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AFETOS
E CRENÇAS
DE UM SER

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DISTÓPICO
CAJU LAMBERTI
UTOPIA
AFETOS
E CRENÇAS
DE UM SER

DISTÓPICO
CAJU LAMBERTI
Trabalho de qualificação apresentado
ao curso de Graduação de Licenciatura em Artes
Visuais da Universidade Regional do Cariri.

Orientadora:
Profª Mestra Mariana Amorim Smith

Ceará
2022

UTOPIAAFETOS
E CRENÇAS
DE UM SER

DISTÓPICO
CAJU LAMBERTI

5
Nome: LAMBERTI, Caju
Título: Utopia: Afetos e Crenças de um ser Distópico

Trabalho de qualificação apresentado


ao curso de Graduação de Licenciatura em Artes
Visuais da Universidade Regional do Cariri.

Apresentado em 02 de setembro de 2022.

BANCA:

Prof: Profª Mestra Daniele Quiroga Neves


Instituição: Universidade Regional do Cariri

Prof: Profº Doutor Frederyck Sidou Piedade


Instituição: Universidade Regional do Cariri

Nota: _______________

6 7
“Como um encontro se torna um “acontecimento”, isto é, maior que a soma
de suas partes? Uma resposta é contaminação. Estamos contaminados pe-
los nossos encontros; eles mudam quem somos enquanto abrimos caminho
para os outros. À medida que a contaminação muda os projetos de criação de
mundos, mundos mútuos - e novas direções - podem emergir. Todo mundo
carrega uma história de contaminação; a pureza não é uma opção. A impor-
tância de manter a precariedade em mente é que nos faz lembrar que mudar
de acordo com as circunstâncias é essencial para a sobrevivência.”

- TSING, Anna, 2015.

8 9
contaminação
Este trabalho discorre e investiga sobre os caminhos e os métodos de pro-
dução da série visual “Utopia: afetos e crenças de um ser Distópico”, que
propõem um mundo construído de modo ficcional e do pensamento utó-
pico como objeto de pesquisa e criação. A partir desse estudo, as decisões
e reflexões da construção deste trabalho visual tem como fator principal,
discorrer e apresentar quanto as linguagens e as poéticas presentes nesta
série que pensa e se utiliza do conceito de utopia na história e no campo
das artes visuais. Compartilhando assim, os resultados e os processos cria-
tivos presentes ao longo do desenvolvimento desta construção ficcional.

Palavras-chave: utopia; distopia; processos de criação; cosmologia, arte


contemporânea.

10 11 11
AMBI A
ENTA NATURAIS E
ÇÃO Ç
O áudio “Naturais” é composto por captações
de áudio na mata da Chapada do Araripe, e
foi pensado e produzido exclusivamente para
compor a série de trabalhos visuais “Utopia:
afetos e crenças de um ser Distópico”, pensan-
do na construção de uma ambientação sono-
ra e de imersão na experiência da leitura deste
trabalho e a visita a sala de exposição.

SONORA
OUÇA
ENQUANTO

LEIA

12 13
14 15
16 17
MAPA
I. A UTOPIA

II. A COSMOLOGIA,
O MUNDO
E A FÉ . 59
II. I. A Cosmogonia
II. II. Jardim do Éden
II. III. O Tarot
II. IV. A Tenda
. 26

.38
.48
.54
.68
III. A VIDA,
AS ANATOMIAS
E A COMUNIDADE
III. I. Separades
III. II. Anatomia
III. III. Nemeton
III. IV. Prolífero
III. V. Phyle
.84
.96
.110
.116
.124
. 80
IV. AS MÁSCARAS,
A ESCRITA
E OS UTENSÍLIOS
IV. I. Conectades
IV. II. Gaveteiro
IV. III. O Alfabeto
IV. IV. Naturais

V. CONCLUSÕES
.128
.134.
.145
.160
. 126

. 172

LISTA DE FIGURAS . 184

AS REFERÊNCIAS . 202
19
MAPA
20 21
MAPA recorte da vida, da anatomia e da comunidade desta uto-

COMENTADO
pia.

IV. As Máscaras, a Escrita e os Utensílios


Neste momento, é pretendido apresentar e discorrer
quanto a persistência, conceito e motivos da máscara, da
I. A Utopia escrita e de diversos “utensílios” presentes nesta série vi-
sual através da discussão quanto aos trabalhos: Conecta-
Iniciando o capítulo com um breve texto descritivo e des, Gaveteiro, O Alfabeto, Naturais.
poético, de autoria própria, trago a descrição de um lugar
utópico que serve como base conceitual para os trabalhos V. Conclusões
visuais que serão discutidos e expostos nos capítulos se-
guintes. Em um segundo momento apresento através de Por fim, irei discorrer quanto às considerações finais
filósofos, teóricos e artistas, a construção do conceito de dos resultados e das amarrações estéticas, teóricas e con-
utopia e de distopia ao longo da história, oferecendo um ceituais da produção e exposição dessa série de trabalhos
compêndio da pesquisa quanto às ideias de mundos utó- visuais.
picos e distópicos que construíram e moldaram estes con-
ceitos como os conhecemos hoje.

II. A Cosmologia, o Mundo e a Fé


Este segundo capítulo se inicia com um breve mito
autoral que apresenta através da narrativa, uma cosmolo-
gia da existência desta utopia ficcional, onde é visto uma
referência direta a teoria do Big Bang. Após, serão apre-
sentados os conceitos, os processos de criação, os motivos
e as amarrações dos trabalhos visuais: A Cosmogonia, Jar-
dim do Éden, o Tarot e a Tenda, que juntos, possuem a res-
ponsabilidade de representar visualmente este recorte da
cosmologia, do mundo e da fé desta recém criada utopia.

III. A Vida, as Anatomias e a Comunidade


No início deste capítulo, será apresentado através dos
trabalhos visuais Separades, Anatomia, Nemeton, Prolífe-
ro e Phyle, questões relacionadas a esta utopia ficcional,
como a de sua política, de suas cidades, da organização
social e dos corpos sensíveis presentes nessa existência
utópica. Será através da exposição destes conceitos, de
suas influências e de suas visualidades que veremos como
esses trabalhos visuais representam artisticamente este

22 23
DOS
CONCEITOS

Da Utopia Da Distopia
A palavra utopia se refere hoje a um conjunto de ideias Distopia, cacotopia ou antiutopia é qualquer repre-
políticas e/ou sociais que representem um futuro ou uma sentação ou descrição, organizacional ou social, cujo va-
civilização perfeita. A utopia é, então, atualmente um es- lor representa a antítese da utopia ou promove a vivência
paço imaginário e esperançoso onde são discutidos os em uma “utopia negativa”. Costuma ser um lugar ou es-
problemas da sociedade na qual nos encontramos e um tado imaginário em que se vive em condições de extrema
meio de apresentar soluções idealizadas. Ela tem como opressão, desespero ou privação.
objetivo eliciar a reflexão dos indivíduos sobre os proble-
mas sociais, de modo a construir caminhos e pontes para
um futuro próspero.

24 25
I. A UTOPIA
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26

mcqvdwk 27
27
I. A UTOPIA
“Se esse mundo fosse só meu
Tudo nele era diferente
Nada era o que é porque tudo era o que não é
E também tudo que é, por sua vez, não seria
E o que não fosse, seria
Não é?”

(Alice no País das Maravilhas, 1951)

Permita-se imaginar uma sociedade onde as artes são 1. (Greek: φυλή, ro-
manized: phulē, “tri-
o principal meio de ensino e de base para a cultura, onde be, clan”; pl. phylai,
o solo, os minérios, as plantas, as bactérias, os fungos e φυλαί; derivado do
os animais são igualmente elevados e respeitados, onde grego antigo: φύεσθαι,
significa: “descenden-
a culinária tem como base os cogumelos, os frutos e os te, originario”) é um
vegetais e as refeições são feitas através da coleta do que tempo do grego antigo
é plantado e cultivado. Onde a caça armada e a escravi- utilizado para se refe-
renciar a tribos e clãs.
zação animal é imperdoável. Uma comunidade onde a
política beneficia a todos de forma justa, igualitária e par-
ticipativa. Um lugar em que gênero, identidade e sexuali-
dade não são discutidos ou impostos, pois já foi entendido
que o corpo e a alma são livres e maiores do que jamais
possamos imaginar, um mundo onde a espiritualidade
é exercitada e alcançada através da livre e espontânea
experimentação, sem julgamentos ou obrigações. Este
mundo é a Phyle, onde temos uma cultura voltada para o
autoconhecimento e explorações cotidianas das relações

28 29
humanas através das linguagens artísticas. uma energia lá, um ponto de foco, um canal, uma janela
2. O Humano é a úni-
Um mundo onde para cada ser humano que nasça, para o iminente. E lá elas construíram igrejas, catedrais, 4. Referência a Fonte
ca espécie do gênero uma árvore lhe é oferecida para o feitio de sua máscara. pirâmides ou ergueram círculos de pedras. Neste mun- da Vida presente na
Homo ainda viva e o A máscara é o símbolo absoluto desta era humana. Re- do, conhecemos a existente material e imaterial Fonte da obra “O Jardim das
primata mais abun- Delícias Terrenas”
dante e difundido da
presenta a igualdade, a simplicidade, o contato com a Vida, um monumento presente desde os tempos antigos, (1515) de Hieronymus
Terra, caracterizado natureza e a não distinção étnica, racial ou sexual. O uso porém, ainda posterior aos sapiens sapiens, do qual é cul- Bosch (Hertogenbos-
pelo bipedalismo e da mesma não é obrigatório, sendo requisitado somente tuado e recebe oferendas, mensagens e sonhos todos os ch, c. 1450 — 1516).
por cérebros grandes,
o que permitiu o de-
em ocasiões necessárias, como em assembleias públicas. dias.
senvolvimento de fer- Aqui, todos possuem total liberdade de se vestirem de Este povo compreendeu há muitos séculos que o
ramentas, culturas e modo que quiserem e se sentirem confortáveis, as crian- maior sacrifício que os humanos poderiam fazer, era o de
linguagens avançadas.
Homo sapiens sapiens
ças costumam usar jóias e não há restrições quanto à nu- sacrificar a crença pela qual os sacrifícios eram feitos. Pois
é o nome usado para dez, inclusive a liberdade do corpo é encorajada. na antiguidade, a língua era um vírus defeituoso e parti-
denominar a subespé- Ao entenderem que a Arte é a maior forma de expres- dário, a religião era um sistema operacional excludente e
cie humana que carac-
teriza o homem mo-
são de um indivíduo criativo, sendo ela a materialização as orações eram malditos spams. Os seres antigos ao se
derno. A subespécie é da necessidade da auto expressão presente em todos, de entenderem como superiores e superinteligentes, se co-
uma classificação ou que é a fala daqueles que necessitam por natureza, criar. locaram acima dos outros seres vivos, acreditando que es-
subdivisão dentro da
espécie. Nesse caso o
Iniciaram as criações conjuntas de novos mundos e rea- tando além do ciclo natural da vida, poderiam prosperar.
homo sapiens sapiens lidades possíveis. E foi através das criações e através do Mas não contribuir com a vida, era estar contra ela, era ser
é o nome dado à espé- amor e do respeito ao próximo, e com as evoluções tecno- uma anomalia perante a existência orgânica do planeta
cie humana.
lógicas e sociais surgidas das potências do estímulo cria- Terra, era a própria ruína. Para que as religiões, doutrinas
tivo, que o homo sapiens sapiens ou o “homem que sabe e males do passado não voltem a atormentar a próspera
o que sabe”, atinge um novo patamar na linha evolutiva realidade da Phyle, existem os sábios. Estes que demons-
3. Membros da mes-
ma Phyle são chama-
da humanidade, alçando o status de symphyletai. Estes tram já na infância a vontade e a aptidão pelos estudos
dos de symphyletai novos seres, pensantes, arquitetos e construtores de um históricos e teóricos da antiguidade, passam a vida se
(Greek: συμφυλέται), novo mundo, puderam desenvolver uma sociedade onde aprofundando nas velhas escritas e possuem então a res-
tradução literal: com-
panheiros de tribo.
o respeito pelas ciências e pelos conhecimentos empíri- ponsabilidade de proteger o novo mundo dessas antigas
cos puderam enfim caminhar lado a lado para a constru- ideologias que quase levaram a vida à ruína.
ção do conhecimento e da busca pelas respostas advin- Um mundo onde todos aprendem agricultura. Todos
das das grandes questões da vida. Eles desenvolveram podem exercer as mesmas funções, independente de sexo
uma sociedade de criadores, justa e calorosa. ou gênero. Paralelamente, todo indivíduo precisa apren-
Construíram uma realidade onde todos os reinos da der pelo menos uma das outras profissões bases, sendo
terra vivem em comunhão e trabalham juntos para a pros- elas: tecelagem, carpintaria, ferraria, alvenaria, química, fí-
peridade do planeta e do cosmos. Onde não há a necessi- sica, matemática, arquitetura, gastronomia, biomedicina,
dade de regras e leis impositivas para serem seguidas ou biotecnologia, artes visuais, música, dança, teatro, letras,
doutrinas a serem obedecidas. Onde a fé, a esperança e o sociologia, filosofia e história. Podendo então a partir do
entendimento dos motivos universais da pura existência conhecimento das disciplinas bases, aprimorar conheci-
são baseados na ciência da cosmologia, astronomia e de mentos e práticas em áreas específicas, únicas e até inédi-
seus vieses científicos e do compartilhamento empírico tas. Todos capazes fisicamente e psicologicamente preci-
da sociedade. Vivem em cultuação constante através do sam trabalhar; dessa forma, o desemprego não existe, e a
respeito aos seres que os rodeiam. Dizem que ao longo duração da jornada de trabalho pode ser a mínima possí-
dos séculos, pessoas de várias partes do mundo, sentiram- vel: os indivíduos somente precisam trabalhar a quantida-
-se chamadas aos lugares de poder, elas sabiam que havia de necessária por dia que for de produção benéfica para

30 31
o resto da população, embora muitos desejem trabalhar
mais.
DO CONCEITO DE UTOPIA
5. Haraway troca a 7. Original: “To make
palavra humanidade Onde os seres entendem sociedade como uma rede a new world, you start
por humusidades. O de micélios, pois o micélio de muitos fungos pode fun- with an old one inde-
Metaplasmo para Ha- ed.” (LE GUIN, 1989,
raway não é somente
dir-se com outras redes miceliais se forem benéficas para Pensar mundos utópicos, tem a ver com experienciar p.48.)
a ação de modificar ambos, mesmo que não sejam ideologicamente compa- o mundo de todas as formas e ângulos possíveis que um
uma palavra alteran- tíveis. É entendido que a identidade própria dos fungos ser o pode fazer e curar e guardar o melhor deste, como
do letras, sílabas ou
sua fonética, mas uma
é sim importante, mas nem sempre é sobre um mundo experiências e referências musicais, literárias, artísticas e 8. Este neologismo
ação de remodelagem: binário. Assim, as comunidades se conectam constante- entre outras para uma singular e esperançosa criação de está formado pelos
“Metaplasma pode mente e trocam crenças, afetos e conhecimentos. Este componentes gregos:
uma realidade que abarque suas crenças de um mundo
significar um erro, um οὐ, que remete a não,
tropeço um tropo que
respeito e troca com o reino fungi fez com que durante melhor. E não somente sobre a utopia criada e apresen- por outro lado, tó-
faz uma diferença car- as transições de mundos, os symphyletais adquirirem o tada neste trabalho, mas sobretudo quanto às potenciali- pos, indicando lugar,
nal. Por exemplo, uma aprendizado sobre os benefícios dos fungos e dos cogu- e conclui o sufixo -ia,
dades da humanidade de imaginar e criar novos mundos,
substituição em uma para propiciar quali-
cadeia de bases em um
melos e a sua importância e possibilidades para com a de procurar abrigo em tempos difíceis dentro de uma cos- dade.
ácido nucleico pode vida, a mente e com as conexões metafísicas. mogonia própria e é principalmente sobre os nossos so-
ser um metaplasmo Ao estudarem ao longo de séculos e ao construírem nhos e sobre nós mesmos. Afinal, “a arte é a maior forma
mudando o significa-
do de um gene e alte-
uma conexão nunca antes vista como a destes seres racio- de esperança.” (RICHTER, Gerhard)
rando o curso de uma nais para com a natureza e a realidade, alcançando o nível O conceito de Utopia pode se apresentar de forma
vida” (HARAWAY, de simbiose perfeita, os rituais de cultuação, de transcen- maleável e elástico, então para o desenvolvimento da ideia
2003, p. 9).
dência espiritual e de conexão com portais de acesso a de uma ficção utópica que sirva de base para a constru-
outros mundos, físicos ou não, desta era da existência da ção dos trabalhos artísticos que serão apresentados nos
vida, utilizam-se - com a benção dos cosmos - de cogu- capítulos seguintes, e que carregam a responsabilidade
6. No modelo sim-
poiético sugerido por
melos psicoativos, firmando uma estável ligação entre os de representar esse universo próprio em visualidade, foi
Haraway, os arranjos reinos vivos, metafísicos e universais. necessário fazer algumas escolhas tanto quanto aos co-
conhecidos como cé- Um mundo onde ao se relacionarem, conhecerem, nhecimentos e entendimentos presentes na história da
lulas, organismos e
ecossistemas resultam
pensarem, criarem novos mundos e contarem histórias humanidade, quanto a produção acerca do termo e do
de relações: “criaturas através e com outras histórias, de outros mundos, conhe- conceito de utopia a partir dos vieses filosóficos, literários
não precedem seus cimentos, pensamentos e anseios, perceberam que o e artísticos. Procurando, sem a pretensão de esgotar o
relacionamentos; elas
se fazem mutuamente
mesmo acontece com todas as outras criaturas existen- tema, nem se afirmar como a única interpretação, inves-
por meio de envolvi- tes, em toda a diversidade presente na realidade cheia de tigar e discorrer quanto às ideias utopistas. Pensar cons-
mento semiótico-ma- especulações e obstáculos que não se encaixam em sim- truções de mundos, requer referências e entendimentos
terial, a partir de seres
que provém de ema-
ples categorias. Um entendimento coletivo de que todas básicos de sociedade, história, política, justiça e de espe-
ranhados anteriores”. as criaturas vivas estão em jogo umas com as outras em rança, pois “para fazer um novo mundo, você começa com
(HARAWAY, 2016, p. cada mistura e rotação da pilha de composto terreno. De um antigo certamente.” (LE GUIN, 1989, p.48)⁷
60). Assim, a atenção
se dirige para as rela-
que na verdade, somos todos compostos, não pós-huma- Para compreender este conceito, é preciso apreender
ções e não para os in- nos ou semi-deuses; habitamos as humusidades, não as quanto a etimologia da palavra utopia, que tem origem
divíduos. humanidades. Seres – humanos ou não – tornam-se um, grega e é literalmente traduzido como “não-lugar”⁸. E ape-
uns com os outros se compõem e se decompõem, em to- sar de o termo não existir originalmente no vocabulário da
das as geografias, escalas e registros de tempo e outras língua grega antiga, e de seus moradores não possuírem
coisas em emaranhadas simpoiéticas, no mundo terres- um conceito concreto e consciente de utopia, eles pude-
tre, no universo e no cosmos do desenvolvimento evolu- ram sonhar, escrever e propor o que hoje podemos cha-
cionário ecológico.

32 33
mar de mundos “utópicos”, que por sua vez, tratavam de tação, que era preciso momentos de lazer e de aventura,
9. (gr. Πολιτεία) é um
uma reflexão sobre a sociedade e seus problemas, apre- onde os habitantes teriam que “ir-se-á buscar a pintura e 10. (gr. Νόμοι) é o
dos mais importantes sentando em sua maioria, uma alternativa ideal e prova- o colorido, e entender-se-á que se deve possuir, ouro, mar- diálogo mais extenso
diálogos platônicos velmente inalcançável para a solução destes. fim e preciosidades dessa espécie.” (Ibidem, p.79) de Platão, é inacaba-
ditos da maturidade. do e não conta com a
É o mais conhecido
O filósofo grego e discípulo de Sócrates, Platão, ao es- O sonho da cidade ideal permitiu ao grupo pensar presença de Sócrates
dos diálogos de Platão crever “A República”⁹ (entre 387 e 367 a.C.), com a inten- vários detalhes de sua organização e o modo de viver do como personagem.
e, de longe, o mais in- ção de registrar o diálogo socrático que discorre além de povo, sendo pouco importante na narrativa como seria
fluente, tanto na filo-
sofia, quanto na teoria
justiça e sociedade, os mais diversos temas, não só éticos, esse lugar, a descrição dessa cidade é na verdade, apenas
da educação e na teo- mas também políticos, epistemológicos, metafísicos e uma oportunidade numa escala maior para se discutir
ria política. psicológicos. Platão nos apresenta no livro III, um diálogo justiça. Em contraponto, em “As Leis”¹⁰ (entre 357 e 347 a.
entre Sócrates (Platão), Adimanto e Glauco, que ao discu- C.), a forma era importante para o autor, ao ponto de pos-
tirem política e cidade, iniciam a ideia sobre a construção suir o desenho dela em livro.
de uma cidade ideal, da qual podemos acreditar ser o pri- “Leis” é o maior e último texto que temos registrado
meiro registro do início de pensamento quanto a criação de Platão, e é formado pelo diálogo de três gregos, per-
de uma cidade utópica: tencentes de três cidades-estados diferentes. São eles Me-
gilo de Esparta, Clínias de Creta e o Ateniense (o próprio
“Ora — disse eu — uma cidade tem sua origem, se- Platão) de Atenas. É nos livros IV e V, que eles tratam de
gundo creio, no facto de cada um de nós não ser au- uma polis virtuosa, essa que poderia ter o nome das con-
to-suficiente, mas sim necessitado de muita coisa. Ou dições de seu estabelecimento, seja de alguma localida-
pensas que uma cidade se funda por qualquer outra de, de uma fonte de água ou até de um deus que regesse
razão?” (PLATÃO, 1993, p.72) o local (livro IV, p.108). Apesar dessa inferência, no texto a

Após esta indagação da necessidade de se criar uma


cidade, os pensadores começam então a pensar sobre as
necessidades básicas de um povo, das funções dos indiví-
duos dentro da mesma, e das relações de organização de
políticas justas, dentro do entendimento socrático do que
era justo para um indivíduo) desta cidade que recebe o
nome de Kallipolis. Ao discorrer e dialogar sobre a cidade
recém imaginada e ao pensar no seu crescimento, logo o
filósofo notou a importância de se pensar diversos fato-
res que permeiam e contribuem para o funcionamento
de uma sociedade, como das profissões necessárias para
a base do comércio interno e externo de Kallipolis, dentre
elas, a agricultura, a suinocultura e pecuária, a tecelagem,
a carpintaria, a ferraria, entre outros. Chegaram a delimitar
espaços que esta cidade possuiria, como a khora, a área
de campo para as cidades gregas, e a Asty, a área urbana.
Na Asty estariam as habitações, o mercado, o ginásio, a clí-
nica médica, o teatro, a escola, a assembleia e os espaços
de trabalho. Apontou ainda, que não só de trabalho vive a
Figura 01. Plano da cidade Magnésia pre-
população, e que a cidade deveria ser um lugar de exci- sente em “As Leis“ de Platão. Por Pierre Vi-
dal-Naquet. “Forms of Thought and Forms
of Society in the Greek World” (1986, p.225,
fig.03)
34 35
polis é chamada de Estado dos magnesianos, ou simples- demonstra o desejo por uma cidade ideal através dos per-
11. Khôra ou Cora
mente, Magnésia. sonagens presentes em suas peças. A comédia do poeta 12. (gr.
(em grego clássico: Após diversos diálogos e chegarem a conclusão sobre é carregada de questionamentos políticos e de uma bus- Ἐκκλησιάζουσαι), es-
χώρα) era o território a quantidade de habitantes que esta nova cidade-esta- ca por igualdade, apresentando inclusive, questões quan- crita após a derrota
da pólis fora da cida- de Atenas na Guerra
de propriamente dita.
do possuiria, de como esta sociedade se organizaria em to ao gênero e a reivindicação pela igualdade deste. Das do Peloponeso, essa
O termo foi utilizado classes sociais, puderam então estabelecer a implantação mais de quarenta peças criadas pelo autor, grande parte comédia precede Pla-
em filosofia por Pla- deste território, onde um fundador deve instalar a cida- se apresenta de forma paródica e principalmente dialógi- tão e é a mais antiga
tão para designar um da fase conhecida por
receptáculo/recipiente
de o mais próximo possível do centro do país, e depois di- ca. Hoje temos acesso apenas a onze, das quais nos dete- comédia intermedi-
(hupodoxe), um es- vidi-la em doze fatias, iniciando com a gleba sagrada, “a remos a discorrer sobre cinco, na tentativa de empreen- ária que chegou até a
paço ou um intervalo qual dará o nome de Acrópole e que envolverá com um der uma poética de utopia. atualidade.
no seu diálogo Timeu
(360 a.C.).
muro circular” (livro V, p.158). A planta é circular por moti- Em “Mulheres na Assembleia”¹² (392 a.C.), as mulheres
vos morfológicos e cinéticos: pois geometria circular torna da cidade tomam o parlamento e desenvolvem novas leis,
homogêneos os diferentes espaços cívicos e o movimento todas privilegiando a igualdade. Ocupando o lugar que
circular é para Platão a imagem da esfera perfeita (Bris- normalmente era de seus maridos, elas se caracterizam
son, 2012). de homens para irem à assembleia. Aqui, vemos a críti-
ca que Aristófanes nos presenteia quanto ao questionar
[...] “todas as casas deverão ter bons muros, constru- os maus governantes da cidade e de suas más adminis-
ídos regularmente e em estilo semelhante, dando trações, sendo necessária uma intervenção radical para
para as vias, de modo que a cidade inteira assumirá a época. Neste tempo, como as mulheres raramente se
a forma de uma única habitação, o que lhe conferirá aventuravam fora de suas casas, possuíam o tom de pele
uma boa aparência, além de possibilitar com enorme mais claro que o dos homens. Na peça, os personagens
vantagem o melhor planejamento no que se refere à
questionam-se do porquê de tantas caras pálidas presen-
segurança e facilidade de defesa”. (PLATÂO, Livro VI,
tes:
p.200)

“Cremes: Havia para lá gente aos montes, como nun-


A Khora¹¹ não seria dividida em doze partes iguais,
ca se junta na Pnix. Olhava-se para eles, tinham to-
pois as terras mais férteis teriam que ser menores que as dos cara de sapateiros, fazes lá ideia! Palavra, era de
menos produtivas, garantindo então que todos tenham pasmar, ver aquela assembleia cheia de gente pálida.
um rendimento igualitário. Em cada uma das partes terá Por isso, trióbulo, viste-o!...nem eu, nem outros tantos
a área de agricultura, as vilas (moradia) e o lugar de cul- como eu!” (ARISTÓFANES, 1988, vv. 384-388).
to ao deus. Dessa forma, estava completa a configuração
da cidade ideal de Platão. Ao vermos a construção dessas A intenção das mulheres no parlamento era de ocupar
duas cidades ideais, podemos acompanhar algumas con- os cargos do governo, pois assim elas poderiam cuidar da
clusões que Platão achou necessárias para suas cidades cidade e do povo com a mesma seriedade, responsabili-
utópicas, como quanto a Kallipolis ter inicialmente espa- dade e preocupação com que cuidavam e administravam
ços de subsistência e habitar, enquanto Magnésia presa os seus lares. Por estarem em maioria, aprovaram e san-
pelo espaço de culto e em seguida encaminha para o es- cionaram o projeto. Ao dominarem o governo, propõem
paço de agricultura. A Cidade Bela possui muito mais es- como uma de suas principais mudanças o fim da pro-
paços definidos do que a cidade dos magnesianos, pode- priedade privada e que todos deveriam entregar imedia-
-se inferir que Magnésia seja então a cidade sã e Kallipolis tamente os seus pertences. Assim, não haveriam ricos e
a excitação, como explicado na República. pobres, gerando ocasionalmente uma ideia de igualdade
Ainda na Grécia Clássica, Aristófanes, comediógrafo, entre as classes econômicas. Decretaram também que as

36 37
mulheres deveriam de ser um bem comum entre o mun-
do dos homens, porém, as mais velhas tinham prioridade 13. (gr. Ὄρνιθες) foi
sobre as mais jovens. representada sob a
Em “Aves”¹³ (414 a.C.), temos dois senhores, Evélpides direção de Calístrato;
obteve o segundo lu-
e Pisetero, desencantados, procuram um lugar melhor gar no concurso dra-
pra morar, pois em Atenas, os impostos eram altos e pre- mático das Dionísias
cisavam ser pagos: “Não odiamos aquela cidade pelo que Urbanas. Lesky (1995,
p. 468) a considera a
ela é: grande por natureza, feliz e comum a todos que pa- mais perfeita comédia
gam taxas” (ARISTÓFANES, 2006, vv. 35-6). Para Magaldi, aristofânica.
a peça “representa o momento mais perfeito da criação
de Aristófanes” ( 1999, p. 31), justamente por satirizar a pó-
lis ateniense por completo, através de uma “insuspeitada
metáfora poética”. Ao longo do enredo, os dois velhos pro-
curam Tereu, um lendário homem-pássaro que, persuadi-
do pelo segundo velho, convoca outros pássaros, assim, os
senhores se transformam em aves, que ao lado dos outros
formam o coro e, juntos, constroem uma fantástica cidade
nas nuvens, entre a realidade dos deuses e dos humanos:

“Pisetero – Digamos, o universo delas. Só que, como


gira e tudo cá vem parar, é conhecido hoje em dia por
“orbe”. Colonizem-na, fortifiquem-na com muralhas, e
de “orbe” vai passar a chamar-se “urbe”. De tal forma
que vocês vão andar em cima dos homens como de
gafanhotos. E quanto aos deuses, vão dar cabo deles à
fome, uma fome de fa...mélios.” (ARISTÓFANES, 2006,
vv. 180-185).

Para que a construção de sua cidade pudesse continu-


ar, declaram então guerra aos deuses olímpicos, obrigan-
do-os a negociar com as vitoriosas aves. Magaldi chama a
atenção quando diz que Aristófanes, “ao invés de satirizar
os vícios próximos, no cenário habitual, criou uma cidade
imaginária, na qual se reproduzem os males conhecidos.”
(MAGALDI, 1999, p. 31). Pois se Cuconuvolândia foi criada
para se fugir de responsabilidades como os pagamen-
Figura 02. Representação da ence- tos de taxas para o governo, a mesma estaria para sem-
nação da peça “Aves” de Aristófanes.
pre fadada a moradores e visitantes de má índole. Após
Por Henry Gillard Glindoni (1852-
1913). 16.6 x 23.7 cm perceberem isso, o coro original de pássaros ao finalizar a
cidade e a cosmogonia das aves, decidiram que nenhum
visitante mais poderia adentrar a cidade, pois todos que
tentavam, o faziam somente por interesse de fugirem dos

38 39
impostos. na primeira peça uma catábase, onde a personagem Dio-
14. (gr. Ἀχαρνεῖς) é
Em “Acarnenses”¹⁴ (425 a.C.), única comédia de Aris- niso, desencantado pela falta de poetas trágicos em Ate- 16. Antigo peso mo-
a terceira comédia tófanes em que uma personagem fala explicitamente em nas, decide ir ao mundo dos mortos, desce ao Hades com netário encontrado
de Aristófanes que nome do autor, ridicularizando os partidários da Guerra a missão de trazer o poeta Eurípides de volta à vida. Na se- em muitas cidades-es-
conhecemos, a mais tados gregas e Estados
antiga que chegou até
do Peloponeso¹⁵, por meio da personagem principal, Di- gunda peça, vemos uma anábase, onde vemos Trigeu, um sucessores, e em mui-
nós na íntegra e é, ceópolis. O camponês, que farto das privações e conse- besouro de esterco monstruoso voar até os céus a procura tos reinos do Médio
portanto, a mais anti- quências da guerra, vai à pólis exigir providências da As- da deusa perdida Paz, somente para descobrir que o deus Oriente do período
ga comédia da litera- helenístico.
tura grega.
sembleia, mas a encontra vazia, só usada por hipócritas. da guerra já havia a enterrado. Esta, segundo as simbo-
Decide então comprar a paz para si por oito dracmas¹⁶: logias e imagens descritas no texto de Aristófanes, pode
“Toma lá estas oito dracmas e vai, em meu nome, fazer ser entendida também como uma descida aos infernos. É
17. Dionísias Urba-
15. Peloponeso é uma
tréguas com os Lacedemônios, só para mim, para os meus possível fazer uma conexão entre as duas dramaturgias e nas (gr. Διονύσια τὰ
extensa península filhos e para a minha mulher.” (ARISTÓFANES, 1980 vv. ao mito de Er²¹, encontrado na “República”, e como os diá- ἐν Ἄστει) ou Gran-
montanhosa no sul 130). Instaurada a paz, advinda da compra de Diceópolis, logos sobre a morte se desenrolam de forma semelhante. des Dionísias (gr.
da Grécia, com 21 439 Διονύσια τὰ Μεγάλα)
quilômetros quadra-
iniciam-se às comemorações das Dionísias Rurais¹⁷, que A primeira cidade proposta por Platão, Kallipolis, asseme- eram uma das mais
dos, unida ao conti- se apresenta neste texto como um agradecimento e culto lha-se com as cidades presentes nos desejos das persona- importantes festas re-
nente pelo istmo de direto a Dionísio, pois se a própria comédia já por si um ri- gens de Aristófanes. Por fim, é possível compreender em ligiosas de Atenas. Era
Corinto. Onde ocor- dedicada ao deus Dio-
reu a Guerra do Pelo-
tual para honrar o do vinho, das festas, da alegria e do tea- suas peças, que é através de sua poiesis (comédia) que o niso e celebrada todos
poneso, um conflito tro, nesta peça em particular, é observável uma importan- comediógrafo trabalha e apresenta as fragilidades da prá- os anos no início da
entre as cidades-es- te fonte quanto a performance ritualística nas falofórias¹⁸ xis das cidades e as suas possibilidades de mudança para primavera — fins de
tados gregas Atenas e março e início de abril
Esparta, no século V
e nos cortejos relacionados ao culto à fertilidade: com o povo e a cidade. Assim, podemos afirmar que Aris- —, no mês conhecido
a.C., pela disputa do tófanes, ao longo de suas obras, acena para o público a por elaphebolión (gr.
domínio da Grécia “Filha – Mãe, dá-me cá a colher, para eu espalhar o busca por mundos utópicos. ἐλαφηβολιών).
Antiga. As duas cida- purê em cima deste bolo.
des encabeçaram as
No entanto, dando um salto no tempo, o filósofo, diplo-
principais alianças mi- Diceópolis: Pronto, está bem assim. Dioniso, meu se- mata e escritor Thomas More, ao criar e utilizar da palavra
litares da época: a Liga nhor, que te seja agradável este cortejo que aqui te “utopia” em sua obra de mesmo nome, firmou um novo 18. Festas que ocor-
de Delos, liderada por trago, e os sacrifícios que faço em tua honra com toda riam na Grécia anti-
Atenas, e a Liga do Pe-
indicativo ou descrição literária de comunidade perfeita e ga em honra do falo,
a minha gente. Que eu possa celebrar, feliz, estas Dio-
loponeso, comandada inexistente (como a etimologia da palavra expressa). Uto- cuja representação em
pelos espartanos. A nísias Rurais, longe das fileiras, e que essas tréguas que forma de imagem era
pia gerou o adjetivo utopista, ou seja, aquele que está em
guerra durou aproxi- acordei por trinta anos me tragam a felicidade.”(ARIS- adorada e transporta-
madamente 30 anos e
busca do não lugar, do inexistente, do sonho, da fantasia, da em procissão.
TÓFANES, 1980, vv. 245-252).
foi decisiva para o fim do irreal e do impossível. Sendo utilizado também de for-
da Era Clássica grega. ma negativa ao se referir àqueles que perseguem utopias,
A guerra foi vencida Fales, companheiro de Baco, seu conviva, noctívago,
por Esparta, mas seu adúltero, pederasta, ao fim de seis anos pude agora idealistas não contentes com o mundo em que habitam.
domínio sobre a Gré- saudar-te, de regresso à minha terra, com o coração Para a construção de sua obra, More se inspira em Platão
cia não durou muito em festa, depois de ter feito umas tréguas só para (A República e As leis) e nos relatos das viagens ao “novo
tempo. Os espartanos
não conseguiram im- mim, livre de questões, de lutas, e de Lâmacos.” (ibi- mundo”. Como ressalta Bloch:
pedir a invasão dos dem. vv. 265-270).
macedônios, lidera- “Contos de navegantes fornecem a roupagem mes-
dos por Filipe II.
Ao desfrutar da paz, o camponês e representante da mo para utopias sociais notórias, como no caso de
cidade justa, goza de uma vida sem conflitos, se deleitan- Thomas Morus; nessa moldura aparece a felicidade,
do dos prazeres físicos provenientes de Dioniso: bebida, muitos antes que os tempos estivessem maduros
comida e sexo. para ela...”. (BLOCH, 2006, p. 31-32).
Em “Rãs”¹⁹ (405 a.C.) e “Paz”²⁰ (421 a.C.), observamos

40 41
A Utopia, de More, foi publicada em 1516 e é dividida bém com a chegada dos navios europeus em territórios 22. O estudioso Ed-
19. (gr. Βάτραχοι), foi mundo O’Gorman,
representada pela pri- em duas partes. Contendo na primeira parte um diálo- americanos. Então era comum nesta época a ideia do Pa- em sua obra “A in-
meira vez em Atenas, go que apresenta a situação social e política presente na raíso Terrestre²², pois Colombo alegou de início ter encon- venção da América”
nas Leneias, e recebeu Inglaterra do século XVI, momento esse de absolutismo trado o paraíso ao chegar às Américas, pois havia muita (1992), descreve o Pa-
o primeiro prêmio. raíso Terrestre como
e marcado pela divisão desigual de terras. Na segunda água doce e paisagens espetaculares. Por esse motivo, é um espaço encontra-
e maior parte do texto, que é de interesse do presente possível fazer uma analogia entre a ilha, a esta ideia de do numa porção aus-
pensamento, Rafael Hitlodeu²², inglês e marinheiro, par- paraíso e ao “novo mundo”²³. Após as descrições passa- tral e alta de terras,
20. (gr. Εἰρήνη), foi fonte de água doce
representada pela ticipante das reflexões quanto a realidade exposta na pri- das, Rafael Hitlodeu apresenta mais considerações sobre proveniente de quatro
primeira vez nas Dio- meira parte, descreve nesta a ilha de Utopia, que havia co- a Utopia: grandes rios. Colom-
nísias Urbanas de nhecido durante uma expedição com Américo Vespúcio. bo, ao chegar a terras
Atenas, e recebeu o americanas, pensou
segundo prêmio. A ilha da Utopia tem duzentos mil passos em sua maior “A ilha da Utopia tem cinquenta e quatro cidades ter encontrado esse
largura, situada na parte média. Esta largura diminui gra- espaçosas e magníficas. A linguagem, os hábitos, as Paraíso.
dual e sistematicamente do centro para as duas extremi- instituições, as leis são perfeitamente idênticas. As
dades, de maneira que a ilha inteira se arredonda em um cinquenta e quatro cidades são edificadas sobre o
21. História que Platão
conta no livro X em “A semicírculo de quinhentas milhas de arco, apresentando mesmo plano e possuem os mesmos estabelecimen- 23. Novo Mundo é um
República” (PLATÃO, tos e edifícios públicos, modificados segundo as exi- dos nomes dado ao
a forma de um crescente, cujos cornos estão afastados
1993, p.449). Trata-se gências locais. A menor distância entre essas cidades hemisfério ocidental,
de um relato, transmi- onze mil passos aproximadamente. (MORUS, 1997, p. 57) mais especificamente
é de vinte e quatro milhas, a maior é de uma jornada
tido oralmente, de al- Vemos que a ilha é então um continente, pouco mais ao continente ame-
guém que retornou do
a pé.” (ibidem, p. 58) ricano. O termo tem
a frente, descobrimos que ela é subdividida em outros
Hades. No mito de Er, as suas origens nos
o essencial é que fos- espaços menores, que podem ser chamados de microes- “Amaurota é a capital da ilha, sua posição central finais do século XV
sem quais fossem as paços. Destes, podemos dar destaque aos espaços cria- transformou-a em ponto de reunião mais convenien- em razão da desco-
injustiças cometidas e dos pelo povo, sendo: as cidades, as praças, as habitações, berta da América por
as pessoas prejudica-
te para todos os deputados. Um mínimo de vinte mil Cristóvão Colombo. A
das, as almas injustas as ruas, os mercados, entre outros. E também podemos passos de terra é destinado em cada cidade à produ- descoberta deste novo
pagavam a pena de apreender quanto aos espaços naturais da ilha, que não ção dos artigos de consumo e à lavoura. Em geral, a continente expandiu o
quanto houvessem dependem da ação humana, como as montanhas, lagos, extensão do território é proporcional ao afastamento horizonte geográfico
feito em vida, a fim de dos europeus que até
purificarem a alma. rios e a flora. Pela fala da personagem, a concepção de das cidades. Estas felizes cidades não procuram os então consideravam
paraíso se encaixa perfeitamente aqui, tendo em vista que limites fixados pela lei. Os habitantes se olham mais a Europa, a África e
as descrições direcionam perfeitamente a ilha para um lu- como rendeiros do que como proprietários do solo.” a Ásia como os úni-
(ibidem, p. 58) cos constituintes do
gar paradisíaco. Este semicírculo descrito pelo autor, é na Mundo. Em contraste
verdade um porto da orla marítima, um lugar calmo e se- com o Novo Mundo,
reno, que facilita o ataque dos navios: Vemos que como em qualquer nação tradicional, essa os continentes euro-
ilha possui uma capital, chamada Amaurota. Em “Vivendo peu, africano e asiáti-
co formavam o Velho
“O mar enche esta imensa bacia; as terras adjacen- a Filosofia” de Chalita (2014), o autor aponta que a palavra Mundo.
tes que se estendem em anfiteatro quebram o furor Amaurota tem origem grega e pode ser traduzida como
dos ventos, mantendo as águas calmas e pacíficas, e “a cidade que se esvanece”, aquela que se esvazia, desapa-
dando a esta grande massa líquida a aparência de um rece, se desfaz. Também é possível traduzi-la para “aquela
lago tranqüilo. Esta parte côncava da ilha é como um que some como a miragem”. A capital é como de costu-
único e vasto porto acessível aos navios em todos os me o local onde acontecem as assembleias e os encontros
pontos”. (MORUS, 1997, p. 57) dos políticos e responsáveis pela justiça e paz deste país. A
política de Utopia é organizada em formato de república,
A publicação do texto de More, coincide com o início da qual é administrada por um conselho eleito por voto
das rotas marítimas dos espanhóis e portugueses e tam- pelos cidadãos:

42 43
“A população é dividida em grupos de 30 famílias;
cada um dos quais elege, anualmente, um funcioná-
rio denominado sifogrante. (...) Cada cidade tem du-
zentos sifograntes responsáveis pela eleição do prín-
cipe, o qual é escolhido pelo voto secreto depois de os
sifograntes terem feito o juramento solene de eleger o
homem que consideram mais qualificado para o car-
go” (...)

“O príncipe conserva o cargo por toda a vida, a menos


que se suspeite que o titular deseje instituir uma ti-
rania. Os traníboros são eleitos anualmente, mas em
geral não são substituídos. Todos os outros cargos são
ocupados somente por um ano” (ibidem, p. 82-83).

Assim, esta república prevê mandatos vitalícios, com


um protocolo instaurado em caso de suspeita de tiraria,
pois os sifograntes eleitos pelas famílias, possuem o poder
de retirar o príncipe do cargo maior e também os altos
oficiais escolhidos previamente entre a casta dos sábios.
Dessa forma, vemos que os utopianos adotaram uma re-
pública com um regime democrático indireto. Por outro
lado, More, devido às circunstâncias e aos ideais pregados
no século XVI, exclui quase que totalmente as mulheres
dos espaços políticos e da participação efetiva para com
a população. A obra apresenta também a ideia de uma
hierarquia social e a existência de escravos, que além de
revelarem influências do imaginário clássico de socieda-
de perfeita da época de sua publicação, apresenta tam-
bém as contradições presentes nesta utopia. Fábio Joly ao
discorrer quanto às utopias gregas, conclui que as socie-
dades imaginárias como as de Platão, possuem “um viés
mais hierárquico do que propriamente igualitário”, o que
“acaba reforçando hierarquias e desigualdades que lhe
são inerentes, como a escravidão” (JOLY, 2011, p. 26-34).
Figura 03. Mapa da Utopia de More, 1595.
A escravidão é então um mal que o autor não baniu de Por Abraham Ortelius, courtesy of Thomas
sua sociedade utópica, talvez por ele não ter entendido que Fisher Rare Book Library, University of To-
ronto.
se tratava de um mal. Ao expor, o que hoje vemos como
contradições sociais, More pode não tê-las pensado como
contradições, mas como situações inerentes à condição
humana, que mesmo no paraíso terrestre — onde se exis-

44 45
te e necessita do trabalho — ou nos modelos da antigui- medo da morte”. Isso quer dizer que, em uma sociedade
24. (gr. Περὶ τῆς
dade de paraíso celeste, onde a hierarquia e a escravidão ideal, todos teriam direitos e condições iguais de vida e se-
Οὐρανίας Ἱεραρχίας) eram presentes. O Areopagita ou Pseudo-Dionísio, em “A riam por sua vez, felizes (o que não acontece inteiramente
é um livro composto Hierarquia Celeste”²⁴, obra mencionada pela primeira vez na proposta de Thomas More). A utopia, nesse contexto,
de quinze capítulos,
que tratam das hierar-
em Constantinopla em 532. Naquela época, ela era atribu- deixa de ser um lugar ideal para se tornar um modelo de
quias dos anjos, onde ída a Dênis, o Areopagita, personagem convertido por São sociedade perfeita.
os mais próximos de Paulo em Atenas e que teria se tornado, depois, o primeiro Quando Karl Marx discorre sobre a Utopia de More:
Deus estão os Serafins,
Querubins e os Tro-
bispo desta cidade. Na realidade, o Pseudo-Dênis parece “Em sua Utopia, Thomas Morus fala de um país singular
nos, seguido dos Do- ter sido um escritor sírio do final do século V e início do VI. onde “as ovelhas devoram os seres humanos.” (1985, p.
mínios, Virtudes e dos Era provavelmente um neoplatônico convertido ao cristia- 265). Nas palavras de Thomas More:
Poderes, em terceiro
estão os Principados,
nismo, e que se tornou referência para o paraíso de Dante,
Arcanjos e Anjos. e para o próprio More, pois em sua obra, havia concebido “Essas plácidas criaturas [os carneiros] que antes exi-
e exposto o universo como uma máquina puramente hie- giam tão pouco alimento, mas que agora, aparen-
rárquica: temente, se transformaram em devoradores de ho-
mens. Campos, casas, cidades, tudo lhes desce pelas
“Pelo que nossa sagrada hierarquia foi estabelecida gargantas”. Thomas More (1997, p. 31)
por disposição divina imitando as hierarquias celestes
que não são deste mundo. Mas as hierarquias imate-
riais se revestiram de múltiplas figuras e formas mate- DO CONCEITO MODERNO DE UTOPIA
riais para que, conforme a nossa maneira de ser, nos
elevemos analogicamente a partir destes sinais sa-
grados até a compreensão das realidades espirituais, Pretendo seguir a pesquisa e a escrita deste capítulo
simples, inefáveis.” (DIONISIO, 1995, p. 104) apresentando — antes do pensamento utópico nos tra-
balhos artísticos contemporâneos ao século XXI — a con-
A esperança é tão antiga quanto o gênero humano e tinuação do aprofundamento nas ideias e propostas dos
pode ser encontrada até mesmo nos preceitos do Antigo filósofos da modernidade, seguindo com o socialista e
Testamento. Paradoxalmente, utopias prometem o “pa- teórico político Karl Marx, apresentando suas conexões e
raíso”, mas embutem aspectos sombrios que ameaçam desconexões com o pensamento de utopia presente em
transformar os mais belos sonhos em pesadelos, e o céu sua obra “O Capital” (1867). E já numa filosofia contempo-
em inferno. Neste sentido, é sintomático que a república rânea, discorrerei a seguir quanto aos pensamentos do
de Utopia seja imperfeita, como imperfeitos são os seus filósofo, historiador das ideias e teórico social Michel Fou-
construtores, os seres humanos. Não por acaso, seu inter- cault, sobre suas ideias quanto aos corpos utópicos e as
locutor chama-se Hitlodeu, palavra composta de origem heterotopias. Trarei também o escritor, xamã e líder polí-
grega que significa “especialista em disparates”. tico Yanomami, Kopenawa, para pensarmos sobre a obra
Ao apresentar minuciosamente em seus capítulos, escrita “A queda do céu: Palavras de um xamã yanoma-
os magistrados, as artes e os ofícios, as relações mútuas mi” (2015) e a obra documental “A Última Floresta” (2021) e
entre os cidadãos, as viagens dos utopianos, as guerras, suas relações com as “utopias” propostas advindas da re-
e as religiões de sua utopia, o autor apresenta uma socie- alidade econômica, social e de desmatamento presentes
dade ideal, onde não existem pobreza ou doenças. Mui- no Brasil. Reforçando este pensamento, discorrerei tam-
tos acreditam que Utopia é um lugar onde tudo funciona bém quanto aos livros: “Ideias para adiar o fim do mundo”
perfeitamente, mas aqui esse conceito vai além disso. Pois (2019), “A vida não é útil” (2020) e “O amanhã não está à
segundo More, Utopia é “um lugar onde ninguém tem venda” (2020) do líder indígena, ambientalista e filósofo,

46 47
Ailton Krenak.

ARTE E UTOPIA
Seguindo com o conteúdo deste capítulo e pensando
nas produções artísticas recentes que utilizam do concei-
to principal deste trabalho, vemos que a Utopia da cantora
e compositora Björk, é um desafio para os nossos tempos.
Em uma era assolada por pronunciamentos constantes de Figura 04.
destruição, que usar a palavra utopia para apresentar um Fotografia da
contora Bjork.
trabalho tão fantástico e onírico, e que não seja no sentido Por Santiago
irônico, pode parecer um ato de loucura. Pois dizem-nos, Felipe, 2017.
repetidamente, que a vida no planeta terra está piorando
e a raça humana enfrenta a desgraça e a iminente extin-
ção. Em nossa era atual, tornou-se moda declarar que o
progresso é uma mentira, a democracia uma farsa e que a
liberdade é apenas um sonho. Tendo entendido que uto-
pia notoriamente significa “bom lugar” e ao mesmo tem-
po “nenhum lugar”, vemos que o álbum de Bjork, Utopia
(2017), é ambos. A cantora cria uma paisagem sonora atra-
ente misturando cantos de pássaros, sons naturais, bati-
das eletrônicas e sua voz única, que nos transporta para
um espaço realmente pacifico. Utopia é um verdadeiro
Figura 05.
álbum no sentido original da palavra. Ao escutarmos en- Capa do Album
contramos coisas que não sabíamos que existiam, como Utopia - Bjork.
Por Jesse Kanda,
novos sons e novas experiências. É também um álbum no 2017.
sentido de que devemos ouvi-lo até o fim, pois é compos-
to por um ciclo de canções, e como a utopia, forma um
todo.
Utopia, como vimos na obra literária de More, também
pode significar descoberta, o encontro com um lugar
novo e melhor. E tendo em vista que nas obras clássicas
de cânone utópico, normalmente há um viajante que ao
despertar ou encontrar um mundo novo, acha-o belo, mas
sabe que só pode viver nesse mundo se estiver disposto a
deixar para trás seu mundo antigo. O álbum não se distan-
ciando disso, é lançado com a proposta de levar o ouvinte
a uma viagem para um mundo inédito, desconhecido e
pronto para ser explorado. Há dor e alegria na realização
da utopia. Ao aceitar a proposta e embarcar nesta viagem
poética, Björk nos conduz para um despertar, seguido de

Figura 06.
48 Fotografia da 49
contora Bjork.
Por Santiago
Felipe, 2017.
uma aventura por este mundo fantástico e, finalmente, à
aceitação da não realidade e uma nova sensação de espe-
25. Original: “Utopia
it isn’t elsewhere rança, aqui estamos de fato superando a realidade de um DO CONCEITO DE DISTOPIA
it’s here.” (BJORK, “mundo antigo” e permanecendo propensos a pensar e
2017, faixa 04)
experienciar novas realidades. Para compreender os afetos de um ser distópico, é ne-
Pensando sobre a ideia de mudar o mundo como ele cessário analisar os traços que o caracterizam. Segundo
existe hoje, a artista propõe na faixa-título da obra: “Utopia Michel Foucault, um ser distópico é aquele que está fora
26. Original: “Imagine
não está em outro lugar. Ela está aqui”²⁵ (BJORK, 2017, fai- do sistema e não se submete a ele, e este, segundo o au-
a future and be in it”
(BJORK, 2017, faixa xa 04). E na faixa final “Future Forever”, reforça: “Imagine tor, pode se mostrar transgressor e rebelde quanto as po-
14) um futuro e esteja nele”²⁶ (ibidem, faixa 14). Esta é a uto- líticas que o regem.
pia em poucas palavras, a crença de que podemos moldar Para essa pessoa, a sociedade é um espaço de opres-
o mundo através de atos e escolhas. Que não estamos à são e repressão e por isso, os afetos de um ser distópico são
mercê de forças além do nosso controle. Para a composi- negativos: ele se sente oprimido, rejeitado e marginaliza-
tora, o amor é a força que molda o mundo, o amor livre e do, e essas injustiças estão relacionadas com sua rebeldia
sem medo ou coerção. e seu desejo de transgressão. Ele acredita na mudança, na
Porém, a utopia de Björk, como todas as utopias, é am- revolução e na destruição da desigualdade social, econô-
bígua. Pois utopia pode sim significar um lugar próspero, mica e fascista da atualidade. Para ele, a distopia não é um
mas temos que nos perguntar que tipo de prosperidade lugar ideal, mas um espaço de luta e resistência.
é essa? É um espaço que inclui a todos? Ou é um lugar li- Ele não se identifica com os valores e ideais de sua so-
mitado a alguns seletos? É grande e expansivo, que cobre ciedade e sonha e busca e cria sua própria identidade, seu
um mundo, uma nação, uma cidade? Ou é pequeno e re- próprio mundo. Por esse motivo, pretendo neste momen-
traído, fornecendo abrigo apenas para nós e aqueles que to do texto, através de filósofos, teóricos e artistas contem-
escolhemos amar? As respostas a essas perguntas não porâneos como o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros
são claras, mas à medida que acompanhamos Björk atra- de Castro, o filósofo francês Bruno Latour, a escritora Ursu-
vés de suas canções e música, a vemos defendendo fiel- la K Le Guin, a filósofa belga Isabelle Stengers, a antopólo-
mente quanto a necessidade urgente da humanidade se ga norte-americana Anna Tsing e a filósofa estadunidense
redimir e consertar má escolhas e falhas do passado para Donna Haraway, e outros possíveis autores que trabalham
que possamos então criar uma lousa em branco na qual sobre este tema e trazem questõs, pensamentos e discus-
nós e nossos filhos poderemos escrever uma nova história. sões atuais quanto ao conceito contemporâneo de disto-
O quão grande é a história que escreveremos, seja uma pia.
que abarque o mundo ou apenas o nosso círculo familiar,
cabe a nós decidir.
Este álbum pode ser visto, pensando metaforicamen-
te, como um espelho, pois a música só tem significado
quando refletimos sobre ela, assim como nossa reflexão
só tem significado quando olhamos atentamente para
nós mesmos. No fim, a utopia é o que fazemos dela.

50 51
II. A COSMOLOGIA, oi
O MUNDO bcvaw
E A FÉ hahuifwh
52 5353
II. A COSMOLOGIA,
O MUNDO
E A FÉ
“As ruínas agora são nossos jardins.”

(TSING, 2018, p. 381)

Antes do início não havia nada, apenas o Vazio. Tudo


estava a ponto de começar, as ruínas do nada eram ainda
sem forma, e a escuridão era total.
Após uma infinitude, o Vazio, cansado de sua monó-
tona e solidão existência, com muito esforço, vontade e
amor, deu à luz a grande Mãe, a Grande Criadora e fértil
divindade maior, Próta, que ao nascer começou imedia-
tamente a cantar para o seu criador. Ele, por sua vez, ficou
imediatamente encantado por aquela nova existência
que já nascera trazendo a inédita sensação do som e que
possuía a capacidade de emitir todas as notas sonoras
que um dia viria a existir.
Com toda essa potência, a grande Deusa, para fazer
companhia ao Vazio, o presenteou cantarolando épicas

54 55
melodias que continham a capacidade de criar universos férteis prenunciados por Próta.
inteiros em frações de segundos. Ao se confrontarem, nos diversos choques colossais
Próta, para lhe acompanhar em suas potentes melo- que proviam dos encontros diretos dos gêmeos, γ surge,
dias, através de suas canções, iniciou a sua grande criação entidade nascida do caos e da guerra, filha do confronto
dando à luz a seus quatro filhos, as primeiras forças e enti- e da anulação, nasce pela necessidade de resultado, pre-
dades fundamentais: Varýtita, Kó, Dynató e Adýnamo. sente e pronta para soltar seus raios no instante da revo-
Os primeiros descendentes da grande Mãe se junta- gação, esta que carrega consigo a potência de lhes metri-
ram a ela em suas grandes harmonias e com a dança fre- ficar diante das batalhas e lhes conferir justiça dentre as
nética das quatro novas entidades ao lado da fertilidade guerras.
contínua da Mãe, que emitia de suas cordas vocais os pri- Guerras que só chegaram ao fim com o glorioso triun-
meiros sons de harpas e flautas, tambores e órgãos, violi- fo das entidades Quark, Gluon, Lepton, Fotos e Boson, dos
nos e trombetas, sangens e atabaques, maracás e sopros; quais depois de grandiosos conflitos, uma vitória árdua, e
e sendo ambos frutos da pureza da criação, esta majestosa do veredicto radioativo e incontestável de γ, puderam en-
harmonia deu início a primeira simbiose do que existe, do fim festejar as possibilidades de existências que estavam
que não existe e do que estaria por existir, alcançando os por vir e iniciar então a criação de cinco entidades que
cantos das ruínas do vazio e os transcendendo; e a música viriam a ser fundamentais para a futuridade tangível.
e o eco da música saíram, alcançando os altos e os fundos, Assim, a entidade elementar Quark, se apressou e
os lados e as dimensões, dando origem a uma enorme ex- logo deu à luz a dois filhos, as entidades atômicas: Pró-
plosão no vasto vazio, e este, agora não estava mais vazio. tos e Neuter; já seu irmão, Leptón, deu à luz as entidades
Nasce o universo, a existência, a realidade e todas as atômicas: Ílektron, MU e Taf. Que puderam enfim, ao lado
suas dimensões e com isso surge também o grande por- das entidades elementares, gerar o Áthomo, o indivisível,
tal multidimensional que separa e permite a travessia livre o senhor do princípio da matéria.
dos deuses e entidades dentre as recém criadas dimen- Neste instante, Áthomo é o senhor das possibilidades,
sões. é nele que paira a capacidade do futuro e de subsistência
Junto do jovem universo, nasceram as entidades gê- dos cosmos, ele, que foi forjado e nascido com o propósito
meas elementares: Quark e antiQuark, Gluon e antiGluon, de arquitetar, construir e modelar existências físicas, ocu-
Lepton e antiLepton, Fotos e antiFotos, Boson e antiBo- pa seu predestinado lugar e inicia quase que imediata-
son. Das quais, por motivos da simples existência do anta- mente seu ofício e dever nessa épica construção cósmica.
gonismo, discordavam entre si quanto ao futuro do recém Para lhe auxiliar em sua criação, o Indivisível, a partir
parido universo, o que fez com que batalhassem com seus da sua necessidade inquestionável, pariu duas filhas, as
respectivos gêmeos pela sobrevivência e destino da cria- pequenas gêmeas α e β, que nasceram com o domínio so-
ção, iniciando as chamadas Grandes Guerras Gêmeas, que bre algumas matérias, e logo possuíram a responsabilida-
decidiriam o futuro de tudo que poderia vir a existir dentro de de emitir e controlar os raios e radiações que algumas
da existência contínua. Esse momento é conhecido como das criações de seu pai necessitavam para possuírem total
a era Dídymo Pólemo e foi o primeiro teste que a vontade propriedade e importância na realidade universal.
da existência necessitou passar para a sua própria criação. Nasceram também com a grande explosão da Grande
Pois se a Grande Composição havia sido a criação, a Música, cinco entidades edificadoras dos cosmos: as três
expansão e o florescer dos tempos, sendo a visão da Gran- irmãs conhecidas como as divindades cósmicas, Skotádi,
de Mãe e apenas um prenúncio; o mundo acabava de en- a Deusa da matéria escura, Enérgeia, a Deusa da energia
trar no início dos Tempos, e as entidades da existência já escura e Ýli, a Deusa da matéria ordinária; os dois irmãos
possuíam a responsabilidade de batalharem nas Guerras conhecidos como as divindades universais: Chorochrónos,
Gêmeas para que pudessem então concretizar os desejos a Deusa do espaço-tempo e Varaínei, o Deus da gravida-

56 57
de, o grande amor e cuidador de Varýtita.
Skotádi, a Deusa da matéria escura, ao nascer se espa-
lhou por toda a existência do universo e seus domínios são
até os dias de hoje um mistério.
Enérgeia, a Deusa da energia escura é a própria ex-
pansão do universo, com a qual exerce com uma força
descomunal e incompreensível.
Ýli, a Deusa da matéria ordinária, com a ajuda das en-
tidades elementares e atômicas, criou as estrelas, os bura-
cos negros, os pulsares, as galáxias, os corpos celestes, os
aglomerados, as nebulosas, os satélites e tudo o que existe
de tangível.
Chorochrónos, a Deusa do espaço-tempo deu à luz a
um grande véu flexível e invisível que cobriu o universo
inteiro e toda a matéria nele presente. Ele é constante-
mente dobrado, amassado, distorcido e mudado. Ele é o
fenômeno da linearidade e da possibilidade de eventos e
da criação e evolução desenfreada dos cosmos.
Já Varaínei, o Deus da gravidade, criou o fenômeno
universal que mantém dentro do grande véu de Choro-
chrónos, todas as criações de Ýli, em órbita. Fenômeno
esse que exerce entre todas as matérias possuintes de
massa uma grande força atrativa entre si.
As entidades fundamentais, elementares, atômicas,
cósmicas e universais, filhas da grande explosão e aben-
çoadas com a pureza da criação da grande Mãe, ainda re-
gem, expandem e moldam o universo parido da Grande
Melodia.
E assim, estabelecem a existência como a conhece-
mos.O Vazio, construiu morada nas Profundezas do Tem-
po e no meio das incontáveis estrelas, pois com todas as
criações de Próta, ele já não estava mais sozinho. Ela o pre-
encheu com sua fertilidade e suas possibilidades.
Ela permanece e permanecerá para sempre cantan-
do suas melodias para o seu amado Vazio. Se sentarmos
no jardim e ficarmos em silêncio e prestarmos bastante
atenção, ainda conseguimos escutar, mesmo que de lon-
ge, uma bela cantiga.

58 59
II.I A COSMOGONIA

A COSMOGONIA
Coleção de artbooks, desenho, pintura
e escrita sobre papel com fungos,
14,8 x 21,0 cm cada,
2022.

60 61
II.II JARDIM DO ÉDEN

JARDIM DO ÉDEN
Intalação,
615 x 157 x 36 cm,
EM PROCESSO.

62 63
II.III O TAROT

Ágrios
78 cartas em papel couchê
fosco 300g/m²,
7,5 x 15 cm cada,
2021.

64 65
III. A VIDA, jcnddsuyk
AS ANATOMIAS iyi
E A COMUNIDADE a
66 67
67
III. A VIDA,
AS ANATOMIAS
E A COMUNIDADE

68 69
III.I SEPARADES

SEPARADES
Tríptico de artbooks em papel
couchê amassado 90g/m²,
10,5 x 15 cm cada,
2020.
70 71
III.II ANATOMIA#004

ANATOMIA#004
Tríptico de objetos,
9 x 32 x 8 cm cada,
2022.

72 73
III.IV PROLÍFERO

PROLÍFERO
Objeto,
28 x 32 x 6 cm,
2022.
74 75
IV. AS MÁSCARAS, suy
A ESCRITA ncdsy
E OS UTENSÍLIOS hu
76 77
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V. CONCLUSÕES
78 79
79
LISTA
DE
80 8181
LISTA DE FIGURAS
Figura 01. Plano da cidade Magnésia presente em “As Leis“ de Platão.
Por Pierre Vidal-Naquet. “Forms of Thought and Forms of Society in
the Greek World” (1986, p.225, fig.03)_________________________35

Figura 02. Representação da encenação da peça “Aves” de Aristófanes.


Por Henry Gillard Glindoni (1852-1913), 16.6 x 23.7 cm.__________38

Figura 03. Mapa da Utopia de More, 1595. Por Abraham Ortelius, cour-
tesy of Thomas Fisher Rare Book Library, University of Toronto.____45

Figura 04. Fotografia da contora Bjork. Por Santiago Felipe, 2017.___49

Figura 05. Capa do Album Utopia - Bjork. Por Jesse Kanda, 2017.___49

Figura 06. Fotografia da contora Bjork. Por Santiago Felipe, 2017.___49

Figura 07. Obra “BOXMAN” presente na exposição “Fontaine & Metro-


polis” do artista Eser Gündüz, Mixed Midia on Canvas, 2021, 200 x 250
cm.____________________________________________________52

Figura 08. Obra “(CMD#) PH-SPEECH” presente na exposição “Fon-


taine & Metropolis” do artista Eser Gündüz, Mixed Midia on Canvas,
2021, 200 x 250 cm._______________________________________52

Figura 09. Obra “MEMBERS” presente na exposição “Heterotopia&A-


nachronia” do artista Eser Gündüz, Mixed media on polyurethane,
2021, 45 x 39 cm, e Obra “STEALTH MACHINE” presente na exposi-
ção “Heterotopia&Anachronia” do artista Eser Gündüz, Mixed media
on polyurethane, 2021, 30 x 26 cm.___________________________54

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AS
REFE
84 85
85
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