Título Original

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

Copyright , 2021
COVID-19: VITÓRIA
Reservam-se os direitos desta edição à:
GIOSTRI EDITORA LTDA.

São Paulo - SP - República Federativa do Brasil.

Onde começa e quando termina.
Impresso no Brasil
ISBN: 978-85-516-0000-0
CDD: ______

Elaborado por

Samuel Freitas
Editor Responsável Alex Giostri
Coordenadora Editorial Isabela Delambert
Arte de capa e diagramação André Ximene
Revisão final de texto Giostri Editora Ltda.

1ª Ed. São Paulo: GIOSTRI, 2021

1 - Gênero Ao Deus todo poderoso,

1ª Edição
Giostri Editora LTDA. que pela Graça me concedeu o milagre da cura.

À minha esposa Paula, companheira de uma vida,

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incansável nas orações e cuidados durante esse período tão difícil.
Giostri Editora
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SUMÁRIO

Primeira Parte

Prólogo • 13
Ressalva • 15
Antecedentes • 16
A origem controversa • 23
O ano que passou • 25
O churrasco • 34
Os testes positivos • 37

Segunda Parte

As internações • 43
No vale da sombra da morte • 47
O inferno • 51

Terceira Parte

O milagre • 59
O céu • 63
Reaprendendo tudo de novo • 68
Epílogo • 72
Primeira Parte
Família é tudo.
 Samuel Freitas

Prólogo

Olá. Eu me chamo Samuel.

Sou marido da Paula e pai da Marina, do Rafael e da
Jessica. Moramos em Niterói, na região metropolitana
do Rio de Janeiro. O resto da família eu apresento a
você depois.
Este livro é um recorte autobiográfico da história da
minha família com a doença do século 21, que, de um
jeito ou de outro, em alguma medida, afetou cada um
dos bilhões de indivíduos da raça humana que estavam
vivos sobre esse mundo de Deus nos anos de 2020 e 2021.

13
 Samuel Freitas

Ressalva

Consideramos importante compartilhar nossa história

de vitória, nossas batalhas, o inferno e o céu pelos quais
passamos por conta dessa doença maldita.
Mas o fazemos ressalvando nosso mais profundo
respeito, pesar e consternação pelas inaceitáveis perdas
de centenas de milhares de vidas. Aquelas histórias que,
infelizmente, não terminaram em vitória.

15
VITÓRIA: onde começa e quando termina
Antecedentes
Segundo o dicionário Michaelis1, pandemia é uma
“doença epidêmica de ampla disseminação.”
Dentre as cinco doenças que mais assolaram a huma-
nidade2, destaca-se a Varíola, cujos surtos vitimaram
percentuais expressivos das populações de alguns países,
como o Japão, onde, entre os anos 735 e 737, vitimou
um terço da população, e a Islândia, onde, entre os anos
1707 e 1709, matou um quarto dos habitantes.
Segundo a definição adotada acima, tais surtos, embora
extremamente mortais, não caracterizam uma pandemia
na medida em que se limitaram a um determinado país.
1 Disponível em https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/
busca/portugues-brasileiro/pandemia/. Acesso em 04/04/2021.
2 HAYS, J. N. Epidemics and pandemics. Their impacts on human his-
tory. Austin, Texas: Fundação Kahle, 2005. p. 18, apud https://
www.historiadomundo.com.br/curiosidades/cinco-doencas-que-
-marcaram-a-historia-da-humanidade.htm#:~:text=Entre%20
os%20europeus%2C%20a%20doen%C3%A7a,transforma%-
C3%A7%C3%B5es%20profundas%20na%20Europa%20medie-
val. Acesso em 04/04/2021.
16
Samuel Freitas
A primeira pandemia que se tem notícia foi um surto
de Varíola que se acredita ter surgido na Índia e ficou
conhecida como Peste Antonina. Ela se espalhou pelo
Império Romano ainda no ano 2 d.C, chegando a causar
2 mil mortes por dia em Roma, e acredita-se ter vitimado
no total cerca de 5 milhões de pessoas.
Talvez o antecedente mais conhecido da atual pandemia
tenha sido um surto de Peste Bubônica, doença causada
pela bactéria Yersinia pestis, encontrada em ratos e trans-
mitida ao ser humano através de picadas de pulgas que
tinham tais animais como hospedeiros. Acredita-se ter
surgido na Ásia Central e ter sido disseminada na Europa
por comerciantes genoveses que fugiram de Caffa, colônia
daquela cidade-estado na Criméia, atual Ucrânia, às
margens do Mar Negro.
A Peste Negra, tal como ficou conhecida, atingiu a
Europa, o Norte da África e parte da Ásia entre os anos
1347 e 1353, e pode ter vitimado até 100 milhões de
pessoas3.
O século 19 se encerrou com a Gripe Russa, causada
pelo vírus Influenza H2N2 e surgida em Bukhara, atual
3 Videhttps://saude.abril.com.br/medicina/gripe-quais-foram-
-as-maiores-epidemias-da-historia/#:~:textE%20a%20gripe%20
avi%C3%A1ria%3F,como%20motivo%20de%20muita%20preo-
cupa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 08/04/2021.
17
VITÓRIA: onde começa e quando termina
Uzbequistão. Ela se espalhou pela Europa, Ásia, África e
América entre 1889 e 1890 e vitimou cerca de 1,5 milhão
de pessoas.
O século 20 trouxe a Gripe Espanhola, causada pelo
vírus Influenza H1N1, e que se acredita ter surgido nos
Estados Unidos. Entre 1918 e meados de 1919 a doença
se espalhou pelo mundo em meio ao envio de tropas
americanas para a Primeira Guerra Mundial4.
A Gripe Espanhola teve 3 “ondas”, tendo sido a segunda
delas a mais contagiosa e com maior taxa de mortalidade.
Aproximadamente 50 milhões de pessoas pereceram por
causa da enfermidade.
Seguiu-se entre 1957 e 1958 o retorno do vírus Influenza
H2N2 com a Gripe Asiática, surgida no norte da China,
que em dez meses alastrou-se pela Ásia, Oceania, África,
Europa e Estados Unidos e causou a morte de aproxima-
damente 2 milhões de pessoas.
Uma nova mutação do vírus Influenza, o H3N2 causou
entre 1968 e 1969 a morte de aproximadamente 3 milhões
de pessoas por meio da Gripe de Hong Kong, transmitida
por aves.
4 A gripe foi denominada de espanhola por ter sido noticiada
primeiro por aquele país europeu, já que os Estados Unidos, em
guerra, censuraram o surgimento da doença por avaliarem que a
notícia poderia enfraquecer seu exército.
18
Samuel Freitas
Entre 1997 e 2004, houve a Gripe Aviária, causada por
mais uma mutação do vírus Influenza, o H5N1, que se
espalhou pelo Sudeste Asiático, Europa e África. Desta
vez, felizmente, matou apenas cerca de 300 pessoas,
número muito abaixo dos outros surtos. Quem “pagou
o pato” foram as aves. Para frear a proliferação da doença,
1,5 milhão de aves foram mortas só em 1997.
Mais recentemente, em janeiro de 2009, o vírus Influenza
H1N1 – o mesmo da Gripe Espanhola – ressurgiu no
México e se espalhou para diversos países até agosto de
2010, causando nos primeiros doze meses um número
de mortes estimado entre 151 mil e 575 mil, segundo
o Centro de Prevenção e Controle de Doenças – CDC
dos Estados Unidos.
A Organização Mundial de Saúde – OMS declarou a
pandemia em 11 de junho de 2009, e no dia seguinte a
farmacêutica suíça Novartis anunciou a primeira versão
da vacina, aprovada três meses depois pela agência norte-
-americana reguladora de comidas e medicamentos, a
Food and Drug Administration – FDA. Em outubro de 2009
uma campanha massiva de imunização já se encontrava
em andamento nos Estados Unidos, também iniciada no
Brasil em março de 2010.
Como se vê, a Covid-19 não é a primeira pandemia de
que se tem notícia. E infelizmente, ao que tudo indica,
19
VITÓRIA: onde começa e quando termina
não será a última. Há no entanto dois pontos chave que
diferenciam as surgidas desde a Gripe Aviária, na virada
do século 21, de suas antecessoras, um para o bem e outro
para o mal.
Para o mal, basta pensarmos que até a Peste Negra os
transportes eram muito precários. Cavalos, carroças e
navios à vela eram o que se tinha para transitar de um
país ou região a outro, tornando assim o ritmo de disse-
minação de qualquer doença muito mais lento.
Mesmo na Gripe Espanhola, no início do século 20, o
motor à combustão e a aviação ainda se encontravam em
seus primórdios, sendo assim a maior parte do transporte
entre países e regiões diversas era feito por trem ou navio.
Enquanto que neste início do século 21 uma viagem
entre continentes, entre o Brasil e a Europa, por exemplo,
varia entre cerca de 12 a 15 horas, apenas. A rota aérea mais
longa em operação foi inaugurada em 20175 pela compa-
nhia aérea Catar Airlines no trajeto sem conexões entre
Auckland, na Nova Zelândia, e Doha, capital daquele país
árabe. A distância de 14.535 quilômetros é percorrida em
18 horas e 5 minutos num Boeing 777-200LR.
5 Disponível em https://www.google.com/search?q=via-
gem+aviao+mais+longa&oq=viagem+aviao+mais+longa&aqs=ed-
ge..69i57j0i22i30l3.4127j0j9&sourceid=chrome&ie=UTF-8.
Acesso em 04/04/2021.
20
Samuel Freitas
Tal facilidade sem precedentes no trânsito entre dife-
rentes regiões e continentes contribuiu para uma disse-
minação muito mais rápida da Covid-19 em comparação
aos seus antecedentes, como também ocorreu na Gripe
Aviária e no último surto do vírus H1N1.
Por outro lado, para o bem, há que se lembrar que por
ocasião da Gripe Espanhola sequer havia antibióticos, já
que somente em 1928 Alexander Fleming descobriu a
penicilina.
Enquanto que na atual pandemia a alta tecnologia e
os esforços em paralelo de cientistas em diversos países
possibilitaram que em tempo recorde várias vacinas6
já estejam disponíveis contra a Covid-19, tendo sido a
primeira aprovada apenas dez meses após a identificação
dos primeiros casos em Wuhan, na China, no final de
2019. Trata-se de tempo ínfimo em comparação com o
6 Em 05/04/2021 se encontravam disponíveis para aplicação no
Brasil a CoronaVac, de origem chinesa, também já produzida no
país no Instituto Butantan, em São Paulo, a partir de insumos for-
necidos pelos chineses; A AstraZeneca, desenvolvida na Univer-
sidade de Oxford, na Inglaterra, igualmente produzida aqui pela
Fundação Osvaldo Cruz – Fiocruz, no Rio de Janeiro; e a Pfi-
zer/BioNTech, desenvolvida pela farmacêutica norte-americana.
Imunizantes já utilizados em outros países, como a também nor-
te-americana Moderna, a russa Sputnik V, e a belga Janssen ainda
aguardavam aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitá-
ria – ANVISA, responsável pela autorização do uso de vacinas e
outros medicamentos.
21
VITÓRIA: onde começa e quando termina
que foi necessário no passado para o desenvolvimento e
aprovação de vacinas contra outras doenças7.
Para efeito de comparação com o prazo de dez meses
que levou para ficar pronta, seguem alguns prazos de
desenvolvimento de vacinas para outras doenças impor-
tantes: Tuberculose (1882-1927); Febre Tifóide (1884-
2017); Meningite (1889-1981); Coqueluche (1906-1948);
Dengue (1907-2019); Poliomielite (1908-1955); Cata-
pora (1953-1995); Sarampo (1953-1963); Hepatite B
(1965-1981); Rotavírus (1973-2006); Ebola (1976-2019)
e Papilomavírus Humano – HPV (1981-2006).
7 A primeira vacina aprovada para uso foi a Pfizer/BioNTech.
22
Samuel Freitas
A origem controversa
O relatório publicado pela OMS8 em 29 de março de
2021 analisa quatro hipóteses possíveis sobre a transmissão
do vírus SARS-CoV-2, responsável pela Covid-19, aos
seres humanos.
O documento aponta como “entre provável e muito
provável” que a transmissão do vírus para o ser humano
tenha se dado a partir de morcegos, por meio de um
terceiro animal ainda não identificado, e como “entre
possível e provável” que esta transmissão tenha ocorrido
diretamente, sem intermediários.
A terceira hipótese, classificada pelo documento como
“provável”, é a de que a transmissão tenha ocorrido
por meio de alimentos congelados comercializados no
Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, em
Wuhan, na China, epicentro da doença, ou das respec-
tivas embalagens.
8 Vide https://www.correiobraziliense.com.br/ciencia-e-sau-
de/2021/03/4914841-quatro-possiveis-teorias-sobre-a-origem-
-da-covid-19.html. Acesso em 08/04/2021.
23
VITÓRIA: onde começa e quando termina Samuel Freitas

A última hipótese, classificada pela OMS como “extre-

mamente improvável” é a de um acidente no Instituto de
Virologia de Wuhan, onde o vírus CoV RaTG13, cepa
mais próxima ao SARS-CoV-2, vinha sendo estudado
e foi sequenciado geneticamente9. O ano que passou

O ano de 2020 começou com as notícias de que a nova

doença surgida na China no final do ano que se havia
encerrado evoluía rapidamente para uma pandemia.
O Jornal “O Globo” de 28 de janeiro de 2020 registrava
a seguinte manchete: “Vírus avança, OMS eleva o alerta
de epidemia (...)10”.
O medo e a intranquilidade iam aumentando grada-
tivamente à medida em que a Covid-19 começava a se
espalhar, inicialmente pelo Japão e Tailândia; que a China
começou a implementar quarentena, inicialmente em
Wuhan e depois em outras 13 cidades; e que novos casos
da doença foram identificados em França, Alemanha e
na Austrália.
No início de fevereiro, a China informou que o número
de mortos pela Covid-19 atingiu 811 pessoas, superando
assim a marca deixada pela Síndrome Respiratória Aguda

9 A organização descarta a hipótese de liberação deliberada do 10 Vide https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?-

vírus pelos chineses. navegacaoPorData=2020202001. Acesso em 09/04/2021.

24 25
VITÓRIA: onde começa e quando termina
Grave – SARS que havia atingido o país entre 2002 e
2003. Aos 26 dias de fevereiro foi identificado o primeiro
caso no Brasil: um homem de 61 anos que havia há pouco
retornado de uma viagem de trabalho à Itália. Nessa
mesma data a Covid-19 já contabilizava mais de 80 mil
pessoas infectadas e 2.700 mortos em mais de 40 países
e territórios11.
Apesar das notícias, do crescente desconforto a cada
vez que alguém tossia por perto ou de ficar em lugares
fechados e da paranoia de não tocar em nada na rua
(maçanetas, corrimãos etc.) a vida ainda seguia seu ritmo
normal.
Ao final da segunda semana de março, numa sexta-
-feira 13, combinávamos no trabalho para a semana que
se seguiria um regime de escala, mediante o qual cada
um de nós trabalharia alguns dias de casa. Não chegamos
a colocá-lo em prática. Na segunda-feira, 15 de março,
foi determinado que todos trabalhariam em home office
pelo menos até 30 de abril.
Essa determinação foi prorrogada diversas vezes ao
longo da pandemia, e já completei mais de um ano traba-
lhando em casa.
11 Vide https://www.dw.com/pt-br/a-evolu%C3%A7%C3%A3
o-da-pandemia-de-covid-19/g-52174021.Acesso em 09/04/2021.
26
Samuel Freitas
Minha esposa Paula trabalha com criação de cães em
um local aberto, para onde se desloca somente de carro,
e meus filhos Rafael e Jessica, que, respectivamente,
cursavam – e ainda cursam – Medicina Veterinária e
curso preparatório para o Exame Nacional do Ensino
Médio – ENEM, tiveram suas aulas convertidas em Ensino
à Distância – EAD. Minha filha mais velha, Marina, já
casada, já estava morando na Inglaterra, onde desde cedo
foi implementado o lockdown para conter a expansão dos
casos. Suspendemos – com manutenção do pagamento das
diárias – nossa faxineira Andreia, a fim de não ter ninguém
de fora em casa. Transformou-se assim, de um dia para o
outro a nossa rotina no tão falado “novo normal”.
Ficamos então, graças a Deus, todos muito pouco
expostos à Covid-19, e passamos a limitar nossas saídas de
casa apenas ao essencial, como fazer compras de mercado
e consultas médicas indispensáveis, e passamos a utilizar
para praticamente todo o resto as compras via internet
e os serviços de delivery.
No tempo ocioso, agora passado exclusivamente em
casa, aprofundei-me como nunca no hobby da fotografia
de arte, explorando a macrofotografia e a astrofotografia,
e iniciei os projetos de digitalizar fotos antigas de família
e filmes 8 milímetros, e de construir nossa árvore genea-
lógica familiar. Surgiu a onda das lives através das quais os
27
VITÓRIA: onde começa e quando termina
artistas continuaram a exercer seu papel de fazer, ainda
que por alguns instantes, o povo esquecer da triste reali-
dade. Assistimos a várias. Retomei o hábito da leitura
não relacionada ao trabalho, o que há tempos não fazia.
Por falar no trabalho, nele ajustamos as rotinas e conse-
guimos pôr em prática com sucesso o teletrabalho, em
relação ao qual havia muita resistência. Coordenação de
atividades via Whatsapp, reuniões via Zoom, aos poucos
tudo foi se acertando e funcionando melhor do que
antes. Sem trânsito, sem engarrafamento, sem exposição
à violência urbana e, principalmente, à Covid-19.
No entanto, apesar de todos os ajustes nas rotinas domés-
tica e de trabalho o fantasma da Covid-19 continuou nos
rondando. A sensação de intranquilidade ao fazer qual-
quer coisa na rua era onipresente, e enorme a saudade
de simplesmente dar um passeio a pé, despreocupado.
Abril chegou trazendo um susto. Jessica começou a
sentir-se mal, com os sintomas de uma gripe muito forte,
mas que passou após alguns dias sem maiores consequên-
cias. Foi quando Paula também começou a sentir-se mal,
com tosse, mal-estar, cansaço e falta de ar.
Procuramos atendimento médico de emergência. Paula
foi medicada para o tratamento dos sintomas gripais e libe-
rada para casa. Não chegou a fazer o teste para o Covid-19,
28
Samuel Freitas
cuja disponibilidade na ocasião era bem mais limitada
do que hoje. Após uma ou duas semanas melhorou, e o
resto de nós em casa nada teve. Até hoje não sabemos se
foi ou não a Covid-19.
Chegou maio, com meu aniversário no dia 3 e o dia
das mães no dia 10, sem que eu pudesse encontrar minha
mãe Hilda e meus irmãos Paulo e Cristina, datas em que
normalmente sempre estamos juntos.
Já que comecei a falar do resto da família, prossigo: além
do Paulo e da Cristina, que são meus irmãos mais velhos,
tenho ainda um mais novo, o Marcelo, que também mora
fora do país, em Portugal. Também fazem parte dessa
história meus tios Antônio e Fátima, e minha prima Sueli.
Por último, mas não menos importante, faltou apresentar
o meu genro, Nicolau, marido da Marina.
Julho veio trazendo uma estabilização do crescimento
da média móvel de novos casos e mortes12, o que, em
conjunto com o cansaço da quarentena já por mais de
três meses, nos levou a começar a sair um pouco, sempre
para lugares abertos e sem aglomeração, e cercados dos
cuidados necessários: máscara e álcool gel à vontade.
Fizemos trilhas, passeamos com os cachorros na Lagoa
12 Vide https://infograficos.gazetadopovo.com.br/saude/media-
-movel-covid-19-no-brasil/. Acesso em 09/04/2021.
29
VITÓRIA: onde começa e quando termina
de Itaipu, no Gragoatá e em Charitas, lugares que amamos
em Niterói.
Voltei a correr, esporte que pratico há quase 10 anos, e
andar de bicicleta, atividade que antes era praticamente
diária, pois em regra é com a bike que ia todo dia traba-
lhar, aproveitando a proximidade de Icaraí, onde moro,
com as barcas e a boa rede de ciclovias de Niterói. Após
atravessar a baía com ela nas barcas, seguia pelo Boulevard
Olímpico até o trabalho, na Avenida Venezuela, próximo
da Praça Mauá.
Para encerrar o mês fomos matar a saudade de um
programa cultural assistindo de dentro do carro ao show
do comediante Leandro Hassum – que é niteroiense –
num espaço inédito: um drive-in montado no Teatro
Popular Oscar Niemeyer, junto à estação das barcas de
Niterói.
Agosto veio cheio de lembranças de passeios e viagens,
enquanto continuamos a rotina do “novo normal”, saindo
muito pouco de casa. O dia dos pais, 9 de agosto, come-
morei com minha filha Jessica na trilha do Morro das
Andorinhas, admirando do alto a vista das praias de
Itacoatiara e Itaipu.
Em setembro, Paula – que como já disse trabalha com
criação de cães – teve de ir buscar uma cadela em Vila
Velha, Espírito Santo, e assim, após seis meses de quaren-
30
Samuel Freitas
tena, matamos a saudade de viajar. Fomos até lá de carro
com o casal de amigos Daniel e Jadir, este último parceiro
de Paula no canil e passamos o fim de semana, e aprovei-
tamos para conhecer Domingos Martins, na serra capi-
xaba, onde fica a famosa Pedra Azul.
Outubro trouxe a melhor surpresa de todas. A visita
da minha filha Marina, que veio acompanhada da Laura,
amiga e colega de trabalho dela. Laura é casada com o
Peter, e a família deles se tornou uma segunda família lá
na Inglaterra para Marina e Nicolau.
Foram dias maravilhosos, matando as saudades de
estarmos presencialmente juntos, pois não nos víamos
desde janeiro, quando retornamos de lá após passar com
eles as festas de fim de ano e meu aniversário de 26 anos
de casamento com Paula, em 6 de janeiro.
Dezembro chegou com um sobressalto. Marina e Nicolau
pegaram a Covid-19. A preocupação com eles foi enor-
memente agravada pela distância. Foram dias de grande
intranquilidade, mas graças a Deus ambos desenvolveram
sintomas leves, sem maior gravidade, e em pouco tempo
estavam recuperados.
Ainda em dezembro, uma grande decepção. Estava
planejado desde o início do ano que viajaríamos dia 7
de janeiro para a Inglaterra para visitar Marina e Nicolau.
Ficaríamos lá com eles um mês, até o aniversário dela,
31
VITÓRIA: onde começa e quando termina Samuel Freitas

em 6 de fevereiro. Mas em 27 de dezembro nosso voo E então começou 2021. Passamos, a exemplo do réveillon,
foi cancelado. o Carnaval mais triste de nossas vidas, contando os mortos
Infelizmente, o combate à pandemia no Brasil havia que ao final de fevereiro já ultrapassavam 250 mil14.
se tornado palco pra política partidária e ideológica ao Foi ainda na última semana de fevereiro que começamos
invés de política de saúde, e os ingleses, sabiamente, a nos sentir mal. Cansaço, tosse e mal-estar. Sim. Era
como a grande maioria dos países13, queriam – e ainda ela. Pouco menos de um ano depois do início do “novo
querem – distância de nós, e assim cancelaram todos os normal”, a Covid-19 nos alcançou.
voos oriundos daqui.
E assim se foi 2020, no réveillon mais estranho que já
vi. Sem fogos, sem festa, em casa. Mas em segurança. O
desejo era de ver aquele ano pelas costas o mais rápido
possível, e receber 2021 como novidade, renovação,
esperança de dias melhores. Mal sabíamos nós que na
verdade não há 2021 e sim “2020.2” e tudo ainda iria
piorar. E muito.

13 Segundo matéria publicada no site G1 em 15/04/2021 os brasi-

leiros somente têm entrada assegurada sem restrições nos seguintes
países: México, Afeganistão, República Centro Africana, Albânia,
Costa Rica, Nauru e Tonga. Outros 217 países têm restrições à
entrada de pessoas vindas do Brasil, segundo um levantamento do
site de viagens Skyscanner. Disponível em https://g1.globo.com/
mundo/noticia/2021/04/15/afeganistao-albania-tonga-mexico- 14 Vide manchete da edição de 25/02/2021 do Jornal “O Globo”.
-brasileiros-so-podem-viajar-sem-restricoes-para-8-paises.ghtml. Disponível em https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-a-
Acesso em 15/04/2021. cervo/?navegacaoPorData=202020210225.

32 33
VITÓRIA: onde começa e quando termina
O churrasco
Meus tios Antônio e Fátima e minha prima Sueli moram
juntos. São todos aposentados e também observaram com
afinco as orientações relativas ao isolamento e distan-
ciamento social. Ambos já na faixa dos 80 anos, os tios
somente saíram de casa no ano que passou para consultas
médicas e para ir, eventualmente, à casa da minha mãe.
Sueli é muito próxima da minha irmã Cristina, e com
frequência viajam juntas. Além de terem idades próximas,
fazem aniversário uma no dia seguinte da outra, Cristina
no dia 08 e minha prima no dia 09 de março.
Sabendo que o grupo familiar dos meus tios e prima têm
se cuidado durante a pandemia, Cristina os convidou para
passar o Carnaval com ela, e num dos dias programou um
churrasco, para o qual também convidou a mim e Paula.
Já estávamos lá, em meio aos preparativos para acender
o fogo, quando eu e Cristina resolvemos mandar um
carro de aplicativo buscar minha mãe, para aproveitar
o dia conosco.
34
Samuel Freitas
Hilda, minha mãe, também na casa dos 80 anos, como
meus tios, sofre de Alzheimer. Em razão da doença, nos
últimos anos, o tempo e o espaço para ela são um pouco
diferentes. Às vezes ela não reconhece como seu o aparta-
mento onde mora, pois se lembra de outros lugares onde
morou e os reconhece como sua casa ao invés da atual.
Outras vezes volta aos tempos de criança ou da juven-
tude, e pergunta pela minha avó, mãe dela, já falecida há
décadas. Quando a lembramos de tal fato, ela fica muito
triste, como se a perda tivesse ocorrido agora.
Cristina está sempre com minha mãe, inclusive dividindo
os dias da semana entre a casa dela e a sua própria. É ela
quem administra a casa, a empregada, as cuidadoras, faz as
compras, enfim, cuida dela desde o surgimento da doença.
Normalmente eu visitava minha mãe a cada quinzena
ou no máximo a cada mês. Mas na pandemia as visitas
foram ficando bastante espaçadas, às vezes meses sem vê-la.
Eu e Paula sabemos que em algum momento ela possi-
velmente não mais nos reconhecerá, por isso, mesmo
com menos frequência, mantivemos as visitas durante a
pandemia, de modo a não nos “apagarmos” da memória
dela.
Foi assim que, conversando com Cristina, decidimos
trazer mamãe para passar o dia conosco no churrasco.
35
VITÓRIA: onde começa e quando termina
Ela veio acompanhada de Maricélia, que estava de plantão
como cuidadora. Foi um dia muito agradável em família,
mas cujas consequências não foram as mais felizes.
Na semana seguinte à do Carnaval todos os presentes
no fatídico churrasco começaram a apresentar sintomas
gripais. Todos, sem exceção, estavam com a Covid-19.
Nunca saberemos quem passou aos demais a doença.
Como já foi dito, todos os presentes observavam os
cuidados inerentes à pandemia, sempre usando máscara,
álcool gel e lavando as mãos ao chegar em casa e evitando
aglomerações.
Felizmente quase todos tiveram sintomas leves, prin-
cipalmente os octogenários, minha mãe e meus tios, em
relação aos quais, em tese, o risco era maior. Quem levou
a pior fomos eu e Paula.
36
Samuel Freitas
Os testes positivos
Na semana seguinte à do Carnaval, eu e Paula aprovei-
tamos a baixa temporada, com hotéis praticamente vazios,
para visitar Vassouras, Conservatória e Valença, na serra
fluminense, e ainda, durante a viagem, começamos a nos
sentir mal com sintomas gripais.
Retornamos a Niterói na quinta-feira, 25 de fevereiro,
e no dia seguinte Paula foi a uma farmácia fazer o teste
Polimerase Chain Reaction – PCR, que deu positivo para a
Covid-19.
No mesmo dia procuramos atendimento médico. Nem
cheguei a fazer o teste, tinha certeza de também estar
infectado, pois estávamos juntos o tempo todo nas últimas
semanas.
Na consulta realizada no Centro Hospitalar de Niterói –
CHN foi constatado não haver, para nenhum de nós dois,
comprometimento significativo da taxa de oxigenação do
sangue, nem, naquele momento, sintomas mais graves.
Fomos encaminhados para fazer repouso em casa com
atestado médico de 10 dias e prescrição de medicação
para os sintomas gripais.
37
VITÓRIA: onde começa e quando termina

Eu e Paula passamos dias trancados no quarto com medo

de contaminar as crianças. Felizmente tivemos sucesso.
Nem Jessica nem Rafael pegaram de nós a Covid-19. Já
quanto à evolução dos sintomas não tivemos a mesma
sorte. Sem melhora, retornamos ao CHN na terça-feira
2 de março. Nessa nova visita foi identificado mediante
exame de Tomografia Computadorizada – TC já haver
comprometimento parcial do meu pulmão, e foi recomen-
dada minha internação. Começava a guerra. Começava
o inferno.

Segunda Parte

38
 Ainda que eu ande pelo vale
da sombra da morte não temerei mal algum.
 Samuel Freitas

As internações

Minha internação se deu em princípio em caráter

preventivo. Apesar da TC ter mostrado comprometi-
mento do pulmão, naquele momento não sentia ainda
nenhuma dificuldade em respirar. Paula foi orientada a
voltar para casa e dar continuidade ao repouso e trata-
mento dos sintomas.
Fui colocado no oxigênio mediante o uso de dois
pequenos tubos inseridos um em cada narina, e estava
tranquilo e confiante de que ficaria alguns poucos dias
internado e retornaria para casa.
Já naquele primeiro dia começava a se revelar um
dos aspectos mais perversos da Covid-19. A solidão e o
isolamento, pois não eram permitidos acompanhantes
ou visitas. É uma das facetas do inferno, sobre o qual
falarei mais adiante.
Infelizmente a perspectiva de uma recuperação rápida
não foi o que se seguiu. Já no dia seguinte foi necessário
aumentar o volume de oxigênio, pois sentia dificuldade
em respirar e a oximetria – dosagem de oxigênio no
sangue – começou a piorar.

43
VITÓRIA: onde começa e quando termina
No dia 4 de março fui transferido para o Centro de
Tratamento Intensivo – CTI em razão da deterioração
do quadro. Na noite daquele dia, assistindo ao noti-
ciário na televisão para passar o tempo tive o desprazer
de ouvir novamente, em meio à dificuldade respiratória
e ao sofrimento por estar afastado da família, declarações
minimizando e ridicularizando a doença.
“Mimimi e frescura”, disse aquele que teria, pelo cargo
que ocupa, a responsabilidade de se portar como líder,
dar exemplo e guiar a nação nesse momento tão difícil.
De transmitir ao povo segurança e ânimo para cumprir as
recomendações das autoridades científicas no sentido do
isolamento social e da vacinação, mas que ao contrário,
desconstrói, desmerece e ridiculariza a cada fala tais provi-
dências, adotadas – é bom que se lembre – ao redor de
todo o mundo com comprovado sucesso no enfrenta-
mento da pandemia.
A história não o perdoará pelo negacionismo e pelas
mortes que poderiam e deveriam ter sido evitadas, da
mesma forma em que a comunidade internacional já o
condena15.
15 A matéria de 25/03/2021 do periódico espanhol “El País”
tem por manchete “Sem controle da pandemia, Brasil se torna
ameaça mundial”. Disponível em https://brasil.elpais.com/socie-
dade/2021-03-25/sem-controle-da-pandemia-brasil-se-torna-
-ameaca-mundial.html. Acesso em 19/04/2021. Já a matéria da
44
Samuel Freitas
Não há como não se sentir pessoalmente ofendido por
tais declarações, principalmente quem passou, como eu,
por um quadro grave da doença. Se você, leitor(a), ou
alguém que lhe é próximo também passou por isso, você
sabe do que estou falando. O sentimento é de revolta.
E vai ter volta.
No CTI os pequenos tubos nas narinas foram substi-
tuídos por uma máscara do tipo que se usa em nebulização,
de modo a permitir um fluxo maior de oxigênio16.
Essa nova máscara, em seu fluxo máximo, parecia ter
dentro dela um tufão, tal o volume de oxigênio que jogava
para dentro dos meus pulmões. Mas mesmo assim não
conseguia respirar. A agonia da falta de ar foi ficando cada
vez pior. No domingo, dia 7 de março, não aguentava
mais e pedi para ser intubado.
Não tive medo de morrer. Graças a Deus meus filhos já
estão criados, minha mais nova já tem 21 anos. A sensação
era só de desapontamento quanto à possibilidade de
não ter mais tempo neste mundo. De estar com minha
British Broadcast Corporation – BBC Brasil datada de 15/04/2021
tem por título “Bolsonaro é ‘grande responsável’ por ‘desastre’ de
covid, diz vice-presidente de delegação do Parlamento Europeu
para o Brasil”. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/
internacional-56750919. Acesso em 19/04/2021.
16 É a máscara que aparece na foto que ilustra o início dessa se-
gunda parte do livro.
45
VITÓRIA: onde começa e quando termina
família. Ver meus netos que ainda virão. Encontrar meus
amigos. Viajar mais. Mas estava em paz quanto ao possível
desfecho. Ademais, o desespero de não conseguir respirar
era maior do que tudo.
Foi um dos piores momentos da minha vida. A sensação
era a de entrar em um túnel escuro sem saber se sairia do
outro lado. A médica responsável pelo meu tratamento
me perguntou se eu queria fazer uma videochamada para
falar com Paula antes dela me anestesiar para fazer o
procedimento.
Disse que não. Já estava extremamente nervoso pelo
desespero da dificuldade em respirar. Se fosse falar com
ela me emocionaria e perderia o fiapo de autocontrole
que ainda me restava. Além do mais, o que diria? Me
despediria? Prometeria que voltaria para ela? Não sabia o
que dizer, pois tudo que se seguiria não dependia de mim,
e sim dos médicos, dos remédios, dos equipamentos, e,
principalmente, de Deus, meu companheiro no vale da
sombra da morte. E assim nele adentrei, rumo à escuridão.
46
Samuel Freitas
No vale da sombra da morte
Para contar essa parte da história preciso do auxílio da
Paula, pois não vivi os quatorze dias que se seguiram no
mundo dos vivos. Estava em coma induzido, o corpo
totalmente paralisado pela medicação neurobloqueadora,
respirando por ventilação artificial. Uma quase morte.
Guardo algumas lembranças desses dias. A depender
do que você, leitor(a), acredita, pode ter sido alucinação
causada pela medicação extremamente forte. Ou pode
ter sido uma experiência espiritual. Cada um entenda
segundo sua fé e convicções filosóficas.
A lembrança mais marcante e estranha é de um lugar
que chamo de Casa de Espanha. Era uma casa antiga,
quadrada, de estilo barroco, como as que vi no interior
de Portugal. Ficava num lugar meio desértico e tinha um
pátio interno por onde a luz do sol entrava e banhava
um jardim.
Sentado na escadaria do jardim, minha tarefa era fazer
um backup das minhas memórias, em um equipamento
estranho que eu operava com a mente, e que em nada
47
VITÓRIA: onde começa e quando termina
combinava com os ares do lugar, que para mim eram da
ocupação da península ibérica pelos mouros no início
da idade média.
Durante todo o tempo, enquanto eu, com a mente,
salvava os momentos marcantes da minha vida, um enfer-
meiro negro muito forte, que usava um reluzente capacete
prateado, me imobilizava com os braços, de forma que eu
simplesmente não conseguir mover um músculo sequer.
Aos meus contínuos esforços para me libertar ele
respondia pacientemente, vez após outra: “- Tem de ficar
parado, ficar quieto, para ficar bom. Paciência.”
Além do enfermeiro mouro habitavam a Casa de
Espanha a mulher dele, também enfermeira, uma senhora
idosa e um menino, todos negros. A criança me olhava
curiosa, enquanto tomava seu achocolatado naquelas
canecas de duas asas com tampa que lembro de meus
filhos usarem quando eram pequenos.
Hoje quando reflito sobre essa lembrança penso que
pode ter sido uma forma do meu inconsciente traduzir
a realidade da medicação neurobloqueadora que me
mantinha imóvel na imagem do enfermeiro mouro.
Um episódio passado durante esses dias, do qual não
me lembro, contado por Paula, é o de que em uma das
muitas noites em que ela passou em claro orando pela
48
Samuel Freitas
minha recuperação, de repente me viu sentado na cama.
“ – Não sei para onde devo ir.”, disse eu, conta ela.
“– Me parece certo seguir aquela luz.”, prossegui. Ela me
respondeu: “ – Fique onde está.”. Ao que parece, segui
o conselho, e fiquei.
Enquanto isso, no mundo dos vivos, minha família
passava momentos de angústia e sofrimento. Marina,
minha filha mais velha, com a preocupação agravada pela
distância, tentou de todo jeito conseguir um voo para vir
da Inglaterra para o Brasil, com escalas mirabolantes em
outros países, mas sem sucesso. Como já dito, nosso país
se tornou um pária internacional em razão da ineficiência
no combate à Covid-19.
Paula passou dias sem dormir, angustiada com o que
se sucederia comigo. Entre os dias 6 e 10 de março não
pregou o olho um minuto sequer.
Em 9 de março, em consulta de acompanhamento
da fase pós-Covid um Clínico Geral pediu exames que
acusaram o risco de existência de um coágulo.
Dia 11 de março ela foi chamada ao hospital e autori-
zada, em caráter excepcional, a me ver, devidamente para-
mentada, pois não sabiam se eu chegaria ao dia seguinte.
Além do pulmão, estavam comprometidos o pâncreas,
o fígado e rins.
49
VITÓRIA: onde começa e quando termina
No dia seguinte, 12 de março, Paula deu entrada nova-
mente no CHN e foi encaminhada direto para o CTI
cardíaco, onde fez novos exames para localizar o coágulo.
Estava no pulmão, e causou uma embolia pulmonar.
Comigo e Paula internados, sobrou para Jessica assumir
o comando da casa, resolver refeições e dar conta das
demais tarefas domésticas. Felizmente ela contou com
o apoio da minha cunhada Simone e do marido dela,
Vasco. Ele veio do Recreio, no Rio, onde moram, trazer
comida que ela preparou para Jessica e Rafael passarem a
semana; também foi ela que entrou em contato com meu
trabalho para tratar de documentação relativa à minha
licença médica, e até contas da minha casa eles pagaram
durante o período em que eu e Paula estávamos ambos
internados.
Nos dias seguintes, Paula piorou. Apresentou bradi-
cardia (queda dos batimentos cardíacos) intensa, quadro
que somente se normalizou no dia 15, quando foi trans-
ferida para o quarto. Lá permaneceu ainda até o dia 18,
quando teve alta. Era a véspera do dia em que acordei
do coma.
50
Samuel Freitas
O inferno
A Covid-19 é uma roleta russa. Não se sabe ainda o
porquê de alguns indivíduos serem assintomáticos e
outros desenvolverem sintomas leves, enquanto muitos
desenvolvem formas extremamente graves da doença e
tantos chegam a vir a óbito.
A idade e a presença de comorbidades são consideradas
fatores de risco para o desenvolvimento das formas mais
graves da doença. No entanto, como já mencionado,
minha mãe e meus tios, todos octogenários, desenvol-
veram apenas sintomas leves.
A Covid-19 agride o corpo humano das mais variadas
formas. Mesmo nas mais leves é comum persistirem por
longo tempo após o fim da infecção a perda do olfato, a
sensação de cansaço após qualquer esforço físico, e uma
tosse irritante.
Nas formas mais graves, afeta os órgãos vitais, às vezes
deixando sequelas, outras levando à morte. É uma doença
brutal.
51
VITÓRIA: onde começa e quando termina
No meu caso a pneumonia causada pela Covid-19
chegou a tomar cinquenta por cento dos pulmões,
tornando impossível a respiração sem auxílio mecânico
através da intubação e necessária a indução de coma para
manter o corpo em retorno absoluto. Segundo Paula,
durante o período em que permaneci desacordado fui
dado como o mais grave dos 28 pacientes internados por
Covid-19 no CTI do CHN.
O sofrimento causado pela Covid-19, no entanto, foi
e vai muito além do impacto devastador no corpo físico.
Afeta gravemente o psicológico, em razão tanto das limi-
tações decorrentes dos danos e sequelas que causa quanto
do isolamento que impõe da família e dos amigos.
Já na primeira semana dos sintomas, isolados em nosso
quarto, sofríamos com a possibilidade de contagiar nossos
filhos.
Após a internação, nos piores momentos de minha vida,
no desespero de não conseguir respirar e na incerteza
do retorno da intubação, eu, que divido com Paula há
mais de 26 anos os bons e maus momentos, não pude
contar com o alento da presença dela para enfrentar as
circunstâncias.
Mesmo após retornar do coma, ainda no CTI, os dias
eram longos, contados minuto a minuto, esperando a
52
Samuel Freitas
única hora diária de visita para ter o conforto da presença
dela, enquanto via alguns de meus “vizinhos” não resis-
tirem e sucumbirem à doença.
As forças simplesmente tinham se esvaído do meu
corpo. Conversar um minuto me deixava exausto. Qual-
quer movimento parecia um desafio, tal a perda de massa
muscular. Ficar em pé, sair do leito, parecia impossível.
Sempre tive boa saúde, graças a Deus. Caminhava,
corria, andava de bicicleta. De um dia pro outro me
descobri tão frágil como minha mãe, de 87 anos, cheio
de limitações. Meus rins não funcionavam. Precisava de
uma máquina para me ajudar a eliminar as toxinas do
corpo. Talvez precisasse de um transplante.
O assunto do transplante virou um tópico à parte.
Devido à maior compatibilidade genética e de tipo
sanguíneo o melhor doador possível seria meu filho
Rafael. À mãe ele disse de pronto que estava resolvido,
que ele doaria se necessário, pois só precisava de um.
E a minha cabeça, como ficaria se tivesse de privar um
filho de um rim? Não conseguia me reconhecer. Não
conseguia aceitar o que meu corpo havia se tornado. Me
sentia quase inumano.
Não bastasse o sofrimento físico imposto pela doença
e o risco de morte em si, suportá-los sozinhos também
53
VITÓRIA: onde começa e quando termina

nos foi imposto pela Covid-19. Tanto eu como Paula,

internados no mesmo hospital, eu no CTI-Covid ela no
CTI cardíaco enfrentávamos nosso inimigo cada qual no
seu canto. Eu nem cheguei a saber da internação dela, só
depois, quando ela já tinha tido alta.
A única exceção foi a visita que a autorizaram a me
fazer no dia 11 de março, quando as perspectivas eram
as mais sombrias. Naquela visita, segundo ela me contou
depois, à medida que conversava comigo meus batimentos
cardíacos se alteravam. De alguma forma consegui ouvir
lá do outro lado, no vale da sombra da morte, ela me
chamar, e comecei a caminhar de volta para o mundo
Terceira Parte
dos vivos.

54
Fé é certeza de coisas que não se vê.
A fé move montanhas.
 Samuel Freitas

O milagre

Contrariando os prognósticos, quando tudo parecia

perdido, amanheci o dia 12 de março e daí em diante
comecei a melhorar. A “pane” no pâncreas e no fígado foi
controlada, a infecção nos pulmões começou a regredir,
e aos poucos foi sendo revertido o coma.
Sem qualquer desmerecimento à competência dos
médicos e à excelência da estrutura de suporte com a
qual, felizmente, ao contrário de muitos, pude contar
no CHN, reputo a “virada” na evolução do meu quadro,
que seguia para óbito, unicamente à Graça de Deus, que
em sua infinita misericórdia entendeu por bem me dar
mais algum tempo nesse mundo.
Milagre. Simples assim, sem explicação ou maiores
considerações, e que continuou em curso à medida em
que meus rins continuaram a se recuperar, já não mais
necessitando da diálise, e que as limitações impostas
ao corpo pela doença vão sendo vencidas, um pouco
a cada dia.

59
VITÓRIA: onde começa e quando termina
Passei, ao todo, exatos trinta dias internado. Quatro
antes da intubação, quatorze intubado, mais três ainda no
CTI-Covid e outros nove dias no quarto, até finalmente
ter alta e retornar para casa.
No décimo terceiro dia acordei. Era o dia 19 de março,
dia de São José. Diga-se de passagem, foi para ele a
promessa que nossa amiga Jaqueline, de quem fomos
padrinhos de casamento, tinha feito, logo que me internei.
Conforme fiquei sabendo depois, foi prometido por ela
visitar comigo e Paula o santuário dele situado ao lado
da Assembleia Legislativa, junto à Praça XV, no centro
do Rio de Janeiro.
Ao acordar a sensação de desconforto era enorme,
tamanha a quantidade de fios, equipamentos e acessos
conectados ao meu corpo, sem contar o tubo pelo qual
respirava e a sonda nasoentérica pela qual me alimentava.
Sem contar todas as limitações físicas e suas consequências
psicológicas das quais já falei no capítulo anterior.
Dois dias depois, em 21 de março, fui extubado e voltei
a respirar sem auxílio mecânico e a ingerir primeiramente
líquidos, e depois também alimentos. Após mais dois
dias, em 23 de março, a sonda nasoentérica pela qual eu
vinha me alimentando desde a intubação foi retirada,
bem como os acessos na virilha e pescoço.
60
Samuel Freitas
Muita sonolência e confusão de raciocínio devido à
medicação extremamente forte continuaram durante
esses dias, junto com uma quase completa incapacidade
de uso do próprio corpo. Tive de reaprender tudo – tudo
mesmo – de novo.
Para exemplificar a confusão mental causada pelos remé-
dios, vou contar a você duas histórias absurdas, que, no
entanto, naqueles dias, eram para mim perfeitamente
lógicas e reais.
A primeira era de que ao final do dia todos os médicos
do CTI almoçavam juntos, e quem preparava as refeições
era o dono do hospital, um italiano. O prato era invaria-
velmente massa caseira. Num determinado dia ele mandou
um dos enfermeiros ir à rua comprar um vinho para
acompanhar a refeição. O rapaz trouxe o vinho errado
e por causa disso passou a ser perseguido pelo dono do
hospital, que o acusou de ter roubado o carro dele.
Tal foi a minha preocupação e insistência em de alguma
forma tentar ajudar o enfermeiro que cheguei a perguntar
a outros integrantes da equipe de enfermagem se ele estava
bem, se precisava de alguma coisa. Mais tarde Paula me
contou que a enfermeira a quem eu tinha pedido infor-
mações, conversando com ela fora do box onde eu estava,
riu à beça da minha história, o que hoje compreendo
61
VITÓRIA: onde começa e quando termina
perfeitamente. Ela contou ainda à Paula que essas histó-
rias mirabolantes são comuns entre os pacientes de CTI.
A outra história absurda era de que uma das médicas
plantonistas era também artesã, e recebia, lá mesmo no
CTI, pessoas a quem ensinava a fazer sandálias de ráfia
para vender e complementar a renda em razão da crise
econômica desencadeada pela Covid. Coisa de louco.
No dia 24 de março, tive alta do CTI e fui transferido
para um quarto, onde a partir de então Paula pôde estar
comigo o tempo todo. A companhia dela para passar
comigo tudo que ainda viria pela frente fez toda a dife-
rença, inclusive para minha saúde mental.
Finalmente, em 1 de abril, tive alta para ir pra casa, a
o
tempo de passar com a família a Páscoa, que foi no domingo
dia 4 de abril.
62
Samuel Freitas
O céu
Tudo na vida tem dois lados. Até a Covid-19.
Se por um lado essa doença brutal é capaz de nos lançar
num inferno de sofrimento físico e psicológico, é também
capaz de revelar, aos que a ela sobrevivem e se dispõem
a enxergar, aspectos positivos.
A primeira e mais importante faceta desse surpreendente
lado positivo é a gratidão.
No dia em que escrevi esse parágrafo completei um
mês desde a entubação, em 21 de março. Quando olho
para trás e vejo tudo pelo que passei a gratidão invade
meu coração de uma forma inexplicável.
Tal sentimento, por óbvio, não é por ter ficado doente
e ter passado por esses momentos terríveis, e sim por
ter sobrevivido a eles. Por ainda estar aqui lhes para lhes
contar essa história.
É difícil explicar como no último mês tudo se ressigni-
ficou. Família, casamento, trabalho, a vida como um todo,
63
VITÓRIA: onde começa e quando termina
enfim. Aquela sensação de rotina, de fazer as coisas no
automático, sem perceber, de não dar valor às pequenas
coisas, simplesmente não existe mais.
Tenho dito que ainda estou sob o efeito do milagre.
E espero que não passe nunca, pois a vida nunca foi tão
colorida, apesar das sequelas físicas e psicológicas que
ainda trago comigo.
Nos primeiros dias após a entubação, ocorrida em 21 de
março, eu ainda estava em dieta zero, sendo alimentado
pela sonda nasoentérica. Não bebia nem água. Ao longo
do dia a boca ia se ressecando, e para aliviar a sensação
a equipe de enfermagem umidificava meus lábios com
uma gaze embebida em água. Num segundo momento
tive autorização para bochechar com a água, sem, no
entanto, a engolir. Por fim, um pouco mais à frente pude
finalmente beber um copo de água.
Não conseguirei explicar com palavras a sensação que
foi beber novamente aquele singelo copo de água.
Mais à frente foi liberada a alimentação sólida. A primeira
coisa que pude comer após semanas foi uma fruta. Um
creme de maçã. Novamente, é indescritível a sensação
que senti. Na verdade, desde aquele dia, eu, que prati-
camente não comia frutas, as considero como a melhor
parte da alimentação.
64
Samuel Freitas
E por aí vai. São tantas pequenas vitórias... A primeira
vez que consegui voltar a usar o banheiro, que consegui
ficar em pé sem ajuda, que consegui dar uma volta no
corredor do hospital, me alimentar sozinho, tomar banho
sem usar uma cadeira higiênica...
Sou ainda eternamente grato a todos os profissionais
que colocaram em prática seus conhecimentos e habi-
lidades para me trazer de volta. Médicos, enfermeiros,
nutricionistas, fisioterapeutas, auxiliares de enfermagem,
técnicos de radiologia, de análises clínicas e de hemodiá-
lise, copeiras, maqueiros e auxiliares de serviços gerais.
Pessoas que há mais de um ano enfrentam a Covid-19
dia após dia, com risco à própria saúde e vida, dando o
seu melhor no sacerdócio da profissão que escolheram, e
ajudando milhares de pessoas a vencerem a doença, com
sacrifícios e imposição de risco a suas próprias famílias.
A todos vocês, profissionais da saúde, minha eterna
gratidão.
A outra faceta do lado positivo que a Covid-19 me
mostrou foi a quantidade de pessoas que a enfrentaram junto
comigo, apesar de à distância. Meus amigos e familiares.
Alguns, como meu chefe, são pessoas com quem trabalho
hoje, outros são amigos atualmente mais presentes em
65
VITÓRIA: onde começa e quando termina
minha vida, como Daniel e Jadir. Mas há muitos, muitos
outros.
Pessoas que trabalharam comigo em outras fases de minha
carreira profissional, como Rosana, ex-colega de Diretoria
que ajudou Paula a manter informados sobre meu estado
os colegas de trabalho. Glaucia e Gilberto, que conheço
desde 1994, quando iniciei minha carreira profissional.
Companheiros de ensino médio, como o Robson, sobre
quem vou contar logo à frente, e o Claudio, que ajudou
Paula a repassar notícias minhas aos demais colegas de
colégio.
Amigos que a vida me trouxe e depois afastou, como
Paula e Guilherme, Silas e Claudia. Muitos eu não vejo
pessoalmente há anos, mas não me faltaram com o apoio
nessa hora de dificuldade.
Um episódio pitoresco exemplifica bem o que tento
explicar. Em um dos primeiros dias após minha alta do
CTI, veio ao meu quarto um dos maqueiros do hospital.
Chamava-se Israel. Apresentou-se e disse ser cunhado do
Robson, ex-companheiro de ensino médio no Colégio
Militar do Rio de Janeiro – CMRJ, e que estava acompa-
nhando a evolução do meu quadro desde o CTI a pedido
dele.
66
Samuel Freitas
Minha turma do CMRJ se formou em 1990. Não vejo
o Robson desde então. Retomamos contato há alguns
anos através de um grupo de ex-alunos no aplicativo
de mensagens Whatsapp. Ainda assim, passados mais
de trinta anos sem nos vermos pessoalmente, ele ainda
se preocupou comigo a ponto de pedir que o cunhado
acompanhe pessoalmente a evolução do meu quadro no
hospital onde trabalha.
A Covid-19 me mostrou assim que tenho muitos amigos
de verdade. Eu que sempre disse que amigos de verdade se
conta nos dedos, estava redondamente enganado. Tenho
muitos, às dezenas! Gente que se preocupa comigo e me
quer bem. Que ora por mim, que tira tempo da vida atri-
bulada que todos temos para pedir notícias de como estou.
Gente como a Dona Míriam, que mandou abrir a
capela da fazenda onde mora em Porciúncula, no norte
do Estado, e rezar missa por mim durante uma semana.
Como Mãe Claudia, que passou madrugadas no terreiro
intercedendo por mim junto aos orixás. Gente como os
colegas de trabalho que se organizaram em grupos para
interceder por mim junto à Nossa Senhora diariamente
às 6 e às 18 horas.
Isso é maravilhoso. Como diz a conhecida propaganda,
isso “não tem preço”.
67
VITÓRIA: onde começa e quando termina
Reaprendendo tudo de novo
Desde 19 de março, dia em que acordei do coma indu-
zido, venho reaprendendo tudo, em vários sentidos. No
capítulo anterior já falei de como a vida como um todo
se ressignificou após a experiência de quase morte.
O reaprendizado se iniciou pela respiração. Após
semanas de auxílio mecânico, tive de reaprender a respirar
sozinho, pelo nariz ao invés da boca. A etapa seguinte foi
recuperar o controle da deglutição, de modo a permitir
o retorno da hidratação e alimentação pelas vias normais
e assim permitir a retirada do acesso pelo qual me era
administrado soro, bem como da sonda nasoentérica,
por meio da qual me alimentava.
Após sair do CTI permaneci ainda internado durante
nove dias, durante os quais, com auxílio da fisioterapia
reabilitacional, a recuperação física se acelerou, já livre de
todos os tubos, acessos e aparelhos, e continuei a recobrar
aos poucos maior controle dos movimentos. Consegui
me sentar na cama e levantar com auxílio, e voltei a usar
o banheiro para as necessidades e o banho com o auxílio
de uma cadeira higiênica.
68
Samuel Freitas
Em alguns dias consegui voltar a me alimentar sozinho.
No início somente usando colher, pois ainda tremia muito
e a comida caía do garfo.
Os fisioterapeutas me explicaram que o corpo primeiro
recobra os movimentos mais brutos, e somente depois
os mais delicados, que demandam um controle muscular
mais apurado.
Um episódio curioso ilustra bem isso: ainda estava
internado e precisava resolver alguns assuntos junto ao
banco, então pedi ao Daniel, amigo e advogado, que
fizesse uma procuração para que ele pudesse tratar do
assunto para mim.
Minha filha Jessica, que foi me visitar todos os dias após
eu ter saído do CTI, trouxe-me a procuração impressa.
Como é natural, peguei a caneta e assinei. Só que não.
O garrancho que saiu no papel nada tinha a ver com
minha assinatura. Na mesma oportunidade descobri que
também não conseguia escrever à mão.
Tive alta do hospital usando cadeira de rodas, pois não
conseguia ficar de pé durante mais do que poucos minutos
nem caminhar mais do que poucos metros. Continuei
a fazer a hemodiálise em uma clínica especializada, três
vezes por semana. Foram apenas meia dúzia de sessões,
pois os exames de sangue feitos a cada sessão para o
69
VITÓRIA: onde começa e quando termina Samuel Freitas

acompanhamento das taxas renais mostraram que os rins
também estavam reaprendendo suas funções.
No dia 13 de abril na consulta com a nefrologista a hemo-
diálise foi suspensa em definitivo, e já no dia seguinte me
internei de novo no CHN para retirar o catéter Permcath17
usado no tratamento.
A essa altura não usava mais a cadeira de rodas em casa.
Já conseguia caminhar da cama ao banheiro, onde também
não mais precisava usar a cadeira higiênica para o banho e
as necessidades. Já conseguia ficar em pé por mais tempo,
o que me possibilitava fazer algumas pequenas tarefas,
como por exemplo, moer meus grãos para o café da manhã
ou espremer laranjas para fazer um suco.
Até então todas as vezes que precisei sair à rua – para
colher sangue, fazer hemodiálise ou consultas médicas
– tinha sido com a cadeira de rodas. No dia 16 de abril
tive uma consulta cardiológica e pela primeira vez fui
sem a cadeira. Consegui caminhar ida e volta do carro
estacionado na garagem do prédio do consultório até ele.
Às vezes dá desânimo de pensar o quanto falta recu-
perar, como aconteceu hoje mais cedo, quando, ao fazer
a série de exercícios prescrita pela fisioterapeuta, tive
uma dificuldade enorme em, de pé, levantar os braços
em posição de crucifixo.
Mas cada pequena vitória rumo à completa recuperação
das funções do corpo reacende o ânimo e reinflama o
sentimento de gratidão. Ainda que longo, o caminho
será percorrido, um pouco a cada dia. O pior, com toda
certeza, já ficou para trás.
E assim sigo – e seguimos – escrevendo a cada dia um
novo capítulo dessa história de vitória. Já vencemos.
Graças a Deus.

17 O Permcath é um cateter de longa permanência implantado

em veia central, geralmente a veia jugular no pescoço, mas pode
ser implantado na subclávia ou femoral. O meu era subclávico.
Vide https://www.google.com/search?q=permcath+o+que+%-
C3%A9&oq=permicat&aqs=edge.2.69i57j0i10i433j0i10l5.7007j-
0j1&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acesso em 21/04/2021.

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VITÓRIA: onde começa e quando termina Samuel Freitas

álcool gel e lavar as mãos. E principalmente, tomar a

vacina tão logo possível.
Agradecer pelos que a doença não alcançou e pelos que
conseguiram vencê-la, e consolar e apoiar àqueles que
Epílogo para ela perderam entes queridos.
E contar, a tantos quanto pudermos, as histórias de
No segundo trimestre de 2021 o mundo parece cami- vitória. Sim, é possível.
nhar para o controle da pandemia do Covid-19, à medida
que os países que a enfrentaram adequadamente desde o
início com base em orientações científicas conseguiram Vencemos a Covid-19!
frear a propagação do vírus com medidas efetivas de
isolamento social e vacinação em massa18.
No Brasil, infelizmente, graças ao negacionismo com
relação, inicialmente, à própria pandemia, depois com
relação às necessárias medidas de isolamento social, e,
por fim, com a própria vacina, o controle da pandemia
ainda parece distante.
Enquanto essa tão sonhada realidade não chega, nos resta
ter resiliência na manutenção das medidas preventivas.
Não sair de casa sem necessidade. Usar sempre máscara,

18 O Reino Unido, onde vivem Marina e Nicolau, por exemplo,

enfrentou a “segunda onda” da pandemia mantendo o lockdown de
dezembro de 2020 até abril de 2021, somente liberando – e apenas
parcialmente – as restrições de circulação após já ter vacinado parte
significativa da população.

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