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O INFERNO DE ALICE Alice - Jamieson com Clifford

Thurlow

Alice parecia ter tudo para ser feliz: vivia com os pais e o irmão numa casa
luxuosa, frequentava as melhores escolas… Porém, sempre se sentiu diferente
das outras crianças. Sofria de perdas de memória, tinha pesadelos violentíssimos
e as vozes que ouvia na sua cabeça pediam-lhe para se matar. Culpou-se em
silêncio durante anos até procurar um terapeuta, que a ajudou a compreender o
que a atormentava: múltiplas personalidades. Quando elas se revelaram, Alice
percebeu por fim a dimensão da sua agonia. Cada uma das personalidades tinha
as suas próprias e terríveis memórias. Ela podia finalmente ter uma visão global
da sua infância. Mas o que descobriu quase a matou. Alice fora abusada pelo
próprio pai desde os seis meses de idade. Ao longo da sua infância, adolescência
e juventude, ele violara-a centenas de vezes, tendo até permitido que outras
pessoas o fizessem. "O meu pai infligiu-me todas as perversões possíveis", conta-
nos. Na adolescência, sofria de anorexia e de perturbação obsessivo-compulsiva,
perturbações que eram, no fundo, silenciosos pedidos de ajuda que ela descreve
corajosamente em O Inferno de Alice. Perceber e sobreviver ao passado foi apenas
o início de uma luta que Alice trava até hoje. Esta é a sua história.

TRADUZIDO DO INGLÊS POR ANA NEREU REIS


3ª edição: Junho de 2011
Depósito legal n.° 328943/11
ISBN 978-989-23-0718-3
EDIÇÕES ASA
Dedico esta obra a todos os funcionários do Serviço de Urgências, que sempre
me trataram com todo o respeito, agiram com o máximo profissionalismo e nunca
me julgaram, de todas as vezes que tive de me submeter aos seus cuidados, vítima
de overdose ou automutilação. Dedico-a especialmente a dois enfermeiros, Dave e
Chris, que, junto com outros membros do pessoal, me salvaram literalmente a vida
em Janeiro de 2008. Obrigada por lutarem por mim e me ajudarem a sobreviver.
Desde então, a hora incerta, Esta agonia retorna E até que deste conto
Medonho, dou relação, Sinto cá dentro do peito, A arder, o meu coração
Rima do Velho Marinheiro Samuel Taylor Coleridge
AGRADECIMENTOS

A minha história foi escrita em conjunto com Clifford Thurlow, que foi
pacientemente desenterrando as minhas memórias para colaborar neste livro. A
colaboração para mim foi fácil. Tenho colaborado com os meus alter egos quase
toda a minha vida.
Muitas pessoas me ajudaram com este livro. Elas sabem quem são e eu
agradeço-lhes do fundo do coração.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Alec, meu melhor amigo e minha
alma gémea, pelo seu apoio incondicional.
Agradeço igualmente a íris Gioia, aos meus leais amigos Marie, Lynette, Vicky,
Alison, Graham e Jeremy, por acreditarem em mim; à minha psicoterapeuta de
Gestalt, Marsha Chase, pelos seus comentários sensatos e profissionais ao
manuscrito; à psiquiatra Dra. Joan Coleman, da RAINS (Ritual Abuse Information
Network & Sup-port) que está sempre presente quando necessito de apoio; ao
psicoterapeuta analítico Remy Aquarone, secretário da ESTD (European Society for
Trauma and Dissociation) e antigo director internacional da ISST-D (International
Society for the Study of Trauma and Dissociation); à equipa da Sidgwick & Jackson
liderada pela minha imperturbável editora Ingrid Connell e ao nosso agente Andrew
Lownie, que uniu todas as peças para que fizessem sentido.
Alice Jamieson Março de 2009
PRÓLOGO

Em Abril de 1993, com a idade de 24 anos, foi-me diagnosticado o Distúrbio de


Personalidade Múltipla, também conhecido como Perturbação Dissociativa de
Identidade. Tenho identidades distintas que se manifestam inesperada e
aleatoriamente, alterando a minha personalidade, a minha voz e a minha idade.
Perco tempo que não vivi e perco-me a mim própria.
Fui vítima de abusos mentais, físicos e sexuais durante toda a minha infância.
Nunca disse nada a ninguém. Este livro descreve a forma como desenvolvi
“mecanismos” para lidar com o abuso enquanto criança, e como, já adulta, lutei para
viver uma vida normal através de períodos alternados de psicoses, esgotamentos
nervosos, dependência de drogas e automutilação. Não peço desculpa pela
linguagem intransigente e pelas verdades nuas e cruas que têm de ser ditas.
O abuso infantil é algo inimaginável para quem nunca teve de o suportar, mas é
um inferno para quem vive o sentimento diário da vergonha, o medo nocturno da
porta a abrir-se e daquele homem (é quase sempre um homem) a entrar no seu
quarto. Os abusos acontecem bastantes vezes em casa e envolvem geralmente
familiares próximos: pais, irmãos e outros.
Desde a sua criação em 1986, a ChildLine já ajudou milhares de crianças que
telefonaram por causa de abusos sexuais. Mas as crianças que fazem esse
telefonema são apenas a ponta do icebergue. A grande maioria está demasiado
devastada e isolada, demasiado receosa para pegar no telefone. Estima-se que
nove em cada dez crianças abusadas permanecem em silêncio e continuam a fazê-
lo na idade adulta.
Tenho esperança de que o meu livro encoraje outras pessoas que sofreram
abusos a falarem abertamente sobre isso e que forneça novas pistas sobre os sinais
reveladores de abuso infantil, os quais, muitas vezes, os assistentes sociais,
professores, profissionais de saúde e a família muitas vezes não detectam. Não há
nada mais horrível do que o abuso infantil, e se este livro ajudar pelo menos uma
pessoa terá valido a pena trazer à superfície as minhas lembranças mais dolorosas
para o escrever.
Os nomes e os lugares foram alterados para proteger a privacidade de terceiros.
Todavia, trata-se de um relato verídico e extremamente pessoal dos acontecimentos
da minha infância e de como esses acontecimentos continuam a assombrar a minha
vida enquanto adulta.
CAPÍTULO 1

FRAGMENTOS DE MEMÓRIA

A minha memória é como um grande vaso que foi atirado de uma janela. As
peças estão todas lá, umas grandes, outras pequenas, outras desfeitas em pó.
Quando tento unir as peças, juntando uma recordação à outra, partes da história
tornam-se claras e lúcidas, mas sobram muitos espaços em branco e tempo perdido.
O meu primeiro dia de escola? Desapareceu. As férias em família? Nada. O meu
livro preferido? Quando é que aprendi'a andar de bicicleta? Momentos impossíveis
de encontrar entre as longas sombras negras que se estenderam por toda a minha
infância.
Isto é aquilo de que me recordo. Éramos um modelo de família nuclear: pai,
mãe, eu e o meu irmão Clive, com cerca de mais quatro anos que eu. Éramos uma
família à antiga: conservadora, bem-educada, próspera, um tanto antiquada e
aparentemente amável e simpática.
Vivíamos numa casa grande com um caminho de entrada circular em torno de
um carvalho gigante, numa zona abastada das Mid-lands, onde os vizinhos se
cumprimentavam, as crianças eram educadas e as pessoas mantinham os seus
cães sob controlo. O meu pai trabalhava como advogado em Birmingham. Trocava
de carro todos os anos, sempre um Rover topo de gama, e jogava golfe aos
domingos de manhã. A minha mãe trabalhava como secretária numa agência
imobiliária e conduzia um Triumph, de dois lugares, azul-claro.
A casa era em alvenaria com um telhado vermelho e portas de vidro que se
abriam para um pátio de pedra. A cozinha conduzia à sala do pequeno-almoço e ao
comprido jardim das traseiras, onde arbustos de azevinho ocultavam o barracão
onde o meu pai guardava aranhas em frascos de compota. No piso de cima havia
quatro quartos, uma casa de banho grande e outra de serviço. Cada um de nós tinha
o seu quarto. O patamar superior das escadas era como uma linha divisória, o pai e
o Clive de um lado, na parte da frente, e eu e a minha mãe nas traseiras, com
janelas com vista para o jardim.
Ao fundo do patamar encontrava-se a arrecadação, conhecida como a Gaiola
devido ao seu tecto abobadado. Era neste compartimento que eu guardava os meus
brinquedos e me escondia sempre que havia uma sessão de gritaria entre os meus
pais. Quando eu era pequena, o compartimento assemelhava-se a uma gigantesca
casa de bonecas, um lugar mágico onde eu brincava sozinha. Noutras alturas, a
Gaiola era mesmo uma gaiola e quando tentava abrir a porta não conseguia sair.
Quando havia uma discussão entre os meus pais, geralmente elas terminavam com
a minha mãe a sair tempestuosamente de casa e eu ficava trancada na Gaiola até
ela regressar. A Gaiola possuía uma conduta de ar para extrair os cheiros da
cozinha. Depois de discutir com a minha mãe, o meu pai geralmente cozinhava
alguma coisa.
Recordo-me nitidamente desses momentos: estou trancada na Gaiola, e o
cheiro da comida que chega através da conduta de ar deixa-me com fome. Eu bato
à porta.
“Papá, tenho fome. Papá, tenho fome.”
O meu pai responde abrindo a porta e dando-me uma lata de massa. Depois
tranca-me de novo lá dentro. Fico a olhar para a lata, a qual, evidentemente, não
consigo abrir. Este era o meu castigo. Os meus pais deviam ter discutido por minha
causa. Eu estava a ser disciplinada por tê-los aborrecido. Num acto de rebelião, bato
com a lata repetidamente contra a parede.
Noutras ocasiões, era realmente mazinha e escrevia na parede. Antes de saber
escrever, conseguia garatujar no estuque por pintar mensagens que tinham
significado para mim e que nunca ninguém lia.
A minha mãe regressava a casa, o meu pai deixava-me sair da Gaiola e tudo
voltava ao normal. Normal era a palavra de ordem. Afinal, éramos a família perfeita,
cada um fechado no seu quarto.
A minha mãe era uma mulher pequena e bonita, com madeixas louras no seu
cabelo castanho e lábios generosos que sorriam com facilidade. Ao seu estilo, era
bastante atraente, e sabia-o. Tinha uma personalidade forte, uma entoação aguda
na voz e costumava levar a sua avante. Era impulsiva, mais voltada para a acção do
que para os pensamentos, vistosa no seu carro azul-claro. Elegante e meticulosa,
movia-se a passos largos e andava sempre atarefada. Isto por vezes conferia-lhe
um ar distante que contrastava com as suas blusas extravagantes e saias de marca
que balançavam ritmicamente enquanto se apressava nos seus saltos altos.
Passava cerca de uma hora, de manhã, a arranjar o cabelo e a maquilhar-se,
enquanto nós os três nos atarefávamos pela cozinha a fazer o pequeno-almoço,
tentando não nos atravessar no caminho uns dos outros. O pai era o primeiro a sair
para o trabalho. O Clive saía para a escola na sua bicicleta, e quando eu entrei para
a escola aos cinco anos, a mãe deixava-me lá a caminho do escritório.
Uma manhã, estava eu sentada na mesa da sala do pequeno- almoço enquanto
a minha mãe andava de um lado para o outro a reunir as suas coisas, quando ela
parou junto de mim e me perguntou: “Achas que devo deixá-lo?”
Ela estava a falar do marido, do meu pai. Eu sabia-o, embora não soubesse o
que responder. Aos cinco anos, vivemos num mundo à parte. O mundo das mamãs
e dos papás está para além do nosso entendimento. “Oh, não interessa”,
acrescentou a mãe com um suspiro de impaciência, enquanto caminhávamos
apressadamente em direcção ao carro, eu com os sapatos engraxados e ela com o
cabelo cheio de laca para manter os caracóis no lugar.
Eu e a minha mãe não nos entendíamos. Ela dizia que eu era uma criança
insuportável, que era uma tagarela, que fazia demasiadas perguntas. Eu era
hiperactiva, cheia de energia e estava sempre a reclamar a atenção dela. Sempre
que ela fazia um bolo, quando eu era pequena, trepava para um banco, ansiosa por
ajudar. “Mamã, posso mexer? Mamã, posso partir os ovos? Mamã, posso rapar a
taça?”
Estava a ser insuportável e ela aturava-me deixando que a ajudasse, mas em
parte eu sentia que estava a ser um incómodo. A minha mãe ocultava os seus
sentimentos e eu, sentada nos seus joelhos, aprendi a ocultar os meus. Houve uma
falha de comunicação crucial entre nós as duas quando eu era pequena e quando
atingi a puberdade já tinha construído uma muralha à minha volta, uma fachada que
escondia a minha instável auto-estima e na qual a minha mãe não conseguia
penetrar.
O meu irmão herdara a personalidade e a graciosidade da minha mãe, e a
aparência do pai dela, o nosso avô. O Clive vivia absorvido no seu próprio mundo.
Raramente levava amigos lá a casa. Não me lembro de alguma vez o ter ouvido
levantar a voz, zangar-se ou ouvir música muito alto. Era reservado, recatado e
solitário. Mas no Verão, quando o céu estava azul e os dias eram maiores, ele
tornava-se mais afável. E quando os irmãos mais velhos são afáveis, isso significa
brincadeira. Eu estava desejosa que alguém brincasse comigo.
O Clive sabia que eu adorava a minha colecção de peluches, os ursinhos, o
grande e suave Sr. Feliz e o meu Snoopy com o sorriso de esguelha. As vezes
estava na sala de estar a brincar, e o Snoopy aparecia do lado de fora da janela,
pendurado num pedaço de fio, do quarto da minha mãe. Eu lançava-me pelas
escadas acima e, nesse espaço de tempo, o Clive já deixara cair o Snoopy e
escondera-se no corredor. Quando eu entrava de rompante no quarto da minha
mãe, já ele estava a sair pelas portas de vidro no piso de baixo, ameaçando dar uma
tareia ao meu Snoopy.
Eu guinchava de deleite. Era preciso tão pouco para a minha vida ficar completa.
Eu ansiava que o Clive fosse sempre assim afável e brincalhão, mas tinha de me
contentar com as brincadeiras ocasionais. Nunca me fez rodopiar nos seus braços
nem nunca me levou a dar um passeio na barra transversal da sua bicicleta. O Clive
não sentia o impulso fraternal de me sentar nos seus joelhos enquanto estávamos
defronte da televisão. A mãe também não. Essa era a função do papá.
O meu pai era um homem de elevada estatura com feições fortes, sobrancelhas
negras e espessas e um cabelo negro que reluzia como o carvão sob a sua capa de
brilhantina. O risco era tão direito como uma linha traçada por uma régua, e tinha
uma zona calva no cocuruto, que por vezes coçava, deixando bocadinhos de pele
seca sob as unhas. Quando eu estava sentada no colo dele, a ver televisão, ou
quando ele estava a ler o jornal, ele coçava a cabeça e depois metia o dedo na
minha boca e eu chupava-o.
O meu pai albergava vagas desilusões e considerava-se superior aos vizinhos.
Fazia questão que as pessoas soubessem que era membro do melhor clube de
golfe, embora só jogasse uma vez por semana. Por vezes, contemplava com
melancolia a vida mais cosmopolita do irmão, um corretor da Bolsa de Londres. O
meu pai nunca viajava, excepto para os lugares longínquos que alcançava com o
seu rádio de ondas curtas. O som dos apitos e zumbidos do outro lado da porta do
seu quarto foi a banda sonora da minha infância.
É fácil agora enquanto adulta ver o quanto eu ansiava pela atenção do meu pai
quando era pequena. Receava-o e sentia-me atraída para ele tal como um objecto
de metal é atraído para um íman, da mesma forma que as crianças gostam de se
debruçar em lugares elevados e atravessam a rua sem olhar.
Quando o meu pai trabalhava no jardim durante o Verão, eu corria em volta dele
descalça e só de cuequinhas. Ele erguia-me nos seus braços e levava-me para o
barracão, que exalava um odor a serradura e a erva acabada de cortar, uma
atmosfera pacífica e organizada, com uma luz que se suavizava à medida que ia
entrando pelas pequenas janelas empoeiradas. Havia ferramentas com pegas de
madeira penduradas em suportes de parede, e frascos com pregos, parafusos,
porcas e aranhas dispostos sobre as prateleiras. As tampas tinham buracos para
que as aranhas pudessem respirar.
Ele sentava-me no banco e, de uma forma brincalhona, acenava um dedo
ameaçador na minha direcção. “Não te atrevas a mexer”, dizia, e eu obedecia-lhe.
Ficava ali sentada, com os ombros rígidos, os dentes cerrados e os meus pequenos
punhos apertados.
O meu pai adorava este jogo e jogávamo-lo com frequência. Podia ter o corpo
quente e húmido de suor por ter andado a correr, mas agora sentia um pavor frio,
como dedos gelados a subirem-me pela espinha, à medida que ele retirava os
insectos rastejantes dos frascos e os punha na minha barriga. Observava,
paralisada de horror, enquanto as suas patas peludas rastejavam pela minha pele.
Tentava não me mexer, mas as aranhas faziam-me cócegas e não conseguia evitar.
Torcia-me e contorcia-me e, nessa noite, sonhava que alguém entrava no meu
quarto. Essa pessoa fechava a porta, retirava os peluches da minha cama, puxava
as cobertas para trás e percorria o meu corpo com os dedos, como se fossem patas
de aranhas.
Quando era pequena, sonhava frequentemente com aranhas e até atingir os
meus doze anos, sonhava muitas vezes com chamas que rodopiavam em redor dos
meus pés, aquecendo-me os dedos sem os queimar. Estou nua da cintura para
baixo, deitada de barriga para cima a agitar as pernas como um bebé.
Desperto envolta em suores frios e, naquele momento de desorientação, tenho
quase a certeza de que vejo a imagem de um homem executando círculos com a
chama de um isqueiro junto aos dedos dos meus pés. A imagem é indistinta e
desaparece rapidamente. O que permanece é o gosto a uma substância química na
minha boca, como leite azedo. Visto a camisa de dormir, tranco-me na casa de
banho e lavo os dentes. Devo ser a adolescente de doze anos com os dentes mais
limpos de toda a Inglaterra.
Quando estes sonhos invadiam a minha mente, o meu estômago contraía-se
como se tivesse uma mão a apertar-me as entranhas, e aquele sabor amargo subia-
me de novo à garganta como se fosse bílis. Muitas vezes, sentia ardor ao urinar,
embora estivesse habituada a isso. Acontecia-me desde muito cedo. O pior era
aquela sensação de confusão na minha mente, uma sensação de que uma pequena
parte de mim fora deslocada ou reorganizada durante a noite, de que quando me
sentava na sanita de manhã, eu era eu, mas nos meus sonhos era alguém como eu,
mas outra pessoa.
Era muito confuso e pensava sempre em falar à minha mãe do sonho do
isqueiro. Queria perguntar-lhe o que significava. Mas nenhum momento parecia ser
o indicado. Andávamos sempre numa correria. Não falávamos de assuntos
pessoais. Fiz os possíveis por expulsar os pensamentos e as imagens da minha
cabeça mergulhando numa actividade frenética.
Adquirira o hábito de ir logo para casa depois da escola e fazer os trabalhos de
casa durante uma hora com os peluches a observá-los em seu lugar, empilhados
sobre a cama e na estante do meu quarto. Cozinhava para o Clive e para os meus
pais e tinha o jantar pronto para eles quando chegavam a casa. Não chegavam à
mesma hora, e não faziam as refeições juntos, por isso eu preparava três refeições
distintas à noite, cozinhando e lavando a loiça de cada uma das vezes, e
recomeçando tudo de novo.
Não era obrigada a cozinhar. Fazia-o porque queria, para me manter ocupada.
Trabalhos de casa. Tarefas da casa. Cortar tomates. Lavar a alface. Bater os ovos.
Por vezes, quando estava a fazer uma omeleta para o meu pai, dava por mim a
acrescentar muita manteiga sem saber por que razão o fazia. Na verdade, por vezes
parecia-me que não eram as minhas mãos que estavam a cortar a manteiga, mas as
mãos de uma estranha.
Eu preenchia todos os segundos com todo o tipo de tarefas, a torrente de
actividade empurrando os meus pesadelos cada vez mais para um lugar sombrio,
até que, como as sombras, eles se absorviam uns aos outros.
As visões horrendas que me perseguiam eram postas em confronto com a luz
brilhante das tardes de domingo quando a mãe nos levava, a mim e ao Clive, a
visitar os pais dela em Erdington. O pai raramente ia e quase nunca víamos a família
dele.
Visitar os meus avós era como ir de férias. Erdington parecia um país diferente,
mais modesto e, de certa forma, mais honesto. Tal como não tinha grande opinião
sobre os vizinhos, estou certa de que o meu pai considerava os pais da mulher, que
viviam numa modesta casa geminada, pessoas inferiores em comparação com o
seu grandioso estatuto de membro do melhor clube de golfe, advogado e homem
rico. O meu avô paterno falecera antes de eu nascer. A mãe dele, ao espreitar para
o berço quando nasci, dissera desdenhosamente à minha mãe: “Ela deve sair ao teu
lado da família.”
Essa mulher, que eu raramente via, chamava-se avó.
A minha avozinha era a mãe da minha mãe, uma mulher alegre e laboriosa que
só se sentia feliz quando estava atarefada. Tinha caracóis soltos de cabelo branco,
ancas largas e mãos vermelhas de estarem constantemente em contacto com a
água. Ela era como a avó do Capuchinho Vermelho com o nariz de botão e os olhos
brilhantes que davam a impressão de esconderem muito mais do que aquilo que ela
deixava transparecer. Trabalhou a meio-tempo num estabelecimento comercial em
Birmingham até se reformar. Tricotava casacos de malha e foi sempre uma boa
costureira até a artrite tornar os seus dedos nodosos e arqueados.
Ensinava-nos a fazer caramelos e pequenos bolos em forma de pastéis a que
dava o nome de folhados de maçã, e andava sempre atarefada a fazer dez coisas
ao mesmo tempo: a pôr a chaleira ao lume para o chá, a baixar o lume ao tabuleiro
de caramelos e a dispor os folhados de maçã nos pratos de louça Doulton com aros
dourados à volta. A repulsa persistente dos meus pesadelos dissipava-se da minha
mente e eu sentia-me feliz por estar viva naquela cozinha, com as grandes janelas
que davam para o jardim com as suas roseiras e canteiros de flores. O jardim devia
estar posicionado no sentido oposto ao nosso, pois estava sempre repleto de uma
luz acobreada.
O avô regressava a casa, depois de ter estado a arrancar as ervas daninhas,
ostentando um sorriso de orelha a orelha enquanto retirava os sapatos de trabalho e
calçava um par de pantufas de couro polidas, inclinando-se para me dar um beijo em
ambas as faces. Eu adorava a avó, mas o avô era a minha alma gémea. De acordo
com as histórias da família, quando eu nasci o meu avô segurou-me nos seus
braços, olhou-me nos olhos e disse: “Esta pequenina já cá esteve antes.” Contaram-
me esta história tantas vezes que deixou de ser folclore e passou a ser uma
lembrança.
O meu avô tinha uns olhos azul-claros que me fitavam com um amor puro e
incondicional. Eu não tinha de fazer nada nem de ser outra coisa para ser amada
pelo avô. Bastava-me ser eu, e isso era diferente da vida lá em casa, onde eu sentia
que carregava o fardo de manter a família unida. A nossa casa, com as suas linhas
divisórias e portas fechadas, com os quatro lugares à volta da mesa na sala do
pequeno-almoço ocupados apenas por uma pessoa de cada vez, era como o cubo
mágico que dava a volta à cabeça do meu irmão, um puzzle detestável que, por
muitas voltas e reviravoltas que se lhe desse, nunca se conseguia completar.
O avô estava a ficar surdo, mas isso só lhe tornava os outros sentidos mais
apurados. Havia sabedoria e, suspeito, um laivo de tristeza naqueles olhos azuis
perspicazes. Quando regressávamos a casa, abraçava-me com tanta força que era
como se não me quisesse deixar ir.
Éramos uma família tipicamente inglesa, evitávamos os assuntos pessoais,
tínhamos os nossos segredos e um sentido de que devíamos seguir em frente com a
vida. Mas quando olho para trás, através do emaranhado confuso das minhas
memórias, não consigo evitar pensar se o meu avô, astuto como era, se teria
apercebido de que nem tudo estava bem atrás da alta vedação de madeira, no lado
chique das Midlands.
O avô trabalhara como desenhador. Quando se reformou, aos sessenta e cinco
anos, arranjou um emprego a tempo parcial a catalogar os projectos e as plantas
para uma empresa de engenharia civil. Gravava placas de cobre e era um artista
competente com um traço leve e uma mão firme.
Eu pedia, “Avô, faz-me um desenho”, e ele pegava no seu caderno de rascunho
e desenhava como uma criança desenha, de forma natural e sem preparação, e
dava vida a uma paisagem impressionista, à medida que o lápis dançava pela
página. Ao longo dos anos desperdiçados no consumo de drogas, nos hospitais
psiquiátricos, nos sofás em apartamentos esquecidos, nas casas de amigos
esquecidos, consegui agarrar-me à imagem d'As Palmeiras Ondulantes das Ilhas
Tropicais, um desenho a esferográfica de duas palmeiras num horizonte longínquo,
e eu penso nessas duas palmeiras como sendo eu e o avô num lugar bem distante e
em segurança.
O avô pertencia àquela época em que os homens se orgulhavam de usar as
calças bem vincadas, uma camisa branca imaculada e uma gravata com um nó bem
feito. Tinha moedas dispostas em colunas na cómoda do seu quarto, de modo a ter
o dinheiro certo para o motorista do autocarro. Não tinha carro nem queria ter. No
autocarro podia-se falar com os outros passageiros, ou ir sentar-se no andar de cima
e observar o mundo a passar. Usava fato completo quando ia sair e preferia os
grossos casacos de malha que a avó tricotava para andar por casa, com os bolsos a
abarrotar de cordéis trazidos do jardim, rebuçados, um lenço enrodilhado e o seu
maço de cigarros Sénior Service. Batia com o cigarro no maço, para fixar o tabaco
antes de o acender, e o aroma daquele fumo, doce e forte, era o cheiro
característico do avô.
Não me recordo de alguma vez ouvir o meu avô dizer mal de alguém. Tinha
sempre um sorriso na cara e fazia-me rir às gargalhadas quando me contava as
suas histórias, independentemente das vezes que as escutava.
Aos doze anos, tive a oportunidade de fazer um cruzeiro pelo Mediterrâneo até
Israel, com a minha escola. O avô pagou as duzentas libras de sinal. Quando me
deu o cheque, ajoelhou-se junto à parede da sala de estar, balançou-se para trás e
para a frente, e lamuriou-se da mesma forma que os crentes fazem junto ao famoso
Muro das Lamentações, em Jerusalém. Isto fez-me rir até as lágrimas me correrem
pelas faces.
Viajámos de avião até Split, na antiga Jugoslávia, depois embarcámos no Bolívia
e partimos sob um intenso temporal pelo mar Egeu em direcção a Haifa, em Israel.
O mar estava muito agitado, o navio balançava como um ébrio de um lado para o
outro, e nós observávamos dos nossos beliches a nossa bagagem a ser lançada de
trás para a frente, pelo chão do dormitório. A maioria das raparigas vomitou, mas eu
parecia possuir uma costela de marinheiro e desfrutei da sensação de aventura, da
ideia de que o navio estava a lutar contra as adversidades e de que atravessaríamos
juntos a tempestade. Era a primeira vez que viajava completamente sozinha, e
naquelas ondas furiosas, enquanto as raparigas à minha volta estavam enjoadas e
histéricas, eu nunca me sentira mais relaxada em toda a minha vida.
A bordo do Bolívia não havia passado, apenas aquele momento. A minha mente
estava desanuviada. Os pesadelos tinham sido levados pelo vendaval e depositados
no fundo do mar. Era como se os sacos e as mochilas no chão do dormitório fossem
os pensamentos que normalmente chocalhavam no interior da minha cabeça,
libertados para escorregarem e deslizarem livremente pelo chão. Eu gritei, porque
todas as raparigas estavam a gritar, é o que as raparigas fazem, mas secretamente
sentia-me muito feliz.
O mar parecia reflectir os meus pensamentos e quando o navio atracou no porto
de Haifa, no dia de Natal, estava calmo. Precipitámo-nos para a camioneta que
estava à nossa espera e eu observei a Terra Santa revelar-se perante os meus
olhos à medida que serpenteávamos pela antiga paisagem até Jerusalém. Quando
avistei o Muro das Lamentações soltei umas risadinhas abafadas ao recordar-me do
avô ajoelhado na sala de estar. Iria recordar-me desse dia muitas vezes e vim a
aperceber-me de que a minha mãe também tinha sentido de humor. Ela ria-se tanto
quanto eu quando o pai dela fazia figura de pateta, como ela dizia, e admirava-o
porque ele tinha a confiança para ser ele mesmo.
Viajámos para Belém e visitámos a Igreja da Natividade, o local do nascimento
de Cristo, depois regressámos a Jerusalém para visitar a câmara da Ultima Ceia e,
em seguida, encaminhámo-nos para a igreja construída no Monte Calvário, onde se
pensa que Jesus foi crucificado. Após um passeio de burro, sentia-me esfomeada e
tivemos um almoço tardio no Monte das Oliveiras, onde consta que Jesus alimentou
5000 pessoas com dois pães e cinco peixes.
Encontrávamo-nos no berço da civilização, com ligações históricas às três
grandes religiões do mundo ocidental: judaísmo, cristianismo e islamismo. Para mim
foi um choque, enquanto adolescente de doze anos, ver estes lugares santos a
serem patrulhados por soldados israelitas armados. Os assuntos do mundo nunca
me tinham tocado antes, mas viajar abre a mente, e durante essa visita de estudo
ocorreu-me que quanto mais a minha mente se abrisse, melhor; quanto mais
informações reunisse, menos espaço haveria para os pesadelos e memórias
distorcidas.
Telefonei aos meus pais utilizando o rádio do navio para lhes desejar um feliz
Natal enquanto navegávamos para Rodes, a ilha dos cruzados, famosa pela
acrópole de Lindos, uma subida de quase 115 metros por degraus de pedra talhados
na colina sobre a Cidade Velha. Uma visão que, de acordo com o meu guia, “uma
vez vista, jamais será esquecida”. Atravessámos o Mediterrâneo para a Turquia,
onde me empanturrei de um doce turco confeccionado com água de rosas,
polvilhado com coco e aromatizado com hortelã, pis- tacho e canela. As palavras e
os sabores eram novidade para mim, assim como a visão de mulheres com véus,
cobertas com longas vestes, os minaretes acima das mesquitas, e ruídos como o
grito do muezim a chamar os fiéis para a oração, um som tão idêntico aos versos
entoados no Muro das Lamentações que poderia ter sido um eco.
A enorme sirene do Bolívia soou e nós navegámos através de um mar sereno
até à ilha de Santorini. Em fila indiana, subimos pelo trilho irregular para
contemplarmos fascinados a orla em forma de meia-lua da maior cratera vulcânica
da Europa, a suposta localização da cidade perdida de Atlântida. Na véspera de Ano
Novo, chegámos a Heraclião, em Creta, onde passámos o dia a explorar as ruínas
de Knossos e eu comprei presentes para a minha família: um saco de pano para a
mãe, um cinto para o Clive, um cinzeiro de cerâmica para o avô, algo para o pai e
algo para a avó.
A nossa paragem final no dia de Ano Novo foi em Valletta, uma cidade portuária,
capital de Malta, e voltei para casa com a minha mochila repleta de rolos fotográficos
e a cabeça a vibrar com todas as datas e maravilhas arqueológicas que estava
ansiosa por partilhar com o meu avô.
Entrei apressadamente em casa a sorrir, mas a minha mãe parecia” estar de
mau humor e sentou-me na cozinha. “O que foi agora?”, pensei. Ela disse-me que o
meu avô sofrera um ataque cardíaco na véspera de Natal e estava entre a vida e a
morte.
- Porque é que não me disseste?
- Para quê, para arruinar as tuas férias?
Rompi num pranto.
O avô estava entre a vida e a morte. A frase era aterradora e eu mal podia
esperar até ao fim do dia para que pudéssemos ir visitá-lo ao hospital. Desfiz as
malas e quando encontrei o cinzeiro do avô quebrado pareceu-me um mau
presságio.
Assim que as portas duplas se abriram à hora da visita, corri para a enfermaria
usando um fez turco. O avô estava pálido e parecia mais velho deitado naquele leito
com o pijama às riscas. Mas no momento em que me viu, endireitou-se na cama,
pegou no fez vermelho e colocou-o na sua própria cabeça. Pegou-me na mão. “O
que faria eu sem a minha bonequinha?” disse, e daquele dia em diante começou a
melhorar.
CAPÍTULO 2

CORRER E PASSAR FOME

Muitas vezes sentia-me como se estivesse a desempenhar um papel, como se


estivéssemos todos a desempenhar um papel numa telenovela: o pai que trabalha
arduamente para sustentar a família, a mãe que ama o seu marido, os filhos
emocionalmente equilibrados, sem nenhuma preocupação no mundo. Os pequenos
altos e baixos serviam como conflitos menores que eram rapidamente resolvidos, e
o drama progredia para uma conclusão inevitável mas obscura. Excepto quando
estava em casa dos meus avós, o meu sorriso era sempre falso. Eu estava
constantemente a observar-me, sempre a tentar ver-me como as outras pessoas me
viam. Nunca era natural, era sempre um logro, e os outros actores pareciam tão
bons a desempenhar os seus papéis como eu era a desempenhar o meu.
A família que aparentávamos ser era perfeitamente normal. Tínhamos as nossas
festas de aniversário, assistíamos juntos aos programas de televisão e fazíamos
churrascos no jardim. No Verão, durante o torneio de Wimbledon, o Clive montava
uma rede improvisada usando a corda da roupa e jogávamos ténis. O meu pai
ensinou-me a servir, segurando-me na posição correcta. “Faz assim... não, não, não,
tens de acompanhar o movimento da raquete... Não é assim. Estica o braço. Arqueia
as costas... Não. Não. Não. Faz outra vez.” Eu estava em sintonia com a mais subtil
mudança de tom, a sensação das mãos do meu pai nos meus braços, o corpo dele
pressionado contra as minhas costas. A minha mãe vinha trotando pelo caminho do
jardim nos seus saltos altos, transportando uma bandeja com limonada e cubos de
gelo a chocalharem nos copos. Nós fazíamos uma pausa, ofegantes, e depois
corríamos à procura das bolas perdidas.
Mas havia algo de errado. Faltava qualquer coisa. Eu sabia disso, e sentia que o
resto da minha família também o sabia.
A mãe parecia estar feliz quando ia trabalhar e parecia estar feliz até ao
momento em que parava na entrada, metia o carro na garagem e entrava em casa.
A sua felicidade encontrava-se fora daquelas quatro paredes. O pai parecia estar
sempre prestes a dizer algo; aquele som engasgado na sua garganta ia ser uma
espécie de revelação para uma mudança de vida, mas o momento da revelação
permaneceu na câmara sufocante da sua mente até que definhou e pereceu.
Agora que o Clive tinha quase dezassete anos, não ia com tanta frequência até
à casa dos nossos avós. Tinha interesses mais prementes, incluindo uma namorada.
Eu ia todos os domingos e não teria deixado de ir nem que tivesse uma dúzia de
namorados, não que tivesse algum. O avô foi melhorando. Parecia um milagre e eu
não conseguia deixar de me interrogar se não teria sido a minha visita à Terra Santa
que pusera algum anjo da guarda em acção.
Depois do ataque cardíaco, diagnosticaram ao avô diabetes e teve de alterar a
dieta. A avó parou de fazer folhados de maçã. Começou a preparar pescada,
abarrotou a despensa com fruta fresca e vegetais, e verificava as calorias e o teor de
açúcar no rótulo de todos os frascos com uma lupa. Quando eu chegava lá a casa, o
avô levava- -me rapidamente para o jardim para me mostrar o que estava a plantar
na sua estufa. Fechava a porta e agia como um espião ao mostrar-me uma tablete
de caramelo. Partia-a e comia um pedaço.
- Não digas à avó - pedia-me.
- Mas avô, não devia comer isso, é contra as regras.
- A vida é demasiado curta para tantas regras - resmungava, e ali ficávamos nós
a chupar os nossos caramelos.
Nesses momentos, os sonhos que me assombravam pareciam-me
particularmente perversos e obscenos. Eu estava sempre a imaginar um homem a
entrar no meu quarto a meio da noite, a despir-me a roupa, a acariciar o meu corpo,
a afastar-me as pernas e a tocar-me em lugares que não deveria. Assim que abria
os olhos de manhã, naqueles primeiros momentos fragmentários, tinha visões
fugazes e meio formadas de cenas que eram tão hediondas que corria para o
chuveiro para fazer dissipar essas imagens do meu cérebro sob a água quente. Eu
era uma pessoa má por permitir que esses pensamentos sujos entrassem na minha
mente. Ficava na estufa a tentar falar ao avô das coisas horríveis que eu imaginava,
mas pelo menos nisso era como o meu pai, e deixava as palavras desfazerem-se
em pó na minha garganta.
Se por momentos aparentava estar abatida, o avô dava-me imediatamente um
abraço. Eu não suportava qualquer tipo de contacto físico: o modo como as
raparigas da escola andam pelos corredores de braço dado ou a forma como um
estranho se senta muito próximo no autocarro. Eu retraía-me e afastava-me de
todas as pessoas, excepto do avô. Sentia-me segura quando ele me envolvia nos
seus braços, vestido com o seu casaco de malha.
- És feliz, boneca? - perguntava-me.
- Sim, sim. Muito feliz, avô.
- Toma, come outro pedaço de caramelo. Não quero que desapareças, estás tão
magra como uma lufada de ar fresco.
Eu sorria e comia mais um pedaço de caramelo.
- Sinto-me sempre feliz quando estou aqui - respondia.
- Sim, eu sei, mas e durante o resto do tempo, também és feliz?
- Sim, claro que sim - assegurava-lhe.
- Assim é que é. Sabes o que eu sempre digo: não deixes que os
acontecimentos da vida te tornem amarga, deixa que te enriqueçam.
Lembro-me daquelas palavras com muita clareza.
Durante as nossas visitas diárias ao meu avô antes de ele sair do hospital, eu e
a mãe tínhamo-nos tornado mais próximas e apesar de os meus pesadelos serem
cada vez mais frequentes e mais vívidos, eu não queria estragar essa proximidade
tentando descrevê-los. Aos doze anos, não tinha palavras para explicar o que estava
a ver, porque o que eu estava a ver era fugaz e desfocado. Era como folhear as
páginas de um livro ilustrado ou uma história aos quadradinhos, com as imagens a
chocarem umas com as outras. Se alguém me tivesse perguntàdo o que eu vira, eu
não seria capaz de descrever tudo de uma forma conclusiva, apenas pedaços
aleatórios, como se fosse uma colagem: uma língua, um olho, um par de mãos
grandes, um isqueiro a circundar os meus pés, dando aos meus dedos um tom rosa-
vivo na escuridão.
Era melhor não dizer nada. Talvez desaparecesse tudo. Talvez isso fizesse
parte do crescimento, da preparação para o mundo adulto. A minha mãe aparentara
estar deprimida antes do ataque do coração do avô e, se fosse esse o caso, tinha-o
superado e andava mais animada. Vestia-se cada vez com mais estilo, com cores
mais garridas, mais moderna e menos provinciana. Tentou incentivar-me a fazer o
mesmo. Fomos às compras e vimos vestidos muito bonitos, apesar de isso não ter
qualquer importância para mim.
Fiz treze anos e sentia-me como se estivesse a perder alguma coisa, ou como
se houvesse algo que eu já perdera e jamais recuperaria. Estava a perder a noção
de quem eu era dentro do meu próprio corpo. A única forma de conseguir manter
algum controlo era através do que comia, que era cada vez menos, e eventualmente
passou a ser quase nada.
Várias vezes por dia, dava por mim inesperadamente no quarto do meu pai, um
lugar escuro e masculino onde eu normalmente não me atreveria a ir. Mas por
alguma razão, havia uma balança de casa de banho num dos cantos e eu ficava a
olhar para baixo, para o mostrador giratório, para me certificar de que não engordara
desde a última vez que me pesara, umas horas antes. Não tomava o pequeno-
almoço nem o almoço, excepto talvez uma peça de fruta, e empanturrava-me com
uma simples sanduíche de salada sem manteiga ao jantar.
A mãe preocupava-se por eu estar tão magra e a sua preocupação transformou-
se em terror quando um dos seus amigos sugeriu, depois de ver um anúncio na
televisão sobre drogas, que eu podia estar viciada em heroína.
- Heroína? O que é isso? - perguntei-lhe.
Isto acalmou a minha mãe e eu fugi para a casa de banho, onde me podia despir
em privado e olhar para o espelho durante muito tempo para me certificar de que
não tinha ganhado nenhum grama de peso desnecessário. Aos treze anos, os meus
seios estavam a crescer e uma das vantagens da anorexia é que atrasa o processo
da puberdade. Durante um ano não tive período. Já via imagens sexuais nos meus
sonhos, não queria vê-las também no espelho. Escondia-me dentro de T-shirts
largas e jeans. Eu era um génio no hóquei, fazendo deslizar a bola sob o flanco
como um relâmpago. Queria ser realmente muito rápida e seguia um regime estrito
de jogging.
Levantava-me todas as manhãs por volta das sete horas e, independentemente
do tempo, corria pelas ruas durante uma hora. Tomava um duche, engolia uma
banana e meia maçã, bebia muita água e corria para a escola, onde nunca tinham
de me dizer que trabalhasse com afinco. Na escola secundária de Dane Hall eu era
a menina inteligente, a marrona, a vencedora de prémios, que sempre invejou as
raparigas descontraídas que conversavam sobre namorados e estrelas pop.
Isso não significa que não estivesse atenta à moda. As sweatshirts demasiado
largas eram muito usadas. Eram muito convenientes para mim. As raparigas
vestidas à moda pavoneavam-se em tops de néon e caneleiras, os rapazes em
jeans descoloridos, os punhos nos seus blazers de escola azuis enrolados para
cima, a imitar o Don Johnson em Miami Vice. No início dos anos oitenta, todos os
jovens ouviam Depeche Mode, Human League, Spandau Ballet, as bandas da New
Wave que usavam sintetizadores e baterias electrónicas.
Eu já era considerada excêntrica e totalmente estranha devido à minha atracção
pelos The Who e Pink Floyd. Ouvia as canções deles repetidamente no meu
walkman. Era como se tivessem sido escritas só para mim.
Havia na minha família uma sensação de desespero a que todos nos
agarrávamos: o pai ao seu ar fútil de superioridade; a mãe à concha vazia do seu
casamento; eu à minha infância perdida; o avô à preciosa vida. Detestava ir para a
cama à noite e ter pesadelos, sonhos sexuais, sonhos hediondos, despertar um dia
mais velha, correr de madrugada, cada vez mais magra. As vezes sentia-me como
uma sombra que desapareceria quando o sol despontasse sobre os telhados.
Os dias e os meses passaram em espirais de actividade esquecida: a nota
máxima por um trabalho de casa cuidadosamente escrito e imediatamente
esquecido; o golo marcado no hóquei; o prémio que o Clive conquistou ao derrotar
três adversários numa partida de crí- quete lá da escola. O jardim mudou de cores
no final do Verão. Os presentes de Natal foram cuidadosamente comprados e
trocados com uma emoção artificial. O episódio especial de Natal da telenovela foi
transmitido.
Outro aniversário. Catorze. Nalgumas culturas, eu seria uma mulher. Sinto-me
como uma mulher. Sinto-me como uma criança. Sinto-me como um bebé. Tenho
sentimentos diferentes em momentos diferentes e não tenho ideia de como devo
sentir-me e que sentimento pertence ao eu que sou eu.
O meu pai converteu-se num autêntico estranho, só falando comigo em raras
ocasiões e de uma forma que me fazia sentir desconfortável. Quando tinha algo para
fazer depois da escola, ou ia a alguma festa de aniversário no fim-de-semana, ele
adquiriu o hábito de me perguntar se eu andava com alguém.
- O que fazes nessas festas? Tens namorado? Ele beija bem?
Eu balbuciava uma resposta envergonhada. Como jovem adolescente, o sexo
era a última coisa que tinha em mente. Pelo contrário, enquanto as raparigas se
interessavam por maquilhagem e por rapazes, eu queria distanciar-me de todos
esses pensamentos. Preenchia a minha vida com uma intensa actividade. Ainda
fazia o jantar na maior parte das noites. Estudava com tanto afinco na escola que
não podia deixar de ser a primeira em tudo. Lia até me doerem os olhos, e corria e
jogava hóquei até cair exausta na cama à noite, na esperança de que os sonhos
ficassem longe e me deixassem em paz.
Não deixavam. Os pesadelos aconteciam em ciclos, uns desapareciam e outros
tomavam o seu lugar. Ainda acordava com um sabor desagradável na boca e olhava
fixamente para o frasco de aftershave na estante da casa de banho enquanto lavava
os dentes. O cheiro do aftershave do meu pai parecia encher a casa. Impregnava o
meu quarto, agarrando-se ao pêlo dos ursinhos de peluche. Observava o frasco e
imaginava-me a parti-lo na banheira, mas é claro que nunca o fiz.
O pai assombrava a casa como um fantasma. Chegava tarde, comia sozinho,
fechava-se no seu quarto com o rádio de ondas curtas, os assobios e os zumbidos a
conjurarem cenas na minha cabeça que eram tão sórdidas e surreais que poderiam
ter sido murais pintados por Salvador Dali. Tinha surtos de emoções conflituosas.
Umas vezes sentia pena do meu pai, que parecia solitário e recluso, e outras tinha
crises de um ódio inexplicável, quando despertava de um pesadelo na obscuridade
da noite e dava por mim a sussurrar uma oração: “Oxalá estivesses morto. Oxalá
estivesses morto. Oxalá estivesses morto.”
Um dia ensolarado no final de Maio, o meu treino foi cancelado e eu fui para
casa planeando fazer os trabalhos de casa cedo para ficar com menos uma coisa
com que me preocupar. A medida que atravessava o jardim da frente, apercebi-me
de que me esquecera das :chaves de casa. Havia um carro na entrada, por isso
sabia que havia alguém lá dentro e toquei à campainha. Não houve resposta. Toquei
novamente, mantendo o dedo na campainha. Depois daquilo que me pareceu uma
eternidade, a minha mãe veio abrir. O cabelo dela, sempre tão bem-arranjado,
estava despenteado, tinha os olhos brilhantes : . enquanto se encaminhava para a
sala do pequeno-almoço, reparei que tinha o fecho da saia aberto.
- Tive uma enxaqueca e o Stephen trouxe-me a casa - explicou com indiferença.
O Stephen era o seu patrão. - Estava a preparar-se para me ditar umas cartas.
“Estranha actividade para alguém com uma enxaqueca”, pensei.
Nesse momento, ouvi o Stephen a descer as escadas a assobiar. Entrou na
cozinha a sorrir. Tinha o cabelo molhado e penteado para trás, e estava sem o
casaco e a gravata.
- Olá, estás em casa - disse-me ele.
Não respondi.
Saí da cozinha, subi as escadas e fui ao quarto da minha mãe. As roupas de
cama estavam puxadas para trás. Passei a mão sobre o lençol de baixo. Ainda
estava quente. Não sei porque fiz aquilo. E não sei por que razão me senti enojada
com esta descoberta. Senti-me traída. Bem no fundo de mim, sabia desde os meus
cinco anos de idade que a minha mãe tinha um caso amoroso. Mas senti-me mal por
ter descoberto daquela forma, vê-la com a saia desapertada, a sensação de calor na
palma da minha mão ao passá-la pelo lençol. Era como se a minha mãe me tivesse
enganado a mim, e não ao meu pai.
No meu quarto, atirei os livros para a cama e escrevi um ensaio sobre a
conquista romana. Correr. Passar fome. Mergulhar no trabalho. Tinha um arsenal de
dispositivos para me impedir de pensar no presente, ou de remoer o passado.
Estava a viver na minha cabeça, a punir o meu corpo, a correr, ao que parecia, em
círculos, sem chegar a lugar algum.
Quando o Stephen saiu, a minha mãe subiu as escadas em bicos de pés e
bateu na minha porta antes de entrar.
- Está tudo bem?
- Porque não deveria estar?
- Hoje nem pareces tu.
- Eu nunca sou eu mesma - respondi.
Ela soltou aquele suspiro impaciente que as mães reservam às filhas
adolescentes e, quando saiu, fiquei a pensar nessa troca de palavras.
“Hoje nem pareces tu”.
“Eu nunca sou eu mesma”.
Foram as palavras mais honestas que alguma vez dissemos uma à outra. Era o
meu “eu” que eu estava a tentar encontrar. Por vezes, fechava os olhos e fingia que
era outra pessoa com a missão de explorar os corredores do meu cérebro em busca
de respostas para enigmas obscuros, a origem e o significado dos meus sonhos,
que estavam cada vez mais lúcidos, menos fragmentados, os excertos do filme a
encaixarem-se numa narrativa. Eu estava ressentida com a minha mãe, não por ela
estar a ter relações sexuais com o Stephen, mas por isso ter permitido que o
espectro do sexo abrisse a porta da rua, subisse as escadas e entrasse na sua
cama. O sexo era hediondo, repugnante, terrível, era o fantasma que nunca
ninguém vira, mas cuja presença era sentida por todos.
No fim-de-semana seguinte, o sexo voltou para me atormentar. O meu pai tinha
um amigo que aparecia para se vangloriar de cada vez que comprava um carro
novo. Ouvira a mãe dizer que ele era um “patife exibicionista” e que não gostava
dele. Mas o meu pai sentia-se impressionado com este homem. Ele era o director
executivo de uma empresa da região e membro do mesmo clube de golfe.
Eles tinham estado lá fora a admirar o Jaguar, que era elegante e negro. Eu
estava na sala de estar e, quando eles entraram, o pai dei- xou-me sozinha com
este amigo enquanto foi buscar qualquer coisa. O homem era espalhafatoso, seguro
de si e todo sorrisos. Aproximou-se de mim como que para me cumprimentar, mas
abraçou-me imediatamente e acariciou-me os seios.
A minha mãe apareceu por acaso nesse momento e atravessou a sala como um
relâmpago.
- Ei, tu, afasta-te - bradou.
Ele limitou-se a soltar uma gargalhada e a afastar-se. Subi as escadas a correr e
fiz algo que já não fazia há muito tempo: escondi-me na Gaiola.
Nessa noite não comi nada. Na manhã seguinte, depois da corrida, enquanto a
minha mãe estava no piso de cima a preparar-se para o emprego, retirei da cozinha
um copo de plástico com tampa de rosca e enchi-o com um cocktail de whisky, gin,
vodka e aguardente. Verti um pouco do conteúdo de cada uma das garrafas do
armário das bebidas para que ninguém notasse a diferença. O meu coração
palpitava e sentia um espasmo no pescoço. Assistira a programas na televisão em
que, após os acidentes, as vítimas precisavam de um whisky ou de um conhaque
para acalmar os nervos, e era exactamente o que eu precisava para me ajudar a
passar o dia.
Na escola, sorvi uns goles da minha mistura secreta e a sensação era
inebriante. O meu cérebro estava entorpecido. Sentia-me feliz. Em casa, era como
se estivesse cercada por tudo o que era lascivo e insinuante. As mulheres na
televisão meneavam-se pelo ecrã com os seios expostos. Havia anúncios para o
novo filme Splash, a Sereia que mostrava Daryl Hannah praticamente despida. A
namorada do Clive apareceu lá em casa, o que era raro, bateu à porta do meu
quarto e entrou vestida com um top e uns jeans justos que mostravam a forma do
seu rabo.
- O que se passa contigo? - perguntou.
- Não se passa nada. E contigo?
- Porque é que não te alimentas como deve ser?
- Porque é que não te metes na tua vida?
Foi uma conversa repleta de perguntas e sem nenhuma resposta.
Ela voltou-se e retirou a sua bonita figura do meu quarto e eu sentei-me no canto
com o Sr. Feliz, não me sentindo nada feliz.
O sexo estava por toda a parte, nas imagens grosseiras que atormentavam os
meus sonhos, na memória da minha mãe dançando pela casa com a saia
desapertada, no Stephen com o cabelo molhado e o assobio alegre. A combinação
destas cenas, junto com a tensão da puberdade e da anorexia, criava um sentimento
constante de confusão e dor.
O álcool aliviava essa dor. No dia seguinte, enchi de novo o copo de plástico. E
no outro a seguir. E depois no outro. Para mim o tempo é, e sempre foi, vago,
caprichoso e imprevisível. Não flui com um movimento constante, mas sim como o
fluxo e o refluxo da maré, impossível de verificar ou de medir. Eu bebia pequenos
goles, observava os níveis a descer e, abracadabra, as garrafas vazias
desapareciam, eram substituídas por outras, e nunca ninguém descobriu que era eu
que me infiltrava no armário das bebidas com o meu copo de plástico.
Mas todas as coisas boas têm o seu lado negativo. A seguir à bebida vem a
ressaca. Os amigos e professores começaram a notar o cheiro a álcool no meu
hálito e perceberam que eu estava sempre afastada dos outros e deprimida. O outro
problema da bebida é que nos deixa sonolentos, e uma vez a melhor aluna da sala
foi apanhada a ressonar numa aula de Matemática.
Como os petroleiros no mar, as escolas movem-se lentamente, mas depois de
várias semanas, Mr. Keating, o director de turma, chamou-me ao seu gabinete e
deu-me um recorte de um jornal local sobre crianças que tinham pais alcoólicos.
Presumira que eu estava a imitar os meus pais, e este foi o primeiro de uma vida
inteira de pressupostos errados, diagnósticos incorrectos, de não entenderem nada
do que realmente se estava a passar.
Mr. Keating marcou-me uma consulta com uma psicóloga clínica e acompanhou-
me à Child and Family Unit na clínica Naydon, um anexo ao hospital de dia para
adultos. Não falei aos meus pais da consulta, e não me sentia inclinada a explicar o
meu gosto recém-adquirido pelo álcool à psicóloga, uma mulher alta e pálida que
parecia uma aparição, ali sentada com a luz de Inverno a incidir-lhe por trás, no seu
pequeno gabinete de tecto baixo. Mr. Keating permaneceu comigo no início, mas
depois a mulher alta pediu-lhe que saísse para que ela pudesse colocar-me algumas
questões em privado.
Fez uma pirâmide com os dedos, enquanto eu permanecia sentada numa
cadeira baixa, com a minha saia azul-marinha da escola pelos joelhos, a mexer com
os dedos nas riscas azuis e vermelhas da minha gravata da escola. Ela queria
construir uma árvore genealógica e eu fiquei a observá-la enquanto ela desenhava
uma complexa sequência de círculos e setas que tocou nalguma memória oculta,
profunda e tenebrosa, e me fez sentir desconfortável. Usou os dedos para
especificar os assuntos que pretendia que eu abordasse:
A minha relação com a minha mãe e com o meu pai.
O que eu sentia por eles.
O que eu pensava que eles sentiam por mim. E, o mais importante, o que eu
pensava de mim.
Aquilo era ridículo. Eu andava a tentar responder a estas perguntas desde que
nascera e não podia, assim de repente, dar uma forma à confusão que reinava na
minha cabeça. Fez-me perguntas sobre os meus sonhos e a simples menção deles
era tão agonizante que lhe respondi que era daquelas pessoas que nunca
sonhavam.
- Ah, mas todas as pessoas sonham.
- Mas nem todas se lembram.
- Ou não se querem lembrar?
- Sim, isso mesmo - respondi.
Marquei outra consulta, mas não apareci. Na minha ideia, todo aquele exercício
era um desperdício de energia e não tinha intenções de lá voltar.
O que a psicóloga não sabia, e nunca viria a saber porque eu nunca lhe disse,
foi que as suas perguntas tinham inadvertidamente acendido uma luz na minha
mente. Nessa noite, quando estava na cama abraçada ao Sr. Feliz, veio-me à
memória o sonho da chama do isqueiro.
Tenho dois anos. A porta do quarto abre-se e, na ténue claridade da luz
nocturna, vejo um homem entrar no quarto. Ele puxa a roupa da cama para trás,
leva o dedo aos meus lábios e, com a outra mão, acende o isqueiro da minha mãe.
Move a chama junto aos meus pés e eu contorço-me e agito os pés. Quero fugir,
mas não consigo. Ele é muito grande, muito forte, e tem um dedo enorme
pressionado contra os meus lábios. Inclina-se para a frente e, pela primeira vez, no
fulgor da chama azul, reconheço o rosto do meu pai. O estranho é que não estou
surpresa ou amedrontada. Fico confortada com a sensação de familiaridade.
Quando afasta o isqueiro, sorri. Eu retribuo o sorriso. Ele despe-me o pijama e
brinca comigo, fazendo-me cócegas. Humedece o dedo e fá-lo deslizar por entre os
lábios da minha vagina. Depois abre o fecho das calças e tira a pila para fora.
Segura-me na cabeça, eu abro a boca sem que ele me diga para o fazer e ele
introduz a pila na minha boca. Impulsiona-se para a frente e para trás e enche-me a
boca com um líquido amargo que sabe a leite azedo.
Vejo essa cena muito claramente. Sinto que, de alguma forma, ela me é familiar,
que aconteceu muitas vezes, embora os pormenores possam variar ligeiramente.
Por vezes, introduz a pila na minha boca para a humedecer e, em seguida, sobe
para a minha cama e empurra-a para dentro da minha vagina. Outras vezes, vira-me
de barriga para baixo e introduz a pila no meu rabo. Dói muito. Tenho o rosto
pressionado contra a almofada. Faço os possíveis por não chorar porque não quero
que o meu pai fique triste.
Ao longo das semanas seguintes, continuei a decompor os sonhos em que ele
vinha ao meu quarto e era como alterar as formas num caleidoscópio, mudar o
padrão, analisar as peças e reconstruí-lo esperando que a imagem fosse diferente.
Porque agora, pela primeira vez, eu começava a interrogar-me se não eram sonhos,
se tinham realmente acontecido.
Estava a tentar agarrar-me a algo tangível, algo mais do que uma sensação, e
quanto mais tentava, mais me parecia uma ilusão. Se estas coisas tinham realmente
acontecido, como é que eu podia tê-las esquecido? Estas coisas não se esquecem.
Não é possível. Repeti a mim mesma várias vezes que aquilo não era verdade.
CAPÍTULO 3

QUATRO ROSTOS

A 3 de Março de 1985, o telefone acordou-me às primeiras horas da manhã.


As portas abriam-se e fechavam-se. Por baixo da porta do meu quarto entrava a
luz vinda do corredor. Levantei-me e espreitei lá para fora e vi a minha mãe sair da
casa de banho a escovar os cabelos.
- É o avô - disse, e correu pelas escadas abaixo. - Vou ao hospital.
- Espera por mim - pedi.
- Não há tempo, Alice.
Ouvi a porta da rua a fechar-se com um estrondo e o carro dela a arrancar.
Quando ela regressou, uma hora mais tarde, eu ainda estava acordada e à escuta.
Ouvi a chave a girar na fechadura. O meu coração disparou quando ela subiu as
escadas. Estivera muito pouco tempo no hospital. Isso tanto podia ser uma boa
notícia como uma má notícia, e fiquei na cama, tentando decidir qual delas era.
Quando finalmente fui ao quarto da minha mãe, ela já estava deitada. Parecia
exausta. Tinha os olhos inchados e não tinha maquilhagem. Ao ver-me, puxou a
roupa da cama para trás e eu fiquei imóvel à porta do quarto, considerando esta
súbita demonstração de carinho e sabendo o que ela devia significar.
- Anda cá - disse ela.
Eu permaneci imóvel.
Senti uma pontada súbita no estômago. A minha cabeça rodopiava. A mãe
exibiu um sorriso débil. Deu uma palmadinha na cama e eu arrastei-me para o calor
dos seus lençóis. Ela lançou os braços em meu redor e apertou-me contra si. Não
sabia se ela estava a abraçar-me por mim ou por ela mesma. Conseguia sentir as
formas e o calor do seu corpo. Eu emagrecera tanto que chegara aos trinta e oito
quilos e sentia-me como um bebé a regressar ao útero, um canguru bebé enroscado
na sua bolsa. Era difícil, naquele momento, pensar no meu avô.
- Ele teve outro ataque de coração - sussurrou ela. - Foi rápido.
- Rápido?
- O avô morreu.
- O avô morreu. O avô morreu. O avô morreu.
Repeti as palavras para mim mesma como se fossem verbos franceses,
interiorizando-as.
As lágrimas corriam-me pelo rosto e molhavam a almofada. Teria eu
negligenciado o avô durante as últimas semanas? Não houvera tempo para dizer
adeus, para um último abraço. “Não permitas que os acontecimentos da vida te
tornem amarga, deixa que te enriqueçam.” Era assim o meu avô. Creio que todas as
pessoas são compostas de uma mistura de características boas e más. Há entre nós
psicopatas e pedófilos, mas poucas pessoas são totalmente más e poucas são
totalmente boas. Penso que o meu avô era das poucas pessoas totalmente boas.
Ele era a minha rede de segurança, a minha zona de conforto. Eu tornara-me
dependente da sua presença e agora ele desaparecera.
Chorei durante dias a fio. Chorei até os meus olhos ficarem vermelhos e
inchados. Quando fui ao funeral já não tinha mais lágrimas para verter. Tinha
derramado todas as minhas lágrimas e aquelas que me forcei a verter naquela
amarga manhã de Março, poucos meses depois do meu décimo sexto aniversário,
eram falsas, pois era isso que a ocasião requeria. Não fiz o luto da morte dele. Não
podia fazê-lo.
Voltámos para Erdington com a avó. A mãe usava um chapéu preto com um
véu, cuidadosamente escolhido para a ocasião. O pai estava no outro lado da sala
com o seu fato preto a comer uma sanduíche de ovo e agrião. Parecia um agente
funerário. O Clive também estava de fato escuro e com uma gravata da
universidade, subitamente muito adulto e muito sério. Estava a estudar Direito na
Universidade de Bristol e optara por ir para o sudoeste para estar “o mais longe
possível da minha família”.
A avó fizera alguns folhados de maçã, nos quais não toquei. Só o cheiro já me
fazia sentir enjoada. Tinha um nó de mágoa no estômago e sentia o nervo a pulsar
no meu pescoço. Lancei um olhar pela casa e era como se o meu avô nunca ali
tivesse estado, como se nunca tivesse existido, e como se o homem nas fotografias,
na estante com a avó, fosse um estranho.
Recordei-me daqueles dias no Outono em que estivemos na estufa a chupar
caramelos e era como se fossem uma falsa memória, algo que eu tivesse lido num
livro ou simplesmente inventado. E se construíra memórias do meu avô, aquilo que
por vezes me parecia ser uma lembrança do meu pai a entrar no meu quarto e a
abusar de mim, podia facilmente ter sido fictício. Precisava desesperadamente de
saber em que acreditar, encontrar algo sólido a que me agarrar.
Um dia, pouco tempo depois da morte do meu avô, fui à procura de pistas.
Porque me era difícil distinguir entre a realidade e a ficção, começara a duvidar
da memória do meu pai me dar uma lata de massa depois de discutir com a minha
mãe. Ele fez isso? Por que razão o faria?
Dirigi-me à Gaiola e encontrei rabiscos na parede e mossas que poderiam ter
sido feitas por uma criança a bater com uma lata no estuque. Desci à cozinha e
voltei com uma lata de massa. O rebordo da lata encaixava na perfeição nas mossas
da parede. Fechei a porta, sentei-me num canto e fitei o vidro curvo da cúpula, como
se pudesse ter um vislumbre do passado. Alguns dos meus brinquedos antigos
tinham sido guardados numa caixa: puzzles, jogos, livros, objectos que já não me
eram familiares e que podiam ter pertencido a outra pessoa qualquer.
Passei muito tempo a esquadrinhar o passado. Eu invejava as pessoas que
vivem com a crença de que só existe o momento presente, que o passado pode
nunca ter existido e que o futuro pode ser uma construção daquilo que se está a
pensar hoje, agora, sentada ali com aqueles objectos abandonados espalhados pelo
chão. Fechei os olhos. Tinha uma vaga sensação de estar à espera, do quê não
sabia, talvez de crescer, altura em que tudo se tornaria claro. Voltei a arrumar os
brinquedos e os puzzles na caixa, fechei a porta e nunca mais regressei à Gaiola.
O passo seguinte da minha pesquisa conduziu-me ao barracão. O jardim estava
sombrio e lamacento. A neblina colava-se aos arbustos de azevinho onde dois
piscos tinham construído um ninho. Todos os anos os observava a esvoaçarem,
transportando folhas e galhos nos bicos para tornarem a sua casa segura para os
ovos azul-pálidos que apareciam como que por magia no início da Primavera.
Quando me lembrava, dava-lhes migalhas de pão e água que se transformava num
disco de gelo no prato quando fazia muito frio.
A minha respiração deixava um rasto de vapor à medida que subia pelo
caminho. A porta do barracão estava perra e as dobradiças rangeram quando a
forcei a abrir. Estava um dia gelado e parecia estar ainda mais frio no interior do
barracão, o tipo de frio que nos obriga a encolhermo-nos como uma tartaruga na sua
carapaça. O ar estava estagnado, como o ar de uma caixa fechada. Tive a sensação
de que ninguém entrava no barracão há anos. As janelas estavam cobertas de teias
de aranha. O odor a serradura que eu recordava de verões longínquos fora
substituído pelo cheiro acre da humidade a corroer as partes metálicas das chaves
de fenda e cinzéis dependurados na parede. As porcas e os parafusos à espera de
serem chamados para algum trabalho de emergência estavam a ficar ferrugentos.
Soprei a poeira de um frasco vazio que tinha pequenos furos na tampa.
Que propósito poderia haver naqueles furos senão permitir aos insectos
respirar? Soube pela sensação de calafrio nos meus ossos que o meu pai me
sentara no banco alto de madeira e colocara as aranhas na minha barriga. Recordo-
me de cerrar os meus pequenos punhos e de sentir as patinhas delas a rastejar pela
minha pele nua. Recordo-me de me esforçar por não gritar porque isso iria arruinar o
jogo e irritar o meu pai. Teria acontecido uma vez? Ou muitas vezes? Se fora só
uma vez, teria sido apenas um momento insignificante, sem nada de sinistro?
Desenrosquei a tampa do frasco de compota vazio com os buracos na parte
superior e olhei lá para dentro. Nada. Nenhum sinal. Não havia pontos para ligar.
Não havia cadáveres secos de insectos mortos há muito tempo. A minha memória
daqueles dias de Verão, talvez de há dez ou doze anos, estava em fragmentos, os
pedaços interrados dentro de mim como as lascas de cerâmica antiga que eu vira
cuidadosamente dispostas no museu em Knossos, uma urna reconstruída ou um
jarro com remendos e rachas.
A porta fez um ruído surdo quando a fechei atrás de mim. Foi como fechar a
tampa de uma caixa sem ar, como a porta da Gaiola, :como uma parte do meu
passado submersa em águas profundas. Não provara nada e ainda assim o meu
coração batia muito depressa e a minha testa estava húmida de suor frio quando
regressei ao meu quarto. Fechei a porta, todas as portas ao longo do corredor
estavam sempre fechadas, e eu tinha a sensação peculiar de que estava a regressar
à cena de um crime, mas não tinha a certeza se eu era a vítima ou o criminoso.
Os ursinhos de peluche estavam dispostos sobre a almofada como que a
posarem para uma fotografia de grupo. Não me recordava de os ter colocado assim
e perguntei a mim mesma se eles reriam feito um pacto secreto para serem trazidos
de volta do exílio na estante para o seu lugar acolhedor na cama. Se tivessem feito
um pacto, com quem poderia ter sido senão comigo? A casa estava vazia.
Os bonecos de peluche exibiam sorrisos desafiadores e os seus olhos de vidro
brilhavam à luz de Inverno como se soubessem de algo que eu não sabia. Os
ursinhos, o Sr. Feliz, o cão Snoopy e o resto do grupo eram um conforto e, por
vezes, um fardo, uma lembrança da minha vida e de mim a crescer naquele quarto,
uma insinuação de que aos dezasseis anos eu devia abandonar os prazeres infantis.
É possível entrarmos num padrão de pensamento que gira na nossa cabeça como
pratos a girar em varas. Eu tinha a certeza de que se fosse possível quebrar o
padrão, deixaria para trás essa pessoa com esses pensamentos e entraria noutra
pele, noutra versão de mim mesma com pensamentos diferentes.
Voltei a colocar o grupo de peluches na estante em dois níveis, com os mais
altos no centro. “Não se atrevam a mexer”, disse-lhes.
Olhei-me no espelho. Os meus olhos eram buracos negros que tinham deixado
de reflectir a luz. Tinha uma dor no estômago e sentia-me suja depois de ter andado
a remexer no barracão do jardim.
Depois de um período interminável na casa de banho, senti-me melhor e
preparei uma refeição para a minha mãe quando ela chegou do emprego. Do meu
jeito contraditório, senti-me invulgarmente confiante andando pela cozinha a cortar, a
mexer nos tachos e panelas com o coração a bater muito depressa e os dedos a
formigar.
- Vou guardar os ursinhos numa caixa e pô-los na Gaiola - disse-lhe quando ela
se sentou para comer.
- Já não era sem tempo - respondeu. - Qualquer dia tens um homem a partilhar
a tua cama.
Deixei cair um prato e ele partiu-se.
- Mãe!
- Vais ver - prosseguiu. - Tens dezasseis anos, Alice. Se ao menos engordasses
um bocadinho, podias ser bem bonita.
- Isso é a última coisa que eu quero - respondi.
- Já tive a tua idade, não te esqueças. Sei como são essas coisas.
- Não me conheces - repliquei.
- Claro que conheço.
- Mãe, tu pensas que me conheces. Eu não me conheço.
Ela soltou um suspiro e eu deixei-a a jantar sozinha. Muito tempo depois vim a
saber que a coisa mais importante que uma família pode fazer é tomar as refeições
em conjunto. Na nossa família, isso quase nunca aconteceu.
Voltei para o quarto, a tremer. As discussões sobre sexo na nossa casa haviam
sido sempre um tabu. Por isso é que encontrar a minha mãe e o Stephen
virtualmente no acto fora tão perturbador. Eu não queria saber o que se passava
entre os homens e as mulheres no quarto. Todo aquele assunto era nojento, e
quando era falado na escola, as coisas que os meus colegas diziam, do género, “ela
anda a dormir com ele, ela está grávida, ele é gay”, deixavam-me tão enjoada que
punha os auscultadores nos ouvidos, bebia um trago do meu copo de plástico e
levantava o volume do walkman.
O meu corpo era uma caixa de Pandora de dor e sofrimento. Quando o meu avô
morreu saltaram de lá todas as doenças. Eu estava sempre com tiques e tremores.
Tinha uma dor persistente na garganta e dificuldade em engolir, excepto quando
tomava um gole do meu cocktail ilícito. Andava sempre obstipada, mantendo tudo
dentro de mim, um distúrbio que começou quando tinha dois anos. Tinha ardores
quando urinava, e as minhas enxaquecas eram tão fortes que por vezes parecia que
ia cegar.
Quando ia correr, o meu percurso conduzia-me através de uma longa avenida
em linha recta de árvores despidas. A estrada transformava-se num túnel que se
estreitava num vazio e eu corria cada vez mais depressa, interrogando-me se algum
dia poderia atingir o ponto onde tudo parece desaparecer.
Nessas alturas, sentia-me como uma folha que tivesse caído de uma árvore
nesse Inverno. Os meus pensamentos pairavam no ar como que transportados pelo
vento. Assim como às vezes me interrogava se o meu avô existira mesmo, outras
vezes questionava-me se eu realmente existia. Enquanto corria, conseguia ver-me a
mim mesma do lado de fora: uma rapariga magra, com uns calções largos e uma T-
shirt demasiado grande, sempre a observar as outras raparigas na escola, uma
rapariga num quarto cor-de-rosa, sentada com um livro apoiado nos joelhos, as
palavras que ela estava a ler a entrarem na sua mente, algumas agarrando-se como
cola, nunca mais esquecidas, outras desaparecendo instantaneamente. Eu podia
lembrar-me de tudo e não me lembrar de nada. Podia assistir a um filme e recordar-
me de todas as cenas em pormenor como se tivesse sido eu a escrever o guião, e
depois assistir a outro filme noutro dia e ser incapaz de recordar fosse o que fosse.
Os meus ténis tinham a sola serrilhada e a parte de cima em couro branco.
Limpava-os todos os dias. Usava um creme especial e polia-os até ficarem tão
brilhantes como a porta do frigorífico. Limpava-os primeiro com uma escova, depois
com um pano amarelo, calçava-os, amarrava os cordões em laços simétricos e
puxava o lustro das biqueiras. Quando saía, vincava os meus jeans de uma forma
que me recordava o vinco das calças esquecidas do meu avô. Dispunha os peluches
na estante de acordo com a altura. Quando chegava da escola, trancava-me na
casa de banho, esfregava-me toda no banho, tomava um duche, depois esfregava-
me toda novamente. A minha mãe ficava no corredor, a suspirar. O meu pai chegava
do trabalho, a mãe pedia-lhe que me obrigasse a sair e ele ia bater na porta
timidamente, sem saber o que dizer, e sabendo, penso eu, que o melhor era não
dizer nada.
Quando corria, estas obsessões eram absorvidas pela repetição do movimento.
Esgueirava-me da casa silenciosa ao amanhecer e escutava o som dos meus ténis
abrindo caminho ao longo da estrada, o cheiro invernal da mudança no ar, o
martelar dos meus pés em sintonia com o bater do meu coração. As minhas
pegadas no passeio húmido desapareciam quando o sol nascia como um olho
invisível sobre os telhados, derramando a sua luz através das janelas das casas
com os seus segredos e o seu descontentamento. Os automóveis assobiavam ao
rodarem pelo pavimento escorregadio devido à chuva, juntando-se ao barulho, plact,
plact, plact dos meus ténis.
Durante aquela hora, nas ruas que começavam a despertar, sentia-me tranquila
e em paz. O meu corpo, que eu desprezava, funcionava como uma máquina. Sentia-
me a planar, a expressão que os meus amigos na escola usavam para descrever as
suas primeiras experiências com marijuana e bebidas alcoólicas. Esta palavra
descrevia na perfeição uma imagem na minha mente de mim, a Alice, a flutuar logo
abaixo do tecto, tal como um balão, a observar a minha própria cama pequena, onde
um homem enorme estava pesadamente deitado sobre uma menina que eu não
conseguia ver ou reconhecer. Não era eu. Eu estava a planar no tecto.
Também tinha essa sensação de estar a planar quando cozinhava para o meu
pai, o que eu ainda fazia, embora com menos frequência. Fazia omeletas,
obviamente. Partia dois ovos para uma tigela e, quando estendia a mão para a
manteigueira, tinha sempre uma sensação estranha nas minhas mãos e braços.
Tinha uma sensação de formigueiro nos dedos; era como se não fosse eu, mas
outra pessoa a cortar grandes pedaços de manteiga gordurosa e a colocá-los na
frigideira.
Acrescentava uma grande quantidade de sal. Sabia bem o que este fazia à
pressão arterial, e murmurava maldições enquanto batia os ovos. Quando vertia a
mistura na manteiga quente e punha a frigideira ao lume, não parecia ser a minha
mão a segurar na pega da frigideira, e estou certa de que eram os olhos de outra
pessoa que assistiam aos ovos a fazerem bolhas e a tostarem. Quando punha duas
fatias de pão integral na torradeira, observava-me a mim mesma como se estivesse
do outro lado da sala e, com as mãos dormentes segurando a espátula, dobrava a
omeleta de modo a assemelhar-se a um folhado de maçã. As minhas mãos
estranhas sacudiam a omeleta para um prato e espalhava a manteiga que sobrava
nas torradas quando as duas fatias de pão saltavam da torradeira.
- Delicioso - dizia ele, fazendo comentários sobre a comida antes mesmo de a
provar.
Enquanto comia, recolhia-se na sua aura de brilhantina e aftershave atrás do
jornal Daily Mail e eu ia para o anexo, onde limpava a lama da sola dos meus ténis e
aplicava creme na parte de couro, sempre com um formigueiro nas mãos. Tinha
exactamente a mesma sensação na aula de Economia Doméstica na escola e
sentia-me uma fraude sempre que a professora elogiava os meus cozinhados.
A minha obsessão em engordurar as omeletas do meu pai, em vincar os meus
jeans, comer dois doces, mas nunca um ou três, a minha mania da limpeza e todos
aqueles longos banhos começaram a preocupar a minha mãe e finalmente ela
levou-me a ver o nosso médico de clínica geral. O Dr. Bradshaw explicou que eu
estava a sofrer de Perturbação Obsessivo-Compulsiva ou POC; mais uma doença
para acrescentar à lista.
Era útil ter esta nova etiqueta para cravar em mim, como se na sigla POC tudo
estivesse explicado. Quando o Clive regressou a casa de férias trouxe uma nova
namorada, que fazia questão de se encolher sempre que se cruzava comigo na sua
minissaia.
- Afasta-te de mim, sua maluca - dizia num silvo, e o meu irmão limitava-se a
sorrir.
Chamava-se Lucy ou Emma ou Gemma, não me recordo, mas lembro-me que
tinha uns olhos azuis espaçados, um nariz pequeno e afilado, uma cascata de
cabelos louros brilhantes, lábios perfeitos que, quando me via, se contorciam num
esgar de repulsa.
“Afasta-te de mim, sua maluca.”
As raparigas bonitas e confiantes não sabem o efeito que têm nos simples
mortais, a dor que os seus gracejos inteligentes infligem. Era fácil pensar em Lucy
ou Emma ou Gemma como uma nulidade, mas quando as pessoas estão sempre a
dizer que somos malucos, pensamos tanto nisso que acaba por acontecer. Nessas
alturas, contemplava-me no espelho.
“O que se passa contigo, Alice? O que se passa?”
Fechava os olhos e sacudia a cabeça, procurando libertar-me das recordações,
baralhar as fichas do caleidoscópio num novo padrão. Estaria eu louca? Estaria
delirante? Não sentia que estivesse. E contudo, porque estava eu a ver esta imagem
instável e obscura de uma menina que se parecia comigo, mas que na minha mente
não era eu, deitada no quarto cor-de-rosa com o pénis do meu pai na boca? Era
como assistir a cenas breves e a flashbacks de um filme real mas inverosímil. O meu
pai não podia ter feito aquelas coisas. Era impossível. Era a minha própria
imaginação horrível e eu esforçava-me continuamente por retirar esses
pensamentos da minha mente. Corria, passava fome, lavava-me e estudava,
procurando incessantemente suprimir as coisas assustadoras que não conseguia
exprimir por palavras.
A minha mãe e eu tínhamo-nos aproximado desde a morte do avô. A morte faz-
nos pensar na vida. Ela estava de luto pelo pai, mas andava a pensar no seu próprio
futuro e tinha-me dado a entender, de uma forma indirecta, que estava apaixonada
pelo Stephen e que, no momento certo, planeava deixar o meu pai. Também me
prestava mais atenção.
Se eu precisasse de dinheiro para uma cassete ou para uns ténis novos, ela
abria imediatamente a carteira. Mas eu ainda não sentia que ela me compreendia.
Se eu estivesse perturbada devido a um pesadelo, ou se a minha equipa de hóquei
perdesse um jogo, o que é muito importante quando se tem dezasseis anos, ela
tentava animar-me. “Não é o fim do mundo”, dizia ela. “Vá, vai fazer os trabalhos de
casa. Não deixes que essas coisas te entristeçam.” Ela tentava soar como o meu
avô, mas ele tinha um contentamento e uma quietude interior que não tinham sido
transmitidos através dos seus genes para ela, e muito menos para mim.
Ela rodeou os meus pulsos magricelas com os polegares e o indicador das duas
mãos, voltou o meu rosto esquelético para a luz e marcou uma consulta para o Dr.
Bradshaw para tentar chegar ao fundo daquilo que estava agora a ser denominado
como “o meu distúrbio alimentar”, uma expressão que entrou no vocabulário da casa
depois de alguns vizinhos bisbilhoteiros repararem na minha magreza. O Dr.
Bradshaw recomendou à minha mãe que se certificasse de que eu comia
regularmente, nem que fosse pouco de cada vez. Eu não gostava da ideia de ser
controlada desta forma e reagi, tornando-me numa maluquinha da comida saudável
e vegetariana.
Na minha consulta seguinte, conheci o Dr. Robinson, que começara a trabalhar
em conjunto com o Dr. Bradshaw. Com o tempo, acabei por tratar o Dr. Robinson
por Dr. Bobby ou simplesmente Bobby, embora nessa primeira consulta fosse tudo
muito formal e eu tivesse ficado ali sentada, com a minha mãe a descrever em
pormenor os meus hábitos alimentares, a minha obsessão pela corrida e a
compulsão pela lavagem. O Dr. Bobby era jovem e bonito, e eu fiquei impressionada
porque ele correra a maratona de Londres para angariar dinheiro para a caridade.
Ele olhou para mim durante muito tempo sem dizer uma palavra e tenho a certeza
de que corei antes de ele finalmente falar.
- Diz-me, há alguma coisa que te preocupa, Alice? - perguntou.
Eu sacudi a cabeça.
- Há alguma coisa que não tenhas dito ao Dr. Bradshaw?
Fitou-me com os seus grandes olhos castanhos. Sacudi novamente a cabeça e
desviei o olhar para a biqueira gasta dos meus ténis.
- Tens a certeza, Alice?
No meu cérebro, formaram-se estas palavras: “Acho que quando era pequenina,
o meu pai costumava vir ao meu quarto e metia a pila dele na minha boca.”
Mas eu não podia dizer estas palavras. Não tinha a certeza se acreditava nelas.
Ficámos sentados em silêncio, os meus pensamentos a agitarem-se como
bandeirolas no ar: “O meu pai costumava enfiar a pila dele em todos os meus
orifícios. O meu pai costumava pôr aranhas na minha barriga, no barracão do
jardim.”
Parecia uma mentira descarada, algo que uma miúda diria para chamar a
atenção. A sensação negra e nauseabunda nas minhas entranhas era uma
vergonha abrasadora. Era como se aquilo que me acontecera tivesse sido culpa
minha. E se não tivesse acontecido, a culpa era minha por ter tais pensamentos
perversos. Aos dezasseis anos, tudo é constrangedor. Não se fala sobre as coisas,
não sobre aquelas coisas. Afastamos o olhar. Soltamos uma risadinha e encolhemos
os ombros. Não havia forma de eu contar fosse o que fosse a alguém. Ficava ali
sentada no consultório a desejar estar na sala de espera a brincar com os legos.
O Dr. Robinson mantinha-se sentado a olhar para mim, e eu ficava ali sentada a
desejar estar noutro lugar. O silêncio prolongou-se.
A minha mãe pegou-me na mão, o que foi bom. O médico marcou-me uma
consulta para um psicólogo clínico para a semana seguinte. Eu já rejeitara uma vez
esta via específica de investigação, mas não queria decepcionar o jovem e brilhante
médico e decidi fazer outra tentativa.
A consulta era na clínica Naydon, onde eu fora falar com a psicóloga alta e
pálida que involuntariamente acendera a luz do meu hediondo passado no quarto da
minha infância.
Faltei à escola nessa tarde e sentei-me no piso superior do autocarro a comer
uma maçã como almoço e a fazer exercícios respiratórios. Queria apresentar uma
Alice calma e relaxada para mostrar que não havia nada de errado comigo. É
impossível definir normal, mas era o que eu queria ser, era essa a imagem que
tentava mostrar ao mundo.
Chovera durante grande parte da manhã, mas agora o sol aparecera. A
Primavera estava no ar. Os piscos andavam ocupados no jardim lá de casa. Os
narcisos preenchiam as bermas do relvado. Quando estava a encaminhar-me para a
entrada da clínica avistei um homem a rasgar um bilhete de estacionamento em
pedaços. “Maldita gente”, resmungou, e lembrei-me de uma vez o meu avô me dizer
que era inútil irritarmo-nos com o passado ou com o inevitável. Eu sempre pensei
que isto era mais fácil dizer do que fazer.
Entrei na clínica pelo portão lateral azul. Eu sabia para onde ir e ouvia o som dos
meus sapatos no corredor de pedra. Era uma repetição da visita anterior, mas não a
recordei da forma normal, mas antes com uma sensação de déjà vu. Os hospitais e
afins tinham esse efeito em mim. Viria a associar o aroma a limão e o odor a enxofre
ao inferno na Terra. Imaginamos as pessoas a morrer e a sofrer. Andam todos numa
azáfama. Não sabemos para onde se dirigem nem porquê. Conseguia ouvir o
farfalhar da minha saia da escola, o eco dos meus sapatos, e de repente não
conseguia decidir se esta cena pertencia à memória da minha última visita, ou se
vinha de um sonho dessa visita. Também me ocorreu que poderia estar a sonhar
nesse momento e que podia despertar de repente e dar por mim noutro lugar.
Isso já me acontecera algumas vezes. Recordo-me de estar a estudar no meu
quarto num momento, e no seguinte estar a caminhar pelo centro comercial com
música a furar-me os tímpanos. Por vezes, era como se as duas partes do meu
cérebro, a esquerda e a direita, estivessem ligadas por uma porta que se abria de
moto próprio entre um lado e o outro.
Fiz uma pesquisa acerca da actividade do lado esquerdo e direito do cérebro e
descobri que cada hemisfério é responsável por um modo distinto de pensar. O
hemisfério esquerdo é lógico, sequencial, analítico, objectivo, e concentra-se nas
partes individuais das coisas. O hemisfério direito é aleatório, intuitivo, de síntese
subjectiva, e abrange o geral. A maioria das pessoas tem uma inclinação para um
lado ou para o outro; outras encontram-se igualmente à vontade em ambos os
hemisférios. As escolas tendem a favorecer o pensamento lógico do hemisfério
esquerdo, a análise e a precisão, em detrimento do hemisfério direito do cérebro que
se foca na estética, no sentimento e na criatividade.
Era difícil para mim saber qual o meu hemisfério preponderante. Vivia totalmente
no hemisfério esquerdo quando estudava, mas fechava a porta atrás de mim quando
entrava no lado direito do cérebro, onde perdia completamente a noção do tempo e
da lógica. Os meus pensamentos tornavam-se irracionais, preocupados e
assombrados por essa sensação malévola de déjà vu, a mesma sensação que me
atingiu quando entrei no consultório e a psicóloga alta que eu vira antes se ergueu
como uma sombra longa e fina e me indicou uma cadeira com um gesto da mão.
- Ah, Alice, estás aqui - disse ela.
“Estou?”, interroguei-me.
Apresentou-me à Drª Jane Purvis, uma psiquiatra infantil, uma mulher de
cinquenta anos mas de aspecto juvenil, com uma saia e blusa de cores vivas.
Estava sentada de lado como uma enfermeira durante um exame ginecológico. Foi
isso que senti, como se as questões delas fossem sondas que procuravam entrar
dentro de mim. Conversámos da mesma forma que os meus pais conversavam
quando nos sentávamos juntos no Natal, querendo falar mas sem ter nada para
dizer. Passavam-me diariamente pela cabeça cenas profundamente aterradoras,
mas eu não podia descrevê-las. Nem queria tentar.
A psicóloga podia muito bem chamar-se Drª Flores, mas isso pode ser apenas
uma lembrança do motivo florido impresso na parede e das flores no vaso que
davam um pouco de cor ao pequeno consultório sombrio. A psicóloga consultou as
suas anotações e concentrámo-nos na minha anorexia.
- Tens medo de ganhar peso, Alice?
- Não especialmente.
- Achas que és gorda?
- Não, acho que sou magra.
- Pesas os teus alimentos antes de os ingerires?
- Não.
- Contas as calorias?
- Não.
- Empanturras-te de comida e depois sentes vontade de vomitar?
Fiz uma pausa, mas foi um grande erro, evidentemente. Nunca devemos hesitar,
porque isso dá aos médicos algo para ponderarem, algo para rabiscarem nos seus
blocos de linhas estreitas. A verdade é que eu me empanturrava, mas sempre com a
sensação de que não era eu quem realmente estava a comer, mas alguém ou
alguma coisa (talvez aquela coisa negra nas minhas entranhas), algo ligado a mim,
mas não eu. Era aquela coisa que me mantinha viva.
As perguntas iam e vinham como um jogo de ténis de mesa - pingue-pongue,
pingue-pongue - até que as duas mulheres, a psicóloga e a psiquiatra, decidiram
que, fosse o que fosse que havia de errado comigo, além da óbvia anorexia, eu
devia consultar a Drª Purvis daí em diante. Fi-lo durante o resto do ano lectivo,
enquanto estudava para os exames, e ao longo dos anos seguintes até completar os
dezassete anos e sair do seu alcance terapêutico.
Pedi à minha mãe que não contasse a ninguém que eu estava a consultar uma
psiquiatra. Já todos me consideravam estranha, não queria que pensassem que
também era maluca. Na verdade, agora que andava em tratamento, o tópico, como
de costume, foi varrido para debaixo do tapete. A minha mãe assegurava-se de que
eu não faltava às consultas, mas nunca perguntava o que acontecia no consultório
da Drª Purvis.
O meu pai nem sequer tinha conhecimento das consultas. A minha mãe não
falava com ele e não era eu quem ia dizer-lhe. Cozinhava cada vez menos para ele
e evitava-o cada vez mais. Estava mais velho, mais sinistro, mais magro, um insecto
pegajoso que rastejava pela casa da mesma forma lenta que as aranhas haviam
rastejado pela minha barriga no barracão ao fundo do jardim. Havia uma pergunta
que se formava na minha boca de cada vez que nos cruzávamos: “Fizeste-me
coisas horríveis quando eu era pequena?”
Ela estava sempre lá, presa na minha garganta. Não conseguia deitá-la cá para
fora. Mastigava-a, girava-a na boca, mas ela morria antes de deixar os meus lábios.
As pessoas criam padrões e repetem-nos. Eu faço-o. Ia uma vez por semana
consultar a Drª Purvis e todas as semanas inseria a mesma cassete no meu
walkman: Quadropbenia dos The Who. Punha o volume no máximo, como se
dissesse: Eu não quero estar aqui.
Mas estava. Afinal, tinha feito a viagem até à clínica. Tinha ido até lá como se as
canções de Pete Townshend contivessem as palavras e as mensagens que
necessitava de transmitir à Drª Purvis. Conseguiria ela ver o meu verdadeiro “eu”?
Quem era eu? Quero dizer, quem era eu exactamente? Dentro da minha cabeça
parecia haver muitas pessoas. Mas perdera-me e andava sozinha na multidão a
tentar encontrar-me.
Só quando entrava no consultório é que desligava a música. Primeiro,
começávamos com o ritual da pesagem: obsessivamente, compulsivamente, eu
pesava sempre os mesmos trinta e oito quilos. Depois prosseguíamos com o ritual
de conversar sobre os assuntos que discutíramos na semana anterior e iríamos
discutir novamente na semana seguinte.
Tinha dezasseis anos. Sabia que estava com problemas. Tentei explicar que me
sentia sozinha, mas não no sentido normal, não da forma que muitos adolescentes
se sentem sozinhos. Sentia-me sozinha no sentido de estar separada do resto do
mundo, mas não sozinha dentro da minha cabeça. Tal como na canção “Four
Faces”1, havia em mim outras personalidades a arranhar a frágil camada da minha
sanidade tentando sair. Eu estava a lutar para descobrir quem era, e não tinha a
certeza se era a pessoa sentada em frente da Drª Purvis ou se era uma das outras
que estavam prestes a fazer a sua primeira aparição.
CAPÍTULO 4

AS VOZES

A primeira vez que ouvi vozes foi no meu quarto. Ouvia Dire Straits baixinho
enquanto estava a estudar. Foi então que a ouvi.
Pelo teu avô, para que ele se sinta orgulhoso.
A voz irrompeu no quarto. Era como se alguém tivesse gritado de muito perto.
Apanhei um grande susto. Olhei em redor do quarto. A porta estava fechada. Não
havia ali ninguém.
Sem isso, não vales nada, miúda.
Lá estava ela novamente. Desliguei a música e parei ao lado da cama a tremer.
Sabia exactamente a que é que a voz se referia: aos meus exames. Eu queria tirar
boas notas por vários motivos.
O que se seguiu foi aterrador.
Não vales nada. Devias morrer.
Liguei de novo a música. A canção era “Money For Nothing” e pus o volume no
máximo. Não fez qualquer diferença. Havia vozes a bombardearem-me o cérebro,
não uma, mas duas ou três, mais, uma pequena multidão que se juntara para fazer
troça de mim.
É melhor que faças com que o teu avô se orgulhe de ti, caso contrário ele vai
deixar de te amar.
O avô foi para o Céu, não tens qualquer hipótese de o voltar a ver.
Tu vais para o Inferno.
Bati na parte lateral da minha cabeça e tive uma estranha imagem mental de
mim mesma quando o fiz. Parecia uma louca.
“Parem com isso. Parem. Parem. Deixem-me em paz.”
As vozes continuaram a falar comigo, dentro de mim, sobre mim. E o mais
assustador era que as vozes pareciam normais, não eram esquisitas ou exageradas,
mas sombrias e intimidantes. A maioria das vozes pertencia a homens, mas também
havia mulheres; algumas das vozes eram fortes, como se estivessem perto, outras
eram distantes, separadas; juntavam-se como um gang, ou desvaneciam como se
estivessem a conversar entre si.
Peguei num monte de ursinhos e escondi-me debaixo da almofada. As vozes
continuavam a tagarelar. Eu não estava a ouvi-las. Estava a cantar as músicas de
Mark Knopfler para mim mesma, competindo com as vozes até se calarem. Estava
toda transpirada e completamente exausta. A minha cabeça latejava. Caí num sono
profundo e nos meus sonhos vi sombras a tremeluzir e crianças pequenas.
Ainda estava escuro quando acordei. Nunca dormi bem sem medicação durante
toda a minha vida. Vesti a minha roupa de jogging e atei os meus ténis com laços
idênticos. Os números verdes no relógio digital mudaram para as 5h00 quando desci
as escadas sorrateiramente e saí a correr pelas ruas vazias.
Cantei enquanto corria o percurso de dezasseis quilómetros, atenta às vozes e
sentindo-me grata por elas terem desaparecido.
Foi o início de uma vida de adaptação e de negociação com as vozes. Nos
meses que se seguiram, enquanto eu fazia os meus exames, as vozes eram
intermitentes, umas vezes murmurando frases incoerentes, outras gritando.
Estaria o meu cérebro a pregar-me partidas, fazendo-me acreditar que eu estava
a ouvir vozes que não existiam realmente?
Não. As vozes eram reais. Estavam lá. Eu conseguia distinguir cada uma delas.
As vozes vinham de fora da minha cabeça, não do interior. Quando apareceram pela
primeira vez, tive a certeza de que as outras pessoas também as ouviam, e fiquei
paranóica quando descobri que isso não acontecia.
Entre as vozes havia o tom predominante e áspero de alguém que ficou
conhecido como “o Professor”. Não fui eu que lhe atribuí esse nome, foi ele que se
materializou dessa forma, talvez porque ele pensava que tinha conhecimentos e um
intelecto superiores. O Professor repreendia-me e incentivava-me a esforçar-me
mais pelo avô. Não que eu precisasse que me incentivassem. Sabia melhor do que
ninguém que estava com problemas graves. O sucesso escolar era uma maneira de
provar que, ainda que eu fosse uma pessoa estranha, não era uma idiota.
A Drª Purvis estudava-me durante as nossas reuniões semanais com seus
grandes olhos de menina e dizia: “Há algo mais, Alice, algo que não me estás a
dizer.”
Eu evitava responder e pensava: “Mais uma boa armadilha. Quase me
apanhava desta vez.” Punha-me a examinar as suas saias e tops coloridos. Olhava-
a fixamente nos olhos, que eram brilhantes por detrás de uns grandes óculos que
ela estava sempre a pôr e a tirar, como se essa acção fosse um gerador a reactivar
uma bateria descarregada que iria subitamente desencadear em mim o
aparecimento de uma memória perdida e uma confissão.
Os óculos andavam para cima e para baixo, para cima e para baixo, e o reflexo
provocava estrelas de luz que dançavam nas paredes sombrias. Ela usava tops
verdes com saias de padrões de girassóis, tops vermelhos com saias cor de laranja,
um top azul-claro da cor dos seus olhos com uma saia azul-marinha como a cor do
céu um pouco antes de chover. Eu conhecia o guarda-fatos de Jane Purvis tão bem
como ela, mas nunca a deixava entrar no meu. Não havia espaço lá dentro, havia
demasiados segredos escondidos.
Andava tão ocupada a evitar dizer à Drª Purvis que ouvia vozes que, quando um
dia ela me fez perguntas sobre o meu pai, a sessão tomou um rumo totalmente novo
sobre o qual eu não tinha controlo.
- Fala-me sobre o teu pai, Alice.
- O meu pai?
- Sim. Nunca falas nele.
- Ah, ele é muito importante, pelo menos é o que ele pensa - respondi.
- É advogado? - perguntou.
- É jogador de golfe - respondi.
- Dão-se bem?
- Raramente o vejo. É um homem muito ocupado.
- Davam-se bem quando eras criança? - prosseguiu.
- Acho que sim.
- Ele amava-te?
- O quê? Sim, claro...
- Alguma vez abusou de ti, Alice, de alguma maneira? - perguntou, inclinando-se
e baixando os óculos.
A pergunta surgiu de repente, do nada, e eu quase caí da cadeira. Não respondi.
Não sabia o que dizer.
- Ele abusou de ti? - insistiu a Drª Purvis.
- Não. Não, não abusou. Não sei porque está a dizer uma coisa dessas.
Senti-me apanhada, enganada, encurralada. Queria falar-lhe dos meus sonhos,
do homem que noite após noite entrava no meu quarto, mas as palavras ficaram-me
entaladas na garganta. Se era verdade, se aquele homem que só poderia ter sido o
meu pai ia ao meu quarto, por que razão não me lembrava? E se não fosse verdade,
porque tinha eu essas coisas na cabeça? Seria eu uma pessoa má? Uma criança
promíscua? Seria tudo culpa minha?
Tudo aquilo que devia ter discutido com a Drª Purvis guardei dentro de mim.
Sentia-me demasiado envergonhada para falar sobre o que podia ou não ter
acontecido à noite no meu quarto. Também pensava que se falasse acerca das
vozes, a ela ou a qualquer outra pessoa, se lhes desse muita atenção, elas
ganhariam poder e confiança. Transformar-se-iam na banda sonora das visões que
se desenrolavam na minha mente desde sempre. Eu lidara com as imagens à minha
maneira. Agora faria o mesmo com as vozes.
Saía do consultório, ouvindo os meus sapatos a ecoarem pelo corredor, e ficava
na paragem do autocarro sentindo-me sozinha e deprimida. Aos dezasseis anos,
queremos ser como todas as outras pessoas. Eu sentia-me diferente, separada dos
outros, uma aberração. Eu fingia, fingia constantemente que estava tudo bem,
quando Mr. Keating, o meu director de turma, a Drª Purvis, os meus amigos e a
minha mãe sabiam que não estava. Não há muitas pessoas aos dezasseis anos,
excepto nos filmes americanos, que tenham uma psiquiatra. Não me fazia sentir
privilegiada, mas sim alienada e desanimada.
Concentrei-me em correr, em misturar cocktails de bebidas alcoólicas, em ler até
ficar com os olhos a arder, a encher a minha mente com as palavras e os
pensamentos dos escritores. Nunca sabia quando as vozes iam voltar, o que diriam,
ou quanto tempo ficariam a tagarelar na minha cabeça. Sentia-me como um porteiro
de uma discoteca que perdera o controlo e deixara de conseguir escolher quem
entrava e quem ficava no meu cérebro. Se eu baixasse a guarda, elas entrariam de
repente e recomeçariam com os seus disparates.
És uma inútil.
Pensas que ter boas notas resolve o problema.
Não resolve, sua vaca estúpida.
O melhor é morreres.
Anda lá. Anda lá. Desafio-te. Fá-lo agora. Fá-lo agora. Tu queres morrer.
Lembro-me de estar num exame, de História provavelmente, e de ter parado de
escrever por um momento para me recordar de uma data e de o Professor ter
aparecido.
Pensas que vais conseguir. Nunca conseguirás.
Dei uma palmada na parte lateral da minha cabeça.
- Agora não. Vai-te embora - murmurei.
- Chiu - disse o professor vigilante.
Os miúdos em meu redor ergueram as sobrancelhas e sacudiram a cabeça. É a
Alice! Os meus colegas provavelmente pensaram que eu queria atenção e não
faziam ideia de que era a última coisa que eu pretendia. É um esforço constante ter
de agir como se tudo estivesse a correr na perfeição quando não está. Eu estava a
viver uma mentira, para o mundo, para mim mesma. A primeira vista, devia parecer
uma miúda de sorte, com uma família simpática numa casa bonita com piscos no
jardim. Essa era a imagem, não a verdade. Nunca foi a verdade. Olhamos para as
outras pessoas e pensamos que as conhecemos. Não conhecemos. Não podemos
conhecê-las. Todas as pessoas são um mistério. Eu era um mistério até para mim
mesma.
Todos os dias pensava em desistir dos exames, embora não fosse realmente eu
quem estava a pensar nisso, o “eu” que era eu, a Alice. Era outra parte de mim,
algum demónio saltando maliciosamente do lado esquerdo do meu cérebro para o
direito.
Desiste. Desiste. Faz um favor a toda a gente. Mata-te, Alice.
O Professor e o seu bando acompanhavam o rebuliço e eu ignorava-os.
“Calem-se. Calem-se. Calem-se. Vão-se embora. Deixem-me em paz.”
Recusava-me a ouvir. Corria, empanturrava-me, passava fome e continuava a
estudar com uma paixão enlouquecida, até a minha mãe, num estado de pânico, me
subornar a acalmar com a promessa de uma semana de férias para as duas, em
Veneza, durante o mês de Julho. Terminei os meus nove exames e saí pelo portão
de Dane Hall, no último dia do ano lectivo, com um passo firme. Tinha vencido as
vozes.
A minha mãe ainda estava perturbada com a morte do avô e o plano era
passarmos algum tempo de qualidade juntas, enquanto ela recuperava, nas palavras
dela, a sua joie de vivre. O que ela na realidade estava a fazer eram os últimos
preparativos para deixar o meu pai. Abordou hesitantemente o assunto uma manhã
durante o pequeno-almoço, enquanto observávamos as gôndolas a deslizarem pelo
Grande Canal.
- Não sei se aguento muito mais tempo naquela casa - comentou ela.
- Queres dizer com o pai?
Ela acenou afirmativamente.
- Nem eu - respondi, e os lábios dela franziram-se nos cantos.
- Arranjaremos um apartamento ou algo do género - prosseguiu. - As coisas
melhorarão, não te parece?
- Mãe, sair daquela casa é a melhor coisa que podes fazer na vida.
Ela pareceu aliviada e o seu rosto brilhava na luz da manhã. A ansiedade havia
sobreposto uma máscara na sua fisionomia, mas agora surgiam os seus verdadeiros
traços. Eu tinha as mãos dormentes e a tremer. Parecia estranho estar a ser tão
honesta. Foi uma sensação boa. A minha mãe apertou-me os dedos sobre a toalha
de linho branco e o empregado de mesa italiano sorriu jovialmente enquanto servia o
café de um bule prateado.
Veneza foi o cenário perfeito para esta breve cena e a escolha ideal para as
nossas férias. Foi a primeira vez que viajámos só as duas, e eu sentia orgulho em
exibir os meus conhecimentos enquanto visitávamos os museus e as galerias de
arte.
Quando viajava, sentia-me uma pessoa diferente. Uma pessoa realmente
diferente. A Alice lá de casa estava sempre a preocupar-se com alguma coisa. A
Alice que partia em viagem podia abrir os pulmões e respirar. As vozes tornaram-se
distantes. A Alice podia ler um livro sem ter de terminar exactamente no final de um
capítulo. A Alice aventureira esqueceu o significado de palavras como insónia e
pesadelo. Caminhava a passos largos pela maré cinzenta de pombos na Praça de
São Marcos até à Basílica, onde os sinos repicavam no campanile. Com os seus
palácios e galerias de arte, as suas pontes e a luz prateada, Veneza tinha, para mim
e para esta Alice autoconfiante, a dimensão ideal para uma cidade: pequena o
suficiente para explorar a pé e grande o suficiente para nos depararmos com uma
surpresa ao virar da esquina.
Pouco depois de regressarmos de Itália, fui visitar os Timmins, parentes do meu
lado materno que viviam na Suíça. Durante as duas semanas que passei com eles
fiz uma tentativa ousada para aprender alemão e absorver toda a história e
singularidades arquitectónicas de Zurique. Também comi chocolate até ficar enjoada
e comprei um relógio de cuco.
Todos concordaram que eu ficara “completamente estragada” com estas férias,
de modo que, assim que regressei da Suíça, arranjei trabalho na pista de galgos,
três noites por semana, a recolher os copos vazios e a limpar as mesas. Entretinha-
me a assistir às corridas, os cães alinhados nas suas capas multicolores a
perseguirem a lebre eléctrica sem nunca a conseguirem apanhar, o que me fez
lembrar de mim mesma a perseguir a minha sombra quando corria.
Como resultado da minha obsessão pela corrida, estava a melhorar os meus
tempos e a treinar para a Brum Fun Run, a meia maratona anual organizada pelo
Conselho Municipal de Birmingham. Correr rápido longas distâncias cria uma
sensação de bem-estar. A libertação de endorfinas funciona como um analgésico
natural e a excitação deu-me coragem para estender o meu percurso à alameda
isolada que atravessava um bosque perto da nossa casa.
Eu receava esta alameda e evitara-a durante anos. Agora corria debaixo das
árvores pendentes, testando a minha coragem.
Na minha mente surgiram algumas imagens perfeitamente nítidas. O que vi foi
um dia de Verão, quando o amigo do meu pai, o homem que gostava de exibir os
seus carros novos e que tocara nos meus pequenos seios quando eu tinha catorze
anos, aparecera lá em casa ao volante de um Rolls-Royce Cabriolei novo. Era
branco e tinha a capota aberta.
A minha mãe estava lá em cima no quarto dela, nas traseiras da casa. No
caminho da entrada estava uma menina a brincar, vestida com uma saia e um top,
que parecia ter sete anos. Quando o homem lhe perguntou se ela queria ir dar um
passeio de carro, ela, naturalmente, disse que sim e saltou lá para dentro. O outro
homem, o meu pai, fechou a porta e o homem arrancou, virou à esquerda e depois
logo à direita, e deteve-se na alameda isolada junto ao bosque.
Pôs um braço nos ombros da menina.
- Vá lá, dá cá uma beijoca - disse ele.
Deslizou a mão para o interior das cuecas dela e introduziu um dedo dentro
dela.
- Gostas disto, não gostas? - acrescentou, e meteu a língua na boca da menina.
Ela não o impediu. Não se debateu. Não se opôs. Aquilo era normal. Este
homem já fizera aquilo antes. Não se recordava onde nem quando, mas tinha uma
vaga lembrança de um grande edifício que parecia um castelo e de um lanço de
escadas que desciam para o calabouço, onde crianças nuas e adultos vestidos se
moviam por entre as sombras que mudavam de posição.
- Levanta o rabo - ordenou, e enquanto eu corria ao longo da alameda consegui
ver na minha mente a menina a erguer o rabo para que ele lhe pudesse puxar as
cuequinhas para baixo. - Muito bem, não está melhor assim?
Ele abriu-lhe as pernas, enfiou-lhe um dedo na vagina e introduziu de novo a
língua na boca dela.
O carro estava estacionado à sombra de uma árvore imponente, e o reflexo da
luz através das folhas fazia com que parecesse que estava a chover pedaços de
vidro. O homem era forte. Tinha braços peludos e pêlos nas costas dos dedos. A
menina não sabia por que razão o homem lhe tirara as cuequinhas, mas eles faziam
sempre isso. Imaginava que era isso que as mamãs e os papás faziam. Não gostava
daquilo, mas fazia-a sentir-se especial estar com este homem importante no seu
carro grande.
- É bom?
Ela acenou e fingiu um sorriso. Não era bom. Doía. Mas queria que fosse bom.
Queria que fosse bom para o amigo do papá. Olhou para cima através dos ramos
altos da árvore e enquanto fechava os olhos com força conseguia ver fadas com
asas transparentes atravessando os raios de sol.
O homem parou de beijá-la e retirou o dedo de dentro dela. A menina pôs-se de
pé no banco e o homem ajudou-a a vestir as cuequinhas. Ele puxou-as para cima e
ela sentou-se novamente. O homem beijou a ponta do dedo e levou-a aos lábios
dela.
- És linda, Alice, sabes disso, não sabes? - disse-lhe. Ela sorriu. Ele baixou a
voz. - É o nosso pequeno segredo.
O motor soltou um bramido quando ele pôs o carro a trabalhar e era como
flutuar no ar quando deu a volta e regressou a casa.
A mãe estava na entrada, com as mãos na cintura. O pai estava à sombra, no
alpendre.
- O que raio se passa aqui? - perguntou ela.
- Fomos só dar um passeio, Jenny. Anda ver o meu carro novo - respondeu o
homem.
A mãe içou a menina do banco da frente e levou-a para dentro de casa.
- Nunca mais te aproximes daquele homem - ordenou. - Não gosto dele.
Tinha o rosto vermelho e os dentes cerrados. Pousou a menina rudemente e
esta foi a correr pelas escadas acima para se esconder na Gaiola.
A menina não sabia o que fizera para a mãe estar tão zangada, mas o que quer
que fosse, tinha a certeza de que era culpa sua. Tinha enfurecido a mãe. Não queria
piorar as coisas enfurecendo também o homem. Isso iria aborrecer o papá. “É o
nosso segredo”, dissera o homem. Tens de guardar segredos. Se o papá e os outros
homens queriam tocar e beijar aquela menina, isso deixaria a mamã irritada. Ela não
sabia exactamente por que motivo, mas sabia que a mamã nunca deveria saber.
A medida que corria sob as árvores, lembrei-me totalmente da cena no Rolls-
Royce branco, as imagens passavam como uma gravação do lado direito do meu
cérebro para o esquerdo. Os pormenores eram nítidos, mas o incidente pareceu-me
irreal, como a memória de um pesadelo ou de um programa de televisão.
Para mim era difícil identificar-me com a menina sentada no banco de couro
daquele carro. Conseguia visualizá-la. Podia ver o que estava a acontecer através
dos seus olhos: o homem dizendo-lhe para levantar o rabo para que pudesse despir-
lhe as cuecas, os ramos a agitarem-se acima da capota aberta do automóvel, a luz
dos lampejos das fadas. Eu estava a observar a menina como se estivesse a vê-la
secretamente por detrás de um ecrã. A menina não era uma ilusão, uma aparição;
não era uma amiga imaginária. Preferiria ter tido um amigo imaginário, mas nunca
tive nenhum. A menina no carro não era imaginária. Era muito real. Eu podia vê-la,
era parecida comigo, e ainda assim eu tinha a certeza de que aquela menina não
era eu.
Mas se não era eu, quem era?
E porque tenho eu essa memória revoltante? Eu odiava e desprezava pensar
em sexo, mas ele estava por toda a parte. Quando saí da escola, a maioria das
raparigas já tinha um namorado e falava incessantemente da forma como se
beijavam e até onde tencionavam ir. Aquelas conversas faziam-me corar de
vergonha.
“De quem é que tu gostas... do Mark, do Gary ou do Greg?”
Não, eu não gostava de ninguém... nem do Mark, do Gary ou do Greg. Mas tinha
de entrar no jogo de modo a fazer parte do grupo. O meu trabalho na pista de galgos
dava-me algum dinheiro extra, mas o mais importante é que era uma forma de sair e
fazer coisas normais: passear pelas lojas, falar sobre as boy bands, ir ao pub às
sextas à noite beber uma cerveja com os meus amigos menores de idade, a qual
tinha tanto efeito em mim como um copo de leite.
Lutava constantemente para ser normal. Não que eu tivesse alguma ideia do
que isso significava. Uma rapariga de dezasseis anos da minha aula foi a uma festa
com um vestido muito sensual e provocante. Bebeu meia garrafa de vodka e foi para
a cama com dois rapazes ao mesmo tempo, porque sempre quisera fazer sexo a
três. Isso era normal? Outra rapariga deixou a escola depois de fazer o décimo
primeiro ano, e foi morar com um professor vinte e cinco anos mais velho do que ela.
Isso era normal? Uma rapariga que vivia perto de nós, chamada Hasna, foi visitar os
seus parentes ao Paquistão durante esse Verão e deu por si casada com o irmão do
seu pai. Isso era normal?
Se na sexta-feira me pedissem para fazer um trabalho, passaria três horas da
manhã de sábado na biblioteca. Isso era normal?
Não sabia.
O que eu sabia era que me sentia menos propensa à depressão e mais normal
quando caminhava por Veneza ou observava o lago em Zurique. Em casa, lutava
continuamente com os meus humores. A coisa negra que havia dentro de mim era
como um rato que roía a minha auto-estima e a minha autoconfiança. Também
sentia que havia uma pessoa feliz dentro de mim, que queria aproveitar a vida, ser
normal, mas o desprezo por mim própria e a profunda desconfiança que tinha para
com o meu pai não permitiam que essa pessoa alegre se manifestasse.
Quando a coisa negra se apoderava de mim como um punho de ferro, eu não
conseguia sequer olhar para o meu pai: “Abusaste de mim quando eu era pequena?”
Tal como o verso de uma canção que se crava no nosso cérebro, as palavras
corriam-me pela mente e nem uma única vez me saíram pela boca. Não que eu
precisasse de dizer o que se passava na minha mente. Tinha a certeza de que o
meu pai conseguia ler os meus pensamentos nos meus humores, na expressão
vazia e mortiça do meu olhar.
Não era de admirar que houvesse sempre um clima de tensão e
constrangimento lá em casa, e que a culpa fosse sempre minha: a Alice e os seus
humores; a Alice e a sua anorexia; a Alice e a sua baixa auto-estima; a Alice e os
seus sentimentos inevitáveis de perda e vazio.
Corri a meia maratona Fun Run nesse ano numa hora e quarenta minutos,
melhorando em doze minutos o meu tempo, e depois continuei a treinar, embora não
soubesse bem para quê. Ouvia música num volume suficientemente alto para
aterrorizar as vozes que tagarelavam na minha cabeça. Estudava tudo: Francês,
Literatura Inglesa, História, datas, factos, estatísticas, tudo o que preenchia o lado
esquerdo do meu cérebro e o mantinha sempre ocupado, preenchendo o meu tempo
com acção e actividade.
Mas a coisa negra estava sempre lá: uma sensação inabalável de desgraça e
mau agouro, uma tristeza voraz que como um redemoinho me sugava para um
vórtice onde tudo estava perdido, onde nada fazia sentido e não havia esperança.
Era como se eu estivesse envolta em nevoeiro. Ele agarrava-se a mim como uma
mortalha, vergando os meus ombros, puxando-me para baixo.
No final do Verão, a minha mãe já ultrapassara o pior do seu sofrimento devido à
perda do avô e redescobrira a sua joie de vivre. Eu ainda não conseguia fazer o luto
pela morte dele. O avô dava-me uma sensação de equilíbrio. Enquanto fora vivo, eu
fora uma criança tranquila: segura, protegida e acarinhada. Aceitar que ele partira
era aceitar que eu crescera, que devia meter o Snoopy e o Sr. Feliz num saco para a
Oxfam e ir a festas seminua. Em vez de fazer o luto pela morte do avô, eu guardara
todas as minhas memórias numa pilha organizada, arrumada numa prateleira alta
num canto escuro do meu cérebro. Receava que se pegasse nessa pilha de
memórias e a examinasse de muito perto, deslizaria para o interior daquele vórtice
depressivo e profundo do qual jamais conseguiria sair.
Quando a coisa negra estava no seu pior, quando os cocktails ilícitos e as
corridas de dezasseis quilómetros deixavam de funcionar, sentia-me dormente como
se estivesse morta para o mundo. Movia-me de uma forma inconsciente, com os
braços e as pernas pesados, como um zombie de um filme de terror. Sentia uma dor
tão intensa e persistente dentro de mim, que me sentia tentada a ir buscar uma faca
à cozinha e usá-la para tirar a coisa negra de dentro de mim. Deitava-me na cama a
olhar para o tecto a pensar nessa faca e a usar todos os meus limitados poderes de
autocontrolo para me impedir de descer para ir buscá-la.
Quando o sono chegava, só tinha pesadelos. Não era o sonho do bebé e do
homem grande com um isqueiro. Era outro sonho. O sonho do castelo.
Uma menina com cerca de seis anos que se parece comigo, mas que não sou
eu, parece estar feliz ao sair do carro com o seu papá. Entram no castelo e descem
as escadas para o calabouço, onde as pessoas se movem como sombras à luz das
velas acesas. Há tapetes e imagens esquisitas nas paredes. Algumas pessoas usam
capuzes e túnicas. Por vezes entoam cânticos em tons monótonos que metem medo
à menina. Há outras crianças, algumas delas nuas. Há um altar, parecido com o que
existe na igreja de St. Mildred. As crianças revezam-se deitadas sobre o altar para
que as pessoas, sobretudo homens, mas também algumas mulheres, possam beijar
e lamber as suas partes íntimas. O papá segura a mão da menina com força. Ela
olha para ele e ele sorri-lhe. A menina gosta de sair com o papá.
Eu queria contar à Drª Purvis esses sonhos, mas não queria que ela pensasse
que eu estava louca, por isso guardava-os para mim. A psiquiatra era mais sábia do
que eu pensei na altura; as meninas de dezasseis anos consideram-se mais
inteligentes do que realmente são. A Drª Purvis sabia que eu sofrera danos
psicológicos em criança, era por isso que continuava a marcar-me uma consulta,
semana após semana. Mas eu não era capaz de lhe dar as ferramentas e as pistas
necessárias para ela descobrir exactamente o que acontecera.
Ela tentou usar aquilo a que dava o nome de “elemento freudiano”. Por outras
palavras, sexo.
- Já viste ou imaginaste os teus pais a fazerem sexo?
- Não.
- Alguma vez te imaginaste a substituir a tua mãe nesse acto?
Fiquei de boca aberta a olhar para ela.
- Quando olhas para trás, do que te recordas acerca dos teus pais?
- Lembro-me de estar no topo das escadas, a olhar através do corrimão,
enquanto eles gritavam um com o outro.
- Sobre o que gritavam?
- Não sei bem, mas sempre pensei que era sobre mim, ou que era culpa minha.
- Nunca era culpa do teu irmão?
- Não. Era sempre culpa minha.
- Eras malcriada?
- Penso que nunca fui malcriada.
- Querias ser uma boa menina, Alice?
Não respondi.
Eu pensava “Ha, ha, Jane, quase me apanhaste com essa”. Era um jogo. Havia
coisas que a Drª Purvis tinha de saber se queria lidar com o meu problema (fosse
ele qual fosse), e como adolescente que era, jogava para ganhar e dizia-lhe o
mínimo possível.
A minha reacção às perguntas não era sempre a mesma, dependia do meu
humor, o qual não correspondia exactamente ao que eu estava a sentir, mas sim à
característica dominante nesse momento. Podia ser a menina tímida de seis anos a
descer as escadas para o calabouço. Podia ser extrovertida e confiante, quando
estava a cozinhar e também noutras alturas: a correr em dias ensolarados, a
encontrar-me com a minha amiga Karen no centro comercial e a comprar uma
cassete nova, a visitar a avó e a recordar-me do avô a contar as suas histórias
maravilhosas. Naquelas tardes de domingo após a morte do avô, não pensei nele
como estando morto, mas simplesmente ausente.
Havia momentos em que o meu humor era estável. Depois, sem motivo
aparente, sentia uma mudança a invadir-me, sem saber porquê ou o que provocara
essa mudança. Era como uma nuvem a passar sobre o sol, ou uma canção numa
cassete a saltar de uma faixa para a outra de uma forma inesperada. Um dia
expliquei à Drª Purvis que me sentia como o Incrível Hulk da série de TV, muito
popular naquela época. Era a história de um homem com uma memória fragmentada
que, sob stress, se metamorfoseava deixando de ser uma pessoa normal para
passar a ser um gigantesco monstro verde. Eu era a adolescente normal, prestes a
entrar no décimo ano, que de repente se transforma numa menina pequenina
aninhada na cama, desfeita em lágrimas.
- O que se passa, Alice? - pergunta a mãe.
Não respondo. Não sei. Não sou a Alice.
Existe na minha memória fracturada a vaga lembrança de uma vez dizer à Drª
Purvis que tive uma crise de identidade. Ela usava uma blusa azul justa às riscas
cor-de-rosa. Recordo-me dessa blusa. Era uma das suas favoritas. Ela anotou o que
eu disse e voltou para a sua preocupação original.
Falámos acerca da rapariga da escola que fantasiava com sexo a três, da que
vivia com o homem mais velho e daquela que foi obrigada a casar com o tio. Todos
os problemas psicológicos e psiquiátricos pareciam basear-se no sexo. O sexo
estava no ar como um perfume irresistível e o seu bafo fazia-me sentir infeliz.
- Não gostas de falar dessas coisas, pois não, Alice?
- Não, não gosto.
- E porquê?
- A senhora é que é a psiquiatra.
- Isso não responde à minha pergunta.
- Qual era a pergunta?
Pingue-pongue. Pingue-pongue.
Com a Drª Purvis, eu era geralmente defensiva. Tinha aprendido a não falar
sobre assuntos pessoais durante toda a minha infância e adolescência. Agora que
tinha a oportunidade de começar a resolver os meus problemas, deixei-a escapar
num miasma de obscuridade e meias verdades.
Quando saía da clínica e regressava a casa, sentava-me no piso superior do
autocarro e olhava pela janela sentindo-me desligada de tudo e de todos. Quanto
mais tempo passamos sozinhos, mais isolados nos sentimos, e mais difícil se torna
ligarmo-nos às outras pessoas. Durante esse período negro, começamos a remoer
todas as coisas que nos fazem sentir isolados e deprimidos. Quanto mais nos
sentimos isolados e deprimidos, mais isolados e deprimidos nos tornamos.
Começamos a ver desconsiderações onde elas não existem. Quando nos sentimos
mal, olhamos para as outras pessoas e consideramo-las maldosas e indiferentes. Se
procurarmos aspectos positivos nas pessoas, como o meu avô sempre fez, então
nós próprios sentimo-nos bem. Eu sabia disso. Lera centenas de livros na biblioteca.
Mas quando nos sentimos deprimidos vemos somente o lado obscuro de tudo e de
todos. É algo que simplesmente não conseguimos evitar.
A depressão é o nosso pior inimigo. Depois de uma fase de depressão e insónia
movida a álcool, recebia um “Suficiente” por um trabalho de casa. Isso deixava-me
ainda mais deprimida, e a depressão impedia-me de voltar ao trabalho e de fazer
uma revisão para o teste seguinte. Pensamos: Porquê? Porquê? Porquê? Tomamos
outro trago de álcool e não fazemos nada. Entorpece-nos a mente e é totalmente
desgastante. A corrida dá-nos energia. A depressão suga a energia de dentro de
nós. Se o tempo é a essência da vida, eu estava a desperdiçar a minha ao sentir-me
deprimida.
CAPÍTULO 5

ARMADILHAS DO TEMPO

Os resultados dos meus exames chegaram num envelope rígido de cor parda às
sete da manhã. Quando o vi no tapete da entrada, a minha garganta ficou seca e as
minhas mãos húmidas. Levei o envelope para o andar de cima como se fosse uma
relíquia de um túmulo egípcio e pousei-o na estante junto dos peluches para ver se
eles tinham alguma ideia do que estava lá dentro. Nem um murmúrio. Eram uns
inúteis.
Voltei a pegar no envelope, desci as escadas e saí para o jardim. Chovera
durante toda a noite e as flores pareciam tristes e feridas. Sentei-me sob os arbustos
de azevinho e vi uma linha de formigas marchando em fila. Pensei que devia ser
muito bom ser-se uma formiga e saber o que era esperado de nós e o que fazer
para obter a aprovação de todos.
O meu roupão começou a ficar húmido por estar sentada na relva. Fui dar uma
espreitadela ao barracão, uma ruína tão apodrecida pelas más recordações como a
porta e os caixilhos das janelas estavam apodrecidos pelo caruncho. Uma das
janelas estava partida e, através da abertura no vidro, pude ver teias de aranha
agarradas ao tecto e às paredes, um andaime frágil que mantinha o barracão de pé.
Regressando através do anexo até à cozinha, sacudi o envelope da mesma
forma que por vezes sacudia a cabeça para reorganizar o seu conteúdo. Rezei uma
oração, um gesto descarado, uma vez que não tinha a certeza de ser crente. As
notas já estavam lançadas, por isso era demasiado tarde para apelar à Providência
para que as alterasse. A linha de facas no suporte magnético reluzia como um
sorriso. Peguei na faca de trinchar, abri o envelope e retirei duas folhas de papel do
seu interior. Fechei os olhos, sustive a respiração e desdobrei as folhas enquanto
abria de novo os olhos.
Fora bem-sucedida nos meus exames do décimo primeiro ano, principalmente
com “Bons” e “Muito Bons”, e fui uma das melhores do meu ano em Dane Hall.
Mostrei as notas à minha mãe. Ela abraçou-me, o que era raro, e disse que estava
muito orgulhosa, mas para mim os resultados eram pessoais, uma reivindicação de
alguma coisa, não sabia bem de quê, mas provara algo a mim mesma.
Esperei para ver se ouvia as vozes. O Professor e o seu gang estavam em
silêncio.
Isto mostrara-lhes do que eu era capaz!
Peguei na minha bicicleta e, enquanto pedalava pela rua, tive a sensação de
estar a ver tudo pela primeira vez: casas que não conhecia; um Lotus amarelo numa
entrada que estava a ser limpo por uma mulher em biquini, algo nunca visto no
nosso bairro. Quando eu corria, tinha uma visão fechada, concentrando-me na
estrada, naquele ponto do horizonte. Agora, conseguia ver para além de mim
mesma. Podia sentir o odor das árvores, carregadas com o peso do Verão;
contemplava os longos caminhos de acesso às casas nos seus refúgios de
vegetação.
Em poucos minutos, passei St. Mildred, a minha escola do primeiro ciclo. A mãe
levava-me lá de carro quando era pequena, mas assim que fiz oito anos já podia
fazer o trajecto até casa sozinha em segurança. Recordei-me dos meus uniformes:
um vestido azul e branco axadrezado e um chapéu de palha no Verão e, no Inverno,
uma saia e um blazer azul-marinho com um crachá que mostrava St. Mildred num
círculo de luz.
Quando virei à esquerda, afastando-me da minha antiga escola primária, pude
ver Dane Hall à distância. Só me ocorria que agora não voltaria a transpor aquele
portão. Ia perder a rotina, a familiaridade, a sensação de ser uma entre muitos, tal
como as formigas, nos nossos uniformes iguais. Os meus professores e colegas de
turma tinham sido tolerantes com o meu humor: a Alice feliz, amiga de toda a gente;
a Alice carrancuda, que não fala com ninguém. Era impossível saberem qual delas
ia aparecer. Eu também não sabia. O meu humor podia mudar, como um interruptor
da luz à escuridão total.
A bicicleta sibilava pela estrada com o seu objectivo misterioso e eu dei por mim
na alameda isolada aonde o amigo do meu pai levara aquela menina no seu Rolls-
Royce.
Os pedais giravam cada vez mais rápido. Eu estava a esforçar-me ao máximo
por transpirar, por sentir o efeito das endorfinas, mas assim que uma visão má
entrava nos meus pensamentos, desencadeava outras, separadas mas indivisíveis,
uma sequência interminável de autotortura e tormento que tinha a qualidade ímpar
de parecer ao mesmo tempo irreal e hiper-real.
Vi-me subitamente no jardim noutro dia de Verão, quando a piscina insuflável foi
enchida com água da mangueira. Podia ver uma menina a desfrutar da sensação do
sol na sua pele nua e das sensações contrastantes de saltar para dentro e para fora
da água fria. O papá ergueu-a nos seus braços e levou-a para o barracão, onde o
lençol de plástico azul que cobria as lâminas do cortador de relva fora disposto sobre
a superfície do banco. Ele sentou-a e pegou nos frascos de compota com furos na
tampa.
Era aquele jogo novamente. Ele gostava daquele jogo, e naquele dia houve uma
característica nova. Segurou-a pelas axilas e ergueu-a no ar, puxou pelo elástico
das cuequinhas e fê-las deslizar pelas suas pernas abaixo.
- Olha o que fizeste, molhaste-as todas - disse-lhe ele.
Ele estava a sorrir. Estava só a brincar. Ela devia ter cerca de quatro anos, uma
menina nua sentada no lençol de plástico a observar o papá a retirar a tampa de um
dos frascos e a colocar as aranhas sobre a sua barriga. Elas rastejaram-lhe pelo
abdómen, pela vagina, e desceram pela parte interior das pernas dela.
- Não te atrevas a mexer.
Ela não se mexeu e torceu os dedos. Estava a tremer.
Depois, descontraiu-se. Parou de tremer e endireitou os dedos.
O papá sorriu e a menina, sentada no lençol de plástico azul, retribuiu-lhe o
sorriso.
Consegui recordar-me desta cena com toda a clareza nesse dia, enquanto
pedalava ao longo da alameda sob as árvores adultas. A menina sentada com as
pernas afastadas, permitindo que três aranhas rastejassem pela sua barriga, pelas
suas partes íntimas, pelas suas pernas e pelo lençol de plástico. Ela estava a
observar as aranhas e eu estava a observá-la a ela a partir de um tapete voador que
pairava um pouco abaixo do tecto. Havia um programa de televisão chamado The
Phoenix and the Magic Carpet. Eu sabia tudo sobre tapetes voadores, estava num
deles nesse momento com a sensação de estar a flutuar livremente no ar quente,
bem longe da menina que observava as aranhas.
Conseguia lembrar-me de todos os pormenores - as cores, o cheiro da relva
cortada. O lençol azul de plástico tinha uma mancha verde-escura num dos cantos.
Os frascos na prateleira, os cinzéis e as chaves de fendas na parede cintilavam no
feixe de luz que entrava pela porta aberta. A menina tinha os pés enlameados. As
suas cuequinhas cor-de-rosa estavam na parte de trás do banco ao lado do frasco
de compota vazio onde viviam as aranhas. O papá dela estava a observar, um
homem grande e escuro com cabelo negro gorduroso e uma calva.
Quando as aranhas fugiram para se esconder, ele fez deslizar os seus dedos
como pernas de aranha sobre a pele nua da menina. Introduziu a ponta do dedo na
vagina dela.
- Faz cócegas?
Ela sorri e acena com a cabeça para cima e para baixo.
Ele lança um olhar através da porta aberta para o jardim vazio. Ergue o rabo da
menina, inclina a cabeça para molhar a sua vagina e introduz a língua dentro dela.
Consigo ver tudo do meu tapete voador: a cabeça do papá a balançar como um
pássaro gigante, a menina com as pernas apoiadas nos seus ombros enquanto o
olhar dela se fixa nas fadas do pó que bailam na luz do sol.
A minha recordação dessa cena era perfeitamente clara, mas desligada de mim.
Se aquilo acontecera à outra menina no barracão do jardim naquele dia, então por
que razão era eu, a Alice, que sentia um calafrio a percorrer-me a espinha enquanto
pedalava na minha bicicleta? O meu estômago revolveu-se com a bílis, e a
sensação que experimentei naquela altura, há tantos anos, invade-me agora, neste
momento.
Naquela altura, tal como agora, eu era capaz de analisar aquelas cenas com o
mesmo distanciamento que surgia quando eu não me sentia “eu”, a rapariga que
ouvia vozes, mas sim outra faceta de mim mesma, o “eu” que cozinhava e bebia
vinho e que entoava as músicas dos The Who e dos Pink Floyd.
Concentrei-me nessa atitude de distanciamento. Deixei a alameda isolada para
trás e quando atingi a estrada aberta à minha frente, bani da minha mente as
memórias do que acontecera com a outra menina e concentrei-me em sentir a
felicidade simples de uma jovem de dezasseis anos que tinha o futuro à sua frente.
Fora bem-sucedida nos meus nove exames do décimo primeiro ano. O avô teria
ficado orgulhoso.
Em Setembro, iniciei as aulas do décimo segundo ano numa nova escola, um
edifício de seis andares onde não era necessário usar um uniforme. Entrei na escola
com um par de jeans e não voltei a usar uma saia durante cinco anos. Mantive-me
perto de Lisa Wainwright de Dane Hall enquanto explorávamos os longos corredores
e lanços de escadas desconcertantes.
Decidi estudar Psicologia e Sociologia, e mais duas disciplinas de Biologia
Humana e Psicologia do Desenvolvimento Infantil. Só escolhi estas disciplinas
porque me pareceram interessantes. Na altura não me ocorreu que estava a
investigar a mente e o corpo humano em busca de algo mais importante do que uma
mera sede de conhecimento. Os exames do décimo primeiro ano haviam sido o
primeiro teste real do nosso potencial académico e os resultados aumentaram
bastante a minha confiança. Sabia que haveria altos e baixos, dias de euforia e
depressão; eu não me conhecia assim tão bem, mas conhecia-me bem o suficiente
para sentir, no Outono de 1985, que desperdiçara muito tempo a ser mal-humorada,
e resolvi fazer um esforço para me enquadrar.
Quando tinha cinco anos, a minha mãe perguntou-me se devia deixar o meu pai.
Após uma década de indecisão, as circunstâncias permitiram que ela pudesse
finalmente sair como a parte lesada.
Desde que me lembrava, os meus pais sempre berraram um com o outro e
batiam com as portas quando se afastavam zangados. Quando eu era pequena,
presumira sempre que a culpa era minha. Agora, eles discutiam sobre dinheiro, e eu
sentia-me livre de culpa e totalmente inabalável à medida que as suas vozes subiam
pela escada.
Um dia, a minha mãe foi à procura de um extracto bancário na gaveta das meias
no quarto do meu pai e encontrou alguns preservativos usados e revistas onde as
prostitutas divulgavam os seus serviços; alguns estavam circundados e, ao lado,
havia comentários rabiscados. Era óbvio que o meu pai contratara os serviços
daquelas mulheres, mas negou tudo. Na verdade, veio ao meu quarto e implorou-me
que intercedesse junto da mãe, por mim, pelo bem da família. Afirmava que não
fizera nada de errado, que era tudo um mal-entendido. As lágrimas escorriam-lhe
pelo rosto abatido e eu não pude deixar de ter uma vaga sensação de triunfo. Era
um peso que saía dos meus ombros vergados e apercebi-me de uma fila exagerada
de sorrisos nos rostos dos peluches alinhados na estante atrás dele.
A mãe fez as malas e mudou-se para uma casa geminada e despretensiosa
numa parte da cidade onde os vizinhos raramente se cumprimentavam e onde havia
poucos carros de luxo estacionados no acesso às casas. Com o meu irmão Clive na
universidade, eu fui com a minha mãe, deixando o meu pai para trás, como o
Drácula a cismar no seu castelo.
O Stephen já deixara a esposa e morava num apartamento ali perto. Ele vinha a
nossa casa todas as noites e vestia um fato-macaco. Enquanto o meu pai passava
de carro noite após noite, observando a casa, o Stephen ajudou a mãe com a
decoração. Eu adquiri o hábito de preparar o jantar, ouvindo a mãe e o Stephen a
rirem-se como duas crianças. Eu gostava do Stephen. Ele fazia a minha mãe feliz e
a mim também.
Quando cozinhava, desfrutava de uma sensação de estar “fora” de mim. O acto
de cortar legumes e aquecer óleo provocava-me um formigueiro nas mãos e os
meus pensamentos mudavam-se para um hemisfério diferente, para o lado direito do
cérebro em vez do esquerdo, ou para o esquerdo em vez do direito. Havia muitos
compartimentos na minha mente e, tal como ainda me perdia no labirinto de
corredores da escola, via-me muitas vezes perdida, com uma sensação de déjà Vu,
nalguma parte obscura do meu córtex cerebral, a parte do cérebro que desempenha
um papel crucial na consciência perceptiva, na atenção e na memória. Tudo o que
eu vivera, imaginara ou sonhara parecia ter sido armazenado num filme e, em
seguida, espalhado por aquelas salas estranhas. Eu podia deparar-me com uma
cena qualquer, desde hediondas sequências sexuais, grosseiras e dolorosas, à
visão do avô a polir os seus sapatos.
A mãe e o Stephen bebiam sempre vinho ao jantar. Eu abria uma garrafa, para o
vinho poder respirar, e servia-me de um copo. Tentava analisar-me quando fazia
isto, procurando descobrir o motivo. Não apreciava o sabor do vinho e jamais,
noutras alturas, teria sonhado em bebê-lo. Tomava bebidas alcoólicas fortes quando
estava deprimida, mas a cozinhar nunca me sentia deprimida. Sorvia o vinho
enquanto preparava a comida com uma sensação de autoconfiança. Sentia-me
despreocupada, mas não me sentia exactamente eu mesma, eu a Alice.
- Não estás a beber, pois não? - perguntou o Stephen da primeira vez que me
viu.
- Não, Stephen, é tudo fruto da tua imaginação.
Ele riu-se enquanto lavava os seus pincéis.
- Aí não, pelo amor de Deus, faz isso lá fora, estou prestes a servir o jantar.
Eu parecia a minha mãe a falar.
Sentávamo-nos à mesa e comíamos juntos. Até conversávamos! A estranha
sensação que eu tinha enquanto cozinhava prolongava-se frequentemente durante a
refeição, dissolvendo-se enquanto subia as escadas. Entrava no meu quarto e
descobria que os livros com os trabalhos de casa, que deixara sobre a cama, tinham
sido arrumados na minha mochila. Abria-os e sentia-me chocada ao descobrir que
os trabalhos já estavam feitos. Umas vezes, estavam bem feitos, outras, tinham sido
feitos atabalhoadamente, com uma escrita descuidada. Era a minha letra, mas
rabiscada e escrita à pressa.
Punha-me a ler o trabalho e tinha a terrível sensação de que alguém estava a
observar-me. Virava-me rapidamente, tentando apanhar quem quer que fosse, mas
a porta estava fechada. Nunca lá estava ninguém. Só eu. A minha garganta ficava
seca, os ombros entorpecidos. O tique no meu pescoço começava a palpitar como
se tivesse um insecto alojado sob a superfície da pele. Os sintomas intensificavam-
se em enxaquecas que duravam dias e não respondiam ao tratamento ou à
medicação. O ataque surgia como uma tempestade repentina, esmorecia por
iniciativa própria ou desaparecia inesperadamente.
Era frequente desaparecerem objectos: uma caneta favorita, uma cassete ou
dinheiro. Geralmente apareciam, embora com o dinheiro fosse diferente. Quando o
dinheiro desaparecia era para sempre e, mais tarde, encontrava sobre a cómoda
uma T-shirt que não me recordava de ter comprado, uma cassete dos Depeche
Mode que não gostava, uma caixa de lápis de desenho, algumas peças de legos.
No início, quando as coisas começaram a desaparecer, ainda pensei que fosse
o Stephen a brincar comigo. Mas rapidamente me apercebi de que não era ele e
decidi acrescentar o desaparecimento e aparecimento dos meus pertences à lista
das coisas que empurrava para o fundo da minha mente para evitar pensar nelas.
O meu quarto na casa nova era mais pequeno do que o antigo. Não havia
espaço para todas as coisas que trouxera comigo e o excedente continuava em
sacos do lixo empilhados contra a parede. Um dia, a minha mãe reparou que os
sacos tinham desaparecido.
- Finalmente livraste-te de toda aquela tralha - comentou ela.
Livrei?
Não me recordo, e achei estranho porque a Alice é uma daquelas pessoas que
guarda tudo. Devo ter levado os sacos para a loja de caridade, mas não me
lembrava de o ter feito. Tornei-me hábil a perseguir as minhas pegadas, a preencher
os espaços em branco. Umas vezes, os espaços em branco não eram preenchidos,
outras, conseguia recordar lugares onde fora ou coisas que fizera como se fosse um
sonho, o que tornava as cenas com o meu pai e os outros homens a abusarem de
mim ainda menos reais, transformando-as em fantasias fabricadas pela minha
imaginação e não pela minha memória. Talvez a memória de outra pessoa. Não me
via como uma pessoa com problemas de saúde mental. Aos dezasseis anos,
ninguém se vê assim. Via-me como alguém especial, altamente nervosa e
temperamental.
A depressão que eu sofrera durante os meus exames do décimo primeiro ano
desaparecera. Durante esses meses, senti-me muitas vezes como se estivesse a
flutuar através da vida naquele tapete voador, não a vivê-la, mas apenas a
atravessá-la. Sentia-me melhor na nova casa, longe do pai, e tal como acomodei as
ausências periódicas do Professor e companhia, encarei estas brancas e armadilhas
do tempo como sendo os caprichos do doppelganger da Alice com a infância
destruída, uma menina ligada a mim, mas que não era a mesma que via reflectida
no espelho do guarda-fatos com uns jeans Levis e uma T-shirt do Che Guevara.
Eu tinha uma relação estranha com este espelho e passava muito tempo a
contemplá-lo para ver quem estava lá. Umas vezes, parecia ser eu. Noutras,
conseguia ver no reflexo alguém semelhante mas diferente. Houve alturas em que
captei a transformação a meio de um olhar e observei a minha expressão a
deformar-se como se fosse borracha a derreter, os vincos e os traços do meu rosto
a suavizarem-se ou a endurecerem até a mutação estar completa. De Jekyll para
Hyde, ou de Hyde para Jekyll. Sentia a minha essência interior a transformar-se em
simultâneo. Sentia-me mais confiante ou menos confiante, mais madura ou mais
infantil; completamente gelada ou húmida de suor, um estado que punha a minha
mãe doida quando me refugiava na casa de banho durante duas horas, esfregando-
me até a minha pele ficar em carne viva.
A mudança era provocada por diferentes emoções: ao ouvir uma determinada
música, a visão do meu pai, ao sentir o odor do seu aftershave. Pegava num livro
com a certeza de que ainda não o lera e, quando começava a lê-lo, escutava as
palavras como um eco no interior da minha mente. Tal como na história da Alice de
Lewis Carroll, caía nas profundezas do espelho e não podia ter a certeza se era eu
que ali estava, ou uma impostora, uma sósia.
Sentia-me totalmente desperta durante a maior parte do tempo, mas por vezes,
quando estava acordada, sentia-me como se estivesse a sonhar. Neste estado de
sonho não me sentia eu própria, o meu verdadeiro “eu”. Sentia-me entorpecida e
tinha um formigueiro nos dedos. Os meus olhos no reflexo do espelho estavam
vidrados, como os de um manequim de uma montra. Eram da cor e da forma dos
meus, mas não tinham luz nem focalização. Estas alterações eram descritas pela
Drª Purvis como alterações de humor e pela minha mãe como temperamento, mas
eu sabia que não era nada disso. Todos os adolescentes são temperamentais
quando lhes convém. As minhas transformações podiam acontecer quando estava
sozinha, deixando de ser uma rapariga brilhante de dezasseis anos de idade a fazer
os seus trabalhos de casa, para passar a ser uma criança enroscada na cama a
chorar e a olhar para a parede.
A crise de choro passava e eu arrastava-me para a frente do espelho esperando
ver uma versão infantil de mim mesma. “Quem és tu?”, perguntava eu. Conseguia
ouvir as palavras; a voz parecia a minha, mas não era eu. Via os meus lábios a
moverem-se e a repetirem, “Quem és tu?”
Misericordiosamente, as vozes não usavam isto como uma desculpa para darem
uma opinião. Permaneceram em silêncio durante grande parte dos dois anos que
antecederam a minha ida para a faculdade. Quando as vozes regressaram, eram
como um cão a ladrar na casa de um vizinho, audíveis, mas externas. Eu prestava
mais atenção à entonação do que às palavras em si, embora quando eram nítidas
mantivessem as suas invectivas persecutórias.
Mata-te, Alice.
Ninguém gosta de ti.
Faz um favor ao mundo e mata-te.
O regresso das vozes terminava numa enxaqueca que fazia latejar todo o meu
corpo. Não podia fazer nada senão deitar-me num quarto escuro à espera que as
vozes fossem afectadas pelas minhas dores de cabeça e desaparecessem.
Saber que era diferente com a minha POC, a anorexia e as vozes que mais
ninguém parecia ouvir fazia-me sentir isolada, desligada. Levava tudo muito a sério.
Analisava as coisas até à exaustão. Analisava cada palavra e a sua entonação,
procurando compreender exactamente o seu significado, se havia algo subentendido
ou uma crítica implícita. Tentava recordar-me das expressões nos rostos das
pessoas, a forma como essas expressões mudavam, o que significavam, se as
palavras que pronunciavam e a expressão dos seus rostos coincidiam e eram, por
conseguinte, verdadeiras, ou se eram uma farsa, a simpatia tocada pela ironia ou
pelo sarcasmo, o sorriso que significa compaixão.
Será que quando as pessoas olhavam atentamente para mim podiam ver a
menina na minha mente, a ser abusada naqueles filmes pornográficos que eram
projectados por detrás dos meus olhos?
Era isto que eu pensava constantemente, e tais pensamentos consumiam a
fachada de autoconfiança que eu estava constantemente a criar e a reparar.
Precisava de obter “Muito Bons” nos meus trabalhos. Precisava de correr como o
vento para conter as marés de depressão que surgiam sorrateiramente e
procuravam afundar-me em sentimentos de desespero e ódio por mim mesma.
Um mau dia - ver o meu pai; um “Suficiente” num trabalho; uma palavra cruel por
parte das vozes - e eu entrava numa espiral descendente que podia durar uma
semana. Estes eram dias perdidos em que voltava para a rotina de passar fome,
empanturrar-me, ler até de madrugada, correr até as ruas ecoarem com o vibrar dos
meus ténis. Dezasseis quilómetros não eram nada. Eu podia correr a meia maratona
depois das aulas e ainda preparar o jantar antes do Stephen chegar com uma lata
de tinta fresca. Próxima paragem: 42 quilómetros e 352 metros, a distância que
Fidípedes, o soldado grego, correu sem parar desde Maratona até Atenas para
anunciar que os persas tinham sido derrotados. Ele irrompeu pelo Senado adentro e
exclamou: “Vencemos!” E caiu morto no chão.
A Drª Purvis pareceu ficar impressionada por eu estar a treinar para a maratona
e viu isso como um bom sinal. Eu sabia que a Drª Purvis gostava de mim. Eu tinha
tendência para gostar de quem gostava de mim, por isso encarava a nossa reunião
semanal na clínica Naydon como uma espécie de convívio com uma amiga em vez
de uma consulta com uma psiquiatra.
Ocasionalmente, ia para estes encontros com uma tranquilidade zen, e quando
saía de lá para a longa caminhada pelo corredor, sentia-me desesperada e exausta.
Mantinha um diário, muitos diários. Desapareceram quase todos, mas ainda guardo
alguns pedaços de papel que sobreviveram. Lê-los é como olhar para fotografias
antigas que registam uma memória unidimensional daquilo que fomos no passado.
Estas palavras são de algo que escrevi aos dezassete anos:
É difícil sentir-me apoiada quando não posso contar tudo às pessoas. Elas não
fazem a mínima ideia do que estou a passar. É difícil confiar em alguém. É difícil
acreditar que as pessoas não me vão desiludir. Sinto vontade de chorar. Sinto o meu
corpo oco. Vazio. Não me sinto com dezassete anos.
Sinto-me mais nova. Não tenho a certeza de quantos anos tenho, talvez uns
dez. É difícil aceitar que não posso ter todo o apoio que preciso de uma pessoa. De
qualquer pessoa. Custa-me que ninguém me possa compreender plenamente. É
difícil para mim admitir que por dentro me sinto uma pessoa muito solitária. O que
preciso de fazer para cuidar de mim neste momento ? Bem, preciso de abraçar os
meus peluches. Parece uma tolice, mas preciso de algum conforto...
Eu ainda abraçava peluches quando devia abraçar rapazes da minha idade. As
imagens doentias na minha mente, em vez de me tornarem sexualmente activa,
tinham fechado por completo essa porta.
E os meus pesadelos continuavam: os meus pés em chamas, o monstro que
vinha para a minha pequena cama, e outro onde estou numa sala com outras
crianças, algumas nuas, outras vestidas. Um homem num carro branco chega para
nos levar para longe e nós estamos a amarrar-nos uns aos outros com correntes
para que ele não possa levar-nos. Nesse sonho estou frenética. Tenho os dedos
húmidos e pegajosos e não consigo coordenar os movimentos. Não tenho medo de
ser abusada. Tenho medo que o homem do carro branco me mate. Estou subjugada
pelo terror e desperto desorientada e inundada em suores frios, vozes a sussurrar
ao fundo, sem saber se ao abrir os olhos sou a Alice aos dezassete anos ou a Alice
aos sete.
A Drª Purvis, com um top amarelo-limão às flores vermelhas e uma saia de um
tom amarelo-vivo e saltos altos a condizer, escutava e anotava este sonho num dos
nossos últimos encontros. Não me recordo da análise que ela fez, apenas do som
do lápis a arranhar o bloco de notas, o clarão de luz emitido pelos seus óculos, as
listras de sombra que o sol desenhava ao entrar pelas persianas.
O meu tempo estava a esgotar-se. Aos dezassete anos, era demasiado velha
para peluches e estava fora da alçada da Drª Purvis. Era uma adulta, estava por
minha conta, e à medida que os dias eram mais pequenos e as noites mais escuras,
comecei a polir os meus ténis com um novo fervor. Passava cada vez mais tempo
trancada na casa de banho e comia tão pouco que estava a desaparecer dentro da
minha própria roupa.
Não foi nenhuma novidade que no final do meu primeiro ano na nova escola eu
tivesse obtido outra sequência de “Muito Bons”. Regressei no Outono com uma
sensação de que nada havia mudado, de que um ciclo chegara ao fim e outro
começara sem a alegria e as boas recordações que mantêm o equilíbrio.
CAPÍTULO 6

PRIMEIRO AMOR

O director da escola que eu frequentava sugeriu à minha mãe que eu


concorresse para a Universidade de Liverpool e me candidatasse a um curso de
Sociologia e Política Social. Analisei vários outros folhetos, mas finalmente aceitei o
conselho e fiz os exames com a sensação de que o destino se encarregava do meu
futuro.
Tinha de esperar dois meses pelos resultados e decidi ir para Israel trabalhar
num kibutz. A minha mãe mostrava-se preocupada enquanto fazia os preparativos
para a viagem e tirou a manhã no emprego para me levar à estação. Enquanto o
comboio para Londres se aproximava, ela ajudou-me a atar as correias da mochila
gigantesca que eu transportava com o “essencial” suficiente para uma escalada ao
Evereste. Eu ainda tinha de aprender que a primeira regra das viagens é viajar com
pouca bagagem. Demos um último abraço e ouvi os saltos da minha mãe a ecoarem
com desenvoltura ao longo da plataforma.
Em Gatwick juntei-me a um grupo de dez voluntários e trocámos nomes
enquanto aguardávamos pelo voo. Esta foi a minha primeira aventura sozinha e
escolhera Israel porque tinha um professor na escola que era judeu, e ele
descrevera um paraíso bíblico, o que não era de todo o caso em Julho de 1987.
Israel e o Líbano tinham estado em guerra e tinham acabado de atingir uma paz
instável que deixara milhões de palestinianos em campos de refugiados, de onde a
milícia xiita do Hezbollah lançara uma campanha de resistência armada.
Chegámos ao aeroporto Ben Gurion de Telavive à noite e a primeira coisa que
me surpreendeu foi que o ar era quente e abafado, como se o peso da história se
movesse na sua poeira ancestral. Entrámos num autocarro azul e partimos sob um
céu iluminado por tantas estrelas que avaliei o quanto os Reis Magos deviam ter
sido sábios para seguirem a estrela certa até Belém.
Estávamos na estrada para Tiberíades a caminho de Afula, uma pequena cidade
não muito longe do mar da Galileia, onde os discípulos tinham pescado. Nas suas
margens, Jesus exortara os seus seguidores a tratarem os outros como desejavam
que os tratassem a eles, um ensinamento que o povo da Terra Santa moderna, tanto
nessa altura como agora, quase dois milénios mais tarde, infelizmente fora incapaz
de seguir.
Vieram-me à ideia as histórias da Bíblia que aprendera na escola primária, à
medida que observava pela janela os árabes com longos mantos, conduzindo
camelos que se moviam como navios, elevan-do-se e mergulhando em ondas
invisíveis. Conseguia avistar as silhuetas das palmeiras que me recordavam o avô a
desenharas Palmeiras Ondulantes das Ilhas Tropicais. Evitara pensar no avô, mas
pensei nele naquele momento, naquele autocarro, e senti-me em paz.
Chegámos ao kibutz Neve Eitan às três da manhã e foi-me atribuído um quarto
numa cabana de betão. Tal como a menina dos caracóis de ouro na casa dos três
ursinhos, deparei-me com três camas de metal. Uma dessas camas tinha o aspecto
de estar desocupada, e eu caí exausta no colchão fino. As outras duas, assim como
uma variedade de livros e roupa suja, pertenciam a duas raparigas francesas. Não
deviam demorar, mas eu não esperei por elas. Caí num sono profundo e sereno e
despertei com um sol tão quente como um forno a cozer as paredes de betão. O
alojamento dos voluntários em Neve Eitan não tinha persianas nem vidros nas
janelas, e as portas tinham maçaneta mas não tinham fechaduras.
A temperatura chegava já aos 30 graus Centígrados quando me juntei aos
outros voluntários. Visitámos o kibutz com a chefe dos voluntários, Delilah, uma
mulher forte e ossuda, com feições angulosas que podia ter saído directamente das
páginas do Antigo Testamento. Tomámos o pequeno-almoço juntos numa mesa
comprida. A conversa estava tão animada e multilingue que não era difícil imaginar
os problemas que os pedreiros devem ter tido durante a construção da Torre de
Babel.
Empanturrámo-nos de pão, queijo, fruta fresca e iogurtes, alimentos saudáveis
todos confeccionados no kibutz, e que eu consegui comer com uma voracidade rara
após a longa viagem.
Já nos tinham sido atribuídas as nossas tarefas. Eu fiquei no grupo da
alimentação e, durante os dez dias que se seguiram, ajudei a fornecer alimentos a
cento e cinquenta pessoas. Afortunadamente, cozinhar era o meu talento, e em
breve andava agitada pela cozinha com pilhas de pratos e fruta por comer.
Depois da intensa preocupação com os exames, estava tão magra como uma
sombra. Mas na atmosfera comunal do kibutz, descobri que afinal tinha apetite. Na
verdade, tinha o estômago invulgarmente cheio quando regressava ao meu quarto
naquela primeira manhã e, enquanto caminhava esfregando a barriga, tive a curiosa
sensação de que o tempo me estava a pregar partidas.
Perdia tempo com frequência, mas naquele dia a sensação adquiriu uma textura
diferente. Era como se o tempo tivesse deixado de ser um bloco rígido de dados
inflexíveis, passando a ser ser maleável, sem arestas vivas e laços invisíveis a uni-
lo. Conseguia recordar o eco dos saltos da minha mãe a afastarem-se ao longo da
plataforma. Conseguia recordar-me de ter recolhido a fruta por comer da comprida
mesa e colocá-la na prateleira do armário. Sabia exactamente onde estava, e sabia
que devia ter viajado de avião para chegar ali. Mas os pormenores eram imprecisos,
como um desenho incompleto.
Quando isto acontecia, sentia-me sempre receosa de ter feito algo inadequado
ou constrangedor diante de um desconhecido, ou, pior ainda, diante de um amigo.
As outras pessoas não sabiam que isto me acontecia, por isso não podia perguntar
a ninguém o que acontecera durante esse tempo. A minha mente percorria todos os
cenários possíveis, começava a ficar ansiosa e os ataques de pânico terminavam
em enxaquecas.
Sempre pensei que, durante o tempo perdido, também perdia pedaços da minha
vida, ou de mim mesma. Mas nesse dia ocorreu-me que o tempo perdido não se
perdera de todo. Tinha simplesmente sido deslocado. Enquanto eu corria atrás do
tempo que perdera, estava a desperdiçar o momento presente, não o desfrutava
nem saboreava. Isto pode parecer óbvio, mas quando alguém tem lapsos na sua
memória, deseja instintivamente tapar os espaços em branco. Foi preciso o novo
ambiente do kibutz para me mostrar que o passado não podia ser alterado ou
melhorado através da recolha e da união das suas partes desgarradas. Era
importante recordar, mas talvez fosse ainda mais importante esquecer.
Tinha sempre uma ligeira sensação de aperto em torno do meu pescoço, e
sentia com frequência a garganta estrangulada. Mas ali, no kibutz, o aperto
desaparecera. Podia respirar livremente. Podia saborear o ar pesado com o seu
odor a terra entrando pela janela aberta da minha cabana de betão. Desfiz a mochila
e interroguei-me por que razão teria eu pensado que ia necessitar de cinco pares de
calções.
Após as nossas tarefas, ia com três raparigas irlandesas desfrutar de uma tarde
na piscina. Elas estavam no kibutz há relativamente pouco tempo e estavam a
considerar as qualidades dos diferentes rapazes enquanto nos besuntávamos com
Ambre Solaire e nos estendíamos sob um sol brilhante e demasiado quente para
aquelas delicadas peles irlandesas. Nos dias que se seguiram, enquanto elas iam
ficando vermelhas e com a pele a descamar, eu adquiri um saudável bronzeado, os
meus olhos assumiram a mesma tonalidade azul-clara do céu e as sardas
começaram a multiplicar-se pelo meu nariz. No espelho, o meu adversário e
portador de surpresas, comecei a ver uma criatura esguia, ansiosa e de olhos
arregalados, com o cabelo dourado e lábios que sorriam.
Diabos me levem, quem é esta fulana?
Lavava, picava e cozia courgettes, cenouras, cebolas, batata-doce, beringelas
brilhantes do tamanho de abacaxis, e servia tudo em grandes taças de cerâmica
com frango assado picante e arroz. Dormia, sem sonhar, com um pequeno peluche
que deslizara sem o meu conhecimento para a minha mochila e gostava de ter o
quarto só para mim. As duas raparigas francesas tinham encontrado dois rapazes
israelitas e, seguindo a filosofia dos kibutz, estavam a poupar camas. Tornei o meu
quarto acolhedor colocando fotografias na parede. Virei um caixote para servir de
mesa-de-cabeceira e ainda consegui arranjar uma ventoinha eléctrica.
Acordava de madrugada e o sol começava a subir no céu no momento em que
iniciava a minha tarefa de preparar as refeições com a Esther, uma mulher polaca
que sobreviveu a Buna-Monowitz, o maior campo de concentração no complexo de
Auschwitz. Quando era adolescente, sensivelmente da mesma idade que eu tinha
naquele Verão, Esther trabalhara doze horas por dia na fábrica de borracha, na
cidade de Monowitz, após uma caminhada rápida a partir do campo. As pessoas
trabalhavam até à morte, ou até estarem demasiado fracas para trabalhar e depois
eram enviadas para as câmaras de gás em Birkenau.
Em Buna-Monowitz, uma orquestra formada por prisioneiros tocava quando os
trabalhadores partiam de manhã e tocavam peças animadas para os apressar a
regressarem ao campo no final do seu turno. Os músicos eram obrigados a tocar
durante as execuções dos prisioneiros apanhados a tentar escapar, e realizavam
concertos para os oficiais da SS e para os guardas do campo. Para mim é
extraordinário como é que homens que apreciavam Mozart e liam Goethe podiam
levar a cabo as barbaridades desumanas de um campo de escravos, que as suas
esposas na cidade tivessem a capacidade de se habituar a esse sofrimento, e que
as pessoas tivessem o potencial de atormentar, infligir tortura e maus-tratos nos
demais seres humanos.
Foi a beleza da música neste mundo de brutalidade que manteve Esther viva
durante três anos, até ser libertada pelos russos em 1945. Viajou para Israel, onde
finalmente chegou à conclusão de que o mundo é maravilhoso e belo, e o homem é
cruel e incompreensível. Perdera toda a sua família. Perdera tudo. Não tinha nada,
não precisava de nada, e o ódio que sentira, o sentimento de horror e perda, foi-se
convertendo lentamente, no kibutz Neve Eitan, numa forma de perdão visível nos
espelhos dos seus olhos límpidos. Esther mos-trou-me os números azuis esbatidos
no braço. Ela podia perdoar mas nunca esquecer.
Estávamos sentadas no exterior da cozinha, sob uma oliveira com raízes
maiores que o próprio tronco. Há oliveiras nos exuberantes arredores da Galileia que
foram plantadas há quase mil anos. Durante as suas longas vidas, elas assistiram a
inundações e a incêndios, foram afectadas pela doença e pela geada. Mas as raízes
são tão profundas que crescem novamente, o símbolo perfeito para a eternidade de
todas as coisas.
Não sei porquê, mas pareceu-me apropriado escutar a história da Esther à
sombra daquela árvore. As lágrimas corriam-me pelo rosto e eu tive a sensação de
que a Esther me permitiu entrar na alma do seu sofrimento, pois era algo que ela
acreditava que eu necessitava de ouvir. As minhas lágrimas naquele dia eram pela
Esther, pela sua perda, mas também por mim mesma, pela minha inocência perdida,
pela minha infância atormentada, pela minha incapacidade de, aos dezassete anos,
me relacionar com os rapazes como as outras raparigas no kibutz.
Longe do meu pai, não apenas a algumas ruas mas a um continente de
distância, ele estava fora da minha mente e dos meus sonhos. Conseguia pensar no
avô. Evitara sentir a falta dele, mas agora sentia saudades do seu humor, da sua
humanidade, da sua capacidade de mostrar o seu rosto único e verdadeiro num
mundo onde pessoas como o meu pai e os seus amigos tinham muitas faces e
nunca se sabia qual estavam a usar.
Quando eu entrava no jardim da casa dos meus avós era como entrar num
mundo de faz-de-conta, um refúgio longe dos pesadelos horríveis que assombravam
a minha infância. Com o avô em particular, e com a avó também, eu era eu mesma.
Em casa, muitas vezes sentia-me como se fosse uma actriz a desempenhar o meu
papel. Sentia-me confusa quanto ao papel a desempenhar, quanto ao meu carácter
e à minha identidade. A tatuagem no braço magro de Esther representava a perda
definitiva de identidade, porque os nazis reduziram os indivíduos condenados aos
campos de concentração a nada mais do que um número.
Mais tarde naquele Verão, visitei o Museu do Holocausto, em Jerusalém, um
edifício moderno e frio onde nem mesmo o som dos passos dos turistas conseguia
afastar o silêncio arrepiante. Podem ver-se vitrinas onde são exibidos instrumentos
de tortura junto de pilhas de objectos empoeirados, óculos retorcidos, cartas nunca
enviadas, malas com nomes e endereços estampados de lado, sapatos de crianças
e botas de homens ainda sujos de lama. Estes itens personalizavam o metódico
extermínio em massa do Holocausto. A saída, ainda demoramos a voltar a sentir-
nos tão confortáveis na nossa própria pele como nos sentíamos antes de lá
entrarmos.
Enquanto trabalhava com a Esther, a comer como deve ser e a tomar banhos de
sol na piscina, o meu corpo estava a fortalecer-se e a ganhar sardas, mas essas
mudanças externas eram meros sinais exteriores de uma transformação mais
profunda.
Uma manhã, ao caminhar através do kibutz em direcção ao edifício a que
dávamos o nome de Casa dos Bebés, apercebi-me de que a minha cabeça estava
erguida.
Isto era estranho. Eu conseguia ver o mundo diante de mim e à minha volta: as
palmeiras imóveis como estátuas, as pessoas a quem eu dizia “Boker tov” e que me
respondiam “bom-dia” no mesmo tom alegre. Eu só estava acostumada a ver o
mundo junto dos meus pés, o pavimento ou o cascalho ou os mosaicos no chão da
cozinha. Fitara os olhos da Esther com mais concentração do que alguma vez fitara
os olhos da minha mãe ou do meu irmão. Essa sensação de manter as minhas
costas direitas e a cabeça erguida era quase uma experiência espiritual. Era como
se enfrentasse a minha própria alma e estivesse satisfeita com o que estava a ver.
Havia também outra coisa. Conseguia ouvir o canto dos pássaros. Eu gostava
de pássaros. Eles comiam aranhas. Eu esperava todas as Primaveras que os piscos
chegassem e começassem a construir os seus ninhos. Os melros bailavam sobre o
relvado, enganavam as minhocas fazendo com que elas acreditassem que estava a
chover e devoravam-nas no momento em que saíam dos seus buracos. De vez em
quando uma pega pousava no telhado do barracão como um rei a vigiar o seu reino.
Eu atirava migalhas aos pássaros e observava-os. Agora, pela primeira vez na
minha vida, conseguia ouvi-los chilrear, grasnar, zumbir.
Uma noite fui acordada por aquilo que me pareceu ser um bando de pássaros a
esvoaçar. Na fase REM do despertar, pensei que estava a ter um sonho estranho e
novo, mas quando acendi a luz, havia três galinhas muito reais a bater as asas e a
tentarem encontrar o caminho para o exterior através da janela por onde dois
rapazes as tinham introduzido. Eu não vi os rapazes, mas os autores destas
brincadeiras eram bem conhecidos. Fiquei furiosa por ter de levar as galinhas de
volta para o galinheiro e depois limpar a porcaria que elas tinham feito. Mas
compreendi que não estavam a implicar comigo ou a troçar de mim. Tratava-se
apenas de uma brincadeira. É o que os rapazes fazem, geralmente quando gostam
de nós. Na verdade, as raparigas irlandesas acordaram uma noite e depararam-se
com um burro no seu quarto.
Havia um ligeiro sorriso nos meus lábios quando tentei voltar a adormecer. Não
me senti paranóica ou deprimida. Esta foi outra revelação. Para mim a depressão
era como uma nuvem que às vezes me envolvia e às vezes pairava sobre a minha
cabeça. Estava sempre lá, à espreita. Agora desaparecera. Assim como conseguia
olhar em frente, também podia ver atrás de mim, de um lado para o outro, e olhar
para o céu. Em poucas semanas, a minha auto-estima e capacidades sociais
melhoraram consideravelmente. Não passava horas na casa de banho, porque havia
sempre alguém à espera, na fila. Até me esquecia de polir as sapatilhas!
O incidente das galinhas fez-me prestar mais atenção aos seus dois autores, ou
pelo menos a um deles. O nome dele era Patrick O’Hay, era de Dublin e, de cada
vez que o via, as palmas das minhas mãos ficavam húmidas. Patrick tinha um rosto
oval, uma melena escura, sobrancelhas escuras arqueadas e olhos azuis suaves.
Nunca tínhamos falado. Olhávamos um para o outro e desviávamos o olhar. Quando
estava deitada sob o lençol fino na minha pequena cabana abrasadora, não
conseguia parar de pensar em Patrick. Mantivera-me afastada dos rapazes e nunca
imaginara que havia intimidades que poderia querer partilhar com um.
A escala de serviço foi alterada dez dias depois da minha chegada e fui
destacada para trabalhar nos campos de algodão com um voluntário chamado Avi, e
Rebekkah, um membro do kibutz, que nos levou pelo labirinto de trilhos estreitos,
para que pudéssemos abrir e fechar as comportas e bombas do sistema de
irrigação. Limpávamos os filtros e verificávamos os tubos durante várias horas por
dia sob temperaturas que alcançavam os 44 °C. Após uma semana de trabalho,
estava tão desidratada que tive de regressar ao kibutz com uma insolação, o que é
irónico pois estivera ocupada a garantir que não faltasse água às colheitas.
Depois de alguns dias em recuperação, fui transferida para a Casa dos Bebés.
Juntei-me a duas raparigas do kibutz e, a partir das sete da manhã, enquanto os
pais trabalhavam nos campos, cuidávamos de oito bebés que tinham entre seis
semanas e um ano de idade. Alimentávamo-los, mudávamos-lhes as fraldas e
colocávamo-los em grandes carretas de mão de madeira que serviam de carrinhos
de bebé, três ou quatro em cada um. Eu passeava os mais pequenos pelo kibutz
exclamando “Boker tov” de cabeça bem erguida. Brincávamos com os bebés depois
do almoço e bebíamos café gelado enquanto eles dormiam a sesta nas horas
quentes da tarde.
Nunca estivera com um bebé antes e descobri que eles são espelhos do nosso
próprio humor. Se sorrirmos, eles sorriem. Se estivermos agitados, eles zangam-se
e começam a chorar. São incondicionalmente confiantes. Não consigo sequer
imaginar como é que alguém pode trair essa confiança e magoar um bebé.
Ao longo das semanas fui participando em várias excursões. Numa delas fui
com as raparigas irlandesas até Afula, a cidade vizinha, onde comemos falafel e
milho em espiga vendidos por árabes idosos com rostos enrugados e galabeyahs
sujos. Dei por mim a falar do Patrick e a corar de vergonha quando as raparigas me
perguntaram se gostava dele. Protestei sonoramente dizendo que, pelo contrário, o
considerava imaturo e não o suportava.
Em Nazaré, fiquei surpreendida por não existir um sistema de esgotos e os
resíduos flutuarem em rios coagulados pelas ruas, no exterior das casas e bazares.
Após a longa viagem até Jericó, na Cis-jordânia, tirámos uma fotografia à vez, na
pose clássica, mergulhadas no mar Morto a ler o Jerusalem Post. Delilah organizou
uma viagem de autocarro ao rio Jordão, que foi muito divertida pois descemos o rio
sentadas cada uma num resistente pneu de borracha. Noutra ocasião, a 21 de
Julho, fomos ao parque de Telavive assistir a um concerto ao vivo da Tina Turner. A
noite estava húmida e Tina apareceu no palco descalça e a cantar músicas como
“Private Dancer” e “What's Love Got To Do With It?”
Mais tarde naquele Verão, com o meu guia de viagens De Israel ao Egipto na
mão e uma mochila mais pequena, viajei para Rosh Hanikra, na fronteira libanesa.
Pedi a um turista que me tirasse uma fotografia em pé em frente de uma parede,
entre um sinal que dizia de um lado “Jerusalém 205 quilómetros” e, do outro,
“Beirute 120 quilómetros”, só para ficar registado que estivera o mais próximo que
alguma vez viria a estar do Líbano, a menos que viesse a ser a próxima
correspondente da BBC no Médio Oriente. Nos dois dias que se seguiram, viajei de
novo para sul através de Israel de autocarro e passei a fronteira egípcia em Taba,
entrando no deserto do Sinai. Pernoitei numa tenda beduína e fumei haxixe
preparado num elaborado narguilé de prata. Apanhei um autocarro para Sharm el
Sheikh, junto ao mar Vermelho, onde aprendi a mergulhar, uma experiência tão
inebriante como fumar erva.
Deixara de ser uma turista e passara a ser uma viajante, uma distinção que
considerei adequada quando regressei a Israel e fiquei numa pousada de juventude
no bairro árabe de Jerusalém, e o prédio foi invadido pelo exército israelita em busca
de terroristas palestinianos (ou combatentes da liberdade). Acordei quando um
soldado irrompeu pelo meu quarto, me apontou uma arma e vociferou ordens que eu
não entendi. Habituada como estava a viver apavorada com os meus pesadelos e
memórias, não receei este perigo em especial e senti-me estranhamente segura
empunhando a medalha de São Cristóvão que pertencera ao avô e que a minha
mãe me dera no início das minhas viagens. O jovem soldado continuou a vociferar e
eu ergui as mãos para lhe mostrar que estavam vazias.
- Está tudo bem, sou inglesa - disse-lhe.
Ele pensou durante alguns segundos antes de responder.
- Inglesa - repetiu. - Preciso de praticar o meu inglês - e saiu a correr.
Enquanto ouvia as portas a bater por todo o edifício, interrogava-me por que
razão estava para além da capacidade dos povos civilizados sentarem-se com um
grande mapa do Médio Oriente e desenharem uma fronteira que fosse justa para
ambos os lados. Começara a gostar dos israelitas. Pareciam-me liberais, generosos
e de espírito livre, e tinha a certeza de que eram os políticos dos dois lados, e não
as pessoas, que mantinham vivas as divisões.
Regressei a Neve Eitan com o coração pesado. Os dias eram cada vez mais
curtos e o odor adocicado e maduro das colheitas era um sinal de que o Verão
estava a chegar ao fim. Todos os dias, havia sempre algum voluntário que fazia as
suas malas e se despedia com as lágrimas nos olhos, prometendo manter-se em
contacto. Eu ainda pensei em abandonar tudo e todos e permanecer no kibutz, mas
a fantasia terminou no instante em que a Delilah me entregou uma carta da minha
mãe com os resultados dos meus exames. Conforme o director da escola havia
predito, eu passara nos exames com quatro “Muito Bons”.
Liverpool, aqui vou eu.
Numa das últimas noites, estava na grande sala de jantar comum a conversar
com uma rapariga chamada Antónia, enquanto observávamos o pôr-do-sol através
da janela. Subitamente, dois rostos bloquearam a visão: os rapazes das galinhas,
Karl e Patrick O’Hay. O Karl disse que eu tinha “olhos sensuais”, e corei
completamente.
Na noite seguinte, o Patrick veio ao meu quarto. Estava de partida no dia
seguinte e queria dar-me o seu endereço. Fomos dar um passeio sob as palmeiras e
fiquei surpresa ao descobrir que era um corredor como eu, que gostava de ler e que
tínhamos lido os mesmos livros. Sentámo-nos à luz da lua e eu escutei a melodia da
sua suave voz irlandesa. O Patrick era tão tímido quanto eu, por isso é que precisara
de oito semanas de olhares envergonhados para ganhar coragem para vir falar
comigo. Pediu desculpa pelo incidente das galinhas e, quando lhe disse que não
tinha importância, ficámos sentados em silêncio incapazes de pensar em algo mais
para dizer.
Eu não sabia nada sobre rapazes, à excepção daquilo que as raparigas diziam
na escola, e pensava que os rapazes, todos os rapazes, iriam instantaneamente
forçar-me a submeter-me às suas expectativas. Não sabia que as minhas próprias
expectativas podiam desempenhar um papel na relação entre um rapaz e uma
rapariga. Se havia uma regra geral, Patrick era a excepção, e senti-me de imediato
eufórica e confusa, um redemoinho de sensações em mutação desestabilizando o
meu equilíbrio enquanto caminhávamos juntos entre os animais do kibutz.
Naquele Verão descobri que podia perfeitamente desenrascar-me sozinha.
Tinha um novo sentido de auto-estima e confiança, mas de repente,
inexplicavelmente, a pessoa que eu deixara para trás em Inglaterra estava a tentar
entrar de novo na minha pele. Sentia-me aturdida, sentada ao luar ao lado do
Patrick. Durante todas aquelas semanas as vozes tinham-se mantido silenciosas.
Não regressaram naquele momento, mas dei por mim a tentar ouvi-las.
Tocámos nos dedos um do outro enquanto regressávamos à minha cabana. Na
entrada, os nossos lábios tocaram-se de uma forma breve e rápida, como o toque
das asas de uma borboleta. Ele voltou-se e afastou-se rapidamente, e eu percorri os
lábios com a língua.
O ursinho de peluche estava à minha espera e aconchegámo-nos sob o lençol.
Nunca partilhara a minha almofada com um homem e interroguei-me se alguma vez
o faria. Tinha uma fobia em relação a aproximar-me de alguém. A proximidade era
promessa de sofrimento e de dor. No meu primeiro dia em Neve Eitan experimentara
um ataque de tempo perdido devido ao carácter invulgar da minha nova situação.
Todavia, não voltara a acontecer. Não aconteceu naquela noite. Mas com o sabor do
Patrick nos meus lábios, tive a sensação de não ser eu mesma.
CAPÍTULO 7

LIVERPOOL

A confiança encontrada no kibutz desvaneceu-se imediatamente quando me


mudei para o edifício da residência universitária de Liverpool. Os recém-casados
deixaram-me ali com os meus ursinhos de peluche e toda a minha tralha.
Colocámos as caixas no quarto de tecto baixo, com a sua vista sobre os telhados
intermináveis e almoçámos na Pucci Pizza. Os meus pais divorciaram-se e a minha
mãe, depois de um longo namoro, casou-se finalmente com o Stephen. Eles eram
felizes. Eu sentia-me feliz por eles.
Quando saíram da pizaria, fiquei a pensar para onde ir naquela nova cidade com
o seu padrão de ruas desconhecidas e o céu a ameaçar chuva. O rio Mersey
serpenteava para o mar num percurso vagaroso e cinzento. Senti-me sozinha e
melancólica ao ouvir a sirene do ferry enquanto os passageiros desembarcavam. Tal
como o meu bronzeado, a minha recém-descoberta auto-estima desaparecera.
Talvez fosse apenas o sentimento de melancolia que acompanha o final do
Verão, um surto de DAS, distúrbio afectivo sazonal, por outras palavras, o défice de
sol. Depois de Israel, o Outono em Liverpool era frio e obscuro. Talvez eu fosse mais
talhada para tarefas simples como abrir comportas e distribuir pratos de frango do
que para os desafios intelectuais da Sociologia e da Política Social. Era melhor viver
em função do corpo do que da mente. Não sei porquê, não consegui inscrever-me
na equipa de hóquei ou na equipa de atletismo durante a semana do caloiro, embora
tivesse retomado o meu hábito de jogging, traçando um caminho afastado do centro
da cidade, pelas ruas cobertas de folhas da zona rural.
O meu rapazinho irlandês de olhos azuis, de voz doce e cabelo comprido
cumpriu a sua promessa e apareceu num fim-de-semana húmido. Apanhámos o
autocarro e deixámos a cidade para trás para irmos passar o dia a Chester.
Tentámos o nosso primeiro beijo a sério no abrigo da casa dos macacos no jardim
zoológico de Chester, vigiados por um grupo de chimpanzés atónitos e aos gritos.
Apanhámos o autocarro de volta a Liverpool e fomos para o meu quarto com o plano
tácito de irmos até ao fim. Não fui capaz. Fui invadida por sentimentos de
desespero, repugnância e tristeza. O Patrick por-tou-se como um perfeito cavalheiro
e responsabilizou-se pelos meus receios.
Ele regressou a Dublin e eu tornei-me numa reclusa, escrevendo e
reescrevendo obsessivamente ensaios numa tentativa de encontrar a essência dos
meus pensamentos. Num ensaio, há um momento em que a análise das opiniões
dos outros termina e começa o fluxo criativo das especulações pessoais. Esse fluxo
é idêntico à sensação obtida pela libertação de endorfinas quando se corre longas
distâncias. Comecei a procurar esta libertação na minha mente.
Os ensaios foram recebidos com admiração e com uma classificação de “Muito
Bom”. Os professores fotocopiaram-nos como paradigmas de um ensaio bem
documentado e isso encorajou-me a abrir-me com os outros alunos. Fiquei amiga de
duas das raparigas do meu curso: Debs, uma miúda de caracóis loiros e um
namorado que mal conseguia manter as mãos longe dela; e Sarah, uma rapariga
tipicamente inglesa que tinha uma perna falsa por causa de um acidente rodoviário e
o sorriso nervoso de alguém que procura constantemente agradar aos outros. A
Sarah fazia tudo ao seu alcance para conciliar as exigências do estudo com a vida
de estudante, e eu tomei nota disso.
As três tornámo-nos amigas de outra aluna de nome Elaine, que tinha ideias
pouco convencionais e defendia as medicinas alternativas. Também diziam que
tinha poderes psíquicos. De modo que, uma noite depois de jantarmos em casa da
Sarah, sentámo-nos de pernas cruzadas num círculo no chão, enquanto ela previa
as nossas notas.
De olhos fechados, pediu-nos que lhe fornecêssemos os nomes de todos os
alunos do grupo de Sociologia e Política Social. Depois de cada nome, havia uma
pausa, e então ela dizia numa voz firme, “um 12” ou “um 11”. Quando chegou a
minha vez, ela previu a classificação máxima.
Estaria Elaine a troçar de mim? Lembrei-me do episódio das galinhas a serem
atiradas para dentro do meu quarto no kibutz. Depois de pensar bem no assunto, e
de o analisar de todos os pontos de vista e ângulos possíveis, decidi que aquilo não
passava de uma brincadeira e que as previsões não eram importantes.
A previsão de que eu iria obter a classificação máxima estabeleceu a minha
reputação como uma intelectual. Os alunos que antes me evitavam por eu ser
estranha começaram a vir pedir-me conselhos, um estímulo para o ego com efeitos
colaterais estranhos. Por vezes, quando estava a falar, tinha a sensação de que não
havia apenas uma pessoa à escuta, mas uma pequena multidão fora do meu campo
de visão. Essa multidão murmurava frases incoerentes por detrás da divisão
esquerda/direita do meu cérebro na minha cabeça. Quando os murmúrios desta
pequena multidão se tornavam insuportáveis, recorria à garrafa. O gin era a minha
bebida predilecta. Uma boa bebedeira tinha o condão de calar as vozes e como eu
bebia sozinha, ao contrário da maioria dos estudantes, isto reforçava a minha
reputação de ser tão excêntrica quanto inteligente.
As vozes tinham regressado, mas de um modo diferente. Tor-naram-se atentas
e tornaram-me inibida. Por exemplo, numa palestra em que eu sabia a resposta
correcta para uma pergunta e mais ninguém parecia saber, sentia-me obrigada a
negociar com as vozes antes de falar. Eles estavam a observar, portanto, tem
cuidado. Não te exibas. Não te enganes. Não faças figura de parva. Por vezes, o
professor, supondo que eu saberia a resposta, olhava na minha direcção, e os
alunos também, e eu ficava ali muda a escutar o tumulto que aqueles “outros”
invisíveis faziam na minha cabeça.
Nessas ocasiões, quando o professor e os alunos olhavam para mim, eu via-me
a ser observada também eu como uma pessoa à parte. Olhava para mim mesma
com uma expressão vazia, da mesma forma que os outros alunos estavam a olhar
para mim, da mesma forma que olhamos para alguém que está nu, ou que está
muito bem vestido, ou para alguém ou alguma coisa que não bate certo. O tique no
meu pescoço iniciava a sua dança. Eu ficava ali sentada na sala de aula a
interrogar-me se as outras pessoas conseguiriam ouvir o palavrório que eu estava a
ouvir. Era tão sonoro, tão real, que não podia acreditar que os outros não fossem
capazes de ouvir nada.
Eu era uma refém das vozes. Uma prisioneira. Não queria chamar a atenção
para mim, aborrecer as vozes, provocar a sua ira. Era incapaz de me ligar às
pessoas. Havia um diálogo na minha cabeça e ele excluía todos os outros, as
minhas amigas, até mesmo o Patrick. No amor, somos validados pela pessoa que
nos ama. Eu amava o Patrick, mas não podia demonstrá-lo. Ele era gentil, amável,
paciente, a minha esperança de normalidade.
Ele voltou novamente a Liverpool. Foi ao barbeiro cortar o cabelo e saiu de lá
com as faces coradas e um pacote de preservativos. Não fazia ideia de que fosse o
lugar indicado para comprar preservativos ou porquê. O problema de se ser
inteligente é que há imensos factos simples da vida que permanecem um mistério.
Fomos para uma pensão no campo para desfrutarmos de uma noite romântica:
jantar com vinho espumante e velas, subir de mãos dadas pelas escadas que
rangiam, beijarmo-nos por trás da porta trancada. Esta era a minha primeira vez. A
primeira vez de Patrick. Tirámos a roupa no escuro e cinco minutos depois de
entrarmos nos lençóis da grande cama de casal, levantei-me e fui apanhar o último
comboio de volta para a estação de Lime Street em Liverpool. Eu era uma inútil.
O Patrick, por razões que eu nunca compreendi totalmente, mudou-se de Dublin
para Swansea e fizemos mais uma tentativa quando fui visitá-lo. De novo, chegámos
até à cama, mas naquela noite eu levantei-me e arrastei-me para o saco-cama que
levara em caso de emergência. Eu amava o Patrick, mas não havia maneira de
conseguir fazer a ligação entre o amor e o sexo. Sentia-me desesperada por amor,
mas não suportava que me tocassem. Não podia imaginar alguém, fosse quem
fosse, a entrar no meu corpo.
Escapara fisicamente do meu pai, do som do seu rádio de ondas curtas, dos
seus passos a subir as escadas, da sua voz fantasmagórica à porta da casa de
banho a sussurrar, “a tua mãe diz que já estás aí há muito tempo”, enquanto eu
permanecia escondida no vapor a esfregar os pesadelos do meu corpo esquelético,
com as costelas e os ossos das ancas a projectarem-se através da carne, as
cavidades profundas e sombrias sob as clavículas, o meu rabo descarnado e liso,
que eu via nas suas grandes mãos, enquanto a sua língua grossa penetrava o meu
inocente corpo de menina. Mas ele estava omnipresente nos meus sonhos à noite.
Os pesadelos assombravam-me e eu acordava aspirando um ar que, por momentos,
continha o odor forte e impuro a brilhantina e aftershave.
A minha vulnerabilidade incentivava as vozes.
Ninguém te ama. Não és nada. Vá lá, Alice, mata-te. Tu sabes que queres fazê-
lo. Fá-lo. Experimenta. Fà-lo agora.
Se as vozes estavam a tentar excluir-me do contacto humano, conseguiram-no.
Por vezes, planeava encontrar-me com as minhas amigas Debs, Sarah ou Elaine, e
depois cancelava ou não aparecia. Elas ficavam aborrecidas, claro, e as vozes
manifestavam-se.
Estás a ver, nem as tuas amigas gostam de ti agora.
Não demorava muito para que o coro de vozes desconhecidas flutuasse para
segundo plano e os tons habituais do Professor e dos seus compinchas se
insurgissem com os seus comentários maldosos.
Pensas que és muito inteligente, mas não és. Nunca vais chegar a lado nenhum.
Nunca vais conseguir nada. A nota máxima? Não me faças rir!
As vozes que acompanhavam o Professor entravam na conversa com coisas
como, Apoiado. Assim mesmo! É bem feito para ela. Quem é que ela pensa que é?
Não era fácil tentar comportar-me normalmente com os pesadelos persistentes e
as vozes dizendo-me que eu era um desperdício de espaço. A narrativa persecutória
mantivera-se à distância durante a maior parte do tempo em Israel, mas agora
estava de volta em plena força. As vozes faziam-me sentir isolada, desligada, como
um balão libertado pelos dedos de uma criança. A combinação das vozes e dos
pesadelos estava a acabar com os últimos grãos de autoconfiança que eu metera na
minha mochila grande e trouxera para casa comigo do kibutz Neve Eitan.
À medida que a minha confiança se desvanecia, as condições atmosféricas
começaram a exibir o seu lado mais obscuro. Nevou durante aquele Inverno. A neve
agarrava-se às árvores e jazia em mantos sobre os telhados. O barulho na minha
cabeça era tão sonoro quanto o estrépito de uma festa num apartamento vizinho, um
clamor bioacústico que interferia com as minhas rotinas normais e, uma vez mais,
comecei a perder tempo.
Podia estar numa sala de aula com um monte de folhas de notas na minha pasta
e ser incapaz de me lembrar de ter tomado aquelas notas ou do tema da aula. Dava
por mim a caminhar apressadamente pela Chinatown de Liverpool, esquecendo-me
de onde estava a ir, porque estava com pressa, ou com quem deveria ir encontrar-
me. Olhava para o relógio para ver as horas e esquecia-as de imediato, erguia de
novo o meu relógio mecanicamente e voltava a esquecer-me das horas. Por vezes
era cómico. Os ponteiros do meu relógio pareciam parar, girar ou andar para trás,
mudando o tempo de um continuum para um enigma, e a pergunta “Que horas são}”
conver-tia-se em “O que são as horas? O que é o tempo?”
O tempo era irracional, assim como o espaço e a geografia.
Saía para a minha corrida habitual, com as ruas da cidade estendendo-se até ao
infinito, os edifícios a crescerem em altura, tornando-se mais próximos. O edifício
Liver, com os seus quatro relógios gigantes, surgia como uma prisão, como o
castelo no meu pior pesadelo. À medida que me virava e revirava, sentia-me
aprisionada num labirinto, como uma obra de Escher, um mundo desconcertante
sem princípio nem fim, as ruas todas iguais, o edifício Liver girando como se
estivesse num eixo, seguindo-me, observando-me, a sensação de aperto na minha
garganta fazendo-me arfar.
Por sorte, ou karma, como diria a Elaine, dava por mim fora do perímetro da
cidade a correr sobre a ponte que conduzia aos campos. As árvores estavam nuas,
prateadas devido à geada, e eu tinha a terrível sensação de que estava a correr ao
longo das ruas junto da minha antiga casa. O som dos meus ténis no solo
desencadeava um ciclo de memórias, assim como o toque da mão de um estranho
podia enviar-me para um fosso de depressão de onde apenas conseguia sair
correndo até casa e bebendo um trago da garrafa que tinha debaixo da cama.
Elaine era uma pessoa sensível, sentimental. Usava colares de contas de
madeira e saias largueironas. Abraçava-me de cada vez que nos encontrávamos, os
seios grandes dela esmagavam o meu esqueleto. Eu fechava os olhos e dizia para
mim mesma: “Está tudo bem. Aguenta-te, Alice. Não fujas. Ela é tua amiga.” Quando
as vozes não falavam comigo, falava eu comigo mesma.
Os telefonemas e as cartas ocasionais do Patrick eram a minha tábua de
salvação. Mas o Patrick fazia-me pensar em sexo e o sexo fazia-me pensar nos
meus pesadelos. Durante esses três anos na universidade senti-me impelida a
trabalhar afincadamente para o meu diploma através de uma mistura de ambição e
ausência de auto-estima. E durante todo esse tempo debati-me com os pesadelos e
com as vozes.
Mata-te, mata-te. Corta os pulsos, corta a garganta. Tu não és nada, és uma
inútil, és escumalha. Ninguém gosta de ti, ninguém te quer. Faz um favor ao mundo,
Alice, e toma um frasco de comprimidos para dormir; engole-os com uma garrafa de
gin. Desiste. Sabes que não consegues fazê-lo. Vais falhar, por isso pára de tentar.
Ninguém gosta de ti. Ninguém te quer. Vá lá, toma outro trago daquela garrafa.
Toma outro comprimido.
Ainda pensei em procurar ajuda médica, mas já o tentara com a Drª Purvis. Eu
gostara da Jane Purvis. Ela tentara ajudar-me. Mas toda aquela conversa acerca de
Freud e do acto sexual parecia-me banal e sem sentido. Eu saíra frequentemente do
seu consultório, com as cadeiras fundas e as persianas, mais deprimida do que
quando entrara. Segui o exemplo da Sarah e tentei aprender a viver com a minha
doença especial, e interroguei-me sobre o que seria pior enquanto corria pelas ruas
com as minhas pernas saudáveis: um corpo destroçado ou uma mente devastada.
Nascemos com todas as células cerebrais que alguma vez teremos. A pessoa adulta
que somos depende muito daquilo que nos acontece e das escolhas que fazemos. O
que nos acontece nesses primeiros anos de formação afecta as opções que
fazemos posteriormente, e alterar ou influenciar aquilo em que nos transformamos é
praticamente impossível. O assassino e o pedófilo estiveram sempre lá.
Agarrei-me à ilusão de que era uma rapariga normal com um namorado e planos
para voltar a Israel no Verão. Durante todo o ano andara ansiosa para regressar a
Neve Eitan, mas no último momento mudei de ideias. Não queria estragar as boas
memórias e fui para uma parte diferente de Israel para trabalhar na apanha de fruta
em Moshav Bene Atarot, onde pelo menos os longos dias de sol tiveram um efeito
paliativo.
A Sarah juntou-se a mim em Telavive duas semanas antes do fim da minha
viagem e fomos as duas ao Egipto ver as pirâmides e a esfinge. Não nos foi possível
fazer as trepidantes viagens de camioneta e à boleia, o que teria acontecido se
viajasse sozinha. Não me podia esquecer de que a Sarah tinha uma deficiência
física e fazia um esforço sobre-humano para me acompanhar. Eu, por minha vez, fiz
um esforço para fazer o que era melhor para a Sarah e o que era melhor para a
Sarah acabou por ser melhor também para mim. Durante essas duas semanas no
Egipto, as vozes deixaram-me em paz.
Não sei bem para onde foi esse segundo ano na universidade, pois não passa
de uma névoa de noites sob uma lâmpada despida a ouvir a tagarelice num dos
lados do meu cérebro e a escrever as notas para os ensaios com o outro lado, um
acto de equilíbrio para manter os dois hemisférios a funcionar, um reflexo da minha
relação com o Patrick, juntos e contudo separados. O Professor era o meu
companheiro constante nos meus novos aposentos na YWCA, onde tinha grades
nas janelas, uma cama, uma cadeira e uma mesa. Eu estava a estudar Política e
História da Política Social, disciplinas que considerava difíceis, assim como
Sociologia, com a qual já estava familiarizada dos anos anteriores.
A associação ficava a cerca de cinco quilómetros da universidade ao longo das
margens do rio. Comprei uma bicicleta de montanha com as minhas economias para
fazer a viagem diária de ida e volta, sempre pelas mesmas ruas, como se fosse um
autocarro, passando pelas olarias antigas e as lojas de peças em cobre, a igreja de
St. Michael, Sefton Park, a um ritmo imutável. Na rotina, eu era capaz de funcionar.
Ia mantendo a ilusão de ser normal, enquanto na minha cabeça se davam
mudanças subtis, como fendas no gelo, a minha mente consciente digladiava-se
com a minha mente inconsciente.
A minha relação com o recordar e o esquecer tornou-se menos fiável. Eu era
capaz de me lembrar de páginas de texto, mas esquecia-me de comer, dos
compromissos, das promessas. Se as horas das aulas fossem alteradas eu andava
numa roda-viva. Por vezes dava por mim diante da porta fechada de uma sala de
aula, às dez da manhã, a olhar para o horário sem saber se soubera que a aula
começava às onze horas e me esquecera disso, ou se fora alterada das dez para as
onze, e eu não me lembrava. O contrário também acontecia: eu chegava uma hora
atrasada, olhava para o relógio, esquecia-me das horas e olhava novamente. É
terça-feira ou quarta-feira? Política ou História da Política Social?
Sou a Alice?
Quem é a Alice?
A memória é como uma corda com três fios que funcionam mediante um
processo de codificação - o processamento e a combinação de informações;
armazenamento - um sistema para guardar a informação codificada; e recuperação -
o modo de recordar essa informação. Possuímos mil milhões de neurónios no
cérebro que comunicam através de sinapses eléctricas e químicas num processo
denominado transmissão sináptica. Não é de surpreender que os fios se cruzem, na
verdade, é surpreendente que não se cruzem com mais frequência. Eu sofro, em
termos de memória, de uma combinação de amnésia, o esquecimento puro e
simples, com um traço deprimente de hipertimesia, o oposto. Isto acontece quando
conseguimos recordar pormenores pessoais com uma minúcia fantástica; é útil
quando aplicamos essa capacidade ao processo de aprendizagem, e devastador
quando mergulhamos no passado. O meu passado.
O Patrick veio para ficar e fizemos uma última tentativa desesperada para
fazermos amor. Não resultou, e desencadeou um ciclo de pesadelos quando ele
voltou para Swansea. Noite após noite, como se fosse um episódio de uma horrível
telenovela, via-me a mim mesma, ou a alguém que se parecia comigo com a idade
de seis anos, a entrar no carro do meu pai e a sair para um edifício alto que se
assemelhava ao edifício Liver, mas que no meu sonho se transformara num castelo.
Dávamos as mãos e descíamos um lanço de escadas até uma porta e entrávamos
no calabouço onde muitas pessoas estavam a entoar cânticos, as crianças estavam
nuas e as velas lançavam sombras nas paredes.
Acordava desorientada com o som angustiado da voz de uma criança e
imaginava que a criança estava ali no meu minúsculo quarto. Acendia a luz e
espreitava para debaixo da cama. A criança não estava lá. A criança estava dentro
de mim, mas também fora de mim, tal como as sombras que tremeluziam nas
paredes do calabouço. Ela estava com receio do que lhe acontecera nas visitas
anteriores ao castelo e tinha pavor do que ia voltar a acontecer-lhe. Digo “ela”, mas
a criança que gritava durante a noite era neutra e eu tinha a nítida sensação de que
era mais masculina do que feminina.
Alguém ou algo estava a crescer dentro de mim como um feto. Ter-me-iam as
minhas tentativas infelizes de fazer amor com o Patrick deixado com uma gravidez
fantasma? Eu conseguia sentir algo formando-se, evoluindo, mexendo-se, mas não
me sentia feliz da mesma forma que as mulheres grávidas se sentem felizes e
satisfeitas. A minha gravidez era um monstro que me enchia de vergonha e
repugnância de mim própria. Eu não podia explicar o meu medo ao Patrick e,
finalmente, escrevi-lhe para lhe dizer que era incapaz de continuar com qualquer tipo
de relacionamento. Fazer isto par-tiu-me o coração, e penso que o dele também.
Passei o Verão em casa com a minha mãe e o Stephen. Nas últimas semanas,
fui buscar um formulário de inscrição para o Centenário da Maratona de Birmingham
(1889-1989). Estendera o meu limite até cerca de vinte e quatro quilómetros e isso
quase me matou. Poderia eu correr mais de 41 quilómetros, quase o dobro da
distância?
Nem tentes, Alice. Não vais conseguir. Nunca serás capaz de o fazer. Não és
suficientemente boa. Não és suficientemente boa seja para o que for. Serás sempre
uma imprestável.
O Professor estava de regresso ao meu cérebro.
“Ah, pelo amor de Deus, cala-te.”
- És tu, Alice, a falar sozinha outra vez? - perguntou a mãe da cozinha.
- Sim, mãe, sou eu a falar sozinha outra vez.
Queria falar-lhe das vozes, dos pesadelos onde via a porta do meu quarto a
abrir-se na obscuridade e o meu pai a entrar no meu quarto. Andava a tentar falar-
lhe nisso desde os meus cinco anos. Agora tinha vinte e era uma mulher, mas ainda
não conseguia fazê-lo. De cada vez que tentava, as palavras definhavam numa
enxaqueca.
Suspirei e pousei o formulário sobre a mesa.
- Assina na linha pontilhada - pedi.
A ideia era angariar dinheiro para a caridade a partir de patrocinadores. Enfiei-
lhe uma caneta na mão, enquanto ela lia o formulário.
- Não estás a falar a sério? - perguntou ela.
- Nunca falei tão a sério na minha vida.
- Isto vai matar-te, Alice.
- Então não terás de te preocupar mais comigo - respondi.
Ela fez estalar a língua, impaciente, e assinou o nome dela.
- Bem, quem é que vais ajudar, então? - perguntou ela.
Eu ainda não pensara nisso, mas respondi instintivamente:
- A NSPCC.
A minha mãe dispôs-se a dar duas libras por cada quilómetro e meio. O Stephen
seguiu o exemplo dela, como em tudo o resto. Telefonei ao Clive para tentar
persuadi-lo a ajudar-me, o que lhe provocou uma boa gargalhada, mas pelo menos
acrescentou igualmente duas libras por cada quilómetro e meio. Entrei em contacto
com amigos, alguns professores em Liverpool, e no fim-de-semana já estava a
experimentar um novo par de ténis Nike Air.
Correr a maratona é uma questão de sobrepor a mente à matéria. De cada vez
que saía para correr, escutava o que me dizia o corpo e sabia se nesse dia ia ser
uma corrida curta ou se iria prolongar o mais possível a distância em direcção ao
grande desconhecido. Comecei com um programa de baixa intensidade,
desenvolvendo a aptidão aeróbica e a resistência, antes de passar ao aquecimento
com o método sueco fartlek, uma forma modificada de treino contínuo que envolve
mudanças regulares de ritmo. Ia frequentemente para Sutton Park, corria um pouco
em volta do perímetro num ritmo lento, em seguida fazia alguns sprints e depois
caminhava como forma de recuperação. Também ia para a pista de atletismo e fazia
corridas de cem metros antes do treino normal, construindo uma tolerância ao ácido
láctico, que provoca uma sensação de ardor nos músculos quando eles estão a
começar a ficar cansados.
Um dia, durante um almoço com uns amigos da minha mãe, John e Penny, o
John falou-me de quando era ciclista de longas distâncias.
O John estava “à vontade” para falar do assunto e “sabia uma coisa ou outra”.
Não achava que eu tivesse feito a preparação suficiente para a maratona, mas
patrocinou-me de qualquer maneira.
O evento realizou-se no último domingo de Setembro, um dia de sol, límpido e
sem nuvens. Milhares de corredores reuniram-se na linha de partida do Alexander
Stadium e, quando a pistola disparou, partimos sob o clamor da multidão, um rio de
gente animada pela caridade. A corrida de Birmingham era uma prova para os Jogos
da Commonwealth, não que eu tivesse conseguido ver os atletas de elite da minha
posição, bem lá para trás, longe da linha de partida. Na minha candidatura previra
um tempo para terminar a corrida de entre quatro horas e quatro horas e meia, mas
tinha calmamente mudado para a zona de partida seguinte como se, por auto-
sugestão, pudesse quebrar esse tempo mágico de quatro horas.
A medida que entrava no ritmo, tudo o que conseguia ver era um oceano de
cabeças oscilantes, todas iguais, todas com a mesma finalidade. Pareceu-me que
existiam mais semelhanças do que diferenças entre nós. Homens e mulheres,
jovens e velhos, altos e baixos, tínhamos todos o mesmo objectivo: concluir a
corrida, ter sucesso contra todas as desvantagens, sentirmo-nos orgulhosos e, se
possível, sermos um pouco mais amados e respeitados.
Rapidamente, os corredores começaram a rarear. Eu fazia parte de um grupo de
uma dúzia de participantes com os números a esvoaçar nas nossas costas, a
respiração ofegante, os nossos ténis a martelar o asfalto como tambores. Eu não
queria desidratar e pegava numa garrafa de água de cada vez que passávamos por
um ponto de abastecimento. Quando passámos por Centenary Square, o meio do
percurso, olhei para o relógio e senti um frémito de excitação. Podia alcançar a
minha meta.
O percurso levou-nos através do campus da Universidade de Birmingham e por
uma colina íngreme em direcção a Edgbaston. Como era obsessivo-compulsiva, e
com a recordação daquilo que me havia acontecido uma vez em Israel, sentia-me
tão ansiosa por não desidratar que ingeri água em excesso. Aos vinte e sete
quilómetros, a maior distância que alguma vez percorrera, ao passarmos por uma
zona residencial, tive de pedir a uma pessoa que se encontrava à porta da sua casa
a acompanhar a corrida se podia usar a sua casa de banho. Esta curta pausa foi o
único ponto na corrida em que realmente parei de correr.
De volta à corrida, tive de acelerar para apanhar o meu grupo no momento em
que o percurso virava para Kings Heath Park. As pessoas na multidão estavam a
comer gelados, a gritar, a incentivar-nos, mas o esforço extra teve os seus efeitos e,
à sombra dos ulmeiros elevados, senti-me completamente de rastos. Mal podia pôr
um pé diante do outro. Sentia os quadríceps dormentes. Jamais conseguiria atingir
as quatro horas. Eu só queria chegar ao fim. Implorei ao rapaz que ia a correr ao
meu lado que falasse comigo, ajudando-me a passar a barreira da dor, mas ele
limitou-se a gemer e prosseguiu com um passo vacilante. A maratona é uma corrida
só para profissionais. Todas as outras pessoas estão a correr contra si próprias. É
cada um por si e cada um tem de perseverar sozinho.
Saímos do parque a passo de caracol e descemos Cartland Road, uma colina
bastante íngreme. No final desta descida ganhei um novo fôlego e comecei a
ultrapassar os corredores que se esforçavam por avançar em Pershore Road.
Virámos para Cannon Hill Park, onde recorrendo ao que sobrava da minha energia
renovada fiz um sprint sobre a linha de chegada, com o tempo a marcar 3 horas, 46
minutos e 14 segundos no placard por cima da minha cabeça.
A minha mãe, o Stephen, o John e a Penny estavam à espera na linha de
chegada, para verem se eu terminava a corrida. Oh, gente de pouca fé! Eu sabia à
partida que o conseguiria, mas o que importava era quebrar o recorde das quatro
horas. Recebi uma medalha e um cobertor para me manter quente, embora a
temperatura às 12h45 nesse dia fosse de 32 °C - a temperatura em Israel.
O John tirou-me uma foto a transpor a linha de chegada e deu-me
imediatamente um cheque no valor de vinte e seis libras. Bebi quase cinco litros de
água e ainda me estava a sentir rejubilante quando regressámos a casa, um
sentimento que transformou em chumbo as minhas pernas na manhã seguinte,
quando tive de descer as escadas sentada porque os músculos das coxas e dos
gémeos estavam a dar cabo de mim. Fui nadar para evitar que os meus músculos
bloqueassem completamente.
Reuni todo o dinheiro dos meus patrocinadores, mais de quinhentas libras, e
enviei-o para a NSPCC. Esta é, desde essa altura, a minha obra de caridade de
eleição.
As coisas estavam a mudar dentro da minha cabeça. Eu conseguia senti-lo.
Escutá-lo. Era como se fossem ratos a correr numa roda, as suas patinhas fazendo
a roda girar, todas aquelas sinapses elásticas como chips de silicone a mudar, a
adquirir uma nova forma, a preparar-me para o inevitável. As memórias há muito
enterradas estavam a sair para a luz do dia e a sacudir a poeira. As perturbações
mentais são como a ferrugem. Nunca dormem. Movem-se sorrateiramente. Pioram.
Eu precisava de ajuda. Tinha de acabar o meu último ano na universidade antes que
o vulcão explodisse.
A minha mãe e o Stephen levaram-me de volta a Liverpool no início do período
de Outono e tivemos o tradicional almoço no Pucci Pizza. Ela disse-me “Dedica-te
ao estudo, obtém bons resultados”, como se eu precisasse que ela o fizesse, e o
Stephen enfiou cem libras na minha mão quando ela foi à casa de banho. Era
deprimente ter um padrasto tão agradável.
Apressei-me a regressar à YWCA e passei a tarde na cozinha, cheia de
confiança culinária, a fazer folhados de maçã e a tomar conhecimento das últimas
novidades com a Sarah e a Debs. A Debs era enérgica e teimosa, com um estilo
frenético muito característico. Tinha posto fim à relação com o mais recente da sua
longa lista de namorados, depois de ter ido ao apartamento dele para lhe fazer uma
surpresa e ficar surpreendida ao encontrá-lo na cama com a sua melhor amiga.
Disse que nunca mais voltaria a falar com nenhum dos dois e nós não duvidámos.
Eu e a Sarah tínhamos inveja da Debs, mas obtínhamos um vicário prazer da novela
que era a sua vida amorosa. Sabíamos que não demoraria muito até que outro
Mark, Gavin ou Jason aparecesse para nos oferecer um novo capítulo excitante.
No meu ano de finalista, especializei-me em questões políticas na política social
e saúde pública consoante a classe social, a idade, o género e a raça. Nas duas
dissertações que tive de escrever, escolhi como tema para uma delas a violência
doméstica e na outra fiz uma comparação entre os homens empregados e
desempregados a nível do comportamento em relação à saúde, através de um
questionário que eu mesma elaborei.
Quando escolhi a saúde dos homens como tema, não me ocorreu que, vivendo
como vivia no mundo inacessível da minha cabeça, tinha pouco conhecimento das
pressões do dia-a-dia das pessoas em geral e dos homens em particular. Não era
óbvio para mim que a minha pesquisa iria atingir as conclusões óbvias. Os homens
desempregados tendem a beber mais, a fumar mais, a evitar o exercício físico e
estão mais predispostos a sofrerem de doenças mentais e físicas do que os homens
que trabalham.
Em resumo, homens, se querem ser saudáveis, arranjem um emprego.
A dissertação foi cuidadosamente estruturada e passou por muitos rascunhos,
mas o trabalho não apresentou nenhum dado novo e atingiu uns decepcionantes
sessenta e oito por cento, dois pontos cruciais abaixo da minha meta se queria obter
a nota máxima.
O meu estudo sobre a violência contra as mulheres era mais abrangente e algo
com que eu estava familiarizada, mesmo não me apercebendo disso. Para muitas
mulheres, o “lar” é uma contradição, um paradoxo. Pensamos no lar como sendo
uma zona de conforto, um lugar de segurança, mas também pode ser um campo de
batalha de uma violência incessante. Este lugar onde o companheirismo e a
brutalidade humana coexistem, deixou-me a cabeça à roda e a minha Olivetti portátil
a emitir estalidos pela noite dentro, para grande irritação dos meus vizinhos nos
quartos adjacentes da YWCA.
As escritoras feministas explicam a violência doméstica como sendo a forma
mais explícita do poder dos homens, o que para mim era demasiado simplista. Eu
via a violência como a negação da liberdade de uma mulher. Assim que uma mulher
fica aprisionada pelo medo, perde a liberdade de ser ela mesma. Se a violência
entra num relacionamento, a quebra do tabu assume uma aura de sedução e
fascínio. Assim que um homem violento prova o fruto proibido, tal como um viciado
em heroína, mal pode esperar por outra dose.
Todo o homem que bate numa mulher ou abusa de uma criança e sai impune
fica obcecado com essa sensação de poder e, muitas vezes, chega à perturbante
conclusão de que está acima das leis e normas da sociedade. Esta atitude provoca
danos nas suas vítimas e também as priva da sua liberdade. De todos os animais,
somente os seres humanos são gratuitamente violentos, e muitas vezes a violência
tem uma componente sexual. Defendi na minha dissertação que a liberdade é algo
que todos nós valorizamos acima de todas as outras coisas, e tentei mostrar como a
violência é a negação dessa liberdade.
Para a minha pesquisa, visitei um abrigo para mulheres para entrevistar algumas
delas, mulheres que tinham suportado altos níveis de brutalidade e finalmente fugido
em busca de auxílio nos serviços sociais. Uma das mulheres fora atacada com um
machado e teve a sorte de ter escapado apenas com o crânio fracturado. Outra fora
presa com uma coleira num canil e alimentada com os restos do prato do seu
marido. Outra fora repetidamente violada e espancada. Estas mulheres falaram
aberta e honestamente. Estavam tão devastadas e destruídas que nem sequer
perguntaram por que razão uma estudante de vinte anos de idade estava a
interrogá-las.
- Porque não tentou chamá-lo à razão?
- Ele não sabia ser razoável.
- Porque não chamou a polícia?
- Não podia. Tinha medo.
- E quando ele estava no trabalho?
- Ele nunca trabalhava.
Era sempre o mesmo padrão. Ao que parece, a vida resume-se a padrões, e
assim que o padrão da violência começa, repete-se uma e outra vez. Homens com
baixa auto-estima, frequentemente o resultado da desilusão e do desemprego, regra
geral incentivados pela bebida e pelas drogas, pretendem muitas vezes magoar-se a
si mesmos mas têm receio de o fazer. Em vez disso, magoam a única pessoa que
está ao seu alcance, as esposas ou as companheiras. Se eles se vêem a si mesmos
como nulidades, então elas estão abaixo disso, e será sempre culpa delas quando
eles perdem as estribeiras.
Descobri que muitos maridos e companheiros acreditam que o dever de uma
esposa é amar, honrar e obedecer. O dever deles é puni-las quando elas não o
fazem. Estes homens dirão sempre que não tinham intenção de magoar as
mulheres. Só queriam ajudá-las a serem pessoas melhores. Atacam-nas como um
acto de bondade. De amor. Chegam a dizer às mulheres espancadas que lhes dói
mais a eles do que a elas.
O respeito é o elemento-chave. Se a mulher fizer algo de errado, ele acredita
que ela não irá respeitá-lo se ele não a punir. Seria mais fácil para ele deixá-la
impune pela infracção cometida: por não ter cozinhado a refeição que ela devia
saber que ele ia querer; por não ter conseguido arranjar outra embalagem de seis
cervejas; não ser uma boa dona de casa quando explica que não tinha dinheiro para
ir à loja comprar-lhe cerveja. Ele não quer puni-la, mas é uma questão de respeito.
Ele anseia por respeito, porque não se respeita a si mesmo.
O que as mulheres no refúgio me disseram foi que suportaram a violência
porque acreditavam que, lá no fundo, os seus companheiros as amavam. Tinham-se
tornado propriedade deles e, nessa categoria, os homens brutalizavam-nas com
medo de perderem o que possuíam. As mulheres, por sua vez, suportavam o abuso
e permaneciam sob o mesmo tecto, como prova de que não tinham intenção de sair
e que amavam os seus parceiros.
Era tudo muito esquisito, mas eu compreendia. Os homens têm uma
necessidade crónica de acreditar que desempenham um papel essencial nesta vida,
que são mais do que apenas uma gota no oceano entre muitas outras gotas.
Quando os homens se sentem inúteis, a sua perda de dignidade converte-se no ódio
por si mesmos que explode na violência que depois infligem às suas esposas, aos
seus filhos, ou a ambos. Os rapazes que foram maltratados irão, por sua vez,
maltratar. As raparigas que foram maltratadas sentir-se-ão atraídas por homens
violentos. Existe um padrão, e muitas vezes os serviços sociais não conseguem vê-
lo.
Com a minha capacidade de compartimentar as diferentes partes da minha vida,
fui capaz de fazer anotações sobre essas experiências terríveis sem ser
excessivamente afectada por elas. Tal como terminar a maratona, a dissertação que
eu estava a escrever era tão crucial para a minha auto-estima que desliguei toda a
sensibilidade do lado direito do cérebro e usei o lado esquerdo do cérebro, mais
analítico. As minhas próprias experiências, reais ou imaginárias, esclareceram o
meu pensamento sobre a violência doméstica, mas fui capaz de as pôr de lado e
escrever a dissertação de forma objectiva.
A dissertação obteve oitenta por cento, a melhor classificação do meu grupo.
Tinha agora os exames finais em Questões Políticas na Política Social e Saúde
Pública. Tive a sorte de ter excelentes professores em Liverpool; eles estavam
confiantes de que eu me sairia bem, e fui para os exames a entoar uma pequena
oração: “Não digam nem uma palavra. Não digam nem uma palavra. Não digam
nem uma palavra.”
As vozes permaneceram silenciosas. Estavam à espera do momento certo. O
trabalho intenso, as noites de estudo e um aperitivo antes de dormir eram a cura
para a insónia, assim como a codeína e uma lata de Coca-Cola eram um
medicamento útil para ressacas e dores de cabeça. Se o bando do Professor se
sentisse inclinado a despejar o seu chorrilho de frases quando saía para a
universidade pela manhã, pedalava o mais rápido que podia e as suas vozes
desapareciam com a força do vento. Sentia-me como o lendário menino holandês
que colocara o dedo no dique. Havia um punhado de dedos a manter os mil milhões
de neurónios no seu lugar e eu conseguia sentir a pressão a aumentar no meu
cérebro.
A Elaine disse-me uma vez que, se algum dia me casasse, iria para a igreja
vestida dtjeans. Fiquei a observar-me no espelho durante muito tempo, a observar-
me a mim, ao meu verdadeiro eu, e depois saí e comprei um vestido para usar no
baile de formatura. Não me importava o que diziam.
A festa de final de curso realizou-se num hotel no centro da cidade, onde nos
agrupámos em longas mesas semelhantes às dos refeitórios. Fingimos ouvir os
discursos, bebemos vinho e dançámos. Foi a primeira vez em três anos que eu me
comportei verdadeiramente como uma aluna. Os rapazes que sempre me tinham
ignorado, de repente pagavam-me bebidas. Lembro-me de ouvir a Sarah dizer que
sem o nosso apoio, meu e de Debs, jamais teria terminado o curso. Isso fez-me
chorar. Embebedei-me. Senti-me mal na casa de banho e caí antes de voltar a ir ao
apartamento de um dos rapazes do meu curso chamado Rob, onde fumámos um
charro, rimos e comemos biscoitos de chocolate.
Alguns dias mais tarde, os nossos resultados foram afixados num quadro no
edifício Eleanor Rathbone da universidade. Havia uma multidão a comprimir-se para
chegar ao quadro e eu dei por mim a abrir caminho até lá à frente, assumindo a
confiante personalidade “culinária”.
- Desculpe.
- Desculpe - respondi.
- Lá está ela - disse um dos rapazes.
Sorri e, metaforicamente, dei um soco no ar.
Sim. Sim. Sim.
Fiquei em Liverpool até ao dia da formatura. Quase não tinha contacto com o
meu pai. Não o convidei para a cerimónia, e convidei o Stephen em seu lugar.
Depois de receber o meu diploma no Phi-lharmonic Hall em Hope Street, fomos para
o Pucci Pizza pela última vez para celebrar.
Apesar da perda de tempo, dos lapsos de memória, pesadelos e de ouvir vozes,
subi ao palco nesse ano para receber um diploma com uma nota máxima e
distinção. As previsões que a Elaine fizera quase três anos antes bateram certo em
todos os casos. Muito assustador.
CAPÍTULO 8

VIOLAÇÃO

Com o meu Let's Go Italy guardado no bolso de uma mochila leve, viajei durante
duas semanas pelas estradas e caminhos-de-ferro da Itália, de Milão a Nápoles,
antes de começar o meu primeiro emprego como assistente de investigação num
departamento galês de promoção da saúde.
Aluguei um estúdio com uma frágil divisória entre o quarto e a cozinha, onde
tinha uma mesa, duas cadeiras, e cereais Weetabix com a Radio 4 para o pequeno-
almoço. Era como viver no cenário de um filme de Ken Loach: a luz esbatida e
macilenta e a neblina através da janela estreita, um tapete com padrões em espiral
no chão do quarto, papel de parede com flores em relevo, fazendo com que o
pequeno espaço parecesse ainda mais pequeno. Era o que eu podia pagar e estava
determinada a construir o meu futuro sem a ajuda da minha família. Trabalhava no
quarto andar de um prédio moderno, onde tinha a minha própria secretária num
gabinete partilhado.
Este era o mundo real, limitado, opressivo, encapsulado pela rotina e mal pago,
mas eu sentia-me perfeitamente feliz.
As minhas duas colegas eram óptimas profissionais, ajudavam-me bastante
enquanto recém-chegada, e descobríamos muitas coisas de que nos rirmos juntas
durante as nossas pausas. Estava a sair-me bem. A chefe do nosso gabinete
chamava-se Louise Lloyd-Jones, uma ex-enfermeira com quarenta e poucos anos,
gentil e perspicaz, sempre elegantemente vestida, com um ligeiro sotaque galês e
um ombro amigo, disposta a ouvir os problemas de todos. Rosaleen Sharpless era
uma brasa, loira, alta, esguia, elegante, perto dos trinta anos. Tivera uma nota
excelente no curso de Sociologia em Durham e estava a trabalhar num projecto de
promoção da saúde dirigido aos sem-abrigo. Rosaleen transbordava a confiança que
eu adoraria ter tido, e tentei com pouco sucesso imitar a sua forma de ser e de
vestir.
Estávamos em 1990 e um estudo europeu revelara a surpreendente notícia de
que fumar no local de trabalho era nocivo para a saúde. O meu trabalho consistia
em estudar os dados e escrever relatórios que subiam pela cadeia de comando até
ao Welsh Office. Na minha secretária de canto, a escrever no computador ao lado
de uma parede coberta de mapas e gráficos circulares, o meu trabalho alcançava o
coração do próprio governo. Aviso da Alice: FUMAR MATA.
Durante a maior parte dos fins-de-semana, viajava para casa para poder discutir
as minhas ideias sobre a promoção da saúde com a mãe e o Stephen. Desde a
separação dos meus pais, o Clive não visitara o meu pai uma única vez. Não sabia o
que isso significava quanto ao relacionamento deles. Continuo sem saber, mas
sempre me interroguei se também eles teriam segredos antigos.
Fora-me atribuída a tarefa de transmitir ao meu pai que a minha mãe voltara a
casar e eu, evidentemente, posso ter-me voluntariado para ver a reacção dele.
Havia uma ligação mal definida entre mim e o meu pai. Fora ele que me sentara no
seu colo quando eu era pequena. O meu pai era uma fonte de amor e, quando
somos crianças, um amor danoso é melhor do que a ausência dele.
Durante os três anos que estive em Liverpool, raramente o vi. Decidi fazer-lhe
uma visita, o que racionalizei como sendo um dever. Agora vejo que era uma mescla
entre a minha necessidade de aprovação e a oportunidade de exibir o meu estatuto
de adulta. Contra todas as probabilidades, sobrevivera. Estava a viver à minha
custa, a desempenhar um papel na campanha para salvar vidas alterando a lei
sobre o tabagismo. Queria mostrar-lhe que tinha importância.
A nova casa do meu pai era uma vivenda em estuque branco com um jardim
relvado impecavelmente aparado. Havia um alpendre impressionante, com dois
leões de gesso a guardar os ladrilhos brancos e negros, e uma campainha de dois
tons que me fez pensar por um momento se a porta iria ser aberta por um mordomo.
Senti um certo nervosismo, mas depois a porta abriu-se e ali estava o meu pai,
de fato escuro e gravata, o emblema do Rotary Club na lapela do casaco como um
pequeno sol de ouro. Levou-me até à parte de trás da casa, onde a cozinha dava
para uma sala de estar repleta de palmeiras em miniatura e plantas em vasos. Havia
gravuras na parede, um ecrã de televisão gigantesco, algumas fotografias de família,
o que, por alguma razão, achei estranho, e um conjunto elegante de tacos de golfe
encostado à parede.
Fez o chá e pôs alguns biscoitos num prato, nos quais não toquei. Sentou-se
solenemente à escuta na sua poltrona enquanto eu falava. Parecia inofensivo e mais
pequeno do que me lembrava. Fora um gigante aos meus olhos de criança. Agora
estava na meia-idade, desiludido, sozinho. Fez-me perguntas acerca do meu
trabalho e dos meus anos de estudante em Liverpool. Tive o prazer de lhe dizer que
me saíra melhor do que o Clive e de que conseguira uma classificação máxima no
curso. Apercebi-me, enquanto falava, que o tom da minha voz denotava
ressentimento e gabarolice. A autoconfiança jovial que o Clive adquiriu na sua
infância era algo que eu jamais teria, por muito que me esforçasse e
independentemente do que conseguisse.
Por que razão fui visitar o meu pai? É difícil analisar os motivos que nos levam a
fazer as coisas que fazemos, e fazemo-las por muitas razões. Eu estava a ser
ousada. Estava a tocar com a língua no veneno. O meu pai, com a sua voz melosa,
sabia como dizer as coisas certas. Mostrou interesse. Disse que estava orgulhoso
de mim, que sempre soubera que eu me sairia bem. Passou a palma da mão sobre
os cabelos, ainda cintilando com brilhantina. Enquanto conversávamos, não me
parecia que estava a falar com o meu pai, mas sim com alguém que eu mal
conhecia, um antigo professor da escola primária, uma tia distante, um conhecido já
esquecido e encontrado por acaso.
Quando chegou a hora de ir embora, ele ficou à porta e ficámos a olhar um para
o outro como dois gatos desconfiados. Não me deu um beijo e eu também não
queria que ele o fizesse. Enquanto me encaminhava para a estação, fui invadida por
sentimentos assustadores e decidi nunca mais voltar a visitá-lo.
O comboio de regresso ao País de Gales estava atrasado. Fiquei sozinha na
longa plataforma em New Street, fitando os carris a desaparecerem no horizonte e
recordei-me da minha corrida pela avenida das árvores procurando chegar ao
infinito. Quando o comboio chegou, ressoou letargicamente através da confusão de
cidades desconhecidas e fábricas encerradas, pilhas de escória provenientes das
minas de carvão abandonadas, ruas altas e ventosas com luzes amarelas e
esbatidas à porta dos bares. Quando parávamos nas estações ao longo do caminho,
as pessoas à espera pareciam fantasmas sob a luz ténue. Era difícil imaginar por
que razão estavam ali e para onde iam, por que motivos as pessoas iam para algum
lado. Fiz a longa caminhada até casa sob um céu negro e uma chuva fina que me
deixou encharcada.
Naquela noite, demorei muito tempo a adormecer, mas quando adormeci,
despertei com o som da voz de uma criança a chorar, um longo lamento pleno de
sofrimento que me deixou apavorada. Fui incapaz de voltar a adormecer e levantei-
me de madrugada. Corri pelas ruas molhadas onde os homens do lixo esvaziavam
os caixotes e o sol era branco como o gelo quando apareceu sobre os edifícios
cinzentos. Fui trabalhar e tentei afastar da mente aquele sonho, mas ele voltou
novamente naquela noite e em todas as outras noites, o choro da criança, seguido
por um pesadelo que variava em detalhes e começava sempre com um ar de
suspense.
Este é o meu sonho:
Estou deitada na cama a olhar para o tecto, onde o móbile constrói diferentes
padrões à medida que gira em círculos acima da minha cabeça. As sombras
movem-se mais rapidamente quando a porta se abre e um homem escuro entra sem
fazer barulho. Pega nos meus ursinhos de peluche e atira-os para o chão. Despe-me
o pijama. Beija-me nos lábios. Introduz a pila na minha vagina, no meu rabo, na
minha boca. Recordo-me do sabor do leite azedo que sai da sua pila e o sabor
permanece na minha boca durante todo o dia seguinte.
Este pesadelo era o mesmo que me assombrava desde a minha adolescência,
desde a puberdade, mas com uma diferença subtil. A outra menina a observar
aquelas cenas não estava lá. O homem dos sonhos era muito claramente o meu pai
e a menina era eu.
Isto era aterrador. Sem a distância emocional que a outra menina criava,
encontrava-me cara a cara com a possibilidade alarmante de aquelas cenas não
serem sonhos, mas lembranças de algo que acontecera, e eu tinha, de alguma
forma, conseguido enterrá-las nas profundezas do meu subconsciente.
Mesmo durante o dia, quando estava a trabalhar no computador a redigir
estatísticas antitabagismo e fazia uma pausa, para beber um cappuccino ou
preparar um banho, a minha cabeça girava como nos filmes. Visualizava cenas
intensas e terríveis do passado: eu aos três, aos sete e aos catorze anos; eu ao
longo de toda a minha infância, deitada no meu quarto à noite, sentindo-me
entorpecida enquanto esperava que a porta se abrisse, que a sombra no tecto se
movesse com mais rapidez e que aquele homem, o meu pai, aparecesse com dedos
de aranha e o seu hálito fétido. Aquela menina, aquela jovem mulher, aquela pessoa
que parecia ser eu entrava numa espécie de torpor e só se recordava do que
acontecera de noite quando acordava com um gosto amargo na boca, uma dor no
rabo ou na vagina, ou em ambos. Tomava banho, lavava-se, esfregava-se até ao
limite e pensava que era completamente louca por ter aqueles pensamentos
horrendos na cabeça.
Agora, de repente, aqueles pesadelos e memórias indistintos estavam a tornar-
se cada vez mais reais, mais ligados, mais nítidos. Sentia-me suja, conspurcada,
dividida. Como adulta, podia agora ver que se essas memórias eram verdadeiras, eu
era uma pessoa traumatizada que sofrera abusos durante toda a minha infância. Ou,
e isto era o mais terrível, se não fossem verdadeiras, eu tinha uma mente deformada
e pornográfica que conseguia inventar cenas depravadas mais realistas do que
jamais algum escritor descrevera por palavras ou qualquer cineasta transformara
num filme.
O desenvolvimento das novas amizades com a Rosaleen e a Louise
desintegrou-se. Tornei-me numa reclusa. Trabalhava voltada para a parede todos os
dias e corria para casa durante o Inverno para escrever relatórios durante a noite, no
meu estúdio infestado de flores, a beber gin e a observar o meu reflexo no espelho
cheio de moscas, enquanto os políticos na Radio 4 tagarelavam sobre a invasão do
Kuwait pelo Iraque. Eu queria estar envolvida, interessada, preocupada. Estivera no
Egipto e em Israel. Mas o Golfo Pérsico e a guerra iminente estavam muito longe e a
sensação de horror na minha própria mente estava perto e presente.
Os fins-de-semana chegavam e, como uma viciada, ou o cão mais regressivo de
Pavlov, comecei a visitar o meu pai de novo.
Sentávamo-nos na sua sala de estar com a luz insípida a entrar pelas janelas, a
falar sobre as probabilidades de guerra, da comercialização do Natal, da saúde dos
homens desempregados. Era como pôr a mão em água a ferver, e depois pô-la
directamente no fogo para ver até que ponto a queimadura era grave. Eu era
masoquista, e não fiquei admirada quando descobri que até mesmo o masoquismo
tem conotações sexuais.
Se as minhas memórias eram reais, então eu fora violada incestuosamente pelo
meu próprio pai até à insanidade. Não uma vez nem duas, mas centenas de vezes.
Não fora uma qualquer menina desconhecida da minha memória obscena. Era eu.
Eu. A rapariga sentada nas sombras a beber chá. A rapariga no espelho. A rapariga
que ouvia vozes. A rapariga com as mãos de estranhos a pentearem o seu cabelo, a
segurar o lápis que escrevia notas na coluna esquerda dos seus relatórios. A
rapariga que espreita o seu reflexo na janela do autocarro a caminho de casa vinda
da estação, o motor em esforço a subir a colina, o veículo a estremecer. Há algo
deprimente no som dos autocarros durante o Inverno.
O Natal passou numa agitação de boa vontade esquecida e no Ano Novo eu
completaria vinte e um anos de idade. Estava dolorosamente magra, bebia uma
garrafa de gin a cada dois dias, engolia comprimidos para a dor de cabeça, para as
dores de estômago, para as dores nas costas, para as dores no cérebro. Os
peluches tinham um aspecto sombrio. O Sr. Feliz caíra da estante de cabeça para
baixo. Será que alguma vez voltaria a ser feliz?
As decisões para mim são como um rolo de corda e eu tenho de chegar
compulsivamente ao fim antes de tomar as decisões.
Acaba com o gin. Mata-te. Corta os pulsos. Corta a garganta. Ninguém gosta de
ti. Ninguém te quer. Ninguém se importa.
O que estás a fazer sozinha quando o teu rapazinho irlandês de olhos azuis está
apenas a alguns quilómetros de distância? Porque não lhe telefonaste? Seria tarde
de mais para voltar atrás? Será sempre tarde de mais? Quando viste o anúncio do
emprego no Guardian, não viraste logo a página por ser demasiado perto dele?
Estaria alguma parte do teu cérebro a trabalhar independentemente da parte a que
chamas Alice? Era assim. Por vezes sentia que não era senhora do meu destino,
mas que era sua vítima, sua escrava.
Eu fizera a pior coisa que uma rapariga pode fazer a um rapaz. Permitira que o
Patrick me amasse. Permitira que ele me levasse para a sua cama e retraíra-me
com o seu toque, a sua mão sobre o meu corpo provocando arrepios na minha pele.
Sentia-me envergonhada.
Folheei o meu livro de endereços e olhei para o número da Sarah. A corajosa e
determinada Sarah. Olhei fixamente para os números até os meus olhos ficarem
enevoados. Olhei para o relógio: dez horas. Olhei de novo: onze horas. Pensei em
telefonar à Elaine, mas não tinha coragem para sair de casa sozinha na escuridão
para ir à cabina telefónica. Telefonar-lhe-ia no dia seguinte. Conseguia ouvir a sirene
dos carros de bombeiros e ambulâncias, e não sabia se era lá fora na rua ou dentro
da minha cabeça.
A Elaine dissera que estaria sempre disponível para mim. Dissera que não
podemos mudar o mundo, apenas a nós mesmos, e eu estava a mudar, a quebrar, a
desmoronar-me. Podia sentir as placas tectónicas sob a superfície do meu cérebro a
deslocarem-se, os hemisférios esquerdo e direito a afastarem-se cada vez mais,
como o som do plástico a rasgar-se na minha cabeça, as vozes a bramir.
Mata-te. Mata-te. Corta a garganta. Fá-lo agora. Fá-lo, Alice. Fá-lo, sua cabra.
As vozes. Sempre as vozes.
A minha cabeça estava a explodir. Tapei os ouvidos e olhei em redor da sala: vi
as flores nas paredes a aumentar, os redemoinhos brancos no tapete a revirarem-se
como larvas gordas, a lâmpada a tremeluzir. A cacofonia na minha cabeça era como
uma orquestra a mover-se para a beira de um penhasco, com os instrumentos
desafinados, os violoncelos, os oboés e os címbalos produzindo um som metálico e
estridente e a tombarem no abismo.
Eu tenho aquilo a que se dá o nome de temperamento altamente reactivo.
Desde o meu nascimento que sempre me assustei com facilidade. Talvez por isso a
minha mãe dissesse que eu era uma criança difícil. Não dormia. Não conseguia
dormir. Ficava ali na cama com os olhos abertos quando ela fechava a porta
deixando-me no brilho ténue da luz nocturna. Os primatas têm um reflexo de medo
que aumenta na escuridão. Todavia, pomos as crianças a dormir sozinhas no
escuro, acreditando que é bom para elas. Depois interrogamo-nos por que razão a
criança chora por atenção, por que razão as famílias se desfazem, por que motivo
quase todas as pessoas são neuróticas, ansiosas, stressadas, inseguras, sentem
medo. É algo que começa no berço.
Eu deito-me na cama à espera. Tinha dois, três, quatro, cinco e seis anos.
Estava à espera do meu papá. Isto é o que os paizinhos fazem com as meninas
quando as mamãs vão para a cama. Vêm ao quarto delas. São descuidados com os
ursinhos. Fazem-nos cócegas. Beijam-nos nos lábios. Despem-nos as roupas e dói
quando metem as suas pilas grandes dentro de nós. Dói, mas é o que os paizinhos
fazem e as meninas amam os seus paizinhos.
A minha pele ficou amarela. Os meus olhos estavam vazios e mortos. Estava no
fim da minha corda.
Precisava de confrontar o meu pai de uma vez por todas, olhá-lo nos olhos e ver
a verdade. Curar-me ou matar-me, como o Professor continuava a sugerir. Apanhei
um comboio para Birmingham e depois uma ligação para casa. Telefonei ao meu pai
da estação vitoriana de tijolos vermelhos e disse-lhe que estava ali por acaso. A
razão pela qual eu necessitava deste subterfúgio, desta mentira, parece tola e inútil,
mas estava a preparar-me para o confronto. Ele disse que ficaria muito feliz em ver-
me, e eu saí da estação a pensar naquilo que lhe ia dizer.
Estávamos a meio de uma tarde glacial. Sentia-me agoniada e ansiosa
enquanto caminhava ao longo da fila de casas com os seus balões moribundos e os
seus arranjos de papel definhados. Parei no amplo alpendre antes de tocar à
campainha. Ainda ia a tempo de sair dali. Telefonar-lhe-ia da estação a desculpar-
me, e regressaria ao trabalho.
“Isto é uma tolice”, pensei. Estava a agir como uma criança. Sentia-me como
uma criança, ali parada com o dedo a pairar sobre a campainha até que, de repente,
como que contra a minha vontade, a pressionei longamente e com força.
Ele abriu a porta e eu segui-o até à sala de estar.
- Vou pôr a chaleira ao lume - disse ele.
A sala estava às escuras, com a luz pálida de Inverno a entrar através das
cortinas semifechadas. Fiquei de pé no centro da sala e pronunciei as palavras que
não me saíam da cabeça desde a minha adolescência.
- Abusaste de mim quando eu era criança.
Pronto. Pronunciara as palavras.
Finalmente, depois de tantos anos, tinham saído de dentro de mim.
Ele parou o que estava a fazer. As suas mãos tremiam.
- O quê? - respondeu ele. - Não sejas parva. Estás louca? Não sabes o que
estás a dizer.
- Abusaste, abusaste. Foi isso que fizeste - disse-lhe.
Conseguia ouvir a minha voz a subir de tom. Sentia-me pequena e, de repente,
ele parecia um gigante com uns braços enormes e um rosto colossal e escuro
pairando sobre mim, uma expressão que recordava de há muito tempo.
- Porque não te sentas, Alice? Controla-te - disse ele.
Dei um passo para trás.
- És um cretino nojento e eu odeio-te - bradei.
Assim que pronunciei estas palavras, ele atravessou a sala para a cozinha e vi-o
pegar numa faca que estava em cima do balcão. Tudo se movia muito rapidamente,
como se fosse um flashback e eu conseguisse visualizar todos os fragmentos do
filme em simultâneo.
- Quieta - disse o meu pai, ameaçando-me com a faca.
Fiquei pregada ao chão. Ele afastou-se rapidamente. Fechou as cortinas,
impedindo a luz de entrar. Fiquei imóvel, tremendo por dentro, apavorada. Todos
aqueles anos a ouvir aquelas vozes maldosas, todas as memórias que eu pensara
serem falsas, faziam abruptamente sentido.
Tinha a boca seca de terror. As lágrimas tornavam os meus olhos vítreos. Senti
o coração a bater acelerado no peito quando saí daquele torpor e corri para a porta.
Já fizera o que me trouxera ali, agora só queria fugir.
Alcancei a maçaneta da porta, mas assim que a abri, ele fechou-a com um
movimento brusco e deu-me uma bofetada. Agarrou-me pelo braço e arrastou-me de
volta para o centro da sala, com a faca na mão livre, a lâmina a reluzir na penumbra.
Bateu-me uma e outra vez na face, com a palma aberta. Empurrou-me pelo ombro
para me forçar a deitar no chão e caiu em cima de mim, manietando-me e
encostando a faca à minha garganta. Bateu-me novamente, com bastante mais
força.
- Não te mexas - disse ele.
Tocou-me com a ponta da faca na garganta enquanto tirava uma perna de cima
de mim. Eu estava deitada no chão. Ele desapertou o botão de metal das minhas
calças e, quando puxou o fecho dos meus jeans, recordei-me de usar pijamas
inteiriços em bebé, com um longo fecho de correr, e do som desse fecho a ser
aberto durante a noite. Puxou-me as calças para baixo enquanto eu permanecia ali
entorpecida e aterrada e ele me descalçava os sapatos. Puxou-me os jeans e as
cuecas pelas pernas abaixo e pelos pés ao mesmo tempo. E depois segurou a faca
junto à minha vagina.
- Não te atrevas a mexer - repetiu.
Estava a observá-lo sobre o meu corpo seminu. Sabia que ele não ia cortar-me
com a faca. Apenas a segurava ali para me manter submissa. Funcionou. Eu estava
submissa. Fiquei ali deitada como uma criança.
Desabotoou as calças dele, abriu-me as pernas à força e introduziu o pénis
dentro de mim. Moveu-se para cima e para baixo com um movimento ondulatório e
eu conseguia sentir o seu hálito fétido enquanto ele arfava. Saiu de dentro de mim
de repente, ajoelhou-se e ejaculou no meu rosto.
Depois, pôs-se de pé e olhou para mim ainda deitada no chão.
- Agora, levanta-te, sua rameira - disse ele. - Veste-te e põe-te na rua.
Eu mal conseguia respirar.
Fiz o que ele me mandou, puxei os jeans e as cuecas para cima, calcei os
sapatos, as minhas mãos a moverem-se mecanicamente, com o cérebro desligado
do resto do meu corpo.
- Ouve bem o que te digo, não contes a ninguém, porque ninguém vai acreditar
em ti - disse ele, e durante anos e anos ninguém acreditou.
Eram cinco da tarde, a luz começava a esmorecer quando ele me empurrou
porta fora e pelo relvado molhado até ao seu carro estacionado no caminho da
entrada.
- Entra - disse ele.
Obedeci. Gostava de andar de carro com o meu papá.
Levou-me até à estação. Não disse uma palavra e eu também não. Limitei-me a
ficar ali sentada, como uma criança, com o esperma dele a secar no meu rosto, e
lembro-me de pensar: Esta aqui sentada não sou eu. Não sei quem é, nem quero
saber. Só estou contente por não ser eu.
Ele parou na estação de New Street. Não trocámos uma única palavra. Saí para
o passeio e o carro afastou-se. Tive de pensar por um momento onde me
encontrava, para onde ia, como é que fora parar ao carro do meu pai. Era como um
quebra-cabeças com pedaços manhosos de informação que levava algum tempo a
ser resolvido. Toquei com os dedos no lado esquerdo do meu rosto, onde me doía.
Pessoas vestidas com roupas escuras moviam-se determinadamente através
das passagens iluminadas e túneis, a respiração delas a deixar rastos de vapor. A
estação estava apinhada. Barulhenta. As pessoas empurravam-se umas às outras.
Os anúncios dos comboios e as pessoas a pedirem esmola eram desconcertantes,
uma névoa verbal, e os meus olhos, tal como as aberturas dos binóculos, levaram
algum tempo a focar os horários de partida e as plataformas.
O comboio levou-me de volta ao País de Gales, o ritmo das rodas de metal nos
carris assemelhando-se ao batimento cardíaco. Sentei-me num canto escuro com o
capuz do meu blusão a tapar-me a cara.
Não esperei pelo autocarro. Caminhei os três quilómetros da estação até casa
pela noite fria e escura e não conseguia sentir as pernas que me impulsionavam um
passo de cada vez. Não as sentia leves nem pesadas, pareciam ter sido cortadas do
meu corpo. Os meus membros e outras partes do corpo devem ter-se fragmentado e
a única ligação era alguma parte separada de mim, como uma onda cerebral
direccionando lentamente esta massa através da cidade sem vida.
No estúdio, acendi a luz e sentei-me na cama, onde fiquei a noite toda em
transe, a contar as bolinhas de borboto do meu casaco de lã verde e vermelho.
De manhã, os hematomas das pancadas tinham inchado e o meu rosto no
espelho era uma combinação dos rostos de todas as mulheres que entrevistei para o
meu estudo sobre a violência doméstica. Fora eu quem escrevera aquela
dissertação? Era eu a rapariga que se licenciara com distinção? A rapariga da
maratona?
Essa rapariga, ocorreu-me, já não existia, estava morta, desaparecera. Eu era a
rapariga no espelho e já não tinha de duvidar da minha memória. As pisaduras eram
a prova final. O meu pai vio-lara-me no chão da sua sala da mesma forma que me
violara desde que eu era bebé, durante toda a minha infância e adolescência.
Durante muitos anos, desde que me lembrava, andara a reter a onda de
verdade, fingindo que não tinha acontecido, imaginando que acontecera com outra
menina, aquela doppelganger que eu via de fora de mim mesma. O dique rebentara.
Era tudo verdade: as aranhas, o homem no carro branco, o calabouço onde as
pessoas entoavam cânticos e as crianças eram colocadas sobre um altar antes de
serem abusadas. Eu recordava-me sempre de estar a assistir. Agora recordava-me
de estar a ser colocada no altar, nua e vulnerável como uma boneca.
O meu pai violara-me ontem. Era o seu sémen que podia ver em camadas secas
sobre o meu rosto. Ele não só abusara de mim, como me ameaçara com uma faca e
me humilhara, espalhando o seu esperma de velho pelo meu rosto.
Era inacreditável, mas era verdade, e era um alívio saber que o era.
Tinha um nó no meu estômago do tamanho de uma bola de futebol. A bílis
subiu-me ácida até à garganta e fui à casa de banho vomitar, uma e outra vez, com
os olhos fechados e uma sensação gelada a apertar-me a espinha. “O Inferno deve
ser isto”, pensei. Lavei o rosto, lavei o corpo, lavei o cabelo e dirigi-me à cabina
telefónica na esquina para telefonar para o escritório e explicar que estava muito
doente e não podia ir trabalhar.
Por que razão não fui à polícia?
Porque simplesmente é algo que não se consegue fazer.
Por que motivo não telefonei à minha mãe ou à Elaine ou ao Patrick?
O meu pai dissera que ninguém iria acreditar em mim e eu acreditei nele.
Tal como as mulheres que conhecera no refúgio, sentia-me envergonhada. Elas
não queriam dizer a ninguém. Eu não queria dizer a ninguém. A nossa mente fica
distorcida quando temos o rosto esmurrado e ferido, quando mal conseguimos ver
através dos olhos inchados. Olhamo-nos ao espelho e nem sequer parecemos nós
mesmas. Imaginamos que devemos ter feito algo de errado. De alguma forma, a
culpa é nossa. Temos o que merecemos. Quando somos vítimas, assumimos uma
mentalidade de vítima.
É impossível mudar o passado ou o inevitável. Era o que o meu avô dizia e,
fatalmente, calcei os meus Nike Air e saí para correr. O que a corrida tem de bom é
que não pensamos. Não precisamos de ir a lugar algum. Colocamos uma perna
morta diante da outra, impulsionamo-nos para a frente, e o acto de correr é um fim
em si mesmo.
Quando regressei ao meu quarto, sentei-me de novo na cama paralisada com o
choque, abracei-me a um peluche, num estado de negação, com o corpo todo dorido
e preocupando-me repentina e obsessivamente com o meu trabalho. Estava sempre
a chegar material novo. Não queria ficar para trás. Decidi ir ao escritório quando
todos já tivessem saído, às seis da tarde, para recolher alguns documentos para
estudar em casa. Tomei banho, vesti-me e pus um gorro de lã na cabeça.
Deixei o estúdio como se fosse um ladrão e fiquei no corredor, com o ar frio a
subir pelas escadas como mãos procurando agarrar a minha garganta. O corrimão
estava húmido e o padrão de bambu no papel de parede assemelhava-se a grades
no ambiente lúgubre. As minhas pernas tremiam. Não tinha sentido de equilíbrio.
Enquanto descia as escadas e caminhava ao longo da rua deserta, senti-me como
se estivesse numa daquelas pontes de corda suspensas sobre um desfiladeiro, as
pedras do passeio oscilando, prateadas e escorregadias devido à chuva. O mundo
era instável e, enquanto caminhava ofegante, era como se estivesse a engolir
cristais amargos da noite que se adensava. Não conhecia a pessoa em que me
tornara. Sempre me sentira estranha dentro da minha própria pele, a crisálida que se
deveria ter transformado numa borboleta, um ovo caído do ninho, uma salamandra
capturada na cor errada. Uma rajada de vento soprou os borrifos de chuva para os
meus olhos. Fechei as pálpebras para ver até onde conseguia andar sem me
desviar do caminho e esbarrar contra alguma coisa.
O prédio do escritório estava às escuras, à excepção de um par de luzes
amareladas atrás das janelas sujas. Arrastei-me até ao nosso andar por volta das
18h15 e fiquei surpreendida por ver que a Rosa-leen e a Louise ainda estavam no
escritório. Murmurei um “Olá”, reuni alguns papéis e encaminhei-me rapidamente até
à cozinha para ir beber um copo de água.
A Louise seguiu-me e, na claridade da iluminação, conseguiu ver que eu tinha o
rosto pisado e inchado.
- Oh, meu Deus, Alice, o que aconteceu?
- Nada.
- A mim não me parece que seja nada.
- Eu, eu...
- Pobre rapariga.
As lágrimas subiram-me aos olhos e eu encolhi-me quando a Louise me
abraçou. Fechei os olhos, cerrei os dentes, e afastei-me de imediato.
- Deixa os papéis, eles não são importantes. - Disse a Louise sacudindo a
cabeça. - Vou levar-te para casa e pedir ao Bernard que te examine.
Bernard Lloyd-Jones, o marido da Louise, era médico, um homem anafado e
alegre, adepto de blazers e gravatas às riscas. Examinou as minhas contusões em
casa deles. Quando fez incidir uma luz nos meus olhos, interroguei-me se ele
poderia ver o filme do que acontecera no chão, na casa do meu pai. Louise fez o
jantar: batatas cozidas com feijão, no qual quase não toquei, e depois levou-me às
Urgências do hospital de Swansea, um lugar que viria a ter uma grande importância
na minha vida durante os anos que se seguiram.
A Louise ficou à minha espera enquanto eu fui levada para um cubículo. Sentei-
me na cama com a cortina corrida, e continuei a contar o borboto do casaco de lã
que ainda tinha vestido. Tudo me parecia irreal, ou surreal, as luzes claras, o cheiro
do anti-séptico, um bebé a chorar, as vozes a murmurar incoerentemente, como se
tivessem ficado chocadas com esta nova reviravolta dos acontecimentos e não
tivessem bem a certeza do papel a desempenhar. Durante os três anos que passei
na universidade, as alucinações auditivas tinham-me espicaçado e eu lutara contra
elas. Agora estávamos numa nova fase a que nem eu nem elas estávamos
acostumadas. Senti-me abandonada.
Uma médica negra examinou-me. Observou os hematomas no meu rosto e as
filas de pequenas marcas em cada um dos meus braços, onde o meu pai deixara as
suas impressões digitais tatuadas na minha carne. Perguntou-me o que acontecera.
Respondi que fora atacada e que não sabia por quem. Era demasiado vergonhoso e
pessoal. Depois de esconder a verdade de mim mesma durante tantos anos, não
podia simplesmente desabafá-la agora.
- Tens a certeza absoluta de que não sabes quem era? - perguntou ela.
Esta era a minha oportunidade. Talvez a última. Sacudi a cabeça.
- Sim, não sei - respondi.
Ficámos em silêncio durante alguns instantes. Mas não havia nada que ela
pudesse fazer a menos que eu lhe dissesse a verdade e a deixasse ajudar-me.
Fiquei a olhar para os meus sapatos e só queria estar noutro lugar qualquer, sem
ser nas Urgências do hospital. Não queria estar viva. Não queria estar morta. Queria
ser outra pessoa, outra versão mais feliz de mim mesma, como aquela rapariga que
em tempos passara o Verão no kibutz Neve Eitan.
Passei a noite com a Louise e o Bernard. Na manhã seguinte, quando
estávamos a caminho do trabalho no carro de Louise, ela sugeriu que parássemos
para pedir ao seu médico de clínica geral a pílula do dia seguinte no caso de eu
estar grávida. Fiquei surpresa quando ela disse aquilo. Isso nunca me teria ocorrido,
e não percebia como é que a Louise sabia que eu fora violada e que poderia estar
grávida. O facto de o meu pai ter saído de dentro de mim e ejaculado sobre o meu
rosto era algo demasiado horrível e ordinário para sequer considerar.
Era como se eu já não estivesse no comando da minha vida, agora eram os
acontecimentos que me conduziam até ao consultório do Dr. Graham Sutton, que
me receitou a pílula adequada e nitraze-pam, um comprimido para dormir. Também
sugeriu que eu voltasse no dia seguinte para termos uma conversa. Era um homem
de olhos brilhantes, ambicioso, autoconfiante e gentil. Não lhe disse logo que fora
violada e, quando o fiz, nunca lhe disse por quem.
Não fui trabalhar naquele dia. A Louise levou-me de volta para a sua casa.
Tomei os dois comprimidos e dormi até ao início da noite no quarto de hóspedes. O
Bernard fez ovos mexidos quando me levantei, e fui para a cama com outro
comprimido para dormir.
Quando acordei, cerca das 10h30 da manhã seguinte, o barulho das sirenes e
das bombas a explodirem pela primeira vez não vinha do interior da minha cabeça.
Desci as escadas e encontrei a Louise colada à televisão. Estávamos em Janeiro de
1991. Depois da invasão do Kuwait por Saddam Hussein, a guerra que iria expulsá-
lo daquele país começara com o bombardeamento de Bagdade pelos americanos. O
que passou pela minha cabeça enquanto observava os prédios a desintegrarem-se
em nuvens de poeira foi que o mundo, tal como a minha vida, estava a desmoronar-
se à minha volta.
Depois de três dias hospedada em casa da Louise e do Bernard, regressei ao
meu estúdio para mudar de roupa e a Louise deu-me boleia para o escritório. Foi
bom para mim voltar ao ritual do trabalho, mas não conseguia concentrar-me. A
medida que lia as palavras nos relatórios, era como se a tinta ainda estivesse
húmida e as palavras se movessem numa confusão aquosa. Segui em frente, lendo,
relendo, não retendo nada. Assisti à reunião de sexta-feira onde informámos o resto
do departamento sobre o andamento dos nossos projectos. Foi um exercício
produtivo, um momento para partilhar ideias e decidir o melhor caminho a seguir. O
encontro foi informal e fez-me sentir normal, embora não tivesse nada de útil a
acrescentar.
Continuei a ver o Dr. Sutton regularmente. O seu consultório era perto do
escritório, por isso podia ir às consultas durante a minha hora de almoço. Graham
Sutton era um daqueles médicos que nos recebia com um toque amigável no braço,
e de cada vez que ele o fazia, eu retraía-me como se fugisse do fogo. Insistiu para
que eu consultasse uma enfermeira psiquiátrica, e eu não aceitei. Eu era agnóstica
relativamente à psiquiatria. Os psiquiatras pareciam sempre ter os seus próprios
problemas psicológicos e, como não estava preparada para falar acerca do que
acontecera com o meu pai, a meu ver não passaria de um doloroso desperdício de
esforços.
O resto da minha rotina não mudou: despertar exausta após noites de pesadelo;
ouvir as notícias da destruição constante de Bagdade pelos bombardeiros que
sobrevoavam uma cidade sem canhões antiaéreos; recolher estatísticas sobre os
custos de saúde relacionados com a nicotina vindas de Bruxelas e Amesterdão;
regressar a casa no pico do Inverno para o meu estúdio assustador com um fogão
eléctrico de dois discos, canecas lascadas e As Palmeiras Ondulantes das Ilhas
Tropicais ofuscadas pelas grandes flores azuis que desabrochavam nas paredes
como bolor. Um copo de gin, uma noite destroçada, uma corrida de fim-de-semana,
palavras nos diários perdidos pelo caminho.
Trabalhava. Comia chocolate e bebia gin. Observava o meu reflexo. As feridas
cicatrizaram e a rapariga que aparecia no espelho era uma pessoa diferente. Ainda
ouvia vozes que lhe diziam que se matasse, mas já não tinha dúvidas.
O meu trabalho tornou-se impossível. Não conseguia concentrar-me. Os
fumadores teriam de passar sem mim. Falei com a Louise acerca disso. Não fora a
casa ver a minha mãe desde a violação e a Louise tornara-se na minha mãe de
aluguer. Discutimos o meu “stress pós-traumático”. As esposas dos médicos
imaginam que são médicos por procuração e, finalmente, a Louise convenceu-me a
seguir o conselho do Dr. Sutton e a consultar um psiquiatra.
A análise é um caminho escorregadio e, contra a minha vontade, dei por mim a
segui-lo. O Dr. Sutton marcou a consulta e uma semana mais tarde dirigi-me ao
hospital, onde a unidade psiquiátrica se assemelhava a uma capela e se encontrava
num edifício à parte dentro do complexo hospitalar. A minha consulta era com a Drª
Simpson, uma médica de aspecto severo, vestida com as suas saias apertadas e
casacos de bom corte, mais uma mulher.
Esta era a minha nova rotina. Deixava o emprego mais cedo todas as segundas-
feiras para a minha sessão com a Drª Simpson e conversávamos. Do que falávamos
não me recordo, mas sei que nunca mencionei as vozes. Ela prescreveu-me
Lofepramine, um anti-depressivo, que não surtiu efeito, e depois mudou-me a
medicação para Prozac, que ainda hoje tomo.
O Prozac dá um novo conceito à vida. Agora, levanto-me de manhã depois de
um pesadelo e, enquanto ingiro meia barra de cereais Weetabix, os relatórios da
rádio sobre as mortes e desastres no Iraque parecem uma peça excêntrica de teatro
totalmente alheia à minha existência. Desde que as pessoas não se matassem a
fumar, a forma como eles se matavam não tinha qualquer importância para mim.
Os antidepressivos diários deram-me ânimo para prosseguir durante mais uma
semana até ficar num estado semi-hipnótico num sofá preto - tal como se vê nos
filmes - e a Drª Simpson começar a desbloquear as memórias da minha infância. Ela
é realmente boa. Mas eu lutava contra ela. Os meus segredos são só meus e não
estão prontos para vir à luz.
As sessões prolongaram-se durante semanas e meses. Não sei bem o que lhe
disse, o que ela me perguntou ou o que rabiscava a lápis no seu bloco de notas. Do
que me recordo é que numa ocasião em que ela foi capaz de me fazer regredir a um
estado infantil, a sessão ultrapassou o tempo estipulado. Ela estava com pressa e
saímos do edifício ao mesmo tempo.
- Adeus, Alice.
- Adeus - respondi com uma voz débil.
Estava a chover bastante. Fiquei a vê-la afastar-se no seu carro novo, sentada
de pernas cruzadas no chão alcatroado, à chuva, com as lágrimas a escorrerem-me
pelo rosto, incapaz de abrir o cadeado da minha bicicleta.
CAPÍTULO 9

PARA ONDE POSSO IR?

A Alice é estranha. Parece igual a toda a gente, mas não é. Tem coisas
assustadoras na cabeça. Quando a Alice era pequenina, o seu papá fez-lhe coisas
que não devia ter feito. Vinha ao berço dela. Vinha para a sua cama. Despia-lhe o
pijama. Introduzia a pila no rabinho dela, no pipi e na boca. Gostava de fazer xixi no
seu rosto. O xixi era pegajoso e provocava uma sensação estranha. A Alice obrigou-
se a si mesma a pensar que aquilo era normal quando era pequena e obrigou-se a
esquecer até ter idade suficiente para se lembrar. A Alice é inteligente. É o que
todos dizem. É por isso que ela conseguia separar o que acontecia com a Alice
durante a noite e a pessoa que a Alice era quando ia para a escola de manhã.
Quem sou eu? Onde estou?
O que estou aqui a fazer? O meu cérebro está em chamas.
Chove muito no País de Gales. O céu tem uma tonalidade cinzenta como a pele
dos idosos. As colinas verdes não são verdes. São cinzentas. A Montanha Negra
chama-se assim porque é negra. A neblina paira sobre os vales como cinza. A
humidade corrói o cálcio dos ossos.
A vida era cinzenta e o trabalho no departamento de promoção da saúde era um
lampejo de cor.
Os homens espanhóis são os mais fumadores da Europa. Gostam daquele
tabaco muito negro com alcatrão que apodrece os dentes. Nada pode pará-los.
Ocorreu-me que a melhor maneira de evitar que as pessoas fumem era proibir de
vez o tabaco, mas os governos precisam da receita fiscal dos fumadores para
financiar as instalações nos hospitais para o coração e os pulmões. Tudo faz sentido
se olharmos para as coisas pelo prisma certo.
Eu não tinha amigos. Ter um emprego não é como estar na universidade. Eu era
uma reclusa, corria, escrevia em diários que perdia como células cerebrais,
lembrando-me e esquecendo-me. O Professor queixava-se porque eu não estava a
ouvi-lo. Por que razão deveria estar a ouvi-lo? Tinha as minhas próprias queixas.
Para começar, o meu estúdio estava a encolher. O meu quarto era uma jaula. As
flores azuis começaram a ficar cinzentas, à medida que se enrolavam pelas latadas,
as raízes e os caules engrossaram, prendendo-me lá dentro. Os macacos no jardim
zoológico de Chester têm mais espaço. A minha jaula não se via, mas eu sabia que
ela estava lá. Era um campo de forças, como os feixes electrónicos que protegem os
objectos preciosos e fazem disparar alarmes quando são quebrados. O campo de
forças invisível cobria a minha mente e foi necessária toda a minha força de vontade
para ultrapassar os dias chuvosos e as noites frias.
Na verdade, foi necessário o Prozac e o Valium, as chaves da jaula. Chaves-
mestras. Aprendi a conhecê-las bem.
O Valium pertence a um grupo de medicamentos denominados
benzodiazepinas. Entorpece os sentidos. E utilizado para o controlo de perturbações
de ansiedade e afecta aquelas substâncias químicas no cérebro que são mais
propensas a perder o equilíbrio e causar ansiedade. O Valium é prescrito para a
agitação, tremores, para aliviar certos tipos de dores musculares, muito útil após
uma corrida de dezasseis quilómetros, e as alucinações durante a abstinência do
álcool. Mas para quê abster-me?
O Prozac é uma droga psicotrópica, uma forma de cloridrato de fluoxetina. E
eficaz contra ataques de pânico, depressão, ansiedade, nervosismo, bulimia nervosa
e insónia. Pode provocar tendências suicidas, bem como prejudicar o raciocínio e as
capacidades motoras. O Prozac amplia a mente para novas formas e esta, uma vez
esticada, nunca mais regressa às dimensões originais. A heroína também faz isso, e
o LSD. Mas nesta altura eu ainda não sabia disso.
Raramente ia a casa. Estava à beira da erupção e todas aquelas misturas de
toxinas teriam sufocado a minha mãe. Pensei na Esther e no quanto ela deveria ter
sido forte para sobreviver a Buna-Mono-witz.
Houve um fim-de-semana em que choveu durante dois dias sem parar. A chuva
batia contra os vidros como dedos ossudos. Tap. Tap. Tap. Tap. Tap. Os fungos
cresciam nas paredes. Despachei uma garrafa de gin, debruçada sobre um
aquecedor eléctrico e escrevi um poema, um dos poucos que resistiu às mudanças
e à passagem dos anos. Intitula-se: “Para Onde Posso Ir?”
Se este não é o lugar onde as lágrimas são compreendidas, para onde posso ir
chorar?
Se este não é o lugar onde o meu espírito pode abrir as asas, para onde posso ir
voar?
Se este não é o lugar onde os meus sentimentos podem ser ouvidos, para onde
posso ir falar?
Se este não é o lugar onde vais aceitar-me como sou, para onde posso ir para
ser eu?
Se este não é o lugar onde eu posso experimentar, aprender e crescer, para
onde posso ir para rir e chorar?
Era altura de seguir em frente. Louise Lloyd-Jones realçou essa ideia quando
me mostrou um anúncio num dos jornais nacionais, onde se pedia um assistente de
pesquisa para a Universidade de Hud-dersfield. Estava associado a um programa de
doutoramento sobre o tema de grupos de saúde comunitária e vinha acompanhado
de uma bolsa de cinco mil libras, o que significava um corte drástico no meu
rendimento. Senti-me lisonjeada pelo facto de, mesmo depois de ter agido como
uma criança perto da Louise e do Bernard, eles pensarem que eu estava pronta para
aquilo e incentivarem-me a concorrer.
Fui à entrevista e foi-me oferecido o cargo. No comboio de regresso ao País de
Gales, parou de chover. Tinham passado seis meses desde o dia em que o meu pai
me violara. Eu não estava curada. Jamais ficaria curada. Eu era um ovo rachado, a
rachar cada vez mais, mas lentamente. Tive de dar um mês à empresa, e os meus
colegas, como presente de despedida, ofereceram-me um dragão galês de peluche.
Ele deixou os outros peluches aterrados até se acostumarem ao seu sorriso
demoníaco e ao manto escarlate.
Para encontrar alojamento em Huddersfield comecei por ligar para o número de
um anúncio pregado no quadro de avisos da universidade. Falei com uma mulher
chamada Kathy Higgins, que combinou encontrar-se comigo na estação de
comboios para me levar pessoalmente a ver o quarto. Entendi o motivo quando lá
chegámos.
A casa situava-se no topo de uma colina íngreme e mais longe da universidade
do que a maioria dos estudantes universitários deseja estar. A Kathy mostrou-me um
quarto amplo, iluminado e arejado, com vista sobre os campos que começavam a
ficar dourados sob o sol poente. Ela disse que eu iria partilhar a casa de banho e
teria serventia da casa. Conheci o Jim, o companheiro da Kathy, o tipo de homem
que enrola os seus próprios cigarros, e decidi aceitar o quarto e não mencionar que
fumar faz mal à saúde.
Antes de ir para Huddersfield tive algumas semanas de férias. Fiquei a pé até de
madrugada para apanhar o comboio e, ao cair da noite, estava de regresso à minha
amada Israel. Era o final da temporada, e fui directa a Eilat, que fica perto da
fronteira com a Jordânia e é quente durante todo o ano. Consegui um emprego num
bar de praia — sim, eu, a Alice — e partilhei uma cabana com um homem que
conhecia há apenas cinco minutos. Samir era um druso do Líbano. Formávamos um
casal estranho. Eu, repleta de trevas e sombras, e Samir, austero, com olhos
esclarecidos e gentil.
Os Drusos são uma seita mística islâmica fundada na Pérsia. É única, com a sua
incorporação da filosofia gnóstica cristã, e monoteísta, tal como os muçulmanos, os
cristãos e os judeus, o que fazia com que todos os rótulos me parecessem
meramente divisórios e totalmente ridículos. Transmiti ao Samir os meus
pensamentos e ele disse:
- Ah.
- Ah? - Repeti.
- Ah - repetiu ele.
- Então, não estou certa?
- Não estás certa nem errada. Apenas expressaste uma opinião.
- O que te parece, Samir? O mundo não estaria melhor sem religiões?
- Quando estiveres pronta para saber a resposta a essa pergunta vai aparecer
alguém para te dizer - disse ele.
Ele era frustrante e adorável. Fazia-me lembrar o Patrick. Trabalhava à noite, eu
trabalhava de dia e, quando nos cruzávamos, ele mostrava-se mais envergonhado
do que eu por estar a partilhar o nosso alojamento gratuito.
Quando eu não estava a trabalhar, passava o tempo na praia a ler romances
cujos títulos escaparam à minha memória, embora por vezes, quando pego num
livro, tenha aquela sensação de déjà vu e pense que já li aquilo antes. Fiz snorkeling
e fui muitas vezes ao Observatório Subaquático do Mundo dos Corais, onde,
rodeada por aquela luz verde, tentava imaginar como seria ser peixe.
Quando tive alguns dias de folga, atravessei até à Jordânia para visitar a Cidade
Vermelha de Petra. Saí do autocarro cheio de poeira; o tejadilho estava repleto de
sacos de juta e galinhas dentro de cestas. Homens com albornozes mastigavam
cânhamo, as mulheres vestidas de negro carregavam malas à cabeça. Vi um árabe
que parecia saído de uma foto de um livro a tocar uma flauta de cana, enquanto uma
cobra amedrontada subia lentamente a partir de um cesto. O sol era tão forte que
era como estar diante de um forno aberto. Havia uma mistura de odores a
especiarias, fumo e suor. As pessoas acotovelavam-me enquanto eu consultava o
mapa que comprara em Eilat.
O motorista do autocarro desceu e acendeu o que eu calculei ser o seu
ducentésimo cigarro do dia. Ficou ali parado a olhar para mim enquanto eu o
observava, admirada.
- Tu, vem, vem - disse ele, apontando para a colunata atrás da estação de
autocarro.
- Onde?
- Tu, vem.
Retorceu os dedos e eu segui-o para as sombras, sob os arcos, onde estavam
dispostas algumas mesas e cadeiras de metal. Eram uma espécie de catacumbas
debaixo de uma catedral e estava surpreendentemente fresco. Velhos com barba e
rosto sereno fumavam narguilés, os seus lábios manchados puxando dos longos
tubos, a água borbulhando como uma indigestão. Sentámo-nos numa mesa e um
empregado com um avental branco sujo trouxe um bule de chá de hortelã, duas
canecas e uma pequena tigela de torrões de açúcar que imediatamente atraiu um
enxame de moscas. O meu companheiro fez um gesto com a mão para as enxotar.
- Ahmed - disse ele, apresentando-se com uma vénia à moda antiga.
- Alice. Prazer em conhecê-lo.
- Prazer em conhecê-la. Muito obrigado.
O motorista era palestiniano e falava algumas palavras de inglês, aprendidas
num curso básico que todo o homem que despe a sua galabeyah e veste umas
calças e uma camisa tem forçosamente de aprender: De onde és? És casada? Tens
filhos? Disse-lhe que fazia investigação médica e ele acenou sabiamente com a
cabeça.
- Médica?
- Estudante.
- Uma estudante de Medicina? - perguntou.
Deixei-o pensar que sim. As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.
O Ahmed tinha um filho e três filhas, disse-me. Ergueu três dedos e os seus
lábios descaídos pareciam perguntar por que razão fora condenado a tal destino.
Caímos num silêncio amigável e bebemos o nosso chá. Nos países árabes, logo que
as pessoas travam conhecimento não necessitam de desatar a tagarelar sem
motivo, e eu pensava que se calhar conversávamos muito sobre temas sem
importância para evitar falar sobre os assuntos que realmente interessavam.
Tentei pagar o chá e o Ahmed mostrou-se ofendido.
- Não. Não. Não. Sou eu.
- Shukran - disse-lhe.
Ele sorriu novamente.
- Assalamu alaikum. - Que Deus esteja contigo.
Enquanto eu estivera sentada à sombra, o sol tornara-se mais forte, mas eu
estava ansiosa por cumprir a minha agenda e passei as três horas seguintes a
explorar a Cidade Vermelha. O céu era um lençol azul e a luz tornava tudo mais
nítido e definido. Petra é um rubi arqueológico e enquanto vagueava pelas ruas
estreitas entrei num estado hipnótico por causa da paleta de vermelhos
incandescentes nas pedras antigas, do sentido do eterno capturado em cada grão
de areia.
Petra situa-se na extremidade do deserto de Wadi Araba, cercada por colinas
altaneiras de arenito cor de ferrugem, uma protecção natural contra os invasores. A
construção de Petra iniciou-se no século VI a. C., quando os nómadas árabes
plantaram os primeiros pomares de tamareiras e abandonaram as selas dos
camelos para semear e comercializar. Herodes, o Grande, tentou manter os árabes
sob o seu controlo, mas a Cidade Vermelha permaneceu independente até os
romanos tomarem o poder no ano 100 d. C. A fortaleza construída pelos cruzados
no século XII muda de cor com o sol, de amarelo a rosa e até à mesma tonalidade
de vermelho incandescente do dragão galês que tenho em casa junto dos peluches.
Os primeiros árabes esculpiram templos e túmulos na rocha macia que se desfaz
facilmente em areia, mostrando-nos que tudo é frágil e fugaz.
A partir das ruínas do castelo dos cruzados contemplei a dura beleza existencial
do deserto. Recordei-me do Samir, de quando lhe perguntei se o mundo seria um
lugar melhor sem religião e ele respondera enigmaticamente que quando eu
estivesse pronta para saber a resposta apareceria alguém. Sentia-me pronta
naquele momento, mas não havia mais ninguém ali ao sol à excepção de mim.
Podia viajar sozinha pela Itália machista e pelos perigos imprevisíveis do Médio
Oriente sem receio. Pernoitei em aldeias onde todas as mulheres usavam véus,
menos eu. Dormia em pousadas da juventude e em pensões. Comia em barracas de
rua e em cafés sombrios sugeridos pelos roteiros, ou, melhor ainda, que descobria
sozinha e por acaso. Enquanto viajava eu era uma parte diferente de mim, uma Alice
internacional, mais cosmopolita e mais receptiva. Aprendi rapidamente as frases
essenciais e constatei que algumas palavras noutra língua eram o suficiente para
construir pontes duradouras: por favor, obrigada, adeus - min fadlik, shukran,
ma'assa-lama.
A Alice cosmopolita desapareceu no momento em que os penhascos brancos de
Dover apareceram metaforicamente. Essa pessoa fechou-se e consegui sentir a
mudança assim que pisei solo inglês. Encolhi dois centímetros quando os meus
ombros descaíram. O meu cabelo perdeu a vivacidade. O tique no meu pescoço
despertou e começou a dançar. Ah, estamos de novo em casa, toca a pormo-nos
nervosos. Eu nascera expatriada, e assim como os malucos se tornam psiquiatras, e
os déspotas, viria eu a descobrir, nasceram para trabalhar nas enfermarias dos
hospitais psiquiátricos, eu estava ironicamente destinada a viver na Inglaterra
profunda com o meu emprego, os meus valores e as minhas ansiedades de classe
média.
Pensei no meu pai durante o tempo que estive fora? Sim, pensei. Todos os dias.
A imagem dele na minha cabeça a segurar uma faca junto à minha vagina e a
murmurar “Não te atrevas a mexer”, era como uma cena de um filme doentio,
daqueles que eu nunca via até ao fim. Essas coisas vivem connosco
permanentemente. Crescem como um cancro, um caroço negro que palpita dentro
de nós e, por vezes, ficamos nus diante do espelho a pensar se aquela coisa negra
estará prestes a irromper pela pele fora.
É como uma queimadura hedionda que nos marca para toda a vida, só que a
cicatriz é no interior, na nossa memória. Ninguém consegue vê-la e quando não
conseguimos ver as coisas com os nossos próprios olhos não acreditamos que
sejam verdadeiras. Mesmo eu tinha dificuldade em acreditar que aquilo realmente
acontecera. Esquecia-me por breves momentos e tornava-me um espírito livre.
Ficava parada a assistir à cena de uma menina de cerca de quatro anos a lavar
roupa com a mãe, ambas vestidas com o mesmo gala-beyah azul-pálido, as
cabeças cobertas, a menina com uma bacia igual à da mãe, mas mais pequena. A
água nessas bacias era vermelho-clara e perguntávamo-nos se as roupas ficariam
realmente mais limpas após a lavagem.
Durante a minha viagem, não era abandonada pelas vozes, pelos lapsos de
tempo, por lapsos de memória, mas a sensação de alteridade leva-nos para fora de
nós mesmos. Não estamos livres do passado, mas no estrangeiro pelo menos há a
distância.
Regressei de Petra e passei os últimos dias em Nahariyya, um dos meus
lugares favoritos, uma cidade de 50 000 pessoas estabelecida principalmente por
judeus alemães na década de 1930. Situa-se a sul da fronteira libanesa e estende-
se por trás da linha de praias ao longo do Mediterrâneo. Há um rio estreito que
divide a cidade com pontes a intervalos regulares. Todas as pessoas saem à rua à
noite, quando o ar é fresco e as lojas e bancas de rua têm movimento. A noite exala
um odor a óleo depatchouli e milho assado com a espiga.
Deliciei-me com baklava pegajoso recheado com mel e pistácio e recordei-me
de comer estas mesmas iguarias na minha viagem de escola através do mar Egeu
no SS Bolívia há tantos anos, quando o meu avô ainda era vivo.
Na minha última noite em Nahariyya, sentei-me na praia a ver o pôrdo-sol. O céu
era uma pálida sombra rosada sobre o mar. Sentia-me em paz, algo que não
acontecera durante quase um ano.
Antes de deixar o país, entrei no autocarro de regresso a Telavive e apanhei
boleia num velho camião agrícola até Moshav Bene Atarot. Trabalhara lá durante um
Verão a colher fruta para a família Zimmer e estava tudo conforme eu recordava: as
construções simples, sem adornos, os campos metódicos, os pomares dispostos em
fileiras. Entrei pela porta principal, que nunca estava trancada.
- Sloalom - chamei.
Ruth, a mãe da família para quem eu trabalhara, apareceu no patamar superior.
- Alice - exclamou enquanto descia as escadas. - Nem posso crer.
Acolheu-me como a uma filha pródiga. Fazia mais de dois anos desde que nos
víramos pela última vez, mas era como se tivesse passado apenas um dia. Senti-me
esquisita, porque sentia que era eu, a Alice, que estava ali sem medo de ser
abraçada e a abraçar a Ruth.
Naquela noite, com o marido da Ruth e os filhos já crescidos, jantámos e
conversámos sobre a Guerra do Golfo. Tinham sido lançados sobre Telavive mísseis
Scud iraquianos quando Saddam Hus-sein percebeu que a guerra estava perdida e
decidiu afundar-se em glória atacando Israel.
Eu ouvira todos os dias as notícias da Radio 4, mas não me lembrava de nada.
Nada. Só me recordava da chuva, do estúdio húmido, dos dados de Bruxelas e de
observar a Drª Simpson metendo habilmente as mudanças quando arrancou do
parque de estacionamento do hospital no seu carro novo.
CAPÍTULO 10

DIVISÃO

Eram cerca de quatro quilómetros até ao centro de Huddersfield


e senti o meu bronzeado a ser-me sugado do rosto enquanto deslizava
livremente na minha bicicleta colina abaixo. O tempo estava frio e lúgubre. Os
candeeiros de rua ainda estavam acesos às dez da manhã.
Alice Jamieson doutorada.
Drª Alice Jamieson.
Parecia tolice. Sentia-me como se tivesse sete anos de idade.
Eu já verificara para onde devia ir, mas ainda assim perdi-me e pedalei em
círculos pelas ruas de sentido único. Huddersfield está alojada no fundo de uma
cratera, mas o vento encontra o seu caminho através das aberturas nas colinas que
a rodeiam e golpeia-nos o rosto independentemente da direcção que tomemos.
Huddersfield fora uma cidade próspera durante a Revolução Industrial, mas as
fábricas de têxteis tinham fechado quase todas e as pessoas tinham um aspecto
pobre e arruinado, andando apressadamente pelas ruas com os cabelos em
desalinho e as golas erguidas.
Quando o pastor metodista John Wesley chegou à cidade no seu périplo
evangélico em 1757, escreveu no seu diário: “Atravessei as montanhas até chegar a
Huddersfield. São as pessoas mais selvagens que já vi em toda a Inglaterra.
Homens e mulheres enchiam as ruas. Pareciam prestes a devorar-nos.”
Felizmente, eu era magricelas e no Iceland é possível comprar cinquenta
salsichas por uma pechincha. Havia muitas lojas de artigos em segunda mão. Havia
sinais de “Vende-se” colados nas janelas, embora o Natal estivesse à porta com as
suas luzinhas e arranjos de papel e recordações da caminhada desde a estação de
New Street até à porta guardada pelos leões brancos na casa do meu pai.
Quando passei pela faculdade antiga pela terceira vez, apercebi-me de que se
assemelhava a um bolo de aniversário, as suas torres e varandas pareciam
montinhos de creme. Exíguas casas geminadas com telhados de ardósia ladeiam as
ruas cinzentas, mas ao virar da esquina podemos deparar com faculdades
modernas, como templos new age, com paredes de vidro curvas, totalmente alheias
à arquitectura local. O edifício Harold Wilson recordava-me a minha escola do
secundário.
Tudo naquele tempo me fazia lembrar outra coisa qualquer. Havia 10 000 alunos
em Huddersfield e fez-me pensar que nenhum deles me iria convidar para partilhar
um bule de chá de hortelã. Recordei-me de como fora fácil viajar sozinha pelo Médio
Oriente sem me perder, enquanto aqui continuava a pedalar ilegalmente em sentido
contrário, numa rua de sentido único, ainda à procura do edifício da universidade
onde já deveria estar a trabalhar. A Kathy e o Jim, os meus anfitriões, tinham o forte
sotaque do Yorkshire e temperamentos fogosos. Por vezes insultavam-se um ao
outro enquanto subiam as escadas, e eu recordava-me das discussões entre os
meus pais e de os escutar até o meu pai aparecer e me trancar na Gaiola.
O que significava aquilo? Por que razão o fazia? Estaria o meu pai a provar que,
mesmo não tendo poder sobre a minha mãe, tinha poder sobre mim, trancando-me,
vindo para a minha cama, levando-me para o calabouço? Estaria eu a ser punida
por ser uma menina má, provocante, sexualmente precoce? Falaria de mais? Seria
demasiado convencida, como dizia a minha mãe?
Eu sabia que não era assim, mas continuava a questionar-me, a culpar-me. Por
muito que tentasse, não conseguia impedir que os meus pensamentos
regressassem à minha infância, àquela tapeçaria melancólica que estava sempre a
tentar desfazer para poder tecer um quadro diferente. O passado parece melhor se
pudermos mentir a nós mesmos.
Cheguei com vinte minutos de atraso e subi as escadas a correr até ao terceiro
piso, onde iria partilhar um escritório com Gerald Brennan, o meu orientador, e outro
professor que permanecerá anónimo porque me esqueci do nome dele.
O Gerald não pareceu perceber que eu estava atrasada. Vivia num mundo à
parte e não reparava muito no que se passava à sua volta. Gostei dele
imediatamente. Evitámos olhar nos olhos um do outro quando apertámos as mãos.
O Gerald disse “Não tens de ser louca para trabalhar aqui, mas ajuda”, o que me fez
sentir em casa. Se o Gerald, com os seus óculos redondos à John Lennon e o seu
cabelo ralo estava a quebrar o gelo com humor, o seu comentário seguinte foi de
morrer a rir. Dentro de dois dias, tínhamos de apresentar uma comunicação sobre a
importância da investigação operacional para os grupos de saúde comunitária na
Conferência de Jovens Investigadores Operacionais em Edimburgo. A Investigação
Operacional era uma área de estudo completamente nova para mim e ele pediu-me
para empinar dois livros sobre o assunto nas quarenta e oito horas seguintes.
- Em dois dias?
- Aposto que consegues fazê-lo - disse o Gerald.
- Deve ser um jogador - respondi. Ele franziu a testa.
- Não, nem por isso.
Na verdade, o Gerald era um líder da Boys Brigade, preocupado com o bem-
estar das crianças, mas acabei por perceber que ele era incapaz de comunicar o seu
entusiasmo de uma forma prática. Conduziu-me à minha secretária que ficava atrás
da porta. Pusemos ordem na confusão e ele deu-me um livro sobre investigação
operacional do tamanho do Oxford Dictionary. Afastou-se a limpar os óculos e eu
inalei um bocado de poeira ao abrir as páginas. Este era o meu tipo de tarefa. Um
livro grosso. Cabeça enfiada nas páginas. A lógica do lado esquerdo do cérebro sem
a imprevisibilidade do lado direito. Naquela altura, eu era uma devoradora de livros,
mas parecia não estar a conseguir reter nada e decidi voltar mais tarde à
investigação operacional e focar-me em primeiro lugar nos grupos de saúde
comunitária, a minha área de especialização.
Durante dois dias, li e fiz anotações e, quando o dia da conferência chegou, eu
estava quase a fazer xixi nas calças com os nervos.
O Natal chegou e passou. Huddersfield no Inverno era como Gales no Inverno,
uma sólida cortina cinzenta, o vento a sacudir as janelas do meu quarto, a colina de
regresso a casa da Kathy cada vez mais íngreme.
Era frequente encontrar o Jim sentado na cozinha com um bule de chá, a enrolar
um cigarro. Fazia-o com grande habilidade, sacando sempre a mesma quantidade
de tabaco da sua bolsa de Golden Virgínia., espalhando-o ao longo de uma mortalha
Rizla verde e enrolando-o num tubo perfeito. A sua grande língua aparecia para
lamber a cola e ele selava-o com o ar de quem finalizou um trabalho bem feito. O
tabagismo era um ritual tanto quanto um vício e eu pensei que devia escrever para o
Welsh Office para realçar esse aspecto.
A Kathy cozinhava e o Jim sentava-se à mesa segurando a faca e o garfo pronto
para enfrentar as tortas e os puddings de carne, o ensopado com bolinhos de
massa, a carne assada com Yorkshire pudding ao domingo, o fish and chips à sexta-
feira, a torta de maçã com creme, o crumble de ruibarbo, doce de ameixa e bolachas
de fruta. A Kath era um génio na cozinha. Quando a ajudava, formávamos uma
grande equipa, e quando nos sentávamos juntos como uma família, sentia-me como
se fosse filha deles e eles fossem a mãe e o pai. Falavam sobre política e dinheiro,
programas de televisão e futebol. Discutiam e faziam logo as pazes, abraçavam-se e
diziam “adeus, amor”, quando saíam e “já cheguei, amor” quando entravam em
casa. Eu aprendi a falar como eles e queria que eles me adoptassem.
Não tomávamos as refeições juntos todos os dias, e havia dias em que eu não
comia nada. Empanturrava-me e quando estava obcecada com algum problema de
saúde comunitária, esquecia-me de comer e contentava-me com alguns goles de
gin. Gin, Prozac, Valium e trabalho eram os meus quatro melhores amigos. Eram
como os quatro elementos, terra, ar, fogo e água, a combinação essencial para
manter a vida.
Tal como fumar, tomar medicamentos é um ritual. Há algo de extremamente
sensual no gesto de retirar os comprimidos em forma de losango das suas
embalagens, pegar num frasco e deitar na palma da mão a dose diária de
comprimidos. É possível contar os que vamos tomar e os que sobram. Torna-se
parte de nós, e depois domina-nos por completo. Os medicamentos tornam a
realidade agradável. A dor desaparece. Durante algum tempo. Mas o problema dos
medicamentos é que eles são amigos falsos que depressa se tornam
desagradáveis. Precisamos de uma dose cada vez maior para fazer o mesmo efeito,
e depois ainda mais para modificar a dor de existir e tornar a realidade meramente
tolerável.
Eu guardava os meus comprimidos na gaveta da mesa-de-cabeceira e
agradava-me o facto de existir um código de cores que impedia que se misturassem.
O Prozac era uma cápsula elegante, metade verde e metade creme, um comprimido
de 20 mg por dia, a dose mais baixa. O Valium era amarelo da cor do sol, três
comprimidos de 5 mg por dia, de manhã e à noite, um para abrandar, dois para
dormir... O despertador com os seus números verdes ampliados e distorcidos
através da garrafa de Evian junto à cama, o sol de Inverno filtrado através das
cortinas do quarto, a canção do vento enquanto pedalava pela colina abaixo até à
universidade, o Gerald a falar sozinho numa língua estrangeira.
Por vezes começava a tremer sem razão aparente e recordava-me de que me
esquecera de tomar os comprimidos. Nessa altura tinha de correr para casa, para o
meu quarto, que por esta altura já estava transformado num jardim zoológico de
animais empalhados, os peluches, o Sr. Feliz e o dragão vermelho fitando-me de
olhos enevoados desde a estante. Entrava em casa dizendo para mim mesma
“Toma o Valium. Toma o Valium. Toma o Valium”, só para me certificar de que não
me esquecia da razão que me fizera voltar a casa.
Se não tinha água, engolia os comprimidos com um gole de álcool e não
regressava ao escritório durante o resto do dia. Observava a minha mão a tremer
como a folha de uma árvore ao vento e esperava que este amainasse. Era depois
invadida por uma sensação de relaxamento, como quando mergulhamos em água
quente, e trabalhava sentada na cama com os livros espalhados à minha volta, ou
sentava-me no chão com as costas apoiadas contra o radiador. Podia começar a ler
às duas da tarde e, se a Kathy não me chamasse, à meia-noite ainda estaria ali na
mesma posição.
Vivia como uma freira da Idade Média, trancada na minha cela a estudar os
evangelhos da saúde comunitária e investigação operacional, e a minha mente
regressava ocasionalmente aos caminhos de areia do kibutz Neve Eitan, o gosto de
Patrick por breves momentos nos meus lábios. Eu não tinha desejos sexuais, mas
tinha desejos emocionais. Sentia-me isolada, desligada, sozinha, não pertencendo a
nenhum lugar nem a ninguém. O meu trabalho dava-me um objectivo, mas só
trabalho e nenhuma diversão estava a tornar a Alice uma menina melancólica e
enfadonha.
A Primavera surgiu como um pássaro nervoso no quintal das traseiras. Os
narcisos desabrocharam para enfrentarem os ventos árcticos. Por vezes, a dúvida
sobrepunha-se aos meus sentimentos de bem-estar e em dias depressivos sentia
que não tinha valor para ninguém. Eu estava a estudar para um doutoramento para
provar que era capaz, a mim mesma e aos meus detractores, as vozes que me
diziam que o meu destino era falhar em tudo, excepto matar-me.
Mata-te. Mata-te. Sabes que é isso que queres.
O suicídio permanecia na minha mente como uma opção na programação da
noite da TV: notícias do Channel 4, telenovela, um documentário sobre a operação
Tempestade no Deserto, juntar o Valium, beber uma garrafa de gin e dizer “goodbye
cruel world it's over”. Só os Pink Floyd seriam adequados para o funeral de uma
suicida. Seria ao ar livre. Uma grande cova e um caixão polido com pegas em latão.
Eles estão vestidos de preto: a mãe com um véu à Audrey Hepburn no filme Boneca
de Luxo; o pai como o Drácula, lúgubre e com dentes grandes; o Clive com alguma
modelo de minissaia. Estão a olhar com os olhos secos para a terra negra num dia
de chuva intensa e a pensar nas palavras da minha nota de suicídio. Eu tive em
tempos um bloco, agora desaparecido, com dezenas de versões, mas que dizia, em
suma, que o meu pai abusara de mim no berço e não havia lá ninguém para me
salvar.
Quando o meu pai me violou no chão da sua casa naquele dia, eu perdi a
charada do meu falso passado cuidadosamente construído. Perdi o resquício de
confiança que tinha na minha mãe. Perdi todo o sentido de que, junto com o meu
irmão Clive, ainda éramos uma família. Desde aquele dia, todos os outros tinham
sido confusos, sobrepostos, como se tivesse sido apenas um longo dia e eu
estivesse acordada desde então, esquadrinhando cenas e memórias para tentar dar-
lhes um sentido e uma ordem qualquer.
Sentia-me sozinha, e ansiava pelos meus encontros com a Re-becca, com os
seus lábios discretamente pintados e o seu café forte.
As coisas tinham vindo a fender-se aos poucos e foi no pequeno gabinete dela
que algo finalmente se quebrou e para sempre.
Estava frio lá fora e quente no escritório. A condensação escorria pela janela. A
Rebecca tinha olhos verde-escuros penetrantes, e por vezes sentia-me engolida
pelo seu olhar. A sua mesa estava decorada com um cacto estranhamente fálico
num vaso vermelho e a fotografia de uma mulher de cabelo curto com umas
jardineiras largueironas.
A Rebecca sugeriu nesse dia que seria uma boa ideia se o Gerald assistisse a
uma das nossas reuniões. Enquanto ela falava, a sua voz começou a diluir-se numa
entoação lenta e monótona. Depois, extinguiu-se. Os seus lábios moviam-se e tudo
o que eu ouvia era: ela está a olhar para ti e quer que morras.
Não era a voz da Rebecca, mas a voz de um estranho no exterior da minha
cabeça. Não faço ideia de como reagi, mas a Rebecca percebeu que algo estava
errado. Enquanto ordenava os papéis sobre a sua secretária, perguntava-me, “Alice,
estás bem?” e repetia a pergunta sobre a reunião.
Eu consegui dizer: “Sim, parece-me uma boa ideia.”
Estava de pé, pronta para me ir embora. Conseguia ouvir movimento dentro do
meu crânio. Era como se um bando de pássaros estivessem a bater as asas. Cravei
as unhas na palma da mão. “Controla-te, Alice. Controla-te.” Procurei ver-me da
maneira que os outros me viam. Nunca agia de uma forma natural. Estava sempre a
observar-me, sempre a interpretar o papel da Alice. A agir de uma forma normal e a
sentir-me totalmente esquisita.
A Rebecca sugeriu algumas datas para a semana seguinte e eu apressei-me a
sair do seu gabinete. Pedalei através de Huddersfield como se o diabo estivesse a
perseguir-me. Controlei-me durante o tempo suficiente para falar com o Gerald. Ele
não percebeu que havia algo de errado, consultou a sua agenda e marcámos a
reunião para a quarta-feira seguinte às duas da tarde.
Nessa noite, em casa, estava a assistir à telenovela na TV com a Kathy, quando
de repente uma das personagens começou a falar comigo.
Olha para ela, olha para a Kathy... Ela é tua inimiga.
Era uma actriz com muito cabelo. Estava a olhar para fora do ecrã, directamente
para mim, e repetiu. Sim, Alice, ela. A Kathy... Ela odeia-te. É tua inimiga.
Eu não seguia o EastEnders e não conhecia aquela mulher, mas ela estava
definitivamente a falar comigo e a voz dela começou a soar cada vez mais alta, mais
convincente, não uma voz estranha, mas a sua própria voz, a voz da actriz.
Ela odeia-te. Ela odeia-te. Ela odeia-te.
Saltei do sofá e, ao atravessar apressadamente a sala, cruzei-me com o Jim que
vinha a sair da cozinha.
- Ei, onde vais com tanta pressa? - perguntou inocentemente.
- Combinei ir encontrar-me com uma amiga e estou atrasada.
Que amiga? Eu não tinha amigos, à excepção da Kathy e do Jim, e agora não
tinha a certeza quanto às intenções deles. Adoptar-me? Eles queriam matar-me.
Tinham-me atraído para esta casa no meio do nada. O meu quarto era no topo de
um lanço de escadas estreitas que iam ficando cada vez mais íngremes e estreitas à
medida que íamos subindo, os degraus tremendo como os dentes de uma escada
rolante. As minhas mãos tremiam. As luzes estavam a piscar. As paredes estavam
pegajosas como a borracha húmida. Fui ao meu quarto buscar algum dinheiro.
Saí vagarosamente de casa e desci a colina até à cidade. A voz da mulher da
telenovela dizia ainda, Prepara-te, Alice. Prepara-te para te matares.
Entrei na loja de bebidas, pedi uma garrafa de gin e ouvi o empregado dizer,
Podes procurar a salvação na bebida, mas vai acontecer eventualmente. Em breve
veremos o teu fim. Vais suicidar-te.
Caminhei durante quilómetros a beber directamente da garrafa. Bebi até
entorpecer os sentidos. Foi um milagre ter conseguido encontrar o caminho de volta
para casa de madrugada, com a respiração gelada, a sentir picadas nos dedos
devido ao frio. As vozes estavam a conversar, o Professor, a actriz da novela, um
menino triste, provavelmente a criança que me acordara a chorar nos meus sonhos
naquelas semanas imediatamente anteriores ao dia em que confrontei o meu pai e
ele me violou. Sentia o menino a crescer dentro de mim, como um pintainho no ovo
prestes a sair da casca.
A minha cabeça rodopiava sob o efeito do álcool, e senti que se dividia, o
hemisfério esquerdo a desatar os nós que o uniam ao hemisfério direito. Imaginei
duas bolas de sabão, como aquelas que as crianças sopram através de aros de
metal, primeiro juntas, depois separando-se e flutuando, azuladas, pelo Universo.
Devo ter adormecido, porque acordei completamente vestida com a cabeça
enterrada sob a almofada. A Kathy e o Jim tinham ido trabalhar. Corri para o armário
das bebidas. As minhas mãos tremiam tanto que quando abri a porta do armário
uma das estátuas saltou para o abismo e aterrou no tapete. A figura era da colecção
que Kathy adorava e à qual dava o nome de Capodimonte, uma menina vitoriana
tímida com caracóis de ouro, segurando um enorme chapéu corde-rosa. As coisas
estavam a partir-se, mas ainda não estavam todas partidas.
Voltei a colocar a figura no lugar, tomei um gole de conhaque da garrafa, tomei
um duche e vesti roupas limpas. Como não tinha que dar satisfações a ninguém na
universidade, não importava a que horas chegava, ou até mesmo se lá aparecia.
Engoli dois Valium e desci a colina a pé. Tinha medo de ir de bicicleta. As vozes
começaram a gritar. Vinham de todos os lados e de trás das janelas fechadas,
vinham de fora, mas estavam escondidas.
Não podes esconder-te de nós, Alice. Podes fugir, mas nós encontramos-te.
Parei para atravessar a estrada. Os meus olhos estavam desfocados. Dei uma
palmada na têmpora. Foca. Concentra-te. Quando o homenzinho verde se iluminou,
tive a sensação de ser eu aquele homem verde a atravessar a estrada.
Onde quer que estejas, estaremos lá também. Somos os teus melhores amigos,
Alice. Não sabes já disso? Quanto tempo mais será necessário para perceberes que
o teu destino é falhar em tudo, excepto no suicídio?
As vozes haviam sido sempre intermitentes. Agora eram constantes, como um
rádio preso entre duas estações. Tentei estudar na biblioteca da universidade, pois
pensei que o silêncio faria com que as vozes se acalmassem. Estava enganada.
És uma fraude. Todos estes livros e revistas que te rodeiam não fazem de ti uma
pessoa inteligente. Pára de tentar ser o Einstein. Não passas da pequena Alice
patética, pequena Alice patética, pequena Alice patética.
Deixei tudo na secretária, à excepção da minha caixa de lápis. Não aguentava
mais. Tinha dez libras no bolso. Encaminhei-me para a cidade e fui à loja de bebidas
comprar uma garrafa de gin.
Quando despertei, estava numa cama estranha com luzes indistintas que tinham
um odor a poeira e piscavam no tecto como se estivessem a transmitir um código. O
meu primeiro pensamento foi que tinha sido raptada por alienígenas.
Na verdade, estava na sala de recuperação das Urgências de Huddersfield.
Fiquei a olhar para o vazio. Não sabia quem era nem onde me encontrava. Os
meus braços estavam presos sob o lençol bem entalado na cama. Senti-me como
uma criança e como se o corpo deitado na cama pertencesse a outra pessoa. O
Prozac fazia-me sentir eu. Sem ele, não sabia quem era.
Contorci-me para me libertar dos lençóis, e ao sentar-me na cama vomitei.
Fiquei chocada ao descobrir que os meus braços estavam com ligaduras desde os
pulsos até aos antebraços. Uma enfermeira estava sentada ao lado da cama em
vigília. Limpou o vomitado. Era gentil e eficiente.
- Assim, vá, o melhor é deitares tudo cá para fora - disse-me ela.
A minha memória estava em frangalhos. Imagine-se uma fotografia cortada em
tiras estreitas, e depois todas misturadas. Está tudo lá, mas não é possível ver a
fotografia completa e até mesmo as tiras não têm qualquer relação com a realidade.
Eu sabia que ingerira uma grande quantidade de álcool, mas devia ter feito algo
ainda mais louco do que apenas ser encontrada embriagada para ter uma
enfermeira sentada à minha cabeceira.
Pensei que seria uma boa ideia dizer alguma coisa e ponderei durante vários
segundos.
- Ela está bem - disse eu.
- Quem? - perguntou a enfermeira.
- A Alice. Agora estou bem.
Enquanto falava interrogava-me se teria dito algo de errado. Nem parecia eu a
falar. Havia tantas vozes a murmurar ao fundo que era difícil ter a certeza. Pensei
que esta era provavelmente a voz do meu subconsciente e tive uma visão repentina
e nublada de sangue a correr em fios, como a condensação a escorrer pela janela
do gabinete da Rebecca.
- Estamos à espera que a psiquiatra venha vê-la - disse a simpática enfermeira.
Alguma coisa quebrou-se, ou algo que se quebrara compôs-se.
Uma psiquiatra.
- Uma psiquiatra?
- Sim, ela não deve demorar.
Não ia submeter-me a isso. Receava que me transferissem para uma unidade
psiquiátrica: tinha-as visto durante as minhas pesquisas e estavam repletas de
malucos.
Não gritei nem fiz um péde-vento. A Alice inteligente não faz isso. Expliquei
calmamente que não estava doente, que era uma estudante a tirar um
doutoramento, que estava cheia de trabalho e que não poderiam reter-me ali contra
a minha vontade.
- Só está aqui para sua segurança - replicou a enfermeira.
- Eu sei disso, mas sinto-me realmente melhor.
A enfermeira decidiu sair para ver se a psiquiatra chegara e eu pus-me em fuga.
Por um golpe de sorte, todos nós os temos ocasionalmente, as minhas roupas
estavam no armário junto à cabeceira da minha cama. Vesti-me e deslizei como uma
sombra pelo longo corredor, passando por sinais com símbolos amarelos e pretos,
Radiografia, Ambulatório, Farmácia, e saí pelas portas duplas que emitiram um som
de sucção e me conduziram a um novo dia que cheirava a Primavera.
Não tendo nenhum outro lugar para ir, dirigi-me para casa, suspeitando que a
Kathy e o Jim não eram meus amigos, mas inimigos secretos. Voltei para o meu
quarto, tomei o meu Prozac e Valium e devo ter adormecido. Acordei às cinco da
manhã com a voz do destino a ressoar dentro do quarto.
Tens de morrer.
Outras vozes se juntaram.
Tens de morrer. Tens de morrer.
De início, não sabia onde estava. Estaria em casa? Estaria a dormir? Estaria
acordada?
O ressoar das vozes prosseguiu: Tens de morrer. Tens de morrer.
Agarrei no Sr. Feliz.
- Consegues ouvir isto?
Ele limitou-se a sorrir e eu sorri-lhe também. Tentei cantar em conjunto com as
vozes. Tens de morrer. Tens de morrer. Tens de morrer. Como um cântico de
futebol. Não sei bem por quanto tempo estivemos assim, mas finalmente despertei
para a realidade.
Estava na minha cama com os braços ligados. Não sabia porquê, nem queria
saber. Pensei na Kathy e no Jim. Estariam eles a tramar alguma para me apanhar?
O Jim tinha olhos vermelhos demoníacos e a Kathy tinha o rosto idêntico ao da
mulher da telenovela.
Por que razão quisera a Kathy encontrar-se comigo na estação de comboio e
levar-me pessoalmente até sua casa? Devia ter colocado aquele anúncio no quadro
de avisos em segredo, e depois devia tê-lo retirado assim que lhe telefonei. Ninguém
sabia que eu estava naquela casa dos horrores no topo da colina. Estava
encurralada. Sozinha. Eles iam matar-me. Esconder-me sob o soalho. Tinha a
certeza disso. Tinha de ficar longe deles. Eles estavam por trás das vozes.
Tens de morrer, cantavam elas. Vais morrer.
Para onde vou? O que faço? Já estava escuro lá fora. As vozes ecoavam pelo
quarto. A Kathy e o Jim estavam a conspirar lá em baixo.
Não sabia o que fazer.
Tinha de desanuviar a cabeça. Finalmente, vesti a minha roupa de jogging.
Peguei nas chaves e saí furtivamente de casa. Corri. A minha cabeça estava cheia
de pensamentos loucos e estranhos. Tinha a certeza de que as pessoas estavam a
conspirar para me apanhar e não parava de pensar: “Não é justo, eu não fiz nada.
Não é culpa minha. Será que vão trancar-me na Gaiola com uma lata de massa?”
Tinha de fugir. Se conseguisse correr muito depressa, seria capaz de superar as
vozes. Enganar o tempo.
Corri sem parar, sempre com as vozes a martelar nos meus ouvidos.
Vais morrer; Alice. Vais morrer.
Calem-se. Calem-se. Calem-se.
Em breve assistiremos ao teu fim. Mata-te. Mata-te. Fá-lo agora. Fá-lo hoje.
Corri com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Corri até o sol começar a
espreitar por entre as nuvens. Corri até ficar sem fôlego e esgotada. E as vozes
continuavam a martelar-me a cabeça, tal como os meus pés martelavam o chão.
Quando regressei a casa já passava das dez. Estivera a correr durante quase
quatro horas. Terminara outra maratona e, com um lampejo de sanidade, lamentei
não ter angariado mais 500 libras para a NSPCC.
“Ouçam as crianças”, pensei. “Ouçam as crianças.”
A Kathy e o Jim tinham ido trabalhar. Estava sozinha. Despi-me na casa de
banho e fitei de novo com surpresa e descrença as ligaduras nos meus braços.
Rasguei o adesivo mesmo acima do meu cotovelo e, à medida que retirava as
ligaduras, senti-me agoniada com aquilo que os meus olhos viram. Na carne macia e
na parte de dentro do meu braço esquerdo, desde o pulso até à curvatura do braço,
havia uma série de equimoses e lacerações vermelhas, quase paralelas, algumas
cosidas e revestidas de Betadine. O meu braço direito também estava cortado, mas
não tanto. Os cortes eram hábeis, ligeiramente irregulares, como se tivessem sido
feitos com uma faca de serra, já a cicatrizar, e eu interrogava-me quem me poderia
ter feito aquilo.
Foste tu.
Não fui, não..
Sim, Alice, foste tu. Tu mesma.
Não fui.
Queres suicidar-te, mas tens medo.
Cala a boca!
Fiquei no duche mais ou menos uma hora. Sabia de uma forma vaga e distante
que me tinha ferido a mim mesma. Mas não me lembrava de o ter feito, e não fazia
ideia da razão que me levaria a fazer -uma coisa dessas. Não podia estar no meu
perfeito juízo. Estivera a beber, de certeza. Tinha a recordação de uma dor
semelhante a mil enxaquecas, uma dor tão aguda que era como se a lâmina de uma
faca estivesse realmente a retalhar as membranas, os músculos e as sinapses do
meu cérebro, retalhando-me as memórias.
Foste tu.
Não fui. Não fui. Não fui.
Foste.
Eu estava a conversar com as vozes, mas não era a minha voz a responder. Ou
melhor, era a minha voz, mas não parecia ser eu. Limpei-me com uma toalha e fitei
os meus olhos no espelho. Estava alguém lá dentro.
Há duas correntes de pensamento quando se trata de feridas abertas: a primeira
diz que se deve permitir que curem ao ar livre; a segunda diz que é melhor mantê-
las tapadas. Sou adepta da segunda, por isso enrolei as ligaduras até aos cotovelos.
Dormi durante algumas horas e voltei para a universidade como se nada tivesse
acontecido.
CAPÍTULO 11

AS CRIANÇAS

Há uma arma na minha mochila. Há também um porta-chaves em forma de


macaco mas sem chaves. Um tubo de Smarties. Um exemplar de The Magus, de
John Fowles, com um marcador no início do capítulo 5. Na primeira página, escrito a
lápis, está o nome de Rebecca Wallington.
Será que foi ela que mo deu? Emprestou-mo? Será que eu o roubei? Será que li
os quatro primeiros capítulos? Porque se li, terei de voltar a lê-los para saber do que
se trata.
A arma é de plástico e dispara cartuchos que explodem como bombinhas de
Carnaval. Experimentei-a. Por duas vezes.
Bang. Bang.
Estou sentada na cama com estas coisas espalhadas pelo edredão. A luz do sol
dança com a poeira que entra pela janela e ilumina os olhos do gang de peluche.
Estou em casa da Kathy e do Jim. Está tudo calmo agora. Vazio. Estou à escuta,
atenta.
Se a Kathy e o Jim me querem apanhar, ainda não o conseguiram.
Passo muito tempo a olhar para os meus braços. Os cortes estão a sarar em
cicatrizes irregulares. Passo a ponta dos dedos sobre os vergões e, por vezes, a
ponta da língua. Se houvesse linhas em direcção contrária, poderia jogar ao jogo do
galo com uma esferográfica.
Continuo a tomar todos os dias 20 mg de Prozac. Mas agora como os Valium
como se fossem Smarties. Tenho uma dor no fígado. Talvez seja cirrose. As minhas
poupanças desapareceram quase todas. Devo ter andado a levantar esse dinheiro,
que era a minha rede de segurança, mas não me lembro de o fazer. Vivo uma
semana de cada vez. Um dia de cada vez. Um momento de cada vez.
Finjo ser uma aluna a estudar para um doutoramento. Não tenho a certeza de
quem ou o que sou. A única coisa de que estou certa é que eu não sou eu. Desço a
colina, deambulo pela universidade, subo as escadas até ao segundo andar e
observo o Gerald a debicar no seu teclado como um pombo a debicar o lixo.
- Bomdia.
- Bomdia.
- Como é que vai a proposta? - pergunta ele.
- Como um sonho.
- É assim mesmo.
Os óculos do Gerald cintilam como duas moedas de prata. Sorri.
Procuro o outro tipo que aparece periodicamente. Talvez se tenha evaporado
nas paredes manchadas por detrás dos post-its e do calendário com paisagens das
charnecas e dos pequenos vales do Yorkshire. Talvez ele só exista na minha
imaginação, um homem com barba, discreto, a ficar prematuramente calvo, com uns
jeans cinzentos e uma T-shirt com uma foto da Guerra Civil Espanhola.
Ah, já me lembro.
O trotskista.
Aquele homem que permanecera sem nome desde que o Gerald nos
apresentou no meu primeiro dia de trabalho na universidade.
Uma noite, quando estávamos a trabalhar até tarde, ele perguntou-me se eu
queria ir tomar uma bebida.
- Sim, por favor - respondi, dando voltas à cabeça. - Sou terrível com nomes...
- Brian - disse ele enquanto desligava o computador.
Entrámos num bar, com o fumo do tabaco a pairar no tecto baixo, onde este
homem simpático e habitualmente silencioso de nome Brian falou durante uma hora
e meia sobre o seu irmão, que fizera fortuna como analista financeiro.
- O caricato é que ele é péssimo a Matemática. Queria ser arquitecto. Agora
ganha dinheiro a rodos... férias na Florida, um apartamento com uma varanda que
parece a proa de um navio no Tamisa. O filho da mãe usa daquelas camisas que
têm o logotipo de um jogador de polo.
Durante a pausa ocasional, o sobrolho de Brian franzia-se. Dizia “Hum, hum...”,
eu sabia pela forma como ele estava a olhar para mim, a forma como as pessoas
olham para as letras pequenas num frasco de remédio, que ele não se lembrava do
meu nome e não queria perguntar.
Bebeu duas canecas de Foster e eu bebi dois copos. Já passava das nove
quando saímos do bar e, enquanto regressava a casa colina acima, recordei-me de
ter lido num artigo sobre microbiologia que a mente não existia, somente a matéria
era real. O “eu” que eu penso que sou não existe. A Alice é apenas uma massa de
células a explodirem e a dividirem-se. O corpo passa por um big bang diário e surge
renovado, alterado. A criança que eu fui não existe dentro da minha matéria, só a
minha mente, a minha memória; é um falso “eu”, um “eu” morto, um “eu” que existia
e deixou de existir, e o problema de bebermos dois copos de cerveja é que nos
deixa sedentos por mais.
Eu trabalho naquilo a que se dá o nome de computador pessoal multimédia,
desenvolvido pela Microsoft e pela Tandy. Dizem que um dia não haverá
necessidade de bibliotecas ou universidades. Todo o conhecimento será
armazenado num cérebro electrónico gigante. Bastar-nos-á enviar uma pergunta ao
centro nevrálgico e ele dar-nos-á todas as respostas. Parece uma daquelas ideias
mirabolantes, como aquela de que um dia todas as pessoas pilotarão o seu próprio
helicóptero pessoal, e eu só acredito quando vir com os meus próprios olhos.
Pressiono o botão “on”, o computador zumbe como um rádio de ondas curtas e
o ecrã acende-se. As minhas anotações estão armazenadas em ciber-arquivos e
aparecem em letras verdes que piscam como insectos a marchar pela página. Se
cometemos um erro, não necessitamos de o corrigir com o corrector branco.
Seleccionamos o texto que não queremos e escrevemos um texto novo por cima do
anterior. Se tivéssemos uma tecla de retrocesso no nosso córtex cerebral, seríamos
capazes de fazer o mesmo com as memórias, bastava retroceder e transformá-las
em buracos negros. Isso é exactamente o que elas são na altura do nascimento,
pelo menos na opinião de alguns psicólogos, que vêem a mente infantil inicial, antes
de ela começar a receber as impressões da experiência adquirida, como uma tábua
rasa.
A Alice, a menina abusada pelo pai, desapareceu, as suas células dispersaram-
se. Supondo que existe uma linha directa entre aquela menina e eu, a Alice tem
“falhas”. Se existe uma linha, ela está desenhada com tinta invisível. Não podemos
vê-la, saboreá-la, cheirá-la. É uma miragem onde a Alice continua, mais por
convenção do que por desejo, a manter memórias que podem pertencer a outra
pessoa e têm o poder de lhe fazer mal.
As memórias são, por natureza, falsas, na medida em que constroem imagens e
narrativas daquela pessoa que em tempos existiu, com as células que outrora
existiam, mas que deixaram de existir. Essas células sofreram uma mutação e
transformaram-se noutra coisa. Tudo o que é sempre foi e sempre será. A poeira no
feixe de luz que entra pela minha janela transporta as células mortas dos
dinossauros e as cinzas do meu avô.
O meu computador tem memórias falsas; uma mente própria. É descuidado.
Perde coisas. Eu continuo a fazer anotações manuscritas num caderno de
exercícios azul e apenas as partilho com o computador como medida de segurança.
Dizem que um dia os computadores conversarão entre si. Isso é algo que eu
entendo.
Conjuro o ficheiro do éter; olho para o relógio. Nove e dez. Olho novamente.
Nove e dez.
A minha principal responsabilidade é criar uma proposta de pesquisa para
apresentar ao conselho científico da universidade, assim como elaborar um
programa de entrevistas para o trabalho que estou a desenvolver com a Rebecca
sobre a participação da comunidade numa nova iniciativa de saúde. Várias agências
estavam em vias de implementar a iniciativa a um nível local dentro do Kirklees
Metropolitan Borough Council e das autoridades de saúde de Huddersfield e
Dewsbury.
Li o que escrevi.
Hum, nada mau.
Estava a ter um esgotamento mental e a trabalhar em programas de saúde para
a comunidade.
Absurdo, não?
Um dia, fui impedida de trazer um rádio portátil de uma loja sem pagar. Fui
perseguida por um homem enorme que usava barba e um turbante cor-de-rosa.
Parecia estar muito zangado e eu comecei a chorar. Fiquei tão perturbada que ele
se acalmou e me pediu desculpa. Mesmo assim, tirou-me o rádio das mãos. Dirigi-
me à loja de bebidas e só nessa altura me apercebi de que não tinha dinheiro
nenhum.
A minha bicicleta não estava lá fora. Procurei-a. Não me conseguia lembrar se
viera ou não de bicicleta. Pedalar é perigoso. Não gosto dos homens nos carros.
Não sei porquê, mas não gosto. Sinto vontade de os matar e faço o gesto com os
dedos.
Bang. Bang. Estás morto.
Há imensos prédios feios neste lugar a que dão o nome de Huddersfield. Não
gosto de cá estar nem gosto dos edifícios feios. As pessoas são canibais. Querem
comer-nos. Mato todas as que posso. Bang. Bang.
Faço explodir os edifícios com cocktails Molotov. Agrada-me a combinação
destas duas palavras, a forma como elas deslizam pela língua, cocktail Molotov,
enquanto as bombas voam em chamas da nossa mão e explodem numa chuva de
vidro fundido.
O meu nome é Billy. Tenho cinco anos. Sou eu que disparo contra os homens
nos carros. Bang. Bang. É a minha arma que está no saco da Alice. Ela comprou-
apara mim. Ela comprou-me o tubo de Smarties e o portachaves do macaco.
Contudo, não pagou por eles. Roubou-os. Bang. Bang. Estás morto. Lá vai mais um.
O meu rosto no espelho não tem expressão. É como uma cena de um filme
imobilizada no ecrã de um televisor, como o ecrã do computador no modo de
poupança. A energia regressa e a minha expressão volta a ser a minha. A da Alice.
A mesma Alice com um novo conjunto de células e um novo conjunto de vozes
expulsando as antigas.
As vozes antigas ainda lá estão. Mas agora é diferente. A mobília na minha
cabeça foi reorganizada. O Professor, aquela mulher da telenovela e o resto, os
bajuladores, parecem pertencer ao mundo externo. As crianças, por outro lado,
estão dentro da minha cabeça, a falar, a chorar, a armar uma grande confusão.
O Billy está sempre alegre. Pode ter sido ele o menino que chorava durante
aquelas noites no meu estúdio em Swansea depois daquilo que aconteceu. Mas não
me parece.
Provavelmente era o Samuel.
O Samuel tem seis anos. Chora o tempo todo. Sem parar. Por vezes, encolhe-se
todo, encosta-se à parede e só chora e chora.
A Bebé Alice também chora, mas ela tem apenas seis meses de idade. Não
sabe o que está a acontecer.
As crianças simplesmente apareceram. Aconteceram. Como as sementes que
crescem no subsolo e se elevam através da terra. Cresceram, e é tudo. Estavam
escondidas em toda aquela “matéria” e saíram dela totalmente formadas, com
nomes, idades, maneirismos, tal como as borboletas saem dos casulos. Não fui eu
que lhes atribuí os nomes. Foram elas que me fizeram tomar consciência dos seus
nomes, mas eu parecia conhecê-los automaticamente, e em breve dis-tinguia-as
umas das outras pelos diferentes tons de voz.
O Billy gosta da sua arma. Gosta de Smarties. Não sei do que o Samuel e a
Bebé Alice gostam. Eles só choram, o que é uma chatice porque enquanto estão a
chorar não consigo prosseguir com a tarefa que tenho em mãos.
Há um rapaz zangado chamado Kato. Tem dezasseis anos, e está tão irritado e
atormentado que não sabe o que fazer. Sinto que está à beira da violência, com um
rosto vermelho de cólera. Por vezes receio que ele possa explodir.
Depois há a Shirley. Ela tem catorze anos. Só Deus sabe por que razão ela se
chama Shirley. Nem sequer gosto do nome. De onde é que ele veio? A Shirley está
de conluio com o Kato. Ela incita-o. Força-o a fazer coisas que ele não faria se ela
não estivesse presente.
Depois há a Eliza. A filha do Diabo. Ela está a chegar, diz ela, mas ainda não
chegou. Ainda não se “revelou”. Tal como eu, a Eliza gosta de brincar com bonecas
e sente-se em desvantagem entre todos os outros rapazinhos que preferem os
ursinhos de peluche.
Havia muitas outras crianças que se esforçavam por encontrar as suas vozes,
mas permaneceram no fundo, lutando por espaço e tempo.
O Gerald chama-me da porta.
- Apetece-te tomar um chá?
Tenho de pensar nisso. Teria o Gerald perguntado se me apetecia um chá? Ou
teria uma das vozes migrado para dentro da sua cabeça, e estava a mexer os lábios
dele, como um ventríloquo? Talvez o Gerald seja um robô, um fantoche? Talvez eu
o seja?
- Então?
- Sim, por favor, Gerald.
- Como é que está a correr?
- Bem. O John Fowles que se acautele.
- Estás a ler The Magus?
- Estou?
Exibe um largo sorriso. Considera-me um génio. Talvez seja. Um Prozac, dois
Valium, um pouco de codeína e um gole de gin ao pequeno-almoço fazem milagres.
Eu sinto-me... Qual é a palavra? É isso: feliz. Bem, talvez não feliz. Pelo menos não
me sinto infeliz.
As vozes são exasperantes. Mas também podem ser muito divertidas. Espreito
para a minha mochila: a arma, o porta-chaves do macaco, o tubo de Smarties que
partilho com o Gerald quando ele regressa com duas canecas de chá, com as
bactérias a reproduzirem-se nas rachaduras das canecas. Talvez seja por isso que
os ingleses são todos loucos. Todo aquele chá e as bactérias.
Quando o tempo pára de funcionar de uma forma normal, quando há lacunas no
fluxo normal dos acontecimentos, os dias deixam de ter qualquer significado. Perco
a noção do tempo e esqueço-me dos compromissos. Tomo comprimidos em
excesso e, se a Shirley consegue sair, ponho-me a beber.
Quando a Shirley assume o controlo, tudo pode acontecer. “Volto a mim” de
repente, dá-se um estremecimento, como se estivesse a despertar, e posso dar por
mim sentada na sarjeta, com o sangue a escorrer pelos braços, ou deitada numa
cama de hospital, envolta em ligaduras.
A Shirley é autoconfiante. Ocorreu-me que é a Shirley quem gosta de cozinhar.
Ela sempre esteve lá, manuseando as facas de cozinha, instigando os dedos
hesitantes do Kato a pegarem nos fragmentos de vidro de uma garrafa partida.
No momento em que abri os olhos nas Urgências do hospital, passou-me pela
mente uma imagem fugaz.
Fora a Shirley, não eu mas a Shirley, que bebera uma garrafa de gin, que partira
a garrafa vazia e convencera o Kato a golpear-me os braços.
Por que razão fizera Kato aquilo?
Ele fê-lo porque estava tão confuso, tão angustiado, tão stressado, que a dor
física era um alívio para a agonia mental.
Também o fez porque a visão de sangue vermelho a escorrer por uns braços
alvos possui uma qualidade estética, uma beleza brilhante na cinzenta e enfadonha
Huddersfield.
Estranho? Absurdo? Foi isso que me pareceu. Eu tinha estas forças, estas
compunções, estas personalidades alternativas dentro de mim, a controlarem-me.
Era como se fosse uma caixinha de surpresas e não soubesse que personalidade ia
saltar a seguir: Billy, que se considerava um cowboy ou um terrorista; Kato, o
cortador; Shirley, a anoréxica, cuja única auto-indulgência era encher-se de álcool e
uma sandes de vez em quando. Gostava da Shirley, mas tinha medo dela. A Shirley
sabia coisas que eu não sabia.
Eu sabia que era quarta-feira quando acordei, mas depois esqueci-me.
Acordara alagada em suor, com a certeza de que os meus pés estavam em
chamas e vi-me no meu quarto de infância. Tinha quatro anos e era adorável.
Estava na caminha que havia substituído o berço. Estava vestida com um pijama
turco amarelo com patos na parte da frente e estava a olhar para o tecto.
Ele entrou sorrateiramente. Encostou o dedo aos lábios e sorriu. Fez-me
cócegas no queixo.
- Quem é a menina do papá? - sussurrou.
- Sou eu.
Sorri e ele beijou-me na face. Puxou os cobertores para trás e os ursinhos
caíram ao chão. Deslizou a mão por baixo de mim. Eu fiz pressão com os pés e
arqueei as costas para que ele pudesse puxar o meu pijama para baixo.
- Muito bem. Que linda menina.
Humedeceu o dedo e introduziu-o no meu pipi.
- Sim. Sim. É bom, não é?
Ele estava de pijama e a sua pila apareceu através da abertura dianteira.
- Olha quem está aqui - disse ele.
Introduziu a pila na minha boca para a humedecer e depois, cuidadosamente,
para que não doesse muito, meteu a cabeça da sua pila no meu pipi. Pouco depois
fez o seu xixi dentro de mim. Trazia um lenço no bolso do casaco do pijama e limpou
tudo com ele. Vestiu-me de novo as calças do pijama e tapou-me com o lençol e o
cobertor. Inclinou-se e beijou-me nos lábios.
- Que bom - disse.
Saiu do quarto e eu levantei-me para apanhar os meus ursinhos. Eles não
gostavam de estar no chão.
Era eu quem estava na pequena cama. A Alice.
A recordação dessa memória era tão vil, tão degradante, tão dolorosa, que
engoli todos os meus comprimidos de uma só vez. Bebi um trago de conhaque do
armário da sala da Kathy e voltei ao piso de cima para procurar algum dinheiro.
Corri pela colina abaixo em direcção à loja de bebidas, cada vez mais rápido...
A seguir só me lembro das luzes empoeiradas e sombrias sibilando acima da
minha cabeça, das cortinas entreabertas, do odor familiar.
Estava de novo nas Urgências.
A Rebecca estava sentada junto à cama. Pegou-me na mão e fitou-me com os
seus olhos castanhos cor de avelã. Pensei, “Oh, meu Deus, ela é lésbica.” E depois
pensei, “O que é que as lésbicas fazem?” Pensei na rapariga da minha escola que
fantasiava com sexo a três. Pensara nisso durante anos. O que é sexo a três?
Eu fora violada incestuosamente, de forma contínua e repetidamente, e não
sabia nada sobre sexo, amor ou relacionamentos. As lágrimas correram-me
abundantemente pelo rosto. Sentia o gosto do sal. A Rebecca apertou-me a mão.
Solucei. Ela apertou mais e eu solucei ainda mais.
Pensei: Por que razão está esta mulher a tocar-me? O toque dela sabe-me bem.
Tinha o rosto alagado em lágrimas, mas a minha garganta estava tão ressequida
quanto a Cidade Vermelha de Petra. Aquelas pedras corde-rosa ao pôrdo-sol devem
ter sido uma miragem, uma falsa memória, pertenciam a um grupo de células
desaparecidas para sempre.
Sentia uma dor no lado esquerdo, e tinha um arranhão na face. Pelo menos, o
Kato não me cortara.
Esvaziei o jarro da mesa-de-cabeceira, bebendo toda a água, um copo atrás do
outro. A Rebecca foi buscar a irmã de serviço e regressou com uma mulher
escocesa que parecia uma freira num uniforme azul-marinho engomado e com um
relógio virado do avesso. Era difícil perceber o que ela estava a dizer.
- Que isto seja um aviso para ti, miúda. Não quero voltar a ver-te aqui - disse ela.
- Não podes continuar a perder os sentidos por beberes de mais.
Não me recordava de ter desmaiado. Só podia imaginar que a Shirley bebera
até perder os sentidos e se magoara.
A Rebecca conhecia a irmã e convenceu-a a entregar-me aos cuidados dela.
Vesti-me e coxeei ao longo do corredor, passando pelos sinais pretos e amarelos
que alertavam para os perigos da radiação, até ao parque de estacionamento. As
portas do hospital emitiram um som de sucção e as portas do carro abriram-se como
se este estivesse ansioso por se pôr em marcha. Apertámos os cintos de segurança
e a Rebecca pousou a sua mão na minha. Era estranho, toda aquela treta pessoal, e
eu olhei para a mão dela a acariciar os meus dedos.
- Vamos para minha casa? - perguntou. E eu acenei hesitantemente.
- Está bem.
Que tinha eu a perder?
Sabia bem estar sentada no carro, penso que era um Volkswagen, um
brinquedo grande movendo-se a grande velocidade, a cidade a desaparecer atrás
de nós à medida que saíamos da cratera através de estradas rurais sinuosas. Dei-
me conta, com um certo embaraço, de que o mais próximo que estivera das
charnecas fora o calendário do departamento de turismo na parede do escritório.
- Pensei que devia ter acontecido alguma coisa quando não apareceste para a
nossa reunião - disse ela.
Ocorreu-me então que era quarta-feira. Era o dia planeado para aquele encontro
com o Gerald no gabinete da Rebecca.
- Sinto muito - respondi.
- Alice, eu estava preocupada contigo, não com a reunião.
Interroguei-me como é que ela me descobrira nas Urgências, mas não lhe
perguntei. Comecei a chorar outra vez. A preocupação da Rebecca era
avassaladora. Eu não chorava muitas vezes. O Samuel e a Bebé Alice é que
choram. Eu não. Embora, por vezes, chorar ajude.
O céu estava a ficar vermelho, laranja, verde-pálido. Rochas que pareciam ter
sido lançadas por gigantes como se fossem mísseis ponteavam a paisagem, que se
elevava em colinas sombrias no horizonte. A minha intuição não é algo em que eu
possa confiar, mas tinha a sensação de que a Rebecca se preocupava realmente e
não podia fazer nada excepto esperar o melhor. Desde o início que ela me
encorajara com o meu projecto e deve ter percebido que eu estava isolada.
O Jim e a Kathy pensavam que eu passava as noites fora a beber e a divertir-me
com os meus colegas da universidade. A realidade era o oposto. Eu bebia sozinha
caminhando pelas ruas, e de noite, quando não conseguia encontrar o caminho de
volta, dormia nas entradas das lojas, ou caminhava durante quilómetros ao longo da
estrada de Manchester e subia os escombros de uma fábrica abandonada, na mais
completa escuridão, cortando as mãos, ou cantava durante horas a fio nos baloiços
do parque infantil, impulsionando-me o mais alto que conseguia. Na pele da Shirley
ou do Kato, ou até mesmo na da Alice, quando as memórias se transformavam em
tortura, não tinha a percepção da vulnerabilidade e, naquelas noites errantes, só
tinha receio de ser apanhada pela polícia.
A Rebecca morava numa pequena casa rústica em pedra, com rosas a treparem
por cima da entrada, e mobiliário em madeira de pinho na cozinha e na sala. Havia
almofadas grandes e coloridas, tapetes indianos no chão e fileiras de livros nas
estantes. A Rebecca abriu todas as janelas e foi para a cozinha fazer chá.
Sobre a mesa, havia uma fotografia da mesma mulher que eu vira numa
moldura na secretária do seu gabinete.
- Essa é a Zoe, a minha companheira - disse. - Neste momento está a trabalhar
em Newcastle.
A Rebecca pousou uma bandeja sobre uma mesinha.
- Deve sentir a falta dela - comentei.
- A toda a hora. Apesar de vivermos separadas e termos os nossos próprios
interesses.
Pensei que devia ser bom ter um companheiro e não ter de viver sob o mesmo
tecto. Recordei-me de me sentir feliz em Liverpool, sabendo que o Patrick ia visitar-
me; só o facto de saber que ele estava próximo, mesmo não estando presente,
dava-me uma sensação de equilíbrio. Eu ainda tinha o endereço dele e decidi
escrever-lhe e explicar por que razão tivera receio.
Pensar em Patrick fez com que as lágrimas me subissem de novo aos olhos.
Com as crianças a tagarelarem na minha cabeça, os flashbacks, os medicamentos,
a bebida, o tempo naquelas últimas semanas tornara-se esférico, sem princípio nem
fim. O passado, o presente e o futuro tinham-se fundido, derretido numa bola. Essa
bola de tempo estava a passar. Antes que uma nova bola começasse a crescer,
haveria um momento de vazio e clareza. Estava muitas vezes “longe”, mas agora
estava “de volta”. Eu era eu. Era por isso que não parava de chorar.
- Podes contar-me se quiseres, Alice - disse a Rebecca.
Olhei para ela. O cabelo cinzento-prateado da Rebecca parecia um halo com a
luz por trás dela. Teria ela lido a minha mente? Teria ela visto a carta que eu
planeava escrever ao Patrick?
Olhei para as chávenas de chá que ela servira.
- Tem alguma coisa que se beba? - perguntei.
Ela sorriu.
- Que rica ideia - disse.
Levou a bandeja e trouxe uma garrafa de vinho, queijo e biscoitos salgados.
Podia sentir aquilo que não dissera brotando dentro de mim, adquirindo a forma de
palavras, as memórias mortas ressuscitando como Lázaro. Se ia falar, precisava de
estar lá fora, ao ar livre, sob a grande cúpula do céu. Bebemos o vinho e vestimos
os casacos.
Atravessámos as charnecas por caminhos de pedra sinuosos. As sombras
estavam a transformar-se em noite e, protegida pela escuridão, contei à Rebecca a
minha história. Uma versão dela. Não lhe falei das vozes. Eu ainda tinha de
perceber a relação entre as vozes e os abusos. Foram os abusos que viram a luz
naquela noite: a forma como eu fora molestada continuamente enquanto bebé de
berço até atingir a adolescência. Contei-lhe que o meu pai me violara sob a ameaça
de uma faca no chão de sua casa. Disse-lhe que nunca contara estas coisas a
ninguém.
A Rebecca estava pálida. O vento soprava.
- Mas porquê? Porquê? - perguntou.
Era a pergunta óbvia. Mas não há uma resposta simples. As mulheres que eu
entrevistara no refúgio em Liverpool, tinham todas respostas diferentes: vergonha,
amor, medo de que ninguém acreditasse nelas, medo de que ninguém pudesse
fazer nada para impedir o abuso, ainda que acreditassem nelas, medo de ficarem
sozinhas, um medo que eu conhecia bastante bem.
- Simplesmente não contei - respondi.
- Pobre Alice. Pobrezinha.
Abraçámo-nos enquanto descíamos rapidamente pelo outeiro até à casa da
Rebecca. Fizemos uma sopa quente e a Rebecca ensinou-me que se molharmos o
pão velho com água e o aquecermos no forno ele fica fresco novamente. Mesmo
depois de ter sido violada sob a ameaça de uma faca, mesmo quando contamos a
nossa história a um ouvinte compreensivo, a vida continua. Tem de continuar. Eu
esforçava-me continuamente, diariamente, a toda a hora, a todo o momento para
conseguir separar-me daquela menina com o sexo do pai na boca, da mulher que
estivera nas ameias do castelo dos cruzados em Petra e que agora estava a
trabalhar para o seu doutoramento.
A Rebecca encontrou uma garrafa de gin, graças a Deus. Sentámo-nos a beber
pela noite dentro, enquanto eu lhe falava acerca das visitas nocturnas do meu pai,
das aranhas, do calabouço onde as pessoas entoavam cânticos e as crianças eram
abusadas, do homem do Rolls-Royce branco.
Lembrei-me do dia em que a minha mãe estava à porta de casa quando o carro
branco estacionou.
- O que raio se passa aqui? - bradou ela.
- Fomos apenas dar um passeio, Jenny. Vem ver o meu novo Roller - respondeu
o homem.
Ela arrastou-me para fora do carro e, em seguida, inclinou-se sobre a porta,
erguendo a voz:
- Se voltas a aproximar-te da minha filha, vais arrepender-te - ameaçou, batendo
com a porta e arrastando-me para dentro de casa. - Não voltes a aproximar-te
daquele homem. Não gosto dele.
Depois da cena da minha mãe naquele dia, o meu pai deixou de vir ao meu
quarto durante algum tempo, semanas, meses, não tenho a certeza. Mas depois
recomeçou tudo de novo. Ele era viciado. Não conseguia parar. Não parou até eu
finalmente sair de casa dele.
Por que razão permiti que o abuso continuasse? Mesmo quando já era
adolescente?
Não permiti.
Algo que me atormentara durante anos fazia agora sentido. Era como a resposta
a um terrível segredo. O que se passava é que não era eu na minha cama, era a
Shirley que estava ali deitada interrogando-se se aquele homem iria entrar no seu
quarto, puxar os cobertores para trás e introduzir o pénis na sua boca expectante.
Era a Shirley. Recordava-me de estar a observá-la, uma coisinha franzina, sem
seios e uma expressão sombria e ressentida. Ela estava zangada. Não queria
aquele homem no seu quarto a fazer as coisas que fazia, mas não sabia como
impedi-lo. Ele não lhe batia, não a ameaçava. Limitava-se a olhar para ela com olhos
negros hipnóticos e ela dei-xava-se ficar deitada com as pernas afastadas sem
pensar em nada.
E onde estava eu? Eu ficava de lado, ou pairava acima deles, logo abaixo do
tecto, ou viajava num tapete voador. Continha a respiração e via o meu pai
movimentar-se para cima e para baixo dentro do corpinho magro da Shirley.
Enquanto falava com a Rebecca, outra memória saiu a esvoaçar do passado
como uma águia. Recordei-me que durante a puberdade, através das neblinas
anoréxicas dos ciclos menstruais intermitentes, aquele homem, o meu pai, levantava
a camisa de dormir da Shirley e pedia-lhe, com modos trocistas, que escolhesse a
cor do preservativo.
- Vermelho ou amarelo?
Qual é que ela escolheu?
Não me lembro. Talvez tenha alternado. Talvez houvesse outras cores. Isso não
aconteceu só uma vez. Aconteceu muitas vezes. Eu não conseguia fazê-lo parar.
Aquele homem, o meu pai, tinha um controlo sobre mim. Eu estava drogada pelo
silêncio negro que havia naquela casa grande, o vil odor do aftershave, o tormento
dilacerante da inevitabilidade. O meu pai fodia com a Shirley usando preservativos
vermelhos ou amarelos e foram aqueles preservativos que puseram um fim àquilo.
Essa foi a minha última tomada de consciência do dia; mais uma e teria sido de
mais para abarcar.
Naquele dia em que a minha mãe encontrou preservativos usados no quarto do
meu pai, ele admitira, depois de uma inútil explosão de negação, que andava a
frequentar prostitutas. Isso era, sem dúvida, verdade, mas não estou a ver os
clientes a trazerem os preservativos usados para casa com eles; as prostitutas livrar-
se-iam dessas coisas. Não. O meu pai manteve aqueles preservativos usados como
um troféu. Andava a foder a filha de catorze anos e sentia-se orgulhoso disso.
Os olhos da Rebecca encheram-se de lágrimas.
“Pobrezinha”, repetia. “Pobrezinha.” Confessei-lhe que nunca tivera um
relacionamento em condições, que amara um rapaz chamado Patrick e despedaçara
o seu coração. Ela chorou. Dei por mim a envolvê-la com os meus braços e pensei
como era estranho ser-se humano. Senti-me purificada. A coisa negra nas minhas
entranhas estava a diminuir.
Foi difícil adormecer naquela noite. As vozes estavam emudecidas e o silêncio
era assustador. Abri The Magus, mas não me conseguia concentrar e deitei-me no
futon no quarto de hóspedes com a lua e as estrelas a atravessarem a janela sem
cortinas.
No dia seguinte, depois de comer muesli e beber cerca de doze chávenas de
chá, a Rebecca perguntou-me se eu podia fazer-lhe um favor. A irmã dela estava no
hospital a fazer um tratamento para o cancro e, todas as quintas-feiras após o
trabalho, a Rebecca ia a Coventry passar o fimde-semana prolongado para ajudar o
cunhado a cuidar dos seus dois filhos pequenos. Perguntou-me se olharia pela casa
por ela.
Deu-me umas chaves sobresselentes e quando as meti no porta-chaves do
macaco percebi que alguém, nalgum lugar, deve ter sabido que ele viria a ter
utilidade. Enquanto passeava pelo caminho a acompanhar a Rebecca até ao carro,
vi-me como a Cathy em O Monte dos Vendavais, caminhando pelas charnecas.
Tinha um refúgio por alguns dias, num cenário onde o meu espírito poderia ganhar
asas. Um lugar onde eu poderia ir para chorar. Um lugar onde poderia ser apenas
eu.
Fui à universidade explicar ao Gerald por que razão faltara ao encontro com a
Rebecca no dia anterior. Decidi contar-lhe a verdade. Disse-lhe que estava com
alguns problemas pessoais, e ele por algum motivo ficou furioso.
- Se queres ficar preocupada a olhar para uma parede o dia inteiro, a decisão é
tua - disse ele.
E eu pensei “É evidente que não vives no mundo real, Gerald, e, o que é ainda
mais triste, não te apercebes disso.” Tentei esboçar um sorriso.
- Quer tomar um chá? - Perguntei.
- Não, não quero.
Liguei o computador, escutei o zumbido característico e abri o ficheiro da minha
proposta. Precisava de fazer alguma revisão como preparação para o trabalho
académico que teria de apresentar na conferência anual da Sociedade de
Investigação Operacional, que teria lugar dali a duas semanas, no Centro
Internacional de Convenções de Birmingham, não muito longe da casa do meu pai.
Ao que parece, está tudo ligado e, ao mesmo tempo, desligado. Como as casas
geminadas ao longo das ruas de Huddersfield, que tocavam umas nas outras, porém
estavam separadas. Ocorreu-me que todos nós vivemos no nosso próprio mundo.
Que o Gerald trabalhava comigo, mas não me compreendia; que o Brian, na sua
secretária do outro lado da sala, nunca me perguntara nada acerca de mim, nem
mesmo o meu nome; que os clientes do meu pai não faziam ideia de que o homem
avuncular que redigia testamentos e dava conselhos sobre a venda de casas
abusara da sua filha durante toda a sua infância. O homem indiano de turbante cor-
de-rosa não tinha forma de saber que não fora eu a roubar o rádio da sua loja. Que
fora a Shirley ou talvez o Kato, incitado pela Shirley. Vemos uma mulher a bater no
filho ou um casal a discutir no supermercado e pensamos que sabemos alguma
coisa sobre a situação, mas não sabemos absolutamente nada.
Era difícil concentrar-me no trabalho. As horas decorriam como de costume. As
horas são como o mar, sempre a mudar, parecendo ir para algum lugar, mas não
indo para lugar nenhum. Entrei no autocarro de regresso à casa da Rebecca e
caminhei quilómetros pela charneca, para compensar o tempo perdido. É mesmo
uma piada. As crianças pareciam satisfeitas, mas o Professor apareceu para me
fazer uma visita.
Prepara-te para morrer, Alice. Estás cega se achas que aqui estás segura.
Oh, cala a boca.
Ele fez estalar a língua com uma impaciência teatral e calou-se.
Eu estava a pensar com clareza. Agora que trouxera o abuso à tona, sentia-me
mais capaz de enfrentar o facto de que precisava de ajuda. Quando a Rebecca
regressou de Coventry naquele domingo, disse-lhe que ia procurar aconselhamento,
e dei por mim a chorar novamente quando ela disse que iria apoiar-me em tudo o
que pudesse.
Não é fácil admitir que temos problemas de saúde mental, mas depois de
acordar cedo e de ir para a cidade no dia seguinte, dirigi-me ao Serviço de
Aconselhamento da Universidade. Disse à secretária que era imperioso que eu
falasse com alguém. Ela fez dois telefonemas e às quatro da tarde do dia seguinte
encontrei-me com uma conselheira da universidade, uma mulher séria, de meia-
idade, com óculos dependurados numa corrente de prata fina e curta, e um corte de
cabelo curto e severo.
De olhos fechados e punhos cerrados, consegui dizer-lhe que fora abusada em
criança e que agora, em resultado disso, estava a sofrer de depressão, ansiedade e
outros efeitos. Não tinha necessidade de explicitar quais eram esses outros efeitos.
Ela percebeu imediatamente que eu precisava de ajuda e fez uma marcação para a
quarta-feira seguinte para me encontrar com uma mulher chamada Roberta Stoppa,
que tinha um consultório a cerca de vinte e cinco quilómetros de distância, no centro
da cidade de Leeds.
CAPÍTULO 12

REVELAÇÕES

Brian estava furioso porque a riqueza, segundo ele, proporcionava injustamente


poder, prestígio e tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Ao mesmo tempo,
invejava o irmão em Londres que ganhava dinheiro a rodos. Refugiou-se desta
dicotomia por detrás dos logotipos nas suas T-shirts, dos folhetos do Partido
Revolucionário dos Trabalhadores e na sua afirmação de que pretendia “construir
um futuro melhor”.
O futuro é um mistério. Podemos sobreviver a um presente indescritível porque
desconhecemos o futuro. Pensei na Esther em Buna-Monowitz. A medida que ia
conhecendo melhor o Brian, apercebia-me de que o que ele queria reconstruir não
era o futuro mas sim o passado, a época em que escolheu a sinecura mal paga da
universidade e o irmão escolheu o mundo excitante das finanças.
Tendo estudado Psicologia, não me era difícil ver os defeitos nos outros, mas foi
através da generosidade da Rebecca que me tornei mais consciente dos meus
próprios defeitos. Os problemas de saúde mental são intrinsecamente egoístas, e a
luta para se ser normal tem de acompanhar a luta para prestar atenção às
necessidades e preocupações dos outros. Eu estava a tentar, mas estava a receber
a ajuda indesejada da Shirley.
Estava sempre a encontrar objectos estranhos na minha mochila, adquiridos
com a Rebecca em mente: uma lata de chá de menta, uma caixa de chocolates After
Eight (porquê toda esta hortelã?), uma girafa esculpida para combinar com a
colecção que ela tinha no escritório da casa. De onde é que vinha tudo isto? Eu
tinha as minhas suspeitas e não pude deixar de me sentir culpada quando dei os
presentes à Rebecca.
Era realmente um alívio ter uma amiga. Talvez seja a cura para a maioria dos
problemas: ter alguém para dividir uma garrafa de vinho e nos acompanhar pelas
charnecas. De duas passámos a ser três quando a Zoé apareceu. Observei-as
juntas, carinhosas, generosas, altruístas, nada como as imagens imaturas que eu
desenhara na minha cabeça no dia em que a Rebecca se debruçou sobre a
secretária e declarou, “A propósito, Alice, eu sou lésbica”. A Zoé era mais velha do
que a Rebecca e a sensação que eu tinha durante os nossos passeios repletos de
conversas e fofocas era a de que tinha duas mães, uma mão para segurar de cada
lado.
Convencera-me de que era mais fácil para mim relacionar-me com homens do
que com mulheres: o Patrick, o Samir, o avô. Mas quando olhava para trás, haviam
sido sempre as mulheres que tinham estado presentes nos meus momentos de
crise; e agora a Rebecca, que passava todos os seus momentos livres a cuidar da
irmã e dos sobrinhos em Coventry, e ainda arranjou tempo para me levar a Leeds na
semana seguinte, para o meu primeiro encontro com Roberta Stoppa.
Estava uma bela manhã, o sol dissipava quaisquer vestígios remanescentes do
DAS e imprimia um brilho nas colunas de mármore da câmara municipal de Leeds,
uma acrópole grega que podia ter sido transportada no tempo da antiga Atenas. Os
vitorianos, que a construíram, tinham ideias excêntricas sobre a arquitectura, mas de
alguma forma, tudo parecia funcionar. O departamento de aconselhamento situava-
se ao fundo da estrada, a partir do templo, num edifício de tijolos vermelhos com
uma multidão de pessoas na entrada.
A Rebecca deixou-me em frente do edifício, fez uma inversão de marcha cheia
de estilo e partiu de regresso a Huddersfield.
No terceiro andar, dei o meu nome a uma recepcionista e sentei-me na sala de
espera a folhear o Guardian, resistindo ao impulso de dar uma olhadela mais atenta
ao armário repleto de brinquedos e jogos. Tinha os dedos dormentes e a sensação
de que alguém estava a sussurrar-me ao ouvido com as mãos em concha.
Provavelmente era o Billy, ou talvez o Samuel, que avistara um ursinho de peluche
cor-de-rosa em mau estado.
O Guardian e o ursinho. Era um intercâmbio entre o lado esquerdo e o lado
direito do cérebro e agora a ligação entre eles tor-nara-se uma porta giratória.
Olhei para o relógio: nove horas. Olhei novamente. Nove e dez. O mundo estava
em ordem.
- Alice Jamieson.
“Sou eu”, pensei, e respirei fundo.
Entrei numa sala ampla e ensolarada onde nos apresentámos com o primeiro
nome. A Roberta era conselheira sénior de um projecto que oferecia
aconselhamento personalizado, assim como uma linha telefónica de ajuda para
adultos que tinham sido abusados em crianças. Tinha quarenta e poucos anos, agia
com uma calma quase lânguida e tinha cabelos louros finos como fios de ouro na luz
intensa.
Depois de apertarmos as mãos, sentámo-nos em cadeiras cinzentas pós-
modernas com pernas de aço e braços de madeira, como estranhos quando um
comboio pára inesperadamente e não temos a certeza se devemos ou não iniciar
uma conversa. A Roberta usava um fato preto e branco axadrezado com meias de
nylon pretas que faziam um ligeiro ruído quando ela cruzava e descruzava as
pernas.
Decidira durante a viagem para Leeds que não mencionaria as vozes e
concentrar-me-ia nos flashbacks dos abusos na infância que agora tornavam a
minha vida tão difícil. Ficámos algum tempo em silêncio.
- Muito bem, qual é exactamente o assunto que te traz cá? - perguntou,
quebrando o gelo.
- Não sei bem por onde começar - respondi. - Não é algo de que tenha falado
antes.
A sua fronte enrugou-se e inclinou-se para a frente. Inspirei profundamente.
- Sofri abusos em criança, abusos sexuais... - fiz uma pausa - ...foi o meu pai -
acrescentei.
- Isso aconteceu uma vez, Alice?
- Não - respondi. - Aconteceu muitas vezes. Centenas de vezes.
- Queres falar acerca disso?
- Na verdade, não - respondi. - Mas sim.
Ela exibiu um ligeiro sorriso e virou a cabeça para o lado.
Falei durante cinquenta minutos, o meu tempo de antena. Disse-lhe que o meu
pai começara a vir ao meu quarto quando eu era bebé e continuara a vir à medida
que crescia. Disse-lhe que, ainda em criança, fora penetrada por via vaginal e anal,
e agora percebia que isso provavelmente causara as minhas fissuras anais e as
crises de cistite. Falei-lhe da obsessão do meu pai com o sexo oral e como ele
gostava de ejacular na minha boca e na minha cara. Disse-lhe que me levara em
inúmeras ocasiões a uma ampla cave num edifício que eu pensara que era um
castelo, mas que, provavelmente, era um armazém ou uma fábrica num parque
industrial. Disse-lhe que havia homens e mulheres lá, um grupo de pedófilos que
abusavam de crianças pequenas, incluindo eu. Disse-lhe que, em criança, pensara
que o abuso era normal, porque nunca conhecera nada diferente. Permitira que o
abuso persistisse porque uma vez estabelecido o padrão parecia inimaginável
quebrá-lo.
Eu não estava a reviver estas experiências, tal como acontecia nos pesadelos e
nos flashbacks, mas a descrevê-los como uma terceira pessoa. As regras da
psicologia são regidas pelas leis de causa e efeito, tal como no budismo, como a
Elaine me dissera uma vez na universidade. Ficara-me na mente. Em termos
psicológicos, depois de abusada em criança e adolescente, o efeito que tinha em
mim como adulta manifestava-se em surtos de depressão, anorexia, dependência de
drogas e álcool, criando uma combinação de baixa auto-estima, confusão mental e
insónias.
A Roberta não estava a olhar para mim. Estava a olhar para os meus ténis.
Sentia o sol quente através das janelas altas, e uma gota de suor escorreu-me pelas
costas. Tinha a garganta seca e os cinquenta minutos chegaram ao fim. A Roberta
fez uma expressão compreensiva e depois olhou para o relógio.
- Penso que deveríamos ter outra sessão, no início da próxima semana, Alice -
disse. - Pode ser?
- Claro.
Já estava. Nem esforço, nem proveito. Na verdade, nada.
Perguntei a um mensageiro de bicicleta no átrio o caminho para a estação e
cheguei ao escritório em Huddersfield pouco depois das onze. O Gerald estava a dar
uma aula, e o Brian rodopiou na sua cadeira, disse olá, rodopiou de novo e virou-se
para o ecrã do seu computador. O Brian sabia onde eu estivera, e porquê, mas não
se sentia inclinado a colocar-me questões. Recordo-me de que aparara a barba e
usava uma T-shirt com um trabalhador musculado a cortar a cabeça de uma
serpente com a palavra fascismo ao longo do seu corpo encolhido e CNT Comité
Nacional AIT na parte superior.
- Queres tomar um chá? - perguntei.
- Boa ideia!
Lera no jornal que estávamos a entrar numa mini-recessão.
- A propósito, como é que está o teu irmão na City? - perguntei.
- Nem me digas nada.
- Não está doente, não?
- Sim, aqui - respondeu ele, batendo na têmpora.
Pus a chaleira ao lume, deparei-me com um tubo de Smarties que não me
recordava de ter comprado e revi a minha proposta apagando todos os adjectivos.
Bebi o chá na caneca lascada do Newcas-tle United e mal podia acreditar nos meus
ouvidos quando escutei o sino da velha igreja bater as duas horas.
- Adeus, Brian.
- Adios, hã...
- Alice.
- Isso.
Corri até à paragem de autocarro e vi uma jovem mãe com um menino de cerca
de cinco anos que me fez lembrar o Billy. Estava ansioso e curioso, cheio de
arrogância masculina e perguntas. Porque é que o autocarro é verde? Os autocarros
em Londres são todos vermelhos? Por que razão o autocarro está sempre atrasado?
- Oh, por amor de Deus, está calado, já estou a ficar com dores de cabeça -
disse a mãe e deu uma passa no cigarro.
Cravei as unhas nas palmas das mãos para me controlar e não ir ter com ela e
dizer-lhe das boas.
Este é o discurso que ensaiei na minha cabeça.
“Sabe que a vida do seu filho será determinada por tudo o que lhe disser e fizer?
A senhora tem o poder de moldar o futuro dele.
A partir do momento em que o seu bebé sai de dentro de si a chorar, e até ir
para o infantário, a senhora tem de estar junto dele, a vigiá-lo, a brincar e a
conversar com ele. Deite o bebé na sua cama, ou ao lado da cama. Esteja presente
quando os monstros reais ou imaginários despertarem o seu bebé durante a noite.”
Faço uma pausa. Ela está a fitar-me atentamente, devorando cada uma das
minhas palavras. Nunca ninguém ficou tão satisfeito por receber conselhos de um
perfeito desconhecido. Se ao menos conseguisse ser assim tão erudita quando tinha
de falar numa conferência...
Sorrio e prossigo baixinho:
“Se a sua filha ou filho de três, quatro ou cinco anos for calmo e silencioso,
sente-o no seu colo e pergunte-lhe porquê. Se ela ou ele não lhe disser, pergunte se
é um segredo. Se for um segredo, já sabe qual é. Não pressione a criança. Já há
alguém a pressionar a sua mente e corpo por formar, ou ambos, ou pior. Se ela
quiser falar, então escute-a. E acredite.
“Cerca de dez por cento das nossas crianças são abusadas, regra geral em
casa, por parentes do sexo masculino, padrastos, meios-irmãos, namorados novos.
Isso significa que se entrar em qualquer sala de aula do país, duas, três ou quatro
dessas crianças estão a sofrer. Ouçam as crianças.”
O autocarro chegou.
- Vamos lá para cima. Vamos lá para cima.
A mãe deitou fora o cigarro e seguiu o menino enquanto ele subia as escadas.
Talvez ela fosse uma boa mãe e estivesse a ter um dia complicado. Como é que
eu podia saber?
O autocarro seguiu pelas ruas sinuosas até sair de Huddersfield e entrar em
campo aberto. Saí na última paragem e caminhei a curta distância até à casa da
Rebecca. Por esta altura, já mudara alguma da minha tralha juntamente com os
ursinhos itinerantes para o quarto dos hóspedes; eu era como um esquilo que
deixava coisas por todo o lado. Calcei as minhas botas de caminhada, vesti uns
jeans velhos e meti o blusão na mochila.
Era uma daquelas tardes nas charnecas do Yorkshire sobre as quais os poetas
escrevem, amena mas fresca, o vento transportando o zumbido dos insectos e o
odor da natureza a despertar para a vida.
A partir da casa, havia uma caminhada de cerca de dez quilómetros que me
levava por uma colina acima entre muros de pedra seca bastante degradados. Eu
gosto das pedras. Podemos falar com elas. Podemos confiar nelas. Elas não
apodrecem. Mantêm a sua forma. Tudo o que dura através do tempo são as
fortalezas de pedra e as catedrais, as pirâmides de Gizé, a Grande Muralha da
China que, segundo dizem, é a única estrutura construída pelo homem que pode ser
vista do espaço.
Lembrei-me do meu encontro com a Roberta Stoppa. O resultado não fora nada
de extraordinário, mas o facto de colocar os acontecimentos em palavras e vocalizá-
las teve um efeito calmante; era como tomar um banho de água quente. Inspirei
profundamente aquele ar fresco do Yorkshire.
Sabia bem pôr um pé à frente do outro, o som de esmagamento sob as solas
das minhas botas como ecos de pedra, o sol a perder o calor. Apreciava a sensação
nas pernas, caminhar em vez de correr, usando diferentes músculos, a paisagem
abrindo-se diante de mim como um quadro. O vento movia-se em espiral à minha
volta e, assim que cheguei ao topo da colina, senti-me como se todo o meu corpo
fosse desmaterializar-se e transformar-se numa corrente de ar. Parara de pensar,
parara de me observar a mim mesma, e foi desse vácuo que o Billy deve ter saído.
Sabia que era o Billy porque, subitamente, estava deitada com o rosto colado ao
chão, empunhando a arma de plástico e com uma dor nos joelhos. Rolei para o lado.
Sentia-me tonta e pus-me a observar as nuvens baixas no céu. Não sabia onde
estava nem como ali chegara. Fechei os olhos e tentei retroceder no tempo, da
mesma forma que uma pessoa tacteia as paredes tentando orientar-se numa casa
estranha durante a noite.
Recordava-me de estar no gabinete a rever a minha proposta. Recordava-me de
ter pensado “Assim está melhor. Isto vai impressionar o Gerald”. Conseguia
recordar-me das palavras que escrevera. Conseguia vê-las em destaque e depois a
desaparecerem quando pressionei a tecla delete. Conseguia recordar-me da
ilustração na T-shirt de Brian sobre a Guerra Civil Espanhola. Mas não me recordava
de me ter desviado do meu trilho habitual ou de tirar a arma do Billy da mochila, algo
que ele fazia para se sentir seguro. Ele deve ter-se enganado no caminho, entrou
em pânico, correu e caiu ao chão. Olhei à volta. Não reconheci nada.
Enquanto o Billy ocupara o meu tempo, onde é que eu estivera? Devia ter
estado fora. Mas fora onde, exactamente? Quando me pus de pé, tive a sensação
de voltar a crescer dentro do meu corpo, de preencher o espaço do mesmo modo
que o ar quente enche um balão. O Billy era pequeno para os seus cinco anos e,
quando ele assumia o controlo, eu tinha a sensação de encolher e habitar
fisicamente o corpo de um rapazinho.
O Kato era maior do que eu. Tal como o Incrível Hulk, quando o Kato se
manifestava eu expandia e as minhas roupas ficavam apertadas. Sentia-me
retesada, tensa, violenta. Tinha anseios sexuais que nunca poderiam ser satisfeitos
porque o Kato não tinha pénis e eu, consequentemente, tinha ao mesmo tempo
inveja do pénis e medo da penetração. Era muito frustrante. O Kato dava largas à
sua frustração bebendo, incentivado pelos modos arrogantes da Shirley, retalhando
os meus braços com lâminas e vidros de garrafas quebradas, castigando todos os
“outros” e provocando ainda mais o Professor e o seu grupinho.
O meu corpo, assim como a minha mente, tinham sido “invadidos” por estas
crianças. Eu estava “possuída”, não por algo exterior a mim, como demónios, o
Diabo, espíritos bons ou maus, mas por personalidades alternativas que emergiam
sem que eu as instigasse ou moldasse e que iam ficando cada vez mais
autoconscientes e confiantes.
As mudanças, apercebi-me, aconteciam desde sempre. Aos dois anos de idade,
quando meu pai metia a pila na minha boca, eu chupava-a como um bebé chupa na
sua chupeta. Mas também me vira a mim mesma do lado de fora, dividindo-me
primeiro em duas, e, eventualmente, em mais partes. Conseguia recordar-me de
estar a flutuar em cima de um tapete voador, a observar uma menina de quatro anos
sentada num lençol de plástico azul no barracão do jardim, com aranhas a
rastejarem pelo seu corpinho roliço e nu. Recordo-me de pensar: ainda bem que
estou aqui em cima e não sou eu que estou lá em baixo com aquelas aranhas
horríveis. Aos catorze anos, ficava num canto do quarto, agarrada a um ursinho,
observando uma menina que eu agora sabia que era a Shirley, deitada com os olhos
fechados e os dentes cerrados, enquanto o homem se movia para cima e para baixo
entre as suas pernas. A Shirley sabia que isso era errado. Era por isso que bebia.
Era por isso que passava fome de propósito. Era por isso que se odiava a si mesma.
Eu sempre soube que havia algo de errado comigo. Sempre. Não me
apercebera de que albergava um bando de crianças tagarelas, todos esses “eus”
substitutos, mas não foi uma surpresa completa para mim quando começaram a
manifestar-se de forma mais notória e óbvia, não como observadores, mas sim
como participantes. Eu estava cercada por personalidades alternativas como se
cada uma delas reflectisse aspectos de mim mesma, mas ocultasse o meu
verdadeiro “eu”, o meu “eu” integral, de mim mesma e do mundo.
Doíam-me os joelhos. Na dor estamos no momento presente. Estava muito
consciente de mim mesma. O vento estava a soprar, mas, tirando isso, havia uma
maravilhosa quietude no mundo e na minha cabeça. Estava a ter o mesmo tipo de
sensação que tivera no Médio Oriente, mente alerta, ombros direitos, olhos no
horizonte.
Guardei a arma na mochila. Tentei recordar-me da posição do sol quando
iniciara a caminhada, mas este escondera-se atrás das nuvens e, de qualquer
forma, eu não tinha sentido de orientação. O Billy tinha claramente saído do trilho e
subido a colina até ao vale seguinte. Tanto quanto eu podia ver, não havia nada, à
excepção de afloramentos irregulares de calcário inundado por um mar de urze.
Parecia um país diferente, a paisagem sem árvores e primitiva, com as colinas
adquirindo uma tonalidade azul à distância, sem sinais de vida, casas, campanários
de igrejas, ou até mesmo um trilho.
Regressei pelo caminho que pensava ser o que Billy devia ter tomado, seguindo
os seus passos até ao cume atrás de mim. Estava exposta ao vento. Tinha aquela
sensação, como quando pensamos que vamos espirrar e depois não espirramos,
mas era uma sensação de que ia ter um ataque de pânico e deixei-a emergir e
volatilizar-se no vento. Não havia necessidade de ter medo; nada a temer.
Estávamos na Primavera. Não estava frio. Não havia animais selvagens, à excepção
de algumas galinhas-bravas e cobras do campo. Pensei em retirar outra vez a arma
da mochila, mas depois ouvi o som de uma gargalhada. Era eu.
À distância, conseguia ver o que parecia ser o topo de um camião em
movimento através da paisagem. Depois, outro a circular em sentido contrário.
Apercebi-me de que havia ali uma estrada e comecei a descer em linha recta do
cume onde me encontrava até ao vale e voltar a subir atravessando as colinas azuis.
As sombras alongaram-se. A subida até à colina mais distante era muito
íngreme e, por vezes, tive de recorrer à ajuda das mãos e dos joelhos feridos para
escalar até ao pico. Esfolei os dedos e limpei os cortes com uma boa lambidela.
Descansei no topo e desci pelo lado oposto por uma série de saliências talhadas,
imaginei, durante a Idade do Gelo, uma gigantesca escultura jurássica contra o azul
carregado do céu.
Estava a sentir-me estranhamente confiante e fiquei quase desiludida quando
me deparei com um caminho estreito, o qual segui. Cheguei a uma encruzilhada e
percebi que estava de novo no trilho da caminhada de dez quilómetros. Tentara
caminhar em linha recta, mas na realidade andara em círculos. Pensei que era
típico: para onde quer que a pessoa se dirija e por maior que seja a distância
percorrida, tende a gravitar de regresso ao ponto de partida, tal como um dia eu
voltaria a gravitar em torno da igreja de St. Mildred onde fora baptizada.
Com os muros de pedra seca para me guiarem, ainda demorei cerca de uma
hora a chegar à casa. Caminhara durante mais de seis horas e a Rebecca ficou
chocada quando apareci à porta.
Nessa noite, durante o jantar de sopa quente e pão cozido no forno, falei à
Rebecca das crianças.
Agora que começara a falar sobre o abuso, era mais fácil respirar. Os meus
tiques e contracções musculares, uma pista visual para os meus pensamentos, já
não eram tão marcados. Sempre me sentira envergonhada, como se tivesse sido eu
a causadora do abuso. As mulheres maltratadas sentem o mesmo. Esse sentimento
não desapareceu, mas diminuiu, e eu acordei uma manhã com uma súbita
compunção de telefonar à Drª Purvis, o que fiz do meu gabinete.
Demorei algum tempo a conseguir o seu número. Quando finalmente o encontrei
e fiz o telefonema, ela não estava. Deixei o meu contacto e sentei-me à secretária
tentando trabalhar e pensando nas várias sessões na clínica Naydon, no guarda-
roupa exuberante de Jane Purvis, ouvindo Quadrophenia nos meus auscultadores...
O que terá acontecido a essa cassete?
O Brian acabara de entrar no gabinete e o Gerald atendeu o telefone quando
este tocou.
- É para ti - disse ele, e a voz da Drª Purvis apareceu na linha.
- Estou? - disse.
- És tu, Alice?
- Sim - respondi após uma ligeira hesitação.
- Que surpresa agradável. Como estás? O que estás a fazer?
Ela tinha a mesma voz jovial de que me recordava e veio-me à mente a
lembrança das suas feições, do seu sorriso e dos seus lábios macios.
- Estou a fazer um doutoramento em Huddersfield.
- Estás? Isso é muito bom. Eu sempre soube que irias sair-te bem.
Houve uma pausa.
- Há uma coisa que lhe queria contar - disse-lhe. - Há sete anos perguntou-me
se eu fora abusada em criança.
- Sim, eu recordo-me.
- Queria que soubesse que estava no caminho certo. Eu estava a ser abusada.
Repetidamente. Mesmo na altura em que me perguntou.
- Oh, Alice...
- Está tudo bem, está tudo a sair agora. Estou a lidar com isso.
- Fico feliz por sabê-lo.
Pediu-me que a procurasse da próxima vez que regressasse a casa.
Despedimo-nos e eu pousei o auscultador no descanso.
Olhei para o Gerald. Ele estivera a ouvir, era impossível evitá-lo num gabinete
tão pequeno; cerrou os lábios e encolheu os ombros num gesto de simpatia.
- Alguém quer chá? - perguntou o Brian.
Acenámos com a cabeça. Chá. Era a resposta para todos os problemas da vida.
A partir do momento em que arranjei coragem para falar à Rebecca sobre as
crianças que habitavam a minha cabeça, não foi muito difícil falar do assunto à
Roberta nos meses que se seguiram.
Num dia de Maio, durante uma viagem de comboio de Huddersfield, fiz uma lista
dos suspeitos do costume: a Bebé Alice; a Alice 2, que tinha dois anos e gostava de
chupachupas pegajosos; o Billy; o Samuel; a Shirley; o Kato e a enigmática Eliza.
Havia um rapaz de dez anos chamado Jimbo a quem me viria a afeiçoar em
particular, mas que, tal como a Eliza, ainda se estava a formar. Havia outros, sem
nome ou características específicas de comportamento. Não queria confundir-me
ainda mais com essa multidão de “outros” e prestava atenção apenas às
personagens principais, com os seus nomes, idades e personalidades, que a
Roberta anotou num bloco de notas.
Depois pareceu um pouco embaraçada.
- Sabes, deparei-me algumas vezes com o Billy, e com o Samuel também, uma
vez - confessou ela.
- Está a brincar. - Senti-me traída. - Porque não me disse?
- Queria que viesse de ti, Alice, quando estivesses pronta.
Por alguma razão, puxei as mangas e mostrei-lhe os braços.
- Isto é obra do Kato - disse-lhe. - Ou da Shirley.
Parecia um pouco pálida enquanto estudava as cicatrizes. Tive a sensação de
que ela não sabia o que dizer. O problema com os conselheiros é que eles são
treinados para ouvir, não para dar conselhos ou fazer diagnósticos. Ficámos ali
sentadas, eu com os braços estendidos sobre o espaço vazio entre nós como uma
prova em tribunal, e depois puxei de novo as mangas para baixo.
- Lamento muito, Alice - disse por fim, e eu encolhi os ombros.
- Não é culpa sua, pois não?
Desta vez foi ela quem encolheu os ombros e ficámos de novo em silêncio.
Claro que deveria ter adivinhado que as crianças iriam manifestar-se na
atmosfera do escritório da Roberta. É o que elas fazem quando a Alice está sob
stress. Vêem uma falha no continuum es-paço-tempo e aparecem como raios de luz
através de um prisma que muda de forma e direcção.
Nas últimas semanas, adquiríramos o hábito de iniciar as sessões com o jogo
Ker-Plunk, de que o Billy gostava. Houve momentos em que dei por mim a entrar na
sala com um ursinho que o Samuel tirara do armário dos brinquedos. A Roberta
disse-me que, em duas ocasiões, eu disparara contra ela com a arma de plástico e
uma vez, enquanto Samuel, eu saíra da cadeira e enroscara-me como uma bola
num canto a chorar.
- Isso é constrangedor - admiti.
- Não tem de ser.
- Não tem de ser, mas é - respondi.
O problema é que eu nunca sabia quando é que os “outros” iam manifestar-se.
Só descobria que um deles se manifestara quando perdia tempo e me via no meio
de alguma ocupação estranha, como pintar com os dedos como uma criança de
cinco anos, fazer cortes nos braços, escapulir-me das lojas com objectos
indesejados e não pagos.
Na sua maneira reservada a Roberta descreveu as crianças como um elaborado
mecanismo de defesa. Em criança, bloqueara as minhas memórias, para não ter de
lidar com nada doloroso ou incerto. Mesmo enquanto adolescente, permitira que os
acontecimentos bizarros e aterradores parecessem normais, porque a alternativa
teria perturbado a ficção da minha adorável família nuclear.
Decidi que iria pesquisar sobre mecanismos de defesa, um assunto que
abordáramos nas aulas de Psicologia. Saí da sessão satisfeita por a Roberta não se
ter assustado com as crianças que havia dentro da minha cabeça, mas irritada
comigo mesma por ainda não ter tido a coragem de lhe falar das vozes fora da
minha cabeça. Elas estavam comigo, mesmo ali naquela sala. Acompanhavam-me
enquanto descia as escadas para a rua e convenciam-me a erguer o olhar
cabisbaixo e a fitar uma vez mais a monstruosidade de mármore da câmara
municipal de Leeds.
Tens de morrer... Vá lá. Vai até ao último piso daquele edifício e salta.
- Oh, desapareçam! - disse.
Mata-te, Alice. É a única forma de alguma vez encontrares paz. Estamos de olho
em ti. Estamos sempre de olho em ti.
No comboio, continuei a ler The Magus, mas as palavras levantaram voo como
moscas e pousaram na página formando novas palavras com uma mensagem para
mim.
Era o Professor.
Não penses que ao falares com a mulher vais ver-te livre de mim. Ela não gosta
de ti. Eu sou o único amigo que tu tens. Eu sei o que é melhor para ti. Alice, sua
tontinha. Nunca te verás livre de mim.
Fechei o livro e olhei pela janela. De cada vez que as coisas pareciam estar a
melhorar, as vozes regressavam para me atormentar. Não era justo.
CAPÍTULO 13

TOQUE HUMANO

Eu adorava o computador portátil Toshiba que comprara, com o ecrã azul LCD e
o rato pequenino chamado Rato.
- Olá, Rato. Como estás?
- Estou muito bem, obrigado.
Era um rato educado, com uma cauda branca e a ponta cor de malva. Era
realmente espectacular a forma como, com apenas um clique, podia localizar menus
e manipular barras de deslocamento. De cada vez que tinha o rato na palma da
minha mão pensava na avó, que me enviara um cheque pelo meu aniversário.
Investira o dinheiro no portátil antes que a Shirley e o Kato lhe deitassem as mãos.
Escrevi uma longa carta à avó dizendo o quanto sentia a sua falta e que estava a
estudar para ser médica. Era uma mentira inocente, mas iria aumentar o seu
estatuto na casa de repouso.
Tinha vergonha de admitir que não via a avó há muito tempo. Ela sofrera uma
queda que a deixara com uma fractura na anca e, por razões que nunca foram
completamente satisfatórias para mim, a minha mãe mudara-a para um lar de idosos
em Cliftonville. É imperdoável, eu sei, mas era mais fácil fazer uma viagem de seis
horas de autocarro pelo Sinai do que viajar de comboio para o Leste do Kent. Era
algo que eu planeava fazer, mas como me parecia complicado, continuava a adiar.
O Clive trabalhava agora num gabinete de advogados em Londres, onde
diversos sócios tinham andado na sua antiga escola. O Stephen era o padrasto
perfeito; sentia-me sempre mais contente quando era ele e não a minha mãe a
atender o telefone. Ela andava sempre nas lojas a comprar sapatos novos ou de
saída para ir ao cabeleireiro. O meu pai estava na minha mente como uma nódoa
numa blusa branca de algodão. Um dia, saí como um relâmpago do quiosque dos
jornais, aos gritos, quando dei por mim ao lado de um homem que usava a mesma
brilhantina que o meu pai, uma moda que podia estar a cair em desuso noutros
lados, mas não entre os homens obstinados do Yorkshire.
O Toshiba estava sobre uma mesa, no canto do meu quarto na casa da Kathy.
Levava o trabalho em disquetes do escritório para casa, e tinha a minha proposta
terminada e pronta para apresentar ao conselho científico da universidade.
É evidente que os ursinhos, o cão Snoopy e o dragão vermelho não gostavam
do Toshiba. Tinham ciúmes de tudo o que me afastasse deles, o que era realmente
um comportamento infantil, tendo em conta que o portátil era um objecto inanimado.
O Toshiba fora um amigo. Depois houve um dia em que ele se tornou
desagradável.
Era quarta-feira.
Há algo estranho nas quartas-feiras. A criança das quartas-feiras está muito
aflita. O dia de quarta-feira sente-se triste e angustiado acerca de quem é e de qual
o seu lugar entre os outros dias da semana. A palavra é estranha. Devia chamar-se
estranha-feira. Coisas estranhas acontecem à quarta-feira.
Enquanto regressava do meu encontro com a Roberta, em Leeds, havia uma
ladainha que não me saía da cabeça.
Estão a ver, ela vai a descer as escadas. Vai virar à esquerda lá fora e vai olhar
para a câmara municipal enquanto caminha. Ela não tem a certeza se gosta do
edifício ou se lhe parece que é uma tolice ter um edifício grego no meio da Inglaterra
industrial. Vai chegar à estação, verificar se tem o bilhete de regresso, parar a três
quartos da extensão da plataforma dois e vai olhar para o céu e dizer: “Oh, pelo
amor de Deus, calem-se.”
- Oh, pelo amor de Deus, calem-se.
És uma inútil. Não és nada. Porque não o fazes hoje? Quando o comboio
chegar, salta. Tu sabes que é isso que queres. Vai ser bom para ti, Alice. Vai ser
bom para o mundo. Vai até à ponta da plataforma. Olha para os carris prateados e
brilhantes. Consegues ver o teu reflexo? Diz lá, não seria agradável ver-te
esmagada como um tomate nos carris?
E depois o refrão: Esmagada como um tomate nos carris. Esmagada como um
tomate nos carris.
Os disparates do costume. Mais do mesmo. Tentei ignorar as vozes, tentei ler o
jornal e tentei recordar-me se já tinha visto a Roberta Stoppa assim tão... feliz. Ela
estava a usar um fato particularmente feminino num tom rosa-pálido e sapatos azuis.
Alguma coisa estava a acontecer. Vencera-a três jogos seguidos no Ker-Plunk.
Era quase como se ela estivesse a deixar-me ganhar.
- Eu realmente não consigo concentrar-me - explicou.
Olhei para o báton cor-de-rosa e pensei: “Estiveste acordada a foder a noite
toda.”
Depois corei.
Eu não pensava naquelas coisas. Nunca. Talvez a Shirley pensasse.
Talvez estivesse a projectar os meus desejos. Talvez desejasse ter um
namorado, um pretendente, sexo. Por vezes, sentia um formigueiro. O Kato era
trapalhão, um adolescente cheio de borbulhas, luxúria e testosterona. Estaria eu a
projectar os desejos do Kato na Roberta? Seriam os desejos do Kato os meus?
Projectar é um mecanismo de defesa. Pesquisei sobre o assunto. Os ladrões
imaginam que toda a gente está a tentar roubá-los. Quando uma pessoa não se
acha grande coisa imagina que os outros não gostam dela. Os pedófilos acreditam
que as crianças estão ansiosas por sexo.
- Quem é a menina do papá?
- Sou eu.
Os mecanismos de defesa protegem-nos de nós mesmos, da ansiedade, dos
traumas da inaptidão social. Tornam a realidade suportável e fornecem um porto
seguro em situações difíceis e em relação a pessoas difíceis. Todas as pessoas
usam mecanismos de defesa. Eu faço-o, sem dúvida.
Justifico o roubo das bebidas da Kathy e do Jim acreditando que eles não
precisam delas e que não vão notar. Identifico-me com os intelectuais de
Huddersfield para mostrar que sou digna de um doutoramento, assim como o meu
pai se identifica com os homens bem-sucedidos do seu clube de golfe elitista.
Identificar-se com os outros é o último refúgio dos tiranos, cobardes e todos os que
possuem uma baixa auto-estima. Regressão é o que a minha mãe faz quando age
como uma menina para obter o que quer do Stephen. Repressão é enterrar
pensamentos, sentimentos e memórias dolorosos no subconsciente, onde
desenvolvem cordas vocais e tagarelam sem parar.
Parece confuso? Para mim foi. A minha cabeça era uma barragem incessante
de pensamentos diferentes, a maioria deles pertencentes aos outros, e uma
barragem contínua de vozes estranhas que estavam comigo desde que eu andava a
fazer os exames do décimo primeiro ano em Dane Hill. A minha cabeça era uma
estação de rádio descontrolada, com cassetes infinitas vomitando disparates
intermináveis.
Quarta-feira: onze da manhã. Sol e nuvens, com quarenta por cento de
hipóteses de precipitação.
Sair do comboio, pensar em ir para o escritório, não apanhar um autocarro para
subir a colina. Elas ainda estão naquilo, desbobinando tudo como um velho
gramofone, a manivela a chiar, a agulha a riscar o som frágil do veneno.
Tu, tu, vamos apanhar-te. Tu, tu, é hora de morreres. Tu, tu, não há nada que
possas fazer.
- Oh, desapareçam.
Assim que cheguei a casa liguei o portátil. O ecrã iluminou-se, mas em vez dos
peixes tropicais que normalmente decoram o ambiente de trabalho, eu estava a
olhar para o rosto de um homem austero de cabelo grisalho, ondulado e quebradiço,
com um olhar feroz e maníaco e uma expressão de zelo sagrado.
Era o Professor.
Pensas que o Gerald e o Colin vão gostar do teu trabalho. Não me faças rir. Tu
és uma inútil. Não consegues fazer nada.
Eu limitei-me a olhar para ele, estupefacta.
Sim, Alice. Tu. Tu és uma inútil. Sempre foste uma inútil. Não és nada. Vai
roubar as bebidas da Kathy. Vai lá. Vai buscar uma garrafa de gin. Corta-te. Sabes
que queres fazê-lo. Há uma faca enorme de trinchar na cozinha. Faz-nos um favor a
todos. Corta os pulsos. Corta a garganta. MATA-TE.
Dei um salto da cadeira a tremer e escondi-me debaixo do edredão no canto do
quarto.
Ainda conseguia sentir os olhos do Professor, como raios hipnóticos ardentes e
conseguia ouvir a sua voz monótona à distância.
MATA-TE. MATA-TE. MATA-TE.
Levei as mãos à cabeça e balancei-me para trás e para a frente. As minhas
têmporas estavam a explodir.
- Deixa-me em paz. Deixa-me em paz. Deixa-me em paz.
Devia ter desligado a ficha da corrente, mas não conseguia pensar
racionalmente. Em vez disso, fui à cozinha, abri a gaveta dos talheres, olhei para a
faca de trinchar, vi os meus olhos a desviarem o olhar da lâmina e fechei novamente
a gaveta com força.
Encontrei um rolo de papel de alumínio, subi as escadas a correr e rasguei
algumas tiras. Espalhei-as sobre o edredão e tapei-me com ele, mas ainda
conseguia sentir os raios de morte que irradiavam dos olhos do Professor.
Vamos apanhar-te, Alice.
Eu não sou a Alice.
Vamos apanhar-te.
Quero a minha arma.
Quando abri os olhos, anoitecera e estava alagada em suor. Estava num canto
do meu quarto sob o edredão e havia papel de alumínio enrugado por todo o lado. O
que estava eu a fazer no meu quarto?
Estava perturbada, com medo, paranóica.
Acendi a luz e retirei da estante o Oxford Dictionary of Current English. Derivada
do grego antigo, a palavra paranóia descreve “uma mente distraída”. A distracção,
acrescenta, é causada por “perturbação mental com delírios de grandeza,
perseguição, etc.; tendência anormal para suspeitar e desconfiar dos outros”.
Lérias.
A pessoa que está a sofrer de paranóia sabe que não está a delirar. Há pessoas
a persegui-la. O Professor estava vivo. Era real. Tinha um rosto, uma voz, e vinha
acompanhado de um coro que fazia uma algazarra e gritava que eu era uma inútil.
Há anos que andavam a repetir as mesmas palavras maldosas, que eu devia fazer
um favor ao mundo e matar-me. As crianças na minha cabeça tinham-nos mantido
em silêncio durante algum tempo, mas agora estavam de volta.
Como um exército derrotado, tinham reunido forças e, revigoradas, entraram em
acção. O Professor e os seus soldados estavam a trabalhar numa conspiração
intrincada. Eu era o alvo. As vozes estavam no meu computador portátil, no telefone
e nos jornais, projectavam-se para fora da televisão e gritavam das páginas do
romance que eu estava a tentar ler.
Conseguia ouvir as vozes a conspirar contra mim.
Vamos apanhà-la. Vamos conseguir apanhá-la. Vamos enganá-la. Ela nem vai
saber o que a atingiu. Ela está sozinha. Ninguém gosta dela. Ninguém vai sentir a
falta dela. Vai ser um alívio. Apanhem-na. Apanhem-na.
Sentia um formigueiro no corpo todo, tinha o cérebro a arder. As vozes gritavam
através das chamas. O meu corpo estava húmido de suor e, quando despi a roupa,
consegui distinguir marcas de queimadura onde os raios de luz me acertaram.
Fiquei trancada no quarto durante dois dias, a fitar o ecrã desligado do
computador, para ver se ele voltava à vida. Não bebi nada. Não comi. Não fui à casa
de banho. Fiquei no canto a escutar as vozes, o enrugar do papel de alumínio, o sol
lá fora a subir e a descer com o passar do tempo perdido.
No terceiro dia, esperei até ter a certeza de que a Kathy e o Jim tinham saído
para o emprego. Puxei o capuz do meu blusão sobre a cabeça e apanhei o
autocarro para a casa da Rebecca, para lhe contar o que acontecera. Ela não me
convenceu a dizer à Roberta. As coisas não funcionavam assim. Eu decidira dizer à
Roberta, mas senti a necessidade de primeiro partilhar a decisão com a Rebecca.
Fomos dar um longo passeio. O Verão estava a chegar. Estava em Huddersfield
há seis meses e, contra todas as probabilidades, o Colin Ince, o meu supervisor,
estava satisfeito com o meu progresso. Eu estava a atravessar o meu primeiro
grande esgotamento nervoso e não podia deixar de imaginar quantos mais
maluquinhos haveria a participar na criação de novas estratégias para melhorar os
serviços de saúde.
Na minha consulta seguinte com a Roberta, falei-lhe das vozes, mas o ataque
passara e eu dei a entender que eram uma espécie de tagarelas na parte de trás do
meu cérebro, conversando uns com os outros sobre mim. Ela agitou os dedos, um
gesto raro (estaria a usar um anel de noivado?), e eu admiti que as vozes estavam
comigo quase constantemente, narrando e comentando cada movimento meu.
Disse-lhe que, por vezes, me voltava a pensar que estava alguém atrás de mim,
mas nunca via ninguém. Era algo que acontecera quando eu era adolescente e era
desmoralizador estar a acontecer novamente.
A Roberta ficou em silêncio, o seu modus operandi habitual. Eu estava prestes a
acrescentar: “Pensa que sou louca, não é verdade?”
Mas ela endireitou-se, descruzou as pernas com as suas meias de nylon e
inclinou-se para a frente.
- Alice, eu não sei se tenho capacidades para te ajudar a lidar com esses
problemas. Já alguma vez consultaste o teu médico por causa das vozes?
- Não.
- Eu posso continuar a apoiar-te em tudo o que me for possível e podemos
prosseguir com as nossas sessões como habitual, mas eu penso mesmo que devias
falar com o teu médico.
Foi a primeira vez que ela me aconselhou. Eu estava sentada no chão e pousei
a cabeça nas mãos enquanto ela estava a falar. Olhei para ela, para as suas pernas
elegantes e sapatos caros, o seu rosto paciente enquadrado por finos cabelos
dourados.
A luz estava por detrás dela. Uma sombra tapou o sol. A minha garganta estava
seca. O meu corpo estava a encolher. As feições no meu rosto estavam a mudar. Eu
conseguia sentir a estrutura sob as minhas maçãs do rosto a desintegrar-se e a
adquirir uma nova forma. O sol voltou a aparecer. As cores ficaram mais nítidas e
havia uma senhora simpática sentada numa cadeira cinzenta que eu pensei que
conhecia, mas não tinha a certeza.
- Quem é a senhora?
- Sou a Roberta.
- É?
- Sim - disse.
- Onde estou?
- Estás no meu gabinete.
- Que gabinete?
- No meu gabinete, onde jogamos Ker-Plunk, Alice.
- Eu não sou a Alice.
- Claro que és.
- Não sou, não sou, não sou. Sou o Jimbo. A senhora sabe quem eu sou. Já me
lembro, é aquela senhora...
- És o Jimbo?
- Claro, pateta. Sou o Jimbo. Sou o Jimbo, mas prefiro que me tratem por JJ. Eu
gosto de gelados.
- Gostas?
- Não gosto de bolos. Odeio bolos. Gosto de gelados. E não gosto de aranhas.
- Por que razão não gostas de aranhas?
- Porque elas são horríveis. Querem comer-nos. Uma vez vi uma aranha a
comer-se a si mesma. Um homem cortou-a ao meio com uma faca grande e a
metade da frente virou-se e comeu a outra metade.
- O que achas que isso significa?
- Não significa nada. Era apenas uma aranha pequena.
Não me recordo desta conversa. Foi a Roberta que me falou nela
posteriormente.
Foi a primeira vez que o Jimbo se manifestou. Não me recordo dos pormenores,
mas lembro-me de ter a percepção do deslize, aquela sensação de sair e de voltar a
entrar na minha pele. Nenhum factor provocou o aparecimento do JJ. Não foi
durante um jogo de Ker-Plunk ou no meio de uma sessão de regressão.
Simplesmente aconteceu, e o que era preocupante é que eu nunca ouvira falar que
isso tivesse acontecido a alguém, e não sabia por que motivo estava a acontecer
comigo.
Partilhei esta ideia com a Roberta e ela admitiu que também não sabia.
- Precisas de ajuda, Alice.
- Quer dizer que preciso de mais ajuda do que aquela que me pode dar?
- Vou ajudar-te naquilo que puder, mas eu penso realmente que deverias
conversar com o teu médico. Vais fazer isso?
- Se pensa que isso me pode ajudar. - Queria que fosse ela a tomar a decisão.
Aquela era a sua função. - Mas estou com receio do que ele possa pensar -
acrescentei.
- Tenho a certeza de que o teu médico não irá fazer julgamentos - respondeu. -
O nosso trabalho é estar presente e ouvir as pessoas.
Pensei: Ela está a colocar-se na mesma categoria que um médico, mas ela não
é médica. Os conselheiros só têm um diploma. Estava na parede. Na verdade, eram
três, com brasões e selos dourados.
Olhei para ela novamente.
- Se quiseres, eu fico aqui enquanto fazes o telefonema para marcares a
consulta - sugeriu.
A Roberta encontrou o número na agenda, marcou-o e passou-me o
auscultador. A secretária disse que o Dr. Michaels tinha uma hora livre no dia
seguinte às onze da manhã.
- Isso é muito bom, Alice, fizeste o mais acertado - disse a Roberta quando
desliguei.
- Obrigada, Roberta - respondi, mas nem parecia eu a responder.
Estava a regredir novamente. Estivéramos a falar do JJ e eu conseguia senti-lo
a borbulhar dentro de mim. Ele era uma versão mais madura, esperta e curiosa do
Billy, mas este tinha apenas cinco anos e o JJ tinha dez, era um rapaz autoconfiante
que, caso se perdesse nas charnecas, não entraria em pânico e encontraria o
caminho de regresso a casa.
Esta era a minha segunda visita ao Dr. Michaels em duas semanas. A última vez
que lá estivera fora por causa de uma infecção no ouvido, uma estranha
coincidência, pois o motivo que agora me levava a consultá-lo era o facto de ter
vozes a sussurrarem-me ao ouvido. E se elas tivessem causado a infecção com o
seu hálito fétido?
Fiquei acordada toda a noite a olhar para o tecto imaginando o que teria
acontecido ao móbile que lançava sombras no meu quarto de criança. Recordei-me
da forma como as espirais se moviam de uma maneira hipnotizante, como giravam
mais depressa quando a porta se abria.
- Quem é a menina do papá?
- Sou eu.
Levantei-me às seis horas, vesti o meu equipamento de jogging que há muito
não usava e senti-me exausta assim que saí pela porta das traseiras. Desci a colina
até ao parque, onde me sentei num baloiço e me balancei o mais alto que consegui.
Balança mais alto. Balança mais alto. E salta. Assim já tens motivo para ires
consultar o médico.
Tinha medo de que o médico me dissesse que estava a fazê-lo perder tempo,
uma vez que não tinha nenhum problema de saúde evidente. Mas por outro lado, as
vozes eram um problema, ainda que não conseguisse vê-las. Assim como andava
para trás e para a frente no baloiço, os meus pensamentos andavam em círculos até
tomar a decisão de cancelar a consulta. Iria para casa e voltaria a pôr alguns
adjectivos na minha proposta, faria algo útil.
A Kathy e o Jim estavam a tomar o pequeno-almoço. Sentei-me junto deles com
uma chávena de chá e cereais. O Jim estava a fumar um cigarro enrolado à mão. A
Kathy estava a barrar uma torrada com doce de laranja, com as migalhas
espalhadas sobre a mesa como se fossem insectos.
Eu ainda me sentia paranóica com a ideia de que a Kathy e o Jim planeavam
apanhar-me, e durante a noite, deitada na cama, interrogava-me se haveria uma
porta secreta entre o quarto deles e o meu. Eles pensavam que eu era a típica
estudante a apanhar grandes bebedeiras nas festas da universidade com montes de
amigos. Não faziam ideia de que eu estava a ter um esgotamento. Eu vivia na minha
redoma. Eles viviam na sua própria redoma, pagando as contas, assistindo à
telenovela, poupando para as férias em Lloret de Mar, sem noção do que podemos
ser e fazer enquanto seres humanos e, tal como eles, eu também não estava a fazer
grandes progressos.
Quando eles saíram para o emprego, pus o Bruce Springsteen a tocar muito
alto. A voz profunda do Boss e a letra da música imprimiram o medo da New Jersey
operária no Professor e no seu bando. Subi o volume ainda mais e dancei em redor
da sala a entoar “Human Touch” do seu novo álbum.
As palavras do Boss desvaneceram-se na minha cabeça como o som de um
carro a afastar-se. Mudara outra vez de ideias e estava sentada a olhar para o
relógio na sala de espera da clínica de Mor-ningside, uma mansão antiga e colossal,
com um emaranhado de pequenas salas, cada uma delas com uma antiga lareira
que deixava entrar o ar frio pela chaminé.
Tictac, tictac, a Alice vai morrer as onze horas.
O pequeno ponteiro semelhante à pata gorda de uma aranha ia-se aproximando
das onze. As palmas das minhas mãos estavam húmidas, mas quando as onze
horas chegaram eu ainda estava viva. Conseguira. Passaram mais alguns minutos e
depois uma voz com sotaque do Yorkshire entoou, “Alice Jamieson, sala número
dois”.
E agora, seria um truque? Seria a enfermeira a chamar? Ou a mulher da
telenovela? Arrisquei. O meu coração palpitava enquanto caminhava pelo corredor
que parecia ir-se alongando, como num sonho. Bati à porta.
- Entre.
Entrei na sala como se estivesse a entrar através de uma porta secreta, como a
porta oculta na parede entre o meu quarto e o quarto da Kathy e do Jim.
- Sente-se. Muito bem, o que posso fazer por si, jovem? - inquiriu o Dr. Michaels
- Não sei bem.
As vozes estavam a rir-se à socapa lá ao fundo. Adoravam quando me viam
confusa. Os olhos do médico pareciam raios que estavam a perfurar-me e eu não
conseguia olhar para ele.
- Tens de me dizer para eu poder ajudar-te - insistiu. - Não é outra vez aquele
problema no ouvido, é?
- Não, não, eu tenho andado sob muita tensão na universidade. Há pessoas a
conspirar contra mim. Estão sempre a dizer-me para fazer coisas.
- Quem são essas pessoas, Alice?
- São pessoas...
- E o que é que elas te estão a dizer para fazeres?
Não conseguia estar quieta. Tinha formigas nas calças, como dizia a minha
mãe.
Caminhei pela sala a ouvir o sussurro das vozes a descer pela chaminé e com
medo de falar delas. Era pura tortura.
- São muitas pessoas - expliquei. - E estão realmente a incomodar-me.
O Dr. Michaels inclinou-se sobre a mesa e pousou o queixo na mão. Era um
homem pesado, com um nó largo numa gravata às riscas e um casaco de tweed que
devia ter adquirido numa loja especializada em roupa para a profissão médica.
- Tens tendências suicidas? - perguntou.
Houve uma pausa.
- Como? - disse eu.
Ele repetiu a pergunta.
- Está a perguntar-me se eu quero suicidar-me?
- Estou. Estou a tentar descortinar quem é que tu pensas que são essas
pessoas, de onde elas vêm e o que estão a dizer-te para fazeres. E eu preciso de
saber se estás com tendências suicidas.
Esconder a verdade acerca das vozes requeria muito tempo e energia. A
pressão estava a aumentar.
O Dr. Michaels inclinou-se novamente e tentou estabelecer contacto visual.
- Ouves vozes? - perguntou ele, o que me fez retroceder um pouco. - O que
estão as vozes a dizer-te para fazeres? Estás a ouvir vozes agora?
Estava, mas não conseguia forçar-me a dizer-lhe, a admiti-lo. Seria algum tipo
de armadilha?
- Não exactamente - respondi.
- Sabes que as vozes não são reais. Estão apenas na tua mente - acrescentou
ele, e, de súbito, não aguentei mais.
- Elas são reais, eu consigo ouvi-las. Não estou a imaginar que consigo ouvir
vozes. Eu estou a ouvir vozes. Consigo ouvi-las próximas de mim e são tão sonoras
quanto o toque do telefone na recepção, na verdade, ainda mais sonoras.
- Ouves vozes?
- Sim. Você não as ouve?
- Alice, se ouves vozes, elas estão apenas na tua mente.
- O que quer dizer com se? Eu ouço vozes. E elas não estão na minha mente.
Não estão no meu cérebro. Pertencem a pessoas, pessoas reais, e não estão na
minha cabeça.
Fiquei furiosa com a Roberta por sugerir que eu consultasse o Dr. Michaels, e
estava irritada com o Dr. Michaels porque sabia que ele já tinha uma ideia formada
sobre quem eu era e qual poderia ser o meu problema.
- Há pessoas a perseguir-me - disse-lhe. - Não me deixam em paz.
Discutimos um pouco mais sobre o assunto. Éramos duas pessoas a conversar
sem dizerem nada. Tal como as vozes. Finalmente, terminou o meu tempo e o Dr.
Michaels tomou uma decisão. Disse que eu estava a exibir sinais clássicos de
esquizofrenia e fez aquilo que os médicos fazem melhor: passou-me uma receita de
Stelazine. Disse que iria ajudar a curto prazo, enquanto me encaminhava para um
psiquiatra. Conselheiro, médico, psiquiatra. Era como subir a uma daquelas
pirâmides de degraus do México.
Sentia-me exaurida, desprovida de emoção. Então eu sofria de esquizofrenia?
O que significava isso? Talvez a Roberta me pudesse esclarecer. As minhas
sessões de aconselhamento eram bastante intensivas e eu tinha uma consulta com
ela ao final do dia. Fui à biblioteca da universidade antes de ir para Leeds. Encontrei
um livro intitulado Esquizofrenia: Os Factos. O primeiro capítulo era: “O que é a
esquizofrenia?”
Fiz algumas anotações.
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças da Organização
Mundial de Saúde, a esquizofrenia e os distúrbios esquizofrénicos caracterizam-se
em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da
percepção, e emoções que são desajustadas ou de indiferença. Regra geral, a
consciência e a capacidade intelectual mantêm-se, embora certos défices cognitivos
possam aumentar com o decorrer do tempo.
Os fenómenos psicopatológicos mais importantes incluem: o eco do
pensamento, a imposição ou o roubo do pensamento, a divulgação do pensamento;
a percepção delirante, ideias delirantes de controlo; influência ou passividade; vozes
alucinatórias que comentam ou discutem acerca do paciente na terceira pessoa;
perturbação do pensamento e sintomas negativos, que são sentimentos e
capacidades que a maioria das pessoas tem e que os pacientes esquizofrénicos
perdem devido à sua doença. São estes:
• motivação;
• a capacidade de interagir socialmente;
• entusiasmo;
• resposta emocional adequada.
Os factos:
• A esquizofrenia afecta uma em cada cem pessoas.
• Alguns pacientes com esquizofrenia só sofrem um episódio psicótico e outros
sofrem vários ao longo dos anos.
• O tipo mais comum de alucinação vivenciada por quem sofre de esquizofrenia
é auditivo, mas os pacientes também podem ter alucinações visuais, tácteis,
gustativas e olfactivas.
• Apenas um terço dos pacientes sofre sintomas do tipo paranóico.
• Cerca de dez por cento dos pacientes esquizofrénicos cometem suicídio.
• Os sinais e sintomas da esquizofrenia manifestam-se geralmente primeiro no
início da idade adulta e na adolescência.
• Ambos os sexos correm o mesmo risco de desenvolver a doença.
• A maioria dos pacientes com esquizofrenia sofre durante a vida toda, quer ela
esteja em curso ou seja recorrente.
• Apenas cerca de um em cada cinco indivíduos recupera completamente.
Requisitei o livro à biblioteca e parti para a estação com ele debaixo do braço.
Identificava-me muito com o que lera, mas tinha medo dos factos. A minha mente
estava a disparar perguntas. O que causa a esquizofrenia? É realmente uma
doença? Se eu tivesse esquizofrenia, com todas as minhas percepções delirantes e
vozes alucinatórias, será que alguma vez iria recuperar ou curar-me?
Na calma do gabinete da Roberta fiz uma reconstituição da minha reunião com o
Dr. Michaels. Eu era boa nos pormenores. Pus a minhas notas diante dela.
- O que lhe parece? - perguntei. - Olhe para isto. Isto é o que alguns livros da
especialidade dizem. Pensa que eu tenho esquizofrenia?
A Roberta não quis comprometer-se, mas incentivou-me a tomar a medicação e
a consultar o psiquiatra. Elogiou-me por ir consultar o Dr. Michaels, que é um dos
truques, reforçar o que o paciente já decidira fazer. Disse que podíamos falar mais
sobre o diagnóstico dele na minha próxima sessão, e eu fiquei com a certeza de que
a Roberta Stoppa e o Dr. Michaels estavam em conluio com o Professor e faziam
parte da conspiração.
Fui a casa buscar alguma roupa limpa. Decidira refugiar-me na casa de campo
da Rebecca, um lugar tranquilo onde poderia ler com calma o livro sobre a
esquizofrenia e pensar nas conclusões do Dr. Michaels. A lógica sugeria que, sem
um entendimento definitivo da causa da doença, não havia esperança de cura.
A medida que ia lendo, comecei a perceber que há indícios de que as causas da
esquizofrenia são, pelo menos em parte, genéticas. Uma vez que os genes regulam
os processos biológicos, incluindo a função cerebral, esta evidência indica que os
processos biológicos são interrompidos nos cérebros das pessoas com
esquizofrenia. Por outro lado, o livro sugere que os factores psicológicos e sociais
não parecem desempenhar um papel causal preponderante, embora pudessem ser
importantes “modificadores” da doença.
Parecia que eu encaixava na análise do livro na perfeição, não que isso me
servisse de conforto. Quando muito, deixava-me ainda mais assustada e paranóica,
uma vez que implicava que, embora as pessoas pudessem melhorar da
esquizofrenia, não havia garantias de que não pudessem sofrer uma recaída. Seria
isto algo com que eu teria de viver para o resto da minha vida?
Enquanto estava a ler, estava inconscientemente a beber gin de uma garrafa de
litro que não me recordava de ter comprado. Não me conseguia recordar se já
tomara algum dos comprimidos azuis que o Dr. Michaels receitara e estava a sacudir
a garrafa de plástico, a acompanhar o ritmo constante das vozes que estrepitavam
em torno da minha cabeça.
Vamos apanhar-te. Ele está a chegar. É melhor preparares-te. Ele está a chegar
agora. Espera para veres.
“Ele” devia ser o Professor. Ele era a mais sonora e mordaz de todas as minhas
vozes, uma espécie de Hitler ou Mussolini. Eu esperei e, efectivamente, o Professor
apareceu.
Estás a ver, agora as pessoas pensam que és louca. É melhor tomares todos os
comprimidos e beberes um pouco mais. E depois, vais para o Inferno, que é onde
pertences.
- O que é que tens, Alice? - disse uma voz familiar.
Voltei-me, à espera de não ver ninguém, e dei de caras com a Rebecca atrás de
mim. Não a ouvira entrar e não respondi. Olhei para cima. Ela estava tão bonita, tão
perfeita.
- O que está nessa garrafa? Tens tomado os comprimidos com o gin? -
perguntou ela. - Vá lá, Alice, o que se passa? Parece que viste um fantasma.
Eu estava a ouvir a voz da Rebecca, mas parecia distante como se estivesse a
falar-me através das charnecas.
Cathy? Cathy? Onde estás, Cathy? Heathcliff. Heathcliff. Não me abandones.
Tomei um gole de gin e ela pegou-me na mão para me amparar quando me
levantei do chão.
- As coisas estão a desmoronar-se - disse-lhe.
Ela pousou as mãos nos meus braços e elas queimavam através das minhas
roupas.
- O médico pensa que sou esquizofrénica e tenho de consultar um psiquiatra. -
Expliquei-lhe enquanto me contorcia para me libertar. - Mais ninguém consegue
ouvir as minhas vozes. Só eu.
- Estou aqui para te ajudar, Alice, tu sabes disso - disse a Rebecca. - Porque
não me falaste antes acerca dessas vozes?
- Não queria que pensasses que era louca - respondi.
Ela sacudiu a cabeça e sorriu. Era muito estranho ter uma amiga que realmente
se importava. Ficámos outra vez até tarde a conversar. Tal como a Roberta, a
Rebecca não tinha formação médica, mas era da opinião que o melhor era eu
consultar um psiquiatra.
Faria ela também parte da conspiração? Eu não queria acreditar nisso.
Tomei um dos comprimidos azuis de Stelazine antes de ir para a cama. Contei
quantos deixei no frasco e escrevi o número a lápis dentro da contracapa do livro de
esquizofrenia. As vozes estavam distantes, mas ainda assim continuaram a
ameaçar-me, a murmurar, a resmungar, a tagarelar. Senti um vazio interior, um
espaço oco onde outra versão de mim flutuava no vazio do não-ser. Eu não pedia
muito, não queria fama e fortuna, poder ou sucesso. Só queria ser como todas as
outras pessoas.
CAPÍTULO 14

SHIRLEY

minha memória tem muitas das qualidades de Raymond Babbitt, o personagem


interpretado por Dustin Hoffman no filme Encontro de Irmãos.
Isto é o que recordo.
O filme estreou em 1989, o ano em que eu estava a treinar para a maratona
centenária de Birmingham. Com argumento de Ronald Bass e realizado por Barry
Levinson, apresentava Hoffman como protagonista no papel do autista Raymond, e
Tom Cruise como Charlie, o seu irmão mais novo, um vigarista egocêntrico. O pai
deles morre deixando toda a sua fortuna, no valor de três milhões de dólares, a
Raymond. Charlie planeia enganar o irmão para lhe roubar a herança e rapta-o da
instituição onde vive. Durante a subsequente viagem pela América, Charlie fica no
início zangado com as obsessões e repetições de Raymond, mas aos poucos
começa a admirar o seu génio matemático e as proezas de memória. Como num
verdadeiro conto de fadas, os irmãos desenvolvem uma profunda afeição um pelo
outro e vivem felizes para sempre com todo aquele dinheiro.
O Raymond tinha uma memória fotográfica com muitos hiatos. Como um
romance policial com páginas rasgadas, a história sofre uma descontinuidade, faltam
cenas. O Raymond era autista. Eu não o sou. O Dr. Michaels pensa que eu sou
esquizofrénica, mas eu consigo identificar-me com a memória danificada do
Raymond, o detalhe gráfico e os espaços em branco, armários fechados que contêm
pedaços do passado aos quais não consigo aceder, enquanto o Billy, o JJ, a Shirley
e o Kato acedem a essas memórias para viverem a sua vida de fantasia. É na
infância que o adulto se forma, e alguns pedaços da minha infância pareciam estar
nas mãos das crianças.
Como sabemos, a criança agredida transforma-se num tirano, o menino privado
de amor pode procurá-lo em lugares onde não deveria. Eu sinto uma tristeza
profunda e permanente em relação ao que me aconteceu em criança, sem sentir
vergonha de quem sou. Não podia ser outra pessoa. Anseio pelos pedaços que
faltam da minha infância tal como alguém anseia por algo precioso que, por
distracção, perdeu. Acarinho essas páginas perdidas quando elas surgem
misteriosamente.
Até mesmo as fotografias da minha infância desapareceram todas e, por isso,
comecei a ir às feiras e aos locais onde vendiam artigos e objectos em segunda mão
à procura de álbuns antigos que pudessem, por magia, ter fotografias minhas em
pequena. Ao longo dos anos e das mudanças, a minha mãe perdeu quase todas as
fotos de família, à excepção de uma minha aos três anos no jardim, e outra aos
cinco anos com o Clive, com o seu boné da escola e a gravata às riscas. Eu fico a
olhar para aquelas fotografias procurando ver quem era naquela altura, como se na
minha expressão pudesse encontrar pistas que me indicassem a pessoa que viria a
ser. Quem eu sou. Gostaria de desenhar um ponto no passado e outro no futuro, e
ligar os pontos com uma linha recta - não que alguma coisa na natureza seja sempre
recta, até mesmo o tempo tem curvas e o nosso ADN é um conjunto de hélices em
espiral.
Por que razão a minha mãe não tem mais fotos minhas?
Estávamos sempre a tirar fotos no jardim, nas férias em Espanha. Onde estão
as fotos que tirei em Petra? Em Israel? Onde está aquela fotografia minha a flutuar
no mar Morto, a ler o Jerusalem Post? As fotografias autenticam-nos, recordam-nos
que existimos naquele lugar, naquele momento, e sem as fotos do passado o
presente não tem raízes, fundações, somos menos reais.
O dia da minha consulta chegou.
Eu tinha um futuro.
Devia consultar o Dr. Eric Barne na Ala 10 do Hospital Psiquiátrico de St.
Thomas.
Fui para a cama irritada, engoli o Stelazine e o Valium com um trago de água.
Os comprimidos eram azuis e amarelo-claros como o céu e o sol nas pinturas do
Billy. Sonhei com polaróides esbatidas do castelo e lembrei-me vagamente de que
um dia alguém aparecera com uma máquina fotográfica para tirar fotos das crianças
nuas. Acordei com os dedos dormentes, perguntando a mim mesma o que teria
acontecido àquelas fotografias. Será que as iria encontrar um dia num álbum à
venda numa feira de artigos usados?
Tomei banho, lavei o cabelo, pensei em tornar-me morena para confundir os
ursinhos, e estava a remexer nos armários à procura da frigideira quando o Jim
entrou na cozinha.
- Não estás a cozinhar a esta hora, pois não? - perguntou ele enquanto acendia
um cigarro.
- Panquecas - respondi.
- Não é Terça-Feira Gorda, pois não?
- Não, é Quarta-Feira de Cinzas.
- É?
- Dahh - disse-lhe.
Ele exibiu um sorriso rasgado enquanto a cinza lhe caía sobre a camisola de lã e
colocou a chaleira ao lume.
Parti dois ovos para uma tigela, procurei a farinha no armário por cima do balcão
e peguei no isqueiro do Jim para acender o fogão.
Por que diabo estava eu a cozinhar panquecas?
Não fazia ideia. Nem sempre sei o que fiz no dia anterior e raramente posso
planear o que vou fazer hoje. Amanhã é outro país. E por isso que é difícil fazer
amigos, e ainda mais difícil manter os amigos que se tem quando estamos
diariamente, a toda a hora, amarrados às nossas próprias emoções em constante
mutação. Eu abrira-me com a Rebecca, mas começara a evitar novos
relacionamentos, porque nunca sabia quando uma das crianças se ia manifestar, ou
se ia perder tempo, ou se ia beber até cair.
Quando socializava era espontânea: uma bebida com o Brian, que vivia de uma
forma míope por detrás da barba e do ódio pelas classes sociais. O Gerald era um
caracol enrolado na sua própria casca, e eu tive a sorte de o Colin Ince só me ter
visto na pele de Alice, e de me ter recomendado para um mestrado, meio caminho
andado para um doutoramento.
Conseguiria eu sobreviver ao ano que se aproximava? Era difícil de prever.
Por vezes perdia o controlo de quem era, dormia nas entradas dos prédios,
acordava no parque encharcada até aos ossos, acordava na casa da Rebecca sem
saber como fora lá parar. Houve mais uns quantos incidentes de automutilação e,
para evitar ser admitida nas Urgências, fora rapidamente para casa para limpar e
ligar os cortes. Para além dos comprimidos, tinha também anti-sépticos e ligaduras.
Após um incidente, o meu instinto de sobrevivência manifestava-se, o lado
esquerdo do meu cérebro entrava em alerta e eu trabalhava como um demónio para
manter o meu trabalho em dia. Não era viver, mas sim uma meia vida com uma meia
memória. Estudantes que eu nunca vira antes sussurravam algo ambíguo e
piscavam-me o olho através das mesas de madeira polida da biblioteca. Eu era um
“bom copo”, disse um tipo, e mencionou “a corrida de barco”. Era um jogo de bebida
em que a Shirley deve ter participado, mas eu não tinha a mínima recordação do
incidente.
Convertera-me numa boa actriz, mudando calmamente de papel, retrocedendo
para a intelectual excêntrica e louca, com um livro debaixo do braço e a cabeça nas
nuvens. O tempo, essa tela em branco, não me pertencia. O meu tempo era
partilhado, e percebi nessa manhã, quando a Kathy entrou na cozinha, que estava a
partilhar esse dia com a Shirley.
Ela virou uma panqueca e apanhou-a na perfeição.
- Não percebo por que razão compraste tantos limões - comentou a Kathy.
- Os limões nunca são de mais - respondi, e pensei: Eu comprei todos estes
limões?
Não me recordava de os ter comprado, mas também não me recordava de não
os ter comprado. A Shirley e eu éramos um pouco como irmãs, por vezes
colaborávamos, mas nem sempre. Não nos tínhamos unido nem integrado, mas
encontráramos uma maneira de colaborar juntas subconscientemente. Estávamos
ambas conscientes de que partilhávamos tempo, embora a presença da Shirley
fosse demasiado subtil para a Kathy e o Jim repararem nela.
O Jim espremeu o sumo com o seu punho enorme, cobriu a panqueca com
açúcar e começou a comer. Eles comeram. Eu não. Perdera o apetite. A Shirley
nunca tinha apetite.
Era útil ter a Shirley por perto e eu decidi que afinal até gostava dela. A Shirley
era a amiga imaginária que nunca tive, e eu sentia o seu passo seguro nos
músculos e nas coxas enquanto caminhava pela rua.
- Desço a colina a pé até à cidade?
Nã, vai de autocarro.
Era a Shirley quem carregava o fardo da minha raiva e da minha disfunção
psicossexual. Ela carregava o ódio edipiano pelo pai dela, agravado pela intimidade
incestuosa deles e continuava todos aqueles anos mais tarde a sofrer a dor e a
humilhação dessas memórias hediondas. Tal como o Raymond Babbitt em Encontro
de Irmãos, as fobias e as fixações da Shirley nunca variavam. Ela era inflexível,
imutável. Tinha catorze anos e teria catorze anos para sempre. Uma rapariga esguia
de peito liso que erguia os braços para o papá lhe puxar a camisa sobre a cabeça e
abria a boca para o pénis encontrar a sua abertura familiar. Ele segurava-lhe a
cabeça, enroscando o cabelo dela na mão dele, e ela olhava para o pacote de
preservativos entre os dedos dele como se fossem cartas de jogar. Ele estava a
sorrir.
- Que cor preferes, vermelho ou amarelo?
A Shirley tinha o temperamento de se submeter ao pai, assim como se
submeteria ao álcool e à fome.
Eu estava a começar a compreender que a Shirley, assim como o Kato, o Billy e
os outros, se formara para me proteger dos terrores e sentimentos que era incapaz
de enfrentar. Ela não era minha inimiga. Ela era eu. Ela tinha em seu poder as
chaves que abriam o armário onde se encontravam trancadas as emoções e as
memórias demasiado dolorosas para eu guardar.
Estava a resolver os meus problemas aos poucos. Com o tempo, poderia,
através da biblioteca da universidade, ter sido capaz de diagnosticar a minha
doença. Infelizmente, a profissão médica não o iria permitir.
St. Thomas surgiu no meu campo de visão através da janela do autocarro e
senti-me atraída por ele com uma espécie de inevitabilidade incontrolável.
A entrada do hospital em forma de cúpula parecia o portal para a nave espacial
do filme Encontros Imediatos do Terceiro Grau. Admirei os controlos, todas aquelas
luzes a piscar e os telefones a tocar, todos aqueles médicos joviais nos seus
uniformes com código de cores. Deambulei pelo corredor passando por zombies
com expressões vazias e encontrei o Dr. Barne à espera na Ala 10. Fechou uma
pasta (a minha, presumi) e foi directo ao assunto.
- O meu nome é Dr. Barne. Tu és a Alice, presumo? - disse, e eu pensei: Podes
presumir o que quiseres. Como é que eu iria saber?
- Sim - respondi.
Tinha a garganta seca e sentia o tique no pescoço.
- Senta-te. Gostaria de te colocar algumas questões, se não houver problema.
- Penso que é por isso que estou aqui.
Uma enfermeira apareceu à porta.
- Café? - perguntou ela.
Eu sorri e ela girou sobre si própria e desapareceu novamente com os seus
sapatos brancos. Não me sentia eu, mas sabia que tinha de agir normalmente se
queria ver-me livre dos psiquiatras e terminar o meu doutoramento.
- Como é que te sentes hoje?
O psiquiatra tinha uma voz profunda, que me fazia lembrar o Professor.
“Cuidado, Alice”, pensei. Tentei outro breve sorriso.
- Sinto-me bem, acho eu - respondi.
- Para já só queria saber um pouco da tua história pessoal. Quando é que
nasceste?
- Dez de Janeiro de 1969.
- Então, tens...
- Vinte e três anos - interrompi. Não era bom a Matemática.
- Fala-me um pouco sobre os teus pais.
- Hum, penso que são o tipo de pessoas que eu nunca quis ser - respondi, e
encolhi os ombros. - A minha mãe é boa pessoa, acho eu, mas odeio o meu pai.
- Odeias o teu pai?
- Foi o que eu disse. Ele abusou de mim quando eu era pequena.
- Como é que isso te afecta agora? Aborrece-te?
Ergui o olhar para fitar o Dr. Barne. Que pergunta estúpida. Ele tinha olhos
pretos de porquinho por detrás de uns óculos de armação preta, e a sua barba
enorme escondia a sua expressão.
- Claro - respondi.
- Lembras-te de muita coisa do teu passado?
- Onde pretende chegar com este interrogatório? - perguntei rispidamente.
- Peço desculpa - respondeu o Dr. Barne. Pareceu surpreso e mudou de
assunto. - Talvez me pudesses falar do teu regime alimentar?
- O meu regime alimentar? - Ele assentiu e eu prossegui. - É bastante saudável.
- Fumas?
- Fumar não é para as pessoas como eu, aquelas cujos cérebros devem
permanecer puros e responsáveis. - O que raio estou eu para aqui a dizer?
- Já levaste alguma pancada na cabeça ou ficaste inconsciente?
- O que está a tentar dizer?
- Já tiveste algum acidente grave? - continuou.
Pensei por um instante, apertando os lábios, afagando o queixo.
- Em 1991, os iraquianos tentaram assassinar-me com uma bomba, mas ela só
me rebentou com os tímpanos. Fui salva e isso só provou que estava no caminho
certo. Senti-me ainda mais motivada para a minha missão.
- Bebes?
- Gosto do meu gin tónico - respondi, embora não lhe tenha dito o quanto
gostava do meu gin tónico.
- Tomas drogas?
- Não, não tomo.
- Sentes que precisas de alguma coisa agora?
- Agora?
- Sim, agora.
- Agora sinto-me bem.
- Tens insónias?
- Sim, às vezes.
- Tens algum hobby ?
- Gosto de ouvir música, escrever poesia e ler. Na verdade, neste momento
estou a ler um livro enorme sobre a esquizofrenia.
- Ah.
- Chama-se Schizophrenia: The Facts. É como The Magus, mas sem tantas
voltas e reviravoltas.
Fomos interrompidos pela enfermeira, que trouxe duas chávenas de café e
alguns pacotes de açúcar. O Dr. Barne despejou três pacotinhos de açúcar no seu
café e mexeu-o vigorosamente. Observei o café a dar voltas e voltas em espiral.
- O que fazes na vida? - inquiriu em seguida.
- Tenho uma bolsa de estudo e estou a fazer o meu doutoramento na
universidade.
- Gostas disso?
- Nem por isso.
- O que queres fazer no futuro?
- Estou destinada a converter-me numa agente diplomática da ONU e trazer a
paz ao Médio Oriente.
- Quanto dinheiro ganhas enquanto estudas?
- Uma ninharia. - Fiz uma pausa. - Do género...
- Sabes por que razão estás aqui hoje?
- Na verdade, não. Porquê?
- Pensei que estavas a ter alguns problemas.
- Suponho que tenho andado transtornada ultimamente.
- Porquê?
- As pessoas deixam-me nervosa.
- Quem é que te deixa nervosa?
- Certas pessoas.
- Fala-me mais disso.
- Sabe alguma coisa sobre os espiões?
- Não, diz-me tu.
- Bem, eles estão a observar-me.
- Como é que sabes isso?
- Para já, andam a seguir-me - expliquei.
- Por que razão te espiam?
- Querem obter provas falsas para me tramarem.
- Podes dar-me um exemplo?
- Não, eles podem estar a ouvir a nossa conversa.
- Aqui é impossível.
- Eles têm aparelhos de escuta. É muito sofisticado.
- Eles sabem que estás aqui no hospital?
- Claro que sabem.
- Tens amigos?
- Uma pessoa forte é mais poderosa sozinha - comentei.
- Não respondeste à minha pergunta.
- Sim, tenho uma boa amiga.
- Isso é bom.
Fiz uma pausa para saborear o meu café. O psiquiatra fez o mesmo. Bebeu o
café com modos grosseiros e limpou os cantos dos lábios ocultos com dois dedos.
- O que pensas desta entrevista até agora? - perguntou. A sua barba abriu-se
para revelar uma pequena língua cor-de-rosa, e eu pensei: Se eu estivesse a fazer
um filme, ele dava o homem de Nean-dertal perfeito.
- Podia ser melhor - respondi.
- Lamento.
- Não há problema. Faça-me mais perguntas, se quiser.
- Sentes-te irreal?
- Porque pergunta isso?
- Ouves vozes?
- Não, não ouço - respondi ferozmente.
- Tens alucinações?
- Não, não tenho. Deve pensar que eu sou como os outros pacientes que aqui
estão.
- És uma paciente?
- Não, o meu lugar não é aqui.
- Necessitas de tratamento?
- Não, já lhe disse que o meu lugar não é aqui. De qualquer forma, o Dr.
Michaels deu-me alguma medicação.
- A mim pareces-me doente, Alice.
- Devia haver alguém que lhe ensinasse a fazer uma entrevista.
- Talvez. Devo dizer que não me parece que sejas normal. Consideras-te
normal?
- Provavelmente nenhum de nós é completamente normal.
- Como te sentes agora, Alice?
- Um pouco irritada.
- Porque estás irritada?
- Esta entrevista foi uma porcaria.
- O que posso fazer para ajudar?
- Nada - respondi e bebi mais um pouco de café. Eu realmente não aprecio café,
mas a Shirley sim.
- Tens alguma questão que gostasses de colocar antes de ires embora?
- Não.
- Bem, se estiveres de acordo, gostaria de voltar a ver-te na próxima semana.
Quero que continues a tomar o Stelazine que o Dr. Michaels prescreveu e podemos
conversar um pouco mais sobre o que sentes na próxima semana.
- Está bem - respondi, levantando-me da cadeira.
- Digamos, às três horas na próxima quarta-feira - sugeriu, olhando para a sua
agenda.
Oh, não, na maldita quarta-feira não.
Percorri o longo corredor entre os imbecis e os dementes, inalando o odor a
enxofre, o fedor da morte e da decadência. Conseguia ouvir o estrépito dos
carrinhos de metal, o choro dos pacientes. As paredes eram daquele tom creme que
poderia ter sido branco outrora. Sentia o chão pegajoso sob os meus ténis. Os
zombies silvavam na minha direcção, hipnotizando-me, atraindo-me para a sua tribo.
Eles vão apanhar-te, Alice. Eles vão apanhar-te.
- Sim, sim, sim. Já todos ouvimos essa treta antes.
Vi uma enfermeira com uma seringa suficientemente grande para sedar um
elefante. Deitou-me o seu mau-olhado quando passei por ela. Eles queriam
apanhar-me, todos eles, os pacientes sem vida com os cérebros sugados dos seus
crânios, as enfermeiras malévolas em conluio com o Dr. Barne, o Dr. Michaels, a
Roberta Stoppa, o Gerald Brennan, o Mao-Tse-Brian, a Kathy Higgins e o Jim Não-
sei-das-quantas, com poções secretas no seu tabaco de enrolar Golden Vir-ginia.
Saí porta fora para o revigorante ar estival de Deus.
Nem pensar. Está absolutamente fora de questão.
Eram elas, as vozes. Pela primeira vez, estávamos de acordo. Eu e nós e todos
sabíamos que se eu voltasse mais alguma vez a St. Thomas seria o fim de tudo, de
mim em todas as minhas variações, do meu doutoramento, da minha sanidade
mental, das minhas esperanças para o futuro.
Voltei-me para trás, tal como a mulher de Lot, para deitar um último olhar ao
hospício e desatámos a correr pela estrada abaixo o mais rápido que conseguimos,
com uma canção que eu não conhecia a soar na minha cabeça. “Oh me lads, you
should've seen us ganninVPassing the folks along the road/And ali of them were
starin'/ Ali the lads and lasses there/They ali had smilin' faces/Gannin' along the
Scotswood Road/To see the Blaydon races.”
Escócia. É isso. É essa a resposta. Devíamos continuar a correr através das
charnecas, por montes e vales, através do maciço de calcário e oceanos de urze até
chegarmos à Escócia e pedirmos asilo. Alice Mcjamieson, doutorada. Regressei a
casa.
Continuei a correr e dei por mim de novo no centro da cidade e fiquei chocada
por ver que todos os edifícios que mandáramos pelos ares com cocktails Molotov
tinham sido reconstruídos. Como é que eles fazem isso? Tão depressa. Fazia parte
da conspiração, obviamente. Faziam aquilo para me confundir.
Se ao menos tivesse o meu blusão com capuz. Não queria que ninguém me
visse enquanto me encaminhava para a biblioteca. Saquei do meu cartão como se
fosse uma agente secreta e dirigi-me apressadamente para a secção médica.
Conhecia-me suficientemente bem para saber que o meu actual estado de paranóia
avançaria para um estado total de delírios e alucinações se não tivesse cuidado.
Outro livro gigantesco de capa preta. Retirei a arma da mochila e escondi-a no colo.
Não ia correr riscos.
Descobri que as pessoas paranóicas revelam uma falta de confiança decorrente
da ausência de uma relação calorosa e de confiança com os seus pais.
Ora isso é algo que me surpreende!
Os pais dos paranóicos são habitualmente controladores, rígidos, distantes e até
mesmo sádicos.
- Sim - bradei.
- Chiu - silvou alguém.
Enquanto crianças, os paranóicos desenvolvem um sentimento de que seriam
traídos, de que os seus pais não os ajudariam com as decepções e as frustrações.
Crescem com o sentimento de que o ambiente é hostil, e desenvolvem uma
hipersensibilidade a atitudes imaginárias de desprezo.
Sim, isso não está longe da realidade.
Fechei o livro sentindo-me satisfeita comigo mesma. Pensei em aparecer no
escritório, e decidi não o fazer.
A caminho de casa, comprei uma garrafa de gin e somente quando começámos
a beber é que me ocorreu que a Shirley participara na conversa com o Dr. Barne. A
Shirley bebera o café. Eu limi-tara-me a ficar ali sentada como um limão (outra
expressão da minha mãe).
Eu, nós, bebemos o gin e escutámos as vozes enquanto nos arrastávamos
exaustas e esgotadas pelos cinco quilómetros colina acima.
Tens de morrer; Alice. De uma forma ou de outra, tens de morrer.
Sentia-me como se estivesse em chamas, como se fosse uma panela de água a
ferver e a borbulhar. Estava a asfixiar no vapor sufocante, no fluxo de veneno que
enchia a minha cabeça, os meus pensamentos, as minhas lembranças, as crianças,
o avô, o passado, as vozes cruéis, perversas, hediondas e implacáveis tornando-se
cada vez mais altas.
Tens de morrer. Tens de morrer.
- Oh, pelo amor de Deus, parem com isso.
Deixei-me cair no passeio e descansei encostada a uma parede com inscrições
em graffiti - vai-te foder, otário, puta, foda-se, foda-se, foda-se - um fluxo poético de
obscenidades e desespero, ao estilo do síndrome de Tourette, que fazia todo o
sentido. Encontrei o frasco de comprimidos azuis na minha mochila e despejei dois
na palma da mão, depois mais alguns, e depois mais, até ficar com uma pirâmide
azul na minha mão.
O Stelazine é um calmante e um antipsicótico. Se dois por dia nos mantêm em
equilíbrio, o que faria o frasco inteiro? Levei a mão aos lábios, enfiei os comprimidos
na boca e engoli-os com gin.
As vozes afastaram-se como um bando de arruaceiros do futebol. Senti-me
instantaneamente invadida por uma torrente de energia, furiosa, repleta de um ódio
venenoso e intenso. Uma raiva irreprimível estava a formar-se dentro de mim como
um vulcão.
Engoli o que restava do gin e atirei a garrafa ao chão, quebrando-a em pedaços.
Arregacei a manga, escolhi um pedaço de vidro e fiz deslizar a ponta afiada pela
minha pele branca.
Doeu no início, mas depois soube-me bem. Era como lancetar um furúnculo, e
toda aquela frustração venenosa brotou com um fio de sangue vermelho que eu
observava à medida que escorria pelo meu braço. Fiz outro corte, apenas por
diversão, e pus-me em pé. Contemplei o topo da colina, o céu azul elevando-se
interminavelmente na eternidade, e a minha atenção foi atraída para a parede outra
vez - vai-te foder, otário, puta, Man U é merda, foda-se, foda-se, foda-se.
CAPÍTULO 15

MANICÓMIO

Luzes brilhantes. O cheiro dos drenos. O som competente de saltos. Estou


deitada numa cama onde a roupa está bem entalada.
- A rapariga da enfermaria dois necessita de uma escolta até St. Thomas.
As minhas orelhas arrebitaram-se.
Serei eu a rapariga da enfermaria dois?
Tentei sentar-me. Senti a cabeça a andar à volta e deitei-me outra vez. Fechei
os olhos, respirei fundo e elaborei um plano. Desentalei a roupa da cama, mantive
os olhos fechados, impulsionei o corpo e sentei-me na cama. Balancei as pernas
para o lado e deslizei da cama. Estava a usar uma camisa de dormir azul-clara em
nylon e os meus braços estavam com ligaduras. O chão moveu-se sob os meus pés
e duas figuras fantasmagóricas disfarçadas de enfermeiras levantaram-me,
dobraram-me as pernas e estenderam-me na cama deixando as roupas bem
entaladas outra vez.
- O médico de serviço já assinou os papéis - disse uma delas. Depois
acrescentou: - Vão observar-te em St. Thomas.
Bem, desta vez não tiveste êxito na tua tentativa patética. Agora vais ficar com
os maluquinhos.
Sacudi violentamente a cabeça.
- O quê? - perguntou a enfermeira.
- Nada - respondi.
Mediu-me a pressão arterial, enfiou-me um termómetro sob a língua e o médico
apareceu como Deus rodeado de acólitos de bata branca. Fechou a cortina à volta
da minha cama, sentou-se e pegou-me na mão. Tinha uns dentes bonitos. Enquanto
falava, eu afastei o olhar do seu rosto e fitei a sua mão a segurar a minha.
Fora encontrada na sarjeta, inconsciente, com os braços a sangrar, e uma alma
caridosa chamara uma ambulância. Fizeram-me uma lavagem ao estômago, e os
meus cortes foram suturados e ligados. Escapei por pouco. Estava fora de perigo e,
disse Deus através dos seus bonitos dentes, ia ser transferida para St. Thomas para
uma avaliação. Os acólitos acenaram sabiamente com as cabeças.
- Mas eu estou bem, a sério - disse-lhe. - Não estava a tentar suicidar-me.
Estava só um pouco confusa.
- Mas não queremos que isso aconteça novamente, pois não? - contrapôs. - O
Dr. Barne vai ver-te ainda hoje - acrescentou antes que eu pudesse falar.
O médico pôs-se de pé e abriu a cortina, como se estivesse a revelar um
quadro. O bando de batas brancas afastou-se apressadamente, e ouvi o ruído dos
seus sapatos a andarem pela enfermaria. Conseguia ouvir o tiquetaque de um
relógio, uma tosse expectorante, o ruído de tesouras num prato. Vozes murmuravam
à minha volta e dentro de mim. Eu estava a ser vigiada, disso estava certa.
Inspeccionei a enfermaria à procura de câmaras até os meus olhos ficarem pesados
e se fecharem. Sentia-me esgotada da mesma forma que Fidípedes estava
esgotado depois de correr até Atenas.
O tempo passou, descamando como pele morta, até as enfermeiras aparecerem
e me fazerem sair da cama. Despiram-me a camisa de dormir azul-clara e vestiram-
me as roupas ensanguentadas que estava a usar quando dei entrada nas
Urgências.
Meteram-me numa ambulância com uma escolta, uma mulher que lia notas num
dossier em manilha, e que nunca trocou uma única palavra comigo. Uma espiã do
ministério, obviamente. Contemplei as ruas reconstruídas de Huddersfield através da
janela, como se estivesse a viajar num carro fúnebre e esta fosse a minha última
viagem. A medida que nos aproximávamos do hospital, suspirei de alívio. Conseguia
ver a nave espacial a aparecer diante de mim e fiquei com a ideia de que fora
escolhida. Pertencia ao grupo minoritário dos afortunados. Fora tudo um teste e eu
passara. Ia ser levada para um lugar melhor.
Vivaaaaaa, bradou o Billy.
Não há palavras para exprimir o quanto ele ficou decepcionado. Estávamos de
volta a St. Thomas, com os loucos. Não como doentes externos, mas como
pacientes internados. Foi-me atribuída a cama junto ao posto de enfermagem para
que pudesse estar sob constante observação, ou sob observação especial, como é
vulgarmente conhecida, e quem está sob observação especial não pode usar
atacadores nem cinto.
A perda de sangue e o gin tinham-me roubado a energia. Dormitei até que
alguém me despertou dos meus sonhos e me arrastou, como se eu estivesse no
Stalag 13, ao longo do corredor até à câmara de tortura a que dão o nome de
refeitório. Colocaram-me entre dois malucos a sério e a enfermeira sentou-se atrás
de nós a observar enquanto montinhos de comida fétida e cinzenta eram servidos
em pratos de metal. Pensei que provavelmente isto era um teste: queriam ver se eu
estava realmente maluca, por isso comecei a comer com vontade. Alguns dos
maluquinhos comiam realmente aquela mistela, mas a maioria apenas despejou a
comida sobre si mesma.
As vozes aconselharam-me a fugir dali, e eu obedeci, mas fui imediatamente
capturada por três enfermeiras que me imobilizaram no chão do corredor.
- Vou chamar o psiquiatra de serviço - disse uma delas. Resmungou qualquer
coisa que não percebi, porque a mais roliça estava sentada sobre o meu corpo.
Não desisti. Não foi à toa que corri maratonas. Desatei aos socos e aos
pontapés. O poder do Kato e o seu surto de testosterona tomaram conta do meu
corpo franzino.
- Larguem-me, suas cabras. Vai-te foder, vaca gorda. Suas putas, parto-vos as
trombas!
O Kato estava zangado, violento, acossado, mas também tinha um lado gentil.
Ele era, e é, o protector das crianças. Certifica-se sempre de que o Billy tem a sua
arma na mochila; conforta o Samuel quando ele chora. O Kato retalha-me e protege-
me. Parece contraditório? Sim, suponho que sim. Mas é assim que as coisas são.
Um enfermeiro veio ajudar, e o Kato foi arrastado, aos gritos e aos pontapés,
para aquilo a que eles dão o nome de sala de reclusão, um espaço pequeno e
quadrado que cheirava a casa de banho e tinha apenas um colchão de vinil branco
no chão nu. Havia uma única janela coberta com uma rede. No tecto, demasiado
alto para conseguir lá chegar, havia um espelho inclinado, de modo que qualquer
pessoa do lado de fora podia olhar através do vidro da porta e ter uma visão clara do
interior da sala.
Mais alguns enfermeiros entraram na briga. A luta terminou. O Kato deixou-me.
Antes de conseguir recuperar o fôlego, fui dominada, alguém agarrou o fecho dos
meu jeans, estes foram puxados para baixo com as minhas cuecas e foi-me aplicada
uma injecção intramuscular no rabo.
Será que eles não sabiam que eu fora sexualmente abusada durante dezasseis
anos, e que ser assim despida podia não ser boa ideia, não para alguém no meu
actual estado mental, não no meu caso?
As coisas não funcionam assim. Para eles, eu não passava de mais uma
maluca.
A gorda estava a sorrir. À medida que a agulha entrava, ela disse: “Isto é que é
uma injecção bem dada!” E eu pensei “Sua vaca”, e sabia que ela já devia ter dito
aquilo muitas vezes, que, por ser gorda, sentia uma necessidade de ser engraçada.
- Aumentem as doses em dez miligramas - disse a mulher que me dera a
injecção.
- Em todas as injecções? - perguntou o enfermeiro de serviço.
- Quatro vezes ao dia - respondeu a mulher. - Ordens do médico.
As enfermeiras levaram-me tudo, jóias, sapatos, tudo o que eu tinha nos bolsos.
Quando trancaram a porta e me deixaram sozinha no colchão branco, tive uma
sensação momentânea de triunfo. Não importava quantas vezes ou o quão alto as
vozes me encorajassem a matar-me, eu não o conseguiria fazer, não naquela sala.
Também me senti orgulhosa por não ter sucumbido àquele veneno que me queriam
dar no refeitório e pensei que não era de admirar que os imbecis que comiam aquela
mistela estivessem internados num manicómio.
Um dos benefícios do antipsicótico que me injectaram era não me permitir ter
plena consciência do que me rodeava. Naquele espaço vazio, senti-me como se
tivesse entrado no mistério oculto do cubo mágico. Enrosquei-me na posição fetal no
colchão fino e dormi enquanto o tempo fazia o seu trabalho e ia passando.
Fui novamente despertada. Conduziram-me pelo corredor até outra sala onde
pensava que ia ser torturada. Eu possuía informações. Eles sabiam disso. Iam
manter-me na solitária para o caso de eu organizar uma fuga da prisão. Amaciaram-
me com um biscoito e chá que sabia a sopa de peixe. Sentei-me numa cadeira de
plástico coçando-me como um cão com pulgas. A enfermeira explicou-me que o
prurido era causado pela fotossensibilidade, um efeito secundário da clorpromazina,
o medicamento que me fora administrado.
Ela falou com o médico sobre o prurido e os meus medicamentos foram
alterados para haloperidol, que é um poderoso antipsicótico e tranquilizante que
bloqueia os receptores nos canais de dopamina do cérebro, esses misteriosos
canais que obscurecem na esquizofrenia e, para tornar a vida dos psicóticos mais
interessante, controlam as funções corporais e o movimento, tal como falar, andar,
levar uma chávena aos lábios.
Expus o meu traseiro para a injecção seguinte sem me debater. O haloperidol
começou a fazer efeito, o meu corpo ficou dormente e eu caí no colchão. Dormi o
sono dos cavaleiros de mármore da igreja de St. Mildred, e acordaram-me como que
de uma maldição medieval para levar outra injecção. “A cada seis horas”, ouvi
alguém dizer, embora pudesse ter sido com intervalos de alguns dias ou de alguns
anos. O tempo deixara de ser uma curva e tornara-se circular como a espiral sobre a
cama.
Durante os momentos de lucidez, estava ciente de que a minha garganta estava
seca e os meus lábios estavam gretados. Os meus olhos estavam fechados como
se tivessem sido colados. Passava o tempo a dormir, era a Bela Adormecida com
olhos pegajosos, lábios gretados e prurido cutâneo. Era o mesmo que estar numa
camisa-de-forças, porque mesmo quando estava acordada era incapaz de me
mexer.
Mesmo imóvel e a dormir, eu era considerada um perigo para mim mesma, e só
depois daqueles dias distantes terem chegado ao fim é que soube que um membro
do pessoal se mantivera sempre à minha porta, sendo revezado de hora a hora, com
a exclusiva responsabilidade de contemplar o reflexo da minha forma prostrada no
colchão através do espelho no tecto.
Aquilo teve um fim. O Príncipe Encantado deve ter beijado os meus lábios
gretados e fui levada para uma sala e sentada numa cadeira diante do hirsuto Dr.
Eric Barne.
Ele estava atrás de uma mesa comprida com alguns funcionários sem rosto,
seis, recordo-me: as mulheres usavam pérolas e os homens gravata. Conversavam
entre si e eu teria dito: “Espero não estar a incomodá-los”, mas os meus lábios
estavam colados. Sentia-me perdida, esgotada e esquelética, e interrogava-me se o
Colin Ince faria parte da conspiração. Agora compreendia. Compreendia tudo.
Aquelas pessoas tinham interesse em manter o serviço de saúde a funcionar tal
como estava. Não queriam que eu chegasse de repente com o meu doutoramento e
mudasse tudo.
Conversaram durante cerca de dez minutos, o que me pareceu uma eternidade.
Depois de estarem num estado comatoso durante tanto tempo, as vozes na minha
cabeça despertaram da sua siesta e de repente manifestavam-se a plenos pulmões.
Apareciam de todas as direcções, de modo que a minha mente estava a ser
sacudida como uma salada mista.
- Recordas-te de mim? - perguntou o Dr. Barne finalmente.
Assenti com a cabeça.
- Sabes que dia é hoje?
Sacudi a cabeça.
- Sabes em que mês estamos?
- Agua - murmurei.
- Desculpa?
- Agua.
- Ela quer um pouco de água - disse uma das mulheres.
- Ah, sim, claro.
Trouxeram um copo de água, que eu bebi.
- Estamos em 1992 - disse-lhe.
- Desculpa?
- Se essa é a próxima questão, estamos em 1992. Tenho vinte e três anos.
Estou a estudar para o meu doutoramento. O meu nome é Alice Mcjamieson.
- Ah, sim.
- Alice Jamieson - corrigi-me a mim própria.
- Deixa-me fazer-te outra pergunta - prosseguiu o Dr. Barne. - Ouves vozes?
- Sim.
- O que estão elas a dizer-te?
- Nem sei por onde começar - respondi.
- Deves estar muito cansada - disse ele. - Penso que está na altura de saíres da
reclusão, mas gostaria de te manter sob observação especial por mais algum tempo.
O resto do grupo acenou com a cabeça e eu recordei-me dos estagiários que
tinham feito aquilo. Assim que eu estivesse no comando, ia acabar com todos
aqueles acenos de cabeça, livrar-me de todas aquelas pérolas e fatos de tweed,
impedir que os enfermeiros puxassem para baixo os jeans das pessoas.
No dormitório principal, fui colocada na cama ao lado do posto de enfermagem.
Uma enfermeira perguntou-me se podia telefonar a algum parente para me trazer
algumas roupas limpas. Devia feder. Dei-lhe o número de casa da Rebecca e fechei
os olhos.
A minha cama nova era, de longe, muito mais confortável do que o colchão na
sala de reclusão. Sentia-me satisfeita por a vida estar a melhorar. Já me esquecera
de como era realmente a vida, trabalhamos muito e estudamos muito, corremos para
o autocarro e comemos piza, temos amigos e lemos livros, é uma luta. Isto é vida.
Eu não tinha apetite à hora do chá. Foi-me dada outra injecção e voltei
novamente à terra de ninguém. Mais tarde naquela noite, a 7.ebecca chegou e senti-
me muito feliz por ver um rosto amigo, alguém da vida real. Só Deus sabe acerca do
que conversámos e ela prometeu ir a casa da Kath buscar algumas roupas lavadas.
Quando ia a sair, ouvi-a dizer a uma das enfermeiras:
- Aquela não é a Alice. Olhe para os olhos dela. Está tão drogada que parece
estar em transe.
- Ela agora precisa de estar sedada - respondeu-lhe a enfermeira. - Está
paranóica e a evidenciar sinais de psicose.
A Rebecca ficou ali por um momento. Olhou para trás e acenou-me. Acenei,
mas estava a pensar: Psicose. Psicose. Aquela não era eu. Eu não era uma
psicopata. O Kato não é um psicopata.
O relógio marcava as dez e era novamente hora dos medicamentos. A
enfermeira gorda surgiu atarefada distribuindo comprimidos.
- O Dr. Barne retirou-te as injecções por agora - informou-me. - Tens de beber
isto à minha frente, para eu ter a certeza de que o engoliste.
Era verde como um fungo.
- O que é? - implorei.
- É o mesmo medicamento que tens tomado, mas líquido - respondeu, e
acrescentou com um tom encorajador: - Imagino que seja preferível a todas aquelas
injecções.
O líquido verde parecia ser as sobras liquidificadas da comida do refeitório.
Engoli-o e enfiei-me entre os lençóis pensando que o tipo de pessoas que trabalha
em hospitais psiquiátricos não é o tipo de pessoas que devia estar a trabalhar em
hospitais psiquiátricos. Tinha de me recordar disso. Anotá-lo. Escrever um ensaio no
meu Toshiba. Tinha saudades do Rato.
Apareceu outra enfermeira, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama
onde ela, ou outra pessoa qualquer, ficaria durante toda a noite. Eu ainda estava sob
observação especial.
O problema dos hospitais é que não nos deixam em paz. Estava a sonhar com
esculturas em pedra ou algo do género quando fui despertada por uma enfermeira
segurando um copinho com a minha medicação. Já devia ser manhã.
Engoli-a e perguntei se podia tomar um duche.
Ela tinha de pensar no assunto. Era como se lhe tivesse perguntado se me
emprestava cinco libras.
- Vou ter de me sentar no chuveiro contigo... mas não debaixo do chuveiro -
disse-me ela.
Ah, ah, ah.
E lá fomos nós. Lavei a cola dos meus olhos e vesti a roupa limpa que a
Rebecca me deixara a caminho do emprego.
Continuaram a dar-me medicamentos. Eu não queria tomá-los, mas sabia que
se não os tomasse me imobilizariam e espetariam uma agulha no meu traseiro. Era
impossível vencê-los. Fui seguida por uma enfermeira até ao refeitório, onde comi
umas colheradas de cereais de um pacote novo que não fora adulterado. Era como
estar a lanchar com chimpanzés. Enquanto observava os loucos a tentarem
alimentar-se, ocorreu-me que, se não tivesse cuidado, acabaria como eles:
institucionalizada.
Do refeitório fizemos uma viagem mais profunda pelas alegrias do manicómio.
Esta foi a minha primeira visita à sala de dia. Havia cerca de vinte pacientes na
enfermaria, homens e mulheres, todos misturados no mesmo espaço. Percebi com
um súbito horror que eu era uma paciente agora.
Havia poucas pessoas da minha idade, a maioria era mais velha. Um homem
passou a manhã inteira a caminhar insistentemente em círculos; outros sentavam-se
a balançar uma perna para trás e para a frente num movimento que reconheci como
sendo meu. No meu mundo psicótico, eu não me apercebi até pensar bem sobre o
assunto que, tal como eu, os outros pacientes também estavam sob o efeito da
medicação. O caminhar constante e a inquietação interna são conhecidos como
acatisia, um efeito secundário comum dos medicamentos antipsicóticos.
A rotina nunca variava. O pequeno-almoço era servido entre as oito e as nove. O
almoço era ao meio-dia, o chá às cinco. Havia actividades de grupo entre as
refeições e as horas de visita, que eram entre as quatro e as oito horas. Eu
mantinha-me afastada dos outros pacientes e, por vezes, observava duas pessoas
com acatisia a jogar ténis de mesa.
Cuidado com aquele. Ele pode matar-te.
Mesmo drogadas com antipsicóticos, as vozes persistiam, e iriam persistir, talvez
para sempre.
Quando tentava ler, os meus olhos não focavam.
- É um efeito secundário da medicação - explicou a enfermeira que me
acompanhava na altura. - Muitas vezes provoca uma visão desfocada. Não é grave.
Não é grave? Se eu não podia ler, certamente enlouqueceria no manicómio.
Vais ficar louca, louca, louca.
A leitura era o meu consolo, e agora que não podia ler, ficava a olhar pela janela
a observar as mudanças da luz à medida que o mundo girava. No nosso dia-a-dia
esquecemos a total magnitude do tempo. Ele vai passando, rápido e lento,
arrastando-se e apressando-se para os prazos, segundas-feiras seguidas de terças,
fins-de-semana, feriados, Natal, outro aniversário, mais um ano. No manicómio, o
tempo torna-se uma eternidade invariável, uma vasta neblina azul-pálida demasiado
pesada para suportar; é disto que as pessoas falam quando se referem ao peso do
tempo.
Quando paramos de pensar no tempo, paramos de pensar, e o não-pensamento
é uma forma de morte. Quando somos jovens não pensamos na morte, a não ser
que, tal como o Kato e a Shirley, exista alguma dor insuportável a atormentar a
nossa mente de tal maneira que faz da morte a única solução. Foram o Kato e a
Shirley que conspiraram para tomar aqueles comprimidos, beber aquele gin, partir a
garrafa e rasgar a carne dos meus antebraços. Eu compreendia o motivo e
perdoava-os.
Durante a hora do chá, um biscoito e a mistela habitual que sabia sempre a
peixe, tive um vislumbre do meu reflexo numa bandeja cromada - não havia
espelhos nem vidros para não nos cortarmos com eles - e não se parecia nada
comigo. Eu estava ao mesmo tempo mais velha e mais nova, consumida como as
crianças que vemos nos documentários a trabalhar nos campos ou debruçando-se
sobre máquinas de costura manuais. O som da minha própria voz bloqueava os
sons das vozes dentro de mim e eu percebia que estava a falar sozinha.
Jantar, pôr-do-sol, hora de apagar as luzes. Entre o sono de morte provocado
pelos medicamentos as longas horas são ainda mais longas. A noite, temos o
silêncio e os gritos dos pacientes que estão a ser imobilizados e drogados. Os seus
gritos são estridentes e cintilantes como estrelas cadentes; o silêncio cai como a
neve num manto sereno e espesso, um casulo negro no qual imperam os pesadelos
e acordamos apavorados e indefesos.
Como eu agora já estava na ala principal e não no isolamento, eram-me
concedidos mais privilégios. Entrei em contacto com a Roberta Stoppa pelo telefone
e pedi-lhe desculpa por não ter comparecido na nossa última sessão. Ela disse que
estava preocupada comigo e que não sabia que eu estava no hospital.
A minha cota de privilégios disparou ainda mais alguns dias depois, quando fui
retirada da observação especial. Agora era-me permitido tomar banho e ir à casa de
banho sem escolta, embora ainda aparecesse alguém a cada quinze minutos para
ver como eu estava.
Ainda me enchiam de antipsicóticos. Dormia muito. O meu cabelo ficou mais
comprido. Os meus ténis precisavam de uma limpeza. Durante os momentos
conscientes, na sala de dia, escutava as conversas internas e via a minha mente a
mover-se como o holofote de um campo de concentração sobre diferentes cenas da
minha vida: aquela menina com aranhas na barriga, com a pila do papá enfiada no
ânus, a rapariga com as maçãs do rosto rosadas reflectindo as rochas de Petra, a
rapariga com a toga e o capelo para receber o diploma com distinção.
Era importante perceber quem eu era para não me tornar outra pessoa qualquer.
Os demais pacientes estavam sempre a fungar, a babar-se, a tossir, a cuspir, com
espasmos, a contorcer-se, a caminhar em círculos. Um desencadeava o outro, e a
sala de dia transformava-se no teatro do absurdo, com todas aquelas pessoas
loucas, como se estivessem numa rotina extravagante, de olhar fixo, martelando o
chão, urinando-se, rindo, gritando, batendo nas suas cabeças com raquetes de ténis
de mesa. Se somos sãos, ou se acreditamos que o somos, começamos a duvidar.
Eu não queria ficar contagiada com nenhum dos maus hábitos dos outros pacientes
e mantinha-me longe deles.
Colocava a mim mesma constantemente as mesmas perguntas. Devo escutar
todas as vozes? Agir a cada impulso? Devo tornar os meus pensamentos realidade?
Os medicamentos e o meio onde se está não ajudam quando estamos a tentar
manter a sanidade mental. Se alguém durante aquele Verão de 1992 me tivesse
dito, “aqui estão 400 libras, vai para Israel durante um mês”, tenho a certeza de que
teria ficado bem. Isso confirmou-me, enquanto contemplava a vista pela janela, que
havia uma conspiração para me impedir de interferir com o sistema de saúde.
Psiquiatras diferentes viam-me em dias diferentes nas suas rondas pelas
enfermarias. Como se tivessem ensaiado, ou como se estivessem numa audição
para um papel, todos eles desenroscavam a tampa das suas canetas de tinta
permanente para acrescentarem notas analíticas ao meu ficheiro. Uma mulher
esbelta, com pernas longas e sensuais e roupas de bom corte, disse-me um dia num
sotaque francês, “Freud diz que todos nós somos outra pessoa lá no fundo, e a
pessoa real lá no fundo tem sentimentos diferentes”.
Sacudiu os seus belos cabelos e sorriu.
- O quê? - perguntei, mas ela já se afastara, as longas pernas em saltos altos
como tesouras a retalharem uma passagem através da enfermaria.
Durante as seis semanas seguintes, sempre que o Kato se manifestava,
rebelava-se contra o sistema. Lutava com a enfermeira anafada e eu sentia-me
como um peão a combater numa batalha que não era minha. Depois destas lutas,
acabávamos de novo na cela acolchoada, porque eu era “considerada um perigo
para mim mesma”, e mudavam a minha medicação outra vez.
Finalmente, os psiquiatras fizeram o seu diagnóstico.
Sentei-me na mesa comprida diante do Dr. Barne e da sua fileira de colegas.
Fez-se uma longa pausa, plena de possibilidades.
Eu estava, anunciou ele finalmente, “psicótica com alucinações auditivas”.
Encolhi os ombros e arqueei os dedos dos pés. Detestava a palavra psicótica, e
alucinações significava que eu estava a ouvir vozes que não existiam. Era tudo
muito bonito, mas se as vozes não existiam, como é que elas estavam a tagarelar a
toda a hora? Mesmo ali, naquele preciso instante.
O Dr. Barne refinou o seu diagnóstico na sessão seguinte. Parecia satisfeito
consigo mesmo quando me disse que eu estava a sofrer de esquizofrenia paranóide,
ou, dito de outro modo, “esquizofrenia com ideação paranóide pronunciada”.
Segundo ele, eu estava a ouvir vozes que não existiam com uma maneira
deformada de construir ideias e imagens.
Um sorriso surgiu na sua barba negra.
- Sabes, Alice, os sintomas podem ser tratados com medicação.
Bem, isso era um alívio. Errado, mas ainda assim um alívio.
Já tomara três medicamentos antipsicóticos diferentes, que não tinham sido
muito eficazes. Agora estava a receitar-me Clopixol.
O novo medicamento acalmou as vozes e aliviou a minha paranóia. O Dr. Barne
estava “entusiasmado” com os meus progressos e eu comecei a misturar-me mais
com os outros pacientes.
Um dia, comecei a conversar com uma rapariga chamada Sophie, que tinha a
minha idade. Tal como eu, fora admitida em St. Thomas por ser considerada um
perigo para si mesma, e tentara suicidar-se por duas vezes. Também fora trancada
por diversas vezes na sala de reclusão. Eu pensei que ela ouvisse vozes como eu,
mas ela confidenciou-me que fora abusada em criança pelo pai e tinha dois filhos
dele.
A Sophie jamais poderia esquecer o que lhe acontecera. Tinha dois filhos que,
dia após dia, não a deixavam esquecer. A dor era tão forte que, nesses momentos,
quando a fechavam na sala de reclusão, ela soltava um grito lancinante que vinha
das profundezas da sua alma ferida e nos fazia imaginar todos os pesadelos e
horrores da eternidade.
Fazia-me lembrar uma passagem de Shakespeare do quarto ano:
Dai à tristeza palavras. [Pois] quando a dor perde a fala sussurra ao coração
destroçado, e assim se quebra.
Ficava deitada na cama na noite negra, sem sono, recordando-me de que
também eu fora abusada, e de que dentro de mim havia uma ferida aberta repleta de
mágoa, tristeza e dor. Viria um momento em que, tal como a Sophie, sentiria
necessidade de encontrar o grito dentro de mim e deixá-lo sair.
CAPÍTULO 16

REGRESSÃO

Agora que eles pensavam que sabiam o que havia de errado comigo, aquelas
oito semanas de humilhação em St. Thomas chegaram ao fim e fui enviada de volta
para o mundo com um saco repleto de medicamentos, um vento frio a trespassar o
meu blusão e uma marcação para uma visita a uma enfermeira psiquiátrica.
Ela era uma rapariga do Yorkshire de faces rosadas que dava pelo nome de
Lynne Tucker e, tal como a mãe e a sua cabeleireira, iria vê-la uma vez por semana
para uma conversa. A Lynne era uma mulher entroncada que falava apenas sobre si
mesma, como se isso mostrasse aos seus pacientes que, por muito perturbados que
estivessem, pelo menos não tinham de suportar as suas dores nas costas, a
amigdalite da filha, e por aí fora.
- E como te sentes hoje, querida?
- Com frio - respondi.
- É o tempo.
Ah, ah, ah.
O Verão terminara. Desaparecera. Nem dei por ele. A vista da janela em St.
Thomas nunca mostrava o sol, apenas uma pálida névoa aquosa da mesma
tonalidade dos meus jeans desbotados.
Fiquei surpresa ao descobrir que a minha proposta para um mestrado com vista
a alargar a minha tese de doutoramento fora aceite pelo conselho científico da
universidade. Conseguira passar o meu primeiro ano em Huddersfield e estava de
volta à escadaria em espiral para o Céu do doutoramento. Naqueles modos contidos
típicos dos ingleses, o Gerald Brennan, o Brian e o Colin Ince nunca mencionaram a
minha ausência no final do período de Verão. Compreendi que ser louca e fazer um
doutoramento não eram incompatíveis.
Retomei o aconselhamento com a Roberta Stoppa. Ela já havia introduzido
jogos como o Ker-Plunk para atrair o Billy, e agora, quando ele aparecia, ela
encorajava-o a falar acerca dos seus sonhos e segredos. Como parte da sua
formação pelo NCH, a Roberta aprendera um procedimento desenvolvido por Penny
Parks, a autora de Rescuing the Inner Child.
Descrever os pesadelos não é o suficiente, explicou ela. Somente revivendo
esses pesadelos estaria no caminho certo para a cura.
Através de perguntas e sugestões cuidadosamente construídas, mas sem nunca
recorrer ao hipnotismo, a Roberta conseguiu fazer-me regredir à infância. As
crianças tinham todas diferentes recordações, todas elas compartimentadas para me
protegerem a mim, a Alice. Agora que as memórias tinham permissão para vir à
superfície, a criança que as recordasse sofreria a agonia e a angústia de reviver o
abuso. A medida que essas memórias se infiltravam na minha consciência, eu sofria
a mesma tortura. Entrava na sala de aconselhamento como uma rapariga
perfeitamente normal, mais ou menos, e transformava-me num rapaz de cinco anos,
ou numa menina de dois, e saía de lá completamente devastada e a tremer.
Quando saía dessas sessões, sentia-me completamente esgotada, e percorria o
caminho até à estação de comboio a soluçar. Detinha-me a três quartos do caminho
ao longo da plataforma dois, observando o comboio a ficar cada vez maior à medida
que avançava sobre os carris prateados. Cerrava os punhos e enviava mensagens
directas às solas dos meus pés: Quietos, esperem que o comboio pare; quietos,
esperem que o comboio pare.
Tentei ser normal. Tentei não beber, não me ferir, sofrer uma overdose. Mas a
tentação estava para além do meu controlo; estava dentro de mim. Quando um
equilibrista avança lentamente sobre o abismo, leva consigo uma vara que mantém
paralela ao solo para se manter firme. O Clopixol era a minha vara. Mas eu ainda
estava presa por um fio, suspensa sobre o abismo. Por vezes sofria recaídas. Perdia
tempo. Faltava às consultas. Bebia. Caía. Dormia mal.
Uma manhã, a Rebecca deixou-me em Leeds para um encontro com a Roberta.
Acenei-lhe quando o carro fez inversão de marcha sem fazer ideia de onde me
encontrava. Peguei na minha arma.
Bang. Bang.
Estás morto.
Há um templo de mármore, um edifício de tijolos vermelhos, três lanços de
escadas. Deve ser quarta-feira.
Pensava que ontem fora quarta-feira.
Onde estou?
Salta, Alice, salta. Tu sabes que queres.
- Deixem-me em paz. Desapareçam!
O tempo estava fora de controlo.
Eu estava de regresso à plataforma dois a observar o comboio a aproximar-se
ruidosamente pelos carris, a experimentar os medos do Billy a darem lugar à raiva
do Kato, a sua ira a distorcer as minhas feições. Daqui a nada espeto um soco em
alguém.
Salta, Alice, salta. Tu sabes que queres.
O Professor era como um disco de vinil riscado num gramofone antigo. Repetia
constantemente Mata-te, mata-te, numa voz sussurrante como uma broca a abrir
buracos no escudo protector dos meus antipsicóticos.
Naquela noite em casa da Kathy, com a porta secreta habilmente escondida,
deitei-me na cama com o Valium a transportar-me para o sono. Enquanto estava
meio a dormir, mais do que recordar, apercebi-me de que estivera numa sessão de
terapia com a Roberta naquele dia, mas como o tempo fora consumido pelo Billy e
pelo Kato, não tinha uma lembrança clara do que eles disseram e sofreram. As suas
memórias eram chagas abertas, em carne viva. A medida que essas memórias
deslizavam para a minha mente adormecida, acordei com um flashback doentio do
acto físico do meu pai a entrar no meu quarto, a tirar a minha roupa, a lubrificar o
seu pénis na minha boca e a violar-me analmente, voltando-me e enfiando a sua
erecção humedecida no meu rabinho de menina.
Fiquei ali acordada, eu, a Alice, a tremer, a suar, nauseada e apavorada.
Percebera que o sexo, tal como Bach nas suas “Variações Goldberg”, tem muitos
temas, desvios, tangentes e digressões. Não conseguia imaginar-me a tomar parte
numa sessão de sexo a três, mas pelo menos agora sabia o que era. As lembranças
do Billy eram os pesadelos nebulosos de uma criança de cinco anos de idade, mas
chegavam até mim como as memórias vivas e nítidas de uma mulher de vinte e três.
Empurrei para trás as roupas da cama, corri pelo corredor e vomitei na casa de
banho. A dor dessas memórias era excruciante. Era como arrancar dentes sem
anestesia, uma imersão na dor que era esmagadora, constante e insuportável.
Sentia nojo ao toque da minha própria pele, das minhas mãos enquanto as
observava em movimento sobre o teclado do Toshiba, no olhar vazio que distinguia
nos meus olhos nas raras ocasiões em que vislumbrava o meu reflexo no espelho.
Havia duas perguntas que continuavam a martelar-me o cérebro: Por quanto
mais tempo consigo suportar este tormento? Quanto tempo vai demorar até a minha
mente ficar curada?
A Lynne Tucker não sabia. A Roberta não sabia. Liguei para a linha de apoio à
vítima. Os conselheiros não tinham uma resposta, mas eram bons ouvintes. Eu sou
fã do telefone. Através das linhas de cobre é possível falar mais livremente, a voz
torna-se independente da prisão do corpo. Não precisamos de nos encolher ou
esconder, enxugar as lágrimas ou limpar o vomitado da T-shirt.
Telefonei ao Stephen. Disse-lhe que estava a vivenciar memórias há muito
reprimidas de ter sido abusada em criança e estava a ganhar coragem para
finalmente pôr a minha mãe ao corrente da situação. Ele prometeu apoiar-me
quando eu o fizesse. Estou certa de que o meu padrasto sempre soube que havia
tabus na psique da nossa família. Ele fora sempre muito compreensivo e isso
ajudou-me mais do que ele poderia imaginar.
O desejo de contar à minha mãe o que o meu pai me fizera não me saía da ideia
há dez anos. Eu queria que ela ficasse a saber de todos os detalhes repugnantes e
intragáveis.
- Quem é a menina do papá?
- Sou eu.
Aquela longa língua a lamber as minhas partes íntimas, a meter-se no meu rabo,
o seu pénis na minha boca para lubrificar, a relaxar o esfíncter enquanto penetrava o
meu ânus, metendo aquele pénis ávido na minha vagina, o jorrar do seu esperma
quente no meu rosto, os beijos nos meus lábios. Quando li num livro de Anais Nin
que as prostitutas nunca beijam os clientes compreendi porquê.
Eu queria que a minha mãe ouvisse. Queria que ela acreditasse em mim. E
queria que ela identificasse esta “verdade encoberta” instintivamente, com aquele
instinto que as mães têm quando ouvem os seus bebés a chorar durante a noite.
Queria deitar tudo cá para fora e, acima de tudo, queria que a minha mãe
compreendesse que as minhas revelações não eram um ataque a ela. Eu não
estava a culpá-la.
Durante as duas semanas que se seguiram, anotei num caderno tudo o que me
recordava sobre os abusos. Numa quinta-feira sombria, a meio do Inverno, apanhei
o comboio para Birmingham para passar um fim-de-semana prolongado em casa.
Era tarde quando cheguei. Jantámos na sala de estar com os tabuleiros no colo.
Tinha o estômago contraído como um punho e o espasmo no meu pescoço voltara a
pulsar. Levei o meu tabuleiro para a cozinha e depois sentei-me novamente. A
minha mãe percebera que havia algo no ar.
- Mãe, preciso de falar contigo - disse-lhe.
Ela sacudiu ligeiramente o corpo.
- Não tens de fazer cerimónias comigo, Alice - respondeu.
- Eu sei, mas quero que me ouças sem me interromper.
- Não é o que faço sempre?
- Vamos ouvir - disse o Stephen.
Abri o meu caderno. Conseguia ouvir o latejar do meu coração nos ouvidos. A
sala estava tão silenciosa como um teatro quando a peça está prestes a começar.
Tive a sensação de que a minha mãe antecipara este momento há muito tempo.
Contei-lhe tudo. Cada detalhe depravado e ignóbil do tormento degradante que fora
a minha infância: as aranhas, o castelo, o homem do Rolls-Royce, os preservativos
multicoloridos; aquelas alturas em que eu era trancada na Gaiola com uma lata de
massa; a anorexia, o álcool que eu levava diariamente para a escola, as minhas
visitas à Dra. Purvis, a psiquiatra infantil; as oito semanas degradantes que passara
em St. Thomas completamente sedada.
Ela permaneceu em silêncio, com o sangue a fugir-lhe do rosto. Fechei o
caderno e comecei a chorar. Chorei sem parar. Verti lágrimas amargas e essas
lágrimas eram da Bebé Alice, do Samuel, da Shirley e do Kato, do Billy, do JJ e
minhas. Eu chorava e a minha mãe veio sentar-se ao meu lado no sofá. Abraçou-
me. Deu-me umas palmadinhas nas costas e, entre os meus soluços, ouvi-a dizer
que acreditava em mim.
Na denúncia prolongada do meu pai, não mencionei a violação quando tinha
vinte e um anos. Não sei porquê. Damos um pouco, retemos um pouco. Sentei-me
no sofá e deixei a oportunidade escapar. A minha mãe estava a abraçar-me.
Acreditava em mim. Eu necessitava desesperadamente de algum consolo imediato
naquele momento fugaz. Mas disse que queria confrontar o meu pai e pedi ao
Stephen para ir comigo.
Por que razão necessitava de o confrontar novamente? Eu sou obsessiva.
Repito-me. Não consigo evitar. Vivo sozinha na minha cabeça. Tenho poucos
amigos e perco os amigos que tenho. As pessoas pensam que sou esquisita, e sou,
creio. Queria que o meu pai visse com os seus próprios olhos que a menina que
permanecera deitada de barriga para baixo enquanto ele fendia as paredes do seu
ânus, empurrando o seu pénis para dentro dela, ainda estava viva, continuava a
lutar, ainda se debatia para ser normal, para ser feliz. Estivera encarcerada no
campo de concentração do meu quarto de paredes cor-de-rosa, mas, tal como a
minha amiga Esther, eu sobrevivera.
Fomos até casa dele na sexta-feira, ao final do dia. Fiquei no alpendre e disse-
lhe o que tinha a dizer. Não me recordo de nada do que lhe disse, mas saiu de
dentro de mim como um veneno. O meu pai tremia. Os seus ombros tremiam. Ali de
pé, a ser confrontado com o horror da pessoa que era e do que fizera, tinha um
aspecto velho e alucinado. Nada, nada vai alguma vez compensar a injustiça do que
o meu pai me fez, mas pelo menos estar ali a expelir todo aquele veneno concedeu-
me um momento de respeito por mim própria.
O meu pai conseguia ver o Stephen sentado no carro e permaneceu à porta
mansamente a ouvir tudo que eu conseguia vomitar das minhas entranhas. Não foi
buscar uma faca à cozinha. Não me ameaçou. O problema dos fanfarrões é que, no
fundo, são sempre uns cobardes. Sempre. Voltei-me. Percorri o caminho de cabeça
erguida e fechei silenciosamente o portão. As crianças, tenho a certeza, estavam
orgulhosas de mim.
Enquanto conduzíamos de volta a casa, o meu pai telefonou à minha mãe a
declarar-se inocente e a minha mãe disse-lhe que acreditava em mim, não nele.
Agora que contara à minha mãe e confrontara o meu pai, podia regredir mais
facilmente com a Roberta. Costumo anotar os meus pensamentos. Certa vez
escrevi:
Roberta, há algumas perguntas para as quais preciso de respostas:
1. Por que razão as crianças existem? (Embora me pareça que sei a resposta:
será porque sinto que nunca fui uma criança?)
2. Como posso fazê-las desaparecer ou fazer com que cresçam ou algo do
género?
3. Como posso fazê-lo rapidamente?
Mais algumas questões para as quais preciso de apoio:
Por favor, diga-me que acredita em mim.
Será que há outras pessoas que se sentem como eu, ou sou só eu que sou
estúpida/que estou a ficar louca/que não estou a enfrentar algum aspecto horrível
meu (como, por exemplo, talvez eu seja uma mentirosa compulsiva ou algo do
género)?
Finalmente, o Billy pode usar o boné dele na próxima semana e ter um bolo de
aniversário, embora ainda não seja o seu aniversário? E pode rabiscar ou pintar
desenhos a cores? Eu sei que parece uma tolice, mas o Billy ficaria muito contente.
Eu sei que provavelmente pensa que é estúpido, mas é porque eu estou triste. Eu
nunca fui criança e não é culpa minha que as coisas sejam assim agora. O Billy é
um bom menino e não tem culpa de querer brincar. Importa-se que ele brinque
quando ele for a Leeds, ou vai perder a paciência com ele e pensar que ele não está
a esforçar-se? (Ainda que ele esteja mesmo a esforçar-se; está a esforçar-se muito.)
No verdadeiro dia do meu aniversário, entrei na sala de aconselhamento e
encontrei sanduíches, batatas fritas e um bolo de aniversário com velas e presentes,
incluindo um conjunto de animais de quinta e um camião da Lego. O Billy “saiu” num
instante. As peças Lego fascinavam-no. Em diversas ocasiões, quando me pusera a
trabalhar naquele projecto de investigação que evoluía lentamente na casa de
campo, sentia-me despertar, como que de um sonho, enchia de novo na minha
roupa, e dava por mim sentada no chão, de pernas cruzadas, a montar um carro ou
um castelo da minha colecção cada vez maior de legos - comprados ou roubados.
Não sabia de onde vinha e como é que continuava a crescer.
Eu ainda passava muito tempo na casa de campo, a caminhar pelas charnecas
com botas de montanhismo naqueles dias frios de Inverno, a fazer lutas de bolas de
neve com a Rebecca e a Zoé. O Natal chegara e fora-se embora. Estávamos a 10
de Janeiro e eu era um ano mais velha; vinte e três parecera-me jovem; vinte e
quatro parecia-me velha, e o mundo parecia estar a envelhecer comigo.
De volta à festa de aniversário do Billy, a Roberta contou-me mais tarde que ela
e o Billy haviam tido uma espécie de arrufo. Ela insistiu que, se o Billy tinha cinco
anos, agora teria seis. Mas não. O Billy estava certo. O Billy terá sempre cinco anos,
assim como o Kato será sempre um rapaz de dezasseis anos cheio de borbulhas, e
o JJ um fanfarrãozito de dez anos. Não sei como é que eu sabia disto, apenas sabia,
da mesma forma que sabia que o Billy se chamava Billy e a Shirley, curiosamente,
se chamava Shirley.
É claro que no dia em que o Billy fazia novamente cinco anos, o Samuel
continuava a ter seis. Depois de regredir na festa de aniversário, continuei em “modo
criança” no final da sessão. Quando fechei a porta atrás de mim, comecei a sentir
dificuldade em respirar e, de repente, fiquei paralisada. Sentia-me dominada por
uma dor insuportável. Deixei-me cair de joelhos, encolhi-me toda e chorei. Chorei
até a Roberta me encontrar agarrada ao varão no cimo da escada. Felizmente, ela já
conhecia o Samuel e sabia como consolá-lo com o velho ursinho de peluche cor-de-
rosa.
A Roberta cancelou as restantes marcações e passou a tarde com o Samuel a
aprofundar os aspectos mais horrendos do abuso: aqueles momentos em que o meu
pai me levou ao castelo e partilhou a sua confiante filha de seis anos com a multidão
de pedófilos que fingiam adorar o Demónio. As lembranças eram como um puzzle
de 10 000 peças transformando-se lentamente a partir dos fragmentos da cabeça do
Samuel numa imagem sólida que crescia no meu subconsciente.
No final do dia, voltara a ser a Alice, e a Roberta levou-me até às Urgências
onde falei com um psiquiatra. É estranho haver um psiquiatra de serviço para os
acidentes e emergências, mas existe. Não tenho qualquer recordação do que foi
dito, de como escapei das garras do estabelecimento psiquiátrico, ou de como
finalmente cheguei a casa.
O que aprendi nesse dia foi que havia mais contacto entre as crianças do que eu
pensava. Eu sabia que a Shirley e o Kato comunicavam. Agora parecia claro que
todos eles estavam sintonizados numa corrente telepática e conheciam os
pensamentos uns dos outros. Por vezes, eu era incluída na equipa, mas noutras, o
fusível explodia, a corrente rompia-se e eu ficava sozinha, apenas comigo mesma
como companhia.
Recordo-me do meu avô me dizer para não deixar que as coisas na vida me
tornassem amarga, mas que as deixasse enriquecerem-me.
Já não pensava nisso. Na verdade, não conseguia ver como é que os meus
problemas poderiam enriquecer-me. Eu tinha um rótulo psiquiátrico, passara meses
numa instituição e era psicótica durante a maior parte do tempo. Fiquei feliz por o
avô não estar ali para testemunhar o meu sofrimento. Isto foi o que escrevi no meu
diário:
Só quero dormir e afastar todos estes pensamentos. Isto não é justo. Hoje é um
daqueles dias em que estou a recordar-me dos abusos. A verdade é dolorosa de
mais para suportar. Atormenta-me mental e emocionalmente. Fisicamente, o meu
corpo sente-se traumatizado de novo. Ajudem-me! Ajudem-me! Sinto-me tão
isolada. Necessito do toque de alguém (um toque seguro); de escutar a voz de
alguém; de saber que existe alguém. Ajudem-me! Ajudem-me! Por favor, não me
deixem ficar sozinha com isto outra vez. Oh, meu Deus, estou a sofrer tanto. E agora
lembro-me que foi assim que me senti há tantos anos. Estou a recordar-me de tudo
agora...
AJUDEM-ME! AJUDEM-ME!
Quero chorar; mas sinto-me como uma pedra, fria e dura. Não me posso permitir
experimentar a profundidade dos meus sentimentos, por isso desligo as minhas
emoções. Mas agora, um comentário de algum lugar na minha mente diz-me que
isto é real. Que aconteceu realmente. Oh, merda, aconteceu mesmo. Depois a voz
parece ainda mais intensa e repete: “Oh, meu Deus, por favor, ajudem-me; alguém
me ajude!” Mais uma vez: “Ajudem-me! Alguém me ajude!” E novamente, com mais
urgência. Depois fica tudo em silêncio. Os meus sentidos entorpeceram-se e sinto-
me como uma pedra outra vez. O único sinal de emoção é o choro na minha cabeça.
O choro de uma criança. Lágrimas amargas e tristes. Lágrimas de desespero. Eu
quero aproximar-me e tocar na criança, mas não consigo. Ouço o choro e também
quero chorar. Mas não consigo. No entanto, o sentimento de desespero não diminui.
Estou a sofrer. Que raio está a acontecer comigo? Sinto que estou a ficar maluca!
Nesse mesmo mês, o financiamento para o aconselhamento por parte do NCH
foi cortado em definitivo. O Samuel ficou destroçado. Confiava na Roberta. Não
conseguia compreender por que razão não voltaria a vê-la e passava horas
encolhido sobre si próprio, a olhar para a parede, com lágrimas grossas a
escorrerem-lhe pelo rosto.
A Alice aparece. Fica na cama a dormitar com o rosto molhado, a beber, a
rabiscar poemas, a desenhar, a ler. Ela está, como escreveu Blake, “entre aqueles
que nasceram para a infelicidade”.
Estava a caminho do meu segundo esgotamento nervoso. Ou seria o terceiro?
Tenho de ir buscar a calculadora. Verificar os diários. Telefonar para a linha de
apoio. Enviar aquela carta para o Patrick O’Hay. Eu não estava a viver. Mal existia.
Estava a afundar-me dentro de mim própria como se estivesse a descer pelo poço
de uma mina que conduzia às profundezas místicas do meu ser. Da minha alma.
A Roberta disse-me uma vez, “Algo se partiu e precisa de ser arranjado”, e
nesse dia tive uma visão de potes partidos em museus aquecidos pelo sol.
Outras vezes, estava a sofrer daquilo a que chamam a fuga, um estado
semelhante ao sonho onde a vida normal escoa como areia através de uma
ampulheta, a luz a transformar-se em escuridão, a escuridão a transformar-se em
luz, os ursinhos alternadamente alegres com sorrisos divertidos, cruéis com sorrisos
maliciosos, o buraco na parede entre o meu quarto e o da Kathy abrindo-se e
fechando-se como o olho de um peixe gigante. Os flashbacks dos abusos iam e
vinham como papagaios de papel lançados ao vento. O sono desapareceu.
As pessoas prosseguiam com as suas vidas, iam trabalhar, pagavam as contas,
poupavam, tinham amigdalites, casavam, tinham filhos, divorciavam-se, sentiam-se
deprimidas, iam trabalhar, poupavam, caíam no abismo. Comecei a caminhar de um
lado para o outro como um dos imbecis em St. Thomas. Tenho de seguir em frente,
prosseguir com a minha vida, continuar a lutar.
Mata-te, Alice, mata-te.
As vozes. Estavam sempre lá. Sempre.
A casa está silenciosa. O buraco está selado. A Kathy e o Jim estão no
emprego. Um longo duche. Aviar a minha receita. Abastecer-me. É segunda-feira.
Não sei bem por que razão isto é importante, mas se alguém pergunta, “Que dia é
hoje?” serei capaz de responder “E segunda-feira”.
Dirijo-me ao escritório. No sopé da colina há um bebé num carrinho à porta de
uma loja a chorar, um longo e triste choro soluçante...
Não conseguia perceber por que razão me encontrava na plataforma da estação
de comboios de Manchester Piccadilly.
Será que andei de comboio?
As minhas roupas pareciam apertadas.
O Kato estava a engolir os comprimidos de Clopixol como se fossem Smarties.
Entrou no comboio seguinte, batendo com a porta com todas as suas forças. Um
velhote abana a cabeça e o Kato limita-se a fitá-lo. Continua a tomar comprimidos à
medida que o comboio prossegue aos solavancos e embate nas pessoas que
dormitam. Dá um soco na palma da mão. Sente-se suado e irritado. Quer fazer
alguma coisa, mas não sabe ao certo o quê.
Birmingham New Street. Bate com a porta da carruagem. Começa a descer a
rua, começa a ficar sem fôlego, o corpo cada vez mais pesado, a garganta seca, os
olhos enevoados.
Continua a andar.
Li algures que o horizonte está a sensivelmente quarenta quilómetros de
distância. Continuamos a andar para alcançar o horizonte e ele continua a afastar-
se. A vida é assim. Nunca alcançamos a nossa meta. Está sempre a afastar-se de
nós. Estamos condenados à decepção porque, na nossa busca da perfeição, somos
constantemente recordados de que nunca vamos alcançá-la. A meta, tal como o
horizonte, está para além do nosso alcance. Se correr a maratona há sempre outro
minuto para vencer.
Um autocarro deixa o Kato no final da rua. Conta as casas, tropeça no caminho,
toca à campainha e cai no chão quando a porta se abre.
Estará morto?
Como a minha mãe conseguiu enfiar o Kato no carro nunca ninguém saberá.
Mas fê-lo. Levou-o para o hospital e fizeram-lhe uma lavagem ao estômago para o
libertar de todos os antipsicóticos que ele engolira. Enviaram-no para casa da
mamã.
E ele fê-lo de novo. Mais duas vezes numa semana.
O Kato não consegue suportar a dor. O Kato pediu o meu corpo emprestado
quando eu tinha dezasseis anos. Como uma rapariga que já deveria ter mais juízo,
mas que não sabia como parar o que estava a acontecer, porque sempre
acontecera, ele, tal como eu, observava enquanto o papá desenrolava o
preservativo e ela permanecia deitada com as pernas afastadas e os seios
pequenos para o papá fazer as coisas que os papás fazem.
CAPÍTULO 17

MEMÓRIAS CORPORAIS

Eles sorriem sempre quando espetam a seringa. É como se esta acção


estivesse directamente ligada a um músculo que provoca um sorriso nos seus lábios
abertos.
Eu estava de volta ao hospício. Não se tratava de um manicómio ultramoderno
como St. Thomas, com secadores de cabelo na casa de banho, mas de um asilo da
era vitoriana onde eu fitava sem pestanejar o tecto manchado de água e ouvia os
ratos a andarem por detrás das paredes. Fecharam-me num dormitório com os
loucos à minha volta a gritar, a chorar, a gemer, a falarem sozinhos. Até mesmo o
edifício estava a gemer; os tijolos antigos feitos de avós mortos e ossos de
dinossauros estavam a transformar-se em pó. Eu estava novamente sob observação
especial e uma enfermeira, que bem podia ser uma figura de cera, estava sentada
imóvel à cabeceira da minha cama. A minha mente estava num torvelinho.
A Shirley encontrara um pedaço de vidro atrás de um cano na casa de banho e
escondera-o sob o colchão. A figura de cera deixou descair a cabeça e adormeceu.
A Shirley deslizou da cama, sacou do pedaço de vidro e saiu a correr pelos
corredores retalhando os meus braços e salpicando as paredes com sangue.
A figura de cera voltou à vida, reuniu um grupo e perseguiu-me, aos gritos, e
acordou os malucos entorpecidos pelos medicamentos, que começaram a gritar e se
juntaram à perseguição. O líquido vermelho jorrava de mim, transformando o chão
do corredor numa pista de gelo de sangue fresco. Fui apanhada, imobilizada,
tranquilizada e adormeci como um pássaro morto.
Não foi um começo auspicioso. Depois de me ligarem os braços e sedarem, o
psiquiatra do asilo disse-me que se eu voltasse a fazê-lo seria interditada, uma
palavra que desperta medo no coração de todos os loucos. Nos termos da Lei de
Saúde Mental isso significava que podiam manter-me internada, enquanto eu
recebia tratamento obrigatório, durante o tempo que considerassem necessário. A
enfermeira Ratched. Jack Nicholson. Voando Sobre um Ninho de Cucos. Todo o
conhecimento pode ser encontrado nos filmes.
A Shirley encolheu-se nas sombras (típico) e eu prometi seguir as regras.
A psiquiatra que estava de plantão resolveu ignorar o diagnóstico do Dr. Barne.
Não encontrava em mim sinais de psicose e retirou-me os antipsicóticos. Eu podia
tomar o Prozac, o diazepam e o temazepam: comprimidos para dormir.
A Drª Adele Armstrong, a psiquiatra principal, apareceu dois dias depois. Era
austera, com um rosto sem expressão e inflexível: uma professora vitoriana num
asilo vitoriano. Os problemas de saúde mental são um assunto sério, não são para
brincadeiras.
Ela disse-me que pretendia manter-me no hospital durante uma semana para
observação, e depois deveria frequentar diariamente um hospital de dia, na clínica
Naydon.
- Mas eu não posso fazer isso, tenho de voltar para Hudders-field.
- Não tem, não senhora.
- Mas eu estou no meio do meu doutoramento - expliquei.
- Agora já não está.
Conseguem ser tão cruéis!
Regressei ao útero, uma criança para a minha mamã e o tio Stephen cuidarem.
Fomos buscar as minhas coisas a Huddersfield.
- Onde é que arranjaste todo estes legos?
- Não sei.
Deixámos a Kathy e o Jim parados no passeio, com a mala do carro repleta de
caixas. Olhei sem nostalgia para a casa da colina, com o seu odor a Golden Virgínia
e o Bruce Springsteen enterrado no seu ADN.
O Samuel desfez-se em lágrimas quando nos despedimos da Roberta Stoppa.
Conseguimos cinco minutos para nos despedirmos da Lynne Tucker, do Gerald
Brennan e do Brian. “Vai dando notícias”, disseram. “Voltaremos a ver-vos em
breve.” Mas eu começara a perceber que quando as pessoas dizem aquilo sabemos
que nunca mais as vamos ver. A amizade é como o fogo, é preciso alimentá-la,
senão o fogo extingue-se. Conduzimos através das charnecas até à casa rústica.
Quando a Rebecca Wallington me abraçou, senti uma dor no peito como se o meu
coração se tivesse partido em dois.
Era domingo. Não havia tempo para o chá. O Stephen, da mesma forma que me
levara pela auto-estrada para que eu pudesse começar o meu doutoramento, trouxe-
me de volta a casa, completando o ciclo, para que eu pudesse levantar-me cedo na
segunda-feira e completar outro ciclo.
O hospital de dia ficava no mesmo prédio da clínica que eu frequentara
semanalmente enquanto adolescente para ver a Drª Purvis. Oito anos depois e o
meu cérebro ainda estava a funcionar mal.
A minha mãe deixou-me na entrada.
- Diverte-te - disse. - Esforça-te.
Era como se eu fosse o Billy e ela estivesse a deixar-me na escola. Ela acabou
por chamar ao hospital o Palácio da Diversão e este fornecia realmente aquilo que
os psiquiatras deviam considerar coisas divertidas para as pessoas loucas. Havia
cerca de quinze pacientes em vários estados de decadência mental e, para ajudar a
curar as nossas mentes, havia artes e ofícios, puzzles e Scrabble. Quando vi a mesa
de pingue-pongue cheguei à conclusão de que havia câmaras ocultas a filmar estes
jogos acatisianos para depois serem usados como entretenimento durante as
conferências psiquiátricas.
Três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas, eu tinha uma sessão de
duas horas com uma terapeuta chamada Jo Lewin, cujo estilo de aconselhamento
era diferente do sistema do NCH que a Roberta Stoppa usava em Leeds. A Jo era
uma mulher enérgica e esguia, com um rosto redondo, olhos azuis alegres e uma
propensão para o preto, o que tornava a sua aparência elegante, mas sombria.
Tinha o seu método, a que dava o nome de “a cadeira”.
A cadeira é utilizada quando o terapeuta acredita que o paciente está pronto
para enfrentar os seus sentimentos indesejados e indefesos. Começa-se com
exercícios de respiração e, quando a pessoa está relaxada, o terapeuta pergunta-
nos se queremos sentar-nos na cadeira. Assim que se senta, através das perguntas
cuidadosas do terapeuta, a pessoa é incentivada a entrar em contacto com os seus
sentimentos mais profundos, as suas memórias mais dolorosas e reprimidas. É
preciso reviver o que aconteceu no passado, de modo a trazer esses sentimentos
para o presente. Se, ou quando, isso é conseguido, a pessoa levanta-se, deixa os
seus sentimentos e lembranças negativos na cadeira, e eles não voltam a parecer
tão dolorosos.
Essa é a técnica. Mas o problema é que eu não gostava de ficar sentada na
cadeira e queria sentar-me no chão, como uma criança. Perguntava constantemente
a Jo por que razão o tapete não podia funcionar como a cadeira e permitir-me
reviver as minhas memórias. Para uma criança, uma cadeira e um tapete fariam
exactamente o mesmo trabalho.
Não queria falar à Jo acerca das crianças. Mantive-as escondidas enquanto
pude, mas a troca de personalidades era uma resposta automática às situações que
estavam fora do meu controlo. O bebé a chorar à porta da loja em Huddersfield
provocara o aparecimento do Kato durante a viagem de comboio para casa, e
depois a overdose conduziu-nos ao asilo, ao hospital de dia e à interrupção
repentina do meu doutoramento, o que me deixou de rastos. Não sabia ao certo o
que provocava o aparecimento do Samuel. Podia ser o odor da sala de terapia, os
quadros na parede, a expressão concentrada nos olhos azuis da Jo. O Samuel foi
dominado por uma súbita lembrança que se transformou numa dor insuportável.
Bateu com a cabeça na mesa e chorou durante duas horas.
A jo estava consciente de que isto não era uma regressão normal ou uma
expressão de impulsos inconscientes. Saiu da sua própria cadeira para se sentar no
chão com o Samuel, e ele permitiu-lhe que o confortasse nos seus braços.
A Roberta Stoppa dera início ao processo de conseguir com que as crianças se
manifestassem. A Jo Lewin conheceu o Samuel, depois o Billy e alguns dos outros.
Sabia que se passava algo que não encaixava no padrão normal. Observou-me
durante mais algumas sessões, fez as suas pesquisas e, finalmente, telefonou à Drª
Arm-strong.
Após esse telefonema, tudo mudou.
Tal como as fotografias de família extraviadas, a falha numa mente conturbada
pode ser difícil de encontrar.
Graças ao telefonema da Jo Lewin, e aos seus conhecimentos, ela conseguiu
guiar a Drª Armstrong de modo a que esta diagnosticasse a minha doença como
Distúrbio de Personalidade Múltipla (DPM), geralmente referido como Perturbação
Dissociativa de Identidade (PDI) pela comunidade psiquiátrica. Finalmente diziam-
me que, afinal, eu não era louca. As vozes das crianças na minha cabeça eram ecos
de memórias dissociadas da exploração sexual e emocional.
Ao longo da minha infância e adolescência, eu consultara diversos médicos de
clínica geral, pediatras, uma psicóloga e uma psiquiatra infantil. Cada um deles tinha
uma peça diferente do puzzle. Juntas, as peças constituíam uma prova corroborativa
de abuso prolongado, mas ninguém tinha peças suficientes para chegar a esta
conclusão.
A psiquiatra infantil perguntara-me se eu fora abusada, mas devido à minha
“dissociação” (uma palavra nova para mim) aos quinze anos, eu não sabia no
sentido normal que fora abusada. Uma vez que vivíamos na bonita casa da família
nuclear perfeita, jamais o teria admitido.
Depois de ser diagnosticada com DPM/PDI, agi da minha forma habitual e fiz as
minhas próprias pesquisas.
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da Associação
Psiquiátrica Americana define o DPM/PDI como uma doença mental em que uma
única pessoa exibe múltiplas identidades ou personalidades, por vezes
denominadas como alter egos, cada uma delas com o seu próprio padrão de
apreensão e interacção com o ambiente. Quando eu, a Alice, mudo para uma das
outras personalidades, ele ou ela assume o controlo total do meu comportamento, e
eu sofro de perda de memória enquanto o alter ego está “cá fora”. Eu estava ciente
disto desde que me lembro, mas nunca fora capaz de lhe atribuir um nome ou
entender o porquê. Fiz as minhas pesquisas e tudo começou a fazer sentido.
No manual Multiple Personality Disorder, publicado em 1989 pelo psiquiatra
canadiano Colin A. Ross, deparei-me com este parágrafo na página 2 da introdução:
O DPM não se baseia no defeito, mas no talento e na habilidade. Os pacientes
usam a sua capacidade de dissociação para lidarem com graves traumas de
infância, que geralmente envolvem tanto o abuso físico como sexual. O DPM é uma
estratégia criativa e altamente eficaz para preservar a integridade do corpo face ao
trauma catastrófico crónico.
Nas páginas 55 e 56, o Dr. Ross coloca uma pergunta surpreendente:
O que é o DPM? O DPM é uma menina a imaginar que o abuso está a
acontecer a outra pessoa. Este é o cerne do distúrbio, e todas as outras
características são secundárias. A imaginação é tão intensa, tão subjectivamente
atraente e adaptável, que a criança abusada experimenta aspectos dissociados de si
mesma como sendo outras pessoas. É esta característica central do DPM que o
torna uma doença tratável, porque aquilo que ela imaginou pode ser desaprendido, e
o passado confrontado e dominado.
O que se destacou na página foram as palavras: “O DPM é uma menina a
imaginar que o abuso está a acontecer a outra pessoa.” Eu sabia tudo acerca disso.
Sempre soubera. Sempre soubera e sempre negara o meu próprio conhecimento, os
meus sentimentos, a minha intuição. A pessoa ouve vozes e recorda momentos
horríveis e inacreditáveis e não pode deixar de pensar que está louca, que aquilo
não pode ser real, que há algo de errado com ela. E ali estava. E agora eu sabia: eu
era múltipla.
Não fiquei surpreendida ao descobrir que a maioria dos doentes de DPM/PDI
são mulheres. São as rapariguinhas que mais frequentemente são abusadas, regra
geral em casa, por membros masculinos da sua própria família. Os múltiplos
masculinos mostram-se frequentemente relutantes em procurar tratamento e por
norma acabam na prisão ou em instituições para doentes mentais.
O Dr. Ross acrescenta no seu texto que, pela sua experiência, os múltiplos
complexos com inúmeras personalidades e barreiras amnésicas complicadas estão
associados a uma frequência de 100 por cento de abusos físicos, sexuais e
emocionais durante a infância. “Nunca conheci ou ouvi falar de um múltiplo
complexo que não tenha sofrido os três.”
Suspirei. Senti aquilo a que as pessoas chamam alegria. Obrigada, Dr. Ross. O
senhor salvou a minha vida. Afinal, não sou nenhuma aberração. Há outros como
eu, meninas que sofreram “abusos físicos, sexuais e emocionais” incessantes. Eu
sofrera os três. O meu pai não me batera com o punho, mas fora penetrada
analmente aos dois anos de idade e, para mim, isso constitui abuso físico e sexual,
e todo o abuso é, por si só, abuso emocional.
Sobrevivi. Ainda aqui estou. Com tratamento, aconselhamento e medicamentos,
iria melhorar.
Apareci no hospital de dia para a minha sessão seguinte, e comecei a sentir-me
como um rato de laboratório a ser testado e analisado quando a Dr. Armstrong e a
Jo Lewin deram início ao meu tratamento.
A Jo não tinha experiência em lidar com um múltiplo, mas era uma mulher
inteligente e aprendeu a lidar com as minhas “mudanças”. Tendo conhecido primeiro
o Samuel, começou a construir um relacionamento com ele. Eu ia para a sessão de
aconselhamento, sentava-me na cadeira e regredia quase imediatamente.
Não tenho presente a data exacta em que o diagnóstico foi feito, mas foi pouco
antes do aniversário do meu avô. O avô fora a única influência masculina de
confiança na minha vida de criança e nunca fizera verdadeiramente o luto da sua
morte.
O Samuel armazenou as minhas memórias e experiências com o avô.
Ele disse à Jo que estava triste, porque não tivera a oportunidade de dizer
adeus. A jo fez uma analogia adequada à idade dele e explicou ao Samuel que o
avô era como um carro velho e que o seu corpo apenas deixara de funcionar. Isso
não foi suficiente para o Samuel e eu conseguia escutar os seus soluços
desesperados na minha mente. Fiquei profundamente afectada com isso. Bloqueara
todas as minhas emoções associadas à morte do meu avô, e agora tinha de
aprender a lidar com elas.
O Samuel, na regressão profunda, quis escrever uma carta ao avô. A Jo ajudou-
o a escrever as palavras:
Querido avô,
Sinto muito, muito a tua falta. Não queria que o teu corpo deixasse de funcionar
porque tu és o meu melhor amigo e ensinas-me muitas coisas. Ensinas-me sobre as
plantas e as folhas e mostras-me os tomates na tua estufa. Disseste-me que os
melhores são os “Moneymaker”. Sinto a tua falta e quero que voltes, mas sei que o
teu corpo deixou de funcionar e por isso só me lembro de ti a dizer adeus e a sorrir
para mim e tento não chorar e ficar triste.
Com muito carinho
do Samuel xx
O Samuel escolheu um cartão com campainhas azuis a crescer na floresta e
copiou as palavras com a sua melhor caligrafia. O Samuel sabia que o avô gostaria
daquele cartão porque o avô tinha muito orgulho no seu jardim e estivera sempre em
paz com a natureza.
Ainda tenho o cartão e acho estranho que a letra do Samuel não seja nada
parecida com a minha. Tenho mensagens escritas pelo Kato (a maioria são pedidos
de desculpa por dilacerar os meus braços), numa letra vincada e sublinhada. A
escrita da Shirley é pesada, os seus pensamentos são ilustrados com imagens
revoltantes à medida que se derramam pela página em poemas em prosa que eu
mais tarde viria a ler com um nó na garganta.
Estava grata ao Samuel por se recordar do avô tão vividamente, mas também
por me fazer lembrar que o avô sempre me amara muito.
No meu diário, escrevi:
Amar-te-ei sempre, avô. Hoje vou estar a pensar em ti. Há já oito anos que
desapareceste e eu ainda sinto a tua falta. Recordar-me-ei sempre de ti com
carinho.
Algo deve ter acontecido nas vinte e quatro horas seguintes. Esta é a entrada
seguinte:
Oh, meu Deus, o que devo fazer? O Billy está a disparar a sua arma por todo o
lado e o Samuel está a pensar em dois programas de televisão que eu costumava
ver quando era criança: Rent-a-Ghost e The Phoenix and the Magic Carpet. O
Samuel está a imitar o homem de Rent-a-Ghost, que desaparece ou flutua no ar
num tapete voador de modo a não sentir mais nada, mas pode ver o que está a
acontecer ao seu corpo. Abuso. Esta é a forma do Samuel aguentar.
O Samuel estava a manifestar-se com mais frequência e incentivou a Alice 2 a
fazer o mesmo. A Alice 2 chorava ininterruptamente. Fazia com que eu ficasse triste
e agitada. Eu tinha vinte e quatro anos e tinha estes miúdos estúpidos dentro de
mim. Quando não andava pelas ruas a disparar a minha arma e a fazer explodir
coisas, andava nas lojas a roubar ou a beber, a brincar com os legos, a adormecer
com uma garrafa de gin.
Tal como quando estamos com febre, eu tinha de arder nas fogueiras do Inferno
antes que a febre cedesse e eu começasse a melhorar. Entretanto, o Professor e o
seu bando ainda proferiam os seus discursos acerca da morte. Todas as noites, sem
excepção, tinha de lutar contra a tentação de dormir o sono dos mortos e tomar uma
overdose de temazepam.
Por vezes, cedia às tentações, desequilibrava-me e caía da corda, para o
abismo.
A minha mãe ficava muito aflita e fazia tudo para me ajudar a superar este
período. Dormia com a porta aberta e aparecia frequentemente no meu quarto para
se certificar de que estava tudo bem. Quando não estava, o que aconteceu várias
vezes, chamava a ambulância a meio da noite. Levavam-me para as Urgências e eu
despertava com a visão das luzes fluorescentes no tecto, a garganta dorida devido à
lavagem ao estômago, ou os braços ligados, ou ambos.
A Drª Armstrong transformava-se na professora intransigente e limitava a
quantidade de medicação que me era receitada ao mesmo tempo para que eu não
pudesse provocar outra overdose. A Jo Lewin sentava-me na cadeira e, como o rato
sobre a roda, eu corria em círculos, tentando descobrir o que provocara a mais
recente recaída.
O Dr. Ross diz claramente que o tratamento de DPM é doloroso, esgotante e
propenso a retrocessos. O objectivo final do tratamento é a integração dos alter
egos. Mas para isso, disse-me a Drª Armstrong, iam ser precisos anos de análise e
aconselhamento. Entretanto, ela receitou-me de novo os antipsicóticos. Este tipo de
medicamento fora-me previamente prescrito quando me diagnosticaram como sendo
esquizofrénica. A DPM/PDI é algo completamente diferente, mas ainda assim, estes
medicamentos serviam para contrariar as alucinações auditivas.
Será que os medicamentos me ajudavam? Não muito. A caixa de Pandora
estava aberta. A caixinha de surpresas fora recentemente lubrificada, e as crianças
estavam tão animadas como se estivessem de férias da escola; não podiam esperar
para saltar cá para fora.
Certa manhã, o Billy foi fazer jogging comigo. Havia pensamentos sádicos na
sua mente naquele dia. Queria matar e torturar os homens que passavam por nós.
Foi uma sensação estranha, ter os pensamentos do Billy ao mesmo tempo que os
meus, as duas vertentes independentes de pensamento sobrepostas e entrelaçadas.
Eu podia ouvir a voz do Billy e as suas lembranças infiltravam-se na minha própria
consciência. E compreendia. Compreendia o Billy muito bem. O Billy odiava os
homens, odeia os homens, e nessa manhã tivemos de parar de correr para que ele
pudesse apenas bater com os pés no chão rua acima e rua abaixo.
Bang. Bang.
Ele queria fazer explodir o mundo inteiro. Fazer as pessoas reféns, como víamos
nos noticiários. Quando estávamos a atravessar uma passadeira, ele imaginou-se a
encostar a arma às costas do homem que ia na nossa frente e a encaminhá-lo para
a câmara de tortura. Bang. Bang. Bang. E passava para outra pessoa. Bang. Bang.
As ruas estão a arder. Os edifícios estão em chamas. Eu estou no comando.
Eu ficava apavorada e eléctrica com o poder da imaginação do Billy. Na sua
fantasia, ele tinha uma metralhadora e conduzia um camião do exército patrulhando
as ruas em chamas. Queria exterminar todos os homens que estivessem nos carros.
Odiava Rovers e, sobretudo, carros brancos. Queria arrastar os homens para fora
dos seus carros e amarrá-los para que eles não soubessem o que lhes estava a
acontecer. Talvez lhes vendasse os olhos e depois os amarrasse.
Mas isso assusta o Billy. Ele recorda-se de quando foi amarrado com uma
corda. Começava a lembrar-se, e eu também, e era tão doloroso que sacámos da
arma e começámos a disparar contra todas as pessoas que passavam nos carros.
Bang. Bang. Bang. Bang. Bang.
Chegámos a casa e o Billy atirou com os meus livros pelo quarto. Depois
sentou-se num canto e chorou como o Samuel. Eu também queria chorar. Ou então
vomitar. Ou então chupar o meu polegar e dormir. Chega de bang, bang. Eu sou
pequena e não sei nada acerca dessas coisas. Estou cansada. Quero a minha
garrafa e quero brincar com os meus ursinhos. Quero sentar-me no colo do meu
papá e ver televisão.
24 de Maio:
Penso que a Alice 2, o Billy e o Samuel representam três coisas que eu perdi: o
bebé frágil e inocente; a criança espontânea, alegre e brincalhona; e o lado tímido e
envergonhado da minha natureza. Hoje, sinto-me triste e estou a sofrer pelo facto de
nunca me ter sido permitido ser uma criança. Não consigo explicar. Quando há sexo
e sexo e mais sexo na nossa infância, deixamos de ter infância. Eu sinto-me triste e
vazia. E também me sinto sozinha, separada do mundo, no sentido em que apenas
existo, enquanto há vida à minha volta.
Por que razão não pode esta dor terminar rapidamente ? Por favor, dêem-me
uma data de quando as coisas vão ficar bem. Oh, meu Deus, estou a esforçar-me
tanto, mas dói como o raio. Ninguém me dá respostas. Não sei, nem quero pensar
nisso. Por favor, deixem-me dormir - ou deixem-me enfrentar o horror de tudo isto de
uma vez por todas, para que tudo possa terminar, ainda que seja horrível.
Agora que a Jo e a psiquiatra estavam a intrometer-se no meu subconsciente,
estava a ser inundada por uma enxurrada de recordações que eram tão lúcidas que
podia sentir a corrente de ar quando a porta se abria, o móbile sobre a cama
formando espirais, o odor de OldSpice. Conseguia sentir as mãos do meu pai a
acariciarem o meu corpo, o seu dedo a passar pelos meus lábios até eles se abrirem
e ele meter o dedo na minha boca.
- Olha quem está aqui.
Não precisava que ele me dissesse o que fazer. Eu era uma boneca Sindy.
Punha-me de joelhos, abria a boca e o seu pénis deslizava por entre os meus lábios.
Chupava com todas as minhas forças, porque era melhor quando aquela coisa
cremosa ficava na minha boca, ou quando ele espalhava o líquido pegajoso e
quente pelo meu rosto. Assim, não precisava de o meter no meu pipi ou no meu
rabinho, o que doía muito.
Eram as memórias de uma menina de cinco anos de idade. Aos cinco eu já não
era um bebé. Havia confusão dentro de mim, e raiva também, uma sensação de que
já não gostava de fazer aquilo, mas era o que o meu papá fazia e eu não tinha poder
para o impedir. Havia entre nós um pacto, um segredo, uma inevitabilidade. Isto era
o que acontecia à noite no meu quarto, no escuro. Sempre assim fora. Era normal.
Eu amava o meu papá e observava a partir do tapete voador, ou do canto do quarto,
aquela menina a engolir o líquido branco e o pai a dar-lhe um beijo de boa-noite.
Não era eu. Eu sou o Billy. Sou o Billy e recordo-me de tudo isto acontecer como se
me tivesse acontecido a mim, mas isso não aconteceu comigo, aconteceu com ela.
Com a Alice.
Eu saía da regressão exausta e esgotada, uma sombra de mim mesma.
Uma tarde, depois da minha sessão, a minha mãe foi-me buscar, levou-me para
casa e depois saiu de novo para as lojas. Ouvi o clique da porta a fechar-se. O som
do fecho metálico a entrar na ranhura desencadeou a memória das discussões entre
a minha mãe e o meu pai e depois ele a trancar-me na Gaiola.
Eles tinham discutido por minha culpa. Sou uma menina má. Mereço ser punida.
As lágrimas corriam-me pelo rosto. As sensações emocionais e psicológicas que se
apoderaram de mim em criança mantinham-me presa na sua mão de ferro vinte
anos mais tarde, naquilo que passei a considerar memórias corporais. Sentia-me
doente e fraca. A dor insuportável que sofrera no meu corpo de menina ao ser
penetrada pelo meu pai, estava a senti-la de novo. Pulsava através de mim como
um eco.
À medida que a terapia avançava, as memórias eram expelidas de dentro de
mim como se fossem pus negro. Observava o lápis da Jo a correr furiosamente pela
página. Por vezes, vomitava em cima do tapete. Era confuso, surreal, um filme de
terror, uma fuga: descer do carro à porta do castelo, segurar a mão do papá à
medida que descíamos os degraus, a luz ténue das velas...
O meu nome é Lucy. Tenho quatro anos e sou muito corajosa. Gosto da
enfermeira Nancy do meu livro de banda desenhada e, quando crescer, vou ser
enfermeira. A enfermeira Nancy dá-me injecções no hospital para crianças e eu não
choro quando entro naquela máquina grande onde eles podem ver o meu corpo por
dentro, os meus rins e o meu sangue. Tenho cistite. E quando era pequena não
consegui fazer cocó durante duas semanas e oito enfermeiras tiveram de me
segurar para poderem observar o meu rabinho. Eu não gosto que as pessoas olhem
para o meu rabinho. Dói-me porque tenho uma ferida. Não gosto de ir ao calabouço.
Lucy! Lucy? Quem raio é a Lucy? Ela manifestou-se numa das sessões de
aconselhamento e o lápis da Jo quase pegou fogo quando a Lucy deu lugar ao Billy,
e o Billy deu lugar à Eliza. É confuso?
Para mim também é, e foram necessários vários meses de aconselhamento
para que a Jo Lewin e eu, a Alice, nos entendêssemos.
A Lucy aos quatro, o Billy aos cinco, o Samuel aos seis, todos eles se recordam
de sair com o papá no carro para o castelo. Dão a mão ao papá e descem as
escadas íngremes para o calabouço.
A Eliza estava inicialmente na minha mente como a filha do Diabo, um nome que
lhe fora posto pelas “pessoas vestidas de negro”. Ela recorda o abuso ritual em
cenas de adoração ao Diabo e deixou claro, gritando tanto quanto a sua voz lhe
permitia, que não era filha do Diabo. O nome dela é Eliza. A Eliza tem sete anos,
mas ocupa um corpo, o meu corpo, que tinha dez anos na altura das suas memórias
mais vívidas e extravagantes.
Aquilo que para a Lucy, o Billy e o Samuel era um castelo, para a Eliza é uma
fábrica abandonada numa zona industrial, perto de casa. Ela foi levada para lá
muitas vezes. Havia também outras crianças. Crianças más, como ela, que
necessitavam que lhes extraíssem a maldade em cerimónias secretas de que
ninguém jamais deveria saber.
A cave está decorada como uma igreja vistosa com tapeçarias, um altar e um
grande pentagrama invertido na parede de trás. As velas projectam sombras longas
e assustadoras. As crianças têm os olhos arregalados. Estão assustadas, mas são
obedientes. Os adultos usam túnicas escuras com capuzes, porque sabem lidar com
os demónios das crianças desobedientes.
Ouve-se uma campainha. As pessoas começam a entoar cânticos. A Eliza não
consegue entender o que estão a dizer. Uma das pessoas, alguém importante, pega
na Bíblia Sagrada, arranca as páginas e queima o livro num prato de metal sobre a
mesa atrás do altar. Alguém lhe dá um conjunto de folhas impressas amarradas,
como um livro de hinos, mas com símbolos e palavras que ela não consegue
compreender.
A Eliza lembra-se de que uma vez um dos homens de túnica lhe disse para
retirar do fio a cruz de prata que ela estava a usar. Ele dei-tou-a ao chão e
espezinhou-a. Forçaram-na a despir as roupas. Estenderam-na como uma estrela-
do-mar sobre aquilo a que chamavam a mesa de tortura, que era o altar, e, tal como
as outras crianças, foi lambida, chupada e penetrada. Os homens lançaram o seu
esperma sobre o seu corpo; as mulheres introduziram objectos dentro dela - o cabo
de uma escova do cabelo, um garfo - que a magoavam muito.
Ela recorda-se de pensar que deve ser isto que a mamã sente quando usa
Tampax, e recorda-se de pensar que nunca queria crescer.
Os adultos brincavam com as crianças e, por vezes, obrigavam as crianças a
brincar umas com as outras. A Eliza lembra-se da Lucy aos quatro anos a brincar ao
sexo com a sua boneca Sindy e o Action Man do Clive. Foi quando ela foi ao castelo
pela primeira vez. Quando tinha quatro anos.
A Eliza, em transe profundo, recorda-se da Shirley aos catorze anos naquela
cave à luz das velas com uma máscara para assustar os mais pequenos. Recorda-
se de uma altura em que havia um caixão no altar e, de dentro dele, surgia uma
mulher nua como se ressuscitasse dos mortos. O seu rosto estava coberto com o
que parecia ser terra ou poeira, mas o seu corpo alvo cintilava como porcelana e os
seus seios eram fartos e tinham rígidos bicos cor-de-rosa. As pessoas entoavam
cânticos através dos seus capuzes e máscaras e as crianças tinham de fazer os
possíveis para não chorar ou mexer-se, caso contrário, eles metiam-nas no caixão e
fechavam a tampa. Acontecera uma vez a Eliza e ela pensou que eles iam enterrá-la
viva.
Abuso satânico? Abuso ritual? Evocar o Diabo?
Não. Não. Não.
É bastante evidente, pelas minhas memórias recuperadas e pelas anotações da
Jo que, tanto em criança como em adolescente, o meu pai permitiu que eu fosse
abusada por uma rede de pedofilia, por adultos que se excitavam ao magoar e
amedrontar as crianças. O tema do Diabo era um disfarce, um truque que parecia
real para as crianças. Mas a verdade é que as crianças são facilmente enganadas.
Através das minhas habilidades de dissociação, enganei-me a mim mesma e,
através dos alter egos de Billy, Lucy, Samuel, Eliza, Shirley e Kato, eu era capaz de
desligar a “Alice”, e as crianças suportavam a dor e o abuso no meu lugar. Essa é a
essência do distúrbio de personalidade múltipla; os alter egos iniciam a sua vida
como dispositivos e, com o tempo, adquirem personalidades, preferências e sonhos
próprios.
Foi a Shirley quem anotou no seu diário, após uma sessão no hospital de dia, a
recordação de uma altura em que o pai dela a levara para a fábrica. A cave estava
numa escuridão total. Foi levada para uma sala mais pequena, onde nunca estivera
antes. Estava iluminada por uma única vela e, quando ela se voltou, viu o rosto do
homem que conduzia o Rolls-Royce branco. Foi assustador.
Ele empurrou-a para o centro da sala onde havia uma imitação de um altar. Nele
havia uma ovelha. O homem deu-lhe uma faca grande e, com a sua mão a guiar a
dela, abriu o ventre da ovelha. Continuaram a esquartejar o animal, o sangue a jorrar
sobre o seu rosto. Chegaram ao coração do animal e tiraram-no. O homem retirou
os outros órgãos. Foram depositados num prato de prata, e todos os presentes
comeram do cordeiro sacrificial.
A Shirley escreveu no diário:
Eu não estava surpreendida por aquilo estar a acontecer e retalhei a ovelha
como se não fosse nada de especial.
O Kato escreveu numa data posterior:
Aquilo é um inferno. Estamos sempre de cabeça baixa à espera da próxima
atrocidade. Depois de um tempo, já não sentimos mais nada, nem sequer o medo ou
o asco da primeira vez. Morremos por dentro. Nem sequer nos preocupamos com o
que vai acontecer a seguir.
O aconselhamento tornou-se mais detalhado, mais intenso e, no final de cada
sessão, a Jo Lewin estava tão pálida e esgotada quanto eu. Os abusos começaram
quando eu tinha seis meses de idade. Tudo o que pode ser feito a uma criança, a
uma mulher, fora-me feito a mim.
Serão as minhas memórias reais? Pode-se confiar nelas? Isto é o que as
crianças recordam e estas lembranças são verdadeiras para a parte de mim, esse
fragmento, esse alter ego, esse estilhaço da minha personalidade que contém a
memória. Eu não tenho nenhuma razão para duvidar que essas atrocidades
aconteceram. Se a linguagem é infantil, surreal ou complexa, é porque as
lembranças vêm de crianças, de mim enquanto criança dissociada.
As memórias reprimidas foram trazidas à superfície através de sessões
persistentes de terapia, tal como a Drª Armstrong me avisara. Não surgiram sob
hipnotismo, e os pensamentos não foram incentivados pelos terapeutas. Eles vieram
de mim.
Eu podia prosseguir e encher páginas e páginas disto, uma ladainha
pornográfica interminável que me deixa agoniada quando a recordo e quando vejo
estas palavras no papel. Vou deixar estas memórias para trás com um poema
alucinante denominado “Jamais Esquecerei e Jamais Perdoarei”.
Não fui eu que escrevi este poema. Foi a Shirley. Quando o descobri num
caderno, fiquei chocada, aterrorizada, perplexa e triste.

PARTE 1

Com apenas 14 anos,


Houve um homem
que me engravidou.
Semanas depois,
Fez abortar o embrião,
Obrigou-me a comê-lo...
Fez de mim uma assassina.
Não tenho palavras...

Como posso fazer poesia com isto?


Nem sequer sei se deveria partilhá-lo...

PARTE 2

Senti-me condenada à morte, Mas num piscar de olhos,


Antes que eu pudesse reduzir os meus pensamentos A uma emoção,
Senti uma massa a deixar o meu corpo: A separar-se.
Nessa altura, a minha mente torna-se anónima
Como o é cada noite.
Apenas pensamentos inacabados,
e uma náusea profunda cá dentro,
quando fui forçada a engoli-lo.
Algo que até hoje tentei enterrar profundamente
na minha psique.

PARTE 3

Neste preciso momento, A voz que é o meu guia Está silenciosa.


Há apenas uma avenida de espelhos Reflectindo um terror infinito.
Tudo se multiplica na minha mente Para onde quer que olhe
Mesmo quando os meus olhos estão bem fechados Pairam memórias Daquele
bebé Que eu comi.
A vida que fui forçada a tirar A voz ainda está em silêncio
Apenas um sentimento palpitante
E agora estou doente
Doente devido a essa memória duradoura
E finalmente a voz interior diz:
“Jamais esquecerei e jamais perdoarei,
Pois alguma vez serei livre?”
CAPÍTULO 18

MÚLTIPLOS COMPLEXOS

A palavra é dissociar. Não existe um “a” antes dos “ss”. As pessoas dizem
sempre des-a-ssociar. O que, caso se esteja a sofrer de Perturbação Dissociativa de
Identidade/Distúrbio de Personalidade Múltipla, pode ser irritante. Depois as pessoas
querem saber quantas personalidades tenho e a resposta é: não sei.
O primeiro livro sobre Distúrbio de Personalidade Múltipla a provocar impacto foi
Sybil de Flora Rheta Schreiber, publicado em 1973 com o subtítulo: The True and
Extraordinary Story of a Wo-man Possessed hy Sixteen Separate Personalities.
Corbett H. Thigpen e Hervey M. Cleckley publicaram o controverso The Three Faces
of Eve muito antes, em 1957, e Pete Townshend, dos The Who escreveu a canção
“Four Faces”. As pessoas parecem sentir-se seguras com números.
A verdade é mais complicada. As crianças surgiram ao longo do tempo. O Billy,
o rapazinho turbulento de cinco anos de idade, era inicialmente o mais dominante.
Mas afastou-se aos poucos para dar lugar ao JJ, o rapaz autoconfiante de dez anos
que aparece quando a Alice está sob tensão e lida com situações complicadas como
viagens de metro e conhece pessoas novas. A primeira entidade a visitar-me foi a
voz externa do Professor. Mas ele tinha um coro de cúmplices sem nomes.
Então, quantos alter egos possuo? Eu diria mais de quinze e menos de trinta,
uma combinação de protectores, perseguidores e amigos - a minha árvore
genealógica.
Alguns são, de acordo com o que o Dr. Ross descreve em Mul-tiple Personality
Disorder, “fragmentos”, “estados psíquicos relativamente limitados que expressam
apenas um sentimento, retêm uma memória, ou desempenham uma tarefa limitada
na vida da pessoa. Um fragmento pode ser uma criança assustada que retém a
memória de um episódio de abuso específico.”
Em múltiplos complexos, o Dr. Ross diz que as “personalidades são
relativamente desenvolvidas, estados completos capazes de uma série de emoções
e comportamentos”. Os alter egos terão “controlo executivo de uma parte
substancial de tempo ao longo da vida da pessoa”. Ele salienta, e volto a repetir a
sua ênfase, que “Os DPM complexos, com mais de 15 personalidades distintas e
barreiras amnésicas complicadas, estão associados à frequência de 100 por cento
de abusos físicos, sexuais e emocionais na infância.”
Teria eu imaginado o castelo, o calabouço, as orgias rituais e as violações?
Teriam a Lucy, o Billy, o Samuel, a Eliza, a Shirley e o Kato inventado tudo isto?
Regressei à zona industrial e encontrei o castelo. Era uma fábrica antiga que
ardera totalmente, mas as ruínas carbonizadas da cave permaneciam intactas.
Fechei os olhos e consegui ver as velas negras, as sombras dançantes, o
pentagrama invertido, as pessoas a entoar cânticos com mantos encapuzados.
Conseguia ver-me com as outras crianças a sermos abusadas de formas que
desafiam a imaginação. Não tenho dúvidas agora de que o culto de adoradores do
Diabo era apenas uma rede de pedófilos, sendo a parafernália satânica uma
fachada para as suas verdadeiras perversões: os corpos inocentes das crianças.
É difícil levar as redes de pedofilia aos tribunais. Felizmente, isso acontece.
Talvez o caso mais horrendo que aconteceu recentemente foi presente ao Supremo
Tribunal em Edimburgo em Junho de 2007. Envolvia uma mãe que assistia enquanto
a sua filha de nove anos era violada por membros de uma rede de pedofilia na sua
casa em Granton, no Norte de Edimburgo. A mãe, Caroline Dunsmore, permitira que
as suas duas filhas fossem abusadas dessa forma desde os cinco anos de idade.
Ao sentenciar Dunsmore a doze anos de prisão, o juiz, Lord Malcolm, disse que
levara em conta a repulsa pública perante os graves crimes praticados contra as
duas meninas. Disse à mulher de quarenta e três anos de idade: “É difícil imaginar
uma quebra mais grave da confiança por parte de uma mãe para com os seus
filhos.”
Morris Petch e John O’Flaherty também foram presos por participarem nas
violações das crianças.
O abuso de crianças acontece quase sempre em casa e, geralmente, envolve os
membros da família.
A Drª Armstrong continuou a ser a minha médica. Tendo identificado a doença, o
tratamento consistia sobretudo em prescrever medicamentos. Experimentei todos
em diversas combinações, um festim de antipsicóticos e antidepressivos que umas
vezes me faziam sentir maravilhosa e outras vezes paranóica e suicida. Sob stress
severo, a Shirley pegava numa garrafa ou o Kato apoderava-se das minhas roupas,
e eu sofria recaídas, voltando às bebedeiras e auto-mutilação. Ao todo, devo ter tido
cerca de 100 overdoses e os meus braços já foram suturados com 600 pontos, ou
mais; cicatrizes de guerra, chamemos-lhes assim. Aos olhos de um crente pareceria
um milagre eu ter sobrevivido a essas batalhas.
Porque pego numa lâmina e retalho os meus braços? Porque bebo até perder a
consciência? Porque é que engulo frascos de comprimidos e acabo nas Urgências a
fazer uma lavagem ao estômago? Estarei à procura de atenção? Estarei a exibir-
me? A dor dos golpes liberta a dor mental das memórias, mas a dor da cicatrização
dura semanas. Depois de cada incidente de automutilação ou overdose, corro o
risco de ser interditada e regressar a uma instituição psiquiátrica, uma perspectiva
angustiante que não recomendo a ninguém.
Então, por que razão o faço?
Não sou eu que o faço.
Se eu tivesse poder sobre os alter egos, impedia-os de o fazer. Mas não tenho
esse poder. Quando eles se manifestam, não há nada a fazer. Experimento transes
dissociativos e perco tempo, consciência e dignidade. Se eu, a Alice Jamieson,
quisesse atenção, teria terminado o meu doutoramento e começado a subir os
degraus da carreira académica. Exibir o título de “doutora” chama mais a atenção do
que jazer numa cama de hospital drenada de esperança, com ligaduras nos braços
e o gosto amargo do carvão líquido a absorver as substâncias químicas do
estômago.
Em quase tudo o que fazemos, antecipamos alguma recompensa ou retribuição.
Estudamos pelo estatuto e para conseguirmos melhores empregos; trabalhamos por
dinheiro; os nossos filhos são pequenos reflexos da nossa posição social; as
doações para a caridade e as viagens até à Oxfam fazem-nos sentir bem. Todo o
gesto de bondade carrega o possível dom de uma resposta gentil: colhemos o que
semeamos. Não há nenhuma vantagem em prejudicar-me a mim própria; nenhuma
razão para eu inventar memórias delirantes de incesto e abuso ritual. Não ganho
nada em estar nas Urgências de um hospital.
É necessário realçar este ponto, em resposta à teoria “iatrogénica” de que a
exteriorização de memórias reprimidas em pessoas que sofrem de DPM, paranóia e
esquizofrenia pode ser inventada durante a análise, é uma invenção da relação
médico-paciente. Segundo o Dr. Ross, esta teoria, uma espécie de pingue-pongue
psiquiátrico, “nunca foi demonstrada e publicada de uma forma cabal e
fundamentada”.
O meu caso corrobora as afirmações do Dr. Ross. As minhas memórias estavam
a voltar em fragmentos e flashbacks muito antes de eu iniciar a terapia. Indícios
desse abuso, ritual ou não, podem ser encontrados nos meus registos médicos e em
cadernos e poemas que são anteriores à entrada na minha vida de Adele Armstrong
e Jo Lewin.
Nos últimos anos, houve um grande número de casos em que a polícia acusou
grupos de pessoas por submeterem as crianças ao chamado abuso ritual ou
satânico em redes de pedofilia. Poucos casos resultam em condenação. Mas isso
não prova que o abuso não tenha ocorrido, e a polícia deve ter tido muita certeza
das provas para ter levado esses casos a tribunal. Os abusos acontecem. Eu sei
que acontecem. As raparigas nas unidades psiquiátricas nem sempre falam com os
psiquiatras, mas necessitam de falar e falam umas com as outras.
Em criança, fui muitas vezes levada à consulta do Dr. Bradshaw; foi no
consultório dele que o Billy descobriu os legos pela primeira vez. A medida que ia
crescendo, também consultei o Dr. Robinson, o corredor de maratonas. Agora que
eu estava a viver de novo em casa da minha mãe, ele era outra vez o meu médico
de clínica geral. Quando a minha mãe lhe disse corajosamente que eu sofria de
DPM/PDI e estava em tratamento, como resultado do abuso sexual na infância, ele
levou as mãos à cabeça e chorou.
O abuso de crianças ressurge sempre, por mais anos que passem. Lemos sobre
casos de pessoas que confessam, depois de trinta ou quarenta anos, que foram
abusadas em crianças, nos orfanatos por vigilantes, professores, vizinhos, pais,
padres. A Igreja Católica nos Estados Unidos pagou, na última década, centenas de
milhões de dólares para compensar “actos de sodomia e depravação em relação às
crianças”, para citar um site de troca de informações. Por que motivo essas pessoas,
já com uma certa idade, trazem a público os abusos numa fase tão avançada das
suas vidas? Para chamar a atenção? Não, é porque, lá no fundo, têm uma ferida
que precisam de trazer cá para fora antes de poder sarar.
Muitos médicos não vêem os sinais de abuso nas crianças porque, como
pessoas decentes que são, não querem encontrar provas daquilo que o Dr. Ross diz
ser “uma sociedade doentia que está a ficar cada vez mais doentia, e o abuso de
crianças cada vez mais grotesco”. Ele prossegue: “Há uma superstição popular na
América do Norte que diz que as crianças são o recurso mais valioso e que a família
nuclear intacta é um bom lugar para crescer. Para muitas crianças, isto é uma
mentira. Para muitas crianças norte-americanas, a família nuclear intacta tem sido
uma zona de guerra de abusos físicos e sexuais, um Vietname privado.”
Agora temos novas guerras para as nossas analogias. O livro do Dr. Ross foi
publicado pela primeira vez há mais de vinte anos. Se a nossa sociedade doentia,
na Europa e nos Estados Unidos, estava a ficar cada vez mais doentia, então como
está ela agora, neste novo milénio, na era da Internet?
Na minha passagem por esses sinistros hospitais psiquiátricos conheci muitas
jovens que, tal como eu, foram abusadas sexual, emocional e fisicamente, palavras
bonitas para violadas, silenciadas, pontapeadas e estranguladas, os seus corpos
utilizados como sacos de pancada, a sua carne como cinzeiros. Recordo-me da
mulher confusa e maltratada no refúgio em Liverpool, e jamais esquecerei o grito
gutural que ecoou pelos corredores de St. Thomas quando imobilizaram a Sophie
para a sedarem. O seu crime? Deu à luz dois filhos do seu pai.
Quem é que está a cuidar dos filhos da Sophie enquanto ela está numa ala
psiquiátrica? O pai/avô das crianças? A sua mãe distraída? Os funcionários de um
lar para crianças? Estarão os filhos da Sophie a viver numa zona de guerra? Terá o
Dr. Ross razão quando diz que a nossa sociedade doentia está cada vez mais
doentia?
A sociedade está, indubitavelmente mais sensual, como podemos ver nos
filmes, nas telenovelas e nas campanhas publicitárias. Em revistas femininas, a
mulher perfeita está a um sopro de distância da infância, com seios
inexplicavelmente fartos, uma cintura fina e o olhar vago. As suas roupas remetem
para o sadomasoquismo, mais destinadas a revelar do que a esconder. Se quiser
encontrar um homem, manter o seu homem, agradar ao seu homem, há o botox, a
cirurgia plástica e cremes que prometem juventude eterna. A juventude é sexy.
Na altura em que este livro está a ser escrito, uma importante empresa britânica
está a vender soutiens acolchoados para meninas de sete anos de idade. As
meninas foram transformadas em consumidoras. Não brincam, fazem compras.
Permitimos que as pressões consumistas de uma sociedade doentia roubassem a
infância às meninas e criassem nas suas mentes a ideia de que são objectos
sexuais. Se meninas de sete anos são incentivadas a terem “um aspecto sexy”, não
devemos ficar surpreendidos quando o sexo é o resultado.
Por que razão os homens se aproveitam das meninas? Como foi que isso
começou?
As meninas, mas também os meninos, são macias, rosadas, bonitas, inocentes.
O papá faz cócegas à bebé e ela dá risadinhas. Gosta das cócegas. O papá esfrega
o nariz contra o nariz dela e ela ri-se ainda mais. Ela gosta realmente daquilo. Gosta
que lhe façam festinhas, que lhe toquem e que brinquem com ela. Ele beija-lhe a
barriguinha redonda e não consegue resistir a tocar com a ponta da língua na dobra
da sua vagina. A bebé ainda está a rir-se e aquele homem, o seu papá, o babysitter,
a pessoa que é responsável por ela, tem uma erecção. Não consegue evitá-lo. E
alguns homens não conseguem evitar ir um pouco mais longe. Ela gosta daquilo, ela
quer aquilo, a depravada.
A maioria dos homens possui autocontrolo, moralidade e decência. Mas há
muitos que não. Assim que um homem com poder sobre uma menina experimenta
usá-la como um objecto sexual, fica viciado neste poder e vai continuar a abusar
dela de uma forma cada vez mais subtil e terrível. O sexo com uma criança
atravessa a barreira do tabu e, uma vez ultrapassado, a tentação é empurrar a
barreira cada vez mais para trás, para encobrir o abuso no manto do ritual. As
virgens nas religiões pagãs eram sacrificadas para apaziguar os deuses. Os
homens, ao que parece, têm uma fixação pela virgindade, pela carne jovem e
imaculada, e esses homens, incapazes de manter relacionamentos normais com
mulheres adultas, roubam a pureza de uma criança para satisfazerem esta
obsessão doentia.
A Internet tem permitido que as autoridades localizem os pedófilos que
perseguem as crianças. A desvantagem é que eles se encontram uns aos outros,
esses molestadores de crianças, exibicionistas, pederastas, aqueles pedófilos
manhosos que conseguem obter o que pretendem pela astúcia. Movem-se com uma
facilidade engenhosa por toda a Web, trocando fotografias pornográficas de crianças
abusadas, e encontram uma legitimidade perversa ao saber que a sua luxúria é
partilhada por outros. Mas que raio, toda a gente faz isto!
O Dr. Ross faz uma análise correcta. A nossa sociedade está cada vez mais
doente.
Eu não queria ser o receptáculo de todo este conhecimento desagradável. Só
queria ser uma rapariga normal, com amigos e uma boa família. Estava prestes a
completar vinte e cinco anos, fazia terapia, e era viciada em medicamentos. Tinha
tiques nervosos, um temperamento irritável e agitado, era sexualmente ignorante,
sexualmente perturbada - uma vítima da nossa cultura obcecada pelo sexo. Estava
a viver em casa da minha mãe, incapaz de trabalhar. Andava a cambalear às cegas
na orla do abismo, e lutava todos os dias contra a minha fixação por lugares
elevados, escadas íngremes, sacos plásticos, vidros partidos e as lâminas afiadas
da sala de artes e ofícios do hospital de dia.
Que desequilíbrio químico provoca uma recaída? Bastarão as nuvens escuras a
ocultar o céu azul? Um momento de nervosismo da Jo Lewin? A expressão nos
olhos de um estranho? Os olhos dos ursinhos? É verdade, tenho vinte e cinco anos
e ainda durmo com bonecos de peluche.
Para cúmulo da ironia, estava a atravessar um bom período. Voltara a
aproximar-me do Jacob Williams, um rapaz esperto, tímido, que fora meu colega de
escola e que frequentava agora o hospital de dia por sofrer de distúrbio
bipolar/depressão maníaca. Sempre gostáramos um do outro, mas éramos muito
tímidos para falarmos um com o outro. Agora, unidos por questões de saúde mental,
saíamos juntos de vez em quando, tomávamos um café ou uma bebida, e falávamos
do nosso tratamento. O Jacob sabia que eu sofrera abusos durante a infância, mas
evitava dizer-me o que se encontrava na origem das suas depressões.
Ia a pensar em Jacob enquanto deambulava pelo corredor do hospital e, no
momento seguinte, dei por mim na casa de banho com o sangue a jorrar-me dos
braços. Sentia-me confusa, e tinha os lábios a tremer devido a um ataque de pânico.
Em poucos segundos, vi-me no meu próprio banho de sangue. O meu antebraço
esquerdo estava retalhado em vários pontos e o direito estava perfurado com cortes
finos e profundos executados com uma lâmina da sala de artes e ofícios. Conseguia
vê-la cintilar na minha direcção, como um olho triangular em prata na poça de
sangue que alastrava pelo chão de ladrilhos brancos.
Afortunadamente, o JJ brotou de dentro de mim e, com a sua voz, soltou um
grito de pavor, como o grito da Sophie em St. Thomas, fazendo com que todo o
hospital se silenciasse. Três enfermeiras apareceram em poucos segundos, mas eu
já devia ter perdido, pelo menos, um litro de sangue. Enquanto as enfermeiras
estancavam o fluxo com espessas ligaduras de algodão, surgiu a Drª Spencer, a
assistente da Drª Armstrong, usando uma saia-lápis preta que realçava as suas
belas pernas. Ergueu-me o braço direito acima da cabeça e aplicou pressão à
medida que o sangue fluía dos cortes e lhe salpicava a blusa branca.
Fui rapidamente transportada de ambulância, com a sirene a gemer, até às
Urgências, onde a artéria braquial no meu braço direito foi agrafada, suturada e
cosida. Tive de receber vários sacos de soro para evitar uma transfusão e
mandaram-me de volta num táxi, sob a supervisão de um membro do pessoal, para
o hospital de dia, com os braços ligados como uma múmia egípcia. A Drª Armstrong
estava à minha espera no seu gabinete com um sorriso de censura. Sentou-se na
esquina da secretária.
- Não precisas de te preocupar em voltar cá antes de segunda-feira, Alice -
disse-me ela.
- Onde é que está aquela menina que queria ser doutora, isso é que eu gostava
de saber.
- Como?
- O que aconteceu à minha Alice, que costumava correr maratonas?
- Essa mal consegue andar agora.
- Olha, acho que te vou comprar uns ténis novos.
Ela estava a dar o seu melhor. No dia seguinte, saiu do emprego e veio buscar-
me. Comprámos um par de ténis Nike com atacadores e motivos cor-de-rosa. Até os
ténis estavam a ficar sexy.
Agora que voltara a deambular pelas ruas, encontrei velhos amigos da escola, a
maioria dos quais, logo que sabia que eu sofria de problemas de saúde mental,
afastava-se, como se o meu problema fosse contagioso. É útil saber quem são os
nossos amigos, e sentia-me satisfeita por ter o Jacob na minha vida.
O Jacob e eu íamos ao cinema, abraçávamo-nos nervosamente,
entrelaçávamos os dedos sob as mesas dos bares. Havia um frisson, mas assim
como não fora capaz de sair do impasse emocional com o Patrick, nunca permiti que
o Jacob se aproximasse mais do que um toque na face ou uma carícia nos cabelos.
O triste envolvimento das pessoas com problemas mentais.
A Jo Lewin tornou-se minha amiga, assim como minha terapeuta, e passava
todo o tempo que podia comigo. Quando a Shirley se manifestava, fazia uma
lasanha em casa e levava-a para a casa da Jo para passar a noite com ela e com o
seu filho. Fazíamos caminhadas no Lake District. Durante as sessões no hospital de
dia, ela revelava, camada após camada, memórias enterradas que muitas vezes me
deixavam angustiada e com um desconforto físico. A “memória corporal” de me
sentir como se estivessem a meter uma vareta de ferro no meu recto gera uma dor
muito real, impossível de inventar ou explicar.
Era um alívio ser considerada pelos médicos uma vítima e uma sobrevivente “do
abuso mais terrível que alguém pode sofrer”, como disse uma vez a jo Lewin. Mas
esse reconhecimento não diminuiu o tormento de estar sentada no tapete no
hospital de dia a testemunhar cenas dentro da minha cabeça daquele homem
enorme deitado sobre o corpinho de uma menina e a forçá-la a ter relações sexuais.
Essas mesmas imagens que se desenvolviam na terapia voltam à minha mente
agora, hoje, em alturas estranhas, a qualquer momento. Imagine o seu filho a ser
atropelado por um carro, a sua mãe a ser esfaqueada até à morte, um míssil a
explodir em sua casa no momento em que regressa a casa pelas ruas de Bagdade
ou Jerusalém. Essas imagens estão sempre presentes. A pessoa tenta apanhar os
fragmentos despedaçados da sua vida, mas as cicatrizes permanecem.
Por vezes, quando estou deitada na minha cama em casa, ouço os vizinhos a
subir as escadas na casa ao lado e não consigo deixar de pensar nos passos do
meu pai a subir as escadas quando eu era pequena. A porta abre, o móbile agita-se.
Ele atira os ursinhos ao chão e abre o fecho das calças com um som áspero e
desagradável que me faz arrepiar. Consigo ver-me a ajoelhar, a abrir a boca, a sua
pila a entrar e a sair durante aquilo que me parece ser uma eternidade. Ele segura a
parte de trás da minha cabeça para me fazer engolir o esperma, ou deixa-o escorrer
pelos meus lábios para que possa esfregar o “creme” pela minha barriga nua. Por
vezes, sodomizava-me e depois ejaculava na minha boca. O papá gostava disso.
Lem-bro-me do gosto azedo, de sentir um nó no estômago, a sensação de estar
perdida, isolada, uma pequena bolha a flutuar sozinha num grande universo negro.
Agora recordo-me. Recordo-me de tudo. Não houve perversão que o meu pai não
me infligisse, a mim, a sua filha pequena.
Diferentes personalidades surgiram por dissociação em diferentes alturas da
minha vida, cada uma delas com lembranças invulgares de abuso, uma biblioteca
virtual de obscenidade e maldade. O Kato e a Shirley mostravam-se mais relutantes
em descrever a crueldade do meu pai do que os alter egos mais jovens, que tinham
menos entendimento das suas implicações. Eu estava protegida por uma amnésia
mais profunda, por alter egos anónimos com memórias enterradas a uma
profundidade demasiado grande para serem expressas verbalmente. Estas
materializavam-se em pinturas “automáticas” que eu criava na sala de arte do
hospital de dia. Eram cenas grosseiras de figuras com mantos negros realçadas com
brilhantes manchas escarlates. As pinturas repugnavam-me e fascinavam-me.
Tal como o Kato e a Shirley, desenvolvi uma obsessão pelo sangue. Fiquei
chocada ao recordar que, aos catorze anos (a idade da Shirley) começara a fazer
incisões e cortes nos meus braços só para ver o sangue, uma memória recuperada
e confirmada pela minha antiga colega de escola Lisa Wainwright.
As memórias iam e vinham, uma maré de depravação humana que as pessoas
decentes jamais conseguiriam sequer imaginar. A minha mãe ia-me buscar ao
hospital de dia ou eu entrava no autocarro para casa recitando interiormente a minha
proposta de doutoramento. As ruas desfilavam como uma paisagem de uma cidade
saída de um sonho, tão hiper-reais que quase pareciam irreais. A minha mãe
assumira o controlo da minha medicação. Lidou com os incidentes de
sobredosagem e automutilação. A minha mãe sabia que o abuso acontecera, que as
memórias eram reais. Conhecia a gravidade dos abusos, e fez o melhor que pôde
durante os dois anos que vivi lá em casa para me ajudar a sobreviver ao trauma da
terapia.
Passaram-se dois anos, assim, sem mais nem menos. Queimados como lixo no
jardim do avô. Eu sei que foram dois anos, porque, subitamente, foi-me possível
concorrer a um apartamento num bairro social, e mudei a turma dos peluches para
um pequeno estúdio com um suspiro de alívio que ecoou, tenho a certeza, sob o
telhado da casa da minha mãe.
Foi por essa altura que o meu pai, misteriosamente, me enviou um cheque com
um valor considerável, o suficiente para comprar um carro novinho em folha.
Quando o recebi, afixei-o no painel de cortiça na cozinha e fiquei a olhar para ele
como se fosse um fragmento dos Manuscritos do Mar Morto.
Aquela imensa quantia de dinheiro. Do meu pai. Vinda do nada.
Era obviamente dinheiro para comprar o meu silêncio. Ao predispor-se a
silenciar-me, as suas acções tiveram o efeito oposto. Fotocopiei o cheque, e
comecei a elaborar um dossier com as suas tentativas de estabelecer contacto
comigo em capas plásticas organizadas, numa pasta que viria a ter cinco
centímetros de espessura. Eu não faço nada pela metade.
O meu primeiro instinto foi devolver o cheque. Mas depois tomei uma decisão
mais sensata e pus o dinheiro no banco para alguma emergência, embora tenha
gastado cerca de cinquenta libras a comprar vinho, comida, música e duas velas
vermelhas com suportes de vidro. Fiz peixe assado com legumes e o Jacob veio ao
meu apartamento para um jantar romântico a dois. Não comemos quase nada,
bebemos o vinho, bebemos mais vinho, sentámo-nos no sofá que a minha mãe me
oferecera e pensámos em sexo. Não aconteceu nada. Nenhum de nós sabia como
começar, por onde começar. Tínhamos receio dos nossos sentimentos, receio de
que talvez pudéssemos não sentir nada, receio de nos magoarmos um ao outro.
Estávamos completamente destroçados.
O Jacob confessou-me que também sofrera abusos na escola quando era
pequeno. Fiquei horrorizada ao saber que o agressor era um professor de que me
recordava. Comecei a chorar. Abraçámo-nos, trocámos uma espécie de beijo, mas
não houve sexo naquela noite, ou em qualquer outra noite, verdade seja dita.
As minhas visitas ao hospital de dia tinham sido reduzidas a três vezes por
semana, os dias da minha terapia. Para preencher o meu tempo e prosseguir com a
terapia, comecei a ir ao centro de acolhimento para os utentes do serviço de saúde
mental. Tornei-me particularmente amiga de uma alegre e formidável mulher de
olhos azuis chamada Megan Sorensen, que fazia parte do pessoal. Ela tinha uma
grande habilidade para fazer sair os alter egos, especialmente o JJ, e interagir com
eles. Um dia, o Kato apareceu e, durante a conversa, ela tocou no ponto sensível.
Ao seu jeito hostil, o Kato bateu no braço da Megan.
Não sei se foi uma pancada forte ou não. O Kato tem a sua própria
personalidade e toma atitudes estúpidas que eu não aprovo e sobre as quais não
tenho qualquer controlo. Na verdade, eu não tive conhecimento do assunto até o
director me chamar ao seu gabinete e me informar que a Megan não queria voltar a
ver-me.
Desfiz-me em lágrimas. Eu adorava a Megan.
- Mas porquê? - perguntei.
- Porque lhe bateste no braço, Alice, e ela não gostou.
- Mas eu não bati.
- A Megan disse que lhe bateste.
- Sim, claro que bati. Mas não era eu.
- Bem, não vou ficar aqui a discutir contigo.
Sentei-me e chorei. É outro lado negativo do DPM/PDI: assim como discordam
acerca do tratamento, os psiquiatras, conselheiros e profissionais de saúde mental,
por vezes “esquecem” que somos múltiplos. Não é possível “ver” a doença como um
coração doente ou uma mancha de células malignas numa radiografia. A pessoa
parece normal. Eu estava a tentar ser normal e aparentemente estava a ter sucesso,
uma vez que o director tratou aquele episódio como se tivesse ocorrido em
circunstâncias normais.
Mas a manifestação de um rapaz problemático de dezasseis anos de idade na
mente da Alice, e no corpo feminino da Alice, não é normal. É anormal. O distúrbio
não é tão raro como se pensava antes, mas os múltiplos complexos só podem ser
“curados” se os alter egos puderem ser integrados através de um processo que
requer anos de terapia, uma constante adaptação à medicação e uma paciência e
compreensão sobre-humanas.
Naquele dia, no centro de acolhimento, senti-me como um leproso na Idade
Média, um proscrito, com um sino a anunciar a minha condição de pária. Fui para
casa, engoli um punhado de comprimidos e dormi e chorei durante quatro dias, sem
sair da cama.
Mata-te, Alice. Ninguém gosta de ti. Toma uma overdose. Corta os pulsos.
O facto de estar em terapia e a tomar antipsicóticos não significava que as vozes
estivessem silenciosas. Estavam confusas, por vezes, mas nunca silenciosas. De
vez em quando, ainda tomava o duche de três horas e esfregava a pele até ela ficar
em carne viva, vincava os meus jeans, polia os meus ténis, começava a ler um livro
na cama à noite e dava por mim ainda a ler quando o sol nascia na manhã seguinte,
as horas perdidas, as palavras esquecidas, os meses a passarem no calendário.
Quatro dias depois, finalmente arrastei-me para fora da cama para ir a uma
consulta com a psiquiatra que estava a substituir a Drª Armstrong durante a sua
licença de maternidade. A psiquiatra era graciosa e assertiva, com uma pronúncia
clara e bem articulada que estremeceu quando descobriu que eu estava a tomar 60
mg de temazepam, quando a dose recomendada era de 10 mg. Fez alguns
telefonemas, sussurrou autoritariamente na sua voz agradável, e dei por mim numa
cama na unidade psiquiátrica Josiah Jennins para uma desintoxicação
supervisionada.
Não sei como é que acabei por tomar tanto temazepam. Tive de passar oito dias
na unidade para limpar o meu organismo do medicamento. A composição química
do temazepam cria um efeito semelhante a um transe, o que faz com que a pessoa
possa facilmente cair e magoar-se. Passei as primeiras vinte e quatro horas na
cama, e nos dias que se seguiram, passei gradualmente mais tempo a pé, na sala
de dia ou deambulando pelos corredores, interrogando-me se alguma vez ficaria
totalmente bem. Deram-me alta com uma nova receita para Welldorm (betaína de
cloral), que não era uma benzo-diazepina e logo não era tão viciante.
O Jacob visitou-me no hospital, assim como eu o visitei mais tarde, aquando das
suas calamidades maníacas. Trouxe-me o seu walkman, uma cópia de As Vinhas da
Ira, de John Steinbeck, e um cacho de uvas, porque, segundo ele, estava a sentir-se
“bacanal”. Fiquei emocionada ao receber os seus presentes temáticos e ainda
estava a pensar no que ele quisera dizer com “bacanal” quando apareceu para me
levar para casa no dia seguinte. Uma única palavra pode entrar na nossa mente
como um insecto numa maçã e ficamos a matutar no seu significado durante dias.
Agora que não tomava temazepam, comecei a beber vinho e depois passei para
as bebidas espirituosas, o ciclo normal que conduzia a uma nova dependência, o
que era irritante porque eu não gostava de levantar o dinheiro do banco, a minha
rede de segurança. Detestava acordar depois de uma noite má com uma terrível dor
de cabeça. Conheci um tipo na unidade psiquiátrica que estava a fazer uma
desintoxicação de álcool e decidi ir para os Alcoólicos Anónimos com ele. Era
divertido ouvir as pessoas sentadas num círculo a admitir para si mesmas e para o
mundo que eram alcoólicas. Mas aquilo não era para mim. Eu bebia apenas por
diversão, porque sentia falta dos químicos.
Drogas, álcool, sono, ausência de sono, overdoses, automutila-ção. Na terapia,
os alter egos eram encorajados a deitar cá para fora as suas memórias. Os
medicamentos, com todas as suas variações, eram o único alívio na agonia das
recordações. A minha mente transbordava de lembranças do abuso e o meu corpo
era sacudido com as memórias corporais da tortura física e mental.
Conseguiria o Billy algum dia ultrapassar a experiência de ser sodomizado por
estranhos no calabouço da sua mente? Eu criara um dispositivo de dissociação,
como o Dr. Ross descreve, para me afastar da dor de tais violações, mas elas
aconteceram, de facto. Elas ainda tinham de ser confrontadas se eu queria integrar-
me e ficar boa. Esta introspecção zumbia sem parar na minha cabeça como uma
mosca incómoda.
Um dia, passei por acaso à porta da esquadra da polícia. Detive-me e fiquei a
olhar para as portas abertas, os painéis de avisos, os cartazes. O tempo estava
quente, o céu claro com algumas nuvens fofas como vemos nas pinturas das
crianças na escola. Com as costas direitas, o olhar concentrado e as vozes
distantes, subi lentamente os degraus.
- Bom-dia - disse, dirigindo-me ao sargento sentado à secretária, um homem
corpulento de aparência agradável. - O meu nome é Alice Jamieson. Eu queria
denunciar o meu pai por ter abusado sexualmente de mim quando eu era criança.
O sargento roliço inclinou a cabeça e olhou-me por cima dos óculos. Pôs-se de
pé.
- Por aqui - disse, e abriu o balcão para me deixar passar.
Fui levada para uma sala pequena e luminosa, onde expliquei a uma jovem
detective que sofrera abusos persistentes durante a infância às mãos do meu pai e
de outros. Ela mostrou-se paciente e sensível. Tomou notas e fez alguns
telefonemas.
Tratámos de tudo para eu fazer uma declaração em território neutro, no Centro
Callaghan, um centro para pessoas com problemas de saúde mental, na presença
do meu assistente social de saúde mental da altura, que cumpriria o papel de “adulto
apropriado”. A entrevista decorreu durante todo aquele dia e prosseguiu na manhã
seguinte até meio da tarde. Não queria deixar nada por dizer.
A polícia investigou as minhas alegações, acedendo aos meus registos médicos
e psiquiátricos.
Analisou as cópias dos relatórios do meu médico de clínica geral, o Dr.
Robinson, e da minha psiquiatra, a Drª Armstrong, todos os meus registos da
assistência social, e investigou as minhas alegações, que incluíam ter sido violada
pelo meu pai na altura em que o confrontei. A polícia obteve declarações das
pessoas que tinham estado envolvidas na minha vida naquela altura, como, por
exemplo, a Louise Lloyd-Jones, o Dr. Graham Sutton e a psiquiatra Drª Simpson,
assim como da Rebecca Wallington e dos profissionais que lidaram comigo quando
estive em Huddersfield. Foram até ao ponto de consultar as anotações da Drª
Purvis, a psiquiatra infantil.
O meu pai foi preso e teve de esperar seis longas semanas antes do Crown
Prosecution Service (CPS) decidir não formalizar a acusação.
O CPS chegou a esta decisão após ponderação de vários factores:
• O tempo que decorrera entre o “alegado abuso” e a minha queixa à polícia
(“alegado” era um prefixo jurídico que agora se colaria ao “abuso” como uma
sombra).
• O facto de eu ter estado sob os cuidados de vários profissionais de saúde
mental antes de fazer a acusação.
• Provavelmente eu não seria capaz de suportar o interrogatório do advogado de
defesa dado o meu frágil estado de saúde mental.
A decisão foi dolorosa, atenuada somente pela consolação que senti quando a
detective encarregue do meu caso rabiscou num pedaço de papel que estava
confiante de que eu dera um relato verdadeiro dos abusos que o meu pai me
infligira. O facto de eu ter sofrido ataques frequentes de cistite desde os quatro anos
de idade assumiu uma nova relevância. A cistite é a inflamação do revestimento da
bexiga, como resultado de uma infecção, irritação ou lesão. Pode atingir os homens,
mas é mais comum nas mulheres, particularmente durante a gravidez, a menopausa
e quando as mulheres são sexualmente activas. As mulheres são mais propensas a
sofrer de cistite do que os homens porque a uretra, o canal que esvazia a urina da
bexiga, é mais curto, e o orifício uretral está muito perto do ânus, logo o risco de
infecção é maior.
A cistite normalmente não afecta as meninas. Mas eu passei tanto tempo na
sala de espera do consultório médico com este problema, antes do meu quinto
aniversário, que aprendi sozinha a construir um carro com peças de legos, enquanto
a minha mãe se tornou perita em produtos para cabelos e maquilhagem a ler as
revistas femininas. Repetidas infecções de cistite podem causar danos nos rins. As
engrenagens do serviço de saúde movem-se lentamente, mas finalmente, passados
seis anos, fui encaminhada para o Hospital Infantil de Birmingham para fazer
exames. A minha mãe levou-me lá uma vez por mês durante mais de um ano, e uma
série de médicos e estagiários de batas brancas olhavam para mim como se uma
criança com cistite fosse um dos mistérios do Universo. Que eu saiba, nunca
ninguém sugeriu que a situação poderia ter sido o resultado da inflamação causada
por fissuras ou infecção da área adjacente ao orifício uretral externo.
Eventualmente, os resultados dos exames chegaram. Não havia um mau
funcionamento dos rins. Eu era uma aberração da natureza. Havia outra prova
intrigante. Aos dois anos de idade, estive tão gravemente obstipada que tive de ser
internada no hospital para receber tratamento. Quando me examinaram, descobriu-
se que eu tinha uma fissura anal. Esta nota era uma lembrança do que eu sofrera.
Foi arquivada e seria determinante quando, alguns anos mais tarde, me foi sugerida
a possibilidade de reabrir o caso contra o meu pai.
Primeiro só tinha de passar pelo inferno.
Após o fiasco da agressão à Megan, não voltei ao centro de acolhimento durante
muito tempo. Quando finalmente lá voltei, o director pôs-me em contacto com Mike
Haydock, um psicoterapeuta sénior. O Mike estabeleceu limites firmes para a
terapia: eu tinha de me sentar e permanecer sentada numa cadeira, e não deveria
haver contacto social fora da terapia, o oposto do meu relacionamento com ajo
Lewin. No início, foi complicado adaptar-me a este formato, mas, com o tempo,
comecei a notar algumas mudanças verdadeiramente positivas.
Via o Mike uma vez por semana. A sua abordagem terapêutica era mais
psicanalítica. Com o seu ar reservado e voz persuasiva, ele conseguia, mesmo
quando eu resistia, arrastar-me suavemente para a regressão. Propôs-se a
descobrir os elementos inconscientes em funcionamento na minha mente e
investigar a sua interacção com os elementos conscientes. Por exemplo, embora
não se concentrasse especialmente na automutilação, encorajou-me a pensar na
sua finalidade e nas forças inconscientes que me levavam a fazê-lo.
Ele também era diferente dos outros terapeutas na medida em que não se
referia aos alter egos pelo nome. Não se centrou tanto na separação entre mim e as
crianças, mas antes na funcionalidade e na razão da sua separação. Desta forma, a
ênfase na integração, ou num todo, como objectivo da terapia, poderia ser vista
como um processo contínuo, gradual e discreto do desenvolvimento de uma
percepção e crescimento pessoais.
Através dos métodos subtis de Mike, aprendi, ao longo das semanas e dos
meses, a esforçar-me mais para conhecer os alter egos, a avaliar os traumas que
sofreram e transportaram consigo para a minha vida adulta. Ao aproximar-me da
Shirley e do Kato, eu estaria numa posição privilegiada para os convencer a não
libertarem a sua angústia mental no acto físico de retalharem os meus braços.
O processo é complexo e demorado, mover cuidadosamente os pensamentos
como se fossem bolas de um jogo depinball para diferentes partes do cérebro, da
esquerda para a direita, do subeórtex, onde são armazenadas as emoções, para o
neocórtex, o lado racional, onde, de acordo com o Mike, há menos propensão para a
depressão. Ele ensinou-me uma técnica simples: sempre que me sentisse triste
deveria pensar em algo que me fizesse sorrir. E eu pensava no Sr. Feliz de cabeça
para baixo ou nos olhos bondosos da minha amiga Esther na cozinha do kibutz
Neve Eitan. Este processo altera a actividade mental e a tristeza desaparece. É esse
o conceito. Ter pensamentos felizes, ser-se positivo, ser-se grato. Tentei fazê-lo.
A terapia de DPM/PDI tem como objectivo final a integração. O Mike Haydock
acreditava que a viagem para a integração era tão importante quanto a própria
integração; que eu obteria uma sensação de recuperação ao prosseguir com a
minha vida, ao aceitar que o abuso acontecera, fazendo o luto por tudo o que
perdera, e sentindo as várias emoções associadas ao abuso de modo a que a dor se
tornasse menos acutilante. Desta forma, a terapia resultou na integração de alguns
dos alter egos, mas a consequência mais importante foi que eu conseguia funcionar
melhor e me sentia confortável comigo mesma enquanto adulta, integrada ou não.
Passava mais tempo com o Jacob, e fui capaz de me concentrar nele e nas suas
necessidades, em vez de usar o nosso tempo juntos para me concentrar somente
em mim mesma. Ele sempre fora paciente quando um dos alter egos se
manifestava. Agora que a psicanálise estava a tornar-me mais forte, tentei dar-lhe
apoio quando, durante os seus períodos de doença, ele construía uma parede
impenetrável à sua volta.
O Jacob queria alterar tanto a opinião pública como a profissional em relação à
saúde mental e envolvera-se numa nova legislação sobre o assunto. Isto inspirou o
meu próprio interesse. Naquela altura, o centro de saúde local estava a criar uma
nova estratégia de saúde mental. Aderi à comissão como utente dos serviços de
saúde mental e fui capaz de dar um contributo baseada nas minhas próprias
experiências. É evidente que se eu tivesse terminado o meu doutoramento, podia
muito bem ter estado do outro lado da mesa nessa comissão.
O Jacob e eu continuávamos a agir como um casal, mas devido à medicação
que ambos andávamos a tomar, qualquer tentativa de termos relações sexuais era
mal sucedida e deixava-nos paralisados de angústia.
No Dia dos Namorados desse ano, recebi o meu primeiro e único cartão, uma
prenda muito acarinhada tal como As Palmeiras Ondulantes das ilhas Tropicais do
meu avô.
Minha querida Alice,
Nunca estive num relacionamento que me tivesse dado tanta esperança numa
unidade duradoura.
Amo-te tanto que esse amor conquistou todas as dúvidas que eu tinha no
passado sobre permitir-me ser vulnerável.
Quero que saibas que o meu desejo é ficarmos juntos para sempre e que quero
realmente estar ao teu lado sempre que necessitares.
Com todo o meu amor,
Jacob xxx
Apesar de eu e o Jacob termos assumido um compromisso e de o Jacob ter
escrito que tinha conquistado as suas dúvidas sobre a vulnerabilidade, ele ainda
estava, evidentemente, vulnerável. Tal como eu. Confiava em Jacob mais do que
alguma vez confiara nalgum homem, mas estava apavorada e era incapaz de me
entregar completamente e estabelecer um relacionamento normal. É o receio das
pessoas maltratadas. A pessoa retrai-se. Esconde-se. Protege-se. É como se
tivéssemos sido submersos num barril de alcatrão. Parece não haver limpeza ou
terapia que faça sair tudo. A pessoa continua frágil e magoa os outros quer se dê
conta disso quer não. Quando consegui uma colocação para trabalhar
voluntariamente algumas horas por dia com a recém-formada equipa local de saúde
mental, absorvi-me de tal forma que não me apercebi de que o Jacob estava a ficar
mais silencioso, mais afastado. Víamo-nos cada vez menos sem que eu me
apercebesse disso. Todas as manhãs tinha uma reunião de equipa com os
enfermeiros psiquiátricos da comunidade, assistentes sociais e outros profissionais
de saúde mental, para que pudéssemos decidir sobre intervenções adequadas para
os utentes do serviço de saúde mental que especificamente lhes tinham sido
atribuídos. Era a actividade mais útil em que me envolvera desde que deixara o meu
emprego em Swansea.
Por esta altura, tive o meu primeiro telemóvel, um aparelho enorme e pouco
prático com uma antena lateral. Uma manhã, quando tocou durante uma reunião, o
tom era tão insistente que me fez sair à pressa para o corredor para atender. Era o
Oliver, um ex-colega de apartamento do Jacob.
- Lamento muito, Alice. É sobre o Jacob - começou ele a dizer.
Não sei como soube, mas soube. Fiquei naquele corredor a chorar
desalmadamente. O Jacob suicidara-se.
CAPÍTULO 19

BRANCA

Cocaína, meu amor - bastou apenas uma linha para me viciar. Desde então
nunca olhei para trás para ver, cocaína, o poder que tens sobre mim.
Podemos desbaratar as nossas poupanças em poucos meses quando
alimentamos um vício de quatrocentas libras por semana. Eu adorava o pó branco.
Escrevia poemas para o pó branco. Quando estamos apaixonados, fazemos tudo
pelo pó branco. Tudo.
O Jacob preenchera a minha vida e deixara-a de novo vazia. Éramos duas
pessoas num penhasco unidas por uma corda e necessitávamos um do outro para
escalarmos até às nuvens. O Jacob saltara. Eu compreendi. Compreendia-o melhor
do que ninguém, mas não conseguia evitar sentir-me culpada. Se eu não receasse o
compromisso, o sexo, talvez pudéssemos ter vivido o sonho e melhorado. A vida é
assim: sonhamos, acordamos - e depois não há nada.
Estava a pensar no Jacob quando ia a sair do meu apartamento e fiquei
chocada ao deparar-me com um tipo sem pernas, sentado na soleira da porta do
meu apartamento. Talvez tivesse pernas, mas elas não funcionavam. Estava
paralisado, paraplégico. Estava bem, mas o que estava ali a fazer?
Subi as escadas para informar o meu vizinho, um homem gentil e idoso a quem
eu chamava tio Joe e que tocava violino. Ficámos a conversar durante uma
eternidade. Não faço ideia do que falámos. Ele entrou, e eu fiquei durante algum
tempo a olhar para as nuvens através da janela, imaginando se o Jacob estaria lá, e
depois apercebi-me de dois paramédicos a subirem as escadas em direcção a mim.
Eram rapazes alegres em macacões de cores vivas, ofegando à medida que se
aproximavam.
- Está tudo bem. Está tudo bem. Vais ficar bem.
- O quê? Não sou eu. Do que estão a falar? É ele.
Eu conseguia ver a porta do meu apartamento e o tipo sem pernas ainda estava
enroscado no tapete da entrada.
- Olhem, ele está em agonia - disse-lhes.
Um dos paramédicos deslizou suavemente o seu braço em volta da minha
cintura. Era bonito. Fitei-o nos olhos e ele sorriu.
- Ouça, o homem precisa de ajuda - disse-lhe.
- Não está ali ninguém.
- Está sim. Olhe para ele, não consegue mexer-se. Está paraplégico.
- Vamos só certificar-nos de que tu estás bem.
- Não sou eu, é ele - insisti.
Estivemos assim a discutir durante algum tempo. Insisti que havia um tipo sem
pernas à minha porta no piso de baixo. Foi preciso alguma persuasão, mas depois
de procurarem o tal fulano dentro da minha casa, nos armários e no frigorífico
avariado, finalmente trancámos a porta do meu apartamento. O homem bonito
segurou-me no braço enquanto descíamos as escadas para o parque de
estacionamento, e eu entrei numa ambulância.
- Deviam ir à procura do tipo, ele precisa mesmo de ajuda - insisti.
- Vamos fazer tudo o que pudermos para que ele fique bem, não te preocupes.
Eu confiava nele. Por alguma razão, é mais fácil confiar nas pessoas bonitas.
Sentei-me na parte de trás da ambulância e ouvi a porta a ser trancada. De onde
surgiu o tipo sem pernas? Para onde foi?
Quando dei por ela estava deitada na cama a observar as teias de aranha
pairando no tecto da ala psiquiátrica Josiah Jennins. Tinham-me espetado uma
agulha no traseiro. Faziam sempre isso.
Sofrera um “breve episódio psicótico”, e fui trancada de novo no asilo durante
cinco semanas. O meu vizinho de cima deve ter-se apercebido de que eu estava a
ter uma crise e chamou uma ambulância. Eles chegaram à velocidade da luz.
No hospital, receitaram-me um novo antipsicótico denominado olanzapina
(Zyprexa) - dois comprimidos brancos de 10 mg por dia, com a minha dose habitual
de Prozac e Valium. Não me recordo de ter comido a mistela cinzenta da praxe e o
amido que nos metem no prato na hora das refeições, mas suponho que o devo ter
feito. Engordei cerca de vinte quilos e passei a vestir roupas quatro números acima.
Sentia-me como o Kato quando se comprimia dentro das minhas roupas. Parecia
uma baleia, um elefante, um dirigível. Jamais teria o meu aspecto normal. Agora não
me parecia com ninguém.
Havia uma rapariga hippy na enfermaria chamada Sam que não comia. Estava
coberta de piercings e tinha os olhos vagos como o Buda. Um dia, começámos a
falar na sala da televisão sobre o facto das supermodelos serem magras e ela disse
que todas consumiam cocaína.
- Dava-me jeito - disse-lhe.
- Não há problema - respondeu ela.
Nunca consumira drogas duras à excepção de fumar haxixe no Sinai, e engolir
alguns comprimidos de ecstasy para ser sociável. Naquela noite, o namorado da
Sam, o Andy, apareceu. Deu-me o seu número de telemóvel e eu telefonei-lhe
quando me deram alta dez dias mais tarde, gorda como uma baleia.
Encontrámo-nos no bar Wylde Green em Birmingham Road. A Sam estava lá.
Saíra uma semana antes de mim. Não me parecia que houvesse nada de muito
errado com ela. Era apenas uma miúda hippy e esquelética que consumia muitas
drogas. Tomámos algumas bebidas e assistimos a um jogo de futebol na televisão.
Quando saímos do bar chovia muito e o Andy levou-me a casa. À porta do meu
apartamento, com a chuva a bater nos vidros do carro como setas, o Andy tirou a
caixa de um CD do porta-luvas, um cartão de crédito da sua carteira e fez aparecer
um saquinho de plástico como aqueles que contêm os botões extra quando
compramos um casaco novo. Despejou uma pequena quantidade de pó branco na
caixa do CD e picou-a bem com a extremidade do cartão de crédito como se fosse
pó de fadas. O ritual era fascinante.
- Queres? - perguntou.
Eu vira a cocaína a ser snifada em programas de televisão como Acção em
Miami, por isso sabia do que se tratava. O Andy dividiu o pó branco em três linhas
finas com cerca de três centímetros de comprimento, e depois enrolou uma nota de
dez libras num tubinho. Debruçou-se sobre a caixa do CD, apertou o dedo contra a
sua narina esquerda e aspirou a linha com a narina direita através do tubinho.
Inspirou profundamente para que o efeito fosse forte.
Passou a caixa do CD à Sam. Ela fez o mesmo. Sobrou uma linha. Aquela era a
chave para passar a pertencer a um grupo, para ter novos amigos, para uma nova
vida, um objectivo. Sentia-me bem.
Quando inalei a cocaína, primeiro senti um formigueiro na narina, como se
tivesse respirado piripiri. Depois senti uma sensação incrível, uma clareza. Senti-me
como se estivesse totalmente desperta pela primeira vez na minha vida. As vozes
desapareceram. Os meus problemas desapareceram. Foi a experiência mais
emocionante que eu alguma vez tivera e adorei. Queria mais. Distúrbio de
Personalidade Múltipla. Incesto. Namorados mortos. Nada importa quando se tem
branca.
O Andy deu-me o que sobrou da cocaína como uma amostra e, no dia seguinte,
eu estava ao telefone a encomendar um grama por cinquenta libras. Eu tinha mais
de dez mil libras no banco. Era rica. A olanzapina fazia-me sentir inchada e
deprimida. A cocaína fazia-me sentir viva, e não como um rato preso na porta
giratória do sistema de saúde mental.
Colei estrelas no tecto que brilhavam à noite, e de dia deambulava pelas ruas
com o Andy, a Sam e o Matt, um amigo do Jacob que eu conhecera na escola. O
Andy era esperto, seguia as tendências da moda, tinha a confiança da cocaína, era
um fã do Manchester United que cumprira pena de prisão por tráfico de drogas.
Passávamos horas nos bares a discutir os jogos de futebol; horas em apartamentos
a consumir, a ouvir música com a Sam seminua e as serpentes tatuadas nos seus
braços a ganharem vida e a contorcerem-se sobre a sua carne branca. Eu
observava as serpentes a dançar e recordava-me que em tempos existira outra
miúda chamada Alice, que vira um encantador de serpentes em Petra, mulheres
com véus, carroças puxadas por burros em sofrimento, o sabor apimentado da
comida de rua que nunca deixara essa miúda maldisposta. O Matt tocava guitarra.
Era simpático e tinha um ar perdido. Era um solitário, bonito, com a pele bronzeada,
os olhos castanhos e o cabelo castanho ondulado a dar-lhe pelos ombros. Eu
gostava dele, mas ele não sabia.
As receitas que a Drª Robinson me passava enchiam um saco. Mas verdade
seja dita, os medicamentos nunca são de mais. Eu estava a tomar 60 mg de Prozac,
a dose mais forte; 15 mg de Valium em três comprimidos diários de 5 mg; zopiclone,
para dormir; olanza-pina, um antipsicótico de 20 mg; Gaviscon para a azia.
Eu gostava de os misturar com as drogas ilegais. O ecstasy faz-nos dançar,
mesmo quando estamos sozinhos. O speed deixa-nos alerta e paranóicos. É uma
dicotomia agradável, como tomar parte numa sessão de sexo a três, penso eu, pelo
menos foi o que me passou pela cabeça quando encontrei aquela rapariga da escola
lá no bar. Estava a usar saltos altos de quinze centímetros, um vestido do tamanho
de um lenço. Pensei: que figura. Mas quem era eu para falar.
O problema das anfetaminas é que nos permitem ficar acordados durante dias a
fio, perdemos tempo, inibições, falamos com estranhos. A ressaca do speed deixa-
nos sem vontade de viver, e então bebemos ou fumamos uns charros. Lidamos com
a situação. Experimentei heroína. Quero dizer, era forçoso que o fizesse. Colocamos
uma pitada de cristal castanho num pedaço de folha de alumínio. Aquecemo-lo com
um isqueiro e, quando o cristal começa a dissolver-se num vapor húmido, inalamos
o fumo. É experimentar e voar. É experimentar e morrer. A heroína aniquila a dor. A
heroína silencia as vozes. A heroína confunde as crianças. A heroína deixa a Alice
apavorada. A heroína é como voltar ao útero. É quente e segura. Não me
reconheço, nunca me sinto eu, mas com a heroína também não me sentia como
mais ninguém. Limitava-me a flutuar como se estivesse num tapete voador.
É isto que as drogas fazem. Queremos sair de dentro de nós mesmos. Sair do
nosso corpo. Queremos ficar bem longe da pessoa que somos, e se tivermos vinte
crianças e um coro de estranhos agressivos na nossa cabeça, quanto mais longe
melhor. Não importa que droga nos oferecem, se ela vai mudar a nossa percepção
da realidade, queremos engoli-la ou inalá-la, metê-la na corrente sanguínea, fazer a
viagem e falar acerca dela. As drogas fazem-nos falar muito. É estranho, mas
podemos molhar a nossa garganta com tanto álcool quanto desejarmos sem
ficarmos bêbedos. O álcool mantém viva a sensação de bem-estar como se fosse
um bico de gás em lume brando sob uma panela de água. E o melhor de tudo é que
temos amigos.
Uma noite, o Matt apareceu com alguma cetamina, que dividiu em linhas finas
de um branco cintilante. A cetamina é um agente anestésico para cavalos que corrói
as cavidades nasais de quem a consome. Quase todos os toxicodependentes
snifam. Depois da cetamina, por muito desidratados que estejamos, há sempre uma
gota de muco a escorrer pelo nosso nariz. Aspiramos a nossa linha e fechamos os
olhos. Uma lança fende a barreira da realidade entre as nossas orelhas e somos
sugados para aquilo a que dão o nome de Orifício K. É uma experiência semelhante
à morte em que sentimos a nossa essência abandonar o corpo e flutuamos acima
dele, uma viagem espiritual para algumas pessoas, para mim uma nova perspectiva
da dissociação.
Tentei caminhar pela sala após ter inalado a grossa linha de K, mas o chão
tornara-se numa esponja que sugava as minhas pernas. Pensei que o Matt ia tocar
guitarra, mas as suas mãos tinham congelado e os seus dedos estavam mais
longos. Senti-me leve e escorreguei para o chão. O Matt estava a olhar para mim.
Quando olhei para trás, senti um formigueiro de pânico na boca. Não era o Matt que
estava ali sentado, era o Professor. Lembrei-me do seu rosto no ecrã do meu
computador em Huddersfield, velho, distorcido, pleno de raiva e ódio. Um grito saiu-
me da garganta. Tentei pôr-me de pé para fugir, mas o meu corpo leve não se
mexia. Estava banhada em suor. Não conseguia focar os objectos, mas os meus
olhos pareciam ter sido equipados com as lentes de ajuste dos binóculos. Quando
voltei a conseguir focar, percebi que cometera um erro ridículo. Não era nada o
Professor. Eu estava a ser paranóica.
Era o avô.
Ele sorriu. Havia tanto amor no seu rosto. Subitamente, compreendi.
Compreendi tudo. Eu não estava sozinha. Ele estava sempre presente. Algures.
Agora podia deixar-me ir. Vi-me a pairar acima do meu corpo. Parecia feliz. Estava
feliz por estar a pairar junto ao tecto e não nas garras da realidade.
O Matt era lindo e gentil, tal como o avô. Com o Matt, eu podia ter vencido a
minha paranóia sobre o sexo, mas quando consumimos droga o sexo foge-nos da
mente e só pensamos em consumir. Saíamos juntos. Estávamos juntos, unidos pelo
desejo constante de auto-medicação, pela nossa necessidade paranóica e
permanente de evasão.
Uma noite fomos visitar o Kevin, um amigo gay do Matt que trabalhava no
aeroporto de Birmingham e que precisava de ser animado porque o namorado o
deixara. O Kevin tinha uma garagem ao fundo do jardim, onde o nosso dealer, o
Andy, tinha a droga escondida na mala de um carro velho e sem rodas. Fizemos um
par de linhas e, depois, fomos até à garagem experimentar algumas das drogas do
Andy: coca, erva, ecstasy, GHB. Aquela mala era a farmácia de um viciado e
quando ninguém estava a olhar, um saco de 5 gramas de branca, no valor de 200
libras, deslizou para dentro do meu bolso.
O surto de adrenalina provocado pelo furto foi tão bom que, uma semana mais
tarde, quando o Kevin estava a trabalhar e o Andy estava em Londres a abastecer-
se, sugeri ao Matt que voltássemos à garagem com algumas ferramentas e a
assaltássemos. Quando se está sob o efeito de drogas, não se pensa nas
consequências, e o crime acabou por ser surpreendentemente fácil. O Andy não
sabia que conhecíamos o seu esconderijo na garagem. O Kevin não lhe ia dizer e,
de qualquer forma, as pessoas estavam sempre a assaltar as garagens ali na área.
Fugimos com 1000 libras em droga e festejámos durante duas semanas. Aquela foi
a minha última grande farra com drogas.
A minha terapia estava a ir por água abaixo. Raramente estava em condições de
ir falar com o Mike Haydock. Raramente via a minha mãe e o Stephen. Não
precisava deles. Não precisava de ninguém. Eu tinha um amante.
Cocaína
Uma diversão de gente fina.
Uma linha é suficiente
Para criar uma “pedra” surpreendente.
Um vício que é meu presentemente.
O Kato não gostava de drogas. Não se importava que a Shirley bebesse, mas
não gostava que a Alice ficasse pedrada. Não gostava de sentir os acontecimentos a
ficarem fora de controlo e reagia da única forma que sabia, com navalhas e facas,
retalhando artérias e tecido muscular. Dava entrada nas Urgências com um saco de
soro acima da minha cabeça e os autocolantes magnéticos no meu corpo ligando os
fios a um electrocardiograma. Bip. Bip. Bip.
O Andy e a Sam iam-me buscar. Tinham um saco à minha espera e eu ia ao
banco. É óptimo ser-se rico. Não necessitamos de nos preocupar com coisas
insignificantes e burguesas como o dinheiro.
Mas depois ele acaba.
Pior, eu devia dinheiro ao Andy, o que não é aconselhável quando o nosso
dealer esteve preso. Os amigos vão permitir que snifemos uma linha uma vez, talvez
duas, mas o primeiro amor deles é a coca. Não somos nós. Nós somos apenas
alguém com quem se snifa coca, a quem se pede coca, a quem se pede dinheiro
emprestado. Se não há coca nem há dinheiro, passamos a ser um zero à esquerda.
A Sam recorria à prostituição, se fosse preciso. Uma rapariga que não tem nada
pode sempre fazê-lo; há sempre algum tipo que nos dá uma linha de coca em troca
de sexo. Pintei os lábios de vermelho e observei-me ao espelho. Que piada. Eu nem
sequer conseguira fazê-lo com o Matt. Recordei-me daquela primeira linha de coca
no carro, com a chuva a bater nas janelas, o sentimento de euforia. Continuava a ser
bom depois dessa primeira vez, mas nunca tão bom. Essa é a armadilha da branca.
Apanha-nos, mantém-nos no seu abraço e aperta-nos cada vez mais.
Eu tinha todos estes alter egos a revolverem-se dentro de mim, a cabeça a girar,
o corpo a doer, as paredes a comprimirem-me, o Professor a observar-me através
da janela da cozinha, aquele tipo sem pernas de volta à soleira da minha porta, a
olanzapina estava a provocar-me mal-estar. Vamos tentar outro.
E mais outro.
E mais outro.
Havia um homem asiático, alto e esguio com olhos escuros cintilantes a olhar
para mim. Ah, sim, é o Dr. Thandma. Vira-o a fazer as rondas na ala psiquiátrica
Josiah Jennins. O que me passou pela cabeça foi: por que razão está a usar um fato
às riscas e não o avental descartável, mais apropriado para um lugar repleto de
sangue humano?
Estava à espera que eu falasse. Mantive-me em silêncio.
- Então acreditas que foi o Diabo que te cortou os braços, não é verdade?
Eu não fazia ideia do que ele estava a falar.
- Não - respondi. - O mais provável é que tenha sido um dos outros.
- Quem és tu agora?
- O quê?
- E quem são esses outros?
- Eu sou a Alice Jamieson. Tenho PDI. Os outros são personalidades diferentes
ou aquilo a que vocês médicos se referem como alter egos - respondi.
- Uma das enfermeiras disse-me que vens para aqui muitas vezes depois de
retalhares os braços. O que fez com que te cortasses desta vez?
Ele estava a sondar o tema da automutilação deliberada, a qual, na minha
experiência, geralmente é mal compreendida pelos médicos e muitas vezes é usada
para estigmatizar e rotular as pessoas. Também ficou claro que ele pouco ou nada
sabia sobre PDI.
Suspirei. O efeito da lidocaína injectada nos meus cortes para anestesiar as
feridas quando estavam a ser suturadas estava a passar. Doíam-me os braços,
doía-me a cabeça e na verdade, não queria ter de explicar o meu diagnóstico a um
psiquiatra.
O Dr. Thandma avançou para o tema da avaliação do risco, já estava à espera
disso.
- Estás a sentir-te suicida? - perguntou.
- De forma alguma.
- Então por que razão cortaste os braços mais uma vez?
- Sugiro que leia o meu relatório médico - repliquei.
- Já li um breve historial. Penso que, tendo em conta o facto da Drª Armstrong
estar de licença, devias ficar internada no hospital por uns tempos, para que
possamos manter-te sob vigilância.
De regresso ao asilo. Nem pensar. Respirei fundo. Procurei acalmar-me. No dia
anterior, tinham retirado os pontos e as ligaduras que cobriam os cortes infligidos
pelo Kato há menos de duas semanas. Tentei esboçar um sorriso.
- Penso que não será necessário, doutor, a sério.
Ele ficou muito quieto, mantendo os dedos junto ao queixo enquanto pensava.
- Desde que me dês a tua palavra de que não tencionas voltar a cortar os
braços, podes sair - disse finalmente.
- Obrigada, doutor.
Telefonei ao Matt e ele veio buscar-me com o Andy. Fiquei sozinha no meu
apartamento durante dois dias e foi como se alguém tivesse feito retroceder os
ponteiros do relógio, não em horas, não em dias, mas em anos. Fora-me
diagnosticada Desordem de Personalidade Múltipla em 1993. Mais de dez anos se
tinham passado. Consumidos. Desperdiçados. Drogados.
Guardara grande parte daquele dinheiro que o meu pai misteriosamente me
enviara, sendo poupada, fazendo compras na Oxfam, indo de férias na minha
cabeça. Quando o Jacob morreu transferi todo o amor do meu coração para o pó
branco, a branquinha, a cocaína. Agora, aquele dinheiro desaparecera. Todinho. Até
ao último centavo. Tinha de entrar em abstinência. Eu conseguia fazê-lo. Tenho
tanto de forte como de fraca. Tinha de deixar sair a cocaína do meu corpo, mas em
breve percebi que, ainda que ela nos saia do corpo, nunca nos sai da mente. Há
sempre a lembrança da sensação de liberdade, da entrada sorrateira no McDonalds
para snifar umas quantas linhas, de assaltar impetuosamente uma garagem para
furtar o material de um traficante de drogas, de viver no limite com os fora-da-lei.
Recordo-me da música soar melhor; de dançar como um sopro de vento. Recordo-
me de estar sentada na parte de trás do carro do Andy com a janela aberta e o ar da
noite no meu rosto.
Como é entrar em abstinência?
É como ser um peru congelado, sair directamente do frigorífico e entrar
directamente no forno. Estamos totalmente depenados, sem cabeça, sem asas para
voar. Suamos e enregelamos. Trememos e choramos. As vozes regressam.
Tu não és nada. Nunca vais ser nada. És um fracasso. Devias matar-te, Alice.
Faz um favor ao mundo. Fà-lo hoje.
Não havia nenhuma possibilidade disso, não com as minhas dívidas. Eu estava
atrasada com tudo: a renda do apartamento, os impostos, a conta da luz e da água,
as contas do cartão de crédito e os juros, o meu passador. A televisão avariara. A
minha bicicleta desaparecera. Recebia um subsídio semanal de 95 libras por
incapacidade e uma pensão mensal de invalidez de 315 libras, o suficiente para
sobreviver e manter os antipsicóticos em ordem.
Pode parecer uma contradição, mas mesmo depois de termos entrado em
abstinência, mesmo depois de desistirmos das drogas, a verdade é que não
desistimos delas completamente. As coisas não são assim.
Eu estava de volta ao hospital de dia, desta vez com um psicólogo de quem
aprendi a não me aproximar muito. Ia a casa de vez em quando ver a mãe e o
Stephen, para falar de mim, mas nunca falava do uso de drogas ilícitas ou das
minhas dívidas.
Anos de dependência de drogas, automutilação, semanas e meses esporádicos
no manicómio. Na minha vida, estudara a arquitectura interna de vários hospitais
psiquiátricos diferentes, uns de alta tecnologia e pós-modernistas, outros vitorianos e
deteriorados. Eu podia escrever um guia para os maluquinhos.
As pessoas olham para mim, para o meu historial médico, e pensam para si
mesmas: o que há de errado com esta rapariga? O que há de errado é que desde
bebé até entrar na adolescência, eu fui constantemente violada, sodomizada e
abusada. É algo impossível de ultrapassar. Impossível mesmo. Não era algo que eu
fizera. Era algo que o meu pai me fizera a mim.
CAPÍTULO 20

O OUTRO LADO

As drogas são como um banho quente, uma noite bem dormida, um dia
ensolarado, um sorriso. As drogas são divertidas. É por isso que as pessoas as
tomam. Não tomam drogas por serem dependentes, a dependência é um efeito
secundário. As pessoas tomam drogas porque querem sair das suas cabeças. As
drogas alteram a realidade. E se a nossa realidade não presta, não importa quantas
vezes decidimos parar de consumir drogas, a tentação estará sempre presente,
atraindo-nos como as sereias atraem os marinheiros para guiarem os seus navios
para a desgraça.
Depois de entrar em abstinência e desistir do pó branco, para minha vergonha,
segui o chamamento da sereia e caí na tentação. Endividei-me mais e, para esticar
os meus parcos recursos, deixei de consumir cocaína e passei a embrulhar numa
mortalha pasta de anfe-taminas que tomava com um gole de água. Isto provoca dor
de garganta, nariz a pingar e a sensação de que podemos correr a maratona em três
horas. Na verdade, seria difícil correr 300 metros sem cair.
Não demorou muito até que o meu psiquiatra me internasse no Josiah Jennins
para uma desintoxicação, que durou duas semanas. Enquanto lá estive, o psiquiatra
decidiu mudar de novo os meus anti-psicóticos. Os novos comprimidos tinham uma
tonalidade azul-pálida e verde como a plumagem de um periquito. Jazia oca como
um buraco no serviço de observação especial, com o Jacob pairando acima de mim
como um fantasma. Culpava-me a mim mesma por ele estar lá em cima e não ali em
baixo comigo, entre os lençóis.
Poderia ter sido diferente?
Cada um de nós é o comandante do seu próprio navio e o Jacob Williams fez-se
ao mar quando assim o entendeu. Da última vez que o vi, ele estava muito calmo,
mais silencioso do que o habitual. Parecia ter uma quietude interior, uma paz, um
vazio, talvez. Já traçara os seus planos. Quando sai do seu apartamento naquela
noite, ele deu-me um abraço apertado e esse abraço significou uma despedida.
O Matt veio buscar-me ao Josiah Jennins e viajámos no piso superior do
autocarro a snifar speed e a dizer disparates. Pelo menos os novos antipsicóticos
não me faziam engordar. Conseguia vestir de novo as minhas antigas roupas. Eu
era eu, o “eu” que saía com amigos e não lia, o “eu” que faltava às consultas de
aconselhamento e se esparramava no chão a ouvir Pink Floyd, The Dark Side of the
Moon, vezes sem conta.
Eu era a maluca que se transviara do caminho. O tempo estava a fugir-me; não
os meses, mas os anos. Já não era uma miúda. De repente, estava com trinta e seis
anos de idade. O meu aniversário foi festejado com um grama de cocaína - bem,
afinal era o meu aniversário - seguido de uma noite sem dormir. Deambulei pelas
ruas de manhã observando as crianças a irem para a escola, as meninas com
hlazers azuis com um emblema mostrando St. Mildred num círculo de luz. Parecia
estranho eu ser adulta, e já não ser uma criança vestida com aquele mesmo
uniforme escolar.
O tempo transforma-se em pó e o pó desaparece com o vento. Basta um sopro,
e ele vai-se. Aos trinta estamos ligados aos vinte e nove com todos esses anos de
esperança e optimismo que remontam à infância. Aos trinta e seis, o nosso destino
está determinado. Somos o que somos. Eu não tinha a certeza de quem era quando
dei por mim sentada numa torrente de tiques e tremores na igreja de St. Mildred,
com a luz a entrar através das janelas estreitas, dando um brilho prateado ao chão
antigo de granito.
Olhei em volta. Tudo era curiosamente estranho, mas familiar, como um lampejo
de déjà vu. A última vez que estivera numa igreja fora em Florença, durante a minha
visita a Itália. Não fazia ideia do que estava a fazer em St. Mildred ou de como lá
chegara. Estava a segurar um tubo de Smarties e a pega da arma do Billy saía do
meu saco. Olhei para o relógio, e depois lembrei-me de que já não tinha relógio.
Jesus observava-me da cruz com um olhar triste e eu olhava para o sangue que
escorria sob a sua coroa de espinhos. Eu fora baptizada nesta velha igreja
decrépita; as datas desvaneciam lentamente das suas lápides como que para nos
recordar de que o tempo é eterno. O doce odor de incenso recordou-me as
cerimónias do Christingle da minha infância, os momentos em que pensei que era
aquela menina de sorte que vivia na casa grande com uns papás simpáticos. O
Christingle é uma laranja atada com uma fita e perfurada com palitos contendo
cravinho, passas e sultanas para representar a Terra e os seus frutos. Há também
uma pequena vela que, quando se acende, simboliza Cristo como a luz do mundo.
Depois da minha festa de aniversário de cocaína com o Matt, sentia-me
perceptiva e paranóica, tinha os sentidos confortavelmente entorpecidos, as
memórias apareciam-me como imagens num livro animado. As vozes sussurravam
sob o tecto abobadado.
Tu és uma merda. Não és nada. Nunca vais ser nada. As pessoas odeiam-te.
Uma mulher idosa pairava sobre mim fitando-me sob uma massa de furiosos
caracóis brancos, o seu rosto perplexo enrugado como a pele de um limão.
- Está tudo bem, minha querida? - perguntou ela.
- Está a falar comigo? Não há nada de errado comigo - respondi, e sacudi o tubo
de Smarties na direcção dela.
Afastou-se com um olhar azedo. Observei-a enquanto se afastava pelo corredor
com a sua camisola de lã verde, a longa saia pregueada e sapatos práticos, e
entrava por uma pequena porta atrás do órgão. Regressou com um homem que
usava uma camisola azul-marinha de decote subido sobre uma camisa branca e
calças cinza com vinco acentuado que de imediato me fez recordar o meu avô.
- Posso ajudá-la? - perguntou ele.
- Claro - respondi. - Podia dar-me um copo de água.
Sorriu-me, e depois sorriu para a mulher para lhe mostrar que estava tudo sob
controlo.
- Volto daqui a dois segundos - disse, e desapareceu pela mesma porta por trás
do órgão.
Quando voltou com a água, bebi-a de um trago.
- Estás desidratada - observou ele.
- Não sei porquê - repliquei, mas é claro que sabia. Era por causa das drogas.
Ele sentou-se no banco à minha frente e virou-se para mim enquanto falava.
Falou sobre a história de St. Mildred, coisas que eu recordava vagamente da escola.
Tive a sensação de que a poeira do tempo estava a ser soprada para trás. Eu
estava pedrada com a anfetamina que engolira para me ajudar a suportar a
abstinência da coca. Vagueei pelo antigo edifício envolta numa espécie de neblina,
quando ele se ofereceu para me fazer uma visita guiada. Desci atrás dele por uns
degraus estreitos e segui-o até à capela, depois para a sacristia repleta de objectos
de prata e pinturas que exibiam cenas de desespero e dor.
- Por que razão não pintam algo mais... animador? - perguntei, e o homem
encolheu os ombros e voltou-se para mim com um sorriso.
- Sabes que mais? Sempre me perguntei exactamente o mesmo - respondeu.
Observámos o último quadro e depois olhámos um para o outro durante um
momento. Não havia mais nada a dizer. A luz que entrava através dos vitrais ia
ficando cada vez mais ténue, à medida que nos encaminhávamos para a nave
central e em direcção às portas que conduziam à rua.
- Vem visitar-me de novo - pediu quando nos despedimos. - Estou sempre aqui
às segundas e quintas-feiras.
Eu não fazia tenções de lá voltar, mas na semana seguinte, o tempo saiu da sua
ordem normal, perdi o sentido de orientação e dei por mim a entrar pelas portas
abertas da igreja de St. Mildred para me proteger de um temporal. Ele encontrava-se
na nave central como se estivesse à minha espera, de costas direitas, olhos azuis
como flocos de céu e cabelo louro-claro com risco ao lado. Pareceu satisfeito por me
ver. Estava a usar um fato de tweed e um colete verde, o que me fez pensar num
periquito.
Pensara que ele fosse um daqueles padres que não se preocupavam em usar
um traje clerical, mas afinal era apenas um fabriqueiro que se chamava Alec
Menzies. Tinha um leve sotaque escocês. De Edimburgo, explicou. Era um bom
orador e um bom ouvinte, embora eu não consiga imaginar o que tínhamos em
comum ou sobre o que conversámos nessa semana, na semana seguinte, ou na
outra a seguir. Por vezes, o Alec usava óculos de aros dourados como o Gerald
Brennan, o meu orientador em Huddersfield. Tinha mãos bonitas. Eu reparo sempre
nas mãos, e muitas vezes quando estávamos sentados juntos, a conversar, eu
repousava as minhas mãos nas suas como se eu fosse um passarinho e as suas
mãos fossem um ninho.
Cerca de um mês depois, pedi ao Alec que me emprestasse trinta libras, e
partilhei uma dose de speed com o Matt. Pedi vinte libras, que a Shirley desbaratou
num litro de gin. Pedi-lhe duzentas libras para saldar uma dívida que tinha com o
Andy, o meu dealer. Eu pedia ao Alec pequenas quantias, mas não sei quantas
vezes o fiz.
- Podias emprestar-me vinte libras, Alec?
- Para o que é, desta vez?
- Eu pago-te - dizia-lhe, mas nunca o fazia. Os toxicodependentes nunca o
fazem.
Cerca de dois ou três meses mais tarde, a ressaca de uma dose de speed fez
com que o Kato entrasse numa onda de paranóia e violência. Foi invadido pelas
memórias de um jovem de dezasseis anos de idade, entrelaçado com o seu pai, o
meu pai, movimentando-se entre as suas pernas, as minhas pernas, o odor a
brilhantina como um soporífero, o corpo do meu pai a retesar-se no momento do
clímax. O meu “eu” dissociado observava as feições da menina a transformarem-se
nas de Kato, à medida que estas se contorciam de desespero e ódio por si próprio.
O Kato tinha visões de levar uma faca para a cama, ocultá-la sob o colchão, e
apunhalar o homem, o meu pai, no momento em que ele expelisse a sua semente
nojenta para um preservativo. O Kato imaginava-se a erguer a faca e a cravá-la uma
e outra vez, o sangue a esguichar, cobrindo a sua carne pálida, a cama, as paredes.
O Kato odiava-se porque nunca tivera a coragem de tirar a faca do suporte
magnético e dar vida à sua visualização. Ficava ali deitado como uma rapariga e o
pai fodia-o.
O Kato queria que Deus compreendesse a sua dor. Invadiu a igreja de St.
Mildred numa manhã de quinta-feira, subiu ao altar, agarrou no crucifixo de prata de
quase um metro e ameaçou todas as pessoas que se aproximavam dele. Uma
pequena multidão reu-niu-se fora do seu alcance: o padre Roger veio a correr com
os seus pés pequenos; algumas senhoras que usavam pérolas e que vinham para a
missa; guias da igreja; turistas.
- Afastem-se de mim, canalhas. Mato-vos a todos.
O Alec Menzies apareceu e aproximou-se o suficiente para o Kato o pulverizar.
- Desce daí, Alice - disse ele.
- Eu não sou a Alice. Eu sou eu. Eu. Vou matar-te.
- Não, não vais. Vais sentar-te e conversar comigo.
- És um canalha. Odeio-te. Vou matar-te.
O Kato agitou o crucifixo na direcção do Alec e o Alec pegou-lhe sem pestanejar
e segurou-o com firmeza. As pessoas ofegavam, e eu desfiz-me em lágrimas. O
Kato desaparecera. Sentia-me fraca, cansada, sem energia, exausta e aliviada, eu,
Alice, no lado esquerdo do meu cérebro por não me ter magoado nem ter magoado
ninguém. O Alec ajudou-me a descer do altar e conduziu-me à sala dos fundos onde
me sentei e chorei. Acalmou-me, como já antes o fizera, e voltaria a fazer. Muitas
vezes. Eu estava a testar Alec Menzies tal como os heróis eram testados na
mitologia grega ou na Bíblia, sem o planear e sem saber que o estava a fazer.
Ele também estava a ser testado pela Igreja. O clero tomara conhecimento da
amizade entre a rapariga maluca - mulher, ou o que raio era eu - de trinta e seis
anos de idade e o fabriqueiro, um homem casado e com três filhos adultos. Havia
pessoas na congregação que pensavam que eu era uma filha do Diabo e que, em
vez de ajuda, precisava de um exorcismo, de ser banida da Igreja ou queimada na
fogueira. Eu era o viajante atacado por ladrões na estrada entre Jerusalém e Jericó
e Alec Menzies era o bom samaritano que parou para me ajudar.
O Alec não era um analista, mas tinha a paciência e o discernimento para fazer
as perguntas certas. Naquele dia, depois de o Kato subir ao altar, comecei a falar-
lhe do abuso, da perda do meu doutoramento, do meu DPM/PDI, do meu vício em
drogas duras e fármacos.
- Porque tomas tantas drogas? - perguntou.
- Para esquecer.
- O abuso?
“E as dívidas”, pensei, mas não disse. Eu tinha um crédito a descoberto, um
frigorífico avariado, um vício de cem libras semanais em speed para tentar superar
uma potencial dependência de quatrocentas libras semanais em cocaína.
- Muita coisa - respondi. - A dor. O passado. As memórias. Há sempre alguma
coisa para esquecer.
- Tu precisas é de memórias novas para substituir as antigas - disse ele, e
apertou as minhas mãos entre as suas.
As pessoas raramente se interessam pelos detalhes da vida das outras, as
chatices que enfrentamos nos aeroportos quando vamos viajar, os dramas nos
hospitais, a indiferença dos bancos. O Alec mostrou interesse em mim, o “eu” Alice,
e o “eu” JJ, Kato e Shirley, em qualquer um dos “eus” que lhe aparecessem para o
pôr à prova com um novo truque, um novo pedido. Levou-me para casa de carro e,
no parque de estacionamento à porta do meu apartamento, onde o Andy me dera a
primeira linha de coca, inclinei-me pela janela aberta do Alec e beijei-o na face.
Uma noite pouco tempo depois disso enchi-me de coragem e telefonei para casa
do Alec. A mulher dele estava no Sul de França, onde tinham um chalé.
Encontrámo-nos numa pizaria na cidade. Partilhámos uma garrafa de vinho e, pela
primeira vez, escutei enquanto o Alec falava sobre a sua vida, como se alistara no
exército aos dezoito anos e subira na hierarquia, obtivera uma patente e, aos
cinquenta e três anos, reformara-se como major.
Fiz-lhe continência e ele sorriu.
Estava a pensar em criar uma empresa como consultor de segurança e
voluntariara-se para fabriqueiro. A esposa era fluente em francês e agora, com os
filhos crescidos, ela viajava sempre que podia para a casa de campo na Provença
que ele construíra com as suas próprias mãos. Parecia estar a sugerir que havia
alguma tensão no casamento, mas depois mudou de assunto.
- Parece tolice - explicou —, mas quando apareceste na igreja naquela primeira
vez foi como se te conhecesse desde sempre.
Fez uma pausa. Eu não queria ouvir aquilo. Eu estava um caos. Não queria ficar
pior do que já estava.
- Parecias uma ovelha tresmalhada - acrescentou com um sorriso - e de repente
senti-me como um pastor.
Ao contrário do Alec, eu não tinha fé. A minha cabeça esteve enterrada em livros
de psicologia tempo de mais para isso. Mas nessa noite, enquanto bebíamos vinho
tinto à luz das velas, senti algo dentro de mim que nunca sentira antes. Era
pequeno, frágil, e estava a formar-se. Era como se o Alec me amasse realmente. E
havia algo mais, algo assustador e desconcertante: esse sentimento era recíproco.
Isso deixava-me assustada. Subitamente, senti-me esgotada. Tinha medo da
esperança. Não acreditava na felicidade duradoura: na hipótese de renegociar o
meu destino.
Naquela noite, fiquei deitada na cama a olhar para as luas e para as estrelas
coladas no tecto a dizer a mim mesma que era estúpida. O Alec não me amava, não
podia amar-me. Não nesse sentido. Ele estava a fazer aquilo que todo o cristão tem
ordens para fazer: amar o próximo como a si mesmo. O Alec Menzies ia desiludir-
me, é o que os homens sempre fazem. O avô morreu. O Jacob suicidou-se. O Matt
era um drogado. O meu pai violara-me.
Prometera telefonar ao Alec no dia seguinte para que ele soubesse que eu
estava bem. Não lhe telefonei nem retribuí os seus telefonemas e mensagens.
Mantive-me longe da igreja e comecei a evitar o Matt. Estava determinada, de uma
vez por todas, a ficar limpa de drogas e livre da dependência. De quem quer que
fosse. Do que quer que fosse. Desperdiçara o meu potencial. Desistira da terapia
com o Mike Haydock e desperdiçara a oportunidade de integrar os alter egos e
encontrar paz dentro de mim. O DPM é uma sala de espelhos e, para onde quer que
a pessoa olhe, vê o seu próprio reflexo distorcido. Só tratando de mim é que poderia,
um dia, ter amizades normais, sem fazer exigências irrealistas como as que fizera
com a Jo Lewin e estava agora a fazer com o Alec Menzies.
Tive de mudar a minha mentalidade. A leitura era a minha droga de eleição.
Gostava de comprar livros, fazer anotações, oferecer livros. Não tinha dinheiro para
isso, de modo que me sentava na biblioteca perdida nos romances de Ian McEwan,
Martin Amis, Bret Easton Ellis. Li Psicopata Americano de uma assentada, ciente
desde a primeira página que o escritor estudara a dissociação antes de criar o seu
anti-herói Patrick Bateman. O livro fez-me perceber que havia pessoas muito mais
loucas do que eu. Quando nos podemos agarrar a este pensamento, não estamos
exactamente no caminho da recuperação, mas podemos vê-lo.
Para evitar as drogas, tinha de preencher cada segundo do meu tempo. Fui
buscar todos os meus CD antigos e, quando não estava a ler, estava deitada no sofá
a ouvir música, os mesmos álbuns, as mesmas faixas, com a minha POC
(Perturbação Obsessivo-Com-pulsiva) de sempre, a qual nunca desaparece. Devo
ter escutado Eric Clapton cantar sobre a “suja cocaína” um milhão de vezes. Tens
razão, Eric, é mesmo suja. Eu queria ficar limpa.
Tomava o meu Prozac e os antipsicóticos. Quase, quase deixei de tomar drogas
não receitadas. Despejei o gin no lava-louça quando encontrei a garrafa que a
Shirley escondera no armário ou atrás do Sr. Feliz no canto do quarto. Os ursinhos
estavam na prateleira e as vozes estavam a murmurar. Limpei o pó do meu portátil.
Durante a minha pesquisa sobre PDI, encontrara a Drª Joan Coleman, uma
psiquiatra, que gere a RAINS (Ritual Abuse Information Network and Support), uma
organização que luta contra os princípios da Bri-tish False Memory Society, formada
em 1993. Esta organização, citando os seus textos, “Ajuda as pessoas e os
profissionais em alegações de abuso refutadas”. Contesta a fiabilidade das
memórias recuperadas e reprimidas e constrói um caso contra aquilo que eles
descrevem como sendo falsas memórias.
A Drª Coleman telefonou-me depois de eu ter deixado uma mensagem no seu
atendedor de chamadas. Garantiu-me que os pedófilos geralmente criam cenários
satânicos como fachada para as suas verdadeiras intenções. As crianças ficam
confusas e são influenciadas pelo ritual, com a sensação de que foram escolhidas
para participarem naquelas cerimónias de pessoas adultas. Eu não estava louca.
Não inventara aquilo tudo: o meu historial médico demons-trava-o. Depois de todos
aqueles anos, depois do meu pai me ter violado e ejaculado na minha cara, eu ainda
pensava: Porquê eu? Não é justo. Como pode uma coisa destas ter acontecido?
Não pode ter acontecido. É impossível pôr fim a estes pensamentos. É impossível
parar o disco que soa na nossa mente.
Terminámos a conversa a falar sobre o Alec Menzies. A Drª Coleman não me
aconselhou a ir vê-lo novamente. Não é essa a sua função. Mas disse que era
imprudente afastar-me de uma pessoa que, como ela dizia, “me estendeu a mão da
amizade”.
Depois da minha conversa com a Joan, continuei afastada do Matt, afastada das
drogas, e matriculei-me num curso de instrutora de ginástica para pessoas com
problemas de saúde mental. A maluca a ensinar os malucos, eu sei, mas estava a
esforçar-me.
Acima de tudo, afastei-me de St. Mildred. Fiquei afastada quase um ano e,
depois, um dia, sentindo-me enérgica e usando um fato de treino amarelo-vivo, dei
por mim a fazer jogging pela cidade, a torre acima da igreja como uma bússola
atraindo-me magneticamente para as portas abertas. Estuguei o passo como se
estivesse numa competição e encontrei logo o Alec Menzies, que estava a
reorganizar os guias e as brochuras nas estantes junto à entrada.
- Alice...
- Porque não me procuraste? - perguntei.
- Estava à espera que viesses tu ter comigo.
- E se eu não tivesse vindo? O que é que acontecia?
Ele franziu o sobrolho enquanto pensava nalguma desculpa.
- Eu sabia que virias quando estivesses pronta - respondeu.
- Tretas.
- É verdade. Rezei.
Os seus olhos brilhavam na luz difusa e notei que a parte branca estava muito
clara. Ele sorriu e aquele sentimento raro e único percorreu-me como uma corrente
eléctrica: de repente sentia-me feliz, feliz por estar ali sob a luz dourada que entrava
pelos vitrais, feliz, atrevo-me a dizer, por estar viva.
Voltámos à mesma pizaria e abençoámos o futuro partilhando uma garrafa de
vinho - uma rara concessão. O Alec levou-me de volta para o meu apartamento e,
no dia seguinte, um serviço de entregas apareceu com uma televisão nova. O Alec
comprou-me um frigorífico novo e uma máquina de lavar roupa. Construía camiões
surpreendentes com os legos sempre que o Billy se manifestava, e falava de uma
forma adulta com o JJ, que apreciava o facto. O JJ era alegre e autoconfiante. Não
precisava de álcool e drogas para ser feliz. Só precisava de alguém para conversar.
Houve alguns deslizes. Muitos deslizes. Houve noites de cocaína com o Matt e
farras de álcool com a Shirley. O pobre Kato tornou a levar a lâmina de barbear aos
meus braços e os complacentes funcionários das Urgências coseram-me de novo.
Ainda que os psiquiatras não estivessem sempre a par do meu estado, o pessoal do
hospital já me conhecia e sabia que eu não me automutilava para procurar atenção.
Telefonavam ao Alec e ele vinha buscar-me e levava-me para casa, enchia o
frigorífico novo de comida, e aparecia na manhã seguinte para se certificar de que
estava tudo bem.
Quando a esposa do Alec estava em França, ele ficava a dormir no meu
apartamento e tornámo-nos amantes. Tornámo-nos amantes na medida em que nos
apaixonáramos um pelo outro. Eu sabia que era amor porque, para minha surpresa,
dava por mim a pronunciar a palavra “nós” quase com tanta frequência como a
palavra “eu”. O sexo nunca seria fácil, mas gostava de estar nos seus braços.
Gostava da sensação das mãos do Alec nos meus braços, nas minhas costas, do
seu braço em redor da minha cintura esguia. Eu sabia que ele nunca me
decepcionaria. Eu ficara longe dele. Testara-o. Ele esperara. Podia contar com o seu
apoio. O Alec tinha idade para ser meu pai e eu estava ciente das dificuldades, da
psicologia de Édipo, das bisbilhotices. Mas o amor não é um conjunto de células que
possa ser estudado sob um microscópio. O amor é. Acontece. Ou não acontece.
Pela primeira vez na minha vida, eu sentia-me normal, esperançosa, feliz.
O Alec aconselhava-me; conheceu toda a minha família de alter egos. Viu-me no
meu pior e eu tentei ser o melhor que pude para ele. Cada vez que o Alec descobria
uma dessas cartas ameaçadoras da água, da luz, do banco, da renda, pagava a
dívida. Mas o problema das dívidas é que, à medida que as pagamos, vão
aparecendo sempre mais por pagar. O Alec pagou essas também. Ele não
acreditava em guardar dinheiro apenas para ganhar mais dinheiro. O dinheiro,
segundo ele, era uma dádiva para ser utilizada e repartida.
- Tens de dar para receberes - dizia ele. - Fizeram o dinheiro redondo para que
possa circular.
A nossa amizade, a nossa espécie de caso amoroso, continuou durante muito
tempo, talvez durante anos, como se tivéssemos estado sempre juntos. Pouco a
pouco, com o Alec a passar cada vez mais tempo comigo e menos tempo em casa,
eu estava a conseguir aguentar-me, a melhorar. Estava a ajudar outras pessoas
com problemas de saúde mental a enfrentarem os seus problemas através do
exercício físico. Sentia-me como se fosse a outra metade de um casal e, ao mesmo
tempo, sentia-me completa. Também me sentia livre. O Alec tinha, aos poucos,
liquidado todas as minhas dívidas.
Fazíamos caminhadas e eu ria-me da forma como o Alec marchava como um
soldado sobre as Malvern Hills. Pernoitávamos em hotéis aconchegantes que
sempre me faziam lembrar a pensão nos arredores de Liverpool, onde eu fora com o
Patrick O’Hay para aquela desesperada noite de amor não consumado. O Alec
ensinou-me a conduzir e, quando passei no exame, com a Shirley ao volante,
naturalmente, fomos ao melhor restaurante de Birmingham e gastámos mais de cem
libras numa refeição.
Depois a bomba explodiu e as paredes desmoronaram-se.
O que o Alec não me dissera foi que o dinheiro que ele andara a desbaratar tão
generosamente consumira a herança do falecido pai da sua esposa e estava agora
a espoliar a sua pensão militar. Em Setembro de 2007, a mulher do Alec descobriu o
que estava a acontecer, fez as malas e mudou-se para o chalé na Provença. Ela
queria o divórcio.
O Alec decidiu ficar comigo. Foram momentos de grande tensão. E ele tentou.
Continuava a vir, a pernoitar no meu pequeno apartamento no topo de um lanço de
escadas íngremes. Ainda íamos à pizaria. Brincava com os legos quando o Billy
aparecia. Continuava tudo na mesma, mas já não era igual. Havia um sentimento
subtil e imperceptível de mudança como quando o Outono muda para o Inverno.
O Natal estava a chegar. Comprámos uma árvore e eu decorei o apartamento
com arranjos de papel feitos pelos miúdos. O Alec comprou um peru enorme. Nunca
fazia as coisas pela metade. O major do exército e a menina ligeiramente doida
eram semelhantes em muitos aspectos. Os semelhantes atraem-se, na minha
experiência, e não o contrário. Uma tarde, passei três horas no centro comercial à
procura do presente perfeito para o Alec e comprei-lhe uma camisola de caxemira
amarela com um decote em V, que me parecia ligar muito bem com o seu fato de
tweed. O Alec nunca vestia um sobretudo, por muito frio que estivesse. “É o sangue
escocês, miúda, eu usei um kilt até aos doze anos.”
Voltei para casa com a minha surpresa embrulhada. O Alec estava sentado no
sofá com uma expressão sombria. Eu sabia o que ele ia dizer. Múltiplas
personalidades dão-nos múltiplas intuições.
Ele ia voltar para a esposa. Era Natal. Os filhos estavam no Sul de França. Era a
atitude mais correcta. Claro que era. Era a atitude mais correcta para aquela
pequena família, mas fiquei com a sensação de ter sido traída, desprezada, sem
esperança e sozinha com a árvore de Natal decorada com ursinhos em miniatura e o
tecto coberto de arranjos de papel artesanais. O Alec guardou os óculos no estojo
gasto e vi lágrimas a correrem-lhe pelo rosto quando fechou a porta.
Como um eco daquela acção, transformei-me instantaneamente na Bebé Alice.
Aconcheguei-me com o Sr. Feliz e chorei durante quarenta e oito horas. Só parei de
chorar quando já não tinha mais lágrimas. Estava esgotada, vazia, e as vozes, que
antes eram intermitentes e distantes, estavam agora de volta, bem sonoras e
venenosas.
Ninguém gosta de ti. Toda a gente te odeia. Tu não és nada. Faz um favor ao
mundo e mata-te.
“Desapareçam!”
Rasguei as decorações das paredes e arrastei a árvore de Natal até aos
caixotes do lixo na parte de trás do prédio. Vi a época da boa vontade passar pelo
fundo de uma garrafa de gin e confortei-me com uma triste sensação de orgulho por
não ter telefonado ao Andy e comprado alguns gramas de cocaína. Tinha um crédito
positivo agora que todas as minhas dívidas estavam pagas.
Acordava todas as manhãs depois de uma noite de comprimidos para dormir
com aquela coisa preta da minha infância a crescer dentro de mim novamente. Eu
sobrevivera à violação, à destruição e ao abuso, sobrevivera à timidez, à depressão,
aos psiquiatras aparentemente indiferentes e às alas psiquiátricas hediondas.
E agora acontecia-me isto.
Mata-te, Alice. Mata-te. É a única forma.
“Pelo amor de Deus, desapareçam.”
Mata-te. Mata-te.
Sempre as malditas vozes.
A 20 de Janeiro recebi uma carta do Alec a informar-me da sua mudança de
endereço. Ele e a esposa tinham vendido a casa e iam mudar-se para um
apartamento mais modesto. Disse que não queria perder o contacto.
O Kato ficou furioso com a carta. Esmurrou as paredes. Deu pontapés no sofá.
Partiu a garrafa vazia de gin. A raiva foi crescendo dentro dele durante os dias que
se seguiram e, a 25 de Janeiro, finalmente explodiu. Inclinou-se na banheira e
começou a retalhar-me os braços.
Mata-te. Mata-te.
“Desapareçam!”
Olha para esse sangue. Finalmente tomaste a atitude certa.
“Desapareçam e deixem-me em paz!”
O sangue escorria-me pelos braços, gotejava pelos meus dedos e manchava a
banheira, as gotas unindo-se e formando uma poça.
Agora é que foi. Finalmente conseguiste.
Sacudi a cabeça para expulsar as vozes e quando olhei para baixo, para a poça
vermelha em contraste com a porcelana branca, vi o rosto do Kato transformar-se no
meu próprio rosto e percebi o que acontecera. Peguei numa toalha para tapar as
feridas, mas o sangue não parava de correr. Eu não sabia o que fazer. Ia-me
sentindo cada vez mais fraca a cada segundo que passava. Finalmente corri para
fora do meu apartamento e subi as escadas de betão até à casa do tio Joe. Ele
estava a tocar violino. Conseguia ouvi-lo através das paredes finas. Bati à porta e
caí nos seus braços quando a porta finalmente se abriu.
Eu conhecia o tio Joe há vários anos, mas só agora enquanto ele chamava uma
ambulância e tentava enfaixar os meus braços é que eu olhei para ele de perto. Só
agora o via: velho, desgastado, atencioso, um refugiado da Europa de Leste. Eu não
tinha a certeza de onde ele era exactamente. Outro ser humano que estava presente
quando eu precisava de alguém, tal como todos nós devemos tentar fazer quando
as pessoas precisam de nós. Alguém disse uma vez que não podemos mudar o
mundo, apenas nós próprios.
As feridas eram profundas e o sangue continuava a ensopar as ligaduras
improvisadas e a pingar para o chão da pequena cozinha.
- Porque fazes isto, Alice?
- Não sei. Desculpe.
A ambulância chegou. Fui transportada pela escada abaixo numa maca e ouvi a
sirene a gemer, imaginando o trânsito a ser parado à medida que nos apressávamos
pelas ruas até às Urgências. Fui imediatamente colocada num cubículo, mas as
enfermeiras não conseguiam estancar o sangue que jorrava dos meus braços.
O que aconteceu a seguir é pouco claro.
Do que me recordo, e recordo-o vividamente, é de estar frente a frente com o
avô. Eu não podia acreditar. Ele sorriu-me e eu sorri-lhe. Ele tinha exactamente o
mesmo aspecto, aquele de que me recordava durante o último Verão, enquanto
comíamos caramelos na sua estufa. Para além da sua presença visual, eu senti
realmente o abraço do avô, terno e cheio de amor. Senti aquele abraço e ouvi-o
dizer:
- Ainda não. Ainda não chegou a tua hora.
Fui reanimada e recuperei a consciência com aquelas palavras a ecoarem-me
na mente. Havia seis pessoas à volta da minha cama na sala de reanimação:
médicos, enfermeiros e um homem com um fato de tweed e um colete verde a
segurar num saco de soro fisiológico e a massajar os meus pés. O Alec voltara para
casa.
Eu perdera, foi-me dito, quase 50% do volume total de sangue do meu corpo e
entrara em choque hipovolémico.
- Perdemos-te durante algum tempo - disse a jovem enfermeira que me levou à
casa de banho depois de eu ter sido estabilizada.
Durante vários momentos não tivera débito cardíaco: o meu coração parara. Se
não fosse por alguma actividade cerebral, eu estaria clinicamente morta. Uma parte
de mim desejara agarrar-se ao meu avô, a minha querida alma gémea da infância,
para atravessar para o outro lado, mas recordava-me de sentir o Alec a apertar o
meu pé e de ver uma expressão de alívio no seu rosto quando recuperei a
consciência.
Quando o meu coração parou de bater, era como se eu estivesse a atravessar
uma nuvem branca para outro lugar. Assim que dei de caras com o meu avô, não
queria voltar a perdê-lo. Eu realmente podia ter morrido. Eu morri. Mas confiei no
meu avô quando ele me gritou para eu regressar, e eu sabia o que ele queria dizer.
Ainda não chegara a minha hora.
O Alec levou-me para casa. Apertou-me nos seus braços e soluçou.
- Tive muito medo de te perder.
O Alec ainda tinha a chave do meu apartamento. Disse-me que chegou pouco
depois de a ambulância ter partido e ao encontrar o sangue e os pedaços de vidro
na banheira, dirigira-se rapidamente para as Urgências. Viera dizer-me que tentara
consertar o seu casamento, mas que estava a viver uma mentira.
- Nunca mais te decepcionarei. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais - disse
ele.
Por pouco, o fim quase fora mesmo o fim, mas, na realidade, esse dia de
Janeiro foi um novo começo para nós os dois. O Alec foi morar comigo e deixou o
seu novo apartamento e a casa de França para a mulher.
Em breve chegou a Primavera e eu era feliz. Era amada. Estava limpa.
Sobrevivera.
Estava melhor? Alguma vez melhoraria? O objectivo final da terapia de DPM/PDI
é a integração dos alter egos. Isto funcionou comigo até certo ponto, mas não
totalmente. Há dias bons e dias maus. Não uso drogas ilícitas e a medicação
mantém-me mais ou menos em equilíbrio. Mais ou menos. Ainda tenho flashbacks e
pesadelos, mas tenho o amor do Alec e um pequeno círculo de bons amigos que me
aceitam pela pessoa que sou, embora nem sempre seja a mesma pessoa.
Foi uma longa viagem para chegar até aqui. Os alter egos sofreram a dor de
serem abusados durante toda a minha infância e eu perdoo os alter egos que me
infligiram dor em adulta. Claro que sim. Eles são meus amigos. Ainda surgem
quando não deveriam, mas estão a ficar mais atenciosos e eu, de minha livre e
espontânea vontade, decidi não os integrar plenamente. O Alec apoiou-me nesta
matéria e sente-se feliz em ajudar o Billy a construir camiões com os legos. A Shirley
ainda é adepta do gin tónico e eu partilho com ela esse gosto pela bebida, mas não
em excesso.
Por vezes, quando desperto de um pesadelo na escuridão da noite, escuto a
vozinha do JJ a dizer que vai correr tudo bem. Deposito nele toda a minha fé, uma
criança de dez anos que é, como o meu avô diria, “sábia para a sua idade”. O JJ,
assim como os outros, ajudou-me a chegar até aqui; e assim, porque ele canta
“Everything's going to be ali right”, eu acredito que vai correr tudo bem. Já não sou
tão vulnerável como era antes. Embora por vezes ainda seja a Bebé Alice, e o Alec
me cante uma canção de embalar para eu dormir. Noutras alturas posso ser o
Samuel ou o Billy, o Kato ou a Shirley. Mas com toda a certeza, hoje sou a Alice.
EPÍLOGO

Em Setembro de 2006, entrei em contacto com o DIC (Departamento de


Investigação Criminal) local para perguntar se me poderiam fornecer uma
declaração oficial da polícia para validação da nota manuscrita que me fora dada
pela detective que tratara da minha queixa contra o meu pai em 1999.
Falei com um inspector, que achou que eu precisava de pôr um ponto final
naquilo. Prometeu contactar-me. Todos os crimes relacionados com as crianças,
como os abusos, os assassinatos, os raptos e o tráfico, estavam mais visíveis aos
olhos do público e a polícia tinha departamentos a investigar e a lidar com estas
questões.
Fiquei surpreendida ao descobrir que o meu caso não fora esquecido. Fiel à sua
palavra, o inspector telefonou-me no final dessa tarde.
- Parece ter sido um caso muito desagradável - observou ele.
- Sim, foi. Ainda é - concordei.
- Alguma vez pensou em reabrir o caso? - perguntou, após uma pausa.
- Bem, não, não pensei, mas se isso é uma possibilidade, então, sim, gostaria de
o fazer.
Ele combinou uma data para me entrevistar no meu apartamento. Chegou com
uma detective da polícia, uma mulher da minha idade que era séria, simpática e
claramente treinada para lidar com este tipo de queixas. Depois de conversarmos
durante bastante tempo, o inspector enfatizou que havia sempre a possibilidade de o
meu pai não chegar a ser levado a julgamento. No entanto, o DIC lançou uma
investigação que duraria mais três meses.
O inspector veio visitar-me de novo em Dezembro e informou-me que o CPS
decidira que, uma vez que não havia provas novas, o caso não podia seguir para
acusação. Esta foi a segunda vez que recebi esta notícia e fiquei bastante
desiludida.
Recordei ao inspector que lhes havia solicitado uma carta em papel timbrado da
polícia informando que a equipa de investigação estava confiante de que eu dissera
a verdade. Eu poderia usá-la como conforto sempre que me sentisse frustrada por
não ter conseguido levar o meu pai à justiça. Provava que alguém com autoridade
acreditava em mim.
Antes de sair, o inspector perguntou-me:
- Já pensou em lutar contra o seu pai através dos tribunais civis?
- Não, nunca pensei nisso - respondi.
- É uma opção, Miss Jamieson. Pode fazer uma reclamação através do Criminal
Injuries Compensation Authority - acrescentou.
A carta chegou como prometido em papel oficial da polícia. Arquivei-a enquanto
decidia o que fazer a seguir. Agora tinha o Alec para me apoiar. Tinha-se juntado à
minha equipa e estávamos a concorrer para um apartamento camarário maior.
Nós (“nós”) considerámos interpor uma acção cível contra o meu pai, mas o Alec
não queria que eu sofresse ao ser arrastada pelos tribunais. A polícia, de igual
modo, não queria arrastar-me pelos tribunais, e eu pensei que a justiça funcionava
muito mal.
Todavia, tal como a polícia sugeriu, fiz uma reclamação através do Criminal
Injuries Compensation Authority (CICA), um organismo do governo criado para a
concessão de indemnizações às vítimas de crimes violentos, o que inclui o abuso
sexual.
Após dois anos e meio de avaliações dos danos que eu sofrera em
consequência dos abusos, reunindo informações retiradas dos meus registos
médicos e psiquiátricos, e dos documentos retirados dos arquivos da polícia, assim
como o cálculo da perda de rendimentos passados e futuros que eu auferiria se
tivesse terminado o meu doutoramento, o CICA concedeu-me finalmente uma
quantia substancial de dinheiro, mais uma confirmação de que eu, Alice Jamieson,
fornecera “um relato verdadeiro e honesto”, como a polícia declarou devidamente.
Este livro foi digitalizado por Angelina Azevedo e revisto por Américo Azevedo. Caso
esteja interessado em obter mais obras deste género, contacte com Américo Azevedo – Rua
Manuel Ferreira Pinto, 530 – 4470-077 Gueifães Maia – Telemóvel: 932471778.

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