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'

Jürgen Habermas
O. Futuro da Natureza Humana
A caminho de urna eugenia liberal?

I~

Tradução
KARINA )ANNIN!

Revisão da tradução
EURIDES AVANCE DE SOUZA

Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf, Alemanha, em

~
1929. Com doutorado em Marburg, foi professor de filosofia
em Heidelberg e de filosofia e sociologia em Frankfurt. Es-
creveu, entre outros livros, O discurso filos6fico da modernidade,
publicado por esta Editora.
wmfmartinsfontes
SÃO PAULO 2010

L_
Esta obra foi publicada originalmente em akmão com o titulo
DIE ZUKUNFT DER MENSCHUCHEN NATUR.AUF DEM
WEG ZU EINER UBERALEN EUGENIK? e GLAUBE UND WJSSEN
por Suhrkamp Verlag, Frankfurt.
Copyright © Suhrkamp Ver/ag, Frankfurt, 2001.
Capyright © 2004, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., SUMÁRIO
São Paulo, para a presente edição.

e edição 2004
2~ edição 2010

lhtdução
KAR!NA JANNIN/

i
Revisão da tradução
Eurides Avance de Souza
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecickl dos Santos
f Revisões g.t"áficas
Renato da Rocha Ct1r/os
Sandra Regina de Souza
Dinarre Zcrwnelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Prefácio ....................................................................... . 1
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Moderação justificada. Existem respostas pós-me-
Dados Intemadonais de Catalogação na Publicação (CIP) tafísicas para a questão sobre a "vida correta"? ..... . 3
(Câmara Brasileira do livro, SP, Brao;U) A caminho de uma eugenia liberal? A discussão em
Habennas, JUrgen, 1929-
0 futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia libe-
tomo da autocompreensão ética da espécie ........... . 23
ral? I Jllrgen Habermas; tradução KarinaJannini ; revisão da tradu- L O que significa moralização da natureza hu-
ção Eurides Avance de Souza.- 2~ ed.- São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2010.- (Biblioteca do pensamento moderno)
mana? .............................................................. . 33
Título originaJ: Die Zukunft Der Menschlichen Natur: AufDem
li. Dignidade humana vs. dignidade da vida hu-
Weg Zu Einer Liberalen Eugenik?- Glaube und Wissen mana ................................................................ . 41
Bibliografia.
ISBN 978-85-7827-263-0
III. A inserção da moral numa ética da espécie
humana ........................................................... . 53
L ~tica 2. Eugenia-Aspectos morais e éticos I. Título. li. Série.
IV. Crescimento natural e fabricação .................. . 62
10-02001 CDD-179.7
Índices para catálogo sistemático:
V. Proibição de instrumentalização, natalidade
1. Eugenia: Respeito e desrespeito pela vida e poder ser si mesmo ..................................... . 74
humana : ~rica 179.7
VI. Limites morais da eugenia .. :......................... . 84
Todos os direitos desta edição reservados à
VIL Precursores de uma auto-instrumentalização
Edüora WMF Martins Fontes Lida. da espécie? ...................................................... . 92
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Posfácio: (final de 2001/início de 2002) ................... . 103
Te/. (li) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042
e-mail: injo@wmfmartinsfontes.combr http://www.wmjmartinsfontes.combr Fé e saber ................................................................... . 135
A secularização na sociedade pós-secular.. ......... . 138

i
I

I.
r

O senso comum esclarecido pela ciência ............ . 140 PREFÁCIO


Tradução cooperativa de conteúdos religiosos .... . 145
O conflito hereditário entre filosofia e religião ... . 149
O exemplo da técnica genética ............................. . 152
fndice onomástico......................................................... 155

Por ocasião do recebimento do prêmio Dr. Margrit-


Egnér 2000, apresentei no dia 9 de setembro do mesmo
ano, na Universidade de Zurique, uma conferência, que
teve como base o texto "Moderação justificada". Parto da
distinção entre a teoria kantiana da justiça e a ética do ser
si mesmo, de Kierkegaard, e defendo a idéia de que o pen-
samento pós-metafísico deve impor a si próprio uma mo-
deração, quando se trata de tomar posições definitivas em
relação a questões substanciais sobre a vida boa ou não-
fracassada. Isso nos confere um pano de fundo que con-
trasta com uma outra questão, levantada perante a discus-
são desencadeada pela técnica genética: pode a filosofia
se permitir a mesma moderação também em questões
relativas à ética da espécie?
Sem abandonar as premissas do pensamento pós-
metafísico, o texto principal se imiscui nessa discussão.
Trata -se de uma versão redigida da conferência Christian
Wolff, que apresentei no dia 28 de junho de 2001, na Uni-
versidade de Marburgo. Até agora, a discussão sobre o tra-
tamento que se deve dar à pesquisa e à técnica genética
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
2
MODER AÇÃO JUSTIFICADA
circulou em torno da questão do status moral da vida EXISTEM RESPOSTAS PÓS-METAFÍSICAS
humana pré-pess oal sem trazer resultados. Por essa ra- PARA A QUESTÃ O SOBRE A "VIDA CORRETA''?
zão, adoto a perspectiva de um presente vindouro, a par-
tir do qual um dia possivel mente lançarem os um olhar
retrospectivo às práticas, hoje contestadas, considerando-
as como precursoras de uma eugenia liberal, regulada pela
oferta e pela procura. Com efeito, a pesquisa com embriões
e o DGPI (diagnóstico genético de pré-implantaçã_?) acir- .
ram os ânimos sobretud o porque são o exemplo "de um
perigo que se vincula à metáfora da" criação de humanos ".
Tememos, não sem razão, que surja uma densa corrente
de ações entre as gerações, pela qual ninguém poderá ser
responsabilizado, já que ela transpas sa de forma unilate-
bli No romanc~ Stiller, Max Frisch faz 0 promoto r pú-
ral e na direção vertical as redes de interação contemp o- ? que o homem faz com o tem o de sua
. colergun tar:
râneas. Em contrapartida a isto, os objetivos terapêuticos, VIda. Uma questao da qual eu mal tinha consci~ncia e!
nos quais também todas as intervenções da técnica gené- .' a
tica deveriam se pautar, impõem limites estreitos a toda
simplesm
t' . me irritava" · Frisch
0 ente . faz a pergunta no mdi-
ca Ivo. leitor reflexivo, inquietan do-se consi o m
interferência. Um terapeuta tem que considerar a segunda confere-lhe uma versão ética· "O q d evo fg esmo,
pessoa e precisa poder contar com seu consenti mento. te d . h . . ue azercom o
O "Posfácio" ao texto principal, redigido no final de fo~~~ha~ mm a VIda?" Durante muito tempo, os filóso-
2001/início de 2002, responde às primeiras objeções. To- 1 am que dispunha m de conselhos adequad os
davia, trata-se menos de uma revisão da minha intenção ~~=o~ p_eq~unta .. No entanto, hoje, após a metafísica a
aJa nao se julga capaz de dar resposta s definiti;as
original do que de seu esclarecimento.
O texto "Fé e saber" serviu de base ao discurso que ~ferguntas sobre a c?nduta de vida pessoal ou até coleti-
_.As Mzmma moralza começam com um refr- I
apresent ei no dia 14 de outubro, quando recebi o Prêmio cohco sobre a gaia ciência de NI'etzsch e - com aao me an-
da Paz dos Editores Alemães. Nele, abordo uma questão d . confiss-
que ganhou uma nova atualidade no dia 11 de setembro: e uma mcapacidade: "A ciência triste, da qual ofereçoa~
meus amigos alguns fragment os, refere-se a um cam 0
o que a "seculari zação", que perdurou nas sociedad es
pós-seculares, exige dos cidadãos de um Estado constitu- d~'tdurante muito tempo, foi considerado como o pró ~o
cional democrático, e o que exige igualme nte dos fiéis e •. osofia [... ],a doutrina da vida correta" ' EntremenPtes
.. .
a etica re d' a, Ciencia ·
gre m triste, conforme pensa Adorno:
dos não-fiéis?
JúRGEN HABERMAS
1. T. W. Adorno, Minima moralia, Frankfurt am Main 1951,p. 7'
Stamberg, 31 de dezembro de 2001.
I
DA,
MODERAÇÃO jUSTIFICA 5
HUMANA
O FUTURO DA NATUREZA
4
mo ideológico e à indclu ividual· - estilos
per mi te "reflexões" disper
sas,
de vida. Tira sua s con sõe IZaçao crescente do s
pois, qu an do mu ito , ela a~ ~Ytarhr do fracasso das ten -
tativas filosóficas de design
vida
a e "or igi nad as a par tir da
retidas na forma aforístic rsal enmnado~ ?J-Odos de
vida
como exemplares ou unive
prejudicada". io dm~nte decisiv os. A "so cie-
da de jus ta" deixa ao critér sso as aqu ilo
od as as pe
qu~ elas qu ere m "iniciar com e~!~mpo de sua s vidas".
I Ela ga ran te a tod os a me
sm a
-o 't·
1 da de pa ra de sen vo l-
i En qu an to a filosofia ain da
acr edi tav a qu e po dia se
ve r um a autocompreensa eJ ca af imed'tor ma r um a
-
co nc ep çao pe sso al da "bo a Vl.d a , 'seg un do c c1"d ad es e

I ass egu rar da tot ali dad e da


pu nh a de um a posição sup
a vida hu ma na dos indivídu
na tur eza e da his tór ia; ela
ost am ent e con
os e da s com
sol
un
ida
ida
da,
des
na
dev
dis-
qu
ia
al
se
· ,
, os proprios.
cn·1en
. d" . .
Na tur alm ent e, os pro· t os m IVldurus de vida nã o
m ind ep en de nte mr
apa

'*
~:~~o~ contextos pa rtisoclhaieddõa-s
for ma
inserir. A est rut ura do cos mo e a na tur eza hu ma na , as fa-
iam intersubjetivamente. No en ' ent ro de um a
da his tór ia sag rad a for nec ,
de complexa' um a cultur a so consegue s: afirm ar pe ran te
ses da his tór ia un ive rsa l e e ap are nte me nte
no rm as, qu as outras con ven cen do sua s !novas geraçoes, gu e tam bé m
ele me nto s im pre gn ad os de a cor ret a. "C or-
tam bé m ofereciam elucid
ação sob re a vid po de m diz er "nã o" ' das va n age ns de su , .
exe mp lar de um mo de lo dig no . b"l" o e de sua f . a semantJca qu e
reto" tin ha aq ui o sen tid o o, sej a pel a co- Vla I Iza o mu nd
~rça one~tada pa ra a ação.
a pel o indivídu Nã o po de ne m deve hav er
de im ita ção pa ra a vida, sej re- t a pro teç ao cultural da s
es-
me sm o mo do como as gra nd es pécies. De mo do sem elh
mu nid ad e política. Do dad ore s co mo o e, ndum Estado con stit uci on al
ligiões apr ese nta vam a vid
a do s seu s fun democrático, a maioria na_n
tafísica tam bé m ofe rec ia seu s
a pr? pri a forma de vida cu
~~f~-:prescr~ver às minoest ria s
cam inh o da salvação, a me en te um cam i- a me did a em ,que as
mi no ria , cer tam l't·
se dis tan cia m da cul tur a p o 1 1ca co mu m d o pa is
mo de los de vida -p ar a a bo a - com o
maioria. As do utr ina s da erência.
nh o dif ere nte da qu ele da
a po líti ca, era m um a sup ost a cultura de ref .
com o a ética e I .
vid a e da soc ied ade justa, e for ma vam um . \on for me no sun mostra o ex
em p o, am da _!lo) e a filoso-
ba se única, qu cia tot al
ain da do utr ina s co m um a ial, fia pra tic a nã o ren
da:en~e a reflexoes no rm ati-
tod o. Todavia, com a ace ler ação da tra nsf orm açã o soc vas. Todavia, na sua totali õe s
línio des ses mo de los da vid a or a ' e a se hm1ta a qu est
tam bé m os per iod os de dec sobre a justiça. Ela se esf ci-
z ma is cu rto s- ind ep en de nte -
dar o po nto de vista moral
g~e :doecJalmente pa ra elu
ética se tor na ram cad a ve ra a pól is gre - tam os pa ra Julgar r- no
qu e po dia ser pa ma s e ações sem pre ue se
t
me nte de sua orientação, val , pa ra o ind i- erata je estabelecer o qu e
é de
ga, pa ra as classes da societa
s civilis medie ra l int ere sse de cad a um
rJe ~nte bo m pa ra tod
me os.
na sci me nto urb an o ou, con for primeira vista, a teoria mo
víd uo un ive rsa l do Re ade civ il e da a e ca par ece m se dei xar
família, da soc ied ·,
gu iar pe la me sm a per gu nta 0 qu e eu devo fazer, o qu e
Hegel, pa ra a est rut ura da " N .
s faz er?
mo na rqu ia constitucional. nó s de ve mo
dee~anto, o "de ve r" recebe um
ou tro significado q~and~
s
alg ué m co mo Joh n Rawl
O lib era lis mo político de ge ao plu ral is- am os de per gu nta r, a par tir
evolução. Ele rea
ma rca o po nto final des sa
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA MODERAÇÃO JUSTIFICADA
6 7

de uma perspectiva inclusiva do "nós", pelos direitos e formas da autocompreensão existencial. Desse modo, ela
deveres que todos atribuem uns aos outros e passamos a desfaz a conexão,_ que_ é a única a garantir aos julgamen-
nos preocupar com nossa própria vida a partlr da pers- tos mora1s a motlvaçao para agir corretamente. As con-
pectiva da primeira pessoa e a questwnar qual a melhor vicções morais só condicionam efetivamente a vontade
coisa a fazer "por mim" ou "por nós" a lo~go_Prazo, ob- :ruando se encontram inseridas numa autocompreensão
servando-se 0 todo. Com efeito, tais questoes etlcas sobre etlca, que coloca a preocupação com o próprio bem -estar
a própria sorte se estabelecem no contexto de ur:"a deter- a s:rvzço do mteresse pela justiça. Teorias deontológicas
minada história de vida ou de uma forma d~ VJda espe- apos Kant amda poderiam explicar muito bem como as
cial. Elas se identificam com questões sobre a identrdade: normas morais devem ser fundamentadas e aplicadas; no
como devemos nos compreender, quem somos e quem entanto, das não são capazes de responder por que dev~­
queremos ser. Para essas perguntas não há, evidentemen- mos efetwamente ser mora1s. Tampouco podem as teorias
te, nenhuma resposta que não depen~a do respect1vo políticas responder por que os cidadãos de uma comuni-
contexto e, portanto, que seja universal e 1gualmente defi- dade democrática, na dtscussão sobre os princípios da vida
nitiva para todas as pessoas. . . . em comum, devem orientar-se pelo bem-estar comum em
Por essa razão, as teorias atums da JUStlça e da moral vez de se contentarem com um modus vivendi negociado
trilham caminhos próprios, de todo modo diferentes dos de acordo ~?mos princípios da racionalidade voltada para
da "ética", se a tomarmos no sentido clássico de urr:a fins espec1ficos (Zweckrationalitiit). As teorias da justiça,
doutrina da vida correta. Do ponto de vista moral, sentl- desatreladas da ética, só podem esperar pela "transigência"
mo-nos obrigados a abstrair daquelas imagens exem- de processos de socialização e formas políticas de vida.
plares, que nos são transmitidas nas grandes narratlvas . Ai~da mai~ inquietante é querer saber por que a éti-
metafísicas e religiosas, uma VJda bem ou ~al wced1da. ca filosofica dev:ou ? campo livre àquelas psicoterapias,
Nossa autocompreensão existencial pode ate se alu:'ent~r que, com a ehmmaçao de perturbações psíquicas, se en-
da substância dessas transmissões, mas a f!losofia nao carregam da clássica tarefa de orientar a vida sem grandes
pode mais intervir no debate desses poderes de fé, n:n- escrúpulos. O núcleo filosófico da psicanálise, por exem-
dada em seu direito próprio. Justamente nas questoes plo, distingue-se claramente em Alexander Mitscherlich,
que, para nós, são de maior relevância, a filosofia se des- que entende a doença psíquica como uma lesão a um
loca para um plano superior e passa a anahsar apenas as m~do de existência especificamente humano. Ela signifi-
propriedades formais dos processos de autocompreen- cana uma perda de liberdade causada pelo próprio doen-
são, sem adotar ela mesma uma posição a respeito dos te, p01s este apenas compensa com seus sintomas um so-
conteúdos. Isso pode ser insatisfatório, mas o que pod~ frimento produzido inconscientemente -sofrimento esse
ser alegado contra uma moderação bem fundamentada. do qual el~ escapa pela autodissimulação. O objetivo da
Certamente, a teoria moral paga um preço mwto alto tera~1a sena um autoconhecimento, que "freqüentemen-
por dividir seu trabalho com uma ética especializada nas te nao passa da transformação da doença em sofrimento,

1----
l'- --· - --- . . . ~~-;..~~-~"""""--·-"""'~-, - - - - - - - - - - - - - - ·- - - -· -
r. .
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA MODERAçAO JUSTIFICADA
8 9

'm num sofrimento que e1eva o grau do Homo sa- men tado pela questão luterana sobre o Deus mise
ricor-
Pore
. . - niquila sua hber . d d "2 dioso é certa ment e um osso duro de roer. Na discu
ptens, pms nao a a e · ssão
't de "doença" psíquica a uma cons- sobre o pens amen to especulativo de Hegel, Kierk
Deve-se o concet o egaard
- 1, . com doença soma't'tca. Mas até que, pon- .
deu à questão sobre a vida correta uma resposta
se bem
truçao ana ogtca . se ainda faltam, na área pstqutca, que pós-metafísica, poré m aind a assim profu ndam
to chega essa analogta, _ d .ulgamento preci ente
sos para religiosa e, ao mesm o tempo, teológica. No entan
parâm~tros de observaç~~v:l?eÓbviamente, é prec~so que lósofos existencialistas, comprometidos com um
to, os fi-
deternunar o est~do sau iva do "ser si mesm o metódico, reconheceram em Kierkegaard o pens
ateísmo
nao per-
uma compreensao norm~tcadores somáticos que reformula a questão ética de um mod o surp reen
ador que
falf-am. dent e-
turbado" substttua os m t do nos casos em que a men te inov ador e a respo nde de mane ira subst
Isso se torna evtdente sobr etu ue leva os pacientes ancia~e
com formalismo sufic iente - este último no sentido
opressão causada pelo sofrr'en~o,r~ reprimida, de Uln
de mo- legítimo pluralismo ideológico, que proíbe qualq
ao analista, acaba s_endo·~t~!Iuf discretamente la em questões genu inam ente éticas'. Obviamen
uer tute-
na vida
do que a perturba~~s~~~ deveria se intimidar, por diante seu confronto entre a conc epçã o" ética" e"
te, me-
exem- estéti-
normal. Por q':e a . nálise se julga capa z de fa- ca" da vida, o Kierkegaard da alternativa Entweder!
plo, com aquilo que a pstca a comp reen são intuitiva Oder
zer? Trata-se de esclarecer noss , . [On!ou] acaba fornecendo o ponto de referência filosó
ma vida fra- fico.
a r~speito das características chandtcea~a~:ç~o de
Não sem simpatia, Kierkegaard traça nas cores atra-
- Alexan- tivas do Primeiro Romantismo a imagem de uma
cassad a ou n~o. Mesm o. asstm ,
da anter iorm ente, revela as cia jocosa em seu egocentrismo, à deriva num a ironi
existên-
der Mitscherhch, men cwna a in-
. t de Kierkegaard e de seus sucess ores filosófico-exis- dole nte e presa ao prazer desejado e ao mom ento
. Com
pts as .
tencialistas, o que não e, por ac aso . esse hedo nism o, uma resoluta cond uta ética de vida,
que
exige do indivíduo que ele se concentre em si próp
rio e se
liberte da dependência em relação a um ambiente
domi-
11 nador, comp õe o contraste desejado. O indivíduo
precisa
recobrar a consciência de sua individualidade e de sua
li-
. . pond er à questão berdade. Ao se emancipar de uma reificação que
Kierkegaard foi o pnme~~~:e: fracassos da própéti- mo se impingiu, ganh a ao mesm o temp o distância
ele mes-
ca e fund amen tal sobre os ext fí . do "pod ria de si
·t pós- meta stco er ser si mesm o. Ele se recupera da dispersão anôn ima
de uma
vida co~ umac~~cf~:ó~ofos seguidores de Kierk vida num átim o reduzida a fragtnentos e confere
mesm o . Par egaard, à pró-
pria vida continuidade e transparência. Na dime
como Heidegger, Jaspers e Sa rtre ' esse prote stant e ator- nsão so-
cial, tal pessoa é capaz de assumir a responsabilida
de pe-
. . ,;,. 'h it in der Krankheit, Studien
2 A Mitscherlich,Frezhezt und Unp ez e M . 1977 p 128.
zur psy~h~somatischen Medizin 3, Frankfurt am am, 3. J. Rawls, Politischer Liberalismus, Frankfurt am Main,
' . 1998.
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
MODERAÇÃO JUSTIFICADA 11
10
te sondada da história de vida f .
los próprios atos e contrair compromissos com seus se- ele se constitui como a pe e ehvamente encontrada,
melhantes. Na dimensão temporal, a preocupação consi- é e gostaria de ser: "Tudo s~o:qu,e ele ao m~smo tempo
go mesmo cria uma consciência da historicidade de uma liberdade pertence esse . q e e estabelecido pela sua
. nc1a1mente a ele . .
existência, que se realiza nos horizontes do futuro e do nal que Isso possa parece " R ' por mais ocasw-
passado, simultaneamente entrecortados. A pessoa que tancia-se muito do existe~~ÍaÚs or certo, Kierkegaard dis-
assim se toma consciente de si mesma "tem a si própria tar: "Essa distinção não é rr:o ~e ~artre ao acrescen-
como uma tarefa, que (lhe) é imposta, mesmo que a te- pécie de resultado do s~J~~7t:~ Td]u~ ético, uma es-
1
nha escolhido conscientemente"•. bem dizer que é seu r, . · ·· · e pode muito
Kierkegaard parte implicitamente do princípio d~ que tor responsável [ ] pp lopnodredator; mas ele é o reda-
. ... e a o r em das coisas em I
o indivíduo consciente de sua existência presta continua- VlV€, r~sponsável perante Deus"s. que .e e
mente contas de sua própria vida à luz do Sermão da
Montanha. Quanto aos próprios critérios morais, que en-
, .Ki;rkegaard está convencido d
tencia etica, produzida a parti· d ef que a forma de eXJs-
!
.. r ees orçopróp · ' d
contraram uma feição secular no universalismo igualitário ser estabilizada na relação d fi 1 no, so po e
de Kant, ele não despende muitas palavras. Toda a aten- ga a deixar para trás a filoso~ e para COJ_Il Deus. Ele che-
ção se destina sobretudo à estrutura do poder ser si mes- senvolver um pensamento , a espec~l~hva e passa a de-
mo, ou seja, à forma de uma auto-reflexão ética e a uma ra alguma pós-religioso. C~~~~etafísico, mas de manei-
serve ironicamente de o, nesse
escolha de si mesmo, determinada pelo interesse infin- um argument0 ·'contexto, ·1· ele se
dável em que o projeto de vida tenha êxito. De maneira Hegel contra Kant · Enquan t o b
asearmo Ja uh 1zado 1 por
autocrítica, o indivíduo apropria-se de seu passado histó- nece o critério para a investi a ã d s a mora' que for-
rico, efetivamente encontrado e concretamente rememo- no conhecimento huma g ç o . e SI mesmo, apenas
rado, tendo em vista as possibilidades de ações futuras. tiano faltará a motí· - no, no senhdo socrático ou kan-
' vaçao para convert , .
Somente assim ele faz de si uma pessoa insubstituível e gamentos morais Ki k d _ er em prahca os 1·ul-
. · er egaar nao h
um indivíduo inconfundível. senhdo cognitivo tanto c ega a combater o
O indivíduo arrepende-se dos aspectos condenáveis da moral. Se a moral :anto 0 equí~oco intelectualista
de sua vida pregressa e decide continuar agindo do modo sujeito cognoscente p d.esse ImpulsiOnar a vontade do
-
nao se poderia e r me Jante apenas bons argumentos
ki~~~ea~~~~e ~
em que ele consegue se reconhecer novamente sem se
envergonhar. Sendo assim, ele articula a autocompreen- crítico de época estado de desolação que
são da pessoa que ele gostaria que os outros conhecessem que se refere a uma soâed ' sempre volta a apontar e
e reconhecessem nele. Por meio de uma avaliação mo- vista cristão e convencida d:~~f:~~·~r~c~daddo ponto de
ralmente escrupulosa e de uma apropriação criticamen- mas profundamente corrupt . "D. I! a e e sua moral,
a. Isso, pode-se tanto cho-

4. S. Kierkegaard, Entweder!Oder, organizado por H. Diem e W. 5. Ibid., p. 827.


Rest, Koln e Olten, 1960, p. 830.
12 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA MODERAÇÃO JUSTIFICADA 13

rar quanto rir ao se perceber que todo esse saber e essa gica7. Por isso, Kierkegaard coloca em cena um Anticli-
compreensão não exercem nenhum poder sobre a vida macus, que, embora não domine seu adversário secular
das pessoas."' com argumentos, pretende "ultrapassar Sócrates" com o
A repressão, coagulada em normalidade, ou o reco- aUXIlio de uma fenomenologia psicológica.
nhecimento cínico de um estado injusto do mundo não Com base em formas de vida sintomáticas, Kierke-
falam em favor de um déficit de conhecimento, mas de uma gaard descreve as manifestações de uma "doença mortal"
corrupção do desejo. As pessoas que melhor poderiam sa- salutar- as feições de um forçoso desespero inicialmen-
bê-lo, não querem compreender. Por essa razão, Kierke- te reprimido, que depois ultrapassa o limiar da consciên-
gaard não fala de culpa, mas de pecado. Tão logo, porérrí; cia e finalmente impõe o retorno da consciência centrada
interpretamos a culpa como pecado, sabemos que depen- no eu. Essas feições do desespero também são manifes-
demos da absolvição e que precisamos depositar nossa tações da falta de uma relação existencial de base, q~ é
esperança num poder absoluto, que pode intervir de ma- a única capaz de produzir um ser si mesmo autêntico.
neira retroativa no decorrer da história e restabelecer a or- Kierkegaard descreve o estado inquietante de uma pessoa
dem afetada, bem como a integridade das vítimas. So- que, embora tenha consciência da sua determinação de
mente essa promessa de salvação constitui a ligação mo- ter de ser um si mesmo, refugia -se nas alternativas "do
tivadora entre uma moral incondicionalmente exigente e desespero de não querer ser esse si mesmo ou, num ní-
a preocupação consigo mesmo. Uma consciência moral vel inferior, do desespero de não querer ser um si mesmo,
pós-convencional só consegue se transformar no núcleo ou, no nível mais baixo de todos, de querer ser um outro
de cristalização de uma conduta de vida consciente quan- diferente de seu si mesmo"8. Quem finalmente reconhe-
. do estiver inserida numa autocompreensão religiosa. Kier- ce que a fonte do desespero não está nas circunstâncias,
. kegaard usa o problema da motivação como um trunfo mas nos próprios movimentos de fuga, empreenderá uma
contra Sócrates e Kant para chegar a Cristo ultrapassan- busca obstinada, porém igualmente sem sucesso, para
do ambos. "querer ser si mesmo". O fracasso desesperado desse úl-
Contudo, esse Climacus - pseudônimo de Kierke- timo ato de força- do querer ser um si mesmo totalmen-
gaard, autor da obra Philosophische Brocken [Migalhas te obstinado por si mesmo - move o espírito finito para
filosóficas]- não tem nenhuma certeza de que essa men- uma transcendência de si mesmo e para um reconheci-
sagem cristã de salvação, que ele hipoteticamente consi- mento da dependência em relação a um outro, em que a
dera como um "projeto de pensamento", seja mais "ver- própria liberdade se funda.
dadeira" do que o pensamento imanente, que se move
nas fronteiras pós-metafísicas da neutralidade ideoló-
7. S. Kierkegaard, Philosophische Brocken, organizado por L. Rich-
ter, Frankfurt am Main, 1984. Cf. a conclusão "Die Moral" ["A mo-
6. S. Kierkegaard, Die Krankheit zum Tode, organizado por L. ral"], p. 101.
Richter, Frankfurt am Main, 1984, p. 85. 8. S. Kierkegaard, Die Krankheit zum Tode, p. 51.
14 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA MODERAÇÃO JUSTIFICADA 15

-Esse retorno deve marcar o ponto de transição do imaginar a diferença absoluta. Ela não pode negar-se a si
exercício, a superação da autocompreensão secularizada mesma absolutamente, pois utiliza a si mesma para esse
da razão moderna. Com efeito, Kierkegaard descreve esse fim e imagina a diferença em si mesma."11 O abismo en-
renascimento com uma fórmula que recorda os primeiros tre o saber e a fé não pode ser superado por meio do pen-
parágrafos das doutrinas científicas de Fichte, mas que, samento.
ao mesmo tempo, inverte o sentido autônomo da ação Naturalmente, para os estudantes de filosofia, esse
em seu contrário: "Na medida em que o indivíduo sere- fato causa um transtorno. Por certo, mesmo um pensador
laciona consigo mesmo e quer ser si mesmo, o si mesmo socrático, que não pode se apoiar em verdades evidentes,
se estabelece com transparência no poder que o insti• poderá seguir a fenomenologia sugestiva da obra Krank-
tuiu." 9 Com isso, o relacionamento de base torna-se visí- heit zum Tode [Doença mortal] e aceitar o fato de que o
vel e possibilita a existência do ser si mesmo enquanto intelecto finito depende de condições de possibiliçflde,
forma da vida correta. Embora a referência literal a um que escapam de seu controle. A conduta de vida etica-
"poder", em que o poder ser si mesmo se fundamenta, mente consciente não pode ser compreendida como uma
não deva ser entendida num sentido religioso, Kierke- autopermissão própria de uma visão limitada. O pensador
gaard insiste no fato de que o espírito humano só pode socrático também há de concordar com a idéia de Kierke-
alcançar a compreensão correta de sua existência finita por gaard de que a dependência em relação a um poder que
meio da consciência do pecado: o si mesmo existe real- não nos está disponível não deve ser entendida de modo
mente apenas perante Deus. Ele sobrevive aos estágios de naturalista, mas inicialmente vinculada a um relaciona-
desespero absoluto apenas sob a forma de um fiel, que, mento interpessoal. Com efeito, a obstinação de uma pes-
ao se relacionar consigo mesmo, relaciona-se também soa que se revolta e que ao final quer desesperadamen-
com um absolutamente outro, ao qual ele tudo deve'o. te ser ela mesma, volta -se, enquanto obstinação, contra
Kierkegaard enfatiza que não podemos formar ne- uma segunda pessoa. No entanto, aquilo que não nos
nhum conceito consistente de Deus - nem via eminen- está disponível e de que dependemos enquanto sujeitos
tiae, nem via negationis. Toda idealização permanece pre- capacitados para a linguagem e para a ação, temendo o
sa aos predicados básicos finitos, dos quais parte a ope- fracasso de nossa vida, não pode ser identificado com o
ração pela qual tentamos nos elevar; e, pelos mesmos "Deus no tempo", sob as premissas de um pensamento
motivos, também fracassa a tentativa do intelecto de de- pós-metafísico.
finir o outro absoluto, por meio da negação de todas as A mudança lingüística permite uma interpretação
determinações finitas: "A inteligência não é capaz de deflacionista do "totalmente outro". Enquanto seres his-
tóricos e sociais, encontramo-nos desde sempre num
mundo da vida estruturado lingüisticamente. Já nas for-
9. Ibid., p. 14.
10. M. Theunissen, Das Selbst auf dem Grund der Verzweiflung,
Meisenheim/Frankfurt am Main, 1991. lL S. Kierkegaard, Phi/osophische Brocken, p. 43.
-"""I'"
16 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
MODERAÇÃO JUSTIFICADA 17
mas de comunicação, por meio das quais nos entende mos
uns com os outros sobre os acontecimentos do mundo e III
sobre nós mesmos, deparamos com um poder transcen-
Partindo dessa visão pós-religiosa, a ética pós-me ta-
,, dentaL A língua não é uma propriedade privada. Nin-
física de Kierkegaard também permite a caracterização de
! guém dispõe exclusivamente do meio comum de com-
· uma vida não fracassada. Os enuncia dos universais so-
preensã o, o qual devemos compartilhar intersubjetiva-
bre os modos do poder ser si mesmo não são descrições
mente. Nenhum participante individual pode controlar a
estanques, mas possuem um valor normativo e força de
estrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de com-
orientação. Na medida em que essa ética do juízo se ab-
preensão e de autocompreensão. O modo como os falan-, ·:
tém não do modus existencial, mas do direcionamento de-
tes e ouvintes fazem uso de sua liberdade de comunica-
terminado de projetos de vida individuais e de form<\S de
ção para tomar posição favorável ou contrária não é uma
vida particulares, ela satisfaz as condições do plural~mo
questão de arbítrio subjetivo. Com efeito, são livres ape-
ideológico. É, porém, interessante observar que a mode-
nas graças à força vinculante das pretensões, que neces-
ração pós-metafísica esbarra nos seus limites, quando se
sitam de justificativas e são reivindicadas reciprocamen-
discutem questões relativas a uma "ética da espécie". Tão
te por tais falantes e ouvintes. No Jogos da língua, per-
logo a autocompreensão ética de sujeitos capacitados pam
sonifica-se um poder do intersubjetivo, que é anterior à
subjetividade dos falantes e a sustenta.
alinguagem e para a ação entra totalmente_ e:_n JOgo, a fi-
losofia não pode mais se furtar a tomar pos1çao a respe1to
Essa leitura fraca e procedimentalista do "outro"
mantém o sentido falível e, ao mesmo tempo, anticéptico de questões de conteúdo. .
É nessa situação que nos encontr amos hoJe. O pro-
de "incondicionalidade". O Jogos da língua escapa ao
gresso das ciências biológicas e o desenvolvi~ento das
nosso controle e, no entanto , somos nós, os sujeitos ca-
biotecnologias ampliam não apenas as pos51b1hdades de
pacitados para a linguagem e para a ação, que, por esse
ação já conhecidas, mas também possibilitam um novo
meio, nos entende mos uns com os outros. Este se torna
tipo de intervenção: O que antes era "d~,do" _como,natu-
"nossa" língua. A incondicionalidade da verdade e da li-
reza orgânica e pod1a quando mmto ser cultivado , mo-
berdade é um pressuposto necessário de nossas práticas,
ve-se atualmente no campo da intervenção orientada para
mas, além dos constitu intes da "nossa" forma de vida,
um objetivo. Na medida em que o organis~o huma~o
elas carecem de toda garantia ontológica. A autocom -
também é compreendido nesse campo de mtervençao,
preensã o "correta " e ética tampou co é "dada" explici-
a distinção fenomenológica de Helmut h Plessne r entre
tamente ou de qualquer outro modo. Ela só pode ser ad-
"ser um corpo vivo" (Leib sein) e "ter um corpo" (Korper
quirida num esforço comum. A partir dessa perspec ti-
haben) adquire uma atualidade impressionante: afronte i-
va, aquilo que nosso ser si mesmo torna possível surge
ra entre a naturez a que "somos " e a disposição orgâni-
antes como um poder transubjetivo do que como um
ca que "damos " a nós mesmo s acaba se desvanecendo.
poder absoluto.
Por conseguinte, para os sujeitos produtores, surge um
18 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
MODERAÇÃO JUSTIFICADA 19
novo-tipo de auto-referência, que alcança o nível mais
e, por conseguinte, as condições orgânicas iniciais pa_:-a
profun do do substrato orgânico. Sendo assim, depend e-
sua futura história de vida escapa vam da progra maçao
rá da autocompreensão desses sujeitos o modo como de-
e da manipulação intencional feitas por terceiros. Certa-
sejarão utilizar o alcance da nova margem de decisã o- de
mente, a pessoa em crescimento pode subme ter sua his-
maneira autônoma, segundo considerações normativas que
. tória pessoal a uma avaliação críti:_a e a uma revisão _re-
se inserem na formação democrática da vontad e, ou de
irospectiva. Nossa biografia compo e-se de uma maten a
maneir a arbitrária, em função de suas preferências sub-
da qual podem os nos "aprop riar" e pela qual podem os,
jetivas, que serão satisfeitas pelo mercado. Não se trata
no sentido de Kierkegaard, "nos responsabilizar". O que
de uma atitude de crítica cultural aos avanços louváveiS' <
hoje se coloca à disposição é algo diferente: a indisponibi-
do conhecimento científico, mas apenas de saber se a im-
plemen tação dessas conqui stas afeta a nossa auto com-
lidade de um proce~so :_ontingent~ de fecundação:. ?$n:' a
conseq üente combmaçao zmprevt?tvel de duas sequel!lc!as
preens ão como seres que agem de forma respon sável e,
diferentes de cromossomos. Todavia, no momen to em que
em caso afirmativo, de que modo isso se dá.
podem os dominá-la, essa contingência discreta revela-se
Devemos considerar a possibilidade, categorialmen-
como um pressuposto necessário para evidenciar o poder
te nova, de intervir no genoma human o como um aumen -
ser si mesmo e a nature za fundam entalm ente igualitária
to de liberdade, que precisa ser norma tivame nte regula-
das nossas relações interpe ssoais. Com efeito, um dia
mentado, ou como a autopermissão para transformações quando os adultos passarem a considerar a composição
que depend em de preferências e que não precisam de ne-
genética desejável dos seus descen dentes como um pro-
nhuma auto/imitação? Somente quando essa questão fun- duto que pode ser moldado e, para tanto, elaborarem um
damen tal for resolvida em favor da primeira alternativa é
design que lhes pareça apropriado, eles estarão exercen-
que se poderã o discutir os limites de uma eugeni a nega-
do sobre seus produtos geneticamente manipulados uma
tiva e inequivocamente voltada à eliminação de males. Eu
espécie de disposição que interfere nos fundam entos so-
gostaria de abordar aqui apenas um dos aspectos do pro-
máticos da autocompreensão espont ânea e da liberdade
blema subjacente a essa questão, a saber, o desafio da mo-
ética de uma outra pessoa e que, conforme pareceu até
derna compr eensão da liberdade. A decodificação do
agora, só poderia ser exercida sobre objetos, e não sobre
genom a human o prome te interve nções que lançam, de
pessoas. Desse modo, mais tarde os descen dentes pode-
modo surpreendente, uma luz sobre uma condição natu-
riam pedir satisfação aos prod~t?res do. seu ge:'om a e
ral de nossa autoco mpree nsão normativa, condição essa
responsabilizá -los pelas consequenctas, mdeseJaVe!s do
até agora não tematizada, mas que, nesse mome nto, re-
seu ponto de vista, desenc adeada s no início orgânico ~e
vela-se essencial.
sua históri a de vida. Essa nova estrutu ra de tmputa çao
Até hoje, o pensamento secular da modernidade euro-
resulta da confusão de limites entre pessoa s e coisas -
péia pôde, tanto quanto a crença religiosa, partir do prin-
como já ocorre hoje no caso dos pa.is de uma crianç~ de-
cípio de que a constituição genética dos recém-nascidos
ficiente, que usam de uma ação ciVIl para responsabthzar
20 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
MODERAÇÃO JUSTIFICADA 21
seus médicos pelas conseqüências materiais de um diag-
nóstico errado no pré-natal e exigem "indenização", como cionamento entre peers [iguais], seguindo o caminho re-
se a deficiência surgida contra a expectativa médica pu- troativo de uma auto-reflexão ética. Ao descontente resta-
desse caracterizar um delito passível de ação por dano ria apena s escolher entre o fatalismo e o ressentim~;'to.
material. . Será que essa situação mudaria muito se amphasse-
Com a decisão irreversível que uma pessoa toma em mos o cenário da reificação do embrião em favor de cor-
relação à constituição "natural" de outra, surge uma rela- reções auto-reificantes do adulto no pr6prio genoma? Tan-
ção interpessoal desconhecida até o presente momento. ., to num quant o noutro caso, as conseqüências mostr am
Esse novo tipo de relação fere nossa sensibilidade moral ,' que o alcance de intervenções biotécnicas evoca, como
pois forma um corpo estranho nas relações de reconhe- até agora, não apenas difíceis questões morais, mas t~m­
cimento legalmente institucionalizadas nas sociedades bém propõ e questões de outra espécie. As respostas ~n­
modernas. Na medida em que um indivíduo toma no lu- cernem à autocompreensão ética da human idade em seu
gar de outro uma decisão irreversível, interferindo pro- conjunto. A Carta dos Direitos Funda menta is da União
fundamente na constituição orgânica do segundo, a si- Européia, proclamada em Nice, já considera a circunstân-
metria da responsabilidade, em princípio existente entre cia de que a procriação e o nascimento perde m esse ele-
pessoas livres e iguais, torna- se limitada. Perante nosso mento da indisponibilidade natural, que é essencial para
destino determinado pela socialização, preservamos fun- a nossa autocompreensão normativa. O artigo 3?, que
damentalmente uma liberdade diferente da que teríamos garante o direito à integridade física e mental, conté~ "a
com a produ ção pré-na tal do nosso genoma. O jovem proibição de práticas eugênicas, sobretudo das que VIsam
em crescimento poder á um dia ele mesmo assumir a res- à seleção de pessoas", bem como "a proibição da clona-
ponsabilidade por sua história de vida e por aquilo que gem reprodutiva de seres huma nos". No entant o, se~~
ele é. Com efeito, ele pode se colocar de modo reflexivo que essas orientações axiológicas da Velha Europa Ja
perante seu processo de formação, elaborar uma auto- não são consideradas hoje - nos Estados Unido s e em
compreensão revisória e compensar, de maneira apro- outros países -talve z como caprichos atraentes, porém
fundada e retrospectiva, a responsabilidade assimétrica impróprios para sua época?
dos pais em relação à educação de seus filhos. Essa pos- Devemos nos compreender ainda como seres nor-
sibilidade de uma apropriação autocrítica da história da mativos de maneira geral, ou até como seres que esperam
própria formação não ocorre do mesmo modo em relação uns dos outros uma responsabilidade solidária e que têm
às pessoas que sofreram manipulação genética. Ao con- igual respeito uns pelos outros? Que status d~emos con-
trário, o adulto nesse caso permaneceria totalmente de- ferir à moral e ao direito para que um relaciOnamento
pende nte da decisão tomad a por um terceiro e que não social també m possa se adaptar a conceitos funcionalis-
pode ser reconsiderada, e não teria a chance de estabele- tas e desprovidos de normas? Trata-se sobretudo de al-
cer a simetria da responsabilidade, necessária para o rela- ternativas naturalistas. A isto perten cem não apena s as
propo stas reducionistas dos cientistas, mas també m as
22 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA

especulações adolescentes sobre a superior inteligência A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL?


artificial das futuras gerações de robôs. A DISCUSSÃO EM TORNO DA
Por conseguinte, a ética do poder ser si mesmo trans- ÀUTOCOMPREENS;\0 ÉTICA DA ESPÉCIE
forma -se numa dentre várias alternativas. A substância
dessa autocompreensão não consegue se afirmar por mais
tempo com argumentos formais, competindo com outras "Se os futuros pais exigem uma autodeter-
respostas. Ao contrário, hoje a indagação filosófica origi- minação de grandes proporções, então seria
na! sobre a "vida correta" parece se renovar no universo apenas justo garantir também ao futuro fi-
antropolótsfco. As novas tecnologias nos irnpingern um ' ., lho a chance de levar uma vida autônoma."
d1sc~rso pubhco sobre a correta compreensão da forma (ANDREAS KUHLMANN)
de VIda cultural enquanto tal. E os filósofos não têm mais
nen~urn bom ;notivo para abandonar esse objeto de dis-
."4
cussao dos bwlogos e dos engenheiros entusiasmados
pela ficção científica. Em 1973, conseguiu-se separar e voltar a combinar
componentes elementares de um genorna. Desde essa
recornbinação artificial de genes, a técnica genética, es-
peciahnente na medicina reprodutiva, acelerou seu desen-
volvimento, que naquele ano foram empregados nos pro-
cedimentos do diagnóstico pré-natal e, a partir de 1978,
na inseminação artificial. O método da junção de óvulos
e espermatozóides "in vitro" faz com que as células-tronco
humanas sejam acessíveis a pesquisas e experiências sobre
a genética humana fora do corpo materno. A "reprodução
medicamente assistida" já havia conduzido a práticas que
intervieram de maneira espetacular nas relações entre as
gerações e na relação tradicional de parentesco social e de
ascendência biológica. Refiro-me às "barrigas de aluguel",
aos doadores anônimos de esperma e às doações de óvu-
los, que possibilitam a gravidez após a menopausa, ou ao
uso perversamente protelado de óvulos congelados. No
entanto, somente o encontro da medicina reprodutiva e
da técnica genética conduziu ao método do diagnóstico
genético de pré-implantação (DGPI), assim corno criou
perspectivas para a produção de órgãos e intervenções
22 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA

especulações adolescentes sobre a superior inteligência A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL?


artificial das futuras gerações de robôs. A DISCUSSÃO EM TORNO DA
Por conseguinte, a ética do poder ser si mesmo trans- A.UTOCOMPREENSÃO ÉTICA DA ESPÉCIE
forma-se numa dentre várias alternativas. A substância
dessa autocompreensão não consegue se afirmar por mais
tempo com argumentos formais, competindo com outras "Se os futuros pais exigem uma autodeter-
respostas. Ao contrário, hoje a indagação filosófica origi- minação de grandes proporções, então seria
nal sobre a "vida correta" parece se renovar no universo apenas justo garantir também ao futuro fi-
antropológico. As novas tecnologias nos impingem um' < lho a chance de levar uma vida autônoma."
discurso público sobre a correta compreensão da forma (ANDREAS KUHLMANN)
de vida cultural enquanto tal. E os filósofos não têm mais
nenhum bom motivo para abandonar esse objeto de dis-
.~

cussão dos biólogos e dos engenheiros entusiasmados


pela ficção científica. Em 1973, conseguiu-se separar e voltar a combinar
componentes elementares de um genoma. Desde essa
recombinação artificial de genes, a técnica genética, es-
pecialmente na medicina reprodutiva, acelerou seu desen-
volvimento, que naquele ano foram empregados nos pro-
cedimentos do diagnóstico pré-natal e, a partir de 1978,
na inseminação artificial. O método da junção de óvulos
e espermatozóides "in vitro" faz com que as células-tronco
humanas sejam acessíveis a pesquisas e experiências sobre
a genética humana fora do corpo matemo. A "reprodução
medicamente assistida" já havia conduzido a práticas que
intervieram de maneira espetacular nas relações entre as
gerações e na relação tradicional de parentesco social e de
ascendência biológica. Refiro-me às "barrigas de aluguel",
aos doadores anônimos de esperma e às doações de óvu-
los, que possibilitam a gravidez após a menopausa, ou ao
uso perversamente protelado de óvulos congelados. No
entanto, somente o encontro da medicina reprodutiva e
da técnica genética conduziu ao método do diagnóstico
genético de pré-implantação (DGPI), assim como criou
perspectivas para a produção de órgãos e intervenções
24 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIB.ERAL? 25

para modificação genética com fins terapêuticos. Hoje, o Do contrário, não abandonariam a perspectiva de partici-
público geral dos cidadãos também se vê confrontado com pantes do discurso normativo pela de observadores. No
questões cujo peso moral ultrapassa em grande medida que concerne à conservação prolongada de óvulos arti-
o teor usual dos debates políticos. Do que se trata? ficialmente fecundados, ao uso permitido de inibidores de
O diagnóstico genético de pré-implantação torna possí- nidação (espirais que não impedem a concepção, mas a
vel submeter o embrião que se encontra num estágio de fixação do óvulo no útero) e à regra existente para a inter-
oito células a um exame genético de precaução. Inicial- rupção da gravidez, esses autores acrescentam "que, com
a introdução da fertilização artificial, deu -se um passo
mente, esse processo é colocado à disposição de pais que_
importante nessa questão e que seria irrealista acreditar
querem evitar o risco da transmissão de doenças heredF
que nossa sociedade pudesse, num contexto em que já
tárias. Caso se confirme alguma doença, o embrião ana-
foram tomadas as decisões relativas ao direito à vida c1r
lisado na proveta não é reimplantado na mãe; desse mo-
embrião, retroceder ao status quo ante". Enquanto prog-
do, ela é poupada de uma interrupção da gravidez, que,
nóstico sociológico, isso até pode ser comprovado como
do contrário, seria efetuada após o diagnóstico pré-natal. verdadeiro. Já no âmbito de uma reflexão jurídico-políti-
A pesquisa sobre células-tronco totipotentes também se move ca moralmente fundamentada, a referência à força nor-
na perspectiva médica da prevenção de doenças. Pesqui- mativa do factual apenas reforça o temor do público céti-
sas, indústrias farmacêuticas e políticas que visam tor- co de que a dinâmica sistêmica da ciência, da técnica e da
nar o mercado atraente para investidores nessas áreas des- economia produza faits accomplis [fatos consumados], que
pertam expectativas de superar em pouquíssimo tempo a não podem mais ser normativamente recuperados. A ma-
escassez de cirurgias de transplante por meio da produ- nobra não muitó convicta da DFG* desvaloriza as decla-
ção de tecidos de órgãos específicos a partir de células- rações amenizadoras, vindas de um campo de pesquisa
tronco embrionárias e, num futuro mais distante, evitar que se financia amplamente no mercado de capitais.
doenças graves, condicionadas monogeneticamente, por Como a pesquisa biogenética uniu-se ao interesse de
meio de uma intervenção de correção no genoma. Na aproveitamento dos investidores e à pressão dos governos
Alemanha, tem crescido a pressão por uma emenda da nacionais, que reivindicam ações bem -sucedidas, o desen-
lei de proteção ao embrião ainda em vigor. A exigência é volvimento biotécnico revela uma dinâmica que ameaça
no sentido de que a liberdade de pesquisa seja privile- derrubar os longos processos normativos de esclareci-
giada em relação à proteção da vida do embrião e que "a mento na esfera públical.
vida humana primária, ainda que não produzida explici-
tamente para fins de pesquisa, possa ser utilizada também
* Deutsche Forschungsgemeinschaft: comunidade alemã de pesqui-
para tais fins". Nesse sentido, a comunidade alemã de sa [N. da T.].
pesquisa invoca o objetivo elevado e a "chance realista" 1. R. Kollek, I. Schneider, "Verschwiegene Interessen", in: Süd-
de desenvolver novos processos de cura. deutsche Zeitung, de 5 de julho de 2001. Sobre os bastidores da imposi-
Certamente, os autores não confiam muito na vera- ção política da pesquisa sobre embriões, cf. Chr. Schwãgerl, "Die
cidade da justificativa que deduzem da "lógica da cura". Geister, die sie riefen", in: FAZ, de 16 de julho de 2001.
26
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 27
Par': os processos políticos de autocompre ensão, que, práticas, esse limite entre as duas é flutuante e, portanto,
com razao, prec1sam de tempo, a falta de perspectiva é
a intenção de conter as intervenções genéticas que beiram
mai~r perigo; Eles não podem se agarrar ao estado atual0
esse limite do aperfeiçoamento genético de características
da tecmca e a nece~s1dade de regulamenta ção, mas pre-
CJsan; ter co:no obJetivo o desenvolvim ento global. Um nos confronta com um desafio paradoxal: justamente nas
pro~avel cenano do desenvolvimento de médio prazo po- diillensões em que os limites são pouco definidos, preci-
dena se _ap:esentar ~~ seguinte forma: na população, na samós traçar e impor fronteiras precisas. Atualmente , esse
esfera publica da p~litica e na esfera parlamentar , impõe- argumento já serve para defender uma eugenia liberal,
s~ mJcJalmen,te a 1de1a de 3ue o recurso ao diagnóstico gé- que não reconhece um limite entre intervenções terapêu-
netJco de pre-1mplan taçao deve ser considerado por si só ticas e de aperfeiçoamento, mas deixa às preferências indi-
como moralmente admissível ou juridicamen te aceitável viduais dos integrantes do mercado a escolha dos objeti -~
se sua aplicação for limitada a poucos e bem definido~ vos relativos a intervençõe s que alteram características3. •
casos de doenças hereditárias graves que não poderiam Tal devia ser o cenário que o presidente da República
s:r suportadas pela própri~ pessoa potencialmente em ques- Federal Alemã tinha em mente ao advertir em seu discur-
tao. Postenorme nte, em VIrtude dos avanços biotécnicos so de 18 de maio de 2001: "Quem começa a fazer da vida
e dos êxitos na terapia genética, a permissão será esten- humana um instrumento e a distinguir entre o que é dig-
dJqa para mtervenções genéticas em células somáticas (ou no ou não de viver perde o freio."' Esse "argumento do
ate em lmhagens germinativa s)', a fim de prevenir es- efeito bola-de-nev e"* soa menos alarmista se pensarmos
sas doenças hereditárias e outras semelhantes . Com esse no uso retrospectivo que os lobistas da técnica genética
~egund? passo, que ~ão apenas não apresenta objeções fazem de casos precedentes, que não despertaram nenhu-
as prermssas da pnmerra decisão como é coerente com ela ma reflexão, e de práticas que se tornaram habituais sem
surge a necessidade d~ separar essa eugenia "negativa;
que nos déssemos conta (como o atual diagnóstico pré-
(como parece ser JUStificada) daquela "positiva" (inicial-
natal), a fim de, com um "tarde demais" indiferente, pôr
mente considerada injustificada). Por razões conceituais e

. . 2. Prefiro não entrar nas questões específicas sobre a responsa _ 3. N. Agar, "Liberal Eugenics", in: H. Kuhse, P. Singer (2000),
b:hctade moral ~:Ias amplas conseqüências provocadas entre as gera- p. 173: "Liberais doubt that.the noti?n ?f ?is~ase is u~ for th.e,m~ral
çoe_s, responsabilidade essa que assumiríamos com uma terapia gênica theoretic task the therapeutic/eugemc distinctlOn requrres of 1t [ Os
(ate ent~o proibida) ou simplesmente com os resultados secundários liberais duvidam de que a noção de moléstia esteja à altura da tarefa
da te~apr~ de células somáticas para possíveis alterações da linhagem moral e teórica que a distinção terapêutica/eugênica exige dela"] . .
germ:nattva. A esse respeito, cf. M. Lappé, "Ethical Issues in Mani- 4. Johannes Rau, "Der Mensch ist jetzt Mitspieler der Evolution
pulatmg the Human Germ Line", in: H. Kuhse e P. Singer (orgs) geworden" in: FAZ, de 19 de maio de 2001.
Bioethics, London (Blackwell), 2000, pp. 155-64. Na seqüência, discut~~ * Em ~lemão, Dammbruchargumente, que literalmente significa
se sem mwta especificrdade a respeito de "intervenções genéticas" efe- "argumentos da ruptura de diques". Como o sentido é de um~ si~ação
tuadas antes do nascimento. que se agrava com o passar do tempo, optou-se pela traduçao bola-
de-neve", imagem mais usual em português [N. da T.]
28 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 29
de lado considerações morais. O uso metodicamente cor-
existência e de um desenvolvimen to?"' Podemos dispor
reto do argumento significa que agimos bem ao levar em
livremente da vida humana para fins de seleção? Uma
consideração, para fazer o julgamento normativo dos de-
questão semelhante se faz quanto ao aspecto do "consu-
senvolvimentos atuais, questões que um dia poderiam ser
mo" de embriões (inclusive a partir das próprias células
confrontadas com desenvolvimen tos de técnicas genéti-
somáticas) para suprir a vaga esperança de um dia poder-
cas teoricamente possíveis (ainda que especialistas nos se produzir e enxertar tecidos transplantáveis , sem ter de
assegurem que hoje eles estão totalmente fora de alcan- enfrentar o problema de transpor as barreiras da rejeição
ce) 5. Essa máxima não é adequada para a dramatização. a células estranhas. Na medida em que a produção e a
Enquanto ponderarmos a tempo sobre os limites mài% utilização de embriões para fins de pesquisas na área mé-
dramáticos, que talvez possam ser ultrapassados depois dica se disseminam e se normalizam, ocorre uma muda'\-
de amanhã, podemos lidar de modo mais sereno com os ça na percepção cultural da vida humana pré-natal e, pôr
problemas atuais e reconhecer o quanto antes que, mui- conseguinte, uma perda da sensibilidade moral para os
tas vezes, as reações alarmistas não são fáceis de ser der- limites dos cálculos do custo-benefício. Hoje, ainda nota-
rubadas com razões morais imperativas. Por essas razões mos a obscenidade de tal práxis reificante e nos pergun-
entendo aquelas seculares, que devem contar com uma tamos se gostaríamos de viver numa sociedade que ad-
receptividade razoável numa sociedade ideologicamen te quire consideração narcísica pelas próprias preferências
pluralista. ao preço da insensibilidade em relação .aos fundamentos
À aplicação da técnica de pré-implantaçã o vincula-se normativos e naturais da vida.
a seguinte questão normativa: "É compatível com a dig- Ambos os temas, o do DGPI e o da pesquisa sobre
nidade humana ser gerado mediante ressalva e, somente células-tronco, partem da perspectiva da auto-instrumen -
após um exame genético, ser considerado digno de uma talização e da auto-otimização, que o homem está a pon-
to de acionar com os fundamentos biológicos de sua exis-
tência, dentro do mesmo contexto. A partir desse ponto,
5. Partilho da opinião de colegas que confiam na rapidez e no
bom aproveitamento biotécnico das ciências biológicas: "Science so destaca-se a combinação normativa e discreta entre a in-
often confounds the best predictions, and we should not risk finding tangibilidade da pessoa, ordenada moralmente e garantida
ourselves unprepared for the genetic engineer's equivalent of Hi- juridicamente, e a indisponibilidade do modo natural de
roshima. Better to have principies covering impossible situations than sua representação corporal.
no principies for situations that are suddenly upon us" ["Muitas Com o diagnóstico genético de pré-implantação, hoje
vezes, a ciência confunde os melhores prognósticos, e nós não pode·-
rnos correr o risco de nos encontrarmos despreparados para o que
já é dificil respeitar a fronteira entre ·a seleção de fatores
poderia ser um equivalente genético de Hiroshima. É melhor ter prin- hereditários indesejáveis e a otimização de fatores dese-
cípios que dêem conta de situações impossíveis do que não ter princí- jáveis. Quando existe a possibilidade de escolher mais de
pios para situações com as quais deparamos repentinamente"}. N.
Agar, "Liberal Eugenics", in: H. Kuhse e P. Singer (2000), pp. 171-81,
nesta citação: p. 172. 6. R. Kollek, Priiímplantatíonsdiagnostik, Tübingen e Basel (A
Francke), 2000, p. 214 ..
30 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL' 31
um único "composto multicelular" potencialmente "exce- biologia, mas do afrouxamento, que se fundamentou ao
dente", não se trata mais de uma decisão binária entre mesmo tempo na medicina e na economia, dos "grilhões
i: sim e não. O limite conceitual entre a prevenção do nas- sociomorais" do avanço biotécnico. É nessa frente que as
cimento de uma criança gravemente doente e 0 aperfei- concepções políticas de Schrõder e Rau, do FDP* e dos
çoamento do patrimônio hereditário, ou seja, de uma de- "Verdes" se embalem.
cisão eugênica, não é mais demarcado?. Isso passa a ter É claro que também não faltam especulações ferozes.
uma importância prática, tão logo se cumpra a expectati- Um punhado de intelectuais alienados tenta ler, a partir
va crescente de intervir de forma corretiva no genoma hu-, da borra de café, o futuro de um pós-humanismo que se
mano e de que as doenças condicionadas monogenetica'- · tornou naturalista, apenas com o intuito de continuar di-
mente possam ser evitadas. Com isso, o problema concei- vagando, diante de uma suposta barreira do tempo- "hi".
tual proposto pela delimitação entre prevenção e eugenia permodernidade" contra a "hipermoralidade" -, sobre o~
transforma-se numa questão de legislação política. Quan- motivos amplamente conhecidos de uma ideologia bas-
do se considera que os outsiders da medicina já estão tra- tante alemã9. Felizmente, a elite conformada em ficar sem
balhando em clones reprodutores de organismos huma- a "ilusão de igualdade" e sem o discurso sobre a justiça
nos, impõe-se a perspectiva de que em pouco tempo a não apresenta condições suficientes para exercer sua
espécie humana talvez possa controlar ela mesma sua contaminação. As fantasias nietzscheanas dos que se
evolução biológicas. "Protagonistas da evolução" ou até autopromovem, que enxergam "na luta entre os peque-
"brincar de Deus" são as metáforas para uma autotrans- nos e grandes cultiva dores do ser humano" o "conflito
formação da espécie, que parece iminente. básico de todo o futuro" e encorajam" os principais seg-
Com efeito, não é a primeira vez que as sugestões de mentos culturais" a "exercer o poder de seleção que eles
uma teoria da evolução inseridas no mundo da vida for- conquistaram de fato", satisfazem, de modo provisório,
ma:n o horizonte as~ociativo das discussões públicas. apenas o espetáculo da mídialO. Partindo de premissas
sucintas do Estado constitucional numa sociedade plura-
HoJ~, a mistu;a ~xplos1va do darwinismo com a ideologia
do hvre-comercw, que se disseminou na virada do século lista11, eu gostaria, em vez disso, de tentar contribuir para
XIX para o século XX, sob a proteção da Pax Britannica, o esclarecimento discursivo dos nossos sentimentos mo-
parece renovar-se sob a influência do neoliberalismo que rais desencontrados 12 .
se gl~bali~ou. Certamen.te, não se trata mais da superge-
nerahzaçao soc1al-darwmista de conhecimentos sobre a *Freie Demokratische Fartei: Partido Liberal Democrata [N. da T.].
9. A esse respeito, cf. o comentário esclarecedor de Thomas As-
sheuer, "Der künstliche Mensch", in: Die Zeit, de 15 de março de 2001.
7. A Kuhlmann, Politik des Lebens, Politik des Sterbens, Berlim, 10. Cf. Zeit-Dokument 2, 1999, pp. 4-15.
2001, pp. 104 s. ·
11. ). Habermas, Faktizitiit und Geltung, Frankfurt am Main, 1992;
8. James D. Watson, "Die Ethik des Genoms. Warum wir Gott id., Die Einbeziehung des Anderen, Frankfurt am Main, 1996.
nicht mehr die Zukunft des Menschen überlassen dürfen", in: FAZ, de 12. Vide como exemplo as contribuições à discussão realizada
26 de setembro de 2000.
entre filósofos em Die Zeit, n? 4 a 10, 2001.
32 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL' 33

Contudo, esse ensaio é literalmente uma tentativa de sa especialmente a questão que trata do modo como a
tomar um pouco mais transparentes intuições difíceis de neutralização biotécnica da distinção habitual entre "o
d~c1fra;. Eu mesmo estou bem longe de acreditar que tam- que cresceu naturalmente" e "o que foi fabricado", entre
bem so conseg~u chegar a meio caminho desse propósito. o subjetivo e o objetivo, muda a autocompreensão ética
No entanto, veJo que também são poucas as análises mais da -espécie que tínhamos até agora (IV) e afeta a autocom-
persuasivas 13• O fenômeno inquietante é o desvaneci- preensão de uma pessoa geneticamente programada (V).
n:e_nto d?s limites entre a natureza que somos e a dispo- Não podemos excluir o fato de que o conhecimento de
siçao or~amca q~e r~os damos. A questão sobre o signifi- uma programação eugênica do próprio patrimônio here-
cado da ~n~Isp?mbJhdade dos fundamentos genéticos d~ ditário limita a configuração autônoma da vida do indi-
nossa eXIstencia corporal para a própria conduta de vida víduo e mina as relações fundamentalmente simétricas
e sob:e nossa autocompreensão enquanto seres morais entre pessoas livres e iguais (VI). O uso de embriões ex~
compoe a perspectiva a partir da qual observo a discussão clusivamente para pesquisa* e o diagnóstico genético dê
atua} ~obre a necessidade de regulamentação da técnica pré-implantação desencadeiam fortes reações, pois são
genet1ca (!). Segundo minha concepção, os argumentos percebidos como uma exemplificação dos perigos de uma
q~e se tornaram conhecidos com o debate sobre o aborto eugenia liberal que se aproxima de nós (VII).
dao um encaminhamento inadequado à questão. O direi-
to a uma herança genética não-manipulada é um tema
I. O que significa moralização da natureza humana?
diferen~e daquele sobre a regulamentação da interrupção
d_a graVId~z (19·. A manipulação dos genes toca em ques- Os avanços espetaculares da genética molecular con-
toes relatiVas a Identidade da espécie, sendo que a auto- duzem aquilo que somos "por natureza" cada vez mais ao
comp;eensão ~o homem enquanto um ser da espécie campo das intervenções biotécnicas. Do ponto de vista
tambem compoe o contexto em que se inscrevem nossas das ciências naturais experimentais, essa tecnicização da
representações do direito e da moral (III). A mim interes- natureza humana simplesmente dá continuidade à co-
nhecida tendência de tornar progressivamente disponível
13. A inten~a troca d..e idéias com Lutz Wingert e Rainer Forst foi o ambiente natural. Sob a perspectiva do mundo da vida,
um gra~~e awa1Io. Tambem agradeço a Tilmann Habermas por seus certamente nossa atitude muda tão logo a tecnicização
comentanos detalhados. Naturalmente, cada um desses conselheiros ultrapassa o limite entre a natureza "externa" e a "in-
tem suas reservas. A minha refere-se à circunstância de eu tratar esse
t~ma sem estar familiarizado com esse campo da bioética. Sendo as-
Sim, lamento ter to~ado conhecimento da pesquisa realizada por * Verbrauchende Embryonenforschung, que literalmente quer dizer
~Il~n Buchanan, Daruel W. Brock, Norman Daniels e Daniel Wikler, e "pesquisa que consome embriões". Diferentemente do diagnóstico
mtitulada From C~ance to Cho~ce, Cambridge uP, Cambridge, Mass., genético de pré-implantação, que faz pesquisa com o embrião, visando
2000, somente ~pos a conc~w~ao do meu manuscrito. Tani.bém parti- reimplantá-lo posteriormente na mãe, Verbrauchende Embryonenjorschung
~o daApe:sp7ctiva deontologtca da crítica desses autores. Quanto às seria a utilização de embriões para pesquisa pura. Portanto, os embriões
divergenctas tgu~ente existentes, posso apenas marcá-las em pou- seriam "consumidos" por essa pesquisa, para atingir outros objetivos
cas notas de rodape, acrescentadas posteriormente. científicos não-voltados ao nascimento do ser humano. (N. da R.)
34 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 35

terna". Na Alemanha, o legislador proibiu não apenas o produtividade e de aumento do bem -estar q~~nt? a es-
DGPI e o uso de embriões exclusivamente para pesqui- perança política de maiores margens de dec1sao md!V!-
sa, mas também as questões relativas à clonagem lera- duais encontram-se umdas. Como a crescente hberdade
pêutica, à "barriga de aluguel" e à" eutanásia", permitidas de escolha incentiva a autonomia privada do indivíduo,
em outros países. Por enquanto, as intervenções técnicas a ciência e a técnica estiveram até o momento informal-
na linhagem germinativa e na clonagem de organismos mente aliadas ao princípio liberal de que todos os cida-
humanos chegam a ser mundialmente proscritas, obvia- dãos devem ter a mesma chance de moldar sua própria
I mente não apenas devido aos riscos a elas relacionados.
Com Wolfgang van den Da ele podemos falar da tentatiwf
vida de maneira autônoma.
Do ponto de vista sociológico, a aceitação social não
r de uma "moralização da natureza humana": "Aquilo que
se tornou tecnicamente disponível por meio da ciência de-
deverá diminuir no futuro, enquanto a tecnicização da na,
tureza humana puder ser fundamentada pela medicifi!l
ve voltar a ser normativamente indisponível por meio do com a expectativa de uma vida mais saudável e mais lon-
controle moraJ."14
ga. O desejo por uma conduta de vida autônoma une-se
Com os novos desenvolvimentos técnicos, surge, na
sempre aos objetivos coletivos de saúde e de prolonga-
maioria das vezes, uma nova necessidade de regulamen-
mento da vida. Por essa razão, no que concerne às tenta-
!ação. No entanto, até agora, as regras normativas sim-
tivas de uma "moralização da natureza humana", o olhar
plesmente se ajustaram às transformações sociais. As da medicina histórica e)\orta ao ceticismo: "Desde as pri-
mudanças na sociedade, desencadeadas pelas inovações meiras vacinações e operações feitas no coração e no cére-
técnicas nos campos da produção e do intercâmbio, da
bro, passando pelo transplante de órgãos e pelos ó~gãos
comunicação e dos transportes, do exército e da saúde, artificiais, até chegar à terapia genética, sempre se d!scu-
estiveram sempre à frente. A clássica teoria social ainda tiu se já não se havia alcançado o limite em que mesmo ~s
descreveu as concepções pós-tradicionais do direito e da fins terapêuticos não podiam mais justificar outras tecm-
moral como resultado daquela racionalização cultural e cizações do homem. Nenhuma dessas discussões dete-
social, que se realizou paralelamente aos avanços da ciên- ve a técnica."IS A partir dessa perspectiva empiricamente
cia e da técnica modernas. A pesquisa institucionalizada desenganadora, as intervenções legislativas surgem na
é considerada como o motor desses avanços. A autono- liberdade da pesquisa biológica e no desenvolvimento da
mia da pesquisa adquire proteção a partir da perspectiva técnica genética como tentativas vãs de se opor à tendên-
do Estado constitucional liberal. Com efeito, com o alcan- cia de liberdade que domina a modernidade social16 . Tra-
ce e a profundidade crescentes da disposição técnica sobre ta -se aqui de uma moralização da natureza humana no
a natureza, tanto a promessa econômica de progressos na

15. Ibid., p. 25. .


14. W. van den Daele, "Die Natürlichkeit des Menschen ais Kri- 16. W. van den Daele, "Die Moralisierung der menschhchen
terium und Schranke technischer Eingriffe", in: WechselWirkung, ju- Natur und die Naturbezüge in gesellschaftlichen Institutionen", in:
nho/agosto de 2000, pp. 24-31. Krit. Vj. for Gesetzgebung und Rechtswissenschaft 2 (1987), pp. 351-66.
36 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA UBERAL? 37

sentido de uma ressacralização discutível. Depois que a A destradicionalização dos mundos da vida constitui
ciência e a técnica ampliaram nossa margem de liberda- um aspecto importante da mode~nizaçã~ ~ocial; ela p~de
de ao preço de uma dessocia!ização ou de um desencanta- ser entendida como uma adaptaçao cogrutiva a condiçoes
mento da natureza externa, essa tendência incontida pare- de vida objetivas, que são incessantemente revoludor;~­
ce ser refreada com o estabelecimento de tabus artificiais, das em conseqüência da exploração dos avanços cJenh?-
ou seja, com um novo encantamento da natureza interna. cos e técnicos. Todavia, depois q\le as reservas de trad1çao
. foram quase totalmente consumidas ao longo des;e p~o­
f- A recomendação implícita é evidente: seria melhor
I reconhecer aquele resto de sentimento arcaico, que sub- cesso de civilização, as sociedades modernas lambem tem
sistiria na aversão às quimeras produzidas pela técnicá' de regenerar as energias morais que as un:m a partir de
I genética, aos seres humanos cultivados e danados e aos
embriões utilizados em experiências. Por certo, podemos
suas próprias resistências seculares, ou seja, a partir das
fontes de comunicação presentes nos mundos da VIda~
ter um quadro totalmente diferente se entendermos a que se tornaram conscientes da imanência de ~ua ~uto~
"moralização da natureza humana" no sentido da auto- construção. Sob esse ponto de VIsta,. a morahzaçao da
afirmação de uma autocompreensão ética da espécie, da "natureza interna" apresenta -se antes como um smal da
qual depende o fato de ainda continuarmos a nos com- "rigidez" dos mundos da vida quase totalmente mode~­
nizados, que perderam o apoio de garanl!as metassocJaJs
preender como únicos autores de nossa história de vida e
e não podem mais reagir a uma nova ameaça da sua con-
podermos nos reconhecer mutuamente como pessoas que
sistência sociomoral com outros impulsos de seculanza-
agem com autonomia. A tentativa de prevenir, mediante
ção e, sobretudo, com uma reelaboração moral e cogniti-
recursos jurídicos, que nos acostumemos a uma eugenia
va das tradições religiosas.
liberal, que vai se instalando lenta e discretamente, e de
A manipulação genética poderia,alterar nossa au~o­
garantir à procriação, ou seja, à fusão de seqüências de
compreensão enqu_anto seres da :speCJe de tal mane1ra,
cromossomos dos pais, um certo grau de contingência que, com o ataque as representaçoes do d1reJ~o ~ da mo-
ou naturalidade seria algo diferente da expressão de uma ral, os fundamentos normativos e incontornave1s da m-
resistência apática e antimodernista. Como garantia das tegração social poderiam ser atingidos. Tal mudança ~e
condições de preservação da autocompreensão prática da configuração na percepção dos processos de modernJZaçao
modernidade, essa tentativa seria, antes, um ato político lança uma outra luz sobre a tentativa "moralizante': de
de uma ação moral relativa a si mesma. Certamente, adaptar os avanços biotécnicos às estruturas comumca-
essa concepção combina com o quadro sociológico de tivas do mundo da vida, surgidas de modo transparente.
uma modernidade que tenha se tomado reflexiva17. Esse propósito não denota um novo encantan;ento, mas
uma transformação reflexiva de uma modermdade que,
17. U. Beck, Risikogesellschaft, Frankfurt am Main, 1986; ).
ultrapassando seus próprios limites, se revela.
Habermas, "Konzeptionen der Modeme", in: id., Die Postnationale Com isso, o tema fica limitado à necessidade de saber
Konstellation, Frankfurt am Main, 1998, pp. 195-231. se a proteção da integridade de patrimônios hereditários
r-·
I 38 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL' 39
não"manipulados pode ser justificada com a indisponi- a alteração das características, bem como a pesquisa ne-
bilidade dos fundamentos biológicos da identidade pes- cessária para tanto e destinada a terapias genéticas futuras
soal. A proteçãojurídica poderia encontrar expressão num (pesquisa essa que quase não permite uma diferenciação
"direito a uma herança genética, em que não houve in- entre a pesquisa fundamental e a aplicação médica18)
tervenção artificial". Com um tal direito, reivindicado, por constituem uma nova espécie de desafios19. Elas colocam
sua vez, pela assembléia parlamentar do conselho euro- à disposição aquela base física, "que somos por nature-
peu, a admissibilidade de uma eugenia negativa, justifi- za". Aquilo que Kant incluíra no "reino da necessidade"
cada pela medicina, não seria previamente decidida. Dado transformou-se com a visão teórico-evolucionista num
o caso, esta poderia restringir, por meio de dispositivo? "reino do acaso". A técnica genética está deslocando a
legais, o direito fundamental a um patrimônio hereditário fronteira entre essa base natural indisponível e o "reino d..a
não-manipulado, se a ponderação moral e a formação de- liberdade". A distinção entre essa "ampliação da contit't-
mocrática da vontade conduzissem a esse resultado.
gência", relativa à nat~reza ~'interna", e as ampliações
A restrição temática a intervenções que implicam semelhantes da nossa margem de opção está na circuns-
modificação genética não leva em consideração outros
tância de a primeira "modificar a estrutura geral da nos-
temas biopolíticos. Do ponto de vista liberal, as novas téc-
sa experiência moral".
nicas de reprodução, tanto quanto a substituição de ór-
gãos ou a morte medicamente assistida, apresentam -se
como um aumento da autonomia pessoal. Muitas vezes, 18. L. Honnefelder, "Die Herausforderung des Menschen durch
as objeções dos críticos não se voltam contra as premis- Genomforschung und Gentechnik", in: Forum (Info der ~undeszentrale
für gesundheitliche Aufkliirung), caderno n? 1, 2000, p. 49.
sas liberais, mas contra determinados fenômenos ligados 19. Pelas razões indicadas anteriormente, concentro-me na
à reprodução assistida, contra práticas duvidosas na cons- seguinte questão fundamental: queremos mesmo caminhar na dire-
tatação da morte e na retirada de órgãos, bem como con- ção de uma eugenia liberal, que ultrapassa objetivos rigorosamente
tra conseqüências sociais paralelas e indesejadas da orga- terapêuticos? Não entro em questões sobre o que seria u;.na imple-
mentação justa de tais procedimentos. Esses conseqüentes problemas
nização jurídica de uma eutanásia, que talvez se devesse
normativos de uma eugenia em princípio aclamada são tratados por
deixar para a avaliação profissional, regulamentada pela Buchanan et al. (2000), p. 4, do ponto de vista da teoria da justiça, ela-
ética da profissão. Além disso, há boas razões para se con- borada por Rawls: "The primary objective of this book is ... to answer
testar a utilização institucional de testes genéticos e o a single question: 'What are the most basic moral principies that would
guide public policy and individual choice concerning the use of gene-
modo como as pessoas lidam com o conhecimento ofere-
tic interventions in a just and humane society in which the powers of
cido pelo diagnóstico genético preditivo. genetic intervention are much more developed than they are today?"
Essas importantes questões bioéticas certamente es- ["O objetivo principal deste livro é ... responder a uma única questão:
tão ligadas ao aumento da acuidade do diagnóstico e ao Quais são os princípios morais mais básicos que poderiam guiar a
domínio terapêutico da natureza humana. No entanto, política pública e a escolha individual em relação ao uso de interven-
ções genéticas numa sociedade justa e humana, em que os poderes da
somente a técnica genética, que tem em vista a seleção e intervenção genética serão muito mais desenvolvidos do que hoje?"].
40 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 41
Ronald Dworkin justifica tal fato com a mudança de dermos nos considerar reciprocamente como pessoas
perspectiva que a técnica genética produz para as condi- "nascidas sob as mesmas condições". Podemos conceber
ções consideradas até o momento como inalteráveis para
o julgamento moral e a ação moral: "Faz-se uma distin-
a autotransformação genética da espécie como o caminho
para o aumento da autonomia do indivíduo- ou com isso
ção entre aquilo que a natureza criou, incluindo a evolu- estaremos minando a autocompreensão normativa de
ção, [... ] e aquilo que iniciamos no mundo com o auxílio pessoas que conduzem suas próprias vidas e consagram
desses genes. Tanto num quanto noutro caso, essa distin- o mesmo respeito umas às outras?
ção traça um limite entre o que somos e o modo como Caso a segunda alternativa esteja correta, não obte-
lidamos com essa herança sob nossa própria responsa- , ., mos diretamente um argumento moral decisivo, mas sim
bilidade. Esse limite crucial entre o acaso e a livre decisão uma orientação mediada pela ética da espécie e que rec()-
forma a espinha dorsal da nossa moral. [... ] Tememos a menda cautela e moderação. Antes de entrar nessa que1:-
perspectiva de que os homens projetem outros homens, tão, eu gostaria de esclarecer a razão pela qual o desvio é
pois essa possibilidade desloca a fronteira entre o acaso e necessário. O argumento moral (e discutível do ponto de
a decisão, que está na base de nossos critérios de valor."20 vista do direito constitucional) de que o embrião desfruta
É bastante contundente afirmar que as intervenções "desde o início" da dignidade humana e da absoluta pro-
eugênicas e para modificação genética poderiam alterar a teção à vida interrompe a discussão, da qual não podemos
estrutura geral da nossa experiência moral. Isso nos per- nos esquivar se quisermos chegar a um acordo político so-
mitiria entender que, em alguns aspectos, a técnica gené- bre essas questões fundamentais, levando em conta o que
tica irá nos confrontar com questões práticas, que se refe- é constitucionalmente exigido quanto ao pluralismo ideo-
rem a pressupostos de julgamentos e ações morais. O des- lógico da nossa sociedade.
locamento da "fronteira entre o acaso e a livre decisão"
afeta de modo geral a autocompreensão de pessoas que
agem de forma moral e se preocupam com a própria exis- 11. Dignidade humana vs. dignidade
tência. Ele nos toma conscientes das relações entre nos- da vida humana
sa autocompreensão moral e o pano de fundo da ética da
espécie. De certo modo, também depende da maneira O debate filosófico 21 em torno da admissibilidade do
como nos entendemos antropologicamente enquanto se- uso de embriões exclusivamente para pesquisa e do DGPI
res da espécie o fato de nos enxergarmos como autores
responsáveis por nossa própria história de vida e de po- 21. Não levo em conta em nosso contexto a discussão jurídica
sobre as implicações da aplicação vigente do § 218 do Código penal
alemão. A corte constitucional federal tomou a nidação como o
20. R. Dworkin, "Die falsche Angst, Gott zu spielen", in: Zeit~ momento a partir do qual o feto deve receber proteção. Os juristas
Dokumenf(1999), p. 39; cf. também "PlayingGod. Genes, Clones, and consideram discutível e eu mesmo acho duvidosa a possibilidade de
Luck", in: id., Sovereign Virtue, Cambridge, 2000, pp. 427-52. transferir essa decisão, sem mais, conforme supõem Herta Dãubler-
42 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 43

moveu-se até agora no canal da discussão sobre o abor- utilitaristas de não-objeção a respeito da liberação do uso
to. Na Alemanha, tal discussão levou à regulamentação instrumental de embriões22 •
segundo a qual a interrupção da gravidez até a 12~ sema- O uso do diagnóstico genético de pré-implantação,
na é considerada um ato ilegal, mas livre de pena. Pela que permite prevenir um eventual aborto por meio da
lei, o aborto é permitido se houver uma indicação médi- ''rejeição" de células-tronco extracorporais e genetica-
ca em casos de risco para a mãe. Como em outros países, mente defeituosas, distingue-se da interrupção da gravi-
esse tema dividiu a população em dois grupos. Enquan- dez em aspectos relevantes. Com a rejeição de uma gra-
to esse conflito determina a discussão atual, a polarização videz indesejada, o direito da mulher à autodetermina-
entre os partidários "Pro Life" e aqueles "Pro Choice", < ção colide com a necessidade de proteção do embrião.
dirige a atenção para o status moral da vida humana da- No outro caso, a proteção da vida do feto entra em con-
quele que ainda não nasceu. O lado conservador espera flito com as considerações dos pais, que, ponderancitJ a
poder impedir os temidos desenvolvimentos da técnica questão como se fosse um bem material, desejam ter um
genética, apelando para a proteção absoluta do óvulo filho mas recusam a implantação se o embrião não cor-
fertilizado. Mas as supostas paralelas enganam. Em rela- responder a determinados padrões de saúde. Nesse con-
ção à questão atual sobre a admissibilidade do DGPI, as flito, os pais não são envolvidos de improviso; eles aceitam
mesmas convicções normativas não dão origem às mes- 'desde o princípio o embate ao mandarem fazer um exa-
mas tomadas de partido como na questão do aborto. Ho- me genético do embrião.
je, o campo liberal daqueles que privilegiaram o direito Esse tipo de controle deliberado da qualidade coloca
de autodeterminação da mulher em relação à proteção da um novo aspecto em jogo- a instrumentalização de uma
vida do embrião em seus primeiros momentos está divi- vida humana, produzida sob condições e em função de
..

preferências e orientações axiológicas de terceiros. A deci-
dido. Quem se deixa conduzir por intuições deontoló-
gicas não quer simplesmente dar seu aval aos atestados são de seleção orienta-se pela composição desejada do
genoma. Uma decisão sobre a existência ou a não-exis-
tência se dá conforme o critério da essência potencial. A
Gmelin e Ernst Benda, à esfera de merecimento de proteção absoluta decisão existencial de interromper a gravidez tem tão pau-
da vida humana a partir da fecundação; cf. M. Pawlik, "Der Staat hat co a ver com essa disponibilização orientada para as ca-
dem Embryo alie Trümpfe genommen", in: FAZ, de 27 de junho de
2001. Quanto à variedade das constatações jurídicas, ver R. Erlinger, racterísticas e com essa seleção da vida pré-natal como
"Von welchem Zeitpunkt an ist der Embryo juristisch geschützt?", in: com a consumpção dessa vida para fins de pesquisa.
Süddeutsche Zeitung, de 4 de julho de 2001. De resto, a interpretação Apesar dessas diferenças, podemos tirar uma lição
da constituição é um processo lento de aprendizado, que sempre levou dos debates sobre o aborto, conduzidos ao longo de déca-
os tribunais superiores à correção de suas próprias decisões anterio-
res. Quando ocorre de novos fundamentos morais encontrarem situa-
ções jurídicas existentes à luz de outras circunstâncias históricas, os 22. Cf. R. Merkel, "Rechte für Embryonen ?", in: Die Zeit, de 25
princípios constitucionais - até moralmente fundamentados - exigem de janeiro de 2001; U. Mueller, "Gebt uns die Lizenz zum Klonen!",
que o direito siga as idéias morais. in: FAZ, de 9 de março de 2001.

I
44 O FUTURO DA NAWREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 45

das com grande seriedade. Nessa controvérsia, fracassa pológico profundo, não ultrapassariam campo das ques-
toda tentativa de alcançar uma descrição ideologicamente tões morais comuns. Sendo assim, as hipóteses ontológi-
neutra e, portanto, sem prejulgamentos, do status moral ós fundamentais do naturalismo científico, das quais deri-
da VIda ~umana prematura, que seja aceitável para todos va o nascimento como cesura relevante, não são de forma
os c1dadaos de uma sociedade secuJar23. Um lado descre- alguma mais triviais ou mais "científicas" do que as hi-
ve o embrião no estágio prematuro de desenvolvimento póteses metafísicas ou religiosas, do pano de fundo, que
como um "amontoado de células" e o confronta com a sugerem uma conclusão contrária. Ambos os lados refe-
I
pesso~ do recém-nascido, a quem primeiramente compe- rem-se ao fato de que a toda tentativa de traçar um limite
te a d1gmdade humana no sentido estritamente moral. , ., preciso e moralmente relevante em algum ponto entre

r O outro lado considera a fertilização do óvulo humano


como <! início relevante de um processo de desenvolvi-
a fecundação ou a junção dos gametas, de um lado, e o
nascimento, de outro, une-se algo arbitrário, pois a p,j~r­
mento já individual~ado e controlado por si próprio. Se- tir dos primórdios orgânicos, primeiro se desenvolvetia,
gundo ,essa conce~çao, todo exemplar biologicamente de- com grande continuidade, uma vida sensível, que depois
terrmnave/ da espec1e deve ser considerado como uma se tomaria pessoal. Todavia, se eu estiver certo, essa tese
pessoa em potencial e como um portador de direitos fun- de continuidade vai antes de encontro a ambas as ten-
damentqis. Ambos os lados parecem não se dar conta de tativas de estabelecer um início "absoluto" e definitivo,
que algo pode ser considerado como "indisponível", ain- também no aspecto normativo, a partir de proposições
da que nao receba o status de um sujeito de direitos, que ontológicas.
nos termos da constituição, é portador de direitos funda~ Não seria, pois, arbitrário resolver o fenômeno da
mentais inalienáveis. "Indisponível" não é apenas aquilo ambivalência dos nossos sentimentos e intuições, que
que a .digmdade humana tem. Nossa disponibilidade pode mudam aos poucos conforme avaliam a questão do em-
ser pnvada de alguma co1sa por bons motivos morais sem brião nos estágios iniciais ou intermediários ou a do feto
por isso ser "intangível" no sentido dos direitos funda- nos estágios mais avançados do desenvolvimento24, por
mentais em vigor de forma irrestrita e absoluta (que são meio de estipulações moralmente unívocas, em favor de
direitos constitutivos da "dignidade humana", conforme um ou outro lado? Apenas com base numa descrição ideo-
o art1go 1~ da Constituição). logicamente marcada dos fatos, que permanecem razoa-
s,~ a disc~ssão sobre a atribuição da "dignidade hu- velmente discutíveis nas sociedades pluralistas, pode-se
mana , garantida pela Constituição, tivesse de ser decidi- conseguir chegar a uma determinação inequívoca do sta-
d,a a. partir ~e razões morais imperativas, as questões da
tus moral- seja no sentido da metafísica cristã ou do na-
tecmca genetica, ainda que tenham embasamento antro-
24. A doutrina aristotélico-escolástica sobre a animação sucessi-
va leva tal fato em consideração. Cf. o panorama proposto por H.
~2~. R. J?wor~in, Life's Dominion, New York, 1994. [Trad. bras. Schmoll, "Wann wird der Men.sch ein Mensch?", in: FAZ, de 31 de
Dommw da vtda, Sao Paulo, Martins Fontes, 2003.] maio de 2001.
46 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMJNHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 47
turalismo. Ninguém duvida do valor intrínseco da vida conta ao lidarmos com criaturas que também são passí-
humana antes do nascimento - quer a chamemos sim- veisde sofrimento. Mesmo assim, eles não pertencem ao
plesmente de "sagrada", quer recusemos tal "sacraliza- · universo dos membros que dirigem uns aos outros ordens e
ção" daquilo que constitui um fim em si mesmo. No en- proibições intersubjetivamente reconhecidas. Conforme
tarüo, a substânci~ normativa _da necessidade de proteger ·pretendo demonstrar, a" dignidade humana", entendida
a VIda humana pre-pessoal nao encontra uma expressão em estrito sentido moral e jurídico, encontra-se hgada a
racionalmente aceitável para todos os cidadãos nem na essa simetria das relações. Ela não é uma propriedade
linguagem objetivante do empirismo, nem na da religião. que se pode "possuir" por natureza, com~,~ inteligência
Por fim, na discussão normativa de uma esfera pú- , " ou os olhos azms. Ela marca, antes, aquela mtang~b1hda­
blica democrática importam apenas as proposições mo- de" que só pode ter um significado nas relações interpes-
rais em sentido estrito. Somente as proposições ideolo- soais de reconhecimento recíproco e no relacionam~to
gicamente neutras sobre aquilo que é igualmente bom igualitário entre as pessoas. Emprego ~,:er':'o "int~rtgi­
para todos podem ter a pretensão de ser aceitáveis para bilidade" não com o mesmo sentido de md•spomb!hda-
todos por boas razões. A pretensão a uma aceitabilidade de", pois uma resposta pós-metafísica ,à questão ~e como
racional distingue as proposições sobre a solução "justa" devemos lidar com a vida humana pre-pessoal nao pode
para os conflitos de ação das proposições acerca do que é ser obtida ao preço de uma definição reducionista do ho-
"bom para m1m ~ "
. " ou 11 para nos mem e da moral.
no contexto de uma his-
tória de vida ou de uma forma de vida partilhada. Ainda Entendo o comportamento moral como uma respos-
assi';l, esse sentido específico de questões sobre justiça ta construtiva às dependências e carências decorrentes da
adm1te uma conclusão com "base na moral". Considero imperfeição da estrutura orgânica e da fragilidade perma-
essa "determinação" da moral como a chave adequada nente da existência corporal (evidente sobretudo em fases
para responder à seguinte questão: independentemente da infância, da doença e da velhice). A regulamentação
das determinações ontológicas discutíveis, como pode- normativa das relações interpessoais pode ser compreen-
mos definir o universo dos possíveis portadores de direi- dida como um poroso invólucro de proteção contra certas
tos e deveres morais? contingências, às quais o corpo vulnerável e a pessoa nele
Na linguagem dos direitos e deveres, a comunidade representada estão expostos. Ordens morais são constru-
de seres morais, que fazem suas próprias leis, refere-se a ções frágeis, que, de uma só vez, protegem o corpo de le-
todas as relações que necessitam de um regulamento nor- sões corporais e a pessoa de lesões internas ou simbólicas.
Com efeito, a subjetividade, que é o que faz do corpo hu-
mativo. Todavia, apenas os membros dessa comunidade
mano um recipiente animado da alma, se constitui a par~
podem se impor mutuamente obrigações morais e esperar
tir das relações intersubjetivas para com os outros. O SI
uns dos outros um comportamento conforme à norma. Os
mesmo individual surge apenas com o auxílio social da
anirr:ais são beneficiados pelas obrigações morais, e por
exteriorização e também só pode se estabilizar na rede de
conszderação a eles precisamos levar essas obrigações em relações intactas de reconhecimento.
48 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 49
Depender dos outros é uma circunstância que escla-
rece a vulnerabilidade do indivíduo em relação aos outros. da atenção e do reconhecimento do seu ambiente. ~ocial,
A pessoa fica exposta de forma completamente desprote- a imperfeição de uma individualização fruto de sequenc1as
gida a feridas em relações das quais ela geralmente de- · de DNA toma-se momentaneamente vi.sível q':lando tem
pende para o desdobramento de sua identidade e para início o processo de individualização socm!26 • A md!Vldua-
·lização da história de vida realiza-se por melO da soClah-
a defesa de sua integridade - por exemplo, nas relações
íntimas de dedicação a um parceiro. Em sua versão des- zação. Aquilo que, somente pelo n~sClmento, transforma
0 organismo numa pessoa, n~ sen~1do completo ?a pala-
transcendentalizada , a "vontade livre" de Kant não cai
vra, é o ato socialmente md!Vlduahzante de adm1ssao no
mais do céu como uma característica de seres inteligiveis.
contexto público de interação de um mundo da V! da par-
A autonomia é, antes, uma conquista precária de existên-
tilhado intersubjetivamente27 • Somente a part1r do TO-
cias finitas, que só conseguem "se fortalecer" quando
mento em que a simbiose com a mãe é romrida é q~e a
conscientes de sua vulnerabilidade física e de sua depen-
criança entra num mundo de pessoas, que vao ao seu en-
dência socia!25 • Se este for o "fundamento" da moral, en-
contro, que lhe dirigem a palavra e podem conversar com
tão seus "limites" se explicam a partir dele. É o universo
ela. O ser geneticamente individualizado no ventre ma-
das relações e interações interpessoais possíveis, que
. temo, enquanto exemplar de uma com~:;1dade reprodu-
necessita e é capaz de impor regras morais. Apenas nes-
tiva não é absolutamente uma pessoa Ja pronta . Ape-
sa rede de relações de reconhecimento legitimamente re- nas' na esfera pública de uma comunidade lingüística é
guladas é que as pessoas podem desenvolver e manter que 0 ser natural se transforma ao mesmo tempo em md!-
uma identidade pessoal, juntamente com sua integrida- víduo e em pessoa dotada de razão 28 .
de física.
Uma vez que o ser humano nasce "incompleto", no
sentido biológico, e passa a vida dependendo do aUXI1io, 26. Helmut Plessner e Arnold Gehlen compartilham esse conhe-
cimento fundamental com George Herbert Mead. . ,
27. Hannah Ahrendt (Vita Activa, München, 1959) refenu-se a
25. M. Nussbaum critica a distinção feita por Kant entre a exis- "pluralidade" como um traço fundamental da. e:ctstên~ia hu~ana. A
tência inteligível e aquela física do agente: "What's wrong with Kant's vida do homem realiza -se apenas sob a co':diçao da mteraçao com
distinction? [... ] It ignores the fact that our dignity is that of a certain outras pessoas: ["Para as pessoas, vida quer dizer o mesmo que- como
sort of animal; it is a dignity that could not be possessed by a being diz 0 latim, ou seja, a língua dos povos talvez ~ai.s profun?amente
who was not mortal and vulnerable, just as the beauty of a cherry tree políticos que conhecemos- 'estar entre os homens (mt~ hom_mes e~se),
in bloom could not be possessed by a diamond" ["O que há de errado e morte o mesmo que 'deixar de estar entre os homens (desmere mter
com a distinção de Kant? [... ]Ele ignora o fato de que nossa dignida- homines esse)"] (lbid., p. 15). .
de é a de uma determinada espécie de animal; é uma dignidade que 28. O dom para a razão significa que o nascu~ento, enquanto
não poderia ser possuída por um ser que não fosse mortal e vulnerá- momento da inserção no mundo social, marca tambem. o m~mento a
vel, assim como a beleza de uma cerejeira em flor não poderia ser pos- partir do qual a disposição para ser pessoa pode se realizar, I_ndepen-
suída por um diamante"]. Disabled Lives: Who Cares?, manuscrito não dentemente das formas em que isso pode acontecer. O pa~1en~~ em
publicado, 2001. coma também participa dessa forma de vida. Cf. M. Se~l, Ethtsch-asthe-
tische Studien, Frankfurt am Main, 1996, pp. 215 s: ["Por ISSO, a moral tra-
50 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL' 51

, Nárede simbólica das relações de reconhecimento nos do feto na tela que faz da criança que se move no
r:c1procas, entre pessoas que agem visando à comunica- útero materno um destinatário, no sentido de uma antici-
çao, o recem-nascido é identificado como "umfl ou "um patory socialization [socialização por antecipação]. Obvia-
de nós" e aprende aos poucos a identificar-se a si mesmo mente, temos para com ela e em consideração a ela deveres
-ao mesmo tempo em que se identifica totalmente como rnorais e jurídicos. Além disso, a vida pré-pessoal, anterior
pessoa: como parte ou,mem~ro de sua(s) comunidade(s) a um estágio em que se pode atribuir a ela o papel destina-
sociai_(Is) e como mdiVJduo unico e inconfundível, sendo do a uma segunda pessoa, a quem se pode dirigir a pala-
t~mbem moralmente insubstituíveJ2•. Nessa diferencia- vra, também conserva um valor integral para a totalidade
çao da auto-referência reflete-se a estrutura da comunica- '., de uma forma de vida eticamente constituída. Nesse as-
ção lin~ística. Somente aqui, no space of reasons [espaço pecto, dá-se a distinção entre a dignidade da vida huma-
da_:; razoes] colocado em discussão (Sellars), é que 0 patri- na e a dignidade humana garantida juridicamente a tci:!a
momo cultural da espécie representado pela razão pode pessoa- uma distinção que, de resto, reflete-se na feno-
desenvolver sua força unificadora e formadora de con _ menologia da nossa maneira sentimentalizada de tratar
se?so, na diferença das múltiplas perspectivas de si pró- os mortos.
pno e do mundo. Recentemente falou-se de uma alteração da lei de
_Antes de ser inserida em contextos públicos de inte- Inumações do Estado de Bremen. Ela se refere aos nati-
raçao, a Vlda humana, enquanto ponto de referência dos mortos, à morte de crianças prematuras, bem como aos
nossos deveres, goza de proteção legal, sem ser, por si só, abortos clínicos, e exige que se mantenha o devido respei-
um SUJeito de deveres e um portador de direitos huma- to pela vida perdida, mesmo no trato com os fetos. Segun-
n~s. Disso não devemos tirar conclusões erradas. Os pais do ela, fetos não deveriam mais ser eliminados - con-
nao apenas falam sobre a cnança que cresce in utero mas forme se diz no alemão administrativo - como "etischer
de certo modo, também já se comunicam com ela. Não é Abfall" [lixo ético], mas sepultados anonimamente num
apenas a visualização dos traços inegavelmente huma- cemitério em túmulos coletivos. Já a reação do leitor à
formulação obscena - para não falarmos da prática que,
por si só, já é penosa - revela, na contraluz do embrião
ta todos aqueles que pertencem à espécie humana como seres que
querem uma ~da pessoal, independentemente do critério conforme 0
morto, o amplo e profundo temor à integridade da vida
qual podem ':ver de fato. [... JA consideração pela integridade do ou- humana em formação, na qual nenhuma sociedade civlli-
t~o, e~tabelec1da no rec_onhecimento recíproco entre as pessoas, pre- 2ada pode tocar sem maiores problemas. Por outro lado,
c~sa. VIgorar sem exceçao para todos, pois todos possuem o mesmo o comentário do jornal a respeito do sepultamento anô-
direito fundament~ de participar da vida enquanto pessoas, não impor- nimo e coletivo enfoca, ao mesmo tempo, uma distinção
tando em que medida possuem a capacidade (absoluta ou momentâ-
nea) para uma participação autodeterminada. O núcleo da moral só
intuitiva, que considero importante apresentar: "Amuni-
pode ser o mais simples: tratar todos os seres humanos como seres cipalidade de Bremen também estava consciente de que
humanos." seria uma exigência excessiva - e talvez até se igualasse a
29. L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993. uma tristeza patológica e coletiva - se embriões e fetos
I
52 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 53
tivessem de ser sepultados conforme os mesmos critérios
ções, que ainda se vinculam com muito mais clareza ao
q~e as crianças que morrem após o nascimento. [... ]A exi-
gencm de respeito para com os mortos pode se manifes- . conceito de "honra" a partir da história de seus modos de
tar em diferentes formas de sepultamento."30 utilização pré-modernos, também deixaram rastros na se-
Para além dos limites de uma comunidade de pessoas . mântica do termo "dignidade" - a saber, a conotação de
morais, compreendida em seu sentido estrito, não se es- um éthos dependente do status social. A dignidade do rei
tende nenhuma zona cinzenta em que poderíamos agir materializava-se no estilo de pensamento e de comporta-
sem levar em conta as normas e manipular sem entraves mento de uma forma de vida diferente daquela da mulher
o que qmsermos. Por outro lado, conceitos jurídicos mo- , ., casada e do celibatário, do artesão e do carrasco. Dessas
ralment~,saturados, como "direito humano" e "dignidade manifestações concretas de uma determinada dignidade
humana , perdem, devrdo a uma excessiva extensão con- é que se abstrai a" dignidade do homem", universaysta
tra-intuitiva, não apenas sua acuidade, mas também seu em sua essência, e que compete à pessoa como tal. Quan-
potencial crítico. Lesões ao direito humano não podem to a esse processo de abstração, que conduz à "dignidade
ser reduzidas a infrações às representações axiológicas3I. humana" e ao "direito humano"- o único de Kant -, não
A diferença entre direitos, ponderados de maneira fixa, podemos de nossa parte nos esquecer de que mesmo a
e bens, que podem ser considerados prioritários ou não · comunidade moral dos sujeitos livres e iguais de direitos
dependendo de cada nova ponderação, não deveria ser humanos não forma um "reino dos objetivos" no além
confundida32. numenal, mas permanece inserida em formas concretas
O caráter dos entra;es morais, difíceis de definir, que de vida e no seu éthos.
regulam o trato com a vrda humana antes do nascimento
e após a morte explica a escolha de expressões semanti-
camente flexíveis. A vida humana também desfruta em 111. A inserção da moral numa ética
suas formas anônimas, de "dignidade" e exige "resp:ito". da espécie humana
Se podemos recorrer ao termo "dignidade", é porque ele
cobre um amplo espectro semântico e apenas evoca 0 con- Se a moral tem sua sede numa forma de vida lingüis-
ceito mais específico da "dignidade humana". As conota- ticamente estruturada, a discussão atual sobre a admissi-
bilidade do uso de embriões exclusivamente para pes-
quisa e do DGPI não pode ser decidida com um único e
30. St. Rixen~ "To;enwürde"f in: FAZ, de 13 de março de 2001.
decisivo argumento em prol da dignidade humana e do
31,; '~!· Kersting, Menschenrechtsverletzung ist nicht Wertver-
letzung , zn: FAZ, de 17 de março de 2001. status dos direitos fundamentais dos óvulos fecundados.
32. R. Dworkin, Rechte ernstgenommen, Frankfurt am Main 1984 Não apenas compreendo, mas também compartilho do
[trad. bras . ..Levando os direitos a sério, São Paulo, Martins F~ntes motivo pelo qual alguém queira se servir desse argumen-
2002]; K. Gunther, Der Sinn für Angemessenheit, Frankfurt am Main: to. Com efeito, a utilização restritiva do conceito da dig-
1988, pp. 335 ss.
nidade humana permite que a necessidade de proteger o
54 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 55
embriãÓ -não só porque ele precisa dessa proteção, mas partida, essa expectativa de aceitabilidade racional deixa
também porque é digno dela - seja avaliada como um de existir quando a descrição da situação de conflito e a
~ bem, o que abre urna brecha para a instrumentalização da fundamentação das normas correspondentes dependem
VIda hu~';Ila e para o esvaziamento do sentido categóri- do modo de vida que escolhemos e da autocompreensão
I co de eXJgencJas morrus. Tanto mais relevante será a busca ~xistencial, ou seja, quando dependem de um sistema de
t por uma solução convincente e ideologicqmente neutra,
f interpretação com identidade própria, relativo ao indiví-
a qual de toda forma o princípio de tolerância do direito duo ou a um determinado grupo de cidadãos. Tais confli-
cons!itucional nos obriga. Mesmo que minha própria su- , ., tos secundários tocam em questões "éticas".
gestao de como o fundamento da moral e seus limites As pessoas e comunidades, cuja existência pode fra-
~everiam ser compreendidos não cumprisse essa exigên- cassar, se questionam a respeito do que seria uma ~a
cm e fosse responsabilizada por uma parcialidade metafí- não fracassada, com vistas à orientação de sua história'Ou
Sica, a conseqüência continuaria sendo a mesma. O Esta- forma de vida segundo valores normativos. Essas ques-
do ideologicamente neutro, quando composto democra- tões são talhadas de acordo com a perspectiva daquele ou
ti~amente e quando procede a uma política de inclusão, daqueles que querem saber como devem se compreender
na o pode tomar partido numa aplicação "eticamente" em seu contexto de vida e quais as melhores práticas para
controversa dos artigos 1? e 2? da Constituição. Quando a eles de uma maneira geral. Uma nação lida com a crimi-
questão sobre o tratamento da vida humana anterior ao nalidade em massa de seu regime anterior diferentemen-
nascimento assume um caráter ético, é preciso contar com te de outra. Conforme a experiência histórica e a auto-
uma divergência razoavelmente fundamentada, confor- compreensão coletiva, elas optam pela estratégia do per-
me delineada no debate realizado pelo parlamento fede- dão e do esquecimento ou pelo processo de punição e
ral alemão (Bundestag), em 31 de maio de 2001. Desse recuperação da memória. O modo como lidam com a
modo, a discussão filosófica pode ficar livre das polariza- energia atômica dependerá, dentre outras coisas, do sta-
ções ideológicas infrutíferas e se concentrar no tema da tus que conferem à segurança e à saúde em relação à
autocompreensão adequada e ética da espécie humana. prosperidade econômica. Considerando-se essas ques-
Todavia, observemos inicialmente o comentário a tões ético-políticas, vale a sentença "outras culturas, ou-
respeito do uso da linguagem. Chamo de "morais" as tros costumes".
questões relativas à convivência baseada em normas jus- Em contrapartida, a forma de lidar com a vida huma-
tas. Para pessoas ativas, que podem entrar em conflito na pré-pessoal suscita questões de um calibre totalmente
umas com as outras, essas questões são suscitadas consi- diferente. Elas aludem não a esta ou àquela diferença na
derando-se a necessidade normativa de se regulamentar variedade de formas de vida cultural, mas a autodescrições
as interações sociais. Existe a expectativa sensata de que intuitivas, a partir das quais nos identificamos como pes-
tais conflitos, a princípio, possam ser racionalmente de- soas e nos distinguimos de outros seres vivos- portanto,
cididos em prol do igual interesse de cada um. Em contra- nossa autocompreensão enquanto seres da espécie. Não
56 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 57

se trata da cultura, que é diferente de um lugar para autocornpreensão ética da espécie, inscrita ~rn determi-
outro, mas da imagem que as diversas culturas fazem nadas tradições e formas de vida, não perrn!le rna1s que
"do" homem, que, na sua universalidade antropológica, dela se deduzam argumentos que suplantem as preten-
é o mesmo em toda parte. Quando avalio corretamente sões de urna presumida moral válida pa:a todos. N,? e~­
a discussão sobre a "utilização" de embriões para fins tanto, essa "primazia do justo em relaçao ao bom nao
de pesquisa ou sobre a "geração de embriões com res- pode perder de vista o fato de qu~ a moral abstrata da.~a­
salvas", vejo manifestar-se nas reações afetivas menos a zão, pertencente aos SUJe!tos de d1rellos hurnan_os,_apü!a-
indignação moral do que a aversão a algo obsceno. É , ., se, por sua vez, numa anterior autocompreensao et1ca da
corno sentir vertigens quando o chão que acreditávamos espécie, compartilhada por toda~ ~~pessoas mo~ats.
firmemente existir escapa sob os nossos pés. Sintomática Assim corno as grandes rehgwes umversms, as dou-
é a repugnância diante da lesão quimérica de limites da trinas metafísicas e as tradições. humanistas também fo~­
espécie, que ingenuamente havíamos considerado corno necem contextos em que a "estrutura total da nossa ex-
"inalteráveis". Os "novos horizontes éticos", aos quais se periência moral" está inserida. Elas articulam, de um ou
refere Otfried Hõffe33 com razão, consistem em tornar outro modo, uma autocompreensão antropológ!_ca, que
se adapta a uma moral autônoma. As interpre:açoes reh-
incerta a identidade da espécie. Os desenvolvimentos
giosas de si mesmo e do mundo, surgtdas na epoca ax~al
notórios e temidos da tecnologia genética afetam a ima-
das grandes civilizações, co;wergem, de :erto modo, numa
gem que havíamos construído de nós enquanto ser cul-
autocornpreensão ética rn1mrna da especte, que sustenta
tural da espécie, que é o "homem", e para o qual parecia
não haver alternativas. essa moral. Enquanto estão em harrno~1a ~ma com~ ou-
tra a primazia do justo sobre o bom nao e problem~l!ca.
Certamente, essas imagens também se apresentam ' A partir dessa perspectiva, impõe-se a questao de
de maneira plural. A formas de vida cultural pertencem saber se a tecnicização da natureza humana altera a auto-
sistemas de interpretação, que se referem à posição do compreensão ética da espécie de tal modo que não possa-
homem no cosmo e oferecem um "denso" contexto an- mos mais nos compreender como seres vivos eticamente
tropológico de inserção para o respectivo código moral em livres e moralmente iguais, orientados por normas e fun-
vigor. Nas sociedades pluralistas, essas interpretações de damentos. Somente com o surgimento imprevisto de al-
si mesmo e do mundo, enquadradas no campo da metafí- ternativas surpreendentes é que a evidência de hipóteses
sica ou da religião, estão, por boas razões, subordinadas elementares do pano de fundo é abalad~ (~inda que essa
aos fundamentos morais do Estado constitucional, ideo- novidade - como as "quimeras" art1fiC1aJS onundas de
logicamente neutro, e obrigadas a urna coexistência pací- organismos transgênicos "d<;generados"- t~.nha precur-
fica. Sob as condições do pensamento pós-metafísico, a sores arcaicos em imagens rmticas CUJO valor 1a se perdeu).
Irritações desse tipo são desencadead~s por aquele.s c:-
33. O. HOffe, "Wessen Menschenwürde?", in: Die Zeit, de 1? de nários que, nesse ínterim, migram da hter~tura .de ficçao
fevereiro de 2001. científica para o caderno de ciências dos JOrnais. Desse

I.
58 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 59
modo; recente mente notáveis autores de livros técnicos apenas corno exemplo de urna tecnicização da nature za
nos confrontam com o aperfeiçoamento do homem por humana, que provoca urna alteração da autocornpreensão
meio de implantes de chip ou com a substituição do ho-
ética da espécie - urna autocornpreensão que não pode
mem por robôs mais inteligentes.
mais ser harmonizada com aquela autocornpreensão nor-
Para os processos vitais do organismo human o, assis-
tidos tecnicamente, os nanotecnólogos projetam, pela fu- ~ativa, perten cente a pessoas que determ inam sua pró-
são do homem à máquin a, a imagem de urna estação de pria vida e agem com responsabilidade.
produção, que é subme tida a urna supervisão e a urna re- Os avanços da tecnologia genética, realizados nesse
novação auto-reguladas, além de passar por reparo e aper-1 ·: meio-t empo ou previstos de forma realista, não provocam
feiçoarnento constantes. Segundo essa visão, os rnicror- nada que chegue a esse ponto. No entanto , as analog ias
robôs capazes de se autoduplicar circulam pelo corpo hu- não devem ser totalm ente desconsideradas34. A rnanip'!-
mano e unem- se aos tecidos orgânicos, por exemplo para
deter processos de envelhecimento ou estimu lar funções
34. Por exemplot Buchanan et ai., pp. 177 s, mencionam o cená ~
do cérebro. Os engenh eiros de computação també m não rio fantasmagórico de um "Genetic Communitarianism" [comunita-
são de trabalhar pouco nesse gênero e, a partir do robô do rismo genético], no qual diferentes subculturas levam adiante a auto-
futuro, tornad o autôno mo, projetam a imagem de má- otimização eugênica da espécie humana em diferentes direções, de
quinas que conden am pessoas de carne e osso ao mode- modo que a unidade da natureza humana enquanto base de referên-
lo fora de linha. Essas inteligências superiores deverão da, na qual, até agora, todos os homens se compreenderam como
membros da mesma comunidade moral e puderam se reconhecer
superar as limitações do hardware human o. Elas prenun - reciprocamente, é questionada: "We can no longer assume that there
ciam ao software extraído de nosso cérebro não apenas a will be a single successor to what has been regarded as human nature.
imortalidade, mas também a perfeição ilimitada. We must consider the possibility that at some point in the future, dif-
O corpo repleto de próteses, destinadas a aumen tar ferent groups of human beings may follow divergent paths of deve-
o rendimento, ou a inteligência dos anjos, gravada no dis- lopment through the use of genetic technology. If this occurs, there
will be different groups of beings, each with its own 'nature', related to
co rígido, são imagens fantásticas. Estas apagam as linhas one another only through a common ancestor (the human race), just
fronteiriças e desfazem as coerências que até o mome n-
to se aprese ntaram a nosso agir quotidiano corno trans-
cendentalrnente necessárias. De um lado, o ser orgânico
que cresceu natura lmente se funde com o ser produz ido
l as there are now different species of animais who evolved from com-
mon ancestors through random mutation and natural selection" ["Não
podemos mais presumir que haverá um único sucessor para aquilo
que foi concebido como natureza humana. Precisam_os considerar a
possibilidade de que, num certo momento do futuro, diferentes grupos
de forma técnica; de outro, a produtividade do intelecto de seres humanos poderão seguir caminhos divergentes de desenvol-
human o separa-se da subjetividade vivenciada. Pouco im- vimento usando a tecnologia genética. Se isso ocorrer, haverá diferen-
porta se nessas especulações se manifestam idéias rnalu- tes grupos de seres, cada qual com sua própria 'natureza', relaciona-
cas ou prognósticos dignos de serem levados a sério, ne- dos uns com os outros somente por meio de um ancestral comum (a
cessidades escatológicas postergadas ou novas variedades raça humana), exatamente como hoje existem diferentes espécies de
animais, que evoluíram a partir de ancestrais comuns por meio de mu-
de urna science-fiction-science. Para mim, tudo isso serve tação aleatória e pela seleção natural"}.
II
60 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 61
!ação da c?mposição do genoma humano, progressiva- A autolimitação normativa no trato com a vida em-
mente decifrado, e a expectativa de muitos pesquisadores brionária não pode se voltar contra as intervenções da téc-
de genes de em breve poder controlar a evolução abalam nica genética em si. Obviamente, não é essa técnica, mas
a distinção categoria! entre o subjetivo e o objetivo, entre q tipo e o alcance de seu emprego que constituem o pro-
o que cresce naturalmente e o que é fabricado em esferas blema. A não-apresentação de objeções de ordem moral
que até o momento não estiveram à nossa disposição. a intervenções na estrutura genética de membros poten-
Trata -se da neutralização biotécnica de distinções catego- ciais de nossa comunidade moral é dimensionada pelo
na!s profundamente enraizadas, que até hoje, em nossas modo como essas intervenções serão efetuadas. Nesse
autodescrições, supúnhamos invariantes. Isso poderia al4 ·: sentido, em relação a essas intervenções genéticas de cará-
terar nossa autocompreensão ética da espécie de tal for- ter terapêutico, consideramos o embrião como a segun.çla
ma, que também a consciência moral seria afetada - a pessoa que ele um dia será35 . Essa atitude clínica rece'te
saber, as condições naturais de crescimento, mediante as
sua força legitimadora da suposição contrafactual e justifi-
quais podemos nos compreender como únicos autores
cada de um possível consenso com um outro, que pode di-
de nossas próprias vidas e como membros da co munida-
zer "sim" ou "não". Com isso, o ônus normativo da pro-
de, m~ral com direitos iguais. Suponho que saber que o
va recai sobre o direito de antecipar um consentimento
propno genoma foi programado possa perturbar a auto-
que não pode ser obtido no momento. No caso de uma
evidência em virtude da qual existimos enquanto corpo
intervenção terapêutica no embrião, esse consentimento
VIVO ou,. de c:rta forma, que nos faz "ser" nosso corpo, o
poderia, na melhor das hipóteses, ser ratificado a poste-
que dana ongem a um novo tipo de relação particular-
men~e assimétrica entre as pessoas.
riori (o que, no caso de se evitar preventivamente o nas-
E oportuno que nos certifiquemos para onde nossas cimento, jamais ocorrerá). Inicialmente, não se sabe ao
reflexões nos têm conduzido até o momento. Por um lado, certo o que essa exigência pode significar para uma prá-
sob as condições do pluralismo ideológico, não podemos tica que, como o DGPI e a pesquisa com embriões, está
atnbu1r ao embrião, "desde o início", a proteção absoluta voltada, apenas de forma hipotética ou nem assim, a um
da vida, de que as pessoas enquanto portadores de direi- futuro nascimento.
tos fund~mentais desfrutam. Por outro, existe a intuição Em todo caso, um suposto consenso só pode ser evo-
de que na o podemos simplesmente dispor da vida h uma- cado em caso de prevenção de um mal indubitavelmen-
na pré-pessoal como de um bem submetido à concorrên- te extremo, que, como é de esperar, é rejeitado por todos.
cia. Para esclarecer essa intuição, escolho o desvio que Sendo assim, a comunidade moral, que no âmbito profa-
pa;;sa pela possibilidade, hoje admitida apenas de forma
teonca, de uma eugenia liberal, que nos Estados Unidos 35. Por essas idéias decisivas, agradeço a uma discussão com
já é discutida pormenorizadamente. A partir dessa pers- Lutz Wingert. O projeto proposto por ele para o Instituto Científicow
pecl!va pré-projetada, a controvérsia sobre os dois casos Cultural de Essen foi igualmente instrutivo: "O que torna humana
uma forma de vida? Nossa cultura entre a biologia e o humanismo"
atuais assume contornos mais precisos. (Manuscrito, 2001).

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62 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 63

no do quotidiano político exprime a feição sóbria de na- natureza ao empregar meios e consumir materiais; e, por
ções democraticamente constituídas de cidadãos, também outro, ele a distingue da atitude prática das pessoas que
pode, por fim, julgar-se capaz de desenvolver, a partir de agem de forma inteligente ou ética e se encontram nos
nossas realizações espontâneas, critérios sempre suficien- contextos de interação - seja na atitude objetivante de
temente convincentes para considerar uma existência cor- um estrategista, que julga as decisões antecipadas de seus
poral como fraca ou saudável. É o ponto de vista moral adversários a partir da perspectiva de suas próprias pre-
de uma relação não instrumentalizadora com a segunda ferências, seja na atitude performativa de um agente co-
pessoa que, conforme procurei mostrar, nos prende à "ló- < municador, que gostaria de se entender com uma segun-
gica da cura" e, por conseguinte, ao contrário da extens~ da pessoa a respeito de algo no mundo, no âmbito de um
margem de tolerância de uma eugenia liberal, nos impu- mundo da vida intersubjetivamente partilhado. Por su~
ta o ônus de estabelecer a linha fronteiriça entre a euge- vez, a práxis do camponês, que cria o gado e lavra o cam--
nia negativa e a de aperfeiçoamento. A esse respeito, o po, a práxis do médico, que diagnostica doenças para po-
programa de uma eugenia liberal só pode se enganar, der curá~las, e a práxis do criador, que seleciona e aperfei-
caso não atente para a não-diferenciação biotécnica de çoa as características transmissíveis de uma população
formas de ação. segundo seus próprios objetivos, exigem outras atitudes.
Comum a essas clássicas práticas de cultivo, cura e criação
é o respeito pela dinâmica própria de uma natureza que
IV. Crescimento natural e fabricação se auto-regula. As intervenções de cultivo, terapia e sele-
ção devem se orientar por ela se não quiserem fracassar.
Nosso mundo da vida é constituído, em certo senti- A "lógica" dessas formas de ação, que em Aristóteles
do, "de forma aristotélica". No dia-a-dia, distinguimos ainda eram talhadas conforme determinadas esferas do
sem grandes reflexões a natureza inorgânica da orgânica, ser, perdeu a dignidade ontológica da viabilização de um
as plantas dos animais, e a natureza animal, por seu turno, aspecto específico do mundo. Nesse sentido, as moder-
daquela racional e social do homem. A consistência dessa nas ciências experimentais desempenham um importan-
divisão categoria!, à qual não se une nenhuma pretensão te papel. Elas uniram a atitude objetivante do observador
ontológica, explica-se a partir de perspectivas que se en- desinteressado à atitude técnica de um observador que
trecruzam com formas de lidar com o mundo. Mesmo exerce sua intervenção e obtém efeitos experimentais.
essa intersecção pode ser analisada pelo fio condutor dos Desse modo, elas tiraram o cosmo da mera contempla-
conceitos aristotélicos básicos. Aristóteles separa a atitu- ção e submeteram a ·natureza "inanimada" de forma no-
de teórica de quem observa a natureza de forma desinte- minalista a outro tipo de objetivação. Essa readaptação
ressada de outras duas atitudes. Por um lado, ele distin- da ciência à disponibilização técnica de uma natureza ob-
gue essa atitude daquela atitude técnica, relativa ao sujei- jetivada teve conseqüências para o processo de moderni-
to produtor, que age segundo um objetivo e intervém na. zação social. A maioria das áreas práticas foram marca-
64 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 65

das e reestruturadas, durante seu processo de aquisição ram o que é produzido e o que se transfonna por ~~tureza
de cientificidade, pela "lógica" da aplicação de tecnolo- passam a não se diferenciar mais. Essa contraposiçao nos
gias científicas. mostra sua evidência a partir das formas conhecidas de
A adaptação das formas sociais de produção e cir- ação relativas ao processamento técnico de materiai:_, por
culação aos avanços científicos e técnicos certamente fez uin lado, e, por outro, ao trato com a natureza orgamca
prevalecer os imperativos de uma única forma de ação, e para fins terapêuticos ;m de cri~ção. O manejo cuidadoso
justamente a instrumental. Não obstante, a própria ar- de sistemas que mantem seus hm1tes e CUJOS meca~1sm~s
de autocondução poderiam ser perturbados por nos, nao
quitetônica das formas de ação permaneceu intacta. A(~
se distingue apenas devido a uma consideração cog;'itiva
hoje, a moral e o direito conservam, nas sociedades com-
pela dinâmica própria do processo v!lal. Ele lambem s~
plexas, suas funções de regulação normativa da práxis. O
vincula a uma consideração prática, a um tipo de respe!l~,
equipamento e a preparação tecnológica de um sistema
e quanto mais próximas as espécies tratadas estive:em de
de saúde, que depende de uma indústria farmacêutica e
nós mais claras serão. A empatia ou a "compreensao ma-
de aparelhagem médica, certamente levou a crises, tanto
quanto a mecanização da agricultura racionalizada pela
nif~stada" em relação à vulnerabilidade da vida orgânica,
que cria um entrave moral ao manejo prático, funda-se
economia empresarial. Todavia, essas crises mais trouxe-
abertamente na sensibilidade do próprio corpo e na dis-
ram à memória a lógica da ação médica ou do trato eco- tinção entre uma subjetividade, embora rudimentar, do
lógico com a natureza de que a eliminaram. A força legi- mundo de objetos manipuláveis.
timadora das formas "clínicas" de ação, clínicas no senti- A intervenção biotécnica, que substitui o tratamento
do mais amplo, cresce à medida que sua relevância social clínico, interrompe essa "correspondência" com outros
diminui. Atualmente, a pesquisa genética e o desenvol- seres vivos. Todavia, o modo de ação biotécnico distingue-
vimento da técnica genética são justificados à luz de ob- se da intervenção técnica do engenheiro por meio de uma
jetivos biopolíticos relativos à nutrição, à saúde e ao pro- relação de "colaboração" - ou de "bricolagem" 36 - com
longamento da vida. A esse respeito, é comum que se
esqueça do fato de que a revolução da práxis de criação,
mediante o uso da técnica genética, não se realiza mais 36. Certamente, há uma diferença se interpretarmos nossas
intervenções biotécnicas na natureza sob condiçõ.es de laboratór~o ou,
no modo clínico da adaptação à dinâmica própria da natu- conforme F. Jakob (Das Spiel des MOglichen, Mumque, 1983), se mter-
reza. Ela sugere, antes, a neutralização de uma distinção pretarmos a evolução da natureza em si de .acordo com o modelo da
fundamental, que também participa da constituição de bricolagem. Essa diferença torna-se normahvament~ .relevante ~uan­
nossa autocompreensão enquanto seres da espécie. do uma interpretação for ligada à outra de mo?o _leg_ttlm~dor, a flm de
sugerir o paralogismo naturalista de que a b;ot~cmca .e apena: uma
Na medida em que a evolução aleatória das espé- continuação da evolução natural com seus propnos me10s. Base10-me
cies move-se para o campo de intervenção da tecnologia num manuscrito de P. Janich e M. Weingarten, Verantwortung ohne
genética e, por conseguinte, da ação que é de nossa res- Verstiindnis. Wie díe Ethikdebatte zur Gentechnik von deren Wissenschafts-
ponsabilidade, as categorias que, no mundo da vida, sepa- theorie abhiingt, Marburg, 2001.

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66 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 67

uma natureza tornada disponível: "No caso da matéria e uma compreensão universalista da moral. Jonas expressa
morta, o produtor é o único a agir na relação com o ma- essa inquietação com a seguinte questão: "Mas de quem
terial passivo. No caso de organismos, a atividade depa- é esse poder- e sobre quem ou o quê? Obviamente, tra-
ra com a atividade: a técnica biológica colabora com a ta-se do poder atual sobre o que está por vir, que são os
automaticidade de um material ativo, com um sistema olijetos indefesos de decisões prévias, tomadas pelos pro-
biológico que funciona naturalmente, ao qual deve-se in- jetistas de hoje. O reverso do poder atual é a servidão pos-
corporar um novo elemento determinante. [... ] O ato téc- terior dos vivos em relação aos mortos."
nico tem a forma da intervenção, não da construção"37. Com essa dramatização, Jonas desloca a tecnologia
A partir dessa descrição, Hans Jonas conclui que a autoL~ genética para o contexto de uma dialétic~ aut~destrutiva
referencialidade característica e a irreversibilidade da in- do esclarecimento, segundo a qual a dommaçao da natuc
tervenção num fato complexo e auto-regulado terão con- reza faz com que a espécie volte a ficar à mercê da ni-
seqüências bastante incontroláveis: "'Produzir' significa tureza39. O coletivo singular da "espécie" também forma
aqui liberar na corrente do devir, em que o produtor tam- 0 ponto de referência para a discussão entre a teleologia
bém se move"38 .
natural e a filosofia da história, entre Jonas e Spaemann,
Quanto mais despreocupada for a intervenção na de um lado, e Horkheimer e Adorno, de outro. No entan-
composição do genoma humano, tanto mais o estilo clíni- to, o nível de abstração em que essa discussão se realiza é
co do trato se aproxima do estilo biotécnico da intervenção muito elevado. Precisamos distinguir claramente entre os
e confunde-se a distinção intuitiva entre o que cresceu tipos autoritário e liberal de eugenia. A biopolítica, for the
naturalmente e o que foi fabricado, entre o subjetivo e o
time being [por enquantoL não tem, de forma alguma, o
objetivo- até atingir a auto-referência da pessoa em sua
objetivo de aperfeiçoar de modo definido o patrimônio
existência corporal. O ponto de fuga desse desenvolvi-
genético da espécie em seu conjunto. Por enquru;to, as ra-
mento é caracterizado por Jonas da seguinte forma: "En-
zões morais que proíbem instrumentahzar md!Vlduos en-
quanto dominada tecnicamente, a natureza volta agora a
quanto exemplares da espécie para esse objetivo_ c_oleti-
incluir o homem, que (até então) havia se contraposto a
ela na técnica como dominador." Com as intervenções vista ainda estão firmemente ancoradas nos pnnc1p1os da
na genética humana, a dominação da natureza transfor- constituição e da jurisprudência.
ma-se num ato da autodominação, que altera nossa au- Nas sociedades liberais, seriam os mercados que, re-
tocompreensão ética da espécie- e que poderia afetar con- gidos por interesses lucrativos e pelas preferências da de-
dições necessárias para uma conduta de vida autônoma manda, deixariam as decisões eugênicas às escolhas md!-
viduais dos pais e, de modo geral, aos desejos anárquicos
de fregueses e clientes: "While old-fashioned authorita-
37. H. Jonas, "Lasst uns einen Menschen klonieren", in: id.,
Technik, Medizin und Eugenik, Frankfurt am Main, 1985, p. 165.
38. Ibíd., p. 168. A incontrolabilidade aumenta com intervenções 39. M. Horkheimer, T. W. Adorno, Dialektik der Aujkliirung,
na linhagem germinativa. Ver nota de rodapé 2 acima. Amsterdam, 1947, p. 54.
68 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 69

rian -eugenicists sought to produce citizens out of a single cretion, why should genetic intervention to enhance nor-
centrally destgned mould, the distinguishing mark o f the mal offspring traits be any less legitimate?" 4 ' Esse argu-
new liberal eugenics is state neutrality. Access to informa- mento deve justificar a ampliação da tutela educativa dos
tion about the full range of genetic therapies will allow pais, assegurada pelos direitos constitucionais, sobre a li-
prospective parents to look to their own values in selec- berdade eugênica para melhorar a estrutura genética dos
ting improvements for future children. Authoritarian próprios filhos.
eugenicists would do away with ordinary procreative Contudo, a liberdade eugênica dos pais tem a ressal-
freedoms. Liberais instead propose radical extension of va de não poder colidir com a liberdade ética dos filhos.
them ." 40 con tu d o, esse programa so' e' compatível com·' Os defensores da eugenia liberal tranqüilizam -se com o
os fundamentos do liberalismo político, se as interven- fato de que as disposições genéticas sempre interagen;
ções eug_ênica~ positivas em pessoas tratadas genetica- com o ambiente de modo contingente e se transforma~
mente nao hmttarem nem as possibilidades de uma con- em propriedades dos fenótipos de forma não-linear. Por
duta de vida autônoma, nem as condições de um trato essa razão, uma programação genética tampouco signifi-
igualitário com outras pessoas_ ca uma não-admissibilidade de modificação dos futuros
Para justificar a não-colocação de objeções de ordem projetos de vida da pessoa programada: "The Iiberallin-
normativa em relação a essas intervenções, os defensores kage of eugenic freedom with parenta! discretion in res-
da eugenia liberal procedem a uma comparação entre a pect of educationally or dietarily assisted improvement
modificação genética do patrimônio hereditário e a modi- makes sense in the light of this modem undestanding.
fi cação de atitudes e expectativas por meio da socializa- ]f gene and environment are of parallel importance in
ção. Pretendem mostrar que, sob o ponto de vista moral accounting for the traits we currently possess, attempts to
não exist: ne~huma diferença considerável entre eugeni~ modify people by modifying either of them would seem
_e educaçao: !f spectal tutors and camps, training pro- to deserve similar scrutiny. [... ] We should think of both
grams, even the administration of growth hormone to types of modification in similar ways." 42 Esse argumen-
add a few inches in height are within parenta! rearing dis-
41. John Robertson, citado por N. Agar in: H. Kuhse e P. Singer
40_ N. Agar in: R Kuhse '; p_ Singer (2000), P- 17L ["Enquanto (2000), pp. 172 s. ["Se já se deixa a critério dos pais o modo de criar os
eug~mstas a~t19uados e autontanos procurariam produzir cidadãos a filhos, a opção por inscrevê-los em acampamentos onde estarão sob a
partir de um umco molde central projetado, a marca distintiva da nova tutela de monitores especiais e em programas de formação, e até mes-
eugenia libe~a~ é a neutra~idade ~o. Estado. O acesso à informação so- mo a possibilidade de administrar os hormônios de crescimento, para
bre toda a serrect: te.raptas genehcas permitirá aos futuros pais que que os filhos ganhem alguns centímetros na altura, por que então a
observe~ seus propr:os valores ao selecionarem melhorias para 05 intervenção genética para salientar os traços normais da prole deveria
futuros filhos. Eugemstas autoritários suprimiriam as liberdades de ser menos legítima?"]
procriação comuns. Já os liberais propõem a ampliação radical dessas 42. Ibid., p. 173. O mesmo paralelismo encontra-se em Buchanan
liberdades_"] et al., pp. 156 ss. ["A conexão liberal da liberdade eugênica com o cri-

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70 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 71

to depende de um paralelismo controverso, que se apóia O modo de experienciar esse corpo :nvo é primário e,
no nivelamento da diferença entre o que cresceu natural- "dele", também :nve a subjeti:ndade da pessoa humana44.
mente e o que foi fabricado, entre o subjetivo e o objetivo. Na medida em que o indi:nduo em crescimento, ma-
. ~onforme :n_mos, a manipulação estendida ao pa- nipulado de forma eugênica, descobre seu corpo :nvo
tnmomo heredJtano do homem anula a distinção entre também como algo fabricado, a perspectiva do partici-
ação clínica e produção técnica, no que diz respeito à pante da ":nda :n:nda" colide com a perspectiva reifican-
natureza mterna. Para aquele que trata de um embrião, te dos produtores ou artesãos. Pois, ao decidir sobre seu
a natureza, por assim dizer, subjetiva deste último mo- programa genético, os pais formularam intenções que
ve-se na mesma perspectiva da natureza externa e obje, ., mais tarde se converterão em expectativas em relação ao
tivada. Essa :nsão sugere a idéia de que influir na com- filho, sem, contudo, conceder ao seu destinatário, o filho,
posição de um genoma humano não é muito diferente a possibilidade de uma reconsideração. As intenções ~e
de influir no ambiente de uma pessoa em crescimento: programação de pais ambiciosos e afeitos a experiências,
a essa pessoa atribui-se a própria natureza como "am- ou também dos apenas preocupados, têm o status carac-
biente interno". Mas será que a atribuição, realizada a terístico de uma expectativa unilateral e inapelável. As in-
partir da :nsão do interventor, não colide com a auto- tenções que de fato se transformaram surgem na história
percepção do atingido? de :nda do atingido como componente normal das inte-
Uma pessoa só "tem" ou "possui" seu corpo (Korper) rações mas escapam das condições de reciprocidade da
na medida em que ela "é" esse corpo:nvo (Leib)- na rea- compreensão comunicativa. Os pais tomaram a decisão,
lização da sua :nda. Partindo desse fenômeno de ser e ter sem supor um consenso e somente em função de suas
um corpo ao mesmo tempo, Helmuth Plessner descreveu próprias preferências, como se dispusessem de uma coisa.
e analisou em sua época a "posição excêntrica" do ho- Como, porém, essa coisa se transforma em pessoa, a in-
mem43. Conforme mostra a psicologia cognitiva do de- tervenção egocêntrica assume o sentido de uma ação co-
municativa, que poderia ter conseqüências existenciais
senvol:nmento, ter um corpo é apenas o resultado de uma
para o ser em crescimento. No entanto, no sentido pró-
capacidade, adquirida na juventude, de contemplar de
prio, esse ser não pode dar nenhuma resposta às "requi-
forma objetivante o ser-um-corpo-:nvo em seu processo.
sições" geneticamente estabelecidas. Pois, em seu papel
de programadores, os pais ainda não tinham de forma
tério dos pais em relação ao aperfeiçoamento educacional ou nutricio- alguma como entrar na dimensão da história de :nda em
nal assistido faz sentido à luz da sua compreensão moderna. Se o gene que mais tarde eles então irão se encontrar com o filho,
e o ambiente são paralelamente importantes na formação dos traços na qualidade de autores das requisições.
~ue ~oje possuímos, tentativas de modificar pessoas a partir da modi-
ficaçao de ambos pareceria merecer um exame igualmente cuidadoso.
(...)Temos de pensar nos dois tipos de modificação do mesmo modo."] 44. Tilmann Habermas, "Die Entwicklung sozialen Urteilens bei
. 43. H. Plessner, Die Stufen des Organischen (1927), Gesammelte jugendlichen Magersüchtigen", in: Acta Paedo-psychiatrica, 51, 1988,
Schriften, vol. IV, Frankfurt am Main, 1981. pp. 147-55.
72 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
73
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL?

Ao estabelecerem um paralelo entre o destino natu-


bordinação ao consenso transforma a ação orientada por
ral e aquele relacionado à socialização, os eugenistas libe-
considerações egocêntricas em ação comunicativa. O ge-
rais simplificam as coisas.
neticista que realiza intervenções em seres humanos, en-
A equiparação da ação clínica a intervenções de ma-
nipulação também lhes facilita o passo seguinte para o quanto entende que está no papel de médico, não preci-
nivelamento da importante diferença entre a eugenia ne- sa "examinar o embrião com a mesma atitude objetivante
gativa e a positiva. Certamente, objetivos altamente gene- do técnico que observa uma coisa que será produzida,
ralizados, como o fortalecimento da defesa imunológica consertada ou direcionada a um rumo desejado. Na ati-
ou o prolongamento da expectativa de vida, são determi- tude performativa de um participante da interação, ele
nações positivas e encontram -se, não obstante, na linha pode antecipar o fato de que a futura pessoa aceitaria o
de objetivos clínicos. Por mais difícil que possa ser, no objetivo em princípio discutível do tratamento. Nesse caso
caso isolado, distinguir intervenções terapêuticas e, por- também, obviamente, não se trata da determinação on~
tanto, que visam evitar males, de intervenções eugênicas tológica do status, mas somente da atitude clínica da pri~
de aperfeiçoamento, a idéia reguladora a que obedecem meira pessoa para com um outro, ainda que virtual, que
as delimitações almejadas é bem simples45. Enquanto a um dia a reencontrará no papel de uma segunda pessoa.
intervenção médica for dirigida pelo objetivo clínico de Para tal intervenção pré-natal, um paciente preven-
curar uma doença ou proporcionar uma vida saudável, o tivamente "curado" pode, no futuro, comportar-se, en-
médico que realiza o tratamento pode supor o consen- quanto pessoa, de forma diferente de alguém que vem a
timento do paciente preventivamente tratado46. A su- saber que sua constituição genética foi programada- por
assim dizer, sem o acordo virtual e somente em função das
45. Buchanan et al. (2000), p. 121: "Disease and impairment both preferências de um terceiro. Somente nesse caso a inter-
physical and mental, are construed as adverse departures from or im- venção genética assume a forma de uma "tecnicização"
pairments of species-typical normal functional organization ... The line da natureza humana. Diferentemente da intervenção clí-
between disease and impaírment and normal functioning is thus drawn
in the relatively objective and non-speculative context provided by the
nica, o material genético é então manipulado a partir da
biomedical sciences, broadly construed" ("A doença e a deficiência, perspectiva de alguém que age de forma instrumental, e
tanto físicas quanto mentais, são interpretadas como desvios ou carên- que, por meio de sua" colaboração", provoca um estado
cias da organização funcional normal, típica das espécies ... Desse modo, desejado no campo do objeto, segundo seus próprios ob-
a linha que separa a doença e a deficiência do funcionamento normal é
traçada no contexto relativamente objetivo e não especulativo, forneci-
do pelas ciências biomédicas, amplamente interpretado"]. Os autores
gamets, embryos, fetuses and neonates, and for the temporarily un-
tratam a "normal functioning" [funcionamento normal] sob o ponto de
conscious, which does not wait on subsequent ratification by the per-
vista normativo, em analogia com os bens sociais primários apresenta-
son concerned" ["Isso é importante porque precisamos de uma decla-
dos por Rawls como "natural primary goods" [bens naturais primários].
ração de incapacidade que possamos usar para os gametas, os em-
46. J. Barris, "ls Gene Therapy a Form of Eugenics", in: H.
briões, os fetos e os neonatos potencialmente autoconscientes, bem
Kuhse e P. Singer (2000), p. 167: "This is important because we need
como para os temporariamente inconscientes, e que não espera por
an account of disability we can use for the potentially self-conscious
uma ratificação posterior por parte da pessoa envolvida"].
74 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA UBERAL? 75

jetivos'. Intervenções que alteram as características gené- soa e determina seu comportamento, é o conhecimento
ticas constituem um fato da eugenia positiva quando ul- posterior que essa pessoa toma da situação que poderia
trapassam os limites estabelecidos pela "lógica da cura", intervir na sua auto-relação com sua existência corporal
ou seja, da ação, supostamente aprovada, de evitar males. e psíquica. É na cabeça que a alteração se operaria. A
A eugenia liberal precisa se questionar se, em de- mudança da consciência se realizaria em conseqüência
terminadas circunstâncias, o fato de a pessoa programa- da mudança de perspectiva da atitude performativa da
da perceber a ausência de diferença entre o que cresce na- vida vivida de uma primeira pessoa para a perspectiva de
turalmente e o que é fabricado, entre o subjetivo e o ob- observador, a partir da qual o próprio corpo foi transfor-
jetivo, não poderia ter conseqüências para sua conduta'., mado em objeto de uma intervenção anterior ao nasci-
autônoma de vida e para sua autocompreensão moral. mento. Quando o indivíduo em crescimento passa a saber
Em todo caso, não podemos proceder a uma avaliação do design que outra pessoa projetou para ele, a fim de a~e­
normativa antes de adotarmos a perspectiva das pessoas rar características em sua constituição genética- na sua
envolvidas. autopercepção objetivante -, a perspectiva de ter sido pro-
duzido pode sobrepor-se àquela de ser um corpo vivo que
cresce naturalmente. Com isso, a neutralização da distin-
V. Proibição de instrumentalização, natalidade ção entre o que cresce naturalmente e o que é fabricado
e poder ser si mesmo alcança o modo de existência próprio. Essa neutralização
poderia desencadear em nós a consciência vertiginosa de
Aquilo que confunde nossos sentimentos morais que, após uma intervenção da técnica genética anterior a
diante da idéia de uma programação eugênica é o que ; . nosso nascimento, a natureza subjetiva, vivida por nós de
Andreas Kuhlmann apresenta na seguinte fórmula obje- modo indisponível, seria fruto da instrumentalização de
tiva: "Obviamente, os pais sempre nutriram fantasias ares- f
uma parte da natureza externa. A rememoração da ante-
peito daquilo em que seus descendentes um dia irão se rior programação de nosso patrimônio hereditário de cer-
tornar. No entanto, é diferente quando as crianças são to modo exige de nós, no âmbito existencial, que subme-
confrontadas com idéias de pré-fabricação, às quais, em tamos e subordinemos, como uma realidade ulterior, o
última análise, elas devem sua existência." 47 Essa intuição fato de ser um corpo vivo ao de ter um corpo.
seria mal entendida se a ligássemos a um determinismo Diante de uma dramatização imaginária desse estado
genético48 . Pois, independentemente da extensão com de coisas, surge certamente alguma dúvida. Quem pode
que uma programação genética realmente estabelece as saber se a ciência do fato de que outra pessoa projetou
qualidades, as disposições e as capacidades da futura pes- o design para a composição do meu genoma deva ter algu-
ma importãncia para minha vida? É antes improvável que
47. A. Kuhlmann (2001), p. 17. a perspectiva de ser um corpo vivo perca a primazia em
48. Buchanan et ai. (2000), pp. 90 ss. relação a ter um corpo que foi objeto de preparo genético.
76 O FUTURO DA NA TUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 77

A perspectiva de participante da experiência de ser um ção na atitude da ação comunicativa. Devem adotar a
corpo vivo só pode ser transposta de forma intermitente perspectiva do participante em primeira pessoa e consi-
para a perspectiva externa de um (auto-)observador. O derar o outro corno segunda pessoa, com a intenção de
conheCimento da anterioridade do ser produzido não tem entender-se com ele em vez de tratá-lo como objeto a
necessanamente nenhum efeito de auto-alienação. Por que partir da perspectiva de observação de urna terceira pes-
o homem também não pode se acostumar com um "So soa e de instrumentalizá -lo para seus próprios objetivos.
what?" ["E daí?"] dito com um encolher de ombros? Após O limite moralmente relevante da instrumentalização é
as ofensas a nosso narcisismo, que Copérnico e Darwin marcado por aquilo que, no confronto com a segunda pes-
n;'s mfhguam com, a destruição de nossa imagem geo- ' ., soa, necessariamente escapa de todas as intromissões da
centnca e antropocentrica do mundo, talvez passemos a primeira, enquanto a relação de comunicação, ou seja, a
aco:npanhar com mais serenidade a terceira descentrali- possibilidade de resposta e de posicionamento, perrna~­
zaçao de nossa imagem do mundo- a submissão do cor- ce absolutamente intacta- e, portanto, o instrumento e o
po vivo e da vida à biotécnica. meio pelos quais uma pessoa é ela mesma quando age e
Um indivíduo programado eugenicamente precisa se justifica perante os críticos. O "si mesmo" do objetivo
cor;VIver com a consciência de que seu patrimônio here- em si, que devemos considerar na outra pessoa, manifes-
ditar~o foi manipulado com o propósito de exercer uma ta-se especialmente na autoria de urna conduta de vida,
mfl~encia em sua manifestação fenotípica. Antes de nos que se orienta segundo exigências próprias. Cada um in-
decidirmos a respeito de uma avaliação normativa desse terpreta o mundo a partir de sua própria perspectiva, age
fato, precisamos esclarecer os critérios que poderiam ser conforme os próprios motivos, esboça os próprios pro-
;;ol~dos por tal instrumentalização. Como dissemos, con- jetos, persegue os próprios interesses e intenções e é a
VIcçoes e normas morais têm sua sede em formas de vida fonte de pretensões autênticas.
que se reproduzem sobre a ação comunicativa de seu~ Certamente, os sujeitos agentes não estarão obede-
protagonistas. Uma vez que a individuação se realiza no cendo à proibição da instrumentalização mediante o sim-
meio :ocializante de uma densa comunicação verbal a ples controle da escolha de seus objetivos (no sentido de
mtegridade do indivíduo depende, de modo especial do Harry Frankfurt), segundo objetivos próprios de ordem
caráter cuidadoso de seu trato com outras pessoas.' De superior- ou ainda segundo objetivos gerais, ou seja, va-
todo ;nodo, ambas as formulações que Kant confere ao lores. O imperativo categórico exige de cada um quere-
pnncipiO da moral podem ser compreendidas. nuncie à perspectiva da primeira pessoa em favor de urna
A "formulação-meta" do imperativo categórico exor- perspectiva do nós, partilhada intersubjetivarnente, a par-
ta-nos a observar toda pessoa "em qualquer momento tir da qual todos podem chegar juntos a orientações axio-
e ao mesmo tempo corno objetivo em si mesma" mas lógicas universalizantes. Já a formulação-meta constitui a
f/nunca utilizá-la apenas como meio". Mesmo nos 'casos ponte para a formulação legal. Com efeito, a idéia de que
de conflito, os participantes devem prosseguir sua intera- as normas para serem válidas precisam obter consenso
78
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 79
geral manifesta-se com a notável determinação de que
prec~samos respeitar "a humanidade" em toda pessoa, na próprias experiências, em suas autên:icas prete.nsões e
medtda em que a tratamos como um fim em si mesma: iniciativas para agir de forma responsavel e, por_fim, na
"Aja de modo que nunca faça uso da humanidade como autoria da condução da própria vida, também nao pode
um meio, tanto na sua pessoa quanto na pessoa de outro, ser ofendida na autolegislação da comunidade moral. POis
mas sempre e ao mesmo tempo como um fim". A idéia ·a moral garante ao individuo a libe;da~e de conduzir sua
da h~manida?e nos obriga a adotar aquela perspectiva própria vida somente quando a aphcaçao de n_:nmas um-
do nos, a partir da qual nos consideramos uns aos outros versais não restringir a margem de configuraçao dos pro-
como membros de uma comunidade inclusiva, que nãp-: jetos individuais de vida. Naprópria universalidade das
exclui ninguém. normas válidas é necessária a manifestação de uma cole-
A formulação legal do imperativo categórico, que nos tividade não-a;similadora e livreme~te i~tersubjetiva, gue
leva a vmcular a vontade às máximas que todos podem leve em consideração a fundada diversidade de mteffi:s-
querer como uma lei universal, determina de que modo ses e de perspectivas de interpretação em toda a extensao,
um entendimento normativo é possível nos casos de con- ou seja, que não nivele ou reprima ~voz dos outros- dos
flito. Conseqüentemente, quando se dá um desacordo em estranhos, dos dissidentes e dos Impotentes -, nem a
relação a orientações axiológicas subjacentes, sujeitos que marginalize ou exclua.
agem c~m autonomia pr~cisam entrar no discurso para Para tanto deve bastar a aprovação racionalmente
descobnr ou desenvolver JUntos as normas que, com vis- motivada de sujeitos independentes, que podem dizer
tas a uma matéria que necessita de regulação, mereçam a não: toda aprovação discursivamente obtida tira seu poder
aprovação fundamentada de todos. As duas formulações de validade da dupla negação das objeções fundadamen-
esclarecem a mesma intuição em diferentes aspectos. Por te rejeitadas. No entanto, essa concordância obtida no
um lado, trata-se de uma "finalidade em si mesma" da discurso prático só deixa de ser um consenso ~mposttzvo
pessoa, que enquanto individuo deveria poder levar uma quando inclui toda a complexidade das obJ~çoes elabo-
vida própria e insubstituível; por outro, trata-se do igual radas e considera a vanedade Ihm!tada dos mteresses e
respeito que cabe a toda pessoa em sua qualidade de pes- perspectivas de interpretação. Por,es~a razão, para~ pes-
soa. Desse modo, a universalidade das normas morais soa que emite juízos morais, o propno poder ser SI mes-
que assegura a todos um tratamento igual, não pode per~ mo é tão importante quanto para a que age moralmente
manecer abstrata; ela precisa permanecer sensível para é 0 ser si mesmo do outro. É no poder do participante do
lev~r em consideração as situações e os projetos indivi- discurso de dizer "não" que a compreensão espontânea de
duats de VIda de todos os indivíduos. si mesmo e do mundo, pertencente a indivíduos insubstt-
É isto o que o conceito de uma moral que entrecruza tuíveis precisa ser verbalizada. ·
uma individuação e uma universalização leva em conta. A ~sim como na ação, também no discurso se~ 11 sin:_"
autoridade da primeira pessoa, que se manifesta em suas e seu "não" contam, porque e na medida .em quee_a pro-
pria pessoa que está por trás de suas intenções, IniCiativas
80 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 81
e pretensões. Enquanto nos compreendermos como pes-
pessoa se entende co~ o a orig;m inequívoca de ~uas pró-
soas morais, partiremos intuitivamente do fato de que
prias ações e pretensoes. Po;em, para 1s~o, sera que ela
agimos e julgamos, in propria persona, de maneira insubs-
precisa fazer com que sua propna procede_ncJa remo_nt~ a
tituível- de que nenhuma outra voz além da nossa pró-
um início indisponível - ou seJa, a um m1c1o que so nao
pria nos fala. Em primeiro lugar, é considerando essa
prejulga sua liberdade se - como Deus ou a natureza -
"possibilidade de ser si mesmo" que "a intenção alheia",
escapar à disposição de outras pessoas? A n~turahdade
que se imiscui na nossa história de vida com o programa do nascimento também cumpre o papel conce!lualmente
genético, poderia representar um fator de perturbação. necessário desse início indisponível. Raras vezes a filo-
Para poder ser si mesma, também é necessário que a pes- , < sofia tematizou essas questões. Às exceções pertencem
soa se sinta em casa no próprio corpo vivo. Este corpo é Hannah Arendt, que apresentou o conceito de "natalida-
o meio pelo qual a existência pessoal se encarna, e pre- de" no âmbito de sua teoria da ação. q
cisamente de modo que na realização dessa existência Ela parte da observação de que, com o ~~scimento,
toda auto-referência objetivante, por exemplo em enun- toda criança começa não apenas outra histona de v1da,
ciados em primeira pessoa, seja não apenas desnecessá- mas uma nova. Arendt liga esse início enfático da vida hu-
ria, mas também sem sentido49. Ao corpo vivo se une a mana à autocompreensão de sujeitos agentes, capazes de
orientação de centro e periferia, próprio e alheio. A en- espontaneamente "fazer um novo começo". Para ela, a
carnação da pessoa nesse corpo possibilita não apenas a profecia bíblica "Um menino nos nasceu"* reflete um
distinção entre ativo e passivo, causado e ocorrido, feito e sentido escatológico em todo nascimento, com o qual se
encontrado; ela força uma diferenciação entre ações que une a esperança de que um totalmente outro quebre a
atribuímos a nós mesmos ou a outros. Todavia, a existên- corrente do eterno retorno. O olhar comovido de quem
cia corporal só possibilita essas distinções de perspectiva espera curioso pela chegada do recém-nascido revela a
sob a condição de que a pessoa se identifique com seu "expectativa do inesperado". Contra essa esperança m-
corpo vivo. E para que a pessoa possa se sentir em união definida em relação ao novo, o poder do passado sobre o
com esse corpo, ele ao que parece deve ser experimenta- futuro deve se espatifar. Com o conceito de natalidade,
do no seu desenvolvimento natural - como a continua- Arendt cria uma conexão entre o início da criatura e a
ção da vida orgânica, que se auto-regenera e a partir da consciência do sujeito adulto, de poder estabelecer ele
qual a pessoa nasceu. mesmo o início de novas correntes de ação: "O reinício
A própria liberdade é vivenciada como parte de algo que vem ao mundo junto com todo nasci~ento só pode;
naturalmente indisponível. Não obstante sua finitude, a se impor como válido porque ao novo recem-chegado e
atribuída a capacidade de fazer ele mesmo um novo co-
meço, ou seja, de agir. No sentido da iniciativa- de esta-
49. E. Tugendhat, Selbstbewusstseín und Selbstbestimmung, Frank-
furt am Main, 1979, pp. 68 ss; B. Mauersberg, Der tange Abschied von
der Bewusstseinsphilosophie, Frankfurt am Main, 2000.
*A profecia mencionada refere-se a Isaías 9,6. (N. da R.)
82 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 83
belecetu rn initium -, encontra -se um element o do agir mos vocação para sermos os autores de uma história de
presente em todos os atos humano s, o que não quer di- vida da qual nos apropriamos de maneira crítica. No en-
zer outra coisa senão que esses atos são exercidos pelos tanto, o" si mesmo" de urna pessoa que fosse exclusiva-
seres que vieram ao mundo pelo nascimento e estão sob mente o produto de um destino determinado e imposto
a condição da natalidade."50 apenas pela socialização escaparia na corrente de cons-
As pessoas sentem- se livres na ação, para iniciar telações, relações e relevâncias atuantes em sua forma-
algo novo, pois o nascimento, enquanto divisor de águas ção. Na mudança da história de vida, a continuação do
entre a natureza e a cultura, marca um recomeço". En- ser si mesmo só é possível porque podemo s vincular a
tendo essa alusão como se com o nascimento se estabe- ' < diferença entre o que somos e o que nos ocorre a uma exis-
lecesse urna diferenciação entre o destino determin ado tência corporal que é o prosseguimento de um destifo
pela socialização de urna pessoa e o destino natural de seu natural subjacente ao processo de socialização. A indls-
organismo. Somente a referência a essa diferença entre ponibilidade do destino natural que, por assim dizer, é
natureza e cultura, entre os inícios indisponíveis e a plas- anterior a um passado parece ser essencial para a cons-
ticidade de práticas históricas é que permite ao agente as ciência da liberdade - mas será que o seria também para
auto-atribuições performativas, sem as quais ele não po-
o poder ser si mesmo enquanto tal?
deria se entende r corno o iniciador de suas ações e pre- Da descrição sugestiva feita por Hannah Arendt, ain-
tensões. Com efeito, o ser si mesmo da pessoa exige um
da não se pode deduzir que as correntes anônima s de
ponto de referência além dos laços de tradição e dos con- ação, que perpassam o organismo que foi objetivo de in-
textos de interação próprios de um processo de formação,
tervenção genética, precisem necessariamente fazer com
em que a identidade pessoal começa a se formar de acor- que o próprio corpo vivo perca seu valor como base de
do com a história de vida. imputabilidade do si mesmo. Quando intenções alheias
Certamente, a pessoa só consegue se ver corno autor se instalam visivelmente no programa genético do pró-
de ações imputáveis e como fonte de pretensões autênti-
prio organismo, será que o nascimento deixa de signifi-
cas se supuser a continuidade de um si mesmo, que per-
car um ponto de partida que poderia dar ao sujeito agen-
maneça idêntico a si mesmo ao longo da história de vida.
te a consciência de poder ele mesmo fazer a qualquer
Sem essa suposição, não poderíamos encontra r nosso
moment o um começo? Certamente, quem encontrar em
destino determinado pela socialização de maneira refle-
sua constituição a sedimentação de uma intenção alheia
tida, nem formar uma autocompreensão revisória. A cons-
precisa reagir a ela. A pessoa program ada não é capaz
ciência atual de que somos os autores de nossas próprias
de entender a intenção do programador, inserida nela por
ações e pretensões está entrelaçada à intuição de que te-
meio do genoma alterado, corno um fato natural ou corno
urna circunstância contingente, que limita seu campo de
50. H. Arendt (1959), pp. 15 s. ação. Com sua intenção, o program ador intervém antes
51. Ibid., p. 243, cf. também pp. 164 s. corno protagonista de urna interação, sem se apresent ar
84
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 85
como_ antagonista no campo de ação da pessoa progra-
mada_ Todavia, o que é moralmente preocupante no cará- tico, não faz muita diferença, tão logo a p:ssoa em ques~ão
ter notadamente inapeláve] da intenção de um peer, que transforme essa expectativa em su~s propnas ,aspzraçoes
intervém na história de vida de outro peer por meio da e conceba sua reconhecível vocaçao smto~at!ca como
modificação genética? uma chance e um compromisso com seu pr~pn? :sforço.
. No caso de uma intenção da qual o mdzvzduo se
"~propriou" assim des:a f?nna: P?de não _ocorrer um efez-
VI. Limites morais da eugenia to de alienação da propna exzstencia pszqmco-~orporal,
\ ~ nem uma limitação correspondente da liberdade etic:_a para
Em sociedades liberais, todo cidadão tem o mesmo se conduzir uma vida "própria". Por o~tro lado, nao po-
direito de seguir seus planos de vida individuais "da me- demos excluir a possibilidade de casos dzssonantes enqllf-~­
lhor maneira possível"_ Esse espaço ético de liberdade to não pudermos estar seguros de q~e um~ harmomzaçao
para fazer o melhor de uma vida que pode fracassar tam- entre as intenções próprias e as alhezas esta garantida. Em
bém é determinado por capacidades, disposições e qua- casos de intenções dissonantes, percebe:se qu~ o destmo
lidades condicionadas geneticamente. Com vistas à liber- natural e o determinado pela socializaçao dzstmguem -se
dade ética de levar uma vida própria sob condições o r- num aspecto moralmente relevante". Os processos de
gânicas iniciais não escolhidas por ela mesma, a pessoa sacia . I.1za ça-o somente se dão na ação" comumcativa
. e de-
programada encontra-se, inicialmente, numa situação que senvolvem sua força formadora no ambzto de processos
não é diferente da pessoa gerada de forma natural. Con- de compreensão e decisões, que, por parte _das pessoas
tudo, uma programação eugênica de qualidades e dispo- adultas de referência, também se uner;;' ~razoe: mterz:as,
sições desejáveis suscita considerações morais sobre o mesmo quando o "espaço das razões amda na o se tiver
projeto, quando ela instaura a pessoa em questão num
determinado plano de vida, portanto quando a restringe
52 Buchanan et ai. (2000), pp. 177 s: "Even if an individual is no
especificamente em sua liberdade de escolha de uma vida more lo~ked in by the effects of a parenta! choice t~an he or s~e would
própria. Obviamente, de maneira semelhante à tradição have been by unmodified nature, most of us might feel di_fferentl~
profissional dos pais, por exemplo, o indivíduo em cresci- about accepting the results of a natural lottery .versus th~l ~m~~;t
mento pode apropriar-se da intenção "alheia", que pais values of our parents. The force of feeling locke~ m. m~y we e I ~-
t" ["Mesmo que um indivíduo não esteja mats limitado pelos efei-
cuidadosos vincularam antes do nascimento a uma pre- ~~~ de uma escolha dos pais do que ele ou elateri~ ficado~ela nature-
disposição para determinadas aptidões. Se, porém, o en- za não modificada, a maioria de nós pod: sentrr algo dtferente ~m
contro desse indivíduo com a expectativa dos pais de, por relação a aceitar os resultados de uma lotena natural em contrap.artida
exemplo, tirar partido de um dom para a matemática ou a a aceitar os valores impostos por nossos pais. A ~orça desse sentimen-
to de limitação pode ser muito diferente"]. Cunosamente;, os~~~~~~
música, se dará na reflexão sobre a densa malha da socia-
lização familiar ou no confronto com um programa gené-
utilizam esse argumento apenas contra o que chamam de, :o
tarian eugenics" [eugenia comunitária},: n~o contra a pratica deu
ma

eugenia liberal em geral, a que são favoravers.


86 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA UBERAL?
87
aberto à criança, num deter mina do estágio de seu desen
- feito com as inten ções gene ticam ente fixadas não
volvirnento cognitivo. A estru tura interativa de proce pode,
ssos corno as pessoas nascidas naturalmente, se relacion~
de formação, em que a criança semp re assum e o c?~
pape l suas aptidões (e deficiências) no decorrer de urna h1sto
de urna segun da pesso a, torna funda ment alme nte na
"con - d.e vida cuja apropriação foi refletida e cuja conti nuaçã
testáveis" as expectativas dos pais quan to à formação o
do foi voluntária, de mane ira que reveja sua autoc ornpr
caráter de seus illhos. Visto que mesm o urna "dele gação een-
" são e enco ntre urna respo sta produtiva para sua situaç
psiquicamente intere ssant e das crianças só pode ocorr ão
er inicial. De resto, essa situação assem elha- se à do clone
no âmbito das razões, os indivíduos em crescimento ,
têm,
em princípio, urna chanc e de respo nder e de se libert que é privado de um verdadeiro futuro próprio pelo
ar '., olhar
retro ativa rnent e'3. Eles pode m equilibrar a assim etria rnode lador volta do à pesso a e à histó ria de vida de
da um
depen dênci a infantil de modo retrospectivo e se libert "irmã o gême o" tardio 54 .
ar · ~
dos processos de socialização que limitam a liberdade As intervenções eugênicas de aperf eiçoa ment o pre-
por
meio de urna renovação crítica da gênese. Até mesm judicam a liberdade ética na medi da em que subm etem
o fi- a
xações neuróticas pode m ser solucionadas anali ticam pesso a em quest ão a intenções fixadas por terceiros,
en- que
te pela reelaboração da visão adquirida das coisas. ela rejeita, mas que são irreversíveis, impe dindo -a
de se
É justa ment e essa chanc e que não existe no caso de comp reend er livremente corno o autor único de sua
pró-
urna fixação genét ica, que os pais efetu aram confo pria vida. Pode ser que seja mais fácil identificar-se
rme com
suas preferências pessoais. Urna intervenção genética capac idade s e aptid ões do que com dispo siçõe s ou
não até
abre o espaço de comu nicaç ão para dirigir-se à crian qualidades; porém, para a ressonância psíquica da pesso
ça a
planejada corno urna segun da pessoa e incluí-la num
pro-
cesso de compreensão. A partir da perspectiva do indiv
í- 54. Cf. o argumento de Hans Jonas, in: id. (1985),
duo em crescimento, não se pode rever urna deter mina pp. 190-3; a
- esse respeito, ver K. Braun, Menschenwürde und Biomed
ízin, Frankfurt
ção instrumental corno um processo patogênico da socia am Main, 2000, pp. 162-79. Buchanan et ai. (2000) levam
- em conta o
lização por meio da "apro priaç ão crítica". Esta não "direito da criança a um futuro aberto" (que Joel Feinbe
per- rg haVIa eXIgi-
mite a um adolescente, que lança um olhar retrospecti do em outro contexto: "The Child's Right to an open
vo Future", in: W.
para a interv enção pré-n atal, um proce sso de apren Aiken, H. LaFollette (eds.), Whose Child? Chíldren's
Rights, Parenta/
di- Authority, and State Power, Totowa, N), 1980). Todavia, eles
zagem revisório. O confr onto descontente com a inten são da opi-
ção nião de que esse direito só poderia ser prejudicado pelo
modelo pr~­
geneticamente fixada de urna terceira pessoa não tem cursor de um gêmeo tardio, sob as premissas incorretas
so- do determi-
lução. O progr ama genético é urna realidade muda nismo genético. Ignoram que neste com? no c~so
da prática eugêni~a
e, em de aperfe içoam ento conta sobretudo a mtenç ao
certo senti do, irreplicável; pois aque le que está insat com a qual se reah-
is- za uma intervenção genética. Como é do conhecime~to
da ~esso~ em
questão, a manipulação só é realizad~ com o
intuito de I..n~uzr na
53 .. Cf. acima a alusão a Kierkegaard enquanto o primei manifestação fenotípica de um determmado progra
ro ético ma genetico, na-
moderno. turalmente sob a condição de que as tecnologias necess
árias para tan-
to sejam comprovadas.
88 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 89

em q~estão, importa apenas a intenção que estava liga- Diferentemente da dependência social da relação pais-
da ao propósito da programação. Somente no caso de se e-filhos, que sempre se desfaz com o acess? das_crianças
evitar males extremos e altamente generalizad os é que à idade adulta, na medida em que as geraçoes vao se su-
surgem bons motivos para se aceitar o fato de que o in di- cedendo, por certo a dependênci a genealógzc~ dos fllhos
víduo afetado concordaria com o objetivo eugênico. em relação aos pais não é reversível. Os pms geram os
Por certo, uma eugenia liberal afetaria não apenas o filhos, mas os filhos não geram os pais. TodaVIa, essa
ilimitado poder ser si mesmo, pertencente à pessoa pro- dependênci a refere-se unicamente à existência, que po-
gramada. Tal prática produziria, ao mesmo tempo, uma,., de ser censurada apenas de forma notadamen te abstr~­
relação interpessoal, para a qual não há nenhum caso de ta, e não à essência dos filhos, nem a alguma determ!-
precedência. Com a decisão irreversível, que uma pessoa nação qualitativa de sua vida fut':ra .. Em c,o.mparaçao
toma sobre a composição desejada do genoma de outra, com a dependênci a social, a dependenc1a genettca da rei-
surge entre ambas um tipo de relação, que questiona um soa programada concentra-s e num único ato ,imputáv_:l
pré-requisit o até então evidente da autocompre ensão ao programador. Porém, no âmbito de uma pra~Ica euge-
moral de pessoas que agem e julgam de maneira autôno- nica, atos desse tipo - omissões bem como a~?es .- fun-
ma. Uma compreensão universalista da moral e do direi- damentam uma relação social, que supnme a reciproci-
to parte da idéia de que nenhum impediment o de prin- dade" habitual "entre pessoas que nasceram do mesmo
cípio se opôe a uma ordem igualitária de relações inter- modo"55. O planejador do programa dispõe unilateral-
pessoais. Obviamente, nossas sociedades estão marca- mente, sem supor o consenso fundamenta do, da co~sti­
das por uma violência manifesta e estrutural. Elas estão tuição genética de uma outrapesso a, com o propos1to
impregnadas com o micropoder de repressões silenciosas aternalista de dar um encammham ento relevante para
p
a história de vida do dependente . A.mtençao - po d e s~r
e são deturpadas pela opressão despótica, pela privação
dos direitos políticos, pela destituição dos poderes sociais interpretada por este último, mas não revista. nem ~esfei­
e pela exploração econômica. Não poderíamos nos indig- ta. Irreversíveis são as conseqüências, pois a mtençao pa-
nar a esse respeito se não soubéssemo s que essas situa- ternalista sintetiza-se num programa genético desarma-
ções humilhante s também poderiam ser diferentes. A con- do, e não numa prática socializante, me,~iada p~la comu-
vicção de que todas as pessoas recebem o mesmo status nicação, que pode ser recuperada pelo pupilo . .
normativo e devem umas às outras um reconhecim ento A irreversibilidade das consequencJas de mampula-
ções genéticas parcialment e realizadas a partir de uma
recíproco e simétrico parte de uma reversibilidade funda-
decisão unilateral significa uma responsab1hdad~ ~roble­
mental das relações inter-human as. Ninguém pode de-
mática para aquele que se julga capaz de tal dec1sao. Po-
pender do outro de modo fundamentalmente irreversível.
Com a programação genética, surge, no entanto, uma re-
lação assimétrica em muitos aspectos- um paternalismo 55. Cf. minhas três réplicas, in: J. Habermas, Die postnationale
sui generis. Konstellation, Frankfurt am Main, 1989, pp. 243-56.
90 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA UBERAU
91
rém, será que ela precisa significar de per si para a pessoa
adequ ados para se tentar compe nsar a reciprocidade que
atingida uma limitação de sua autonomia moral? Todas as
falta entre as gerações com uma institucionalização jurí-
pessoas, mesm o as nascidas naturalmente, depen dem do
dica do processo adequ ado e restabelecer a simetria per-
seu progra ma genético de uma manei ra ou de outra. A
turbada, instituindo normas que tendam à universalidade.
dependência em relação a um programa genético estabe -
Será que tal instituição de norma s sobre a ampla base de
lecido intencionalmente é relevante para a autoco mpree n-
uma formação ético-política da vontad e não poder ia exi-
são moral da pesso a progra mada por outra razão. Por
mir os pais da responsabilidade questionável de uma de-
princípio, nega -se-lh e a possibilidade de trocar de papel
cisão individual, tomad a somen te em função de suas pre-
com seu programador. Em pouca s palavras, o produ to <
ferências pessoais? Poderia a legitimidade de uma vonta-
pode não esboç ar um design para o seu designer. Nesse
de geral e democrática absorver os pais, que molda m q
caso, intere ssa-no s a programação não sob o ponto de
destino genético de seu filho conforme suas próprias pre•
vista de ela limitar ou não o poder ser si mesm o e a liber-
ferências, da mácula do paternalismo e restituir às pes-
dade ética de outra pessoa, mas sob o aspecto de se e
soas afetadas um status de alguém que nasceu sob igual
como ela eventu almen te imped e uma relação simétrica
condição? Com efeito, essas pessoa s poder iam deixar de
entre o progra mador e o produ to" desen hado" de tal ma-
se considerar apena s como dependentes, tão logo fossem
neira. A programação eugênica estabelece uma depen dên-
incluídas, como co-autoras democráticas de uma regra le-
cia entre pessoa s que sabem que, para elas, por princípio
gal, num consenso que se sobrepõe às gerações e eleva a
está excluída a possibilidade de trocarem seus lugares so-
assimetria irremediável no caso isolado para o estágio mais
. ciais. Contudo, tal depen dência social, que é irreversível,
alto da vonta de universal.
já que sua ancoragem social depen de do que ela instau -
Contudo, o experimento fictício mostra por que essa
rou de modo atributivo, forma um corpo estran ho nas re-
tentativa de reparação necessariamente fracassa. O con-
lações recíprocas e simétricas de reconhecimento, que ca-
senso político necessário seria forte ou fraco demais. Forte
racterizam uma comun idade moral e jurídica de pessoa s
demais porqu e um estabelecimento definitivo de objetivos
livres e iguais.
coletivos, que ultrap assam a preven ção de males sobre
Até o mome nto, somen te as pessoas nascidas, e não
a qual existe uma concordância, interferiria de manei ra
as produzidas, encon traram -se em interações sociais. No
antico nstituc ional na auton omia privad a dos cidadãos;
futuro biopolítico, prenu nciado pelos eugenistas liberais,
fraco demai s porqu e a simples permissão para que se faça
essa relação horizontal seria suplantada por um conjunto
uso de proced iment os eugênicos não poder ia eximir os
de ações e comunicações entre as gerações, que se instau -
pais da respon sabilid ade moral pela escolh a altam ente
raria verticalmente por meio da modificação intencional
pessoal de objetivos eugênicos, uma vez que a conse -
do genom a dos nascituros.
qüência problemática de uma limitação da liberdade ética
Poderíamos imaginar que justamente o Estado cons-
não está excluída. Práticas da eugenia de aperfeiçoamen-
titucional democ rático oferece o panor ama e os meios
to não podem ser "norm alizad as" de modo legitimo no
'
I
I
92 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 93
âmbito de uma sociedade pluralista e democraticamente direitos humanos- um contexto de inserção que não po-
constituída, que concede a todo cidadão igual direito a
de ser rompido, se não quisermos que a própria moral
uma conduta de vida autônoma, porque a seleção das dis- venha a derrapar.
posições desejadas a priori não pode ser desatrelada do
. Essa relação interna da ética da proteção à vida com
prejulgamento de determinados projetos de vida.
o modo como nos compreendemos enquanto seres autô-
nomos e iguais, orientados por fundamentos morais, evi-
VII. Precursores de uma dencia -se claramente diante do pano de fundo de uma
auto-instrumentalização da espécie? ' ., possível eugenia liberal. As razões morais, que em hipóte-
se são suscitadas contra tal prática, também desabonam
Qual o resultado dessa análise para um julgamento as práticas que preparam o caminho para a eugenia lib<j-
dos debates atuais sobre a pesquisa de células-tronco e do ral. Hoje, precisamos nos perguntar se eventualmente
DGPI? Inicialmente, na parte li, tentei esclarecer por que as gerações futuras vão se conformar com o fato de não
é enganosa a esperança de poder resolver a controvérsia mais se conceberem como autores únicos de suas vidas-
com um único argumento moral decisivo. Do ponto de e também de não serem mais responsabilizadas como tal.
vista filosófico, não é absolutamente obrigatório estender Será que essas gerações se contentarão com uma relação
o argumento sobre a dignidade humana à vida humana interpessoal, que não se adapta mais às condições igua-
"desde o início". Por outro lado, a distinção jurídica entre litárias da moral e do direito? E será que a forma grama-
a dignidade incondicionalmente válida da pessoa e uma tical do nosso jogo moral de linguagem não se alteraria
proteção da vida do embrião, que, por princípio, pode ser de modo geral- e a compreensão de sujeitos capacitados
pesada em oposição a outros bens protegidos por dispo- para a linguagem e para a ação enquanto seres não teria
sitivos legais, não favorece em nada a discussão insolúvel importância para os fundamentos normativos? Os argu-
sobre os conflitos éticos de objetivos. Com efeito, confor- mentos que expus nas partes Na VI deveriam tornar plau-
me mostrei na parte lll, a avaliação da vida humana pré- sível o fato de que hoje essas questões já nos colocam na
pessoal não se refere a um "bem" entre outros bens. O expectativa de outros desenvolvimentos da técnica gené-
modo como lidamos com a vida humana antes do nasci- tica. Inquietante é a perspectiva de uma prática de inter-
menta (ou com as pessoas após a sua morte) afeta nossa venções da técnica genética que alteram características,
autocompreensão enquanto seres da espécie. E as repre- prática essa que supera os limites da relação básica de co-
sentações de nós mesmos como pessoas morais encon- municação entre médico e paciente e entre pais e filhos,
tram-se estreitamente entrelaçadas com essa autocom- e que mina nossas formas de vida normativamente es-
preensão ética da espécie. Nossas concepções e nossa for- truturadas por meio da autotransformação eugênica.
ma de lidar com a vida humana pré-pessoal formam, por Essa inquietação explica uma impressão que se po-
assim dizer, um ambiente estabilizador, do ponto de vista de adquirir com os debates sobre a bioética e também
da ética da espécie, para a moral racional dos sujeitos de com os efetuados pelo parlamento federal alemão. Quem
94 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL' 95

conduz esse discurso (por exemplo, os deputados do FDP*) pessoa alguma. Diferentemente da pesquisa com embriões,
no estilo da ponderação totalmente normal entre bens aqui é de grande importância uma consideração moral
concorrentes, protegidos por dispositivos legais, parece contra a possibilidade de a futura pessoa sofrer muito56.
perder o tom. Não que o caráter existencial absoluto te- O~ defensores de uma regulamentação, que eventual-
nha a priori mais direito do que as ponderações sobre os mente limitaria a legitimidade do processo a poucos ca-
interesses. No entanto, muitos de nós parecemos seguir sos "inequivocamente extremos de doenças hereditárias
a intuição de que não gostaríamos de compensar a vida condicionadas monogeneticamente, poderiam alegar, em
humana, mesmo no seu estágio mais precoce, com a li- < primeiro lugar57, contra a proteção à vida, o interesse, que
berdade (e a capacidade de concorrência) da pesquisa,' podemos perceber e defender, da futura pessoa em ques-
nem com o interesse por manter um mercado atraente tão de evitar uma vida futura que seja limitada de manei-
para investidores, tampouco com o desejo dos pais de ter ra insuportável. ~
uma criança saudável, nem, por fim, com a perspectiva No entanto, o fato de realizarmos para outrem uma
(aceita com base em argumentos) de novos métodos de distinção com sérias conseqüências entre a vida digna de
cura para doenças genéticas graves. O que essa intuição ser vivida e a não-digna ainda permanece inquietante.

I
pode exprimir se partirmos da idéia de que a vida huma- Será que os pais que querem satisfazer seu desejo de ter
na não é absolutamente protegida desde seu início do filhos e optam pela seleção não carecem de uma atitude
mesmo modo como a vida das pessoas o é? clínica, cujo objetivo seria a boa saúde dos filhos? Ou será
A objeção ao DGPI pode ser justificada de forma que eles se comportam, ainda que de modo fictício e, por-
l mais direta do que o escrúpulo comparativamente arcai- tanto, não-verificável, com a criança que está para nascer
j co em relação ao uso de embriões exclusivamente para
pesquisa. Duas coisas nos impedem de legalizar o DGPI:
da mesma forma como com uma segunda pessoa- su-
pondo que ela mesma diria "não" a uma existência de certo
r a geração de embriões mediante ressalva e a própria for- modo limitada? Eu mesmo não estou seguro; todavia, mes-
I ma dessa ressalva. Provocar uma situação em que even-
tualmente nos desfazemos de um embrião doente é tão
'I 56. Enquanto os defensores do DGPI tiverem como modelo a
questionável quanto a seleção a partir de critérios esta- indicação médica válida para o aborto, eleS se proibirão de mudar a
belecidos de forma unilateral. A seleção só pode ser fei- perspectiva daquilo que não é recomendável para a mãe para aquilo
ta de forma unilateral e, até certo ponto, instrumentali- que se supõe que seja insuportável para a futura criança.
zadora, pois não se pode supor um consentimento ante- 57. Quando não se leva em conta o aspecto da seleção realizada
intencionalmente, há, por certo, outro ponto de vista a ser considera-
cipado, que, como no caso de intervenções genéticas de do nesse processo e que recobre o direito da mulher à autodetermina-
caráter terapêutico, poderia ao menos ser posteriormente ção, numa situação de aborto, que é uma situação de outra natureza: a
ratificado pelos pacientes tratados: nesse caso não surge capacidade dos pais de enfrentar as circunstâncias. Estes também pre-
cisam se julgar capazes de assumir a grande responsabilidade por uma
criança, com a qual passarão a dividir sua vida, até sob circunstâncias
*Freie Demokratische Fartei: Partido Liberal Democrata [N. da T.]. que vão se agravando.
96 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA UBERAL? 97

mo os oponentes ainda teriam fortes razões, caso apon- soa, ela não se justifica a partir de uma dignidade humana
tassem (como recentemente o fez o presidente da Repúbli- metafisicamente compreendida. Contudo, o argumento
ca Federal Alemã) as conseqüências secundárias discrimi- moral que apresentei contra a eugenia liberal também in-
natórias e os efeitos problemáticos de nos acostumarmos terfere pouco, pelo menos não de maneira direta. A sen-
a proceder a uma avaliação tão restritiva a respeito de saçãd de que não podemos instrumentalizar o embrião
um modo supostamente prejudicado de vidf! humana. como uma coisa para qualquer outro objetivo encontra
Uma situação diferente surgirá quando a evolução da uma expressão ao se exigir que ele seja tratado antecipa-
técnica genética um dia permitir que se associe uma in- ., damente como uma segunda pessoa, que, se nascesse, pode-
tervenção genética de caráter terapêutico ao diagnóstico na ter sua própria atitude com relação a esse tratamento.
Todavia, a atividade puramente experimental ou" de con- :•
de doenças hereditárias graves e, com isso, que a seleção
sumo" no laboratório de pesquisa não visa absolutamen- ~
se torne desnecessária. Desse modo, ter-se-ia ultrapas-
te a um nascimento. Em que sentido essa atividade pode
sado o' limiar da eugenia negativa. Contudo, as razões
então "perder" a atitude clínica perante um ser, cujo con-
mencionadas, que hoje são apresentadas em favor da li-
sentimento, a ser obtido posteriormente, pode pelo me-
beração do DGPI, poderiam se tornar válidas para as in- nos ser suposto a princípio?
tervenções que alteram os genes, sem que fosse necessá- A referência ao bem coletivo de métodos de cura, que
rio colocar na balança uma deficiência indesejada e a pro- possivelmente poderiam ser desenvolvidos, encobre a cir-
teção da vida de um embrião "rejeitado". Uma alteração cunstância de uma instrumentalização incompatível com
genética (de preferência nas células somátiCas), que fos- a atitude clínica. Obviamente, o uso de embriões exclu-
se limitada a objetivos claramente terapêuticos, pode ser sivamente para pesquisa não pode ser justificado sob o
comparada ao combate de epidemias e pandernias. A pro- ponto de vista clínico da cura, pois este é talhado para o
fundidade da intervenção de meios operacionais não jus- trat~ terapêutico com a segunda pessoa. É o ponto de vis-
tifica nenhuma renúncia ao tratamento. ta clnuco, corretamente compreendido, que individualiza.
É necessário que se dê um esclarecimento mais com- Contudo, por que na pesquisa de laboratório deveríamos
plexo sobre a aversão à idéia de que o uso de embriões adotar o critério de uma relação virtual entre médico e
exclusivamente para pesquisa venha a instrumentalizar·a paciente? Se essa outra pergunta não nos remete à dis-
vida humana para satisfazer as expectativas de tirar pro- cussão essencialista sobre a definição "verdadeira" da vida
veito (e benefícios) de um avanço científico que nem pode em~rionária, ao final parece restar apenas uma ponde-
ser seguramente prognosticado. Nesse sentido, manifes- raçao de bens com o desenlace em aberto. Essa questão
ta-se a opinião de que "um embrião- ainda que seja ge- controvertida só não pode culminar num processo normal
rado in vítro - é um futuro filho de futuros pais e nada de ponderação, caso a vida pré-pessoal, conforme tentei
mais. Ele não está disponível para outros fins" (Margot esclarecer na parte III, tenha um peso suí generís.
von Renesse). Caso essa opinião se dê independentemen- Neste ponto, entra em ação o argumento, preparado
te de convicções ontológicas sobre o início da vida da pes- durante muito tempo, de que o desenvolvimento da téc-
98 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 99
nica gênética, no que se refere à natureza humana, torna de uma auto-instrumentaliz ação da espécie para- diga-
pouco nítida a distinção categoria! e profundamente se- mos, na extensa preocupação ética da espécie consigo
dimentada do ponto de vista antropológico entre o sub- mesma - manter intacta sua forma de vida, estruturada
jetivo e o objetivo, entre o que cresceu naturalmente e o na comunicação.
que foi fabricado. Por essa razão, para mim, junto com a · A pesquisa com embriões e o DGPI acirram os âni-
instrumentalização da vida pré-pessoal está em jogo uma mos· sobretudo porque exemplificam um perigo, que se
autocompreensão da ética da espécie, que determina se une à perspectiva da "criação de humanos". Junto com a
ainda podemos continuar a nos compreender como seres .. contingência da fusão de duas seqüências de cromosso-
que agem e julgam de forma moral. Quando nos faltam 1 • mos por vez, a: relação entre as gerações perde a natura-
razões morais que nos forcem a uma determinada atitu- . !idade que até então pertencia ao pano de fundo trivial d'?
de, temos de nos ater aos indicadores éticos da espécie58 . nossa autocompreensão ética da espécie. Se renunciar~
Suponhamos que, com o uso de embriões exclusiva- mos a uma "moralização" da natureza humana, poderia
mente para pesquisa, se imponha uma prática que trate a surgir uma densa corrente de ações entre as gerações,
proteção da vida humana pré-pessoal como algo secun- que transpassa as redes de interação contemporâneas de
dário em relação a "outros objetivos" e mesmo em rela- forma unilateral e na direção vertical. Conforme mostrou
ção à perspectiva do desenvolvimento de bens coletivos Gadamer, enquanto a história dÓs efeitos das tradições
de grande importância (por exemplo, novos métodos de culturais e processos de formação se desenvolve em meio
cura). A dessensibilização do nosso olhar em relação à a perguntas e respostas, os programas genéticos não dão
natureza humana, que caminharia de mãos dadas com a palavra aos nascidos. O costume de se dispor biotec-
o fato de nos habituarmos a tal prática, prepararia o cami- nicamente da vida humana, segundo certas preferências,
nho para uma eugenia liberal. Nesse sentido, hoje já po- não tem como deixar de afetar nossa autocompreensão
demos vislumbrar no futuro o fait accompli que se terá normativa.
passado e ao qual um dia os apologistas poderão se re- A partir dessa perspectiva, ambas as inovações con-
ferir como o passo decisivo que então teremos dado. O troversas nos mostram, já no estágio inicial, como nosso
olhar para um futuro possível da natureza humana nos modo de vida poderia ser alterado, caso as intervenções
alerta sobre a necessidade de regulamentação que já se da técnica genética para alteração de características fos-
faz sentir nos dias de hoje. Barreiras normativas no tra- sem totalmente emancipadas d~ contexto de uma ativi-
to com embriões produzem -se a partir da visão de uma dade terapêutica voltada para o indivíduo e se tornassem
comunidade moral de pessoas, que rejeita os precursores habituais. Nesse caso, não se pode mais excluir o fato de
que, com as intervenções eugênicas de aperfeiçoamento,
58. Rainer Forst tentou convencer-me com argumentos perspi- intenções "alheias", geneticamente estabelecidas, apro-
cazes de que, por esse caminho, eu estaria me desviando sem necessi- priem -se da história de vida das pessoas programadas.
dade da trilha da virtude deontológica. Nessas intenções, realizadas de modo instrumental, não
100 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL?
101
estão -manifestas as pessoas, diante das quais os indiví- vida no vácuo moral, numa forma de vida que não co-
duos afetados poderiam se posicionar como interlocuto- nheceria nem mais um cinismo moral, não valeria a pena.
res. Por essa razão, saber se e como tal ato reificante afeta Esse julgame nto exprime simples mente o "impuls o" de
nosso poder ser si mesmo e nosso relacionamento para se preferir uma existência da dignidade human a à frieza
com os outros é uma questão inquietante. Conseguiremos de· uma forma de vida insensível às considerações morais.
ainda continuar a nos compreender como pessoas, que se Com esse mesmo impulso explica-se a transição históri-
entende m como autores únicos de sua própria vida e tra- ca para o nível pós-tradicional da consciência moral, que
tam todas as outras pessoas, sem exceção, como se ti- se repete na ontogênese.
vessem nascido sob as mesmas condições? Com isso, en-' ., Quando as imagens religiosas e metafísicas do mun-
tram em jogo dois pressupostos essenciais da ética da es- do perdera m sua força universal, após a transição para
pécie, relativos à nossa autocompreensão moral. um pluralismo ideológico tolerado, nós (ou a maioria dJ
Certam ente, essa situação acirra a discussão atual nós) não nos tornamos cínicos frios nem relativistas in:
apenas enquan to ainda tivermos algum interesse exis- diferentes, pois nos mantivemos no código binário de
tencial em pertenc er a uma comuni dade moral. Não é julgamentos morais de certo e errado - e assim quisemos
evidente que desejemos receber o status de membr o de nos manter. Adaptamos as práticas do mundo da vida e
uma comunidade, que exige igual respeito por cada um e da comunidade política às premissas da moral da razão e
responsabilidade solidária para com todos. O fato de ter- dos direitos humanos, pois elas forneciam uma base co-
mos de agir de forma moral está subente ndido no pró- mum favorável a uma existência da dignidade human a
prio sentido da moral (compreendida deontologicamen- acima das diferenças ideológicas59 . Talvez, hoje a resis-
te). Todavia, por que deveríamos querer ser morais, se a tência afetiva à temida alteração da identid ade da espé-
biotécnica silenciosamente está anulando nossa identida- cie human a possa ser esclare cida- e justific ada- por mo-
de de seres da espécie? Uma avaliação da moral no todo tivos semelhantes.
não é um julgame nto moral em si, mas um julgam ento
ético em relação à espécie humana .
Sem aquilo que move os sentimentos morais da obri-
gação e da culpa, da censura e do perdão, sem o senti-
mento de libertação conferido pelo respeito moral, sem a
sensação gratificante proporcionada pelo apoio solidário
e sem a opressão da falha moral, sem a "amabilidade" que
nos permite abordar situações de conflito e contradição
com o mínimo de civilidade, perceberíamos necessa ria-
mente - e é assim que ainda pensamos - o universo po-
59. J. Habermas, "Richtigkeit versus Wahrheit", in: id., Wahrheit
voado pelos seres human os como algo insuportável. A und Rechtjertigung, Frankfurt am Main, 1999, pp. 271-318.
POSFÁCIO (FINAL DE 2001/INfCIO DE 2002)

Durante duas semanas consecutivas, tive o privilégio


de colocar erh discussão as teses sobre "O futuro da natu-
reza humana", num colóquio coordenado por Ronald
Dworkin e Thomas Nagel, intitulado Law, Philosophy &
Social Theory1. As objeções que meus argumentos encon-
traram nessa ocasião e, nesse intervalo, também na A!e-
manha2levaram-me a rever certas idéiàs. Mesmo quan-
do reconheço mais uma necessidade de explicação do que
de revisão, tomo cada vez mais consciência do caráter fi-
losoficamente abissal de uma discussão, que se refere aos
fundamentos naturais da autocompreensão de pessoas
que agem com responsabilidade.lv!esmo após a redação,
percebo as obscuridades que permaneceram. Tenho a im-
pressão de que ainda não refletimos suficientemente a
fundo sobre essa questão. Sobretudo no que se refere à

1. The Program in Law, Philosophy and Social Theory, NYU Law


School, outono de 2001.
2. Ver as contribuições de Dieter Bimbacher, Ludwig Siep e Ro-
bert Spaemann, in: Deutsche Zeitschrift für Philosophie 50 (2002) 1.
104 O FliTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 105

relação entre a indisponibilidade de um início contingen- te para os perigos da liberdade na dimensão vertical das
te da história de vida e a liberdade para dar uma forma relações entre o membro privado da sociedade e o poder
ética à própria vida, faz-se necessária uma análise mais público. Por trás do perigo predominante, representado
profunda. pela utilização do poder político de forma que se cometa
(1) Eu gostaria de partir de uma diferença interessan- uso abusivo do direito, está o temor de um uso abusivo da
te, relativa ao clima e ao pano de fundo das discussões, violência social, que as pessoas privadas podem exercer
das quais participei de um lado e de outro do Atlântico. umas em relação às outras na dimensão horizontal de
Enquanto na Alemanha os participantes do diálogo filo- seus relacionamentos. O direito do liberalismo clássico
sófico freqüentemente se utilizam de conceitos de pessoa ignora o "efeito horizontal"* dos direitos fundamentais.
normativamente saturados e de concepções da natureza A partir dessa perspectiva liberal, é quase evidente
metafisicamente carregadas para entrar num debate de que as decisões sobre a composição do patrimônio gené~
princípios, que procura submeter a uma análise mais céti- tico das crianças não devem ser submetidas a nenhuma
ca o que os desenvolvimentos futuros da técnica genética regulamentação do Estado, mas sim ser deixadas aos
(sobretudo nas áreas da criação de órgãos e da medicina pais. Parece próximo que a nova margem de decisão, aber-
reprodutiva) ainda têm de condicional, os colegas ameri- ta pela tecnologia genética, seja considerada como uma
canos se interessam principalmente pelo modo da imple- extensão material da liberdade de reprodução e do direito
mentação de um desenvolvimento em princípio não mais dos pais, portanto, como uma extensão dos direitos fun-
questionado e que, além da aplicação de terapias genéti- damentais individuais, que o indivíduo pode reivindicar
cas, termina com um shopping in lhe genetic supermarket perante o Estado. A perspectiva mtida se compreender-
[compras no supermercado genético]. Certamente, essas mos os direitos subjetivos públicos como o reflexo de uma
tecnologias passarão a intervir na relação entre gerações ordem jurídica objetiva. Esta pode então fazer com que os
de modo revolucionário. No entanto, para os colegas ame- órgãos estatais respeitem os deveres de proteção, como
ricanos, que pensam de modo pragmático, as novas prá- no caso da proteção à vida das crianças ainda não nasci-
ticas não suscitam problemas fundamentalmente novos, das, que não podem defender por si mesmas seus direi-
mas simplesmente agravam antigas questões relativas à tos subjetivos. Com essa mudança de perspectiva, os prin-
justiça distributiva. cípios objetivos que marcam a ordem jurídica em seu con-
Essa percepção não-circunstanciada do problema é junto movem-se para o centro da observação. O direito
determinada por uma confiança inquebrantável na ciên-
cia e no desenvolvimento técnico, mas sobretudo pela óti- * Em alemão, Dríttwirkung, que literalmente significa "efeito
ca da tradição liberal marcada por Locke. Esta coloca no entre terceiros". Tal expressão refere-se aos direitos fundamentais
nos direitos alemão, suíço e austríaco. Implica não apenas a idéia de
centro, contra as intervenções estatais, a proteção da li-
que os direitos têm um efeito entre o Estado e os particulares ("efeito
berdade de escolha do sujeito de direitos individuais e, na vertical"), mas também um efeito entre particulares ("efeito horizon-
análise de novos desafios, conduz seu olhar primeiramen- tal") [N. da T.).

I!
l

106 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0


107

objetivo encarna e interpreta a idéia fundadora do reco- interpretada no sentido de uma proteção gradual da vida.
nhecimento recíproco entre pessoas livres e iguais, que se Porém, se no momento da intervenção genética não é ado-
associam de livre e espontânea vontade, a fim de regula- tado nenhum direito à proteção incondicional da vida ou
mentar legitimamente seu convívio com o auxílio do di- à integridade física do embrião, o argumento do efeito
reito positivo. horizontal não encontra nenhuma aplicação direta.
Do ponto de vista da constituição de uma comunida- Eventualmente, o "efeito horizontal" que uma práti-
de democrática, a relação vertical entre o cidadão e o Esta- ca eugênica pode ter é de natureza indireta. Ele não fere o
do deixa de ser privilegiada em relação à rede horizontal direito de uma pessoa existente, mas, em determinadas
das relações entre os cidadãos. Quanto ao nosso proble- ' < circunstâncias, reduz o status de uma futura pessoa. Afir-
ma, impõem-se as seguintes questões: quais os efeitos do mo tal fato para o caso de a pessoa que passou por um tra-
direito dos pais de tomar uma decisão eugênica sobre os tamento pré-natal e depois tomou conhecimento do mo-~
filhos geneticamente programados? Será que essas con- delo utilizado para alterar suas características ter dificul-·•
seqüências eventualmente não afetam o bem-estar obje- dades para se compreender como membro autônomo de
tivamente protegido da futura criança? uma associação de indivíduos livres e iguais, nascido sob
Certamente, o direito dos pais de determinar as ca- igual condição. Segundo essa leitura, o direito dos pais,
racterísticas genéticas dos filhos só poderia entrar em con- materialmente expandido às possibilidades de interven-
flito com o direito fundamental de outrem se o embrião in ção eugênica, não entra diretamente em conflito com o
"bem -estar" da criança, garantido por seus direitos fun-
vitro já fosse "um outro", ao qual cabem direitos.funda-
damentais. No entanto, de maneira indireta, isso poderia
mentais absolutamente válidos. Essa questão, igualmen-
prejudicar sua consciência da autonomia, nomeadamen-
te controvertida entre juristas alemães, não pode serres-
te aquela autocompreensão moral que se deve esperar de
pondida num sentido afirmativo sob a premissa de uma
todo membro de uma comunidade de direito, estruturada
ordem constitucional ideologicamente neutra3. Sugeri
pela igualdade e pela liberdade, quando ele tem as mes-
que se fizesse uma distinção entre a intangibilidade da
mas chances de fazer uso de direitos subjetivos igual-
d1gmdade humana, conforme estabelecida no artigo 1?,
mente distribuídos. Portanto, o prejuízo que pode surgir
§ 1? da lei fundamental alemã, e a indisponibilidade da vida
não se situa no nível de uma privação de direitos. Ele con-
humana pré-pessoal. Esta, por sua vez, com base no direi-
siste, antes, na insegurança que um portador de direitos
to fundamental estabelecido no artigo 2?, § 2?, da lei fun-
civis sente em relação à consciência de seu próprio status.
damental alemã e deixado à especificação da lei, pode ser No momento em que toma consciência da contingência
de sua origem natural, o indivíduo em crescimento corre o
3. Cf. o Conselho Nacional de Ética (Nationaler Ethikrat) sobre a risco de perder uma condição mental para o acesso a um
importação de células-tronco de embriões humanos, dezembro de status, pelo qual ele pode chegar a gozar efetivamente de
2001, 5.1.1: Considerações ético-jurídicas sobre o status de fases ini-
ciais da vida embrionária. direitos iguais enquanto sujeito de direitos.
108 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 109

Nãó pretendo antecipar a discussão jurídica com essa do, a prática eugênica pode prejudicar o status da futura
rápida observação. Essas divergências de perspectiva, que pessoa enquanto um membro da comunidade universal
se explicam a partir de diferentes tradições nacionais, tan- dos seres morais, sem intervir diretamente nas esferas da
to do ponto de vista jurídico como do constitucional, con- liberdade de ação do indivíduo em crescimento geneti-
sistem apenas na base comum de uma moral individua- eamente modificado. Nesse caso, ninguém está sujeito a
lista da razão. A comparação das duas culturas jurídicas leis. gerais - exceto em seu papel de co-legislador autô-
presta-se ao único propósito de nos oferecer a ocasião nomo-, de modo que está excluída a heterodetermina-
heurística de tomar clara, em relação a um modelo jurídi- ção no sentido de submeter uma pessoa ao arbítrio in-
co, essa diferença de níveis, que me interessa destacar ' < justificado de outra. Contudo, não se deve confundir essa
na avaliação moral das conseqüências de uma "eugenia heterodeterminação, de certa maneira interna e banida
liberal". É assim que nomeio uma prática que deixa ao das relações entre pessoas que agem de forma moral, c<!n
parecer dos pais a possibilidade de intervir no genoma a heterodeterminação externa, que precede o ingresso ·na
do óvulo fecundado. Isso não significa uma intervenção comunidade moral e define a constituição natural e men-
nas liberdades que competem moralmente a toda pessoa tal de uma futura pessoa. Com efeito, a intervenção na
nascida, tenha. sido ela gerada de forma natural ou pro- distribuição pré-natal dos recursos genéticos significa
gramada de modo genético. Todavia, essa prática afeta um uma redefinição de espaços, dentro dos quais a futura
pressuposto natural da consciência da pessoa por ela atin- pessoa fará uso de sua liberdade, a fim de moldar sua pró-
gida de poder agir de maneira autônoma e responsável. pria vida ética.
No texto, discuti sobretudo duas possíveis conseqüências: Em seguida, eu gostaria de abordar quatro objeções
(ou melhor: quatro complexos de objeções). A primeira
- a de que as pessoas programadas não possam mais objeção dirige-se frontalmente contra o nexo causal entre
se considerar como autores únicos de sua própria histó- as práticas de uma eugenia de aperfeiçoamento e de uma
ria de vida; "heterodeterminação", ainda que indireta, da futura pes-
- a de que, em relação às gerações que as precede- soa (2). A segunda objeção volta-se contra a escolha pre-
ram, elas não possam mais se considerar ilimitadamente julgadora do caso, considerado como exemplar, de uma
como pessoas nascidas sob iguais condições. alteração parcial das características, que deixa intacta a
identidade do ser em questão (3). A terceira objeção colo-
Se quisermos situar esse dano potencial em seu lo- ca em dúvida as premissas do pensamento pós-metafísi-
cal adequado, é recomendável transpor para o "reino dos co e sugere como alternativa adaptar a "inserção da moral
objetivos" o modelo jurídico por níveis, segundo o qual, numa ética da espécie humana" a hipóteses do pano de
na associação dos co-sujeitos de direitos livres e iguais, fundo que sejam ontologicamente fortes (4). Finalmente,
cada um deve receber o status de membro, antes de obter levanto a seguinte questão: os argumentos contra uma
determinados direitos e de poder exercê-los. Nesse senti- prática eugênica, que no momento não constitui absolu-
110 O RITURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 111

lamente um objeto de discussão, permitem, de uma ma- Obviamente, não seria plausível supor que a atitude
neira geral, que se tirem conclusões significativas a respei- reificante dos pais programadores em relação ao embrião
to da discussão atual sobre o DGPI e do uso de embriões in vitro continuaria após o nascimento a partir de um tra-
exclusivamente para pesquisa (5)? to coisificante com a pessoa programada. D. Birnbacher
(2) Thomas Nagel, Thomas McCarthy e outros cole- aponta o exemplo dos bebês de proveta, que cresceram
gas consideram de antemão como contra-intuitivo supor nesse ínterim, e pensa, com razão, que, numa sociedade
que uma pessoa que foi objeto de uma intervenção gené- em que as práticas eugênicas e o método da clonagem
tica que alterou suas características sinta-se subjetiva- reprodutiva tenham se tornado acessíveis a todos, não te-
mente como determinada por outra pessoa, o que minaria ,< ríamos nenhuma dificuldade em reconhecer as crianças
a igualdade que por princípio se dá no relacionamento geneticamente modificadas ou os clones como "parceiros
entre gerações. Para uma pessoa que se inscreve moral- de interação livres e iguais". Todavia, o argumento da ~­
mente na rede de suas relações interpessoais, pode fazer terodeterminação é outra coisa. Ele não se refere a uma
alguma diferença o fato de seu patrimônio genético de- discriminação, que a pessoa em questão sofre em seu am-
pender da obra da natureza e de contingências ligadas ao biente, mas a uma autodepreciação induzida antes do nas-
fato de seus pais terem se escolhido como parceiros? E cimento, a um dano de sua autocompreensão moral. Com
que diferença faria então se esse patrimônio dependesse isso, afeta-se também uma qualificação subjetiva e neces-
das decisões de um designer, sobre cujas preferências a sária para que se possa adquirir na instituição moral o
pessoa em questão não teve nenhuma influência? De ma- status de um membro completo.
neira geral, quem quiser participar do jogo lingüístico e O designer, que determina o programa segundo suas
moral tem, de fato, de admitir determinados pressupostos próprias preferências (ou segundo os costumes sociais),
· pragmáticos•. Os sujeitos que julgam e agem moralmen- não chega a lesar os direitos morais de uma outra pes-
te supõem que entre si haja uma capacidade de imputa- soa. Ele não precisa necessiariamente prejudicá-la com a
ção; eles atribuem a si mesmos e aos outros a capacidade distribuição de bens fundamentais, nem privá -la das legí-
de levarem uma vida autônoma e esperam uns dos outros limas possibilidades de escolha ou forçá-la a determina-
igual solidariedade e respeito. Quando a ordem estatutá- das práticas, das quais outras pessoas são desobrigadas.
ria da comunidade moral é, dessa forma, simbolicamen- Ele intervém, antes, na formação da identidade de uma
te produzida e reproduzida por seus próprios participan- futura pessoa de maneira unilateral e irreversível. Nesse
tes, não há como reconhecer de que maneira alguém, em sentido, ele não impõe nenhuma limitação à liberdade de
seu status moral, pode ser prejudicado pela ausência de outra pessoa de moldar sua própria vida, mas ao se con-
naturalidade de sua constituição genética. verter em co-autor de urna vida alheia intervém, por assim
dizer, de dentro, na consciência da autonomia de outrem.
4. J. Habennas, Kommunikatíves Handeln und detranszendentali- Para a pessoa programada, privada da consciência de ter
sierte Vernunft, Stuttgart, 2001. tido condições biográficas iniciais naturais e contingen-
112 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 113

tess, falta uma condição mental, condição essa que deve com este e não com outro dom entra no âmbito de decisões
ser satisfeita se ela tiver de assumir retrospectivamente a imputáveis. A expansão do poder de dispor do material
responsabilidade exclusiva de sua vida. genético de uma futura pessoa significa que cada pessoa,
Enquanto uma pessoa geneticamente modificada se tenha ela sido programada ou não, pode considerar, a
sentir confinada por seu "hetero" design em espaços que partir de então, a composição de seu genoma como resul-
lhe foram deixados para que ela use sua liberdade ética tado de uma ação ou omissão passível de críticas. O ado-
a fim de moldar sua vida, ela sofrerá com a consciência de lescente pode pedir explicações ao seu designer e querer
ter de partilhar com outrem a autoria do destino de sua saber das razões que levaram este último a decidir dotá-lo
própria vida. A difusão ou a divisão da identidade pró- ' ., de dons matemáticos e recusar-lhe uma capacidade atlé-
pria, que desse modo produzem a alienação, são um sinal tica ou um dom musical, que lhe teria sido muito mais útil
de que o invólucro deontológico, cuja função é proteger para a carreira de atleta de alto nível ou de pianista a q~e
e preservar as fronteiras, a fim de garantir inicialmente a ele de fato aspira. Essa situação nos leva a indagar se, de
intangibilidade da pessoa, a impossibilidade de confun- maneira geral, podemos assumir a responsabilidade de
dir o indivíduo e de substituir cada subjetividade própria, distribuir os recursos naturais e definir o espaço em que
tomou -se poroso. Com isso, aquela pontuação que toma outra pessoa um dia desenvolverá e seguirá sua própria
os adolescentes independentes de seus pais também per- concepção de vida.
de sua clareza nas relações entre gerações. No entanto, (b) Contudo, esse argumento perde sua força de per-
sem essa autonomia, não pode haver um reconhecimen- suação se tivermos de mostrar que a diferença entre o
to recíproco com base numa igualdade rigorosa. A esse destino natural e o determinado pela socialização não tem
cenário de um futuro alterado, segundo o qual os projetos caráter tão discriminante como o esperado. Certamente,
pessoais de vida entram em conflito com as intenções g:- para a falta de discriminação, a prática de escolher um par-
neticamente estabelecidas por outros, apresentam-se tres ceiro em função de certas características fenotípicas dese-
objeções mais específicas. jadas (conforme o modelo de criação de cavalos) não é
(a) Por que uma pessoa em crescimento não poderia um exemplo muito esclarecedor. Mais relevante é o caso
se confrontar com um patrimônio genético manipulado da criança que se mostra talentosa para o esporte ou a
da mesma forma como com um inato? Por que, por exem- música e que só poderá se desenvolver para se tomar uma
pio, ela não deveria "deixar de lado" uma vocação para a estrela do tênis ou um solista de sucesso se seus pais
matemática, se prefere a música ou os esportes de alto ambiciosos reconhecerem a tempo esse talento e a incen-
nível? Certamente, ambos os casos distinguem-se pelo tivarem. Eles precisam fazer com que esse talento se de-
fato de que a preferência dos pais de equipar seu filho senvolva por meio de disciplina e de exercício num mo-
mento em que ainda se pode falar mais de treinamento
5. Mesmo em termos religiosos, as condições iniciais para a his- do que da suposta aceitação de uma oferta. Imaginemos,
tória de vida de uma pessoa escapam ao arbítrio de um semelhante. nesse mesmo caso, um jovem adulto, com projetos de
114 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFACIO 115

vida totalmente diferentes, censurando seus pais por te- de certas orientações pedagógicas, pois eles prejulgam
rem-no torturado com um treino que lhe parece impos- capacidades que, no contexto imprevisível de uma pos-
to inutilmente, ou, ao contrário, outro jovem que se sente terior história de vida de seu filho, podem ter conseqüên-
negligenciado e joga na cara dos pais o fato de não terem cias ambivalentes; porém, o autor de programas genéticos
incentivado seu talento. e)(põe-se ainda mais à crítica de usurpar a responsabili-
No sentido dessa experiência fictícia, suponhamos dade sobre a vida de uma futura pessoa, responsabilida-
que, em suas conseqüências, a prática pedagógica prati- de essa que deve permanecer reservada a tal pessoa, caso
camente não se diferencie de uma prática eugênica cor- não se queira causar nenhum dano a sua consciência de
I '!
respondente (que talvez só diminua o esforço dos treinos). ser autônoma. O caráter questionável de treinamentos
O tertium comparationis [base de comparação] é o caráter precoces - que, apesar das imprevisíveis conseqüênci<ts
irrevogável das decisões, que dão o encaminhamento para ambivalentes para a história de vida da pessoa em quel-
a história de vida de outra pessoa. Diferentemente do tão, são, de fato, irreversíveis- elucida, por outro lado, o
que ocorre nas fases de amadurecimento, que explicam mesmo pano de fundo normativo, que também coloca as
por que somente numa determinada idade as crianças práticas eugênicas correspondentes sob uma luz suspei-
respondem aos. estímulos pedagógicos necessários com ta. No pano de fundo estão a capacidade ética de ser o
acelerados processos de aprendizagem, não se trata, nos único responsável pela própria vida e a suposição- ainda
casos que nos interessam, de um estímulo - ou da omis- que contrafactual- de que podemos nos apropriar criti-
são de um estímulo- do desenvolvimento cognitivo geral, camente de nossa própria história de vida em vez de
mas de uma influência específica, que terá conseqüências sermos condenados a aceitar o fatalismo das conseqüên-
justamente para o curso individual da futura história de cias de um destino determinado pela socialização.
vida. Isso nos leva sempre a perguntar se tais casos de pro- (c) Por certo, esse argumento da heterodeterminação
gramas de treinamento superdosados ou negligenciados só tem efeito se partirmos do pressuposto de que o dom
-que, conforme o contexto e a ótica da pessoa envolvida, escolhido a partir de algumas alternativas limita o hori-
implicam repressão ou falta de apoio, disciplina ou negli- zonte de futuros projetos de vida. Todavia, o perigo de uma
gência- são contra-exemplos apropriados. fixação a certas ofertas de identidade obviamente dimi-
Embora esses programas intervenham na socializa- nui - se dermos asas à nossa imaginação - e pensarmos
ção, e não no organismo, por certo eles se alinham com- na seqüência de características programadas (como a cor
parativamente, por sua irreversibilidade e pela especifici- do cabelo, a estatura ou, de modo geral, a "beleza"), de
dade biográfica de suas conseqüências, às programações disposições (como o espírito de conciliação, a agressivi-
genéticas. Como, porém, eventualmente eles atraem críti- dade ou a "força do ego"), de capacidades (como a habi-
cas pelas mesmas razões, não se pode submeter uma das lidade atlética, a resistência ou o talento para a música)
práticas a essas críticas a fim de dispensar a outra. É ver- e "bens fundamentais" (ou seja, capacidades genéricas,
dade que os pais podem ser alvo de críticas em virtude como a força física, a inteligência ou a memória). Dieter
116 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 117

Bimbachér e outros não vêem nenhuma razão plausível te considerado por todos como um bem, contém o mesmo
para se supor que uma pessoa, fazendo uma retrospecção, valor no contexto de diferentes histórias de vida. Os pais
recusaria um aumento de recursos e bens genéticos fun- nunca podem saber se uma deficiência física leve não aca-
damentais em maior medida6. bará se transformando numa vantagem para seu filho.
Mesmo nesse caso, coloca-se a questão: podemos sa- (3) A partir dessa perspectiva, também podemos res-
ber se um dom qualquer amplia efetivamente o espaço de ponder à objeção levantada contra o caso que escolhi como
uma outra pessoa para moldar sua vida? Será que os pais, exemplar de uma alteração genética das características.
que só querem o melhor para seus filhos, têm realmente Ronald Dworkin confrontou-me com uma variação ins-
condições de prever as circunstâncias - e o efeito conjun- '< trutiva das quatro condições que introduzi implicitamen-
to delas - em que, por exemplo, uma memória brilhante
te na minha experiência fictícia. No caso da heterodelp-
ou uma grande inteligência (independentemente de como minação, de que tratei no texto, •
quisermos defini-la) serão benéficas? Uma boa memória
costuma ser uma bênção, mas nem sempre isso acontece.
-a intervenção genética é realizada por uma terceira
Não poder esquecer pode ser uma maldição. O sentido
pessoa, e não pela própria pessoa em questão (a);
para o que é relevante e a formação de !radições baseiam-
se na seletividade de nossa memória. As vezes, uma me- - a pessoa em questão toma retrospectivamente co-
nhecimento da intervenção pré-natal (b);
mória* sobrecarregada de dados impede uma relação pro-
dutiva com os dados mais importantes. -e entende-se como uma pessoa modificada em ca-
O mesmo vale para uma inteligência superior. Em racterísticas genéticas particulares, mas que permaneceu
muitas situações, prevê-se que ela seja uma vantagem. idêntica a ela mesma, de forma que é capaz de adotar uma
Porém, quais são os efeitos dessas "vantagens iniciais", atitude hipotética em relação à intervenção genética (c);
por exemplo sobre a formação do caráter de um superdo- - em contrapartida, ela se recusa a se apropriar das
tado, numa sociedade que valoriza a concorrência? Como modificações genéticas como "parte de sua pessoa" (d).
a pessoa em questão interpretará e utilizará seu dom dife-
renciado- de modo sereno e soberano ou com uma am- Ad a). O argumento da heterodeterminação esbarra
bição incansável? Como ela assimilará tal capacidade, que no vazio se imaginarmos que a pessoa em questão pode-
a caracteriza e pode despertar a inveja ao seu redor, nas ria reverter de forma indolor uma intervenção genética
relações sociais? Nem mesmo o corpo saudável, altamen- realizada com certas ressalvas antes do seu nascimento,
ou que ela mesma poderia proceder a uma intervenção
genética, à maneira de uína terapia genética em células
6. D. Birnbacher, "Habermas' ehrgeiziges Beweisziel - erreicht
oder verfehlt?", in: Deustsche Zeitschrift für Philosophie (50) 1.
somáticas- o que não seria muito diferente de uma cirur-
* O autor usou um termo da linguagem da informática, Daten- gia estética. Essa variante da automanipulação é útil por-
speicher (literalmente, "armazenador de dados"), fazendo uma analo- que revela o sentido pós-metafísico do argumento. A crí-
gia entre a memória humana e a do computador. (N. da R.) tica da heterodeterminação não se baseia absolutamente
118 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 119

numa desconfiança subjacente em relação à análise e à nhecimento de dados importantes de sua biografia (como,
recombinação artificial de componentes do genoma hu- por exemplo, a identidade dos pais). Não deveria ser acei-
mano. Com efeito, ela não parte da suposição de que a tável o fato de se prevenir um problema de identidade de
tecnicização da "natureza interna" representa algo como um adolescente, escondendo dele, por precaução, as con-
uma transgressão de limites naturais. A crítica é válida dições que fariam surgir esse problema potencial e acres-
independentemente da idéia de uma ordem jusnatural centando à própria programação uma mistificação sobre
ou ontológica, que poderia ser "transgredida" de manei- esse fato relevante da sua vida.
ra criminosa. Ad c). Por certo, é possível alterar a experiência fictí-
O argumento da heterodeterminação tira sua força ' < cia de forma que a programação genética estenda-se à
apenas do fato de que o designer, seguindo suas próprias identidade da futura pessoa em seu conjunto. Hoje, por
preferências, procede a um encaminhamento da vida e da exemplo, a seleção do sexo já é uma opção que pode ger
identidade de outra pessoa, que não pode ser reconside- feita após a realização do diagnóstico genético de pré-im-
rado, sem sequer supor, ainda que de forma contrafac- plantação7. É difícil, agora, imaginar que o jovem (ou ajo-
tual, o consentimento dessa pessoa. Isso constitui uma vem) que toma conhecimento da escolha pré-natal de seu
invasão na esfera central e deontologicamente protegi- sexo poderia, de boa-fé, confrontar seus pais com a se-
da de uma futura pessoa, de quem ninguém pode tirar a guinte crítica, a ser considerada como moralmente séria:
capacidade de querer um dia controlar sua própria exis- "Eu preferia ter nascido menina (ou menino)." Não que
tência e conduzir sua vida exclusivamente segundo seu não existam tais fantasias do desejo; porém, se partirmos
governo. de uma aquisição "normal" do papel sexual, elas não têm
Ad b). Certamente, só pode haver conflito entre pro- uma importância moral. Sem levar em conta as indicações
jetos de vida pessoais e intenções geneticamente estabe- muito específicas para uma mudança de sexo em pessoas
lecidas por outra pessoa se o indivíduo em crescimento adultas, o desejo púbere de uma mudança na identidade
tomar conhecimento do design da intervenção pré-na- sexual é percebido mais como uma "abstração vazia", pois
tal. Precisamos concluir a partir disso que não haveria a pessoa em questão não pode retroprojetar sua própria
nenhum dano caso a informação fosse mantida em segre- identidade num passado de neutralidade sexual. Uma
do? Tal suspeita nos coloca na pista falsa da tentativa pessoa é homem ou mulher, tem este ou aquele sexo - e
ontologizante de situar o prejuízo causado à autonomia não poderia adotar o sexo oposto sem, ao mesmo tem-
num espaço independente de qualquer consciência do po, transformar-se em outra pessoa. No entanto, quando
conflito, seja no "inconsciente" da pessoa em questão, a identidade não pode ser preservada, falta a essa mesma
seja numa área de seu organismo inacessível à consciên- pessoa o ponto de referência, capaz de manter sua conti-
cia, uma área, por assim dizer, '1vegetativa". Essa variante
da intervenção genética ocultada suscita apenas a questão 7. Não tratarei da problemática específica da seleção. Aqui inte-
moral de saber se é lícito privar uma pessoa de tomar co- ressa-me apenas o aspecto da determinação pré-natal do sexo.
120 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0 121

nuidade mediante um olhar retrospectivo por sobre a in- homem "inteiramente novo", estaria acima de qual-
tervenção pré-natal e de defender-se dela. quer suspeita. Contudo, essa crítica não pode mais -
A partir da história de vida individual de uma pessoa, como no caso de uma modificação genética das carac-
eventualmente podem -se encontrar boas razões éticas terísticas, que, de certo modo, deixaria continuamente
para ela querer levar uma outra vida, mas não para ser intacta a identidade prolongada retrospectivamente- ser
uma outra pessoa- a projeção da autotransformação nu- exercida a partir da perspectiva da pessoa envolvida.
ma pessoa totalmente diferente também depende da ima- Por essa razão, é recomendável adotar o ponto de
ginação de cada um. Desse modo, uma decisão tão pro- vista de um adolescente que se encontre na situação deli-
funda como a escolha do sexo, que define a identidade,'< mitada pelas quatro condições mencionadas. Nesse caso,
parece não poder contar com uma crítica séria por parte a heterodeterminação se manifesta, com efeito, na dive.r-
da pessoa envolvida. No entanto, se isso já vale para a gência que pode surgir entre a pessoa envolvida e o desz~­
. determinação de uma característica fundadora da identi- ner sobre as intenções da manipulação genética. A razão
dade- e é esse o sentido da objeção -, a modificação ge- moral para a crítica continua sendo a mesma, ainda que
nética de características distintivas, de disposições ou capa- a pessoa prejudicada na sua consciência da autonomia
cidades também não poderia ser condenada. Essa objeção não possa se pronunciar, já que ela simplesmente não tem
argüida por Dworkin só é plausível à primeira vista. capacidade de se opor. Certamente, somos obrigados a
Uma intervenção pode merecer críticas a partir da fazer o possível para proteger os outros do sofrimento.
perspectiva de um não-participante, mesmo quando a Devemos ajudar o próximo e fazer de tudo para melho-
pessoa envolvida não estiver ela mesma em condições de rar suas condições de vida. Mas não nos é permitido -
exercer uma crítica. No nosso exemplo, a decisão que con- segundo o modo como representamos a vida futura des-
tribui para definir a identidade sustenta sua presumida sas pessoas - estabelecer para elas os espaços que mais
não-colocação de objeções em uma proibição de discrimi- tarde poderão utilizar para dar uma forma ética à sua vida.
nação, que é levada em conta de forma intuitiva: como Nosso espírito finito não dispõe (mesmo no melhor dos
não existe nenhuma razão moralmente justificável para casos) do saber prognóstico, que seria necessário para
que se prefira um determinado sexo, não deveria fazer di- avaliar as conseqüências das intervenções genéticas no
ferença para a pessoa em questão se ela veio ao mundo contexto da futura história de vida de outra pessoa.
como homem ou mulher. Mas isso não implica que uma Podemos saber o que é potencialmente bom para os
programação genética que se estendesse (mais ou menos outros? Pode ser que isto seja possível num caso isolado.
como na criação de um Colem*) à identidade biológica da Mas, mesmo assim, nosso saber permanece falível e só
futura pessoa em seu conjunto, ou seja, que constituísse um pode ser transmitido sob a forma de conselhos clínicos a
alguém que já conhecemos como um ser biograficamente
* Segundo a tradição judaica, ser criado a partir do barro e da individualizado. As decisões irrevogáveis sobre o design
argila para proteger os judeus das perseguições. [N. da T.] genético de um indivíduo que está para nascer são sem-
122 O FUTURO OA NATUREZA HUMANA POSFACIO 123

pre pretensiosas, no sentido de julgar que sabem tudo. O doença hereditária à lista que o legislador deve especifi-
beneficiário precisa ter a chance de dizer "não". Como não car com precisão. Com efeito, toda permissão de uma nova
temos a possibilidade de aceder a um conhecimento obje- intervenção genética de caráter terapêutico antes do nas-
tivo dos valores que ultrapasse nossas intuições morais e cimento representa um peso inaudito para os pais, que,
como a perspectiva da primeira pessoa está inscrita em por razões de princípio, não querem fazer nenhum uso
todo saber ético, seria demais exigir da condição finita do dessa permissão. Quem rejeita uma prática eugênica per-
espírito humano que ela indique qual o "melhor" dom mitida ou que simplesmente se tornou habitual e prefere
genético para a história de vida dos nossos filhos. aceitar uma deficiência que poderia ser evitada tem de
Ad d). Todavia, enquanto cidadãos de uma comuni-' < suportar a crítica de omissão e possivelmente o ressenti-
dade democrática, que precisa regulamentar legalmente mento do próprio filho. Antecipando essas conseqüên-
tal prática, não podemos nos livrar completamente do far- cias, a necessidade de justificação, com a qual se confron.4
do de antecipar um possível consentimento ou uma pos- ta o legislador a cada novo passo dado nessa direção, fe:·
sível recusa da pessoa envolvida. Menos ainda se dese- lizmente ainda é muito grande. A formação da opinião e
jamos autorizar, no caso de doenças hereditárias graves, da vontade política geral poderá ser encontrada numa
intervenções genéticas de caráter terapêutico (ou até sele- constelação diferente daquela dos debates sobre o abor-
ções) no interesse dos deficientes. Por certo, as objeções to, porém sua polarização será igualmente profunda.
pragmáticas, que apontam para os limites flutuantes en- (4) O perigo da heterodeterminação eugênica não
tre a eugenia negativa e a positiva, apóiam -se em exem- pode ser excluído se uma intervenção genética que mo-
plos plausíveis. Plausível é também o prognóstico de que difique características for realizada de maneira unilateral,
o limite de tolerância daquilo que inicialmente é conside- ou seja, se não for considerada a atitude clínica em rela-
rado "normal", com base nos efeitos cumulativos do cos- ção a uma segunda pessoa, com cujo consentimento se
tume, passará paulatinamente a ceder terreno a normas possa contar. Tal atitude só se justifica nos casos em que
de saúde cada vez mais exigentes e à permissão de inter- uma doença grave é prognosticada com segurança e de
venções genéticas. Contudo, existe uma idéia reguladora, forma indubitável. Somente em relação à negação do mal
que oferece um critério que, ainda que requeira interpre- maior é que podemos esperar um amplo consenso no
tação, é, em princípio, incontestável: todas as interven- âmbito das orientações axiológicas que, do contrário, fica-
ções terapêuticas, inclusive as realizadas no período pré- riam muito distantes umas das outras. Qualifiquei como
natal, precisam passar a depender de um consenso das problemático o caso do adolescente que toma retrospec-
possíveis pessoas envolvidas, a ser suposto pelo menos tivamente conhecimento de sua programação pré-natal
de forma contrafactual. e não consegue se identificar com as intenções estabe-
A discussão pública dos cidadãos sobre a admissibi- lecidas geneticamente por seus pais. Com efeito, para
lidade de procedimentos de eugenia negativa pode vol- tal pessoa, existe o perigo de ela não mais se compreen-
tar a se acender sempre que se acrescentar uma nova der como a autora única de sua própria vida e também se
124 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
POSFAao 125
sentir, enquanto descendente, de pés e mãos atadas pelas
decisões genéticas das gerações precedentes, que vão se que modifica as regras do jogo moral, os argumentos tira-
condens ando cada vez mais. dos do jogo lingüístico-moral não podem fazer nada. No
nível correto de argumentação encontra m -se apenas as
Contudo, esse ato da heterodeterminação, que per-
auto-reflexões morais e, portanto, relativas à ética da es-
passa, por assim dizer, todo o destino determinado pela
pécie, que se estendem aos pressupostos naturais (e, por
socialização, é de natureza indireta. Ele desqualifica a pes-
conseguinte, também mentais) da autocompreensão mo-
soa prejudicada, fazendo com que ela não possa parti-
ral de pessoas que agem com responsabilidade. A esses
cipar de modo ilimitado do jogo lingüístico da institui-
julgamentos de valor relativos à ética da espécie falta, por
ção moral, sem intervir ele mesmo nessa mesma ins-, .,
outro lado, a presumida força coercitiva de razões rigoro-
tituição. Só podemo s participar do jogo lingüístico da samente morais.
moral universalista da razão na medida em que pressu- Quando se trata da identidade do homein enquant ;
pusermos, por meio de uma idealização, que nós somos ser da espécie, diferentes concepções concorrem por si
os únicos responsáveis pela configuração ética de nossa umas com as outras. As representações naturalistas do
própria vida e podemo s esperar, no que se refere ao reJa- homem, expressas na linguagem da física, da neurologia
cionamento moral, uma igualdade de status no sentido ou da biologia evolucionista, há muito tempo competem
de uma reciprocidade a princípio ilimitada de díreitos e de- com as imagens clássicas do homem, manifestadas pela
veres. Todavia, se a heterodeterminação eugênica modifi- religião e pela metafísica. O conflito de princípios ocor-
ca por si só as regras desse jogo lingüístico, ela não pode re hoje entre um futurismo naturalista, que aposta nas
ser criticada com base nessas mesmas regras•. Em vez auto-otimizações técnicas, e as concepções antropológi-
disso, a eugenia liberal desafia a uma avaliação da moral cas, que, com base num "naturalismo fraco", obedecem às
em seu conjunto. idéias de um neodarwinismo (e, de maneira geral, ao es-
Também se encontra à disposição a forma moderna tado das ciências), sem invalidar pelo cientificismo ouso-
do universalismo igualitário enquanto tal. Ele oferece, nas brepujar pelo construtivismo a autocompreensão norma-
sociedades ideologicamente pluralistas, o único funda- tiva de sujeitos capacitados para a linguagem e para a ação
mento racionalmente aceitável para uma regulamentação e para os quais as razões são importantes9. Apesar de se
normativa dos conflitos de ação. Mas por que não liberar situarem num nível mais elevado de generalização, as
as sociedades complexas de seus fundame ntos norma ti- reflexões sobre a ética da espécie dividem tanto com as re-
vos e adaptá-las aos mecanismos de regulação sistêmica flexões ético-existenciais do indivíduo quanto com as
ou até- no futuro- de regulação biogenética? Contra uma ético-políticas das nações a referência a um contexto de
auto-ins trumenta lização eugênica da espécie humana ,
9. Ver). Habermas, Wahrheit und Rechifertigung, Frankfurt am
8. A objeção tratada em (2) explica-se pela negligência dessa Main, 1999, "Introdução", bem como as contribuições para a questão
diferença. sobre o naturalismo e a história natural, in: Deutsche Zeitschrift Jür
Philosophie 49 (2001) 6, pp. 857-927.
126 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFAC/0
127
vida particular, do qual sempre nos apropriamos pela in- pessoal1°. Ludwig Siep formula tal conclusão de modo
terpretação. Também nesse caso, a investigação cognitiva que a preferência dada à forma de vida moral (eu diria an-
para saber como devemos nos compreender enquanto tes: à estruturação moral de formas de vida) é, por si só,
exemplares da espécie humana, a partir do conhecimen- uma "opção ética da espécie humana"ll. Todavia, esse ar-
to de fatos antropológicos relevantes, une-se à reflexão gumento não faz, de forma alguma, com que a moral se
que avalia como queremos nos compreender. torne dependente, em sua validade, da inserção cognitiva
As perspectivas do nós, relativas às concepções éticas no contexto adequado de convicções éticas da espécie hu-
da espécie, não encontram uma unidade análoga àquela mana- como se aquilo que as pessoas consideram como
outra perspectiva do nós, relativa à moral, e que provém ' < moral tivesse de ser classificado num âmbito designado
construtivamente da aceitação recíproca das perspectivas pela ontologia como o de "bons estados do mundo". .·
de todos os participantes, que são obrigados a equilibrar Enquanto o ponto de vista moral de uma solução jus-J
racionalmente seus interesses. Enquanto não quisermos ta para conflitos de ação for aplicado, a moral do respeito
recorrer às garantias falaciosas da metafísica, temos de igual- e da consideração solidária- por todos só poderá
contar racionalmente, no universo da discussão sobre as ser justificada a partir das "razões da razão" que tenha-
éticas da espécie, com uma divergência contínua. Não mos de reserva. Se, como antes, a moral ainda precisasse
obstante, no debate acerca da melhor autocompreensão se fundar nas imagens do mundo, ou se esses dois lados,
ética da espécie o argumento seguinte parece merecer uma conforme afirma Robert Spaemann, estivessem numa re-
importância especial: nem todas as concepções sobre a lação circular de fundamentação, teríamos de refutar a to-
ética da espécie humana harmonizam-se em igual medi- lerância adquirida pela moral da razão e pela concepção
da com nossa autocompreensão enquanto pessoas moral- dos direitos do homem, ideologicamente neutras. Como
mente responsáveis. Hoje ainda é assustadora a perspecti- conseqüência desagradável, teríamos ainda de aceitar, de
va de que a auto-instrumentalização otimizante da espé- antemão, a recusa a um apaziguamento normativamen-
cie, que será desenvolvida para satisfazer as preferências te convincente de conflitos culturais e ideológicos12.
diversificadas dos clientes no supermercado genético (e a O universalismo igualitário é amplamente reconhe-
consolidação social de certos hábitos), modifique o status cido como uma grande conquista moderna. Por isso, se
moral das futuras pessoas: "A vida no vácuo moral, numa
forma de vida que nem sequer conheceria o cinismo mo-
10. Esse efeito da minha argumentação é percebido por Georg
ral, não valeria a pena ser vivida." Lohmann (Die Herausforderung der Ethik durch Lebenswissenschaften und
Esse argumento não chega a ser moral, mas utiliza Medizin, manuscrito, 2002, p. 19) da seguinte forma: "Essa ligação indi~
condições que preservam a autocompreensão moral en- reta da sua argumentação ética com a moral pode exigir uma importân-
quanto argumento para uma autocompreensão ética da cia maior do que a dada às argumentações imediatamente ideológicas."
11. L. Siep, "Moral und Gattungsthik", in: Deutsche Zeitschrift for
espécie, autocompreensão essa que é incompatível com Philosophie 50 (2002), 1 (em publicação).
a otimização e a instrumentalização brutal da vida pré- 12. R. Spaeman, Habermas über Bioethik, ibid.

j.
f
1:
128 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA POSFACIO 129

ele for questionado não será de forma alguma por outras sitiva como prejuízo, mas como oportunidade. Ou não
morais ou outras concepções éticas da espécie. Só as con- estão convencidos do argumento da heterodeterminação
seqüências imperceptíveis de práticas às quais silencio- (como Nagel ou McCarthy), ou (como Dworkin) conside-
samente nos acostumamos é que poderiam abalá-lo. O ram-no infundado, pois, para eles, é legítima a escolha
que mina os pressupostos naturais (e, por conseguinte, de características genéticas, à luz de um conhecimento
mentais) de uma moral, na qual ninguém quer tocar ex- axiológico objetivo, em prol do bem-estar da criança. Isso
plicitamente, não são as imagens naturalistas do mundo, reforça minha convicção de que não é uma especulação
mas as biotecnologias, cujo desenvolvimento se dá irre- vã tentar discutir, no fronte avançado, as conseqüências
freadamente. Contra essa corrosão desprovida de teoria, ' ., como as que aparecem no Wa/den II*, vinculadas a uma
mas repleta de conseqüências práticas, a inserção estabi- prática ainda hoje fora de alcance, mas não totalmente
lizante da nossa moral numa autocompreensão ética da improvável. :j
I espécie ajuda-nos ao menos a tomarmos consciência do
valor dessa moral e de seus pressupostos, antes de nos
No entanto, mesmo aqueles que recusam tal prátic;
eugênica, seja por considerações de princípio ou - ainda
I habituarmos à revisão furtiva daquilo que, até agora, fazia
com que a consciência da autonomia e a igualdade entre
hoje - por considerações táticas, podem não aceitar os ·
argumentos do efeito bola-de-neve sob outro aspecto. O
as gerações fossem pensadas como evidentes. DGPI e a pesquisa sobre células-tronco só podem ser
(5) Por fim, Ludwig Siep não acredita que as ressal- caracterizados como precursores na busca de um objeti-
vas justificadas contra uma eugenia positiva nos permi- vo definido se tiverem encontrado uma continuidade nu-
tam tirar conclusões relevantes para avaliarmos as atuais ma determinada direção. Marquei esse extremo por meio
decisões sobre a admissibilidade do DGPI e do uso de de práticas eugênicas, que não são justificadas por inten-
embriões exclusivamente para pesquisa. Sob as premissas ções clínicas e que - esta é minha tese -, junto com a
de uma proteção progressiva da vida embrionária, na me- consciência da autonomia, prejudicam ao mesmo tem-
lhor das hipóteses, elas não poderiam ter o caráter de "ar- po o status moral das pessoas tratadas dessa forma. Mas
i'
,) gumentos do efeito bola-de-neve". E, na realidade, o peso com que probabilidade podemos estimar que o DGPI e a
desses argumentos depende pesquisa sobre células-tronco desencadeiem uma dinâ-
mica de desenvolvimento que ultrapassará o limiar rumo
-da dimensão que atribuímos ao dano, que poderia a uma eugenia positiva? A ampliação desejável do nosso
se produzir no caso hipotético de uma "bola-de-neve", e conhecimento em biogenética e da nossa capacidade em
- do grau de probabilidade para que os passos criti- tecnologia genética não pode ser seletiva no sentido de
cados conduzam, de fato, a uma "bola-de-neve". ambos serem aplicáveis somente para objetivos clínicos.

Em relação ao primeiro ponto, constatei que muitos * Romance escrito em 1948 pelo psicólogo behaviorista B. F.
colegas não concebem a perspectiva de uma eugenia po- Skinner (1904-1990) [N. da T.l
130 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
POSFACIO 131
Por essa razão, no nosso contexto, é relevante a questão
(a) O contexto prático em que se insere o processo
que indaga se o processo do di~gnóstico genético de p~é­
do DGPI faz com que duas atitudes sejam adotadas. Di-
implantação e a pesquisa em celulas-tronco de embnoes
ferentemente do caso da gravidez indesejada, a proteção
humanos estimulam em grande escala as atttudes que fa-
da vida do embrião não concorre aqui com a autodetermi-
vorecem a passagem da eugenia negativa para a positiva.
nação da mulher, protegida por um direito fundamen-
O limiar entre as duas pode ser caracterizado por uma
tal. Ao contrário, os pais que querem ter um filho tomam
diferença das atitudes. No âmbito de uma prática clínica
uma decisão de gerá -lo sob certas condições. Conforme
em relação ao ser vivo em tratamento, o terapeuta pode,
o diagnóstico realizado, eles terão de escolher entre vá-
com base num consenso que ele pode supor de forma , "
rias opções ou tomar uma decisão binária (a implantação
justificada, proceder como se estivess'; diante da segu~da
ou a destruição de um embrião). A primeira intenção que~
pessoa que um dia aquele ser vivo sera. Em contraparttda,
se manifesta nesse caso é uma intenção de melhoria. A ..
em relação ao embrião a ser modificado geneticamente,
seleção deliberada orienta-se pela avaliação da qualidade
0 designer adota uma atitude otimizante e, a~ mesrr;otem-
de um ser humano e, nesse sentido, obedece a um dese-
po, instrumentalizante: em sua compostçao geneltca, o
jo de otimização genética. Uma ação que termina com a
embrião no estágio de oito células deve ser melhorado
seleção do ser humano saudável resulta de uma atitude
conforme padrões escolhidos subjetivamente. Em vez da
semelhante à de uma prática eugênica.
atitude performativa em relação a uma futura pessoa,
Na verdade, ao se limitar rigorosamente o processo
que já no estado embrionário é tratada como uma pes-
11
que tem por objetivo evitar doenças hereditárias graves,
soa que pode dizer "sim" ou não", adota-se no caso da
impõe-se, num primeiro momento, o paralelo à eugenia
eugenia positiva a atitude de um "artesão", que un~ a
negativa - ou o que chamaríamos de eugenia sem obje-
finalidade do criador clássico de melhorar as caractens-
ções. Os pais podem pretender que se tome, por precau-
ticas hereditárias de uma espécie ao modo operacional
ção, uma decisão no interesse da criança ainda não nas-
de um engenheiro que intervém de maneira i~strumen-
cida, para poupá-la de uma existência sobrecarregada por
tal segundo seu próprio projeto- e trata as celulas em-
uma deficiência insuportável e até torturante. Com essa
brionárias como um material.
descrição, a proteção da vida do embrião é, de certa for-
Obviamente, só se pode falar num "plano oblíquo"
ma, limitada pela antecipação de um "não" por parte da
(em inglês, os "Dammbruchargumente" são conhecidos
própria pessoa não nascida. A essa autocompreensão sub-
como slippery slope arguments) se houver razões para su-
jaz uma atitude clínica- e de forma alguma uma atitude
por que a admissão (a) do DGPI e (b) da pesqtüsa sobre
que vise à otimização. Mas será que essa pretensão clíni-
células-tronco do embrião humano abrem o cammho para
case concilia com a distinção imposta de maneira uni-
que nos acostumemos precisamente com essas duas ali-
lateral e - diferentemente do caso da eugenia negativa
tudes paralelas ao aperfeiçoamento e à reificação da vida
- irrevogável entre uma vida "que vale a pena" e outra
humana pré-pessoal.
"que não vale"? Por acaso essa interpretação não perma-
132 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
POSFAC/0 133
nece sempre marcada pela ambigüidade de um pretexto ..
altruísta para o egocentrismo de um desejo condiciona- essa prática de pesquisa exige um tratamento reificante
do de antemão? Embora haja outras alternativas, preci- • com relação à vida humana pré-pessoal e, por conseguin-
te, a mesma atitude caracterizada pelas práticas eugênicas.
samos ter um filho próprio, mas este só deve vir ao mun-
do se corresponder a determinados critérios de qualidade. . Todavia, com a liberdade da ciência e da pesquisa, en-
Essa suspeita dirigida contra si mesma é reforçada tram em jogo um direito fundamental concorrente e, com
pela problemática de um tratamento reificante em relação o bem coletivo representad o pela saúde, um alto valor.
Isso requer uma ponderação, cujo resultado também de-
ao embrião in vitro. O desejo de ter um filho leva os pais ·..
a criar uma situação em que, com base num prognóstico, ' < pende de como avaliamos a função precursora da pesqui-
disporão livremente da continuação de uma vida humana sa sobre células-tronco do embrião humano para o tipo
pré-pessoal. Inevitavelmente, essa instrumentalização é de utilização de outros progressos no campo da técnic~
parte integrante do contexto prático em que se inscreve o genética. A minoria no Conselho nacional de ética, q~e
diagnóstico genético de pré-implantação. Numa conside- recusa por princípio "a instrumentalização do embnao
para fins de utilização alheia", avança um pouco mais no
ração escrupulosa, pode a preferência por um filho saudá-
vel compensar o dano à proteção da vida embrionária? que se refere à argumentaç ão do efeito bola-de-ne~: e
f' (b) A pesquisa sobre células-tronco do embrião hu- enfatiza a função simbólica da proteção dos embnoes
.
I mano não se encontra sob a perspectiva da criação ou da humanos para todos os que "não podem proteger a si
mesmos e que por isso mesmo não podem argumentar
auto-otimização. No entanto, ela exige a princípio uma
atitude instrumentalizadora em relação ao "conjunto de por si próprios".
células embrionárias". No laboratório, o tratamento expe- De resto, ao se ponderar sobre essa questão, não se
rimental e que "consume" embriões não visa absoluta- deve. superestimar a importância de dois argumentos res-
mente a um nascimento possível; portanto, ele também tritivos, alegada pelos defensores de uma importação re-
I não pode faltar com a atitude clínica em relação a uma gulamentada de células-tronco embrionárias excedentes.
futura pessoa. O contexto prático é, antes, determinad o Do ponto de vista moral, não há uma diferença significa-
i
I pelo télos de um aumento de conhecimento e de um de- tiva se os embriões utilizados para fins de pesquisa forem
senvolvimento técnico e, conforme enfatiza Ludwig Siep, "excedentes " ou se eles forem produzidos para os fins
cabe a outra descrição. Quando células-tronco embrio- dessa instrumentalização. Do ponto de vista político, a
nárias são produzidas, pesquisadas e preparadas para tais limitação da importação de células-tronco existentes pode
fins, trata-se de uma prática diferente daquela da procria- ser um meio para controlar melhor o volume e a duração
ção (e da manipulação das constituições genéticas) de um dessas pesquisas. No entanto, as imposições políticas su-
determinado ser humano com vistas ao nascimento. No geridas pelo Conselho de ética só fazem sentido se con-
entanto, essa indicação correta confirma apenas o que ·se siderarmos que essas práticas de pesquisa não são mwto
afirma em favor do argumento do "plano oblíquo": que confiáveis. Quanto ao outro ponto de conflito, a saber,
o momento a partir do qual o óvulo humano fertilizado

L
134 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA

deixa de ser totipotente, não tenho opinião própria. Eu só FÉ E SABER


gostaria que se levasse em conta que a diferença corres-
pondente entre células-tronco pluripotentes e totipoten-
tes relativiza-se justamente quando nos deixamos condu-
zir (como a maioria dos membros do Conselho de ética,
que se apóia nessa diferença) pela concepção de uma pro-
teção gradual da vida humana pré-pessoal. Com efeito,
esse conceito compreende também células-tronco plu-
ripotentes, a partir das quais não é mais possível, por> ·:
definição, que possa se desenvolver um indivíduo.

Quando a atualidade opressora do quotidiano nos


tira das mãos a escolha de um tema sobre o qual falar, é
grande a tentação de disputar com os John Wayne "en-
tre nós, intelectuais", para ser o mais rápido no gatilho.
Ainda há pouco, os espíritos se dividiam a respeito de
outro tema: saber se e até que ponto devemos nos sub-
meter a uma auto-instrumentalização pela técnica gené-
tica ou mesmo s~ devemos perseguir o objetivo de uma
auto-otimização. Nos primeiros passos nesse caminho
foi desencadeado um conflito de poderes da fé entre os
porta -vozes da ciência organizada e os das igrejas. De
um lado, o temor do obscurantismo e de um ceticismo
em relação à ciência que se encerra na remanescência
de sentimentos arcaicos; de outro, a oposição à fé cienti-
ficista no progresso, própria de um naturalismo cru, que
mina a moral. No entanto, no dia 11 de setembro, a ten-
são entre a sociedade secular e a religião explodiu de
maneira totalmente diferente.
Conforme ficamos sabendo pelo testamento de Atta
e pelas declarações de Osama Bin Laden, os assassinos
136 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA FtESABER 137

determinados ao suicídio, que transformaram aviões civis nenhuma compensação tangível pela dor causada pela
em mísseis vivos e os lançaram contra cidadelas capitalis- desintegração das formas de vida tradicionais. A perspec-
tas da civilização ocidental, foram motivados por convic- tiva de melhoria das condições materiais de vida é uma
ções religiosas. Para eles, os símbolos da sociedade mo- só. O que é decisivo é que a mudança de mentalidade,
derna globalizada encarnam o Grande Satã. Mas a nós que se exprime politicamente por meio da separação en-
também, testemunhas oculares universais do aconteci- tre a ·religião e o Estado, vê-se claramente bloqueada por
mento "apocalíptico" transmitido pela televisão, as ima- sentimentos de humilhação. Mesmo na Europa, onde a
gens bíblicas se impuseram com a repetição masoquista.. história levou séculos para encontrar uma atitude sen-
do desmoronamento das torres gêmeas de Manha!ta~.· sível diante da cabeça de Jano da modernidade, a "se-
E a língua da retaliação, em que não apenas o presidente cularização", conforme mostra a discussão em torno das
americano reagiu a esse ato inconcebível, também rece- técnicas genéticas, ainda é dominada por sentimentoJ.
beu um tom do Velho Testamento. Como se esse atentado ambivalentes.
cego tivesse agitado uma corda religiosa no âmago da so- Existem ortodoxias que se endureceram no Ocidente,
ciedade secular, em todos os lugares do mundo as sinago- bem como no Oriente Médio e no Extremo Oriente, en-
gas, as igrejas e as mesquitas ficaram repletas. De resto, tre os cristãos e judeus, bem como entre os muçulmanos.
essa correspondência subterrânea não levou a comunida- Quem quiser evitar uma guerra entre as civilizações pre-
de civil e religiosa em luto a adotar uma atitude simétrica cisa se lembrar da dialética inacabada do nosso próprio
de ódio na cerimônia ecumênica em honra às vitimas, no processo ocidental de secularização. A "guerra contra o
dia 22 de setembro, no Yankee Stadium de Nova York: terrorismo" não é uma guerra, e aquilo que também se
apesar do patriotismo, não se ouviu nenhum apelo para exprime no terrorismo é o choque, funesto em seu caráter
que se fizesse respeitar, para além das fronteiras e por afásico, entre mundos que, mais além da violência muda
meio da guerra, o direito penal nacional. dos terroristas e dos mísseis, precisam desenvolver uma
Não obstante sua linguagem religiosa, o fundamen- linguagem comum. Em vista da globalização que se ins-
talismo é um fenômeno exclusivamente moderno. No que taura nos mercados sem fronteiras, muitos esperavam um
concerne aos criminosos islâmicos, o que impressiona de retomo do político sob outra forma- não sob aquela hob-
imediato é a não-contemporaneidade dos motivos e dos besiana original de um Estado de segurança globalizado,
meios. Ela é o reflexo da diferença temporal entre cultura ou seja, nas dimensões da polícia, do serviço secreto e do
e sociedade nos países de origem desses criminosos, que exército, mas sob aquela de um poder modelador e civi-
só começou a se formar como conseqüência de uma mo- lizador em escala mundial. No estágio em que estamos,
dernização acelerada, e que perde radicalmente suas raí- não podemos esperar por nada além de um artifício da
zes. Entretanto, aquilo que, nos nossos países, em cir- razão- e por um pouco de autoconsciência. Com efeito,
cunstâncias mais felizes, pôde ser sentido como um pro- essa falha afásica também divide nossa própria casa. Só
cesso de destruição criativa não deixou entrever naqueles teremos condições de avaliar os riscos de uma seculari-
138 O FUTURO DA NAWREZA HUMANA FÉ E SABER 139
zaçãô realizada alhures e fora dos trilhos se soubermos das igrejas. Nenhuma delas pode triunfar sem vencer a
claramente o que significa secularização nas nossas socie- outra, e assim obedecemos às regras do jogo liberal que
dades pós-seculares. É com essa intenção que retomo o favorecem as forças motoras da modernidade.
antigo tema "fé e saber". Sendo assim, o leitor não deve Essa imagem não se ajusta a uma sociedade pós-se-
esperar um "sermão dominical" polarizador, que pode in- cular, que postula a persistência das comunidades religio-
dignar uns enquanto os outros permanecem sentados. sas num ambiente que continua a se secularizar. O papel
civilizador desempenhado pelo senso comum, democra-
ticamente esclarecido, permanece escondido nessa ima-
A secularização na sociedade pós-secular ' ·: gem muito restrita. No tumulto que nasce daquilo que
cada indivíduo considera como sua luta cultural (Kultur:
Inicialmente, o termo "secularização" tinha o sentido kampf), esse senso comum trilha seu próprio caminhO
jurídico de transmissão forçada dos bens da Igreja à au- quase como um terceiro partido entre a ciência e a reli-
toridade do Estado secular. Posteriormente, essa signifi- gião. Não há dúvida de que, do ponto de vista do Estado
cação, por extensão, passou a designar o surgimento da liberal, merecem o predicado de "razoáveis" apenas as co-
modernidade cultural e social em seu conjunto, Desde en- . munidades religiosas que renunciarem, de maneira delibe-
tão, apreciações opostas são vinculadas ao termo "secula- rada, a impor pela violência suas verdades de fé, a exer-
rização", conforme coloquemos em primeiro plano o fato cer sobre a consciência moral de seus fiéis toda coerção
de a autoridade eclesiástica ter sido domada com sucesso militante e, a fortiori, a manipulá -los para que cometam
pelo poder secular ou o ato de apropriação ilegal. Segun- atentados suicidas 1. Esse raciocínio deve-se a uma tripla
do a primeira leitura, os modos religiosos de pensar e as reflexão dos fiéis sobre sua situação no seio de uma so-
formas de vida religiosas são substituídas por equivalen- ciedade pluralista. Em primeiro lugar, a consciência re-
tes razoáveis, em todo caso superiores; segundo a outra ligiosa precisa assimilar cognitivamente o contato com
leitura, as formas de pensamento e de vida modernas são outros credos e religiões. Em segundo lugar, ela tem de se
desacreditadas como bens obtidos de maneira ilegítima. adaptar à autoridade das ciências, que detêm o mono-
O modelo da repressão sugere uma interpretação da mo- pólio social do saber sobre o mundo. Por fim, ela deve se
dernidade despojada de magias que é otimista em rela- abrir às premissas do Estado constitucional, que se funda
ção ao progresso, enquanto o modelo da expropriação su- numa moral profana. Sem esse impulso para a reflexão,
gere uma interpretação da teoria do declínio, relativa à nas sociedades que foram modernizadas sem cautela, os
modernidade desabrigada. Essas duas leituras cometem monoteísmos desenvolvem um potencial destrutivo. Por
o mesmo erro. Elas consideram a secularização como uma
espécie de jogo de soma nula: de um lado, as forças produ-
tivas da ciência e da técnica, desencadeadas pelo capita- 1. J. Rawls, Libéralisme politique, trad. francesa de C. Audard, Paris,
SeuiL 1995i R. Forst, "Toleranz, Gerechtigkeit, Vemunft", in: id., Toler-
lismo, e, de outro, os poderes de contenção da religião e anz, Suhrkamp, Frankfurt am Main, pp. 144-61.
140 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
FÉ E SABER 141

certo~ a_7xpressão "impulso para a reflexão" nos sugere a cas que se infiltram no mundo da vida deixam essencial-
falsa 1de1a de que se trataria de um processo a ser realiza- mente intacto o âmbito do nosso saber quotidiano, o que
do e concluído de maneira unilateral. De fato, cada vez que dificulta nossa autocompreensão, enquanto seres capa-
mompe um novo conflito, esse trabalho de reflexão en- citados para a linguagem e para a ação. Quando apren-
contra uma continuidade nas plataformas de baldeação demos algo novo sobre o mundo e sobre nós enquanto
da esfera pública democrática. seres no mundo, o conteúdo da nossa autocompreensão
Tão logo uma questão de relevância existencial- bas- se modifica. Copérnico e Darwin revolucionaram as ima-
ta pensarmos na técnica genética- encontra-se na or- gens geocêntrica e antropocêntrica do mundo. Ao mes-
dem do dia política, os cidadãos, fiéis ou não, eniram em.< mo tempo, a destruição da ilusão astronômica sobre a
conflito. com suas convicções, impregnadas de ideologia, órbita dos astros deixou menos vestígios no mundo da
e expenmentam o fato chocante do pluralismo ideológi- vida do que a desilusão biológica sobre a posição do ho:$
co. Se aprendem a lidar com esse fato sem violência, mem na história natural. Os conhecimentos científicos
tendo consciência de sua própria falibilidade e, portanto, parecem perturbar nossa autocompreensão tanto mais
sem romper o vinculo social da comunidade política, con- quanto mais próximos estiverem de nos atingir. A pesquí-
seguirão discernir o que os fundamentos seculares da deci- sa sobre o cérebro nos dá lições sobre a fisiologia de nossa
são, tais co~o se encontram inscritos na constituição, sig- consciência. Mas será que isso muda aquela consciência
nificam no amb1to de uma sociedade pós-secular. Quando intuitiva da autoria e da imputabilidade que acompanha
as pretensões alegadas pela ciência entram em conflito todas as nossas ações?
com outr~s alegadas pela fé, o Estado, ideologicamente Se, com Max Weber, dirigirmos nosso olhar para os
neutro, nao toma de forma alguma decisões políticas em primórdios do "desencantamento do mundo", veremos o
favor de uma das partes. A razão pluralizada dos cidadãos que está em jogo. Na medida em que a natureza se torna
só obedece a uma dinâmica de secularização na medida acessível à observação objetivante e à explicação causal,
em que ela exige como resultado uma distância uniforme ela se despersonaliza. A natureza, que é objeto de pesqui-
das tradições fortes e dos conteúdos ideológicos. No en- sas científicas, destaca-se do sistema social de referência
tanto, ela permanece pronta para aprender, sem abando- de pessoas que vivem, agem e falam em conjunto e tam-
nar sua autonomia e mantendo-se osmoticamente aber- bém se atribuem reciprocamente intenções e motivos. O
ta tanto à ciência quanto à religião.
que acontece com tais pessoas se elas m§Pmas se subsu-
mem progressivamente às descrições científicas da na-
O senso comum esclarecido pela ciência tureza? Será que, por fim, o senso comum não apenas
aprende com o saber contra-intuitivo das ciências, mas
. _Obviamerüe, o senso comum, que cria para si muitas também se deixa consumir inteiramente por ele? O filó-
ilusoes a respe1to do mundo, precisa poder ser esclarecido sofo Winfrid Sellars respondeu a essa questão em 1960,
sem reservas pelas ciências. Contudo, as teorias científi- numa célebre conferência intitulada "Philosophy and lhe
142 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA FÉ E SABER 143
Scientific Image of Man" ("Filosofia e a imagem científica No entanto, mesmo essas abordagens mais avançadas
do homem"], utilizando como cenário uma sociedade em parecem fracassar devido ao fato de que o conceito de fi-
que os jogos antiquados de linguagem do nosso diaca- nalidade que introduzimos no jogo de linguagem darwi-
dia foram anulados, em favor da descrição objetivante de niano da mutação e da adaptação, da seleção e da sobre-
pro~e~sos de consciência, Ele foi o primeiro a esboçar esse vivência, é muito pobre para alcançar aquela diferença en-
cenano. tre _ser e dever, que imaginamos quando queremos trans-
O ponto de f~ga dessa naturalização do espírito é gredir as regras, ou seja, quando utilizamos de maneira
uma Imagem cienl!fica do homem, expressa na extensão errônea um predicado ou infringimos uma ordem6 .
do conceito da física, da neurofisiologia ou da teoria da ~ Quando descrevemos como uma pessoa fez alguma
evolução, que também dissocializa inteiramente nossa coisa que ela não queria fazer e que também não deveria
autocompreensão, Isso só pode dar certo se a intenciona- ter feito, essa descrição não se iguala à descrição de u~
lidade da consciência humana e a normatividade de nos- objeto da ciência naturaL Pois, quando descrevemos pes-
s~ ação forem totalmente absorvidas por tal autodescri- soas, incluímos tacitamente elementos da autocompreen-
çao, As teorias exigidas devem, por exemplo, esclarecer de são pré-científica de sujeitos capacitados para a lingua-
que,modo as pessoas podem obedecer às regras- gra- gem e para a ação. Quando descrevemos um processo
mat;cais, conce!luais ou morais- ou transgredi-las'. Os como a ação de uma pessoa, sabemos, por exemplo, que
d!SC!p~los de Sel}~r entenderam de forma equivocada a estamos descrevendo algo que pode não apenas ser ex-
expenencm aporel!ca e ficcional de seu mestre como um plicado como um processo natural, mas que também pode
programa de pesquisa e continuaram perseguindo-o até ser justificado como tal, se necessário. Em segundo plano
encontra-se a imagem de pessoas que podem prestar
hoje 3, A intenção de modernizar, do ponto de vista das
contas umas às outras, pessoas que desde o início envol-
ciência~ naturais~ nossa psicologia quotidiana' chegou a
veram -se em interações normativamente reguladas e se
conduzrr a tentativas de uma semântica, que pretende es-
encontram num universo de razões públicas.
clarecer biologicamente os conteúdos do pensamentos,

consciência normativa de organismos que utilizam símbolos e repre-


2. W. Sellars, Science, Perception and Reality. Altascadero Cal sentam estados de coisas. Segundo ela, a constituição intencional do
1963, 1991, p, 38, ' ,, espírito humano provém da vantagem seletiva de certos comporta-
3, P. M. Churchland, Scientific Realism and the Plasticity of Mind mentos (como a "dança" das abelhas), que são interpretados por seus
Cambridge, CUP, 1979, ' congêneres como figurações ou "cópias". Entre os "fólios" de cópias
, 4, ), D. Greenwood (org,), The future of Folk Psychology, Cam- habituais desse tipo, os comportamentos que se desviam devem
bndge, CUP, 1991; "Introduction", pp. 1-21. poder ser indicados como representações errôneas - e a origem da
5. W. Detel, "Teleosemantik Ein neuer Blick auf den Geist?" in: normatividade encontraria, então, uma explicação natural.
Deutsche Zeitschrift für Philosophie, n? 49, 2001, pp, 465-91, ' 6. W. Detet "Haben Frõsche und Sumpfmenschen Gedanken?
Com o aUXIlio de hipóteses darwinistas e de análises conceituais Einige Probleme der Teleosemantik", in: Deutsche Zeitschrift Jür Phí-
a teleossemântica pretende mostrar como pôde se desenvolver ~ losophie, n~ 49, 2001, pp. 601-26.
144 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
FÉ E SABER 145
Essa perspectiva que acompanha nosso dia-a-dia ex-
Tradução cooperativa de conteúdos religiosos
p~ica a diferença entre o jogo de linguagem da justifica-
ç~o e o d~ mera descrição. As estratégias de explicação
Sendo assim, o senso comum encontra-se entrelaça-
nao-reducwmstas encontram igualmente um limite nesse
dualismo 7• Elas também realizam descrições a partir de do com a consciência de pessoas que tomam iniciativas,
perspectivas de observação, que não podem ser integra- cometem erros e podem corrigi-los. Em relação às ciên-
das nem submetidas_ sem coerção à perspectiva do parti- cias, ele afirma uma obstinada estrutura de perspectivas.
Clpante, que caractenza nossa consciência quotidiana (da Por outro lado, essa mesma consciência de autonomia,
qual também se alimenta a prática da justificação da pes- que escapa a uma abordagem naturalista, também justifi-
quisa). Nas relações quotidianas, dirigimos nosso olhar a ca a distância em relação a uma tradição religiosa, de cujos
destinatários que tratamos por "você". Somente com essa conteúdos normativos, não obstante, nos nutrimos. Com
atitude para com outras pessoas é que entendemos o a exigência de uma justificação racional, o esclareciment~
"sim" e o "não" alheios e os posicionamentos passíveis científico parece atrair para o seu lado o senso comum,
de crítica que devemos uns aos outros e esperamos uns que ocupou seu lugar no edifício do Estado constitucional
dos outros. Essa consciência da autoria que se vê obriga- democrático, construído com base no direito racional. Cer-
d,:' a prestar contas é o núcleo de uma autocompreen- tamente, mesmo o direito racional igualitário possui raízes
s~o ~ue se abre apenas à perspectiva do participante, e religiosas, raízes essas que inserem modos de pensar nes-
nao a do observador, mas que escapa a uma observação sa revolução, que coincidiu com a ascensão das grandes
científica e revisória. A crença cientificista numa ciência religiões universais. Porém, essa legitimação do direito e da
que um dia não apenas completará a autocompreensão política, baseada no direito racional, alimenta-se de fon-
pessoal mas também a substituirá por uma autodescri- tes que há muito tempo se tornaram profanas. Diante da
ção objetivante não é uma ciência, mas uma filosofia ruim. religião, o senso comum, democraticamente esclarecido,
Também não haverá nephuma ciência que possa privar insiste em fundamentos que são aceitáveis não apenas
o senso comum, cientificamente esclarecido, de, por para os membros de uma comunidade religiosa. Por essa
exemplo, julgar o modo como devemos lidar com a vida razão, o Estado liberal, por sua vez, desperta nos fiéis a
humana pré-pessoal partindo das descrições biomolecu- suspeita de que a secularização ocidental poderia ser uma
lares, que tornarão possíveis as intervenções genéticas. via de mão única, que deixaria a religião à margem.
O reverso da liberdade de religião é, de fato, uma pa-
cificação do pluralismo ideológico, que teve por conse-
7. Essas estratégias de pesquisa levam em conta a complexidade
qüência uma sobrecarga desigual. Até agora, o Estado libe-
!' das propriedades novas (da vida orgânica ou da vida mental), que ral exigiu apenas dos fiéis, entre seus cidadãos, que divi-
sempre aparecem nos estágios mais avançados do desenvolvimento, dissem sua identidade em partes públicas e privadas. São
renunciando à descrição dos processos próprios aos estágios superio- eles que têm de traduzir suas convicções religiosas numa
res em termos que convêm somente aos inferiores.
língua secular, antes que seus argumentos tenham a pers-
146 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA FÉ E SABER 147

pectiva de serem aprovados pelas maiorias. f: 0 que fa _ história: de sua própria gênese. Atualmente, a língua do
zem hoje os católicos e os protestantes, quando reclamam mercado infiltra-se por todos os poros e pressiona todas
para o óvulo fertilizado fora do corpo da mãe o status de as relações inter-humanas para o esquema da orientação
um portador de direitos fundamentais, quando tentam pelas próprias preferências de cada um. O vínculo social,
(t~lvez de forma precipitada) traduzir na língua secular da trayado a partir do reconhecimento mútuo, não é absor-
le1 fundamental a idéia de que o homem é feito à imagem vido pelos conceitos do contrato, da escolha racional e
e semelhança de Deus. A busca por razões que visam à da maximização dos benefícioss.
aceJtabJhdade universal só não faria com que a religião Por essa razão, Kant não quis que o dever categoria!
fo~se lnJUSta'?ente excluída da esfera pública, e só não desaparecesse na esteira do auto-interesse esclarecido.
pn~ar1~ ~sociedade secular de fontes importantes para a '< Ele ampliou o livre-arbítrio para a autonomia e, por con-
mstJtmçao de sentido, se também o lado secular conser- seguinte, deu o primeiro grande exemplo de uma descons~
vass~ para si uma sensibilidade ao poder de articulação trução secularizadora, porém, ao mesmo tempo, redento,
das_linguagens religiosas. De todo modo, o limite entre as ra, das verdades de fé. Em Kant, a autoridade dos manda-
razoes seculares e as religiosas é fluido. Por isso, 0 estabe- mentos divinos encontra na validade incondicional das
lecimento desse controvertido limite deveria ser entendi_ obrigações morais um eco impossível de não ser ouvido.
do como uma tarefa d~ cooperação, que exige que ambos Com seu conceito de autonomia, ele destrói a idéia tra-
os lados adotem lambem a perspectiva do outro. dicional de sermos todos filhos de Deus9 Contudo, an-
. A política liberal não tem o direito de externar 0 con- tecipa as conseqüências banais de uma deflação que se
flito permanente ligado à autocompreensão secular da esvazia ao proceder a uma apropriação crítica do conteú-
soc1eda~~' nem de fazer com que ele só se realize na men- do religioso. Sua outra tentativa de traduzir o mal radi-
te do~ fi~1s. O senso comum, democraticamente esclareci- ' cal, passando de termos bíblicos aos da religião racional,
d_?, nao e um conceito singular, mas descreve a constitui- é um pouco menos convincente. Atualmente, conforme
!. çao mental de uma esfera pública, composta por uma plu- mostra mais uma vez a relação desinibida com essa he-
ralzdade de vozes. Em tais questões, as maiorias seculares rança bíblica, ainda não dispomos de um conceito ade-
nã? <:J:vem tirar conclusões antes de ouvir atentamente a
obJeçao_ dos oponentes, que se sentem lesados em suas 8. A Honneth, La lutte pour la reconnaissance, trad. francesa de P.
conVJcçoes rehgwsas. Elas devem considerar essa objeção Rutsch. Paris, Éd. du Cerf, 2000.
como uma espécie de veto prorrogado, a fim de examinar 9. O "Prefácio à primeira edição de 1793" de La Religion dans les
limites de la simple raison começa pela seguinte frase: "Na medida em
o qu_e podem aprender com ele. Considerando a origem que ela se baseia no conceito do homem corno ser livre e que, por isso
religwsa de seus fundamentos morais, o Estado liberal de- mesmo, usa sua razão para se obrigar a leis incondicionais, a moral
vena contar com a possibilidade de que, em vista dos desa _ não precisa da Idéia de um Ser diferente, que o ultrapassa para que ele
fios totalmente novos, "a cultura do entendimento huma- possa conhecer seu dever, nem de outro motivo além da lei em si para
que ele o observe" (CEuvres philosophiques 111, Paris, Gallimard, 1986,
no comum" (Hegel) não atinja o nível de articulação da p. 15) [tradução minha].
148 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA FÉ E SABER 149

quado para ;:aracterizar a diferença semântica que existe sitam mais de si mesmos do que daquilo que lhes é aces-
entre o que e moralmente errado e o que é profundamen- sível pela tradução da tradição religiosa - como se seus
te mau. O diabo não existe, mas o arcanjo destituído do potenciais semânticos ainda não tivessem sido esgotados.
estado de graça continua com suas manobras -no bem
invertido do ato monstruoso, mas também na ameaça ir-
refreada de represálias que segue seus passos. O conflito hereditário entre filosofia e religião
As línguas seculares que simplesmente eliminam
aquilo que um dia se quis dizer deixam irritações. Quando É possível compreender a história da filosofia alemã
o pecado se transformou em culpa, quando a transgressão \ '~ após Kant como um processo de sucessão, durante o qual
dos ma~damentos divinos tornou-se o não-cumprimen- as condições confusas da herança dão lugar à negociação.
to das leis humanas, algo se perdeu. Com efeito ao dese- A helenização do cristianismo conduziu a uma simbios~
jo de perdão une-se sempre o desejo não-senti~ental de entre a religião e a metafísica. Kant põe um fim nela. Ele
desfazer o sofrimento infligido ao outro. Sentimo-nos ain- traça uma nítida fronteira entre a fé moral na religião
da mais perturbados com a irreversibilidade do sofrimen- racional e a fé positiva na revelação, que certamente teria
to passado - aquela injustiça cometida contra inocentes contribuído para o aperfeiçoamento da alma, se "com
maltratados, humilhados e assassinados, injustiça que ui- seus apêndices, seus estatutos e suas observâncias" não
b·apassa toda medida de reparação dentro das possibi- tivesse, por fim, se transformado "numa corrente"10 • Para
lidades humanas. A esperança perdida de ressurreição Hegel, tal conclusão constitui a essência do puro "dog-
deixa para trás um vazio perceptível. O ceticismo justifica- matismo do Iluminismo". Hegel ridiculariza a vitória de
do de Horkheimer em relação à esperança desmedida de Pirro da razão, que se assemelha aos bárbaros, os quais,
Benjamin de uma força reparadora da memória humana embora tenham saído vitoriosos, cederam ao espírito da
- "Aqueles que foram abatidos estão realmente mor- nação submissa, no sentido de que ela (a razão) só" con-
tos" - não desmente o impulso impotente, que persiste serva sua autoridade" em virtude de "uma dominação
em mudar o que não pode ser mudado. A troca de cor- exterior"11. Em vez de uma razão que impõe limites, surge
respondência entre Benjamin e Horkheimer data da pri- uma razão que monopoliza. Hegel faz da morte na cruz do
~avera de 1937. Após o holocausto, ambos- o verdadeiro filho de Deus o centro de um pensamento que pretende
Impulso bem como sua impotência- mantiveram-se na atribuir a si mesmo a forma positiva do cristianismo. A
prática tão necessária quanto desesperada de uma "recu- antropoformização de Deus simboliza a vida do espírito
peração do passado" (Adorno). De maneira diferente esse filosófico. Mesmo o absoluto deve exteriorizar-se no ou-
mesmo impulso ainda se manifesta no lamento cre~cen­
te sobre a inadequação dessa prática. Em tais momen-
10. E. Kant, La religion ... , op. cit., p. 148.
tos, os incrédulos filhos e filhas da modernidade parecem 11. G. W. F. Hegel,"Foi et savoir", inPremiàes publícations, trad.
acreditar que se devem mais uns aos outros e que neces- francesa de M. Méry (ligeiramente modificada), Paris, Vrin, 1952, p. 193.
150
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
FÉ E SABER 151
tro dele mesmo, pois ele só se sente em poder absoluto
se extrair-se novamente da dolorosa negatividade da au- mas continua a acreditar nele."14 A partir de outras pre-
tolimitação. Sendo assim, os conteúdos religiosos são, ao missas, Jacques Derrida defende hoje uma posição análo-
mesmo tempo, abolidos e conservados pela forma do con- ga. Sob esse ponto de vista, ele é igualmente digno de re-
ceito filosófico, mas Hegel sacrifica a dimensão do futuro ceber o Prêmio Adorno. Com efeito, ele só pretende reter
presente na história da salvação por um processo univer- .do messianismo "o messiânico pobre, que deve serdes-
sal que evolui sobre si mesmo. pojado de tudo" 15 • • .
Os discípulos de Hegel rompem com o fatalismo des- Na verdade, o espaço fronteiriço entre a filosofia e
sa prefiguração desoladora do Eterno Retomo do Mesmo. a religião é um terreno minado. Uma filosofia que produz
Eles não querem mais ultrapassar a religião no nível das ' ., sobre si mesma suas próprias contradições cai facilmente na
idéias, mas realizar os conteúdos da religião, tomados em tentação de se arrogar pura e simplesmente a autoridade e
sua forma profana, por meio de um esforço comum de o estatuto de um sagrado que perdeu sua substânc~ e
solidariedade. Esse páthos que reside na vontade de reali- se tornou anônimo. Em Heidegger, a meditação religiosa
zar, fora de toda sublimação, o Reino de Deus na terra po- - Andacht- torna -se rememoração (Andenken) *. Todavia,
de ser encontrado na crítica da religião que vai de Feuer- para nós, não é nenhuma novidade o fato de que _o juízo
bach e Marx a Bloch, Benjamin e Adorno: "Nada do con- final da história da salvação se reduz ao acontecimento
teúdo teológico subsistirá sem modificação. Cada um de- indeterminado da história do ser. Se o pós-humanismo
verá sofrer a provação da entrada no século, no mundo deve se completar no retorno aos primórdios arcaicos,
12 antes de Cristo e antes de Sócrates, então chegou o mo-
profano." Por certo, nesse ínterim, o curso da história
mostrou que a razão, ao estabelecer para si própria tal mento do kitsch religioso: As grandes lojas de arte devem
projeto, exigiu demais de si mesma. Sendo assim, já que abrir suas portas a todos os altares do mundo inteiro e
a razão se vê esgotada e é levada a duvidar de si mesma, convidar para o vernissage padres e xamãs, qu; virão no
Adorno buscou então um apoio, embora apenas de um primeiro vôo de todas as direçô:'s de todos os ceus; Nesse
ponto de vista metodológico, na perspectiva messiânica: sentido, a razão profana, mas nao derrotzsta, mantem, por
"O conhecimento não tem outra luz senão aquela que a sua parte e com um grande respeito, a brasa sempre sus-
redenção faz brilhar sobre o mundo."13 A essa frase cor- cetível de se tornar chama, quando se coloca a questão da
responde outra, com a qual Horkheimer caracteriza a teo- teoclicéia para se aproximar da religião. Ela sabe que a pas-
ria crítica em seu conjunto: "Ela sabe que Deus não existe,
14. M. Horkheimer, Gesammelte Schríften, Frankfurt am Main, S.
Fischer Ver!ag, tomo 14, pp. 507-8. . . .
12. T. W. Adorno, "Raison et révélation", in: Modeles critiques, . 15. ]. Derrida, "Foi et Savoir", in:]. Derrida & M. WieviOrka, FOI
op. cit., p. 146.
et Savoir, seguido de Le Síecle et le pardon, Paris, Seuil, 2002; vertam-
13. T. W. Adorno, Mínima moralia, trad. francesa de É. Kautholz bém id., Donner la mort, Paris, Galilée, 1999. . .
e ).-R. Ladmiral, Paris, Payot, p. 230 (tradução modificada). * Memória, lembrança. Em Heidegger: pensamento que de:txana
o Ser ser lN. da T.l.
152 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
FÉ E SABER 153
sagemdo_sagra?o para o profano começou com as gran-
o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou."
des rehg~oes umversms, que desencantaram a magia, su-
Não precisamos acreditar que Deus, que é o amor, criou
peraram o mito, sublimaram o sacrifício e revelaram 0
em Adão e Eva seres livres, que lhe são semelhantes, pa-
segredo. Essa ambivalência também pode conduzir à ati-
ra entendermos o que significa "à imagem de". Não po-
tude razoável de manter uma certa distância da religião, tle haver amor sem conhecimento recíproco, nem liber-
sem se fechar totalmente às suas perspectivas. dade sem reconhecimento recíproco. Por isso, aquele que
está defronte sob a forma humana deve, por sua vez, ser
livre para poder retribuir o dom de Deus. Apesar de ser
O exemplo da técnica genética , ., a imagem de Deus, esse outro apresenta-se apenas como
criatura de Deus. Do ponto de vista da origem, ele não
Essa atitude pode colocar na direção certa o auto- pode estar no mesmo plano de Deus. Essa criação da m,'ta-
esclarecimento de uma sociedade civil dilacerada pela luta gem semelhante exprime uma intuição que, no nosso con-
cultural (Kulturkampf). A sociedade pós-secular continua texto, também pode dizer algo àquilo que não está em
na religião o trabalho que esta concluiu sobre o mito. E sintonia com a religião. Hegel havia assinalado alguma
não o faz mais na intenção híbrida de uma conquista rea- coisa ao evocar a diferença entre a "criação" divina e o
lizada com um espírito de hostilidade; ela o faz sobretudo simples "provir" de Deus16. Deus permanece "Deus para
pos~lando que é de seu próprio interesse opor-se à en- as pessoas livres" apenas enquanto não nivelarmos a
tropia fechada, que afeta a frágil fonte do sentido. O sen- diferença absoluta entre o criador e a criatura. Somente
so comum, esclarecido pela democracia, também deve te- nessa medida é que o ato divino de dar forma não impli-
mer o nivelamento dos meios de comunicação de massa ca uma determinação, impõe obstáculos à autodetermi-
e a banalização logorréica de todas as diferenças. Senti- nação humana.
mentos morais, que até agora só podiam ser expressos de Por ser Deus da criação e da redenção ao mesmo tem-
um modo suficientemente diferenciado na linguagem reli- po, esse criador não precisa agir como um técnico, segun-
giOSa, podem encontrar uma ressonância universal, tão do as leis naturais, nem como um especialista em infor-
I?gouma formulação redentora se apresente para o que mática, segundo as regras de um código. A voz de Deus,
Ja fOI quase esquecido, mas que implicitamente faz fal- que chama para a vida, comunica desde o início dentro de
ta. Raramente isso acontece, mas algumas vezes vem a um universo moralmente sensível. Por essa razão, Deus
ocorrer. Uma secularização que não aniquila, realiza-se no pode "determinar" o homem, atribuindo-lhe, ao mesmo
modo da tradução. Isso é o que o Ocidente, enquanto po- tempo, a capacidade e o dever da liberdade. Sendo assim,
der secularizador universal, pode aprender a partir de sua
própria história. 16. Embora essa idéia de "emergência" contradiga seu próprio
Na controvérsia sobre o trato com embriões humanos conceito de idéia absoluta, que a natureza "libera a partir dela mes-
muitas vozes evocam ainda hoje Gênesis 1,27: "Deus crio~ ma", ver G. W. F. Hegel, Leçons sur la philosophie de la relígíon li, 2,
trad. francesa). Gibelin, Paris, Vrin, 1959, pp. 51 s. e 88 s.
154 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA

não precisamos acreditar nas premissas teológicas para ÍNDICE ONOMÁSTICO


compreendermos a conseqüência de que uma depend ên-
cia totalmente diferente e apresentada como sendo causal
entraria em jogo, caso a diferença admitida no conceito da
criação desaparecesse e um peer tomasse o lugar de Deus.
Em outras palavras, caso um homem interviesse segundo
suas próprias preferências na combinação aleatória das
seqüências cromossômicas paternas, sem que, para tanto,
pudesse supor, pelo menos de forma contrafactual, um
consenso com o outro envolvido. Essa leitura sugere a
questão que me ocupou em outro momen to. Será que a
primeira pessoa, que determ ina outra conforme suas pró-
prias prejerf!ncias em sua essência natural, também não
destruiria aquelas liberdades iguais, existentes entre os ADORNO, Theodor BECK, Ulrich
, iguais por nascimento, a fim de garantir sua diferença? Wiesengrund: 3, 67, 150. Risikogesellschafi: 36 n. 17.
Dialektik der Aufkliirung: 67 BENDA, Ernst: 42 n. 21.
BENJAMIN, Walter: 148,150.
n.39.
BIN LADEN, Osama: 135.
Minima moralia: 3, 3 n. 1, 150
BIRNBACHER, Dieter: 103 n. 2,
n.13. 111, 115-6.
Modeles critiques: 150 n. 13. "Habermas' ehrgeiziges
"Raison et révélation": 150 Beweisz iel- erreicht oder
n.13. verfehlt?": 116 n. 6.
AGAR, Nicholas BLOCH, Ernst: 150.
11
Liberal Eugenics": 27 n. 3, BRAUN, Kathrin
28n. 5, 68 n. 40, 69 n. 41, Menschenwürde und
59 n. 42. Biomedizin: 87 n. 54.
ARENDT, Hannah: 49 n. 27, 81, BROCK, Daniel
82 n. 50, 83.
From Chance to Choice: 32
n. 13, 39 n. 19, 59 n. 34, 69
Vila activa: 49 n. 27, 82 n. 50,
n. 42, 72 n. 45, 74 n. 48, 85
82 n. 51. n. 52, 87 n. 54.
ARISTÓTELES: 62-3. BuCHANAN, Allen
AssHEUER, Thomas: 31 n. 9. From Chance to Choice: 32
"Der künstliche Mensch": 31 n. 13, 39 n. 19, 59 n. 34, 69
n. 9. n. 42, 72 n. 45, 74 n. 48, 85
ArrA, Mohamm ed: 135. n. 52, 87 n. 54.
156
O FUTURO DA NATUREZA HUMANA
fNDICE ONOMASTICO 157
CHURCHLAND, Patricia: 142 n. 3. FEINBERG, Joel
Scientific Realism and lhe
Plasticity ofMind:142 n. 3. "The Child's Right to an Urteilens bei jugendlichen "Lasst uns einen Menschen
COPÉRNICO, Nicolau: 76, 141. open Future": 87 n. 54. Magersüchtigen": 71 n. 44. klonieren": 66 n. 37, 66 n.
CRISTO: 12, 151. FEUERBACH, Ludw:ig: 150. HARRrs, John 38.
FoRsr, Rainer: 32 n. 13, "ls Gene Therapy a Form of Technik, Medizin und
DANIELS, Norman 98 ri. 58. Eugenics?": 72 n. 46. Eugenik: 66 n. 37, 87 n. 54.
From Chance to Choice: 32 "Toleranz, Gerechtigkeit, HEGEL, Georg Wilhelm
n. 13, 39 n. 19, 59 n. 34, 69 Vemunft": 139 n. 1. Friedrich: 4, 9, 11, 146, 149, KANT, Immanuel: 1, 7, 11-2, 39,
n. 42, 72 n. 45, 74 n. 48, 85 FRANKFURT, Hany: 77. 48, 48 n. 25, 53, 76, 147-9.
153. "' La religion dans les lzmztes de
n. 52, 87 n. 54. FRiscH, Max "Foi et savoir" (in: Prenueres
,< la simple raison: 147 n. 9,
DARWIN, Charles: 30, 76, 141. Stiller, Roman: 3. publications): 149 n.ll.
DAUBLER-GMELIN, Herta: 41-2 149 n. 10.
Leçons sur la philosophze de la KERSTING, Wolfgang ~
n. 21. GADAMER, Hans Georg: 99. religion II: 153 n. 16. "Menschenrechtsverletzttng
DERRIDA, Jacques: 151. GEHLEN, Arnold: 49 n. 26. HEIDEGGER, Martin: 8.
"Foi et savoir": 151 n. 15. ist nicht Wertverletzung": 52
GREENWOOD, John D. HOFFE Otfried: 56. n.31.
"W~ssen Menschenwürde ?":
DETEL, Wolfgang: 142 n. 5,
143 n. 6. The Future of Folk Psychology KrERKEGAARD, Sõren: 1, 8- 9'
(org.): 142 n. 4. 56 n. 33. 11-5, 13 n. 7, 19, 86 n. 53.
"Haben Frõsche und
GÜNTHER, Klaus HONNEFELDER, Ludger: 39 n. 18. Die Krankheit zum Tode: 12
Sumpfmenschen
Gedanken? Einige Der Sinn für Angemessenheit: "Die Herausforderung des n. 6, 13 n. 8, 14 n. 9.
Probleme der 52 n. 32. Menschen durch Entweder/Oder: 9, 10 n. 4,
Teleosemantik": 143 n. 6. Genomforschung und 11n.5
1
'Teleosemantik. Ein neuer fiABE~,Jürgen Gentechnik": 39 n. 18. Philosophische Brocken: 12, 13
Blick auf den Geist?": 142 Faktizitiit und Geltung: 31 HONNETH, Axel n. 7, 15 n. 11.
n.5. n. 11. La lutte pour la KOLLEK, Regine .
DWORI<IN, Ronald: 40, 103, 117, Die Einbeziehung des Anderen: reconnaissance: 147 n. 8. Priiimplantationsdiagnostik:
120, 129. 31 n. 11. HoRKHEIMER, Max: 67, 148, 20 n. 6. ,
"Die falsche Angst, Gott zu Kommunikatives Handeln und 150. "Verschwiegene Interessen :
spielen": 40 n. 20. detranszendentalisierte Dialektik der Aufkliirung: 67 29n. 6.
Life's Dominion: 44 n. 23. Vernunft: 110 n. 4. n.39. KVHLMANN Andreas: 23, 74.
"Playing God, Genes, Die postnationale Politik d:S Lebens, Politik des
Gesammelte Schriften: 151 n. 14.
Oones, and Luck": 40 n. 20. Konstellation: 36 n. 17, 89 Sterbens: 30 n. 7, 74 n. 47.
Rechte ernstgenommen: 52 n. 55. JAKOB, François .. .
n.32. LAPrn, Marc
Wahrheit und Rechtfertigung: Das Spiel des Moglzchen: 65 "Ethical Issues in
101 n. 59, 125 n. 9. n.36. Manipulating the Human
ERLINGER, Rainer
"Richtigkeit versus ]ANICH, Peter Germ Line": 26 n. 2.
"Von welchem Zeitpunkt an
Wahrheit": 101 n. 59. Verantwortung ohne LOCKE, John: 104.
ist der Embryo juristisch
geschützt": 42 n. 21. fiABE~, Tilmann: 32 n. 13. Verstiindnis: 65 n. 36 LOHMANN, Georg: 127 n. 10.
"Die Entwicklung sozialen JASPERS, Karl: 8 "Die Herausforderung
JONAS, Hans: 66-8, 66 n. 38. der Ethik durch

i
158 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA iNDICE ONOMASTICO 159
Lebenswissenschaften RAWLs, john: 4, 39 n. 19.
und Medizin": 127 n. 10. TuGENDHAT, Ernst Menschen überlassen
Politischer Liberalismus: 9 Selbstbewusstsein und dürfen": 30 n. 8.
n. 3, 139 n. 1. Selbstbestimmung: 80 n. 49 WAYNE, john: 135
MARx, Karl: 150. RENESSE, Margot von: 96.
11AUERSBERG, Barbara WEBER, Max: 141.
RlxEN, Stephan Vm DAELE, Wo!fgang: 34. WEINGARTEN, Michae!
Der lange Abschied von der "Totenwürde": 52 n. 30.
Bewusstseinsphilosophie: 80 "Die Moralisierung der Verantwortung ohne
ROBERTSON, )ohn: 69 n. 41. · menschlichen Natur und Verstiindnis: 65 n. 65.
n.4 9.
McCARTHY, Thomas: 110, 129. die N aturbezüge in WIKLER, Daniel
SARTRE, jean-Paul: 8, 11. gesellschaftlichen From Chance to Choice: 32
MEAD, George Herbert: 49 n. 26. SC!fMOLL, Heike
MERKEL, Reinhard Institutionen": n. 13, 39 n. 19, 59 n. 34, 69
"Wann wird der Mensch ein 35 n. 16. n. 42, 72 n. 45, 74 n. 48, 85
"Rechte für Embryonen r: Mensch?": 45 n. 24.
43 n. 22. "Die Natürlichkeit des n. 52, 87 n. 54. ~
SCHNEIDER, lngrid Menschen ais Kriterium WINGERT, Lutz: 32 n.13, 61 "
MITSCHERL!CH, Alexander: 7-8. "Verschwiegene Interessen":
Freiheit und Unfreiheit in der und Schranke technischer n.35.
25n.1. Eingriffe": 34 n. 14, 35 Gemeinsinn und Moral: 50
Krankheit. Studien zur SCHRODER, Gerhard: 31
psychosomatischen Medizin n.15. n.29.
SCHWAGERL, Christian "Was macht eine
3: 8n. 2.
f/Die Geister, die Sie riefen": WATSON, )ames D.: Lebensform human?
MUELLER, Ulrich 25 n. 1.
"Gebt uns die Lizenz zum "Die Ethik des Genoms. Unsere Kultur zwischen
SEEL, Martin: Warum -wir Gott nicht Biologie und
Klonen!": 43 n. 22. Ethisch-iisthetische Studien: mehr die Zukunft des Humanismus": 61 n. 35.
49 n. 28.
NAGEL, Thomas: 103, 110, 129. SELLARS, Wilfrid: 50, 141-2
NIETZSCHE, Friedrich: 9, 31. Science, Perception and
NUSSBAUM, Martha: 48 n. 25. Reality: 142 n. 2.
S!EP, Ludwig: 127-8, 132, 103
PAWLIK, Michae!: 42 n. 21. n.2.
"Der Staat hat dem Embryo "Moral und Gattungsethik":
alie Trümpfe genommen/1: 127n. 11.
42 n.21. SI<INNER, Burrhus Frederic
PLESSNER, Helmuth: 17, 49 Walden li: 129.
n. 26, 70. SOCRATES: 12, 151.
Die Stufen des Organischen: SPAEMANN,Robert:60 127
70 n. 43. ''Habennas über Bioethik":
127n.12.
RAu, )ohannes: 27, 31
"Der Mensch ist jetzt 1'HEUNISSEN, Michael
Mitspieler der Evolution Das Selbst auf dem Grund der
geworden": 27 n. 4 Verzweiflung: 80 n. 49.
\ ·:

IM~SSÃO
EACABAMENTO:
" _ ) .. Fone/FaX:
f/4. ~ GI.AF 2o9s-1122
&-mail:santana@y.'lngraf.com.br

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