos e bens ima-
teriais de populações de matriz africana que obtiveram o título de patrimônio
mundial pela UNESCO. As indicações são feitas pelos diversos Estados nacionais,
que disputam o reconhecimento porque esses reconhecimentos significam
prestígio e grande afluxo do turismo mundial. A noção de lugar, ou sítio, é uma
categoria importante na definição da lista da Convenção de 1972, e nessa lista
o Brasil possui 15 inscrições.15 Destas, apenas 3 (Centro Histórico de Salvador,
13 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/BENS%20TOMBADOS%20E%
20PROCESSOS%20EM%20ANDAMENTO%202019%20MAIO.pdf. Acesso 18/01/2021.
14 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1938/. Acesso 18/01/2021.
15 Disponível em https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/expertise/world-heritage-brazil. Acesso
18/01/2021.
102 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
16 Idem.
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 103
17 Os pontos de memória deram lugar à Rede de Museologia Social (REMUS). Ver sobre o tema http://
rededemuseologiasocialdorj.blogspot.com.br. Acesso 18/01/2021.
18 Ver os trinta museus sob responsabilidade direta do IBRAM no site https://www.museus.gov.br/
os-museus/museus-ibram/. Acesso 18/01/2021.
19 Ver Cadastro Nacional de Museus em https://www.museus.gov.br/museus-do-brasil/. Acesso 18/01/2021.
104 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
21 Sobre o modelo neoliberal de planejamento estratégico das cidades, ver Arantes, Maricato & Vainer
(2000).
22 O projeto Porto Maravilha foi lançado em 2009, em continuidade ao projeto Porto do Rio desenvolvido
entre 2001 e 2008. Sobre o tema, ver Pio (2017), Gonçalves & Costa (2020).
M e m ó ri a a fro - b ra s i l e i ra 107
23 Legado da escravidão: um guia destinado aos gestores de sítios e itinerários de memória. Disponível em
http://www.lacult.unesco.org/docc/Legado_esclavitud_brochure_pt.pdf. Acesso 23/01/2021.
108 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
Conclusão
Frente às tensões postas às políticas identitárias, muitos se perguntam quais
serão os desdobramentos das relações ocorridas entre os movimentos sociais e o
Estado (Sansone 2020). Procuramos mostrar que, apesar dos conflitos existentes
nas políticas culturais no período pós-ditadura militar, houve um processo de
institucionalização importante da memória de negros e afrodescendentes nas
últimas décadas. Nos últimos anos, a política tem sido de desconstrução insti-
tucional, o que tem gerado algumas reações por parte da sociedade civil.29 Há
também que considerar a contínua interface entre as instituições e as práticas
culturais que marcam a cena pública.30 Embora não seja nosso objeto de estudo,
é notória a presença da marca identitária nas atividades práticas e políticas da
nova geração, que traz como novidade, além do uso frequente das novas mídias,
a interseção entre identidades sociais e sistemas de dominação.31 A recente
Coalizão Negra por Direitos, criada em 2019, reúne mais de 150 organizações do
chamado movimento negro, com uma agenda que se caracteriza pela associação
das demandas antirracistas às questões de gênero, sexo e classe, entre outras.32
Em suma, um novo mosaico de tensões e pautas se configura no país.
Este capítulo analisou as políticas implementadas nas últimas décadas no
Brasil para a preservação da memória de negros e afrodescendentes. Procuramos
mostrar como, principalmente, durante o período de governo do Partido dos
Trabalhadores (2003-2016), novos objetos e narrativas passaram a ser inseridos
em processos de registro e tombamento, como também em exposições, que
procuraram ampliar a comunicação com parcelas da população anteriormen-
te ausentes de seus circuitos. A transmissão oral, por exemplo, passou a ser
valorizada e a noção de patrimônio se modificou. As versões estereotipadas
que limitavam a participação da população afrodescendente à música e ao fu-
tebol, ou ainda, aos indivíduos escravizados no tronco, perderam espaço. Nas
palavras do militante, educador e pesquisador Amauri Mendes Pereira, que
foi o fundador da Sociedade de Intercâmbio Brasil-Africa (Simba) em 1977,
“tudo era uma forma de ver harmonia. E nós estávamos ali exatamente para
botar água nessa sopa.”33
A tecnologia de informação e comunicação e as redes sociais estão presentes
em todos os grandes museus e representam uma inovação e um atrativo para
os grandes empreendimentos comerciais. Ainda assim, a promessa de inclusão
social não aconteceu de forma significativa. O Museu Imperial em Petrópolis
(RJ) e o Museu da Inconfidência em Ouro Preto (MG), ambos símbolos nacio-
nais e situados em cidades turísticas, são os museus mais visitados desde sua
criação.34 Já nos museus criados nas últimas duas décadas, fortemente apoia-
dos por empresas privadas e com grande uso das novas tecnologias, o público
visitante é bem maior, mas trata-se de museus que não lidam com a questão
identitária eo público, embora um pouco maior, continua limitado aos setores
da sociedade de maior poder aquisitivo (Bertoche 2020).
As novas políticas de patrimônio associadas ao reconhecimento da diás-
pora africana nos mostraram arte, cultura e formas de ver e sentir o mundo,
descentralizando narrativas eurocêntricas. As religiões de matrizes africanas,
ao serem apresentadas com respeito e admiração, deixam de ser simplificadas
e negativadas. Como apresentamos, o silêncio sobre as maiorias trabalhadoras
escravizadas e a conscientização de que a barbárie da escravidão não está con-
finada ao passado e tem consequências para os descendentes de escravizados
passaram a fazer parte de diversas iniciativas. Essas mudanças também foram
possíveis com a participação de lideranças afrodescendentes no aparato ad-
ministrativo, nos processos de curadoria e de seleção do acervo. Ampliou-se
a produção de conhecimento, principalmente a partir da abertura de novos
caminhos patrimoniais, e abriu-se o diálogo com o passado ainda envolto em
sofrimento para aqueles que com ele se identificavam.
Há um grupo seleto de museus em que tradições, práticas culturais e
história dos povos africanos e de seus descendentes não são silenciadas e
estereotipadas. Nestes, a escrita do passado passa a inserir a população negra
na sociedade brasileira, de maneira a combater formas de submissão que têm
sido impostas sob diferentes modos e estratégias de poder. As exposições
têm uma agenda afirmativa clara e ressaltam não só a herança africana, mas
a contribuição dos africanos e de seus descendentes à formação da sociedade
brasileira. As exposições reconstroem as narrativas da nação no que diz respeito
à sua história, memória e arte.
33 Depoimento de Amauri Mendes Pereira, in Pereira & Alberti, op. cit., p. 258.
34 Para o levantamento dos visitantes de museus realizado pelo IBRAM em 2017, ver https://www.museus.
gov.br/museus-ibram-receberam-mais-12-milhao-de-visitantes-em-2017/. Acesso 18/ 01/2021.
112 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
113
114 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
como os estudos academicistas que faziam dos negros e sua cultura objetos de
pesquisa, negando-lhes o papel de produtores do conhecimento. O seu projeto
de valorização da raça negra rejeitava o que denominava de folclorização de
práticas religiosas e festas de origem africana.
Etnólogo e jornalista, Édison Carneiro, que também era baiano e de famí-
lia de afrodescendentes, apresentava ideias que eram mais próximas daquelas
defendidas por intelectuais como Arthur Ramos e Costa Pinto, por sua ênfase
no estudo de instituições religiosas e culturais de matriz africana no Brasil.
Em 1937, Édison havia organizado, junto com Arthur Ramos, o IIº Congresso
Afro-Brasileiro que reuniu, na capital da Bahia, intelectuais, membros do mo-
vimento negro e representantes de religiões da diáspora africana. Próximo do
escritor Jorge Amado e filiado ao Partido Comunista, Édison Carneiro foi um
ativista em defesa das casas de candomblé, muito perseguidas nesse período.
O Iº Congresso do Negro Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro entre 26
de agosto e 4 de setembro de 1950, tinha por objetivo debater os problemas
oriundos das relações raciais no Brasil. Participaram dos debates, além dos
próprios organizadores que faziam parte do TEN, intelectuais brasileiros e es-
trangeiros, como Costa Pinto, Darcy Ribeiro, Charles Wagley e Roger Bastide,
e representantes de diversos movimentos sociais. Conflitos não faltaram entre
os participantes do Congresso. Havia os que priorizavam a formação de uma
elite intelectual negra, aqueles que dedicavam seus estudos à presença da cultura
africana no Brasil e, ainda, aqueles que reivindicavam melhoria imediata das
condições de vida da população negra, como alfabetização, postos de saúde,
moradia e apoio a empreendimentos diversos.
Alguns anos mais tarde, tornou-se pública a disputa entre os intelectuais,
artistas e ativistas do TEN e parte da intelectualidade brasileira. Na introdução
de O negro revoltado, livro que reuniu parte dos anais do Iº Congresso do
Negro Brasileiro e que só conseguiu publicar 18 anos depois do evento, Abdias
Nascimento acusou nominalmente Costa Pinto de ter publicado em 1953, sem
autorização dos organizadores e das lideranças do TEN, uma parte dos anais
do congresso no seu clássico livro O negro no Rio de Janeiro.
Praticamente no mesmo período em que aconteceu o Iº Congresso do
Negro Brasileiro, era organizado o projeto UNESCO, criado em 1949 com a
proposta de uma pesquisa sobre relações raciais no Brasil, uma vez que a tese
da existência de uma democracia racial brasileira era defendida por muitos
(Pereira 2007). Por indicação de Paulo Carneiro, representante brasileiro na
UNESCO, o Brasil foi escolhido como laboratório para os estudos de raças, e o
etnógrafo francês Alfred Metraux, como diretor do projeto. Este último subs-
tituiu Arthur Ramos, que falecera, na chefia do Departamento de Ciências
118 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
6.2. A coleção
4 Diante do grande número de obras da coleção do MAN presente no site do Ipeafro, decidimos analisar
e descrever apenas uma delas e fazer comentários mais panorâmicos sobre os demais artistas e obras.
Escolhemos uma obra de Sebastião Januário por ele ser, como já mencionado, o artista que mais telas
possui na coleção e por ter influenciado Abdias do Nascimento a se dedicar à pintura.
122 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
Brasil e integrou o Teatro Experimental do Negro (TEN). Tem seu nome gravado
na cena teatral das décadas de 1940 e 1950, sendo responsável pela cenografia de
peças que marcaram o campo, como “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues,
ou “Orfeu”, de Jean Cocteau. A parceria com o diretor Ziembisnki consolidou
sua criatividade e sua contribuição artística. Foi cenógrafo da Companhia
Dramática Nacional (CDN) e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Crítico
de arte, colaborou em diversos jornais e revistas especializadas. Santa Rosa
parece ter sido um pioneiro em muitos sentidos.
Outros três artistas da coleção do MAN também estão presentes no catálogo
biográfico do Museu AfroBrasil,5 que destaca a presença de artistas negros:
Otávio Araújo, José de Dome e Yêdamaria. Os dois primeiros, como Januário,
formaram-se como artistas longe dos grupos e escolas de formação do eixo
Rio-São Paulo embora depois tenham se aproximado posteriormente.
Otávio Araújo (1926) obteve reconhecimento individual na década de 1950,
o que lhe possibilitou uma viagem à China em 1957. Entre 1960 e 1968 residiu
na União Soviética, onde foi influenciado pelo surrealismo em voga entre os
artistas dissidentes; como muitos de seu período, desenvolveu sua carreira em
uma diversidade de atividades inerentes às artes plásticas, produzindo trabalhos
como pintor, gravador, desenhista, ilustrador e artista gráfico. É dele o retrato
de Léa Garcia, atriz consagrada e primeira mulher de Abdias do Nascimento,
com quem teve dois filhos, que faz parte da coleção do MAN. O artista também
participou do concurso Cristo da Cor com o “Cristo favelado”. A obra foi exibida
recentemente em 2018, na emblemática exposição Histórias Afro-Atlânticas,
realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Instituto Tomie Ohtake.
José de Dome (1921-1982), ou José Antonio dos Santos, nasceu em Sergipe,
mas mudou-se cedo para Salvador, onde recebeu apoio de intelectuais como
Mário Cravo Júnior, que fez parte da primeira geração do modernismo baiano,
e de Carybé, pintor, escultor e gravador argentino que tem uma obra impor-
tante sobre orixás e cultura afro-brasileira. Transferiu-se para o Rio de Janeiro
em 1962 e se integrou ao meio artístico da cidade. A partir de então realizou
inúmeras exposições nos circuitos nacional e internacional.
Yêdamaria ou Yeda Maria Correia de Oliveira (1932-2016) se destaca por
ser uma das poucas mulheres artistas na coleção. Ela foi aluna e professora da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 1977 se-
guiu para os Estados Unidos para fazer seu mestrado, e a partir de então expôs
em várias mostras individuais e coletivas no Brasil, Estados Unidos e Europa.
Procurou trazer para seu trabalho a ancestralidade africana tanto através da
temática como do seu estilo e de técnicas variadas. Em 2015, suas obras fizeram
parte da programação do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab)
no mês da consciência negra.
Dentre os demais artistas, observa-se a predominância de modernistas
com estilos que se alternam entre cubismo, expressionismo e abstracionismo.
Certamente Abdias procurou incentivar não só artistas negros, mas um estilo
identificado à matriz africana, com cores fortes e temáticas da natureza e da
cultura afro-brasileira. Outros artistas presentes na coleção do MAN, como
Bonadei, Inimá de Paula, Enrico Bianco, Carlos Scliar, Ivan Serpa e Guima
fizeram parte do grupo de modernistas do qual participava Santa Rosa.
Aldo Bonadei (1906-1974), paulista, teve formação artística no Brasil e na
Itália. Foi pintor, gravador e figurinista. Professor em São Paulo, considerado
um pioneiro da arte abstrata no Brasil, ele também é conhecido pela sua par-
ticipação no grupo Santa Helena, cujos artistas - entre outros, Alfredo Volpi
- se caracterizaram pela pesquisa da arte moderna e do cubismo, com o uso de
figuras geométricas, cor e textura. A tela de Bonadei é de uma paisagem urbana.
Inimá José de Paula (1918-1999) nasceu em Itanhomi, MG e morreu em
Belo Horizonte, MG. Pintor e desenhista, conheceu e se relacionou com artistas
importantes de seu tempo, como Antonio Bandeira, Cândido Portinari e Aldemir
Martins. Suas obras são influenciadas pelo expressionismo, marcadas pelas
cores e pinceladas fortes, com alternância entre pinturas abstratas e figurativas.
Enrico Bianco (1918-2013), desenhista, gravador e pintor italiano, chegou
ao Brasil em 1937 e passou logo a trabalhar com Cândido Portinari, de quem foi
discípulo. Influenciado pelo modernismo, foi autor de inúmeras obras expostas
em galerias nacionais e internacionais. Está presente na coleção do MAN com
duas telas sobre a peça teatral “Sortilégio”, de Abdias do Nascimento.
Carlos Scliar (1920-2001) nasceu no Rio Grande do Sul. Foi desenhista,
gravador, pintor e ilustrador, teve sua formação no Brasil e na França. Destacou-
se pelas ilustrações para revistas, livros e cenários teatrais. Fazia parte de grupos
de artistas juntamente com Cândido Portinari, Burle Max e Enrico Bianco.
Uma das pinturas da coleção é de Ivan Serpa (1923-1973), artista plástico e
professor nascido no Rio de Janeiro que, com um trabalho identificado com a
abstração geométrica, obteve diversos prêmios ao longo da carreira. Participou
em 1957 da I Exposição Nacional de Arte Concreta do Rio de Janeiro. Fez
parte do Grupo Frente e, no início dos anos 1960, voltou-se para a figuração
de tendência expressionista.
Guima (1927-1993), ou Luis Moreira Castro Toledo de Souza Guimarães,
nasceu em São Paulo. Pintor, desenhista, gravador e poeta, ligou-se ao figu-
rativismo expressionista. Na década de 1950 mudou-se para o Rio de Janeiro,
124 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
...uma cabeça de animal de Agnaldo dos Santos, um painel, de Julia van Roger,
o Cristo Favelado, de Otavio Araújo, os Omolus, de Cleoo, a capoeira, de Lucia
Fraga, o Logudedê de Manoel do Bonfim, o Exu de Aldemir Martins, o Rei Negro,
de José Barbosa, a casa vermelha, de José de Dome, a favela, de Iara, as crianças
brincando, de Agenor, o casamento, de Nilza Bentes, a via sacra, de Zu, as estrelas,
de Lito Cavalcanti, soltando balões, de Heitor dos Prazeres (Nascimento 1968: 21).
MAN pode ser percebido como um museu que abriga obras de arte moderna e
contemporânea, de artistas negros, brancos e de diversas nacionalidades, mas
que tem como eixo principal a afirmação do protagonismo da estética negra
para a formação da arte moderna ocidental com objetivo de lançar luz sobre a
produção de artistas negros brasileiros, colocando-os em igualdade de condi-
ções com obras de artistas brancos do Brasil e de outros países.
Assim, é importante destacar o pioneirismo de Abdias e do grupo do
TEN ao formular o MAN, trazendo para o campo das artes visuais um debate
que se intensificou apenas nas últimas décadas, sobre o impacto das relações
raciais na produção de artistas negros e brancos, principalmente no que diz
respeito às temáticas de matrizes africanas, rompendo definitivamente com
o discurso da “autonomia” das poéticas frente à realidade social e, no caso, à
luta contra o racismo.
VII
Memória e Literatura
Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.
Kucinski 2011:11
131
132 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
que não se deixa reduzir. Mas não nos referimos aqui apenas à literatura de
testemunho. Há uma liberdade na literatura que não está presente nas narra-
tivas historiográficas e é capaz de contribuir para a compreensão do passado
ao apresentar uma alternativa à impossibilidade da representação, sempre
restrita às fontes existentes. Tanto na historiografia como na literatura, ou na
arte em geral, temos o autor que interpreta e cria seu texto. A criação, por mais
que pareça livre e capaz de trazer o novo, carrega consigo marcas do passado.
Nela há que ser considerada a escolha da interpretação, que pode vir através
de uma abordagem crítica para que o compromisso com o passado, também
compreendido como dever da memória, se cumpra em prol de uma postura
ética apta a lidar com responsabilidades e políticas de reparação. A arte pre-
cisa ser vista como uma linguagem importante que complementa o que não é
dito, seja pela ausência de registros, seja pela rigidez das análises acadêmicas.
Como tem sido enfatizado ao longo deste livro, as diferentes linguagens sobre
o passado propiciam contribuições específicas e precisam ser vistas como
complementares, e não em contradição.
3 O escritor ganhou vários prêmios e seu trabalho mais conhecido, que teve uma versão cinematográfica,
foi A insustentável leveza do ser, de 1984. Após os anos 1990, suas obras se destacaram pelas reflexões
filosóficas.
134 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
7.2. A memória-testemunho
Marcelo Rubens Paiva ficou conhecido como escritor pelo seu primeiro
livro, Feliz ano velho, publicado 33 anos antes, quando enfrentou, após um
acidente, a condição de tetraplégico. Já nesse livro havia referências ao desa-
parecimento de seu pai, o deputado federal Rubens Paiva, torturado e morto
pelos militares em 1971, quando Marcelo tinha 11 anos (Paiva 1982). O ponto
de partida do novo relato autobiográfico é seu cuidado com a mãe, a advogada
Eunice Paiva, portadora de Alzheimer. A história que se desenrola nas páginas
do livro é a de uma mãe de cinco filhos que, a partir do sequestro do marido,
precisou se reinventar estudar e encontrar uma profissão para criá-los sozi-
nha. Em meio à dor e à luta contra um governo violento e ditatorial, Eunice se
tornou advogada, defensora de direitos humanos, em particular dos direitos
indígenas. A reconstrução da vida de Eunice se entrelaça com a do autor e de
sua família, e traz à tona a luta de pessoas, organizações e movimentos para
esclarecer a história da repressão política do período militar.
Marcelo é filho de um desaparecido. Relatos mais detalhados sobre a
prisão de seu pai são fornecidos apenas no final do livro, quando o autor rela-
ta o momento em que a doença da mãe avança e que novas informações são
fornecidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2014.4 A ironia é
que os dados sobre o passado surgem quando Eunice já tem perda significativa
da sua memória. Memórias que correm em direções opostas. O filho prevê a
morte da mãe, o que não acontece em relação ao pai, cuja perda ele sente como
um processo aberto a novas narrativas, sofrimento e dor.
Rubens Paiva não era membro de nenhum dos diversos partidos clan-
destinos que atuavam em oposição ao regime militar; ele havia sido eleito
deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido criado
por Getúlio Vargas que abrigava lideranças governistas como João Goulart, o
presidente deposto. Engenheiro e deputado federal cassado, e fazendo parte
uma rede de jornalistas e políticos que, embora afastados do poder, detinham
legitimidade junto às esferas de poder, ele acreditou estar imune aos atos de
tortura que recaíam com maior frequência sobre os militantes dos partidos que
defendiam o comunismo. Enganou-se. Como desreve o livro de Paiva (2015),
no dia 20 de janeiro de 1971 seis sujeitos armados em trajes civis cruzaram o
quintal da sua casa. Vestiu-se formalmente, colocou o relógio de pulso, umas
cadernetas no bolso. Foi com dois agentes, dirigindo o Opel da esposa, prestar
depoimentos. Dois dias depois estava morto. Prenderam também a esposa e
uma de suas filhas, que na época tinha 15 anos. Não houve qualquer ordem de
4 A CNV foi um órgão transitório instituído em 2012 pelo governo de Dilma Roussef para apurar violações
de direitos humanos, mas sem competência para encaminhar punições.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 137
prisão, foram sequestrados. Oficialmente não havia prisões, não havia torturas,
não havia mortos, nem desaparecidos.
A tortura violenta, assassinato e ocultamento do corpo de Rubens Paiva,
que foi enterrado e desenterrado várias vezes, foram atos confirmados por
depoimentos de militares à CNV, mais de 40 anos após sua morte. Os espan-
camentos e tortura foram de tal ordem que ele não conseguiu sobreviver ao
segundo dia. Por que mantiveram a esposa presa por 15 dias? Por que ela e a
filha ficaram encapuzadas no mesmo local em que ele estava sendo torturado?
Será que foram utilizadas para aumentar seu sofrimento? Silêncios e vazios de
uma história macabra.
Após o desaparecimento de Rubens Paiva, o governo começou a dar in-
formações contraditórias com notas negando o seu envolvimento – o que seria
desmentido, contudo, pela presença do automóvel do deputado próximo ao
local onde foi detido; alegavam a libertação imediata de Paiva e um assalto pos-
terior, notícia que também carecia de qualquer comprovação. Houve mentiras
de ministros e de autoridades encobrindo os crimes cometidos em instalações
militares (Centro de Informações da Aeronáutica e Destacamento de Operações
e Informações/DOI do I Exército) que serviram como centros de tortura e
morte durante o período militar. Olhando para trás, é difícil compreender a
falta de reação da sociedade, que a tudo se acomodou. Mas, como veremos
adiante, a denúncia feita no presente ainda não é tranquila. A CNV denunciou
os responsáveis pelas torturas e morte de Rubens Paiva, todos militares, mas
não teve poder de indiciar todos os envolvidos. Um deles, já falecido na época
da investigação, havia sido condecorado com a Medalha do Pacificador.5 O
filho lembra-se do pai como um homem calmo, bom, engraçado, simpático e
risonho, e nos traz as informações de seu desaparecimento em sua história de
vida. Em que medida são as memórias do filho confiáveis?
Ao procurar mmorizar diversos conjuntos de três letras que não apresen-
tavam qualquer sentido, o psicólogo Hermann Ebbinghaus (1999), estabeleceu
no final do século xix a curva do esquecimento em que a memória apresenta
um rápido declínio na primeira hora após o aprendizado, seguido de outro
mais lento e gradual. Seu experimento mostrou que há uma perda natural e
contínua da memória ao longo do tempo. Identificou ainda que a exposição
repetitiva dos grupos de letras favorecia a memória e que, no processo, as
últimas sequências gravadas provocavam esquecimento das anteriores. Seus
estudos continuam atuais. Recentemente, o psicólogo Daniel Schacter (2001),
6 Para uma análise mais aprofundada dos aspectos comuns e distintos entre história e memória nas
abordagens ao passado, ver capítulo 1.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 139
a história do filho, por mais pessoal que seja, como a história de uma nação.
Sua narrativa nos faz refletir sobre os valores e normas presentes na sociedade.
7 Para uma análise literária do romance, ver, por exemplo, Russo 2017.
140 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
que K. vai batendo à porta das autoridades, das diversas instituições sociais
e religiosas, dos grupos profissionais e familiares, fica evidente que a lem-
brança de K. não diz respeito apenas a ele, mas a todos nós, pois traz de volta
a dignidade humana para todos que o seguem em sua jornada. A filha era
professora de química e K. denuncia o distanciamento de seus colegas, cujo
mal-estar aparece apenas pela impossibilidade de dar sequência à burocracia
universitária e ocupar a vaga da desaparecida. A imprensa não denunciava, as
testemunhas calavam-se.
No romance, K. chegara ao Brasil jovem, fugindo da ameaça nazista.
Como imigrante polonês e judeu, ele acaba por se deparar novamente com
a violência destruidora de um Estado, com contornos semelhantes aos da
catástrofe deixada para trás. Em algum momento desabafa, pois se vê diante
de uma situação inusitadamente cruel, pois até os nazistas, que reduziam suas
vítimas a cinzas, registravam os mortos. Denunciou a falta de sensibilidade de
um rabino, que não permitiu a colocação da matzeivá sobre o túmulo, sabendo
este que o corpo não estaria presente – o que era impossível –, mas que a lá-
pide permitiria a lembrança de sua filha. K. traz assim à tona a dificuldade de
autoridades religiosas, para as quais o passado do Holocausto estava presente,
responderem ao novo tipo de violência. Essa passagem nos mostra como uma
experiência passada pode não se abrir a novas experiências, constelações que
se formam, muito embora esteja presente como marca.
alimentação. A vida também segue através da pesca nos rios e da caça de ani-
mais pequenos na mata. Contudo, é Salustiana, a mãe, parteira local, que nos
deixa a declaração mais forte do pertencimento à terra:
(...) Não sei se a senhora sabe, mas eu peguei em minhas mãos a maioria desses
meninos, homens e mulheres que a senhora vê por aí. Sou mãe de pegação deles.
Assim como apanhei cada um com minhas mãos eu pari esta terra. Deixa ver
se a senhora entendeu: esta terra mora em mim”, bateu com força em seu peito,
“brotuo em mim e enraizou.” “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da
terra. (...) No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da
senhora e de seu marido. (Vieira Júnior 2019: 229-230)
Para quem vive da terra, a seca é uma ameaça e aparece ao longo da história
trazendo tempos difíceis: o medo da expulsão da terra e o medo mais imediato
da fome. A plantação de arroz, às margens do rio, é a primeira a morrer, mas
depois definham a cana, as vagens de feijão e todo o roçado. Até as árvores
também secam, e são poucos os frutos, como os da frondosa jatobá, que se
aproveitam. No meio da penúria, os assentados, sem direito à terra, ainda são
submetidos aos saques do pouco que têm pelos donos da fazenda, que exigem o
pagamento. Da diminuição do volume das águas do rio até a seca total, quando
não há mais peixe para comer, nem mesmo os pequenos, os fortes laços de
parentesco e a solidariedade do vizinho estão presentes na divisão da farinha
e nas esperanças compartilhadas. Essa é a história do romance, da ficção, mas
que está presente na vida real.
Esta notícia, dentre outras, foi publicada pela Comissão Pastoral da Terra
nacional, denunciando a seca do rio Utinga pela sétima vez entre 2016 e 2018.
Devido aos grandes empreendimentos de monocultivo e da criação de gados de
corte, houve o colapso da bacia hidrográfica do Rio Paraguaçu, na região central
do estado da Bahia. Subsistemas próximos, como o do rio Utinga, deixaram
9 Disponível em https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/4091-o-colap-
so-hidrico-da-bacia-hidrografica-do-rio-paraguacu-e-o-eminente-conflito-entre-os-usuarios. Acesso
08/02/2021.
144 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
10 Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/assassinato-de-li-
der-do-mst-na-bahia-foi-encomendado-afirma. Acesso 08/02/2021.
M e m ó ri a e L i te ra tu ra 145
149
150 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
empresas que pagam mais pelos seus perfis. Segundo Lins, existe atualmente
um mercado competitivo por palavras-chave que se tornaram signos capazes
de ser facilmente encontrados (Lins Ribeiro 2018). Nesse processo, as diferenças
entre usuário, consumidor e mercadoria se desfazem, uma vez que os usuá-
rios tornam-se mercadorias quando seus perfis são vendidos para empresas.
Quando os perfis dos usuários/consumidores são vendidos para empresas
responsáveis por propaganda política, os resultados são desastrosos, como
aconteceu no escândalo em que estiveram envolvidos o Facebook e a empresa
Cambridge Analytica.
Em redes sociais como Facebook, que cumprem o papel de grandes media-
dores comunicacionais, há um mecanismo automático não só de propagandas,
mas também de seleção de mensagens por algoritmos. O aplicativo forma um
perfil com base em informações dadas pelos próprios usuários. Estes passam a
receber postagens de um número seleto de “amigos”, definidos automaticamente
por critérios estatísticos criados. Interferem no algoritmo o número de curtidas,
comunicação prévia e outros itens que não são do conhecimento ou critério do
usuário. A lógica continua a ser levar para os usuários apenas mensagens que
lhes sejam úteis ou desejadas. Mas, com esse mecanismo, se rompe a troca de
informações entre perfis distintos e as diferenças são cristalizadas.
Outro meio de comunicação bastante utilizado, o WhatsApp, tornou
gratuito o serviço de trocas de mensagens e não tem propaganda associada. O
formato facilita a viralização de mensagens e tem sido bastante criticado por ser
grande aliado da desinformação. Não há controle sobre o conteúdo de mensagens
que são disparadas de forma profissionalizada e se disseminam rapidamente
entre grupos de familiares e de amigos. A fonte confiável de uma mensagem
deixa de ser o especialista e passa a ser o áudio do familiar mais próximo. Essa
prática tem sido uma fonte importante de disseminação de fake news.
apenas como construções sociais que entram em conflito, mas também que
se reproduzem com certa autonomia em relação aos seus agentes. Críticas im-
portantes começaram a questionar a capacidade que temos em tempos atuais
de dar sentido ao passado.
O historiador alemão Reinhart Koselleck analisou as mudanças ocorridas
na historiografia após a Revolução Francesa, sinalizou mudanças na estrutura
da experiência temporal e descreveu a substituição da história magna, que tinha
por base o aprendizado a partir do exemplo passado, por uma abordagem cien-
tífica que procurava a certeza a partir da análise de fontes e eventos singulares.
A história moderna e científica elegeu o distanciamento temporal e, com ele, o
singular e novo, possibilitando o surgimento da concepção de processo, segundo
a qual cada fato único é parte de uma totalidade que o contém. Depurou-se
da história o saber advindo de experiências transmitidas entre gerações e as
lembranças permeadas por sentimentos. O tempo subordinado às experiências
que eram transmitidas entre gerações deu lugar à temporalidade processual
voltada para o futuro (Koselleck 1985).
Essa história linear e que procura alcançar o status de ciência entrou em
crise no século XX. Em seu último texto, “Sobre o conceito de história”, escrito
em 1940, Walter Benjamin criticava com veemência a abordagem moderna de
tempo e história, que procurava ordenar fatos como se fossem contas de um
rosário (Benjamin 1985). As grandes narrativas que ordenavam e atribuíam
sentido e unidade a uma complexidade de fenômenos do passado não se sus-
tentavam em um mundo atravessado por movimentos sociais que passaram
a criticar e denunciar a violência inerente ao perigo da “história única”, termo
que se popularizou após o discurso de Chimamanda Adichie.5
Com intuito semelhante ao de Koselleck, o historiador francês François
Hartog procurou compreender as mudanças ocorridas com o tempo nas úl-
timas décadas do século XX. Segundo ele, a partir de 1989, ou seja, no período
posterior à queda do muro de Berlim e ao surgimento de novas tecnologias de
informação, passamos a conviver com uma nova dimensão espaço-tempo e com
um novo regime de historicidade, que foi denominado por ele de “presentismo”.
Para o autor, a aceleração maior do tempo na vida cotidiana provocada pelas
novas tecnologias provocou a descontinuidade entre passado e presente. Essa
fratura foi identificada na fragmentação das narrativas lineares da história e na
proliferação e excesso de estudos sobre a memória. Os estudos historiográficos
passaram à análise de estruturas simbólicas, procurando indícios do passado
para as novas identidades que se formavam. A experiência moderna do tempo,
1 Ver primeira versão deste relato-testemunho em Souza, Rogério (2021), disponível em: Humanos,
demasiadamente humanos - Outras Palavras
165
166 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
2 Criamos no dia 19 de março de 2020 um grupo no Facebook intitulado “Relatos do cotidiano durante
a pandemia”. Atualmente, maio de 2021, o grupo conta com 538 (quinhentos e trinta e oito) membros
participantes. Com um total de 131 postagens relatos, separados em quatro categorias, a saber: relatos,
sonhos, artes (fotografias, vídeos etc) e inventários. Ver Relatos do cotidiano durante a pandemia |
Facebook.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 167
3 Aqui vale lembrar da forma como Brecht (2007) considerava o rádio. Para o autor, o rádio foi reduzido
de meio de comunicação a meio de emissão, ao retirar a possibilidade de resposta ao emissor.
168 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
há cômodo dentro da casa onde o aparelho celular não possa estar e muito
frequentemente está -; e como aparelho de mão dupla, o local de onde falamos
ao público também se alterou radicalmente, pois o discurso não só é produzido
na domesticidade, como tem sua estética. Se isto não estava evidente, ficou
escancarado durante o isolamento social. Do debate político jornalístico às
apresentações artísticas, tudo é produzido a partir da casa, com fragmentos de
intimidade sendo expostos. Ouvimos a infectologista, o comentarista político,
a jornalista falando de dentro de casa e os ouvimos em nossas próprias casas.
É como se o público fosse a soma das intimidades e não seu oposto.4
Em parceria com outro projeto, “Memória Digital: Arquivo e documen-
to histórico no mundo contemporâneo” (Unicamp), coordenado por Thiago
Nicodemo, estamos fazendo um mapeamento que identificou 28 projetos no Brasil.
Há um mapa produzido coletivamente por meio da Federação Internacional de
História Pública5 que contabiliza centenas de projetos pelo mundo. Boa parte
dos projetos se baseia no crowdfunding, ou seja, na alimentação de relatos feita
por não especialistas. Tal técnica ganhou relevância jamais vista graças à disse-
minação dos aparelhos como smartphones e também pelo contexto específico
da quarentena, que dificultou a ida de especialistas a campo para observação e
registro. Neste sentido, parece relevante que tenham surgido inúmeras iniciativas
pelo mundo de coleta de relatos da vida cotidiana, reforçando a ideia de que a
pandemia deve ser registrada por um olhar pedestre e íntimo.
A busca pelo registro histórico por meio de relatos de pessoas comuns não
é nova. O projeto britânico citado no início, por exemplo, coleta registros da
vida cotidiana feitos por voluntários desde 1936. Criado com o objetivo de ser
uma antropologia de nós mesmos quando a antropologia estava dedicada ao
estudo de sociedades não-ocidentais, uma das atividades iniciais do projeto foi o
recrutamento de “observadores” voluntários que foram incentivados a escrever
relatos, o que fizeram durante um ano no dia 12 de cada mês (Sheridan et al.,
2000, p.33). O projeto cresceu bastante durante a Segunda Guerra e recebeu
forte incentivo estatal nesse período. Para o governo, era importante ter um
“termômetro” da vivência da guerra feito por pessoas comuns.
No âmbito da produção literária, foi a partir do pós-guerra que se percebeu
um aumento significativo da chamada “literatura de testemunho”, gênero literário
onde sobreviventes narram em primeira pessoa as experiências dos campos
de concentração e dos crimes cometidos pelo aparelho estatal. O Holocausto
4 Sobre a relação entre privacidade e publicidade mediada por os novos aparelhos digitais, ver Mateus.
S (2015).
5 Disponível em https://ifph.hypotheses.org/3225 . Acesso 10/05/2021.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 169
6 Ver Ferreira & Amado (2006), que traz um balanço do campo da história oral no país e as inúmeras
discussões em torno da temática junto à História enquanto disciplina. Ver também Seligmann-Silva
(2003) para um balanço sobre as relações entre literatura de testemunho em relação aos trabalhos de
História e Memória. Sobre Memória Social e Coletiva, ver Souza & Gadea (2017), que traz um balanço
da produção acadêmica e de pesquisa no país sobre a temática da memória junto às Ciências Sociais.
170 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
Isto pode ser evidenciado na obra de Primo Levi, um dos mais proemi-
nentes representantes da literatura de testemunho, cujo o legado até hoje é
objeto de estudos por diversos pesquisadores de variadas nacionalidades. Levi
(2016), em uma de suas últimas obras - Afogados e sobreviventes finalizado em
1986, um ano antes de sua morte - expressa sua intencionalidade em narrar a
si próprio e aponta de antemão a difícil missão:
7 Royal College of Physicians of Edinburgh. “RCPE recording COVID-19 / coronavirus”. Disponível em:
www.rcpe.ac.uk/heritage/rcpe-recording-covid-19-coronavirus. Acesso 12/06/2020.
Pand e m i a , re l a to s d o co ti d i a n o e te s te m u n h o 171
ruas possuem muitas poucas pessoas, o transito está muito menos caótico do
que o normal para a cidade e os dias parecem eternos domingos tediosos para
todos que estão podendo seguir as orientações da OMS (Organização Mundial
da Saúde) e ficar em casa.
Quando fui ao mercado a uma semana atrás no dia 18/03 pude começar a
perceber a dimensão real do que estamos vivendo enquanto estava no mercado
pessoas com carrinhos cheios de mercadoria que dariam facilmente pra sobreviver
durante 2 a 3 meses sem precisar retornar ao supermercado, diversas pessoas com
mascaras em seus rostos e buscando evitar ao máximo o contato físico ou até
conversar com as outras, também pude perceber uma discussão bem tensa entre
2 senhores pois um deles estava levando quantidades absurdas de papel higiênico
e outro temia que faltasse pra ele e para as outras pessoas, acompanhei o começo
da discussão mas não consegui acompanhar seus desdobramentos pois precisava
ir pagar as coisas e voltar embora pra casa porém ainda no supermercado percebi
uma pequena peculiaridade os funcionários da rede de supermercados estavam
com luvas porém os empregados terceirizados não, intrigado com isso antes de
pagar o que tinha comprado perguntei a funcionária o motivo de alguns esta-
rem com luvas e outros não a resposta que recebi foi breve e bem direta dizendo
que o motivo era que alguns deles não trabalhavam diretamente para a rede
supermercados e sim eram terceirizados, voltando para casa ainda percebi que
o movimento nas ruas ainda eram grandes mesmo com caos que já estava os
supermercado, ainda se tinha alguns bares e lanchonetes abertos e o movimento
nas ruas era até algo próximo a normalidade.
Voltando ao mesmo supermercado no dia 22/03 já foi perceptível uma mu-
dança, nesse dia me reuni com amigos que não conseguiram voltar para as suas
cidades assim como eu e fizemos um almoço na casa de uma de nós, nesse dia
no momento em que sai de casa percebi uma mudança nas ruas, o cenário foi
exatamente o que descrevi no inicio do relato ruas absurdamente vazias porém
imaginei que era por ser domingo , no supermercado diversas pessoas de máscaras,
pessoas buscando ficar o mais distante possível uma das outras, ao sinal de uma
tosse de qualquer um todos olham e buscam se afastar da pessoa, diversas ainda
continua comprando grande quantidade de coisas temendo que os produtos acabem
ou que os preços subam assustadoramente graças a pandemia do covid-19, após
comprar os produtos necessários para o almoço vamos para casa de uma amiga,
o caminho até lá mesmo possuindo uma Avenida está assustadoramente vazio,
silencioso e há pouquíssimas pessoas na rua, chegando a casa dessa amiga eu ela e
mais um amigo começamos a fazer perspectivas do que possivelmente acontecerá
daqui pra frente nesse cenário que parece quase apocalíptico e assustadoramente
incerto, nos lembramos de alguns amigos nossos que são calouros e o quanto essa
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Ela é Cozinheira, uma das melhores que conheço, mesma história da profissão
humilde, só que um pouco mais valorizada. Lembro de ser chamada de “filha
da cozinheira” durante boa parte da minha vida e não ver maldade naquilo.
Ora eu sou filha da pessoa que estava proporcionando um momento incrível de
felicidade pra várias pessoas, por que isso seria ruim?
Só aos 16 anos essa questão foi respondida.
Ela me levou para trabalhar como sua auxiliar em um evento e dentre minhas
tarefas, ajudei a preparar os drinks. Era um almoço celebrando um aniversário.
Sempre fui uma pessoa muito comunicativa e espontânea, as pessoas que
iam ao bar pedir seus drinks, costumavam demorar um pouco pra jogar conversa
fora. Dentre eles, o aniversariante.
Ele havia me perguntado como estava a escola e o que eu queria fazer quando
saísse do ensino médio. Falamos sobre jornalismo esportivo, representatividade
feminina nesse campo e futebol. Uma conversa normal até que sua irmã, anfitriã
da festa, se junta a nós e ele relata com entusiasmo sobre a conversa ela encerra
o diálogo com “Ah ela é a filha da cozinheira.” O tom com que ela falou aquilo
e o olhar de constrangimento que ele lançou não saíram da minha cabeça. Eles
não voltaram mais ao balcão no decorrer do evento.
É esse país não valoriza aqueles que constroem casas e os que cuidam de
refeições. Por isso a insistência dos meus pais naquela coisa que, principalmente
para o meu pai, parecia etérea- o tal dos “Estudos”. Sempre me ensinaram que
eu deveria estudar e trabalhar em algo que não me desse calos nas mãos e nem
queimaduras nos braços. Honrei esse pedido.
Em 2018, como Desenvolvedora Jr. já recebia quase o dobro do salário da
minha mãe. Em 2020, mesmo após a demissão por conta da pandemia, mantenho
meu aluguel em um bairro no centro da cidade e ajudo com as contas da família.
Paisinho de bosta!
Acabei de receber uma mensagem sobre demissão em massa em uma das
universidades privadas sediada em São Paulo.
Não são só os pedreiros e cozinheiras que são tratados feito nada.
Retorno aos meus cálculos, fazia algumas que não chorava.
TAYNÁ SANTOS, SÃO DOMINGOS, NITERÓI, RJ - 15 DE AGOSTO DE 2020
Saudades - Parte I
Absolutamente tudo me dá saudade. Todas as práticas mais comuns da
vida cotidiana, como tomar uma café na padaria ou inventar uma desculpa
para passar na barraca de churros. Faz tantos meses que sinto saudade...
tantos dias que já não posso contar. Hoje as presas passo perto da barraca de
176 Me mó ria Co le t iva e J u stiça Social
profissionais, não lhes falta o que há (ou deveria haver) de mais especial em
cada um de nós: humanidade. Diante deles, não estamos diante de “heróis”,
mas de humanos, demasiadamente humanos, para os quais o valor do trabalho
reside na certeza de que cada vida, por mais custoso que isto lhes seja, vale a
pena. E como vale!
Considerações finais
A história pode ampliar, completar, corrigir e até mesmo refutar
o testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo.
Ricoeur 2015: 505
Procuramos mostrar ao longo dos diversos capítulos deste livro que a memória
está relacionada a discursos e relações de poder. Contemporaneamente, me-
mória tem sido relacionada com noções de justiça e medidas reparatórias. Não
se trata apenas de recuperar a verdade do acontecido, mas o impacto deixado
por injustiças do passado no presente. As lembranças que temos do passado
são individuais e subjetivas, mas, como sabemos, os indivíduos e seus pensa-
mentos se constituem nas relações que têm entre si e a partir de seus contextos
ampliados. Construímos memórias, mas também somos constituídos por elas,
que forjam nossas identidades e, consequentemente, desejos e formas de agir.
As memórias que temos estão sempre relacionadas às narrativas, sistemas de
crença, jogos de linguagem e, voltamos a enfatizar, às relações de dominação
entre indivíduos e grupos sociais.
A relação de mão dupla entre memória individual e coletiva também
acontece entre memória e história, uma vez que continuam sendo essenciais
as análises mais distanciadas e explicativas de fenômenos ocorridos no passa-
do. Memórias contemporâneas se destacaram pela capacidade de trazer para
o presente elementos do passado sob a forma de reminiscências e traumas,
desestabilizando construções negociadas. Relações de poder sustentam hie-
rarquias e violência capazes de destruir atos de interpretação e compreensão.
Uma das características das memórias é que elas resistem a discursos de poder
por diversos meios e nos mostram os limites e impasses de novas linguagens
e categorias interpretativas.
No Brasil, o controle de informações em geral, mas principalmente de
dados acumulados sobre o passado, tornou-se muito claro a partir do governo
eleito em 2018, quando uma série de medidas foram tomadas visando ao apa-
gamento de dados acumulados em instituições diversas. Informações essen-
ciais à continuidade de políticas públicas foram destruídas ou invisibilizadas
em diversas áreas, com o intuito de dificultar o controle social, por exemplo,
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