Você está na página 1de 6

In memoriam

“O fundamento é a roça” Antônio Bispo dos Santos (1959-2023)

In memoriam
“O fundamento é a roça”
REVISTA DE FILOSOFIA, Antônio Bispo dos Santos
SALVADOR, ISSN: 2675-8385
(1959-2023)

Wanderson Flor do Nascimento


Professor da Universidade de Brasília.

Luiz Rufino
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Provavelmente o mais intenso pensador de Francinópolis, no Piauí, Bispo foi ativista


que o Brasil conheceu nos últimos tempos, do movimento sindical e do movimento
Antônio Bispo dos Santos, nascido em 10 de quilombola, alçando-se como um dos mais
dezembro de 1959 e ancestralizado no dia potentes defensores dos direitos dos povos
03 de dezembro de 2023, lega uma marca tradicionais e críticos das armadilhas
profunda no pensamento e nas relações coloniais que nos cercam no presente.
entre o que se pensa e o que se faz, a partir
Ainda que tenha cursado somente o antigo
das heranças que recebeu de sua história
Primeiro Grau, concluindo a oitava série do
nos quilombos e nas lutas sociais.
“Primário”, se entendemos que o filósofo é
Dançante do pensamento, mandingueiro a pessoa que busca entender a realidade
das palavras, lavrador de ideias, tradutor forjando conceitos, criticando sentidos,
do pensamento ancestral, filósofo telúrico, problematizando valores, pensando
vadiante das estratégias, poeta do alternativas para o que se pensa e o que se
semiárido, Nêgo Bispo, como era vive, fundamentando tudo isso, Bispo não
conhecido, mobilizou em torno de si não apenas foi (e segue sendo) um filósofo,
apenas uma série de ideias, mas tam bém de como é um dos bons, dos melhores que já
afetos e vontades de fazer de uma conhecemos. Esse fenômeno nos mostra
infinidade-revoada de pessoas que tiveram que a educação formal é apenas uma das
contato com ele. possibilidades para a preparação dessas
pessoas que estejam comprometidas com a
Quilombola nascido no Povoado Papagaio,
reflexão filosófica sobre nosso tempo.
no Vale do Rio Berlengas, atual município

ISSN: 2675-8385 – Salvador, Bahia, Brasil.


Anãnsi: Revista de Filosofia, v. 4, n. 2, 2023, p. 2
In memoriam
“O fundamento é a roça” Antônio Bispo dos Santos (1959-2023)

Na Universidade, foi professor no projeto mestre ele dizia: o mestre não é aquele que
Encontro de Saberes, lecionando na Pós- sabe de tudo, mas conhece um pouco de
Graduação para cursos da Universidade de cada coisa sem mesmo dominá-la em seu
Brasília e da Universidade Federal de Minas todo. Conhecendo de tudo um pouco tece
Gerais, embora tenha palestrado em muitas intimidade ao ponto de aprender e ensinar.
universidades brasileiras, discutindo as
Formado em saberes do semiárido e
ideias que se popularizaram a partir da
alimentado por aquelas sabenças dos povos
publicação do livro de 2007 Quilombos,
que ele denominou de “Afropindorâmicos”,
modos e significados, que foi revisto e
evocava as vozes negras, indígenas,
republicado em 2015 e 2019 como
quilombolas, ribeirinhas, pescadoras,
Colonização, quilombos: Modos e
geraiseiras, faveladas entonadas e
significações. Publicou ainda, em 2022, o
entrançadas pela desconfiança de que tudo
livro Quatro Cantos, inaugurando o selo
aquilo que separa, hierarquiza, quebra os
editorial Roça de Quilombo, e, em 2023, o
vínculos que temos com o mundo a que
livro A terra dar, a terra quer além de
pertencemos nos enfraquece e desencanta
diversos artigos e capítulos de livros em
o próprio mundo e nossa relação com ele.
coletâneas no Brasil.
Longe de afirmar uma sabedoria fechada,
Bispo foi criança cuidada para zelar a
Bispo defendia um aprendizado movido
sabedoria da comunidade, nos caminhos
por perguntas que hora nos acomodam e
que trilhou teve a condução das pessoas
hora nos movem. Mas sempre perguntas,
mais velhas e teve a orientação daquelas e
muito mais que as respostas. Apostando em
daqueles a quem ele chamava de mestres:
uma ensinança que mantém o
suas mães e tios, referencias das
conhecimento vivo, que o amplia, afirmava
comunidades em que viveu, que
que “quando você compartilha o saber, ele
acumularam os saberes práticos e teóricos
cresce”.
dos ofícios, aprenderam a pensar e falar
com a boca do mundo, percorrendo as Tomando a roça de quilombo como
encruzilhadas dos tempos que, como Bispo horizonte educativo, Bispo nos diz sobre
insistia, faziam de nós enredados em tomar lição com os ciclos das águas, com o
começo, meio e começo. trânsito das estações, com as relações
trançadas na diferença que muitas vezes faz
Praticante das cismas, estudante atento do
com que nem tudo que se ajunte, se misture
gingar do tempo, inventor de fraseados,
ou aquilo que se misture, se ajunte. Nesse
batedor de perna e papo, Bispo faz
chão brotam saberes que fazem da cascavel
capoeiragem com o pensamento,
professora, o mandacaru mestre e o facão
esquivando-se dos discursos
artífice das invenções cotidianas. Nêgo
aquebrantados para saltar nos vazios e
roçar palavras germinantes. Sobre ser
.

ISSN: 2675-8385 – Salvador, Bahia, Brasil.


Anãnsi: Revista de Filosofia, v. 4, n. 2, 2023, p. 325
In memoriam
“O fundamento é a roça” Antônio Bispo dos Santos (1959-2023)

Bispo nos lembra que na roça tudo se descoberta a distinção entre os saberes que
aprende, mesmo que nada se ensine. viviam de enfraquecer as resistências, de
fazer se perder dos caminhos da vida, de
Assumindo essa partilha que faz crescer o
tentar pôr a perder quem não se deixava
saber, Bispo nos trouxe, reverberando sua
seduzir pelas estratégias colonialistas, os
profunda intimidade com a sabedoria
saberes sintéticos, daqueles saberes que,
ancestral, um conjunto potente de
herdados de uma ancestralidade
ferramentas conceituais capazes de nos
alimentada, de um mergulho na memória
fortalecer para a luta contra as
coletiva, comunitária, que soube inventar
persistências do colonialismo que nos
criativamente num mundo que tentou nos
ronda. De saída, ele foi buscar os saberes
empobrecer, os saberes orgânicos.
contra-coloniais, aqueles que não foram
colonizados e combatem a colonização, os Dentre esses saberes orgânicos, fiéis à
que resistiram aos modos de ser que vadiagem, às festividades e aos bons
buscavam subjugar a vida de outras encontros, Bispo nos apresentou as ideias
pessoas. Sabia que nomear era um gesto de de confluência e transfluência,
poder. potencializadoras de alianças, de
construções expansivas que resistiam,
Contra-colonização em suas palavras
resistem, contornavam e contornam a essa
mandingueiras é uma maneira de
profunda aversão à natureza que ele
contrariar a lógica que se quer única. Bispo,
denominou de cosmofobia.
avança no jogo miúdo com a pisada firme. A
contra-colonização são também os modos e Esse terror ao cosmo, à natureza, à Terra,
significações dos grupos que não se provém de uma interpretação da realidade
aquebrantaram com a promessa do milagre como fundada sobre um princípio único,
civilizatório. Por isso, segundo ele, contra- estático, punitivo, desterritorializador,
colonizar implica uma sabedoria tática de desencantante. Essa interpretação fundou
saber atar e desatar feitiço. Se por um lado aquilo que Bispo chamou de matriz
a colonização emerge como assombro eurocristã-monoteísta. Mais que uma crítica
propagador da mentira e da escassez, à religião vinda dos mundos colonialistas, é
driblá-la implica escavar a poética daqueles uma avaliação de um modo de viver e
que sabem ir aos campos de batalha e intervir na realidade empobrecendo as
defender a vida. potências de existir em torno de um projeto
de dominação, atravessado pela fixação no
E, por isso, enfrentava a branquitude
acúmulo. Acumular da terra, a terra, a
colonial dando nomes aos processos que
empobrece e nos empobrece junto,
muitas vezes invisibilizamos, mas que, nem
paradoxalmente. Em contraposição a isso, a
por isso, deixaram de nos danar andanças
ideia de compartilhar no/do mundo, sem
pela vida. Nesse nomear, deixou à
sermos conduzidos pelo medo da falta.
.

ISSN: 2675-8385 – Salvador, Bahia, Brasil.


Anãnsi: Revista de Filosofia, v. 4, n. 2, 2023, p. 326
In memoriam
“O fundamento é a roça” Antônio Bispo dos Santos (1959-2023)

A confluência, contra o acúmulo, pressupõe Bispo enfatizou que suas ideias, seus
que o mundo está em movimento, em fluxo. conceitos, palavras germinantes, foram
Fluir seria o movimento fundamental da forjados na e pela oralidade. Dentro do ciclo
existência, que, quando bem manejado, que ele descrevia nas relações entre uma
promove essas alianças confluentes. Os geração avó, uma geração filha e uma
colonialistas, na interpretação de Bispo, geração neta, ele via o solo vital de
têm pavor desse movimento, de não poder produção e transmissão dos saberes. Mas
dominar o que se desloca, o que gira, o que para além da percepção da criação e
fui. reprodução coletiva dos conhecimentos,
nosso feiticeiro das palavras insistia na
Os colonialistas são ruins de jogo, ausentes
oralidade como um repositório vivo da
de ginga. Obcecados por um único registro
memória ancestral que não cessa de
do mundo eles perderam a capacidade de
produzir sentidos e ideias.
falar, não fiam conversa com os praticantes
da diversidade, não confluenciam, porque A ancestralidade é viva, nesse ciclo que nos
são monológicos. A crítica exposta por foi apresentado. E sua vida funciona em
Bispo em relação à monocultura, à ligação com os processos de vinculação
desertificação do conhecimento e a uma entre os viventes que falam e os que
espécie de grilagem existencial é escutam. A oralidade é ligação, é
confrontada com o cultivo da poética compromisso com o que se escuta e o que
plantada, semeada, colhida e comida como se diz. Mais do que uma oposição à escrita,
roça. a oralidade se posiciona como esse
processo que, registrado ou não na escrita,
Assim, o movimento de confluência resiste
nos insere na continuidade do que é
criativamente à cosmofobia, inventando
possível pensar e fazer em conjunto, pela
potências de alianças que fortaleçam as
comunidade, coletivamente. A oralidade
pessoas e os próprios movimentos,
supõe um mundo de diferenças e
promovendo a biointeração, em que a vida
multiplicidades, uma pluralidade de vozes.
passa a ser o centro orientador do que se
Mas também supõe alguns mistérios e
pensa, do que se faz, do que se faz
silêncios, que como sabenças e/ou armas
pensando, do que se pensa fazendo,
de defesa, deram sentido a muitos
possibilitando encontros vitais nos quais a
movimentos nas lutas, que não podem ser
diferença não é exatamente problema, mas
queimadas pela sanha colonial.
parte dessa fluência, que quando trazida, de
modo encantado, promove expansão e Bispo assume a encruzilhada como lugar de
vitalização e não uma mortificação chegada, bebe e brinca com aquele que é
cosmofóbica que finde por des-envolver os fundamento da palavra, corpo e
humanos da natureza. movimento. Ao reivindicar que oralidade
não é só o que se fala, mas também o que se
.

ISSN: 2675-8385 – Salvador, Bahia, Brasil.


Anãnsi: Revista de Filosofia, v. 4, n. 2, 2023, p. 327
In memoriam
“O fundamento é a roça” Antônio Bispo dos Santos (1959-2023)

risca, negocia, confia no mistério e vibra no Caldeirão, Pau de colher, o cheiro de cio
corpo, Bispo faz da lavra e da perna no trazido pela chuva no sertão, o falar
mundo a sua literatura. Planta as noções de tagarelando, o cabelo bonito que entrança,
compartilhamento e propósito como chaves as astúcias de apanhar o Sol, maneiras
do debate político que tem a roça como perspicazes de alargar o tempo, dobrar a
poética. Nessa toada, Bispo firma a palavra, linguagem para erguer propósitos de
lavra afetos com a geração neta e vadeia nas mundo. A poesia, talvez fosse a maneira
fronteiras do saber para nos embalar na bonita, furiosa, galante e feiticeira dele se
sugestão de oralizar a escrita. Não adepto apresentar, sendo fiel as sabenças de sua
aos binarismos, mas afeito à máxima de que gente, avivando a máxima entoada por mãe
a encruzilhada tem quatro cantos, o mestre Joana: a cumbuca de dar é a mesma de
não nega diálogo, mas chama para o jogo de receber.
corpo, em que se entra saindo e se saí
Em sua generosidade peculiar, Nêgo Bispo
entrando. Se diz não dizendo e não diz
legou-nos uma imensidade de ideias e
dizendo. Artimanha daqueles que, como ele
sentidos para o fazer. E agora, quando ele
bem gostava de ressaltar, sabem o que
repousa como semente na terra que, por
fazem, pois dão de comer a sua trajetória.
tantos anos ele lavrou, que sejamos capazes
Festeiro, gaiato, amante das bonitezas, de fazer suas palavras reverberarem na
lavrador de esperanças, tradutor da medida em que possamos reconhecer as
sabedoria ancestral que toma gente, bicho, potências filosóficas dessa ancestralidade,
rio, planta e chão como comunidade, que, entre nós, nos forma e fortalece. A
Antônio Bispo dos Santos fez da poesia sua terra é soberana em sua vontade, assim ele
rede. Por onde andou a pendurou, se nos ensinou. Sendo ela a matriz e
balançou, pescou sensibilidades, lida, luta, motricidade de seu sentir e pensar está
enredou escutas atentas e disparou agora a nos chamar para o cuidado do
palavras boas. Entoou Palmares, Canudos, roçado.

nossa

ISSN: 2675-8385 – Salvador, Bahia, Brasil.


Anãnsi: Revista de Filosofia, v. 4, n. 2, 2023, p. 328

Você também pode gostar