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vida
´e um
sonho
Histórias, casos e causos
de quase toda uma vida
A
vida
´e um
sonho
Histórias, casos e causos
de quase toda uma vida
1ª ediçã o
Dores do Indaiá , MG / 2019
MEM RABILIS
MEM R A BILI S
200 p. ; 16x23,5cm.
ISBN 978-85-66229-23-3
CDU 929
CDD 920
Liev Tolstoi
Para Luzia,
que há sessenta e dois anos
ilumina minha caminhada.
Ontem e hoje...
A vida foi como um sonho!
De repente, passaram-se cinquenta e sete
anos. Cinquenta e sete anos caminhando juntos,
seguindo as sendas do destino, cumprindo os
desígnios de Deus. Juntos chegamos ao topo da
montanha e, desse lugar privilegiado, podemos,
agora, sentir a beleza do horizonte! Lá embaixo,
nos fragmentos de nossas vidas, ainda podemos
ver restos de nossas pegadas em caminhos mui-
tas vezes íngremes e tortuosos.
Mas, valeu a pena viver! Nossas lutas foram
recompensadas pelos filhos que tivemos e pela
felicidade que juntos encontramos.
Agradeço muito a Deus por tê-la colocado
no meu caminho.
Agradecimentos
À minha mãe, de quem pude estar perto por tantos anos, tentan-
do retribuir-lhe a incomensurável dedicação e o amor que sempre me
dedicou.
Ao meu pai, que além de meu herói, foi meu amigo, companhei-
ro, sócio em muitos empreendimentos e um incentivador de meus
projetos, mesmo os mais aparentemente impossíveis, como o radioa-
madorismo.
Novembro de 2018
Ainda à ADI, na pessoa do seu presidente, o entusiasta Geraldo
Amarildo da Silva, por ter franqueado o acesso ao acervo de fotos e
imagens de Rodolfo Argolo e Castro, material esse que foi generosa-
mente doado por suas filhas Dalva e Dora em 2018.
Luzia P. Andrade
Prólogo
Com gratidão,
Renato Ribeiro
Sumário
19 O martelinho de pau
25 Barra do Funchal
37 O balão azul
41 O retorno à cidade
53 Férias na roça
63 O terror da meninada
73 Caminhos antigos
18
O martelinho
de pau
Nasci no ano de um mil novecentos e tantos. Mais
precisamente, num dia do mês de novembro, numa manhã
ensolarada de domingo, num tempo quando existiam
padrinhos e madrinhas, compadres e comadres.
Minha mãe, ao acordar naquele dia, percebendo os
sinais da minha chegada, avisou meu pai e ambos se prepa-
raram para o decisivo momento.
Já eram quase 9 horas e, como tudo parecia tranquilo,
meu pai resolveu ir à missa numa igrejinha muito próxima,
encarregando o filho mais velho de ir avisá-lo se os sinto-
mas de minha mãe progredissem. Não foi preciso esperar
muito: instantes após sua saída, meu irmão saiu correndo à
sua procura. Às pressas, meu pai, seguindo os costumes da
época, foi direto à casa da parteira, trazendo-a com seus
apetrechos.
Tudo correu perfeitamente bem! Acabava de nascer
um belo garoto, sadio e esperto que prometia ser um exce-
lente cidadão do mundo. Minha mãe contava que não dei
muito trabalho. Comportava-me com a dignidade de um
recém-nascido, exigindo não mais que os cuidados neces-
sários à espécie.
19
Da casa onde nasci, não guardei nenhuma lembrança.
Vegetei enquanto vivi por lá. Sei que ela ainda existe, situa-
se numa esquina da Praça do Rosário. Depois de muitas
reformas, pouco guardou de sua forma original.
Aos 2 anos de idade, minha mente começou a registrar
as primeiras memórias. Foi quando minha família mudou-
-se para Estrela do Indaiá, naquela ocasião um pequeno
arraial, não muito longe de nossa cidade. Dessa época,
tenho fugidias lembranças. Lembro-me de que fomos
morar numa casa antiga, com enormes e pesadas portas e
janelas feitas de madeira maciça. Tinha ela, na sua frente,
um passeio alto e largo que a diferenciava das demais casas
da vizinhança. O seu quintal, imenso, era cercado por uma
decadente cerca de bambus.
Guardo também a tênue recordação do dia em que ali
chegamos! Grande era o entra-e-sai dos vizinhos que, curi-
osos, vinham nos visitar. Eram pessoas humildes e simples,
demonstrando amizade e oferecendo os seus préstimos.
Morando nesse lugar, em tenra idade, comecei a
demonstrar um grande prazer em lidar com ferramentas.
Meu pai tinha um punhado delas e as trazia guardadas com
muito cuidado. A minha preferida era o martelo. Pegava-o
e saía martelando por todo lado como se realmente estives-
se fazendo um trabalho útil.
Ao aproximar-se o Natal, perguntavam-me que pre-
sente eu queria ganhar de Papai Noel. Incontinente, res-
pondia no linguajar de criança:
– Quero um martelo e uns pregos!
20
Foto rara da Capela
São José ou Cruz do
Monte, que, mesmo
depois de demolida,
nomeou o local como
Morro da Capelinha.
Segundo dados
históricos, a “Cruz do
Monte” foi iniciativa
do padre Belchior
Rodrigues Braga,
vigário da paróquia de
1866 a 1875
21
depois de tantos anos, é uma testemunha de quando
minha vida, despontando, tinha à sua frente um futuro
incerto e desconhecido.
– É este mesmo!
22
Acordando de seu êxtase, ele passou a relembrar um
passado remoto onde as pessoas se sentiam felizes ao rece-
ber pequenos presentes, dando-lhes inestimável valor.
Tudo bem diferente dos dias de hoje!
23
Nesta foto, tirada por volta de 1958, pode-se ver o Rio
Indaiá, na confluência do Córrego do Funchal, que deu
origem ao nome da Barra do Funchal. Ao longe, sinuosa,
o que pareceria um rio é, na verdade, uma pequena
estrada. Ao fundo pode-se vislumbrar a Serra da
Saudade. Essa foto é uma referência de onde ficava o
ponto final da Estrada de Ferro Paracatu, apesar de a
estação e os trilhos não serem vistos na foto. (Fonte:
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, vol. IX, IBGE, 1960 e
site Estações Ferroviárias do Brasil)
24
Barra do
Funchal
25
la época, dos municípios de Dores do Indaiá e São Gotar-
do. Anos depois, com a emancipação da Serra da Saudade
e sua elevação a município, essa área passou a pertencê-la.
Os veículos que passavam em nossa porta, cruzando
depois a ponte, desapareciam numa curva da estrada entre
sucessivos cortes, e somente voltavam a ser vistos bem no
topo da encosta, onde a rodovia, beirando o precipício,
desafiava as alturas. Desse local, um imenso paredão des-
penca até a margem do caudaloso rio, formando uma bar-
reira intransponível.
Por todo lado a paisagem é muito bonita e atraente,
apesar dos estreitos limites do horizonte. Minha casa, à
moda antiga, era uma velha construção, sustentada em
todos os seus cantos por vigorosos esteios de aroeira. Era
ligada à casa do armazém, formando um só corpo. Sua
frente estava no nível da pracinha e, devido à inclinação do
terreno, sua parte de trás ficava a quase dois metros de
altura do solo, dando origem a um espaçoso porão.
Ficava bem na curva da estrada, onde existia uma
bomba de gasolina para atender aos incautos viajantes. Essa
bomba de gasolina pertencia à sociedade do armazém e
este dispunha de um caminhão novinho em folha, da marca
International. Como recebiam em consignação, por meio
da estrada de ferro, mercadorias destinadas a diversas cida-
des próximas, com aquele veículo faziam a entrega de porta
em porta.
Lembro-me do Tião, um habilidoso motorista. Dirigia
o caminhão com maestria e segurança por todos aqueles
perigosos caminhos, cheios de despenhadeiros e curvas.
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Dores do Indaiá era um dos ramais da Estrada de Ferro
Paracatu. No dia 8 de outubro de 1922, foi realizada a
primeira viagem experimental de uma composição
completa – composta de locomotiva e vagões – à
cidade. Foi um evento de gala ao qual grande parte da
população local e da região compareceu, trajando o que
a época exigia de mais requintado: vestidos longos para
as mulheres, chapéu e bengala para os homens
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cada um deles. Sabia que, com isso, estava me agradando e
me proporcionando momentos de pura alegria.
Apesar de ser tão erma e um local onde o sol só aque-
cia por poucas horas durante o dia, devido à altura dos mor-
ros que a cercavam, era muito animada a Barra do Funchal
daquele tempo!
Nas proximidades da estação férrea, uma porção de
casas de singela construção ocupava a planura em desorde-
nada simetria. Tinha até uma pensão que dava abrigo aos
raros forasteiros. Espalhados pelas colinas que circunda-
vam a área, casebres com seus penachos de fumaça, enfeita-
vam a paisagem, dando vida à natureza morta, apesar de
luxuriantemente verde.
Defronte de nossa casa, do outro lado da estrada,
erguia-se uma enorme caixa d'água, onde eram abastecidas
as locomotivas e de onde a população local também se bene-
ficiava com o precioso líquido. Ali, víamos sempre uma fila
de mulheres cantarolando, enchendo suas vasilhas e toman-
do o rumo de suas dispersas casas. Das proximidades dessa
caixa d'água, para o lado do rio, saía um ramal da estrada de
ferro. Era o virador, onde as locomotivas faziam suas mano-
bras para mudar de direção, pegando o seu caminho de vol-
ta, uma vez que ali, literalmente, era o fim da linha.
A vida religiosa também era intensa naquelas paragens.
Concorridas procissões percorriam os mais tortuosos cami-
nhos, levando a “Santa” que, num andor todo enfeitado, ia
visitar cada um dos seus fervorosos devotos. Cânticos e
mais cânticos misturando-se ao ribombar dos foguetes ele-
vavam ao Céu ardentes preces. De mãos dadas com minha
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mãe, eu acompanhava compenetrado aquele cortejo, ten-
tando entender o significado confuso das rezas e dos cânti-
cos que entoavam – até seus últimos dias, minha mãe foi
muito devota.
Tenho vívido o semblante de minha mãe, debruçada
sobre o meu berço ao cair da noite, a cantar com sua suave
voz lindas canções de ninar. Vem-me também a lembrança
de meu pai, depois de um cansativo dia de trabalho, senta-
do no banco da sala dedilhando o seu violão sob a tênue
luz do candeeiro.
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A vida corria tranquilamente até que meus problemas
de saúde começaram a piorar devido ao clima do lugar. O
sol, ali, só aparece no tardar das horas. No tempo de frio, as
geadas eram frequentes e insuportáveis. No tempo das
chuvas, o rio transbordava e suas águas vinham até o porão
de nossa casa, deixando-nos de sobreaviso para uma retira-
da de emergência. A população ribeirinha, obrigada a se
locomover com frequência para lugares mais altos, levava
consigo todos os pertences que podia. A intranquilidade
era constante. Mas, para os problemas de saúde, não havia
nenhum recurso por aquelas bandas.
30
modo que eu ficasse bem protegido. O frio era intenso. Ela
e meu pai se acomodaram ao meu lado. Nas mãos de Deus
estava a minha sorte!
Tarde da noite, o trem partiu. A locomotiva, resfole-
gando, começou a subida da serra. No silêncio da noite
gelada só se ouvia o ranger de suas rodas nos trilhos, rom-
pendo os íngremes caminhos. De quando em quando,
para quebrar a monotonia daqueles ermos, ouvia-se o seu
apito melancólico e triste, cujos ecos, reverberando de que-
brada em quebrada, perdiam-se nas profundezas daqueles
abismos soturnos. Ao meu lado, no vagão de carga, meu
pai e minha mãe, num ambiente de angústia e solidão, reza-
vam para que o auxílio divino intercedesse por mim.
31
No negrume da noite, a viagem prosseguia lentamen-
te até que a locomotiva atravessou os píncaros da serra e,
encontrando a planície, pudesse avançar com mais veloci-
dade. Chegamos à cidade antes dos primeiros alvores do
dia. Levaram-me para a casa de minha avó Etelvina, que
ficava na Praça São Sebastião. Meu pai saiu apressado à
procura do médico.
Não fui dessa vez! Não tinha chegado a minha hora!
Deus me daria uma missão para cumprir e a finalidade de
minha vida estava longe de ser atingida. Recuperado,
regressamos à Barra do Funchal e somente no ano seguin-
te, de mudada, retornamos a Dores do Indaiá.
32
Uma vista de parte da
cidade nos anos 1940,
onde se vê:
1. Avenida Francisco
Campos.
2. Rua Dr. Zacarias.
3. Escola Normal Dr.
Francisco Campos.
4. Estação ferroviária.
5. Antiga igreja de N.
Senhora do Rosário.
6. Prédio do antigo
presídio municipal.
33
7. Antigo coreto na
praça da Matriz
A saudade, de vez em quando, me leva de volta à Barra do
Funchal. De Dores do Indaiá até a Serra da Saudade são
apenas 47 quilômetros de rodovia pavimentada e segura
34
Na foto acima, vê-se o ponto onde o Rio Indaiá barra o Rio
Funchal, nomeando o lugar onde passei meus primeiros
anos. Permanece um lugar de natureza maravilhosa!
35
Minha única foto de infância, em 1939, com 6 anos de
idade. Nessa época, voltamos a morar em Dores do
Indaiá e estávamos vivendo em uma linda casa que
meu pai mandara construir. Pelos sapatos nos meus
pés, se descobre que a ocasião desse registro foi um
momento importante e solene
36
O balão
azul
37
Assim era o viver naqueles tempos difíceis, ocasião da
Segunda Guerra Mundial. Apesar de estarmos longe do
conflito, sofríamos com a imposição dos racionamentos e
suas restrições. Mas, não podemos negar que éramos
muito felizes! Nessa simplicidade em que se vivia, os
encantos da vida se traduziam em dias de plena felicidade.
Tínhamos diante de nós a tranquilidade e a paz e os desejos
satisfeitos pelos limitados sonhos.
Lembro-me de – não sei bem se no Natal – ter ganha-
do de uma moça que trabalhava em nossa casa um presen-
te valioso: ela, com certeza, sacrificando-se, comprara para
mim, de um vendedor de rua, um balão. Era um balão azul,
não muito grande, mas todo bordado com flores brancas
que fizeram brilhar os meus olhos de criança. Fiquei
encantado diante de tanta beleza! Amarrado a um cordão,
parecia equilibrar-se no ar, balouçando ao sabor do vento,
com os gestos graciosos de quem quer se libertar e ganhar
o azul do céu. Eu ficava horas e horas a contemplar o seu
vai e vem constante e invariável.
À noite, quando ia dormir, prendia-o na cabeceira da
minha cama e, fixando nele meus olhos infantis, imaginava
que ali se encontrava o maior dos tesouros do mundo.
Quando o sono chegava, nos sonhos que povoavam a
minha mente, prendia-o às minhas mãos pequeninas e,
voando com ele, ia por esse mundo sem fim, perscrutando
a noite à procura do país encantado onde repousavam ingê-
nuas fantasias. Ao acordar de manhã, com medo de que
tudo tivesse sido realmente um sonho, abria os olhos deva-
garzinho para ver se lá ainda estava o meu balão azul, amar-
rado à cabeceira de minha cama!
38
Um dia – sempre existe um dia –, mesmo com todo o
cuidado, o balão estourou e, com ele, foi-se a minha alegria
de criança. Como chorei! Um choro inconsolável de quem
perdeu o seu mais precioso bem. Tentando consolar-me,
fizeram de seus fragmentos uma porção de pequenos
balões mas, insubstituível, a imagem daquela imensa bola
azul, cheia de flores brancas, ficou impregnada em meus
olhos, como uma bola de cristal onde se refletiam minhas
ilusões.
Hoje, quando vou a uma festa e encontro o salão en-
feitado com centenas de balões multicoloridos, recordo do
meu balão azul e, na hora de estourá-los, sinto aquela pon-
tada no coração como se cada estouro significasse aquela
memorável perda, lembrando-me das lágrimas vertidas
pelo menino simples no dia em que se viu privado de seu
melhor brinquedo.
39
A Praça dos Coqueiros – cujo nome oficial é Praça
Sagrado Coração de Maria –, segundo sei, foi fundada
em 1863, pelo missionário italiano Frei Paulino. Além
de palco privilegiado para muitas celebrações
religiosas ao ar livre, ela é um dos cenários mais belos
da cidade para se apreciar o pôr-do-sol, escondendo-
-se atrás da Serra da Saudade
40
O retorno à
cidade
41
Felizmente, depois de algum tempo, fui curado da maleita
graças a um farmacêutico cuja farmácia ficava na Praça da
Matriz. Com um santo remédio, o quinino, ele resolveu o
meu problema.
A bronquite com o tempo ficou esquecida, não sei se
pelos cuidados médicos, pelas rezas de minha mãe ou pelas
práticas supersticiosas que lhe ensinavam. Transformei-me
numa cobaia onde se aplicava tudo o que as comadres ensi-
navam. A verdade é que sarei, fiquei bom, sem nenhuma
sequela. O que me curou, até hoje não sei.
No tempo que moramos nessa casa, meu pai reatou
com alguns amigos uma sociedade e, a partir dela, funda-
ram uma nova firma, que ficou estabelecida na Rua Mário
Campos com Rua São Paulo, sem número – parece estra-
nho, mas os imóveis ainda não eram numerados, o que só
aconteceu muitos anos depois. Um grande armazém pas-
sou a funcionar naquele local. Sobre o umbral de suas por-
tas via-se um grande letreiro com letras belamente sombre-
adas: Ribeiro, Correia & Nogueira.
Nessa mesma época, meu pai construiu uma ampla e
confortável casa para nós. Nela, muitas novidades que não
se usavam naquele tempo, como o ambiente do banheiro
todo azulejado e a instalação de chuveiro e banheira com
água quente e fria. A casa ficava na mesma rua do arma-
zém, um pouco acima. Quando ela ficou pronta, era costu-
me dar uma grande festa, ocasião em que eram convidados
parentes e amigos, com direito a retrato e tudo o mais. No
final deste capítulo está uma foto desse evento, com muitos
familiares e meninos com quem costumávamos brincar.
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Nossa alegria durou pouco porque, um ano depois,
meu pai vendeu sua parte no armazém e, junto, foi nossa
bela casa. Pelo imóvel, achou um excelente preço, oferta de
um fazendeiro rico. João Ribeiro Coelho queria agora um
armazém só dele.
Tantas mudanças, ficava eu imaginando que meu pai
vivia à procura da “galinha dos ovos de ouro”. Quando
tudo parecia estar dando certo, ele, insatisfeito, mudava de
negócio. Assim, ficou sabendo que estava à venda o enor-
me prédio onde funcionava o Hotel Centenário, na esquina
da Praça São Vicente com a Rua 15 de Novembro, atual
Avenida Francisco Campos.
43
Ajustado o preço com o proprietário, o sr. Oscar de
Souza – antigo hoteleiro na cidade –, o negócio foi fecha-
do. Agora era combinar com o inquilino como seria a
entrega do imóvel. O prédio estava há muito alugado pelo
sr. Oscar a outro hoteleiro. Contatando essa pessoa, nada
mais fácil para entrar num acordo! Dentro de trinta dias, no
máximo, o endereço estaria desocupado.
Escritura passada, esperaram-se os tais trinta dias.
Nenhuma providência tomada. Mais um mês e nada. Meu
pai foi procurar o dono do hotel, e todas as vezes que isso
acontecia era a mesma coisa: ele se escondia e somente sua
esposa aparecia, demonstrando que não tinham nenhuma
intenção de desocupar o imóvel.
Nessa situação, restava entrar na Justiça. Meu pai pro-
curou o dr. José Bernardes, reconhecido como um dos
melhores advogados de nossa cidade naquela época. O seu
contendor também procurou outro excelente advogado: o
dr. José Soares. Começou a pendenga. Nesse ínterim, tinha
vencido o prazo para a entrega da casa nova vendida ao
fazendeiro.
Outra vez fomos morar num lugar sem o menor con-
forto, uma casa de periferia, casa pequena que mal acomo-
dava nossa família. Esperava-se que, em poucos dias, tudo
se resolveria mas, diante da demora, da burocracia, nossas
esperanças foram se diluindo.
Um longo ano se passou e nenhuma solução para o
caso! O capital que meu pai tinha para montar o armazém
sozinho estava se esvaindo. Gastos com a Justiça, com a
família e com o advogado eram constantes. Um dia, numa
44
festa de aniversário, meu pai se encontra com o advogado
de seu opositor. Esse, muito amigo, alertou-o de que ele ia
perder a causa. O seu advogado deveria ter entrado na Jus-
tiça alegando falta de pagamentos de aluguel e não alegan-
do a intenção de instalar ali um comércio, porque, comér-
cio por comércio, já existia um no local. Meu pai contou a
seu advogado toda a conversa. Este respondeu que tudo
aquilo não passava de uma estratégia, esperteza do seu rival
para ludibriá-lo ainda mais.
Não deu outra! Meu pai perdeu a demanda. Com isso,
ele ficou desesperado pensando que ia ter que começar
tudo de novo. Naquela ânsia, partiu para o pior: colocou o
revólver na cintura e foi para um incerto encontro.
Lá chegando, como sempre foi recebido pela mulher
do inquilino, com a cara indisfarçavelmente feliz pelo resul-
tado da questão. Meu pai mandou que fosse chamar o seu
marido. Ela se desculpou dizendo que ele não estava em
casa. Meu pai, então, abriu o paletó deixando à vista a arma
que ele portava e fez uma ameaça – ameaça que não sei se
teria coragem de cumprir: “Diga ao fulano que lhe dou um
prazo de quinze dias para que desocupem a minha casa.
Dentro de quinze dias volto, e que ele fique preparado”.
A mulher, percebendo a disposição de meu pai, fez o
maior escândalo: ― Não precisa disso, nós sairemos antes
desse prazo. Os amigos do “deixa disso” entraram no meio
tentando acalmar os ânimos.
E, dentro de uma semana, tudo ficou resolvido!
Arranjado outro local para o hotel funcionar, logo logo foi
desocupado o motivo da pendenga.
45
Esta foto, de 1939, registra a
inauguração da casa que meu
pai mandou construir, na
Rua Mário Campos.
46
porque podem-se
ver muitos dorenses
saudosos e queridos!
1. Vinícius, carpinteiro. 25. Meu pai, João Ribeiro Coelho, o
2. Antônio Melato, que foi o construtor da casa. João da Vó para os amigos, ou o Papai
3. José Nogueira. João para os netos.
4. Juca Pinto.
5. Carlito Corrêa. 26. Minha mãe, Maria Teixeira
6. Alexandre Lacerda. de Andrade, carinhosamente
7. Iraci Pinto, com seu filho Paulo. chamada de Mamãe Lilia
8. Osvaldo Diniz. pelos netos.
9. Meu irmão mais velho, Waldir
Ribeiro.
10. Zilá Soares.
11. Emílio Pinto Fiúza.
12. Eu.
13. Oldemar Pinto Fiúza.
14. Meu irmão, José Maria Ribeiro.
15. Meu irmão mais novo, Osvaldo
Ribeiro de Andrade. 21
16. Minha irmã Wolanda Ribeiro, 17
carregando nossa irmã,
47
20 26 25
Maria Amélia.
16 18 19
17. Tia Carmelita.
18. Minha avó paterna, 22
24 23
Etelvina Fiúza.
19. Meu avô materno, vovô
Inácio Ribeiro de 4 5 8
1 3
Andrade. 2 6 7
9
20. Minha avó materna,
Francisca, vovó 12
13 14
Dindinha. 11
15 10
21. Tio Pedro Ribeiro de
Andrade.
22. Chico Morais.
23. Orlando Fiúza.
24. José Machado
48
Armazém
para Todos
49
Uma foto da esquina do Armazém para Todos, que ficava ao
lado da antiga Praça São Vicente – ainda sem suas
palmeiras, o coreto e o D.I., já tão familiares –, e bem
próxima à Escola Normal Dr. Francisco Campos, com sua
linda praça à frente, local preferido para o foo ng
50
Morando perto, fazíamos amizade com os seus funcioná-
rios e, com isso, tínhamos passe livre em todas as atrações.
Era uma correspondência de favores, porque, com o por-
tão que deixávamos aberto, eles se abasteciam de água
numa torneira que havia no nosso quintal.
Moramos nesse lugar durante uns cinco anos. De um
lado, o armazém; do outro, nossa residência. Agora, a casa
era confortável, possuía muitos e espaçosos quartos.
Mas, outra vez!, meu pai, queixando-se de que o ponto
comercial não era bom, resolveu vendê-lo. O sr. Eurico
Lacerda adquiriu o imóvel. Lincoln Lopes – outro experi-
ente e antigo hoteleiro em nossa cidade – era seu sogro e
logo se estabeleceu no local, que voltou a ser um hotel.
51
Foto bem antiga
do Grupo Escolar
Dr. Zacarias, que
foi minha primeira
escola. Antes de
ser transferido
para esse prédio,
em 15 de agosto
de 1931,
52
funcionou onde
hoje é a Santa
Casa de
Misericórdia, na
prístina Praça São
Sebastião,
atualmente
Praça Alexandre
Lacerda Filho
Férias na
roça
Quantas lembranças nos traz a figura de um carro de
boi! Eu devia ter uns 9 ou 10 anos – não me lembro bem –,
fazia os estudos primários no Grupo Escolar Dr. Zacarias.
Sempre aguardava com muita ansiedade o recesso escolar,
para passar as férias na fazenda de meu avô materno, perti-
nho de Cedro do Abaeté.
O lugar era muito bonito! Uma casa solenemente anti-
ga. Ao lado, os currais que, de manhãzinha, acolhiam as
vacas para a ordenha. O moço que cuidava dos animais,
sempre gentil, escolhia as melhores para, com o seu leite
quentinho e espumante, encher os nossos copos que, no
fundo, já traziam a rapadura ralada. Por detrás da casa, o
pomar de árvores carregadas de frutos encantava nossa
visão. Ali os passarinhos em festa faziam a maior algazarra.
Mais abaixo, corria tranquilo um manso regato onde, no
dia de São João, bem cedinho, antes de o sol nascer, laváva-
mos o rosto na certeza de ver no espelho das águas geladas
e cristalinas a imagem de nossa possível futura namorada.
Contaminados pela ingenuidade do povo da roça, acredi-
távamos em todas essas superstições.
É muito pitoresco e vale aqui lembrar como chegáva-
mos à fazenda. Na velha jardineira da linha, íamos até o
53
Quartel Geral e, de lá, a cavalo, em animais que meu avô
nos mandava por meio de um empregado da fazenda. Nou-
tras vezes, quando ia a família toda – minha mãe com os
meninos pequenos –, meu avô mandava o carro de boi.
Vinha com uma tolda de couro e, no seu assoalho, col-
chões macios cobertos por lençóis, numa exibição de con-
forto daqueles tempos.
O carreiro era um preto velho, paciencioso, gente de
confiança, nascido no lugar. Sabia manejar o carro com
prudência e habilidade, evitando os trancos provocados
pelos buracos do caminho e, assim, qualquer desconforto
aos seus ocupantes. Viajamos a tarde toda até que, chegan-
do a noitinha, aportávamos na fazenda sob uma recepção
calorosa! Eram abraços e mais abraços de pessoas que há
muito não se encontravam.
Uma vez, por coincidência, depois do nosso último
dia de aulas, apareceu aqui na cidade um tio com o carro de
bois. Trazia coisas da roça – milho, arroz e café – e, como
retorno, ia levar o que lá não se produzia – sal, querosene
para as lamparinas, arame de cerca e outros víveres.
Naquele dia, eu e meu irmão conseguimos o consenti-
mento de nossos pais para acompanhar nosso tio. Viajar
em um carro de bois numa distância de mais de 40 quilô-
metros, por caminhos quase intransitáveis, era uma aventu-
ra! Encarapitados sobre a carga, acomodamo-nos num
lugar bem preparado, portando chapéus de palha compra-
dos às pressas na venda da esquina. Dali, do alto, podería-
mos observar as belezas do caminho. Com um aceno de
mãos nos despedimos dos que ficavam. Os bois, ouvindo o
54
O carro de boi foi introduzido no Brasil pelos portugueses
colonizadores e sua história se confunde com o passado e
o progresso do nosso pais. No desenho acima, do século
XIX, Thomas Ender – pintor austríaco que, junto a Debret e
Rugendas, é um dos grandes pintores viajantes –, parece
ter registrado uma cena parecida com a aventura que vivi
com meu irmão, com crianças se divertindo sobre a mesa
do carro e o carreiro absorto da algazarra
55
parar o nosso jantar. Famintos, achamos que foi a comida
mais gostosa do mundo! Na hora de dormir meu tio esten-
deu debaixo da mesa do carro, entre suas rodas, um couro
onde dormimos eu e meu irmão, usando a única coberta
existente. Ele e o candeeiro dormiram ao relento numa
cama improvisada, também sobre couros.
56
imagens de um tempo e de pessoas que pertenceram àque-
le, agora, desolado cenário. Cenário onde tudo não foi
mais do que um sonho bom!
57
Durante a primeira metade do Século XX, Dores do
Indaiá foi assim, como ilustra essa foto acima: vias de
terra batida e muita poeira – e ainda assim a elegância
da época exigia dos homens o uso do terno de linho
branco –; os postes dispostos no meio da rua e não
sobre as calçadas, como atualmente; poucos veículos
automotores circulando; vários terrenos vazios e uma
grande periferia ainda a ser ocupada.
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O sonho de ter
uma bicicleta
Aos velhos, para quem o futuro já chegou, restam as
recordações. Dizem que recordar é viver. A nós, que pres-
sentimos o apagar da luzes, restam as lembranças. Muitas
vezes, sentados com os olhos fechados, simulando um
cochilo, ficamos a viajar pelo mundo dos sonhos numa
volta aos velhos tempos. De repente, de encontro com a
memória, vão surgindo fatos que vivenciamos um dia e
que ficaram esquecidos nas arcas do tempo.
Percorro a cidade com a imaginação. Tudo diferente!
Diante de mim, encontro o menino que fui. De calças cur-
tas, de pé no chão, como quase todos os meninos da época.
Diante de mim, aquele garoto cheio de sonhos como todos
os outros meninos. A nossa cidade na singeleza daqueles
dias, sob este mesmo Sol de agora. Pessoas transitando na
sua faina diária. Carros de bois e carroças trafegando pelas
ruas desertas sem nenhuma pressa. Não raro boiadas cru-
zando a nossa avenida principal. Nesses momentos, as
lojas fechavam as suas portas por conta da poeira que se
levantava. Tudo era visto com naturalidade.
Nas ruas muitas vezes nos deparávamos com uma
“vaca de tapa”, coisa muito comum naquele passado. Um
59
alvoroço se fazia, gente correndo por todo os lados, escon-
dendo-se nos vãos das portas, esquecendo-se de que o
pobre animal estava tentando fugir dos seus algozes que,
de vara de ferrão em punho, levavam-no para a morte.
Como os tempos mudaram! Vivíamos longe do bur-
burinho das cidades grandes, dessas notícias que hoje nos
preocupam e nos entristecem.
Os meninos começavam a trabalhar muito cedo. Era
necessário aprender uma profissão. Seria uma garantia para
o futuro. Alguns optavam por ser auxiliares de alfaiate,
outros de carpinteiro, de mecânico; enfim, escolhiam o que
a oportunidade lhes oferecia. Na maioria das vezes, nada
ganhavam, eram simples aprendizes.
Eu trabalhava no armazém de meu pai. Não tinha
ordenado. Muitos diziam: você ganha casa, roupa e comi-
da, ainda quer mais? Eu queria mais, apesar de reconhecer
em meu pai a figura de um herói. Sabia de sua responsabili-
dade diante de uma família enorme naqueles tempos de
incerteza.
Assim, menino de 10, 11 anos de idade, me vi na
necessidade de procurar um trabalho. Estava passando da
hora de ganhar o meu dinheiro e de realizar meus sonhos,
que eram muitos. Dentre eles, ter uma bicicleta, coisa que
meu pai não podia me dar. Custavam muito caro, pois eram
todas importadas e tê-las era um privilégio de poucos.
Fui bater às portas da Farmácia Fiúza, que não ficava
longe de minha casa. Atendeu-me o sr. Mozart França, o
seu proprietário. Perguntei-lhe se estava precisando de um
60
menino para fazer limpeza e, quem sabe, para aprender os
serviços mais simples de uma farmácia. Incontinenti, ele
me aceitou. Na cidade pequena todos se conheciam e não
havia necessidade de apresentações.
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A foto, de 1941, mostra a Farmácia Fiúza, que ficava na
Avenida Francisco Campos, onde, atualmente, funciona
a Loja Xique-Xique Calçados, do Sérvulo A. de Faria
Lopes. Na porta da farmácia está o sr. Jacinto P. Fiúza,
antigo proprietário, fundador da farmácia e pai do
professor Rubens Fiúza. Infelizmente, não tenho foto do
Pedro. A casa ao lado era sua residência
62
O terror da
meninada!
63
Dr. Zacarias. No fundo da casa havia uma enorme pedra
que, inclinada, servia de batedouro de roupas, expediente
comum naqueles velhos tempos.
Em casa, tínhamos um cachorrinho, raça paqueiro,
espirituoso, de orelhinhas em pé, fiel e inseparável compa-
nheiro de nós meninos. Muitas vezes, escondido de nossos
pais, ele dormia em nossa cama, enroscadinho nas nossas
cobertas.
Um dia, vimo-lo debaixo desse batedouro, os olhos
vidrados e rosnando assim que nos aproximávamos. Con-
fiante, fui me achegando e metendo a mão no nicho para
tirá-lo de lá. Ele mordeu a minha mão com força. Presumi-
mos que uma coisa estava errada e, com cuidado, conse-
guimos levá-lo para despensa de casa onde, pela greta da
porta, colocávamos água e comida. Ali, ele ficou trancado
em observação.
Com certeza, o cachorro tinha ficado “doido”. Com a
mão ainda sangrando, corri até a farmácia do Pedro, que
ficava ali perto. Contei-lhe a história toda e ele, depois de
fazer um rápido curativo, aplicou-me uma injeção contra a
raiva. Havia a necessidade de mais 14 aplicações para preve-
nir da doença. Então, sério, Pedro me alertou:
― Não tem jeito! Daqui a quinze dias vamos ter que
amarrar você num pau. Certamente vai ficar doido também.
Com a ingenuidade de criança e diante de sua serieda-
de, acreditei. Preocupado fui para casa. Nos dias de agonia
que se seguiram, a história era a mesma. Faltam quatorze
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dias, treze dias, doze dias... até que, na última injeção, com
expressão de seriedade, ele falou:
― É hoje! Podemos preparar as cordas.
Nesse dia, por sorte, conversando com um senhor
que tinha uma carpintaria quase de frente a nossa casa, ele
perguntou pelo nosso cachorrinho. Assustei-me com a
indagação: por que ele se interessaria pelo nosso cachorri-
nho? Ele explicou: é que ele tinha visto o cão ser atropela-
do por um carro. A sorte é que ficou entre as rodas, obser-
vou ele.
Diante do exposto, entendemos o ocorrido. Todo
dolorido o cãozinho não queria ser incomodado. Ah! Se
ele pudesse falar, revelar a sua dor...
Depressa fomos abrir a porta de sua prisão. Quase
recuperado, ele nos recebeu abanando a cauda, como que
pedindo desculpas pelo incidente provocado.
Dias depois, encontrando-me com o Pedro da Farmá-
cia, ele, fingindo surpresa, perguntou:
― Uai ! Você aqui?!
Trabalhando em uma de nossas melhores farmácias
da cidade, melhor do que seus patrões, nosso personagem
zelava pelo nome da casa. Amava o seu trabalho e, sendo
apenas um farmacêutico prático, igualava-se aos diploma-
dos na arte. Quantas vezes, ele, de madrugada, abria as por-
tas do estabelecimento e, ainda de noite, era costume vê-lo
atento aos seus afazeres.
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É verdade que o Pedro não nasceu para estar no
comando de um negócio. Mexer com cifras não era o seu
forte. Uma vez, um fazendeiro rico, conhecedor de suas
qualidades, comprou uma farmácia e lhe deu em socieda-
de. Pedro aceitou a oferta somente por delicadeza. Poucos
meses depois, não aguentando a saudade do velho empre-
go, renunciou a dádiva e, como um filho pródigo, voltou
ao lar antigo. Lembramos do Pedro, espirituoso, irônico
sempre disposto a uma brincadeira.
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outro e resolveu, arriscando-se a perigos imaginários, fazer
o reconhecimento do quarteirão. Na avenida, ao passar de
frente à Farmácia Fiúza, lá estava o Pedro que, para agradá-
lo, deu-lhe um almanaque do Jeca Tatu – uma antiga propa-
ganda do Biotônico Fontoura. Ao chegar em casa, meu
primo encontrou sua mãe preocupada com sua ausência.
Ao ser perguntado onde tinha andado, o menino descreveu
sua grande aventura: dera uma volta no quarteirão e ganha-
ra do “homem da venda da porta larga” aquele presente.
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No ano de 1948, na gestão de dr. Gustavo Drumond
Tostes como prefeito municipal, finalmente a cidade
começou a ganhar o tão esperado calçamento. A foto
mostra a colocação da primeira pedra – popularmente
conhecida como paralelepípedo – na Avenida Francisco
Campos, esquina com Rua Rio Grande do Sul. Ao fundo,
pode se ver o antigo Bazar da Fortuna, com sua fachada
característica, onde hoje funciona a Vidromat.
68
Meu primeiro
rádio
(não funcionou!)
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com o seu movimento. Comprou, então, uma linha de jar-
dineira – nome simpático para antigos, rústicos e já extin-
tos ônibus – para a cidade de São Gotardo. Nesse novo
negócio, eu tive a missão de ser o cobrador, mas, menos
ainda que o armazém durou a linha de jardineira.
70
Desde pequeno, sempre fui muito curioso. Lendo
tudo que caía em minhas mãos sobre o assunto, tinha um
rudimentar conhecimento de eletrônica. Trabalhando ali,
com certeza, iria aprender muito e solucionar muitas das
minhas inúmeras dúvidas.
Inicialmente, minha função seria desmanchar rádios
irrecuperáveis para aproveitar suas peças, consertar utensí-
lios domésticos simples e coisas que tomavam muito
tempo do radiotécnico. Desmontar os rádios antigos
demandava muita habilidade para não danificar as peças,
em sua maioria importadas, e mereciam cuidado especial.
Nessa ocasião, resolvi montar o meu primeiro rádio.
Desmontando-os, fiquei conhecendo todas as suas etapas
de funcionamento e aprendi a diferenciá-las. Acontece
que, na sua montagem, comecei pelo lado errado. Primeiro
fiz a sua caixa – o chassi – e o sistema mecânico. Modéstia
à parte, tudo ficou muito bem-feito! Chegada a hora de
montar a parte elétrica propriamente dita, arranjei um
esquema mais simples e a montagem ficou caprichada!
Tudo pronto, o rádio não quis funcionar!
Quebrei a cabeça durante muitos dias e não consegui
descobrir onde estava o meu erro. Desanimado, coloquei-
o de lado e, muitos anos depois, mais experiente, vi que o
meu erro estava num simples fio invertido na bobina osci-
ladora.
Agora foi a vez de a loja de eletrodomésticos fechar as
portas. A qualidade de nossa energia elétrica não estimula-
va ninguém a adquirir aparelhos elétricos.
71
Até a primeira metade do século passado, a maioria
das estradas brasileiras eram como essa, a antiga
rodovia ligando Dores do Indaiá à Luz. A viagem até
Belo Horizonte, que hoje pode ser feita com conforto
e rapidez em poucas horas, chegava a durar um dia
inteiro até então. E sem contar com as adversidades
que o caminho sempre apresentava, como a lama e os
atoleiros nas épocas de chuva intensa
72
Caminhos
antigos
73
todos. Em nossas casas, lampiões e velas respondiam pela
iluminação. As lâmpadas elétricas, no horário de pico, mais
pareciam uma brasinha dependurada nos postes e no teto
das residências.
74
Foi num tempo desse que meu pai comprou a linha de
Dores para São Gotardo, suprida por uma jardineira anti-
ga, carroceria de madeira, com capacidade para 15 passa-
geiros. Com meus 13 anos, fui designado para ser o cobra-
dor. Isso lá pelos anos de 1947.
75
eram programadas com antecedência e pequenos detalhes
mereciam atenção.
76
que fazia a linha de Dores do Indaiá até a cidade vizinha de
Luz era dirigida pelo Tião Mendes, seu irmão mais velho.
Tião Mendes apelidou sua jardineira de Carmem Miranda,
pelo tanto que ela rebolava na estrada escorregadia.
77
A casa que a Escola Técnica de Comércio São Luís
ocupava é esta à frente, no canto direito das duas
fotos, que são, respectivamente, dos anos de 1928 e
1953. Na imagem mais recente, é possível reconhecer
o letreiro pintado na parte superior do imóvel
78
Escola Técnica
de Comércio
São Luiz
79
Entre a 3ª e 4ª séries, durante o período de férias, perdi
meu irmão com 15 anos de idade, de forma abrupta e trau-
mática. Como sentávamo-nos na mesma carteira e usáva-
mos os mesmos livros, foi para mim um longo e difícil
período de adaptação, até que me acostumasse com a ideia
de seguir adiante sem tão querida presença.
No 4º ano chegamos sete alunos, daquela turma de 50
e tantos iniciantes. Daí, partimos para o 1º ano técnico de
contabilidade. Novos colegas, de outros estabelecimentos
de ensino da cidade, juntaram-se a nós, ficando enorme a
turma.
Correu tudo muito bem durante esse período. Compe-
te lembrar aqui que, nossa escola funcionava à noite, ilumi-
nada por lampiões e velas uma vez que a luz elétrica do
município era péssima.
Chegamos ao 3º ano técnico; outra vez, sete alunos.
Daquela turma de mais de 50 alunos com a qual começou a
escola, no já distante ano de 1946, ano de sua fundação,
sobramos apenas dois: eu e outro colega, que não quis par-
ticipar das comemorações da formatura.
Éramos todos muito unidos, cinco moços e uma
moça, e nos preparativos para nossa festa final, imbuídos
do entusiasmo de formandos, tivemos a ousadia de convi-
dar o governador do Estado para ser o nosso paraninfo. O
pai de nossa colega era o presidente do Partido Social
Democrático (PSD) local, um forte partido político daque-
le momento. Por intermédio dele e do deputado Maurício
de Andrade, que passava sempre por nossa cidade, envia-
mos um convite para Juscelino Kubitschek. Nós o quería-
80
mos como paraninfo, mas com uma condição: não aceita-
ríamos representante.
Pois Juscelino, asseverando seu perfil político tão de-
cantado, aceitou o nosso convite e confirmou sua presença.
Nosso diretor, professor Waldemar de Almeida Bar-
bosa, mesmo sendo um ferrenho udenista – integrante da
União Democrática Nacional, partido de oposição ao
Governo do momento –, deu-nos todo o apoio, comun-
gando conosco do entusiasmo de nossa conquista.
81
No dia de nossa formatura chovia a cântaros. Preocu-
pados com a impossibilidade da vinda do governador por
conta do mau tempo, ficamos todos tristonhos. Por aqui,
não existiam telefones naquele tempo, para dirimirmos a
dúvida. Foi então que alguém lembrou-se de ouvir o noti-
ciário da Rádio Inconfidência de Belo Horizonte. E, de lá,
ouvimos a notícia que nos deixou pulando de alegria: “o
governador Juscelino Kubitschek acaba de sair para Dores
do Indaiá, onde vai paraninfar uma turma de contabilistas.”
A cidade movimentou-se, uma multidão foi para o aero-
porto – mais conhecido como campo de aviação – dar as
boas-vindas ao governador. Lá estávamos nós, os forman-
dos. Eis que no horizonte carregado apontam os primeiros
vestígios da aeronave e, dentro de poucos minutos, a sua
82
Dezembro de 1953. Em dia de muita alegria, nós,
formandos, ao lado de nossos pais, mães, padrinhos ou
madrinhas, fazemos pose para uma foto oficial, na
escadaria da igreja matriz de Nossa Senhora das Dores,
após a missa realizada em celebração à culminação de
tantos anos de estudos e esforços!
83
Num encontro privado com os formandos, ele expli-
cou que não poderia ficar para assistir a nossa festa – que se
realizaria à noite – por causa do mau tempo. Tinha que estar
em Belo Horizonte bem cedo no dia seguinte e, com aquele
tempo tão instável, viajar à noite seria muito perigoso.
Fomos, então, correndo para casa trocar de roupa e vestir os
trajes especialmente preparados para a solenidade.
84
nosso orador, seguido pelo do nosso paraninfo, encerrando
as solenidades. O governador despediu-se prometendo vol-
tar. E retornou realmente, tempos depois, na sua campanha
política rumo à Presidência da República.
85
Deslumbrados com a grandeza, a beleza e a agitação
da capital mineira, estávamos meu irmão, José Maria
Ribeiro, à direita, e eu, à esquerda, tendo ao centro
papai, em nossa primeira viagem à Belo Horizonte.
Esse flagrante foi graças aos fotógrafos lambe-lambes
que ficavam a postos ao longo de toda a movimentada
avenida, eternizando com suas câmeras momentos
breves mas inesquecíveis como esse
86
Conhecendo
Belo Horizonte
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próxima onde existia um Raio X era Belo Horizonte. Poucas
eram as cidades que tinham esse avançado recurso. A via-
gem foi então marcada.
88
beleza das vitrinas das lojas, com a quantidade de automó-
veis nas largas ruas, com o volume e agitação de pessoas
nas amplas calçadas, menino do interior, imaginava que
estava vivendo um sonho. Nunca tinha visto nada igual!
89
Santa Casa de
Misericórida Dr.
Zacarias: palco de
muito sofrimento
para minha família
em 1948. Nessa
época eu não
poderia imaginar
que tornar-me-ia
um colaborador
90
da instituição,
substituindo meu
pai como
tesoureiro e
usando de meus
conhecimentos
técnicos para
consertar vários
equipamentos de
uso indispensável
Década de 1940:
dolorosas perdas
A década de 1940 foi uma época de adaptações e de
transformações para o mundo todo e, especialmente, para
minha família! No seu princípio, num mundo conturbado,
a guerra seguia a pleno vapor. Diante das incertezas, convi-
víamos com o medo. Mesmo longe do conflito, sofríamos
as suas consequências. Tudo era racionado! Tínhamos
cotas para muitos produtos necessários à nossa subsistên-
cia, entre eles a farinha de trigo, o açúcar e o querosene –
que até pouco tempo era imprescindível aos nossos lam-
piões. Gasolina, só no câmbio negro!
Nesse período, meu pai tinha um armazém e, quando
chegava um tambor de querosene ou um saco de farinha
de trigo ou açúcar, filas enormes se formavam no estabele-
cimento e o Fio, fiscal da Prefeitura, permanecia ao lado
até que a última gota do combustível ou o último grão do
alimento fossem vendidos. Tudo era medido, regrado, cro-
nometrado.
O povo, na sua arte milenar de driblar situações inusi-
tadas, arranjava sempre um sucedâneo para suprir suas
faltas. Era o fubá para fazer um bolo, a rapadura para coar
um café, fazer um doce. Minha mãe sempre tinha guarda-
do um pouco de açúcar para fazer um chá ou servir um
91
vizinho com um doente em casa. Os remédios de farmácia
eram raros, a maioria manipulados.
Nunca fomos ricos e, sempre vivendo dentro da reali-
dade, minha mãe tinha vários subterfúgios para contornar
a situação apertada. Que o digam os sacos de açúcar va-
zios, que se transformavam em nossas camisas branqui-
nhas – depois de alvejadas – e em calças – lindamente tin-
gidas de azul-marinho. Pareciam compradas na loja! Acos-
tumados à singeleza, vivíamos felizes!
Foi nessa época que faleceu minha avó paterna, pes-
soa muito estimada e por nós muito querida! Com ela
tínhamos morado diversas vezes em ocasiões difíceis.
Quando a poeira baixou, dois anos depois, perdi uma irmã-
zinha com 5 anos, de complicações com o sarampo. Meni-
na saudável, bonita, era a alegria da casa. Mais uma vez
nossa casa voltou a ficar de luto. Isso se deu na ocasião do
meu aniversário que, esquecido, só foi lembrado muitos
meses depois.
Com o término da guerra, as coisas começaram a
melhorar e o otimismo voltou a tomar conta das pessoas.
Adiante, o futuro prometia ser de dias melhores. Surgiram
aí os tão falados “Anos Dourados”.
Nesse tempo eu tinha um irmão que trabalhava na
Casa Lacerda. Trabalhar ali era coisa para privilegiados! Ele
tinha 15 anos na época, um ano mais velho do que eu! Estu-
dávamos juntos na Escola de Comércio, na mesma série,
na mesma carteira, com os mesmos livros. De repente, ele
começou a sentir dor de um lado, que foi diagnosticada
como sendo uma simples inflamação do apêndice. Nada
92
de grave e ele apenas teria que deixar de fazer determina-
dos exercícios, inclusive deixar de andar de bicicleta. Mas
como no seu trabalho sua função principal era de entrega-
dor, o que ele fazia de bicicleta, então decidiu resolver de
vez o problema e ser operado.
93
Esperou-se chegar as férias escolares e o dia da cirur-
gia foi marcado. Na véspera, ele escreveu diversas cartas
para amigos que aqui estudavam e que, com o recesso esco-
lar, tinham voltado para suas cidades. Naquela mesma
noite internou-se na Santa Casa, cumprindo o ritual exigi-
do. No dia seguinte, meu pai pediu ao médico, gente ami-
ga, para presenciar a cirurgia, no que foi autorizado.
Tudo era muito rudimentar. Na hora, meu irmão, sor-
rindo, ainda brincou que estavam apertando muito as cor-
reias que o prendiam à mesa na Sala de Operações.
Tudo preparado, a cirurgia começou. Meu pai, de
olhos fixos no semblante do filho, percebeu que algo
errado estava acontecendo. Chamou a atenção do médico e
este, assustado, mandou que ele corresse à farmácia do hos-
pital e trouxesse, o mais depressa possível, determinado
medicamento. Mas não havia ali o tal remédio – um estimu-
lante para o coração. Meu pai apressou-se a ir a uma farmá-
cia mais próxima. Poucos metros tinha andado quando o
chamaram de volta: era tarde demais e não havia mais o que
fazer!
Outra vez a tristeza abateu-se sobre nossa casa. As car-
tas deixadas, escritas na véspera, foram reendereçadas com
a triste nota. Na escola, foi difícil e muito dolorosa a minha
adaptação. Agora, os livros, outrora partilhados, eram só
meus e, ao meu lado, na carteira vazia, muitas vezes senti a
presença do meu irmão, companheiro de muitos anos!
Fausto Álvares Bernardes, amigo incondicional da famí-
lia, tinha espaço reservado no “O Liberal”. Ali deixou esta
linda mensagem:
94
95
A instalação da comarca de Dores do Indaiá data de 22
de abril de 1890. Na foto acima, o prédio do "Fórum
Escrivão Herculino", de Dores do Indaiá, antes de sofrer
a reforma que o deixou com as feições atuais. O
dorense Herculino Ribeiro de Souza, Escrivão do Crime
e Execuções Fiscais, nomeado no governo de Arthur
Bernardes, em 1921, dá nome ao prédio, onde serviu
durante trinta anos de sua vida.
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Primeiras eleições
após a ditadura
Aqui, conto mais uma história, uma história protago-
nizada por personagens que, com o tempo, se tornaram
ausentes. Vivia-se uma época tranquila, longe dessas com-
petições acirradas dos dias de hoje. Lembrando nossa pri-
meira eleição para Prefeito, depois de muitos anos de um
prolongado recesso, mostro a simplicidade de um povo
que, privado de tecnologias modernas, tinha tempo de
sobra para ir ao cinema, ao clube ou para visitar parentes,
onde todos eram sempre bem recebidos.
A década de 1940 foi uma época de grandes aconteci-
mentos! No cenário europeu terminava a Segunda Grande
Guerra Mundial e, com promessas de uma paz duradoura,
ressurgiam no horizonte esperanças de dias melhores. Por
aqui, no nosso país, é destituído Getúlio Vargas, presidente
da República que, no poder por mais de quinze anos, gover-
nou ditatorialmente o Brasil com mãos de ferro. Com ele
caem todos os seus partidários.
Em Dores do Indaiá, Cornélio Caetano, que esteve no
cargo de prefeito por esse tempo todo, entrega a Prefeitura
da cidade. Em seguida, dois novos prefeitos com mandatos
tampões assumem a direção do nosso município até que
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uma eleição seja realizada. O primeiro deles, dr. Juquinha,
foi autor de um governo insípido. O segundo, o sr. Manuel-
zinho Andrade, merece destaque por ter sido o nosso pri-
meiro prefeito a adquirir um veículo motorizado para o os
serviços da prefeitura.
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Sr. Manuelzinho adquiriu um caminhão International,
que, sob os cuidados do motorista Paulo Morais, rodou por
mais de vinte anos prestando relevantes serviços, substituin-
do velhas e arcaicas carrocinhas basculantes.
Marcada a eleição, o entusiasmo do povo era grande!
Mais de quinze anos sem votar ressuscitaram o desejo de
manifestar sua cidadania. Diversos partidos políticos ressur-
giam. Em nossa cidade a supremacia coube à União Demo-
crática Nacional (UDN) e ao Partido Social Democrático
(PSD). O Partido Republicano (PR) também se fez repre-
sentar, mas era um partido mais de coligações.
Iminentes as eleições, candidatos fortes à Prefeitura se
apresentaram. Gente de prestígio! Pelo PSD, candidatou-se
o dr. Gustavo Tostes, e pela UDN, Mário Carneiro.
Nesse tempo valia tudo para conquistar a preferência
do eleitorado, inclusive suborná-lo com presentes. Na loja
do meu pai tinham conta aberta o PSD, a UDN e o PR.
Quantas vezes um mesmo eleitor apareceu por lá com três
vales! Um vale do PSD para a compra de um pano para
confecção de uma calça, outro da UDN para compra de um
pano para confecção do paletó e ainda outro, do PR, para a
compra de um chapéu ou de uma camisa. Dali ele saía
quase todo vestido e ficava a dúvida em quem iria votar.
Muitos oportunistas apareciam nessa hora aproveitando o
momento de estarem abertas as burras dos candidatos.
Cada partido tinha a sua sede. A da UDN era numa
casa velha que ficava onde hoje está o Indaiá Clube. Na sua
frente, morava o candidato Mário Carneiro. Já a sede do
99
PSD também ficava na avenida Francisco Campos, numa
casa que existiu ao lado do bar do José Eduardo, onde mora-
va a família de dona Aleluia Teles. Defronte, morava o então
candidato a vice-prefeito, José Cardoso. Em ambas as sedes,
na ponta de um enorme mastro, um potente alto-falante
apregoava as qualidades e as promessas dos candidatos.
Cada partido tinha também os seus comitês, locais
onde se reunia a populaça. Ali havia fartura de bebidas, san-
foneiros e danças. Comestíveis nunca faltavam. À noite
uma multidão de eleitores lotava as sedes e redondezas dos
respectivos partidos dos quais eram simpatizantes. No Bair-
ro do Buracão predominavam os eleitores udenistas e no
Bairro do Cerrado os pessedistas. Brigas eram constantes.
No centro da cidade estavam os eleitores mais discretos. Se
um carro de propaganda do PSD fosse ao Bairro do Bura-
cão, era recebido com ovos chocos, mamões maduros e
todo tipo de represália. O mesmo acontecia aos carros de
propaganda da UDN, se fossem ao Bairro do Cerrado.
Lembro-me muito bem do Vasco como locutor no
Diretório da UDN. Dizia que tinha muita facilidade de
expressão quando se emocionava. Um dia, um carro de pro-
paganda da UDN, mesmo correndo sérios riscos, foi ao
Cerrado e de lá saiu apedrejado. Ao retornar esse carro à
sede do Partido, ao som de um lindo dobrado, Vasco, com o
microfone nas mãos e superemocionado, anuncia:
― Acaba de passar neste instante, um nosso carro
volante, conduzindo um possante alto-falante!
Quando deu pela coisa, tantas palavras rimando, a
turma rindo, perdeu a estribeira. O Vasco era gente boa!
100
Quando um eleitor indeciso aparecia na sede de um
dos partidos dando mostras de sua preferência, o alto-
-falante, tendo sempre como fundo uma música patriótica,
anunciava a sua adesão.
Foi o que aconteceu com o Diolino. Em cima do muro
ficou arredio até que um dia, demonstrando simpatias pelo
PSD, compareceu à sua sede, onde uma multidão se aglo-
merava. Ovacionado, é elevado às alturas nos braços do
povo e ao som tonitruante dos alto-falantes. Lá de cima,
feliz da vida, para ver melhor aqueles que o carregavam, leva
a mão à cintura onde ficavam guardados os seus óculos. De
repente, um rebuliço se formou: pensando que ele fosse
tirar uma arma de fogo, soltaram-no todos de uma só vez e,
no meio da clareira que se formou, no cascalho da rua, ficou
o Diolino esperneando, gemendo, todo escalavrado. Não
sei se diante disso ele ainda continuou um adepto do PSD.
A rivalidade que se formava entre os eleitores era de
estarrecer. Um exemplo eloquente e cômico teve o sr. Jorge
como protagonista! Numa noite muito escura, saindo ele do
Bar Central, depois de tomar umas e outras, desviou-se do
rumo e caiu numa valeta que a Prefeitura tinha aberto na
Avenida Francisco Campos, nas proximidades de onde é
hoje a Papelaria Avenida. Dentro do buraco, debaixo de
uma chuva fina, foi visto por alguém que passava. Quando
esse transeunte foi lhe dar a mão para tirá-lo de lá, primeiro
ele perguntou:
― É do PSD ou da UDN? Se for da UDN, pode me dei-
xar aqui mesmo!
Como eram divertidos esses tempos!
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As trocas de cédulas de eleitores incautos chegavam às
raias do inacreditável! Com lábia, os cabos eleitorais realiza-
vam coisas impossíveis. Pudera! O resultado de uma eleição
dependia, muitas vezes, de uns poucos votos. Era preciso
trabalhar com afinco.
No dia do pleito, os carros dos partidários rodavam
sem parar, transportando os eleitores. Essa, por ser a pri-
meira eleição depois de muitos anos de recesso, foi muito
movimentada. Ferrenha foi a disputa!
Na eleição de 1955, votei pela primeira vez. Muito
antes, porém, já frequentava o meio político e torcia pela
vitória dos meus candidatos. A partir de 1958, fiz parte de
uma mesa receptora de votos. Éramos uma turma boa: na
presidência tínhamos o Evaristinho Melgaço – divertido
contador de piadas. Nessa noite ele nos manteve atentos
contando os seu casos, entremeando-os ao movimento
intenso da votação. Só os seus gestos já eram motivos de
riso. Talvez, muitos ainda se lembrem dele!
Dessa mesa, o dr. Trajano era o 1º mesário, eu, o 2º,
dona Rosa Moura, a secretária. E tínhamos também o João
da Casa da Sogra, excelente companheiro.
As eleições eram complicadas e demoradas. A cabina
secreta continha uma caneta cuja pena tinha que ser molha-
da num tinteiro ali existente, um vidro de goma arábica para
fechar o envelope e montes de cédulas para o eleitor esco-
lher o seu candidato. Na maioria das vezes traziam de casa
as cédulas já organizadas, tudo prontinho, só colocar no
envelope, lacrar e depositar na urna.
102
Confesso não me lembrar muito bem como tudo fun-
cionava, isso faz tantos anos; só sei que devido à demora na
votação, terminado o horário regulamentar, recolhíamos
todos os títulos dos eleitores presentes que ainda não
tinham votado e íamos chamando um por um até que a
tarefa terminasse. Dessa vez, passamos a noite toda ali,
encerrando a votação lá pelas 11 horas do dia seguinte!
E isso não era tudo! Terminada a eleição, cansados e
tresnoitados, ainda estávamos escalados para ajudar na apu-
ração dos votos. Expomos ao Juiz a nossa situação e ele não
acedeu ao nosso pedido; pedimos, pelo menos, que poupas-
se Evaristinho Melgaço, idoso, quase octogenário. Nem
nisso o Juiz nos atendeu. Passamos o dia todo, fatigados
contando os votos, um a um, até que, às 21 horas, cessou o
escrutínio, que deveria recomeçar no dia seguinte.
Na eleição seguinte, com o falecimento de Evaristinho
Melgaço e a candidatura de dr. Trajano a vereador, fui eleva-
do a presidente da 10ª Seção Eleitoral, onde fiquei por
quase trinta anos, até que, reformado o sistema eleitoral,
reformou-se também o seu quadro de servidores. Nessa
missão, sucedeu-me uma filha, nomeada presidente de uma
seção eleitoral há mais de três pleitos seguidos.
Hoje, olho para trás e comparo os políticos de então
com os de agora. Naquela época disputavam uma eleição
por patriotismo, pelo orgulho de bater no peito e dizer:
“Sou prefeito, sou vereador”. O prefeito e os vereadores
não tinham salário, apenas uma mísera verba de representa-
ção quando estavam a serviço da Prefeitura. Tudo ficou
bem diferente nos dias de hoje!...
103
Essa área descampada no centro da foto, em frente
aos jardins da Escola Normal Francisco Campos, era a
antiga Praça São Vicente – atual Praça Professor
Waldemar de Almeida Barbosa. Esse espaço se
constituía no local preferido para os circos e parques
de diversões se instalarem, enquanto estavam em
funcionamento na cidade
104
Conto do
vigário
Estas histórias, as ouvi de meu pai há muitos anos.
Vou tentar reproduzi-las tal e qual ele me contou.
Conto do vigário é uma expressão muito antiga, usada em Portugal e no Brasil
significando uma história elaborada com o objetivo de burlar alguém.
Sinônimo também de fraude, falcatrua, estelionato. Hoje em dia, com a
complexidade dos golpes digitais cometidos por hackers, esses fatos mais
parecem espirituosas e ingênuas brincadeiras destinadas aos incautos.
105
senta-se num dos tamboretes e, bom de prosa, justifica a
sua presença: vinha visitar o recém-chegado, dar-lhe as
boas-vindas e, sabendo que se tratava de uma pessoa
honesta, queria emprestá-lo vultosa quantia, valor esse que,
dizia, estava guardado em sua casa. Queria colocar seu capi-
tal em boas mãos, com juros módicos.
O dono da venda, sensibilizado, agradece a confiança
nele depositada e diz não estar precisando de dinheiro no
momento. Afonso insiste e, outra vez, diante da recusa, fala
que o dinheiro ficará em sua casa à disposição do comerci-
ante. Se ele precisasse, era só ir lá.
Depois de um pequeno silêncio, a prosa continua.
Afonso olha para as prateleiras, finge grande surpresa e
aponta para determinadas garrafas de vinho, dizendo:
― Coisa boa eu saber! Lá em casa tomamos muito
daquele vinho. Vou mandar a empregada buscar algumas
garrafas.
O vendeiro, caindo na sua conversa, olha para ele e
pergunta:
― Mas por que você não as leva de uma vez?
Afonso mexe nos bolsos e conta que esqueceu a car-
teira em casa. O comerciante, lisonjeado com a confiança
que nele foi depositada, solícito, faz questão de que ele leve
as garrafas do vinho na hora.
― Por causa disso, não! Depois você me paga.
Afonso, certo de seu embuste, manda embrulhar meia
dúzia de garrafas. O vendeiro nunca mais o viu e só depois
de algum tempo ficou sabendo de quem se tratava!
106
O homem que comia
o outro vivo!
107
― Hoje no circo: o homem que come outro vivo! Não
percam o sensacional espetáculo!
Sempre acompanhado pela molecada ele percorreu
toda a cidade.
À noite, cheia de curiosidade, a população superlotou
o circo. Foi preciso, por motivos de segurança, a polícia
proibir a entrada de mais pessoas. Afonso corre à bilheteria
e faz a partilha do dinheiro. Os artistas do circo começam a
se apresentar. Ganham vaias do público. Outro número e
a mesma coisa: vaias e mais vaias. O povo grita:
― Onde está o homem que come o outro vivo? Quere-
mos o homem que come o outro vivo!
No tumulto, ameaçam quebrar o circo. O dono, apa-
vorado, chama o Afonso e exige que ele se manifeste.
Afonso, tranquilo, enquanto faz a sua maquiagem, manda
que saia outro artista com outro número. Mais vaias, como
já era de se esperar.
Foi quando ele aparece no picadeiro, irreconhecível,
batendo no peito e gritando:
― O homem que come o outro vivo está aqui! Quem
quiser ser comido vivo que apareça.
O povo, que esperava também fosse um número de
hipnotismo, silencia. A balbúrdia cessa pela surpresa do
desafio. Como ninguém se oferecia para o sacrifício, Afon-
so, pensando que ia se safar facilmente de seu compromis-
so, torna a repetir:
― Apareça quem quiser ser comido vivo!
108
Foi quando, das arquibancadas, surgiu um senhor
mulato, atarracado, com cara de mau e falou:
― Estou aqui para ser comido vivo.
A plateia em delírio bate palmas.
E agora, Afonso?
Preservando seu anonimato, o vigarista se mantém
firme no picadeiro, pensando rápido em como resolver
aquele problema pelo qual não esperava.
Primeiro, mandou o homem tirar a camisa. E, sem
titubear, o insano candidato tirou. Tentando fazê-lo desis-
tir, Afonso faz um inspeção geral nele, humilhou-o diante
de toda aquela gente dizendo que ele estava muito sujo,
bateu em suas costas. O homem permanecia firme, dis-
posto a ir até o final.
Afonso então ordena que um ajudante do circo traga
uma bacia com água, um sabão e uma toalha. Com os ape-
trechos, ensaboa a cabeça e as orelhas do indivíduo, que
não arreda pé.
O bufão, vendo que não tinha outra saída, mete os
dentes na orelha do sujeito. Esse grita de dor e tenta esca-
pulir das garras do seu algoz. O povo delira e o circo quase
vem abaixo. Com a orelha inchada, o valentão foge e, na
cidade tão pequena, fica servindo de piada.
No dia seguinte, o circo vai embora e o Afonso, com
uma boa grana no bolso, prepara-se para nova investida.
Afinal, era disso que ele vivia!
109
Para meu pai, seus sobrinhos proprietários da Casa
Lacerda, herdeiros da ética e tino comercial do velho
Alexandre Lacerda, eram exemplos de como se deveria
fazer negócio! Nessa foto – ao que parece, expondo
artigos de sua exclusividade como rádios, camas
Patente e bicicletas –, podemos ver alguns de seus
proprietários: Alexandre Lacerda, Olavo Lacerda,
Eurico Lacerda, Xandinho Lacerda e José Lacerda
110
Histórias de dar
pano para as
mangas!
111
Casa para Todos, onde os preços eram fixos. Esse era o
slogan comercial do meu pai, que gostava de elogiar os seus
sobrinhos, donos da Casa Lacerda. Ali, dizia ele, tanto fazia
uma criança ou um adulto comprar, o preço era sempre o
mesmo. Ao receber uma mercadoria, faziam os cálculos do
custo, acrescentavam a porcentagem do lucro e, pronto,
estava determinado o preço de venda. Tudo dentro do
razoável. A honestidade ali era incontestável. Lógico! Tive-
ram como escola o velho Alexandre Lacerda.
112
― Saiu da porta da loja para fora não aceito reclama-
ções.
Ao que meu pai respondeu tranquilamente:
― E se você me deu dinheiro de mais?
O turco esperto retrucou:
― Fica na sua consciência devolver.
Refizeram as contas e meu pai devolveu a importância
dada a mais. Essa era uma característica das velhas gerações.
Com toda a naturalidade, respeitavam o que não era seu.
Na Casa para Todos trabalhavam meu pai, meu irmão
Waldir, já falecido, e eu, que, ali, era um zero à esquerda, por-
que não entendia nada de panos; estava engatinhando no
ofício, aprendendo a diferenciar os tipos de tecidos, como
medir, cortar sem desfiar a peça de fazenda e tudo o mais.
Nessa época, tínhamos no quarteirão de cima um con-
corrente forte. Na sua loja, os preços eram de acordo com o
tipo do freguês. Com sua lábia, o dono dessa casa comercial
sabia lidar com todos os tipos de clientes que ali apareciam.
E do outro lado da rua, ficava um açougue pertencente a
um senhor apelidado de Zé Gordo. Velhaco como ele só,
jactava-se de ser muito esperto! Ao pesar a carne que ven-
dia, sempre ludibriava o freguês. Ele sabia que tínhamos
balança em casa e conferíamos o peso mas, mesmo assim,
inescrupulosamente roubava. Ao reclamarmos, ele dava
risadas e colocava a carne outra vez na balança e, com peda-
ços de muxiba, completava o que faltava. Quando protestá-
vamos da qualidade da carne, sabendo que tínhamos um
cachorrinho, ele dizia:
113
― Coitado do cachorrinho, ele também precisa comer.
Ele levava tudo na brincadeira! Apesar disso, era gente
boa e correspondia a essa amizade que existia entre vizi-
nhos. O dito açougueiro também tinha uma lavoura de café
e, na ocasião da colheita, fazia muitas compras, atendendo
às encomendas dos seus apanhadores. Porém, ele somente
comprava do nosso concorrente. Um dia, meu irmão Wal-
dir o interpelou a respeito:
― Zé, vem comprar na nossa loja também.
Zé Gordo respondeu que prestigiava o nosso concor-
rente porque este fazia-lhe preços especiais. Waldir assegu-
rou que também faria preços especiais para ele, o que o con-
venceu a aparecer em nossa loja com uma lista enorme.
Todas as mercadorias de nosso estabelecimento
vinham marcadas com o preço de custo em código e o de
venda em dígitos normais. O Zé Gordo pedia determinada
mercadoria e o seu respectivo preço. Meu irmão, ciente de
que aquele cliente era um inveterado regateador, entrou no
jogo dele e apresentava um preço mais alto. O freguês nego-
ciador dava o troco e oferecia um preço bem baixo, pouco
mais da metade do valor pedido. Waldir não fechava negó-
cio e fazia contraproposta de um preço intermediário. E,
assim, nessa queda de braço, o açougueiro e cafelista ia
cedendo e aumentando aos poucos sua oferta.
Waldir só sossegava quando a oferta do Zé ultrapassas-
se o preço real da mercadoria. Nesse ponto, meu irmão apa-
rentava dar-se por vencido, enquanto ia anotando a impor-
tância paga a mais num papel ao lado. Na negociata, o nosso
cliente sempre terminava pagando mais do que o valor real
114
da mercadoria. Item por item foi negociado. No final, ainda
ganhou uma caixa de sabonetes de presente.
Tudo pronto, mercadoria embrulhada, pagamento fei-
to, Zé Gordo exclamou:
― Agora você aprendeu a negociar, Waldir! Vou comprar
somente aqui.
Meu irmão, com a consciência reclamando e sabedor
de que estava contrariando, mesmo que por brincadeira, os
princípios da loja, somou as diferenças pagas a mais e devol-
veu ao cliente. Este, ao invés de ficar satisfeito, ficou foi
muito bravo! E ainda saiu dizendo que aquele nosso esperto
concorrente não trabalhava daquele jeito.
Acredite quem quiser!
O Waldir foi um
grande irmão! Era
um grande atleta e
sua perda, também
muito cedo e
inesperada, nos
causa grande
ausência até hoje
115
Na esquina de Rua Goiás com Praça São Vicente, nossa
atual Praça Professor Waldemar de Almeida Barbosa,
Geraldo Vasconcelos – o Preguinho – abriu o segundo
posto de gasolina de Dores do Indaiá. Tinha ele pintado
na lateral do prédio o nome do estabelecimento: Posto
S. Geraldo. Nessa época, os veículos da cidade ainda
transitavam pelas ruas de terra – a população teria que
esperar por mais um tempo para ver o calçamento
começando a ser instalado – e os postes continuavam
dispostos no meio da rua
116
Quando o posto de
combustíveis entrou
na minha vida
117
permanecia ouvindo a conversa sem saber que naquele
instante estava sendo traçado o meu destino. Não sei se
tudo foi uma coincidência. A verdade é que o posto de
gasolina foi construído e levou o nome de Posto São
Geraldo, em homenagem ao santo padroeiro de seu pro-
prietário. Era o segundo posto da cidade e trazia a bandeira
da distribuidora de combustíveis Shell.
O tempo passou e nos princípios do ano de 1952,
quando eu tinha 18 anos, não sei por que, meu pai e Pre-
guinho fizeram uma permuta: a loja de tecidos pelo posto
de gasolina. As suas casas residenciais também entraram
no negócio.
118
Foto de um dos primeiros carros que circularam em Dores
do Indaiá. Até a década de 1950, a totalidade de carros
que rodavam pelo Brasil era, como esse da foto, importada
119
guel do prédio. Eu, como empregado, continuei trabalhan-
do ali, enquanto meu pai, de posse do dinheiro, corria para
liquidar a dívida e recuperar sua tranquilidade.
Depois de uma sucessão de donos, o posto foi adquiri-
do por meu cunhado e seu irmão. Foi nessa época que se
deu um pavoroso incêndio que o destruiu quase que por
completo, restando apenas as paredes calcinadas. Enquanto
as chamas ardiam, todos esperavam, a qualquer momento, a
explosão dos tanques de gasolina. De seus suspiros emana-
va, sob pressão, um fogo azul como se fosse um bico de
maçarico.
120
Arruinados, meu cunhado e seu irmão perderam tudo
o que tinham, restando somente dívidas com fornecedores.
Nesse momento difícil, perceberam o quanto eram queri-
dos na cidade quando, em um gesto de solidariedade, vários
clientes se cotizaram, levantando um pequeno capital para
que o posto pudesse ser retomado.
Havia também créditos a receber daqueles clientes que
compravam a prazo, mas o livro de Contas Correntes, onde
estavam registrados esses valores, foi julgado perdido nas
cinzas do desastre. Ainda assim, inúmeros desses clientes
espontaneamente se apressaram em pagar suas dívidas. Tu-
do na base do cálculo solidário, do mais ou menos. Alguns –
felizmente uma minoria – aproveitando-se de que as com-
provações de suas compras estavam queimadas, negaram
que tivessem quaisquer pendências com o estabelecimento.
Liberados os escombros pela Policia Técnica, começou
a limpeza do local, para verificar se havia ainda coisa apro-
veitável. Foi quando encontraram o livro de Contas Correntes
praticamente intato, somente com as bordas das capas cha-
muscadas, porque tinha ficado abafado pelas cinzas. Com
esse providencial resgate, comprovou-se que muitos fregue-
ses tinham pago deliberadamente a mais do que deviam,
num claro gesto altruísta. E também ficou evidente a figura
dos que quiseram se aproveitar da desgraça alheia. É inspi-
rador destacar que a maioria dos clientes que pagaram seus
débitos a mais recusou-se a receber de volta a diferença.
Sobre o prédio, meu pai tinha um seguro. Recebida a
importância correspondente, tudo foi reconstruído. E,
assim, o posto pode voltar a funcionar
121
Dom Manoel Nunes Coelho nasceu em Patrocínio de
Guanhães, atual Virginópolis – MG, no dia 12 de fevereiro
de 1884. Foi ordenado presbítero com 23 anos de idade,
em 1907. Sua única paróquia foi Sant’Ana do Suassuhy –
hoje Coroaci –, onde permaneceu como vigário por 12
anos. Em 1920, com apenas 36 anos de idade e 13 depois
de ser ordenado padre, é eleito bispo da recém-criada
Diocese de Aterrado – nossa cidade vizinha de Luz –,
sendo sagrado bispo no dia 14 de julho de 1920,
permanecendo no cargo até sua morte, em 1967
122
Uma amizade
acima das
formalidades
123
autoridade religiosa, tropeçando nas palavras, despede-se,
encerrando o comunicado.
Vim conhecer pessoalmente D. Manoel por intermé-
dio de meu tio Ramiro Botinha, PY4VN , também da cida-
de de Luz. Tio Ramiro Botinha, muito religioso, era ami-
císsimo seu. Muitas vezes D. Manoel, vindo a Dores do
Indaiá em suas missões apostólicas, selando nossa amizade
como radioamadores, era convidado para almoçar em
minha casa. Quando ia buscá-lo no então seminário onde
ficava hospedado, ele, cercado de gente importante de
nossa cidade, sendo tratado naturalmente com toda a defe-
rência, ao me ver chegar, vinha ao meu encontro pergun-
tando, visivelmente alegre, se já era hora do almoço.
Minha mãe, sabendo de suas preferências, preparava
com carinho o frango ensopado, prato de que o bispo mais
gostava. E ele, na hora de se servir, pegava as duas asas de
uma vez, pedaços de sua predileção, justificando-se:
— Com uma asa só, a gente não avoa!
Depois do almoço, íamos para o meu shack – o quar-
tel-general, escritório ou oficina de um radioamador –, que
ficava no quintal de minha casa. Nesse shack, um simples
barracão, onde estavam instalados os meus rádios, eu tinha
minha cama onde dormia. Esse lugar era o meu refúgio,
onde eu não incomodava ninguém com o barulho dos
meus experimentos e ninguém me incomodava.
D. Manoel, na sua simplicidade toda, esquecendo-se
de seu importante título, sentado ao meu lado na cama,
ficava corujando – outro termo próprio do vocabulário
dos radioamadores, que significa ficar somente escutando,
124
sem responder, a alguma transmissão – ou contestando
algum colega que por ventura se apresentasse.
Ali passávamos bons momentos! Meu pai sentia-se
constrangido ao me ver levando o bispo para aquele quar-
tinho, que ele julgava ser uma bagunça só. Minha tia Angé-
lica, irmã de meu pai, vendo seu marido, tio Ramiro, D.
Manoel – os dois já bem idosos – e eu, ainda muito jovem,
juntos, gostava de falar:
― Os três, quando se encontram, parecem três meninos
se o assunto é o rádio.
Verdade absoluta! Quando o interesse é de agrado
comum, ignoram-se todas a barreiras que possam surgir,
não somente as barreiras proporcionadas pela idade mas,
também, as de condição social.
Sem saber, D. Manoel teve um papel muito importante
em minha vida, e de forma imprevista. Quando ele comple-
tou 50 anos de bispado, houve uma grande festa comemo-
rando o evento. Muitos radioamadores compareceram,
entre eles estava eu.
Dentre os presentes que lhe ofertaram, estava um belo
e potente transmissor de rádio. D. Manoel não mostrou
muito interesse pelo regalo, pois havia um problema ainda
intransponível: a péssima energia elétrica da cidade de Luz
que, devido à potencia desse transmissor, era insuficiente
para acioná-lo. Diante disso, D. Manoel propôs me vendê-lo.
Interessei-me pela ideia e perguntei o preço ao que ele res-
pondeu que seria o mesmo que tinha custado aos que lho
presentearam: 45 mil cruzeiros. Fiz a minha contraproposta:
entraria com 15 mil cruzeiros, importância que possuía no
125
momento, e mais 30 prestações de mil cruzeiros. D. Manoel
aceitou.
No dia que fui buscá-lo, levei a importância do sinal
acordado e mais 30 promissórias numeradas, cada uma no
valor de mil cruzeiros. Chegando em casa de volta, percebi o
erro que tinha cometido: nossa energia elétrica era pior do
que a da cidade de Luz! Na impossibilidade de fazer o trans-
missor funcionar, deixei-o encostado de um lado. A solução
seria vendê-lo algum dia.
A sorte ou a providência trouxe até mim um senhor do
Rio de Janeiro, que sempre aparecia por essas bandas e que,
coincidentemente, gostava do radioamadorismo. Ele veio
me visitar e gostou do que viu. Não perdi a oportunidade
para dizer que estava à venda. O visitante perguntou o preço
e eu pedi 65 mil cruzeiros. Muito rico, esse senhor encheu o
cheque na hora e foi providenciar meios de despachar o
equipamento. Se eu tivesse pedido 100 mil cruzeiros teria
fechado a venda, mas considerei que estava dentro do
razoável para ambas as partes.
Descontado o cheque, procurei D. Manoel para liqui-
dar minha dívida. Ele não quis receber dizendo que preferia
que o pagamento fosse em prestações. Foi então quando,
com esse dinheiro, de sociedade com meu pai, abri a Casa
Radiante, onde passamos a vender eletrodomésticos e com-
ponentes para rádios. A partir desse dia, deixei de ser
empregado para tornar-me um autônomo.
As prestações? A inflação me ajudou a pagá-las. Até
porque D. Manoel pouco estava ligando para aquilo. A par-
tir da vigésima promissória, ele sempre perguntava:
126
― É a última, né ?!
Como eu as tinha numeradas, contava-lhe que faltavam
ainda muitas para serem liquidadas.
127
Desde pequeno, sempre me tocou conhecer, experi-
mentar, descobrir, desmontar e montar rádios,
empreender. Quando, com 26 anos de idade, consegui
amealhar um pequeno capital, juntei a vontade de ser
dono do meu próprio negócio com o que mais gostava e
sabia fazer: a eletrônica, vendendo e consertando rádios
e eletrodomésticos
128
Casa
Radiante
129
de sócio comigo. Era a vez da Casa Radiante Ltda., que ficava
num cômodo alugado na Avenida Francisco Campos,
esquina com Rua Rio de Janeiro. Lá, além dos serviços gera-
is, eu era o responsável pela oficina de consertos de rádios.
130
satisfeito, dr. Darci perguntou-me quanto havia custado o
conserto. Eu disse que não era nada, afinal tinha sido um
trabalho muito simples e rápido. Ele insistiu em pagar; ale-
gou que estava parado por causa daquela peça e que,
mesmo tendo sido um serviço pequeno, era de grande
importância para o seu consultório. Ainda assim, eu não
quis aceitar o pagamento e ele ficou muito agradecido.
131
xícara de café para o cliente. Tomado o café, o prático aplica
a anestesia e passa o boticão no dente. Problema resolvido!
Para completar o atendimento, dr. Darci vai a um quar-
to lateral e volta com um punhado de comprimidos, expli-
cando que, se doer, o paciente tome um daqueles compri-
dos de tantas em tantas horas.
Meu irmão, estranhando tudo aquilo, logo deduziu:
tem qualquer coisa errada aqui! Ao perguntar o preço, dr.
Darci responde satisfeito:
― O que é isso! Aquele motor que você arrumou para
mim está funcionando bem até hoje!
Essa foi apenas uma das vezes em que eu e meu irmão
Osvaldo fomos confundidos na cidade.
132
Nessa foto de 1954, eu e meu irmão, Osvaldo Ribeiro,
em viagem de turismo ao Rio de Janeiro, que, nessa
época, era a capital do Brasil, uma vez que Brasília ainda
não tinha sido inaugurada
133
Homem de muitos talentos e grande simpatia, Josué
Chagas descobriu-se como radialista e locutor da
rádio que fundou, junto à Djalma Melgaço e Nilo
Peçanha. Dono de uma voz poderosa e uma senso de
humor aguçado, fez história por mais de três décadas
em nossa cidade e região, levando entretenimento,
cultura e conhecimento pelas ondas da ZYZ22 – Rádio
Cultura de Dores do Indaiá
134
Saudade nas
ondas do rádio
Um tributo a Josué Chagas
Conheci Josué Chagas por acaso. Menino ainda, eu
era aprendiz de mecânico numa oficina que ficava onde é,
hoje, o Posto Tapuia. Um dia, chega lá Josué, numa velha
motocicleta, falhando, cheia de problemas. Pediu algumas
ferramentas emprestadas e, agachado, ficou mexe daqui,
mexe dali, sem encontrar o defeito. Foi quando apareceu
um senhor, todo sem jeito e perguntou-lhe:
― Josué, o que é bom para tosse?
Josué, sem nem levantar a cabeça, respondeu:
― Tossir!
O coitado do homem, gente simples, todo acanhado
foi embora.
Josué, comentaram, era um sujeito atencioso e presta-
tivo, só que o homem chegou na hora errada. A moto pro-
blemática tinha esgotado sua paciência. Todos os que pre-
senciaram o acontecido acharam graça.
Então vim a saber que Josué tinha sido enfermeiro na
Santa Casa, e agora tinha uma pequena farmácia na aveni-
da, motivo pelo qual fora consultado.
135
O tempo foi passando, nunca mais o vi até que surgiu
o assunto da fundação da Rádio Cultura, sendo ele um dos
seus idealizadores. Eu, desde menino, sempre gostei de
eletrônica e um de meus passatempos prediletos era fazer
minhas experiências nessa área. Montava pequenos trans-
missores, que eram usados como estações de rádio piratas.
Essas estações ficavam no porão de minha casa.
Eu tinha meus 15 anos e, nessas façanhas, acompa-
nhava-me um amigo que, de vez em quando, saía de bici-
cleta pelas redondezas para verificar como estava o nosso
ibope. Somente colocávamos músicas. Falar, nem pensar!
Nem microfone tínhamos. Se falássemos, podíamos ser
descobertos e autuados. Nossa emissora dispunha apenas
de um toca-discos velho, que fora por nós mesmos recu-
perado. Ficávamos orgulhosos ao comprovar que o nosso
repertório de músicas agradava em cheio a audiência.
Quem quisesse ouvir a sua música predileta na nossa rádio,
era só nos emprestar o disco.
Tudo corria às mil maravilhas até que, um dia, a porta
se abre de repente e, sem cerimônia alguma, vai entrando
Josué, o dono da nossa futura rádio. Pela antena que ficava
do lado de fora de minha casa, ele nos encontrou. Tremen-
do de susto e medo pensamos: chegou a nossa hora, ele vai
nos denunciar, mas o Zué – como passou a ser carinhosa-
mente conhecido – apenas olhou tudo, sorriu e, sem
nenhuma censura, foi-se embora.
Acho que ele nem se lembrou mais do ocorrido.
Porém, preocupado com possíveis desdobramentos que
uma denúncia poderia trazer, desmanchei tudo e fiquei
136
aguardando a intimação chegar. Jamais pensávamos que
Josué tinha um coração tão grande, não nos delatou. Tudo
passou e a nossa apreensão foi entregue ao esquecimento.
Chegou o grande dia de ser montada a emissora ofici-
al de nossa cidade. Na ocasião, muito novo ainda, admira-
dor e experimentador de sistemas de transmissão de rádio,
fui lá assistir a aparelhagem ser montada.
O seu equipamento – coisa de primeiro mundo! – era
constituído de um transmissor, com a potência de 100
watts, e uma mesa de som. Tudo de fabricação da afamada
Inbelsa, uma subsidiária da Philips.
137
Foi quando o Josué, não sei se por brincadeira, me
provocou:
― E você? Dá um palpite...
Eu me enchi de coragem e disse que todos estavam
enganados. O defeito estaria em dois capacitores na saída
do amplificador final de radiofrequência. Eles tinham que
estar queimados.
Os três técnicos não deram o braço a torcer e me con-
tradisseram. E eu, mostrando a frente do transmissor cheia
de instrumentos de medição, argumentei:
― Vamos por etapas. Vejam: leitura do miliamperíme-
tro de modulação e a excitação estão corretas e o estágio
final não aceita sintonia.
Nessa parte do transmissor somente existiam bobinas
e os dois capacitores. Dois capacitores de porcelana com
grande capacidade de resistência devido ao isolamento
para 20.000 volts. Por isso, não concordaram comigo e
retrucaram:
― Como pode um capacitor com isolamento para
20.000 volts queimar com apenas mil volts?
Mil volts era a tensão com a qual trabalhava o trans-
missor.
― Não sei! ― eu disse. ― Só sei que estão queimados.
Sem se darem por vencidos, os radiotécnicos desisti-
ram da missão e foram-se embora. Ao Josué só restou me
olhar e perguntar:
― Você tem certeza do que está falando?
― Sim, tenho certeza! ― respondi, sabendo da grande
responsabilidade que minha afirmativa carregava.
138
Diante de minha segurança, Josué foi a Belo Hori-
zonte comprar os ditos componentes. Poderiam ser
encontrados somente na Philips, fabricante do transmissor.
Lá informaram que somente em São Paulo seriam encon-
tradas aquelas peças, mas, apesar de constarem no estoque,
eram de uso exclusivo das oficinas da empresa. Por isso,
era necessário levar até São Paulo o transmissor danificado
ou a parte defeituosa. Retornando a Dores do Indaiá,
Josué me leva até o abrigo do equipamento, que ficava fora
da cidade e pergunta:
― Você dá conta de tirar essa placa?
Olhei... ela era ligada ao restante do equipo por mais
de vinte fios. Verifiquei: todos os fios numerados. Fiquei
seguro em responder que sim, e pusemos mãos à obra.
Trabalho feito, tínhamos agora uma placa que pesava
mais de 20 quilos. O Josué logo raciocinou:
― Terei que ir junto com essa placa para São Paulo. Se
ela for despachada vai demorar a chegar e vou ter que ficar
esperando.
Mandou, então, fazer uma moldura de madeira do
tamanho certo onde encaixou a peça. Cobrindo-a de pano,
colocou uma alça e tudo ficou parecendo uma legítima e
insuspeitada mala de viagem.
Mas o artifício tinha ainda um problema: o seu peso
exagerado. Ao colocá-la e retirá-la do porta-malas dos ôni-
bus, com certeza, iriam criar caso. O radialista ficou atento
na hora de colocar e retirar a sua “malinha” do ônibus.
Apressava-se em pegá-la, fingindo que estava leve. Numa
baldeação, um cobrador não resistiu a comentar:
139
― Que mala esquisita o senhor tem!
Sempre muito espirituoso, Josué respondeu:
― Cada um tem a mala que pode!
Sem maiores problemas, chegou a São Paulo e às ofi-
cinas da Philips, onde o técnico, depois de uma olhada em
tudo alertou:
― O senhor perdeu a viagem! O defeito não pode estar
aqui.
Mas, segundo Josué contou-me, o técnico procurou o
defeito o dia todo e, enquanto não trocou os tais capacito-
res, o equipamento não voltou a funcionar.
Com esse meu diagnóstico correto, ganhei a confian-
ça de Josué e, a partir dessa data, passei a dar assistência
técnica aos transmissores da emissora. Só mais tarde, quan-
do o defeito se repetiu, é que descobri a causa misteriosa
do problema: o rompimento do componente realmente
acontecia e se dava devido aos raios que caíam na antena.
Raios, com certeza, acima de 20.000 volts.
Josué sempre se mostrou muito agradecido por
minha ajuda à emissora. Todas as vezes que ela saía do ar
por um defeito qualquer, cujo reparo demorasse um
pouco mais do que o tempo de costume, ao retornar ao ar
a emissora, suas primeiras palavras ao microfone eram de
agradecimento. Achava aquilo um exagero de sua parte,
ficava até constrangido com seu gesto. É verdade que eu
sentia muito prazer em ajudar. Ajudando, aprendi muito!
E era suficiente saber que, longe dos holofotes, no anoni-
mato, toda programação da emissora dependia do meu
trabalho.
140
Na foto ao lado,
Josué Chagas
com a esposa,
sra. Maria Lásara
Chagas, com
quem teve uma
família numerosa
141
Ainda bem que, naquele tempo, por aqui não apare-
ceu nenhum tipo de fiscalização e a vida pode continuar
tranquilamente.
Durante as épocas de eleições, as discussões eram fre-
quentes e a rádio e seu radialista não ficavam de fora do
confronto acirrado. Cada um defendia o seu candidato.
O candidato do Josué era um moço instruído, de famí-
lia exemplar, porém gente humilde. Do outro lado, o can-
didato era de família abastada, socialmente privilegiada. Na
discussão, o adversário do Josué, criticando o seu preferi-
do, argumentou:
― Josué, você já viu pé de abóbora dar melancia?
Ao que o esperto e jocoso Josué respondeu:
― Não, mas já vi jabuticabeira dar bucha!
Eu ria muito com suas tiradas.
Uma noite, um grupo de senhoras promoveu um
encontro no auditório da Rádio Cultura, para discutir um
assunto de seu interesse. No ambiente, de homem, somen-
te o Josué, que ficou para ligar o aparelho de som. À medi-
da que as horas avançavam, as participantes iam saindo,
uma a uma, até que, entretida, ficou somente a chefe do
grupo. Esta, vendo que tinha ficado sozinha com o Josué,
assustada, começou, nervosa e apressada, a juntar a pape-
lada para se retirar. O nosso personagem, que não perdia
uma oportunidade falou:
― A senhora está com medo de mim ou da senhora mes-
mo? Se for de mim, fique tranquila: sei respeitar uma dama.
142
Não podemos nos esquecer de seu interesse em mar-
car presença em todos os eventos importantes da cidade.
Nas festas de formatura no cinema ou no clube, no parque
de exposições, nas festas religiosas, lá estava ele com sua
presença simpática e sua voz possante, como garoto propa-
ganda da emissora, que abrilhantava o acontecimento.
143
Sede da Rádio Cultura em Dores do Indaiá, na Praça Professor
Waldemar de Almeida Barbosa. Foto da década de 1950
Rádio Cultura:
nascimento e agonia de
uma emissora de rádio
Lá pelos idos de 1948, aportou por aqui um senhor,
fotógrafo, de nome Oscar. Seu sobrenome, não me lem-
bro! Era casado com uma neta do rico fazendeiro Ansel-
mo Ferreira. Ele e a esposa passaram a morar na casa per-
tencente ao avô, casa esta que fica na esquina da Rua Mário
Campos com Rua Goiás.
Trazia ele um pequeno transmissor de rádio que, clan-
destinamente, instalou no antigo prédio do Indaiá Clube.
Pouca importância davam as autoridades a esses eventos,
cuja fiscalização, na época, ficava sob a responsabilidade
dos Correios e Telégrafos.
144
A emissora informal ganhou o nome de Rádio Indaiá
Club e o seu sucesso foi rápido e enorme! O rádio era uma
das poucas diversões que existiam por aqui naquele tempo
e quase todas as casas possuíam um aparelho desses. Cada
um tinha sua emissora preferida, pela qual ouviam os seus
programas favoritos, mas, com a chegada da Rádio Indaiá
Club, a debandada foi total. A emissora açambarcou a pre-
ferência dos dorenses.
145
Montada a emissora, sua inauguração foi feita com
muita festa. No ar, músicas patrióticas retumbavam por
todos os lados. Era a cidade toda sintonizada nas ondas da
Rádio Cultura. Daí para a frente, a emissora só colheu elogi-
os! Sua programação variada agradava a todos. O progra-
ma Parabéns para você anunciava os aniversariantes do dia,
sucedido por um gentil oferecimento de músicas! E todos
queriam ouvir, no rol dos festejados, o seu nome.
O Domingo em Festa, programa de auditório, lotava a
casa. Os talentos da cidade ali se apresentavam, alegrando
as manhãs de domingo, sempre depois da missa das 9
horas. No palco, além dos calouros, músicos profissionais
como Lino Santos, dr. Fábio, professor Abílio, Augusto
Piffer e tantos outros inesquecíveis. Entre as calouras, des-
tacamos Vitória Rocha e suas irmãs, todas com uma voz
afinada e melodiosa. Tínhamos também as irmãs Paulita e
Marlita que, desinibidas, arrancavam aplausos efusivos do
público. Tantos outros calouros existiram que se torna
impossível enumerá-los aqui.
A verdade é que a emissora viveu dias gloriosos! De
manhã era apresentado um programa com os mais famo-
sos cantores da época. Ao meio dia realizava-se o progra-
ma do professor Alcírio Carvalho, onde ele declamava lin-
das poesias, tendo como fundo musical belas músicas. À
tardinha, às 18 horas, era a vez de Josué Chagas – com locu-
ção perfeita, sua voz inconfundível de barítono, enchia o
ambiente – apresentar a Hora do Angelus, com lindos tex-
tos, a maioria de sua autoria. Os primeiros locutores a ocu-
par o microfone da Rádio Cultura foram Sílvio Silva e Ânge-
lo Resende. Tinham eles uma dicção perfeita e empostada,
146
própria dos locutores profissionais. Depois, vieram muitos
outros que, ao longo do tempo, deixaram saudade.
E as irradiações externas! Na ausência de linhas tele-
fônicas, fios eram estendidos a grandes distâncias da sede
da emissora ao local do evento. São dignas de nota as festas
realizadas no Cine-Teatro Indaiá e nos mais diversos locais
onde a presença da emissora não podia faltar.
147
Na foto acima, consegui reconhecer quase todos: o
primeiro da esquerda para a direita, é Josué Chagas; o
quarto sou eu; ao meu lado está Djalma Melgaço,
ladeado por meu irmão, Osvaldo. No canto direito, está
o Miguel da Luz, responsável durante anos pela
manutenção da rede elétrica da cidade, carregando
Edgar Chagas, um dos filhos mais novos do radialista
148
potência da emissora estava sendo aumentada de 100 para
1.000 watts, fato que ele não teve o prazer de presenciar.
Pouco tempo depois, um vendaval derrubou a antena
da emissora, trazendo enorme prejuízo à empresa que,
tendo dívidas acumuladas e carência de anunciantes, se viu
obrigada a vender seu patrimônio para a Igreja Batista local.
O interesse da instituição com o investimento era clara-
mente a pregação evangélica. Com isso, a emissora ficou
circunscrita ao meio religioso.
Com a falta de anunciantes e com enormes despesas, a
própria Igreja Batista concluiu encerrar suas atividades ra-
diofônicas. A emissora emudecia após tantas décadas de
vibração e dinamismo.
Mais à frente, encontrando-me com o chefe da Igreja
Batista, ele me ofereceu a posse da emissora, talvez lem-
brando-se de que fui, noutros tempos, um seu colaborador
dedicado que nunca media esforços para mantê-la no ar.
Era seu desejo vê-la funcionando novamente. Devido à
minha idade, lastimei não poder aceitar a oferta e fiquei
imaginando se, por acaso, não apareceria alguma pessoa ou
mesmo uma firma interessada em reerguer essa iniciativa
que tanto sucesso fez no passado. É difícil conseguir a
outorga de um prefixo, a concessão de uma rádio e aqui
estava uma oportunidade valiosa.
Resta torcer ou sonhar para que apareça um outro
Josué Chagas, ou um outro Djalma Melgaço, ou, – quem
sabe? – um outro Nilo Peçanha...
A cidade agradecerá!
149
O novo cinema da cidade foi uma
iniciativa que gerou um enorme
entusiasmo em todos os dorenses!
Acima está o folheto de propaganda
que foi distribuído no dia da inauguração,
e, ao lado, os dois primeiros ingressos,
sendo que o primeiro tem as assinaturas
da Diretoria da EMDIL
150
Cine-Teatro
Indaiá
“Cada homem que passa tem uma história para contar,
uma história que somente a ele pertence.”
Anotei essa frase de um filme que assisti no Cine-Teatro Indaiá. Se não me
falha a memória, essa linda afirmativa é a última fala do filme Obrigado,
Doutor, película de 1948, da Atlântida Cinematográfica. Perdoem-me se eu
estiver errado, mas já fazem muitos anos desde então.
151
O gosto pelo sétima arte em Dores do Indaiá é tão antigo
quanto a criação do cinema falado. Essa foto, de 1928, um
ano depois de ˝O Cantor de Jazz˝ estrear, é de nosso
primeiro cinema. Nessa época, também já era palco para
festas e apresentações teatrais
152
Era essa estrutura que permitia que, à noite, com sua
feérica iluminação, atraísse uma multidão de pessoas que,
além de se encantar com a programação, passou a fazer o
footing nas suas imediações. Antes de o cinema existir, esse
passeio se fazia até então, diariamente, no jardim defronte
da Escola Normal. Para quem não sabe o que era o footing,
explico: como recurso elegante para um flerte, moças e
moços passeavam na praça ou em algum outro local char-
moso e apropriado para que, elas circulassem em uma dire-
ção e eles na oposta. Se, por acaso, ao passarem uns pelos
153
outros, a troca de olhares indicasse um interesse maior, o
promissor casal passava a caminhar lado a lado, agora na
mesma direção, mas em uma trajetória mais interna na pra-
ça. Assim, com discrição e elegância, iam surgindo os
encontros amorosos e consolidando-se namoros.
Somos, eu e meus contemporâneos, sobreviventes
dos Anos Dourados, época feliz onde se misturavam fanta-
sia e realidade. Tudo nos encantava! Na nossa pacata cida-
de, o paraíso prometido. E ainda existia, nessas abençoa-
das paragens, um mercado de sonhos onde se compravam
ilusões. E a imagem desse mercado de sonhos, que se cha-
mava Cine-Teatro Indaiá, ainda permanece bem límpida
entre nós, viventes de então.
Ali se exibiam as musas que nos extasiavam com sua
arte e sua beleza, e nos elevavam a infinitos inimagináveis,
deixando em nossos corações a sensação de que eram, elas
mesmas, criaturas divinas. Quantas vezes, ao acender das
luzes, na plateia, diante da emoção e do realismo, homens e
mulheres eram surpreendidos com lágrimas nos olhos!...
Acredito que pelo mundo todo repetiu-se com outros
títulos essa mesma história, sempre com a mesma intensi-
dade e o mesmo fascínio. Tudo agora mudou, ficou dife-
rente. Só a lembrança estacionou no tempo.
A chegada da televisão e as mudanças de hábitos de
nossa gente fez com que a frequência ao nosso cinema
fosse decaindo sobremaneira, obrigando sua direção a
fechar suas portas, deixando muitas saudades e lembranças
de uma época cheia de esplendores, esplendores de um
sonho maravilhoso.
154
Para abrilhantar a
festa de abertura do
Cinema, a dupla
Dorense e Dorencinho
se apresentou no
grande palco que o
cineteatro inaugurava.
Um dos músicos é
Lino Santos
155
Em 1954, meu irmão mais novo, Osvaldo – o segundo
nessa foto, da esquerda para a direita –, estudava em
Juiz de Fora. Fomos visitá-lo, eu – primeiro à esquerda –,
com minha mãe, Maria Teixeria de Andrade, e minha
irmã Wolanda Ribeiro
156
Armazém
Indaiá
157
mados, mas para ver a beleza da letra do Noé ali estampa-
da. Já meu pai, que tinha somente o 4º ano primário, tinha
também uma caligrafia de fazer inveja. Ele escrevia de
todo jeito, inclusive de trás para a frente, com a maior faci-
lidade.
A sociedade era constituída por meu pai, sr. José e sr.
Pedro Nogueira, esses dois últimos irmãos.
Sr. José Nogueira não trabalhava no armazém. Era o
sócio-capitalista e considerado um homem rico. Empres-
tava dinheiro. Ele gostava de contar sua história de como
ficara rico. Foi no tempo da guerra. Muitas mercadorias
estavam racionadas, inclusive o açúcar. Ele encontrou um
subterfúgio para lucrar com essa situação, oferecendo o
que a população precisava: comprava rapadura dos rocei-
ros que as fabricavam e passava à noite socando-as no
pilão, até que ficassem igual ao açúcar mascavo! Esse
segredo ficava sempre guardado com ele a sete chaves.
Gente ficava em fila, na porta de sua casa, para comprar o
tal açúcar mascavo, que era vendido por um preço altíssi-
mo. Quem o comprava, achava que estava fazendo ótimo
negócio! A sua artimanha durou enquanto durou a guerra.
O armazém era um dos maiores da cidade, com um
enorme balcão que separava os fregueses daqueles que os
atendiam. Do lado de fora, no lugar reservado aos clientes,
meia dúzia de tamboretes ficavam destinados aos que
aguardavam ser atendidos.
As vendas eram feitas tanto no varejo como no ataca-
do. Vendia-se de meio quilo a uma porção de sacas. Tudo
de acordo com as posses ou o desejo de cada um. Mas sem-
158
pre foi constrangedor ver um pai de família chegar e pedir
meio quilo de farinha, meio quilo de arroz, de feijão, contar
o dinheiro e ver a impossibilidade de comprar mais. Era
embaraçoso ver pilhas de sacas de mercadorias estocadas e
as míseras quantias sendo levadas por um pobre homem.
Ali trabalhávamos cinco pessoas: meu pai, sr. Pedro,
José do Adolfo, Periquito e eu, que acumulava as funções
de guarda-livros – o atual contador – e balconista.
Periquito era o carroceiro. Um dia, bem cedo, numa
segunda-feira de carnaval, na maior ressaca, ele saiu para
fazer uma entrega. Era quase hora do almoço e ele não
aparecia de volta. Já estávamos preocupados quando a car-
roça apontou na esquina da Avenida Francisco Campos.
Mas veio chegando sem o carroceiro! O burro da carroça,
habituado com o caminho de casa, andou, andou e, não
recebendo mais ordens, pegou o caminho de retorno. Den-
tro da carroça, a mercadoria toda por entregar e Periquito
dormindo o sono dos anjos!
Apesar de em uma das mãos de José do Adolfo falta-
rem alguns dedos – foi acidente de trabalho –, nada o inibia
de trabalhar. Nessa época, uma de suas filhas pequenas,
brincando de casinha, teve as vestes e o corpo todo quei-
mado. Tudo foi feito para salvá-la mas não houve recurso.
Aquilo foi um motivo de profunda tristeza para todos nós
que acompanhávamos com ansiedade o desfecho dos
acontecimentos.
Dia a dia, a vida dava um passo para a frente. Nesse
mesmo ano de 1954, num ambiente político tenso, diante
de muitos escândalos perpetrados por seus seguranças,
159
exigiram a renúncia de Getúlio Vargas, então Presidente da
República. Seus opositores eram liderados pelo inflamado
Carlos Lacerda, jornalista famoso e deputado com muita
força política. Sentindo iminente sua derrota, Getúlio man-
dou sua mensagem histórica: “Daqui não sai nenhum Pre-
sidente”.
160
Três anos depois, meu pai vendeu sua parte no arma-
zém. Eu fiquei como empregado por mais um ano. Seu
Pedro queria por que queria me arranjar dinheiro empres-
tado para que eu ficasse como seu sócio. Avalizar-me-ia, se
preciso fosse. Não aceitei; sempre tive medo de dívidas.
Talvez tenha herdado essa prudência de meu pai.
Pedi demissão e fui cuidar da minha própria vida.
161
Em 1955, já muito interessado em aprender telegrafia
para obter o meu prefixo, que dar-me-ia a autorização
para ser um radioamador, enviei correspondências
para livraria e editora que, sabia eu, ofereciam livro a
esse respeito. Quando a resposta chegou, mais de um
ano depois, eu já tinha conseguido meu intento
162
Nasce um
radioamador
163
significa um conjunto deles, reunidos em conversa numa
mesma frequência –, batiam papos agradáveis, quando não
estavam prestando algum serviço de utilidade pública. Fica-
va admirado em saber que, por esses serviços prestados,
nada recebiam e que o seu único interesse era servir. Servir
sempre foi o lema do radioamador.
A cordialidade, o respeito mútuo eram, entre eles, os
pilares que sustentavam a irmandade. Entre radioamado-
res nunca houve distinção de classes, todos eram iguais.
Doutores e operários, velhos e moços se misturavam, irma-
nados sob o mesmo ideal. Fazer amizades era um dos seus
principais objetivos, e interessar-se pela eletrônica, uma
das suas grandes afinidades.
Quantas vezes acompanhei um pedido de socorro ser
atendido com toda prestimosidade! Ouvindo um pedido
como esse, muitos se apressavam em atendê-lo. Quando
um radioamador recebia uma incumbência, não esmorecia
enquanto não pudesse dizer: missão cumprida.
Importante recordar aos mais moços que, nesse tem-
po, as comunicações eram muito precárias e difíceis. Não
havia telefone, internet, celulares, WhatsApp ou outros
dos muitos recursos atuais que dinamizam e facilitam
tanto as comunicações. Por isso, das transmissões realiza-
das pelos radioamadores, muitas vezes dependia a vida de
uma pessoa.
Sempre, desde pequeno, gostei muito de fazer minhas
experiências eletrônicas, construindo pequenos transmis-
sores, que colocava no ar clandestinamente para verificar o
seu funcionamento e o seu alcance. Agora, contagiado
164
pelo exemplo de meu tio e pelo vírus da radiofrequência
me perguntava: porque não me tornar um radioamador?
Procurei saber o que eu devia fazer para ser o detentor
de um prefixo – que é a identidade, formada por um con-
junto de letras e números, pelo qual cada radioamador é
identificado internacionalmente, e que comprova que ele
tem condições e autorização para exercer o ofício. Desco-
bri que eram muitas as exigências que precisaria cumprir!
A que mais dificultava a aprovação dos candidatos era a
necessidade de saber telegrafia. Alguns anos antes era bem
mais simples se obter um prefixo de radioamador e não
havia esse requisito. Era só solicitar aos Correios e Telegrá-
fos – responsável pela coordenação e fiscalização – a auto-
rização e esperar pelo seu prefixo. Tanto que meu tio Rami-
ro e sua sogra não sabiam telegrafia e eram radioamadores.
Mas, agora, era imprescindível saber telegrafia se eu
quisesse levar adiante meu sonho. Como aprendê-la? Em
nossa cidade somente nos Correios e na Estação Ferroviá-
ria existia o telégrafo. Procurei primeiro os Correios. O
moço de lá riu de mim:
― Não é tão fácil assim como você pensa, rapaz! ― ele
tentou me desanimar.
Fui até a Estação Ferroviária, onde recebi a mesma
resposta. Decidi fazer de tudo para ter satisfeito o meu
desejo. Se eles sabiam a tal telegrafia, porque eu também
não podia saber?
Numa revista de eletrônica, eu tinha visto a propagan-
da de uma escola que ensinava telegrafia, no Rio de Janei-
165
ro. A escola era uma referência nacional, frequentada,
inclusive, por membros das Forças Armadas. Na ocasião,
solteiro, desimpedido, pedi demissão do meu trabalho e
parti para o Rio de Janeiro com a intenção de aprender o
tal Código Morse.
As primeiras providências que tomei ao chegar na
capital do país – afinal, Brasília ainda estava em construção
– foi me associar à Labre (Liga de Amadores Brasileiros de
Rádio Emissão) e me matricular na Escola Edison, que
ficava na Rua da Carioca, 59, 3º andar.
166
Nos meses em que estive no Rio de Janeiro, aproveitei
meu tempo livre para fazer turismo na cidade e conhecer
mais as belezas da então capital do nosso país. A foto
acima foi feita na Praça XV, região da estação aquaviária,
de onde saem as barcas que fazem o trajeto Rio/Niterói.
Esta bela estátua é o monumento ao General Manuel Luís
Osório, considerado herói militar na Guerra do Paraguai.
Dizem que a escultura, inaugurada em 1894, foi modelada
com o bronze dos canhões tomados do inimigo. Recen-
temente foi totalmente restaurada
167
Na Labre, aprendi as matérias exigidas, e, na Escola
Edison, a tal temida telegrafia. Fui percebendo que apren-
dia com muita facilidade o que julgava ser difícil. Meu
curso de telegrafia foi de fevereiro a junho de 1957, quan-
do eu tinha 24 anos.
Na ocasião certa, aproveitando ainda a estadia no Rio
de Janeiro, fiz os devidos exames nos Correios e Telégrafos
– na época, o órgão responsável pela concessão da necessá-
ria licença. Hoje foi substituído pela Anatel. Todo princípio
de ano, temos que pagar uma taxa irrisória a essa agência
reguladora, que controla e fiscaliza nossas atividades.
Aprovado nos exames, retornei a minha casa e fiquei
à espera do meu indicativo, que demorou alguns meses a
chegar. Em 13 de novembro desse ano, recebi um telegra-
ma do presidente da Labre, comunicando-me a aprovação
e, pela primeira vez, dando-me a saber o meu prefixo:
PY4AWU. Ou, como se diz no Alfabeto Internacional
Fonético dos rádioemissores, Papa, Yankee, Four, Améri-
ca, Watts, Uruguay. Atualmente é Papa, Yankee, Four,
Alfa,Whiskey, Uniform.
O Alfabeto Internacional Fonético foi desenvolvido e
vem sendo atualizado com o objetivo de facilitar a com-
preensão das transmissões, principalmente quando feita
entre radioamadores de idiomas diferentes. A cada uma
das letras do alfabeto corresponde uma palavra que tem a
pretensão de ser universalmente conhecida por todos os
rádioemissores. Dessa forma, podemos transmitir qual-
quer mensagem com mais segurança de que o nosso
ouvinte a entenderá de forma correta.
168
Acima, o telegrama que me trouxe a tão esperada
confirmação oficial de que eu obtivera sucesso nos
exames. E, abaixo, minha carteira como sócio da Liga de
Amadores Brasileiros de Rádio Emissão (Labre). Mais um
sonho que eu vivia acordado!
169
Já de posse de meu prefixo e devidamente autorizado
a falar pelo rádio, fiquei aguardando a tarde para, na hora
em que meu tio costumava aparecer para se comunicar
com sua filha – também radioamadora –, estreá-lo, fazen-
do-lhe uma surpresa.
Foi com muita alegria que, naquele dia 18 de outubro
de 1957, fiz o meu primeiro contato. Meu tio, PY4VN
ficou sendo o meu padrinho de rádio.
170
Anualmente, era publicado um caderno como este
acima, onde estavam listados todos os radioamadores
do Brasil, a partir de seus prefixos. Nessa edição de
1958, foi quando meu nome figurou pela primeira vez.
Abaixo, um telegrama informando sobre a exigência
de pagamento da taxa anual, sempre irrisória
171
Nestes documentos
de 1968 estão, acima,
uma renovação para
o funcionamento de
minha estação de
rádio, e, ao lado,
minha nova carteira
de Radioamador
Classe “A”, que me
conferia o certificado
de habilitação para
continuar exercendo
o radioamadorismo
172
Cartões QSL: os registros
indeléveis de minha trajetória
173
Em 1961, fiz meu primeiro contato
internacional, com o colega espa-
nhol EA3GX, de Barcelona. A
partir de então, passei a colecionar
incontáveis comunicações estran-
geiras, e o mundo todo ficou mais
perto de Dores do Indaiá
174
Este QSL ao lado, apesar de parecer
muito simples e sem importância, é
uma de minhas “figurinhas premiadas”
porque na Etiópia não há mais que
uma dezena de radioamadores, o que
significa que fazer contato com um
deles é uma grande sorte
175
Da Mongólia, recebi dois cartões
QSL que me mostraram um fato
muito interessante e inspirador
para mim: pai – JT1CO – e filha –
JT1CC – compartilham da mesma
afinidade pelo radioamadorismo
176
Do Distrito Federal ao Japão, da
Slovênia à Sibéria, de Luanda ao
Canadá... no decorrer dessas mais de
seis décadas de dedicação ao radioa-
madorismo pude fazer contato com
todos os continentes do mundo
177
O QSL ao lado é o registro de meu
contato com o radioamador PY4MT,
meu saudoso Dom Manoel Nunes
Coelho. Assim como esse, vários
cartões QSL tinham somente frente,
onde traziam todas as informações
básicas sobre a comunicação realizada
178
Os QSLs podiam ter
também tamanhos e
formatos diferenciados,
como esse acima, que
recebi do colega
BV7GA, de Taiwan.
179
Nessa foto, tirada em 1960, passeávamos eu e a
namorada, em uma excursão domingueira com fins
humanitários. O destino era a Vila Vicentina, um bairro
de pessoas de baixa renda, assistido pelas irmãs de
caridade de nossa cidade
180
O casamento do
radioamador
181
abandonávamos um QTC – código de mensagem –
enquanto não pudéssemos dizer: missão cumprida!
De minha parte, morando numa cidade pequena, des-
provida de recursos, eu era uma das poucas esperanças de
todos em situações difíceis como as relatadas. Meu pai,
com quem eu trabalhava, mesmo não sendo um dos nos-
sos, era um entusiasta do radioamadorismo. Ele me dava
todo o apoio e me dispensava do trabalho sempre que
necessitasse cumprir minha missão de ser útil ao próximo.
Tenho muita satisfação ao imaginar que, com meu
rádio, pude ajudar a salvar muitas vidas ou dar tranquilidade
e apoio a quantos, sem distinção de classe, em horas difíceis,
me procuraram. Raro era o dia em que eu não explodisse
um QTC de urgência. Centenas de casos interessantíssimos
se me apresentaram e, dentre eles, um fato que teve final
cômico e feliz, mas que me deixou deveras embaraçado.
Era o dia de meu casamento civil. Ganhava a vida tra-
balhando com meu pai num posto de gasolina que até hoje
é conduzido por dois de meus filhos. Na parte da manhã,
cuidava da contabilidade da firma e, nas demais horas, tinha
que fazer de tudo, desde ajudar o frentista, o borracheiro, o
lavador de carros e o trocador de óleos. Minha vida era lidar
com carros sujos e empoeirados o dia todo e, na simplici-
dade do meu trabalho, sentia um prazer imenso.
Por ser um dia muito especial, pensei em trabalhar até a
hora do almoço, ir para casa tomar um bom banho, livran-
do-me das graxas e óleos que sempre se acumulam naque-
les que exercem essa profissão, para, em seguida, dirigir-me
à casa da minha noiva, que já estaria me esperando.
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Eram 14 horas quando cheguei à minha casa, após o
expediente de trabalho da manhã cumprido. O casamento
estava marcado para as 17 horas no Cartório, e eu teria
tempo mais que suficiente para me aprontar e chegar lá
com uma fina estampa, envergando meu terno de linho
branco.
Levei um grande susto quando, ao chegar no portão de
minha casa, parou à minha frente um carro, do qual saíram
diversas pessoas aflitas. Elas falavam ao mesmo tempo,
pedindo-me que solicitasse com urgência um avião para
transportar “fulana”, que estava passando muito mal, prati-
camente à beira da morte.
O que fazer? Se uma pessoa morresse por falta de
socorro a mim solicitado, no dia do meu casamento, certo
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que ficaria com remorsos pelo resto de minha vida. Adiar o
casamento seria difícil, pois tudo já estava preparado.
Rapidamente, pensei em uma saída honrosa, lembran-
do-me de que existia outro radioamador em nossa cidade.
Então, resolvi mentir, dizendo que meu rádio estava “quei-
mado” e que procurassem Mauro Melasipo – PY4TQ, um
excelente colega, que certamente desincumbiria-se muito
bem da missão.
Sem hesitações, a turma partiu célere e eu resolvi, não
sei se por instinto ou prudência, aguardar alguns minutos
antes de enfrentar o chuveiro. Eis que, pouco tempo depois,
todos retornam dizendo que Mauro Melasipo estava viajan-
do, mas que seu “cristal” me emprestaria o equipamento.
Embora a emenda tivesse ficado pior que o soneto,
não pensei duas vezes e fui no carro deles para a casa de
PY4TQ. Ligando os equipamentos emprestados, de lá pas-
sei a chamar desesperadamente por colegas de Belo Hori-
zonte. Quando tudo ficou resolvido, avião sobrevoando
nossa cidade, hospital arranjado, ambulância aguardando
no aeroporto, batiam 5 horas da tarde! Eu todo sujo de gra-
xa, poeira e óleo.
A residência de Mauro Melasipo era uma das poucas
da cidade que dispunham de telefone. Pedi permissão para
ligar para a casa de minha noiva, que também tinha telefo-
ne, avisando-lhe que eu não havia fugido e explicando a
minha situação. Ela, que já sabia do ocorrido, tranquilizou-
me dizendo que todos já estavam saindo para o Cartório e
que me aguardariam lá.
184
Minha casa ficava distante cerca de seis quarteirões e
agora eu estava a pé, pois todos que estavam comigo, ao
ouvirem o barulho do avião, correram para dar assistência à
pessoa enferma, esquecendo-me ali.
A verdade – que ficou elegantemente encoberta – é
que, chegando em casa, lavei apenas o rosto e as mãos, pen-
teei os cabelos – que ainda os tinha – e vesti o terno de
linho branco que ganhara de presente de meu pai, por cima
de toda a sujeira de meu corpo e parti à procura de meu
destino. Eram quase 18 horas quando lá cheguei.
Felizmente, a pessoa agonizante para quem eu pedira
socorro naquele inesquecível dia de 1961 viveu muitos anos
mais, sem nada ficar sabendo do transtorno que me causou.
185
Quando este episódio aconteceu, eu já era pai de
família e, por isso, pude sentir com maior intensidade
o que significa a dor da separação entre pais e filhos.
Por mais esse motivo foi que me empenhei para que a
tarefa fosse exitosa. Na foto acima, tirada na porta de
minha casa, eu estou com os quatro primeiros de meus
seis filhos: da esquerda para a direita, Márcia, Sandra,
Paulo César e, no meu colo, João Roberto
186
Reencontros
inolvidáveis
187
queriam fugir de suas origens, por quaisquer motivos. Além
da distância, os telefones, naqueles idos tempos, eram
muito raros, e as ligações interurbanas custosas em todos
os sentidos.
Um dia, estando eu comunicando com um radioama-
dor de Goiânia, esse me falou que tinha um compadre que
há trinta anos não via a mãe e nem os demais familiares.
Gessi Meneses, era esse o radioamador, velho amigo, pro-
pôs-me que colocássemos filho e mãe em contato. Acerta-
mos o dia para esse encontro.
Naquele momento, vim a conhecer toda a história e o
drama do meu primo.
Tudo acertado, preveni minha tia para que ficasse de
prontidão, que eu iria buscá-la no dia combinado. Ela ficou
ansiosa para que o dia chegasse. Deu-se, então, o emocio-
nante reencontro! Dos alto-falantes do meu transmissor,
como se estivesse vindo do além, a voz do filho, trinta anos
ausente.
Primeiro, ele lhe pediu a bênção, deu suas notícias e
falou da sua saudade. A minha tia, escutando aquela voz
que há muitos anos não ouvia, de pé, com as mãos no
espaldar da cadeira teve que se assentar. Chegando a sua
vez de falar, ela, velhinha, depois de abençoar-lhe, com a
voz trêmula pediu-lhe que viesse vê-la. Já estava muito
idosa e tinha, dele, muitas saudades!
Nesse momento, mesmo com muitas pessoas presen-
tes no shack, somente se ouviam as vozes dos interlocutores
e dos operadores do rádio quebrando o silêncio reinante.
188
Ao término do encontro, Juquinha prometeu que em
breve viria ver a mãe. De fato, um mês depois a promessa
foi cumprida; Juquinha apareceu na cidade.
Ficou em companhia da mãe e das irmãs durante um
mês inteiro, visitou amigos e lugares conhecidos de sua
infância, regressou a Goiânia.
Uma semana depois, foi encontrado morto na cama!
Ficamos sem entender os desígnios de Deus que, depois de
um tão longo período de ausência, ainda permitiu um últi-
mo encontro de Juquinha e seus familiares queridos.
189
Na década de 1980 eu ainda estava a postos, mas,
ao final dela, já contava com meu filho mais velho –
que retornava após ter concluído seu curso univer-
sitário – aprendendo o ofício, para suceder-me
alguns anos depois. A década foi de apertos e
dificuldades financeiras, difícil para nós, assim como
para todo o Brasil, mas ultrapassamos todas as
adversidades, encontrando possibilidades e disposi-
ção para ajudar a quem precisasse, principalmente
se precisasse da ajuda de um radioamador
190
A filha
desterrada
“É mais fácil encontrar um anjo no lupanar
do que uma pérola no monturo”
Victor Hugo
191
― Nas minhas andanças relacionadas ao meu traba-
lho, encontrei num lugarejo próximo, um senhor, chefe de
família, que está à beira da morte, acometido por uma doen-
ça grave. Resta-lhe pouco tempo de vida. Neste ambiente de
agonia, ele clama sem parar por sua filha que há muitos
anos não vê e de cujo último encontro guarda amargas
recordações. Agora, no último instante, a ânsia de revê-la o
consome. Toda a dor e saudade confinadas nesses longos
anos de separação afloram ensandecidas na exiguidade do
tempo que ainda lhe resta.
192
Os preconceitos contra a mulher eram impiedosos,
principalmente se a criatura fosse de classe humilde. Os
ricos, às vezes, ainda conseguiam contornar aquele rígidos
princípios, tramando um desfecho honroso. Mas, para aque-
le caso, não havia solução, só restava uma saída, um desfe-
cho onde a dignidade humana, esfacelada em nome da vir-
tude convencionada se transformaria em ridículas migalhas.
Nenhuma compaixão, nenhuma piedade! Lá fora, um
mundo desconhecido estava à espera de sua nova vítima.
Era o que restava acontecer...
E a mocinha, então, foi obrigada a partir. Na imagina-
ção, levava a figura imaculada de seus pais e o semblante
feliz dos irmãos pequenos que, na inocência, ignoravam as
dimensões de seu infortúnio. Na bagagem, levava também
as lembranças dos dias felizes que haviam permeado sua
vida junto à singeleza de sua família. Na sua jornada rumo
ao desconhecido, seriam um lenitivo à sua solidão, desven-
tura e desgraças a que estaria sujeita.
Os anos se passaram... Agora que a poeira do tempo
parecia estar acomodada, ressurgiam com todas as forças os
fantasmas que demonizaram aquela época distante. O pai
agonizante reclama a presença da filha. É seu último desejo
revê-la, abraçá-la e reconquistar, mesmo que por pouco
tempo, a felicidade perdida.
Onde encontrá-la? Tudo o que sabiam é que ela tinha
sido vista pela última vez, muitos anos atrás, numa determi-
nada região do estado de Goiás. Era possível que ainda esti-
vesse por lá, mas tudo muito incerto. Entrei no rádio nessa
mesma noite, procurando por colegas da localidade indica-
193
da e cidades próximas. Contatei-me com alguns deles e lhes
contei a triste história. No linguajar do radioamador tratava-
se de um QTC de pessoa desaparecida. Meus colegas de
rádio prometeram tomar todas as providências necessárias
na solução da difícil tarefa. Dar-me-iam uma resposta no
dia seguinte. Marcamos, então, horário para um novo
encontro.
Na hora aprazada, estávamos todos lá, eu e compa-
nheiros de busca, ansiosos pelo resultado daquela investiga-
ção. Infelizmente, tudo negativo, nenhuma notícia! Mas
apareceram outros colegas engrossando o nosso grupo,
todos muito interessados no esclarecimento da história.
Tive que repeti-la várias vezes para os recém-chegados à
frequência do rádio.
No outro dia, novo encontro. Outra vez nada de positi-
vo. Nenhum de nossos esforços pareciam ter êxito. Chega-
mos a pensar que a pessoa procurada não mais residia por
aquelas bandas ou, talvez, tivesse falecido.
No terceiro dia, nas mesmas horas, outro encontro. O
insucesso parecia ser o prêmio por nossa insistência. Os
colegas estabeleceram, então, um programa de busca. Pri-
meiro, telefonariam aos Correios de suas respectivas locali-
dades, pedindo informações. Era possível que por ali
conhecessem alguém com esse nome. Depois visitariam
bares e botecos da periferia, especialmente locais frequenta-
dos por prostitutas, indagando pelo nome que levavam ano-
tado consigo. Em terceiro lugar, colocariam um anúncio na
emissora de rádio local. Seguindo esse estratagema, tudo
assim foi feito.
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No quarto dia, depois de mais buscas, surge uma espe-
rança. Alguém ouvira um caso semelhante. Lá vai o radioa-
mador em busca de confirmação. Chega ao local, um pros-
tíbulo de periferia. Uma mulher cujo nome não é o procu-
rado surge desconfiada. Era a dona do bordel e de uma
banca de jogos. O colega radioamador conta-lhe a história
tantas vezes repetida. A mulher, atônita, revela-se: era ela a
procurada! Seu nome realmente havia sido mudado e
sobrevivia no anonimato em que viviam muitas mulheres
na sua condição.
Ao ficar ciente da notícia, disse que partiria imediata-
mente para encontrar-se com seus familiares. Sentia uma
saudade imensa de casa, dos pais, dos irmãos que deixara
pequenos e nunca mais tornara a ver! Nunca mais tivera
notícias deles. Ficava imaginando se ainda se lembravam
dela. Muitas vezes tivera vontade de voltar, revê-los todos.
Tinha agora um filho, e a ideia de ser novamente recusada a
fazia recuar diante das indecisões e desejos.
Em rápidas palavras, ela contou um pouco de sua vida
desde aquele fatídico dia em que, sozinha, adolescente ain-
da, teve que enfrentar um mundo desconhecido. Agora,
curtida pelo sofrimento, era uma mulher madura e experi-
ente. Descera, é verdade, os degraus da degradação huma-
na, mas conservava ainda dentro de si os mais puros senti-
mentos, brotos de uma infância pacata e feliz.
Poucos dias depois, encontrei-me novamente com o
chefe do IBGE, que me descreveu em detalhes o comoven-
te encontro entre pai e filha.
Mais uma vez, eu pude dizer: missão cumprida!
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Esse é o meu Shack – o quartel-general de um radio-
amador –, um barracão pequeno, separado de minha
casa, ao qual minha família nomeou, carinhosamente, de
Quartinho do Rádio. Daqui, partem minhas comuni-
cações, seja pelos transmissores ou pela internet. Nesse
cantinho muito especial da minha vida, também guardo
tudo que necessito para minhas experiências
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Uma promessa,
não um epílogo
“Quando se sonha sozinho, é apenas um sonho.
Quando se sonha juntos, é o começo
da realidade.”
Miguel de Cervantes, na voz de seu D. Quixote
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como a Izabelinha Bandurra, o Agnelo, outras peripécias
nas ondas do radioamador, momentos de minha vida em
família e em sociedade que se relacionam com fatos rele-
vantes de nossa cidade, fatos burlescos e inesquecíveis de
nosso rincão natal...
Tenho muitos assuntos na memória e no rascunho.
Não sei se estas novas crônicas vão interessar-lhe também,
meu estimado leitor. Mas, de qualquer forma, fique saben-
do que já estamos empenhados, eu e meus 15 editores –
esposa, filhos, noras, genro e netas – em compilar e organi-
zar o novo conteúdo. Corro contra o tempo para que o
volume 2 venha logo ao mundo, antes que chegue minha
hora de deixá-lo. Guardo esperanças de que esses novos
escritos possam lhe agradar igualmente!
Encerro reiterando o prazer e a honra de estar em sua
companhia, revivendo momentos que, para mim, foram
realmente, sonhos que vivi acordado!
198