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Tem como pressuposto a dimensão social de Parker, estes relatos sugerem que, para alguns
do processo saúde-doença, que considera o mo- homens, o que conta para afirmação de sua
do como os sujeitos circulam na sociedade fator identidade heterossexual é a aparência do obje-
determinante dos agravos à sua saúde, e a ma- to, mais do que a prática sexual propriamente
neira que os sentidos e significados que o adoe- dita. Isto nos faz pensar que o atributo de “ativi-
cimento adquire para cada um; os recursos dis- dade” como privilégio da sexualidade masculi-
poníveis para o enfrentamento desse processo na, teria tanto a ver com prática quanto com a
também estão relacionados aos contextos nos atitude em relação ao sexo, ativamente usufruí-
quais os sujeitos se situam. Ao tomar gênero co- do por meio de compra ou sedução.
mo o conjunto de dispositivos culturais que Para além da epidemia de Aids, a crescente
transformam corpos com pênis ou com vulva visibilidade de gays, lésbicas, transexuais e tra-
em homem ou mulheres, marcando os corpos vestis tem trazido demandas específicas de saú-
como masculinos ou femininos não apenas na de aos sistemas e serviços. São reivindicados es-
sua anátomo-fisiologia, mas na constituição das paços para atendimento de gays que contem
suas identidades e na sua circulação social, é as- com profissionais versados em questões de saú-
sumido o inexorável imbricamento do gênero de sexual de homens que fazem sexo com ho-
no processo de adoecer. mens e também em saúde mental, para os aju-
A relação entre algumas marcas de gênero e dar a lidar melhor com o preconceito, a estig-
certos agravos à saúde aparece, por exemplo, na matização e a violência de que são vítimas, bem
reflexão sobre o exercício da sexualidade mascu- como a ampliação do acesso à cirurgia de rea-
lina, em que a disseminação do HIV entre mu- dequação sexual, incluindo o tratamento prévio
lheres e, posteriormente, entre homens que se com hormônios e silicone. Estas demandas não
identificavam como heterossexuais, ilustrou de apenas ajudam a aprofundar as diretrizes do
modo dramático uma das conseqüências da SUS de universalidade e eqüidade, como tam-
norma socialmente imposta aos homens e aceita bém estimulam a crítica ao caráter binário que
pela sociedade em geral, da prática sexual inten- se atribui ao gênero, e reforçam a proposição de
sa, múltipla e variada, como atestado de “virili- que gênero e sexualidade se constituem em es-
dade”. A epidemia de Aids também explicitou feras distintas da experiência humana, e que sua
que estas múltiplas parcerias podiam se dar com conexão se dá de modo diverso, quer se trate de
corpos masculinos ou femininos, independente homens ou de mulheres, em função do papel
de o homem se identificar como “homem” e he- que cada um exerce na reprodução.
terossexual, o que ressalta a complexa relação Para as mulheres a identidade de gênero (=
que existe entre as idéias de “homens”, “masculi- sentir-se mulher e ser percebida como) esteve, e
nidades” e as práticas sexuais. Complexidade talvez ainda esteja, estreitamente relacionada ao
que serve, dentre outras coisas, para alertar o exercício da maternidade. A equação “sexo =
profissional de saúde que a investigação sobre a maternidade”, verdadeira até a segunda metade
forma de obter prazer sexual deve constar das do último século, operou como freio para o
anamneses clínicas, independente do modo co- exercício da sexualidade pelas mulheres, facili-
mo a pessoa se identifica ou do que a sua per- tando a constituição de uma identidade de gê-
formance corporal sugere. De fato, como Parker nero calcada na sua possibilidade de controlar
(1989) já havia demonstrado, na cultura brasi- os desejos, dentre os quais o de sexo. O mesmo
leira masculinidade e feminilidade, do ponto de não teria ocorrido com homens, para quem a
vista sexual, têm mais a ver com a posição assu- identidade estaria mais marcada pela não con-
mida no ato – ativo/passivo, penetrante/pene- tenção ou mesmo exacerbação, entendida como
trado, do que exatamente com os corpos em sinal de poder. Os homens podem (e devem)
atuação, o que faria com que homens se sentis- satisfazer seus desejos, não sendo esperado de
sem mais “homens” quanto mais corpos conse- um homem o comedimento, seja sexual seja na
guisse penetrar, sejam corpos de homens ou de alimentação, no uso de substâncias, na exposi-
mulheres. Ao mesmo tempo, é sabido, especial- ção a riscos, nas expressões de agressividade ou
mente pelo relato de profissionais do sexo, se- mesmo nas ações que visam ganhar/acumular
jam mulheres ou travestis, que muitos homens dinheiro ou poder, atributo de masculinidade
gostam de serem penetrados sem que isso os fa- relacionado a um conjunto amplo de agravos a
ça sentirem-se gays, desde que a penetração seja saúde, como o texto bem enfatiza.
feita por alguém identificado como “mulher”. Assim temos, grosso modo, que para as mu-
Ou seja, em contraste com os dados da pesquisa lheres, uma identidade de gênero construída a
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