Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Thurlow
Alice parecia ter tudo para ser feliz: vivia com os pais e o irmão numa casa
luxuosa, frequentava as melhores escolas… Porém, sempre se sentiu diferente
das outras crianças. Sofria de perdas de memória, tinha pesadelos violentíssimos
e as vozes que ouvia na sua cabeça pediam-lhe para se matar. Culpou-se em
silêncio durante anos até procurar um terapeuta, que a ajudou a compreender o
que a atormentava: múltiplas personalidades. Quando elas se revelaram, Alice
percebeu por fim a dimensão da sua agonia. Cada uma das personalidades tinha
as suas próprias e terríveis memórias. Ela podia finalmente ter uma visão global
da sua infância. Mas o que descobriu quase a matou. Alice fora abusada pelo
próprio pai desde os seis meses de idade. Ao longo da sua infância, adolescência
e juventude, ele violara-a centenas de vezes, tendo até permitido que outras
pessoas o fizessem. "O meu pai infligiu-me todas as perversões possíveis", conta-
nos. Na adolescência, sofria de anorexia e de perturbação obsessivo-compulsiva,
perturbações que eram, no fundo, silenciosos pedidos de ajuda que ela descreve
corajosamente em O Inferno de Alice. Perceber e sobreviver ao passado foi apenas
o início de uma luta que Alice trava até hoje. Esta é a sua história.
A minha história foi escrita em conjunto com Clifford Thurlow, que foi
pacientemente desenterrando as minhas memórias para colaborar neste livro. A
colaboração para mim foi fácil. Tenho colaborado com os meus alter egos quase
toda a minha vida.
Muitas pessoas me ajudaram com este livro. Elas sabem quem são e eu
agradeço-lhes do fundo do coração.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Alec, meu melhor amigo e minha
alma gémea, pelo seu apoio incondicional.
Agradeço igualmente a íris Gioia, aos meus leais amigos Marie, Lynette, Vicky,
Alison, Graham e Jeremy, por acreditarem em mim; à minha psicoterapeuta de
Gestalt, Marsha Chase, pelos seus comentários sensatos e profissionais ao
manuscrito; à psiquiatra Dra. Joan Coleman, da RAINS (Ritual Abuse Information
Network & Sup-port) que está sempre presente quando necessito de apoio; ao
psicoterapeuta analítico Remy Aquarone, secretário da ESTD (European Society for
Trauma and Dissociation) e antigo director internacional da ISST-D (International
Society for the Study of Trauma and Dissociation); à equipa da Sidgwick & Jackson
liderada pela minha imperturbável editora Ingrid Connell e ao nosso agente Andrew
Lownie, que uniu todas as peças para que fizessem sentido.
Alice Jamieson Março de 2009
PRÓLOGO
FRAGMENTOS DE MEMÓRIA
A minha memória é como um grande vaso que foi atirado de uma janela. As
peças estão todas lá, umas grandes, outras pequenas, outras desfeitas em pó.
Quando tento unir as peças, juntando uma recordação à outra, partes da história
tornam-se claras e lúcidas, mas sobram muitos espaços em branco e tempo perdido.
O meu primeiro dia de escola? Desapareceu. As férias em família? Nada. O meu
livro preferido? Quando é que aprendi'a andar de bicicleta? Momentos impossíveis
de encontrar entre as longas sombras negras que se estenderam por toda a minha
infância.
Isto é aquilo de que me recordo. Éramos um modelo de família nuclear: pai,
mãe, eu e o meu irmão Clive, com cerca de mais quatro anos que eu. Éramos uma
família à antiga: conservadora, bem-educada, próspera, um tanto antiquada e
aparentemente amável e simpática.
Vivíamos numa casa grande com um caminho de entrada circular em torno de
um carvalho gigante, numa zona abastada das Mid-lands, onde os vizinhos se
cumprimentavam, as crianças eram educadas e as pessoas mantinham os seus
cães sob controlo. O meu pai trabalhava como advogado em Birmingham. Trocava
de carro todos os anos, sempre um Rover topo de gama, e jogava golfe aos
domingos de manhã. A minha mãe trabalhava como secretária numa agência
imobiliária e conduzia um Triumph, de dois lugares, azul-claro.
A casa era em alvenaria com um telhado vermelho e portas de vidro que se
abriam para um pátio de pedra. A cozinha conduzia à sala do pequeno-almoço e ao
comprido jardim das traseiras, onde arbustos de azevinho ocultavam o barracão
onde o meu pai guardava aranhas em frascos de compota. No piso de cima havia
quatro quartos, uma casa de banho grande e outra de serviço. Cada um de nós tinha
o seu quarto. O patamar superior das escadas era como uma linha divisória, o pai e
o Clive de um lado, na parte da frente, e eu e a minha mãe nas traseiras, com
janelas com vista para o jardim.
Ao fundo do patamar encontrava-se a arrecadação, conhecida como a Gaiola
devido ao seu tecto abobadado. Era neste compartimento que eu guardava os meus
brinquedos e me escondia sempre que havia uma sessão de gritaria entre os meus
pais. Quando eu era pequena, o compartimento assemelhava-se a uma gigantesca
casa de bonecas, um lugar mágico onde eu brincava sozinha. Noutras alturas, a
Gaiola era mesmo uma gaiola e quando tentava abrir a porta não conseguia sair.
Quando havia uma discussão entre os meus pais, geralmente elas terminavam com
a minha mãe a sair tempestuosamente de casa e eu ficava trancada na Gaiola até
ela regressar. A Gaiola possuía uma conduta de ar para extrair os cheiros da
cozinha. Depois de discutir com a minha mãe, o meu pai geralmente cozinhava
alguma coisa.
Recordo-me nitidamente desses momentos: estou trancada na Gaiola, e o
cheiro da comida que chega através da conduta de ar deixa-me com fome. Eu bato
à porta.
“Papá, tenho fome. Papá, tenho fome.”
O meu pai responde abrindo a porta e dando-me uma lata de massa. Depois
tranca-me de novo lá dentro. Fico a olhar para a lata, a qual, evidentemente, não
consigo abrir. Este era o meu castigo. Os meus pais deviam ter discutido por minha
causa. Eu estava a ser disciplinada por tê-los aborrecido. Num acto de rebelião, bato
com a lata repetidamente contra a parede.
Noutras ocasiões, era realmente mazinha e escrevia na parede. Antes de saber
escrever, conseguia garatujar no estuque por pintar mensagens que tinham
significado para mim e que nunca ninguém lia.
A minha mãe regressava a casa, o meu pai deixava-me sair da Gaiola e tudo
voltava ao normal. Normal era a palavra de ordem. Afinal, éramos a família perfeita,
cada um fechado no seu quarto.
A minha mãe era uma mulher pequena e bonita, com madeixas louras no seu
cabelo castanho e lábios generosos que sorriam com facilidade. Ao seu estilo, era
bastante atraente, e sabia-o. Tinha uma personalidade forte, uma entoação aguda
na voz e costumava levar a sua avante. Era impulsiva, mais voltada para a acção do
que para os pensamentos, vistosa no seu carro azul-claro. Elegante e meticulosa,
movia-se a passos largos e andava sempre atarefada. Isto por vezes conferia-lhe
um ar distante que contrastava com as suas blusas extravagantes e saias de marca
que balançavam ritmicamente enquanto se apressava nos seus saltos altos.
Passava cerca de uma hora, de manhã, a arranjar o cabelo e a maquilhar-se,
enquanto nós os três nos atarefávamos pela cozinha a fazer o pequeno-almoço,
tentando não nos atravessar no caminho uns dos outros. O pai era o primeiro a sair
para o trabalho. O Clive saía para a escola na sua bicicleta, e quando eu entrei para
a escola aos cinco anos, a mãe deixava-me lá a caminho do escritório.
Uma manhã, estava eu sentada na mesa da sala do pequeno- almoço enquanto
a minha mãe andava de um lado para o outro a reunir as suas coisas, quando ela
parou junto de mim e me perguntou: “Achas que devo deixá-lo?”
Ela estava a falar do marido, do meu pai. Eu sabia-o, embora não soubesse o
que responder. Aos cinco anos, vivemos num mundo à parte. O mundo das mamãs
e dos papás está para além do nosso entendimento. “Oh, não interessa”,
acrescentou a mãe com um suspiro de impaciência, enquanto caminhávamos
apressadamente em direcção ao carro, eu com os sapatos engraxados e ela com o
cabelo cheio de laca para manter os caracóis no lugar.
Eu e a minha mãe não nos entendíamos. Ela dizia que eu era uma criança
insuportável, que era uma tagarela, que fazia demasiadas perguntas. Eu era
hiperactiva, cheia de energia e estava sempre a reclamar a atenção dela. Sempre
que ela fazia um bolo, quando eu era pequena, trepava para um banco, ansiosa por
ajudar. “Mamã, posso mexer? Mamã, posso partir os ovos? Mamã, posso rapar a
taça?”
Estava a ser insuportável e ela aturava-me deixando que a ajudasse, mas em
parte eu sentia que estava a ser um incómodo. A minha mãe ocultava os seus
sentimentos e eu, sentada nos seus joelhos, aprendi a ocultar os meus. Houve uma
falha de comunicação crucial entre nós as duas quando eu era pequena e quando
atingi a puberdade já tinha construído uma muralha à minha volta, uma fachada que
escondia a minha instável auto-estima e na qual a minha mãe não conseguia
penetrar.
O meu irmão herdara a personalidade e a graciosidade da minha mãe, e a
aparência do pai dela, o nosso avô. O Clive vivia absorvido no seu próprio mundo.
Raramente levava amigos lá a casa. Não me lembro de alguma vez o ter ouvido
levantar a voz, zangar-se ou ouvir música muito alto. Era reservado, recatado e
solitário. Mas no Verão, quando o céu estava azul e os dias eram maiores, ele
tornava-se mais afável. E quando os irmãos mais velhos são afáveis, isso significa
brincadeira. Eu estava desejosa que alguém brincasse comigo.
O Clive sabia que eu adorava a minha colecção de peluches, os ursinhos, o
grande e suave Sr. Feliz e o meu Snoopy com o sorriso de esguelha. As vezes
estava na sala de estar a brincar, e o Snoopy aparecia do lado de fora da janela,
pendurado num pedaço de fio, do quarto da minha mãe. Eu lançava-me pelas
escadas acima e, nesse espaço de tempo, o Clive já deixara cair o Snoopy e
escondera-se no corredor. Quando eu entrava de rompante no quarto da minha
mãe, já ele estava a sair pelas portas de vidro no piso de baixo, ameaçando dar uma
tareia ao meu Snoopy.
Eu guinchava de deleite. Era preciso tão pouco para a minha vida ficar completa.
Eu ansiava que o Clive fosse sempre assim afável e brincalhão, mas tinha de me
contentar com as brincadeiras ocasionais. Nunca me fez rodopiar nos seus braços
nem nunca me levou a dar um passeio na barra transversal da sua bicicleta. O Clive
não sentia o impulso fraternal de me sentar nos seus joelhos enquanto estávamos
defronte da televisão. A mãe também não. Essa era a função do papá.
O meu pai era um homem de elevada estatura com feições fortes, sobrancelhas
negras e espessas e um cabelo negro que reluzia como o carvão sob a sua capa de
brilhantina. O risco era tão direito como uma linha traçada por uma régua, e tinha
uma zona calva no cocuruto, que por vezes coçava, deixando bocadinhos de pele
seca sob as unhas. Quando eu estava sentada no colo dele, a ver televisão, ou
quando ele estava a ler o jornal, ele coçava a cabeça e depois metia o dedo na
minha boca e eu chupava-o.
O meu pai albergava vagas desilusões e considerava-se superior aos vizinhos.
Fazia questão que as pessoas soubessem que era membro do melhor clube de
golfe, embora só jogasse uma vez por semana. Por vezes, contemplava com
melancolia a vida mais cosmopolita do irmão, um corretor da Bolsa de Londres. O
meu pai nunca viajava, excepto para os lugares longínquos que alcançava com o
seu rádio de ondas curtas. O som dos apitos e zumbidos do outro lado da porta do
seu quarto foi a banda sonora da minha infância.
É fácil agora enquanto adulta ver o quanto eu ansiava pela atenção do meu pai
quando era pequena. Receava-o e sentia-me atraída para ele tal como um objecto
de metal é atraído para um íman, da mesma forma que as crianças gostam de se
debruçar em lugares elevados e atravessam a rua sem olhar.
Quando o meu pai trabalhava no jardim durante o Verão, eu corria em volta dele
descalça e só de cuequinhas. Ele erguia-me nos seus braços e levava-me para o
barracão, que exalava um odor a serradura e a erva acabada de cortar, uma
atmosfera pacífica e organizada, com uma luz que se suavizava à medida que ia
entrando pelas pequenas janelas empoeiradas. Havia ferramentas com pegas de
madeira penduradas em suportes de parede, e frascos com pregos, parafusos,
porcas e aranhas dispostos sobre as prateleiras. As tampas tinham buracos para
que as aranhas pudessem respirar.
Ele sentava-me no banco e, de uma forma brincalhona, acenava um dedo
ameaçador na minha direcção. “Não te atrevas a mexer”, dizia, e eu obedecia-lhe.
Ficava ali sentada, com os ombros rígidos, os dentes cerrados e os meus pequenos
punhos apertados.
O meu pai adorava este jogo e jogávamo-lo com frequência. Podia ter o corpo
quente e húmido de suor por ter andado a correr, mas agora sentia um pavor frio,
como dedos gelados a subirem-me pela espinha, à medida que ele retirava os
insectos rastejantes dos frascos e os punha na minha barriga. Observava,
paralisada de horror, enquanto as suas patas peludas rastejavam pela minha pele.
Tentava não me mexer, mas as aranhas faziam-me cócegas e não conseguia evitar.
Torcia-me e contorcia-me e, nessa noite, sonhava que alguém entrava no meu
quarto. Essa pessoa fechava a porta, retirava os peluches da minha cama, puxava
as cobertas para trás e percorria o meu corpo com os dedos, como se fossem patas
de aranhas.
Quando era pequena, sonhava frequentemente com aranhas e até atingir os
meus doze anos, sonhava muitas vezes com chamas que rodopiavam em redor dos
meus pés, aquecendo-me os dedos sem os queimar. Estou nua da cintura para
baixo, deitada de barriga para cima a agitar as pernas como um bebé.
Desperto envolta em suores frios e, naquele momento de desorientação, tenho
quase a certeza de que vejo a imagem de um homem executando círculos com a
chama de um isqueiro junto aos dedos dos meus pés. A imagem é indistinta e
desaparece rapidamente. O que permanece é o gosto a uma substância química na
minha boca, como leite azedo. Visto a camisa de dormir, tranco-me na casa de
banho e lavo os dentes. Devo ser a adolescente de doze anos com os dentes mais
limpos de toda a Inglaterra.
Quando estes sonhos invadiam a minha mente, o meu estômago contraía-se
como se tivesse uma mão a apertar-me as entranhas, e aquele sabor amargo subia-
me de novo à garganta como se fosse bílis. Muitas vezes, sentia ardor ao urinar,
embora estivesse habituada a isso. Acontecia-me desde muito cedo. O pior era
aquela sensação de confusão na minha mente, uma sensação de que uma pequena
parte de mim fora deslocada ou reorganizada durante a noite, de que quando me
sentava na sanita de manhã, eu era eu, mas nos meus sonhos era alguém como eu,
mas outra pessoa.
Era muito confuso e pensava sempre em falar à minha mãe do sonho do
isqueiro. Queria perguntar-lhe o que significava. Mas nenhum momento parecia ser
o indicado. Andávamos sempre numa correria. Não falávamos de assuntos
pessoais. Fiz os possíveis por expulsar os pensamentos e as imagens da minha
cabeça mergulhando numa actividade frenética.
Adquirira o hábito de ir logo para casa depois da escola e fazer os trabalhos de
casa durante uma hora com os peluches a observá-los em seu lugar, empilhados
sobre a cama e na estante do meu quarto. Cozinhava para o Clive e para os meus
pais e tinha o jantar pronto para eles quando chegavam a casa. Não chegavam à
mesma hora, e não faziam as refeições juntos, por isso eu preparava três refeições
distintas à noite, cozinhando e lavando a loiça de cada uma das vezes, e
recomeçando tudo de novo.
Não era obrigada a cozinhar. Fazia-o porque queria, para me manter ocupada.
Trabalhos de casa. Tarefas da casa. Cortar tomates. Lavar a alface. Bater os ovos.
Por vezes, quando estava a fazer uma omeleta para o meu pai, dava por mim a
acrescentar muita manteiga sem saber por que razão o fazia. Na verdade, por vezes
parecia-me que não eram as minhas mãos que estavam a cortar a manteiga, mas as
mãos de uma estranha.
Eu preenchia todos os segundos com todo o tipo de tarefas, a torrente de
actividade empurrando os meus pesadelos cada vez mais para um lugar sombrio,
até que, como as sombras, eles se absorviam uns aos outros.
As visões horrendas que me perseguiam eram postas em confronto com a luz
brilhante das tardes de domingo quando a mãe nos levava, a mim e ao Clive, a
visitar os pais dela em Erdington. O pai raramente ia e quase nunca víamos a família
dele.
Visitar os meus avós era como ir de férias. Erdington parecia um país diferente,
mais modesto e, de certa forma, mais honesto. Tal como não tinha grande opinião
sobre os vizinhos, estou certa de que o meu pai considerava os pais da mulher, que
viviam numa modesta casa geminada, pessoas inferiores em comparação com o
seu grandioso estatuto de membro do melhor clube de golfe, advogado e homem
rico. O meu avô paterno falecera antes de eu nascer. A mãe dele, ao espreitar para
o berço quando nasci, dissera desdenhosamente à minha mãe: “Ela deve sair ao teu
lado da família.”
Essa mulher, que eu raramente via, chamava-se avó.
A minha avozinha era a mãe da minha mãe, uma mulher alegre e laboriosa que
só se sentia feliz quando estava atarefada. Tinha caracóis soltos de cabelo branco,
ancas largas e mãos vermelhas de estarem constantemente em contacto com a
água. Ela era como a avó do Capuchinho Vermelho com o nariz de botão e os olhos
brilhantes que davam a impressão de esconderem muito mais do que aquilo que ela
deixava transparecer. Trabalhou a meio-tempo num estabelecimento comercial em
Birmingham até se reformar. Tricotava casacos de malha e foi sempre uma boa
costureira até a artrite tornar os seus dedos nodosos e arqueados.
Ensinava-nos a fazer caramelos e pequenos bolos em forma de pastéis a que
dava o nome de folhados de maçã, e andava sempre atarefada a fazer dez coisas
ao mesmo tempo: a pôr a chaleira ao lume para o chá, a baixar o lume ao tabuleiro
de caramelos e a dispor os folhados de maçã nos pratos de louça Doulton com aros
dourados à volta. A repulsa persistente dos meus pesadelos dissipava-se da minha
mente e eu sentia-me feliz por estar viva naquela cozinha, com as grandes janelas
que davam para o jardim com as suas roseiras e canteiros de flores. O jardim devia
estar posicionado no sentido oposto ao nosso, pois estava sempre repleto de uma
luz acobreada.
O avô regressava a casa, depois de ter estado a arrancar as ervas daninhas,
ostentando um sorriso de orelha a orelha enquanto retirava os sapatos de trabalho e
calçava um par de pantufas de couro polidas, inclinando-se para me dar um beijo em
ambas as faces. Eu adorava a avó, mas o avô era a minha alma gémea. De acordo
com as histórias da família, quando eu nasci o meu avô segurou-me nos seus
braços, olhou-me nos olhos e disse: “Esta pequenina já cá esteve antes.” Contaram-
me esta história tantas vezes que deixou de ser folclore e passou a ser uma
lembrança.
O meu avô tinha uns olhos azul-claros que me fitavam com um amor puro e
incondicional. Eu não tinha de fazer nada nem de ser outra coisa para ser amada
pelo avô. Bastava-me ser eu, e isso era diferente da vida lá em casa, onde eu sentia
que carregava o fardo de manter a família unida. A nossa casa, com as suas linhas
divisórias e portas fechadas, com os quatro lugares à volta da mesa na sala do
pequeno-almoço ocupados apenas por uma pessoa de cada vez, era como o cubo
mágico que dava a volta à cabeça do meu irmão, um puzzle detestável que, por
muitas voltas e reviravoltas que se lhe desse, nunca se conseguia completar.
O avô estava a ficar surdo, mas isso só lhe tornava os outros sentidos mais
apurados. Havia sabedoria e, suspeito, um laivo de tristeza naqueles olhos azuis
perspicazes. Quando regressávamos a casa, abraçava-me com tanta força que era
como se não me quisesse deixar ir.
Éramos uma família tipicamente inglesa, evitávamos os assuntos pessoais,
tínhamos os nossos segredos e um sentido de que devíamos seguir em frente com a
vida. Mas quando olho para trás, através do emaranhado confuso das minhas
memórias, não consigo evitar pensar se o meu avô, astuto como era, se teria
apercebido de que nem tudo estava bem atrás da alta vedação de madeira, no lado
chique das Midlands.
O avô trabalhara como desenhador. Quando se reformou, aos sessenta e cinco
anos, arranjou um emprego a tempo parcial a catalogar os projectos e as plantas
para uma empresa de engenharia civil. Gravava placas de cobre e era um artista
competente com um traço leve e uma mão firme.
Eu pedia, “Avô, faz-me um desenho”, e ele pegava no seu caderno de rascunho
e desenhava como uma criança desenha, de forma natural e sem preparação, e
dava vida a uma paisagem impressionista, à medida que o lápis dançava pela
página. Ao longo dos anos desperdiçados no consumo de drogas, nos hospitais
psiquiátricos, nos sofás em apartamentos esquecidos, nas casas de amigos
esquecidos, consegui agarrar-me à imagem d'As Palmeiras Ondulantes das Ilhas
Tropicais, um desenho a esferográfica de duas palmeiras num horizonte longínquo,
e eu penso nessas duas palmeiras como sendo eu e o avô num lugar bem distante e
em segurança.
O avô pertencia àquela época em que os homens se orgulhavam de usar as
calças bem vincadas, uma camisa branca imaculada e uma gravata com um nó bem
feito. Tinha moedas dispostas em colunas na cómoda do seu quarto, de modo a ter
o dinheiro certo para o motorista do autocarro. Não tinha carro nem queria ter. No
autocarro podia-se falar com os outros passageiros, ou ir sentar-se no andar de cima
e observar o mundo a passar. Usava fato completo quando ia sair e preferia os
grossos casacos de malha que a avó tricotava para andar por casa, com os bolsos a
abarrotar de cordéis trazidos do jardim, rebuçados, um lenço enrodilhado e o seu
maço de cigarros Sénior Service. Batia com o cigarro no maço, para fixar o tabaco
antes de o acender, e o aroma daquele fumo, doce e forte, era o cheiro
característico do avô.
Não me recordo de alguma vez ouvir o meu avô dizer mal de alguém. Tinha
sempre um sorriso na cara e fazia-me rir às gargalhadas quando me contava as
suas histórias, independentemente das vezes que as escutava.
Aos doze anos, tive a oportunidade de fazer um cruzeiro pelo Mediterrâneo até
Israel, com a minha escola. O avô pagou as duzentas libras de sinal. Quando me
deu o cheque, ajoelhou-se junto à parede da sala de estar, balançou-se para trás e
para a frente, e lamuriou-se da mesma forma que os crentes fazem junto ao famoso
Muro das Lamentações, em Jerusalém. Isto fez-me rir até as lágrimas me correrem
pelas faces.
Viajámos de avião até Split, na antiga Jugoslávia, depois embarcámos no Bolívia
e partimos sob um intenso temporal pelo mar Egeu em direcção a Haifa, em Israel.
O mar estava muito agitado, o navio balançava como um ébrio de um lado para o
outro, e nós observávamos dos nossos beliches a nossa bagagem a ser lançada de
trás para a frente, pelo chão do dormitório. A maioria das raparigas vomitou, mas eu
parecia possuir uma costela de marinheiro e desfrutei da sensação de aventura, da
ideia de que o navio estava a lutar contra as adversidades e de que atravessaríamos
juntos a tempestade. Era a primeira vez que viajava completamente sozinha, e
naquelas ondas furiosas, enquanto as raparigas à minha volta estavam enjoadas e
histéricas, eu nunca me sentira mais relaxada em toda a minha vida.
A bordo do Bolívia não havia passado, apenas aquele momento. A minha mente
estava desanuviada. Os pesadelos tinham sido levados pelo vendaval e depositados
no fundo do mar. Era como se os sacos e as mochilas no chão do dormitório fossem
os pensamentos que normalmente chocalhavam no interior da minha cabeça,
libertados para escorregarem e deslizarem livremente pelo chão. Eu gritei, porque
todas as raparigas estavam a gritar, é o que as raparigas fazem, mas secretamente
sentia-me muito feliz.
O mar parecia reflectir os meus pensamentos e quando o navio atracou no porto
de Haifa, no dia de Natal, estava calmo. Precipitámo-nos para a camioneta que
estava à nossa espera e eu observei a Terra Santa revelar-se perante os meus
olhos à medida que serpenteávamos pela antiga paisagem até Jerusalém. Quando
avistei o Muro das Lamentações soltei umas risadinhas abafadas ao recordar-me do
avô ajoelhado na sala de estar. Iria recordar-me desse dia muitas vezes e vim a
aperceber-me de que a minha mãe também tinha sentido de humor. Ela ria-se tanto
quanto eu quando o pai dela fazia figura de pateta, como ela dizia, e admirava-o
porque ele tinha a confiança para ser ele mesmo.
Viajámos para Belém e visitámos a Igreja da Natividade, o local do nascimento
de Cristo, depois regressámos a Jerusalém para visitar a câmara da Ultima Ceia e,
em seguida, encaminhámo-nos para a igreja construída no Monte Calvário, onde se
pensa que Jesus foi crucificado. Após um passeio de burro, sentia-me esfomeada e
tivemos um almoço tardio no Monte das Oliveiras, onde consta que Jesus alimentou
5000 pessoas com dois pães e cinco peixes.
Encontrávamo-nos no berço da civilização, com ligações históricas às três
grandes religiões do mundo ocidental: judaísmo, cristianismo e islamismo. Para mim
foi um choque, enquanto adolescente de doze anos, ver estes lugares santos a
serem patrulhados por soldados israelitas armados. Os assuntos do mundo nunca
me tinham tocado antes, mas viajar abre a mente, e durante essa visita de estudo
ocorreu-me que quanto mais a minha mente se abrisse, melhor; quanto mais
informações reunisse, menos espaço haveria para os pesadelos e memórias
distorcidas.
Telefonei aos meus pais utilizando o rádio do navio para lhes desejar um feliz
Natal enquanto navegávamos para Rodes, a ilha dos cruzados, famosa pela
acrópole de Lindos, uma subida de quase 115 metros por degraus de pedra talhados
na colina sobre a Cidade Velha. Uma visão que, de acordo com o meu guia, “uma
vez vista, jamais será esquecida”. Atravessámos o Mediterrâneo para a Turquia,
onde me empanturrei de um doce turco confeccionado com água de rosas,
polvilhado com coco e aromatizado com hortelã, pis- tacho e canela. As palavras e
os sabores eram novidade para mim, assim como a visão de mulheres com véus,
cobertas com longas vestes, os minaretes acima das mesquitas, e ruídos como o
grito do muezim a chamar os fiéis para a oração, um som tão idêntico aos versos
entoados no Muro das Lamentações que poderia ter sido um eco.
A enorme sirene do Bolívia soou e nós navegámos através de um mar sereno
até à ilha de Santorini. Em fila indiana, subimos pelo trilho irregular para
contemplarmos fascinados a orla em forma de meia-lua da maior cratera vulcânica
da Europa, a suposta localização da cidade perdida de Atlântida. Na véspera de Ano
Novo, chegámos a Heraclião, em Creta, onde passámos o dia a explorar as ruínas
de Knossos e eu comprei presentes para a minha família: um saco de pano para a
mãe, um cinto para o Clive, um cinzeiro de cerâmica para o avô, algo para o pai e
algo para a avó.
A nossa paragem final no dia de Ano Novo foi em Valletta, uma cidade portuária,
capital de Malta, e voltei para casa com a minha mochila repleta de rolos fotográficos
e a cabeça a vibrar com todas as datas e maravilhas arqueológicas que estava
ansiosa por partilhar com o meu avô.
Entrei apressadamente em casa a sorrir, mas a minha mãe parecia” estar de
mau humor e sentou-me na cozinha. “O que foi agora?”, pensei. Ela disse-me que o
meu avô sofrera um ataque cardíaco na véspera de Natal e estava entre a vida e a
morte.
- Porque é que não me disseste?
- Para quê, para arruinar as tuas férias?
Rompi num pranto.
O avô estava entre a vida e a morte. A frase era aterradora e eu mal podia
esperar até ao fim do dia para que pudéssemos ir visitá-lo ao hospital. Desfiz as
malas e quando encontrei o cinzeiro do avô quebrado pareceu-me um mau
presságio.
Assim que as portas duplas se abriram à hora da visita, corri para a enfermaria
usando um fez turco. O avô estava pálido e parecia mais velho deitado naquele leito
com o pijama às riscas. Mas no momento em que me viu, endireitou-se na cama,
pegou no fez vermelho e colocou-o na sua própria cabeça. Pegou-me na mão. “O
que faria eu sem a minha bonequinha?” disse, e daquele dia em diante começou a
melhorar.
CAPÍTULO 2
QUATRO ROSTOS
AS VOZES
A primeira vez que ouvi vozes foi no meu quarto. Ouvia Dire Straits baixinho
enquanto estava a estudar. Foi então que a ouvi.
Pelo teu avô, para que ele se sinta orgulhoso.
A voz irrompeu no quarto. Era como se alguém tivesse gritado de muito perto.
Apanhei um grande susto. Olhei em redor do quarto. A porta estava fechada. Não
havia ali ninguém.
Sem isso, não vales nada, miúda.
Lá estava ela novamente. Desliguei a música e parei ao lado da cama a tremer.
Sabia exactamente a que é que a voz se referia: aos meus exames. Eu queria tirar
boas notas por vários motivos.
O que se seguiu foi aterrador.
Não vales nada. Devias morrer.
Liguei de novo a música. A canção era “Money For Nothing” e pus o volume no
máximo. Não fez qualquer diferença. Havia vozes a bombardearem-me o cérebro,
não uma, mas duas ou três, mais, uma pequena multidão que se juntara para fazer
troça de mim.
É melhor que faças com que o teu avô se orgulhe de ti, caso contrário ele vai
deixar de te amar.
O avô foi para o Céu, não tens qualquer hipótese de o voltar a ver.
Tu vais para o Inferno.
Bati na parte lateral da minha cabeça e tive uma estranha imagem mental de
mim mesma quando o fiz. Parecia uma louca.
“Parem com isso. Parem. Parem. Deixem-me em paz.”
As vozes continuaram a falar comigo, dentro de mim, sobre mim. E o mais
assustador era que as vozes pareciam normais, não eram esquisitas ou exageradas,
mas sombrias e intimidantes. A maioria das vozes pertencia a homens, mas também
havia mulheres; algumas das vozes eram fortes, como se estivessem perto, outras
eram distantes, separadas; juntavam-se como um gang, ou desvaneciam como se
estivessem a conversar entre si.
Peguei num monte de ursinhos e escondi-me debaixo da almofada. As vozes
continuavam a tagarelar. Eu não estava a ouvi-las. Estava a cantar as músicas de
Mark Knopfler para mim mesma, competindo com as vozes até se calarem. Estava
toda transpirada e completamente exausta. A minha cabeça latejava. Caí num sono
profundo e nos meus sonhos vi sombras a tremeluzir e crianças pequenas.
Ainda estava escuro quando acordei. Nunca dormi bem sem medicação durante
toda a minha vida. Vesti a minha roupa de jogging e atei os meus ténis com laços
idênticos. Os números verdes no relógio digital mudaram para as 5h00 quando desci
as escadas sorrateiramente e saí a correr pelas ruas vazias.
Cantei enquanto corria o percurso de dezasseis quilómetros, atenta às vozes e
sentindo-me grata por elas terem desaparecido.
Foi o início de uma vida de adaptação e de negociação com as vozes. Nos
meses que se seguiram, enquanto eu fazia os meus exames, as vozes eram
intermitentes, umas vezes murmurando frases incoerentes, outras gritando.
Estaria o meu cérebro a pregar-me partidas, fazendo-me acreditar que eu estava
a ouvir vozes que não existiam realmente?
Não. As vozes eram reais. Estavam lá. Eu conseguia distinguir cada uma delas.
As vozes vinham de fora da minha cabeça, não do interior. Quando apareceram pela
primeira vez, tive a certeza de que as outras pessoas também as ouviam, e fiquei
paranóica quando descobri que isso não acontecia.
Entre as vozes havia o tom predominante e áspero de alguém que ficou
conhecido como “o Professor”. Não fui eu que lhe atribuí esse nome, foi ele que se
materializou dessa forma, talvez porque ele pensava que tinha conhecimentos e um
intelecto superiores. O Professor repreendia-me e incentivava-me a esforçar-me
mais pelo avô. Não que eu precisasse que me incentivassem. Sabia melhor do que
ninguém que estava com problemas graves. O sucesso escolar era uma maneira de
provar que, ainda que eu fosse uma pessoa estranha, não era uma idiota.
A Drª Purvis estudava-me durante as nossas reuniões semanais com seus
grandes olhos de menina e dizia: “Há algo mais, Alice, algo que não me estás a
dizer.”
Eu evitava responder e pensava: “Mais uma boa armadilha. Quase me
apanhava desta vez.” Punha-me a examinar as suas saias e tops coloridos. Olhava-
a fixamente nos olhos, que eram brilhantes por detrás de uns grandes óculos que
ela estava sempre a pôr e a tirar, como se essa acção fosse um gerador a reactivar
uma bateria descarregada que iria subitamente desencadear em mim o
aparecimento de uma memória perdida e uma confissão.
Os óculos andavam para cima e para baixo, para cima e para baixo, e o reflexo
provocava estrelas de luz que dançavam nas paredes sombrias. Ela usava tops
verdes com saias de padrões de girassóis, tops vermelhos com saias cor de laranja,
um top azul-claro da cor dos seus olhos com uma saia azul-marinha como a cor do
céu um pouco antes de chover. Eu conhecia o guarda-fatos de Jane Purvis tão bem
como ela, mas nunca a deixava entrar no meu. Não havia espaço lá dentro, havia
demasiados segredos escondidos.
Andava tão ocupada a evitar dizer à Drª Purvis que ouvia vozes que, quando um
dia ela me fez perguntas sobre o meu pai, a sessão tomou um rumo totalmente novo
sobre o qual eu não tinha controlo.
- Fala-me sobre o teu pai, Alice.
- O meu pai?
- Sim. Nunca falas nele.
- Ah, ele é muito importante, pelo menos é o que ele pensa - respondi.
- É advogado? - perguntou.
- É jogador de golfe - respondi.
- Dão-se bem?
- Raramente o vejo. É um homem muito ocupado.
- Davam-se bem quando eras criança? - prosseguiu.
- Acho que sim.
- Ele amava-te?
- O quê? Sim, claro...
- Alguma vez abusou de ti, Alice, de alguma maneira? - perguntou, inclinando-se
e baixando os óculos.
A pergunta surgiu de repente, do nada, e eu quase caí da cadeira. Não respondi.
Não sabia o que dizer.
- Ele abusou de ti? - insistiu a Drª Purvis.
- Não. Não, não abusou. Não sei porque está a dizer uma coisa dessas.
Senti-me apanhada, enganada, encurralada. Queria falar-lhe dos meus sonhos,
do homem que noite após noite entrava no meu quarto, mas as palavras ficaram-me
entaladas na garganta. Se era verdade, se aquele homem que só poderia ter sido o
meu pai ia ao meu quarto, por que razão não me lembrava? E se não fosse verdade,
porque tinha eu essas coisas na cabeça? Seria eu uma pessoa má? Uma criança
promíscua? Seria tudo culpa minha?
Tudo aquilo que devia ter discutido com a Drª Purvis guardei dentro de mim.
Sentia-me demasiado envergonhada para falar sobre o que podia ou não ter
acontecido à noite no meu quarto. Também pensava que se falasse acerca das
vozes, a ela ou a qualquer outra pessoa, se lhes desse muita atenção, elas
ganhariam poder e confiança. Transformar-se-iam na banda sonora das visões que
se desenrolavam na minha mente desde sempre. Eu lidara com as imagens à minha
maneira. Agora faria o mesmo com as vozes.
Saía do consultório, ouvindo os meus sapatos a ecoarem pelo corredor, e ficava
na paragem do autocarro sentindo-me sozinha e deprimida. Aos dezasseis anos,
queremos ser como todas as outras pessoas. Eu sentia-me diferente, separada dos
outros, uma aberração. Eu fingia, fingia constantemente que estava tudo bem,
quando Mr. Keating, o meu director de turma, a Drª Purvis, os meus amigos e a
minha mãe sabiam que não estava. Não há muitas pessoas aos dezasseis anos,
excepto nos filmes americanos, que tenham uma psiquiatra. Não me fazia sentir
privilegiada, mas sim alienada e desanimada.
Concentrei-me em correr, em misturar cocktails de bebidas alcoólicas, em ler até
ficar com os olhos a arder, a encher a minha mente com as palavras e os
pensamentos dos escritores. Nunca sabia quando as vozes iam voltar, o que diriam,
ou quanto tempo ficariam a tagarelar na minha cabeça. Sentia-me como um porteiro
de uma discoteca que perdera o controlo e deixara de conseguir escolher quem
entrava e quem ficava no meu cérebro. Se eu baixasse a guarda, elas entrariam de
repente e recomeçariam com os seus disparates.
És uma inútil.
Pensas que ter boas notas resolve o problema.
Não resolve, sua vaca estúpida.
O melhor é morreres.
Anda lá. Anda lá. Desafio-te. Fá-lo agora. Fá-lo agora. Tu queres morrer.
Lembro-me de estar num exame, de História provavelmente, e de ter parado de
escrever por um momento para me recordar de uma data e de o Professor ter
aparecido.
Pensas que vais conseguir. Nunca conseguirás.
Dei uma palmada na parte lateral da minha cabeça.
- Agora não. Vai-te embora - murmurei.
- Chiu - disse o professor vigilante.
Os miúdos em meu redor ergueram as sobrancelhas e sacudiram a cabeça. É a
Alice! Os meus colegas provavelmente pensaram que eu queria atenção e não
faziam ideia de que era a última coisa que eu pretendia. É um esforço constante ter
de agir como se tudo estivesse a correr na perfeição quando não está. Eu estava a
viver uma mentira, para o mundo, para mim mesma. A primeira vista, devia parecer
uma miúda de sorte, com uma família simpática numa casa bonita com piscos no
jardim. Essa era a imagem, não a verdade. Nunca foi a verdade. Olhamos para as
outras pessoas e pensamos que as conhecemos. Não conhecemos. Não podemos
conhecê-las. Todas as pessoas são um mistério. Eu era um mistério até para mim
mesma.
Todos os dias pensava em desistir dos exames, embora não fosse realmente eu
quem estava a pensar nisso, o “eu” que era eu, a Alice. Era outra parte de mim,
algum demónio saltando maliciosamente do lado esquerdo do meu cérebro para o
direito.
Desiste. Desiste. Faz um favor a toda a gente. Mata-te, Alice.
O Professor e o seu bando acompanhavam o rebuliço e eu ignorava-os.
“Calem-se. Calem-se. Calem-se. Vão-se embora. Deixem-me em paz.”
Recusava-me a ouvir. Corria, empanturrava-me, passava fome e continuava a
estudar com uma paixão enlouquecida, até a minha mãe, num estado de pânico, me
subornar a acalmar com a promessa de uma semana de férias para as duas, em
Veneza, durante o mês de Julho. Terminei os meus nove exames e saí pelo portão
de Dane Hall, no último dia do ano lectivo, com um passo firme. Tinha vencido as
vozes.
A minha mãe ainda estava perturbada com a morte do avô e o plano era
passarmos algum tempo de qualidade juntas, enquanto ela recuperava, nas palavras
dela, a sua joie de vivre. O que ela na realidade estava a fazer eram os últimos
preparativos para deixar o meu pai. Abordou hesitantemente o assunto uma manhã
durante o pequeno-almoço, enquanto observávamos as gôndolas a deslizarem pelo
Grande Canal.
- Não sei se aguento muito mais tempo naquela casa - comentou ela.
- Queres dizer com o pai?
Ela acenou afirmativamente.
- Nem eu - respondi, e os lábios dela franziram-se nos cantos.
- Arranjaremos um apartamento ou algo do género - prosseguiu. - As coisas
melhorarão, não te parece?
- Mãe, sair daquela casa é a melhor coisa que podes fazer na vida.
Ela pareceu aliviada e o seu rosto brilhava na luz da manhã. A ansiedade havia
sobreposto uma máscara na sua fisionomia, mas agora surgiam os seus verdadeiros
traços. Eu tinha as mãos dormentes e a tremer. Parecia estranho estar a ser tão
honesta. Foi uma sensação boa. A minha mãe apertou-me os dedos sobre a toalha
de linho branco e o empregado de mesa italiano sorriu jovialmente enquanto servia o
café de um bule prateado.
Veneza foi o cenário perfeito para esta breve cena e a escolha ideal para as
nossas férias. Foi a primeira vez que viajámos só as duas, e eu sentia orgulho em
exibir os meus conhecimentos enquanto visitávamos os museus e as galerias de
arte.
Quando viajava, sentia-me uma pessoa diferente. Uma pessoa realmente
diferente. A Alice lá de casa estava sempre a preocupar-se com alguma coisa. A
Alice que partia em viagem podia abrir os pulmões e respirar. As vozes tornaram-se
distantes. A Alice podia ler um livro sem ter de terminar exactamente no final de um
capítulo. A Alice aventureira esqueceu o significado de palavras como insónia e
pesadelo. Caminhava a passos largos pela maré cinzenta de pombos na Praça de
São Marcos até à Basílica, onde os sinos repicavam no campanile. Com os seus
palácios e galerias de arte, as suas pontes e a luz prateada, Veneza tinha, para mim
e para esta Alice autoconfiante, a dimensão ideal para uma cidade: pequena o
suficiente para explorar a pé e grande o suficiente para nos depararmos com uma
surpresa ao virar da esquina.
Pouco depois de regressarmos de Itália, fui visitar os Timmins, parentes do meu
lado materno que viviam na Suíça. Durante as duas semanas que passei com eles
fiz uma tentativa ousada para aprender alemão e absorver toda a história e
singularidades arquitectónicas de Zurique. Também comi chocolate até ficar enjoada
e comprei um relógio de cuco.
Todos concordaram que eu ficara “completamente estragada” com estas férias,
de modo que, assim que regressei da Suíça, arranjei trabalho na pista de galgos,
três noites por semana, a recolher os copos vazios e a limpar as mesas. Entretinha-
me a assistir às corridas, os cães alinhados nas suas capas multicolores a
perseguirem a lebre eléctrica sem nunca a conseguirem apanhar, o que me fez
lembrar de mim mesma a perseguir a minha sombra quando corria.
Como resultado da minha obsessão pela corrida, estava a melhorar os meus
tempos e a treinar para a Brum Fun Run, a meia maratona anual organizada pelo
Conselho Municipal de Birmingham. Correr rápido longas distâncias cria uma
sensação de bem-estar. A libertação de endorfinas funciona como um analgésico
natural e a excitação deu-me coragem para estender o meu percurso à alameda
isolada que atravessava um bosque perto da nossa casa.
Eu receava esta alameda e evitara-a durante anos. Agora corria debaixo das
árvores pendentes, testando a minha coragem.
Na minha mente surgiram algumas imagens perfeitamente nítidas. O que vi foi
um dia de Verão, quando o amigo do meu pai, o homem que gostava de exibir os
seus carros novos e que tocara nos meus pequenos seios quando eu tinha catorze
anos, aparecera lá em casa ao volante de um Rolls-Royce Cabriolei novo. Era
branco e tinha a capota aberta.
A minha mãe estava lá em cima no quarto dela, nas traseiras da casa. No
caminho da entrada estava uma menina a brincar, vestida com uma saia e um top,
que parecia ter sete anos. Quando o homem lhe perguntou se ela queria ir dar um
passeio de carro, ela, naturalmente, disse que sim e saltou lá para dentro. O outro
homem, o meu pai, fechou a porta e o homem arrancou, virou à esquerda e depois
logo à direita, e deteve-se na alameda isolada junto ao bosque.
Pôs um braço nos ombros da menina.
- Vá lá, dá cá uma beijoca - disse ele.
Deslizou a mão para o interior das cuecas dela e introduziu um dedo dentro
dela.
- Gostas disto, não gostas? - acrescentou, e meteu a língua na boca da menina.
Ela não o impediu. Não se debateu. Não se opôs. Aquilo era normal. Este
homem já fizera aquilo antes. Não se recordava onde nem quando, mas tinha uma
vaga lembrança de um grande edifício que parecia um castelo e de um lanço de
escadas que desciam para o calabouço, onde crianças nuas e adultos vestidos se
moviam por entre as sombras que mudavam de posição.
- Levanta o rabo - ordenou, e enquanto eu corria ao longo da alameda consegui
ver na minha mente a menina a erguer o rabo para que ele lhe pudesse puxar as
cuequinhas para baixo. - Muito bem, não está melhor assim?
Ele abriu-lhe as pernas, enfiou-lhe um dedo na vagina e introduziu de novo a
língua na boca dela.
O carro estava estacionado à sombra de uma árvore imponente, e o reflexo da
luz através das folhas fazia com que parecesse que estava a chover pedaços de
vidro. O homem era forte. Tinha braços peludos e pêlos nas costas dos dedos. A
menina não sabia por que razão o homem lhe tirara as cuequinhas, mas eles faziam
sempre isso. Imaginava que era isso que as mamãs e os papás faziam. Não gostava
daquilo, mas fazia-a sentir-se especial estar com este homem importante no seu
carro grande.
- É bom?
Ela acenou e fingiu um sorriso. Não era bom. Doía. Mas queria que fosse bom.
Queria que fosse bom para o amigo do papá. Olhou para cima através dos ramos
altos da árvore e enquanto fechava os olhos com força conseguia ver fadas com
asas transparentes atravessando os raios de sol.
O homem parou de beijá-la e retirou o dedo de dentro dela. A menina pôs-se de
pé no banco e o homem ajudou-a a vestir as cuequinhas. Ele puxou-as para cima e
ela sentou-se novamente. O homem beijou a ponta do dedo e levou-a aos lábios
dela.
- És linda, Alice, sabes disso, não sabes? - disse-lhe. Ela sorriu. Ele baixou a
voz. - É o nosso pequeno segredo.
O motor soltou um bramido quando ele pôs o carro a trabalhar e era como
flutuar no ar quando deu a volta e regressou a casa.
A mãe estava na entrada, com as mãos na cintura. O pai estava à sombra, no
alpendre.
- O que raio se passa aqui? - perguntou ela.
- Fomos só dar um passeio, Jenny. Anda ver o meu carro novo - respondeu o
homem.
A mãe içou a menina do banco da frente e levou-a para dentro de casa.
- Nunca mais te aproximes daquele homem - ordenou. - Não gosto dele.
Tinha o rosto vermelho e os dentes cerrados. Pousou a menina rudemente e
esta foi a correr pelas escadas acima para se esconder na Gaiola.
A menina não sabia o que fizera para a mãe estar tão zangada, mas o que quer
que fosse, tinha a certeza de que era culpa sua. Tinha enfurecido a mãe. Não queria
piorar as coisas enfurecendo também o homem. Isso iria aborrecer o papá. “É o
nosso segredo”, dissera o homem. Tens de guardar segredos. Se o papá e os outros
homens queriam tocar e beijar aquela menina, isso deixaria a mamã irritada. Ela não
sabia exactamente por que motivo, mas sabia que a mamã nunca deveria saber.
A medida que corria sob as árvores, lembrei-me totalmente da cena no Rolls-
Royce branco, as imagens passavam como uma gravação do lado direito do meu
cérebro para o esquerdo. Os pormenores eram nítidos, mas o incidente pareceu-me
irreal, como a memória de um pesadelo ou de um programa de televisão.
Para mim era difícil identificar-me com a menina sentada no banco de couro
daquele carro. Conseguia visualizá-la. Podia ver o que estava a acontecer através
dos seus olhos: o homem dizendo-lhe para levantar o rabo para que pudesse despir-
lhe as cuecas, os ramos a agitarem-se acima da capota aberta do automóvel, a luz
dos lampejos das fadas. Eu estava a observar a menina como se estivesse a vê-la
secretamente por detrás de um ecrã. A menina não era uma ilusão, uma aparição;
não era uma amiga imaginária. Preferiria ter tido um amigo imaginário, mas nunca
tive nenhum. A menina no carro não era imaginária. Era muito real. Eu podia vê-la,
era parecida comigo, e ainda assim eu tinha a certeza de que aquela menina não
era eu.
Mas se não era eu, quem era?
E porque tenho eu essa memória revoltante? Eu odiava e desprezava pensar
em sexo, mas ele estava por toda a parte. Quando saí da escola, a maioria das
raparigas já tinha um namorado e falava incessantemente da forma como se
beijavam e até onde tencionavam ir. Aquelas conversas faziam-me corar de
vergonha.
“De quem é que tu gostas... do Mark, do Gary ou do Greg?”
Não, eu não gostava de ninguém... nem do Mark, do Gary ou do Greg. Mas tinha
de entrar no jogo de modo a fazer parte do grupo. O meu trabalho na pista de galgos
dava-me algum dinheiro extra, mas o mais importante é que era uma forma de sair e
fazer coisas normais: passear pelas lojas, falar sobre as boy bands, ir ao pub às
sextas à noite beber uma cerveja com os meus amigos menores de idade, a qual
tinha tanto efeito em mim como um copo de leite.
Lutava constantemente para ser normal. Não que eu tivesse alguma ideia do
que isso significava. Uma rapariga de dezasseis anos da minha aula foi a uma festa
com um vestido muito sensual e provocante. Bebeu meia garrafa de vodka e foi para
a cama com dois rapazes ao mesmo tempo, porque sempre quisera fazer sexo a
três. Isso era normal? Outra rapariga deixou a escola depois de fazer o décimo
primeiro ano, e foi morar com um professor vinte e cinco anos mais velho do que ela.
Isso era normal? Uma rapariga que vivia perto de nós, chamada Hasna, foi visitar os
seus parentes ao Paquistão durante esse Verão e deu por si casada com o irmão do
seu pai. Isso era normal?
Se na sexta-feira me pedissem para fazer um trabalho, passaria três horas da
manhã de sábado na biblioteca. Isso era normal?
Não sabia.
O que eu sabia era que me sentia menos propensa à depressão e mais normal
quando caminhava por Veneza ou observava o lago em Zurique. Em casa, lutava
continuamente com os meus humores. A coisa negra que havia dentro de mim era
como um rato que roía a minha auto-estima e a minha autoconfiança. Também
sentia que havia uma pessoa feliz dentro de mim, que queria aproveitar a vida, ser
normal, mas o desprezo por mim própria e a profunda desconfiança que tinha para
com o meu pai não permitiam que essa pessoa alegre se manifestasse.
Quando a coisa negra se apoderava de mim como um punho de ferro, eu não
conseguia sequer olhar para o meu pai: “Abusaste de mim quando eu era pequena?”
Tal como o verso de uma canção que se crava no nosso cérebro, as palavras
corriam-me pela mente e nem uma única vez me saíram pela boca. Não que eu
precisasse de dizer o que se passava na minha mente. Tinha a certeza de que o
meu pai conseguia ler os meus pensamentos nos meus humores, na expressão
vazia e mortiça do meu olhar.
Não era de admirar que houvesse sempre um clima de tensão e
constrangimento lá em casa, e que a culpa fosse sempre minha: a Alice e os seus
humores; a Alice e a sua anorexia; a Alice e a sua baixa auto-estima; a Alice e os
seus sentimentos inevitáveis de perda e vazio.
Corri a meia maratona Fun Run nesse ano numa hora e quarenta minutos,
melhorando em doze minutos o meu tempo, e depois continuei a treinar, embora não
soubesse bem para quê. Ouvia música num volume suficientemente alto para
aterrorizar as vozes que tagarelavam na minha cabeça. Estudava tudo: Francês,
Literatura Inglesa, História, datas, factos, estatísticas, tudo o que preenchia o lado
esquerdo do meu cérebro e o mantinha sempre ocupado, preenchendo o meu tempo
com acção e actividade.
Mas a coisa negra estava sempre lá: uma sensação inabalável de desgraça e
mau agouro, uma tristeza voraz que como um redemoinho me sugava para um
vórtice onde tudo estava perdido, onde nada fazia sentido e não havia esperança.
Era como se eu estivesse envolta em nevoeiro. Ele agarrava-se a mim como uma
mortalha, vergando os meus ombros, puxando-me para baixo.
No final do Verão, a minha mãe já ultrapassara o pior do seu sofrimento devido à
perda do avô e redescobrira a sua joie de vivre. Eu ainda não conseguia fazer o luto
pela morte dele. O avô dava-me uma sensação de equilíbrio. Enquanto fora vivo, eu
fora uma criança tranquila: segura, protegida e acarinhada. Aceitar que ele partira
era aceitar que eu crescera, que devia meter o Snoopy e o Sr. Feliz num saco para a
Oxfam e ir a festas seminua. Em vez de fazer o luto pela morte do avô, eu guardara
todas as minhas memórias numa pilha organizada, arrumada numa prateleira alta
num canto escuro do meu cérebro. Receava que se pegasse nessa pilha de
memórias e a examinasse de muito perto, deslizaria para o interior daquele vórtice
depressivo e profundo do qual jamais conseguiria sair.
Quando a coisa negra estava no seu pior, quando os cocktails ilícitos e as
corridas de dezasseis quilómetros deixavam de funcionar, sentia-me dormente como
se estivesse morta para o mundo. Movia-me de uma forma inconsciente, com os
braços e as pernas pesados, como um zombie de um filme de terror. Sentia uma dor
tão intensa e persistente dentro de mim, que me sentia tentada a ir buscar uma faca
à cozinha e usá-la para tirar a coisa negra de dentro de mim. Deitava-me na cama a
olhar para o tecto a pensar nessa faca e a usar todos os meus limitados poderes de
autocontrolo para me impedir de descer para ir buscá-la.
Quando o sono chegava, só tinha pesadelos. Não era o sonho do bebé e do
homem grande com um isqueiro. Era outro sonho. O sonho do castelo.
Uma menina com cerca de seis anos que se parece comigo, mas que não sou
eu, parece estar feliz ao sair do carro com o seu papá. Entram no castelo e descem
as escadas para o calabouço, onde as pessoas se movem como sombras à luz das
velas acesas. Há tapetes e imagens esquisitas nas paredes. Algumas pessoas usam
capuzes e túnicas. Por vezes entoam cânticos em tons monótonos que metem medo
à menina. Há outras crianças, algumas delas nuas. Há um altar, parecido com o que
existe na igreja de St. Mildred. As crianças revezam-se deitadas sobre o altar para
que as pessoas, sobretudo homens, mas também algumas mulheres, possam beijar
e lamber as suas partes íntimas. O papá segura a mão da menina com força. Ela
olha para ele e ele sorri-lhe. A menina gosta de sair com o papá.
Eu queria contar à Drª Purvis esses sonhos, mas não queria que ela pensasse
que eu estava louca, por isso guardava-os para mim. A psiquiatra era mais sábia do
que eu pensei na altura; as meninas de dezasseis anos consideram-se mais
inteligentes do que realmente são. A Drª Purvis sabia que eu sofrera danos
psicológicos em criança, era por isso que continuava a marcar-me uma consulta,
semana após semana. Mas eu não era capaz de lhe dar as ferramentas e as pistas
necessárias para ela descobrir exactamente o que acontecera.
Ela tentou usar aquilo a que dava o nome de “elemento freudiano”. Por outras
palavras, sexo.
- Já viste ou imaginaste os teus pais a fazerem sexo?
- Não.
- Alguma vez te imaginaste a substituir a tua mãe nesse acto?
Fiquei de boca aberta a olhar para ela.
- Quando olhas para trás, do que te recordas acerca dos teus pais?
- Lembro-me de estar no topo das escadas, a olhar através do corrimão,
enquanto eles gritavam um com o outro.
- Sobre o que gritavam?
- Não sei bem, mas sempre pensei que era sobre mim, ou que era culpa minha.
- Nunca era culpa do teu irmão?
- Não. Era sempre culpa minha.
- Eras malcriada?
- Penso que nunca fui malcriada.
- Querias ser uma boa menina, Alice?
Não respondi.
Eu pensava “Ha, ha, Jane, quase me apanhaste com essa”. Era um jogo. Havia
coisas que a Drª Purvis tinha de saber se queria lidar com o meu problema (fosse
ele qual fosse), e como adolescente que era, jogava para ganhar e dizia-lhe o
mínimo possível.
A minha reacção às perguntas não era sempre a mesma, dependia do meu
humor, o qual não correspondia exactamente ao que eu estava a sentir, mas sim à
característica dominante nesse momento. Podia ser a menina tímida de seis anos a
descer as escadas para o calabouço. Podia ser extrovertida e confiante, quando
estava a cozinhar e também noutras alturas: a correr em dias ensolarados, a
encontrar-me com a minha amiga Karen no centro comercial e a comprar uma
cassete nova, a visitar a avó e a recordar-me do avô a contar as suas histórias
maravilhosas. Naquelas tardes de domingo após a morte do avô, não pensei nele
como estando morto, mas simplesmente ausente.
Havia momentos em que o meu humor era estável. Depois, sem motivo
aparente, sentia uma mudança a invadir-me, sem saber porquê ou o que provocara
essa mudança. Era como uma nuvem a passar sobre o sol, ou uma canção numa
cassete a saltar de uma faixa para a outra de uma forma inesperada. Um dia
expliquei à Drª Purvis que me sentia como o Incrível Hulk da série de TV, muito
popular naquela época. Era a história de um homem com uma memória fragmentada
que, sob stress, se metamorfoseava deixando de ser uma pessoa normal para
passar a ser um gigantesco monstro verde. Eu era a adolescente normal, prestes a
entrar no décimo ano, que de repente se transforma numa menina pequenina
aninhada na cama, desfeita em lágrimas.
- O que se passa, Alice? - pergunta a mãe.
Não respondo. Não sei. Não sou a Alice.
Existe na minha memória fracturada a vaga lembrança de uma vez dizer à Drª
Purvis que tive uma crise de identidade. Ela usava uma blusa azul justa às riscas
cor-de-rosa. Recordo-me dessa blusa. Era uma das suas favoritas. Ela anotou o que
eu disse e voltou para a sua preocupação original.
Falámos acerca da rapariga da escola que fantasiava com sexo a três, da que
vivia com o homem mais velho e daquela que foi obrigada a casar com o tio. Todos
os problemas psicológicos e psiquiátricos pareciam basear-se no sexo. O sexo
estava no ar como um perfume irresistível e o seu bafo fazia-me sentir infeliz.
- Não gostas de falar dessas coisas, pois não, Alice?
- Não, não gosto.
- E porquê?
- A senhora é que é a psiquiatra.
- Isso não responde à minha pergunta.
- Qual era a pergunta?
Pingue-pongue. Pingue-pongue.
Com a Drª Purvis, eu era geralmente defensiva. Tinha aprendido a não falar
sobre assuntos pessoais durante toda a minha infância e adolescência. Agora que
tinha a oportunidade de começar a resolver os meus problemas, deixei-a escapar
num miasma de obscuridade e meias verdades.
Quando saía da clínica e regressava a casa, sentava-me no piso superior do
autocarro e olhava pela janela sentindo-me desligada de tudo e de todos. Quanto
mais tempo passamos sozinhos, mais isolados nos sentimos, e mais difícil se torna
ligarmo-nos às outras pessoas. Durante esse período negro, começamos a remoer
todas as coisas que nos fazem sentir isolados e deprimidos. Quanto mais nos
sentimos isolados e deprimidos, mais isolados e deprimidos nos tornamos.
Começamos a ver desconsiderações onde elas não existem. Quando nos sentimos
mal, olhamos para as outras pessoas e consideramo-las maldosas e indiferentes. Se
procurarmos aspectos positivos nas pessoas, como o meu avô sempre fez, então
nós próprios sentimo-nos bem. Eu sabia disso. Lera centenas de livros na biblioteca.
Mas quando nos sentimos deprimidos vemos somente o lado obscuro de tudo e de
todos. É algo que simplesmente não conseguimos evitar.
A depressão é o nosso pior inimigo. Depois de uma fase de depressão e insónia
movida a álcool, recebia um “Suficiente” por um trabalho de casa. Isso deixava-me
ainda mais deprimida, e a depressão impedia-me de voltar ao trabalho e de fazer
uma revisão para o teste seguinte. Pensamos: Porquê? Porquê? Porquê? Tomamos
outro trago de álcool e não fazemos nada. Entorpece-nos a mente e é totalmente
desgastante. A corrida dá-nos energia. A depressão suga a energia de dentro de
nós. Se o tempo é a essência da vida, eu estava a desperdiçar a minha ao sentir-me
deprimida.
CAPÍTULO 5
ARMADILHAS DO TEMPO
Os resultados dos meus exames chegaram num envelope rígido de cor parda às
sete da manhã. Quando o vi no tapete da entrada, a minha garganta ficou seca e as
minhas mãos húmidas. Levei o envelope para o andar de cima como se fosse uma
relíquia de um túmulo egípcio e pousei-o na estante junto dos peluches para ver se
eles tinham alguma ideia do que estava lá dentro. Nem um murmúrio. Eram uns
inúteis.
Voltei a pegar no envelope, desci as escadas e saí para o jardim. Chovera
durante toda a noite e as flores pareciam tristes e feridas. Sentei-me sob os arbustos
de azevinho e vi uma linha de formigas marchando em fila. Pensei que devia ser
muito bom ser-se uma formiga e saber o que era esperado de nós e o que fazer
para obter a aprovação de todos.
O meu roupão começou a ficar húmido por estar sentada na relva. Fui dar uma
espreitadela ao barracão, uma ruína tão apodrecida pelas más recordações como a
porta e os caixilhos das janelas estavam apodrecidos pelo caruncho. Uma das
janelas estava partida e, através da abertura no vidro, pude ver teias de aranha
agarradas ao tecto e às paredes, um andaime frágil que mantinha o barracão de pé.
Regressando através do anexo até à cozinha, sacudi o envelope da mesma
forma que por vezes sacudia a cabeça para reorganizar o seu conteúdo. Rezei uma
oração, um gesto descarado, uma vez que não tinha a certeza de ser crente. As
notas já estavam lançadas, por isso era demasiado tarde para apelar à Providência
para que as alterasse. A linha de facas no suporte magnético reluzia como um
sorriso. Peguei na faca de trinchar, abri o envelope e retirei duas folhas de papel do
seu interior. Fechei os olhos, sustive a respiração e desdobrei as folhas enquanto
abria de novo os olhos.
Fora bem-sucedida nos meus exames do décimo primeiro ano, principalmente
com “Bons” e “Muito Bons”, e fui uma das melhores do meu ano em Dane Hall.
Mostrei as notas à minha mãe. Ela abraçou-me, o que era raro, e disse que estava
muito orgulhosa, mas para mim os resultados eram pessoais, uma reivindicação de
alguma coisa, não sabia bem de quê, mas provara algo a mim mesma.
Esperei para ver se ouvia as vozes. O Professor e o seu gang estavam em
silêncio.
Isto mostrara-lhes do que eu era capaz!
Peguei na minha bicicleta e, enquanto pedalava pela rua, tive a sensação de
estar a ver tudo pela primeira vez: casas que não conhecia; um Lotus amarelo numa
entrada que estava a ser limpo por uma mulher em biquini, algo nunca visto no
nosso bairro. Quando eu corria, tinha uma visão fechada, concentrando-me na
estrada, naquele ponto do horizonte. Agora, conseguia ver para além de mim
mesma. Podia sentir o odor das árvores, carregadas com o peso do Verão;
contemplava os longos caminhos de acesso às casas nos seus refúgios de
vegetação.
Em poucos minutos, passei St. Mildred, a minha escola do primeiro ciclo. A mãe
levava-me lá de carro quando era pequena, mas assim que fiz oito anos já podia
fazer o trajecto até casa sozinha em segurança. Recordei-me dos meus uniformes:
um vestido azul e branco axadrezado e um chapéu de palha no Verão e, no Inverno,
uma saia e um blazer azul-marinho com um crachá que mostrava St. Mildred num
círculo de luz.
Quando virei à esquerda, afastando-me da minha antiga escola primária, pude
ver Dane Hall à distância. Só me ocorria que agora não voltaria a transpor aquele
portão. Ia perder a rotina, a familiaridade, a sensação de ser uma entre muitos, tal
como as formigas, nos nossos uniformes iguais. Os meus professores e colegas de
turma tinham sido tolerantes com o meu humor: a Alice feliz, amiga de toda a gente;
a Alice carrancuda, que não fala com ninguém. Era impossível saberem qual delas
ia aparecer. Eu também não sabia. O meu humor podia mudar, como um interruptor
da luz à escuridão total.
A bicicleta sibilava pela estrada com o seu objectivo misterioso e eu dei por mim
na alameda isolada aonde o amigo do meu pai levara aquela menina no seu Rolls-
Royce.
Os pedais giravam cada vez mais rápido. Eu estava a esforçar-me ao máximo
por transpirar, por sentir o efeito das endorfinas, mas assim que uma visão má
entrava nos meus pensamentos, desencadeava outras, separadas mas indivisíveis,
uma sequência interminável de autotortura e tormento que tinha a qualidade ímpar
de parecer ao mesmo tempo irreal e hiper-real.
Vi-me subitamente no jardim noutro dia de Verão, quando a piscina insuflável foi
enchida com água da mangueira. Podia ver uma menina a desfrutar da sensação do
sol na sua pele nua e das sensações contrastantes de saltar para dentro e para fora
da água fria. O papá ergueu-a nos seus braços e levou-a para o barracão, onde o
lençol de plástico azul que cobria as lâminas do cortador de relva fora disposto sobre
a superfície do banco. Ele sentou-a e pegou nos frascos de compota com furos na
tampa.
Era aquele jogo novamente. Ele gostava daquele jogo, e naquele dia houve uma
característica nova. Segurou-a pelas axilas e ergueu-a no ar, puxou pelo elástico
das cuequinhas e fê-las deslizar pelas suas pernas abaixo.
- Olha o que fizeste, molhaste-as todas - disse-lhe ele.
Ele estava a sorrir. Estava só a brincar. Ela devia ter cerca de quatro anos, uma
menina nua sentada no lençol de plástico a observar o papá a retirar a tampa de um
dos frascos e a colocar as aranhas sobre a sua barriga. Elas rastejaram-lhe pelo
abdómen, pela vagina, e desceram pela parte interior das pernas dela.
- Não te atrevas a mexer.
Ela não se mexeu e torceu os dedos. Estava a tremer.
Depois, descontraiu-se. Parou de tremer e endireitou os dedos.
O papá sorriu e a menina, sentada no lençol de plástico azul, retribuiu-lhe o
sorriso.
Consegui recordar-me desta cena com toda a clareza nesse dia, enquanto
pedalava ao longo da alameda sob as árvores adultas. A menina sentada com as
pernas afastadas, permitindo que três aranhas rastejassem pela sua barriga, pelas
suas partes íntimas, pelas suas pernas e pelo lençol de plástico. Ela estava a
observar as aranhas e eu estava a observá-la a ela a partir de um tapete voador que
pairava um pouco abaixo do tecto. Havia um programa de televisão chamado The
Phoenix and the Magic Carpet. Eu sabia tudo sobre tapetes voadores, estava num
deles nesse momento com a sensação de estar a flutuar livremente no ar quente,
bem longe da menina que observava as aranhas.
Conseguia lembrar-me de todos os pormenores - as cores, o cheiro da relva
cortada. O lençol azul de plástico tinha uma mancha verde-escura num dos cantos.
Os frascos na prateleira, os cinzéis e as chaves de fendas na parede cintilavam no
feixe de luz que entrava pela porta aberta. A menina tinha os pés enlameados. As
suas cuequinhas cor-de-rosa estavam na parte de trás do banco ao lado do frasco
de compota vazio onde viviam as aranhas. O papá dela estava a observar, um
homem grande e escuro com cabelo negro gorduroso e uma calva.
Quando as aranhas fugiram para se esconder, ele fez deslizar os seus dedos
como pernas de aranha sobre a pele nua da menina. Introduziu a ponta do dedo na
vagina dela.
- Faz cócegas?
Ela sorri e acena com a cabeça para cima e para baixo.
Ele lança um olhar através da porta aberta para o jardim vazio. Ergue o rabo da
menina, inclina a cabeça para molhar a sua vagina e introduz a língua dentro dela.
Consigo ver tudo do meu tapete voador: a cabeça do papá a balançar como um
pássaro gigante, a menina com as pernas apoiadas nos seus ombros enquanto o
olhar dela se fixa nas fadas do pó que bailam na luz do sol.
A minha recordação dessa cena era perfeitamente clara, mas desligada de mim.
Se aquilo acontecera à outra menina no barracão do jardim naquele dia, então por
que razão era eu, a Alice, que sentia um calafrio a percorrer-me a espinha enquanto
pedalava na minha bicicleta? O meu estômago revolveu-se com a bílis, e a
sensação que experimentei naquela altura, há tantos anos, invade-me agora, neste
momento.
Naquela altura, tal como agora, eu era capaz de analisar aquelas cenas com o
mesmo distanciamento que surgia quando eu não me sentia “eu”, a rapariga que
ouvia vozes, mas sim outra faceta de mim mesma, o “eu” que cozinhava e bebia
vinho e que entoava as músicas dos The Who e dos Pink Floyd.
Concentrei-me nessa atitude de distanciamento. Deixei a alameda isolada para
trás e quando atingi a estrada aberta à minha frente, bani da minha mente as
memórias do que acontecera com a outra menina e concentrei-me em sentir a
felicidade simples de uma jovem de dezasseis anos que tinha o futuro à sua frente.
Fora bem-sucedida nos meus nove exames do décimo primeiro ano. O avô teria
ficado orgulhoso.
Em Setembro, iniciei as aulas do décimo segundo ano numa nova escola, um
edifício de seis andares onde não era necessário usar um uniforme. Entrei na escola
com um par de jeans e não voltei a usar uma saia durante cinco anos. Mantive-me
perto de Lisa Wainwright de Dane Hall enquanto explorávamos os longos corredores
e lanços de escadas desconcertantes.
Decidi estudar Psicologia e Sociologia, e mais duas disciplinas de Biologia
Humana e Psicologia do Desenvolvimento Infantil. Só escolhi estas disciplinas
porque me pareceram interessantes. Na altura não me ocorreu que estava a
investigar a mente e o corpo humano em busca de algo mais importante do que uma
mera sede de conhecimento. Os exames do décimo primeiro ano haviam sido o
primeiro teste real do nosso potencial académico e os resultados aumentaram
bastante a minha confiança. Sabia que haveria altos e baixos, dias de euforia e
depressão; eu não me conhecia assim tão bem, mas conhecia-me bem o suficiente
para sentir, no Outono de 1985, que desperdiçara muito tempo a ser mal-humorada,
e resolvi fazer um esforço para me enquadrar.
Quando tinha cinco anos, a minha mãe perguntou-me se devia deixar o meu pai.
Após uma década de indecisão, as circunstâncias permitiram que ela pudesse
finalmente sair como a parte lesada.
Desde que me lembrava, os meus pais sempre berraram um com o outro e
batiam com as portas quando se afastavam zangados. Quando eu era pequena,
presumira sempre que a culpa era minha. Agora, eles discutiam sobre dinheiro, e eu
sentia-me livre de culpa e totalmente inabalável à medida que as suas vozes subiam
pela escada.
Um dia, a minha mãe foi à procura de um extracto bancário na gaveta das meias
no quarto do meu pai e encontrou alguns preservativos usados e revistas onde as
prostitutas divulgavam os seus serviços; alguns estavam circundados e, ao lado,
havia comentários rabiscados. Era óbvio que o meu pai contratara os serviços
daquelas mulheres, mas negou tudo. Na verdade, veio ao meu quarto e implorou-me
que intercedesse junto da mãe, por mim, pelo bem da família. Afirmava que não
fizera nada de errado, que era tudo um mal-entendido. As lágrimas escorriam-lhe
pelo rosto abatido e eu não pude deixar de ter uma vaga sensação de triunfo. Era
um peso que saía dos meus ombros vergados e apercebi-me de uma fila exagerada
de sorrisos nos rostos dos peluches alinhados na estante atrás dele.
A mãe fez as malas e mudou-se para uma casa geminada e despretensiosa
numa parte da cidade onde os vizinhos raramente se cumprimentavam e onde havia
poucos carros de luxo estacionados no acesso às casas. Com o meu irmão Clive na
universidade, eu fui com a minha mãe, deixando o meu pai para trás, como o
Drácula a cismar no seu castelo.
O Stephen já deixara a esposa e morava num apartamento ali perto. Ele vinha a
nossa casa todas as noites e vestia um fato-macaco. Enquanto o meu pai passava
de carro noite após noite, observando a casa, o Stephen ajudou a mãe com a
decoração. Eu adquiri o hábito de preparar o jantar, ouvindo a mãe e o Stephen a
rirem-se como duas crianças. Eu gostava do Stephen. Ele fazia a minha mãe feliz e
a mim também.
Quando cozinhava, desfrutava de uma sensação de estar “fora” de mim. O acto
de cortar legumes e aquecer óleo provocava-me um formigueiro nas mãos e os
meus pensamentos mudavam-se para um hemisfério diferente, para o lado direito do
cérebro em vez do esquerdo, ou para o esquerdo em vez do direito. Havia muitos
compartimentos na minha mente e, tal como ainda me perdia no labirinto de
corredores da escola, via-me muitas vezes perdida, com uma sensação de déjà Vu,
nalguma parte obscura do meu córtex cerebral, a parte do cérebro que desempenha
um papel crucial na consciência perceptiva, na atenção e na memória. Tudo o que
eu vivera, imaginara ou sonhara parecia ter sido armazenado num filme e, em
seguida, espalhado por aquelas salas estranhas. Eu podia deparar-me com uma
cena qualquer, desde hediondas sequências sexuais, grosseiras e dolorosas, à
visão do avô a polir os seus sapatos.
A mãe e o Stephen bebiam sempre vinho ao jantar. Eu abria uma garrafa, para o
vinho poder respirar, e servia-me de um copo. Tentava analisar-me quando fazia
isto, procurando descobrir o motivo. Não apreciava o sabor do vinho e jamais,
noutras alturas, teria sonhado em bebê-lo. Tomava bebidas alcoólicas fortes quando
estava deprimida, mas a cozinhar nunca me sentia deprimida. Sorvia o vinho
enquanto preparava a comida com uma sensação de autoconfiança. Sentia-me
despreocupada, mas não me sentia exactamente eu mesma, eu a Alice.
- Não estás a beber, pois não? - perguntou o Stephen da primeira vez que me
viu.
- Não, Stephen, é tudo fruto da tua imaginação.
Ele riu-se enquanto lavava os seus pincéis.
- Aí não, pelo amor de Deus, faz isso lá fora, estou prestes a servir o jantar.
Eu parecia a minha mãe a falar.
Sentávamo-nos à mesa e comíamos juntos. Até conversávamos! A estranha
sensação que eu tinha enquanto cozinhava prolongava-se frequentemente durante a
refeição, dissolvendo-se enquanto subia as escadas. Entrava no meu quarto e
descobria que os livros com os trabalhos de casa, que deixara sobre a cama, tinham
sido arrumados na minha mochila. Abria-os e sentia-me chocada ao descobrir que
os trabalhos já estavam feitos. Umas vezes, estavam bem feitos, outras, tinham sido
feitos atabalhoadamente, com uma escrita descuidada. Era a minha letra, mas
rabiscada e escrita à pressa.
Punha-me a ler o trabalho e tinha a terrível sensação de que alguém estava a
observar-me. Virava-me rapidamente, tentando apanhar quem quer que fosse, mas
a porta estava fechada. Nunca lá estava ninguém. Só eu. A minha garganta ficava
seca, os ombros entorpecidos. O tique no meu pescoço começava a palpitar como
se tivesse um insecto alojado sob a superfície da pele. Os sintomas intensificavam-
se em enxaquecas que duravam dias e não respondiam ao tratamento ou à
medicação. O ataque surgia como uma tempestade repentina, esmorecia por
iniciativa própria ou desaparecia inesperadamente.
Era frequente desaparecerem objectos: uma caneta favorita, uma cassete ou
dinheiro. Geralmente apareciam, embora com o dinheiro fosse diferente. Quando o
dinheiro desaparecia era para sempre e, mais tarde, encontrava sobre a cómoda
uma T-shirt que não me recordava de ter comprado, uma cassete dos Depeche
Mode que não gostava, uma caixa de lápis de desenho, algumas peças de legos.
No início, quando as coisas começaram a desaparecer, ainda pensei que fosse
o Stephen a brincar comigo. Mas rapidamente me apercebi de que não era ele e
decidi acrescentar o desaparecimento e aparecimento dos meus pertences à lista
das coisas que empurrava para o fundo da minha mente para evitar pensar nelas.
O meu quarto na casa nova era mais pequeno do que o antigo. Não havia
espaço para todas as coisas que trouxera comigo e o excedente continuava em
sacos do lixo empilhados contra a parede. Um dia, a minha mãe reparou que os
sacos tinham desaparecido.
- Finalmente livraste-te de toda aquela tralha - comentou ela.
Livrei?
Não me recordo, e achei estranho porque a Alice é uma daquelas pessoas que
guarda tudo. Devo ter levado os sacos para a loja de caridade, mas não me
lembrava de o ter feito. Tornei-me hábil a perseguir as minhas pegadas, a preencher
os espaços em branco. Umas vezes, os espaços em branco não eram preenchidos,
outras, conseguia recordar lugares onde fora ou coisas que fizera como se fosse um
sonho, o que tornava as cenas com o meu pai e os outros homens a abusarem de
mim ainda menos reais, transformando-as em fantasias fabricadas pela minha
imaginação e não pela minha memória. Talvez a memória de outra pessoa. Não me
via como uma pessoa com problemas de saúde mental. Aos dezasseis anos,
ninguém se vê assim. Via-me como alguém especial, altamente nervosa e
temperamental.
A depressão que eu sofrera durante os meus exames do décimo primeiro ano
desaparecera. Durante esses meses, senti-me muitas vezes como se estivesse a
flutuar através da vida naquele tapete voador, não a vivê-la, mas apenas a
atravessá-la. Sentia-me melhor na nova casa, longe do pai, e tal como acomodei as
ausências periódicas do Professor e companhia, encarei estas brancas e armadilhas
do tempo como sendo os caprichos do doppelganger da Alice com a infância
destruída, uma menina ligada a mim, mas que não era a mesma que via reflectida
no espelho do guarda-fatos com uns jeans Levis e uma T-shirt do Che Guevara.
Eu tinha uma relação estranha com este espelho e passava muito tempo a
contemplá-lo para ver quem estava lá. Umas vezes, parecia ser eu. Noutras,
conseguia ver no reflexo alguém semelhante mas diferente. Houve alturas em que
captei a transformação a meio de um olhar e observei a minha expressão a
deformar-se como se fosse borracha a derreter, os vincos e os traços do meu rosto
a suavizarem-se ou a endurecerem até a mutação estar completa. De Jekyll para
Hyde, ou de Hyde para Jekyll. Sentia a minha essência interior a transformar-se em
simultâneo. Sentia-me mais confiante ou menos confiante, mais madura ou mais
infantil; completamente gelada ou húmida de suor, um estado que punha a minha
mãe doida quando me refugiava na casa de banho durante duas horas, esfregando-
me até a minha pele ficar em carne viva.
A mudança era provocada por diferentes emoções: ao ouvir uma determinada
música, a visão do meu pai, ao sentir o odor do seu aftershave. Pegava num livro
com a certeza de que ainda não o lera e, quando começava a lê-lo, escutava as
palavras como um eco no interior da minha mente. Tal como na história da Alice de
Lewis Carroll, caía nas profundezas do espelho e não podia ter a certeza se era eu
que ali estava, ou uma impostora, uma sósia.
Sentia-me totalmente desperta durante a maior parte do tempo, mas por vezes,
quando estava acordada, sentia-me como se estivesse a sonhar. Neste estado de
sonho não me sentia eu própria, o meu verdadeiro “eu”. Sentia-me entorpecida e
tinha um formigueiro nos dedos. Os meus olhos no reflexo do espelho estavam
vidrados, como os de um manequim de uma montra. Eram da cor e da forma dos
meus, mas não tinham luz nem focalização. Estas alterações eram descritas pela
Drª Purvis como alterações de humor e pela minha mãe como temperamento, mas
eu sabia que não era nada disso. Todos os adolescentes são temperamentais
quando lhes convém. As minhas transformações podiam acontecer quando estava
sozinha, deixando de ser uma rapariga brilhante de dezasseis anos de idade a fazer
os seus trabalhos de casa, para passar a ser uma criança enroscada na cama a
chorar e a olhar para a parede.
A crise de choro passava e eu arrastava-me para a frente do espelho esperando
ver uma versão infantil de mim mesma. “Quem és tu?”, perguntava eu. Conseguia
ouvir as palavras; a voz parecia a minha, mas não era eu. Via os meus lábios a
moverem-se e a repetirem, “Quem és tu?”
Misericordiosamente, as vozes não usavam isto como uma desculpa para darem
uma opinião. Permaneceram em silêncio durante grande parte dos dois anos que
antecederam a minha ida para a faculdade. Quando as vozes regressaram, eram
como um cão a ladrar na casa de um vizinho, audíveis, mas externas. Eu prestava
mais atenção à entonação do que às palavras em si, embora quando eram nítidas
mantivessem as suas invectivas persecutórias.
Mata-te, Alice.
Ninguém gosta de ti.
Faz um favor ao mundo e mata-te.
O regresso das vozes terminava numa enxaqueca que fazia latejar todo o meu
corpo. Não podia fazer nada senão deitar-me num quarto escuro à espera que as
vozes fossem afectadas pelas minhas dores de cabeça e desaparecessem.
Saber que era diferente com a minha POC, a anorexia e as vozes que mais
ninguém parecia ouvir fazia-me sentir isolada, desligada. Levava tudo muito a sério.
Analisava as coisas até à exaustão. Analisava cada palavra e a sua entonação,
procurando compreender exactamente o seu significado, se havia algo subentendido
ou uma crítica implícita. Tentava recordar-me das expressões nos rostos das
pessoas, a forma como essas expressões mudavam, o que significavam, se as
palavras que pronunciavam e a expressão dos seus rostos coincidiam e eram, por
conseguinte, verdadeiras, ou se eram uma farsa, a simpatia tocada pela ironia ou
pelo sarcasmo, o sorriso que significa compaixão.
Será que quando as pessoas olhavam atentamente para mim podiam ver a
menina na minha mente, a ser abusada naqueles filmes pornográficos que eram
projectados por detrás dos meus olhos?
Era isto que eu pensava constantemente, e tais pensamentos consumiam a
fachada de autoconfiança que eu estava constantemente a criar e a reparar.
Precisava de obter “Muito Bons” nos meus trabalhos. Precisava de correr como o
vento para conter as marés de depressão que surgiam sorrateiramente e
procuravam afundar-me em sentimentos de desespero e ódio por mim mesma.
Um mau dia - ver o meu pai; um “Suficiente” num trabalho; uma palavra cruel por
parte das vozes - e eu entrava numa espiral descendente que podia durar uma
semana. Estes eram dias perdidos em que voltava para a rotina de passar fome,
empanturrar-me, ler até de madrugada, correr até as ruas ecoarem com o vibrar dos
meus ténis. Dezasseis quilómetros não eram nada. Eu podia correr a meia maratona
depois das aulas e ainda preparar o jantar antes do Stephen chegar com uma lata
de tinta fresca. Próxima paragem: 42 quilómetros e 352 metros, a distância que
Fidípedes, o soldado grego, correu sem parar desde Maratona até Atenas para
anunciar que os persas tinham sido derrotados. Ele irrompeu pelo Senado adentro e
exclamou: “Vencemos!” E caiu morto no chão.
A Drª Purvis pareceu ficar impressionada por eu estar a treinar para a maratona
e viu isso como um bom sinal. Eu sabia que a Drª Purvis gostava de mim. Eu tinha
tendência para gostar de quem gostava de mim, por isso encarava a nossa reunião
semanal na clínica Naydon como uma espécie de convívio com uma amiga em vez
de uma consulta com uma psiquiatra.
Ocasionalmente, ia para estes encontros com uma tranquilidade zen, e quando
saía de lá para a longa caminhada pelo corredor, sentia-me desesperada e exausta.
Mantinha um diário, muitos diários. Desapareceram quase todos, mas ainda guardo
alguns pedaços de papel que sobreviveram. Lê-los é como olhar para fotografias
antigas que registam uma memória unidimensional daquilo que fomos no passado.
Estas palavras são de algo que escrevi aos dezassete anos:
É difícil sentir-me apoiada quando não posso contar tudo às pessoas. Elas não
fazem a mínima ideia do que estou a passar. É difícil confiar em alguém. É difícil
acreditar que as pessoas não me vão desiludir. Sinto vontade de chorar. Sinto o meu
corpo oco. Vazio. Não me sinto com dezassete anos.
Sinto-me mais nova. Não tenho a certeza de quantos anos tenho, talvez uns
dez. É difícil aceitar que não posso ter todo o apoio que preciso de uma pessoa. De
qualquer pessoa. Custa-me que ninguém me possa compreender plenamente. É
difícil para mim admitir que por dentro me sinto uma pessoa muito solitária. O que
preciso de fazer para cuidar de mim neste momento ? Bem, preciso de abraçar os
meus peluches. Parece uma tolice, mas preciso de algum conforto...
Eu ainda abraçava peluches quando devia abraçar rapazes da minha idade. As
imagens doentias na minha mente, em vez de me tornarem sexualmente activa,
tinham fechado por completo essa porta.
E os meus pesadelos continuavam: os meus pés em chamas, o monstro que
vinha para a minha pequena cama, e outro onde estou numa sala com outras
crianças, algumas nuas, outras vestidas. Um homem num carro branco chega para
nos levar para longe e nós estamos a amarrar-nos uns aos outros com correntes
para que ele não possa levar-nos. Nesse sonho estou frenética. Tenho os dedos
húmidos e pegajosos e não consigo coordenar os movimentos. Não tenho medo de
ser abusada. Tenho medo que o homem do carro branco me mate. Estou subjugada
pelo terror e desperto desorientada e inundada em suores frios, vozes a sussurrar
ao fundo, sem saber se ao abrir os olhos sou a Alice aos dezassete anos ou a Alice
aos sete.
A Drª Purvis, com um top amarelo-limão às flores vermelhas e uma saia de um
tom amarelo-vivo e saltos altos a condizer, escutava e anotava este sonho num dos
nossos últimos encontros. Não me recordo da análise que ela fez, apenas do som
do lápis a arranhar o bloco de notas, o clarão de luz emitido pelos seus óculos, as
listras de sombra que o sol desenhava ao entrar pelas persianas.
O meu tempo estava a esgotar-se. Aos dezassete anos, era demasiado velha
para peluches e estava fora da alçada da Drª Purvis. Era uma adulta, estava por
minha conta, e à medida que os dias eram mais pequenos e as noites mais escuras,
comecei a polir os meus ténis com um novo fervor. Passava cada vez mais tempo
trancada na casa de banho e comia tão pouco que estava a desaparecer dentro da
minha própria roupa.
Não foi nenhuma novidade que no final do meu primeiro ano na nova escola eu
tivesse obtido outra sequência de “Muito Bons”. Regressei no Outono com uma
sensação de que nada havia mudado, de que um ciclo chegara ao fim e outro
começara sem a alegria e as boas recordações que mantêm o equilíbrio.
CAPÍTULO 6
PRIMEIRO AMOR
LIVERPOOL
VIOLAÇÃO
Com o meu Let's Go Italy guardado no bolso de uma mochila leve, viajei durante
duas semanas pelas estradas e caminhos-de-ferro da Itália, de Milão a Nápoles,
antes de começar o meu primeiro emprego como assistente de investigação num
departamento galês de promoção da saúde.
Aluguei um estúdio com uma frágil divisória entre o quarto e a cozinha, onde
tinha uma mesa, duas cadeiras, e cereais Weetabix com a Radio 4 para o pequeno-
almoço. Era como viver no cenário de um filme de Ken Loach: a luz esbatida e
macilenta e a neblina através da janela estreita, um tapete com padrões em espiral
no chão do quarto, papel de parede com flores em relevo, fazendo com que o
pequeno espaço parecesse ainda mais pequeno. Era o que eu podia pagar e estava
determinada a construir o meu futuro sem a ajuda da minha família. Trabalhava no
quarto andar de um prédio moderno, onde tinha a minha própria secretária num
gabinete partilhado.
Este era o mundo real, limitado, opressivo, encapsulado pela rotina e mal pago,
mas eu sentia-me perfeitamente feliz.
As minhas duas colegas eram óptimas profissionais, ajudavam-me bastante
enquanto recém-chegada, e descobríamos muitas coisas de que nos rirmos juntas
durante as nossas pausas. Estava a sair-me bem. A chefe do nosso gabinete
chamava-se Louise Lloyd-Jones, uma ex-enfermeira com quarenta e poucos anos,
gentil e perspicaz, sempre elegantemente vestida, com um ligeiro sotaque galês e
um ombro amigo, disposta a ouvir os problemas de todos. Rosaleen Sharpless era
uma brasa, loira, alta, esguia, elegante, perto dos trinta anos. Tivera uma nota
excelente no curso de Sociologia em Durham e estava a trabalhar num projecto de
promoção da saúde dirigido aos sem-abrigo. Rosaleen transbordava a confiança que
eu adoraria ter tido, e tentei com pouco sucesso imitar a sua forma de ser e de
vestir.
Estávamos em 1990 e um estudo europeu revelara a surpreendente notícia de
que fumar no local de trabalho era nocivo para a saúde. O meu trabalho consistia
em estudar os dados e escrever relatórios que subiam pela cadeia de comando até
ao Welsh Office. Na minha secretária de canto, a escrever no computador ao lado
de uma parede coberta de mapas e gráficos circulares, o meu trabalho alcançava o
coração do próprio governo. Aviso da Alice: FUMAR MATA.
Durante a maior parte dos fins-de-semana, viajava para casa para poder discutir
as minhas ideias sobre a promoção da saúde com a mãe e o Stephen. Desde a
separação dos meus pais, o Clive não visitara o meu pai uma única vez. Não sabia o
que isso significava quanto ao relacionamento deles. Continuo sem saber, mas
sempre me interroguei se também eles teriam segredos antigos.
Fora-me atribuída a tarefa de transmitir ao meu pai que a minha mãe voltara a
casar e eu, evidentemente, posso ter-me voluntariado para ver a reacção dele.
Havia uma ligação mal definida entre mim e o meu pai. Fora ele que me sentara no
seu colo quando eu era pequena. O meu pai era uma fonte de amor e, quando
somos crianças, um amor danoso é melhor do que a ausência dele.
Durante os três anos que estive em Liverpool, raramente o vi. Decidi fazer-lhe
uma visita, o que racionalizei como sendo um dever. Agora vejo que era uma mescla
entre a minha necessidade de aprovação e a oportunidade de exibir o meu estatuto
de adulta. Contra todas as probabilidades, sobrevivera. Estava a viver à minha
custa, a desempenhar um papel na campanha para salvar vidas alterando a lei
sobre o tabagismo. Queria mostrar-lhe que tinha importância.
A nova casa do meu pai era uma vivenda em estuque branco com um jardim
relvado impecavelmente aparado. Havia um alpendre impressionante, com dois
leões de gesso a guardar os ladrilhos brancos e negros, e uma campainha de dois
tons que me fez pensar por um momento se a porta iria ser aberta por um mordomo.
Senti um certo nervosismo, mas depois a porta abriu-se e ali estava o meu pai,
de fato escuro e gravata, o emblema do Rotary Club na lapela do casaco como um
pequeno sol de ouro. Levou-me até à parte de trás da casa, onde a cozinha dava
para uma sala de estar repleta de palmeiras em miniatura e plantas em vasos. Havia
gravuras na parede, um ecrã de televisão gigantesco, algumas fotografias de família,
o que, por alguma razão, achei estranho, e um conjunto elegante de tacos de golfe
encostado à parede.
Fez o chá e pôs alguns biscoitos num prato, nos quais não toquei. Sentou-se
solenemente à escuta na sua poltrona enquanto eu falava. Parecia inofensivo e mais
pequeno do que me lembrava. Fora um gigante aos meus olhos de criança. Agora
estava na meia-idade, desiludido, sozinho. Fez-me perguntas acerca do meu
trabalho e dos meus anos de estudante em Liverpool. Tive o prazer de lhe dizer que
me saíra melhor do que o Clive e de que conseguira uma classificação máxima no
curso. Apercebi-me, enquanto falava, que o tom da minha voz denotava
ressentimento e gabarolice. A autoconfiança jovial que o Clive adquiriu na sua
infância era algo que eu jamais teria, por muito que me esforçasse e
independentemente do que conseguisse.
Por que razão fui visitar o meu pai? É difícil analisar os motivos que nos levam a
fazer as coisas que fazemos, e fazemo-las por muitas razões. Eu estava a ser
ousada. Estava a tocar com a língua no veneno. O meu pai, com a sua voz melosa,
sabia como dizer as coisas certas. Mostrou interesse. Disse que estava orgulhoso
de mim, que sempre soubera que eu me sairia bem. Passou a palma da mão sobre
os cabelos, ainda cintilando com brilhantina. Enquanto conversávamos, não me
parecia que estava a falar com o meu pai, mas sim com alguém que eu mal
conhecia, um antigo professor da escola primária, uma tia distante, um conhecido já
esquecido e encontrado por acaso.
Quando chegou a hora de ir embora, ele ficou à porta e ficámos a olhar um para
o outro como dois gatos desconfiados. Não me deu um beijo e eu também não
queria que ele o fizesse. Enquanto me encaminhava para a estação, fui invadida por
sentimentos assustadores e decidi nunca mais voltar a visitá-lo.
O comboio de regresso ao País de Gales estava atrasado. Fiquei sozinha na
longa plataforma em New Street, fitando os carris a desaparecerem no horizonte e
recordei-me da minha corrida pela avenida das árvores procurando chegar ao
infinito. Quando o comboio chegou, ressoou letargicamente através da confusão de
cidades desconhecidas e fábricas encerradas, pilhas de escória provenientes das
minas de carvão abandonadas, ruas altas e ventosas com luzes amarelas e
esbatidas à porta dos bares. Quando parávamos nas estações ao longo do caminho,
as pessoas à espera pareciam fantasmas sob a luz ténue. Era difícil imaginar por
que razão estavam ali e para onde iam, por que motivos as pessoas iam para algum
lado. Fiz a longa caminhada até casa sob um céu negro e uma chuva fina que me
deixou encharcada.
Naquela noite, demorei muito tempo a adormecer, mas quando adormeci,
despertei com o som da voz de uma criança a chorar, um longo lamento pleno de
sofrimento que me deixou apavorada. Fui incapaz de voltar a adormecer e levantei-
me de madrugada. Corri pelas ruas molhadas onde os homens do lixo esvaziavam
os caixotes e o sol era branco como o gelo quando apareceu sobre os edifícios
cinzentos. Fui trabalhar e tentei afastar da mente aquele sonho, mas ele voltou
novamente naquela noite e em todas as outras noites, o choro da criança, seguido
por um pesadelo que variava em detalhes e começava sempre com um ar de
suspense.
Este é o meu sonho:
Estou deitada na cama a olhar para o tecto, onde o móbile constrói diferentes
padrões à medida que gira em círculos acima da minha cabeça. As sombras
movem-se mais rapidamente quando a porta se abre e um homem escuro entra sem
fazer barulho. Pega nos meus ursinhos de peluche e atira-os para o chão. Despe-me
o pijama. Beija-me nos lábios. Introduz a pila na minha vagina, no meu rabo, na
minha boca. Recordo-me do sabor do leite azedo que sai da sua pila e o sabor
permanece na minha boca durante todo o dia seguinte.
Este pesadelo era o mesmo que me assombrava desde a minha adolescência,
desde a puberdade, mas com uma diferença subtil. A outra menina a observar
aquelas cenas não estava lá. O homem dos sonhos era muito claramente o meu pai
e a menina era eu.
Isto era aterrador. Sem a distância emocional que a outra menina criava,
encontrava-me cara a cara com a possibilidade alarmante de aquelas cenas não
serem sonhos, mas lembranças de algo que acontecera, e eu tinha, de alguma
forma, conseguido enterrá-las nas profundezas do meu subconsciente.
Mesmo durante o dia, quando estava a trabalhar no computador a redigir
estatísticas antitabagismo e fazia uma pausa, para beber um cappuccino ou
preparar um banho, a minha cabeça girava como nos filmes. Visualizava cenas
intensas e terríveis do passado: eu aos três, aos sete e aos catorze anos; eu ao
longo de toda a minha infância, deitada no meu quarto à noite, sentindo-me
entorpecida enquanto esperava que a porta se abrisse, que a sombra no tecto se
movesse com mais rapidez e que aquele homem, o meu pai, aparecesse com dedos
de aranha e o seu hálito fétido. Aquela menina, aquela jovem mulher, aquela pessoa
que parecia ser eu entrava numa espécie de torpor e só se recordava do que
acontecera de noite quando acordava com um gosto amargo na boca, uma dor no
rabo ou na vagina, ou em ambos. Tomava banho, lavava-se, esfregava-se até ao
limite e pensava que era completamente louca por ter aqueles pensamentos
horrendos na cabeça.
Agora, de repente, aqueles pesadelos e memórias indistintos estavam a tornar-
se cada vez mais reais, mais ligados, mais nítidos. Sentia-me suja, conspurcada,
dividida. Como adulta, podia agora ver que se essas memórias eram verdadeiras, eu
era uma pessoa traumatizada que sofrera abusos durante toda a minha infância. Ou,
e isto era o mais terrível, se não fossem verdadeiras, eu tinha uma mente deformada
e pornográfica que conseguia inventar cenas depravadas mais realistas do que
jamais algum escritor descrevera por palavras ou qualquer cineasta transformara
num filme.
O desenvolvimento das novas amizades com a Rosaleen e a Louise
desintegrou-se. Tornei-me numa reclusa. Trabalhava voltada para a parede todos os
dias e corria para casa durante o Inverno para escrever relatórios durante a noite, no
meu estúdio infestado de flores, a beber gin e a observar o meu reflexo no espelho
cheio de moscas, enquanto os políticos na Radio 4 tagarelavam sobre a invasão do
Kuwait pelo Iraque. Eu queria estar envolvida, interessada, preocupada. Estivera no
Egipto e em Israel. Mas o Golfo Pérsico e a guerra iminente estavam muito longe e a
sensação de horror na minha própria mente estava perto e presente.
Os fins-de-semana chegavam e, como uma viciada, ou o cão mais regressivo de
Pavlov, comecei a visitar o meu pai de novo.
Sentávamo-nos na sua sala de estar com a luz insípida a entrar pelas janelas, a
falar sobre as probabilidades de guerra, da comercialização do Natal, da saúde dos
homens desempregados. Era como pôr a mão em água a ferver, e depois pô-la
directamente no fogo para ver até que ponto a queimadura era grave. Eu era
masoquista, e não fiquei admirada quando descobri que até mesmo o masoquismo
tem conotações sexuais.
Se as minhas memórias eram reais, então eu fora violada incestuosamente pelo
meu próprio pai até à insanidade. Não uma vez nem duas, mas centenas de vezes.
Não fora uma qualquer menina desconhecida da minha memória obscena. Era eu.
Eu. A rapariga sentada nas sombras a beber chá. A rapariga no espelho. A rapariga
que ouvia vozes. A rapariga com as mãos de estranhos a pentearem o seu cabelo, a
segurar o lápis que escrevia notas na coluna esquerda dos seus relatórios. A
rapariga que espreita o seu reflexo na janela do autocarro a caminho de casa vinda
da estação, o motor em esforço a subir a colina, o veículo a estremecer. Há algo
deprimente no som dos autocarros durante o Inverno.
O Natal passou numa agitação de boa vontade esquecida e no Ano Novo eu
completaria vinte e um anos de idade. Estava dolorosamente magra, bebia uma
garrafa de gin a cada dois dias, engolia comprimidos para a dor de cabeça, para as
dores de estômago, para as dores nas costas, para as dores no cérebro. Os
peluches tinham um aspecto sombrio. O Sr. Feliz caíra da estante de cabeça para
baixo. Será que alguma vez voltaria a ser feliz?
As decisões para mim são como um rolo de corda e eu tenho de chegar
compulsivamente ao fim antes de tomar as decisões.
Acaba com o gin. Mata-te. Corta os pulsos. Corta a garganta. Ninguém gosta de
ti. Ninguém te quer. Ninguém se importa.
O que estás a fazer sozinha quando o teu rapazinho irlandês de olhos azuis está
apenas a alguns quilómetros de distância? Porque não lhe telefonaste? Seria tarde
de mais para voltar atrás? Será sempre tarde de mais? Quando viste o anúncio do
emprego no Guardian, não viraste logo a página por ser demasiado perto dele?
Estaria alguma parte do teu cérebro a trabalhar independentemente da parte a que
chamas Alice? Era assim. Por vezes sentia que não era senhora do meu destino,
mas que era sua vítima, sua escrava.
Eu fizera a pior coisa que uma rapariga pode fazer a um rapaz. Permitira que o
Patrick me amasse. Permitira que ele me levasse para a sua cama e retraíra-me
com o seu toque, a sua mão sobre o meu corpo provocando arrepios na minha pele.
Sentia-me envergonhada.
Folheei o meu livro de endereços e olhei para o número da Sarah. A corajosa e
determinada Sarah. Olhei fixamente para os números até os meus olhos ficarem
enevoados. Olhei para o relógio: dez horas. Olhei de novo: onze horas. Pensei em
telefonar à Elaine, mas não tinha coragem para sair de casa sozinha na escuridão
para ir à cabina telefónica. Telefonar-lhe-ia no dia seguinte. Conseguia ouvir a sirene
dos carros de bombeiros e ambulâncias, e não sabia se era lá fora na rua ou dentro
da minha cabeça.
A Elaine dissera que estaria sempre disponível para mim. Dissera que não
podemos mudar o mundo, apenas a nós mesmos, e eu estava a mudar, a quebrar, a
desmoronar-me. Podia sentir as placas tectónicas sob a superfície do meu cérebro a
deslocarem-se, os hemisférios esquerdo e direito a afastarem-se cada vez mais,
como o som do plástico a rasgar-se na minha cabeça, as vozes a bramir.
Mata-te. Mata-te. Corta a garganta. Fá-lo agora. Fá-lo, Alice. Fá-lo, sua cabra.
As vozes. Sempre as vozes.
A minha cabeça estava a explodir. Tapei os ouvidos e olhei em redor da sala: vi
as flores nas paredes a aumentar, os redemoinhos brancos no tapete a revirarem-se
como larvas gordas, a lâmpada a tremeluzir. A cacofonia na minha cabeça era como
uma orquestra a mover-se para a beira de um penhasco, com os instrumentos
desafinados, os violoncelos, os oboés e os címbalos produzindo um som metálico e
estridente e a tombarem no abismo.
Eu tenho aquilo a que se dá o nome de temperamento altamente reactivo.
Desde o meu nascimento que sempre me assustei com facilidade. Talvez por isso a
minha mãe dissesse que eu era uma criança difícil. Não dormia. Não conseguia
dormir. Ficava ali na cama com os olhos abertos quando ela fechava a porta
deixando-me no brilho ténue da luz nocturna. Os primatas têm um reflexo de medo
que aumenta na escuridão. Todavia, pomos as crianças a dormir sozinhas no
escuro, acreditando que é bom para elas. Depois interrogamo-nos por que razão a
criança chora por atenção, por que razão as famílias se desfazem, por que motivo
quase todas as pessoas são neuróticas, ansiosas, stressadas, inseguras, sentem
medo. É algo que começa no berço.
Eu deito-me na cama à espera. Tinha dois, três, quatro, cinco e seis anos.
Estava à espera do meu papá. Isto é o que os paizinhos fazem com as meninas
quando as mamãs vão para a cama. Vêm ao quarto delas. São descuidados com os
ursinhos. Fazem-nos cócegas. Beijam-nos nos lábios. Despem-nos as roupas e dói
quando metem as suas pilas grandes dentro de nós. Dói, mas é o que os paizinhos
fazem e as meninas amam os seus paizinhos.
A minha pele ficou amarela. Os meus olhos estavam vazios e mortos. Estava no
fim da minha corda.
Precisava de confrontar o meu pai de uma vez por todas, olhá-lo nos olhos e ver
a verdade. Curar-me ou matar-me, como o Professor continuava a sugerir. Apanhei
um comboio para Birmingham e depois uma ligação para casa. Telefonei ao meu pai
da estação vitoriana de tijolos vermelhos e disse-lhe que estava ali por acaso. A
razão pela qual eu necessitava deste subterfúgio, desta mentira, parece tola e inútil,
mas estava a preparar-me para o confronto. Ele disse que ficaria muito feliz em ver-
me, e eu saí da estação a pensar naquilo que lhe ia dizer.
Estávamos a meio de uma tarde glacial. Sentia-me agoniada e ansiosa
enquanto caminhava ao longo da fila de casas com os seus balões moribundos e os
seus arranjos de papel definhados. Parei no amplo alpendre antes de tocar à
campainha. Ainda ia a tempo de sair dali. Telefonar-lhe-ia da estação a desculpar-
me, e regressaria ao trabalho.
“Isto é uma tolice”, pensei. Estava a agir como uma criança. Sentia-me como
uma criança, ali parada com o dedo a pairar sobre a campainha até que, de repente,
como que contra a minha vontade, a pressionei longamente e com força.
Ele abriu a porta e eu segui-o até à sala de estar.
- Vou pôr a chaleira ao lume - disse ele.
A sala estava às escuras, com a luz pálida de Inverno a entrar através das
cortinas semifechadas. Fiquei de pé no centro da sala e pronunciei as palavras que
não me saíam da cabeça desde a minha adolescência.
- Abusaste de mim quando eu era criança.
Pronto. Pronunciara as palavras.
Finalmente, depois de tantos anos, tinham saído de dentro de mim.
Ele parou o que estava a fazer. As suas mãos tremiam.
- O quê? - respondeu ele. - Não sejas parva. Estás louca? Não sabes o que
estás a dizer.
- Abusaste, abusaste. Foi isso que fizeste - disse-lhe.
Conseguia ouvir a minha voz a subir de tom. Sentia-me pequena e, de repente,
ele parecia um gigante com uns braços enormes e um rosto colossal e escuro
pairando sobre mim, uma expressão que recordava de há muito tempo.
- Porque não te sentas, Alice? Controla-te - disse ele.
Dei um passo para trás.
- És um cretino nojento e eu odeio-te - bradei.
Assim que pronunciei estas palavras, ele atravessou a sala para a cozinha e vi-o
pegar numa faca que estava em cima do balcão. Tudo se movia muito rapidamente,
como se fosse um flashback e eu conseguisse visualizar todos os fragmentos do
filme em simultâneo.
- Quieta - disse o meu pai, ameaçando-me com a faca.
Fiquei pregada ao chão. Ele afastou-se rapidamente. Fechou as cortinas,
impedindo a luz de entrar. Fiquei imóvel, tremendo por dentro, apavorada. Todos
aqueles anos a ouvir aquelas vozes maldosas, todas as memórias que eu pensara
serem falsas, faziam abruptamente sentido.
Tinha a boca seca de terror. As lágrimas tornavam os meus olhos vítreos. Senti
o coração a bater acelerado no peito quando saí daquele torpor e corri para a porta.
Já fizera o que me trouxera ali, agora só queria fugir.
Alcancei a maçaneta da porta, mas assim que a abri, ele fechou-a com um
movimento brusco e deu-me uma bofetada. Agarrou-me pelo braço e arrastou-me de
volta para o centro da sala, com a faca na mão livre, a lâmina a reluzir na penumbra.
Bateu-me uma e outra vez na face, com a palma aberta. Empurrou-me pelo ombro
para me forçar a deitar no chão e caiu em cima de mim, manietando-me e
encostando a faca à minha garganta. Bateu-me novamente, com bastante mais
força.
- Não te mexas - disse ele.
Tocou-me com a ponta da faca na garganta enquanto tirava uma perna de cima
de mim. Eu estava deitada no chão. Ele desapertou o botão de metal das minhas
calças e, quando puxou o fecho dos meus jeans, recordei-me de usar pijamas
inteiriços em bebé, com um longo fecho de correr, e do som desse fecho a ser
aberto durante a noite. Puxou-me as calças para baixo enquanto eu permanecia ali
entorpecida e aterrada e ele me descalçava os sapatos. Puxou-me os jeans e as
cuecas pelas pernas abaixo e pelos pés ao mesmo tempo. E depois segurou a faca
junto à minha vagina.
- Não te atrevas a mexer - repetiu.
Estava a observá-lo sobre o meu corpo seminu. Sabia que ele não ia cortar-me
com a faca. Apenas a segurava ali para me manter submissa. Funcionou. Eu estava
submissa. Fiquei ali deitada como uma criança.
Desabotoou as calças dele, abriu-me as pernas à força e introduziu o pénis
dentro de mim. Moveu-se para cima e para baixo com um movimento ondulatório e
eu conseguia sentir o seu hálito fétido enquanto ele arfava. Saiu de dentro de mim
de repente, ajoelhou-se e ejaculou no meu rosto.
Depois, pôs-se de pé e olhou para mim ainda deitada no chão.
- Agora, levanta-te, sua rameira - disse ele. - Veste-te e põe-te na rua.
Eu mal conseguia respirar.
Fiz o que ele me mandou, puxei os jeans e as cuecas para cima, calcei os
sapatos, as minhas mãos a moverem-se mecanicamente, com o cérebro desligado
do resto do meu corpo.
- Ouve bem o que te digo, não contes a ninguém, porque ninguém vai acreditar
em ti - disse ele, e durante anos e anos ninguém acreditou.
Eram cinco da tarde, a luz começava a esmorecer quando ele me empurrou
porta fora e pelo relvado molhado até ao seu carro estacionado no caminho da
entrada.
- Entra - disse ele.
Obedeci. Gostava de andar de carro com o meu papá.
Levou-me até à estação. Não disse uma palavra e eu também não. Limitei-me a
ficar ali sentada, como uma criança, com o esperma dele a secar no meu rosto, e
lembro-me de pensar: Esta aqui sentada não sou eu. Não sei quem é, nem quero
saber. Só estou contente por não ser eu.
Ele parou na estação de New Street. Não trocámos uma única palavra. Saí para
o passeio e o carro afastou-se. Tive de pensar por um momento onde me
encontrava, para onde ia, como é que fora parar ao carro do meu pai. Era como um
quebra-cabeças com pedaços manhosos de informação que levava algum tempo a
ser resolvido. Toquei com os dedos no lado esquerdo do meu rosto, onde me doía.
Pessoas vestidas com roupas escuras moviam-se determinadamente através
das passagens iluminadas e túneis, a respiração delas a deixar rastos de vapor. A
estação estava apinhada. Barulhenta. As pessoas empurravam-se umas às outras.
Os anúncios dos comboios e as pessoas a pedirem esmola eram desconcertantes,
uma névoa verbal, e os meus olhos, tal como as aberturas dos binóculos, levaram
algum tempo a focar os horários de partida e as plataformas.
O comboio levou-me de volta ao País de Gales, o ritmo das rodas de metal nos
carris assemelhando-se ao batimento cardíaco. Sentei-me num canto escuro com o
capuz do meu blusão a tapar-me a cara.
Não esperei pelo autocarro. Caminhei os três quilómetros da estação até casa
pela noite fria e escura e não conseguia sentir as pernas que me impulsionavam um
passo de cada vez. Não as sentia leves nem pesadas, pareciam ter sido cortadas do
meu corpo. Os meus membros e outras partes do corpo devem ter-se fragmentado e
a única ligação era alguma parte separada de mim, como uma onda cerebral
direccionando lentamente esta massa através da cidade sem vida.
No estúdio, acendi a luz e sentei-me na cama, onde fiquei a noite toda em
transe, a contar as bolinhas de borboto do meu casaco de lã verde e vermelho.
De manhã, os hematomas das pancadas tinham inchado e o meu rosto no
espelho era uma combinação dos rostos de todas as mulheres que entrevistei para o
meu estudo sobre a violência doméstica. Fora eu quem escrevera aquela
dissertação? Era eu a rapariga que se licenciara com distinção? A rapariga da
maratona?
Essa rapariga, ocorreu-me, já não existia, estava morta, desaparecera. Eu era a
rapariga no espelho e já não tinha de duvidar da minha memória. As pisaduras eram
a prova final. O meu pai vio-lara-me no chão da sua sala da mesma forma que me
violara desde que eu era bebé, durante toda a minha infância e adolescência.
Durante muitos anos, desde que me lembrava, andara a reter a onda de
verdade, fingindo que não tinha acontecido, imaginando que acontecera com outra
menina, aquela doppelganger que eu via de fora de mim mesma. O dique rebentara.
Era tudo verdade: as aranhas, o homem no carro branco, o calabouço onde as
pessoas entoavam cânticos e as crianças eram colocadas sobre um altar antes de
serem abusadas. Eu recordava-me sempre de estar a assistir. Agora recordava-me
de estar a ser colocada no altar, nua e vulnerável como uma boneca.
O meu pai violara-me ontem. Era o seu sémen que podia ver em camadas secas
sobre o meu rosto. Ele não só abusara de mim, como me ameaçara com uma faca e
me humilhara, espalhando o seu esperma de velho pelo meu rosto.
Era inacreditável, mas era verdade, e era um alívio saber que o era.
Tinha um nó no meu estômago do tamanho de uma bola de futebol. A bílis
subiu-me ácida até à garganta e fui à casa de banho vomitar, uma e outra vez, com
os olhos fechados e uma sensação gelada a apertar-me a espinha. “O Inferno deve
ser isto”, pensei. Lavei o rosto, lavei o corpo, lavei o cabelo e dirigi-me à cabina
telefónica na esquina para telefonar para o escritório e explicar que estava muito
doente e não podia ir trabalhar.
Por que razão não fui à polícia?
Porque simplesmente é algo que não se consegue fazer.
Por que motivo não telefonei à minha mãe ou à Elaine ou ao Patrick?
O meu pai dissera que ninguém iria acreditar em mim e eu acreditei nele.
Tal como as mulheres que conhecera no refúgio, sentia-me envergonhada. Elas
não queriam dizer a ninguém. Eu não queria dizer a ninguém. A nossa mente fica
distorcida quando temos o rosto esmurrado e ferido, quando mal conseguimos ver
através dos olhos inchados. Olhamo-nos ao espelho e nem sequer parecemos nós
mesmas. Imaginamos que devemos ter feito algo de errado. De alguma forma, a
culpa é nossa. Temos o que merecemos. Quando somos vítimas, assumimos uma
mentalidade de vítima.
É impossível mudar o passado ou o inevitável. Era o que o meu avô dizia e,
fatalmente, calcei os meus Nike Air e saí para correr. O que a corrida tem de bom é
que não pensamos. Não precisamos de ir a lugar algum. Colocamos uma perna
morta diante da outra, impulsionamo-nos para a frente, e o acto de correr é um fim
em si mesmo.
Quando regressei ao meu quarto, sentei-me de novo na cama paralisada com o
choque, abracei-me a um peluche, num estado de negação, com o corpo todo dorido
e preocupando-me repentina e obsessivamente com o meu trabalho. Estava sempre
a chegar material novo. Não queria ficar para trás. Decidi ir ao escritório quando
todos já tivessem saído, às seis da tarde, para recolher alguns documentos para
estudar em casa. Tomei banho, vesti-me e pus um gorro de lã na cabeça.
Deixei o estúdio como se fosse um ladrão e fiquei no corredor, com o ar frio a
subir pelas escadas como mãos procurando agarrar a minha garganta. O corrimão
estava húmido e o padrão de bambu no papel de parede assemelhava-se a grades
no ambiente lúgubre. As minhas pernas tremiam. Não tinha sentido de equilíbrio.
Enquanto descia as escadas e caminhava ao longo da rua deserta, senti-me como
se estivesse numa daquelas pontes de corda suspensas sobre um desfiladeiro, as
pedras do passeio oscilando, prateadas e escorregadias devido à chuva. O mundo
era instável e, enquanto caminhava ofegante, era como se estivesse a engolir
cristais amargos da noite que se adensava. Não conhecia a pessoa em que me
tornara. Sempre me sentira estranha dentro da minha própria pele, a crisálida que se
deveria ter transformado numa borboleta, um ovo caído do ninho, uma salamandra
capturada na cor errada. Uma rajada de vento soprou os borrifos de chuva para os
meus olhos. Fechei as pálpebras para ver até onde conseguia andar sem me
desviar do caminho e esbarrar contra alguma coisa.
O prédio do escritório estava às escuras, à excepção de um par de luzes
amareladas atrás das janelas sujas. Arrastei-me até ao nosso andar por volta das
18h15 e fiquei surpreendida por ver que a Rosa-leen e a Louise ainda estavam no
escritório. Murmurei um “Olá”, reuni alguns papéis e encaminhei-me rapidamente até
à cozinha para ir beber um copo de água.
A Louise seguiu-me e, na claridade da iluminação, conseguiu ver que eu tinha o
rosto pisado e inchado.
- Oh, meu Deus, Alice, o que aconteceu?
- Nada.
- A mim não me parece que seja nada.
- Eu, eu...
- Pobre rapariga.
As lágrimas subiram-me aos olhos e eu encolhi-me quando a Louise me
abraçou. Fechei os olhos, cerrei os dentes, e afastei-me de imediato.
- Deixa os papéis, eles não são importantes. - Disse a Louise sacudindo a
cabeça. - Vou levar-te para casa e pedir ao Bernard que te examine.
Bernard Lloyd-Jones, o marido da Louise, era médico, um homem anafado e
alegre, adepto de blazers e gravatas às riscas. Examinou as minhas contusões em
casa deles. Quando fez incidir uma luz nos meus olhos, interroguei-me se ele
poderia ver o filme do que acontecera no chão, na casa do meu pai. Louise fez o
jantar: batatas cozidas com feijão, no qual quase não toquei, e depois levou-me às
Urgências do hospital de Swansea, um lugar que viria a ter uma grande importância
na minha vida durante os anos que se seguiram.
A Louise ficou à minha espera enquanto eu fui levada para um cubículo. Sentei-
me na cama com a cortina corrida, e continuei a contar o borboto do casaco de lã
que ainda tinha vestido. Tudo me parecia irreal, ou surreal, as luzes claras, o cheiro
do anti-séptico, um bebé a chorar, as vozes a murmurar incoerentemente, como se
tivessem ficado chocadas com esta nova reviravolta dos acontecimentos e não
tivessem bem a certeza do papel a desempenhar. Durante os três anos que passei
na universidade, as alucinações auditivas tinham-me espicaçado e eu lutara contra
elas. Agora estávamos numa nova fase a que nem eu nem elas estávamos
acostumadas. Senti-me abandonada.
Uma médica negra examinou-me. Observou os hematomas no meu rosto e as
filas de pequenas marcas em cada um dos meus braços, onde o meu pai deixara as
suas impressões digitais tatuadas na minha carne. Perguntou-me o que acontecera.
Respondi que fora atacada e que não sabia por quem. Era demasiado vergonhoso e
pessoal. Depois de esconder a verdade de mim mesma durante tantos anos, não
podia simplesmente desabafá-la agora.
- Tens a certeza absoluta de que não sabes quem era? - perguntou ela.
Esta era a minha oportunidade. Talvez a última. Sacudi a cabeça.
- Sim, não sei - respondi.
Ficámos em silêncio durante alguns instantes. Mas não havia nada que ela
pudesse fazer a menos que eu lhe dissesse a verdade e a deixasse ajudar-me.
Fiquei a olhar para os meus sapatos e só queria estar noutro lugar qualquer, sem
ser nas Urgências do hospital. Não queria estar viva. Não queria estar morta. Queria
ser outra pessoa, outra versão mais feliz de mim mesma, como aquela rapariga que
em tempos passara o Verão no kibutz Neve Eitan.
Passei a noite com a Louise e o Bernard. Na manhã seguinte, quando
estávamos a caminho do trabalho no carro de Louise, ela sugeriu que parássemos
para pedir ao seu médico de clínica geral a pílula do dia seguinte no caso de eu
estar grávida. Fiquei surpresa quando ela disse aquilo. Isso nunca me teria ocorrido,
e não percebia como é que a Louise sabia que eu fora violada e que poderia estar
grávida. O facto de o meu pai ter saído de dentro de mim e ejaculado sobre o meu
rosto era algo demasiado horrível e ordinário para sequer considerar.
Era como se eu já não estivesse no comando da minha vida, agora eram os
acontecimentos que me conduziam até ao consultório do Dr. Graham Sutton, que
me receitou a pílula adequada e nitraze-pam, um comprimido para dormir. Também
sugeriu que eu voltasse no dia seguinte para termos uma conversa. Era um homem
de olhos brilhantes, ambicioso, autoconfiante e gentil. Não lhe disse logo que fora
violada e, quando o fiz, nunca lhe disse por quem.
Não fui trabalhar naquele dia. A Louise levou-me de volta para a sua casa.
Tomei os dois comprimidos e dormi até ao início da noite no quarto de hóspedes. O
Bernard fez ovos mexidos quando me levantei, e fui para a cama com outro
comprimido para dormir.
Quando acordei, cerca das 10h30 da manhã seguinte, o barulho das sirenes e
das bombas a explodirem pela primeira vez não vinha do interior da minha cabeça.
Desci as escadas e encontrei a Louise colada à televisão. Estávamos em Janeiro de
1991. Depois da invasão do Kuwait por Saddam Hussein, a guerra que iria expulsá-
lo daquele país começara com o bombardeamento de Bagdade pelos americanos. O
que passou pela minha cabeça enquanto observava os prédios a desintegrarem-se
em nuvens de poeira foi que o mundo, tal como a minha vida, estava a desmoronar-
se à minha volta.
Depois de três dias hospedada em casa da Louise e do Bernard, regressei ao
meu estúdio para mudar de roupa e a Louise deu-me boleia para o escritório. Foi
bom para mim voltar ao ritual do trabalho, mas não conseguia concentrar-me. A
medida que lia as palavras nos relatórios, era como se a tinta ainda estivesse
húmida e as palavras se movessem numa confusão aquosa. Segui em frente, lendo,
relendo, não retendo nada. Assisti à reunião de sexta-feira onde informámos o resto
do departamento sobre o andamento dos nossos projectos. Foi um exercício
produtivo, um momento para partilhar ideias e decidir o melhor caminho a seguir. O
encontro foi informal e fez-me sentir normal, embora não tivesse nada de útil a
acrescentar.
Continuei a ver o Dr. Sutton regularmente. O seu consultório era perto do
escritório, por isso podia ir às consultas durante a minha hora de almoço. Graham
Sutton era um daqueles médicos que nos recebia com um toque amigável no braço,
e de cada vez que ele o fazia, eu retraía-me como se fugisse do fogo. Insistiu para
que eu consultasse uma enfermeira psiquiátrica, e eu não aceitei. Eu era agnóstica
relativamente à psiquiatria. Os psiquiatras pareciam sempre ter os seus próprios
problemas psicológicos e, como não estava preparada para falar acerca do que
acontecera com o meu pai, a meu ver não passaria de um doloroso desperdício de
esforços.
O resto da minha rotina não mudou: despertar exausta após noites de pesadelo;
ouvir as notícias da destruição constante de Bagdade pelos bombardeiros que
sobrevoavam uma cidade sem canhões antiaéreos; recolher estatísticas sobre os
custos de saúde relacionados com a nicotina vindas de Bruxelas e Amesterdão;
regressar a casa no pico do Inverno para o meu estúdio assustador com um fogão
eléctrico de dois discos, canecas lascadas e As Palmeiras Ondulantes das Ilhas
Tropicais ofuscadas pelas grandes flores azuis que desabrochavam nas paredes
como bolor. Um copo de gin, uma noite destroçada, uma corrida de fim-de-semana,
palavras nos diários perdidos pelo caminho.
Trabalhava. Comia chocolate e bebia gin. Observava o meu reflexo. As feridas
cicatrizaram e a rapariga que aparecia no espelho era uma pessoa diferente. Ainda
ouvia vozes que lhe diziam que se matasse, mas já não tinha dúvidas.
O meu trabalho tornou-se impossível. Não conseguia concentrar-me. Os
fumadores teriam de passar sem mim. Falei com a Louise acerca disso. Não fora a
casa ver a minha mãe desde a violação e a Louise tornara-se na minha mãe de
aluguer. Discutimos o meu “stress pós-traumático”. As esposas dos médicos
imaginam que são médicos por procuração e, finalmente, a Louise convenceu-me a
seguir o conselho do Dr. Sutton e a consultar um psiquiatra.
A análise é um caminho escorregadio e, contra a minha vontade, dei por mim a
segui-lo. O Dr. Sutton marcou a consulta e uma semana mais tarde dirigi-me ao
hospital, onde a unidade psiquiátrica se assemelhava a uma capela e se encontrava
num edifício à parte dentro do complexo hospitalar. A minha consulta era com a Drª
Simpson, uma médica de aspecto severo, vestida com as suas saias apertadas e
casacos de bom corte, mais uma mulher.
Esta era a minha nova rotina. Deixava o emprego mais cedo todas as segundas-
feiras para a minha sessão com a Drª Simpson e conversávamos. Do que falávamos
não me recordo, mas sei que nunca mencionei as vozes. Ela prescreveu-me
Lofepramine, um anti-depressivo, que não surtiu efeito, e depois mudou-me a
medicação para Prozac, que ainda hoje tomo.
O Prozac dá um novo conceito à vida. Agora, levanto-me de manhã depois de
um pesadelo e, enquanto ingiro meia barra de cereais Weetabix, os relatórios da
rádio sobre as mortes e desastres no Iraque parecem uma peça excêntrica de teatro
totalmente alheia à minha existência. Desde que as pessoas não se matassem a
fumar, a forma como eles se matavam não tinha qualquer importância para mim.
Os antidepressivos diários deram-me ânimo para prosseguir durante mais uma
semana até ficar num estado semi-hipnótico num sofá preto - tal como se vê nos
filmes - e a Drª Simpson começar a desbloquear as memórias da minha infância. Ela
é realmente boa. Mas eu lutava contra ela. Os meus segredos são só meus e não
estão prontos para vir à luz.
As sessões prolongaram-se durante semanas e meses. Não sei bem o que lhe
disse, o que ela me perguntou ou o que rabiscava a lápis no seu bloco de notas. Do
que me recordo é que numa ocasião em que ela foi capaz de me fazer regredir a um
estado infantil, a sessão ultrapassou o tempo estipulado. Ela estava com pressa e
saímos do edifício ao mesmo tempo.
- Adeus, Alice.
- Adeus - respondi com uma voz débil.
Estava a chover bastante. Fiquei a vê-la afastar-se no seu carro novo, sentada
de pernas cruzadas no chão alcatroado, à chuva, com as lágrimas a escorrerem-me
pelo rosto, incapaz de abrir o cadeado da minha bicicleta.
CAPÍTULO 9
A Alice é estranha. Parece igual a toda a gente, mas não é. Tem coisas
assustadoras na cabeça. Quando a Alice era pequenina, o seu papá fez-lhe coisas
que não devia ter feito. Vinha ao berço dela. Vinha para a sua cama. Despia-lhe o
pijama. Introduzia a pila no rabinho dela, no pipi e na boca. Gostava de fazer xixi no
seu rosto. O xixi era pegajoso e provocava uma sensação estranha. A Alice obrigou-
se a si mesma a pensar que aquilo era normal quando era pequena e obrigou-se a
esquecer até ter idade suficiente para se lembrar. A Alice é inteligente. É o que
todos dizem. É por isso que ela conseguia separar o que acontecia com a Alice
durante a noite e a pessoa que a Alice era quando ia para a escola de manhã.
Quem sou eu? Onde estou?
O que estou aqui a fazer? O meu cérebro está em chamas.
Chove muito no País de Gales. O céu tem uma tonalidade cinzenta como a pele
dos idosos. As colinas verdes não são verdes. São cinzentas. A Montanha Negra
chama-se assim porque é negra. A neblina paira sobre os vales como cinza. A
humidade corrói o cálcio dos ossos.
A vida era cinzenta e o trabalho no departamento de promoção da saúde era um
lampejo de cor.
Os homens espanhóis são os mais fumadores da Europa. Gostam daquele
tabaco muito negro com alcatrão que apodrece os dentes. Nada pode pará-los.
Ocorreu-me que a melhor maneira de evitar que as pessoas fumem era proibir de
vez o tabaco, mas os governos precisam da receita fiscal dos fumadores para
financiar as instalações nos hospitais para o coração e os pulmões. Tudo faz sentido
se olharmos para as coisas pelo prisma certo.
Eu não tinha amigos. Ter um emprego não é como estar na universidade. Eu era
uma reclusa, corria, escrevia em diários que perdia como células cerebrais,
lembrando-me e esquecendo-me. O Professor queixava-se porque eu não estava a
ouvi-lo. Por que razão deveria estar a ouvi-lo? Tinha as minhas próprias queixas.
Para começar, o meu estúdio estava a encolher. O meu quarto era uma jaula. As
flores azuis começaram a ficar cinzentas, à medida que se enrolavam pelas latadas,
as raízes e os caules engrossaram, prendendo-me lá dentro. Os macacos no jardim
zoológico de Chester têm mais espaço. A minha jaula não se via, mas eu sabia que
ela estava lá. Era um campo de forças, como os feixes electrónicos que protegem os
objectos preciosos e fazem disparar alarmes quando são quebrados. O campo de
forças invisível cobria a minha mente e foi necessária toda a minha força de vontade
para ultrapassar os dias chuvosos e as noites frias.
Na verdade, foi necessário o Prozac e o Valium, as chaves da jaula. Chaves-
mestras. Aprendi a conhecê-las bem.
O Valium pertence a um grupo de medicamentos denominados
benzodiazepinas. Entorpece os sentidos. E utilizado para o controlo de perturbações
de ansiedade e afecta aquelas substâncias químicas no cérebro que são mais
propensas a perder o equilíbrio e causar ansiedade. O Valium é prescrito para a
agitação, tremores, para aliviar certos tipos de dores musculares, muito útil após
uma corrida de dezasseis quilómetros, e as alucinações durante a abstinência do
álcool. Mas para quê abster-me?
O Prozac é uma droga psicotrópica, uma forma de cloridrato de fluoxetina. E
eficaz contra ataques de pânico, depressão, ansiedade, nervosismo, bulimia nervosa
e insónia. Pode provocar tendências suicidas, bem como prejudicar o raciocínio e as
capacidades motoras. O Prozac amplia a mente para novas formas e esta, uma vez
esticada, nunca mais regressa às dimensões originais. A heroína também faz isso, e
o LSD. Mas nesta altura eu ainda não sabia disso.
Raramente ia a casa. Estava à beira da erupção e todas aquelas misturas de
toxinas teriam sufocado a minha mãe. Pensei na Esther e no quanto ela deveria ter
sido forte para sobreviver a Buna-Mono-witz.
Houve um fim-de-semana em que choveu durante dois dias sem parar. A chuva
batia contra os vidros como dedos ossudos. Tap. Tap. Tap. Tap. Tap. Os fungos
cresciam nas paredes. Despachei uma garrafa de gin, debruçada sobre um
aquecedor eléctrico e escrevi um poema, um dos poucos que resistiu às mudanças
e à passagem dos anos. Intitula-se: “Para Onde Posso Ir?”
Se este não é o lugar onde as lágrimas são compreendidas, para onde posso ir
chorar?
Se este não é o lugar onde o meu espírito pode abrir as asas, para onde posso ir
voar?
Se este não é o lugar onde os meus sentimentos podem ser ouvidos, para onde
posso ir falar?
Se este não é o lugar onde vais aceitar-me como sou, para onde posso ir para
ser eu?
Se este não é o lugar onde eu posso experimentar, aprender e crescer, para
onde posso ir para rir e chorar?
Era altura de seguir em frente. Louise Lloyd-Jones realçou essa ideia quando
me mostrou um anúncio num dos jornais nacionais, onde se pedia um assistente de
pesquisa para a Universidade de Hud-dersfield. Estava associado a um programa de
doutoramento sobre o tema de grupos de saúde comunitária e vinha acompanhado
de uma bolsa de cinco mil libras, o que significava um corte drástico no meu
rendimento. Senti-me lisonjeada pelo facto de, mesmo depois de ter agido como
uma criança perto da Louise e do Bernard, eles pensarem que eu estava pronta para
aquilo e incentivarem-me a concorrer.
Fui à entrevista e foi-me oferecido o cargo. No comboio de regresso ao País de
Gales, parou de chover. Tinham passado seis meses desde o dia em que o meu pai
me violara. Eu não estava curada. Jamais ficaria curada. Eu era um ovo rachado, a
rachar cada vez mais, mas lentamente. Tive de dar um mês à empresa, e os meus
colegas, como presente de despedida, ofereceram-me um dragão galês de peluche.
Ele deixou os outros peluches aterrados até se acostumarem ao seu sorriso
demoníaco e ao manto escarlate.
Para encontrar alojamento em Huddersfield comecei por ligar para o número de
um anúncio pregado no quadro de avisos da universidade. Falei com uma mulher
chamada Kathy Higgins, que combinou encontrar-se comigo na estação de
comboios para me levar pessoalmente a ver o quarto. Entendi o motivo quando lá
chegámos.
A casa situava-se no topo de uma colina íngreme e mais longe da universidade
do que a maioria dos estudantes universitários deseja estar. A Kathy mostrou-me um
quarto amplo, iluminado e arejado, com vista sobre os campos que começavam a
ficar dourados sob o sol poente. Ela disse que eu iria partilhar a casa de banho e
teria serventia da casa. Conheci o Jim, o companheiro da Kathy, o tipo de homem
que enrola os seus próprios cigarros, e decidi aceitar o quarto e não mencionar que
fumar faz mal à saúde.
Antes de ir para Huddersfield tive algumas semanas de férias. Fiquei a pé até de
madrugada para apanhar o comboio e, ao cair da noite, estava de regresso à minha
amada Israel. Era o final da temporada, e fui directa a Eilat, que fica perto da
fronteira com a Jordânia e é quente durante todo o ano. Consegui um emprego num
bar de praia — sim, eu, a Alice — e partilhei uma cabana com um homem que
conhecia há apenas cinco minutos. Samir era um druso do Líbano. Formávamos um
casal estranho. Eu, repleta de trevas e sombras, e Samir, austero, com olhos
esclarecidos e gentil.
Os Drusos são uma seita mística islâmica fundada na Pérsia. É única, com a sua
incorporação da filosofia gnóstica cristã, e monoteísta, tal como os muçulmanos, os
cristãos e os judeus, o que fazia com que todos os rótulos me parecessem
meramente divisórios e totalmente ridículos. Transmiti ao Samir os meus
pensamentos e ele disse:
- Ah.
- Ah? - Repeti.
- Ah - repetiu ele.
- Então, não estou certa?
- Não estás certa nem errada. Apenas expressaste uma opinião.
- O que te parece, Samir? O mundo não estaria melhor sem religiões?
- Quando estiveres pronta para saber a resposta a essa pergunta vai aparecer
alguém para te dizer - disse ele.
Ele era frustrante e adorável. Fazia-me lembrar o Patrick. Trabalhava à noite, eu
trabalhava de dia e, quando nos cruzávamos, ele mostrava-se mais envergonhado
do que eu por estar a partilhar o nosso alojamento gratuito.
Quando eu não estava a trabalhar, passava o tempo na praia a ler romances
cujos títulos escaparam à minha memória, embora por vezes, quando pego num
livro, tenha aquela sensação de déjà vu e pense que já li aquilo antes. Fiz snorkeling
e fui muitas vezes ao Observatório Subaquático do Mundo dos Corais, onde,
rodeada por aquela luz verde, tentava imaginar como seria ser peixe.
Quando tive alguns dias de folga, atravessei até à Jordânia para visitar a Cidade
Vermelha de Petra. Saí do autocarro cheio de poeira; o tejadilho estava repleto de
sacos de juta e galinhas dentro de cestas. Homens com albornozes mastigavam
cânhamo, as mulheres vestidas de negro carregavam malas à cabeça. Vi um árabe
que parecia saído de uma foto de um livro a tocar uma flauta de cana, enquanto uma
cobra amedrontada subia lentamente a partir de um cesto. O sol era tão forte que
era como estar diante de um forno aberto. Havia uma mistura de odores a
especiarias, fumo e suor. As pessoas acotovelavam-me enquanto eu consultava o
mapa que comprara em Eilat.
O motorista do autocarro desceu e acendeu o que eu calculei ser o seu
ducentésimo cigarro do dia. Ficou ali parado a olhar para mim enquanto eu o
observava, admirada.
- Tu, vem, vem - disse ele, apontando para a colunata atrás da estação de
autocarro.
- Onde?
- Tu, vem.
Retorceu os dedos e eu segui-o para as sombras, sob os arcos, onde estavam
dispostas algumas mesas e cadeiras de metal. Eram uma espécie de catacumbas
debaixo de uma catedral e estava surpreendentemente fresco. Velhos com barba e
rosto sereno fumavam narguilés, os seus lábios manchados puxando dos longos
tubos, a água borbulhando como uma indigestão. Sentámo-nos numa mesa e um
empregado com um avental branco sujo trouxe um bule de chá de hortelã, duas
canecas e uma pequena tigela de torrões de açúcar que imediatamente atraiu um
enxame de moscas. O meu companheiro fez um gesto com a mão para as enxotar.
- Ahmed - disse ele, apresentando-se com uma vénia à moda antiga.
- Alice. Prazer em conhecê-lo.
- Prazer em conhecê-la. Muito obrigado.
O motorista era palestiniano e falava algumas palavras de inglês, aprendidas
num curso básico que todo o homem que despe a sua galabeyah e veste umas
calças e uma camisa tem forçosamente de aprender: De onde és? És casada? Tens
filhos? Disse-lhe que fazia investigação médica e ele acenou sabiamente com a
cabeça.
- Médica?
- Estudante.
- Uma estudante de Medicina? - perguntou.
Deixei-o pensar que sim. As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.
O Ahmed tinha um filho e três filhas, disse-me. Ergueu três dedos e os seus
lábios descaídos pareciam perguntar por que razão fora condenado a tal destino.
Caímos num silêncio amigável e bebemos o nosso chá. Nos países árabes, logo que
as pessoas travam conhecimento não necessitam de desatar a tagarelar sem
motivo, e eu pensava que se calhar conversávamos muito sobre temas sem
importância para evitar falar sobre os assuntos que realmente interessavam.
Tentei pagar o chá e o Ahmed mostrou-se ofendido.
- Não. Não. Não. Sou eu.
- Shukran - disse-lhe.
Ele sorriu novamente.
- Assalamu alaikum. - Que Deus esteja contigo.
Enquanto eu estivera sentada à sombra, o sol tornara-se mais forte, mas eu
estava ansiosa por cumprir a minha agenda e passei as três horas seguintes a
explorar a Cidade Vermelha. O céu era um lençol azul e a luz tornava tudo mais
nítido e definido. Petra é um rubi arqueológico e enquanto vagueava pelas ruas
estreitas entrei num estado hipnótico por causa da paleta de vermelhos
incandescentes nas pedras antigas, do sentido do eterno capturado em cada grão
de areia.
Petra situa-se na extremidade do deserto de Wadi Araba, cercada por colinas
altaneiras de arenito cor de ferrugem, uma protecção natural contra os invasores. A
construção de Petra iniciou-se no século VI a. C., quando os nómadas árabes
plantaram os primeiros pomares de tamareiras e abandonaram as selas dos
camelos para semear e comercializar. Herodes, o Grande, tentou manter os árabes
sob o seu controlo, mas a Cidade Vermelha permaneceu independente até os
romanos tomarem o poder no ano 100 d. C. A fortaleza construída pelos cruzados
no século XII muda de cor com o sol, de amarelo a rosa e até à mesma tonalidade
de vermelho incandescente do dragão galês que tenho em casa junto dos peluches.
Os primeiros árabes esculpiram templos e túmulos na rocha macia que se desfaz
facilmente em areia, mostrando-nos que tudo é frágil e fugaz.
A partir das ruínas do castelo dos cruzados contemplei a dura beleza existencial
do deserto. Recordei-me do Samir, de quando lhe perguntei se o mundo seria um
lugar melhor sem religião e ele respondera enigmaticamente que quando eu
estivesse pronta para saber a resposta apareceria alguém. Sentia-me pronta
naquele momento, mas não havia mais ninguém ali ao sol à excepção de mim.
Podia viajar sozinha pela Itália machista e pelos perigos imprevisíveis do Médio
Oriente sem receio. Pernoitei em aldeias onde todas as mulheres usavam véus,
menos eu. Dormia em pousadas da juventude e em pensões. Comia em barracas de
rua e em cafés sombrios sugeridos pelos roteiros, ou, melhor ainda, que descobria
sozinha e por acaso. Enquanto viajava eu era uma parte diferente de mim, uma Alice
internacional, mais cosmopolita e mais receptiva. Aprendi rapidamente as frases
essenciais e constatei que algumas palavras noutra língua eram o suficiente para
construir pontes duradouras: por favor, obrigada, adeus - min fadlik, shukran,
ma'assa-lama.
A Alice cosmopolita desapareceu no momento em que os penhascos brancos de
Dover apareceram metaforicamente. Essa pessoa fechou-se e consegui sentir a
mudança assim que pisei solo inglês. Encolhi dois centímetros quando os meus
ombros descaíram. O meu cabelo perdeu a vivacidade. O tique no meu pescoço
despertou e começou a dançar. Ah, estamos de novo em casa, toca a pormo-nos
nervosos. Eu nascera expatriada, e assim como os malucos se tornam psiquiatras, e
os déspotas, viria eu a descobrir, nasceram para trabalhar nas enfermarias dos
hospitais psiquiátricos, eu estava ironicamente destinada a viver na Inglaterra
profunda com o meu emprego, os meus valores e as minhas ansiedades de classe
média.
Pensei no meu pai durante o tempo que estive fora? Sim, pensei. Todos os dias.
A imagem dele na minha cabeça a segurar uma faca junto à minha vagina e a
murmurar “Não te atrevas a mexer”, era como uma cena de um filme doentio,
daqueles que eu nunca via até ao fim. Essas coisas vivem connosco
permanentemente. Crescem como um cancro, um caroço negro que palpita dentro
de nós e, por vezes, ficamos nus diante do espelho a pensar se aquela coisa negra
estará prestes a irromper pela pele fora.
É como uma queimadura hedionda que nos marca para toda a vida, só que a
cicatriz é no interior, na nossa memória. Ninguém consegue vê-la e quando não
conseguimos ver as coisas com os nossos próprios olhos não acreditamos que
sejam verdadeiras. Mesmo eu tinha dificuldade em acreditar que aquilo realmente
acontecera. Esquecia-me por breves momentos e tornava-me um espírito livre.
Ficava parada a assistir à cena de uma menina de cerca de quatro anos a lavar
roupa com a mãe, ambas vestidas com o mesmo gala-beyah azul-pálido, as
cabeças cobertas, a menina com uma bacia igual à da mãe, mas mais pequena. A
água nessas bacias era vermelho-clara e perguntávamo-nos se as roupas ficariam
realmente mais limpas após a lavagem.
Durante a minha viagem, não era abandonada pelas vozes, pelos lapsos de
tempo, por lapsos de memória, mas a sensação de alteridade leva-nos para fora de
nós mesmos. Não estamos livres do passado, mas no estrangeiro pelo menos há a
distância.
Regressei de Petra e passei os últimos dias em Nahariyya, um dos meus
lugares favoritos, uma cidade de 50 000 pessoas estabelecida principalmente por
judeus alemães na década de 1930. Situa-se a sul da fronteira libanesa e estende-
se por trás da linha de praias ao longo do Mediterrâneo. Há um rio estreito que
divide a cidade com pontes a intervalos regulares. Todas as pessoas saem à rua à
noite, quando o ar é fresco e as lojas e bancas de rua têm movimento. A noite exala
um odor a óleo depatchouli e milho assado com a espiga.
Deliciei-me com baklava pegajoso recheado com mel e pistácio e recordei-me
de comer estas mesmas iguarias na minha viagem de escola através do mar Egeu
no SS Bolívia há tantos anos, quando o meu avô ainda era vivo.
Na minha última noite em Nahariyya, sentei-me na praia a ver o pôrdo-sol. O céu
era uma pálida sombra rosada sobre o mar. Sentia-me em paz, algo que não
acontecera durante quase um ano.
Antes de deixar o país, entrei no autocarro de regresso a Telavive e apanhei
boleia num velho camião agrícola até Moshav Bene Atarot. Trabalhara lá durante um
Verão a colher fruta para a família Zimmer e estava tudo conforme eu recordava: as
construções simples, sem adornos, os campos metódicos, os pomares dispostos em
fileiras. Entrei pela porta principal, que nunca estava trancada.
- Sloalom - chamei.
Ruth, a mãe da família para quem eu trabalhara, apareceu no patamar superior.
- Alice - exclamou enquanto descia as escadas. - Nem posso crer.
Acolheu-me como a uma filha pródiga. Fazia mais de dois anos desde que nos
víramos pela última vez, mas era como se tivesse passado apenas um dia. Senti-me
esquisita, porque sentia que era eu, a Alice, que estava ali sem medo de ser
abraçada e a abraçar a Ruth.
Naquela noite, com o marido da Ruth e os filhos já crescidos, jantámos e
conversámos sobre a Guerra do Golfo. Tinham sido lançados sobre Telavive mísseis
Scud iraquianos quando Saddam Hus-sein percebeu que a guerra estava perdida e
decidiu afundar-se em glória atacando Israel.
Eu ouvira todos os dias as notícias da Radio 4, mas não me lembrava de nada.
Nada. Só me recordava da chuva, do estúdio húmido, dos dados de Bruxelas e de
observar a Drª Simpson metendo habilmente as mudanças quando arrancou do
parque de estacionamento do hospital no seu carro novo.
CAPÍTULO 10
DIVISÃO
AS CRIANÇAS
REVELAÇÕES
TOQUE HUMANO
Eu adorava o computador portátil Toshiba que comprara, com o ecrã azul LCD e
o rato pequenino chamado Rato.
- Olá, Rato. Como estás?
- Estou muito bem, obrigado.
Era um rato educado, com uma cauda branca e a ponta cor de malva. Era
realmente espectacular a forma como, com apenas um clique, podia localizar menus
e manipular barras de deslocamento. De cada vez que tinha o rato na palma da
minha mão pensava na avó, que me enviara um cheque pelo meu aniversário.
Investira o dinheiro no portátil antes que a Shirley e o Kato lhe deitassem as mãos.
Escrevi uma longa carta à avó dizendo o quanto sentia a sua falta e que estava a
estudar para ser médica. Era uma mentira inocente, mas iria aumentar o seu
estatuto na casa de repouso.
Tinha vergonha de admitir que não via a avó há muito tempo. Ela sofrera uma
queda que a deixara com uma fractura na anca e, por razões que nunca foram
completamente satisfatórias para mim, a minha mãe mudara-a para um lar de idosos
em Cliftonville. É imperdoável, eu sei, mas era mais fácil fazer uma viagem de seis
horas de autocarro pelo Sinai do que viajar de comboio para o Leste do Kent. Era
algo que eu planeava fazer, mas como me parecia complicado, continuava a adiar.
O Clive trabalhava agora num gabinete de advogados em Londres, onde
diversos sócios tinham andado na sua antiga escola. O Stephen era o padrasto
perfeito; sentia-me sempre mais contente quando era ele e não a minha mãe a
atender o telefone. Ela andava sempre nas lojas a comprar sapatos novos ou de
saída para ir ao cabeleireiro. O meu pai estava na minha mente como uma nódoa
numa blusa branca de algodão. Um dia, saí como um relâmpago do quiosque dos
jornais, aos gritos, quando dei por mim ao lado de um homem que usava a mesma
brilhantina que o meu pai, uma moda que podia estar a cair em desuso noutros
lados, mas não entre os homens obstinados do Yorkshire.
O Toshiba estava sobre uma mesa, no canto do meu quarto na casa da Kathy.
Levava o trabalho em disquetes do escritório para casa, e tinha a minha proposta
terminada e pronta para apresentar ao conselho científico da universidade.
É evidente que os ursinhos, o cão Snoopy e o dragão vermelho não gostavam
do Toshiba. Tinham ciúmes de tudo o que me afastasse deles, o que era realmente
um comportamento infantil, tendo em conta que o portátil era um objecto inanimado.
O Toshiba fora um amigo. Depois houve um dia em que ele se tornou
desagradável.
Era quarta-feira.
Há algo estranho nas quartas-feiras. A criança das quartas-feiras está muito
aflita. O dia de quarta-feira sente-se triste e angustiado acerca de quem é e de qual
o seu lugar entre os outros dias da semana. A palavra é estranha. Devia chamar-se
estranha-feira. Coisas estranhas acontecem à quarta-feira.
Enquanto regressava do meu encontro com a Roberta, em Leeds, havia uma
ladainha que não me saía da cabeça.
Estão a ver, ela vai a descer as escadas. Vai virar à esquerda lá fora e vai olhar
para a câmara municipal enquanto caminha. Ela não tem a certeza se gosta do
edifício ou se lhe parece que é uma tolice ter um edifício grego no meio da Inglaterra
industrial. Vai chegar à estação, verificar se tem o bilhete de regresso, parar a três
quartos da extensão da plataforma dois e vai olhar para o céu e dizer: “Oh, pelo
amor de Deus, calem-se.”
- Oh, pelo amor de Deus, calem-se.
És uma inútil. Não és nada. Porque não o fazes hoje? Quando o comboio
chegar, salta. Tu sabes que é isso que queres. Vai ser bom para ti, Alice. Vai ser
bom para o mundo. Vai até à ponta da plataforma. Olha para os carris prateados e
brilhantes. Consegues ver o teu reflexo? Diz lá, não seria agradável ver-te
esmagada como um tomate nos carris?
E depois o refrão: Esmagada como um tomate nos carris. Esmagada como um
tomate nos carris.
Os disparates do costume. Mais do mesmo. Tentei ignorar as vozes, tentei ler o
jornal e tentei recordar-me se já tinha visto a Roberta Stoppa assim tão... feliz. Ela
estava a usar um fato particularmente feminino num tom rosa-pálido e sapatos azuis.
Alguma coisa estava a acontecer. Vencera-a três jogos seguidos no Ker-Plunk.
Era quase como se ela estivesse a deixar-me ganhar.
- Eu realmente não consigo concentrar-me - explicou.
Olhei para o báton cor-de-rosa e pensei: “Estiveste acordada a foder a noite
toda.”
Depois corei.
Eu não pensava naquelas coisas. Nunca. Talvez a Shirley pensasse.
Talvez estivesse a projectar os meus desejos. Talvez desejasse ter um
namorado, um pretendente, sexo. Por vezes, sentia um formigueiro. O Kato era
trapalhão, um adolescente cheio de borbulhas, luxúria e testosterona. Estaria eu a
projectar os desejos do Kato na Roberta? Seriam os desejos do Kato os meus?
Projectar é um mecanismo de defesa. Pesquisei sobre o assunto. Os ladrões
imaginam que toda a gente está a tentar roubá-los. Quando uma pessoa não se
acha grande coisa imagina que os outros não gostam dela. Os pedófilos acreditam
que as crianças estão ansiosas por sexo.
- Quem é a menina do papá?
- Sou eu.
Os mecanismos de defesa protegem-nos de nós mesmos, da ansiedade, dos
traumas da inaptidão social. Tornam a realidade suportável e fornecem um porto
seguro em situações difíceis e em relação a pessoas difíceis. Todas as pessoas
usam mecanismos de defesa. Eu faço-o, sem dúvida.
Justifico o roubo das bebidas da Kathy e do Jim acreditando que eles não
precisam delas e que não vão notar. Identifico-me com os intelectuais de
Huddersfield para mostrar que sou digna de um doutoramento, assim como o meu
pai se identifica com os homens bem-sucedidos do seu clube de golfe elitista.
Identificar-se com os outros é o último refúgio dos tiranos, cobardes e todos os que
possuem uma baixa auto-estima. Regressão é o que a minha mãe faz quando age
como uma menina para obter o que quer do Stephen. Repressão é enterrar
pensamentos, sentimentos e memórias dolorosos no subconsciente, onde
desenvolvem cordas vocais e tagarelam sem parar.
Parece confuso? Para mim foi. A minha cabeça era uma barragem incessante
de pensamentos diferentes, a maioria deles pertencentes aos outros, e uma
barragem contínua de vozes estranhas que estavam comigo desde que eu andava a
fazer os exames do décimo primeiro ano em Dane Hill. A minha cabeça era uma
estação de rádio descontrolada, com cassetes infinitas vomitando disparates
intermináveis.
Quarta-feira: onze da manhã. Sol e nuvens, com quarenta por cento de
hipóteses de precipitação.
Sair do comboio, pensar em ir para o escritório, não apanhar um autocarro para
subir a colina. Elas ainda estão naquilo, desbobinando tudo como um velho
gramofone, a manivela a chiar, a agulha a riscar o som frágil do veneno.
Tu, tu, vamos apanhar-te. Tu, tu, é hora de morreres. Tu, tu, não há nada que
possas fazer.
- Oh, desapareçam.
Assim que cheguei a casa liguei o portátil. O ecrã iluminou-se, mas em vez dos
peixes tropicais que normalmente decoram o ambiente de trabalho, eu estava a
olhar para o rosto de um homem austero de cabelo grisalho, ondulado e quebradiço,
com um olhar feroz e maníaco e uma expressão de zelo sagrado.
Era o Professor.
Pensas que o Gerald e o Colin vão gostar do teu trabalho. Não me faças rir. Tu
és uma inútil. Não consegues fazer nada.
Eu limitei-me a olhar para ele, estupefacta.
Sim, Alice. Tu. Tu és uma inútil. Sempre foste uma inútil. Não és nada. Vai
roubar as bebidas da Kathy. Vai lá. Vai buscar uma garrafa de gin. Corta-te. Sabes
que queres fazê-lo. Há uma faca enorme de trinchar na cozinha. Faz-nos um favor a
todos. Corta os pulsos. Corta a garganta. MATA-TE.
Dei um salto da cadeira a tremer e escondi-me debaixo do edredão no canto do
quarto.
Ainda conseguia sentir os olhos do Professor, como raios hipnóticos ardentes e
conseguia ouvir a sua voz monótona à distância.
MATA-TE. MATA-TE. MATA-TE.
Levei as mãos à cabeça e balancei-me para trás e para a frente. As minhas
têmporas estavam a explodir.
- Deixa-me em paz. Deixa-me em paz. Deixa-me em paz.
Devia ter desligado a ficha da corrente, mas não conseguia pensar
racionalmente. Em vez disso, fui à cozinha, abri a gaveta dos talheres, olhei para a
faca de trinchar, vi os meus olhos a desviarem o olhar da lâmina e fechei novamente
a gaveta com força.
Encontrei um rolo de papel de alumínio, subi as escadas a correr e rasguei
algumas tiras. Espalhei-as sobre o edredão e tapei-me com ele, mas ainda
conseguia sentir os raios de morte que irradiavam dos olhos do Professor.
Vamos apanhar-te, Alice.
Eu não sou a Alice.
Vamos apanhar-te.
Quero a minha arma.
Quando abri os olhos, anoitecera e estava alagada em suor. Estava num canto
do meu quarto sob o edredão e havia papel de alumínio enrugado por todo o lado. O
que estava eu a fazer no meu quarto?
Estava perturbada, com medo, paranóica.
Acendi a luz e retirei da estante o Oxford Dictionary of Current English. Derivada
do grego antigo, a palavra paranóia descreve “uma mente distraída”. A distracção,
acrescenta, é causada por “perturbação mental com delírios de grandeza,
perseguição, etc.; tendência anormal para suspeitar e desconfiar dos outros”.
Lérias.
A pessoa que está a sofrer de paranóia sabe que não está a delirar. Há pessoas
a persegui-la. O Professor estava vivo. Era real. Tinha um rosto, uma voz, e vinha
acompanhado de um coro que fazia uma algazarra e gritava que eu era uma inútil.
Há anos que andavam a repetir as mesmas palavras maldosas, que eu devia fazer
um favor ao mundo e matar-me. As crianças na minha cabeça tinham-nos mantido
em silêncio durante algum tempo, mas agora estavam de volta.
Como um exército derrotado, tinham reunido forças e, revigoradas, entraram em
acção. O Professor e os seus soldados estavam a trabalhar numa conspiração
intrincada. Eu era o alvo. As vozes estavam no meu computador portátil, no telefone
e nos jornais, projectavam-se para fora da televisão e gritavam das páginas do
romance que eu estava a tentar ler.
Conseguia ouvir as vozes a conspirar contra mim.
Vamos apanhà-la. Vamos conseguir apanhá-la. Vamos enganá-la. Ela nem vai
saber o que a atingiu. Ela está sozinha. Ninguém gosta dela. Ninguém vai sentir a
falta dela. Vai ser um alívio. Apanhem-na. Apanhem-na.
Sentia um formigueiro no corpo todo, tinha o cérebro a arder. As vozes gritavam
através das chamas. O meu corpo estava húmido de suor e, quando despi a roupa,
consegui distinguir marcas de queimadura onde os raios de luz me acertaram.
Fiquei trancada no quarto durante dois dias, a fitar o ecrã desligado do
computador, para ver se ele voltava à vida. Não bebi nada. Não comi. Não fui à casa
de banho. Fiquei no canto a escutar as vozes, o enrugar do papel de alumínio, o sol
lá fora a subir e a descer com o passar do tempo perdido.
No terceiro dia, esperei até ter a certeza de que a Kathy e o Jim tinham saído
para o emprego. Puxei o capuz do meu blusão sobre a cabeça e apanhei o
autocarro para a casa da Rebecca, para lhe contar o que acontecera. Ela não me
convenceu a dizer à Roberta. As coisas não funcionavam assim. Eu decidira dizer à
Roberta, mas senti a necessidade de primeiro partilhar a decisão com a Rebecca.
Fomos dar um longo passeio. O Verão estava a chegar. Estava em Huddersfield
há seis meses e, contra todas as probabilidades, o Colin Ince, o meu supervisor,
estava satisfeito com o meu progresso. Eu estava a atravessar o meu primeiro
grande esgotamento nervoso e não podia deixar de imaginar quantos mais
maluquinhos haveria a participar na criação de novas estratégias para melhorar os
serviços de saúde.
Na minha consulta seguinte com a Roberta, falei-lhe das vozes, mas o ataque
passara e eu dei a entender que eram uma espécie de tagarelas na parte de trás do
meu cérebro, conversando uns com os outros sobre mim. Ela agitou os dedos, um
gesto raro (estaria a usar um anel de noivado?), e eu admiti que as vozes estavam
comigo quase constantemente, narrando e comentando cada movimento meu.
Disse-lhe que, por vezes, me voltava a pensar que estava alguém atrás de mim,
mas nunca via ninguém. Era algo que acontecera quando eu era adolescente e era
desmoralizador estar a acontecer novamente.
A Roberta ficou em silêncio, o seu modus operandi habitual. Eu estava prestes a
acrescentar: “Pensa que sou louca, não é verdade?”
Mas ela endireitou-se, descruzou as pernas com as suas meias de nylon e
inclinou-se para a frente.
- Alice, eu não sei se tenho capacidades para te ajudar a lidar com esses
problemas. Já alguma vez consultaste o teu médico por causa das vozes?
- Não.
- Eu posso continuar a apoiar-te em tudo o que me for possível e podemos
prosseguir com as nossas sessões como habitual, mas eu penso mesmo que devias
falar com o teu médico.
Foi a primeira vez que ela me aconselhou. Eu estava sentada no chão e pousei
a cabeça nas mãos enquanto ela estava a falar. Olhei para ela, para as suas pernas
elegantes e sapatos caros, o seu rosto paciente enquadrado por finos cabelos
dourados.
A luz estava por detrás dela. Uma sombra tapou o sol. A minha garganta estava
seca. O meu corpo estava a encolher. As feições no meu rosto estavam a mudar. Eu
conseguia sentir a estrutura sob as minhas maçãs do rosto a desintegrar-se e a
adquirir uma nova forma. O sol voltou a aparecer. As cores ficaram mais nítidas e
havia uma senhora simpática sentada numa cadeira cinzenta que eu pensei que
conhecia, mas não tinha a certeza.
- Quem é a senhora?
- Sou a Roberta.
- É?
- Sim - disse.
- Onde estou?
- Estás no meu gabinete.
- Que gabinete?
- No meu gabinete, onde jogamos Ker-Plunk, Alice.
- Eu não sou a Alice.
- Claro que és.
- Não sou, não sou, não sou. Sou o Jimbo. A senhora sabe quem eu sou. Já me
lembro, é aquela senhora...
- És o Jimbo?
- Claro, pateta. Sou o Jimbo. Sou o Jimbo, mas prefiro que me tratem por JJ. Eu
gosto de gelados.
- Gostas?
- Não gosto de bolos. Odeio bolos. Gosto de gelados. E não gosto de aranhas.
- Por que razão não gostas de aranhas?
- Porque elas são horríveis. Querem comer-nos. Uma vez vi uma aranha a
comer-se a si mesma. Um homem cortou-a ao meio com uma faca grande e a
metade da frente virou-se e comeu a outra metade.
- O que achas que isso significa?
- Não significa nada. Era apenas uma aranha pequena.
Não me recordo desta conversa. Foi a Roberta que me falou nela
posteriormente.
Foi a primeira vez que o Jimbo se manifestou. Não me recordo dos pormenores,
mas lembro-me de ter a percepção do deslize, aquela sensação de sair e de voltar a
entrar na minha pele. Nenhum factor provocou o aparecimento do JJ. Não foi
durante um jogo de Ker-Plunk ou no meio de uma sessão de regressão.
Simplesmente aconteceu, e o que era preocupante é que eu nunca ouvira falar que
isso tivesse acontecido a alguém, e não sabia por que motivo estava a acontecer
comigo.
Partilhei esta ideia com a Roberta e ela admitiu que também não sabia.
- Precisas de ajuda, Alice.
- Quer dizer que preciso de mais ajuda do que aquela que me pode dar?
- Vou ajudar-te naquilo que puder, mas eu penso realmente que deverias
conversar com o teu médico. Vais fazer isso?
- Se pensa que isso me pode ajudar. - Queria que fosse ela a tomar a decisão.
Aquela era a sua função. - Mas estou com receio do que ele possa pensar -
acrescentei.
- Tenho a certeza de que o teu médico não irá fazer julgamentos - respondeu. -
O nosso trabalho é estar presente e ouvir as pessoas.
Pensei: Ela está a colocar-se na mesma categoria que um médico, mas ela não
é médica. Os conselheiros só têm um diploma. Estava na parede. Na verdade, eram
três, com brasões e selos dourados.
Olhei para ela novamente.
- Se quiseres, eu fico aqui enquanto fazes o telefonema para marcares a
consulta - sugeriu.
A Roberta encontrou o número na agenda, marcou-o e passou-me o
auscultador. A secretária disse que o Dr. Michaels tinha uma hora livre no dia
seguinte às onze da manhã.
- Isso é muito bom, Alice, fizeste o mais acertado - disse a Roberta quando
desliguei.
- Obrigada, Roberta - respondi, mas nem parecia eu a responder.
Estava a regredir novamente. Estivéramos a falar do JJ e eu conseguia senti-lo
a borbulhar dentro de mim. Ele era uma versão mais madura, esperta e curiosa do
Billy, mas este tinha apenas cinco anos e o JJ tinha dez, era um rapaz autoconfiante
que, caso se perdesse nas charnecas, não entraria em pânico e encontraria o
caminho de regresso a casa.
Esta era a minha segunda visita ao Dr. Michaels em duas semanas. A última vez
que lá estivera fora por causa de uma infecção no ouvido, uma estranha
coincidência, pois o motivo que agora me levava a consultá-lo era o facto de ter
vozes a sussurrarem-me ao ouvido. E se elas tivessem causado a infecção com o
seu hálito fétido?
Fiquei acordada toda a noite a olhar para o tecto imaginando o que teria
acontecido ao móbile que lançava sombras no meu quarto de criança. Recordei-me
da forma como as espirais se moviam de uma maneira hipnotizante, como giravam
mais depressa quando a porta se abria.
- Quem é a menina do papá?
- Sou eu.
Levantei-me às seis horas, vesti o meu equipamento de jogging que há muito
não usava e senti-me exausta assim que saí pela porta das traseiras. Desci a colina
até ao parque, onde me sentei num baloiço e me balancei o mais alto que consegui.
Balança mais alto. Balança mais alto. E salta. Assim já tens motivo para ires
consultar o médico.
Tinha medo de que o médico me dissesse que estava a fazê-lo perder tempo,
uma vez que não tinha nenhum problema de saúde evidente. Mas por outro lado, as
vozes eram um problema, ainda que não conseguisse vê-las. Assim como andava
para trás e para a frente no baloiço, os meus pensamentos andavam em círculos até
tomar a decisão de cancelar a consulta. Iria para casa e voltaria a pôr alguns
adjectivos na minha proposta, faria algo útil.
A Kathy e o Jim estavam a tomar o pequeno-almoço. Sentei-me junto deles com
uma chávena de chá e cereais. O Jim estava a fumar um cigarro enrolado à mão. A
Kathy estava a barrar uma torrada com doce de laranja, com as migalhas
espalhadas sobre a mesa como se fossem insectos.
Eu ainda me sentia paranóica com a ideia de que a Kathy e o Jim planeavam
apanhar-me, e durante a noite, deitada na cama, interrogava-me se haveria uma
porta secreta entre o quarto deles e o meu. Eles pensavam que eu era a típica
estudante a apanhar grandes bebedeiras nas festas da universidade com montes de
amigos. Não faziam ideia de que eu estava a ter um esgotamento. Eu vivia na minha
redoma. Eles viviam na sua própria redoma, pagando as contas, assistindo à
telenovela, poupando para as férias em Lloret de Mar, sem noção do que podemos
ser e fazer enquanto seres humanos e, tal como eles, eu também não estava a fazer
grandes progressos.
Quando eles saíram para o emprego, pus o Bruce Springsteen a tocar muito
alto. A voz profunda do Boss e a letra da música imprimiram o medo da New Jersey
operária no Professor e no seu bando. Subi o volume ainda mais e dancei em redor
da sala a entoar “Human Touch” do seu novo álbum.
As palavras do Boss desvaneceram-se na minha cabeça como o som de um
carro a afastar-se. Mudara outra vez de ideias e estava sentada a olhar para o
relógio na sala de espera da clínica de Mor-ningside, uma mansão antiga e colossal,
com um emaranhado de pequenas salas, cada uma delas com uma antiga lareira
que deixava entrar o ar frio pela chaminé.
Tictac, tictac, a Alice vai morrer as onze horas.
O pequeno ponteiro semelhante à pata gorda de uma aranha ia-se aproximando
das onze. As palmas das minhas mãos estavam húmidas, mas quando as onze
horas chegaram eu ainda estava viva. Conseguira. Passaram mais alguns minutos e
depois uma voz com sotaque do Yorkshire entoou, “Alice Jamieson, sala número
dois”.
E agora, seria um truque? Seria a enfermeira a chamar? Ou a mulher da
telenovela? Arrisquei. O meu coração palpitava enquanto caminhava pelo corredor
que parecia ir-se alongando, como num sonho. Bati à porta.
- Entre.
Entrei na sala como se estivesse a entrar através de uma porta secreta, como a
porta oculta na parede entre o meu quarto e o quarto da Kathy e do Jim.
- Sente-se. Muito bem, o que posso fazer por si, jovem? - inquiriu o Dr. Michaels
- Não sei bem.
As vozes estavam a rir-se à socapa lá ao fundo. Adoravam quando me viam
confusa. Os olhos do médico pareciam raios que estavam a perfurar-me e eu não
conseguia olhar para ele.
- Tens de me dizer para eu poder ajudar-te - insistiu. - Não é outra vez aquele
problema no ouvido, é?
- Não, não, eu tenho andado sob muita tensão na universidade. Há pessoas a
conspirar contra mim. Estão sempre a dizer-me para fazer coisas.
- Quem são essas pessoas, Alice?
- São pessoas...
- E o que é que elas te estão a dizer para fazeres?
Não conseguia estar quieta. Tinha formigas nas calças, como dizia a minha
mãe.
Caminhei pela sala a ouvir o sussurro das vozes a descer pela chaminé e com
medo de falar delas. Era pura tortura.
- São muitas pessoas - expliquei. - E estão realmente a incomodar-me.
O Dr. Michaels inclinou-se sobre a mesa e pousou o queixo na mão. Era um
homem pesado, com um nó largo numa gravata às riscas e um casaco de tweed que
devia ter adquirido numa loja especializada em roupa para a profissão médica.
- Tens tendências suicidas? - perguntou.
Houve uma pausa.
- Como? - disse eu.
Ele repetiu a pergunta.
- Está a perguntar-me se eu quero suicidar-me?
- Estou. Estou a tentar descortinar quem é que tu pensas que são essas
pessoas, de onde elas vêm e o que estão a dizer-te para fazeres. E eu preciso de
saber se estás com tendências suicidas.
Esconder a verdade acerca das vozes requeria muito tempo e energia. A
pressão estava a aumentar.
O Dr. Michaels inclinou-se novamente e tentou estabelecer contacto visual.
- Ouves vozes? - perguntou ele, o que me fez retroceder um pouco. - O que
estão as vozes a dizer-te para fazeres? Estás a ouvir vozes agora?
Estava, mas não conseguia forçar-me a dizer-lhe, a admiti-lo. Seria algum tipo
de armadilha?
- Não exactamente - respondi.
- Sabes que as vozes não são reais. Estão apenas na tua mente - acrescentou
ele, e, de súbito, não aguentei mais.
- Elas são reais, eu consigo ouvi-las. Não estou a imaginar que consigo ouvir
vozes. Eu estou a ouvir vozes. Consigo ouvi-las próximas de mim e são tão sonoras
quanto o toque do telefone na recepção, na verdade, ainda mais sonoras.
- Ouves vozes?
- Sim. Você não as ouve?
- Alice, se ouves vozes, elas estão apenas na tua mente.
- O que quer dizer com se? Eu ouço vozes. E elas não estão na minha mente.
Não estão no meu cérebro. Pertencem a pessoas, pessoas reais, e não estão na
minha cabeça.
Fiquei furiosa com a Roberta por sugerir que eu consultasse o Dr. Michaels, e
estava irritada com o Dr. Michaels porque sabia que ele já tinha uma ideia formada
sobre quem eu era e qual poderia ser o meu problema.
- Há pessoas a perseguir-me - disse-lhe. - Não me deixam em paz.
Discutimos um pouco mais sobre o assunto. Éramos duas pessoas a conversar
sem dizerem nada. Tal como as vozes. Finalmente, terminou o meu tempo e o Dr.
Michaels tomou uma decisão. Disse que eu estava a exibir sinais clássicos de
esquizofrenia e fez aquilo que os médicos fazem melhor: passou-me uma receita de
Stelazine. Disse que iria ajudar a curto prazo, enquanto me encaminhava para um
psiquiatra. Conselheiro, médico, psiquiatra. Era como subir a uma daquelas
pirâmides de degraus do México.
Sentia-me exaurida, desprovida de emoção. Então eu sofria de esquizofrenia?
O que significava isso? Talvez a Roberta me pudesse esclarecer. As minhas
sessões de aconselhamento eram bastante intensivas e eu tinha uma consulta com
ela ao final do dia. Fui à biblioteca da universidade antes de ir para Leeds. Encontrei
um livro intitulado Esquizofrenia: Os Factos. O primeiro capítulo era: “O que é a
esquizofrenia?”
Fiz algumas anotações.
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças da Organização
Mundial de Saúde, a esquizofrenia e os distúrbios esquizofrénicos caracterizam-se
em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da
percepção, e emoções que são desajustadas ou de indiferença. Regra geral, a
consciência e a capacidade intelectual mantêm-se, embora certos défices cognitivos
possam aumentar com o decorrer do tempo.
Os fenómenos psicopatológicos mais importantes incluem: o eco do
pensamento, a imposição ou o roubo do pensamento, a divulgação do pensamento;
a percepção delirante, ideias delirantes de controlo; influência ou passividade; vozes
alucinatórias que comentam ou discutem acerca do paciente na terceira pessoa;
perturbação do pensamento e sintomas negativos, que são sentimentos e
capacidades que a maioria das pessoas tem e que os pacientes esquizofrénicos
perdem devido à sua doença. São estes:
• motivação;
• a capacidade de interagir socialmente;
• entusiasmo;
• resposta emocional adequada.
Os factos:
• A esquizofrenia afecta uma em cada cem pessoas.
• Alguns pacientes com esquizofrenia só sofrem um episódio psicótico e outros
sofrem vários ao longo dos anos.
• O tipo mais comum de alucinação vivenciada por quem sofre de esquizofrenia
é auditivo, mas os pacientes também podem ter alucinações visuais, tácteis,
gustativas e olfactivas.
• Apenas um terço dos pacientes sofre sintomas do tipo paranóico.
• Cerca de dez por cento dos pacientes esquizofrénicos cometem suicídio.
• Os sinais e sintomas da esquizofrenia manifestam-se geralmente primeiro no
início da idade adulta e na adolescência.
• Ambos os sexos correm o mesmo risco de desenvolver a doença.
• A maioria dos pacientes com esquizofrenia sofre durante a vida toda, quer ela
esteja em curso ou seja recorrente.
• Apenas cerca de um em cada cinco indivíduos recupera completamente.
Requisitei o livro à biblioteca e parti para a estação com ele debaixo do braço.
Identificava-me muito com o que lera, mas tinha medo dos factos. A minha mente
estava a disparar perguntas. O que causa a esquizofrenia? É realmente uma
doença? Se eu tivesse esquizofrenia, com todas as minhas percepções delirantes e
vozes alucinatórias, será que alguma vez iria recuperar ou curar-me?
Na calma do gabinete da Roberta fiz uma reconstituição da minha reunião com o
Dr. Michaels. Eu era boa nos pormenores. Pus a minhas notas diante dela.
- O que lhe parece? - perguntei. - Olhe para isto. Isto é o que alguns livros da
especialidade dizem. Pensa que eu tenho esquizofrenia?
A Roberta não quis comprometer-se, mas incentivou-me a tomar a medicação e
a consultar o psiquiatra. Elogiou-me por ir consultar o Dr. Michaels, que é um dos
truques, reforçar o que o paciente já decidira fazer. Disse que podíamos falar mais
sobre o diagnóstico dele na minha próxima sessão, e eu fiquei com a certeza de que
a Roberta Stoppa e o Dr. Michaels estavam em conluio com o Professor e faziam
parte da conspiração.
Fui a casa buscar alguma roupa limpa. Decidira refugiar-me na casa de campo
da Rebecca, um lugar tranquilo onde poderia ler com calma o livro sobre a
esquizofrenia e pensar nas conclusões do Dr. Michaels. A lógica sugeria que, sem
um entendimento definitivo da causa da doença, não havia esperança de cura.
A medida que ia lendo, comecei a perceber que há indícios de que as causas da
esquizofrenia são, pelo menos em parte, genéticas. Uma vez que os genes regulam
os processos biológicos, incluindo a função cerebral, esta evidência indica que os
processos biológicos são interrompidos nos cérebros das pessoas com
esquizofrenia. Por outro lado, o livro sugere que os factores psicológicos e sociais
não parecem desempenhar um papel causal preponderante, embora pudessem ser
importantes “modificadores” da doença.
Parecia que eu encaixava na análise do livro na perfeição, não que isso me
servisse de conforto. Quando muito, deixava-me ainda mais assustada e paranóica,
uma vez que implicava que, embora as pessoas pudessem melhorar da
esquizofrenia, não havia garantias de que não pudessem sofrer uma recaída. Seria
isto algo com que eu teria de viver para o resto da minha vida?
Enquanto estava a ler, estava inconscientemente a beber gin de uma garrafa de
litro que não me recordava de ter comprado. Não me conseguia recordar se já
tomara algum dos comprimidos azuis que o Dr. Michaels receitara e estava a sacudir
a garrafa de plástico, a acompanhar o ritmo constante das vozes que estrepitavam
em torno da minha cabeça.
Vamos apanhar-te. Ele está a chegar. É melhor preparares-te. Ele está a chegar
agora. Espera para veres.
“Ele” devia ser o Professor. Ele era a mais sonora e mordaz de todas as minhas
vozes, uma espécie de Hitler ou Mussolini. Eu esperei e, efectivamente, o Professor
apareceu.
Estás a ver, agora as pessoas pensam que és louca. É melhor tomares todos os
comprimidos e beberes um pouco mais. E depois, vais para o Inferno, que é onde
pertences.
- O que é que tens, Alice? - disse uma voz familiar.
Voltei-me, à espera de não ver ninguém, e dei de caras com a Rebecca atrás de
mim. Não a ouvira entrar e não respondi. Olhei para cima. Ela estava tão bonita, tão
perfeita.
- O que está nessa garrafa? Tens tomado os comprimidos com o gin? -
perguntou ela. - Vá lá, Alice, o que se passa? Parece que viste um fantasma.
Eu estava a ouvir a voz da Rebecca, mas parecia distante como se estivesse a
falar-me através das charnecas.
Cathy? Cathy? Onde estás, Cathy? Heathcliff. Heathcliff. Não me abandones.
Tomei um gole de gin e ela pegou-me na mão para me amparar quando me
levantei do chão.
- As coisas estão a desmoronar-se - disse-lhe.
Ela pousou as mãos nos meus braços e elas queimavam através das minhas
roupas.
- O médico pensa que sou esquizofrénica e tenho de consultar um psiquiatra. -
Expliquei-lhe enquanto me contorcia para me libertar. - Mais ninguém consegue
ouvir as minhas vozes. Só eu.
- Estou aqui para te ajudar, Alice, tu sabes disso - disse a Rebecca. - Porque
não me falaste antes acerca dessas vozes?
- Não queria que pensasses que era louca - respondi.
Ela sacudiu a cabeça e sorriu. Era muito estranho ter uma amiga que realmente
se importava. Ficámos outra vez até tarde a conversar. Tal como a Roberta, a
Rebecca não tinha formação médica, mas era da opinião que o melhor era eu
consultar um psiquiatra.
Faria ela também parte da conspiração? Eu não queria acreditar nisso.
Tomei um dos comprimidos azuis de Stelazine antes de ir para a cama. Contei
quantos deixei no frasco e escrevi o número a lápis dentro da contracapa do livro de
esquizofrenia. As vozes estavam distantes, mas ainda assim continuaram a
ameaçar-me, a murmurar, a resmungar, a tagarelar. Senti um vazio interior, um
espaço oco onde outra versão de mim flutuava no vazio do não-ser. Eu não pedia
muito, não queria fama e fortuna, poder ou sucesso. Só queria ser como todas as
outras pessoas.
CAPÍTULO 14
SHIRLEY
MANICÓMIO
REGRESSÃO
Agora que eles pensavam que sabiam o que havia de errado comigo, aquelas
oito semanas de humilhação em St. Thomas chegaram ao fim e fui enviada de volta
para o mundo com um saco repleto de medicamentos, um vento frio a trespassar o
meu blusão e uma marcação para uma visita a uma enfermeira psiquiátrica.
Ela era uma rapariga do Yorkshire de faces rosadas que dava pelo nome de
Lynne Tucker e, tal como a mãe e a sua cabeleireira, iria vê-la uma vez por semana
para uma conversa. A Lynne era uma mulher entroncada que falava apenas sobre si
mesma, como se isso mostrasse aos seus pacientes que, por muito perturbados que
estivessem, pelo menos não tinham de suportar as suas dores nas costas, a
amigdalite da filha, e por aí fora.
- E como te sentes hoje, querida?
- Com frio - respondi.
- É o tempo.
Ah, ah, ah.
O Verão terminara. Desaparecera. Nem dei por ele. A vista da janela em St.
Thomas nunca mostrava o sol, apenas uma pálida névoa aquosa da mesma
tonalidade dos meus jeans desbotados.
Fiquei surpresa ao descobrir que a minha proposta para um mestrado com vista
a alargar a minha tese de doutoramento fora aceite pelo conselho científico da
universidade. Conseguira passar o meu primeiro ano em Huddersfield e estava de
volta à escadaria em espiral para o Céu do doutoramento. Naqueles modos contidos
típicos dos ingleses, o Gerald Brennan, o Brian e o Colin Ince nunca mencionaram a
minha ausência no final do período de Verão. Compreendi que ser louca e fazer um
doutoramento não eram incompatíveis.
Retomei o aconselhamento com a Roberta Stoppa. Ela já havia introduzido
jogos como o Ker-Plunk para atrair o Billy, e agora, quando ele aparecia, ela
encorajava-o a falar acerca dos seus sonhos e segredos. Como parte da sua
formação pelo NCH, a Roberta aprendera um procedimento desenvolvido por Penny
Parks, a autora de Rescuing the Inner Child.
Descrever os pesadelos não é o suficiente, explicou ela. Somente revivendo
esses pesadelos estaria no caminho certo para a cura.
Através de perguntas e sugestões cuidadosamente construídas, mas sem nunca
recorrer ao hipnotismo, a Roberta conseguiu fazer-me regredir à infância. As
crianças tinham todas diferentes recordações, todas elas compartimentadas para me
protegerem a mim, a Alice. Agora que as memórias tinham permissão para vir à
superfície, a criança que as recordasse sofreria a agonia e a angústia de reviver o
abuso. A medida que essas memórias se infiltravam na minha consciência, eu sofria
a mesma tortura. Entrava na sala de aconselhamento como uma rapariga
perfeitamente normal, mais ou menos, e transformava-me num rapaz de cinco anos,
ou numa menina de dois, e saía de lá completamente devastada e a tremer.
Quando saía dessas sessões, sentia-me completamente esgotada, e percorria o
caminho até à estação de comboio a soluçar. Detinha-me a três quartos do caminho
ao longo da plataforma dois, observando o comboio a ficar cada vez maior à medida
que avançava sobre os carris prateados. Cerrava os punhos e enviava mensagens
directas às solas dos meus pés: Quietos, esperem que o comboio pare; quietos,
esperem que o comboio pare.
Tentei ser normal. Tentei não beber, não me ferir, sofrer uma overdose. Mas a
tentação estava para além do meu controlo; estava dentro de mim. Quando um
equilibrista avança lentamente sobre o abismo, leva consigo uma vara que mantém
paralela ao solo para se manter firme. O Clopixol era a minha vara. Mas eu ainda
estava presa por um fio, suspensa sobre o abismo. Por vezes sofria recaídas. Perdia
tempo. Faltava às consultas. Bebia. Caía. Dormia mal.
Uma manhã, a Rebecca deixou-me em Leeds para um encontro com a Roberta.
Acenei-lhe quando o carro fez inversão de marcha sem fazer ideia de onde me
encontrava. Peguei na minha arma.
Bang. Bang.
Estás morto.
Há um templo de mármore, um edifício de tijolos vermelhos, três lanços de
escadas. Deve ser quarta-feira.
Pensava que ontem fora quarta-feira.
Onde estou?
Salta, Alice, salta. Tu sabes que queres.
- Deixem-me em paz. Desapareçam!
O tempo estava fora de controlo.
Eu estava de regresso à plataforma dois a observar o comboio a aproximar-se
ruidosamente pelos carris, a experimentar os medos do Billy a darem lugar à raiva
do Kato, a sua ira a distorcer as minhas feições. Daqui a nada espeto um soco em
alguém.
Salta, Alice, salta. Tu sabes que queres.
O Professor era como um disco de vinil riscado num gramofone antigo. Repetia
constantemente Mata-te, mata-te, numa voz sussurrante como uma broca a abrir
buracos no escudo protector dos meus antipsicóticos.
Naquela noite em casa da Kathy, com a porta secreta habilmente escondida,
deitei-me na cama com o Valium a transportar-me para o sono. Enquanto estava
meio a dormir, mais do que recordar, apercebi-me de que estivera numa sessão de
terapia com a Roberta naquele dia, mas como o tempo fora consumido pelo Billy e
pelo Kato, não tinha uma lembrança clara do que eles disseram e sofreram. As suas
memórias eram chagas abertas, em carne viva. A medida que essas memórias
deslizavam para a minha mente adormecida, acordei com um flashback doentio do
acto físico do meu pai a entrar no meu quarto, a tirar a minha roupa, a lubrificar o
seu pénis na minha boca e a violar-me analmente, voltando-me e enfiando a sua
erecção humedecida no meu rabinho de menina.
Fiquei ali acordada, eu, a Alice, a tremer, a suar, nauseada e apavorada.
Percebera que o sexo, tal como Bach nas suas “Variações Goldberg”, tem muitos
temas, desvios, tangentes e digressões. Não conseguia imaginar-me a tomar parte
numa sessão de sexo a três, mas pelo menos agora sabia o que era. As lembranças
do Billy eram os pesadelos nebulosos de uma criança de cinco anos de idade, mas
chegavam até mim como as memórias vivas e nítidas de uma mulher de vinte e três.
Empurrei para trás as roupas da cama, corri pelo corredor e vomitei na casa de
banho. A dor dessas memórias era excruciante. Era como arrancar dentes sem
anestesia, uma imersão na dor que era esmagadora, constante e insuportável.
Sentia nojo ao toque da minha própria pele, das minhas mãos enquanto as
observava em movimento sobre o teclado do Toshiba, no olhar vazio que distinguia
nos meus olhos nas raras ocasiões em que vislumbrava o meu reflexo no espelho.
Havia duas perguntas que continuavam a martelar-me o cérebro: Por quanto
mais tempo consigo suportar este tormento? Quanto tempo vai demorar até a minha
mente ficar curada?
A Lynne Tucker não sabia. A Roberta não sabia. Liguei para a linha de apoio à
vítima. Os conselheiros não tinham uma resposta, mas eram bons ouvintes. Eu sou
fã do telefone. Através das linhas de cobre é possível falar mais livremente, a voz
torna-se independente da prisão do corpo. Não precisamos de nos encolher ou
esconder, enxugar as lágrimas ou limpar o vomitado da T-shirt.
Telefonei ao Stephen. Disse-lhe que estava a vivenciar memórias há muito
reprimidas de ter sido abusada em criança e estava a ganhar coragem para
finalmente pôr a minha mãe ao corrente da situação. Ele prometeu apoiar-me
quando eu o fizesse. Estou certa de que o meu padrasto sempre soube que havia
tabus na psique da nossa família. Ele fora sempre muito compreensivo e isso
ajudou-me mais do que ele poderia imaginar.
O desejo de contar à minha mãe o que o meu pai me fizera não me saía da ideia
há dez anos. Eu queria que ela ficasse a saber de todos os detalhes repugnantes e
intragáveis.
- Quem é a menina do papá?
- Sou eu.
Aquela longa língua a lamber as minhas partes íntimas, a meter-se no meu rabo,
o seu pénis na minha boca para lubrificar, a relaxar o esfíncter enquanto penetrava o
meu ânus, metendo aquele pénis ávido na minha vagina, o jorrar do seu esperma
quente no meu rosto, os beijos nos meus lábios. Quando li num livro de Anais Nin
que as prostitutas nunca beijam os clientes compreendi porquê.
Eu queria que a minha mãe ouvisse. Queria que ela acreditasse em mim. E
queria que ela identificasse esta “verdade encoberta” instintivamente, com aquele
instinto que as mães têm quando ouvem os seus bebés a chorar durante a noite.
Queria deitar tudo cá para fora e, acima de tudo, queria que a minha mãe
compreendesse que as minhas revelações não eram um ataque a ela. Eu não
estava a culpá-la.
Durante as duas semanas que se seguiram, anotei num caderno tudo o que me
recordava sobre os abusos. Numa quinta-feira sombria, a meio do Inverno, apanhei
o comboio para Birmingham para passar um fim-de-semana prolongado em casa.
Era tarde quando cheguei. Jantámos na sala de estar com os tabuleiros no colo.
Tinha o estômago contraído como um punho e o espasmo no meu pescoço voltara a
pulsar. Levei o meu tabuleiro para a cozinha e depois sentei-me novamente. A
minha mãe percebera que havia algo no ar.
- Mãe, preciso de falar contigo - disse-lhe.
Ela sacudiu ligeiramente o corpo.
- Não tens de fazer cerimónias comigo, Alice - respondeu.
- Eu sei, mas quero que me ouças sem me interromper.
- Não é o que faço sempre?
- Vamos ouvir - disse o Stephen.
Abri o meu caderno. Conseguia ouvir o latejar do meu coração nos ouvidos. A
sala estava tão silenciosa como um teatro quando a peça está prestes a começar.
Tive a sensação de que a minha mãe antecipara este momento há muito tempo.
Contei-lhe tudo. Cada detalhe depravado e ignóbil do tormento degradante que fora
a minha infância: as aranhas, o castelo, o homem do Rolls-Royce, os preservativos
multicoloridos; aquelas alturas em que eu era trancada na Gaiola com uma lata de
massa; a anorexia, o álcool que eu levava diariamente para a escola, as minhas
visitas à Dra. Purvis, a psiquiatra infantil; as oito semanas degradantes que passara
em St. Thomas completamente sedada.
Ela permaneceu em silêncio, com o sangue a fugir-lhe do rosto. Fechei o
caderno e comecei a chorar. Chorei sem parar. Verti lágrimas amargas e essas
lágrimas eram da Bebé Alice, do Samuel, da Shirley e do Kato, do Billy, do JJ e
minhas. Eu chorava e a minha mãe veio sentar-se ao meu lado no sofá. Abraçou-
me. Deu-me umas palmadinhas nas costas e, entre os meus soluços, ouvi-a dizer
que acreditava em mim.
Na denúncia prolongada do meu pai, não mencionei a violação quando tinha
vinte e um anos. Não sei porquê. Damos um pouco, retemos um pouco. Sentei-me
no sofá e deixei a oportunidade escapar. A minha mãe estava a abraçar-me.
Acreditava em mim. Eu necessitava desesperadamente de algum consolo imediato
naquele momento fugaz. Mas disse que queria confrontar o meu pai e pedi ao
Stephen para ir comigo.
Por que razão necessitava de o confrontar novamente? Eu sou obsessiva.
Repito-me. Não consigo evitar. Vivo sozinha na minha cabeça. Tenho poucos
amigos e perco os amigos que tenho. As pessoas pensam que sou esquisita, e sou,
creio. Queria que o meu pai visse com os seus próprios olhos que a menina que
permanecera deitada de barriga para baixo enquanto ele fendia as paredes do seu
ânus, empurrando o seu pénis para dentro dela, ainda estava viva, continuava a
lutar, ainda se debatia para ser normal, para ser feliz. Estivera encarcerada no
campo de concentração do meu quarto de paredes cor-de-rosa, mas, tal como a
minha amiga Esther, eu sobrevivera.
Fomos até casa dele na sexta-feira, ao final do dia. Fiquei no alpendre e disse-
lhe o que tinha a dizer. Não me recordo de nada do que lhe disse, mas saiu de
dentro de mim como um veneno. O meu pai tremia. Os seus ombros tremiam. Ali de
pé, a ser confrontado com o horror da pessoa que era e do que fizera, tinha um
aspecto velho e alucinado. Nada, nada vai alguma vez compensar a injustiça do que
o meu pai me fez, mas pelo menos estar ali a expelir todo aquele veneno concedeu-
me um momento de respeito por mim própria.
O meu pai conseguia ver o Stephen sentado no carro e permaneceu à porta
mansamente a ouvir tudo que eu conseguia vomitar das minhas entranhas. Não foi
buscar uma faca à cozinha. Não me ameaçou. O problema dos fanfarrões é que, no
fundo, são sempre uns cobardes. Sempre. Voltei-me. Percorri o caminho de cabeça
erguida e fechei silenciosamente o portão. As crianças, tenho a certeza, estavam
orgulhosas de mim.
Enquanto conduzíamos de volta a casa, o meu pai telefonou à minha mãe a
declarar-se inocente e a minha mãe disse-lhe que acreditava em mim, não nele.
Agora que contara à minha mãe e confrontara o meu pai, podia regredir mais
facilmente com a Roberta. Costumo anotar os meus pensamentos. Certa vez
escrevi:
Roberta, há algumas perguntas para as quais preciso de respostas:
1. Por que razão as crianças existem? (Embora me pareça que sei a resposta:
será porque sinto que nunca fui uma criança?)
2. Como posso fazê-las desaparecer ou fazer com que cresçam ou algo do
género?
3. Como posso fazê-lo rapidamente?
Mais algumas questões para as quais preciso de apoio:
Por favor, diga-me que acredita em mim.
Será que há outras pessoas que se sentem como eu, ou sou só eu que sou
estúpida/que estou a ficar louca/que não estou a enfrentar algum aspecto horrível
meu (como, por exemplo, talvez eu seja uma mentirosa compulsiva ou algo do
género)?
Finalmente, o Billy pode usar o boné dele na próxima semana e ter um bolo de
aniversário, embora ainda não seja o seu aniversário? E pode rabiscar ou pintar
desenhos a cores? Eu sei que parece uma tolice, mas o Billy ficaria muito contente.
Eu sei que provavelmente pensa que é estúpido, mas é porque eu estou triste. Eu
nunca fui criança e não é culpa minha que as coisas sejam assim agora. O Billy é
um bom menino e não tem culpa de querer brincar. Importa-se que ele brinque
quando ele for a Leeds, ou vai perder a paciência com ele e pensar que ele não está
a esforçar-se? (Ainda que ele esteja mesmo a esforçar-se; está a esforçar-se muito.)
No verdadeiro dia do meu aniversário, entrei na sala de aconselhamento e
encontrei sanduíches, batatas fritas e um bolo de aniversário com velas e presentes,
incluindo um conjunto de animais de quinta e um camião da Lego. O Billy “saiu” num
instante. As peças Lego fascinavam-no. Em diversas ocasiões, quando me pusera a
trabalhar naquele projecto de investigação que evoluía lentamente na casa de
campo, sentia-me despertar, como que de um sonho, enchia de novo na minha
roupa, e dava por mim sentada no chão, de pernas cruzadas, a montar um carro ou
um castelo da minha colecção cada vez maior de legos - comprados ou roubados.
Não sabia de onde vinha e como é que continuava a crescer.
Eu ainda passava muito tempo na casa de campo, a caminhar pelas charnecas
com botas de montanhismo naqueles dias frios de Inverno, a fazer lutas de bolas de
neve com a Rebecca e a Zoé. O Natal chegara e fora-se embora. Estávamos a 10
de Janeiro e eu era um ano mais velha; vinte e três parecera-me jovem; vinte e
quatro parecia-me velha, e o mundo parecia estar a envelhecer comigo.
De volta à festa de aniversário do Billy, a Roberta contou-me mais tarde que ela
e o Billy haviam tido uma espécie de arrufo. Ela insistiu que, se o Billy tinha cinco
anos, agora teria seis. Mas não. O Billy estava certo. O Billy terá sempre cinco anos,
assim como o Kato será sempre um rapaz de dezasseis anos cheio de borbulhas, e
o JJ um fanfarrãozito de dez anos. Não sei como é que eu sabia disto, apenas sabia,
da mesma forma que sabia que o Billy se chamava Billy e a Shirley, curiosamente,
se chamava Shirley.
É claro que no dia em que o Billy fazia novamente cinco anos, o Samuel
continuava a ter seis. Depois de regredir na festa de aniversário, continuei em “modo
criança” no final da sessão. Quando fechei a porta atrás de mim, comecei a sentir
dificuldade em respirar e, de repente, fiquei paralisada. Sentia-me dominada por
uma dor insuportável. Deixei-me cair de joelhos, encolhi-me toda e chorei. Chorei
até a Roberta me encontrar agarrada ao varão no cimo da escada. Felizmente, ela já
conhecia o Samuel e sabia como consolá-lo com o velho ursinho de peluche cor-de-
rosa.
A Roberta cancelou as restantes marcações e passou a tarde com o Samuel a
aprofundar os aspectos mais horrendos do abuso: aqueles momentos em que o meu
pai me levou ao castelo e partilhou a sua confiante filha de seis anos com a multidão
de pedófilos que fingiam adorar o Demónio. As lembranças eram como um puzzle
de 10 000 peças transformando-se lentamente a partir dos fragmentos da cabeça do
Samuel numa imagem sólida que crescia no meu subconsciente.
No final do dia, voltara a ser a Alice, e a Roberta levou-me até às Urgências
onde falei com um psiquiatra. É estranho haver um psiquiatra de serviço para os
acidentes e emergências, mas existe. Não tenho qualquer recordação do que foi
dito, de como escapei das garras do estabelecimento psiquiátrico, ou de como
finalmente cheguei a casa.
O que aprendi nesse dia foi que havia mais contacto entre as crianças do que eu
pensava. Eu sabia que a Shirley e o Kato comunicavam. Agora parecia claro que
todos eles estavam sintonizados numa corrente telepática e conheciam os
pensamentos uns dos outros. Por vezes, eu era incluída na equipa, mas noutras, o
fusível explodia, a corrente rompia-se e eu ficava sozinha, apenas comigo mesma
como companhia.
Recordo-me do meu avô me dizer para não deixar que as coisas na vida me
tornassem amarga, mas que as deixasse enriquecerem-me.
Já não pensava nisso. Na verdade, não conseguia ver como é que os meus
problemas poderiam enriquecer-me. Eu tinha um rótulo psiquiátrico, passara meses
numa instituição e era psicótica durante a maior parte do tempo. Fiquei feliz por o
avô não estar ali para testemunhar o meu sofrimento. Isto foi o que escrevi no meu
diário:
Só quero dormir e afastar todos estes pensamentos. Isto não é justo. Hoje é um
daqueles dias em que estou a recordar-me dos abusos. A verdade é dolorosa de
mais para suportar. Atormenta-me mental e emocionalmente. Fisicamente, o meu
corpo sente-se traumatizado de novo. Ajudem-me! Ajudem-me! Sinto-me tão
isolada. Necessito do toque de alguém (um toque seguro); de escutar a voz de
alguém; de saber que existe alguém. Ajudem-me! Ajudem-me! Por favor, não me
deixem ficar sozinha com isto outra vez. Oh, meu Deus, estou a sofrer tanto. E agora
lembro-me que foi assim que me senti há tantos anos. Estou a recordar-me de tudo
agora...
AJUDEM-ME! AJUDEM-ME!
Quero chorar; mas sinto-me como uma pedra, fria e dura. Não me posso permitir
experimentar a profundidade dos meus sentimentos, por isso desligo as minhas
emoções. Mas agora, um comentário de algum lugar na minha mente diz-me que
isto é real. Que aconteceu realmente. Oh, merda, aconteceu mesmo. Depois a voz
parece ainda mais intensa e repete: “Oh, meu Deus, por favor, ajudem-me; alguém
me ajude!” Mais uma vez: “Ajudem-me! Alguém me ajude!” E novamente, com mais
urgência. Depois fica tudo em silêncio. Os meus sentidos entorpeceram-se e sinto-
me como uma pedra outra vez. O único sinal de emoção é o choro na minha cabeça.
O choro de uma criança. Lágrimas amargas e tristes. Lágrimas de desespero. Eu
quero aproximar-me e tocar na criança, mas não consigo. Ouço o choro e também
quero chorar. Mas não consigo. No entanto, o sentimento de desespero não diminui.
Estou a sofrer. Que raio está a acontecer comigo? Sinto que estou a ficar maluca!
Nesse mesmo mês, o financiamento para o aconselhamento por parte do NCH
foi cortado em definitivo. O Samuel ficou destroçado. Confiava na Roberta. Não
conseguia compreender por que razão não voltaria a vê-la e passava horas
encolhido sobre si próprio, a olhar para a parede, com lágrimas grossas a
escorrerem-lhe pelo rosto.
A Alice aparece. Fica na cama a dormitar com o rosto molhado, a beber, a
rabiscar poemas, a desenhar, a ler. Ela está, como escreveu Blake, “entre aqueles
que nasceram para a infelicidade”.
Estava a caminho do meu segundo esgotamento nervoso. Ou seria o terceiro?
Tenho de ir buscar a calculadora. Verificar os diários. Telefonar para a linha de
apoio. Enviar aquela carta para o Patrick O’Hay. Eu não estava a viver. Mal existia.
Estava a afundar-me dentro de mim própria como se estivesse a descer pelo poço
de uma mina que conduzia às profundezas místicas do meu ser. Da minha alma.
A Roberta disse-me uma vez, “Algo se partiu e precisa de ser arranjado”, e
nesse dia tive uma visão de potes partidos em museus aquecidos pelo sol.
Outras vezes, estava a sofrer daquilo a que chamam a fuga, um estado
semelhante ao sonho onde a vida normal escoa como areia através de uma
ampulheta, a luz a transformar-se em escuridão, a escuridão a transformar-se em
luz, os ursinhos alternadamente alegres com sorrisos divertidos, cruéis com sorrisos
maliciosos, o buraco na parede entre o meu quarto e o da Kathy abrindo-se e
fechando-se como o olho de um peixe gigante. Os flashbacks dos abusos iam e
vinham como papagaios de papel lançados ao vento. O sono desapareceu.
As pessoas prosseguiam com as suas vidas, iam trabalhar, pagavam as contas,
poupavam, tinham amigdalites, casavam, tinham filhos, divorciavam-se, sentiam-se
deprimidas, iam trabalhar, poupavam, caíam no abismo. Comecei a caminhar de um
lado para o outro como um dos imbecis em St. Thomas. Tenho de seguir em frente,
prosseguir com a minha vida, continuar a lutar.
Mata-te, Alice, mata-te.
As vozes. Estavam sempre lá. Sempre.
A casa está silenciosa. O buraco está selado. A Kathy e o Jim estão no
emprego. Um longo duche. Aviar a minha receita. Abastecer-me. É segunda-feira.
Não sei bem por que razão isto é importante, mas se alguém pergunta, “Que dia é
hoje?” serei capaz de responder “E segunda-feira”.
Dirijo-me ao escritório. No sopé da colina há um bebé num carrinho à porta de
uma loja a chorar, um longo e triste choro soluçante...
Não conseguia perceber por que razão me encontrava na plataforma da estação
de comboios de Manchester Piccadilly.
Será que andei de comboio?
As minhas roupas pareciam apertadas.
O Kato estava a engolir os comprimidos de Clopixol como se fossem Smarties.
Entrou no comboio seguinte, batendo com a porta com todas as suas forças. Um
velhote abana a cabeça e o Kato limita-se a fitá-lo. Continua a tomar comprimidos à
medida que o comboio prossegue aos solavancos e embate nas pessoas que
dormitam. Dá um soco na palma da mão. Sente-se suado e irritado. Quer fazer
alguma coisa, mas não sabe ao certo o quê.
Birmingham New Street. Bate com a porta da carruagem. Começa a descer a
rua, começa a ficar sem fôlego, o corpo cada vez mais pesado, a garganta seca, os
olhos enevoados.
Continua a andar.
Li algures que o horizonte está a sensivelmente quarenta quilómetros de
distância. Continuamos a andar para alcançar o horizonte e ele continua a afastar-
se. A vida é assim. Nunca alcançamos a nossa meta. Está sempre a afastar-se de
nós. Estamos condenados à decepção porque, na nossa busca da perfeição, somos
constantemente recordados de que nunca vamos alcançá-la. A meta, tal como o
horizonte, está para além do nosso alcance. Se correr a maratona há sempre outro
minuto para vencer.
Um autocarro deixa o Kato no final da rua. Conta as casas, tropeça no caminho,
toca à campainha e cai no chão quando a porta se abre.
Estará morto?
Como a minha mãe conseguiu enfiar o Kato no carro nunca ninguém saberá.
Mas fê-lo. Levou-o para o hospital e fizeram-lhe uma lavagem ao estômago para o
libertar de todos os antipsicóticos que ele engolira. Enviaram-no para casa da
mamã.
E ele fê-lo de novo. Mais duas vezes numa semana.
O Kato não consegue suportar a dor. O Kato pediu o meu corpo emprestado
quando eu tinha dezasseis anos. Como uma rapariga que já deveria ter mais juízo,
mas que não sabia como parar o que estava a acontecer, porque sempre
acontecera, ele, tal como eu, observava enquanto o papá desenrolava o
preservativo e ela permanecia deitada com as pernas afastadas e os seios
pequenos para o papá fazer as coisas que os papás fazem.
CAPÍTULO 17
MEMÓRIAS CORPORAIS
PARTE 1
PARTE 2
PARTE 3
MÚLTIPLOS COMPLEXOS
A palavra é dissociar. Não existe um “a” antes dos “ss”. As pessoas dizem
sempre des-a-ssociar. O que, caso se esteja a sofrer de Perturbação Dissociativa de
Identidade/Distúrbio de Personalidade Múltipla, pode ser irritante. Depois as pessoas
querem saber quantas personalidades tenho e a resposta é: não sei.
O primeiro livro sobre Distúrbio de Personalidade Múltipla a provocar impacto foi
Sybil de Flora Rheta Schreiber, publicado em 1973 com o subtítulo: The True and
Extraordinary Story of a Wo-man Possessed hy Sixteen Separate Personalities.
Corbett H. Thigpen e Hervey M. Cleckley publicaram o controverso The Three Faces
of Eve muito antes, em 1957, e Pete Townshend, dos The Who escreveu a canção
“Four Faces”. As pessoas parecem sentir-se seguras com números.
A verdade é mais complicada. As crianças surgiram ao longo do tempo. O Billy,
o rapazinho turbulento de cinco anos de idade, era inicialmente o mais dominante.
Mas afastou-se aos poucos para dar lugar ao JJ, o rapaz autoconfiante de dez anos
que aparece quando a Alice está sob tensão e lida com situações complicadas como
viagens de metro e conhece pessoas novas. A primeira entidade a visitar-me foi a
voz externa do Professor. Mas ele tinha um coro de cúmplices sem nomes.
Então, quantos alter egos possuo? Eu diria mais de quinze e menos de trinta,
uma combinação de protectores, perseguidores e amigos - a minha árvore
genealógica.
Alguns são, de acordo com o que o Dr. Ross descreve em Mul-tiple Personality
Disorder, “fragmentos”, “estados psíquicos relativamente limitados que expressam
apenas um sentimento, retêm uma memória, ou desempenham uma tarefa limitada
na vida da pessoa. Um fragmento pode ser uma criança assustada que retém a
memória de um episódio de abuso específico.”
Em múltiplos complexos, o Dr. Ross diz que as “personalidades são
relativamente desenvolvidas, estados completos capazes de uma série de emoções
e comportamentos”. Os alter egos terão “controlo executivo de uma parte
substancial de tempo ao longo da vida da pessoa”. Ele salienta, e volto a repetir a
sua ênfase, que “Os DPM complexos, com mais de 15 personalidades distintas e
barreiras amnésicas complicadas, estão associados à frequência de 100 por cento
de abusos físicos, sexuais e emocionais na infância.”
Teria eu imaginado o castelo, o calabouço, as orgias rituais e as violações?
Teriam a Lucy, o Billy, o Samuel, a Eliza, a Shirley e o Kato inventado tudo isto?
Regressei à zona industrial e encontrei o castelo. Era uma fábrica antiga que
ardera totalmente, mas as ruínas carbonizadas da cave permaneciam intactas.
Fechei os olhos e consegui ver as velas negras, as sombras dançantes, o
pentagrama invertido, as pessoas a entoar cânticos com mantos encapuzados.
Conseguia ver-me com as outras crianças a sermos abusadas de formas que
desafiam a imaginação. Não tenho dúvidas agora de que o culto de adoradores do
Diabo era apenas uma rede de pedófilos, sendo a parafernália satânica uma
fachada para as suas verdadeiras perversões: os corpos inocentes das crianças.
É difícil levar as redes de pedofilia aos tribunais. Felizmente, isso acontece.
Talvez o caso mais horrendo que aconteceu recentemente foi presente ao Supremo
Tribunal em Edimburgo em Junho de 2007. Envolvia uma mãe que assistia enquanto
a sua filha de nove anos era violada por membros de uma rede de pedofilia na sua
casa em Granton, no Norte de Edimburgo. A mãe, Caroline Dunsmore, permitira que
as suas duas filhas fossem abusadas dessa forma desde os cinco anos de idade.
Ao sentenciar Dunsmore a doze anos de prisão, o juiz, Lord Malcolm, disse que
levara em conta a repulsa pública perante os graves crimes praticados contra as
duas meninas. Disse à mulher de quarenta e três anos de idade: “É difícil imaginar
uma quebra mais grave da confiança por parte de uma mãe para com os seus
filhos.”
Morris Petch e John O’Flaherty também foram presos por participarem nas
violações das crianças.
O abuso de crianças acontece quase sempre em casa e, geralmente, envolve os
membros da família.
A Drª Armstrong continuou a ser a minha médica. Tendo identificado a doença, o
tratamento consistia sobretudo em prescrever medicamentos. Experimentei todos
em diversas combinações, um festim de antipsicóticos e antidepressivos que umas
vezes me faziam sentir maravilhosa e outras vezes paranóica e suicida. Sob stress
severo, a Shirley pegava numa garrafa ou o Kato apoderava-se das minhas roupas,
e eu sofria recaídas, voltando às bebedeiras e auto-mutilação. Ao todo, devo ter tido
cerca de 100 overdoses e os meus braços já foram suturados com 600 pontos, ou
mais; cicatrizes de guerra, chamemos-lhes assim. Aos olhos de um crente pareceria
um milagre eu ter sobrevivido a essas batalhas.
Porque pego numa lâmina e retalho os meus braços? Porque bebo até perder a
consciência? Porque é que engulo frascos de comprimidos e acabo nas Urgências a
fazer uma lavagem ao estômago? Estarei à procura de atenção? Estarei a exibir-
me? A dor dos golpes liberta a dor mental das memórias, mas a dor da cicatrização
dura semanas. Depois de cada incidente de automutilação ou overdose, corro o
risco de ser interditada e regressar a uma instituição psiquiátrica, uma perspectiva
angustiante que não recomendo a ninguém.
Então, por que razão o faço?
Não sou eu que o faço.
Se eu tivesse poder sobre os alter egos, impedia-os de o fazer. Mas não tenho
esse poder. Quando eles se manifestam, não há nada a fazer. Experimento transes
dissociativos e perco tempo, consciência e dignidade. Se eu, a Alice Jamieson,
quisesse atenção, teria terminado o meu doutoramento e começado a subir os
degraus da carreira académica. Exibir o título de “doutora” chama mais a atenção do
que jazer numa cama de hospital drenada de esperança, com ligaduras nos braços
e o gosto amargo do carvão líquido a absorver as substâncias químicas do
estômago.
Em quase tudo o que fazemos, antecipamos alguma recompensa ou retribuição.
Estudamos pelo estatuto e para conseguirmos melhores empregos; trabalhamos por
dinheiro; os nossos filhos são pequenos reflexos da nossa posição social; as
doações para a caridade e as viagens até à Oxfam fazem-nos sentir bem. Todo o
gesto de bondade carrega o possível dom de uma resposta gentil: colhemos o que
semeamos. Não há nenhuma vantagem em prejudicar-me a mim própria; nenhuma
razão para eu inventar memórias delirantes de incesto e abuso ritual. Não ganho
nada em estar nas Urgências de um hospital.
É necessário realçar este ponto, em resposta à teoria “iatrogénica” de que a
exteriorização de memórias reprimidas em pessoas que sofrem de DPM, paranóia e
esquizofrenia pode ser inventada durante a análise, é uma invenção da relação
médico-paciente. Segundo o Dr. Ross, esta teoria, uma espécie de pingue-pongue
psiquiátrico, “nunca foi demonstrada e publicada de uma forma cabal e
fundamentada”.
O meu caso corrobora as afirmações do Dr. Ross. As minhas memórias estavam
a voltar em fragmentos e flashbacks muito antes de eu iniciar a terapia. Indícios
desse abuso, ritual ou não, podem ser encontrados nos meus registos médicos e em
cadernos e poemas que são anteriores à entrada na minha vida de Adele Armstrong
e Jo Lewin.
Nos últimos anos, houve um grande número de casos em que a polícia acusou
grupos de pessoas por submeterem as crianças ao chamado abuso ritual ou
satânico em redes de pedofilia. Poucos casos resultam em condenação. Mas isso
não prova que o abuso não tenha ocorrido, e a polícia deve ter tido muita certeza
das provas para ter levado esses casos a tribunal. Os abusos acontecem. Eu sei
que acontecem. As raparigas nas unidades psiquiátricas nem sempre falam com os
psiquiatras, mas necessitam de falar e falam umas com as outras.
Em criança, fui muitas vezes levada à consulta do Dr. Bradshaw; foi no
consultório dele que o Billy descobriu os legos pela primeira vez. A medida que ia
crescendo, também consultei o Dr. Robinson, o corredor de maratonas. Agora que
eu estava a viver de novo em casa da minha mãe, ele era outra vez o meu médico
de clínica geral. Quando a minha mãe lhe disse corajosamente que eu sofria de
DPM/PDI e estava em tratamento, como resultado do abuso sexual na infância, ele
levou as mãos à cabeça e chorou.
O abuso de crianças ressurge sempre, por mais anos que passem. Lemos sobre
casos de pessoas que confessam, depois de trinta ou quarenta anos, que foram
abusadas em crianças, nos orfanatos por vigilantes, professores, vizinhos, pais,
padres. A Igreja Católica nos Estados Unidos pagou, na última década, centenas de
milhões de dólares para compensar “actos de sodomia e depravação em relação às
crianças”, para citar um site de troca de informações. Por que motivo essas pessoas,
já com uma certa idade, trazem a público os abusos numa fase tão avançada das
suas vidas? Para chamar a atenção? Não, é porque, lá no fundo, têm uma ferida
que precisam de trazer cá para fora antes de poder sarar.
Muitos médicos não vêem os sinais de abuso nas crianças porque, como
pessoas decentes que são, não querem encontrar provas daquilo que o Dr. Ross diz
ser “uma sociedade doentia que está a ficar cada vez mais doentia, e o abuso de
crianças cada vez mais grotesco”. Ele prossegue: “Há uma superstição popular na
América do Norte que diz que as crianças são o recurso mais valioso e que a família
nuclear intacta é um bom lugar para crescer. Para muitas crianças, isto é uma
mentira. Para muitas crianças norte-americanas, a família nuclear intacta tem sido
uma zona de guerra de abusos físicos e sexuais, um Vietname privado.”
Agora temos novas guerras para as nossas analogias. O livro do Dr. Ross foi
publicado pela primeira vez há mais de vinte anos. Se a nossa sociedade doentia,
na Europa e nos Estados Unidos, estava a ficar cada vez mais doentia, então como
está ela agora, neste novo milénio, na era da Internet?
Na minha passagem por esses sinistros hospitais psiquiátricos conheci muitas
jovens que, tal como eu, foram abusadas sexual, emocional e fisicamente, palavras
bonitas para violadas, silenciadas, pontapeadas e estranguladas, os seus corpos
utilizados como sacos de pancada, a sua carne como cinzeiros. Recordo-me da
mulher confusa e maltratada no refúgio em Liverpool, e jamais esquecerei o grito
gutural que ecoou pelos corredores de St. Thomas quando imobilizaram a Sophie
para a sedarem. O seu crime? Deu à luz dois filhos do seu pai.
Quem é que está a cuidar dos filhos da Sophie enquanto ela está numa ala
psiquiátrica? O pai/avô das crianças? A sua mãe distraída? Os funcionários de um
lar para crianças? Estarão os filhos da Sophie a viver numa zona de guerra? Terá o
Dr. Ross razão quando diz que a nossa sociedade doentia está cada vez mais
doentia?
A sociedade está, indubitavelmente mais sensual, como podemos ver nos
filmes, nas telenovelas e nas campanhas publicitárias. Em revistas femininas, a
mulher perfeita está a um sopro de distância da infância, com seios
inexplicavelmente fartos, uma cintura fina e o olhar vago. As suas roupas remetem
para o sadomasoquismo, mais destinadas a revelar do que a esconder. Se quiser
encontrar um homem, manter o seu homem, agradar ao seu homem, há o botox, a
cirurgia plástica e cremes que prometem juventude eterna. A juventude é sexy.
Na altura em que este livro está a ser escrito, uma importante empresa britânica
está a vender soutiens acolchoados para meninas de sete anos de idade. As
meninas foram transformadas em consumidoras. Não brincam, fazem compras.
Permitimos que as pressões consumistas de uma sociedade doentia roubassem a
infância às meninas e criassem nas suas mentes a ideia de que são objectos
sexuais. Se meninas de sete anos são incentivadas a terem “um aspecto sexy”, não
devemos ficar surpreendidos quando o sexo é o resultado.
Por que razão os homens se aproveitam das meninas? Como foi que isso
começou?
As meninas, mas também os meninos, são macias, rosadas, bonitas, inocentes.
O papá faz cócegas à bebé e ela dá risadinhas. Gosta das cócegas. O papá esfrega
o nariz contra o nariz dela e ela ri-se ainda mais. Ela gosta realmente daquilo. Gosta
que lhe façam festinhas, que lhe toquem e que brinquem com ela. Ele beija-lhe a
barriguinha redonda e não consegue resistir a tocar com a ponta da língua na dobra
da sua vagina. A bebé ainda está a rir-se e aquele homem, o seu papá, o babysitter,
a pessoa que é responsável por ela, tem uma erecção. Não consegue evitá-lo. E
alguns homens não conseguem evitar ir um pouco mais longe. Ela gosta daquilo, ela
quer aquilo, a depravada.
A maioria dos homens possui autocontrolo, moralidade e decência. Mas há
muitos que não. Assim que um homem com poder sobre uma menina experimenta
usá-la como um objecto sexual, fica viciado neste poder e vai continuar a abusar
dela de uma forma cada vez mais subtil e terrível. O sexo com uma criança
atravessa a barreira do tabu e, uma vez ultrapassado, a tentação é empurrar a
barreira cada vez mais para trás, para encobrir o abuso no manto do ritual. As
virgens nas religiões pagãs eram sacrificadas para apaziguar os deuses. Os
homens, ao que parece, têm uma fixação pela virgindade, pela carne jovem e
imaculada, e esses homens, incapazes de manter relacionamentos normais com
mulheres adultas, roubam a pureza de uma criança para satisfazerem esta
obsessão doentia.
A Internet tem permitido que as autoridades localizem os pedófilos que
perseguem as crianças. A desvantagem é que eles se encontram uns aos outros,
esses molestadores de crianças, exibicionistas, pederastas, aqueles pedófilos
manhosos que conseguem obter o que pretendem pela astúcia. Movem-se com uma
facilidade engenhosa por toda a Web, trocando fotografias pornográficas de crianças
abusadas, e encontram uma legitimidade perversa ao saber que a sua luxúria é
partilhada por outros. Mas que raio, toda a gente faz isto!
O Dr. Ross faz uma análise correcta. A nossa sociedade está cada vez mais
doente.
Eu não queria ser o receptáculo de todo este conhecimento desagradável. Só
queria ser uma rapariga normal, com amigos e uma boa família. Estava prestes a
completar vinte e cinco anos, fazia terapia, e era viciada em medicamentos. Tinha
tiques nervosos, um temperamento irritável e agitado, era sexualmente ignorante,
sexualmente perturbada - uma vítima da nossa cultura obcecada pelo sexo. Estava
a viver em casa da minha mãe, incapaz de trabalhar. Andava a cambalear às cegas
na orla do abismo, e lutava todos os dias contra a minha fixação por lugares
elevados, escadas íngremes, sacos plásticos, vidros partidos e as lâminas afiadas
da sala de artes e ofícios do hospital de dia.
Que desequilíbrio químico provoca uma recaída? Bastarão as nuvens escuras a
ocultar o céu azul? Um momento de nervosismo da Jo Lewin? A expressão nos
olhos de um estranho? Os olhos dos ursinhos? É verdade, tenho vinte e cinco anos
e ainda durmo com bonecos de peluche.
Para cúmulo da ironia, estava a atravessar um bom período. Voltara a
aproximar-me do Jacob Williams, um rapaz esperto, tímido, que fora meu colega de
escola e que frequentava agora o hospital de dia por sofrer de distúrbio
bipolar/depressão maníaca. Sempre gostáramos um do outro, mas éramos muito
tímidos para falarmos um com o outro. Agora, unidos por questões de saúde mental,
saíamos juntos de vez em quando, tomávamos um café ou uma bebida, e falávamos
do nosso tratamento. O Jacob sabia que eu sofrera abusos durante a infância, mas
evitava dizer-me o que se encontrava na origem das suas depressões.
Ia a pensar em Jacob enquanto deambulava pelo corredor do hospital e, no
momento seguinte, dei por mim na casa de banho com o sangue a jorrar-me dos
braços. Sentia-me confusa, e tinha os lábios a tremer devido a um ataque de pânico.
Em poucos segundos, vi-me no meu próprio banho de sangue. O meu antebraço
esquerdo estava retalhado em vários pontos e o direito estava perfurado com cortes
finos e profundos executados com uma lâmina da sala de artes e ofícios. Conseguia
vê-la cintilar na minha direcção, como um olho triangular em prata na poça de
sangue que alastrava pelo chão de ladrilhos brancos.
Afortunadamente, o JJ brotou de dentro de mim e, com a sua voz, soltou um
grito de pavor, como o grito da Sophie em St. Thomas, fazendo com que todo o
hospital se silenciasse. Três enfermeiras apareceram em poucos segundos, mas eu
já devia ter perdido, pelo menos, um litro de sangue. Enquanto as enfermeiras
estancavam o fluxo com espessas ligaduras de algodão, surgiu a Drª Spencer, a
assistente da Drª Armstrong, usando uma saia-lápis preta que realçava as suas
belas pernas. Ergueu-me o braço direito acima da cabeça e aplicou pressão à
medida que o sangue fluía dos cortes e lhe salpicava a blusa branca.
Fui rapidamente transportada de ambulância, com a sirene a gemer, até às
Urgências, onde a artéria braquial no meu braço direito foi agrafada, suturada e
cosida. Tive de receber vários sacos de soro para evitar uma transfusão e
mandaram-me de volta num táxi, sob a supervisão de um membro do pessoal, para
o hospital de dia, com os braços ligados como uma múmia egípcia. A Drª Armstrong
estava à minha espera no seu gabinete com um sorriso de censura. Sentou-se na
esquina da secretária.
- Não precisas de te preocupar em voltar cá antes de segunda-feira, Alice -
disse-me ela.
- Onde é que está aquela menina que queria ser doutora, isso é que eu gostava
de saber.
- Como?
- O que aconteceu à minha Alice, que costumava correr maratonas?
- Essa mal consegue andar agora.
- Olha, acho que te vou comprar uns ténis novos.
Ela estava a dar o seu melhor. No dia seguinte, saiu do emprego e veio buscar-
me. Comprámos um par de ténis Nike com atacadores e motivos cor-de-rosa. Até os
ténis estavam a ficar sexy.
Agora que voltara a deambular pelas ruas, encontrei velhos amigos da escola, a
maioria dos quais, logo que sabia que eu sofria de problemas de saúde mental,
afastava-se, como se o meu problema fosse contagioso. É útil saber quem são os
nossos amigos, e sentia-me satisfeita por ter o Jacob na minha vida.
O Jacob e eu íamos ao cinema, abraçávamo-nos nervosamente,
entrelaçávamos os dedos sob as mesas dos bares. Havia um frisson, mas assim
como não fora capaz de sair do impasse emocional com o Patrick, nunca permiti que
o Jacob se aproximasse mais do que um toque na face ou uma carícia nos cabelos.
O triste envolvimento das pessoas com problemas mentais.
A Jo Lewin tornou-se minha amiga, assim como minha terapeuta, e passava
todo o tempo que podia comigo. Quando a Shirley se manifestava, fazia uma
lasanha em casa e levava-a para a casa da Jo para passar a noite com ela e com o
seu filho. Fazíamos caminhadas no Lake District. Durante as sessões no hospital de
dia, ela revelava, camada após camada, memórias enterradas que muitas vezes me
deixavam angustiada e com um desconforto físico. A “memória corporal” de me
sentir como se estivessem a meter uma vareta de ferro no meu recto gera uma dor
muito real, impossível de inventar ou explicar.
Era um alívio ser considerada pelos médicos uma vítima e uma sobrevivente “do
abuso mais terrível que alguém pode sofrer”, como disse uma vez a jo Lewin. Mas
esse reconhecimento não diminuiu o tormento de estar sentada no tapete no
hospital de dia a testemunhar cenas dentro da minha cabeça daquele homem
enorme deitado sobre o corpinho de uma menina e a forçá-la a ter relações sexuais.
Essas mesmas imagens que se desenvolviam na terapia voltam à minha mente
agora, hoje, em alturas estranhas, a qualquer momento. Imagine o seu filho a ser
atropelado por um carro, a sua mãe a ser esfaqueada até à morte, um míssil a
explodir em sua casa no momento em que regressa a casa pelas ruas de Bagdade
ou Jerusalém. Essas imagens estão sempre presentes. A pessoa tenta apanhar os
fragmentos despedaçados da sua vida, mas as cicatrizes permanecem.
Por vezes, quando estou deitada na minha cama em casa, ouço os vizinhos a
subir as escadas na casa ao lado e não consigo deixar de pensar nos passos do
meu pai a subir as escadas quando eu era pequena. A porta abre, o móbile agita-se.
Ele atira os ursinhos ao chão e abre o fecho das calças com um som áspero e
desagradável que me faz arrepiar. Consigo ver-me a ajoelhar, a abrir a boca, a sua
pila a entrar e a sair durante aquilo que me parece ser uma eternidade. Ele segura a
parte de trás da minha cabeça para me fazer engolir o esperma, ou deixa-o escorrer
pelos meus lábios para que possa esfregar o “creme” pela minha barriga nua. Por
vezes, sodomizava-me e depois ejaculava na minha boca. O papá gostava disso.
Lem-bro-me do gosto azedo, de sentir um nó no estômago, a sensação de estar
perdida, isolada, uma pequena bolha a flutuar sozinha num grande universo negro.
Agora recordo-me. Recordo-me de tudo. Não houve perversão que o meu pai não
me infligisse, a mim, a sua filha pequena.
Diferentes personalidades surgiram por dissociação em diferentes alturas da
minha vida, cada uma delas com lembranças invulgares de abuso, uma biblioteca
virtual de obscenidade e maldade. O Kato e a Shirley mostravam-se mais relutantes
em descrever a crueldade do meu pai do que os alter egos mais jovens, que tinham
menos entendimento das suas implicações. Eu estava protegida por uma amnésia
mais profunda, por alter egos anónimos com memórias enterradas a uma
profundidade demasiado grande para serem expressas verbalmente. Estas
materializavam-se em pinturas “automáticas” que eu criava na sala de arte do
hospital de dia. Eram cenas grosseiras de figuras com mantos negros realçadas com
brilhantes manchas escarlates. As pinturas repugnavam-me e fascinavam-me.
Tal como o Kato e a Shirley, desenvolvi uma obsessão pelo sangue. Fiquei
chocada ao recordar que, aos catorze anos (a idade da Shirley) começara a fazer
incisões e cortes nos meus braços só para ver o sangue, uma memória recuperada
e confirmada pela minha antiga colega de escola Lisa Wainwright.
As memórias iam e vinham, uma maré de depravação humana que as pessoas
decentes jamais conseguiriam sequer imaginar. A minha mãe ia-me buscar ao
hospital de dia ou eu entrava no autocarro para casa recitando interiormente a minha
proposta de doutoramento. As ruas desfilavam como uma paisagem de uma cidade
saída de um sonho, tão hiper-reais que quase pareciam irreais. A minha mãe
assumira o controlo da minha medicação. Lidou com os incidentes de
sobredosagem e automutilação. A minha mãe sabia que o abuso acontecera, que as
memórias eram reais. Conhecia a gravidade dos abusos, e fez o melhor que pôde
durante os dois anos que vivi lá em casa para me ajudar a sobreviver ao trauma da
terapia.
Passaram-se dois anos, assim, sem mais nem menos. Queimados como lixo no
jardim do avô. Eu sei que foram dois anos, porque, subitamente, foi-me possível
concorrer a um apartamento num bairro social, e mudei a turma dos peluches para
um pequeno estúdio com um suspiro de alívio que ecoou, tenho a certeza, sob o
telhado da casa da minha mãe.
Foi por essa altura que o meu pai, misteriosamente, me enviou um cheque com
um valor considerável, o suficiente para comprar um carro novinho em folha.
Quando o recebi, afixei-o no painel de cortiça na cozinha e fiquei a olhar para ele
como se fosse um fragmento dos Manuscritos do Mar Morto.
Aquela imensa quantia de dinheiro. Do meu pai. Vinda do nada.
Era obviamente dinheiro para comprar o meu silêncio. Ao predispor-se a
silenciar-me, as suas acções tiveram o efeito oposto. Fotocopiei o cheque, e
comecei a elaborar um dossier com as suas tentativas de estabelecer contacto
comigo em capas plásticas organizadas, numa pasta que viria a ter cinco
centímetros de espessura. Eu não faço nada pela metade.
O meu primeiro instinto foi devolver o cheque. Mas depois tomei uma decisão
mais sensata e pus o dinheiro no banco para alguma emergência, embora tenha
gastado cerca de cinquenta libras a comprar vinho, comida, música e duas velas
vermelhas com suportes de vidro. Fiz peixe assado com legumes e o Jacob veio ao
meu apartamento para um jantar romântico a dois. Não comemos quase nada,
bebemos o vinho, bebemos mais vinho, sentámo-nos no sofá que a minha mãe me
oferecera e pensámos em sexo. Não aconteceu nada. Nenhum de nós sabia como
começar, por onde começar. Tínhamos receio dos nossos sentimentos, receio de
que talvez pudéssemos não sentir nada, receio de nos magoarmos um ao outro.
Estávamos completamente destroçados.
O Jacob confessou-me que também sofrera abusos na escola quando era
pequeno. Fiquei horrorizada ao saber que o agressor era um professor de que me
recordava. Comecei a chorar. Abraçámo-nos, trocámos uma espécie de beijo, mas
não houve sexo naquela noite, ou em qualquer outra noite, verdade seja dita.
As minhas visitas ao hospital de dia tinham sido reduzidas a três vezes por
semana, os dias da minha terapia. Para preencher o meu tempo e prosseguir com a
terapia, comecei a ir ao centro de acolhimento para os utentes do serviço de saúde
mental. Tornei-me particularmente amiga de uma alegre e formidável mulher de
olhos azuis chamada Megan Sorensen, que fazia parte do pessoal. Ela tinha uma
grande habilidade para fazer sair os alter egos, especialmente o JJ, e interagir com
eles. Um dia, o Kato apareceu e, durante a conversa, ela tocou no ponto sensível.
Ao seu jeito hostil, o Kato bateu no braço da Megan.
Não sei se foi uma pancada forte ou não. O Kato tem a sua própria
personalidade e toma atitudes estúpidas que eu não aprovo e sobre as quais não
tenho qualquer controlo. Na verdade, eu não tive conhecimento do assunto até o
director me chamar ao seu gabinete e me informar que a Megan não queria voltar a
ver-me.
Desfiz-me em lágrimas. Eu adorava a Megan.
- Mas porquê? - perguntei.
- Porque lhe bateste no braço, Alice, e ela não gostou.
- Mas eu não bati.
- A Megan disse que lhe bateste.
- Sim, claro que bati. Mas não era eu.
- Bem, não vou ficar aqui a discutir contigo.
Sentei-me e chorei. É outro lado negativo do DPM/PDI: assim como discordam
acerca do tratamento, os psiquiatras, conselheiros e profissionais de saúde mental,
por vezes “esquecem” que somos múltiplos. Não é possível “ver” a doença como um
coração doente ou uma mancha de células malignas numa radiografia. A pessoa
parece normal. Eu estava a tentar ser normal e aparentemente estava a ter sucesso,
uma vez que o director tratou aquele episódio como se tivesse ocorrido em
circunstâncias normais.
Mas a manifestação de um rapaz problemático de dezasseis anos de idade na
mente da Alice, e no corpo feminino da Alice, não é normal. É anormal. O distúrbio
não é tão raro como se pensava antes, mas os múltiplos complexos só podem ser
“curados” se os alter egos puderem ser integrados através de um processo que
requer anos de terapia, uma constante adaptação à medicação e uma paciência e
compreensão sobre-humanas.
Naquele dia, no centro de acolhimento, senti-me como um leproso na Idade
Média, um proscrito, com um sino a anunciar a minha condição de pária. Fui para
casa, engoli um punhado de comprimidos e dormi e chorei durante quatro dias, sem
sair da cama.
Mata-te, Alice. Ninguém gosta de ti. Toma uma overdose. Corta os pulsos.
O facto de estar em terapia e a tomar antipsicóticos não significava que as vozes
estivessem silenciosas. Estavam confusas, por vezes, mas nunca silenciosas. De
vez em quando, ainda tomava o duche de três horas e esfregava a pele até ela ficar
em carne viva, vincava os meus jeans, polia os meus ténis, começava a ler um livro
na cama à noite e dava por mim ainda a ler quando o sol nascia na manhã seguinte,
as horas perdidas, as palavras esquecidas, os meses a passarem no calendário.
Quatro dias depois, finalmente arrastei-me para fora da cama para ir a uma
consulta com a psiquiatra que estava a substituir a Drª Armstrong durante a sua
licença de maternidade. A psiquiatra era graciosa e assertiva, com uma pronúncia
clara e bem articulada que estremeceu quando descobriu que eu estava a tomar 60
mg de temazepam, quando a dose recomendada era de 10 mg. Fez alguns
telefonemas, sussurrou autoritariamente na sua voz agradável, e dei por mim numa
cama na unidade psiquiátrica Josiah Jennins para uma desintoxicação
supervisionada.
Não sei como é que acabei por tomar tanto temazepam. Tive de passar oito dias
na unidade para limpar o meu organismo do medicamento. A composição química
do temazepam cria um efeito semelhante a um transe, o que faz com que a pessoa
possa facilmente cair e magoar-se. Passei as primeiras vinte e quatro horas na
cama, e nos dias que se seguiram, passei gradualmente mais tempo a pé, na sala
de dia ou deambulando pelos corredores, interrogando-me se alguma vez ficaria
totalmente bem. Deram-me alta com uma nova receita para Welldorm (betaína de
cloral), que não era uma benzo-diazepina e logo não era tão viciante.
O Jacob visitou-me no hospital, assim como eu o visitei mais tarde, aquando das
suas calamidades maníacas. Trouxe-me o seu walkman, uma cópia de As Vinhas da
Ira, de John Steinbeck, e um cacho de uvas, porque, segundo ele, estava a sentir-se
“bacanal”. Fiquei emocionada ao receber os seus presentes temáticos e ainda
estava a pensar no que ele quisera dizer com “bacanal” quando apareceu para me
levar para casa no dia seguinte. Uma única palavra pode entrar na nossa mente
como um insecto numa maçã e ficamos a matutar no seu significado durante dias.
Agora que não tomava temazepam, comecei a beber vinho e depois passei para
as bebidas espirituosas, o ciclo normal que conduzia a uma nova dependência, o
que era irritante porque eu não gostava de levantar o dinheiro do banco, a minha
rede de segurança. Detestava acordar depois de uma noite má com uma terrível dor
de cabeça. Conheci um tipo na unidade psiquiátrica que estava a fazer uma
desintoxicação de álcool e decidi ir para os Alcoólicos Anónimos com ele. Era
divertido ouvir as pessoas sentadas num círculo a admitir para si mesmas e para o
mundo que eram alcoólicas. Mas aquilo não era para mim. Eu bebia apenas por
diversão, porque sentia falta dos químicos.
Drogas, álcool, sono, ausência de sono, overdoses, automutila-ção. Na terapia,
os alter egos eram encorajados a deitar cá para fora as suas memórias. Os
medicamentos, com todas as suas variações, eram o único alívio na agonia das
recordações. A minha mente transbordava de lembranças do abuso e o meu corpo
era sacudido com as memórias corporais da tortura física e mental.
Conseguiria o Billy algum dia ultrapassar a experiência de ser sodomizado por
estranhos no calabouço da sua mente? Eu criara um dispositivo de dissociação,
como o Dr. Ross descreve, para me afastar da dor de tais violações, mas elas
aconteceram, de facto. Elas ainda tinham de ser confrontadas se eu queria integrar-
me e ficar boa. Esta introspecção zumbia sem parar na minha cabeça como uma
mosca incómoda.
Um dia, passei por acaso à porta da esquadra da polícia. Detive-me e fiquei a
olhar para as portas abertas, os painéis de avisos, os cartazes. O tempo estava
quente, o céu claro com algumas nuvens fofas como vemos nas pinturas das
crianças na escola. Com as costas direitas, o olhar concentrado e as vozes
distantes, subi lentamente os degraus.
- Bom-dia - disse, dirigindo-me ao sargento sentado à secretária, um homem
corpulento de aparência agradável. - O meu nome é Alice Jamieson. Eu queria
denunciar o meu pai por ter abusado sexualmente de mim quando eu era criança.
O sargento roliço inclinou a cabeça e olhou-me por cima dos óculos. Pôs-se de
pé.
- Por aqui - disse, e abriu o balcão para me deixar passar.
Fui levada para uma sala pequena e luminosa, onde expliquei a uma jovem
detective que sofrera abusos persistentes durante a infância às mãos do meu pai e
de outros. Ela mostrou-se paciente e sensível. Tomou notas e fez alguns
telefonemas.
Tratámos de tudo para eu fazer uma declaração em território neutro, no Centro
Callaghan, um centro para pessoas com problemas de saúde mental, na presença
do meu assistente social de saúde mental da altura, que cumpriria o papel de “adulto
apropriado”. A entrevista decorreu durante todo aquele dia e prosseguiu na manhã
seguinte até meio da tarde. Não queria deixar nada por dizer.
A polícia investigou as minhas alegações, acedendo aos meus registos médicos
e psiquiátricos.
Analisou as cópias dos relatórios do meu médico de clínica geral, o Dr.
Robinson, e da minha psiquiatra, a Drª Armstrong, todos os meus registos da
assistência social, e investigou as minhas alegações, que incluíam ter sido violada
pelo meu pai na altura em que o confrontei. A polícia obteve declarações das
pessoas que tinham estado envolvidas na minha vida naquela altura, como, por
exemplo, a Louise Lloyd-Jones, o Dr. Graham Sutton e a psiquiatra Drª Simpson,
assim como da Rebecca Wallington e dos profissionais que lidaram comigo quando
estive em Huddersfield. Foram até ao ponto de consultar as anotações da Drª
Purvis, a psiquiatra infantil.
O meu pai foi preso e teve de esperar seis longas semanas antes do Crown
Prosecution Service (CPS) decidir não formalizar a acusação.
O CPS chegou a esta decisão após ponderação de vários factores:
• O tempo que decorrera entre o “alegado abuso” e a minha queixa à polícia
(“alegado” era um prefixo jurídico que agora se colaria ao “abuso” como uma
sombra).
• O facto de eu ter estado sob os cuidados de vários profissionais de saúde
mental antes de fazer a acusação.
• Provavelmente eu não seria capaz de suportar o interrogatório do advogado de
defesa dado o meu frágil estado de saúde mental.
A decisão foi dolorosa, atenuada somente pela consolação que senti quando a
detective encarregue do meu caso rabiscou num pedaço de papel que estava
confiante de que eu dera um relato verdadeiro dos abusos que o meu pai me
infligira. O facto de eu ter sofrido ataques frequentes de cistite desde os quatro anos
de idade assumiu uma nova relevância. A cistite é a inflamação do revestimento da
bexiga, como resultado de uma infecção, irritação ou lesão. Pode atingir os homens,
mas é mais comum nas mulheres, particularmente durante a gravidez, a menopausa
e quando as mulheres são sexualmente activas. As mulheres são mais propensas a
sofrer de cistite do que os homens porque a uretra, o canal que esvazia a urina da
bexiga, é mais curto, e o orifício uretral está muito perto do ânus, logo o risco de
infecção é maior.
A cistite normalmente não afecta as meninas. Mas eu passei tanto tempo na
sala de espera do consultório médico com este problema, antes do meu quinto
aniversário, que aprendi sozinha a construir um carro com peças de legos, enquanto
a minha mãe se tornou perita em produtos para cabelos e maquilhagem a ler as
revistas femininas. Repetidas infecções de cistite podem causar danos nos rins. As
engrenagens do serviço de saúde movem-se lentamente, mas finalmente, passados
seis anos, fui encaminhada para o Hospital Infantil de Birmingham para fazer
exames. A minha mãe levou-me lá uma vez por mês durante mais de um ano, e uma
série de médicos e estagiários de batas brancas olhavam para mim como se uma
criança com cistite fosse um dos mistérios do Universo. Que eu saiba, nunca
ninguém sugeriu que a situação poderia ter sido o resultado da inflamação causada
por fissuras ou infecção da área adjacente ao orifício uretral externo.
Eventualmente, os resultados dos exames chegaram. Não havia um mau
funcionamento dos rins. Eu era uma aberração da natureza. Havia outra prova
intrigante. Aos dois anos de idade, estive tão gravemente obstipada que tive de ser
internada no hospital para receber tratamento. Quando me examinaram, descobriu-
se que eu tinha uma fissura anal. Esta nota era uma lembrança do que eu sofrera.
Foi arquivada e seria determinante quando, alguns anos mais tarde, me foi sugerida
a possibilidade de reabrir o caso contra o meu pai.
Primeiro só tinha de passar pelo inferno.
Após o fiasco da agressão à Megan, não voltei ao centro de acolhimento durante
muito tempo. Quando finalmente lá voltei, o director pôs-me em contacto com Mike
Haydock, um psicoterapeuta sénior. O Mike estabeleceu limites firmes para a
terapia: eu tinha de me sentar e permanecer sentada numa cadeira, e não deveria
haver contacto social fora da terapia, o oposto do meu relacionamento com ajo
Lewin. No início, foi complicado adaptar-me a este formato, mas, com o tempo,
comecei a notar algumas mudanças verdadeiramente positivas.
Via o Mike uma vez por semana. A sua abordagem terapêutica era mais
psicanalítica. Com o seu ar reservado e voz persuasiva, ele conseguia, mesmo
quando eu resistia, arrastar-me suavemente para a regressão. Propôs-se a
descobrir os elementos inconscientes em funcionamento na minha mente e
investigar a sua interacção com os elementos conscientes. Por exemplo, embora
não se concentrasse especialmente na automutilação, encorajou-me a pensar na
sua finalidade e nas forças inconscientes que me levavam a fazê-lo.
Ele também era diferente dos outros terapeutas na medida em que não se
referia aos alter egos pelo nome. Não se centrou tanto na separação entre mim e as
crianças, mas antes na funcionalidade e na razão da sua separação. Desta forma, a
ênfase na integração, ou num todo, como objectivo da terapia, poderia ser vista
como um processo contínuo, gradual e discreto do desenvolvimento de uma
percepção e crescimento pessoais.
Através dos métodos subtis de Mike, aprendi, ao longo das semanas e dos
meses, a esforçar-me mais para conhecer os alter egos, a avaliar os traumas que
sofreram e transportaram consigo para a minha vida adulta. Ao aproximar-me da
Shirley e do Kato, eu estaria numa posição privilegiada para os convencer a não
libertarem a sua angústia mental no acto físico de retalharem os meus braços.
O processo é complexo e demorado, mover cuidadosamente os pensamentos
como se fossem bolas de um jogo depinball para diferentes partes do cérebro, da
esquerda para a direita, do subeórtex, onde são armazenadas as emoções, para o
neocórtex, o lado racional, onde, de acordo com o Mike, há menos propensão para a
depressão. Ele ensinou-me uma técnica simples: sempre que me sentisse triste
deveria pensar em algo que me fizesse sorrir. E eu pensava no Sr. Feliz de cabeça
para baixo ou nos olhos bondosos da minha amiga Esther na cozinha do kibutz
Neve Eitan. Este processo altera a actividade mental e a tristeza desaparece. É esse
o conceito. Ter pensamentos felizes, ser-se positivo, ser-se grato. Tentei fazê-lo.
A terapia de DPM/PDI tem como objectivo final a integração. O Mike Haydock
acreditava que a viagem para a integração era tão importante quanto a própria
integração; que eu obteria uma sensação de recuperação ao prosseguir com a
minha vida, ao aceitar que o abuso acontecera, fazendo o luto por tudo o que
perdera, e sentindo as várias emoções associadas ao abuso de modo a que a dor se
tornasse menos acutilante. Desta forma, a terapia resultou na integração de alguns
dos alter egos, mas a consequência mais importante foi que eu conseguia funcionar
melhor e me sentia confortável comigo mesma enquanto adulta, integrada ou não.
Passava mais tempo com o Jacob, e fui capaz de me concentrar nele e nas suas
necessidades, em vez de usar o nosso tempo juntos para me concentrar somente
em mim mesma. Ele sempre fora paciente quando um dos alter egos se
manifestava. Agora que a psicanálise estava a tornar-me mais forte, tentei dar-lhe
apoio quando, durante os seus períodos de doença, ele construía uma parede
impenetrável à sua volta.
O Jacob queria alterar tanto a opinião pública como a profissional em relação à
saúde mental e envolvera-se numa nova legislação sobre o assunto. Isto inspirou o
meu próprio interesse. Naquela altura, o centro de saúde local estava a criar uma
nova estratégia de saúde mental. Aderi à comissão como utente dos serviços de
saúde mental e fui capaz de dar um contributo baseada nas minhas próprias
experiências. É evidente que se eu tivesse terminado o meu doutoramento, podia
muito bem ter estado do outro lado da mesa nessa comissão.
O Jacob e eu continuávamos a agir como um casal, mas devido à medicação
que ambos andávamos a tomar, qualquer tentativa de termos relações sexuais era
mal sucedida e deixava-nos paralisados de angústia.
No Dia dos Namorados desse ano, recebi o meu primeiro e único cartão, uma
prenda muito acarinhada tal como As Palmeiras Ondulantes das ilhas Tropicais do
meu avô.
Minha querida Alice,
Nunca estive num relacionamento que me tivesse dado tanta esperança numa
unidade duradoura.
Amo-te tanto que esse amor conquistou todas as dúvidas que eu tinha no
passado sobre permitir-me ser vulnerável.
Quero que saibas que o meu desejo é ficarmos juntos para sempre e que quero
realmente estar ao teu lado sempre que necessitares.
Com todo o meu amor,
Jacob xxx
Apesar de eu e o Jacob termos assumido um compromisso e de o Jacob ter
escrito que tinha conquistado as suas dúvidas sobre a vulnerabilidade, ele ainda
estava, evidentemente, vulnerável. Tal como eu. Confiava em Jacob mais do que
alguma vez confiara nalgum homem, mas estava apavorada e era incapaz de me
entregar completamente e estabelecer um relacionamento normal. É o receio das
pessoas maltratadas. A pessoa retrai-se. Esconde-se. Protege-se. É como se
tivéssemos sido submersos num barril de alcatrão. Parece não haver limpeza ou
terapia que faça sair tudo. A pessoa continua frágil e magoa os outros quer se dê
conta disso quer não. Quando consegui uma colocação para trabalhar
voluntariamente algumas horas por dia com a recém-formada equipa local de saúde
mental, absorvi-me de tal forma que não me apercebi de que o Jacob estava a ficar
mais silencioso, mais afastado. Víamo-nos cada vez menos sem que eu me
apercebesse disso. Todas as manhãs tinha uma reunião de equipa com os
enfermeiros psiquiátricos da comunidade, assistentes sociais e outros profissionais
de saúde mental, para que pudéssemos decidir sobre intervenções adequadas para
os utentes do serviço de saúde mental que especificamente lhes tinham sido
atribuídos. Era a actividade mais útil em que me envolvera desde que deixara o meu
emprego em Swansea.
Por esta altura, tive o meu primeiro telemóvel, um aparelho enorme e pouco
prático com uma antena lateral. Uma manhã, quando tocou durante uma reunião, o
tom era tão insistente que me fez sair à pressa para o corredor para atender. Era o
Oliver, um ex-colega de apartamento do Jacob.
- Lamento muito, Alice. É sobre o Jacob - começou ele a dizer.
Não sei como soube, mas soube. Fiquei naquele corredor a chorar
desalmadamente. O Jacob suicidara-se.
CAPÍTULO 19
BRANCA
Cocaína, meu amor - bastou apenas uma linha para me viciar. Desde então
nunca olhei para trás para ver, cocaína, o poder que tens sobre mim.
Podemos desbaratar as nossas poupanças em poucos meses quando
alimentamos um vício de quatrocentas libras por semana. Eu adorava o pó branco.
Escrevia poemas para o pó branco. Quando estamos apaixonados, fazemos tudo
pelo pó branco. Tudo.
O Jacob preenchera a minha vida e deixara-a de novo vazia. Éramos duas
pessoas num penhasco unidas por uma corda e necessitávamos um do outro para
escalarmos até às nuvens. O Jacob saltara. Eu compreendi. Compreendia-o melhor
do que ninguém, mas não conseguia evitar sentir-me culpada. Se eu não receasse o
compromisso, o sexo, talvez pudéssemos ter vivido o sonho e melhorado. A vida é
assim: sonhamos, acordamos - e depois não há nada.
Estava a pensar no Jacob quando ia a sair do meu apartamento e fiquei
chocada ao deparar-me com um tipo sem pernas, sentado na soleira da porta do
meu apartamento. Talvez tivesse pernas, mas elas não funcionavam. Estava
paralisado, paraplégico. Estava bem, mas o que estava ali a fazer?
Subi as escadas para informar o meu vizinho, um homem gentil e idoso a quem
eu chamava tio Joe e que tocava violino. Ficámos a conversar durante uma
eternidade. Não faço ideia do que falámos. Ele entrou, e eu fiquei durante algum
tempo a olhar para as nuvens através da janela, imaginando se o Jacob estaria lá, e
depois apercebi-me de dois paramédicos a subirem as escadas em direcção a mim.
Eram rapazes alegres em macacões de cores vivas, ofegando à medida que se
aproximavam.
- Está tudo bem. Está tudo bem. Vais ficar bem.
- O quê? Não sou eu. Do que estão a falar? É ele.
Eu conseguia ver a porta do meu apartamento e o tipo sem pernas ainda estava
enroscado no tapete da entrada.
- Olhem, ele está em agonia - disse-lhes.
Um dos paramédicos deslizou suavemente o seu braço em volta da minha
cintura. Era bonito. Fitei-o nos olhos e ele sorriu.
- Ouça, o homem precisa de ajuda - disse-lhe.
- Não está ali ninguém.
- Está sim. Olhe para ele, não consegue mexer-se. Está paraplégico.
- Vamos só certificar-nos de que tu estás bem.
- Não sou eu, é ele - insisti.
Estivemos assim a discutir durante algum tempo. Insisti que havia um tipo sem
pernas à minha porta no piso de baixo. Foi preciso alguma persuasão, mas depois
de procurarem o tal fulano dentro da minha casa, nos armários e no frigorífico
avariado, finalmente trancámos a porta do meu apartamento. O homem bonito
segurou-me no braço enquanto descíamos as escadas para o parque de
estacionamento, e eu entrei numa ambulância.
- Deviam ir à procura do tipo, ele precisa mesmo de ajuda - insisti.
- Vamos fazer tudo o que pudermos para que ele fique bem, não te preocupes.
Eu confiava nele. Por alguma razão, é mais fácil confiar nas pessoas bonitas.
Sentei-me na parte de trás da ambulância e ouvi a porta a ser trancada. De onde
surgiu o tipo sem pernas? Para onde foi?
Quando dei por ela estava deitada na cama a observar as teias de aranha
pairando no tecto da ala psiquiátrica Josiah Jennins. Tinham-me espetado uma
agulha no traseiro. Faziam sempre isso.
Sofrera um “breve episódio psicótico”, e fui trancada de novo no asilo durante
cinco semanas. O meu vizinho de cima deve ter-se apercebido de que eu estava a
ter uma crise e chamou uma ambulância. Eles chegaram à velocidade da luz.
No hospital, receitaram-me um novo antipsicótico denominado olanzapina
(Zyprexa) - dois comprimidos brancos de 10 mg por dia, com a minha dose habitual
de Prozac e Valium. Não me recordo de ter comido a mistela cinzenta da praxe e o
amido que nos metem no prato na hora das refeições, mas suponho que o devo ter
feito. Engordei cerca de vinte quilos e passei a vestir roupas quatro números acima.
Sentia-me como o Kato quando se comprimia dentro das minhas roupas. Parecia
uma baleia, um elefante, um dirigível. Jamais teria o meu aspecto normal. Agora não
me parecia com ninguém.
Havia uma rapariga hippy na enfermaria chamada Sam que não comia. Estava
coberta de piercings e tinha os olhos vagos como o Buda. Um dia, começámos a
falar na sala da televisão sobre o facto das supermodelos serem magras e ela disse
que todas consumiam cocaína.
- Dava-me jeito - disse-lhe.
- Não há problema - respondeu ela.
Nunca consumira drogas duras à excepção de fumar haxixe no Sinai, e engolir
alguns comprimidos de ecstasy para ser sociável. Naquela noite, o namorado da
Sam, o Andy, apareceu. Deu-me o seu número de telemóvel e eu telefonei-lhe
quando me deram alta dez dias mais tarde, gorda como uma baleia.
Encontrámo-nos no bar Wylde Green em Birmingham Road. A Sam estava lá.
Saíra uma semana antes de mim. Não me parecia que houvesse nada de muito
errado com ela. Era apenas uma miúda hippy e esquelética que consumia muitas
drogas. Tomámos algumas bebidas e assistimos a um jogo de futebol na televisão.
Quando saímos do bar chovia muito e o Andy levou-me a casa. À porta do meu
apartamento, com a chuva a bater nos vidros do carro como setas, o Andy tirou a
caixa de um CD do porta-luvas, um cartão de crédito da sua carteira e fez aparecer
um saquinho de plástico como aqueles que contêm os botões extra quando
compramos um casaco novo. Despejou uma pequena quantidade de pó branco na
caixa do CD e picou-a bem com a extremidade do cartão de crédito como se fosse
pó de fadas. O ritual era fascinante.
- Queres? - perguntou.
Eu vira a cocaína a ser snifada em programas de televisão como Acção em
Miami, por isso sabia do que se tratava. O Andy dividiu o pó branco em três linhas
finas com cerca de três centímetros de comprimento, e depois enrolou uma nota de
dez libras num tubinho. Debruçou-se sobre a caixa do CD, apertou o dedo contra a
sua narina esquerda e aspirou a linha com a narina direita através do tubinho.
Inspirou profundamente para que o efeito fosse forte.
Passou a caixa do CD à Sam. Ela fez o mesmo. Sobrou uma linha. Aquela era a
chave para passar a pertencer a um grupo, para ter novos amigos, para uma nova
vida, um objectivo. Sentia-me bem.
Quando inalei a cocaína, primeiro senti um formigueiro na narina, como se
tivesse respirado piripiri. Depois senti uma sensação incrível, uma clareza. Senti-me
como se estivesse totalmente desperta pela primeira vez na minha vida. As vozes
desapareceram. Os meus problemas desapareceram. Foi a experiência mais
emocionante que eu alguma vez tivera e adorei. Queria mais. Distúrbio de
Personalidade Múltipla. Incesto. Namorados mortos. Nada importa quando se tem
branca.
O Andy deu-me o que sobrou da cocaína como uma amostra e, no dia seguinte,
eu estava ao telefone a encomendar um grama por cinquenta libras. Eu tinha mais
de dez mil libras no banco. Era rica. A olanzapina fazia-me sentir inchada e
deprimida. A cocaína fazia-me sentir viva, e não como um rato preso na porta
giratória do sistema de saúde mental.
Colei estrelas no tecto que brilhavam à noite, e de dia deambulava pelas ruas
com o Andy, a Sam e o Matt, um amigo do Jacob que eu conhecera na escola. O
Andy era esperto, seguia as tendências da moda, tinha a confiança da cocaína, era
um fã do Manchester United que cumprira pena de prisão por tráfico de drogas.
Passávamos horas nos bares a discutir os jogos de futebol; horas em apartamentos
a consumir, a ouvir música com a Sam seminua e as serpentes tatuadas nos seus
braços a ganharem vida e a contorcerem-se sobre a sua carne branca. Eu
observava as serpentes a dançar e recordava-me que em tempos existira outra
miúda chamada Alice, que vira um encantador de serpentes em Petra, mulheres
com véus, carroças puxadas por burros em sofrimento, o sabor apimentado da
comida de rua que nunca deixara essa miúda maldisposta. O Matt tocava guitarra.
Era simpático e tinha um ar perdido. Era um solitário, bonito, com a pele bronzeada,
os olhos castanhos e o cabelo castanho ondulado a dar-lhe pelos ombros. Eu
gostava dele, mas ele não sabia.
As receitas que a Drª Robinson me passava enchiam um saco. Mas verdade
seja dita, os medicamentos nunca são de mais. Eu estava a tomar 60 mg de Prozac,
a dose mais forte; 15 mg de Valium em três comprimidos diários de 5 mg; zopiclone,
para dormir; olanza-pina, um antipsicótico de 20 mg; Gaviscon para a azia.
Eu gostava de os misturar com as drogas ilegais. O ecstasy faz-nos dançar,
mesmo quando estamos sozinhos. O speed deixa-nos alerta e paranóicos. É uma
dicotomia agradável, como tomar parte numa sessão de sexo a três, penso eu, pelo
menos foi o que me passou pela cabeça quando encontrei aquela rapariga da escola
lá no bar. Estava a usar saltos altos de quinze centímetros, um vestido do tamanho
de um lenço. Pensei: que figura. Mas quem era eu para falar.
O problema das anfetaminas é que nos permitem ficar acordados durante dias a
fio, perdemos tempo, inibições, falamos com estranhos. A ressaca do speed deixa-
nos sem vontade de viver, e então bebemos ou fumamos uns charros. Lidamos com
a situação. Experimentei heroína. Quero dizer, era forçoso que o fizesse. Colocamos
uma pitada de cristal castanho num pedaço de folha de alumínio. Aquecemo-lo com
um isqueiro e, quando o cristal começa a dissolver-se num vapor húmido, inalamos
o fumo. É experimentar e voar. É experimentar e morrer. A heroína aniquila a dor. A
heroína silencia as vozes. A heroína confunde as crianças. A heroína deixa a Alice
apavorada. A heroína é como voltar ao útero. É quente e segura. Não me
reconheço, nunca me sinto eu, mas com a heroína também não me sentia como
mais ninguém. Limitava-me a flutuar como se estivesse num tapete voador.
É isto que as drogas fazem. Queremos sair de dentro de nós mesmos. Sair do
nosso corpo. Queremos ficar bem longe da pessoa que somos, e se tivermos vinte
crianças e um coro de estranhos agressivos na nossa cabeça, quanto mais longe
melhor. Não importa que droga nos oferecem, se ela vai mudar a nossa percepção
da realidade, queremos engoli-la ou inalá-la, metê-la na corrente sanguínea, fazer a
viagem e falar acerca dela. As drogas fazem-nos falar muito. É estranho, mas
podemos molhar a nossa garganta com tanto álcool quanto desejarmos sem
ficarmos bêbedos. O álcool mantém viva a sensação de bem-estar como se fosse
um bico de gás em lume brando sob uma panela de água. E o melhor de tudo é que
temos amigos.
Uma noite, o Matt apareceu com alguma cetamina, que dividiu em linhas finas
de um branco cintilante. A cetamina é um agente anestésico para cavalos que corrói
as cavidades nasais de quem a consome. Quase todos os toxicodependentes
snifam. Depois da cetamina, por muito desidratados que estejamos, há sempre uma
gota de muco a escorrer pelo nosso nariz. Aspiramos a nossa linha e fechamos os
olhos. Uma lança fende a barreira da realidade entre as nossas orelhas e somos
sugados para aquilo a que dão o nome de Orifício K. É uma experiência semelhante
à morte em que sentimos a nossa essência abandonar o corpo e flutuamos acima
dele, uma viagem espiritual para algumas pessoas, para mim uma nova perspectiva
da dissociação.
Tentei caminhar pela sala após ter inalado a grossa linha de K, mas o chão
tornara-se numa esponja que sugava as minhas pernas. Pensei que o Matt ia tocar
guitarra, mas as suas mãos tinham congelado e os seus dedos estavam mais
longos. Senti-me leve e escorreguei para o chão. O Matt estava a olhar para mim.
Quando olhei para trás, senti um formigueiro de pânico na boca. Não era o Matt que
estava ali sentado, era o Professor. Lembrei-me do seu rosto no ecrã do meu
computador em Huddersfield, velho, distorcido, pleno de raiva e ódio. Um grito saiu-
me da garganta. Tentei pôr-me de pé para fugir, mas o meu corpo leve não se
mexia. Estava banhada em suor. Não conseguia focar os objectos, mas os meus
olhos pareciam ter sido equipados com as lentes de ajuste dos binóculos. Quando
voltei a conseguir focar, percebi que cometera um erro ridículo. Não era nada o
Professor. Eu estava a ser paranóica.
Era o avô.
Ele sorriu. Havia tanto amor no seu rosto. Subitamente, compreendi.
Compreendi tudo. Eu não estava sozinha. Ele estava sempre presente. Algures.
Agora podia deixar-me ir. Vi-me a pairar acima do meu corpo. Parecia feliz. Estava
feliz por estar a pairar junto ao tecto e não nas garras da realidade.
O Matt era lindo e gentil, tal como o avô. Com o Matt, eu podia ter vencido a
minha paranóia sobre o sexo, mas quando consumimos droga o sexo foge-nos da
mente e só pensamos em consumir. Saíamos juntos. Estávamos juntos, unidos pelo
desejo constante de auto-medicação, pela nossa necessidade paranóica e
permanente de evasão.
Uma noite fomos visitar o Kevin, um amigo gay do Matt que trabalhava no
aeroporto de Birmingham e que precisava de ser animado porque o namorado o
deixara. O Kevin tinha uma garagem ao fundo do jardim, onde o nosso dealer, o
Andy, tinha a droga escondida na mala de um carro velho e sem rodas. Fizemos um
par de linhas e, depois, fomos até à garagem experimentar algumas das drogas do
Andy: coca, erva, ecstasy, GHB. Aquela mala era a farmácia de um viciado e
quando ninguém estava a olhar, um saco de 5 gramas de branca, no valor de 200
libras, deslizou para dentro do meu bolso.
O surto de adrenalina provocado pelo furto foi tão bom que, uma semana mais
tarde, quando o Kevin estava a trabalhar e o Andy estava em Londres a abastecer-
se, sugeri ao Matt que voltássemos à garagem com algumas ferramentas e a
assaltássemos. Quando se está sob o efeito de drogas, não se pensa nas
consequências, e o crime acabou por ser surpreendentemente fácil. O Andy não
sabia que conhecíamos o seu esconderijo na garagem. O Kevin não lhe ia dizer e,
de qualquer forma, as pessoas estavam sempre a assaltar as garagens ali na área.
Fugimos com 1000 libras em droga e festejámos durante duas semanas. Aquela foi
a minha última grande farra com drogas.
A minha terapia estava a ir por água abaixo. Raramente estava em condições de
ir falar com o Mike Haydock. Raramente via a minha mãe e o Stephen. Não
precisava deles. Não precisava de ninguém. Eu tinha um amante.
Cocaína
Uma diversão de gente fina.
Uma linha é suficiente
Para criar uma “pedra” surpreendente.
Um vício que é meu presentemente.
O Kato não gostava de drogas. Não se importava que a Shirley bebesse, mas
não gostava que a Alice ficasse pedrada. Não gostava de sentir os acontecimentos a
ficarem fora de controlo e reagia da única forma que sabia, com navalhas e facas,
retalhando artérias e tecido muscular. Dava entrada nas Urgências com um saco de
soro acima da minha cabeça e os autocolantes magnéticos no meu corpo ligando os
fios a um electrocardiograma. Bip. Bip. Bip.
O Andy e a Sam iam-me buscar. Tinham um saco à minha espera e eu ia ao
banco. É óptimo ser-se rico. Não necessitamos de nos preocupar com coisas
insignificantes e burguesas como o dinheiro.
Mas depois ele acaba.
Pior, eu devia dinheiro ao Andy, o que não é aconselhável quando o nosso
dealer esteve preso. Os amigos vão permitir que snifemos uma linha uma vez, talvez
duas, mas o primeiro amor deles é a coca. Não somos nós. Nós somos apenas
alguém com quem se snifa coca, a quem se pede coca, a quem se pede dinheiro
emprestado. Se não há coca nem há dinheiro, passamos a ser um zero à esquerda.
A Sam recorria à prostituição, se fosse preciso. Uma rapariga que não tem nada
pode sempre fazê-lo; há sempre algum tipo que nos dá uma linha de coca em troca
de sexo. Pintei os lábios de vermelho e observei-me ao espelho. Que piada. Eu nem
sequer conseguira fazê-lo com o Matt. Recordei-me daquela primeira linha de coca
no carro, com a chuva a bater nas janelas, o sentimento de euforia. Continuava a ser
bom depois dessa primeira vez, mas nunca tão bom. Essa é a armadilha da branca.
Apanha-nos, mantém-nos no seu abraço e aperta-nos cada vez mais.
Eu tinha todos estes alter egos a revolverem-se dentro de mim, a cabeça a girar,
o corpo a doer, as paredes a comprimirem-me, o Professor a observar-me através
da janela da cozinha, aquele tipo sem pernas de volta à soleira da minha porta, a
olanzapina estava a provocar-me mal-estar. Vamos tentar outro.
E mais outro.
E mais outro.
Havia um homem asiático, alto e esguio com olhos escuros cintilantes a olhar
para mim. Ah, sim, é o Dr. Thandma. Vira-o a fazer as rondas na ala psiquiátrica
Josiah Jennins. O que me passou pela cabeça foi: por que razão está a usar um fato
às riscas e não o avental descartável, mais apropriado para um lugar repleto de
sangue humano?
Estava à espera que eu falasse. Mantive-me em silêncio.
- Então acreditas que foi o Diabo que te cortou os braços, não é verdade?
Eu não fazia ideia do que ele estava a falar.
- Não - respondi. - O mais provável é que tenha sido um dos outros.
- Quem és tu agora?
- O quê?
- E quem são esses outros?
- Eu sou a Alice Jamieson. Tenho PDI. Os outros são personalidades diferentes
ou aquilo a que vocês médicos se referem como alter egos - respondi.
- Uma das enfermeiras disse-me que vens para aqui muitas vezes depois de
retalhares os braços. O que fez com que te cortasses desta vez?
Ele estava a sondar o tema da automutilação deliberada, a qual, na minha
experiência, geralmente é mal compreendida pelos médicos e muitas vezes é usada
para estigmatizar e rotular as pessoas. Também ficou claro que ele pouco ou nada
sabia sobre PDI.
Suspirei. O efeito da lidocaína injectada nos meus cortes para anestesiar as
feridas quando estavam a ser suturadas estava a passar. Doíam-me os braços,
doía-me a cabeça e na verdade, não queria ter de explicar o meu diagnóstico a um
psiquiatra.
O Dr. Thandma avançou para o tema da avaliação do risco, já estava à espera
disso.
- Estás a sentir-te suicida? - perguntou.
- De forma alguma.
- Então por que razão cortaste os braços mais uma vez?
- Sugiro que leia o meu relatório médico - repliquei.
- Já li um breve historial. Penso que, tendo em conta o facto da Drª Armstrong
estar de licença, devias ficar internada no hospital por uns tempos, para que
possamos manter-te sob vigilância.
De regresso ao asilo. Nem pensar. Respirei fundo. Procurei acalmar-me. No dia
anterior, tinham retirado os pontos e as ligaduras que cobriam os cortes infligidos
pelo Kato há menos de duas semanas. Tentei esboçar um sorriso.
- Penso que não será necessário, doutor, a sério.
Ele ficou muito quieto, mantendo os dedos junto ao queixo enquanto pensava.
- Desde que me dês a tua palavra de que não tencionas voltar a cortar os
braços, podes sair - disse finalmente.
- Obrigada, doutor.
Telefonei ao Matt e ele veio buscar-me com o Andy. Fiquei sozinha no meu
apartamento durante dois dias e foi como se alguém tivesse feito retroceder os
ponteiros do relógio, não em horas, não em dias, mas em anos. Fora-me
diagnosticada Desordem de Personalidade Múltipla em 1993. Mais de dez anos se
tinham passado. Consumidos. Desperdiçados. Drogados.
Guardara grande parte daquele dinheiro que o meu pai misteriosamente me
enviara, sendo poupada, fazendo compras na Oxfam, indo de férias na minha
cabeça. Quando o Jacob morreu transferi todo o amor do meu coração para o pó
branco, a branquinha, a cocaína. Agora, aquele dinheiro desaparecera. Todinho. Até
ao último centavo. Tinha de entrar em abstinência. Eu conseguia fazê-lo. Tenho
tanto de forte como de fraca. Tinha de deixar sair a cocaína do meu corpo, mas em
breve percebi que, ainda que ela nos saia do corpo, nunca nos sai da mente. Há
sempre a lembrança da sensação de liberdade, da entrada sorrateira no McDonalds
para snifar umas quantas linhas, de assaltar impetuosamente uma garagem para
furtar o material de um traficante de drogas, de viver no limite com os fora-da-lei.
Recordo-me da música soar melhor; de dançar como um sopro de vento. Recordo-
me de estar sentada na parte de trás do carro do Andy com a janela aberta e o ar da
noite no meu rosto.
Como é entrar em abstinência?
É como ser um peru congelado, sair directamente do frigorífico e entrar
directamente no forno. Estamos totalmente depenados, sem cabeça, sem asas para
voar. Suamos e enregelamos. Trememos e choramos. As vozes regressam.
Tu não és nada. Nunca vais ser nada. És um fracasso. Devias matar-te, Alice.
Faz um favor ao mundo. Fà-lo hoje.
Não havia nenhuma possibilidade disso, não com as minhas dívidas. Eu estava
atrasada com tudo: a renda do apartamento, os impostos, a conta da luz e da água,
as contas do cartão de crédito e os juros, o meu passador. A televisão avariara. A
minha bicicleta desaparecera. Recebia um subsídio semanal de 95 libras por
incapacidade e uma pensão mensal de invalidez de 315 libras, o suficiente para
sobreviver e manter os antipsicóticos em ordem.
Pode parecer uma contradição, mas mesmo depois de termos entrado em
abstinência, mesmo depois de desistirmos das drogas, a verdade é que não
desistimos delas completamente. As coisas não são assim.
Eu estava de volta ao hospital de dia, desta vez com um psicólogo de quem
aprendi a não me aproximar muito. Ia a casa de vez em quando ver a mãe e o
Stephen, para falar de mim, mas nunca falava do uso de drogas ilícitas ou das
minhas dívidas.
Anos de dependência de drogas, automutilação, semanas e meses esporádicos
no manicómio. Na minha vida, estudara a arquitectura interna de vários hospitais
psiquiátricos diferentes, uns de alta tecnologia e pós-modernistas, outros vitorianos e
deteriorados. Eu podia escrever um guia para os maluquinhos.
As pessoas olham para mim, para o meu historial médico, e pensam para si
mesmas: o que há de errado com esta rapariga? O que há de errado é que desde
bebé até entrar na adolescência, eu fui constantemente violada, sodomizada e
abusada. É algo impossível de ultrapassar. Impossível mesmo. Não era algo que eu
fizera. Era algo que o meu pai me fizera a mim.
CAPÍTULO 20
O OUTRO LADO
As drogas são como um banho quente, uma noite bem dormida, um dia
ensolarado, um sorriso. As drogas são divertidas. É por isso que as pessoas as
tomam. Não tomam drogas por serem dependentes, a dependência é um efeito
secundário. As pessoas tomam drogas porque querem sair das suas cabeças. As
drogas alteram a realidade. E se a nossa realidade não presta, não importa quantas
vezes decidimos parar de consumir drogas, a tentação estará sempre presente,
atraindo-nos como as sereias atraem os marinheiros para guiarem os seus navios
para a desgraça.
Depois de entrar em abstinência e desistir do pó branco, para minha vergonha,
segui o chamamento da sereia e caí na tentação. Endividei-me mais e, para esticar
os meus parcos recursos, deixei de consumir cocaína e passei a embrulhar numa
mortalha pasta de anfe-taminas que tomava com um gole de água. Isto provoca dor
de garganta, nariz a pingar e a sensação de que podemos correr a maratona em três
horas. Na verdade, seria difícil correr 300 metros sem cair.
Não demorou muito até que o meu psiquiatra me internasse no Josiah Jennins
para uma desintoxicação, que durou duas semanas. Enquanto lá estive, o psiquiatra
decidiu mudar de novo os meus anti-psicóticos. Os novos comprimidos tinham uma
tonalidade azul-pálida e verde como a plumagem de um periquito. Jazia oca como
um buraco no serviço de observação especial, com o Jacob pairando acima de mim
como um fantasma. Culpava-me a mim mesma por ele estar lá em cima e não ali em
baixo comigo, entre os lençóis.
Poderia ter sido diferente?
Cada um de nós é o comandante do seu próprio navio e o Jacob Williams fez-se
ao mar quando assim o entendeu. Da última vez que o vi, ele estava muito calmo,
mais silencioso do que o habitual. Parecia ter uma quietude interior, uma paz, um
vazio, talvez. Já traçara os seus planos. Quando sai do seu apartamento naquela
noite, ele deu-me um abraço apertado e esse abraço significou uma despedida.
O Matt veio buscar-me ao Josiah Jennins e viajámos no piso superior do
autocarro a snifar speed e a dizer disparates. Pelo menos os novos antipsicóticos
não me faziam engordar. Conseguia vestir de novo as minhas antigas roupas. Eu
era eu, o “eu” que saía com amigos e não lia, o “eu” que faltava às consultas de
aconselhamento e se esparramava no chão a ouvir Pink Floyd, The Dark Side of the
Moon, vezes sem conta.
Eu era a maluca que se transviara do caminho. O tempo estava a fugir-me; não
os meses, mas os anos. Já não era uma miúda. De repente, estava com trinta e seis
anos de idade. O meu aniversário foi festejado com um grama de cocaína - bem,
afinal era o meu aniversário - seguido de uma noite sem dormir. Deambulei pelas
ruas de manhã observando as crianças a irem para a escola, as meninas com
hlazers azuis com um emblema mostrando St. Mildred num círculo de luz. Parecia
estranho eu ser adulta, e já não ser uma criança vestida com aquele mesmo
uniforme escolar.
O tempo transforma-se em pó e o pó desaparece com o vento. Basta um sopro,
e ele vai-se. Aos trinta estamos ligados aos vinte e nove com todos esses anos de
esperança e optimismo que remontam à infância. Aos trinta e seis, o nosso destino
está determinado. Somos o que somos. Eu não tinha a certeza de quem era quando
dei por mim sentada numa torrente de tiques e tremores na igreja de St. Mildred,
com a luz a entrar através das janelas estreitas, dando um brilho prateado ao chão
antigo de granito.
Olhei em volta. Tudo era curiosamente estranho, mas familiar, como um lampejo
de déjà vu. A última vez que estivera numa igreja fora em Florença, durante a minha
visita a Itália. Não fazia ideia do que estava a fazer em St. Mildred ou de como lá
chegara. Estava a segurar um tubo de Smarties e a pega da arma do Billy saía do
meu saco. Olhei para o relógio, e depois lembrei-me de que já não tinha relógio.
Jesus observava-me da cruz com um olhar triste e eu olhava para o sangue que
escorria sob a sua coroa de espinhos. Eu fora baptizada nesta velha igreja
decrépita; as datas desvaneciam lentamente das suas lápides como que para nos
recordar de que o tempo é eterno. O doce odor de incenso recordou-me as
cerimónias do Christingle da minha infância, os momentos em que pensei que era
aquela menina de sorte que vivia na casa grande com uns papás simpáticos. O
Christingle é uma laranja atada com uma fita e perfurada com palitos contendo
cravinho, passas e sultanas para representar a Terra e os seus frutos. Há também
uma pequena vela que, quando se acende, simboliza Cristo como a luz do mundo.
Depois da minha festa de aniversário de cocaína com o Matt, sentia-me
perceptiva e paranóica, tinha os sentidos confortavelmente entorpecidos, as
memórias apareciam-me como imagens num livro animado. As vozes sussurravam
sob o tecto abobadado.
Tu és uma merda. Não és nada. Nunca vais ser nada. As pessoas odeiam-te.
Uma mulher idosa pairava sobre mim fitando-me sob uma massa de furiosos
caracóis brancos, o seu rosto perplexo enrugado como a pele de um limão.
- Está tudo bem, minha querida? - perguntou ela.
- Está a falar comigo? Não há nada de errado comigo - respondi, e sacudi o tubo
de Smarties na direcção dela.
Afastou-se com um olhar azedo. Observei-a enquanto se afastava pelo corredor
com a sua camisola de lã verde, a longa saia pregueada e sapatos práticos, e
entrava por uma pequena porta atrás do órgão. Regressou com um homem que
usava uma camisola azul-marinha de decote subido sobre uma camisa branca e
calças cinza com vinco acentuado que de imediato me fez recordar o meu avô.
- Posso ajudá-la? - perguntou ele.
- Claro - respondi. - Podia dar-me um copo de água.
Sorriu-me, e depois sorriu para a mulher para lhe mostrar que estava tudo sob
controlo.
- Volto daqui a dois segundos - disse, e desapareceu pela mesma porta por trás
do órgão.
Quando voltou com a água, bebi-a de um trago.
- Estás desidratada - observou ele.
- Não sei porquê - repliquei, mas é claro que sabia. Era por causa das drogas.
Ele sentou-se no banco à minha frente e virou-se para mim enquanto falava.
Falou sobre a história de St. Mildred, coisas que eu recordava vagamente da escola.
Tive a sensação de que a poeira do tempo estava a ser soprada para trás. Eu
estava pedrada com a anfetamina que engolira para me ajudar a suportar a
abstinência da coca. Vagueei pelo antigo edifício envolta numa espécie de neblina,
quando ele se ofereceu para me fazer uma visita guiada. Desci atrás dele por uns
degraus estreitos e segui-o até à capela, depois para a sacristia repleta de objectos
de prata e pinturas que exibiam cenas de desespero e dor.
- Por que razão não pintam algo mais... animador? - perguntei, e o homem
encolheu os ombros e voltou-se para mim com um sorriso.
- Sabes que mais? Sempre me perguntei exactamente o mesmo - respondeu.
Observámos o último quadro e depois olhámos um para o outro durante um
momento. Não havia mais nada a dizer. A luz que entrava através dos vitrais ia
ficando cada vez mais ténue, à medida que nos encaminhávamos para a nave
central e em direcção às portas que conduziam à rua.
- Vem visitar-me de novo - pediu quando nos despedimos. - Estou sempre aqui
às segundas e quintas-feiras.
Eu não fazia tenções de lá voltar, mas na semana seguinte, o tempo saiu da sua
ordem normal, perdi o sentido de orientação e dei por mim a entrar pelas portas
abertas da igreja de St. Mildred para me proteger de um temporal. Ele encontrava-se
na nave central como se estivesse à minha espera, de costas direitas, olhos azuis
como flocos de céu e cabelo louro-claro com risco ao lado. Pareceu satisfeito por me
ver. Estava a usar um fato de tweed e um colete verde, o que me fez pensar num
periquito.
Pensara que ele fosse um daqueles padres que não se preocupavam em usar
um traje clerical, mas afinal era apenas um fabriqueiro que se chamava Alec
Menzies. Tinha um leve sotaque escocês. De Edimburgo, explicou. Era um bom
orador e um bom ouvinte, embora eu não consiga imaginar o que tínhamos em
comum ou sobre o que conversámos nessa semana, na semana seguinte, ou na
outra a seguir. Por vezes, o Alec usava óculos de aros dourados como o Gerald
Brennan, o meu orientador em Huddersfield. Tinha mãos bonitas. Eu reparo sempre
nas mãos, e muitas vezes quando estávamos sentados juntos, a conversar, eu
repousava as minhas mãos nas suas como se eu fosse um passarinho e as suas
mãos fossem um ninho.
Cerca de um mês depois, pedi ao Alec que me emprestasse trinta libras, e
partilhei uma dose de speed com o Matt. Pedi vinte libras, que a Shirley desbaratou
num litro de gin. Pedi-lhe duzentas libras para saldar uma dívida que tinha com o
Andy, o meu dealer. Eu pedia ao Alec pequenas quantias, mas não sei quantas
vezes o fiz.
- Podias emprestar-me vinte libras, Alec?
- Para o que é, desta vez?
- Eu pago-te - dizia-lhe, mas nunca o fazia. Os toxicodependentes nunca o
fazem.
Cerca de dois ou três meses mais tarde, a ressaca de uma dose de speed fez
com que o Kato entrasse numa onda de paranóia e violência. Foi invadido pelas
memórias de um jovem de dezasseis anos de idade, entrelaçado com o seu pai, o
meu pai, movimentando-se entre as suas pernas, as minhas pernas, o odor a
brilhantina como um soporífero, o corpo do meu pai a retesar-se no momento do
clímax. O meu “eu” dissociado observava as feições da menina a transformarem-se
nas de Kato, à medida que estas se contorciam de desespero e ódio por si próprio.
O Kato tinha visões de levar uma faca para a cama, ocultá-la sob o colchão, e
apunhalar o homem, o meu pai, no momento em que ele expelisse a sua semente
nojenta para um preservativo. O Kato imaginava-se a erguer a faca e a cravá-la uma
e outra vez, o sangue a esguichar, cobrindo a sua carne pálida, a cama, as paredes.
O Kato odiava-se porque nunca tivera a coragem de tirar a faca do suporte
magnético e dar vida à sua visualização. Ficava ali deitado como uma rapariga e o
pai fodia-o.
O Kato queria que Deus compreendesse a sua dor. Invadiu a igreja de St.
Mildred numa manhã de quinta-feira, subiu ao altar, agarrou no crucifixo de prata de
quase um metro e ameaçou todas as pessoas que se aproximavam dele. Uma
pequena multidão reu-niu-se fora do seu alcance: o padre Roger veio a correr com
os seus pés pequenos; algumas senhoras que usavam pérolas e que vinham para a
missa; guias da igreja; turistas.
- Afastem-se de mim, canalhas. Mato-vos a todos.
O Alec Menzies apareceu e aproximou-se o suficiente para o Kato o pulverizar.
- Desce daí, Alice - disse ele.
- Eu não sou a Alice. Eu sou eu. Eu. Vou matar-te.
- Não, não vais. Vais sentar-te e conversar comigo.
- És um canalha. Odeio-te. Vou matar-te.
O Kato agitou o crucifixo na direcção do Alec e o Alec pegou-lhe sem pestanejar
e segurou-o com firmeza. As pessoas ofegavam, e eu desfiz-me em lágrimas. O
Kato desaparecera. Sentia-me fraca, cansada, sem energia, exausta e aliviada, eu,
Alice, no lado esquerdo do meu cérebro por não me ter magoado nem ter magoado
ninguém. O Alec ajudou-me a descer do altar e conduziu-me à sala dos fundos onde
me sentei e chorei. Acalmou-me, como já antes o fizera, e voltaria a fazer. Muitas
vezes. Eu estava a testar Alec Menzies tal como os heróis eram testados na
mitologia grega ou na Bíblia, sem o planear e sem saber que o estava a fazer.
Ele também estava a ser testado pela Igreja. O clero tomara conhecimento da
amizade entre a rapariga maluca - mulher, ou o que raio era eu - de trinta e seis
anos de idade e o fabriqueiro, um homem casado e com três filhos adultos. Havia
pessoas na congregação que pensavam que eu era uma filha do Diabo e que, em
vez de ajuda, precisava de um exorcismo, de ser banida da Igreja ou queimada na
fogueira. Eu era o viajante atacado por ladrões na estrada entre Jerusalém e Jericó
e Alec Menzies era o bom samaritano que parou para me ajudar.
O Alec não era um analista, mas tinha a paciência e o discernimento para fazer
as perguntas certas. Naquele dia, depois de o Kato subir ao altar, comecei a falar-
lhe do abuso, da perda do meu doutoramento, do meu DPM/PDI, do meu vício em
drogas duras e fármacos.
- Porque tomas tantas drogas? - perguntou.
- Para esquecer.
- O abuso?
“E as dívidas”, pensei, mas não disse. Eu tinha um crédito a descoberto, um
frigorífico avariado, um vício de cem libras semanais em speed para tentar superar
uma potencial dependência de quatrocentas libras semanais em cocaína.
- Muita coisa - respondi. - A dor. O passado. As memórias. Há sempre alguma
coisa para esquecer.
- Tu precisas é de memórias novas para substituir as antigas - disse ele, e
apertou as minhas mãos entre as suas.
As pessoas raramente se interessam pelos detalhes da vida das outras, as
chatices que enfrentamos nos aeroportos quando vamos viajar, os dramas nos
hospitais, a indiferença dos bancos. O Alec mostrou interesse em mim, o “eu” Alice,
e o “eu” JJ, Kato e Shirley, em qualquer um dos “eus” que lhe aparecessem para o
pôr à prova com um novo truque, um novo pedido. Levou-me para casa de carro e,
no parque de estacionamento à porta do meu apartamento, onde o Andy me dera a
primeira linha de coca, inclinei-me pela janela aberta do Alec e beijei-o na face.
Uma noite pouco tempo depois disso enchi-me de coragem e telefonei para casa
do Alec. A mulher dele estava no Sul de França, onde tinham um chalé.
Encontrámo-nos numa pizaria na cidade. Partilhámos uma garrafa de vinho e, pela
primeira vez, escutei enquanto o Alec falava sobre a sua vida, como se alistara no
exército aos dezoito anos e subira na hierarquia, obtivera uma patente e, aos
cinquenta e três anos, reformara-se como major.
Fiz-lhe continência e ele sorriu.
Estava a pensar em criar uma empresa como consultor de segurança e
voluntariara-se para fabriqueiro. A esposa era fluente em francês e agora, com os
filhos crescidos, ela viajava sempre que podia para a casa de campo na Provença
que ele construíra com as suas próprias mãos. Parecia estar a sugerir que havia
alguma tensão no casamento, mas depois mudou de assunto.
- Parece tolice - explicou —, mas quando apareceste na igreja naquela primeira
vez foi como se te conhecesse desde sempre.
Fez uma pausa. Eu não queria ouvir aquilo. Eu estava um caos. Não queria ficar
pior do que já estava.
- Parecias uma ovelha tresmalhada - acrescentou com um sorriso - e de repente
senti-me como um pastor.
Ao contrário do Alec, eu não tinha fé. A minha cabeça esteve enterrada em livros
de psicologia tempo de mais para isso. Mas nessa noite, enquanto bebíamos vinho
tinto à luz das velas, senti algo dentro de mim que nunca sentira antes. Era
pequeno, frágil, e estava a formar-se. Era como se o Alec me amasse realmente. E
havia algo mais, algo assustador e desconcertante: esse sentimento era recíproco.
Isso deixava-me assustada. Subitamente, senti-me esgotada. Tinha medo da
esperança. Não acreditava na felicidade duradoura: na hipótese de renegociar o
meu destino.
Naquela noite, fiquei deitada na cama a olhar para as luas e para as estrelas
coladas no tecto a dizer a mim mesma que era estúpida. O Alec não me amava, não
podia amar-me. Não nesse sentido. Ele estava a fazer aquilo que todo o cristão tem
ordens para fazer: amar o próximo como a si mesmo. O Alec Menzies ia desiludir-
me, é o que os homens sempre fazem. O avô morreu. O Jacob suicidou-se. O Matt
era um drogado. O meu pai violara-me.
Prometera telefonar ao Alec no dia seguinte para que ele soubesse que eu
estava bem. Não lhe telefonei nem retribuí os seus telefonemas e mensagens.
Mantive-me longe da igreja e comecei a evitar o Matt. Estava determinada, de uma
vez por todas, a ficar limpa de drogas e livre da dependência. De quem quer que
fosse. Do que quer que fosse. Desperdiçara o meu potencial. Desistira da terapia
com o Mike Haydock e desperdiçara a oportunidade de integrar os alter egos e
encontrar paz dentro de mim. O DPM é uma sala de espelhos e, para onde quer que
a pessoa olhe, vê o seu próprio reflexo distorcido. Só tratando de mim é que poderia,
um dia, ter amizades normais, sem fazer exigências irrealistas como as que fizera
com a Jo Lewin e estava agora a fazer com o Alec Menzies.
Tive de mudar a minha mentalidade. A leitura era a minha droga de eleição.
Gostava de comprar livros, fazer anotações, oferecer livros. Não tinha dinheiro para
isso, de modo que me sentava na biblioteca perdida nos romances de Ian McEwan,
Martin Amis, Bret Easton Ellis. Li Psicopata Americano de uma assentada, ciente
desde a primeira página que o escritor estudara a dissociação antes de criar o seu
anti-herói Patrick Bateman. O livro fez-me perceber que havia pessoas muito mais
loucas do que eu. Quando nos podemos agarrar a este pensamento, não estamos
exactamente no caminho da recuperação, mas podemos vê-lo.
Para evitar as drogas, tinha de preencher cada segundo do meu tempo. Fui
buscar todos os meus CD antigos e, quando não estava a ler, estava deitada no sofá
a ouvir música, os mesmos álbuns, as mesmas faixas, com a minha POC
(Perturbação Obsessivo-Com-pulsiva) de sempre, a qual nunca desaparece. Devo
ter escutado Eric Clapton cantar sobre a “suja cocaína” um milhão de vezes. Tens
razão, Eric, é mesmo suja. Eu queria ficar limpa.
Tomava o meu Prozac e os antipsicóticos. Quase, quase deixei de tomar drogas
não receitadas. Despejei o gin no lava-louça quando encontrei a garrafa que a
Shirley escondera no armário ou atrás do Sr. Feliz no canto do quarto. Os ursinhos
estavam na prateleira e as vozes estavam a murmurar. Limpei o pó do meu portátil.
Durante a minha pesquisa sobre PDI, encontrara a Drª Joan Coleman, uma
psiquiatra, que gere a RAINS (Ritual Abuse Information Network and Support), uma
organização que luta contra os princípios da Bri-tish False Memory Society, formada
em 1993. Esta organização, citando os seus textos, “Ajuda as pessoas e os
profissionais em alegações de abuso refutadas”. Contesta a fiabilidade das
memórias recuperadas e reprimidas e constrói um caso contra aquilo que eles
descrevem como sendo falsas memórias.
A Drª Coleman telefonou-me depois de eu ter deixado uma mensagem no seu
atendedor de chamadas. Garantiu-me que os pedófilos geralmente criam cenários
satânicos como fachada para as suas verdadeiras intenções. As crianças ficam
confusas e são influenciadas pelo ritual, com a sensação de que foram escolhidas
para participarem naquelas cerimónias de pessoas adultas. Eu não estava louca.
Não inventara aquilo tudo: o meu historial médico demons-trava-o. Depois de todos
aqueles anos, depois do meu pai me ter violado e ejaculado na minha cara, eu ainda
pensava: Porquê eu? Não é justo. Como pode uma coisa destas ter acontecido?
Não pode ter acontecido. É impossível pôr fim a estes pensamentos. É impossível
parar o disco que soa na nossa mente.
Terminámos a conversa a falar sobre o Alec Menzies. A Drª Coleman não me
aconselhou a ir vê-lo novamente. Não é essa a sua função. Mas disse que era
imprudente afastar-me de uma pessoa que, como ela dizia, “me estendeu a mão da
amizade”.
Depois da minha conversa com a Joan, continuei afastada do Matt, afastada das
drogas, e matriculei-me num curso de instrutora de ginástica para pessoas com
problemas de saúde mental. A maluca a ensinar os malucos, eu sei, mas estava a
esforçar-me.
Acima de tudo, afastei-me de St. Mildred. Fiquei afastada quase um ano e,
depois, um dia, sentindo-me enérgica e usando um fato de treino amarelo-vivo, dei
por mim a fazer jogging pela cidade, a torre acima da igreja como uma bússola
atraindo-me magneticamente para as portas abertas. Estuguei o passo como se
estivesse numa competição e encontrei logo o Alec Menzies, que estava a
reorganizar os guias e as brochuras nas estantes junto à entrada.
- Alice...
- Porque não me procuraste? - perguntei.
- Estava à espera que viesses tu ter comigo.
- E se eu não tivesse vindo? O que é que acontecia?
Ele franziu o sobrolho enquanto pensava nalguma desculpa.
- Eu sabia que virias quando estivesses pronta - respondeu.
- Tretas.
- É verdade. Rezei.
Os seus olhos brilhavam na luz difusa e notei que a parte branca estava muito
clara. Ele sorriu e aquele sentimento raro e único percorreu-me como uma corrente
eléctrica: de repente sentia-me feliz, feliz por estar ali sob a luz dourada que entrava
pelos vitrais, feliz, atrevo-me a dizer, por estar viva.
Voltámos à mesma pizaria e abençoámos o futuro partilhando uma garrafa de
vinho - uma rara concessão. O Alec levou-me de volta para o meu apartamento e,
no dia seguinte, um serviço de entregas apareceu com uma televisão nova. O Alec
comprou-me um frigorífico novo e uma máquina de lavar roupa. Construía camiões
surpreendentes com os legos sempre que o Billy se manifestava, e falava de uma
forma adulta com o JJ, que apreciava o facto. O JJ era alegre e autoconfiante. Não
precisava de álcool e drogas para ser feliz. Só precisava de alguém para conversar.
Houve alguns deslizes. Muitos deslizes. Houve noites de cocaína com o Matt e
farras de álcool com a Shirley. O pobre Kato tornou a levar a lâmina de barbear aos
meus braços e os complacentes funcionários das Urgências coseram-me de novo.
Ainda que os psiquiatras não estivessem sempre a par do meu estado, o pessoal do
hospital já me conhecia e sabia que eu não me automutilava para procurar atenção.
Telefonavam ao Alec e ele vinha buscar-me e levava-me para casa, enchia o
frigorífico novo de comida, e aparecia na manhã seguinte para se certificar de que
estava tudo bem.
Quando a esposa do Alec estava em França, ele ficava a dormir no meu
apartamento e tornámo-nos amantes. Tornámo-nos amantes na medida em que nos
apaixonáramos um pelo outro. Eu sabia que era amor porque, para minha surpresa,
dava por mim a pronunciar a palavra “nós” quase com tanta frequência como a
palavra “eu”. O sexo nunca seria fácil, mas gostava de estar nos seus braços.
Gostava da sensação das mãos do Alec nos meus braços, nas minhas costas, do
seu braço em redor da minha cintura esguia. Eu sabia que ele nunca me
decepcionaria. Eu ficara longe dele. Testara-o. Ele esperara. Podia contar com o seu
apoio. O Alec tinha idade para ser meu pai e eu estava ciente das dificuldades, da
psicologia de Édipo, das bisbilhotices. Mas o amor não é um conjunto de células que
possa ser estudado sob um microscópio. O amor é. Acontece. Ou não acontece.
Pela primeira vez na minha vida, eu sentia-me normal, esperançosa, feliz.
O Alec aconselhava-me; conheceu toda a minha família de alter egos. Viu-me no
meu pior e eu tentei ser o melhor que pude para ele. Cada vez que o Alec descobria
uma dessas cartas ameaçadoras da água, da luz, do banco, da renda, pagava a
dívida. Mas o problema das dívidas é que, à medida que as pagamos, vão
aparecendo sempre mais por pagar. O Alec pagou essas também. Ele não
acreditava em guardar dinheiro apenas para ganhar mais dinheiro. O dinheiro,
segundo ele, era uma dádiva para ser utilizada e repartida.
- Tens de dar para receberes - dizia ele. - Fizeram o dinheiro redondo para que
possa circular.
A nossa amizade, a nossa espécie de caso amoroso, continuou durante muito
tempo, talvez durante anos, como se tivéssemos estado sempre juntos. Pouco a
pouco, com o Alec a passar cada vez mais tempo comigo e menos tempo em casa,
eu estava a conseguir aguentar-me, a melhorar. Estava a ajudar outras pessoas
com problemas de saúde mental a enfrentarem os seus problemas através do
exercício físico. Sentia-me como se fosse a outra metade de um casal e, ao mesmo
tempo, sentia-me completa. Também me sentia livre. O Alec tinha, aos poucos,
liquidado todas as minhas dívidas.
Fazíamos caminhadas e eu ria-me da forma como o Alec marchava como um
soldado sobre as Malvern Hills. Pernoitávamos em hotéis aconchegantes que
sempre me faziam lembrar a pensão nos arredores de Liverpool, onde eu fora com o
Patrick O’Hay para aquela desesperada noite de amor não consumado. O Alec
ensinou-me a conduzir e, quando passei no exame, com a Shirley ao volante,
naturalmente, fomos ao melhor restaurante de Birmingham e gastámos mais de cem
libras numa refeição.
Depois a bomba explodiu e as paredes desmoronaram-se.
O que o Alec não me dissera foi que o dinheiro que ele andara a desbaratar tão
generosamente consumira a herança do falecido pai da sua esposa e estava agora
a espoliar a sua pensão militar. Em Setembro de 2007, a mulher do Alec descobriu o
que estava a acontecer, fez as malas e mudou-se para o chalé na Provença. Ela
queria o divórcio.
O Alec decidiu ficar comigo. Foram momentos de grande tensão. E ele tentou.
Continuava a vir, a pernoitar no meu pequeno apartamento no topo de um lanço de
escadas íngremes. Ainda íamos à pizaria. Brincava com os legos quando o Billy
aparecia. Continuava tudo na mesma, mas já não era igual. Havia um sentimento
subtil e imperceptível de mudança como quando o Outono muda para o Inverno.
O Natal estava a chegar. Comprámos uma árvore e eu decorei o apartamento
com arranjos de papel feitos pelos miúdos. O Alec comprou um peru enorme. Nunca
fazia as coisas pela metade. O major do exército e a menina ligeiramente doida
eram semelhantes em muitos aspectos. Os semelhantes atraem-se, na minha
experiência, e não o contrário. Uma tarde, passei três horas no centro comercial à
procura do presente perfeito para o Alec e comprei-lhe uma camisola de caxemira
amarela com um decote em V, que me parecia ligar muito bem com o seu fato de
tweed. O Alec nunca vestia um sobretudo, por muito frio que estivesse. “É o sangue
escocês, miúda, eu usei um kilt até aos doze anos.”
Voltei para casa com a minha surpresa embrulhada. O Alec estava sentado no
sofá com uma expressão sombria. Eu sabia o que ele ia dizer. Múltiplas
personalidades dão-nos múltiplas intuições.
Ele ia voltar para a esposa. Era Natal. Os filhos estavam no Sul de França. Era a
atitude mais correcta. Claro que era. Era a atitude mais correcta para aquela
pequena família, mas fiquei com a sensação de ter sido traída, desprezada, sem
esperança e sozinha com a árvore de Natal decorada com ursinhos em miniatura e o
tecto coberto de arranjos de papel artesanais. O Alec guardou os óculos no estojo
gasto e vi lágrimas a correrem-lhe pelo rosto quando fechou a porta.
Como um eco daquela acção, transformei-me instantaneamente na Bebé Alice.
Aconcheguei-me com o Sr. Feliz e chorei durante quarenta e oito horas. Só parei de
chorar quando já não tinha mais lágrimas. Estava esgotada, vazia, e as vozes, que
antes eram intermitentes e distantes, estavam agora de volta, bem sonoras e
venenosas.
Ninguém gosta de ti. Toda a gente te odeia. Tu não és nada. Faz um favor ao
mundo e mata-te.
“Desapareçam!”
Rasguei as decorações das paredes e arrastei a árvore de Natal até aos
caixotes do lixo na parte de trás do prédio. Vi a época da boa vontade passar pelo
fundo de uma garrafa de gin e confortei-me com uma triste sensação de orgulho por
não ter telefonado ao Andy e comprado alguns gramas de cocaína. Tinha um crédito
positivo agora que todas as minhas dívidas estavam pagas.
Acordava todas as manhãs depois de uma noite de comprimidos para dormir
com aquela coisa preta da minha infância a crescer dentro de mim novamente. Eu
sobrevivera à violação, à destruição e ao abuso, sobrevivera à timidez, à depressão,
aos psiquiatras aparentemente indiferentes e às alas psiquiátricas hediondas.
E agora acontecia-me isto.
Mata-te, Alice. Mata-te. É a única forma.
“Pelo amor de Deus, desapareçam.”
Mata-te. Mata-te.
Sempre as malditas vozes.
A 20 de Janeiro recebi uma carta do Alec a informar-me da sua mudança de
endereço. Ele e a esposa tinham vendido a casa e iam mudar-se para um
apartamento mais modesto. Disse que não queria perder o contacto.
O Kato ficou furioso com a carta. Esmurrou as paredes. Deu pontapés no sofá.
Partiu a garrafa vazia de gin. A raiva foi crescendo dentro dele durante os dias que
se seguiram e, a 25 de Janeiro, finalmente explodiu. Inclinou-se na banheira e
começou a retalhar-me os braços.
Mata-te. Mata-te.
“Desapareçam!”
Olha para esse sangue. Finalmente tomaste a atitude certa.
“Desapareçam e deixem-me em paz!”
O sangue escorria-me pelos braços, gotejava pelos meus dedos e manchava a
banheira, as gotas unindo-se e formando uma poça.
Agora é que foi. Finalmente conseguiste.
Sacudi a cabeça para expulsar as vozes e quando olhei para baixo, para a poça
vermelha em contraste com a porcelana branca, vi o rosto do Kato transformar-se no
meu próprio rosto e percebi o que acontecera. Peguei numa toalha para tapar as
feridas, mas o sangue não parava de correr. Eu não sabia o que fazer. Ia-me
sentindo cada vez mais fraca a cada segundo que passava. Finalmente corri para
fora do meu apartamento e subi as escadas de betão até à casa do tio Joe. Ele
estava a tocar violino. Conseguia ouvi-lo através das paredes finas. Bati à porta e
caí nos seus braços quando a porta finalmente se abriu.
Eu conhecia o tio Joe há vários anos, mas só agora enquanto ele chamava uma
ambulância e tentava enfaixar os meus braços é que eu olhei para ele de perto. Só
agora o via: velho, desgastado, atencioso, um refugiado da Europa de Leste. Eu não
tinha a certeza de onde ele era exactamente. Outro ser humano que estava presente
quando eu precisava de alguém, tal como todos nós devemos tentar fazer quando
as pessoas precisam de nós. Alguém disse uma vez que não podemos mudar o
mundo, apenas nós próprios.
As feridas eram profundas e o sangue continuava a ensopar as ligaduras
improvisadas e a pingar para o chão da pequena cozinha.
- Porque fazes isto, Alice?
- Não sei. Desculpe.
A ambulância chegou. Fui transportada pela escada abaixo numa maca e ouvi a
sirene a gemer, imaginando o trânsito a ser parado à medida que nos apressávamos
pelas ruas até às Urgências. Fui imediatamente colocada num cubículo, mas as
enfermeiras não conseguiam estancar o sangue que jorrava dos meus braços.
O que aconteceu a seguir é pouco claro.
Do que me recordo, e recordo-o vividamente, é de estar frente a frente com o
avô. Eu não podia acreditar. Ele sorriu-me e eu sorri-lhe. Ele tinha exactamente o
mesmo aspecto, aquele de que me recordava durante o último Verão, enquanto
comíamos caramelos na sua estufa. Para além da sua presença visual, eu senti
realmente o abraço do avô, terno e cheio de amor. Senti aquele abraço e ouvi-o
dizer:
- Ainda não. Ainda não chegou a tua hora.
Fui reanimada e recuperei a consciência com aquelas palavras a ecoarem-me
na mente. Havia seis pessoas à volta da minha cama na sala de reanimação:
médicos, enfermeiros e um homem com um fato de tweed e um colete verde a
segurar num saco de soro fisiológico e a massajar os meus pés. O Alec voltara para
casa.
Eu perdera, foi-me dito, quase 50% do volume total de sangue do meu corpo e
entrara em choque hipovolémico.
- Perdemos-te durante algum tempo - disse a jovem enfermeira que me levou à
casa de banho depois de eu ter sido estabilizada.
Durante vários momentos não tivera débito cardíaco: o meu coração parara. Se
não fosse por alguma actividade cerebral, eu estaria clinicamente morta. Uma parte
de mim desejara agarrar-se ao meu avô, a minha querida alma gémea da infância,
para atravessar para o outro lado, mas recordava-me de sentir o Alec a apertar o
meu pé e de ver uma expressão de alívio no seu rosto quando recuperei a
consciência.
Quando o meu coração parou de bater, era como se eu estivesse a atravessar
uma nuvem branca para outro lugar. Assim que dei de caras com o meu avô, não
queria voltar a perdê-lo. Eu realmente podia ter morrido. Eu morri. Mas confiei no
meu avô quando ele me gritou para eu regressar, e eu sabia o que ele queria dizer.
Ainda não chegara a minha hora.
O Alec levou-me para casa. Apertou-me nos seus braços e soluçou.
- Tive muito medo de te perder.
O Alec ainda tinha a chave do meu apartamento. Disse-me que chegou pouco
depois de a ambulância ter partido e ao encontrar o sangue e os pedaços de vidro
na banheira, dirigira-se rapidamente para as Urgências. Viera dizer-me que tentara
consertar o seu casamento, mas que estava a viver uma mentira.
- Nunca mais te decepcionarei. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais - disse
ele.
Por pouco, o fim quase fora mesmo o fim, mas, na realidade, esse dia de
Janeiro foi um novo começo para nós os dois. O Alec foi morar comigo e deixou o
seu novo apartamento e a casa de França para a mulher.
Em breve chegou a Primavera e eu era feliz. Era amada. Estava limpa.
Sobrevivera.
Estava melhor? Alguma vez melhoraria? O objectivo final da terapia de DPM/PDI
é a integração dos alter egos. Isto funcionou comigo até certo ponto, mas não
totalmente. Há dias bons e dias maus. Não uso drogas ilícitas e a medicação
mantém-me mais ou menos em equilíbrio. Mais ou menos. Ainda tenho flashbacks e
pesadelos, mas tenho o amor do Alec e um pequeno círculo de bons amigos que me
aceitam pela pessoa que sou, embora nem sempre seja a mesma pessoa.
Foi uma longa viagem para chegar até aqui. Os alter egos sofreram a dor de
serem abusados durante toda a minha infância e eu perdoo os alter egos que me
infligiram dor em adulta. Claro que sim. Eles são meus amigos. Ainda surgem
quando não deveriam, mas estão a ficar mais atenciosos e eu, de minha livre e
espontânea vontade, decidi não os integrar plenamente. O Alec apoiou-me nesta
matéria e sente-se feliz em ajudar o Billy a construir camiões com os legos. A Shirley
ainda é adepta do gin tónico e eu partilho com ela esse gosto pela bebida, mas não
em excesso.
Por vezes, quando desperto de um pesadelo na escuridão da noite, escuto a
vozinha do JJ a dizer que vai correr tudo bem. Deposito nele toda a minha fé, uma
criança de dez anos que é, como o meu avô diria, “sábia para a sua idade”. O JJ,
assim como os outros, ajudou-me a chegar até aqui; e assim, porque ele canta
“Everything's going to be ali right”, eu acredito que vai correr tudo bem. Já não sou
tão vulnerável como era antes. Embora por vezes ainda seja a Bebé Alice, e o Alec
me cante uma canção de embalar para eu dormir. Noutras alturas posso ser o
Samuel ou o Billy, o Kato ou a Shirley. Mas com toda a certeza, hoje sou a Alice.
EPÍLOGO