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O LIMPO E O SUJO

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Georges Vigarello
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Tradução
MONICA STAHEL

Martins Fontes
São Paulo 1996
ÍNDICE
TNrOAuçãOo.....610fiii. so
PRIMEIRA PARTE
Da água festiva à água inquietante
1: A Agua que se InfilhEA:. cuecas
A abertura da pele.............
A toalete Seca..ssoscincs
2. Um desaparecimento de práticas..........
Estufas e banhos públicos
“Preparar os banhos”......
3. Os prazeres antigos da Água... eso
Corpos misturados.............
Transgressões... esCRA NC NHATO spustensbva dos
O “excedente dos bens de Deus”...
SEGUNDA PARTE
A roupa-branca que lava
45
46
O rosto e as mãos.. 53 QUARTA PARTE
l.
A roupa-branca e O invisíve 60
A água que protege
Corpos € espaços... 65
baixo
2. A pele e o brancor da roupa de 66 . As funcionalidades da pele.............

-
Roupa-br anca e suor es.. A instauração da palavra “higiene”.
69
Roupa-branca e olhares A pele e o equilíbrio energético...
75
Frequências .....+ A resistência dos pudores .
78
Uma interação de superf cies. . Os itinerários da água....

mM
89
3. Aparências...
A água e a defesa epidêmica...
-
A limpeza que distingue. Os circuitos da água e a higiene pública .
O perfume que “limpa”. 9 Uma hierarquização social do banho
. A pastoral da miséria .......iios

Do
Uma moralização da limpeza.
TERCEIRA PARTE Pedagogias.........iiaaaoos
Dispositivos regeneradores
Da água que penetra o corpo àquela que o reforça
Os filhos de Pasteur.........

Da
Os “monstros invisíveis”.
1, Uma suave sensação da pele...... viemos
O olhar impossível .........
Um banho novo € raro......h...
. Aparelhagens e intimidades.
Um trabalho de sensibilidade

Ni
O prolongamento do quarto
As “comodidades”.. A instalação celular..
2. O frio e os novos vigores fada soa o
O imaginário do banho frio
Que práticas?.... Gonclusão
As imagens de um corpo energizado.. NOS riscas
3. O natural e o artificial ............
A saúde contra os cosméticos.
As duplicidades do perfume...
O “interno” contra a aparência ..
4. Eflúvios populares e urbanos.
A quantificação da morte .
A localização do insalubre...
A água que corrige o ar...
5. Banhos e abluções parciai.
Um incremento do banho
As abluções parciais .........
INTRODUÇÃO

1 «. AO descrever as ações habituais de Don Carlos, misterio-


e” samente capturado por alguns esbirros mascarados, Le Ro-
À NS) man comique (1651) evoca uma cena de toalete. O prisio-
neiro é nobre, o cenário é suntuoso. Scarron descreve os
gestos e os objetos: a diligência do serviço, é claro, também
o fausto de alguns detalhes, como por exemplo o candela-
bro de prata dourada cinzelada, mas ainda as marcas de
limpeza. Ora, estas são muito significativas, ao mesmo tem-
po próximas e totalmente distantes das nossas. Poderiam
assemelhar-se a certas práticas atuais, no entanto estão mui-
to longe delas. O interesse de Scarron concentra-se em indí-
cios que hoje são acessórios e passa por cima de outros
que, pelo contrário, tornaram-se essenciais. São principal-
mente “faltas” ou “imprecisões”, como se nossos comporta-
mentos mais cotidianos ainda estivessem por ser inventa-
dos, ao passo que têm aqui, no entanto, alguns de seus
equivalentes. Especialmente, o único gesto de ablução cita-
do é muito conciso: “Esquecia-me de lhes dizer que acho
que ele lavou a boca, pois fiquei sabendo que tinha grande
cuidado com os dentes [...].”* O cuidado com a limpeza
concentra-se mais explicitamente na roupa de baixo e no
traje: “O anão mascarado apresentou-se para servi-lo e fê-lo
2 O LIMPO E O SUJO
INTRODUÇÃO 3
tomar as mais belas roupas-brancas do mundo, as mais bem
lavadas e perfumadas.” essencialmente definida pela troca e pelo brancor da roupa
Não há evocação da água no conjunto destas Cenas, a de baixo.
não ser da água de lavar a boca. O cuidado com a limpeza Para empreender esta história, é preciso ainda fazer si-
lenciar nossos próprios pontos de referência, reconhecer
se faz para o olhar e o olfato. Seja como for, ele existe, com
uma limpeza em comportamentos hoje esquecidos. A toale-
suas exigências, suas repetições, seus padrões, mas favorece
te “seca” do cortesão, por exemplo, esfregando o rosto com
antes de tudo a aparência. A norma se diz e se mostra. À um pano branco em vez de se lavar, corresponde a uma
diferença com relação a hoje, todavia, é que antes de se re- norma de limpeza absolutamente “racional” no século XVII.
ferir à pele ela se refere à roupa-branca, o objeto mais ime- É refletida, legitimada. Ao passo que hoje ela não teria sen-
diatamente visível. Esse exemplo mostra, por si só, que é tido: sensações e explicações mudaram. Trata-se de reen-
inútil negar a existência das práticas de limpeza numa cultu- contrar essa sensibilidade perdida.
ra pré-científica. As normas, nesse caso, não surgiram de Também é preciso alterar a hierarquia das categorias de
um “ponto zero”. Elas têm suas âncoras e seus objetos. Tra- referência: não são os higienistas, por exemplo, que ditam
ta-se, antes, de descobrir sua transformação futura ou sua os critérios de limpeza no século XVII, mas os autores de li-
complexificação, sobretudo seus lugares de manifestação e vros sobre boas maneiras; os praticantes dos costumes e
seus modos de transformação. não os eruditos. Ao lento acúmulo das regras associa-se o
Uma história da limpeza deve, portanto, ilustrar antes deslocamento dos saberes dos quais elas dependem.
de tudo como lentamente se adicionam exigências. Ela jus- A verdade é que representar esse processo como uma
tapõe regras, reconstitui um itinerário do qual a cena de sucessão de acréscimos ou como uma adição de pressões
exercidas sobre o corpo possivelmente será artificial. Não
Don Carlos seria apenas um dos marcos. Em tempos passa-
pode haver simples adição de regras. O que uma tal história
dos, outras cenas evidentemente a precederam, ainda mais
mostra é que ela deve, também, conjugar-se com outras his-
rústicas, em que a própria troca de camisa, por exemplo, tórias. A limpeza se compõe, necessariamente, com as ima-
não tinha a mesma importância. A roupa-branca, em espe- gens do corpo; com as imagens, mais ou menos obscuras,
cial, não é um objeto de atenção frequente, nem mesmo do invólucro corporal; com aquelas, mais opacas ainda, do
um critério de distinção, nas cenas de recepções reais des- meio físico. Por exemplo, por se considerar, nos séculos
critas dois séculos antes pelo romance de Jeban de Paris*. XVI e XVII, que a água era capaz de se infiltrar no corpo, o
A limpeza reflete aqui o processo de civilização mol- banho, na mesma época, tinha um status muito específico:
dando gradualmente as sensações corporais, aguçando seu supunha-se que a água quente, especialmente, fragilizasse
refinamento, desencadeando sua sutileza. Esta história é a os órgãos, abrindo os poros para os ares malsãos. Existe,
e
do polimento do comportamento e também a de um cresci- portanto, um imaginário do corpo, que tem sua história
seus determinantes. Também ele alimenta a sensibilidade;
mento do espaço privado e do auto-regramento: cuidados
do indivíduo para consigo mesmo, ação cada vez mais es- as normas precisam interagir com ele. Em todo caso, não se
treitada entre o íntimo e o social. Mais globalmente; esta podem transformar sem ele. Trabalham um terreno já pola-
história é a do peso cada vez maior da cultura sobre o rizado. O corpo nunca é “passivamente” habitado por elas.
mundo das sensações imediatas”. Ela traduz a extensão de É preciso até que se modifiquem as imagens do corpo para
que as regras possam se alterar. É preciso que se transfor-
seu espectro. Uma limpeza definida pela ablução regular do as
mem as representações latentes do corpo, por exemplo
corpo supõe, simplesmente, uma maior diferenciação per- que ditam seus funcionamentos e suas eficácias.
Ceptiva e um maior auto-regramento do que uma limpeza
O LIMPO E O SUJO

Nesse caso, uma história da limpeza corporal implica


uma história mais ampla e mais complexa. É que todas es-
sas representações, dando ao corpo Seus limites, desenhan-
do suas aparências ou sugerindo seus mecanismos internos,
têm antes de tudo um terreno social. A limpeza no século PRIMEIRA PARTE
XVII, ligada essencialmente à roupa-branca e à aparência
imediata — por exemplo, a que se investe no aparato dos Da água festiva à água inquietante
objetos ou nos detalhes dos sinais distintivos vestimentários —,
é bem diferente, é claro, daquela que se investe, mais tarde,
na preservação dos organismos ou na defesa das popula-
ções. Exatamente, aliás, como uma “sociedade de corte”,
que valoriza os critérios aristocráticos da aparência e do es-
petáculo, é diferente de uma sociedade “burguesa”, mais
sensível à força física e demográfica das nações. Um investi-
mento numa aparência totalmente exterior se desloca no
sentido de uma atenção mais complexa aos recursos físicos,
às resistências, aos vigores ocultos. Uma história da limpeza
corporal é também, portanto, uma história social.
O que se retém aqui é, enfim, o sentido amplo da pala-
vra, aquele que mobiliza o conjunto do corpo ou o conjun-
to dos objetos suscetíveis de fazer as vezes dele.
A ÁGUA QUE SE INFILTRA

Em 1546, Barcelona, atingida pela peste, não recebe


mais víveres. Cidades e aldeias vizinhas, temendo o contá-
gio, recusam manter qualquer ligação e qualquer comércio.
Pior ainda, os navios que o Conselho dos Quinhentos envia
a Maiorca para obter uma hipotética provisão de víveres são
rechaçados a tiros de canhão". Tais episódios se repetirão.
O contato, no final da Idade Média e na época clássica,
aparece claramente como um risco maior em caso de epide-
mia. A tradicional fuga das cidades infectadas torna-se, por
sua vez, perigosa: leva ao confronto com vizinhos capazes
de franca violência. Os fugitivos de Lyon em 1628, perse-
guidos a pedradas pelos camponeses, são condenados a er-
rar pelo mundo ou a retornar à sua cidade?. Os habitantes
de Digne, em 1629, obrigados por um decreto do Parlamen-
"to de Aix a permanecer no interior de suas muralhas, são
colocados sob a vigilância de um cerco de uma guarda ar-
mada pelas comunidades vizinhas?. Estas ameaçam incen-
diar a cidade caso a barreira seja transposta. As cidades víti-
mas de peste tornam-se alçapões condenados ao horror.
Nessas coletividades temporariamente fechadas em seu
pavor, as proibições externas aceleram a constituição de re-
gulamentos internos, nem que seja, ainda aqui, para cir-
8 OLMPOEO sujo
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE .
JL cunscrever a tragédia. As decisões
:
dos prefeitos,
; Fe
Escabinos
PERO: E
wo tda
, ou prebostes dos mercadores dizem respeito à higiene social. aver!" cada epidemia, impor-se-á, no entanto, na lógica dos isola-
os contatos são cada vez mais limitados, certos lugares são mentos. No século XVI esse fechamento torna-se oficial e
isolados ou condenados. A sala do Legado do Hôtel-Dieu* sistemático. O decreto do preboste de Paris, várias vezes re-
por exemplo, é separada e disposta, em 1584, para receber novado entre as pestes de 1510 e 1561, proíbe a todos
apenas os pestilentos”. Em muitas cidades, os notários não “irem às estufas, e aos donos de estufas que as aqueçam, a
podem aproximar-se das casas atingidas; os testamentos são não ser após o Natal seguinte, sob pena de sanção arbitrá-
ria.” Decisão idêntica é tomada em um número cada vez
ditados à distância, diante de testemunhas e a partir dos an-
maior de cidades. Ela se generaliza: conseguida em Rouen
dares superiores”. Os “conselhos” referem-se também à hi-
em 1510", em Besançon em 1540", já existe em Dijon des-
giene individual: suprimir as comunicações é suprimir qual-
de o fim do século XV”. Na maior parte das epidemias, é
quer prática que possa abrir o corpo ao ar infeccioso, como
durante a estação quente, favorável às ondas de pestilência,
o trabalho violento que aquece os membros, o calor que
que se pronuncia a interdição.
“afrouxa” a pele, e também... o banho. O líquido, por sua
pressão e, principalmente, por seu calor, pode, de fato, A
abrir os poros e concentrar os perigos. A luta contra a peste A abertura da pele Bué hete ' o
revela, nesse caso, representações totalmente diferentes das
nossas: a água seria suscetível de infiltrar a pele, o que po- Por que atribuir significado histórico a tais proibições? É
deria inflectir as práticas de limpeza. que, além do temor dos contatos, há muitos outros medos
Uma desconfiança idêntica leva a suspender a frequên- em jogo — entre outros, os medos de uma fraqueza dos in-
Cia às escolas, às igrejas, às estufas e aos banhos. É preciso vólucros corporais. Trata-se de denunciar a porosidade da
restringir os intercâmbios e, portanto, as transmissões possí- pele — como se inúmeras aberturas se tornassem possíveis,
veis. No caso do banho, a dinâmica do isolamento afeta, to- as superfícies sendo frágeis e as fronteiras duvidosas. Além
davia, a própria imagem do corpo e a de seu funcionamen- da simples recusa das contigúidades, impõe-se uma imagem
to. Os médicos, em tempos de peste, denunciam desde o muito específica do corpo: o calor e a água apenas engen-
século XV esses estabelecimentos onde convivem corpos drariam fissuras, e à peste, enfim, bastaria introduzir-se por
nus. Às “pessoas já atacadas por doenças contagiosas” po- elas. Trata-se de representações marcantes, datadas, cujas
dem criar, neles, amálgamas inquietantes. Podem produzir- consequências sobre
a higiene clássica estão por ser medi-
se difusões: “Estufas e banhos, por favor, fujam deles ou vo- das. É aí que as proibições evocadas ganham maior sentido.
cês morrerão." Essas decisões serão, de início, hesitantes. O banho e a estufa são perigosos porque abrem o corpo
Des Pars, por ocasião da peste de 1450, reclama em vão para o ar. Exercem uma ação quase mecânica sobre os po-
dos escabinos de Paris a interdição das estufas, obtendo ros, assim expondo os órgãos, por algum tempo, aos quatro
apenas a cólera ventos.
dos donos desses estabelecimentos. É sob
Sua ameaça direta que ele se vê obrigado a se exilar às Já não é o tocar ou um princípio de proximidade que
estão em questão, mas um princípio de abertura. O organis-
pressas em Tournai*, O fechamento temporário e
repetido, a mo banhado resiste menos ao veneno porque ele lhe é
Cc mais oferecido. Torna-se como que permeável. O ar infecto
Diz-se do hospital principal de certas cidades, em geral de fundação
antiga. Neste ameaça entranhar-se nele por todos os lados: “Eles devem
lo VII (N. do caso,
1) trata-se do hospi inci
ospital principal 3, fundado no séécu-
de Paris, proibir as estufas e os banhos porque, depois que se sai de-
10 O LIMPO
E O StJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE nu
les, a carne e o hábito do corpo estão amolecidos e os
ros abertos e, em consequência, o vapor pestilento psd lo à mostra e sejam tão lisas e apertadas que dificilmente o
entrar prontamente no corpo e levar à morte subitamente o ar ruim e qualquer infecção que seja possam entrar e ape-
que já se viu muitas vezes."” À assimilação entre o corpo e gar-se a elas, principalmente se forem trocadas com fre-
os objetos familiares só faz reforçar a imagem das Penetra- qúuência.”""” A roupa do tempo de peste confirma essa repre-
ções. A metáfora arquitetural, nesse caso, tem um Papel sentação dominante, nos séculos XVI e XVII, de corpos to-
fundamental, o organismo tornando-se semelhante
talmente porosos que exigem, quanto a esse ponto, estraté-
às casas
em que a peste penetra e habita. É preciso saber fechar as gias específicas: evitar as lãs e os tecidos de algodão, mate-
portas. Ora, a água e o calor subtraem delas toda riais muito permeáveis; evitar as peles, cujos pêlos longos
vontade
Provocam sua abertura, favorecem a manutenção constituem asilos para o mau ar. Homens e mulheres an-
temporá- seiam por roupas lisas e herméticas, pelo menos totalmente
ria dessa brecha. Só falta à peste ocupar seu lugar: “Banhos
e estufas serão por enquanto abandonados, porque depois
fechadas, sobre tais corpos tão frágeis. Se tafetás e tabis, en-
fim, são tecidos nobres demais, para os pobres restam “as
os poros e pequenos respiradouros do couro, pelo calor
entretelas e encerados”",
destas, abrem-se mais facilmente, e então o ar pestilento pe-
As práticas higiênicas, especialmente as de limpeza, não
netra neles.”
podem ser consideradas sem que se levem em conta esses
Esse temor atravessa também todo o século XVII. A pes- referenciais. Uma água que pode penetrar na pele supõe
te, ressurgindo conforme os lugares e os períodos com uma manipulações especiais. Ela se insinua, perturba. Em alguns
frequência quase anual, engendra as mesmas proibições: casos (pelo menos no das hidroterapias), o mecanismo po-
aquecer o corpo “seria abrir as portas ao veneno do ar e de ser salutar. Imergindo nas piscinas de Spa, de Pougues
bebê-lo a taças cheias”"”. Em todos os casos, um tal “encon- ou de Forges, os banhistas do século XVI esperam que seu
tro do ar e do veneno”* com as carnes aquecidas sugere mal seja atenuado. O banho de água termal quente e o ba-
um resultado quase irrevogável. Transforma o perigo em nho de água “simples”, por exemplo, fariam fundir-se a pe-
destino. dra: é dessa maneira que Montaigne trata suas areias”. Po-
As primeiras lutas concertadas contra a peste, sobretudo dem também restituir uma certa espessura aos organismos
à partir do século XVI, fazem surgir também uma imagem “excessivamente secos”: Riviêre recorre a eles para “os cor-
temível: o corpo se compõe de invólucros permeáveis. Suas der pos macilentos e emagrecidos””, Agem ainda sobre a cor da
superfíceis deixam-se penetrar pela água e pelo ar, frontei- eo e icterícia, aplacam certas congestões*. Nesse caso apenas
ras que se tornaram mais indefinidas ainda diante de um v'* (lim misturam alguns líquidos. Enfim, sua penetração pode, em
mal Cujos suportes materiais são invisíveis. Os poros talvez em 'LTbúltima instância, corrigir certos humores ácidos ou viciosos.
.” possuam uma fraqueza própria, parcialmente indepen- 1.00” Tal prática “umedece muito mais do que qualquer outro
o aquecimentos. É preciso protegê-los permanente- à e, | medicamento”*.
ontra qualquer dano. Isso torna determinantes, ww Mas, na maioria dos casos, os banhos ameaçam romper
por
exemplo, a forma e a qualidade das roupas em tempo de aa um equilíbrio. Eles invadem, estragam €, sobretudo, abrem
o o = de tramas compactas, bem ajustados ao é a muitos outros perigos além daqueles do ar pestilento. As
lidade de io do deve deslizar sobre eles sem possibi- observações iniciais sobre as estufas e as transmissões da
Siãs verdes Es cer O ideal de fechamento só faz vanar peste já evocam riscos mais confusos: “Banhos e estufas e
ÁS cancao Oupas que se devem vestir são de cetim, Suas sequelas, que aquecem o corpo € os humores, que de-
; Camelão, tabi e assemelhados, que não deixem o pê- bilitam naturalmente e abrem os poros, são causa de morte
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DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 13
e de doença."? Os males, no século XVI e no século XVII
estendem-se, até mesmo proliferam. Imagens confusas de que IV propõe-se a retornar ao Louvre para informar o so-
transmissões contagiosas, como as transmissões sifilíticass. berano e voltar trazendo suas ordens. Entre as testemunhas,
imagens das mais variadas penetrações também, como as ninguém se surpreende por ver tal situação perturbar as re-
gravidezes de estufas, devidas à “impregnação” do sexo fe- lações entre um rei e seu ministro. Ao contrário, todos insis-
minino por algum esperma itinerante na tepidez da água; tem para que Sully não se exponha. A resposta de Henrique
“Uma mulher pode engravidar pelo uso dos banhos em que IV vem, aliás, confirmar as precauções adotadas: “Senhor, o
os homens ficaram durante algum tempo.”* Os TiSCOS, so- rei vos ordena que termineis vosso banho e proíbe-vos de
bretudo, se diversificam. A pele “infiltrada” já não está aber- sair hoje, pois o sr. Du Laurens assegurou-lhe que isso pre-
judicaria vossa saúde.”* Houve, portanto, um conselho.
ta apenas à pestilência, também o está ao ar malsão, ao frio,
Opiniões foram solicitadas e dadas. O recurso a Du Lau-
aos males indefinidos. Trata-se de uma fraqueza difusa, fra-
rens, médico real, já especifica as preocupações. O episódio
queza ainda mais global e imprecisa, aliás, na medida em
assume, sobretudo, a aparência de um “caso”. Este mobili-
que pelos poros escapam os humores e, portanto, os vigo-
za, logo de início, vários personagens. Também tem prolon-
res. As aberturas atuam nos dois sentidos. É como se as gamentos, uma vez que os “riscos” permanecem durante vá-
substâncias internas ameçassem escapar... É nessa medida rios dias: “Ordena-vos que o espereis amanhã, com roupão,
que “o banho debilita”*. Ele provoca uma “imbecilidade””, botinas, chinelos e touca de noite, a fim de não vos indis-
Ele “abate imensamente as forças e as virtudes””. Os riscos pordes por causa de vosso último banho.”* Portanto, é o lí-
já não se limitam apenas aos contágios. E a imagem tam- quido assim aplicado que pode “indispor”. É designado o
bêm tem sucesso suficiente para superar o simples discurso “resultado” do banho enquanto tal.
dos médicos. Ela é adotada pelas mentalidades até se bana- Esse alarde em torno de uma banheira não é simples ta-
lizar. Pelo menos se generaliza. É impossível considerar o garelice: ele sublinha a força, no século XVII, das associações
banho sem o cercar de regras imperativas: repouso, acama- entre a água e a infiltração do corpo, confirmando, ao mes-
mento, proteção vestimentária. Uma tal prática só poderia mo tempo, uma imagem dominante de invólucros ampla-
ser inquietante. As precauções acumuladas, as proteções mente permeáveis. Sublinha, enfim, e paradoxalmente por
impossíveis fazem dela, também, uma prática complexa e sua própria intensidade, a raridade das práticas do banho.
rara. Meio século depois, quando os médicos de Luís XIV re-
Quando, numa certa manhã de maio de 1610, o emissá- solvem banhar o rei, as razões para isso são explicitamente
ns do Louvre encontra Sully tomando banho em sua resi- médicas. O paciente passou por “tremores, ataques de fúria,
dência do Arsenal, tudo se complica: uma série de obstácu- movimentos convulsivos [...] seguidos de erupções: man-
los impede este último, contra a sua vontade, de ir ter com chas vermelhas e roxas no peito”. O banho interfere na
O Têi, que no entanto o solicita. Os que o cercam, e o pró- convalescença. Ele “umedece” um corpo que, em alguns
dE fone oo SO para que ele não se exponha soar dias, foi sangrado oito vezes. Mas, também aqui, não faltam
“. para Ns das 'o-vos no banho e vendo que queríeis
nº precauções: purga e lavagem na véspera, para evitar uma
K) ao
Dc eventual repleção que a água poderia provocar ao se infil-
estávamos junto der, " e e ooo es de Es ..— Eno trar, repouso para não exacerbar os calores, interrupção do
Pois Têmo quero al les Senhor, não deveis sair do e O,
tratamento ao menor mal-estar, para prevenir qualquer sur-
precise tanto dela eu a tanto cuidado com vossa saúde e
presa. “Mandei preparar o banho, o rei entrou nele às 10
o, teria ele nen e, se soubesse que era esse vosso esta-
horas, viu-se, pelo resto do dia, abatido por uma vaga dor
o vindo até aqui.”” O enviado de Henri-
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na cabeça, que nunca o acometera, e com a atitude de todo substâncias corporais. Ora, não deve o líquido compensar
o corpo numa mudança notável quanto ao estado em que as substâncias que escapam e nada danificar por sua pró-
se encontrava nos dias anteriores. Eu não quis insistir no pria mistura? É preciso trabalhar as essências do banho para
banho, pois observara circunstâncias adversas suficientes torná-las semelhantes às do corpo. Suas trocas tornar-se-iam
para fazer com que O rei o deixasse.”"”* O tratamento é inter- menos perigosas: “A primeira qualidade, e a principal, é
rompido imediatamente. Um ano depois, Fagon recorre a que os banhos sejam compostos de coisas que tenham suas
ele com muita prudência, por alguns dias. Será a última vez. substâncias semelhantes às da came e do corpo e que pos-
“O rei jamais quis acostumar-se ao banho do quarto.”* sam manter e nutrir o interior.” Expectativa quimérica, é
As inquietações são vagas, variadas, como se apenas o evidente, que acrescenta apenas algumas variações ao prin-
encontro da água e do corpo já fosse perturbador. As pene- cípio das infiltrações. Os tempos de peste exacerbaram uma
trações podem, por sua própria violência, às vezes restaurar imagem de fronteiras corporais penetráveis — corpo aberto
um equilíbrio perdido. Mas o terreno de perturbação a que ao veneno. O contágio tão rápido e tão terrível sugeria que
pertencem reclama vigilância. Aberturas, trocas, pressões um princípio ativo podia infiltrar a respiração, mas também
sobre os humores constituem antes de tudo um distúrbio. a pele. O corpo mais ameaçado seria o mais poroso. Esses
Suas consequências são cada vez mais variadas: “O banho organismos, definhando em algumas horas, eram decerto os
mais “penetráveis”. O verdadeiro risco tinha essa imagem. A
fora do uso da medicina numa necessidade imperativa, é essa visão inquietante, é esta se
peste, portanto, instalou
não apenas supérfluo como muito prejudicial aos homens
ampliou. O medo do banho ultrapassou as simples condições
[...]. O banho exaure o corpo e, ao enchê-lo, torna-o susce-
da epidemia e a permeabilidade da pele tornou-se uma pre-
tível à impressão das más qualidades do ar [...] os corpos
ocupação permanente. É pensando nela que Héroard im-
mais frouxos são os mais doentios e de vida mais curta do
põe a permanência no quarto a Luís XII, quando criança,
que os firmes. O banho enche a cabeça com os vapores. Ê depois dos dois banhos que o fez tomar em 1611º, É pen-
inimigo dos nervos e ligamentos, que ele afrouxa, de tal sando nela que Guy Patin evoca o banho, de tempos em
modo que há quem jamais tenha sentido a gota a não ser tempos, em seus textos médicos, porém não lhe faz qual-
depois de tomar banho, Mata o fruto no ventre das mães, quer menção em seu tratado de saúde". Os efeitos mecâni-
mesmo quando é quente [..].”” O catálogo dos distúrbios cos são dominantes, com sua ambivalência terapêutica. À
incluí ainda “a fraqueza de peito”*, a hidropisia, diversas
ba-
gravura de R. Bonnard, Uma senhora que vai entrar no
cacoquimias surgidas dos vapores penetrantes”. nho", poderia, erroneamente, sugerir o contrário: a cena
Ne-
e. rias eee ao sem dúvida, tentativas de prevenir parece familiar, mesmo sendo o contexto suntuoso.
droga são visíveis. Uma criada se
les E à e. so azem tornar a prática ainda mais com- nhum médico, nenhuma
ren-
— e 61º. a imagem dos invólucros porosos. Guyon ocupa em torno de uma banheira decorada, coberta de
de tinturas e encimada por um dossel. Duas
" ( , que na véspera de um banho o corpo sSe- das, cercada
Ja ameldo aos calores da estufa seca”: trata-se de evacuar torneiras esculpidas e fixadas na parede vertem o líquido.
é ofere-
etração da fo. = seguida, tornar menos imperiosa a pe- Uma mulher vestida de seda pega uma flor que lhe
do banhô:se qa gestos de preparação do corpo e cida por um cavalheiro elegante. O refinamento da situação
torna-a quase alegórica. O banho seria uma prática ilustre e,
sempre a penetração ” Ns E licam. Seja como for 1 talvez, amorosa. O comentário, no entanto, revela o sentido
ma, a ponto de ser extrava, RS A sugestão mais extre" de regra a ser observada: “O banho tomado a propósito me
em 1623, que a água = a ea é a. de: Bacon,
uma composição GDE CRS
idêntica à das
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E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 17
serve como remédio e amortece o fogo que vai me consu-
mir."* Apesar do equívoco amoroso, a limpeza não está di- para obstruir os poros. O corpo é encerado, mesmo, como
retamente implicada. Trata-se de restabelecer equilíbrios per- um objeto lustroso e protegido: “As crianças, ao saírem do
didos e de saber tomar banho “a propósito”, À água em si ventre, devem ser envolvidas em rosas piladas com sal para
mesma não é mais que desequilíbrio. conforto dos membros.”
Antes de sentir mais diretamente o papel dessas repre- O cueiro, que se fecha em torno de uma pele assim tra-
sentações, e mesmo de matizar sua importância, é preciso tada, que prende membros previamente “untados de óleo
ainda medir sua densidade imaginária. Elas se exercem em com rosas ou mirtilos [...] para fechar os poros”*“, tem um
campos muito diferentes, aplicando uma lógica idêntica, papel explícito de proteção. É a mesma razão, enfim, que
A nova atenção dada no século XVI à infância, por logo limita o prolongamento do banho na infância. Ora,
exemplo, e a insistência na sua fragilidade logo corroboram não haveria o risco de que ele mantivesse a moleza de um
tais representações. O tema das infiltrações é, já também no organismo já excessivamente úmido? O longo dessecamento
das carnes, constituído pelo crescimento, poderia ser entra-
século XVI, amplamente dominante. Por se julgar o corpo
vado. A argila permaneceria muito mole. Uma vez que o re-
do recém-nascido totalmente poroso, impõe-se uma técnica
cêém-nascido “pareça bem limpo, vermelho e encarnado por
de massagem que alia, na ocasião, a mão ao calor da água. todo o corpo”, repetir o banho torna-se quase nefasto. As
O banho do recém-nascido deve desvencilhar a pele do pernas do delfim, o futuro Luís XIII, não são lavadas antes
sangue e das mucosidades do nascimento, assim como deve da idade de seis anos. A primeira imersão além daquela,
permitir a moldagem dos membros conforme a forma física muito breve, que se seguiu ao nascimento, ocorrerá com a
desejada. As parteiras utilizam o líquido para favorecer tais e 4º idade de sete anos”,
malaxações. A imersão visa, entre outras coisas, a correção . A partir de uma mesma imagem de poros frágeis, as in-
das morfologias: “Lembrem-se, também, enquanto os ossos quietações se corroboram e se completam. A água quente
de seus membros estão amolecidos pelo calor do banho em afeta um corpo passivo, que ela impregna e deixa “aberto”.
que foram lavados, de dar a cada um deles, manipulando- No caso da infância, acrescenta-se um conjunto de compa-
OS suavemente, a forma e a retidão que devem ter para rações com as matérias flexíveis e viscosas: a tentação é
compor um todo perfeito." Esse banho dos primeiros dias simplesmente de moldar os membros dóceis. O problema
tem várias funções, sendo que uma delas, e não das meno- consiste, enfim, em proporcionar o perigo do banho ao pe-
res, já não é a limpeza. Ele implica manipulações, justamen- netramento da pele.
te porque impregna as carnes. Ajuda “a colocar os membros
em sua devida forma”. É também pela mesma razão que a
pele do bebê, mais frágil do que qualquer outra, precisa ser A toalete seca
constantemente vedada: “Para reforçar a pele e muni-la
no Os acidentes externos que poderiam prejudicá-la e Todos esses temores, todos esses dispositivos levam a
de
eos Causa de sua fraqueza. Será preciso espalhar so- muitas outras lógicas diferentes daquelas das precauções
le cinza de moluscos que se encontram por toda hoje. Supõem padrões de funcionamentos corporais total-
parte,
mente estranhos aos nossos. Parecem, aliás, estar isolados, à
Dê rios e brejos, ou cinza feita de chifre de vitela, ou tam-
SESSÃO de chumbo bem triturada e misturada com vi margem da higiene, podendo, ao contrário, em parte até
o. Às substâncias mais diversas devem saturar a pele. O
Ypesar sobre ela. Não há dúvida de que uma tal “influência”
sal, o óleo, em especial a cera servem, indiferentemente, seja possível. Quando os livros de saúde evocam, por exem-
18 O LIMPO E O SUJO DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 19

plo, no século XVI, certos odores do corpo, evocam tam-


Já no início do século XVII, Jean du Chesne, descreven-
bém a necessidade de eliminá-los. Mas fricções e perfumes do enquanto higienista escrupuloso cada um dos atos que
revalecem, neste caso, sobre qualquer lavagem. É preciso se seguem ao acordar, insiste nos esfregamentos e fricções.
friccionar a pele com um pano perfumado: “Para remediar JE Até aqui, nada de água. O asseio está ligado antes de tudo
o cheiro de bodum das axilas, é excelente colocar e friccio- ot
ed od : ao gesto que enxuga. A toalete é ao mesmo tempo “seca” e
nar a pele com trocisco de rosas.” Esfregar bem, colocando - quod ativa: “Depois de ter soltado seu assim chamado ventre, de-
perfume, e não lavar de verdade. ve como primeiro exercício pentear-se e friccionar a cabeça,
E
As normas de civilidade são, a esse respeito, igualmen- e sempre da frente para trás, até o pescoço, com panos €
te significativas. São elas que, a partir do século XVI,
di- esponjas adequadas, e isso demoradamente € até que sua
essa
tam as conveniências e O bom gosto da corte. Constituem cabeça esteja bem limpa de qualquer sujeira; durante
para
o inventário do comportamento “nobre” em seus aspectos fricção da cabeça, ele poderá até mesmo caminhar,
Se-
mais cotidianos: situações concretas, banais, privadas ou que as pernas e os braços aos poucos se exercitem.”*
inter-
públicas, mas sempre consideradas do ponto de vista das gue-se o asseio das orelhas e dos dentes, só havendo
conveniências. Os textos evocam sistematicamente, nesse ferência da água para a lavagem das mãos e da boca. Final-
caso, o “asseio do corpo”. O fato de ignorarem o banho mente, o gesto centenas de vezes descrito de Luís XIV la-
vando as mãos, de manhã, numa água misturada com espí-
não é, aqui, o mais importante. Focalizam a atenção nas
partes visíveis — as mãos e o rosto. “Lavar o rosto de ma- fito de vinho e vertida de uma jarra luxuosa sobre um pires
nhã, com água fria, é tão limpo quanto salubre.”* Às vezes de prata”, não implica a lavagem do rosto. O espelho, que
misturam mais nitidamente a conveniência e a higiene: “É um camareiro segura a uma certa distância, sublinha, por
uma questão de asseio e de saúde lavar as mãos e o rosto outro lado, que não há “toucador a seu alcance"”.
ao se levantar.” e. Num contexto mais familiar, alguns regulamentos esco-

ed
Ora, a prevenção contra a água manifesta-se também lares do século XVII institucionalizam o esfregar. As alunas
de Jacqueline Pascal, e também as alunas das ursulinas, la-
nessa categoria de textos. O líquido torna-se, sobretudo a
partir do século XVII, ainda mais inquietante, uma vez que vam as mãos e a boca ao acordar. Mas “esfregam” o rosto.
o rosto é “frágil”. Várias disposições são tomadas nas “civili- A essa toalete acrescenta-se o cuidado com os cabelos, sen-
do que as grandes penteiam as pequenas. O uso da água é
dades” do século XVII para que haja esfregamento e não la-
restrito. É depois de se vestir e de arrumar alguns objetos
vagem: “As crianças limparão as façes e os olhos com um
que as alunas das ursulinas aspergem as mãos e a boca:
pano branco, o que tira a sujeira e deixa a tez e a cor na
“Estando vestidas, depois de guardar prontamente seus ape-
constituição natural. Lavar-se com água prejudica a vista, No
trechos no toucador, elas lavarão a boca e as mãos.”*
engendra dores de dentes e catarros, empalidece o rosto €
estabelecimento de Jacqueline Pascal, que detalha uma ver-
dadeira orquestração do levantar-se, a água É misturada ao
[o] torna mais suscetível ao frio no inverno e à queimaduras
no verão.”* Ocorrem os mesmos temores que quanto ao
vinho para adquirir dele uma certa acidez, mas nem sempre
ESSO: Eles modificam as ações e seu contexto. Já não se ao rosto: “Enquanto elas arrumam à cama, há
se destina
E do doa ATA embora persista (e num certo uma que apronta a refeição e o que é necessário para lavar
já não SE úsperve "o impeza. Um gesto dá lugar a outro: as mãos, e vinho e água para lavar a boca.” Ainda durante
o século XVIII as regras de Jean-Baptiste de La Salle perpe-
seria aut e feita
corposuscelvelard
dao n ilmente
SENA influência
reconhecível da pnaas
: as peles ipsdo
infiltradas medos suficiente-
tuam tais indicações, sem reservas — são
odos os males.
20 O LIMPO E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 21
mente marcantes para persistir. “Faz parte da limpeza Passar
a dos gestos, define e comenta as formas. Suas explicações
no rosto todas as manhãs um pano branco para tirar-lhe
lavar-se com água, pois isso torna o tornam-se acréscimos e reforços. O mesmo ocorre para o
sujeira. Não é tão bom
rosto. O uso da água se restringe, todavia, em favor de uma
rosto suscetível ao frio no inverno e à queimaduras no ve-
vigilância e de um senso de detalhe que preservam a norma
rão."* Rétif efetua os mesmos gestos na “École des enfants
e até a solidificam. A esfregação assim comentada pode, no
de Thôpital” [Escola das crianças do asilol, de Bicêtre, que limite, constituir uma nova exigência. O gesto de limpeza
ele frequenta em 1746. À água tem sempre um emprego |i- não é abolido. É apenas infletido, e diferente. A representa-
mitado e preciso: “Não se perdia um instante: prece de ma-
ção do corpo pesou sobre ele. Mas para compreendê-lo, é
nhã, depois de acordar; enxaguava-se a boca com água e
claro, deve-se deixar de lado qualquer relação com os crité-
vinagre; tomava-se café da manhã.”*º Esses exemplos são rios de hoje, admitir especialmente a existência de uma lim-
ainda mais interessantes pelo fato de a rejeição à água não peza por outras vias que não a da ablução.
eliminar a prática da limpeza. A norma existe. Ela tem seus O problema, no entanto, é mais complexo. Existiam
instrumentos e suas manipulações. Impõe-se, por outro la- duas práticas, em especial, um banho público e um banho
do, restringindo a ablução. i privado, que desaparecem quase totalmente entre o século
Uma sobreposição rápida dos textos pode levar a pen- XVI e o século XVII, no próprio momento em que se for-
sar num nítido recuo da exigência de higiene a partir do sé- mula a angústia específica da pestilência. É como se a eco-
culo XVI. A água, em parte, não desaparece? Uma leitura nomia imaginária do corpo tivesse um efeito realmente de-
mais atenta sugere antes um deslocamento: insistência no terminante. Tais práticas merecem uma atenção especial,
esfregamento, no brancor da roupa de baixo, na fragilidade pois são diretamente afetadas pela rejeição à agua. E é seu
amplo desaparecimento que pode levar a se pensar num
e na cor da pele, provas de um cuidado maior. Os textos
recuo das normas de higiene.
são: mais longos, mais precisos, como se as precauções se
tivessem reforçado. Nos tratados de civilidade, por exem-
plo, a maior parte dos temas se aprofundam com o tempo.
As normas são mais vigorosas no manual de Jean-Baptiste
de La Salle, em 1736, do que no de Erasmo, em 1530, em-
bora este último mencione a lavagem do rosto. La Salle de-
tém-se nos cuidados com os cabelos, cortados e penteados,
regularmente desengordurados com pó e farelo (sem ablu-
ção); detém-se nos cuidados com a boca, lavada todas as
manhãs, dentes bem friccionados; detalha os cuidados com
as unhas “cortadas a cada oito dias"=. Os mesmos cuidados
estão presentes em Erasmo, mas descritos com mais alusões,
mais misturados também. O texto de Erasmo encadeia ima-
gens rápidas e injunções. É, pelo menos, mais breve. O uso
do pente, por exemplo, é nele relativamente mais elíptico:
É negligência não se pentear, mas, embora se deva ser lim-
Po, não convém enfeitar-se como uma menina." La Salle,
nesse caso, acrescenta técnica de manutenção e frequência
2

UM DESAPARECIMENTO DE PRÁTICAS

A recusa (e até a condenação) do banho adquire relevo


tinha
maior a partir do século XVI, uma vez que a prática
suas instituições, seus gestos, seus momentos. Tinha seus
lugares e seus objetos designados. Tema banal da historio-
grafia, o banho já é evocado por alguns historiadores do sé-
culo XVII; Jean Riolan, por exemplo, em 1651 faz a ele uma
referência quase mítica: “De fato, os banhos e estufas eram
tão comuns em Paris que, entre as maravilhas da cidade,
um italiano chamado Brixianus a elogia pelos banhos e es-
tufas, há 150 anos.” Esses estabelecimentos evocam uma
prática que, na época em que Riolan escreve, estaria “aboli-
da e perdida”. Esse desaparecimento deve ser antes de tu-
do medido, para ser mais bem compreendido.

Estufas e banhos públicos

Um arauto percorre as ruas da Paris do século XIII para


chamar ao calor das estufas e dos banhos, estabelecimentos
familiares que, em 1292, são em número de vinte e seis”.
Negócios organizados em corporação, esses estabelecimen-
tos pertencem à paisagem cotidiana. Sua familiaridade é su-
U LunE UU UjU
F DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 25
2Áá
mbém para que uma sessão de estufa possa ser
ficiente ta a certos artesãos, tão, no “alto dos ombros” têm como única finalidade uma
oferecida, 5 em chocar, como gratificação
jornaleiros: 'A Jehan certa compensação de humores. Seu emprego é claramente
criados domésticos ou trabalhadores terapêutico. Nesse caso, a transpiração forçada “purifica” os
á ompanheiros criados de quarto, que
petit, para ele e seus € P ir às estufas: ; 108 sol- humores.
ano para ir às €
2 rainha lhe deu o dia O dobanho Restam alguns estabelecimentos no século XVII, sobretu-
dos.” Estes encontram de vapor ao qual, confor me tempo como hotéis
do em Paris, que funcionam ao mesmo
vinho, a refei-
o preço, acrescentam-se o banho de fa, €. SãO
ção e a cama”. Os corpos nus transpiram
esfregados SAN
y CE ( e locais de banhos possíveis: aqueles mantidos pelo “ba-
nheiro”. Seu uso é muito aristocrático e pouco frequente. As
à
com esponja lado a lado, no vapor de uma água aquecida visitas a eles por razões de limpeza nunca são comuns:
às vezes
lenha. Quanto aO0 banho, é tomado num recinto ocorrem antes de um casamento, por exemplo, ou de um
entulhado de pesadas banheiras redondas rodea-
separado,
por- encontro amoroso, ou ainda antes de uma viagem ou depois
das de ferro. A prática da estufa nem sempre implica, do retorno dela. Determinado cortesão vai a um desses esta-
tanto, a imersão, embora o banho seja possível — seis tinas, belecimentos, como a uma cerimônia, no dia em que é apre-
por exemplo, em Saint-Vivien em 1380, três camas e cober- sentado à futura esposa". Um outro permanece nele para
tas. O espaço parece feito para que Os corpos transpirem e eliminar o cansaço de uma viagem". A sra. de Sévigné não
se banhem". O espaço é mais rico, por outro lado, na minia- acha “despropositado”, por exemplo, que “na véspera
de
tura do manuscrito do século XV de Valério Máximo, onde uma partida se durma no estabelecimento de um banheiro
as toalhas das mesas, as tapeçarias dos quartos e os pisos L...], contanto que não seja na minha casa". Mas a destina-
são luxuosos”. É uma prática complexa, portanto, uma vez ção do local é muito mais ambígua: trata-se sobretudo de
que ao prazer da água acrescentam-se serviços anexos; é um hotel que oferece completa discrição. O sr. Laval escon-
também uma prática socialmente diversificada, uma vez que de-se nele, por exemplo, depois de um casamento movi-
suscetível de ser tão popular quanto refinada. A estufa é, mentado, e para escapar às investigações empreendidas con-
decididamente, um estabelecimento frequentado, até mes- tra ele”, Outros abrigam nele amores secretos. Estabeleci-
mo comum. mento luxuoso, muitas vezes instalado ao abrigo dos olha-
Ora, é essa instituição que, a partir do século XVI, é res, ou retirado no fundo de algum beco, como o do palácio
eliminada em alguns decênios, sem ser substituída. Das Zamet, na rua de la Cerisaie, frequentado pelo próprio Hen-
quatro estufas de Dijon, a última é destruída em meados tique IV". A desconfiança da sra. de Sévignê refere-se tam-
do século XVI. As de Beauvais, Angers e Sens já não têm bém a essas práticas “excessivamente” discretas. O banho é
equivalente no final do século XVI. O Livre commode des apenas uma das finalidades acessórias do local. Ele atende,
adresses [Livro prático dos endereços], em 1692, registra um por outro lado, a um público cada vez mais raro. Ocorreu,
número ínfimo de banhos públicos em Paris, entre os quais com efeito, um desaparecimento das estufas.
A iconografia comprova, enfim, esse desaparecimento.
um banho para mulheres, na rue Saint-André-des-Arts". À As salas de estufas com serviço de cama, tapeçarias,
tinas

EIA
maioria deles tem vocação médica. Dos treze estabeleci- criadas munidas de baldes
de madeira, onde se afainam
com tirantes, ilustradas também pelo manuscrito iluminado
de ho-
do Decameron, em 1430", ou pela série de banhos
cimentos
fa — iais osde Estrasburgo,
às vera frequentar—
oa caes diz. Eloa a estu- e de mulheres de Diirer, no final do século XV”, de-
mens
Sutro.nos Sh po causa de um defluxo frio nos dentes e saparecem, por sua vez, das gravuras e dos quadros.
Os"”, As ventosas que ele manda aplicar, en-
26 O LIMPO E O stJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 2
“Preparar os banhos”
“Muitos à tratariam com displicência
Outra prática que se reduz em grande medida é priva Se não tomasse banho com frequência.”*
da. Trata-se mais particularmente de um costume nobre oa
pelo menos, ilustre. São os senhores que, em Cent Nouvell, | A terceira das Cent Nouvelles nouvelles explora o episó-
nouvelles [Cem novas novelas), em meados do século -. dio de um desses banhos femininos — bastante particular, é
mandam “preparar seus banhos”. É como se a água fosse preciso que se diga, uma vez que mesmo a vizinhança fica
um sinal de riqueza. Testemunho de um status, ela se tora sabendo quando a grande dama “manda preparar seus ba-
motivo de ostentação: o banho dá realce a comemorações e nhos"”. É ao sabê-lo que o moleiro do castelo busca um
recepções. As contas de Filipe, o Bom, registrando não ape- pretexto para surpreender a banhista. Além da cena equi-
nas as despesas, como também as ações do duque voca, esses ecos de vizinhança, essas transmissões de boca
permi-
tem verificar os “banhos em boca indicam, pelo menos, que esse banho continua
tomados em seu palácio” Eles
sempre supõem um acréscimo de alimentos, e particular sendo algo muito específico. Talvez nem mesmo se repita
mente de carnes. São oportunidades para convites banque- muito. As contas de Filipe, o Bom, por exemplo, mostram
tes, agitações muito especiais de coisas e de pessoas: uma frequência aproximada de um banho a cada quatro ou
“Em cinco meses*.
30 de dezembro de 1462, o duque fez festa nos banhos de
Essas práticas privadas também desaparecem em larga
seu palácio, onde estavam o sr. de Rovestaing, o sr. Jacques
medida nos séculos XVI e XVII. As estufas já não acompa-
de Bourbon, filho do conde de Russye, e muitos outros nham as cortes reais como, por exemplo, a estufa de Isabel
goes senhores, cavaleiros e escudeiros.”B A prática,
por- da Baviera, que às vezes era levada de castelo em castelo”.
SA Na su E certo sentido, ela até enobrece, o Os faustos da água passam a animar de preferência os jar-
ertos O Stu . e excedente de prazer e refina- dins e suas fontes. É neles, pelo menos, e certamente não
nos banhos, que Perrault se detém ao considerar a superio-
xadores do rico duque da e
Dra e mandou fm aviera e do 0 conde
conde-de' Es.
de Wúrten- ridade dos “modernos”, falando demoradamente dos grama-
er um suplemento de cinco pratos de dos e tanques de Versailles”. Os temores com respeito aos
ser, corpos infiltrados parecem, portanto, ter tido consequências
a À nos banhos.”
enfim b Tao o real. ã * Uma: tal ceia pode bem práticas.
bro de 1467 por J. recepção oferecida em 10 de setem-
O aposento dos banhos e a banheira de mármore que
mento, à rainha C. Dauvet, primeiro presidente do Parla- Luís XIV instalou em Versailles num gesto ostentatório, para
damas de sua c o = Savóia seguida de “várias outras vagamente a Roma antiga, dá lugar, alguns anos
lembrar
pectos àquelas SARA ; assemelh a-se em todos os as-
vocadas pelas contas do duque de Borgo- mais tarde, ao alojamento do conde de Toulouse, bastardo
nha: “Elas fora; :
legitimado. Depois de várias metamorfoses, a própria ba-
com grande lirguess .. o € festejadas
: muito nobremente e
;
ricamente preparados. ram feitos quatro belos banhos e nheira torna-se tanque de jardim”. O objeto se integra a ou-
n”2s 4 é
tra x Agua, aqui, reforça o fausto, ao tro circuito da água, elaborado apenas para o olhar — espe-
Hábito de Sáide à a prodigalidade do anfitrião. táculo das naturezas disciplinadas. A água tão cara, cuja ma-
Êo so nobre, finalmente, mencionado quinaria cadencia a ordem dos parques, destina-se, no sécu-
mes [Atitude das mulheres] no sé- lo XVII, antes de tudo a cascatas e chafarizes. Deve seduzir
O aut OT veja; nele a visão. Seu bailado é sinal de profusão e poder. É sinal de
um certo excesso de
domínio soberano sobre uma substância amplamente in-
28 O LIMPO E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE 29
constante”. Seja como for, essa profusão não é sufici
no caso, para a prática do banho. Não é a falta de água qu. O erro seria, todavia, assimilá-la sistematicamente a uma
torna inútil a banheira de mármore, é antes o Privilégio da prática de limpeza e considerar seu desaparecimento como
do às teatralizações dos jogos aquáticos. " um recuo da higiene, conforme tenta afirmar há muito tem-
Finalmente, são muito raros os inventários após faleci po uma certa tradição historiográfica". O que desaparece
com as estufas não é necessariamente uma relação direta
mento que mencionam uma tina de banho. Pierre Goubert
com a lavagem. Elas não são indícios, necessariamente, de
registra apenas uma na região do Beauvaisis, na Época de
regras de limpeza cujo abandono viria a ser constatado em
Luís XIV%. Nenhum médico parisiense a possui, em meados
seguida. Não se trata, a priori, de um “rigor” do asseio que
do século XVII, quando, no entanto, existe uma hidrotera- teria recuado bruscamente. A gratificação que a rainha dá
piai'. As banheiras do castelo de Vaux, do palácio Lambert e em 1410 a Jehan Petit e seus companheiros visa, aliás, mais
do palácio Conti são simples réplicas do exemplo real, cuja
a diversão do que a lavagem*?. Também a representação da
ambiguidade, evidentemente, elas não apagam”. São visita. água nem sempre teve os referenciais de hoje. Talvez ela
das, aliás, como curiosidades”, Certos arquitetos, enfim : ue suponha um itinerário particular, a longo prazo, antes de
no século XVII evocam os banhos ou as estufas, fzemtoo atingir a “transparência” da higiene contemporânea. Existe
plagiando a planta clássica de Vitrúvio”. A referência é for- uma maneira de viver esse contato com a água que não é
mal. A introdução de seu capítulo, na maioria das vezes, não necessariamente a nossa. Já o banho, totalmente ostentató-
engana: “As estufas e os banhos não são necessários na rio, oferecido por J. Dauvet à rainha Carlota”, privilegia o
França como nas províncias, onde estão acostumados a eles aspecto festivo sobre o da limpeza. Um banho em que pre-
L...]. Todavia, se por alguma razão um senhor desejar tê-los domina, por exemplo, o derivativo lúdico tem âncoras cul-
em sua casa, será preciso situá-los [...].”** O “medo” impedi- turais bem diferentes daquele julgado indispensável à salu-
a prática da água. A imagem do corpo permeável, com bridade. Ele tem também outros trunfos e, talvez, outras
seu no Banho. He alema coaslados tornaria difícil pen- “fragilidades”.
norma ne S Tepresentações acompanhadas
Nesse caso, já é possível compreender melhor o desa-
Ptura real de práticas: “Nessas regiô parecimento de tais práticas. A peste, sem nenhuma dúvida,
Ó =
para um banho para o restabeleci teve seu papel, como compreenderam alguns contemporãâ-
sstde, perdidas
O próprio Montaigne, banhi: É dinero & — neos: “Há vinte e cinco anos, nada estava mais em moda
, eestra-
sta itinerante, imaginando
nhos trajetos da água em Brabante do que os banhos públicos; hoje, eles não
cômodos deco gua infiltrada, para melhor expulsar os in- existem mais, a nova peste nos ensinou a prescindir de-
E SERRO (PO insiste no desaparecimento do banho já
les”“, diz Erasmo em 1526. Mas, para que esse papel tivesse
vado em fámipo s — perdido que era geralmente obser- tal eficácia, talvez fosse preciso haver a convergência de ou-
Zon”“, Ape-
nas subsistem alguns esOs quase em todas as nações” tras determinantes, que, portanto, devemos abordar.
um banho que tinha & tabelecimentos terapêuticos. Havia
ções. Tinha s eus
espaçovas tradições, até mesmo suas institui
s físi
í cos e seus padrõe
que
. se acaba. É com:
s sociais. É ele
distantes b: é o Sê a peste, com SA
Sobre o Imagin; t suas consequências
: ário, ti ;
À “TM Como se, cada vez as o suspendido um gesto fí-
cssem levado à supressão d a$ representações do corpo ti-
SA ds são de Ás S
da pela higiene corporal uma prática diretamente im-
3

OS PRAZERES ANTIGOS DA ÁGUA

Para melhor avaliar as práticas que o século XVI lenta-


mente vai eliminando, é preciso retomar as cenas de estufas
na Idade Média e deter-se nelas. Sua finalidade é antes de
tudo a diversão, até mesmo a transgressão; nelas a água É
primordialmente festiva. Isso equivale a dizer que nas estu-
fas a lavagem não é o significado real do banho.

Corpos misturados

A Riqueza dirigindo-se ao Amante do Romance da Rosa


(1240) descreve, em alguns versos, a Thélême* do século
XIII. As cabeças são, cingidas de flores, as naturezas subita-
se tornam férteis e os interiores protegidos. Os en-
mente
la
contros se multiplicam, oferecidos ao desejo. O “Ostel de
estu-
folle largesse”, enfim, não é mais do que uma casa de
fas. É de surpreender?

* Abadia que Gargantua constrói pará o monge Jean des Entommeu-


is, Gargantua,
res, templo dos prazeres do corpo e do espírito (v. Rabela
cap. LII a LVID. (N. do E)
ã O LIMPO E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE
35
ab-
Quanto aos escabinos de Péronne, dão um destino
solutamente preciso à estufa de sua cidade: “Ordena-se 2
todas as mulheres públicas que se retirem ao local usado
como estufa para elas edificado, e não sejam tão ousadas
TI AC , St porra ne
sobre uma grade, antes de ser
embrulhada num saco e afogada nas águas do Ouche pelo
nem audaciosas, que não se mantenham fora do dito lugar, carrasco de Dijon, seus crimes são os mais variados, mas
a não ser de dia, para beber, comer honestamente e sem nem sempre gravíssimos. Antes de tudo, turbulência em tor-
barulho, escândalo nem confusão." Trata-se, nesse caso no de seu estabelecimento: ela teria favorecido o arromba-
de um confinamento, de uma exclusão. ' mento, por um de seus clientes, da casa do sr. de Molêne,
Às vezes são realizadas recepções muito especiais nas secretário do duque de Borgonha. A agressão visava à mu-
lher deste último e nunca foi totalmente esclarecida. Em se-
estufas. Filipe de Borgonha, certo dia, aluga a casa de ba-
guida, prostituição ilícita: a estufa de Jehannotte era provida
nhos de Valenciennes com “mulheres de prazer” para me-
de “jovens camareiras de grande graça, muito complacentes
lhor homenagear a embaixada inglesa que viera visitá-lo", e bem induzidas”", a serviço da casa. Finalmente, envene-
Em várias cidades, a expressão “ir estufar-se" tem, aliás, um namento: a dona de estufas teria utilizado uma erva “espe-
sentido inequívoco. O visitante é acolhido por anfitriãs pro- cial” para preparar o vinho e a refeição de uma cliente à
vocantes e ardentes, “vivendo em baixeza e dissolutas no qual então “queria mal”. O resultado foi “trágico” para a ba-
amor”, com frequência moças pobres vindas do campo e nhista: “Parecia que se tornara louca [...] A qual esteve doen-
“alienadas de seu corpo”, te desde então, por muito tempo, sempre até sua morte, e,
finalmente, sem recuperar a saúde, ela morreu.””
O processo foi longo, difícil, e os testemunhos raramen-
Transgressões te eram claros. Só a prostituição parece certa. Jehannotte
Saignant, ao pagar por seus “crimes”, paga também pela re-
ô A história das estufas está ligada ainda a uma outra his- putação que envolve as estufas e seu comércio rumoroso.
tória: a do tempo lúdico e festivo, a dos prazeres e do jogo. Quando em 1479, por exemplo, contabilizando as vio-
Nesse caso, estão envolvidas também, inevitavelmente, ile- lências nas estufas de Gand, Des Pars registra 1.400 crimes
Balidade e transgressão. ' : no espaço de dez meses, ele define uma realidade e tam-
bêm a constrói”. O importante não é tanto o número em si
A Ando de sua viagem pelos antigos Países
mesmo, é seu cálculo. O simples fato de ser efetuado revela
estivessem desava século XVI, e embora esses lugares já a vida que a
que os olhos estão voltados para a estufa e
despesas dinhei recendo, Direr anota cada uma de suas anima. Localizando uma violência, esse recenseamento
a

mente = da ver do dinheiro. Ora, ele associa rigorosa- distingue e tenta implicitamente explicá-la. É a violência dos
as o banho e do jogo. São as mesmas: aquela
espaços de licença, a dos “desvios”, precisamente tentam
“Aix-la-Chapelle que os costumes polidos e o processo de civilização
Gastei 5 fêniêiics stos no banho com amigos, 5 dinheiros. espontaneidades, algu-
amigos. Perdi no ton E no albergue e no banho com os circunscrever. É como se algumas
vagam ente integradas ou até
dinheiros."" Trata-se de uma práti- mas impulsividades, a té então
ca lúdica mais * . julgad as norma is, fossem agora vividas como exces-
nho é vinculado a u a próxima da transgressão. O ba- mesmo
lugar, decerto aqui es-
suas dis- sos. Mais do que em qualquer outro
trações, suas dissi ma sociabilidade festiva, com tão próximos os comportamentos “mal” dominados, Os ges-
aliás os Pações e talvez seus excessos — o que, iado” impulsivas,todas as
4 OS processos á : tos abruptos, as atividades “demas
tram muito bem. envolvendo tais estabelecimentos mos-
” O LIMPO E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE
37
“palavras contenciosas”, enfim, que levam a “sacar o pu-
nhal”?, relatadas, no século XV, pelos processos surgidos pes Fars da cidade: Étienne Boulé é condenado a de-
em torno das estufas. mo de seus fornos. A própria população parece ter influí

ce
do
Locais de prazer, estas concentram uma turbulência ur- na ecisão. À determinação considera os “clamores, queixa
s
e reclamações de procedimentos maus e escandalos

-. me crer emo
bana: o que se recrimina em Jehannotte Saignant é também os que
o clima de agitação, até mesmo de devassidão, que cerca lá ocorriam, e que várias criadas eram devassas e inclinadas
seu estabelecimento: “Ouvia-se gritar, berrar, saltar tanto, a agir mal”, Finalmente, a proibição pelos estados-gerais
que era de espantar que os vizinhos o tolerassem, a justiça de Orléans, em 1566, de todas as casas de prostituição do

o
o dissimulasse e a terra o suportasse.”*?* A motivação dos ba- EO acelera o desaparecimento das estufas, muitas das
nhistas, a dos encontros, das comemorações e dos festins, quais são atingidas por essa lei. O “Ostel de la folle larges-
se” torna-se, no século XVI, uma instituição lentamente re-
mantém uma cumplicidade com a transgressão. É como se
jeitada pelo tecido urbano. À agitação que ele mobiliza é
as “liberdades” instintivas que as estufas parecem autorizar
mal suportada. À atividade e o ardor de sua clientela são,
permitissem, justamente, a recusa de múltiplas proibições.
agora, nada mais do que desordem e perturbação.
As “misturas” provocam a imagem de distúrbios latentes, de
À aventura das estufas passa, portanto, por um confron-
violências possíveis, O lugar concedido ao desejo favorece- to com a lei. Ela alimenta uma crônica das transgressões.
ria um ilegalismo, real ou imaginário. As estufas são lenta- Esses locais não são equivalentes aos estabelecimentos hi-
mente e cada vez mais percebidas como lugares de instabi- giênicos que, bem mais tarde, inaugurarão disciplinas e re-
lidade. Enquanto a cidade se estrutura, no século XV, dife- forçarão normas. Pertencem, antes de tudo, ao mundo do
renciando o centro dos arrabaldes, policiando alguns de prazer, com suas vizinhanças e seus “excessos”, evocado
seus bairros, iniciando um controle sobre suas margens, tais prosaicamente por um dito de donos de estufas alemães do
instituições preocupam pelo exemplo sempre presente de século XV: “Água por fora, vinho por dentro, alegremo-
sociabilidades confusas, ou simplesmente delinqúentes. Elas nos.” Portanto, não há uma oposição direta às pulsões, o
autorizariam uma licença decididamente mal absorvida, que que uma extensão do território da higiene implicaria, mas,
mais perturba do que equilibra, mais corrompe do que pro- ao contrário, uma cumplicidade com o próprio mundo pul-
tege. Locais de dissipação, são vividas como ocasiões de sional. A água é dada como um suplemento de prazer e au-
distúrbios cada vez menos tolerados. Essa maneira de
per- menta o sentimento de desregramento. Os banhistas fazem
ceber e a realidade da qual ela procede pesarão necessaria- dela um elemento de seus divertimentos. No longo conflito
o desejo, as estufas não estão a serviço da
mente sobre a existência das próprias estufas. Já bem da cultura com
no preceitos de
início do século XV, são proibidas na cidade
de Londres e “ordem”. Não desempenham nem o papel dos
de higiene. Isso não quer di-
seus arrabaldes. As determinações de Henrique V, civilidade nem o dos preceitos
em 1411 nelas não haja lavagem alguma. Mas esta é muito
evocam “os ferimentos, abominações, danos distúrbios zer que
sassínios, homicídios, raptos e outros males”
as pouco evocada, sendo o essencial a prática festiva, da qual
cuja causa: são
os homens e mulheres de má vida que frequentam ela é apenas um dos elementos secundários.
fas da cidade
as estu- A rejeição está ligada a um lento reforço das ponas so-
e dos arrabaldes”= Numeroso: traduzi-las designando,
em estas
s fechamentos ciais e urbanas. A Igreja, aliás, só faz
origen
g: s P e: nais: Ss:E ririxas, infame,
estufa
mortes suspeitas
i ou “ag i : 2 “o ofício de dono de
no mesmo momento,
ções” diversas. é elin
Pierre Mel perde suas e Os pregadores multi-
ter mandado seu camar i tanto quanto o de dono de bordel”.
eiro EA; partir do século XV, as apóstrofes violentas.
1478”. As últimas estuf. Ea
CAIO ao ue sassETAaio: Em plicaram, a
ufas de Dijon são suprimidas em 1556
38 O LIMPO E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANT
E 39
Mais do que seu moralismo, o que há de interessante em
das estufas Mais do que qualquer outro, seu exemplo permite fazer
seus sermões é principalmente a comparação comparações. Ele permite confrontar,
vizinhan- ao longo do tempo,
com outros estabelecimentos. Assim se delimitam cenas aparentemente semelhantes, inseridas no mesmo con-
s burgues es, não deis a vos-
ças “perigosas”: “Vós, senhore
, às texto € no mesmo cenário — medir o que se apagou medin-
sos filhos a liberdade e o dinheiro para irem ao lupanar do também o que veio substituí-lo. À comparação termo a
estufas e às tabernas."* Mas não é apenas a palavra do pa-
termo dessas cenas privadas, separadas apenas pelo longo
dre que explica diretam ente o desapar eciment o das estufas.
prazo, pode sugerir mais uma vez que esse antigo uso da
O que entrou em jogo, evidentemente, referia-se ao próprio água não fundamenta diretamente o gesto higiênico. Dois
funcionamento social. exemplos podem introduzir a comparação e sublinhar as di-
Os fatores que atuaram nesse desaparecimento têm,
ferenças.
portanto, pelo menos uma dupla lógica: intolerância cada Na primeira das Cent Nouvelles nouvelles, escritas em
vez maior do ambiente humano para com um lugar perce- 1450 para Filipe, o Bom, o recebedor de Haynau, tocado
bido como turbulento, violento e corruptor, e medo de uma pela beleza de uma vizinha de Valenciennes, tenta seduzi-
fragilidade do corpo passando por um imaginário das aber- la. A estratégia do personagem passa por uma série de con-
turas e dos fluxos perigosos. O impacto da peste foi ainda vites e de festas para as quais, primeiro, seu marido é con-
maior por ela afetar uma prática instável e já contestada. vidado sozinho. O recebedor pretende tornar-se um amigo
íntimo: “E, enquanto ele pôde, jantares, ceias, banquetes de
banhos e de estufas e outros passatempos, em sua residên-
O “excedente dos bens de Deus” cia e em outros lugares, nunca se faziam sem sua compa-
nhia.”? A sedução da jovem mulher ocorrerá em seu tempo.
persuasão sutil, o homem é hábil e ar-
Há ainda a prática privada, cuja turbulência não pode ser Conversas furtivas,
consente.
equivalente à das estufas. Seu público é raro e privilegiado. dente. É ouvido e compreendido. A jovem mulher
banal, decer-
As rixas e os punhais não poderiam, evidentemente, ter aqui É preciso arranjar encontros discretos. História
desses encontros fornece, por si só, O
a mesma presença, nem a relação com a delinquência urba- to, mas o contexto
do marido da “dita
na a mesma intensidade. Trata-se de um banho “retirado” sentido do banho. Quando uma viagem
sozinha em sua ca-
dentro das casas e dos palácios nobres, sendo difícil imaginar rapariga” permitiu ao notável recebê-la
aque-
que tivesse algum aspecto “perturbador”. Não levanta nem o sa, “ele mandou imediatamente preparar os banhos, dos
trazer tortas e hipocraz, € O excedente
problema legal das estufas, nem seu problema social. Seu de- cer as estufas, “Depois
bens de Deus”*. Os divertimentos Se prolongam:
saparecimento deve-se mais ao imaginário da água e às re- Ianesããos SA
presentações do corpo. O temor dos organismos penetrados que desceram ao quarto, imediatamente se
certamente tem aqui peso maior. Qualquer outra explicação nho, diante do qual a bela ceia foi disposta versão Social:
de A E Lambén),
pede.” O banho é, de fato, um palco divertem.
poderia ser artificial. Como a prática precedente, no entanto, se í o
ágapes em que os convivas comem, ei
esta nasce essencialmente do comportamento festivo. Perten- amorosas, uma prelim
neste caso, um palco de trocass e desfrutem melhor os senti
ce ao mesmo princípio de devassidão e prazer. Como ela, i | prática acom-
óti
erótica. A áágua permite que se º ão
seu contexto é o do divertimento, antes de ser o da higiene. século xV, tal prática <
dos. No caso desse notável do
Enfim, mais devotada, por sua vez, ao desejo do que à lei, da da hospitali
P! dade,.. da distração etas limite, m
€, no confirma
panha a arte
sua adoção conserva alguma “fragilidade”, Esse fator era sus-
cetível de encetar as condições de seu abandono.
sensualidade. Essas festas públicas ou Secr
ão O LIMPO E O SUJO
DA ÁGUA FESTIVA À ÁGUA INQUIETANTE
41
Ela é
que a água É explorada antes de tudo como prazer. jóias. Desaparece um uso da água,
sensual. crescem normas
calor e comunicação mais ou menos seio e de cuidados.
de as-
com
As cenas suscetíveis de ter alguma correspondência No entanto, não se deve pensar
do sé- o banho
esta nos contos, romances ou mesmo nas memórias
com o olhar
de hoje; e deve-se, ao contrário, pensar a limpez
a com ex-
culo XVII são, em alguns pontos essenciais, totalmente dife- clusão de qualquer ablução. É preciso reconhecer uma lim-
em
rentes. Revelam pelo menos o que mudou. Quando, peza corporal que, atualmente, já não teria esse nome, re-
suas aventuras liberti nas, o abade Choisy , disfar çado de mu- censear um conjunto de objetos cuja limpeza durante muito
lher, promete compartilhar o sono de uma protegida, a maior tempo equivaleu à do corpo, excluindo a lavagem deste úl-
parte das referências se invertem. A água está totalmente timo: espaços, roupas de baixo, acessórios diversos, etc. É
ausente. A limpeza está presente: “Eu tinha em minha casa preciso encontrar o corpo onde ele já não está.
uma velha criada que fora da minha mãe e a quem eu pa-
gava uma pensão de cem escudos; chamei-a. — Senhorita —
disse-lhe eu —, eis uma moça que me querem dar como ca-
mareira, mas desejo saber antes se ela é bem limpa. Exami-
ne-a da cabeça aos pés. Não esperou segunda ordem e pôs
a menina nua como a mão [...].”* É claro que a limpeza exi-
gida significa, para Choisy, a ausência de doença secreta, À
palavra tem um sentido “social” e “médico” ao mesmo tem-
po. A desconfiança do abade torna-se maior, enfim, pela
distância que separa o aristocrata da aprendiz de lavadeira.
Há nela, no caso, um certo cinismo. No entanto, há uma
preocupação mais específica: uma testemunha atesta a “lim-
peza"” do corpo previamente desnudado. Os gestos que se
seguem têm também um sentido: “Pus-me a fazer minha toa-
lete e logo me deitei; eu bem tinha vontade de abraçar a
gracinha.”* A limpeza, a toalete não passam de modo al-
gum pelo banho, nem mesmo pela simples lavagem. À
água, aqui, não vem ao caso, ao passo que uma limpeza é
evocada e trabalhada,
Cada uma das cenas, do notável devasso ao abade li-
bertino, tem o que falta à outra. As duas situações são até
extremas em suas diferenças. No século XV, o recebedor
du Haynau toma banho para dar mais intensidade a suas
festas e a seus prazeres. O aventureiro do século XVII, no
entanto futuro acadêmico e grande senhor, não pode ima-
ginar uma cena de banho, ao passo que se demora em lon-
gas sessões em que suas amigas e ele se penteiam, se ves-
tem, calculam com cuidado a colocação de suas moscas e
248 OLMPO E O SUJO
substituíram as laboriosas explicações de higiene. Essa lim-
peza de hoje necessitaria, para ser melhor compreendida
de um olhar atento ao individualismo contemporâneo e SS
fenômenos de consumo, Seja como for, ela foge para longe
dos fundamentos aqui descritos, chegando às vezes a des-
prezá-los.

CONCLUSÃO

A limpeza aqui escolhida como a mais antiga é a que se


refere exclusivamente às partes visíveis do corpo: o rosto e
as mãos. Ser limpo é cuidar de uma zona limitada da pele,
a que emerge da roupa, a única que se oferece ao olhar. As
Conveniências e os Livros de civilidade, que na Idade Média
ditam o comportamento das crianças nobres, não dizem ou-
tra coisa: manter asseadas as mãos e o rosto, usar um ves-
tuário decente, não coçar muito ostensivamente os insetos
parasitas. Nenhuma referência ao “debaixo” da roupa ou às
sensações vindas da pele. Nenhuma alusão a algum senti-
mento íntimo. Existe uma limpeza corporal na Idade Média,
mas ela se dirige antes aos terceiros, às testemunhas. Diz
respeito ao imediato do visível. Esses atos arcaicos do as-
seio físico constituem-se, assim, num tecido de sociabilida-
lugar,
de. Porém sua história mostra como são, em primeiro
as superfícies visíveis do corpo € O olhar dos outros que
oferecem seu código.
e dura-
É possível compreender esse privilégio antigo
douro do visível. A visão é, decerto, o alvo mais intuitivo,
o que pode ser
o que é mais “naturalment: e” convincente,
e formuláveis.
submetido também às normas mais facilmente m e se definem
da limpeza se enuncia
Com elas, os padrões
250 O LIMPO E O SUJO
CONCLUSÃO
251
em algumas palavras. Os preceitos parecem “límpidos”.
dessa transformação, A limpeza, nesse caso, não está ligad.
Basta olhar. o. a
à lavagem. O que constitui a mudança é a frésrde
Hoje, entretanto, para melhor abordar esses indícios, é um novo uso da rou Pá:branca " e
o durante muito tempo,
preciso entender o papel limitado e muito especial que
tratamento dos tecidos do “corpo” que cria já no en
banho desempenha na Idade Média. É preciso avaliar até XVI, um espaço físico inédito de limpeza: diferenciação
que ponto as práticas que ele promove podem ser diferen-
mais acentuada entre o em cima e o embaixo da roupa, gra-
tes das nossas. Estufas e banhos existem na Idade Média dação mais sensível entre tecidos finos e tecidos grossos,
mas não são estabelecimentos de higiene. Eles fazem face à trocas mais frequentes, finalmente, e sobretudo mais impe-
prazeres bem específicos. Para além de preocupações ter- rativas, dos panos em contato com a pele. Com a manipula-
mais, muitas vezes reais, estufas e banhos da Idade Média ção dessa roupa-branca, as sensações tegumentares pare-
mesclam suas práticas com as das tavernas, dos bordéis, das cem mais explícitas, a evocação das transpirações mais pre-
espeluncas. Agitações e turbulências se avizinham. Esses lu- sente. Recônditos ou partes mais ocultas do corpo fazem
gares cheios de vapores, em que quartos e camas prolon- surgir um novo cuidado. Foi, curiosamente, um conjunto de
gam a umidade das tinas, são lugares de prazeres confusos. práticas “secas” que fez evoluir a percepção e o sentimento
O aspecto erótico do banho prevalece amplamente sobre a da limpeza. Dispositivo ainda mais importante porque tam-
lavagem. A água enquanto meio de “excitações” físicas atrai bém ele se refere ao olhar, mas renovando-lhe totalmente a
o banhista mais do que o ato de asseio. O jogo, enfim, e até acuidade e a profundidade.
mesmo a volúpia estão muito mais implicados do que o es- A roupa-branca, emergindo sob o gibão do homem ou
tado da pele. sob o vestido da mulher, delega à superfície as marcas de
Uma história da limpeza corporal mostra a variação, no regiões mais secretas. O íntimo é gradualmente incluído no

Ps
da visível. Essa limpeza triunfa com a França clássica, a ponto
tempo, dos costumes, ou até mesmo dos imaginários
água, e a distância que separa as representações arcaicas de lançar mão de todos os recursos do espetáculo. Práticas
a so-
daquelas de hoje. Na Idade Média existe um banho, portan- de corte multiplicando os signos do traje, explorando
breposição douta dos tecidos, aprimoran do o trompe-l'oe il,
to, que na verdade não visa a limpeza. No cotidiano, o as- “debaixo” do
mãos. À rendas tornando mais leves e prolongando o
seio que conta continua sendo o do rosto € das jogando conforme
água, na verdade, não atinge o íntimo. traje, texturas da roupa-branca, enfim,
dos tons e a
fosse linho, sarja ou cânhamo, com à variedade
Ora, uma história da limpeza mostra também que o que distinções sociais.
fineza das tramas para orquestrar sutis
está em jogo é uma maior intimidade do corpo. Existe uma em que o brancor da roupa de baixo € sua
Esse asseio,
dinâmica, que se confirma já no final da Idade Média: inten- pele, é ainda mais curio-
renovação equivalem a limpeza da
sificação gradual dos auto-regramentos, “levando” o asseio sobretudo no século XVI, por
so por vir acompanhado,
físico para além do visível, desenvolvimento de um trabalho
uma relativa rejeição à água. É nesse ponto, sem EA
de civilização, refinando e diferenciando até as sensações que a imagem do corpo, a de Suas operações, de . " es
menos explícitas. Todavia é preciso sublinhar o quanto, ao ções, melhor deixa entrever seuê, peso posa e SE
para a elite da cia a
mesmo tempo que se transformam e se enriquecem, tais pa- da limpeza. O corpo banhado
Pp ó
drões permanecem distantes dos nossos. É evidente, pof sica, uma massa invadida pelo líquido, perturbada impregna
invólucros porosos,e cames
exemplo, a diferença entre o asseio físico descrito no século "
pleções
: “os: invo
e inchaços: ãos receptáculos,
os Órgãos
XVI e o descrito na Idade Média. Ora, essa diferença não $º das. Os poros parecem aberturas,
atém a um novo uso da água. A ablução é independente
252 PA
CONCLUSÃO
enquanto são abundantes os exemplos de penetrações obs- 253
curas. Os contágios, por si sós, ofereceriam uma série de e aço da água, representação do cor-
ilustrações disso. A água seria semelhante a esses venenos
inapreensíveis que invadem o corpo dos contagiosos, O ba-
=. '80ra exploradas segundo a física dos enrijecimen-
tos. Imagens intuitivas, mais uma vez, que revelam o quan-
nho envolve riscos. Ele deixaria, além do mais, a pele total- to, nesse lento processo do íntimo, a higie
ne pode ser obje-
mente “aberta”. Um mecanismo simplificado da infiltração e to de racionalizações. Parece até mesm
o simbólica a dife-
uma racionalização concebida inicialmente para explicar o rença entre a limpeza do século XVII, amplamente feita de
ataque fulminante das pestes e das epidemias favoreceram aparências, e a do final do século XVIII, que cultiv
a forças
essa representação de um corpo de fronteiras penetráveis, secretas. Tão simbólica quanto pode ser a diferença entre
Seja como for, essa limpeza do século XVII, mais “ex- uma aristocracia ligada às táticas do parecer e uma burgue-
tensa” e mais “profunda”, não deixa de ser paradoxal. Refe- sia que inventa “vigores”. Um código cênico contra um cê-
re-se às zonas escondidas do corpo, ao passo que faz cres- digo de forças.
cer o papel do olhar. Ela é mais secreta, ao passo que nun- Limpeza “exemplar”, portanto, em suas significações so-
ca favoreceu tanto o espetáculo. O visível, com ela, adquire ciais. Limpeza “exemplar” também em seu recurso sistemáti-
uma soberania sem igual. É preciso repetir o quanto uma tal co à referência científica e às justificações funcionais. A lim-
peza teria uma utilidade física precisa: ela aumenta os re-
prática convém a uma sociedade de corte que “teatraliza” os
cursos orgânicos. Essas teorizações do final do século XVIII
gestos, as atitudes, os vestuários. Os tecidos transbordando
inauguram um modo de explicação: a limpeza é legitimada
OS trajes, as trocas codificadas da roupa-branca, ao mesmo pela ciência. O princípio não varia por muitos decênios,
tempo que dão maior lugar ao íntimo, permitem, como embora os mecanismos invocados se modifiquem: ser limpo
nunca, a exploração da aparência. é proteger e reforçar o corpo. O asseio assegura e sustenta
Ora, é preciso repetir também o quanto é contra uma o bom funcionamento das funções. As razões são aquelas
tal valorização do visível que pode nascer uma limpeza das fisiologias. Papel energético da pele, incômodo obstru-
“moderna”. Não é que se elimine o papel da roupa-branca, tor das crassidões, perigo das matérias putrescíveis tornam-
pelo contrário. A burguesia irá multiplicar, no final do sécu- se o horizonte teórico das abluções e dos banhos. Os alar-
lo XVIII e no século XIX, os tecidos leves e o jogo com Oo mes microbianos constituem um ponto último: é preciso la-
branco. No entanto outros valores emergirão, outros padrões var para melhor defender. ,
irão promover uma limpeza do “debaixo”. A verdadeira Um tal discurso científico, predominante no século po
transformação, aquela que introduz o deslocamento decisi- apesar de suas aplicações ao mesmo tempo limitadas e vaci-
vo, atém-se ao argumento da saúde: não mais a aparência, lantes, desempenha pelo menos um papel: conferir uma uti-
mas o vigor. É visando uma nova força que a burguesia do lidade “palpável” a uma limpeza que se vê cada vez menos,
final do século XVIII teoriza uma limpeza da pele. Desobs- atribuir um sentido funcional à exigências totalmente interi o-
s, ainda mais ifícei.
difícei s de serem formuladas dado q ue
truir os poros para melhor dinamizar o corpo, até mesmo rizada
traduz bem
mi óbioio =
se torna “|
“fnfi mo”.” A caça a o micr
utilizar a água fria para melhor firmar as fibras. A limpeza obje| to
seu
essas o no. anta
“libera” e reforça, no entanto é preciso utilizar uma água essa limpeza “invisível”. Todas as, ” MAS
essas justificações lentamente construí
que estreite e enrijeça. À troca de roupa-branca já não bas- e social eno - " o
uma vigilância eminentement eos
ta, como já não bastam os testemunhos “externos”. A pele ito ao impercep e
enunciar, tanto ela diz respe
deve ser atingida por um líquido encarregado de estimular: verdade. Seu pap:
for, a essa ciência não falta
lavar as regiões encobertas pelo vestuário, decerto, mas pa-
254 O LIMPO E O SUJO
CONCLUSÃO
também a descobertas muito reais e, além do mais, impor- 255
tantes. Mas as táticas de convencimento das quais ela partici- É preciso ver, finalmente, o quanto essa
dinâmica impli-
pa sublinham o quanto essa limpeza, cada vez mais ligada ca Outros espaços ai |
ao Íntimo, teve primeiro de buscar para si razões edificantes, suas arcolietam, diga dee cidades em especial, com
25 O ÇÕes e seus fluxos. Os cui-
antes de se tornar simples hábito. A exortação que a burgue- dados com o corpo implicam aqui uma reestruturação total
sia utiliza para com as classes populares no século XIX con- do mundo subterrâneo e do mundo aéreo das cidades. Foi
a água, decerto, um dos fatores mais importantes da refor-
firma esses procedimentos, estendendo-os: a limpeza não só
ma urbana no século XIX. Com ela, tanto a alimentação co-
torna “resistente”, ela garante uma “ordem”. Ela aumenta as
mo a “respiração” dos aglomerados foram alterados. A lim-
virtudes. A limpeza da pele, a disciplina da lavagem teriam
peza, portanto, envolveu o imaginário das cidades, sua tec-
suas correspondências psicológicas: resultado fisicamente in-
nologia, sua resistência, também, a serem “capilarizadas”.
visível, decerto, mas moralmente eficaz. Seja como for, é
A história da limpeza está ligada, decididamente, a uma
com a limpeza eliminando o micróbio que se conclui um polaridade predominante: a constituição, na sociedade oci-
longo percurso, o que vai do mais visível ao mais secreto, o dental, de uma esfera física pertencente ao próprio indiví-
que atravessa também a esfera do espaço privado. duo, a ampliação dessa esfera, o reforço de suas fronteiras
Outras referências, finalmente, tornam esse percurso também, até o distanciamento do olhar dos outros. O per-
ainda mais perceptível. Com esses gestos que trabalham um curso dessa história, no entanto, não poderia ser linear. Ele
asseio escapando ao olhar, criam-se gradualmente lugares joga com o imaginário do corpo, o dos espaços habitados,
privados. Topologias se animam. O quarto do abade de o dos grupos sociais. Essa limpeza, tendendo progressiva-
Choisy, em 1680 (parte 1, capítulo 3) ainda não tem depen- mente aos cuidados invisíveis, é por outro lado um objeto
dência para a toalete. Os atos que o abade dedica a sua de racionalização. Quanto mais se faz secreta, mais parece
limpeza correspondem, aliás, a esse espaço polivalente: uti- sedutor o álibi que poderia mostrar sua utilidade concreta,
lização de maquiagens e moscas, troca de camisa, fricções até mesmo sua funcionalidade. Sua história é também a
diversas. É preciso chegar o século XVIII e uma distância dessas racionalizações.
das espetacularizações aristocráticas para que se criem, nos
grandes palácios e nas grandes moradias, espaços especiali-
zados, servindo aos cuidados com o corpo. Aos gabinetes
de toalete, com suas porcelanas, seus cântaros, seus bidês
(embora raros), corresponde uma limpeza já mais secreta.
Os espaços da elite se ampliam e se especificam, exatamen-
te como se aprofunda essa limpeza que transpõe as superfí-
cies. Um lugar se abre, exatamente, também, como o asseio
se amplia.
É no final do século XIX que se sistematiza uma injun-
ção: fechar rigorosamente os acessos aos gabinetes de toa-
lete e aos banheiros. Uma distância se constitui definitiva-
mente, com a pele sendo atingida em todos os seus recôn-
ditos. É no mesmo momento que se confirma um prazer da
ablução, que ainda não se ousa dizer totalmente.

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