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ANAIS DO 12º SEMINÁRIO DO GPLV
GRUPO DE PESQUISA LITERATURA E VIDA
2022
SUMÁRIO
Apresentação
9
Programação Geral
14
Compreensão do modernismo e do
CDC em propagandas
Patrícia Socorro da Costa Cunha
38
Autores e Organizadores
225
Apresentação
9
Para a décima segunda realização, a proposta
efetuou um intercâmbio entre os cursos de Letras dos
campi de Aquidauana, Pantanal e Três Lagoas da UFMS,
os programas da Pós-Graduação em Letras (PPG-
Letras), do Mestrado Profissional em Letras
(PROFLETRAS / CPTL / UFMS) e do GEPEJA – Grupo
de Estudos e Pesquisas em Estudos em Jovens e Adultos
da UNICAMP.
De outra parte, assinalou a cooperação de
participantes de importantes instituições nacionais: UFF,
UNICAMP, UFRB e UNIMONTES.
Especialmente, a proposta do evento teve como
um dos temas principais as interfaces entre literatura e
ensino, evidenciando a conjugação de expectativas e
compreensões dos movimentos de escrita literária,
escrita criativa, recepção apreciativa, exame teórico e
prática docente.
Nesta edição o Seminário viabilizou a
participação de docentes, pesquisadores, alunos e
público em geral, possibilitando a apresentação e
recepção de várias palestras, projetos de pesquisa,
10
minicursos, comunicações orais, lançamento de livros e
atividades artísticas.
Dentre essas atividades, destacaram-se as
apresentações das palestras dos docentes André Luiz
Dias Lima (UFF), Nima Imaculada Spigolon
(UNICAMP), Aurora Cardoso de Quadros
(UNIMONTES), Waleska Rodrigues de Matos Oliveira
Martins (UFRB), Carina Marques Duarte (CPAN/
UFMS) e Edelberto Pauli Junior (CPAQ/UFMS), as quais
versaram sobre temas candentes e prementes dos estudos
literários em suas diversas perspectivas.
Outros dois fatores de grande integração junto ao
público foram as realizações dos minicursos e dos
debates de projetos de pesquisa.
Os debates dos projetos de pesquisa retomaram a
tradição do seminário do GPLV em fomentar as
investigações científicas junto às instâncias acadêmicas
da UFMS (como as do PPGLETRAS e do
PROFLETRAS), reverberando às diferentes
comunidades espectadoras determinadas motivações e
11
etapas do desenvolvimento dos estudos de pós-
graduação.
Já a efetivação dos minicursos promoveu uma
interação com os participantes por intermédio da
veiculação de propostas atuais, diferenciadas e críticas, as
quais desdobraram-se em reflexões sociais e acadêmicas.
De maneira semelhante, mas com um propósito
incentivador e catalizador, a apresentação das
comunicações orais reforçou o desígnio de polo
agregador e afirmador da iniciativa científica de
florescimento de novas ações de autoria e coautoria nos
estudos das Letras, afirmando-se nas sessões de “Ensino
de literatura”, “Teoria e crítica literária” e “Literatura e
estudos interdisciplinares”.
Por fim, estes Anais pontuam a grande relevância
de dois âmbitos fundamentais ao universo literário: a
produção artística e a criação editorial.
Nesta edição do Seminário foram apresentados
poemas e contos de grande expressão das instâncias do
“eu-lírico” e da ficcionalidade, e, de outra parte, foi
lançada uma dezena de livros que tratam de horizontes
12
reflexivos dos estudos literários e de obras de composição
literária.
Além dos Anais, ora publicados em formato PDF
de acesso na Loja da Editora Pangeia, com acesso livre as
diversas atividades estão disponíveis no canal do evento
no Youtube, AQUI, enquanto outras atividades do GPLV
estão disponíveis no blog do Grupo, AQUI (com links
para outros blogs que o GPLV criou e mantém), e no
canal do Youtube do GPLV, AQUI.
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Programação Geral
Terça-feira (16/11)
8h-12h
Minicurso
“Literatura infantil e juvenil: leituras feministas”, pela
Profa. Dra. Maísa Barbosa da Silva Cordeiro
(UNIGRAN).
Minicurso
“O indesejado das gentes - O niilismo e sua presença em
contos de Adalgisa Nery”, pelo Prof. Dr. Ronaldo
Vinagre Franjotti (SED/MS).
13h-14h
Palestra de abertura
“Literatura e Teatro: Invenções do Humano”, pelo Prof.
Dr. André Luiz Dias Lima (UFF).
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).
14h-15h
Palestra
“O cinismo cristão em El rey Gallo, de Francisco Santos”,
pelo Prof. Dr. Edelberto Pauli Junior (UFMS/CPAQ).
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).
14
16h-17h
Sarau on-line
Apresentação: Mayara Bassanelli (UFPR)
Interpretações de Mayara Bassanelli e de Marcos Rogério
Heck Dorneles.
Poemas:
- "Minha sombra", de Jorge de Lima.
- “O único impossível”, de Ovídio Martins.
- “Poema pouco original do medo”, de Alexandre
O'Neill.
- "Poema de João", de Noémia de Sousa.
Conto:
"Fugaz", de Marcos Rogério Heck Dorneles.
19h – 23h
Debate de projetos
Debatedora: Profa. Dra. Eunice Prudenciano de Souza
(IFSP)
1. “A literariedade na produção infantil de Alciene
Ribeiro” (Pesquisa de Karina Torres Machado).
2. “O corpo jurídico da mulher: violência psicoemocional
em contos de Alciene Ribeiro” (Pesquisa de Maisa
Cristina Santos).
Debate de projetos
Debatedor: Prof. Dr. Ronaldo Vinagre Franjotti
(SED/MS)
3. “E não foram felizes para sempre: um percurso literário
anual permeado por finais trágicos” (Pesquisa de Raquel
de Oliveira).
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Quarta-feira (17/11)
8h-9h
Palestra
“Literaturas de autoria feminina nos programas de pós-
graduação: novos trânsitos e velhas fronteiras”, pela
Profa. Dra. Waleska Rodrigues de Matos Oliveira
Martins (UFRB/CECULT).
Mediação: Profa. Dra. Eunice Prudenciano de Souza
(IFSP)
9h-10h
Palestra
“O homem como autor da vida em Nietzsche e Pessoa”,
pela Profa. Dra. Carina Marques Duarte (UFMS/CPAN).
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).
10h-12h
Debate de projetos
Debatedora: Profa. Dra. Waleska Rodrigues de Matos
Oliveira Martins (UFRB/CECULT).
4. “A leitura literária na sala de aula: aprender se
divertindo” (Pesquisa de Catia Mendes Pereira).
Debate de projetos
Debatedor: Prof. Dr. Rodrigo Andrade Pereira
(SED/MS)
16
5. “Os cinco planos narrativos na leitura de Mulher
explícita: a criação de uma nova taxonomia contística”
(Pesquisa de Fabiane Lemos de Freitas Garcia).
Debate de projetos
Debatedor: Prof. Dr. Edelberto Pauli Junior
(UFMS/CPAQ).
6. “A construção de um percurso literário para o Ensino
Médio” (Pesquisa de Edilva Bandeira).
13h-17h
Minicurso
“A face pública de Narciso: A ars poetica e as entrevistas
de escritores – vida e obra de Luiz Vilela”, pelo Prof. Dr.
Rodrigo Andrade Pereira (SED/MS).
Minicurso
“A representação da violência de gênero na literatura
brasileira contemporânea”, pela Dra. Pauliane Amaral
(UFMS).
Minicurso
“A formação do professor leitor”, pela Profa. Dra. Karina
de Fátima Gomes (SED/SP).
Minicurso
“Aspectos do espaço ficcional nos romances de Adriana
Lisboa”, pelo Dr. Osmar Casagrande Junior (UFMS).
17
19h- 23h
Sessão de comunicações
“Ensino de literatura. A-01”
Coordenação: Prof. Dr. Ronaldo Vinagre Franjotti
(SED/MS).
- “O ensino de literatura nas produções curriculares
paulistas após a BNCC” (Renata Cristina Alves Polizeli).
- “Da leitura de mundo à leitura da palavra: memória,
infância e diversidades” (Erika Carla Nogueira da Silva).
- “A formação do professor de literatura e o uso de
metodologias ativas: ensinando a ensinar” (Maisa
Cristina Santos /Paulo Sérgio Martins).
Sessão de comunicações
“Teoria e crítica literária. A-02”
Coordenação: Dr. Osmar Casagrande Junior (UFMS).
- “Uma leitura da novela: Os caminhantes de Santa Luzia,
de Ricardo Ramos” (Elcione Ferreira Silva).
- “A aprendizagem da finitude em dois poemas de
Manuel Bandeira” (Elzio Quaresma Ferreira Filho /
Antônio Máximo Von Sohsten Gomes Ferraz).
- “O sonho das sociedades totalitárias: os elos discursivos
na literatura distópica” (Erico Monteiro da Silva)
- “In nomine dei, de José Saramago e A teoria da
encruzilhada, de Anne Ubersfeld- uma provocação para
ler o teatro saramaguiano” (Luciana de Cassia Camargo
Pirani)
18
Sessão de comunicações
“Teoria e crítica literária. A-03”
Coordenação: Profa. Dra. Eunice Prudenciano de Souza
(IFSP)
- “O espaço urbano disfórico em Luiz Vilela” (Eunice
Prudenciano de Souza)
- “Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de Alciene
Ribeiro no conto ‘Pensar axilas’” (Amanda Eliane
Lamônica Araújo).
Sessão de comunicações
“Teoria e crítica literária. A-04”
Coordenação: Doutoranda Natália Tano (UFMS/CPTL).
- “A poesia feminina no Amazonas pelo viés da
modernidade de Violeta Branca” (Milena Bruno
Ferreira).
- “Violência contra a mulher em Curuzú la novia, de
Josefina Plá, e ‘A parasita azul’, de Machado de Assis
(Luiz Roberto Lins Almeida).
- “Racismos e o lugar do brincar: ‘Negrinha’, de Monteiro
Lobato, 1920 (Anailta Bastos de Oliveira /Angélica
Caetano da Silva / Christian Muleka Mwewa).
Quinta-feira (18/11)
8h-9h
Palestra
“A literatura africana no Brasil: pressupostos e práticas”,
pela Profa. Dra. Aurora Cardoso de Quadros
(UNIMONTES).
19
Mediação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).
9h- 12h
Sessão de comunicações
“Literatura e estudos interdisciplinares. B-01”
Coordenação: Prof. Dr. Marcos Rogério Heck Dorneles
(UFMS/CPAQ).
- “Literatura e história como instrumentos de denúncia à
cultura de violência na política brasileira no conto ‘Sobre
a natureza do homem’, de Bernardo Kucinski” (Fernanda
Amélia Leal Borges Duarte)
- “Um cosmos de doença e reflexividade: ‘Linda, uma
história horrível’, de Caio Fernando Abreu” (Mariângela
Alonso)
- “Compreensão do modernismo e do CDC em
propagandas” (Patrícia Socorro da Costa Cunha).
- “Conexões críticas e compositivas em Contos
impopulares, de Agustina Bessa-Luís” (Marcos Rogerio
Heck Dorneles).
15h-18h
Lançamento de livros
Coordenação: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
(UFMS/CPTL)
- A face pública de Narciso: a ars poetica e as entrevistas
de escritores – vida e obra de Luiz Vilela, de Rodrigo
Andrade Pereira.
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-O Jesus Homem, de Plínio Marcos: teatralidade e
representação, de Amanda Eliane Lamônica Araújo.
– O silêncio e o sagrado: aspectos estéticos de Os
caminhantes de Santa Luzia, de Ricardo Ramos, de
Elcione Ferreira Silva.
- Do sapo ao príncipe: a formação do leitor literário, de
Fabiane Lemos de Freitas Garcia.
- O pobre de Assis: a representação de uma memória, de
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte.
- Artesania descritiva nos romances de Adriana Lisboa,
de Osmar Casagrande
- O ensino da música na perspectiva da Lei 11.769/2008: a
experiência da Escola Municipal Comendador Hirayuki
Enomoto, de Pereira Barreto/SP, de Paulo Cezar Pardim
de Sousa.
- Ab ácido: estórias, de Rauer Ribeiro Rodrigues,
- Nos tempos do Corona, de Rauer Ribeiro Rodrigues,
- O Guri cheio de arte e a Baleinha Jubarte, de Rauer
Ribeiro Rodrigues.
19h-21h
Conferência de encerramento
“Elza Freire: o método Paulo Freire nas aulas de
literatura”, com a Profa. Dra. Nima Imaculada Spigolon
(UNICAMP).
Mediação: Profa. Dra. Maísa Barbosa da Silva Cordeiro
(UNIGRAN).
21
Resumos das Comunicações
22
Diante dessa intenção utiliza-se os fundamentos teóricos
que vão de encontro com essa proposta, dos quais se pode
citar: Cortázar (1974), Gotlib (1990), Massaud Moisés
(1974; 2009), Piglia (2004) e Genette (1972). Contudo,
os resultados aqui apresentados neste trabalho fazem
parte de uma pesquisa em andamento.
23
justificaria para a negrinha. O brincar, para negrinha,
aparece como espaço e ato da manifestação da
humanidade ao contrário do brincar das sobrinhas da
Dona Inácia para as quais e, inclusive para a própria
Dona Inácia, negrinha se configurava-se no próprio
instrumento de brincar coisificado. O brincar, portanto,
traz a possibilidade de reaver a humanidade subtraída,
pois ao brincar negrinha retoma a sua dimensão de
humanidade diferenciando-se das coisas (objetos) com
os quais era reiteradamente quase igualada, quase,
porque ela era tomada, ainda, como inferior aos objetos
que ao menos tinham a sua utilidade funcional.
24
relação de castigo e purificação do Asno de Apuleio e do
Asno de Luciano, com o regresso do Galo e da Formiga
à fisiologia dos brutos. Como no Grilo de Plutarco, os
protagonistas experimentam ambas as formas (animal e
humana) para preferirem, ao final, a condição de feras,
isenta de pecado e perdão.
25
questão do ponto de vista de Norman Friedman (2002),
os estudos de Tacca (1983) acerca das vozes do romance
e Questões de literatura e de estética de Bakhtin (2010).
26
O sonho das sociedades totalitárias: os elos
discursivos na literatura distópica
27
ficção científica. As literaturas distópicas funcionam
como críticas sociais e políticas, funcionando como um
alerta às tendências utópicas que se mostram modelos de
realizações perfeitas para a humanidade, mas as
consequências são falaciosas e totalitárias. Observamos
que os autores das obras citadas utilizam contextos
narrativos em comum para demonstrar como seria um
mundo dominado e como a consciência coletiva iria se
adaptar nesta realidade.
28
imagens atrativas e lúdicas. Dessa forma, ancorando-se
nos pressupostos epistemológicos de Antonio Candido
(1972; 2011) sobre a Literatura e a formação humana,
nos estudos de Fanny Abramovich (1997), Nelly Novaes
(2000) e de Celso Junior de Ferrarezi (2017) acerca da
constituição da Literatura Infanto-juvenil, o objetivo
desta pesquisa, que está em andamento, é compreender
para analisar as configurações das personagens no texto
narrativo Os bichos que tive: memórias zoológicas
(2004), de Sylvia Orthof, sob a ótica das diversidades
sociais presentes no processo formativo das personagens.
29
intensificaram no século XXI. Nesse contexto,
pretendemos analisar o tratamento dado às grandes
cidades nas narrativas de Luiz Vilela. Nessas obras,
percebemos que a cidade grande é vista como um espaço
de incomunicabilidade, de solidão, de violência,
claramente, inferior ao espaço das pequenas cidades ou
do campo. Seguindo essa orientação, nessas narrativas,
há uma tendência ao saudosismo, em que o passado surge
como um tempo superior ao presente.
30
da história do país e das ditaduras Latino-americanas. A
fundamentação teórica está vinculada aos estudos de
Paul Ricoeur, Hannah Arendt e Ricardo Piglia com a
finalidade de estabelecer a compreensão da literatura
como instrumento de ação política na escrita de
Kucinski. Ressalte-se que a pesquisa está em andamento
e os resultados são parciais conforme a análise do conto
proposto avança. Segundo a análise, também é possível
observar o estilo de conto de atmosfera, caraterística dos
contos contemporâneos, e como as personagens estão
vinculadas ao espaço político e social, nutrindo
sentimentos de angústia e medo, visto que o conflito
interior das mesmas proporciona uma reflexão sobre o
uso da violência como política de Estado.
31
de análise neste trabalho. Ler o teatro de forma geral
assenta-se em uma encruzilhada das contendas
contemporâneas que permeiam a sociologia, a semântica,
a história e as habituais discussões inerentes a estrutura
necessária à concepção de um texto dramático. É por
meio dessa encruzilhada que se caminha neste trabalho
em que se busca analisar o texto saramaguiano em
questão de modo a identificar como se manifesta a
perspectivada encruzilhada teórica em que se privilegiou
a subjetividade, a alteridade, a ideologia, a
intertextualidade, a história e da narratividade. As
questões teóricas vêm se pautando em discussões
estabelecidas por Anne Ubersfield, Tiphaine Samoyault,
Giorgio Agamben, Marilene Weinhardt e Leyla Perrone-
Moisés. Do diálogo entre esses teóricos, até o momento,
vem se evidenciando um discurso marcado pela estética
saramaguiana em que o destaque está por conta das
relações humanas marcadas pela intolerância e pela
incapacidade do homem de viver com seus semelhantes.
32
Josefina Plá, e “A parasita azul” (1873), de Machado de
Assis. Partindo da análise da estrutura desses contos -
com aporte teórico de Massaud Moisés (2006), Reis
(2018), Coelho (2020) - por meio da comparação entre
uma obra da literatura paraguaia contemporânea e uma
de origem brasileira do século XIX, tendo em mente que
a situação de violência de gênero permanece como uma
realidade atual, é possível perceber em narrador e
personagens indícios de violência. Se, por um lado, a
estrutura machadiana permite que o conto desague na
ironia que o caracteriza, Josefina Plá, com seu projeto
estético fulcrado no feminino – em solo paraguaio –,
redunda na opção pelo trágico.
33
ganham sua cor. Não se trata, portanto, de seguir uma
ordem, no molde jesuíta de transmissão do saber, mas de
aplicar metodologias que proporcionem aos docentes a
significação do que lhes foi apresentado. Nesse sentido,
a formação do professor de literatura deve fundamentar-
se na correlação entre conteúdo (o que fazer) e
transmissão do mesmo (como pode ser feito). O presente
trabalho objetiva, portanto, contribuir com a prática
discente de Literatura para o ensino superior, com
especial ênfase no uso de metodologias ativas. Para tanto,
apresentar-se-á algumas das atividades e conteúdos
ministrados para os alunos do oitavo semestre do curso
de Licenciatura Plena em Letras da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul no segundo semestre de 2021.
Como se sabe, em decorrência da pandemia de COVID-
19, as aulas de todas as instituições de ensino realizaram-
se na modalidade on-line, e no caso da UFMS, por meio
do uso do Google Meet e Google Drive (para
compartilhamento de materiais). As aulas foram
ministradas por dois estagiários e doutorandos em Teoria
Literária e sob a observação do Professor Doutor
responsável pela disciplina: Rauer Ribeiro Rodrigues. O
aporte teórico utilizado sedimentou-se em obras de
autores como: José Moran, Maria Lúcia de Arruda
Aranha e Paulo Meksenas. Como as aulas estão em
andamento, os resultados parciais por ora apresentados
foram: a participação ativa dos alunos nas atividades
propostas, o interesse pelas metodologias apresentadas e
a preocupação não apenas com o conteúdo a ser
ministrado, mas no processo de ensino-aprendizagem de
literatura.
34
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; Literatura;
Metodologias ativas.
35
interativo de maneira convergente, abrangente e
descerradora, dispostos por Benedito Nunes (2012,
2010) e Ivani Fazenda (2008). Como decorrências da
confluência disciplinar e da expansão literária,
destacamos a ampliação das esferas artísticas, a
percepção de certas condições de desolamento e
desorientação da vida individual urbana e a proeminência
das indagações de índole filosófica no universo ficcional.
Mariângela Alonso
malonso924@gmail.com
36
trocados entre três personagens, a mãe, o filho e a cadela
de nome Linda. Nesta troca de olhares espelhados,
sobressai a presença da morte e sua espera pelos três
personagens, sobretudo pelo filho, portador do vírus da
Aids. Assim, esta comunicação é fundamentada em
estudos sobre mise en abyme e reflexividade realizados
por Lucien Dallenbach (2001, 1979, 1977) e Gian Maria
Tore (2014). A hipótese aqui formulada constitui em
pensar o procedimento narrativo da mise en abyme
segundo um questionamento mais vasto, longe das
amarras tradicionais do encaixe narrativo ou da repetição
vertiginosa, com uma abordagem articulada à noção de
reflexividade. Desse modo, a análise propõe uma leitura
do conto ‘Linda, uma história horrível’, de Caio
Fernando Abreu, observando a construção da
reflexividade e da figurativização do vírus da Aids, tema
que permite identificar um momento privilegiado da obra
do escritor.
37
poesia local. Além disso, realizou-se uma análise sobre o
surgimento da autoria feminina no Amazonas, até então
marcada pela voz masculina. A pesquisa teve caráter
bibliográfico para a investigação da vida e obra da autora,
os poemas foram interpretados através da sociologia da
literatura e da crítica psicanalítica, ambas de acordo com
as concepções de Tadié (1992). Neste estudo, também
partimos dos conceitos de Compagnon (2012) sobre as
funções e conceitos da literatura. Tornou-se
imprescindível explorar a formação da literatura no
Amazonas sob a ótica de críticos locais, para isso
buscamos informações na obra de Márcio Souza (2010),
que descreve a construção do artista amazonense e
Regina Dalcastagnè (2012) sobre reflexões da literatura
brasileira contemporânea. As obras Reencontro - poemas
de ontem e de hoje (2012) e Ritmos de inquieta alegria
(1998) de Violeta Branca formam o corpus de análise e
interpretação. Esta pesquisa evidenciou os traços
modernos e ousados nos poemas da autora, que
contribuíram para que ela fosse a primeira mulher a
ingressar em uma Academia de Letras, além de abrir
caminho para tantas outras escritoras.
Compreensão do modernismo e do
CDC em propagandas
38
Resumo: A leitura de textos literários na escola contribui
para a compreensão de fatos da vida real, levando o aluno
a um transformador. Em 1990 foi promulgado o Código
defesa do Consumidor, e trinta anos depois é público e
notório como muitas pessoas ainda não conhecem seus
direitos como consumidores, levando-os a terem seus
direitos violados. Desse modo, a literatura pode levar o
leitor a estabelecer diálogo com diferentes tipos de
conhecimentos, cooperando para que ele se posicione
criticamente face à realidade, pois não se pode considerar
como bom leitor aquele que apenas lê corretamente uma
vez que a leitura e a literatura são formas de
conhecimento e o gosto se forma na aprendizagem
escolar. Dessa forma, este painel objetiva oportunizar aos
alunos a leitura e a análise de textos publicitários no
decorrer da história, desde 1920 com o surgimento do
Modernismo no Brasil, à atualidade, para o aluno
compreender como o consumidor pode ser enganado
com a persuasão dos textos publicitários e analisar as
fases que marcam o Modernismo nesse gênero. Para essa
análise crítica, torna-se fundamental o papel do professor
nessa interação entre o texto publicitário, os
conhecimentos sobre o CDC, o Modernismo e o leitor,
pois ele é o principal responsável pelo ensino da leitura
na escola. É necessário planejar estratégias que sirvam
para despertar o interesse pela leitura entre crianças e
adolescentes, permitindo-lhes transcender as
dificuldades e avançar no processo de amadurecimento.
Trabalhar o texto literário de forma que o aluno seja
envolvido em um processo que o levará a perceber que a
literatura aduz a outros conhecimentos que vão além do
texto. Partindo desses pressupostos, o presente trabalho é
resultado projeto desenvolvido ao longo do ano de 2009,
39
antes da pandemia, com alunos do 3º ano do Ensino
Médio do Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Roraima (UFRR), no qual foram desenvolvidas
atividades que tinham como foco principal a
intertextualidade, para incentivar a leitura e a análise de
propagandas para compreender a Escola literária do
Modernismo, e investigar a aplicabilidade do CDC nos
textos analisados.
40
nos embasamentos do Grupo Nova Londres (GNL, 2000,
2006) acerca das multiplicidades semióticas e culturais,
tão essencial às novas demandas sociais contemporâneas.
A metodologia deste trabalho foca-se na análise
documental (LÜDKE; ANDRÉ, 2018), todavia ancora-
se também na análise dialógica do discurso (BAKHTIN,
2006 [1979]; BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2014 [1929])
para apreender parte da cadeia enunciativa da qual os
documentos fazem parte e se interrelacionam. Por fim, os
dados parciais indicam inconsistência entre os níveis de
concretização curricular, uma vez que as atividades
inseridas nos materiais didáticos não correspondem às
perspectivas anunciadas no currículo prescrito paulista.
41
Artigos completos
42
Turbilhão: um aspecto do modo de narrar de
Alciene Ribeiro no conto “Pensar axilas”
Introdução
43
das refeições, pessoas trazem
notícias, trocam ideias e... contam
casos (GOTLIB, 1990, p. 5).
44
podem citar: Cortázar (1974), Gotlib (1990), Massaud
Moisés (1974; 2009), Piglia (2004) e Genette (1972).
45
forma de saco; 4) extremidade
inferior da lança, ferrão, ponta de
pau ou bastão: ‘tomou-lhe o
conto e deu-lhe com ele na
cabeça’ (MOISÉS, 2009, p. 15).
O conto se desenvolve
estimulado pelo apego à cultura
medieval, pela pesquisa do
popular e do folclórico, pela
acentuada expansão da imprensa,
46
que permite a publicação dos
contos nas inúmeras revistas e
jornais. Este é o momento de
criação do conto moderno
quando, ao lado de um Grimm
que registra contos e inicia o seu
estudo comparado, um Edgar
Alan Poe se afirma enquanto
contista e teórico do conto
(GOTLIB, 1990, p. 6).
47
renome, a começar por Machado de Assis. Assim, no fim
do século XIX, o conto atinge dias de apogeu como
forma literária erudita (MOISÉS, 2009, p. 18),
desenvolvendo sutilezas que acentuam a sua fisionomia
estética, autonomizando-se da novela e do romance,
fazendo surgir uma legião de ficcionistas, tais como
Katherine Mansfield, Virginia Woolf, James Joyce,
Kafka, Máximo Gorki, entre outros.
Para Cortázar, em razão da distinção entre conto
e romance, relata que:
48
justa limitação prévia, imposta
em parte pelo reduzido campo
que a câmara abrange e pela
forma com que o fotografo
utiliza esteticamente essa
limitação (CORTÁZAR, 1974,
p. 151).
49
[...] se um conto se amplifica até
as dimensões da novela ou do
romance, não se trata dum conto,
mas dum embrião de novela ou
de romance. Por sua vez, uma
narrativa rotulada de novela ou
romance não o é de se aceitar a
redução a um conto. Em suma: a
estrutura do conto, embora
admita numerosas variações, não
deve se confundir com a de
nenhuma das restantes formas
narrativas (MOISÉS, 1974, p.
100).
50
“síntese dramática” – o passado imediatamente anterior
aos fatos principais, por ser irrelevante. Também
irrelevante é o que possa ocorrer depois, seja porque
anunciado nos pormenores narrativos, seja porque a
personagem esgotou no conflito principal todas as suas
potencialidades e reservas emotivas (MOISÉS, 2009, p.
21).
Conforme considerações de Massaud Moisés
(2009, p. 23), o “[...] conto caracteriza-se por ser
‘objetivo’, atual: vai diretamente ao ponto, sem deter-se
em pormenores secundários”. O conto monta-se,
portanto, à volta de uma só ideia ou imagem da vida,
desprezando os acessórios, considerando as personagens
apenas como instrumentos da ação (MOISÉS, 2009, p.
25).
Segundo Cortázar (1974), o conto trabalha com
material caracterizado como significativo, que reside
principalmente em seu tema. Dessa forma, o conto
significativo “[...] é quando quebra seus próprios limites
com essa explosão de energia espiritual que ilumina
bruscamente algo que vai muito além da pequena e às
vezes miserável história que conta” (CORTÁZAR, 1974,
51
p. 152-153). Os contos de Katherine Mansfield e de
Tchekhov são tidos como significativos, alguma coisa
instala-se quando os lemos, propondo-nos uma espécie
de ruptura do cotidiano que vai muito além do argumento
(CORTÁZAR, 1974, p. 151).
Sobre o tema, Cortázar arrazoa que um contista é:
52
extraordinário, fora do comum, misterioso, insólito.
Muito pelo contrário, pode tratar-se de uma história
perfeitamente trivial e cotidiana”. Em suma, digamos que
não há temas absolutamente significativos ou
insignificantes:
53
último termo em direção a algo
que excede o próprio conto
(CORTÁZAR, 1974, p. 155).
54
julga um escritor somente pelo tema de seus contos ou de
seus romances, mas sim por sua presença viva no seio da
coletividade, pelo fato de que o compromisso total da sua
pessoa é uma garantia insofismável da verdade e da
necessidade de sua obra (CORTÁZAR, 1974, p. 161).
As personagens, por sua vez, tendem a ser
estáticas ou planas pelo fato de surpreenderem no
instante climático de sua existência. O contista assim as
imobiliza no tempo, no espaço e na personalidade; dessa
forma, em vez de crescerem diante de nós como as
personagens do romance, oferecem apenas uma faceta de
seu caráter (MOISÉS, 2009, p. 26-27). De acordo ainda
com Massaud Moisés (1974, p. 101), “[...] das unidades
promanam as outras características: poucas as
personagens que povoam o conto. Duas ou três, tão
somente as que participam diretamente do conflito”.
Poucas são as personagens que intervêm no conto
como decorrência natural das características apontadas:
as unidades de ação, tempo, lugar e tom, de forma que só
podem se estabelecer com reduzida população no palco
dos acontecimentos (MOISÉS, 2009, p. 26). A estrutura
do conto corre linhas paralelas com as unidades e o
55
número de personagens e, por ser essencialmente
objetivo, é um narrador em terceira pessoa (MOISÉS,
2009, p. 27). E o “[...] diálogo, sendo o mais importante
de todos, merece que se refira em primeiro lugar”, tendo
vista que “sem diálogo, torna-se impossível qualquer
forma completa de comunicação” (MOISÉS, 2009, p.
28).
Em relação ao diálogo, existem quatro tipos:
56
determinada personagem ou
fragmentos dela inserem-se
discretamente no discurso
indireto através do qual o autor
relata os fatos’; [...] 4. Diálogo
(ou monólogo interior) é aquele
que se passa dentro, no mundo
psíquico da personagem; esta
fala consigo mesma antes de se
dirigir a outrem, por as palavras
conterem ‘vários níveis de
consciência antes que sejam
formulados pela fala deliberada’
(MOISÉS, 2009, p. 28-29, grifo
da autora).
57
anteriores à ação principal; paralelamente, a descrição de
seres e coisas tende a segundo plano.
Para Massaud Moisés, a descrição da natureza ou
de ambiente, por sua vez, ocupa lugar ainda mais
modesto, em virtude dessas mesmas exigências do conto,
pois,
58
situar o conflito no espaço
(MOISES, 2009, p. 51).
59
perene fluidez que escapa das
mãos’ (MOISÉS, 2009, p. 55).
60
As diferenças entre o conto “realista” e o
“moderno” “não podem ser tomadas ao pé da letra e em
exclusivo sentido histórico”, haja vista que:
61
de Piglia (2004, p. 106) ao entender que “[...] cada
narrador narra à sua maneira o que viu ali”.
1 Disponível em:
https://gpalcieneribeiro.blogspot.com/2018/03/conto-inedito-de-
alciene-e-publicado-no.html. Acesso em: 15 fev. 2021.
2
RIBEIRO, Alciene. “Pensar axilas”. Suplemento Literário de
Minas Gerais, n.º 1.375. Belo Horizonte, Secretaria de Estado de
Cultura, novembro/dezembro de 2017.
62
peculiar e personalíssimo artesanato textual, com elipses,
cortes, ritmo sincopado, inversões cronológicas e
metáforas, entre outros tropos e recursos narrativos.
Outra acepção sobre o conto identifica-se em uma
entrevista3 da escritora com a doutoranda Karina de
Fátima Gomes, publicada no suplemento literário de
Minas Gerais, em que Alciene responde à seguinte
indagação: “Como é o seu processo de criação literária?”
A resposta anunciada:
3
RIBEIRO, Alciene. “Pensar axilas”. Suplemento Literário de
Minas Gerais, n.º 1.386. Belo Horizonte, Secretaria de Estado de
Cultura, setembro/outubro de 2019.
63
desodorante! Condoeu-me ver as
modelos expostas em rede
nacional (RIBEIRO, 2019, p.
26).
Enredo
64
enaltecidos “de alto a baixo” às custas do suor de axilas
alheias e de muita “pseudosseriedade” com suas roupas
“assépticas” de “colarinho branco”. Ela pensa: se torcer
o jornal, só sai mal-cheiro, tudo hipocrisia de
engravatados.
A mulher pergunta a si mesma, intrigada, se o que
aconteceu com ela e o namorado do Jornal, “o passeio
interrompido de chofre renderia uma chamada de capa”.
Isso seria para a seção de psicanálise do jornal, de
sexologia ou, ainda, de humor, pensa ela. Imagina a
notícia saindo no Caderno Dois, em que o “cronista
irreverente” confessaria ter fetiche por axilas – ele chama
de sovaco àquele “recorte anatômico”, e que ela não
gosta. “Aquele detalhe corpóreo só deveria exalar
aromas”, exclama.
Imagina-se mandando um recado ao “cronista
abusado” para deixá-lo sob seus pés, ou “debaixo do
braço”. Se ele usasse o transporte público e observasse,
diferentemente dos usuários diários de coletivos, as
axilas suadas dos passageiros, “novas, velhas... carentes
de um bom barbear”, penduradas “igual a morcegos”,
65
haveria “múltiplos orgasmos versus vômitos entalados”,
mas o “editor-chefe” não a entenderia, nem o recado.
A mulher liga a TV “por desfastio” e ouve
surpresa a pergunta do narrador do comercial: “O que
você faz para mostrar suas axilas?” Na propaganda, três
moças alegres com blusas sem alças e as mãos para cima.
Ela acha deprimente. Se elas não estivessem sorrindo,
pareceria os filmes de “bang-bang” em que o “bandido
rende as mocinhas no saloon”. A narrativa “em off” da
publicidade televisiva segue a fórmula de prometer
muitas utilidades, o cheiro agradável e a sedução dos
homens; na imagem, a modelo profissional faz caras e
bocas, tudo para passar a ideia de glamour e de vontade
de lamber, “tal o apetite fisionômico da ginasta”. Brinca
a mulher: “Beijinho no ombro... Ou na axila?” e também
pensa na “bobagem” que é aquela propaganda:
incrementa o consumismo, apela ao erotismo e,
ridiculamente, invade a privacidade alheia, “como se o
enigma existencial se resumisse a axilar realização”. São
constrangedoras as imagens das axilas, e ela desliga o
aparelho com o controle remoto.
66
Lembra os episódios de quando era jovem, antes
de frequentar o colégio, onde “a estampa se manchou na
cava”, os problemas com suores, ficava vexada – como
quando o irmão apontava-lhe o dedo e tapava o nariz.
Coisa que só a ela importava, chorava escondido, tinha
baixa autoestima. Aconteceram nesse período “dois
graves atentados”, e um deles, o pior, foi o primeiro
encontro amoroso. Era um jovem padeiro “amador”, e,
na padaria mesmo, “ele sovou-lhe os seios” e as suas
“unhas arranharam as axilas em seca frustração”. “Vade
retro!” Isso fez ela se decidir, a partir de então, a
selecionar melhor seus parceiros e a reduzir sua
sexualidade.
Também se lembra de quando, pequena, ia à
fazenda do tio, as camisas suadas dos “peões”, cheiros
fascinantes e ao mesmo tempo nauseantes: “Isso é
próprio dos brutos, de gente-bicho sem asseios, toma
distância, ou a praga te pega”, disse sua vizinha da
cidade. Ao apareceram as primeiras manchas, as “meias-
luas”, no vestido de algodão, ficou arrepiada: “... A
doença dos peões me pegou...!” Fez e desfez para
resolver o problema, de água e sabão a álcool – escondia
67
de sua mãe as feridas causadas. Nada! Ficou o complexo
de culpa, se sentia suja, feia, “relegada aos bastidores da
alegria”, nem rapar com o barbeador usado do pai
adiantaria. Passou a ser a adolescente tímida, “adolescer
de caramujo”, disfarçava, com tecidos claros, as manchas
nas axilas. Era atrapalhada também, por ser alta, muito
magra e corcunda. E assim levou a vida, aos “trancos e
barrancos”, e com o tempo foi se acomodando à situação.
“Estava quase resolvida” consigo mesma até
aparecer o “cupido”, fazendo-a pensar como “gata
borralheira”. Um jovem dentista, ao chegar da Capital,
reparou nela, uma “mera comerciária” “suarenta”.
Infelizmente a limusine era de “abóbora” e o sapato de
cristal “se quebraria no pé 39/40”. Ele queria apenas se
divertir com a “caipira gotejante”. Iludida, numa tarde de
segunda-feira foi-se encontrar com ele “vis-à-vis” no
intervalo do trabalho para tomar um café. Esperou na
lanchonete a olhar o relógio e a porta, pensava na “ruga
na testa” do patrão pelo atraso, enquanto as “axilas
bordejam”, o vestido molhara até quase a cintura: “Em
teu seio formoso retratas a verdura sem par dessas
matas”.
68
O dentista chega atrasado “25 minutos”, “com
passo lépido” e “sorriso de lorde”. “E agora?”, pensa a
mulher. Para evitar aparecer o suor, ela move apenas o
antebraço, e ele beija sua mão. Ela preferia ele ser um
“príncipe-sapo”. Em vez de o suor passar
despercebidamente, o “odontólogo” supera “a madrasta
em crueldade” e olha diretamente para a “inundação”. E
o que ele “disse, não importa”. Ela sentenciou:
“Culpado!”. Envergonhada e “submersa por um
tsunami”, ela “sibilou” humilhada: “É tarde, tenho de ir...
o meu chefe...”. Vai embora com “o salto três da
sandália”, deixando o “pós-graduado em vaidade” lá
sozinho. Saiu decidida em nunca mais vê-lo e pensava
nas desculpas que daria ao patrão. Toda a magia se desfez
com o dentista da Capital, “o cavalo branco do príncipe
se desencantou em reles banquinho de mola, sem
encosto”.
Teve outros rapazes e teve outros passeios. Numa
tarde dançante da juventude, o “dois-pra-lá-dois-pra-cá
prometia”, até o moço soltar-lhe a mão, pegar o lenço no
bolso e enxugar o suor por baixo da manga da camisa
curta, dizendo a ela: “Estou transpirando... mesmo!” Ele
69
ainda colocou a mão, mesmo suada, nela e continuaram
a dançar, era a última volta na pista, para o alívio da
mulher. Depois “o calorento” ainda ofereceu o lenço
encharcado. Ela agradeceu e recusou “num polido
obrigada”, reparando o costume em desuso: emprestar o
único lenço, “o cavalheiro”.
Vêm outras lembranças antigas “nauseabundas”,
como o dia em que ela cochilava numa viagem de ônibus,
e na parada entra “certo gorducho” de “camiseta regata”
e senta-se ao lado dela, “a vítima”. Ele ronca a viagem
inteira, fora o mal cheiro das axilas peludas. “E a inhaca
persegue-a ainda.” “É isso, aquilo se entranhou na
infância”, se juntando à sua feiura, pensa a mulher.
Com o namorado jornalista, ia tudo bem no
começo, até se “reavivar o trauma axilar”. Ele usa
perfume de lavanda, “camisas impecáveis, hálito
inodoro”. Numa sexta-feira de calor, ao fim do
expediente no jornal, pegaram a estrada de terra e foram
a um “pitoresco chalé” para viverem naquela tarde o
“Clima de pecado...”. Ele lhe conta em segredo ter o
desejo – a que ela se submeteu depois de negar – de ela
passar os pelos da axila, sem banho tomado, no rosto
70
dele. Foi “uma ânsia amoníaca... demoníaca”, coisa que
ela jamais pensaria: “Os lábios do homem profanaram
ocultos poros, e o beijo nas pudicas axilas, eletrizou-a”.
Então ela fugiu.
A seguir, analisar-se-á o conto buscando
explicitar a refinada escrita da autora, que, com seu
peculiar e personalíssimo modo de narrar os fatos, de
forma turbilhonante, apresenta em sua narrativa elipses,
sumários e pausas. Neste sentido, a descrição do conto é
realizada de maneira didática, demonstrando as
anisocronias em fragmentos do conto que homologam a
análise aqui proposta.
Sumário
71
Diante dessa questão, Gerard Genette (1972, p. 95)
explana ainda que “[...] a narração em alguns parágrafos
ou algumas páginas de vários dias, meses ou anos de
existência, sem pormenores de ação ou de palavras”
(GENETTE, 1972, p. 95).
Por esse prisma, Reis e Lopes (1988, p. 295)
arrazoam que “[...] o termo sumário designa toda a forma
de resumo da história, de tal modo que o tempo desta
aparece reduzido, no discurso, a um lapso durativo
sensivelmente menor do que aquele que a sua ocorrência
exigiria” (REIS; LOPES, 1988, p. 293).
Em análise à obra, encontramos no fragmento
abaixo a presença do sumário:
72
livre trânsito pela redação. Ele
revira, sem cerimônia, a dor da
ferida, insensível ao pasmo
(RIBEIRO, 2019, p. 105).
Pausa
73
da história, o narrador alarga-se
em reflexões ou em descrições
que, logo que concluídas, dão
lugar de novo ao
desenvolvimento das ações
narradas (REIS; LOPES, 1988,
p. 273).
74
para fazer menção a vários fatos que contribuam nos
detalhes das ações narradas; isto é, com o uso da pausa,
o enredo torna-se infinitamente maior do que o tempo da
história, sobrepondo-se significativamente ao tempo real
da narrativa.
Nesta proposta, em “Pensar axilas”, encontra-se
o seguinte exemplo de pausa na narrativa:
75
Analisando os fragmentos acima, percebe-se a
presença do elemento narrativo “pausa” quando a
escritora se utiliza de vários segmentos descritivos, de
forma a enfatizar o encadeamento das ações descritas em
uma mesma cena, focalizando numerosos detalhes nos
quadros narrativos expostos, em que o leitor tenha uma
maior contemplação e entendimento da história.
Elipse
76
tarde”); a implícita, não expressa pelo discurso, mas
podendo ser inferida se se tiver em conta o desenrolar da
história; a elipse hipotética, insuscetível de ser delimitada
de forma rigorosa relativamente ao tempo da história e
apenas intuída de forma difusa (GENETTE, 1972, p.
106-109).
De acordo com os conceitos abordados,
explicitados nos fragmentos apresentados logo abaixo a
fim de demonstrar tal elemento presente na tessitura do
conto.
77
fatos diante do tempo da história, em que o leitor se
depara com o avanço de forma rápida, entre a sucessão
dos fatos que vão moldando e proporcionando a
sequência da diegese.
Por esse ângulo, todo o estudo aqui apresentado
aspirou a demonstrar alguns elementos da enunciação
narrativa presentes no modo de narrar da escritora
mineira Alciene Ribeiro, de forma a entender os
movimentos turbilhonantes presentes na construção do
conto “Pensar axilas”. Percebe-se, ainda, o artesanato
textual, por meio do jogo de palavras; a subjetividade, de
maneira a não evidenciar a visibilidade de suas intenções
ao leitor.
Por fim, o trabalho aqui possibilitou um estudo no
campo da narrativa intertextualizado com fragmentos do
conto e possibilitou uma visão crítica no que diz respeito
à temática sinalizada pela escritora, que se utiliza de uma
linguagem simples e autêntica em sua construção
narrativa, permitindo uma leitura linear do texto, que
encontramos nas contribuições de Antonio Candido
(2011), no sentido significativo de que “[...] toda obra
literária pressupõe esta superação do caos, determinada
78
por um arranjo especial das palavras e fazendo uma
proposta de sentido” (CANDIDO, 2011, p. 178).
Referências
79
RIBEIRO, Alciene. “Pensar axilas”. Suplemento
Literário de Minas Gerais, n.º 1.375. Belo Horizonte,
Secretaria de Estado de Cultura, nov./dez. 2017.
80
Racismo e o lugar do brincar: “Negrinha”,
de Monteiro Lobato, 1920
Introdução
81
seus falecidos pais, de modo que o brincar – elemento
fundamental na vida de uma criança – lhe era negado.
Segundo Jean Piaget (1973), o brincar auxilia no
desenvolvimento de aprendizagens das crianças, e essa
ação ocorre na escola como também em espaços não
escolares. Considerando esta perceptiva após a leitura do
conto “Negrinha", tencionamos que o brincar e toda sua
liberdade foram retirados da sua vida e não só o ato do
brincar, mas também seus direitos de ser criança.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa documental
com instrumentos bibliográficos, com objetivo de
estudar e analisar o contexto do texto de Monteiro Lobato
denominado “Negrinha”, dando também ênfase no
brincar como aqui já foi anteriormente mencionado,
lembramos que as brincadeiras faziam parte da cultura,
porém nem todas as crianças tinham acesso, podendo
aqui afirmar que muitas das vezes a própria Negrinha era
na verdade o próprio brinquedo, tanto para a Sinhá
Inácia, personagem de grande importância presente no
conto, que dizia ser a “dona“ da Negrinha; e também para
as sobrinhas da Sinhá. Além de ter tirado da Negrinha
seu direito de brincar, a mesma sofria grande
82
preconceito, por ser uma menina órfã de pais escravos,
que não tinha nome, apenas seu apelido "Negrinha”,
além de outros “apelidos” (xingamentos), como “diabo",
“lixo" e etc., de modo que o conto pode ser tratado em
caráter de denúncia social/racial.
Nesse sentido, espero ser possível um
entendimento aprofundado desses elementos da vida
social para uma análise crítica da vida da Negrinha. Visto
que o brincar é um direito da criança e também faz parte
do seu desenvolvimento físico e intelectual o mesmo
deve ser formado em diferentes dimensões. Após a
Negrinha conhecer ‘o brincar’ ela deixou de ser um
objeto e passou a ser um sujeito, porém após ser retirado
novamente ‘o brincar’ de sua vida, ela adoeceu, definhou
e morreu.
Sendo assim, de outra forma busco, a partir do
estudo do conto, compreender e reafirmar a importância
do brincar na vida das crianças. Pode-se dizer que o
brincar traz a possibilidade de retomar a humanidade,
assim como indicado no conto através do contato com ‘o
brincar’ pela Negrinha. Ao brincar a Negrinha se sentiu
“pessoa” diferenciando-se dos objetos com os quais era
83
literalmente quase igualada, quase, pois ela era vista
como de um valor inferior.
84
A trajetória das bonecas
mereceria um estudo à parte,
dada a variedade de
representações e usos, que
englobam desde a religião até a
necessidade de a criança imitar o
cotidiano, reproduzindo
cuidados maternos. Atualmente,
as meninas as estão deixando de
lado mais precocemente do que
quando o mestre do cancioneiro
popular, Luiz Gonzaga cantava
em o ‘Xote das meninas’: ‘[...]
toda menina se enjoa da boneca é
sinal de que o amor chegou no
coração [...] (CREPALDI, 2010,
p. 12).
85
ao brincar de boneca, por exemplo, a criança reproduz
papéis que estão presentes em sua cultura social e
sabendo que o brincar é um direito da criança, devemos
possibilitar o brincar, todavia de uma forma prazerosa e
educativa, de modo que se empregue o lúdico como um
dos mecanismos principais no ato de brincar.
Segundo a RCNEI (BRASIL, 1998), o brincar
atua como um horizonte, este que auxilia as crianças na
imitação da vida real e ainda vai além, auxiliam a
transformar suas vidas, no sentido de que elas possam
imaginar e através dessa imaginação elas se aproximam
mais do mundo em que vive e também imitam situações
que viram acontecer futuramente, como por exemplo a
brincadeira de “escolinha”, ou seja, as crianças brincam
a partir da sua realidade, levando-a a ter um maior
contato com o seu meio, criando e selecionado ideias e
adquirindo aprendizados e experiências.
Acrescenta-se então, para consolidar essa
colocação o pensamento de Machado (2003, p.37):
86
processos cognitivos. Para
aprender precisamos adquirir
certo distanciamento de nós
mesmos, e é isso o que a criança
pratica desde as primeiras
brincadeiras transacionais,
distanciando-se da mãe. Através
do filtro distanciamento podem
surgir novas maneiras de pensar
e de aprender sobre o mundo. Ao
brincar, a criança pensa, reflete e
organiza-se internamente para
aprender aquilo que ela quer,
precisa, necessita, está no seu
momento de aprender; isso pode
não ter a ver com o que o pai, o
professor ou o fabricante de
brinquedos propõem que ela
aprenda. (MACHADO, 2003, p.
37).
87
segundo Santos (1997. p. 12) o lúdico favorece a
aprendizagem e além dessa aprendizagem ainda pode
desenvolver o pessoal, cultural e social, dando total
contribuição no que diz respeito à comunicação,
socialização, construção de conhecimento e facilidade de
expressão.
Dentre todas as colocações, vejamos uma que nos
faz refletir, como que a criança aprende a brincar?
Notemos que muitas das vezes as crianças se identificam
com muita rapidez no ato de brincar, porém cabe aqui
ressaltar que ela não nasce já sabendo brincar, Kishimoto
(2010) traz uma colocação para que nos atentemos a fim
de entender melhor essa contestação, afirmando que:
88
brincadeiras. (KISHIMOTO,
2010. p. 1).
89
A criança, mesmo que pequena,
sabe muitas coisas: toma
decisões, escolhe o que fazer,
interage com pessoas, expressa o
que sabe fazer e mostra, em seus
gestos, em um olhar, uma
palavra, como é capaz de
compreender o mundo. Entre as
coisas de que a criança gosta de
brincar, que é um dos seus
direitos. O brincar é uma ação
livre, que surge a qualquer hora,
iniciada e conduzida pela
criança; do prazer, não exige
condição um produto final;
relaxa, envolve, ensina regras,
linguagens, desenvolve
habilidades e introduz a criança
no mundo imaginário.
(KISHIMOTO, 2010, p. 1).
90
brincadeira pode ser transformada, aquela boneca que era
sua filha, ela o transformará em seu mundo imaginário e
passará a ser apenas sua “irmã”, são brincadeiras
aparentemente iguais, mas de pontos de vista diferentes,
ou seja a criança a partir das suas vivências assume
práticas diferenciadas.
91
a mesma a criar hábitos diferentes daqueles já
apresentado para elas. Portanto, para finalizar este
discurso, reafirmo que o brincar é de fato, uma ação em
que se torna para as crianças um processo de grande
significância, desde que seja realizada de forma
prazerosa como aqui já mencionada, pois de acordo com
Melo & Valle (2005, p.45) essa forma de brincar irá já
permitir que a criança seja encaminhada para o mundo de
esfera imaginária, sendo capaz de desenvolver e exercitar
suas habilidades a fim de se relacionar melhor com o
meio em que vive.
92
Assim, os indivíduos da raça
‘branca’, foram decretados
coletivamente superiores aos da
raça ‘negra’ e ‘amarela’, em
função de suas características
físicas hereditárias, tais como a
cor clara da pele, o formato do
crânio (dolicocefalia), a forma
dos lábios, do nariz, do queixo,
etc. que segundo pensavam, os
tornam mais bonitos mais
inteligentes, mais honestos, mais
inventivos, etc. e
consequentemente mais aptos
para dirigir e dominar as outras
raças, principalmente a negra
mais escura de todas e
consequentemente considerada
como a mais estúpida, mais
emocional, menos honesta,
menos inteligente e, portanto, a
mais sujeita à escravidão e a
todas as formas de dominação.
(MUNANGA, 2004, p. 5).
93
é algo que infelizmente, atinge as comunidades
afrodescendentes desde a infância e que os seguem por
toda a vida, levando muitos a deixar a escola e até o
trabalho, além de sofrerem diariamente com o medo de
serem mortos simplesmente pelo fato de serem “negros”.
De acordo com Resemberg (1990), é visível que
alunos negros se encontram nas piores escolas, uma vez
que a exclusão desses alunos vem se desenvolvendo cada
vez mais e a cada dia que passa mais pessoas negras
deixam a escolas, pois muitas das vezes a cultura negra
não tem espaço nos centros escolares, ou seja, ela é de
fato, silenciada, silencio esse que se torna essa cultura
“inexistente”, de certa forma esquecida, muitos
educadores não se sentam à vontade de falar sobre o tema
com os alunos ou até mesmo não possuem uma formação
adequada em cima dessa temática, sendo assim seria
necessário formações de professores considerando
discurso sobre racismo, preconceito, discriminação e
etc., Pereira (2010) traz uma colocação sobre essa
questão salientando que:
94
Na formação de educadores é
importante considerar as
representações que possuem
sobre racismo, sexismo,
preconceitos, discriminação e
trabalhar com estas
representações, desconstruindo-
as, promovendo a
conscientização dos educadores
sobre/nossas limitações, isso é
fundamental para tal processo.
(PEREIRA, 2010, p. 315).
95
significância para o combate ao racismo que tanto se faz
presente hoje em dia:
96
de pessoas nativas, que a princípio foi praticada com os
indígenas tratados como moeda de troca, práticas de
escambo pelos próprios nativos e após a inviabilização
da escravização desses povos, surge a necessidade de
mão de obra para a lavoura, por esse motivo são trazidos
negros como cargas em porões de navios chamados
posteriormente de “navios negreiros” para a substituição
da mão de obra indígena, é a partir daí que começa a
escravização, sendo que os negros foram escravizados
por mais de 300 anos e mesmo sendo libertados e como
aqui já mencionado, sofrem uma grande onda de racismo.
97
abordagem psicológica se dá a partir da interação com os
jogos, levando a criança a apropriação de um melhor
compreendimento e funcionamento das suas
personalidades e emoções, já na abordagem educacional
trata-se do brincar como desenvolvimento de
aprendizagens, como já mencionado nos capítulos
anteriores, dessa forma o brincar envolve de fato toda a
realidade da criança, tendo em vista que: “Quem brinca
de certa forma pisa em chão sagrado. Já que acredita
plenamente na realidade vivida e sentida, mergulhando
fundo em suas águas, respeitando suas alianças”.
(OLIVEIRA, 2000, p.26). De acordo com as palavras do
autor e como já foi ressaltado no primeiro capítulo,
percebe-se a importância do brincar na vida de uma
criança, mas esse brincar trata-se de um brincar diferente
daquele notado na obra Negrinha, pois a dona Inácia,
assim representada pelo autor, fazia da Negrinha na
verdade o seu próprio brinquedo no qual ela brincava de
uma forma cruel e discriminatória, contudo essas ações
provocavam na dona Inácia um ar de alegria ao maltratar
a Negrinha, “Ai! Como alivia a gente uma boa cocres
bem fincadas!...” (LOBATO, 2012, p. 2), a partir das
98
palavras da dona Inácia atentamos o quanto era sofrida a
vida da Negrinha, crescendo e vivendo como um
brinquedo nas mãos da sinhá, sem poder se expressar e
tão pouco se defender.
É viável trazer aqui em discurso o filme A vida é
bela para que possamos fazer uma comparação do
brincar que se fez presente na vida dos ambos
personagens, contudo se faz necessário um pequeno
apanhado do filme, sendo um filme italiano que foi
lançado em 1997, de comédia dramática que narra a
história de um judeu “Guido” que ao se mudar do campo
para a cidade se apaixona por uma Italiana “Dora”, que
logo se casa com ela e tem um filho, o “Josué”.
Na Segunda Guerra Mundial Guido e sua família
são levados para o campo de concentração nazista,
valendo ressaltar que nessa época Josué já estava com 5
anos de idade, por tanto para não ver seu filho triste,
Guido tenta passar para seu filho que todo aquilo que eles
estavam vivenciando era alegre, ou seja, ele fantasiou
para seu filho uma viagem de férias, de modo que eles
iam jogar e acumular pontos.
99
No campo de concentração Guido entra em uma
onda de sofrimento amalgamado com diversão, tudo isso
para demostrar para seu filho que aquilo tudo era um jogo
divertido e que eles iam sair do local com um prémio,
com o objetivo de seu filho não perceber tamanha
barbárie que ocorria no local, Guido de fato, consegue
que seu filho passe por todo aquele momento horrível
sem carregar consigo traumas e sofrimentos, o filme é na
verdade uma demonstração de como foram os campos de
concentração nazistas, mas no filme o autor Guido
consegue deixar atrativo com sua atuação trazendo
sempre um sorriso para que seu filho achasse que aquilo
era apenas um jogo (bom seria se tudo fosse apenas um
jogo).
Vamos lá, vimos que o brincar também esteve
presente na vida dos autores do filme, pois Guido
fantasiava todos os jogos e transmitia para seu filho, de
modo que aquele sofrimento não fosse tão doloroso, a
partir daí é que notamos que o brincar ressaltado no filme
foi literalmente escasso no conto, a Negrinha não
carregou em nenhum momento da sua infância a alegria
de fantasiar de brincar e nem se quer argumentar sobre
100
algo, de forma resumida, ela em nenhum momento da sua
vida teve o direito de ser feliz, muitos menos realizar seus
desejos, de modo que ela poderia conquistar tudo isso ao
brincar na sua infância.
Segundo Andrade (2010), a infância é vista como
uma construção social, de modo que remete a uma
criança inteligente, forte e autônoma, a autora ainda
ressalta que as crianças precisam ter o direito de voz e
também de ser ouvida, no conto em nenhum momento a
Negrinha conseguiu se expressar verbalmente, não foi
ouvida e principalmente não conseguiu o seu direito de
conquistar sua autonomia, mas se olharmos para nossa
realidade atual ainda há crianças que vivem nessas
condições, como por exemplo as crianças que vivem em
camadas populares, veja o que fala Andrade:
As representações sobre a
infância que evocam o modelo
idílico não expressam a realidade
de todas as crianças, em especial
das camadas populares inseridos
precocemente no trabalho,
excluídos da escola, vivendo em
situações de misérias, abandono
e exploração, enfim, para as
101
quais o “paraíso da infância” é
uma grande utopia.
Confrontando-nos assim com
diferentes formas de vivência da
infância quando consideramos as
diferentes demarcações de suas
condições socioeconômicas e
culturais. (ANDRADE, 2010,
p.74).
102
e sendo castigada, na verdade uma violência infantil
como está explícito no conto:
103
retirá-lo, uma vez que uma das maneiras para ela se
apropriar dessa autonomia seria simplesmente o ato de
brincar, Oliveira (2000) resume bem essa condição,
ressaltando que: “O brincar, por ser uma atividade livre
que inibe a fantasia, favorece o fortalecimento da
autonomia da criança e contribui para a sua formação e
até quebra de estruturas defensivas”. (OLIVEIRA, 2000,
p.19). Sendo assim, segundo as palavras do autor é
significativa a falta do brincar ao longo da sua infância,
não se encontrando em situação social eficaz para sua
idade, de modo que ela passava a ser o “Passa-Tempo”
da dona Inácia e também das suas sobrinhas, não fruindo
de uma boa relação entre adultos e crianças, Lima,
Mwewa (2021) ressalta três categorias para que
possamos entender sobre essa relação entre adultos e
crianças, a primeira é a categoria cuidar, que se dá a partir
do cuidado, necessidades fisiológicas e higiene, a
segunda categoria trata-se do espaço físico, ou seja, a
relação da criança e adultos nos espaços físicos inseridos
na sociedade e por fim os autores traz a categoria
afetividade, essa que se dar por meio da afetividade dos
adultos com as crianças, vire-verso, todas essas
104
categorias são de estrema importância para que a criança
possa se desenvolver tanto seu físico como também seu
psicológico.
Se pegarmos como ponto de partida as colocações
dos autores citados no parágrafo anterior, notamos que a
falta dessa relação entre adultos e criança foi constante
na personagem Negrinha, uma vez que a única relação
que a dona Inácia tinha com a menina era apenas de
humilhação, preconceito e violência, não só pela dona
Inácia como também por as suas sobrinhas que
debochavam a todo momento da Negrinha, diferente da
relação do Guido e do seu filho, presente para
comparação anteriormente.
Pensemos:
105
transforma em lixo. E os do
meio, os que não são ricos nem
pobres, conserva-os atados à
mesa do televisor, para que
aceite desde cedo um destino, a
vida prisioneira. Muita magia e
muita sorte têm as crianças que
conseguem ser crianças.
(GALEANO1999 apud
KRAMER, 2000)
106
infelizmente a Negrinha não se apropriou de tão
grandioso ato.
A educação é de fato um direito de todos, visando
sempre o desenvolvimento integral do indivíduo,
valendo lembrar que sua contribuição é de grande
relevância quando nos referimos em formar um cidadão
crítico, Adorno (2000) ressalta em sua obra sobre a
educação emancipadora, que é a educação voltada para a
formação de um indivíduo social e não um ser humano
com identidade isolada, ele ainda enfatiza em sua obra
sobre a educação ser fundamental para combater que
novas barbáries se repitam, sobre essas barbáries o autor
se refere a Auschimitz ocorrido na Alemanha, que foram
campos de concentrações construídos pelos nazistas,
com o objetivo de um grande extermínio de pessoas.
Veja:
107
reconhecer os mecanismos que
tornam as pessoas capazes de
cometer tais atos, é preciso
revelar tais mecanismos a eles
próprios, procurando impedir
que se tornem novamente
capazes de tais atos, na medida
em que se desperta uma
consciência geral acerca destes
mecanismos. Os culpados são
unicamente os que, desprovidos
de consciência, voltaram contra
aqueles o seu ódio e sua fúria
agressiva. É necessário
contrapor-se a uma tal ausência
de consciência, é preciso evitar
que as pessoas golpeiem para os
lados sem refletir a respeito de si
próprias. A educação tem sentido
unicamente como educação
dirigida a uma autorreflexão
crítica. Contudo, na medida em
que, conforme os ensinamentos
da psicologia profunda, todo
caráter, inclusive daqueles que
mais tarde praticam crimes,
forma-se na primeira infância, a
educação que tem por objetivo
evitar a repetição precisa se
concentrar na primeira Infância.
(ADORNO, 1995, p. 121-122).
108
Na visão de Adorno a primeira infância é também
um espaço do diálogo e brincadeiras que possa abordar
questões de respeito ao próximo, por exemplo, pois a
infância para ele assume um papel primordial, é na
infância que a criança tem sua primeira visão de mundo,
sendo de grande relevância a educação presente nessa
etapa, podendo dessa forma na perspectiva de Adorno
uma ação de bem social e cultural, mas se partimos para
o conto aqui analisado não houve nada de social e
cultural na vida da personagem Negrinha, muito menos
uma educação que à pudesse formar como um ser
humano íntegro, já que de certa foram ela vivenciou na
sua infância uma barbárie, não sendo semelhante a que
Adorno menciona nas suas obras, entretanto ela foi
privada de viver as belezas de ser uma criança, o brincar,
por exemplo.
Além das privações diárias na vida da Negrinha,
ela onde vivenciou zombaria e o racismo das sobrinhas
da dona Inácia, que são tragas no conto como as
personagens que também fizeram a Negrinha de seu
brinquedo, “Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade”,
(LOBATO, 2012, p.3) percebe-se que a Negrinha era de
109
fato uma menina ingênua, e em nenhum momento do
conto foi relatado alguma ação em que dava a liberdade
de defensa e nem tampouco de expressão. Sabendo que a
Negrinha não brincava, e tendo em vista que o brincar é
uma forma das crianças se expressarem:
A liberdade de brincar na
infância é a expressão de uma
criança que diz: ‘Quero ser livre
para brincar com a vida’.
Brincando, a criança aprende ser
livre harmonizando o seu mundo
interior nas suas mais variadas
composições com o mundo
exterior. O direito de brincar
como um direito de liberdade é
equilíbrio e felicidade. A
liberdade faz com que a criança
autora das escolhas que lhe
interessam, fortalecendo a
construção de sua autonomia de
acordo com a sua lógica própria.
(CURTYS, 2006, p. 40).
110
pela dona Inácia, vejamos ainda que ela em nenhum
momento foi compreendida e nem vista como um sujeito
concreto em que se situa historicamente em uma
sociedade.
Entretanto foram essas sobrinhas que ao passar as
férias com a “santa Sinhá” assim apresentada por Lobato,
apresentaram o brincar e o brinquedo (boneca) para a
Negrinha, que se encantou com tanta beleza, também se
assustou, quão grande foi a sua epifania:
111
imóveis, presenciando a cena.
(LOBATO, 1920, p. 3).
112
Ao brincar de que é mãe da
boneca, por exemplo, a menina
não apenas imita e se identifica
com a figura materna, mas
realmente vive intensamente a
situação de poder gerar filhos, e
de ser uma mãe boa, forte e
confiável. (OLIVEIRA, 2000,
p.19).
113
Contudo a impressão que fica na verdade, é uma
triste história que nos faz refletir, para o ato monstruoso
que ocorreu contra a personagem Negrinha não se repita
com outras crianças dias atuais, pois as crianças precisam
ter seus direitos e maior que isso elas precisam e devam
vivenciar todos esses direitos.
Considerações finais
114
Morreu na esteirinha rota,
abandonada de todos, como um
gato sem dono. Ninguém,
entretanto, morreu jamais com
maior beleza. O delírio rodeou-se
de bonecas, todas louras, de
olhos azuis. E de anjos... E
bonecas e anjos redemoinhavam
em torno dela, numa farândola
do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça,
abraçada, rodopiada. (LOBATO,
1920).
115
cultura em que ela pudesse se expressar, criar fantasias,
poder ter seu direito de voz, quanto fez falta o
acolhimento dos seus pais em sua vida, fico ainda a
pensar como pode uma mulher tão má como a dona
inácia, castigando a Negrinha, tirando todos os seus
direitos, nem nome a menina tinha, ou andava calada
pelos cantos ou era violentada ou sofria uma onda de
racismo, preconceito e discriminação.
Com estas pequenas colocações, afirmo pequenas,
pois se abrimos um discurso sobre tudo que foi a
escravidão sairemos do objetivo da análise aqui já
supracitado, porém são válidas pôr em evidência para
que pensemos ver sobre tudo que foi desenvolvido
teoricamente neste trabalho, tendo em vista que ainda nos
faz refletir sobre a visão que se tinham dos negros
retratados no Pré-Modernismo.
Por tanto expresso minha imensa exultação ao
analisar o conto “Negrinha”, análise de extrema
transcendência para novos conhecimentos literários, nos
fazendo pensar e repensar em todos os fatos da obra que
estão voltados e dirigidos para o público leitor.
116
Referências
117
KISHIMOTO, M. T. Brinquedos e brincadeiras na
Educação Infantil. In: SEMINÁRIO NACIONAL:
CURRÍCULO EM MOVIMENTO, I. nov. 2010. Belo
Horizonte: Anais, 2010. 20 p. Disponível em:
https://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2010-
pdf/7155-2-3-brinquedos-brincadeiras-tizuko-
morchida/file. Acesso em: 23 mar. 2020.
118
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual
das noções de raça, racismo, identidade e etnia.
In: Programa de educação sobre o negro na sociedade
brasileira [S.l; s.n.], 2004. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/wp-
content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-
das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf
119
A tradição da menipeia em El Rey
Gallo de Francisco Santos
Introdução
4
Este artigo retoma partes da discussão iniciada na tese Sátira
cínica e a grandeza do ínfimo em El rey Gallo de Francisco
Santos, defendida no Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da
Unicamp em 2020.
120
a relação de castigo e purificação do Asno de Apuleio,
com o regresso do Galo e da Formiga à condição de
animais. No texto do escritor madrilenho os
protagonistas experimentam ainda ambas as formas
(animal e humana), como o porco no Grilo de Plutarco,
para preferirem, ao final, a condição de feras, isentas de
pecado e perdão.
Mais do que criar, o poeta seiscentista reescreve
os modelos pelos quais têm admiração, com outros meios
materiais e modos miméticos, a fim de emular com os
autores que admira para ser julgado pela engenhosidade
e arte. Por isso, diferenciam-se a emulação e a imitação
servil ou roubo, pois “fala-se de roubo e pirataria,
entendendo-se que emular é diverso de roubar, pois o
roubo diz o mesmo e a emulação diz outra coisa”
(HANSEN, 2008, p. 21. grifos do autor). Essa outra coisa
buscada pela emulação demonstra tal semelhança com a
obra imitada em suas partes mais belas, difíceis e
louvadas que qualquer um que as conheça sabe que a
segunda foi feita intencionalmente à semelhança da
primeira. O procedimento da emulação autoriza os novos
textos a se alinharem com os anteriores do mesmo
121
gênero, como autoridade a ser imitada em novas
emulações. Esse método era acumulativo, pois não se
entendia a novidade poética a partir de conceitos como
“plágio”, “originalidade”, “superação”, “ruptura”5.
5
“Eu chamo imitação uma sagacidade com a qual, sendo proposta
para ti uma metáfora ou outra flor do engenho humano, tu
atentamente examinas as suas raízes e, transplantando-as em
diferentes categorias, como em solo cultivado [...], propagas outras
flores da mesma espécie, mas não os mesmos indivíduos”
(TESAURO, 1986, p. 8).
6
O enredo do Galo de Luciano: depois de jantar na casa do rico
Eucrates, o sapateiro Micilo tem um sonho. Eucrates morreu e lhe
deixou a herança. Enquanto sonha, Micilo é despertado pelo Galo.
122
Galo narra como se ausentou de casa após perder a
confiança de seu pai, Júpiter. Ao tentar se igualar ao deus
do Olimpo, ele se vê implicado em uma série de
metamorfoses desastrosas devido ao seu apetite sexual.
Estabelecida a confiança entre os interlocutores, o Galo
e a Formiga decidem continuar a viagem movidos pelo
desejo de “[...] ver el mundo y en qué se desvelan sus
habitantes” (SANTOS, 1991, p. 89).
A primeira edição de El rey Gallo é a de Madri,
de 1671, na qual constam uma dedicatória ao conde dos
Arcos Pedro Lasso de la Vega, duas aprovações e um
prólogo ao leitor7. A página de rosto tem por título El rey
gallo y discursos de la Hormiga, viage discursivo del
mundo, y ingratitud del hombre. Tal denominação revela,
123
em boa medida, suas fontes para um leitor do século
XVII. A escolha de animais com características
contrastivas insere a obra no marco didático das fábulas.
O Galo de Luciano é lembrado no título e o leitor culto
da época sabia que, na peça do escritor sírio, essa
personagem havia revelado para Micilo que o sapateiro
havia sido, em vidas passadas, uma formiga8.
O fantástico luciânico aparece na ideia da viagem
imaginária, enquanto o aspecto satírico, outro de seus
traços, surge na censura ao comportamento humano. Em
sua aprovação, Frei Juan de Estrada destaca o carácter
emulativo do texto de Santos: “[...] y puede muy bien
excusar ya de dar voces el gallo que escribió Luciano”.
A tópica da Fortuna, comum à diatribe cínico-estoica, é
usada pelo Galo, protagonista do texto de Luciano que
desperta o sapateiro Micilo de seu sonho de riqueza. No
texto de Santos, a Formiga é quem se utiliza desse lugar
comum para convencer o Rei de que a “[...] riqueza
verdadeira é a da discrição, não a baseada em dinheiro,
origem e presunção” (HANSEN, 1989, p. 370-1).
8
“¿Tú? Una hormiga india, de esas que desentierran oro”
(LUCIANO, 1996, I, p. 17).
124
Embora situado entre as causas do gênero humilde, esse
topos não é aceito facilmente pelo leitor por “parecer
vida triste o no alegre” (SALINAS, 1980, p. 112). Seu
grau de plausibilidade é ambíguo, com possibilidades
equilibradas de adesão ou rechaço do público9. Até o
quinto canto a estratégia do inseto consistirá em vencer a
dubiedade dessa causa (em parte torpe e em parte
honesta).
Santos emula a tradição de Luciano e de seus
adaptadores ao posicionar o Galo no lugar de quem
recebe conselhos e muda suas crenças10. Certo
predomínio da voz do Galo, por sua experiência e
poderes mágicos, restringe-se apenas ao segundo canto e
à metade do terceiro, que correspondem ao processo de
9
Na retórica clássica, as causas honestas contavam com a adesão a
priori do público; as vergonhosas pressupunham desde o princípio a
sua oposição; as ambíguas o dividiam; as obscuras eram próprias dos
assuntos obtusos e especializados; e as causas humildes se atinham
às realidades insignificantes. Cf. Salinas (1980, p. 65).
10
Na condição de rei, o Galo deve escutar o humilde que o
aconselha. Trata-se de uma paródia da literatura sapiencial, tradição
que é enriquecida pelas chreiai cínicas de Diógenes e Alexandre. Ela
está representada, por exemplo, na segunda parte de Mercurio y
Carón, de Alfonso de Valdés (1527, s.n), na bela passagem de
Polidoro, que conta como, através da advertência de um humilde
criado, tornou-se um bom rei.
125
adaptação da Formiga à condição humana e aos riscos
que decorrem da companhia do Rei. O Galo de Luciano
tem o poder de se transformar. No caso de Santos, os
poderes se ampliam: ele metamorfoseia a Formiga, além
de contar anedotas pessoais a seu interlocutor, ainda que
se revele como culpado.
Nesse sentido, trata-se de uma voz satírica
relativizada não apenas por sua conduta passada, mas
pelo próprio contraste de posturas com a sabedoria do
inseto que, durante a etapa de reconhecimento da dupla,
põe em dúvida a perspicácia e o comportamento da ave
com um discurso contundente. Por conta disso, o Rei a
toma como conselheira logo no primeiro canto: “[...]
desde luego te doy mi privanza que para ello, lo mejor
que hay en ti, es la humildad” (SANTOS, 1991, p. 91).
No terceiro canto, o Galo confessa para a Formiga que
almejava ocupar o trono: “[...] cree que antes de mucho
me has de ver rey y tú mi valido” (SANTOS, 1991, p.
107). Mas, à medida que ela demonstra que a vida
simples do estado humilde é a mais segura, sua visão
começa a mudar. Depois de o inseto descrever, no quarto
canto, o comportamento de invejosos e avarentos, o Galo
126
dirá: “Pobre quiero ser, para vivir descuidado; no quiero
haberes, no quiero riquezas” (SANTOS, 1991, p. 125)11.
Depois de recusar, a pedido da Formiga, uma petição de
um desconhecido que queria enganá-lo, o Galo reafirma
sua posição: “No quiero oro, plata, ni regalos, más
estimo dos maravedís para pasar la vida, que no
perderla con tantas inquietudes; el pobre, es el rico
verdadero, pues sin cuidados, ni desvelos acaba su vida”
(SANTOS, 1991, p. 126)12.
Porém, no quinto canto, essa adesão ao ponto de
vista da Formiga cede terreno para crenças que são
determinadas pela posição social do Galo. O narrador
descreve um cortejo real dividido entre os reis, em
11
No Galo de Luciano, a ave convence Micilo de que seu modo de
vida é o melhor: “Escucha y aprende de entrada que no he visto a
nadie vivir una existencia más feliz que la tuya” (LUCIANO, 1996,
I, p. 16). Outros emuladores de Luciano citam o tema: em El
Crotalón o sapateiro acaba por aceitar o argumento do Galo: “Y ansí
digo, de hoy más, que quiero más vivir en mi pobreza con libertad
que en los trabajos y miserias del ajeno servicio vivir por merced”
(VILLALÓN, 1973, p. 264). Também o galo afirma no anônimo
Diálogo de las transformaciones: “en toda mi vida nunca yo vi
estado de hombre más bienaventurado qu’el tuyo” (VIAN
HERRERO, 1994, p. 207).
12
Tema de número 20f da diatribe cínico-estoica: “La pauvreté n’est
pas un mal”. Tema 82, “Les riches en proie au désir de l’argent sont
des pauvres” (OLTRAMARE, 1926, p. 48, 63).
127
primeiro plano, seguido pelos vassalos: “[…] tropa de
gente de lucido adorno y de rostros severos; traían en su
seguimiento a todo el mundo, unos clamando, otros
pidiendo venganza, otros suplicando, otros
agradeciendo, otros importunando [...] llenos de
cuidados, los primeros; y los segundos, llenos de
suspiros y lágrimas” (SANTOS, 1991, p. 127). Sob
pedido da Formiga, o Galo repara na cena: “Qué mayor
grandeza, que la adoración a los reyes; el gobierno
sobre sus vasallos; el respecto que los tienen sus
inferiores; la grandeza con que viven; […] verse servido
de tantos y de tantos temido; ¡qué más grandeza que ser
rey!” (SANTOS, 1991, p. 127). A pequenina então
observa que seu companheiro vê apenas aquilo que lhe
convém: “¡Oh, qué errado vas y qué extraño vives!
Remoto estás de lo más importante. No sabes el perpetuo
sobresalto con que gozan los reyes su grandeza, el
miedo, los cuidados, las sospechas que los disgustan y
los temores que los siguen” (SANTOS, 1991, p.128).
O ambiente didático do diálogo não elide o tom
severo da Formiga ao expor as contrariedades do estado
128
superior13. O tom joco-sério da sátira menipeia depende
dessa subversão do decoro e da utilidade que torna o
superior motivo de vitupério de um humilde criado14. A
tópica do mundo ao revés tem aqui significação política:
apura o discernimento nos ofícios do Estado de sua
autoridade maior e censura seu desvirtuamento. Ao final,
o Galo volta atrás em suas pretensões: “No quiero ser
rey, y si acaso lo llego a empuñar, quiero sólo ser de
gallos, que dura un día, y luego se halla pobre como
antes y nadie le pide ni se queja dél” (SANTOS, 1991, p.
128).
Com a persuasão definitiva do Galo, o diálogo
abre espaço para a alegoria do Tempo, que divide a
interlocução com a Formiga. A atuação do inseto é
exemplar e finca a necessidade de uma arte de interpretar
as intenções para melhor deliberar sobre as conjunturas
13
O tema do perigo do “grande estado” está no Galo de Luciano
(1996, I, p. 25-26) e no capítulo oitavo, sobre o tirano Dionísio, no
Diálogo de las transformaciones, cf. Vian Herrero (1994, p. 211-
227).
14
Em seu Arte nuevo de hacer comedias, de 1609, Lope aconselha
ao poeta que “el lacayo no trate de cosas altas”. Cf. Sánchez
Escribano (1965, p. 132).
129
do poder. O Tempo elogiará a Formiga no sexto canto,
ao dizer que sua visão é bastante aguda: “más ves que yo”
(SANTOS, 1991, p. 142). Embora a subordinação do
componente argumentativo à conversão do Galo se dê
mais enfaticamente até o quinto canto, a deliberação
sobre qual seria o estado mais seguro e feliz atravessa
todo o texto, se considerarmos que os protagonistas
decidem continuar, ao final, com a simplicidade da vida
animal aos perigos da condição humana.
130
reencarnações do Galo. As transformações resultam de
sua linhagem divina: “Nací a los veinte días hombre;
pero en lugar de pelo en la cabeza, una colorada corona
y dos alas en mis hombros. Fui creciendo y ya en buena
edad, me comunicó mi padre [Júpiter] sus
transformaciones” (SANTOS, 1991, p. 92). O Galo se
autoincrimina ao retomar as metamorfoses anteriores ao
encontro com a Formiga: “Hartas desdichas he pasado,
bien merecidas pues perdí el respeto a mi padre”
(SANTOS, 1991, p. 92). Mas essa rememoração não visa
convencer o inseto, como acontece com o sapateiro
Micilo e em outras obras que tomam o texto de Luciano
como referência. Por outro lado, a conversão da Formiga
e do Galo em seres humanos servirá de aprendizagem
para ambos.
Nos diálogos e romances de transformações, o
curso dos acontecimentos se interrompe por puro acaso,
sendo essa uma das formas de expressão da necessidade.
Em El rey Gallo, a ave é um personagem polimórfico.
Suas transformações ocorrem ora para satisfazer seus
desejos, ora por pura necessidade, ora por castigos de seu
pai, Júpiter, reprovando seus atos. Em geral, ela as utiliza
131
para evitar seu envolvimento em situações difíceis,
devido ao seu afã sexual irrefreado. Ao imitar a volúpia
do Galo, o poeta pretende, como numa obra cômica,
limpar “el ánimo de las pasiones por medio de deleite y
risa”, representando modos de vida que o leitor deve
evitar (LÓPEZ PINCIANO, 1998, p. 381). Mas o tom
ridículo das ações disparatadas se torna sério à medida
que as punições exigem da ave uma reação severa
consigo mesma. Reconhecendo seus erros, o Rei separa
o plano das cenas narradas no passado, com suas
mutações e castigos, de seus comentários pejorativos
sobre si mesmo que afetam diretamente seu mundo no
tempo da realização do diálogo, exigindo seu empenho
moral, bem como do leitor implicado nos mesmos vícios.
No primeiro canto, a ave narra como se
apaixonou por uma moça em uma mercearia: “[...] entré
dentro para descansar, y amor se apoderó de mis
fuerzas, pues las cautivó la belleza de una mujer:
perseguíla, pero en valde” (SANTOS, 1991, p. 92). Para
tocá-la, transforma-se em pilão de cozinha: “Yo que vi
tanto desprecio y que siquiera una mano no la debía,
acordándome de las transformaciones, lo puse por obra
132
transformándome en la mano del mortero, sólo a fin de
tocar las suyas: conseguílo, pero castigóme el cielo: que
intentar semejante locura, castigo merece”. Ao terceiro
dia da transformação, entra um hóspede forasteiro na
cozinha, toma o pilão para “clavar un clavo (...) y al
hinclar el clavo, me descalabró” (SANTOS, 1991, p.
92). Em seguida, outro hóspede, buscando algum objeto
para lidar com as brasas, toma o pilão que é deixado no
fogo. Para se salvar, o Galo se transforma em cão:
“descalabrado y chamuscado, me volví perro, que no
halle otro medio” (SANTOS, 1991, p. 92). Maltratado
por dois rapazes, foge para o campo e, de cão, se
transforma em asno, “por ser número copioso en el
mundo, aunque muchos no se conocen” (SANTOS,
1991, p. 92).
O apetite sexual do Rei detona uma série de
mutações ao acaso. Por fim, o Galo se converte em asno,
símbolo da bestialidade, reforçando o efeito cômico e o
intuito moralizador. Encontrado por um lavrador, o
animal é usado para carregar lenha. Mais uma vez se
refere à transformação como um castigo: “Así que llegó
a su casa, me echó una albarda a cuestas. ‘¡Qué bien
133
empleada!, – dije yo – en quien deja el ser de hombre por
un triste apetito. Sólo siento que haya en el mundo tantos
que lo merecen y no se la echan” (SANTOS, 1991, p.
93). Descarregada a madeira, o asno é capturado por
alguns cuidadores de mula que o abandonam no campo.
Recebe pauladas do lavrador que imagina que ele teria
fugido. Novamente, refere-se aos castigos: “¡Oh, infame
mundo! – ¡qué propio es de tu cosecha castigar al
inocente y perdonar al culpado! Castigos del cielo son,
más merece inobediencia” (SANTOS, 1991, p. 93). Ao
ser alimentado, o bruto causa perplexidade ao lavrador
ao responder-lhe: “¿Qué he de comer, si no hay más de
granzones?”. O camponês chama seus vizinhos para que
testemunhem o asno falante15. Nesse ínterim, ele se
transforma em galo: “No hallé cosa más a mano en qué
15
Trecho inspirado nas ficções de metamorfose: as fugas que,
embora não motivadas pelo próprio animal, acabam em captura e
castigo, a dificuldade para comer, o excesso de carga e os maus tratos
do seu senhor. Tanto em O asno de Ouro de Apuleio como no Asno
de Luciano, a condição de asno é tomada como castigo. Essa
situação se repete no anônimo Diálogo de las transformaciones, em
que a alma do Galo, após ter sido Dionísio, o tirano, e o rico Épulon,
entre outros, é conduzida ao inferno e sentenciada a viver como asno
por dez anos para pagar seus pecados. Em todas essas obras, os asnos
apenas zurram. No quarto canto de El Crotalón, o Galo também se
torna um asno depois de ser o falso eclesiástico Alejandro.
134
transformarme, según el corto tiempo, sino fue en gallo,
por causa de ver encima de una viga algunas gallinas;
di un vuelo y púseme junto a ellas” (SANTOS, 1991, p.
94). Ao anoitecer, chega à casa do lavrador um capitão
que compra as galinhas e o galo e os leva para seu navio,
embarcação que, ao naufragar, dá origem ao encontro dos
protagonistas
16
No Galo de Luciano (1996, I, p. 29-30), a pluma tem poderes
mágicos e é usada para transportar o Galo e Micilo até a casa dos
135
aflige: “Si me hubiera contentado con mi estado, sin
desear más y reparar que nací para hormiga, hallárame
ahora contenta” (SANTOS, 1991, p. 99). Aqui o inseto
reproduz a moral das fábulas que advertem que cada um
deve respeitar sua condição natural17. Na fábula, um
animal que pretende imitar um superior ou disfarçar-se
sempre acaba mal, como o verme que imita uma
serpente, o sapo que se infla para parecer um boi, o asno
que coloca a pele de um leão ou a gata convertida em
mulher. Nesse último caso, a conversão é mágica e a
mulher, apesar da transformação, não deixa
completamente seus instintos de animal. A moral é clara:
ninguém pode escapar à sua condição natural18.
136
Depois de experimentarem os percalços do
mundo e da forma humana, os protagonistas do colóquio
optam, ao final da caminhada, pelo retorno à forma
anterior: o inseto desejará não ser homem, “pues
siéndolo, estoy sujeto a mil fortunas y desdichas.
Hormiga quiero ser”. Desejo que será referendado pela
ave: “Tu gusto he de seguir; gallo quiero ser” (SANTOS,
1991, p. 196)19. Apesar de as metamorfoses do Galo em
outro animal se vincularem a um castigo por seu desejo
irrefreado, Santos inverte, ao final do colóquio, o feitiço
da poção de Apuleio: no madrilenho, são os animais que
ganham forma humana. A curiosidade de Lúcio será
castigada com a sua transformação em asno, a do Galo e
da Formiga, ao contrário, com os riscos inerentes à
condição de ser humano que só será redimida com o
retorno a forma inicial.
No texto do madrilenho não se faz propriamente
a defesa da vida animal, como no Grilo de Plutarco ou no
Galo de Luciano, em que a forma dos brutos pode ser
19
Como afirma o experiente Galo para Micilo: “cualquier forma de
existencia me pareció siempre más libre de cuidados que la humana,
ya que la animal está regida tan sólo por los deseos y necesidades
naturales” (LUCIANO, 1996, I, p. 27).
137
mais digna do que a humana, mas se utiliza de seu valor
paródico para rebaixar a dignidade do homem que, sem
o domínio de seu arbítrio, aproxima-se dos hábitos das
bestas20. A sátira social da bestialidade humana importa
mais do que o problema teórico sobre a inteligência
animal, que tanto preocupou Plutarco. Na dedicatória ao
leitor, Santos crava a intenção de sua obra: “todo él es
pintar la ingratitud del hombre y la fiereza de su
condición” (SANTOS, 1991, p. 86). Para tanto, aciona de
forma assistemática as tópicas do desprezo do mundo e
da miséria humana.
É no contexto da sátira menipeia que deve ser lida
a inversão do universo hierarquizado, pautado na
antropologia cristã e estoica que coloca o homem como
20
Reverbera no Galo de Luciano o agón do Grilo de Plutarco,
diálogo menipeu que se estrutura como uma sýnkrisis, ou embate
entre as virtudes animais, com lugares comuns e exemplos da
tradição (cínica, epicurista e cética) em face das qualidades
humanas. O herói Ulisses então propõe ao Grilo – personagem
metamorfoseado em porco pela feiticeira Circe – despojar-se de seu
estado bestial para recuperar a dignidade de sua primeira forma.
Mas, ao ouvir os argumentos do sábio animal, Ulisses descobre que
ele não é movido pelo amor à raça humana ou pelo senso de amizade.
Essa opção tem raiz cínica e serviu de paradigma para o anônimo
Diálogo de las transformaciones de Pitágoras e para a elaboração
do segundo canto de El Crotalón, de Cristóbal de Villalón. Cf.
Fernández Delgado (2017, p. 523) e Fontenay (1998, p. 199).
138
a mais nobre criatura da terra. Diante da calamitosa
situação do “homenzinho miserável”, os protagonistas
fogem dele “como del más fiero animal” (SANTOS,
1991, p. 115). Experiente em ambos os estados, como o
porco plutarquista, o Galo opta por “ser buena bestia que
mal hombre” (SANTOS, 1991, p. 93). Este tom menipeu
afasta o autor da perspectiva dos defensores da
excelência do animal racional, como Petrarca, Pico della
Mirandola e Pérez de Oliva.
A afirmação da bestialidade humana implica, no
entanto, que há nos animais uma maldade congênita.
Segundo o ensinamento bíblico maior, só Adão foi feito
à imagem de Deus. Daí a necessidade de marcar distância
entre o homem e os outros seres vivos21. A criatura
racional seria o único animal capaz de errar, porque tem
a nobreza do livre-arbítrio. Mas, ao pecar, ele se se
rebaixa ao plano das feras. Privadas de proteção legal, de
virtude deliberativa e de alma, as bestas estariam, por
outro lado, livres de culpa e dos castigos do inferno. Ao
21
Como Santo Agostinho, Tomás de Aquino considera os animais
sem individualidade, privados de direito, porque irracionais e sem
anseio de eternidade. Cf. Fontenay (1998, p. 339).
139
ver a atuação dos demônios na “cueva del mundo”, a
Formiga enuncia: “Deseando estoy de volverme a mi
primera forma, para que no tengan estos demonios qué
hacer conmigo” (SANTOS, 1991, p. 150).
Os motivos da miséria humana na literatura de
Santos são matizados pela excelência da razão e pelo
dom da linguagem. Mas a preferência pela vida animal
torna a questão complexa em seu Gallo. Ao preferirem a
condição bestial, os protagonistas não recusam, ao final
da aventura, a imagem de Deus, mas a semelhança com
o pecador. O autor se mantém fiel à tradição das fábulas.
Nesse gênero literário, os resultados são sempre
desastrosos para os animais que, como a Formiga, violam
a natureza de sua espécie. Em contrapartida, o aspecto
menipeu do texto enfatiza a contradição inerente à
negação da dignidade do homem. Como animais que
recusam a forma humana, a ave e o inseto escapam ao
risco de padecer o julgamento de Deus. Eles preferem
abdicar do corolário teológico da eternidade a viver as
consequências do Juízo Final. Mas, desse modo, acabam,
inevitavelmente, desconfiando da misericórdia e
providência divinas.
140
Conclusão
141
Em sua emulação dos diálogos de metamorfoses,
Santos inverte não só a relação de mestre e discípulo do
Galo de Luciano, transformando o Rei em aprendiz do
inseto, mas também inverte a noção de castigo e redenção
do Asno de Apuleio com os riscos inerentes à condição
humana. Entretanto, esta recusa da dignidade do homem
não se faz por meio de disputas argumentativas, mas pelo
fato de os protagonistas observarem em si mesmos e nos
outros a miséria humana. Seu desprezo pela forma
humana tem características ímpias ao desconfiar da
misericórdia e providências divinas e se sustenta na
divisa moral das fábulas “en su estado cada uno”. Este
lema preserva o fundamento teológico e político do
Antigo Regime ao mesmo tempo que permite o vitupério
da conduta do Rei que não age de acordo com a sua
condição de príncipe. Dessa maneira, a relação entre o
Galo e a Formiga expõe a crise do processo formativo do
cortesão no século XVII, condicionado pelos enganos da
comunicação humana em um ambiente de competição
pelo favor do Rei.
142
Referências:
143
LÓPEZ FACAL, J. & BÁDENAS DE LA PEÑA, P.
(Trad.) La vida y fábulas de Esopo. Fábulas de Babrio.
Madri: Gredos, 1985.
144
VALDÉS, Alfonso. Diálogo de Mercurio y Caron.
Dialogo en que particularmente se tratan las cosas en
Roma el año de MDXXVII… [s. i] 1527 [s. n].
145
Uma leitura da novela: Os caminhantes de
Santa Luzia, de Ricardo Ramos
146
traziam aquele úmido bafio
opressivo. (RAMOS, 1984, p. 5)
[...] ou reportagem de um
acontecimento num jornal, e
conforme a maior ou menor
eficácia do texto somos levados a
ver a cena como se esta
147
desenrolasse diante de nossos
olhos, se não toda cena, pelo
menos fragmentos ou detalhe
que emergem do indistinto.
(CALVINO, 1990, p. 99)
148
Dentre as várias imagens que chamam a atenção
em Os caminhantes de Santa Luzia, vale destacar a cena
em que Audálio assusta-se com a fisionomia de Rosinha.
O olhar da mulher e sua risada atingem Audálio, que fica
perturbado. Ele entende o encontro como um presságio:
alguma coisa ruim iria acontecer. O episódio, ao
contrário do que descreve o cenário, é mais curto, mas
não menos intenso: olhares, corpos e sons de latas de
alumínio compõem uma cena pictórica:
149
latas, fazendo figurações aluadas,
como se puxasse as cordas de um
sino e fosse rolando ladeira abaixo o
repicar de um soluço distante.
(RAMOS, 1984, p. 61)
150
‘A distância da Lua’, onde o
autor se vale de imagens oníricas
que remetem de maneira
apropriada ao tema abordado (a
imagem da Lua está associada à
ideia de noite, de sonho, de
esoterismo). Mesmo quando
lemos o livro científico mais
técnico ou o mais abstrato dos
livros de filosofia, podemos
encontrar uma frase que
inesperadamente serve de
estímulo à fantasia figurativa.
(CALVINO, 1990, p. 105)
151
tramas da política, na sua feição
mais interiorana. A primeira era
uma visionária, moça e primitiva; o
segundo um homem de ação, à
velha maneira profética. Durante
algum tempo, as duas figuras me
preocuparam, com tudo que
encerravam de beleza plástica e
dramática, de movimento
romanesco. [...] Foi então que as
duas personagens reais baralharam,
confundiram-se numa só, diferente
das que a tinham originado. Talvez
uma criatura enriquecida, talvez
uma pura mescla. O fato é que esta
resultante foi amadurecendo,
sedimentou-se e ganhou corpo e
nome. Chamou-se Luzia, e andou
comigo assim nomeada, por um
largo período, até umas férias
providenciais. E as minhas sombras
se resolveram neste livro, Os
caminhantes de santa Luzia.
(JORNAL DO BRASIL, 1959)
152
[...] observação direta do mundo
real, a transfiguração
fantasmática e onírica, o mundo
figurativo transmitido pela
cultura em seus vários níveis, e
um processo de abstração,
condensação e interiorização da
experiência sensível, de
importância decisiva tanto na
visualização quanto na
verbalização do pensamento.
(CALVINO, 1990, p. 110)
153
‘polifônico’ ou ‘carnavalesco’” (CALVINO, 1990, p.
132).
Partimos do pressuposto que o modo de
existência da linguagem é o dialogismo, pois, em cada
texto, em cada enunciado, em cada palavra, ressoam duas
vozes: a do eu e a do outro. Com base nessa concepção,
advém o interesse de Bakhtin (2010) pelo romance que
se caracteriza na consciência do dialogismo e no trabalho
sistemático, com o jogo de vozes simultâneas num
mesmo enunciado. O romance é uma espécie de energia
e consciência da realidade concreta da linguagem, que
perpassa toda a história da literatura.
Oscar Tacca (1983) dialoga com Bakhtin, na
medida em que o romance é uma linguagem por meio da
qual ressoam vozes distintas. E essa voz destaca-se no
modo de contar:
154
frases do outro imitando
eventualmente a sua voz, a sua
mímica e até os seus gestos; por
momento resume, em estilo
indireto, algumas das suas
expressões, mas a sua própria
voz, inconscientemente,
denuncia, nas inflexões, o
contágio da voz do outro.
(TACCA, 1983, p. 30)
155
discurso indireto livre: o motorista da camionete que leva
os caminhantes até Santa Luzia, o menino que espia o
banho de Luzia, o comerciante Audálio, que se preocupa
com o fato de Luzia promover a romaria num período
político, Valério e Benvindo e outras personagens. Já em
relação à Luzia, a protagonista da narrativa, não se
distingue um capítulo específico em que o narrador
mostre sua perspectiva, como o faz com as outras
personagens. Essas vozes que compõem o texto ficcional
formam o plurilinguismo e estão dispostas em vários
segmentos sociais: universos sociais em interação e
conflito.
Vale enfatizar que as múltiplas vozes presentes
em um texto literário são tratadas pelo termo
plurilinguismo, que aborda especificamente a questão
bivocal. Apesar de já termos feito várias referências
sobre o termo, cabem ainda algumas observações:
156
bivocal especial. Ela serve
simultaneamente a dois locutores
e exprime ao mesmo tempo duas
intenções diferentes: a intenção
direta das personagens que falam
e a intenção refrangida do autor.
Nesse discurso há duas vozes,
dois sentidos, duas expressões.
Ademais, essas duas vozes estão
dialogicamente correlacionadas,
como que se conhecessem uma à
outra (como se duas réplicas de
um diálogo se conhecessem e
fossem construídas sobre esse
conhecimento mútuo), como se
conversassem entre si. O
discurso bivocal sempre é
internamente dialogizado. Assim
é o discurso humorístico, irônico,
paródia, assim é o discurso
refratante do narrador, o discurso
refratante nas falas das
personagens, finalmente, assim é
o discurso do gênero intercalado:
todos são bivocais e
internamente dialogizados.
(BAKHTIN, 2010, p. 128)
157
ainda, que em todos os domínios da vida e da criação
ideológica nossa fala contém em abundância a palavra do
outro. Ouve-se, no cotidiano, a cada passo, falar do
sujeito que fala e daquilo que ele fala.
158
É necessário observar que o discurso de outrem,
incluído no contexto, sempre está submetido a notáveis
transformações de significado. Em Os caminhantes de
Santa Luzia, percebemos que a relação entre Luzia e seus
acompanhantes se estabelece por fazerem parte de um
mesmo universo social e por acreditarem em uma mesma
ideologia de vida: a fé em um Deus soberano. “O
contexto que avoluma a palavra de outrem origina um
fundo dialógico cuja influência pode ser muito grande.”
(BAKHTIN, 2010, p. 141). Sob essa visão, Bakhtin
(2010) entende relatar que um texto com:
159
Nesse sentido, podemos observar, a bivocalidade
das palavras presente na voz do narrador que fala pela
personagem: “Valério quis dizer que a gente do lugar
estava mais longe do lugar, estava mais perto da capital,
devia estar mais longe de Luzia e seu testemunho”
(RAMOS, 1984, p. 9). Para Bakhtin (2010), assimilação
da palavra do outro adquire um sentido ainda mais
profundo e mais importante no processo de formação
ideológica do homem, no sentido exato do termo.
Concernentes ao jogo de vozes presentes no texto
de Ricardo Ramos, tem-se, no plano superficial, a voz
religiosa e a política. A primeira é expressa pelos
peregrinos Luzia, Valério e Benvindo. Dentre as
personagens que contribuem para a efetivação da voz
política, podemos citar Audálio, que não faz parte
efetivamente da política, mas se dispõe a informar Luzia
do andamento da campanha eleitoral, além de Vitalino (o
olheiro), Major Bento (chefe político), Dr. Henrique
(juiz), Guedes (delegado) e Oliveira (candidato). Num
segundo olhar interpretativo mais profundo, o silêncio
revelador e o discurso silenciador, bem como a tensão
estabelecida pelo sagrado versus o profano, instauram,
160
digamos assim, vozes que atravessam as vozes do plano
superficial.
Temos a personagem João, motorista que leva os
caminhantes para Santa Luzia e que expõe a condição de
um motorista no meio social relegado à função de
transportar os outros. Pertencente a uma classe baixa, ele
evidencia tal condição. Por outro lado, Luzia o vê como
uma voz de denúncia, pois ela não fica à vontade em
compartilhar os seus projetos com o motorista: “– Por
isso eu não contei do mandado que o senhor me deu.
Fiquei triste. Mas não tem serventia gastar a palavra
divina com esse povo” (RAMOS, 1984, p. 8). Outra voz
social representada na narrativa é a de Audálio,
comerciante que evidencia os fatos simples daqueles que
vão ao seu armazém de secos e molhados:
161
teimosa. E também o porqueira
do marido. Fosse casado com ela,
ensinava, ora se, dois dias e
aprendia o bê-a-bá certo. Mas
não. Mulherona assim de
opinião, ainda por cima vistosa, e
de junto aquele pamonha! Ia lá
deixar a moça se consumindo
pela estrada furada o oco do
mundo? Não tinha talvez nem
conforme. Ficava em casa,
ficava. E ele ganhava mais do
que aquele apalermado, ali
jururu, feito um dois de paus.
Voltou ao balcão como se nada
tivesse havido. (RAMOS, 1984,
p. 19)
162
parte. O seu discurso machista sempre era levado a sério,
a cujas ordens e leis todos obedeciam. Entretanto, é a
partir do século XX que a relação de poder homem versus
mulher passa a ser descaracterizada, ou seja, a mulher
não aceita estar na posição de um ser submisso. É o que
Ricardo Ramos demonstra por meio da personagem
Luzia. A independência intelectual de Luzia, em
contrapartida à personagem masculina, tenta impor um
valor que está em defasagem.
Dentre as várias vozes presentes na narrativa, a
que mais representa a glorificação do discurso religioso
é da personagem Luzia, que tem forte influência sobre as
outras. Luzia, em sua caminhada, mais do que uma
simples romaria, busca uma forma de purificação dos
seus pecados e dos pecados daqueles que a rodeiam. Para
isso, apropria-se do discurso religioso. Segundo Bakhtin
(2010, p. 143), a palavra religiosa é autoritária e “exige
de nós o reconhecimento e a assimilação, ela se impõe a
nós independentemente do grau de sua persuasão interior
no que nos diz respeito; nós já a encontramos unida à
autoridade”. Sendo assim, mesmo o discurso religioso,
sendo autoritário, não deixa de encontrar e participar do
163
discurso de outrem numa interação viva e tensa: “Uma
pena que gente moça, forte, se metesse pela estrada,
batendo perna sem quê nem pra quê. E além do mais com
um desconchavo de história, uma ladainha de salvação e
paz e mandado de Deus [...]” (RAMOS, 1984, p. 17).
Nessa citação, o narrador expõe o pensamento de
Audálio em relação ao que ele pensa da missão de Luzia,
não acredita na salvação que Luzia tanto prega. Podemos
enfatizar que o discurso religioso é autoritário, mas
Audálio não acredita nele; portanto, estabelece um
conflito entre o que Luzia defende e o que Audálio
acredita.
Para Bakhtin (2010), o único discurso sem
interação com o outro é o de Adão mítico como a única
possibilidade de um discurso puro, sem essa mútua
orientação dialógica. Com exceção do discurso de Adão
mítico, os outros discursos jamais terão um sentido
único, mas uma pluralidade de significações tão
numerosas quanto todos os contextos possíveis.
Considerando essa orientação dialógica do discurso
defendida por Bakhtin, percebemos em Luzia um ato de
enunciação que se faz retomando a palavra de Deus; ou
164
seja, Deus fala, assim como no discurso de Moisés, pela
voz de Luzia. A enunciação de Luzia é, a um só tempo, a
singularidade do discurso de Luzia e a reintegração do
discurso divino: “– Então a gente começa a fazer o que é
preciso, a falar com o povo na voz de Deus” (RAMOS,
1984, p. 7). Nessa citação, notamos que Luzia
simplesmente anuncia sua intenção de falar em nome
Deus, fato que será realizado no percurso de sua romaria
quando relata à multidão o que Deus lhe disse: “– É
chegado o momento, meus irmãos. Quem tem ouvidos,
ouça. O senhor me mostrou o caminho e disse que eu
andasse. Disse que penando eu punisse meus pecados e
minhas ruindades, que andando eu entrasse no Bom Jesus
da Lapa” (RAMOS, 1984, p. 43). A visão de mundo da
personagem central é absorvida do meio social no qual
está inserida e, dialogicamente, por meio da voz
religiosa, buscando atingir seus objetivos, como
impregnar os outros com o seu discurso: “se a palavra de
Deus entrar num cristão, bulir com o pensamento dele,
eu nem peço que venha comigo” (RAMOS, 1984, p. 19).
Sendo assim, a intenção de Luzia é que haja uma
interação dialógica entre ela e os cristãos de Santa Luzia,
165
fenômeno próprio de todo discurso. Para Bakhtin (2010),
dialogismo e discurso são dois conceitos que estão
intrinsecamente relacionados. O discurso, para o teórico
russo, é a linguagem em ação. A teoria bakhtiniana parte
da asserção de que a realidade da linguagem é o
fenômeno social da interação verbal.
Nessa perspectiva, Valério e Benvindo estão
carregados da ideologia religiosa de Luzia, eles têm fé,
porém é com base nas decisões de Luzia que eles vão
trilhar um caminho na busca de suas espiritualidades.
Como no trecho abaixo, em que Valério, por um
momento, questiona-se dizendo:
166
Na fala de Valério há certo desconforto em ter
que fazer essas romarias. Porém, nesse processo,
observa-se o embate da voz alheia – no caso de Luzia –
que procura influenciar a consciência de Valério. A
palavra de Luzia assume uma significação importante e
inicia um conflito entre o que Valério pensa e o ele irá
fazer. Vejamos o que Bakhtin (2010) acentua nesse
processo de “luta” com a palavra do outro:
167
Como podemos notar, Valério tem a intenção de
“se libertar do domínio da palavra do outro”. Porém,
Bakhtin (2010) ressalta que o que predomina de fato é a
“objetivação da palavra do outro” (p. 147).
Outra voz social que se faz presente na narrativa
é a política que entra em conflito com a voz religiosa.
Esse embate ocorre, por exemplo, quando Audálio
explica para Luzia o perigo que ela corre por estar
fazendo romaria durante a campanha política. O mesmo
alerta diz:
168
O conflito das duas vozes está claramente
retratado nesse fragmento em que há uma disputa entre
elas. Mas qual será a dominante? A saber, tanto a voz
religiosa quanto a política são autoritárias. De certa
forma, a voz política será a dominante uma vez que Luzia
terá sua voz silenciada, pois será morta para que um dos
candidatos à eleição, coronel Mendes, seja culpado, e
Major Bento ganhe as eleições. Então, Major Bento, por
incentivo de Vitalino, planeja matar a beata como
oportunidade certa para ganhar as eleições. Vejamos
como isso foi pensado:
169
de encomenda. Meia dúzia de
homens acabava com a beata a
culpa era dos outros, não se
duvidava. E ganhava Santa Luzia
inteira, descontavam qualquer
vantagem nos distritos do
interior. Trabalho bom serviço
limpo, melhor negócio quando a
gente do coronel Mendes
pudesse abrir o bico, fora dos
seus comícios, a eleição já havia
passado. E estaria vencida, com
o horror da morte da beata
pesando no partido contrário,
afugentando os votos. Era uma
ideia boa, fácil de botar para
frente. Quem sabe? (RAMOS,
1984, p. 27)
170
entre as diferentes verdades sociais vai sendo absorvida
pelas personagens e por estas representadas nas muitas
situações sócio-ideológicas apresentadas na obra.
O drama vivido por Luzia é ambientado no
Nordeste brasileiro, mais precisamente na cidade de
Santa Luzia, na Alagoas. Luzia mostra suas chagas, ao
pagar penitência, passando em procissão em vários
espaços. Luzia é uma mulher extremamente religiosa,
essa característica e sua beleza escultural vão dialogar na
perspectiva do sagrado e do profano.
Para tanto, temos por sagrado segundo Ferreira
(2006, p. 721) “que se sagrou. /relativo às coisas divinas,
à religião; sacro, santo./ Venerável; santo”, e por profano
“estranho à religião./ contrário ao respeito devido a
coisas sagradas./não sagrado” (FERREIRA, 2006,
p.656).
Dialogaremos com Mircea Eliade, em O Sagrado
e o Profano (1992a), ao definir de acordo com a
etimologia da palavra, que o sagrado se manifesta em
oposição ao profano. Nessa perspectiva, o homem toma
consciência dele justamente por essa oposição.
Conforme o referido autor (1992a, p. 14): “o leitor não
171
tardará a dar-se conta de que o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no mundo, duas
situações existenciais assumidas pelo homem ao longo
da sua história”. Essa definição se torna perceptível em
Os Caminhantes de Santa Luzia, quando passamos a
observar a singularidade da personagem Luzia, e como
os outros personagens a consagram.
A manifestação do sagrado para Eliade (1992) só
é possível porque este se revela por hierofania: o sagrado
pode se manifestar em árvore pedra em qualquer coisa.
“Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se
outra coisa e, contudo, continua ser ele mesmo, porque
continua a participar do meio cósmico envolvente”
(ELIADE, 1992a, p.13).
A manifestação primeira do sagrado em Os
Caminhantes de Santa Luzia se constitui com a presença
da beata Luzia, casada com Valério, descrita como uma
jovem de cabelos longos, de pele morena e corpo
curvilíneo que se veste de branco. Nesse sentindo,
inferimos que os elementos que Ricardo Ramos utiliza
para construir a personagem já possibilitam uma leitura
do jogo entre o sagrado e o profano.
172
Luzia, em sua caminhada religiosa, defronta-se
com muitos entraves e obstáculos. Estes não são somente
de ordem material e física, mas também cultural e
política. A oposição a ela se torna evidente a natureza
espiritual da sua mensagem. Luzia julga, porém, que
deve pregar em Santa Luzia, não se importa com
qualquer que seja o risco que isso acarrete. Munida de
grande coragem na tentativa de cumprir sua missão,
defronta-se com uma hostilidade crescente.
O princípio da experiência religiosa de Luzia
surge a partir de duas chagas em suas pernas: duas
manchas rochas. O surgimento das chagas foi o momento
epifânico, a partir desse acontecimento que começa a sua
peregrinação. Luzia é considerada uma Santa, como
podemos observar na voz do narrador: “ Gente do sertão
gostava daquilo, dava um quarto e uma banda para ouvir
conversa de santo, caminhar atrás de iluminado. Ela até
que era bonita. Morena, grandona. (RAMOS, 1984, p.
18)
Nessa perspectiva, é interessante destacar alguns
elementos extrínsecos a narrativa. Ricardo Ramos
revelou que para criar a personagem. Luzia baseou-se em
173
duas figuras. Primeiramente em uma santa de romeiros.
E, em um beato morto em um comício, pelas tramas da
política. (Jornal do Brasil, 01 dez. 1959). Quanto ao
resultado do processo ficcional de Ricardo Ramos, está
de acordo com o que o crítico Antonio Candido defende
que:
174
ideia. (RAMOS, 1984, p. 9). Santa Luzia é conhecida
popularmente como a protetora dos olhos.
De acordo com Macca e Almeida:
175
Na cena de Os Caminhantes de Santa Luzia não
são os carrascos da história oficial. Desta vez, os
carrascos são os políticos e as pessoas influentes do local
que matam Luzia para satisfazer a interesses próprios.
Portanto, a humanidade existente no texto oficial é
invertida e, agora, temos alguém que é morta de maneira
banal. Com isso, Ricardo Ramos consegue fazer uma
crítica brutal a um sistema estabelecido em que o poder
tem mais importância que os valores pregados em
sociedade.
Os pontos em comum tanto de Luzia da narrativa
quanto a Santa Luzia da igreja católica. Suas crenças são
baseadas no cristianismo. Santa Luzia tinha uma santa de
devoção que era (santa Ágata) assim como Luzia tem
Santa Luzia como protetora. E ambas são mortas pelo
regime político de suas épocas.
Nessa perspectiva, Luzia ao chegar à Santa Luzia,
passa a representar a fragilidade das relações humanas e
o jogo de interesses que anula essas relações,
denunciando uma sociedade “coisificada”.
Eliade (1992a) define que sagrado e profano, são
dois modos de ser no mundo. Essa concepção é
176
nitidamente representada na construção da personagem
em estudo. A cena do banho destaca-se a sensualidade
latente da figura de Luzia, vista pelos olhos de um
menino que fica encantado pela visão do corpo escultural
da santa. A cena mostra um contraste com os princípios
religiosos que se quer oferecer aos que a acompanham.
Vejamos como isso acontece:
177
falavam, descobrindo,
percorrendo o corpo moreno. Ele
as acompanhava, também
encontrado, e aprendendo,
sentindo quase. O dorso, os
seios, o tufo azulado. Agora
sabia. Como das pernas, das
coxas. Apertou o arame da cerca,
numa ânsia, num espanto que
fascinava e sacudia. A cima dos
joelhos, lavadas pela água, duas
manchas se avivavam. Reparou
bem e penalizado assegurou-se
em cada coxa uma ferida eram
duas marcas iguais. E fundas,
encarnadas, nas gotas d´água
brilhando. Só agora atentava
naquele rosto, e o achava belo, e
também o encantavam os cabelos
pretos, ondulados, que escorriam
molhados pelos ombros nus. E
tudo nela ao menino semelhava
uma clara visão proibida,
latejante, em reflexos de luz
banhada. O menino guardou essa
imagem, viu-a de uma beleza
total. Ele notou apenas a maneira
de vesti-la, diferente do seu
acordo apressado e rude. Veio
depois a camisa, leve, e em
seguida o vestido branco, de
manga compridas. Abotoá-lo,
calçar-se, tudo foi rápido, como
178
rápida a impressão que teve o
menino: agora ela se parecia com
as outras mulheres, todas deviam
ser muito semelhantes, quase
iguais. (RAMOS, 1984, p.12-
13).
179
e agora esse olhar não é mais do ponto de vista de um ser
ingênuo, mas sob o olhar de alguém maduro.
180
Luzia, em sua trajetória, não muda de postura, em
relação a sua conduta religiosa. Portanto, a personagem,
não é somente o que pensa ser, mas também como os
outros a veem. Nessa perspectiva, o pensamento de
Bakhtin é bastante esclarecedor:
181
mulher. Por outro lado, segundo Eliade (1992a), o
sagrado manifesta-se no profano, veste, portanto, a
roupagem do profano para se manifestar aos homens.
Na concepção de Eliade (1992a), o homem das
sociedades modernas vive em um mundo profano, mas
mesmo assim o sagrado se manifesta de forma
disfarçada.
Luzia, na sua peregrinação, cruza todo o sertão
nordestino até a cidade de Santa Luzia. Carrega uma
cruz, pois acredita ter a missão de “falar com o povo
dessas brenhas, esquecido nessa beira de lagoa” em nome
de Deus. Pensa trazer a salvação para o povo com a
penitência de sua caminhada: “a cruz é minha, sou
obrigada a carregar” (RAMOS, 1984, p. 19). A proposta
de Luzia para finalizar sua missão é chegar a Bom Jesus
da Lapa, que considera sagrada. A cidade é indicada por
uma voz que lhe diz: “[...] veio chegando a voz e falou
dizendo, mostrando, alumiando a sua estrada. Um
destino que tinha as quatro direções, era norte e sul, ia do
levante ao poente. Veria novos céus, novas terras, e
muitas sandálias após ela entraria na cidade santa”
(RAMOS, 1984, p.37). Luzia não parte em peregrinação
182
por uma promessa que faz, mas pela sugestão de uma voz
divina com a promessa de dias melhores que ocorreria
em uma espécie de cidade prometida.
A promessa de paz, amor e vida está ligado a
chegar à cidade santa, porém, a soberania do profano
impede Luzia de dar a salvação a si e ao povo, pois é
morta e não realiza sua missão. Luzia é impedida pelos
desmandos políticos.
Portanto, percebe-se a força do profano em
macular o sagrado, o mal em detrimento do bem. As
forças políticas se sobrepõem ao sagrado e o profano
ganha evidência.
Ricardo Ramos, emprega o sagrado cristão, de
modo a questionar e discutir o estatuto do religioso no
universo humano.
Referências
183
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
184
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o
desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP,
São Paulo, n.53, p.166-182, março/maio 2002.
185
Literatura e história como instrumentos de denúncia
à cultura de violência na política brasileira no conto
“Sobre a natureza do homem”, de Bernardo
Kucinski
Introdução
186
relacionar a literatura ao contexto histórico do Brasil
(1964-1985). No segundo momento, será abordada a
análise do conto com pontuações sobre a estrutura do
gênero conto e discussões acerca da cultura da violência
praticada pelo Estado Brasileiro.
A discussão sobre o conto reflete um aspecto de
denúncia sobre a cultura de violência no Brasil
contemporâneo, uma vez que possibilita observar uma
conexão dessa narrativa para denunciar as atrocidades do
governo brasileiro contra os direitos humanos.
187
motivos que levam o escritor a narrar ficções próximas
da história política. Sabe-se que o escritor pertence a uma
família de judeus imigrantes/refugiados da Polônia, que
foram perseguidos durante a invasão Nazista e buscaram
nova expectativa de vida no Brasil. Bernardo exerceu a
profissão de jornalista e professor entre os anos de 1960
a 2000. Também, declarou-se militante político de
esquerda e contrário ao regime militar no Brasil, o qual
perdurou de 1964 a 1985. O autor sofreu duros golpes da
perseguição política do Estado Brasileiro tais como
censuras, exílio e perdas de familiares e de amigos em
prisões arbitrárias e desumanas.
A partir de breves estudos sobre a vida política de
Bernardo Kucinski observa-se que os contos são
narrados com a finalidade de interação entre o meio
social e a história dentro da perspectiva política,
representando as perseguições e violências praticadas
por regimes autoritários. Portanto, as narrativas estão
interligadas entre a história e a literatura na perspectiva
de denunciar a política de violência, a opressão e o
extermínio de grupos sociais. Compreende-se, desse
188
modo, que a ligação entre a história e a literatura está
associada à mimética ou a representação do real:
189
A literatura atua como instrumento da história e,
no caso dos contos de Kucinski apresenta uma nova
vertente da história brasileira e suas estruturas políticas
ao representar o lado grotesco e perverso da capacidade
humana de justificar políticas com finalidades de destruir
vidas e culturas.
190
Ao pensar a escrita literária como fonte de
conhecimentos históricos entende-se que a narrativa é
uma espécie de testemunho da época representada, mas
sem o compromisso com o verossímil, podendo articular
com o tempo presente, passado e futuro, sem atribuir
sentido às operações historiográficas, percebe-se o
quanto o diálogo entre história e literatura é possível e
enriquecedor.
Ao analisar o conto “Sobre a natureza do
homem”, de Bernardo Kucinski, observa-se a forte
relação entre a história e a literatura possibilitando a
compreensão e a articulação do debate proposto neste
texto. Contudo, ao examinar a estrutura do texto ficam
evidentes os conceitos de conto de atmosfera, adotados
como estilo dos escritores contemporâneos, e as críticas
ao governo militar do Brasil entre 1964-1985 e a cultura
de violência na sociedade brasileira.
191
O gênero conto acompanha a evolução dos
homens, ao olhar para o passado da humanidade e ver
que o conto sempre esteve presente no cotidiano dos
indivíduos em narrativas orais, até os tempos
contemporâneos com as escritas complexas. “O conto é
tão antigo quanto o homem. [...] pois podem muito bem
ter existido primatas ancestrais que contavam contos
feitos inteiramente de grunhidos, que são a origem da
linguagem humana [...]”. (INFANTE, 2001, p.01)
O ato do homem de “contar” suas narrativas por
oralidade ou por escrita está presente na necessidade de
transmitir os sentimentos e acontecimentos a outras
gerações, visto que o conto pode ser uns dos gêneros
literários mais presentes no cotidiano social.
Diante dessa reflexão sobre a necessidade do
homem em relatar seus atos e sentimentos, compreende-
se que o conto tem uma finalidade de interação social,
com intenções e efeitos políticos e culturais que
possibilitam produzir na sociedade sujeitos ativos.
Portanto, será a partir dessa perspectiva de ação política
que a análise e a discussão do conto proposto estão
baseadas.
192
No início da leitura do conto “Sobre a natureza
do homem”, de Kucinski, observa-se as ações das
personagens ao realizar atos comuns do cotidiano
moderno, como a ligação telefônica para a casa de uma
amiga, a lembrança dos momentos de descontração no
campus da universidade e, ao longo da narrativa, a prisão
e as angústias, medos e outros sentimentos presentes nas
personagens. Essas são características estruturais de um
conto de atmosfera, que visa a representar a manifestação
interior das personagens.
Inicialmente, compreende-se que existe uma
primeira história ou história central do conto, que no
contexto geral, narra os acontecimentos da amizade entre
Maria Imaculada e Rui de Almeida, ambos estudantes
universitários na década de 1970, os quais foram presos
e torturados pelo regime militar do Brasil, sendo
Imaculada a maior vítima da tortura: “Depois soube que
ela foi agarrada assim que desceu do ônibus e que a
torturaram incessantemente” (KUCINSKI, 2021, p.354)
Imaculada não pertencia a grupos de oposição contra o
governo e foi presa por ser colega de um membro da
organização armada e política:
193
O conto clássico (Poe, Quiroga)
narra em primeiro plano a
história 1 (o relato do jogo) e
constrói em segredo a história 2
[...]. A arte do contista consiste
em saber cifrar a história 2 nos
interstícios da história 1. Um
relato visível esconde um relato
secreto, narrado de um modo
elíptico e fragmentário. O efeito
surpresa se produz quando ao
final da história secreta aparece a
superfície. (PIGLIA, 1987, p. 89-
90)
194
Falávamos de cinema, literatura,
filosofia. A última aula era de
filosofia, e quase sempre a
conversa começava pelo tema da
aula. Lembro que naquela tarde o
papo foi sobre a natureza do ser
humano. O homem nasce bom e
se torna malvado com o tempo
ou já nasce com maus instintos?
É o homem de Hobbes ou de
Rousseau? Havia muita empatia
entre nós. Naquela tarde ela já
estava sendo observada. Eles não
sabiam quem eu era, mas nos
fotografaram conversando.
(KUCINSKI, 2021, p.354)
195
é renunciar à própria qualidade de homem e aos direitos
da humanidade.” (ROUSSEAU, 2007, p.12)
O direito à liberdade faz parte da natureza
humana, mas existem limites para praticá-lo; a exemplo
de quando a vontade de um agente estadual sobrevalece
e torna-se maior que o respeito a vida do outro, já que
existem grupos no meio social que praticam a
perseguição e a intolerância com atos de violência no
extermínio de vidas humanas.
Durante a ditadura militar, o Estado brasileiro
utiliza da política de violência e extermínio a grupos de
oposição ao governo e são estas práticas de privação da
liberdade de pensamento e expressão política, que são
denunciadas no conto através das inúmeras torturas
sofridas por Imaculada. “A violência, sendo instrumental
por natureza, é racional até o ponto de ser eficaz em
alcançar a finalidade que deve justificá-la”. (ARENDT,
2004, p.50)
196
sem limites. Depois a trancaram
numa solitária. Então, mudou a
equipe e pegavam mais leve, vez
ou outra. Mas a expectativa de
ser torturada de novo e de novo
fez mais estragos nela do que a
tortura física. A Imaculada se
apagou, ficou abúlica.
(KUCINSKI, 2021, p.355 e 356)
197
O trecho “[...] até a chegada da anistia, não valia
e o grito de a luta continua era apenas um subterfúgio de
sobrevivência” é uma crítica veemente à Lei da Anistia
de número 6.683, de 28 de agosto de 1979, que
estabeleceu o “perdão” ou a impunidade a todos que
cometeram crimes políticos e tiveram seus direitos
políticos suspensos entre os anos de 1961 a 1979.
Observa-se duras críticas à lei da Anistia, visto que
ambos os lados, agentes do estado e militantes políticos,
foram liberados de seus crimes como se nenhum
princípio dos direitos humanos tivesse sido violado,
sobretudo o direito à vida.
Por outro lado, coube à arte literária discutir as
impunidades dessa legislação, na intenção de contribuir
para a formação do pensamento político e crítico sobre a
história do Brasil, como uma maneira de apresentar à
sociedade brasileira a prática de políticas arbitrárias, que
violaram o princípio da vida e da liberdade.
Outro fato narrado no conto foi a violência sexual
sofrida por Imaculada no Hospital psiquiátrico. Após sair
da prisão, a personagem não consegue restabelecer sua
saúde mental e necessita de tratamento psiquiátrico:
198
Depois foi pior. Logo que ela
saiu da prisão, recuperou um
pouco da vivacidade, como se
tivesse acordado de um pesadelo.
Mas esses momentos eram raros
e foram se tornando cada vez
mais curtos, como se ela
estivesse regredindo. Até que um
dia ela se apagou por completo,
não se movia para nada, passava
todo o tempo dentro do quarto,
em desalinho. Tiveram que
alimentá-la à força. Mas ela
urinava e defecava na própria
roupa. E por duas vezes entrou
em convulsão. Decidiram
interná-la para tratamento.
Estava sofrendo de um
transtorno psíquico muito severo
e perigoso, disse o médico.
Levaram Imaculada para aquele
hospital psiquiátrico do SUS no
Jardim Botânico, um hospital
moderno, novo, não muito
grande. Achavam que ali ela teria
uma chance de se recuperar. Mas
aconteceu que Imaculada foi
violentada repetidas vezes por
dois pacientes. Eles se
revezavam. Um a agarrava e
tapava sua boca, outro a
199
estuprava. Isso durou meses. Ela
não conseguia dizer nada, ficava
em estado catatônico. Até que
engravidou. Só então
descobriram o que estava
acontecendo. Quando a criança
nasceu, um menino, ela sofreu
um novo transtorno de
personalidade, uma ruptura
mental. Ora acalentava a criança,
dava de mamar, trocava a fralda
e banhava, ora a agredia. Os pais
levaram o neto para casa e
pediram um novo diagnóstico, de
comprovação, para que a
pudessem tratar. Hoje ela se
medica com antipsicóticos, vive
com os pais, embora sem
nenhuma atividade, desligada do
mundo. A família se mudou para
uma chácara, assim ela tem mais
espaço e também não fica
exposta a vizinhos. Mas não
deixam que ela tenha acesso a
ferramentas, facas, essas coisas.
(KUCINSKI, 2021, p.356)
200
representa a continuidade da agressão e reflete sobre
outras formas de violência presentes na sociedade, como
a violência contra a mulher, vítima da cultura machista,
ainda presente no Brasil.
Portanto, ao analisar o contexto histórico da
narrativa do período da redemocratização no Brasil,
observa-se que a ação da família foi isolar Imaculada da
sociedade, estabelecendo uma forte crítica à falta de
políticas públicas para a assistência à saúde mental dos
presos políticos, que tiveram transtornos psicológicos
causados pelas torturas praticadas pelo Estado Brasileiro,
e ao abandono dos hospitais psiquiátricos públicos no
Brasil.
Outra crítica feita pelo escritor está relacionada
à impunidade de crimes sexuais a mulheres no Brasil no
contexto da narrativa, alvo de muitos debates na
atualidade e fortalecido pela lei da Maria da Penha,
11.340, de 7 de agosto de 2006, cujo objetivo é proteger
as mulheres de violências físicas, psicológicas, sexuais,
morais e patrimoniais.
A interação social do conto de Kucinski está além
de denunciar as práticas de violência entre as décadas de
201
1960 a 1980. A narrativa aponta como a violência se faz
presente no cotidiano da sociedade brasileira no contexto
da democracia e a falta de políticas públicas para
combater tal chaga social. Pode-se observar, ao final do
conto, como a violência sofrida por Imaculada afeta não
somente sua vida, mas também de sua família: “- E o
menino? - O garoto está com quatro anos, é esperto, diz
que a mãe ficou doente por causa de uns homens do mal
que a maltratavam e que quando crescer vai comprar uma
espada bem grande e matar todos eles”. (KUCINSKI,
2021, p.356)
Entende-se que a narrativa faz uma breve, porém,
importante reflexão sobre a cultura da violência na
sociedade brasileira, ao narrar a continuidade da
violência no pensamento da criança que deseja a
vingança para os homens que maltrataram a mãe;
momento do conto que leva às seguintes indagações:
Quem causou o mal a Imaculada? O Estado Brasileiro
com as torturas? que não serão punidas pelo amparo da
lei da anistia, ou os pacientes do hospital, que tinham a
prática da cultura machista de violar o corpo da mulher?
São perguntas que refletem sobre quem pratica a
202
violência no meio social, cuja resposta será dada pelos
leitores do conto, os quais levantarão suas hipóteses, uma
vez que a literatura parte das inúmeras possibilidades
universais, as quais permitem ao leitor refletir sobre a
cultura e a sociedade.
No conceito da mimese pode-se compreender o
filho de Imaculada como a personagem que representa a
sociedade brasileira, a qual, em muitos momentos, sente-
se injustiçada por causa das faltas de políticas públicas
no Brasil para solucionar os problemas sociais. A
violência não promove causas, nem a história, nem a
revolução, nem o progresso, nem a reação, mas pode
servir para dramatizar reclamações trazendo-as à atenção
do público. (ARENDT, 2004, p.50)
Contundo, observa-se que a falta de
investimentos na educação básica, o abandono da saúde
pública, a segurança pública sem investimentos e
treinamentos adequados e as comunidades periféricas
convivendo sem as infraestruturas básicas previstas pela
legislação são algumas pontuações e ações que
evidenciam a falta da presença do Estado como
intermediário na formação de uma sociedade justa,
203
igualitária e democrática. Estas falhas deixam a
sociedade à mercê da violência do crime organizado nas
comunidades mais periféricas dos centros urbanos
brasileiros.
Conclusão
Na proposta desenvolvida ao longo do artigo
buscou-se discutir as críticas as políticas ao Estado
Brasileiro a partir das análises refletidas na narrativa do
conto e a presença da cultura de violência na sociedade
brasileira, uma vez que esses são assuntos abordados na
literatura do escritor Bernardo Kucinski.
O debate entre história e literatura foi
fundamental para compreender a estrutura e a
composição do conto como atuação política, visto que o
assunto proporciona o diálogo com a sociedade e a
formação de sujeitos ativos ao pensamento político.
Contudo, há uma comunicação da arte literária
com a representação do tempo da vida e o que caracteriza
a literatura de Kucinski, conduzindo o leitor a refletir
sobre as abordagens políticas no Brasil, sobretudo no
início da década 2020, que por parte do Estado brasileiro
204
busca ressaltar a violência e o militarismo como
solucionadores dos problemas sociais. Esses debates
sobre a relação entre a história e literatura na narrativa de
ficção estabelecem os argumentos deste texto, buscando
uma reflexão teórica entre os estudos literários.
Referências
205
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: Formas
breves. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 89-94.
206
Um cosmos de doença e reflexividade: “Linda, uma
história horrível”, de Caio Fernando Abreu
207
telas, na narrativa há, por sua, vez, o desdobramento de
histórias encaixadas, as quais alargam o processo de
significação textual.
Aparentemente simples, a definição de mise en
abyme é eminentemente mais complexa. No centro desse
debate, surgem as seguintes questões: qual é, de fato, o
lugar da mise en abyme entre os jogos de representação e
mais geralmente dentro dos fenômenos reflexivos?
Ancorada nesta ideia, poderíamos acrescentar outras
igualmente intrigantes: e se, para além de suas
ocorrências óbvias e fundamentalmente insignificantes,
a mise en abyme dê origem a outras questões? Será que
podemos sempre determinar, em uma imagem ou em um
texto, onde começa e onde termina a mise en abyme?
Não se trata de responder tais perguntas
definitivamente, mas sim de mostrar que há uma
diferença nas tradições e abordagens, muitas vezes no
nível de disciplinas e campos com fronteiras muito
firmemente estabelecidas.
A hipótese formulada por este estudo constitui em
pensar o procedimento narrativo da mise en abyme
segundo um questionamento mais vasto, longe das
208
amarras tradicionais do encaixe narrativo ou da repetição
vertiginosa, com uma abordagem articulada à noção de
reflexividade.
Para tanto, percorreremos a estrutura narrativa do
conto Linda, uma história horrível, de Caio Fernando
Abreu (1948-1996), a partir dos estratagemas estilísticos
e as manobras de linguagem, a fim de uma análise em
torno dos sentidos que apontam para a presença da
reflexividade. Conforme demonstraremos, essa narrativa
transcende, na escala dos personagens, a esfera
tradicional do conceito de mise en abyme, na medida em
que viabiliza um jogo de espelhos reflexivos, ancorado
na figura feminina decrépita e na sua imagem duplicada
no cão, igualmente decrépito, e, por extensão, à figura do
filho. Detalharemos a seguir.
O olhar e o abismo
209
e dirigem-se de modo nômade e digressivo, aos espaços
profundos da subjetividade.
A temática da morte perpassa as polaridades
inexoráveis do eu e do outro, abrindo fendas que
potencializam a narrativa de Caio Fernando Abreu, de
modo a interiorizar a realidade e a abarcar a própria
linguagem como lugar de consciência perquiridora.
“Linda, uma história horrível” manifesta
sugestivamente a temática do vazio e do descompasso
humano, intensificada pela forma mascarada da AIDS,
doença que assola o personagem masculino, na casa dos
quarenta anos.
Estando de volta à cidade natal, o personagem se
mostra reticente e perturbado no contato com a figura
materna. Sua chegada imprevista nos coloca diante da
temática das partidas e chegadas, motivo frequente na
produção do autor, que acentua a escolha disfórica do
personagem quanto à procura por seus contornos e pelo
ato de morrer próximo aos seus.
Flagrado em sua fragilidade pela mãe, que nota
os cabelos ralos, a magreza evidente e as manchas na sua
pele, o personagem nos oferece pistas de estar infectado
210
pelo vírus. O reencontro expõe a preparação para a
própria morte do personagem e a “ausência de um projeto
existencial” (ZILBERMAN, 1992, p. 141), em sintonia
com a perda de identidade.
Nesse reencontro descompassado, destaca-se a
presença de Linda, o animal de estimação da mãe, cadela
que conta com quinze anos e é descrita pela dona como
“[...] uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar,
esperando a morte” (ABREU, 1988, p. 14). Sempre
ganindo e enroscando-se nas pernas dos dois
personagens, a cadela está no auge de sua decrepitude, de
forma a anunciar sua velhice e a proximidade da morte
não só de si mesma, como também da própria dona, e,
consequentemente, do próprio rapaz.
O texto caminha no território da senilidade e da
decadência, com o narrador entregando em detalhes o
ambiente decadente da casa, a fim de salientar a
decrepitude não só física e material, mas sobretudo
afetiva dos seres. A sequência nos traz desconforto e
negatividade, que chegam por meio de traços
sinestésicos, os quais acentuam a interioridade dos
personagens: “Aquele cheiro - cigarro, cebola, cachorro,
211
sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida
que parecia piedade, fadiga de ver” (ABREU, 1988, p.
21).
Na contramão da decadência da casa, a narração
torna-se gradativamente viável e produtiva aos olhos do
leitor, fazendo com que a linguagem se constitua pela
reflexividade. Como observa Jaime Ginzburg, no campo
da morte e sua estética, “destruição e constituição estão
associadas” (GINZBURG, 2011, p. 53).
A partir daí a narrativa aprofunda a reflexividade,
com a mulher espelhando-se no cão. No âmago de uma
espécie de vórtice, está a cadela Linda, centro de
gravidade de todo o conto de Caio Fernando Abreu,
misturando-se de forma intrínseca à dona, ao mesmo
tempo, num processo de impregnação recíproca com o
rapaz e o ambiente.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a mãe
e o rapaz se mantêm distantes um do outro, a cadela os
aproxima, como um ponto de intersecção entre os três
personagens. Todos estão unidos e degradados, debaixo
do mesmo teto, esperando a chegada da morte.
212
Com óculos degradados de lentes rachadas, a
mulher aperta os olhos com dificuldade para ver melhor
o filho. Esse movimento custoso é semelhante às ações
do animal, já cego, com olhos leitosos: “Olhos apertados,
como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A
cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos
fechados” (ABREU, 1988, p. 18).
Ao mesmo tempo, o olhar do rapaz é deformado
e desfocalizado, inventando visualidades e
testemunhando a realidade com o modo periférico de
observar os objetos e os acontecimentos: “Ele baixou os
olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da
sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás
dela” (ABREU, 1988, p. 17).
O cão ingressa no domínio íntimo da mãe,
misturando-se com ela: “Ela tornou a passar a mão pela
cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos,
como se as duas dormissem” (ABREU, 1988, p. 19).
Desse modo, as esferas humana e animal se
interseccionam, favorecendo uma fusão que perturba e
desafia os limites do conto. Cabe destacar, que o olhar do
213
cão desempenha um papel crucial nesse processo
confuso e imbricado.
Escoam dessa fusão os traços e escombros da
morte que se anunciam desenhando-se no cão, sinônimo
de decrepitude e de vazio, do qual o rapaz teme e ao
mesmo tempo, paradoxalmente se entrega: “- Mãe - ele
começou. A voz tremia. - Mãe, é tão difícil - repetiu. E
não disse mais nada” (ABREU, 1988, p. 19).
Inevitavelmente transformados por essa fusão, os
personagens se cruzam, se perdem e se encontram na
trilha direta da morte, buscando uma outra verdade.
Como força centrípeta e centrífuga, Linda é uma
espécie de báscula que organiza o conto, revelando que o
passado e o presente, a saúde e a doença, a animalidade
e a humanidade são faces que se cruzam e se
harmonizam. É ela quem centraliza o estigma da morte
que ronda o texto através da reflexividade. A enunciação
é articulada pelas tensões que se dão entre os três
personagens, de modo a aproximar-se e a afastar-se da
morte.
Força centrípeta porque atrai a narrativa para o
seu centro, no sentido de mimetizar a decrepitude da casa
214
e da dona, além da doença do rapaz; centrífuga, pois, ao
mesmo tempo, afasta-se do centro e faz o conto girar em
outras paragens, as quais retomam diferentes quadros,
como o passado de luxo e requinte do personagem na
cidade grande, o passeio da mãe a esta mesma cidade, as
mortes trágicas do avô e da negra Cândida, etc.
As situações do passado somadas às descrições da
casa decadente, formam um mosaico de situações que
tanto temática quanto formalmente, oferecem a
possibilidade de uma unidade reflexiva descontínua,
paradoxal e plural ao conto de Caio Fernando Abreu.
Segundo Lucien Dallenbach (2001), como figura, o
mosaico mantém uma relação específica entre
fragmentos e totalidade, cuja particularidade constitui
“uma reunião mais ou menos estável de elementos
múltiplos, variados ou mesmo incompatíveis, ou ainda
um conjunto de unidades mais ou menos combinadas,
formando uma unidade” (DALLENBACH, 2001, p. 40,
tradução nossa).
A imagem reflexiva do mosaico condiz com a
própria explicação de Caio Fernando Abreu no prefácio
215
da coletânea, quando chama atenção para as
possibilidades de “livro de contos” e “romance-móbile”:
216
Cabe ainda lembrarmos a sutil referência à obra
anterior, Morangos mofados (1982), empregada no conto
presente com concisão e propriedade. Ao observar os
detalhes da estampa da toalha de mesa da casa materna,
o personagem depara-se com o cromatismo precário da
cena: “Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia
de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio,
velhos morangos” (ABREU, 1988, p. 16).
A recorrência aos “velhos morangos” não é
gratuita e favorece o jogo reflexivo e espelhado do conto
de Caio Fernando Abreu, aproximando o texto à
coletânea Morangos mofados, fazendo coincidir o olhar
do personagem com os olhares dos leitores. Vale
lembrarmos que a primeira parte dessa obra se intitula “O
mofo” e se compõe de nove contos, os quais exprimem
frustrações e desilusões dos personagens, num tempo
estagnado e sombrio. É o que podemos encontrar em
narrativas como “Luz e sombra”, “Os sobreviventes”,
“Pela passagem de uma grande dor”, cujos títulos
remetem a essas sensações.
Com efeito, mesmo sutil, a imagem mofada
assume um papel importante tanto no nível narrativo,
217
quanto no nível extradiegético de Linda, uma história
horrível. Essa ocorrência nos aproxima do conceito da
chamada “mise en abyme do código ou metatextual”, na
qual enunciado, enunciação e código refletem-se,
evidenciando o jogo de relações e o funcionamento da
obra. De acordo com Lucien Dallenbach (1977), tal
modalidade pode efetuar-se de diversos modos no texto
literário, acentuando um debate estético em torno da
retomada de ideais artísticos, ideológicos, etc. Para
exemplificar, o teórico utiliza a obra À la recherche du
temps perdu, de Marcel Proust (1871-1922), a qual não
deixa de narrativizar de maneira mais ou menos explícita
a problemática de sua escritura, ao abordar as pinturas de
Elstir, restando uma reflexão acerca do próprio código:
218
própria arte poética do autor e
que elas aparecem como uma
figuração perfeita da operação
que domina a atividade do seu
texto, a saber ‘um tipo de
metamorfose das coisas
representadas, análoga àquela
que em poesia é chamada de
metáfora’. (PROUST apud
DALLENBACH, 1977, p. 128;
tradução nossa)
219
personagem ajoelha-se no chão da sala, estatelado e
perdido no mundo. Seus movimentos dirigem-se ao
corpo do cão, ao mesmo tempo em que recobrem o seu
próprio corpo, em sinal de espelhamento:
220
relação à observação da realidade. A percepção de um
mundo cruel e fragmentado, elimina, na parte final do
conto as fronteiras entre o real e o ideal, a doença e a
saúde, o passado e o presente, o centro e as margens.
Diz, então, o personagem: - “Linda - sussurrou. -
Linda, você é tão linda, Linda” (ABREU, 1988, p. 22). A
repetição do termo “linda” indica a experiência dos
limites da “história horrível” de um homem acometido
pela AIDS, propagando a busca da morte que se
aproxima.
Considerações finais
221
pulsante, a reflexividade assume sua força de gravidade
na cadela Linda, ponto de intersecção do conto, o qual
centraliza o jogo de espelhos e olhares que se
multiplicam nas figuras da mãe e do filho. Como vimos,
essa dinâmica ultrapassa o simples conceito mise en
abyme como simples encaixamento narrativo,
permitindo, por meio da reflexividade e sua atuação, a
transcendência do conceito e a espera da morte.
Como presença marcante, a morte percorre a
totalidade do conto, com o personagem soropositivo
vivenciando situações associadas ao campo do limite,
tais como deslocamentos, angústias, medos, reencontros
com o outro e consigo mesmo. É na articulação reflexiva
dos olhares da cadela Linda e da mãe que ele atinge o
conhecimento da morte que se aproxima, ao perceber e
mimetizar a decadência da casa e dos corpos que a
envolvem.
O fim da experiência termina com a morte. No
conto em questão experimenta-se a morte antes que ela
chegue de fato. É a entrega do personagem, ajoelhado na
sala, ao lado do cão e suas manchas, ao destino
inelutável.
222
Como presença marcante, a morte percorre a
totalidade do conto, com o personagem soropositivo
vivenciando situações associadas ao campo do limite,
tais como deslocamentos, angústias, medos, reencontros
com o outro e consigo mesmo. É na articulação reflexiva
dos olhares da cadela Linda e da mãe que ele atinge o
conhecimento da morte que se aproxima, ao perceber e
mimetizar a decadência da casa e dos corpos que a
envolvem.
Entramos no jogo engendrado pelo autor, somos
envolvidos pela imagem sedutora dos olhares e seus
matizes. Tais constatações permitem observarmos a
importância de uma obra que, ainda que seja das mais
estudadas na Literatura Brasileira, permanece com sua
força de reflexividade e espanto.
Referências
223
______. Le recit spéculaire: essai sur la mise en abyme.
Paris: Seuil, 1977.
224
AUTORES e ORGANIZADORES:
225
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte – doutoranda em
Estudos Literários no PPG-Letras / CPTL / UFMS; autora do
livro O pobre de Assis, publicado na Editora Pangeia;
f.a.l.b.duarte@gmail.com
226
dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5157682035403302
http://gpliteraturaevida.blogspot.com
https://www.even3.com.br/gplv2021/
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