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PORÕES DA MEMÓRIA
Ficção e história em Jorge Amado e Graciliano Ramos
Para
Maria Izabel Buitor Carelli
e
William Roberto Cereja,
que me ensinaram a ler.
3
Agradecimentos
SUMÁRIO
I. OS PORÕES DA DECÊNCIA................................................................................. 9
I.1 Uma crônica dos subterrâneos ................................................................... 9
I.2 Homens e coisas do Estado Novo.............................................................. 11
I.3 Tempos obscuros ....................................................................................... 15
I.4 Um Alencar socialista................................................................................ 31
I.5 De heróis e de homens ............................................................................... 40
I.6 Uma democracia totalizante ...................................................................... 49
MEMÓRIA-TEIA, MEMÓRIA-HISTÓRIA
1 V. ARISTÓTELES. "De la mémoire et de la réminiscence". In: Petits traités d'histoire naturelle. Paris:
Societé d'Édition "Les Belles Lettres", 1953. p. 57-9.
2 Ibid., p. 54.
3 V. Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos (1901). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. IV e V). Rio de Janeiro: Imago, 1972. V. também o
ensaio "Sobre lembranças encobridoras". In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. (vol. III). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 329-54.
6
de Freud4. O esquema proposto por este, além disso, tem pelo menos uma conseqüência
lógica: se a memória se estabelece em camadas, só é possível alcançar as camadas mais
profundas atravessando, necessariamente, as intermediárias. Daí a metáfora arqueológica
elaborada por ele num texto bem posterior. Para Freud, a preservação da lembrança na
esfera da mente se assemelharia à história de Roma. Segundo os historiadores, a primeira
povoação do local teria sido a Roma Quadrata, sediada sobre o monte Palatino. Sobre
ela, foram sendo edificadas as cidades das fases posteriores da história romana, até o
ponto em que da cidade mais antiga restariam apenas ruínas escassas, soterradas pelas
etapas posteriores, e que só mediante escavações profundas poderiam vir à luz5.
A configuração "geológica" da memória para Freud não dá conta, porém, do
4 Em A interpretação dos sonhos, Freud postulou um esquema visual que resume, para ele, o
funcionamento da memória desde a percepção presente de um dado até o resgate do fato primário no
inconsciente, através das camadas de traços mnemônicos sobrepostos à lembrança original. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. IV e V). p. 573 e ss.
5 Sigmund Freud. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 87-8.
6 V. Sigmund Freud. Lembranças encobridoras (1899). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. III). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 353-4.
7
geológica, a rede é sempre mais dinâmica. Ao se "navegar" por ela, existem vários
caminhos para se chegar ao mesmo objetivo. É possível até mesmo optar por um atalho.
A rede também pode ser considerada, simbolicamente, a imagem do texto. No
discurso verbal, quem fala ou escreve está sempre condenado à seqüência: um som
pronunciado após o outro, uma palavra após a outra. Mas a estrutura do texto comporta
outras ligações. Perseguem-se nele os fios do tempo, das rimas, do ponto de vista, do
espaço. Os vínculos entre elementos aparentemente afastados numa seqüência formam
entre eles uma teia. Os psicanalistas e os escritores conhecem a ligação entre a
7 Machado de Assis. "O emplasto". In: Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro/São Paulo:
Livro do Mês, [1961]. p. 15.
8 Walter Benjamin. "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica, arte
e política. 3.ed. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Obras escolhidas, 1). p. 197-
221. A título de curiosidade, v. "Pesquisa mostra como a memória se forma". In: O Estado de São Paulo,
2-11-1989, p. 14 e Daniel Goleman. "Contar histórias é a chave da memória". In: O Globo, 27-4-1993. O
primeiro artigo afirma que o funcionamento biológico da memória humana forma uma rede de neurônios
interligados. O segundo vincula a capacidade de lembrar à capacidade de narrar.
8
I. OS PORÕES DA DECÊNCIA1
Um leitor de hoje, que tenha por hábito assistir a alguns programas de televisão
depois do trabalho, passe os olhos sobre algum jornal pelas manhãs ou acompanhe as
revistas semanais hoje tão populares no Brasil, possui, certamente, alguma expectativa
ao iniciar a leitura de uma obra com a assinatura de Jorge Amado. O escritor mais
popular do país, traduzido em trinta e três línguas e publicado em mais de quarenta
países, de acordo com uma referência já antiga de Raimundo de Meneses2, é
mundialmente conhecido por obras como Gabriela, cravo e canela, Dona Flor e seus
dois maridos, Tereza Batista cansada de guerra e Tieta do agreste: narrativas de caráter
regional, que misturam crônica de costumes e erotismo, certo descuido formal e traços de
oralidade. Na definição de Alfredo Bosi, "tudo", no mais conhecido Jorge Amado, "se
dissolve no pitoresco, no 'saboroso', no apimentado do regional"3.
Mas Jorge Amado não é só isso. O mesmo Alfredo Bosi identifica, na pródiga
carreira literária do escritor, outras "fases" anteriores: a do "romance proletário", a dos
"depoimentos líricos", a dos "escritos de pregação partidária", a dos "afrescos da região
do cacau"4. E outros críticos vêm estudando, hoje em dia, a chamada "fase política" do
autor, que começaria, a largos traços, em alguns dos primeiros romances de Jorge (como
Cacau, de 1933, e Suor, do ano seguinte) e atingiria seu auge nos anos 40 e início dos
anos 50, culminando com a trilogia Os subterrâneos da liberdade (concluída em 1952,
mas publicada apenas dois anos mais tarde).5
1 Ref. a artigo de Hermínio Sachetta, "Jorge Amado e os porões da decência". In: Tribuna da Imprensa.
Rio de Janeiro, 18-09-1954.
2 Raimundo de Meneses. Dicionário literário brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos, 1978. p.36.
3 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985. p.459.
4 Ibid.
5 V. Alfredo Wagner Berno de Almeida. Jorge Amado: política e literatura (1979) e também Eduardo de
Assis Duarte. Jorge Amado: romance em tempo de utopia (1996). Este último autor questiona a "teoria das
fases" em Jorge Amado, mostrando traços de continuidade temática e formal ao longo de sua obra.
10
significava "a posse no leito, a paixão da carne delirante", "o desejo violento e após o
cansaço e o fastio"7, sofre a censura moralista do narrador: seu sentimento é para ele
"amor despido de toda sua grandeza, mesmo dessa medíocre grandeza feita de
devotamento"8.
Há em Os subterrâneos da liberdade uma certa "moral comunista ⎯ 'pura',
6 Alice Raillard. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, [1991]. p.143.
7 Jorge Amado. Os ásperos tempos (Os subterrâneos da liberdade, I). 40.ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.
p.323/4. A partir daqui, a obra será referida pela sigla OSL, seguida do número do volume em algarismos
romanos.
8 Ibid.
9 Op. cit., p.243.
10 apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.221.
11 Ibid., p.220.
11
Vinte anos depois, certos valores se inverteram. Jorge Amado tornou-se best-seller
dentro e fora do Brasil, e a crítica, que antes o censurava pelo tom ideológico de seus
livros, passou a chamá-lo de escritor "comandado pelo gosto do mercado". Em
conhecido ensaio de 1973, Walnice Nogueira Galvão definiu, de modo algo indignado, a
concepção literária de Jorge:
"[...] que não se perca tempo com escritos que 'não levantam o pau nem
fazem a gente rir'. Tal é o ideário estético de Jorge Amado e Tereza Batista
Cansada de Guerra está aí para confirmá-lo."12
"O nosso público em geral afastava-se [do documento], queria sonho e fuga.
[...] A imaginação de Jorge os encantava, imaginação viva, tão forte que ele
supõe falar a verdade ao narrar-nos existências românticas nos saveiros, nos
cais, nas fazendas de cacau."13
ambos sob a denominação de "O Muro de Pedras, romance" e com os respectivos títulos
12 Walnice Nogueira Galvão, "Amado: respeitoso, respeitável". In: Saco de gatos. São Paulo: Duas
Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. p.13/22.
13 Graciliano Ramos. Memórias do cárcere (vol.III). Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. p.133. Também
consultada, para fins de análise, a 25a edição pela Editora Record (1992).
12
audaz e vigorosa em defesa da paz"17. Stálin morreu em 1953, mas ainda se passariam
alguns anos até a revelação das muitas atrocidades cometidas sob suas ordens. Quando
da publicação de Os subterrâneos da liberdade, o líder soviético ainda era, para os
comunistas, o "mestre, guia e pai", "guia genial dos povos"18, "o maior titã de todos os
tempos"19.
No início de 1952, Jorge Amado ainda se encontrava no exílio, que amargava
desde 1948, quando fora cassado seu mandato de deputado federal pelo PCB. Vivendo
em Paris e depois na Tchecoslováquia, Jorge praticamente abandonou a atividade de
14 Jorge Amado. O mundo da paz: União Soviética e Democracias Populares. Rio de Janeiro: Vitória,
1952.
15 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.217-8.
16 João Amazonas, "Nossa política". In: Problemas: revista mensal de cultura política. Ano 3, n.20 (ago-
set 1949). p.4. A revista era um dos mecanismos legais de divulgação do partido comunista à época. Em
1949, era dirigida por Diógenes Arruda Câmara, o segundo homem no partido depois de Prestes, então no
exílio.
17 Luís Carlos Prestes, apud João Amazonas. Op. cit., p.5.
18 Jorge Amado, O mundo da paz. p.229/234.
19 Janer Cristaldo, "Graciliano Ramos e Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, 30 anos depois. In:
Travessia: revista de literatura brasileira. Florianópolis, 4 (6): jul.1983. p.64.
20 Depoimento de Jorge Amado a Alice Raillard. Op. cit., p.263/4.
13
parecerem tão distantes. Jorge Amado resolveu então escrever uma história: a da
"heróica" oposição dos comunistas ao Estado Novo. Nasciam Os subterrâneos da
liberdade.
O chefe da Nação, que viajará por via aerea acompanhado dos Interventores Adhemar de
Barros e Amaral Peixoto e Governador Benedicto Valladares, vem assistir ás festas
commemorativas do segundo anniversario do dr. Adhemar de Barros e inaugurar o
Estadio Municipal ⎯ Dentre as grandes homenagens ao Presidente Getulio Vargas
destacam-se o almoço que os prefeitos de S. Paulo offerecem a s. exa. e a imponente
parada das forças armadas na Avenida S.João [...]"27
no centro da cidade úmida. Enquanto espera pela lenta desobstrução das ruas, o deputado
soletra uma inscrição feita a piche nos muros da Companhia Light & Power:
"ABAIXO O IMPERIALISMO IANQUE
E VIVA O P.C.B."
Acorrem então à sua memória todos os acontecimentos do último mês: os
problemas criados pelo filho diplomata, o retorno à cidade de Marieta Costa Vale, seu
amor de juventude, depois de meses na Europa, o clima de incerteza política que cercava
29 Jorge Amado. Homens e coisas do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Horizonte, 1946. p.25-6.
30 Em entrevista a Alice Raillard, Jorge Amado declara, referindo-se a Seara vermelha: "É uma história
construída a partir de uma pessoa muito querida, meu velho amigo Giocondo Dias, que chegou a
Secretário Geral do PCB e na época era sargento; foi um dos chefes militares da revolta de Natal [1935]".
In: Alice Raillard. Op. cit., p.162.
16
a um processo que é, ao mesmo tempo, narrativo (pois diz respeito à história particular
de cada personagem do romance) e histórico (já que os personagens do romance,
ficcionais ou reais, participam, ao longo da trama, de conhecidos episódios da história
política brasileira nos anos 30).
Nesse primeiro volume, todos os principais personagens da obra se apresentam em
seus diferentes círculos, que são sociais e, ao mesmo tempo, políticos e econômicos. Os
grupos, em Os subterrâneos da liberdade, são classes sociais: a representação da "luta de
classes" (por vezes, de modo esquemático e pouco complexo) domina os três romances
do começo ao fim. A ação de cada personagem é determinada pela classe a que pertence,
como rege a teoria marxista, que prega a preponderância do fator econômico sobre o
social e o ideológico.32
De início, o narrador se ocupa da "alta burguesia": o deputado Artur Carneiro
Macedo da Rocha é "descendente da velha estirpe paulista"33; seu filho, Paulo Carneiro
Macedo da Rocha, um diplomata playboy e arruaceiro; Marieta Vale, a "antiga" amada, é
esposa de José da Costa Vale, poderoso banqueiro e industrial ligado aos interesses
internacionais.
Em torno desses personagens, giram outros, não menos emblemáticos: o poeta
católico César Guilherme Schopel, "mulato gordíssimo"34, reacionário e adulador; a
Saquila, futuro "traidor trotskista", e ressurge, em meio aos seus, o camarada João. O
tenente Apolinário, "herói" da fracassada insurreição de 35, e os dirigentes Zé Pedro e
Carlos entram em cena nas partes seguintes.
No final do primeiro capítulo, toma forma o terceiro e último dos grandes círculos
sociais e políticos da trilogia. É o grupo dos pequeno-burgueses35, estruturado em torno
da futura bailarina Manuela Puccini, mocinha ingênua e sonhadora, filha de imigrantes, e
de seu irmão Lucas, rapaz carreirista que se associa ao funcionário Eusébio Lima em
falcatruas no Ministério do Trabalho. Lucas acaba enriquecendo até o final de A luz no
túnel.
Todos esses personagens, apesar de fictícios, mantêm alguma relação mais ou
menos estreita com personagens reais da época em que se passa a narrativa. É o caso do
poeta César Guilherme Schopel ⎯ como aponta Eduardo de Assis Duarte, uma
"caricatura meio maldosa de Augusto Frederico Schmidt"36 ⎯ e de Abelardo Saquila,
correspondente ficcional do jornalista Hermínio Sachetta37, que em 1938 foi expulso das
fileiras do PCB acusado de trostkismo. Em sua tentativa de fazer da literatura
documento, Jorge Amado parece não ter tido o mesmo pudor de Graciliano Ramos, para
quem a representação literária de "criaturas vivas" constituía um problema:
narrativa como personagem. Todos funcionam, isto sim, como contraponto histórico para
personagens de base histórica que já de início se apresentam.
Os ásperos tempos inauguram, dessa forma, a grande questão do tempo nos três
romances. Quem são as pessoas recriadas nesse texto, tão díspares, de caráter tão
predominantemente histórico? Que têm em comum personagens tão distanciados? O
narrador da trilogia responde:
"Essas coisas", no caso, são o jantar na mansão de José e Marieta Costa Vale, que
reúne todo o seu círculo de amigos; o aniversário de Mariana, em que esta recorda suas
origens e em que conhece João; a chegada de Apolinário a São Paulo; a volta de Paulo
Carneiro Macedo da Rocha à cidade e seu primeiro encontro com Manuela. Toda a ação
do primeiro capítulo de Os ásperos tempos (que corresponde a cerca de 120 páginas)
transcorre nesse dia. Essa espécie de "congelamento temporal" tem como efeito imediato
ressaltar o que é disperso e divergente: os espaços narrativos, os tipos de pensamento dos
personagens e, principalmente, as classes sociais recriadas pelo texto, suas ações
relatadas e suas ideologias, apresentadas por meio dos pensamentos de cada personagem
revelados pelo narrador. Nesse ponto da narrativa, os personagens só têm, em comum, o
tempo: vivem o mesmo momento, cada um a seu modo e em seu grupo, cada qual com
suas expectativas.
O resultado é que, a princípio, nesse romance que se quer histórico, não há
propriamente história, se se puder considerá-la, como o faz Hans Meyerhoff em O tempo
na literatura, "o tempo [...] experimentado mais e mais como mudança constante"40. A
narrativa mesma só acontece por haver uma sucessão de ações no breve intervalo de
horas em que tudo ocorre no capítulo. E há também os flashbacks, freqüentes em certos
trechos em que o narrador apresenta seus personagens por meio das recordações que a
eles acorrem. O tempo narrativo se resolve. Fica parado o tempo histórico, entendido,
dentro do romance, como a recriação textual de um fluxo cronológico e factual medido
por categorias externas ao texto.
39 OSL, I, p.129.
40 Hans Meyerhoff. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill, 1976. p.79.
20
"No dia nove, à noite, Costa Vale, de volta a São Paulo, conversara
com Marieta. Perguntara-lhe quais seus compromissos para o dia seguinte.
[...]
⎯ Cancele tudo, minha cara. O melhor é não sair de casa amanhã.
Pode haver desordens pela cidade. Amanhã Getúlio dará o golpe de
Estado."42
"No dia do golpe, Costa Vale saiu como de hábito para o seu escritório
no banco, à mesma hora de sempre".43
Horas mais tarde, as rádios anunciam a presença do Exército nas ruas e a prisão do
governador paulista. Em seguida, são narrados os acontecimentos do dia do golpe. As
partes 10 e 11, as últimas do capítulo, narram os dias seguintes à ação de Getúlio.
O terceiro capítulo traz uma estrutura temporal ainda um pouco mais fluida e
corrente. Ele se inicia três meses após o 10 de novembro, "nos começos daquele ano de
1938"44, apresentando um novo círculo de personagens na narrativa: o núcleo do Vale do
Rio Salgado. Trata-se da ação desenvolvida ao redor de Gonçalo, ativo militante
comunista que foge da Bahia, onde liderou a revolta dos índios do Posto Paraguaçu
contra um político que lhes queria tomar as terras, e embrenha-se no interior do Mato
Grosso. A grande luta de Gonçalo e seus companheiros será, ao longo dos romances
seguintes, contra o coronel Venâncio Florival, para o qual trabalham os camponeses que
41 OSL, I. p.137-8.
42 OSL,I. p.147.
43 Ibid. p.148.
44 Ibid.. p.228.
21
Gonçalo ajuda, e contra o capital internacional, que quer instalar na região a Empresa do
Vale do Rio Salgado, referência à criação da Companhia Vale do Rio Doce em 1942,
durante o Estado Novo45. Também a ação que envolve Manuela, Lucas Puccini e Paulo
Macedo Carneiro da Rocha se acontece três meses após os primeiros dias de novembro
de 37. O namoro de Paulo e Manuela já dura esse tempo; no mesmo período, Lucas, por
meio de suas negociatas com o Ministério do Trabalho, já conseguira mudar-se, com a
família, para um "apartamento moderno, na Praça Marechal Deodoro"46.
Da parte 3 em diante, as referências temporais começam a remeter não mais para o
golpe de Estado, mas para a próxima visita de Getúlio Vargas a São Paulo47. Para ela
preparam-se todos os núcleos paulistas: na parte 3, o círculo de Costa Vale; na parte 4,
Lucas Puccini e Eusébio Lima; na parte 6, "durante toda aquela semana que precedeu a
visita do ditador"48, os comunistas. Os dias que antecedem a visita do "ditador" a São
Paulo se estendem até a parte 13. As partes 14 a 18 se referem ao dia da visita; as partes
19 a 23, aos dias seguintes a esse acontecimento.
Estruturado ao redor dessa data não referida no texto, a da primeira vinda de
Getúlio Vargas a São Paulo após a instituição do Estado Novo, o tempo começa a fluir
no capítulo. Já não se trata de fatos ocorridos no intervalo de um só dia, mas de alguns.
Cria-se uma breve seqüência temporal de dias, explicitada por meio de advérbios ou
expressões adverbiais: "Três e meia da madrugada, o dia não tardaria a surgir", "As
primeiras luzes da aurora clareavam a rua", "a manhã acabara de chegar (parte 7); "Era
quase meio-dia", "esperou a chegada da noite" (parte 9); "dois dias depois" (parte 11);
"naquela mesma hora dessa noite inquieta que precedia a visita do ditador a São Paulo"
(parte 12); "no dia seguinte ao da visita do ditador" (parte 18); "Em meio à agitação dos
dias que se seguiram à visita do ditador" (parte 19); "três ou quatro dias depois" (parte
20).
Existe, portanto, em Os ásperos tempos, uma temporalidade narrativa centrada em
datas (31 de outubro de 1937; 10 de novembro de 1937; três meses após 10 de novembro
de 1937, no dia da visita de Getúlio Vargas a São Paulo). Apesar da maior fluidez
temporal no último capítulo, o volume possui como característica a sincronicidade de
ações, em que importa menos o caminhar da trama do que a construção de um painel
mais ou menos amplo, mostrando ao leitor o que acontece, no mesmo período, com os
diversos círculos sociais que desde o início se apresentam.
Essa situação se modifica em Agonia da noite, segundo volume da trilogia, em que
se vai trabalhar menos com fatos simultâneos e mais com ações que se sucedem. Logo
no início, um novo grupo de personagens salta das páginas: os estivadores de Santos.
Não é possível definir de imediato a relação entre eles e os personagens já conhecidos.
Mas há indícios: tanto Inácia, a "flor do porto"49, como Doroteu, com sua inseparável
gaita de boca, marido e mulher, são negros e pobres. À terceira página da primeira parte,
fica-se sabendo que ao negro Doroteu
"nunca sobrara tempo para estudar, e o muito que ele [sabia fora] aprendido
na beira do cais de Santos, com o mar, com os navios, com as cargas e
descargas, com os marinheiros, os estivadores, com a noite e com o vento,
nas docas, no sindicato e na célula do Partido."50
Trata-se portanto de um militante. Até o final da mesma parte, Doroteu saúda com sua
gaita a "bandeira vermelha da foice e do martelo, aquela que conduz consigo a estrela do
amanhã"51. Escolhe ainda para seu filho, que Inácia espera, o nome de Luís Carlos, em
homenagem a Prestes, e comunica à célula do partido na estiva a chegada de um navio de
bandeira nazista, que levaria um carregamento de café do Brasil para o general Franco na
Espanha, então em guerra civil. A greve dos estivadores, que se recusam a embarcar o
café, e sua luta com a polícia constituem o centro da trama nesse capítulo.
Braço comunista na "cidade vermelha"52, como era chamada Santos pelo alto grau
de organização política dos trabalhadores do porto, o sindicato dos estivadores mantinha
vínculos com a direção regional do partido em São Paulo. Daí que, na terceira parte do
mesmo capítulo, diante da greve contra o navio alemão e da iminência de rigorosa ação
policial, os camaradas Ruivo e João, já apresentados aos leitores em Os ásperos tempos,
desçam de São Paulo para a cidade a fim de auxiliarem na organização do movimento.
Para lá também vão o ministro do Trabalho de Vargas, Gabriel Vasconcelos (ou "Gabriel
Cachacinha")53, acompanhado por Eusébio Lima, então seu chefe de gabinete, e por
Costa Vale, a fim de negociarem com os grevistas. Marieta do Vale, Artur Carneiro
Macedo da Rocha e outros personagens de seu círculo também se deslocam para a
cidade, mas pouco se interessam pelos acontecimentos políticos: hospedados num hotel
de luxo, são veranistas. Os acontecimentos de Santos são, assim, um desdobramento da
ação iniciada no volume anterior da trilogia.
Há, também, na quarta parte do primeiro capítulo, uma retomada do núcleo do
Vale do Rio Salgado, que será desenvolvido ao longo dos dois capítulos que constituem
o volume, mas só chega ao centro dos acontecimentos no segundo capítulo de A luz no
Na quinta parte, o narrador diz que "nesses últimos meses alguma coisa começara a
53 Ibid. p.54. Na época a que se refere a trama, o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio era Valdemar
Cromwell do Rego Falcão. Cf. Getúlio Vargas. Diário (vol.II). São Paulo/Rio de Janeiro: Siciliano/
Fundação Getúlio Vargas, 1995. p.481.
54 OSL, II. p.54.
55 Ibid. p.32, grifo meu.
56 Ibid. p.41.
57 OSL, I. p.228.
24
noite fria de fim de verão"58. A ação de Agonia da noite decorre assim entre março, abril
e maio desse ano.
Ao contrário do que acontece em Os ásperos tempos, é ressaltada nesse volume a
sucessividade temporal. No primeiro capítulo, cujo tema central é a greve de Santos, um
acontecimento se segue ao outro, parte a parte. Algo parecido acontece no segundo
capítulo, em que o narrador volta a focalizar o círculo dos pequeno-burgueses, na figura
de Manuela, agora intimamente relacionado ao núcleo de Costa Vale, pela evolução das
relações entre a jovem e ingênua bailarina e Paulo Carneiro Macedo da Rocha59.
Assim, no primeiro capítulo, na tarde em que o navio alemão desponta em Santos,
já fazia dias que os rumores de sua chegada circulavam entre os estivadores (parte 1). Na
mesma noite, ocorre a reunião do sindicato (parte 2). No dia seguinte, o navio atraca, e
Ruivo se dirige a Santos; "às onze horas da noite", uma comissão de trabalhadores parte
para a delegacia, a fim de conversar com a polícia; "no outro dia", começa a greve (parte
3). Ao mesmo tempo, no Vale do Rio Salgado, um intervalo de vários meses separa a
chegada de Gonçalo do presente, em que os camponeses começam a se conscientizar de
sua situação (parte 5). Nesse período, o caboclo Nestor aprende as primeiras letras, tarefa
iniciada no "último ano, [...] a partir de seu primeiro encontro com Gonçalo" (parte 6)60.
No segundo capítulo, Manuela, então uma bailarina já famosa nos cassinos, recebe
uma "proposta indecente" de seu diretor artístico; "no dia seguinte", conversa sobre sua
decepção com Schopel, mentor que lhe fora arranjado por Paulo, e pensa na época em
que o namorado não podia viver sem ela, quando "durante alguns meses ela se sentira
inteiramente feliz"61. "Com o passar do tempo", ouve novas propostas; numa "segunda-
feira", durante os "últimos dias de verão", recebe do poeta a notícia de que o noivo se
casaria em dezembro com outra, bem mais rica (parte 1). Após cerca de um mês, Paulo
volta para o Rio de Janeiro, onde instalara Manuela; os dois rompem (parte 2). Tempos
depois, "grávida de dois meses, pelo menos"62, a bailarina recebe o irmão Lucas, que
63 Trata-se de fato histórico, ocorrido em 11/5/1938. Cf. Getúlio Vargas. Op. cit., p.130. Tb. O Estado de
São Paulo, 12-5-1938, p.1.
64 Há outros dois núcleos de ação que ganham continuidade narrativa no Capítulo Segundo de Agonia da
noite: o do Vale do Rio Salgado (que recebe por algum tempo os comunistas de São Paulo) e o grupo
trotskista, capitaneado pelo jornalista Abelardo Saquila, que quer lançar o Partido Comunista Operário e é
espulso das fileiras do partido comunista (parte 3). O fato tem base histórica: no início de 1938, o PCB
enfrenta a dissidência de Hermínio Sachetta, que funda um comitê regional do Partido Operário Leninista,
de tendência trotskista. V. Edgard Carone. Op. cit., p.223.
65 A questão agrária era uma das maiores preocupações do PCB nas décadas de 40 e 50. Data de 1946 um
escrito de Prestes sobre O problema da terra e a constituição de 1946.
26
primeira página de um jornal carioca. Membros da direção regional estavam presos. Era
"certa manhã dos fins de setembro"67. Na parte 1 do primeiro capítulo de A luz no túnel,
Carlos segue, no automóvel da polícia, entre dois guardas. Ao ser interrogado e
espancado, suas únicas palavras são:
"⎯ Fui preso pela polícia do Rio, em 14 de janeiro de 1936. Fui solto
em 25 de fevereiro do mesmo ano. Fui novamente preso pela polícia de São
Paulo hoje, 28 de setembro de 1938."68
66 V. Dalcídio Jurandir, apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.223. Tb. depoimento de Jorge
Amado a Alice Raillard. Op. cit., p.143.
67 OSL, II. p.316.
68 OSL, III. p.17.
27
"meados de setembro" na parte 15, "meados de outubro" na parte 16, "7 de novembro de
1940", na parte 20).
Em princípio, dada a profusão de datas, acredita-se que se vai encontrar em A luz
no túnel uma estrutura temporal semelhante àquela de Os ásperos tempos ⎯ visto que a
delimitação dia, mês e/ou ano da ação acontecia com freqüência nestes, mas não em
Agonia da noite, volume seguinte. Entretanto, essas datas se sucedem. Percebe-se, assim,
a presença, nesse que é o último volume da trilogia, do tempo sucessivo, tão
predominante no romance anterior.
Dessa forma, na parte 3 do primeiro capítulo, no mesmo dia de sua prisão, à noite,
Carlos é novamente chamado à presença do delegado Barros e de dois investigadores;
seu rosto era uma "posta de carne viva"69. Na parte 4, Barros, ao deixar Carlos
semimorto na sala contígua, prossegue com as torturas a militantes de Santo André,
presos no mesmo dia. "À tarde, no dia seguinte"70, é a vez de Zé Pedro. E assim por
diante.
O segundo capítulo, embora também marcado pela sucessão dos tempos, guarda
maior semelhança com a estrutura temporal de Agonia da noite ⎯ em especial, com o
capítulo sobre a greve de Santos ⎯, pois foge das datas. O que nele importa é a
que uma aceleração do tempo da primeira à última página da trilogia de Jorge Amado
sobre o Estado Novo.
Visto sob o ângulo de sua estrutura temporal, poder-se-ia dizer que este terceiro
romance é uma síntese da simultaneidade que sobressai em Os ásperos tempos e da
sucessividade de Agonia da noite. Dela resulta um tempo que é a junção de muitas
histórias particulares no movimento amplo de um grande tempo histórico, formado, ele
mesmo, a partir da ação e inter-relação dos núcleos acionais da trama.
Há, porém, em A luz no túnel, um foco dissonante. Apesar de já ter aparecido em
outros momentos da trilogia, ganha destaque, neste último volume, o emprego de
flashbacks, em especial no primeiro capítulo, em que os militantes do partido são presos
e torturados. Assim, toda a vida pregressa de Carlos é revelada ao leitor pelo trabalho de
sua memória, na parte 1; o mesmo acontece com a história de Ramiro, na parte 4. Na
parte 6, é Gaby d'Almeida, esposa de Cícero d'Almeida, escritor comunista descendente
da aristocracia cafeeira, que rememora sua história; na parte 10, o médico da polícia, Dr.
Pontes, cocainômano e suicida.
Na parte 1 do segundo capítulo, o tempo narrado retrocede duas vezes. No início, o
arquiteto Marcos de Sousa discute, com outros simpatizantes do partido, o significado do
Pacto Germano-Soviético, assinado há algum tempo na Europa. Cinco páginas adiante, a
narrativa recua para o dia seguinte ao da notícia do Pacto. Duas páginas depois, novo
recuo, agora para abril do mesmo ano de 1939, quando Manuela fora descoberta por uma
companhia européia de ballet.
Essas rupturas com a ordem cronológica do texto, até então quase que estritamente
respeitada, parecem mostrar um narrador preocupado não só com os acontecimentos da
trama, mas também com o significado que eles vão assumindo para os personagens e,
portanto, para a narrativa. A maior parte desses flashbacks é reflexiva; personagens
analisam fatos passados, buscando neles um sentido:
"⎯ Que posso te dizer? ⎯ sua voz era grave, seu rosto estava sério,
quase solene. ⎯ Que eu compreendo? Não, não vou te dizer que já
compreendi perfeitamente... Longe disso. Busco também explicar-me esse
inesperado acordo germano-soviético, ainda não compreendo direito.
Tampouco conversei ainda com alguém responsável.
....................................................................................
Marcos fitou novamente a noite, o brilho distante das estrelas. Uma
vez, há tanto tempo... ensinara a Mariana o nome das estrelas entrevistas das
29
janelas da sala. [...] Onde andaria Mariana nestes dias atuais de guerra, de
pacto germano-soviético, de invasão da Polônia, onde andaria ela que não
vinha vê-lo, explicar-lhe o significado de tudo aquilo?"72
Há também no primeiro capítulo, que se inicia com a prisão de Carlos, uma quebra
da ordenação cronológica dos fatos narrados. A parte seguinte narra a prisão de Zé
Pedro, de sua mulher, Zefa, e de seu filho. A parte 3 descreve a bárbara tortura infligida a
Carlos, que, ao entrar na "sala das sessões espíritas", como era chamada, nota "pingos de
sangue no chão"73. Só na parte 5, quando é narrado o segundo interrogatório de Zé
Pedro, é que se vai saber que era dele o sangue derramado, pois "precedera Carlos, na
véspera, na sala de torturas"74. Em ordem cronológica, portanto, a prisão de Zé Pedro
deveria ter sido narrada antes da de seu companheiro de partido75.
É sintomática, também, a estrutura da parte 22 do primeiro capítulo, espécie de
síntese dos fatos narrativos correspondentes ao final do ano de 1938. Pela memória do
banqueiro Costa Vale, é possível saber dos conflitos no Vale do Rio Salgado, do pendor
do governo Vargas para os alemães e mesmo do lançamento da revista Perspectivas,
dirigida por Marcos de Sousa. Essa é a única parte, em toda a trilogia, que apresenta uma
ruptura espacial e temporal: ela começa com as reflexões de Costa Vale, continua com a
situação de Marcos de Sousa e, ao fim, passa a focalizar os preparativos do casamento de
Paulo Carneiro Macedo da Rocha com a sobrinha da Comendadora da Torre76. São, além
disso, muitas as partes, especialmente nos Capítulos Primeiro e Terceiro do volume, que
incluem vários tempos, até como efeito da freqüente utilização dos flashbacks.
Há, portanto, dois grandes movimentos temporais em A luz no túnel: por um lado,
a síntese entre a simultaneidade de Os ásperos tempos e a sucessividade de Agonia da
noite, que resultam numa estrutura ao mesmo tempo verticalmente narrativa e
amplamente histórica; por outro, a instauração de uma reversibilidade temporal que tem
função eminentemente reflexiva, devida muitas vezes ao emprego do flashback.
Os subterrâneos da liberdade são, assim, a história em três modos: como painel,
dialética, eu diria), o que começa estático se faz dinâmico, para depois se tornar objeto
de balanço.
A circularidade desse processo remete à imagem do carrossel de Manuela, ainda no
primeiro capítulo de Os ásperos tempos. Sob as lâmpadas coloridas e anúncios
luminosos do parque onde conhece Paulo, a ingênua menina sonha:
"Talvez esse carrossel, em sua desvairada corrida, se dirija para o futuro. Ela
enxerga um mundo diferente, cheio de doçura, do encanto de viver, nas luzes
que rodam, na melodia de amor da caixa de música. Aquele mundo que
Lucas aspira encontrar no dinheiro e que ela deseja buscar na vida da qual
nunca participa."77
"Amanhã, se o tempo permitir o vôo dos aviões, estarei em Moscou. Irei ver
com meus olhos a realização de tudo porque [sic] sempre lutei. Parece-me
um sonho. [...]
..................................................................
Amanhã é minha vez de sonhar sem dormir."79
77 OSL, I. p.121.
78 Ibid. p.324. A ref. é sobre o amor entre os comunistas Mariana e João, mas se aplica, aqui, também à
bailarina.
79 Jorge Amado. O mundo da paz, p.34.
80 OSL, III. p.354.
31
Para além das voltas do "carrossel do futuro", não se pode esquecer a vocação
teleológica do texto, sempre em busca de um tempo vindouro que signifique a
materialização da utopia. Essa marcha acontece de modo cada vez mais rápido ao longo
dos três volumes. A metáfora desgastada é, sob esse aspecto, reveladora: está-se dentro
do túnel (sob o Estado Novo); nele (e não no fim dele), há uma luz (o partido).
Ao final dos romances, a luz materializa-se no espaço:
"Havia chovido na véspera, em grandes aguaceiros que se prolongaram
pelo começo da noite. Mas a manhã [...] surgira magnífica de sol e luz [...]".81
Nesse dia, Mariana atravessa a pé a enseada de Botafogo. Na frente do edifício do
Tribunal de Segurança Nacional, uma pequena multidão se acotovela.
Dentro, o presidente do Tribunal, quase histérico, grita, retirando a palavra que
havia dado a Luís Carlos Prestes, réu daquele julgamento, que fizera, num início de
discurso, uma homenagem ao vigésimo terceiro aniversário da Revolução Russa.
Policiais e soldados o arrastam para fora da sala. Prestes, se desvencilha e se volta. Um
grito corta o salão:
⎯ Viva Luís Carlos Prestes!
81 Ibid. p.364.
82 Ibid., p. 364 e ss.
32
qual a narrativa estende sua teia. Em São Paulo vivem os principais personagens da
trilogia ⎯ cada um deles, a princípio, em seu espaço próprio. Os Costa Vale, os Macedo
83 "O romancista Jorge Amado". In: José de Barros Martins (ed.). Jorge Amado: 30 anos de literatura.
[São Paulo]: Martins, [1961]. p.222.
84 OSL, I. p.79.
85 Ibid. p.116.
86 In: Alice Raillard. Op. cit., p.139.
87 Segundo Edgard Carone, havia, em 1940, aproximadamente 270 mil operários nas indústrias paulistas
pelas estatísticas oficiais, contra aproximadamente 120 mil do Distrito Federal. Op. cit., p.60. V. também
Caio Prado Júnior. História econômica do Brasil. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1956. p.266 e ss.
33
fidelidade à causa. Interpelada pela irmã, que a acusa de trazer dificuldades à mãe já
viúva, Mariana responde:
"⎯ A mãe sabe que o pai tinha razão e que eu tenho razão. A mãe não
abandonou a sua classe..."92
Daí talvez a recusa desta em mudar-se para a casa da outra filha, mais confortável:
"⎯ Não estou morrendo de fome, não sou tão velha que não possa
trabalhar. Mariana é boa filha [...]."93
quer um indefinível "mundo diferente, cheio de doçura"95. Lucas invejava Costa Vale:
"Seu olhar sonhador partia da sala da repartição para vagar sobre os arranha-
céus onde estavam instaladas as grandes companhias e os bancos. Da sua
janela podia ver a fachada de cimento-armado do edifício do Banco da
Lavoura e Indústria e, em certas ocasiões, na sacada do último andar,
debruçar-se a figura pálida e calva de Costa Vale, o olhar passeando sobre a
rua como um proprietário a examinar suas propriedades. [...]
...............................................................
Através de Apolinário, a Guerra Civil Espanhola será uma das frentes de ação de
Os subterrâneos da liberdade, reiterando ainda uma vez a intenção historiográfica de
Jorge Amado ao escrever a trilogia. De fato, em 1937, alguns militantes comunistas
96 Ibid. p.253.
97 OSL, I. p.96.
98 Ibid. p.210.
99 Ibid. p.211.
35
vez, é o "gigante" Gonçalo, outro dos "heróis" comunistas, "condenado a quarenta anos
de prisão, dez como extremista e chefe de revoltosos e trinta como assassino"105, que
100 Cf. José Antonio Segatto et alii. PCB: memória fotográfica (1922-1982). 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
1982. p.56.
101 OSL, II. p.159.
102 OSL, III. p.171 e ss.
103 OSL, III. p.280 e ss.
104 OSL, I. p.213.
105 Ibid. p.215.
36
chega ao Vale, cruzando o rio numa canoa. Sua tarefa era, por um lado, esconder-se da
polícia; por outro, proteger o Vale dos "olhos vorazes de americanos e alemães"106.
No início de Agonia da noite, um terceiro cenário se junta aos demais. É a cidade
de Santos:
A razão para isso parece ser a materialização da luta. Santos é o primeiro lugar, em
Os subterrâneos da liberdade, a assistir a um conflito aberto, frontal e violento entre as
forças políticas que se vinham delineando desde o início de Os ásperos tempos. Tudo o
que no primeiro volume da trilogia era conversa, discussão ou plano a portas fechadas ⎯
fossem elas as do gabinete de Costa Vale ou as dos "aparelhos" comunistas ⎯ vira, em
Santos, batalha campal, em meio ao cortejo fúnebre de um estivador morto pela polícia:
multidão ficou sem saber o que fazer, indecisa. Havia gente caída pelo chão,
ferida, e novos grupos de tiras se precipitavam disparando os revólveres.108
Pisoteada por um cavalo das tropas policiais, morre a negra Inácia, grávida de alguns
meses.
Esse é o primeiro de alguns grandes combates que se seguirão, como o do Vale do
Rio Salgado e a própria Guerra Civil na Espanha. As histórias de Os subterrâneos da
liberdade são diferentes fios que se entrecruzam. Mas cada um desses fios se perfaz
segundo um processo de apresentação dos personagens com seus interesses de classe, do
planejamento da ação, da ação propriamente dita (o que inclui o confronto, até mesmo
físico, com os demais grupos de personagens) e do desfecho.
A leitura do conflito em Santos mostra que, até o início de Agonia da noite, e daí
para frente, o narrador reserva os espaços abertos para os momentos de embate entre as
forças em jogo. Daí eles serem tão raros no volume anterior, Os ásperos tempos, em que
predominam as salas e quartos de hotel, os escritórios e gabinetes, além de caminhos: a
rota de Apolinário até o Uruguai, a trilha de Gonçalo até o Vale do Rio Salgado, a linha
do bonde que leva Manuela e família até o parque de diversões, os circuitos do carrossel
e da roda gigante. Os espaços fechados materializam na trilogia, além da sensação
sufocante da clandestinidade e da repressão, figurada na imagem dos "subterrâneos",
uma certa vocação conspiratória, de que partilham não apenas comunistas, mas também
os "capitalistas", os trotskistas e os pequeno-burgueses em ascensão. Em Agonia da
noite, algumas dessas forças saem do projeto, concentram-se em praças e campos de
guerra, explodem em violência. Outras o farão em A luz no túnel.
De forma significativa, Agonia da noite reúne, em seu primeiro capítulo, todos os
espaços já introduzidos pelo narrador. Apesar da predominância da ação em Santos, há
partes cujos cenários são o Vale do Rio Salgado, São Paulo e a Espanha. Sendo uma
história completa, com começo, meio e fim, o episódio da greve no porto é também um
desdobramento de outras idéias e ações, cujo centro nervoso é a capital do estado. No
segundo capítulo, aparece também o Rio de Janeiro, mais freqüente como cenário em A
luz no túnel. O distrito federal à época, apesar de sede do governo, revela-se na trilogia
muito mais um contraponto aos acontecimentos de São Paulo, o que mais uma vez
mostra a subordinação do político ao econômico nesta obra de Jorge Amado.
Vistos em conjunto como um grande painel, cada um dos grandes cenários de Os
subterrâneos da liberdade garante no texto a presença das questões que mais
preocupavam o PCB nas décadas de 30 e 40. São Paulo, por exemplo, resgata problemas
de linha política, como a cisão entre stalinistas e trotskistas e a troca dos quadros de
direção por militantes vindos das bases, em oposição aos intelectuais que até o início dos
anos 30 ocupavam os altos cargos da estrutura partidária109. O Vale do Rio Salgado
mostra o partido diante da organização social no campo e do imperialismo. Santos traz à
baila o problema da ação sindical e as tentativas de controle dos sindicatos pelo governo.
109 Esse processo, chamado de "obreirismo", começou, segundo Edgard Carone, em 1930, e tomou "um
sentido errôneo e romântico [...] que leva os membros do partido a só fumarem cigarros baratos, vestirem-
se mal, deixarem de usar gravata etc.". Ele resultou no afastamento do secretário geral Astrojildo Pereira.
In: A república nova (1930-1937). 3.ed. São Paulo: Difel, 1982. p.237. V. também Moisés Vinhas. O
Partidão: a luta por um partido de massas (1922-1974). São Paulo: Hucitec, 1982. p.68.
110 In: Alice Raillard. Op. cit., p.136.
111 Op. cit., p.210, grifos do autor.
39
Albânia. No entanto, apesar de mostrar uma realidade tão cultuada, a obra fala sobre o
estrangeiro. A União Soviética, apesar de amada, não era Brasil.
Em seguida, ainda do exílio, Jorge Amado construiu um narrador que faria da terra
natal não canção, mas retrato histórico. "Antimacunaimicamente", o povo brasileiro tem,
em Os subterrâneos da liberdade, muito caráter: luta pela causa, cai sob o fogo da
metralha, cala para proteger companheiros, é amigo da verdade, inimigo da injustiça,
renasce das cinzas. São os operários, os imigrantes, os camponeses, os índios, os negros.
Não a burguesia, que ela não é o povo. Esta, com brilho mortiço, reluz nos casamentos
sem amor, na ganância, nas orgias, nas ações sem escrúpulos, nas manipulações as mais
diversas, no egoísmo e na mentira.
defensor de índios na Bahia, "de braços grossos como ramos de árvore, de pesadas mãos
112 "Literatura de dois gumes". In: A educação pela noite & outros ensaios. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989.
p.172. V. também "Um instrumento de descoberta e interpretação". In: Formação da literatura brasileira
(2o vol.). 6.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, p.109-118.
113 As expressões são de Alfredo Bosi. Op. cit., p.459.
40
calosas, de bronzeada cor de cobre"114, cujo "talhe gigantesco parecia feito à medida da
floresta virgem"115. E os salões da alta burguesia paulistana são regidos pelo mesmo
interesse que propulsiona o enredo de Senhora.
Os românticos brasileiros tinham um projeto de nacionalidade, que incluía, nas
palavras de Antonio Candido, "o desejo de inventar um passado que já fosse nacional"116
e, por outro lado, uma ânsia em trazer, para os limites da literatura, a paisagem local.
Com isso, buscavam conferir unidade a um país constituído de realidades díspares por
meio do imaginário. O imaginário romântico preencheu espaços e tempos, criou estradas
inexistentes entre regiões distantes e lendas sobre a origem e a povoação do território
brasileiro.
"Não, nunca estivera e nem estaria só, não possuía o direito de jamais se
julgar em solidão: em torno dele, onde quer que estivesse, estariam centenas
e milhares, haveria sempre a mão de um companheiro para apertar a sua
mão."
apresentá-lo aos leitores por meio da literatura, para se construir um Brasil comunista
seria preciso, primeiro, fundar um imaginário comunista na cultura brasileira.
Daí a relevância do papel do escritor do partido para a revolução. É preciso
apresentar os novos "heróis", cuja origem não é mais étnica (os índios, por exemplo),
mas social (o povo). É preciso retratar a sociedade, criticando suas mazelas e propondo
uma nova ordem harmônica. O escritor comunista, como o romântico, tem uma missão:
não somente "fazer o povo pensar", como em Castro Alves, mas "ajudar a marcha do
homem para uma vida melhor", identificada com o socialismo.
Citando Gorki, observou Jorge Amado que
"A tarefa dos [...] homens de letras é árdua e complicada. Ela não consiste
somente na crítica à antiga realidade, a reprovar a podridão de seus vícios.
Sua tarefa é estudar a realidade nova, dar-lhe corpo, reproduzi-la e assim a
consagrar."
p.182/4.
42
de filme e de romance para além da cortina de ferro. Tendo o avião abatido por alemães
na II Guerra Mundial, Maresseev se arrastou sobre o gelo do rigoroso inverno russo
durante quinze dias. Ao alcançar as bases soviéticas, estava com gangrena nas duas
pernas, que foram amputadas. Em seu leito de doente, Maresseev chorava. O motivo,
porém, não era estar inválido: o que desesperava o aviador era não poder mais derrubar
bombardeiros nazistas. Pouco tempo depois, usando pernas mecânicas, voltou ao front e
ainda abateu mais onze aparelhos inimigos.121
Para Jorge Amado, que o conheceu numa palestra para operários em Leningrado,
Alexei Maresseev não era apenas um homem, mas um símbolo: "um homem do seu
povo, lutando com seu povo, participando da vitória sobre o invasor"122. Com o objetivo
personalidades que os inspiram, mas também outros, que partem da visão profundamente
ideológica de um mundo dividido em classes.
É assim que os operários, se comunistas, têm como qualidades força, perseverança,
abnegação, altruísmo, sinceridade e, quando a verossimilhança permite, beleza. É o caso
de Inácia, "negra flor do cais"123, ou de Mariana, síntese de inteligência, bondade, caráter
e consciência política, ideal da mulher brasileira comunista:
"trazia uma flor vermelha nos cabelos castanhos que contornavam um rosto
cheio de doçura. Seus grandes olhos negros expressavam toda a alegria124;
Os perfis femininos, aliás, somam traços das três grandes classes que protagonizam
os romances. Se Mariana é o operariado em sua "beleza sem artifícios"126, Marieta,
esposa de banqueiro, "era ainda uma bela e desejável mulher, apesar de seus quarenta e
três anos" e do "ar desdenhoso de quem se divertia com tudo e com todos"127. Embora
inteligente, seu caráter apodrecia entre brilhos e pérolas: em A luz no túnel, Marieta
definha de desejo pelo ex-amante Paulo Carneiro Macedo da Rocha, a quem seguia "por
todos os cabarés de Paris, como uma cadela, enquanto ele a mandava embora aos
pontapés"128. A classe dominante é retratada como imoral, indecente, infiel,
manipuladora e decadente.
Manuela é a inocência: finos cabelos louros, esguia, os grandes olhos azuis e tristes
"⎯ Sou uma burrinha, Marcos, não entendo muito de política. Mais
uma vez já te disse que para mim é assim: os comunistas são os bons, os
outros são os ruins. Para mim pelo menos tem sido assim. Tu vais me
ensinar, não vais? Para que eu possa te ajudar."129
Emílio, amarrado aos sacos de munição, entregando-se às balas dos americanos do Vale
na canoa em meio ao rio, fazendo-se passar por José Gonçalo; Carlos, chicoteado com
fios de arame, pisado, queimado pela brasa dos cigarros dos investigadores, e mudo; o
velho Orestes, militante dos tempos do anarquismo, explodindo junto à tipografia
clandestina do partido, enquanto cantarolava a Bandiera Rossa: "viva il comunismo e la
libertà"131.
"Feitos de outro barro"132 são todos eles, como o maior herói do Partido Comunista
do Brasil, Luís Carlos Prestes. Prestes é a estrela que brilha no extremo do túnel, ao final
de uma família de mais quatro irmãs, além da mãe. Aos onze, entra para o Colégio
Militar no Rio de Janeiro. A trajetória escolar é brilhante. Aos vinte e quatro anos,
atacado de tifo, ouve da cama de doente as notícias do fracassado levante dos Dezoito do
Forte, em Copacabana. Restabelecido, já capitão de engenharia, pede transferência para o
Rio Grande do Sul, onde trabalhará como fiscal na construção de quartéis, denunciará
negociatas com o dinheiro do Exército, fundará e dirigirá uma escola para alfabetizar os
seus soldados. Em outubro de 1924, aos vinte e seis anos, levanta o Batalhão Ferroviário
de Santo Ângelo contra o governo e inicia, com seus subordinados, a "Grande Marcha"
pelo Brasil. Aos poucos, o menino pobre da Rua do Riachuelo se torna o extraordinário
estrategista, general revolucionário, dirigente comunista Luís Carlos Prestes.
várias violências, deixa de ver o mundo da maneira rósea e crédula que era a sua no
início da trama. Os comunistas aprendem das ações, das autocríticas e dos exemplos, a
ponto de Mariana, a grande heroína da trama, se revoltar contra um dirigente nacional
vindo do Rio, que acabara de conhecer. Caminhando com ele para a casa de Marcos de
Sousa, onde haveria uma reunião do regional de São Paulo, o camarada lhe fala sobre a
mulher e os filhos. Tempos depois, quando João lhe conta os feitos daquele
companheiro, seu heroísmo na prisão, Mariana sente-se "defraudada":
135 Georg Lukács. A teoria do romance. Lisboa: Presença, s.d. p. 159. Cotejada com edição em língua
inglesa: The theory of the novel. Cambridge: The MIT Press, 1994. p.135.
136 Ibid., p. 159.
46
"Por que então ele não aproveitara a conversa para transmitir-lhe algum
ensinamento? Fez a pergunta a João, e este lhe respondeu:
⎯ Se pensares um pouco, verás que ele te ensinou uma coisa preciosa.
⎯ O quê?
⎯ Que um comunista é um homem, feito de carne e osso como os
outros, e não a máquina que muitos pensam, que a burguesia diz que
somos."137
É o partido que amadurece a cada luta, que renasce a cada queda, que se expõe aos
perigos e se recupera dos reveses, tornando-se maior: crescendo. Ao longo da trilogia,
seu corpo vai ganhado novos "membros". O "ciclo político inacabado de Os
subterrâneos da liberdade"142, para usar uma expressão de José Augusto Guerra, não
poderia terminar enquanto seu principal personagem não superasse a "adolescência" no
Brasil, atingindo a maturidade e a velhice (o que nunca veio a acontecer, nem na ficção,
nem na realidade). Ainda assim, seus atos, por meio dos gestos de seus membros, são
heróicos.
mágicas" dos comunistas são as palavras: Nestor aprendendo a ler, João criticando a
degenerada arte burguesa, Orestes morrendo para que a tipografia "vermelha" não caísse
diante do inimigo, Carlos calado diante da polícia, Marcos de Sousa dirigindo a revista
Perspectivas, Mariana arriscando-se em pichações noturnas no dia do golpe de Estado:
A arma do partido é a palavra. Esses militantes são, além disso, prodígios de coragem e
resistência, que lhes são naturais e os diferem do homem comum150; sua "férrea"
143 Northrop Frye. Anatomy of criticism: four essays. Princeton: Princeton University Press, 1990. p.33-4.
144 Cf. a tradução brasileira: Northrop Frye. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Trad. de Péricles Eugênio
da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. p.39.
145 OSL, II. p.115.
146 OSL, II. p.240-1.
147 Northrop Frye. Op. cit., p.33.
148 OSL, II. p.115.
149 OSL, I. p.185.
48
estrutura apavora até mesmo o poderoso Costa Vale, que não consegue conciliar o sono,
pois os comunistas lhe metiam medo151.
Para Northrop Frye, a ficção européia foi, ao longo dos últimos quinze séculos,
movendo seu centro de gravidade, de forma descendente, do mito para o modo irônico,
passando pela estória romanesca e pelos modos imitativos elevado e baixo152. Os
subterrâneos da liberdade invertem o caminho: em princípio, acredita-se estar diante de
uma narrativa perfeitamente estruturada de acordo com os traços do modo imitativo
elevado. Engano: aqui e ali, aos poucos, vão-se descobrindo fatores incomuns, quase
sobrenaturais, a conduzirem a trama. Por fim, com o partido tornando-se protagonista da
obra, está-se diante de um ser quase mítico, poderoso e gigantesco. Como o herói
tornado deus Héracles, nascido da relação escusa entre Zeus e a mortal Alcmena e
conhecido por sua extraordinária força física, o partido tem de libertar o mundo de um
certo número de "monstros", superando-os e superando-se, para que, enfim, possa figurar
entre os "imortais"153.
Os sacrifícios por que tem de passar o partido, em busca da redenção final para si e
para os homens (a "luz no túnel"), resgatam também, no texto, aspectos da mitologia
judaico-cristã. A certa altura, durante a tortura dos presos pelo delegado Barros, comenta
o narrador:
final, enquanto a reação louva Getúlio Vargas pela "liquidação do Partido Comunista
pela nossa polícia"155, militantes anônimos plantam bandeirolas vermelhas e volantes no
marxista, também diferenciou epopéia e romance. Para ele, "o romance é a epopéia de
um mundo sem deuses", num "tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou
problema mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade"158. Heróis como
Ulisses, na Odisséia, ou Nestor e Helena, na Ilíada, só são possíveis, segundo o crítico,
na épica clássica. Eles não vivem o tempo como experiência ou transformação: somente
atualizam, em suas ações, o que já lhes fora determinado por uma ordem superior e
perfeita. Não possuem também interioridade: apenas servem de elo "concreto", porque
vivo, com um sentido já acabado, que transmitem159. Muito distante de um mundo como
esse, o herói moderno é procura.
têm "o Partido dentro de si"; são a classe operária encarnada. Os subterrâneos, nesse
sentido, embora constituam um esforço de romance histórico, seguem na contramão da
história, partindo dela para buscarem o épico e o mítico.162
Lukács abre sua Teoria do romance dizendo:
Para o crítico, esse era o mundo clássico. Para os comunistas, talvez viesse a ser, um dia,
o futuro.
O encontro entre os dois inimigos de classe já havia aparecido, no romance, por meio das
reflexões e lembranças do político quatrocentão:
O emprego insistente do discurso indireto livre garante, além disso, uma visão
desdobrada dos personagens. Em um tempo, através do olhar do narrador, o personagem
é visto "por dentro"; em outro tempo, por meio das reflexões dos demais personagens,
constrói-se uma imagem social e pública do mesmo, que muda de acordo com a
interpretação de cada grupo ou classe. O jogo entre aparência e essência, entre ação e
pensamento, define a ética dos diferentes personagens e círculos. Para o narrador, bons
são aqueles cuja atitude traduz o pensar. A epígrafe geral à trilogia, emprestada aos
Sonetos de Camões, deixa claro o principal valor do texto:
voluntariamente "apagado", existe um narrador que não é neutro. Ele conduz o discurso:
escolhe os fatos a narrar, julga e classifica atitudes, por meio de apreciações sutis,
filtradas através dos personagens e suas ações. No momento em que o deputado Carneiro
da Rocha analisa o escândalo provocado pela embriaguez do filho Paulo em Bogotá, por
exemplo, o discurso não escapa da pontada de ironia desferida pelo narrador:
Esse narrador, além disso, é dotado de uma onisciência absoluta: tudo vê, tudo
conhece, não se engana com boatos infundados ou com "provocações". Nesse aspecto,
confunde-se com o partido comunista. Os comunistas são, ao longo da trama, muito bem
de seus personagens. Compõe, dessa forma, a história pessoal dos principais atores de
sua trama, dimensionando-os de acordo com a posição social e política que ocupam.
No segundo capítulo, aquilo que era pensado passa a ser falado. A freqüência dos
trechos em discurso direto aumenta. O diálogo coloca os personagens em situação de
confronto, e a coerência do discurso (e da consciência) de cada um é testada pelo
questionamento vindo do próximo. É também por meio do diálogo que os diferentes
Empregando a terceira pessoa, o narrador, além de opinar sobre a ação, faz também uma
colagem de apreciações "coletivas" a respeito dos fatos narrados.
Como veículos dessas apreciações, aparecem, de forma dominante, artigos de
jornal. Vários são os trechos, ao longo dos romances, em que o narrador se dedica a
resumir a repercussão de certos acontecimentos na imprensa. Quando da chegada da
primeira expedição da nova empresa ao Vale do Rio Salgado, ele anota:
"Riam os dois [Orestes e Jofre] numa gargalhada sã, [...] ao lado daquelas
máquinas ilegais, na solidão escondida daquela casa de campo de onde
partia, nos jornais, nos volantes, nos manifestos, a voz da vanguarda
dirigente da luta do povo brasileiro."181
O narrador cita ainda, sobre a mesma questão do Vale do Rio Salgado que tanto
preocupava os jornais "burgueses", os repentes dos cegos violeiros do Arraial de
Tatuaçu:
chegar à região, a primeira tarefa do camarada Gonçalo tenha sido ensinar o camponês
"Que terríveis inimigos, que Exército, que tropas invasoras, que cruéis
adversários vem o Exército brasileiro combater, que ávidos estrangeiros
ameaçam a Pátria que esses soldados juraram defender? Onde se escondem
esses inimigos estrangeiros? Onde estão seus tanques e canhões, seus
batalhões e regimentos? Contra quem se alçam as armas brasileiras por que
está a cidade de Santos ocupada, em praça de guerra convertida, gemendo
sob a bota dos soldados?".
E responde:
"Moradores de Tebas, minha Pátria, olhai; ali vai Édipo, o sabedor dos
enigmas famosos, o mais poderoso dos homens. Todos nesta cidade viam
com inveja o seu destino. No entanto, a que vaga de misérias chegou! Por
isso devemos considerar o dia derradeiro do mortal e não o julgar feliz antes
que transponha o termo da existência sem ter sofrido dor alguma."188.
187 Primeiro Estásimo, Estrofe primeira. In: Teatro grego. 3.ed. Seleção, introd. e trad. direta do grego por
Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 60-1.
188 Êxodo. Ibid., p. 89.
60
189Cf. sugestão de Adélia Bezerra de Meneses. V. tb. Jean Pierre Vernant e P. Vidal-Naquet. "Édipo sem
complexo". In: Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
61
Entre as partes desse último capítulo, o desfecho simbólico acontece muito antes
da linha final, no trecho em que, à primeira luz da manhã, os operários que saíam para as
fábricas enxergaram, espalhadas por São Paulo, as bandeirolas vermelhas do partido
sobre os fios elétricos190. Sobrevivia o partido Comunista do Brasil, apesar da violenta
repressão: novamente com os operários, disseminando suas "palavras ardentes", diz o
narrador, era a "luz num túnel"191. O sentido de todo o narrado, já que impossível a
vitória, se resume numa assertiva: toda ação é promessa de redenção.
Ao fim, resta ao leitor um paradoxo. Em Os subterrâneos da liberdade, o processo
em direção ao coletivo (tão socialista) passa por uma concentração progressiva do poder
nas mãos de um só. Todo o poder é do narrador. Sua voz congrega todas as vozes; seu
saber, todos os saberes; seu tempo, todos os tempos: conta o passado, vive o presente e
domina o futuro. Como no filme O sol enganador, de Nikita Mikhalkov, sobre a
perseguição aos dissidentes do regime stalinista na URSS, seu retrato é do tamanho do
de Stálin: gigantesco, ubíquo, titânico. E tirânico.
Frutos do stalinismo, Os subterrâneos da liberdade reinventam, sob as regras da
literatura, as contradições desse período. Se o culto à personalidade, tão difundido nos
partidos comunistas à época, encontrou, no Brasil, a figura catalisadora de Prestes, nos
romances da trilogia, ele se impõe através do narrador. Condutor das massas, "estrela
três capítulos do "livro da cadeia". Recuado, cigarro entre os dedos, o velho Graça
escuta1.
A rotina é a mesma por anos. Desde que finalmente se decide por escrever
Memórias do cárcere, em janeiro de 1946, Graciliano Ramos inicia um processo lento e
intermitente de criação. Isto, se já lhe era típico, foi ainda agravado pelas necessidades
materiais do escritor e sua família, que o obrigavam com freqüência a aceitar trabalhos
avulsos, além de dois empregos: o de inspetor de ensino do Distrito Federal e o de
revisor no jornal Correio da Manhã, este a partir de 1947.
Antes de 46, Graciliano já havia por duas vezes tentado iniciar a elaboração das
Memórias, sem sucesso. Ainda na prisão, as notas que tomou na viagem no porão do
vapor Manaus para o Rio, no Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção e na Colônia
Correcional da Ilha Grande tiveram destino infeliz. Os dois primeiros textos foram
jogados na baía de Mangaratiba, durante a transferência de Graciliano para a Ilha
Grande, e se desmancharam no mar; o segundo foi escondido sob a cama cheia de
hemoptises deixada pelo escritor na Colônia, para não ser levado pela polícia2.
1 Cf. Raymundo Araújo. "Graciliano reencontrado". In: Paulo Mercadante. Graciliano Ramos: o
manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p.11-2 e Ricardo Ramos. Graciliano: retrato
fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992. p.158-9.
2 Cf. Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. 4 vols. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
Respectivamente vol. III, caps. 7 e 31. Deste ponto em diante, a obra será referida pela sigla MC, seguida
do número do volume em algarismos romanos.
63
"O anno passado, numa situação bastante difficil, escrevi a lapis algumas
notas que escondi no sapato."
colônia". São possivelmente da mesma época as listas com nomes de pessoas com quem
o escritor convivera durante os dez meses de prisão, bem como as versões mais antigas
de alguns capítulos da obra5.
De 1937 a 1946, data que abre o manuscrito do primeiro capítulo da versão
publicada de Memórias do cárcere, passaram-se quase dez anos. Nele, Graciliano se
refere à hesitação e às dificuldades pessoais para elaborar a narrativa. Por um lado, a
questão financeira: reduzido "a pão e laranja", como costumava dizer, precisou deixar de
lado os projetos de longo curso e se ocupar do ganho diário. Por outro, o escrúpulo em
fazer de criaturas vivas personagens, imputar-lhes atos e declarações, sem lhes poder
garantir a fidelidade às palavras, tomadas apenas de memória6.
Durante os anos de silêncio, além disso, em muito se modificara a situação política
do país. Em 1937, quando Graciliano saiu da prisão, os altos escalões do governo
preparavam o golpe de Estado, que enfim se concretizou a 10 de novembro. O escritor
era, então, apenas um "materialista" sem partido, que "desejava a morte do capitalismo, o
fim da exploração"7. Em 1946, após a queda de Vargas, era o PCB que se organizava,
depois de conquistar a tão sonhada legalidade. Graciliano entrou para os quadros
partidários em agosto de 1945, e foi como comunista que iniciou a redação das memórias
da cadeia.
Aos que viessem a considerar a censura do Estado Novo causa de sua relutância
em entregar-se ao trabalho planejado, porém, ele advertia:
No início de 1946, a nova situação política fazia renascer esse desejo. Mais que
isso, o testemunho do respeitado escritor que Graciliano já era à época tornava-se
obrigação:
Era, para o velho Graça, momento de agir em prol dos ideais que assumiu ao se
tornar membro do PCB. Ainda em 1945, aceitou fazer-se candidato a senador pelo estado
de Alagoas, apesar de estar certo de não obter, dos eleitores, nem "meia dúzia de
votos"10. Foi mais ou menos o que aconteceu. Datam também do final desse ano alguns
discursos pronunciados pelo escritor em comícios do partido, em que, seguindo os
ditames da direção, Graciliano exigia uma "Assembléia Constituinte livremente eleita"
com a manutenção de Getúlio Vargas no poder11.
Ao contrário de Jorge Amado, porém, Graciliano não consegue fazer de sua
8 MC, I. p.6.
9 Ibid. p.8.
10 Apud José Carlos Garbuglio et alii. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987 (Escritores Brasileiros,
Antologia & Estudos, 2). p.78.
11 José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 110-1. Após ter se colocado a favor dos Aliados, URSS
inclusive, nos momentos finais da II Guerra Mundial, Vargas começou a ser mais bem visto pelos
comunistas, que passaram a enxergar no ditador um meio de se consolidar a abertura do regime sem um
outro golpe de Estado, que afinal acabou acontecendo em fins de outubro de 1945. V., entre outros,
Raimundo Campos. História do Brasil. São Paulo: Atual, 1983. p.196-7.
65
"Atacam-nos por sermos políticos. Bela novidade. Claro que somos políticos.
[...] Falar muito, discutir, brigar às vezes. Ótimo. Sairemos dessa luta
fortalecidos, lá fora defenderemos os nossos interesses e a cultura exígua de
que somos capazes. Surgirão descontentamentos, sempre haverá quem diga
de nós cobras e lagartos. Que fazer? Essas ofensas não nos perturbarão"14.
década de 40, admirar Prestes, adorar Stálin, alinhar-se com as propostas do partido e
aceitar seus direcionamentos, inclusive sob o ponto de vista literário. Quem não o fizesse
era considerado "inimigo". "Tempo de homens partidos"16, diria Drummond.
Nesse tempo, a política cultural da URSS era controlada por um dos homens fortes
de Stálin, Andrei Zhdanov, também governador de Leningrado, cuja função de censor
das artes resumia-se em verificar se a produção cultural soviética estava ou não de
12 Ibid. p. 85.
13 In: José Carlos Garbuglio et alii. p. 82.
14 In: Ibid. p. 87. Trata-se de discurso pronunciado no encerramento do IV Congresso Brasileiro de
Escritores, em Porto Alegre (1951).
15 José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 111. A expressão, retirada de um dos discursos de Graciliano,
também aparece em MC, I. V. nota 8.
16 "Nosso tempo". In: A rosa do povo. Nova Reunião (19 livros de poesia). 3.ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987. p.120.
66
"Que podem ensinar à nossa juventude [essas] obras [...]? Nada, a não ser o
mal. Não podem senão semear o desânimo, o derrotismo, o pessimismo, o
desejo de se afastar das questões fundamentais da vida social, de deixar a
grande estrada da vida e da atividade social por um pequeno e estreito
universo de emoções pessoais."19
17 Andrei Zhdanov. "As tarefas da literatura na sociedade soviética". In: Problemas: revista mensal de
cultura política. Ano 3, n.20 (ago.-set. 1949), p. 97-8.
18 Ibid., p. 92.
19 Andrei Zhdanov. "As tarefas da literatura na sociedade soviética". p. 93.
20 Para uma análise detida da repercussão do realismo socialista no Brasil, v. Dênis de Moraes. O
imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1994. Os aspectos citados encontram-se esparsos nos capítulos "A estética revolucionária" e "Os
epígonos do jdanovismo no Brasil".
21 Segundo Dênis de Moraes, o partido enviou o camarada Dalcídio Jurandir ao Rio Grande do Sul, no
início dos anos 50, a fim de preparar um livro sobre os portuários locais e impedir que o memorialismo
viesse a impregnar a narrativa. Ibid., p.160.
67
"⎯ Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e
barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o
narrador diz: 'O camarada Stalin...' Ora porra! Isto no meio de um romance?!
Tomei horror.
⎯ Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista? [⎯
pergunta Salles.]
⎯ Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não
pelo estilo do panfleto.
..................................................
⎯ Esse Jdanov é um cavalo!"22
22 Ibid., p.208.
23 Cf. Jardim de inverno. Rio de Janeiro: Record, 1988. p.222-3.
24 Graciliano Ramos. Viagem. p. 169.
25 Ibid., p. 61/2. Consultar também Janer Cristaldo. Op. cit., passim.
26 "Exigimos uma Assembléia Constituinte". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 111, grifos do
autor.
27 Ibid.
68
afirmando que "o artista deve procurar dizer a verdade" e que "só podemos expor o que
somos"28. Depois, já com certa amargura, observando, na Praça Vermelha, em Moscou, a
peregrinação ao túmulo de Lênin:
retrucaria:
28 Respectivamente em "Fator econômico no romance brasileiro" e em carta "A Marili Ramos". Ibid., p.
127 e 241.
29 Graciliano Ramos.Viagem. p. 57.
69
"⎯ Afinal, o que é que você queria? Não chamou Stalin de pai, nem de
guia genial dos povos, não entrou naquela de mundo da paz. Saiu muito fora
do jeitão dele."
Nos jornais, ganhava vulto o tom indignado de defesa da ordem pública, uma
escolha vocabular que tomava partido (a "rebeldia" vista como algo negativo, a oposição
do personagem. Segundo a Eneida, Laocoonte foi um sacerdote que sofreu a ira do deus
33 MC, II. p.125/128-130. Na notícia veiculada pelos jornais, o doente não era Benigno Fernandes, mas
Eneida de Moraes Costa, também ela presa política.
34 V. MC, II. p. 61-2.
71
Apolo. Vendo seus dois filhos sendo engolidos por serpentes saídas do mar, tentou salvá-
los da morte inevitável, e os três acabaram asfixiados. No mito como em Memórias do
cárcere, os personagens representam a batalha, ainda que infrutífera, contra um poder
maior, divino ou humano, que tortura e castiga, ao qual o corpo sucumbe, mas a mente
resiste.35
Muitas vezes, em Memórias do cárcere, os jornais, lidos pela noite em voz alta
pelos presos da Detenção, são chamados de "literatura inimiga"36. Para Graciliano, era
inútil qualquer manifestação dos detentos entre as grades da cadeia. A certa altura,
comentando a resistência dos companheiros Álvaro de Sousa e Agildo Barata a
comparecer perante o Tribunal de Segurança, instituído à época para tratar dos crimes
únicos e diferentes.
É assim que surgiram divergências entre os presos da Casa de Correção a respeito
da guerra civil na Espanha:
35 A análise da figura de Laocoonte foi feita a partir de sugestões de Davi Arrigucci Jr. e textos de
Winckelmann e Schiller sobre a escultura do século I d.C. A explicação do mito está em Pierre Grimal.
Op. cit. p. 266-7.
36 Ibid., p. 123.
37 MC, IV. p. 122-3. A notícia saiu na primeira página de O Estado de São Paulo de 12-01-1937, sob o
título "Os presos politicos hostilisam [sic] o Tribunal de Segurança".
38 MC, I. p. 8.
72
"Supus que a fantasia dele houvesse forjado o caso, pelo menos grande parte
do caso estranho. Em geral aqueles homens devaneavam, enxertavam
pedaços de sonho na realidade."40
afirmações suas sobre o ato de escrever. Por um lado, prezava a observação da realidade,
método que sempre norteou sua produção literária e razão da implicância do escritor, em
1945, contra alguns de seus colegas romancistas:
"O romancista não é nenhum deus para tirar criaturas vivas da cabeça.
........................................
Estamos diante de um fato. Vamos estudá-lo friamente."47
"Quero apenas notar aqui que, ao contrário do que estão dizendo, esse
livro encerra uma lição social bastante clara. O personagem Luís da Silva
tem uma posição nítida: é um intelectual a serviço dos politiqueiros. Um tipo
de literato oficial bastante fácil de ver; um homem de pensamento com um
emprego público. [...]
[...] O que leva Luís a matar Julião Tavares não é apenas o caso
daquela ruiva e excitante Marina. É também a raiva que ele acumulou contra
todos os Juliões Tavares, a quem ele serve."50
47 Graciliano Ramos. "O fator econômico no romance brasileiro". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op.
cit., p.127.
48 Idem. "Alguns tipos sem importância". In: Ibid., p. 122.
49 V., por exemplo, o artigo de Peregrino Júnior, "O romance introspectivo de Graciliano Ramos". In:
Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, 3 (27), maio 1937.
50 Rubem Braga. "Luiz da Silva e Julião Tavares". In: Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, 3 (27), maio
1937.
75
"Foi ali com certeza que achei meio de renovar a minha provisão de fósforos
e cigarros. Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água.
Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do camarote do padeiro,
mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se vinha de
encanamento. Afasto a última suposição, estou quase certo de que não existia
nenhuma torneira."51
Não obstante a dúvida, o autor manteve sua opção pela memória como meio de
"exumar" os "casos passados há dez anos"52 de que tratou em Memórias do cárcere. Foi
por meio dela, da teia por vezes caótica do seu discurso, que se vislumbraram pessoas,
acontecimentos históricos, situações, experiências, lembranças. Quase tão
"psicologicamente" como em Angústia, com o agravante de ser o "livro da cadeia" obra
assumidamente autobiográfica. Ainda mais social e politicamente do que no romance
sobre Luís da Silva, pela amplitude dos grupos e complexidade das questões
reconstituídas na narrativa árida e dilacerada que são as Memórias.
Antonio Candido, em ensaio célebre, julgou o conjunto da obra de Graciliano
Ramos "uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de
costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais."53 Para o crítico, a
carreira literária do escritor começou com a "lição pós-naturalista" de Caetés e terminou
com Memórias do cárcere, em que a "tonalidade romanesca", ainda presente no
autobiográfico Infância, de 1945, "desaparece ante o depoimento"54. Graciliano teria, ao
longo de seus livros, passado "da ficção para a autobiografia como desdobramento
coerente e necessário da sua obra"55.
O teor autobiográfico das Memórias não ofusca, porém, o trabalho literário de
Graciliano em sua linguagem e estrutura. Além disso, sob um outro aspecto, não aparece
51 MC, I. p. 160. Nesse trecho, o narrador refere-se a fatos ocorridos no porão do vapor Manaus.
52 Ibid., p. 9.
53 Antonio Candido. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p.
13. A data da primeira publicação do ensaio que deu origem ao volume é 1955.
54 Antonio Candido. Ficção e confissão. p.14/49.
55 Ibid., p. 11.
76
nelas somente a vida do indivíduo Graciliano Ramos. Há, na narrativa longa, a evocação
de uma época. A linearidade evolutiva da visão de Candido ⎯ cujo ensaio, ele mesmo
reconhece, teria "envelhecido visivelmente"56 ⎯ não dá conta de outros traços também
presentes no último trabalho do velho Graça. A visão ao calor da hora, como foi a do
crítico em "Ficção e confissão", publicado pela primeira vez dois anos depois do
lançamento da obra, talvez não o tenha permitido.
Em artigo de 1995, Alfredo Bosi propôs, uma solução intermediária para as
Memórias do cárcere, classificando-as não como documento, mas como testemunho:
"nem pura ficção, nem pura historiografia"57. Ele explica:
56 Ibid., p. 10.
57 Alfredo Bosi. "A escrita do testemunho em Memórias do cárcere". In: Estudos avançados, São Paulo, 9
(23): 309-322, jan.-abr. 1995. p. 309.
58 Ibid., p. 310.
59 MC, III. p. 108.
77
cárcere que lembrar e narrar se torna complexo. Por um lado, o autor, memorialista. Por
outro, o narrador-personagem, memorioso. A memória vira tema e vira técnica, ao
mesmo tempo, num mesmo corpo.
Essa síntese, Graciliano só a conseguiu no fim da vida. Já em 1946, quando iniciou
a redação das Memórias do cárcere, o escritor via-se "a descer para a cova" e afirmava,
sobre a obra apenas começada, que ela provavelmente seria "publicação póstuma, como
II.3 Liberdade?
Em 13 de janeiro de 1937, após dez meses e dez dias de prisão, Graciliano Ramos
deixa o cárcere. Nas suas memórias da cadeia, porém, enquanto as circunstâncias da
prisão são narradas com pormenores, não aparece o capítulo sobre a saída.
As explicações são diversas. Ricardo Ramos, em nota final a Memórias do cárcere,
afirma que a premência de outras atividades e a morte teriam impedido o romancista de
acabar o livro66. Para Hermenegildo José de M. Bastos, o inacabamento é traço estilístico
de Graciliano Ramos em praticamente toda a sua obra67. Na interpretação de Wander
Melo Miranda,
"A ausência literal e metafórica da 'última palavra' atua [...] como reforço da
contradição maior que percorre todo o texto ⎯ a tentativa ensaiada por
Graciliano de, pela escrita, libertar-se do cárcere e ao fazê-lo ver-se, de certa
forma, condenado a repeti-lo."68
64 MC, I. p. 8.
65 Walter Benjamin. "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica, arte
e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Obras
escolhidas, I). p. 207.
66 MC, IV. p. 162-4.
67 Op. cit., p. 6-7. Para o autor, a literatura, em Graciliano, é um método de conhecimento da realidade. O
inacabamento, na obra do escritor, seria indício da sua consciência de ser impossível realizar a mímese
integral.
68 Wander Melo Miranda. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo/Belo
Horizonte: Editora da Universidade de São Paulo/Editora UFMG, 1992. p. 112.
79
cárcere que Graciliano prometera à família69. Após anos de pesquisa e estudos, Silviano
propôs uma obra cujo narrador seria Graciliano Ramos. Trata-se de um diário íntimo,
cujos originais teriam sido condenados pelo escritor ao fogo. O zelo de um suposto
amigo de Graciliano, cuja identidade o autor/editor Silviano diz querer preservar, teria,
porém, salvado o livro.
O suposto diário se inicia a 14 de janeiro de 1937, dia seguinte à libertação do
escritor, e se encerra a 26 de março do mesmo ano. Nele, as primeiras impressões da
liberdade:
"Para aproveitar o sol que apareceu bem cedo, resolvi descer a São
Clemente até a praia de Botafogo. Gosto de tomar o bonde, mas deixei-o de
lado por causa do azul do céu. Pus-me a caminhar. [...] De repente a imagem
do repuxo é anulada pela do perfil de uma garota dos seus vinte anos. [...]
.............................................
Andando de membro duro pela praia de Botafogo, sentia-me
finalmente em liberdade. Entregava-me à imagem do corpo gracioso da moça
à minha frente. Recebia de cheio no rosto o sol e a brisa marinha. Reparava o
movimento pacífico das ondas na enseada (tão diferente da máquina violenta
das águas no mar de Ipanema). Submetia-me à plenitude do Pão de Açúcar
dominando a paisagem. Lamentava o fato de estar recoberto de pano de alto
a baixo. Suava a cântaros."70
Se o cárcere era uma situação inscrita no corpo, como querem Silviano Santiago,
Wander Melo Miranda e o próprio Graciliano em Memórias do cárcere71, libertar-se
seria libertá-lo. No "livro da cadeia", a questão sexual é recorrente. De início, o narrador
estranha a ausência de desejo:
civil": é sempre "seu Fulano"76. Dessa forma, Graciliano procura cumprir o objetivo
declarado no primeiro capítulo da obra, entre autocrítico e irônico:
74 José Saramago. "História para crianças". In: A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. p. 66.
75 A epígrafe de Em liberdade é "Vou construir o meu Graciliano Ramos.", frase de Otto Maria Carpeaux.
76 V., por exemplo, MC, I. p. 40; MC, II. p. 85; MC, IV. p. 5.
77 MC, I. p. 11.
78 Graciliano Ramos. "A Heloísa Medeiros". In: Cartas. 7.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 92.
81
Colônia Correcional:
"⎯ Eu sei para onde vou, sim senhores. Vou para a colônia, que é o
meu lugar. Estive aqui por descuido, não é possível viver muito tempo com
os senhores.
E rematou, cheio de fel e veneno, um fulgor de ódio no olho que se
ausentava de nós:
⎯ Estes braços estão cansados, estão magros de carregar farinha para
burguês comer."87
Em Vidas secas, o ficcionista reconhece, além disso, o quanto o papel social dos
indivíduos os aprisiona. O retirante Fabiano, prestes a matar o soldado amarelo que o
havia humilhado, recua, tirando o chapéu de couro diante da autoridade: "⎯ Governo é
governo". E curva-se.89 Vidas secas foi escrito nos meses seguintes à libertação do autor
(1937-8), em que a cadeia ainda era idéia muito viva.
Permeando os cárceres das Memórias existe, ainda, a questão do preconceito.
Amarrado entre o desprezo pelos militares e a repulsa obsessiva pelos pederastas, o
narrador precisa se rever. Entre os primeiros, Graciliano encontra um indício de
solidariedade na figura do capitão Lobo, que repetia, sem conhecê-lo: "⎯ Não concordo
com as suas idéias, mas respeito-as".90 Com que então era possível encontrar respeito
num inimigo fardado? Entre os segundos, é um copeiro homossexual da Ilha Grande que
choca o narrador com sua humanidade:
Graciliano de trazer a liberdade para dentro de suas Memórias. Teria ele realmente se
libertado ao deixar a prisão? Não teria sido sua saída apenas mais uma transferência?
88 Graciliano Ramos. "O fator econômico no romance brasileiro". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit.
p.127. V. também comentário de Paulo Mercadante. Op. cit. p. 154.
89 Graciliano Ramos. Vidas secas. 59.ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 107.
90 MC, I. p. 86-7.
91 MC, III. p. 129-30.
84
O narrador se revolta:
Mas a situação interna à cadeia era apenas um fragmento de outra, maior, que os
olhos entrevêem da janela:
Bem ao gosto de Graciliano, o cárcere vivido por ele é metonímia de uma prisão
mais ampla: aparentemente tranqüila, rotineira, porém envolvida numa guerra surda e
entrevista de surpresa. Dentro e fora, Correção e morro, sem escapatória.
II.4 Viagens
Ao entrar no grande automóvel oficial que foi buscá-lo, rumo à prisão, na casa
onde morava em Maceió, começam as viagens de Graciliano Ramos. Sobre elas, diz o
autor em 1942:
Depois, vieram ainda a Ilha Grande, o Pavilhão dos Militares na Casa de Detenção
do Rio de Janeiro, a Sala da Capela, onde ficavam os doentes. A história do cárcere
vivido por Graciliano entre 1936 e 1937 é uma sucessão de prisões e transferências.
A estrutura narrativa de Memórias do cárcere acompanha essas mudanças. A
princípio, o livro foi dividido pelo autor em quatro volumes, de acordo com um critério
espacial: cada volume corresponde, grosso modo, a um dos locais onde ele esteve preso.
Além disso, a ordenação geral é cronológica: a obra começa no dia em que Graciliano
Ramos foi detido em Alagoas e termina pouco antes de sua libertação no Rio de Janeiro.
Internamente, porém, cada um dos volumes apresenta um modo de narrar
característico, o que rompe a aparente simplicidade de tempo e espaço na estrutura de
95In: Koogan / Houaiss. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Delta, 1995.
96 Graciliano Ramos. "Discurso de Graciliano Ramos". In: Homenagem a Graciliano Ramos. Rio de
Janeiro: Alba, 1942. p. 23-4.
87
Soma-se a esse argumento o fato de o autor não ter conseguido rever o texto, que foi
publicado postumamente, cortando e condensando trechos, como era seu costume.
A diversidade das estruturas que compõem Memórias do cárcere, no entanto, é
menos defeito e mais adequação. Nas palavras de Benjamin Abdalla Jr.,
acompanha os múltiplos conteúdos recriados pela linguagem. Vem daí sua aparente
fragmentação.
Além disso, a própria intensidade do vivido acaba por resultar num texto que se faz
aos cacos. A prisão revoluciona as crenças e conceitos do narrador anteriores a ela e
causa um embaralhamento mental que se expressa na narrativa:
"O espírito estava lúcido, mas era lucidez esquisita: percebia tipos,
ocorrências, em fragmentos; quando se tratava de estabelecer relação,
surgiam cortes, hiatos, falhas alarmantes. [...] Notariam a minha confusão?"99
Levado junto com os outros presos ao convés, para que o porão do vapor Manaus,
em que se encontravam, fosse limpo, Graciliano observava a paisagem:
"Ao ter conhecimento da infeliz notícia [da prisão], [José da Rocha] recuou,
temendo manchar-se, exclamou arregalado:
⎯ Comunista!
Espanto, imenso desprezo, a convicção de achar-se diante de um
traidor. [...] Uma palavra apenas, e nela indignação, asco, uma raiva fria
manifesta em rugas ligeiras:
⎯ Comunista!"102
"Tanto quanto posso julgar, a justiça dele [capitão Lobo] se assemelhava [...]
à do bacharel José da Rocha, deputado e usineiro. Sem investigação, [o
bacharel] se afastara resmungando o fastio: ⎯ 'Comunista'!"103
Além das frases nominais abundantes, a estrutura narrativa também se faz aos
fragmentos. Dentro de cada capítulo, há rupturas de tempo e de espaço e justaposição de
situações diferentes, resgatadas pela memória ou projetadas num tempo futuro àquele
99 MC, I. p. 186-7.
100 Ibid., p. 104.
101 Ibid., p. 198.
102 Ibid., p. 38-9.
103 Ibid., p. 85-6.
89
"Paraíba se decidiu:
⎯ Eu me aproximo do senhor, com uma carta na mão: ⎯ 'Cavalheiro
por obséquio, sabe onde fica esta rua?' O senhor me dá a informação e eu
respondo aflito: ⎯ 'Ah! Não acerto. Cheguei ontem do interior, não consigo
orientar-me'. [...]"106
quando comenta os problemas políticos que enfrentava à época em que foi preso:
107 MC, I. p. 13. O conceito de "fluxo de consciência" é polêmico. Alguns autores consideram o termo
como sinônimo de "monólogo interior". Outros divergem ao distinguir os dois conceitos. No âmbito deste
estudo, emprego a expressão "fluxo de consciência" para designar "um estilo especial de monólogo
interior: enquanto um monólogo interior sempre apresenta os pensamentos de uma personagem
'diretamente', sem a aparente intervenção de um narrador que sintetiza e seleciona, ele não necessariamente
os mistura com impressões e percepções, nem viola necessariamente as normas da gramática, sintaxe ou
lógica; mas a técnica do fluxo de consciência faz também uma ou ambas essas coisas". In: Chris Baldick.
The concise Oxford dictionary of literary terms. Oxford/New York: Oxford University Press, 1992. p.212,
trad. minha. No caso de Memórias do cárcere, as normas gramaticais e sintáticas são mantidas; as regras
lógicas, transgredidas em alguns momentos; já a mistura de impressões e percepções ao fluxo narrativo é
constante. A respeito dos dois conceitos abordados, ver também Roger Fowler (ed.). A dictionary of
modern critical terms. London/New York: Routledge, 1995. p. 231-2; Massaud Moisés. Dicionário de
termos literários. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 143-8; Harry Shaw. Dicionário de termos literários.
Lisboa: D. Quixote, 1982. p. 124-5 e 304-5.
108 MC, I. p. 20.
109 Ibid., p. 21.
91
"Na verdade o tempo não era o que havia sido: tornara-se confuso e lento,
cheio de soluções de continuidade, e nesses hiatos vertiginosos perdia-me,
escorregava, os olhos turvos, numa sensação de queda ou vôo."110
"⎯ Respeito suas idéias. Não concordo com elas, mas respeito-as."111
indistinto a figura do beato José Inácio, homem de religião que desejava fuzilar todos os
114 Dênis de Moraes. O velho Graça. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. p. 175.
115 MC, I. p. 133.
116 Ibid., p. 55.
93
ateus. Um terceiro fala sobre um samba cantado por Paulo Pinto, que acaba
"contaminando" os outros presos e chamando a atenção dos passageiros da primeira
classe. Em outro capítulo, é a forte hemorragia intestinal do narrador e suas possíveis
conseqüências o assunto principal.
Às "insignificâncias", que acabam por se tornar simbólicas da situação recriada
pelo narrador, soma-se a quase inexistência de discurso direto nesses capítulos. Quando
ele ocorre, freqüentemente se trata de frase solta, do narrador ou de algum personagem,
que não constitui um diálogo propriamente dito:
É o único trecho em discurso direto por algumas páginas. Frases soltas, como a transcrita
acima, muitas vezes servem de mote para a reflexão do narrador.
Um outro tipo especial de discurso direto em Memórias do cárcere é o que se pode
chamar de "diálogo mudo". Neste, apenas um turno de fala é expresso. A resposta vem
travestida em discurso indireto, ou simplesmente não aparece:
"Certas perguntas sem resposta e certas respostas a perguntas que não foram
feitas deixam no ar significações pesadas e iniludíveis. É que, seja claro ou
subentendido, o diálogo completa a narração como se estivesse ilustrando
uma teoria. Aparece como enunciado ou termo final, sempre dependente da
análise dos fatos."121
"Quais eram afinal os motivos dos rijos dissídios [entre os presos]? Palavras.
As discórdias começavam por elas, embrulhavam-se na significação delas,
aprofundavam-se, alargavam-se. Porquê [sic]? [...] Repeti a mim mesmo que
a dificuldade estava em darem à mesma coisa nomes diversos, darem a várias
coisas um nome só. Impossível entenderem-se."123
Daí talvez a preferência crescente do autor, ao longo de sua carreira literária, pelo
monólogo interior, cujo emprego radicaliza a visão individual dos fatos e ressalta a
impossibilidade de compartilhá-la com quem quer que seja.
"Viagens", primeiro volume de Memórias do cárcere, especialmente ao retratar a
situação do narrador e demais presos políticos no porão do navio Manaus, tem estrutura
semelhante à de Angústia, em que se justapõem, através do fluxo de consciência,
percepções, lembranças, alucinações, fantasias.
O Graciliano narrador de Memórias do cárcere se encontra preso nas celas do
Estado Novo assim como Luís da Silva, o pequeno funcionário de Angústia, está "preso à
sua classe e a algumas roupas"124, às suas frustrações profissionais e amorosas. Ambos se
enredam nas tramas da linguagem, têm dificuldade em expressar aquilo que desejam. A
escrita das "notas da cadeia" que o narrador toma ao longo de toda a obra confunde-se, a
certa altura, com a criação do livro recém-terminado, que havia sido deixado para a
datilógrafa em Maceió quando Graciliano foi preso. O episódio se dá no camarote do
padeiro, ainda no porão do Manaus, onde ele retorna à redação das notas. Primeiro, a
122 Graciliano Ramos. Angústia. 33.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1987. p. 224.
123 MC, IV. p. 157.
124 Adaptação do verso de abertura de "A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrade. In: Nova
Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. p. 112.
96
imagem da garrafa de aguardente, que era exatamente a que o narrador "bebia enquanto
laborava no romance difícil"125, presentifica a lembrança da composição de Angústia.
Depois da mistura entre passado e presente do enunciado, o lento retorno a este último:
"Deitei-me cedo, sem tirar os sapatos, como no dia anterior. Realmente não
havia lugar onde colocá-los: se os largasse no chão, amanheceriam com
certeza molhados de mijo; ou talvez o gatuno de cara enferrujada os levasse.
Necessário vigiar a maleta, a calça e o paletó bem visíveis na ponta do
estrado. [...] Esforçava-me por distinguir nos rumores o som de um piano.
[...] Àquela hora visitantes e passageiros estariam dançando no salão; um
cretino desejava recitar; [...] uma francesa velha, experiente, dava conselhos
a um provinciano ingênuo, interrompia-se para resmungar a frase percebida
vinte anos atrás: ⎯ 'Quel pays, mon Dieu!' Haveria um piano a bordo?"128
"Às vezes apareciam três corpos juntos com rostos iguais, outras vezes era
um corpo com três cabeças. Afinal surgia um vivente que tinha três
nomes."129
maior nível de referencialidade, ainda que se estruture por meio do fluxo de consciência
e da visão particular de um narrador-protagonista. Este aspecto, no entanto, não retira do
trecho citado, e de outros, um forte sabor de non-sense. Apenas que, no "livro da cadeia",
o que não tem sentido está fora do narrador, e não somente dentro dele.
No processo de construção da consciência na prisão, torna-se fundamental o papel
de dois elementos, que acabam por se tornar simbólicos: a cachaça e os cigarros. Ao ser
levado, junto aos demais presos, para o porão do Manaus, a preocupação do narrador era
com a perspectiva não de fome ou sede, mas da privação do fumo. Apesar da falta de ar
que o acometia, ele toma uma decisão, uma das poucas possíveis na situação de
prostração em que se encontrava:
130 V., a respeito do caráter documental e/ou testemunhal de Memórias do cárcere, o tópico 2 deste
capítulo.
131 MC, I. p. 132.
132 Ibid. p. 133.
133 Ibid. p. 136-7.
99
Mais tarde, ao entrar no galpão dos presos, o narrador presencia outra cena patética
por causa dos cigarros. Segundo seus cálculos, haveria em volta cerca de "um milheiro
de homens". Tentando encontrar-se em meio à balbúrdia indistinta, o narrador se põe a
fumar e, ao terminar o cigarro, lança fora a ponta. A reação é imediata:
Para o narrador, esse valor é semelhante àquele que o fumo adquirira no porão do
Manaus. Aliás, as situações guardam semelhanças: são vários os momentos em que a
viagem sórdida ao Rio de Janeiro retorna à consciência durante a estadia na Ilha Grande.
De alguma forma, os cigarros promovem o acesso a uma semiconsciência que joga nas
sombras a comida repulsiva do refeitório e o copeiro homossexual que lhe fala
brandamente, remexendo com seus preconceitos. Reaparece a vinculação entre o fumo e
a perda da noção do tempo, como surgem também as imagens oníricas do mergulho
interior:
tempos antes. Já no dia em que é levado para a cadeia, porém, o narrador recorre à
bebida, enquanto esperava pelo soldado que viria prendê-lo:
De quem era afinal a obsessão de escrever atrás das grades: de Luís da Silva ou de
Graciliano? Memórias do cárcere mostra o esforço intermitente e nunca abandonado do
narrador em escrever dentro da cadeia. As notas de que ele se ocupa até o período em
que permanece na Colônia Correcional revelam-se trabalho a princípio inútil, pois têm de
ser jogadas fora. Mas alguns contos, como "O relógio do hospital" e "Paulo", são
finalizados durante a estadia do narrador na Sala da Capela da Casa de Correção, no Rio
de Janeiro142.
No trecho citado, além disso, o fluxo de consciência projeta-se sobre um futuro
ainda incerto, tentando prever alguns de seus contornos. O narrador se agarra à
imaginação como forma de controlar a insegurança que o invade, assim como em outros
momentos se apega à lembrança para afastar as incertezas terríveis que o assaltam na
cadeia. Tudo o que vê lá dentro é o "mundo à revelia".
143 MC, III. p. 207. A pontuação diverge no texto da 25 ed.: "[...] a respiração penosa descerrava os beiços
grossos, exibindo os dentes fortes de selvagem". Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 167.
144 MC, III. p. 211-2.
145 Ibid. p. 216.
103
no Rio de Janeiro, a voz tece impropérios contra a ordem vigente: o congresso, a justiça,
a imprensa, o exército. Por meio do texto, no entanto, só nos é dado conhecer o
pensamento do narrador. Como se ele fosse dois.
O efeito da aguardente sobre o narrador de Memórias do cárcere lembra o êxtase
provocado pelo haxixe no escritor e crítico Walter Benjamin, embora este tenha sido
aparentemente mais intenso e tenha proporcionado ao escritor uma sensação de prazer.
No tableau "Haxixe em Marselha", que faz parte da obra Imagens do pensamento,
Benjamin conta que a droga lhe causou uma hipersensibilidade auditiva, uma perda da
noção de tempo e certas alucinações, como a visão que tem da janela de seu hotel na
cidade francesa: "À minha frente, sempre aquele panorama no ventre de Marselha. A rua
que tenho visto tantas vezes é como um corte feito por uma faca."146 O escritor se torna
um "observador de fisionomias", experimentando a transformação do próprio rosto nas
faces observadas:
146 Walter Benjamin. Imagens do pensamento. In: Rua de mão única. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, s.d. p.
249. (Obras escolhidas, II).
147 Ibid., p. 250.
104
"O sujeito é surpreendido e dominado por tudo o que acontece e também por
tudo o que diz e faz. O seu riso e todas as suas manifestações o atingem
como acontecimentos externos".148
Todos esses elementos acabam por se condensar no conto "Paulo", escrito por
Graciliano Ramos ainda na prisão e cujo enredo o narrador de Memórias do cárcere
assim resume, no segundo volume da obra:
Nos trechos citados, aparece reiterada a idéia de que havia no narrador pedaços
mortos. Ao final do segundo volume das Memórias, ele afirma: "ia-me aos poucos
habituando à sepultura; difícil ressurgir, vagar na multidão, à toa, como alma penada"153.
Num ensaio de 1919, "O 'estranho'", Freud procura analisar o sentimento de
inquietude que às vezes nos invade diante do que é conhecido.154 A partir do adjetivo
alemão unheimlich, literalmente "aquilo que não é doméstico ou familiar", ele define o
"estranho" como "aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e há muito familiar"155. O unheimlich contém o heimlich. Citando Schelling,
Freud afirma que "unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas
veio à luz"156.
Na seqüência, por meio da interpretação psicanalítica de um conto de Hoffmann,
Freud conclui que os temas de estranheza que mais se destacam na literatura e, por
extensão, na vida dizem respeito ao tema do "duplo":
"o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida
sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um
estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do
eu (self)."157
por poder tratar o resto do ego como um objeto que o homem seria capaz de auto-
observação.
Existe, porém, um aspecto assustador do "duplo". Caso ele represente algum afeto
ou impulso emocional que, por meio do processo de repressão, tenha sido "esquecido",
seu retorno ameaça a integridade do sujeito e gera ansiedade. Além disso, a experiência
do unheimlich remete a medos primitivos. Um deles é o temor da morte, pois as almas
dos mortos, seus "duplos", podem retornar para prejudicar os vivos segundo algumas
crenças. Outro é o efeito repulsivo da epilepsia e da loucura, pois os leigos podem
enxergar nesses fenômenos a influência de maus espíritos ou a manifestação de forças
internas desconhecidas até mesmo pelas pessoas que os apresentam.158
Ao ingressar no cárcere, Graciliano Ramos tem acesso a "tudo o que deveria ter
pemanecido oculto mas veio à luz" de sua consciência. A prisão é o avesso das coisas:
violência gratuita, despersonalização, animalização do humano, agressão a todos os
sentidos e a todos os direitos, incoerência de atitudes, o sexo invertido ou o não-sexo, o
não-trabalho, a não-saúde. De alguma forma, olhando para seus companheiros como
"duplos" de si mesmo e dos demais presos, Graciliano via neles a representação de tudo
o que se escondia, fora da prisão, sob a tranqüila aparência da civilidade:
161 André Green. "Literatura e psicanálise: a desligação". In: Luiz Costa Lima. Teoria da literatura em
suas fontes (vol. I). São Paulo: Francisco Alves, 1983. p. 216.
162 Apud Dênis de Moraes. O velho Graça. p. 274.
163 Dênis de Moraes. O velho Graça. p. 274-5.
108
relatividade"164. Agrícola Baptista, ex-oficial da coluna Prestes, havia furado "um lençol
cor de sangue e andava metido nesse poncho medonho"; os olhos pequenos, a barba
espessa, o rosto longo e um sorriso frio e doloroso lhe haviam rendido a alcunha de
Tamanduá165. Pendurado nas celas, um português anarquista estirava o pescoço e
esgoelava um canto de galo, "cocorocós muito agudos e trêmulos"166. Lacerdão, "braços
musculosos, dentes de selvagem e bocarra medonha", que vivera na Inglaterra e
substituiu Sérgio como professor de inglês, procurava explicar aos alunos o significado
da frase "the tree grows" com uma estranha coreografia: "baixava-se, ia pouco a pouco
subindo enquanto falava, tentando figurar o crescimento da árvore; as mãos se agitavam
simulando galhos; os sons, repetidos, gravar-se-iam no espírito dos alunos"167.
Valdemar Birinyi, um húngaro colossal que se dizia ex-oficial do exército de Bela
Kun e que não conseguia se entender com os demais em nenhuma língua por eles
conhecida, introduziu o jogo de xadrez no Pavilhão, fabricando as peças com miolo de
pão. Certo dia, os demais presos o acharam agitado em sua cela:
"⎯ Bicho.
Levou a mão à boca muito aberta:
⎯ Bicho.
Mostrou-nos as peças roídas, várias inutilizadas, arreganhou de novo os
queixos, moveu os beiços. Percebemos a intenção dele:
⎯ Comeu?
⎯ É, comeu. Bicho comeu xadrez.
⎯ Que bicho, Birinyi?
O homenzarrão ficou um instante indeciso, revolvendo a memória.
Nada achando, estirou-se no chão de barriga para baixo, sacudiu à toa os
braços e as pernas, enfim descreveu como pôde os movimentos de uma
barata."168
Na seqüência do volume, Moésia Rolim, outro dos presos, que possui voz abafada,
cheia de hiatos e gargalhadas roucas, sacode os braços curtos e lembra um periquito a
maquinar bicoradas em Moreira Lima. Este recebe as bicoradas do outro com dignidade
mansa de boi. Amadeu Amaral Júnior tem estridências de pavão. Francisco Chermont
possui nariz de papagaio. O estivador Desidério fareja denúncias. Sebastião Hora rosna.
Tavares Bastos tem jeito de pássaro. Heloísa, a mulher do narrador, que não estava presa
mas visitava o marido na cadeia uma vez por semana, fazia segundo ele trabalho de
aranha, estendendo fios em várias direções. O próprio narrador se vê como "bicho
inferior", dono de uma "fúria bestial" recalcada. E um certo capitão de nariz comprido,
tido por ele como espião da polícia,
Dela também não escapam personagens de grande relevo, como Antônio Maciel
Bonfim, o Miranda, e Agildo Barata.
O primeiro, ex-secretário geral do PCB, foi recebido pelos demais presos com
simpatia curiosa. As cicatrizes provocadas pelos maus tratos sofridos na Polícia Central
impressionavam:
"As torturas infligidas a Miranda, arriado numa cama ali perto, conjugavam-
se a aventuras e perigos, romantizavam-no, quase o glorificavam. Tínhamos
enfim matéria suficiente para um esboço de herói."171
"Naquela tarde, no cubículo, [...] ouvi perto uns gritos finos. Cheguei-
me à porta, vi a pequena distância Agildo Barata no passadiço, formulando
uma arenga bastante arrepiada. A voz álgida não se detinha, derramava-se
num fio invariável. Escutando-o, às vezes me assaltava a doida impressão de
que o regato sonoro deixava de correr, era gelo cheio de arestas cortantes,
onde se assanhavam aranhas caranguejeiras e outros viventes da umidade.
Também me vinha a idéia de um miar de gato comedido, vagaroso, a
esconder mal as garras. Esses disparates ⎯ água tranqüila, gelo,
caranguejeiras, gatos ⎯ associavam-se, emprestando a Agildo uma
personalidade estranha, complexa em demasia. [...] Calou-se ⎯ o ato surgiu.
A corrente fluida estancou, exibiram-se os cristais do gelo, os olhos maus da
caranguejeira e as unhas do gato."175
Ser estranho, mistura de aranha e felino com voz de gelo cortante, Agildo intriga o
narrador, incita sua curiosidade, desafia sua capacidade de compreensão. Em outro
momento, torna-se uma cobra: "sutil, a enroscar-se na sombra, largando o bote na hora
conveniente, elástico e venenoso"176.
Ao final do capítulo 13, uma conclusão sobre a liderança exercida pelo ex-tenente,
na qual se revela uma ponta de admiração:
Suas palestras eram feitas com o orador vestindo apenas cuecas e tendo nas mãos
um lenço, que movia ao falar, num "gesto de prestidigitador firme no seu ofício"180.
Apesar da vestimenta imprópria e de, com o passar do tempo no Pavilhão, Rodolfo se
apresentar silencioso, magro, sem apetite e de lhe estarem caindo os dentes, ele conserva
seu caráter humano. Decaído, mas humano. Segundo o narrador, cabia a ele reanimar a
todos181.
No "fervedouro de cortiço" que era o Pavilhão dos Primários, seus habitantes iam e
vinham, "perfeitos animais", "batendo os cascos nos degraus de ferro" e deixando-se
arrastar como "carneiros dóceis"182. Quando Francisco Chermont, filho do senador
cassado Abel Chermont, voltou de sua estadia de uma semana na Ilha Grande e fez um
relato dos horrores do lugar, o efeito sobre os outros prisioneiros foi tal que, diz o
narrador, eles lhe deram "a impressão de moscas envenenadas a debater-se a custo, a
esmorecer num sussurro" e, juntos, pareciam sofrer do "banzo dos negros", do "mal-triste
do gado"183.
"A água jorrava com forte rumor, alagava o chão; diversas torneiras
abertas, resfôlegos, gente a esfregar-se, magotes conversando à porta,
aguardando vaga."184
No cortiço de Azevedo,
"[...] em volta das bicas era um zunzum crescente [...]. Uns, após outros,
lavavam a cara [...]. O chão inundava-se. [...] os homens, esses não se
preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem
debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e
fungando contra as palmas da mão."185
181 Cf. MC, II. p. 220-1. A relação entre humanidade e linguagem aparece em vários momentos da obra de
Graciliano Ramos. Em Vidas secas (1938), isso acontece de modo direto: Fabiano e família são "bichos"
porque, de alguma forma, não conseguem se expressar.
182 MC, II., respectivamente p. 60, 227, 24 e 26.
183 Ibid., p. 179-80.
184 Ibid. p. 47.
185 Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p. 36.
186 MC, II. p. 72.
114
"⎯ Hoje não se dilata nem império nem fé. Essas dilatações vão
desaparecendo. Agora o que se dilata é a uretra."189
resistência. Como diz o narrador na travessia entre a Ilha Grande e Mangaratiba, ela
193 Cf. André Breton. "Manifesto do surrealismo". In: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e
modernismo brasileiro. 3.ed. Petrópolis/Brasília: Vozes/INL, 1976. p. 194
194 Apud Gilberto Mendonça Teles. Op. cit. p. 177.
195 Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 20.
116
comprar refeições melhores que as dos outros presos. Quando o narrador, preocupado
com o porta-moedas que deixara à vista na cela ao descer para o almoço, lhe pediu que
recebesse por favor o prato que aguardava na fila da refeição pois precisava subir por um
minuto, a resposta foi incisiva:
Hora sentira-se humilhado. O entrevero foi tão sério que provocou a mudança de
Graciliano da cela que dividia com o médico para o cubículo 50.
Sob esse aspecto, ganha relevo no volume a questão do jogo. Logo após a chegada
do narrador e demais nordestinos à Casa de Detenção, quando se estabelece uma frágil
camaradagem entre os companheiros do Pavilhão dos Primários, Valdemar Birinyi
introduz entre os presos a mania do xadrez. O primeiro tabuleiro é fabricado pelo
húngaro com papel almaço e miolo de pão; as figuras são depois comidas pelas baratas.
O segundo tabuleiro vem contrabandeado de fora, em dia de visita. A coqueluche foi tal
que, quando os detentos, como castigo por um barulhento protesto, foram trancados nas
celas por vários dias, o jogo era feito à distância:
Aos poucos, o xadrez vai se tornando a imagem das relações desconfiadas que se
estabelecem entre os presos, sobre as quais pairava o fantasma da delação:
por mais que em vários momentos transpareçam neles certos traços de decência ou
liderança.
Enquanto os personagens comunistas de Jorge Amado, em especial os de Os
subterrâneos da liberdade, caminham, de acordo com a teoria dos modos de Northrop
Frye, do modo imitativo elevado em direção ao mito, as "criaturas vivas, sem
disfarces"208 de Graciliano Ramos em Memórias do cárcere perfazem o sentido inverso.
Um sentido de queda.
Em princípio, fora da cadeia, todos aqueles que depois se encontrariam dentro dela
eram pessoas comuns: "nem superiores aos outros homens, nem ao seu meio", nas
palavras de Frye209. Havia entre essas pessoas diferenças sociais, mas não de natureza:
eram todas humanas, sem poderes excepcionais ou prodigiosa força ou coragem. Assim
caracterizados, esses personagens pertenceriam ao que Frye chamou de "modo imitativo
baixo", próprio da comédia ou da ficção realista210.
Entretanto, também sob esse aspecto Graciliano Ramos abandona o "realismo". A
partir do momento em que ingressam no inferno da cadeia, no "banheiro carrapaticida"
do Manaus211 ou no "curral de arame farpado" da Colônia Correcional212 e se tornam
"simples rebanho, apenas, rebanho gafento, [...] necessitando creolina"213, os
personagens de Memórias do cárcere deixam o modo imitativo baixo e ingressam no
modo irônico, aquele em que os heróis, se assim podem ser chamados, são inferiores em
poder ou inteligência aos demais homens. Assim, "temos a sensação de olhar de cima
para uma cena de cativeiro, frustração ou absurdo", diz Frye214.
O próprio narrador-personagem, que possui uma autocrítica corrosiva, caracteriza-
se como menor entre os menores:
208 MC, I. p. 5.
209 Northrop Frye. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São
Paulo: Cultrix, 1973. p. 40.
210 Ibid.
211 MC, I. p. 125.
212 MC, III. p. 16.
213 MC, I. p. 125.
214 Op. cit., p. 40. A tradução livre é minha, a partir da versão inglesa: Northrop Frye. Anatomy of
criticism: four essays. Princeton: Princeton University Press, 1990. p. 34.
215 MC, I. p. 11.
120
diz ele no capítulo-prefácio à sua obra. O comentário, se bem observado, não esconde
uma outra pitada de ironia: será que "os que merecem patentear-se" o merecem, mesmo?
Retratando-se ele também através do modo irônico, o narrador desmistifica-se, e a
todos os demais personagens. Sua voz não é a verdadeira: é apenas veículo de uma entre
várias versões dos fatos, algumas resgatadas no próprio texto. Sua inteligência ou sua
capacidade verbal também não são as melhores entre os demais: Rodolfo Ghioldi,
mesmo em cuecas, articula-se melhor; Rafael Kamprad, mesmo que frágil, pálido, com
os pés magoados das torturas, lê e compreende mais rápido Caetés do que seu próprio
autor216.
Somem-se aos retratos por ele elaborados as relações difíceis, competitivas,
critica as veleidades literárias de seus colegas presos, que não conseguiam fazer nada que
prestasse. Mas as narrativas de Gaúcho, de Paraíba, se articulam. Prestam.
Walter Benjamin, no ensaio "O narrador", considera que, no mundo moderno, "a
arte de narrar está em vias de extinção"218. Para ele, só existem verdadeiros narradores,
aqueles capazes de transmitir experiência, em dois grandes grupos: o dos camponeses
sedentários e o dos marinheiros comerciantes, que passavam sua existência a viajar219.
Graciliano Ramos parece ter descoberto um terceiro grupo de grandes narradores:
o dos ladrões encarcerados, que passam seu tempo ocioso a contar suas façanhas e a
imaginar projetos mirabolantes. Na visão do narrador, essa extraordinária capacidade
verbal talvez os fizesse melhores do que os outros presos, provenientes de classes sociais
mais altas e detentores de maior estudo, mas teóricos demais. A vida estava entre os
menores.
II.6 Colagens
218 Walter Benjamin. "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 197.
219 Ibid., p. 198-9.
220 Graciliano Ramos. "O relógio do hospital". In: Insônia. 23.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1994.
p. 40.
122
"O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível.
Parece que ele tenciona encher a noite com sua gemedeira irritante."221
"Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou?
Uma idéia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos
esparadrapos morreu."222
sua memória resgata os suplícios da operação que o impediu de trabalhar durante meses
em 1932. A primeira referência a ela aparece logo no segundo capítulo da obra. O
narrador havia sido demitido de seu cargo na Instrução Pública de Alagoas e voltava para
casa223. É na Ilha Grande, porém, que a sensação de estar meio morto volta com maior
insistência. Lá, a barriga aberta de um preso, exposta a uma nuvem de moscas, confunde-
se com o próprio abdômen operado anos antes e que voltava a manifestar dor224.
Em vários trechos de Memórias do cárcere, o narrador se sente incomodado não
pelo ruído de um relógio, mas pela ausência dele. Isso começa na primeira noite que
passa preso, no quartel do 20o Batalhão, em Maceió:
"A noção do tempo ia-se apagando. Se não me caísse nas mãos um número
de jornal entrado clandestinamente, desorientar-me-ia, perdido no calendário.
Em que mês nos achávamos? Esquecia-me às vezes. Mas, contando as
laranjas, era-me possível saber quantos dias mediavam entre duas turmas que
vinham da colônia correcional."226
exército, espigado, escuro, cafus ou mulato, entrou na sala".228 O quarto capítulo, em que
o narrador atravessa a cidade detido no carro oficial, já não começa com uma
circunstância de tempo: "Rodamos em silêncio, atravessamos o bairro de Jaraguá e a
consciência. Esses episódios são narrados quase que sem advérbios. Quando ocorrem,
trata-se de expressões temporais de sentido mais durativo: "lentamente", "logo",
"longamente", "depois de extensa demora". Nesses momentos, a passagem das horas, dos
minutos, é construída pelo narrador preferencialmente por meio da sucessão de eventos,
sensações e pensamentos justapostos:
que narram fatos significativos. Graciliano Ramos permaneceu cerca de quinze dias na
Colônia Correcional da Ilha Grande. O relato sobre essa experiência ocupa mais de
duzentas páginas. A narrativa sobre a Sala da Capela, onde o escritor esteve preso por
mais de seis meses, passa um pouco das cento e cinqüenta. A"duração" da Colônia é
maior, porque a experiência ali vivida e recriada pelo discurso da memória é mais intensa
e complexa.
É também uma experiência mais próxima da morte, que é o não-tempo. Na Ilha
Grande, ao entrar no amplo refeitório em que a comida cheirava a carniça, o narrador
volta a comentar a passagem das horas:
Em outros, são orações adverbiais que referem o tempo na narrativa. Nesses casos, são
os próprios fatos do enredo que vão marcando a passagem do tempo: "Ramiro
Magalhães [...] achou ali [...] dois garotos presos quando pintavam muros"; "Estava
"Não me ocorreu observar-lhe o dorso [do cartão]: foi por acaso que o
virei. Distingui dez ou doze linhas a lápis, uma data, uma assinatura ⎯ e
explodiu a cólera bestial:
⎯ Que diabo vem fazer no Rio essa criatura?
Era uma quinta-feira, princípio de maio: algumas letras e algarismos
me trouxeram de relance a noção do tempo esquecido. Minha mulher chegara
e prometia visitar-me na segunda-feira, entre dez e onze horas."235
anteriormente"237. Nesses casos, o autor tem sempre dois personagens a sustentar: deve
considerar como seu "herói" se sentia no tempo dos eventos relatados, além de sentir
esses eventos no tempo em que os está relatando238.
Em Memórias do cárcere, existe um Graciliano Ramos desdobrado. Hermenegildo
José de M. Barros, em sua tese sobre o livro, identifica dois Gracilianos: o autor e o
narrador-personagem239. Boris Schnaiderman, em artigo intitulado "Duas vozes
diferentes em Memórias do cárcere?", também: para ele, existem na obra um "sujeito da
enunciação" e um "sujeito do enunciado"240.
Na verdade, porém, há nas Memórias tantos Gracilianos quanto são os tempos
desdobrados nesse texto. Um é o autor: aquele que empresta seu nome à capa e se
Isso sem falar nas relações especulares que o narrador estabelece com outros
presos. Os vários narradores que povoam Memórias do cárcere e que contam seus casos
dentro da narrativa principal, especialmente nos dois últimos volumes, são espelhos do
narrador-protagonista. O ladrão Gaúcho, por exemplo, poderia ser considerado um
Graciliano "invertido", mas com a mesma veia ficcional:
Em outro momento, é a história do mulato José que lhe parece a sua, apesar de ter
tomado rumo diferente:
tempos verbais no presente. Nesses momentos, fica claro que a reflexão proposta no
trecho não foi feita "ao calor da hora", com o narrador ainda na prisão, mas é fruto do
autor por trás do texto. É quase como se o leitor pudesse enxergá-lo com a pena na mão.
O exemplo mais contundente é o episódio em que o narrador recolhe assinaturas de
alguns companheiros nas páginas de um exemplar do romance Usina, do amigo José
Lins do Rego. Em seguida, vem o comentário:
Nas obras de ficção de Graciliano, isso se daria por meio dos desdobramentos do autor
246 Hans Meyerhoff. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976. p. 89.
247 Hans Meyerhoff. Op. cit. p. 35.
248 Op. cit. p. 130/2.
130
não resgata, mas destrói qualquer senso de identidade, ao abrir-se para as vozes de outros
narradores-personagens que não somente o narrador-protagonista.
Paradoxalmente, esses "outros" só existem no interior de um discurso de
individualidade extrema, que é a narrativa autobiográfica. Todas as histórias de outros
narradores nela incorporadas foram na verdade reelaboradas e introduzidas no texto pelo
narrador-autor. Todas elas só existem porque existe uma história pessoal a ser contada: a
da prisão de Graciliano Ramos.
Por trás dessas contradições insolúveis, talvez haja uma questão política.
Graciliano tinha consciência, ao iniciar Memórias do cárcere, do efeito que sua obra
poderia vir a ter no contexto político em que vivia. Como deixa claro no primeiro
capítulo do livro, este não era exatamente um empreendimento pessoal, mas uma
"⎯ Eu faço o que sei fazer. Eu só sei fazer isto que está nos meus
livros."255
Afinal, os narradores que irrompem no discurso são quase tão narradores quanto o
protagonista. Quase. E aí reside toda a diferença.
133
Além disso, os anos 30 são marcados pelo convívio íntimo entre literatura e
ideologias políticas diversas e pela busca de uma atitude crítica em relação à "realidade
brasileira", que se tornou um dos conceitos-chave do momento. De um lado, a corrente
literária católica tendia para soluções políticas de direita e se aproximava de grupos
conservadores ou dos integralistas. De outro, a corrente de esquerda divulgava livros a
respeito da experiência soviética e a chamada "literatura proletária"2, alinhando-se com
as propostas do Partido Comunista do Brasil, então em ascensão, apesar da ilegalidade.
1 Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". In: A educação pela noite & outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1989. p. 181.
2 Ibid. p. 185-191.
134
3 Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". p. 196. João Luiz Lafetá afirma que "enquanto na
primeira [fase do modernismo (anos 20)] a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto
estético (isto é, o que se discute principalmente é a linguagem), na segunda [anos 30] a ênfase é sobre o
projeto ideológico (isto é, discute-se a função da literatura, o papel do escritor, as ligações da ideologia
com a arte)." In: 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 17.
4 Ibid., p. 197.
5 V., a esse respeito, Flora Süssekind. Op. cit. p. 154 e ss.
6 Apud Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". p. 196.
7 João Luiz Lafetá. Op. cit. p. 14.
135
"Penso que você confunde moderno com revolucionário e assim quer fazer
passar como revolucionária essa pintura que é produto de uma burguesia
podre. Jamais a classe operária pode aceitar esses quadros. A classe operária
é sã, esses quadros são enfermiços; a classe operária está voltada para a vida,
esses quadros são fugas da vida; a classe operária possui sentimentos limpos,
esses quadros são frutos de sentimentos sujos..."8
8 OSL, I. p. 197.
9 Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". p. 188.
10 Cf. Alice Raillard. Op. cit. p. 55-6. Alfredo Bosi classifica a ficção européia e norte-americana de 30
como "exemplos de um realismo psicológico 'bruto'", explicando: "O caráter 'bruto' ou 'brutal' desse
realismo do século XX corresponde ao plano dos efeitos que a sua prosa visa a produzir no leitor: é um
romance que analisa, agride, protesta". In: História concisa da literatura brasileira. 3.ed. São Paulo:
Cultrix, 1985. p. 439.
136
importantes pensadores da literatura no século XX, já era nessa época conhecido nos
meios literários por sua obra A teoria do romance, de 1920.
A trajetória intelectual de Lukács se desenvolveu paralelamente à consolidação do
novo regime na União Soviética e ele se tornou, na década de 30, bastante dogmático.
Suas proposições dessa época a respeito da literatura de ficção constituem, porém,
apenas um desdobramento daquilo que desenvolve em A teoria do romance, sob um viés
mais político e ideológico que antes.
Nessa primeira obra, Lukács tinha como pressuposto que toda forma artística
depende do tipo de sociedade que a engendra. A mesma idéia volta a aparecer no ensaio
"Narrar ou descrever" do seguinte modo:
11 Cf. "Russian art" e "Russian revolution". In: ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Chicago: William Benton,
1967. p. 780/811-2.
12 Peter Cohen (direção e roteiro). Arquitetura da destruição (1989). Lançado no Brasil pela PlayArte
Films na coleção "Mostra Internacional de Cinema" (1996).
137
O problema do realismo permeia, assim, a teoria de Lukács desde sua obra mais
conhecida e respeitada. Se a estrutura da poesia épica de Homero representava os valores
da sociedade em que ela se criara e esses valores eram determinados pela base política e
econômica dessa sociedade, a forma romanesca representaria os valores da sociedade
burguesa que, por sua vez, seriam também determinados por sua infra-estrutura social e
econômica. Em outras palavras, as formas literárias representariam para o teórico a
realidade econômica, social e ideológica na qual se criaram.
Lukács foi ainda mais longe ao afirmar que o romance se estrutura a partir da
subjetividade. A busca de sentido que esse gênero representa se perfaz através da
experiência pessoal do herói, sua trajetória do eu para o outro das relações sociais, com o
objetivo de alcançar a unidade perdida e jamais totalmente reencontrada. Daí que a
13 Georg Lukács. "Narrar ou descrever?: contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o
formalismo" (1936). In: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 77.
14 Id. A teoria do romance. Lisboa: Presença, s.d. (Col. Divulgação e Ensaio, 14).
15 Ibid. p. 55.
138
realismo crítico, pois sua forma corresponderia àquela encontrada por uma sociedade
socialista revolucionária para se representar a si própria, portanto também a um tipo de
organização social mais desenvolvida que a sociedade burguesa, à qual o realismo crítico
ainda corresponderia.23
A abordagem de Lukács talvez tenha sido estigmatizada pelos stalinistas porque,
apesar de defender o socialismo e de ser marcadamente filosófica, possuía uma base
24Dênis de Moraes. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-
53). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 209.
141
"⎯ Tenho de escrever numa forma clara, simples e popular por três
motivos: primeiro porque sou um escritor vindo do povo, segundo porque
escrevo para o povo, terceiro porque escrevo sobre o povo, seus problemas,
sua vida, seus heróis e dirigentes."25
essencialmente um cativo do mundo, e não seu senhor, e pelo reconhecimento de que [...]
a consciência e a vontade humanas são sempre inadequadas para a tarefa de sobrepujar
em definitivo a força obscura da morte"32.
Para Hayden White, os historiadores, ao elaborarem seu discurso da história,
combinam eventos por eles selecionados a um desses tipos de estrutura. O resultado é
29 Hayden White. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992. p. 12, grifos do autor.
30 Id. "The historical text as a literary artifact". In: Tropics of discourse: essays on cultural criticism.
Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, s.d. p. 84. Trad. minha.
31 Ibid., p. 82.
32 Hayden White. Meta-história. p. 23-4.
143
um texto que se pretende científico e objetivo, mas na verdade foi construído sobre bases
semelhantes às do discurso ficcional33.
O reverso dessa perspectiva literária da história é a perspectiva histórica da
literatura que propuseram Jorge Amado e Graciliano Ramos em Os subterrâneos da
liberdade e Memórias do cárcere. Na primeira obra, por se tratar de um amplo painel
histórico, ficou mais evidente a intenção de resgate de um passado imediato que, apesar
de concentrado na ação de um número limitado de personagens, era coletivo e, por assim
dizer, mais voltado para a história. Na segunda, um texto autobiográfico, a "exumação"
dos fatos lembrados pelo narrador foi feita sob o crivo de uma consciência individual. É
só através dessa construção de um sentido pessoal, mais próxima da ficção que do relato
registrados pelos jornais da época em que se passam suas narrativas. As notícias que
deram a conhecer ao grande público a prisão do líder comunista Luís Carlos Prestes, em
6 de março de 1936, ou o golpe de Estado que constituiu o Estado Novo, a 10 de
novembro de 1937, foram talvez os primeiros registros históricos desses fatos, feitos ao
sabor do momento. No entanto, ao menos em teoria, eles procuravam guardar a
"verdade", ainda que essa "verdade" correspondesse apenas às interpretações desejadas
ou possíveis sobre os eventos narrados34.
34 É preciso lembrar que, após o golpe de 1937, alguns jornais foram fechados, enquanto outros tinham de
se submeter à censura prévia pelo governo.
35 O Estado de São Paulo, 12-05-1938, p. 1. A grafia original foi mantida, nesta e nas demais transcrições
de documentos da época.
145
Quanto ao tipo de registro histórico que faz a notícia, no entanto, ganham maior
relevância dois aspectos: a caracterização dos personagens e o tipo de ponto de vista
adotado. Seus personagens podem ser agrupados em duas facções opostas. De um lado, o
tenente Fournier, Barbosa Lima e Belmiro Valverde, caracterizados como "elementos
graduados do integralismo", aquele "que dirigiu o ataque ao Guanabara", "chefe
provincial" que "conseguiu evadir-se", "rebeldes", "atacantes", "subversivos". Do outro,
"a senhorita Alzira Vargas, filha e secretária particular do presidente da República" e o
próprio presidente, cujo arroubo de heroísmo (sair em defesa de sua residência e do
governo constituído "armado apenas de um simples revólver") tinha sido neutralizado
pelos esforços "diplomáticos" de seus subordinados. Não é difícil perceber quem são os
impessoal, por trás da qual o narrador se camufla: "ao contrário do que foi noticiado",
"ao que se sabe". Ele se trai apenas em um breve momento, no segundo parágrafo, ao
empregar a primeira pessoa do plural em "como noticiamos"; mesmo assim, trata-se da
"voz do jornal", uma entidade abstrata e genérica. Essa estrutura narrativa dá à notícia
uma aparência de neutralidade, objetividade e honestidade. O argumento nas entrelinhas
é claro: "nós não contamos os fatos; eles aconteceram dessa forma". Mas seria o governo
assim heróico e valoroso, e os integralistas, tão vis e traidores?
A chave se inverte ao se procurarem referências em jornais ou boletins de
tendências ideológicas opostas. O Boletim de agitação e propaganda (Agitprop) do
Partido Comunista do Brasil (Região de São Paulo), de 15 de fevereiro de 1937,
"POLITICA INTERNACIONAL
Apoz o desmascaramento completo de Hitler e Mussolini como os
responsaveis pela luta que ensanguenta a Espanha, e o fracasso da primeira
147
O texto tem um caráter diferente. Não se trata agora de uma notícia, mas de um
artigo opinativo sobre o avanço do fascismo na Europa e no Brasil. Esse tipo de artigo,
aliás, é próprio de periódicos comunistas como A classe operária e o Boletim Agitprop,
que se ocupavam não em informar acontecimentos, mas em comentá-los de acordo com
a direção política do partido e em exortar os leitores a tomarem as atitudes consideradas
corretas.
Por possuir traços dissertativos, o discurso emprega um vocabulário abstrato
("fascismo internacional", "povo espanhol", "bravos lutadores da República", "luta pela
democracia", "forças democráticas", etc.), inicia-se com uma proposição genérica ("o
fascismo internacional foi obrigado a reconhecer que não é tão fácil a conquista da
Espanha...") e conclui propondo uma ação em terras brasileiras a favor dos
revolucionários espanhóis. Isso não impede, porém, que se caracterizem de modo
bastante direto os personagens dessa história que se desenrola tanto na Europa quanto no
Brasil. Hitler e Mussolini são "desmascarados" como criminosos e são tidos como
sanguinários. Franco e Mola são "agentes do fascismo internacional", que têm "ação
37 Boletim de agitação e propaganda ⎯ Partido Comunista do Brasil (Região de São Paulo), 15-02-1937,
p.4.
148
periódico o chama: pelo primeiro nome, sem formalismos. Deve-se lembrar também que,
na data em que o artigo comunista foi publicado, Getúlio ainda não tinha dado o golpe de
Estado e a Ação Integralista Brasileira ainda era um partido que apoiava seu governo.
Em Os subterrâneos da liberdade, é a vez de Jorge Amado narrar o episódio da
tentativa de putsch integralista ao Estado Novo, em maio de 1938. O narrador o faz sob
três pontos de vista: o do comunista João, o do novo-rico Lucas Puccini e o do banqueiro
Costa Vale, em três capítulos distintos do segundo volume da trilogia. A primeira versão
é a do sempre bem informado comunista:
"⎯ Foi tudo o que o Tonico [Antonio Alves Neto, personagem dono
do jornal armandista A Notícia] arranjou com essa besteira de golpe... Abrir
as portas da rua para os comunistas... Eles vão aproveitar esses dias em que o
governo está praticamente de mãos amarradas, sem poder fazer nada contra
eles. E esses integralistas idiotas, em vez de ajudarem Getúlio a liquidar essa
peste, resolvem assaltar o Palácio Guanabara... Imbecis..."40
mais bem informados do que quaisquer outros grupos de personagens que compõem a
à Chicago dos gânsgteres seriam para ele tão excitantes e divertidos quanto o tiroteio no
Palácio Guanabara. Além disso, o interesse da tentativa de golpe para suas ambições foi
a oportunidade que ele conseguiu de estar perto de seu ídolo, cuja voz e sotaque ele
arremeda. Lucas também não perde a chance de se mostrar herói por um dia,
identificando-se com o herói maior, Vargas, o "presidente macho".
A dissociação entre narrador e personagem é, nesse ponto, máxima. Em primeiro
lugar porque no capítulo, por meio do discurso indireto livre, o narrador acompanha os
pensamentos de Manuela e não os do irmão. Está mais próximo, portanto, da bailarina.
Em segundo lugar, pelo emprego do discurso direto ou do indireto, ao narrar as falas de
Lucas. A distância entre a voz do narrador e a do personagem é marcada tanto gráfica
quanto lingüisticamente.
A versão de Costa Vale também é narrada em discurso direto e apresenta o mesmo
grandes círculos sociais e políticos que compõem a obra. Nos trechos analisados,
152
jornalísticos.42
No final do parágrafo, porém, aparecem as reflexões e opiniões de João sobre os
acontecimentos. Nesse momento, a chave do discurso se modifica. A narrativa ficcional
é retomada ("João sorriu sarcasticamente ao ler essa notícia"), mas ela está imbuída de
traços opinativos, de argumentos e aponta para um tipo de texto com intenções
dissertativas. Nesse ponto, a linguagem adotada se aproxima daquela que aparece nos
periódicos comunistas, como no trecho analisado do Boletim de agitação e propaganda
do partido.
42Segundo William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhães, a estrutura-padrão da notícia consiste em
duas partes: lead (parágrafo que apresenta um relato sucinto dos fatos, respondendo às questões o quê,
quem, quando, onde, como e por quê) e corpo (demais parágrafos da notícia, nos quais se detalha o que foi
exposto no lead). In: Português: linguagens. 2.ed. São Paulo: Atual, 1994. p. 58. O Novo manual da
Redação do jornal Folha de S. Paulo adverte ainda que a notícia é "puro registro dos fatos, sem opinião".
São Paulo: Folha de S. Paulo, 1992. p. 157.
153
dos jornais "burgueses", visavam não a informar sobre os eventos, mas a opinar sobre
eles e dirigir as ações futuras dos militantes e simpatizantes do partido. Se, para os
comunistas, o escritor era "tão importante quanto um estadista", o texto de Jorge Amado
parece funcionar como o "braço armado" do partido na literatura de ficção, com os
mesmos objetivos dos jornais, boletins e folhetos distribuídos por seus membros. A
diferença é que, enquanto os periódicos se voltavam para o passado imediato e tentavam
fazer dele o exemplo a ser ou não seguido no futuro, o romance se dedicava a fatos um
pouco mais remotos de modo mais detido e com uma estrutura mais complexa.
modo romanesco, com os pólos invertidos. Nele, os inimigos são os fascistas Hitler,
43 É o caso, por exemplo, do episódio da greve em Santos, narrado em OSL, II e analisado no primeiro
capítulo desta dissertação (v. Capítulo I, itens I.3 e I.4).
44 Hayden White. Meta-história. p. 24.
154
Em outras palavras, ao fazer história dentro e por meio do romance, Jorge Amado a
compõe segundo um padrão. Ao narrar os reveses enfrentados pelo partido comunista e
seus membros entre 1937 e 1940, ele parece dizer: "aprendam com os exemplos",
"mantenham a esperança", "continuem lutando". O final de Os subterrâneos da
liberdade aponta para uma redenção que para os comunistas certamente viria. Não só na
ficção: também, e principalmente, na vida. Na história. Apesar de todas as quedas, teria
havido a aquisição de um certo conhecimento sobre que caminho seguir daí em frente.
Há em Os subterrâneos da liberdade um discurso da história, cujo estilo pode ser
caracterizado. Apesar de admitir a inclusão de várias versões dos fatos históricos em seu
texto, o narrador da trilogia lhes confere um tipo de coerência que é ideológica. Ele
elabora uma narrativa que começa aparentemente fragmentária, mas se revela unívoca e
tende para a generalização e para a homogeneidade. Seu tempo é cronológico e respeita
as datas de fatos políticos importantes. Seu narrador, empregando o ponto de vista em
terceira pessoa, observa os fatos sem participar deles, mas conduzindo-os por trás.
Elimina quaisquer dúvidas; preenche de sentido todos os vazios. Essa narrativa histórica
também apresenta vocação teleológica: a reconstituição do passado só interessa tendo-se
em vista a construção do futuro.
III.2.2 Intervalos
46 A intenção de fazer história por meio da autobiografia pode ser verificada por exemplo quando o autor
afirma: "Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade
urgente de recompô-lo." MC, I. p. 10. A esse respeito, v. Capítulo II, item I.1 desta dissertação.
47 MC, II. p. 81.
48 Ibid. p. 77.
156
Vários capítulos depois, um militar jovem, fraco e marcado pelas torturas era
chamado de novo para depor. Ao soar a ordem, ele se ergueu aflito, gritando: "Ah! meu
Deus! Não agüento mais. Vão matar-me."49 Nas reflexões do narrador, volta a imagem
do jogo entre gato e rato:
"OS PROCESSOS DE
FORMAÇÃO DE CULPA
DO COMMUNISTAS
_____________
Foi summariado hontem o
argentino Rodolpho Ghioldi
⎯ Indicação de advogados
_____________
EXCLUSÃO DE SARGENTOS
_____________
RIO, 4 ('Estado') ⎯ Foi summariado hoje Rodolpho Ghioldi, de
nacionalidade argentina e um dos principaes accusados de responsabilidade
nos acontecimentos de Novembro de 1935.
A diligencia realisou-se na Policia Central, sob a presidencia do juiz Raul
Machado."51
49 Ibid. p. 217.
50 Ibid.
51 O Estado de São Paulo, 5-1-1937, p. 1.
157
O que nem os juízes nem os jornais sabiam é que a ida do magistrado à Correção
iria resultar em novos protestos. No dia 8 de janeiro, o coronel Costa Netto foi
A notícia sobre o protesto dos dois ex-militares presos segue o padrão do artigo
sobre a tentativa de putsch integralista analisado no tópico anterior. Enquanto texto
narrativo, ela define o tempo e o lugar ("Rio, 11") e encadeia os fatos primeiro
resumidamente (por meio do título, dos subtítulos e do lead), depois com detalhes (corpo
da notícia). Nesse texto, o foco narrativo se mantém em terceira pessoa, o que imprime
ao discurso um efeito de objetividade e de veracidade. Nenhuma concessão é feita à
primeira pessoa; ela não aparece nem mesmo no plural, como "ponto de vista do jornal"
sobre qualquer dos fatos.
Novamente, porém, a caracterização dos personagens mostra de que lado estava a
imprensa, fosse espontaneamente ou à força, devido à vigilância governamental sobre
ela. Existem no texto dois grupos, o dos guardas e o dos presos, e também a figura do
juiz Costa Netto.
Os guardas são meros "cumpridores da ordem", fosse qual fosse sua atitude. Eles
não arrastaram os acusados para a sala de audiências, mas os "compeliram a ir" até ela.
Eles empregaram a força fazendo com que os ex-militares se sentassem, mas apenas
porque haviam sido obrigados a isso.
Os acusados são rebeldes, mal-educados e agressivos. Cometem o grande pecado
de "prorromper em gritos e insultos à autoridade constituída", que é, sob esse ponto de
vista, incontestável. Além disso, apresentam traços de infantilidade: Agildo Barata volta
as costas para o juiz como um menino travesso o faria diante de um pai zangado; grita,
em situação imprópria; e, "emburrado", se recusa a responder às perguntas que lhe são
feitas, levantando o punho e entoando "vivas" à Aliança Nacional Libertadora.
O magistrado, segundo o texto, age de acordo com o que a situação lhe exige. Já
que os acusados se mostraram rebeldes, "precisou empregar a força". Já que eles não
queriam se sentar, ordenou aos guardas que os forçassem a isso. Já que Agildo Barata
resolveu gritar, "impôs silêncio ao acusado", fazendo valer "sua autoridade" e
reclamando respeito. Ele é a encarnação de uma entidade abstrata: a Justiça.
Enquanto discurso histórico, a notícia constitui um texto coerente, homogêneo,
articulado segundo um ponto de vista próprio e que ela mesma define: o respeito aos
poderes constituídos e o desprezo por aqueles que ousam se colocar contra ele. No caso
desse texto, como no da notícia analisada no tópico anterior, trata-se de um discurso
160
54 É preciso lembrar que o texto transcrito é apenas um fragmento da notícia publicada. Nesta, Agildo
Barata e Álvaro de Sousa, depois de sumariados pelo juiz Costa Netto, são devidamente punidos, sendo
transferidos da Casa de Correção para a Casa de Detenção com ordem de incomunicabilidade.
55 V. Capítulo II, item II.5.
161
certeiro. Outro traço recorrente do personagem é a "voz metálica", sinédoque que numa
pincelada o caracteriza.
A descrição da revolta de Agildo se dá em dois momentos. No primeiro, a
serenidade e o vagar do cortejo emprestam a ele um ar fúnebre, de inércia. No segundo, a
rapidez da reação do militar contra os policiais que o carregavam, mais do que
caracteriza um "sinal de vida", ressalta a esperteza do personagem que, ao contrário de
Álvaro de Sousa, não desperdiça energia com "subalternos", economizando-a para
enfrentar o juiz. Agildo é um todo de inteligência e estratégia; Álvaro é uma colagem de
força e fúria.
Retorna também no trecho a descrição animalizada dos personagens. Além da
"cobra" que é Agildo, os guardas são "gatos-pingados". Como já foi visto, os policiais
são várias vezes identificados com gatos que perseguem ratos, os presos. No caso do
texto analisado, esta é uma imagem implícita. Aparecem de novo as cores: o vermelho
contrasta com o preto nas ventas ensangüentadas do guarda agredido.
Ao contrário do que acontece em Jorge Amado, não há nesse trecho de Memórias
do cárcere heróis ou vilões puros. A caracterização complexa dos personagens foge a
maniqueísmos. Embora a fúria de Álvaro de Sousa possa ter aspectos positivos, como
demonstrar coragem, resistência e força, a descrição "aos pedaços", as cicatrizes, a boca
esforço. O mesmo acontece com Agildo Barata: num primeiro momento, o narrador não
o reconhece; instantes depois, só o faz pela voz, e não pela imagem. Apesar disso, a
visualidade do texto forjado por ele é fortíssima.
162
seguinte:
"[...] senhores juízes, [...] o acusado mostra pelo menos uma virtude: não
procura inocentar-se. Obrigado a interrogatório, permeneceu quieto, e a
denúncia está sólida. As faltas dele são graves ⎯ todo mundo sabe. [...] É
um infeliz, um pobre-diabo, ruína física. Pela cara vemos perfeitamente: um
imbecil, um idiota. Sem dúvida obedeceu às instruções dos agentes de
Moscou. Assim, venerandos juízes, não venho pedir justiça, que este
indivíduo é um canalha ⎯ todo mundo sabe. Espero clemência, e baseio-me
nas tradições misericordiosas da nossa cultura ocidental. Uma pena suave,
meritíssimos juízes, aí uns trinta anos, porque enfim este bandido serviu de
instrumento."56
A "sentença módica" foi logo proferida: trinta anos na Ilha Grande. Todos riram: a
platéia e os guardas.
Capela arremedam seus trabalhos e seus personagens. Imitando-os com ironia, podem rir
da situação constituída para oprimi-los. É uma outra forma de desobediência à ordem e
de subversão do sentido. As autoridades constituídas propunham a violência e o
sofrimento; os presos respondiam com uma comédia.
Aristóteles afirma, na Poética, que a comédia é a "imitação de maus costumes" e
que "o ridículo reside num defeito e numa tara que não apresentam caráter doloroso ou
corruptor"58. No caso dos "comediantes" da Sala da Capela, representar uma "caricatura"
do Tribunal Especial, como a chamou Graciliano Ramos, significou não a dramatização
de uma situação indolor, mas a reversão da dor em riso. Além disso, há na comédia uma
moral implícita. Se ela imita "vícios" e "defeitos", isso significa que, no contexto dos
menções breves a interrogatórios a que são sujeitos os acusados na polícia, como foi o
tempo ou circunstância: "Um juiz do Tribunal Especial veio interrogar os presos que
tinham processo."61 Acontece quase o mesmo no capítulo seguinte, que narra a "comédia
dos presos": "Uma noite, depois do chá, os militares trouxeram para o salão todos os
bancos do refeitório"62. A diferença é a referência de tempo, ainda assim muito vaga e
sem relação direta com os episódios anteriores: "uma noite".
A coerência entre um episódio e outro exige, para ser estabelecida, a participação
do leitor. Graciliano Ramos reafirma, na estrutura de Memórias do cárcere, o que já
anunciara no capítulo-prefácio. O escritor tinha consciência de que sua versão sobre os
61 Ibid. p. 118.
62 Ibid., p. 125.
63 MC, I. p. 10. O texto comporta variantes. A 25.ed. traz "... e me dão hoje impressão de realidade". Um
dos manuscritos da obra, reproduzido em Clara Ramos. Cadeia. p. 37 e ss., traz "... conjugam-se,
completam-se, têm visos de realidade". Aparentemente, a intenção do autor no trecho era afirmar a
impressão de realidade de suas lembranças e das de outros, e não negá-la.
165
para a sessão do tribunal, Agildo Barata mostra-se mais forte do que o sistema repressivo
e sua dignidade prevalece com um sabor de vitória sobre a violência. Embora seja
relativizada pela animalização sofrida pelo personagem e esteja implícita no texto, a
visão do narrador retrata um herói a triunfar, ainda que momentaneamente, sobre o mal
que eram a polícia e o governo. Por outro lado, a dramatização do Tribunal de Segurança
feita pelos detentos da Correção pôde significar uma saída, embora fugaz, para a angústia
de enfrentar uma justiça que lhes era contrária a priori. De acordo com Hayden White, a
comédia é o modo em que "a esperança do temporário triunfo do homem sobre seu
mundo é oferecida pela perspectiva de reconciliações ocasionais das forças em jogo"65.
De alguma forma, entre as quatro paredes da prisão, os acusados assumiram os papéis de
Relatando o episódio, o narrador fornece ao leitor mais uma alternativa para o tipo
de representação histórica dos fatos que vivera, além da satírica, que atravessa o texto
como um todo, e da romanesca, que emerge em alguns momentos. Ao fazê-lo, acaba por
problematizar não somente a si mesmo enquanto narrador de memórias, mas também
como narrador da história, mostrando que, apesar de articulá-la segundo um modo
predominante, há outros, tão aceitáveis como o seu, e que ele mesmo acaba por
incorporar.
Existe uma analogia entre o narrador das memórias que se fragmenta em vários, tal
como foi analisado anteriormente66, e o historiador que se vislumbra nas Memórias do
cárcere. Este também é plural e propõe a dramatização do Tribunal Especial enquanto
Em sua obra Mimesis, Erich Auerbach define dois tipos básicos de representação
da realidade na literatura ocidental. O primeiro é baseado no texto homérico e
caracterizado por meio da análise de um episódio da Odisséia, o do reconhecimento de
Ulisses pela ama Euricléia, na sua volta a Ítaca. O segundo tem como paradigma o texto
bíblico e é estabelecido a partir do relato do sacrifício de Isaac, no livro do Gênesis.
Auerbach mostra que a Odisséia é caracterizada por certa prolixidade. Nela, todos
os fenômenos são exteriorizados, tudo é explicado e toda a ação é rigorosamente
articulada, de modo que mesmo fatos isolados estão sempre entrelaçados em correlação
"mútua, ininterrupta e fluente"67. Segundo ele, há no texto homérico "um desfile
ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte
alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda,
"tirânico". Ele impõe ao leitor uma atitude investigativa, instiga-o a leituras e releituras,
e o leitor "se vê motivado a se aprofundar uma e outra vez no texto e a procurar em todos
69 Ibid., p. 8.
70 Ibid., p. 9.
168
os seus pormenores a luz que possa estar oculta"71. Auerbach afirma ainda que o leitor
busca nos textos de Homero uma realidade, enquanto na Bíblia busca a verdade. O teor
religioso das narrativas bíblicas se manifesta em sua estrutura textual:
"O mundo das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser
uma realidade historicamente verdadeira ⎯ pretende ser o único mundo
verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo."72
história. Como Penélope à espera do tempo vindouro, que é promessa de felicidade com
o retorno do marido ao lar, o narrador de Os subterrâneos da liberdade tece. E o melhor
tecido é o mais bem acabado. Sem nós aparentes. Sem buracos ou falhas nas junções
entre trama e urdidura.
O pólo oposto está em Memórias do cárcere. Na obra de Graciliano, quase tudo é
questionamento, perplexidade, busca de um sentido que não se completa. O narrador é
um entre vários. Os ladrões demonstram escrúpulos. Os heróis se revelam mesquinhos.
Os inimigos mostram compreensão. As ideologias não se harmonizam, mas destróem
qualquer entendimento. Os fatos são as versões que são contadas sobre eles. O fluxo de
consciência constitui um esforço para se superar o que é rompido e incoerente, mas
acaba por reafirmar o fragmentário a cada página. A história é apenas uma das narrativas
possíveis, por um dos narradores possíveis.
renovado. O livro de Graciliano não é "tirânico" como a Bíblia, pois não quer ser livro
sagrado, nem aspira à redenção final: atingir todo o conhecimento até então só entrevisto
fragmentariamente. Mas ele é, no mínimo, exigente. Lido e relido, oferece apenas a
sensação de que existe ali um mistério, não sobrenatural, mas humano, que permanece
oculto. O narrador de Memórias do cárcere é como um pescador a trançar sua rede. Para
a boa pesca, os vãos são tão ou mais importantes do que os nós firmes e perfeitos. Mas
esse pescador de sentidos os tece largos demais, e seus peixes escapam para o mar
desconhecido.
Em Memórias do cárcere, o fragmentário, os questionamentos, a dúvida são
levados a uma tal intensidade que já não exigem do leitor adesão e busca da verdade.
Pelo contrário, o texto de Graciliano o afasta e avisa: "Não acredite inteiramente no que
está escrito nestas páginas. Trata-se apenas de uma visão pessoal sobre o assunto". Ainda
assim, essa perspectiva individual e lacunar do fato consegue ser mais abrangente do que
170
literatura. Por isso, enquanto propaganda e incitamento à ação, os livros talvez não
tenham funcionado tanto. Ao mesmo tempo que a linguagem retórica de alguns trechos
tentava impelir a luta dos comunistas pelo poder, a estrutura mais profunda do texto
tinha efeito calmante, quase anti-revolucionário. Se a verdade já existia na vida, como o
narrador tenta mostrar aos seus leitores, por que então se esforçar para alcançá-la?
III.3 Viver-lembrar-narrar
73 Walter Benjamin. "Infância em Berlim em 1900". In: Rua de mão única. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
s.d. (Obras Escolhidas, II). p. 105.
74 Ibid.
171
75 Willi Bolle. "Cultura, patrimônio e preservação". In: Antonio Augusto Arantes (org.). Produzindo o
passado: estratégias da construção do patrimônio cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 12.
76 Ibid. p. 13, grifos do autor.
172
Vargas, o ex-ditador, se preparava para voltar ao poder pelo voto direto77. Graciliano
iniciou Memórias do cárcere em janeiro de 1946, já como membro do PCB e
respondendo a apelos de colegas para que registrasse o seu depoimento sobre o período
de sua prisão. A esquerda brasileira certamente esperava do autor de Angústia uma
denúncia tão veemente dos abusos sofridos pelos comunistas e simpatizantes no final dos
anos 30 que pudesse torná-los mais conhecidos e bem aceitos pelo público.
Ambas as obras propõem uma reconstrução do passado a partir de uma
perspectiva particular, do detalhe, do cotidiano. Elas o fazem, porém, segundo gêneros
textuais diferentes. Os subterrâneos da liberdade são estruturados como romance
histórico. Marilene Weinhardt, comentando as concepções de Georg Lukács sobre esse
gênero, afirma que "ao romance histórico não interessa repetir o relato dos grandes
acontecimentos, mas ressuscitar poeticamente os seres humanos que viveram essa
experiência. Ele deve fazer com que o leitor apreenda as razões sociais e humanas que
fizeram com que os homens daquele tempo e daquele espaço pensassem, sentissem e
agissem da forma como o fizeram". E completa: "Trata-se de uma norma da figuração
literária, aparentemente paradoxal, que se alcance esta apreensão focalizando os detalhes
do cotidiano que parecem insignificantes. [...] O mundo do romance é o da esfera
popular"78.
Ao conceber sua trilogia sobre o Estado Novo, Jorge Amado não somente
imaginou personagens historicamente verossímeis, como transformou personagens
históricos em seres de ficção. Além disso, os "grandes acontecimentos" aparecem na
obra, mas sempre vistos e vividos através do pequeno, do particular: a vida de cada
personagem, de cada grupo, seus hábitos e crenças. Ou, pelo menos, dos hábitos e
crenças que o narrador apresenta.
O romance histórico, enquanto reconstituição de uma época, está mais próximo do
que hoje se conhece como "história das mentalidades" ou "história do cotidiano". Por sua
riqueza de detalhes, consegue fornecer uma visão mais matizada e menos generalizante
de um período do que o discurso historiográfico tradicional, que tende à abstração. Ele
torna também mais relativo um traço que a historiografia tradicional procura reforçar: a
pretensão à verdade histórica.
Numa gradação entre discurso historiográfico e ficção histórica, o romance
histórico corresponde ao primeiro passo. A ficção se assume como versão, enquanto a
história se quer verdade. O efeito de realidade criado por uma obra como Os
subterrâneos da liberdade é certamente menor do que o de qualquer relato
historiográfico sobre o mesmo período.
Existem diferenças, porém, no terreno da própria ficção. O romance histórico ainda
guarda mais semelhanças com o gênero épico do que a prosa confessional e de
memórias. Entendendo-se o lírico como a manifestação de sentimentos, representações
ou reflexões subjetivas79, percebe-se que este se constrói segundo uma postura ainda
mais particularizante, enquanto o épico mantém um "gesto" mais universalizante. O
narrador épico busca observar e relatar, mais do que se expressar. A tendência desse tipo
de gênero a constituir um discurso homogêneo, coerente e integrado é, portanto, maior.
Quanto mais expressamente pessoal um relato, menos seu narrador fica obrigado a
respeitar regras e padrões externos a si próprio. Pode dar vazão ao caos, à perplexidade, à
ausência de explicações. Não foi por coincidência que tanto a prosa confessional quanto
o romance histórico se estruturaram como gêneros literários no final do século XVIII.
79Essa concepção aparece na Estética de Hegel e é retomada por Massaud Moisés. A criação literária:
poesia. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1987. p. 230 e ss.
174
através dos quais se vislumbra a cultura da cidade, mas o próprio texto da Infância em
Berlim se estrutura em fragmentos, cenas rápidas ou, nas palavras de Willi Bolle,
tableaux. O narrador dessa obra também não fornece os nexos entre os vários tableaux
que a formam. Estabelecer a coerência entre eles exige do leitor um esforço considerável
de interpretação. Parafraseando Fernando Pessoa, é como se ele dissesse: "Entender?
Entenda quem lê!". Com isso, o narrador permite que o leitor construa um sentido
próprio para o fato ou para a imagem que lhe põe sob os olhos e questiona a existência
de uma verdade histórica.
Além disso, o trabalho "historiográfico" da memória em Benjamin se faz por meio
do mais pessoal dos gêneros, a autobiografia. Essa escolha também relativiza a idéia de
do intelectual alemão para escrever essas obras. No entanto, se Benjamin "foi um dos
primeiros a explorar a terra incógnita da micro-história"81 como quer Willi Bolle,
Graciliano Ramos intuiu para escrever Memórias do cárcere que "uma verdade expressa
de relance nas fisionomias" e "boatos verossímeis" valiam mais do que as "verdades
convencionais e aparentes"82.
Assim, Graciliano escolheu resgatar o passado por meio da autobiografia.
Empregou a primeira pessoa, apesar de se incomodar com a pessoalidade que ela
conotaria. Se não constituiu um discurso tão fragmentário quanto os tableaux de
Benjamin, fez uso do fluxo de consciência, que rompe muitas vezes a cronologia e a
lógica do espaço, além de apagar os nexos entre os capítulos, o que acabou por fazer
83 Philippe Lejeune. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975 (Coll. Poétique). p. 26-7.
84 Ibid., p. 36.
176
também em outras obras do escritor. É por meio da memória estruturada enquanto fluxo
de consciência que Luiz da Silva, o protagonista de Angústia, reconstrói não somente a
sua história, mas a de um grupo do qual fazia parte. Como afirmava o próprio Graciliano,
sua intenção ao escrever Angústia não tinha sido fazer romance psicológico, mas mostrar
a situação deplorável de um intelectual frustrado e pobre às voltas com o sistema numa
capital de província. Em Infância, algo semelhante acontece. Ao escutar a narrativa do
malandro José em Memórias do cárcere, Graciliano considerou que sua infância não
deveria ter sido muito melhor do que a dele e refletiu:
lembrar.
Assim, nos últimos dias de 1938, o banqueiro Costa Vale rememora praticamente
tudo o que acontecera até o momento em quase todas as frentes de ação da narrativa: a
parceria com os americanos na Empresa do Vale do Rio Salgado, os preparativos para o
casamento de Paulo Carneiro Macedo da Rocha com Rosinha da Torre, a situação
política internacional, um escândalo numa operação com algodão no qual se envolvera
Lucas Puccini, o lançamento da revista Perspectivas pelo arquiteto Marcos de Sousa88. O
86 OSL, I. p. 62.
87 V. respectivamente OSL, II. p. 160-1 e 272.
88 OSL, III. p. 135 e ss.
178
Essa memória do conjunto dos fatos, apresentada tanto pelo discurso indireto livre
(quando feita pelos personagens) quanto pelo discurso indireto (quando é de
responsabilidade do narrador), acompanha o mesmo processo de "coletivização" da
e quatro horas depois achava-me preso e só"91. Procurando compreender sua situação
atual, ele a compara com uma acontecida anteriormente, para concluir: "Tudo se
desarticulava"92.
Tempos depois, na Ilha Grande, a lembrança recorrente, entre outras, é a viagem
para o Rio de Janeiro no porão do vapor Manaus. Por um lado, ela estabelece um vínculo
entre dois momentos diferentes da narrativa, constituindo um processo de referência
interna ao enredo. É como se a distância entre o narrador e o mundo exterior já tivesse se
tornado tão grande que o passado se circunscrevesse à experiência da prisão. Ou, de certa
forma, trata-se de um reconhecimento de que a identidade do narrador antes de ser detido
desaparecera, dando lugar a um outro, que é o narrador dentro da cadeia.
narrador muitos anos antes. O "pátio branco" da Colônia Correcional faz com que o
narrador se recorde da própria infância: "dei um salto para trás, vi-me pequeno, a correr
num pátio branco de fazenda sertaneja, a subir na porteira do curral, a ouvir os bodes
bodejarem no chiqueiro"94. A perna doente que o impede de andar traz de volta a
lembrança do hospital. E o medo de não atender a um pedido do soldado Alfeu na Ilha
Grande revive no pensamento uma noite de lua em que o narrador fugira de um marido
enganado que nem sabia se o tinha visto.
Se, em Os subterrâneos da liberdade, a memória tinha função eminentemente
narrativa, pois "costurava" episódios do enredo para constituir a "grande" história ali
narrada, em Memórias do cárcere ela se dá aos "cacos" e impõe mais inquietações do
91 MC, I. p. 29.
92 Ibid.
93 MC, III. p. 134.
94 Ibid., p. 49.
180
que fornece respostas. Qual seria, por exemplo, a relação entre o episódio do marido
traído e o pedido do soldado Alfeu para que o narrador escrevesse por ele um discurso de
homenagem ao aniversário do diretor do presídio? O sentimento de medo é a semelhança
declarada entre os dois fatos. Mas haveria outras? E qual a relação entre a correria
infantil por entre os bodes da fazenda e a presença do narrador no pátio branco da
Colônia?
Walter Benjamin, para falar da memória coletiva, utiliza uma metáfora
arqueológica. No fragmento "Escavando e recordando", diz ele que "a memória não é um
instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a
vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas"95. Para
Benjamin, aquilo que compõe a memória deve ser observado com insistência para que
possa revelar um sentido oculto à primeira vista e que se encontra por baixo dos fatos.
Estes, segundo o escritor,
que é comparada com outros fatos e situações. Ecléa Bosi, em Memória e sociedade,
lembra que a ligação entre memória individual e memória coletiva já existia entre os
gregos, encarnada na figura divina de Mnemosyne, mãe das Musas, que "dispensa a seus
eleitos uma onisciência do tipo divinatório, não de seu passado individual, mas do
passado em geral, do tempo antigo"97.
A autora também explica, a partir de conceitos de Frederic Charles Bartlett, que a
memória, mesmo a autobiográfica, é elaboração grupal, porque passa por um processo de
"convencionalização":
97 Ecléa Bosi. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 4.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p. 89.
98 Ecléa Bosi. Memória e sociedade: lembranças de velhos. p. 64.
99 Sigmund Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Volume III (1893-1899). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 346. A respeito da relação entre memória e
ficção v. também Adélia Bezerra de Meneses. "Memória e ficção II (Memória: matéria de mimese)". In:
Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 143-160.
182
Por fim, Freud chega a duvidar da existência de lembranças "fiéis" aos fatos
vividos:
1954. De novembro de 1953 até abril de 1954, inúmeras leituras de Memórias do cárcere
foram publicadas3. A obra foi até mesmo considerada "o livro do momento" pelo
periódico Semana literária, que noticiou seu aparecimento4. O lançamento de Os
subterrâneos da liberdade também foi seguido de uma discussão razoavelmente ampla a
seu respeito pela imprensa, entre críticos de diferentes posições políticas5.
Em 15 de dezembro de 1953, portanto quase dois meses após o lançamento de
Memórias do cárcere, a Livraria José Olympio, editora de Graciliano, elaborou um
1 "O teorema de Walnice e sua recíproca". In: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 (Col. Literatura e Teoria Literária, 44). p. 72.
2 Robert Darnton. "Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade romântica". In: O
grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal,
1986. p. 277.
3 O Arquivo Graciliano Ramos, mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo (IEB/USP) possui originais desses artigos disponíveis para consulta.
4 "O livro do momento". In: Semana literária. S.l., [1953?], p. 24.
5 A respeito da repercussão de Os subterrâneos da liberdade e outras obras de Jorge Amado anteriores a
Gabriela, cravo e canela (1958), v. Alfredo Wagner Berno de Almeida. Jorge Amado: política e
literatura. Rio de Janeiro: Campos, 1979.
184
Alguns críticos foram mais longe do que José Lins, questionando até mesmo o
comunismo do homem Graciliano, e não somente o do escritor. O jornalista Costa Rego,
colega de trabalho de Graciliano em seus últimos anos de vida, se perguntava, após tecer
considerações gerais sobre o "livro da cadeia":
agradou a direita e irritou o partido. Enquanto Henrique Pongetti dizia que seu
"anticomunismo" rendia homenagens ao escritor, porque o que Graciliano tinha contado
a respeito das prisões era "aquilo que um patriota de quépi ou de boina diria com a
mesma dolorosa veemência"13, Oswald de Andrade se indignava por ouvir dizer que o
amigo se abstivera de publicar sua obra sobre a cadeia em vida "por imposição político-
partidária"14.
9 Serra Barros. "Memórias do cárcere". In: Diário de Minas. Belo Horizonte, 29-11-1953.
10 Ibid.
11 Oscar Mendes. "Memórias (I)". In: O Diário. Belo Horizonte, 31-1-1954.
12 Hildon Rocha. "Concluindo sobre as 'Memórias do cárcere'". In: A noite. Rio de Janeiro, 8-3-1954.
13 Henrique Pongetti. "Graciliano, o morto que fala". In: O Globo. Rio de Janeiro, 5-11-1953.
14 Oswald de Andrade. "O encarcerado". In: Correio da manhã. Rio de Janeiro, 10-11-1953.
186
clareza a polarização ideológica das leituras que se fizeram da obra. A crítica comentou,
é certo, alguns de seus aspectos formais, como a agudeza na caracterização dos
personagens ou a posição do narrador frente aos fatos do enredo, em que vários
observaram um certo "aprofundamento psicológico", para eles próprio do estilo do autor.
Mas a maioria dos artigos se manteve no comentário sobre o conteúdo de Memórias do
cárcere, como a ignomínia sofrida por Graciliano ao ser preso sem processo e a
precariedade dos cárceres brasileiros. Como conclusão freqüente, a constatação de que o
"livro da cadeia" reafirmava a individualidade de Graciliano Ramos como escritor e
15 A respeito dessa polêmica, v. "Mesa-Redonda". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 420-1. V.
também Clara Ramos. "Graciliano reescrito?". In: Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 252-262 e, da mesma autora, Cadeia. Rio de Janeiro: José
Olympio/Secretaria de Cultura, 1992.
16 V. a esse respeito o Capítulo II, item II.1 desta dissertação.
187
"a tendência é o selo obrigatório, que não falta embora tentem ocultá-lo
quando se trata de tendência inconfessável, nem mesmo no abstracionismo,
no surrealismo aparentemente delirante, nas fugas oníricas, em todo o
aparente apoliticismo em arte e literatura"18.
Jorge Amado [...]? Por que vemos nele uma enciclopédia da vida? Por que a primeira
edição brasileira esgotou-se numa semana em São Paulo e somente a segunda edição
chegou ao Rio?" A resposta veio em seguida: "A força deste livro reside em que o autor
penetra a essência dos problemas históricos da época"21.
Ainda que elogiado por seus pares, alguns esquerdistas como Dalcídio Jurandir
enxergaram "falhas" na nova obra de Jorge Amado. Companheiro de partido de Jorge,
Jurandir criticou, por exemplo, a falta de "verdade" histórica em alguns episódios do
romance, como no da reconstituição da greve de Santos:
21 Inna Tinianova. [Sem título]. In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 243-4.
22 Dalcídio Jurandir. "Conflitos e personagens no romance". Apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op.
cit. p. 223. Publicado em Imprensa popular. Rio de Janeiro, 19-9-1954.
23 Id. [Sem título]. In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 238.
24 In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 239-40.
189
O crescente partidarismo dos livros de Jorge já vinha sendo atacado pela crítica
desde o lançamento de Seara vermelha (1946). Em 1962, comentando a pretensão de
alguns escritores em geral, e de Jorge Amado em particular, de fazer "literatura
socialista", Otto Maria Carpeaux acusou o autor de Seara vermelha de ter feito uma
leitura apressada de Marx e Engels, cujo resultado seria a "falsa literatura marxista" de
suas obras de alto teor político. Chamando o trabalho do escritor baiano de "literatura
mal amada" ou de "subliteratura", o crítico foi sentencioso: "para representar a luta de
classes, não basta cometer erros de gramática e escrever palavrões"25.
A reação do público a Os subterrâneos da liberdade foi, assim, inversa à
repercussão de Memórias do cárcere. O partido comunista enxergou no livro de
Graciliano Ramos uma traição aos princípios estéticos do partido e, por extensão, ao
próprio partido e à causa revolucionária. Jorge Amado, por outro lado, reafirmou com
sua trilogia sobre o Estado Novo a condição de maior escritor comunista do país, porta-
voz da revolução em terras brasileiras. É preciso lembrar que, enquanto se encontrava no
exílio, Jorge fora agraciado com o Prêmio Stalin da Paz de 1952 pelo conjunto de sua
obra, o que conferiu a ele uma aura de escritor oficial do partido. Por outro lado, a
intelectualidade de direita ou contrária às posições comunistas louvava a obra de
Graciliano por sua suposta imparcialidade e "apego à verdade", enquanto repudiava a
"A revolta, o nojo e a ira justa que nos empolgam na evocação dos
crimes consentidos pelo sr. Vargas, e dos quais jamais se penitenciou, são
inevitáveis. [...] o Brasil viveu cenas em nada destoantes dos horrores
impostos à Alemanha e à Rússia pelas ditaduras com que namorou e namora
o sr. Getúlio Vargas, criminoso impune e principal responsável pela rapsódia
de afrontas que constitui essas 'Memórias do cárcere'.
........................................
Na hora de sua morte, o sr. Getúlio Vargas há de sentir o remorso das
infâmias praticadas, com o seu consentimento e em seu proveito, contra o
gênero humano, tal como as descreve Graciliano Ramos.
Tomara que o atormentem essas visões do inferno a que ele condenou
o escritor e, com ele, tantas criaturas."26
não era para todos os paladares. O escritor alagoano se recusou a vida inteira a abrir mão
do trabalho literário fosse pelo que fosse. Graciliano escrevia e reescrevia seus textos,
alterando-os, eliminando o que considerava supérfluo, modificando até mesmo o registro
de linguagem utilizado neles. O romance São Bernardo, por exemplo, que começou
como um conto escrito ainda nos anos 20 e intitulado "A carta", foi totalmente reescrito,
depois de pronto, na linguagem de Paulo Honório, segundo o próprio autor28.
26 Carlos Lacerda. "Memórias do cárcere". In: Tribuna da imprensa. Rio de Janeiro, 5/6-12-1953.
27 MC, IV. p. 83.
28 A informação está em uma carta de Graciliano à esposa Heloísa. In: José Carlos Garbuglio et alii. Op.
cit., p.235.
191
Jorge Amado, por sua vez, sempre pareceu buscar a direção oposta. No início de
sua carreira, escrevendo quase que um livro por ano, pouca atenção dedicava à forma de
seus romances. Falando a respeito de Os subterrâneos da liberdade em entrevista a Alice
Raillard, Jorge comentaria:
No entanto, segundo ele próprio, a elaboração do livro foi para ele uma "aula de
romance":
Pedro Motta Lima também aponta uma mudança na maneira de escrever do amigo
Jorge Amado a partir de Os subterrâneos da liberdade:
"O elitismo artístico [só] começa a ser nefasto no momento em que a obra de
arte não pode abdicar de uma [...] de suas responsabilidades para com o
público: o da sua formação. Há momentos históricos [...] em que ao artista
cabe a função de ser o principal responsável pelo aprimoramento intelectual
de um público cada vez mais amplo".32
"Se o escritor é comandado pelo gosto do mercado, sua obra não pode
ir contra o gosto do mercado, nem como forma nem como idéias. Não pode
ser nova, já nasce velha. [...]
A ficção comandada pelo gosto do mercado mais amplo está proibida
de inovar, pois a inovação cria dificuldades de leitura e por isso se destina a
31 Silviano Santiago. "O teorema de Walnice e sua recíproca". Op. cit. p. 73.
32 Silviano Santiago. "O teorema de Walnice e sua recíproca".
33 Ibid., p. 72.
193
A autora completou ainda que, nessas obras, a função crítica da literatura fica
amordaçada, pois elas jamais se opõem ao sistema social, político e cultural vigente;
apenas o reforçam.35
Complementando o raciocínio de Walnice, Silviano Santiago disse no ensaio
citado que,
"Se as obras recentes de Jorge Amado são fracas, é porque ele, escritor
político, consciente de que uma das tarefas da obra de arte é a formação do
público, não contribui positivamente para se chegar a tal fim. A sua
concepção de populismo [...] mascara o velho preconceito de que tudo que
existe no povo é bom. Preconceito que deixa o proletário, primeiro, contente
com com o imobilismo sócio-político da sociedade brasileira, segundo, auto-
suficiente numa nação em que sofre as piores formas de injustiça e, terceiro,
orgulhoso por ser a força maniqueísta do Bem numa sociedade tomada pelos
ricos e pelo Mal. As constantes soluções sobrenaturais, embebidas em
sincretismo religioso, para conflitos sociais e concretos, encontradas também
nos seus romances, apontam para o irracionalismo político, para a ausência
de visão lúcida e racional sobre o autoritarismo do antagonista."36
34 Walnice Nogueira Galvão. "Amado: respeitoso, respeitável". In: Saco de gatos: ensaios críticos. São
Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. p. 13-4.
35 Ibid., p. 14.
36 Silviano Santiago. "O teorema de Walnice e sua recíproca". Op. cit. p.74.
37 Ricardo Ramos. Op. cit. p. 196.
194
vezes uma crescente simplificação formal e uma repetição temática em suas obras. Ao
escreverem sobre os livros do escritor baiano, Walnice Nogueira Galvão e Silviano
Santiago escolheram a "última fase" do autor, que Alfredo Wagner Berno de Almeida
chamou de fase do "romance picaresco" e que Alfredo Bosi caracterizou como momento
das "crônicas amaneiradas de costumes provincianos"38. Após 1958, ano em que
publicou Gabriela, cravo e canela, o escritor, antes visto com reservas por seu
"sectarismo", passou a receber um reconhecimento ainda mais amplo do público.
A eleição de Jorge Amado para a Academia Brasileira de Letras em 1961
completou a consagração "oficial" do escritor e marcou, para Alfredo Wagner Berno de
Almeida, a sua reconciliação com a intelectualidade mais conservadora39. Enquanto
Batista: o preconceito de que tudo o que existe no povo é bom, o orgulho do proletário
por ser a força do bem numa sociedade presidida pelos ricos inescrupulosos, o apego a
formas literárias "velhas", como as narrativas de caráter marcadamente romanesco, a
desconsideração pelo trabalho com a linguagem, que é marcada por clichês.
Os subterrâneos da liberdade, todavia, não são literatura best-seller, apesar de
apresentarem características de linguagem e de estrutura que esses mesmos intérpretes
apontam como sendo traços da "literatura ao gosto do mercado". Para características
literárias semelhantes criam-se, assim, duas interpretações. Até Gabriela, Jorge Amado é
"escritor comunista"; depois de Gabriela, vira uma espécie de Sidney Sheldon brasileiro.
Evidentemente, havia diferenças temáticas entre as obras anteriores e posteriores ao livro
mais famoso de Jorge. A história da baiana ingênua e sensual trazia uma carga muito
38 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1985. p. 459.
39 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit. p. 245 e ss.
40 Ibid., p. 261.
195
segundo o próprio Jorge Amado, uma teoria segundo a qual sua obra se dividia em duas
partes, uma anterior a Gabriela e outra, posterior:
"Diziam que a obra se tornara folclórica, que era a negação da obra passada,
não sei mais o quê, como se os elementos da vida, do folclore, não
estivessem presentes em livros como Jubiabá, Mar morto, a presença de
Iemanjá, do candomblé etc., ou em Capitães da areia... Tudo isso é uma
tolice incomensurável."
escolas de 1º e 2º graus. Graciliano, porém, continua o "escritor difícil" que sempre foi.
Seus textos resistem a se entregar para leitores passivos e indolentes. Eles cobram
participação. Ao negar o descuido formal como condição para a legibilidade de sua obra
44 Ibid., p. 266-7.
197
por muitos, Graciliano também se recusou a fechar os olhos para um problema central da
cultura brasileira: a arte como criação e objeto de consumo das elites. O que fez foi olhá-
lo de frente e problematizá-lo em seus livros.
Como Mário de Andrade, mestre Graça poderia dizer:
45 "Lundu do escritor difícil" (1928). In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1987. p. 306.
46 Graciliano Ramos. Viagem (Tcheco-Eslováquia e URSS). 4.ed. São Paulo: Martins, [1970]. p. 59.
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RESUMO