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DIÁRIOS AFLUENTES: 7 DIAS, 14 MULHERES

Beatriz Borges
Carol Ruiz
Danielle Rech
Emília Souza
Gisela Maria Bester
Jessica Marzo
Luciana Lima Silva
Marcelle Louback
M. Laurinda R. Sousa (Lau)
Mônica Fragoso
Patrícia Dias
Renata Giriolli
Silvia Nunes Cantarin
Vanessa Ibrahim

Organização:
Luciana Lima Silva
Patrícia Dias
ÍNDICE

Apresentação
Diários de Beatriz Borges
Diários de Carol Ruiz
Diários de Danielle Rech
Diários de Emília Souza
Diários de Gisela Maria Bester
Diários de Jessica Marzo
Diários de Luciana Lima Silva
Diários de Marcelle Louback
Diários de M. Laurinda R. Sousa (Lau)
Diários de Mônica Fragoso
Diários de Patrícia Dias
Diários de Renata Giriolli
Diários de Silvia Nunes Cantarin
Diários de Vanessa Ibrahim
APRESENTAÇÃO

Muitas autoras desta coletânea enveredaram pela literatura na infância, escrevendo em


caderninhos fechados com cadeado. Dos primeiros diários, espécies de escrita-semente, até
os dias de hoje, muita coisa mudou, mas a escrita segue como fio condutor em nossas vidas.

Escrever é colocar em palavras o que está na cabeça ou diante dos olhos, e, por mais que um
texto seja considerado ficcional, é impossível excluir dele o eu que o escreve. Desse modo,
esta coletânea brinca com as possibilidades de escrita valendo-se da mesma liberdade dos
tempos infantis: um jogo de ficção e autoficção que convida o leitor a adentrar a vida de
quatorze mulheres e acompanhar rotinas ora verdadeiras, ora inventadas.

Nos fios que se cruzam, há relatos de viagens – para fora ou para dentro –, angústias e
urgências da vida, delícias e perrengues da maternidade. Como um bom confidente, o diário
acolhe desabafos, pensamentos e reflexões poéticas.

O termo “diário” deriva do latim diarium, enquanto o termo “registro diário” tem correlação
com a palavra journal, presente em inglês e francês, cuja origem latina é a expressão diurnal.
Essa etimologia remete à ideia de que manter um diário consiste em registrar os
acontecimentos da própria vida, uma espécie de arquivamento do eu, usando
necessariamente a ordem cronológica. Para o autor francês Philippe Lejeune, um diário sem
datas é somente uma caderneta.

O diarista demonstra um desejo de racionalizar e organizar a experiência do cotidiano. Assim,


sua escrita funciona como uma tentativa de conter o tempo, que é insubordinável. Devido
ao caráter introspectivo que possui, o diário faz parte das narrativas autobiográficas.

Imagina-se que, ao narrar um tempo recente, algo que acabou de acontecer, exista maior
exatidão nos relatos; no entanto, é preciso lembrar que tudo pode ser ficcionalizado, mesmo
sem intenção. Afinal, como dizia Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”.

De modo geral, o diário é fragmentado, e as entradas – os registros diários – não precisam


seguir formatos rígidos. Alguns acumulam funções: são agenda, registro de acontecimentos
pessoais ou de pensamentos; outros, são válvulas de escape para angústias, confissões e
desabafos que preferimos acomodar em folhas de papel.

O diário, como outros gêneros, é uma forma de discurso na qual o humano se interliga ao
uso da linguagem. Uma característica interessante do diário compreende a questão da
intencionalidade: embora o texto seja sigiloso, existe a possibilidade de que seja lido por outra
pessoa. O deslocamento entre a função diário-refúgio e diário-confidente para diário-espelho
corresponde a um processo importante de autoconhecimento, reconhecido por Foucault em
seus estudos sobre as tecnologias de si.

A escrita diarística comporta algumas subcatergorias, como diários de viagens, diários


íntimos, diários públicos, metadiários – nos quais o eu que escreve é o eu da literatura –, e os
diários virtuais. Nestes DiáRios afluentes: 7 dias, 14 mulheres, em que há várias dessas
subcategorias em diálogo, existe um quê de rebeldia e subversão. Outrora, muitas mulheres
tinham seus diários violados, uma vez que o acesso a eles servia como forma de controle das
ações e dos pensamentos femininos. Em festas de famílias, por exemplo, os diários das
jovens eram expostos às leituras alheias, e registros considerados impróprios eram
queimados.

Ao longo dos anos, os diários vêm exercendo grande fascínio. A curiosidade pela vida alheia,
somada à sensação de penetrar na intimidade do outro e descobrir seus segredos, transforma
o leitor do gênero em um voyeur.

Aqui, compartilhamos nossa intimidade, real ou inventada, como forma de oferecer nossos
desejos, fantasmas, alegrias, tristezas e inquietações ao diálogo com aqueles que nos leem.
Afinal, ler o outro traz sempre a possibilidade de ler a si próprio, e esse movimento, em eco,
é o que torna um texto realmente vivo e mobilizador.

Torcemos para que muitos outros rios possam afluir para estas águas pelas quais navegamos
nas páginas a seguir. Boa travessia!

Patrícia Dias
Luciana Lima Silva
DIÁRIOS
17 de maio de 2023 a 23 de maio de 2023
BEATRIZ BORGES é uma autora gaúcha e feminista que sempre esteve envolvida com a
escrita. Iniciou sua caminhada literária em língua inglesa como dramaturga da peça The Globe,
apresentada em um festival de teatro na Goldsmiths, University of London, onde também
se tornou Mestra em Writing for Performance. Além de dramaturgia, já publicou contos,
crônicas e poesias em diversas coletâneas no Brasil e no exterior. Publicou Cenas do filme das
nossas vidas: 60 haikais de Beatriz Borges (2022) e organizou a coleção Abraçar e resistir: vozes
feministas (Editora Libertinagem, 2023). Também participou da antologia Anônimo não é nome
de mulher (Patuá, 2022), organizada por Luciana Lima Silva. Possui graduação em Creative
Writing and Film Studies pela London Metropolitan University. É fundadora da Casa da
Criatividade Total, onde ministra cursos e oficinas literárias.
DIA 1
17 de maio de 2023
Somente agora consigo sentar, respirar e, ainda mais importante, escrever. Estou no portão
107 esperando o meu voo, que não está atrasado. Até aqui foi só correria, mas, apesar de
tudo, olhando para as minhas botas, me atrevo a dizer que sigo em estilo. E por que não
seguiria? A merda da desigualdade fede, cresce e entristece, mas o problema não está nos
meus calçados. Bem, eu acho que não. Aliás, usei muito essas botas no projeto de inclusão
cultural da prefeitura, nos bons tempos petistas que agora retornam, mesmo que a passos de
formiguinha. Tomara que aquele projeto também retorne. Tenho que falar com a Adriana
sobre isso.
De qualquer maneira, sim, um bom sapato sempre pode simbolizar a desigualdade, mas
também simboliza prosperidade. E estes são vermelhinhos como os da Dorothy. “There’s no
place like home”. Yes, dear Dorothy, but I wanna fly, far away from here, far away from home! Just for a
little while.

DIA 2
18 de maio de 2023
Tomei meu café e voltei para a cama, mas sem nenhuma intenção de dormir novamente.
Acordar em São Paulo é bem estimulante. Escrevo no meu diário e, ao mesmo tempo,
reorganizo minha agenda. Algumas coisas não mudam nunca. Mas há algum problema com
isso? Enfim, preciso responder mensagens. Preciso enviar mensagens. Tanta gente para
entrar em contato.
Tava com saudade de dar um rolê em Sampa, a cidade da minha adolescência. Mas o melhor
de tudo é abraçar o Pedro e a Valentina. O Gabriel está lindo demais, até as espinhas são
fofas. O danado não para de crescer, deve ser por isso que eu envelheci tanto.

DIA 3
19 de maio de 2023
Há tempos que eu não dormia tão bem. Dois cafés + croissants com quilos de manteiga +
milhões de frutinhas suculentas. Não quero que esta viagem acabe. Eu preciso continuar
dormindo bem. E comendo sem culpa. Me sinto tranquila. Uma pessoa bem alimentada pode
com qualquer coisa.
Escrevi para o meu chefe, enviei minha demissão. Agora não existem mais desculpas. Estou
livre! Vou realizar os meus sonhos nem que para isso tenha que parar de sonhar e cair na
real. Liberdade! Tenho que manter a minha mente expandida e lembrar que tudo o que me
falta pode ser compensado com a minha coragem.

DIA 4
20 de maio de 2023
Louca para me encontrar com o Thales! Lembrar dos nossos tempos londrinos e conversar
em detalhes sobre os atuais. Temos que celebrar a nossa amizade! Desde que a Mari se foi,
sinto uma necessidade maior de estar com ele. Éramos três. Não, ainda somos três. Apesar
de eu estar sempre lembrando dela, é quando encontro o Thales que fico em paz com o fato
de a Mari não estar mais aqui fisicamente. Que saudades daquela doçura dela! Mas, amiga, tu
ainda estás aqui, sempre vais estar aqui, aqui no coração.
Hoje vai ser foda!

DIA 5
21 de maio de 2023
Eu sei que pode parecer bizarro, mas eu precisava visitar o velho prédio de Pinheiros. Chorei
quando cheguei perto. O sol quase me cega. Como aquela relação que me tirou a visão, me
tirou do eixo, roubou tudo de mim. Será que dá para esquecer, sem forçar ou mentir? Que
ninguém saiba dos meus tormentos, pois deles não me orgulho. A verdade é que sinto falta
dos abraços, do cafuné premeditado, era tudo divino, mas paguei caro demais pelo meu
delírio.

DIA 6
22 de maio de 2023
Hoje me levantei às 6h da manhã, tonta da bebedeira de ontem. Quase desisti dos meus
planos, das minhas boas intenções, porque meus olhos não abriam direito. Mas senti como
se os anjos estivessem me dizendo para não desistir e seguir sem questionar o meu estado
vulnerável. A Val me deixou no metrô Ana Rosa, de lá cheguei rapidinho à rodoviária Tietê.
Dormi no ônibus.
Acordei em Aparecida. Fiquei sabendo que havia uma missa começando naquele instante. A
minha ideia era rezar, meditar, caminhar, mas não exatamente ir à missa, no entanto a missa
caiu bem porque pude ficar sentada, além disso o padre orou pela democracia no mundo e
aquilo me acolheu. Lembrei de todos, ou quase todos. Acendi duas velas de sete dias, uma
para Nossa Senhora Aparecida e uma para São José. Logo depois, do lado de fora da igreja,
parei para tomar um caldo de cana e fiquei observando os fiéis se aproximarem do santuário
de Nossa Senhora Aparecida. Uma sensação de união com o mundo me invadiu, uma
reflexão sobre como precisamos uns dos outros. Gratidão!

DIA 7
23 de maio de 2023
Estou de malas prontas para o meu retorno. Já revisei tudo e tenho certeza de que não esqueci
de nada, quero dizer, de nada tangível. Aquilo que pertence ao coração sempre se desmembra
um pouco, vive entre mundos sem seguir protocolos, sem passagens de ida e volta.
Eu vou deixando meus pedaços, meus segredos. Já no aeroporto, antes de entrar na aeronave,
olho para baixo distraída e não resisto, bato com as botinhas vermelhas no chão murmurando
para mim mesma: “There’s no place like home”.
CAROL RUIZ nasceu em Campinas, SP, em 1989. É poeta e escritora, formada em Letras
pela PUC-Campinas. Atua também como revisora de textos e roteirista audiovisual. Tem um
livro de poesia publicado: Raízes (Patuá, 2022), e possui poemas em várias revistas literárias
digitais, como Ruído Manifesto, Poesia Primata, Aboio e Sucuru. Escreve no portal Fazia Poesia e
integra os coletivos literários RuídoRosa e Escreviventes.
DIA 1
17 de maio de 2023
Acordei com aquele gosto no céu da boca, procurando estrelas.
F. disse que estava preocupado comigo, por conta dos gritos na madrugada. Acho que sonhei
de novo com aqueles desdobramentos. Minha terapeuta diria que é por conta do trânsito, o
da minha alma, não o astrológico. Mas não posso deixar de considerar que estamos nos
últimos dias da fase minguante, e o corpo sente. O meu, principalmente.
Essa coisa de ter todos os meus centros abertos faz com que meu corpo sinta a mudança ao
meu redor de forma muito intensa. Ser uma pessoa transitória também. É como não ter uma
casa, um lugar fixo. Será por isso que eu sempre me lanço em relações duradouras? Talvez
seja uma forma de ter pra onde voltar num universo interno que é só transição: provar,
refletir e ampliar. Como se não bastasse, pra ter certeza de algo e agir de acordo com a minha
intuição, são necessários, no mínimo, 28 dias. Eu sou a própria lua circundante.

DIA 2
18 de maio de 2023
Acordei me debatendo com as baratas passeando pelo meu corpo, embora menos assustada
do que imaginei que ficaria numa situação dessas. Eis o resultado da visita ao antiquário. Mas
o que mais me intrigou foi começar o passeio com a Belle e me deparar com a minha mãe
no meio do caminho. As tais das histórias oníricas.
À tarde me encontrei às voltas com a busca pelas luvas de Ana. Queria tentar um book com
a elegância dela, vestido de veludo vermelho, luvas pretas, de pelica, salto alto fino, também
pretinho. No fim das contas, só encontrei mesmo o maço de cigarros slim Elegance no fundo
da gaveta de lingeries. Aproveitei o fim de tarde, peguei um dry martini, acendi um dos
cigarros e fiquei à la Joan Crawford no sofá, com o olhar apaixonado da vênus em escorpião.
Mas sem fotos.

DIA 3
19 de maio de 2023
A lua nova entrou em touro só às 12h53, mas essa alteração astrológica já mostrava a que
veio logo às 8h da manhã: me levantei com uma fome dos diabos, mas com os pés no chão.
Passei o dia escrevendo sobre assuntos que não me interessam no escritório gelado. Tudo
para pagar os boletos. Às 17h decidi ferver água e preparar um chá, quente e vermelho
sangue: um blend de cranberry e romã. Até uma xícara de chá carrega seus fantasmas.
DIA 4
20 de maio de 2023
Acordei ainda imersa em meus sonhos da noite. Foram tão fortes e tão alegoricamente claros.
Entre bestas e demônios, abracei minhas incertezas e minhas sombras: caos, eu caminharei
ao seu lado, pois somos um só.
Fiquei até emocionada com a cena se formando de novo em minha mente: eu, como não é
novidade, estava fugindo. Não é fácil ser uma pessoa que está sempre correndo de algo nos
sonhos, às vezes, até voando, pulando prédios... em fuga intensa. Meus algozes sempre
assumem diversas formas, mas a fuga é sempre esta: de mim mesma. Mas, desta vez, como
um sinal de que alguma coisa, aqui dentro, está mudando, eu decido parar de fugir. Eu
concluo que, enquanto estiver correndo, nunca deixarei de ser perseguida. Então, eu paro de
correr e começo a andar calmamente. A besta — com corpo humano de quatro e cabeça de
onça preta — para de correr atrás de mim e começa a caminhar ao meu lado.
De fato, a evolução começa no inconsciente. Enquanto revivia tudo isso em frente ao
espelho do banheiro, com o rosto acordado pela água, sorri e me senti, pela primeira vez, eu
mesma. Minha terapeuta teria ficado orgulhosa.

DIA 5
21 de maio de 2023
Hoje me lembrei do nosso primeiro beijo, naquele ponto de ônibus. Me lembrei também
daquela noite no bar: F. me ensinando a jogar sinuca, seu corpo quente atrás do meu, a paixão
no seu mais alto grau. Também me lembrei dos óculos e do celular que perdi, esquecidos em
algum quarto de motel. Quando estava com F., todo o resto tinha pouca importância. O frio
na barriga, a energia elétrica passando em todos os pontos do meu corpo... me jogavam pra
longe do meu centro. Só pode ser isso, pois não tenho planetas em peixes, sou pouco dada
a distrações, exceto quando estou vivendo à flor da pele os meus desejos.
Essas lembranças todas me deram vontade de escutar as nossas músicas, os CDs que F. e eu
gravávamos para as nossas viagens. “Vamos fugir deste lugar, baby... pr’onde quer que você
vá, que você me carregue”. A gente misturava de tudo um pouco: Skank, Caetano, Vanessa
da Mata, Pixies, Bob Marley... tudo girando em torno da descoberta que éramos nós dois,
juntos, intensos, passionais. As cenas até se formam em minha mente: a gente descendo a
serra de Santos, brincando de casal em São Vicente, preparando a nossa ceia, vendo os fogos
explodindo no céu de frente pro mar... “Where is my mind... way out in the water...”. Ai, que
saudade que me dá o açúcar do desejo.

DIA 6
22 de maio de 2023
Meus sonhos têm vindo em demasiada potência. Narrativas míticas, inconsequentes, fugas
que se tornam corajosamente parcerias.
O sol entrou em gêmeos hoje, e mesmo nessa dubiedade, nessa atmosfera de incerteza, não
pensei muito e tatuei, na mão esquerda, uma libélula e, no braço direito, uma onça. A
liberdade e a selvageria serão meus guias. Mas a verdade, a mais pura e crua verdade, é que
hoje, desde que acordei e coloquei os pés no chão, sinto minha cabeça estalar, sinto que em
mim repousa uma impostora. Hoje não sei quem escreve estas palavras.

DIA 7
22 de maio de 2023
Acordei sentindo uma comichão em meus pés. Talvez sejam os sinais de Marte em Leão; e
como tenho Leão na casa 1 e Marte é o verdadeiro impulso pra levantar da cama, fui com
fôlego, potência e desejo... preparar um café. Apesar de todo o ímpeto, passei mais um dia
escrevendo. Poemas? Não, sobre medicina veterinária. Nada poético, mas paga as contas. O
escritor é um bicho que sempre tem que se dividir entre escrever o que move sua existência
e o que realmente remunera. A conta nunca fecha, e passamos mais tempo escrevendo sobre
temas aleatórios do que escrevendo a nossa história. E, neste caso, o duplo sentido se aplica,
sim. Pareço frustrada? Mas não estou! Desde que fui demitida, vulgo libertada, do meu último
emprego CLT, me sinto leve, com mil possibilidades à minha frente. E as que mais me fazem
feliz são as mais simples: poder sair para tomar um café no meio da tarde; tirar um cochilo
sem culpa depois do almoço; escrever um poema assim que ele surge na ponta dos dedos.
Talvez Marte em Leão esteja aqui pra me dizer isto: siga os seus desejos. E eu vou...
DANIELLE RECH nasceu em Tubarão, SC, e mora em Curitiba, PR. É licenciada em
Ciências Sociais e mestra em Antropologia Social. Publicou textos em revistas literárias e
participou de antologias poéticas. É autora de Três Miomas (Urutau, 2022) e organizadora da
antologia Nove Meandros (Donizela, 2023). Faz parte dos coletivos Marianas, Vozes Escarlate,
Mulherio das Letras e RuídoRosa.
DIA 1
17 de maio de 2023
Dia em que a face é acariciada de forma amável pelo hálito perfumado da manhã. Não foi
meu caso. Despertar súbito. Cérberos da vizinhança guardam o mundo dos insones. Sangue-
verde-bile correndo pelas veias. Orquestra sinfônica canina às 6 da manhã. Latidos e uivos
em uma combinação de sons e ritmos pontiagudos. Queria me despir da lucidez gélida e
lançar um coquetel molotov no Mundo da Coralina: fun with dogs. Fúria e desejos de
destruição.
A deusa dos cachorros tem cabelos de fogo. Quando eu for vociferar para ela, seus cabelos-
labaredas vão se desprender de sua cabeça e atingir meu corpo todo. Tornarei-me fumaça-
cheiro-de-livro-novo. Ninguém tira sua liberdade-ígnea de tocar seu negócio canino. E
ninguém impede os cachorros de serem cachorros. Os cães rechaçam a obsessão social que
pretende eliminar por completo a animalidade dos corpos. A questão de civilizar o selvagem
vem me atravessando ultimamente. Os cachorros parecem resistir à domesticação sem
frestas.
Tive um sonho na noite passada. Uma chuvarada despencava do céu cinzento. Não era água.
Eram pinhões prestes a perfurar minhas córneas e descerem para o porão do meu corpo.
Mulher-araucária. Híbrida. Mas talvez eu não tenha solidez suficiente para me tornar mulher-
árvore, estou mais para mulher-cabeça-de-vento, como dizia minha vó. Questiono-me se a
simbologia dos pinhões não seria meu inconsciente indicando a chegada do inverno. Um
inverno, como tantos outros que já enfrentei, em que eu mergulharia em um porão glacial.
Subterrânea em noites longas. Um secreto movimento íntimo em que eu estaria à beira da
volúpia trágica.
Café da manhã. Eu: ovos mexidos com queijo, um punhado de amêndoas, café puro pelando
com 5 gotas de estévia e pasta de amendoim com cacau. Meus filhos: pão com requeijão e
doce, leite com achocolatado, um pedaço de bolo de chocolate e um cajuzinho, restos da
festa de aniversário de P. Fui para minha infância com os cajuzinhos que a G. fez. Tenho um
encantamento pelos cabelos cor de gengibre, por aquelas pernas longas e por quando ela
desata a falar em alemão contando sobre suas aulas. Comi inúmeros cajuzinhos durante a
festa. Meu eu-criança era uma fada com asinhas esvoaçantes e muitas ideias doidivanas a
fazer estripulias no ar com o cajuzinho na mão. Havia cachorro-quente também, mas eu
estou fugindo do pão igual fujo de lagarto. E eu me derreto de aversão a lagarto. Sendo assim,
perguntei para G. se tinha uma saladinha para comer com a salsicha. Ela me ofereceu
tomates-cerejas e pepinos já fatiados. Me senti fina: salsicha com salada. Acompanhada de
vinho, obviamente. Só assim se repousa na elegância. Fazia tempo que eu não bebia nada
alcóolico. Matando as saudades de um amigo. Beber vinho. Respiros brandos durante aqueles
instantes que pingam prazer. Encontros com pessoas. Exalar espontaneidade. Inventar
histórias.
Depois de uma batalha épica, resolvi o imbróglio com a imobiliária. L. fez a tarefa de
matemática sem precisar do meu auxílio. Reparei que quando ele estuda as matérias das quais
não gosta, inventa músicas. L. cria um ritmo bizarro e canta desafinado. E, quanto a mim,
queria escrever. Depois de pouco tempo às voltas com meus textos, uma outra criança com
cabeça de ninja, só os olhos negros vívidos de fora, veio falar comigo pela milésima vez.
Respondi a D. com aspereza na voz. Tocou a campainha de mãe desalmada na minha cabeça.
Ou seria eu uma mulher que gostaria, por algumas horas, de apenas se concentrar no
trabalho? Apenas no trabalho. Como fazem os homens.
Não penteei os cabelos hoje. Percebi que minha blusa está rasgada na gola. O dia se arrasta.
É uma lesma comprometida a locomover seu corpo pegajoso por muitos e muitos
quilômetros até chegar ao vazio. Estagnação criativa. Resolvi entrar no Quarto de despejo, da
Carolina Maria de Jesus, sugestão de P. na reunião de ontem. Faisquei alegria quando me
lembrei de que possuía o livro em casa. Carolina Maria me fez recordar dos privilégios aos
quais tenho acesso. Sacode meu mundinho confortável. O abalo imprescindível que a
alteridade provoca. Veio à minha memória uma foto do encontro de Carolina Maria com
Clarice Lispector. Vasculhei a internet até encontrá-la. Não conseguia tirar os olhos das duas
escritoras lado a lado. A criatividade artístico-literária encarnada em Carolina e Clarice. O
invisível tornado materialidade pela linguagem. Livros são objetos sagrados. Tomou-me o
impulso de pegar Água viva na estante. Tocar o sagrado. Coloquei-o ao lado de Quarto de
despejo. Os livros e as autoras na fotografia. Respirei fundo e folheei cada fragmento do
sagrado, sentindo a densidade do papel como se fosse carne. Li trechos, aos sussurros, oração
que me conduziu a um transe inebriante. Um pequeno ritual íntimo.

DIA 2
18 de maio de 2023
O sol da manhã não se fez presença hoje. Não veio envolver seus raios em torno do meu
corpo enquanto dançamos movimentos-intuição. Sessão com a psicanalista. Exaurida.
Desenrolamos uma dança intensa com o brandir de símbolos densos. Dança-dor. Tocadas
profundezas. Estou subterrânea. Ticê me observa. Inverno brutal. Dança trágica: memórias-
asperezas, dores-fósseis e rostos em sofrimento criam movimentos-melancolia. Dança
turbulenta: afetos frenéticos e corpos se debatem em angústia no salão da minha psique.
Sinto falta de uma brisa-bálsamo no rosto durante uma dança inventada ao ar livre. Danço
agonia na beira de um penhasco. Pulei em um abismo-ponta-de-faca. Meu íntimo. Meu corpo
rasgado não quer ir para o mundo. Encolho-me sangrando debaixo de folhas sem vida.
Quebradiça. Fico com meus restos. Recolho-me em meu corpo-estação-noite.

DIA 3
19 de maio de 2023
Localizo-me no mundo como uma sonhadora. Noite passada, sonhei que era mãe de duas
meninas, uma chamada Cecília, e a outra eu olhava, olhava para o rosto dela e não me
lembrava do seu nome. Queria me lançar no pântano das mães desalmadas. Como pude
esquecer o nome da minha própria filha? Rememoro meu desespero. Seria um trauma para
a menina. Ou não. Talvez ela detestasse ser minha filha. De qualquer modo, estou convencida
de que, em meio a um colapso subjetivo, músculos das costas enrijecidos, cabeça pesada e
uma imensa vontade de sumir diante do caos, é bem possível que uma mãe esqueça o nome
da própria filha. A heroína inabalável pode sofrer de amnésia. E não é só o nome da criança
que ela vai esquecer. Vai esquecer do seu próprio corpo que pulsa vontade de dançar à noite.
Vai dizer não para uma viagem para Ponta de Itaquena. Vai deslembrar de si mesma. Vai
fingir que não há uma vida prazerosa e repleta de descobertas solares que não incluem os
filhos. Não é sonho.
N. me convidou para escrever o prefácio do livro dela. Alegria exuberante. A folia em meu
corpo me faz doer as células. No café da manhã: amêndoas, pedaços de queijo colonial, maçã
e abacaxi picados com flocos de coco e cacau. Emendo o café puro que esfola a garganta
com seis gotas de stevia. Enquanto o tomava, pensei no almoço. Aquele dia em que mal
acordei e já estou pensando no menu. Talvez por ser sexta-feira. Talvez por ser um dia em
que senti vontade de comer mais que o habitual. Ou talvez pelo desejo de comer uma comida
afetiva para me acolher. Mergulhei no Atlântico, penteei os cabelos de Iemanjá e pesquei
umas tilápias. Para o almoço, eu as preparei na manteiga com sal e pimenta. Fiz uma salada
de alface e rúcula com castanhas-do-pará. Resolvi colocar também pedaços de abacaxi e umas
folhinhas de hortelã. Comi com inhame e abacate com sal, pimenta e vinagre de maçã.
Hoje meu corpo clamava por doce. E, por sorte, consegui detectar por qual meu coração
pulsava: pudim. Quando meu faro está danificado, saio comendo tudo quanto é doce que
vejo pela frente. A vó I. fazia um pudim de leite que deixava as crianças tão alucinadas que
nós nos estapeávamos pelo último pedaço. Saudades da vó I. Saudades de quando perguntava
o que ela estava fazendo e a vó respondia: “é espicula”. O que é essa tal de “espicula”, eu me
perguntava. Certamente algo mutante. Tanta coisa era “espicula”. Personagem da minha
infância. E eu, uma menina-espicula. Corri para a padaria ao lado de casa, lá sempre tem
pudim. Pedi um pedaço, mas não voltei ainda para casa. Pensando em um futuro mélico
dentro em breve, pedi também um pedaço de bolo de milho com coco, bombas de chocolate
para as crianças e brownie para meu marido. Não sei o que teremos para jantar,
provavelmente, pediremos comida. Eu estou que é uma moqueca de fadiga no quesito
cozinhar. Nem pensar em ficar com a louça por toda a eternidade! R. é metódico, exímio
lavador e guardador de louças. Melhor assim: ele com a louça e eu com as invenções e
improvisos na cozinha.
Conversei pelo celular com o construtor que fará a reforma no telhado. Acertamos os
valores. Comprei os materiais e pedi para entregar. Saí de carro. Ainda bem que comi pudim.
O trânsito. Descargas de raiva. Palavras. Música. Ilustrações abstratas. Escritos-
sobrevivência. Estratégias para que a violência não vaze, descomedidamente, pelos meus
orifícios. Um homem em uma caminhonete branca entrou na contramão em uma rua
transversal à rua em que eu trafegava e, desejando corrigir seu erro velozmente, jogou o carro
para cima do meu. Tive que desviar dele e dos carros estacionados na continuidade da rua
em que eu dirigia. Minhas artérias tamborilavam insanamente. Depois, ele me ultrapassou.
Vai pro inferno e leva sua caminhonete junto! Eu me transfiguro em um animal sedento por
jugulares. Música, enquanto dirijo, para amansar a animalidade. Vontade de arquitetar e levar
a cabo uma vendeta bem sangrenta, encarnar Beatrix Kiddo. Devir-ave-de-rapina com
garras-adaga em um desejo-fluxo de rasgar os biltres. No trânsito, eu me desloco de uma
posição identitária familiar para um devir-animal. Também há deslocamentos por meio dos
textos que leio e escrevo. Devir-animal-literário. Explorar mais os devires por meio da
escritura.
Preparação para a roda de leitura e conversa de amanhã na biblioteca H. H. com escritos de
autoria de mulheres. Experienciar os textos. Acessar os oráculos-livros. Certos poemas me
afetam como um soco no estômago, um arrebatamento, como dizia Hilda Hilst. Hilda tem
convivido comigo ultimamente. É bizarro como, em certos momentos da minha existência,
autoras com as quais tenho uma ligação profunda estão comigo. Hilda. Sylvia. Alejandra.
Clarice. Eu as sinto. Em presença de alma. Não apenas nos escritos.
Tomei vacina de covid-19 no posto do SUS perto da minha casa. Nós permanecemos firmes
por aqui: vacina, cultura, arte, literatura, ciência, aceitação da pluralidade humana.
DIA 4
20 de maio de 2023
Manhã de céu risonho e pés de Hermes. Meu marido alimentou as crianças, tomei café puro
quentíssimo, organizei os últimos preparativos e corri para chegar no horário.
Minha carne serelepe adentrou a biblioteca H. H. exatamente às 10 horas. Soltei uma bafejada
de quem correu para chegar na hora combinada. K. me recebeu com sorriso. Fico
embevecida com seus olhos de sobrevivente e sua cabeça fervilhante de ideias. K. me
apresentou C., também funcionária da prefeitura, mas não da biblioteca, e sim de uma escola
municipal. Cabelos cor de linho e uma maciez acolhedora nos gestos de C.
As mulheres foram ocupando o espaço da biblioteca. Procurei sentir a atmosfera da roda. O
interior da biblioteca é um espaço mágico: o perfume do acervo de poesia, os olhos curiosos
dos livros infantis, o irreal sedutor dos livros de literatura fantástica. Almofadas coloridas em
um canto pitoresco e belos origamis coloridos pendurados. Acenos para escuta e fala livre
das mulheres. Café, chá, bolo fofinho, pão de queijo. Chegar à casa da mãe e querer ficar lá
numa conversa boa por horas e horas e horas. Os presentes-flor-de-laranjeira que recebi me
fizeram sentir o calor de uma primavera em pleno maio.
Não segui o roteiro original que planejei. Certas coisas se repetem. Construções de si
enquanto mulher, mãe, filha, trabalhadora, transitaram pela roda. Fomos tecendo um texto
coletivo com nossos pedaços, afetos e inquietações.
A conversa fluiu tal rio caudaloso correndo livre. Falamos sobre a importância política dos
coletivos artístico-literários. Em certo momento, mencionei que não era possível rotular a
literatura produzida por mulheres: escrevem poesia, terror, romances, literatura erótica.
Percebi que M. torceu o nariz, fez uma cara esquisita e virou o rosto para o lado. Depois de
alguns minutos, ela nos contou que estava ali por acaso. O plano inicial era realizar um exame
ginecológico e, como iria demorar, resolveu passear pela praça onde se localiza a biblioteca.
Reparou o cartaz do lado de fora convidando para o encontro. Decidiu entrar. Depois
completou: escrevo literatura erótica. Só ouvi as mulheres num burburinho animado. As
caras de satisfação. Sim, nós vivenciamos nossas sexualidades e vibramos ao falar, ler,
escrever e nos libertar dos tabus. M. revelou que não costumava divulgar que escrevia, muito
menos literatura erótica. Percebi um muro-constrangimento em seu rosto. “Tenho muito
material, mas não publiquei ainda, Dani”. “Publica teus textos, M., adoraria lê-los”. Falei que
as mulheres têm muitos ganhos sociopolíticos com textos eróticos de autoria feminina
circulando pelos mais variados espaços. Muitas sentem constrangimento, fruto da sociedade
patriarcal e conservadora, mas que precisávamos pôr abaixo as repressões e estigmas,
escrever e publicar. “Lança teus textos eróticos no mundo, M.” Convidei-a para participar
de coletivos feministas: Marianas, Mulherio das Letras, Vozes Escarlate, RuídoRosa.
Convidei todas as mulheres. Lágrimas escorriam pela face de M. Estar entre mulheres nos
encoraja a criar carne em nossos desejos.
Poesia e prosa. Lemos os textos trazidos para a roda. Agitação de corpos-água. Mergulhos
em nossas profundidades. Nove meandros. Livro denso. Conta histórias de experiências e
vínculos que vão sendo construídos por dores, desejos e acontecimentos imponderáveis.
Senti essa densidade enquanto escrevia poemas para esse livro. Aprofundei-me em sua
intensidade meândrica enquanto o organizava, ao experienciar os escritos das mulheres que
enviaram para seleção.
Um texto de Nove meandros que narra violência doméstica, escrito por J., acessou conteúdos-
profundezas daquelas mulheres. K. narrou a história de sua mãe e o entrelaçamento com as
biografias dos filhos. Sua mãe cuidava dos três filhos e sofria violências advindas do padrasto
de K., que sofreu abusos físicos e psicológicos, conviveu com feridas e silêncios para que as
violências permanecessem abrigadas no espaço privado, longe da exposição pública. Ela
desenvolveu estratégias para tentar proteger a irmã mais nova da dor. Fez-se muralha para
sobreviver subjetivamente. Gritos. Tapas. Cortes. Marcas. K. rememorou a raiva e o horror
de conviver com um homem que acreditava ter poder de vida e de morte sobre corpos e
desejos. Assim que reuniu condições materiais e emocionais para sair da casa e romper com
os vínculos que a dilaceravam, partiu. Estudar. Bancar a decisão de não perpetuar a realidade
da mãe. Fome. Tensão. Medos. Lágrimas. Escolhas e conquistas. Éramos todas olhos-
empatia para K.
Breve pausa para respiros, copos d’água e xícaras de café. Entramos em uma discussão sobre
o peso do patriarcado em nossos cotidianos, da misoginia e a necessidade de suporte para as
mulheres deixarem os agressores: políticas públicas, empregos, creches, apoio de familiares,
de amigas. Há uma complexidade nesse rompimento afetivo-conjugal que não costuma ser
considerada. Chamamos atenção para os constantes julgamentos superficiais e acusações,
assim como para a disseminação de ideias machistas em relação às mulheres que alongam a
relação violenta. Vieram também reflexões sobre as realidades das mulheres que lá estavam.
O acúmulo de atividades cotidianas. Os cansaços. A escuta de si e da outra mulher.
Redemoinhos. Mão que dá suporte para enfrentar a turbulência das águas. Fim da roda.
Despedida calorosa. Mulheres fissuradas com desejo de mais encontros.
Após a roda de conversa, eu encarnava euforia e cansaço. Fui para o churrasco com os
colegas de trabalho de R. Cumprimentar pessoas desconhecidas. Conversas breves.
Conversas alongadas com corpos-territórios próximos. O pequeno vira-lata de pelo preto
brilhoso de M. jogou futebol com meus filhos. Engatei uma conversa elástica com F., amiga
de M., após ela deixar a churrasqueira. M., a anfitriã, pediu para que a amiga fizesse o
churrasco. Já de início, fui atraída pela combinação entre a aparência física de F., cabelo
raspado do lado e tipo moicano em cima, piercing e tatuagens, e a suavidade de seus gestos
e palavras, que beiravam a timidez.
F. contou-me um pouco de sua história e de seu trabalho. Falou também da densidade dos
dias de sua mãe enquanto mãe, professora de matemática por anos e, atualmente, diretora de
uma escola pública. Contou peripécias da irmã nerd-aventureira. Falou que o irmão conduz
um negócio próprio. O pai divorciou-se da mãe quando F. era criança, afastaram-se com o
decorrer dos anos, contudo, nos últimos tempos, estreitaram o vínculo ao frequentarem
juntos um terreiro de umbanda. O fogo adormecido de antropóloga acendeu minhas
entranhas. As antenas de escritora mexiam alucinadamente. “Terreiro de Umbanda, F.? Fala
um pouco das tuas experiências no terreiro”. F. me disse que dá consistência espiritual para
sua existência por meio do Terreiro de Umbanda Sagrada V. F. Em sua fala, construía
significados a partir de elementos da cosmologia da Umbanda. As batidas dos tambores. Os
cantos. As oferendas às entidades. As vestimentas. Os movimentos dos corpos nos rituais.
Fiquei refletindo sobre o poder da sinestesia. As pessoas absortas e afetadas no corpo pelos
ritos e por suas crenças religiosas. A riqueza simbólica das religiões de matriz africana. A
materialidade do ritual como condição e expressão do imaterial. F. colocou luz sobre a
inclusão sociocultural e política que o terreiro possibilita. O sagrado também como
substância para que o indivíduo se reconheça como sujeito que pode ocupar diferentes
posições no mundo social.
Narrativa envolvente de F. “Dani, eu sou bem cética, mas quando o pai de santo olhou pra
mim e disse coisas muito íntimas, passei a acreditar que tinha algo ali que era maior. Você
fica com um pouco de medo, principalmente no começo. Não sabe como vai ser, quais
entidades vão se manifestar, o que vai acontecer”. Até hoje, F. guarda a semente que o pai
de santo jogou para encontrar seu orixá de cabeça. Perguntei sobre Exu, sobre a
representação unilateral, reducionista, que a entidade costuma ter popularmente. “Não dá
pra rotular Exu, Dani, e é muito interessante ele ter diferentes personificações: Exu Cobra,
Exu Caveira, Exu Tranca Ruas, Exu Gira Mundos, dentre outros”. Questionei se poderiam
aparecer formas desconhecidas de Exu. “Pode, claro que pode”. Queria ir para o terreiro
naquele exato momento. Confesso que um certo temor me habitava também. Mas o desejo
de experienciar aquele desconhecido fascinante me pareceu mais potente. Devir-entidade-
da-umbanda como possibilidade de deslocamento existencial por meio do sagrado. Seria uma
experiência religiosa-investigativa. Quero saber mais sobre a Umbanda.

DIA 5
21 de maio de 2023
As primeiras horas do dia. Abri a janela e projetei meu tronco para fora. Uma força-corpo-
vivo me impelia a tocar a alba. Frescor gélido naquela manhã de sol desprendida de
imperativos. Recorri a criações desviantes diante dos excessos do mundo-real-bruto.
Sensória. Incivilizada. Indígena de outros mundos.
Criações precárias. Mundos dissonantes. Descontínuos. Desprovidos de racionalidade.
Desgovernados. Trazem em si a aventura da descoberta sem medo. Deslocamentos de
fronteiras. Transitar por sensações e territórios desconhecidos. Arriscar-se. Sem freio
imaginativo. Soltar-se em desvarios. O perigo da busca-vertigem. Existir em matéria-
experimentação me deixa trêmula. Empírica na corda bamba.
Passei o dia a cutucar meus sentidos em um mundo de vitórias-régias flutuando sobre o nada.
Uma flor vermelho-sangue nasceu do âmago do nada e me tocou a face. Ácida. Filosófica.
Perfumada de vento. Mordi a vitória-régia e ela tinha gosto de carne humana viva. Fui
acometida de estranheza-acalanto ao me deparar com o nada que gera corpos vívidos. O
nada flutuante é o começo do que ainda resiste a existir.
Passei o dia a excitar meus ouvidos com os silêncios da minha voz. Nesse mundo precário,
havia uma voz-pedra. O silêncio da voz-pedra me disse que preferia se alojar em ondulações
de cacos concretados para não se alastrar pelas repetidas auroras. Descobri que possuía mais
de uma voz. Dos silêncios das minhas vozes, quando ainda era menina, nasceram cílios
minguados. Os cílios minguados me defendiam das ardências do mundo. Certo dia, alguns
dos cílios minguados dos meus silêncios caíram dentro do meu fígado. Sufocamento
instantâneo. Tive que gritar para alguém me ajudar a romper aquelas úlceras que tanto me
doíam.
Passei o dia a arranhar a escuridão do sol. Nesse mundo inexplorado, o avesso do sol é
alcatrão. O escuro do sol é feito de pedaços de carvão, retalhos-falhas e ovos de ema bem
enterrados. Quando o escuro escapa, o sol corre feito a luz para conter o escuro a sair pelas
frestas.
Passeio o dia a engolir répteis fúteis desconhecidos. Capturava-os quando sobrevoavam o
horizonte com suas asas de libélula. Suas línguas de fogo lançaram-me sílabas incandescentes.
Exorcizaram meus demônios angelicais. Devoraram-me. Estraçalharam minhas vísceras. De
início, senti-me perdida. Agora tomo a forma que quiser. Inconclusa. Alegoria da matéria-
prima que não é mais humana-pura. Lucíola promíscua. Réptil-língua-de-fogo. Lúcida.
Sagrada. Lunática. Sair do território-humano-cartesiano me liberta para passagens-
possibilidades. Fiz uma dança-eros em círculos sob a luz da lua. Sou a noite. Sou a lua. Estou
despida dos órgãos e tecidos que me enclausuravam.

DIA 6
22 de maio de 2023
No meu canto literário. Fotos em preto e branco de mulheres trabalhadoras anônimas.
Lembretes em papel azul, amarelo e laranja. O pedaço de nuvem que C. me deu. Escultura
de Jequitinhonha. Uma mulher sem rosto se contorce em dança. Lakshmi ao lado de Santa
Ana. Duas crianças no colo de suas mães esticam as mãos, um muro-arame-farpado as
impede de se tocarem.
Enquanto pelejava para escrever textos para revistas literárias, atravessaram-me
reminiscências do diário de ontem. Fui possuída por um texto que não pude recusar. Um
texto avesso de sentido racional. Desvario imaginativo. Lembrei de Ana Hatherly: “escrevo
para compreender/ para apreender/ a escrita é o que me revela um mundo”. Ontem, mundos
insólitos me foram revelados. Mesmo transpassada pelo que não compreendo, procurei
desbravar outros mundos. Meus escritos me causam incômodo. Perturbam-me. Percebo que
estou inclinada a usar ferramentas-estético-apaziguadoras e, por meio de golpes e mais
golpes, tornar o texto “metal intratável”, como dizia Sylvia Plath. Mas também me deparo
com uma invenção-vísceras que me comove. Não sei o que fazer.
Hoje L. e D. circularam aos berros pela casa. Cansada de pedir menos gritaria. Deveria ir
brincar com eles? Cogitei colocá-los diante da tv, embora não seja o habitual. Não queimo
em fogueiras inquisitoriais mães que recorram à televisão ou ao celular. Pensei em deixá-los
mais tempo na escola. Ou inscrevê-los em uma turma de teatro. Matriculá-los na capoeira. Ir
para aulas de desenho e pintura. Mas não temos dinheiro para isso. Talvez aprender a tocar
cavaquinho como meu avô C. Meu avô não precisou de aulas em escola de música, aprendeu
sozinho. Sozinha é como eu gostaria de estar quando eles começam a gritar. Coloquei um
protetor auricular laranja fosforescente. Deixei que brincassem barulhento. Ouvi um
estrondo mesmo com o protetor auricular. L correu pela sala e derrubou o espelho de um
metro e setenta de altura e bordas rococó douradas que estava na parede da casa alugada em
que moramos. Desci as escadas correndo. Em seu corpo de quase oito anos, franzia os
músculos da face e segurava o espelho com dificuldade. Estava arregalado. Eu, furiosa.
Quando me deparei com a cena, deixei escapar: que merda é essa!? Assumi o espelho. Disse
para L. ir para o quarto enquanto decidia o que fazer. O colossal objeto ainda estava preso
na parede por apenas um dos três parafusos que o seguravam. Percebi como estava preso e
o removi com cuidado. Dispus o espelho em um canto entre a parede e o sofá azul petróleo.
Divaguei que o espelho poderia ter estraçalhado e L. apareceu para mim todo ensanguentado
no chão da sala. Veio-me à cabeça que teremos que arcar com as despesas do estrago. Não
consegui lidar com L. naquele momento.
Respiro profundo. Espero em inspirações e expirações. Volto aos textos para revistas
literárias. Também aceito um poema súbito para um livro que estou escrevendo e não anda.
Abri meus arquivos no computador. Peguei meus cadernos coloridos e meus livros. Não
conseguia sentir a pulsação da escrita para textos-projetos, aqueles planejados para
publicação. Apenas despejo aqui explosões criativas espontâneas. Café pelando. Uma
sensação de que nunca mais vou conseguir escrever poemas. O limbo da não escrita.
Pergunto-me o que anda acontecendo. Bloqueio? Gostaria da fala livre. Devir Obscena
Senhora D. Mergulhar no agora, soltar as palavras. Escrever até a exaustão. La petite mort.
Imergir no gozo erótico da escrita. Um relâmpago clarifica que quando estou em carne viva
minha escrita flui livre. Quando estou vagando no vazio, não consigo escrever. Suportar o
vazio. Conviver com os silêncios. Transitar pelo vazio provisório.

DIA 7
23 de maio de 2023
Não sou sólida como a araucária que vejo pela janela. Engessam-me as raízes-rotina sob a
terra. O diário me tortura. Ajudei L. a escrever uma carta para uma amiga da escola. Cozinhei.
Revisei e editei texto para R. Reunião com a professora de D. Mercado. Levei o carro à
oficina. Nada de saidinhas noturnas com A. no dia de hoje. Nada de escapadas kafkianas.
Nada de devir-animal ou devir-planta. Nem sequer desvios pelo grotesco. Clariceana.
Hoje uma tristeza corrente forte de água chocando-se contra minhas vísceras. Meio
moribunda. Talvez eu prefira descansar na melancolia. Sentia que sangrava. Sentia que um
poema estava a caminho. Não sabia como seria a carne do poema. Nem seus desejos líricos.
Não sabia de suas profanidades sagradas. Apenas sentia sua presença vindo ao meu encontro.
Pilates. Uma das formas de lidar com a melancolia. O prazer nas aulas. A pluralidade da
invenção humana encarnada nos infindáveis movimentos. Olhos nos olhos do desafio de
executar corretamente exercícios complexos e coordená-los com a respiração. Concentrar-
me no agora para sentir que existo em carne e ossos.
Já fiz muitas amizades no pilates. A mais recente é L. Quando cheguei, abraçamo-nos, e as
primeiras palavras que saíram da sua boca foram: “Quer café, Dani?” Irmanadas pelo café.
Enquanto esquentava a água, ela me mostrou alguns dos desenhos que havia feito: figuras
góticas, mulheres de traços sedosos, desenhos hibridando humanidade e botânica. Fiquei
contemplando as imagens enquanto ela foi fazer o café. Ficou pronto. Bebericamos nossa
paixão pelando.
No alto dos seus dezesseis anos, L. falou-me da escola, do ato de desenhar enquanto catarse
e do desejo de se formar em psicologia jurídica. Também falamos mal das religiões cristãs
fundamentalistas. Disse-me ainda que foi fazer sauna com uma amiga, “nunca tinha ido,
Dani”. A família é sócia de um clube, resolveu ir lá para ver como era ficar vaporizada na
sauna. L. foi logo avisando: “tem um tipo que é a seco, tem também um outro tipo de sauna
mais molhada, não dá pra levar o celular”. “Mas L, você levou uma amiga, ou poderia ficar
lá só relaxando, dormindo, desenhando dentro da sua imaginação”, “Dani, fiquei de boa com
isso. Eu e minha amiga ficamos lá de biquíni, mas dá pra ficar pelada também”. O corpo nu.
Fiquei refletindo sobre o ato de ficar nua. Expressão artística. Ato político. Sobrevivência
subjetiva diante da opressão insuportável do corpo e dos desejos. Impulso subversivo para
se sentir viva. Romper com um mal-estar de seguir as regras da civilização. O corpo. O
movimento. As raízes-rotina. A melancolia do dia. A escrita-carne. O corpo nu. O corpo
livre. Explorar novas sensações de forma livre.
Liguei para P. em seu aniversário de dez anos. Ele ficou fazendo gracinhas. Mostrou-me o
Naruto que aprendeu a fazer na aula de desenho. Comeu pizza e bolo na comemoração.
Trouxe o Paçoca para eu ver pelo WhatsApp. O coelho ficou paradinho, só mexendo o nariz
e olhando para a tela. “Passa a mão no Paçoca, dinda”. Passei a mão no bichinho. Suavidade
das memórias de aniversário. “Te amo, dinda. Amo todos vocês”. “Te amo, P., feliz
aniversário”.
Sinto-me mais viva do que nunca! Corre sangue e fogo criativo pelos meus vasos sanguíneos.
Pura-volúpia com o poema que escrevi.
EMÍLIA SOUZA é roteirista audiovisual e escritora. Nascida em 8 de março de 1983, vive
em Campinas, SP, onde graduou-se em Comunicação Social com habilitação em Publicidade
e Propaganda pela Facamp. Na literatura, estreou na poesia com o livro Vem segura a minha
mão (Patuá, 2022) e faz parte do Coletivo RuídoRosa, formado por autores de todo o país.
DIA 1
17 de maio de 2023
Essa noite eu tive um pesadelo. Nele eu tinha um bebê, que eu havia guardado na gaveta e
esquecido de tirar pra amamentar. Só lembrei quando os peitos vazaram, vazaram até
manchar o colchão. Sentei-me à beira da cama. De mim jorravam leite e lágrimas. O troféu
de pior mãe do mundo era meu.

DIA 2
18 de maio de 2023
O bebê acordou sete vezes, sete malditas vezes. Que ninguém nunca leia isso, mas eu queria
era deixá-lo em alguma porta, voltar pra cama e dormir, só dormir, por uma semana. Depois
eu voltaria pra buscá-lo, ou nem voltaria, sei lá. E se eu gostar da vida sem tudo isso, como
era antes? Eu sou um monstro, um grande monstro fodido, por dentro e por fora.

DIA 3
19 de maio de 2023
Sonhei com o pai do bebê esta noite. Acordei sufocando, com um nó na garganta. Não sei
se de saudade ou de ódio, mas, com certeza, de cansaço. O desgraçado não ficou nem pra
ver com que cara a cria nasceria. E o que me mata é que veio com a fuça dele.

DIA 4
20 de maio de 2023
O fantasma do sonho da noite passada ainda me assombra. Foi embora, assim, sem mais
nem menos, só foi. É em coração de mãe que cabe tudo; no de pai, quase sempre, não cabe
nada. Toda vez que penso nisso, penso no coração das mulheres como aquelas bacias
dobráveis de silicone que, quando a gente força, elas vão desfazendo as dobras, ficando mais
e mais fundas.
No coração dos homens eu penso como aquelas peças decorativas de cimento, que acho de
um baita mau gosto, inúteis, pesadas demais.
DIA 5
21 de maio de 2023
Hoje o bebê sorriu pra mim. Foi a coisa mais estranha que já senti na vida. Quer dizer, fica
difícil afirmar que foi a coisa mais estranha no meio de tanta coisa estranha. Mas foi a melhor
coisa que senti e a que mais me deu medo. Foi algo, imagino, que perto do divino ser a causa
daquele sorriso. E aí doeu. E se eu não conseguir ser? E se o sorriso se for e eu não puder
trazer de volta?

DIA 6
22 de maio de 2023
À noite, quando o corpinho se aninha ao meu, eu quase sou feliz. Quase esqueço a solidão.
Quase esqueço que logo vem a cólica, o choro. Quase esqueço que precisarei me levantar às
cinco, pra garantir o aluguel, essa cama e as fraldas, que serão emerdeadas uma após a outra.
Mas eu continuo tendo que acordas às cinco.

DIA 7
23 de maio de 2023
Essa noite o bebê dormiu bem. Está dormindo agora de novo. Me peguei debruçada sobre
o berço, suspirando. No fundo, acho que é a coisa mais linda que já fiz, eu que fiz, com meu
próprio sangue e carne. Isso ninguém pode negar. Seu sono, o sorriso enquanto sonha, isso
me dá paz. É mais fácil amar os filhos enquanto dormem.
GISELA MARIA BESTER começou a grafar letras em troncos de árvores e em folhas de
outras plantas ainda na infância. É gaúcha, radicada há 26 anos em Curitiba, PR, onde fez
carreira docente na investigação e nas publicações jurídicas. Mestra e doutora em Direito,
realizou pesquisa de pós-doutorado também nessa área. Na literatura, está com seu primeiro
livro de poemas no prelo, intitulado Pinte-me de azul! (Mondru, 2023). Vem publicando
poemas livres, haicais, contos, crônicas e resenhas em coletâneas, antologias e revistas
literárias do Brasil e do exterior.
Diário de uma herdeira de Berger

DIA 1
17 de maio de 2023 – como o coelho da Alice
7h – Acordo, faço uma oração antes de deixar a cama, pedindo forças ao enfrentamento de
mais um dia, e para não magoar ninguém ou ser mal interpretada. Já na cozinha, olho para o
celular e dou-me conta de que este é o centésimo trigésimo sétimo dia do ano. No calendário
gregoriano, claro. Enquanto passo o meu café, ritual de décadas, reflito sobre o quanto a
“invenção” do tempo e essas formas de o contar pautam nossas vidas, diferenciando pessoas
e destinos, conforme sejamos muçulmanos, judeus, cristãos... bom, deixo isso para lá, porque
o que importa é que eu estou como o coelho da Alice, sempre atrasada e devendo uma vela
para cada santo, característica não de quem não trabalhe, mas, ao contrário, de quem assume
tarefas demais. Ainda na cozinha, chega minha companheirinha, Pupa. A primeira coisa que
ela faz, ao voltar da primeira caminhada da manhã, é se deitar de patas para o ar e pedir-me
cócegas na barriga. Este é o ritual mais bonito do dia, e eu o cumpro com plena alegria. Então
ela sai correndo e volta com algum brinquedinho, convidando-me a interagir. A bichinha
deu-me vida desde que a peguei, com cinquenta e três dias de idade. Já está com quase quatro
anos, e segue alegrando-me os dias. É claro que eu não sabia que esse amor existia, e nunca
tinha cogitado ter um cão, mas o universo sabe como age. Sigo a manhã em meus afazeres,
tentando equilibrar a escritora com a mulher “do lar”, pois não tenho diarista. É difícil. O
mais paradoxal é que a vida toda eu fugi de ser dona de casa, e acabei caindo nisso, justamente
quando menos forças tenho. Então há dias, como hoje, em que a irritação surge, pois não
consigo nem mesmo abrir o computador para trabalhar. É um corre-corre para higienizar
alimentos, cozinhar, lavar louça, fogão, limpar a casa em geral, roupas, ufa! As ideias vêm e
vão embora antes que eu as possa anotar. Assim, morre um poema inteiro, uma crônica, um
microconto. Isso é angustiante. E eu sempre penso que amanhã será diferente.
13h – Ao lavar a louça, relembro da luta de um ex-aluno de uma das faculdades de Direito
onde lecionei. Era o ano 2004. Na chamada, constava o nome Roberto. Quando o chamei,
vi uma moça de cabelos longos, toda maquiada e usando lindos adornos, no salto quinze.
Exibia seios, mas a voz ainda era de homem, e embora fizesse depilação a laser, marcas de
barba e de bigode se notavam. Ficamos amigas imediatamente. E acabei sendo sua
orientadora de TCC, justamente sobre a temática da transexualidade. Pedia que a chamassem
de Pâmela. E assim o fazíamos. Foram anos até o processo de reconhecimento do seu nome
social estar pronto. E ficou durante muito tempo em uma fila para fazer a cirurgia de
redesignação sexual. Eu já morava em outro estado, e nunca mais soube dela. Quando voltei
ao Sul, em 2017, passei certo dia em uma loja onde sua mãe trabalhava e perguntei a uma
colega de trabalho dela sobre Pâmela. Ela disse que tanto a mãe quanto a moça tinham
morrido há alguns anos. “Como assim?”, indaguei. A mãe foi de derrame, mas, antes dela, a
filha, que havia contraído HIV, faleceu muito rapidamente, em decorrências de complicações
do vírus. Fiquei perplexa, pois sabia que há décadas o coquetel de medicamentos para isso é
eficaz e pensei que ninguém mais morresse por essa causa. Enfim, eu estava enganada, como
talvez muita gente. Por que estou a lembrar disso? Porque hoje é o Dia Internacional contra
a LGBTQIAPN+fobia.
21h – Janto e assisto aos noticiários televisivos. Somente agora fico sabendo da cassação do
registro da candidatura do senador D.D., dada ontem, por unanimidade, pelo Tribunal
Superior Eleitoral. Solto um suspiro, reafirmando a esperança de que as instituições
brasileiras realmente recobrem as suas independências constitucionais.

DIA 2
18 de maio de 2023 – Berger e pedófilos atacam!
9h – Hoje não tive forças para sair cedo da cama, tomada que estou, de novo, por forte gripe,
com sinusite atacada, cefaleia e o que mais há. Amo morar no frio, mas isso tem suas
desvantagens. Nada que as medicações que tenho em casa e os chás possam atacar. Então
me levanto apenas para tomar os remédios rotineiros e volto ao repouso, que não é um
descanso, mas um refúgio contra a fraqueza. Esta aflige-me diariamente, em função da
Doença de Berger, que me foi descoberta em dezembro de 2021, após uma biópsia renal.
Sem conseguir dormir, pelo estado gripal, atendo à ligação da minha mãe, que está prestes a
cumprir 83 anos de vida e se esquece do mecanismo danoso dessa doença em meu
organismo. Explico-lhe, novamente, e de modo muito simples, que os IgA’s, anticorpos que
socorrem o organismo humano justamente nos casos de infecções nas vias respiratórias
superiores, por uma informação errônea do sistema orgânico vão indevidamente ao interior
dos rins, e lá atuam destruindo os néfrons, que estão para os rins como os neurônios para o
cérebro. A causa dessa doença é desconhecida, e não há cura para ela, mas um precário
tratamento, pelo efeito colateral de um medicamento para diabetes. Infelizmente, tenho essa
nefropatia, mas pelo menos hoje em dia eu sei o que tenho, pois passei mais de quinze anos
com ela, sem o saber. Brinco que sou “herdeira de Berger”, o sobrenome do cientista que a
definiu, em 1968, coincidentemente o ano em que eu nascia.
11h – chegam o marido e Pupa da segunda caminhada do dia. Ao todo são cinco, todos os
dias. Assim que entram em casa, saúdam-me; ela, primeiro, e aí come sua banana diária. Hoje
não tinha da prata, a sua preferida. Comeu a caturra. Satisfeita! Gosto de ver como ela mesma
descasca essa fruta que tanto ama.
12h – Não quero almoçar, pois estou sem paladar, mas meu marido insiste para que eu coma.
Engulo algo, mais para evitar que siga insistindo. Volto à cama e adormeço. Sonho que
escrevo. Só sonho.
18h – Levanto-me para tomar os demais remédios, mas não posso ingerir antibióticos para
a sinusite, pois há somente um permitido diante da nefropatia e estou sem a receita. A cabeça
parece que vai estourar de tantas dores, mas preciso aguentar a “dura sorte”, como se diz
onde nasci. E por falar nisso, leio um pouco e lembro que esta data foi instituída no Brasil,
no ano 2000, como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes. Este tema revolta-me muito, e perco as forças da e na vida sempre que
aparece mais uma notícia de violações e mortes desses seres indefesos. Aproveito e agradeço
aos meus anjos da guarda por ter sido poupada disso. É que há poucos anos soube que lá
pela vila rural onde eu estudava em minha infância havia um pedófilo que violou muitas
meninas, filhas de terceiros e até de seus familiares. Felizmente, ele nunca cruzou o meu
caminho.

DIA 3
19 de maio de 2023 – por que os amores morrem?
8h – Desperto-me, tomo a remediada toda e volto a deitar. Esta data é sempre delicada para
mim: o aniversário do meu primeiro amor. Uma linda história que se perdeu no tempo, e que
me faz refletir sobre os erros que se cometem na juventude. Levei trinta e um anos para
tomar coragem de falar novamente com essa pessoa, no ano passado, e hoje penso que nem
percebi, mas não dei sequência ao diálogo.

DIA 4
20 de maio de 2023 – o celebrar de uma vida, e a destruição de outra
10h – Hoje é o aniversário de 83 anos de minha mãe, e louvo a minha ancestralidade de
imigrantes polonesas pobres, que tanto sofreram e lutaram. Nos olhos azuis de minha mãe
reside toda a luz, a beleza, a bondade, a fé, a generosidade e a batalha da vida, sempre com
dignidade. Ela é o meu maior exemplo, junto com meu pai, e era para eu estar na casa deles,
no interior do Rio Grande do Sul. Porém, por prudência, transferi a data da minha viagem
em função da forte gripe, eis que são idosos e possuem suas doenças. Nós nos falamos
longamente ao telefone e agradeci-lhe por ter me trazido ao mundo. Ela conta-me das agruras
que passou ainda criança, quando ficou órfã de pai, aos doze anos, e, entre tantas outras
responsabilidades, já tinha que amassar e fazer pão sozinha, onze por vez, no forno à lenha.
Eram doze irmãos, mais a mãe. Imagino o seu sofrimento ao longo desses anos todos, e
ainda segue trabalhando como pode, sempre pensando na família. Venho dessa tradição de
matriarcado e planejo um dia escrever sobre isso.
11h – O dia, que estava bonito pela data especial, de repente fica feíssimo. Começo a ouvir
um barulho muito alto. Abro as portas da sacada do apartamento e não consigo acreditar no
que vejo: um homem acinturado a uma araucária centenária, serrando seus tantos imensos
galhos até o alto. Justamente nesta época em que os passarinhos tanto precisam de abrigo,
sendo que essa árvore está cheia de ninhos. Começo a chorar, um choro profundo e
incontrolável, diante da impotência que essa situação me traz. Nem descer lá para reclamar
eu posso, dado o estado gripal em que me encontro. O máximo que eu posso fazer é um
haicai em sua homenagem, porque a poesia os monstros não podem destruir. Escrevo e
posto o poema. Mas nada me consola. Como conseguem autorização oficial para isso,
quando se trata de uma árvore preservada por lei neste estado?

DIA 5
21 de maio de 2023 – um portunhol diferente
15h – Hoje meu dia não está rendendo nada, mas acabo de falar com o meu pai ao telefone,
e, aproveitando que é celebrado o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o
Desenvolvimento, e o Dia da Língua Nacional, relembro com ele o seu modo de falar, que
é ainda praticado por muita gente da nossa região de nascimento e criação, no Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul. Termos como “bassora”, “trabessero”, “devereda”, “solito”,
são da minha infância, e penso que se devem à proximidade com as terras dos indígenas
missioneiros (Sete Povos das Missões), e à própria fronteira com a Argentina, distante dali
uns 100 km (Parque Estadual do Turvo – Salto Yucumã).

DIA 6
22 de maio de 2023 – sem título, mas com abelhas
10h – No meio desta manhã, sento-me para escrever um poema em homenagem às abelhas
e ao meu pai, que foi apicultor por quase toda a vida. Nos originais do meu primeiro livro de
poemas há um texto sobre essa temática, mas senti vontade de fazer mais este. Acho que foi
a lembrança de que hoje é o Dia do Apicultor que me inspirou. Aliás, sempre gostei de saber
o que se comemora em cada dia, o que se homenageia, que tragédia lembra, essas coisas.
16h – Preciso arrumar as malas para partir ao RS, mas quem disse que eu tenho forças? E
assim, mais um dia se vai...

DIA 7
23 de maio de 2023 – voltar ao ninho
23h – Foi-se mais um dia. Improdutivo. Quanto a isso, nada a dizer, mas, finalmente, estou
na rodoviária, pronta para enfrentar mais de quatorze horas de viagem. Verei a família, e isso
conta muito para mim. No outono, então, uma dádiva.
JESSICA MARZO escreveu diários na infância, um tanto deles. Depois vieram as cartas de
amor na adolescência. Cresceu, concluiu graduação, pós-graduação e aprendeu a escrever
difícil para projetos educacionais no terceiro setor, e com isso teve a oportunidade de viajar
pelo Brasil conhecendo escolas, secretarias de educação e professores. Quando virou mãe,
voltou a se encontrar com as palavras de vida pulsantes. Autora do livro infantil Bento não tem
cabimento (Urutau, 2022), tem poesias publicadas em antologias escritas só por mulheres:
Coletânea de Poemas Feministas Bertha Lutz (Persona, 2022); Coletânea Sarau das Minas (2023)
e A mulher que não sou (Mondru, no prelo). Integra o coletivo de escritores Prosa Miúda e
RuídoRosa. É colunista da revista Mães que escrevem.
DIA 1
17 de maio de 2023 – Quarta-feira e a boneca viajante
Sonhei com o cheiro da Turquia, que não faço ideia qual seja, porque nunca estive na Turquia.
Havia um banquete com flores comestíveis. Estava com quatro crianças. Servi todas, mas,
na minha vez de abocanhar as delícias da mesa, o alarme tocou. Bruno fez carinho em minhas
mãos, abriu a janela e foi ao banheiro. Fiquei ali, tomando coragem pra sair das cobertas.
Ouvi Julia tossindo. É assim todo outono. Preparei o lanche da escola, servi o café da manhã,
ajudei a aprontar as crianças e me despedi. Sentada sozinha com um café preto nas mãos,
abri o Spotify, o noticiário do dia é sobre o preço da gasolina. Não me interessa. Coloquei
pra tocar Andrea Del Fuego falando sobre o romance A pediatra. Sentei pra trabalhar. Na
hora do almoço, fui ao mercado. No caminho de volta, passei em frente à vitrine de uma
livraria. Kafka e a boneca viajante. Contei tanto essa história pra Laura quando era pequena.
Toda noite ela pedia história inventada, e eu fingi ter inventado essa história. A farsa foi
revelada no dia em que minha mãe a colocou para dormir e “inventou” essa história. Esses
dias fomos assistir a uma peça baseada no livro. Nada a ver com o que eu contava. Ficamos
na dúvida se eu que viajei na contação ou se a peça que foi longe na adaptação. Comprei o
livro. Olhei os grupos de WhatsApp, seis crianças com o vírus do pé, mão-boca na turma da
Julia. E uma infestação de piolhos na sala da Laura. Depois do banho das crianças, dei uma
bela vasculhada em seus corpinhos, não encontrei bichinhos andando pelas cabeças, nem
bolinhas pelo corpo. Ufaaaa. Elas deitaram cheirosas e gostosas na minha cama e eu abri o
livro.

Primeiro sonho: a boneca perdida. Os passeios pelo parque Steglitz eram um bálsamo. E as manhãs tão
doces... Casais precoces, casais parados no tempo, casais que ainda não sabiam que eram casais, velhos e
velhas com mãos cheias de histórias e rugas cheias de passado procurando cantos de sol. (Trecho de Kafka
e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra*.)

* Jordi Sierra I Fabra, Kafka e a boneca viajante. Tradução de Rubia Prates Goldoni. São Paulo,
Martins Fontes, 2008.

DIA 2
18 de maio de 2023 – Quinta-feira e a treta entre irmãs
Julia enrolou pra sair da cama. Laura pronta na porta de casa, bravíssima de chegar atrasada.
A irmã mais nova sabe do compromisso da mais velha com a pontualidade e provoca, toda
manhã. Por que diabos irmãos têm que estar o tempo todo, todinho, brigando? Será que
existe uma pesquisa científica sobre briga entre irmãos? Depois que elas saíram aos gritos e
pontapés de casa, fiquei curiosa, dei um google: “pesquisa acadêmica sobre a relação de
conflito entre irmãos”. Encontrei alguma coisa. Sim, tem um povo estudando desde 2000
(somente!) esse rolê chato e comum em todas as famílias. Até queria ler o artigo, mas tem
outras mil coisas que também quero ler. O dia terminou como começou, com as crianças
brigando.

Por que a dor infantil é tão poderosa? A situação era real. A relação da menina com sua boneca é das mais
fortes do universo. Uma força descomunal movida por uma tremenda energia. (Trecho de Kafka e a boneca
viajante, de Jordi Sierra i Fabra.)

DIA 3
19 de maio de 2023 – Sexta-feira e o capelete in brodo da Lau
Sextou! Final do dia deixei Julia de pijama e pantufas para dormir na escola. Ela entrou de
mãos dadas com a amiga, nem olhou pra trás para se despedir. Noite do Pijama na escola é
das poucas memórias que tenho da primeira infância. É tão legal. Bruno foi jantar com Laura
no restaurante japonês e eu fui me aquecer com o capelete in brodo na casa da Lau, minha
amiga psicanalista, escritora e especialista em afetos. Bebemos vinho e voltei pra casa com o
gosto do charutinho de amêndoas com o qual ela nos presentou.

DIA 4
20 de maio de 2023 – Sábado e o show de BaianaSystem
“Folha de arruda, pé de coelho e sal grosso”. BaianaSystem abriu o show. No meio da
multidão, joguei os braços pra cima, tirei os pés do chão. Fiz minha alma flutuar. Sempre
gostei de pular e cantar na muvuca, assim, bem juntinho, pra trocar energia e suor. Depois
dos trinta anos, achei que não precisava mais disso. Maconha e gin tônica já pareciam
suficientes e subversivos o bastante para me fazer sentir jovem naquela noite. As mãos
baianas de Laís me puxaram. “Venha!” Atravessamos o mar de gente. Nas minhas costas, a
Roda Gigante no parque Villa-Lobos em movimentos lentos, e à frente o letreiro “A justiça
é cega” iluminava o palco que embalava a reza forte dos loucos e loucas da babilônia. As
rodas se formavam entre a plateia. “Tire as construções da minha praia, não consigo
respirar”. Lais me puxou mais uma vez. “Venha!” Os círculos de pessoas, na espera do refrão.
No meio, um vazio a ser preenchido de corpos em explosão. “Lucro. Máquina de louco.
Você pra mim é lucro. Máquina de louco”. Movimentos soltos de todas as amarras ocuparam
o centro, numa descoreografia de Saci Pererê bonita de se ver. Ali, eu não era mãe, filha,
escritora; era uma sul-americana de Feira de Santana, cantarolando pela nossa cultura em
primeiro lugar.

DIA 5
21 de maio de 2023 – Domingo que loucura é essa?
“Folha de arruda, pé de coelho e sal grosso”. Acordei cantarolando em minha mente
BaianaSystem. Bruno abriu a janela, um barulho alto de helicóptero. “Levanta, vem ver que
surreal”. A claridade fechou meus olhos que não estavam assim tão abertos ainda. Um
helicóptero pousou no meio da Avenida Sumaré. Debaixo da nossa janela. Uauuu! Moro há
dez anos aqui e nunca tinha visto a avenida interditada para o pouso de um helicóptero. De
repente, um carro de polícia passou, pegou algo do helicóptero e ambos foram embora.
Assistimos à cena boquiabertos e atordoados com o barulho do helicóptero voando na nossa
frente. O que será que aconteceu? “Você viu que alguém do carro entregou um pacote para
alguém do helicóptero?”, perguntou Bruno. De repente, barulho de sirene. Uma ambulância
estacionou na avenida Sumaré. Novamente, barulho de helicóptero. Agora era um
helicóptero preto, que descia e pousava debaixo dos nossos narizes. Nossa, alguém muito
importante deve estar doente, quase morrendo. Quem será? Vimos a cena acontecer devagar.
A maca saindo da ambulância e sendo levada para o helicóptero. “Uau, estamos assistindo a
um acontecimento muito importante, procura aí no google quem está doente, Bruno”. Ele
não encontrou nada. Gente, será que ainda estamos sob os efeitos alucinógenos da noite
passada? No grupo de zap do prédio, comentários começaram a pipocar. Ficamos de olhos
atentos até o helicóptero preto levantar voo novamente com um corpo (vivo, será?). Fabulei
mil coisas em minha mente até aparecer uma mensagem no grupo do prédio, dizendo: “é um
treinamento integrado entre a polícia, bombeiro etc.”.

DIA 6
22 de maio de 2023 – Segunda feira e o e-mail que toda escritora quer receber
“Adoramos a proposta do seu material e encontramos nele muito potencial. A nossa
proposta para você é 10% de comissão sobre a venda mensal do livro. Caso tenha interesse,
peço que me encaminhe os dados abaixo, para providenciarmos o contrato”. Bruno, corre
aqui, vem ler este e-mail comigo!
Ele me parabenizou e comemorou baixinho, junto comigo. Caminhei feliz pra cama onde
estavam as duas crianças aguardando a leitura do livro.

Franz Kafka sentiu o formigamento nas mãos, o nascimento das asas de Icaro que o elevavam até aqueles
mundos possíveis apenas em sua mente inquieta e inquietante, quando se debruçava sobre o papel empunhando
a caneta e entrelaçava as histórias mais extraordinárias já concebidas. Era escritor. (Trecho de Kafka e a
boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra.)

As meninas adormeceram antes do capítulo terminar. Eu, ao contrário, demorei a fechar os


olhos.

DIA 7
23 de maio de 2023 – Terça-feira: as boas e as más notícias
Julia teve febre de madrugada e foi pra minha cama. Laura acordou coçando a cabeça. Sim,
os piolhos chegaram. E o vírus também. Puta merda, ninguém vai pra escola. Enquanto
media a temperatura, ligava pra farmácia pedindo a entrega de pente fino, gel e Kwell.
Coloquei os lençóis pra lavar e meti uma touca, a muito contragosto, na cabeça da Laura.
Pedi pra ela tentar não encostar a cabeça em travesseiros e almofadas. Julia só queria colo.
Desmarquei tudo o que tinha pra hoje. Consegui olhar o e-mail, nada do contrato. Já se
passaram sete anos e ainda não me acostumei com a imprevisibilidade da vida com filhas.
Respirei fundo, sentei com elas pra ver tevê. É isso que temos pra hoje: larguei o celular e
me deixei levar pelo Show da Luna. Bateu meio-dia, nada na geladeira. Pedi um prato-feito
que foi bem engolido por mim e Laura. Julia não quis almoçar. Quando ela dormiu, consegui
tirá-la do meu colo pra ficar horas caçando piolhos e lêndeas na cabeça da Laura.
Conversamos um tempão sobre um monte de coisa.

A infância é o tempo de acreditar em bonecas. É na infância que existem os finais felizes. Mas são muito
mais necessários na maturidade os carteiros capazes de receber cartas que só um louco é capaz de escrever.
(Trecho de Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra*.)

Antes de dormir, conferi o e-mail. O contrato chegou!


LUCIANA LIMA SILVA é paulistana, doutoranda e mestra em Teoria e História Literária
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora, tradutora e escritora. É
autora de Alguém de vassoura na mão ainda lembra como foi (Patuá, 2022), Sobressaltos de um
homenzinho assustado & outros delírios fálicos do século 21 (Edições Cabíria, 2022), Paisagens dóceis
para bactérias festivas (Patuá, 2021) e organizadora do livro Anônimo não é nome de mulher (Patuá,
2022). É integrante do coletivo de investigação literária RuídoRosa.
DIA 1
17 de maio de 2023 – Ocupação é quase felicidade?
Enquanto O. implica com o gato, F. procura o tubo de pasta de dente. Alguém na vizinhança
grita “inferno” a plenos pulmões. A mensagem que recebo do meu corpo é: hoje não. Há
dias em que hoje não, e eu adoraria ceder ao apelo com toda a minha inexistência possível.
Mas há a criança, os gatos, um tubo de pasta de dente a ser encontrado. Em algum momento
da vida concluí que ocupação é quase felicidade. Não sei se ainda hoje, com tanta coisa a
fazer todos os dias, sou capaz de considerar sobrecarga como algo feliz, mas, seguramente,
ocupação é uma barreira que se sobrepõe aos abismos.

DIA 2
18 de maio de 2023 – As pombas
Pontualmente às 10h chamei o elevador. Vou encontrar minha mãe em um hospital no
Tatuapé para resolver aquela pendência relacionada ao procedimento no joelho que ela
precisa fazer. Tento fazer uma pequena lista de informações das quais preciso me lembrar
quando chegarmos lá e, enquanto as reúno mentalmente, eu me dirijo ao carro. Ao chegar
nele, ali está a porta toda emporcalhada por dejetos de pomba. Uma maçaroca branca, mas
também cinza, mas também da cor de todo o nojo que eu sinto por aquele monte de bosta.
Há quatro dias encontro a porta lateral imunda, ainda que eu tenha estacionado o carro em
pontos diferentes da rua, inclusive em lugares onde não há nenhuma árvore se sobrepondo
ao meu carro. Desta vez, no entanto, a pomba pareceu muito empenhada em sujar com
requintes de sadismo a maçaneta da porta e cada mínima fresta, de modo que precisei retirar
um lenço de papel da bolsa para conseguir abrir o carro. Tive de dirigir com a rajada
bostolenta a me acompanhar, mas, sem conseguir abstrair daquela imundície, parei em um
posto de gasolina para arrumar algo que limpasse aquilo. Um rapaz muito gentil e solícito
veio me atender quando estacionei ao lado da bomba de combustíveis. Fiquei com vergonha
de pedir assim, à queima-roupa, que aquele moço me auxiliasse a tirar aquela nojeira, então
disse a ele: “Completa com álcool, por gentileza”. Enquanto o tanque era preenchido, o
próprio rapaz perguntou se poderia limpar a porta, ao que agradeci. Saí satisfeita do posto
de gasolina e, após um trajeto com muito trânsito e sol, cheguei ao hospital, atrasada. Dei
sorte de encontrar uma vaga bem em frente à entrada, desci rapidamente e fui encontrar
minha mãe no saguão da recepção. Ficamos 4 horas no hospital. Discuti com um médico
que me tratou como se fosse o deus da estupidez, fomos abordadas por um rapaz com cara
de idiota que tentou se livrar da gente com falsas gentilezas e felizmente encontramos duas
funcionárias muito competentes que, enfim, nos auxiliaram a marcar a data da cirurgia, que
já deveria ter ocorrido no início do ano. O agendamento foi feito já para o sábado, com um
médico que não conhecemos e em um hospital de outra cidade. Parece um contexto péssimo
(e é), mas ficamos felizes. Enfim satisfeitas, nos dirigimos ao carro para ir embora. Em frente
a ele, uma placa me informa que estacionei em uma vaga para emergências. E, ao olhar para
a porta que preciso abrir, vejo nela algo inacreditável: um rastro fresco. Imundo. De bosta.
De pomba.

DIA 3
19 de maio de 2023 – Not today, satan
Acordamos todos gripados, encatarrados e com a garganta podre. O. recebe com muita
braveza a informação de que não vai hoje à escola. Fico feliz com a reação dele: sinal de que
está criando vínculos com a turma, algo que, a princípio, parecia um sonho distante.
Preciso comprar detergente, limões e decongex. Lembro da bosta de pomba na porta do
carro ao longo da semana e desanimo de dirigir. Not today, satan. Sair a pé, com frio, ventania
e corpo em colapso está fora de cogitação. Então pego o celular e peço detergente, limões e
decongex pelo iFood.

DIA 4
20 de maio de 2023 – A pior mãe do mundo
Hoje combinamos de ir para Santos, onde meu pai vai participar de uma corrida amanhã
cedo. Mas como hoje é também o dia agendado para o procedimento no joelho que minha
mãe precisa fazer, nós nos dividimos em dois grupos: F., O., meu pai e eu iremos para Santos
no início da tarde enquanto E. levará minha mãe para Guarulhos, ainda de madrugada.
Às 10h da manhã, enquanto, junto com F., eu ajeitava a casa e as coisas para a viagem, lembrei
que hoje é o dia da homenagem às mães na escolinha de O. Mas a homenagem, que começou
às 9h, só duraria uma hora e, portanto, já havia acabado quando me dei conta disso. Mais um
ano em que conquisto, com honra ao mérito, o troféu de pior mãe do mundo, mas talvez o
mais grave seja o fato de que não consigo me culpar muito por isso.

DIA 5
21 de maio de 2023 – Santos
Chegamos ontem à tarde em Santos. Hoje logo cedo meu pai foi participar da corrida da
Tribuna, em homenagem ao Pelé. Acompanhamos a largada às 8h, cumprimentamos
Edinho, filho do rei, e depois enfrentamos um caos urbano imenso na tentativa de
acompanhar a chegada em outro ponto da cidade. Só conseguimos reencontrar meu pai perto
das 11h, sendo que antes das 9h ele já havia concluído a corrida.
Passamos no hotel para pegar as malas e fazer check-out, e fomos para o Museu Pelé, que
meu pai queria muito conhecer. A vida pessoal de Pelé foi polêmica e questionável, apesar
de ele ter sido um atleta indiscutivelmente magistral. Contradições que fazem parte da vida
de pessoas reais.
Lá no museu, pela primeira vez na vida, vi meu pai tirando fotos e feliz em ser fotografado.
Em certo momento, ele disse que ali também estava a história dele. Fiquei feliz em estar ali.
Para concluir o passeio, antes de voltar à São Paulo, fomos à praia. Fazia um dia bonito.
F. gosta de Santos e diz que gostaria de morar lá, mas acho a cidade um caos. Dentro da
minha limitação profunda a respeito da região, Santos me remete apenas a Pelé, Chorão,
Neymar e areia cinza batida. Digo que gosto muito de Pitangueiras, no Guarujá, e que talvez
morasse por lá. Mas por que eu moraria na praia, se o sol esculhamba minha pele e me enche
de alergias? Além disso, não curto areia, forma uma maçaroca com o protetor solar e gruda
em tudo, um horror. E tem barulho, muita gente, o combo antipaz completo.
O curioso é que eu amo praia – uma alegria que F. trouxe à minha vida – porque em algum
momento eu me esqueço desses ruídos todos enquanto miro o mar sem fim.

DIA 6
22 de maio de 2023 – Nem sempre se pode ser Deus, por isso estou gritando
O., F. e eu acordamos em um estado de saúde lamentável.
Logo cedo combino com um cliente, por whatsapp, a retirada de um livro lá no acervo que
fica na casa dos meus pais. Por causa da cirurgia de minha mãe, E. está lá com ela, de modo
que consegue procurar o livro e entregá-lo à pessoa. Eu não sabia que tínhamos esse título,
Um estranho sonho de futuro, do Daniel Munduruku. Penso que seria legal a leitura, mas lembro
que me tornei livreira justamente porque tenho muito mais livros do que consigo dar conta
de ler. Tenho a sensação de que estudar teoria literária pode ter tirado um prazer, o da leitura,
que as mais de duas décadas de trabalho com texto já haviam começado a me tirar – embora
a vida acadêmica tenha me trazido a vontade de escrever profissionalmente e resgatado meu
gosto pela tradução. Bem, nem sempre se pode ter tudo.
E. cortou o dedo enquanto cortava abóbora para minha mãe e foi correndo ao postinho para
dar pontos no dedo. Levou o livro junto e o cliente, que inicialmente tentou retirá-lo na casa
dos meus pais, precisou ir até a UBS buscá-lo. Não reclamou ou foi indelicado diante do
transtorno inesperado. Aliviada, agradeci a ele pela compreensão. F. comenta que a educação
do cliente seria o mínimo esperado em uma situação como esta. Digo a ele que o mínimo
esperado caiu em desuso faz tempo, então é importante celebrá-lo para que volte a entrar na
moda, e lá permaneça.
À tarde, em estado lastimável de saúde, O., F. e eu nos arrumamos e rumamos em comitiva
para o pronto-socorro. Voltamos à noite para casa, com nossas rinites, sinusites, faringites e
receitas médicas.

DIA 7
22 de maio de 2023 – Me acalmo danando
Em casa, com uma criança que não foi à escola e, mesmo doente, está o dia inteiro ávida por
brincar com uma mãe cheia de afazeres. Em uma pausa da tarde, montamos quebra-cabeças,
fazemos bolo de maçã com canela e assistimos pela quinta ou sexta vez A viagem de Chihiro
(no meu caso, meio assistindo, meio trabalhando). Quando F. chega, O. reclama: “Minha
mãe não quis fazer nada comigo!”
Preciso comprar uma base nova. A última comprei há quase dois anos, porque uso apenas
uma gota misturada com o protetor solar na palma da mão. A cor que comprei da última vez
não existe mais e isso se torna um pequeno drama; a vontade de ir à loja provar novos tons
é zero. Perfumarias e lojas de cosméticos são locais que detesto frequentar, adoraria comprar
minhas paradinhas todas pela internet ou na farmácia, onde não sou abordada a cada dez
segundos com um “Posso ajudar?”. “Não, não pode, gosto mesmo é de ser perdida”, queria
responder. “Agradeço a gentileza, qualquer coisa eu te chamo”, é o que acabo respondendo.
Minha pele evolui com suas pequenas deformidades como se eu não tivesse vaidades, mas,
por exemplo, a verdade é que uso protetor solar no rosto diariamente desde idos dos anos
1990, quando não existia nenhum produto específico para a pele atópica e oleosíssima da
desengonçada jovem que fui. Eu era um brilho só, no mau sentido. Almas generosas diziam
que eu tinha cheiro de mar – o cheiro que a maioria dos protetores solares evoca.
Hoje uso cremes que recendem a flores e frutas, sou quase uma Ártemis tropical.
Esta crise aguda de faringite, que tem me deixado sem voz nos últimos dias, me lembra das
coisas realmente importantes que preciso falar. Dizer: não quero mais. Respirar fundo outra
vez. Ser livremente desorientada, me achar errando.
“Gosto mesmo é de ser perdida”, preciso aprender a dizer.
MARCELLE LOUBACK, de Campos dos Goytacazes, RJ, é servidora pública federal.
Cursa a pós-graduação em Escritas Performáticas: Invenção e Procedimentos Artísticos
(PUC-Rio). É autora de Pequeno gabinete de curiosidades (Autografia, 2019) e possui textos nas
antologias Anônimo não é nome de mulher (Patuá, 2022), Nos limites do real: contos fantásticos e de
ficção científica (Off Flip, 2023) e ECO (AR): poemas pela sustentabilidade (Toma aí um poema,
2023). Seu conto “Desejo” foi publicado em 2023 pela Amora, clube de assinatura de livros
escritos por mulheres. É integrante dos coletivos literários Libertiragens de Quatro e
RuídoRosa. Está finalizando seu segundo livro.
DIA 1
17 de maio de 2023 – para ler em 10 segundos
Limpei xixis e cocôs da doguinha.
Descobri que, no chaveiro de casa, há chaves que não sei quais portas abrem.
Vi uma moça na TV ensinando a fazer um bolo de panqueca.
Almocei empadão de legumes e peguei bastante massa dos cantinhos.
Procurei a Lua no céu, em vão.
19:11, 21 graus, friozinho.

DIA 2
18 de maio de 2023 – para ler ouvindo “Passarim”, de Tom Jobim
Encomendei três bandejas de empadas.
Desejei ser o pássaro que se equilibrava no fio do poste (mas acho que já sou: tentativa de
leveza em alta tensão).
Reencontrei um homem que conheço desde que ele era criança, e me dei conta de que ele
tem o mesmo sorriso do pai falecido.
Descobri que me sinto atraída por uma pessoa.
Costurei projetos lindos.
Tomei cervejas quase geladas com amigos queridos.

DIA 3
19 de maio de 2023 – para ler dançando na sala
Dia cinza: o sol brinca de esconde-esconde.
Sexta é dia de Afrodite.
As unhas me pediram esmalte, não dei.
Pintei as raízes do cabelo, que cresce na velocidade da luz.
Enquanto jantava sozinha no restaurante, escrevi um texto. Mandei o texto para uma pessoa
ainda amada.
Vi um casal jantando em completo silêncio. Não parecia aquele silêncio que é confortável.
Passei em frente a uma academia de ginástica fechada, pela hora. Me perguntei se
marombeiros que desencarnam continuam a frequentar as academias na madrugada.
Espirros, espirros.

DIA 4
20 de maio de 2023 – para ler e depois pesquisar sobre cidades que você nunca visitou
Manhã de faxina.
Ganhei massagem da minha filha.
Apliquei muito hidratante na área dos olhos.
Consegui cochilar à tarde.
Jantei com um amigo querido.
Desejei mais uma vez me mudar de cidade.

DIA 5
21 de maio de 2023 – para ler ouvindo “Under the Milky Way”, do The Church
Detesto domingos.
Fiz mais uma faxina.
Dei banho na doguinha.
Vi reality show de casamento.
Pedi pizza de banana com creme de avelã.
Ouvi a mesma música várias e várias vezes.

DIA 6
22 de maio de 2023 – para ler e assistir a (500) dias com ela
Fiquei livre do IR.
Tomei um ótimo café para viagem.
Senti muito enjoo.
Comi quibe de forno, tomei suco verde.
Assisti, por acaso, a um filme que sempre quis ver, e cuja história termina no dia... 23 de maio
(energias, energias).

DIA 7
23 de maio de 2023 – para ler e depois entrar num banho quente, com luz de velas. Ouvir “Por una
Cabeza”, com Carlos Gardel
Dia de intuições fortíssimas e coincidências curiosas.
Comprei um segundo presente para o aniversário da filha.
Almocei uma sopinha de batata-baroa e uma empanada de carne.
Peguei uma mariachuvinha na saída do trabalho.
Estoy muy romántica, cadiquê isso?
Diz que figurinha repetida não completa o álbum, né? Sei lá.
Insônia insônia insônia (Deus abençoe quem inventou os fones de ouvido).
M. LAURINDA R. SOUSA (Lau) é psicanalista e tem vários escritos soltos pela casa;
esperam uma organização que não acontece. Alguns viraram livros: Mais além do sonhar (2003),
Quem é você? e outras histórias (Chiado Kids, 2019) e Na pele do vento voam passarinhos (Asinha,
2022). Outros, encontraram abrigo em coletâneas. Na psicanálise, tiveram destino parecido:
livros e capítulos em livros. Gosta de saber que seus escritos podem seguir viagem.
DIA 1
17 de maio de 2023
Dia cinzento. Chuva fina no jardim. As flores de maio estão se desfazendo.
Ano passado foram mais resistentes?
Minha memória anda pouco confiável.
Excesso de informações?
Transbordamento de tarefas?
Tempos de riscos?
A cada saída de casa, uma ocupação com o perigo.
Cuidado com o celular. Cuidado com a bolsa. Cuidado com as chaves. Cuidado com as
pessoas...
um possível inimigo sempre à espreita.
À noite fui ao Teatro Municipal.
No palco, um grupo da tribo dos Guaranis estendeu uma faixa para o público:
“É isso ser civilizado?”
Ando me fazendo a mesma pergunta.

DIA 2
18 de maio de 2023
Filho em casa. Prazer da conversa à mesa. Conta-me de seu filho – meu neto, preocupado
porque precisa ler um livro de cem páginas para o dia seguinte.
Que livro é esse?
À noite recebo a resposta. Uma foto mostrando a capa do livro: A bolsa amarela.
E outra, mostrando a grossura do livro. E explicando que não tinha muitas gravuras.
Acho graça.
A pandemia fez com que muitas crianças perdessem o interesse pela leitura; demorassem
para aprender a ler. Isso também aconteceu com ele.
Brincamos muitas vezes de ler juntos; um pouco cada um.
Vovó, como você lê rápido!
Ah! Você também vai ler mais rápido.
Será que ele quis me dizer que esse dia já chegou?

DIA 3
19 de maio de 2023
Sexta-feira. Dia de compras. Vai e vem de um lugar a outro. Estou no corre-corre. Tomara
que sobre tempo para o livro que comecei ontem:
A polícia da memória me espera.

Tempo. Tempo. Tempo.


Estou em desacordo contigo.
Vou te fazer um pedido:
Pra seres mais inventivo...

Brinco de devanear.
E se o tempo fosse mágico?
E se o relógio parasse?
Acordo com a freada brusca do carro.
Tempo de pôr os pés no chão.
Preparar o encontro com as amigas.
No faz que faz da cozinha, o livro aberto sobre a mesa.
Misturo com vagar as amêndoas trituradas com a calda de açúcar. Preparo o doce enquanto
evoco a lembrança de outros encontros. Aqui a polícia da memória não entra.
O tempo entra em acordo comigo.

DIA 4
20 de maio de 2023
Choro do cachorro no quintal.
Quer presença e comida.
Não sabe o que é espera.
Saio na corrida para outro compromisso que também não espera.
A passagem pela avenida São João é desoladora.
O frio convoca os moradores da rua a se aglutinarem.
Barracas, cobertores velhos, farrapos de roupas e de gentes.
Difícil a proteção para o frio. E para o olhar.
“É isso ser civilizado?”
Tatsuya Tanaka em outro espaço me apresenta Mitate, a arte de observar algo com novos
olhos; criar novos usos e significados.
Pode a arte transformar a vida?
Queria que essa mostra fosse na Avenida São João.

DIA 5
21 de maio de 2023
Prazer de olhar o livro recebido ontem.
Presente inesperado.
Poemas publicados por Hanna Arendt.
Nome sugestivo: Também eu danço.
Será que ela também se perdia no vai e vem da vida?
Continuo dançando com os afazeres de cada dia.
Ocupada com as ameaças feitas pelo Congresso.
Não percebem os riscos da invasão das florestas, das terras indígenas?
Mas hoje faz sol.
A surpresa do presente abriu fendas nas sombras do dia.

DIA 6
22 de maio de 2023
Madrugada.
Cachorros latem.
Apito do vigia.
Um caminhão estremece o asfalto.
Faz os vidros das janelas trepidarem
O vento frio invade as frestas da porta-balcão.
Os zumbidos ecoam no interior da casa
A insônia tem ouvidos e olhos atentos.

DIA 7
23 de maio de 2023
Na agenda nada escrito.
Desejo de vazios?
Decido pelo mentalmente mais urgente.
Colocar ordem na casa como quem ordena a cabeça.
Um helicóptero ronda acima do quintal.
Vontade de voar!
Vontade que ainda guardo na minha bolsa amarela.
MÔNICA FRAGOSO é paulistana, nascida em plena ditadura militar, e foi bailarina clássica
até os vinte e muitos anos. Graduada em Comunicação, trabalhou nas principais emissoras
de TV, em agências online e de eventos. Depois de duas décadas sonhando em viver
escrevendo, tomou coragem e deu uma pirueta diretamente para o mundo da literatura.
Sócia-fundadora da Livraria Pop, que existiu entre 2005 e 2010, no bairro de Pinheiros, e do
Studio Pop, espaço de arte-educação, recém-inaugurado na Vila Mariana.
Hoje é pós-graduada em Livro para as infâncias pela Casa Tombada, atua como pesquisadora
e escritora de livros infantojuvenis e tem se arriscado a escrever sobre si e, principalmente,
sobre ser mulher. No segundo semestre de 2023, terá um conto e uma crônica publicados
pelo Selo Off Flip e um livro pelo Tádesol Tádelua, selo infantil da editora Urutau.
DIA 1
17 de maio de 2023 – Mortara
Mais de duzentos quilômetros caminhados, conseguimos! Estamos no décimo dia da nossa
jornada pela Via Francigena*.
É inacreditável o que podemos fazer com o nosso corpo, principalmente quando treinamos
bem a cabeça.
Criei um jogo cerebral. No começo, saía sabendo que andaríamos aquela quilometragem
determinada na planilha, até o hotel da próxima cidade. Começava a me sentir realmente
exausta quando me dava conta de que já havíamos andado o programado, mas ainda não
tínhamos chegado ao destino. Então passei a programar meu cérebro para andar mais do que
a quilometragem da planilha.
Até que funcionou.
O corpo cansado, mas a cabeça programada para aguentar mais, para a exaustão.
Mães entenderão.
Hoje ouvi música enquanto caminhava, depois de muito tempo sem escolher meu próprio
som. Comecei a dançar. Durante a caminhada, as mesmas músicas que já me fizeram correr,
da playlist de outros tempos, me deram novos gestos espontâneos de alegria, parecidos com
aqueles da infância. Alcancei uma espécie de êxtase.

*Caminho medieval e rota de peregrinação que vai da catedral da cidade de Canterbury, na Inglaterra, passando por França, Suíça
e Itália, até Roma.

DIA 2
18 de maio de 2023 – Garlasco
Meus olhos amanheceram vermelhos, sinal de que estou cansada.
Dormi bem, mas acordei várias vezes no meio da noite, sinto falta de um travesseiro fino.
Por que os hotéis têm travesseiros gordos e duros?
Deve ser para fazer mais volume na cama e dar a impressão de aconchego. Pra mim,
aconchego tem que ser dobrável, flexível, encaixar em qualquer parte do corpo.
Depois de dez dias, entramos numa nova rotina. Acordar, trocar de roupa, guardar as poucas
coisas que tiramos da mala, checar os itens da mochila, deixar as malas na recepção do hotel,
tomar café da manhã, escovar os dentes, usar o banheiro e partir.
Hoje é o último dia de caminhada, o décimo primeiro. Serão 25 km, ou mais, já que os
números da realidade nunca batem com os da planilha.
Saímos e caminhamos durante seis horas, às vezes mais – assim tem sido.
Caminhar é usar o tempo integralmente. Usar todos os milésimos de segundos de cada
minuto, mesmo sem saber como calcular um milésimo.
Caminhar por um caminho desconhecido, porém amigável, te deixa num estado de
relaxamento com mínimo de atenção.
Um pé na frente do outro, conforme o seu passo; pisadas na direção programada, ou não, se
buscam mais contato com o entorno, se encontram novas sensações.
A gente escolhe nossas pausas, quando, onde e por quanto tempo.
E, com o corpo ativo, a mente faz novas conexões, desbrava estradas nunca percorridas.
As pernas e os pés se cansam, mas o cérebro segue caminhando, com cada vez mais
disposição, ora correndo, ora juntando caminhos inimagináveis.

DIA 3
19 de maio de 2023 – Pavia
Eu me descobri em harmonia com as belezas naturais, pela primeira vez com a intensidade
que a natureza clama. Li recentemente um texto do Ailton Krenak que falava sobre o “Bem
Viver”. Ele explica que esse Bem Viver não é uma vida fácil ou folgada, mas sim a difícil
experiência de manter o equilíbrio entre o que podemos obter da vida e da natureza, e o que
devolvemos: “O Bem Viver não é a distribuição de riqueza, é a abundância que a terra
proporciona como expressão da vida”.
Tantos dias caminhando em meio à natureza, em plena primavera, onde eu era só
observadora. Andar e ir passando os dedos por algumas folhas, acariciando-as e sentindo as
diferentes texturas e os aromas que ficavam na minha mão. Os cheiros que vão chegando e
perpassando, mesclando-se, e sons que ganham novas dimensões quando se está em silêncio.
Os cantos de pássaros, muitos, um farfalhar no chão indicando algum animal rastejando. De
repente, uma orquestra de sinos, que logo à frente entendo que vêm de vacas confinadas
num pasto.
Observar a infinidade de cores, seja nas flores, tantas que nunca havia visto, e nos diversos
tons de verdes e marrons. Queria ir escrevendo enquanto andava para ter o registro de cada
sensação. Fotografei, mas nada é comparável a esse encontro.
Um encontro único, uma ligação sensorial verdadeira com os elementos da natureza.

DIA 4
20 de maio de 2023 – Pavia-Roma
Acordei e me dei conta de que, de fato, acabou nossa caminhada.
Foram mais de 250 km em onze dias. Ano passado, fizemos 140 km em sete dias. Em 2024,
queremos fazer mais, chegar até Roma, andando, como os peregrinos medievais. Vicei no
caminhar.

Caminho que se acha


se perde
encontra outras direções
perde-se o que já tem
encontra o novo e enobrece o antigo.
Chega-se
Parte-se
para quando quer, onde quer
passos sempre à frente
corre-se
avista-se
vista-se
de caminhos.
Caminhar ao ar
Andar é com ar
com vento
Cruzar com alguns, uns no seu passo
outros apenas passando.

Torcer o pé,
escorregar, cair
Levantar-se e seguir.
No seco e molhado
caminhos de todas as cores
alguns preto e branco
e não menos bonitos.
Por vezes, mais importante
por dias ou horas.
Terreno firme, fértil, pantanoso
seja natural ou forçado
acumulamos bagagem
outras vezes largamos peso.
E a estrada chega ao fim
mas tem outra saindo, ali
escondida atrás de uma grande árvore.

DIA 5
21 de maio de 2023 – Roma-Sicília
O vulcão Etna “acordou” – a mamma, como dizem os sicilianos.
Nosso voo para Catânia foi cancelado. Fomos de trem, atravessando todo o Sul da Itália.
Parece cansativo, mas eu adorei.
Acho trens muito românticos, talvez por termos poucos trens no Brasil.
O som dos trilhos me lembra trilhas sonoras de cinema.
Sem check-in, sem necessidade de chegar horas antes, sem máquina de raio-x e, o mais
maravilhoso de tudo, sem filas.
Dentro dos trens, faço uma viagem no tempo.

Sentada ao lado da janela, vejo tudo passando rápido.


A mesma sensação de quando andava no carro dos meus pais, no banco de trás, ao lado do
meu irmão. Também ia grudada na janela, observando. O que havia lá fora, distante.
Casas, terrenos, montanhas, fábricas, jardins, pessoas, animais, outros carros e caminhões. E
tudo está resolvido, cada um no seu lugar no mundo.
No trem me deixo sentir assim, de novo.
Bom desligar a chavinha da consciência.

DIA 6
22 de maio de 2023 – Siracusa
Faz mais de um mês que estou fora do Brasil. E ainda ficarei mais dois meses por aqui, nunca
fiquei tanto tempo longe de casa.
Seguirei por terras em que meus bisavôs e bisavós nasceram. Eram jovens, pobres e
analfabetos, e largaram suas casas por um futuro melhor, por uma esperança na América do
Sul, no Brasil. Saíram sem nada, arriscaram suas vidas numa viagem longa e incerta.
Eu não. Sou muito privilegiada, viajo para aprender um novo idioma, para conhecer mais da
região dos meus antepassados.
Observo as pessoas, escuto suas vozes, suas diversas línguas e linguagens. Analiso seus
comportamentos e expressões e, ainda assim, a direção dos meus pensamentos é cada vez
mais para dentro de mim.
Sou estrangeira no meu próprio corpo.
Para explorar o novo, absorver outras culturas, conhecendo mais, e melhor, o meu país.

DIA 7
23 de maio de 2023 – Siracusa
Anoiteceu, vamos dormir. Só consegui escrever agora, no meio da noite.
Estamos cansados, mas felizes.
Acordei para ir ao banheiro. Mesmo sem conhecer bem o quarto, não acendo as luzes.
Caminhei no escuro, tateando os móveis, a parede, até achar o banheiro, o vaso, e o xixi saiu,
caiu na água, no escuro.
Sem apertar a descarga, voltei para a cama, silenciosamente, quase me bato nas quinas dos
poucos móveis do quarto.
Todo esse malabarismo para não interromper o sono do meu companheiro. Digito no meu
celular, sem som, embaixo dos lençóis.
Pensando aqui em como as mulheres cuidam, sempre.
Cuidam não só dos filhos, cuidam de quem amam, institivamente. Não, cuidam
indiscriminadamente.
Cuidados que deveriam ser mais descuidados.
Gentilezas sem obrigação.
Temos um crédito infinito de delicadezas.
Amanhã vamos acordar e tudo seguirá igual: mulheres cuidando.
PATRICIA DIAS começou a escrever na infância em diários fechados a chave, e nos
momentos de tédio lia enciclopédias. Formou-se em Psicologia, mas o chamado das Letras
foi mais forte. Pós-graduada em Literatura Infantojuvenil, é mediadora de leitura, facilitadora
de oficinas de leitura e escrita. Tem publicações em antologias e e-books, e escreve a
newsletter autoral Bilhetinho azul.
DIA 1
17 de maio de 2023 – quarta-feira e o farfalhar das folhas
Vou caminhando até a clínica para fazer o exame da tireoide. Agora é assim: todo dia uma
surpresa. Algo que não vai bem.
No caminho, observo as árvores em tons terrosos contrastando com o azul límpido do céu.
A beleza do outono enche os olhos.
Acompanho o exato momento em que uma folha se desprende do galho seco e, em um
rodopio cheio de graça, pousa suavemente no chão. Nenhum carro na rua e, assim, consigo
ouvir o farfalhar das folhas. Palavra engraçada e gostosa de falar. Percebo que o tal farfalhar
tem mesmo um som característico, uma mistura de ruído do vento com o crocante das folhas
secas.
Por um momento, esqueço o motivo da caminhada, é só um passeio contemplativo pelo meu
bairro. Dia frio com sol – meu preferido.

DIA 2
18 de maio de 2023 – quinta-feira e o encontro de impostoras
Iniciando uma nova oficina de escrita. Grupo diferente, dilemas iguais. Ninguém sabe muito
bem o que está fazendo, mas segue mesmo assim. Roubo as palavras de uma colega: “Eu
não morreria caso não escrevesse, mas a vida é muito melhor escrevendo”. As questões sobre
autorias são semelhantes. Mulheres que se consideram impostoras, amadoras, crentes de que
em algum momento serão consideradas uma fraude. O dilema da exposição e a sensação de
andar pelada na rua. Publicar? De que jeito!? Vender meu livro? Como!? Divulgar um livro
escrito por mim? Nem pensar!? Dá um certo conforto perceber que as dificuldades não são
só minhas.
Para T., nunca estaremos prontas, a gente simplesmente se lança. Sinto que a cada dia me
aproximo um pouco mais desse lançamento.

DIA 3
19 de maio de 2023 – sexta-feira e o dia em que ganhei tulipas
Sempre amei tulipas, tão singelas e, ao mesmo tempo, elegantes. Ao pensar nelas,
imediatamente embarco para os campos coloridos da Holanda; Amsterdã, Anne Frank –
obsessão literária antiga e viagem dos sonhos.
Faz um tempo que não é necessário ir até a Europa para encontrar tulipas, até no mercado é
possível comprá-las. Mas eu nunca me atrevi, fazem parte do pacote “viagem dos sonhos”
e, aqui, pareciam um luxo desnecessário. Sempre muito comedida, acabava investindo em
plantas de fácil manutenção e maior durabilidade.
No fundo, não é somente sobre plantas. A terapia, ao que parece, está dando frutos (só para
manter a vibe botânica). É sobre se permitir. Sobre usufruir o que é belo e bonito e
desnecessário. É sobre cuidar mais de mim, reconhecer meus esforços e conquistas. Quantas
privações e caraminholas carregamos ao longo do caminho. Abro um vinho pra comemorar
meus avanços – internos e externos.

DIA 4
20 de maio de 2023 – sábado e um momento para não esquecer
Queria transcrever cada palavra da conversa com Aline, mas muito me escapou. Tentei reter
o principal – a força criadora-criativa-política contida na escrita feminina. A urgência, a
escrita que revela um corpo. A vontade de deixar que a escrita atravesse meu próprio corpo.
Dar vazão a esse direito de escrever.
Lembretes para mim mesma: “a escrita é um Direito”, “proclamar-se escritora é um ato
político”.

DIA 5
21 de maio de 2023 – domingo de curadoria ou cuidadoria de mim
Mona cochilando no meu colo, uma caneca de chá e um livro. Como tarefa de casa, uma
curadoria de mim mesma: procurar nos cadernos minhas obsessões e repetições. Aquilo que
me faz ser eu mesma.

DIA 6
22 de maio de 2023 – segunda ou vida prática X vida ficcional
Tirar sangue, consulta, pegar resultado de exame, farmácia, mercado, padaria. Responder
mensagens, pesquisar fornecedores, revisar texto do site, fazer sopa, comprar cobertor pra
Mona.
A rotina em todo o seu esplendor, sugando toda e qualquer motivação para a escrita. Na
clínica, duas cenas chamam a minha atenção: uma mãe e seu bebê dormem na sala de espera
e não ouvem o chamado da atendente; uma moça arma um rebuliço porque não quer fazer
o exame com um profissional do sexo masculino. Algo no semblante de mãe e filho me
comove. Ele é o paciente, mas ambos precisam de colo. A vida real-ficcional-da-conversa-
alheia sempre salva os meus dias do tédio.
DIA 7
23 de maio de 2023 – terça e nem todos serão os escolhidos
Passagem rápida pelo centro da cidade para mais uma consulta. Sempre penso em tirar um
tempo para caminhar com calma, visitar os sebos preferidos, sentar-me em um café e
escrever. Há tantos cafés e até museus que não conheço. Da mesma forma que a ideia vem,
vai embora. Sigo com a terrível mania de deixar o que gosto para depois, de não me priorizar.
O marido da dra. S. morreu, e isso me comoveu muito. Senti que agora ela estava
conseguindo falar sobre o assunto. Ela insistiu em falar sobre os cuidados preventivos,
principalmente a consulta com o cardio. Ando cansada de encontrar a morte com tanta
frequência. Mais um motivo para não adiar as pequenas alegrias.
Nem tudo são flores no centro da cidade. Atravessando a praça, fui premiada com uma caca
de pomba na ecobag. Tentei entrar no prédio histórico da universidade, um daqueles passeios
que vivo adiando, e fui barrada. Exigiam o RG e eu o havia esquecido na outra bolsa. Para
piorar, quase não volto pra casa, já que a maioria dos ônibus agora só aceita cartão. Fico meia
hora no ponto aguardando um único ônibus que ainda tem cobrador. Na fila, um senhor
distribui panfletos dobrados. As pessoas o ignoram e ele insiste, dizendo que é de graça. A
moça na minha frente vira a cara e o velho não deixa por menos, para em frente a ela, quase
cabeça com cabeça, insistindo e fazendo caretas até ela aceitar. E ainda a intimida dizendo
que não é para jogar fora sem ler. Mais uma daquelas figuras que a gente só encontra ao
circular pelo centro. Lembrei do Oil Man, que nunca mais vi. Sentada no coletivo, ao pegar
o celular, esbarrei no tal papel e, para meu assombro, era um discurso de ódio travestido de
oração. Tão bizarro que parecia inventado. Em tom de ameaça, o texto cita uma série de
comportamentos que são considerados pecado (o sexo sem fins reprodutivos,
principalmente), e afirma, em letras grandes, que em nenhum lugar da Bíblia está escrito que
Deus ama e perdoa a todos. E eu que ainda me espanto com as pessoas de bem. Queria colar
o panfleto aqui, mas ele acabou perdido na bagunça da mesa de trabalho.
RENATA GIRIOLLI tem 42 anos, é paulistana, publicitária e atriz. Cultiva o hábito da
escrita desde a adolescência. Há pouco tempo, começou a participar de antologias, o que a
fez se dedicar à escrita com um pouco mais de afinco. É autora do livro Sobredor: desabafos em
versos públicos e particulares (Patuá, 2023).
Diários
_ou sobre todos os dias que deveriam ter sido engraçados, mas eu estava só vivendo_

DIA 1
17 de maio de 2023
Fui ao quarto dela, já sem vontade de me levantar da cama. Esse frio mina todas as minhas
vontades de qualquer coisa. Mas, às cinco horas e trinta minutos de uma manhã fria, fica
mais difícil ainda encontrar qualquer motivação.
Levantei com muito esforço, caminhei com mais esforço ainda os seis ou sete passos que
dão de um quarto a outro e a chamei. Abri a porta e disse: “Levantar”. Eu sempre faço só
isso, abro a porta e digo: “Levantar”. Mas hoje a minha fala estava rancorosa. Eu sei que
estava. Ela também sabe que estava. Ela já sabia na noite anterior que estaríamos assim.
Deitei na cama novamente enquanto ela fazia a sua higiene matinal. Depois fui fazer a
marmita dela, os lanchinhos e o café da manhã: dois pães do tipo egg com requeijão e um
yakult.
Caminhamos quietas até o metrô.
Eu me aquecia com os diálogos mentais que ia elaborando a cada passada. Tenho certeza de
que ela também estava elaborando muitas explicações e defesas. Me despedi friamente e fui
me crucificando em cada passada de volta pra casa. Tenho medo de perder alguém após um
momento de briga e não dar tempo de dizer: “Olha, tô te odiando agora, mas te amo
sempre”.
O fato é: eu ainda tenho um discurso longo para fazer a ela, mas pela manhã, no frio que
estava, não seria o momento ideal para nos alongarmos sobre tudo o que está dando errado
novamente nessa relação.
Às vezes, me sinto de saco cheio de ser apenas uma fonte financeira e provedora das
necessidades e caprichos dela.
Não acredito mais em a “mãe mandou, tem que obedecer”. Mas não poder dizer nada, não
poder cobrar nada, ter que ser só a caixa registradora sem opinião e sem poder cuidar
devidamente me angustia muito.
Às 7h30, saí para o trabalho.
Às 10h08, abri o meu horóscopo e ele dizia assim:
“Às vezes ficar em casa, curtindo uma relação com a própria alma, é mais proveitoso do que
se forçar a uma exposição social indevida”.
Sorrio e continuo a trabalhar.
Penso: “Às vezes ficar em casa, curtindo uma relação com as próprias mazelas, é mais
arriscado do que trabalhar forçada em um dia muito frio”.

DIA 2
18 de maio de 2023
Levanto com uma grande questão na cabeça: por que estou fazendo regime? Toda santa vez
que me meto a fazer um regime, eu me desequilibro emocionalmente.
Para piorar, cada vez que me submeto a uma restrição alimentar, os meus familiares
adicionam mais e mais itens nas compras do supermercado.
Passo o café da manhã encarando o pão e tomando minha vitamina de abacate com leite
zero lactose e pouco adoçado.
Às 9h, eu já começo o trabalho de enganar meu estômago, que ronca absurdamente com
pequenos goles de água. Às 9h30, atiro uma fruta qualquer pequena pra dentro, com o intuito
de chegar viva até as 11h30, quando, já louca, me atiro numa atividade que me entretenha
mais meia hora, pelo menos, até as garfadas da alegria.
Almoço: sem carboidrato, leia-se “sem arroz”. Eu amo arroz. Segundo a minha mãe, eu
pareço japonês. Eu amo arroz, eu amo sushi. Eu amo comida proporcionalmente às
restrições que eu me imponho.
E assim vou eu ao longo do dia. “Bala, não obrigada!”, “chocolate Twix que eu amo: não
obrigada!”, “Snickers, pingo de doce de leite, bolo de aniversário do final de semana, cookies
de Amsterdã descongelados, pão de queijo quentinho”... caramba, será que vocês decidiram
comer isso tudo logo hoje?
Abri uma mexerica e retomei o serviço.
Aguardo ansiosa para viver intensamente o meu “dia de lixo” no final de semana.

DIA 3
19 de maio de 2023
Aguardar, esperar, ter paciência, ficar parada sem fazer nada tendo o mundo todo por
acontecer, isso me deixa no mínimo muito ansiosa.
8h21. Eu deveria já estar na minha mesa de trabalho a vinte minutos daqui, vendo quem
pagou e quem não pagou as duplicatas de ontem.
Estou deitada na minha cama, com as pernas cruzadas, olhando a vida mentirosa das pessoas
no Instagram enquanto aguardo a chegada de dois amigos que farão uma visita técnica no
apartamento.
Eu já arrumei a casa, lavei a louça, fiz xixi três vezes – o frio me faz ir ao banheiro trezentas
vezes mais do que eu gostaria de abaixar as calças e sentar no vaso frio.
Estou aqui escrevendo, pois o que mais posso fazer?
Se eu arriscar piscar o olho, eu sou capaz de dormir até amanhã.
Há dias em que não paro. Trabalho, trabalho, trabalho. Pesquiso. Faço contas pra ver o que
ainda posso e não posso gastar este mês – não posso gastar nada!
Enfim, estou exausta e só penso num domingo tranquilo, atirada aqui na cama, sem esperar
ninguém, só, debaixo da coberta, acepipes pra beliscar e séries pra me entreterem.
Enquanto esse maravilhoso domingo não chega, vou continuar aqui, aguardando, de pernas
cruzadas para o ar e um mundo todo me aguardando.

DIA 4
20 de maio de 2023
Hoje foi meu primeiro evento para falar do meu livro, sem ser lançamento e sarau literário,
e posso dizer uma coisa? Continua sendo muito esquisito.
Sempre tem alguém filmando e, sei lá, me parece que eu não deveria estar falando o que
estou falando.
Sensações.
Parece que os meus segredos, as minhas tristezas, não deveriam estar sendo expostas.
Todo mundo fica com aquela cara de dó e, sim, é triste a história, mas me sinto deslocada
do tempo-espaço em que essa piedade está ocorrendo.
O livro agora faz parte de um outro momento. Um momento em que conto tudo o que vivi.
Mas como dizer isso? Parece até ingratidão com os leitores. Caramba, eu sei que estão
realmente com dó... obrigada, mas eu estou bem! Sério! Estou muito bem, como poucas
vezes estive em todos estes sete anos.
Eu estou voltando a flertar com a arte duplamente, e bem mais madura. Sem tantas
expectativas... pera, expectativas eu tenho, sim. Mas sem me enganar com os sonhos. Um
pouco mais realista. Um pouco menos iludida. Um pouco mais esperançosa. Arregaçando
mais as mangas do que implorando com olhos piedosos por oportunidades artísticas aos
grandes chefões da arte de São Paulo.

DIA 5
21 de maio de 2023
Eu definitivamente não posso começar nenhuma série com muitas temporadas, com vários
capítulos e com capítulos longos. Não, eu não posso.
Vem comer! Tô sem fome. Vai sair? Tô sem vontade. Vai viver... e eu esparramada na minha
cama assistindo aos vários capítulos na velocidade da luz.
Compromissos? Me esqueçam! Putz, eu vou ter mesmo que trabalhar hoje? Deixe-me
esquecida neste mundo ilusório de ficções de streaming.
Caramba, essa série já vai acabar. É melhor eu não começar mais nenhuma... se bem que eu
preciso desse mundo artificial para passar minhas longas fases solitárias. Se bem também que
eu deveria amadurecer um pouco e não agir como quando era criança e assistia pela milésima
vez ao mesmo episódio do Pica-Pau.
Se bem que... tem coisas que nunca mudam!

DIA 6
22 de maio de 2023
Segunda-feira.
5h30 da manhã.
Onze graus.
Eu sou um urso polar.
Essa foi a minha grande descoberta do dia de hoje.

DIA 7
23 de maio de 2023
Esta noite eu quase morri. A morte sussurrou no meu ouvido e por isso, hoje, eu queria
chegar bem cedo em casa. Dormi trinta minutos antes do meu turno acabar, na mesa do meu
trabalho. Esta noite foi um inferno e, pra completar, eu ainda peguei uma gripe daquelas. Na
verdade, ela apenas deu sinal, mas pelo sinal eu já vejo o que vem pela frente.
Voltando pra casa, meu pai entrou no supermercado pra comprar as coisas pro lanche da
noite – como ele faz todo dia. Pães, chá, leite, legumes pro dia seguinte, algum embutido pra
ele e minha mãe se empanturrarem e esquecerem que o câncer existe.
Todo dia, ele já sai meio de saco cheio do carro. Meio de saco cheio do dia todo de trabalho,
meio de saco cheio de ter que entrar no supermercado e gastar uma pequena fortuna em
bugigangas comestíveis, meio de saco cheio de estar carregando a casa, meio de saco cheio
de... tudo!
Todo dia, por motivo de “saco cheio”, ele faz tudo muito rápido. Sai pegando tudo que tem
que pegar bem rapidamente, como se estivesse naquelas corridas malucas dos programas de
TV, e vai pro caixa atropelando outros seres humanos que estão na mesma pegada que ele,
mas nessa competição não há quem ganhe do meu pai – ele é o superdoidão do saco cheio
da vida e, por isso, ninguém passa na sua frente.
Enfim, ele faz isso todo santo dia, tudo muito rápido, mas hoje está há horas, mentira,
minutos, na fila do caixa. Olhando pelo vidro do carro, dá pra ver que ele já passou todas as
compras, já passou o cartão, e por que ele não vem embora? Ele está batendo um longo e
alegre papo com o dono do mercadinho. Meu ímpeto é dar uma bela de uma buzinada. Digo
à minha mãe que vou lá dentro dar uma sapatada nele. Ela ri. Ela também está exausta da
minha noite de quase infarto, crise de ansiedade ou gases, arrotos, dores musculares, ou o
que quer que tenha sido a minha crise.
Porra, pai, logo hoje?
Logo hoje que tô morrendo a vida o dia todo. Que me segurei até agora (tirando os trinta
minutos que cochilei em cima do meu braço). Logo hoje que, se eu pudesse, já estaria na
cama, estirada, olhando o teto ou vendo Netflix, ou sei lá o quê, mas já estaria em casa, de
banho tomado, já teria forrado meu estômago, tomado meu Apracur, passado duas gotas de
Peppermint no céu da boca e estaria no meu nada absoluto. Logo hoje, pai?
Ele volta para o carro sorridente, contando histórias bizarras e engraçadas, na visão dele,
sobre inadimplência e velhinhos que roubam o mercadinho. De alguma forma, ele se acolheu.
Vou agora eu me acolher também.
SILVIA NUNES CANTARIN é graduada em Letras pela Universidade Estadual de São
Paulo (Unesp), Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho
(FAFIJA) e mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Trabalhou na
Secretaria Estadual de Educação como professora e gestora pública durante 32 anos. É
integrante do coletivo de investigação literária RuídoRosa. Tem um texto publicado na
antologia Anônimo não é nome de mulher (Patuá, 2022).
DIA 1
17 de maio de 2023
Amanhecer em São Paulo é sempre assim: primeiro estranho e depois me acomodo. Como
sempre, ao acordar em outra cama que não a minha, em outro lugar que não a minha casa,
sinto-me sempre estranha: onde estou? Para onde eu vou? O despertar é difícil e reticente.
Estou há dias aqui, neste cantinho que amo. Foi pensado, de início, para ser provisório,
enquanto as meninas estudavam. A primeira menina dizia que talvez fosse para sempre,
contudo se foi. Então, veio a segunda e foi ficando, e meu coração também foi se
aconchegando com os cômodos diminutos, mas suficientes.
Um cantinho, um lugar para passar uns dias, um lugar para passear. Quando estamos em São
Paulo, o mundo se agiganta.
Quando estou aqui, tudo parece possível. As conquistas parecem palpáveis, diluíveis. Assim,
saio saltitante pela “minha” Paulista. Quanta pretensão dessa mulher. Sai de uma cidadezinha
qualquer e crê que conquistará o mundo.
Os devaneios vêm e vão. Sou São Paulo agora e procuro pensar quais lugares percorrerei em
minha curiosidade interiorana. Percorro muitos quarteirões dessa imensidão. Às vezes, esses
edifícios me amedrontam e me fazem sossegar a curiosidade apressada. Sempre há algo para
admirar.
Levanto-me atordoada com tanto atropelo mental. Será a cidade? Apresso-me, afinal, terei
um dia inteiro nesse cantinho tão meu, nessa cidade tão mundo!

DIA 2
18 de maio de 2023
Ontem, ao acordar, milhões de pensamentos me bombardearam. Afinal, estou aqui, num
mundo de todos e de cada um. Meu tempo não é mais o mesmo. Tenho tempo agora para
acordar, refletir e surgir. Onde? No MASP revisitado, afinal, estou em Sampa.
Sim, revi e revivi aquelas telas apaixonantes de anos, nem sei exatamente quando, mas faz
tempo. E o tempo imperdoável agora também propicia contemplação. Parecia que eu estava
vendo pela primeira vez aquelas meninas que me seguiam por onde quer que eu fosse. Puro
êxtase, dizia a música, e foi. Aquelas meninas que me fascinaram, que ainda me deixam plena
de encantamento. Sempre meninas a me fustigarem a vida. As meninas da Lygia, as meninas
que me fizeram estar aqui novamente. As meninas da minha vida. Retinas maravilhadas e
pensamentos alucinantes me fazem feliz naqueles momentos contemplativos.
Pura vida, puro amor. Pura alegria.
E a felicidade me invade.

DIA 3
19 de maio de 2023
Acordei e, desta vez, pensamentos tristes me assombram: preciso voltar, meu pai precisa de
mim. Embora esteja tudo encaminhado, esteja tudo bem no momento, ele precisa da minha
presença. Não serão feitas nem as compras essenciais se eu não estiver lá. Despeço-me de
São Paulo, ainda triste, ainda reticente. Sempre há muito o que se ver por aqui. Ensaio meu
retorno, cabisbaixa. Terei muito o que fazer. Coração magoado, seguir em frente é preciso.
Meu pai tem que ser cuidado, não farei por menos. Farei mais. Sim. Preciso me fortalecer.
Embora os sentimentos negativos me atordoem, sigo em frente – cuidar daquele que me deu
a vida. Honrar pai e mãe. A mãe se foi e, com ela, a compreensão dele e a imensidão. O pai
sempre distante, sempre num mundo só dele, impenetrável. E eu, sedenta de aconchego e
entendimento. Primeira filha, primeira neta, primeira em tudo, mas não no coração dele,
assim eu me sentia, assim minha mãe desmentia. Somos três, mas só eu para você, agora.
Eita vida difícil, meu Deus.

DIA 4
20 de maio de 2023
Desperto com a aclamação: vamos! Atordoada, eu me refaço da noite repleta de sonhos e
assombramentos. Indagações me invadem. Estou pronta para retornar? Queria ficar por aqui,
pois meu coração está atabalhoado. Aos pulos, me ponho a executar as manobras do dia a
dia que se apresentam: arrumar a cara, arrumar as malas e recolher pertences viajantes, afinal,
esse cantinho diminuto me pertence e já faz parte do meu ser. Muito passional: será? Sou
assim, sagitariana e dramática. Enfim, recolho o que há de mim por todo canto. Tento
amenizar meu sentimento de retorno. Voltarei para casa, ampla, linda, por que tanta agonia?
Tormentas me invadem e agonizam em meu coração perturbado. Puro drama? Não. Por que
continuar com a vida de antes? Pergunta esdrúxula. São Paulo: fuga ou contemplação?
Enfrentamentos agonizantes. Descortina-se a face cor de rosa.

DIA 5
21 de maio de 2023
Amanheço em minha cama, em minha casa e no mundo que criei para mim. Sei onde estou
e o que farei, o cotidiano se impõe. Todavia, descortina-se o maior dilema: continuar no
interior ou retornar para São Paulo? Aqui há a melhor definição de vida: calmaria, tudo
definido, todos conhecidos, menos o coração, os tormentos, as angústias contidas e
amenizadas pelo estado civil.
Sorrisos brandos, atitudes contidas e passos definidos. Esta é a vida que se quer? Um estado
civil? Será essa a felicidade? Como saber? Por um longo tempo, essa era a melhor escolha.
Agora, porém, sabe-se lá.
Casa grande, espaçosa. Muitos ambientes nos quais se esconder. Cada um com seus
pensamentos e tormentos.
Domingo sendo domingo. E ele, meu primeiro e derradeiro bicho de quatro patas. Ele está
aqui para me alegrar, me acariciar. O filhote mais lindo do mundo. Labrador, marrom,
chocolate, cacau show, Toddy, mas Guga é o seu nome. Saudades imensas e intensas deste
cão que olha fundo nos olhos e nos deixa profundamente apaixonados.
Quanta alegria, meu Deus. Resta um.

DIA 6
22 de maio de 2023
Segundona, sempre difícil de encarar, mesmo sem trabalhar. Estigmatizada, portanto, sempre
será a segunda-feira, cheia de enfrentamentos e com clarão de definição e decisão. Retomar
a eterna questão de uma vida: meu peso. Sempre fazendo regime, como disse a minha irmã.
Enfrentamento eterno, não nego. Mas, e agora? Vale a pena me martirizar pela aparência?
Os sabores das iguarias e os prazeres que elas despertam são inimagináveis. Quando percebo,
já me excedi. E agora, mais uma dieta? Qual será desta vez? Algum remédio, quem sabe. Tem
algum milagre no momento? Preciso me inteirar. Vislumbro a academia nossa de toda
semana e de toda segunda. Pedalar, suar, derreter e, quem sabe, desaparecer. Sigo confiante
de que tudo vai dar certo.
Abaixo dos devaneios, vamos encarar meu pai: cuidados básicos. Segue minha admiração e
estupefação. Nunca o imaginei capaz de cuidar do cotidiano, mas, para a surpresa de todos,
ele superou as expectativas, se virou. Bravo, conseguiu sobreviver sem minha mãe. Ela fazia
tudo por ele. Ela era só, resolvia tudo, fazia tudo, e ele absorto sobrevivia, meio sem noção,
meio sem razão. Ao menos era o que pensávamos. Mas não. Ele tinha muita vida dentro de
si. Tomou pé da situação e engatou a quinta marcha, seguindo veloz até encontrar alguns
obstáculos próprios da idade.
A mãe o considerara inapto. Fazia tudo por ele. Foi mãe, pai. Ele não se abriu. Ela não
conseguiu descortiná-lo.
Assim, ela se foi e ele seguiu vivendo, saindo, apreciando o ar, o lugar e os seres ao redor.
Esta segunda-feira parece que nunca terminará. As lembranças são tamanhas. Esta cidade
natal me absorve.

DIA 7
23 de maio de 2023
Sonhei com ela. Frida estava me fazendo alegria, assim sem se esforçar. Por instantes, fiquei
feliz ao sabê-la viva e se esquivando de mim, como todas as manhãs. Não estava ali, procurei
pela sala, em vão. Meus olhos tentaram avistar seu pelo branco, mas foi em vão. Não havia
seu cheiro, nem sua sujeira, nada que lembrasse sua existência carinhosa. Seu lugar de sempre
estava vazio e triste. A vida mais uma vez se foi de mim. Mais uma entre tantas.
É perturbador tentar esquecê-la, não consegui arrumar isso dentro de mim. Ela foi marcante,
cativara a todos, aos poucos, sem pressa. Acostumamo-nos com sua singularidade, sem
questionar. Éramos sensíveis ao jeito dela de estar no mundo.
Silvestre ela era, silvestre ficamos. Estamos meio insanos desde sua partida.
Quando da partida do Chivas, tornei-me meio vazia. Ele se parecia comigo, dizia minha filha.
O cão mais adorável do mundo: meu “gordito”. Fazia tudo por uma bolinha. Seis anos de
pura cumplicidade. Foi tão repentino, assustador. Fazia exatamente um ano, quando ela
adoeceu. Atônita, tentava entender.
Enfim, eles se foram e deixaram as memórias caladas em nós. Restou um. Meu chocolate,
meu menino marrom. Ah, esse Guga.
Avalanche de lembranças me sucumbiram. Balanço interno necessário.
Não fiz mais exercícios físicos. Vou enferrujar. Devo ir, mesmo sem vontade, como sempre.
Jamais apreciei atividades corporais fixas. Tento gostar, me obrigo e sigo assim, me
fustigando a praticar: tudo por uma velhice mais saudável. Sempre por um final feliz. Como
os finais podem ser felizes, pergunto-me sempre. Existe algum final feliz? Fica a pergunta a
me atormentar eternamente.
VANESSA IBRAHIM nasceu no litoral paulista e começou a escrever mesmo antes de
conhecer as letras. É jornalista, pós-graduada em Artes e mãe. Já morou na Amazônia e há
dez anos vive em Florianópolis, SC. Publicou textos em antologias, e-books e portais.
Mantém o Instagram literário @santoscontos.
DIA 1
17 de maio de 2023 – náufraga encarnada
Despertei às 5h55 fugindo de um novo naufrágio. Estávamos eu e A. no barquinho, prestes
a bater contra um paredão de pedra. Corri para pegar a bebê (nunca sei qual delas), mas de
repente tudo virou água. Não sei por que escrevo isso, mas dizem que é bom, e como perdi
o sono... Lembrei de ontem, quando ouvi na mesa ao lado que a ilha está afundando não se
sabe quantos centímetros ao ano. Estar cercada de água tem disso. Sempre à espreita do
tsunami, sem perceber que o afogamento já está acontecendo, um pouco a cada dia. O
bairrista culpava o excesso de cimento e gente vinda de fora. Preguiça. Como se ele não
tivesse seus sacos de culpa também. Todos temos, mas é sempre mais fácil colocar o peso
sobre as costas dos outros.
*
Toda a melancolia pela qual eu estava naufragando tinha nome. As contrações do útero já
indicavam o que confirmei agora no banheiro. Sempre um alívio quando isso acontece, e
tenho a garantia de que a tristeza terá fim. E uma boa desculpa para ir buscar um chocolate
quente na cozinha antes de voltar a dormir.

DIA 2
18 de maio de 2023 – ciclos
Dormi mal de novo, briguei na fila do supermercado e acordei culpada, não gosto de brigar
à toa. E bem ontem a moça me cedeu a frente, notando que eu estava apressada para a saída
da escola. É sonho, sonho! Gritei em pensamento comigo mesma e veio à mente o meme da
taurina. O que me motiva a levantar diariamente é o café da manhã – culpo o signo.
Voltei tarde para casa depois da aula e fui checar as mensagens na escuridão da garagem antes
de subir. Descobri que B. noivou. E M. vai divorciar. Parece que vivemos em ciclos que se
abrem e encerram, sempre voltando a acontecer. O que me lembra novamente de meu ciclo
menstrual. E daquela música “Ciclos”, cantada por Bethânia no álbum de mesmo nome.

Murchassem todas as flores


A correnteza das horas
As trevas sobre as auroras
Os derradeiros amores
Ambas farão festas. E descubro que estou mais interessada na festa do divórcio, talvez por
ser novidade. Ou não. E pensar que se casou só para ter plano odontológico. Nem bem
chegou a fazer um canal, gastou mais com a papelada da separação e agora com a festa. Quer
saber, não julgo, “só se vive uma vez”. Saio do carro e a luz acende, atrapalhando o passeio
noturno de uma barata, que escapa assustada a tempo de não ser pisada. Pelo menos o fim
do ciclo daquela vida não será minha responsabilidade.

DIA 3
19 de maio de 2023 – espremer laranja ou gente
A vó veio me visitar. Quando abriu a porta, a cara não estava boa. “Vai ver o que ela quer,
acho que está chorando”, disse A., deitado ao meu lado na cama. Levanto e descubro que ela
queria o espremedor de laranjas. Pego a escada e retiro do alto do armário, entre jarras de
vidro e outras vasilhas empoeiradas. Acordo pensando: “Precisava fazer drama por um
espremedor, leonina?” Poeira em sonho não é bom, mas talvez seja só o subconsciente
mandando reforçar a vitamina C das crianças. E o pior é que eu nem tenho espremedor.
Troco por pontos?
À tarde, uma menina de treze anos apanhou de um grupo de meninos. A escola disse que era
brincadeira. Peguei a lixa de unha na bolsa, lembrança do dia da mulher, e pensei em jogar
na cara da coordenadora, mas só o fiz em metáfora, por mensagem de texto. Não tenho mais
palavras para explicar o inexplicável a essas pessoas. Desse pesadelo eu não acordo.

DIA 4
20 de maio de 2023 – efemérides e efemeridades
Tantos infernos astrais ao meu redor traz maio. O outono com o céu mais lindo, seco,
colorido, frio, mas nem tanto. A composição natural em degradê de saudade. Vêm as
mudanças de temperatura e os narizes das meninas escorrem, e as noites são encadeadas pelo
arranjo intercalado de tosses. As flores efêmeras: flores de maio, tulipas... não há paz que
dure mais de uma semana. Ainda assim é mês das mães e das noivas. Não sei exatamente o
porquê.
Hoje chorei com dias de atraso pela morte de Rita Lee. Foi como se tivessem me mandado
engolir o choro no corre-corre da rotina. Mas, uma hora, explodi, pensando no CD gravado
com músicas dos Beatles. “Tem lugares que me lembram minha vida, por onde andei”.
Talvez não tenha chorado somente por Rita, mas porque, no mesmo momento em que ouvi
a música, me perguntaram se eu lembrava o nome daquela avenida. Só que já está fazendo
dez anos que não passo por lá. E eu não lembrei. Mas lembrei do cheiro que tinha. De uns
prédios estranhos, sem janelas. De algumas pessoas que por ali abriram portas para mim. E
que já partiram, como Rita. Eu as imaginei andando por aqueles corredores escuros, umas
levadas pelas mãos da covid. Outras por fungo. Insuficiência cardíaca. Câncer. Pessoas que
já estavam perdidas em páginas do passado e que agora vão se borrando, junto com a minha
memória e do que eu sei sobre mim.

DIA 5
21 de maio de 2023 – Plutão é plano?
Jamais sonhei que partia para outro planeta, por isso tenho raiva de meus sonhos, sempre
tão reais e catastróficos. Já na vida real tenho aprendido muito sobre astronomia
acompanhando o conteúdo do Ensino Fundamental. Precessão, por exemplo, é um
movimento da Terra que hoje se aprende, mas que passou completamente despercebido nos
meus “tempos de escola” (termo de gente velha). Ou será que sou tão jurássica que ele só foi
descoberto após os anos 1980? O fato é que agora nosso bocadinho de mundo gira no
universo igual pião, o que possivelmente afeta minha labirintite. Mas, oremos, pelo menos
nessa escola a terra ainda não foi planificada e continua um irregular geoide. Enquanto isso,
Plutão foi rebaixado nos últimos anos. Na minha lista decorada, ele ainda fazia parte. Dó de
Plutão, fadado ao esquecimento nesta geração, e dos dinossauros, que se extinguiram desta
Terra que habitamos. Mas talvez mais dó ainda de mim, por ter que explicar de pijama o
motivo pelo qual não caímos quando a Terra gira. Sim, é a gravidade, a mesma que faz o
rosto das pessoas caírem para depois tentarem reerguer com lifting, explico para as meninas.
Uma luta perdida ou uma passagem rumo à aparência do Fofão. E a clínica que fazia isso
com botox falso fechou.
Agora chega de perguntas, hora de dormir. Assim se encerram os grandes debates da
humanidade nesta casa.

DIA 6
22 de maio de 2023 – tudo o que pesa e ficou pra trás
Hoje foi mais um daqueles dias em que acordei por estar cansada de sonhar. Não houve
meditação que desse jeito nesta cabeça que caminha dormindo, cozinhando, tomando banho,
adicionando doses constantes à poça do cansaço mental. E o físico vai caminhando junto. O
corpo pesa e o colchão já pede aposentadoria. A espuma da poltrona não tem mais densidade.
Um corpo cansado pesa mais? Fui arrastando-o pelo fio ao longo do dia, do supermercado
para a escola, do trabalho para a academia, de volta para casa. Cumpri mais um dia da rotina
prevista – sempre em frente. E quando fui dar uma olhada pelo retrovisor: quebrado. O
espelho ficou pelo caminho em alguma esquina e já não guarda mais o que vivi hoje. O
mesmo que um dia acontecerá comigo.

DIA 7
23 de maio de 2023 – revisões
Acordei tão cedo que parece que não deu tempo de sonhar. Fui à oficina, mas só para
consertar o retrovisor, procrastinando novamente a revisão, sempre tão cara. Acabaram
notando um farol queimado e o seguro cobria, graças a Deus. Depois, foi a vez da revisão
da motorista. O médico abriu, fechou meu capô, também me fez mostrar os faróis. Ufa, até
aqui, nada errado. Aproveitei para tomar uma vacina e evitar mais alguma coisa. Na volta,
tirei foto na linha do trem enquanto ele despontava lá longe. Agora deu remorso. Uma pessoa
com filhas para criar... E se o carro tivesse falhado na hora? Melhor agendar a revisão.

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