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a história da letra g

argumento de Gonçalo Sério Limpo


(a partir de Narciso e Goldmund de Hermann Hesse)

cena abade daniel / jovem narciso

Mosteiro de singeverga, sala do capítulo, dia invernoso. O Abade Daniel ouve Narciso em confissão.
Abade Daniel e Narciso são admirados e respeitados por toda a congregação: o abade pela sua bondade,
rectidão, simplicidade e humildade; Narciso pela sua inteligência precoce, pela excelência, pela beleza, pelos
modos nobres, silenciosos e delicados.

abade: Narciso, sinto-me culpado por ser tão severo contigo. Pareces-me muitas vezes arrogante, e
talvez tenha sido injusto. Estás muito só, jovem irmão. Repara que tens quem te admire, mas não tens
amigos. Eu bem queria encontrar razões para te repreender, e não consigo. Quem me dera que, em vez de
solitário, fosses de vez em quando atrevido e mal-educado, como acontece com os jovens da tua idade. Fico
preocupado contigo.

narciso: Bem gostaria eu, reverendo padre, de não vos dar motivo para preocupações. Posso muito bem
ser arrogante. Peço-vos que me castigue. Eu próprio sinto, por vezes, necessidade de me castigar. Enviai-me
para um eremitério, reverendo, ou obrigai-me a fazer serviços mais duros.

abade: És demasiado jovem para isso, caro irmão. Além de que é grande a tua aptidão para as línguas e para
o pensamento. Seria um desperdício dos dons que Deus te deu obrigar-te a fazer esses serviços duros. Muito
provavelmente vais ser um mestre e um erudito. Não é isso que queres?

narciso: Perdoai-me, reverendo, pois, na verdade, não sei aquilo que quero. Sempre hei-de gostar das
ciências, isso parece-me inquestionável. Mas não creio que elas venham a ser o meu único domínio.
Acredito que nem sempre são os desejos que determinam o destino e a missão de uma pessoa, mas sim algo
diferente, já predestinado.

abade: Bem, todos nós tendemos um pouco, sobretudo quando somos jovens, a confundir a Providência
com os nossos próprios desejos. Mas fala-me lá então da tua vocação. Para que julgas estar tu destinado?

(silêncio. Narciso mantém-se calado.)

abade: Fala, meu filho.

narciso (em voz baixa, sem olhar para o abade): Creio que sei, reverendo padre, que estou destinado à vida
monacal. Penso que vou ser monge e sacerdote, talvez vice-prior ou abade. Não creio isto porque o deseje.
Não desejo cargos, mas sei que eles me irão ser impostos.

(silêncio)

abade: Porque tens essa crença? Que outra coisa tens em ti, para além da erudição, que te faz pensar isso?

narciso: Creio que é intuição. Creio que sei reconhecer o modo de ser, a vocação das pessoas, para além das
minhas próprias. Essa intuição obriga-me a servir os outros, e a dominá-los. Se não tivesse nascido para esta
vida no mosteiro, acho que poderia bem ter sido juiz ou estadista.

abade: Pode ser que tenhas razão. Já comprovaste essa tua capacidade de reconhecer as pessoas e os seus
destinos em exemplos concretos?
cena abade daniel / jovem narciso (continuação)

narciso: Sim, já comprovei.

abade: Estás disposto a dar-me um exemplo?

narciso: Estou disposto.

abade: Muito bem. Não quero que me contes os segredos dos nossos irmãos. Diz-me o que pensas sobre
mim, o teu abade Daniel.

(Narciso olha de frente para o abade.)

narciso: É essa a vossa ordem, reverendo padre?

abade: É essa a minha ordem.

narciso: Custa-me falar, padre.

abade: Também a mim me custa fazer-te falar, e não deixo de o fazer. Fala então!

narciso (baixando a cabeça, num sussurro): É pouco o que sei de vós, reverendo padre. Sei que sois um
servo de Deus, que preferiria guardar cabras ou tocar o sininho de um eremitério e ouvir as confissões dos
camponeses em vez de governar um mosteiro. Sei que nutris uma especial devoção pela Santa Escolástica
e que é a ela que mais rezais. Nas vossas preces rogais-lhe, por vezes, que haja saúde e paz no mosteiro, que
este se mantenha vivo por mais gerações e que consiga contrariar a liquidez destes tempos em que vivemos.
Encontrais beleza em todos os pormenores deste lugar, e a todas as horas do dia. Por vezes rezais para que
não vos falte a paciência para com o irmão da portaria. Rezais também por um fim suave. E creio que sereis
atendido e tereis uma morte suave.

(silêncio)

abade (em tom afável): És um entusiasta e tens visões, mas essas visões podem induzir-te em erro. Não
confies demasiado nelas, tal como eu não confio. (Pausa) Então e consegues ver, irmão visionário, o que
penso realmente a este respeito?

narciso: Consigo ver que são amáveis os vossos pensamentos. Pensais que me encontro um pouco
ameaçado, que tenho visões, e que talvez tenha meditado em demasia. Estareis a ponderar impôr-me uma
penitência, que mal não me fará. E que a penitência que me impôr, assumi-la-eis também. É isto o que neste
momento pensais.

abade (com um sorriso): Está bem. Não leves demasiado a sério as tuas visões, jovem irmão. Deus exige bem
mais de nós do que ter apenas visões. Aceitemos que lisonjeaste o teu abade e o teu mosteiro, prometendo
uma morte suave a um e uma vida longa ao outro. Aceitemos que, por um momento, o teu abade ouviu com
agrado uma tal promessa e uma tal esperança. Mas agora basta. Vais rezar um rosário amanhã, logo após
a missa da manhã. Reza-o sem te distraíres, com humildade, que eu farei o mesmo. Podes ir, Narciso, já
falámos o suficiente.

Narciso sai.

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