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Anais

Anais do 12º Seminário do GPLV


© 2022 dos respectivos autores
ISSN 2525-7463
PRODUÇÃO EDITORIAL
Coordenação Editorial
Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
Doutoranda Natália Tano Portela
Periodicidade: Anual — Divulgação: Eletrônica
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPTL)
Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ)
Prof. Dr. Edelberto Pauli Junior (UFMS/CPAQ)
Doutoranda Natália Tano Portela (UFMS/CPTL)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPTL)
Prof.ª Dr.ª Kelcilene Grácia-Rodrigues (UFMS/CPTL)
Prof.ª Dr.ª Carina Marques Duarte (UFMS/CPAN)
Prof. Dr. Marcos Rogério Dorneles (UFMS/CAQ/CPTL)
Prof. Dr. Edelberto Pauli Junior (UFMS/CPAQ)
Doutoranda Natália Tano Portela (UFMS/CPTL)
Prof.ª Dr.ª Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins (UFRB/CECULT)
Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza (IFSP)
Prof.ª Dr.ª Maisa Barbosa da Silva Cordeiro (UNIGRAN)
Prof. Dr. Ronaldo Vinagre Franjotti (SED/MS)
Prof. Dr. Rodrigo Andrade Pereira (SED/MS)
E-mail: 12seminariogrupogplv@gmail.com
Site: https://www.even3.com.br/gplv2021/
Plataforma do evento:
https://www.youtube.com/channel/UCCaza3ng962aYMtqM143zQQ/videos
Plataforma do GPLV:
https://www.youtube.com/channel/UC1to_qvGNVTgK0Cjo1Sd2UA
RODRIGUES, Rauer Ribeiro; DORNELES, Marcos Rogério Heck; PORTELA,
Natália Tano. (org.). Anais do 12º Seminário do GPLV, 14 a 16 de novembro de
2021 [recurso eletrônico]. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Aquidauana-MS, Três Lagoas-MS, Corumbá-MS, 2022, 228 p.

editorapangeira.com.br/shop
pangeiaeditorial@gmail.com
ANAIS DO 12º SEMINÁRIO DO GPLV
GRUPO DE PESQUISA LITERATURA E VIDA
2022
SUMÁRIO

Apresentação
9

Programação Geral
14

Resumos das comunicações


22

Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de


Alciene Ribeiro no conto “Pensar axilas”
Amanda Eliane Lamônica Araújo
22

Racismos e o lugar do brincar: “Negrinha”,


de Monteiro Lobato, 1920
Anailta Bastos de Oliveira
Angélica Caetano da Silva
Christian Milena Mwewa.
23

A tradição da menipeia em El Rey


Gallo, de Francisco Santos
Edelberto Pauli Júnior
24

Uma leitura da novela: Os caminhantes de


Santa Luzia, de Ricardo Ramos
Elcione Ferreira Silva
25
A aprendizagem da finitude em dois
poemas de Manuel Bandeira
Elzio Quaresma Ferreira Filho
Antônio Máximo Von Sohsten Gomes Ferraz
26

O sonho das sociedades totalitárias: os elos


discursivos na literatura distópica
Erico Monteiro da Silva
27

Da leitura de mundo à leitura da palavra:


memória, infância e diversidades
Erika Carla Nogueira da Silva
28

O espaço urbano disfórico em Luiz Vilela


Eunice Prudenciano de Souza
29

Literatura e história como instrumentos de


denúncia à cultura de violência na política
brasileira no conto “Sobre a natureza do
homem”, de Bernardo Kucinski
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte
30

In nomine Dei, de José Saramago e A teoria


da encruzilhada, de Anne Ubersfeld- uma
provocação para ler o teatro saramaguiano
Luciana de Cassia Camargo Pirani
31
Violência contra a mulher em “Curuzú la
novia”, de Josefina Plá, e “A parasita
azul” de Machado de Assis
Luiz Roberto Lins Almeida
32

A formação do professor de literatura e o uso


de metodologias ativas: ensinando a ensinar
Maisa Cristina Santos
Paulo Sérgio Martins
33

Conexões críticas e compositivas em Contos


impopulares, de Agustina Bessa-Luís
Marcos Rogério Heck Dorneles
35

Um cosmos de doença e reflexividade:


“Linda, uma história horrível”, de
Caio Fernando Abreu
Mariângela Alonso
36

A poesia feminina no amazonas pelo viés da


modernidade de Violeta Branca
Milena Bruno
37

Compreensão do modernismo e do
CDC em propagandas
Patrícia Socorro da Costa Cunha
38

O ensino de literatura nas produções


curriculares paulistas após a BNCC
Renata Cristina Alves Polizeli
40
Artigos completos
42

Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de


Alciene Ribeiro no conto “Pensar axilas”
Amanda Eliane Lamônica Araújo
43

Racismos e o lugar do brincar: “Negrinha”,


de Monteiro Lobato, 1920
Anailta Bastos de Oliveira
Angélica Caetano da Silva
Christian Milena Mwewa.
81

A tradição da menipeia em El Rey


Gallo, de Francisco Santos
Edelberto Pauli Júnior
120

Uma leitura da novela: Os caminhantes de


Santa Luzia, de Ricardo Ramos
Elcione Ferreira Silva
146

Literatura e história como instrumentos de


denúncia à cultura de violência na política
brasileira no conto “Sobre a natureza do
homem”, de Bernardo Kucinski
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte
186
Um cosmos de doença e reflexividade:
“Linda, uma história horrível”, de
Caio Fernando Abreu
Mariângela Alonso
207

Autores e Organizadores
225
Apresentação

O 12º Seminário do Grupo de Pesquisa


Literatura e Vida - Literatura & Educação:
Perspectivas articulou-se como uma iniciativa
proveniente da interação entre diversas instâncias
acadêmicas da UFMS (campi universitários, programas
de pós-graduação, cursos de graduação e grupos de
pesquisa) e se constituiu numa combinação de diferentes
valências e perspectivas com o desígnio de buscar conflu-
ências teóricas, didáticas, artísticas e sociais.
A realização do evento proporcionou a décima
segunda edição do seminário e propiciou um horizonte
que agregou diferentes instituições, localidades e campi.
Tal como já ocorrera nos seus encontros anteriores, nas
edições junto à Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (nos campi de Três Lagoas, Aquidauana e Corumbá),
à Universidade Estadual de Minas Gerais (em Ituiutaba)
e à Universidade Federal Fluminense (em Niterói).

9
Para a décima segunda realização, a proposta
efetuou um intercâmbio entre os cursos de Letras dos
campi de Aquidauana, Pantanal e Três Lagoas da UFMS,
os programas da Pós-Graduação em Letras (PPG-
Letras), do Mestrado Profissional em Letras
(PROFLETRAS / CPTL / UFMS) e do GEPEJA – Grupo
de Estudos e Pesquisas em Estudos em Jovens e Adultos
da UNICAMP.
De outra parte, assinalou a cooperação de
participantes de importantes instituições nacionais: UFF,
UNICAMP, UFRB e UNIMONTES.
Especialmente, a proposta do evento teve como
um dos temas principais as interfaces entre literatura e
ensino, evidenciando a conjugação de expectativas e
compreensões dos movimentos de escrita literária,
escrita criativa, recepção apreciativa, exame teórico e
prática docente.
Nesta edição o Seminário viabilizou a
participação de docentes, pesquisadores, alunos e
público em geral, possibilitando a apresentação e
recepção de várias palestras, projetos de pesquisa,

10
minicursos, comunicações orais, lançamento de livros e
atividades artísticas.
Dentre essas atividades, destacaram-se as
apresentações das palestras dos docentes André Luiz
Dias Lima (UFF), Nima Imaculada Spigolon
(UNICAMP), Aurora Cardoso de Quadros
(UNIMONTES), Waleska Rodrigues de Matos Oliveira
Martins (UFRB), Carina Marques Duarte (CPAN/
UFMS) e Edelberto Pauli Junior (CPAQ/UFMS), as quais
versaram sobre temas candentes e prementes dos estudos
literários em suas diversas perspectivas.
Outros dois fatores de grande integração junto ao
público foram as realizações dos minicursos e dos
debates de projetos de pesquisa.
Os debates dos projetos de pesquisa retomaram a
tradição do seminário do GPLV em fomentar as
investigações científicas junto às instâncias acadêmicas
da UFMS (como as do PPGLETRAS e do
PROFLETRAS), reverberando às diferentes
comunidades espectadoras determinadas motivações e

11
etapas do desenvolvimento dos estudos de pós-
graduação.
Já a efetivação dos minicursos promoveu uma
interação com os participantes por intermédio da
veiculação de propostas atuais, diferenciadas e críticas, as
quais desdobraram-se em reflexões sociais e acadêmicas.
De maneira semelhante, mas com um propósito
incentivador e catalizador, a apresentação das
comunicações orais reforçou o desígnio de polo
agregador e afirmador da iniciativa científica de
florescimento de novas ações de autoria e coautoria nos
estudos das Letras, afirmando-se nas sessões de “Ensino
de literatura”, “Teoria e crítica literária” e “Literatura e
estudos interdisciplinares”.
Por fim, estes Anais pontuam a grande relevância
de dois âmbitos fundamentais ao universo literário: a
produção artística e a criação editorial.
Nesta edição do Seminário foram apresentados
poemas e contos de grande expressão das instâncias do
“eu-lírico” e da ficcionalidade, e, de outra parte, foi
lançada uma dezena de livros que tratam de horizontes

12
reflexivos dos estudos literários e de obras de composição
literária.
Além dos Anais, ora publicados em formato PDF
de acesso na Loja da Editora Pangeia, com acesso livre as
diversas atividades estão disponíveis no canal do evento
no Youtube, AQUI, enquanto outras atividades do GPLV
estão disponíveis no blog do Grupo, AQUI (com links
para outros blogs que o GPLV criou e mantém), e no
canal do Youtube do GPLV, AQUI.

GPLV / UFMS, 16 de maio de 2022


Marcos Rogério Heck Dorneles
Natália Tano Portela
Rauer Ribeiro Rodrigues
Coordenação Editorial do
12º Seminário do GPLV
Grupo de Pesquisa Literatura e Vida

13
Programação Geral

Terça-feira (16/11)

8h-12h
Minicurso
“Literatura infantil e juvenil: leituras feministas”, pela
Profa. Dra. Maísa Barbosa da Silva Cordeiro
(UNIGRAN).

Minicurso
“O indesejado das gentes - O niilismo e sua presença em
contos de Adalgisa Nery”, pelo Prof. Dr. Ronaldo
Vinagre Franjotti (SED/MS).

13h-14h
Palestra de abertura
“Literatura e Teatro: Invenções do Humano”, pelo Prof.
Dr. André Luiz Dias Lima (UFF).
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).

14h-15h
Palestra
“O cinismo cristão em El rey Gallo, de Francisco Santos”,
pelo Prof. Dr. Edelberto Pauli Junior (UFMS/CPAQ).
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).

14
16h-17h
Sarau on-line
Apresentação: Mayara Bassanelli (UFPR)
Interpretações de Mayara Bassanelli e de Marcos Rogério
Heck Dorneles.
Poemas:
- "Minha sombra", de Jorge de Lima.
- “O único impossível”, de Ovídio Martins.
- “Poema pouco original do medo”, de Alexandre
O'Neill.
- "Poema de João", de Noémia de Sousa.
Conto:
"Fugaz", de Marcos Rogério Heck Dorneles.

19h – 23h
Debate de projetos
Debatedora: Profa. Dra. Eunice Prudenciano de Souza
(IFSP)
1. “A literariedade na produção infantil de Alciene
Ribeiro” (Pesquisa de Karina Torres Machado).
2. “O corpo jurídico da mulher: violência psicoemocional
em contos de Alciene Ribeiro” (Pesquisa de Maisa
Cristina Santos).

Debate de projetos
Debatedor: Prof. Dr. Ronaldo Vinagre Franjotti
(SED/MS)
3. “E não foram felizes para sempre: um percurso literário
anual permeado por finais trágicos” (Pesquisa de Raquel
de Oliveira).

15
Quarta-feira (17/11)

8h-9h
Palestra
“Literaturas de autoria feminina nos programas de pós-
graduação: novos trânsitos e velhas fronteiras”, pela
Profa. Dra. Waleska Rodrigues de Matos Oliveira
Martins (UFRB/CECULT).
Mediação: Profa. Dra. Eunice Prudenciano de Souza
(IFSP)

9h-10h
Palestra
“O homem como autor da vida em Nietzsche e Pessoa”,
pela Profa. Dra. Carina Marques Duarte (UFMS/CPAN).
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).

10h-12h
Debate de projetos
Debatedora: Profa. Dra. Waleska Rodrigues de Matos
Oliveira Martins (UFRB/CECULT).
4. “A leitura literária na sala de aula: aprender se
divertindo” (Pesquisa de Catia Mendes Pereira).

Debate de projetos
Debatedor: Prof. Dr. Rodrigo Andrade Pereira
(SED/MS)

16
5. “Os cinco planos narrativos na leitura de Mulher
explícita: a criação de uma nova taxonomia contística”
(Pesquisa de Fabiane Lemos de Freitas Garcia).

Debate de projetos
Debatedor: Prof. Dr. Edelberto Pauli Junior
(UFMS/CPAQ).
6. “A construção de um percurso literário para o Ensino
Médio” (Pesquisa de Edilva Bandeira).

13h-17h
Minicurso
“A face pública de Narciso: A ars poetica e as entrevistas
de escritores – vida e obra de Luiz Vilela”, pelo Prof. Dr.
Rodrigo Andrade Pereira (SED/MS).

Minicurso
“A representação da violência de gênero na literatura
brasileira contemporânea”, pela Dra. Pauliane Amaral
(UFMS).

Minicurso
“A formação do professor leitor”, pela Profa. Dra. Karina
de Fátima Gomes (SED/SP).

Minicurso
“Aspectos do espaço ficcional nos romances de Adriana
Lisboa”, pelo Dr. Osmar Casagrande Junior (UFMS).

17
19h- 23h
Sessão de comunicações
“Ensino de literatura. A-01”
Coordenação: Prof. Dr. Ronaldo Vinagre Franjotti
(SED/MS).
- “O ensino de literatura nas produções curriculares
paulistas após a BNCC” (Renata Cristina Alves Polizeli).
- “Da leitura de mundo à leitura da palavra: memória,
infância e diversidades” (Erika Carla Nogueira da Silva).
- “A formação do professor de literatura e o uso de
metodologias ativas: ensinando a ensinar” (Maisa
Cristina Santos /Paulo Sérgio Martins).

Sessão de comunicações
“Teoria e crítica literária. A-02”
Coordenação: Dr. Osmar Casagrande Junior (UFMS).
- “Uma leitura da novela: Os caminhantes de Santa Luzia,
de Ricardo Ramos” (Elcione Ferreira Silva).
- “A aprendizagem da finitude em dois poemas de
Manuel Bandeira” (Elzio Quaresma Ferreira Filho /
Antônio Máximo Von Sohsten Gomes Ferraz).
- “O sonho das sociedades totalitárias: os elos discursivos
na literatura distópica” (Erico Monteiro da Silva)
- “In nomine dei, de José Saramago e A teoria da
encruzilhada, de Anne Ubersfeld- uma provocação para
ler o teatro saramaguiano” (Luciana de Cassia Camargo
Pirani)

18
Sessão de comunicações
“Teoria e crítica literária. A-03”
Coordenação: Profa. Dra. Eunice Prudenciano de Souza
(IFSP)
- “O espaço urbano disfórico em Luiz Vilela” (Eunice
Prudenciano de Souza)
- “Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de Alciene
Ribeiro no conto ‘Pensar axilas’” (Amanda Eliane
Lamônica Araújo).

Sessão de comunicações
“Teoria e crítica literária. A-04”
Coordenação: Doutoranda Natália Tano (UFMS/CPTL).
- “A poesia feminina no Amazonas pelo viés da
modernidade de Violeta Branca” (Milena Bruno
Ferreira).
- “Violência contra a mulher em Curuzú la novia, de
Josefina Plá, e ‘A parasita azul’, de Machado de Assis
(Luiz Roberto Lins Almeida).
- “Racismos e o lugar do brincar: ‘Negrinha’, de Monteiro
Lobato, 1920 (Anailta Bastos de Oliveira /Angélica
Caetano da Silva / Christian Muleka Mwewa).

Quinta-feira (18/11)

8h-9h
Palestra
“A literatura africana no Brasil: pressupostos e práticas”,
pela Profa. Dra. Aurora Cardoso de Quadros
(UNIMONTES).

19
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).

9h- 12h
Sessão de comunicações
“Literatura e estudos interdisciplinares. B-01”
Coordenação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).
- “Literatura e história como instrumentos de denúncia à
cultura de violência na política brasileira no conto ‘Sobre
a natureza do homem’, de Bernardo Kucinski” (Fernanda
Amélia Leal Borges Duarte)
- “Um cosmos de doença e reflexividade: ‘Linda, uma
história horrível’, de Caio Fernando Abreu” (Mariângela
Alonso)
- “Compreensão do modernismo e do CDC em
propagandas” (Patrícia Socorro da Costa Cunha).
- “Conexões críticas e compositivas em Contos
impopulares, de Agustina Bessa-Luís” (Marcos Rogerio
Heck Dorneles).

15h-18h
Lançamento de livros
Coordenação: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
(UFMS/CPTL)
- A face pública de Narciso: a ars poetica e as entrevistas
de escritores – vida e obra de Luiz Vilela, de Rodrigo
Andrade Pereira.

20
-O Jesus Homem, de Plínio Marcos: teatralidade e
representação, de Amanda Eliane Lamônica Araújo.
– O silêncio e o sagrado: aspectos estéticos de Os
caminhantes de Santa Luzia, de Ricardo Ramos, de
Elcione Ferreira Silva.
- Do sapo ao príncipe: a formação do leitor literário, de
Fabiane Lemos de Freitas Garcia.
- O pobre de Assis: a representação de uma memória, de
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte.
- Artesania descritiva nos romances de Adriana Lisboa,
de Osmar Casagrande
- O ensino da música na perspectiva da Lei 11.769/2008: a
experiência da Escola Municipal Comendador Hirayuki
Enomoto, de Pereira Barreto/SP, de Paulo Cezar Pardim
de Sousa.
- Ab ácido: estórias, de Rauer Ribeiro Rodrigues,
- Nos tempos do Corona, de Rauer Ribeiro Rodrigues,
- O Guri cheio de arte e a Baleinha Jubarte, de Rauer
Ribeiro Rodrigues.

19h-21h
Conferência de encerramento
“Elza Freire: o método Paulo Freire nas aulas de
literatura”, com a Profa. Dra. Nima Imaculada Spigolon
(UNICAMP).
Mediação: Profa. Dra. Maísa Barbosa da Silva Cordeiro
(UNIGRAN).

21
Resumos das Comunicações

Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de


Alciene Ribeiro no conto “Pensar axilas”

Amanda Eliane Lamônica Araújo


amanda.lamonica@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho apresenta primeiramente


as considerações sobre o gênero Conto, do que venha ser
e suas características, bem como seu percurso ao longo
da literatura, sobretudo do conto brasileiro contempo-
râneo, porque esta questão prende-se ao caráter
ensaístico e autorreflexivo do conto a ser analisado, da
escritora mineira, Alciene Ribeiro Leite, “Pensar axilas”,
o qual dialoga com a sociedade de massas, com a
indústria cultural, com questões de gênero e com as
pequenas misérias da alma humana no exercício de seu
medíocre existir. Através da metodologia de pesquisa
bibliográfica e documental como método indutivo, o
presente artigo demonstrará, na tessitura textual e de
forma didática o tempo do discurso, no que concerne à
enunciação nos aspectos da duração da história, com
especificidade as “anisocronias”, as quais ecoam ritmos
dissemelhantes no interior da narrativa, caraterizados por
sumários (redução no tempo da história), pausas
(interrupção da história) e elipses (omissão de fatos ou
períodos da história), nos fragmentos do conto ao que
pode-se chamar de “turbilhão”, como recursos narrativos
manipulados pela escritora, presentes na obra em análise.

22
Diante dessa intenção utiliza-se os fundamentos teóricos
que vão de encontro com essa proposta, dos quais se pode
citar: Cortázar (1974), Gotlib (1990), Massaud Moisés
(1974; 2009), Piglia (2004) e Genette (1972). Contudo,
os resultados aqui apresentados neste trabalho fazem
parte de uma pesquisa em andamento.

Palavras-chave: Alciene Ribeiro; Anisocronias; Conto


Moderno; “Pensar axilas”; Turbilhão.

Racismos e o lugar do brincar: “Negrinha”,


de Monteiro Lobato, 1920

Anailta Bastos de Oliveira


anailtabastosdeoliveira37@gmail.com
Angélica Caetano da Silva
Christian Milena Mwewa

Resumo: Analisamos ‘o brincar’ tensionado pelas


questões “raciais” no conto (campo) “Negrinha”, de
Lobato (1920). Trata-se de uma pesquisa qualitativa
documental com instrumental bibliográfico. A análise se
justifica por explicitar as tensões sociais no contexto
familiar. ‘O brincar’ pode ser tomado como móbil para o
viver da negrinha (menina órfã de pais escravizados, sem
nome, apelidada de "negrinha” além de outros apelidos
como “diabo", “lixo" dentre outros). Nos apoiamos em
referenciais teóricos das ciências sociais, como por
exemplo, educação, psicologia e filosofia dentre outras.
Concluímos que ‘o brincar’, no conto, figura como uma
instância de afirmação da vida sem o qual a vida não se

23
justificaria para a negrinha. O brincar, para negrinha,
aparece como espaço e ato da manifestação da
humanidade ao contrário do brincar das sobrinhas da
Dona Inácia para as quais e, inclusive para a própria
Dona Inácia, negrinha se configurava-se no próprio
instrumento de brincar coisificado. O brincar, portanto,
traz a possibilidade de reaver a humanidade subtraída,
pois ao brincar negrinha retoma a sua dimensão de
humanidade diferenciando-se das coisas (objetos) com
os quais era reiteradamente quase igualada, quase,
porque ela era tomada, ainda, como inferior aos objetos
que ao menos tinham a sua utilidade funcional.

Palavras-chave: Brincar; “Negrinha”; Racismo.

A tradição da menipeia em El Rey


Gallo, de Francisco Santos

Edelberto Pauli Júnior (UFMS/CPAQ)4


edelberto.junior@ufms.br

Resumo: El rey Gallo y discursos de la Hormiga (1671)


de Francisco Santos (1623-1698) se constrói em boa
medida com o repertório da erudição vinculado à sátira
menipeia (tópicas, exemplos e modulação sério-cômica).
Identificamos as semelhanças e as diferenças entre seu
colóquio e a tradição da sátira menipeia no contexto
espanhol do século XVII. Para tanto, precisamos os
principais traços dos diálogos de transformações para
demonstrar como o texto de Santos emula a estrutura do
mestre e do discípulo do Galo de Luciano, bem como a

24
relação de castigo e purificação do Asno de Apuleio e do
Asno de Luciano, com o regresso do Galo e da Formiga
à fisiologia dos brutos. Como no Grilo de Plutarco, os
protagonistas experimentam ambas as formas (animal e
humana) para preferirem, ao final, a condição de feras,
isenta de pecado e perdão.

Palavras-chave: Diálogo de transformações; Francisco


Santos; Sátira Menipeia.

Uma leitura da novela: Os caminhantes de


Santa Luzia, de Ricardo Ramos

Elcione Ferreira Silva


elcione_tga@hotmail.com

Resumo: A proposta desta comunicação é discutir na


novela, Os caminhantes de Santa Luzia (1959), de
Ricardo Ramos, questões que permeiam o sagrado e o
profano. Na novela, visualizamos essas questões pelo
olhar que é atribuído à Luzia, personagem Protagonista.
A novela é composta de quinze capítulos. O drama vivido
pela Romeira é ambientado no Nordeste brasileiro, mais
precisamente na cidade de Santa Luzia, na Alagoas. A
personagem mostra suas chagas, ao pagar penitência,
passando em procissão em vários espaços. Luzia é uma
mulher extremamente religiosa, essa característica e sua
beleza escultural vão dialogar na perspectiva do sagrado
e do profano. Tomamos como fundamentação os estudos
de Mircea Eliade (1992) em torno do Sagrado e do
Profano. Ainda como suporte nos foi possível dialogar
com o texto sobre o espaço de Osman Lins (1976), a

25
questão do ponto de vista de Norman Friedman (2002),
os estudos de Tacca (1983) acerca das vozes do romance
e Questões de literatura e de estética de Bakhtin (2010).

Palavras-chave: Profano; Ricardo Ramos; Sagrado.

A aprendizagem da finitude em dois


poemas de Manuel Bandeira

Elzio Quaresma Ferreira Filho


elzioquaresmaferreira@gmail.com
Antônio Máximo Von Sohsten Gomes Ferraz

Resumo: Este trabalho se propõe a interpretar os poemas


“Visita” e “Lua nova”, que compõem o livro Opus 10
(1952), de Manuel Bandeira, com o intuito de vislumbrar
a presença, em ambos, de uma aprendizagem da finitude,
a qual origina uma rara e admirável serenidade em
relação à morte. Seguindo o pensamento do filósofo
alemão Hans-Georg Gadamer acerca da relação entre o
intérprete e a obra de arte, nossa interpretação recusará a
aplicação de um método previamente estabelecido aos
poemas para privilegiar a escuta da fala que emana de
cada um deles. Assim, essa postura interpretativa nos
indicará como, nos poemas citados, a morte surge sem o
alarmismo e a carga negativa que a nossa época lhe
emprega, mas de modo sereno, como algo natural e
necessário.

Palavras-chave: Aprendizagem da finitude; Manuel


Bandeira; Poesia.

26
O sonho das sociedades totalitárias: os elos
discursivos na literatura distópica

Erico Monteiro da Silva


eric9r@gmail.com

Resumo: A literatura distópica, gênero literário atrelado


à ficção científica, narra um futuro obscuro da
humanidade frente às ações de um estado totalitário e nos
fornecem possibilidades de debates críticos, tanto no
campo literário quanto no campo sociopolítico. Dentre as
diversas possibilidades de análises críticas deste gênero,
o objetivo aqui é discutir e apresentar os elos de formação
da distopia presente em Nós (2017), Admirável mundo
novo (2003), Fahrenheit 451 (2012), O Homem do
castelo alto (2009) e 1984 (2019), a partir dos conceitos
da literatura utópica e distópica, analisar o
funcionamento do enredo distópico, pois possuem, em
suas diversas características, de modo radical, o alerta
sobre as consequências de ideias sociopolíticas e
tecnológicas que pretendem protagonizar o progresso
humano. As distopias, ao contrário das utopias e suas
sociedades racionalmente felizes, demonstram um futuro
catastrófico com elementos do fantástico e ou realista,
mas em sua maioria, apresentam um futuro do espectro
totalitário. Para esse empreendimento utilizamos os
conceitos teóricos sobre utopia e distopia em Vieira
(2010), Clayes (2010) e Clayes e Sargent (1999) e, os
conceitos gerais de ficção científica em Roberts (2018).
A metodologia utilizada é a bibliográfica e comparativa,
pois o nosso entendimento é que há as mesmas marcas
presentes de modo geral nas obras do (sub)gênero da

27
ficção científica. As literaturas distópicas funcionam
como críticas sociais e políticas, funcionando como um
alerta às tendências utópicas que se mostram modelos de
realizações perfeitas para a humanidade, mas as
consequências são falaciosas e totalitárias. Observamos
que os autores das obras citadas utilizam contextos
narrativos em comum para demonstrar como seria um
mundo dominado e como a consciência coletiva iria se
adaptar nesta realidade.

Palavras-chave: Ficção científica; Totalitarismo; Utopia


e distopia.

Da leitura de mundo à leitura da palavra:


memória, infância e diversidades

Erika Carla Nogueira da Silva


erikacarlatl@gmail.com

Resumo: A literatura produzida para crianças tem a


função fundamental de formar o desenvolvimento crítico
do leitor, bem como na construção de sua personalidade,
além de inserir a criança no universo dos livros, das
imagens, dos símbolos e da imaginação; fomentando,
assim, a interpretação de mundo. Com efeito, a obra Os
bichos que tive: memórias zoológicas (2004), de Sylvia
Orthof, é uma narrativa direcionada para o público
infantil. Protagonizada por personagens engraçados (os
quais fizeram parte da vida da autora), a obra representa
(com considerável traço mnemônico) uma parcela da
vida de Orthof. Produzida sob forte influência do gênero
dramático, a diegese envolve o pequeno leitor com

28
imagens atrativas e lúdicas. Dessa forma, ancorando-se
nos pressupostos epistemológicos de Antonio Candido
(1972; 2011) sobre a Literatura e a formação humana,
nos estudos de Fanny Abramovich (1997), Nelly Novaes
(2000) e de Celso Junior de Ferrarezi (2017) acerca da
constituição da Literatura Infanto-juvenil, o objetivo
desta pesquisa, que está em andamento, é compreender
para analisar as configurações das personagens no texto
narrativo Os bichos que tive: memórias zoológicas
(2004), de Sylvia Orthof, sob a ótica das diversidades
sociais presentes no processo formativo das personagens.

Palavras-chave: Diversidades sociais; Formação;


Literatura.

O espaço urbano disfórico em Luiz Vilela

Eunice Prudenciano de Souza


euniceprus@gmail.com

Resumo: A cidade, com suas múltiplas facetas, faz parte


de um mundo marcado por uma visão fragmentada e por
diferentes formas de convivência. Já na poesia de
Baudelaire, no século XIX, o passante surge meio que
estupefato diante do espaço urbano: multidão, prédios,
galerias, ruas, tudo sentido por meio de um estado de
embriaguez ante a celeridade do progresso. São diversas
as abordagens do urbano na literatura: o crescimento da
violência, a atração ou repulsa pelo urbano, a
contraposição com o passado que, não raras vezes, é
tocado por um sentimento de nostalgia, a marginalização
social, a solidão, dentre outras questões que se

29
intensificaram no século XXI. Nesse contexto,
pretendemos analisar o tratamento dado às grandes
cidades nas narrativas de Luiz Vilela. Nessas obras,
percebemos que a cidade grande é vista como um espaço
de incomunicabilidade, de solidão, de violência,
claramente, inferior ao espaço das pequenas cidades ou
do campo. Seguindo essa orientação, nessas narrativas,
há uma tendência ao saudosismo, em que o passado surge
como um tempo superior ao presente.

Palavras-chave: Cidade; Incomunicabilidade; Luiz


Vilela; Modernidade; Passado.

Literatura e história como instrumentos de denúncia


à cultura de violência na política brasileira no conto
“Sobre a natureza do homem”, de Bernardo
Kucinski

Fernanda Amélia Leal Borges Duarte


f.a.l.b.duarte@gmail.com

Resumo: Os contos de Bernardo Kucinski são corpus


examinados na pesquisa em Estudos Literários e para
esta comunicação, apresentar-se-á uma discussão a
respeito do conto: Sobre a Natureza do homem. A análise
visa a compreender como a narrativa ressalta inúmeras
denúncias sobre as políticas de violência praticadas por
Estados-nações. Sendo assim, busca-se o diálogo entre a
história e a literatura, uma vez que a relação
interdisciplinar dá suporte para compreender a literatura
como instrumento de fortalecimento da política
democrática no Brasil e contribui com o conhecimento

30
da história do país e das ditaduras Latino-americanas. A
fundamentação teórica está vinculada aos estudos de
Paul Ricoeur, Hannah Arendt e Ricardo Piglia com a
finalidade de estabelecer a compreensão da literatura
como instrumento de ação política na escrita de
Kucinski. Ressalte-se que a pesquisa está em andamento
e os resultados são parciais conforme a análise do conto
proposto avança. Segundo a análise, também é possível
observar o estilo de conto de atmosfera, caraterística dos
contos contemporâneos, e como as personagens estão
vinculadas ao espaço político e social, nutrindo
sentimentos de angústia e medo, visto que o conflito
interior das mesmas proporciona uma reflexão sobre o
uso da violência como política de Estado.

Palavras-chave: História; Literatura; Política;


Violência.

In nomine Dei, de José Saramago e A teoria da


encruzilhada, de Anne Ubersfeld- uma provocação
para ler o teatro saramaguiano

Luciana de Cassia Camargo Pirani


luciana.camargo@ifpr.edu.br

Resumo: A peça In nomine Dei, de José Saramago,


publicada em 1993, trata da rebelião protestante na
Alemanha do século XVI, marcada pelo fanatismo e,
principalmente pelos excessos na disputa pelo poder
entre católicos e anabatistas na cidade de Münster. O
texto organizado em três atos, tem a ação desenvolvida
no período de maio de 1532 a junho de 1535 é o objeto

31
de análise neste trabalho. Ler o teatro de forma geral
assenta-se em uma encruzilhada das contendas
contemporâneas que permeiam a sociologia, a semântica,
a história e as habituais discussões inerentes a estrutura
necessária à concepção de um texto dramático. É por
meio dessa encruzilhada que se caminha neste trabalho
em que se busca analisar o texto saramaguiano em
questão de modo a identificar como se manifesta a
perspectivada encruzilhada teórica em que se privilegiou
a subjetividade, a alteridade, a ideologia, a
intertextualidade, a história e da narratividade. As
questões teóricas vêm se pautando em discussões
estabelecidas por Anne Ubersfield, Tiphaine Samoyault,
Giorgio Agamben, Marilene Weinhardt e Leyla Perrone-
Moisés. Do diálogo entre esses teóricos, até o momento,
vem se evidenciando um discurso marcado pela estética
saramaguiana em que o destaque está por conta das
relações humanas marcadas pela intolerância e pela
incapacidade do homem de viver com seus semelhantes.

Palavras-chave: Estética saramaguiana; Teatro; Teoria


da encruzilhada.

Violência contra a mulher em “Curuzú la


novia”, de Josefina Plá, e “A parasita
azul” de Machado de Assis
Luiz Roberto Lins Almeida
luizrlins@hotmail.com

Resumo: Esta investigação debruça-se sobre a temática


da violência contra a mulher tal como percebida e
representada nos contos “Curuzú la novia” (1958), de

32
Josefina Plá, e “A parasita azul” (1873), de Machado de
Assis. Partindo da análise da estrutura desses contos -
com aporte teórico de Massaud Moisés (2006), Reis
(2018), Coelho (2020) - por meio da comparação entre
uma obra da literatura paraguaia contemporânea e uma
de origem brasileira do século XIX, tendo em mente que
a situação de violência de gênero permanece como uma
realidade atual, é possível perceber em narrador e
personagens indícios de violência. Se, por um lado, a
estrutura machadiana permite que o conto desague na
ironia que o caracteriza, Josefina Plá, com seu projeto
estético fulcrado no feminino – em solo paraguaio –,
redunda na opção pelo trágico.

Palavras-chave: Josefina Plá; Literatura paraguaia;


Machado de Assis; Violência contra mulher.

A formação do professor de literatura e o uso de


metodologias ativas: ensinando a ensinar

Maisa Cristina Santos


maisacrisadv@gmail.com
Paulo Sérgio Martins
paulomart@live.com

Resumo: Ministrar uma aula demanda o domínio de


conhecimentos técnico-científicos, organização dos
temas a serem abordados e a aplicação de atividades que
proporcionem a fixação dos conteúdos. Porquanto os
passos apresentados denotem comportamentos
automatizados e repetitivos, é por meio da didática que a
personalidade do professor se faz presente e os conteúdos

33
ganham sua cor. Não se trata, portanto, de seguir uma
ordem, no molde jesuíta de transmissão do saber, mas de
aplicar metodologias que proporcionem aos docentes a
significação do que lhes foi apresentado. Nesse sentido,
a formação do professor de literatura deve fundamentar-
se na correlação entre conteúdo (o que fazer) e
transmissão do mesmo (como pode ser feito). O presente
trabalho objetiva, portanto, contribuir com a prática
discente de Literatura para o ensino superior, com
especial ênfase no uso de metodologias ativas. Para tanto,
apresentar-se-á algumas das atividades e conteúdos
ministrados para os alunos do oitavo semestre do curso
de Licenciatura Plena em Letras da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul no segundo semestre de 2021.
Como se sabe, em decorrência da pandemia de COVID-
19, as aulas de todas as instituições de ensino realizaram-
se na modalidade on-line, e no caso da UFMS, por meio
do uso do Google Meet e Google Drive (para
compartilhamento de materiais). As aulas foram
ministradas por dois estagiários e doutorandos em Teoria
Literária e sob a observação do Professor Doutor
responsável pela disciplina: Rauer Ribeiro Rodrigues. O
aporte teórico utilizado sedimentou-se em obras de
autores como: José Moran, Maria Lúcia de Arruda
Aranha e Paulo Meksenas. Como as aulas estão em
andamento, os resultados parciais por ora apresentados
foram: a participação ativa dos alunos nas atividades
propostas, o interesse pelas metodologias apresentadas e
a preocupação não apenas com o conteúdo a ser
ministrado, mas no processo de ensino-aprendizagem de
literatura.

34
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; Literatura;
Metodologias ativas.

Conexões críticas e compositivas em Contos


impopulares, de Agustina Bessa-Luís

Marcos Rogério Heck Dorneles


marcos.dorneles@ufms.br

Resumo: Este trabalho pretende situar um diálogo entre


os estudos filosóficos e os estudos literários, abordando
o entrelaçamento de aspectos composicionais e críticos
das narrativas da obra Contos impopulares, de Agustina
Bessa-Luis (2004). Para tal, a pesquisa almeja apontar
pontos criacionais de matriz kafkiana (MACHADO,
1996, 1983; DUMAS, 2011; LOURENÇO, 1994) que
interatuem com o exame nietzschiano de anseios e
precariedades do ser humano (NIETZSCHE, 2017,
2009) em sua rota de colisão com os impasses vivenciais.
Por um lado, o artigo destaca certas proposições teóricas
relacionadas ao gênero narrativo advindas dos estudos de
Gérard Genette (1995), Norman Friedman (2002),
Tzvetan Todorov (2003), Carlos Reis e Ana Cristina
Lopes (2002) acerca de elementos constitutivos do
discurso, como narrador, focalização e personagem. De
outra parte, o trabalho situa determinadas dimensões
reflexivas dispostas por Terry Eagleton (2016) e Antoine
Compagnon (2003) acerca de processos e
encaminhamentos narrativos que conduzem a aporias e
ambiguidades nos âmbitos sociais e ficcionais. Por fim,
esta investigação dispõe alguns parâmetros críticos da
interdisciplinaridade pelos quais se visualiza o trabalho

35
interativo de maneira convergente, abrangente e
descerradora, dispostos por Benedito Nunes (2012,
2010) e Ivani Fazenda (2008). Como decorrências da
confluência disciplinar e da expansão literária,
destacamos a ampliação das esferas artísticas, a
percepção de certas condições de desolamento e
desorientação da vida individual urbana e a proeminência
das indagações de índole filosófica no universo ficcional.

Palavras-chave: Contos; Filosofia; Interdiscipli-


naridade; Literatura portuguesa.

Um cosmos de doença e reflexividade: “Linda, uma


história horrível”, de Caio Fernando Abreu

Mariângela Alonso
malonso924@gmail.com

Resumo: O conto “Linda, uma história horrível pertence


ao livro Os dragões não conhecem o paraíso, publicado
por Caio Fernando Abreu em 1988. Em harmonia com a
obra anterior, Morangos mofados, de 1982, a coletânea
em questão privilegia a representação de vozes
marginalizadas, as pulsões homoeróticas e as angústias
dos seres aprisionados em cotidianos alienantes e hostis.
Sobressai nos trezes contos a subjetividade dos
personagens frente a sua própria estranheza e vitalidade.
As miradas dos personagens transcendem as
contingências sociológicas e dirigem-se de modo
nômade e digressivo aos espaços profundos da
subjetividade. O conto em questão narra uma experiência
limite, a partir da reflexividade contida nos olhares

36
trocados entre três personagens, a mãe, o filho e a cadela
de nome Linda. Nesta troca de olhares espelhados,
sobressai a presença da morte e sua espera pelos três
personagens, sobretudo pelo filho, portador do vírus da
Aids. Assim, esta comunicação é fundamentada em
estudos sobre mise en abyme e reflexividade realizados
por Lucien Dallenbach (2001, 1979, 1977) e Gian Maria
Tore (2014). A hipótese aqui formulada constitui em
pensar o procedimento narrativo da mise en abyme
segundo um questionamento mais vasto, longe das
amarras tradicionais do encaixe narrativo ou da repetição
vertiginosa, com uma abordagem articulada à noção de
reflexividade. Desse modo, a análise propõe uma leitura
do conto ‘Linda, uma história horrível’, de Caio
Fernando Abreu, observando a construção da
reflexividade e da figurativização do vírus da Aids, tema
que permite identificar um momento privilegiado da obra
do escritor.

Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; Doença; “Linda,


uma história horrível”; Mise en abyme.

A poesia feminina no amazonas pelo viés da


modernidade de Violeta Branca

Milena Bruno Ferreira


milenabrunoferreira@gmail.com

Resumo: Este artigo visa discutir a modernidade de


Violeta Branca, considerada a precursora da produção
poética feminina no Amazonas. Ela, através de seus
versos, tornou-se uma das maiores representantes da

37
poesia local. Além disso, realizou-se uma análise sobre o
surgimento da autoria feminina no Amazonas, até então
marcada pela voz masculina. A pesquisa teve caráter
bibliográfico para a investigação da vida e obra da autora,
os poemas foram interpretados através da sociologia da
literatura e da crítica psicanalítica, ambas de acordo com
as concepções de Tadié (1992). Neste estudo, também
partimos dos conceitos de Compagnon (2012) sobre as
funções e conceitos da literatura. Tornou-se
imprescindível explorar a formação da literatura no
Amazonas sob a ótica de críticos locais, para isso
buscamos informações na obra de Márcio Souza (2010),
que descreve a construção do artista amazonense e
Regina Dalcastagnè (2012) sobre reflexões da literatura
brasileira contemporânea. As obras Reencontro - poemas
de ontem e de hoje (2012) e Ritmos de inquieta alegria
(1998) de Violeta Branca formam o corpus de análise e
interpretação. Esta pesquisa evidenciou os traços
modernos e ousados nos poemas da autora, que
contribuíram para que ela fosse a primeira mulher a
ingressar em uma Academia de Letras, além de abrir
caminho para tantas outras escritoras.

Palavras-chave: Autoria feminina; Literatura


Amazonense; Modernidade.

Compreensão do modernismo e do
CDC em propagandas

Patrícia Socorro da Costa Cunha


palomamanuella7@gmail.com

38
Resumo: A leitura de textos literários na escola contribui
para a compreensão de fatos da vida real, levando o aluno
a um transformador. Em 1990 foi promulgado o Código
defesa do Consumidor, e trinta anos depois é público e
notório como muitas pessoas ainda não conhecem seus
direitos como consumidores, levando-os a terem seus
direitos violados. Desse modo, a literatura pode levar o
leitor a estabelecer diálogo com diferentes tipos de
conhecimentos, cooperando para que ele se posicione
criticamente face à realidade, pois não se pode considerar
como bom leitor aquele que apenas lê corretamente uma
vez que a leitura e a literatura são formas de
conhecimento e o gosto se forma na aprendizagem
escolar. Dessa forma, este painel objetiva oportunizar aos
alunos a leitura e a análise de textos publicitários no
decorrer da história, desde 1920 com o surgimento do
Modernismo no Brasil, à atualidade, para o aluno
compreender como o consumidor pode ser enganado
com a persuasão dos textos publicitários e analisar as
fases que marcam o Modernismo nesse gênero. Para essa
análise crítica, torna-se fundamental o papel do professor
nessa interação entre o texto publicitário, os
conhecimentos sobre o CDC, o Modernismo e o leitor,
pois ele é o principal responsável pelo ensino da leitura
na escola. É necessário planejar estratégias que sirvam
para despertar o interesse pela leitura entre crianças e
adolescentes, permitindo-lhes transcender as
dificuldades e avançar no processo de amadurecimento.
Trabalhar o texto literário de forma que o aluno seja
envolvido em um processo que o levará a perceber que a
literatura aduz a outros conhecimentos que vão além do
texto. Partindo desses pressupostos, o presente trabalho é
resultado projeto desenvolvido ao longo do ano de 2009,

39
antes da pandemia, com alunos do 3º ano do Ensino
Médio do Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Roraima (UFRR), no qual foram desenvolvidas
atividades que tinham como foco principal a
intertextualidade, para incentivar a leitura e a análise de
propagandas para compreender a Escola literária do
Modernismo, e investigar a aplicabilidade do CDC nos
textos analisados.

Palavras-chave: CDC; Literatura; Modernismo;


Propaganda.

O ensino de literatura nas produções


curriculares paulistas após a BNCC

Renata Cristina Alves Polizeli


re.cris_alves@hotmail.com

Resumo: A homologação da BNCC (BRASIL, 2018)


alargou os desafios da educação básica no que tange o
ensino de língua portuguesa, mais precisamente, no que
diz respeito à literatura no ciclo dos anos finais do ensino
fundamental. Neste cenário, este trabalho objetiva
analisar o campo artístico-literário do Currículo Paulista
(SÃO PAULO, 2019), à luz da articulação com os
pressupostos teóricos, como Cândido e Grupo Nova
Londres, e documentos normativos, como a BNCC
(BRASIL, 2018), com vistas a compreender ainda as
apropriações nos materiais didáticos produzidos pela
própria secretaria de educação. Para isso, fundamenta-se
na perspectiva de Cândido (2004) no trato à literatura,
enquanto elemento intrínseco à humanidade, bem como

40
nos embasamentos do Grupo Nova Londres (GNL, 2000,
2006) acerca das multiplicidades semióticas e culturais,
tão essencial às novas demandas sociais contemporâneas.
A metodologia deste trabalho foca-se na análise
documental (LÜDKE; ANDRÉ, 2018), todavia ancora-
se também na análise dialógica do discurso (BAKHTIN,
2006 [1979]; BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2014 [1929])
para apreender parte da cadeia enunciativa da qual os
documentos fazem parte e se interrelacionam. Por fim, os
dados parciais indicam inconsistência entre os níveis de
concretização curricular, uma vez que as atividades
inseridas nos materiais didáticos não correspondem às
perspectivas anunciadas no currículo prescrito paulista.

Palavras-chave: BNCC; Currículo; Ensino de literatura;


Ensino fundamental anos finais.

41
Artigos completos

42
Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de
Alciene Ribeiro no conto “Pensar axilas”

Amanda Eliane Lamônica Araújo


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul –
UFMS/PPG-FUNDECT
E-mail: amanda.lamonica@yahoo.com.br

Introdução

Nádia Battella Gotlib, em sua obra Teoria do


conto (1990, p. 5), levanta os seguintes questionamentos:
“[...] afinal, o que é o conto? Qual a sua situação
enquanto narrativa, ao lado da novela e do romance, seus
parentes mais extensos? E mais: até que ponto este
caráter de extensão é válido para determinar sua
especificidade?”
Diante dessa questão, Gotlib (1990) explana
ainda que:

[...] a estória sempre reuniu pessoas


que contam e que ouvem: em
sociedades primitivas, sacerdotes e
seus discípulos, para transmissão
dos mitos e ritos da tribo; nos nossos
tempos, em volta da mesa, à hora

43
das refeições, pessoas trazem
notícias, trocam ideias e... contam
casos (GOTLIB, 1990, p. 5).

E que “Enumerar as fases da evolução do conto


seria percorrer a nossa própria história, [...] detectando os
momentos da escrita que a representam. O da estória de
Caim e Abel, da Bíblia, por exemplo” (GOTLIB, 1990,
p. 5).
Diante dos questionamentos acima, o objetivo
desse trabalho baseia-se na análise do conto “Pensar
axilas”, da escritora mineira Alciene Ribeiro; para tanto,
o estudo perpassa pelo conceito do que vem a ser o conto,
suas características e seu percurso ao longo da literatura;
em seguida, a abordagem teórica recairá sobre os estudos
do tempo do discurso no que diz respeito à enunciação
discursiva nos aspectos da duração da história, com
especificidade nas anisocronias, compreendidas pelas
elipses, pelos sumários e pelas pausas presentes no conto,
tendo em vista utilizar-se de tais conceitos para a análise
do conto mencionado.
Diante dessa intenção, utiliza-se os fundamentos
teóricos que vão ao encontro dessa proposta, dos quais se

44
podem citar: Cortázar (1974), Gotlib (1990), Massaud
Moisés (1974; 2009), Piglia (2004) e Genette (1972).

O conto: teoria e contextualização

Com a intenção de explicar o que seria conto,


Julio Cortázar, em Alguns aspectos do conto (1974, p.
10), discorre sobre “[...] esse gênero de tão difícil
definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos
aspectos”. Porque se, de um lado, “é preciso chegarmos
a ter uma ideia viva do que é o conto”, isto se torna difícil
“na medida em que as ideias tendem para o abstrato, para
a desvitalização do conteúdo”.
Por esse prisma, Massaud Moisés explica que a
palavra “conto” possui, em português, as seguintes
acepções:

1) número, cômputo, quantidade:


‘Um conto de réis’, ‘Um sem
conto de soldados’; 2) história,
narração, historieta, fábula,
‘caso’: com esta acepção, a
palavra é empregada em
Literatura; 3) rede de pesca em

45
forma de saco; 4) extremidade
inferior da lança, ferrão, ponta de
pau ou bastão: ‘tomou-lhe o
conto e deu-lhe com ele na
cabeça’ (MOISÉS, 2009, p. 15).

Ainda, segundo considerações de Massaud


Moisés (1974, p. 98-99), de “[...] gênese desconhecida, o
conto remonta aos primórdios da própria arte literária”,
já que “alguns exemplares podem ser localizados
centenas ou milhares de anos antes do nascimento de
Cristo”. Como exemplos temos: na bíblia, os episódios
de “Salomé”, “Rute”, “Judite”, “Susana”, do “filho
pródigo”; na antiguidade clássica, trechos da Odisseia e
das Metamorfoses; na Pérsia e Arábia, As mil e uma
noites e Aladim e a lâmpada maravilhosa
Segundo considerações de Gotlib, o conto no
século XIV ganha registro escrito e afirma-se como
categoria estética. Já no século XIX:

O conto se desenvolve
estimulado pelo apego à cultura
medieval, pela pesquisa do
popular e do folclórico, pela
acentuada expansão da imprensa,

46
que permite a publicação dos
contos nas inúmeras revistas e
jornais. Este é o momento de
criação do conto moderno
quando, ao lado de um Grimm
que registra contos e inicia o seu
estudo comparado, um Edgar
Alan Poe se afirma enquanto
contista e teórico do conto
(GOTLIB, 1990, p. 6).

Durante os últimos séculos da era medieval, o


conto foi cultivado em Itália, Espanha, França e
Inglaterra. Trata-se, dessa forma, de um período de
afetação, de declínio e de que poucos escritores
salvaram-se. Tal fato permaneceu durante o século
XVIII, refletindo um ambiente revolucionário e
reformador. Entretanto, no século XIX, o conto conhece
a época de maior esplendor, além de se tornar “nobre” ao
lado da poética, passando a ser seriamente cultivado,
abandonando assim seu estágio empírico, indeciso e
folclórico (MOISÉS, 2009, p. 17).
Neste período, Edgar Allan Poe é considerado o
introdutor do conto moderno, e Anton Tchekhov, o maior
contista da Rússia. No Brasil, surgem contistas de

47
renome, a começar por Machado de Assis. Assim, no fim
do século XIX, o conto atinge dias de apogeu como
forma literária erudita (MOISÉS, 2009, p. 18),
desenvolvendo sutilezas que acentuam a sua fisionomia
estética, autonomizando-se da novela e do romance,
fazendo surgir uma legião de ficcionistas, tais como
Katherine Mansfield, Virginia Woolf, James Joyce,
Kafka, Máximo Gorki, entre outros.
Para Cortázar, em razão da distinção entre conto
e romance, relata que:

[...] o conto parte da noção de


limite, e, em primeiro lugar, de
limite físico, de tal modo que, na
França quando um conto
ultrapassa as vinte páginas, toma
já o nome de nouvelle, gênero a
cavaleiro entre o conto e o
romance propriamente dito.
Nesse sentido, o romance e o
conto se deixam comparar
analogicamente com o cinema e
a fotografia, na medida em que
um filme é em princípio uma
‘ordem aberta’, romanesca
enquanto que uma fotografia
bem realizada pressupõe uma

48
justa limitação prévia, imposta
em parte pelo reduzido campo
que a câmara abrange e pela
forma com que o fotografo
utiliza esteticamente essa
limitação (CORTÁZAR, 1974,
p. 151).

O conto por sua vez tem o prisma de sua história


e de sua essência, a matriz da novela e do romance;
entretanto, isso não significa que poderia se transformar
neles, pois “[...] como a novela e o romance, é
irreversível, jamais deixa de ser conto a narrativa como
tal se engendra, e a ele não pode ser reduzido nenhum
romance ou novela” (MOISÉS, 2009, p. 19); num caso
ou noutro, qualquer alteração modificaria radicalmente o
caráter da obra, tendo em vista que apresenta estrutura
própria, diversa da que preside aquelas e as demais
formas narrativas, subordinando-se às leis específicas,
que se foram cristalizando no envolver dos séculos, não
podendo se converter em qualquer das outras estruturas
ficcionais, ao mesmo tempo em que nenhuma delas é
redutível a ele, ou seja:

49
[...] se um conto se amplifica até
as dimensões da novela ou do
romance, não se trata dum conto,
mas dum embrião de novela ou
de romance. Por sua vez, uma
narrativa rotulada de novela ou
romance não o é de se aceitar a
redução a um conto. Em suma: a
estrutura do conto, embora
admita numerosas variações, não
deve se confundir com a de
nenhuma das restantes formas
narrativas (MOISÉS, 1974, p.
100).

Massaud Moisés (1974), a fim de conceituar o


conto, entende-o como dramático, univalente, que
contém um só drama, um só conflito, uma só unidade
dramática, uma só história, uma só ação. “Todas as
demais características decorrem dessa unidade
originária: rejeitando as digressões e as extrapolações, o
conto flui para um único objetivo, um único efeito”
(MOISÉS, 1974, p. 100).
Dessa forma, o conto apresenta “[...] fim em si
mesmo, compondo uma unidade de começo, meio e fim”,
e pouco interessa o que está antes e depois do drama,
pois, quando muito, o contista sintetiza – a chamada

50
“síntese dramática” – o passado imediatamente anterior
aos fatos principais, por ser irrelevante. Também
irrelevante é o que possa ocorrer depois, seja porque
anunciado nos pormenores narrativos, seja porque a
personagem esgotou no conflito principal todas as suas
potencialidades e reservas emotivas (MOISÉS, 2009, p.
21).
Conforme considerações de Massaud Moisés
(2009, p. 23), o “[...] conto caracteriza-se por ser
‘objetivo’, atual: vai diretamente ao ponto, sem deter-se
em pormenores secundários”. O conto monta-se,
portanto, à volta de uma só ideia ou imagem da vida,
desprezando os acessórios, considerando as personagens
apenas como instrumentos da ação (MOISÉS, 2009, p.
25).
Segundo Cortázar (1974), o conto trabalha com
material caracterizado como significativo, que reside
principalmente em seu tema. Dessa forma, o conto
significativo “[...] é quando quebra seus próprios limites
com essa explosão de energia espiritual que ilumina
bruscamente algo que vai muito além da pequena e às
vezes miserável história que conta” (CORTÁZAR, 1974,

51
p. 152-153). Os contos de Katherine Mansfield e de
Tchekhov são tidos como significativos, alguma coisa
instala-se quando os lemos, propondo-nos uma espécie
de ruptura do cotidiano que vai muito além do argumento
(CORTÁZAR, 1974, p. 151).
Sobre o tema, Cortázar arrazoa que um contista é:

[...] um homem que,


comprometido em maior ou
menos grau com a realidade
histórica que o contém, escolhe
um determinado tema e faz com
ele um conto. Essa escolha do
tema não é tão simples. Às vezes
o contista escolhe, e outras sente
como se o tema se lhe impusesse
irresistivelmente, o impelisse a
escrevê-lo (CORTÁZAR, 1974,
p. 154).

Diante das considerações acima, Cortázar (1974,


p. 153) questiona “[...] que razões levam, consciente ou
inconscientemente, o contista a escolher um determinado
tema?”, como resposta compreende que “[...] o tema do
qual sairá um bom conto é sempre excepcional, mas não
quero dizer com isto que um tema deva ser

52
extraordinário, fora do comum, misterioso, insólito.
Muito pelo contrário, pode tratar-se de uma história
perfeitamente trivial e cotidiana”. Em suma, digamos que
não há temas absolutamente significativos ou
insignificantes:

O que há é uma aliança


misteriosa e complexa entre
certo escritor e certo tema num
momento dado, assim como a
mesma aliança poderá ser entre
certos contos e certos leitores.
Por isso, quando dizemos que um
tema é significativo, como no
caso dos contos de Tchekhov,
essa significação se vê
determinada em certa medida por
algo que está fora do tema em si,
por algo que está antes e depois
do tema. O que está antes é o
escritor, com sua carga de
valores humanos e literários,
com a sua vontade de fazer uma
obra que tenha um sentido: o que
está depois é o tratamento
literário do tema, a forma pela
qual o contista, em face do tema,
o ataca e situa verbal e
estilisticamente, estrutura-o em
forma de conto, projetando-o em

53
último termo em direção a algo
que excede o próprio conto
(CORTÁZAR, 1974, p. 155).

Cortázar (1974, p. 160-161) escreve sobre o


escritor revolucionário, sendo esse, segundo suas
considerações, aquele “[...] em que se fundem
indissoluvelmente a consciência do seu livre
compromisso individual e coletivo, e essa outra soberana
liberdade cultural que confere o pleno domínio do
oficio”. Se esse escritor, responsável e lúcido, decide
escrever literatura fantástica, ou psicológica, ou voltada
para o passado, seu ato é um ato de liberdade dentro da
revolução e, por isso, é também um ato revolucionário,
embora seus contos não se ocupem das formas
individuais ou coletivas que adotam a revolução.
Um escritor revolucionário tem todo o direito de
se dirigir a um leitor muito mais complexo, muito mais
exigente em matéria espiritual do que imaginam os
escritores e os críticos improvisados pelas circunstâncias
e convencidos de que seu mundo pessoal é o único
mundo existente, de que as preocupações do momento
são as únicas preocupações válidas, haja vista que não se

54
julga um escritor somente pelo tema de seus contos ou de
seus romances, mas sim por sua presença viva no seio da
coletividade, pelo fato de que o compromisso total da sua
pessoa é uma garantia insofismável da verdade e da
necessidade de sua obra (CORTÁZAR, 1974, p. 161).
As personagens, por sua vez, tendem a ser
estáticas ou planas pelo fato de surpreenderem no
instante climático de sua existência. O contista assim as
imobiliza no tempo, no espaço e na personalidade; dessa
forma, em vez de crescerem diante de nós como as
personagens do romance, oferecem apenas uma faceta de
seu caráter (MOISÉS, 2009, p. 26-27). De acordo ainda
com Massaud Moisés (1974, p. 101), “[...] das unidades
promanam as outras características: poucas as
personagens que povoam o conto. Duas ou três, tão
somente as que participam diretamente do conflito”.
Poucas são as personagens que intervêm no conto
como decorrência natural das características apontadas:
as unidades de ação, tempo, lugar e tom, de forma que só
podem se estabelecer com reduzida população no palco
dos acontecimentos (MOISÉS, 2009, p. 26). A estrutura
do conto corre linhas paralelas com as unidades e o

55
número de personagens e, por ser essencialmente
objetivo, é um narrador em terceira pessoa (MOISÉS,
2009, p. 27). E o “[...] diálogo, sendo o mais importante
de todos, merece que se refira em primeiro lugar”, tendo
vista que “sem diálogo, torna-se impossível qualquer
forma completa de comunicação” (MOISÉS, 2009, p.
28).
Em relação ao diálogo, existem quatro tipos:

1. Diálogo direto (ou discurso


direto), quando o contista põe as
personagens para falar
diretamente, e representa a fala
com um travessão ou aspas, no
caso o conto moderno, em que o
escritor dispensa os sinais
gráficos; [...] 2. Diálogo indireto
(ou discurso indireto), quando o
contista resume a fala das
personagens em forma narrativa,
isto é, sem destacá-las de modo
algum; [...] 3. Diálogo indireto
livre (ou discurso indireto livre),
consiste na fusão entre a terceira
e a primeira pessoa narrativa,
entre autor e personagem, ‘numa
espécie de interlocutor híbrido’,
de modo que ‘a fala de

56
determinada personagem ou
fragmentos dela inserem-se
discretamente no discurso
indireto através do qual o autor
relata os fatos’; [...] 4. Diálogo
(ou monólogo interior) é aquele
que se passa dentro, no mundo
psíquico da personagem; esta
fala consigo mesma antes de se
dirigir a outrem, por as palavras
conterem ‘vários níveis de
consciência antes que sejam
formulados pela fala deliberada’
(MOISÉS, 2009, p. 28-29, grifo
da autora).

A descrição, por sua vez, consiste na enumeração


dos caracteres próprios dos seres, animados ou
inanimados e coisas como, por exemplo, a descrição da
natureza. Assim, na estrutura do conto, a descrição
desempenha papel semelhante ao da narração, que tende,
contudo, a ganhar mais importância conforme o tipo de
história narrada (MOISÉS, 2009, p. 30-31). Segundo
ainda considerações de Massaud Moisés (1974, p. 101-
102), a narração representa papel menor: aparece para
abreviar o desfile de acontecimentos secundários ou

57
anteriores à ação principal; paralelamente, a descrição de
seres e coisas tende a segundo plano.
Para Massaud Moisés, a descrição da natureza ou
de ambiente, por sua vez, ocupa lugar ainda mais
modesto, em virtude dessas mesmas exigências do conto,
pois,

[...] na verdade, o drama


expresso pelo diálogo
geralmente dispensa o cenário.
E, quando se impõe descrevê-lo,
o narrador não se demora: apenas
nos fornece, em rápidas manchas
de cor e linhas, o pano de fundo
da ação. A natureza não aparece
em pormenores nem possui valor
em si. O conflito pode deflagrar
em toda parte, inclusive no
campo, mas, até certo ponto,
torna-se secundário o local
geográfico, pois em algum lugar
o drama deve desencadear-se.
Quando a narrativa se desenrola
no interior de uma residência, ou
na rua, bar, etc., igual tendência
se observa: a descrição
completa-se com duas ou três
notas, singelas, apenas para

58
situar o conflito no espaço
(MOISES, 2009, p. 51).

Sobre a trama do conto, Massaud Moisés (2009)


relata que é:

[...] sempre linear, objetiva,


entretanto, há que se ponderar
alguns pontos. A cronologia do
conto segue a do relógio, de
modo que o leitor ‘vê’ os fatos se
sucederem numa continuidade
semelhante àquela da vida real.
O conto, ao começar já está
próximo ao epílogo, de forma
que apenas conhecemos os
momentos anteriores ao clímax
dramático. [...] a trama se
organiza segundo um andamento
semelhante ao ritmo com que as
coisas acontecem na vida, e os
pormenores vão se acumulando
numa ordem ‘lógica’ de fácil
percepção. [...] a grande força do
conto – e do leitor até o
desenlace, que é, regra geral, um
enigma. O final enigmático deve
surpreender o leitor, deixar-lhe
uma semente de meditação ou de
pasmo de ‘uma insistente e

59
perene fluidez que escapa das
mãos’ (MOISÉS, 2009, p. 55).

As marcas do conto aproximam-se da poesia e do


teatro e, secundariamente, da crônica. Ao teatro
assemelha-se pelas unidades de ação, tempo e lugar. No
teatro, o palco circunscreve a geografia da ação, da
mesma forma que o conto se desenrola num espaço
reduzido. Obviamente, alguns desses pontos de contato
são mais encontrados numas épocas do que em outras.
Dessa forma, o conto erudito ou literário desenvolvido
no século XIX atravessou duas fases evolutivas: o conto
“realista”, chamado “tradicional” ou “clássico”,
identifica-se pela estrutura rigorosa de começo, meio e
fim (MOISÉS, 1974, p. 103).
O conto “tido por ‘moderno’ sublinha a atmosfera
poética, não cura do desenlace enigmático e condena o
enredo num mínimo indispensável; busca a retratação de
cenas intimistas ou introspectivas” (MOISÉS, 1974, p.
104). O conto moderno, por sua vez, segundo análises de
Massaud Moisés (2009, p. 43), foi introduzido por Anton
Tchekhov e Katherine Mansfield.

60
As diferenças entre o conto “realista” e o
“moderno” “não podem ser tomadas ao pé da letra e em
exclusivo sentido histórico”, haja vista que:

[...] nem tudo que se elabora na


atualidade merece a rubrica de
‘moderno’; trata-se de
denominação provisória de um
tipo de conto que tem
acompanhado a geral
metamorfose da arte literária. ao
mesmo tempo que não deixa de
ser conto por ser ‘moderno’, nem
só o conto ‘moderno’ é conto: os
acidentes que o tornam
‘moderno’ não comprometem a
estrutura que o faz ‘conto’
(MOISÉS, 1974, p. 104).

Desse modo, a estrutura do conto implica uma


dada forma de ver a realidade e o mundo, cuja eleição do
conto não é feita de forma arbitrária, e sim de forma
peculiar, pois “[...] depende da cosmovisão do autor e
vice-versa; a estrutura, assim, instaura a visão de mundo
do autor, sendo essa limitada no conto por natureza”
(MOISÉS, 2009, p. 43). Pelo mesmo viés estão as ideias

61
de Piglia (2004, p. 106) ao entender que “[...] cada
narrador narra à sua maneira o que viu ali”.

Uma síntese: “Pensar Axilas”

Em pesquisa realizada no blog do Grupo de


Pesquisa Alciene Ribeiro1, encontra-se uma matéria
intitulada “Conto inédito de Alciene é publicado no
SLMG2 – Suplemento Literário de Minas Gerais”,
anunciando que “Pensar axilas” faz registro tragicômico
de fobia sexual mesclada à erotização dos corpos
desejados e desejantes, sendo os corpos apreendidos e
despedaçados em subpartes que sufocam o erótico no
instante mesmo em que ele se manifesta. O enredo
dialoga com a sociedade de massas, com a indústria
cultural, com questões de gênero e com as pequenas
misérias da alma humana no exercício de seu medíocre
existir. Alciene, no conto, refina ainda mais o seu

1 Disponível em:

https://gpalcieneribeiro.blogspot.com/2018/03/conto-inedito-de-
alciene-e-publicado-no.html. Acesso em: 15 fev. 2021.
2
RIBEIRO, Alciene. “Pensar axilas”. Suplemento Literário de
Minas Gerais, n.º 1.375. Belo Horizonte, Secretaria de Estado de
Cultura, novembro/dezembro de 2017.

62
peculiar e personalíssimo artesanato textual, com elipses,
cortes, ritmo sincopado, inversões cronológicas e
metáforas, entre outros tropos e recursos narrativos.
Outra acepção sobre o conto identifica-se em uma
entrevista3 da escritora com a doutoranda Karina de
Fátima Gomes, publicada no suplemento literário de
Minas Gerais, em que Alciene responde à seguinte
indagação: “Como é o seu processo de criação literária?”
A resposta anunciada:

No meu livro, Mulher explícita,


o conto ‘Noturno’, de 2019,
inspirado em fato real, denuncia
o assédio; ‘A porta de serviço é
serventia da morte’, de 2004, faz
referência, romanceada, à vida
conjugal de um conhecido, e aos
sentimentos de uma fictícia
companheira extraoficial; e o
‘Pensar axilas’, de 2017, é fruto
do olhar crítico ao consumismo:
ridículo o discurso com pitada
erótica, e sedução de axilas
femininas, a fim de vender

3
RIBEIRO, Alciene. “Pensar axilas”. Suplemento Literário de
Minas Gerais, n.º 1.386. Belo Horizonte, Secretaria de Estado de
Cultura, setembro/outubro de 2019.

63
desodorante! Condoeu-me ver as
modelos expostas em rede
nacional (RIBEIRO, 2019, p.
26).

Enredo

A mulher lê jornal para se distrair. Crê ver um


“recado cifrado” na manchete em “caixa-alta” e
“colorida” sobre a vingança de um namorado. Ela
pensava no dia anterior “surreal”, algo acontecido com
seu parceiro, um jornalista, e agora causava certa náusea.
Vê matérias pagas na primeira página, com fotos de
políticos abraçando eleitores. Repara na encenação dos
candidatos para ganhar votos dos humildes e nas
manchas das camisas debaixo dos braços, ora em formato
de “meias-luas escuras”, ora de “luas cheias”.
Ao lado, na mesma página – ela pensa ter sido
diagramada um pouco menor por proposital e fina ironia
–, a foto de atletas musculosos, suados e peludos, numa
volta olímpica carregando o troféu do campeonato e,
depois, trocando camisas, o suor pingando, o “cecê
adversário em tapete vivo”. Os cartolas do futebol são

64
enaltecidos “de alto a baixo” às custas do suor de axilas
alheias e de muita “pseudosseriedade” com suas roupas
“assépticas” de “colarinho branco”. Ela pensa: se torcer
o jornal, só sai mal-cheiro, tudo hipocrisia de
engravatados.
A mulher pergunta a si mesma, intrigada, se o que
aconteceu com ela e o namorado do Jornal, “o passeio
interrompido de chofre renderia uma chamada de capa”.
Isso seria para a seção de psicanálise do jornal, de
sexologia ou, ainda, de humor, pensa ela. Imagina a
notícia saindo no Caderno Dois, em que o “cronista
irreverente” confessaria ter fetiche por axilas – ele chama
de sovaco àquele “recorte anatômico”, e que ela não
gosta. “Aquele detalhe corpóreo só deveria exalar
aromas”, exclama.
Imagina-se mandando um recado ao “cronista
abusado” para deixá-lo sob seus pés, ou “debaixo do
braço”. Se ele usasse o transporte público e observasse,
diferentemente dos usuários diários de coletivos, as
axilas suadas dos passageiros, “novas, velhas... carentes
de um bom barbear”, penduradas “igual a morcegos”,

65
haveria “múltiplos orgasmos versus vômitos entalados”,
mas o “editor-chefe” não a entenderia, nem o recado.
A mulher liga a TV “por desfastio” e ouve
surpresa a pergunta do narrador do comercial: “O que
você faz para mostrar suas axilas?” Na propaganda, três
moças alegres com blusas sem alças e as mãos para cima.
Ela acha deprimente. Se elas não estivessem sorrindo,
pareceria os filmes de “bang-bang” em que o “bandido
rende as mocinhas no saloon”. A narrativa “em off” da
publicidade televisiva segue a fórmula de prometer
muitas utilidades, o cheiro agradável e a sedução dos
homens; na imagem, a modelo profissional faz caras e
bocas, tudo para passar a ideia de glamour e de vontade
de lamber, “tal o apetite fisionômico da ginasta”. Brinca
a mulher: “Beijinho no ombro... Ou na axila?” e também
pensa na “bobagem” que é aquela propaganda:
incrementa o consumismo, apela ao erotismo e,
ridiculamente, invade a privacidade alheia, “como se o
enigma existencial se resumisse a axilar realização”. São
constrangedoras as imagens das axilas, e ela desliga o
aparelho com o controle remoto.

66
Lembra os episódios de quando era jovem, antes
de frequentar o colégio, onde “a estampa se manchou na
cava”, os problemas com suores, ficava vexada – como
quando o irmão apontava-lhe o dedo e tapava o nariz.
Coisa que só a ela importava, chorava escondido, tinha
baixa autoestima. Aconteceram nesse período “dois
graves atentados”, e um deles, o pior, foi o primeiro
encontro amoroso. Era um jovem padeiro “amador”, e,
na padaria mesmo, “ele sovou-lhe os seios” e as suas
“unhas arranharam as axilas em seca frustração”. “Vade
retro!” Isso fez ela se decidir, a partir de então, a
selecionar melhor seus parceiros e a reduzir sua
sexualidade.
Também se lembra de quando, pequena, ia à
fazenda do tio, as camisas suadas dos “peões”, cheiros
fascinantes e ao mesmo tempo nauseantes: “Isso é
próprio dos brutos, de gente-bicho sem asseios, toma
distância, ou a praga te pega”, disse sua vizinha da
cidade. Ao apareceram as primeiras manchas, as “meias-
luas”, no vestido de algodão, ficou arrepiada: “... A
doença dos peões me pegou...!” Fez e desfez para
resolver o problema, de água e sabão a álcool – escondia

67
de sua mãe as feridas causadas. Nada! Ficou o complexo
de culpa, se sentia suja, feia, “relegada aos bastidores da
alegria”, nem rapar com o barbeador usado do pai
adiantaria. Passou a ser a adolescente tímida, “adolescer
de caramujo”, disfarçava, com tecidos claros, as manchas
nas axilas. Era atrapalhada também, por ser alta, muito
magra e corcunda. E assim levou a vida, aos “trancos e
barrancos”, e com o tempo foi se acomodando à situação.
“Estava quase resolvida” consigo mesma até
aparecer o “cupido”, fazendo-a pensar como “gata
borralheira”. Um jovem dentista, ao chegar da Capital,
reparou nela, uma “mera comerciária” “suarenta”.
Infelizmente a limusine era de “abóbora” e o sapato de
cristal “se quebraria no pé 39/40”. Ele queria apenas se
divertir com a “caipira gotejante”. Iludida, numa tarde de
segunda-feira foi-se encontrar com ele “vis-à-vis” no
intervalo do trabalho para tomar um café. Esperou na
lanchonete a olhar o relógio e a porta, pensava na “ruga
na testa” do patrão pelo atraso, enquanto as “axilas
bordejam”, o vestido molhara até quase a cintura: “Em
teu seio formoso retratas a verdura sem par dessas
matas”.

68
O dentista chega atrasado “25 minutos”, “com
passo lépido” e “sorriso de lorde”. “E agora?”, pensa a
mulher. Para evitar aparecer o suor, ela move apenas o
antebraço, e ele beija sua mão. Ela preferia ele ser um
“príncipe-sapo”. Em vez de o suor passar
despercebidamente, o “odontólogo” supera “a madrasta
em crueldade” e olha diretamente para a “inundação”. E
o que ele “disse, não importa”. Ela sentenciou:
“Culpado!”. Envergonhada e “submersa por um
tsunami”, ela “sibilou” humilhada: “É tarde, tenho de ir...
o meu chefe...”. Vai embora com “o salto três da
sandália”, deixando o “pós-graduado em vaidade” lá
sozinho. Saiu decidida em nunca mais vê-lo e pensava
nas desculpas que daria ao patrão. Toda a magia se desfez
com o dentista da Capital, “o cavalo branco do príncipe
se desencantou em reles banquinho de mola, sem
encosto”.
Teve outros rapazes e teve outros passeios. Numa
tarde dançante da juventude, o “dois-pra-lá-dois-pra-cá
prometia”, até o moço soltar-lhe a mão, pegar o lenço no
bolso e enxugar o suor por baixo da manga da camisa
curta, dizendo a ela: “Estou transpirando... mesmo!” Ele

69
ainda colocou a mão, mesmo suada, nela e continuaram
a dançar, era a última volta na pista, para o alívio da
mulher. Depois “o calorento” ainda ofereceu o lenço
encharcado. Ela agradeceu e recusou “num polido
obrigada”, reparando o costume em desuso: emprestar o
único lenço, “o cavalheiro”.
Vêm outras lembranças antigas “nauseabundas”,
como o dia em que ela cochilava numa viagem de ônibus,
e na parada entra “certo gorducho” de “camiseta regata”
e senta-se ao lado dela, “a vítima”. Ele ronca a viagem
inteira, fora o mal cheiro das axilas peludas. “E a inhaca
persegue-a ainda.” “É isso, aquilo se entranhou na
infância”, se juntando à sua feiura, pensa a mulher.
Com o namorado jornalista, ia tudo bem no
começo, até se “reavivar o trauma axilar”. Ele usa
perfume de lavanda, “camisas impecáveis, hálito
inodoro”. Numa sexta-feira de calor, ao fim do
expediente no jornal, pegaram a estrada de terra e foram
a um “pitoresco chalé” para viverem naquela tarde o
“Clima de pecado...”. Ele lhe conta em segredo ter o
desejo – a que ela se submeteu depois de negar – de ela
passar os pelos da axila, sem banho tomado, no rosto

70
dele. Foi “uma ânsia amoníaca... demoníaca”, coisa que
ela jamais pensaria: “Os lábios do homem profanaram
ocultos poros, e o beijo nas pudicas axilas, eletrizou-a”.
Então ela fugiu.
A seguir, analisar-se-á o conto buscando
explicitar a refinada escrita da autora, que, com seu
peculiar e personalíssimo modo de narrar os fatos, de
forma turbilhonante, apresenta em sua narrativa elipses,
sumários e pausas. Neste sentido, a descrição do conto é
realizada de maneira didática, demonstrando as
anisocronias em fragmentos do conto que homologam a
análise aqui proposta.

“Pensar axilas”: a presença das anisocronias

Sumário

Na perspectiva dos estudos do campo narrativo,


tem-se o elemento “sumário” como uma ferramenta de
recorte no contexto discursivo, que está sendo narrado
dentro de um período de tempo da história que se tem e
se conta, transformando-a à maneira dos fatos ocorridos.

71
Diante dessa questão, Gerard Genette (1972, p. 95)
explana ainda que “[...] a narração em alguns parágrafos
ou algumas páginas de vários dias, meses ou anos de
existência, sem pormenores de ação ou de palavras”
(GENETTE, 1972, p. 95).
Por esse prisma, Reis e Lopes (1988, p. 295)
arrazoam que “[...] o termo sumário designa toda a forma
de resumo da história, de tal modo que o tempo desta
aparece reduzido, no discurso, a um lapso durativo
sensivelmente menor do que aquele que a sua ocorrência
exigiria” (REIS; LOPES, 1988, p. 293).
Em análise à obra, encontramos no fragmento
abaixo a presença do sumário:

A véspera surreal ainda lateja,


viscosa, nas têmporas da mulher.
Mal crê no vivido em um lapso
de invigilância. O sujo teima na
pele, os sentidos boquiabertos,
náusea.
Estômago à deriva.
O apelo, displicente, ao jornal, a
se distrair do dia indigesto. Mas,
oh, Deus! Em caixa-alta, a quatro
cores, o recado cifrado, despique
de um parceiro amuado, com

72
livre trânsito pela redação. Ele
revira, sem cerimônia, a dor da
ferida, insensível ao pasmo
(RIBEIRO, 2019, p. 105).

No fragmento acima percebe-se a presença


marcante de uma história sendo narrada sem pormenores
de ações, exigindo, assim, do leitor literário, uma busca
atenciosa nas entrelinhas do fato contado; ou seja, o
tempo real da narrativa tornou-se menor em relação ao
tempo da história narrada.

Pausa

Ao deter-se na análise do conto com vistas à


enunciação narrativa nos aspectos relacionados ao
conceito do elemento deste tópico, encontra-se as
elucidações de Reis e Lopes (1988, p. 273),
esclarecendo-nos que

[...] a pausa representa uma


forma de suspensão do tempo da
história, em benefício do tempo
do discurso; interrompendo
momentaneamente o desenrolar

73
da história, o narrador alarga-se
em reflexões ou em descrições
que, logo que concluídas, dão
lugar de novo ao
desenvolvimento das ações
narradas (REIS; LOPES, 1988,
p. 273).

Desse modo, a pausa passa a ser o momento em


que o autor para a história e dá continuidade à narrativa
por meio de descrições, com riqueza de detalhes; é o que
se constata nas prerrogativas de Genette (1972, p. 99-
100) quando afirma que os usos dessas descrições
narrativas dentro da história contada:

[...] não se reportam a um momento


particular da história, mas a uma
série de momentos análogos, e, por
consequência, não poderão de modo
nenhum contribuir para retardar a
narrativa, muito pelo contrário:
desse modo [...] sintetizam num
único segmento descritivo várias
ocorrências do mesmo espetáculo
(GENETTE, 1972, p. 99-100).

Em linhas gerais, seria o momento em que o


narrador interrompe subitamente sua narrativa primeira

74
para fazer menção a vários fatos que contribuam nos
detalhes das ações narradas; isto é, com o uso da pausa,
o enredo torna-se infinitamente maior do que o tempo da
história, sobrepondo-se significativamente ao tempo real
da narrativa.
Nesta proposta, em “Pensar axilas”, encontra-se
o seguinte exemplo de pausa na narrativa:

O ônibus seguia veloz, ela


cochilava até ele embarcar na
primeira parada: camiseta regata,
aboletou-se no seu espaço, coxas
abertas. Bocejo ruidoso, mãos à
nuca, tufos negros e
malcheirosos à brisa. Roncou
todo o percurso, e a vítima se
espremeu na janela, rosto virado.
Torcicolo disse sim, e a inhaca
persegue-a ainda.
É isso. Aquilo se entranhou na
infância, se alimentou na
comunhão com a feiura, e se
entronizou na sua incoerência na
cama, ou de pé.
Parágrafo único: é vetada
inteireza às mulheres de rasa
estética (RIBEIRO, 2019, p.
114).

75
Analisando os fragmentos acima, percebe-se a
presença do elemento narrativo “pausa” quando a
escritora se utiliza de vários segmentos descritivos, de
forma a enfatizar o encadeamento das ações descritas em
uma mesma cena, focalizando numerosos detalhes nos
quadros narrativos expostos, em que o leitor tenha uma
maior contemplação e entendimento da história.

Elipse

Partindo para o estudo da elipse, e pautando-se


nas considerações de Reis e Lopes (1988, 242-245) “[...]
imprimida pelo discurso ao tempo da história, a elipse
constitui toda a forma de supressão de lapsos temporais
mais ou menos alargados, supressão essa que é
denunciada de modo variavelmente transparente” (REIS;
LOPES, 1988, p. 242-243).
Sobre o ponto de vista formal, proposto pelos
postulados de Gerard Genette (1972), distinguem-se três
tipos de elipse: a explícita, claramente manifestada pelo
discurso, por meio de expressões temporais de índole
adverbial (p. ex.: “dois anos depois”, “alguns meses mais

76
tarde”); a implícita, não expressa pelo discurso, mas
podendo ser inferida se se tiver em conta o desenrolar da
história; a elipse hipotética, insuscetível de ser delimitada
de forma rigorosa relativamente ao tempo da história e
apenas intuída de forma difusa (GENETTE, 1972, p.
106-109).
De acordo com os conceitos abordados,
explicitados nos fragmentos apresentados logo abaixo a
fim de demonstrar tal elemento presente na tessitura do
conto.

Aquilo negligencia o senso do


ridículo, invade a privacidade,
incrementa o consumo do supérfluo
e vende erotismo. Como se o
enigma existencial se resumisse a
axilar realização [...]
Sem alternativa, arcou com o fardo,
e cresceu apesar de, aos solavancos
do eu. Tempo afora, aos trancos e
barrancos, devagar se acomodou
aos conformes da epiderme e, quase
resolvida, deparou com cupido
(RIBEIRO, 2019, p. 108-111).

Analisando os fragmentos, pode-se observar a


presença elíptica, avançando sem recuo e acelerando os

77
fatos diante do tempo da história, em que o leitor se
depara com o avanço de forma rápida, entre a sucessão
dos fatos que vão moldando e proporcionando a
sequência da diegese.
Por esse ângulo, todo o estudo aqui apresentado
aspirou a demonstrar alguns elementos da enunciação
narrativa presentes no modo de narrar da escritora
mineira Alciene Ribeiro, de forma a entender os
movimentos turbilhonantes presentes na construção do
conto “Pensar axilas”. Percebe-se, ainda, o artesanato
textual, por meio do jogo de palavras; a subjetividade, de
maneira a não evidenciar a visibilidade de suas intenções
ao leitor.
Por fim, o trabalho aqui possibilitou um estudo no
campo da narrativa intertextualizado com fragmentos do
conto e possibilitou uma visão crítica no que diz respeito
à temática sinalizada pela escritora, que se utiliza de uma
linguagem simples e autêntica em sua construção
narrativa, permitindo uma leitura linear do texto, que
encontramos nas contribuições de Antonio Candido
(2011), no sentido significativo de que “[...] toda obra
literária pressupõe esta superação do caos, determinada

78
por um arranjo especial das palavras e fazendo uma
proposta de sentido” (CANDIDO, 2011, p. 178).

Referências

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários


escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Tradução:


Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.
147-163.

GENETTE, Gerard. Duração. In: Discurso da narrativa.


Tradução: Fernando Cabral Martins Lisboa: Arcádia, 1972, p.
85-109.

GOTLIB, Nádia Battella: Teoria do conto. São Paulo:


Ática, 1990.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São


Paulo: Cultrix, 1974.

_______ A criação literária: prosa. São Paulo: Cultrix,


2009.

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: Formas breves.


Tradução: José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Cia, das Letras, 2004.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de


narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

79
RIBEIRO, Alciene. “Pensar axilas”. Suplemento
Literário de Minas Gerais, n.º 1.375. Belo Horizonte,
Secretaria de Estado de Cultura, nov./dez. 2017.

_______ “Pensar axilas”. In: Mulher explícita. Organização


e posfácio Rauer Ribeiro Rodrigues. Uberlândia: Pangeia,
2019. p. 105-115.

_______ “Pensar axilas”. Suplemento Literário de Minas


Gerais, n.º 1.386. Belo Horizonte, Secretaria de Estado de
Cultura, set./out. 2019.

80
Racismo e o lugar do brincar: “Negrinha”,
de Monteiro Lobato, 1920

Anailta Bastos de Oliveira (UFMS)


anahbastosdeoliveira37@gmail.com

Introdução

O presente trabalho concerne ao brincar presente


no conto escrito por Monteiro Lobato, “Negrinha",
publicado no ano de 1920, trazendo também alguns
apontamentos sobres indagações étnicas/raciais que se
encontram presentes na obra. O conto traz em cena um
recorte de uma sociedade pós-abolição, respectivo ao
início do século XX, época em que o preconceito era de
fato evidente entres os povos, principalmente contra os
escravos, mesmo com a Lei Áurea (Lei n° 3.353) sendo
sancionada e dando liberdade total, muitos deles
abandonaram as fazendas nas quais habitavam, porém
continuaram trabalhando para os senhores, pois não
tinham para onde se refugiarem.
A Negrinha, personagem trazida no conto por
Monteiro Lobato, simboliza a órfã de pais escravos, que
continua em fazenda sendo “criada” pelos senhores dos

81
seus falecidos pais, de modo que o brincar – elemento
fundamental na vida de uma criança – lhe era negado.
Segundo Jean Piaget (1973), o brincar auxilia no
desenvolvimento de aprendizagens das crianças, e essa
ação ocorre na escola como também em espaços não
escolares. Considerando esta perceptiva após a leitura do
conto “Negrinha", tencionamos que o brincar e toda sua
liberdade foram retirados da sua vida e não só o ato do
brincar, mas também seus direitos de ser criança.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa documental
com instrumentos bibliográficos, com objetivo de
estudar e analisar o contexto do texto de Monteiro Lobato
denominado “Negrinha”, dando também ênfase no
brincar como aqui já foi anteriormente mencionado,
lembramos que as brincadeiras faziam parte da cultura,
porém nem todas as crianças tinham acesso, podendo
aqui afirmar que muitas das vezes a própria Negrinha era
na verdade o próprio brinquedo, tanto para a Sinhá
Inácia, personagem de grande importância presente no
conto, que dizia ser a “dona“ da Negrinha; e também para
as sobrinhas da Sinhá. Além de ter tirado da Negrinha
seu direito de brincar, a mesma sofria grande

82
preconceito, por ser uma menina órfã de pais escravos,
que não tinha nome, apenas seu apelido "Negrinha”,
além de outros “apelidos” (xingamentos), como “diabo",
“lixo" e etc., de modo que o conto pode ser tratado em
caráter de denúncia social/racial.
Nesse sentido, espero ser possível um
entendimento aprofundado desses elementos da vida
social para uma análise crítica da vida da Negrinha. Visto
que o brincar é um direito da criança e também faz parte
do seu desenvolvimento físico e intelectual o mesmo
deve ser formado em diferentes dimensões. Após a
Negrinha conhecer ‘o brincar’ ela deixou de ser um
objeto e passou a ser um sujeito, porém após ser retirado
novamente ‘o brincar’ de sua vida, ela adoeceu, definhou
e morreu.
Sendo assim, de outra forma busco, a partir do
estudo do conto, compreender e reafirmar a importância
do brincar na vida das crianças. Pode-se dizer que o
brincar traz a possibilidade de retomar a humanidade,
assim como indicado no conto através do contato com ‘o
brincar’ pela Negrinha. Ao brincar a Negrinha se sentiu
“pessoa” diferenciando-se dos objetos com os quais era

83
literalmente quase igualada, quase, pois ela era vista
como de um valor inferior.

As concepções do brincar: aproximações teóricas

A definição de brincar é uma tarefa de grande


complexidade, uma vez que precisamos nos aprofundar
na sua história para que possamos obter um entendimento
à parte. Segundo Crepaldi (2010, p.12) a presença das
brincadeiras faz parte da humanidade, presente centenas
de anos a.C. de modo que ela ainda menciona que o
brincar na antiguidade fazia parte do corpo e alma, não
sendo diferente dos dias atuais, no sentido que o brincar
é uma necessidade da criança.
Segundo a autora, um elemento muito importante
para que possamos discutir é a boneca, brinquedo
atualmente muito conhecido, ela menciona que hoje em
dia a boneca está sendo deixada de lado precocemente,
ou seja, antigamente podia se ver que as meninas, por
exemplo, tinham um maior contato e maior desejo ao
“brincar de boneca”:

84
A trajetória das bonecas
mereceria um estudo à parte,
dada a variedade de
representações e usos, que
englobam desde a religião até a
necessidade de a criança imitar o
cotidiano, reproduzindo
cuidados maternos. Atualmente,
as meninas as estão deixando de
lado mais precocemente do que
quando o mestre do cancioneiro
popular, Luiz Gonzaga cantava
em o ‘Xote das meninas’: ‘[...]
toda menina se enjoa da boneca é
sinal de que o amor chegou no
coração [...] (CREPALDI, 2010,
p. 12).

Outras brincadeiras estão deixando de ser tão


procuradas pelas crianças, lembrando que são brinquedos
que podem ser transformados a partir da natureza que
ajudam na variedade de representação e ainda ajudam na
criatividade, esses brinquedos são essenciais no mundo
infantil, pois auxilia no desenvolvimento cognitivo da
criança.
Destacando dessa forma o quão significante é
essa relação quando se referi ao desenvolvimento pois, o
brincar não é só uma ação, vai muito além disso, ou seja,

85
ao brincar de boneca, por exemplo, a criança reproduz
papéis que estão presentes em sua cultura social e
sabendo que o brincar é um direito da criança, devemos
possibilitar o brincar, todavia de uma forma prazerosa e
educativa, de modo que se empregue o lúdico como um
dos mecanismos principais no ato de brincar.
Segundo a RCNEI (BRASIL, 1998), o brincar
atua como um horizonte, este que auxilia as crianças na
imitação da vida real e ainda vai além, auxiliam a
transformar suas vidas, no sentido de que elas possam
imaginar e através dessa imaginação elas se aproximam
mais do mundo em que vive e também imitam situações
que viram acontecer futuramente, como por exemplo a
brincadeira de “escolinha”, ou seja, as crianças brincam
a partir da sua realidade, levando-a a ter um maior
contato com o seu meio, criando e selecionado ideias e
adquirindo aprendizados e experiências.
Acrescenta-se então, para consolidar essa
colocação o pensamento de Machado (2003, p.37):

Brincar é também um grande


canal para o aprendizado, senão
o único canal para verdadeiros

86
processos cognitivos. Para
aprender precisamos adquirir
certo distanciamento de nós
mesmos, e é isso o que a criança
pratica desde as primeiras
brincadeiras transacionais,
distanciando-se da mãe. Através
do filtro distanciamento podem
surgir novas maneiras de pensar
e de aprender sobre o mundo. Ao
brincar, a criança pensa, reflete e
organiza-se internamente para
aprender aquilo que ela quer,
precisa, necessita, está no seu
momento de aprender; isso pode
não ter a ver com o que o pai, o
professor ou o fabricante de
brinquedos propõem que ela
aprenda. (MACHADO, 2003, p.
37).

Olhando pelo ponto de vista do autor, o brincar


não é só um ato capaz de desenvolver o psíquico da
criança, mas também a aprendizagem do mesmo, na sala
de aula, por exemplo, o professor precisa adaptar
atividades que possam estabelecer uma relação do lúdico
com os conteúdos, dando oportunidades para que as
crianças possam além de estudar, também brincar e se
divertir, gerando assim mais interesse em aprender,

87
segundo Santos (1997. p. 12) o lúdico favorece a
aprendizagem e além dessa aprendizagem ainda pode
desenvolver o pessoal, cultural e social, dando total
contribuição no que diz respeito à comunicação,
socialização, construção de conhecimento e facilidade de
expressão.
Dentre todas as colocações, vejamos uma que nos
faz refletir, como que a criança aprende a brincar?
Notemos que muitas das vezes as crianças se identificam
com muita rapidez no ato de brincar, porém cabe aqui
ressaltar que ela não nasce já sabendo brincar, Kishimoto
(2010) traz uma colocação para que nos atentemos a fim
de entender melhor essa contestação, afirmando que:

A criança não nasce sabendo


brincar, ela precisa aprender, por
meio das interações com outras
crianças e com adultos. Ela
descobre, em contato com
objetos e brinquedos, certas
formas de uso desses materiais.
Observando outras crianças e as
intervenções da professora, ela
aprende novas brincadeiras e
suas regras. Depois que aprende,
pode reproduzir ou recriar novas

88
brincadeiras. (KISHIMOTO,
2010. p. 1).

De acordo com o autor, podemos verificar outra


questão de grande relevância, que o uso de regras, dentro
dos jogos ou encontradas também incorporadas em
algumas brincadeiras, regras essas que contribuem no
desenvolvimento de comportamentos positivos da
criança tanto intelectual como também pessoal, por
exemplo, brincadeiras que regem respeito às diferenças,
respeito à opinião do outro e várias outras brincadeiras,
uma vez que brincadeiras como estas criam na criança a
necessidade de respeitar e seguir as regras direcionadas,
podendo a transformar em um ser humano critico, porém
circunspecto.
Vale ressaltar que as crianças podem tomar suas
próprias decisões e podem porventura, ter o livre acesso
quando nos referimos às brincadeiras, pois sabemos que
muitas das vezes as brincadeiras não vêm prontas, é uma
ação livre, de modo que é importante que a criança possa
ter autonomia para a criação de suas próprias
brincadeiras, Kishimoto ressalta que:

89
A criança, mesmo que pequena,
sabe muitas coisas: toma
decisões, escolhe o que fazer,
interage com pessoas, expressa o
que sabe fazer e mostra, em seus
gestos, em um olhar, uma
palavra, como é capaz de
compreender o mundo. Entre as
coisas de que a criança gosta de
brincar, que é um dos seus
direitos. O brincar é uma ação
livre, que surge a qualquer hora,
iniciada e conduzida pela
criança; do prazer, não exige
condição um produto final;
relaxa, envolve, ensina regras,
linguagens, desenvolve
habilidades e introduz a criança
no mundo imaginário.
(KISHIMOTO, 2010, p. 1).

Vejamos, o brincar faz parte da vida da criança


(mas ela não nasce sabendo), isso já está bem claro, mas
o brincar não é algo natural e seguindo o ponto de vista
de Kishimoto (2001) a criança não aprende a brincar
somente pela intervenção dos adultos, ela tem essa
capacidade desde pequena de criar e transformar, por
exemplo, a brincadeira da faz de conta, hoje a criança
pode querer brincar que é a mãe da boneca, essa

90
brincadeira pode ser transformada, aquela boneca que era
sua filha, ela o transformará em seu mundo imaginário e
passará a ser apenas sua “irmã”, são brincadeiras
aparentemente iguais, mas de pontos de vista diferentes,
ou seja a criança a partir das suas vivências assume
práticas diferenciadas.

Pois é a brincadeira, e nada mais,


que está na origem de todos os
hábitos. Comer, dormir, vestir-
se, lavar-se, devem ser
inculcadas no pequeno ser
através de brincadeiras,
acompanhados pelo ritmo de
versus e canções. É a brincadeira
que nasce o hábito, e mesmo em
sua forma mais rígida o hábito
conserva até o fim alguns
resíduos da brincadeira.
(BENJAMIN, 1985, p. 253).

No entendimento do autor, a brincadeira está


inserida em quase todos os espaços na vida das crianças
e é a partir das colocações do Benjamin (1985) que
percebemos o quanto é relevante a inserção das
brincadeiras nas ações do dia a dia das crianças levando

91
a mesma a criar hábitos diferentes daqueles já
apresentado para elas. Portanto, para finalizar este
discurso, reafirmo que o brincar é de fato, uma ação em
que se torna para as crianças um processo de grande
significância, desde que seja realizada de forma
prazerosa como aqui já mencionada, pois de acordo com
Melo & Valle (2005, p.45) essa forma de brincar irá já
permitir que a criança seja encaminhada para o mundo de
esfera imaginária, sendo capaz de desenvolver e exercitar
suas habilidades a fim de se relacionar melhor com o
meio em que vive.

Relações étnicas e “raciais”, alguns apontamentos

A história da sociedade brasileira é marcada por


desigualdades e discriminações, racismo e preconceito,
especificamente contra os negros, de modo que muitas
das vezes impede seu pleno desenvolvimento social,
econômico e político, uma vez que essas desigualdades e
racismo são marcadas pela cor da pele e a raça da pessoa,
vejamos o que fala Munanga (2004):

92
Assim, os indivíduos da raça
‘branca’, foram decretados
coletivamente superiores aos da
raça ‘negra’ e ‘amarela’, em
função de suas características
físicas hereditárias, tais como a
cor clara da pele, o formato do
crânio (dolicocefalia), a forma
dos lábios, do nariz, do queixo,
etc. que segundo pensavam, os
tornam mais bonitos mais
inteligentes, mais honestos, mais
inventivos, etc. e
consequentemente mais aptos
para dirigir e dominar as outras
raças, principalmente a negra
mais escura de todas e
consequentemente considerada
como a mais estúpida, mais
emocional, menos honesta,
menos inteligente e, portanto, a
mais sujeita à escravidão e a
todas as formas de dominação.
(MUNANGA, 2004, p. 5).

Vejamos que o autor chama atenção sobre a


superioridade que os brancos possuem quando se
relacionam com negros, é partindo da colocação citada
acima que percebemos que a discriminação e o racismo

93
é algo que infelizmente, atinge as comunidades
afrodescendentes desde a infância e que os seguem por
toda a vida, levando muitos a deixar a escola e até o
trabalho, além de sofrerem diariamente com o medo de
serem mortos simplesmente pelo fato de serem “negros”.
De acordo com Resemberg (1990), é visível que
alunos negros se encontram nas piores escolas, uma vez
que a exclusão desses alunos vem se desenvolvendo cada
vez mais e a cada dia que passa mais pessoas negras
deixam a escolas, pois muitas das vezes a cultura negra
não tem espaço nos centros escolares, ou seja, ela é de
fato, silenciada, silencio esse que se torna essa cultura
“inexistente”, de certa forma esquecida, muitos
educadores não se sentam à vontade de falar sobre o tema
com os alunos ou até mesmo não possuem uma formação
adequada em cima dessa temática, sendo assim seria
necessário formações de professores considerando
discurso sobre racismo, preconceito, discriminação e
etc., Pereira (2010) traz uma colocação sobre essa
questão salientando que:

94
Na formação de educadores é
importante considerar as
representações que possuem
sobre racismo, sexismo,
preconceitos, discriminação e
trabalhar com estas
representações, desconstruindo-
as, promovendo a
conscientização dos educadores
sobre/nossas limitações, isso é
fundamental para tal processo.
(PEREIRA, 2010, p. 315).

As escolas assumem um papel primordial quando


nos referimos ao desenvolvimento de aprendizagem
significativa e como sabemos a Lei n° 9394/96
estabelece as Diretrizes e Bases da Educação, que torna
o ensino de História e cultura Africana e Afro-brasileira
na Educação Básica, de fato, essa lei é um marco de
grande relevância quando nos referimos aos
apontamentos e colocações apresentadas nos parágrafos
anteriores, mas mesmo estando em lei, infelizmente as
escolas deixam uma temática muito importante de fora
do currículo escolar, ou está presente no currículo, porém
não é empregado na prática, mesmo sendo de grande

95
significância para o combate ao racismo que tanto se faz
presente hoje em dia:

Uma maneira de combater o


racismo é através de estudo das
questões étnico-raciais, pois,
permitirá que os alunos
desencadeiam respeito entre as
pessoas, independentemente de
suas origens e características e
origens, neste sentido, o trabalho
com questões étnico-raciais é
importante não só para auxiliar
os educandos a compreender que
a diferença entre indivíduos,
povos e nações é saudável e
enriquecedora, mas também
porque cabe à escola promover e
contribuir para minimizar o
preconceito[...].(SILVA,
PALUDO, 2011, p.7019).

Por fim, para um melhor entendimento como se


deu o desenvolvimento de todas essas indagações sobre
raça, preconceito, racismo e discriminações é necessário
um estado a parte de todos os fatos ocorridos, que surgiu
desde o “descobrimento” do Brasil, iniciando com a
exploração de riquezas e posteriormente a escravização

96
de pessoas nativas, que a princípio foi praticada com os
indígenas tratados como moeda de troca, práticas de
escambo pelos próprios nativos e após a inviabilização
da escravização desses povos, surge a necessidade de
mão de obra para a lavoura, por esse motivo são trazidos
negros como cargas em porões de navios chamados
posteriormente de “navios negreiros” para a substituição
da mão de obra indígena, é a partir daí que começa a
escravização, sendo que os negros foram escravizados
por mais de 300 anos e mesmo sendo libertados e como
aqui já mencionado, sofrem uma grande onda de racismo.

O brincar para além das mazelas contextuais

O brincar vem sendo uma temática geradora de um


amplo discurso como aqui já relatado, no qual carrega
consigo abordagens, tais como, cultural, psicológica e
educacional, na abordagem cultural a criança se apropria
da cultura a partir do brincar, ou seja, ao brincar a criança
tem uma maior relação com os signos de uma
determinada cultura, com isso ela se apropria dos
significados e das próprias ideologias culturais, a

97
abordagem psicológica se dá a partir da interação com os
jogos, levando a criança a apropriação de um melhor
compreendimento e funcionamento das suas
personalidades e emoções, já na abordagem educacional
trata-se do brincar como desenvolvimento de
aprendizagens, como já mencionado nos capítulos
anteriores, dessa forma o brincar envolve de fato toda a
realidade da criança, tendo em vista que: “Quem brinca
de certa forma pisa em chão sagrado. Já que acredita
plenamente na realidade vivida e sentida, mergulhando
fundo em suas águas, respeitando suas alianças”.
(OLIVEIRA, 2000, p.26). De acordo com as palavras do
autor e como já foi ressaltado no primeiro capítulo,
percebe-se a importância do brincar na vida de uma
criança, mas esse brincar trata-se de um brincar diferente
daquele notado na obra Negrinha, pois a dona Inácia,
assim representada pelo autor, fazia da Negrinha na
verdade o seu próprio brinquedo no qual ela brincava de
uma forma cruel e discriminatória, contudo essas ações
provocavam na dona Inácia um ar de alegria ao maltratar
a Negrinha, “Ai! Como alivia a gente uma boa cocres
bem fincadas!...” (LOBATO, 2012, p. 2), a partir das

98
palavras da dona Inácia atentamos o quanto era sofrida a
vida da Negrinha, crescendo e vivendo como um
brinquedo nas mãos da sinhá, sem poder se expressar e
tão pouco se defender.
É viável trazer aqui em discurso o filme A vida é
bela para que possamos fazer uma comparação do
brincar que se fez presente na vida dos ambos
personagens, contudo se faz necessário um pequeno
apanhado do filme, sendo um filme italiano que foi
lançado em 1997, de comédia dramática que narra a
história de um judeu “Guido” que ao se mudar do campo
para a cidade se apaixona por uma Italiana “Dora”, que
logo se casa com ela e tem um filho, o “Josué”.
Na Segunda Guerra Mundial Guido e sua família
são levados para o campo de concentração nazista,
valendo ressaltar que nessa época Josué já estava com 5
anos de idade, por tanto para não ver seu filho triste,
Guido tenta passar para seu filho que todo aquilo que eles
estavam vivenciando era alegre, ou seja, ele fantasiou
para seu filho uma viagem de férias, de modo que eles
iam jogar e acumular pontos.

99
No campo de concentração Guido entra em uma
onda de sofrimento amalgamado com diversão, tudo isso
para demostrar para seu filho que aquilo tudo era um jogo
divertido e que eles iam sair do local com um prémio,
com o objetivo de seu filho não perceber tamanha
barbárie que ocorria no local, Guido de fato, consegue
que seu filho passe por todo aquele momento horrível
sem carregar consigo traumas e sofrimentos, o filme é na
verdade uma demonstração de como foram os campos de
concentração nazistas, mas no filme o autor Guido
consegue deixar atrativo com sua atuação trazendo
sempre um sorriso para que seu filho achasse que aquilo
era apenas um jogo (bom seria se tudo fosse apenas um
jogo).
Vamos lá, vimos que o brincar também esteve
presente na vida dos autores do filme, pois Guido
fantasiava todos os jogos e transmitia para seu filho, de
modo que aquele sofrimento não fosse tão doloroso, a
partir daí é que notamos que o brincar ressaltado no filme
foi literalmente escasso no conto, a Negrinha não
carregou em nenhum momento da sua infância a alegria
de fantasiar de brincar e nem se quer argumentar sobre

100
algo, de forma resumida, ela em nenhum momento da sua
vida teve o direito de ser feliz, muitos menos realizar seus
desejos, de modo que ela poderia conquistar tudo isso ao
brincar na sua infância.
Segundo Andrade (2010), a infância é vista como
uma construção social, de modo que remete a uma
criança inteligente, forte e autônoma, a autora ainda
ressalta que as crianças precisam ter o direito de voz e
também de ser ouvida, no conto em nenhum momento a
Negrinha conseguiu se expressar verbalmente, não foi
ouvida e principalmente não conseguiu o seu direito de
conquistar sua autonomia, mas se olharmos para nossa
realidade atual ainda há crianças que vivem nessas
condições, como por exemplo as crianças que vivem em
camadas populares, veja o que fala Andrade:

As representações sobre a
infância que evocam o modelo
idílico não expressam a realidade
de todas as crianças, em especial
das camadas populares inseridos
precocemente no trabalho,
excluídos da escola, vivendo em
situações de misérias, abandono
e exploração, enfim, para as

101
quais o “paraíso da infância” é
uma grande utopia.
Confrontando-nos assim com
diferentes formas de vivência da
infância quando consideramos as
diferentes demarcações de suas
condições socioeconômicas e
culturais. (ANDRADE, 2010,
p.74).

A Negrinha vivenciou todas essas situações


apontadas acima pela autora, sendo que o seu “paraíso de
infância” foi adquirido ao descobrir as bonecas das
sobrinhas da dona Inácia, por tanto esse mesmo paraíso
foi retirado dela, sendo assim, ela não se apropriou da
beleza da infância, além de tirarem dela a capacidade de
construir seus conhecimentos, retiraram também a sua
capacidade de ser uma criança ativa.
O brincar das crianças segundo Oliveira (2000) é
vista como uma significação para o desenvolvimento
fornecendo condições para que elas possam desenvolver
tanto o seu psicológico como também o ensino-
aprendizagem, se tudo isso estivesse presente na vida da
Negrinha ela poderia ter vivenciado uma infância, mas
viveu desde pequenina até sua morte assustada, apanhado

102
e sendo castigada, na verdade uma violência infantil
como está explícito no conto:

O corpo da negrinha era tatuado


de sinais, cicatrizes, vergões.
Batiam nele os de casa todos os
dias, houvesse ou não houvesse
motivo. Sua pobre carne exercia
para os cascudos, cocres e
beliscões a mesma atração que o
imã exerce para o aço.
(LOBATO, 1920, p. 1).

Vale aqui salientar que a violência e o racismo


contra crianças se fazem presente atualmente, porém
pode haver o racismo explicito e o implícito, explicito é
quando há de certa forma desacato ou desrespeito que
ocorre verbalmente, podendo levar a agressões e etc., já
o racismo implícito pode ocorrer de forma abstrata,
sendo que torna mais difícil o combate deste racismo,
infelizmente tanto racismo implícito quanto o explícito
se encontra claramente empregado na vida da Negrinha.
É visível que a negrinha tinha uma vida aflita, sem
amor e principalmente sem autonomia, e mesmo se ela
quisesse conquistar essa autonomia à dona Inácia iria

103
retirá-lo, uma vez que uma das maneiras para ela se
apropriar dessa autonomia seria simplesmente o ato de
brincar, Oliveira (2000) resume bem essa condição,
ressaltando que: “O brincar, por ser uma atividade livre
que inibe a fantasia, favorece o fortalecimento da
autonomia da criança e contribui para a sua formação e
até quebra de estruturas defensivas”. (OLIVEIRA, 2000,
p.19). Sendo assim, segundo as palavras do autor é
significativa a falta do brincar ao longo da sua infância,
não se encontrando em situação social eficaz para sua
idade, de modo que ela passava a ser o “Passa-Tempo”
da dona Inácia e também das suas sobrinhas, não fruindo
de uma boa relação entre adultos e crianças, Lima,
Mwewa (2021) ressalta três categorias para que
possamos entender sobre essa relação entre adultos e
crianças, a primeira é a categoria cuidar, que se dá a partir
do cuidado, necessidades fisiológicas e higiene, a
segunda categoria trata-se do espaço físico, ou seja, a
relação da criança e adultos nos espaços físicos inseridos
na sociedade e por fim os autores traz a categoria
afetividade, essa que se dar por meio da afetividade dos
adultos com as crianças, vire-verso, todas essas

104
categorias são de estrema importância para que a criança
possa se desenvolver tanto seu físico como também seu
psicológico.
Se pegarmos como ponto de partida as colocações
dos autores citados no parágrafo anterior, notamos que a
falta dessa relação entre adultos e criança foi constante
na personagem Negrinha, uma vez que a única relação
que a dona Inácia tinha com a menina era apenas de
humilhação, preconceito e violência, não só pela dona
Inácia como também por as suas sobrinhas que
debochavam a todo momento da Negrinha, diferente da
relação do Guido e do seu filho, presente para
comparação anteriormente.
Pensemos:

Dia a dia nega-se às crianças, o


direito de ser crianças. Os fatos,
que zombam desse direito,
ostentam seus sentimentos da
vida cotidiana. O mundo trata os
meninos ricos como se fossem
dinheiro, para que se acostumem
a atuar como o dinheiro atua. O
mundo trata meninos pobres
como se fossem lixo, para que se

105
transforma em lixo. E os do
meio, os que não são ricos nem
pobres, conserva-os atados à
mesa do televisor, para que
aceite desde cedo um destino, a
vida prisioneira. Muita magia e
muita sorte têm as crianças que
conseguem ser crianças.
(GALEANO1999 apud
KRAMER, 2000)

De acordo com as colocações do autor, chega-se à


conclusão que a Negrinha em toda sua vida foi a criança
pobre, sendo diariamente tratada como um lixo, de modo
que ela se encaixa também nas crianças do meio (nem
rica e nem pobre), sendo ela criada aceitando tudo ao seu
redor, ou seja, sendo obrigada a aceitar suas condições de
vida, valendo aqui salientar que nem o televisor trazido
pelo autor foi presente em sua vida, vivia apenas pelos
cantos da casa, isso nos faz refletir que o direito da
criança não é só ter um lar para viver, além disso se faz
necessário atenção, educação e todo cuidado necessário,
ou seja todas as categorias mencionada por Lima e
Mwewa (2012), pois é a partir daí que entra a
importância da educação na vida das crianças, que

106
infelizmente a Negrinha não se apropriou de tão
grandioso ato.
A educação é de fato um direito de todos, visando
sempre o desenvolvimento integral do indivíduo,
valendo lembrar que sua contribuição é de grande
relevância quando nos referimos em formar um cidadão
crítico, Adorno (2000) ressalta em sua obra sobre a
educação emancipadora, que é a educação voltada para a
formação de um indivíduo social e não um ser humano
com identidade isolada, ele ainda enfatiza em sua obra
sobre a educação ser fundamental para combater que
novas barbáries se repitam, sobre essas barbáries o autor
se refere a Auschimitz ocorrido na Alemanha, que foram
campos de concentrações construídos pelos nazistas,
com o objetivo de um grande extermínio de pessoas.
Veja:

É preciso buscar as raízes nos


perseguidores e não nas vítimas,
assassinadas sob os pretextos
mais mesquinhos. Torna-se
necessário o que a esse respeito
uma vez denominei inflexão em
direção ao sujeito. É preciso

107
reconhecer os mecanismos que
tornam as pessoas capazes de
cometer tais atos, é preciso
revelar tais mecanismos a eles
próprios, procurando impedir
que se tornem novamente
capazes de tais atos, na medida
em que se desperta uma
consciência geral acerca destes
mecanismos. Os culpados são
unicamente os que, desprovidos
de consciência, voltaram contra
aqueles o seu ódio e sua fúria
agressiva. É necessário
contrapor-se a uma tal ausência
de consciência, é preciso evitar
que as pessoas golpeiem para os
lados sem refletir a respeito de si
próprias. A educação tem sentido
unicamente como educação
dirigida a uma autorreflexão
crítica. Contudo, na medida em
que, conforme os ensinamentos
da psicologia profunda, todo
caráter, inclusive daqueles que
mais tarde praticam crimes,
forma-se na primeira infância, a
educação que tem por objetivo
evitar a repetição precisa se
concentrar na primeira Infância.
(ADORNO, 1995, p. 121-122).

108
Na visão de Adorno a primeira infância é também
um espaço do diálogo e brincadeiras que possa abordar
questões de respeito ao próximo, por exemplo, pois a
infância para ele assume um papel primordial, é na
infância que a criança tem sua primeira visão de mundo,
sendo de grande relevância a educação presente nessa
etapa, podendo dessa forma na perspectiva de Adorno
uma ação de bem social e cultural, mas se partimos para
o conto aqui analisado não houve nada de social e
cultural na vida da personagem Negrinha, muito menos
uma educação que à pudesse formar como um ser
humano íntegro, já que de certa foram ela vivenciou na
sua infância uma barbárie, não sendo semelhante a que
Adorno menciona nas suas obras, entretanto ela foi
privada de viver as belezas de ser uma criança, o brincar,
por exemplo.
Além das privações diárias na vida da Negrinha,
ela onde vivenciou zombaria e o racismo das sobrinhas
da dona Inácia, que são tragas no conto como as
personagens que também fizeram a Negrinha de seu
brinquedo, “Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade”,
(LOBATO, 2012, p.3) percebe-se que a Negrinha era de

109
fato uma menina ingênua, e em nenhum momento do
conto foi relatado alguma ação em que dava a liberdade
de defensa e nem tampouco de expressão. Sabendo que a
Negrinha não brincava, e tendo em vista que o brincar é
uma forma das crianças se expressarem:

A liberdade de brincar na
infância é a expressão de uma
criança que diz: ‘Quero ser livre
para brincar com a vida’.
Brincando, a criança aprende ser
livre harmonizando o seu mundo
interior nas suas mais variadas
composições com o mundo
exterior. O direito de brincar
como um direito de liberdade é
equilíbrio e felicidade. A
liberdade faz com que a criança
autora das escolhas que lhe
interessam, fortalecendo a
construção de sua autonomia de
acordo com a sua lógica própria.
(CURTYS, 2006, p. 40).

As condições e situações que levariam a Negrinha


a liberdade de brincar não se encontravam diante a vida
que ela tinha, pois como aqui já mencionado ela vivia
somente em um mundo seguido de mal tratos conduzidos

110
pela dona Inácia, vejamos ainda que ela em nenhum
momento foi compreendida e nem vista como um sujeito
concreto em que se situa historicamente em uma
sociedade.
Entretanto foram essas sobrinhas que ao passar as
férias com a “santa Sinhá” assim apresentada por Lobato,
apresentaram o brincar e o brinquedo (boneca) para a
Negrinha, que se encantou com tanta beleza, também se
assustou, quão grande foi a sua epifania:

Negrinha olhou para os lados,


ressabiada, com o coração aos
pinotes. Que aventura, santo
Deus! Seria possível?? Depois,
pegou a boneca. E muito sem
jeito, como quem pega o Senhor
Menino, sorria para ela e para as
meninas, com relances de olhos
assustados para a porta. Fora de
si, literalmente... Era como se
penetrara o céu e os anjos a
rodeassem, e um filhinho de anjo
lhe viesse adormecer ao colo.
Tamanho foi o enlevo que não
viu chegar à patroa, já de volta.
D. Inácia entreparou, feroz, e
estiveram uns instantes assim,

111
imóveis, presenciando a cena.
(LOBATO, 1920, p. 3).

Segundo a colocação do autor visamos à diferença


que relata a desigualdades sócias na época, ou seja, de
um lado as crianças brancas, ricas e bem cuidadas que
usufruíra de tudo e de outro lado uma menina pobre,
negra e que sofreu violência e preconceito, sem poder ao
menos brincar e viver o tão glorioso faz de conta que faz
parte da imaginação das crianças.
Vale aqui ressaltar o papel e o significado da
boneca no processo formativo da criança, pois ao brincar
a criança entra no mundo de faz de conta, podendo trazer
dessa forma a representação da realidade no qual a
criança aprende a lidar com as relações sociais, por
exemplo, na perspectiva de Oliveira (2000) a brincadeira
simbólica também favorece o uso das linguagens nas
crianças, a partir da leitura do conto percebe-se que a
negrinha mal falava, como por exemplo, ao brincar de
boneca, Oliveira (2000) traz no seu texto uma
contribuição mediante essa afirmação para que possamos
ter um melhor entendimento:

112
Ao brincar de que é mãe da
boneca, por exemplo, a menina
não apenas imita e se identifica
com a figura materna, mas
realmente vive intensamente a
situação de poder gerar filhos, e
de ser uma mãe boa, forte e
confiável. (OLIVEIRA, 2000,
p.19).

Visamos por tanto, a vida da negrinha se resume


em uma criança da vida sofrida por falta dos direitos de
criança que poderia ser favorecido para ela não era
reconhecida como ser humano e só soube que era ser
humano depois de conhecer as bonecas, “[...] sentiu-se
elevada à altura de ser humano[...]”, (LOBATO, 2012, p.
4), vivenciou uma sufocante história que nos mostra sua
tristeza com tanto preconceito ao longo de toda sua
infância até sua morte, de modo que Lobato ressalta que
dá Negrinha ficaram apenas duas impressões, uma
cômica que são as zombarias das sobrinhas ricas da dona
Inácia e outra impressão de saudade da própria dona
Inácia, mas uma saudade voltada ao bater e humilhar a
Negrinha.

113
Contudo a impressão que fica na verdade, é uma
triste história que nos faz refletir, para o ato monstruoso
que ocorreu contra a personagem Negrinha não se repita
com outras crianças dias atuais, pois as crianças precisam
ter seus direitos e maior que isso elas precisam e devam
vivenciar todos esses direitos.

Considerações finais

O objetivo dessa pesquisa foi analisar e


compreender o brincar no conto “Negrinha” e a forma
que a dona Inácia e suas sobrinhas brincavam com ela,
isso me pois a pensar o quanto o brincar foi escassez na
vida da Negrinha, de modo que junto com todo seu
sofrimento e violência física e psicológica retirou dela o
brilho e a alegria da infância, tornando-a uma criança
sem felicidade, que após conhecer as bonecas se
reconheceu como gente e, infelizmente, após perder
novamente o contato com as bonecas a tristeza domina a
menina de uma forma tão fortes, que acabou levando a
pequena à morte:

114
Morreu na esteirinha rota,
abandonada de todos, como um
gato sem dono. Ninguém,
entretanto, morreu jamais com
maior beleza. O delírio rodeou-se
de bonecas, todas louras, de
olhos azuis. E de anjos... E
bonecas e anjos redemoinhavam
em torno dela, numa farândola
do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça,
abraçada, rodopiada. (LOBATO,
1920).

O conto “Negrinha” é de fato, uma história


cruciante, ao lermos nos remete uma ideia semelhante de
uma notícia de jornal, trazendo uma narração do século
passado, mas que na atualidade ainda se encontra muitas
indagações perdidas e precisam obter um estudo mais
aprofundado.
Confesso que muitas das vezes ao sentar-me para
e escrita deste trabalho me senti em tamanha tristeza. O
sofrimento, a falta de amor e cuidado presente na vida da
Negrinha é lamentável, ela poderia ter sido feliz, se pelo
menos ela tivesse seu direito de brincar de viver numa

115
cultura em que ela pudesse se expressar, criar fantasias,
poder ter seu direito de voz, quanto fez falta o
acolhimento dos seus pais em sua vida, fico ainda a
pensar como pode uma mulher tão má como a dona
inácia, castigando a Negrinha, tirando todos os seus
direitos, nem nome a menina tinha, ou andava calada
pelos cantos ou era violentada ou sofria uma onda de
racismo, preconceito e discriminação.
Com estas pequenas colocações, afirmo pequenas,
pois se abrimos um discurso sobre tudo que foi a
escravidão sairemos do objetivo da análise aqui já
supracitado, porém são válidas pôr em evidência para
que pensemos ver sobre tudo que foi desenvolvido
teoricamente neste trabalho, tendo em vista que ainda nos
faz refletir sobre a visão que se tinham dos negros
retratados no Pré-Modernismo.
Por tanto expresso minha imensa exultação ao
analisar o conto “Negrinha”, análise de extrema
transcendência para novos conhecimentos literários, nos
fazendo pensar e repensar em todos os fatos da obra que
estão voltados e dirigidos para o público leitor.

116
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119
A tradição da menipeia em El Rey
Gallo de Francisco Santos

Edelberto Pauli Júnior (UFMS/CPAQ)4


edelberto.junior@ufms.br

Introdução

El rey Gallo y discursos de la Hormiga (1671),


de Francisco Santos (1621-1698), segue o percurso dos
diálogos de transformações, cuja forma admite o marco
biográfico e de aventuras. Esse tipo de diálogo fantástico
se estrutura com recursos poéticos e retóricos da sátira
menipeia, tendo como um dos seus paradigmas o Asno
de ouro, de Apuleio (século II d. C), o Galo ou o Sonho
de Luciano de Samósata (século II d. C) e o Grilo de
Plutarco (séc. I e II d. C). El rey Gallo de Santos dialoga
com essa tradição ao emular tanto o Galo de Luciano em
sua disputa sobre qual seria o “melhor estado”: o da
pobreza filosófica ou o da opulência da corte, bem como

4
Este artigo retoma partes da discussão iniciada na tese Sátira
cínica e a grandeza do ínfimo em El rey Gallo de Francisco
Santos, defendida no Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da
Unicamp em 2020.

120
a relação de castigo e purificação do Asno de Apuleio,
com o regresso do Galo e da Formiga à condição de
animais. No texto do escritor madrilenho os
protagonistas experimentam ainda ambas as formas
(animal e humana), como o porco no Grilo de Plutarco,
para preferirem, ao final, a condição de feras, isentas de
pecado e perdão.
Mais do que criar, o poeta seiscentista reescreve
os modelos pelos quais têm admiração, com outros meios
materiais e modos miméticos, a fim de emular com os
autores que admira para ser julgado pela engenhosidade
e arte. Por isso, diferenciam-se a emulação e a imitação
servil ou roubo, pois “fala-se de roubo e pirataria,
entendendo-se que emular é diverso de roubar, pois o
roubo diz o mesmo e a emulação diz outra coisa”
(HANSEN, 2008, p. 21. grifos do autor). Essa outra coisa
buscada pela emulação demonstra tal semelhança com a
obra imitada em suas partes mais belas, difíceis e
louvadas que qualquer um que as conheça sabe que a
segunda foi feita intencionalmente à semelhança da
primeira. O procedimento da emulação autoriza os novos
textos a se alinharem com os anteriores do mesmo

121
gênero, como autoridade a ser imitada em novas
emulações. Esse método era acumulativo, pois não se
entendia a novidade poética a partir de conceitos como
“plágio”, “originalidade”, “superação”, “ruptura”5.

A emulação do Galo de Luciano

El rey Gallo começa com as descrições de um


naufrágio do navio em que viajavam o Galo e a Formiga,
protagonistas que escapam da embarcação em um pedaço
de madeira. Depois dos embates iniciais do primeiro
canto, os protagonistas narram suas vidas e desventuras.
A Formiga resgata os conselhos que recebeu de sua mãe.
Como o sapateiro Micilo do Galo de Luciano, o inseto é
ambicioso, mas descreve, em seu relato biográfico, como
abandona o desejo de possuir6. Em seu turno de fala, o

5
“Eu chamo imitação uma sagacidade com a qual, sendo proposta
para ti uma metáfora ou outra flor do engenho humano, tu
atentamente examinas as suas raízes e, transplantando-as em
diferentes categorias, como em solo cultivado [...], propagas outras
flores da mesma espécie, mas não os mesmos indivíduos”
(TESAURO, 1986, p. 8).
6
O enredo do Galo de Luciano: depois de jantar na casa do rico
Eucrates, o sapateiro Micilo tem um sonho. Eucrates morreu e lhe
deixou a herança. Enquanto sonha, Micilo é despertado pelo Galo.

122
Galo narra como se ausentou de casa após perder a
confiança de seu pai, Júpiter. Ao tentar se igualar ao deus
do Olimpo, ele se vê implicado em uma série de
metamorfoses desastrosas devido ao seu apetite sexual.
Estabelecida a confiança entre os interlocutores, o Galo
e a Formiga decidem continuar a viagem movidos pelo
desejo de “[...] ver el mundo y en qué se desvelan sus
habitantes” (SANTOS, 1991, p. 89).
A primeira edição de El rey Gallo é a de Madri,
de 1671, na qual constam uma dedicatória ao conde dos
Arcos Pedro Lasso de la Vega, duas aprovações e um
prólogo ao leitor7. A página de rosto tem por título El rey
gallo y discursos de la Hormiga, viage discursivo del
mundo, y ingratitud del hombre. Tal denominação revela,

Irritado com a interrupção, o sapateiro lhe diz impropérios e, para


seu espanto, a ave responde que nem sempre foi galo, que teve várias
outras vidas – entre outras, ele fora Pitágoras.
7
Como soldado da Guarda Vieja Española, Santos serviu aos Reis
Felipe IV e Carlos II. Figurando entre o contingente denominado
“supranumerário”, por não gozar de retribuição complementária de
salário nem vestuário, convinha-lhe chamar a atenção de seus
superiores, como fez em La verdad en el potro e El rey Gallo, obras
publicadas em 1671 e dedicadas a Pedro Lasso de la Vega, máxima
autoridade das guardas espanholas à época. Os ganhos mensais de
um soldado da guarda vieja eram de 75 a 90 reales, um terço menor
do que ganhava um ajudante de pedreiro em meados do século XVII.
Cf. María José del Río (2008, p. 185-6).

123
em boa medida, suas fontes para um leitor do século
XVII. A escolha de animais com características
contrastivas insere a obra no marco didático das fábulas.
O Galo de Luciano é lembrado no título e o leitor culto
da época sabia que, na peça do escritor sírio, essa
personagem havia revelado para Micilo que o sapateiro
havia sido, em vidas passadas, uma formiga8.
O fantástico luciânico aparece na ideia da viagem
imaginária, enquanto o aspecto satírico, outro de seus
traços, surge na censura ao comportamento humano. Em
sua aprovação, Frei Juan de Estrada destaca o carácter
emulativo do texto de Santos: “[...] y puede muy bien
excusar ya de dar voces el gallo que escribió Luciano”.
A tópica da Fortuna, comum à diatribe cínico-estoica, é
usada pelo Galo, protagonista do texto de Luciano que
desperta o sapateiro Micilo de seu sonho de riqueza. No
texto de Santos, a Formiga é quem se utiliza desse lugar
comum para convencer o Rei de que a “[...] riqueza
verdadeira é a da discrição, não a baseada em dinheiro,
origem e presunção” (HANSEN, 1989, p. 370-1).

8
“¿Tú? Una hormiga india, de esas que desentierran oro”
(LUCIANO, 1996, I, p. 17).

124
Embora situado entre as causas do gênero humilde, esse
topos não é aceito facilmente pelo leitor por “parecer
vida triste o no alegre” (SALINAS, 1980, p. 112). Seu
grau de plausibilidade é ambíguo, com possibilidades
equilibradas de adesão ou rechaço do público9. Até o
quinto canto a estratégia do inseto consistirá em vencer a
dubiedade dessa causa (em parte torpe e em parte
honesta).
Santos emula a tradição de Luciano e de seus
adaptadores ao posicionar o Galo no lugar de quem
recebe conselhos e muda suas crenças10. Certo
predomínio da voz do Galo, por sua experiência e
poderes mágicos, restringe-se apenas ao segundo canto e
à metade do terceiro, que correspondem ao processo de

9
Na retórica clássica, as causas honestas contavam com a adesão a
priori do público; as vergonhosas pressupunham desde o princípio a
sua oposição; as ambíguas o dividiam; as obscuras eram próprias dos
assuntos obtusos e especializados; e as causas humildes se atinham
às realidades insignificantes. Cf. Salinas (1980, p. 65).
10
Na condição de rei, o Galo deve escutar o humilde que o
aconselha. Trata-se de uma paródia da literatura sapiencial, tradição
que é enriquecida pelas chreiai cínicas de Diógenes e Alexandre. Ela
está representada, por exemplo, na segunda parte de Mercurio y
Carón, de Alfonso de Valdés (1527, s.n), na bela passagem de
Polidoro, que conta como, através da advertência de um humilde
criado, tornou-se um bom rei.

125
adaptação da Formiga à condição humana e aos riscos
que decorrem da companhia do Rei. O Galo de Luciano
tem o poder de se transformar. No caso de Santos, os
poderes se ampliam: ele metamorfoseia a Formiga, além
de contar anedotas pessoais a seu interlocutor, ainda que
se revele como culpado.
Nesse sentido, trata-se de uma voz satírica
relativizada não apenas por sua conduta passada, mas
pelo próprio contraste de posturas com a sabedoria do
inseto que, durante a etapa de reconhecimento da dupla,
põe em dúvida a perspicácia e o comportamento da ave
com um discurso contundente. Por conta disso, o Rei a
toma como conselheira logo no primeiro canto: “[...]
desde luego te doy mi privanza que para ello, lo mejor
que hay en ti, es la humildad” (SANTOS, 1991, p. 91).
No terceiro canto, o Galo confessa para a Formiga que
almejava ocupar o trono: “[...] cree que antes de mucho
me has de ver rey y tú mi valido” (SANTOS, 1991, p.
107). Mas, à medida que ela demonstra que a vida
simples do estado humilde é a mais segura, sua visão
começa a mudar. Depois de o inseto descrever, no quarto
canto, o comportamento de invejosos e avarentos, o Galo

126
dirá: “Pobre quiero ser, para vivir descuidado; no quiero
haberes, no quiero riquezas” (SANTOS, 1991, p. 125)11.
Depois de recusar, a pedido da Formiga, uma petição de
um desconhecido que queria enganá-lo, o Galo reafirma
sua posição: “No quiero oro, plata, ni regalos, más
estimo dos maravedís para pasar la vida, que no
perderla con tantas inquietudes; el pobre, es el rico
verdadero, pues sin cuidados, ni desvelos acaba su vida”
(SANTOS, 1991, p. 126)12.
Porém, no quinto canto, essa adesão ao ponto de
vista da Formiga cede terreno para crenças que são
determinadas pela posição social do Galo. O narrador
descreve um cortejo real dividido entre os reis, em

11
No Galo de Luciano, a ave convence Micilo de que seu modo de
vida é o melhor: “Escucha y aprende de entrada que no he visto a
nadie vivir una existencia más feliz que la tuya” (LUCIANO, 1996,
I, p. 16). Outros emuladores de Luciano citam o tema: em El
Crotalón o sapateiro acaba por aceitar o argumento do Galo: “Y ansí
digo, de hoy más, que quiero más vivir en mi pobreza con libertad
que en los trabajos y miserias del ajeno servicio vivir por merced”
(VILLALÓN, 1973, p. 264). Também o galo afirma no anônimo
Diálogo de las transformaciones: “en toda mi vida nunca yo vi
estado de hombre más bienaventurado qu’el tuyo” (VIAN
HERRERO, 1994, p. 207).
12
Tema de número 20f da diatribe cínico-estoica: “La pauvreté n’est
pas un mal”. Tema 82, “Les riches en proie au désir de l’argent sont
des pauvres” (OLTRAMARE, 1926, p. 48, 63).

127
primeiro plano, seguido pelos vassalos: “[…] tropa de
gente de lucido adorno y de rostros severos; traían en su
seguimiento a todo el mundo, unos clamando, otros
pidiendo venganza, otros suplicando, otros
agradeciendo, otros importunando [...] llenos de
cuidados, los primeros; y los segundos, llenos de
suspiros y lágrimas” (SANTOS, 1991, p. 127). Sob
pedido da Formiga, o Galo repara na cena: “Qué mayor
grandeza, que la adoración a los reyes; el gobierno
sobre sus vasallos; el respecto que los tienen sus
inferiores; la grandeza con que viven; […] verse servido
de tantos y de tantos temido; ¡qué más grandeza que ser
rey!” (SANTOS, 1991, p. 127). A pequenina então
observa que seu companheiro vê apenas aquilo que lhe
convém: “¡Oh, qué errado vas y qué extraño vives!
Remoto estás de lo más importante. No sabes el perpetuo
sobresalto con que gozan los reyes su grandeza, el
miedo, los cuidados, las sospechas que los disgustan y
los temores que los siguen” (SANTOS, 1991, p.128).
O ambiente didático do diálogo não elide o tom
severo da Formiga ao expor as contrariedades do estado

128
superior13. O tom joco-sério da sátira menipeia depende
dessa subversão do decoro e da utilidade que torna o
superior motivo de vitupério de um humilde criado14. A
tópica do mundo ao revés tem aqui significação política:
apura o discernimento nos ofícios do Estado de sua
autoridade maior e censura seu desvirtuamento. Ao final,
o Galo volta atrás em suas pretensões: “No quiero ser
rey, y si acaso lo llego a empuñar, quiero sólo ser de
gallos, que dura un día, y luego se halla pobre como
antes y nadie le pide ni se queja dél” (SANTOS, 1991, p.
128).
Com a persuasão definitiva do Galo, o diálogo
abre espaço para a alegoria do Tempo, que divide a
interlocução com a Formiga. A atuação do inseto é
exemplar e finca a necessidade de uma arte de interpretar
as intenções para melhor deliberar sobre as conjunturas

13
O tema do perigo do “grande estado” está no Galo de Luciano
(1996, I, p. 25-26) e no capítulo oitavo, sobre o tirano Dionísio, no
Diálogo de las transformaciones, cf. Vian Herrero (1994, p. 211-
227).
14
Em seu Arte nuevo de hacer comedias, de 1609, Lope aconselha
ao poeta que “el lacayo no trate de cosas altas”. Cf. Sánchez
Escribano (1965, p. 132).

129
do poder. O Tempo elogiará a Formiga no sexto canto,
ao dizer que sua visão é bastante aguda: “más ves que yo”
(SANTOS, 1991, p. 142). Embora a subordinação do
componente argumentativo à conversão do Galo se dê
mais enfaticamente até o quinto canto, a deliberação
sobre qual seria o estado mais seguro e feliz atravessa
todo o texto, se considerarmos que os protagonistas
decidem continuar, ao final, com a simplicidade da vida
animal aos perigos da condição humana.

El rey Gallo e as transformações

El rey Gallo compartilha alguns aspectos do


artifício narrativo dos diálogos de transformações. Seu
tempo tem duas particularidades: apresenta-se em forma
de transformação, enquanto as andanças dos heróis se
confundem com o caminho dos personagens pelo mundo
em suas diversas formas. Mas, diferentemente de outros
emuladores do Galo de Luciano, como El Crotalón de
Cristóbal de Villalón e o anônimo Diálogo de las
transformaciones de Pitágoras, publicados entre 1530 e
1555, o texto de Santos não traz o relato biográfico de

130
reencarnações do Galo. As transformações resultam de
sua linhagem divina: “Nací a los veinte días hombre;
pero en lugar de pelo en la cabeza, una colorada corona
y dos alas en mis hombros. Fui creciendo y ya en buena
edad, me comunicó mi padre [Júpiter] sus
transformaciones” (SANTOS, 1991, p. 92). O Galo se
autoincrimina ao retomar as metamorfoses anteriores ao
encontro com a Formiga: “Hartas desdichas he pasado,
bien merecidas pues perdí el respeto a mi padre”
(SANTOS, 1991, p. 92). Mas essa rememoração não visa
convencer o inseto, como acontece com o sapateiro
Micilo e em outras obras que tomam o texto de Luciano
como referência. Por outro lado, a conversão da Formiga
e do Galo em seres humanos servirá de aprendizagem
para ambos.
Nos diálogos e romances de transformações, o
curso dos acontecimentos se interrompe por puro acaso,
sendo essa uma das formas de expressão da necessidade.
Em El rey Gallo, a ave é um personagem polimórfico.
Suas transformações ocorrem ora para satisfazer seus
desejos, ora por pura necessidade, ora por castigos de seu
pai, Júpiter, reprovando seus atos. Em geral, ela as utiliza

131
para evitar seu envolvimento em situações difíceis,
devido ao seu afã sexual irrefreado. Ao imitar a volúpia
do Galo, o poeta pretende, como numa obra cômica,
limpar “el ánimo de las pasiones por medio de deleite y
risa”, representando modos de vida que o leitor deve
evitar (LÓPEZ PINCIANO, 1998, p. 381). Mas o tom
ridículo das ações disparatadas se torna sério à medida
que as punições exigem da ave uma reação severa
consigo mesma. Reconhecendo seus erros, o Rei separa
o plano das cenas narradas no passado, com suas
mutações e castigos, de seus comentários pejorativos
sobre si mesmo que afetam diretamente seu mundo no
tempo da realização do diálogo, exigindo seu empenho
moral, bem como do leitor implicado nos mesmos vícios.
No primeiro canto, a ave narra como se
apaixonou por uma moça em uma mercearia: “[...] entré
dentro para descansar, y amor se apoderó de mis
fuerzas, pues las cautivó la belleza de una mujer:
perseguíla, pero en valde” (SANTOS, 1991, p. 92). Para
tocá-la, transforma-se em pilão de cozinha: “Yo que vi
tanto desprecio y que siquiera una mano no la debía,
acordándome de las transformaciones, lo puse por obra

132
transformándome en la mano del mortero, sólo a fin de
tocar las suyas: conseguílo, pero castigóme el cielo: que
intentar semejante locura, castigo merece”. Ao terceiro
dia da transformação, entra um hóspede forasteiro na
cozinha, toma o pilão para “clavar un clavo (...) y al
hinclar el clavo, me descalabró” (SANTOS, 1991, p.
92). Em seguida, outro hóspede, buscando algum objeto
para lidar com as brasas, toma o pilão que é deixado no
fogo. Para se salvar, o Galo se transforma em cão:
“descalabrado y chamuscado, me volví perro, que no
halle otro medio” (SANTOS, 1991, p. 92). Maltratado
por dois rapazes, foge para o campo e, de cão, se
transforma em asno, “por ser número copioso en el
mundo, aunque muchos no se conocen” (SANTOS,
1991, p. 92).
O apetite sexual do Rei detona uma série de
mutações ao acaso. Por fim, o Galo se converte em asno,
símbolo da bestialidade, reforçando o efeito cômico e o
intuito moralizador. Encontrado por um lavrador, o
animal é usado para carregar lenha. Mais uma vez se
refere à transformação como um castigo: “Así que llegó
a su casa, me echó una albarda a cuestas. ‘¡Qué bien

133
empleada!, – dije yo – en quien deja el ser de hombre por
un triste apetito. Sólo siento que haya en el mundo tantos
que lo merecen y no se la echan” (SANTOS, 1991, p.
93). Descarregada a madeira, o asno é capturado por
alguns cuidadores de mula que o abandonam no campo.
Recebe pauladas do lavrador que imagina que ele teria
fugido. Novamente, refere-se aos castigos: “¡Oh, infame
mundo! – ¡qué propio es de tu cosecha castigar al
inocente y perdonar al culpado! Castigos del cielo son,
más merece inobediencia” (SANTOS, 1991, p. 93). Ao
ser alimentado, o bruto causa perplexidade ao lavrador
ao responder-lhe: “¿Qué he de comer, si no hay más de
granzones?”. O camponês chama seus vizinhos para que
testemunhem o asno falante15. Nesse ínterim, ele se
transforma em galo: “No hallé cosa más a mano en qué

15
Trecho inspirado nas ficções de metamorfose: as fugas que,
embora não motivadas pelo próprio animal, acabam em captura e
castigo, a dificuldade para comer, o excesso de carga e os maus tratos
do seu senhor. Tanto em O asno de Ouro de Apuleio como no Asno
de Luciano, a condição de asno é tomada como castigo. Essa
situação se repete no anônimo Diálogo de las transformaciones, em
que a alma do Galo, após ter sido Dionísio, o tirano, e o rico Épulon,
entre outros, é conduzida ao inferno e sentenciada a viver como asno
por dez anos para pagar seus pecados. Em todas essas obras, os asnos
apenas zurram. No quarto canto de El Crotalón, o Galo também se
torna um asno depois de ser o falso eclesiástico Alejandro.

134
transformarme, según el corto tiempo, sino fue en gallo,
por causa de ver encima de una viga algunas gallinas;
di un vuelo y púseme junto a ellas” (SANTOS, 1991, p.
94). Ao anoitecer, chega à casa do lavrador um capitão
que compra as galinhas e o galo e os leva para seu navio,
embarcação que, ao naufragar, dá origem ao encontro dos
protagonistas

Os perigos da forma humana

Tais transformações servem de experiência para


o Galo. Como acontece no Galo de Luciano, são castigos
que visam purificá-lo, assim como as peripécias da
Formiga em seu afã incontido por armazenar alimento.
Mas a principal transformação do livro se dá em parceria
com o inseto, quando os protagonistas adotam a forma
humana na expectativa de viajar pelo mundo. Para
efetuar a metamorfose do pequeno animal, o Galo pede a
ele, no segundo canto, que segure uma “pluma hermosa”
de seu rabo16. Realizada a transformação, a Formiga se

16
No Galo de Luciano (1996, I, p. 29-30), a pluma tem poderes
mágicos e é usada para transportar o Galo e Micilo até a casa dos

135
aflige: “Si me hubiera contentado con mi estado, sin
desear más y reparar que nací para hormiga, hallárame
ahora contenta” (SANTOS, 1991, p. 99). Aqui o inseto
reproduz a moral das fábulas que advertem que cada um
deve respeitar sua condição natural17. Na fábula, um
animal que pretende imitar um superior ou disfarçar-se
sempre acaba mal, como o verme que imita uma
serpente, o sapo que se infla para parecer um boi, o asno
que coloca a pele de um leão ou a gata convertida em
mulher. Nesse último caso, a conversão é mágica e a
mulher, apesar da transformação, não deixa
completamente seus instintos de animal. A moral é clara:
ninguém pode escapar à sua condição natural18.

avarentos Simón e Eucrates. Eles aí entram sem serem notados. No


oitavo canto, o Tempo se utiliza de um procedimento parecido ao
tornar os protagonistas invisíveis, para que observem os viciosos da
“playa de la vida”. Cf. Santos (1991, p. 157).
17
“La ideología de la fábula es fundamentalmente conservadora:
advierte que cada uno debe seguir su condición natural y desconfiar
y guardarse de los demás, en esa ley de la jungla donde la violencia
y el engaño dominan, y los grandes devoran a los chicos” (GARCÍA
GUAL, 2016, p. 52).
18
Cf. Fábulas de Esopo O verme e a serpente (Hsr. 237, Ch. 33) e
A gata e Afrodite (Hsr. 50, Ch. 76), e as de Babrio: O sapo inflado,
O burro e a pele de leão (LÓPEZ FACAL, 1985).

136
Depois de experimentarem os percalços do
mundo e da forma humana, os protagonistas do colóquio
optam, ao final da caminhada, pelo retorno à forma
anterior: o inseto desejará não ser homem, “pues
siéndolo, estoy sujeto a mil fortunas y desdichas.
Hormiga quiero ser”. Desejo que será referendado pela
ave: “Tu gusto he de seguir; gallo quiero ser” (SANTOS,
1991, p. 196)19. Apesar de as metamorfoses do Galo em
outro animal se vincularem a um castigo por seu desejo
irrefreado, Santos inverte, ao final do colóquio, o feitiço
da poção de Apuleio: no madrilenho, são os animais que
ganham forma humana. A curiosidade de Lúcio será
castigada com a sua transformação em asno, a do Galo e
da Formiga, ao contrário, com os riscos inerentes à
condição de ser humano que só será redimida com o
retorno a forma inicial.
No texto do madrilenho não se faz propriamente
a defesa da vida animal, como no Grilo de Plutarco ou no
Galo de Luciano, em que a forma dos brutos pode ser

19
Como afirma o experiente Galo para Micilo: “cualquier forma de
existencia me pareció siempre más libre de cuidados que la humana,
ya que la animal está regida tan sólo por los deseos y necesidades
naturales” (LUCIANO, 1996, I, p. 27).

137
mais digna do que a humana, mas se utiliza de seu valor
paródico para rebaixar a dignidade do homem que, sem
o domínio de seu arbítrio, aproxima-se dos hábitos das
bestas20. A sátira social da bestialidade humana importa
mais do que o problema teórico sobre a inteligência
animal, que tanto preocupou Plutarco. Na dedicatória ao
leitor, Santos crava a intenção de sua obra: “todo él es
pintar la ingratitud del hombre y la fiereza de su
condición” (SANTOS, 1991, p. 86). Para tanto, aciona de
forma assistemática as tópicas do desprezo do mundo e
da miséria humana.
É no contexto da sátira menipeia que deve ser lida
a inversão do universo hierarquizado, pautado na
antropologia cristã e estoica que coloca o homem como

20
Reverbera no Galo de Luciano o agón do Grilo de Plutarco,
diálogo menipeu que se estrutura como uma sýnkrisis, ou embate
entre as virtudes animais, com lugares comuns e exemplos da
tradição (cínica, epicurista e cética) em face das qualidades
humanas. O herói Ulisses então propõe ao Grilo – personagem
metamorfoseado em porco pela feiticeira Circe – despojar-se de seu
estado bestial para recuperar a dignidade de sua primeira forma.
Mas, ao ouvir os argumentos do sábio animal, Ulisses descobre que
ele não é movido pelo amor à raça humana ou pelo senso de amizade.
Essa opção tem raiz cínica e serviu de paradigma para o anônimo
Diálogo de las transformaciones de Pitágoras e para a elaboração
do segundo canto de El Crotalón, de Cristóbal de Villalón. Cf.
Fernández Delgado (2017, p. 523) e Fontenay (1998, p. 199).

138
a mais nobre criatura da terra. Diante da calamitosa
situação do “homenzinho miserável”, os protagonistas
fogem dele “como del más fiero animal” (SANTOS,
1991, p. 115). Experiente em ambos os estados, como o
porco plutarquista, o Galo opta por “ser buena bestia que
mal hombre” (SANTOS, 1991, p. 93). Este tom menipeu
afasta o autor da perspectiva dos defensores da
excelência do animal racional, como Petrarca, Pico della
Mirandola e Pérez de Oliva.
A afirmação da bestialidade humana implica, no
entanto, que há nos animais uma maldade congênita.
Segundo o ensinamento bíblico maior, só Adão foi feito
à imagem de Deus. Daí a necessidade de marcar distância
entre o homem e os outros seres vivos21. A criatura
racional seria o único animal capaz de errar, porque tem
a nobreza do livre-arbítrio. Mas, ao pecar, ele se se
rebaixa ao plano das feras. Privadas de proteção legal, de
virtude deliberativa e de alma, as bestas estariam, por
outro lado, livres de culpa e dos castigos do inferno. Ao

21
Como Santo Agostinho, Tomás de Aquino considera os animais
sem individualidade, privados de direito, porque irracionais e sem
anseio de eternidade. Cf. Fontenay (1998, p. 339).

139
ver a atuação dos demônios na “cueva del mundo”, a
Formiga enuncia: “Deseando estoy de volverme a mi
primera forma, para que no tengan estos demonios qué
hacer conmigo” (SANTOS, 1991, p. 150).
Os motivos da miséria humana na literatura de
Santos são matizados pela excelência da razão e pelo
dom da linguagem. Mas a preferência pela vida animal
torna a questão complexa em seu Gallo. Ao preferirem a
condição bestial, os protagonistas não recusam, ao final
da aventura, a imagem de Deus, mas a semelhança com
o pecador. O autor se mantém fiel à tradição das fábulas.
Nesse gênero literário, os resultados são sempre
desastrosos para os animais que, como a Formiga, violam
a natureza de sua espécie. Em contrapartida, o aspecto
menipeu do texto enfatiza a contradição inerente à
negação da dignidade do homem. Como animais que
recusam a forma humana, a ave e o inseto escapam ao
risco de padecer o julgamento de Deus. Eles preferem
abdicar do corolário teológico da eternidade a viver as
consequências do Juízo Final. Mas, desse modo, acabam,
inevitavelmente, desconfiando da misericórdia e
providência divinas.

140
Conclusão

No primeiro, em partes do terceiro, no quarto e no


quinto cantos, a Formiga argumenta a favor da vida
simples e acaba persuadindo o Galo. Há uma unidade
temática entre essa discussão da autonomia moral,
econômica e política do humilde estado e a opção pela
vida respeitosa das necessidades naturais dos animais.
Embora não sejam determinados a optarem pela
condição de animais, tanto a Formiga quanto o Galo
desejaram, ao término do diálogo, voltar ao estado
inicial. Os poderes mágicos e as visões alegóricas não
significam evasão para o mundo fantástico, porque o
relato não deixa de se concentrar na questão do
comportamento dos homens em sociedade. O tempo das
metamorfoses em Santos, seja em formas episódicas ou
na forma humana, serve de experiência, de castigo e
redenção para os protagonistas. Existe uma simetria entre
o elemento cômico da punição degradante e o
diagnóstico sério da falta moral cometida.

141
Em sua emulação dos diálogos de metamorfoses,
Santos inverte não só a relação de mestre e discípulo do
Galo de Luciano, transformando o Rei em aprendiz do
inseto, mas também inverte a noção de castigo e redenção
do Asno de Apuleio com os riscos inerentes à condição
humana. Entretanto, esta recusa da dignidade do homem
não se faz por meio de disputas argumentativas, mas pelo
fato de os protagonistas observarem em si mesmos e nos
outros a miséria humana. Seu desprezo pela forma
humana tem características ímpias ao desconfiar da
misericórdia e providências divinas e se sustenta na
divisa moral das fábulas “en su estado cada uno”. Este
lema preserva o fundamento teológico e político do
Antigo Regime ao mesmo tempo que permite o vitupério
da conduta do Rei que não age de acordo com a sua
condição de príncipe. Dessa maneira, a relação entre o
Galo e a Formiga expõe a crise do processo formativo do
cortesão no século XVII, condicionado pelos enganos da
comunicação humana em um ambiente de competição
pelo favor do Rei.

142
Referências:

FERNÁNDEZ DELGADO, José Antonio. Le Gryllus,


une ethopée parodique. In: FERNÁNDEZ DELGADO,
J. A. et PORDOMINGO, F. La retórica escolar griega y
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philosophia à l’éprueve de l’animalité. Normandia:
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GARCÍA GUAL, Carlos. El zorro y el cuervo: estudios


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________. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a


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1989.

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MANTECÓN MOVELLÁN, Tomás A. (org.). Bajtín y
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Cantabria, 2008.

143
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(Trad.) La vida y fábulas de Esopo. Fábulas de Babrio.
Madri: Gredos, 1985.

LÓPEZ PINCIANO, Alonso. Obras completas, t. I:


philosophía antigua poética. Madri: Fundação José
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OLTRAMARE, André. Les origines de la diatribe


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TESAURO, Emmanuele. Argúcias humanas. Trad.


Gabriella Cipollini & João Adolfo Hansen. In: Revista
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144
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Dialogo en que particularmente se tratan las cosas en
Roma el año de MDXXVII… [s. i] 1527 [s. n].

VIAN HERRERO, Ana. (Ed.) Diálogo de las


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Crema, 1994, p. 05-348.

VILLALÓN, Cristóbal. El Crótalon. Madri: Espasa-


Calpe, 1973.

145
Uma leitura da novela: Os caminhantes de
Santa Luzia, de Ricardo Ramos

Elcione Ferreira Silva (UFMS/CPTL)


E-mail: elcione_tga@hotmail.com

Apresentamos nesta comunicação alguns aspectos


estéticos da novela Os caminhantes de Santa Luzia, de
Ricardo Ramos. Os caminhantes de Santa Luzia
apresenta várias passagens que se fixam na memória do
leitor pela exuberância de uma descrição que se constrói
compassadamente, com jogo de luzes e sombras:

Uma sombra caiu na estrada,


flutuou, sumiu-se. A camionete
avançou pelo chão de terra
escura. Atrás ficara a poeira
vermelha, o céu luminoso, reta
sem fim, dura e gretada. Outra
sombra deixou a folhagem,
cresceu nublando o caminho. E
de repente num arrepio
agourado, sentiram todos a
descida sinuosa entre as árvores.
As curvas amiudaram, a
carroceria de madeira rangia sob
os ramos baixos, densos, que

146
traziam aquele úmido bafio
opressivo. (RAMOS, 1984, p. 5)

Diante da visibilidade da cena, conserva-se a


destreza do leitor de imaginar o que coube ao escritor
Ricardo Ramos sugerir – por meio da estruturação do
texto e das seleções das palavras. Na organização das
imagens, que não é apenas visiva, mas também
conceitual, o autor encaminha o sentido que quer dar ao
desenrolar da narrativa e procura não reduzir o campo
disponível para que o leitor possa inserir suas próprias
percepções.
Calvino aponta dois processos imaginativos: “[...]
o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o
que parte da imagem visiva para chegar à expressão
verbal” (CALVINO, 1990, p. 99). A primeira distinção
se estabelece normalmente na leitura: por exemplo,
quando lemos uma narrativa:

[...] ou reportagem de um
acontecimento num jornal, e
conforme a maior ou menor
eficácia do texto somos levados a
ver a cena como se esta

147
desenrolasse diante de nossos
olhos, se não toda cena, pelo
menos fragmentos ou detalhe
que emergem do indistinto.
(CALVINO, 1990, p. 99)

Segundo Calvino, os escritores geralmente


iniciam seu processo de escrita por meio da imagem
visual ao compor suas obras literárias. O próprio Calvino
para escrever, lança mão desse procedimento:

A primeira coisa que me vem à


mente na idealização de um
conto é, pois, uma imagem que
por uma razão qualquer
apresenta-se a mim carregada de
significado, mesmo que eu não
saiba formular em termos
discursivos ou conceituais. A
partir do momento em que a
imagem adquire uma certa
nitidez na minha mente, ponho-
me a desenvolvê-la numa
história, ou melhor, são as
próprias imagens que
desenvolvem suas
potencialidades implícitas, o
conto é que trazem dentro de si.
(CALVINO, 1990, p. 104)

148
Dentre as várias imagens que chamam a atenção
em Os caminhantes de Santa Luzia, vale destacar a cena
em que Audálio assusta-se com a fisionomia de Rosinha.
O olhar da mulher e sua risada atingem Audálio, que fica
perturbado. Ele entende o encontro como um presságio:
alguma coisa ruim iria acontecer. O episódio, ao
contrário do que descreve o cenário, é mais curto, mas
não menos intenso: olhares, corpos e sons de latas de
alumínio compõem uma cena pictórica:

Uma gargalhada estridente o


sacudiu. Voltou-se, deu com a
Rosinha na esquina de baixo. A
mulher desgrenhada ria o seu riso
convulso, e sacudia em movimentos
aloucados as latas que lhe enchiam
o vestido. Rota, pé no chão, ela veio
até Audálio, parou, calou-se, olhou-
o de repente séria. Ficou assim um
instante, a fitá-lo com um mirar
esbugalhado. Então Audálio
mexeu-se, abanou a cabeça. Ela
compreendeu a recusa num
desencanto que lhe transtornou o
rosto sujo e vincado. Apenas um
segundo. E explodindo em riso alto,
de novo pôs-se a andar sacudindo as

149
latas, fazendo figurações aluadas,
como se puxasse as cordas de um
sino e fosse rolando ladeira abaixo o
repicar de um soluço distante.
(RAMOS, 1984, p. 61)

Nesse fragmento da obra, o processo imaginativo


é semelhante ao anterior, que surge da imagem verbal, o
escritor imagina uma cena e a transcreve em palavras.
Durante o trabalho de escrita da narrativa, Ricardo
Ramos sugere um sentido próprio que promove a
visibilidade da imagem à sua ideia autoral. Conforme
Calvino, a escrita “[...] irá guiar a narrativa na direção em
que a expressão verbal flui com mais felicidade, não
restando à imaginação visual senão seguir atrás”
(CALVINO, 1990, p. 105).
Considerando a supremacia da imagem visual em
detrimento da palavra escrita, Italo Calvino (1990)
explica que o discurso por imagens também surge da
expressão verbal, no processo imaginativo, que vai das
palavras às imagens. Tem-se como, exemplo, o seu livro,
As cosmicômicas:

150
‘A distância da Lua’, onde o
autor se vale de imagens oníricas
que remetem de maneira
apropriada ao tema abordado (a
imagem da Lua está associada à
ideia de noite, de sonho, de
esoterismo). Mesmo quando
lemos o livro científico mais
técnico ou o mais abstrato dos
livros de filosofia, podemos
encontrar uma frase que
inesperadamente serve de
estímulo à fantasia figurativa.
(CALVINO, 1990, p. 105)

As imagens que promovem as palavras nos


processos imaginativos na criação literária provêm de
diversos elementos. Logo, vale salientar que antes de
escrever Os caminhantes de Santa Luzia, Ricardo Ramos
obtém imagens da observação direta do mundo que o
cerca:

Há cerca de três anos, li em jornal a


história de uma santa de romeiros,
uma pobre ambulante de Deus.
Pouco depois, ainda pensando na
iluminada, via uma reportagem
sobre um beato morto em um
comício, envolvido que fora pelas

151
tramas da política, na sua feição
mais interiorana. A primeira era
uma visionária, moça e primitiva; o
segundo um homem de ação, à
velha maneira profética. Durante
algum tempo, as duas figuras me
preocuparam, com tudo que
encerravam de beleza plástica e
dramática, de movimento
romanesco. [...] Foi então que as
duas personagens reais baralharam,
confundiram-se numa só, diferente
das que a tinham originado. Talvez
uma criatura enriquecida, talvez
uma pura mescla. O fato é que esta
resultante foi amadurecendo,
sedimentou-se e ganhou corpo e
nome. Chamou-se Luzia, e andou
comigo assim nomeada, por um
largo período, até umas férias
providenciais. E as minhas sombras
se resolveram neste livro, Os
caminhantes de santa Luzia.
(JORNAL DO BRASIL, 1959)

Ricardo Ramos inspira-se em uma leitura de


jornal para criar a personagem Luzia. Para elaborar sua
obra, soma-se o processamento cognitivo, adquirido de
alguns substratos extraído da:

152
[...] observação direta do mundo
real, a transfiguração
fantasmática e onírica, o mundo
figurativo transmitido pela
cultura em seus vários níveis, e
um processo de abstração,
condensação e interiorização da
experiência sensível, de
importância decisiva tanto na
visualização quanto na
verbalização do pensamento.
(CALVINO, 1990, p. 110)

Sendo assim, Ricardo Ramos, para construir seu


o projeto estético, baseia-se em imagens diretas e
indiretas e as utiliza como fonte para traduzi-las em
palavras e, assim, cumprir com seus os objetivos
propostos. A novela tem dois temas centrais: religião e
política; logo, o jogo imagético é formulado dentro
desses dois eixos.
Dentre das várias propostas de multiplicidade que
Calvino (1990) discute, nos ateremos à seguinte
colocação do crítico: “há o texto multíplice, que substitui
a unidade de um eu pensante pela multiplicidade de
sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo, segundo aquele
modelo que Mikhail Bakhtin chamou de ‘dialógico’

153
‘polifônico’ ou ‘carnavalesco’” (CALVINO, 1990, p.
132).
Partimos do pressuposto que o modo de
existência da linguagem é o dialogismo, pois, em cada
texto, em cada enunciado, em cada palavra, ressoam duas
vozes: a do eu e a do outro. Com base nessa concepção,
advém o interesse de Bakhtin (2010) pelo romance que
se caracteriza na consciência do dialogismo e no trabalho
sistemático, com o jogo de vozes simultâneas num
mesmo enunciado. O romance é uma espécie de energia
e consciência da realidade concreta da linguagem, que
perpassa toda a história da literatura.
Oscar Tacca (1983) dialoga com Bakhtin, na
medida em que o romance é uma linguagem por meio da
qual ressoam vozes distintas. E essa voz destaca-se no
modo de contar:

O romance, além de uma questão


de plano e de ‘perspectiva’, é
também uma questão de
polifonia e de ‘registro’: alguém
conta um acontecimento – fá-lo
com sua própria voz; mas
também cita, em estilo direto,

154
frases do outro imitando
eventualmente a sua voz, a sua
mímica e até os seus gestos; por
momento resume, em estilo
indireto, algumas das suas
expressões, mas a sua própria
voz, inconscientemente,
denuncia, nas inflexões, o
contágio da voz do outro.
(TACCA, 1983, p. 30)

Nesse jogo de vozes, a do narrador sempre se


sobressai às outras. Nesse sentido, Tacca (1983) atesta
que, mesmo quando é a personagem no discurso direto,
ela passa pela “alquimia do narrador”.
Bakhtin (2010, p. 135) considera que o romance
não trabalha com “a imagem do homem, mas com a
imagem de sua linguagem. O sujeito que fala no romance
é, na maioria das vezes, um ideólogo, e sua palavra é
sempre um ‘ideologema’: representa um ponto de vista
particular sobre o mundo”.
Considerando as pessoas que falam na narrativa,
podemos afirmar que a novela é narrada em onisciência
seletiva, segundo Friedman (2002), e em cada capítulo é
mostrado o ponto de vista de uma personagem em

155
discurso indireto livre: o motorista da camionete que leva
os caminhantes até Santa Luzia, o menino que espia o
banho de Luzia, o comerciante Audálio, que se preocupa
com o fato de Luzia promover a romaria num período
político, Valério e Benvindo e outras personagens. Já em
relação à Luzia, a protagonista da narrativa, não se
distingue um capítulo específico em que o narrador
mostre sua perspectiva, como o faz com as outras
personagens. Essas vozes que compõem o texto ficcional
formam o plurilinguismo e estão dispostas em vários
segmentos sociais: universos sociais em interação e
conflito.
Vale enfatizar que as múltiplas vozes presentes
em um texto literário são tratadas pelo termo
plurilinguismo, que aborda especificamente a questão
bivocal. Apesar de já termos feito várias referências
sobre o termo, cabem ainda algumas observações:

[...] o discurso de outrem na


linguagem de outrem, que serve
para refratar a expressão das
intenções do autor. A palavra
desse discurso é uma palavra

156
bivocal especial. Ela serve
simultaneamente a dois locutores
e exprime ao mesmo tempo duas
intenções diferentes: a intenção
direta das personagens que falam
e a intenção refrangida do autor.
Nesse discurso há duas vozes,
dois sentidos, duas expressões.
Ademais, essas duas vozes estão
dialogicamente correlacionadas,
como que se conhecessem uma à
outra (como se duas réplicas de
um diálogo se conhecessem e
fossem construídas sobre esse
conhecimento mútuo), como se
conversassem entre si. O
discurso bivocal sempre é
internamente dialogizado. Assim
é o discurso humorístico, irônico,
paródia, assim é o discurso
refratante do narrador, o discurso
refratante nas falas das
personagens, finalmente, assim é
o discurso do gênero intercalado:
todos são bivocais e
internamente dialogizados.
(BAKHTIN, 2010, p. 128)

A manifestação e a análise dos discursos de outro,


das palavras do outro, é um dos temas mais divulgados e
essenciais da fala humana. Bakhtin (2010) esclarece,

157
ainda, que em todos os domínios da vida e da criação
ideológica nossa fala contém em abundância a palavra do
outro. Ouve-se, no cotidiano, a cada passo, falar do
sujeito que fala e daquilo que ele fala.

Se prestarmos atenção aos


trechos de um diálogo tomado ao
vivo na rua, na multidão, nas
filas, no hall, etc., ouvirem com
que frequência se repetem as
palavras ‘diz’, ‘dizem’, ‘disse’ e
frequentemente escutando-se
uma conversa rápida de pessoas
na multidão, ouve-se como que
tudo se junta num único ‘ele diz’,
‘você diz’, ‘eu digo’. [....] E
como é importante o ‘todos
dizem’ e o ‘ele disse’ para a
opinião pública, a fofoca o
mexerico, a calúnia, etc. É
necessário considerar também a
importância psicológica no
cotidiano daquilo que se fala de
nós e a importância para nós de
como entender e interpretar as
palavras dos outros
(‘hermenêutica do cotidiano’).
(BAKHTIN, 2010, p. 139)

158
É necessário observar que o discurso de outrem,
incluído no contexto, sempre está submetido a notáveis
transformações de significado. Em Os caminhantes de
Santa Luzia, percebemos que a relação entre Luzia e seus
acompanhantes se estabelece por fazerem parte de um
mesmo universo social e por acreditarem em uma mesma
ideologia de vida: a fé em um Deus soberano. “O
contexto que avoluma a palavra de outrem origina um
fundo dialógico cuja influência pode ser muito grande.”
(BAKHTIN, 2010, p. 141). Sob essa visão, Bakhtin
(2010) entende relatar que um texto com:

[...] nossas próprias palavras é,


até um certo ponto, fazer um
relato bivocal das palavras de
outrem; pois as ‘nossas palavras’
não devem dissolver
completamente a originalidade
das palavras alheias, o relato com
nossas próprias palavras deve
trazer um caráter misto,
reproduzir nos lugares
necessários o estilo e as
expressões do texto transmitido.
(BAKHTIN, 2010, p. 142)

159
Nesse sentido, podemos observar, a bivocalidade
das palavras presente na voz do narrador que fala pela
personagem: “Valério quis dizer que a gente do lugar
estava mais longe do lugar, estava mais perto da capital,
devia estar mais longe de Luzia e seu testemunho”
(RAMOS, 1984, p. 9). Para Bakhtin (2010), assimilação
da palavra do outro adquire um sentido ainda mais
profundo e mais importante no processo de formação
ideológica do homem, no sentido exato do termo.
Concernentes ao jogo de vozes presentes no texto
de Ricardo Ramos, tem-se, no plano superficial, a voz
religiosa e a política. A primeira é expressa pelos
peregrinos Luzia, Valério e Benvindo. Dentre as
personagens que contribuem para a efetivação da voz
política, podemos citar Audálio, que não faz parte
efetivamente da política, mas se dispõe a informar Luzia
do andamento da campanha eleitoral, além de Vitalino (o
olheiro), Major Bento (chefe político), Dr. Henrique
(juiz), Guedes (delegado) e Oliveira (candidato). Num
segundo olhar interpretativo mais profundo, o silêncio
revelador e o discurso silenciador, bem como a tensão
estabelecida pelo sagrado versus o profano, instauram,

160
digamos assim, vozes que atravessam as vozes do plano
superficial.
Temos a personagem João, motorista que leva os
caminhantes para Santa Luzia e que expõe a condição de
um motorista no meio social relegado à função de
transportar os outros. Pertencente a uma classe baixa, ele
evidencia tal condição. Por outro lado, Luzia o vê como
uma voz de denúncia, pois ela não fica à vontade em
compartilhar os seus projetos com o motorista: “– Por
isso eu não contei do mandado que o senhor me deu.
Fiquei triste. Mas não tem serventia gastar a palavra
divina com esse povo” (RAMOS, 1984, p. 8). Outra voz
social representada na narrativa é a de Audálio,
comerciante que evidencia os fatos simples daqueles que
vão ao seu armazém de secos e molhados:

Bebeu o último gole do café e


pregou em Audálio o seu mirar
fundo. O vendeiro não se mexeu,
não tornou a falar. Arrecadou
louça, saiu um instante, para o
lavatório que ficava nos fundos.
Era encolher os ombros. Que se
arranjasse, diabo de mulher

161
teimosa. E também o porqueira
do marido. Fosse casado com ela,
ensinava, ora se, dois dias e
aprendia o bê-a-bá certo. Mas
não. Mulherona assim de
opinião, ainda por cima vistosa, e
de junto aquele pamonha! Ia lá
deixar a moça se consumindo
pela estrada furada o oco do
mundo? Não tinha talvez nem
conforme. Ficava em casa,
ficava. E ele ganhava mais do
que aquele apalermado, ali
jururu, feito um dois de paus.
Voltou ao balcão como se nada
tivesse havido. (RAMOS, 1984,
p. 19)

A voz que se destaca no fragmento é oriunda do


universo machista. Audálio indigna-se em ver que Luzia
é uma mulher que está em uma posição superior ao
marido, pois é ela quem conduz a romaria. Por outro
lado, a visão machista imposta por Audálio é amenizada,
uma vez que Valério está em uma condição submissa à
Luzia. O discurso de Audálio está calcado em um tempo
em que o homem comandava com hegemonia o seu lar,
seu grupo social e até mesmo a sociedade da qual fazia

162
parte. O seu discurso machista sempre era levado a sério,
a cujas ordens e leis todos obedeciam. Entretanto, é a
partir do século XX que a relação de poder homem versus
mulher passa a ser descaracterizada, ou seja, a mulher
não aceita estar na posição de um ser submisso. É o que
Ricardo Ramos demonstra por meio da personagem
Luzia. A independência intelectual de Luzia, em
contrapartida à personagem masculina, tenta impor um
valor que está em defasagem.
Dentre as várias vozes presentes na narrativa, a
que mais representa a glorificação do discurso religioso
é da personagem Luzia, que tem forte influência sobre as
outras. Luzia, em sua caminhada, mais do que uma
simples romaria, busca uma forma de purificação dos
seus pecados e dos pecados daqueles que a rodeiam. Para
isso, apropria-se do discurso religioso. Segundo Bakhtin
(2010, p. 143), a palavra religiosa é autoritária e “exige
de nós o reconhecimento e a assimilação, ela se impõe a
nós independentemente do grau de sua persuasão interior
no que nos diz respeito; nós já a encontramos unida à
autoridade”. Sendo assim, mesmo o discurso religioso,
sendo autoritário, não deixa de encontrar e participar do

163
discurso de outrem numa interação viva e tensa: “Uma
pena que gente moça, forte, se metesse pela estrada,
batendo perna sem quê nem pra quê. E além do mais com
um desconchavo de história, uma ladainha de salvação e
paz e mandado de Deus [...]” (RAMOS, 1984, p. 17).
Nessa citação, o narrador expõe o pensamento de
Audálio em relação ao que ele pensa da missão de Luzia,
não acredita na salvação que Luzia tanto prega. Podemos
enfatizar que o discurso religioso é autoritário, mas
Audálio não acredita nele; portanto, estabelece um
conflito entre o que Luzia defende e o que Audálio
acredita.
Para Bakhtin (2010), o único discurso sem
interação com o outro é o de Adão mítico como a única
possibilidade de um discurso puro, sem essa mútua
orientação dialógica. Com exceção do discurso de Adão
mítico, os outros discursos jamais terão um sentido
único, mas uma pluralidade de significações tão
numerosas quanto todos os contextos possíveis.
Considerando essa orientação dialógica do discurso
defendida por Bakhtin, percebemos em Luzia um ato de
enunciação que se faz retomando a palavra de Deus; ou

164
seja, Deus fala, assim como no discurso de Moisés, pela
voz de Luzia. A enunciação de Luzia é, a um só tempo, a
singularidade do discurso de Luzia e a reintegração do
discurso divino: “– Então a gente começa a fazer o que é
preciso, a falar com o povo na voz de Deus” (RAMOS,
1984, p. 7). Nessa citação, notamos que Luzia
simplesmente anuncia sua intenção de falar em nome
Deus, fato que será realizado no percurso de sua romaria
quando relata à multidão o que Deus lhe disse: “– É
chegado o momento, meus irmãos. Quem tem ouvidos,
ouça. O senhor me mostrou o caminho e disse que eu
andasse. Disse que penando eu punisse meus pecados e
minhas ruindades, que andando eu entrasse no Bom Jesus
da Lapa” (RAMOS, 1984, p. 43). A visão de mundo da
personagem central é absorvida do meio social no qual
está inserida e, dialogicamente, por meio da voz
religiosa, buscando atingir seus objetivos, como
impregnar os outros com o seu discurso: “se a palavra de
Deus entrar num cristão, bulir com o pensamento dele,
eu nem peço que venha comigo” (RAMOS, 1984, p. 19).
Sendo assim, a intenção de Luzia é que haja uma
interação dialógica entre ela e os cristãos de Santa Luzia,

165
fenômeno próprio de todo discurso. Para Bakhtin (2010),
dialogismo e discurso são dois conceitos que estão
intrinsecamente relacionados. O discurso, para o teórico
russo, é a linguagem em ação. A teoria bakhtiniana parte
da asserção de que a realidade da linguagem é o
fenômeno social da interação verbal.
Nessa perspectiva, Valério e Benvindo estão
carregados da ideologia religiosa de Luzia, eles têm fé,
porém é com base nas decisões de Luzia que eles vão
trilhar um caminho na busca de suas espiritualidades.
Como no trecho abaixo, em que Valério, por um
momento, questiona-se dizendo:

- É. Tem uns que nascem pra


isso, Luzia. Está direito, eu sei.
Faz três anos que eu sei. O meu
destino é carregar o seu. Ela
voltou-se para o marido, que
falara baixo, um sussurro
magoado e distante:
- Cada um carrega a sua cruz,
Valério. E a minha encompridou,
cresceu, ficou pesada. É até um
pecado se arreliar assim da sua
sorte. (RAMOS, 1984, p. 7)

166
Na fala de Valério há certo desconforto em ter
que fazer essas romarias. Porém, nesse processo,
observa-se o embate da voz alheia – no caso de Luzia –
que procura influenciar a consciência de Valério. A
palavra de Luzia assume uma significação importante e
inicia um conflito entre o que Valério pensa e o ele irá
fazer. Vejamos o que Bakhtin (2010) acentua nesse
processo de “luta” com a palavra do outro:

A palavra persuasiva e a figura


do falante assumem uma
significação especialmente
importante lá onde já se inicia
um conflito entre eles, onde por
meio dessa objetivação tenta-se
escapar de sua influência, ou
mesmo denunciá-los. Esse
processo de luta com a palavra de
outrem e sua influência é imensa
na história da formação da
consciência individual. Uma
palavra, uma voz que é nossa,
mas nascida de outrem, ou
dialogicamente estimulada por
ele, mais cedo ou mais tarde
começará a se libertar do
domínio da palavra do outro.
(BAKHTIN, 2010, pp. 147-148)

167
Como podemos notar, Valério tem a intenção de
“se libertar do domínio da palavra do outro”. Porém,
Bakhtin (2010) ressalta que o que predomina de fato é a
“objetivação da palavra do outro” (p. 147).
Outra voz social que se faz presente na narrativa
é a política que entra em conflito com a voz religiosa.
Esse embate ocorre, por exemplo, quando Audálio
explica para Luzia o perigo que ela corre por estar
fazendo romaria durante a campanha política. O mesmo
alerta diz:

- Isso não é hora de fazer


pregação, que o povo já estava de
orelha entupida. Agora só
querem saber quem vai ser o
prefeito. Sei não, mas a dona vai
é perder o seu tempo. E ainda se
arrisca a sair corrida. Os olhos de
Luzia faiscaram, mas a voz foi
quase humilde: - Quem sou eu,
coitada de mim! Uma pobre
caminhante que só quer o bem,
que é de paz, que vive no
sacrifício por mor dos outros.
(RAMOS, 1984, p. 18)

168
O conflito das duas vozes está claramente
retratado nesse fragmento em que há uma disputa entre
elas. Mas qual será a dominante? A saber, tanto a voz
religiosa quanto a política são autoritárias. De certa
forma, a voz política será a dominante uma vez que Luzia
terá sua voz silenciada, pois será morta para que um dos
candidatos à eleição, coronel Mendes, seja culpado, e
Major Bento ganhe as eleições. Então, Major Bento, por
incentivo de Vitalino, planeja matar a beata como
oportunidade certa para ganhar as eleições. Vejamos
como isso foi pensado:

De repente a rede se balança,


entre a ranger, compassada.
Major Bento pousa a intervalo o
chinelo no chão, dando o
impulso, e aquele embalo o
auxilia a juntar as frases do negro
Vitalino, que podem vir a dar um
plano. A santa, a discurseira,
meia dúzia de homens. Depois
havendo encrenca pocava do
lado mais fraco, da banda podre.
O coronel Mendes não tinha
jornal, a oposição estava fraca,
esbandalhada. Aquilo chegava

169
de encomenda. Meia dúzia de
homens acabava com a beata a
culpa era dos outros, não se
duvidava. E ganhava Santa Luzia
inteira, descontavam qualquer
vantagem nos distritos do
interior. Trabalho bom serviço
limpo, melhor negócio quando a
gente do coronel Mendes
pudesse abrir o bico, fora dos
seus comícios, a eleição já havia
passado. E estaria vencida, com
o horror da morte da beata
pesando no partido contrário,
afugentando os votos. Era uma
ideia boa, fácil de botar para
frente. Quem sabe? (RAMOS,
1984, p. 27)

Luzia morre, mas seu discurso religioso


permanece na fala das outras personagens, bem como a
própria Luzia na evidência do crime. Ficando, portanto,
o embate das duas vozes, pois as personagens querem
saber qual dos dois políticos matara a beata: há uma
conformação da situação, mas uma tensão implícita.
Assim, cremos que Ricardo Ramos, em Os
caminhantes de Santa Luzia, evidencia o conceito do
plurilinguismo dialogizado, à medida que a luta social

170
entre as diferentes verdades sociais vai sendo absorvida
pelas personagens e por estas representadas nas muitas
situações sócio-ideológicas apresentadas na obra.
O drama vivido por Luzia é ambientado no
Nordeste brasileiro, mais precisamente na cidade de
Santa Luzia, na Alagoas. Luzia mostra suas chagas, ao
pagar penitência, passando em procissão em vários
espaços. Luzia é uma mulher extremamente religiosa,
essa característica e sua beleza escultural vão dialogar na
perspectiva do sagrado e do profano.
Para tanto, temos por sagrado segundo Ferreira
(2006, p. 721) “que se sagrou. /relativo às coisas divinas,
à religião; sacro, santo./ Venerável; santo”, e por profano
“estranho à religião./ contrário ao respeito devido a
coisas sagradas./não sagrado” (FERREIRA, 2006,
p.656).
Dialogaremos com Mircea Eliade, em O Sagrado
e o Profano (1992a), ao definir de acordo com a
etimologia da palavra, que o sagrado se manifesta em
oposição ao profano. Nessa perspectiva, o homem toma
consciência dele justamente por essa oposição.
Conforme o referido autor (1992a, p. 14): “o leitor não

171
tardará a dar-se conta de que o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no mundo, duas
situações existenciais assumidas pelo homem ao longo
da sua história”. Essa definição se torna perceptível em
Os Caminhantes de Santa Luzia, quando passamos a
observar a singularidade da personagem Luzia, e como
os outros personagens a consagram.
A manifestação do sagrado para Eliade (1992) só
é possível porque este se revela por hierofania: o sagrado
pode se manifestar em árvore pedra em qualquer coisa.
“Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se
outra coisa e, contudo, continua ser ele mesmo, porque
continua a participar do meio cósmico envolvente”
(ELIADE, 1992a, p.13).
A manifestação primeira do sagrado em Os
Caminhantes de Santa Luzia se constitui com a presença
da beata Luzia, casada com Valério, descrita como uma
jovem de cabelos longos, de pele morena e corpo
curvilíneo que se veste de branco. Nesse sentindo,
inferimos que os elementos que Ricardo Ramos utiliza
para construir a personagem já possibilitam uma leitura
do jogo entre o sagrado e o profano.

172
Luzia, em sua caminhada religiosa, defronta-se
com muitos entraves e obstáculos. Estes não são somente
de ordem material e física, mas também cultural e
política. A oposição a ela se torna evidente a natureza
espiritual da sua mensagem. Luzia julga, porém, que
deve pregar em Santa Luzia, não se importa com
qualquer que seja o risco que isso acarrete. Munida de
grande coragem na tentativa de cumprir sua missão,
defronta-se com uma hostilidade crescente.
O princípio da experiência religiosa de Luzia
surge a partir de duas chagas em suas pernas: duas
manchas rochas. O surgimento das chagas foi o momento
epifânico, a partir desse acontecimento que começa a sua
peregrinação. Luzia é considerada uma Santa, como
podemos observar na voz do narrador: “ Gente do sertão
gostava daquilo, dava um quarto e uma banda para ouvir
conversa de santo, caminhar atrás de iluminado. Ela até
que era bonita. Morena, grandona. (RAMOS, 1984, p.
18)
Nessa perspectiva, é interessante destacar alguns
elementos extrínsecos a narrativa. Ricardo Ramos
revelou que para criar a personagem. Luzia baseou-se em

173
duas figuras. Primeiramente em uma santa de romeiros.
E, em um beato morto em um comício, pelas tramas da
política. (Jornal do Brasil, 01 dez. 1959). Quanto ao
resultado do processo ficcional de Ricardo Ramos, está
de acordo com o que o crítico Antonio Candido defende
que:

Uma obra é uma realidade


autônoma, cujo valor está na
fórmula que obteve para plasmar
elementos não-literários:
impressões, paixões, ideias,
fatos, acontecimentos, que são
matéria-prima do ato criador. A
sua importância quase nunca é
devida à circunstância de
exprimir um aspecto da
realidade, social ou individual,
mas à maneira por que o faz.
(CANDIDO, 1997, p.33).

O título da obra, Os caminhantes de Santa Luzia,


situa o leitor com referência aos peregrinos (os
caminhantes) a (cidade de Santa Luzia), o espaço onde
enredo é desenvolvido, e a personagem centra (Luzia).
Quando Luzia chega à cidade, ela invoca a proteção de
uma Santa: “Santa Luzia, alumiai os meus olhos, a minha

174
ideia. (RAMOS, 1984, p. 9). Santa Luzia é conhecida
popularmente como a protetora dos olhos.
De acordo com Macca e Almeida:

Luzia, ou Lúcia, como também é


conhecida é a santa da graça e da
luz espiritual. Esse nome vem de
lux, “luz” em latim. Sua história
nos chegou através de relatos do
martírio que sofreu, publicados
séculos depois de sua morte
(MACCA E ALMEIDA, 2003,
p. 16).

Perceber que a Santa da obra também sofre uma


série de martírios como a santa católica. Ainda podemos
perceber que, do mesmo modo que a personagem
histórica, a Luzia de Os caminhantes de Santa Luzia
morre ao final da narrativa. Porém, diferente daquela,
esta não é santa, mas também é idolatrada por alguns e
detestada por outros. A personagem que o autor parece
ter se inspirado para criar esta imagem cria uma tensão,
uma vez que revela os desmandos dos coronéis e
políticos que comandam na cidade em que Luzia chega
para pregar.

175
Na cena de Os Caminhantes de Santa Luzia não
são os carrascos da história oficial. Desta vez, os
carrascos são os políticos e as pessoas influentes do local
que matam Luzia para satisfazer a interesses próprios.
Portanto, a humanidade existente no texto oficial é
invertida e, agora, temos alguém que é morta de maneira
banal. Com isso, Ricardo Ramos consegue fazer uma
crítica brutal a um sistema estabelecido em que o poder
tem mais importância que os valores pregados em
sociedade.
Os pontos em comum tanto de Luzia da narrativa
quanto a Santa Luzia da igreja católica. Suas crenças são
baseadas no cristianismo. Santa Luzia tinha uma santa de
devoção que era (santa Ágata) assim como Luzia tem
Santa Luzia como protetora. E ambas são mortas pelo
regime político de suas épocas.
Nessa perspectiva, Luzia ao chegar à Santa Luzia,
passa a representar a fragilidade das relações humanas e
o jogo de interesses que anula essas relações,
denunciando uma sociedade “coisificada”.
Eliade (1992a) define que sagrado e profano, são
dois modos de ser no mundo. Essa concepção é

176
nitidamente representada na construção da personagem
em estudo. A cena do banho destaca-se a sensualidade
latente da figura de Luzia, vista pelos olhos de um
menino que fica encantado pela visão do corpo escultural
da santa. A cena mostra um contraste com os princípios
religiosos que se quer oferecer aos que a acompanham.
Vejamos como isso acontece:

Uma forma toda branca. A corda


nas mãos, a mulher puxava água
do poço: ao lado, num lajedo que
se elevava em pedra achatada, a
lata cheia. O menino ajeitou-se
no seu lugar. De onde estava
eram mais visíveis os brancos
que se alongavam, a cabeleira
escura, o busto arqueado sobre o
para peito. Os pés largaram os
sapatos, as mãos se puseram a
soltar os cabelos, em
movimentos ligeiros que mal se
adivinhavam. A mulher se
revelou inteira aos olhos do
menino.Ela experimentou a
água, ergueu o braço, cobriu-se
de um jato cantante e brilhou na
manhã. No seu esconderijo de
folhas, o menino seguia aquele
intervalo onde apenas as mãos

177
falavam, descobrindo,
percorrendo o corpo moreno. Ele
as acompanhava, também
encontrado, e aprendendo,
sentindo quase. O dorso, os
seios, o tufo azulado. Agora
sabia. Como das pernas, das
coxas. Apertou o arame da cerca,
numa ânsia, num espanto que
fascinava e sacudia. A cima dos
joelhos, lavadas pela água, duas
manchas se avivavam. Reparou
bem e penalizado assegurou-se
em cada coxa uma ferida eram
duas marcas iguais. E fundas,
encarnadas, nas gotas d´água
brilhando. Só agora atentava
naquele rosto, e o achava belo, e
também o encantavam os cabelos
pretos, ondulados, que escorriam
molhados pelos ombros nus. E
tudo nela ao menino semelhava
uma clara visão proibida,
latejante, em reflexos de luz
banhada. O menino guardou essa
imagem, viu-a de uma beleza
total. Ele notou apenas a maneira
de vesti-la, diferente do seu
acordo apressado e rude. Veio
depois a camisa, leve, e em
seguida o vestido branco, de
manga compridas. Abotoá-lo,
calçar-se, tudo foi rápido, como

178
rápida a impressão que teve o
menino: agora ela se parecia com
as outras mulheres, todas deviam
ser muito semelhantes, quase
iguais. (RAMOS, 1984, p.12-
13).

O jogo entre o sagrado e profano estabelece-se na


cena com toda força. Uma forma toda branca é a imagem
criada para descrever Luzia, branca em sinal de pureza.
A personagem toma banho em um local aberto, não
privado e é vista por um olhar de desejo do menino. Está
nua, mas quem a vê ainda tem um olhar puro. Há um
embate entre a humanidade da personagem e sua
condição de santa. A imagem do banho, se ela estivesse
sozinha, certamente teria a significação de purificação,
pois, segundo (ELIADE, 1991, p.152), “em qualquer
grupo religioso que se encontrem, as águas conservam
invariavelmente sua função: elas desintegram, eliminam
as formas, “lavam os pecados”, são ao mesmo tempo
purificadoras e regeneradoras”.
Os pontos de vista em relação a Luzia são
divergentes, uns a veem como santa, outros como mulher

179
e agora esse olhar não é mais do ponto de vista de um ser
ingênuo, mas sob o olhar de alguém maduro.

- Fizeram, eu sei, mas quem é


que se acostuma? Matar uma
pobre de Cristo, que não fazia
mal a ninguém. Só mesmo dessa
penca de vagabundos, corja mais
assassina. Peste de taco ruim. [...]
- Como era ela. De longe não dá
pra ver direito. Bonita, hem?
- Tome jeito, homem! Você, um
pai de família, devia ter juízo.
Devia se lembrar do crime e da
beata, não da figura, do corpo da
mulher.
- Lorota, seu Audálio. Estamos
entre amigos. Vá contando. Viu
as chagas, viu as pernas dela?
(RAMOS, 1984, p.49).
- Uns bárbaros, minha filha.
Matar a mulher assim no meio da
falação...
- E dizem que ela estava era
falando em Deus, na vida eterna.
- E tão linda, os cabelos tão
compridos parecia uma santa.
- Santa ela era, coitada, de tanto
penar. (RAMOS, 1984, p. 48-
50).

180
Luzia, em sua trajetória, não muda de postura, em
relação a sua conduta religiosa. Portanto, a personagem,
não é somente o que pensa ser, mas também como os
outros a veem. Nessa perspectiva, o pensamento de
Bakhtin é bastante esclarecedor:

Às vezes, saio de mim mesmo no


plano dos valores, vivo no outro
e para o outro, e então posso
participar do ritmo, mas nele sou,
de um ponto de vista ético,
passivo para mim mesmo. Na
vida, participo do cotidiano, dos
costumes, da nação, da
humanidade, do mundo terreno -
em toda parte, vivo aí os valores
no outro e para o outro, eu revesti
os valores do outro, e aí minha
vida pode submeter-se a um
ritmo (submeto-me lucidamente
ao ritmo), aí minha vivência,
minha tensão interna, minha
palavra, tomam lugar no coro dos
outros. (BAKHTIN, 1997, p.
136).

É pelo ponto de vista do outro que Luzia se


constitui tanto na perspectiva de ser santa quanto na de

181
mulher. Por outro lado, segundo Eliade (1992a), o
sagrado manifesta-se no profano, veste, portanto, a
roupagem do profano para se manifestar aos homens.
Na concepção de Eliade (1992a), o homem das
sociedades modernas vive em um mundo profano, mas
mesmo assim o sagrado se manifesta de forma
disfarçada.
Luzia, na sua peregrinação, cruza todo o sertão
nordestino até a cidade de Santa Luzia. Carrega uma
cruz, pois acredita ter a missão de “falar com o povo
dessas brenhas, esquecido nessa beira de lagoa” em nome
de Deus. Pensa trazer a salvação para o povo com a
penitência de sua caminhada: “a cruz é minha, sou
obrigada a carregar” (RAMOS, 1984, p. 19). A proposta
de Luzia para finalizar sua missão é chegar a Bom Jesus
da Lapa, que considera sagrada. A cidade é indicada por
uma voz que lhe diz: “[...] veio chegando a voz e falou
dizendo, mostrando, alumiando a sua estrada. Um
destino que tinha as quatro direções, era norte e sul, ia do
levante ao poente. Veria novos céus, novas terras, e
muitas sandálias após ela entraria na cidade santa”
(RAMOS, 1984, p.37). Luzia não parte em peregrinação

182
por uma promessa que faz, mas pela sugestão de uma voz
divina com a promessa de dias melhores que ocorreria
em uma espécie de cidade prometida.
A promessa de paz, amor e vida está ligado a
chegar à cidade santa, porém, a soberania do profano
impede Luzia de dar a salvação a si e ao povo, pois é
morta e não realiza sua missão. Luzia é impedida pelos
desmandos políticos.
Portanto, percebe-se a força do profano em
macular o sagrado, o mal em detrimento do bem. As
forças políticas se sobrepõem ao sagrado e o profano
ganha evidência.
Ricardo Ramos, emprega o sagrado cristão, de
modo a questionar e discutir o estatuto do religioso no
universo humano.

Referências

ALMEIDA, Macca. Santos populares do Brasil: Santa


Luzia protetora dos olhos. São Paulo: Planeta do Brasil,
2003.

183
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_______ Questões de literatura e de estética: a teoria


do romance. 2 ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 2010.

BIBLIA. Português. 1993. A Bíblia Sagrada: Antigo e


Novo Testamento. Traduzida em português por João
Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. no Brasil. São
Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Êxodo.
Capítulo 3. Versículo 5.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura


brasileira. 8. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. v.1.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo


milênio. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Trad. Sônia


Cristina Tamer. São Paulo: Martins
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ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José


Antônio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992b.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad.


Rogério Fernandes: São Paulo. Livros do Brasil, 1992a.

FERREIRA, A.B.H. Mini dicionário Aurélio. 6.ed.


Curitiba: Positivo, 2006.

184
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o
desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP,
São Paulo, n.53, p.166-182, março/maio 2002.

Jornal do Brasil, 1.º dez. 1959

RAMOS, Ricardo. Os Caminhantes de Santa Luzia.


3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.

TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra:


Almeida, 1983.

185
Literatura e história como instrumentos de denúncia
à cultura de violência na política brasileira no conto
“Sobre a natureza do homem”, de Bernardo
Kucinski

Fernanda Amélia Leal Borges Duarte (UFMS/CPTL)


f.a.l.b.duarte@gmail.com

Introdução

As discussões deste artigo partem das análises do


conto Sobre a natureza do homem, de Bernardo Kucinski
e visam ao debate teórico sobre a estrutura da narrativa
do gênero conto, concentradas na perspectiva dos estudos
literários e do contexto político no Brasil no final dos
anos 1970 e início de 1990. Assim, a proposta será
estabelecer o diálogo entre a literatura e história com o
objetivo de compreender a cultura de violência na
política brasileira.
O texto está dividido em dois momentos: no
primeiro, busca-se estabelecer o diálogo interdisciplinar
entre a história e a literatura e breves levantamentos
sobre os motivos políticos que levam o escritor a

186
relacionar a literatura ao contexto histórico do Brasil
(1964-1985). No segundo momento, será abordada a
análise do conto com pontuações sobre a estrutura do
gênero conto e discussões acerca da cultura da violência
praticada pelo Estado Brasileiro.
A discussão sobre o conto reflete um aspecto de
denúncia sobre a cultura de violência no Brasil
contemporâneo, uma vez que possibilita observar uma
conexão dessa narrativa para denunciar as atrocidades do
governo brasileiro contra os direitos humanos.

1 Relação entre história e literatura

O escritor Bernardo Kucinski tem como


característica escrever contos e romances que narram os
contextos históricos de regimes totalitários e ditatoriais,
ora representando a história da perseguição Nazista na
Europa nas décadas de 1930 e 1940, ora narrando
perseguições políticas aos opositores da Ditatura Civil-
Militar no Brasil de 1964 a 1985.
Ao propor estudar a arte literária de Kucinski é de
fundamental importância conhecer as origens e os

187
motivos que levam o escritor a narrar ficções próximas
da história política. Sabe-se que o escritor pertence a uma
família de judeus imigrantes/refugiados da Polônia, que
foram perseguidos durante a invasão Nazista e buscaram
nova expectativa de vida no Brasil. Bernardo exerceu a
profissão de jornalista e professor entre os anos de 1960
a 2000. Também, declarou-se militante político de
esquerda e contrário ao regime militar no Brasil, o qual
perdurou de 1964 a 1985. O autor sofreu duros golpes da
perseguição política do Estado Brasileiro tais como
censuras, exílio e perdas de familiares e de amigos em
prisões arbitrárias e desumanas.
A partir de breves estudos sobre a vida política de
Bernardo Kucinski observa-se que os contos são
narrados com a finalidade de interação entre o meio
social e a história dentro da perspectiva política,
representando as perseguições e violências praticadas
por regimes autoritários. Portanto, as narrativas estão
interligadas entre a história e a literatura na perspectiva
de denunciar a política de violência, a opressão e o
extermínio de grupos sociais. Compreende-se, desse

188
modo, que a ligação entre a história e a literatura está
associada à mimética ou a representação do real:

A mesma marca deve ser


conservada na tradução de
mimese: quer se diga imitação ou
representação, o que se deve
entender é a atividade mimética,
o processo ativo de imitar ou
representar. Portanto, deve-se
entender imitação ou
representação em seu sentido
dinâmico de composição da
representação, de transposição
em obras representativas [...]
(RICOEUR, 2010, p.59)

Para tanto, o diálogo entre a história e a literatura


são determinantes para compreender a denúncia de
violência na representação da arte literária composta pela
mimese. Na literatura, a narrativa comporta-se como a
representação do real, utilizando o termo de mimese cujo
propósito é o de espelhar “[...] ações e valores temporais
colocando-se entre o tempo e a narrativa através da
função mediadora da refiguração” (CAIMI, 2004, p.59)

189
A literatura atua como instrumento da história e,
no caso dos contos de Kucinski apresenta uma nova
vertente da história brasileira e suas estruturas políticas
ao representar o lado grotesco e perverso da capacidade
humana de justificar políticas com finalidades de destruir
vidas e culturas.

O texto literário enquanto


documento da história ou história
como contexto que atribui
significado ao texto literário são
caminhos que podem colidir no
congestionamento da mão única
por que enveredam. Nesse
sentido, reflexo, expressão,
testemunho, articulação e
similares termos são léxicos que
costuma vincular o texto literário
ao que há, de coletivo e social
para aquém de suas páginas.
Aliás, a escolha de um ou de
outro termo já implica não só
menor ou maior grau do
entrelaçamento postulado entre
literatura e história, como
também e sobretudo o modo
como se postula tal
entrelaçamento. (LAJOLO,1993,
p.106)

190
Ao pensar a escrita literária como fonte de
conhecimentos históricos entende-se que a narrativa é
uma espécie de testemunho da época representada, mas
sem o compromisso com o verossímil, podendo articular
com o tempo presente, passado e futuro, sem atribuir
sentido às operações historiográficas, percebe-se o
quanto o diálogo entre história e literatura é possível e
enriquecedor.
Ao analisar o conto “Sobre a natureza do
homem”, de Bernardo Kucinski, observa-se a forte
relação entre a história e a literatura possibilitando a
compreensão e a articulação do debate proposto neste
texto. Contudo, ao examinar a estrutura do texto ficam
evidentes os conceitos de conto de atmosfera, adotados
como estilo dos escritores contemporâneos, e as críticas
ao governo militar do Brasil entre 1964-1985 e a cultura
de violência na sociedade brasileira.

2 Breve análise do conto “Sobre a natureza do


homem”, de Bernardo Kucinski

191
O gênero conto acompanha a evolução dos
homens, ao olhar para o passado da humanidade e ver
que o conto sempre esteve presente no cotidiano dos
indivíduos em narrativas orais, até os tempos
contemporâneos com as escritas complexas. “O conto é
tão antigo quanto o homem. [...] pois podem muito bem
ter existido primatas ancestrais que contavam contos
feitos inteiramente de grunhidos, que são a origem da
linguagem humana [...]”. (INFANTE, 2001, p.01)
O ato do homem de “contar” suas narrativas por
oralidade ou por escrita está presente na necessidade de
transmitir os sentimentos e acontecimentos a outras
gerações, visto que o conto pode ser uns dos gêneros
literários mais presentes no cotidiano social.
Diante dessa reflexão sobre a necessidade do
homem em relatar seus atos e sentimentos, compreende-
se que o conto tem uma finalidade de interação social,
com intenções e efeitos políticos e culturais que
possibilitam produzir na sociedade sujeitos ativos.
Portanto, será a partir dessa perspectiva de ação política
que a análise e a discussão do conto proposto estão
baseadas.

192
No início da leitura do conto “Sobre a natureza
do homem”, de Kucinski, observa-se as ações das
personagens ao realizar atos comuns do cotidiano
moderno, como a ligação telefônica para a casa de uma
amiga, a lembrança dos momentos de descontração no
campus da universidade e, ao longo da narrativa, a prisão
e as angústias, medos e outros sentimentos presentes nas
personagens. Essas são características estruturais de um
conto de atmosfera, que visa a representar a manifestação
interior das personagens.
Inicialmente, compreende-se que existe uma
primeira história ou história central do conto, que no
contexto geral, narra os acontecimentos da amizade entre
Maria Imaculada e Rui de Almeida, ambos estudantes
universitários na década de 1970, os quais foram presos
e torturados pelo regime militar do Brasil, sendo
Imaculada a maior vítima da tortura: “Depois soube que
ela foi agarrada assim que desceu do ônibus e que a
torturaram incessantemente” (KUCINSKI, 2021, p.354)
Imaculada não pertencia a grupos de oposição contra o
governo e foi presa por ser colega de um membro da
organização armada e política:

193
O conto clássico (Poe, Quiroga)
narra em primeiro plano a
história 1 (o relato do jogo) e
constrói em segredo a história 2
[...]. A arte do contista consiste
em saber cifrar a história 2 nos
interstícios da história 1. Um
relato visível esconde um relato
secreto, narrado de um modo
elíptico e fragmentário. O efeito
surpresa se produz quando ao
final da história secreta aparece a
superfície. (PIGLIA, 1987, p. 89-
90)

A relação das duas histórias no conto faz sentido


ao analisar o ponto de interseção, ou de ligação que o
escritor faz ao representar a prisão política e a tortura
sofrida pela personagem, uma vez que narra tamanha
crueldade humana praticada com atos de violência tais
como tortura física, psicológica e sexual.
Na narrativa, Bernardo faz uma breve crítica aos
atos de violência que levam homens a corromper sua
natureza humana ao praticarem atos violentos ao longo
da vida. Portanto, uma reflexão filosófica sobre estas
ações é representada com as seguintes palavras:

194
Falávamos de cinema, literatura,
filosofia. A última aula era de
filosofia, e quase sempre a
conversa começava pelo tema da
aula. Lembro que naquela tarde o
papo foi sobre a natureza do ser
humano. O homem nasce bom e
se torna malvado com o tempo
ou já nasce com maus instintos?
É o homem de Hobbes ou de
Rousseau? Havia muita empatia
entre nós. Naquela tarde ela já
estava sendo observada. Eles não
sabiam quem eu era, mas nos
fotografaram conversando.
(KUCINSKI, 2021, p.354)

As reflexões filosóficas do escritor podem estar


relacionadas ao princípio da liberdade, na prática das
escolhas do livre arbítrio, ou seja, todos os homens são
livres para escolherem suas ações sociais, ideologias
políticas e a escolha entre ser pacíficos ou agressivos
dentro das regras da sociedade. “Na consciência da
liberdade revela-se a espiritualidade da alma humana;
por isso é a exigência ética fundamental, e renunciar a ela

195
é renunciar à própria qualidade de homem e aos direitos
da humanidade.” (ROUSSEAU, 2007, p.12)
O direito à liberdade faz parte da natureza
humana, mas existem limites para praticá-lo; a exemplo
de quando a vontade de um agente estadual sobrevalece
e torna-se maior que o respeito a vida do outro, já que
existem grupos no meio social que praticam a
perseguição e a intolerância com atos de violência no
extermínio de vidas humanas.
Durante a ditadura militar, o Estado brasileiro
utiliza da política de violência e extermínio a grupos de
oposição ao governo e são estas práticas de privação da
liberdade de pensamento e expressão política, que são
denunciadas no conto através das inúmeras torturas
sofridas por Imaculada. “A violência, sendo instrumental
por natureza, é racional até o ponto de ser eficaz em
alcançar a finalidade que deve justificá-la”. (ARENDT,
2004, p.50)

Nas duas primeiras semanas,


Maria Imaculada foi muito
torturada. A equipe que a
interrogava foi de uma selvageria

196
sem limites. Depois a trancaram
numa solitária. Então, mudou a
equipe e pegavam mais leve, vez
ou outra. Mas a expectativa de
ser torturada de novo e de novo
fez mais estragos nela do que a
tortura física. A Imaculada se
apagou, ficou abúlica.
(KUCINSKI, 2021, p.355 e 356)

No relato do conto, observa-se que a personagem


fica com transtornos psicológicos quando o escritor
utiliza a palavra abúlica, cujo significado é: “pessoa que
não tem vontade e fica apática ou apagada do entorno
social.” Ao refletir sobre o fato, compreende-se que a
equipe estadual mantém Imaculada viva no seu corpo
biológico, mas a mente está morta, visto que a tortura
psicológica foi profunda e privou a personagem de seguir
sua vida como uma cidadã livre após a lei da Anistia.
Outro momento de crítica da narrativa é sobre a
lei da Anistia, (...) “Até a chegada da anistia, quando
fomos todos soltos no mesmo dia. (...) a percepção
imediata de que tudo o que ficara já não valia, e de que o
grito de “a luta continua” era apenas um subterfúgio de
sobrevivência. [...]”. (KUCINSKI, 2021, p. 355)

197
O trecho “[...] até a chegada da anistia, não valia
e o grito de a luta continua era apenas um subterfúgio de
sobrevivência” é uma crítica veemente à Lei da Anistia
de número 6.683, de 28 de agosto de 1979, que
estabeleceu o “perdão” ou a impunidade a todos que
cometeram crimes políticos e tiveram seus direitos
políticos suspensos entre os anos de 1961 a 1979.
Observa-se duras críticas à lei da Anistia, visto que
ambos os lados, agentes do estado e militantes políticos,
foram liberados de seus crimes como se nenhum
princípio dos direitos humanos tivesse sido violado,
sobretudo o direito à vida.
Por outro lado, coube à arte literária discutir as
impunidades dessa legislação, na intenção de contribuir
para a formação do pensamento político e crítico sobre a
história do Brasil, como uma maneira de apresentar à
sociedade brasileira a prática de políticas arbitrárias, que
violaram o princípio da vida e da liberdade.
Outro fato narrado no conto foi a violência sexual
sofrida por Imaculada no Hospital psiquiátrico. Após sair
da prisão, a personagem não consegue restabelecer sua
saúde mental e necessita de tratamento psiquiátrico:

198
Depois foi pior. Logo que ela
saiu da prisão, recuperou um
pouco da vivacidade, como se
tivesse acordado de um pesadelo.
Mas esses momentos eram raros
e foram se tornando cada vez
mais curtos, como se ela
estivesse regredindo. Até que um
dia ela se apagou por completo,
não se movia para nada, passava
todo o tempo dentro do quarto,
em desalinho. Tiveram que
alimentá-la à força. Mas ela
urinava e defecava na própria
roupa. E por duas vezes entrou
em convulsão. Decidiram
interná-la para tratamento.
Estava sofrendo de um
transtorno psíquico muito severo
e perigoso, disse o médico.
Levaram Imaculada para aquele
hospital psiquiátrico do SUS no
Jardim Botânico, um hospital
moderno, novo, não muito
grande. Achavam que ali ela teria
uma chance de se recuperar. Mas
aconteceu que Imaculada foi
violentada repetidas vezes por
dois pacientes. Eles se
revezavam. Um a agarrava e
tapava sua boca, outro a

199
estuprava. Isso durou meses. Ela
não conseguia dizer nada, ficava
em estado catatônico. Até que
engravidou. Só então
descobriram o que estava
acontecendo. Quando a criança
nasceu, um menino, ela sofreu
um novo transtorno de
personalidade, uma ruptura
mental. Ora acalentava a criança,
dava de mamar, trocava a fralda
e banhava, ora a agredia. Os pais
levaram o neto para casa e
pediram um novo diagnóstico, de
comprovação, para que a
pudessem tratar. Hoje ela se
medica com antipsicóticos, vive
com os pais, embora sem
nenhuma atividade, desligada do
mundo. A família se mudou para
uma chácara, assim ela tem mais
espaço e também não fica
exposta a vizinhos. Mas não
deixam que ela tenha acesso a
ferramentas, facas, essas coisas.
(KUCINSKI, 2021, p.356)

O hospital era visto, pela personagem, como um


local para tratamento e renovação de esperança,
entretanto, torna-se um ambiente de angústia, de medo e
de crueldade. A violação ao corpo de Imaculada

200
representa a continuidade da agressão e reflete sobre
outras formas de violência presentes na sociedade, como
a violência contra a mulher, vítima da cultura machista,
ainda presente no Brasil.
Portanto, ao analisar o contexto histórico da
narrativa do período da redemocratização no Brasil,
observa-se que a ação da família foi isolar Imaculada da
sociedade, estabelecendo uma forte crítica à falta de
políticas públicas para a assistência à saúde mental dos
presos políticos, que tiveram transtornos psicológicos
causados pelas torturas praticadas pelo Estado Brasileiro,
e ao abandono dos hospitais psiquiátricos públicos no
Brasil.
Outra crítica feita pelo escritor está relacionada
à impunidade de crimes sexuais a mulheres no Brasil no
contexto da narrativa, alvo de muitos debates na
atualidade e fortalecido pela lei da Maria da Penha,
11.340, de 7 de agosto de 2006, cujo objetivo é proteger
as mulheres de violências físicas, psicológicas, sexuais,
morais e patrimoniais.
A interação social do conto de Kucinski está além
de denunciar as práticas de violência entre as décadas de

201
1960 a 1980. A narrativa aponta como a violência se faz
presente no cotidiano da sociedade brasileira no contexto
da democracia e a falta de políticas públicas para
combater tal chaga social. Pode-se observar, ao final do
conto, como a violência sofrida por Imaculada afeta não
somente sua vida, mas também de sua família: “- E o
menino? - O garoto está com quatro anos, é esperto, diz
que a mãe ficou doente por causa de uns homens do mal
que a maltratavam e que quando crescer vai comprar uma
espada bem grande e matar todos eles”. (KUCINSKI,
2021, p.356)
Entende-se que a narrativa faz uma breve, porém,
importante reflexão sobre a cultura da violência na
sociedade brasileira, ao narrar a continuidade da
violência no pensamento da criança que deseja a
vingança para os homens que maltrataram a mãe;
momento do conto que leva às seguintes indagações:
Quem causou o mal a Imaculada? O Estado Brasileiro
com as torturas? que não serão punidas pelo amparo da
lei da anistia, ou os pacientes do hospital, que tinham a
prática da cultura machista de violar o corpo da mulher?
São perguntas que refletem sobre quem pratica a

202
violência no meio social, cuja resposta será dada pelos
leitores do conto, os quais levantarão suas hipóteses, uma
vez que a literatura parte das inúmeras possibilidades
universais, as quais permitem ao leitor refletir sobre a
cultura e a sociedade.
No conceito da mimese pode-se compreender o
filho de Imaculada como a personagem que representa a
sociedade brasileira, a qual, em muitos momentos, sente-
se injustiçada por causa das faltas de políticas públicas
no Brasil para solucionar os problemas sociais. A
violência não promove causas, nem a história, nem a
revolução, nem o progresso, nem a reação, mas pode
servir para dramatizar reclamações trazendo-as à atenção
do público. (ARENDT, 2004, p.50)
Contundo, observa-se que a falta de
investimentos na educação básica, o abandono da saúde
pública, a segurança pública sem investimentos e
treinamentos adequados e as comunidades periféricas
convivendo sem as infraestruturas básicas previstas pela
legislação são algumas pontuações e ações que
evidenciam a falta da presença do Estado como
intermediário na formação de uma sociedade justa,

203
igualitária e democrática. Estas falhas deixam a
sociedade à mercê da violência do crime organizado nas
comunidades mais periféricas dos centros urbanos
brasileiros.

Conclusão
Na proposta desenvolvida ao longo do artigo
buscou-se discutir as críticas as políticas ao Estado
Brasileiro a partir das análises refletidas na narrativa do
conto e a presença da cultura de violência na sociedade
brasileira, uma vez que esses são assuntos abordados na
literatura do escritor Bernardo Kucinski.
O debate entre história e literatura foi
fundamental para compreender a estrutura e a
composição do conto como atuação política, visto que o
assunto proporciona o diálogo com a sociedade e a
formação de sujeitos ativos ao pensamento político.
Contudo, há uma comunicação da arte literária
com a representação do tempo da vida e o que caracteriza
a literatura de Kucinski, conduzindo o leitor a refletir
sobre as abordagens políticas no Brasil, sobretudo no
início da década 2020, que por parte do Estado brasileiro

204
busca ressaltar a violência e o militarismo como
solucionadores dos problemas sociais. Esses debates
sobre a relação entre a história e literatura na narrativa de
ficção estabelecem os argumentos deste texto, buscando
uma reflexão teórica entre os estudos literários.

Referências

ARENDT, Hannah. Da violência. Tradução: Maria


Claudia Drummond. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2004.

CAIMI, Claudia. Literatura e história: a mimese como


mediação.: Itinerários, Araraquara, 22, 2004. p.59-68.

INFANTE, Guilermo Cabrera. Uma história do Conto.


Folha de São Paulo – 30 dez. 2001. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3012200107.
htm

LAJOLO, Marisa. Literatura e história da literatura,


senhoras muito intrigantes. Campinas: Remates Males,
1993. p.105-112.

KUCINSKI, Bernardo. A cicatriz e outras histórias:


(quase) todos os contos de B. Kucinski. São Paulo:
Alameda, 2021.

205
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: Formas
breves. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 89-94.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução:


Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social ou


princípio do direito político. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2007.

206
Um cosmos de doença e reflexividade: “Linda, uma
história horrível”, de Caio Fernando Abreu

Mariângela Alonso (FFLCH/USP)


malonso924@gmail.com

Introdução: Espelhos e vertigens

A definição do procedimento narrativo da mise en


abyme tem sido, desde a sua formulação inicial com as
reflexões do francês André Gide (1869-1951) em torno
do brasão e sua miniatura, em 1893, um constante desafio
à crítica e à teoria literária. A imagem en abyme que
encanta Gide vem da heráldica e representa um escudo
contendo em seu centro uma espécie de miniatura de si
mesmo, de modo a indicar um processo de profundidade
e infinito, o que parece sugerir, no campo literário,
noções de reflexo, jogos de espelhos.
Em torno do brasão, as considerações gidianas
apontam para a intersecção de encadeamentos
significativos diversos, isto é, um interessante jogo
especular inserido na narrativa. Tal como os espelhos
convexos encontrados nas pinturas flamengas, atribuindo
novas dimensões aos espaços frontais e demarcados das

207
telas, na narrativa há, por sua, vez, o desdobramento de
histórias encaixadas, as quais alargam o processo de
significação textual.
Aparentemente simples, a definição de mise en
abyme é eminentemente mais complexa. No centro desse
debate, surgem as seguintes questões: qual é, de fato, o
lugar da mise en abyme entre os jogos de representação e
mais geralmente dentro dos fenômenos reflexivos?
Ancorada nesta ideia, poderíamos acrescentar outras
igualmente intrigantes: e se, para além de suas
ocorrências óbvias e fundamentalmente insignificantes,
a mise en abyme dê origem a outras questões? Será que
podemos sempre determinar, em uma imagem ou em um
texto, onde começa e onde termina a mise en abyme?
Não se trata de responder tais perguntas
definitivamente, mas sim de mostrar que há uma
diferença nas tradições e abordagens, muitas vezes no
nível de disciplinas e campos com fronteiras muito
firmemente estabelecidas.
A hipótese formulada por este estudo constitui em
pensar o procedimento narrativo da mise en abyme
segundo um questionamento mais vasto, longe das

208
amarras tradicionais do encaixe narrativo ou da repetição
vertiginosa, com uma abordagem articulada à noção de
reflexividade.
Para tanto, percorreremos a estrutura narrativa do
conto Linda, uma história horrível, de Caio Fernando
Abreu (1948-1996), a partir dos estratagemas estilísticos
e as manobras de linguagem, a fim de uma análise em
torno dos sentidos que apontam para a presença da
reflexividade. Conforme demonstraremos, essa narrativa
transcende, na escala dos personagens, a esfera
tradicional do conceito de mise en abyme, na medida em
que viabiliza um jogo de espelhos reflexivos, ancorado
na figura feminina decrépita e na sua imagem duplicada
no cão, igualmente decrépito, e, por extensão, à figura do
filho. Detalharemos a seguir.

O olhar e o abismo

O conto “Linda, uma história horrível” pertence


ao livro Os dragões não conhecem o paraíso, publicado
por Caio Fernando Abreu em 1988. As miradas dos
personagens transcendem as contingências sociológicas

209
e dirigem-se de modo nômade e digressivo, aos espaços
profundos da subjetividade.
A temática da morte perpassa as polaridades
inexoráveis do eu e do outro, abrindo fendas que
potencializam a narrativa de Caio Fernando Abreu, de
modo a interiorizar a realidade e a abarcar a própria
linguagem como lugar de consciência perquiridora.
“Linda, uma história horrível” manifesta
sugestivamente a temática do vazio e do descompasso
humano, intensificada pela forma mascarada da AIDS,
doença que assola o personagem masculino, na casa dos
quarenta anos.
Estando de volta à cidade natal, o personagem se
mostra reticente e perturbado no contato com a figura
materna. Sua chegada imprevista nos coloca diante da
temática das partidas e chegadas, motivo frequente na
produção do autor, que acentua a escolha disfórica do
personagem quanto à procura por seus contornos e pelo
ato de morrer próximo aos seus.
Flagrado em sua fragilidade pela mãe, que nota
os cabelos ralos, a magreza evidente e as manchas na sua
pele, o personagem nos oferece pistas de estar infectado

210
pelo vírus. O reencontro expõe a preparação para a
própria morte do personagem e a “ausência de um projeto
existencial” (ZILBERMAN, 1992, p. 141), em sintonia
com a perda de identidade.
Nesse reencontro descompassado, destaca-se a
presença de Linda, o animal de estimação da mãe, cadela
que conta com quinze anos e é descrita pela dona como
“[...] uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar,
esperando a morte” (ABREU, 1988, p. 14). Sempre
ganindo e enroscando-se nas pernas dos dois
personagens, a cadela está no auge de sua decrepitude, de
forma a anunciar sua velhice e a proximidade da morte
não só de si mesma, como também da própria dona, e,
consequentemente, do próprio rapaz.
O texto caminha no território da senilidade e da
decadência, com o narrador entregando em detalhes o
ambiente decadente da casa, a fim de salientar a
decrepitude não só física e material, mas sobretudo
afetiva dos seres. A sequência nos traz desconforto e
negatividade, que chegam por meio de traços
sinestésicos, os quais acentuam a interioridade dos
personagens: “Aquele cheiro - cigarro, cebola, cachorro,

211
sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida
que parecia piedade, fadiga de ver” (ABREU, 1988, p.
21).
Na contramão da decadência da casa, a narração
torna-se gradativamente viável e produtiva aos olhos do
leitor, fazendo com que a linguagem se constitua pela
reflexividade. Como observa Jaime Ginzburg, no campo
da morte e sua estética, “destruição e constituição estão
associadas” (GINZBURG, 2011, p. 53).
A partir daí a narrativa aprofunda a reflexividade,
com a mulher espelhando-se no cão. No âmago de uma
espécie de vórtice, está a cadela Linda, centro de
gravidade de todo o conto de Caio Fernando Abreu,
misturando-se de forma intrínseca à dona, ao mesmo
tempo, num processo de impregnação recíproca com o
rapaz e o ambiente.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a mãe
e o rapaz se mantêm distantes um do outro, a cadela os
aproxima, como um ponto de intersecção entre os três
personagens. Todos estão unidos e degradados, debaixo
do mesmo teto, esperando a chegada da morte.

212
Com óculos degradados de lentes rachadas, a
mulher aperta os olhos com dificuldade para ver melhor
o filho. Esse movimento custoso é semelhante às ações
do animal, já cego, com olhos leitosos: “Olhos apertados,
como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A
cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos
fechados” (ABREU, 1988, p. 18).
Ao mesmo tempo, o olhar do rapaz é deformado
e desfocalizado, inventando visualidades e
testemunhando a realidade com o modo periférico de
observar os objetos e os acontecimentos: “Ele baixou os
olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da
sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás
dela” (ABREU, 1988, p. 17).
O cão ingressa no domínio íntimo da mãe,
misturando-se com ela: “Ela tornou a passar a mão pela
cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos,
como se as duas dormissem” (ABREU, 1988, p. 19).
Desse modo, as esferas humana e animal se
interseccionam, favorecendo uma fusão que perturba e
desafia os limites do conto. Cabe destacar, que o olhar do

213
cão desempenha um papel crucial nesse processo
confuso e imbricado.
Escoam dessa fusão os traços e escombros da
morte que se anunciam desenhando-se no cão, sinônimo
de decrepitude e de vazio, do qual o rapaz teme e ao
mesmo tempo, paradoxalmente se entrega: “- Mãe - ele
começou. A voz tremia. - Mãe, é tão difícil - repetiu. E
não disse mais nada” (ABREU, 1988, p. 19).
Inevitavelmente transformados por essa fusão, os
personagens se cruzam, se perdem e se encontram na
trilha direta da morte, buscando uma outra verdade.
Como força centrípeta e centrífuga, Linda é uma
espécie de báscula que organiza o conto, revelando que o
passado e o presente, a saúde e a doença, a animalidade
e a humanidade são faces que se cruzam e se
harmonizam. É ela quem centraliza o estigma da morte
que ronda o texto através da reflexividade. A enunciação
é articulada pelas tensões que se dão entre os três
personagens, de modo a aproximar-se e a afastar-se da
morte.
Força centrípeta porque atrai a narrativa para o
seu centro, no sentido de mimetizar a decrepitude da casa

214
e da dona, além da doença do rapaz; centrífuga, pois, ao
mesmo tempo, afasta-se do centro e faz o conto girar em
outras paragens, as quais retomam diferentes quadros,
como o passado de luxo e requinte do personagem na
cidade grande, o passeio da mãe a esta mesma cidade, as
mortes trágicas do avô e da negra Cândida, etc.
As situações do passado somadas às descrições da
casa decadente, formam um mosaico de situações que
tanto temática quanto formalmente, oferecem a
possibilidade de uma unidade reflexiva descontínua,
paradoxal e plural ao conto de Caio Fernando Abreu.
Segundo Lucien Dallenbach (2001), como figura, o
mosaico mantém uma relação específica entre
fragmentos e totalidade, cuja particularidade constitui
“uma reunião mais ou menos estável de elementos
múltiplos, variados ou mesmo incompatíveis, ou ainda
um conjunto de unidades mais ou menos combinadas,
formando uma unidade” (DALLENBACH, 2001, p. 40,
tradução nossa).
A imagem reflexiva do mosaico condiz com a
própria explicação de Caio Fernando Abreu no prefácio

215
da coletânea, quando chama atenção para as
possibilidades de “livro de contos” e “romance-móbile”:

Se o leitor quiser, este pode ser


um livro de contos. Um livro
com 13 histórias independentes
girando sempre em torno de um
mesmo tema: amor. Amor e
sexo, amor e morte, amor e
abandono, amor e alegria, amor e
memória amor e medo, amor e
loucura. Mas se o leitor também
quiser, este pode ser uma espécie
de romance-móbile. Um
romance desmontável onde essas
13 peças talvez possam
completar-se, esclarecer-se,
ampliar-se ou remeter-se de
muitas maneiras umas às outras,
para formarem uma espécie de
todo. Aparentemente
fragmentado, mas, de algum
modo suponho completo.
(ABREU, 1988, p. 11)

Portanto, errante, digressiva e reflexiva, a forma


da coletânea dialoga com as oscilações presentes no
conto e com os espaços mais profundos da subjetividade.

216
Cabe ainda lembrarmos a sutil referência à obra
anterior, Morangos mofados (1982), empregada no conto
presente com concisão e propriedade. Ao observar os
detalhes da estampa da toalha de mesa da casa materna,
o personagem depara-se com o cromatismo precário da
cena: “Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia
de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio,
velhos morangos” (ABREU, 1988, p. 16).
A recorrência aos “velhos morangos” não é
gratuita e favorece o jogo reflexivo e espelhado do conto
de Caio Fernando Abreu, aproximando o texto à
coletânea Morangos mofados, fazendo coincidir o olhar
do personagem com os olhares dos leitores. Vale
lembrarmos que a primeira parte dessa obra se intitula “O
mofo” e se compõe de nove contos, os quais exprimem
frustrações e desilusões dos personagens, num tempo
estagnado e sombrio. É o que podemos encontrar em
narrativas como “Luz e sombra”, “Os sobreviventes”,
“Pela passagem de uma grande dor”, cujos títulos
remetem a essas sensações.
Com efeito, mesmo sutil, a imagem mofada
assume um papel importante tanto no nível narrativo,

217
quanto no nível extradiegético de Linda, uma história
horrível. Essa ocorrência nos aproxima do conceito da
chamada “mise en abyme do código ou metatextual”, na
qual enunciado, enunciação e código refletem-se,
evidenciando o jogo de relações e o funcionamento da
obra. De acordo com Lucien Dallenbach (1977), tal
modalidade pode efetuar-se de diversos modos no texto
literário, acentuando um debate estético em torno da
retomada de ideais artísticos, ideológicos, etc. Para
exemplificar, o teórico utiliza a obra À la recherche du
temps perdu, de Marcel Proust (1871-1922), a qual não
deixa de narrativizar de maneira mais ou menos explícita
a problemática de sua escritura, ao abordar as pinturas de
Elstir, restando uma reflexão acerca do próprio código:

Assim encontrar-se-á nas


‘marinhas’ d´Elstir, evocadas em
A l’ombre des jeunes filles en
fleurs, o equivalente visual do
famoso episódio da madalena e
do ‘transporte’ memorial que ele
ocasiona. Nada mais motiva que
a fascinação do narrador diante
dessas telas já que o ‘charme’
delas resulta da execução da

218
própria arte poética do autor e
que elas aparecem como uma
figuração perfeita da operação
que domina a atividade do seu
texto, a saber ‘um tipo de
metamorfose das coisas
representadas, análoga àquela
que em poesia é chamada de
metáfora’. (PROUST apud
DALLENBACH, 1977, p. 128;
tradução nossa)

Enquanto metáfora especular, a reflexividade


também abarca as trocas transtextuais e os mecanismos
subjacentes a ela, enquanto difunde suas próprias
capacidades dióptricas em um nível dialógico, em uma
interação bastante complexa de referências e reflexos
(TORE, 2014). Por isso, no conto em questão, a
reflexividade consiste em procurar, no interior de sua
escrita, a relação caótica entre forças opostas e oscilantes,
que trazem a perda de si mesmo, do próprio corpo e de
tudo que o rodeia.
O jogo de espelhos continua a se enredar, com as
cenas abertas umas sobre as outras e não fechadas em sua
totalidade, daí a indeterminação permanente do
personagem soropositivo. A sós com a cadela Linda, o

219
personagem ajoelha-se no chão da sala, estatelado e
perdido no mundo. Seus movimentos dirigem-se ao
corpo do cão, ao mesmo tempo em que recobrem o seu
próprio corpo, em sinal de espelhamento:

Um por um, foi abrindo os


botões. Acendeu a luz do abajur,
para que a sala ficasse mais clara
quando, sem camisa, começou a
acariciar as manchas púrpura, da
cor antiga do tapete na escada —
agora, que cor? —, espalhadas
embaixo dos pêlos do peito. Na
ponta dos dedos, tocou o
pescoço. Do lado direito,
inclinando a cabeça, como se
apalpasse uma semente no
escuro. Depois foi dobrando os
joelhos até o chão. Deus, pensou,
antes de estender a outra mão
para tocar no pêlo da cadela
quase cega, cheio de manchas
rosadas. Iguais às do tapete gasto
da escada, iguais às da pele do
seu peito, embaixo dos pêlos.
Crespos, escuros, macios.
(ABREU, 1988, p. 22)

A centralização do olhar do rapaz em torno do cão


e sua consequente reflexividade provocam distorções em

220
relação à observação da realidade. A percepção de um
mundo cruel e fragmentado, elimina, na parte final do
conto as fronteiras entre o real e o ideal, a doença e a
saúde, o passado e o presente, o centro e as margens.
Diz, então, o personagem: - “Linda - sussurrou. -
Linda, você é tão linda, Linda” (ABREU, 1988, p. 22). A
repetição do termo “linda” indica a experiência dos
limites da “história horrível” de um homem acometido
pela AIDS, propagando a busca da morte que se
aproxima.

Considerações finais

Nos textos de Caio Fernando Abreu discute-se, a


todo o momento, o mistério da escrita, que é também o
da existência. A trajetória do autor demonstra que vários
foram os gêneros que enveredou, o que acaba por
mostrar-nos toda a riqueza de sua obra.
Neste trabalho, abordamos no conto “Linda, uma
história horrível”, a reflexividade e seu papel, um aspecto
singular e pouco estudado nesse conto, já bastante
comentado pela crítica. Como elemento indagador e

221
pulsante, a reflexividade assume sua força de gravidade
na cadela Linda, ponto de intersecção do conto, o qual
centraliza o jogo de espelhos e olhares que se
multiplicam nas figuras da mãe e do filho. Como vimos,
essa dinâmica ultrapassa o simples conceito mise en
abyme como simples encaixamento narrativo,
permitindo, por meio da reflexividade e sua atuação, a
transcendência do conceito e a espera da morte.
Como presença marcante, a morte percorre a
totalidade do conto, com o personagem soropositivo
vivenciando situações associadas ao campo do limite,
tais como deslocamentos, angústias, medos, reencontros
com o outro e consigo mesmo. É na articulação reflexiva
dos olhares da cadela Linda e da mãe que ele atinge o
conhecimento da morte que se aproxima, ao perceber e
mimetizar a decadência da casa e dos corpos que a
envolvem.
O fim da experiência termina com a morte. No
conto em questão experimenta-se a morte antes que ela
chegue de fato. É a entrega do personagem, ajoelhado na
sala, ao lado do cão e suas manchas, ao destino
inelutável.

222
Como presença marcante, a morte percorre a
totalidade do conto, com o personagem soropositivo
vivenciando situações associadas ao campo do limite,
tais como deslocamentos, angústias, medos, reencontros
com o outro e consigo mesmo. É na articulação reflexiva
dos olhares da cadela Linda e da mãe que ele atinge o
conhecimento da morte que se aproxima, ao perceber e
mimetizar a decadência da casa e dos corpos que a
envolvem.
Entramos no jogo engendrado pelo autor, somos
envolvidos pela imagem sedutora dos olhares e seus
matizes. Tais constatações permitem observarmos a
importância de uma obra que, ainda que seja das mais
estudadas na Literatura Brasileira, permanece com sua
força de reflexividade e espanto.

Referências

ABREU, Caio Fernando. Linda, uma história horrível.


In: ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem
o paraíso. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 13-22.

DALLENBACH, Lucien. Mosaïque: un objet esthétique


à rebondissements. Paris: Éditions du Seuil, 2001.

223
______. Le recit spéculaire: essai sur la mise en abyme.
Paris: Seuil, 1977.

GUINZBURG, Jaime. Estética da morte. Gragoatá. n.


31, Niterói, Universidade Federal Fluminense, UFF,
2011, p. 51-61.

PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. t. I.


Paris: Gallimard, 1956.

TORE, Gian Maria. La réflexivité: une question unique,


des approches et des phénomènes différents. Liège,
Belgique: Presses Universitaires de Liège 2014. In:
FOSSALI, Pierluigi Basso; BORDRON, Jean-François.
Que peut le métalangage? Liège, Belgique: Presses
Universitaires de Liège. 2014. p. 53-83.

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do


Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. p. 139-141.

224
AUTORES e ORGANIZADORES:

Amanda Eliane Lamônica Araújo – doutoranda em Estudos


Literários no PPG-Letras Mestrado e Doutorado do Câmpus
de Três Lagoas da UFMS; pesquisa a obra da escritora mineira
Alciene Ribeiro Leite; bolsista FUNDECT;
amanda.lamonica@yahoo.com.br

Anailta Bastos de Oliveira – Integra, no CPTL/UFMS, a


pesquisa Mediações Culturais, Formação e Teoria Crítica II,
sob orientação do professor Cristian Mwewa;
anailtabastosdeoliveira37@gmail.com

Angélica Caetano da Silva – Integra, no CPTL/UFMS, o grupo


que realiza a pesquisa Teoria Crítica Para o Inconformismo: a
Não-Identidade como telos das Relações Étnicas e Raciais, sob
orientação do Prof. Cristian Mwewa.

Christian Milena Mwewa – Professor no Programa de Pós-


graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS/FAED/Campo Grande). Coordenador e professor no
Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado) da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPTL).
Líder do Grupo de Pesquisa Formação e Cultura em Sociedade
- EduForP (certificado pelo CNPq).

Edelberto Pauli Júnior – Professor do CPAQ / UFMS.


edelberto.junior@ufms.br

Elcione Ferreira Silva – Professora na Rede Pública da


SED/MT; doutoranda em Estudos Literários na UFMS; autora
do livro O silêncio e o sagrado, aqui na Editora Pangeia.
elcione_tga@hotmail.com

225
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte – doutoranda em
Estudos Literários no PPG-Letras / CPTL / UFMS; autora do
livro O pobre de Assis, publicado na Editora Pangeia;
f.a.l.b.duarte@gmail.com

Natália Tano Portela – Mestre em Estudos Literários do PPG-


Letras / CPTL / UFMS, segue no doutorado o estudo da obra
da escritora mineira Alciene Ribeiro Leite.

Marcos Rogério Heck Dorneles – Mestre em Estudos da


Linguagem, é Doutor em Estudos Literários do PPG-Letras /
CPTL / UFMS; publicou na Pangeia o seminal Ruínas da
Modernidade.

Mariângela Alonso – Professora do Departamento de Teoria


Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP (Prof.
Colaborador MS 3.1). Doutora em Estudos Literários pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Fclar)(bolsa CNPq),
com período sanduíche na Université Sorbonne, Paris IV
(Lettres et Civilisations) (bolsa CAPES).
malonso924@gmail.com

Rauer – Professor na graduação, no PROFLETRAS e no PPG-


Letras Mestrado e Doutorado, do CPTL/UFMS; líder do
GPLV; escritor, lança no momento a 3ª. edição da narrativa-
lírica QOHELET, no selo Edições Dionysius, o selo de
literatura da Editora Pangeia.
rauer.rodrigues@ufms.br
Instagram: @_rauer

226
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