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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E


ANTROPOLOGIA

NASCER E MORRER NO COMPLEXO DO ALEMÃO:


políticas de saúde e arranjos de cuidado

Natália Helou Fazzioni

2018
NASCER E MORRER NO COMPLEXO DO ALEMÃO:

políticas de saúde e arranjos de cuidado

Natália Helou Fazzioni

Tese de doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora
em Ciências Humanas (Antropologia
Cultural).

Orientador: Octavio Andres Ramon Bonet.

Rio de Janeiro
Dezembro de 2018
Fazzioni, Natália Helou.
Nascer e Morrer no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de
cuidado/ Natália Helou Fazzioni - Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2018
Xvii, 213f:. il; 25cm.

Orientador: Octavio Andres Ramon Bonet


Tese (Doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa
de pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2018.
Referências bibliográficas: 194-207f.

1. Cuidado. 2. Atenção Básica à Saúde. 3.Sistema Único de Saúde. 4.Favelas. 5.


Complexo do Alemão. 6. Violência.
I. Bonet, Octavio (orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia. III. Nascer e Morrer
no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de cuidado.
RESUMO

A partir de uma etnografia realizada em Unidades Básicas de Saúde, esta tese tem
como objetivo analisar políticas de saúde e arranjos de cuidado no Complexo do
Alemão, conjunto de favelas situado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Partiu-se do
pressuposto de que a localidade constitui um elemento fundamental para compreender
a dinâmica de funcionamento do serviço de saúde ali situado e, desse modo, estes dois
elementos, o conjunto de favelas e o serviço de saúde, foram analisados paralelamente.
Investigou-se, na primeira parte, a história das políticas públicas de saúde existentes
no Complexo do Alemão, desde os anos 1980, e as diferentes faces do chamado
problema da “violência urbana”, que tem pautado os discursos públicos sobre este
local há pelo menos três décadas. Na segunda parte, analisou-se como médicos e
usuários do serviço de saúde compreendem e praticam o cuidado, tanto a partir das
consultas acompanhadas na unidade de saúde, como também através do
acompanhamento de visitas domiciliares e entrevistas realizadas com profissionais e
usuários. A partir disso, a trajetória de alguns profissionais, sobretudo médicos e de
usuários do serviço de saúde são reveladas, procurando dar lugar às especificidades
da prática médica e das práticas de cuidado no espaço da favela. Finalmente, concluo
aproximando o conceito de cuidado ao de habitar e construir, para sugerir que a
história da ocupação do espaço do Complexo do Alemão pode ser pensada a partir de
certa imbricação dessas três noções, propondo afinal uma recuperação crítica do
conceito de "território" nas políticas de saúde

Palavras-chave: Cuidado; Atenção Básica à Saúde; Sistema Único de Saúde; Favelas;


Complexo do Alemão; Violência.
ABSTRACT

Based on an ethnographic research conducted in a Primary Health Care Centre, this


thesis aims to analyse public health policies and care arrangements in Complexo do
Alemão, a set of favelas located in the Northern Zone of Rio de Janeiro. Assuming
that the locality is a fundamental element to understand the dynamics of the health
care service located there, these two elements, the favelas set and the health care
service, were analysed in parallel. In the first part, are brought up the history of public
health policies in the Complexo do Alemão, since the 1980s, and also the different
aspects of the so-called problem of "urban violence", which has guided public
discourse about this space for at least three decades. In the second part, it was analyzed
how physicians and patients of the health care service understand and practice care,
both from the consultations followed at the health care centre, as well as those carried
out in the "territory" during home visits. It was evidenced that the routine of the health
care service, the processes of illness and care and the relations between professionals
and patients are crossed and constituted by the dynamics of the neighbourhood, which
is sometimes seen as a complicating element in the routine of the service by some
professionals, while for others it is faced with creatively agency, especially by creating
links with the community and the patients. Finally, we consider the importance of the
notion of care in understanding the way in which the Complexo do Alemão is lived
and built, and in the way in which the different inequalities that permeate the lives of
its inhabitants are faced.

Key-Words: Public Health; Care; Primary Health Care; Favelas; Complexo do


Alemão; Violence.
LISTA DE SIGLAS

ACS Agente Comunitário de Saúde


BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
BM Banco Mundial
CAP Coordenação de Área Programática
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CCS Conselho Comunitário de Saúde
CEAP Comissão Executiva de Área de Planejamento
CEP Comitê de Ética em Pesquisa
CEPEDOCA Centro de Pesquisa e Documentação do Complexo do Alemão
CFCH Centro de Filosofia e Ciências Humanas (UFRJ)
CIEZO Conselho de Instituições de Ensino Superior da Zona Oeste
CMS Centro Municipal de Saúde
CONEP Comitê Nacional de Ética em Pesquisa
CONSA Conselho de Saúde do Complexo do Alemão
ENSP Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz)
ESF Estratégia Saúde da Família
FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz
FMI Fundo Monetário Internacional
GEL Grupo Executivo Local
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
NESC Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (UFRJ)
NOB Norma Operacional Básica
MS Ministério da Saúde
MRP Mapa Rápido Participativo
OSS Organização Social de Saúde
PADI Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso
PAISM Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher
PAM Posto de Assistência Médica
PNAB Política Nacional de Atenção Básica
PROESF Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família
PSF Programa Saúde da Família
SAMDU Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência
SMS Secretaria Municipal de Saúde
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UBS Unidade Básica de Saúde
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UPA Unidade de Pronto Atendimento
UPP Unidade de Polícia Pacificadora
VD Visita Domiciliar
(...)
Não me mostrem sapos e cobras
E esperem que eu grite
O medo, se aparecer,
Só nos meus sonhos existe
Carrego sempre comigo
Um amuleto escondido
Exploro o fundo do mar
Sem precisar respirar
Nada na vida me assusta
Nada
Nada
Nada na vida me assusta

(Maya Angelou, “Nada na vida me assusta”)

Ao João, que me inspira a ter sempre mais coragem


Subi o morro, subi cansado
Pobre de mim, pobre de nada
Morro do medo
Morro do sonho
Morro do sono
Morro no asfalto

(Luiz Melodia, “O morro não engana”)

A todos os moradores e profissionais da saúde do Complexo do Alemão,


que sobem o “morro”
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico), pelo apoio financeiro para realização dessa pesquisa. Agradeço ainda a
todos os profissionais e coordenadores do Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Antropologia da UFRJ, pelo auxílio em questões institucionais diversas.

Agradeço ao meu orientador, Octavio Bonet, por ter sido tão receptivo desde o
início e ter me estimulado e apoiado em todos os momentos dessa trajetória, inclusive
nos mais difíceis e tortuosos. No Laboratório de Etnografias e Interfaces do
Conhecimento (LEIC), coordenado por Octavio e Daniela Manica, encontrei um
espaço de troca e interlocução, marcado sobretudo por afeto, generosidade e
curiosidade. Lá discuti a maior parte das angústias e dos achados dessa pesquisa e
recebi em troca acolhimento e ótimas sugestões. Agradeço ao Octavio e à Daniela, por
terem feito desse espaço um ambiente tão especial, e a todos os que passaram por lá
nos últimos anos, em especial: Danilo Mariano, Gustavo Chiesa, Emanuel Luz, Vítor
Jasper, Tássia Áquila, Thaiza Santos, Fernanda Nunes, Fernanda Carvalho, Bruna
Fleury, Túlio Franco, Aisllan Assis, Mário Borba, Clarice Rios, Marina Nucci,
Leandro Wenceslau e Luciana Ponte.

Com Luciana, me aventurei ainda pelo Museu Nacional, onde conheci Waleska
Aureliano que, na época, oferecia um curso junto ao Professor Luiz Fernando Dias
Duarte. Os aprendizados desse curso e a amizade de Luciana e de Waleska sigo
carregando comigo pela vida e sou muito grata ao apoio que me deram em momentos
distintos dessa pesquisa, ouvindo minhas inquietações e sugerindo leituras. Agradeço
ainda à Luciana, pela leitura cuidadosa que fez do terceiro capítulo da tese.

Retrocedendo alguns anos, antes mesmo do doutorado ter início, quero


agradecer às pessoas que estiveram ao meu lado no primeiro contato que tive com o
Complexo do Alemão, através do meu trabalho no programa UPP Social, em 2012.
Agradeço à inesquecível “equipe 10”, composta, na época, por Thales, Douglas,
Carlinha, Amanda, Seu Júlio, Paloma, Renato, Rodrigo e Anatália. Todos vocês fazem
parte desse trabalho, de forma direta ou indireta, e sou grata pelos ensinamentos e pela
paciência que sempre tiveram com essa paulista, meio “estrangeira”, no Rio e no
Alemão.
Depois dessa experiência de trabalho, tive a sorte de ser integrada à equipe da
Coordenadoria de Cooperação Social da Fundação Oswaldo Cruz, onde fui bolsista
de extensão por dois anos. Agradeço ao Leonídio Madureira e a toda equipe, pelos
aprendizados sobre a Fiocruz, sobre Manguinhos, sobre políticas públicas no Brasil e
sobre como “endurecer sem perder a ternura”. Agradeço, em especial, Bia, Felipe,
Flora e Rejany, que se tornaram grandes amigos.

Agradeço ainda à equipe de Sociologia do CEFET-Maracanã, onde fui


professora substituta por dois anos e, em especial, aos alunos, que me ensinaram muito
mais do que pude lhes ensinar.

De volta ao Complexo do Alemão, quero agradecer a todos do Instituto Raízes


em Movimento, pelas trocas e aprendizados, sobretudo ao Alan Brum, Davi Amen e
aos pesquisadores envolvidos no CEPEDOCA, em especial ao Thiago Matiolli, com
quem tenho nos últimos anos estabelecido uma troca frutífera de materiais de pesquisa
e reflexões. A ele, agradeço ainda enormemente pela leitura e apontamentos que fez
do primeiro capítulo da tese.

No serviço de saúde onde a investigação foi desenvolvida, agradeço às duas


gerentes, que foram sempre muito receptivas à ideia da pesquisa, a todos os médicos
que aceitaram minha presença em seus consultórios, muitas vezes bastante apertados
e em meio à rotina corrida de atendimentos (não irei nomeá-los para preservar suas
identidades). Finalmente, agradeço às agentes de saúde Zilma, Patricia, Márcia e
Neriana, que me ajudaram em diferentes ocasiões, e em especial à Claudinha, que foi
uma parceira em vários sentidos, com quem compartilhei as incertezas e os rumos da
pesquisa. Agradeço ainda ao Wagner, ao Tio Paulinho e à Mariza Nascimento, que me
concederam entrevistas, e à Lúcia Cabral, que compartilhou comigo algumas ideias e
sua monografia de final de curso. Como tento evidenciar aqui, todas essas pessoas são
fundamentais na luta por uma maior qualidade de vida e mais serviços de saúde para
os moradores do Complexo do Alemão. Agradeço, por fim, aos usuários do serviço de
saúde que também concederam entrevistas ou me permitiram participar de suas
consultas.

Registro meus agradecimentos à Tatiana, do Centro de Estudos da CAP 3.1,


que atendeu prontamente as minhas dúvidas com relação ao trâmite de autorização da
pesquisa. Ainda nesse sentido, agradeço à Fernanda Rougemont, minha colega de
turma de doutorado, que me auxiliou a desvendar a Plataforma Brasil e outras
burocracias da vida acadêmica.

No exame de qualificação, contei com valiosas contribuições dos professores


Fernando Rabossi e Martinho Silva, e a eles agradeço pela leitura atenta e pelas
sugestões. Agradeço ainda aos professores Jane Russo, Claudia Fonseca, Cesar
Favoreto e Fernando Rabossi, por terem aceitado compor a banca de defesa.

Em janeiro de 2017, fui contemplada com uma bolsa para realizar uma visita
financiada de um mês à Universidade de Cardiff, no País de Gales, em convênio
firmado com o PPGSA/UFRJ. Agradeço à Profa. Sin Yi Cheung, responsável pelo
convênio, e ao Adriano Neri, secretário da School of Social Sciences, por todos os
esforços feitos para que minha estadia ocorresse da forma mais proveitosa possível.
Aos professores Simon Murphy e Simon Moore, que me supervisionaram, e à equipe
do DECIPHER (Centre for the Development and Evaluation of Complex Interventions
for Public Health Improvement), que me recebeu de forma muito acolhedora, sou
profundamente grata.

Devo ainda dizer que essa tese talvez nem existisse, se eu não tivesse, há sete
anos, conhecido o Zé e decidido me mudar de vez para o Rio de Janeiro. De lá para
cá, foram muitos desafios e alegrias, em especial termos nos tornado pais do João.
Agradeço por estar sempre ao meu lado, fazendo de tudo um pouco, inclusive lendo e
comentando trechos da tese. Principalmente no último ano e na visita a Cardiff, Zé
assumiu de forma admirável a tarefa de dar conta de quase tudo sozinho para que eu
pudesse ter mais tempo para trabalhar, fazendo valer mais do que nunca o título que
sempre preferi lhe atribuir: meu companheiro.

Vovó Suely e Nata foram também fundamentais nesse malabarismo dos últimos
tempos e a elas agradeço sempre pelo carinho conosco e, sobretudo, com o João. À
Manu e ao Geoff, pelos almoços de domingo e por estarem perto sempre que preciso.

Quero agradecer ainda a todos os meus amigos que fazem parte de quem hoje
sou, mesmo os que estão mais distantes. Em ordem cronológica: Marina, Débora e
Julieta, que me acompanham desde a infância; Siri, meu parceiro de conquistas e
angústias desde o ensino médio; aos meus amigos da graduação na Unicamp, em
especial à “Turminha 05” e também à Ruth e à Rosa; à “farofa carioca”, minha família
de opção, que divide comigo as dores e as delícias de viver no Rio de Janeiro; em
especial, ao Samuel Leal, que nesse último ano esteve sempre ao meu lado, em
momentos bons e difíceis. Agradeço ainda ao “puxadinho” do amor virtual, habitado
por Renata Mourão, Michele Escoura e Júlia Goyatá, que me fazem compreender o
sentido da palavra sororidade. E ainda, através delas, a toda galera da USP que conheci
durante o mestrado e por quem nutro profundo carinho, mesmo estando hoje mais
distante, em especial, Bernardo Machado, Carlos Filadelfo e Marina Barbosa. À Julia
Polessa e à Juliana Blasi, duas amigas queridas, entre tantas e tantos que o Zé “me
emprestou” (e que não vou correr o risco de nomear para não ser injusta com
ninguém), mas a quem agradeço pelo carinho, pela amizade e pela “receptividade” em
terras fluminenses.

Minha mãe, Rafha, e minha avó, Alice, são e sempre foram meus porto-seguros
e as mulheres que mais admiro no mundo. A elas, que me dão apoio incondicional em
tudo o que faço, tenho pouco a oferecer, senão meu amor e minha gratidão. Ao meu
irmão, Matheus, agradeço pela parceria nos cuidados com a nossa mãe e nossos avós,
pelas risadas e pelas brigas “construtivas”. A Pri, Ernest, Julia e Theo, agradeço pelo
afeto que cruza o Atlântico e conecta o Rio a Barcelona, fazendo doer um pouco menos
a saudade enorme que sinto deles. Ao meu pai, agradeço por ter me dito tantas vezes
que estudar era a coisa mais importante que eu poderia fazer, acho que nem ele
esperava que eu levasse isso tão a sério. E por fim, à “tia” Carmen, que se tornou parte
da nossa família e esteve sempre presente em nossas vidas, torcendo e ajudando para
que tudo desse certo.

Finalmente, agradeço ao meu filho João, que veio meio sem planejarmos e
bagunçou, mas ao mesmo tempo resolveu, todos os planos que eu tinha para o
doutorado. Desde a “barriga”, João passou comigo por todas as etapas: fez trabalho
de campo, “escreveu” qualificação, viajou comigo para o frio de Cardiff e protestou
bastante quando precisei estar reclusa para terminar de escrever. Um dia, me disse:
“eu também gosto de escrever tese, mamãe. Posso te ajudar?”. Ele nem imagina o
quanto já ajudou.
NASCER E MORRER NO COMPLEXO DO ALEMÃO:

políticas de saúde e arranjos de cuidado

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 17
Antes do início ............................................................................................................ 17
Da cidade ao cuidado ................................................................................................. 21
O comitê de ética e o trabalho de campo .................................................................. 30
Apresentação do texto ............................................................................................... 33
PARTE I: DO LADO DE FORA ................................................................................ 36
CAPÍTULO 1: Políticas da vida .................................................................................. 37
O “postinho” e a Clínica da Família ............................................................................ 37
Entre o Complexo e o Território ................................................................................. 42
Serviços de saúde no Complexo do Alemão: 1980 a 2018 ......................................... 46
Do CONSA ao PROESF ................................................................................................. 47
Números e papéis: a expansão da ESF após 2009...................................................... 58
“Problemas de IDH baixo” .......................................................................................... 63
“As sobras do bolo” .................................................................................................... 66
A Clínica das Palmeiras ............................................................................................... 70
Políticas da vida .......................................................................................................... 72
CAPÍTULO 2: Entre o visível e o invisível: contribuições antropológicas à
discussão sobre violência e saúde ................................................................................ 75
Tiro que “cura” ........................................................................................................... 75
Tiro que fere ............................................................................................................... 77
Tiro que mata ............................................................................................................. 86
PARTE II: DO LADO DE DENTRO ......................................................................... 96
CAPÍTULO 3: Os médicos da favela .......................................................................... 97
Entre brasileiros, cubanos e recém-chegados............................................................ 97
Primeiros contatos...................................................................................................... 99
Do PSF ao Mais Médicos........................................................................................... 102
A “missão” de Cláudio .............................................................................................. 108
“A saúde não pode ter sentimento”......................................................................... 115
Os “recém-chegados” ............................................................................................... 120
“Isso aqui é uma UPA!”: o problema da demanda ................................................... 122
“Isso não deveria existir”: o problema da “vulnerabilidade” ................................... 126
Medicina de favela ................................................................................................... 135
CAPÍTULO 4: Os arranjos de cuidado .................................................................... 142
Arranjando ................................................................................................................ 142
“Linhas de cuidado” e “linhas de vida” .................................................................... 149
O ritual das visitas domiciliares ................................................................................ 152
A casa e o morro ....................................................................................................... 156
Quando os vínculos são frágeis ................................................................................ 163
Um “paraíso” chamado Alemão ............................................................................... 169
Onde estão os homens? ........................................................................................... 173
“O império das comadres” ....................................................................................... 175
A mãe que não cuida ................................................................................................ 178
“Eu cuido, eu vivo”: a importância do vínculo ......................................................... 182
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O cuidado que resta: formas de habitar o mundo 184
A guerra dos martelos .............................................................................................. 184
Um lugar para a antropologia na saúde ................................................................... 187
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 193
ANEXO I: MAPAS CAPÍTULO 2............................................................................ 207
INTRODUÇÃO

FIGURA 1: AMANHECER (FOTO DA AUTORA, 2017)

Trata-se simplesmente de reconhecer que para que as


coisas interajam elas devem estar imersas em um campo
de força criado pelas correntes do meio que as cerca.
Separadas destas correntes – ou seja, reduzidas a
objetos – elas estariam mortas (…) se quiser viver,
então a borboleta deve ser devolvida ao ar e o peixe à
água (INGOLD, 2015, 149).

Antes do início
Essa é uma tese sobre políticas de saúde e arranjos de cuidado no Complexo
do Alemão, conjunto de favelas situado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ao
considerar a importância dessa localidade para compreender a rotina do serviço de
atenção básica à saúde ali situado, optei por analisar, simultaneamente, estes dois
elementos, o conjunto de favelas e o serviço de saúde, um lançando luz sob o outro.
Assim, percorri a história das políticas públicas de saúde existentes no Complexo do
Alemão desde os anos 1980; procurei olhar de forma complexa para a questão da
“violência urbana” – principal demarcador das narrativas públicas sobre este espaço

17
– e seus impactos específicos na saúde; e, por fim, analisei como médicos e usuários
do serviço de saúde compreendem e praticam cuidado.

A necessidade de justapor esses dois olhares adveio da minha própria trajetória


de aproximação com o campo. É difícil precisar em que momento meu trabalho de
pesquisa sobre o Complexo do Alemão teve início. Três períodos distintos marcam a
relação que estabeleci com esse espaço da cidade: meu trabalho no programa UPP
Social, em 2012, minha participação nas atividades do Instituto Raízes em
Movimento, uma organização não governamental sediada e criada por moradores do
Complexo do Alemão, a partir de 2014, e, finalmente, o trabalho de campo realizado
na Unidade Básica de Saúde, em 2015, 2016 e 2017.

No primeiro desses momentos, em 2012, fui contratada para trabalhar em um


programa da Prefeitura do Rio de Janeiro, em parceria com o escritório da ONU
Habitat na América Latina, cujo nome, UPP Social, evidenciava sua proximidade com
o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (política implementada pela Secretaria
de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro e capitaneada pela Polícia Militar)
em seu lado mais “social”. Ainda que fizessem parte de um mesmo projeto de governo,
envolvendo o município, o estado e a União, não havia de fato uma articulação entre
o programa e a Polícia Militar. O programa estava organizado através de um tripé
composto por: gestão territorial, com equipes que trabalhavam diretamente nos
territórios de favela onde havia UPP, gestão institucional, que realizava o diálogo com
as chamadas “secretarias municipais prioritárias” da Prefeitura do Rio de Janeiro, e,
por fim, gestão da informação, responsável por sistematizar demandas e dados mais
gerais sobre os territórios, em mapas e relatórios.

Durante oito meses, fiz parte da equipe de gestão territorial do Complexo do


Alemão. Na prática, isso significava um trabalho de quarenta horas por semana,
divididas entre atividades de coleta de informações e articulação com atores públicos
e sociedade civil organizada, no campo, além das atividades de sistematização de
informações e reuniões de equipe no Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da prefeitura
que sediava o programa. Nossa equipe era composta por um gestor, três assistentes e
quatro agentes de campo, sendo que os agentes de campo deveriam ser
obrigatoriamente moradores da área e possuir ensino médio completo. Já os
assistentes deveriam possuir curso superior completo ou estarem cursando. Durante

18
quase todo o tempo, exerci a função de assistente e, nos últimos dois meses, trabalhei
como gestora.

A despeito das críticas já existentes a respeito desse programa1, além de minha


própria opinião sobre seus erros e acertos, posso afirmar que esses foram meses de
muito aprendizado. Aprendizado pessoal e, sobretudo, sobre a dinâmica social e
política do Complexo do Alemão. Costumo dizer que esse trabalho foi para mim uma
espécie de “salto de paraquedas”. Eu não sabia o que esperar quando me avisaram que
eu havia sido selecionada para compor a equipe do Complexo do Alemão. Eu tinha
estado dentro de uma favela no Rio de Janeiro somente uma vez e vivia na cidade há
pouco mais de um ano. O programa nos proporcionava uma imersão de fato intensa
na favela. Tínhamos como uma das nossas tarefas passar por todas as ruas do
Complexo do Alemão para aplicar uma metodologia chamada Mapa Rápido
Participativo (MRP), além de visitar todos os serviços públicos instalados na região,
todas as treze associações de moradores, organizações não governamentais, e ainda
promover uma série de reuniões de articulação entre a sociedade civil e os serviços
públicos. Tive assim a oportunidade de conhecer e circular pelo Complexo do Alemão
como um todo, o que muitas vezes não ocorre nem com moradores, nem com
profissionais que atuam ali há muitos anos, porque eles estão mais restritos a uma ou
outra comunidade, mais próximos de onde vivem ou trabalham. Nesse sentido, vale
lembrar que, embora o Censo de 2010 tenha contabilizado uma população total de
60.500 habitantes 2 em todas as comunidades que compõem o bairro Complexo do
Alemão, alguns moradores afirmam tratar-se de cerca de 200 mil3.

No início de 2013, diante da iminência de que o programa UPP Social fosse


interrompido, em razão de desacordos entre a Prefeitura e a presidência do Instituto
Pereira Passos, acabei aceitando outra proposta de trabalho e me desliguei da UPP

1
Ver matéria recente da Revista Piauí sobre a história do programa, disponível em
<https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/05/10/quem-se-lembra-da-upp-social/> (acesso em 29 de
outubro de 2018).
2
Informação disponível em
<http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download%5C3190_FavelasnacidadedoRiodeJaneiro_Ce
nso_2010.PDF > (acesso em 29 de janeiro de 2018).
3
Muitos afirmam que a estimativa inferior do número real de moradores em favelas serviria para justificar
a falta de investimentos nesses locais. A estimativa feita pelos moradores é baseada no número recebido
de contas de luz da empresa Light. Profissionais do IBGE, por outro lado, revelam dificuldades em
compreender os limites das favelas, o que acabaria deixando alguns domicílios de fora. Sobre a
controvérsia dos resultados do Censo em favelas, ver <http://vivafavela.com.br/449-censo-nas-favelas-e-
controverso/> (acesso em 29 de janeiro de 2018).

19
Social. O programa, entretanto, foi renovado e existiu por mais alguns anos com o
nome “Rio Mais Social”, sendo totalmente extinto em 2016. Após meu desligamento,
pude amadurecer o que havia vivenciado e resolvi formular um projeto de pesquisa,
partindo de alguns pontos que haviam me despertado interesse durante os meses de
trabalho ali. Em 2014, já cursando o doutorado, resolvi me inscrever em um curso,
promovido pelo Instituto Raízes em Movimento, em parceria com pesquisadores do
LACED (Laboratório de Pesquisa em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento do
Museu Nacional/UFRJ), que consistiu em uma série de debates e atividades voltadas
para moradores e pesquisadores, sobre temas ligados à formulação de políticas
públicas, tais como saúde e direitos humanos. A partir dessa experiência, acabei me
integrando ao coletivo “Pesquisadores em Movimento”, uma das iniciativas do Raízes
em Movimento, no âmbito do projeto CEPEDOCA 4 , reunindo pesquisadores que
realizavam investigações no Complexo do Alemão, em diferentes áreas, visando
fomentar a produção e a troca de informações sobre as pesquisas realizadas, de modo
a pensá-las estrategicamente para as mobilizações e as reivindicações populares.

Ao iniciar a pesquisa em uma unidade de saúde, em 2015, eu estava interessada


em neutralizar ou, no mínimo, estranhar as experiências que eu havia tido no Alemão
anteriormente – através, sobretudo da Prefeitura – e iniciar um processo de
investigação das experiências de sofrimento nos serviços de saúde. Ao longo do
tempo, porém, pude concluir que essas duas perspectivas acabaram se somando no
decorrer da pesquisa e, desse modo, o conhecimento que eu já possuía sobre o
Complexo do Alemão influenciou minha compreensão da unidade de saúde. Além
disso, o conhecimento que adquiri sobre o seu funcionamento alterou minha percepção
sobre o Complexo do Alemão. Embora tanto no trabalho na UPP Social, como no
curso promovido pelo Raízes em Movimento, eu não estivesse inserida inicialmente
como pesquisadora, minhas reflexões sobre a pesquisa nunca puderam se desconectar
desses dois momentos iniciais. Justamente por isso, ainda que a investigação tenha
sido realizada em duas unidades de saúde que atendiam majoritariamente as áreas

4
“O Centro de Estudos, Pesquisa, Documentação e Memória do Complexo do Alemão (CEPEDOCA) é uma
iniciativa do Instituto Raízes em Movimento. Está inserido na visão estratégica do instituto de produzir
saberes como ferramenta de legitimação da luta e das reivindicações populares. Logo, para entender o
projeto é preciso antes conhecer a trajetória da instituição e seu compromisso com a organização social
e mobilização política dos moradores do Complexo do Alemão”. Informação disponível em
<http://www.cepedoca.org.br/institucional/sobre-o-projeto/> (Acesso em 03 de novembro de 2018). Ver
também vídeo institucional que apresenta o projeto: https://www.youtube.com/watch?v=5M8vhudGuc4
(Acesso em 21 de novembro de 2018)

20
chamadas de Morro do Alemão, Grota e Mineiros, o Complexo do Alemão como um
todo – composto por diferentes comunidades5 – aparece como um referencial ao longo
de toda a tese, por uma escolha metodológica e, ao mesmo tempo, por minha própria
trajetória de pesquisa e relação com esse espaço.

Esse conjunto de favelas opera aqui, então, como mais do que um mero cenário
onde os usuários vivem e o serviço de saúde está localizado. Trata-se de um elemento
que demarca diferenças no processo de demanda por políticas de saúde, no
funcionamento dos serviços de saúde e no que chamei de arranjos de cuidado. Esta
pesquisa é, portanto, o resultado não apenas dos três anos de trabalho de campo
realizado na unidade de saúde, após meu ingresso no doutorado, mas da soma de seis
anos de relação com o Complexo do Alemão, através dessas diferentes perspectivas.
Não posso deixar de mencionar também que – ainda que eu tenha levado bastante
tempo para me convencer disso – os resultados desse trabalho não deixam dúvidas de
que procurei aqui conciliar minha trajetória acadêmica até o final do mestrado, com
foco em Antropologia Urbana, aos interesses que surgiram a partir do doutorado, mais
voltados para a Antropologia da Saúde.

Da cidade ao cuidado
Na formulação inicial do projeto de pesquisa, procurei refletir sobre uma das
questões que mais me despertou a atenção no período em que trabalhei no programa
UPP Social. Tratava-se do processo de expansão da Estratégia de Saúde da Família
naquela área, intensificado a partir de 2009 devido à implementação de novas
unidades de atenção básica à saúde – processo este que será explorado no primeiro
capítulo. Uma das funções atribuídas à equipe da UPP Social era a de promover maior
articulação e integração entre os equipamentos públicos, especialmente municipais,
presentes na área de atuação. No campo da saúde, participei de algumas reuniões entre
todos os gerentes de unidades de saúde que atendiam o Alemão, bem como de uma
tentativa de integração e construção de um protocolo de encaminhamento entre as
unidades de saúde e os órgãos vinculados à assistência social. A partir dessa
experiência, passou a me interessar como o processo de expansão da atenção básica

5
Morro do Alemão, Grota ou Joaquim de Queiroz, Nova Brasília, Reservatório de Ramos, Parque Alvorada,
Fazendinha, Morro das Palmeiras, Casinhas, Canitar, Pedra do Sapo ou Morro da Esperança, Mineiros,
Matinha, Morro do Adeus e Morro da Baiana

21
havia se dado ali e de que forma a população se relacionava com esse novo sistema
local.

Diante desse cenário, as perguntas que inicialmente tentei formular


correspondiam à relação entre violência, pobreza e saúde intermediadas
principalmente pela questão do sofrimento, notadamente um sofrimento causado pela
desigualdade social, que poderia vir a se tornar uma demanda dentro dos serviços de
saúde. Mas naquela época, eu estava imersa em dois sentimentos distintos: em
primeiro lugar, estava encantada e crente na potencialidade transformadora da
Estratégia Saúde da Família e, em segundo lugar, me perguntava como era possível
viver sem sofrer diante de tanta violência e pobreza. O sofrimento era também uma
reação minha face àquela realidade e, desse modo, foi necessário, ao longo dos anos,
dar conta desse sofrimento, sem que ele norteasse os rumos da pesquisa. Assim,
refletir sobre o processo de ser afetada pelo campo, a partir da asserção já clássica de
Jeanne Favret-Saada (2005), foi fundamental para compreender o que eu afinal estava
fazendo durante o trabalho de campo na unidade de saúde. A autora afirma que ser
afetado, nesse caso, não resguarda relações com as duas concepções possíveis do
conceito de empatia, nas quais ou se identifica plenamente com a experiência do outro
e se coloca no lugar dele, ou se assume a impossibilidade de estar no lugar do outro
e, por isso, imagina-se como seria estar naquele lugar. Ao contrário, a autora defende
que o antropólogo, ao se engajar na observação, assuma tal atividade como um
“instrumento de conhecimento”. A autora argumenta que:

(...) isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem
aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo.
Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto
de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for
onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o
projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma
etnografia é possível (FAVRET-SAADA, 2005, 160).

Assim, eu iniciei essa pesquisa me perguntando sobre os impactos da violência


e pobreza na saúde de seus moradores, mas terminei refletindo sobre como políticas
de saúde e relações de cuidado se estabelecem nesse espaço, pois era sobre isso que
médicos e pacientes do serviço de saúde me falavam. Isso não significa, no entanto,
que eu não tenha conseguido refletir sobe violência e desigualdade, a partir do material
etnográfico sobre políticas de saúde e do cuidado. Tampouco implica dizer que eu
tenha utilizado tais temas como um atalho para chegar aonde eu queria. Ao levar a
22
sério o que os meus interlocutores faziam e diziam, essas noções ganharam aqui um
lugar central, capaz de desfazer minhas pressuposições anteriores, sem com isso
perdê-las de vista.

Ao procurar situar a população atendida pelo serviço de saúde e o local no qual


ele estava localizado, fui de encontro a uma discussão própria ao campo da Sociologia
e da Antropologia Urbana, que buscaram enfrentar o tema da pobreza
etnograficamente, e também a certas discussões no âmbito da Saúde Coletiva. No caso
das duas primeiras, os estudos urbanos em áreas de pobreza são um tema clássico
nessas disciplinas, impulsionados, sobretudo, pela Escola de Chicago e pelos
trabalhos pioneiros de Robert Park (1987), que buscou compreender as “áreas naturais
de segregação” da cidade ainda no início do século XX. As pesquisas de Park e seus
alunos combinaram, ao mesmo tempo, forte investimento etnográfico e uma matriz
teórica de origem funcionalista. Durante os anos 1960 e 1970, tais pesquisas se
expandiram nos Estados Unidos, tendo como exemplos os trabalhos de Oscar Lewis
(1961) e Larissa Lomnitz (1975), ambos realizados no México, que apresentam
riquíssimo material etnográfico. Entretanto, resultam, no primeiro caso, na já
duramente criticada teoria da “cultura da pobreza” – que, grosso modo, atribui
comportamentos disfuncionais a um modo de vida dos pobres, independentemente de
sua situação econômica – e, no segundo caso, em um funcionalismo utilitarista, que
reduz certas relações sociais dos pobres, como a conjugal, a meras estratégias de
sobrevivência.

Já no Brasil, e em outros países latino-americanos, uma série de razões fez com


que o início dos trabalhos com as chamadas “classes populares” tardasse mais, como
o contexto dos golpes militares e dos processos democráticos tardios. No entanto, os
estudos urbanos ganharam força na década de 1980 e os antropólogos brasileiros
começaram a desenvolver pesquisas nas áreas periféricas, sobretudo a partir desse
momento (Durham, 1986). Foi então que alguns trabalhos procuraram superar tanto a
matriz funcionalista, presente nos autores da Escola de Chicago, como também o
referencial marxista clássico, predominante entre muitos intelectuais brasileiros à
época (Duarte, 1986; Zaluar, 1985)6.

6
Dois trabalhos importantes nesse período são os de Alba Zaluar (1985) e de Luiz Fernando Dias Duarte
(1986). O trabalho de Zaluar na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, buscou demonstrar que não havia uma
estrutura fixa inconsciente entre os trabalhadores pobres. Esses teriam a capacidade de refletir sobre suas

23
Nos anos 1990, tais trabalhos perdem força diante, sobretudo, de dois fatores:
as mudanças na agenda de pesquisas na antropologia, provocadas pelo contexto
político e pela influência de agências internacionais de fomento, e também em razão
das transformações na própria realidade dos moradores de áreas periféricas que, por
um lado, se “modernizam”, se parecendo cada vez mais com os próprios pesquisadores
em seus hábitos, e, por outro, enfrentam o aumento da criminalidade, o
enfraquecimento do associativismo, dos laços de solidariedade, o fortalecimento das
religiões neopentecostais. Como recorda Claudia Fonseca:

De uma "massa anônima", "amorfa" ou simplesmente "aqueles que servem


de antinorma" dos anos 60, eles tornaram-se protagonistas de "classes"
(trabalhadoras ou populares) nos anos 80, para voltar ao status de "pobres"
nos anos 90. O risco desta nomenclatura é um retorno à imagem de vazio
cultural, de uma população vítima — quando não ignorante ou alienada —
esperando passivamente que as forças da modernidade a elevem à condição
humana (FONSECA, 2004, 110).

Como ainda afirma Fonseca, na esteira desse mesmo processo, embora seja
“verdade inconteste que as classes, no sentido clássico do termo, não existem mais”,
é inegável também que “a estratificação social não para de se manifestar cada vez
mais violentamente” (Fonseca, 2004, 115). Assim, situar essa população dentro de um
contexto social e político, reconhecendo-os como parte de uma determinada camada
na estratificação social, não significa engessar seus possíveis agenciamentos e
diferentes experiências dentro desta realidade. Em outro texto, a autora observa que,
assim como gênero, etnia, entre outros, a noção de classe, livre de suas possíveis
reificações, constitui também um recorte interpretativo bom para se pensar, desde que
inserida em uma etnografia que revele experiências cotidianas e assim conflito,
movimento e ambivalência em sua análise (Fonseca, 2006, 133-134).

condições de vida e sobre os valores, normas, significados com que são formados. O emprego do termo
trabalhador, ao invés de classes populares, busca dar lugar a uma categoria de autoidentificação dos
próprios sujeitos pesquisados. Mais além, no âmbito da Cidade de Deus, a autora se contrapõe à categoria
de bandido, bem como imprime contornos mais bem definidos à noção de pobre. Outros trabalhos na
época, como o de Duarte (1986), sobre a doença dos “nervos” em duas comunidades de trabalhadores,
uma em Niterói e outra na região serrana, refletiu sobre essa mesma constatação e necessidade de
compreender a autoidentificação, aderindo ao termo trabalhadores urbanos, no lugar de classes
populares, as quais estariam mais ligadas a um referencial externo de compreensão desse universo,
porém não evocado pelos próprios indivíduos que viviam nessa condição. Duarte propõe ainda uma
discussão sobre a categoria “nervoso” no processo de compreensão da ideia de “pessoa” entre as classes
trabalhadoras, em oposição às classes dominantes.

24
Mais do que unificar as experiências, dando a elas um sentido comum, situar
esses indivíduos em termos de classe permite marcar sua diferença com relação aos
outros, fazendo com que classe em si não se torne uma categoria analítica, mas sim a
diferença – o que pode produzir agenciamentos distintos em cada uma das
experiências. Seguindo os passos de Avtar Brah (2006), ao pensar sobre a diferença,
a autora argumenta que:

O conceito de diferença, então, se refere à variedade de maneiras como


discursos específicos da diferença são constituídos, contestados,
reproduzidos e resignificados. Algumas construções da diferença, como o
racismo, postulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como
inerentemente diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença
como relacional, contingente e variável. Em outras palavras, a diferença
não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma
questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em
desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e
formas democráticas de agência política (BRAH, 2006, 374).

Mais recentemente, estudos relacionados a informalidade, criminalidade e


religiosidades voltaram a enfocar a temática da pobreza a partir dessas novas lentes,
mas sobretudo concentradas no grande leque da “violência urbana”. Essa pesquisa,
de algum modo, também nasce a partir de certo fascínio por essa questão, como já
mencionado. Não sem razão, dedico um capítulo inteiro a essa discussão,
demonstrando os esforços feitos no sentido de não reificar a ideia de violência e, ao
mesmo tempo, sem deixar de demonstrar sua relevância como um marcador de
diferença entre usuários e profissionais de um serviço de saúde no Complexo do
Alemão; diferente, nesse caso, do que é ser um usuário ou profissional desse mesmo
tipo de serviço na Zona Sul da cidade, mas também nas áreas mais longínquas e
empobrecidas da Zona Oeste, por exemplo.

Enquanto na Antropologia, ao “remar contra” certa tendência relativista, se faz


necessário reafirmar a importância de situar socialmente a população estudada, no
caso da Saúde Coletiva a relação entre desigualdade e saúde está no próprio
surgimento dessa área do conhecimento e também na defesa e na construção de um
sistema universal de saúde no Brasil. A discussão em torno dos “Determinantes
Sociais da Saúde” 7 faz parte tanto do campo da Epidemiologia, quanto das Ciências

7
Segundo Buss & Pellegrini (2007, 78): “Para a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da
Saúde (CNDSS), os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e
comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na

25
Sociais e Saúde. Apesar de sua indiscutível importância para compreensão daquilo
que foi definido como iniquidade em saúde, Bonet e Tavares (2008) apontam para a
limitação dos estudos sobre os “determinantes sociais da saúde”, atentando para as
necessidades de uma compreensão dos usuários do sistema público de saúde que
incorpore, ao mesmo tempo, questões mais estruturais, mas não deixando de
considerar outras, como “os imponderáveis da gestão cotidiana do trabalho” e as
questões mais específicas dos usuários em uma esfera mais subjetiva, doméstica e
privada.

Tatiana Gerhardt (2010), nesse mesmo sentido, realiza um extenso


mapeamento dos estudos em saúde com foco em desigualdade social e argumenta
sobre a necessidade de que a noção de determinação social da saúde seja
complexificada, atentando para o lugar de agência e mediação dos próprios indivíduos
com relação à sua saúde. A autora escreve:

Embora vários estudos incorporem indicadores sociais, estes não


expressam a forma como os atores sociais lidam com essas variáveis na
vida cotidiana. Torna-se imprescindível descartar o raciocínio mecanicista
de que bastaria crescimento econômico para superarmos os problemas de
saúde da população. Ele é amplamente desejável e absolutamente
necessário, entretanto a questão é mais ampla (...) Estes estudos, embora
demonstrem preocupação com a questão social da saúde, não incorporam
o universo de fatores que envolvem a questão saúde, sobretudo por não
considerar o papel dos atores sociais na mediação de suas condições de
vida e saúde (GERHARDT, 2010, 370).

O mesmo apontamento feito por Gerhardt – que sugere ao fim um profícuo


diálogo entre saúde e antropologia e o conceito de agência, visando evitar
reducionismos nesse sentido – aparece no trabalho de Nguyen e Peschard (2003), que
também realizam uma revisão sistemática da literatura internacional sobre
desigualdade e saúde, reafirmando a importância de que esses trabalhos incorporarem
uma perspectiva mais antropológica ao refletirem sobre desigualdade.

Assim, ao iniciar o trabalho de pesquisa na unidade de saúde, como relato mais


detalhadamente no segundo capítulo, dei-me conta de que a pobreza e a violência
nunca apareceriam senão nas entrelinhas do que de fato estava em jogo ali: como as

população. A comissão homônima da Organização Mundial da Saúde (OMS) adota uma definição mais
curta, segundo a qual os DSS são as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham”.

26
pessoas cuidam dos seus pacientes, do local onde vivem, dos seus familiares, dos seus
vizinhos e de si mesmas.

O cuidado estava presente diariamente na rotina da unidade, não só nas


práticas terapêuticas, mas também em frases como: “o paciente já está na linha de
cuidado”, “a mãe é muito descuidada”, “esse médico não tem um bom cuidado”.
Demorei, no entanto, a me dar conta de sua relevância também enquanto categoria
analítica. Isso porque o cuidado é uma ideia “metaforizável”, como apontam Bonet e
Tavares (2007). Apoiados na noção de cultura como metáfora, proposta por Roy
Wagner (2010), os autores sinalizam que o cuidado assim como a cultura ganham
significados a partir de uma construção:

fruto de uma extensão de sentido derivada do estabelecimento de uma


relação entre dois contextos. Essa ideia da metáfora, que constitui a
expressão dinâmica da cultura, remete sempre a uma via de mão dupla, a
uma relação intrinsecamente dialética (BONET, TAVARES, 2007, 272).

No mesmo sentido, Isabel Georges (2017) indica algumas similaridades da


categoria de cuidado com o conceito de informalidade, ao defender a ideia de “quase
conceito”, ou “categoria-ônibus”, conforme proposto por Luiz Antonio Machado da
Silva (2004), as quais seriam resilientes por incluírem um amplo conjunto de
significados contraditórios. Segundo Georges:

(...) o “cuidado” é igualmente uma categoria de mediação. Nesse sentido,


mesmo que os significados atribuídos à categoria do “cuidado” pelos
diferentes atores sejam conflitantes, bem ou mal, eles todos inserem-se no
mesmo campo de atuação em tensão (GEORGES, 126, 2017).

Assim, o cuidado deve ser entendido como uma categoria extremamente


plástica e relacional, considerando o envolvimento de um indivíduo, família, grupo
com o Estado, o profissional de saúde, a família, o cuidador terceirizado, o vizinho e
outros. Em todas as configurações anteriores, o cuidado se estabelece – como
disposição e prática, conforme sugere Joan Tronto (2009) – podendo alcançar
diferentes significados em cada uma dessas relações. Considerando práticas que
envolvem um desejo e uma ação de cuidado, elas podem significar, por exemplo, o
simples ato de amar para uma mãe, um dever profissional para um enfermeiro, ou um
direito universal para o Estado. Conforme definiu Tronto, o cuidado então seria:

27
Uma atividade da própria espécie que inclui tudo o que podemos fazer para
manter, continuar e reparar nosso “mundo” para que possamos viver nele
da melhor maneira possível. Esse mundo inclui nossos corpos, nós mesmos
e nosso meio ambiente, e tudo em que procuramos intervir de forma
complexa e autossustentável (TRONTO, 2007, 287).

A reflexão acima auxilia na dissolução de alguns dualismos, os quais,


segundo Maria Epele (2012), teriam marcado os debates em torno do cuidado até
agora. Um deles seria a oposição na qual o cuidado ganharia, ora um sentido de
trabalho, ora o de afeto, como nos casos clássicos do médico e da mãe citados acima.
Com base nesse dualismo, algumas análises feministas buscaram valorizar a dimensão
de trabalho implicada em todas as ações de cuidado, profissionais ou domésticas,
entendendo o cuidado sempre dentro de uma dimensão de trabalho, o “trabalho do
care” (Hirata, Guimarães, 2012). Annemarie Mol (2010), entretanto, sugere que o
conceito de cuidado não necessita de nenhuma destas inflexões – nem mesmo a de
trabalho – para que possa ser compreendido, embora possa vir a ganhar estes mesmos
sentidos em determinadas relações.

Tal dualismo se conecta à ideia de distinção entre razão e emoção, proposta


por Carol Gilligan (1982), ao sugerir uma diferenciação entre uma “ética da justiça”
e uma “ética do cuidado”. Apesar de ter pioneiramente proposto a ideia de uma “ética
do cuidado”, posteriormente reforçada por Tronto e Mol, Giligan foi criticada por dois
motivod. Por um lado, reforçou uma suposta diferenciação entre razão e emoção, já
profundamente questionadas (Lutz, 1888; Coelho, 2010). Em segundo lugar,
essencializou papéis de gênero a partir de tal polarização, na qual mulheres estariam
supostamente mais inclinadas a uma ética com base no cuidado, devido ao seu caráter
mais emocional, e os homens amparados por uma ética da justiça, em razão de sua
maior racionalização. Se, em certa direção, esse movimento foi importante para
evidenciar o valor do cuidado na construção de uma sociedade mais solidária, em
outra, aprofundou a problemática cisão entre razão e emoção, ao passo que também
cristalizou o lugar da mulher nas relações sociais, tomando-as como um grupo “coeso”
e culturalmente homogêneo.

Em apresentação a uma coletânea sobre cuidado, Guita Debert e Mariana


Pulhez (2017) refletem ainda sobre um outro dualismo, no qual residiria a ideia de
que a relação que se estabelece pela necessidade de cuidado seria marcada pela
dependência e pela autonomia. Contrariamente, afirmam – a partir de uma revisão da
28
literatura sobre o tema – que, ao resumir o cuidado à existência desses dois polos,
reforça-se uma ideia de dominação e maior poder por parte do cuidador, ao mesmo
tempo em que perdemos de vista as noções de interdependência e reciprocidade
(Tronto, 2009), desfazendo-se de uma ideologia do sujeito liberal ilusória, na qual
supostamente poderíamos alcançar em algum momento de nossas vidas uma suposta
liberdade marcada pela autonomia.

A radicalização dessa ideia também vai de encontro à proximidade que a ideia


de cuidado assume da noção de poder. De fato, as políticas voltadas ao cuidado só
podem ser inteligíveis dentro daquilo que Michel Foucault (1988) sugeriu constituir
o biopoder, resultando na domesticação dos corpos e na regulação das populações. Por
outro lado, contudo, atentar para o aspecto repressivo delas não significa deixar de
lado seus aspectos produtivos e responsivos, também presentes nas relações de poder.
Nesse sentido, ao reivindicar melhorias nas políticas de saúde (mais medicamentos e
mais exames, por exemplo), expandem-se também os direitos dos cidadãos, ao mesmo
tempo em que tal processo os responsabiliza cada vez mais pelo cuidado de si e dos
outros.

Algumas análises, algo particularmente comum em reflexões inspiradas em


certa leitura do conceito de biopoder, apostam, muitas vezes, em uma visão monolítica
do poder em discursos, estratégias de intervenção e modos de subjetivação em
processos de construção de identidade e modos de vida, conforme afirmam Paul
Rabinow e Nikolas Rose (2006) em artigo que perfaz uma revisão crítica do conceito
de biopoder e seus usos. Ao contrariar tal visão, sobretudo baseados na crítica ao
trabalho de Giorgio Agamben (1995), os autores argumentam em favor de:

um empiricismo modesto, atento às peculiaridades, às pequenas diferenças,


aos momentos nos quais mudanças na verdade, na autoridade, na
espacialidade ou na ética fazem diferença hoje se comparadas a ontem,
revela[ndo] configurações que não se adequam às imagens fornecidas por
nossos filósofos (RABINOW, ROSE, 2006, 39).

Assim, ao afirmar a importância do cuidado ao longo desta tese, não pretendo


limitar as experiências descritas, afirmando quando constituem ou não ações de
cuidado “legítimas” e se são fruto ou não de uma “biopolítica”, o que é fato, mas sim
evidenciar subjetividade, diferença e poder dentro deste grande “guarda-chuva”
analítico proposto, procurando reforçar a potência do cuidado enquanto conceito
fundamental não apenas em uma análise de práticas encerradas no ambiente
29
profissional e doméstico, mas também para um debate público sobre direitos, equidade
e democracia, seguindo as sugestões de Tronto (2009) e Mol (2010).

Por fim, esclareço que a maneira pela qual esse tema foi abordado aqui se deu
em três diferentes esferas: a tentativa de recontar à trajetória das mobilizações por
políticas públicas em saúde na região do Complexo do Alemão, o cotidiano dos
profissionais médicos no serviço de saúde e o acompanhamento das atividades dos
profissionais de saúde nos domicílios. Como acompanhei diferentes profissionais, em
diferentes momentos (em três semestres separados ao longo de dois anos), apostei
sobretudo nos dois últimos capítulos, na estratégia clássica antropológica de descrever
detalhadamente diferentes situações sociais, ou situações-centradas, atentando,
simultaneamente, para a existência de um sentido compartilhado daquele contexto que
pode ser apreendido a partir dessas situações (Mitchell, 2010; Agier, 2011) e também
para as identidades complexas e posicionais que os sujeitos assumem dentro de cada
uma dessas situações (Bonet et al., 2009).

O comitê de ética e o trabalho de campo


O trabalho de pesquisa teve início em outubro de 2014, quando retomei o
contato com Agentes Comunitários de Saúde que havia conhecido no período em que
trabalhei no Complexo do Alemão, em 2012. Contei a eles sobre as ideias que tinha
para a pesquisa e solicitei o contato da gerente da unidade de saúde onde trabalhavam,
para iniciar o processo de solicitação de autorização para realizar a pesquisa. Escrevi,
então, para Juliana, na época gerente de uma das unidades que atendia a população do
Alemão, me reapresentando – pois também já havíamos nos conhecido em 2012 – e
falando sobre minha aprovação no doutorado e a proposta de pesquisa. Juliana foi
desde o início muito receptiva à ideia e agendamos rapidamente a primeira reunião.
No entanto, a gerente não compareceu e enviou em seu lugar uma enfermeira, que
recebeu com entusiasmo a ideia da pesquisa e repassou-me o contato do Centro de
Estudos da Coordenação de área Programática responsável pela unidade (a CAP 3.1),
para que eu pudesse tramitar o pedido de autorização.

O processo de autorização do projeto passou inicialmente pelo Centro de


Estudos da CAP 3.1, onde foi aprovado, e em sequência submetido ao comitê da
UFRJ/CFCH e da Secretaria Municipal de Saúde, através da Plataforma Brasil. Assim

30
como já enfatizado no debate recente travado dentro da comissão de ciências humanas
e sociais no sistema CEP/CONEP, o modelo de projeto exigido pela Plataforma Brasil
é pouco ajustado à realidade de pesquisas realizadas nessa área. Desse modo, ao
submetê-lo me encontrei na difícil situação de tentar justificar a dispensa para o uso
do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) para todas as pessoas que
fossem alvos das minhas observações na unidade de saúde. A justificativa levou em
conta tanto a dinâmica de um trabalho de cunho etnográfico, como a necessidade de
compreensão de certa “lei do silêncio” existente em territórios controlados pelo
tráfico, como era o caso do Complexo do Alemão, e a dificuldade de certos assuntos
serem abordados.

A estratégia foi bem-sucedida nas duas primeiras instâncias, CAP 3.1 e CFCH/
UFRJ, mas esbarrou na Secretaria Municipal de Saúde, que não aceitou a justificativa.
Como pelo processo da Plataforma Brasil a recusa da instituição coparticipante, que
era no caso a Prefeitura do Rio de Janeiro, não permitia recurso e revisão do projeto,
foi necessária a tramitação de um novo processo, passando novamente por todas as
instâncias, dessa vez incluindo o uso do TCLE. O projeto foi então, finalmente, com
quase seis meses de atraso, aprovado sob o número de registro 1403.301. Cabe, no
entanto, destacar que o uso do TCLE ficou restrito às entrevistas semiestruturadas e o
termo não foi utilizado durante o acompanhamento das consultas, até porque, como
se verá adiante, a própria dinâmica dos atendimentos não possibilitava esse tempo e
espaço. Deixo aqui, portanto, minha pequena contribuição ao debate que tem se
estabelecido sobre os limites de tal modelo de ética em pesquisas de ciências humanas
e sociais, sobretudo na Antropologia.

Por fim, em 2015, no primeiro semestre do ano, iniciei a primeira etapa do


trabalho de campo, consistindo em acompanhamentos semanais das equipes de saúde
da família. Nesse período, basicamente mapeei a dinâmica da unidade, dos
profissionais e, principalmente, aprendi mais sobre seu funcionamento. Esse material
deu origem ao texto para o exame de qualificação. Também ao longo desse período
inicial, eu havia estabelecido no cronograma do projeto investigar mais a fundo a
história dos serviços de saúde no Complexo do Alemão como um todo. Foi então que,
coincidentemente, em uma reunião do coletivo de pesquisadores do Raízes em
Movimento, conversei com a pesquisadora Rute Rodrigues, do IPEA, que naquele
momento preparava uma coletânea sobre pesquisas no Complexo do Alemão e me

31
convidou para escrever sobre esse assunto. Eu ainda não tinha nada preparado com
relação a isso, mas o prazo para a coletânea era curto. Rute propôs fazer um artigo a
partir de uma única entrevista com um Agente Comunitário de Saúde, mas eu achei
que seria pertinente incluir também um médico, que atuava ali há mais anos, e uma
liderança comunitária, que havia acompanhado e sido protagonista em todas as
mobilizações por serviços de saúde ali desde os anos 1980. O artigo foi, por fim,
publicado na coletânea (Fazzioni, 2016) e agora revisto e ampliado para publicação
como um capítulo da tese.

Após esse período, afastei-me do campo por quase um ano em razão do


nascimento do meu filho e da minha aprovação em um concurso como professora
substituta em um Instituto Federal. Apesar de ter voltado a dar aulas após seis meses
de licença maternidade e já estar realizando outras atividades relativas ao doutorado
em casa, levou um tempo maior para que eu pudesse me organizar nessa nova
dinâmica profissional e familiar. Em setembro de 2016, portanto, retomei a pesquisa
de campo, que seguiu até julho de 2017, com maior intensidade nesse segundo ano,
quando meu contrato como substituta se encerrou e pude me dedicar integralmente às
atividades do doutorado.

Foi nesse retorno também que ocorreu uma grande mudança na dinâmica do
serviço de saúde e do Complexo do Alemão como um todo. A unidade encerrava
naquele momento o contrato com os médicos cubanos e, no final do ano de 2016, o
antigo postinho fechou as portas e mudou-se para uma nova e modernizada “Clínica
da Família”, com um número maior de equipes e uma série de novos profissionais. A
pesquisa acompanhou essa mudança, que está retratada ao longo dos capítulos. Já na
nova unidade, o ano de 2017 foi marcado por uma forte crise na saúde, atravessada
por problemas nas três esferas: municipal, estadual e federal. Em seu momento mais
crítico, o prefeito Marcelo Crivella anunciou o fechamento de uma série de unidades
e atrasou o pagamento dos profissionais que entraram em greve. Nesse exato
momento, pouco mais de um ano depois, em 2018, a cena se repete. O Prefeito
Marcelo Crivella ameaça demitir 190 equipes de saúde da família e a defensoria
pública exige que o prefeito decrete estado de calamidade pública na saúde do
município. Ou seja, o processo descrito ao longo dos capítulos, cujas potências e

32
problematizações procurei evidenciar, pode, em breve, se transformar em apenas um
resquício do passado8.

Apresentação do texto
A tese está dividida em duas partes complementares e dialógicas9. A primeira
delas, chamada de “do lado de fora”, está menos centrada no acompanhamento das
consultas e baseia-se em uma espécie de sobrevoo que realizei para compreender a
questão da saúde no Complexo do Alemão. No primeiro capítulo, portanto, parto das
noções de “Complexo” e “território”, procurando traçar um histórico das políticas
públicas em saúde nessa localidade, tanto a partir da fala de interlocutores nativos
compreendidos como centrais nesse processo, como de outros trabalhos acadêmicos
focados no assunto. Procuro entender de que modo a existência desse “conjunto de
favelas” como unidade territorial e política impulsionou mobilizações sociais na área
da saúde que, no entanto, nunca foram atendidas da forma esperada. E, uma vez
estabelecidos esses serviços, como a relação com esse espaço foi sendo transformada
ao longo dos anos, de acordo com um processo entendido pelos profissionais como o
de afastamento gradual da população e de suas necessidades. A ideia de afastamento
aparece também com relação às ideias originais que levaram à mobilização por saúde
ali e até mesmo no período inicial de implantação do Programa Saúde da Família,
agravadas sobretudo pela gestão terceirizada dos serviços de saúde e pela crise
financeira no setor de saúde. A situação de desigualdade social enfrentada por essa
população aparece nessas narrativas, contraditoriamente, tanto como um atrativo das
políticas públicas em saúde, mas também como principal entrave para sua realização.

No segundo capítulo, retomo a questão inicial que motivou a realização dessa


pesquisa, referente à violência e ao “sofrimento social”, partindo de uma justaposição
das narrativas presentes entre moradores ativistas, profissionais e usuários do sistema
de saúde, além de algumas situações que acompanhei, sobretudo durante Visitas
Domiciliares. “Tiro que cura”, “tiro que fere” e “tiro que mata” são as três seções que
dividem o capítulo nas quais procuro desestabilizar a noção de “violência urbana”

8
Informação disponível na notícia <https://oglobo.globo.com/rio/a-defensoria-nao-tem-moral-para-
colocar-dedo-na-minha-cara-diz-marcelo-crivella-23176742> (acesso em 03 de novembro de 2018).
9
É importante pontuar que os capítulos da tese foram pensados de modo que possam funcionar, com
algumas adaptações, como artigos independentes. Assim, é necessário considerar que embora os dados
não se repitam, algumas reflexões acabam aparecendo de modo similar em alguns deles.

33
como algo quantificável, desvelando as várias formas pela qual ela é agenciada nesse
contexto, transitando entre as esferas públicas e privadas. Ao final, sugiro que embora
possamos complexificá-la e estrategicamente não tomá-la como central para
compreensão desse contexto, não é possível se esquivar de sua presença cotidiana e
imponente ali.

Na segunda parte, intitulada “do lado de dentro”, adentro a rotina da unidade de


saúde e as experiências observadas no serviço, enfocando no primeiro capítulo as
experiências dos profissionais e no segundo as dos usuários. No terceiro capítulo,
portanto, realizo um breve resgate bibliográfico em torno do tema da formação médica
no Brasil e da construção do atual modelo de atenção básica à saúde. Apresento, a
partir disso, alguns dos médicos que trabalharam nas duas unidades ao longo do
período da investigação e suas trajetórias pessoais e profissionais, através das quais
identifico um problema central em sua prática profissional, que denominei o
“problema da formação”, considerando que a maior parte deles teve pouco ou nenhum
contato com a Medicina de Família e Comunidade antes de começarem a trabalhar ali.
Tal situação vai de encontro a dois outros problemas ali identificados: o “problema da
demanda” e o “problema da vulnerabilidade”. Tais problemas representam,
respectivamente, o excesso de usuários atendidos por cada um dos médicos
diariamente, intensificado pela dificuldade de encaminhamento para outros serviços
do sistema e pela condição de saúde dos usuários, que se agrava pela situação do local
onde vivem, evidenciada nos capítulos anteriores. Juntos, esses três problemas
conformam a rotina dessas unidades de saúde e, através deles, busco pensar em quais
são as especificidades da medicina performada nesse contexto, que chamei de uma
“medicina de favela”, marcada não só por certa precariedade, mas também por
agenciamentos, improvisos e vínculo.
Finalmente, no último capítulo, procuro desenvolver uma reflexão sobre o
modo pelo qual as experiências de cuidado se estabelecem entre os usuários do serviço
de saúde em relação a redes de apoio variadas (familiares, vizinhos, igreja, entre
outros) e também a profissionais de saúde. Sugiro a noção de “arranjo de cuidado”
para compreender tal fenômeno em sua complexidade. Para tanto, são mobilizadas
algumas discussões sobre parentesco, a noção de casa e as discussões relativas à
gênero e suas intersecções. O objetivo desse capítulo foi contar essas histórias
livremente, abrindo espaço para que emergissem delas elementos que são em alguns

34
casos comuns e, em outros, totalmente únicos em cada uma dessas experiências de
vidas. Surge dessas narrativas a ideia de que a “ética do cuidado” nesse contexto é
quase sempre predominante, colidindo muitas vezes com aquilo que é proposto pelo
serviço de saúde ou fazendo com que os profissionais também aprendam a “lógica do
morro”. Tal lógica seria fundamental para que as práticas de cuidado se estabeleçam
ali, desconstruindo certa ideia de que seriam os moradores quem teriam que se ajustar
a certa “ética médica”.

Por fim, concluo aproximando o conceito de cuidado ao de habitar e construir,


para pensar como a história da ocupação do espaço do Complexo do Alemão é
marcada por certa imbricação dessas três noções. Partindo delas, aponto para a
necessidade de que as políticas de saúde recuperem de forma crítica o conceito de
território, considerando-o em toda a sua complexidade, geográfica, social e
antropológica. Sugiro que a vida, nesse contexto, deva ser compreendida através dos
“riscos e escassez” que a constituem, mas também dos agenciamentos e das formas
particulares de habitar o mundo ali existentes. Se um dos principais desafios do
Sistema Único de Saúde é fazer valer o princípio da integralidade, considerando os
seres humanos em sua totalidade, fica a sugestão de Tim Ingold (2015) na epígrafe
que dá início a essa introdução: “se quiser viver, então a borboleta deve ser devolvida
ao ar e o peixe à água”.

35
PARTE I: DO LADO DE FORA

FIGURA 2: ESTRADA DO ITARARÉ (FOTO DA AUTORA, 2015)

36
CAPÍTULO 1: Políticas da vida

FIGURA 3: FOTO DO SITE ESQUERDA DIÁRIO, 2017 (DISPONÍVEL EM


HTTP://ESQUERDADIARIO.COM.BR/CONTRA-O-FECHAMENTO-DE-CLINICAS-DA-
FAMILIA-POR-CRIVELLA-TRABALHADORES-FAZEM-ATO-NO-ALEMAO ACESSO EM
21/11/2018)

Assim, embora tenhamos muito a aprender com as brilhantes


contribuições de Agamben e Foucault, sobre como a vida
natural passa a ser tratada como um objeto de política, as
formas antropológicas de conhecimento não simplesmente
tomam essas categorias e as aplicam a situações diferentes.
Em vez disso, nas genealogias e histórias particulares dos
modos de socialidade que estudam, os antropólogos mostram
como diferentes desejos, esperanças e medos moldam a
experiência do estado biopolítico (DAS, POOLE, 2004, 30,
tradução minha).

O “postinho” e a Clínica da Família


A unidade de saúde onde a primeira etapa do trabalho de campo foi realizada,
chamada pelos moradores comumente de “posto” ou “postinho” de saúde, ocupava
um sobrado simples, localizado aos pés de uma das principais avenidas que dá acesso
ao Morro do Alemão, uma das trezes localidades que compõem o conjunto de favelas
do Complexo do Alemão. De alguma forma, portanto, situava-se na fronteira entre as
áreas popularmente chamadas de “morro”10 e “asfalto”. No andar de baixo, após a
subida por uma pequena rampa, havia o acolhimento, com cinco mesas com

10
O temo “morro” é a forma mais comum de se referir a esse espaço pelos moradores de um modo geral.
O “morro”, além de uma alusão clara ao relevo montanhoso do Complexo do Alemão, composto por uma
série de encostas e vales, também assume um sentido muito próximo e afetivo: de casa, lar. Seja “aqui no
morro” ou “lá no morro”, os moradores parecem sempre evocar o termo para falar de algo
profundamente conhecido, íntimo.

37
computadores. Ao redor delas, poucas cadeiras para os que estavam aguardando e um
bebedor de água. Nesse mesmo andar, havia ainda uma sala de saúde bucal, dois
consultórios, a farmácia, uma sala de procedimentos e duas poltronas bastante
desgastadas para aplicação de soro, as quais estavam alocadas improvisadamente atrás
de um biombo próximo ao acolhimento. No andar de cima, havia uma sala de reuniões,
outra com computadores para os agentes comunitários de saúde, uma sala
administrativa com um pequeno escritório para a gerência e mais três consultórios,
além de banheiros e uma copa11.

Com o título de CMS (Centro Municipal de Saúde), a unidade, neste momento,


era composta por cinco Equipes Multiprofissionais de Estratégia de Saúde da Família,
além de uma equipe de saúde bucal, atendendo cerca de 17 mil usuários. As equipes
eram formadas por um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e um
Agente Comunitário de Saúde a cada “microárea” atendida. As “microáreas”
configuram uma delimitação geográfica e populacional sob a responsabilidade de cada
Agente Comunitário de Saúde. A soma dessas “microáreas” conforma a área de
cobertura de cada equipe, com sua “população adscrita”, ou seja, pessoas e famílias
que têm como referência para seu cuidado determinada equipe.

A pesquisa nesta primeira unidade ocorreu nos anos de 2015 e 2016, mas em
novembro de 2016, às vésperas das eleições municipais no Rio de Janeiro, as equipes
foram transferidas para uma Clínica da Família, recém-inaugurada no bairro de
Ramos 12 , vizinho ao Complexo do Alemão. Assim, além das cinco equipes
provenientes do CMS, na nova clínica foram criadas outras três equipes
multiprofissionais em saúde para atender a população de Ramos, totalizando oito
equipes e cerca de 28 mil usuários.

A clínica em Ramos foi inaugurada em 2016, às vésperas do primeiro turno das


eleições municipais, com a presença do então candidato à Prefeitura apoiado por Paes,
o deputado federal Pedro Paulo Carvalho, e do ex-vereador Jorginho da SOS (todos
filiados ao PMDB), eleito três vezes à câmara municipal em razão de sua expressiva
popularidade no Complexo do Alemão. Poucos meses antes, Paes havia estado

11
A gerência dessa unidade era ainda responsável por uma sexta equipe de saúde que estava alocada em
outra estrutura, em uma pequena e extremamente pobre comunidade, a exatamente um quilômetro dali.
12
Já a equipe do Morro da Esperança foi incorporada a outra Clínica da Família, no bairro de Olaria,
inaugurada no mesmo período.

38
pessoalmente na antiga unidade, conversando com os profissionais, quando fizera a
promessa de uma nova sede antes do fim de seu mandato. A expansão da atenção
básica no Rio de Janeiro e a estrutura das novas Clínicas da Família configuraram uma
marca da gestão de Eduardo Paes na Prefeitura (2009 – 2017). O programa de
implantação das Clínicas da Família na cidade esteve ligado ao projeto “Saúde
Presente”13, lançado em 2009, fazendo com que a cobertura da Estratégia de Saúde da
Família na cidade passasse de 3,5% da população para 56,8% até setembro de 2016 14.
Sendo assim, a inauguração da nova unidade de saúde dos moradores do Alemão, às
vésperas das eleições, representava parte das investidas do grupo político de Paes para
a reeleição. Inegavelmente, a estrutura do antigo CMS era motivo constante de queixa
de profissionais e usuários pela falta de espaço, evidente sobretudo nos corredores de
espera sempre lotados, mas também nos consultórios, nas salas de reuniões e na sala
de procedimentos, insuficientes para atender a população. Já a nova unidade fora
abrigada em uma estrutura arquitetônica padrão utilizada em outras clínicas na cidade,
construída com módulos metálicos e alvenaria, térrea, retangular, envolta por um
gramado, com corredores abertos, amplos, com inúmeros bancos de espera, bebedores
de água, e decorada com grandes painéis estampando retratos de usuários da unidade,
além dos quadros de avisos sobre o funcionamento do serviço.

FIGURA 4: FOTO DA FACHADA DA ANTIGA UNIDADE (FOTO DA AUTORA,


2015)

13
De acordo com o site da Prefeitura do Rio de Janeiro: “O Programa Saúde Presente marcou o início de
uma nova fase para o atendimento de saúde da população carioca. Lançado em maio de 2009 com o
objetivo de expandir os serviços de saúde a toda população do Rio de Janeiro, o programa tem como
conceito a territorialização da cidade, atendendo regiões até então prejudicadas na gestão de saúde (...).
Unidades que compõem o Saúde Presente: Clínicas da Família; Centros Municipais de Saúde (CMS);
Policlínicas; Centros de Especialidades Odontológicas; CAPS – Centros de Atenção Psicossocial (CAPS,
CAPSad e CAPSi); Unidades de Pronto Atendimento 24 horas (UPA); Hospitais e Maternidades;
Coordenações Regionais de Emergência (CER)”. Disponível em
<http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/saude-presente> (acesso em 30 de julho de 2015).
14
No período eleitoral, o índice de 70% de cobertura da ESF na cidade foi citado pelo então candidato à
prefeitura, Pedro Paulo Carvalho (PMDB), entretanto, não encontramos a confirmação de que esse
número foi concretizado.

39
FIGURA 5: PARTE INTERNA DA NOVA UNIDADE (FOTO DA AUTORA, 2017)

A Clínica da Família oferecia aos profissionais e usuários um espaço mais


amplo e modernizado para os atendimentos, uma demanda antiga de todos eles.
Porém, o tamanho da unidade gerava também dissonâncias. A expansão de cinco para
oito equipes demandou uma adaptação, tanto entre os profissionais, como com a nova
população atendida, moradora de Ramos, com perfil diferente dos moradores do
Complexo do Alemão. Além disso, a antiga unidade estava localizada aos pés do
morro, enquanto que, para chegar à nova Clínica da Família, os pacientes do Alemão
precisavam enfrentar pelo menos mais dez minutos de caminhada, após a descida do
morro, a pé ou de “Kombi”15. E os profissionais, por sua vez, estavam ainda mais
longe dos domicílios, onde precisavam realizar as visitas.

O antigo “postinho” foi escolhido por mim para iniciar a pesquisa, justamente
porque no tempo do trabalho na UPP Social ele era reconhecido por moradores e
profissionais como a unidade básica de saúde que apresentava um melhor
funcionamento no Complexo do Alemão. Ainda que fosse o único instalado em uma
antiga estrutura, a familiaridade e o apreço dos moradores com esse espaço
representava não só o fato de que estavam acostumados a ele, como também a história
de sua existência, marcada por mobilização popular. Assim, entre a “velha” e a “nova”
unidade básica de saúde nas quais realizei a pesquisa, evidenciou-se uma dinâmica
marcada por um embate entre aquilo que é desejado e reinvidicado pela população e
aquilo que é oferecido pelo poder público. A mesma questão se mostrou presente em
toda a história recente dos serviços de saúde no Complexo do Alemão.

15
Por ser quase sempre utilizado, nesses contextos, o veículo da Volkswagen, tornou-se popular se referir
assim a uma das formas de transporte informal mais comuns existentes dentro das favelas cariocas.

40
Neste primeiro capítulo, portanto, procuro traçar um histórico das políticas
públicas em saúde no Complexo do Alemão, a partir da proposição de Das e Poole
(2004) de que pensar o Estado a partir de suas margens – compreendendo esse
conjunto de favelas como um espaço periférico na geografia e política da cidade – não
implica em pensar apenas sua ausência ou ineficiência, mas, sobretudo, compreender
a necessidade dessas margens para formação e funcionamento do próprio Estado,
através do exercício do governo. Embora o empreendimento de analisar as “margens”
não seja novo na antropologia 16, Das e Poole (2004) chamam atenção para o fato de
que:

(...) uma antropologia das margens oferece uma perspectiva única para a
compreensão do Estado, não porque capture práticas exóticas, mas porque
sugere que tais margens são uma necessidade necessária do Estado, assim
como a exceção é um componente necessário da regra (DAS, POOLE,
2004, 4, tradução minha).

Assim, ao recuperar o histórico das políticas públicas de saúde em uma favela,


podemos não apenas compreender como estão próximas ou distantes daquilo que é
proposto no Sistema Único de Saúde, mas principalmente como o Estado se faz a
partir dessas políticas, entendendo que governar é “gestar e gerir significados
compartilhados de largo espectro e profundidade temporal” (Souza Lima, 2003).
Seguindo a sugestão de Souza Lima:

Tomamos para isso o ângulo privilegiado dos estudos sobre processos de


formação de Estado, entendido como fluxo histórico contínuo, que as
formas que surgem como ‘ideia de Estado’ não correspondem
necessariamente às formas do ‘sistema de Estado’ e suas ações, e vice-
versa. Isto tem propiciado tratar as políticas públicas como parte desse
processo do ‘fazer-se Estado’, maleável, mutável, configuração plástica e
escorregadia, longe de planos racionais e avaliações consistentes
(CASTRO, SOUZA LIMA, 2015, 39).

Nesse mesmo sentido, Michel Agier (2015) nos convida – a partir das margens
da cidade ou de contextos entendidos como cidades “em formação” (tais como campos

16
Das e Poole (2004, 6) esclarecem: “Embora seja verdade que a antropologia política apostou sua
reivindicação única de entender a política precisamente perguntando como a ordem era mantida nas
chamadas sociedades sem estado, como os Nuer (Evans-Pritchard, 1940), o fez com referência ao
funcionamento do estado vigente na época – o colonial – nesse mesmo contexto” (tradução minha). Victor
Turner (1974) também aponta para o conceito de margem quando pensa na “liminaridade” encontrada no
estágio de communitas, no entanto, este estágio é, posteriormente, incorporado pela estrutura ou extinto.
Mais recentemente, Vincent Crapanzano apontou para a ideia de horizontes imaginativos, buscando romper
com a lógica tripartite presente em Turner e compreender as disjunções rituais, sociais e culturais que nunca
desaparecem por completo, constituindo assim diferenças que resistem à enunciação (Crapanzano, 2005).
41
de refugiados, invasões e outros) – a indagar menos sobre a ausência do “direito à
cidade” e mais sobre como esses contextos “fazem cidade”. Tal provocação faz eco
ao título da tese de Thiago Matiolli (2016): “O que o Complexo do Alemão nos conta
sobre as cidades?: poder e conhecimento no Rio de Janeiro no início dos anos 80”.
Thiago e eu estivemos envolvidos no mesmo coletivo de pesquisadores, Coletivo de
Pesquisadores em Movimento, coordenado por ele e sediado no Instituto Raízes em
Movimento, no Complexo do Alemão. Na proposta do coletivo, vislumbra-se a ideia
de que pesquisar o Alemão não nos permite falar apenas sobre suas diferenças com
relação aos outros espaços da cidade – sobretudo as zonas mais abastadas – e sobre
aquilo que está ausente em uma área de favela. A ideia proposta, portanto, é de que
pesquisar o Alemão nos permite falar sobre a cidade, sobre o Brasil. Em outros termos,
em mais de cem anos de favelização da cidade do Rio de Janeiro, ainda se faz
necessário recusar a metáfora de uma “cidade partida” 17 e afirmar que a “favela
produz cidade”18.

Analisar políticas de saúde no Complexo do Alemão, por fim, não consiste


apenas em uma forma de denunciar a ausência de políticas públicas eficazes ou lançar
luz sobre a “biopolítica” presente na relação entre os pobres e a medicina,
evidenciando a construção de dispositivos de controle, como escreveu Foucault (1979)
a respeito do nascimento da medicina social em diferentes contextos. Trata-se
sobretudo de aprender sobre políticas públicas em saúde no Rio de Janeiro e no Brasil
ao longo das últimas décadas, em seu processo de democratização, ou melhor, da
“grande narrativa da ‘democratização’” (Souza Lima, 2003).

Entre o Complexo e o Território


O Complexo do Alemão emerge nessas narrativas como um só lugar, mas é
fundamental lembrar que a construção de tal espacialidade remete a um processo
histórico, já remontado por Matiolli (2016), no qual diversas favelas contíguas
geograficamente foram sendo agrupadas, sobretudo pelo poder público, como um

17
A “metáfora da cidade partida” tem como um de seus pontos de origem o livro do jornalista Zuenir
Ventura (1994) e torna-se uma espécie de lugar comum no jornalismo carioca, quando a distinção “morro
vs. asfalto” é evocada. Movimentos sociais e trabalhos acadêmicos (Matiolli, 2013) têm procurado
desconstruir a ideia de uma cidade partida, demonstrando a intensa circulação existente entre morro e
asfalto em todas as regiões da cidade, como também afirmando politicamente o fato de que a favela é tão
parte da cidade quanto o asfalto.
18
“O rolê da favela produz cidade” tem sido o mote de atividades desenvolvidas pelo Instituto Raízes em
Movimento nos últimos anos e traduz bem a proposta desse capítulo.
42
único “complexo”. No uso da noção de “complexo”, procura-se reificar uma suposta
unidade não somente espacial, mas também identitária deste e de outros conjuntos de
favelas. Como demonstra Mattioli (2016), a ideia de complexo foi produzida por
técnicos médios do poder público e difundido pela mídia a partir dos anos 1990,
agrupando definitivamente as áreas de favelas que estavam geograficamente
próximas, mas não necessariamente socialmente identificadas. O caso do Complexo
do Alemão foi fundamental para essa definição que hoje é utilizada para outros
conjuntos de favelas na cidade, como o Complexo de Manguinhos e o Complexo da
Maré, entre outros19. No caso do Complexo do Alemão, o principal exemplo de que o
complexo unifica aquilo que não é necessariamente entendido como igual é a presença
do Morro do Adeus e do Morro da Baiana na delimitação administrativa da área do
complexo. Além de estarem do outro lado da Estrada do Itararé, uma das principais
vias de acesso ao conjunto de favelas, essas duas comunidades estiveram
historicamente ligadas a facções rivais às que estavam do lado geograficamente oposto
e que, por muitos anos, dominaram o tráfico de drogas local 20.

Paralelamente a esse processo, o complexo que é “produzido” torna-se


“realidade” e passa a aparecer também nos discursos e práticas de moradores,
sobretudo quando se mobilizam politicamente para visibilizar questões importantes
que atingem a população dessas favelas, tais como problemas de moradia, educação,
saneamento, saúde e violência. Assim, surgem espaços de debate e mobilização que
reúnem moradores e lideranças de todas as comunidades que compõem o complexo.
No entanto, mesmo que publicamente tais agentes se utilizem do termo “Complexo
do Alemão” para articular suas demandas, observei ao longo do meu tempo de trabalho
e pesquisa ali que, internamente, um dos termos mais comuns para se referir ao espaço
de moradia e luta, entre esses moradores envolvidos com políticas e participação
social, é “território”.

O termo “território” aparece também entre profissionais da saúde, assistentes

19
Ver, por exemplo, a tese de Juliana Blasi Cunha (2015) a respeito da “unificação” das comunidades
Pavão-Pavãozinho e Cantagalo em um único complexo, para a realização das intervenções do PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento) do governo federal, em 2007, e da UPP, em 2009.
20
Moradores indicam em seus relatos que sempre foi visto como arriscado ser morador de um desses lados
e transitar pelo outro. No entanto, as políticas públicas pouco estiveram atentas a essa questão. Com a
inauguração do teleférico do Alemão, por exemplo, um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)
foi transferido para dentro de uma das estações, no alto do Morro do Alemão. Os moradores do Adeus e da
Baiana, assim como de outros complexos, como Manguinhos, passaram a ter que frequentar essa região
para poder acessar o serviço, algo visto como problemático por muitos deles.
43
sociais e agentes de segurança pública. O “território” emerge como uma categoria
entre aqueles que querem produzir suas próprias formas de pensar e intervir nesse
espaço, seja pela polícia, pelos serviços de assistência e saúde ou pelos movimentos
sociais. Ao contrário da primeira impressão, portanto, na qual a ideia de “território”
parece distante, geográfica e militarizada, percebe-se que o “território”, da maneira
como é utilizado nesses contextos, procura revelar um ambiente conhecido, mais
próximo do que o “complexo” e, sobretudo, no qual se deseja intervir – aproximando-
se da perspectiva foucaultiana de um espaço onde se exerce e se disputa
governamentalidade (Foucault, 1979).

Na Estratégia Saúde da Família, o termo território aparece cotidianamente, já


que o trabalho das equipes deve ser desenvolvido tanto na unidade, quanto no
chamado território, que aqui denomina, formalmente, o conjunto das áreas de atuação
de cada equipe. Destaca-se que:

O ponto de partida para a reorganização do sistema local de saúde


brasileiro foi redesenhar suas bases territoriais para assegurar a
universalidade do acesso, a integralidade do cuidado e a equidade da
atenção. Nesse contexto, a territorialização em saúde se coloca como uma
metodologia capaz de operar mudanças no modelo assistencial e nas
práticas sanitárias vigentes, desenhando novas configurações loco-
regional, baseando-se no reconhecimento e esquadrinhamento do território
segundo a lógica das relações entre ambiente, condições de vida, situação
de saúde e acesso às ações e serviços de saúde (GONDIM, MONKEN,
2009, n.p).

A territorialização foi um componente central na reorganização do Sistema


Único de Saúde no Brasil, em meados dos anos 1990, como ficará evidente adiante.
Isso tanto do ponto de vista do planejamento e gestão das redes de atenção à saúde,
como também com base na ideia de que a saúde de determinado indivíduo só pode ser
compreendida por meio dessa associação com o ambiente onde vive. No entanto,
dentro da própria Saúde Coletiva e também da Geografia, formularam-se duras críticas
à noção de territorialização em saúde, alegando que o conceito tem sido usado
basicamente de forma “tecnicista e objetivante”, revelando:

(...) os usos limitados da metodologia, constituindo-se apenas como análise


de informações geradas pelo setor saúde e simples espacialização e
distribuição de doenças, doentes e serviços circunscritos à atuação do
Estado (GONDIM, MONKEN, 2009, n.p).

44
Ainda assim, a ideia segue sendo defendida dentro do campo por aqueles que
acreditam que, visto de forma “ampla”, o conceito de território propicia “uma proposta
transformadora de saberes e práticas locais” (Gondim, Monken, 2009).

Neste capítulo, portanto, as noções de “complexo” e “território” nos auxiliam


a compreender, por um lado, de que modo a existência desse “conjunto de favelas”
como unidade territorial e política impulsionou mobilizações sociais na área da saúde
que, no entanto, nunca foram atendidas da forma esperada. E, uma vez estabelecidos
esses serviços, como a relação com esse espaço foi sendo transformada ao longo dos
anos, de acordo com um processo entendido pelos profissionais como de afastamento
gradual das ideias originais que levaram à mobilização por saúde ali e até mesmo do
período inicial de implantação do Programa Saúde da Família.

Na seção seguinte, procuro então construir uma linha do tempo dos serviços de
saúde no Complexo do Alemão, ilustrada por mapas contidos no anexo I. A construção
dessa linha se deu a partir das pistas fornecidas por meus interlocutores e também de
alguns trabalhos de pesquisa sobre participação social e sobre políticas públicas no
Complexo do Alemão. Cabe ressaltar que não há nenhum registro formal dessa
evolução pelo poder público, tampouco na literatura acadêmica. Assim sendo, quatro
entrevistas foram realizadas com o objetivo específico de construir esse histórico.
Sobre as entrevistas, essas foram realizadas com quatro indivíduos, a saber: Mariza,
uma liderança comunitária que vem participando de ações no âmbito das políticas
públicas em saúde no Complexo do Alemão desde pelo menos os anos de 1980;
Wilson, um agente comunitário de saúde, também atuante há mais de dez anos e
morador do Complexo; Paulinho, um pastor evangélico, importante liderança local e
que também atuou como agente comunitário de saúde no início do PSF e é atualmente
usuário dos serviços de saúde; e, finalmente, o depoimento do médico Cláudio, que
trabalha no Complexo do Alemão há mais de dez anos. Entre os entrevistados,
Paulinho e Mariza são os mais velhos, ambos têm cerca de 70 anos e, enquanto
Paulinho nasceu no Complexo do Alemão e vive até hoje na mesma casa – que foi de
seus pais –, Mariza chegou da Paraíba diretamente para o Complexo do Alemão nos
anos 1970, já casada e com filhos. Ambos foram agentes comunitários de saúde e são
até hoje reconhecidas lideranças comunitárias. Wagner é mais jovem e nasceu também
no Complexo do Alemão, em meados dos anos 1970; tornou-se agente comunitário de

45
saúde em 2004. Por fim, o médico Cláudio começou a trabalhar ali em 2005, onde
permanece até hoje.

Serviços de saúde no Complexo do Alemão: 1980 a 2018


A linha do tempo que busquei traçar aqui partiu das entrevistas citadas acima.
Para além das experiências profissionais, um ponto que perpassou as três entrevistas
com os moradores foram as lembranças de como eram os serviços de saúde nesse
conjunto de favelas antes da chegada do Programa Saúde da Família. Tais lembranças,
analisadas em conjunto, evidenciaram o período inicial da linha do tempo, isto é, as
décadas de 1980 e 1990.

Nessa época, os serviços de saúde mais utilizados pela população local eram:
o SAMDU de Ramos (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência), depois
transformado em PAM Ramos (Posto de Assistência Médica) e extinto em meados dos
anos 2000; o posto de saúde Américo Veloso na Praia de Ramos (hoje CMS Américo
Veloso) e o PAM de Del Castilho (hoje Policlínica Rodolpho Rocco). Nenhum deles
estava dentro do Complexo do Alemão e os dois últimos localizavam-se
consideravelmente distantes de onde a maior parte da população vivia. Na primeira
década dos anos 2000, ocorreu a chegada do Programa Saúde da Família com a
implantação de quatro postos no Complexo do Alemão. Foram eles: Nova Brasília,
Alemão, Esperança e Adeus. Esse momento demarca a criação de serviços de saúde
pela primeira vez funcionando dentro da favela, ainda que estejam quase todos nas
entradas dos morros. Nessa época, a população seguiu, contudo, acessando o PAM
Ramos e o PAM Del Castilho para emergências. Os mapas anexados (ver anexo I)
demonstram tal mudança.

A partir de 2009, os antigos PSF foram quase totalmente desativados, dando


lugar às novas Clínicas da Família. Tais alterações ocorreram no governo de Eduardo
Paes, durante o já citado programa “Saúde Presente”. Em 2009, o SAMDU de Ramos
foi fechado e, em 2010, houve a inauguração da UPA do Alemão, que passou a fazer
o atendimento de emergências. Entre 2009 e 2012, apenas o CMS Alemão e Esperança
(que funcionavam em casas diferentes, mas eram de responsabilidade da mesma
gerência) foi mantido e os demais tiveram suas equipes transferidas para a Clínica da
Família Zilda Arns, inaugurada em 2010. Além dela, houve ainda, em 2010, a

46
inauguração da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), do CAPS (Centro de
Atendimento Psicossocial) João Ferreira Filho, da Clínica da Família Zilda Arns e da
Clínica da Família Rodrigo Roig. Todos esses serviços estão situados não dentro das
favelas, mas na Estrada do Itararé, principal via de acesso à maior parte das
comunidades que compõem o conjunto de favelas21 no lado leste, mais próximo aos
bairros de Bonsucesso e Ramos. Do outro lado, conhecido como lado oeste do
Complexo – vizinho aos bairros de Inhaúma e Engenho da Rainha –, houve a
inauguração da Clínica da Família Bibi Vogel e a incorporação de parte da população
nas equipes de ESF, criadas dentro da Policlínica Rodolpho Rocco, antigo PAM de
Del Castilho, como se pode observar no mapa.

Já em 2014, houve a inauguração da Clínica da Família Palmeiras, instalada na


estação de mesmo nome do Teleférico, na parte mais alta do Complexo, que totalizou
100% de cobertura da Estratégia da Saúde da Família para o Complexo do Alemão e
passou a atender a população antes assistida na Policlínica Rodolpho Rocco. A mesma
clínica, no entanto, foi fechada em 2016 em razão da violência no local e suas equipes
foram transferidas para a CF Zilda Arns. Também em 2016, o CMS Alemão foi
fechado e suas equipes foram transferidas para a recém-inaugurada Clínica da Família
Valter Felisbino, em Ramos, e as equipes do CMS Esperança foram transferidas para
a também recém-inaugurada CF Klebel de Oliveira Rocha, em Olaria. Nessa mesma
época, o CAPS AD (Álcool e Drogas) Mirian Makeba, antes instalado na Maré, mas
que já era referência para os moradores do Alemão, passou a funcionar em uma casa
em Ramos, também bastante próxima ao Complexo. Podemos ver nesse momento um
movimento de retirada dos serviços de saúde de dentro da favela para os bairros
próximos ou para as grandes avenidas que margeiam o Complexo, evidenciado no
último mapa.

Do CONSA ao PROESF
Entre os entrevistados, Mariza Nascimento é aquela que possui mais clareza
em relação a todas essas transformações, por tê-las acompanhado de perto e sobretudo
pelo fato de elas revelarem também sua própria história de vida. Aos 70 anos, Mariza,

21
Cabe lembrar que durante esse mesmo período ocorriam no Complexo do Alemão as obras realizadas
com recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), as quais tiveram início em 2008,
incluindo pavimentação de vias e a construção do teleférico.
47
como toda grande liderança comunitária, sabe e gosta de afirmar sua importância para
a consolidação do que existe em termos de políticas sociais no Complexo do Alemão
hoje. Nas eleições de 2016, foi candidata à vereadora pelo PSB, mas não obteve
votação expressiva. Sua trajetória é emblemática para pensar a questão da política e
da saúde no Complexo do Alemão, porque ela reúne em si as qualidades de liderança
local, conselheira em instâncias diversas de participação social, “ongueira”, possui
ligação com a igreja católica, foi presidente da associação de moradores do Morro do
Adeus (onde sempre viveu), além de ter sido Agente Comunitária de Saúde na
Estratégia Saúde da Família.

Matiolli (2016), em sua tese, também recorre à figura de Mariza para recontar
a trajetória de construção do Complexo do Alemão como uma unidade territorial, à
qual vai sendo atribuído, ao longo do tempo, um sentimento de pertencimento e de
reinvindicação política por parte dos moradores das diferentes comunidades,
agregadas nessa mesma denominação. A “pedra fundamental” de tal processo teria
sido justamente uma carta de apoio escrita e assinada por sete associações de
moradores do Complexo, indicando e apoiando a candidatura de Mariza Nascimento
ao posto de Administradora da XXIX Região Administrativa em abril de 1986. Criadas
ainda por Carlos Lacerda nos anos 1960, as Regiões Administrativas ganham um novo
sentido no governo de Saturnino Braga (1986-1988) que, de acordo com Marcelo
Burgos (1992), possuía forte preocupação com a questão da descentralização
administrativa e orçamentária no município. Tal preocupação soma-se ao
reconhecimento desse mesmo governo de algumas áreas de favelas como
aglomerados, o que vai resultar na criação de quatro novas regiões administrativas
para a cidade, referentes às quatro maiores favelas: Rocinha, Jacarezinho, Alemão e
Maré (Matiolli, 2016). Matiolli escreve:

Na concepção do governo municipal, esperava-se que os administradores


regionais atuassem coordenando as ações do poder público nas áreas sob
sua atuação articulando-as com as demandas populares, agindo como uma
espécie de gerente local (...). A proposta enfrentou uma série de desafios
de modo que sua implantação foi parcial e alguns desses pressupostos
apresentados, sobretudo a descentralização econômica, não foram
realizados, ao menos em sua plenitude (MATIOLLI, 2016, 77-78).

Para se candidatar ao cargo de administrador, era necessário ser morador da


região, não possuir “veto” do movimento social e estar filiado ao PDT, partido no

48
poder naquele momento. Mariza reunia todas essas condições e assim tornou-se, em
1986, administradora da Região Administrativa do Complexo do Alemão. Sobre esse
período, ela diz:

Então assim, fiquei de 86 a 88, quando mudou o Prefeito de Saturnino para


Marcelo Alencar, aí eu saí. Fiz algumas coisas, construí uma creche no
Morro da Baiana, porque a nossa já estava construída pelo Instituto Pio XI,
pelas irmãs, e aí, criei ainda uma linha de ônibus que sai dali, no horário
do rush, naquele tempo, que era pra poder se transformar numa linha
definitiva, até hoje continua no horário do rush... Também eu fui a única
mulher administradora, depois de mim, só homens, homens, homens...
(entrevista realizada com Mariza Nascimento, 2015).

Ao contar sua trajetória como liderança comunitária, Mariza Nascimento atrela


sua motivação para exercer essa atividade às condições de vida no Complexo do
Alemão, dizendo:

Vim para o Rio de Janeiro em 1970, cheguei aqui no Rio de Janeiro, subi
pro Morro do Adeus, fiquei com vontade de voltar pra casa, porque aqui
não era o Rio de Janeiro no meu pensamento, mas não tem jeito, a gente
tem que ficar mesmo, né? (...) Quando foi em 1980 eu comecei auxiliando
o trabalho comunitário, porque a gente não tinha água, nem luz, nenhum
benefício aqui na comunidade de serviço público, “IDH zero”, em todo o
Complexo do Alemão (entrevista realizada com Mariza Nascimento,
2015).

Ainda que o IDH22 tenha sido uma medida criada somente em 1990, Mariza
utiliza esse recurso para caracterizar a precária situação da região nos anos 1980. A
expressão nesse caso remete a um tempo passado notadamente marcado pelas
condições precárias de vida material. Mariza diz:

Então, era assim, a gente começou, tinha um grupo de pessoas que se


reuniram na Igreja de Nossa Senhora de Fátima e com o apoio do Instituto
Pio XI, nós começamos reuniões para criar uma instituição na comunidade
que com o apoio das irmãs do Pio XI, começasse a buscar esses benefícios
que a gente não tinha. (...) Em 1985, quando Brizola foi Governador, aí nós
conseguimos, através de Luiz Salomão, Secretário de Obras do Estado,
colocar, implantar a rede de água na comunidade, Ah, mas a rede de luz
que entrou primeiro, porque ela entrou em 81, 82... por aí assim... a rede

22
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é um índice que serve de comparação entre os países, com
o objetivo de medir o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população. O
relatório anual de IDH é elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
órgão da ONU.
49
de luz. E aí a gente começou fazendo pontes, passarelas, porque a
comunidade não tinha absolutamente nada, quando chovia era um
desespero, as pessoas escorregavam, caíam, enfim... (entrevista realizada
com Mariza Nascimento, 2015).

E se as condições naquele momento eram consideradas precárias, o difícil


acesso aos serviços de saúde as agravava ainda mais 23. Nas falas registradas aqui,
como já mencionado, três unidades de saúde aparecem como centrais no escasso
acesso à saúde que a população possuía até o início dos anos 2000: o SAMDU, o PAM
de Del Castilho e o posto Américo Veloso. O SAMDU de Ramos, foi inaugurado em
dezembro de 1949, depois agregado ao Posto de Assistência (PAM) Ramos, criado em
195924. Tal unidade figurou por muito tempo como principal local de atendimento à
população25, tal como relembra Mariza:

Nós tínhamos uma SAMDU, SAMDU de Ramos. Que era um pronto-


socorro onde a comunidade como um todo do Complexo do Alemão ia lá
quando tinha um problema de emergência, de urgência, emergência, desde
que eu cheguei aqui. Mas então, vez por outra, eles ameaçavam tirar aquilo
dali. Eu lembro que a Odete, que era Presidente [da Associação de
Moradores] da Joaquim de Queiroz, ela se movimentava, fazia abaixo -
assinado, corria atrás e não deixava. E o povo ia pra lá e não deixava tirar
aquilo dali, porque se tirasse, não tinha uma outra porta. Então assim, tipo,
atendimento básico primário não existia no Complexo do Alemão
(entrevista realizada com Mariza Nascimento, 2015).

Diante desse cenário de difícil acesso às unidades de saúde, que eram poucas
e distantes para boa parte dos moradores, datam dos anos 1980 algumas importantes
articulações de moradores do Complexo do Alemão por reivindicação no campo
específico da saúde. Em 1984, foi criado o GEL (Grupo Executivo Local) que passou
a reunir, mensalmente, os diretores dos serviços de saúde e representantes

23
Em pesquisa coordenada pelo IPEA (2013), é possível observar o processo inicial de ocupação da área
hoje conhecida por Complexo do Alemão e as evidentes condições de vida nesse período. Há também uma
significativa bibliografia sobre as condições de saúde mais gerais da população residente na zona da
Leopoldina do Rio de Janeiro no período entre os anos 1980 e 2010, o que corrobora o quadro relatado
pelos interlocutores (Guimarães, 2011).
24
A criação dos SAMDU se deu em 1949, ainda durante a Era Vargas. De acordo com Mercadante (2002,
237): “A importância histórica desse evento decorre de três características inovadoras da iniciativa: o
atendimento médico domiciliar até então inexistente no setor público, embora comum na prática privada;
o financiamento consorciado entre todos os IAPs (Instituto de Aposentadorias e Pensões); e,
principalmente, o atendimento universal ainda que limitado aos casos de urgência”.
25
Informação disponível em: https://smsdc-cms-mcristina.blogspot.com/p/regimento-
interno.html?m=1&fbclid=IwAR3llfuB8oXBRKQepQafQEM8FdiRC_LT1tOkRGjoL0rTljpGMo_LiAiTSp4
(Acesso em 21/11/2018).

50
comunitários de toda área programática AP 3.1 26 , na unidade de saúde Américo
Veloso, que havia na Praia de Ramos. O grupo não possuía caráter deliberativo, mas
repassava informações para uma outra instância deliberativa, o CEAP (Comissão
Executiva da Área de Planejamento), o qual não envolvia a participação de usuários.
A esse respeito, na dissertação de Homero Carvalho sobre a questão da participação
social em saúde na Zona da Leopoldina, um dos usuários entrevistados por ele diz:

No GEL a gente discutia, debatia, tomava uma posição, chegava na hora a


gente passava pra CEAP. Na CEAP o que acontecia? Só tinha profissionais
gestores de saúde, e no final nossa voz não era ouvida. Depois de muita
briga, conseguimos colocar um representante da comunidade que só ia lá
pra ouvir, tinha direito a ouvir mas não tinha direito a voz. Quer dizer,
também não adiantou nada, todas as resoluções que o GEL tomava,
terminava na CEAP. Então, nunca vi nada ser resolvido em termos
concretos e tanto assim que até hoje, tendo GEL, tendo CEAP, nada foi
resolvido, nada se modificou (depoimento de Carlinhos) (CARVALHO,
1996, 38).

A partir da II Conferência Nacional de Saúde, em 1993, os Conselhos Distritais


de Saúde passaram a fazer parte da política nacional de saúde. Então, em 1994, o
Conselho Distrital de Saúde da AP 3.1 substituiu o GEL, que foi extinto. Com poder
deliberativo, como destaca Carvalho (1996), o conselho da AP 3.1 obteve destaque
não apenas por sua atuação, mas também por ter potencializado a proposta de
participação e controle social no SUS, ao indicar pioneiramente um usuário para
compor a diretoria. Algo que, futuramente, tornou-se uma possibilidade em todos os
conselhos de saúde no país. Sobre o dia em que essa decisão foi tomada, Carvalho
escreve:

No entanto, naquele dia, o Conselho da AP3.1 não só elegeria seu próprio


presidente, mas um usuário para ocupar o cargo, aprofundando-se a
divergência entre o Conselho da AP3.I e a SMS-RJ. Para além da
formalidade da Lei que os instituía e previa sua direção pelos
Coordenadores Técnicos das respectivas Áreas de Planejamento do
município, estavam em disputa diferentes concepções sobre o significado

26
Compõem a AP 3.1 as seguintes regiões administrativas: X RA - Ramos (Bairros de Manguinhos,
Bonsucesso, Ramos e Olaria); XI RA - Penha (Bairros da Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil,
Parada de Lucas, Vigário Geral e Jardim América); XXIX RA - Complexo do Alemão (Comunidades do
Morro do Alemão, Morro da Baiana, Nova Brasília, Joaquim Queirós, Itararé, Morro das Palmeiras,
Mourão Filho, Parque Alvorada, Relicário, Vila Matinha); XXX RA - Complexo da Maré (Comunidades
do Parque União, Parque da Maré, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro, Rubens Vaz, Morro do Timbau,
Ramos, Vila do João, Vila Pinheiro, Conjunto Pinheiro, Conjunto Esperança, Conjunto Bento Ribeiro,
Conjunto Nova Maré).
51
do papel deliberativo a ser exercido pelos conselhos distritais
(CARVALHO, 1996, 76).

O usuário indicado foi José Carlos de Souza, liderança comunitária da favela


Nova Holanda, na Maré. E seguindo o mesmo movimento, em 1996, Mariza
Nascimento tornou-se vice-presidente do Conselho Distrital. No entanto, enquanto os
mecanismos de participação social se fortaleciam, as melhorias no campo da saúde
ainda avançavam timidamente no Complexo do Alemão e em toda a Zona da
Leopoldina. A possibilidade de fechamento do PAM RAMOS (antigo SAMDU)
tornava-se cada vez mais real, como demonstra o trabalho de Carvalho (1996), ao
narrar uma discussão no âmbito do conselho distrital de saúde. O autor evidencia que
com a crescente violência local passou a haver forte pressão, sobretudo dos
profissionais, para que a unidade fosse remanejada para outro local ou ainda que não
abrisse durante a noite devido aos tiroteios – como já ocorria com a unidade na Penha,
próxima à Vila Cruzeiro. Na época, a tentativa de contornar a situação e manter a
unidade aberta foi impulsionada pelo próprio diretor da unidade em sua participação
no conselho distrital de saúde, no qual decidiram, afinal, manter o funcionamento,
mas comunicar a população através de uma carta sobre as dificuldades do trabalho
naquela região. A carta, de 1994, intitulada “Carta à comunidade do Complexo do
Alemão”, então dizia:

O Setor de emergência do PAM RAMOS, antigo SAMDU de Ramos, vem


atendendo há muitos anos a população local. Todo ano muitas Crianças,
Mulheres, Homens, Idosos, Grávidas e doentes da Comunidade, dia e
noite, são atendidos. Com deficiência em profissionais de saúde (Médicos
e Enfermeiros) e administrativos, tem sido cada vez mais difícil manter o
atendimento à população, como é de direito.
Muitas vidas são salvas e grande número de doentes são tratados no setor
de emergência do PAM-RAMOS e tudo isso está agora ameaçado de não
continuar e até parar.
Os ACONTECIMENTOS na localidade e no Setor de Emergência
impossibilitam a população de chegar a ser atendida no PAM-RAMOS.
É necessário encontrarmos SOLUÇÕES pois a INTRANQUILIDADE da
população alcança a todos os servidores do PAM-RAMOS (CARVALHO,
1996, letras maiúsculas no original).

Os profissionais se queixavam ainda da falta de suporte dos hospitais de grande


porte nas adjacências, como o Hospital Federal de Bonsucesso e o Hospital do Fundão
(UFRJ), sobretudo pela falta de leitos para encaminhar os casos graves, cada vez mais

52
comuns em decorrência da violência, e pela baixa assistência pré-natal e ausência de
suporte de UTI neonatal na região, contribuindo para alta taxa de mortalidade infantil
até 28 dias (Carvalho, 1996). Diante dessa situação, entre o final dos anos 1990 e
início dos anos 2000, passou a haver forte mobilização popular no Complexo do
Alemão para que a oferta de serviços de saúde na região aumentasse. No mesmo
período, o Conselho Distrital de saúde propôs a criação de conselhos locais nas cinco
regiões administrativas que compõem a AP 3.1, enquanto moradores já estavam
tentando construir um coletivo nesse sentido no Alemão.

Sobre este movimento, Mariza relata:

(...) depois que eu entrei como Vice-Presidente [no Conselho Distrital de


Saúde], aí a gente começou tentando criar Conselhos comunitários de
Saúde nessas cinco regiões administrativas, para que esses Conselhos
reunissem localmente e levassem os problemas já mastigados para o
Conselho Distrital. Desses cinco Conselhos que nós tentamos e fizemos
reunião, a reunião da Penha foi bem participativa, mas a nossa aqui foi
maior, que foi no SESC de Ramos, então nós trouxemos o povo todo, de
todas as cinco áreas, de toda a AP3.1, então assim, nós criamos... Nessa
reunião, era pra criar o Conselho, de todos os cinco, a nossa foi o único
que vingou (...) e aí teve a participação de todos do Complexo do Alemão,
era o Centro Espírita, as Igrejas Evangélicas, as Católicas, as Associações
de Moradores, foi bonito (entrevista realizada com Mariza Nascimento,
2015).

Cria-se então, em 2000, o Conselho Comunitário de Saúde do Complexo do


Alemão (CCS/CA), posteriormente chamado de Conselho de Saúde do Complexo do
Alemão (CONSA). Os relatos dos entrevistados apontam que o CONSA representou
um importante marco para os atores envolvidos nos movimentos sociais do Complexo
do Alemão, aparecendo na fala de muitos deles como um “divisor de águas”, que
germinou diferentes organizações e eixos de mobilização política 27 no Alemão nos
anos seguintes. Mariza Nascimento tornou-se a primeira presidente do CONSA. O
conselho, além de ter mobilizado lideranças comunitárias e religiosas, teve apoio de
pesquisadores ligados ao antigo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFRJ)
e à Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

É importante observar que no CONSA a discussão já se estabeleceu em torno


de uma demanda por serviços de saúde no campo da Atenção Primária e não apenas

27
Entre eles, o Instituto Raízes em Movimento, Verdejar e Educap.

53
serviços de emergência e grande complexidade, demonstrando a circulação de alguns
desses agentes, como Mariza, na discussão mais ampla aprofundada sobre saúde que
se fazia no momento, quando a atenção primária ganhava importância em todo o
mundo, como demonstro adiante. A respeito disso, Mariza observa:

Porque antes de vir o Saúde da Família, a gente já lutava nessas reuniões


do GEL pra que trouxessem um Posto de Saúde, com ambulatório, pra
Atendimento Básico Primário, dentro daqui da área, da nossa área, né,
porque não existia nenhum, o mais próximo era o de Ramos, lá na Pedreira,
esse lá da Praia de Ramos, que é do outro lado da Av. Brasil. Então assim,
a gente queria que fosse construído um Posto de Saúde, um Posto de Saúde,
não existia essa história de Saúde da Família. Então, durou tantos anos,
tantos anos essa luta que quando veio a história de Saúde da Família, que
começou lá naquela Ilha de Paquetá, em Niterói depois, veio vindo
devagar, foi que a gente começou também a reivindicar que também se
implantasse o Saúde da Família no Complexo do Alemão (entrevista
realizada com Mariza Nascimento, 2015).

A primeira ação organizada do CONSA nesse sentido foi a redação de uma


carta aberta para denunciar a situação da saúde no Complexo do Alemão 28. Mariza
recorda:

(...) e nós fizemos uma Carta aberta à população. E nessa Carta aberta, a
gente denunciava o IDH zero do Complexo do Alemão, a quantidade de
moradores, duzentos mil habitantes, sem um Posto de Saúde... Mandamos
essa Carta pro mundo. Pro mundo, pra ONU, enfim... Mandamos!
Arrebentamos a boca do balão e demos a notícia pro mundo de que o povo
aqui, dentro da mesma cidade, não tinha condições de sobrevivência. (...).
E quando nós fomos levar esse documento na Prefeitura, aí, a gente levou
direção de escola, nós levamos as autoridades locais todas, então foi muito
bonito, foi uma luta muito árdua (entrevista realizada com Mariza
Nascimento, 2015).

Na histórica carta redigida pelo CONSA, destaco alguns trechos:

O Complexo do Alemão com cerca de 300.000 (trezentos mil) habitantes


distribuídos por treze comunidades: Morro do Alemão, Morro da
Esperança, Parque Alvorada Cruzeiro, Morro do Itararé, Morro do s
Mineiros, Morro do Adeus, Caboclo, Morro da Baiana, Fazenda das
Palmeiras, Joaquim de Queiroz, Matinha, Nova Brasília e Alagoinha, vem

28
Ver a monografia de Lúcia Cabral (2013), liderança comunitária no Complexo do Alemão, para mais
detalhes a respeito da história do CONSA. Ali ela relata outros momentos emblemáticos, como um
encontro no Campo do Sargento exigindo serviços de saúde no Complexo do Alemão.

54
reiterar a necessidade urgente da implantação de uma unidade de saúde da
família em cada uma das respectivas comunidades.
Pois desde 1990 em documento sobre Política Nacional de Saúde do
Ministério da Saúde (MEMO Nº02/GM de 14/04/1990) era explicitada
a necessidade de cobertura dos serviços de saúde de no mínimo três
consultas/habitantes ano, a urgência de expansão e reestruturação dos
serviços de saúde e desenvolvimento de recursos humanos nas áreas
prioritárias. E na dotação orçamentária, durante três gestões com
publicação no Diário Oficial do Município (DOM), houve destinação
de verba para a construção de Unidades Básicas de Saúde na área, só
que até o presente momento, nada efetivamente se fez.
É extremamente grave a situação dessa população, que tem que sair de
madrugada para conseguir atendimento, retornando muitas vezes sem
consegui-lo. São muitos os casos de comunitários que por falta de
recursos para a passagem de ônibus, ficam sem atendimento, indo a
óbito (arquivo pessoal de Mariza Nascimento, anos 2000, grifos meus).

Apenas três anos após a carta, o primeiro PSF no Complexo do Alemão


começou a sair do papel. De acordo com o médico Cláudio, a motivação para a
construção dessa unidade teria passado ao largo das mobilizações políticas da
população local. Ele esclarece:

Porque na época do Prefeito César Maia, ele teve uma pressão externa, que
foi do Ministério da Saúde para a implementação das equipes. Então, tipo,
ele implementou, mas implementou o mínimo possível. Quer dizer, foi uma
quantidade irrisória (entrevista realizada com Cláudio, 2015).

O depoimento de Cláudio aponta para a existência do chamado PROESF,


programa do governo federal, que o município do Rio de Janeiro passou a integrar em
julho de 2003. Como esclarecem Almeida e colaboradores:

Para induzir a expansão da ESF nas cidades de grande porte e capitais, o


Ministério da Saúde (MS), apoiado pelo Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD ou Banco Mundial), criou o
Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da Família (PROESF). Este
se destina a financiar a implantação e consolidação da ESF em municípios
com população acima de 100.000 habitantes e elevação da qualificação do
processo de trabalho e desempenho dos serviços, otimizando e assegurando
respostas efetivas para a população, em todos os municípios brasileiros
(BRASIL, 2007) (ALMEIDA et al., 2011, 40).

O programa consistia em uma transferência trimestral de orçamento do Fundo


Nacional de Saúde para o Fundo Municipal de Saúde, visando atingir a meta de 30%
de cobertura da população carioca pela ESF até 2007. No entanto, até 2009, o

55
percentual era de apenas 8,96% (Almeida et al., 2011). Os autores relatam que boa
parte dos problemas enfrentados para expandir a ESF na cidade decorreram da
insuficiência orçamentária 29 e do pouco preparo da estrutura da Secretária Municipal
de Saúde e das coordenações de área para estruturar o programa.

A construção do PSF Alemão se deu durante o ano de 2003, com término em


dezembro, mas o funcionamento só se efetivou em meados de 2004. Sobre essa
demora, Mariza relata:

Aí o Gazzola, falecido Gazzola 30 veio e cortou a fita, no campinho de


futebol ali no Alemão – que era o lazer da comunidade, mas entre o lazer
e o atendimento à Saúde, a gente conversou com o Presidente da
Associação e vimos que aquele local ali daria pra construir. Então assim,
quando o Gazzola cortou aquela fita, é... As coisas são muito políticas...
Ele não fez! Então, pra poder vir, foi preciso entrar outro, que era o
Ronaldo Cezar Coelho 31, o Secretário de Saúde na época, aí inaugurou
(entrevista realizada com Mariza Nascimento, 2015).

No ano seguinte, em 2004, foram inaugurados os outros PSF no Complexo do


Alemão: Nova Brasília, Adeus e Esperança, já mencionados acima.

Sobre esse momento inicial de implementação da atenção básica em saúde no


Complexo do Alemão, especificamente do Programa de Saúde da Família, Wagner
ressalta alguns aspectos interessantes sobre a característica do trabalho desenvolvido
naquela época. Wagner, que é Agente Comunitário de Saúde e entrou no programa
alguns meses após o início de seu funcionamento, conta que:

Na essência, a proposta inicial era a Promoção da Saúde mesmo. Eles


caíam pra dentro disso. Visita domiciliar, a gente quase que não f icava
dentro da Unidade. Era praticamente o tempo todo fora com o enfermeiro,
o enfermeiro quase não atendia, ficava com a gente na área direto,
entendeu? Médico ia duas vezes na semana pro território. E hoje já mudou
muito isso, mas no início era muito Promoção da Saúde mesmo. E olha que
foi um baque, porque as pessoas também não entendiam o que era isso. A
gente também começou a entender, né? E era muito complicado as pessoas

29
Almeida e colaboradores (2011) esclarecem: “Os incentivos federais não cobrem o custo da implantação
e custeio da ESF, cabendo ao município assumir grande parte do financiamento. Desse modo, o município
assume o financiamento de políticas definidas no governo central que desconsideram a enorme
heterogeneidade dos municípios brasileiros e não se caracterizam pela flexibilidade exigida para adaptar
tais políticas para as condições reais de cada localidade”.
30
Ronaldo Gazzola foi secretário municipal de saúde nos governos dos prefeitos Marcello Alencar, Cesar
Maia e Luiz Cláudio Conde; faleceu em 15/08/2002.
31
Ronaldo Cezar Coelho foi secretário de Saúde do Rio de Janeiro na gestão César Maia, de julho de 2000
a março de 2002 e de 2004 a 2006.
56
aceitarem, no início, participar de grupo, essas coisas todas (entrevista
realizada com Wagner, 2015).

Paulinho, que fez parte da primeira leva de agentes comunitários no Complexo


do Alemão, hoje já aposentado, também reforça a diferença entre o trabalho que era
feito quando iniciaram o programa no Alemão e o funcionamento da ESF hoje, em sua
percepção como usuário:

Era um trabalho muito bom, um trabalho muito bem feito e as pessoas se


sentiam bem (...) às vezes nós, a gente ia na casa da pessoa, conversávamos
com a pessoa, orientávamos a pessoa, quando saíamos dali, a pessoa nem
pedia pra vir ao médico, acho que ela se sentia satisfeita, já sabia o que
tinha que fazer e se contentava... E acabou o problema, né? Então, quer
dizer, criaram esse círculo vicioso... Tem que ser atendido pelo médico,
que tem que passar pelo médico e tal, tal, tal...e que tem que ser um posto
de saúde, então, quer dizer, mudou...mudou totalmente o... A plataforma
do Projeto, do Programa de Saúde (entrevista realizada com Paulinho,
2017).

Já o envolvimento de Mariza, que também atuou com Agente Comunitária de


Saúde, com esse momento inicial de implementação da atenção básica não é
relembrado com tanto entusiasmo. Pontos como a dificuldade de efetivar o projeto da
forma como havia sido formulado pelos membros do CONSA, bem como de realizar
atividades propostas pela própria população são destacados por ela como as principais
deficiências no modelo de saúde que acabou sendo implementado nas unidades do
Alemão. Ela relata:

Quando chegou a saúde da família no Alemão, eu tinha um desejo de que


ela caminhasse dessa maneira, mas eles que veem de fora não querem saber
de comunidade, eles veem com as normas deles e impõem, e aí você é
obrigada, porque eles são chefe e nós somos subordinados, a gente é
obrigado a fazer como eles querem, e a gente sabe que tá fazendo errado.
Então assim, quando eu tô indo pro território, eu vejo quais são as
necessidades dessas pessoas. Então assim, eles querem o que dá resultado
financeiro e nós queríamos o que dava resultado para a saúde, para
população. Então, isso começou meio que um embate, sabe? (entrevista
realizada com Mariza, 2015).

Para Mariza, que estava articulada aos movimentos sociais, as tensões entre a
população do Alemão – que estava organizada a partir do CONSA – e o poder público
se deram logo no início do processo de implantação das unidades básicas de saúde.

57
No projeto delineado pelo CONSA, o próprio conselho seria o gestor das unidades do
Complexo do Alemão, intermediando a relação entre a Prefeitura e os profissionais
atuantes na unidade. No entanto, sob a alegação de que o CONSA não era uma
entidade com tempo suficiente de existência para assumir essa gestão, outra entidade
acabou exercendo esse papel, a CIEZO 32. A CIEZO foi gestora dessas unidades até
2010, quando a Organização Social Viva Rio assumiu a gestão. Os problemas
relacionados à terceirização da gestão apontados por Mariza se relacionam à fala do
médico Cláudio quando lembra que a implantação do PSF no Rio de Janeiro esteve
associada desde o início ao PROESF, cujo financiamento provinha em partes do Banco
Mundial. Há aqui um embate entre a demanda da população por atendimento básico
em saúde e a maneira pela qual tais políticas são viabilizadas pelo poder público. Para
Paulinho e Wagner, porém, o programa funcionava bem no início, sobretudo porque
não estava centrado na figura do médico e por conseguir trabalhar principalmente com
a promoção da saúde. Os principais problemas começaram apenas após a expansão do
programa, em 2009, e com a gestão do Viva Rio.

Números e papéis: a expansão da ESF após 2009


O desânimo de Mariza com as possibilidades de atuação no campo dos serviços
públicos em saúde se refletiu em sua aposentadoria em 2008, quando acabou se
afastando da atividade de agente comunitária de saúde e passou a se dedicar à sua
própria ONG, a Nascibem. No entanto, ela se viu em uma situação financeira difícil
quando o marido adoeceu e ficou desempregado, em 2011, e resolveu retornar ao
trabalho de Agente Comunitária de Saúde. Nesse período, porém, os serviços de saúde
no Complexo do Alemão já estavam bastante modificados. O programa “Saúde
Presente” agora estava em curso e várias novas unidades atendiam a população. As
novas unidades eram bem maiores em termos de equipe e população atendida, e a
gestão do Viva Rio impunha uma série de novas demandas burocráticas. Paulinho
aponta nesse sentido quando compara o programa, tal como se apresenta nos dias de
hoje, com sua versão inicial:

Hoje tem que fazer relatório, tem que mostrar... Números... Hoje em dia é
números, né? Acho que não tem número melhor para Secretaria de Saúde
analisar do que a ausência, né, de demanda, ausência de pessoas enfermas.

32
Conselho das Instituições de Ensino Superior da Zona Oeste.
58
Não tem número melhor para analisar, não tem número melhor. E nessa
época era assim (entrevista realizada com Paulinho, 2017).

Mariza relata que, quando retornou para o trabalho de agente comunitária, teve
a oportunidade de fazer o curso técnico para Agentes Comunitários de Saúde. Ela
também possuía o desejo de utilizar o amplo espaço aberto que havia na entrada da
Clínica da Família Zilda Arns, onde trabalhou, para promover cursos de ginástica para
a terceira idade. Embora tenha conseguido realizar essa atividade por algum tempo,
sentiu-se sempre “perseguida” pela gerente da unidade, que dizia que ao promover os
cursos ela deixava de cumprir outras metas necessárias para o programa. Sobre esse
momento, ela relata:

E lá no curso técnico a gente aprende, a gente cria asas pra voar na


prevenção e na promoção [à saúde]. Só que quando a gente chega na saúde
da família, as meninas que estavam lá não queriam nada com prevenção e
promoção, era tudo papel para preencher, era tudo papel, papel, papel...
Papel, e nada de tempo que a gente tem pra conversar com as pessoas, tinha
que passar feito um vulcão dentro das casas, entendeu? Então assim, tudo
aquilo foi me torturando, torturando, torturando... (entrevista realizada
com Mariza, 2015).

A ideia de “número” aparece novamente na fala do agente Wagner, que atua no


sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde em âmbito nacional e articula, em sua
fala, uma percepção do trabalho cotidiano, ligado diretamente à questão da
terceirização. Ele diz:

Nada terceirizado funciona. O SUS tem que ser público, totalmente


público, a sua essência é pública, então ele veio de movimentos sociais,
então tem que ser público, eu sou contra terceirização. Assim,
infelizmente, na época da construção do SUS, se abriu algumas brechas,
né? E essas brechas foram cada vez maiores. Eu sou contra, porque as OSS
[organizações sociais de saúde], elas não veem uma pessoa, elas veem um
número. Não tô falando que o número não é importante, número é
importante pra gente ver várias questões, mas não é só o número que é
importante, tem que avaliar o ser humano, então a gente tá perdendo muito
isso, né? A gente cada vez mais tá dedicado a serviços burocráticos, tá
deixando a Promoção da Saúde de lado, a prevenção de lado, para trabalhar
no burocrático (entrevista realizada com Wagner, 2015).

O excesso de demandas burocráticas dentro da unidade constituía, de acordo


com os Agentes Comunitários de Saúde, a principal razão do afastamento do território
59
e das visitas domiciliares. O debate era comum entre os agentes e tornou-se
especialmente acalorado em meados de 2017, quando um morador fez uma postagem
na rede social Facebook em que criticava o trabalho dos agentes. A postagem se
iniciava com o seguinte título: “Procura-se Agente Comunitário de Saúde”. No texto,
ele dizia que o trabalho do agente deveria ser andar pela área visitando as famílias e,
no entanto, ele nem sequer conseguia ter retorno dos exames que fazia, pois a agente
responsável por sua área nunca era vista por lá. Abaixo da postagem, inúmeros
comentários apoiavam a crítica do morador, relatando que o mesmo ocorria em suas
áreas de moradia.

Na nova Lei do Agente Comunitário de Saúde, aprovada pelo Senado33 no final


de 201734, prevê-se que o agente gaste 30 horas de jornada de trabalho em atividades
externas, tais como: visitação domiciliar, execução de ações de campo, coleta de
dados, orientação e mobilização da comunidade, entre outras. Somente, 10 horas
semanais seriam dedicadas a atividades de planejamento e avaliação de ações,
detalhamento das atividades, registro de dados e aperfeiçoamento técnico. Diante
dessa aprovação, Wagner, que acompanhava o debate nacional a partir de sua atuação
no sindicato, revelou que o problema, no caso do município do Rio de Janeiro, é que
os agentes também são responsáveis por fazerem o acolhimento e registrar as
atividades no sistema, restando assim pouco tempo para as visitações na rua. Somava-
se a isso a questão da violência no Complexo do Alemão e a dificuldade de andar pela
área em dias de tiroteio.

O usuário que fez a reclamação pelo Facebook foi chamado para uma conversa
aberta à população na unidade, junto aos profissionais. A situação, nesse caso
específico, se esclareceu e foram pactuados novos combinados com relação à visitação
dos agentes aos domicílios com os moradores presentes. Ao contrário do que é
previsto na política nacional, a unidade em questão não possuía um colegiado gestor
com a presença de usuários. Após receber um ultimato da coordenação de área para
que esse espaço fosse instalado, a gerência convocou uma primeira reunião do
colegiado. No dia da reunião, a equipe estava quase que totalmente presente, no

33
Sobre a nova Lei dos agentes, ver: <https://g1.globo.com/politica/noticia/senado-aprova-novas-regras-
para-a-atuacao-de-agentes-comunitarios-de-saude.ghtml> (acesso em 15 de junho de 2018).
34
Alguns pontos foram vetados por Temer no início de 2018:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SAUDE/551583-LEI-QUE-DEFINE-
ATRIBUICOES-DE-AGENTES-COMUNITARIOS-DE-SAUDE-E-PUBLICADA-COM-VETOS.html>
(acesso em 15 de junho de 2018).

60
entanto, eu, como pesquisadora, era a única participante de fora e nenhum usuário
apareceu. Ao invés de adiar a reunião, resolveram aproveitar a minha presença para
fazer uma apresentação que tinham preparado sobre o funcionamento da unidade. Na
reunião seguinte, cerca de dez usuários apareceram, mas o espaço não continuou por
falta de mobilização e de uma greve dos profissionais de saúde, ocasionada por falt a
de pagamentos nesse mesmo ano de 2017.

O problema da administração do tempo dos Agentes Comunitários de Saúde,


expresso nesse conflito e no que foi estabelecido por Mariza com suas supervisoras,
representava o impacto do modelo de atenção básica à saúde adotado no município e
seu excesso de burocratização. Assim, o afastamento do “território”, ocasionado pela
mudança da unidade de saúde para outro local, era agravado pela dificuldade crescente
dos agentes em circularem pelas “microáreas” – problema enfrentado também na
rotina dos médicos, como veremos no terceiro capítulo.

Como demonstrado acima, no Alemão, a pressão dos movimentos sociais por


mais serviços de saúde foi intensa entre os anos 1980 e 2000, mesmo período em que
foi aprovada a Constituição Federal de 1988, que afirmava a saúde como “direito de
todos e dever do Estado”. Ainda nessa época, alguns moradores do Alemão se
envolveram nas instâncias de participação social propostas pelo então recém-criado
sistema público de saúde. No entanto, ao mesmo tempo em que uma série de
reinvindicações populares foram atendidas, tornou-se cada vez mais evidente o caráter
neoliberal das políticas que foram implementadas ali, impulsionadas por
financiamentos de agências internacionais e adotando um modelo de terceirização
para gestão. Trata-se daquilo que Evelina Dagnino denominou “confluência perversa”
(2004), presente nas políticas públicas da América Latina após as reaberturas
democráticas, como demonstram também Garcia e Georges (2017):

Essas novas políticas sociais são fruto de duas tendências opostas, o que
Evelina Dagnino (2006) chamou de “confluência perversa”. De um lado
reivindicações da população com os movimentos populares dos anos 1980
de luta contra a ditadura e pela assim chamada “abertura democrática” e,
de outro, nota-se a aplicação de políticas neoliberais de redução de custos
sociais nos anos 1990, sob a pressão de órgãos internacionais, como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) (GARCIA,
GEORGES, 2017, 19).

Tal processo remete ainda ao novo estatuto adquirido pelas noções de pobreza

61
e família na América Latina, após o fim das ditaduras, quando houve um acúmulo de
discussões sobre pobreza e desenvolvimento, do qual resultaram dois principais
aspectos. O primeiro foi a pobreza compreendida como algo maior do que a ausência
de renda. Assim, a família pobre, antes vista como um problema, passa a figurar agora
como principal porta de entrada para a intervenção, visando à “proteção social” e ao
combate à pobreza (Garcia, Georges, 2017), sobretudo no início dos anos 1990 35. No
entanto, com o início do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, há um
esvaziamento político dessa discussão e a pobreza volta a figurar como objeto dado,
que deve ser apenas gerido técnica e administrativamente, por meio de ações de
caridade, por exemplo (Garcia, Georges, 2017, 98) 36 . A partir dos anos 2000, no
entanto, a discussão crítica sobre a pobreza volta à cena e concretiza-se pela
incorporação da ideia de família nas novas políticas sociais, ao longo do governo do
Partido dos Trabalhadores (PT), com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à
Presidência, em 2002. A ideia de pobreza compreendida como mais do que renda
ganha força, assim como as políticas sociais, que fizeram parte da agenda dos
movimentos sociais por anos, começam a ser colocadas em prática. Tal processo, no
entanto, como demonstramos acima, vem acompanhado por uma forte tendência
neoliberal e pela não resolução de outros problemas profundos na estrutura social.

Sem pretender esmiuçar o debate sobre desigualdade no Brasil – bastante


extenso e complexo –, apoio-me nas reflexões de Almeida et al. (2008) ao refletirem
sobre pobrezas comparadas, a partir de três regiões distintas de São Paulo. Os autores
sugerem que, mesmo havendo uma redução de pobreza material no país nos últimos
anos, com o aumento do poder aquisitivo das classes populares – e com as novas
políticas sociais nas áreas da saúde e da assistência, sobretudo com os programas de
transferência de renda como o Bolsa Família – nas áreas de população
majoritariamente pobre (sejam elas centrais, periféricas ou favelas) –, persiste uma
lógica de reprodução e redução das desigualdades que se estabelece a partir não apenas
do poder econômico, mas também dos vínculos estabelecidos pelos pobres, cujos
efeitos são tanto materiais, quanto simbólicos. Partindo da noção de desigualdade

35
No caso brasileiro, a publicação do livro Família brasileira: a base de tudo (1994), promovida pela
UNICEF, reunindo uma série de especialistas em políticas públicas, é um marco importante para o
aprofundamento desse debate no país.
36
Maria Carmelita Yasbek (1995) denominou esse período como de “refilantropização da questão social”,
marcado fortemente pelo projeto neoliberal.

62
proposta por Robert Castel (1991), que “sugere pensar a pobreza não somente a partir
da dimensão econômica, mas também por meio dos vínculos sociais que geram maior
integração (família, vizinhança, associações civis, igrejas etc.)”, os autores indicam
pensar a vulnerabilidade igualmente em termos políticos, “seja pela alternância dos
governantes, seja pela qualidade dos vínculos estabelecidos com eles”. A pobreza, nos
casos dos serviços de saúde no Complexo do Alemão, é um ponto de partida para as
políticas sociais, mas a reprodução da desigualdade torna-se um dos principais
problemas enfrentados nos serviços de saúde e é também alimentada por eles de algum
modo, a partir do momento em que não conseguem suportar a demanda populacional
por atendimento.

“Problemas de IDH baixo”


Retornando a 2003, quando a primeira unidade no Alemão foi construída,
Almeida e colaboradores (2011) demonstram que nessa época, amparadas pela verba
do PROESF, a maior parte das unidades construídas na cidade foram destinadas à área
programática 3.1 e à maior concentração no Complexo do Alemão. Embora a literatura
sobre o tema não indique a existência do CONSA e de um movimento social já
organizado em torno do tema saúde na região do Complexo do Alemão e em outras
áreas na Zona da Leopoldina, os autores referem-se à situação socioeconômica desta
região como o principal motivo pelo qual tal recurso lhe foi destinado:

Os dados da AP 3.1 indicavam um contingente populacional, em junho de


2002, de cerca 859.832 habitantes, sendo 34% da população vivendo em
áreas subnormais (favelas), caracterizadas por vazios sanitários e alto grau
de violência. A combinação de dois critérios, baixo Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) e população vivendo em setores
subnormais, resultou na priorização, na AP 3.1, das áreas dos Complexos
do Alemão, Maré e Manguinhos (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO, 2003). A baixa cobertura e resolutividade da atenção básica
induzem à forte demanda sobre serviços de média e alta complexidade
(ALMEIDA et al., 2011, 41).

É importante observar que, ao mesmo tempo em que os péssimos indicadores


socioeconômicos do Complexo do Alemão, Maré e Manguinhos parecem ter garantido
o investimento em saúde para essa área, é provável que eles tenham sido também o

63
maior entrave para o desenvolvimento, e a maior parte deles permanece ainda hoje.
Cláudio e Wagner tratam de algumas dessas questões quando relembram os problemas
mais recorrentes na implementação do programa no Alemão, evidenciando a
transformação de uma “pobreza absoluta” para uma “desigualdade permanente”.
Cláudio se recorda de um problema que era comum no início do trabalho:

Eu até conversei outro dia com a enfermeira que depois de mim é a pessoa
que tem mais tempo aqui no posto. Então, eu conversando com ela, disse:
você lembra que todo dia aqui era um monte de escabiose [sarna], que você
via as pessoas se coçando? Hoje se você vê uma pessoa aqui por mês é raro
(entrevista realizada com Cláudio, 2015).

Cláudio completa a narrativa acima sobre o início do trabalho no programa,


dizendo:

Eu fazia duas visitas por semana, então eu combinava com os agentes de


fazer uma visita aos acamados, dava para fazer e sobrava e eu tinha
interesse de visitar todas as casas da comunidade para saber como é que
era, como é que esse povo morava, questão de higiene, de saúde. E você
tem condição de fazer intervenções culturais, explicando processo de
saúde/doença, você consegue tocar nessas pessoas e elas aprendem, mesmo
assim, com nível de escolaridade baixo, uma questão de cansaço daquele
ambiente domiciliar ruim, você consegue fazer intervenções (entrevista
realizada com Cláudio, 2015).

Se na fala de Cláudio a ideia de intervenção aparece relacionada às práticas


culturais e de higiene, Wagner aponta para outras questões que não foram resolvidas
ao longo dos anos e que independem de uma intervenção pontual, porque são parte da
estrutura urbana da favela, como o saneamento. Ele diz:

No início, tinha muita questão e ainda existe muita questão de doença de


saneamento. A gente não tem um saneamento adequado aqui, no Alemão.
Doenças diarreicas, doenças respiratórias, doenças de pele ainda são muito
frequentes. A questão da água aqui é horrível, a água daqui que a gente
consome é muito ruim, é suja. Então, tem verminose, aí tem diarreia,
vômito, um montão de coisas por causa de água e esgoto mesmo (entrevista
realizada com Wagner, 2015).

64
A falta de saneamento básico é compreendida por muitos membros dos
movimentos sociais no Alemão como a questão que mais afeta os moradores 37. Após
as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo federal,
realizadas em 2007, o Estado passou a afirmar que 80% dos domicílios estavam
ligados à rede de esgoto. Entretanto, entidades locais atestam que se trata apenas de
30% dos domicílios38. Em muitas falas de profissionais de saúde, essa condição de
vida no Complexo do Alemão aparece representada pela expressão “IDH baixo” ou
“IDH zero”. Como no caso de Cláudio, quando comenta a dificuldade de reduzir a
incidência de tuberculose entre a população do Alemão:

(...) falta de arejamento, desnutrição, enfim, condições de “IDH baixo”.


Você vê hoje pessoas com tuberculose que não estão incluídas nessas
condições de IDH baixo, são pessoas que têm imunidade deficiente, tipo
HIV, porque algumas, como poucas doenças assim, pegam com facilidade.
Mas assim, isso é mais no primeiro mundo, porque aqui no Brasil
infelizmente a maioria não é de imunidade baixa, é de IDH bem ruim
mesmo (entrevista realizada com Cláudio, 2015).

A referência ao Índice de Desenvolvimento Humano é recorrente entre os


profissionais de saúde do Complexo do Alemão, possivelmente pelo fato da região
figurar em último lugar na lista que ranqueia os bairros do Rio de Janeiro 39 . Tal
referência, entretanto, não aparece necessariamente articulada a uma discussão mais
formal sobre o índice e seus indicadores, mas apenas para dizer que se trata de um
local pobre e com serviços públicos básicos escassos ou inexistentes. O problema do
“IDH baixo” aponta para uma realidade tida como fixa, que é preciso contorná-la no
cotidiano, e não como algo possível de ser transformado a partir das próprias políticas
públicas em saúde. Há aí uma profunda contradição em tais políticas sociais, porque
a desigualdade, referenciada aqui pelo termo “IDH baixo”, configura, ao mesmo
tempo, como um “atrativo” para a implementação desses programas em locais como
o Complexo do Alemão, mas torna-se um obstáculo para a realização do trabalho, e

37
Ver entrevista com Alan Brum, do Raízes em Movimento, na qual ele declara que o saneamento sempre
foi “prioridade universal e absoluta” para os moradores do Alemão:
<http://www.raizesemmovimento.org.br/portal-papo-reto-entrevista-alan-brum/> (acesso em 15 de junho
de 2018).
38
Ver matéria sobre a polêmica: <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/complexo-4-capitulo-da-
serie-investiga-o-abandono-dos-moradores-do-alemao.ghtml> (acesso em 15 de junho de 2018).
39
Ranking do IDH dos bairros do Rio de Janeiro, de 2013, disponível em:
<http://www.wikirio.com.br/IDH_dos_bairros_da_cidade_do_Rio_de_Janeiro> (acesso em 01 de agosto
de 2015).
65
não como um componente da própria missão do programa. Retomando a discussão
sobre “território”, é como se o espaço de atuação dos profissionais não mais fizesse
parte das práticas e da concepção de saúde pela qual atuam e se tornasse,
simplesmente, o local onde vivem os usuários. Entretanto, ainda que o espaço de
atuação dos profissionais ficasse circunscrito à unidade de saúde, as limitações do
sistema que dispunham para trabalhar tornavam-se também reprodutoras de
desigualdades.

“As sobras do bolo”


Certo dia, enquanto eu caminhava junto a Cláudio e uma das agentes de sua
equipe rumo a uma visita domiciliar que o médico faria, ele tentava me explicar como
as unidades se organizavam com relação ao atendimento de demandas espontâneas e
programadas. Ele então disse: “Olha, nós recebemos da prefeitura a orientação de que
temos que atender pelo menos 60% de consultas programadas”. “Mas eles explicaram
como isso deve ser organizado?”, indaguei. “Não, você sabe como é, eles dão o bolo,
a gente fatia como quiser”, ele me respondeu.

Se na fala de Cláudio a metáfora do bolo permitiria entrever uma espécie de


“liberdade” na gestão da unidade, outras situações que vivenciei ao lado do próprio
médico demonstravam que “o bolo” era fatiado sempre no improviso, com base
naquilo que era possível realizar diante de tantas restrições ou do que até mesmo não
era possível realizar. Esses problemas, segundo o médico, apareceram sobretudo
quando o trabalho ganhou um caráter mais curativo e menos “preventivista”. Isso é, a
partir do momento em que eles passaram a atender as chamadas “demandas
espontâneas” e não apenas as consultas agendadas, entendidas por eles como ações no
campo da “promoção da saúde”. Uma dessas situações foi quando a unidade recebeu
um aparelho de eletrocardiograma da prefeitura, que não pôde nunca ser utilizado.
Cláudio associou esse problema a diversos outros:

Nós recebemos há poucos dias o eletrocardiograma, mas a gente tem


dificuldade, porque tem que ver turno da noite em que não tem ninguém
utilizando o consultório, não tem uma sala disponível, não tem uma sala
de repouso para quando alguém precisa fazer uma medicação no soro e
precisa ficar em observação. A gente tem que disponibilizar o consultório,
alguém deixar de usar, de fazer atendimento para fazer esse tipo de coisa.
São coisas hoje em dia que, já que a demanda de serviços é para essas

66
pequenas urgências, a gente tem que ter essas salas. Uma sala de
procedimentos, tem uma lá para curativo, eu não posso fazer procedimento,
é uma sala com potencial de infecção grande, então, se eu quiser fazer uma
sutura, é uma covardia levar uma pessoa lá para dentro para fazer uma
sutura, né? E não cabe uma pessoa deitada, se eu tiver que deitar alguém
lá, não cabe na sala (entrevista realizada com Cláudio, 2015).

A mesma limitação tornava-se aparente no caso dos encaminhamentos para


especialistas. Muitas vezes, o trabalho de detecção de alguma questão mais grave era
feita pelos médicos, mas ao encaminhar o paciente para o especialista, através do
Sistema de Regulação de Vagas, a vaga demorava tempo demais para sair, fazendo
com que algumas vezes o paciente viesse a óbito antes do agendamento da consulta
com o especialista ocorrer. Em outras situações menos graves, os pacientes levavam
meses para conseguir uma simples consulta oftalmológica. A demora no agendamento
de consultas e na marcação de exames era um dos principais temas de conversa nos
grupos de hipertensos e diabéticos que acompanhei.

Os chamados “grupos de hipertensos e diabéticos” ocorriam semanalmente na


unidade de saúde. Cada equipe possuía um dia fixo para o grupo, cujo funcionamento
se estabelecia da seguinte maneira: o médico fazia uma pequena palestra sobre
cuidados básicos para hipertensos e diabéticos, especialmente voltada para a questão
da alimentação e prática de exercícios físicos, enquanto um Agente Comunitário de
Saúde anotava o nome dos usuários presentes e media a pressão arterial de todos por
ordem de chegada. Após o final da palestra, o médico iniciava os atendimentos
individuais que consistiam na checagem de exames e renovação de receitas. O grupo
estava sempre bastante cheio, em torno de 25 a 30 pessoas, a maior parte delas idosas.
Isso fazia com que o tempo de espera para ser atendido pelo médico, após a palestra,
fosse bem longo: a palestra tinha início às oito horas da manhã e durava cerca de vinte
minutos; os atendimentos seguiam até pouco depois de meio-dia.

Os grupos constituem importante ferramenta na Estratégia de Saúde da Família


no âmbito das ações de educação em saúde. De todas as experiências de grupos que
acompanhei40, os grupos para hipertensos e diabéticos eram os únicos estáveis, ou
seja, aconteceram ao longo de todo o período em que realizei a pesquisa e faziam parte
da rotina de todas as equipes. Conhecidos como grupos “hiperdia”, tais ações se

40
Ao longo do período da etnografia, acompanhei ou soube da criação de grupos com as seguintes
temáticas: gestantes, tabagismo, violência, homens e adolescentes.

67
difundiram no Brasil a partir da ampliação da Estratégia Saúde da Família e do Plano
de Reorganização da Atenção à Hipertensão Arterial e ao Diabetes mellitus (2002) 41,
e têm sido prioritariamente coordenados por profissionais de saúde – médicos,
enfermeiros e/ou Agentes Comunitários de Saúde na atenção básica (Melo, Campos,
2014).

Minha participação nos grupos acabou se tornando uma oportunidade para


estar mais perto dos usuários e conversar com eles, sem intermediação dos médicos,
algo que tinha dificuldade de realizar durante consultas e visitas. No tempo de espera
pelas consultas individuais, pude estabelecer diálogos não apenas com os usuários que
se sentavam ao meu lado, como também participar das conversas que acabavam se
dando entre todos os presentes. Muitos deles se conheciam, eram vizinhos ou parentes,
e isso acabava conferindo ao grupo um clima descontraído. Os assuntos relativos à
própria dinâmica do Complexo do Alemão eram constantes, além de conversas,
sobretudo reclamações, sobre o atendimento na unidade e sobre serviços públicos em
geral.

Em uma dessas conversas sobre o Complexo do Alemão, os pacientes


comentavam que nos últimos dias um dos principais espaços de lazer utilizado pela
população, a Vila Olímpica42, havia sido fechada. Ali alguns deles faziam aulas, como
hidroginástica, ou levavam filhos e netos para outras atividades esportivas. O
fechamento havia se dado por falta de investimentos na infraestrutura e de pagamento
de professores, e acabou sendo objeto de uma matéria veiculada no telejornal RJTV,
da Rede Globo local. Após a exibição da matéria, que denunciava o abandono desse e
de outros equipamentos da Prefeitura no local, o prefeito Eduardo Paes esteve no
Complexo visitando a Vila Olímpica e se comprometendo com a sua reabertura (o que
de fato só veio a ocorrer no governo de Marcelo Crivella, em 2017). Nesse mesmo dia

41
Ver “Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão arterial e ao Diabetes mellitus” (Brasil, 2002).
Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/miolo2002.pdf> (acesso em 28 de agosto de
2012).
42
Segundo Rodrigo Monteiro (2010), a Vila Olímpica Carlos Castilho foi fundada em 2008 e o equipamento
atendia, na época, ao menos 6 mil crianças por semana, contendo uma piscina, uma pista de skate,
ginásio, quadra poliesportiva e salas de aula, usadas para aulas de ballet, capoeira, judô, entre outros.
Ainda de acordo com Monteiro, existem oito vilas olímpicas no Rio de Janeiro, todas financiadas pela
Prefeitura, mas administradas por diferentes instituições, como ONGs e universidades, exceto pela Vila
Olímpica da Maré, financiada e administrada pela Petrobrás.

68
visitou o “postinho”, ainda instalado no antigo prédio na época, o que segundo o
médico Cláudio foi “bom para ele ver em que condições estamos trabalhando aqui”.

A falta de locais para realização de atividades físicas ou de outras


complementares era assunto recorrente no grupo. A fisioterapia foi a mais
mencionada, já que o encaminhamento para um fisioterapeuta através do SISREG
(Sistema de Regulação de Vagas, utilizado para encaminhamento de pacientes) era, na
época, muito difícil e levava até um ano para ser efetivado43. Em uma das sessões do
grupo, uma senhora comentou que quando finalmente conseguiu dez sessões de
fisioterapia, o encaminhamento foi para a Clínica General Osório, em Ipanema. Para
uma idosa, com dificuldade de locomoção, o deslocamento até Ipanema, que envolvia
pegar dois ônibus diferentes, era inviável e assim ela acabou não indo às sessões.

Outra possibilidade, fora do sistema público, utilizada pelos usuários era de


realização de fisioterapia através de uma clínica social de uma universidade privada
sediada em um bairro próximo ao Complexo do Alemão, que oferece o serviço a
preços populares. Apesar de o serviço ser oferecido pela universidade, a clínica é
conhecida como “clínica do Jorginho”. Jorginho da SOS, já mencionado no início do
capítulo, foi vereador do município do Rio de Janeiro por dois mandatos consecutivos,
mas, antes disso, já era uma conhecida liderança comunitária no Complexo do
Alemão, onde administrava uma ONG 44 , a SOS. No entanto, muitos moradores
relatavam que a possibilidade de acessar gratuitamente os serviços oferecidos na
clínica de Jorginho se dava apenas no período eleitoral e para alguns moradores
mesmo as consultas a preços populares representavam um alto custo.

No ano de 2017, a situação passou a se agravar ainda mais a partir dos cortes
de orçamento sofridos pela saúde em nível federal, estadual e municipal. Para usar a
metáfora de Cláudio mais uma vez, nesse ano, mais do que a dificuldade em se fatiar
o bolo, a unidade passou a viver das “sobras do bolo”. O ano teve início com a crise

43
No ano seguinte, esse problema foi parcialmente resolvido, pois uma nova clínica de fisioterapia passou
a receber os pacientes encaminhados do Alemão.
44
Além de administrar a organização, que oferecia uma série de serviços à comunidade, o ex-vereador
também se tornou popular por ser um intermediador entre moradores da comunidade e a universidade.
Jorginho era responsável por muitas bolsas de estudo integrais ou descontos na mensalidade, que foram
concedidos a moradores do Alemão. Os critérios para conseguir uma “bolsa do Jorginho na universidade”
eram pouco conhecidos, no entanto, era de conhecimento geral que o ex-vereador era o principal
responsável pelo fato de muitos moradores estarem cursando o ensino superior.
69
orçamentária no estado do Rio de Janeiro 45 , que afetou significativamente a
distribuição de medicamentos para as unidades básicas de saúde e o funcionamento
parcial de hospitais estaduais e Unidades de Pronto Atendimento (UPA). A crise no
governo federal afetou não só a rede de hospitais federais, fazendo com que a atenção
básica ficasse limitada para encaminhar para essa rede, como também a diminuição
de recursos para programas federais, como o Mais Médicos e outros. E finalmente a
crise mais grave para o serviço, que se deu logo no início do mandato do prefeito
Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, foi o corte de verbas para a saúde que acarretou
em uma ameaça de fechamento de quarenta unidades de atenção básica à saúde na
cidade46, além de ter deixado boa parte dos trabalhadores, incluindo médicos, sem
salário ou com salários atrasados ao longo de quase todo o segundo semestre.

No Alemão, isso acarretou em funcionamento irregular ou parcial de diversas


unidades de saúde e também em luta e mobilização por parte dos moradores e
profissionais, sobretudo Agentes Comunitários de Saúde, que se reuniram no evento
de reabertura da Vila Olímpica, no qual o prefeito estaria presente, para protestarem
contra o sucateamento e possível fechamento das unidades de saúde, em agosto de
201747.

Em 2018, o funcionamento das unidades foi regularizado. No entanto, a


ameaça de fechamento evidenciou sua fragilidade. Falta de medicamentos, atraso nos
pagamentos dos profissionais e dificuldade de encaminhamentos para especialistas
seguiram fazendo parte da rotina dos trabalhadores e usuários.

A Clínica das Palmeiras


Entre os casos mais emblemáticos sobre como os recursos e as políticas
públicas chegam ao Complexo do Alemão apenas a partir de árdua mobilização dos
moradores, e enfrentando muitas dificuldades para seguirem funcionando bem, está o
caso da Clínica da Família das Palmeiras. A clínica foi inaugurada no final de 2014,

45
Em estado de calamidade financeira desde 2016, o estado fechou o orçamento de 2017 com déficit de
19 bilhões. Diversos servidores ficaram sem salário e grandes universidades, como a UERJ, paralisaram
suas atividades, incluindo paralisação parcial do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE).
46
Ver matéria sobre ameaça de fechamento das clínicas: >http://portalfmb.org.br/2017/08/03/rj-
crivella-deve-fechar-ate-40-unidades-de-saude/> (acesso em 28 de junho de 2018).
47
Sobre manifestação dos trabalhadores da saúde no Alemão:
<http://www.esquerdadiario.com.br/Contra-o-fechamento-de-clinicas-da-familia-por-Crivella-
trabalhadores-fazem-ato-no-Alemao> (acesso em 15 de junho de 2018).

70
atendendo a uma demanda da população por uma unidade no ponto mais alto do
morro, dentro da Estação do Teleférico do Alemão, hoje extinto48. Sua construção foi
simultânea ao fechamento de uma biblioteca pública que antes ocupava esse mesmo
espaço, outra demanda da população atendida havia pouco 49 . O argumento da
Prefeitura era de que esse seria o único espaço viável para a instalação da unidade na
área. Então, era necessário escolher entre a biblioteca e a Clínica da Família. Em
matéria veiculada pelo Jornal Extra, em setembro de 2014, moradores manifestaram-
se contrários a esse processo:

O espaço cultural, que funciona desde junho do ano passado na estação do


teleférico no Morro das Palmeiras, terá que ceder a maior parte da estrutura
para uma Clínica da Família. Os trabalhos começaram na quarta-feira, e a
previsão é que a unidade seja inaugurada já na semana que vem. A
biblioteca está fechada, e os vários cursos que aconteciam ali foram
suspensos.
— Acho ótimo ter uma clínica, o problema é acabar com a biblioteca. A
cultura não pode ser vista como um bem menor — defende o museólogo
Thainã de Medeiros, de 31 anos, frequentador do espaço.
Além do aluguel de livros, a Biblioteca Parque oferecia aulas de dança e
teatro, além de uma turma da Educação de Jovens Adultos, espalhadas por
três andares, sendo nove salas, um auditório e um hall de entrada. Depois
da obra, tudo será condensado em uma sala e no hall. O resto ficará para a
clínica (ZUAZO, 2014).

Entretanto, no final de 2016, com o acirramento do conflito armado na


comunidade, o fechamento do teleférico do Alemão e o subsequente sucateamento das
estruturas das estações que abrigavam serviços públicos e salas para uso da
comunidade, a clínica acabou encerrando as atividades naquele local. Suas equipes
foram incorporadas a outra unidade, bem mais distante da área de cobertura 50. Não
restou, afinal, nem Clínica da Família, nem biblioteca.

48
Matéria sobre o fechamento do Teleférico do Alemão: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2016/12/21/fechado-ha-3-meses-teleferico-do-alemao-e-exemplo-da-crise-financeira-do-
rj.htm> (acesso em 30 de junho de 2017).
49
Matéria sobre o fechamento da biblioteca que deu lugar à Clínica da Família:
<https://extra.globo.com/noticias/rio/biblioteca-parque-do-alemao-entra-em-obras-para-virar-clinica-
da-familia-13945588.html> (acesso em 18 de dezembro de 2017).
50
Matéria sobre o fechamento da Clínica da Família: <https://extra.globo.com/noticias/rio/clinica-da-
familia-no-alemao-esta-fechada-por-recomendacao-da-upp-diz-prefeitura-20740392.html> (acesso em 18
de dezembro de 2017).
71
A Secretaria municipal de Saúde afirma que a suspensão das atividades foi
uma recomendação da Unidade de Polícia Pacificadora Fazendinha, o que
a própria UPP nega. Não há previsão para que a clínica volte a funcionar.
— No dia do tiroteio, os policiais invadiram a clínica e começaram a dar
tiros de dentro da cozinha da unidade. Depois disso, os funcionários não
voltaram mais e ninguém deu satisfações para os moradores — afirma o
presidente da Associação de Moradores das Palmeiras, Marcos Valério
Alves.
Segundo a secretaria, a equipe da CF Palmeiras fazia 9.595 atendimentos
por mês – uma média de 750 consultas médicas, 835 consultas de
enfermagem, 100 consultas odontológicas e 1.500 visitas domiciliares.
Ainda de acordo com a pasta, os funcionários foram realocados para a
Clínica da Família Zilda Arns, em Ramos, que também atende aos
moradores do Complexo do Alemão (LINS, 2017).

Escolhas como essas parecem estar sempre presentes no argumento do poder


público com relação aos moradores de favela. A própria unidade onde iniciei a
etnografia também foi construída em um terreno onde antes havia um campo de
futebol, no início dos anos 2000, como relembra Mariza em sua fala. Entretanto, a
ideia recorrente de que a saúde é “prioridade” fez com que nessas duas ocasiões os
moradores “abrissem mão” do lazer e da cultura em prol do atendimento em saúde.
Tais situações representariam um processo que já se inicia por meio da desarticulação
da saúde compreendia como algo mais amplo – como é proposto na atenção básica –,
para o qual contribuem outros fatores que não apenas fisiológicos, como acesso à
cultura, à educação etc.

Políticas da vida
Articulado ao contexto mais amplo das políticas sociais no Estado moderno
contemporâneo e, mais especificamente, na América Latina, o caso da saúde no
Complexo do Alemão ao mesmo tempo em que permite entrever o movimento da
“confluência perversa”, apontado por Dagnino (2004), e o da reprodução da
desigualdade, discutido por Almeida et al. (2008), evidencia igualmente uma série de
peculiaridades que não podem ser perdidas de vista.

Como demonstram os dados fornecidos por Almeida et al. (2011), de algum


modo, o Complexo do Alemão se transformou, na cidade do Rio de Janeiro, em uma
espécie de “laboratório” das novas políticas sociais, devido à força da sociedade civil
72
politicamente organizada ali, aos baixos indicadores socioeconômicos, à violência
ostensiva e constantemente anunciada na mídia, à sua relativa proximidade ao centro
da cidade e à presença de importantes instituições de ensino e pesquisa em seus
arredores. A já citada Zona da Leopoldina, onde o conjunto de favelas está localizado,
possui forte e complexa tradição política, marcada, sobretudo, por duas
características: sua intensa favelização a partir dos anos 1940 e a presença de duas
grandes instituições de ensino e pesquisa nos arredores, a Universidade Federal do
Rio de Janeiro (campus da Ilha do Fundão) e a Fundação Oswaldo Cruz (campus
Manguinhos). A potência da experiência do CONSA é um importante demonstrativo
dessa força política, já que além de ampla adesão popular e de ter à frente lideranças
como Mariza – já experiente no campo da política – contou ainda com o apoio dessas
duas instituições.

Ainda que alcance esse lugar “central” com relação às políticas sociais, no
entanto, não deixa de ser “marginal” pela crescente dificuldade que essas mesmas
experiências pioneiras encontram para se sustentarem ao longo dos anos, como
ilustram os chamados problemas de “IDH baixo” ou como demonstra o caso da Clínica
da Família das Palmeiras, que perpassa, ao longo de sua curta história, vários aspectos
mencionados aqui, desde a desativação da biblioteca para sua instalação até o
encerramento total de suas atividades devido a tiroteios. Tais aspectos tornam-se ainda
mais problemáticos com as exigências impostas pela gestão terceirizada e com os
recursos escassos destinados à atenção básica – as sobras “do bolo”, na metáfora de
Cláudio.

A compreensão desse “lugar” ocupado pelo Complexo do Alemão, revelado a


partir da história recuperada de seus serviços de saúde, ilustra bem a proposta
enunciada no início do capítulo de realizar uma análise atenta à estratificação social
por um lado, e revelar agências e ambivalências nessas políticas de saúde por outro.
Abre-se, assim, espaço para aquilo que Didier Fassin (2005) chamou de uma
“antropologia das políticas da vida”. Em tal perspectiva, seria possível pensar
conjuntamente as experiências subjetivas e os mecanismos de desigualdade. A
etnografia aqui apresentada vai nesse sentido e procura revelar esses dois processos
simultaneamente e em diferentes níveis ao pensar, como propõe Fassin,
conjuntamente as abordagens ditas “críticas”, atentas sobretudo à questão das
violências estruturais, e as “fenomenológicas”, preocupadas com subjetividades,

73
narrativas e experiências. Lança-se luz, assim, não somente às políticas de saúde –
pois essas estariam nos planos de governo e legislações –, mas sobretudo às “políticas
da vida”, aquelas que só poderiam ser contadas por quem as vive diariamente.

74
CAPÍTULO 2: Entre o visível e o invisível: contribuições
antropológicas à discussão sobre violência e saúde

Tiro que “cura”


Em uma das primeiras vezes em que acompanhei um médico em uma visita
domiciliar a pacientes acamados, combinei de encontrá-lo na sala da administração
após o almoço. Logo que cheguei, ele me perguntou se eu iria acompanhá-lo na visita
naquele dia. Eu já havia escutado pelo caminho que uma operação policial tinha
ocorrido naquela manhã e que o “clima” no morro não estava bom, por isso estava na
dúvida se a visita ocorreria mesmo assim. Então respondi: “Vou, mas a situação está
boa lá em cima?”, ao que ele me respondeu: “Boa não está, mas você trouxe seu colete
à prova de balas, né?”, e começou a rir. Fiquei um pouco sem reação diante da piada
do médico e ele, percebendo, mudou de tom e me explicou que o tiroteio havia sido
intenso na parte da manhã, mas depois do almoço a situação teria se acalmado, por
isso ele tinha optado por fazer a visita, já que alguns pacientes acamados esperavam
urgentemente por sua visita. Ele era o médico mais antigo na unidade e conhecia muito
bem a área onde trabalhava e os pacientes, por isso era o único médico a fazer as
visitas, mesmo nos dias de tiroteios.
Ao mesmo tempo, as profissionais que trabalhavam no administrativo
começaram a indagar o médico se não seria melhor que eu usasse uma camiseta de
Agente Comunitário de Saúde, pois caso fossemos parados por alguém, eu poderia ser
identificada como parte da equipe. Pouco tempo antes, uma equipe havia sido
abordada durante uma visita. Isso ocorreu no ano de 2015 e, diferente de 2012, quando
comecei a trabalhar no programa UPP Social, o projeto de “pacificação” já começava
a dar sinais de sua inevitável falência e o tráfico de drogas voltara a se organizar ali51.
Muitos articulavam o ocorrido ao fato de que tal reorganização teria trazido traficantes
de outras comunidades para o local e, especialmente, muito jovens. Isso teria quebrado
certa relação de respeito entre o tráfico e os Agentes de Saúde locais, algo que
historicamente sempre se deu. Tais fatores poderiam explicar a abordagem feita aos
profissionais de saúde, já que antes da pacificação a equipe de saúde era respeitada e
não levantava suspeitas entre os traficantes. Assim, a piada do médico sobre o colete
acabou ganhando um tom mais sério e a camiseta de ACS passou a ser um item

51
Há uma série de pesquisas sendo realizadas a respeito da experiência das UPPs no Rio de Janeiro, a
exemplo de Machado da Silva (2016) e Matiolli, Oliveira e Rodrigues (2016).

75
permanente na minha mochila, a qual por muito tempo utilizei durante as visitas
domiciliares. Apesar disso, somente uma vez passei pela barreira do tráfico armado
ao acompanhar uma visita. Nessa ocasião, uma das últimas do meu trabalho de campo,
eu já havia deixado de carregar a camiseta na bolsa, mas não fui abordada.
Com o tempo, passei a notar que o tom de brincadeira para falar sobre a
violência, como no caso do médico na situação narrada acima, não era incomum entre
os profissionais da unidade e os usuários. Em uma consulta com uma idosa,
acompanhada por sua filha, falava-se sobre o problema nas pernas e a dificuldade de
locomoção que a mãe tinha, quando a filha começou a contar que certo dia, enquanto
a mãe estendia roupas na laje da casa onde viviam, iniciou-se uma troca de tiros
intensa e a mãe, que tinha dificuldade de locomoção, logo saiu correndo e desceu para
dentro da casa. A filha, ao contar a história, riu e disse: “Tá vendo, doutor, aqui no
morro nem precisa de fisioterapia, o tiro cura!”. Mãe e filha riram juntas, enquanto
eu, ainda sem graça, começava a me dar conta de que o riso era mesmo uma reação
possível à violência ali.
No mesmo sentido, a falta de “seriedade” para tratar do assunto também estava
presente quando alguns pacientes se desculpavam pela ausência em uma consulta
agendada, alegando que “estava dando muito tiro” e por isso não foram. Embora fosse
inegável que em muitos dias o trajeto até a unidade de saúde se tornasse arriscado
devido aos tiroteios, um sorriso no canto de boca deixava transparecer que não
necessariamente aquilo tivesse ocorrido no momento da consulta. O contrário também
ocorria, quando médicos e agentes se justificavam por não terem realizado as visitas
domiciliares. A desculpa funcionava quase como aquela tão usada em grandes cidades,
quando o excesso de trânsito, a falta de ônibus ou a demora no trem se tornam
responsáveis por todo e qualquer atraso. Violências tão corriqueiras que mobilizamos
a nosso favor quando necessário.
Durante uma visita domiciliar, também com um médico, fomos à casa de uma
das agentes comunitárias de saúde, que vivia com o marido, o filho, a mãe e a avó. O
motivo da visita era ver a avó, que tinha problemas de locomoção e cuja pressão havia
subido muito após um episódio vivido pela família no domingo anterior. A família
assistia à televisão quando uma troca de tiros começou a ocorrer com a casa situada
bem no meio, entre a polícia e os traficantes. Quando os tiros começaram a se
aproximar, a família resolveu se recuar para a parte de trás da casa e justamente nesse
momento um homem entrou baleado dentro da casa. Segundo a família, ele entrou,
76
escondeu-se e logo depois saiu. Apesar de não ter tido maiores consequências, toda
essa situação havia deixado a família bastante abalada e, segundo a agente, sua avó,
desde então, não estava se sentindo muito bem e parecia mais abatida do que de
costume. Quando o médico começou a examiná-la, sutilmente perguntou sobre o
episódio de domingo e como tinha sido. Ela olhou para a neta e disse: “Eu nem liguei,
mas essa daí e o marido dela se borraram todos”. Todos começaram a rir e ela
continuou dizendo que os filhos e os netos eram muito medrosos, mas ela não se
importava com essas situações.

Apesar do tom de brincadeira da senhora, era perceptível que a situação tinha


sido difícil para ela também e que provavelmente a neta tinha razão ao atrelar o
aumento de pressão da avó à situação vivida. No entanto, na fala da avó, diante da
situação vivida, era mais importante ressaltar sua coragem quando comparada à dos
outros familiares mais jovens, a cujo medo ela se referia de forma jocosa. Tal reação
diante do ocorrido evidenciava que brincadeiras e piadas sobre tal condição ocorriam
não porque efetivamente eles achassem graça dos tiroteios, mas porque, como atenta
Claudia Fonseca ao analisar contexto similar, “o humor licencioso poderia ser
analisado, por exemplo, à la Radcliffe-Brown, como instrumento usado para amenizar
tensões latentes na estrutura social” (Fonseca, 2004, 80)52. Pierre Clastres (2003), ao
escrever sobre os Chulupi do Chaco, indaga “De que riem os índios?” – pergunta que
deu nome a um de seus mais importantes ensaios –, argumentando que os índios riem
das mesmas coisas que temem: xamãs e onças, especialmente. No caso do Complexo
do Alemão, em que pese a diversidade social e cultural de seus moradores, a violência
causada pelo conflito armado parecia fazer parte de suas vidas de forma estrutural,
integrando aquilo que pode ocasionar riso, mas igualmente medo.

Tiro que fere


No final de 2016, três agentes fariam visitas domiciliares com o psicólogo do
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) 53, e eu nunca havia acompanhado esse tipo

52
A mesma reflexão está presente no livro de Donna Goldstein, acerca de moradores de favela na Baixada
Fluminense (Goldstein, 2003).
53
Os CAPS são “serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituído por equipe
multiprofissional e que atua sobre a ótica interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às
pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso
de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de

77
de atendimento, por isso pedi para ir junto. O momento era aguardado por elas há
muito tempo, pois estavam com dificuldade de agendar uma consulta com o psicólogo.
André tinha fama de enrolado e sua participação nos agendamentos era sempre uma
incógnita. Ele era responsável por apoiar 54 o trabalho de duas equipes apenas nessa
unidade, além de seu expediente dentro do CAPS e o suporte a outras equipes em mais
duas unidades básicas de saúde, também no Complexo do Alemão. As agentes estavam
quase desistindo quando André chegou esbaforido e logo seguimos todos juntos para
as visitas. O psicólogo andava pelo morro demonstrando ter intimidade com aquele
espaço e com as Agentes Comunitárias de Saúde. Trabalhava ali há muitos anos e tinha
uma relação de bastante proximidade e descontração com as profissionais.
Ao chegar na segunda residência visitada, encontramos uma mulher de menos
de quarenta anos sentada na porta. Logo descobri que ela era o motivo de nossa visita.
Ela nos contou que para estar mais perto do filho tinha conseguido um trabalho dentro
do morro, em um restaurante. Antes costumava trabalhar fora do Complexo, “na
cidade”, e o deslocamento lhe fazia perder muito tempo. O restaurante onde agora
trabalhava ficava na Grota, umas das regiões de conflito armado mais intenso no
Alemão. Quando os tiroteios voltaram a ser intensos, após a pacificação, ela começou
a ter crises de ansiedade, vomitava com frequência e sentia tonturas, até que começou
a não conseguir mais sair de casa e parou de trabalhar. A agente solicitou a visita do
psicólogo para ajudá-la a conseguir sair de casa.
Na conversa com André, a paciente repetia várias vezes: “Eu queria achar isso
normal, continuar vivendo normal que nem as outras pessoas. Mas não consigo”. No
final de semana, havia conseguido ir ao batizado de um sobrinho, em outra área do
morro, mas estava em companhia do marido e de toda a família; sozinha não
conseguiria, ela disse. André e a agente que havia nos levado até ali insistiam para que
ela tentasse sair mais vezes, sugerindo que pelo menos levasse o filho ao posto para
vacinar, já que estavam em época de campanha. “Você tem que fazer pelo seu filho,
tem que sair, fazer esse esforço, você vai né?”, perguntou o psicólogo. Seus olhos

reabilitação psicossocial, e são substitutivos ao modelo asilar”. Informação disponível em:


<http://portalms.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-mental/acoes-e-programas-saude-
mental/centro-de-atencao-psicossocial-caps> (acesso em 28 de agosto de 2018).
54
O modelo de apoio matricial foi formulado por Gastão Wagner Campos (1999) e hoje é utilizado em boa
parte do país, estruturando a relação entre atenção básica e saúde mental. Nesse modelo, pressupõe-se
que o profissional de saúde mental ofereça apoio à equipe da Estratégia de Saúde da Família para
solucionar as questões de saúde mental. Não se trata, portanto, de um trabalho de encaminhamento para
um especialista, e sim de um apoio para a equipe de saúde (Chiaverini, 2011).

78
marejaram e ela respondeu sem muito entusiasmo: “Vou tentar”. O psicólogo suspirou
e disse: “Olha, vou pedir para a Glória [médica da equipe] te receitar uma
fluoxetinazinha55, vai te ajudar a melhorar, a sair”. “Será? Eu tenho medo de tomar
esses remédios”, a mulher respondeu. “Toma sim, vai te ajudar, não precisa tomar para
sempre, é fraquinho”, concluiu o psicólogo enquanto as agentes já começavam a se
despedir e caminhar rumo à próxima casa que visitaríamos.
Essa situação foi talvez a mais próxima de uma situação “ideal” da hipótese
que eu havia formulado quando iniciei o projeto de pesquisa: a ideia de que a violência
geraria situações de sofrimento, as quais o serviço de saúde não conseguiria responder
adequadamente. No caso acima, a mulher explicitava a existência de um sofrimento
atribuído à situação de violência do Complexo do Alemão. Os profissionais,
empenhados em resolver o problema se encontravam, por um lado, sobrecarregados
de tarefas e, por outro, com poucos recursos para auxiliá-la. Para isso, utilizaram
algumas estratégias para motivá-la, como os cuidados com seu filho e sua
responsabilidade de mãe, mas ao receber como resposta um olhar cheio de lágrimas,
optaram por oferecer um medicamento psiquiátrico para a paciente.
Em outra situação que acompanhei, visitávamos a casa de um menino
tetraplégico quando começamos a escutar tiros, vindos de um local próximo. A avó do
garoto, sua principal cuidadora, aproveitou para perguntar ao médico sobre uma dor
no peito que sentia todas as vezes que o tiroteio começava. O médico sugeriu que ela
agendasse uma consulta para que eles pedissem alguns exames de coração, mas que a
princípio lhe parecia ser apenas uma situação causada pela tensão do momento. Ela
aceitou a sugestão e seguiu comentando que uma vizinha apresentava os mesmos
sintomas durante os tiroteios. Nesse caso, como a questão não ocasionou uma reação
de sofrimento mais profunda, a situação foi compreendida como uma circunstância
qualquer que gerava tensão, sem maiores aprofundamentos sobre o tema, nem a
necessidade de medicação. Essa situação ia ao encontro da maior parte das situações
que analisei.
Quando iniciei a pesquisa na unidade, apesar de ter me deparado com inúmeros
diagnósticos de doenças mentais, notei que quase ninguém associava tais transtornos
nas consultas ao fato de viver no fogo cruzado entre o tráfico de drogas e a polícia ou

55
Fluoxetina é um dos medicamentos psiquiátricos mais comercializados no Brasil. O uso exagerado desse
medicamento na atenção básica no Brasil já foi tema de pesquisa antropológica (cf. Becker, Diehl, Manzini,
2010).

79
porque havia sido desrespeitado por um policial ou por um traficante. Apesar de outros
autores, como Anette Leibing (2001), terem feito referência à associação entre
hipertensão arterial e violência em outra favela carioca, do ponto de vista desse
trabalho a experiência da violência apareceu raramente sendo subjetivada como fonte
de sofrimento ou picos de hipertensão. Podemos nos interrogar se esse dado não
apareceu por alguma especificidade na forma pela qual a pesquisa foi realizada ou até
pelo próprio contexto específico do Complexo do Alemão. De todo modo, o que é
possível afirmar é que esses problemas estavam lá, faziam parte das consultas, das
conversas, do cotidiano. Porém, não apareciam necessariamente associados a alguma
forma de sofrimento ou, quando apareciam, não eram o principal. O que aparecia de
mais aflitivo eram sempre as questões íntimas, familiares, pessoais ou relativas a
trabalho, estresse, cansaço, problemas com chefes e supervisores, além de questões
particulares a cada fase da vida.
Ao indagar os psicólogos que ofereciam apoio às esquipes de saúde da família
sobre a relação entre saúde mental e violência, eles revelaram pouco interesse no tema.
Um deles me disse: “Aqui eu vejo muitos problemas de transtornos na infância e na
adolescência, problemas na escola e também muita violência doméstica, mas não acho
que tenha nada específico com relação à violência do território”. Nessa mesma
conversa, contudo, ele me revelou que havia chegado recentemente uma demanda da
coordenação de área para que os matriciadores do CAPS organizassem “grupos de
escuta” em todas as unidades de atenção básica no Complexo para tratar da temática
da violência. Segundo ele, era uma demanda dos movimentos sociais, mais
especificamente uma demanda manifestada por Lúcia Cabral, para que a coordenação
de área fizesse algo com relação ao tema da violência e saúde mental. Lúcia é uma
conhecida liderança comunitária no Complexo do Alemão que, além de coordenar
uma ONG, o Educap, desempenhava a função de articuladora local da saúde de parte
da CAP 3.1. Para isso, era contratada pela OS Viva Rio, que fazia a gestão dessas
unidades de saúde.

A proposta foi recebida com bastante desconfiança pelos profissionais. Eles


alegavam que um grupo de escuta sobre violência era ineficaz, já que ninguém estaria
disposto a falar sobre isso em grupo, ainda mais em um local como o Complexo do
Alemão, onde havia rivalidades e tensões entre os moradores. Na unidade de saúde,
duas edições do grupo foram organizadas sem muito entusiasmo e poucas pessoas

80
estiveram presentes, de forma que o projeto rapidamente se desfez. Ao encontrar com
Lúcia em um debate promovido pelo Instituto Raízes em Movimento, conversamos
rapidamente sobre o assunto. Ela também achava o modelo de grupo ruim, mas tinha
sido o único oferecido pela CAP. De todo modo, ela insistia que o impacto da violência
na saúde mental dos moradores era um assunto que precisava ser priorizado pela
saúde, já que para ela, como articuladora, esse era um grande problema entre a
população do Alemão. Ela me revelou que após a saída dos Médicos Sem Fronteiras
do Complexo do Alemão, a Cruz Vermelha assumiu por um período a tarefa de
oferecer atendimento psicológico individualizado para os moradores. Com o fim do
projeto da Cruz Vermelha, a própria Lúcia passou a recrutar psicólogos voluntários
para que fizessem esse atendimento no espaço do EDUCAP, sua ONG, e isso ocorre
ainda hoje.
Os Médicos Sem Fronteiras 56 atuaram no Complexo do Alemão por mais de
dois anos, a partir de 2007, durante os quais, além do atendimento médico de
emergência, proveram aos moradores atendimento psicossocial. Em entrevista
fornecida por Milena Osório, psicóloga responsável pelo programa, aborda-se a
inseparabilidade do atendimento médico e do atendimento psicossocial,
argumentando que em locais como o Alemão os problemas de ansiedade e crises de
pânico são muito comuns, além da existência de casos de depressão muitas vezes
decorrentes de “lutos mal gerenciados”, devido ao fato dos moradores apresentarem
dificuldades em falar, descarregar e sofrer pela morte de alguém próximo. Isso sem
mencionar as situações mais cotidianas marcadas pela dificuldade de sobrevivência
em diferentes aspectos. De acordo com Milena Osório:
Os problemas de ansiedade são muitos e podem ter um componente físico,
como a hipertensão, crises de pânico, falta de ar, taquicardia, entre outros.
É um nível muito alto. Há também muitos casos de depressão nas famílias
que perderam alguma pessoa. Os lutos são muito mal gerenciados porque
as pessoas não conseguiram falar, descarregar essa carga da morte de
alguém, como isso aconteceu. (...) Há muita tristeza por ter perdido um
filho, de não ter um futuro melhor, de sofrimento causado por maus-tratos
(OSÓRIO, 2008).

Em seu primeiro ano de trabalho, o MSF realizou mais de mil atendimentos


psicológicos individuais no Complexo do Alemão. Houve um compromisso absoluto

56
Organização não-governamental, humanitária e internacional que leva ajuda médica a contextos de
desastres naturais e humanos, exclusão social e pobreza extrema.

81
da organização com a confidencialidade das informações pessoais; esse
posicionamento foi entendido como estratégico pelo MSF em locais onde existe um
“círculo de silêncio”, muitas vezes necessário de ser mantido para garantir a
sobrevivência dos moradores. Ao longo do meu trabalho na UPP Social, um dos
membros de nossa equipe havia atuado como psicólogo dos Médicos Sem Fronteiras
no Alemão e, embora não pudesse nos revelar muito sobre essa experiência, por
questões de confidencialidade assumida com a organização, era comum que ao
andarmos pelas ruas as pessoas o parassem para cumprimentar, falar sobre suas vidas
e lamentar o encerramento das atividades do MSF ali 57. Em sua maioria, eram seus
antigos pacientes.
A associação entre saúde mental e violência estava já no projeto de pesquisa
que formulei para ingressar no doutorado e ganhou força na pesquisa quando passei a
participar de um circuito mais ligado aos movimentos sociais no Complexo do
Alemão. Após um tempo afastada das idas diárias ao Complexo do Alemão, em razão
do fim do trabalho na UPP Social, já cursando o doutorado, em 2014, e interessada
nas questões de saúde, voltei a frequentar quase que semanalmente o Alemão para
participar de um curso de extensão, já mencionado.
Ao longo do curso, em conversas pessoais ou debates públicos, narrativas de
sofrimento estavam sempre presentes. Como o curso reunia um grupo grande de
pessoas ligadas aos movimentos sociais do Complexo do Alemão – que desenvolviam
atividades de militância em diferentes áreas –, essas narrativas muitas vezes apareciam
associadas à situação social e política do Complexo do Alemão, sobretudo à violência.
Registrei assim relatos de militantes que se diziam deprimidos e cansados em razão
da dificuldade de conquistar melhorias efetivas para a região ou relatos sobre pessoas
que diziam ter desenvolvido síndrome do pânico ou enfartado durante tiroteios, além
das relações entre doença e falta de saneamento, entre outros.
Especificamente no dia em que debatemos a questão da saúde no curso de
extensão, registrei a fala de um jovem morador e ativista que dizia: “A favela está tão
classe média que agora até doença de rico tem: depressão, estresse, pânico”. De forma
crítica, ele apontava para o fato de que a existência desse tipo de sofrimento seria um
sinal dos últimos anos. Mesmo com tantos investimentos públicos e com o aumento

57
Agradeço Douglas Khayat pelo pouco que pôde me revelar sobre essa experiência e pelas conversas
que tivemos sobre minha ideia para o projeto de pesquisa.

82
do poder aquisitivo das classes populares no país – os pobres supostamente haveriam
se tornado “classe média” –, as pessoas adoeciam, utilizando-se de um vocabulário
para designar essas doenças mais comum às classes médias urbanas.
Finalmente, o mais impactante desses relatos foi quando, ao longo de um dos
debates, uma mulher pediu a palavra e se apresentou como mãe de um jovem que
havia sido assassinado na semana anterior. Era o caso mais recente de homicídio no
Complexo do Alemão. O rapaz trabalhava como mototaxista e foi morto durante uma
operação da polícia com um tiro nas costas. Sobre o filho, pairava a suspeita de estar
envolvido com o tráfico de drogas. Para a mãe, importava provar a inocência do filho
e, em suas palavras, “lutar para que outras mortes injustas como essa não aconteçam”.
Ela, que nunca havia se aproximado de nenhum tipo de militância, declarava, de forma
emocionada, que todos ali poderiam a partir de agora contar com sua ajuda “na luta
por Direitos Humanos”. Seu sofrimento era latente e ecoou pela sala onde nos
reuníamos, passando a ser visível também no rosto de todos que estavam presentes.
Muitos não conseguiram conter as lágrimas e após essa intervenção, todo o debate
ganhou um novo tom, ainda mais militante e emocionado 58
, associando
definitivamente as questões de saúde a esse contexto de violência.
Os relatos acima, ao apresentarem a compreensão de que tais formas de
sofrimento estão conectadas, em diferentes níveis, ao contexto de vida mais geral do
Complexo do Alemão, marcado pela pobreza e pela violência, aproximam-se daquilo
que tem sido denominado de “sofrimento social” (Kleinman, Das, Lock, 1997),
articulando experiências subjetivas de mal-estar a processos sociais e históricos mais
amplos. De acordo com Chiara Pussetti e Micol Brazzabeni (2011):
O sofrimento social, nesta perspectiva, resulta de uma violência cometida
pela própria estrutura social e não por um indivíduo ou grupo que dela faz
parte: o conceito refere-se aos efeitos nocivos das relações desiguais de
poder que caracterizam a organização social. Alude, ao mesmo tempo, a
uma série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas
raízes nas fraturas devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre
a experiência humana. O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o
poder político, econômico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente,
de como tais formas de poder podem influenciar as respostas aos
problemas sociais. O sofrimento social é o resultado, em outras palavras,
da limitação da capacidade de ação dos sujeitos e é através da análise das
biografias dos sujeitos que podemos compreender o impacto da violência
estrutural no âmbito da experiência quotidiana (PUSSETTI,
BRAZZABENI, 2011, 469).

58
Ver o trabalho de Juliana Farias e Adriana Vianna (2011) sobre a luta das mães cujos filhos foram
assassinados pela polícia no Rio de Janeiro.

83
Ao reivindicarem uma associação entre violência urbana e saúde mental, os
movimentos sociais aludiam justamente a uma ideia de “sofrimento social”. Mas o
impasse estabelecido entre os movimentos sociais e os profissionais do CAPS e minha
experiência como pesquisadora na unidade de saúde, revelaram duas questões cruciais
ao pensar sobre essa temática. Diferente de outras questões ligadas à chamada
“violência estrutural”59 (Farmer et al., 2006) – provocada pela desigualdade social em
diferentes níveis –, no caso específico da violência urbana seus efeitos eram menos
perceptíveis nas trajetórias individuais. Em uma certa hierarquização dos sofrimentos,
a violência urbana ocupava um lugar menor, quase que pano de fundo ou cenário para
outros dramas (exceto em casos de familiares diretamente envolvidos ou afetados
pelos conflitos). Aqui, apenas no caso da mulher paralisada pela violência, vemos essa
temática como central na subjetivação de seu sofrimento; os demais agregavam essa
preocupação em meio a outras várias que lhe causavam sofrimento. Tais situações
aproximavam-se, portanto, muito mais daquilo que foi denominado por Victor Valla
de “sofrimento difuso” (2002), no qual o sofrimento é atravessado por uma série de
questões, sem um motivo específico, e é também manifestado por uma confusão de
sintomas. Na unidade de saúde tais pacientes eram conhecidos como “poliqueixos”.
Valla, ao analisar contexto similar a esse, em outra favela carioca, considera que:
(...) os profissionais têm condições limitadas de atender a um problema que
vem sendo levado pelas classes populares aos serviços de saúde: a queixa
designada pelo nome de “sofrimento difuso”, apresentada, segundo alguns
profissionais, por seis em cada dez pacientes. Não se trata de uma queixa
nova, mas de algo que está crescendo no país. Queixa sobre dores de
cabeça, dores em outros locais do corpo, medo, ansiedade – sintomas para
os quais o sistema de saúde não dispõe nem de tempo, nem de recursos
para tratar (VALLA, 2002, 64).

Concordando com Valla, observei que mesmo havendo um impacto claro das
questões de violência na chamada saúde mental e profunda medicalização da
população, a estrutura do serviço de saúde não era adequada para abordar o problema,
diferente daquela do atendimento individualizado oferecido, por exemplo, pelos
Médicos Sem Fronteiras ou no próprio EDUCAP. Diante da demanda, a proposta de

59
O termo “violência estrutural” é uma maneira de descrever arranjos sociais que colocam indivíduos e
populações em perigo. Os arranjos são estruturais porque eles estão incorporados na organização política
e econômica do nosso mundo; são violentos porque causam injurias às pessoas (normalmente, tais
pessoas não são as responsáveis por perpetuar tais desigualdades) (Farmer et al., 2006, 1686).

84
um “grupo de escuta” era a única possível dentro da rotina dos matriciadores, que,
além de todo o trabalho no CAPS, ainda prestavam assistência às equipes de saúde da
família. Além disso, o impasse também chamava atenção para um outro problema: o
fato de que os médicos que atuavam na atenção básica, em sua maioria, não lidavam
com questões de saúde mental.
A atenção básica tem como um de seus princípios funcionar como o primeiro
acesso ao sistema de saúde, acolhendo, inclusive, as demandas de saúde mental
(Brasil, 2013). No entanto, é necessário observar a tendência à falta de treinamento
ou interesse dos profissionais desse setor em lidar com o assunto, o que não
necessariamente requereria uma formação específica em saúde mental, mas sobretudo
uma formação voltada para a atenção primária, o que já auxiliaria enormemente no
manejo desses casos. Como observa Leandro Wenceslau (2017), em tese concluída
recentemente sobre o tema:

Os cuidados em saúde mental oferecidos pela Estratégia Saúde Família no


Brasil têm sido um tema de pesquisa de grande destaque nos últimos anos,
mas a complexidade das questões envolvidas está longe de ser esgotada
(...). Em geral, estes estudos apontam para dificuldades dos profissionais
da ESF em acolher e oferecer estratégias de cuidado para o sofrimento
mental e exploram o potencial do matriciamento em saúde mental como
dispositivo para qualificação das ofertas da ESF (...). A resistência, ou
mesmo desconhecimento sobre como abordar queixas e preocupações de
saúde mental, tem como potencial hipótese explicativa, não testada em
estudos nacionais, o fato da maioria dos profissionais médicos e de
enfermagem, que atuam na ESF, não serem especializados em atenção
primária à saúde (WENCESLAU, 2017, 58).

Para Wenceslau, portanto, a ausência de uma formação em Medicina de


Família e Comunidade explicaria a dificuldade desses profissionais em acolher
adequadamente as demandas de saúde mental. Nesse mesmo sentido, em pesquisa
avaliativa sobre as Clínicas de Saúde da Família no Rio de Janeiro em 2013, os
diagnósticos feitos por médicos da ESF revelam apenas 1% da presença de transtornos
mentais entre as queixas dos pacientes. Contudo, de acordo com os próprios autores
da pesquisa, esse número certamente não representa a realidade, mas sim a resistência
dos médicos em realizar atendimento em saúde mental (Harzheim, 2013, 40).
A pressão dos movimentos sociais por mais atendimento em saúde mental no
Complexo do Alemão, portanto, era bastante coerente com os problemas enfrentados

85
com essa temática em âmbito nacional. Por outro lado, porém, ao tentarem exigir
reconhecimento para os impactos da violência, os movimentos sociais precisam
transformá-lo, ao menos discursivamente, em doença e não apenas em sofrimento. Tal
processo permite pensar na construção das próprias identidades dos sujeitos a partir
de uma condição médica, como já apontado por Paul Rabinow (1999), quando propõe
a noção de biossocialidade. E, mais além, pode se desdobrar na mobilização de
indivíduos ou grupos em torno da reivindicação de direitos específicos em função de
sua condição biológica – como sugere o conceito de “cidadania biológica” formulado
por Nikolas Rose (2013) – demonstrando que os indivíduos aderem a essa formação
cidadã por meio da hegemonia biomédica, porém, também se movimentam através
desse saber e são capazes de contestar pressupostos, barganhar tratamentos, entre
outros (Rose, 2013, 202). O caso da mobilização de Lúcia e de outros ativistas dos
movimentos sociais no Alemão, em torno do reconhecimento de que a violência seria
uma das responsáveis pelos problemas de saúde mental da população, aponta nesse
mesmo sentido.
Mas a resposta para a demanda dos movimentos sociais no Alemão nunca
chegou, pois ela foi recebida pelos profissionais, já bastante sobrecarregados, com
desconfiança. Sem psicólogos suficientes para atender a população individualmente e
sem uma política pública específica que os oriente a lidar com esses casos, a proposta
da coordenação de realizar um “grupo de escuta” recebeu pouca adesão e credibilidade
por parte de usuários e profissionais. No sentido oposto, a violência e a desigualdade
seguiram aumentando dia a dia no Complexo do Alemão, fazendo eco a seguinte
questão lançada por João Biehl (2011): “Quando e sob que condições as pessoas
marginalizadas são consideradas população-sujeitos nos novos regimes biomédicos?”.

Tiro que mata


Em abril de 2015, Eduardo de Jesus Ferreira, de apenas 10 anos, foi morto por
um tiro de fuzil da Polícia 60. A morte de Eduardo foi a quarta no Complexo do Alemão
em um período de vinte e quatro horas. No entanto, acabou ganhando proporções
midiáticas maiores por se tratar de uma criança que brincava em frente de casa no

60
Ver a reportagem “Menino de dez anos é quarta vítima no Complexo do Alemão em 24 horas”,
publicada na Folha de São Paulo em 02 de abril de 2015. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1611963-menino-de-10-anos-e-quarta-vitima-no-
complexo-do-alemao-em-24-horas.shtml> (acesso em 06 de agosto de 2015).

86
momento em que foi assassinada e também pelo fato de várias pessoas terem
testemunhado os tiros dados pelo policial em direção a ela 61. A morte de Eduardo foi
uma das poucas no Complexo do Alemão a ganhar os noticiários nacionais. Ainda
assim, pouco mais de um ano depois, o processo foi arquivado e nenhum policial foi
indiciado. De lá para cá, as mortes causadas pelo conflito armado, sobretudo na
ocasião de operações policiais e militares, têm sido praticamente semanais. A morte
no noticiário, com exceção daquelas com maior visibilidade, como a de Eduardo, são
anunciadas sem grande alarde, principalmente em jornais locais, como o “Dia” e o
“Extra”, ambos de menor circulação do que o jornal “O Globo”, lido majoritariamente
nas zonas mais abastadas da cidade.
Nas comunidades que compõem o Complexo do Alemão e nos serviços
públicos em seu entorno, como nos serviços de saúde aqui descritos, a notícia dessas
mortes traz inúmeras consequências. Na unidade, comentam-se como as mortes
ocorreram: “os meninos passavam pelo beco e deram de cara com a polícia”, “a mãe
chegou e ele ainda estava vivo, ela o viu morrer”, “a ambulância só chegou quando
ele já estava morto”. Nas conversas de corredores, mencionam que quem morreu era
primo de algum agente comunitário ou filho de determinada paciente de tal área, e
divulgam-se o local e o horário do enterro pelos grupos de WhatsApp 62 e Facebook.
No dia seguinte, não se sabe ao certo se as escolas abrirão, se as visitas domiciliares
no “território” irão acontecer, se ocorrerão outras operações policiais ou se o som dos
helicópteros rondando as comunidades será constante durante todo o dia.
Um dos Agentes Comunitários de Saúde da unidade lembra que após a chacina
do PAN, que levou à chegada dos Médicos Sem Fronteiras no Alemão, desencadeou-
se também uma série de conflitos entre os profissionais de saúde. Ele comenta:

Aqui, a nossa fachada é toda furada de bala, isso aqui era tudo furado de
bala. Quantas e quantas vezes a gente ficou preso aqui dentro porque não
podia sair, entendeu? Ficamos uma época aí, em 2007, de quinze a vinte
dias fechados, a gente ficava lá onde era o SAMDU, na época, né? E a
gente só reabriu, porque nós, agentes comunitários, começamos a brigar
pra reabrir todas as Unidades. A gente ficou no SAMDU, todas as
Unidades, Alemão, Adeus, Baiana, Esperança, é... E Nova Brasília, que
eram os PSF da época. E aí a gente começou a fazer um movimento com

61
Ver a matéria sobre o ocorrido disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2015/11/tiro-que-matou-eduardo-no-alemao-partiu-de-pm-mas-nenhum-e-
indiciado.html> (acesso em 22 de dezembro de 2017).
62
Aplicativo de troca de mensagens instantâneas pelo celular.

87
os agentes comunitários de reabrir. E foi uma briga, porque tinha assim,
muitos enfermeiros que eram contra a reabertura, alguns profissionais:
“Ah, vocês tão botando a nossa vida em risco”, não sei o quê, não sei o
quê... E a gente lutando, lutando, aí teve uma reunião enorme na
Coordenação de área, pelos profissionais, como a gente era maioria, né, a
gente venceu. Aí reabriram todas as Unidades (entrevista realizada com
Wagner, 2015).

Ainda que eu não tenha presenciado nenhuma situação de fechamento total da


unidade por mais de um dia, um dos principais impactos dos tiroteios na rotina da
unidade de saúde foi a impossibilidade de realizar visitas domiciliares (VD) com os
médicos em diversas ocasiões. Em geral, as visitas domiciliares eram realizadas pelos
médicos somente para os pacientes acamados e asilados. Além disso, a rotina de
atendimentos na unidade estava bastante conectada ao que ocorria no restante do
morro. Em um dia de intensos tiroteios, por exemplo, no qual duas pessoas foram
baleadas, eu acompanhava as consultas de uma médica, quando cada paciente que
vinha de fora trazia uma novidade ou uma notícia diferente sobre o que estava
acontecendo. Desse modo, mesmo de dentro do consultório, ao longo da tarde fomos
informadas de tudo o que ocorria do lado de fora. Outra ferramenta importante, nesse
mesmo sentido, era o grupo de WhatsApp dos agentes comunitários de saúde. Esses
profissionais, além de serem também moradores, eram os que ficavam mais tempo
circulando pela área e assim enviavam as notícias para todos. Havia inclusive uma
figura padrão utilizada para comunicar esses eventos, com o escrito “Atenção, tiros!”,
seguida de detalhes sobre onde havia a operação.

FIGURA 6: IMAGEM QUE CIRCULAVA ENTRE AS REDES SOCIAIS DOS PROFISSIONAIS, 2017.

Inicialmente, quando indaguei a gerente da unidade se havia alguma


recomendação oficial sobre quando era ou não era possível circular pela área, ela me
informou que eles seguiam um protocolo estabelecido pela Cruz Vermelha, o “Acesso

88
Mais Seguro”63. Na prática, entretanto, eram as recomendações feitas pelos agentes
que determinavam se era possível ou não sair, o que acabava dependendo também da
relação estabelecida por cada médico com essas recomendações. Os atendimentos em
saúde, já prejudicados pelos próprios problemas do Sistema Único de Saúde (falta de
médicos, medicamentos, dificuldade de encaminhar para especialistas) tornavam-se
ainda mais precários diante de todo esse cenário, incluindo a violência como mais um
dificultador nas políticas púbicas em saúde no Complexo do Alemão.
Judith Butler (2015) examina como o “enquadramento” que certas vidas
recebem publicamente interfere na precariedade e na “condição precária”. Para a
autora, a precariedade é a condição de existência de qualquer vida – “não há vida sem
necessidade de abrigo e alimento, não há vida sem necessidade de redes mais amplas
de sociabilidade e trabalho, não há vida que transcenda a possibilidade de sofrer maus-
tratos e a mortalidade” (Butler, 2015, p. 45). Ou seja, não há vida sem cuidar ou ser
cuidado. Já a condição precária “designa a condição politicamente induzida na qual
certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam
expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte” (Butler, 2015, p.
46). Assim, a autora formula a pergunta que estampa o subtítulo de seu livro: quando
a vida é passível de luto? O caso de Eduardo e sua pequena visibilidade, quando
comparado à de centenas de mortos nem sequer nomináveis, revela que as vidas do
Complexo do Alemão, nos termos propostos por Butler, não são passíveis de luto. Tais
mortes, pelo contrário, na maior parte dos casos geram um efeito de agravar ainda
mais a “condição precária” dos que permanecem, porque, por exemplo, os conflitos
armados tornam-se algumas vezes ainda mais intensos, a truculência policial ainda
maior e a circulação e a oferta de serviços prejudicada.
Ao deixar de lado uma preocupação mais específica com os impactos da
violência na saúde mental, passei a me atentar à forma pela qual um adoecimento ou
qualquer outra condição que demandasse cuidado (como uma gravidez) se revelava.

63
Para isso contavam com o apoio de uma “articuladora local’ que, no caso dessa unidade, era Lúcia
Cabral. Ao conversar com Lúcia sobre o assunto, ela revelou que era responsável por avisar as unidades
de saúde sobre a situação de violência no Complexo do Alemão, no Complexo da Penha e no Jardim
América. Segundo ela própria, o único local em que ela conseguia desempenhar melhor esse papel era no
Alemão, onde vive. Na Penha, ela disse, “não sei parece que lá está tudo meio desconectado”, e “no
Jardim América nem gosto de ir”. Seu papel como “territorializadora” do trabalho em saúde, portanto,
falhava nos locais onde não conhecia bem a realidade e, mesmo no Complexo do Alemão, onde ela vive,
fica evidente que o papel dos Agentes Comunitários pelo grupo de WhatsApp era o principal
“termômetro” para os profissionais.

89
Rapidamente evidenciava-se toda uma estrutura de ausências e violências, assim como
os caminhos e tentativas de reverter essas situações. A isso Veena Das (2015) chamou
de “quase-eventos” em seu último livro, denominado Affliction, cuja proposta é
“capturar (como em uma câmera) as pequenas maneiras pelas quais o cotidiano pode
ser levemente revirado, para questionar como essas pequenas reviravoltas podem
revelar eventos críticos e catastróficos” (Das, 2015, 12, tradução minha). Aqui a
autora, ao perseguir o sentido dado pelas pessoas a suas “aflições”, encontra as
“micropolíticas do cotidiano”, marcadas por infinitas formas de violência e
resistência.

Mas afinal quais são essas infinitas formas? Em “Recognizing Invisible


Violence”, Phillipe Bourgois (2009) parte do ponto de que a antropologia e a medicina
social têm falhado em reconhecer e denunciar formas de violência que não são
visíveis64. O autor sugere que analisemos a violência a partir da divisão entre visível
e invisível, considerando que, no que ele entende por violência visível, as
possibilidades são infinitas, passando por conflitos armados à violência doméstica. Já
no caso da violência invisível, ele sugere três vieses de análise: violência estrutural,
simbólica e institucional, partindo de Marx, Bourdieu e Foucault para pensá-las.

Cynthia Sarti (2005) também chama a atenção para o fato de que uma série de
estudos nas Ciências Socias associa a questão da violência à criminalidade – evidência
apresentada em artigo de Alba Zaluar (1999) –, porém falham em reconhecer os outros
mecanismos, menos visíveis, através dos quais a violência se faz presente nesses
contextos. A autora também observa que na saúde pública a preocupação com a
violência avançou no campo de uma vigilância epidemiológica da violência, no qual
a preocupação com a violência recai sobretudo no preparo dos profissionais de saúde
ao se depararem com “lesões por causas externas” ou “lesões autoprovocadas”65. Sarti
prossegue: “a identificação entre violência e doença remete à concepção de doença.
Questão clássica para a Antropologia da doença, o foco médico na doença e não no
doente acentua a universalidade em detrimento da singularidade tanto individual como
cultural” (2005, 111). Resta, nesse caso, somente um caminho para as políticas de

64
Bourgois escreve: “A violência se espalha de forma desigual pelo mundo, e as formas como ela mantém
as estruturas de poder exploradoras precisam ser documentadas e denunciadas. Infelizmente, embora a
violência física direta seja facilmente visível, é apenas a ponta do iceberg” (2009, 17).
65
Embora Maria Cecília Minayo (2006) proponha uma epidemiologia da violência em sentido mais amplo,
incluindo suas manifestações não físicas, como a negligência.

90
saúde: concentrar a discussão sobre violência e saúde nos acidentes e agressões
físicas66, incluindo eventualmente a chamada “violência psicológica”. Já as violências
não visíveis, enunciadas por Bourgois, passariam ao largo das preocupações no campo
da saúde pública com tal temática.
Ao realizar a pesquisa em uma unidade básica de saúde e não em um serviço
de emergência, deparei-me de forma pontual com a violência causada por acidentes
ou agressão. No entanto, como fica nítido nos casos citados acima, a rotina do serviço
de saúde estava permeada cotidianamente por aquilo que o Complexo do Alemão
parece ter de mais peculiar quando comparado a outros “territórios de pobreza”: sua
centralidade para o conflito entre traficantes e policiais que marcam toda a história
das favelas no Rio de Janeiro, sobretudo a partir dos anos 199067. Se, teoricamente,
ela parece estar inserida no campo do que Bourgois entende por violência visível – o
que seria apenas a “ponta de um iceberg” –, do ponto de vista metodológico argumento
que, nesse caso específico, tal situação engendra e reforça as demais formas de
violência existentes, visíveis e invisíveis, e por isso é necessário compreender seu
mecanismo.
A chamada “violência urbana” é sem dúvidas o principal demarcador dos
discursos público-políticos sobre o Complexo do Alemão e qualquer rápida busca
pelos termos “Complexo do Alemão” em um site de buscas não deixa dúvidas sobre
isso. Números e estatísticas também não. Em 2017, o aplicativo criado pela Anistia
Internacional chamado “Fogo Cruzado” – que se utiliza de dados inseridos pelos
próprios usuários sobre a ocorrência de tiroteios nas áreas em que estão passando –
divulgou que o Complexo do Alemão foi, entre 2016 e 2017, a região com maior
número de tiroteios registrados na cidade. Foram ao menos 225 tiroteios entre 5 de
julho de 2016 e o mesmo dia de 201768.

66
A autora reconhece que esse ponto é também problemático, pois a ideia de que o ato de agressão
(física) é violento é questionável, pois depende de um reconhecimento social de que se trata de uma
violência, podendo não ser compreendido como agressão inclusive por aquele que é entendido como
vítima.
67
Não pretendo aqui fazer uma discussão profunda sobre segurança pública e os motivos que fazem do
Complexo do Alemão esse lugar central, assim como são outros conjuntos de favela, como Rocinha e
Maré. No entanto, vale destacar que o Complexo do Alemão possui uma localização estratégica,
conectando diferentes e importantes bairros da zona norte, e abrigou por muito tempo algum dos
principais traficantes ligados ao Comando Vermelho (principal facção criminosa da cidade).
68
“O Fogo Cruzado foi desenvolvido pela Anistia Internacional e faz estudos em parceria com a Diretoria
de Análises de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV/DAPP). Os dados são recebidos por
meio de contribuições dos mais de 100 mil usuários que já fizeram download do aplicativo, e
posteriormente cruzados com informações da Polícia Militar, da imprensa e de publicações em redes

91
Procurei, entretanto, não recorrer à ideia de que esta pesquisa teria sido
realizada em um contexto de guerra, como me foi sugerido diversas vezes ao
apresentar este trabalho. Márcia Leite (2012), ao refletir sobre o tema, afirma que a
“metáfora da guerra” que ronda os discursos públicos sobre as favelas do Rio de
Janeiro há quase três décadas “implica acionar um repertório simbólico em que
lados/grupos em confronto são inimigos e o extermínio, no limite, é uma das
estratégias para a vitória” (2012, 379). Por outro lado, é inegável que a violência
gerada ou agravada pelo conflito armado no Complexo do Alemão se fez presente em
boa parte das situações etnografadas.

Para além dos números existentes hoje e que evidenciam essa realidade, o
Complexo do Alemão possui também um histórico marcado por eventos violentos que
ganharam relevância internacional. Destaco pelo menos três desses episódios aqui: as
chacinas de Nova Brasília, a chacina do PAN e, finalmente, a intervenção militar de
2010. Tratarei esses três momentos como “eventos críticos” no sentido proposto por
Veena Das, compreendendo que eles compõem uma memória coletiva e traumática
para esse lugar e seus habitantes, sobretudo no que tange à relação com as forças de
segurança pública do Estado.

Nos anos de 1994 e 1995, vinte e seis pessoas, treze em cada ano, foram mortas
em duas operações policiais na favela Nova Brasília, uma das que compõem o
Complexo do Alemão. Na segunda chacina, houve ainda três casos de estupro também
nunca investigados e os corpos foram retirados da cena do crime por um caminhão de
lixo, antes que qualquer perícia fosse realizada. Em 2017, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos da OEA condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação e
de punição dos responsáveis. Foi a primeira condenação do Brasil na corte. Entre
diversos pontos observados pela OEA, chama atenção o fato das poucas investigações
conduzidas terem se concentrado não em encontrar os responsáveis pelas mortes, mas
sim em investigar as próprias vítimas, procurando evidenciar que elas estavam
associadas ao crime de algum modo.

Pouco mais de dez anos depois, em 27 de junho de 2007, na mesma época em


que ocorriam na cidade os XV Jogos Pan-americanos, outra operação policial resultou

sociais”. Informação disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-08/complexo-


do-alemao-concentra-maior-numero-de-disparos-de-arma-de-fogo-no-rio> (acesso em 03 de novembro
de 2018).

92
em mais mortes, com sinais de execução e arbitrariedade. Dessa vez foram dezenove
mortos, sendo que ao menos dez deles não possuíam nenhum vínculo comprovado
com o crime organizado. A operação fez parte de um processo maior de ocupação do
território do Complexo do Alemão que se estabeleceu em maio daquele mesmo ano,
no qual se contabilizaram muitas outras mortes. O evento ficou associado aos jogos
que ocorriam na cidade no mesmo período, pois diversos movimentos sociais
denunciaram que as operações policiais nas favelas se tornaram mais duras e
constantes durante a realização de jogos, visando garantir uma suposta paz nos locais
onde estavam os turistas que vieram para assistir e participar do Pan. Esse episódio
foi um dos fatores que motivou os Médicos Sem Fronteira a se instalarem ali.

Finalmente, em novembro de 2010, quando as Unidades de Polícia


Pacificadora começaram a se instalar nas favelas da cidade, sobretudo na zona sul,
uma operação policial realizada na Vila Cruzeiro, vizinha ao Complexo do Alemão,
deflagrou a fuga de traficantes por uma estrada que conecta a Vila Cruzeiro ao
Alemão. Na mesma semana, uma grande intervenção militar no Complexo do Alemão
foi coordenada e amplamente divulgada pela mídia. A operação foi divulgada como
uma “retomada” do território do Alemão das mãos dos traficantes, contando com um
total de 2.800 agentes de segurança pública, civis e militares. Em todo esse processo,
foram relatadas inúmeras violações aos direitos dos moradores, com invasão de
moradias, abordagens indevidas, entre outras. Em 2012, a intervenção militar chegou
ao fim e quatro unidades de polícia pacificadora foram instaladas ao longo das
comunidades do Alemão: UPP Fazendinha, UPP Alemão, UPP Nova Brasília e UPP
Adeus/Baiana. Embora as unidades de polícia pacificadora estejam ainda hoje em
operação, o tráfico de drogas voltou a atuar na comunidade como ocorria antes da
intervenção militar.

Para além desses “eventos críticos” que marcam a história e a imagem pública
do Complexo do Alemão, é importante observar ainda que a dinâmica cotidiana desse
conjunto de favelas é marcada, de um lado, pela presença do crime organizado e, de
outro, por ações policiais desrespeitosas e truculentas, que fazem com que o
Complexo do Alemão seja um dos muitos locais na cidade no qual uma “sociabilidade
violenta” (Machado da Silva, 2004) constitui a norma nas interações sociais. Para
Machado da Silva, a sociabilidade violenta se estabelece quando há uma crise de
legitimidade do Estado e de controle das agências estatais, passando a haver expansão

93
e organização da criminalidade, que tem na base de seu funcionamento a violência
como um fim em si mesma, liberada de sua regulação simbólica. Entende-se aqui que
tal uso desmedido da violência se exerce por parte dos criminosos, mas também da
polícia. Tal lógica, segundo o autor, se estenderia ao nível das interações sociais, nos
locais onde essa dinâmica se estabelece, gerando relações profundamente marcadas
pela violência, mas também por desconfiança, medo e evitação.

As várias faces da violência desdobrada por esse conflito, portanto,


consistiriam em um dos principais mecanismos de desigualdade enfrentados pela
população local, fazendo parte dessa realidade em um contínuo que se estabelece
desde as conversas de corredor, passando pelos diagnósticos, pelas piadas e pelos
comentários feitos pelos usuários e profissionais, até mesmo pela rotina dos
procedimentos médicos. Na maior parte das vezes, a violência estava ali, mas a vida
seguia com pequenas pausas e desvios de caminho, como as que são ocasionadas por
um tiroteio no meio da rua, que requer parar e se esconder atrás de um muro por um
tempo ou até mudar o caminho. E outras pausas mais longas, como aquelas geradas
pela notícia de mais de uma morte. Nesses casos, não havia riso, nem piada.
Foi assim quando visitei uma casa no topo do morro, durante a campanha de
vacinação contra a gripe em 2017. Ao final da campanha, a vacina era levada para os
que não podiam se locomover até a unidade de saúde. Nesta casa, havia um menino
de quinze anos, portador de uma paralisia cerebral severa. Sua mãe, que havia se
dedicado inteiramente aos seus cuidados nos últimos anos, não estava mais lá. Há
menos de um ano, Vanessa estava sentada na porta de casa, conversando com um
vizinho, quando viu alguns policiais entrarem em uma mata próxima dali. Não
estranhou, pois aquilo era comum. Poucos minutos depois ouviu dois tiros e não
hesitou quando sentiu algo estranho em seu corpo. “Tomei um tiro”, disse, caindo logo
em seguida 69 . Além de seus dois filhos, Vanessa tomava conta também de vários
sobrinhos enquanto seus parentes e marido trabalhavam. No dia em que estivemos lá,
perdi a conta de quantas crianças brincavam pela casa, que era espaçosa para os
padrões locais. Após sua morte, a família conseguiu se reorganizar, graças à vinda de
uma tia que assumiu, sobretudo, os cuidados do filho deficiente. A indenização,
prometida pelo Estado na época, ainda não havia sido paga e eles não pareciam ter

69
Uma das poucas matérias que mencionam a morte de Vanessa está disponível no link:
https://extra.globo.com/casos-de-policia/mulher-morta-na-porta-de-casa-no-complexo-do-alemao-
deixa-filho-especial-15647232.html (acessado em 29/08/2018).

94
esperanças de que isso acontecesse. Quando o menino estava tomando a vacina, a tia
nos disse: “Ele sente uma falta danada da mãe”. E foi inevitável não enxergar tristeza
em seu olhar perdido, enquanto o enfermeiro lhe aplicava a dose de imunização.
A cena revelava um triste encontro entre a “biopolítica” do estado de bem-estar
social, fazendo viver o menino vacinado, e a vida matável – sem cobertura da mídia e
indenização – de sua mãe e de todos ao seu redor, apontando para a existência de algo
ainda mais perverso do que o deixar morrer. O Complexo do Alemão configuraria,
nos termos propostos por Achile Mbembe (2016), um “mundo de morte” onde a
“necropolítica” é a norma e a vida está dominada pelo poder da morte, conectando-se
à noção de “quadros de guerra”, proposta por Butler (2015).
Quando decidi não prosseguir com o tema da violência e da saúde mental na
pesquisa, passei a ampliar o olhar e me preocupar somente com a dinâmica de
funcionamento do serviço de saúde e interação entre profissionais e usuários. Assim
surgiu o interesse pelo tema do cuidado de modo mais geral; ainda assim, a discussão
acima evidencia que a violência se impôs como um tema necessário e inescapável
nesse contexto. Ficou claro que no caso do Complexo do Alemão seria impossível não
associar a precariedade inerente, que demanda cuidados (a doença, o envelhecimento
ou o nascimento) àquela induzida pela condição política em que vive determinada
população, incluindo seu local de moradia e o serviço de saúde que acessam. Ao
descrever o cotidiano das unidades de saúde pesquisadas, pretendo dar forma àquilo
que Butler (2015) demonstrou ser um processo de formação diferenciada da
subjetividade, na qual se tornam visíveis as assimetrias enfrentadas por cada sujeito
no percurso de sua vida.

95
PARTE II: DO LADO DE DENTRO

FIGURA 7: DO LADO DE DENTRO, MENINOS BRINCANDO (FOTO DA AUTORA, 2017)

96
CAPÍTULO 3: Os médicos da favela

FIGURA 8: PLACAR QUE INDICA A AUSÊNCIA DO PROFISSIONAL MÉDICO NA


EQUIPE (FOTO DA AUTORA, 2017)

(...) porque a doença, a doença é... interessante... às


vezes somos nós que construímos a doença, porque às
vezes, até falei isso pro João [médico]. Falei... ô
doutor, às vezes, a doença da pessoa não é nenhuma, a
pessoa só quer um ouvido para ouvir... é verdade! Ela
tá com problema, ela quer que alguém escute.
(Entrevista com Tio Paulinho)

A consideração do psíquico, ou melhor, do psico-


orgânico, é insuficiente aqui, mesmo para descrever o
complexo inteiro. A consideração do social é
necessária. Inversamente, a simples consideração de
nossa vida que é nossa vida em sociedade não basta.
(MAUSS, 2003a, 364).

Entre brasileiros, cubanos e recém-chegados

Como já mencionado, o trabalho de campo se dividiu em três etapas, sendo


elas: o primeiro semestre de 2015, o segundo semestre de 2016, no “postinho”, e o
primeiro semestre de 2017, na Clínica da Família. O expediente nos locais iniciava às
08h e terminava por volta de 19h. A agenda dos médicos se organizava pelos dias da
semana e pelos períodos, divididos entre pré-natal, puericultura, saúde do idoso, grupo
de hipertensos e diabéticos, visitas domiciliares e reunião de equipe, além das
“demandas espontâneas”, que atendiam diariamente, e outras tarefas administrativas,

97
as quais eu não acompanhava. Os pacientes que não possuíam consulta agendada
deveriam se apresentar no acolhimento, entre 08h e 09h30 ou entre 13h e 14h30, para
serem alocados na chamada “demanda espontânea”, que seria conciliada com as
consultas agendadas com cada médico ou enfermeiro. Além disso, a unidade estava
sempre movimentada pelas atividades de vacinação, consultas odontológicas, grupos
operativos, planejamento familiar, entre outros.

Das cinco equipes existentes na primeira unidade, três possuíam médicos


cubanos e duas, médicos brasileiros. Ao longo dos meses em que realizei a etapa
inicial do trabalho de campo, em 2015 e 2016, acompanhei basicamente três médicos
da unidade: Iara, Cláudio e Glória 70. Iara e Cláudio são brasileiros e Glória é cubana.
A partir de 2017, a maior parte do quadro de médicos do serviço de saúde pesquisado
passou a ser composta por profissionais recém-formados ou com pouca experiência e
interesse de atuação na atenção básica. Isso se deu, sobretudo, pela não renovação do
contrato dessa unidade de saúde com o governo federal, no âmbito do Programa Mais
Médico para o Brasil (PMMB), ocasionando a saída dos médicos cubanos que ali
atuaram por mais de dois anos. No último período da pesquisa, portanto, o único
médico que havia permanecido da primeira fase foi Cláudio. Além dele, acompanhei
também Diogo, Marina e Camilo, que serão apresentados como os “recém-chegados”.
É importante ressaltar que a quantidade de consultas e visitas acompanhada com
Cláudio foi imensamente maior do que com os outros profissionais, pelo fato de ter
sido o único médico permanente na unidade ao longo de toda a pesquisa.
Nesse capítulo, portanto, realizarei um breve resgate bibliográfico em torno do
tema da formação médica no Brasil e da construção do atual modelo de atenção básica
à saúde. Apresento, a partir disso, alguns dos médicos que trabalharam nas duas
unidades ao longo do período da investigação e suas trajetórias pessoais e
profissionais, através das quais identifico um problema central em sua prática
profissional que denominei como “problema da formação”. Tal situação vai de
encontro a dois outros problemas ali identificados: o “problema da demanda” e o
“problema da vulnerabilidade”. Tais problemas representam, respectivamente, o
excesso de usuários atendidos por cada um dos médicos diariamente, intensificado
pela dificuldade de encaminhamento para outros serviços do sistema e pela condição

70
Tratam-se de nomes fictícios. Após conversar com eles e compreender que a maior parte deles se
sentiria mais confortável no anonimato, todos os nomes dos profissionais que ainda estão vinculados ao
trabalho de algum modo foram preservados.

98
de saúde dos usuários, agravada ainda pela situação do local onde vivem, já
evidenciada nos capítulos anteriores. Juntos, esses três problemas conformam a rotina
dessas unidades de saúde e, através deles, busco responder às seguintes questões:
quais são os desdobramentos do encontro entre esses problemas e a proposta da ESF
em sua essência? As práticas terapêuticas dos médicos nesse contexto podem ser
pensadas como práticas de cuidado? Quais as especificidades da medicina performada
nesse contexto?

Primeiros contatos
Iara foi a médica que me recebeu mais prontamente, convidando-me logo de
início para que eu assistisse às suas consultas. A profissional começou a trabalhar
como médica de família em uma unidade da Maré, na qual era contratada em regime
parcial de 20 horas, ao mesmo tempo em que fazia plantões no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro (Galeão). Logo foi contratada para a unidade do
Alemão, em regime de 40 horas, de onde saiu no final do ano de 2015, para uma outra
unidade no próprio Alemão, na qual assumiria também como Responsável Técnica
(RT)71. Iara não possuía formação em medicina de família, apenas uma especialização
em medicina do trabalho. A médica, que tinha na época mais de 50 anos, apresentava-
me sempre aos pacientes que entravam como pesquisadora e colega. A partir da
primeira semana de campo, passei a estar com Iara todas as quintas-feiras, quando ela
tinha o horário reservado na parte da manhã para consultas de pré-natal e, na parte da
tarde, para puericultura com crianças de até dois anos, além das “demandas
espontâneas”. Sua sala era a mais espaçosa dentro da unidade; tinha por volta de
quatro ou cinco metros quadrados e me permitia estar ali de forma menos incômoda
do que nas demais – as outras tinham menos de dois metros quadrados cada, contendo
ao menos uma mesa, cadeiras, maca, armários e balança, de modo que, ainda que eu
me movimentasse ao longo da consulta para que o médico ou o paciente pudessem se
mover quando necessário, eu estava sempre de algum modo no meio do caminho.
Cláudio estava na unidade há treze anos e na época era o Responsável Técnico.
O médico atribui sua escolha pela medicina de família por ter trabalhado no serviço
de Home Care da Golden Cross (operadora privada de saúde) e ter se encantado com

71
Responsável Técnico é um profissional de enfermagem ou médico que assume uma série de atribuições
administrativas na unidade – como participação em reuniões de área e regulação de vagas no sistema –,
recebendo uma remuneração maior por isso.

99
a proximidade com os pacientes, existente graças a esse tipo de trabalho. Conversando
com um amigo que trabalhou com ele – e que depois veio a ser uma figura importante
na medicina de família e na comunidade do Rio de Janeiro72 –, concluiu que gostaria
de trabalhar com saúde da família. Depois disso, trabalhou em Itaguaí por dois anos,
na atenção primária. Quando os primeiros PSF foram abertos no Rio de Janeiro, logo
após a inauguração do PSF Alemão, Cláudio iniciou seu trabalho na unidade que
depois se tornou CMS e, posteriormente, migrou junto com sua equipe para a Clínica
da Família, na qual trabalha até hoje. Quando chegou ao PSF, em 2005, havia outros
médicos trabalhando na unidade e eles já estavam imersos na discussão sobre o
Programa Saúde da Família do Alemão. Cláudio, que não conhecia essa discussão,
acabou aprendendo com eles. Só mais tarde, foi cursar a especialização em saúde da
família e se titulou pela SBMFC; antes disso, ele já havia feito a residência em
endocrinologia.
Já Glória é cubana e trabalhou na unidade por dois anos através do Programa
Mais Médicos do Governo Federal. Além de Glória, outros dois médicos cubanos
trabalharam na unidade. Quando fui apresentada aos médicos cubanos, um deles
estava saindo de férias, a outra me deu pouca ou nenhuma abertura para entrar em
contato com ela e Glória, por sua vez, foi a mais receptiva. Ainda assim, a cubana
apresentou certa desconfiança com relação ao meu trabalho. Em um primeiro
momento, me indagou se eu teria autorização do Programa Mais Médicos para a
realização da pesquisa. Evidentemente eu não tinha, já que não se tratava de uma
pesquisa sobre o programa. Depois, ela passou a me dizer que não seria interessante
que eu a acompanhasse, já que a área de cobertura de sua equipe estava passando por
um momento complicado, com intensos tiroteios e, assim, eu não teria oportunidade
de visitar a área.
Finalmente, quando convenci Glória de que para mim seria igualmente
interessante acompanhar um dia de sua rotina e atendimentos dentro da unidade, ela
me autorizou e me recebeu em seu consultório ao longo de uma tarde. Ela perguntou

72
Trata-se de Oscarino Barreto que também trabalhou em um dos PSF do Complexo do Alemão. O médico
também possui uma trajetória de encantamento com a medicina de família, abandonando sua
especialidade anterior, a cirurgia plástica, para se dedicar ao trabalho no PSF. Em uma entrevista
concedida à Revista do CREMERJ, o médico declarou: “Estava tão envolvido, tão motivado, que fui
trabalhar no Complexo do Alemão e abandonei de vez o bisturi”, revelando que, para ele, trabalhar no
Alemão consistia em uma certa “radicalidade” dessa experiência. Disponível em:
<https://www.cremerj.org.br/revistas/download/13;jsessionid=1C72B79625B9716B277C01630DE11E89
> (acesso em 26 de março de 2017).

100
a todos os usuários se aceitavam minha permanência na consulta e apenas uma mulher
negou. Na maior parte das consultas, os usuários se dirigiam a mim ao falarem de seus
problemas, como se somente eu fosse capaz de compreendê-los. Alguns claramente
me pediram para que eu traduzisse para ela o que haviam dito. Fiquei um tanto quanto
desconfortável nessa posição e, apesar da médica não ter dito nada a respeito, eu
mesma disse em alguns momentos que eles poderiam se dirigir diretamente a ela,
falando pausadamente, que ela compreenderia. A função de “tradutora” também se
estabeleceu em outros momentos, quando a própria médica me pediu ajuda com a
grafia correta de palavras no português para escrever no prontuário. Ou ainda como
“tradutora cultural”, quando ela indicou a um paciente o uso de mercúrio cromo em
um ferimento e eu lembrei que esse medicamento não era mais comercializado no
Brasil. E também quando sugeriu a uma gestante que tomasse diariamente um ovo cru
batido. Diante da cara de nojo da usuária, olhamo-nos e rimos. Sem entender, a médica
nos perguntou por que rimos e eu expliquei que no Brasil não costumávamos consumir
ovo cru puro, somente em preparações de receitas.
Ao final do dia, ela pediu para que eu lhe enviasse todas as anotações que havia
feito em meu caderno sobre os atendimentos daquele dia. Na semana seguinte,
entreguei o relatório com as anotações e entendi que talvez ainda não fosse o momento
de insistir nessa aproximação, dado o desconforto que minha presença poderia estar
causando em seus atendimentos. A atitude de pouca abertura dos três cubanos à
participação na pesquisa foi clara, o que compreendi estar relacionado a certo temor
justificável com relação aos desdobramentos da pesquisa, já que a opinião pública
brasileira, de modo geral, sempre se mostrou bastante crítica à presença dos médicos
cubanos no país73.
No entanto, após esse período, Glória passou a me cumprimentar sempre com
entusiasmo ao me encontrar pelos corredores e perguntar sobre o andamento da
pesquisa, indicando que, possivelmente, passado um período inicial de desconfiança,
ela talvez estivesse mais aberta a colaborar com a pesquisa, o que se confirmou quando
retornei ao campo, no ano seguinte. Após dois anos no Brasil, Glória estava mais
familiarizada ao português, ao Brasil, e integrada aos outros profissionais da equipe,

73
O ápice das demonstrações de descontentamento com o programa foi durante a recepção realizada
aos médicos cubanos em Fortaleza, quando foram vaiados e chamados de “escravos”. Disponível em:
<https://noticias.r7.com/saude/medicos-estrangeiros-sao-recebidos-com-agressoes-verbais-e-
vaiasnbsp-28082013> (acesso em 27 de março de 2018).

101
além de já estar mais próxima da maior parte das famílias que atendia. Foi também
quando me familiarizei mais com a sua trajetória profissional. As missões de médicos
cubanos a outros países – uma novidade para os brasileiros – já faziam parte da vida
de Gloria há quase dez anos. Com quase cinquenta anos de idade, ela estava agora em
sua terceira missão como médica, tendo ido antes à Bolívia e à Venezuela, por períodos
próximos de dois anos. O motivo de ter escolhido vir ao Brasil, segundo ela, não era
apenas financeiro, como pensavam muitos brasileiros, mas também por um desejo de
“ajudar” a população brasileira, considerada por ela extremante pobre e vítima de uma
violência assustadora. Na Venezuela, havia se sentido mais “em casa” do que no Brasil
e na Bolívia, pela proximidade do castelhano falado ali com o cubano e por ter
encontrado uma qualidade de vida melhor do que nos dois outros países. Apesar de
ter gostado do período no Brasil, ansiava pelo momento de retornar a Cuba, sobretudo
pela falta que sentia das filhas – a mais velha, de dezenove anos, havia recentemente
entrado na faculdade de medicina. Após esse longo processo de aproximação inicial
com Glória, pude finalmente acompanhar algumas de suas consultas em 2016 – que
não foram muitas, pois ela logo retornou a Cuba.
Apesar da aproximação com Glória ter levantado questões interessantes acerca
da presença dos médicos cubanos no Brasil, a diferença nas formações profissionais,
sobretudo nas práticas de Cláudio e Iara, acabou se tornando uma questão importante
na primeira etapa do campo, que definiu de algum modo um certo percurso etnográfico
dali em diante. O embate entre os dois médicos brasileiros remetia não apenas a um
conflito pessoal entre eles, como também a questões mais estruturais em relação à
organização da ESF no país. A esse conjunto de questões denominei de “problema da
formação”, que consiste em pensar, a partir das trajetórias dos médicos que
acompanhei, de que maneira a formação acadêmica e pessoal desses profissionais
afeta diretamente os limites e as potencialidades da Estratégia Saúde da Família no
Brasil.

Do PSF ao Mais Médicos


A atenção primária à saúde – no Brasil denominada atenção básica – tal como
a conhecemos hoje se insere no processo de reorientação do Sistema Único de Saúde,
firmado e iniciado pela Norma Operacional Básica – NOB 96. Como aponta Octavio
Bonet (2014b, 133), tal reorganização – que ficou conhecida como a “reforma da
reforma” – teve ênfase em dois programas, o Programa de Agentes Comunitários de
102
Saúde (PACS) e o Programa de Saúde da Família (PSF), que começaram em 1991 e
1994, respectivamente, com prioridade de recursos para ambos.
No Rio de Janeiro e em boa parte do Brasil, no entanto, o PSF, depois chamado
de ESF (Estratégia de Saúde da Família), avançou timidamente ao longo dos anos
2000 e mais intensamente na década seguinte, estando atualmente presente em
praticamente todos os municípios do país, alcançando mais da metade da população
nacional74. Esse movimento de reorientação do SUS, a partir de 1996, inspirou-se em
uma discussão já vigente na medicina desde a passagem dos anos 1960 para os 1970,
no qual se buscava um foco em modelos de atenção à saúde que visassem à superação
de um modelo fragmentado de medicina. Tais princípios ganharam evidência em todo
o mundo a partir da conferência mundial de saúde de Alma-Ata (Cazaquistão) em
1978, que proclamava a centralidade da atenção básica para os sistemas de saúde.
No Brasil, contudo, de acordo com Bonet (2014b), enfrentou-se um importante
dilema sobre a formação dos médicos que atuariam na atenção básica, considerando
que o país vivia, desde a década de 1920, um adensamento na formação profissional
em medicina voltada para especialistas e não generalistas 75 . Na década de 1970,
algumas iniciativas isoladas no país começaram a resgatar a prática da Medicina geral
e comunitária, com a criação de centros de saúde nas periferias de grandes cidades,
como Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife, culminando ainda com a criação de uma
residência médica em Medicina Geral e Comunitária em Murialdo, Porto Alegre
(Bonet, 2014b). Eymard Vasconcelos (1987), no livro A medicina e os pobres, partindo
de sua própria experiência como médico no interior da Paraíba também relata parte
dessa movimentação nos anos 1970, durante o regime militar no país. Nesse período,
alguns médicos encaravam o fortalecimento da atuação de médicos generalistas –
trabalhando com foco em prevenção e promoção da saúde nas áreas rurais e periféricas
das grandes cidades – também com propósitos políticos, em experiências inspiradas
sobretudo na educação popular de Paulo Freire (Vasconcelos, 2015), originando a
“educação popular em saúde”.
No final da década de 1970, diferentes propostas para o modelo de sistema de
saúde no Brasil foram trazidas à tona entre aqueles envolvidos no processo da

74
Em 2013, a Pesquisa Nacional de Saúde informou que a cobertura nacional pela Estratégia Saúde da
Família era de 53,4% (Malta, 2016).
75
Bonet remonta o campo das especialidades em medicina no Brasil sobretudo a partir do Congresso dos
Práticos, em 1922, onde os generalistas perdem espaço e os especialistas tornam-se hegemônicos no país
(2014b, 113).

103
Reforma Sanitária. Diante desse debate e acompanhando o movimento internacional
de discussão sobre o fortalecimento da atenção primária à saúde, a partir da
conferência de Alma-Ata, três possibilidades são discutidas: a primeira seria de
construção de um modelo com base nos médicos de família; a segunda seria mais
voltada para a experiência de saúde comunitária; e, finalmente, a terceira, que acabou
se tornando hegemônica, seria a de multiplicação dos serviços básicos e integrados a
serviços mais sofisticados, mas não orientados pela busca de um novo modelo de
atendimento em nível local. Assim, após a consolidação do SUS, o último modelo foi
implementado e a atenção básica se desenvolveu no Brasil, nomeadamente, dentro do
modelo médico tradicional, com especialistas em pediatria, clínica médica,
ginecologia-obstetrícia e odontologia. Como relembra Vasconcelos (2000) acerca
desse período, “os centros de saúde que se expandiram nas cidades têm no termo
policlínica a melhor denominação para a linguagem que orienta o discurso daqueles
que ali trabalham”. Não tardou, no entanto, para que esses serviços entrassem em crise
e colapsassem diante da falta de recursos e descaso político. Além da necessidade de
contratar diferentes especialistas, as policíclicas funcionavam, sobretudo, como
pronto-atendimento e não de fato como um modelo de atenção primária. O caso dos
PAM, apresentado no primeiro capítulo, representa bem esse processo.
A proposta de um modelo baseado nos médicos de família voltou à cena, no
final da década de 1980, a partir da consolidação em Cuba de uma ampla reformulação
do modelo de APS a partir da figura do médico de família, o que, segundo Vasconcelos
(2000), ajudou a quebrar resistências a essa proposta, sobretudo por parte dos
profissionais de saúde de esquerda no Brasil. Já nos anos 1990, a experiência do
Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) no Ceará ganhou destaque
nacional e, em 1993, o governo reuniu especialistas para criar o PSF. O modelo criado
aliou, por fim, tanto a experiência dos programas de saúde comunitária, como o PACS
à centralidade da figura do médico de família.
Nos anos 1990, a criação do Programa Saúde da Família (PSF) no país,
portanto, configurou um momento chave no qual novas ideias passaram a ganhar
espaço, sobretudo aquelas que giravam em torno do conceito de totalidade, também
denominado integralidade, ampliando a noção de uma prática médica com foco no
corpo e nas doenças apenas, mas visando a “uma concepção de saúde relacionada à
qualidade de vida; à noção de equipe de saúde; à intervenção desta na família e na
comunidade e à ação intersetorial” (Favoreto apud Bonet, 2015, 81)”. A emergência
104
do PSF tem como impacto alguns importantes desdobramentos. O primeiro foi a
reorganização definitiva da categoria médica, que teria como foco de atuação a
atenção básica, em torno da denominação Medicina de Família e Comunidade
(incluindo a Medicina Geral e Comunitária e separando-se, definitivamente, da
Medicina Preventiva e Social) e, consequentemente, a criação e o fortalecimento de
sua associação, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
(SBMFC). O segundo foi a criação de novas residências médicas em Medicina de
Família e Comunidade em todo o país. Por fim, a discussão sobre a necessidade de
mudança nos currículos das faculdades de medicina, fortemente baseados no modelo
biomédico flexneriano76.
No entanto, enquanto esses processos se desenvolviam, um problema se
tornava latente a partir do crescimento do PSF no país: quem seriam os médicos a
atuarem no PSF, se quase não havia médicos de família formados? Não seria possível
esperar que os médicos de família tivessem completado a formação para que pudessem
atuar no programa. A solução encontrada na época foi a de que houvesse também
cursos de especialização, mais curtos do que a residência, como uma solução
provisória para que os médicos não iniciassem o trabalho sem contato nenhum com a
medicina que se propunha nesse modelo (Bonet, 2014b).
Apesar disso, anos depois do início do PSF no país, o problema persiste. Se
por um lado encontramos experiências bem-sucedidas de profissionais com titulação
em Medicina de Família e Comunidade ou até dos que ainda são residentes na área77,
por outro, sobretudo nas áreas mais longínquas do país ou nas periferias dos centros
urbanos, os postos de trabalho para médicos de família na atenção básica são difíceis
de serem preenchidos. E, assim, comumente não se exige nenhuma formação
específica na área de medicina de família e comunidade, fazendo com que esses cargos
sejam, quando preenchidos, ocupados sobretudo por jovens recém-formados, sem
experiência na área de medicina de família e comunidade ou em qualquer outra. No

76
O termo flexneriano refere-se ao relatório produzido por Abraham Flexner, em 1910. Sobre a
importância do “relatório flexner”, Bonet (2003) escreve: “O que Flexner propôs, basicamente, foi que o
ensino da medicina deveria ser realizado em universidades relacionadas a hospitais, que se teria que
ampliar a formação nas ciências básicas (anatomia, fisiologia e patologia) e o trabalho em laboratório.
Para Flexner, o coração da escola de medicina deveria ser o espírito de investigação (...), Com esse novo
movimento de começos do século XX, estava sendo dada continuidade à história de um divórcio
anunciado: o da filosofia com a medicina, da arte de curar com a ciência das doenças. Da medicina com o
homem? Esse movimento teria afastado a medicina, ainda mais, da ideia de totalidade” (2003, 43-45).
77
Ver por exemplo Bonet (2015) e Wenceslau (2017) sobre experiências de médicos em residência nessa
área.

105
Brasil, o termo “médico de família” acabou perdendo sua especificidade e qualquer
médico que atue hoje na Estratégia de Saúde da Família acaba sendo denominado
“médico de família”. No entanto, de acordo com o Conselho Federal de Medicina, um
médico só pode ser considerado especialista caso tenha feito residência médica ou
tenha sido aprovado na prova de títulos de especialista – que deve ser organizada e
aplicada pela sociedade médica da especialidade em questão.
No caso da Medicina de Família e Comunidade, esse exame é aplicado pela
SBMFC. Segundo a SBMFC, existem hoje no Brasil apenas 2.227 médicos titulados
como médicos de família e comunidade (Wenceslau, 2017). Não há registros da
porcentagem de médicos com titulação ou residência em medicina de família e
comunidade atuando na atenção básica no Rio de Janeiro nesse momento. O último
dado disponível é de 2013 e consta a informação de que em torno de 8% dos médicos
possuíam residência na área e 7%, titulação outorgada pela SBMFC (Harzheim, 2013),
número que provavelmente sofreu consideráveis transformações, dado o fato de que a
própria Prefeitura do Rio de Janeiro ampliou o número de vagas de residência em
medicina de família e comunidade nos últimos anos, embora certamente os médicos
titulados ou com residência ainda sejam minoria.
A ausência de médicos dispostos e interessados em atuar na atenção básica no
Brasil se tornou uma questão de conhecimento geral no país quando da criação do
Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB), do Governo Federal, em 2013, cujo
um dos eixos centrais foi a parceria com o governo de Cuba, ocasionando a vinda de
mais de 11 mil médicos cubanos ao Brasil. Os outros dois eixos de ação do Mais
Médicos – menos desenvolvidos – foram os investimentos na infraestrutura nas
unidades básicas de saúde e a ampliação e reformas educacionais dos cursos de
graduação em medicina e residência médica no país (Oliveira et al., 2015).
Antes do Mais Médicos, outros programas tentaram atrair e fixar profissionais
em localidades “remotas” ou “vulneráveis”, entre os quais se destaca sobretudo o
PROVAB, Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica,
implementado em 2011. Uma série de incentivos, incluindo uma bolsa, foi oferecida
a médicos que ocupassem as vagas nessas localidades (Oliveira et al., 2015).
Entretanto, foi apenas por meio do Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB)
que o problema foi parcialmente solucionado. De acordo com os autores:
Em menos de um ano, o PMMB recrutou e alocou 14.462 médicos em
3.785 municípios. A grande inovação do PMMB se refere à estratégia de

106
chamadas internacionais, quando, além dos 1.846 médicos brasileiros, o
programa passou a contar com 12.616 médicos estrangeiros de 49 países
participando do programa. Dos médicos estrangeiros que atuam no PMMB,
11.429 são médicos cubanos que foram recrutados por meio de uma
parceria entre o Ministério da Saúde do Brasil e a Organização Pan-
Americana de Saúde e desta última com o Ministério de Salud Publica de
Cuba (OLIVEIRA et al., 2015, 627).

Com o processo de “impeachment” 78 de Dilma Roussef, em 2016, e a


subsequente mudança nos ministérios, o Ministro da Saúde empossado por Michel
Temer, Ricardo Barros, mostrou-se em um primeiro momento oscilante com relação à
renovação do programa – que já havia sido confirmada no governo de Roussef 79 –,
afirmando que se tratava de um programa provisório. Ao final de 2017, no entanto, o
ministro confirmou a renovação por mais três anos do programa, embora tenha dito
que a ideia seria substituir gradualmente os cubanos por brasileiros. No início de 2018,
porém, ocorreu uma discreta visita oficial do ministro a Cuba, deixando dúvidas sobre
as intenções do ministério no que tange às relações com esse país 80 . No âmbito
municipal, entretanto, muitos contratos de cubanos encerrados não tiveram reposição
e, na segunda rodada do programa, houve um número maior de adesão de brasileiros 81.
Na unidade de saúde onde essa pesquisa foi realizada, havia, inicialmente, três
médicos cubanos ligados ao Mais Médicos. Após o fim de seus contratos, a unidade
recebeu apenas mais um médico ligado ao programa, dessa vez um brasileiro formado
no exterior82.

78
Embora legalmente tenha sido considerado impeachment, o processo de afastamento da Presidenta
Dilma Roussef foi compreendido como inconstitucional por boa parte da população e há, ainda hoje, no
Brasil ampla controvérsia entre aqueles que o consideraram legal e os que afirmam ter se tratado de um
Golpe de Estado.
79
Informação disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/07/1794201-programa-
mais-medicos-e-provisorio-diz-ricardo-barros-ministro-da-saude.shtml> (acesso em 29 de abril de 2018).
80
Sobre a visita do ministro a Cuba, ver: <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/42345-
em-visita-a-cuba-ministro-da-saude-fez-balanco-do-mais-medicos-e-conheceu-programas-de-saude-do-
pais> (acesso em 29 de abril de 2018).
81
Matéria sobre a presença dos brasileiros no Mais Médicos:
<http://www.brasil.gov.br/saude/2018/01/mais-de-99-dos-novos-profissionais-do-mais-medicos-sao-
brasileiros> (acesso em 29 de abril de 2018).
82
O PMMB oferece um registro provisório aos brasileiros formados no exterior para que possam
exclusivamente atuar na atenção básica, mesmo sem ter passado pelo Revalida, exame que valida o
diploma dos médicos formados fora do Brasil. Entretanto, os médicos que procuram o programa e não
possuem o Revalida não podem escolher para qual local irão, podendo ser designados para qualquer local
no país.

107
A “missão” de Cláudio
Cláudio, médico brasileiro e o único que permaneceu trabalhando na unidade
ao longo de todo o período da pesquisa, não veio de outro país como os médicos da
“missão cubana”, mas a ideia de “missão” aparece também atrelada à sua história,
como se sua maneira de encarar o trabalho consistisse em um objetivo de vida mais
amplo. Cláudio, que tinha 48 anos no início da pesquisa, foi o médico que acompanhei
por mais tempo e em um número maior de ocasiões. Sua popularidade na unidade era
notável, de modo que era comum ouvir agentes e usuários se referindo a ele como “o
melhor médico do posto”. O mesmo acontecia quando andávamos pelo Alemão para
realizar as visitas domiciliares. Da primeira vez em que realizei visitas domiciliares
com ele, Cláudio havia acabado de retornar de um período de férias de trinta dias.
Durante todo o caminho pelo morro, contei quase dez pessoas que o pararam para
simplesmente cumprimentá-lo, relatar algum problema de saúde ou tirar dúvidas sobre
tratamentos. Ele atendia a todos pacientemente. Muitos comentavam sobre sua
ausência durante as férias, dizendo o quanto sentiram sua falta. Durante um encontro
do grupo de hipertensos e diabéticos, uma das usuárias disse: “Dr. Cláudio é o único
médico de verdade que tem aqui, o resto é enfermeiro”. Utilizando o tom professoral
que mantém de costume, Cláudio aparentou não ter entendido de que se tratava
também de uma crítica aos outros médicos que trabalhavam ali, mas fez uma
explicação cuidadosa sobre a importância do trabalho dos enfermeiros no serviço de
saúde.
Foram diversos os momentos em que, acompanhando Cláudio, pude observar
as peculiaridades de sua prática médica e o fato de ele ter figurado como um
interlocutor central durante a pesquisa de campo fica evidente em diferentes passagens
deste texto. Cláudio era reservado, especialmente quando se tratava de falar sobre
outros colegas de trabalho ou sobre a gerência da unidade. O assunto, porém, era
rotineiramente introduzido pelas agentes de saúde, mas o médico procurava sempre
se esquivar. Cláudio possuía, entretanto, uma característica perceptível em todas as
suas interações, que era a disponibilidade para explicar as coisas que estava fazendo
ou pensando. Isso se aplicava aos pacientes, aos profissionais da equipe e a mim
também. Com os usuários, Cláudio procurava sempre utilizar metáforas que
auxiliassem na explicação das doenças. Sempre que encerrada uma consulta, ele me
perguntava o que eu tinha achado e me explicava por que tinha optado por uma ou
outra conduta.
108
Em uma dessas ocasiões, Cláudio examinava uma menina de cinco anos,
acompanhada pela mãe, segundo a qual sua filha há mais de um mês não comia, estava
enjoada e vomitava. A mãe desesperada não parava de falar durante a consulta sobre
todo seu itinerário desde que a menina havia começado com os sintomas. Ela havia
passado por consultas com diferentes enfermeiros e médicos no posto e na UPA,
diversas idas à farmácia na qual Seu Xavier, dono da farmácia, havia lhe indicado
medicações diversas, além de uma série de informações que havia coletado na internet
a partir das quais levantava suspeitas e fazia perguntas ao médico. O principal motivo
pelo qual a mãe acreditava ter algo errado era o fato de a menina não ter aumentado o
peso no último ano e não brincar mais como costumava brincar. “Não era mais feliz”,
a mãe dizia. Em um breve respiro, ela comentou que o pai nunca estava em casa,
trabalhava demais. Cláudio examinou a menina, certificou-se de que não havia
nenhuma alteração significativa nos exames já realizados, orientou a mãe a não dar
mais nenhum medicamento, continuar oferecendo os alimentos como de costume e
conseguiu um encaminhamento com urgência em um gastroenterologista no Hospital
Universitário da UFRJ (HUCFF). Aquela notícia fez com que a mãe sorrisse pela
primeira vez, em aproximadamente quinze minutos de consulta. Quando a consulta
acabou e elas saíram, ele me perguntou: “O que você acha?”. Eu pestanejei por alguns
segundos e lhe respondi com outra pergunta: “A menina parecia bem. Será que é tudo
coisa da cabeça da mãe?”. Ele balançou a cabeça e disse: “Então, quando elas voltarem
da consulta com o gastro e estiverem mais calmas, eu vou cuidar da mãe. Isso é
medicina de família”.
É importante observar ainda como outros elementos se posicionavam como
mediadores do cuidado (Bonet, Tavares, 2008), além do paciente e do profissional. Os
sistemas de prontuário eletrônico e de encaminhamento de usuários para a atenção
secundária configuravam importantes “mediadores heterogêneos” (Latour, 2006) nas
consultas. A discussão sobre mediadores é importante para ampliar a noção de
“itinerários terapêuticos” (Alves, 1993), na qual o trânsito terapêutico do usuário
estaria marcado sobretudo por processos intersubjetivos (decisões, hesitações,
expectativas), ampliando para um leque bem mais amplo de mediadores, humanos e
não humanos, presentes nessa experiência. Cláudio era um médico que possuía grande
intimidade com o Sistema de Regulação de Vagas (SISREG) e comumente dizia que
os médicos novos não sabiam “jogar” com o sistema e, por isso, tinham dificuldades
de encaminhar os usuários para os especialistas com rapidez. Cláudio tinha em suas
109
mãos não apenas o fato de que manipulava bem o sistema, como também possuía a
função de “regulador de vagas” em razão de seu cargo de Responsável Técnico, o que
lhe dava mais autorizações para “jogar” com o sistema. Esse elemento adiciona um
outro componente importante entre aqueles que caracterizam um “bom médico” em
um contexto como esse. Conseguir um bom encaminhamento com agilidade era algo
visto como importante para os pacientes, como demonstrado no caso da mãe que teve
o caso da filha encaminhado para o Hospital Universitário do Fundão. Muitos
pacientes se queixavam da demora nos encaminhamentos. Alguns diziam “eu já estou
no SISREG, mas não sai nada para mim”, como se um primeiro passo fosse conseguir
“entrar no sistema”; mas entrar sem de fato conseguir o encaminhamento representava
uma angústia ainda maior do que não estar no sistema. Cláudio, mesmo ciente de que
a atenção básica deve ser capaz de resolver o máximo possível de problemas sem
encaminhar, naquele momento, compreendeu que o encaminhamento acalmaria a mãe,
que já havia passado várias vezes pelas consultas da unidade de saúde.
Nessa situação, quando disse “isso é medicina de família”, Cláudio
evidenciava ainda que estava familiarizado com os conceitos de integralidade e
continuidade (também chamado de longitudinalidade), centrais à “cultura
epistêmica” 83 (Knorr-Cetina, 1999) da Medicina de Família e Comunidade. A
integralidade, nesse caso, significa olhar para o paciente em sua totalidade, não o
reduzindo apenas ao aspecto biológico. Dentro dessa conceituação, aposta-se no
modelo biopsicossocial como forma de compreensão do sofrimento dos pacientes 84.
Neste, as três dimensões – biológica, psicológica e social – dos seres humanos
estariam integradas. O modelo encontra assim forte ênfase na ideia de “pessoa” e por
isso os médicos de família reivindicam o método chamado “medicina centrada na
pessoa”, no qual os pacientes não apenas são tomados em sua própria totalidade, a
partir do modelo biopsicossocial, mas também estão diretamente relacionados ao
contexto que os estrutura (notadamente, a família e a comunidade) 85. Finalmente, o

83
Para Karin Knorr-Cetina (1999), vivemos em uma sociedade do conhecimento, que colocou a ciência no
centro da vida. Nesse sentido, embora a cultura seja prática, atualizada no cotidiano, edificamos uma
“maquinaria epistêmica” para esse conhecimento.
84
Existem diversas críticas ao modelo biopsicossocial. Camargo Jr. (1997) afirmam que o modelo não
rompe com a hegemonia do modelo biomédico e apenas acrescenta novos elementos que são
subordinados a esse primeiro. Já Duarte (1994) aposta no modelo físico-moral, como alternativa ao
biopsicossocial, no qual esses dois elementos, físico e moral, são também relacionais, acarretando em
uma visão totalizadora do ser humano (Bonet, 2014b, 166).
85
Octavio Bonet chamou esses dois aspectos da noção de pessoa de macro-holismo e micro-holismo
(2014b, 183).

110
princípio da continuidade implica em um acompanhamento do paciente que não se
reduz ao momento da doença, mas igualmente ao antes e ao depois, propondo que esse
indivíduo seja acompanhado sempre pelo mesmo médico.
A enunciação de Cláudio sobre o cuidado necessário com a mãe apenas
reforçava algo que era evidente sobre sua prática médica. Quando andávamos pelo
Alemão, ou mesmo dentro do consultório, era perceptível que Cláudio conhecia as
famílias. Não todas, mas boa parte daquelas que faziam parte da área de abrangência
de sua equipe atual, como também as de uma segunda equipe, da qual ele havia sido
médico por alguns anos antes e que continuava solicitando que os pacientes fossem
atendidos por ele. Desse modo, o fato de ter cursado uma especialização em saúde da
família se somava à sua experiência de mais de dez anos na atenção básica,
especialmente nessa mesma unidade. E, nesse ponto, o médico estabelecia com os
pacientes algo imprescindível para uma prática médica que se propusesse distinta
daquela baseada no modelo biomédico: o vínculo.
Em outra consulta, uma mãe levou a filha pequena em razão de uma dor de
garganta. No meio da consulta, o médico perguntou à mãe: “E como está aquele seu
probleminha?”. A mãe respondeu que estava melhor, aludindo a um tratamento que
parecia ser de uma Doença Sexualmente Transmissível (DST). Ele lhe disse: “Tudo
bem, vamos seguir acompanhando e qualquer coisa alteramos a medicação. E não se
esquece de se proteger, como combinamos”. Depois desse diálogo, seguiu
prescrevendo algo para a dor de garganta da filha. Ao sair, ele me revelou que a mãe
trabalhava como profissional do sexo e recorrentemente aparecia na unidade com
algum problema ginecológico. A insistência de Cláudio era para que ela trabalhasse
sempre sob a condição de seus clientes utilizarem preservativo, mas a mulher lhe
dissera que assim tinha mais dificuldades em encontrar clientes: “É uma situação
complicada...”, ele concluiu em tom de lamento. Essa rápida alusão ao problema da
mãe revelou que existia um vínculo entre o médico e essa paciente, afinal, ela não
precisava ter lhe contado sobre seu trabalho. Mas no diálogo ficou evidente não apenas
que ele sabia sobre sua vida, como também a paciente parecia bastante à vontade em
lhe confidenciar sobre as dificuldades de seu trabalho.
O tratamento para a DST poderia ser prescrito por qualquer médico, mas a
construção de um processo de cuidado e prevenção a longo prazo dificilmente poderia
ocorrer sem a criação de um vínculo e de uma relação de confiança, que permitisse à
paciente revelar ao médico sua dificuldade em realizar sexo com preservativo em seu
111
trabalho. Vemos aqui que, embora o próprio médico recorra a dois modelos
(biomedicina e saúde da família) como partes separadas de sua formação profissional,
no momento da consulta as diversas redes que percorreu em sua experiência
profissional se condensam em forma de híbrido, tornando impossível distinguir o que
pertence a cada etapa de sua formação (Strathern, 2014).
Esse último aspecto da prática do médico também revelava algumas
características pessoais do profissional e de sua trajetória de vida. Cláudio é sempre
evasivo quando questionado sobre o porquê de sua permanência nessa unidade por
tanto tempo, mesmo com tantos problemas. Em algumas ocasiões, ele responde que a
razão seria por gostar desse trabalho e pela comodidade de já estar acostumado à
rotina. Sua dedicação ao trabalho é vista como tão excepcional que uma das agentes
de saúde, quando conversámos sobre o assunto, arriscou uma hipótese mais espiritual:
“Para mim, o Cláudio um dia entrou num terreiro de umbanda, candomblé, centro
espírita, algo assim, e disseram para ele: sua missão é cuidar daquele povo do Alemão.
Por isso que ele nunca saiu daqui”.

O próprio médico, no entanto, não fornece nenhuma indicação transcendental


ou missionária quando questionado sobre o porquê de tanta dedicação: “É apenas o
meu trabalho”, ele se limita a dizer. Entre os profissionais, ele é igualmente estimado
e tido como referência com relação às dúvidas sobre diagnósticos, protocolos e
procedimentos. Cláudio é sereno e não se deixa afetar pelo clima de correria no dia a
dia da unidade; mesmo sendo constantemente interrompido por dúvidas e pedidos de
auxílio de outros profissionais, atende a todos com tranquilidade, falando sempre em
um tom de voz calmo. O médico possui também autonomia diante da gerência, pelo
fato de conhecer mais profundamente o expediente do serviço do que a própria
gerente, fazendo com que ele crie uma dinâmica própria de funcionamento para a sua
equipe, à revelia do que é exigido pela gerência. Ele possui ainda um bom trânsito
político na Secretaria Municipal de Saúde e na CAP 3.1, coordenadoria de área
programática à qual a unidade pertence, onde conhece e se relaciona bem com figuras
importantes, aumentando de algum modo sua importância e prestígio diante da gerente
e de outros profissionais.

Em uma ocasião, a gerente da unidade informou a todos os médicos que não


deveriam realizar visitas domiciliares no território, pois havia poucos médicos
trabalhando naquele momento, portanto a prioridade era focar nos atendimentos na

112
unidade. Enquanto um dos médicos recém-formados que eu acompanhava me
informou de que não haveria visita naquela semana por esse motivo, Cláudio me
avisou que realizaria a visita de todo modo, caso eu quisesse acompanhá-lo. Ao
comentar com um dos agentes sobre essa forma de Cláudio proceder com relação às
orientações da gerência, o agente de saúde disse que o médico tinha autonomia para
fazer o que quisesse: “Ela [gerente] sabe que não pode perder o Cláudio; se isso
acontecer o povo vai lá na casa dela buscar ela pra ela se explicar. Vai ter manifestação,
o povo vai quebrar tudo. Então, ela deixa ele fazer o que quiser”.
Buscando outras pistas para tentar compreender a popularidade do médico,
recordo-me de que em sua sala havia sempre um pequeno aparelho de rádio
sintonizado em uma emissora popular; ele e sua equipe trabalhavam ouvindo músicas
ou notícias, quando estavam realizando tarefas administrativas. Tal hábito, embora
sutil, demonstra a proximidade e a tranquilidade no ritmo de trabalho com a equipe,
composta totalmente por mulheres: agentes, técnicas de enfermagem e enfermeiras,
todas de origem popular ou de classe média baixa. O radinho de Cláudio informa
também sobre sua trajetória pessoal, marcada pela ascensão social. Sua família tem
origem popular e ele nasceu e foi criado em uma área pobre da baixada fluminense,
onde ainda hoje vivem seus pais. Aos 18 anos, ingressou na Marinha, a partir de onde
começou a acumular algum dinheiro, o que lhe permitiu estudar e ser aprovado em
Medicina alguns anos depois. Formou-se pela UNIRIO e especializou-se em
endocrinologia e em Medicina de Família. Após ter cursado a especialização em Saúde
da Família pela universidade Estácio de Sá, em 2015 foi aprovado no exame de títulos
de especialista em Medicina de Família e Comunidade pela SBMFC, como já
mencionado. Essas poucas linhas já demonstram a complexidade de sua trajetória,
com um histórico profissional que transita entre a carreira militar e a de médico do
SUS. De algum modo, portanto, a vida de seus pacientes no Alemão não lhe é estranha
ou tão diferente do que ele próprio já viveu. É ainda mais próxima daquela vivida pela
equipe de profissionais que trabalham com ele.
Entre os profissionais de sua equipe, a maior parte lhe chamava de “doutor” e,
em geral, utilizavam “senhor” como pronome de tratamento ao se dirigirem a ele.
Ainda assim, a jocosidade era o tom predominante nos diálogos entre o médico e sua
equipe. Uma das agentes que trabalhava em sua equipe dizia, sem constrangimentos,
na frente dele: “Aqui na unidade temos três tipos de médicos: o incompetente, o
imprestável e o caridoso, que é só o Cláudio mesmo”. Como incompetente, a agente
113
classificava todos aqueles médicos que não demonstravam muita habilidade com
diagnósticos e procedimentos; como imprestável, aqueles que, segundo ela, eram
“braço curto” e nunca estavam dispostos a fazer algo além de suas obrigações mínimas
– sobretudo, auxiliar e tirar dúvidas de outros profissionais, além de assinar e carimbar
as receitas de medicamentos que os enfermeiros não tinham autorização para
prescrever. Já Cláudio, “o caridoso”, sempre acumulava tarefas, além daquelas já
designadas a ele, era também considerado um médico habilidoso. Na opinião da
agente, o fato de ele ser “bonzinho demais” fazia com que ele sempre tivesse mais
trabalho do que deveria.
A trajetória e a prática médica de Cláudio remetem ao clássico livro de Maria
Andrea Loyola, Médicos e Curandeiros (1984), no qual a autora analisa as diferentes
práticas terapêuticas existentes em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, nos anos
1980, antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Diferentemente dos médicos
ligados ao serviço público, os chamados “médicos particulares”, normalmente de
origem popular, praticavam uma medicina mais atenta ao lugar de origem dos
pacientes (muitas vezes, o mesmo onde eles foram criados), respeitando sua relação
com outras formas de cura (sobretudo religiosas) e também um forte aspecto
paternalista. A respeito disso, Loyola escreve:

A aptidão em manipular dois códigos culturais diferentes – o da medicina


erudita e o das classes populares – permite aos médicos particulares manter
com seus clientes uma relação privilegiada, em geral fora do alcance de
seus colegas oriundos de outras classes sociais. Esta relação caracteriza-se
principalmente pelo fato de se inspirar numa representação paternalista do
médico – personagem caridoso e solidário – que, como vimos, dá consultas
gratuitas ou a preços acessíveis, receita de acordo com os recursos
financeiros dos clientes, solicita como favor pessoal a gratuidade de
exames complementares, manifesta grande interesse pelo resultado do
tratamento, que, enfim, torna prioritária a qualidade da relação médico-
paciente, e não o aspecto técnico ou econômico do ato médico (LOYOLA,
1984, 28).

A diferença do caso aqui analisado com o cenário apresentado por Loyola é


que, no Complexo do Alemão, todos os médicos estão ligados ao sistema público e,
independentemente de suas personalidades e práticas médicas, encontram limites
diante de questões mais estruturais do funcionamento do serviço. Cláudio, por
exemplo, ainda que fosse visto como o “caridoso”, disposto a tudo, referia-se
constantemente a esses limites, por exemplo, à dificuldade de garantir certos
encaminhamentos para questões de maior complexidade, ou a ausência de

114
medicamentos, exames e procedimentos na “carta de serviços” da unidade. Uma
dessas impossibilidades era disponibilizar o Dispositivo Intrauterino (DIU) entre os
métodos anticonceptivos disponíveis para as usuárias da unidade. O médico dizia: “Eu
sei inserir o DIU, mas sou o único aqui na unidade que sabe; se eu fecho a porta do
meu consultório para fazer isso, derrubam a porta”, remetendo ao tempo longo que a
colocação do DIU levaria e a imensa fila de espera do lado de fora do consultório.
Outra atividade que Cláudio não poderia desempenhar era a preceptoria de residentes
ligados à Residência em Medicina de Família e Comunidade. Embora a titulação o
permitisse desempenhar essa função, ele não possuía tempo diante de tantas funções
assumidas para ser preceptor. Assim, a unidade não estava habilitada para receber
residentes em Medicina de Família e Comunidade, o que também comprometia a
realização de um atendimento mais focado naquilo que é preconizado para a atenção
básica no Brasil.

“A saúde não pode ter sentimento”


Iara era uma médica com perfil totalmente distinto de Cláudio. Quando eu a
acompanhava, sempre que encerradas as consultas de um dos períodos, manhã ou
tarde, Iara me perguntava sobre o que eu tinha achado daqueles atendimentos. Nessas
conversas, ela ia aos poucos me revelando uma série de convicções que tinha sobre o
Complexo do Alemão e seu trabalho ali. Na opinião de Iara, os pacientes eram
responsáveis por sua condição e alguns não desejavam se cuidar, nem sair da situação
de desigualdade em que viviam. Ao dizer isso, ela exemplificava: “Eles preferem
conviver com o tráfico do que com a Polícia. Então eles não querem sair dessa
condição!”. Ainda segundo a médica, o trabalho de saúde da família naquela unidade
só havia sido iniciado a partir de sua chegada, três anos antes. Ela dizia: “O Cláudio
quando estava sozinho aqui não conseguia fazer medicina de família, ele fazia UPA.
Fui eu quem comecei a saúde da família aqui, com muita resistência da gerência”. E
prosseguia:
Puericultura, por exemplo, quando a criança vinha por causa de uma virose
ou algo assim registravam como puericultura. A mesma coisa com o
preventivo. A mulher estava com algum sintoma e vinha para fazer a
consulta, eles registravam o preventivo. Mas na prática, não era prevenção.
Pré-natal aqui, ninguém fazia direito.

Entretanto, em conversas informais com usuários e outros profissionais, uma


ideia contrária aparecia. Uma vez me encontrei com Wagner, agente comunitário, e

115
lhe disse que eu estava indo fazer uma visita domiciliar com Cláudio, ao que ele
exclamou: “Ah, que bom que você está acompanhando o Cláudio, ele faz saúde da
família mesmo. A Iara não, ela faz biomedicina”. Embora o agente tenha tratado essas
duas dimensões como saberes opostos, é possível compreender o sentido da frase
quando situada no contexto de atuação dos dois médicos. O próprio Cláudio sabia que
uma de suas principais diferenças com relação à Iara estava em sua forma de lidar
com os pacientes e com os outros profissionais no trato pessoal. Um dia ele mesmo
me revelou: “Eu já disse para a Iara, você tem que ser menos fria com as pessoas.
Pegar na mão enquanto fala, tocar nelas. Tudo isso faz diferença”.
Iara era comumente mais “dura” com os pacientes, no sentido de que
costumava se dirigir a eles de modo mais ríspido, sobretudo pela forma como lidavam
com o serviço de saúde. Em uma ocasião, uma mulher foi à unidade com uma infecção
de pele e informou que já havia ido à UPA no dia anterior. Imediatamente, a médica
indagou: “Então por que veio aqui hoje?”. A mulher respondeu que preferiu checar
com ela se a pomada que haviam passado estava correta, pois ela não havia sentido
melhora. Iara notadamente se incomodou com a resposta e disse: “Mas o remédio não
vai fazer efeito do dia para a noite”, e em seguida dispensou a paciente. Quando a
mulher saiu, ela disse que os usuários possuíam uma “desconfiança” do atendimento
recebido na UPA e que isso era “coisa da cabeça deles”.
Já em uma reunião da equipe de Iara que acompanhei, discutia-se a necessidade
de que os casos de emergência fossem encaminhados à UPA e não atendidos ali. Nesse
período, ela realizava em torno de 600 atendimentos por mês, uma média de 30 por
dia. Iara então informou aos agentes que a meta seria reduzir esse número para 400
atendimentos. O caminho para essa redução seria que a partir do acolhimento os
agentes comunitários conseguissem enviar mais pessoas para a UPA. A discussão
sobre a alta demanda de atendimentos não agendados previamente na unidade era
sempre bastante calorosa. Especialmente no final do dia, quando os casos ainda não
atendidos começavam a ser encaixados na agenda dos médicos, o que sempre gerava
conflitos, fazendo com que alguns médicos inclusive saíssem da sala para ir tirar
satisfações com os agentes no acolhimento, sobre por que lhe estavam encaixando
mais pacientes.
Na semana anterior à que acompanhei a reunião da equipe de Iara, ocorreu uma
situação que desencadeou toda uma discussão na equipe. Uma mulher com o pulso
torcido foi apressadamente encaixada na agenda da médica por uma das agentes. Iara
116
tentava explicar a necessidade de que este caso tivesse sido encaminhado à UPA,
unidade mais adequada para esse tipo de atendimento. Entre os comentários feitos
pelos agentes para justificar o ocorrido estavam a falta de estrutura da UPA e a
dificuldade de lidar com os pacientes nesses momentos. Enquanto uma dizia “mas a
UPA nunca tem médico, doutora, a gente sabe que não adianta encaminhar para lá”, a
outra completava: “E eu fiquei com muita pena da mulher, ela estava chorando de dor,
o que eu iria fazer?”. A resposta de Iara a esse último comentário foi bastante enfática:
“A saúde não pode ter sentimento”.
Desse momento em diante, percebi que havia realmente uma diferença
importante nas práticas de Iara e Cláudio, o que acabava se revelando na disputa entre
eles sobre quem faria o melhor tipo de medicina. Enquanto Iara estava extremamente
preocupada com o cumprimento das normas para que a unidade não tivesse um
excesso de atendimentos e pudesse realmente praticar o que ela entendia por saúde da
família, para Cláudio, a vitalidade dessa prática estava em outra esfera, mais ligada
ao relacionamento pessoal e de proximidade com os usuários 86.
Na realidade, os problemas apontados pelos dois médicos se relacionavam
mutuamente, considerando que a quantidade de atendimentos diários afetava
diretamente sua qualidade e, por outro lado, poucos atendimentos com pouca
qualidade também seriam problemáticos. A discussão remete ao debate em torno do
tema do cuidado, inspirado sobretudo em Joan Tronto (2009) e Annemarie Mol (2010).
Tronto (2009, 106) propõe pensarmos o cuidado considerando quatro modalidades
específicas, levando em conta que o cuidado pode consistir em uma prática, em uma
disposição ou em ambas. Entre as modalidades de cuidado propostas pela autora
estariam o taking care of e o care giving87. Sem tradução exata para o português, tais
termos podem ser compreendidos da seguinte maneira: o taking care of seria um
próximo passo com relação à primeira modalidade do cuidado, o caring about,

86
Já os cubanos, aparentemente, não entravam nesse embate. Sempre que eu questionava algum outro
profissional sobre a presença dos médicos, havia bastante cautela em dizer o que pensavam deles, talvez
pela mesma razão que os cubanos não se mostraram inicialmente abertos à minha pesquisa. O temor de
como a opinião pública poderia enxergá-los era compartilhado por seus colegas, que viam neles peças
importantes para o funcionamento da unidade, já que antes de sua chegada trabalhavam apenas com
dois médicos. Só mais tarde, quando já haviam ido embora, Cláudio me confidenciou que se incomodava
com a demanda que os cubanos tinham de compromissos externos relativos ao Programa Mais Médicos,
como cursos de formação e reuniões, deixando-o muitas vezes sobrecarregado com atendimentos na
unidade enquanto eles estavam fora.
87
As quatro modalidades são: caring about, taking care of, care giving e care receiving (Tronto, 2009,
106).

117
enquanto o care about, que possui um sentido próximo de “se importar”, não envolve
necessariamente uma resposta com relação àquele que recebe o cuidado (é possível,
por exemplo, se importar com as crianças que passam fome na África, mas não fazer
nada a respeito disso). O taking care of envolve alguma resposta à demanda de
cuidado, uma agência e uma responsabilidade pelo problema. É diferente do care
giving, contudo, que não necessariamente envolve uma ação física, um contato direto
com aquele que necessita de cuidados, o care receiver.
Quando Cláudio sugere a Iara que ela deve ser menos fria, tocar nas pessoas
quando fala, ele movimenta sua prática de cuidado entre o taking care of e o care
giving. De algum modo, no meio médico, essa distinção esteve sempre colocada entre
médicos e enfermeiros 88 , de forma que os primeiros seriam responsáveis pelo
paciente, mas os segundos exerceriam a tarefa de cuidado. Mol (2010) faz uma
distinção sobre o que seria uma ética do cuidado frente à ética médica, mais próxima
à ética da justiça, também analisada por Tronto (2009). Ela diz:
Ao contrário da ética médica, a ética do cuidado nunca procurou responder
ao que é bom, muito menos fazê-lo do lado de fora. Em vez disso, sugeriu
que as práticas de cuidado envolvem uma modalidade específica de lidar
com questões relacionadas ao estar bem. Na ética da justiça, a ética é
considerada uma questão de ordenar princípios por meio de argumentação.
Os princípios éticos adequados são gerais, ou melhor ainda, universais. Na
ética do cuidado, foi enfatizado que, na prática, os princípios raramente
são produtivos. Em vez disso, soluções locais para problemas específicos
precisam ser encontradas. Eles podem envolver a justiça, mas outras
normas (como honestidade, gentileza, compaixão, generosidade) podem
ser iguais ou mais importantes (MOL, 2010, 13).

É nesse mesmo sentido que a autora opõe uma lógica da escolha à lógica do
cuidado (Mol, 2008). O princípio da primeira seria a autonomia e o direito individual
do paciente de escolher entre fazer ou não um tratamento ou escolher entre os
tratamentos disponíveis. Entretanto, ao escolher, o paciente assume também
responsabilidade individual por sua saúde. Apesar de inspirar uma certa liberdade, tal
autonomia, segundo Mol, levaria muito mais a uma relação de dominação entre
médico e paciente. Vale lembrar ainda que tal “autonomia” pode ser em muitos
contextos ilusória, já que, como demonstrado aqui, a maior parte dos pacientes
possuem uma restrição sobre quais escolhas podem ou não fazer diante de um contexto

88
Cf., por exemplo, Molinier (2014).

118
marcado pela pobreza e pela violência estrutural. A ideia de que o cuidado de si
independe de questões coletivas aparece explicitamente na já citada reunião realizada
por Iara com sua equipe, quando ela diz: “A saúde é deles, a responsabilidade é deles”.
No caso específico de Iara, ela atrelava ainda tal escolha a uma certa inércia da
população, que contribuiria inclusive para a desigualdade social em que viviam. Ao
contrário, em uma lógica do cuidado sugerida por Mol, os sujeitos são sempre
compreendidos de forma relacional, como parte de coletivos nos quais sua escolha é
apenas um entre tantos elementos que contribuem para o cuidado.
No cenário internacional, a literatura sobre Atenção Primária à Saúde
reconhece que a prática médica na atenção básica deve sustentar alguns pilares,
chamados por eles de atributos. Constituem atributos primários a atenção ao primeiro
contato, a longitudinalidade, a integralidade e a coordenação dos níveis de atenção
(Starfield, 2002). Outros textos apontam a importância dos atributos derivados, entre
os quais destaco aqui a chamada “competência cultural”. A competência cultural se
dá por meio do reconhecimento de diferentes necessidades dos grupos populacionais,
suas características étnicas, raciais e culturais, entendendo suas representações dos
processos saúde-enfermidade (Giovanella, Mendonça, 2009).
Embora a discussão sobre competência cultural esteja mais ligada no Brasil ao
trabalho de médicos fora dos grandes centros – zonas rurais, quilombolas, indígenas
e ribeirinhas –, no caso do Complexo do Alemão a questão se faz presente nas
consultas médicas presenciadas. Isso porque, ao mesmo tempo em que não se admite
a existência de concepções culturais relativas ao corpo e às doenças distintas entre
aquela população, não há nenhuma maneira de lidar com o fato de que a condição de
pobreza é estruturante ali e não individual, exceto pelo fato já mencionado de essa
população ser considerada “vulnerável” e os diversos protocolos epidemiológicos
específicos que derivam daí são relativos a algumas doenças, tais como tuberculose,
por exemplo.
Mais do que apenas respaldar-se no modelo biomédico, ao falar sobre o
insucesso dos tratamentos, a médica Iara alude a uma “lógica da escolha”, apoiando-
se também em valorações em torno daquela população e de seu modo de vida. Tal
aspecto tornou-se ainda mais claro quando passei a acompanhar os médicos recém-
chegados. Em suas performances, conjugam-se suas histórias de vida, a experiência
profissional que acumularam até ali, a pouca motivação para atuarem em um ambiente

119
marcado pela pobreza, as dificuldades de lidarem com situações de vida tão difíceis e
os diversos preconceitos que possuem com relação àquele espaço e seus habitantes.

Os “recém-chegados”
Entre o final de 2016 e o início de 2017, ocorreram duas mudanças
significativas na dinâmica do serviço. A primeira foi a já mencionada mudança para a
nova unidade e sua expansão; a segunda foi a saída dos médicos cubanos. No início
de 2017, portanto, então com oito equipes, a Clínica da Família tinha somente um
médico experiente e antigo, Cláudio, e todos os outros eram recém-chegados ao
trabalho. No entanto, até o meio do ano, a situação ainda não havia mudado, pois boa
parte dos que ingressaram no início do ano já haviam saído e outros haviam entrado,
de modo que a situação de trabalho com médicos recém-chegados foi se tornando
permanente. Nesse semestre, a rotatividade de médicos na unidade atingiu seu
recorde, de acordo com os profissionais mais antigos (enfermeiros e Agentes
Comunitários de Saúde). Nenhum médico contratado permaneceu por mais de três
meses na unidade; todos pediram demissão ou transferência para outra unidade antes
do fim do período de experiência. Até julho do mesmo ano, ao menos dez médicos
entraram e saíram da unidade; a maior parte deles era recém-formada ou nunca havia
atuado na atenção básica. Três desses médicos, Camilo, Diogo e Marina, foram
acompanhados por mim em períodos diferentes e sintetizam bem as trajetórias dos
médicos “recém-chegados”.
Camilo é um médico cubano que não está ligado ao Programa Mais Médicos e
possui uma trajetória bastante peculiar. Ele se casou com uma brasileira nos anos 1980
e passou a viver em uma cidade de Minas Gerais. Mesmo tendo apenas o diploma de
generalista validado no Brasil, ele passou a trabalhar e a operar como ortopedista, sua
especialidade em Cuba, de acordo com ele. No entanto, após um conflito com sua ex-
mulher, ela acabou fazendo uma denúncia ao Conselho de Medicina e ele teve seu
CRM cassado por estar operando na ortopedia sem ter essa especialidade validada no
Brasil. Anos depois, Camilo cursou uma especialização em cirurgia plástica e se
mudou para a Baixada Fluminense, onde passou a trabalhar em uma clínica popular
de cirurgia plástica. Camilo conta que com a crise econômica no país a procura por
cirurgias plásticas diminuiu muito. Ao mesmo tempo, sua filha mais nova foi
diagnosticada com autismo. Camilo diz que a filha passou a fazer uma série de
terapias, o que acabou aumentando enormemente seu custo de vida. Foi quando ele

120
resolveu procurar um trabalho fixo, assalariado, além da clínica de cirurgia plástica.
A partir de contatos que possuía dentro da gestão municipal de Nilópolis, conseguiu
um trabalho em uma UPA e, logo em seguida, em um hospital municipal. Todavia,
com a mudança da prefeitura na eleição de 2016, perdeu seu cargo e se candidatou a
uma vaga na atenção primária no Rio de Janeiro. Como todos os outros médicos,
quando foi contratado pela OSS Viva Rio, não sabia que iria para o Complexo do
Alemão.
O Complexo do Alemão foi também o destino surpresa de dois jovens recém-
formados. Diogo e Marina chegaram à unidade em momentos diferentes, sem
nenhuma experiência profissional prévia, exceto o internato. Em comum, os dois
também diziam estar ali pelo salário, que era atraente, sem exigir experiência
profissional. Mas enquanto Marina pretendia sair de lá o quanto antes para cursar a
residência em dermatologia, Diogo tinha um planejamento a longo prazo: trabalhar
por dois anos na atenção primária antes de cursar uma residência, para que pudesse
pagar as prestações de seu apartamento recém-comprado em Niterói e os custos de sua
festa de casamento, que já estava sendo planejada em Belo Horizonte, onde viviam
sua família e sua noiva.
Quando conheci Marina, ela estava acompanhando Glória em seus
atendimentos, antes de efetivamente começar a atender. Acompanhei as duas em uma
dessas ocasiões e Marina aproveitou um momento em que Glória se afastou para me
perguntar: “Como é lá?”. “Lá”, para Marina, era a favela, na qual ela ainda não tinha
entrado desde que havia iniciado seu trabalho ali. “Me disseram que minha área de
cobertura é tranquila”. “Qual é?”, perguntei. Ela me apontou no mapa com a divisão
das equipes da unidade. Não consegui disfarçar e disse que não era a área mais
tranquila com relação à violência, mas que ela iria “tirar de letra”, tentando encorajá-
la. Ela respondeu que “o problema é ter que fazer a VD [visita domiciliar] a cada
quinze dias né...”. Novamente, tentando animá-la, respondi: “Vai ser uma experiência
que vai mudar a sua vida, você vai ver”. “Mas eu não pretendo ficar aqui por muito
tempo”, ela logo emendou, “quero tentar a residência em outra área”. A conversa com
Marina revelou que ela não estava preocupada apenas com a situação da violência no
Alemão, mas sim com toda uma realidade para ela totalmente estranha, distante de
seu cotidiano e de suas expectativas.
Nenhum dos três médicos recém-chegados mencionados anteriormente
permaneceram por mais de três meses na unidade. Marina e Diogo pediram
121
transferência para outra unidade gerida pelo Viva Rio e Camilo pediu demissão. Os
motivos para a não permanência dos médicos faziam parte das conversas de corredores
entre os profissionais da unidade. A questão da formação e da experiência profissional
aparecia não entre os próprios médicos, mas na fala de enfermeiros e de Agentes
Comunitários de Saúde, como um dos motivos pelos quais os médicos não
permaneciam nessa unidade. A falta de experiência e formação adequadas
contribuiria, segundo eles, com a dificuldade dos médicos em suportarem a demanda
intensa e complexidade do trabalho lá. Em conversa com uma Agente Comunitária de
Saúde sobre um novo médico que iria começar a trabalhar na unidade, ela nos disse
que iria alertá-lo quando chegasse: “Olha, aqui é muita demanda, você vai aguentar?
Se não, é melhor nem começar”. Já outro Agente, também envolvido na conversa,
respondeu: “Mas esse parece que tem alguma experiência, não sei no que é, mas pelo
menos tem alguma coisa né? Já ajuda”, demonstrando o reconhecimento, por parte
desses outros profissionais, da importância de que o médico já tenha passado por uma
transição entre a faculdade de medicina e a prática médica, ou entre o “saber’ e o
“sentir” (Bonet, 2004).

“Isso aqui é uma UPA!”: o problema da demanda


A discussão já presente no conflito entre Cláudio e Iara sobre afinal que tipo
de serviço era oferecido pela unidade se reforçava entre os recém-chegados e, a partir
daí, assumia duas diferentes faces. Por um lado, havia uma preocupação com o alto
número de atendimentos feitos pela unidade que descaracterizariam a qualidade dos
atendimentos. Para Iara, todo o problema estava resumido nessa questão: “fazer UPA
ou saúde da família”. A atenção básica, na opinião dela, deveria atender poucos casos
e não urgentes, apenas para prevenção e promoção da saúde. Segundo a médica, havia
duas barreiras para que esse tipo de atendimento fosse implementado. A primeira
estava relacionada a uma postura da gerência de orientar o acolhimento a aceitar todas
as demandas. A segunda tinha relação com o tamanho da população adscrita em cada
equipe; a maior parte delas passava de quatro mil usuários 89.
Por outro lado, Cláudio entendia que cabia ao médico atender todas as
demandas que a estrutura do serviço os permite atender, além das consultas

89
No sistema de saúde cubano, cada equipe atende no máximo 120 famílias, cerca de 600 usuários. No
Brasil, é preconizado um máximo de 4 mil usuários por equipe, mas o recomendado são 3 mil.

122
agendadas90. Ou seja, diferente de Iara, que acreditava que era necessário dar maior
ênfase ao trabalho “preventivo”, Cláudio entendia a importância da atividade clínica
curativa na atenção básica. Assim, não se preocupava tanto com que tipo de demandas
atenderia, mas sobretudo como as atenderia. Na visão dele, o desafio estava
principalmente em conseguir oferecer ao usuário um atendimento de tempo e com
qualidade, independentemente de se tratar de um problema urgente ou de uma consulta
de prevenção. Nesse caso, o problema residia sobretudo no tamanho da população
adscrita. Cláudio não tinha críticas à postura da gerente de acolher as demandas, mas
achava que o número de usuários atendidos por equipe na unidade era demasiado e
prejudicava a realização de um bom trabalho.
O uso do termo fazer nesse caso é importante, pois demonstra que
independentemente de todo um conjunto de programas, cartas, métodos e orientações
para o funcionamento de uma unidade básica de saúde, as escolhas feitas no cotidiano
do serviço, mais do que sua denominação por parte do poder público, acabavam
constituindo o que o serviço de fato era, remetendo à ideia de um “fazer-se Estado”,
já proposta por Souza Lima e Castro (2015), no cotidiano das ações de governo. No
entanto, as distintas concepções dos médicos sobre como fazer saúde acabavam
gerando uma confusão que, enfim, se estendia aos usuários, permanentemente em
dúvida se deveriam, a cada situação, serem atendidos na UPA ou na Clínica da Família,
gerando um efeito “ping-pong” entre os dois serviços de saúde.
Em uma situação, no final do dia, um rapaz chegou ao acolhimento com uma
fratura exposta em um dos braços. Eu acompanhava Diogo, quando uma das
enfermeiras bateu na porta do consultório com o rapaz e disse: “Diogo, vim te chamar
porque você é o único médico disponível na unidade agora que sabe suturar direito”.
Diogo se levantou e seguiu com o jovem e a enfermeira para a sala de procedimentos,
deixando-me sozinha com a usuária que atendia no consultório. Quando retornou,

90
De acordo com Tiago Vidal (2013): “O Acesso Avançado (AA) é um sistema de agendamento médico
que consiste em agendar as pessoas para serem atendidas pelo médico no mesmo dia ou em até 48 horas
após o contato do usuário com o serviço de saúde. Diversos Sistemas Nacionais de Saúde no mundo, tais
como Canadá e Inglaterra, por exemplo, implementaram o acesso avançado na Atenção Primaria à Saúde
(APS) com o objetivo de melhorar o acesso das pessoas aos cuidados em saúde. O Acesso Avançado tem
como objetivos diminuir o tempo de espera por uma consulta médica, diminuir o número de faltas às
consultas médicas e aumentar o número de atendimentos médicos da população”. Nesse sistema, as
agendas dos médicos priorizam o atendimento espontâneo ao atendimento agendado. Florianópolis é
uma das cidades brasileiras onde o Acesso Avançado é adotado majoritariamente na atenção básica
(Vidal, 2013).

123
perguntei se havia dado tudo certo. Ele respondeu que não, pois não havia material
para suturar na unidade, então tiveram que encaminhar o rapaz para a UPA.
O evento tornou evidente a confusão existente entre todos ali sobre o fluxo de
acesso aos serviços. Era um problema ainda mais grave diante da situação do rapaz
que andava de um lado para o outro com a fratura exposta e que ainda foi aconselhado
a seguir andando até a UPA, distante cerca de vinte minutos dali, já que a ambulância
demoraria ainda mais e o médico não poderia acompanhá-lo até lá. Enquanto isso,
Diogo atendia uma idosa em seu consultório, que falava de seu histórico de problemas
de saúde que incluíam uma série de questões, tais como esquecimentos, apagões,
artrite, artrose e “bico-de-papagaio” (osteofitose). Ele então disse: “Espera aí Dona
Lucimara, é muita coisa, vamos organizar”, e ao mesmo tempo escreveu no
prontuário: “Neste momento, encontra-se poliqueixosa”. Ela apresentou um laudo ao
médico, feito por um psiquiatra, no qual seus transtornos psíquicos estavam atrelados
às agressões físicas que sofria do marido. Quando timidamente ela começou a explicar
o problema para o médico, ocorreu a primeira interrupção. A enfermeira entrou
dizendo que precisava de uma assinatura e carimbo. Logo depois, outra apareceu
falando da necessidade da sutura. Finalmente, quando o médico retornou, mais três
agentes entraram na sala, com demandas distintas. Eu e a idosa calada nos
entreolhamos, diante de tanta confusão. Finalmente, quando todos saíram, o médico
disse: “Só nessa consulta acho que já fui interrompido umas cinco vezes, onde
estávamos mesmo? Já nem lembro mais”. Dona Lucimara respirou fundo e voltou a
falar do marido alcoólatra e da prescrição que recebeu do psiquiatra; pediu ao médico
que a encaminhasse para um psicólogo e ele se lamentou dizendo que o
encaminhamento naquela unidade era feito apenas para os casos mais graves,
orientando-a então a procurar serviços que oferecessem gratuitamente esse tipo de
atendimento.
Em outra situação, também com Diogo, uma idosa hipertensa estava sendo
atendida por uma enfermeira e, assim que iniciou o exame, a enfermeira constatou que
a senhora estava tendo um ataque cardíaco. Ela entrou esbaforida no consultório,
interrompendo a consulta que ele fazia no momento, e disse: “Doutor, por favor, o
senhor pode vir aqui agora? Estou com uma bomba relógio na minha sala”. Em
seguida, iniciou-se uma correria para atender a idosa, que foi logo levada para a sala
de procedimentos, onde recebeu uma medicação e a UTI móvel foi chamada para levá-
la ao hospital. Os dois profissionais, médico e enfermeira, corriam de um lado para o
124
outro para agilizar os procedimentos e inclusive eu acabei recebendo uma atribuição,
a de mobilizar pessoas que pudessem carregar a maca. Em meio a esse processo, a
enfermeira claramente nervosa esbravejou: “Isso aqui é uma UPA! Ela [gerente] faz
UPA!”.
Essa não foi a única vez em que isso ocorreu. Em algumas ocasiões, ocorreram
óbitos de pacientes que chegavam à unidade em situação crítica e os médicos não
tinham instrumentos suficientes para atender, nem tempo hábil para encaminhar.
Cláudio, que estava na unidade há mais tempo, acumulava um currículo extenso de
atendimentos emergenciais feitos com os poucos instrumentos disponíveis na unidade,
incluindo partos e atendimentos a paradas cardíacas, alguns bem-sucedidos, outros
não. Em uma situação em que eu participava da reunião de sua equipe, ele teve que
sair pois havia um usuário enfartando no acolhimento. Após atender e acompanhar o
usuário na ambulância que o levou à UPA, Cláudio retornou à reunião e nos disse,
bem-humorado: “Estão vendo? Depois me perguntam por que eu não trabalho no
[sistema] particular; lá não tem essa emoção!”.
No entanto, o que era entendido por Cláudio como “emoção” ou como parte de
seu trabalho, pela maior parte dos outros médicos era compreendido como um excesso
de demanda e de atendimentos inapropriados para o serviço oferecido ali. Enquanto
usuários e profissionais reclamavam da falta de estrutura da UPA do Alemão,
sobretudo pela falta de médicos91, Cláudio comumente explicava aos colegas que a
UPA no Alemão possuía uma classificação diferente das demais e havia sido criada
apenas para dar suporte às Clínicas da Família no entorno. Por essa razão, em horário
comercial, a UPA não funcionava com “portas abertas”. Os atendimentos de urgência92
deveriam ser feitos pelas unidades de atenção básica, cabendo à UPA somente os
atendimentos de emergência encaminhados pela atenção básica 93. À noite e aos finais
de semana, a UPA deveria fazer todos os atendimentos necessários94. Camilo, em uma
ocasião, me disse:

91
A falta de médicos na UPA do Alemão foi tema de matéria da revista Veja em 2014:
<https://veja.abril.com.br/brasil/medicos-se-recusam-a-trabalhar-no-complexo-do-alemao/> (acesso em
26 de junho de 2018).
92
“Ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita
de assistência imediata”, segundo definição do CFM Res. 1451/95.
93
“Constatação médica de agravo à saúde que implique em risco iminente de vida, ou sofrimento intenso,
exigindo, portanto, o tratamento médico imediato”, segundo definição do CFM Res. 1451/95.
94
Independentemente dessa classificação da UPA ter sido pactuada em reuniões de coordenação de área
(das quais Cláudio participava, por ser responsável técnico), nenhum outro profissional ou usuário parecia
estar ciente disso e assim o “ping-pong” seguia no cotidiano da unidade.

125
O Cláudio e o pessoal da prefeitura são amiguinhos, então ele vai à reunião
e não fala da nossa situação aqui, diz que está tudo bem, mas não está. Eu
estou juntando as fichas para mostrar que só nesse ano tivemos vinte óbitos
aqui que vieram encaminhados da UPA, isso é um absurdo. É pior trabalhar
aqui do que na UPA. Eu esperava outra coisa quando vim para cá 95.

No caso de Camilo, sua dificuldade em realizar o trabalho tornava-se ainda


mais latente pelo fato de que ele não conhecia as famílias, não tinha experiência na
atenção básica e também tinha muita dificuldade em utilizar o prontuário eletrônico e
o sistema de regulação de vagas. Uma vez, durante um desses longos silêncios comuns
nas consultas médicas, que se estabelecem quando o médico escreve no prontuário ou
confecciona as receitas médicas, ele me disse: “Sabe, é muito ruim, não consigo olhar
no rosto das pessoas porque tenho que olhar o tempo todo para esse computador”.
Essa habilidade que Camilo não possuía não seria ensinada a ele em nenhuma
faculdade de medicina ou curso de especialização. Tratava-se, afinal de contas, de
algo fruto de uma sensibilidade e de uma habilidade que não poderia ser transmitida,
mas sim aprendida observando outros médicos trabalharem, por meio não de uma
reprodução, mas de uma “criação continuada”, aquilo que Tim Ingold chamou de
“educação da atenção” (Ingold, 2010). Nesta unidade, como a ausência de médicos
era excessiva, o tempo de treinamento de um médico recém-contratado era de apenas
uma semana e logo ele já iniciava o atendimento. Assim, era difícil que pudesse
observar como se fazia essa gestão de tempo, entre o preenchimento dos dados no
computador e a conversa com o paciente, entre outras habilidades para a prática da
medicina de família e comunidade.

“Isso não deveria existir”: o problema da “vulnerabilidade”


Uma das consultas que acompanhei com Marina também evidenciou a falta
desse tipo de prática. Ela estava na unidade há pouco mais de um mês e já havia sido
designada para treinar outra médica, também recém-formada e recém-chegada à
unidade, Laura. Adentrou na sala um paciente de 40 anos, acompanhado da esposa e

95
Na frase de Camilo, sintetiza-se uma noção bastante comum dos médicos com relação à ESF, na qual
acreditam que trabalhariam apenas com prevenção à saúde, atendimento de pré-natal em gestantes,
puericultura em crianças e acompanhamento de doenças crônicas. A literatura específica sobre
assistência à saúde no Brasil tem tratado desse problema em diversas cidades no país. Em pesquisa
realizada em diferentes unidades de saúde, Deborah Farias (2015) e colaboradores demonstram que os
principais problemas nesse sentido são a falta de preparo dos profissionais e a estrutura da unidade para
atender as urgências.

126
da filha, um bebê de oito meses, queixando-se fortemente de dor anal, dificuldade para
evacuar e sangramento. Marina o recebeu bastante impaciente, disse que já o tinha
recebido naquela semana e que ele deveria aguardar que o medicamento indicado
fizesse efeito. O paciente se queixava de muita dor e disse que o medicamento não
tinha surtido resultado algum, solicitando o tempo todo para que a esposa confirmasse
sua situação. A nova médica refez toda a anamnese do paciente procurando encontrar
um diagnóstico. Laura estava empenhada em encontrar a causa do problema, enquanto
Marina, bastante impaciente, parecia apenas querer se livrar do paciente. Laura então
mencionou que, em casos como esse, o procedimento correto seria realizar o exame
de toque e perguntou se Marina já havia feito. Ela respondeu que não e as duas
passaram a discutir sobre se era realmente necessário e qual das duas faria. Elas
perguntaram ao paciente se ele aceitaria fazer e ele disse que sim, que faria qualquer
coisa para resolver aquele incômodo.
A partir daí, ele começou a falar de sua vida e, como não encontrava o olhar
das duas jovens médicas ao falar – elas estavam anotando informações no prontuário
ou pesquisando sobre o diagnóstico em aplicativos no celular –, passou a olhar para
mim e me contar de sua vida. Disse que era novo no trabalho e tinha medo de perder
o emprego de vigilante noturno. Olhou para a filha pequena e disse que ela era tudo
para ele, “foi um presente de Deus, ele me deu depois que perdi meu filho de 21
anos...”. Enquanto ele falava, emocionou-se. As médicas, ainda focadas em discutir o
caso, haviam decidido que Laura faria o exame de toque, pois já o havia feito no
internato no Hospital do Fundão, enquanto Marina nunca havia feito. Perguntei se eu
precisava me retirar do consultório e tanto elas, quanto o paciente, responderam que
não. Laura então realizou o exame – no qual foi possível observar que tanto ela, quanto
o paciente estavam apreensivos – e constatou que não havia nada, estava normal, sem
fissuras. Após o exame, elas receitaram uma pomada para dor e pediram para que ele
seguisse com a medicação prescrita anteriormente. Quando o paciente finalmente saiu,
Marina se certificou de que a porta estava bem fechada e proferiu como se tivesse
desabafando, pausadamente, um sonoro xingamento. Em seguida, começou a nos
contar que o paciente já havia ido a uma consulta nessa semana e que ela sabia que o
real motivo de seu incômodo era que ele não queria ir ao trabalho. Elas nos contou
que em um mês trabalhando ali, já havia notado que muitas pessoas procuravam o
serviço de saúde apenas para pegar atestado e não trabalhar.

127
Laura não concordou explicitamente, mas também não se opôs. Embora
parecesse mais confiante e experiente do que a colega, ela estava ali “aprendendo”
com ela sobre como atuar no postinho. Enquanto Marina preenchia os dados no
computador, explicava para a outra médica o funcionamento do sistema Prime, de
prontuário eletrônico, e o SISREG, para encaminhamento aos especialistas, mas não
dizia, até porque também não havia sido ensinada, que Laura deveria também olhar
para o paciente enquanto ele falava.
Apesar de parecer mais preocupada em aliviar o sofrimento do paciente,
empenhada em encontrar um diagnóstico, Laura não se opôs à ideia de que se tratava
apenas de uma encenação para conseguir um atestado. Independente de situações
como essas ocorrerem ou não no cotidiano de uma unidade de saúde, importa dizer
que o único aspecto da subjetividade levado em consideração para compreender o
sofrimento do paciente foi ele não querer ir ao trabalho, o que de fato poderia ser
verdade, mas, ainda assim, revelaria um sofrimento significativo e passível de
intervenção por um médico de família: por que não desejava ir ao trabalho? O que
poderiam fazer conjuntamente para aliviar aquele sofrimento?
Em uma situação semelhante, acompanhei com Diogo a consulta de Claudiane,
uma gestante. Na época, a jovem mulher estava com quarenta semanas de gestação e
desejava dar entrada na licença maternidade. O médico se recusava em atendê-la,
mesmo ela tendo comparecido à unidade diversas vezes naquela semana. Ele
finalmente aceita atendê-la quando a ordem vem da gerência para que ele não negasse
mais o atendimento. Quando Claudiane entrou no consultório, bastante cabisbaixa, o
médico a recebeu de mau humor, dizendo que “já sabia o que ela queria”. Iniciou-se
então uma conversa na qual o médico dizia que ela estava insistindo na licença, já era
a segunda vez ali naquela semana, mas que ele não queria conceder a licença
maternidade antes do parto, porque assim ela estaria abdicando de um tempo que
poderia passar com a criança e de amamentar. Ela respondeu que estava ciente disso
e mesmo assim desejava sair de licença. Ele então, aparentemente contrariado pela
insistência da paciente, começou a preencher os papéis relativos à licença.

Quando o médico saiu do consultório para buscar uma impressão, eu perguntei


à Claudiane como ela estava se sentindo, se a barriga estava muito pesada e ela muito
cansada. Ao ouvir minha pergunta na ausência do médico, ela imediatamente começou
a me contar que o problema não era a barriga e o cansaço, mas sim o desânimo que

128
ela sentia, pois o pai de seu filho havia morrido durante a gestação, logo após descobrir
uma leucemia. Eles estavam morando juntos e tinham planos de se casar. Agora,
Claudiane havia voltado para a casa da mãe e estava revendendo os poucos móveis
que tinha comprado para o bebê para poder sustentar a criança sem a ajuda do pai.
Após saber da história, a tristeza tomou conta de nós duas e, logo que o médico entrou,
ela pegou o papel, despediu-se e eu pude apenas desejar “boa sorte”.

Ao retornar, o médico me disse: “Ela não quer mais trabalhar e fica vindo aqui
no posto todo dia pegar atestado, pedindo a licença, é mole?”. Eu então lhe contei
sobre a história do pai do filho dela e ele pareceu espantado por alguns minutos, mas
logo em seguida repetiu que, ao negar o pedido da licença-maternidade, ele estava
apenas orientando a paciente com relação ao que era “melhor pra ela e para o bebê”.
Ficou claro assim que o jovem médico possuía a convicção de saber o que era melhor
para a gestante e o dever de lhe instruir. E como saber também é poder, nesse caso ele
possuía o poder específico de conferir a licença maternidade à gestante através de um
requerimento. Supostamente um direito adquirido pelas mulheres a partir de 36
semanas de gestação, mas pelo qual Claudiane precisou insistir para obter. Ao ter o
pedido negado pelo médico, a gestante levou sua demanda até a gerência e a partir daí
o médico, mesmo a contragosto, acabou tendo que atendê-la. Ao não aceitar a
recomendação médica de aguardar o nascimento da criança para dar entrada na licença,
Claudiane foi vista como somente alguém que “não quer mais trabalhar”. Não era
mentira que Claudiane queria parar de trabalhar, no entanto, seus motivos para tanto
nunca foram ditos por ela, nem ouvidos pelo médico. Embora o médico tivesse
dificultado o processo da licença, a jovem demonstrou que sabia muito bem qual era
o caminho necessário para obter dele o que queria: levar o caso para a gerente, a única
pessoa hierarquicamente acima do médico na lógica de trabalho.

Nesse e no caso anterior, seja qual fosse a motivação do paciente atendido por
Laura e Marina, ambos os pacientes estavam sofrendo. Porém, ali os jovens médicos
se utilizam dos elementos epistêmicos dos quais dispunham (o que aprenderam em
suas faculdades e os manuais de medicina disponíveis em aplicativos de celulares)
para a obtenção de objetivos éticos: nesse caso, impedir que os pacientes
conseguissem atestados e licenças, os quais em suas opiniões serviriam “apenas” para
não ir ao trabalho. Assim, mais do que “recorrer a um corpo que não inclui o homem”,
para utilizar as palavras de Le Breton (2003, 189) ao se referir à “fratura ontológica”

129
entre homem e corpo da qual nasce a medicina moderna, vemos um embate entre
diferentes ontologias, na qual o homem e seu corpo estão integrados tanto na fala das
médicas, como na do usuário, mas de modos distintos.
Annemarie Mol utilizou o termo “ontologias políticas” (2002, 55) para se
referir às diferentes realidades performadas (enacteds) sobre um mesmo fenômeno,
distanciando-se da ideia de “verdade”. Ali, não se trata de dizer se aquele homem
tinha um problema para evacuar ou nenhuma vontade de trabalhar. As causas de seu
sofrimento eram mais do que uma e menos do que muitas. Isso quer dizer, nos termos
de Mol, que a realidade, assim como o corpo, pode ser múltipla, mas não fragmentada.
Há sempre uma vinculação entre as diferentes “ontologias” que a compõem.
Tal situação vai de encontro a outras encontradas por mim em campo, as quais
chamei aqui de “o problema da vulnerabilidade”. O conceito de vulnerabilidade em
saúde foi um termo introduzido na área pelos teóricos da saúde coletiva nos anos 1990,
sobretudo ligados aos estudos em torno da epidemia de HIV/AIDS, visando substituir
a noção de risco, comumente utilizada pela epidemiologia (Ayres et al., 2009). A ideia
de vulnerabilidade social buscava superar a dicotomização criada entre “grupo de
risco” e “população geral”, antes utilizada para pensar sobre a epidemia de HIV,
tirando o foco do indivíduo e de possíveis “comportamentos de risco”, que geravam
preconceito e estigmatização. A despeito do debate acadêmico em torno dos dois
termos, encontramos no cotidiano do serviço de saúde etnografado um entrelaçamento
das duas categorias, sendo que os profissionais parecem considerar que o significado
de vulnerabilidade seja basicamente igual ao de pobreza. Logo, a pobreza tornava-se
um fator que precisava ser levado em conta nas práticas de saúde, de um ponto de
vista meramente epidemiológico, crucial no aumento do risco de adoecer, mas não
como algo que marcava de modo mais amplo as experiências de vida e sofrimento.
A ausência de instrumentos e conceituações para os profissionais lidarem com
a questão da desigualdade que afeta a população do Alemão ficou evidente em
inúmeras situações. Em uma delas, durante uma visita domiciliar na qual eu
acompanhava a equipe de Cláudio, ele me explicou que apenas uma das equipes da
unidade possuía um número reduzido de pessoas cadastradas. Ao invés de cerca de 4
mil usuários – o limite preconizado pelo Ministério da Saúde –, a equipe tinha 2500
usuários cadastrados. Ele me disse que isso se dava pois era a equipe com maior
“vulnerabilidade”. Ao ouvir o termo, questionei sobre como se media o grau de
vulnerabilidade. O médico respondeu prontamente: “Temos um índice para medir, são
130
os ACS que medem. Como é mesmo que vocês fazem?”, perguntou às agentes que nos
acompanhavam. Uma delas então respondeu: “Medimos pela área que tem mais
beneficiários do Bolsa Família”. Um pouco constrangido, o médico disse que não era
a isso que ele se referia e sim a uma escala, que não conseguia lembrar o nome e que
eles usavam “lá no começo, quando iniciamos o PSF aqui no Alemão”. A ACS,
também antiga na unidade, disse que não se lembrava dessa escala e que o critério
usado atualmente era o Bolsa Família. Poucos dias depois, o médico entrou em contato
comigo pelo WhatsApp dizendo que havia se lembrado do nome da escala que
utilizavam para medir vulnerabilidade, tratava-se da Escala de Coelho-Savassi.
A Escala de Coelho-Savassi visa avaliar o risco social e de saúde de um núcleo
familiar a partir de sentinelas de risco (Coelho e Savassi, 2004; Savassi, Lage e
Coelho, 2012). A equipe de saúde utiliza dados da ficha A do SIAB (Sistema de
Informações da Atenção Básica), refletindo o potencial de adoecimento do núcleo
familiar. Cada um desses sentinelas recebe um valor, os quais devem ser somados para
obter o escore de risco do grupo familiar. Segundo os idealizadores da escala, essa
deve ser aplicada na primeira visita domiciliar pelo Agente comunitário de saúde
(ACS) 96. Segundo Savassi, Lage e Coelho (2012), ela “oferece acesso na medida em
que prioriza a atenção no domicílio e favorece a ‘integralidade’ e ‘equidade’ das ações
desenvolvidas pela equipe de saúde da família” (Savassi, Lage e Coelho, 2012, 181).
Na verdade, a escala já era conhecida por mim através de artigos de Octavio
Bonet, que relatavam o uso da escala em residências de MFC (Bonet, 2015). A
curiosidade em torno de como era feita a medição do grau de vulnerabilidade pelos
profissionais do Alemão tinha como pano de fundo saber se eles conheciam a escala
e se a utilizavam ou como eles conceituam, na prática, “vulnerabilidade”. Na
Estratégia de Saúde de Família no Complexo do Alemão, as Visitas Domiciliares
ocorriam sempre com base em uma listagem feita pelos ACS sobre quais eram os
pacientes de sua área acamados, deficientes ou domiciliados, priorizando aqueles que
haviam solicitado a visita pessoalmente ou através de um parente ou vizinho que havia
encontrado o agente. Em alguns casos, levava-se em conta também um comentário

96
Os chamados sentinelas de risco que integram a ficha A se referem, por exemplo, ao fato do núcleo
familiar ter um membro acamado (3), ou baixas condições de saneamento (3), membros com deficiência
física (3), membros com deficiência mental (3), desnutrição grave (3), drogadição (2), desemprego (2),
analfabetismo (1), membros com menos de seis meses de vida (1) ou com mais de 70 anos de idade (1),
membro com hipertensão arterial sistêmica (1), com diabetes mellitus (1), relação morador/cômodo
maior que 1 (3), relação morador/cômodo igual a 1 (2), relação morador/cômodo menor que 1 (0).

131
feito por algum morador sobre o estado de saúde ruim de um vizinho ou uma vizinha,
mesmo que essa pessoa não tivesse pedido para solicitar a visita.
Cláudio discutia essa listagem com a agente que o acompanharia no dia,
alterando a ordem das visitas ou até incluindo algumas casas, já que conhecia bem a
área e as famílias. Embora ele tenha se esforçado em lembrar da escala quando foi
indagado sobre a ferramenta de medida – preocupado em afirmar que conhecia as
ferramentas próprias da MFC –, Cláudio não a utilizava em seu dia a dia, porque ela
parecia não ser necessária em sua prática. O conhecimento que possuía das famílias,
aliado ao trânsito cotidiano dos ACS pelo território, era suficiente para ordenar as
visitas e, possivelmente em um contexto de pouco tempo para realizar o trabalho, essa
era uma maneira mais ágil de organizar a rotina. Isso, no entanto, só ocorria no caso
desse médico, que possuía mais de doze anos de experiência ali. No caso dos outros
médicos, a maior parte deles quase não realizava visitas, somente em casos de extrema
urgência, devido à falta de tempo, aos tiroteios e ao acúmulo de demanda em suas
equipes. E quando as realizavam, não possuíam nenhum critério para ordená-las senão
a listagem feita pelos agentes.
Com isso, não pretendo afirmar que a Escala de Coelho-Savassi seria mais ou
menos eficaz que outras ferramentas existentes, no entanto, quero demonstrar que
existem diferentes maneiras de se performatizar a medicina de família, como nos casos
citados acima. Cláudio conhecia a escala e os critérios, que talvez estivessem
presentes em sua prática indiretamente ou como um conhecimento corporificado, mas
não se lembrou do nome da escala quando questionado e tampouco a utiliza
explicitamente para definir as visitas. No caso dos outros médicos, sobretudo os
recém-chegados, eles não possuíam seus próprios critérios para definir as visitas,
tampouco conheciam a escala. A ideia de vulnerabilidade e risco são para eles apenas
palavras melhores para explicar aquilo que os moradores do Alemão vivenciam
diretamente: a pobreza e a ausência de serviços e estrutura urbana.
Na primeira visita domiciliar em que acompanhei Camilo, enquanto
andávamos pelo morro, ele olhou para frente, em um dos pontos que proporcionam
uma das vistas mais impressionantes da imensidão do conjunto de favelas do
Complexo do Alemão, e então disse: “Isso não deveria existir”. Distraída, me assustei
com o comentário e perguntei: “O quê?”. Ele ficou constrangido e titubeou “Hummm,
é.... isso. Não sei. Poderiam pelo menos pintar essas casinhas, deixar mais bonitinho”.
A agente comunitária que nos acompanhava olhou torto, mas não disse nada. Eu, na
132
expectativa de que ela respondesse algo, não me contive e disse que as políticas de
embelezamento das favelas, como aquelas que pintavam as casas, eram vistas com
maus olhos pela população, já que a prioridade nos investimentos deveria ser em obras
de urbanização e infraestrutura básica.

FIGURA 9: VISTA DO LOCAL ONDE O DIÁLOGO OCORREU (FOTO DA AUTORA, 2017)

A divagação de Camilo deixava transparecer a distância existente entre o


mundo de Camilo e aquele da favela. Por um lado, a maior parte dos médicos parecia
não saber lidar com o fato de que os moradores são profundamente pobres e o único
impacto dessa pobreza seria o aumento do risco de contrair doenças. Por outro,
utilizavam-se muitas vezes de um argumento “cultural” para dizer que os moradores
são pobres, logo, não possuem condições de compreenderem seu próprio quadro
clínico, nem sair da situação de pobreza, aludindo informalmente a uma vulgarizada
teoria da “cultura da pobreza” (Lewis, 1961)97 que, no limite, responsabiliza os pobres
por sua própria condição. Na quarta ou quinta casa que visitamos, Camilo passou mal
enquanto examinava a paciente, sentiu muito calor e a pressão subiu, pediu para sair
do ambiente por alguns minutos. Depois, retornamos em silêncio para a unidade;
claramente não havia sido uma experiência simples para ele.

97 Ao discorrer sobre o trabalho de Oscar Lewis, Claudia Fonseca afirma: “Dando pouca atenção ao
contexto em que viviam seus informantes e menos ainda à influência sobre suas vidas exercida pelas
estruturas econômicas e políticas abrangentes, o autor alimenta a impressão (apesar de seus protestos)
de que a ‘cultura da pobreza’ explica tudo. Há, no argumento, uma boa dose de psicologia individual: as
pessoas criadas em famílias desorganizadas reproduziriam comportamentos disfuncionais apreendidos
dos próprios pais. A análise parece vacilar entre a patologia e a inadaptação — esta última devido a
atitudes tradicionais, atrasadas (imediatismo, etc.), mal adaptadas às exigências da sociedade moderna”
(Fonseca, 2004, 30).

133
No entanto, em alguns momentos o contrário se impôs. Em uma consulta de
Diogo com um jovem, acompanhado de sua esposa grávida e uma filha pequena, o
rapaz se queixava de uma forte tosse que já durava algumas semanas. Em meio à sua
explicação dos sintomas para o médico, ele dizia que estava fazendo dupla jornada,
como vendedor em uma lanchonete durante o dia e como moto taxista à noite. Ele
precisava pagar pela reforma da casa que estavam ampliando para receber mais uma
filha e por isso estava trabalhando nos dois lugares. Em algum momento então disse:
“Acho que estou estressado, também pego muita friagem de noite na moto, deve ser
isso”. Sem dar muita importância para esses comentários, Diogo disse ao paciente que
ele precisaria fazer alguns exames, entre eles o de tuberculose. Perguntou se o rapaz
já tinha feito e explicou os procedimentos.
Quando saíram do consultório, perguntei para Diogo se ele achava mesmo que
poderia ser tuberculose. Em minha cabeça, a hipótese de que o rapaz estivesse apenas
cansado era a mais provável, já que ele mesmo havia levantado essa suspeita. O
médico então me respondeu: “Acho não, eu tenho certeza”, me apresentando em
seguida um conjunto de fatores para sua resposta, incluindo os sintomas sentidos pelo
rapaz e a localização da casa na qual estavam vivendo de favor, no Morro da Baiana,
enquanto a deles era reformada. Segundo o médico, a incidência de tuberculose
naquela área era alta e a baixa imunidade do rapaz, essa sim ocasionada pelo ritmo de
vida, teria facilitado o contágio. Nada disso, no entanto, alterava o fato de que o
próprio paciente disse estar estressado e cansado. Mas tais questões, que já raramente
eram notadas nas consultas, nesse caso, foram deixadas ainda mais para trás, diante
da urgência e gravidade da tuberculose. A materialidade do bacilo causador da
tuberculose, associada ao sentimento de cansaço gerado pelo excesso de trabalho,
porém, era fruto de um mesmo problema: a pobreza. Entretanto, diante da rotina do
serviço de saúde e daquilo considerado como prioritário – nesse caso, a tuberculose –
, os demais problemas perdiam lugar. Paradoxalmente, no entanto, o insucesso da
adesão ao tratamento de tuberculose era bastante comum ali, segundo me revelaram
alguns ACS. Sabe-se, no entanto, que tal tratamento depende de uma rotina e de uma
rede de apoio em torno do doente, evidenciando a importância de que os outros
problemas da vida do paciente também sejam levados em conta pelo médico. Como
não acompanhei a consulta seguinte do rapaz, não posso afirmar que isso não ocorreu
em uma segunda ocasião.

134
Medicina de favela
Por fim, pude apresentar aqui os serviços de saúde onde a pesquisa foi
realizada, a partir sobretudo dos profissionais médicos que acompanhei nesse período.
Para contextualizá-los, apresentei uma discussão acerca da formação médica no
Brasil, sobretudo no que tange à formação básica em medicina ou de médicos de
família para atuação na atenção primária. A partir das diferentes práticas médicas
etnografadas junto a esses profissionais, associadas à rotina da unidade, discuto dois
problemas que se constituem como centrais ao observar o seu cotidiano: o “problema
da demanda”, que demonstra a insuficiência estrutural desses serviços de saúde diante
da demanda populacional, e o “problema da vulnerabilidade”, que revela a questão da
pobreza dos usuários desse serviço de saúde, compreendida como mais uma
dificuldade para o trabalho desses médicos.
Quando remonta o processo de constituição do campo das especialidades
médicas no Brasil, Octavio Bonet (2003) relembra que um dos problemas enfrentados
pelos médicos generalistas foi o estigma e o preconceito por serem considerados
“especialistas” e, por isso, médicos menos importantes que os demais. O termo
“médico de favela” aparece no texto de Bonet na fala de um médico que atuava como
generalista, antes da consolidação do PSF e da organização da Medicina de Família e
Comunidade no país. Ele diz:
a minha própria identidade profissional se desvanecia: eu era um “médico
de favela”, com toda a carga preconceituosa deste termo e não trabalhava
em nenhum hospital. (...) Assim, quando perguntavam qual era a minha
especialidade, eu engasgava e respondia, às vezes, clínico geral; às vezes,
pediatra; às vezes, médico sanitarista, sem sentir, na verdade, nenhuma
destas coisas (Fernandes apud Bonet, 2003, 162).

O médico, nessa fala, está se referindo ao fato de a categoria “médico de


família” tê-lo inserido profissionalmente em um grupo profissional socialmente
reconhecido, o que antes não ocorria. Entretanto, é possível perceber ainda que o
termo “médico de favela”, assim como o “médico de postinho” – outro termo
normalmente utilizado no Brasil para se referir ao médico que trabalha na atenção
básica –, informa sobre dois fenômenos. Primeiro, o fato de que tais profissionais
praticam uma medicina voltada para os pobres e segundo, de que seriam, como
aparece na narrativa anterior, médicos menos importantes e especializados dentro de
uma hierarquia profissional. Em muitos casos, tal estigma faz com que esses
profissionais, ao chegarem ali por acaso, sem um desejo real de atuarem nesses

135
espaços, sejam eles próprios reprodutores da ideia de que esse tipo de medicina seria
menor ou menos importante, mesmo após a consolidação da Medicina de Família e
Comunidade no Brasil. Cynthia Sarti (2010) aponta para o fato de que, para a maior
parte dos profissionais médicos, a atuação na atenção básica figura como um projeto
profissional “transitório”, enquanto para os profissionais de enfermagem, por
exemplo, constituiria um “projeto de vida”. Embora esse aspecto não possa ser visto
como determinante nas práticas de cada um dos médicos, é importante atentar para a
força do conceito de “projeto individual”, proposto por Gilberto Velho (1981), como
um fator crucial na compreensão dos processos de individuação nas sociedades
complexas98.
O caso de Diogo ilustra bem a ideia de um “projeto transitório” atravessado
por outras condições, pois era justamente o que ele desejava: permanecer ali por dois
anos e depois seguir para a residência. Mas o jovem médico não suportou nem três
meses, e não por que a profissão não fosse valorizada, mas sobretudo devido ao
sofrimento que aquele tipo de trabalho lhe acarretou. Diferente de Marina, que parecia
ter certa pressa em dispensar os pacientes e não se afetava tanto pelas situações,
Diogo, no pouco tempo em que esteve ali, demonstrou se envolver com os pacientes
e suas histórias. Já conhecia algumas das famílias da área e era recorrentemente
procurado pelas enfermeiras para tirar dúvidas, função antes desempenhada apenas
por Cláudio. Um dia ele me surpreendeu com uma mensagem de WhatsApp, após um
dia intenso em que acompanhei seu trabalho, perguntando: “O que você acha que
posso fazer para melhorar meu atendimento?”. Aquela pergunta me deixou, no
mínimo, em uma situação difícil. Eu gostaria de responder, pois eu tinha de fato
algumas sugestões para dar, no entanto, não me sentia legitimada para isso sendo
antropóloga e também entendia que, naquele momento, tal resposta poderia afetar
negativamente o acompanhamento que eu fazia de suas consultas. Respondi
evasivamente e ele não tocou mais no assunto. Nos últimos dias de trabalho ali, ele
me revelou: “Estou me deprimindo de novo, já tive depressão durante a graduação,
acho que começou outra vez”. Ele já não suportava mais o trabalho naquela unidade.
Alguns dias depois, saiu sua transferência para outra unidade, em uma área mais
central, onde já trabalhava um amigo da faculdade. Ele foi e me disse que o ritmo lá

98
Gilberto Velho postula que existe uma dimensão de “escolha” na vida social, calculada por meio dos
projetos pessoais, embora deixe claro que estes estão “sujeitos à ação de outros atores e às mudanças
sócio-históricas” (Velho, 1981, 27).

136
era mais tranquilo e estava mais contente com o trabalho. Menos de um ano depois,
nos falamos pelo telefone e ele contou que foi aprovado na residência de ortopedia,
estava imensamente feliz, mas disse que no Alemão também tinha aprendido muito,
apesar de não desejar mais voltar para a atenção básica.
Em seu texto sobre as relações entre classes sociais e corpo, Luc Boltanski
(2004) diz existir assimetria entre o doente pobre e o médico, fazendo com que este
exerça autoridade diante daquele, diferente daquela exercida sobre as classes mais
abastadas. Boltanski atribui tal autoridade às funções específicas do médico, que lhe
proporcionariam elementos materiais, além de credenciais legais, para “manipular
física e moralmente o doente em nome de um saber que o doente ignora” (Boltanski,
2004, 122-23). Nesse sentido, o médico acaba vendo-se desobrigado a esclarecer,
explicar sua conduta aos pacientes pobres, a partir de sua posição privilegiada do
saber.
Loyola (1984), do mesmo modo, afirma que a pressuposição dos médicos de
que o doente pobre possui “ignorância” no que tange à compreensão de seu corpo e
de sua doença faz com que a relação entre eles se estabeleça com base nessa hierarquia
entre saberes:

Ao caracterizarem os doentes das classes populares por sua “ignorância”,


eles desqualificam as representações que estes têm do próprio corpo, da
doença e dos princípios de higiene e, assim fazendo, reafirmam a
legitimidade da medicina cientifica, única capaz, segundo eles, de decifrar,
através do discurso “desarticulado” e “caótico” dos doentes, a verdadeira
linguagem dos sintomas, de estabelecer a ligação entre sintomas e doenças,
de classificá-las; enfim, a única capaz de pôr ordem no caos,
reestabelecendo o equilíbrio do organismo, a saúde (LOYOLA, 1984, 23).

No entanto, Loyola pondera sobre a posição dos pacientes diante desse saber,
lembrando que para eles o médico não é detentor de um conhecimento e de
explicações mais verdadeiras do que as deles sobre as doenças, suas origens e motivos,
mas sim apenas alguém que possui o acesso a medicamentos que eles acreditam serem
mais eficazes do que outros aos quais podem ter acesso (naturais, espirituais etc.).
Embora a pesquisa da autora tenha sido realizada há quase quarenta anos, é possível
afirmar que no contexto das classes populares hoje ainda há forte desconfiança com
relação ao saber médico científico tradicional. Por outro lado, trata-se de uma
população significativamente mais “medicalizada”, que reconhece a medicina
científica como matriz explicativa de seus problemas de saúde, mas que nem sempre

137
se coloca no lugar de subalternidade diante do médico. Nesse sentido, os pacientes
pobres do Alemão possuem “agência” (Ortner, 2007) nessa relação com os médicos:
interpretam, agem, se posicionam, avaliam o médico 99.
Não foram poucas as vezes em que presenciei embates e conflitos entre
médicos e pacientes. Ainda que nem sempre face a face, era comum ver os pacientes
saírem das consultas se queixando para os Agentes Comunitários de Saúde sobre o
atendimento que haviam recebido, recusando-se a serem atendidos por um
determinado médico do qual não gostavam, ou mesmo procurando a gerência para
formalizar uma reclamação. Foi notório, no entanto, que esse tipo de ação mais
“formal” de reclamação se intensificou quando a unidade passou a atender também a
população de classe média baixa em Ramos. Especialmente os Agentes Comunitários
de Saúde se queixavam de que os pacientes de “baixo”, ou seja, não moradores da
favela, possuíam o hábito de “dar carteirada” 100 e constantemente chegavam ao
acolhimento fazendo reclamações, mesmo antes de poderem ser atendidos. Os agentes
diziam que esses usuários costumavam facilmente procurar a gerência da unidade para
fazer reclamações. Assim, os médicos aqui não estão em uma posição tão confortável,
como pode parecer no contexto analisado por Boltanski, por duas razões:
primeiramente, o sofrimento que essas situações também lhe incutem e, em segundo
lugar, o fato de que a própria população demonstrava descontentamento com os
médicos, a despeito de sua posição “privilegiada de saber”.
Jéssica foi uma médica que conheci depois de ter terminado meu trabalho de
campo, em uma outra pesquisa na atenção básica da qual participei. Ela estava no
segundo ano de residência de Medicina de Família e Comunidade pela UERJ e atuava
em uma unidade de saúde no centro da cidade. Quando começamos a conversar, ela
me revelou que aquele não havia sido seu plano inicial de carreira assim que se
formou. Jéssica foi bolsista no curso de medicina em uma universidade privada no
Rio de Janeiro e tinha como “projeto profissional” retornar ao local onde nasceu e foi

99
Fleischer (2012) também aponta para essa dimensão da agência quando escreve sobre usuários de uma
unidade de atenção básica em Ceilândia (DF): “Brigar com o farmacêutico, encaminhar denúncias para
um programa de televisão, acionar a justiça para receber um medicamento, questionar por que os
médicos passam medicamentos com efeitos colaterais previstos são todas táticas, nos moldes sugeridos
por Scott (1985), que caminham na direção de uma agência no cuidado com a saúde” (2012, 422).
100
“Dar carteirada” é uma expressão popular brasileira que significa explicitar seu lugar na hierarquia
social para obter certos benefícios. Foi objeto da célebre análise do antropólogo Roberto Da Matta no
texto “Você sabe com quem está falando?” (1997) e de diversas outras problematizações posteriores em
pesquisas sobre a identidade brasileira.

138
criada para trabalhar, isto é, ao Complexo do Alemão. Seus pais já não viviam lá,
haviam se mudado para uma outra favela mais próxima do centro, mas ela e o
namorado resolveram se mudar para Olaria para que ela estivesse próxima do trabalho
em uma das Clínicas da Família que atendiam o Alemão. Jéssica já havia sido interna
nessa mesma clínica durante a graduação, mas ser médica ali, ela me contou, foi muito
mais difícil. Ela ressaltava aspectos como o número de atendimentos que fazia por
dia, as situações de estresse que enfrentava com a equipe e com os usuários agravadas
pela alta demanda, além da sensação de frustração por sentir que os problemas
daqueles usuários eram muito profundos pela situação de pobreza e violência e, por
isso, sua atuação ali tinha sempre baixíssimos resultados 101.
A jovem médica revelou ainda que queria dar o seu “melhor” no trabalho, por
isso era sempre a primeira médica a chegar e a última a ir embora e, além disso, se
envolvia intensamente com os problemas de seus pacientes. Depois de dois meses, ela
começou a chegar todos os dias em casa aos prantos. Nesse meio tempo, recebeu a
notícia de que havia sido aprovada na residência em MFC, mas já havia decidido não
ir. No último dia para inscrição, contudo, mudou de ideia e acabou entrando. Hoje, na
clínica onde atua como residente, que também atende uma grande região de favela,
ela diz se sentir muito melhor: “Eu não sei, é diferente aqui, não sei se é porque é no
centro, mas você não vê tantos problemas juntos e são menos atendimentos por dia.
Aqui também tem uma equipe de apoio maior, o NASF é mais presente”. Sobre a
experiência no Alemão, ela ainda me revelou: “Sabe, eu cresci lá, eu era pobre, mas a
minha casa tinha comida, tinha banheiro, tudo direitinho. E lá eu vi que muita gente
não tinha essas condições mínimas de vida”. Meu encontro com Jéssica, já na reta
final da escrita da tese, foi importante para desestabilizar ainda mais a ideia de que
uma aproximação pessoal maior com aquele universo, como no caso de Cláudio,
bastaria para que o profissional desse conta daquele ambiente de trabalho102.

101
Jéssica fazia referência a todos esses problemas como “pressão assistencial”, termos que outros de
seus colegas residentes que conheci na mesma ocasião também utilizavam. Encontrei pouca informação
sobre a origem do termo, a própria Jéssica também não soube dizer quando a questionei: “Ah, todo
mundo usa lá na residência”. Chamou minha atenção, no entanto, a existência de mais um termo fazendo
referência à ideia de pobreza, assim como vulnerabilidade, já explorada anteriormente.
102
Em artigo em que comparamos experiências de médicos na atenção básica à saúde no Rio de Janeiro,
Octavio Bonet e eu (Bonet, Fazzioni, 2017) ressaltamos justamente essa diferença entre “aprender” a ser
um médico de família em uma residência em Medicina de Família e Comunidade ou “na prática”, em um
ambiente marcado pela precariedade, como o descrito aqui.

139
Concluindo, relembro a fala de umas das agentes de saúde que ironizava a
atuação dos médicos que trabalhavam na unidade dizendo: “Para ser médico aqui
nessa unidade nem precisa fazer medicina, é só você saber o seguinte: da cintura pra
cima é dipirona e omeprazol, da cintura pra baixo é ibuprofeno e cefalexina”. Apesar
do tom descontraído com o qual a agente proferia a frase, podemos, a partir dela,
problematizar a falta de formação específica dos médicos para trabalharem na atenção
básica, assim como o caráter profundamente medicalizante de suas práticas, reduzidas
ao diagnóstico de doenças e à prescrição de medicamentos.
No entanto, o que as situações acima revelam é que mais do que considerar o
paciente como apenas um organismo e sua doença, os médicos aqui o situam em um
contexto, como propõe a noção de integralidade. Tal contexto, no entanto, é marcado
por um forte distanciamento social daquele conhecido pelos médicos. E, assim, isso
impede que eles avancem para uma verdadeira abordagem integral que reconheceria
a senhora “poliqueixosa”, o homem com medo de evacuar e o moto taxista com
tuberculose como pessoas com uma história de vida específica, com problemas
estruturais e íntimos, com sonhos, projetos e desejos.
Ricardo Ayres (2004) atenta para a necessidade de compreensão na prática
médica de que, por trás de cada pessoa, existe um projeto de vida, algo que ela deseja,
espera, e que o cuidado se estabelece quando esse projeto é levado em conta. Essa
seria uma importante dimensão da noção de integralidade, que propõe compreender
o indivíduo naquilo que ele é, no contexto que o cerca, mas também – e por que não?
– naquilo que ele deseja ser. Essa dimensão está presente também no trabalho de
João Biehl (2008), a respeito de Catarina, uma paciente abandonada pela família em
uma instituição psiquiátrica no sul do Brasil. É justamente sobre o desejo de Catarina
que Biehl se debruça, procurando capturar sua subjetividade nessas linhas de fuga e,
inspirando-se em Deleuze (2006), na ideia de que o desejo escapa ao poder e aos
constrangimentos vividos por uma mulher tida pela própria família como alguém
sem vida. Sem isso, ou seja, sem cuidado e atenção a essas dimensões, a
integralidade perde sua especificidade e torna-se mais uma das inúmeras formas de
biopoder.
“Os médicos da favela”, título deste capítulo, remete propositalmente ao livro
de Bonet (2014b) intitulado “Os médicos da pessoa”, porque ambos os trabalhos se
debruçam sobre “médicos de família”. Porém, neste caso, eles estão, uns mais do que
os outros, distantes do desejo de atuarem no sistema público e na atenção básica,
140
distantes da “cultura epistêmica” específica da Medicina de Família e Comunidade ou
mesmo de uma formação pessoal mais popular ou acadêmica que se pretenda mais
holística, ao contrário dos médicos acompanhados por Bonet, imersos no debate sobre
medicina de família e comunidade e dispostos a romper com a forma moderna de se
fazer medicina, com base na ideia de indivíduo. No caso aqui acompanhado, embora
sejam “médicos de família”, estão longe de serem “médicos da pessoa” e praticarem
um olhar ampliado, como propôs o autor, não porque não querem, mas sobretudo
porque não conseguem. Mas a ideia de médicos de favela aqui não remete somente à
ideia de uma medicina de família precária, desmotivada e estigmatizada. Os exemplos
de Cláudio e de Jéssica, em contraste, servem para mostrar como a favela pode ser um
motivador para um trabalho movido por desejo, vínculo e afeto – uma missão como
aparece nas falas de ambos –, mas que se desdobra em duas experiências distintas:
uma marcada pela frustração de não conseguir realizar aquilo que se esperava, outra
pela capacidade de lidar com a baixa resolutividade das situações e com o improviso
inerente à estrutura precária daquele serviço.

141
CAPÍTULO 4: Os arranjos de cuidado

FIGURA 10: JANELA DA CASA DE UM DOS PACIENTES VISITADOS

Arranjando
Visitei Josefa enquanto acompanhava Joyce, Agente Comunitária de Saúde, e
Diogo, médico. Era a segunda visita que o médico fazia desde o início do seu trabalho
na unidade, há aproximadamente dois meses. Quando chegamos à casa de Josefa, ela
estava deitada em um sofá improvisado como cama na sala. Ao seu lado, em outro
sofá, dormiam duas crianças. A casa era composta por quatro cômodos, sala, quarto,
cozinha e banheiro, e não foi possível precisar quantas pessoas viviam ali, mas pelo
que pude contar ao menos sete: Josefa, sua irmã Dulce, seu marido, sua filha e três
netos.

Josefa tinha 65 anos e vivia ali há pelo menos dois anos. Havia sido
diagnosticada com Mal de Alzheimer há cinco anos e desde então ela, que
ironicamente trabalhava como cuidadora de idosos, não tinha com quem contar para
cuidar de si mesma. Sua história foi narrada por sua irmã Dulce, a dona da casa e atual
responsável por seus cuidados. O marido de Josefa faleceu logo após seu diagnóstico
e eles não tinham filhos. Sua irmã contou que suas economias e pertences haviam sido
roubados por outros parentes e ela fora despejada da casa em que vivia em Jacarepaguá.
Ela passou a viver na casa de uma outra irmã, mas depois de várias situações de fuga,
com longos períodos vivendo na rua, acabou sendo tirada da rua e internada no
Hospital de Acari por assistentes sociais. O diagnóstico do médico nesse hospital teria

142
sido definitivo, não havia nada o que fazer, era preciso levá-la para morrer em casa.
Mas Josefa já não tinha casa. Embora não fossem tão próximas, ao ser contatada pelo
hospital, sua irmã Dulce não hesitou em assumir essa função.

Quando chegamos à casa, durante os primeiros minutos, tive a certeza de estar


diante de uma moribunda. O desespero de Diogo diante da paciente confirmava a
minha suspeita. Ele perguntava à Dulce se Josefa levantava e respondia quando
falavam com ela, e a irmã insistia que sim. “Então acorde ela pra mim”, dizia o médico
impaciente. A irmã chamava, mas ela não se movia. Diogo começou a checar os sinais
vitais: pulso, temperatura, respiração. Estava estável, mas ainda assim Diogo seguia
preocupado pelo aspecto geral de Josefa. Segundo ele, ela estava desnutrida,
desidratada e com sinais claros de infecção urinária, além de não apresentar resposta
a nenhum tipo de estímulo. Dulce não parava de falar nenhum segundo, claramente
nervosa, repetindo insistentemente sobre sua rotina de cuidados com a irmã e sobre a
história de vida dela. Entre os aspectos mais enfatizados por Dulce, estava a morte
prematura do único filho de Josefa, ainda quando recém-nascido. Segundo a irmã,
após esse episódio, ela havia “pedido a Deus” para que nunca mais lhe desse um filho,
para que não sofresse tanto assim. Sua vida, aos olhos de sua irmã, teria sido marcada
por esse luto.

Se havia alguma vida restante em Josefa naquele momento, ela transparecia


apenas em suas unhas das mãos e dos pés pintadas de modo grosseiro com esmaltes
de cores vibrantes e diferentes, com vários borrões para fora. “Isso aí é coisa das
crianças, que ficam brincando com ela”, explicou Dulce. Enquanto isso, Joyce
perguntava por que as crianças não estavam na escola naquele momento. E a avó se
explicou dizendo que suas filhas eram “preguiçosas” e não levavam os filhos para a
escola; então ela, que estava “velha” e tinha que cuidar da irmã acamada, além de
trabalhar fora, é que não levaria. A ameaça por parte da Agente era direta e sem rodeios:
“Vão perder o Bolsa Família se as crianças não forem para a escola”. E mais uma vez
Dulce se explicava, enquanto as crianças iam lentamente sendo acordadas pela nossa
visita. Enquanto Diogo e Joyce pensavam sobre o que fazer com Josefa, eu refletia
sobre a falta de atenção por parte dos profissionais com a saúde de Dulce, também
idosa, claramente sobrecarregada de tarefas e responsabilidades. Em nenhum
momento, checaram sua pressão ou lhe perguntaram sobre sua saúde. Mas lhe
cobraram sobre os cuidados com a irmã e com os netos.

143
O dilema sobre o que fazer com Josefa, no entanto, seguia, pois Diogo achava
que ela precisava ser enviada para um hospital o mais rápido possível. No entanto,
havia vários empecilhos para que isso ocorresse. Primeiro, a ambulância não chegaria
à casa de Dulce, localizada em um beco estreito, de forma que seria preciso carregá-
la até a Avenida Central do Alemão, onde a ambulância conseguiria estacionar, caso
aceitasse subir o morro. Caso contrário, Josefa teria que ser carregada até a Av. Central
e, em seguida, levada de carro até a entrada do morro. Quando a ambulância chegasse,
Diogo teria que estar no local para acompanhá-la ao destino de internação. Entretanto,
ele era um dos poucos médicos trabalhando na unidade naquele momento e perderia
o dia todo para fazer esse processo. Finalmente, havia o receio por parte de Joyce e
de Diogo de que após todo esse esforço, ao chegar ao hospital, Josefa seria liberada
para casa, sem receber nenhum cuidado específico pela falta de leitos e pela
precarização nas redes de hospitais públicos da cidade.

A decisão final foi pedir para que a família a levasse até o posto de saúde à
tarde para que ali ela fosse mantida no soro até a chegada de uma UTI Móvel, que, ao
contrário da ambulância comum, não requereria que Diogo a acompanhasse até o
hospital. Ao sair da casa de Dulce, o médico estava claramente nervoso com tudo o
que havia acontecido. Ele reclamava que a agente e a enfermeira haviam estado ali há
poucos dias e não lhe notificaram de que o estado da paciente era “grave”. Ao mesmo
tempo, comentava sobre o péssimo estado geral da paciente e da casa como um todo:
“O que era aquela casa?”, ele dizia. A agente se desculpava e dizia: “Eu sei, nós
erramos, mas que bom que hoje viemos aqui”. E o médico discordou, insistindo que
o erro justamente teria sido voltar, pois agora aquela paciente era de “responsabilidade
dele”, caso morresse. E ainda completou, dizendo indignado: “O que era aquela casa?
Quantas pessoas moravam ali?”.

A história da visita à Josefa tornava evidente uma série de elementos que


permeiam a questão do cuidado entre os usuários da unidade de saúde pesquisada.
Aqui, o primeiro ponto que chama a atenção é evidentemente a situação de saúde de
Josefa, mas também a alta demanda de responsabilidades de sua irmã e a ênfase dada
à questão da morte de seu único filho. No capítulo anterior, analisei as trajetórias dos
médicos e as situações acompanhadas em suas rotinas de trabalho, compreendendo
que suas práticas são atravessadas por uma série de complexidades relativas à
formação médica no país, pelo sistema de saúde brasileiro e pelo contexto local.

144
Neste último capítulo, procuro desenvolver uma reflexão sobre o modo pelo
qual as experiências de cuidado se estabelecem entre os usuários do serviço de saúde
em relação às redes de apoio variadas e também aos profissionais de saúde. A maior
parte das experiências aqui relatadas são fruto de um, dois, no máximo, três encontros
que tive com cada um desses usuários de serviço de saúde em momentos variados.
Alguns conheci durante consultas na unidade, outros em visitas domiciliares. Ao
longo de dois anos de pesquisa, acompanhei cerca de 400 atendimentos, mas por se
tratar de uma população muito numerosa e equipes de saúde que atendiam um número
grande de usuários, raras vezes consegui acompanhar um mesmo caso por um período
maior. Essas histórias, portanto, são mais do que tudo fragmentos de vida que
permitem a compreensão dos diferentes “arranjos de cuidado” encontrados pela
população para lidar com o nascimento e o envelhecimento.

A noção de arranjo foi proposta aqui não como uma “categoria nativa”, mas
sim como uma categoria analítica. A ideia de arranjo familiar, comum em instâncias
jurídicas e até no senso comum, é, por um lado, uma inspiração, porque diz respeito a
algo que se “organiza” de determinada forma. De acordo com o Dicionário Houaiss,
esse seria o primeiro sentido atribuído ao verbo arranjar, seguido de outros treze,
dentre os quais destaco aqui:
1. pôr em ordem, arrumar, dispor de maneira conveniente. 2. colocar
enfeites em; adornar 3. Colocar algo novamente em condições de
funcionar, consertar, reparar. 4. Resolver (algo) de maneira amigável ou
conciliatória (...) 8. Fazer casar ou casar-se, juntar-se, unir-se, 9. Sair-se
bem de situações difíceis, governar-se com êxito (HOUAISS, 2001, 296).

Entretanto, eu procurava algo que estivesse além dessa organização mais


formal, isto é, além das relações com o mercado e o Estado, mas que ao mesmo tempo
as englobasse. Ao pensar no arranjo, lembrei-me que no uso mais corriqueiro
“arranjar” ganha frequentemente o sentido de “dar um jeito”, “resolver” – também
explicitado no dicionário –, ainda que improvisadamente, um problema que se impõe
cotidianamente. Muitas vezes o termo ocorre em forma de pergunta, como um pedido
de ajuda. “Fulano, você pode me arranjar: um dinheiro, um martelo, um pouco de
sabão em pó?” As possibilidades são infinitas. A longo prazo, o arranjar pode remeter
a algo que obtivemos em algum momento e que nos acompanha por um período da
vida: um casamento, um marido, uma mulher, uma casa, um cachorro, um trabalho. O
arranjo nesse caso tem menos a ver com a posse daquilo que foi arranjado e mais com

145
uma certa conquista de algo desejado de algum modo. Em todos os seus usos, no
entanto, o termo raramente é utilizado em sentido negativo, exceto quando se arranja
efetivamente um problema. “Mas o que você foi arranjar?”, pergunta-se nesses casos.
Mas por que simplesmente não falar sobre os arranjos familiares, se afinal
quem cuida quase sempre é a família? É inegável que a família seja o principal
elemento estruturador dos arranjos de cuidado encontrados, porém, a questão do
cuidado da forma como foi encontrada aqui implica em alguns questionamentos
importantes ao sentido de família.

Em uma das minhas idas ao Complexo do Alemão para acompanhar visitas


domiciliares, peguei uma Kombi para subir até o local onde a visita iria ocorrer.
Durante uma parada no meio do caminho, um dos passageiros, um jovem portador de
algum tipo de deficiência intelectual, desceu acompanhado por uma mulher. Ao
descer, os outros passageiros começaram a comentar sobre o fato de ele ter sido
abandonado pela família nuclear e ser hoje cuidado pela tia, que estava com ele na
Kombi. Sobre a família que o havia abandonado, uma mulher declarou: “Tem gente
que pensa que não vai envelhecer nunca, que não vai precisar de cuidado”.

Apesar de não saber a motivação para que a família o tivesse abandonado, tal
fala, que relacionava o abandono de um filho ao cuidado no futuro, apontava a
centralidade de uma noção de reciprocidade para a compreensão das relações
familiares ali. Assim, na fala da senhora, reforçava-se justamente esse aspecto, ainda
que o filho com deficiência não pudesse retribuir o cuidado com os pais ao crescer. O
ato de cuidar era sempre passível de uma reciprocidade, ainda que não direta e
objetiva. Essa cena, assim como as próximas que serão aqui descritas, se conectou a
um debate mais contemporâneo na antropologia que aponta para a superação da
discussão clássica sobre parentesco baseada, por um lado, na ideia de
consanguinidade, presente, sobretudo, entre os antropólogos britânicos (Radcliffe-
Brown, 1973), e outra mais baseada nas relações de afinidade, especialmente a
aliança, modelo que ganhou fôlego com o trabalho de Lévi-Strauss (1982).

Marshal Sahlins (2012), mais recentemente, defendeu uma recusa dessa


dicotomia ao apostar na noção de parentesco como algo que depende de uma
“mutualidade do ser”, afastando ainda mais o vínculo biológico da noção de
parentesco e abrangendo a relação de afinidade, antes encontrada principalmente nas
relações de aliança ou dela derivadas.

146
Em resumo, a ideia de parentesco em questão é a mutualidade do ser:
pessoas que são intrínsecas à existência umas das outras – assim,
“pessoa(s) mútua(s)”, a própria vida. “Participação intersubjetiva”. Eu
argumento que “mutualidade de ser” cobrirá a variedade de formas
documentadas etnograficamente na qual o parentesco é localmente
constituído (SAHLINS, 2012, 23).

Ao analisar a contribuição de Sahlins (2012) para a teoria de parentesco, Janet


Carsten (2014) afirma que embora sua contribuição seja notável, ela abre um infinito
campo de possibilidades a partir do qual podemos perguntar: “onde está o parentesco
agora?”. Ela então escreve: “eu sugeriria que, para o futuro, deveríamos nos
concentrar menos em sua definição – Sahlins, a meu ver, nos isentou de tal tarefa – e
mais na maneira como ele funciona, por que importa e o que o faz ser poderoso”
(Carsten, 2014, 113). Com isso, Carsten abre um vasto campo de possibilidades,
remetendo-se a diversas etnografias apontando para a definição de parentesco em
torno de temas tão diversos, tais como tempo, espaço e até mesmo sangue (não
necessariamente entendido como consanguinidade) 103.

Marilyn Strathern (1995) é precursora do debate que pretendeu descolar a


noção de parentesco tanto do paradigma mais natural/biológico, quanto daquele mais
cultural, realizado sobretudo a partir do trabalho do norte-americano David Schneider
(1968), revendo os estudos de parentesco através da lente das teorias de gênero.
Strathern foi uma das responsáveis por relativizar a primazia da biologia nas relações
de parentesco e analisar a dimensão prática das relações, que podem incluir
reciprocidade, tecnologia, conflitos, ambivalências.

Claudia Fonseca (2005), no contexto nacional, ao estudar as camadas


populares em diálogo com outros trabalhos etnográficos realizados no país, já havia
apontado para a necessidade de pensar em famílias menos como modelos e unidades
e mais como relações que perpassam a ideia de ajuda mútua e reciprocidade, sem
deixar de lado os aspectos da consanguinidade e aliança. A autora afirma que:

definimos o laço familiar como uma relação marcada pela identificação


estreita e duradoura entre determinadas pessoas que reconhecem entre elas
certos direitos e obrigações mútuos. Essa identificação pode ter origem em
fatos alheios à vontade da pessoa (laços biológicos, territoriais), em

103
Michele Escoura (2018), em sua pesquisa de doutorado, tem evidenciado justamente a dimensão do
conflito como elemento central para produção do parentesco moderno, ao refletir sobre a organização
de festas de casamento no Brasil. Agradeço à autora pelas valiosas contribuições que fez a este capítulo.

147
alianças conscientes e desejadas (casamento, compadrio, adoção) ou em
atividades realizadas em comum (compartilhar o cuidado de uma crianç a
ou de um ancião, por exemplo) (FONSECA, 54, 2005)

Assim, as dinâmicas familiares entre esses grupos se estenderiam para além


dos laços de consanguinidade e aliança, incluindo vizinhos e agregados unidos por
uma dinâmica de pertencimento e reciprocidade, que não necessariamente seria
imediata, mas, como atentou Claudia Fonseca, estariam baseadas em uma
reciprocidade de longo prazo, mais próxima à lógica do dom (Mauss, 2003b), “que,
contrariamente à lógica do contrato ou até mesmo de amizades fugazes, coloca uma
fé difusa em um retorno eventual, em alguma data futura, por algum membro da rede
implicada na dádiva original” (Fonseca, 2005, 53).

Aos olhos da vizinha que estava na Kombi, a família que recusava o seu
membro com deficiência estaria rompendo tal lógica ao negar-lhe o cuidado,
dificilmente, contudo, deixariam de ser compreendidos ali como seus familiares, já
que, como aponta a própria Fonseca e outros antropólogos brasileiros, a
consanguinidade no Brasil é ainda privilegiada na compreensão dos laços de
parentesco, como afirmam também Cecilia McCallum e Vania Bustamante (2012). No
entanto, a tia que passou a assumir seus cuidados poderia por meio dessa prática
atualizar com ele sua relação de parentesco, recebendo a partir daí o título de mãe – o
que não eliminaria a existência de sua mãe biológica, que vivia há poucos metros dali.

A ideia de arranjo, portanto, parece funcionar bem para o que pretendo


evidenciar adiante: as experiências de cuidado envolvem sempre um misto entre
“arranjos” de longa duração, em geral os que são definidos pelas relações de
parentesco – e que, como demonstrado acima, não se limitam às relações de
consanguinidade e aliança – com arranjos de média duração (ajuda pontual de um
parente ou um vizinho, trabalho, serviço de saúde), e, finalmente, outros de curta
duração (um auxílio para descer uma escada, uma carona, um empréstimo de dinheiro,
um prato de comida). Mais do que isso, no entanto, o arranjo quase nunca depende
unicamente do indivíduo, prescindindo de relações baseadas em vínculo,
reciprocidade, afetos e também trocas monetárias (embora menos presentes nesse
contexto). Mas há também os momentos em que os arranjos de longa ou curta duração
se fragilizam pela ausência de relações que o sustentem, resultando em descuido ou

148
abandono dos indivíduos que necessitam de cuidado. Alguns casos desse tipo revelam
a ausência da ajuda mútua entre membros da mesma família e vizinhos, tendo como
efeito um arranjo de cuidado frágil. Em outros contextos, contudo, mesmo com o
desejo de ajuda, o potencial de alguns cuidadores estava visivelmente esgotado,
sobretudo no caso de mulheres, limitadas por questões financeiras, pela violência local
e familiar, pelo excesso de pessoas das quais cuidavam e pelas outras atividades que
possuíam, como o trabalho fora de casa (muitas vezes também de cuidado) e o cuidado
com a casa em si.
A pergunta que me fazia ao observar esses casos todos era: quais são os arranjos
de cuidado possíveis nesse contexto? Como eles se dão? Mais do que tentar uma
explicação em comum para aqueles casos que funcionam ou não, busquei descrevê-
los com a maior riqueza possível de detalhes atentando para a já citada sugestão de
Annemarie Mol (2010) de que “bom” e “mal” não são categorias que nos dizem muito
do ponto de vista de uma “ética do cuidado”. Em vez disso, Mol sugere que as práticas
de cuidado envolvam uma modalidade específica de lidar com questões relacionadas
ao bem, sem encontrar princípios gerais ou universais para isso.

“Linhas de cuidado” e “linhas de vida”


Duas etapas específicas do ciclo de vida foram selecionadas para esta reflexão:
o nascimento e o envelhecimento. Isso ocorreu por duas razões. A primeira se deu
porque tais momentos requerem uma alta demanda de cuidados e, consequentemente,
a segunda razão se explica porque também nas políticas públicas e na rotina do serviço
de saúde tais situações são compreendidas como prioritárias para a atenção primária
à saúde. Embora gestantes, recém-nascidos e idosos possam ser entendidos como
“grupos prioritários” da atenção básica, não há uma única definição de quais seriam
esses grupos, podendo ser definidos de acordo com cada área de abrangência 104. Nessa
unidade, os grupos prioritários eram tuberculosos, hanseníacos, hipertensos,
diabéticos, gestantes, crianças de até 1 ano e acamados. Embora grupos prioritários
seja um termo bastante presente na literatura sobre atenção básica, no cotidiano da
unidade essa categoria se misturava à ideia de “linha de cuidado”.

O termo “linha de cuidado” surge dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) a

104
A PNAB indica que eles podem ser definidos de acordo com cada área, a “carteira de serviços” da
unidade deve indicar que grupos são esses.

149
partir dos anos 2000 com a necessidade de reorganização do fluxo de atenção que se
estabelece a partir do próprio paciente e suas necessidades de cuidado, e não apenas
de um diagnóstico ou de uma prescrição. A partir do usuário, organiza-se um fluxo de
atenção que inclui diferentes serviços, respeitando ordens de prioridade e otimizando
os recursos e os atributos de cada um dos níveis de atenção (Franco, Magalhães Jr.,
2004) 105. Na unidade em questão, entretanto, ao dizer que “o paciente já está inserido
na linha de cuidado”, os profissionais queriam dizer somente que eles já estavam
inseridos no “sistema”. E, muitas vezes, o fato de o paciente já estar dentro do sistema
não significava que estivesse realizando o tratamento, que fosse acompanhado pela
equipe ou marcasse consultas com regularidade na unidade. Não era incomum que
aquele fosse apenas um nome que constava no prontuário eletrônico, com poucas
informações. Ou seja, a linha de cuidado que deveria, em teoria, acompanhar o usuário
em seu percurso terapêutico, acabava funcionando muito mais como uma “linha de
tratamento” à qual o usuário precisava se ajustar e adequar.

No caso de idosos, gestantes e recém-nascidos havia uma sensível diferença


em relação à frequência com que eram acompanhados. Gestantes possuíam consultas
mensais, assim como as crianças de até um ano. Já no caso dos idosos, exceto no caso
dos hipertensos e dos diabéticos que participavam dos grupos e dos chamados
“hiperfrequentadores” ou “poliqueixosos” que estavam na unidade quase que
diariamente, o acompanhamento pelo profissional médico era mais esporádico. Isso
ocorria por diferentes razões que ficarão mais claras adiante e que envolvem tanto
uma dificuldade individual e familiar do paciente idoso para comparecer às consultas,
quanto, no caso dos acamados, as dificuldades das equipes em realizarem a visita com
o profissional médico, como relatado no início do capítulo.

Tal disparidade entre os dois grupos era visível também pelo diferente destaque
que os programas municipais voltados a esses grupos possuíam. Enquanto o programa
Cegonha Carioca, de atenção ao parto, era valorizado por profissionais e usuários –
considerado a meninas dos olhos entre os programas de saúde criado no governo de
Eduardo Paes –, o PADI (Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso), também

105
Segundo esses autores, ao definirem e defenderem a proposta das “linhas de cuidado” no SUS,
“trabalhamos com a imagem de uma linha de produção do cuidado, que parte da rede básica, ou qualquer
outro lugar de entrada no sistema, para os diversos níveis assistenciais. Esta discussão dá sentido para a
ideia de que a linha do cuidado é fruto de um grande pacto que deve ser realizado entre todos atores que
controlam serviços e recursos assistenciais” (Franco, Magalhães Jr., 2004, 6).

150
implantado pela mesma gestão, ganhava jocosamente o apelido de “caviar” para
mencionar o fato de que quase nunca era utilizado, embora soubessem de sua
existência106. O PADI consistia em implementar assistência em casa, prioritariamente,
a pessoas com 60 anos ou mais de idade. O serviço é prestado aos portadores de
doenças que necessitem de cuidados contínuos que possam ser feitos na residência”107.
Já o Cegonha Carioca possui como principais destaques a visita à maternidade na qual
o parto irá ocorrer, durante o terceiro trimestre de gestação, na qual, além de ações
educativas para o parto e os cuidados com os bebês, a gestante recebe ainda um
enxoval completo da Prefeitura. Por fim, o segundo ponto alto do programa consiste
em um transporte exclusivo do programa da casa até a maternidade na hora do parto 108.
O programa obteve enorme sucesso e inspirou depois a criação da Rede Cegonha, em
âmbito nacional109.

Tendo em vista esse cenário, proponho aqui refletir sobre a ideia de “linha de
cuidado” – que tem norteado a ação do Sistema Único de Saúde mais recentemente –
juntamente à ideia de “linha de vida”, proposta por Tim Ingold (2015). Nessa noção,
Ingold contrapõe a ideia de rede proposta por Latour (2005), na qual pontos humanos
e não humanos se conectam, e propõe pensarmos a partir de linhas de fuga e não de
fechamentos. As linhas de Ingold não se conectam, mas se encontram, se cruzam,
formando uma malha – é nesse meio onde a vida se faz. O uso de uma perspectiva
ingoldiana na análise de sistemas de saúde e práticas terapêuticas foi também adotado
por Octavio Bonet (2014a), que tem buscado compreender as itinerações dos usuários
pelos serviços de saúde e como se constituíssem malhas que são entrelaçadas por
diversas linhas de vida.
Ao nos apoiarmos nessa perspectiva para compreender as relações de cuidado
a partir de uma unidade de saúde em um conjunto de favelas específico, aceitamos o
desafio de caracterizar esse ambiente que, ao mesmo tempo em que é comum a todos,
pois é composto por todas essas linhas entrelaçadas, é também único para cada

106
Menção a uma canção popular de Zeca Pagodinho que tem em seu refrão a seguinte pergunta e
respectiva resposta: “Você sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi, só ouço falar”.
107
Informações disponíveis em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/padi> (acesso em 19 de novembro
de 2018).
108
Informações disponíveis em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/cegonha-carioca> (acesso em 19 de
novembro de 2018).
109
Como consta na notícia: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2011/03/dilma-lanca-
programa-rede-cegonha-de-assistencia-publica-a-gestante> (acesso em 19 de novembro de 2018).

151
sujeito, pois sua composição depende das linhas de vida que se estabelecem em um
campo de forças a partir de cada um. Por essa razão, o objetivo desse capítulo é
justamente contar essas histórias mostrando que, em alguns casos, elas se cruzam e se
encontram, revelando o ambiente vivido.

O ritual das visitas domiciliares


Estive com Cláudio na casa de Francisco e Clemência no final de uma manhã,
já na reta final do trabalho de campo. Foi uma, entre tantas visitas domiciliares, que
acompanhei, mas foi quando me dei conta de sua dimensão ritualística. As visitas com
Cláudio seguiam sempre as mesmas etapas, o que conferia a elas certa previsibilidade
e segurança, tanto para o médico e para equipe que o acompanhava, quanto para os
pacientes. O casal visitado nesse dia – ela com 78 anos, ele com 83 – viveu a vida
toda no morro, onde criaram os filhos. Após a aposentadoria, abriram uma pequena
venda na parte de fora da casa, que mantêm até hoje, embora a contragosto dos filhos
que acreditam que ambos não possuem mais condições de manter o negócio, ainda
que pequeno. Eles vivem na parte mais baixa e de ocupação mais antiga do morro. Ao
chegarmos, Dona Clemência se dirigiu à cozinha para ferver água para passar um café,
sentou-se no sofá, enquanto o médico examinava seu marido, e ligou a televisão em
volume quase máximo – os dois quase não escutam mais. A visita ao casal foi assim,
acompanhada o tempo todo por Ana Maria Braga e Louro José 110. A televisão foi
companhia constante nas visitas que acompanhei, sobretudo a idosos, no Complexo
do Alemão. No início me causava estranheza que uma consulta médica, ainda que
domiciliar, pudesse ser realizada em meio ao som alto da televisão e muitas vezes
desejei, secretamente, que o volume fosse abaixado. Ao longo do tempo, contudo, me
habituei e ao final quase já não notava a televisão, que não parecia ser também uma
fonte de incômodo para o médico.
Cláudio pediu que a agente tentasse localizar algum dos filhos para
acompanharem a consulta e Dona Clemência pediu para que eu tentasse ligar para
uma das filhas do seu aparelho de celular, que ganhou dela, mas não sabia usar.
Enquanto o médico examinava Seu Francisco, a agente andava pelas redondezas
procurando algum dos filhos e eu tentava desvendar o funcionamento do aparelho de

110
Ana Maria Braga é apresentadora de um programa matinal tradicional na Rede Globo de televisão e
Loro José é um personagem de pássaro (louro), espécie de fantoche, que a acompanha.

152
celular, já obsoleto, que Dona Clemencia me confiou.

Ao término do exame de Seu Francisco, Cláudio disse à Clemência que


precisaria também examiná-la. Ela se assustou dizendo que pensava que a consulta
seria só para ele, mas Cláudio insistiu dizendo que precisava examinar ambos. Após
examiná-la, ele constatou uma bronquite. Ao saber do diagnóstico, Clemência disse:
“Bronquite, eu? Melhor me levar logo para o cemitério!”. Nesse instante, então,
chegou uma das filhas, bastante agitada, dizendo que a agente não havia avisado da
visita, pois, caso houvesse, teria vindo antes para acompanhar. Ela se queixou dos
pais dizendo que são teimosos e não permitem que os filhos cuidem de suas coisas,
sobretudo com relação ao dinheiro da aposentadoria, que gastam, segundo ela, “no
mesmo dia em que recebem”. Nesse instante, sentimos um leve cheiro de queimado e
a filha logo perguntou: “Mãe, tem alguma coisa no fogo?”. Dona Clemência correu
para ver: era a água do café – já seca – e a panela queimando. A filha então desabafou:
“É isso, todo dia ela queima alguma coisa na cozinha, perdem muito dinheiro com
isso, porque queimam comida todo dia”. A mãe voltou reclamando e dizendo que a
filha estava exagerando. Então me convidou para conhecer o resto da casa, antes de
irmos embora. Ao me mostrar um dos quartos, disse: “Na verdade, aqui era a cozinha,
mas eu tive que trocar, porque lá do lado da cozinha dava muito tiro, então achei
melhor dormir aqui”.111

Assim como no caso acima, a maior parte das visitas que acompanhei foram
realizadas com o médico Cláudio. Visitávamos, em média, quatro ou cinco casas em
uma mesma saída, e a maioria das visitas eram destinadas a idosos acamados e
algumas poucas a deficientes ou a pessoas recém-saídas de internações. Quatro
principais variáveis marcavam a situação em que encontrávamos esses usuários: a
parte do morro em que viviam (mais alta ou mais baixa), a condição do domicílio, a
estrutura de cuidados em torno do idoso e a condição financeira do próprio idoso ou
da família. As visitas com Cláudio seguiam um certo ritual que tinha início sentando-

111
Mariana Cavalcanti (2009) atenta para o fato de que as construções na favela também aderem à lógica
de uma fortificação (Caldeira, 2000) por questões de segurança. A autora diz: “A fortificação, lá, como aqui
no dito asfalto, passa a constituir o imaginário da construção de moradias. A adição de muros, barras em
janelas (para manter as crianças dentro e a polícia fora), tem sua contrapartida em investimento em
televisões, DVDs, computadores e videogames, como modo de manter as crianças em casa, em um
ambiente seguro. O medo é assim incorporado à atividade de construção (e ao imaginário de melhorias que
a constitui), gerando novas formas sociais e novos espaços construídos” (Cavalcanti, 2009, 76).

153
se o mais próximo possível do paciente, depois realizando o exame clínico e checando
pressão, batimentos cardíacos e taxa de glicose (muitas vezes usando fitas compradas
por ele mesmo, pois estavam em falta na farmácia da unidade). Normalmente, depois
disso, o médico pedia para ver receitas ou exames anteriores e seguia conversando
com o idoso e os familiares enquanto atualizava receitas e prescrições. Além disso,
sempre explicava em detalhes qual era o quadro e as decisões que estava tomando.
Cláudio já conhecia a maior parte dos idosos visitados, que o recebiam com bastante
entusiasmo. Com outros médicos, havia certa desconfiança inicial, que requeria maior
intermediação do Agente Comunitário de Saúde durante a visita.

A maior parte dos médicos hesitava em realizar as Visitas Domiciliares com a


justificativa do perigo causado pela violência ou pelo excesso de demandas na própria
unidade. Em alguns casos, a visita domiciliar era barrada pela própria gerência diante
das ausências de médicos na unidade, relativas a faltas ou mesmo à espera pela
contratação de novos médicos – situação constante, como já relatado no capítulo
anterior. Porém, em outros momentos, a visita que deveria ser quinzenal para cada
uma das equipes simplesmente não ocorria, mesmo sem ordens da gerência ou sem
ocorrência de tiroteios naquele dia. Ainda assim, alguns médicos alegavam que a
situação de violência tornava a realização da visita arriscada. Por fim, a visita , que o
médico deveria fazer quinzenalmente, acabava ocorrendo no máximo uma vez ao
mês112.

Como mencionado no segundo capítulo, embora houvesse um protocolo


seguido pela unidade com relação à violência – o “Acesso Mais Seguro” –, na prática
os profissionais se guiavam por informações passadas pelos Agentes Comunitários de
Saúde, o que dava margem tanto para realizarem visitas em dias supostamente
“intranquilos”, como também para alegarem que não poderiam realizá-las em dias sem
tiroteio. É importante diferenciar as visitas realizadas por enfermeiros e médicos, já
que as primeiras ocorriam com maior frequência, entre outras razões, pelo fato de os
enfermeiros possuírem uma carga horária maior de visita domiciliar prevista. Por
outro lado, no entanto, entre os profissionais médicos, não só a carga horária era menor,

112
Em uma situação em que visitei com Cláudio um idoso aposentado pela Petrobrás, que possuía plano
de saúde, soubemos que o serviço de Home Care (atendimento domiciliar) do plano alegava que não
podia realizar a visita ao idoso ali, por ser considerada uma “área de risco”. Ou seja, o argumento que
circulava informalmente entre os médicos da unidade básica de saúde era assumido oficialmente pelo
plano de saúde particular.

154
como também a disposição. A objetividade do protocolo oficial esbarrava, portanto,
nas subjetividades de cada profissional, na sua relação com o território e no fato de
ele considerar perigoso ir até lá, além do nível de comprometimento com o trabalho e
com os pacientes que necessitavam desse suporte.

Ao refletir sobre a noção de risco que estava implicada nessas falas, é possível
perceber que a Visita Domiciliar envolve, além dos possíveis tiroteios, um
deslocamento de um ambiente conhecido para a maior parte dos profissionais, a
unidade saúde, para um desconhecido, a favela. Para chegar às casas é preciso
caminhar no mínimo quinze minutos, subir ruas íngremes, passar por alguns becos
estreitos, escuros, malcheirosos, com lixo nas ruas. Muitas vezes, depois de passar por
tudo isso, chega-se a casas arejadas, onde uma família sorridente os recebe com água
ou café e lhes convidam a sentar em seus confortáveis sofás. Contudo, há inúmeras
casas onde o mau cheiro e o escuro predominam e nas quais não há sequer um local
para sentar. A casa tem pouca ou nenhuma janela, muitas pessoas vivendo dentro,
muitas vezes junto a animais domésticos, e nem mesmo é possível entrar no ambiente
pela falta de espaço – a noção de perigo aqui associa-se, nesses casos, à certa ideia de
limpeza, pureza e moralidade (Douglas, 1976).

Em muitos casos, como o de Josefa, a visita médica só ocorria depois de


intensa demanda e pressão familiar. Em uma ocasião, durante a campanha de
vacinação de gripe no meio do ano, acompanhei uma equipe na vacinação aos
acamados e, enquanto andávamos pelo morro, conversei longamente com o técnico de
enfermagem sobre a questão dos médicos na unidade. Em sua opinião, o ir e vir dos
médicos na unidade era constante também pelo fato de que para eles havia a opção de
sair e ser absorvido em outros locais de trabalho, enquanto para os enfermeiros não
seria tão simples e menos ainda para os técnicos em enfermagem: “Eles acham que os
técnicos aguentam mais tempo nessa situação porque tem mais gente querendo
trabalhar, então eles aguentam mais uma situação ruim de trabalho”. Para os últimos,
no entanto, a rotina de trabalho seria ainda mais dura, pois seriam eles, junto aos
agentes, os receptores de todo o tipo de reclamação por parte da população. “Quando
chega o pessoal com curso superior, eles mudam a postura”, completou dizendo.
Durante essa mesma situação, na campanha de vacinação – no mesmo período em que
a Secretaria de Saúde no munícipio passava por forte crise, com falta de medicamentos
e do pagamento dos profissionais médicos na atenção básica –, um morador indagou

155
a equipe que andava pelo morro: “O que vocês estão fazendo por aqui se não tem
médico, nem remédio lá no posto?”. A equipe explicou sobre a importância da
campanha de vacinação e seguiu caminhando.

Embora na fala do técnico e na pergunta desse morador estivesse reforçado o


lugar de menor valorização do profissional não formado em curso superior, a presença
deles durante um longo período trabalhando na unidade, associada à sua maior
circulação pelo território, fazia com que muitas vezes se estabelecesse com eles, e
somente com eles, um elemento mais uma vez essencial para a realização da medicina
centrada na pessoa: o vínculo.

A casa e o morro
Maria é uma senhora de 70 anos, usuária do posto de saúde desde sua fundação,
no início dos anos 2000, quando ainda se localizava aos pés do Morro do Alemão, no
início da Avenida Central. O motivo da primeira visita que acompanhei em sua
residência foi a má cicatrização do coto de sua perna amputada há quase três anos. A
visita foi realizada com o médico Camilo e uma agente comunitária. Maria, ao mesmo
tempo em que nos mostrava a perna, dizia, deixando algumas lágrimas escorrerem,
sobre como a má cicatrização lhe aborrecia, impedindo-a de colocar a prótese. Após
a cirurgia, foi viver na casa da filha em um apartamento fora do morro, onde ficou por
dois anos, mas não lhe agradara em nada a sensação de estar “presa” em um prédio.
Mesmo com toda a dificuldade em voltar para a sua casa, localizada em uma área
muito íngreme no Morro do Alemão, ela preferia ainda assim estar de volta; ali pelo
menos podia transitar em sua cadeira de rodas entre a cozinha e a área de serviço e,
embora a casa fosse pequena, possuía uma ampla área externa. O outro motivo de seu
retorno era o cigarro, já que a filha não lhe deixava fumar dentro de casa 113.
Com o retorno à sua casa, Maria também havia retomado a possibilidade de ser
atendida pelos profissionais da unidade, que a tinham acompanhado desde os
primeiros sintomas que levaram à amputação. Durante o período na casa da filha, ficou
sem nenhum acompanhamento da equipe de saúde da família, pois não possuía
comprovante de residência declarando que vivia ali, e assim, segundo o que nos
relatou, não podia ser atendida pela equipe daquela área. Porém, essas limitações

113
A inadaptabilidade dos moradores de favelas a condomínios tornou-se tema clássico nos estudos sobre
favelas a partir do trabalho de Licia do Prado Valladares (1978), sobre a acomodação aos, assim chamados,
“apartamentos” da Cidade de Deus.

156
impostas pelas regras do sistema nem sempre haviam sido seguidas na relação de
Maria com os profissionais de saúde. Ela conta que a ferida na perna surgiu quando
estava assistindo televisão e um mosquito lhe picou um pouco acima do pé. Coçou a
perna e abriu-se uma ferida. No meio da noite, sentindo dor, ela pôs álcool e, em
seguida, pó de sulfa (um pó cicatrizante e anti-inflamatório muito usado antigamente).
Ao narrar esse episódio, ela se angustia: “Eu não me dou com isso... Olha... Três dias
aquilo criou um buraco, que dava pra se ver daqui”. Em sua narrativa, foi o cigarro
que impediu a cicatrização e aquilo foi piorando, até culminar na necessidade de
amputação.

A auxiliar de enfermagem da unidade de saúde naquela época subia até sua


casa periodicamente para refazer o curativo da perna de Maria, enquanto ela
aguardava o encaminhamento para o especialista. A auxiliar, conhecida como Ju, era
a única pessoa para quem Maria tinha coragem de mostrar a ferida. Ju, no entanto, foi
transferida para outra unidade, mas seguiu indo até o Alemão e fazendo o curativo
nela após seu expediente, considerando o vínculo de confiança que haviam
estabelecido. Maria conta todo seu processo de tratamento da perna com muitos
detalhes, incluindo datas, nomes de medicamentos e dos profissionais que lhe
atenderam em diferentes instituições. Mas, nesse processo, o afastamento definitivo
de Ju é o que demarca o momento da piora, que acaba resultando na amputação:

É porque o machucado tava até sarando... Tava, tava até fechando, quando
a Ju vinha aqui ficou fechado... Aí na época a Ju não veio mais, aí saiu um
carocinho assim do lado, aqui assim, vermelhinho, aí foi indo, foi indo, foi
indo, aí foi depois do carnaval de 2014, ele tava assim, ó, comparando isso
aqui, pequenininho, de tarde tava assim, ó, cresceu um tanto assim...
Nossa... Num dia mesmo, de um dia pro outro. E eu não falei pra ninguém.
Aí um dia limpando, eu disse pra minha filha, dá uma olhadinha no meu
pé, ela botou a mão na cabeça! Mããããe, meu Deus do céu, há quanto tempo
tá isso aí, mãe? Isso é um câncer, mãe no sei o quê... Porque ela andou
fazendo aí uns cursos de enfermagem, e ela chegou a fazer estágio, aí ela
viu, né... Ih, até xinguei ela, vai pra lá, vira essa boca pra lá, sei quê, aí foi
indo, ficou igual uma bola. Aí, por causa de uma dor aqui, ó, a minha filha
me levou no Getúlio [Hospital Getúlio Vargas], eu até lembro, aí ela me
levou no Getúlio e começou tudo isso... (Entrevista realizada com Maria,
2017).

As idas e vindas de Maria a diferentes hospitais e tratamentos revelam dois


elementos simultaneamente. Ela não menciona, e ao mesmo tempo não parece ser

157
importante para ela, a existência de um diagnóstico final para aquilo que a levou à
amputação. O tempo todo ela se preocupa em me explicar os processos: como se deu
conta da gravidade do problema, quem estava ao seu lado naquele momento, para onde
foi levada e como foi tratada – mas nunca, o diagnóstico de por que afinal foi preciso
amputar a perna114. Em meio a tantas informações, ela diz: “Eu peço a Deus que me
leve quando ele quiser, mas não leve nunca a minha memória”.

Enquanto para o médico, assim como para mim, a ausência de um motivo


evidente para tais procedimentos causava extremo desconforto, no caso de Maria, o
cuidado que esse processo demandou e não o fato em si parecia ser o que mais lhe
angustiava. Isso fica evidente quando fala da existência de uma rede familiar densa,
porém marcada pelas dificuldades dos filhos em estarem perto dela, em razão de seus
trabalhos e outros compromissos. A sensação de estar “incomodando”, “dando
trabalho” para filhos, netos e sobrinhos, era uma questão sempre mencionada pelos
idosos, algo que parecia lhes aborrecer bastante. Um dia, uma idosa disse a Cláudio
enquanto ele a examinava: “Ah, doutor, me interna lá no Getúlio [hospital], por favor,
eu só queria ficar lá quietinha, morrer lá, sem incomodar ninguém”. O Hospital
Estadual Getúlio Vargas 115 fica a quinze minutos de carro do Complexo do Alemão e
várias linhas de ônibus que passam pelo Complexo deixam em frente ao hospital, que
acaba sendo ainda hoje amplamente utilizado pela população como serviço de
emergência.

O desejo de uma morte silenciosa, e de preferência hospitalar, presente nessa


fala remetia à ideia de um processo “civilizatório” cada vez mais individualizado,
também para a morte, nas sociedades ocidentais contemporâneas, como tematiza
Norbert Elias (2001). Embora existisse esse desejo, a morte na favela raras vezes
ocorria desse modo. O afastamento do “mundo do moribundo” do “mundo das
crianças”, outro tema mencionado por Elias, também não se concretizava na realidade

114
Seu caso não foi o único que conheci de amputação sem que o motivo estivesse claro para o paciente.
Em uma das casas em situação de construção mais precária que visitei no morro – com paredes de taipa
e tábuas de madeira e com telhado sem forro, coberto apenas por telhas Brasilit –, vivia um casal de
idosos cuja alegria era, incrivelmente, contagiante. Visitei essa casa com um jovem médico que ainda não
os conhecia e ele indagou ao senhor por que suas pernas haviam sido amputadas. Ele então respondeu:
“Para mim, eu fumava muito e uma vez eu caí”. Não satisfeito com a resposta, o médico questiona se
tinha varizes, e ele responde que não. O médico então concluí: “Então o senhor não sabe por que
amputaram?”, “Não...”.
115
O hospital foi inaugurado, em 1938, com a presença do próprio Presidente Getúlio Vargas, e localiza-
se no bairro Penha Circular.

158
da favela – como já evidenciado nas unhas de Josefa, pintadas de diversas cores pelos
netos de sua irmã. Não são raros os casos em que a cama ou o sofá onde o acamado
passa a maior parte do dia fiquem posicionados em um cômodo da casa que também
é utilizado para outras atividades na rotina familiar, tais como comer e assistir
televisão116.

O caso de Josefa era exemplar nesse sentido: muitas vezes, o “moribundo”


vivia ou era recebido em um lar já bastante populoso. Por outro lado, a possibilidade
de uma morte hospitalar raramente era concretizada, já que os hospitais não
mantinham pessoas como ela internadas por muito tempo. No caso do Alzheimer, a
situação era ainda mais dramática pelo tempo prolongado da doença. O médico no
Hospital de Acari foi claro com Dulce, a irmã de Josefa: ela precisava ser levada
embora para morrer em casa. Quando Diogo conseguiu finalmente que ela fosse
encaminhada para um hospital, a alta foi dada no mesmo dia, após administração de
soro para a desidratação e antibiótico para a infecção urinária; não podiam fazer mais
nada por ela.

Já no caso de Maria, totalmente lúcida, apesar da amputação, a mudança para


a casa da filha não foi bem-sucedida. No momento em que conheci Maria, um dos
netos vivia com ela e o outro filho na casa em frente. Mas ela não contava com
nenhuma ajuda para cuidar da casa e preparar comida, e esse foi o motivo da mudança
inicial para a casa de uma das filhas. Mesmo com as limitações impostas pela
amputação, a casa de dona Maria estava sempre impecavelmente arrumada: “Eu dou
meu jeito, detesto ficar sem fazer nada”, disse ela. Sobre o período em que ficou na
casa da filha, ela comenta:

Eu senti falta da minha casa, e lá é apartamento, as portas fechadas, tudo


fechado, não via nada, de manhã não entrava nem um solzinho assim... Eu
não tô reclamando do que ela fez por mim... Hoje em dia, poucos filhos
fazem o que ela fez, [ela fazia] cafezinho, até engordei, cafezinho com
leite, e almoço e maior cuidado comigo, porque ela trabalha por conta dela,
faz cabelo, faz estética, agora tá em Ipanema, alugou uma loja lá. Mas eu

116
Em tempo, é importante observar que a divisão dos cômodos em grande parte das casas nas favelas
não segue o mesmo modelo das casas de camadas médias, com a disposição mínima de sala, quarto,
banheiro e cozinha. Muitas vezes, há apenas dois cômodos principais e, mesmo no caso de haver mais de
um cômodo, a divisão daquilo que possui a função de dormir (quarto) ou de realizar outras atividades,
como comer e assistir televisão (sala), é, em diversos casos, imprecisa, valendo o mesmo para os usos
feitos de mobiliários, como cama e sofá.

159
já não tava com a cabeça legal, apartamento fechado... Ficava muito
sozinha, porque ela trabalha (entrevista realizada com Maria, 2017).

O incômodo de Maria não tinha a ver apenas com a ausência da filha, mas
também com a ausência de sua casa e do lugar onde viveu desde os seis anos de idade.
Em uma outra visita na qual fui apenas para conversarmos, Maria me contou sua
história de vida, relatando quando se casou, em quais lugares nasceram seus filhos,
onde viveram seus pais, os locais onde trabalhou como doméstica, fazendo sempre
referência “àquela escada ali”, “a casa em frente”, “naquela árvore ali de trás”, “aqui
no morro”, como se os elementos no entorno de sua casa compusessem a história de
sua vida, incluindo o “postinho de saúde”. E era perto desses fragmentos que a
compunham que ela gostaria de passar o fim de sua vida. Outro elemento presente em
sua fala é a sensação de contar ali com uma rede de apoio que, embora não estivesse
presente em seu dia a dia, nunca seria ausente em um momento de necessidade, por
exemplo, quando ela precisou ser carregada em sua cadeira para sair de casa. Entre
essas pessoas, incluíam-se não apenas os vizinhos, mas também “os meninos”, forma
indireta de se referir àqueles que estão ligados à venda de drogas no morro:

Eu fui no banco pegar um dinheiro, em fevereiro eu fui lá pra pegar um


empréstimo, eu sou aposentada e posso pegar empréstimo. Aí os meninos
me levou, entendeu? Foi lá, fui até na [Avenida dos] Democráticos, aí de
lá é melhor pra subir, sabe? Porque Duda [seu filho] pode parar com o
carro, Duda para com o carro assim e eu subo a rampa, não tenho o que
falar... Sei que não são todos assim, mas se eles veem que quero ajuda, sai
um por um, devagarinho, para me ajudar (entrevista realizada com
Maria, 2017).

Embora “os meninos” não estivessem diretamente ligados à rede familiar de


Maria, sua ajuda estava baseada em uma outra lógica que não a da reciprocidade, mas
sim a de garantir certa coesão social dentro da favela e também de conformar uma
identidade positiva do tráfico, dentro daquilo que era considerado justo ou injusto na
lógica de cada facção ou liderança117. Como aponta Joan Tronto:

Ser uma pessoa moralmente boa requer esforço para atingir as exigências
de cuidar do outro que se lhe apresentam ao longo da vida. Para que uma

117
Nas poucas vezes em que consegui ter essa conversa com moradores, o que se deu menos com
interlocutores da pesquisa e mais pelas relações de amizade que fiz ao longo do trabalho na UPP social, a
narrativa de que existiram ao longo da história do Complexo do Alemão chefes “bons” e “ruins” no tráfico
parece ser comum e consensual.
160
sociedade seja considerada moralmente admirável ela tem de assegurar
formas de cuidado para os seus membros (Tronto, 2009, 126).

Como demonstra também Antonia Pedroso de Lima (2016), pensando em


práticas filantrópicas em períodos de austeridade em Portugal, um dos principais
princípios da ajuda, que não implica em troca e reciprocidade, seria a gratidão que
teria o papel de reconfigurar a identidade daquele que ajuda. Na narrativa de Maria,
portanto, desestabiliza-se a ideia do tráfico como algo que contribuiria para uma
dificuldade em suas tarefas cotidianas e cuidado de si e positiva-se o oposto, a
identidade do tráfico como poder paralelo que existe na favela também para “cuidar
dos seus”. Em sua fala, a violência do morro não aparece como um elemento
complicador em seu cotidiano, nem que demarque sua história de vida ali. Porém, a
violência que vê na televisão sim: “Eu fico nervosa com a violência às vezes, até parei
de ver o repórter, Deus me livre, horrível! É todo dia, tu não vê nada bom, é polícia,
é não sei o quê...”.

Meu primeiro encontro com Maria foi também o primeiro de Camilo com o
Complexo do Alemão. Trabalhando havia um mês no Posto de Saúde, o médico fazia
naquele dia sua primeira visita domiciliar. Ao chegarmos à casa da paciente, o médico
lhe prescreveu uma pomada e um antibiótico e disse que voltaria para vê-la, indicando
também que ela fizesse fisioterapia para fortalecer a musculatura da outra perna.
Camilo substituía Glória, médica cubana do Programa Mais Médicos que tinha ficado
por dois anos ali. Ele, no entanto, nunca voltou para visitar Maria, pois não chegou a
completar três meses de trabalho na unidade, tal como mencionado no capítulo
anterior. Quando voltamos para ver Maria, durante a campanha de vacinação alguns
meses depois, ela disse que a cicatrização seguia na mesma. Não foi à fisioterapia,
pois nenhum familiar podia levá-la duas vezes por semana. A logística de descer o
morro com a cadeira de rodas e depois conseguir um carro para levá-la demandaria
auxílio de mais de uma pessoa e recursos financeiros dos quais a família não dispunha.
Ela perguntou sobre Camilo e a agente de saúde explicou que ele já havia ido embora
da unidade. Maria se lamentou dizendo que tinha gostado dele. E lamentou-se ainda
mais pelo fato de que, mais uma vez, a equipe responsável por seu domicílio ainda
não tinha um novo médico contratado.

161
Assim como na história de Maria, que opta por ficar em sua própria casa
mesmo que precise abdicar dos cuidados de sua filha, em outros casos que acompanhei
a questão da casa também apareceu como central para compreender os arranjos de
cuidado desses pacientes, sendo quase tão fundamental quanto o vínculo com as
pessoas. Trabalhos pioneiros como o de Woortman (1982) e de Marcelin (1999) já
apontaram a importância de compreensão da categoria casa em classes populares
brasileiras, não nos termos propostos por Claude Lévi-Strauss (1991), como algo que
substituiria a “descendência” ou “linhagem” nas relações de parentesco, mas sim
como um elemento prático crucial na existência dessas relações. Nicolau Bandera
(2017) também chamou atenção para a importância da casa no processo de criação
dos filhos na periferia de São Paulo, atentando que “as casas, nesse contexto, não são
como as pessoas, mas têm as mesmas qualidades e são produto das mesmas relações
que elas” (2017, 76).

Eugenia Motta (2014) procurou trazer essa reflexão ao Complexo do Alemão


em uma análise com foco nas relações econômicas que perpassam uma rede familiar,
na qual o elemento casa é também fundamental. A autora observa que, ao contrário do
que se supõe, a casa na favela não é marcada por uma ideia de “ausência” e de
“pobreza”, mas sim por um elemento constitutivo e central nas práticas econômicas
cotidianas. Ao analisar a dinâmica das casas ali, ela evidencia também como a casa na
favela se distancia do modelo de casa das classes dominantes, onde uma casa não pode
ser delimitada apenas pelas paredes que as cercam.

Motta (2014) atenta também para o fato de que em grupos populares as etapas
do ciclo doméstico não são tão evidentes, como já exposto também por Claudia
Fonseca (2005). Tal observação implica em compreender que as relações domésticas,
sobretudo em classes populares, não se restringem à família nuclear, tampouco à
família consanguínea, e também não se prendem a um modelo fixo de ciclos de vida118.
Assim, não necessariamente se gera uma nova casa quando uma nova família é
constituída ou quando nasce um bebê. Além disso, muitas vezes, os filhos já adultos
necessitam retornar para a casa dos pais por problemas financeiros ou estes se
mudaram para as suas casas em momentos de maior necessidade de cuidados, como

118
Assim como atenta Debert (2004), a ideia de curso de vida seria menos enrijecida que ciclo de vida, já
que “a velhice não seria pensada como um momento definido pela idade cronológica e no qual se
permanece até a morte, mas como processo gradual em que a dimensão histórica e social e a biografia
individual devem ser consideradas com relevância”.

162
aquele vivido por Maria. Na narrativa de Maria, portanto, desestabiliza-se tanto a ideia
do “morro” como um lugar violento e ruim para viver, como também a ideia de que
ela precisaria ser cuidada por um familiar em específico, considerando que em sua
casa sentia-se de algum modo cuidada por tudo aquilo que a circundava, evidenciando
outras lógicas de solidariedade não dependentes apenas da família nuclear.

Guita Debert (2004), ao analisar a questão do envelhecimento, aponta para o


aspecto da reprivatização do envelhecimento, através do qual “transformam a velhice
numa responsabilidade individual e nesses termos ela poderia então desaparecer do
nosso leque de preocupações sociais” (2004, 14). Dentro desse fenômeno, a autora
analisa diferentes frentes para compreender a questão da velhice na
contemporaneidade, passando pela análise do discurso gerontológico à observação
participante entre idosos asilados e outros em situação mais ativa, de associativismo.

Ao dialogar com trabalhos quantitativos da sociologia americana, a autora


aponta que trabalhos realizados com idosos com recorte étnico e de classe
demonstram, por um lado, certa preocupação com o que consistiria uma “dupla
vulnerabilidade” (double jeopardy) dos idosos pertencentes às “minorias” (2004, 89).
Por outro, demonstra certa vantagem com relação a outros grupos, porque “as relações
familiares e outras formas de apoio aos idosos são mais intensas nas minorias étnicas,
que, por isso, teriam situação privilegiada frente a outros grupos da população”.
Debert aponta, no entanto, para o limite das análises quantitativas, que ganham maior
profundidade quando combinadas às pesquisas qualitativas de cunho antropológico,
as quais por sua vez demonstram ambivalência e conflito na questão do
envelhecimento entre esses grupos. Nesse sentido, nem sempre tal rede de apoio
intensa se concretizava nos arranjos de cuidado em torno sobretudo dos idosos da
favela, que diferentemente de crianças recém-nascidas que mobilizavam esperança e
renovação, muitas vezes estavam totalmente desprovidos de laços mais sólidos.

Quando os vínculos são frágeis


A questão da casa e do vínculo familiar, entretanto, não se estabelecia do
mesmo modo para todos. No CAPS Álcool e Drogas, localizado em Ramos, que
atende a população do Complexo do Alemão, entre outros bairros adjacentes,
participei de uma conversa entre diferentes representantes da comunidade e das
instituições sobre “os problemas do território”. Em um dado momento, discutia-se

163
sobre como a situação de violência e pobreza aprisionava as pessoas dentro da favela,
configurando, segundo uma das profissionais do CAPS, situações “manicomiais”, de
isolamento da sociedade, mesmo fora de instituições de saúde. Há algum tempo eu já
realizava visitas a idosos acamados ou domiciliados junto aos médicos da atenção
básica e, nesses casos, a questão do isolamento era ainda mais significativa porque, a
depender do local do morro onde viviam e da fragilidade de seus vínculos, a
possibilidade de sair dali tornava-se ainda mais difícil e, do mesmo modo, a chegada
das equipes de saúde a suas residências era completamente esporádica. Assim,
portanto, esse isolamento e aprofundamento da situação de pobreza, agravado pela
violência, tinha como maior impacto não somente a falta de renda, mas sobretudo a
quebra de vínculos e a inexistência ou a ineficiência dos arranjos de cuidado.
Remetendo à ideia de “zonas de abandono social”, propostas por João Biehl ao
pensar em instituições como asilos e manicômios, o termo parecia se encaixar também
na realidade de isolamento de alguns idosos na favela. Lembrando, contudo, que “seja
em abandono social, dependência, ou desabrigo, a vida que não tem mais nenhum
valor para a sociedade não é sinônimo de vida que não tem mais nenhum valor para a
pessoa que a vive” (Biehl, 2011, 274).

Em geral, os pacientes acamados são idosos ou pessoas portadoras de alguma


deficiência que as impede de se locomoverem. Muitas vezes, ao chegar a casas para
visitar pacientes acamados, a equipe os encontra deixados sob os cuidados de um
vizinho que não estava por perto, de um irmão ou irmã mais jovens, ou ainda de um
neto ou bisneto pouco conscientes de sua função, ou até de outro idoso com problemas
graves de saúde. Espera-se assim um cuidado de quem não pode ou não sabe cuidar.
Já outras vezes, encontram-se esposas, maridos e filhos muito preocupados e ativos
nos cuidados com os idosos e toda uma estrutura familiar já organizada em função da
pessoa acamada ou adoecida.

Em uma das situações que mais me impressionaram ao longo do trabalho de


campo, visitei a casa de um homem acamado de 60 anos, cuidado por sua mãe idosa
de 90 anos. Quando a mãe se aproximou do filho para avisar que o médico havia
chegado para vê-lo, o homem, que mal conseguia abrir os olhos e mexer os braços na
cama, chutou a própria mãe e ela caiu sentada para trás. A senhora então começou a
dizer: “Ele agora está assim, não sei o que fazer”. Seu neto, filho do acamado, que
também estava presente na casa começou a replicar: “É vó, ele sempre fez isso, ele

164
não merece que a senhora cuide dele não”, e ela então respondeu: “Sai daqui que você
está bêbado, não quero você perto de mim”. Nesse momento, o neto obedeceu à avó
e, junto a ele, nós – eu e a agente que acompanhava a visita naquele dia – percebemos
que também era melhor sair e fomos para a parte externa da casa.

Do lado de fora, o filho e a agente comunitária de saúde começaram a conversar


sobre a situação do pai. Ele contou que o pai sempre agrediu a avó e continuou fazendo
isso mesmo depois de ter ficado acamado. Recentemente, ele havia sofrido um AVC,
mas já estava acamado há muito tempo, desde que, segundo o filho, “tomou uma surra
na rua” porque estava devendo ao tráfico. Notei que o filho estava visivelmente
embriagado, como havia afirmado a avó antes. Ele contou que esteve por muito tempo
envolvido no tráfico, mas resolveu sair quando seu irmão foi assassinado e percebeu
que se continuasse ali também morreria. Ele se emocionou ao falar do irmão e a
maneira cruel pela qual foi assassinado e começou a chorar. Contou-nos que não tinha
emprego, nem documentos, não sabia por onde recomeçar sua vida fora do tráfico e a
agente tentou lhe passar informações sobre emissão de documentos. Poucos meses
depois, eu soube que tanto a avó, quanto seu pai haviam falecido, um logo após o
outro. Nesse caso, diferente do caso de Maria, a fragilidade da rede de cuidados estava
enraizada em diferentes aspectos das relações que a compunham: o pai e a avó
debilitados, a violência sofrida pela avó, a difícil relação entre eles, a falta de trabalho
do neto, a relação rompida com o tráfico. Nenhum desses elementos contribuía para
que o arranjo de cuidado tivesse êxito.

Esse também foi o caso de duas irmãs, uma muito idosa e outra com
esquizofrenia, que viviam em uma casa sem nenhuma ventilação e iluminação, muito
próxima a uma área de esgoto a céu aberto. Quando a equipe chegou, a mais velha,
acamada, parecia muito fraca. Em um rápido exame, o médico constatou batimentos
cardíacos acelerados e pressão baixa. Enquanto isso, a outra irmã delirava e andava
pela casa dizendo coisas incompreensíveis. A equipe toda parecia desconfortável e
preocupada com a situação quando chegou uma vizinha, que morava no andar de cima
da casa e indicava ter vínculos familiares com elas. Ao ser indagada pelo médico se
elas haviam comido, a mulher respondeu que naquele dia não. Ela então se ofereceu
para ir naquele instante buscar um prato de comida para elas. O médico questionou a
idosa se ela aceitaria e ela acenou positivamente com a cabeça, bastante constrangida.

Foi inevitável nesse dia não questionar à equipe se era de fato possível que elas

165
continuassem vivendo sozinhas. A resposta foi de que seria possível indicá-las para
um abrigo, mas a situação nesses espaços, caso houvesse vaga, poderia ser ainda pior
do que a que elas viviam ali, por isso era preferível insistir no vínculo familiar, como
foi feito com a vizinha aparentada que apareceu no momento da visita. Apenas uma
vez presenciei uma médica, Iara, cogitando a possibilidade de encaminhamento de um
paciente idoso para asilo. Tratava-se de uma senhora bastante vigorosa em termos
físicos, mas sua confusão mental tornou-se evidente logo no início da consulta. Ela
havia se confundido com o horário da consulta pela segunda vez, não estava tomando
a medicação adequadamente e não havia levado nenhum dos exames solicitados pela
médica. Essa última informação deixou a médica bastante impaciente. Ela perguntou
então por que Dona Ártemis estava sozinha na consulta, algum familiar deveria
acompanhá-la nas consultas, e ela não deveria morar sozinha. A senhora então
respondeu: “Não quero morar com meus filhos, porque minha temperatura é diferente
da minha nora e meu genro. Tenho 82 anos, sou daquelas nordestinas que não aceita
coisa errada. Enquanto eu tiver bem, não tiver Alzheimer, vou morar sozinha”. No
prosseguimento da consulta, ela revelou que o que mais lhe cansava não era a idade e
sim a tarefa de cuidar do bisneto de cinco anos, tarefa dificultada pela impossibilidade
de deixar o menino brincar na rua: “Lá onde eu moro tem cada criança que Deus me
livre, então fico com ele o dia todo em casa mesmo, me dá uma canseira”. Dona
Artêmis revelou, portanto, que na rede familiar ocupava ainda muito mais o espaço de
cuidadora do que de alguém que necessitava de cuidado. Esse prolongamento da
necessidade de cuidado de netos e bisnetos, associado à “sensação de medo” que existe
em saber que as crianças estavam na rua e não dentro de casa, aumentava ainda mais
sua fragilidade diante do envelhecimento. Ao final, a médica solicitou que um dos
filhos a acompanhasse na próxima consulta. Ela respondeu que nenhum dos filhos
poderia, estavam trabalhando, e a médica prosseguiu: “A saúde está descompassada
Dona Ártemis, não está dando certo a senhora morar sozinha. Vou ter que encaminhar
a questão da sua moradia para a assistência”119.

119 O tom de ameaça na fala da médica, como se fosse um ultimato para a paciente se organizar com
relação à sua moradia, apontava para a presença ambígua que a assistência social representava quando
aparecia durante a rotina do serviço de saúde. Por um lado, eram os órgãos da assistência (sobretudo o
Centro de Referência de Assistência Social) que concedia os benefícios importantes para a população,
como o Bolsa Família e o BPC (para deficientes e idosos incapazes de se sustentar). A atenção básica era
responsável por acompanhar essas famílias regularmente, sobretudo com relação às crianças, que
deveriam identificar, inscrever e acompanhar. Nesse caso, o serviço de saúde atuava como alguém que

166
Em outra situação similar, a falta de alimentação foi o indicador de que uma
senhora não estava recebendo um cuidado adequado, pois a taxa glicêmica estava
muito baixa e a idosa delirava, conversando com um bicho imaginário que via no chão.
Nessa situação, os responsáveis pelo cuidado dessa senhora eram dois adolescentes,
um casal de irmãos. Durante toda a visita, contudo, apenas a menina respondia às
questões da equipe, enquanto o menino mexia no telefone celular. Ao afirmar que a
avó havia comido, a menina passou a receber respostas do médico que indicavam certa
desconfiança sobre ela estar falando a verdade. O mesmo ocorreu com relação aos
medicamentos, sobre os quais ela não estava segura de a avó ter tomado ou não e
tentava telefonar para a mãe, que estava trabalhando, para confirmar a informação. O
caso evidenciava a existência de uma cobrança de cuidados dos adolescentes que,
aparentemente, não eram capazes, por várias razões, de dar conta.

Longe de pretender fazer uma discussão legalista sobre o fato dos dois menores
de idade poderem ou não assumir essa função, é importante relembrar que a tarefa do
cuidado nas classes populares é comumente assumida por menores de idade, sobretudo
no caso de irmãos mais velhos que cuidam dos mais novos. Nessa situação, entretanto,
o problema estava menos na questão legal de serem menores de idade e mais no fato
de que eles realmente não se mostravam capazes de cuidar da avó.

A insuficiência dessa lógica de cuidado familiar ocorria sobretudo em duas


situações. A primeira acontecia entre aqueles que não possuíssem vínculos
fortalecidos com familiares ou outros que estivessem dispostos a cuidar. A segunda,
que às vezes se misturava à primeira, era relativa àqueles que desejavam cuidar, porém
se viam sobrecarregados por tarefas de cuidado, como no caso da irmã de Josefa.
Nesses casos, a constatação médica de que algo não ia bem no cuidado daquela pessoa
– como na identificação de desidratação, desnutrição ou má administração dos
medicamentos – gerava sofrimento e sensação de culpa no cuidador em quase todos

fiscalizava os benefícios, como no caso dos netos de Dulce, mencionados no início do capítulo, quando a
ACS pergunta por que eles não estão na escola, avisando que correm o risco de perder “o Bolsa”, como é
comumente chamado o auxílio por profissionais e usuários. Por outro lado, os mesmos profissionais de
saúde “protegiam” os usuários dos órgãos da assistência em algumas ocasiões, sobretudo do conselho
tutelar. Nesse sentido, presenciei mais de uma vez um ACS interromper uma consulta para solicitar que o
médico fizesse um atestado para tentar impedir a ação do conselho tutelar com relação a algumas
crianças atendidas ali. Poucas vezes, no entanto, acompanhei situações de trabalho conjunto entre esses
setores, dentro daquilo que é comumente denominado de “ação intersetorial”, fora algumas poucas
ações com as escolas. Isso ocorria muito mais em situações isoladas do que como um fluxo de trabalho
contínuo e planejado.

167
os casos. Uma vez, uma senhora de 60 anos que cuidava sozinha da mãe de 80 anos
desabafou e começou a chorar no meio da consulta. O choro era evidentemente um
choro de exaustão da mulher, que trabalhava como diarista três vezes na semana e
ainda cuidava sozinha da casa e da mãe que quase não se locomovia. O maior
empecilho era o fato da cadeira higiênica que tinham ganhado para a mãe não caber
dentro do único banheiro que a casa tinha. Ela e o marido, que trabalhava o dia todo
fora, aguardavam ter dinheiro para que pudessem realizar essa pequena obra no
banheiro. Enquanto isso, a mulher escorava a mãe – uma senhora forte e grande – em
seu próprio corpo, para que pudesse usar o banheiro, já que como muitos outros idosos
ela recusava o uso da fralda geriátrica.

Em outra situação, que pude acompanhar apenas uma vez, havia ainda uma
terceira possibilidade para essa insuficiência na rede de cuidado. Tratava-se de uma
mãe jovem e uma filha de quatro anos, ambas diagnosticadas com transtornos mentais
distintos. Ao chegar na casa onde viviam, encontramos a menina pendurada em cima
do muro e a mãe dormindo na cama. A visita nesse dia era realizada com o matriciador
do CAPS e ele logo correu para tirar a menina de cima do muro. A mãe, ao ser
acordada, explicou que os remédios lhe davam muito sono e por isso não viu a filha
subir no muro. Ela parecia muito contente com a visita da equipe, sobretudo pela
presença do matriciador, com quem aparentava manter um vínculo importante, embora
ele mesmo tivesse admitido que conseguisse visitá-la muito raramente. A agente de
saúde, assim que entrou, dirigiu-se à cozinha e voltou afirmando que não havia nada
para comer. Perguntou à mãe se ela havia comido e ela respondeu que não, mas não
sentia fome com os remédios. A menina, que quase não falava, pulava de um lado para
o outro e em cima das costas do psicólogo que brincava com ela, enquanto ele
reforçava com a mãe a necessidade de que ela se alimentasse e perguntava sobre o
desempenho escolar da menina, que frequentava a escola por um período reduzido 120.
Quando nos despedimos, a mãe olhou entristecida e ao mesmo tempo com um olhar
profundamente distante e nos disse: “Por favor, fiquem mais um pouco”. Ao sairmos
de lá, o assunto tomou conta da equipe, que passou a discutir estratégias para lidar
com aquele caso.

Eles então me contaram que a mãe vivia uma vida “normal” até o nascimento

120
Quando indaguei o porquê, uma das agentes respondeu: “Deve ser só por esse tempo que a professora
aguenta ela”.

168
da menina. Nas primeiras consultas após seu nascimento, a equipe observou que a
menina nunca estava bem cuidada e, em um dado momento, apresentou assaduras
bastante preocupantes que levantou a suspeita de abuso sexual por parte do pai. A
agente lembrou que foi o matriciador que “segurou esse B.O” 121 , articulando um
diálogo entre o pai e um pastor evangélico, liderança local, para que a questão fosse
solucionada. Em pouco tempo, no entanto, os transtornos da mãe foram se tornando
mais evidentes e ficou claro para a equipe que não era um caso de abuso e sim de que
a mãe estava sem condições de cuidar da criança, por uma provável depressão pós-
parto que se agravou. O pai, que trabalhava fora o dia todo, foi chamado para uma
conversa para estar mais presente, sobretudo garantindo que a mãe se alimentasse e
tomasse a medicação corretamente. Após essa nova visita, no entanto, eles
consideravam que a situação estava difícil novamente. O psicólogo dizia: “o Lúcio
[pai] é um homem bom, trabalhador, mas está dando mole, porque ele sai todo dia, vai
pro trabalho, come na rua direitinho, mas não traz nada para elas”. A solução
encontrada para a situação foi chamar o pastor para uma nova conversa, para que ele
intermediasse o diálogo com o pai novamente. Em nenhum momento, contudo, assim
como no caso das irmãs, foi cogitado pela equipe uma saída através dos mecanismos
oficiais de assistência, mas sim através de situações “locais” que já haviam se
mostrado eficazes em outras experiências. O arranjo de cuidado existente nesse caso
estava muito mais ligado à “lógica do morro”, do que à lógica das políticas públicas.

Um “paraíso” chamado Alemão


A relação estabelecida pelos idosos com o espaço do Complexo do Alemão
revelou em alguns momentos uma relação de solidariedade entre vizinhos, um sentido
de comunidade ainda existente, mas menos presente. Isso se daria por duas razões: o
cotidiano marcado por muito trabalho, e pouco tempo livre, e a questão da violência.
Na fala de Paulinho, que vive na mesma região que Maria, uma das mais antigas do
morro e com acesso por escadas ao bairro de Olaria:
Isso era um paraíso, tanto é que essa Praça da Árvore aqui, na minha época,
era como se fosse um point. Aqui na parte alta, só tinha uma família aqui
que tinha televisão... Eles tinham uma condição financeira melhor. Ele era
alto funcionário dos Correios e Telégrafos, isso a cinquenta anos atrás,
vamos dizer assim, pô, então, essa casa era a única casa que tinha televisão.

121
A expressão policial “Boletim de ocorrência” é utilizada informalmente no Brasil para se referir a casos
complicados, não necessariamente policiais.

169
Então, quando dava certa hora... Durante o dia a gente ficava brincando,
jogando bola aqui, aqui nessa rua que hoje tá entregue ao lixo, né, mas na
época era limpinha, a gente mesmo mantinha limpinho, então era como se
fosse um campinho, a gente ficava jogando bola ali e quando dava uma
certa hora, nós íamos, a senhora abria a casa e nós íamos pra dentro da casa
dela e ficávamos vendo televisão, quase todo mundo. E também não era
todo mundo que tinha ventiladores, ar condicionado, principalmente...
Então, essa Praça da Árvore era um point, porque nesse verão do Rio de
Janeiro, à noite não se conseguia dormir dentro de casa, então, as famílias,
levavam esteiras, levava redes e forravam embaixo dessa árvore e...
Dormia ali! Dormia ali, passava a noite ali, aí só quando o sol raiasse que
as pessoas iam pra casa, por exemplo, pra se arrumar pra ir trabalhar e as
crianças para o colégio, então era isso. Quando se podia fazer isso, hoje
quase já não se pode nem mais ficar ali, na Praça, né? Então, é isso, e a
minha infância foi assim... (entrevista com Paulinho, 2017).

Para alguns, a sensação de proximidade encontrada na fala de Paulinho ainda


se atualiza no presente, mas cercada de outras preocupações. É o caso de Julita, que
vive em uma espécie de pequena vila, onde cinco casas foram construídas de forma
circular, formando uma espécie de pátio comum ao meio. Todos que vivem ali são
ligados à sua família de sangue de algum modo. Tal configuração espacial é pouco
comum nos dias de hoje nas favelas pela alta densidade populacional. Julita, no
entanto, vive na parte mais baixa do morro, onde em geral estão as famílias com
melhores condições de vida ou que estão lá há muitos anos e assim se beneficiam pelo
fato de estarem mais próximas ao asfalto. Tais áreas costumavam ser chamadas pelos
moradores de “zona sul do morro”, em referência à zona, ou região, mais abastada na
cidade do Rio de Janeiro. O formato de moradia experimentado por Julita e seus
familiares, portanto, permitia que ela, mesmo com dificuldade de locomoção,
estivesse próxima à sua rede de ajuda mútua, da qual era uma peça chave. Ela dizia:

Eu tenho essa irmã minha que mora ali, do outro lado da rua, lá. Que todo
dia ela tem que vir aqui... Todo dia ela vem... De noite, quando não vem
quando tá dando tiro aí pra dentro, ela tem pavor, aí ela vem de dia, vem
cedo... “Ah, eu vim um cadinho e já vou embora já”, ela diz... Vai embora
rapidinho... Mas quando não tá dando tiro, ela vem de noite e fica até dez
e meia, onze horas da noite (entrevista realizada com Julita, 2017).

A preocupação com netos, bisnetos, sobrinhos e filhos aparecia entre as


principais questões que aborreciam os idosos que conheci, especialmente com relação

170
à violência do morro. Na fala de Julita, outra idosa que acompanhei, a questão também
aparecia quando falava da violência no Complexo do Alemão:

Fico assustada com os tiros porque a gente... Desculpa falar, mas bala
perdida bate na pessoa dentro de casa, né... Aí eu fico: onde vai cair essas
balas, meu Deus? Nesse outro beco daqui de trás também, dá tiro... Muito
alto, parece que tá aqui! Aí eu fico pensando... Meu Deus do céu, tomara
que não pegue em ninguém... Do círculo, da gente, assim, pessoa, que não
tem nada a ver com isso, né? Fico preocupada também pelo meu neto que
fica na rua, que trabalha vendendo coisas na rua? Não é negócio de tóxico
não, é negócio de jogo que ele faz, aí fica lá na rua, aí eu tenho medo
também por causa disso, fica lá, não sei onde tá... Nesses dias mesmo,
morreu um rapaz, a esposa dele tá até gravida, com três meses de casado,
ficou grávida, ele tava ali em pé ali, tomou o tiro. Mulher novinha, a mulher
dele tem vinte e poucos anos. Aí entrego na mão de Deus e peço pra ele
tomar conta, né? (entrevista realizada com Julita, 2017).

Julita foi uma das idosas que visitei onde encontrei um vínculo bastante forte
com os familiares e a peculiaridade de uma casa em sentido amplo, na qual há
compartilhamento de responsabilidades e cuidados, não só entre aqueles que viviam
no mesmo espaço físico, mas também entre outros parentes que passam o dia ali e
depois dormem em outros domicílios. É o caso de uma das netas que, segundo ela,
“dorme na casa da sogra, mas mora aqui”. Ao se aposentar por invalidez em razão de
uma artrose que a deixou de cama por um ano, uma de suas filhas acabou optando por
sair do trabalho para se dedicar aos cuidados da mãe que havia trabalhado ao longo
de vinte anos em uma creche. Vinte anos antes, foi Julita quem teve que deixar o
trabalho para cuidar do marido acometido pela tuberculose. Como não estava
registrado nessa época, a situação acabou deixando ambos sem nenhuma renda e ainda
gerou a necessidade de manter as crianças o máximo possível afastadas da casa e do
marido convalescente pela possibilidade de contágio.

Eles eram pequenos, não dava pra mim trabalhar e deixar com ele [o
marido], tinha medo, aí eu saí do trabalho, aí minha família que me
ajudava, minha mãe me ajudava, minhas irmãs, iam me ajudando, porque
ele não tinha o INSS, e ele ficou parado (entrevista realizada com Julita,
2017).

Esse exemplo demonstra que a rede de apoio mútuo se estabelecia não apenas
no auxílio cotidiano, para o cuidado de crianças e a realização de refeições, mas
também com relação ao apoio financeiro. Na terceira vez em que a visitei, Julita não

171
estava mais acamada e conseguia realizar pequenas tarefas domésticas; foi quando a
encontrei sentada em uma cadeira de plástico na área externa da casa, exercendo o
papel de matriarca, atentando para tudo o que ocorria ao redor, chamando a atenção
das crianças quando faziam algo errado e monitorando os movimentos do genro, alvo
de sua maior preocupação. Na tentativa de conversar com Julita sobre sua artrose e
seu processo de cuidado no sistema de saúde da família, deparei-me com um tema que
para ela parecia ser de importância muito maior: a morte precoce de sua filha, aos 32
anos. Nas palavras de Julita, sua filha teria falecido de repente, mas a relação abusiva
que vivia com o marido, usuário de drogas e álcool, teria sido determinante nesse
processo.

Após a morte da filha, Julita tentou diversas vezes assumir a criação dos cinco
netos, sem nunca ter obtido autorização do genro para isso. Ainda assim, a
proximidade das casas permitia que ela estivesse sempre atenta, embora não tão
próxima como gostaria. Durante a nossa conversa, o genro chegou e passou por onde
eu estava com Julita sem nos cumprimentar. Algum tempo depois, começamos a ouvi-
lo gritar. Ela então disse:

Já tá bêbado ele, isso aí atrapalha as crianças, chegou bêbado... Chega


sempre bêbado, aí, fala, fala, fala, com as crianças, aí xinga, bota pra
fora...Tem dois meninos que já tão com dezoito anos, são gêmeos os dois,
tão com dezoito anos, aí um não tá nem mais aí, saiu daí porque não
aguentou mais ficar com o pai. Eu, minha irmã, minha filha a gente marca,
a gente fica em cima, pra não faltar comida. Mas na escola já não estão
mais. O Bolsa Família que eles panhavam, minha filha panhava... Perdeu,
porque ele não foi nas reuniões, aí perdeu... (entrevista realizada com
Julita, 2017).

O genro de Julita, portanto, aparecia nesse caso como alguém que, embora
fosse parte da família, pela relação de consanguinidade com os filhos, e de aliança
com a falecida filha de Julita, na prática, não atualizava tal relação a partir do
momento em que não contribuía e ainda prejudicava a sólida rede de “troca mútua”
estabelecida por ela e as outras mulheres. Sua presença ali levanta a questão do papel
e presença dos homens nesses arranjos de cuidado. O genro tornou-se protagonista na
criação dos filhos somente a partir da morte de sua filha, mas não foi bem sucedido
nessa tarefa, avaliava Julita, sendo necessário que fosse fiscalizado pelas mulheres da
família. Entre os principais indicativos de sua incompetência na função de criar os

172
filhos estava o fato de não conseguir cumprir com a presença das crianças na escola,
tendo consequentemente perdido o Bolsa Família e afastado definitivamente um dos
filhos, que já teria se mudado para longe do núcleo familiar.

Onde estão os homens?


Ao longo de todo o meu trabalho de pesquisa nas unidades de saúde, as
mulheres foram sempre presença majoritária nas consultas na unidade, assim como
nas visitas domiciliares. Os homens apareciam menos, isto é, procuravam menos o
serviço de saúde, como em todo o país122, porque trabalhavam mais fora em horário
comercial e também porque se ocupavam menos das tarefas de cuidado com filhos
pequenos e com idosos. Em alguns casos, o rompimento de vínculo com a família
original, em caso de separação ou de desentendimento com os filhos, gerava muitas
vezes, no caso dos pais, uma quebra nas relações de reciprocidade. Foi somente no
caso de dois homens idosos que encontrei no Alemão a necessidade de contratação de
um cuidador remunerado, ainda que em outros moldes, distintos daquele das camadas
médias. Não se tratava de um contrato formal com um prestador de serviço, como no
caso de uma babá ou uma cuidadora de idosos, mas sim de remunerar alguém com
uma relação já previamente estabelecida, visando manter uma regularidade nesse
cuidado.
Desde 2005, Cláudio acompanhava Bruno, um senhor de 62 anos cego por uma
facada que tomou da própria mulher, durante uma briga. Apesar de ainda viver com
ela e dizer que a havia perdoado, não havia um relacionamento entre eles mais,
tampouco um compartilhamento de tarefas relativas à casa ou às finanças. A relação
estabelecida entre eles era, tal como observei, apenas de coabitação. Após a briga, ele
havia entrado para a Igreja Universal e ela seguia bebendo, o que acarretava em
divergências entre eles. Na primeira vez que visitei Bruno, junto com Cláudio, ocorreu
uma situação incomum que nunca havia acontecido enquanto eu acompanhava este ou
qualquer outro médico: a equipe não foi convidada a entrar na casa. O idoso nos
recebeu no portão e ali mesmo o médico realizou seus exames e prescrições. A
situação antecipou algo que se confirmou da segunda vez em que estive na residência
e pude, de fato, entrar: a casa não pertencia a Bruno.

122
Ver Scott (2005) e Sarti (2010).

173
A figura do cuidador terceirizado123 apareceu nas narrativas acima somente às
avessas, considerando que boa parte das mulheres presentes nessas narrativas foram ,
em algum momento de suas vidas, cuidadoras terceirizadas em outras famílias –
empregadas, diaristas, babás, cuidadoras de idosos. Bruno foi um dos poucos idosos
que conheci no Alemão que pagava por um acompanhante, que, na verdade, era uma
menina que vivia na vizinhança e o auxiliava a pegar ônibus, ir ao mercado, atender
as consultas médicas, recolher a aposentadoria, entre outras atividades. Foi ela quem
conseguiu mobilizar os vizinhos para carregá-lo até o posto de saúde quando ele teve
um pico de pressão e passou mal.

Eu tenho uma garota que ela me ajuda... Ela vai no banco, vai no mercado
comigo. Quando eu preciso eu pago ela e vai comigo. Se for comigo,
qualquer coisinha que uma pessoa faz comigo, eu pago ela. No dia lá que
a médica me deu o benefício, ela falou... Seu Bruno, olha, esse benefício,
o senhor tá merecendo, o INSS só pode pagar pra você isso aqui, um salário
mínimo, mas é o seguinte... É só pra você sozinho, qualquer pessoa que tu
sair contigo você paga pra pessoa não ficar reclamando. Por exemplo, pode
ser uma pessoa ligada comigo, né, mas um dia pode jogar na minha cara...
Ah lá, eu levo você lá e não me dá nada... Então a médica falou assim...
Você paga, não anda com pessoa estranha, não anda com pessoa nervosa,
não sobe, não entra em qualquer ônibus cheio, não sobe em escada rolante,
falou isso tudo... E assim eu faço (entrevista com Bruno, 2017).

Alguns anos atrás, ele havia conseguido uma vaga para frequentar um instituo
de cegos, onde fazia acompanhamento médico e terminaria os estudos de primeiro
grau, até hoje incompletos. Porém, o local era distante de casa e ele não tinha como
pagar alguém que o acompanhasse todos os dias. Preferiu então ser acompanhado por
Cláudio na unidade de atenção básica. Seu único filho (fruto de outro relacionamento)
estava preso por associação ao tráfico, mas, mesmo antes disso, já estavam sem se
falar. Sem família e pessoas próximas, após a cegueira, ele contou com a ajuda do
antigo patrão, sobretudo para conseguir se aposentar, e das filhas da mulher com quem
vivia, que o acompanharam nos primeiros meses ao médico e ao INSS. Hoje elas já
não estavam próximas, até porque não se relacionavam bem com a mãe, com quem
ele continuava vivendo. Era impressionante sua habilidade de fazer coisas sozinho,
como cozinhar e reconhecer todos os remédios que tomava pelo seu tamanho e
formato. Como Bruno era também hipertenso, Cláudio o visitava constantemente para

123
Cf. Hirata e Guimarães (2012) sobre experiências do trabalho de cuidado (care).

174
checar sua pressão, entendendo sua limitação de ir até o posto. A pressão normalmente
estava controlada, mas ele sempre se alegrava com a visita do médico, com quem
conversava principalmente sobre futebol. “Esse vale ouro” ou “como Dr. Cláudio não
tem igual”, dizia Bruno durante as visitas do médico.

Em outra situação similar, também com Cláudio, acompanhei a visita de um


senhor que havia sofrido há menos de um ano um AVC (Acidente Vascular Cerebral)
que o havia deixado sem andar e sem falar. Sua mulher, muitos anos mais jovem, havia
abandonado o trabalho para cuidar do marido após um período de tentativa de pagar
a enteada, filha do próprio marido, para ficar com ele. A tentativa, no entanto, não foi
bem-sucedida: “Ela não tinha paciência com ele”, dizia a mulher. Em outro momento,
falando baixinho para que ele não compreendesse, ela revelou: “É que às vezes ele
fica agressivo, então só eu que aguento”. A mulher, jovem e muito articulada, ao final
nos contou do tratamento que estava fazendo pelo Hospital Pedro Ernesto, na UERJ,
para uma neuralgia do trigêmeo (dor crônica que afeta o nervo trigêmeo na face). Ao
sair, a agente que nos acompanhava naquele dia e tinha um temperamento conhecido
como bastante ácido desabafou: “Esse velho foi um safado; bebeu, cheirou e bateu em
mulher a vida inteira, por isso que ninguém quer cuidar, só a Josi mesmo que aguenta
ele”.

A ausência ou pouca presença dos homens nas questões relativas ao cuidado


podiam ser observadas também durante as consultas de pré-natal que acompanhei.
Embora alguns médicos perguntassem e cobrassem a presença dos pais na consulta de
pré-natal, era raro que eles estivessem presentes e, mesmo nos casos em que estavam,
suas presenças eram menos contínuas – ou porque estavam menos implicados nos
processos de gestação dos filhos ou porque, por motivos variados, acabavam se
afastando das mães de seus filhos. Mais do que isso, no entanto, a criação dos filhos
era um lugar, por excelência e desejo destas próprias, ocupado pelas mães.

“O império das comadres”


Como apontado já em outros estudos sobre maternidade e classes populares,
embora a teoria feminista tenha feito esforços importantes no sentido de
desessencializar a figura da mulher à maternidade, sabe-se que nas classes populares
há uma enorme importância atribuída a esse lugar pelas próprias mulheres, que se
relaciona a uma ideia de “honra” feminina, como propôs Claudia Fonseca (2004). Bell

175
Hooks (1993) foi uma das responsáveis por inserir esse debate de dentro do campo do
feminismo. Ao propor um “feminismo negro”, Hooks discute com as teorias
feministas tradicionais que fizeram um grande esforço em questionar o espaço
doméstico como lugar central das mulheres a partir da divisão sexual do trabalho,
marcando assim a lógica da qual as mulheres deveriam se libertar. A autora considera
que, se entre as feministas brancas o cuidado com a família era encarado como uma
prisão, para as mulheres afro-americanas era um ato de resistência com relação ao
racismo, ainda que marcado por outras violências e opressões. As contribuições de
Hooks foram provocativas e, embora existam críticas a certas formulações, elas foram
fundamentais para compreensão da noção de interseccionalidade e da importância dos
marcadores da diferença associados às experiências dos sujeitos (Piscitelli, 2008).
De acordo com Sarti (2010), o Programa de Saúde da Família reforça o lugar
tanto da família em seu modelo tradicional, com base sobretudo na família nuclear,
como também na ideia da mulher como reprodutora, enfatizando estereótipos de
gênero. Segundo Sarti, tal modelo, já amplamente criticado pelas formuladoras do
PAISM (Programa de Atenção Integral à saúde da mulher), segue sendo preconizado
pela ESF em todo o país. Sarti (2010), Garcia e Georges (2017) lembram também que,
nesse sentido, as mulheres acabam servindo como importantes cúmplices do serviço
de saúde e ao, mesmo tempo, as responsáveis pelo cuidado de toda a família – quando
ela vai bem e sobretudo quando vai mal. Tal papel foi historicamente conferido às
mulheres, como demonstrou também Donzelot no contexto francês (1980). No
entanto, o próprio autor afirma que, para que a medicina conseguisse ser bem-sucedida
na legitimação de seu saber com relação a mulheres e crianças, tinha como um de seus
principais obstáculos o que se chamava na França de “o império das comadres”
(Donzelot, 24, 1980) 124 . O autor se referia ao forte círculo de trocas de saberes
existentes entre as mulheres sobre as formas de cuidarem de si, dos filhos, da limpeza,
da casa. As mulheres, sobretudo as mães nesse sentido, eram as que mais comumente

124
De acordo com o autor: “Até a metade do século XVIII a medicina não tinha interesse nas crianças e
nas mulheres. Simples máquina de reprodução, estas últimas tinham sua própria medicina que era
desprezada pela Faculdade e cuja lembrança foi guardada pela tradição através da expressão "remédio
de comadre". O parto, as doenças das parturientes, as doenças infantis eram coisa de "comadres",
corporação assimilável às domésticas e às nutrizes que compartilhavam seu saber e o colocavam em
prática. A conquista desse mercado pela medicina implicava, portanto, uma destruição do império das
comadres, uma longa luta contra suas práticas consideradas inúteis e perniciosas. Os principais pontos de
confrontação são, naturalmente, a amamentação materna e o vestuário das crianças” (Donzelot, 24,
1980).

176
se impunham e negociavam com os profissionais médicos nas consultas, a partir de
um saber que possuíam.

Isso era muito nítido no que se referia às estratégias de aleitamento das crianças
pequenas. Muitas revelavam que mesmo sendo desaconselhadas pelos profissionais,
ainda que amamentassem, davam leite de vaca aos menores de seis meses e utilizavam
espessantes no leite (como Mucilon e outros) para que dormissem e ficassem saciados
por mais tempo. O médico poderia falar exaustivamente sobre os benefícios da
amamentação exclusiva e os riscos de oferecerem outros tipos de leite às crianças;
elas, no entanto, sabiam, porque ensinavam umas às outras, quais táticas eram mais
eficazes para cuidarem de seus filhos. Nesse caso, elas não atuavam como cúmplices
do sistema, como sugerido em outras análises, mas sim negociavam com o sistema de
acordo com suas próprias experiências.

Durante uma visita domiciliar com alguns agentes e uma enfermeira, passamos
para visitar uma mãe recém-parida, que ainda não havia comparecido ao posto para o
“acolhimento mãe-bebê” (o acolhimento é uma consulta inicial na unidade de atenção
básica, logo após a alta da maternidade). Sua agente estava bastante preocupada, pois
ela precisava avisar essa mãe que ela não havia ainda comparecido à unidade –
registrar a ida dessa mãe ao posto era também importante para que a ACS cumprisse
seu registro de atividades mensais. Quando chegamos à casa, Deise, mãe de quatro
filhos, recebeu-nos na porta. Ao ser indagada pela agente sobre o não comparecimento
ao posto, ela disse que não tinha descido pois “estava dando muito tiro”. Ela não disse
em tom de preocupação. Deise é dessas mulheres que carrega no olhar a autoridade
de ser mãe de quatro filhos, junto a um sorriso ao mesmo tempo leve e debochado. As
agentes me disseram: “Natália, pergunte a Deise como ela foi ter o bebê!”. Ela riu e
respondeu: “Pedi aos polícia pra me levarem pro Getúlio Vargas”.

“Para polícia?”, perguntei espantada. “Sim”, ela disse, e todos riram. O


Hospital Getúlio Vargas não é a maternidade de referência das mulheres do Alemão,
mas a população criou certo hábito de buscar atendimento no hospital diante de
qualquer situação emergencial, já que por anos era um dos locais mais próximos para
atendimento. O mais espantoso, no entanto, foi Deise ter pedido ajuda à Polícia para
a chegada de uma nova vida, diante do paradoxo das tantas vidas tiradas nesse lugar
por essa mesma polícia.

Deise então entrou em casa e trouxe para a porta a filha recém-nascida de


177
apenas quinze dias. Todas nós entoamos um sonoro “ohhhhhh” diante da fofura da
bebê. A enfermeira, uma jovem de vinte e cinco anos, que atua no posto há um ano,
perguntou como andava a amamentação. Deise respondeu: “Tá bem, mas ela mama
muito, vou ter que dar um complemento”. Como se estivesse repetindo informações
de um manual de amamentação do Ministério de Saúde, a enfermeira então começou
a instruir Deise com relação à amamentação e ela apenas acenou a cabeça e olhou para
a criança dizendo que já sabia de tudo o que ela havia falado. Ficou claro que pouco
importava a opinião e informações passadas pela enfermeira, Deise sabia exatamente
o que faria e como faria. Quando indagada ao final se iria ou não levar a filha para a
primeira consulta no posto, ela respondeu que sim, iria, mas só depois de dois dias,
pois no dia seguinte ela iria “correr os doces” com os filhos mais velhos (em referência
ao dia de São Cosme e Damião, quando tradicionalmente as pessoas distribuem doces
para as crianças em suas casas). “Correr doces? Com uma recém-nascida? Você é uma
figura mesmo Deise”, disse uma das agentes. Despedimos-nos e seguimos rumo às
outras casas previstas na visita.

A história de Deise sinaliza a complexidade dos arranjos de cuidado. Não havia


nada que a equipe pudesse fazer por Deise que ela já não estivesse fazendo bem
sozinha. O cuidado oferecido pelo Estado nesse caso era totalmente protocolar; era
preciso registrar o acolhimento e repassar as informações sobre amamentação para
uma mulher que havia amamentado nada menos do que quatro filhos. Deise, nesse
sentido, não era cúmplice do serviço de saúde, mas sim o desafiava. Não porque
estivesse deixando a desejar com relação aos cuidados dos filhos, mas porque
simplesmente não lhe servia, não lhe ajudava o tipo de apoio que podia ser oferecido
pelo serviço de saúde naquele momento. Porém, em algum momento quando estava
parindo, Deise precisou de ajuda e quem resolveu seu problema foi justamente a
Polícia, cuja presença e atuação são frutos de controvérsias para a população, mas que
naquela situação lhe ofereceu o cuidado necessário. A violência e “os tiros” aos quais
ela se refere no início da conversa, na realidade, funcionam como uma desculpa usada
por ela para justificar não ter ido ao posto. Deise, claramente, tinha outras prioridades,
como “correr doces” junto aos filhos.

A mãe que não cuida


Nem todas as mães, contudo, se encaixavam no perfil de “mãe empoderada”,

178
como Deise. Em outras via-se, algumas vezes, a tristeza por estar grávida mais uma
vez, depois de quatro ou cinco filhos, sem desejar. Ou, em outros casos, o desespero
por terem engravidado muito novas ou muito velhas. Enquanto umas organizavam
chás de bebes homéricos, para mais de trezentos convidados, alugando o espaço da
Vila Olímpica do Alemão para isso, outras contavam apenas com doações de entidades
do morro e dos vizinhos, além do enxoval oferecido pela prefeitura.
A consulta de Dayane que acompanhei foi uma das mais surpreendentes ao
longo de todo o período em que realizei a pesquisa. Eu acompanhava Glória, médica
cubana, em uma manhã reservada para pré-natal. Quando ela abriu a porta para chamar
a próxima paciente, pude ouvi-la apenas dizer: “É você? Eu não acredito!”. Médica e
paciente entraram rindo e abraçadas no consultório onde eu estava. O motivo da
surpresa da médica logo se tornou evidente: aquela seria a quinta gestação de Dayane,
jovem que iria em alguns meses completar 30 anos. Ela não estava sozinha na
consulta, o pai de seu futuro filho a acompanhava. Quando a médica solicitou seu
último cartão de gestante e o abriu, Dayane revelou aquilo que para a médica não era
novidade, mas para mim sim: “Eu fiz poucas consultas de pré-natal e, como vocês
podem ver, tá escrito aí, eu era usuária de crack”. Ao longo da consulta, a jovem, que
parecia muito animada, contou-nos com emoção sobre o novo relacionamento que
estava vivendo: “Ele me tirou da rua, eu vivia ali na Grota, largada, ele me levou pra
casa dele, reuniu meus filhos que estavam espalhados por aí”. Seu companheiro
bastante tímido não fazia comentários sobre essa história, mas estava empenhando em
fazer perguntas à médica sobre a gestação – o que Dayane podia ou não comer e fazer,
advertindo a companheira o tempo todo porque cozinhava com muito sal e
eventualmente tomava uma cervejinha com a irmã. A preocupação do pai chamava
atenção, já que a presença da figura paterna era rara nessas consultas, sobretudo diante
do fato de que a gravidez anterior de Dayane teria ocorrido enquanto ela vivia na rua,
usando crack. Ao final da consulta, enquanto a médica escrevia no prontuário, o
companheiro de Dayane pediu licença para sair, pois tinha horário para entrar no
trabalho. A jovem seguiu na consulta nos contando em mais detalhes a forma pela qual
sua vida tinha se reorganizado e a felicidade que sentia com a chegada desse novo
filho, em um momento tão único em sua vida.

Cerca de um ano se passou e uma tarde, enquanto eu acompanhava uma equipe


em visita domiciliar, avistei Dayane descendo o morro com uma criança pequena no

179
colo. Enchi-me de alegria, há muito tempo eu pensava nela e desejava saber como
tinha avançado sua gestação. Dayane, no entanto, não parecia contente naquele dia.
Mostrou-nos o recém-nascido sem muito entusiasmo e disse que estava descendo o
morro, pois em sua casa não havia água e ela precisava dar banho no menino na casa
de sua mãe. Conversou rapidamente com uma das agentes sobre consulta e vacina para
o menino e também sobre o último episódio com sua filha mais velha, já adolescente,
recentemente detida roubando em uma loja em Copacabana. “Não teve outro jeito,
tive que raspar o cabelo dela, para ela aprender”, disse bastante nervosa. Ao sairmos,
a agente comentou: “A filha tá fazendo igual à mãe, daqui a pouco tá grávida também”.
E eu emendei dizendo: “Bom, mas a mãe agora está melhor, não?”. A agente bufou e
me disse: “O quê? Não, não, aquilo lá durou pouco tempo, o filho nem era dele, ele
logo desconfiou e botou ela pra fora”. Inconformada, eu perguntei se a informação
estava confirmada e ela disse que sim, que a própria Dayane optou por não pedir o
DNA e concordou com a decisão dele de não assumir a criança. A pior informação, no
entanto, ainda estava por vir. A agente me contou que, ainda grávida, Dayane precisou
“prestar um serviço” e levar drogas escondida na vagina para o irmão preso em Bangu.
Acabou sendo detida e liberada pouco antes de a criança nascer. Logo, os filhos que
havia conseguido reunir tinham se espalhado de novo e ela estava agora apenas com
o recém-nascido e a adolescente, que vivia com sua mãe.

Dayane encarnava, em muitos sentidos, o estereótipo da mãe “desestruturada”,


aquela que não conseguia dar conta de seus próprios filhos e que aos olhos de alguns
– talvez da escola e de outras instituições – nem se importasse com eles. É possível
que eu tivesse pensado exatamente o mesmo sobre Dayane se só a tivesse conhecido
naquele segundo dia, quando a vi descendo o morro, carregando o recém-nascido
exausta e revelando a maneira pela qual havia lidado com os deslizes da filha mais
velha. Mas pude ver, meses antes, no olhar de Dayane a alegria que sentiu em nos
dizer que havia conseguido reunir todos os cinco filhos, em dizer que tinha finalmente
uma casa – um projeto destruído em poucos meses, por circunstâncias atravessadas
por violências e desigualdades de longo prazo, das quais ela simplesmente não podia
se livrar. O passado de Dayane se impôs sobre seus projetos de futuro e a criança
recém-nascida, simbolizava essa frustração.

Ao contrário da ideia de que as mães submetidas a condições extremas de


pobreza estariam menos sensíveis à vida (e à morte) de seus filhos, como no caso

180
celebremente estudado por Nancy Scheper-Hughes (1992) no nordeste brasileiro,
nota-se nesse caso, assim como já analisado por outros pesquisadores, que a ideia da
“mãe descuidada” não é compreendida como desejo ou inabilidade dessa mulher, e
sim como existência de determinadas circunstâncias de muita pressão, nas quais as
mães podem não cuidar dos filhos de maneira adequada (em termos de higiene,
alimentação etc.), o “que não implica numa fragilidade do vínculo com eles” (Franch,
Lago-Falcão, 2004, 190)”. Tal fenômeno, já observado nos trabalhos de Nations &
Rebhun (1988), evidenciam a existência de conflitos com os pais, com a comunidade,
ou de relações permeadas pela violência estrutural.

A desestabilização da ideia do que seria uma mãe que oferece um bom ou mal
cuidado também proveio de conversas que pude estabelecer no próprio campo e que
tocaram diretamente a figura materna. Um dia, enquanto eu conversava com um
amigo, morador do Alemão que trabalhava no Instituto Raízes em Movimento,
falávamos sobre creches e escola de forma aleatória, quando ele me contou que
quando pequeno foi cuidado por uma senhora no morro que todos chamavam de “vó”.
A vó não possuía laços de sangue com nenhum deles, mas fazia um trabalho de
cuidadora, não necessariamente remunerado, de muitas crianças cujas mães passavam
boa parte do dia ou da semana trabalhando em casas de família distantes dali. Esse era
o caso dele: sua mãe trabalhava de segunda a sábado em uma casa como doméstica,
dormindo todos esses dias no trabalho. Durante esse período, ele ficava com a vó, que
os ensinava logo cedo a cuidar também das outras crianças menores e a irem para a
escola andando sozinhas desde os seis anos. A maior parte das mães buscava os filhos
durante o final de semana, mas nem todas vinham sempre. Por isso, de vez em quando,
a mãe de meu amigo levava também uma das meninas que a vó cuidava para que
passasse o final de semana com eles, já que sua própria mãe raramente aparecia. Mais
pra frente, ela acabou sendo deixada para sempre aos cuidados da vó, que se tornou
sua “mãe de criação”, até que cresceu e saiu do morro, acompanhando a família de
um famoso traficante para quem passou a trabalhar como babá de seus filhos. Em sua
narrativa, no entanto, meu amigo me conta com orgulho que sua mãe nunca deixou de
ir um final de semana sequer buscá-lo na casa da vó para ficar com ele. E que ainda
era solidária com relação às outras crianças, de quem eles tinham muita pena, em suas
palavras.

Hooks (1990), em um pequeno artigo, retoma a história de um intelectual negro

181
que se queixava da ausência de sua mãe durante sua infância, já que ela trabalhava na
casa de uma família branca e saía de casa antes de ele acordar e só chegava quando
ele já estava dormindo. Ele se recorda de tê-la visto pouquíssimas vezes à luz do dia,
mas lembra que, ao chegar depois da jornada que cumpria a pé entre as duas casas,
ela se deitava ao seu lado para que dormissem juntos. Embora reconheça a importância
do trabalho de Frederick Douglas ao tentar evidenciar a crueldade do sistema de
dominação racial, Hooks discorda dele quando afirma que nunca recebeu os cuidados
de sua mãe. A autora sugere que o gesto de retornar diariamente a pé e deitar ao lado
de seu filho, mesmo que já adormecido, era um ato de resistência que proveu àquela
criança uma sensação de proteção, ainda que frágil, para a pessoa adulta que ele se
transformou. Assim como na história de Douglas, relatada por Hooks, a violência
imposta por uma sociedade marcada por relações de trabalho opressoras e desiguais
fazia com que muitas crianças fossem deixadas aos cuidados da vó, afastadas de suas
mães. Não há como negar a violência intrínseca nesse processo. Por outro lado, se aos
olhos de outras pessoas, em outros modelos de família, esse arranjo de cuidado, esse
convívio entre mãe e filho pudesse parecer insuficiente, aos olhos do próprio menino,
meu amigo, sua mãe lhe cuidou e amou intensamente, a ponto inclusive de oferecer
cuidado para outra criança, que não teve a sorte de receber o mesmo amor que ele.

“Eu cuido, eu vivo”: a importância do vínculo


Nesse capítulo, procurei analisar algumas experiências de cuidado com o
nascimento e o envelhecimento, partindo da compreensão dos arranjos de cuidado.
Estão envolvidos nisso uma série de atores sociais, tais como: familiares, profissionais
de saúde, vizinhos, igrejas, polícia, traficantes, entre outros tantos. Ao pensar no
nascimento e no envelhecimento, contrapus ainda as ideias de “linhas de cuidado” –
do modo como aparecem no cotidiano do serviço de saúde – à ideia de “linhas de
vida”, de Tim Ingold. A partir dessa segunda ideia, proponho compreender o processo
de cuidado das pessoas a partir de suas próprias vidas e histórias, e não de etapas
previamente estabelecidas pelo sistema de saúde. Assim, ao percorrer essas histórias,
em um contato sempre intermediado pelas equipes de saúde, propus discutir – ainda
que brevemente – a centralidade de alguns temas caros à antropologia na compreensão
dos processos de cuidado, notadamente: parentesco, casa e papéis de gênero,
conformando junto à dinâmica do morro e do serviço de saúde o que chamei de

182
arranjos de cuidado.

A frase que dá título a esta sessão, “eu cuido, eu vivo”, vi uma vez estampada
nas paredes da ONG Raízes em Movimento no Complexo do Alemão. Ela referia-se a
uma campanha organizada pela ONG e por outros parceiros sobre coleta de lixo há
alguns anos. O cuidar ali se referia ao cuidar do morro, do lixo, mas me despertou
atenção esse “cuidar” estar atrelado diretamente à vida. A frase manifestava algo que
também procurei evidenciar ao longo desse capítulo: a ideia de que os arranjos de
cuidado ocorrem baseados, sobretudo, em vínculos de reciprocidade e interpendência,
como apontado por Tronto, e não em obrigações morais, constitucionais e
profissionais. Ainda que essas possam existir, elas dificilmente serão eficazes se não
levarem em conta os outros elementos que estão em jogo nesse arranjo, os quais
procurei iluminar. Ao atentar para as “linhas de vida” nas histórias relatadas aqui, o
que emerge de mais importante é a diluição do indivíduo e a complexidade das
relações que o compõem. Entre essas complexidades, aqui se evidencia uma lógica
peculiar ao Complexo do Alemão, que desafia todos os preconceitos existentes sobre
esse espaço e sua população. Ao atentarmos para tais relações, deparamo-nos muitas
vezes com o inimaginável, como na capacidade de resiliência de Bruno e de Maria,
mesmo com as limitações impostas pela cegueira e pela amputação, ou pela
capacidade de Dayane de se livrar do crack e tentar, mesmo que brevemente,
reconstruir sua casa. Entretanto, vemos-nos diante também da ausência dessas
relações, do abandono ou do encontro com os imponderáveis, o não desejado ou
previsto e, em alguns casos, das dificuldades que transcendem o desejo de cuidar, dos
moradores e também dos profissionais de saúde.

183
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O cuidado que resta: formas de habitar
o mundo

Para esclarecer as coisas, vamos chamar a estrutura física, o


edifício em si, de casa; e o cenário em que as pessoas habitam,
de lar (Lawrence, 1987). A pergunta de Heidegger pode então
ser reformulada da seguinte maneira: o que é preciso para
uma casa ser um lar (Pearson e Richards 1994: 6)? Apenas
colocar a questão desta forma sugere que deve haver mais no
habitar do que o simples fato de ocupação. O que, então,
significa "habitar"? (…) A palavra alemã atual para o verbo
‘construir’, bauen, vem do inglês antigo e do alto-alemão
buan, que significa “habitar” (...). No entanto, o bauen tem
outro sentido: preservar, cuidar ou, mais especificamente,
cultivar o solo. E então há o terceiro sentido: construir, fazer
algo, levantar um edifício (…) no decorrer do tempo, no
entanto, esse sentido subjacente caiu em desuso, de modo que
o bauen passou a ser reservado exclusivamente para cultivo e
construção. Tendo esquecido como as últimas atividades são
fundamentadas na habitação, o pensamento moderno então
redescobre o habitar como a ocupação de um mundo já
construído. A preocupação de Heidegger é recuperar essa
perspectiva original, para que possamos mais uma vez
entender como as atividades de construção – de cultivo e
construção – pertencem à nossa habitação no mundo, ao
modo como somos. "Nós não habitamos porque construímos,
mas construímos porque habitamos, isso é porque somos
habitantes... Construir já é em si mesmo habitar... Somente se
formos capazes de habitar, só então poderemos construir”
(Heidegger, 1971: 148, 146, 160, ênfases originais)
(INGOLD, 185, 2000).

A guerra dos martelos


Ao longo dos capítulos, procurei evidenciar como políticas de saúde e
experiências de cuidado são atravessadas pela localidade na qual estão situadas,
notadamente aqui o Complexo do Alemão. Patrícia Couto e Rute Rodrigues (2015),
ao recuperarem o processo de ocupação das terras que pertenciam ao polonês Leonard
Kacsmarkiewcz, mais conhecido como “Alemão”, relatam que, assim como na
ocupação de outras favelas cariocas, o processo ocorreu já em meio a tentativas do
poder público de impedir que ele ocorresse. Ao recuperar o relato de idosos ainda
vivos e que participaram desse primeiro momento, um deles narra:

184
Isso aqui na época da invasão parecia até uma guerra! De noite ninguém
dormia porque só se escutava era martelo batendo, o pessoal construía o
barraco de noite, quando a polícia chegava no outro dia, nego já tava dentro
do barraco (...) Fizemos muito barraco! Tudo de noite! De madrugada.... A
gente se ajudava, porque dinheiro não tinha, então quando um conseguia
comprar madeira velha ou ajuntar o material, a gente pegava junto, uma
turma boa e fazia os barraco de tábua, né! Pegava peça de travessão e metia
o pau, uma parede aqui, outra ali, pegava o martelo e metia prego... Pá-pá-
pá-pá, a noite inteira isto, barulho direto, parecia guerra! Tiroteio mesmo!
Aí quando eles chegavam de dia o barraco já tava ali, mas a gente botava
o pessoal dentro, porque quando tinha família dentro ficava mais difícil de
derrubar! Quem derrubava? A polícia. Nós num podia fazer nada se eles
derrubavam, ficava só assistindo, mas aí eles viravam as costas e nós fazia
outra vez. Pra não derrubar é que a gente botava logo uma família dentro
do barraco (Depoimento de Orestes Ribeiro da Silva em COUTO,
RODRIGUES, 2015, 31).

A história da ocupação do Alemão demonstra que o processo de habitar foi


sempre simultâneo ao de construir: como relembra o senhor Orestes, se a casa fosse
construída e ninguém a habitasse, ela seria derrubada. Recuperando o sentido de
habitar (dwelling), proposto por Ingold (2000) a partir de Heidegger, vemos nessa
experiência específica que cultivar, construir e habitar se fundem, pois era esse
processo que efetivava a relação de pertencimento àquele espaço, já que os moradores
não possuíam título de posse de seus terrenos – embora muitos deles tivessem ao longo
de muito tempo pago pelo chamado “aluguel de chão” a um homem conhecido como
Paulo, de quem pouco se sabe para quem trabalhava, mas provavelmente estava ligado
ao polonês. Ali, não havia, desde o início, nenhum princípio de justiça que indicasse
a quem aquela casa pertencia. O único princípio era o do cuidado, intrínseco à noção
de habitação da forma como propomos pensá-la aqui.

Essa pequena digressão sobre a maneira como habitamos e, portanto,


construímos o mundo, reflete-se também na relação do cuidado com o que somos.
Nenhum de nós seres humanos sobrevive por si só, todos nós necessitamos de
cuidados em algum momento de nossas vidas; sem isso, não sobrevivemos. Assim,
não cuidamos de um ser já existente, mas os seres, assim como as casas e os espaços,
apenas existem a partir da maneira pela qual são cuidados. É interessante observar
ainda, na fala do senhor Orestes, a ideia de que os batidos de martelo pareciam uma
“guerra”, remetendo ao processo que vivem desde os anos 1990 para cá; naquele
momento, não com tiros de verdade, mas com batidas de martelos, com a
185
transformação de uma casa em lar. Assim como as casas no Complexo do Alemão, as
pessoas que ali vivem também respondem de forma simples às tentativas de extingui-
las na maior parte das vezes: vivendo.

Essa vida é marcada não só pelo desejo de viver e pela resistência, mas também
por um intrincado processo de bricolagem de elementos disponíveis para isso. Trata-
se de um empreendimento arriscado, limitado, marcado muitas vezes também pelo
sofrimento. Como atenta João Biehl:
Atravessando mundos de risco e escassez, limitadas sem serem totalmente
sobredeterminadas, as pessoas criam pequenos e passageiros espaços,
através e além de classificações e aparatos de governança e controle, nos
quais podem desempenhar um tipo de bricolagem de vida com as escolhas
e os materiais limitados que têm à sua disposição (BIEHL, 2011, 271-272).

“Atravessar mundos de risco e escassez” talvez seja a frase mais próxima


daquilo que procurei evidenciar ao longo dos capítulos. Seja como ativistas,
moradores ou profissionais da saúde, todos aqui, em suas linhas de vida, conectam-se
por um, entre tantos elementos: pelo fato de viverem no Complexo do Alemão. É esse
expaço e suas complexidades que emergem ao pensarmos nas “travessias” de Mariza
e Paulinho, de Cláudio e Iara, de Claudiane, de Dulce, de Maria e de outros tantos.
São eles que habitam e constroem o mundo que tentei aqui narrar.
Tal perspectiva remete à sempre inspiradora reflexão de Michel De Certeau
(2009) sobre as “artes do fazer cotidiano”, nas quais o saber fazer assume o lugar de
uma prática do “tipo tática”, errante e não premedita, diante das “estratégias” que
regulam e ordenam o mundo. O autor aponta para os limites do discurso científico em
escrever sobre essas mesmas práticas, que constituem muitas vezes fazeres “não
discursivos” – são os limites entre corpo e linguagem. “Daquilo que cada um faz, o
que se escreve?”, pergunta-se, interessando então pelas experiências que escapam à
linguagem verbal, às explicações científicas e aos dispositivos disciplinares 125.

125
Julia Ruiz (2018), em artigo que recupera aspectos centrais da obra do autor para pensar a noção
de corpo como fundamental nesse esse saber fazer, argumenta que: “ É nessa fronteira da atividade
teórica que Certeau estabelece diálogos com as empreitadas de Michel Foucault e Pierre Bourdieu
sobre as práticas sociais, interessando-se pelo “imenso resto” de experiência humana não “domesticada
e simbolizada” por uma linguagem verbal, irredutível aos dispositivos disciplinares e também às
estratégias de explicação científicas. O modo de interrogação teórica que propõe reivindica o que o
discurso do conhecimento científico exclui para constituir seu campo de autoridade, “é a memória
desse ‘resto’” (Ruiz, 21, 2018).

186
O “imenso resto” ao qual se refere Certeau, não é, portanto, só aquilo que é
deixado de fora na construção das nossas teorias explicativas, mas também aquilo que
escapa aos dispositivos disciplinares: o resto resiste. Talvez por isso, aquilo que não
se pode “capturar” tenha sido alvo de interesse de tantos pesquisadores e filósofos,
ganhando então diferentes nomes: linhas de fuga (Deleuze, 2006; Biehl, 2011),
margens (Das, Poole, 2004; Agier, 2015) ou horizontes imaginativos (Crapanzano,
2005). Seja nas cidades, nas práticas terapêuticas, na constituição das pessoas, algo
sempre sobra, algo nunca se encaixa. Octavio Bonet (2018) reflete ainda sobre o lugar
que serviços de atenção básica à saúde ocupam em uma certa lógica das pesquisas
realizadas na área da saúde, considerados de menor importância por serem espaços de
“tecnologias leves”. Por outro lado, no entanto, para aqueles que se interessam em
encontrar a vida, a criatividade, a produção de subjetividades, tal espaço torna-se
privilegiado, já que ele é, ao mesmo tempo, dentro de uma lógica da ciência e da
medicina, o “resto”, mas também onde a vida se evidencia em seu caráter mais
resistente; o que vaza, o que é difuso, o que não se encaixa, como as relações de
cuidado aqui etnografadas.

Um lugar para a antropologia na saúde


No período em que trabalhei na UPP Social, entre os quatro agentes de campo
que estavam comigo, todos moradores do Complexo do Alemão, havia uma jovem de
24 anos com a qual mantive uma relação mais próxima. Essa jovem era mãe de um
menino de dois anos e recentemente havia atravessado um difícil processo de
separação do pai de seu filho. A separação, no entanto, implicou também em seu
retorno ao Alemão – onde havia sido criada – após dois anos vivendo com o antigo
companheiro na Ilha do Governador, em uma área de classe média baixa. A jovem não
fazia questão de esconder seu descontentamento com esse retorno. Sempre que podia,
dizia que o que mais queria era “sair de vez do morro” e não conseguia entender como
outras pessoas se diziam orgulhosas de viver ali. Seus comentários, sempre com
pitadas de bom-humor e ironia, normalmente geravam polêmica entre os outros
agentes, também moradores, que discordavam dela em maior ou menor grau. Antes de
entrar no programa, ela fazia alguns “bicos” como diarista e uma de suas patroas viu
o anúncio para o programa UPP Social e resolveu inscrevê-la. Ela acabou sendo
contratada justamente por ter um perfil diferente dos outros que normalmente se

187
inscreviam e procuravam o programa, isto é, com um perfil mais militante ou já
cursando o ensino superior.

Ela havia voltado ao morro recentemente e, em seu retorno, tinha encontrado


dificuldade em alugar uma boa casa, já que os preços de aluguel haviam subido, e
contava com quase nenhuma ajuda da família para criar o filho. O pai, por sua vez,
constantemente atrasava o pagamento da pensão. Além disso, sempre que nos
encontrávamos para realizar as tarefas do trabalho, ela se queixava de algum problema
de saúde, como dores de cabeça, dores nas costas e palpitações. Esses problemas se
misturavam às reclamações que fazia com relação à sua vida de um modo mais geral,
como dificuldade de conseguir uma creche para o filho, proximidade de sua casa à
boca de fumo, ausência de estrutura para viver na favela. Suas reclamações eram
intensificadas pela dificuldade de obter um diagnóstico para as dores que sentia. Saía
das consultas na Unidade de Atenção Básica à Saúde sempre com novos
medicamentos e mais queixas. Em nossas conversas, tentei algumas vezes convencê-
la de que talvez os sintomas pudessem ser emocionais e me ofereci para ajudá-la a
procurar a ajuda de um profissional da área de psicologia ou um grupo de terapia
comunitária. Ela recusou, justificando que já recebia esse tipo de apoio na igreja que
havia começado a frequentar após a separação, a Assembleia de Deus. Além do mais,
ela não era alguém que aparentasse estar deprimida, pelo contrário, seu senso de
humor era do tipo que arrancava risadas até nos assuntos mais difíceis sobre os quais
conversávamos, como as situações que ela já havia vivido com relação à violência
local.

Nossa relação se manteve mesmo após o fim do trabalho. Ainda hoje nos
falamos e nos encontramos eventualmente. Ao longo desse tempo, sua situação
financeira piorou muito, após realizar vários trabalhos com programas e projetos de
governo (ela trabalhou ainda no Caminho Melhor Jovem126 e no Centro de Referência
de Assistência Social). Tentou também várias vezes uma bolsa integral para frequentar
a faculdade, sem sucesso. De lá para cá, programas, projetos ligados ao governo e
mesmo à atuação de organizações governamentais externas no Complexo do Alemão
tornaram-se escassos, sobretudo após os jogos olímpicos na cidade. Minha amiga
voltou então a se dedicar a trabalhos temporários como fazia anteriormente,

126
Caminho Melhor Jovem foi um programa de orientação profissional para jovens, do governo estadual.

188
trabalhando em fábricas, lanchonetes, padarias e alguns “bicos” como diarista.
Continuou frequentando a igreja, mas deixou de reclamar tanto de suas dores, pois a
maior parte de suas queixas se focam agora nos problemas do filho, diagnosticado
com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e na dificuldade de
encontrar um novo companheiro, além dos problemas com o pai de seu filho. Quando
soube do diagnóstico do filho, mais uma vez eu tentei ajudá-la com coisas do meu
mundo. Insisti para que ela procurasse outra opinião, disse que lhe ajudaria, falei sobre
o processo de medicalização da infância e estudos que demonstravam isso. Mas ela
rapidamente me interrompeu: “Natália, você não tem ideia, ele é difícil demais, sem
o remédio ele fica pior”. De fato, “eu não tinha ideia” e entendi que não adiantaria
insistir.

Em um de seus textos mais importantes, intitulado “A crise de interpretação é


nossa”, Victor Valla (1994) atenta para o fato de que, ao trabalhar em áreas de pobreza,
muitas vezes pesquisadores e profissionais esperam encontrar uma população que
acredita e batalha por melhorias e, ao não encontrarem pessoas assim, sugerem que a
população não tenha clareza sobre sua própria situação. O autor ressalta que: “clareza
da sua situação social pode significar também clareza de que uma melhoria
significativa seja uma ilusão. Neste sentido, a crença em melhorias e numa solução
mais efetiva pode apenas ser um desejo, embora importante, da classe média
comprometida” (Valla, 1994, 185).
Retomando o caso de minha amiga, que desejava sair do morro o quanto antes
e não estava interessada em se engajar em qualquer tipo de ativismo para que aquele
espaço se transformasse, compreendo que sua lucidez em torno da sua situação social
era profunda e, justamente por isso, rejeitava-a. No entanto, tal associação não estava
explicitamente expressa em sua narrativa, diferente daquela dos movimentos sociais,
dos quais pude também me aproximar depois, na qual sofrimento, violência e saúde
eram articulados em uma mesma narrativa de forma coerente. Isso, no entanto, não
fazia com que aquele ambiente vivido não fosse sentido em sua vida, em seu corpo,
na maneira pela qual criava seu filho. Tampouco fazia com que ela também não fosse
uma agente transformadora e criadora daquele ambiente, daquele mundo.

Assim como fiz com minha amiga algumas vezes, quando tentei lhe oferecer
soluções para seus problemas e de seu filho, quando essa pesquisa teve início, eu, de
algum modo, também alimentava o desejo de que seus resultados pudessem servir

189
para alguma transformação ao evidenciar e até denunciar as situações que presenciei.
Porém, não levou muito tempo para que eu compreendesse que o papel da antropologia
não deve ser aquele da denúncia ou da salvação. Seguindo os passos de Lila Abu-
Lughoud (2012), nossa maior contribuição deve ser de lançar luz sobre a diferença.
Lembramos que, como assinala a própria autora:

O que advogo é o trabalho duro envolvido em reconhecer e respeitar as


diferenças – precisamente como produtos de diferentes histórias, como
expressões de diferentes circunstâncias e como manifestações de desejos
diferentemente estruturados (ABU-LUGHOUD, 2012, 462).

O antropólogo deve assim incluir nessa reflexão o lugar privilegiado que ocupa
em um mundo moldado também por relações de poder. Assim, acredito que o que
trago aqui nada mais é do que uma narrativa que revela tal diferenciação nas demandas
por saúde, nas construções cotidianas das políticas de saúde, nas práticas profissionais
e locais de cuidado ao pensar nas particularidades do serviço de saúde situado no
Complexo do Alemão. A compreensão de tais fenômenos perpassa tanto desigualdades
estruturais referentes sobretudo ao local onde vivem, como diferentes ontologias e
modos de vida. Meu esforço foi, desse modo, reunir todas essas experiências que
acompanhei ao longo de seis anos, organizadas pelos temas que norteiam os quatro
capítulos: mobilização social por saúde, violência, medicina e, finalmente, localidade,
casa e família.

Por outro lado, no entanto, perguntei-me diversas vezes ao longo da pesquisa


se eu, em outra condição que não a de pesquisadora, poderia assumir naquele espaço
do serviço de saúde um lugar mais ativo. Algumas vezes, inclusive, tal lugar me foi
demandado. Logo no primeiro dia em que acompanhei Diogo, ele me indagou: “Mas
então, temos que discutir os casos ao final das consultas?”. A resposta foi negativa,
mas a verdade é que os casos sempre foram discutidos, por desejo de ambos: uma
antropóloga interessada em saber mais sobre os casos, um jovem médico querendo
uma opinião sobre sua conduta como médico e os diagnósticos que fazia. Em um dos
momentos dessa troca, o médico me perguntou o que eu achava dele como médico, se
tinha alguma sugestão do que poderia melhorar em seus atendimentos. A resposta foi
a de que, como antropóloga, não saberia avaliá-lo, apenas acompanhar e descrever seu
trabalho. Mas não era verdade.

190
Ao acompanhar o trabalho de mais de um médico de família e conhecendo mais
de um contexto de desenvolvimento da Estratégia de Saúde da Família, é impossível
não participar das discussões dos casos, fazer avaliações sobre funcionamento do
serviço e as práticas profissionais. Em uma outra ocasião, uma enfermeira nova ao ser
apresentada para mim me perguntou se eu também era enfermeira. A médica me
interrompeu e respondeu logo: “Não, ela é antropóloga”. Imaginei que ela ficaria
confusa, mas, ao contrário, ela respondeu entusiasmada: “Que legal! Você também
trabalha aqui com a gente?”. Respondi que “infelizmente, era só uma pesquisa”.
Ao finalizar essa pesquisa, entretanto, percebo que ela se conecta e talvez tenha
a contribuir com preocupaçãoes que estão no horizonte dos próprios profissionais de
saúde, a respeito de suas práticas e da construção do Sistema Único de Saúde, tais
como Ricardo Ayres aponta:

Entre os princípios que têm norteado a reconstrução do sistema de saúde


brasileiro, a integralidade é talvez o mais difícil de definir e, no entanto,
aquele sobre o qual repousam os maiores desafios para a efetiva
consolidação do SUS e de suas elevadas missões. Como já disse em outro
lugar: “o princípio da universalidade nos impulsiona a construiro acesso
para todos, o da equidade nos exige pactuar com todos o que cada um
necessita, mas a integralidade nos desafia a saber e fazer o ‘quê’ e ‘como’
pode ser realizado em saúde para responder universalmente às
necessidades de cada um” (AYRES, 2009, 11).

Pela minha breve experiência através dessa pesquisa, entendo que um dos
maiores desafios na prática da Medicina de Família e Comunidade perpasse não só as
questões que enunciei aqui e que já são em muitos aspectos amplamente discutidas,
como o problema da terceirização, da demanda e da formação profissional. Porém,
também do ponto de vista antropológico, acrescentaria ainda a fragilidade do uso da
noção de território, que necessita ser complexificada. Justamente porque o terriório
aqui não é o Complexo do Alemão que aparece nos jornais, mas é o “morro” que
aparece na fala dos moradores, que é vivido e construído por eles e que nos diz muito
sobre como eles vivem, se cuidam e querem ser cuidados pelo Estado. Apenas tal
compreensão é capaz de iluminar o entendimento de que, onde pesem as
particularidades de cada experiência, a “lógica do morro” é, em muitos momentos
aqui, o que orienta a “lógica do cuidado”.
Um dia, ouvindo a conversa entre dois agentes de saúde antigos, um disse ao
outro: “Você se lembra daquela doutora? Aquela que trabalhou com a gente aqui no

191
começo e quando tinha ação lá em cima do morro, ela tomava banho de mangueira
junto com as crianças? Que beleza que era!”. Ao ver o brilho nos olhos deles ao se
lembrarem dessa doutora, refleti sobre como aquela lembrança singela indicava a
importância de um profissional de saúde de fato “subir o morro”, de compreender
como se vive ali e quais são suas dificuldades, mas também de ser capaz de reconhecer
o que traz felicidade, como um banho de mangueira num dia de calor.

192
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206
ANEXO I: MAPAS CAPÍTULO 2

Serviços de Saúde 1980/90 ....................... 213


Serviços de Saúde 2000 ............................. 214
Serviços de Saúde 2010-2014 .................... 215
Serviços de Saúde 2014-2016 .................... 216
Serviços de Saúde 2016-2018 .................... 217

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