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Fabiana Buitor Carelli

PORÕES DA MEMÓRIA
Ficção e história em Jorge Amado e Graciliano Ramos

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da Universidade de São Paulo, sob
a orientação do Prof. Dr. Roberto Ventura.

São Paulo, 1997.


2

"Os projetos do indivíduo transcendem o intervalo físico de sua existência:


ele nunca morre tendo explicitado todas as suas possibilidades. Antes, morre
na véspera: e alguém deve realizar suas possibilidades que ficaram latentes,
para que se complete o desenho de sua vida."
(Ecléa Bosi)

Para
Maria Izabel Buitor Carelli
e
William Roberto Cereja,
que me ensinaram a ler.
3

Agradecimentos

A meu pai, que me ensinou a lutar por meus objetivos,


a Roberto Ventura, que acompanha meu trabalho há tantos anos,
a Willi Bolle, cujos diálogos originaram este texto,
a Carolina Teixeira Corrêa, Edilene Corrêa von Wallwitz, Fabiane Helvadjian, Hercília
Tavares de Miranda, Maria Cleire Cordeiro e meus alunos do Colégio Arquidiocesano,
pelo apoio e incentivo,
e, de todo coração, a Daniel Pires Piera.

Este trabalho contou com o apoio da CAPES.


4

SUMÁRIO

MEMÓRIA-TEIA, MEMÓRIA-HISTÓRIA .............................................................. 5

I. OS PORÕES DA DECÊNCIA................................................................................. 9
I.1 Uma crônica dos subterrâneos ................................................................... 9
I.2 Homens e coisas do Estado Novo.............................................................. 11
I.3 Tempos obscuros ....................................................................................... 15
I.4 Um Alencar socialista................................................................................ 31
I.5 De heróis e de homens ............................................................................... 40
I.6 Uma democracia totalizante ...................................................................... 49

II. QUATRO ESTAÇÕES NO INFERNO.................................................................. 60


II.1 O livro da cadeia...................................................................................... 60
II.2 "Esquecer para lembrar"........................................................................... 66
II.3 Liberdade? ................................................................................................ 75
II.4 Viagens ..................................................................................................... 82
II.5 "Animal farm" .......................................................................................... 102
II.6 Colagens ................................................................................................... 116

III. HISTÓRIA DO EU, MEMÓRIA DO OUTRO..................................................... 127


III.1 Um novo realismo ................................................................................... 127
III.2 O tecido histórico .................................................................................... 137
III.2.1 Nós e tramas ............................................................................. 138
III.2.2 Intervalos.................................................................................. 148
III.2.3 Tecelões e pescadores .............................................................. 159
III.3 Viver-lembrar-narrar ............................................................................... 163

IV. LEITORES / LEITURAS ..................................................................................... 176

V. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 190


V.1. Obras de Jorge Amado ............................................................................. 190
V.2. Obras de Graciliano Ramos ..................................................................... 190
V.3. Bibliografia específica sobre os autores em estudo ................................. 190
V.4. Bibliografia geral ..................................................................................... 193
V.5. Periódicos consultados ............................................................................. 198
5

MEMÓRIA-TEIA, MEMÓRIA-HISTÓRIA

"Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas


Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:
'Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações'."
(Hesíodo)

As questões sobre a memória humana vêm preocupando cientistas e filósofos


desde tempos remotos. O pensador grego Aristóteles já procurava explicar, no século IV
a.C., o funcionamento da memória, sua natureza e sua causa. Segundo ele, a
rememoração só acontece quando se estabelece um vínculo entre um pensamento
presente e uma impressão sensível produzida anteriormente na mente do sujeito1.
Aristóteles acreditava também não haver memória sem imaginação. Isto porque, para ele,
não era possível "pensar sem imagem"2.
No início do século XX, Freud comparou o processo de formação das lembranças
com o mecanismo de construção das imagens oníricas pela mente. Em A interpretação
dos sonhos, ele propôs uma memória em camadas. Segundo essa teoria, a partir de uma
primeira impressão registrada no aparelho psíquico do sujeito, cada nova percepção de
alguma forma relacionada à primeira constitui uma camada superposta à anterior. As
associações, para ele, poderiam acontecer a partir de vários elementos: tempo, lugar,
personagens, relacionados ao fato primitivo. O resultado seria próximo do "efeito
madeleine", narrado por Marcel Proust em Em busca do tempo perdido: um fato
presente, associado ao acontecimento passado, desencadeia um processo em que a mente

rastreia todas as camadas superpostas, até tomar consciência, ou não, da lembrança


originária3.
A teoria freudiana se assemelha à de Aristóteles, pois ambas propõem a associação
de lembranças como base do processo mnemônico. O filósofo grego, porém, não chegou
à definição de um processo envolvendo camadas sobrepostas ou à esquematização visual

1 V. ARISTÓTELES. "De la mémoire et de la réminiscence". In: Petits traités d'histoire naturelle. Paris:
Societé d'Édition "Les Belles Lettres", 1953. p. 57-9.
2 Ibid., p. 54.
3 V. Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos (1901). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. IV e V). Rio de Janeiro: Imago, 1972. V. também o
ensaio "Sobre lembranças encobridoras". In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. (vol. III). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 329-54.
6

de Freud4. O esquema proposto por este, além disso, tem pelo menos uma conseqüência
lógica: se a memória se estabelece em camadas, só é possível alcançar as camadas mais
profundas atravessando, necessariamente, as intermediárias. Daí a metáfora arqueológica
elaborada por ele num texto bem posterior. Para Freud, a preservação da lembrança na
esfera da mente se assemelharia à história de Roma. Segundo os historiadores, a primeira
povoação do local teria sido a Roma Quadrata, sediada sobre o monte Palatino. Sobre
ela, foram sendo edificadas as cidades das fases posteriores da história romana, até o
ponto em que da cidade mais antiga restariam apenas ruínas escassas, soterradas pelas
etapas posteriores, e que só mediante escavações profundas poderiam vir à luz5.
A configuração "geológica" da memória para Freud não dá conta, porém, do

aparente caos em que as lembranças acorrem à consciência. Escavar pressupõe uma


seqüência: as camadas superiores são sempre o ponto de partida, num movimento
descendente que busca estratos mais profundos. Caminha-se do presente para o passado,
numa ordem cronológica invertida.
A experiência mostra que, ao recordarmos, saltamos de um fato a outro sem
respeitar linhas do tempo ou sem necessariamente recuperar todas as lembranças
entrelaçadas a um mesmo fato. O próprio Freud questionou, num ensaio de 1899, a
possibilidade de resgate integral da "lembrança originária", que corresponderia à

primeira camada da série mnemônica. Segundo ele, o processo da memória implicaria,


por exemplo, a condensação de fatos ocorridos em tempos diversos numa mesma cena
ou o deslocamento de situações dolorosas para circunstâncias aparentemente
irrelevantes. O resultado disso seria uma lembrança quase completamente modificada
pela fantasia6.
Alguns escritores também intuíram que a rememoração implica a instauração de
uma nova ordem, que estabelece relações de contigüidade entre elementos anteriormente
dispersos. Graciliano Ramos propôs, em Angústia, um texto em que presente e passado

4 Em A interpretação dos sonhos, Freud postulou um esquema visual que resume, para ele, o
funcionamento da memória desde a percepção presente de um dado até o resgate do fato primário no
inconsciente, através das camadas de traços mnemônicos sobrepostos à lembrança original. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. IV e V). p. 573 e ss.
5 Sigmund Freud. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 87-8.
6 V. Sigmund Freud. Lembranças encobridoras (1899). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. III). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 353-4.
7

do enunciado se entrelaçam numa espiral constante. Em Grande sertão: veredas, a


memória se dá aos degraus. No romance de Guimarães Rosa, tempo puxa tempo, e o
narrador passa de um momento passado para outro sem respeitar a cronologia, mas se
detendo em cada fase de sua história pessoal na busca de um sentido para a vida. Como
as idéias de Brás Cubas, o defunto-autor de Machado de Assis, as lembranças são
acrobáticas. Saltam entre trapézios, formando no ar desenhos sempre originais: "decifra-
me ou devoro-te"7.
Nesse sentido, a memória não é um conjunto de camadas, mas uma rede em que se
encadeiam momentos dispersos no passado e reconstruídos no presente pelo sujeito que
lembra. Vários são os tipos de trama que ao final se perfazem. Ao contrário da memória

geológica, a rede é sempre mais dinâmica. Ao se "navegar" por ela, existem vários
caminhos para se chegar ao mesmo objetivo. É possível até mesmo optar por um atalho.
A rede também pode ser considerada, simbolicamente, a imagem do texto. No
discurso verbal, quem fala ou escreve está sempre condenado à seqüência: um som
pronunciado após o outro, uma palavra após a outra. Mas a estrutura do texto comporta
outras ligações. Perseguem-se nele os fios do tempo, das rimas, do ponto de vista, do
espaço. Os vínculos entre elementos aparentemente afastados numa seqüência formam
entre eles uma teia. Os psicanalistas e os escritores conhecem a ligação entre a

capacidade de lembrar e a linguagem. Freud baseou todo o seu método terapêutico na


anamnese, ou seja, na rememoração do passado do indivíduo traduzida em discurso
verbal. Walter Benjamin mostrou que os grandes narradores são aqueles que têm
experiências a transmitir8.
Se narrar é lembrar, contar histórias significa também preservar do esquecimento e
da aniquilação os acontecimentos passados. É também dar forma e coerência à
constelação caótica dos fatos vividos por aquele que narra. As duas obras objetos deste
estudo, Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado, e Memórias do cárcere, de

7 Machado de Assis. "O emplasto". In: Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro/São Paulo:
Livro do Mês, [1961]. p. 15.
8 Walter Benjamin. "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica, arte
e política. 3.ed. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Obras escolhidas, 1). p. 197-
221. A título de curiosidade, v. "Pesquisa mostra como a memória se forma". In: O Estado de São Paulo,
2-11-1989, p. 14 e Daniel Goleman. "Contar histórias é a chave da memória". In: O Globo, 27-4-1993. O
primeiro artigo afirma que o funcionamento biológico da memória humana forma uma rede de neurônios
interligados. O segundo vincula a capacidade de lembrar à capacidade de narrar.
8

Graciliano Ramos, constituem esforços distintos de preservação de um momento


específico da história política brasileira. Os romances de Jorge, uma trilogia de quase mil
páginas, propõem um enredo que se inicia em fins de outubro de 1937 e termina em
novembro de 1940. O livro autobiográfico de Graciliano fala sobre o período em que o
escritor se viu detido nos cárceres do Estado Novo, de março de 1936 a janeiro de 1937.
Cada uma a seu modo, as narrativas propõem uma revisão da história oficial sobre o
período da ditadura Vargas.
São histórias de luta contra o autoritarismo. Em Jorge Amado, a visão do partido
comunista sobre os acontecimentos da época se estrutura por meio do romance. Em
Graciliano Ramos, a condição incerta e por vezes terrível da prisão política se desvela.

São, também, histórias diferentes. Memórias diferentes. Diferentes teias de


lembranças, estruturadas pela linguagem. Um dos objetivos deste estudo é rastrear, por
meio de uma leitura detida das duas obras, uma parte dessas diferenças. O outro é
mostrar o quanto essas versões diversas sobre fatos políticos similares resgatam não
somente as dessemelhanças pessoais e de estilo entre os dois autores. Elas também
trazem à tona projetos políticos e literários divergentes, que nortearam a carreira de Jorge
Amado e Graciliano Ramos no início da década de 50, quando os livros foram
publicados.
9

I. OS PORÕES DA DECÊNCIA1

I.1 Uma crônica dos subterrâneos

"E, tanto quanto posso julgar, o mais lido era


Jorge. [...] Por que estaria Jorge, só ele, a
provocar o interesse dessa gente?"
(Graciliano Ramos)

Um leitor de hoje, que tenha por hábito assistir a alguns programas de televisão
depois do trabalho, passe os olhos sobre algum jornal pelas manhãs ou acompanhe as
revistas semanais hoje tão populares no Brasil, possui, certamente, alguma expectativa
ao iniciar a leitura de uma obra com a assinatura de Jorge Amado. O escritor mais
popular do país, traduzido em trinta e três línguas e publicado em mais de quarenta
países, de acordo com uma referência já antiga de Raimundo de Meneses2, é
mundialmente conhecido por obras como Gabriela, cravo e canela, Dona Flor e seus
dois maridos, Tereza Batista cansada de guerra e Tieta do agreste: narrativas de caráter
regional, que misturam crônica de costumes e erotismo, certo descuido formal e traços de
oralidade. Na definição de Alfredo Bosi, "tudo", no mais conhecido Jorge Amado, "se
dissolve no pitoresco, no 'saboroso', no apimentado do regional"3.
Mas Jorge Amado não é só isso. O mesmo Alfredo Bosi identifica, na pródiga
carreira literária do escritor, outras "fases" anteriores: a do "romance proletário", a dos
"depoimentos líricos", a dos "escritos de pregação partidária", a dos "afrescos da região
do cacau"4. E outros críticos vêm estudando, hoje em dia, a chamada "fase política" do
autor, que começaria, a largos traços, em alguns dos primeiros romances de Jorge (como
Cacau, de 1933, e Suor, do ano seguinte) e atingiria seu auge nos anos 40 e início dos
anos 50, culminando com a trilogia Os subterrâneos da liberdade (concluída em 1952,
mas publicada apenas dois anos mais tarde).5

1 Ref. a artigo de Hermínio Sachetta, "Jorge Amado e os porões da decência". In: Tribuna da Imprensa.
Rio de Janeiro, 18-09-1954.
2 Raimundo de Meneses. Dicionário literário brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos, 1978. p.36.
3 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985. p.459.
4 Ibid.
5 V. Alfredo Wagner Berno de Almeida. Jorge Amado: política e literatura (1979) e também Eduardo de
Assis Duarte. Jorge Amado: romance em tempo de utopia (1996). Este último autor questiona a "teoria das
fases" em Jorge Amado, mostrando traços de continuidade temática e formal ao longo de sua obra.
10

Em depoimento de 1985 à tradutora Alice Raillard, o próprio Jorge Amado


reconhece o caráter marcadamente político e ideológico de Os subterrâneos da
liberdade. Sobre essa obra, afirmou ele que

"Os Subterrâneos da Liberdade carregam a marca de uma visão de mundo


stalinista que foi a minha, e na qual muitas das coisas são em preto e branco:
as mulheres do campo são tocadas de uma pureza imaculada, são Marias-
concebidas-sem-pecado, e as outras são todas putas medonhas, não é
mesmo?"6

Mas nem mesmo as "putas" de Os subterrâneos da liberdade são tão "putas"


assim. A conhecida sensualidade do baiano Jorge praticamente inexiste nos romances da
trilogia ⎯ e a vilã Marieta, renomada socialite dos anos 30, para quem o amor

significava "a posse no leito, a paixão da carne delirante", "o desejo violento e após o

cansaço e o fastio"7, sofre a censura moralista do narrador: seu sentimento é para ele
"amor despido de toda sua grandeza, mesmo dessa medíocre grandeza feita de
devotamento"8.
Há em Os subterrâneos da liberdade uma certa "moral comunista ⎯ 'pura',

'igualitária' e 'companheira'", nas palavras de Eduardo de Assis Duarte9, muito distante


da libertinagem risonha de Gabriela ou Tereza Batista. Na trilogia as referências à vida
íntima dos personagens são veladas, e a linguagem, bem-educada, evita palavrões e
expressões chulas.
Na época de sua publicação, Os subterrâneos da liberdade dividiram opiniões. De
um lado, escritores e jornalistas sintonizados com a política literária do partido
comunista, como Dalcídio Jurandir, a apreciar a obra como
"um sopro de ar puro no meio de tanto romance que só retrata a degradação,
que só avilta, só procura caluniar a vida, desfigurando-a através de um
naturalismo estúpido ou de um virtuosismo literário vazio e inumano"10.

De outro, aqueles que criticavam o texto como exemplo de "propaganda partidária"


ou "literatura a serviço da política"11.

6 Alice Raillard. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, [1991]. p.143.
7 Jorge Amado. Os ásperos tempos (Os subterrâneos da liberdade, I). 40.ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.
p.323/4. A partir daqui, a obra será referida pela sigla OSL, seguida do número do volume em algarismos
romanos.
8 Ibid.
9 Op. cit., p.243.
10 apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.221.
11 Ibid., p.220.
11

Vinte anos depois, certos valores se inverteram. Jorge Amado tornou-se best-seller
dentro e fora do Brasil, e a crítica, que antes o censurava pelo tom ideológico de seus
livros, passou a chamá-lo de escritor "comandado pelo gosto do mercado". Em
conhecido ensaio de 1973, Walnice Nogueira Galvão definiu, de modo algo indignado, a
concepção literária de Jorge:

"[...] que não se perca tempo com escritos que 'não levantam o pau nem
fazem a gente rir'. Tal é o ideário estético de Jorge Amado e Tereza Batista
Cansada de Guerra está aí para confirmá-lo."12

Alheio a polêmicas de antanho, pouco ou nada preocupado com a "função crítica


da literatura", com a idéia de literatura best-seller ou com a opinião da crítica acadêmica
sobre o autor baiano, o nosso leitor contemporâneo médio continua procurando livrarias,
entrando em cinemas ou sentando-se em frente à TV atrás da griffe Jorge Amado.
Nos idos de 1936, jogado numa esteira da Colônia Correcional de Dois Rios, na
Ilha Grande, o preso Graciliano Ramos já se perguntava: "Porque [sic] estaria Jorge, só
ele, a provocar o interesse dessa gente?". Respondeu o escritor Graciliano:

"O nosso público em geral afastava-se [do documento], queria sonho e fuga.
[...] A imaginação de Jorge os encantava, imaginação viva, tão forte que ele
supõe falar a verdade ao narrar-nos existências românticas nos saveiros, nos
cais, nas fazendas de cacau."13

Polêmicas à vista, resta saber o que existe em Os subterrâneos da liberdade de


verdade ou de sonho, de crítico ou ideológico, de moralista ou degradado, de panfleto ou
de romance, de documento ou de crônica.

I.2 Homens e coisas do Estado Novo

"⎯ Queremos romper um muro de pedras


com a cabeça."
(OSL, III)

Na contracapa de O mundo da paz, livro de viagens de Jorge Amado pela União


Soviética e democracias populares publicado no Brasil em 1952, a Editorial Vitória
anunciava a preparação dos volumes XIV e XV das Obras Completas de Jorge Amado,

ambos sob a denominação de "O Muro de Pedras, romance" e com os respectivos títulos

12 Walnice Nogueira Galvão, "Amado: respeitoso, respeitável". In: Saco de gatos. São Paulo: Duas
Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. p.13/22.
13 Graciliano Ramos. Memórias do cárcere (vol.III). Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. p.133. Também
consultada, para fins de análise, a 25a edição pela Editora Record (1992).
12

de "1 - Os Subterrâneos da Liberdade" e "2 - Pão, Terra e Liberdade"14. Das obras


prometidas, apenas Os subterrâneos da liberdade vieram à luz, em maio de 1954,
segmentados em três volumes: Os ásperos tempos (I), Agonia da noite (II) e A luz no
túnel (III)15.
A época era de polarizações. O ocidente vivia a guerra fria e, enquanto os Estados
Unidos dominavam a cena cultural do país com o cinema de Hollywood e com os super-
heróis dos quadrinhos, os comunistas brasileiros, durante o governo Dutra e depois no
governo de Vargas eleito pelo voto direto, levantavam as bandeiras do anti-imperialismo
e da luta pela paz: contra "o fascismo de Truman", o "credo sangrento dos banqueiros de
Washington" e o "expansionismo dos colonizadores ianques"16; pela "luta decidida,

audaz e vigorosa em defesa da paz"17. Stálin morreu em 1953, mas ainda se passariam
alguns anos até a revelação das muitas atrocidades cometidas sob suas ordens. Quando
da publicação de Os subterrâneos da liberdade, o líder soviético ainda era, para os
comunistas, o "mestre, guia e pai", "guia genial dos povos"18, "o maior titã de todos os
tempos"19.
No início de 1952, Jorge Amado ainda se encontrava no exílio, que amargava
desde 1948, quando fora cassado seu mandato de deputado federal pelo PCB. Vivendo
em Paris e depois na Tchecoslováquia, Jorge praticamente abandonou a atividade de

escritor para se dedicar quase que exclusivamente à política:

"Desde 1945 eu vivia e trabalhava como funcionário do Partido, do 'quadro


do Partido'. [...] Eu não tinha um minuto, era reunião atrás de reunião, eu
viajava, trabalhava na comissão cultural, em estreita ligação com a direção
do Partido, tudo isso durante dez anos."20

Escreveu nesse período apenas o livro de viagens, O mundo da paz, e Os


subterrâneos da liberdade, ambos compostos no Castelo dos Escritores Tcheco-

14 Jorge Amado. O mundo da paz: União Soviética e Democracias Populares. Rio de Janeiro: Vitória,
1952.
15 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.217-8.
16 João Amazonas, "Nossa política". In: Problemas: revista mensal de cultura política. Ano 3, n.20 (ago-
set 1949). p.4. A revista era um dos mecanismos legais de divulgação do partido comunista à época. Em
1949, era dirigida por Diógenes Arruda Câmara, o segundo homem no partido depois de Prestes, então no
exílio.
17 Luís Carlos Prestes, apud João Amazonas. Op. cit., p.5.
18 Jorge Amado, O mundo da paz. p.229/234.
19 Janer Cristaldo, "Graciliano Ramos e Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, 30 anos depois. In:
Travessia: revista de literatura brasileira. Florianópolis, 4 (6): jul.1983. p.64.
20 Depoimento de Jorge Amado a Alice Raillard. Op. cit., p.263/4.
13

Eslovacos, na cidade de Dobris, antiga residência da nobre família Coloredo-Mansfield,


para o qual eram convidadas "estrelas literárias" do partido comunista, como o escritor
soviético Ilya Ehremburg e o próprio Jorge Amado.
A fase mais engajada da obra de Jorge já havia começado na década de 40, com a
publicação de O cavaleiro da esperança (1942) em Buenos Aires, quando do exílio do
autor durante o Estado Novo. Vieram depois São Jorge dos Ilhéus (1944), e Seara
Vermelha (1946)21, este já durante o curto período de legalidade do PCB, de novembro
de 1945 a maio de 1947. Ainda em 1946, foram publicados O Partido Comunista e a
liberdade de criação, em co-autoria com Pablo Neruda e Pedro Pomar, e Homens e
coisas do Partido Comunista, textos desconsiderados pelos intérpretes de Jorge Amado

por constituírem "escritos partidários" e "não-literários".22


Os subterrâneos da liberdade são a última obra ficcional de Jorge Amado antes do
célebre XX Congresso dos partidos comunistas soviéticos em 1956, quando o stalinismo
foi publicamente desmascarado. Constituem, assim, ao mesmo tempo, o auge do
processo de partidarização literária do autor e também o seu "crepúsculo"23. Após a
trilogia, Jorge só voltou a publicar em 1958, quando apareceu Gabriela, cravo e canela.
Saído de grave crise ideológica, decidiu escrever "uma história de amor, mas sem
abandonar o contexto social"24. Afastou-se da linha partidária e foi duramente criticado

pela direção do PCB.


De 1948 a 1954, no entanto, as necessidades ainda eram outras. Com o PCB de
novo na ilegalidade, era fundamental para seus membros marcar, diante do público, o
papel do partido na vida política recente do país. Mais que isso, era preciso defendê-lo:
as supostas "calúnias" contra os comunistas e contra a URSS vinham tanto de dentro
quanto de fora do Brasil. Necessário, também, desmascarar Vargas e seu populismo;
afinal, o presidente eleito de 50 e o ditador de 37 eram a mesma pessoa ⎯ apesar de

parecerem tão distantes. Jorge Amado resolveu então escrever uma história: a da
"heróica" oposição dos comunistas ao Estado Novo. Nasciam Os subterrâneos da
liberdade.

21 Cf. Raimundo de Menezes. Op. cit., p.36.


22 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.198.
23 Eduardo de Assis Duarte. Op. cit., p.209 e ss.
24 Alice Raillard. Op. cit., p.265.
14

Reconhecidos pela crítica como romances históricos25, Os ásperos tempos, Agonia


da noite e A luz no túnel constituem uma memória perdida para a história oficial e
resgatada através do texto literário. De 1936 até 1940, quase nove mil homens e
mulheres acusados de subversivos passaram pelos cárceres e tribunais oficiais26. Nos
anos negros do Estado Novo, especialmente de 1938 a 40, enquanto o partido era
desbaratado pela polícia, jornais diários como O Estado de São Paulo, controlados pelo
DIP a partir de dezembro de 1939, estampavam notícias como a seguinte:

CHEGARÁ HOJE A S. PAULO O PRE-


SIDENTE GETULIO VARGAS
___________________

O chefe da Nação, que viajará por via aerea acompanhado dos Interventores Adhemar de
Barros e Amaral Peixoto e Governador Benedicto Valladares, vem assistir ás festas
commemorativas do segundo anniversario do dr. Adhemar de Barros e inaugurar o
Estadio Municipal ⎯ Dentre as grandes homenagens ao Presidente Getulio Vargas
destacam-se o almoço que os prefeitos de S. Paulo offerecem a s. exa. e a imponente
parada das forças armadas na Avenida S.João [...]"27

Em edições do mesmo mês e ano, eram noticiadas prisões e interrogatórios de


comunistas, que recebiam epítetos como "perigoso indivíduo", "indigitado assassino",
"co-autores [de] bárbaro crime"28.
A tarefa de escrever a história clandestina do Partido Comunista do Brasil já havia
sido iniciada por Jorge Amado em 46, quando os quadros partidários respiravam a

legalidade. Na brochura Homens e coisas do Partido Comunista, publicada pelas


Edições Horizonte nesse ano, Jorge narrou alguns momentos da clandestinidade e
biografou vários "companheiros de luta", como Giocondo Dias, Diwaldo Miranda,
Domingos Marques, o "Vermelhinho", e o próprio Prestes. A respeito de Domingos
Marques, diz ele:

"[...] Havia um nome conhecido nas fichas policiais e ardentemente


procurado por todos os tiras da Ordem Política e Social: era o Vermelhinho e
sabiam dele que tinha o cabelo ruivo. A fome, o trabalho sem limites, as
andanças pela cidade, a falta de qualquer recurso. O Vermelhinho não parava
em seu estafante trabalhar. Devia levantar a direção do Partido, pôr em

25 V. especialmente Eduardo de Assis Duarte. Op. cit., passim.


26 Nelson Werneck Sodré. Contribuição à história do PCB. São Paulo: Global, 1984. p.111.
27 O Estado de São Paulo, 26-04-1940, p.3. A grafia original foi mantida.
28 V. O Estado de São Paulo, 17-04-1940, p.2 e 27-04-1940, p.2. Em dezembro desse ano, Luís Carlos
Prestes será julgado, entre outras acusações, pelo assassinato de Elvira Cupelo Colônio, ou Elza Fernandes,
ex-militante comunista morta por ordem do PCB no início de 1936. A divulgação do caso nos jornais faz
parte da campanha do governo contra Prestes.
15

funcionamento a máquina partidária, reerguer as células, tirar o material


clandestino, distribuí-lo, fazer quadros. Era no tempo da reação matando
militantes, das torturas sem fim nos cárceres paulistas e cariocas.
E chegou o inverno em São Paulo. Úmido, reclamando alimento para
os corpos, descanço [sic] nas noites, cortando com sua neblina os peitos
fracos. Comeu um pulmão do Vermelhinho."29

O "Vermelhinho" está em Os subterrâneos da liberdade, com o nome trocado. É o


personagem Ruivo, militante comunista, membro da direção do partido durante os
primeiros anos da ditadura Vargas, tuberculoso e de cabelos vermelhos. Do mesmo
modo, Giocondo Dias inspirou outro personagem a Jorge, em romance anterior: ele é
homenageado em Juvêncio, o militar revolucionário de 35 e grande herói de Seara
vermelha.30
A trilogia sobre o Estado Novo constitui, assim, a realização maior e mais
completa de um projeto ao que parece idealizado no início dos anos 40, e que incluía
outras obras de Jorge, ficcionais ou não. Por um lado, levar ao povo o "partido do povo":
divulgá-lo, através da literatura. Por outro, lembrar, registrar: a literatura como
documento. Os subterrâneos da liberdade são, em suas quase mil páginas, a memória
dos "anos difíceis" ⎯ a História pelo avesso.

I.3 Tempos obscuros

"In my beginning is my end"


(T. S. Eliot)

São Paulo, 31 de outubro de 1937. No banco de trás do elegante automóvel, Artur


Carneiro Macedo da Rocha observa, através da janela, o movimento de carros e pessoas

no centro da cidade úmida. Enquanto espera pela lenta desobstrução das ruas, o deputado
soletra uma inscrição feita a piche nos muros da Companhia Light & Power:
"ABAIXO O IMPERIALISMO IANQUE
E VIVA O P.C.B."
Acorrem então à sua memória todos os acontecimentos do último mês: os
problemas criados pelo filho diplomata, o retorno à cidade de Marieta Costa Vale, seu
amor de juventude, depois de meses na Europa, o clima de incerteza política que cercava

29 Jorge Amado. Homens e coisas do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Horizonte, 1946. p.25-6.
30 Em entrevista a Alice Raillard, Jorge Amado declara, referindo-se a Seara vermelha: "É uma história
construída a partir de uma pessoa muito querida, meu velho amigo Giocondo Dias, que chegou a
Secretário Geral do PCB e na época era sargento; foi um dos chefes militares da revolta de Natal [1935]".
In: Alice Raillard. Op. cit., p.162.
16

o país diante da perspectiva das eleições, a ocorrerem em novembro. Artur recorda-se da


entrevista que tivera há dias com o militante comunista "João". Tanto os comunistas
quanto os conservadores, como o deputado, acreditavam que Getúlio Vargas, no poder
desde 1930, articulava um golpe de Estado com o apoio dos integralistas. Os
acontecimentos se precipitam. A candidatura de Armando de Salles à presidência,
apoiada pelos conservadores paulistas, estava com os dias contados. Com ela,
esboroavam-se os planos de Artur, que tinha como certa sua nomeação para Ministro da
Justiça, caso Armando de Salles fosse empossado.31
A situação inicial de Os ásperos tempos, primeiro volume de Os subterrâneos da
liberdade, relatada acima, joga o leitor para dentro dos fatos. Ele se vê de súbito em meio

a um processo que é, ao mesmo tempo, narrativo (pois diz respeito à história particular
de cada personagem do romance) e histórico (já que os personagens do romance,
ficcionais ou reais, participam, ao longo da trama, de conhecidos episódios da história
política brasileira nos anos 30).
Nesse primeiro volume, todos os principais personagens da obra se apresentam em
seus diferentes círculos, que são sociais e, ao mesmo tempo, políticos e econômicos. Os
grupos, em Os subterrâneos da liberdade, são classes sociais: a representação da "luta de
classes" (por vezes, de modo esquemático e pouco complexo) domina os três romances

do começo ao fim. A ação de cada personagem é determinada pela classe a que pertence,
como rege a teoria marxista, que prega a preponderância do fator econômico sobre o
social e o ideológico.32
De início, o narrador se ocupa da "alta burguesia": o deputado Artur Carneiro
Macedo da Rocha é "descendente da velha estirpe paulista"33; seu filho, Paulo Carneiro
Macedo da Rocha, um diplomata playboy e arruaceiro; Marieta Vale, a "antiga" amada, é
esposa de José da Costa Vale, poderoso banqueiro e industrial ligado aos interesses
internacionais.
Em torno desses personagens, giram outros, não menos emblemáticos: o poeta
católico César Guilherme Schopel, "mulato gordíssimo"34, reacionário e adulador; a

31 OSL, I. p.15 e ss.


32 V. a respeito, entre outros, Karl Marx & Friedrich Engels. Sur la littérature et l'art. Paris: Éd. Sociales,
1954 e Antonio Gramsci. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
33 OSL, I. p.15.
34 Ibid. p.33.
17

Comendadora da Torre, ex-prostituta que se tornara dona de indústrias têxteis em São


Paulo; o Coronel Venâncio Florival, senador da República e grande fazendeiro no Mato
Grosso; o professor da Faculdade de Medicina e depois integralista Dr. Alcebíades de
Morais; a "semivirgem" Susaninha Vieira.
Ao mesmo tempo, e de modo a princípio insinuante, o narrador vai introduzindo,
no meio desse universo abastado, o pólo dissonante. Já no primeiro capítulo, a conversa
com o comunista João ocupa os pensamentos do deputado Artur. Na parte 5 do mesmo
Capítulo, começa a apresentação do círculo comunista: primeiro, narra-se a história de
Mariana, filha de operários que recebe do pai as primeiras lições da militância no
partido; depois aparecem o velho Orestes, o camarada Ruivo, o jornalista Abelardo

Saquila, futuro "traidor trotskista", e ressurge, em meio aos seus, o camarada João. O
tenente Apolinário, "herói" da fracassada insurreição de 35, e os dirigentes Zé Pedro e
Carlos entram em cena nas partes seguintes.
No final do primeiro capítulo, toma forma o terceiro e último dos grandes círculos
sociais e políticos da trilogia. É o grupo dos pequeno-burgueses35, estruturado em torno
da futura bailarina Manuela Puccini, mocinha ingênua e sonhadora, filha de imigrantes, e
de seu irmão Lucas, rapaz carreirista que se associa ao funcionário Eusébio Lima em
falcatruas no Ministério do Trabalho. Lucas acaba enriquecendo até o final de A luz no

túnel.
Todos esses personagens, apesar de fictícios, mantêm alguma relação mais ou
menos estreita com personagens reais da época em que se passa a narrativa. É o caso do
poeta César Guilherme Schopel ⎯ como aponta Eduardo de Assis Duarte, uma
"caricatura meio maldosa de Augusto Frederico Schmidt"36 ⎯ e de Abelardo Saquila,

correspondente ficcional do jornalista Hermínio Sachetta37, que em 1938 foi expulso das
fileiras do PCB acusado de trostkismo. Em sua tentativa de fazer da literatura
documento, Jorge Amado parece não ter tido o mesmo pudor de Graciliano Ramos, para
quem a representação literária de "criaturas vivas" constituía um problema:

35 A denominação é do próprio narrador. V., por exemplo, OSL, II. p.122.


36 Eduardo de Assis Duarte. Op. cit., p.213.
37 Ibid., p.240.
18

"Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma


espécie de romance [...]"38.

O nome dos personagens de Os subterrâneos da liberdade são charadas a serem


decifradas pelos leitores, cujas analogias com os nomes verdadeiros das "criaturas vivas"
que representam são de vários tipos. No caso do poeta Schopel, por exemplo, tanto
César quanto Augusto são referências a imperadores romanos; Guilherme e Frederico
são denominações de origem germânica; e Schopel e Schmidt têm semelhança gráfica e
sonora. Processos semelhantes ocorrem com Saquila (arremedo de Sachetta) e com o
comunista Ruivo (inspirado no militante Vermelhinho, conforme citado anteriormente).
Se o registro civil de personalidades reais aparece, na trilogia, travestido em nome
fictício, o mesmo acontece com a caracterização dos personagens: cada um é mais ou
menos reconhecível frente a seu correspondente histórico, dentro do círculo de relações
que são estabelecidas já no capítulo de abertura de Os ásperos tempos.
Nesse início de narrativa, os círculos se tocam apenas levemente, sem se
misturarem. Os personagens se relacionam somente com seus "iguais". Existem, assim,
no primeiro capítulo de Os ásperos tempos, três grandes núcleos de ação. Os limites
sociais são também limites literários e estruturais: algumas partes do capítulo (ao todo
são 13, numeradas) tratam do círculo da alta sociedade, outras do grupo dos comunistas,
outras dos pequeno-burgueses.
Começam a surgir, no entanto, sutis pontos de intersecção entre os grupos. Na
parte 1, Artur Carneiro Macedo da Rocha se recorda da conversa com João; na parte 5,
descobre-se que Mariana trabalha como operária em uma das fábricas da Comendadora
da Torre, que fora vizinha de sua família nos tempos de pobreza; na parte 9 e seguintes,
Paulo Carneiro Macedo da Rocha, recém-chegado de Buenos Aires, avista Manuela num
parque de diversões e, encantado, tenta se aproximar dela.
Nessas primeiras páginas, renomadas figuras históricas já convivem com os
personagens fictícios: Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes, Armando de Salles Oliveira,
Plínio Salgado, José Américo de Almeida, Francisco Campos. Mas nenhum deles atua na

narrativa como personagem. Todos funcionam, isto sim, como contraponto histórico para
personagens de base histórica que já de início se apresentam.

38 Graciliano Ramos. Memórias do cárcere (vol.I). p.5.


19

Os ásperos tempos inauguram, dessa forma, a grande questão do tempo nos três
romances. Quem são as pessoas recriadas nesse texto, tão díspares, de caráter tão
predominantemente histórico? Que têm em comum personagens tão distanciados? O
narrador da trilogia responde:

"Essas coisas aconteceram naquele último dia do mês de outubro de 1937"39

"Essas coisas", no caso, são o jantar na mansão de José e Marieta Costa Vale, que
reúne todo o seu círculo de amigos; o aniversário de Mariana, em que esta recorda suas
origens e em que conhece João; a chegada de Apolinário a São Paulo; a volta de Paulo
Carneiro Macedo da Rocha à cidade e seu primeiro encontro com Manuela. Toda a ação
do primeiro capítulo de Os ásperos tempos (que corresponde a cerca de 120 páginas)
transcorre nesse dia. Essa espécie de "congelamento temporal" tem como efeito imediato
ressaltar o que é disperso e divergente: os espaços narrativos, os tipos de pensamento dos
personagens e, principalmente, as classes sociais recriadas pelo texto, suas ações
relatadas e suas ideologias, apresentadas por meio dos pensamentos de cada personagem
revelados pelo narrador. Nesse ponto da narrativa, os personagens só têm, em comum, o
tempo: vivem o mesmo momento, cada um a seu modo e em seu grupo, cada qual com
suas expectativas.
O resultado é que, a princípio, nesse romance que se quer histórico, não há
propriamente história, se se puder considerá-la, como o faz Hans Meyerhoff em O tempo
na literatura, "o tempo [...] experimentado mais e mais como mudança constante"40. A
narrativa mesma só acontece por haver uma sucessão de ações no breve intervalo de
horas em que tudo ocorre no capítulo. E há também os flashbacks, freqüentes em certos
trechos em que o narrador apresenta seus personagens por meio das recordações que a
eles acorrem. O tempo narrativo se resolve. Fica parado o tempo histórico, entendido,
dentro do romance, como a recriação textual de um fluxo cronológico e factual medido
por categorias externas ao texto.

O "carro da história" só começa a se mover, na trilogia, a partir do segundo

capítulo de Os ásperos tempos, a princípio bem lentamente. Enquanto no primeiro


capítulo toda a ação se desenrola no mesmo dia, o segundo capítulo se estrutura em torno

39 OSL, I, p.129.
40 Hans Meyerhoff. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill, 1976. p.79.
20

de 10 de novembro de 37, quando Getúlio Vargas dá seu golpe de Estado, mas já


comporta outras datas. A primeira parte do capítulo, em que Apolinário se encontra em
fuga para o Uruguai, se passa no dia seguinte ao golpe:

"A notícia do golpe de Estado alcançou Apolinário quando ele


terminara de atravessar a fronteira. Tinha sido pela noite.
........................................................................
Apolinário pedia detalhes numa fome de notícias, mas don Pedro
[ligação do Partido no Uruguai] pouco sabia, andara muito ocupado naquele
dia, apenas ouvira no rádio que Getúlio Vargas dera um golpe de Estado,
proclamara uma outra constituição, dissolvera o Parlamento e que Flores da
Cunha fugira apressadamente de Porto Alegre para Montevidéu, num avião,
e se asilara na capital uruguaia."41

Na parte 2, voltando do Rio de Janeiro, o banqueiro Costa Vale dá conselhos à esposa:

"No dia nove, à noite, Costa Vale, de volta a São Paulo, conversara
com Marieta. Perguntara-lhe quais seus compromissos para o dia seguinte.
[...]
⎯ Cancele tudo, minha cara. O melhor é não sair de casa amanhã.
Pode haver desordens pela cidade. Amanhã Getúlio dará o golpe de
Estado."42

Na seqüência, os acontecimentos se sucedem:

"No dia do golpe, Costa Vale saiu como de hábito para o seu escritório
no banco, à mesma hora de sempre".43

Horas mais tarde, as rádios anunciam a presença do Exército nas ruas e a prisão do
governador paulista. Em seguida, são narrados os acontecimentos do dia do golpe. As
partes 10 e 11, as últimas do capítulo, narram os dias seguintes à ação de Getúlio.
O terceiro capítulo traz uma estrutura temporal ainda um pouco mais fluida e
corrente. Ele se inicia três meses após o 10 de novembro, "nos começos daquele ano de
1938"44, apresentando um novo círculo de personagens na narrativa: o núcleo do Vale do
Rio Salgado. Trata-se da ação desenvolvida ao redor de Gonçalo, ativo militante
comunista que foge da Bahia, onde liderou a revolta dos índios do Posto Paraguaçu
contra um político que lhes queria tomar as terras, e embrenha-se no interior do Mato
Grosso. A grande luta de Gonçalo e seus companheiros será, ao longo dos romances
seguintes, contra o coronel Venâncio Florival, para o qual trabalham os camponeses que

41 OSL, I. p.137-8.
42 OSL,I. p.147.
43 Ibid. p.148.
44 Ibid.. p.228.
21

Gonçalo ajuda, e contra o capital internacional, que quer instalar na região a Empresa do
Vale do Rio Salgado, referência à criação da Companhia Vale do Rio Doce em 1942,
durante o Estado Novo45. Também a ação que envolve Manuela, Lucas Puccini e Paulo
Macedo Carneiro da Rocha se acontece três meses após os primeiros dias de novembro
de 37. O namoro de Paulo e Manuela já dura esse tempo; no mesmo período, Lucas, por
meio de suas negociatas com o Ministério do Trabalho, já conseguira mudar-se, com a
família, para um "apartamento moderno, na Praça Marechal Deodoro"46.
Da parte 3 em diante, as referências temporais começam a remeter não mais para o
golpe de Estado, mas para a próxima visita de Getúlio Vargas a São Paulo47. Para ela
preparam-se todos os núcleos paulistas: na parte 3, o círculo de Costa Vale; na parte 4,

Lucas Puccini e Eusébio Lima; na parte 6, "durante toda aquela semana que precedeu a
visita do ditador"48, os comunistas. Os dias que antecedem a visita do "ditador" a São
Paulo se estendem até a parte 13. As partes 14 a 18 se referem ao dia da visita; as partes
19 a 23, aos dias seguintes a esse acontecimento.
Estruturado ao redor dessa data não referida no texto, a da primeira vinda de
Getúlio Vargas a São Paulo após a instituição do Estado Novo, o tempo começa a fluir
no capítulo. Já não se trata de fatos ocorridos no intervalo de um só dia, mas de alguns.
Cria-se uma breve seqüência temporal de dias, explicitada por meio de advérbios ou

expressões adverbiais: "Três e meia da madrugada, o dia não tardaria a surgir", "As
primeiras luzes da aurora clareavam a rua", "a manhã acabara de chegar (parte 7); "Era
quase meio-dia", "esperou a chegada da noite" (parte 9); "dois dias depois" (parte 11);
"naquela mesma hora dessa noite inquieta que precedia a visita do ditador a São Paulo"
(parte 12); "no dia seguinte ao da visita do ditador" (parte 18); "Em meio à agitação dos
dias que se seguiram à visita do ditador" (parte 19); "três ou quatro dias depois" (parte
20).
Existe, portanto, em Os ásperos tempos, uma temporalidade narrativa centrada em
datas (31 de outubro de 1937; 10 de novembro de 1937; três meses após 10 de novembro

45 Cf. Nelson Werneck Sodré. Op. cit., p.111.


46 OSL, I. p.229.
47 Getúlio Vargas realmente visitou a cidade, a convite do interventor Adhemar de Barros, em julho de
1938, depois de oito anos de ausência. Cf. Edgard Carone. O Estado Novo (1937-1945). 5.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p.220.
48 OSL, I. p.266.
22

de 1937, no dia da visita de Getúlio Vargas a São Paulo). Apesar da maior fluidez
temporal no último capítulo, o volume possui como característica a sincronicidade de
ações, em que importa menos o caminhar da trama do que a construção de um painel
mais ou menos amplo, mostrando ao leitor o que acontece, no mesmo período, com os
diversos círculos sociais que desde o início se apresentam.
Essa situação se modifica em Agonia da noite, segundo volume da trilogia, em que
se vai trabalhar menos com fatos simultâneos e mais com ações que se sucedem. Logo
no início, um novo grupo de personagens salta das páginas: os estivadores de Santos.
Não é possível definir de imediato a relação entre eles e os personagens já conhecidos.
Mas há indícios: tanto Inácia, a "flor do porto"49, como Doroteu, com sua inseparável

gaita de boca, marido e mulher, são negros e pobres. À terceira página da primeira parte,
fica-se sabendo que ao negro Doroteu

"nunca sobrara tempo para estudar, e o muito que ele [sabia fora] aprendido
na beira do cais de Santos, com o mar, com os navios, com as cargas e
descargas, com os marinheiros, os estivadores, com a noite e com o vento,
nas docas, no sindicato e na célula do Partido."50

Trata-se portanto de um militante. Até o final da mesma parte, Doroteu saúda com sua
gaita a "bandeira vermelha da foice e do martelo, aquela que conduz consigo a estrela do
amanhã"51. Escolhe ainda para seu filho, que Inácia espera, o nome de Luís Carlos, em
homenagem a Prestes, e comunica à célula do partido na estiva a chegada de um navio de
bandeira nazista, que levaria um carregamento de café do Brasil para o general Franco na
Espanha, então em guerra civil. A greve dos estivadores, que se recusam a embarcar o

café, e sua luta com a polícia constituem o centro da trama nesse capítulo.
Braço comunista na "cidade vermelha"52, como era chamada Santos pelo alto grau
de organização política dos trabalhadores do porto, o sindicato dos estivadores mantinha
vínculos com a direção regional do partido em São Paulo. Daí que, na terceira parte do
mesmo capítulo, diante da greve contra o navio alemão e da iminência de rigorosa ação
policial, os camaradas Ruivo e João, já apresentados aos leitores em Os ásperos tempos,
desçam de São Paulo para a cidade a fim de auxiliarem na organização do movimento.

49 OSL, II. p.19.


50 OSL, II.
51 Ibid. p.20.
52 Ibid. p.156.
23

Para lá também vão o ministro do Trabalho de Vargas, Gabriel Vasconcelos (ou "Gabriel
Cachacinha")53, acompanhado por Eusébio Lima, então seu chefe de gabinete, e por
Costa Vale, a fim de negociarem com os grevistas. Marieta do Vale, Artur Carneiro
Macedo da Rocha e outros personagens de seu círculo também se deslocam para a
cidade, mas pouco se interessam pelos acontecimentos políticos: hospedados num hotel
de luxo, são veranistas. Os acontecimentos de Santos são, assim, um desdobramento da
ação iniciada no volume anterior da trilogia.
Há, também, na quarta parte do primeiro capítulo, uma retomada do núcleo do
Vale do Rio Salgado, que será desenvolvido ao longo dos dois capítulos que constituem
o volume, mas só chega ao centro dos acontecimentos no segundo capítulo de A luz no

túnel, terceiro volume de Os subterrâneos da liberdade.


Em relação ao tempo, tudo, em princípio, é muito difuso. Sabe-se por exemplo que
os personagens, pelas referências ao "tirano" Vargas54 e a seu ministro, ainda se
encontram sob o Estado Novo. Além disso, a retomada do fio narrativo interrompido no
final de Os ásperos tempos indica tratar-se de fatos posteriores àqueles narrados no
volume anterior. Na terceira parte do primeiro capítulo, o narrador estabelece a primeira
intersecção de tempos entre os dois romances, apresentando o policial Barros como um
velho conhecido dos leitores:

"Barros, agora delegado da Ordem Política e Social, mantinha largas


conversações com a polícia santista."55

Na quinta parte, o narrador diz que "nesses últimos meses alguma coisa começara a

suceder" no Vale do Rio Salgado56, referindo-se a um certo grau de conscientização entre


os trabalhadores rurais da região, fruto do trabalho político que Gonçalo iniciara ao
chegar ao Vale. Essa chegada é narrada em flashback no início do terceiro capítulo de Os
ásperos tempos e acontece antes dos "começos daquele ano de 1938"57, logo após o
golpe. Na parte 11, após o assassinato de um estivador pela polícia, a brisa traz "uma

53 Ibid. p.54. Na época a que se refere a trama, o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio era Valdemar
Cromwell do Rego Falcão. Cf. Getúlio Vargas. Diário (vol.II). São Paulo/Rio de Janeiro: Siciliano/
Fundação Getúlio Vargas, 1995. p.481.
54 OSL, II. p.54.
55 Ibid. p.32, grifo meu.
56 Ibid. p.41.
57 OSL, I. p.228.
24

noite fria de fim de verão"58. A ação de Agonia da noite decorre assim entre março, abril
e maio desse ano.
Ao contrário do que acontece em Os ásperos tempos, é ressaltada nesse volume a
sucessividade temporal. No primeiro capítulo, cujo tema central é a greve de Santos, um
acontecimento se segue ao outro, parte a parte. Algo parecido acontece no segundo
capítulo, em que o narrador volta a focalizar o círculo dos pequeno-burgueses, na figura
de Manuela, agora intimamente relacionado ao núcleo de Costa Vale, pela evolução das
relações entre a jovem e ingênua bailarina e Paulo Carneiro Macedo da Rocha59.
Assim, no primeiro capítulo, na tarde em que o navio alemão desponta em Santos,
já fazia dias que os rumores de sua chegada circulavam entre os estivadores (parte 1). Na

mesma noite, ocorre a reunião do sindicato (parte 2). No dia seguinte, o navio atraca, e
Ruivo se dirige a Santos; "às onze horas da noite", uma comissão de trabalhadores parte
para a delegacia, a fim de conversar com a polícia; "no outro dia", começa a greve (parte
3). Ao mesmo tempo, no Vale do Rio Salgado, um intervalo de vários meses separa a
chegada de Gonçalo do presente, em que os camponeses começam a se conscientizar de
sua situação (parte 5). Nesse período, o caboclo Nestor aprende as primeiras letras, tarefa
iniciada no "último ano, [...] a partir de seu primeiro encontro com Gonçalo" (parte 6)60.
No segundo capítulo, Manuela, então uma bailarina já famosa nos cassinos, recebe

uma "proposta indecente" de seu diretor artístico; "no dia seguinte", conversa sobre sua
decepção com Schopel, mentor que lhe fora arranjado por Paulo, e pensa na época em
que o namorado não podia viver sem ela, quando "durante alguns meses ela se sentira
inteiramente feliz"61. "Com o passar do tempo", ouve novas propostas; numa "segunda-
feira", durante os "últimos dias de verão", recebe do poeta a notícia de que o noivo se
casaria em dezembro com outra, bem mais rica (parte 1). Após cerca de um mês, Paulo
volta para o Rio de Janeiro, onde instalara Manuela; os dois rompem (parte 2). Tempos
depois, "grávida de dois meses, pelo menos"62, a bailarina recebe o irmão Lucas, que

58 OSL, II. p.71.


59 No final do capítulo, Manuela, grávida de Paulo e abandonada por ele, é obrigada pelo irmão Lucas a
fazer um aborto. V. OSL, II, Capítulo Segundo, passim.
60 OSL, II. p.47.
61 Ibid. p.193.
62 Ibid. p.271.
25

defendera Vargas durante a tentativa de putsch integralista no Rio de Janeiro63, e tem de


contar a ele sobre o filho que espera (parte 11). "Uns quinze dias após a tentativa de
golpe", Manuela aborta e, no hospital, conhece Mariana, que se torna sua amiga (parte
15). Mariana acaricia os loiros cabelos de Manuela, que chora. Tocam-se pequeno-
burgueses e comunistas64.
Existe ainda, no volume, simultaneidade de ações, mas sem impedir o desenrolar
dos acontecimentos. No primeiro capítulo, é a greve no porto de Santos que ocorre ao
mesmo tempo em que se acirram os conflitos no Vale do Rio Salgado. No segundo
capítulo, caminham paralelamente as histórias de Manuela, dos camponeses do Vale e
dos trotskistas. Os dois capítulos começam simultâneos, mas logo a trama segue. Na

longa parte 1 do segundo capítulo, Paulo ainda se encontra em Santos, enquanto as


ilusões de Manuela se esboroam; na parte 2, porém, o inescrupuloso playboy já está de
volta ao Rio de Janeiro.
Marcado pela sucessividade temporal, Agonia da noite tem como fundamento a
idéia de processo. É um processo a alfabetização do camponês Nestor a partir de seu
contato com Gonçalo. Essa alfabetização é emblemática, para o narrador, não só da
conscientização dos personagens que vivem no Vale do Rio Salgado, mas do que deveria
ser a atuação do partido no campo65. São também processos a deterioração da relação

entre Manuela e Paulo Carneiro Macedo da Rocha, o desligamento de Saquila e os


demais trotskistas dos quadros do partido e o movimento dos estivadores de Santos
contra as ordens de Vargas e contra o fascismo, identificado com a figura de Franco.
Percebe-se, além disso, que a preocupação com as datas e fatos históricos pontuais
se dilui um pouco no volume, em relação a Os ásperos tempos. Em Agonia da noite, há
dois grandes acontecimentos históricos que são referidos nos dois capítulos: a greve de

63 Trata-se de fato histórico, ocorrido em 11/5/1938. Cf. Getúlio Vargas. Op. cit., p.130. Tb. O Estado de
São Paulo, 12-5-1938, p.1.
64 Há outros dois núcleos de ação que ganham continuidade narrativa no Capítulo Segundo de Agonia da
noite: o do Vale do Rio Salgado (que recebe por algum tempo os comunistas de São Paulo) e o grupo
trotskista, capitaneado pelo jornalista Abelardo Saquila, que quer lançar o Partido Comunista Operário e é
espulso das fileiras do partido comunista (parte 3). O fato tem base histórica: no início de 1938, o PCB
enfrenta a dissidência de Hermínio Sachetta, que funda um comitê regional do Partido Operário Leninista,
de tendência trotskista. V. Edgard Carone. Op. cit., p.223.
65 A questão agrária era uma das maiores preocupações do PCB nas décadas de 40 e 50. Data de 1946 um
escrito de Prestes sobre O problema da terra e a constituição de 1946.
26

Santos (transposição, para 1938, de um episódio ocorrido em 1946)66 e a tentativa de


putsch integralista de maio de 1938. Mas a representação da história, nesse volume, não
é mais estática, à maneira dos grandes painéis centrados em datas: ela é também
processo. A história põe-se em marcha.
Em A luz no túnel, terceiro romance da trilogia, ocorre nova mudança. O volume se
estrutura em três capítulos. No primeiro, o tema central é a ferrenha repressão policial
contra os comunistas do final de 1938 até 1940. No segundo, acontecem o clímax e o
desfecho da ação no Vale do Rio Salgado, com a luta aberta entre militantes e
camponeses, de um lado, e a burguesia e o capital estrangeiro, de outro. No terceiro
capítulo, os núcleos temáticos são a repercussão no Brasil do acirramento das tensões

que levam à II Guerra Mundial, deflagrada em setembro de 1939; as primeiras tentativas


de ressurgimento do Partido Comunista do Brasil, que praticamente deixara de existir
depois das perseguições sofridas em 1939 e 1940; e o julgamento de Luís Carlos Prestes
pelo Tribunal de Segurança Nacional, em novembro de 1940.
Quando se abre o primeiro capítulo de A luz no túnel, o leitor se vê diante da prisão
do militante Carlos. A ligação com o segundo volume da trilogia, Agonia da noite, é
direta: na última cena deste romance, Marcos de Sousa, arquiteto simpatizante do partido
e amigo de Manuela, se assusta com as fotografias de Carlos e Zé Pedro impressas na

primeira página de um jornal carioca. Membros da direção regional estavam presos. Era
"certa manhã dos fins de setembro"67. Na parte 1 do primeiro capítulo de A luz no túnel,
Carlos segue, no automóvel da polícia, entre dois guardas. Ao ser interrogado e
espancado, suas únicas palavras são:

"⎯ Fui preso pela polícia do Rio, em 14 de janeiro de 1936. Fui solto
em 25 de fevereiro do mesmo ano. Fui novamente preso pela polícia de São
Paulo hoje, 28 de setembro de 1938."68

As datas também são freqüentes no final do primeiro capítulo ("Natal" de 1938 na


parte 22, "carnaval" de 1939 nas partes 25, 26 e 27, "fevereiro" de 1939 na parte 28) e no
terceiro capítulo ("ano de 1940" na parte 1, "fim daquele inverno de 1940" na parte 12,

66 V. Dalcídio Jurandir, apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p.223. Tb. depoimento de Jorge
Amado a Alice Raillard. Op. cit., p.143.
67 OSL, II. p.316.
68 OSL, III. p.17.
27

"meados de setembro" na parte 15, "meados de outubro" na parte 16, "7 de novembro de
1940", na parte 20).
Em princípio, dada a profusão de datas, acredita-se que se vai encontrar em A luz
no túnel uma estrutura temporal semelhante àquela de Os ásperos tempos ⎯ visto que a

delimitação dia, mês e/ou ano da ação acontecia com freqüência nestes, mas não em
Agonia da noite, volume seguinte. Entretanto, essas datas se sucedem. Percebe-se, assim,
a presença, nesse que é o último volume da trilogia, do tempo sucessivo, tão
predominante no romance anterior.
Dessa forma, na parte 3 do primeiro capítulo, no mesmo dia de sua prisão, à noite,
Carlos é novamente chamado à presença do delegado Barros e de dois investigadores;

seu rosto era uma "posta de carne viva"69. Na parte 4, Barros, ao deixar Carlos
semimorto na sala contígua, prossegue com as torturas a militantes de Santo André,
presos no mesmo dia. "À tarde, no dia seguinte"70, é a vez de Zé Pedro. E assim por
diante.
O segundo capítulo, embora também marcado pela sucessão dos tempos, guarda
maior semelhança com a estrutura temporal de Agonia da noite ⎯ em especial, com o
capítulo sobre a greve de Santos ⎯, pois foge das datas. O que nele importa é a

seqüência de acontecimentos da intriga que resultam na inauguração da Empresa do Vale

do Rio Salgado e na morte de militantes e camponeses, em confronto com a polícia,


homens do coronel Venâncio Florival e engenheiros americanos. As datas aparecem
apenas no início do capítulo, quando se sabe que os fatos a seguir serão concomitantes às
preliminares da guerra na Europa71.
No terceiro capítulo, a sucessividade temporal é ainda mais ressaltada, porque se
revela um processo mais rápido. Enquanto que, em Os ásperos tempos, todo o primeiro
capítulo acontece em um só dia, no último capítulo de Os subterrâneos da liberdade
meses se sucedem ao se virar a página. Um exemplo disso são as partes finais do
volume: os meses de setembro e outubro de 1940 correspondem cada um a uma parte
(partes 15 e 16); na parte 17, já se está em novembro do mesmo ano. Há, assim, como

69 OSL, III. p.27.


70 Ibid. p.33.
71 A data não é explícita no texto, mas se sabe que a ação da parte 1 acontece nos dias seguintes à
assinatura do Pacto Germano-Soviético, firmado por Ribbentrop e Molotov a 23/8/1939, em Moscou.
28

que uma aceleração do tempo da primeira à última página da trilogia de Jorge Amado
sobre o Estado Novo.
Visto sob o ângulo de sua estrutura temporal, poder-se-ia dizer que este terceiro
romance é uma síntese da simultaneidade que sobressai em Os ásperos tempos e da
sucessividade de Agonia da noite. Dela resulta um tempo que é a junção de muitas
histórias particulares no movimento amplo de um grande tempo histórico, formado, ele
mesmo, a partir da ação e inter-relação dos núcleos acionais da trama.
Há, porém, em A luz no túnel, um foco dissonante. Apesar de já ter aparecido em
outros momentos da trilogia, ganha destaque, neste último volume, o emprego de
flashbacks, em especial no primeiro capítulo, em que os militantes do partido são presos

e torturados. Assim, toda a vida pregressa de Carlos é revelada ao leitor pelo trabalho de
sua memória, na parte 1; o mesmo acontece com a história de Ramiro, na parte 4. Na
parte 6, é Gaby d'Almeida, esposa de Cícero d'Almeida, escritor comunista descendente
da aristocracia cafeeira, que rememora sua história; na parte 10, o médico da polícia, Dr.
Pontes, cocainômano e suicida.
Na parte 1 do segundo capítulo, o tempo narrado retrocede duas vezes. No início, o
arquiteto Marcos de Sousa discute, com outros simpatizantes do partido, o significado do
Pacto Germano-Soviético, assinado há algum tempo na Europa. Cinco páginas adiante, a

narrativa recua para o dia seguinte ao da notícia do Pacto. Duas páginas depois, novo
recuo, agora para abril do mesmo ano de 1939, quando Manuela fora descoberta por uma
companhia européia de ballet.
Essas rupturas com a ordem cronológica do texto, até então quase que estritamente
respeitada, parecem mostrar um narrador preocupado não só com os acontecimentos da
trama, mas também com o significado que eles vão assumindo para os personagens e,
portanto, para a narrativa. A maior parte desses flashbacks é reflexiva; personagens
analisam fatos passados, buscando neles um sentido:

"⎯ Que posso te dizer? ⎯ sua voz era grave, seu rosto estava sério,
quase solene. ⎯ Que eu compreendo? Não, não vou te dizer que já
compreendi perfeitamente... Longe disso. Busco também explicar-me esse
inesperado acordo germano-soviético, ainda não compreendo direito.
Tampouco conversei ainda com alguém responsável.
....................................................................................
Marcos fitou novamente a noite, o brilho distante das estrelas. Uma
vez, há tanto tempo... ensinara a Mariana o nome das estrelas entrevistas das
29

janelas da sala. [...] Onde andaria Mariana nestes dias atuais de guerra, de
pacto germano-soviético, de invasão da Polônia, onde andaria ela que não
vinha vê-lo, explicar-lhe o significado de tudo aquilo?"72

Há também no primeiro capítulo, que se inicia com a prisão de Carlos, uma quebra
da ordenação cronológica dos fatos narrados. A parte seguinte narra a prisão de Zé
Pedro, de sua mulher, Zefa, e de seu filho. A parte 3 descreve a bárbara tortura infligida a
Carlos, que, ao entrar na "sala das sessões espíritas", como era chamada, nota "pingos de
sangue no chão"73. Só na parte 5, quando é narrado o segundo interrogatório de Zé
Pedro, é que se vai saber que era dele o sangue derramado, pois "precedera Carlos, na
véspera, na sala de torturas"74. Em ordem cronológica, portanto, a prisão de Zé Pedro
deveria ter sido narrada antes da de seu companheiro de partido75.
É sintomática, também, a estrutura da parte 22 do primeiro capítulo, espécie de
síntese dos fatos narrativos correspondentes ao final do ano de 1938. Pela memória do
banqueiro Costa Vale, é possível saber dos conflitos no Vale do Rio Salgado, do pendor
do governo Vargas para os alemães e mesmo do lançamento da revista Perspectivas,
dirigida por Marcos de Sousa. Essa é a única parte, em toda a trilogia, que apresenta uma
ruptura espacial e temporal: ela começa com as reflexões de Costa Vale, continua com a
situação de Marcos de Sousa e, ao fim, passa a focalizar os preparativos do casamento de
Paulo Carneiro Macedo da Rocha com a sobrinha da Comendadora da Torre76. São, além

disso, muitas as partes, especialmente nos Capítulos Primeiro e Terceiro do volume, que
incluem vários tempos, até como efeito da freqüente utilização dos flashbacks.
Há, portanto, dois grandes movimentos temporais em A luz no túnel: por um lado,
a síntese entre a simultaneidade de Os ásperos tempos e a sucessividade de Agonia da
noite, que resultam numa estrutura ao mesmo tempo verticalmente narrativa e
amplamente histórica; por outro, a instauração de uma reversibilidade temporal que tem
função eminentemente reflexiva, devida muitas vezes ao emprego do flashback.
Os subterrâneos da liberdade são, assim, a história em três modos: como painel,

como processo e como reflexão. Dialeticamente (de uma maneira didaticamente

72 OSL, III. p.179-80.


73 Ibid. p.23/4.
74 Ibid. p.33.
75 Processo semelhante acontece em Os ásperos tempos, Capítulo Segundo: primeiro a notícia do golpe de
Getúlio alcança Apolinário no Uruguai; depois é narrada a ação do dia do golpe. Trata-se, porém, de
processo menos freqüente nesse primeiro romance que no terceiro. OSL, I, p.135 e ss.
76 OSL, III. p.135-51.
30

dialética, eu diria), o que começa estático se faz dinâmico, para depois se tornar objeto
de balanço.
A circularidade desse processo remete à imagem do carrossel de Manuela, ainda no
primeiro capítulo de Os ásperos tempos. Sob as lâmpadas coloridas e anúncios
luminosos do parque onde conhece Paulo, a ingênua menina sonha:

"Talvez esse carrossel, em sua desvairada corrida, se dirija para o futuro. Ela
enxerga um mundo diferente, cheio de doçura, do encanto de viver, nas luzes
que rodam, na melodia de amor da caixa de música. Aquele mundo que
Lucas aspira encontrar no dinheiro e que ela deseja buscar na vida da qual
nunca participa."77

O amadurecimento político de Manuela também é dialético: primeiro a


ingenuidade, depois o sofrimento; ao final, o casamento com Marcos de Sousa, o

"companheiro de cada dia"78, e o encontro com Mariana e com os comunistas. O sonho


de Manuela, diferente do de seu irmão, talvez acabe sendo o mesmo de Jorge Amado, ao
preparar-se para a sua primeira viagem à URSS:

"Amanhã, se o tempo permitir o vôo dos aviões, estarei em Moscou. Irei ver
com meus olhos a realização de tudo porque [sic] sempre lutei. Parece-me
um sonho. [...]
..................................................................
Amanhã é minha vez de sonhar sem dormir."79

Em não se chegando ao mundo desejado há, porém, o recomeço. Ao final de Os

subterrâneos da liberdade, nada dá certo para os comunistas: a greve de Santos termina


em tragédia, o Vale do Rio Salgado rende-se aos "colonizadores ianques", os "traidores
trotskistas" se safam, o partido é desbaratado pela polícia e todos os dirigentes, inclusive
João, o maior deles, são presos. No entanto, continuar é a palavra de ordem; e mesmo na
ilegalidade, o partido consegue, em meados de outubro, plantar bandeirolas vermelhas e
volantes no Largo da Sé, em São Paulo, e em frente a grandes fábricas. Então,

"[...] a mesma luz de esperança renascia no relato emocionado de um


operário que contava sobre as inscrições e bandeirolas ou que lia as ardentes
palavras do volante. Novamente o Partido estava com eles, era como uma luz
no túnel."80

77 OSL, I. p.121.
78 Ibid. p.324. A ref. é sobre o amor entre os comunistas Mariana e João, mas se aplica, aqui, também à
bailarina.
79 Jorge Amado. O mundo da paz, p.34.
80 OSL, III. p.354.
31

Para além das voltas do "carrossel do futuro", não se pode esquecer a vocação
teleológica do texto, sempre em busca de um tempo vindouro que signifique a
materialização da utopia. Essa marcha acontece de modo cada vez mais rápido ao longo
dos três volumes. A metáfora desgastada é, sob esse aspecto, reveladora: está-se dentro
do túnel (sob o Estado Novo); nele (e não no fim dele), há uma luz (o partido).
Ao final dos romances, a luz materializa-se no espaço:
"Havia chovido na véspera, em grandes aguaceiros que se prolongaram
pelo começo da noite. Mas a manhã [...] surgira magnífica de sol e luz [...]".81
Nesse dia, Mariana atravessa a pé a enseada de Botafogo. Na frente do edifício do
Tribunal de Segurança Nacional, uma pequena multidão se acotovela.
Dentro, o presidente do Tribunal, quase histérico, grita, retirando a palavra que
havia dado a Luís Carlos Prestes, réu daquele julgamento, que fizera, num início de
discurso, uma homenagem ao vigésimo terceiro aniversário da Revolução Russa.
Policiais e soldados o arrastam para fora da sala. Prestes, se desvencilha e se volta. Um
grito corta o salão:
⎯ Viva Luís Carlos Prestes!

Tinha sido Mariana. Agora, era levada pela polícia.


Fora, uma manhã deslumbrante. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1940.82
Terminam Os subterrâneos da liberdade.

81 Ibid. p.364.
82 Ibid., p. 364 e ss.
32

I.4 Um Alencar socialista

"Alencar é o povo brasileiro"


(Jorge Amado)

No prefácio à edição russa de Seara Vermelha, o escritor soviético Ilya Ehremburg


afirmou sobre a obra de seu colega brasileiro:

"Os romances de Jorge Amado nos ajudaram a descobrir o Brasil e


seus homens, tão próximos a nós com suas paixões, desesperos e
sofrimentos."83

Em Os subterrâneos da liberdade, o Brasil é vário: São Paulo, Rio de Janeiro,


Santos, Mato Grosso. O Brasil ultrapassa fronteiras: Montevidéu, Espanha, Paris. O
Brasil é mais que o Brasil: é o "povo brasileiro". Onde há um brasileiro, há Brasil.
De início, tudo acontece em São Paulo, centro geodésico do enredo, a partir do

qual a narrativa estende sua teia. Em São Paulo vivem os principais personagens da
trilogia ⎯ cada um deles, a princípio, em seu espaço próprio. Os Costa Vale, os Macedo

da Rocha, a Comendadora da Torre e suas sobrinhas gravitam nos salões da mansão do


poderoso banqueiro ou, às vezes, nos da Comendadora. Os comunistas se apertam nos
cubículos em que vivem, quando muito como a casa de Mariana, "duas peças nos fundos
de uma vila, que mais parecia um cortiço"84. Manuela deixa com a família a "pegajosa
[...] umidade da casa, a triste cal das paredes do quarto e o cheiro de mofo que vinha de
todas as partes"85 e vai para o parque de diversões cheio de luzes coloridas e músicas
românticas. "Os Subterrâneos são muito mais São Paulo"86, nas palavras de seu autor,
porque, já no final da década de 30, a cidade é o maior pólo industrial do país e congrega

o maior número de operários do território nacional 87.


Contra a moldura dos primeiros arranha-céus, os espaços fechados que servem de
cenário para a abertura de Os ásperos tempos caracterizam os grupos que protagonizam o
romance e suas diferenças sociais. É do gabinete no último andar do edifício de seu
banco que Costa Vale, o "patrão", controla o centro de São Paulo, manipula o Palácio do

83 "O romancista Jorge Amado". In: José de Barros Martins (ed.). Jorge Amado: 30 anos de literatura.
[São Paulo]: Martins, [1961]. p.222.
84 OSL, I. p.79.
85 Ibid. p.116.
86 In: Alice Raillard. Op. cit., p.139.
87 Segundo Edgard Carone, havia, em 1940, aproximadamente 270 mil operários nas indústrias paulistas
pelas estatísticas oficiais, contra aproximadamente 120 mil do Distrito Federal. Op. cit., p.60. V. também
Caio Prado Júnior. História econômica do Brasil. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1956. p.266 e ss.
33

Catete, projeta a Empresa do Vale do Rio Salgado88. É na "casa suburbana" de Zé Pedro


que os comunistas articulam sua ofensiva contra o esperado golpe de Getúlio e contra os
trotskistas89. Do quarto barato de hotel na rua Líbero Badaró, Apolinário espera a
autorização e os documentos para fugir para o Uruguai90. Sob as luzes "azuis, verdes e
vermelhas" da roda gigante, Manuela e Lucas sonham com dias melhores91.
Dos círculos iniciais, Costa Vale e os comunistas estão plantados em terreno
próprio e repelem mudanças de classe ou status. Para o primeiro, associar-se, em seus
negócios, com os norte-americanos ou com os alemães depende da lei da maior
vantagem: estará com aqueles que puderem ajudá-lo a manter ou aumentar sua riqueza e
poder, isto é, empurrá-lo mais e mais para o alto. Para os segundos, vale a lei da

fidelidade à causa. Interpelada pela irmã, que a acusa de trazer dificuldades à mãe já
viúva, Mariana responde:

"⎯ A mãe sabe que o pai tinha razão e que eu tenho razão. A mãe não
abandonou a sua classe..."92

Daí talvez a recusa desta em mudar-se para a casa da outra filha, mais confortável:

"⎯ Não estou morrendo de fome, não sou tão velha que não possa
trabalhar. Mariana é boa filha [...]."93

Já Manuela e o irmão Lucas entram na dança do enredo em terra de sonho. O


parque de diversões é simbólico: não é a origem dos pequeno-burgueses, a casa de "olor
úmido e odioso"94; mas também não é o objetivo ⎯ apenas pulsa de desejo. Manuela

quer um indefinível "mundo diferente, cheio de doçura"95. Lucas invejava Costa Vale:

"Seu olhar sonhador partia da sala da repartição para vagar sobre os arranha-
céus onde estavam instaladas as grandes companhias e os bancos. Da sua
janela podia ver a fachada de cimento-armado do edifício do Banco da
Lavoura e Indústria e, em certas ocasiões, na sacada do último andar,
debruçar-se a figura pálida e calva de Costa Vale, o olhar passeando sobre a
rua como um proprietário a examinar suas propriedades. [...]
...............................................................

88 OSL, I. p.159 e ss.


89 Ibid. p.104 e ss.
90 Ibid. p.95 e ss.
91 Ibid. p.110 e ss.
92 Ibid. p.78.
93 Ibid. p.79.
94 Ibid. p.111.
95 Ibid. p.121.
34

[...] Como fazer para encontrar-se, ele também, no último andar de um


arranha-céu, no edifício do 'seu' banco, dominando a cidade e os homens?"96

Lucas e Manuela fazem parte de uma classe movediça e movente, inconformada


com as origens e com os olhos num futuro socialmente mais elevado. Essa classe não
tem rosto, porque apaga propositalmente os traços herdados e veste, em seu lugar, uma
máscara, desenhada a partir de traços ideais tomados dos ricos e poderosos. Reside aí a
crítica do narrador de Os subterrâneos da liberdade aos pequeno-burgueses: seu
conservadorismo se baseia no desejo obstinado de ascensão social. Daí os sonhos dos
irmãos Puccini girarem na roda-gigante e no carrossel: ora em cima, ora em baixo,
voltando sempre ao mesmo lugar, eles representam os que estão no meio; suas trajetórias
indicarão os caminhos possíveis, na concepção do narrador, para pessoas de seu estrato
social.
Também o tenente Apolinário está no meio; sua rota, porém, é outra. Não se trata,
para ele, de mudar de classe ⎯ mas de lutar por sua classe e por seu partido. Recebe,

assim, uma missão:

"O Partido decidira mandá-los [a ele e a alguns companheiros] para a


Espanha, onde já outros, soltos anteriormente ou escapados para o
estrangeiro logo após a insurreição de 35, lutavam nas brigadas
internacionais."97

Apolinário segura a ponta de um fio que vai se desenvolvendo no decorrer da


trama. Primeiro, parte para o Uruguai, por cuja fronteira era mais fácil fugir. Quando do
golpe de Getúlio em 10 de novembro de 1937, já está a caminho de Montevidéu. No dia
seguinte, protesta contra o fascismo no centro da capital uruguaia, gritando, com a
multidão reunida, "PRES-TES ⎯ SI... VAR-GAS ⎯ NO"98. Dentro de alguns dias,

"estaria na Espanha, do outro lado do mar, e lá defenderia também o povo


brasileiro, os companheiros presos, o seu Partido Comunista."99

Através de Apolinário, a Guerra Civil Espanhola será uma das frentes de ação de
Os subterrâneos da liberdade, reiterando ainda uma vez a intenção historiográfica de
Jorge Amado ao escrever a trilogia. De fato, em 1937, alguns militantes comunistas

seguiram para a Espanha, a fim de se engajarem nas brigadas internacionais que

96 Ibid. p.253.
97 OSL, I. p.96.
98 Ibid. p.210.
99 Ibid. p.211.
35

combatiam o general Franco100. Em Agonia da noite, enquanto a greve nas docas de


Santos se transforma em tragédia, o heróico tenente vislumbra, numa clara noite, entre
laranjais, os olhos abertos de uma jovem morta pelas "balas alemãs" dos falangistas: "o
sangue dera tons vermelhos à casca cor de ouro"101. Em A luz no túnel, com a vitória do
fascismo no início de 1939, Apolinário, então major do Exército Republicano Espanhol,
comanda uma companhia de soldados em retirada através dos Pireneus para a França102.
Posteriormente, em Paris, nos dias seguintes à capitulação do governo francês para os
nazistas, o militar conhece Paulo Carneiro Macedo da Rocha em um café. O diplomata
servia então na Embaixada Brasileira da capital francesa e fugiria em breve para Lisboa.
Apolinário iria trabalhar na resistência103.

Apolinário inaugura, em Os subterrâneos da liberdade, um movimento amplo, em


que novos cenários vão se incorporando à São Paulo inicial e se expandindo em outras
direções. Primeiro, trata-se da rota América-Europa. O passo seguinte é a caracterização
do Vale do Rio Salgado, localizado pelo narrador no interior do Mato Grosso, num
impulso rumo ao Brasil inóspito:

"O rio corria num ímpeto de águas barrentas, as piranhas vorazes


encrespavam-lhe o tortuoso dorso de serpente. Barrancos, troncos de árvores,
corpos apodrecidos de animais, folhas secas e coloridas penas de aves
viajavam no rumo do mar através da floresta, arrastados pela correnteza.
Pássaros de variadas famílias trinavam nas árvores copadas, onde saltavam
ágeis macacos sob o grito estrídulo dos periquitos, araras, papagaios. Flores
de rara beleza nasciam nos parasitas sobre os troncos, orquídeas de raro
colorido, e flores do campo, vermelhas, azuis, amarelas, pintalgadas, se
alastravam por entre a selva fechada em sombras úmidas. Cogumelos
monstruosos nasciam e cresciam em alucinante rapidez sob o vôo das
mariposas de todas as cores, algumas de um azul sombrio, quase negro,
outras de um azul celeste como um céu sem nuvens."104

É novamente em função de um personagem que se desloca ⎯ não por acaso um


membro do partido ⎯ que um novo palco da ação será apresentado aos leitores. Dessa

vez, é o "gigante" Gonçalo, outro dos "heróis" comunistas, "condenado a quarenta anos
de prisão, dez como extremista e chefe de revoltosos e trinta como assassino"105, que

100 Cf. José Antonio Segatto et alii. PCB: memória fotográfica (1922-1982). 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
1982. p.56.
101 OSL, II. p.159.
102 OSL, III. p.171 e ss.
103 OSL, III. p.280 e ss.
104 OSL, I. p.213.
105 Ibid. p.215.
36

chega ao Vale, cruzando o rio numa canoa. Sua tarefa era, por um lado, esconder-se da
polícia; por outro, proteger o Vale dos "olhos vorazes de americanos e alemães"106.
No início de Agonia da noite, um terceiro cenário se junta aos demais. É a cidade
de Santos:

"Era o cais [...], os armazéns das docas a se perderem de vista, repletos de


sacos de café, de cachos de bananas, de fardos de algodão. Trilhos,
automóveis, geladeiras, rádios, máquinas estranhas, conservas e frutas
desciam nos guindastes, trazidos do bojo profundo dos porões escuros dos
negros cargueiros ancorados no porto. Um cheiro doce de maçãs maduras se
misturava ao salgado odor do mar, na lânguida noite tropical, envolvente e
morna, cortado por um vento fino chegado de distantes paragens."107

Em Santos, haverá uma longa greve e um difícil embate entre estivadores e


policiais. No final do processo, a cidade será ocupada pelas tropas do Exército. No
início, é também "ocupada" pelos personagens de Os subterrâneos da liberdade,
passando a fazer parte do enredo. No caso da "cidade vermelha", não se trata somente
dos comunistas, embora Ruivo e João, entre outros, para lá se dirijam, a fim de
participarem do movimento grevista. Também a alta sociedade paulistana se desloca para
Santos, com o intuito de "veranear", levando a tiracolo Eusébio Lima, amigo de Lucas
Puccini e assessor do Ministério do Trabalho.
O processo de incorporação de Santos à narrativa é, portanto, um pouco diferente
dos anteriores. Além da apresentação de Inácia, Doroteu, dos sindicalistas e do novo
cenário, há um deslocamento imediato e quase que total dos personagens de São Paulo
para o esse novo espaço.

A razão para isso parece ser a materialização da luta. Santos é o primeiro lugar, em
Os subterrâneos da liberdade, a assistir a um conflito aberto, frontal e violento entre as
forças políticas que se vinham delineando desde o início de Os ásperos tempos. Tudo o
que no primeiro volume da trilogia era conversa, discussão ou plano a portas fechadas ⎯
fossem elas as do gabinete de Costa Vale ou as dos "aparelhos" comunistas ⎯ vira, em

Santos, batalha campal, em meio ao cortejo fúnebre de um estivador morto pela polícia:

"Foi quando o piquete de cavalaria avançou cobrindo o cortejo, impedindo a


passagem da massa que tentava fugir pela praça. Durante um instante toda a

106 Ibid. p.224.


107 OSL, II. p.17.
37

multidão ficou sem saber o que fazer, indecisa. Havia gente caída pelo chão,
ferida, e novos grupos de tiras se precipitavam disparando os revólveres.108

Pisoteada por um cavalo das tropas policiais, morre a negra Inácia, grávida de alguns
meses.
Esse é o primeiro de alguns grandes combates que se seguirão, como o do Vale do
Rio Salgado e a própria Guerra Civil na Espanha. As histórias de Os subterrâneos da
liberdade são diferentes fios que se entrecruzam. Mas cada um desses fios se perfaz
segundo um processo de apresentação dos personagens com seus interesses de classe, do
planejamento da ação, da ação propriamente dita (o que inclui o confronto, até mesmo
físico, com os demais grupos de personagens) e do desfecho.
A leitura do conflito em Santos mostra que, até o início de Agonia da noite, e daí
para frente, o narrador reserva os espaços abertos para os momentos de embate entre as
forças em jogo. Daí eles serem tão raros no volume anterior, Os ásperos tempos, em que
predominam as salas e quartos de hotel, os escritórios e gabinetes, além de caminhos: a
rota de Apolinário até o Uruguai, a trilha de Gonçalo até o Vale do Rio Salgado, a linha
do bonde que leva Manuela e família até o parque de diversões, os circuitos do carrossel
e da roda gigante. Os espaços fechados materializam na trilogia, além da sensação
sufocante da clandestinidade e da repressão, figurada na imagem dos "subterrâneos",
uma certa vocação conspiratória, de que partilham não apenas comunistas, mas também
os "capitalistas", os trotskistas e os pequeno-burgueses em ascensão. Em Agonia da
noite, algumas dessas forças saem do projeto, concentram-se em praças e campos de
guerra, explodem em violência. Outras o farão em A luz no túnel.
De forma significativa, Agonia da noite reúne, em seu primeiro capítulo, todos os
espaços já introduzidos pelo narrador. Apesar da predominância da ação em Santos, há
partes cujos cenários são o Vale do Rio Salgado, São Paulo e a Espanha. Sendo uma
história completa, com começo, meio e fim, o episódio da greve no porto é também um
desdobramento de outras idéias e ações, cujo centro nervoso é a capital do estado. No
segundo capítulo, aparece também o Rio de Janeiro, mais freqüente como cenário em A

luz no túnel. O distrito federal à época, apesar de sede do governo, revela-se na trilogia

108 Ibid. p.99.


38

muito mais um contraponto aos acontecimentos de São Paulo, o que mais uma vez
mostra a subordinação do político ao econômico nesta obra de Jorge Amado.
Vistos em conjunto como um grande painel, cada um dos grandes cenários de Os
subterrâneos da liberdade garante no texto a presença das questões que mais
preocupavam o PCB nas décadas de 30 e 40. São Paulo, por exemplo, resgata problemas
de linha política, como a cisão entre stalinistas e trotskistas e a troca dos quadros de
direção por militantes vindos das bases, em oposição aos intelectuais que até o início dos
anos 30 ocupavam os altos cargos da estrutura partidária109. O Vale do Rio Salgado
mostra o partido diante da organização social no campo e do imperialismo. Santos traz à
baila o problema da ação sindical e as tentativas de controle dos sindicatos pelo governo.

A situação política internacional é mostrada por meio da guerra na Espanha e, ao final de


A luz no túnel, do conflito mundial pós-1939 e suas repercussões no Rio de Janeiro, São
Paulo e Paris.
O narrador de Os subterrâneos da liberdade vai, assim, ampliando espaços a partir
de São Paulo e costurando a todos num só enredo, numa só história. "[...] tal como o
concebi", diz Jorge Amado, "é um livro enorme. [...] Tive muito trabalho montando um
universo muito grande, onde coexistem pessoas de classes sociais diferentes, desde a
burguesia até o povo mais pobre"110. A vocação "panorâmica" da obra foi também

notada por Eduardo de Assis Duarte:

"O romance constitui o momento máximo do alargamento de


horizontes experimentado em textos precedentes, ao mesmo tempo em que
atinge o clímax do processo de partidarização, visível desde São Jorge dos
Ilhéus."111

O processo é análogo ao da "viagem", origem de O mundo da paz. Neste livro, que


precede a trilogia sobre o Estado Novo e escrito também no exílio em Dobris, a visão do
narrador sobrevoa Berlim, detém-se em Moscou, penetra escolas e casas, curva-se
humilde sob Leningrado, flagra personagens em Praga, Budapeste, Varsóvia e na

109 Esse processo, chamado de "obreirismo", começou, segundo Edgard Carone, em 1930, e tomou "um
sentido errôneo e romântico [...] que leva os membros do partido a só fumarem cigarros baratos, vestirem-
se mal, deixarem de usar gravata etc.". Ele resultou no afastamento do secretário geral Astrojildo Pereira.
In: A república nova (1930-1937). 3.ed. São Paulo: Difel, 1982. p.237. V. também Moisés Vinhas. O
Partidão: a luta por um partido de massas (1922-1974). São Paulo: Hucitec, 1982. p.68.
110 In: Alice Raillard. Op. cit., p.136.
111 Op. cit., p.210, grifos do autor.
39

Albânia. No entanto, apesar de mostrar uma realidade tão cultuada, a obra fala sobre o
estrangeiro. A União Soviética, apesar de amada, não era Brasil.
Em seguida, ainda do exílio, Jorge Amado construiu um narrador que faria da terra
natal não canção, mas retrato histórico. "Antimacunaimicamente", o povo brasileiro tem,
em Os subterrâneos da liberdade, muito caráter: luta pela causa, cai sob o fogo da
metralha, cala para proteger companheiros, é amigo da verdade, inimigo da injustiça,
renasce das cinzas. São os operários, os imigrantes, os camponeses, os índios, os negros.
Não a burguesia, que ela não é o povo. Esta, com brilho mortiço, reluz nos casamentos
sem amor, na ganância, nas orgias, nas ações sem escrúpulos, nas manipulações as mais
diversas, no egoísmo e na mentira.

Ao falar da ficção brasileira em seus primórdios, escreveu Antonio Candido que


ela

"Desde o início [...] teve inclinação pelo documentário, e durante o século


XIX foi promovendo uma espécie de grande exploração da vida na cidade e
no campo, em todas as grandes áreas, em todas as classes, revelando o País
aos seus habitantes, como se a intenção fosse elaborar o seu retrato completo
e significativo."112

Viagem e nacionalismo foram temas caros ao romantismo do século XIX. No


Brasil, aliados à busca de uma identidade nacional e cultural brasileira, esses temas
ganharam expressão na obra de José de Alencar, que tem muito de cartografia. Um mapa
vertical do Brasil, campo, selva e cidade, não só de relevos ou climas, flora ou fauna,
mas também do elemento humano, dos valores e da cultura, às vezes tão ideologicamente
distorcidos, como em Iracema ou em O guarani.
Em Jorge Amado ⎯ não bastassem seus anteriores "afrescos da região do cacau" e
"águas-fortes da vida baiana"113, romances de fatura regionalista ⎯, todos esses espaços

se reúnem em uma só obra. Em Os subterrâneos da liberdade há a cidade e seus ritos, há


a selva e sua força, que se mistura à questão do campo e da posse da terra. Há além disso
o mar, de onde chegam canções, línguas estranhas e bandeiras de navios ao porto de
Santos, por onde também se parte. O "gigante" Gonçalo é quase o Peri de Alencar,

defensor de índios na Bahia, "de braços grossos como ramos de árvore, de pesadas mãos

112 "Literatura de dois gumes". In: A educação pela noite & outros ensaios. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989.
p.172. V. também "Um instrumento de descoberta e interpretação". In: Formação da literatura brasileira
(2o vol.). 6.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, p.109-118.
113 As expressões são de Alfredo Bosi. Op. cit., p.459.
40

calosas, de bronzeada cor de cobre"114, cujo "talhe gigantesco parecia feito à medida da
floresta virgem"115. E os salões da alta burguesia paulistana são regidos pelo mesmo
interesse que propulsiona o enredo de Senhora.
Os românticos brasileiros tinham um projeto de nacionalidade, que incluía, nas
palavras de Antonio Candido, "o desejo de inventar um passado que já fosse nacional"116
e, por outro lado, uma ânsia em trazer, para os limites da literatura, a paisagem local.
Com isso, buscavam conferir unidade a um país constituído de realidades díspares por
meio do imaginário. O imaginário romântico preencheu espaços e tempos, criou estradas
inexistentes entre regiões distantes e lendas sobre a origem e a povoação do território
brasileiro.

De forma consciente ou não, o romantismo é uma das matrizes criadoras de Jorge


Amado em Os subterrâneos da liberdade. Para esse escritor do século XX, porém, não
interessa, nessa obra, apenas a elaboração de um imaginário genuinamente nacional.
Afinal, outros espaços, como Montevidéu e a Europa, servem também de cenário à ação
dos romances, e o mar que os estivadores de Santos enxergam lembra os elos entre as
fronteiras pátrias e outras, além do oceano.
Em Montevidéu, em meio à multidão, o tenente Apolinário assiste à manifestação
dos uruguaios contra Vargas e pensa:

"Não, nunca estivera e nem estaria só, não possuía o direito de jamais se
julgar em solidão: em torno dele, onde quer que estivesse, estariam centenas
e milhares, haveria sempre a mão de um companheiro para apertar a sua
mão."

Mais abaixo, comenta o narrador:

"Em qualquer trincheira que se encontrasse, sustentando um combate contra


o fascismo, estaria cumprindo seu dever de comunista e também o seu dever
de patriota [...]".117

Fios do enredo puxados para além das fronteiras, a intenção do narrador de Os


subterrâneos da liberdade é a de criar um imaginário além-nacional, mas profundamente
enraizado na terra pátria. Se, para construir um Brasil, os românticos precisaram

114 OSL, I. p.215.


115 Ibid. p.375.
116 Antonio Candido. A educação pela noite & outros ensaios. p. 175, grifo do autor.
117 OSL, I. p.210/1.
41

apresentá-lo aos leitores por meio da literatura, para se construir um Brasil comunista
seria preciso, primeiro, fundar um imaginário comunista na cultura brasileira.
Daí a relevância do papel do escritor do partido para a revolução. É preciso
apresentar os novos "heróis", cuja origem não é mais étnica (os índios, por exemplo),
mas social (o povo). É preciso retratar a sociedade, criticando suas mazelas e propondo
uma nova ordem harmônica. O escritor comunista, como o romântico, tem uma missão:
não somente "fazer o povo pensar", como em Castro Alves, mas "ajudar a marcha do
homem para uma vida melhor", identificada com o socialismo.
Citando Gorki, observou Jorge Amado que

"A tarefa dos [...] homens de letras é árdua e complicada. Ela não consiste
somente na crítica à antiga realidade, a reprovar a podridão de seus vícios.
Sua tarefa é estudar a realidade nova, dar-lhe corpo, reproduzi-la e assim a
consagrar."

E completou, mencionando o escritor soviético Korneichuk:


"O escritor é tão responsável quanto um estadista."118
O crítico Eduardo Portela, em artigo de 1961, comparou Jorge Amado a José de
Alencar, alegando que um representa, na modernidade, a linhagem do romance
genuinamente brasileiro fundado por outro.119
Talvez Jorge, como um Alencar socialista, intua, à semelhança de Graciliano
Ramos, que, para transformar a realidade, seja "inútil arrasar as casas. Melhor deixá-las
arriar pouco a pouco, bambas, trêmulas, caducas. O essencial era transformar o que havia
nelas, vagarosamente": as "almas"120.

I.5 De heróis e de homens

"Insensíveis a toda a dor, à dor física e à dor


moral, pareciam feitos não de carne e ossos
como todo mundo, mas de aço."
(OSL, III)

Em O mundo da paz, ao falar do homem soviético, Jorge Amado elegeu como


exemplo o aviador Alexei Maresseev, considerado herói da União Soviética, personagem

118Jorge Amado. O mundo da paz, respectivamente p.169, 167 e 165.


119"A fábula em cinco tempos". In: José de Barros Martins. Op. cit., p.26.
120 Graciliano Ramos. Viagem (Tcheco-Eslováquia ⎯ URSS). 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 1984.

p.182/4.
42

de filme e de romance para além da cortina de ferro. Tendo o avião abatido por alemães
na II Guerra Mundial, Maresseev se arrastou sobre o gelo do rigoroso inverno russo
durante quinze dias. Ao alcançar as bases soviéticas, estava com gangrena nas duas
pernas, que foram amputadas. Em seu leito de doente, Maresseev chorava. O motivo,
porém, não era estar inválido: o que desesperava o aviador era não poder mais derrubar
bombardeiros nazistas. Pouco tempo depois, usando pernas mecânicas, voltou ao front e
ainda abateu mais onze aparelhos inimigos.121
Para Jorge Amado, que o conheceu numa palestra para operários em Leningrado,
Alexei Maresseev não era apenas um homem, mas um símbolo: "um homem do seu
povo, lutando com seu povo, participando da vitória sobre o invasor"122. Com o objetivo

de descrever um genérico "homem soviético", o escritor tomou de um caso particular e o


converteu em representante do caráter de todo um povo, cujo país não se limitava por
tradição, raças ou língua, mas por uma ideologia e um regime político. De certa forma,
Jorge ficcionalizou Maresseev, reunindo em sua personalidade traços ideais entrevistos
aqui e ali, com certeza também imaginados. Maresseev vira personagem. O aviador saía
da vida e entrava no discurso.
O mesmo processo ocorre em Os subterrâneos da liberdade, cujos personagens,
tirados da vida real, reúnem em si não apenas os traços físicos e morais das

personalidades que os inspiram, mas também outros, que partem da visão profundamente
ideológica de um mundo dividido em classes.
É assim que os operários, se comunistas, têm como qualidades força, perseverança,
abnegação, altruísmo, sinceridade e, quando a verossimilhança permite, beleza. É o caso
de Inácia, "negra flor do cais"123, ou de Mariana, síntese de inteligência, bondade, caráter
e consciência política, ideal da mulher brasileira comunista:

"trazia uma flor vermelha nos cabelos castanhos que contornavam um rosto
cheio de doçura. Seus grandes olhos negros expressavam toda a alegria124;

"modestamente vestida, mas de formoso perfil"125.

121 Jorge Amado. O mundo da paz. p.133-8.


122 Ibid., p.136.
123 OSL, II. p.18.
124 OSL, I. p.61.
125 OSL, III. p.364.
43

Os perfis femininos, aliás, somam traços das três grandes classes que protagonizam
os romances. Se Mariana é o operariado em sua "beleza sem artifícios"126, Marieta,
esposa de banqueiro, "era ainda uma bela e desejável mulher, apesar de seus quarenta e
três anos" e do "ar desdenhoso de quem se divertia com tudo e com todos"127. Embora
inteligente, seu caráter apodrecia entre brilhos e pérolas: em A luz no túnel, Marieta
definha de desejo pelo ex-amante Paulo Carneiro Macedo da Rocha, a quem seguia "por
todos os cabarés de Paris, como uma cadela, enquanto ele a mandava embora aos
pontapés"128. A classe dominante é retratada como imoral, indecente, infiel,
manipuladora e decadente.
Manuela é a inocência: finos cabelos louros, esguia, os grandes olhos azuis e tristes

a se iludirem com galanteios e promessas. Apesar das mudanças ao longo da trama,


jamais deixa de ser a jovem encantada pela música lamentosa e antiga que acompanha
sua primeira aparição em Os subterrâneos da liberdade. Mesmo ao final de A luz no
túnel, diante do pedido de casamento que lhe faz o arquiteto Marcos de Sousa e já tendo
sofrido o abandono e o aborto, ela afirma:

"⎯ Sou uma burrinha, Marcos, não entendo muito de política. Mais
uma vez já te disse que para mim é assim: os comunistas são os bons, os
outros são os ruins. Para mim pelo menos tem sido assim. Tu vais me
ensinar, não vais? Para que eu possa te ajudar."129

Manuela busca a realização amorosa, individual. Seu contraponto é Lucas, o irmão


carreirista. As boas intenções não a redimem: mesmo aproximando-se da "verdade"
comunista, ela continua presa à sua origem de classe. Para os pequeno-burgueses, diz o
narrador, predomina o pessoal sobre o político. E não há força fora das idéias. A
crueldade do narrador é determinista.
Em se tratando da bailarina, isso é significativo. Entre Shopel, o poeta decadente,
Doroteu, o gaitista negro, e os cegos violeiros do Vale do Rio Salgado, ela é a
representação mais consistente da arte nos romances. Sua dança, apesar do talento inato e
espontâneo, começa nos cassinos, para chegar ao russo Tchaikovski. Ainda que mais

próxima, a arte de Manuela não é revolucionária. No contexto de Os subterrâneos da

126 OSL, I. p.102.


127 Ibid. p.31.
128 OSL, III. p.219.
129 OSL, III. p.316.
44

liberdade, só é revolucionária a arte do povo e da classe operária, condutora do


progresso. Pequeno-burgueses não lideram revoluções. Pequeno-burgueses não podem
ser heróis.
Heróis são os comunistas: Gonçalo e seu talhe de gigante, ensinando o alfabeto aos
camponeses e empunhando a parabellum; João, consciente, calculista, "peça terrível
contra a polícia, o Estado Novo, o fascismo"130; o Ruivo, pulmões se esvaindo na
dispnéia e na tosse, as mãos esqueléticas traçando a ofensiva do partido contra a reação;
Apolinário, abraçado a Agildo Barata e a outros revoltosos, abandonando o quartel do 3o
R.I. após a derrota da insurreição de 1935; Inácia, devolvendo ao caixão do estivador
assassinado a bandeira do sindicato e morrendo pisoteada pela cavalaria; o gaúcho

Emílio, amarrado aos sacos de munição, entregando-se às balas dos americanos do Vale
na canoa em meio ao rio, fazendo-se passar por José Gonçalo; Carlos, chicoteado com
fios de arame, pisado, queimado pela brasa dos cigarros dos investigadores, e mudo; o
velho Orestes, militante dos tempos do anarquismo, explodindo junto à tipografia
clandestina do partido, enquanto cantarolava a Bandiera Rossa: "viva il comunismo e la
libertà"131.
"Feitos de outro barro"132 são todos eles, como o maior herói do Partido Comunista
do Brasil, Luís Carlos Prestes. Prestes é a estrela que brilha no extremo do túnel, ao final

de Os subterrâneos da liberdade: "voz vitoriosa do Partido sobre a reação e o terror"133.


É o líder e o exemplo:

"⎯ Veja Prestes: sua mulher está num campo de concentração na


Alemanha, é pior que a morte. Sua família está espalhada no mundo. Sua
filha nasceu na cadeia, está nas mãos dos nazistas. E veja como Prestes se
comporta.
..............................................................
⎯ Ele é o exemplo para nós todos, para todos os comunistas
brasileiros. Nossa obrigação é procurar ser tão corajosos como ele"134,

diz João a Doroteu.


A Prestes, Jorge Amado já dedicara, em 1942, um volume biográfico, que chamou
de O cavaleiro da esperança. Nele, um menino de nove anos perde o pai e se torna chefe

130 Ibid. p.295.


131 OSL, I. p.364.
132 OSL, III. p.251.
133 Ibid. p.371.
134 OSL, II. p.179.
45

de uma família de mais quatro irmãs, além da mãe. Aos onze, entra para o Colégio
Militar no Rio de Janeiro. A trajetória escolar é brilhante. Aos vinte e quatro anos,
atacado de tifo, ouve da cama de doente as notícias do fracassado levante dos Dezoito do
Forte, em Copacabana. Restabelecido, já capitão de engenharia, pede transferência para o
Rio Grande do Sul, onde trabalhará como fiscal na construção de quartéis, denunciará
negociatas com o dinheiro do Exército, fundará e dirigirá uma escola para alfabetizar os
seus soldados. Em outubro de 1924, aos vinte e seis anos, levanta o Batalhão Ferroviário
de Santo Ângelo contra o governo e inicia, com seus subordinados, a "Grande Marcha"
pelo Brasil. Aos poucos, o menino pobre da Rua do Riachuelo se torna o extraordinário
estrategista, general revolucionário, dirigente comunista Luís Carlos Prestes.

A história de Prestes, narrada por Jorge Amado, resgata o mito de formação do


herói, que abandona a casa materna em busca de um ideal e de sua própria identidade. O
cavaleiro da esperança, espécie de "romance de formação" de um líder, apresenta as
características que Georg Lukács atribui ao gênero:

"um processo consciente e dirigido, orientando-se para um fim determinado,


o desenvolvimento, nos seres, de certas qualidades que, sem uma activa e
feliz intervenção dos homens e dos acasos nunca viriam a desabrochar
neles".135

Nas palavras do crítico, o romance de formação é, em si mesmo, um meio de


formação136.
O mesmo processo formativo se repete em alguns dos personagens de Os
subterrâneos da liberdade. Manuela, por exemplo, ao longo de sua trajetória, e sofrendo

várias violências, deixa de ver o mundo da maneira rósea e crédula que era a sua no
início da trama. Os comunistas aprendem das ações, das autocríticas e dos exemplos, a
ponto de Mariana, a grande heroína da trama, se revoltar contra um dirigente nacional
vindo do Rio, que acabara de conhecer. Caminhando com ele para a casa de Marcos de
Sousa, onde haveria uma reunião do regional de São Paulo, o camarada lhe fala sobre a
mulher e os filhos. Tempos depois, quando João lhe conta os feitos daquele
companheiro, seu heroísmo na prisão, Mariana sente-se "defraudada":

135 Georg Lukács. A teoria do romance. Lisboa: Presença, s.d. p. 159. Cotejada com edição em língua
inglesa: The theory of the novel. Cambridge: The MIT Press, 1994. p.135.
136 Ibid., p. 159.
46

"Por que então ele não aproveitara a conversa para transmitir-lhe algum
ensinamento? Fez a pergunta a João, e este lhe respondeu:
⎯ Se pensares um pouco, verás que ele te ensinou uma coisa preciosa.
⎯ O quê?
⎯ Que um comunista é um homem, feito de carne e osso como os
outros, e não a máquina que muitos pensam, que a burguesia diz que
somos."137

Mas o grande herói formado em Os subterrâneos da liberdade é o próprio partido


comunista, identificado por vezes com a figura de Gonçalo, cuja imagem, para João, se
confundia com a do partido: "forte, calmo, bom, inteligente, resoluto"138. O feitio de
árvore do "gigante do Vale" é análogo à "metáfora orgânica" que acaba por tornar a
organização personagem viva: ela é "o próprio coração da pátria, sua fonte de força vital,
seu cérebro poderoso, seu potente braço"139, cujas mãos, pernas, tronco são a classe
operária140. Ou como nos versos do cego violeiro Doca Fagundes:

"Encontrei 'seu' comunismo


viajando pela estrada.
Onde vai, 'seu' comunismo,
nesse seu passo apressado?
⎯ Vou depressa terra dar
a quem terra não tem.
[...] Da injustiça 'tou cansado,
a ninguém vou fazer mal.
Dos pobres eu sou amigo
pros ricos sou satanás."141

É o partido que amadurece a cada luta, que renasce a cada queda, que se expõe aos
perigos e se recupera dos reveses, tornando-se maior: crescendo. Ao longo da trilogia,
seu corpo vai ganhado novos "membros". O "ciclo político inacabado de Os
subterrâneos da liberdade"142, para usar uma expressão de José Augusto Guerra, não
poderia terminar enquanto seu principal personagem não superasse a "adolescência" no
Brasil, atingindo a maturidade e a velhice (o que nunca veio a acontecer, nem na ficção,
nem na realidade). Ainda assim, seus atos, por meio dos gestos de seus membros, são
heróicos.

137 OSL, II. p.150.


138 OSL, III. p.235.
139 OSL, II. p.116.
140 Cf. Eduardo de Assis Duarte. Op. cit., p. 235-6.
141 OSL, II. p.44.
142 Apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit., p. 226.
47

Nas palavras de Northrop Frye, os comunistas de Os subterrâneos da liberdade


seriam, a princípio, heróis do modo imitativo elevado, cujos poder de ação e autoridade
são muito superiores aos do homem comum, mas ficam dentro dos limites da ordem
natural143; não há, por exemplo, animais falantes ou feiticeiras terríveis na obra. Uma
visada mais atenta, porém, descortina no texto as "armas mágicas" e os "talismãs de
poder miraculoso" de que fala Frye a respeito da estória romanesca144. É assim que
Gonçalo, desesperado pela falta de contato com a direção do partido, se acalma ao
recordar o camarada Prestes, num ambiente algo fantástico:

"Por detrás do vulto enérgico de Vítor, Gonçalo enxerga agora, à luz de


sombras e fumaças do fifó, a figura de Prestes por ele jamais vista, mas tão
familiar como a de seu próprio pai. E a sensação angustiosa e perturbadora
de solidão o abandona, ele se sente de súbito cercado por todo o Partido,
capaz de analisar os problemas, de encontrar-lhes as soluções, de arcar com
todas as responsabilidades, por mais pesadas, por mais difíceis."145

Tempos depois, na casa do professor Valdemar, em Cuiabá, o descomunal


militante enxerga, pelas paredes, "ampliações coloridas dos retratos de dois velhos, sem
dúvida os pais do professor ou de sua esposa, um quadro do Coração de Jesus, e uma
pequena fotografia emoldurada, de um homem barbado, vestido de culote de soldado,
calçado de botas": o Prestes do "tempo heróico e legendário" da Coluna.146
O próprio Gonçalo, se não é um "ogro terrível"147, é, de certa forma, monstruoso
em seu gigantismo ⎯ como Prestes, que "conduz o Partido dentro de si"148. E as "armas

mágicas" dos comunistas são as palavras: Nestor aprendendo a ler, João criticando a
degenerada arte burguesa, Orestes morrendo para que a tipografia "vermelha" não caísse
diante do inimigo, Carlos calado diante da polícia, Marcos de Sousa dirigindo a revista
Perspectivas, Mariana arriscando-se em pichações noturnas no dia do golpe de Estado:

"LIBERDADE PARA PRESTES! ANISTIA!"149.

A arma do partido é a palavra. Esses militantes são, além disso, prodígios de coragem e
resistência, que lhes são naturais e os diferem do homem comum150; sua "férrea"
143 Northrop Frye. Anatomy of criticism: four essays. Princeton: Princeton University Press, 1990. p.33-4.
144 Cf. a tradução brasileira: Northrop Frye. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Trad. de Péricles Eugênio
da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. p.39.
145 OSL, II. p.115.
146 OSL, II. p.240-1.
147 Northrop Frye. Op. cit., p.33.
148 OSL, II. p.115.
149 OSL, I. p.185.
48

estrutura apavora até mesmo o poderoso Costa Vale, que não consegue conciliar o sono,
pois os comunistas lhe metiam medo151.
Para Northrop Frye, a ficção européia foi, ao longo dos últimos quinze séculos,
movendo seu centro de gravidade, de forma descendente, do mito para o modo irônico,
passando pela estória romanesca e pelos modos imitativos elevado e baixo152. Os
subterrâneos da liberdade invertem o caminho: em princípio, acredita-se estar diante de
uma narrativa perfeitamente estruturada de acordo com os traços do modo imitativo
elevado. Engano: aqui e ali, aos poucos, vão-se descobrindo fatores incomuns, quase
sobrenaturais, a conduzirem a trama. Por fim, com o partido tornando-se protagonista da
obra, está-se diante de um ser quase mítico, poderoso e gigantesco. Como o herói

tornado deus Héracles, nascido da relação escusa entre Zeus e a mortal Alcmena e
conhecido por sua extraordinária força física, o partido tem de libertar o mundo de um
certo número de "monstros", superando-os e superando-se, para que, enfim, possa figurar
entre os "imortais"153.
Os sacrifícios por que tem de passar o partido, em busca da redenção final para si e
para os homens (a "luz no túnel"), resgatam também, no texto, aspectos da mitologia
judaico-cristã. A certa altura, durante a tortura dos presos pelo delegado Barros, comenta
o narrador:

"O professor [Valdemar Ribeiro, do Vale do Rio Salgado] causa lástima: só


uma vez lhe bateram, deixaram-no duas noites de pé, sem comer, sem beber.
No entanto, ele parece dez anos mais velho, um magro corpo de Cristo
crucificado, uns olhos de louco."154

É na casa do mesmo professor que Gonçalo vê, ao lado do retrato de Prestes, o do


próprio Cristo.
A trajetória do "messias" ⎯ nascimento, amadurecimento, pregação, martírio,
morte e ressurreição ⎯ se repete na do partido em Os subterrâneos da liberdade. Ao

final, enquanto a reação louva Getúlio Vargas pela "liquidação do Partido Comunista
pela nossa polícia"155, militantes anônimos plantam bandeirolas vermelhas e volantes no

150 Northrop Frye. Op. cit.


151 V. OSL, III. p.223-4.
152 Op. cit., p.34.
153 Sobre o mito de Héracles, v. Pierre Grimal. Dicionário da mitologia grega e romana. 2.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. p.205-21.
154 OSL, III. p.66.
155 Ibid. p.305.
49

Largo da Sé e em frente às grandes fábricas: "a mesma luz de esperança renascia no


relato emocionado de um operário que contava sobre as inscrições e as bandeirolas ou
que lia as ardentes palavras do volante"156.
Na direção do mito, os personagens da trilogia recebem nomes significativos. Entre
os de origem clássica, Orestes, Apolinário, Nestor, Cícero (d'Almeida), Heitor, Hermes,
Doroteu; entre os de origem bíblica, João, Mariana, Marieta, Lucas, Marcos, José Pedro,
José (Gonçalo), José (da Costa Vale), Manuela (de Emanuel, 'nome dado pelo profeta
Isaías ao filho de uma jovem virgem', ou seja, ao próprio messias), Paulo; e outros,
ligados à tradição de famílias nobres européias: Artur, César Guilherme, Carlos,
Henriqueta (Alves Neto). Embora haja comunistas com denominações de todas as

origens, os principais dirigentes e simpatizantes carregam nomes de personagens muito


próximos a Cristo no Novo Testamento, especialmente dos apóstolos: João, Marcos,
Pedro, além de José, o pai adotivo. Há ainda as três mulheres: duas Marias (Mariana,
'relativo a Maria', e Marieta, um diminutivo do nome, portanto uma "Maria diminuída") e
Manuela, que é a promessa ainda irrealizada de um profeta. Há também o negro Doroteu,
que, para atuar na luta do Vale do Rio Salgado, passa a se chamar Ezequiel, a 'força de
Deus'157.
Como Northrop Frye, o húngaro Georg Lukács, um dos expoentes da crítica

marxista, também diferenciou epopéia e romance. Para ele, "o romance é a epopéia de
um mundo sem deuses", num "tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou
problema mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade"158. Heróis como
Ulisses, na Odisséia, ou Nestor e Helena, na Ilíada, só são possíveis, segundo o crítico,
na épica clássica. Eles não vivem o tempo como experiência ou transformação: somente
atualizam, em suas ações, o que já lhes fora determinado por uma ordem superior e
perfeita. Não possuem também interioridade: apenas servem de elo "concreto", porque
vivo, com um sentido já acabado, que transmitem159. Muito distante de um mundo como
esse, o herói moderno é procura.

156 Ibid. p.354, grifo meu.


157 Para o significado dos nomes citados, v., entre outros, Regina Obata. O livro dos nomes. 13.ed. São
Paulo: Nobel, 1994.
158 Cf. a edição portuguesa de A teoria do romance. Lisboa: Editorial Presença, s.d. p. 89 e 55,
respectivamente.
159 Ibid., p.25-30.
50

Sob o signo da mudança e da busca estão, em Os subterrâneos da liberdade, os


pequeno-burgueses Manuela e Lucas. Já os comunistas, caminhando na direção da
estória romanesca e do mito160, vão aos poucos abandonando a categoria de heróis
problemáticos e assumindo um caráter mais e mais "épico", no entender de Lukács161:
eles trazem, em si, uma ordem superior e acabada, um sentido perfeito, que atualizam ⎯

têm "o Partido dentro de si"; são a classe operária encarnada. Os subterrâneos, nesse
sentido, embora constituam um esforço de romance histórico, seguem na contramão da
história, partindo dela para buscarem o épico e o mítico.162
Lukács abre sua Teoria do romance dizendo:

"Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos


caminhos que lhe estão abertos e têm de seguir ⎯ tempos cujos caminhos
são iluminados pela luz das estrelas"163.

Para o crítico, esse era o mundo clássico. Para os comunistas, talvez viesse a ser, um dia,
o futuro.

I.6 Uma democracia totalizante

"Ergue-te, ó luz! Estrela para o povo,


Para os tiranos lúgubre cometa."
(Castro Alves)

No princípio, era a câmera. Nas primeiras páginas de Os subterrâneos da


liberdade, o narrador, à maneira dos modernos cineastas, dirige seu olhar sem
envolvimento ora a este, ora àquele personagem e à situação que o cerca. Literariamente,

porém, ao focalizá-lo, imediatamente aprofunda-se em suas idéias e opiniões,


traduzindo-as. No início dos três romances, o resultado é um mosaico abrangente de

160 Segundo os conceitos de Northrop Frye. Op. cit.


161 Op. cit.
162 Utilizo, aqui, as teorias do romance de Frye e de Lukács simultaneamente, embora não haja
correspondência exata entre as duas. Na Anatomia da crítica, Frye afirma que os heróis épico e trágico de
que trata Aristóteles na Poética são aqueles "do modo imitativo elevado" (op. cit., p. 34 da edição em
língua inglesa). Os critérios de Lukács são menos estruturais e mais histórico-filosóficos. O crítico húngaro
não distingue, na Teoria do romance, mito de epopéia (esta, para Frye, contida no modo imitativo
elevado): os dois corresponderiam ao epos clássico. Já a estória romanesca de Frye, que inclui as narrativas
de aventura, estaria, para Lukács, incluída nas variantes da forma romance, já que, nelas, o herói é errante,
e suas peripécias significam a busca de uma totalidade ou transcendência (cf. Lukács, "Abstract idealism".
In: Op. cit., edição em língua inglesa). O ponto em comum entre os autores é a noção de um "movimento
descendente" (para Lukács, até "decadente", eu diria) entre as formas literárias narrativas desde a épica
clássica até o romance moderno, com base em sua evolução histórica.
163 Cf. a edição em língua inglesa, trad. livre. Op. cit., p.29
51

histórias e consciências, sem a intervenção do narrador. Artur Carneiro Macedo da


Rocha pensa. Pensam Marieta e Mariana, João e Paulo, Manuela e Lucas. O narrador
revela pensamentos:

"[Artur Carneiro Macedo da Rocha] Vinha de trocar de roupa e, ao esvaziar


os bolsos do paletó que usara durante a tarde, encontrou o telegrama de
Paulo. [...] Por que se demorava tanto em Buenos Aires?"

"[...] Apolinário tirou do envelope o documento de identidade. Examinou-o


numa atenção sorridente: perfeito!"

"Manuela sorriu novamente ante o espetáculo envolvente do parque de


diversões, mais uma vez buscou a face enérgica do irmão. [...] quem poderia
retê-lo, quem teria forças para contê-lo, para amarrá-lo à realidade de suas
vidas tristes?"164

Walnice Nogueira Galvão, no ensaio "Amado: respeitoso, respeitável", apontou


como traço estilístico de Jorge Amado o emprego do discurso indireto livre165. No
primeiro capítulo de Os ásperos tempos, ele também predomina. Mantendo sempre o
foco narrativo em terceira pessoa, o narrador acompanha, a cada parte, um personagem
diferente. Por vezes, trata de revelar duas (ou mais) visões divergentes sobre o mesmo
fato do enredo. Na parte 8, por exemplo, o camarada João analisa, com os companheiros
de partido, a conversa que tivera com o deputado Artur:

"⎯ Os homens não querem nada... Muita gentileza, muita sabedoria


política, meias palavras para dizer as coisas mais tolas como se estivessem
dizendo segredos tramendos, eis aí o senhor Deputado Artur não sei o quê,
não sei o quê [sic] Carneiro da Rocha... Que o Exército, patati-patatá, como
se ele não soubesse que os generais estão, quase todos, comprometidos com
os integralistas."166

O encontro entre os dois inimigos de classe já havia aparecido, no romance, por meio das
reflexões e lembranças do político quatrocentão:

"A verdade é que o comunista 'João' (como se chamaria ele na


verdade?, perguntava-se Artur. João não era certamente o seu nome)
precisara essa coisa que andava no ar, falara concretamente do golpe de
Estado que Getúlio Vargas preparava em aliança com os integralistas e, ao
contrário de todos os demais políticos, ele afirmava, em nome do seu Partido,
desse misterioso e amedrontador Partido, [...] que o golpe poderia ser evitado
[...]."167

164 OSL, I. p. 15, 100 e 112, respectivamente.


165 Op. cit.
166 OSL, I. p.105.
167 Ibid. p.19.
52

O procedimento se repete ao longo do capítulo para acontecimentos pensados por


Artur e Marieta, por Marieta e Schopel, por Mariana e Apolinário, por Manuela e Lucas,
por Paulo e Manuela. O resultado é, a princípio, uma estrutura narrativa fraturada. O
narrador, apesar de manter nas mãos as rédeas do discurso por meio do foco narrativo em
terceira pessoa, penetra na consciência de seus personagens, tecendo a trama por meio
das idéias e da memória de cada um. Os subterrâneos são, nesse momento, uma história
ideológica, literalmente: de idéias. Imaginando personagens que acredita serem
representativos dos diferentes modos de pensar da época em que se passa o texto, o
narrador os revela pelo avesso, compondo um quadro de consciências histórica e
politicamente determinadas.

O emprego insistente do discurso indireto livre garante, além disso, uma visão
desdobrada dos personagens. Em um tempo, através do olhar do narrador, o personagem
é visto "por dentro"; em outro tempo, por meio das reflexões dos demais personagens,
constrói-se uma imagem social e pública do mesmo, que muda de acordo com a
interpretação de cada grupo ou classe. O jogo entre aparência e essência, entre ação e
pensamento, define a ética dos diferentes personagens e círculos. Para o narrador, bons
são aqueles cuja atitude traduz o pensar. A epígrafe geral à trilogia, emprestada aos
Sonetos de Camões, deixa claro o principal valor do texto:

"Metida tenho a mão na consciência


e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência".168

O "eu" da epígrafe se confunde com o próprio narrador. Como detentor da


"verdade", ele de início se abstém de opinar diretamente. Não pensa: lê pensamentos.
Não lembra: acompanha lembranças. É o contrário do que Norman Friedman chamou de
"narrador onisciente intruso", que faz predominar, no texto, "suas próprias palavras,
pensamentos e percepções"169.
De acordo com a tipologia de Friedman, o narrador de Os subterrâneos da

liberdade estaria, a princípio, mais próximo da "onisciência seletiva múltipla". Nesta, os

"pensamentos, percepções e sentimentos" são "filtrados pela mente das personagens,

168 OSL I, II e III, grifos meus.


169 apud Ligia Chiappini Moraes Leite. O foco narrativo. 7.ed. São Paulo: Ática, 1994. p. 36-7.
53

detalhadamente"170. Em Os subterrâneos da liberdade, esse modo de narrar é


aparentemente muito democrático: por meio do discurso indireto livre, o narrador dá voz
a todos os personagens, consciências e tendências políticas.
Para Friedman, porém, a onisciência seletiva múltipla é o passo seguinte numa
progressão que parte do narrador onisciente para o narrador-testemunha e para o
narrador-protagonista, rumo a uma "maior objetivação do material da história". Não
haveria, assim, nesse tipo de ponto de vista, um narrador propriamente dito. Nele,
conforme o autor, perde-se o "'alguém' que narra", e a história aparece diretamente, por
meio dos personagens171.
Não é o que acontece na obra de Jorge Amado. Em Os ásperos tempos, apesar de

voluntariamente "apagado", existe um narrador que não é neutro. Ele conduz o discurso:
escolhe os fatos a narrar, julga e classifica atitudes, por meio de apreciações sutis,
filtradas através dos personagens e suas ações. No momento em que o deputado Carneiro
da Rocha analisa o escândalo provocado pela embriaguez do filho Paulo em Bogotá, por
exemplo, o discurso não escapa da pontada de ironia desferida pelo narrador:

"A imprensa inimiga utilizara o incidente explorando-o de maneira


revoltante. [...] Como se fosse um bicho-de-sete-cabeças um jovem segundo-
secretário de Embaixada, farto até a raiz dos cabelos da chata monotonia da
vida em Bogotá, beber além da medida e dizer alguns palavrões em meio a
uma festa diplomática."172

No outro extremo, ele revela a malcontida admiração e condescendência na descrição


dos comunistas, como na noite em que Mariana sofre a morte do pai e decide pedir seu
ingresso no partido:

"No pesado silêncio da sala, a figura do pai se levantava da velha cadeira ao


lado da estante e crescia diante de Mariana. Ela podia enxergá-lo agora,
depois do discurso do camarada à beira do túmulo, numa medida nova, e seu
amor filial misturou-se a uma admiração que a enchia de força e de
coragem."173

Esse narrador, além disso, é dotado de uma onisciência absoluta: tudo vê, tudo
conhece, não se engana com boatos infundados ou com "provocações". Nesse aspecto,

confunde-se com o partido comunista. Os comunistas são, ao longo da trama, muito bem

170 Ligia Chiappini Moraes Leite. Op. cit., p. 47.


171 Ibid., conforme a resenha da obra de Friedman feita pela autora.
172 OSL, I. p.20.
173 Ibid., p.68.
54

informados: sabem de tudo, do Palácio do Catete às docas de Santos, das fábricas


paulistanas à casa de Costa Vale, dos corredores da polícia ao Vale do Rio Salgado. São,
como já se disse, os membros do organismo partidário na trama. O narrador, olhos e voz
da organização, completa o monstruoso corpo.
À aparente "democracia narrativa" de Os subterrâneos da liberdade, impõe-se,
desde o início, um movimento unificador, nas primeiras páginas apenas indicado, e que
vai se tornando mais e mais consistente. O que à primeira vista garante ao texto uma
estrutura de obra "fraturada", onisciência múltipla e discurso indireto livre, é justamente
o aspecto em que, de modo profundo, todas as divergências se apagam. A complexidade
dos personagens e da análise dos fatos históricos encontra limites numa visão da

sociedade dividida entre exploradores e explorados, heróis corajosos e vilões


inescrupulosos ou fracos. A multiplicidade das vozes dos primeiros capítulos da trilogia
vai se diluindo numa só. O narrador se impõe aos poucos.
Ainda em Os ásperos tempos, certa mudança já se percebe. No segundo capítulo,
os trechos em discurso indireto livre começam a se mesclar com passagens cada vez
mais freqüentes em discurso direto, nas quais os personagens, em vez de apenas
pensarem, verbalizam suas idéias. Por vezes, a divergência de opiniões leva à discussão,
como num encontro do Secretariado Regional do PCB no apartamento do escritor Cícero

d'Almeida, em que Saquila e João consideram a arte moderna:

"Saquila dirigiu o olhar para o quadro, com o dedo polegar apertava o


fumo no cachimbo:
⎯ Esse é um quadro de um surrealista inglês, Cícero trouxe da Europa
no ano passado. Possui uma grande qualidade plástica, e um colorido
original. Pintor de grande poder técnico...
⎯ Mas o que é que o pintor quis mostrar no quadro? ⎯ João repetiu a
pergunta de Mariana.
⎯ Ah! Trata-se da reação do artista diante de um domingo de festa
religiosa. Todo o tumulto de boas e más emoções que a visão da pequena-
burguesia lhe provoca...
⎯ Complicado, velho. Aqui o que vejo são manchas e linhas, mais
nada, por mais esforço que faça..."174

Conduzindo os diálogos e reduzindo suas intervenções, o narrador se aproxima nesses

trechos do "modo dramático" de Friedman175.

174 OSL, I. p. 196.


175 Segundo Ligia Chiappini Moraes Leite. Op. cit. p.58-60.
55

No terceiro capítulo, as partes em discurso direto, mescladas àquelas em que ainda


predomina o discurso indireto livre, são ainda mais numerosas. Há ainda certos trechos
em que o narrador assume a narrativa, falando por si e assumindo um tom particular,
francamente apologético para com os militantes do partido e a ideologia comunista.
Comparando as formas de amar das três mulheres emblemáticas da trama, ele diz:

"Seu amor [de Mariana] é infinitamente mais complexo que o de Manuela,


infinitamente mais profundo que o de Marieta. Sua grandeza está muito além
dos limites do leito sonhado por Marieta, do casamento pelo qual anseia
Manuela, seu amor abarca as fronteiras de todos os sentimentos, é a vida em
toda a sua plenitude, e para ela significa ardente alegria, segura confiança,
seu amor a ilumina e dá-lhe forças."176

Ou quando o velho Orestes e Jofre assumem a direção da tipografia do partido:

"Um quase ancião de cabelos encanecidos na luta, tendo-se batido em


quatro países, um daqueles que haviam trazido da velha Europa as primeiras
idéias e os primeiros folhetos, e um quase adolescente, cuja vida de militante
começara não há muito, flor de uma juventude formada na revolta contra a
miséria em que se afogava o povo brasileiro, guardavam aquelas máquinas
procuradas. [...] o velho Orestes e o jovem Jofre guardando as máquinas do
povo, velhice e adolescência fabricando o futuro nos subterrâneos ilegais da
liberdade."177

A voz do narrador, antes insinuada, se torna explícita. Trata-se quase do "narrador


onisciente intruso" de Friedman: aquele que tece "comentários sobre a vida, os costumes,
os caracteres, a moral"178. Os comentários existem, mas o colóquio com o leitor não é
explícito, já que a primeira pessoa não é empregada para designar aquele que narra.
Os ásperos tempos se desenvolvem, assim, em três momentos. No primeiro
capítulo, marcado pelo predomínio do discurso indireto livre, o narrador flagra o íntimo

de seus personagens. Compõe, dessa forma, a história pessoal dos principais atores de
sua trama, dimensionando-os de acordo com a posição social e política que ocupam.
No segundo capítulo, aquilo que era pensado passa a ser falado. A freqüência dos
trechos em discurso direto aumenta. O diálogo coloca os personagens em situação de
confronto, e a coerência do discurso (e da consciência) de cada um é testada pelo
questionamento vindo do próximo. É também por meio do diálogo que os diferentes

grupos (capitalistas, comunistas, pequeno-burgueses) planejam sua ação futura: o que

176 OSL, I. p. 324-5.


177 Ibid. p.308-9.
178 Ligia Chiappini Moraes Leite. Op. cit. p.27.
56

farão diante do golpe de Estado de Vargas, qual a estratégia a tomar frente ao


imperialismo americano ou alemão, como fazer fortuna, no caso dos pequeno-burgueses,
e assim por diante.
No terceiro capítulo, a fala do narrador organiza-se de modo mais pessoal, embora
ainda apareçam os discursos indireto livre e direto. O narrador imprime ao discurso um
tom opiniático, nos momentos em que a narrativa deixa as consciências ou os debates
para entrar na ação, como no episódio da chegada da polícia à gráfica cladestina do
partido, em que morrem Orestes e Jofre. O confronto de idéias, nos romances, nada mais
é do que uma preparação para a luta.
A forma de Os ásperos tempos prefigura, de maneira reduzida, a estrutura global

dos três volumes. Da primeira à última página de Os subterrâneos da liberdade, o


narrador cresce diante do leitor. Sua participação no discurso se torna mais explícita,
dominante. No começo, trata-se apenas de uma sombra: a devassar consciências, a
conduzir diálogos. Na seqüência, a voz se eleva: grandes são aqueles que portam nobres
sentimentos e se sacrificam pela causa da justiça, identificada com a luta comunista.
Em Agonia da noite, um novo e definitivo traço se acrescenta. No primeiro
capítulo, em que acontece a greve de Santos, voltam a aparecer os tipos de discurso do
volume anterior: indireto livre, direto. Mas o terceiro modo de narrar se modifica.

Empregando a terceira pessoa, o narrador, além de opinar sobre a ação, faz também uma
colagem de apreciações "coletivas" a respeito dos fatos narrados.
Como veículos dessas apreciações, aparecem, de forma dominante, artigos de
jornal. Vários são os trechos, ao longo dos romances, em que o narrador se dedica a
resumir a repercussão de certos acontecimentos na imprensa. Quando da chegada da
primeira expedição da nova empresa ao Vale do Rio Salgado, ele anota:

"O primeiro telegrama aparecido nos jornais da tarde, imprensado entre


o noticiário da guerra espanhola, de política internacional e da greve de
Santos (este reduzido aos comunicados da polícia e as [sic] notas fornecidas
pelo DIP), não chegara a despertar grande sensação. Citava um radiograma
enviado das selvas do Rio Salgado pela caravana de técnicos, captado pelo
posto receptor de Cuiabá: a maior parte do material indispensável para os
estudos e explorações havia desaparecido do acampamento durante a noite,
inexplicavelmente."179

179 OSL, II. p.49.


57

E assim prossegue pelas próximas páginas, reiterando que, segundo os jornais, os


habitantes do Vale se encontravam "num estado de civilização tão primitiva quanto os
próprios animais da floresta"180.
A imprensa da época, submetida a censura prévia pelo governo Vargas, era, na
opinião dos comunistas, "vendida". Daí a nota entre parênteses, dando conta da origem
das notícias publicadas sobre a greve de Santos: a polícia e o Departamento de Imprensa
e Propaganda, o DIP. Por isso, no mesmo capítulo, o narrador busca contrapontos.
Um deles é a voz do povo, oposta à do capital. Ela se materializa em discursos,
panfletos, pichações, no jornal A Classe Operária, na fala do partido que, na opinião do
narrador, representa o povo, essa categoria abstrata:

"Riam os dois [Orestes e Jofre] numa gargalhada sã, [...] ao lado daquelas
máquinas ilegais, na solidão escondida daquela casa de campo de onde
partia, nos jornais, nos volantes, nos manifestos, a voz da vanguarda
dirigente da luta do povo brasileiro."181

Sua presença também se percebe nas manifestações artísticas consideradas


populares pelo narrador, como as canções tocadas pelo negro Doroteu em sua gaita,

"capazes de acalmar os homens, de fazê-los sonhadores e românticos, mas


também outras [...], aquelas que levantavam os homens, que os armam e os
incitam para luta"182.

O narrador cita ainda, sobre a mesma questão do Vale do Rio Salgado que tanto
preocupava os jornais "burgueses", os repentes dos cegos violeiros do Arraial de
Tatuaçu:

"'Quando a terra for de todos,


aiô que bom vai ser!
todo mundo vai comer,
fome vai se acabar,
até escola vai ter.'"183

À opinião de que os habitantes do Vale não passavam de primitivos, o narrador


opõe sua prosódia e sua cultura, já contaminadas pelas palavras de ordem comunistas.
Eleva-os à categoria de homens, portadores de vontade e de discurso. Não é à toa que, ao

chegar à região, a primeira tarefa do camarada Gonçalo tenha sido ensinar o camponês

180 Ibid. p.50.


181 OSL, I. p.308.
182 OSL, II. p.18.
183 OSL, II. p.43.
58

Nestor e outros a ler e a escrever184. No fundo, a missão do partido também era


civilizatória.
O outro veículo da "voz do povo" é o próprio narrador. O sentido crescente de
coletivização que os romances vão assumindo desde Os ásperos tempos (as
individualidades vão se dissolvendo nas discussões e ações grupais) se traduz também
em trechos em que ele, numa quase hipertrofia do ponto de vista onisciente intruso, freia
o correr da narrativa e assume uma voz coletiva. Ao final do primeiro capítulo de Agonia
da noite, após o trágico desfecho do episódio da greve de Santos, é narrada a ocupação
da "cidade vermelha":

"Santos com soldados, ocupada. Como uma cidade de um país em


guerra, conquistada pelas forças inimigas. Baionetas luzindo ao sol,
metralhadoras assentadas nos armazéns do porto, nas entradas dos bairros
proletários. Transformadas as escolas em quartéis, não mais o riso alegre das
crianças, agora ordens gritadas por oficiais."185

En seguida, o narrador pergunta:

"Que terríveis inimigos, que Exército, que tropas invasoras, que cruéis
adversários vem o Exército brasileiro combater, que ávidos estrangeiros
ameaçam a Pátria que esses soldados juraram defender? Onde se escondem
esses inimigos estrangeiros? Onde estão seus tanques e canhões, seus
batalhões e regimentos? Contra quem se alçam as armas brasileiras por que
está a cidade de Santos ocupada, em praça de guerra convertida, gemendo
sob a bota dos soldados?".
E responde:

"Chama-se proletariado o inimigo perigoso, a greve foi sua temerária


ação guerreira, seu crime a castigar com as armas dos soldados foi não ter
um navio carregado com café roubado ao povo para ser oferecido a um
assassino de poetas e operários. Seu crime foi amar a outros pobres como
eles, foi amar sua oprimida Pátria, não querer seu nome misturar aos crimes
falangistas mais além do mar."186.

As inversões sintáticas, os paralelismos, as rimas, as figuras de linguagem (o


primeiro fragmento, por exemplo, é denso em metonímias), o abandono dos discursos
direto e indireto livre, a estrutura em perguntas e respostas garantem ao trecho um caráter
mais poético e também mais retórico do que o de qualquer outra parte de Os

subterrâneos da liberdade. Sintomático que esteja em Agonia da noite, volume em que

184 Cf. OSL, II. 44-9.


185 OSL, II. p.152.
186 Ibid. p.153-4.
59

acontece a primeira grande batalha campal entre comunistas e o poder constituído,


justamente a greve em Santos. Nesse momento, o narrador marca sua participação
pessoal de forma mais evidente. É preciso se aprender dos fatos. Seu discurso é uma
pedagogia.
É, também, o veículo de um "senso comum", que por ele transpira. No comentário
sobre o episódio de Santos, é quase como se a própria cidade chorasse o sangue
derramado de seus mortos, de modo semelhante às tragédias gregas, em que o coro fala
pela pólis. Comparem-se, por exemplo, os trechos de Agonia da noite transcritos acima
com as intervenções do coro em Édipo Rei, de Sófocles:

"Quem é esse que a rocha profética de Delfos


acusa de trazer suas mãos ensangüentadas
num crime inominável entre os inomináveis?
Que não tarde a fugir
movendo os pés mais rápidos
que as parelhas dos furacões,
porque o filho de Zeus contra ele investe
armado de coriscos e de chamas;
igualmente as Eríneas, que não falham,
partem, terríveis, no seu encalço."187.
Ao final, comenta o coreuta:

"Moradores de Tebas, minha Pátria, olhai; ali vai Édipo, o sabedor dos
enigmas famosos, o mais poderoso dos homens. Todos nesta cidade viam
com inveja o seu destino. No entanto, a que vaga de misérias chegou! Por
isso devemos considerar o dia derradeiro do mortal e não o julgar feliz antes
que transponha o termo da existência sem ter sofrido dor alguma."188.

Em ambas as passagens, a da prosa de ficção e a da representação trágica,


encontram-se perguntas retóricas análogas ("Que terríveis inimigos, que Exército, que
tropas invasoras, que cruéis adversários vem o Exército brasileiro combater [...]?" /
"Quem é esse que a rocha profética de Delfos/acusa de trazer suas mãos ensangüentadas
[...]?"). Na prosa de Jorge Amado, uma cadência rítmica, quase métrica, antes das pausas
(as frases "Que terríveis inimigos, que Exército", "Onde estão seus tanques e canhões",
"gemendo sob a bota dos soldados" possuem dez sílabas métricas cada uma ⎯ o
decassílabo é o verso da épica clássica). Em ambos os textos, a cidade ⎯ Santos e Tebas

⎯ olha através dos olhos de seu povo.

187 Primeiro Estásimo, Estrofe primeira. In: Teatro grego. 3.ed. Seleção, introd. e trad. direta do grego por
Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 60-1.
188 Êxodo. Ibid., p. 89.
60

Enquanto, na tragédia de Sófocles, a resposta à pergunta do coro no Primeiro


Estásimo (a identidade do criminoso de quem falavam os oráculos) só será esclarecida no
decorrer da ação trágica, em Agonia da noite é o próprio narrador quem esclarece o
"inimigo perigoso" das tropas federais nos parágrafos seguintes às suas próprias
perguntas. O narrador de Os subterrâneos da liberdade tudo sabe; seu conhecimento é
muito maior do que o do coro trágico em relação aos desígnios dos deuses. A solução de
todos os enigmas, para ele, está na futura redenção socialista.
Além de certas estruturas paralelas, Édipo Rei mantém, com Os subterrâneos da
liberdade, pelo menos uma semelhança temática. Apesar de popularizada pela
interpretação psicanalítica do mito de Édipo, a peça de Sófocles é uma tragédia do

poder189. Nela, um soberano se desespera: em sua cidade, as mulheres e os rebanhos há


tempos não procriam, e a vegetação não floresce. A desgraça se abate sobre o povo, e o
culpado é o próprio rei, incapaz de decifrar os oráculos divinos de maneira correta e, por
isso, incapaz de ação que não se converta em crime contra a ordem natural. Édipo é
simbolicamente cego, por isso não pode bem governar, e termina deposto. No final da
peça, a cegueira simbólica se torna literal.
Os temas da obra de Jorge Amado são também poder e política. Assim como na
tragédia, existe, em seus romances políticos, uma ordem natural revertida. O capitalismo

cria o "desconcerto do mundo", na expressão de Camões. A igualdade entre os homens,


lei natural na visão dos comunistas, é desrespeitada: sob a dominação do capital, o que
existe é a exploração do homem pelo homem. Para o narrador de Os subterrâneos da
liberdade, é preciso caminhar para o que é justo, certo e "natural": a igualdade. A ele,
misto de coreuta, oráculo e deus, cabe a missão de porta-voz, de autor da denúncia, de
mestre para os incautos, de juiz para os desviantes e de profeta dos tempos vindouros: o
amanhã iluminado da revolução.
Em A luz no túnel, terceiro volume da trilogia, essa figura de narrador unívoco,
dominante, se confirma. No último capítulo, predomina sua onisciência "quase intrusa",
agora não apenas para ler pensamentos ou descrever ações, mas para fornecer uma

significação final, uma coerência para todos os episódios da trama.

189Cf. sugestão de Adélia Bezerra de Meneses. V. tb. Jean Pierre Vernant e P. Vidal-Naquet. "Édipo sem
complexo". In: Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
61

Entre as partes desse último capítulo, o desfecho simbólico acontece muito antes
da linha final, no trecho em que, à primeira luz da manhã, os operários que saíam para as
fábricas enxergaram, espalhadas por São Paulo, as bandeirolas vermelhas do partido
sobre os fios elétricos190. Sobrevivia o partido Comunista do Brasil, apesar da violenta
repressão: novamente com os operários, disseminando suas "palavras ardentes", diz o
narrador, era a "luz num túnel"191. O sentido de todo o narrado, já que impossível a
vitória, se resume numa assertiva: toda ação é promessa de redenção.
Ao fim, resta ao leitor um paradoxo. Em Os subterrâneos da liberdade, o processo
em direção ao coletivo (tão socialista) passa por uma concentração progressiva do poder
nas mãos de um só. Todo o poder é do narrador. Sua voz congrega todas as vozes; seu

saber, todos os saberes; seu tempo, todos os tempos: conta o passado, vive o presente e
domina o futuro. Como no filme O sol enganador, de Nikita Mikhalkov, sobre a
perseguição aos dissidentes do regime stalinista na URSS, seu retrato é do tamanho do
de Stálin: gigantesco, ubíquo, titânico. E tirânico.
Frutos do stalinismo, Os subterrâneos da liberdade reinventam, sob as regras da
literatura, as contradições desse período. Se o culto à personalidade, tão difundido nos
partidos comunistas à época, encontrou, no Brasil, a figura catalisadora de Prestes, nos
romances da trilogia, ele se impõe através do narrador. Condutor das massas, "estrela

para o povo", o narrador, modesto na aparência, enxerga em si "o borbulhar do gênio"192.

190OSL, III. p.352-4.


191Ibid. p. 354.
192 Ambas as citações são trechos de versos de Castro Alves (dos poemas "Adeus, meu canto" e
"Mocidade e morte", respectivamente). In: Grandes poetas românticos do Brasil. [São Paulo]: Edições
LEP, 1952. p.707/800.
62

II. QUATRO ESTAÇÕES NO INFERNO

II.1 O livro da cadeia

"⎯ Se Jorge não gostou, quem irá gostar?"


(Graciliano Ramos)

Era um domingo comum. Na sala do modesto apartamento à rua Conde de Bonfim,


752, no bairro da Tijuca, Graciliano Ramos recebe os amigos do filho Ricardo: Paulo
Mercadante, Raymundo Araújo, Sílvio Borba. A cena se repete: sobre a mesa, cinzeiros,
copos, xícaras, cachaça, cerveja, café. Antes do almoço, conversas sobre temas gerais:
literatura e política. Depois, como de praxe, Ricardo lê para o pequeno público dois ou

três capítulos do "livro da cadeia". Recuado, cigarro entre os dedos, o velho Graça
escuta1.
A rotina é a mesma por anos. Desde que finalmente se decide por escrever
Memórias do cárcere, em janeiro de 1946, Graciliano Ramos inicia um processo lento e
intermitente de criação. Isto, se já lhe era típico, foi ainda agravado pelas necessidades
materiais do escritor e sua família, que o obrigavam com freqüência a aceitar trabalhos
avulsos, além de dois empregos: o de inspetor de ensino do Distrito Federal e o de
revisor no jornal Correio da Manhã, este a partir de 1947.
Antes de 46, Graciliano já havia por duas vezes tentado iniciar a elaboração das
Memórias, sem sucesso. Ainda na prisão, as notas que tomou na viagem no porão do
vapor Manaus para o Rio, no Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção e na Colônia
Correcional da Ilha Grande tiveram destino infeliz. Os dois primeiros textos foram
jogados na baía de Mangaratiba, durante a transferência de Graciliano para a Ilha
Grande, e se desmancharam no mar; o segundo foi escondido sob a cama cheia de
hemoptises deixada pelo escritor na Colônia, para não ser levado pela polícia2.

1 Cf. Raymundo Araújo. "Graciliano reencontrado". In: Paulo Mercadante. Graciliano Ramos: o
manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p.11-2 e Ricardo Ramos. Graciliano: retrato
fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992. p.158-9.
2 Cf. Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. 4 vols. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
Respectivamente vol. III, caps. 7 e 31. Deste ponto em diante, a obra será referida pela sigla MC, seguida
do número do volume em algarismos romanos.
63

Em 1937, já em liberdade, o escritor procurou cumprir a promessa que fizera ao


diretor do presídio, a de contar "lá fora" o que existia na ilha Grande3. Num manuscrito
autógrafo, sem data, afirma ele que

"O anno passado, numa situação bastante difficil, escrevi a lapis algumas
notas que escondi no sapato."

A recordação da experiência recente o atormentava:

"Muitas vezes, no meio duma conversa animada, no café ou na livraria [José


Olympio, no Rio de Janeiro], a lembrança desagradável appareceu-me de
repente"4.

No mesmo ano, Graciliano ainda elaborou a primeira versão de alguns episódios


do segundo volume das Memórias, sob o título provisório de "Primeiras notícias da

colônia". São possivelmente da mesma época as listas com nomes de pessoas com quem
o escritor convivera durante os dez meses de prisão, bem como as versões mais antigas
de alguns capítulos da obra5.
De 1937 a 1946, data que abre o manuscrito do primeiro capítulo da versão
publicada de Memórias do cárcere, passaram-se quase dez anos. Nele, Graciliano se
refere à hesitação e às dificuldades pessoais para elaborar a narrativa. Por um lado, a
questão financeira: reduzido "a pão e laranja", como costumava dizer, precisou deixar de
lado os projetos de longo curso e se ocupar do ganho diário. Por outro, o escrúpulo em
fazer de criaturas vivas personagens, imputar-lhes atos e declarações, sem lhes poder
garantir a fidelidade às palavras, tomadas apenas de memória6.
Durante os anos de silêncio, além disso, em muito se modificara a situação política
do país. Em 1937, quando Graciliano saiu da prisão, os altos escalões do governo
preparavam o golpe de Estado, que enfim se concretizou a 10 de novembro. O escritor
era, então, apenas um "materialista" sem partido, que "desejava a morte do capitalismo, o
fim da exploração"7. Em 1946, após a queda de Vargas, era o PCB que se organizava,
depois de conquistar a tão sonhada legalidade. Graciliano entrou para os quadros

3 MC, III. p.194.


4 Os documentos citados constam do Arquivo Graciliano Ramos (IEB/USP). Cf. Yêdda Dias Lima &
Zenir Campos Reis (coords.). Catálogo de manuscritos do Arquivo Graciliano Ramos. São Paulo: Edusp,
1992. p.71. A grafia original foi mantida.
5 Ibid., p.71-7.
6 Cf. MC, I. p.5-7.
7 MC, I. p.120.
64

partidários em agosto de 1945, e foi como comunista que iniciou a redação das memórias
da cadeia.
Aos que viessem a considerar a censura do Estado Novo causa de sua relutância
em entregar-se ao trabalho planejado, porém, ele advertia:

"Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas


excelentes por falta de liberdade ⎯ talvez ingênuo recurso de justificar
inépcia ou preguiça. [...] Não caluniemos o nosso pequenino fascismo
tupinambá [...]. De fato ele não nos impediu de escrever. Apenas nos
suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício."8

No início de 1946, a nova situação política fazia renascer esse desejo. Mais que
isso, o testemunho do respeitado escritor que Graciliano já era à época tornava-se
obrigação:

"Alguns reclamam a tarefa, consideram-na dever, oferecem-me dados,


relembram figuras desaparecidas, espicaçam-me por todos os meios. Acho
que eles estão certos: a experiência se fixa, domina-me."9

Era, para o velho Graça, momento de agir em prol dos ideais que assumiu ao se
tornar membro do PCB. Ainda em 1945, aceitou fazer-se candidato a senador pelo estado
de Alagoas, apesar de estar certo de não obter, dos eleitores, nem "meia dúzia de
votos"10. Foi mais ou menos o que aconteceu. Datam também do final desse ano alguns
discursos pronunciados pelo escritor em comícios do partido, em que, seguindo os
ditames da direção, Graciliano exigia uma "Assembléia Constituinte livremente eleita"
com a manutenção de Getúlio Vargas no poder11.
Ao contrário de Jorge Amado, porém, Graciliano não consegue fazer de sua

atuação política algo sectário. Não se tornou, como o companheiro, apenas um


funcionário do partido, apesar de freqüentar regularmente as reuniões de sua célula e
participar de manifestações populares. Afirmou, inúmeras vezes, não aceitar a
capitulação da literatura frente ao panfleto, buscando atuar junto aos seus pares: homens

8 MC, I. p.6.
9 Ibid. p.8.
10 Apud José Carlos Garbuglio et alii. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987 (Escritores Brasileiros,
Antologia & Estudos, 2). p.78.
11 José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 110-1. Após ter se colocado a favor dos Aliados, URSS
inclusive, nos momentos finais da II Guerra Mundial, Vargas começou a ser mais bem visto pelos
comunistas, que passaram a enxergar no ditador um meio de se consolidar a abertura do regime sem um
outro golpe de Estado, que afinal acabou acontecendo em fins de outubro de 1945. V., entre outros,
Raimundo Campos. História do Brasil. São Paulo: Atual, 1983. p.196-7.
65

de letras, jornalistas e escritores. Em março de 1951, depois de alguns anos de atividade


intensa como membro da Associação Brasileira dos Escritores (ABDE), Graciliano
Ramos foi eleito presidente dessa instituição12.
Nessa época, todavia, a representatividade da ABDE já se esvaziara. Em 1949,
após disputa acalorada, inclusive com luta física entre alguns membros pela posse do
livro de atas da associação, a chapa apoiada pelos comunistas assumiu a direção do
órgão. Com isso, escritores importantes ligados à outra facção retiram-se dele. Graciliano
lamentou o fato, afirmando, no Congresso do ano seguinte, estarem "ausentes da
A.B.D.E. os representantes verdadeiros da literatura nacional"13. Enquanto presidente da
organização, porém, vinculado à linha partidária, o escritor defendia a posição da chapa

por ele apoiada:

"Atacam-nos por sermos políticos. Bela novidade. Claro que somos políticos.
[...] Falar muito, discutir, brigar às vezes. Ótimo. Sairemos dessa luta
fortalecidos, lá fora defenderemos os nossos interesses e a cultura exígua de
que somos capazes. Surgirão descontentamentos, sempre haverá quem diga
de nós cobras e lagartos. Que fazer? Essas ofensas não nos perturbarão"14.

As dissensões na Associação Brasileira dos Escritores eram a face aparente de uma


questão bem mais profunda. Mergulhado na guerra fria, o ocidente viveu, após a
capitulação do Eixo, uma radicalização de posições que contaminou todos os setores da
vida social, inclusive no Brasil. A cultura também não escapou. Ser progressista ⎯ ou,
no limite, não fazer parte do "nosso pequenino fascismo tupinambá"15 ⎯ era, em fins da

década de 40, admirar Prestes, adorar Stálin, alinhar-se com as propostas do partido e
aceitar seus direcionamentos, inclusive sob o ponto de vista literário. Quem não o fizesse
era considerado "inimigo". "Tempo de homens partidos"16, diria Drummond.
Nesse tempo, a política cultural da URSS era controlada por um dos homens fortes
de Stálin, Andrei Zhdanov, também governador de Leningrado, cuja função de censor
das artes resumia-se em verificar se a produção cultural soviética estava ou não de

12 Ibid. p. 85.
13 In: José Carlos Garbuglio et alii. p. 82.
14 In: Ibid. p. 87. Trata-se de discurso pronunciado no encerramento do IV Congresso Brasileiro de
Escritores, em Porto Alegre (1951).
15 José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 111. A expressão, retirada de um dos discursos de Graciliano,
também aparece em MC, I. V. nota 8.
16 "Nosso tempo". In: A rosa do povo. Nova Reunião (19 livros de poesia). 3.ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987. p.120.
66

acordo com as normas do chamado realismo socialista. As características desse "estilo",


a princípio muito fluidas e pouco definidas, foram tomando feição cada vez mais
ideológica.
Em artigos de 1946, traduzidos e publicados no Brasil em 1949 pela revista
Problemas, Zhdanov criticou certas tendências da literatura soviética, que teriam
esquecido "alguns dos princípios fundamentais do leninismo"17 e buscado o apoliticismo
em literatura. Para ele, isso era a camuflagem de uma "corrupção ideológica e moral em
busca da beleza vazia da forma"18. Para finalizar, fez uma acusação veemente:

"Que podem ensinar à nossa juventude [essas] obras [...]? Nada, a não ser o
mal. Não podem senão semear o desânimo, o derrotismo, o pessimismo, o
desejo de se afastar das questões fundamentais da vida social, de deixar a
grande estrada da vida e da atividade social por um pequeno e estreito
universo de emoções pessoais."19

Na prática, o tão buscado "realismo socialista" tornou-se um conjunto de normas


que envolviam a predileção por obras "épicas" que enfocassem a luta do homem no
processo de trabalho e seu caminho revolucionário; a transformação dos "melhores
representantes da classe operária" em personagens positivos na ficção; o repúdio ao
abstracionismo e ao subjetivismo; a veiculação de uma "verdade popular", só alcançável
se o escritor vivesse no meio do povo, sentindo suas dores e problemas e participando de
suas reivindicações.20 Tratava-se, em suma, de um novo romantismo, então modificado
pelo teor revolucionário e revestido de certo naturalismo, expurgado de seus aspectos
escatológicos ou "pornográficos". Havia, além disso, um grande desprezo pelo
memorialismo. Este viria a significar apego aos valores individualistas burgueses, já
superados no estágio revolucionário em que os comunistas da época acreditavam estar21.
Graciliano, apesar de disciplinado membro do partido, não sucumbiu à
ingenuidade dessas proposições e tornou-se, com o tempo, uma "pedra no sapato" dos

17 Andrei Zhdanov. "As tarefas da literatura na sociedade soviética". In: Problemas: revista mensal de
cultura política. Ano 3, n.20 (ago.-set. 1949), p. 97-8.
18 Ibid., p. 92.
19 Andrei Zhdanov. "As tarefas da literatura na sociedade soviética". p. 93.
20 Para uma análise detida da repercussão do realismo socialista no Brasil, v. Dênis de Moraes. O
imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1994. Os aspectos citados encontram-se esparsos nos capítulos "A estética revolucionária" e "Os
epígonos do jdanovismo no Brasil".
21 Segundo Dênis de Moraes, o partido enviou o camarada Dalcídio Jurandir ao Rio Grande do Sul, no
início dos anos 50, a fim de preparar um livro sobre os portuários locais e impedir que o memorialismo
viesse a impregnar a narrativa. Ibid., p.160.
67

dirigentes encarregados da questão cultural. Sobre a orientação literária recebida de


Moscou, manteve, nos fins da década de 40, o seguinte diálogo com o jornalista
Heráclito Salles:

"⎯ Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e
barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o
narrador diz: 'O camarada Stalin...' Ora porra! Isto no meio de um romance?!
Tomei horror.
⎯ Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista? [⎯
pergunta Salles.]
⎯ Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não
pelo estilo do panfleto.
..................................................
⎯ Esse Jdanov é um cavalo!"22

O medo que os comunistas brasileiros tinham das irreverentes críticas do velho


Graça chegou a tal ponto que, na viagem que ele e a esposa Heloísa fizeram à União
Soviética em 1952, os dois foram acompanhados o tempo todo por Dalcídio Jurandir.
Segundo Zélia Gattai, a tarefa do companheiro de jornada era evitar as inconveniências
de Graciliano em terras bolcheviques23. Mesmo assim, houve um entrevero entre ele e o
presidente da União dos Escritores Georgianos, Jorge Leonidze, que acabou por alcunhar
o brasileiro de "criatura espinhosa"24.
Não obstante isso, o Graciliano comunista idealizava Stálin e via nele um
"defensor da classe trabalhadora" e um "tremendo condutor de povos", apesar de não
admitir "nenhum culto a pessoas vivas"25. Num discurso, Graciliano criticou os
"salvadores vaidosos que nos trituram a paciência, nos amolam com o pronomezinho
irritante: eu, eu, eu, eu"26:

"Não temos a ingenuidade necessária para confiar nos messias que se


arrogam o direito de conduzir as massas arbitrariamente e nos concedem
liberalidades no papel e em discursos [...] e não nos entendem, não nos
conhecem, nunca nos entenderão e nunca nos conhecerão."27

As contradições se aguçavam. Incomodado pela pressão do partido, que exigia dele


uma militância literária mais disciplinada, Graciliano buscava justificativas. Primeiro,

22 Ibid., p.208.
23 Cf. Jardim de inverno. Rio de Janeiro: Record, 1988. p.222-3.
24 Graciliano Ramos. Viagem. p. 169.
25 Ibid., p. 61/2. Consultar também Janer Cristaldo. Op. cit., passim.
26 "Exigimos uma Assembléia Constituinte". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 111, grifos do
autor.
27 Ibid.
68

afirmando que "o artista deve procurar dizer a verdade" e que "só podemos expor o que
somos"28. Depois, já com certa amargura, observando, na Praça Vermelha, em Moscou, a
peregrinação ao túmulo de Lênin:

"Tinha-me vindo o pensamento de que os meus romances nenhum


interesse despertariam àqueles homens: são narrativas de um mundo morto,
as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali
patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava-me da minha
gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. [...] Necessário conformar-
me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em
sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres."29

A estadia de Graciliano por alguns meses na Europa e repúblicas soviéticas, em


1952, interrompeu a redação de Memórias do cárcere, já em estágio avançado. Desde
1946, época de sua definição política, o escritor vinha tecendo pelo avesso sua denúncia
a respeito do Estado Novo. O partido pedia um monumento épico sobre a luta comunista
no Brasil; Graciliano compunha memórias. O partido pedia a exaltação dos heróis da
"nobre" causa; Graciliano oferecia a vaidade do alto dirigente Antônio Manuel Bonfim, o
Miranda, a voz esganiçada de Agildo Barata, e Rodolfo Ghioldi, secretário-geral do PC
argentino, fazendo discursos em cuecas. O partido pedia o artista no meio do povo;
Graciliano mostrava um escritor perdido entre intelectuais e militares que não se
entendiam.
Já muito doente, no início de 1953, o velho recebeu a visita de Jorge Amado. Seu
fôlego era curto para conversas. Ricardo Ramos propôs a leitura de alguns capítulos de
Viagem, entusiasticamente elogiados por Jorge, que depois se retirou. Graciliano

retrucaria:

"⎯ Jorge não gostou."

Ricardo, espantado: "Como não tinha gostado?" Graciliano:

"⎯ Só falou de literatura. Isso eu sei. Não falou de política.


⎯ E precisava?", torna Ricardo.
"⎯ Como não?"

Pausa. Ricardo buscou contornar a situação:

28 Respectivamente em "Fator econômico no romance brasileiro" e em carta "A Marili Ramos". Ibid., p.
127 e 241.
29 Graciliano Ramos.Viagem. p. 57.
69

"⎯ Afinal, o que é que você queria? Não chamou Stalin de pai, nem de
guia genial dos povos, não entrou naquela de mundo da paz. Saiu muito fora
do jeitão dele."

Graciliano concluiu, taxativo:

"⎯ É o jeito do partido, o que eles desejam. E devem ter razão. Se


Jorge não gostou, quem irá gostar?"30

Graciliano não viveu para constatar as tentativas de censura partidária a Viagem e a


Memórias do cárcere, nem tampouco para ouvir a opinião oficial do PCB sobre a última
obra. Em 1953, para os ilustres "condutores das massas", o livro da cadeia não passava
de um "elogio da polícia e da pederastia"31.

II.2 "Esquecer para lembrar"

"É calma, tudo lá. Em mim, tremor.


Em mim é que elas bramem, noite negra."
(Drummond)

Na sexta-feira, 19 de junho de 1936, os paulistanos acordaram com a seguinte


manchete nos jornais:

"FOI SUFFOCADO UM MOVIMENTO DE


REBELDIA DOS EXTREMISTAS PRESOS

A ACÇÃO DO EX-CAPITÃO AGILDO


BARATA E DO COMM.TE CASCARDO

[...] Sabbado ultimo, quando penetravam na cella em que se achavam


quatro dos presos, os ex-officiaes Agildo Barata, Hercolino Cascardo e
Alcedo Cavalcanti e o medico Sebastião Da Hora, dois guardas foram
atacados.
[...] Dadas as rapidas providencias que a situação exigia se tomassem,
os directores puderam, dentro de pouco tempo, suffocar ainda no nascedouro
o movimento de rebeldia, livrando os guardas das mãos dos seus aggressores.
Por mais rapido, todavia, que fosse o socorro aos aggredidos, estes já tinham
sido muito machucados."32

Nesse dia, Graciliano Ramos se encontrava preso na Casa de Detenção do Rio de


Janeiro, onde aconteceram os fatos. A cena é narrada em Memórias do cárcere numa
versão diferente:

30 O diálogo está reproduzido em Ricardo Ramos. Op. cit. p. 172-3.


31 Ricardo Ramos. Op. cit., p. 202.
32 O Estado de São Paulo, 19-06-1936. p.1. A grafia original foi mantida.
70

"Naquela noite suspendeu-se a leitura e espalhou-se um burburinho nos


cubículos; expectativa, informações desencontradas, afinal soubemos que
Benigno Fernandes se esvaía numa hemoptise.[...]
....................................................
[...] Ranger de chave na porta da frente foi o sinal para um charivari
louco.
Principiamos a sacudir as grades com desespero. Ajustavam-se mal aos
batentes, as lingüetas folgavam nos encaixes; segurando os varões de ferro,
agitando-os, produzíamos bulha infernal. Poucos se eximiram do contágio,
suponho, da fúria de bichos excitados e impotentes. [...] Em frente a mim,
Lacerdão exibia violência profética: ligava-se às varas, formava corpo com
elas; o inglês erudito de Cambridge desaparecia; tínhamos ali um feixe de
músculos encrespando-se, tentando rebentar a prisão; a carne engrossava,
matéria bruta igual ao ferro; a barba espessa voava, a boca enorme se
escancarava largando insultos indeterminados."33

Nos jornais, ganhava vulto o tom indignado de defesa da ordem pública, uma
escolha vocabular que tomava partido (a "rebeldia" vista como algo negativo, a oposição

entre guardas/"agredidos" e "agressores"), e uma linguagem que, fazendo uso da


narrativa em terceira pessoa, obstinava-se em impessoalizar-se, desejando, dessa forma,
mostrar-se objetiva e imparcial no relato dos fatos.
No texto literário, fruto de um testemunho que olha os fatos de dentro, o emprego
da primeira pessoa faz do relato uma das variantes possíveis e foge da pretensa "visão
objetiva". A abundância de figuras de linguagem, especialmente da metonímia
("tínhamos ali um feixe de músculos", "a carne engrossava", "a barba espessa voava", "a
boca enorme se escancarava") e de uma comparação altamente expressiva (a carne era
"matéria bruta igual ao ferro"), conferem intensa dramaticidade à cena.
O resultado disso é um discurso que abandona a ação pura e simples, buscando
para ela uma interpretação mais profunda e simbólica. Lacerdão, o companheiro
Lacerda, que vivera na Inglaterra e ocupava seu tempo no Pavilhão dos Primários a dar
aulas de inglês aos presos e a vociferar cantigas agarrado aos ferros da cadeia34, se
tornaria, no discurso do narrador Graciliano, um novo Laocoonte, que se confunde com
as serpentes-grades que o dominam e o querem sufocar, e cujo grito se vê, mas não se
enuncia, nem na célebre escultura que popularizou o mito, nem no texto de Graciliano
Ramos, em que apenas volteiam desesperadamente músculos, barba e a boca escancarada

do personagem. Segundo a Eneida, Laocoonte foi um sacerdote que sofreu a ira do deus

33 MC, II. p.125/128-130. Na notícia veiculada pelos jornais, o doente não era Benigno Fernandes, mas
Eneida de Moraes Costa, também ela presa política.
34 V. MC, II. p. 61-2.
71

Apolo. Vendo seus dois filhos sendo engolidos por serpentes saídas do mar, tentou salvá-
los da morte inevitável, e os três acabaram asfixiados. No mito como em Memórias do
cárcere, os personagens representam a batalha, ainda que infrutífera, contra um poder
maior, divino ou humano, que tortura e castiga, ao qual o corpo sucumbe, mas a mente
resiste.35
Muitas vezes, em Memórias do cárcere, os jornais, lidos pela noite em voz alta
pelos presos da Detenção, são chamados de "literatura inimiga"36. Para Graciliano, era
inútil qualquer manifestação dos detentos entre as grades da cadeia. A certa altura,
comentando a resistência dos companheiros Álvaro de Sousa e Agildo Barata a
comparecer perante o Tribunal de Segurança, instituído à época para tratar dos crimes

políticos, diz ele:

"A coragem louca perdia-se. Berros, esgares, movimentos de bicho feroz


dominado a custo, seriam indistinto rumor além dos muros da prisão. E nada
valiam serem percebidos: o juízo venenoso dos jornais insinuava-se nos
espíritos."37
Censurada ou acovardada, a imprensa transmitia ao público a visão oficial sobre os
fatos. Mas ela não era a única. A própria decisão de Graciliano em escrever suas
"recordações confusas"38 vinculava-se à necessidade ou desejo de oferecer uma
alternativa à história contada tal como havia sido até ali. Além disso, o corpo das
Memórias do cárcere são um bordado de narrativas, de versões diversas sobre os
mesmos fatos, do verdadeiro ou falso que as palavras escondem, da procura de uma
comunicação, no limite, entre os universos de homens e grupos irremediavelmente

únicos e diferentes.
É assim que surgiram divergências entre os presos da Casa de Correção a respeito
da guerra civil na Espanha:

"A guerra da Espanha nos excitava, e no mais simples avanço dos


republicanos queríamos ver a próxima derrota do fascismo. Certo dia, lendo
uma folha argentina, tive a idéia de recorrer às luzes de Alcedo Cavalcante:

35 A análise da figura de Laocoonte foi feita a partir de sugestões de Davi Arrigucci Jr. e textos de
Winckelmann e Schiller sobre a escultura do século I d.C. A explicação do mito está em Pierre Grimal.
Op. cit. p. 266-7.
36 Ibid., p. 123.
37 MC, IV. p. 122-3. A notícia saiu na primeira página de O Estado de São Paulo de 12-01-1937, sob o
título "Os presos politicos hostilisam [sic] o Tribunal de Segurança".
38 MC, I. p. 8.
72

⎯ Venha trocar isto em miúdo, Alcedo. Não entendemos de marchas


nem de cercos. Você, major e professor, pode traduzir-nos este negócio de
estratégia em língua de cristão.
[...] Uma crítica otimista em demasia. O triunfo era certo; mouros,
italianos e alemães estavam sendo varridos da península; dentro em
pouco os traidores seriam fuzilados. De repente o homem recusou um
telegrama de Burgos:
............................................
⎯ Ora essa! estranhou Eneida. Nós desejamos um comentário
imparcial. Se você só se ocupa de uma das partes, estamos a perder tempo."39

O trecho em negrito, narrado em discurso indireto livre, mostra a incorporação da fala do


personagem ao discurso do narrador, justapondo-a à opinião deste, enunciada no período
anterior. Instaura-se o conflito. Nesse episódio, ele é causado pelo desejo do major de
"ver a derrota do fascismo", contra a exigência de objetividade dos outros presos.

Em outro momento, largado sobre uma esteira da Colônia Correcional de Dois


Rios, Graciliano desconfiava das narrativas heróicas de Gaúcho, um dos ladrões de quem
se tornara amigo na Ilha Grande:

"Em seguida referiu-me a evasão de Fernando de Noronha. [...] O


arrombador escapara da prisão, arranjara um bote e fizera-se ao largo. Não
tinha velejado muito e recebia uma descarga: alguns perseguidores
navegavam para ele. Deitara-se, livrara-se das balas. [...] Ainda longe do
continente, naufragara a embarcação dos caçadores. O fugitivo recuara.
Avizinhara-se deles e, com esforço, recolhera todos, meio mortos.
Prosseguira e ao cabo de horas alcançava uma praia deserta. Pusera em terra
quatro soldados exaustos, sem armas, e embrenhara-se no Rio Grande do
Norte [...].
.............................................
Essa franqueza levou-me naquele momento a aceitar sem exame o
heroísmo do sujeito absurdo. Incongruente. Mas quem não é incongruente?"

E, mais acima, o julgamento desconfiado:

"Supus que a fantasia dele houvesse forjado o caso, pelo menos grande parte
do caso estranho. Em geral aqueles homens devaneavam, enxertavam
pedaços de sonho na realidade."40

Nesse instante, o confronto se dá entre a imaginação e a verdade, entre o sonho e a


rigorosa articulação lógica do discurso, que o faz perfeitamente verossímil: "Enfim, as
narrações dele articulavam-se com rigor."41

39MC, IV. p.70, grifo meu.


40MC, III. p. 177-8.
41 Ibid., p. 177-8.
73

São inúmeras as narrativas e os contadores de histórias dentro da grande história


que é Memórias do cárcere, coordenados por um narrador Graciliano Ramos42. O
Graciliano escritor, que em 1946 se decidira pela elaboração de seu testemunho, optou
por um discurso plural, em que os personagens fazem relatos e cujo protagonista é ele
mesmo produtor de vários textos dentro do texto (os romances já publicados e a publicar,
as notas da cadeia). É ele também que narra, num nível mais abrangente, toda a obra,
refletindo, no interior do discurso, sobre o significado da experiência vivida.43
Nessa decisão pelo múltiplo, percebe-se um tipo de pensamento que vê a verdade
como fluida e relativa e que praticamente nega a validade do simples documento quando
o objetivo é resgatar uma certa realidade:

"Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de


observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água. [...] Se
ele[s] existisse[m], ver-me-ia propenso a consultá-lo[s] a cada instante,
mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas
demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor
das folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes
verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que
significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis."44

Na exposição de motivos que constitui o capítulo-prefácio de Memórias do


cárcere, o autor revela como intenção distinguir "uma verdade superior a outra verdade
convencional e aparente, uma verdade expressa de relance nas fisionomias"45, que é,
muito mais do que factual, humana:

"Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as


suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a
sombra dos meus defeitos."46

O resultado trouxe, muitas vezes, perplexidade, conflito interior e, em alguns


casos, desentendimentos que Graciliano sempre assumiu integralmente. Sem abrir mão
de seu ponto de vista pessoal, o escritor tinha por princípio que qualquer fato recriado
pela linguagem só o seria sob a ótica do sujeito. Daí o aparente paradoxo de algumas

42 Sobre as diferenças entre o "Graciliano do enunciado" e o "Graciliano da enunciação", v. Boris


Schnaiderman. "Duas vozes diferentes em Memórias do cárcere?". In: Estudos avançados. São Paulo, 9
(23): 332-7, jan./abr. 1995.
43 Para uma análise pormenorizada desse aspecto de Memórias do cárcere, v. Hermenegildo José de M.
Bastos. Memórias do cárcere, literatura e testemunho. Tese de doutoramento. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1996. 193p.
44 MC, I. p. 9.
45 Ibid., p. 10.
46 MC, I. p. 11.
74

afirmações suas sobre o ato de escrever. Por um lado, prezava a observação da realidade,
método que sempre norteou sua produção literária e razão da implicância do escritor, em
1945, contra alguns de seus colegas romancistas:

"O romancista não é nenhum deus para tirar criaturas vivas da cabeça.
........................................
Estamos diante de um fato. Vamos estudá-lo friamente."47

Por outro, a consciência de jamais ter saído de si mesmo:

"Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas


aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É
possível que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o
vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam."48

O aprofundamento no humano e a análise do mundo convivem de modo exemplar


em Angústia, lançado enquanto o autor ainda se encontrava preso. Nesse romance, por
entre as brechas do fluxo de consciência intenso que envolve o narrador-protagonista,
brotam laivos de realidade, misturados a lembranças e reflexões incessantes. A revolta de
Graciliano contra os críticos de Angústia foi enorme. Quando da publicação, os jornais
mostravam a obra como um primor de narrativa psicológica49. Ele retrucava: seu
romance tratava das relações de poder entre um intelectual frustrado e o sistema.
Assumindo a polêmica, Rubem Braga, amigo íntimo de Graciliano, defendeu, num artigo
de 1937, uma interpretação "sócio-política" para o livro:

"Quero apenas notar aqui que, ao contrário do que estão dizendo, esse
livro encerra uma lição social bastante clara. O personagem Luís da Silva
tem uma posição nítida: é um intelectual a serviço dos politiqueiros. Um tipo
de literato oficial bastante fácil de ver; um homem de pensamento com um
emprego público. [...]
[...] O que leva Luís a matar Julião Tavares não é apenas o caso
daquela ruiva e excitante Marina. É também a raiva que ele acumulou contra
todos os Juliões Tavares, a quem ele serve."50

Aconteceu com Memórias do cárcere algo semelhante. Enquanto o público, em


especial a intelectualidade de esquerda, esperava da prometida obra um retrato mais ou
menos "realista" dos anos da ditadura Vargas, Graciliano trabalhava num texto em que

47 Graciliano Ramos. "O fator econômico no romance brasileiro". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op.
cit., p.127.
48 Idem. "Alguns tipos sem importância". In: Ibid., p. 122.
49 V., por exemplo, o artigo de Peregrino Júnior, "O romance introspectivo de Graciliano Ramos". In:
Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, 3 (27), maio 1937.
50 Rubem Braga. "Luiz da Silva e Julião Tavares". In: Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, 3 (27), maio
1937.
75

ganha relevo a pessoalidade do relato, em que o monólogo interior substitui, quase


sempre, o diálogo impossível entre consciências diversas, em que a linearidade temporal
é quebrada pelo ir-e-vir de lembranças e incertezas sobre o futuro. O próprio texto, por
vezes, duvida de si mesmo. Há fatos ou detalhes que fogem ao esforço de serem
resgatados, pelo receio do narrador de estar sendo impreciso ou falso:

"Foi ali com certeza que achei meio de renovar a minha provisão de fósforos
e cigarros. Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água.
Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do camarote do padeiro,
mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se vinha de
encanamento. Afasto a última suposição, estou quase certo de que não existia
nenhuma torneira."51

Não obstante a dúvida, o autor manteve sua opção pela memória como meio de
"exumar" os "casos passados há dez anos"52 de que tratou em Memórias do cárcere. Foi
por meio dela, da teia por vezes caótica do seu discurso, que se vislumbraram pessoas,
acontecimentos históricos, situações, experiências, lembranças. Quase tão
"psicologicamente" como em Angústia, com o agravante de ser o "livro da cadeia" obra
assumidamente autobiográfica. Ainda mais social e politicamente do que no romance
sobre Luís da Silva, pela amplitude dos grupos e complexidade das questões
reconstituídas na narrativa árida e dilacerada que são as Memórias.
Antonio Candido, em ensaio célebre, julgou o conjunto da obra de Graciliano
Ramos "uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de
costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais."53 Para o crítico, a
carreira literária do escritor começou com a "lição pós-naturalista" de Caetés e terminou
com Memórias do cárcere, em que a "tonalidade romanesca", ainda presente no
autobiográfico Infância, de 1945, "desaparece ante o depoimento"54. Graciliano teria, ao
longo de seus livros, passado "da ficção para a autobiografia como desdobramento
coerente e necessário da sua obra"55.
O teor autobiográfico das Memórias não ofusca, porém, o trabalho literário de
Graciliano em sua linguagem e estrutura. Além disso, sob um outro aspecto, não aparece

51 MC, I. p. 160. Nesse trecho, o narrador refere-se a fatos ocorridos no porão do vapor Manaus.
52 Ibid., p. 9.
53 Antonio Candido. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p.
13. A data da primeira publicação do ensaio que deu origem ao volume é 1955.
54 Antonio Candido. Ficção e confissão. p.14/49.
55 Ibid., p. 11.
76

nelas somente a vida do indivíduo Graciliano Ramos. Há, na narrativa longa, a evocação
de uma época. A linearidade evolutiva da visão de Candido ⎯ cujo ensaio, ele mesmo
reconhece, teria "envelhecido visivelmente"56 ⎯ não dá conta de outros traços também

presentes no último trabalho do velho Graça. A visão ao calor da hora, como foi a do
crítico em "Ficção e confissão", publicado pela primeira vez dois anos depois do
lançamento da obra, talvez não o tenha permitido.
Em artigo de 1995, Alfredo Bosi propôs, uma solução intermediária para as
Memórias do cárcere, classificando-as não como documento, mas como testemunho:
"nem pura ficção, nem pura historiografia"57. Ele explica:

"O testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas


tarefas são delicadas: ora fazer a mímese de coisas e atos apresentando-os
'tais como realmente aconteceram' [...]; ora exprimir determinados estados de
alma ou juízos de valor que se associam, na mente do autor, às situações
evocadas."58

Sem dúvida, a expressão, em texto, da memória autobiográfica do autor Graciliano


Ramos ganhou intensidade à medida que o escritor foi desenvolvendo sua obra. Não se
pode esquecer, porém, que mesmo Caetés, obra de estréia de Graciliano, já continha
elementos de autobiografia. A história de João Valério, guarda-livros e aspirante a
romancista em Palmeira dos Índios, Alagoas, tem muito do Graciliano que lá viveu até
1930. Até mesmo a perturbação com a figura feminina de Luísa emprestava algo do
autor. Em Memórias do cárcere, após confessar que as mulheres sempre teriam exercido
sobre si "uma tirania excessiva" e que lhe davam "preocupações vizinhas da
monomania"59, o narrador conta um episódio aparentemente verídico de muitos anos
antes:

"Achava-me no quintal de uma criaturinha sem-vergonha, meio escondido


junto a uma cerca de bambu. Eram duas horas da madrugada. A mulher não
vinha, fazia-me perder tempo, e a demora me impacientava. Abriu-se de
repente uma janela na vizinhança, um cachorro ladrou; julguei-me
descoberto pelo marido pulha da sujeitinha, larguei a espera, atravessei o
portão, e saí correndo à toa na rua deserta. [...] Habitava uma cidadezinha
sertaneja, todos aí me conheciam. Negociante, figura mais ou menos

56 Ibid., p. 10.
57 Alfredo Bosi. "A escrita do testemunho em Memórias do cárcere". In: Estudos avançados, São Paulo, 9
(23): 309-322, jan.-abr. 1995. p. 309.
58 Ibid., p. 310.
59 MC, III. p. 108.
77

razoável. Se um dos meus fregueses surgisse na rua, me apanhasse naquele


estado?"60

Em seguida, o autor completa, numa alusão ao seu processo de escrita:

"No meu último livro, em poder de José Olympio, aventurara-me a registrar


esse terror, essa covardia imensa."61

Em Angústia, as referências autobiográficas são claras e não sofrem disfarce,


apesar de se tratar de romance. O personagem principal de São Bernardo, Paulo
Honório, tem um homônimo em Infância, dono de um sítio que ficava no fim de um
areal chamado Cavalo-Morto, na vila de Buíque, Alagoas, onde viveu o menino
Graciliano62. E Baleia, a cadela quase gente de Vidas secas, foi o ponto de partida de um
livro que, segundo o autor, começou como "a história de um cachorro de meu avô"63.
Ao mesmo tempo, a memória, ainda que por vezes não predominantemente
autobiográfica, exerce função estruturadora em quase todas as obras de Graciliano. Em
Caetés, estamos diante de um narrador que lembra e, recordando-se, tanto de sua história
pessoal quanto daquela da cidade (originalmente, habitada pelos caetés), conta. O mesmo
para Paulo Honório; para Luís da Silva; para o Graciliano narrador de Infância e
Memórias do cárcere. Isso só não acontece em Vidas secas, cujos personagens, viventes
quase desprovidos de linguagem, não têm passado: ele é e será sempre idêntico ao
presente.
O decantado memorialismo de Graciliano Ramos, assim, mais do que a etapa final
de sua carreira literária, é o desdobramento de um processo que a atravessa
verticalmente. Ele lateja nos romances, assume-se em Infância. Mas é em Memórias do

cárcere que lembrar e narrar se torna complexo. Por um lado, o autor, memorialista. Por
outro, o narrador-personagem, memorioso. A memória vira tema e vira técnica, ao
mesmo tempo, num mesmo corpo.
Essa síntese, Graciliano só a conseguiu no fim da vida. Já em 1946, quando iniciou
a redação das Memórias do cárcere, o escritor via-se "a descer para a cova" e afirmava,
sobre a obra apenas começada, que ela provavelmente seria "publicação póstuma, como

60 MC, III. p. 138-9.


61 Ibid. O livro em questão é Angústia. Graciliano parece aludir à fuga de Luís da Silva após assassinar
Julião Tavares.
62 Graciliano Ramos. Infância. 11. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/Martins, 1976. p.48.
63 Apud Francisco de Assis Barbosa, in: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 64.
78

convém a um livro de memórias"64. Graciliano talvez intuísse, como Walter Benjamin,


que

"é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo


sua existência vivida ⎯ e é dessa substância que são feitas as histórias ⎯
assumem pela primeira vez uma forma transmissível."65

Os fatos já se haviam calado. Mas as lembranças bramiam na noite, e precisavam


expressar-se. Graciliano deixava sua herança.

II.3 Liberdade?

"Sensações da liberdade. A saída, uns restos


de prisão a acompanhá-lo em ruas quase
estranhas."
(Ricardo Ramos)

Em 13 de janeiro de 1937, após dez meses e dez dias de prisão, Graciliano Ramos
deixa o cárcere. Nas suas memórias da cadeia, porém, enquanto as circunstâncias da
prisão são narradas com pormenores, não aparece o capítulo sobre a saída.
As explicações são diversas. Ricardo Ramos, em nota final a Memórias do cárcere,
afirma que a premência de outras atividades e a morte teriam impedido o romancista de
acabar o livro66. Para Hermenegildo José de M. Bastos, o inacabamento é traço estilístico
de Graciliano Ramos em praticamente toda a sua obra67. Na interpretação de Wander
Melo Miranda,

"A ausência literal e metafórica da 'última palavra' atua [...] como reforço da
contradição maior que percorre todo o texto ⎯ a tentativa ensaiada por
Graciliano de, pela escrita, libertar-se do cárcere e ao fazê-lo ver-se, de certa
forma, condenado a repeti-lo."68

No romance Em liberdade, "meio verídico, meio ficção", o escritor e crítico


Silviano Santiago tomou para si a tarefa de elaborar o "fim literário" de Memórias do

64 MC, I. p. 8.
65 Walter Benjamin. "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica, arte
e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Obras
escolhidas, I). p. 207.
66 MC, IV. p. 162-4.
67 Op. cit., p. 6-7. Para o autor, a literatura, em Graciliano, é um método de conhecimento da realidade. O
inacabamento, na obra do escritor, seria indício da sua consciência de ser impossível realizar a mímese
integral.
68 Wander Melo Miranda. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo/Belo
Horizonte: Editora da Universidade de São Paulo/Editora UFMG, 1992. p. 112.
79

cárcere que Graciliano prometera à família69. Após anos de pesquisa e estudos, Silviano
propôs uma obra cujo narrador seria Graciliano Ramos. Trata-se de um diário íntimo,
cujos originais teriam sido condenados pelo escritor ao fogo. O zelo de um suposto
amigo de Graciliano, cuja identidade o autor/editor Silviano diz querer preservar, teria,
porém, salvado o livro.
O suposto diário se inicia a 14 de janeiro de 1937, dia seguinte à libertação do
escritor, e se encerra a 26 de março do mesmo ano. Nele, as primeiras impressões da
liberdade:

"Para aproveitar o sol que apareceu bem cedo, resolvi descer a São
Clemente até a praia de Botafogo. Gosto de tomar o bonde, mas deixei-o de
lado por causa do azul do céu. Pus-me a caminhar. [...] De repente a imagem
do repuxo é anulada pela do perfil de uma garota dos seus vinte anos. [...]
.............................................
Andando de membro duro pela praia de Botafogo, sentia-me
finalmente em liberdade. Entregava-me à imagem do corpo gracioso da moça
à minha frente. Recebia de cheio no rosto o sol e a brisa marinha. Reparava o
movimento pacífico das ondas na enseada (tão diferente da máquina violenta
das águas no mar de Ipanema). Submetia-me à plenitude do Pão de Açúcar
dominando a paisagem. Lamentava o fato de estar recoberto de pano de alto
a baixo. Suava a cântaros."70

Se o cárcere era uma situação inscrita no corpo, como querem Silviano Santiago,
Wander Melo Miranda e o próprio Graciliano em Memórias do cárcere71, libertar-se
seria libertá-lo. No "livro da cadeia", a questão sexual é recorrente. De início, o narrador
estranha a ausência de desejo:

"Surgiu-me de repente anafrodisia completa. Súbita desaparição dos desejos


eróticos e um resfriamento geral, espécie de anestesia; órgãos se embotavam,
paralisavam; a esquisita impressão de haver em mim pedaços mortos."72

Já prestes a sair da prisão, ele analisa a situação dos detentos:

"Imagens lascivas surgiam-me às vezes [...]. Esforçava-me por desviá-las,


pensando nos rapazes que, mergulhados num erotismo doloroso, viam
figuras de atrizes nuas em revistas. [...] O mal estava [...] nos distúrbios que
os desejos insatisfeitos causavam."73

69 MC, IV. p. 164.


70 Silviano Santiago. Em liberdade. 4.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 94/6.
71 V., respectivamente, Em liberdade, p. 25; Corpos escritos, p. 148-151; MC, I. p. 212, entre outros. A
certa altura, afirma o narrador: "Nunca me restabeleceria. Que diabo iria fazer lá fora quando me
soltassem, desgraçado organismo carunchoso?".
72 MC, II. p. 39-40.
73 MC, IV. p. 75.
80

A reaparição do desejo, que já se insinua no período final de Graciliano no cárcere,


pode mesmo ter feito parte, entre outras, das "sensações da liberdade" que o escritor
imagina, mas não enuncia, para epílogo de sua obra sobre a cadeia.
Como afirma o escritor português José Saramago, porém, dizer o que se passaria
numa história "não é o mesmo que escrevê-la"74. A qualidade literária e a erudição do
texto de Silviano Santiago, indiscutíveis, não apagam no leitor a sensação de que
Graciliano Ramos jamais o escreveria. Um outro Graciliano Ramos, talvez: aquele cuja
existência ficcional é forjada por Silviano75; não o autor de Angústia.
Em primeiro lugar, pela aversão que Graciliano tinha à confissão de sentimentos e
impressões íntimas em primeira pessoa. Em Infância, obra autobiográfica, o mergulho

quase total no universo do narrador-protagonista e a ausência de marcas que


identifiquem o narrador com o autor fazem com que os dois alcancem um máximo de
dissociação possível. É quase como se não fosse Graciliano o personagem retratado:
fosse um outro. A identificação só se faz por meio de aspectos periféricos e externos ao
texto, como a coincidência entre as localidades onde moraram o menino do livro e seu
autor e o primeiro nome da mãe de ambos, igual.
Mesmo em Memórias do cárcere, autobiografia mais "assumida", o pudor
continua. Nelas, o narrador jamais se refere a si mesmo pelo "nome que tem no registro

civil": é sempre "seu Fulano"76. Dessa forma, Graciliano procura cumprir o objetivo
declarado no primeiro capítulo da obra, entre autocrítico e irônico:

"[...] não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. [...] esconder-me-ei


prudente por detrás dos que merecem patentear-se"77.

Dos textos publicados do escritor, os únicos em que ele se permite momentos de


total expansão íntima são as cartas que dirige à mulher, Heloísa, enquanto ambos ainda
são noivos. Mesmo assim, Graciliano se penitencia: "Que incoerências! Que
disparates!"78. Difícil acreditá-lo registrando em papel, sem emendas, afirmações como
esta:

74 José Saramago. "História para crianças". In: A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. p. 66.
75 A epígrafe de Em liberdade é "Vou construir o meu Graciliano Ramos.", frase de Otto Maria Carpeaux.
76 V., por exemplo, MC, I. p. 40; MC, II. p. 85; MC, IV. p. 5.
77 MC, I. p. 11.
78 Graciliano Ramos. "A Heloísa Medeiros". In: Cartas. 7.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 92.
81

"Encontrei a paixão como meta da minha situação significativa no


mundo. Paixão em todas as direções e por todos os lados. Saber que meu
corpo se deixa atrair por tudo o que me cerca no cotidiano. Deixa-se atrair, é
atraído, é invadido, possui e é possuído"79.

Ainda que o destino desse papel fosse o fogo.


Em segundo lugar, há a questão do cárcere. No início das memórias da cadeia,
Graciliano opõe-se àqueles que acreditaram impossível o trabalho literário sob o Estado
Novo:

"Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e


acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos
estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos
mexer."80

O cárcere, em Memórias do cárcere, é literal. É o aposento num quartel do Recife


onde são alojados o escritor e seu companheiro de prisão; é o porão do vapor Manaus; é
o Pavilhão dos Primários da Detenção, a Colônia Correcional da Ilha Grande, a Sala da
Capela.
Existem, porém, outros cárceres: o casamento, o sustento da família, as obrigações
burocráticas, dos quais o escritor anseia se livrar no dia em que é preso:

"Naquele momento a idéia da prisão dava-me quase prazer: via ali um


princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos
horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras
maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas"81.

Há a linguagem, matéria a ser trabalhada para que se possa recriar a experiência da


cadeia e transmiti-la, que também limita, impõe regras.

Além disso, em Memórias do cárcere, as palavras são cadeias. A falta de


entendimento entre os detentos, as desavenças que surgem a partir de mal-entendidos
freqüentes se devem a interpretações diversas para os mesmos rótulos. Entrando a
palestrar sobre o internacionalismo com companheiros do Pavilhão dos Primários, o
narrador é interpelado:

"⎯ Você é trotskista? inquiriu alguém.

79 Silviano Santiago. Op. cit. p. 70-1.


80 MC, I. p. 6.
81 Ibid. p. 21. Nesse trecho, Graciliano se refere às suas obrigações como diretor da Instrução Pública do
Estado de Alagoas e às dificuldades conjugais por que passavam ele e a esposa. De acordo com Memórias
do cárcere, Heloísa tinha do autor "uma ciumeira incrível".
82

⎯ Eu? Que lembrança! Afirmei que sou internacionalista. Por isso me


embrulharam. Quem falou em trotskismo? Internacionalismo foi o que eu
disse.
⎯ É a mesma coisa."82

Algumas vezes, os desentendimentos chegam ao pugilato83. Nesses momentos, a


perplexidade do narrador é semelhante à do personagem Paulo Honório, de São
Bernardo, incapaz de decifrar o fragmento de carta que lhe escrevera a esposa, então na
iminência do suicídio. A "sensibilidade embotada" destrói Paulo Honório ⎯ assim como

elimina qualquer possibilidade de convivência pacífica entre os presos de Memórias do


cárcere. "Estamos tão separados!", conclui o narrador de São Bernardo84. "Impossível
qualquer aproximação"85, raciocina Graciliano num quartel do Recife.
Em outros trechos, as celas são as diferenças sociais. Ao longo das Memórias, o

narrador percebe o esforço do poder público e da polícia em igualar, na cadeia, os


dessemelhantes. A despersonalização insistente é também desumanização; assim
afirmam os primeiros presos da Casa de Detenção que regressam da Ilha Grande:

"⎯ Bichos, exclamou Tamanduá. Vivemos como bichos."86

Apesar disso, as distâncias são insuperáveis: militares e civis, operários e intelectuais,


nordestinos e sulistas, brasileiros e estrangeiros não se entendem. Um exemplo é o
destempero do estivador Desidério, ao ser transferido do Pavilhão dos Primários para a

Colônia Correcional:

"⎯ Eu sei para onde vou, sim senhores. Vou para a colônia, que é o
meu lugar. Estive aqui por descuido, não é possível viver muito tempo com
os senhores.
E rematou, cheio de fel e veneno, um fulgor de ódio no olho que se
ausentava de nós:
⎯ Estes braços estão cansados, estão magros de carregar farinha para
burguês comer."87

Graciliano Ramos, autor e narrador de Memórias do cárcere, acredita na tese


marxista de que os fatores social e cultural dependem do fator econômico. Daí outra de
de suas críticas aos colegas romancistas, em 1945:

82 MC, II. p. 71.


83 V., por exemplo, MC, IV. p. 157-161.
84 Graciliano Ramos. São Bernardo. 54.ed. Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 187.
85 MC, I. p. 61.
86 MC, III. p. 15.
87 MC, II. p. 166.
83

"Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se


esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar em
livro".88

Em Vidas secas, o ficcionista reconhece, além disso, o quanto o papel social dos
indivíduos os aprisiona. O retirante Fabiano, prestes a matar o soldado amarelo que o
havia humilhado, recua, tirando o chapéu de couro diante da autoridade: "⎯ Governo é

governo". E curva-se.89 Vidas secas foi escrito nos meses seguintes à libertação do autor
(1937-8), em que a cadeia ainda era idéia muito viva.
Permeando os cárceres das Memórias existe, ainda, a questão do preconceito.
Amarrado entre o desprezo pelos militares e a repulsa obsessiva pelos pederastas, o
narrador precisa se rever. Entre os primeiros, Graciliano encontra um indício de
solidariedade na figura do capitão Lobo, que repetia, sem conhecê-lo: "⎯ Não concordo

com as suas idéias, mas respeito-as".90 Com que então era possível encontrar respeito
num inimigo fardado? Entre os segundos, é um copeiro homossexual da Ilha Grande que
choca o narrador com sua humanidade:

"Invadia-me [...] uma indecisa mistura de sentimentos: chocavam-se a


piedade, a tristeza, a admiração, o prazer de realizar uma descoberta. Não me
ocorrera a existência de coração nessas anomalias; de longe, exclusivista e
rígido, habituara-me a julgá-las sordidez apenas. [...]

Na verdade era impossível transformar-me, vencer o nojo que esses


desvios me causavam. Era um nojo profundo, e em vão buscaria livrar-me
dele. Mas uma evidência entrava a impressionar-me: na torpeza nauseante
havia alguma coisa muito pura."91

O preconceito e o nojo ainda resistem nas palavras: a homossexualidade é


"anomalia", "desvio", "torpeza nauseante". Impossível, talvez, libertar-se deles. Porém,
dentro dos limites ampliados pela experiência, o narrador encontra alguma maneira de
mexer-se.
A consciência dos cárceres múltiplos, literais ou metafóricos, que envolvem o
indivíduo em sua relação com as coisas e com o semelhante talvez tenha impedido

Graciliano de trazer a liberdade para dentro de suas Memórias. Teria ele realmente se

libertado ao deixar a prisão? Não teria sido sua saída apenas mais uma transferência?

88 Graciliano Ramos. "O fator econômico no romance brasileiro". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit.
p.127. V. também comentário de Paulo Mercadante. Op. cit. p. 154.
89 Graciliano Ramos. Vidas secas. 59.ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 107.
90 MC, I. p. 86-7.
91 MC, III. p. 129-30.
84

No penúltimo capítulo de Memórias do cárcere, "as grades se descerram" para


Luís de Barros, um dos companheiros da Casa de Correção. Nos parágrafos
imediatamente anteriores, o preso se ocupava em arremedar o medo que atacava os
detentos às vezes:

"Entrando no salão, vi na cama de Luís de Barros, fronteira à porta, um


fardo trêmulo: agüentando o rijo calor de meio-dia, alguém se enrolava num
cobertor de lã.
⎯ Que é isso, Luís? Suadouro?
O moço descobriu o rosto pálido, murmurou débil:
⎯ Não. Medo."92

O narrador se revolta:

"Agora simulava covardia. [...] Notando a fraude, julgava-me denso e lerdo;


com certeza outros indivíduos me enganavam também, e era-me impossível
ajustar-me no ambiente desgraçado. Tocaias. Pessoas a deslizar na
sombra."93

Mas a situação interna à cadeia era apenas um fragmento de outra, maior, que os
olhos entrevêem da janela:

"Afinal estávamos em guerra. [...] O congresso nacional prorrogara o


estado de guerra. O disparate me indignara, arrancara-me pragas interiores.
Agora, sentado na cama, olhando o monte vizinho, aplicava-me em
reconsiderar. Havia na verdade um conflito a generalizar-se, briga invisível,
e, em conseqüência, era natural que, por qualquer suspeita, nos tirassem do
mundo. À esquerda, mulheres a descer a ladeira vermelha e pegajosa, na
manhã clara um burro e uma cabra quase imóveis, casas de tábua e lata, a
envergonhar-se, a encobrir-se nas ramagens, panos estendidos, crianças nuas.
Paz. Em frente, a massa escura da favela, a igrejinha alta e magra no topo,
figuras vagas a achatar-se nos declives ásperos da pedra, tetos ariscos. Paz. E
em redor, na sala extensa, o zumbido monótono das conversas, a leitura
paciente de Maurício Lacerda, o riso de Jorge Al-Jaick, o pigarro de Moreira
Lima, chiar de serra e marteladas na pequena oficina de amadores. Paz. A
guarita próxima, erguida no muro alto, parecia deserta: a sentinela devia
cochilar pacificamente, esquecida a vigilância. Contudo, no sossego aparente
vivíamos inquietos. [...] Afinal já nem sabíamos quem era amigo, quem era
inimigo."94

Bem ao gosto de Graciliano, o cárcere vivido por ele é metonímia de uma prisão
mais ampla: aparentemente tranqüila, rotineira, porém envolvida numa guerra surda e
entrevista de surpresa. Dentro e fora, Correção e morro, sem escapatória.

92 MC, IV. p. 150.


93 Ibid., p. 152.
94 Ibid., p. 153-4.
85

Talvez as impressões da liberdade, tão ansiosamente aguardadas pela família do


autor e pelos leitores de Memórias do cárcere, imaginadas por Silviano Santiago no seu
volume ficcional e jamais escritas estejam escondidas nos "farrapos de idéias" que
tomam o narrador um pouco antes da saída de Luís de Barros (e da sua própria, já
próxima). Não há liberdade. A guerra surda, vivida dentro, se repetiria além dos muros e
janelas.
86

II.4 Viagens

viagem. S.f. Deslocamento de alguém de um


lugar para outro razoavelmente distante [...].
/ Bras. Gír. Êxtase provocado por droga,
entorpecente ou tóxico; barato.95

Ao entrar no grande automóvel oficial que foi buscá-lo, rumo à prisão, na casa
onde morava em Maceió, começam as viagens de Graciliano Ramos. Sobre elas, diz o
autor em 1942:

"Quanto a mim, nem sequer me resta a ilusão de haver pretendido


voltar ao Rio [...]. Não pretendi. Embarquei em Maceió, sem pagar
passagem, saltei no Recife, embarquei de novo e estive alguns dias mal
acomodado [...]. Aqui, num carro fechado, não pude admirar as ruas novas e
os arranha-céus. Alojei-me num quarto molhado, transferi-me a outro, já
ocupado por legiões de insetos domésticos [...]."96

Depois, vieram ainda a Ilha Grande, o Pavilhão dos Militares na Casa de Detenção
do Rio de Janeiro, a Sala da Capela, onde ficavam os doentes. A história do cárcere
vivido por Graciliano entre 1936 e 1937 é uma sucessão de prisões e transferências.
A estrutura narrativa de Memórias do cárcere acompanha essas mudanças. A
princípio, o livro foi dividido pelo autor em quatro volumes, de acordo com um critério
espacial: cada volume corresponde, grosso modo, a um dos locais onde ele esteve preso.
Além disso, a ordenação geral é cronológica: a obra começa no dia em que Graciliano
Ramos foi detido em Alagoas e termina pouco antes de sua libertação no Rio de Janeiro.
Internamente, porém, cada um dos volumes apresenta um modo de narrar
característico, o que rompe a aparente simplicidade de tempo e espaço na estrutura de

Memórias do cárcere. "Viagens", o primeiro volume, é marcado por um fluxo de


consciência intenso, mergulho para a interioridade do narrador. "Pavilhão dos
Primários", o segundo, emerge para uma linguagem mais referencial, pontuada pelo
discurso direto. Em "Colônia Correcional", a voz do narrador perde sua preponderância e
cede amplos espaços para a intromissão de outros narradores. Em "Sala da Capela", a
referencialidade retorna, embora contaminada pelos modos de narrar anteriores.

95In: Koogan / Houaiss. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Delta, 1995.
96 Graciliano Ramos. "Discurso de Graciliano Ramos". In: Homenagem a Graciliano Ramos. Rio de
Janeiro: Alba, 1942. p. 23-4.
87

Quando Memórias do cárcere foi publicado, alguns críticos apontaram sua


fragmentação estrutural como defeito. Antonio Candido, em 1955, considerou o livro
"desigual":

"A longa elaboração foi possivelmente entrecortada de escrúpulos, vincada


pelo esforço de objetividade e imparcialidade, em conflito com a ânsia
subjetiva de confissão, ressecando nalguns pontos, e sob certos aspectos, a
sua veia artística."97

Soma-se a esse argumento o fato de o autor não ter conseguido rever o texto, que foi
publicado postumamente, cortando e condensando trechos, como era seu costume.
A diversidade das estruturas que compõem Memórias do cárcere, no entanto, é
menos defeito e mais adequação. Nas palavras de Benjamin Abdalla Jr.,

"o processo de desenvolvimento da escrita de Graciliano Ramos


efetiva-se [...] como uma forma de eliminar o estereótipo e transformar seu
poder de representação em um novo conceito".98

Para Graciliano, não bastava escrever um livro de memórias seguindo estritamente


as regras do gênero. Era preciso aprofundar ao máximo o poder de representação da
linguagem nesse livro, para que ficasse registrada, do modo mais fiel possível, a
experiência vivida, ainda que fosse necessário reinventar códigos, reverter estruturas
tradicionalmente estabelecidas ou, ainda, misturá-las.
Cada uma das prisões de Memórias do cárcere tem características próprias. Se o
espaço é diferente, são também diferentes o tipo de convívio social estabelecido entre os
presos, as sensações ou lembranças que as experiências suscitam no narrador, as nuances
da violência exercida pelo sistema carcerário sobre os detentos. A forma do discurso

acompanha os múltiplos conteúdos recriados pela linguagem. Vem daí sua aparente
fragmentação.
Além disso, a própria intensidade do vivido acaba por resultar num texto que se faz
aos cacos. A prisão revoluciona as crenças e conceitos do narrador anteriores a ela e
causa um embaralhamento mental que se expressa na narrativa:

"O espírito estava lúcido, mas era lucidez esquisita: percebia tipos,
ocorrências, em fragmentos; quando se tratava de estabelecer relação,
surgiam cortes, hiatos, falhas alarmantes. [...] Notariam a minha confusão?"99

97Antonio Candido. Ficção e confissão. p. 88.


98Benjamin Abdala Junior. "Ideologia e linguagem nos romances de Graciliano Ramos". In: José Carlos
Garbuglio et alii. Op. cit. p. 406.
88

Levado junto com os outros presos ao convés, para que o porão do vapor Manaus,
em que se encontravam, fosse limpo, Graciliano observava a paisagem:

"O mar tinha-se tornado vermelho, um vermelho carregado tirante a negro.


Longe surgia a coloração natural, perturbada por manchas escuras, indecisas;
perto, uma dessas nódoas se alargava e definia, viajávamos nela, curiosa
esteira de algas cor de ferrugem."100

As algas se tornam a imagem do pensamento desagregado:

"Pensava em muitas coisas indefinidas ou não pensava. Queria segurar-me a


casos pessoais, remotos e inconsistentes: filandras, tolice pensar neles.
Partiam-se a cada instante, deixavam-me diante dos olhos a realidade
chinfrim [...]".101

Memórias do cárcere é a tentativa posterior de organização da consciência


fragmentada de Graciliano em 1936. Nessa obra, a estrutura sintática das orações se
mantém dentro dos padrões da norma gramatical. É freqüente, porém, a ocorrência de
frases nominais que "passeiam" pelo discurso, várias vezes reiteradas, como no encontro
entre o narrador e o deputado José da Rocha, numa estação de trem entre Maceió e
Recife:

"Ao ter conhecimento da infeliz notícia [da prisão], [José da Rocha] recuou,
temendo manchar-se, exclamou arregalado:
⎯ Comunista!
Espanto, imenso desprezo, a convicção de achar-se diante de um
traidor. [...] Uma palavra apenas, e nela indignação, asco, uma raiva fria
manifesta em rugas ligeiras:
⎯ Comunista!"102

A frase retorna, alguns capítulos depois, no meio de uma reflexão:

"Tanto quanto posso julgar, a justiça dele [capitão Lobo] se assemelhava [...]
à do bacharel José da Rocha, deputado e usineiro. Sem investigação, [o
bacharel] se afastara resmungando o fastio: ⎯ 'Comunista'!"103

Além das frases nominais abundantes, a estrutura narrativa também se faz aos
fragmentos. Dentro de cada capítulo, há rupturas de tempo e de espaço e justaposição de
situações diferentes, resgatadas pela memória ou projetadas num tempo futuro àquele

dos fatos narrados:

99 MC, I. p. 186-7.
100 Ibid., p. 104.
101 Ibid., p. 198.
102 Ibid., p. 38-9.
103 Ibid., p. 85-6.
89

"Fascinou-me [...] uma garrafa de aguardente que o despenseiro trouxe às


escondidas. [...] tomei um copo e fui trancar-me no camarote do padeiro.
Mas não me achei só: Mário Paiva se sentiu de repente meu amigo íntimo e,
julgando imprudência abandonar-me em semelhante situação, acompanhou-
me. [...]
O rótulo de tintas vivas, colado ao vidro, forçava-me a um lento recuo
no tempo. A sala de jantar da minha casa em Pajuçara reconstituía-se. Era
noite. Sentado à mesa, entranhava-me na composição de largo capítulo: vinte
e sete dias de esforço para matar uma personagem, amarrar-lhe o pescoço,
elevá-la a uma árvore, dar-lhe aparência de suicida. [...]
Perto, a garrafa de aguardente. Duas porções minguadas. Dentro em
pouco iria mexer-me de novo, deitar outras nos copos, maquinal. Mário
Paiva discorria com abundância [...].104

No capítulo seguinte, uma projeção para o futuro:

"Talvez a falta de alimento me enfraquecesse o espírito, queria persuadir-me


de que a inapetência era transitória e logo me consertaria. [...] Nunca me
restabeleceria. Que diabo iria fazer lá fora quando me soltassem, desgraçado
organismo carunchoso?"105

Em "Colônia Correcional", terceiro volume de Memórias do cárcere, a


fragmentação chega ao próprio narrador. Trechos de alguns capítulos são histórias
contadas por outros personagens dentro da trama principal. A entrada dessas "outras
vozes" é geralmente marcada pelo travessão:

"Paraíba se decidiu:
⎯ Eu me aproximo do senhor, com uma carta na mão: ⎯ 'Cavalheiro
por obséquio, sabe onde fica esta rua?' O senhor me dá a informação e eu
respondo aflito: ⎯ 'Ah! Não acerto. Cheguei ontem do interior, não consigo
orientar-me'. [...]"106

A narrativa de Paraíba continua pelas próximas páginas.


Em "Viagens", primeiro volume da obra, as "filandras" se compõem dos vaivéns
da consciência entre passado, presente e futuro do enunciado, análogos à perambulação
entre as prisões que o narrador visita até chegar ao Rio de Janeiro.
Logo que se inicia a trama de Memórias do cárcere, o leitor se vê, no segundo
capítulo, diante de um narrador-protagonista que opta pelo fluxo de consciência para
contar sua história. Ele observa os fatos sob sua ótica pessoal, muitas vezes abdicando
dos diálogos para recontar o que teria sido dito com suas palavras. É o que acontece

quando comenta os problemas políticos que enfrentava à época em que foi preso:

104 MC, I. p. 204-6. Os fatos ocorreram no porão do navio Manaus.


105 Ibid., p. 211-2.
106 MC, III. p. 156.
90

"Naquela noite, acanhado, olhando pelas janelas os canteiros do jardim, as


árvores da praça dos Martírios, Rubem me explicava que Osman Loureiro, o
governador, se achava em dificuldade: não queria demitir-me sem motivo,
era necessário o meu afastamento voluntário. Ora, motivo há sempre, motivo
se arranja. Evidentemente era aquilo início de uma perseguição que Osman
não podia evitar: constrangido por forças consideráveis, vergava; se quisesse
resistir, naufragaria."107

No trecho acima, o narrador emprega o discurso indireto ("Rubem me explicava


que..."). Também faz uso do discurso indireto livre, incorporando em seu enunciado
tanto falas dos outros personagens como suas próprias ("Ora, motivo há sempre, motivo
se arranja"). Mas é sempre sua voz que predomina.
Nesse momento inicial, os fatos narrados ainda são predominantemente
referenciais, ligados ao presente do enunciado. O terceiro capítulo das Memórias
começa, assim, cronologicamente exato:

"No dia seguinte, 3 de março, entreguei pela manhã os originais [de


Angústia] a D. Jeni, datilógrafa. Ao meio-dia uma parenta me visitou ⎯ e
este caso insignificante exerceu grande influência na minha vida, talvez haja
desviado o curso dela."108

Desde o capítulo anterior, porém, o fluxo de consciência já é a técnica


predominante no discurso, em que ganham destaque impressões e percepções do
narrador diante dos fatos:

"Naquele momento a idéia da prisão dava-me quase prazer: via ali um


princípio de liberdade. [...] Na verdade suponho que me revelei covarde e
egoísta: várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer
junto a elas, arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável. Desculpava-me
afirmando que isto se havia tornado impossível. Que diabo ia fazer,
perseguido, a rolar de um canto para outro, em sustos, mudando o nome, a
barba longa, a reduzir-me, a endividar-me?"109

107 MC, I. p. 13. O conceito de "fluxo de consciência" é polêmico. Alguns autores consideram o termo
como sinônimo de "monólogo interior". Outros divergem ao distinguir os dois conceitos. No âmbito deste
estudo, emprego a expressão "fluxo de consciência" para designar "um estilo especial de monólogo
interior: enquanto um monólogo interior sempre apresenta os pensamentos de uma personagem
'diretamente', sem a aparente intervenção de um narrador que sintetiza e seleciona, ele não necessariamente
os mistura com impressões e percepções, nem viola necessariamente as normas da gramática, sintaxe ou
lógica; mas a técnica do fluxo de consciência faz também uma ou ambas essas coisas". In: Chris Baldick.
The concise Oxford dictionary of literary terms. Oxford/New York: Oxford University Press, 1992. p.212,
trad. minha. No caso de Memórias do cárcere, as normas gramaticais e sintáticas são mantidas; as regras
lógicas, transgredidas em alguns momentos; já a mistura de impressões e percepções ao fluxo narrativo é
constante. A respeito dos dois conceitos abordados, ver também Roger Fowler (ed.). A dictionary of
modern critical terms. London/New York: Routledge, 1995. p. 231-2; Massaud Moisés. Dicionário de
termos literários. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 143-8; Harry Shaw. Dicionário de termos literários.
Lisboa: D. Quixote, 1982. p. 124-5 e 304-5.
108 MC, I. p. 20.
109 Ibid., p. 21.
91

À medida que a experiência da prisão se aprofunda, com o narrador sendo


transferido de um cárcere para outro e perdendo os vínculos com o "lado de fora", os
valores anteriormente tidos como verdadeiros passam a ser relativos. A noção de tempo
se torna fluida e incerta, e o fluxo de consciência vai se radicalizando pouco a pouco. Ao
chegar ao Recife, depois de ziguezaguear pelas ruas escuras num grande automóvel à
busca de prisão que recebesse os detidos, o narrador comenta:

"Na verdade o tempo não era o que havia sido: tornara-se confuso e lento,
cheio de soluções de continuidade, e nesses hiatos vertiginosos perdia-me,
escorregava, os olhos turvos, numa sensação de queda ou vôo."110

No mesmo capítulo, dois vultos que vigiavam o portão do quartel inquietam a


consciência. O que seriam? A pergunta atormenta o sono inconciliável. Na noite da
incerteza, não é possível enxergar ou compreender o que está sob os olhos, ainda que
seja um "insignificante pormenor", segundo o narrador. Na manhã seguinte, ele descobre
que as sombras indistintas, talvez humanas, eram "dois canhões apontando o céu".
Oscilando entre dia e noite, entre luz e treva, entre o conhecido e o radicalmente outro,
entre o que se compreende e o que se estranha é que Memórias do cárcere se constitui.
Daí a perplexidade do narrador diante do capitão Lobo, seu "carcereiro" no Recife, que
lhe diz, num de seus encontros:

"⎯ Respeito suas idéias. Não concordo com elas, mas respeito-as."111

O "inimigo fardado" parecia assustadoramente sincero. Dois capítulos depois, o narrador


conclui sobre o episódio:

"Irreflexão discordar do que não foi expresso. Em todo caso tolerância,


uma admirável tolerância imprudente que, sem exame, tudo chega a
admitir."112

O exemplo de tolerância do capitão Lobo torna-se fundamental ao ponto de


Graciliano Ramos afirmar, em seu "Auto-retrato aos 56 anos" (1948), serem seus
maiores amigos o militar do Recife e o preso Cubano, com quem travara relações na
Colônia Correcional113. O biógrafo Dênis de Moraes conta, em O velho Graça, que o

110 MC, I. p. 55.


111 Ibid. p. 67.
112 Ibid., p. 87.
113 Apud José Carlos Garbuglio. Op. cit. p. 13.
92

escritor e o oficial se reencontrariam anos depois na livraria José Olympio e sairiam de lá


abraçados para um café114.
O exemplo do capitão é seguido pelo narrador em Memórias do cárcere. Há na
obra vários momentos de perplexidade. O estranhamento de fatos ou gestos, porém, não
leva à supressão dos mesmos no discurso. Pelo contrário: eles são mencionados,
retomados páginas depois; freqüentam a consciência do narrador, às vezes
obsessivamente. Nem sempre o narrador consegue solucionar o enigma que constituem.
O resultado da reflexão é, muitas vezes, uma conclusão aberta. Já que não é possível
compreender, deve-se simplesmente apresentar os fatos ao leitor, juntamente com as
reflexões que suscitam. Com isso, evitam-se as explicações fáceis.

A reiteração constante de imagens, gestos, frases soltas, sons na consciência do


narrador se intensifica, ainda no primeiro volume da obra, a partir do ingresso dos presos
no porão do Manaus, em transferência para o Rio de Janeiro. O cenário é grotesco: calor,
escuridão quebrada por algumas lâmpadas oscilantes, homens e mulheres amontoados,
rumores de roncos e tosse, cheiro fétido, o chão inundado por uma onda oscilante de
vômito e urina e, na primeira noite, a imagem opressiva de um vizinho negro que, nu,
"arranhava os escrotos em sossego"115.
O mergulho nesse ambiente infernal, onde o diálogo é praticamente impossível, é

também o mergulho mais intenso do narrador para dentro de sua consciência


atormentada, que ele considera ter se tornado estúpida:

"A atenção embotada, saltava freqüentemente de um assunto para outro, sem


conseguir estabelecer a mais simples relação entre eles, e às vezes ficava a
doidejar, a rodear pormenores, como peru, tentando decifrar
insignificâncias"116.

A estrutura da narrativa, baseada no fluxo de consciência, recria esse tipo de


pensamento. A partir do porão do Manaus, os capítulos de "Viagens" passam a ser quase
exclusivamente monólogos sobre determinados fatos, que o narrador elege como
representativos da experiência vivida ali. Num capítulo, a imagem recorrente é o negro
dos escrotos, e as reflexões brotam dela e para ela retornam. Noutro, destaca-se do fundo

indistinto a figura do beato José Inácio, homem de religião que desejava fuzilar todos os

114 Dênis de Moraes. O velho Graça. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. p. 175.
115 MC, I. p. 133.
116 Ibid., p. 55.
93

ateus. Um terceiro fala sobre um samba cantado por Paulo Pinto, que acaba
"contaminando" os outros presos e chamando a atenção dos passageiros da primeira
classe. Em outro capítulo, é a forte hemorragia intestinal do narrador e suas possíveis
conseqüências o assunto principal.
Às "insignificâncias", que acabam por se tornar simbólicas da situação recriada
pelo narrador, soma-se a quase inexistência de discurso direto nesses capítulos. Quando
ele ocorre, freqüentemente se trata de frase solta, do narrador ou de algum personagem,
que não constitui um diálogo propriamente dito:

"No dia seguinte descobri em Sebastião Hora uma extravagância:


expôs, quando nos avizinhávamos da Bahia, o projeto de comunicar-se com
o governador, que certamente viria visitá-lo a bordo. [...] Conhecera anos
atrás Juraci Magalhães, que certamente iria vê-lo, prestar-lhe auxílio. Lauro
Lago sorriu e murmurou:
⎯ Ilusão pequeno-burguesa."117

É o único trecho em discurso direto por algumas páginas. Frases soltas, como a transcrita
acima, muitas vezes servem de mote para a reflexão do narrador.
Um outro tipo especial de discurso direto em Memórias do cárcere é o que se pode
chamar de "diálogo mudo". Neste, apenas um turno de fala é expresso. A resposta vem
travestida em discurso indireto, ou simplesmente não aparece:

"Na plataforma vi chegar um homenzinho moreno, cheio de tiques risonhos,


que segurava uma grande mala e se apresentou: capitão Mata, meu
companheiro de viagem.
⎯ Vai conduzir-me ao Recife?
Não, ia também conduzido."118

"O sujeito que me interrogou, escuro e reforçado, certamente estrangeiro,


exprimia-se a custo, numa prosódia de turco ou árabe. Nome. Profissão.
⎯ Qual era o cargo que o senhor tinha lá fora? indagou o tipo.
Sapecou a resposta e acrescentou, à margem, uma cruz a lápis
vermelho."119

No primeiro trecho, a resposta do narrador à indagação do outro personagem é


referida por meio do discurso indireto. No segundo, ela nem mesmo é referida, e as

perguntas iniciais aparecem sob a forma afirmativa em discurso indireto livre.

117 MC, I. p. 168.


118 Ibid. p. 35.
119 Ibid. p. 218.
94

A problematização de algo tão natural como o diálogo, o qual só acontece de forma


completa quando o narrador se encontra em situações menos tensas dentro da prisão,
acentua a sensação de solidão e incomunicabilidade passada pelas Memórias do cárcere.
A impossibilidade de transmitir a experiência da prisão aumenta à medida que ela se
aprofunda e que o narrador se distancia da realidade externa e anterior. Os diálogos não
significam, no contexto da obra, a realização de uma comunicação concreta e completa.
A predominância do monólogo interior, por sua vez, intensifica a visão da experiência
como algo individual e intransmissível. É também indício da perplexidade transmitida
pela obra. Para certas perguntas, não há respostas.
Joel Pontes, num ensaio de 1966, identifica três formas de estruturação do discurso

direto na obra de Graciliano Ramos:

"a) o diálogo tradicional, recurso extremo.


b) o diálogo sintetizado sob forma de narração.
c) a frase solta com o travessão significativo, como se o personagem
estivesse contestando a alguém ausente ou inexistente ⎯ no mais das vezes a
repetição monótona de palavra ou frase curta."120
O crítico considera que o recurso a formas "alternativas" de diálogo seja um traço
estilístico de Graciliano e afirma:

"Certas perguntas sem resposta e certas respostas a perguntas que não foram
feitas deixam no ar significações pesadas e iniludíveis. É que, seja claro ou
subentendido, o diálogo completa a narração como se estivesse ilustrando
uma teoria. Aparece como enunciado ou termo final, sempre dependente da
análise dos fatos."121

As afirmações de Joel Pontes se aplicam a Memórias do cárcere e também a outras


obras do escritor. Em Angústia, o monólogo interior de Luís da Silva é entrecortado de
frases soltas:

"Achei-me sentado, murmurando palavras desconexas. O suor corria entre os


pêlos da barba. Passei o lenço na cara e no pescoço, mas retirei logo a mão:
⎯ Sou uma pessoa muito hábil.
Os cavalos tinham agora um trote macio que não se distinguia da
música das carapanãs. Aborrecia-me saber que os cavalos não existiam, as
carapanãs não existiam, os indivíduos que atravancavam as portas não
existiam.

120 MC, I. p. 218.


121 Joel Pontes. "Romances de Graciliano Ramos: a significação social no diálogo". In: Sônia Brayner
(org.). Graciliano Ramos. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 (Col. Fortuna Crítica, 2). p.
270.
95

⎯ Uma pessoa muito hábil."122

No capítulo 31 de São Bernardo, o diálogo truncado entre Paulo Honório e a


esposa Madalena, já prestes ao suicídio, enfatiza a inutilidade das palavras em
circunstâncias de total desentendimento. Em Vidas secas, o mutismo de Fabiano e sua
família, cujos pensamentos são "traduzidos" pelo narrador via discurso indireto livre,
expressa a perplexidade dos personagens diante de uma realidade que sofrem, mas não
compreendem e, assim, não comunicam.
O tema da impossibilidade do diálogo e da compreensão real e total entre as
pessoas atravessa a obra de Graciliano Ramos e é fundamental em Memórias do cárcere.
No último capítulo do livro inacabado, o narrador se questiona:

"Quais eram afinal os motivos dos rijos dissídios [entre os presos]? Palavras.
As discórdias começavam por elas, embrulhavam-se na significação delas,
aprofundavam-se, alargavam-se. Porquê [sic]? [...] Repeti a mim mesmo que
a dificuldade estava em darem à mesma coisa nomes diversos, darem a várias
coisas um nome só. Impossível entenderem-se."123

Daí talvez a preferência crescente do autor, ao longo de sua carreira literária, pelo
monólogo interior, cujo emprego radicaliza a visão individual dos fatos e ressalta a
impossibilidade de compartilhá-la com quem quer que seja.
"Viagens", primeiro volume de Memórias do cárcere, especialmente ao retratar a

situação do narrador e demais presos políticos no porão do navio Manaus, tem estrutura
semelhante à de Angústia, em que se justapõem, através do fluxo de consciência,
percepções, lembranças, alucinações, fantasias.
O Graciliano narrador de Memórias do cárcere se encontra preso nas celas do
Estado Novo assim como Luís da Silva, o pequeno funcionário de Angústia, está "preso à
sua classe e a algumas roupas"124, às suas frustrações profissionais e amorosas. Ambos se
enredam nas tramas da linguagem, têm dificuldade em expressar aquilo que desejam. A
escrita das "notas da cadeia" que o narrador toma ao longo de toda a obra confunde-se, a
certa altura, com a criação do livro recém-terminado, que havia sido deixado para a
datilógrafa em Maceió quando Graciliano foi preso. O episódio se dá no camarote do

padeiro, ainda no porão do Manaus, onde ele retorna à redação das notas. Primeiro, a

122 Graciliano Ramos. Angústia. 33.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1987. p. 224.
123 MC, IV. p. 157.
124 Adaptação do verso de abertura de "A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrade. In: Nova
Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. p. 112.
96

imagem da garrafa de aguardente, que era exatamente a que o narrador "bebia enquanto
laborava no romance difícil"125, presentifica a lembrança da composição de Angústia.
Depois da mistura entre passado e presente do enunciado, o lento retorno a este último:

"O braço, estendido sobre a tábua nua, movia-se em direção à garrafa,


que já não estava no aparador. A toalha e os papéis tinham desaparecido.
Bem. Era certo achar-me no camarote do padeiro. [...] Agora me ligava a
fatos pouco mais ou menos ignorados, esquecia casos a que dera muita
importância. [...] Já não me era possível saber o que estava dentro ou fora de
mim."126

As narrativas resultantes desses processos apresentam semelhanças. No delírio


final de Angústia, há um momento em que, arrasado na cama depois de ter matado o
rival Julião Tavares, Luís da Silva emerge de um estado de semi-inconsciência para
observar o quarto ao redor:

"A confusão se dissipava, a réstia avançava no tijolo, trepava na cadeira onde


o homem se tinha sentado, ganhava o paletó estendido no encosto. O paletó
me espiava com um olho amarelo que mudava de lugar. A calça continuava
dobrada sobre a mala coberta de poeira. [...] Antônia arrastava os chinelos,
mostrava as pernas cobertas de marcas de feridas e cantava uma cantiga
vagabunda. Mas a cantiga se transformava: 'Assentei praça. Na polícia eu
vivo...' E Antônia era o cabo José da Luz. Em pé, defronte da prensa de
farinha, oferecia-me uma xícara de café. Antônia, cabo José da Luz, Rosenda
⎯ uma pessoa só."127

Esticado em uma tábua dura no porão do Manaus, Graciliano também olha:

"Deitei-me cedo, sem tirar os sapatos, como no dia anterior. Realmente não
havia lugar onde colocá-los: se os largasse no chão, amanheceriam com
certeza molhados de mijo; ou talvez o gatuno de cara enferrujada os levasse.
Necessário vigiar a maleta, a calça e o paletó bem visíveis na ponta do
estrado. [...] Esforçava-me por distinguir nos rumores o som de um piano.
[...] Àquela hora visitantes e passageiros estariam dançando no salão; um
cretino desejava recitar; [...] uma francesa velha, experiente, dava conselhos
a um provinciano ingênuo, interrompia-se para resmungar a frase percebida
vinte anos atrás: ⎯ 'Quel pays, mon Dieu!' Haveria um piano a bordo?"128

Em ambos os trechos, ganham relevo os mesmos detalhes. A atenção dos


narradores recai sobre as mesmas peças de roupa: o paletó, a calça. Aparece também a

maleta, coberta de pó em Angústia, vigiada em Memórias do cárcere, índice das

125 MC, I. p. 205.


126 Ibid. p. 207.
127 Graciliano Ramos. Angústia. p. 228.
128 MC, I. p. 181.
97

situações vividas pelos dois protagonistas: inércia de um, insegurança de outro. Há


referências sonoras: a cantiga de Antônia e do cabo José da Luz em Angústia, o som do
piano no salão do navio em Memórias do cárcere. E existe a justaposição de lembranças
à situação presente. No caso do monólogo de Luís da Silva, Antônia, a criada da vizinha,
mistura-se a outras figuras, ao cabo José da Luz e a Rosenda, personagens da infância do
narrador. No caso do Graciliano narrador de Memórias do cárcere, é a recordação da
viagem de vapor ao Rio de Janeiro feita vinte anos antes que vem à tona e se confunde
com o presente.
Se em Angústia o retorno de figuras da infância ao momento vivido ressalta o forte
vínculo do narrador com as imagens infantis e a influência que essas ainda tinham sobre

o Luís da Silva adulto, em Memórias do cárcere a justaposição da viagem feita no


passado à travessia atual do narrador aproxima e destaca situações completamente
opostas. Da primeira vez, transferindo-se de Alagoas para o Rio de Janeiro por vontade
própria, o narrador circulava nos salões da primeira classe. No segundo momento, sob a
condição de preso, fugia dos pequenos furtos, das vagas de vômito e urina no porão e
afogava-se no calor e no cheiro de amoníaco do lugar. A sensação de descida aos
infernos é realçada.
Por outro lado, se o Graciliano Ramos de Memórias do cárcere despenca para os

subterrâneos sociais, Luís da Silva mergulha nos meandros de sua própria


individualidade. Daí o romance apresentar maior radicalidade de linguagem que a obra
de memórias. No trecho citado, há pelo menos dois momentos em que as imagens são
pura alucinação: a personificação do paletó, que espiava o narrador "com um olho
amarelo que mudava de lugar"; e, na seqüência, as metamorfoses sofridas pelos
personagens citados:

"Às vezes apareciam três corpos juntos com rostos iguais, outras vezes era
um corpo com três cabeças. Afinal surgia um vivente que tinha três
nomes."129

Além disso, a justaposição de tempos e espaços é freqüentemente desnorteante.

Memórias do cárcere, por sua intenção documental e por constituir um testemunho


dos fatos vividos pelo narrador além de ser também um livro de memórias130 mantém um

129 Graciliano Ramos. Angústia. p. 228.


98

maior nível de referencialidade, ainda que se estruture por meio do fluxo de consciência
e da visão particular de um narrador-protagonista. Este aspecto, no entanto, não retira do
trecho citado, e de outros, um forte sabor de non-sense. Apenas que, no "livro da cadeia",
o que não tem sentido está fora do narrador, e não somente dentro dele.
No processo de construção da consciência na prisão, torna-se fundamental o papel
de dois elementos, que acabam por se tornar simbólicos: a cachaça e os cigarros. Ao ser
levado, junto aos demais presos, para o porão do Manaus, a preocupação do narrador era
com a perspectiva não de fome ou sede, mas da privação do fumo. Apesar da falta de ar
que o acometia, ele toma uma decisão, uma das poucas possíveis na situação de
prostração em que se encontrava:

"Provavelmente o fumo agravava a dispnéia; não me resolvia a deixá-lo, e


como os fósforos escasseassem, adotei o recurso de fumar sem intervalo,
acendendo um cigarro no outro que se acabava."131

É através da fumaça que ele observa o vizinho a coçar os escrotos, divisa as


sombras noturnas do porão, distingue sons confusos: roncos, tosse, vozes indistintas. A
contagem regressiva dos fósforos até o fim da caixa substitui um relógio inexistente e
constitui um modo adaptado de resgatar a noção de tempo que se diluíra:

"Ligeiras pausas, cochilos, nenhum meio de avaliar em que ponto da noite


me achava. [...] assando, porém, no horrível forno, em vão tentava adivinhar,
explorando os arredores, abrindo os ouvidos, o pingar lento dos minutos.
Queimou-se o último fósforo."132

Na situação absurda, o narrador pensa ter perdido a razão:

"Por volta da madrugada uma idéia me surpreendeu: imaginei-me


louco. Chegar-me-iam aos ouvidos os sons estranhos? Seriam verdadeiros os
rostos brancos, em desalento, vermelhos, nas convulsões da tosse, os vultos
esmorecidos pelos cantos, cabeças erguendo-se à toa, desgovernadas, bocas
escancarando-se no horror da sufocação? [...] A incerteza pouco a pouco
esmoreceu ⎯ convenci-me de que estava doido. Um doido manso, arriado
numa tábua, a confundir imagens e ruídos."133

Nesse momento, voltam lembranças da juventude e emergem preocupações com o


futuro: se houvesse realmente enlouquecido, como então se comportaria fora das grades?

130 V., a respeito do caráter documental e/ou testemunhal de Memórias do cárcere, o tópico 2 deste
capítulo.
131 MC, I. p. 132.
132 Ibid. p. 133.
133 Ibid. p. 136-7.
99

A mesma vinculação entre o fumar incessante e o fluxo de consciência intenso


aparece em outros momentos do volume. No capítulo 25, tendo consumido o último
cigarro, o sortimento que o narrador trazia na valise se esgota. Ele então encomenda a
um guarda mais três maços e fósforos: sem fumar, passaria o resto da noite sem que lhe
chegasse o sono. Novamente, o ato de fumar dá vazão a um estado de quase
inconsciência:

"As pessoas e as coisas em redor esmoreciam na fumaça do cigarro, as idéias


escassas decompunham-se, volatizavam-se, e afinal eu já nem sabia se aquela
tênue neblina estava dentro ou fora de mim. Adormecia, acordava, a brasa do
cigarro cobria-se de cinza e avivava-se. As pálpebras uniam-se, descerravam-
se penosamente, nos vaivéns dos cochilos a figura do negro desaparecia,
reaparecia, e isto me reconciliava com a humanidade. Uma grande paz me
envolvia, ausência completa das complicações que me aperreavam."134

No terceiro volume de Memórias do cárcere, "Colônia Correcional", volta com


força a questão dos cigarros. De novo, trata-se do problema de privação do vício, que
ganha outros contornos. À entrada da Colônia, um velhinho que "vestia zebra" pede ao
narrador, quase a chorar, "uma esmolinha de um cigarro pelo amor de Deus"135. Em
resposta, Graciliano enche as mãos de cigarros e os dá ao preso. Um dos guardas se
revolta:

"⎯ O senhor está doido? [...]


Espantei-me:
⎯ Porquê [sic]?
⎯ Dar quarenta cigarros a este vagabundo! [...] Há de haver dia em
que o senhor não acha um cigarro por dinheiro nenhum. Escute bem. Por
dinheiro nenhum."136

Mais tarde, ao entrar no galpão dos presos, o narrador presencia outra cena patética
por causa dos cigarros. Segundo seus cálculos, haveria em volta cerca de "um milheiro
de homens". Tentando encontrar-se em meio à balbúrdia indistinta, o narrador se põe a
fumar e, ao terminar o cigarro, lança fora a ponta. A reação é imediata:

"Joguei fora a ponta do cigarro, os homens se lançaram sobre ela,


empurrando-se. Levantaram-se. A ponta do cigarro tinha desaparecido. Com
um estremecimento, recordei-me do aviso do soldado, no pátio; a inesperada
vileza dizia claro o valor do fumo na prisão."137

134 Ibid. p. 183.


135 MC, III. p. 60.
136 Ibid. p. 60.
137 Ibid. p. 71.
100

Para o narrador, esse valor é semelhante àquele que o fumo adquirira no porão do
Manaus. Aliás, as situações guardam semelhanças: são vários os momentos em que a
viagem sórdida ao Rio de Janeiro retorna à consciência durante a estadia na Ilha Grande.
De alguma forma, os cigarros promovem o acesso a uma semiconsciência que joga nas
sombras a comida repulsiva do refeitório e o copeiro homossexual que lhe fala
brandamente, remexendo com seus preconceitos. Reaparece a vinculação entre o fumo e
a perda da noção do tempo, como surgem também as imagens oníricas do mergulho
interior:

"A atenção espalhada, a fumar sem descanso, desejava retirar-me. [...]


Defendia-me da repugnância envolto na fumaça do cigarro, e os indivíduos
irreconhecíveis tornavam-se mais confusos.
[...] Quantas horas? A falta de um relógio me desorientava. Suponho
havermo-nos retardado ali, de pé, meio indiferentes, avançando um passo,
outro passo, como bichos miúdos a caminhar para uma goela de cobra; mas
isto é reminiscência quase a apagar-se, neblina de sonho."138

Na condição infame da Colônia Correcional, os cigarros têm mais valor do que o


dinheiro. Talvez fossem, para os presos, o meio mais acessível de se obter algum alívio
ou prazer, num contexto de violência contra a expressão do desejo e de extrema
necessidade de resgatá-lo, para que ainda se conservasse um traço qualquer de
humanidade. O efeito anestésico era talvez semelhante àquele das narrativas dos ladrões
Gaúcho e Paraíba ou dos romances de Jorge Amado, populares entre os detentos:

"[...] apareciam-me com freqüência, nas tábuas e nas esteiras, malandros,


tipos das favelas, atentos no Suor e no Jubiabá. [...] O nosso público em
geral [...] queria sonho e fuga. Aqueles homens de tatuagens, anfíbios, ora no
morro, ora na cadeia, entregam-se, por serem primitivos, ou para esquecer
asperezas, a divagações complicadas, e não sabemos quando nos expõem
casos verídicos nem quando mentem. A imaginação de Jorge os encantava,
imaginação viva, tão forte que ele supõe falar a verdade ao narrar-nos
existências românticas nos saveiros, nos cais, nas fazendas de cacau."139

Além dos cigarros, alguns momentos de fluxo de consciência intenso em


Memórias do cárcere também coincidem com os efeitos da aguardente sobre o narrador.
É o que acontece no episódio do camarote do padeiro, ainda no primeiro volume da obra,

quando se confundem a redação das notas sobre a prisão e a composição de Angústia,

138 Ibid. p. 68.


139 MC, III. p. 132-3.
101

tempos antes. Já no dia em que é levado para a cadeia, porém, o narrador recorre à
bebida, enquanto esperava pelo soldado que viria prendê-lo:

"Entrei na sala de jantar, abri uma garrafa de aguardente, sentei-me à mesa,


bebi alguns cálices a monologar, a dar vazão à raiva que me assaltara.
Propriamente não era monólogo: minha mulher replicava com estridência.
Escapava-me a significação da réplica, mas a voz aguda me endoidecia,
furava-me os ouvidos."140

Tem início então um processo reflexivo em que o narrador se imagina preso e em


que, de certa forma, acaba se confundindo com o protagonista do romance que
finalizava:

"Bebendo aguardente, imaginava a cara de um juiz, entretinha-me em longo


diálogo e saía-me perfeitamente, como sucede em todas as conversas
interiores que arquiteto. [...] A cadeia era o único lugar que me
proporcionaria o mínimo de tranqüilidade necessária para corrigir o livro. O
meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um romance além das
grades úmidas e pretas. Convenci-me de que isto seria fácil: enquanto os
homens de roupa zebrada compusessem botões de punho e caixinhas de
tartaruga, eu ficaria largas horas em silêncio, a consultar dicionários,
riscando linhas, metendo entrelinhas nos papéis datilografados por d.
Jeni."141

De quem era afinal a obsessão de escrever atrás das grades: de Luís da Silva ou de
Graciliano? Memórias do cárcere mostra o esforço intermitente e nunca abandonado do
narrador em escrever dentro da cadeia. As notas de que ele se ocupa até o período em
que permanece na Colônia Correcional revelam-se trabalho a princípio inútil, pois têm de
ser jogadas fora. Mas alguns contos, como "O relógio do hospital" e "Paulo", são
finalizados durante a estadia do narrador na Sala da Capela da Casa de Correção, no Rio
de Janeiro142.
No trecho citado, além disso, o fluxo de consciência projeta-se sobre um futuro
ainda incerto, tentando prever alguns de seus contornos. O narrador se agarra à
imaginação como forma de controlar a insegurança que o invade, assim como em outros
momentos se apega à lembrança para afastar as incertezas terríveis que o assaltam na
cadeia. Tudo o que vê lá dentro é o "mundo à revelia".

140 MC, I. p. 21.


141 Ibid. p. 22.
142 Essas narrativas se encontram compiladas no volume Insônia (1947). Ed. consultada: 23 ed. Rio de
Janeiro: Record, 1994. A referência direta a "O relógio do hospital" e a "Paulo" pode ser verificada em
MC, IV. p. 29 e ss. Segundo Yêdda Dias Lima e Zenir Campos Reis, os contos finalizados na Sala da
Capela são "Paulo", "O relógio do hospital" e "A testemunha", com as respectivas datas ao final dos
manuscritos: 9/7/36, 23/7/36 e 8/8/36. Op. cit., p. 29-30.
102

Durante o trajeto de retorno da Ilha Grande para o Rio de Janeiro, no terceiro


volume de Memórias do cárcere, o efeito da cachaça sobre a consciência do narrador e
sobre a estrutura do discurso por ele elaborado é ainda mais radical.
Arrastando a perna trôpega sob uma chuva torrencial que o cegava, a roupa
encharcada e coberta pela lama vermelha da ilha, Graciliano é escoltado da Colônia
Correcional para o povoado de Abrão, onde ele e os demais presos transferidos tomariam
a barca para Mangaratiba. À primeira hora da manhã, o grupo se detém num botequim
próximo ao embarcadouro. Embora fosse proibido, vendo que ele tiritava de frio, o
sargento atende ao pedido do narrador, que quer um copo de aguardente, mandando o
dono do lugar disfarçar o líquido numa xícara. Graciliano, em completo jejum desde que

chegara à Colônia, toma quatro.


A partir daí, as imagens começam a ganhar contornos de exagero:

"A carranca medonha de Raimundo Campobelo estava cavada; nas órbitas


fundas os olhos eram manchas cor de sangue; a respiração penosa descerrava
os beiços grossos; exibindo os dentes fortes de selvagem."143

Durante a travessia, novo mergulho interior intenso, a viagem apenas entrevista


sob o atropelo de reflexões, lembranças, frases que volteiam no pensamento, as próprias
atitudes exteriores do narrador observadas de dentro, como se aquele que se mantinha a
conversar com alguns guardas fosse um corpo separado da mente:

"A pequena distância, divisei um homem atarracado, sardento e ruivo. O


resto se perdia numa grande névoa. [...] Dirigi-me a ele e, sem escolher
palavras, encetei uma arenga bastante venenosa contra o governo e o capital.
Sou incapaz de revelar-me em público [...]. [...] Passados minutos, porém,
notei que as figuras a princípio nevoentas estavam próximas, nítidas, tinham
ganho fisionomias e escutavam a diatribe. Achava-me assim, a declamar
horrores num comício improvisado."144

"O trem rolava no meio de laranjais; por instantes as árvores enfezadas me


prendiam a atenção. Porque [sic] seriam tão miúdas? Conseqüência do
enxerto, imaginei. Surgiam pela primeira vez; na outra viagem, apesar de
numerosas, tinham-se conservado inteiramente invisíveis. ⎯ 'Trabalho de
cupim'. Estas palavras andavam-me no pensamento, desviavam as
laranjeiras, que fugiam numa corrida louca. Trabalho de cupim, com
certeza."145

143 MC, III. p. 207. A pontuação diverge no texto da 25 ed.: "[...] a respiração penosa descerrava os beiços
grossos, exibindo os dentes fortes de selvagem". Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 167.
144 MC, III. p. 211-2.
145 Ibid. p. 216.
103

Em relação aos efeitos do fumo sobre a consciência, uma diferença. Os cigarros


ganham relevo em momentos de introversão do narrador-protagonista no presente do
enunciado. Deitado sobre as tábuas duras do porão do Manaus ou sentado a observar o
prato fétido que lhe serviram na Ilha Grande, o narrador se mantém calado entre os
demais presos, fechado em seus pensamentos.
A aguardente, por sua vez, marca trechos em que o pensamento e a ação desse
narrador se dissociam. Na sala de jantar da casinha em Pajuçara, a voz exteriorizava a
raiva que Graciliano sentia diante das circunstâncias antes da prisão; os ouvidos
captavam as réplicas da esposa. Mas o que se estrutura em discurso é o que vai pelo
interior do protagonista. Durante a transferência da Ilha Grande para a Casa de Correção

no Rio de Janeiro, a voz tece impropérios contra a ordem vigente: o congresso, a justiça,
a imprensa, o exército. Por meio do texto, no entanto, só nos é dado conhecer o
pensamento do narrador. Como se ele fosse dois.
O efeito da aguardente sobre o narrador de Memórias do cárcere lembra o êxtase
provocado pelo haxixe no escritor e crítico Walter Benjamin, embora este tenha sido
aparentemente mais intenso e tenha proporcionado ao escritor uma sensação de prazer.
No tableau "Haxixe em Marselha", que faz parte da obra Imagens do pensamento,
Benjamin conta que a droga lhe causou uma hipersensibilidade auditiva, uma perda da

noção de tempo e certas alucinações, como a visão que tem da janela de seu hotel na
cidade francesa: "À minha frente, sempre aquele panorama no ventre de Marselha. A rua
que tenho visto tantas vezes é como um corte feito por uma faca."146 O escritor se torna
um "observador de fisionomias", experimentando a transformação do próprio rosto nas
faces observadas:

"[...] na minha experiência vivenciei algo absolutamente único: literalmente


encarnei-me nos rostos que me circundavam e que, em parte, eram de
extraordinária rudeza ou feiúra."147

A nota que inicia o fragmento, retirada de um artigo de Joël e Fränkel, "Der

Haschisch-Rausch", também adverte: um dos efeitos do haxixe é que

146 Walter Benjamin. Imagens do pensamento. In: Rua de mão única. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, s.d. p.
249. (Obras escolhidas, II).
147 Ibid., p. 250.
104

"O sujeito é surpreendido e dominado por tudo o que acontece e também por
tudo o que diz e faz. O seu riso e todas as suas manifestações o atingem
como acontecimentos externos".148

A sensação de se tornar um estranho ou de se tornar estranho para si mesmo


aparece, por vezes, em Memórias do cárcere. No porão do Manaus, o narrador comenta:

"Entrei a conversar ⎯ e logo duas surpresas me assaltaram: Miguel


parecia alegre, as minhas palavras soavam-me aos ouvidos como se fossem
pronunciadas por outra pessoa. [...] Assim falava no interior, e dizia coisas
diferentes, pausadas, maquinais; pareciam gravadas num disco de vitrola. [...]
..................................................
Uma dualidade, talvez efeito da cadeia, principiava a assustar-me: a
voz e os gestos a divergir de sentimentos e idéias. Cá dentro, uma confusão,
borbulhar de água a ferver. Por fora, um sossego involuntário, frieza, quase
indiferença. A fala estranha me saía da garganta seca."149

Em outro momento, ao deixar a Colônia Correcional e ingressar na Sala da Capela,


o mesmo narrador observa com estranheza, num espelho do corredor, seu rosto mudado:

"Não contive uma exclamação de espanto:


⎯ Que vagabundo monstruoso!
Estava medonho. Magro, barbado, covas no rosto cheio de pregas, os
olhos duros, encovados. [...]
.............................................
[...] Ao pisar no soalho gasto, oscilante, reconheci alguns dos meus
companheiros do pavilhão. Vários se aproximaram, uma voz metálica soou
perto:
⎯ Você está morto, rapaz. [...]"150

Sua fisionomia havia se transformado na tatuagem que avistara de relance no


antebraço de um preso que auxiliava na rouparia da Casa de Detenção, quando fora
transferido para lá. Era um esqueleto completo, meio apagado: crânio, costelas, braços,
espinha; a parte inferior da anatomia havia sido causticada pelo rapaz, na tentativa de
apagar o estigma151.
Havia, também, a perna trôpega, herança de uma operação no baixo-abdômen feita
pelo narrador tempos antes da prisão e que se tornara praticamente independente da
vontade do cérebro que a comandava, recusando-se a caminhar na mesma velocidade do
resto do corpo.

148 Ibid., p. 248.


149 MC, I. p. 129-30.
150 MC, IV. p. 8.
151 Cf. MC, I. p. 221.
105

Todos esses elementos acabam por se condensar no conto "Paulo", escrito por
Graciliano Ramos ainda na prisão e cujo enredo o narrador de Memórias do cárcere
assim resume, no segundo volume da obra:

"[...] supunha-me dois, um são e outro doente, e desejava que o cirurgião me


dividisse, aproveitasse o lado esquerdo, bom, e enviasse o direito,
corrompido, para o necrotério. Essa parte direita, infeccionada, era um
hóspede ser-vergonha [sic] e chamava-se Paulo. Se Clemente Silveira
quisesse, poderia facilmente operar-me de novo e desembaraçar-me do
intruso."152

Nos trechos citados, aparece reiterada a idéia de que havia no narrador pedaços
mortos. Ao final do segundo volume das Memórias, ele afirma: "ia-me aos poucos
habituando à sepultura; difícil ressurgir, vagar na multidão, à toa, como alma penada"153.
Num ensaio de 1919, "O 'estranho'", Freud procura analisar o sentimento de
inquietude que às vezes nos invade diante do que é conhecido.154 A partir do adjetivo
alemão unheimlich, literalmente "aquilo que não é doméstico ou familiar", ele define o
"estranho" como "aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e há muito familiar"155. O unheimlich contém o heimlich. Citando Schelling,
Freud afirma que "unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas
veio à luz"156.
Na seqüência, por meio da interpretação psicanalítica de um conto de Hoffmann,
Freud conclui que os temas de estranheza que mais se destacam na literatura e, por
extensão, na vida dizem respeito ao tema do "duplo":

"o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida
sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um
estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do
eu (self)."157

Freud acredita que, no desenvolvimento da personalidade, a idéia do "duplo" acaba


por desenvolver uma atividade especial, que chamamos de "consciência" ou "autocrítica"
e que consiste em observar e criticar o eu (self) e exercer uma censura dentro da mente. É

152 MC, II. p. 213.


153 Ibid., p. 243.
154 Cf. a Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XVII:
1917-1919). Trad. de Jorge Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 85-125.
155 Ibid., p. 87.
156 Ibid., p. 92.
157 Sigmund Freud. "O estranho". In: Op. cit., p. 103.
106

por poder tratar o resto do ego como um objeto que o homem seria capaz de auto-
observação.
Existe, porém, um aspecto assustador do "duplo". Caso ele represente algum afeto
ou impulso emocional que, por meio do processo de repressão, tenha sido "esquecido",
seu retorno ameaça a integridade do sujeito e gera ansiedade. Além disso, a experiência
do unheimlich remete a medos primitivos. Um deles é o temor da morte, pois as almas
dos mortos, seus "duplos", podem retornar para prejudicar os vivos segundo algumas
crenças. Outro é o efeito repulsivo da epilepsia e da loucura, pois os leigos podem
enxergar nesses fenômenos a influência de maus espíritos ou a manifestação de forças
internas desconhecidas até mesmo pelas pessoas que os apresentam.158

Ao ingressar no cárcere, Graciliano Ramos tem acesso a "tudo o que deveria ter
pemanecido oculto mas veio à luz" de sua consciência. A prisão é o avesso das coisas:
violência gratuita, despersonalização, animalização do humano, agressão a todos os
sentidos e a todos os direitos, incoerência de atitudes, o sexo invertido ou o não-sexo, o
não-trabalho, a não-saúde. De alguma forma, olhando para seus companheiros como
"duplos" de si mesmo e dos demais presos, Graciliano via neles a representação de tudo
o que se escondia, fora da prisão, sob a tranqüila aparência da civilidade:

"Pensava na máscara de Cavalcante, via-a pregada no rosto de Gikovate [...].


As caras de pasmo e os vultos piongos levaram-me a supor-me também
desfigurado. [...] Agora me revia nos outros, como em verídicos espelhos, e
assaltava-me o desânimo, a quebreira."159

"Um sorriso nos envolvia, nos anestesiava, ocultando um punhal de


assassino. Dias depois, feridos na sombra, seríamos postos num alojamento
sujo de moribundos. Centenas de organismos a desconchavar-se lentos,
envoltos em farrapos; pernas convulsas, a estirar-se, finas como cambitos;
bugalhos a rolar em desvario. Gemidos, roncos de agonia ⎯ um infeliz a
acabar-se, a barriga aberta, jorros de sangue escuro e podridão cheia de
bichos, sob o vôo das moscas. [...] Paz no vasto salão de tábuas vacilantes, no
morro vermelho, nas casas escondidas entre as ramagens, nas pedras da
Favela, nas guaritas pequenas trepadas no muro largo."160

O apavorante desconhecido está também em seu próprio corpo: a perna que


desobedece, o rosto transfigurado, o estômago que não se manifesta, apesar de sofrer

jejuns prolongados, os intestinos que se contraem numa hemorragia inesperada, a voz e

158 Ibid., p. 104/110 e ss.


159 MC, II. p. 179-80.
160 MC, IV. p. 154-5.
107

os gestos que se tornam independentes de sentimentos e idéias. Metade morta: Paulo.


Metade viva: Fulano. Batizado, o pedaço morto do narrador chega a ser até mais humano
do que a outra parte.
Além disso, a estrutura em fluxo de consciência é também desdobrada. Ela propõe
um discurso que revela traços da exterioridade por meio da interioridade. Segundo André
Green, "Freud reconheceu que o delírio é construído em torno de um núcleo de
verdade"161. As "viagens" de Graciliano Ramos pelos cárceres do Estado Novo
resultaram numa elaboração textual quase delirante. Quase, porque ainda guarda o
respeito à sintaxe e mantém pontos de contato com a situação que o autor quis
representar em Memórias do cárcere. Mesmo assim, é só através do monólogo interior

intenso e da justaposição de tempos e espaços diversos que se constitui o "documento"


ou o "testemunho" que a crítica literária enxerga na obra.

II.5 "Animal farm"

"TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS


MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS
IGUAIS DO QUE OS OUTROS"
(George Orwell)

Quarenta anos depois da primeira edição de Memórias do cárcere, Ricardo Ramos


comentaria:

"Os melhores retratos de Memórias do cárcere irritavam muito os retratados.


Agildo Barata ficou danado da vida quando soube que era descrito pelo velho
como baixinho e falando fino, embora aparecesse também como líder
nato."162

Segundo Moacir Werneck de Castro, as queixas de Diógenes Arruda eram


parecidas, embora revestidas de um caráter ideológico:

"O Graciliano escrevia um livro em que havia líderes comunistas importantes


e ele não os exaltava como heróis da revolução. Ao referir-se a eles, aplicava
os mesmos instrumentos de análise usados por exemplo para descrever o
ladrão de quem ficou amigo na Ilha Grande."163

161 André Green. "Literatura e psicanálise: a desligação". In: Luiz Costa Lima. Teoria da literatura em
suas fontes (vol. I). São Paulo: Francisco Alves, 1983. p. 216.
162 Apud Dênis de Moraes. O velho Graça. p. 274.
163 Dênis de Moraes. O velho Graça. p. 274-5.
108

Se, no primeiro volume de Memórias do cárcere, os rostos dos companheiros de


viagem no porão do Manaus apareciam ao narrador envoltos em bruma, em "Pavilhão
dos Primários" ele encontra a oportunidade de elaborar os perfis da frustrada revolução.
A transferência do porão fétido para a Casa de Detenção não é feita sem um respiro
de alívio ou um sentimento de estar emergindo das sombras de volta à vida. Ao ingressar
no Pavilhão dos Primários, o narrador encontra uma sociedade organizada, com
costumes próprios, rotinas, poder constituído, responsáveis.
No vestíbulo espaçoso entre as celas, apelidado pelos presos de "Praça Vermelha",
o secretário-geral do partido comunista argentino, Rodolfo Ghioldi, dava conferências
sobre política. Era também lá que se faziam as reuniões do Coletivo, que distribuía

igualmente alimentos doados por todos segundo suas possibilidades e administrava as


verbas também provenientes de donativos. Em certas horas do dia, vários detentos
lecionavam aos outros suas especialidades, como matemática e inglês. À noite, o
vozeirão de Renato do Rêgo Barros colocava "no ar" a "Rádio Libertadora". Liam-se
notícias de jornais contrabandeados do exterior nos dias de visita e trechos de livros,
faziam-se críticas ao governo, as mulheres recolhidas à Sala 4 cantavam. Ao entrarem no
Pavilhão, os nordestinos foram saudados com o "Hino do Brasileiro Pobre", melodia do
Hino Nacional com versos modificados. Lá, o narrador descobre novamente o apetite e o

diálogo, quase inexistentes nos capítulos sobre o porão do Manaus.


Em "Pavilhão dos Primários", o fluxo de consciência cede espaço para uma
narrativa mais marcada pela referencialidade e pelo emprego do discurso direto. A
capacidade de observação do narrador parece aproximar-se novamente da
"normalidade", e a noção de tempo, tão diluída durante a viagem para o Rio de Janeiro,
começa a ganhar contornos mais definidos a partir da rotina que se estabelece no
Pavilhão.
É nesse contexto que o narrador começa a traçar os seus perfis. O primeiro
personagem, Rafael Kamprad ou Sérgio, um russo do Cáucaso, serenidade completa "na
brancura doentia de nata, no olho azul cinzento" e pés deformados pela tortura, é descrito

como "bruxo amigo de Einstein e do infinito", "monstro familiar à teoria da

relatividade"164. Agrícola Baptista, ex-oficial da coluna Prestes, havia furado "um lençol

164 MC,II. p. 9-11.


109

cor de sangue e andava metido nesse poncho medonho"; os olhos pequenos, a barba
espessa, o rosto longo e um sorriso frio e doloroso lhe haviam rendido a alcunha de
Tamanduá165. Pendurado nas celas, um português anarquista estirava o pescoço e
esgoelava um canto de galo, "cocorocós muito agudos e trêmulos"166. Lacerdão, "braços
musculosos, dentes de selvagem e bocarra medonha", que vivera na Inglaterra e
substituiu Sérgio como professor de inglês, procurava explicar aos alunos o significado
da frase "the tree grows" com uma estranha coreografia: "baixava-se, ia pouco a pouco
subindo enquanto falava, tentando figurar o crescimento da árvore; as mãos se agitavam
simulando galhos; os sons, repetidos, gravar-se-iam no espírito dos alunos"167.
Valdemar Birinyi, um húngaro colossal que se dizia ex-oficial do exército de Bela

Kun e que não conseguia se entender com os demais em nenhuma língua por eles
conhecida, introduziu o jogo de xadrez no Pavilhão, fabricando as peças com miolo de
pão. Certo dia, os demais presos o acharam agitado em sua cela:

"⎯ Bicho.
Levou a mão à boca muito aberta:
⎯ Bicho.
Mostrou-nos as peças roídas, várias inutilizadas, arreganhou de novo os
queixos, moveu os beiços. Percebemos a intenção dele:
⎯ Comeu?
⎯ É, comeu. Bicho comeu xadrez.
⎯ Que bicho, Birinyi?
O homenzarrão ficou um instante indeciso, revolvendo a memória.
Nada achando, estirou-se no chão de barriga para baixo, sacudiu à toa os
braços e as pernas, enfim descreveu como pôde os movimentos de uma
barata."168

As demais descrições de personagens seguem o mesmo padrão. Por um lado, o


exagero, em que se unem hipérboles e metonímias: os companheiros do Pavilhão dos
Primários ora são gigantescos, possuem partes do corpo desproporcionais (os pés de
Sérgio, a boca de Lacerdão, por exemplo), ora são miúdos, mesquinhos. Por outro lado, a
constante animalização dos personagens. Birinyi é uma barata, o português transforma-se
num galo, Agrícola Baptista vira Tamanduá, e mais.

165 Ibid., p. 17-8.


166 Ibid., p. 19.
167 Ibid., p. 61.
168 Ibid. p. 51.
110

Na seqüência do volume, Moésia Rolim, outro dos presos, que possui voz abafada,
cheia de hiatos e gargalhadas roucas, sacode os braços curtos e lembra um periquito a
maquinar bicoradas em Moreira Lima. Este recebe as bicoradas do outro com dignidade
mansa de boi. Amadeu Amaral Júnior tem estridências de pavão. Francisco Chermont
possui nariz de papagaio. O estivador Desidério fareja denúncias. Sebastião Hora rosna.
Tavares Bastos tem jeito de pássaro. Heloísa, a mulher do narrador, que não estava presa
mas visitava o marido na cadeia uma vez por semana, fazia segundo ele trabalho de
aranha, estendendo fios em várias direções. O próprio narrador se vê como "bicho
inferior", dono de uma "fúria bestial" recalcada. E um certo capitão de nariz comprido,
tido por ele como espião da polícia,

"estava sempre a sussurrar um cacarejo indistinto, passeava na assistência


minguada os inexpressivos olhos de ave, erguia o bico longo, baixava-o,
reproduzia os movimentos sacudidos de galinha a colher grãos. [...] Findos
esses manejos, bateu as asas na fuga definitiva [...]"169

Mesmo os policiais, em "Pavilhão dos Primários", recebem uma representação


zoomórfica. São os "percevejos da Detenção":

"Os percevejos da Detenção eram na verdade uma praga, e em vão


tentávamos saber onde se escondiam. [...] Invisíveis, pertenciam ao
organismo policial, realizavam fiéis a tarefa de importunar-nos da melhor
maneira."170

Dela também não escapam personagens de grande relevo, como Antônio Maciel
Bonfim, o Miranda, e Agildo Barata.
O primeiro, ex-secretário geral do PCB, foi recebido pelos demais presos com
simpatia curiosa. As cicatrizes provocadas pelos maus tratos sofridos na Polícia Central
impressionavam:

"As torturas infligidas a Miranda, arriado numa cama ali perto, conjugavam-
se a aventuras e perigos, romantizavam-no, quase o glorificavam. Tínhamos
enfim matéria suficiente para um esboço de herói."171

Miranda, no entanto, com o correr dos dias, revelou "inconsistência, fatuidade,

pimponice". Ao retratá-lo com decepção, diz o narrador:

169 MC, II. p. 68.


170 Ibid. p. 56.
171 Ibid. p. 110.
111

"Miranda sabia dizer tolices com terrível exuberância. Se lhe faltava a


expressão, afirmava a torto e a direito, desprezando o contexto, vago e
empavonado: ⎯ 'Isto é muito importante'. [...] Pois aquele animal do interior,
sertanejo baiano, estava assim vazio, não tinha nada para comunicar-nos
além da importância cretina?"172

Agildo Barata é um caso à parte, talvez o principal retratado do volume. Em sua


primeira grande intervenção no enredo da cadeia, já entrou a tecer reivindicações
incisivas por causa da falta de talheres e a comandar um protesto que se alastra por todo
o Pavilhão:

"Não nos deveríamos conformar, achava Agildo alinhando frases suaves e


resolutas. Como as nossas razões não tinham produzido efeito, convinha, no
parecer dele, adotarmos a última. Finda a exposição curta, jogou o prato
cheio no pavimento inferior."173

O gesto do militar é imitado por todos os demais presos.


Em seguida, a descrição:

"Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a


escassez de músculos tornavam-no impróprio ao comando. A sua força era
interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata. [...]
moreno, rosto impassível, tinha uns longes de esportista japonês."174

O futuro tesoureiro do PCB também ganha extensa representação animalizada:

"Naquela tarde, no cubículo, [...] ouvi perto uns gritos finos. Cheguei-
me à porta, vi a pequena distância Agildo Barata no passadiço, formulando
uma arenga bastante arrepiada. A voz álgida não se detinha, derramava-se
num fio invariável. Escutando-o, às vezes me assaltava a doida impressão de
que o regato sonoro deixava de correr, era gelo cheio de arestas cortantes,
onde se assanhavam aranhas caranguejeiras e outros viventes da umidade.
Também me vinha a idéia de um miar de gato comedido, vagaroso, a
esconder mal as garras. Esses disparates ⎯ água tranqüila, gelo,
caranguejeiras, gatos ⎯ associavam-se, emprestando a Agildo uma
personalidade estranha, complexa em demasia. [...] Calou-se ⎯ o ato surgiu.
A corrente fluida estancou, exibiram-se os cristais do gelo, os olhos maus da
caranguejeira e as unhas do gato."175

Ser estranho, mistura de aranha e felino com voz de gelo cortante, Agildo intriga o
narrador, incita sua curiosidade, desafia sua capacidade de compreensão. Em outro
momento, torna-se uma cobra: "sutil, a enroscar-se na sombra, largando o bote na hora
conveniente, elástico e venenoso"176.

172 MC,II., respectivamente p. 111 e 113.


173 Ibid., p. 104.
174 Ibid. p. 105.
175 Ibid. p. 103-4.
176 MC, II. p. 119.
112

Ao final do capítulo 13, uma conclusão sobre a liderança exercida pelo ex-tenente,
na qual se revela uma ponta de admiração:

"[...] ele apenas descobrira as nossas tendências, empregara o meio


conveniente para transformá-las em ação. Reside nisso talvez o domínio que
certos indivíduos exercem sobre a turba; o seu prestígio vem da faculdade
quase divinatória de conhecer aspirações e interesses escondidos [...]."177

A mesma admiração já havia aparecido de outra forma, no primeiro volume, por


Luís Carlos Prestes. Detido no Forte das Cinco Pontas em Recife, Graciliano tomou
conhecimento, pelos jornais, da prisão do líder comunista. Declara em Memórias do
cárcere não possuir ainda opinião firme a respeito do homem. Apesar disso, vê nele uma
"estranha figura de apóstolo disponível" com "os olhos muito abertos", que "examinava
cuidadosamente a vida miserável das nossas populações rurais". O narrador comenta:

"Aquela notícia de poucas linhas num jornal do Recife me abalava.


Ainda não dispunha de meios para avaliar com segurança a inteligência de
Prestes [...]. Admirava-lhe, porém, a firmeza, a coragem, a dignidade. E
sentia que essa grande força estivesse paralisada."178

No Pavilhão dos Primários, o único personagem que foge da animalização é


Rodolfo Ghioldi. E o que o distingue dos demais é justamente sua extraordinária
capacidade verbal:

"[...] nunca ouvira ninguém expressar-se com tamanha facilidade. Enérgico e


sereno, dominava perfeitamente o assunto, as palavras fluíam sem
descontinuar, singelas e precisas. Admiravam-me a rapidez do pensamento e
a elegância da frase. Curvado sobre o papel, a suar na composição,
emendando, ampliando, eliminando, não me seria possível construir
aquilo."179

Suas palestras eram feitas com o orador vestindo apenas cuecas e tendo nas mãos
um lenço, que movia ao falar, num "gesto de prestidigitador firme no seu ofício"180.
Apesar da vestimenta imprópria e de, com o passar do tempo no Pavilhão, Rodolfo se
apresentar silencioso, magro, sem apetite e de lhe estarem caindo os dentes, ele conserva

177 Ibid., p. 107.


178 MC, I. p. 69/73.
179 MC, II. p. 15.
180 Ibid.
113

seu caráter humano. Decaído, mas humano. Segundo o narrador, cabia a ele reanimar a
todos181.
No "fervedouro de cortiço" que era o Pavilhão dos Primários, seus habitantes iam e
vinham, "perfeitos animais", "batendo os cascos nos degraus de ferro" e deixando-se
arrastar como "carneiros dóceis"182. Quando Francisco Chermont, filho do senador
cassado Abel Chermont, voltou de sua estadia de uma semana na Ilha Grande e fez um
relato dos horrores do lugar, o efeito sobre os outros prisioneiros foi tal que, diz o
narrador, eles lhe deram "a impressão de moscas envenenadas a debater-se a custo, a
esmorecer num sussurro" e, juntos, pareciam sofrer do "banzo dos negros", do "mal-triste
do gado"183.

Em outro momento, durante o banho matinal, a descrição lembra a conhecida cena


do amanhecer em O cortiço, de Aluísio Azevedo, uma das principais obras do
naturalismo no Brasil. No Pavilhão dos Primários,

"A água jorrava com forte rumor, alagava o chão; diversas torneiras
abertas, resfôlegos, gente a esfregar-se, magotes conversando à porta,
aguardando vaga."184

No cortiço de Azevedo,

"[...] em volta das bicas era um zunzum crescente [...]. Uns, após outros,
lavavam a cara [...]. O chão inundava-se. [...] os homens, esses não se
preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem
debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e
fungando contra as palmas da mão."185

Se a animalização naturalista dava forma literária às teorias científicas em voga no


final do século passado, a de Memórias do cárcere enfatiza a reversão do estado
"civilizado" vigente fora das grades para uma situação "mais ou menos selvagem", de
"subterrâneo social"186, imposta pelo sistema. Sem direitos, sem voz ativa fora da cadeia,
vivendo sob o medo das delações e das torturas, enfrentando situações ignóbeis e até

181 Cf. MC, II. p. 220-1. A relação entre humanidade e linguagem aparece em vários momentos da obra de
Graciliano Ramos. Em Vidas secas (1938), isso acontece de modo direto: Fabiano e família são "bichos"
porque, de alguma forma, não conseguem se expressar.
182 MC, II., respectivamente p. 60, 227, 24 e 26.
183 Ibid., p. 179-80.
184 Ibid. p. 47.
185 Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p. 36.
186 MC, II. p. 72.
114

então desconhecidas, a visão dos prisioneiros só podia arrancar do narrador a afirmação


simples, direta: "Na verdade éramos bichos."187
Não os bichos de Azevedo, bichos "por natureza", resultantes da hereditariedade
ou das leis naturais, mas bichos "fabricados". Daí que, na mesma cena do chuveiro em
Memórias do cárcere, o narrador não tenha escutado o fossar e fungar de outro preso
qualquer, mas a voz possante e o discurso articulado do jornalista e humorista Aparício
Torelly a declamar uma versão modificada de Os Lusíadas:

"As armas e os barões assinalados...


....................................
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A fé, o império, a uretra..."188

Diante da gargalhada do narrador, o comentário:

"⎯ Hoje não se dilata nem império nem fé. Essas dilatações vão
desaparecendo. Agora o que se dilata é a uretra."189

A ironia destrói a grandiosidade e o caráter épico de Os Lusíadas, assim como


mostra a inutilidade de certos saberes na prisão. "Quem foi grande [lá fora] esqueça-se
disto", berra o guarda zarolho na Colônia da Ilha Grande190.
Se, por um lado, a linguagem crua e a descrição animalizada dos personagens e da
situação da cadeia remetem, em Memórias do cárcere, a uma estética de cunho
naturalista, por outro, a forte ironia presente nos retratos e o exagero de alguns trechos
vinculam a obra a padrões estéticos modernos.
Embora Graciliano Ramos declarasse considerar o modernismo brasileiro "uma
tapeação desonesta" e repudiasse com veemência a classificação de modernista191, o
retrato polimorfo de Agildo Barata ou a visão de Rafael Kamprad como "um cérebro
enorme" diante do qual "o resto do corpo minguava"192 são mais surrealistas ou
expressionistas do que propriamente naturalistas. No primeiro, por exemplo, aparece a

187 Ibid. p. 139.


188 MC, II. p. 47. O verso original de Camões pertence ao Canto I de Os Lusíadas: "A fé, o Império e as
terras viciosas / De África e Ásia andaram devastando". Cf. João Alves das Neves & Douglas Tufano
(org.). Luís de Camões: lírica, épica, teatro, cartas. São Paulo/Brasília: Moderna/INL, 1980. p. 77.
189 Ibid. p. 47.
190 MC, III. p. 80.
191 Cf. Homero Senna. "Revisão do Modernismo". In: Sônia Brayner. Op. cit. p. 50-1.
192 MC, II. p. 37.
115

justaposição de realidades díspares que, associadas, criam uma imagem original193. Na


segunda, há uma ruptura meio alucinatória com a perspectiva realista de proporção da
imagem.
A figuração com travo de absurdo quer dar conta de uma realidade inapreensível
pelos cinco sentidos. André Breton disse em seu "Manifesto do surrealismo" de 1924:

"Creio na resolução futura desses dois estados, aparentemente tão


contraditórios, tais sejam o sonho e a realidade, em uma espécie de realidade
absoluta, de super-realidade se assim se pode chamar"194.

Em Memórias do cárcere, talvez se possa falar de um uso surrealista da


animalização naturalista. No entanto, apesar de haver traços de surrealismo no texto de
Graciliano Ramos, seria um erro considerá-lo um escritor surrealista, especialmente
porque Graciliano repudiava abertamente uma das técnicas fundamentais do surrealismo:
a escrita automática. Para ele, o trabalho do escritor era justamente depurar seu texto,
eliminando incongruências e tudo o que fosse supérfluo, refazendo-o quantas vezes fosse
necessário.
Quanto à ironia, ela acontece em relação aos personagens de Memórias do cárcere
porque a descrição que o narrador faz deles é essencialmente diferente daquela que se
esperava. Enquanto os jornais de 1936 descreviam os presos políticos como elementos
perniciosos à sociedade e os esquerdistas os tinham como heróis, Graciliano os retrata

em sua condição humana decaída e às vezes ridícula. É impossível conter um sorriso ao


se visualizar o "poderoso" secretário-geral do partido comunista argentino em cuecas, a
balançar um lenço enquanto fala a uma audiência de homens amontoados e seminus.
Na literatura moderna, a importância da ironia está no seu poder de corrosão. Nas
palavras de Hugo Friedrich, a lírica moderna "veio a colocar-se em oposição a uma
sociedade preocupada com a segurança econômica da vida [e] tornou-se o lamento pela
decifração científica do universo e pela generalizada ausência de poesia"195.
Na obra de Graciliano Ramos, Memórias do cárcere também é uma peça de

resistência. Como diz o narrador na travessia entre a Ilha Grande e Mangaratiba, ela

representa um ataque a "diversas instituições favoráveis aos ricos: o congresso, a justiça,

193 Cf. André Breton. "Manifesto do surrealismo". In: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e
modernismo brasileiro. 3.ed. Petrópolis/Brasília: Vozes/INL, 1976. p. 194
194 Apud Gilberto Mendonça Teles. Op. cit. p. 177.
195 Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 20.
116

a imprensa, o exército, a colônia correcional"196. A ironia seria, assim, um meio de


expressar o sofrimento ou a discordância por meio do riso, parafraseando uma frase de
Baudelaire sobre o absurdo197.
Para Flora Süssekind, se a prosa da geração de 30 significou um "neonaturalismo",
em que se abandonou o saber calcado nas ciências naturais em prol de outro, baseado nas
ciências sociais e na economia198, Graciliano Ramos foi além. Segundo ela,

"quando explicita em seus romances o trabalho com a linguagem, Graciliano


joga por terra a obsessão fotográfica e documental dominante no
neonaturalismo de Trinta."199

É o que acontece também em Memórias do cárcere.


Além disso, a sociedade formada pela aglomeração dos presos no Pavilhão dos
Primários, na Ilha Grande ou na Sala da Capela, se não era regida por "leis naturais"
como raça ou caráter hereditário, também não era absolutamente amorfa. Apesar das
tentativas de "despersonalização" que o narrador identifica no tratamento dos presos pela
polícia desde quando é detido200, a cadeia se torna, com o passar do tempo, uma espécie
de "sociedade alternativa". Mesmo entre os "bichos" que os prisioneiros se tornaram, há
diferenças de status e de poder, tanto econômico quanto político.
O médico alagoano Sebastião Hora, por exemplo, ex-presidente da Aliança
Nacional Libertadora de seu estado, desde o porão do Manaus dispunha de dinheiro para

comprar refeições melhores que as dos outros presos. Quando o narrador, preocupado
com o porta-moedas que deixara à vista na cela ao descer para o almoço, lhe pediu que
recebesse por favor o prato que aguardava na fila da refeição pois precisava subir por um
minuto, a resposta foi incisiva:

"⎯ Não recebo prato de ninguém não."201

Hora sentira-se humilhado. O entrevero foi tão sério que provocou a mudança de
Graciliano da cela que dividia com o médico para o cubículo 50.

196 MC, III. p. 212.


197 Apud Hugo Friedrich. Op. cit. p. 44. Segundo o texto, "[A 'lei do absurdo'] É a lei que obriga o homem
a "expressar o sofrimento por meio do riso".
198 Flora Süssekind. Tal Brasil, qual romance?: uma ideologia estética e sua história: O Naturalismo. Rio
de Janeiro: Achiamé, 1984. p. 150-1.
199 Ibid., p. 170.
200 V., por exemplo, MC, I. p. 31.
201 MC, II. p. 201.
117

As divisões no Pavilhão dos Primários eram também ideológicas e de classe. Havia


lá intelectuais, operários e militares de diferentes tendências de esquerda. A querela
maior era entre stalinistas, vinculados à linha partidária, e trotskistas. Por ter se declarado
internacionalista, o narrador começa a ser malvisto por alguns companheiros, que passam
a considerá-lo partidário de Trotski e a ver suas opiniões como pouco dialéticas202.
Também havia problemas freqüentes entre militares e civis. Com o tempo, desaparecem
as ilusões de que haveria alguma igualdade dentro da prisão, ou mesmo compreensão
mútua entre desiguais. De fato, o narrador acaba por se entender melhor com o capitão
Lobo ou com os ladrões Cubano e Gaúcho, que conheceu na Ilha Grande, do que com
outros presos, de formação parecida com a sua ou mesma extração social.

Sob esse aspecto, ganha relevo no volume a questão do jogo. Logo após a chegada
do narrador e demais nordestinos à Casa de Detenção, quando se estabelece uma frágil
camaradagem entre os companheiros do Pavilhão dos Primários, Valdemar Birinyi
introduz entre os presos a mania do xadrez. O primeiro tabuleiro é fabricado pelo
húngaro com papel almaço e miolo de pão; as figuras são depois comidas pelas baratas.
O segundo tabuleiro vem contrabandeado de fora, em dia de visita. A coqueluche foi tal
que, quando os detentos, como castigo por um barulhento protesto, foram trancados nas
celas por vários dias, o jogo era feito à distância:

"Arrumávamos as peças no tabuleiro, iniciávamos a partida.


⎯ Peão do rei quatro, anunciávamos.
⎯ Cavalo de dama três do bispo, gritava-nos o parceiro, do cubículo
vizinho."203

Aos poucos, o xadrez vai se tornando a imagem das relações desconfiadas que se
estabelecem entre os presos, sobre as quais pairava o fantasma da delação:

"Pisávamos terreno movediço e cheio de emboscadas. E não conseguíamos


discernir [...] quais os divulgadores sinceramente convencidos e quais os
provocadores de suspeita e balbúrdia. [...] buscamos isolar-nos na multidão,
permanecemos de sobreaviso, reduzimos o vocabulário e estudamos as caras
e os gestos. [...] Essa contensão de espírito afinal se mecaniza: jogando
xadrez, remoendo as conseqüências de um lance arriscado, estamos sem
querer a observar os movimentos do parceiro. Com certeza ele notará isso e
nos julgará indiscretos, fará conosco o jogo que fazemos com ele. Todos se
espionam, divulga-se o constrangimento, o ar se envenena."204

202 Cf. MC, II. p. 71-2.


203 MC, II. p. 133.
204 Ibid., p. 75.
118

A natureza do jogo de xadrez, no entanto, ainda é a de uma disputa pela


inteligência. Após certo tempo, os tabuleiros começam a perder em popularidade para as
cartas, e a febre do pôquer a dinheiro toma conta da Detenção. No pôquer, um ganha
enquanto os outros perdem; e não se trata mais de possuir um raciocínio mais ou menos
agudo, mas de pura sorte e de alguma trapaça.
A fase do jogo de pôquer encontra o narrador em seu momento de maior
isolamento, em que se aprofundam suas desavenças em relação aos outros presos e sua
ansiedade sobre as dificuldades financeiras que enfrentava. No capítulo 27, ele afirma:

"O pôquer não me servia de refúgio: associavam-se nele os obstáculos


presentes e os passados."205

Aliavam-se a isso o efeito do relato de Francisco Chermont sobre a Ilha Grande e a


expectativa de também ser transferido para lá. Ser ou não escolhido para a Colônia,
depois do exemplo de Chermont, já não tinha nenhuma lógica: era um lance de azar. Se o
jovem filho de um senador tinha sido levado para a companhia de ladrões e assassinos,
quem teria imunidade?
Confuso quanto ao seu lugar na "sociedade incongruente e movediça"206 do
Pavilhão e incerto quanto ao seu destino, o narrador reflete diante da mesa de pôquer
aberta no cubículo 50:

"[...] não me sentiria à vontade em nenhum lugar, foi o pensamento que me


ocorreu naqueles dias. Usava roupa e linguagem de burguês, à primeira vista
não nos distinguíamos; o mais simples exame, porém, revelaria entre nós
diferença enorme. Também me distanciava dos operários; se tentasse negar
isto, cairia na parlapatice demagógica. Achava-me fora das classes, num
grupo vacilante e sem caráter, sempre a subir e a descer degraus, a topar
obstáculos. [...] Repelido em cima e em baixo: aqui os modos afáveis e
protetores de Adolfo; ali a brutalidade rija do estivador Desidério."207

Diante da descrição de Graciliano, a visão comunista da homogeneidade e da


solidariedade dentro de cada classe social estava definitivamente rompida.
Também caíram por terra, humanizados ou animalizados, grandes "heróis" do
partido. O viés irônico do narrador ao descrevê-los os torna risíveis, às vezes ridículos,

205 MC, II. p. 213.


206 Ibid., p. 216.
207 Ibid., p. 214.
119

por mais que em vários momentos transpareçam neles certos traços de decência ou
liderança.
Enquanto os personagens comunistas de Jorge Amado, em especial os de Os
subterrâneos da liberdade, caminham, de acordo com a teoria dos modos de Northrop
Frye, do modo imitativo elevado em direção ao mito, as "criaturas vivas, sem
disfarces"208 de Graciliano Ramos em Memórias do cárcere perfazem o sentido inverso.
Um sentido de queda.
Em princípio, fora da cadeia, todos aqueles que depois se encontrariam dentro dela
eram pessoas comuns: "nem superiores aos outros homens, nem ao seu meio", nas
palavras de Frye209. Havia entre essas pessoas diferenças sociais, mas não de natureza:

eram todas humanas, sem poderes excepcionais ou prodigiosa força ou coragem. Assim
caracterizados, esses personagens pertenceriam ao que Frye chamou de "modo imitativo
baixo", próprio da comédia ou da ficção realista210.
Entretanto, também sob esse aspecto Graciliano Ramos abandona o "realismo". A
partir do momento em que ingressam no inferno da cadeia, no "banheiro carrapaticida"
do Manaus211 ou no "curral de arame farpado" da Colônia Correcional212 e se tornam
"simples rebanho, apenas, rebanho gafento, [...] necessitando creolina"213, os
personagens de Memórias do cárcere deixam o modo imitativo baixo e ingressam no

modo irônico, aquele em que os heróis, se assim podem ser chamados, são inferiores em
poder ou inteligência aos demais homens. Assim, "temos a sensação de olhar de cima
para uma cena de cativeiro, frustração ou absurdo", diz Frye214.
O próprio narrador-personagem, que possui uma autocrítica corrosiva, caracteriza-
se como menor entre os menores:

"[...] não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para


os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás
dos que merecem patentear-se"215,

208 MC, I. p. 5.
209 Northrop Frye. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São
Paulo: Cultrix, 1973. p. 40.
210 Ibid.
211 MC, I. p. 125.
212 MC, III. p. 16.
213 MC, I. p. 125.
214 Op. cit., p. 40. A tradução livre é minha, a partir da versão inglesa: Northrop Frye. Anatomy of
criticism: four essays. Princeton: Princeton University Press, 1990. p. 34.
215 MC, I. p. 11.
120

diz ele no capítulo-prefácio à sua obra. O comentário, se bem observado, não esconde
uma outra pitada de ironia: será que "os que merecem patentear-se" o merecem, mesmo?
Retratando-se ele também através do modo irônico, o narrador desmistifica-se, e a
todos os demais personagens. Sua voz não é a verdadeira: é apenas veículo de uma entre
várias versões dos fatos, algumas resgatadas no próprio texto. Sua inteligência ou sua
capacidade verbal também não são as melhores entre os demais: Rodolfo Ghioldi,
mesmo em cuecas, articula-se melhor; Rafael Kamprad, mesmo que frágil, pálido, com
os pés magoados das torturas, lê e compreende mais rápido Caetés do que seu próprio
autor216.
Somem-se aos retratos por ele elaborados as relações difíceis, competitivas,

intolerantes, as mesquinharias e traições entre os "heróis da frustrada revolução" que


Graciliano Ramos testemunhou durante quase um ano de cadeia e se entenderá a
implicância do PCB em relação a Memórias do cárcere. Nem o "grande Prestes" escapa
da autenticidade rebelde do escritor. "Admiro-o, sim, de longe", parece dizer o narrador
das Memórias ao fazer o retrato do líder dos tenentes; "mas como é que se pode gostar
do que não se conhece?"
Em Memórias do cárcere, os melhores acabam sendo os ladrões e vagabundos da
Ilha Grande. Na Colônia Correcional, apesar do contexto terrível e talvez por causa dele,

perdem o sentido as questões ideológicas e sociais que dividiam os presos do Pavilhão


dos Primários e, depois, da Sala da Capela. Lá, por absurdo que pudesse parecer, havia
espaço para entendimento e admiração entre os presos. Como entre o narrador e Cubano,
um dos detentos designado para o "papel de cão de fila": na falta dos guardas ou do
anspeçada Aguiar, era ele quem comandava as formaturas e designava castigos217.
Cubano tornou-se uma espécie de anjo da guarda do narrador na Colônia. Ou como a
amizade que o narrador criou com Gaúcho, ladrão arrombador e prodigioso contador de
casos.
Os estranhos "heróis" da Ilha Grande diferem dos bem-informados presos
políticos da Detenção em dois aspectos: uma tolerância maior, mais humana, em relação

ao diferente, no caso o narrador; e a capacidade de narrar. Muitas vezes o narrador

216 Cf. MC, II. p. 36-7.


217 MC, III. p. 89.
121

critica as veleidades literárias de seus colegas presos, que não conseguiam fazer nada que
prestasse. Mas as narrativas de Gaúcho, de Paraíba, se articulam. Prestam.
Walter Benjamin, no ensaio "O narrador", considera que, no mundo moderno, "a
arte de narrar está em vias de extinção"218. Para ele, só existem verdadeiros narradores,
aqueles capazes de transmitir experiência, em dois grandes grupos: o dos camponeses
sedentários e o dos marinheiros comerciantes, que passavam sua existência a viajar219.
Graciliano Ramos parece ter descoberto um terceiro grupo de grandes narradores:
o dos ladrões encarcerados, que passam seu tempo ocioso a contar suas façanhas e a
imaginar projetos mirabolantes. Na visão do narrador, essa extraordinária capacidade
verbal talvez os fizesse melhores do que os outros presos, provenientes de classes sociais

mais altas e detentores de maior estudo, mas teóricos demais. A vida estava entre os
menores.

II.6 Colagens

"Mal o reconheci, porém, desfez-se em pedaços, dele


saltando uma segunda figura, uma terceira e logo dez
ou vinte, e todo o espelho gigantesco estava cheio de
Harrys e de fragmentos de Harrys, infinitos Harrys,
cada um dos quais eu olhava e reconhecia em um
momento instantâneo como um relâmpago."
(Hermann Hesse)

No conto "O relógio do hospital", escrito ainda na prisão, Graciliano Ramos


apresenta um narrador doente, que sofre uma intervenção cirúrgica e fica de cama para
uma convalescença de duas semanas. Entre sono e vigília, o narrador delira. À noite, em
meio a imagens de vultos, pesadelos e lembranças da infância, incomoda-o o som de um
relógio:

"Som arrastado, encatarroado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca


houve relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um mecanismo
estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas."220

A obsessão em medir a passagem do tempo corrói a consciência:

218 Walter Benjamin. "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 197.
219 Ibid., p. 198-9.
220 Graciliano Ramos. "O relógio do hospital". In: Insônia. 23.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1994.
p. 40.
122

"O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível.
Parece que ele tenciona encher a noite com sua gemedeira irritante."221

O ruído incômodo parece desaparecer em certos momentos. Mas a quietude das


pancadas do relógio, que de alguma forma se confundem com o pulsar do coração do
narrador, são um índice de morte:

"Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou?
Uma idéia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos
esparadrapos morreu."222

A lembrança recorrente do hospital, que dá origem ao conto incorporado em


Insônia, persiste também no narrador de Memórias do cárcere. Nos trechos mais densos
do "livro da cadeia", em especial naqueles em que as certezas do narrador se esboroam
ou em que a perplexidade diante dos fatos por ele vividos se torna quase insuportável,

sua memória resgata os suplícios da operação que o impediu de trabalhar durante meses
em 1932. A primeira referência a ela aparece logo no segundo capítulo da obra. O
narrador havia sido demitido de seu cargo na Instrução Pública de Alagoas e voltava para
casa223. É na Ilha Grande, porém, que a sensação de estar meio morto volta com maior
insistência. Lá, a barriga aberta de um preso, exposta a uma nuvem de moscas, confunde-
se com o próprio abdômen operado anos antes e que voltava a manifestar dor224.
Em vários trechos de Memórias do cárcere, o narrador se sente incomodado não
pelo ruído de um relógio, mas pela ausência dele. Isso começa na primeira noite que
passa preso, no quartel do 20o Batalhão, em Maceió:

"Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio


de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações,
testemunhas, sumiram-se. Não me acusavam, suprimiam-me. [...] Que horas
seriam? [...] De novo me deitava, pegava a brochura, soltava-a, cobria os
olhos por causa da luz, tornava a levantar-me, acendia outros cigarros. Já no
cimento se acumulavam pontas. Nenhum relógio na vizinhança. Apenas os
indeterminados rumores noturnos da caserna: um apito, vozes remotas,
confusas."225

A situação é semelhante à de "O relógio do hospital": insônia, pequenos cochilos,

pensamentos volteando a consciência. Novamente, a relação entre a falta do instrumento

221 Ibid., p. 41.


222 Ibid.
223 Cf. MC, I. p. 15.
224 MC, III. p. 183 e ss.
225 MC, I. p. 31-2.
123

que media as horas e a idéia de morte: "Não me acusavam, suprimiam-me". Também


fica claro um processo que vai se tornando mais e mais freqüente em Memórias do
cárcere: a contagem do tempo por elementos ao alcance do narrador: as pontas de
cigarro que se acumulavam no cimento, o suceder de ruídos no quartel.
Em "Pavilhão dos Primários", o cálculo não mais das horas, mas dos dias passados
era feita pelo narrador de modo no mínimo insólito. Periodicamente, os detentos do
Pavilhão doavam frutas, conservas, latas de doce recebidas nos dias de visita para os que
voltavam famintos da Colônia Correcional. Graciliano guardava para essas ocasiões a
laranja que recebia a cada refeição, como sobremesa. No fundo do cubículo, formava-se
aos poucos um monte delas. É esse monte que exerce a função de calendário:

"A noção do tempo ia-se apagando. Se não me caísse nas mãos um número
de jornal entrado clandestinamente, desorientar-me-ia, perdido no calendário.
Em que mês nos achávamos? Esquecia-me às vezes. Mas, contando as
laranjas, era-me possível saber quantos dias mediavam entre duas turmas que
vinham da colônia correcional."226

A perda da noção do tempo é mais intensa quanto mais se aprofunda a experiência


da cadeia. Traduz-se também no discurso.
Nos capítulos iniciais de Memórias do cárcere, a marcação temporal dos eventos
do enredo ainda é bastante cronológica. O ponto de partida da história é, para o narrador,
uma circunstância determinada no tempo: "No começo de 1936, funcionário na instrução
pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças,
me procuravam o endereço"227. O capítulo seguinte, que narra o dia da prisão, é
pontuado por referências temporais precisas: "No dia seguinte, 3 de Março, entreguei
pela manhã os originais a d. Jeni, datilógrafa. Ao meio-dia uma parenta me visitou [...]";
"D. Irene, diretora de um grupo escolar vizinho, apareceu à tarde"; "Afinal, cerca de
sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta ⎯ e um oficial do

exército, espigado, escuro, cafus ou mulato, entrou na sala".228 O quarto capítulo, em que
o narrador atravessa a cidade detido no carro oficial, já não começa com uma
circunstância de tempo: "Rodamos em silêncio, atravessamos o bairro de Jaraguá e a

226 MC, II. p. 199-200.


227 MC, I. p. 12, grifo meu.
228 Ibid., p. 20/23/25, grifos meus.
124

cidade"229. O contraste entre este início de capítulo e o anterior é sintomático da diluição


da noção temporal que começa nesse ponto.
Encarcerado nas prisões, encarcerado em si mesmo. A mudança de um tempo
cronológico, próprio da vida fora da cadeia, para um tempo interno a ela, que é também
um tempo interior ao próprio narrador, acompanha, em Memórias do cárcere, o
movimento espacial do texto. Nos breves trechos iniciais em que o narrador ainda se
encontra em liberdade, vale o tempo dos relógios e dos calendários: é ele que o discurso
acusa, por meio de advérbios e expressões adverbiais. Nos momentos em que o contexto
da prisão se torna sufocante, insuportável, como no porão do Manaus ou na Colônia da
Ilha Grande, o tempo psicológico é intenso, acompanhando a radicalização do fluxo de

consciência. Esses episódios são narrados quase que sem advérbios. Quando ocorrem,
trata-se de expressões temporais de sentido mais durativo: "lentamente", "logo",
"longamente", "depois de extensa demora". Nesses momentos, a passagem das horas, dos
minutos, é construída pelo narrador preferencialmente por meio da sucessão de eventos,
sensações e pensamentos justapostos:

"O sono fugia. Estirava-me, às vezes me alheava em modorra


agoniada: as coisas em redor sumiam-se, e apenas restava, aborrecedora, uma
torpe visão. Aquilo era repugnante e descarado. Fechava os olhos, tornava a
abri-los, cheio de raiva e nojo. Nessas rápidas fugas o cigarro se apagava.
Mais um fósforo perdido; inquietava-me vendo a caixa esvaziar-se.
Impossível dormir ⎯ e não conseguia despertar de todo e economizar o
fogo. As comichões seriam picadas de pulgas? Ou seriam efeito de ar que
entrava pelas vigias e me salgava a pele queimada?"230

No parágrafo, apenas uma expressão adverbial indicativa de tempo, "às vezes",


mesmo assim com um sentido não exatamente de quando, mas de com que freqüência
aconteciam os alheamentos do narrador. E até mesmo essa freqüência é vaga. Aparece
também no trecho um modo alternativo de marcar a passagem do tempo: a contagem dos
fósforos.
Com isso, o narrador recria no leitor a sensação de estar perdido no tempo. Uma
noite pode ocupar um capítulo inteiro; por outro lado, há hiatos temporais entre capítulos

que narram fatos significativos. Graciliano Ramos permaneceu cerca de quinze dias na
Colônia Correcional da Ilha Grande. O relato sobre essa experiência ocupa mais de

229 Ibid., p. 28.


230 MC,I. p. 132.
125

duzentas páginas. A narrativa sobre a Sala da Capela, onde o escritor esteve preso por
mais de seis meses, passa um pouco das cento e cinqüenta. A"duração" da Colônia é
maior, porque a experiência ali vivida e recriada pelo discurso da memória é mais intensa
e complexa.
É também uma experiência mais próxima da morte, que é o não-tempo. Na Ilha
Grande, ao entrar no amplo refeitório em que a comida cheirava a carniça, o narrador
volta a comentar a passagem das horas:

"O tempo se desperdiçara nas idas e vindas, nas buscas, no refeitório


sombrio. Quantas horas? A falta de um relógio me desorientava. [...] Nessa
paralisia da vontade os minutos se encolhem ou se alongam
desesperadamente."231

Em "Pavilhão dos Primários" ou em "Sala da Capela", volumes em que o fluxo de


consciência do narrador, apesar de predominante, volta-se para a observação dos
companheiros e das circunstâncias da cadeia, é mais abundante a notação temporal. A
cronologia, porém, se estabelece por meio das rotinas adotadas dentro das celas, do ritmo
biológico do narrador e demais presos (despertar, comer, dormir) e dos períodos do dia
(manhã, tarde e noite). Os advérbios e expressões adverbiais acompanham os ritmos da
prisão: "[Valdemar Birinyi] Quis dizer-me qualquer coisa um dia"; "Mais tarde
perguntei ao russo"; "Ao cabo de algum tempo, houve um desastre"; "Na manhã
seguinte, ao descer do banho de sol, vi junto à escada um rapaz moreno"232. Em vários
trechos, o narrador substitui as expressões circunstanciais de tempo por enumeração de
ações:

"Nenhum repouso, os tamancos batiam com o surdo rumor de cascos de bois


acossados. Varríamos os detritos. E principiava uma extensa barrela.
Abríamos as torneiras, a água se derramava nas pias, transbordava, alagava o
chão; utilizando os canecos, atirávamos nas paredes jatos enérgicos.
Ensaboávamos tudo com rigor, as vassouras chiavam desesperadamente,
agitando espuma escura. Os chuveiros não tinham férias [...]."233

Em outros, são orações adverbiais que referem o tempo na narrativa. Nesses casos, são
os próprios fatos do enredo que vão marcando a passagem do tempo: "Ramiro

Magalhães [...] achou ali [...] dois garotos presos quando pintavam muros"; "Estava

231 MC, III. p. 68.


232 MC, II. p. 50/1, grifos meus.
233 Ibid. p. 58.
126

assim Newton Freitas quando se entreabriu a cortina de lona e a figura de Eneida


apareceu"; "Quando supunha esclarecer o negócio [...], transferência para a Casa de
Detenção"234.
Apesar de mais pontuado nesses trechos, o tempo interior da cadeia, assim como o
tempo interior ao narrador, mais diluído, nada tem a ver com aquele que corre além das
grades. Daí o espanto do narrador ao receber um dia, de surpresa, notícias da mulher e
uma fotografia dos filhos pequenos:

"Não me ocorreu observar-lhe o dorso [do cartão]: foi por acaso que o
virei. Distingui dez ou doze linhas a lápis, uma data, uma assinatura ⎯ e
explodiu a cólera bestial:
⎯ Que diabo vem fazer no Rio essa criatura?
Era uma quinta-feira, princípio de maio: algumas letras e algarismos
me trouxeram de relance a noção do tempo esquecido. Minha mulher chegara
e prometia visitar-me na segunda-feira, entre dez e onze horas."235

Depois de muitos acontecimentos, o tempo cronológico ressurge na narrativa como


intervenção externa.
Além da oposição tempo interior (ao narrador e à prisão) versus tempo exterior à
cadeia, a estrutura temporal em Memórias do cárcere é ainda mais complexa devido à
fragmentação trazida pelo fluxo de consciência. Nessa corrente incessante de
pensamento, o passado e o futuro irrompem muitas vezes, partindo o fio linear do enredo
com lembranças, reflexões, fantasias sobre o que estaria por acontecer.
A. A. Mendilow, em O tempo e o romance, identificou um aspecto do tempo
peculiar a obras de ficção escritas em primeira pessoa, quer na forma de cartas, diários,
memórias ou autobiografias. Ele o chamou de "locus de tempo do pseudo-autor": "o
tempo em que o autor presumido escreve, em relação ao tempo em que os eventos
registrados são dados como tendo ocorrido"236. Em outras palavras, trata-se da diferença
entre o presente da enunciação e o presente do enunciado.
Para Mendilow, na prosa de ficção em primeira pessoa, há uma diferença de efeito
entre o romance em que os eventos são registrados imediatamente após sua ocorrência e
aquele em que são relatados muito depois. Neste, o pseudo-autor "sempre projeta a sua

personalidade que escreve posteriormente sobre a sua personalidade que agiu

234 Ibid. p. 42/43/44.


235 Ibid., p. 88.
236 A. A. Mendilow. O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, 1972. p. 100.
127

anteriormente"237. Nesses casos, o autor tem sempre dois personagens a sustentar: deve
considerar como seu "herói" se sentia no tempo dos eventos relatados, além de sentir
esses eventos no tempo em que os está relatando238.
Em Memórias do cárcere, existe um Graciliano Ramos desdobrado. Hermenegildo
José de M. Barros, em sua tese sobre o livro, identifica dois Gracilianos: o autor e o
narrador-personagem239. Boris Schnaiderman, em artigo intitulado "Duas vozes
diferentes em Memórias do cárcere?", também: para ele, existem na obra um "sujeito da
enunciação" e um "sujeito do enunciado"240.
Na verdade, porém, há nas Memórias tantos Gracilianos quanto são os tempos
desdobrados nesse texto. Um é o autor: aquele que empresta seu nome à capa e se

debruça sobre a escrivaninha, suando suas dores e "exumando" o passado. Outro é o


narrador-protagonista: aquele que vive as agruras da prisão de março de 1936 a janeiro
de 1937. O segundo é projeção do primeiro: um é Graciliano Ramos; o outro é "fulano
de tal". Mas existe ainda a irrupção de um outro passado, mais remoto, dentro do
presente da narrativa: recordações de infância; a lembrança do hospital; a rememoração
do processo de criação de Angústia; episódios da juventude do narrador. Nesses trechos,
há um terceiro Graciliano em jogo. O autor lembra o preso que lembra o homem que
viveu antes da cadeia. E existe ainda um quarto "eu", que não é nenhum dos outros e

representa, ao mesmo tempo, uma alternativa a todos os anteriores: é o Graciliano das


agourentas projeções futuras. Aquele que se perguntava, balançando numa tábua dura ao
sabor das marés do Manaus: "Que diabo iria fazer lá fora quando me soltassem,
desgraçado organismo carunchoso?"241. Ou que afirmava a respeito de Angústia, recém-
publicado por José Olympio:

"Um desastre. E nem me restava a esperança de corrigir a miséria noutra


edição, pois aquilo não se reeditaria. Eu próprio dissera ao editor que ele não
venderia cem exemplares."242

Esse último Graciliano é quase "Paulo": o pedaço morto.

237 Ibid., p. 101.


238 A. L. Barbauld. Apud Mendilow. Op. cit. p. 102
239 Op. cit. p. 129 e ss.
240 Op. cit. p. 332.
241 MC, I. p. 212.
242 MC, IV. p. 82.
128

Isso sem falar nas relações especulares que o narrador estabelece com outros
presos. Os vários narradores que povoam Memórias do cárcere e que contam seus casos
dentro da narrativa principal, especialmente nos dois últimos volumes, são espelhos do
narrador-protagonista. O ladrão Gaúcho, por exemplo, poderia ser considerado um
Graciliano "invertido", mas com a mesma veia ficcional:

"Provavelmente as narrações de Gaúcho eram mentiras, e isto me prendia ⎯


e nos aproximava. Que havia nos meus livros? Mentiras."243

Em outro momento, é a história do mulato José que lhe parece a sua, apesar de ter
tomado rumo diferente:

"Haveria alguma semelhança entre nós? Na verdade a minha infância não


devia ter sido muito melhor que a dele. Meu pai fora um violento padrasto,
minha mãe parecia odiar-me, e a lembrança deles me instigava a fazer um
livro a respeito da bárbara educação nordestina. [...] Débil, submisso à regra,
à censura e ao castigo, acomodara-me a profissões consideradas honestas.
Sem essas fracas virtudes, livre de alfabeto, nascido noutra classe, talvez me
houvesse rebelado como José."244

O narrador, assim, se multiplica em seus personagens, levado por analogias com


fatos presentes ou passados em relação ao enredo.
Ao lado disso, além dos "Gracilianos do enunciado", o Graciliano da enunciação,
pseudo-autor nas palavras de Mendilow, às vezes irrompe na narrativa, fazendo uso de

tempos verbais no presente. Nesses momentos, fica claro que a reflexão proposta no
trecho não foi feita "ao calor da hora", com o narrador ainda na prisão, mas é fruto do
autor por trás do texto. É quase como se o leitor pudesse enxergá-lo com a pena na mão.
O exemplo mais contundente é o episódio em que o narrador recolhe assinaturas de
alguns companheiros nas páginas de um exemplar do romance Usina, do amigo José
Lins do Rego. Em seguida, vem o comentário:

"Folheio agora o livro, e reaparecem-me, logo no começo, Agildo Barata,


Castro Rebelo, Gikovate, Cascardo, Moura Carneiro, Maurício Lacerda,
Karacik. As assinaturas vão até a folha 257. Algumas são curiosas. A de
Moreira Lima hesita e ondula, quase ilegível [...]. Consegui mandar o
romance ao Pavilhão dos Primários, e recebi os nomes dos companheiros de
lá, Benjamin Snaider, Rodolfo Ghioldi, Sérgio, Valério Konder, os dois
Campos da Paz, Lacerdão. Realmente numerosas criaturas desbotam hoje no
papel e dentro de mim. Outras surgem com relevo."245

243 Ibid., p. 134.


244 Ibid. p. 222.
245 MC,IV. p. 39-40.
129

Os advérbios de tempo do trecho ("agora", "hoje") e o emprego do presente do


indicativo, exceto quando o narrador se refere a uma ação da época em que estava preso,
transferem a narrativa para o presente da enunciação.
A fragmentação da identidade do autor-narrador acontece, assim, no tempo. Os
vários passados (narrador antes da prisão, narrador durante a prisão), os vários presentes
(presente do enunciado, presente da enunciação) e alguns projetos de futuro aparecem
justapostos no intenso fluxo de consciência que compõe Memórias do cárcere. Os
tempos são "colados", um ao lado do outro. Na multiplicidade dessa estrutura rompida
há, no entanto, o fio unificador do discurso.
Hans Meyerhoff, em O tempo na literatura, relaciona a técnica do fluxo de

consciência à questão da busca da identidade. Para ele, no mundo moderno, as sucessivas


mudanças são "tão rápidas, tão ininteligíveis e tão incontroláveis que o indivíduo se sente
perdido e indefeso ⎯ pois é a 'sua' história que ele não compreende e não pode

controlar"246. Na literatura contemporânea, o fluxo de consciência ao mesmo tempo


representa essa situação e propõe uma resposta:

"[...] acredita-se comumente que a técnica do 'fluxo de consciência' na ficção


moderna mostra a desintegração total do conceito tradicional de
individualidade. [...] a prevalência dessa técnica na literatura moderna reflete
a fragmentação crescente do eu no mundo moderno. Mas a técnica é também
um modo sutil e engenhoso de transmitir um sentido de continuidade e
unidade do eu 'a despeito' da crescente fragmentação do tempo e da
experiência; pois os disseminados fragmentos da associação livre somente
fazem 'sentido' se pressupomos pertencerem à mesma pessoa. [...] a técnica
de associação livre pode realmente servir mais à função de reconstruir do que
de destruir um senso de identidade pessoal."247

Hermenegildo José de M. Bastos vê, em Memórias do cárcere e na obra de


Graciliano Ramos como um todo, um "movimento no sentido da identidade".
"Abandonar a ficção", diz o crítico, é [...] levar até as últimas conseqüências o sentido
nela predominante, o da perquirição do eu"248. Ao mesmo tempo, ele reconhece que essa
busca da identidade só se perfaz fragmentariamente, ou seja, por meio do outro: tanto
aquele que o eu fora no passado como também os outros com quem esse eu convivera.

Nas obras de ficção de Graciliano, isso se daria por meio dos desdobramentos do autor

246 Hans Meyerhoff. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976. p. 89.
247 Hans Meyerhoff. Op. cit. p. 35.
248 Op. cit. p. 130/2.
130

em seus personagens. Em Memórias do cárcere, essa procura se fundamentaria na


divisão entre "eu-narrador" e "eu-narrado"249. O resultado final, porém, seria não a
solução do problema da identidade, mas sua confirmação:

"[Memórias do cárcere], como texto autobiográfico, ao invés de resolver os


problemas de identidade colocados pelas obras de ficção do autor, reforça-os.
Não há identidade possível, exceto a que se narra."250

No "livro da cadeia" de Graciliano Ramos, porém, não há identidade, nem mesmo


no sujeito que se narra. O caminho de Memórias do cárcere é outro. Ele começa com o
fluxo de consciência exaustivo no porão do Manaus, em que um narrador busca
incessantemente seus traços pessoais apagados ao entrar no cárcere. Contudo, a partir de
"Pavilhão dos Primários", e principalmente em "Colônia Correcional" e "Sala da
Capela", o narrador mesmo já não é mais uma "identidade": desdobra-se em outros
narradores.
O episódio das assinaturas dos presos sobre o romance de José Lins do Rego é, sob
esse ponto de vista, simbólico. Assim como os companheiros de prisão "autografam" um
livro que não escreveram, Usina, seus nomes também se inscrevem numa outra obra,
Memórias do cárcere, cuja história elaboraram indiretamente com suas ações, ou, no
caso de alguns, até mesmo com suas narrativas, incorporadas no discurso maior do
narrador-protagonista. Nesse sentido, o fluxo de consciência de Memórias do cárcere

não resgata, mas destrói qualquer senso de identidade, ao abrir-se para as vozes de outros
narradores-personagens que não somente o narrador-protagonista.
Paradoxalmente, esses "outros" só existem no interior de um discurso de
individualidade extrema, que é a narrativa autobiográfica. Todas as histórias de outros
narradores nela incorporadas foram na verdade reelaboradas e introduzidas no texto pelo
narrador-autor. Todas elas só existem porque existe uma história pessoal a ser contada: a
da prisão de Graciliano Ramos.
Por trás dessas contradições insolúveis, talvez haja uma questão política.

Graciliano tinha consciência, ao iniciar Memórias do cárcere, do efeito que sua obra

poderia vir a ter no contexto político em que vivia. Como deixa claro no primeiro
capítulo do livro, este não era exatamente um empreendimento pessoal, mas uma

249 Ibid., p. 132 e ss.


250 Ibid., p. 145.
131

exigência: "Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos


surge a necessidade urgente de recompô-lo"251.
O prefácio de Nelson Werneck Sodré a Memórias do cárcere talvez esclareça em
parte a natureza dessa "necessidade urgente":

"Seus amigos não deixavam de acompanhar com cuidado a evolução


de uma criatura cuja existência fora continuamente áspera, e temiam que a
situação [de saúde do autor] viesse a se agravar de súbito, cortando as
possibilidades daquele depoimento imprescindível. Demais, não adiantava
opinar sobre a verdadeira e profunda exigência, sobre a necessidade do
depoimento. Ninguém melhor que o romancista sabia disso."252

O PCB contava com o testemunho do militante Graciliano Ramos sobre o Estado


Novo e comparava os resultados com o trabalho de Jorge Amado, considerado pelo
partido um "escritor empenhado em dar conteúdo participante às suas obras"253.
Diógenes Arruda teria dito a Graciliano, ao final de uma reunião sobre a arte socialista:

"⎯ Companheiro, o partido o considera o seu maior escritor. Por isso


mesmo, nós temos o direito de exigir que nos ofereça uma obra com
conteúdo revolucionário."254

Graciliano, porém, respondia sempre:

"⎯ Eu faço o que sei fazer. Eu só sei fazer isto que está nos meus
livros."255

Graciliano Ramos só conseguiu contar a história de muitos através da história de


um só. Às certezas revolucionárias do partido, opôs a dúvida e a incompreensão. Tentou
fazer de sua narrativa uma colagem de versões, mas não escapou do movimento
unificador da voz individual de seu narrador-protagonista.
Dos livros que Graciliano escreveu, Memórias do cárcere talvez seja o que mais se
aproxime, por seu ponto de vista desdobrado, da utopia socialista da comunhão com o
outro; mas, paradoxalmente, é também o que se afasta dela de modo mais radical. A
tentativa de "socializar" a condução da narrativa se revela definitivamente frustrada.

251 MC, I. p. 10.


252 Nelson Werneck Sodré. "Memórias do cárcere". In: Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. 25.ed.
Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1992. (vol. 1). p. 10.
253 Dênis de Moraes. O velho Graça. p. 276.
254 Ibid., p. 273.
255 Dênis de Moraes. O velho Graça. p. 262.
132

Afinal, os narradores que irrompem no discurso são quase tão narradores quanto o
protagonista. Quase. E aí reside toda a diferença.
133

III. HISTÓRIA DO EU, MEMÓRIA DO OUTRO

"Com mão paciente vamos compondo o puzzle de uma


paisagem que é impossível completar porque as peças
que faltam deixam buracos nos céus, hiatos nas águas,
rombos nos sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e
nos peitos que se abrem no vácuo"
(Pedro Nava)

III.1 Um novo realismo

"Apoderar-se da imagem de sua cidade


significa, para ele, flagrar sua própria
imagem."
(Willi Bolle)

No ensaio "A Revolução de 30 e a cultura", publicado em 1983, Antonio Candido

analisou as conseqüências da chamada revolução de 1930 na cultura brasileira. As


mudanças significativas verificadas no país no decênio de 30 não teriam ocorrido
somente por causa do movimento de outubro. Este foi, para o crítico, "um eixo em torno
do qual girou de certo modo a cultura brasileira" e um catalisador de "elementos
dispersos para dispô-los numa configuração nova"1.
Houve, nos anos 30, um processo de "rotinização" das conquistas culturais da
década de 20 e um alargamento da participação dos intelectuais na cultura nacional,
ainda que dentro do âmbito das elites. Nas artes e na literatura, as inovações temáticas e
formais do modernismo de 20 foram incorporadas às novas criações, deixando de
significar uma transgressão para se tornarem um direito.

Além disso, os anos 30 são marcados pelo convívio íntimo entre literatura e
ideologias políticas diversas e pela busca de uma atitude crítica em relação à "realidade
brasileira", que se tornou um dos conceitos-chave do momento. De um lado, a corrente
literária católica tendia para soluções políticas de direita e se aproximava de grupos
conservadores ou dos integralistas. De outro, a corrente de esquerda divulgava livros a
respeito da experiência soviética e a chamada "literatura proletária"2, alinhando-se com
as propostas do Partido Comunista do Brasil, então em ascensão, apesar da ilegalidade.

1 Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". In: A educação pela noite & outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1989. p. 181.
2 Ibid. p. 185-191.
134

A onda de "consciência social" que atinge a intelectualidade do país se encarna nos


"estudos brasileiros" de história, política, sociologia e antropologia. Na literatura, ela
acaba criando um novo projeto estético, fundalmentalmente de caráter ideológico, assim
definido por Antonio Candido:

"[...] a preocupação absorvente com os 'problemas' (da mente, da alma, da


sociedade) levou muitas vezes a certo desdém pela elaboração formal [...].
Posto em absoluto primeiro plano, o 'problema' podia relegar para segundo a
sua organização estética [...]. Chega-se a pensar que para eles não era
necessário, e talvez fosse até prejudicial, fundir de maneira válida a 'matéria'
com os requisitos da 'fatura', pois esta poderia atrapalhar eventualmente o
impacto humano da outra [...]".3

Tratava-se de um "novo realismo", no qual as considerações teóricas dos escritores


e seus grupos consistiam numa "tese" a ser ilustrada pela ficção4. Só que os postulados
teóricos a serem comprovados não eram mais, como no naturalismo no século XIX,
originados nas ciências naturais, mas tinham caráter político e econômico5.
Do ponto de vista formal, tal mudança significou a busca de uma simplificação da
linguagem, que deveria chamar a atenção não para si mesma, mas para a "verdade" por
trás das palavras. Um exemplo dessa atitude é a nota prévia de Jorge Amado a Cacau,
publicado em 1933:

"Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de


honestidade, a vida dos trabalhadores de cacau do sul da Bahia".6

Havia ainda uma certa implicância dos escritores de esquerda da geração de 30


contra a linguagem vanguardista do modernismo de 20. No Brasil, a arte moderna havia
sido patrocinada por uma parcela da burguesia rural e, de certa forma, ficou identificada
como manifestação artística dessa classe7.
Em Os subterrâneos da liberdade, a vinculação entre estrutura formal simplificada
e maior grau de representação da obra de arte aparece como discussão teórica entre
comunistas e trotskistas. Como em toda a trilogia, a razão está com os primeiros. A

3 Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". p. 196. João Luiz Lafetá afirma que "enquanto na
primeira [fase do modernismo (anos 20)] a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto
estético (isto é, o que se discute principalmente é a linguagem), na segunda [anos 30] a ênfase é sobre o
projeto ideológico (isto é, discute-se a função da literatura, o papel do escritor, as ligações da ideologia
com a arte)." In: 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 17.
4 Ibid., p. 197.
5 V., a esse respeito, Flora Süssekind. Op. cit. p. 154 e ss.
6 Apud Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". p. 196.
7 João Luiz Lafetá. Op. cit. p. 14.
135

respeito de um quadro surrealista elogiado pelo "traidor" Saquila, o "herói" João


responde:

"Penso que você confunde moderno com revolucionário e assim quer fazer
passar como revolucionária essa pintura que é produto de uma burguesia
podre. Jamais a classe operária pode aceitar esses quadros. A classe operária
é sã, esses quadros são enfermiços; a classe operária está voltada para a vida,
esses quadros são fugas da vida; a classe operária possui sentimentos limpos,
esses quadros são frutos de sentimentos sujos..."8

Os subterrâneos da liberdade foram publicados em 1954, portanto já estavam


imbuídos do contexto da guerra fria e do acirramento das tensões políticas entre direita e
esquerda. Neles, a postura "honesta" declarada pelo autor de Cacau passa a ser não
somente retratar a realidade com um mínimo de trabalho formal, mas também tomar
partido e "vender" uma ideologia.
Mas a questão da representação artística nos anos 30 não foi preocupação só
brasileira. Na Europa e nos Estados Unidos recém-saídos da crise de 1929 apareceu
nessa época uma série de obras voltadas ao retrato da realidade social e econômica.
Houve também uma vinculação entre literatura e ideologias políticas e uma polarização
dos intelectuais em torno do comunismo ou do fascismo9, que repercutiram no Brasil.
Entre os norte-americanos, o jornalista John Reed lançou o polêmico depoimento Dez
dias que abalaram o mundo, sobre a revolução soviética, enquanto ficcionistas como
John Steinbeck, Michael Gold e John Dos Passos trabalhavam no chamado romance
proletário e influenciavam brasileiros como Jorge Amado10.
Em 1934, no discurso de abertura ao primeiro congresso da União dos Escritores
Soviéticos, Maksim Gorki introduziu entre seus pares a doutrina do realismo socialista,
segundo a qual a arte soviética se declarava contrária ao "formalismo decadente" das
vanguardas européias e pregava um apego aos princípios do materialismo filosófico
como base da criação artística. O artista, além disso, deveria representar em sua obra a
sociedade soviética emergente e o "novo homem soviético" como herói positivo. O

8 OSL, I. p. 197.
9 Antonio Candido. "A Revolução de 30 e a cultura". p. 188.
10 Cf. Alice Raillard. Op. cit. p. 55-6. Alfredo Bosi classifica a ficção européia e norte-americana de 30
como "exemplos de um realismo psicológico 'bruto'", explicando: "O caráter 'bruto' ou 'brutal' desse
realismo do século XX corresponde ao plano dos efeitos que a sua prosa visa a produzir no leitor: é um
romance que analisa, agride, protesta". In: História concisa da literatura brasileira. 3.ed. São Paulo:
Cultrix, 1985. p. 439.
136

resultado foi uma arte apologética, pedagógica, idealizante e acadêmica, do ponto de


vista formal11.
Curiosamente o outro pólo ideológico do momento, a doutrina nazi-fascista,
também considerava as criações da vanguarda como expressões de uma "arte
degenerada". Como Peter Cohen mostrou em seu documentário Arquitetura da
destruição (1989), na Alemanha de 1933, logo após a ascensão de Adolf Hitler, uma
União de grupos culturais nazistas publicou nos jornais o manifesto "O que os artistas
alemães esperam do novo governo". Seu programa exigia que os trabalhos de artistas da
vanguarda fossem mostrados e queimados publicamente como exemplo para a nação.
Para os nazistas, a arte moderna era um "presságio do destino". O caos que eles

percebiam nela era de evidente depravação espiritual e intelectual. Além disso, os


trabalhos dos artistas modernos mostravam para eles sinais da doença mental de seus
criadores. Segundo as concepções de Hitler, o ideal de "beleza" e de "saúde" na arte
estava na Antiguidade clássica e no Renascimento, estéticas marcadas pela maior
proximidade entre a arte e a realidade, vista de modo idealizado12.
O "novo realismo" ocupou também parte da crítica européia de tendência marxista.
É de 1936 o ensaio "Narrar ou descrever?: contribuição para uma discussão sobre o
naturalismo e o formalismo", do húngaro Georg Lukács. O crítico, um dos mais

importantes pensadores da literatura no século XX, já era nessa época conhecido nos
meios literários por sua obra A teoria do romance, de 1920.
A trajetória intelectual de Lukács se desenvolveu paralelamente à consolidação do
novo regime na União Soviética e ele se tornou, na década de 30, bastante dogmático.
Suas proposições dessa época a respeito da literatura de ficção constituem, porém,
apenas um desdobramento daquilo que desenvolve em A teoria do romance, sob um viés
mais político e ideológico que antes.
Nessa primeira obra, Lukács tinha como pressuposto que toda forma artística
depende do tipo de sociedade que a engendra. A mesma idéia volta a aparecer no ensaio
"Narrar ou descrever" do seguinte modo:

11 Cf. "Russian art" e "Russian revolution". In: ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Chicago: William Benton,
1967. p. 780/811-2.
12 Peter Cohen (direção e roteiro). Arquitetura da destruição (1989). Lançado no Brasil pela PlayArte
Films na coleção "Mostra Internacional de Cinema" (1996).
137

"Toda estrutura poética é profundamente determinada, exatamente nos


critérios de composição que a inspiram, por um dado modo de conceber o
mundo".13

Como materialista histórico, Lukács acreditava que as "superestruturas" de uma


sociedade, como as manifestações ideológicas e culturais, eram determinadas pela "infra-
estrutura", ou seja, sua organização econômica e social. Em outras palavras, haveria uma
dialética histórico-filosófica entre a estrutura das sociedades e a estrutura das obras
literárias. Tipos diferentes de civilizações criariam formas artísticas também diferentes.
Por isso, as formas épicas clássicas seriam representativas da harmonia entre os valores
subjetivos e os valores da coletividade, própria do mundo clássico. Haveria nelas um
"sentido imanente" que a poesia épica desvelava14.
No mundo capitalista, porém, tal imanência de sentido teria se perdido. Assim, as
formas artísticas da modernidade se fundamentariam na dissonância que passou a existir
entre os valores do indivíduo e os da sociedade, na desarmonia entre "alma e mundo".
Lukács afirmou em A teoria do romance que

"O romance é a epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da


vida não é já dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência
do sentido à vida se tornou problema mas que, apesar de tudo, não cessou de
aspirar à totalidade."15

O problema do realismo permeia, assim, a teoria de Lukács desde sua obra mais
conhecida e respeitada. Se a estrutura da poesia épica de Homero representava os valores
da sociedade em que ela se criara e esses valores eram determinados pela base política e
econômica dessa sociedade, a forma romanesca representaria os valores da sociedade

burguesa que, por sua vez, seriam também determinados por sua infra-estrutura social e
econômica. Em outras palavras, as formas literárias representariam para o teórico a
realidade econômica, social e ideológica na qual se criaram.
Lukács foi ainda mais longe ao afirmar que o romance se estrutura a partir da
subjetividade. A busca de sentido que esse gênero representa se perfaz através da
experiência pessoal do herói, sua trajetória do eu para o outro das relações sociais, com o
objetivo de alcançar a unidade perdida e jamais totalmente reencontrada. Daí que a

13 Georg Lukács. "Narrar ou descrever?: contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o
formalismo" (1936). In: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 77.
14 Id. A teoria do romance. Lisboa: Presença, s.d. (Col. Divulgação e Ensaio, 14).
15 Ibid. p. 55.
138

forma romanesca se expresse, segundo ele, fundamentalmente em prosa, que é mais


próxima do trivial da vida e da experiência.16
Apesar disso, o mergulho em um subjetivismo radical tal como o praticado por
James Joyce em Ulisses foi criticado por Lukács porque, ao invés de combater os efeitos
da alienação capitalista sobre o homem, os reforçaria, ao expressá-los. Obras como a de
Joyce representariam o fatalismo e a capitulação dos escritores frente à desumanidade do
capitalismo e colocariam o leitor "em face de um morto que passeia no palco das
imagens, as quais são descritas com consciência cada vez mais clara do seu ser morto"17.
Em "Narrar ou descrever", o crítico assumiu uma postura muito mais normativa do
que a postura descritiva de A teoria do romance. Nesse ensaio, ele afirmou que, para que

se tornasse verdadeiramente revolucionária, a literatura teria de abandonar a técnica


descritivista adotada pelos naturalistas (Zola, Flaubert) e pelos formalistas como Joyce,
que se ocupavam apenas em descrever o interior de seus personagens, e resgatar a
narração, ou seja, a "verdadeira" épica. Para Lukács, a descrição era estagnante. Mais
que isso, era anti-revolucionária:

"Quando se quer dar expressão literária [à revolta contra a alienação], é


natural que se queira desembaraçar-se do maneirismo descritivo e das suas
naturezas mortas: a necessidade do entrecho e da narração se impõem
espontaneamente.
...............................................
[...] o realismo moderno, baseado na observação e na descrição, tendo
perdido a capacidade de representar a efetiva dinâmica do processo vital,
reflete inapropriadamente a realidade capitalista, atenuando-a e reduzindo-
lhe as proporções."18

A postura antinaturalista levou o teórico húngaro a criticar até mesmo as produções


soviéticas mais recentes à época. Para ele, a literatura soviética ainda não teria superado
as "tradições da burguesia decadente" manifestadas tanto na técnica naturalista como na
tendência formalista. Lukács identificou na prosa de ficção soviética uma influência
maior do naturalismo:

"A composição de alguns dos romances soviéticos não é menos


esquemática do que a composição dos romances naturalistas da escola
zoliana: apenas o é em sentido inverso. Nos romances naturalistas, revelava-
se a nulidade de um ambiente capitalista [...]. Em alguns escritores soviéticos
os sinais aparecem invertidos: os representantes da idéia justa são

16 Georg Lukács. A teoria do romance., p. 55 e ss.


17 Georg Lukács. "Narrar ou descrever". p. 83.
18 Ibid., p. 82/4.
139

inicialmente vilipendiados ou ignorados, mas no final conseguem vencer. O


caminho seguido em ambos os casos é igualmente abstrato e esquemático: a
idéia histórica e socialmente justa não chega a ter uma expressão literária
convincente."19

Esse fato, para o materialista histórico Lukács, tinha explicação na sociedade


soviética: "o dilema participar ou observar (narrar ou descrever?)" era para ele "uma
questão ligada à posição do escritor em face da vida", o que significava, na União
Soviética, "um resíduo não superado do capitalismo", mas que o seria, sem dúvida20.
O caminho histórico, porém, foi outro. O próprio Lukács se viu relegado ao
ostracismo pelas autoridades culturais do partido, as quais viam na sua obra uma defesa
do chamado "realismo crítico" em oposição ao realismo socialista, que se tornou regra
sob o regime stalinista. Zélia Gattai conta, em Jardim de inverno, que ela e Jorge Amado
foram visitar Lukács na Hungria no início dos anos 50 e que o amigo se encontrava
amargurado pelas perseguições que vinha sofrendo do governo comunista em seu país
natal21.
Sob o impacto das revelações sobre as atrocidades do regime stalinista feitas
durante o XX Congresso dos PCUS na União Soviética, Lukács escreveu a obra
Realismo crítico hoje, em que assumiu suas concepções literárias com maior liberdade,
depois da repressão a que fora condenado pelas doutrinas literárias zhdanovistas22.
De modo geral, essa obra recuperou o conceito de realismo crítico, mostrando o
seu valor enquanto forma literária apta a representar a vida e os anseios tanto da
sociedade soviética em transformação quanto das demais nações européias. O próprio
Lukács deixou claro que, segundo sua visão, o realismo socialista era superior ao

realismo crítico, pois sua forma corresponderia àquela encontrada por uma sociedade
socialista revolucionária para se representar a si própria, portanto também a um tipo de
organização social mais desenvolvida que a sociedade burguesa, à qual o realismo crítico
ainda corresponderia.23
A abordagem de Lukács talvez tenha sido estigmatizada pelos stalinistas porque,
apesar de defender o socialismo e de ser marcadamente filosófica, possuía uma base

19 Georg Lukács. "Narrar ou descrever". p. 88.


20 Ibid. p. 94., grifos do autor.
21 Zélia Gattai. Jardim de inverno. p. 73.
22 Carlos Nelson Coutinho. "Introdução". In: Georg Lukács. Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada-
Editora de Brasília, 1969.
23 Georg Lukács. Realismo crítico hoje. p. 168 e ss.
140

estrutural. Para Lukács, a literatura era um conjunto de formas, não de temas ou


conteúdos. Aos stalinistas, especialmente depois da IIª Guerra Mundial, interessava um
tipo de arte propagandística e "translúcida" em que, através da estrutura simplificada, se
pudesse enxergar exatamente o que eles queriam que fosse visto.
Os anos 30, assim, recolocam em pauta de modo enfático a questão da mimesis,
relacionada às polarizações ideológicas e políticas da época. Ser "formalista" significava
estar alienado em relação ao problema social e trabalhar na "arte pela arte". Para os
comunistas, o "formalismo" era uma postura de direita. Para os fascistas, tratava-se de
tendência esquerdizante. Na opinião de ambos os grupos, o valor da obra de arte era
maior quanto mais elevado seu grau de representação da realidade. Com isso, escritores e

artistas ligados às estéticas de vanguarda foram execrados em praça pública ou


condenados ao exílio, tanto na Alemanha nazista quanto na União Soviética sob o
comando de Stálin.
No Brasil, o próprio Graciliano Ramos, cujo trabalho com a linguagem o
diferenciava dos demais escritores de sua geração, foi acusado pelos companheiros do
PCB de ter estagnado no "realismo crítico". Eles apontavam em sua obra excesso de
subjetivismo e, segundo Dênis de Moraes, pensavam que,

"Se Graciliano fosse um escritor conseqüente, [...] o Fabiano de Vidas secas


não se acovardaria perante o soldado amarelo, pois um camponês de fibra
reagiria à opressão. Os protagonistas de seus livros eram homens
desencantados, que não ofereciam aos leitores exemplos de perseverança, de
enfrentamento das adversidades, de fé no futuro."24

Com o passar do tempo, e no contexto da guerra fria, o objetivo desse "novo


realismo" passou a ser não mais elaborar um retrato o mais fiel possível da realidade
social e econômica tal qual ela se apresentava aos olhos do escritor, mas sim representar,
nas obras de arte e na literatura, uma realidade tal qual ela deveria ser, de acordo com a
ideologia do autor.
Criou-se assim uma espécie de "realismo idealista", no qual se incluiria o realismo
socialista. Seu conteúdo era imaginário, embora seus autores não o admitissem: um tipo

de sociedade ideal ainda não concretizada ou personagens heróicos e de verossimilhança


duvidosa. A estrutura do discurso empregado nos livros permanecia a mesma. Visava-se

24Dênis de Moraes. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-
53). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 209.
141

a um máximo de simplificação formal que garantisse tanto a "veracidade" do texto


quanto sua compreensão pelo maior número possível de pessoas. A arte assumia um
caráter de propaganda.
O poeta georgiano J. Leonidze, amigo de Jorge Amado, chegaria a dizer a esse
respeito:

"⎯ Tenho de escrever numa forma clara, simples e popular por três
motivos: primeiro porque sou um escritor vindo do povo, segundo porque
escrevo para o povo, terceiro porque escrevo sobre o povo, seus problemas,
sua vida, seus heróis e dirigentes."25

Tornou-se também importante, especialmente após 1945, elaborar registros sobre a


história política recente. A mentalidade de "balanço" tomou conta da Europa do pós-
guerra e também do Brasil, recém-saído de oito anos de ditadura varguista. Para se
reconstruir o que fora destruído ou reprimido, era preciso "limpar os escombros" e
resgatar deles o que ainda servisse. Havia também uma ânsia de construção do futuro, já
que o passado imediato se revelara frustrador.
Nesse momento, o papel do artista ganhou relevância. Jorge Amado chegou
mesmo a afirmar, em O mundo da paz, de 1952, que o escritor tinha se tornado tão
importante quanto um estadista na "construção da nova vida "26. Aristóteles disse na
Poética que não competia ao poeta "narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que
poderia ter acontecido"27. É dessa forma que os escritores engajados do período vão, em
sua maioria, resgatar seu passado recente: criando um passado e projetando nele suas
expectativas de futuro. Nessa linha, tanto Jorge Amado quanto Graciliano Ramos, em Os
subterrâneos da liberdade ou em Memórias do cárcere, elaboraram, pela literatura, tipos
diferentes de representação histórica sobre o período do Estado Novo.
A existência de uma "imaginação histórica" tem sido admitida nos dias atuais até
mesmo pelos historiadores, que, segundo Aristóteles, teriam de "seguir passo a passo a
verdade"28. Hayden White, em Meta-história, considera que, ao elaborar o discurso
históriográfico,

25 Apud Jorge Amado. O mundo da paz. p. 172.


26 Ibid., p. 177.
27 Aristóteles. Arte retórica e arte poética. Trad. de Antônio Pinto de Carvalho. [Rio de Janeiro]: Ediouro,
s.d. p. 252.
28 Ibid. p. 253.
142

"o historiador realiza um ato essencialmente poético, em que prefigura o


campo histórico e o constitui como um domínio no qual é possível aplicar as
teorias específicas que utilizará para explicar 'o que estava realmente
acontecendo' nele".29

White aproxima a história da literatura ao afirmar que a representação histórica é


feita através da linguagem e, como tal, obedece aos princípios da seleção de eventos e da
sua combinação num discurso coerente e articulado. "Os eventos são 'elaborados' numa
história pela supressão ou subordinação de certos deles e pela ênfase em outros"30, diz
ele.
Além disso, White propõe uma tipologia de estruturação do discurso
historiográfico a partir da teoria dos mitos de Northrop Frye em Anatomia da crítica.
Para ele, o historiador pode "configurar" os eventos históricos de modo trágico, cômico,
romanesco ou irônico (satírico)31. No modo trágico, existe uma "queda do protagonista e
[um] abalo do mundo que ele habita". Esses eventos, no entanto, só são considerados
ameaçadores para aqueles que participam deles; para os "espectadores da luta" (ou para
os leitores da história), houve "uma aquisição de conhecimento". No modo cômico, a
esperança da vitória, ainda que temporária, do homem sobre seu mundo é oferecida,
segundo White, pela "perspectiva de reconciliações ocasionais das forças em jogo nos
mundos social e natural". O modo romanesco configura, para o historiador, "um drama
de auto-identificação simbolizado pela aptidão do herói para transcender o mundo da
experiência, vencê-lo e libertar-se dele no final", e trata "do triunfo do bem sobre o mal,
da virtude sobre o vício, da luz sobre a treva". Por último, o modo satírico, segundo o
teórico, configura "um drama da disjunção, [...] dominado pelo temor de que o homem é

essencialmente um cativo do mundo, e não seu senhor, e pelo reconhecimento de que [...]
a consciência e a vontade humanas são sempre inadequadas para a tarefa de sobrepujar
em definitivo a força obscura da morte"32.
Para Hayden White, os historiadores, ao elaborarem seu discurso da história,
combinam eventos por eles selecionados a um desses tipos de estrutura. O resultado é

29 Hayden White. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992. p. 12, grifos do autor.
30 Id. "The historical text as a literary artifact". In: Tropics of discourse: essays on cultural criticism.
Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, s.d. p. 84. Trad. minha.
31 Ibid., p. 82.
32 Hayden White. Meta-história. p. 23-4.
143

um texto que se pretende científico e objetivo, mas na verdade foi construído sobre bases
semelhantes às do discurso ficcional33.
O reverso dessa perspectiva literária da história é a perspectiva histórica da
literatura que propuseram Jorge Amado e Graciliano Ramos em Os subterrâneos da
liberdade e Memórias do cárcere. Na primeira obra, por se tratar de um amplo painel
histórico, ficou mais evidente a intenção de resgate de um passado imediato que, apesar
de concentrado na ação de um número limitado de personagens, era coletivo e, por assim
dizer, mais voltado para a história. Na segunda, um texto autobiográfico, a "exumação"
dos fatos lembrados pelo narrador foi feita sob o crivo de uma consciência individual. É
só através dessa construção de um sentido pessoal, mais próxima da ficção que do relato

histórico, que se pôde vislumbrar a história de muitos.

III.2 O tecido histórico

"Articular historicamente o passado não


significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'''.
(Walter Benjamin)

A história é um conjunto de versões. É também um conjunto de discursos, cada


qual com sua estrutura específica, escolhida pelos historiadores para configurar a
narrativa histórica que constróem. Isso significa que o discurso histórico apresenta, como
o ficcional, as categorias próprias à narrativa: espaço, tempo, um narrador, um ponto de
vista, um tipo de encadeamento do enredo, uma maneira de caracterizar os personagens.
As notícias veiculadas pelos jornais constituem um modo de contar a história
imediata, ao calor da hora. Como narrativas curtas, possuem uma estrutura característica
e repetida. Assim como há traços próprios ao romance, ao conto, à novela e a todos os
demais textos narrativos, ficcionais ou não, há um conjunto de traços próprios à notícia.
Além disso, como os demais gêneros narrativos, ela se modifica com o tempo. A notícia
de hoje difere daquela veiculada pelos jornais há cinqüenta anos, assim como o romance
moderno, por exemplo, guarda diferenças em relação ao romance epistolar do século

XVIII ou ao romance romântico.


Os eventos históricos que aparecem em Os subterrâneos da liberdade, de Jorge

Amado, ou em Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, foram de alguma forma

33 Id. "Historical text as a literary artifact". p. 99.


144

registrados pelos jornais da época em que se passam suas narrativas. As notícias que
deram a conhecer ao grande público a prisão do líder comunista Luís Carlos Prestes, em
6 de março de 1936, ou o golpe de Estado que constituiu o Estado Novo, a 10 de
novembro de 1937, foram talvez os primeiros registros históricos desses fatos, feitos ao
sabor do momento. No entanto, ao menos em teoria, eles procuravam guardar a
"verdade", ainda que essa "verdade" correspondesse apenas às interpretações desejadas
ou possíveis sobre os eventos narrados34.

III.2.1 Nós e tramas

No dia 12 de maio de 1938, o jornal O Estado de São Paulo estampava em


primeira página a seguinte manchete:

"NA MADRUGADA DE HONTEM IRROMPEU UM


MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO NA CAPITAL DA
REPUBLICA CONJURADO LOGO DEPOIS PELO
GOVERNO"35.

No dia seguinte, a notícia era esta:


"A POLICIA CONTINUA EMPENHADA NA CAPTURA DOS
RESPONSAVEIS PELO MOVIMENTO REVOLUCIONARIO
IRROMPIDO NA CAPITAL DO PAIZ
Foram detidos os generaes Bertholdo Klinger e Castro Junior ⎯ Attinge a
1.500 o numero de fuzileiros navaes e civis já recolhidos á Casa de Detenção
⎯ Descoberta uma concentração integralista
____________________
APPREHENSÃO DE GRANDE COPIA DE ARMAS E MUNIÇÕES
____________________
Sómente no ataque e na defesa do Palacio Guanabara verificaram-se 23
mortes ⎯ Declarações do coronel Oswaldo Cordeiro de Faria e de uma filha
do presidente da Republica ⎯ A acção do Tribunal de Segurança Nacional
____________________
PORMENORES DA LUTA NO MINISTERIO DA MARINHA

Rio, 12 ('Estado') ⎯ Proseguem activamente e com o maior empenho as


diligencias para captura de elementos graduados do integralismo,
responsaveis pelos acontecimentos da madrugada de hontem.
Essas diligencias visam principalmente o tenente Fournier, que dirigiu o
ataque ao Guanabara e Barbosa Lima que esteve nas immediações da

34 É preciso lembrar que, após o golpe de 1937, alguns jornais foram fechados, enquanto outros tinham de
se submeter à censura prévia pelo governo.
35 O Estado de São Paulo, 12-05-1938, p. 1. A grafia original foi mantida, nesta e nas demais transcrições
de documentos da época.
145

residencia do presidente da Republica durante o assalto, em companhia de


Belmiro Valverde, já preso como noticiámos.
O chefe provincial Barbosa Lima, ao contrario do que foi noticiado,
conseguiu evadir-se naquelle momento.
O MOVIMENTO SUBVERSIVO INTEGRALISTA
Ao que se sabe, ainda não foi reduzido a termo nenhum depoimento dos
presos, porque a policia effectua diligencias no sentido de elucidar com
precisão os pormenores do movimento e apurar a participação que nelle teve
cada um dos detidos.
Parte dos accusados encontra-se na Policia Central, parte na Casa de
Detenção, além de alguns officiaes da Armada, distribuidos por varios
quarteis, á disposição do ministro da Marinha.
........................................
PALAVRAS DA FILHA DO PRESIDENTE DA REPUBLICA
Em entrevista concedida ao 'O Globo', sobre as occorrencias verificadas
no interior do Palacio Guanabara durante a luta contra o cerco integralista, a
senhorita Alzira Vargas, filha e secretaria particular do presidente da
Republica, disse o seguinte:
'⎯ Meu pae queria sahir para o jardim, afim de encontrar-se com os
rebeldes, armado apenas de um simples revólver, mas nós conseguimos
dissuadil-o diplomaticamente dessa intenção.
Organisou-se, então, a resistencia no palacio. Ficou estabelecido que
faríamos economia de munição e que lutariamos até o nosso ultimo reducto
se os atacantes conseguissem passar pela primeira linha de defesa do jardim."

A notícia prossegue, fornecendo aos leitores todos os detalhes anunciados na


manchete36. Ela diz respeito à tentativa de golpe de Estado pelos integralistas em maio de
1938, quando grupos armados atacaram a residência de Getúlio Vargas, no Rio de
Janeiro, tentando prendê-lo. Os adeptos do "sigma" estavam descontentes com o chefe de
Estado, que lhes havia prometido participação no poder após o golpe de 1937 e não
cumprira a promessa.
O texto fornece, a seu modo, todas as informações necessárias à estrutura de uma
narrativa. Começa com o espaço e com o tempo ("Rio, 12"), que são depois desdobrados:
"immediações da residencia do presidente da Republica", "acontecimentos da madrugada
de hontem", "occorrencias verificadas no interior do Palacio Guanabara". Os eventos
mais recentes antecedem os do dia anterior: primeiro se narram as "diligências" feitas
para prender os comandantes do putsch, depois se relembram, por meio do depoimento

de Alzira Vargas, os episódios da noite do ataque. Essa estrutura "invertida" do enredo é


própria do texto da notícia, cujo objetivo principal é fornecer sempre as informações
mais novas sobre os acontecimentos, para depois complementá-las, se necessário.

36 O Estado de São Paulo, 13-05-1938, p. 1.


146

Quanto ao tipo de registro histórico que faz a notícia, no entanto, ganham maior
relevância dois aspectos: a caracterização dos personagens e o tipo de ponto de vista
adotado. Seus personagens podem ser agrupados em duas facções opostas. De um lado, o
tenente Fournier, Barbosa Lima e Belmiro Valverde, caracterizados como "elementos
graduados do integralismo", aquele "que dirigiu o ataque ao Guanabara", "chefe
provincial" que "conseguiu evadir-se", "rebeldes", "atacantes", "subversivos". Do outro,
"a senhorita Alzira Vargas, filha e secretária particular do presidente da República" e o
próprio presidente, cujo arroubo de heroísmo (sair em defesa de sua residência e do
governo constituído "armado apenas de um simples revólver") tinha sido neutralizado
pelos esforços "diplomáticos" de seus subordinados. Não é difícil perceber quem são os

vilões e quem os heróis dessa história. Qualificados como "elementos" e "rebeldes", os


chefes integralistas não fogem, mas se "evadem", como ladrões, e ocupam o pólo
negativo do conflito. O caráter heróico e positivo do governo fica concentrado na figura
do presidente e na de sua filha Alzira, dotada não só de bom senso e coragem (uma
mulher resistindo a um ataque militar!), como também de respeito e amor filial.
Recria-se assim no texto da notícia o combate entre governo e integralistas,
opondo-se de modo maniqueísta os personagens descritos e suas ações. Soma-se a isso a
escolha da narrativa em terceira pessoa e o emprego de uma linguagem quase totalmente

impessoal, por trás da qual o narrador se camufla: "ao contrário do que foi noticiado",
"ao que se sabe". Ele se trai apenas em um breve momento, no segundo parágrafo, ao
empregar a primeira pessoa do plural em "como noticiamos"; mesmo assim, trata-se da
"voz do jornal", uma entidade abstrata e genérica. Essa estrutura narrativa dá à notícia
uma aparência de neutralidade, objetividade e honestidade. O argumento nas entrelinhas
é claro: "nós não contamos os fatos; eles aconteceram dessa forma". Mas seria o governo
assim heróico e valoroso, e os integralistas, tão vis e traidores?
A chave se inverte ao se procurarem referências em jornais ou boletins de
tendências ideológicas opostas. O Boletim de agitação e propaganda (Agitprop) do
Partido Comunista do Brasil (Região de São Paulo), de 15 de fevereiro de 1937,

veiculava o seguinte artigo, sobre a guerra civil espanhola:

"POLITICA INTERNACIONAL
Apoz o desmascaramento completo de Hitler e Mussolini como os
responsaveis pela luta que ensanguenta a Espanha, e o fracasso da primeira
147

tentativa de Hitler da ocupação do Marrocos espanhol, o fascismo


internacional foi obrigado a reconhecer que não é tão facil a conquista da
Espanha pelos seus agentes Fanco [sic] e Mola.
........................................
Intensifiquemos, pois, por todos os meios, nosso auxilio concreto ao povo
hespanhol, atravéz de coletas, contribuições, em dinheiro ou viveres,
enviando-os ao consulado hespanhol, e nunca esquecendo que o nosso
melhor auxilio aos bravos lutadores da Republica, é a fortificação da luta
pela democracia em nosso paiz, contra o governo de Getulio, agente
imperialista do fascismo, realizando a mais ampla frente unica de todas as
forças democraticas, pois esta é a melhor maneira de enfraquecer e
neutralizar a ação criminosa e guerr guerreira [sic] do fascismo internacional.
________________________________________________

FECHAMENTO IMEDIATO DA AÇÃO INTEGRALISTA, PARTIDO


POLITICO DE GETULIO!
TELEGRAMAS, MOÇÕES, ABAIXO-ASSINADOS AOS GOVERNOS
ESTADUAIS E A TODAS AS CAMARAS PELO FECHAMENTO DA AIB E
PRISÃO DE TODOS OS SEUS CHEFES!37
________________________________________________

O texto tem um caráter diferente. Não se trata agora de uma notícia, mas de um
artigo opinativo sobre o avanço do fascismo na Europa e no Brasil. Esse tipo de artigo,
aliás, é próprio de periódicos comunistas como A classe operária e o Boletim Agitprop,
que se ocupavam não em informar acontecimentos, mas em comentá-los de acordo com
a direção política do partido e em exortar os leitores a tomarem as atitudes consideradas
corretas.
Por possuir traços dissertativos, o discurso emprega um vocabulário abstrato
("fascismo internacional", "povo espanhol", "bravos lutadores da República", "luta pela
democracia", "forças democráticas", etc.), inicia-se com uma proposição genérica ("o

fascismo internacional foi obrigado a reconhecer que não é tão fácil a conquista da
Espanha...") e conclui propondo uma ação em terras brasileiras a favor dos
revolucionários espanhóis. Isso não impede, porém, que se caracterizem de modo
bastante direto os personagens dessa história que se desenrola tanto na Europa quanto no
Brasil. Hitler e Mussolini são "desmascarados" como criminosos e são tidos como
sanguinários. Franco e Mola são "agentes do fascismo internacional", que têm "ação

criminosa e guerreira". Getúlio Vargas é "agente imperialista do fascismo". Esses são os


vilões, todos "antidemocráticos". Os heróis são o "povo espanhol", os "bravos lutadores

37 Boletim de agitação e propaganda ⎯ Partido Comunista do Brasil (Região de São Paulo), 15-02-1937,
p.4.
148

da República", a "ampla frente única de todas as forças democráticas". Note-se que os


maus são nomeados, enquanto os bons são entidades coletivas. O próprio autor do texto,
que é anônimo, confunde-se com o partido, o que parece conferir ao texto um alto grau
de representatividade. O argumento aqui é: "esta não é a opinião de um só, mas de
muitos". Há um outro: "Brasileiros, unam-se às forças democráticas, para não se
tornarem vocês também fascistas criminosos". Ou seja: "Juntem-se às forças do bem: às
nossas".
Ao contrário do que ocorreu na notícia publicada em O Estado de São Paulo,
Vargas foi colocado, no artigo do Boletim Agitprop, do lado do crime, ou seja, dos
integralistas. Para essa caracterização do presidente contribuiu a maneira como o

periódico o chama: pelo primeiro nome, sem formalismos. Deve-se lembrar também que,
na data em que o artigo comunista foi publicado, Getúlio ainda não tinha dado o golpe de
Estado e a Ação Integralista Brasileira ainda era um partido que apoiava seu governo.
Em Os subterrâneos da liberdade, é a vez de Jorge Amado narrar o episódio da
tentativa de putsch integralista ao Estado Novo, em maio de 1938. O narrador o faz sob
três pontos de vista: o do comunista João, o do novo-rico Lucas Puccini e o do banqueiro
Costa Vale, em três capítulos distintos do segundo volume da trilogia. A primeira versão
é a do sempre bem informado comunista:

"[João ] Olhou em torno e viu os passageiros disputando, na plataforma da


estação, os jornais de São Paulo, daquela manhã. Através da janela, leu um
título: 'TENTATIVA DE GOLPE INTEGRALISTA'. [...]
Encontrou, ao chegar a São Paulo pelo meio da tarde, a cidade calma,
apenas o policiamento nas ruas era feito por patrulhas a cavalo. Comprara as
edições extraordinárias dos jornais, ficara sabendo que os integralistas,
aliados a elementos armandistas, haviam tentado, na noite passada, um
putsch contra o governo. Tinham atacado, de surpresa, o Palácio Guanabara,
residência do presidente da República, e não haviam matado Vargas por
pouco. O ditador, com o auxílio de seus guarda-costas, conseguira resistir,
até a chegada de reforços. Lutas tinham-se travado em várias outras partes,
especialmente no Arsenal de Marinha, onde os inferiores do Batalhão Naval
fizeram abortar a tentativa de levante dos oficiais integralistas. O golpe
fracassara, havia muita gente presa, dirigentes integralistas e certos políticos
ligados a Armando Sales. Um dos jornais noticiara que o ex-candidato à
Presidência da República estava detido em sua residência. Prisões haviam
sido efetuadas igualmente em São Paulo, onde o jornal A Notícia fora
ocupado pela polícia. Na relação de presos, João leu o nome de Antônio
Alves Neto. O paradeiro de Plinio Salgado parecia, segundo outro jornal, ser
desconhecido das autoridades que buscavam o chefe da Ação Integralista,
para saber até onde ele se encontrava envolvido no complô. João sorriu
sarcasticamente ao ler essa notícia: como não ia a polícia saber onde estava
149

Plínio Salgado... E como duvidar que ele estivesse metido no golpe?


Certamente nada lhe ia suceder, a prisão ficaria para os elementos
integralistas de base, os chefes pegados com a boca na botija não
demorariam a ser postos em liberdade. Terminariam por se entender com
Getúlio..."38

A segunda versão é a de Lucas Puccini, que tinha um cargo no Ministério do


Trabalho e era ligado a Vargas:

"Semi-estendido no divã, em sua frente [da irmã Manuela], Lucas fala,


numa torrente entusiasmada de frases, narra os acontecimentos da noite
precedente, aqueles acontecimentos que o colocaram na intimidade do chefe
do Governo, que rasgaram novas e grandes perspectivas a todos os seus
projetos. Retorna, por vezes, sobre sua narração para relatar um detalhe
esquecido, para citar uma palavra pronunciada nos dramáticos momentos do
assalto integralista:
⎯ Ia me esquecendo... Foi na hora pior, quando parecia que eles
dominariam a situação. O presidente disse...
Imitava o acento gaúcho da voz de Vargas, concluía cada período com
a afirmação:
⎯ O presidente é um macho, Manuela. Nunca vi tanto sangue-frio...
........................................
[...] Falava-lhe do Palácio Guanabara, dizia-lhe que os integralistas
haviam tentado um putsch, atacado o palácio e que ele, Lucas, viera, com
Eusébio Lima, defender o presidente. [...] ele afirmara estar já tudo
terminado, o golpe completamente abafado, e que lhe falava para ela não se
alarmar e inquietar com o noticiário dos jornais e o policiamento na cidade
[...]"39

A terceira versão, breve e incisiva, é do banqueiro Costa Vale:

"⎯ Foi tudo o que o Tonico [Antonio Alves Neto, personagem dono
do jornal armandista A Notícia] arranjou com essa besteira de golpe... Abrir
as portas da rua para os comunistas... Eles vão aproveitar esses dias em que o
governo está praticamente de mãos amarradas, sem poder fazer nada contra
eles. E esses integralistas idiotas, em vez de ajudarem Getúlio a liquidar essa
peste, resolvem assaltar o Palácio Guanabara... Imbecis..."40

Numa comparação entre os três trechos, chamam a atenção o tamanho e a profusão


de detalhes da versão contada sob o ponto de vista do comunista João. Trata-se de um
texto complexo. Para integrar a narrativa histórica sobre a tentativa de golpe com a
ficção, o narrador coloca o personagem a ler os jornais do dia. Não apenas um jornal,
mas vários: como foi mostrado no primeiro capítulo desta dissertação, os comunistas são

mais bem informados do que quaisquer outros grupos de personagens que compõem a

38 OSL, II. p. 266-7.


39 OSL, II. p. 270-1.
40 Ibid., p. 279.
150

trilogia41. Desse modo, as informações contidas na imprensa são "resenhadas" no início


do parágrafo: a manchete, os eventos, os personagens do episódio. A "transcrição" dos
jornais é marcada por um vocabulário mais "neutro" e formal ("residência do presidente
da República", "fizeram abortar a tentativa de levante", "o ex-candidato à Presidência da
República", "Prisões haviam sido efetuadas"). Ela também mostra uma caracterização
"oficial" dos personagens ligados ao golpe. Getúlio Vargas é chamado pelo sobrenome e
recebe o título de "presidente da República"; Plínio Salgado é apenas o "chefe da Ação
Integralista". Identificada com a opinião do partido comunista sobre Getúlio, a visão do
narrador se trai em apenas um momento: é quando ele alcunha o presidente de "ditador".
No final do parágrafo, porém, o narrador, por meio do discurso indireto livre,

apresenta a opinião do personagem e, portanto, de seu grupo, sobre os fatos. Nesse


trecho, o vocabulário muda e os personagens são mostrados por outro ângulo. Plínio
Salgado estava "metido" no golpe, a prisão ficaria para os "elementos integralistas de
base", os chefes tinham sido "pegados com a boca na botija" e Getúlio é chamado pelo
primeiro nome de modo quase desrespeitoso.
Embora a narrativa em terceira pessoa e o emprego do discurso indireto livre
camuflem o narrador de Os subterrâneos da liberdade por trás dos pensamentos de João,
a atitude deste frente aos acontecimentos denuncia a identificação entre ambos. João foi

absolutamente correto ao se informar dos eventos ocorridos no Rio de Janeiro. Procurou


várias fontes, articulou mentalmente os episódios e somente depois se permitiu elaborar
uma opinião sobre o assunto.
Isso já não aconteceu com Lucas Puccini, que veicula a maneira "pequeno-
burguesa" de ver os fatos. Lucas tem uma postura lassa e oportunista. Não interessam a
ele as conseqüências políticas gerais dos eventos, mas as "novas e grandes perspectivas"
pessoais que eles acabaram por lhe dar. Até suas frases são "frouxas", assim como
aquelas de que o narrador se utiliza para contar os eventos segundo sua visão: longas
seqüências de orações subordinadas. Deitado no divã, o trapaceiro Lucas narra os
episódios como se fossem uma aventura excêntrica. Um safári na África ou uma viagem

à Chicago dos gânsgteres seriam para ele tão excitantes e divertidos quanto o tiroteio no

Palácio Guanabara. Além disso, o interesse da tentativa de golpe para suas ambições foi

41 V. Capítulo I, item I.6 desta dissertação.


151

a oportunidade que ele conseguiu de estar perto de seu ídolo, cuja voz e sotaque ele
arremeda. Lucas também não perde a chance de se mostrar herói por um dia,
identificando-se com o herói maior, Vargas, o "presidente macho".
A dissociação entre narrador e personagem é, nesse ponto, máxima. Em primeiro
lugar porque no capítulo, por meio do discurso indireto livre, o narrador acompanha os
pensamentos de Manuela e não os do irmão. Está mais próximo, portanto, da bailarina.
Em segundo lugar, pelo emprego do discurso direto ou do indireto, ao narrar as falas de
Lucas. A distância entre a voz do narrador e a do personagem é marcada tanto gráfica
quanto lingüisticamente.
A versão de Costa Vale também é narrada em discurso direto e apresenta o mesmo

tipo de dissociação entre voz do narrador e voz do personagem. Em Os subterrâneos da


liberdade, isso significa que não existe identificação de opiniões entre um e outro. Além
disso, as declarações de Costa Vale desabam como um martelo sobre a cabeça de todos.
O "patrão", como os demais personagens de seu círculo o chamam, olha tudo de cima
para baixo. Quando fala, menospreza os demais, suas atitudes e decisões. É a linguagem
ostensiva do poder: Antônio Alves Neto é infantilizado, sendo chamado pelo apelido; o
presidente é referido pelo primeiro nome, Getúlio, o que indica, além de intimidade entre
ele e o banqueiro, um certo rebaixamento do político, que "perde seu posto". Os

integralistas são "idiotas" e "imbecis"; os comunistas, uma "peste"; e o governo em geral


aparece como impotente diante dos fatos, pois ficara "de mãos amarradas" após a
tentativa de golpe.
O discurso de Costa Vale é tão passional quanto o de Lucas Puccini, e quase tão
individualista. Só que o banqueiro possui uma visão política mais ampla que o carreirista
Lucas. Objetivos e ponderados são apenas os comunistas, com os quais se identifica o
narrador.
A análise mostra que o relato de fatos históricos em Os subterrâneos da liberdade
obedece aos mesmos princípios que estruturam os eventos ficcionais da narrativa. Em
princípio, o narrador se mostra aberto à incorporação de versões diversas sobre os

acontecimentos. Têm a palavra os personagens mais representativos de cada um dos

grandes círculos sociais e políticos que compõem a obra. Nos trechos analisados,
152

capitalistas, pequeno-burgueses e comunistas foram representados por Costa Vale, Lucas


Puccini e João, respectivamente.
Ao abrir espaço para as opiniões dos personagens, porém, o narrador também as
julga. Ele o faz por meio da linguagem, mostrando coerência e objetividade nos
pensamentos do comunista, superficialidade e interesse no discurso do pequeno-burguês,
abuso de poder e violência sumária nas declarações do capitalista. Usa também o ponto
de vista, afastando-se, por meio do discurso indireto livre, daqueles que despreza, para
aproximar-se dos que admira. Controlando a narrativa, o narrador de Os subterrâneos da
liberdade faz de um texto aparentemente "democrático" um instrumento das idéias
políticas que o norteiam desde o início.

Usando ou imitando textos de notícias para reconstruir o episódio histórico do


frustrado golpe integralista de 1938, entre outros eventos históricos evocados no texto,
Jorge Amado primeiro respeita algumas de suas características estruturais, para depois
revertê-las. Quando João sintetiza em seus pensamentos os artigos dos vários jornais que
lê no dia seguinte à tentativa de putsch, o texto respeita a linguagem "oficial" que a
imprensa adotaria, assim como se estrutura quase como uma notícia: primeiro resume os
principais fatos ocorridos, depois os detalha. Nesse ponto, a narrativa também ganha
imparcialidade, como se imitasse o efeito de objetividade que existe nos textos

jornalísticos.42
No final do parágrafo, porém, aparecem as reflexões e opiniões de João sobre os
acontecimentos. Nesse momento, a chave do discurso se modifica. A narrativa ficcional
é retomada ("João sorriu sarcasticamente ao ler essa notícia"), mas ela está imbuída de
traços opinativos, de argumentos e aponta para um tipo de texto com intenções
dissertativas. Nesse ponto, a linguagem adotada se aproxima daquela que aparece nos
periódicos comunistas, como no trecho analisado do Boletim de agitação e propaganda
do partido.

42Segundo William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhães, a estrutura-padrão da notícia consiste em
duas partes: lead (parágrafo que apresenta um relato sucinto dos fatos, respondendo às questões o quê,
quem, quando, onde, como e por quê) e corpo (demais parágrafos da notícia, nos quais se detalha o que foi
exposto no lead). In: Português: linguagens. 2.ed. São Paulo: Atual, 1994. p. 58. O Novo manual da
Redação do jornal Folha de S. Paulo adverte ainda que a notícia é "puro registro dos fatos, sem opinião".
São Paulo: Folha de S. Paulo, 1992. p. 157.
153

A leitura de Os subterrâneos da liberdade mostra que, se a trilogia constitui um


amplo romance histórico (ou uma série de romances históricos, segundo alguns críticos),
sua estrutura apresenta traços de discurso opinativo e também da linguagem persuasiva.
A argumentação é feita por meio do ponto de vista: empregando o discurso indireto livre,
o narrador contrapõe pensamentos e conduz o debate em favor dos comunistas. A
linguagem persuasiva percorre todo o texto, empregando clichês (como a antítese entre
luz e sombra), palavras de ordem do partido e até mesmo uma alta dose de
grandiloqüência em certos episódios, que ganham ares de texto de palanque43.
A narrativa histórica contida em Os subterrâneos da liberdade se parece mais com
os textos de periódicos como A classe operária e o Boletim Agitprop que, ao contrário

dos jornais "burgueses", visavam não a informar sobre os eventos, mas a opinar sobre
eles e dirigir as ações futuras dos militantes e simpatizantes do partido. Se, para os
comunistas, o escritor era "tão importante quanto um estadista", o texto de Jorge Amado
parece funcionar como o "braço armado" do partido na literatura de ficção, com os
mesmos objetivos dos jornais, boletins e folhetos distribuídos por seus membros. A
diferença é que, enquanto os periódicos se voltavam para o passado imediato e tentavam
fazer dele o exemplo a ser ou não seguido no futuro, o romance se dedicava a fatos um
pouco mais remotos de modo mais detido e com uma estrutura mais complexa.

Admitindo-se que haja uma narrativa histórica articulada permeando o enredo de


Os subterrâneos da liberdade, é possível classificá-la segundo a tipologia proposta por
Hayden White para o discurso historiográfico. O mesmo acontece para os textos
jornalísticos analisados.
A notícia de O Estado de São Paulo sobre o putsch integralista frustrado tem
caráter de estória romanesca. A resistência dos "heróis" (Vargas e seus subordinados)
contra os "vilões" (os adeptos do integralismo) constituem aquilo que White chama de
"drama do triunfo do bem sobre o mal, da virtude sobre o vício, da luz sobre a treva"44,
ainda que sob o ponto de vista do governo. O artigo do Boletim Agitprop sobre a guerra
na Espanha, apesar de não ser predominantemente narrativo, também apresenta traços do

modo romanesco, com os pólos invertidos. Nele, os inimigos são os fascistas Hitler,

43 É o caso, por exemplo, do episódio da greve em Santos, narrado em OSL, II e analisado no primeiro
capítulo desta dissertação (v. Capítulo I, itens I.3 e I.4).
44 Hayden White. Meta-história. p. 24.
154

Mussolini e o "mocinho" do texto anterior: Getúlio Vargas. O grande herói é o povo


espanhol que, segundo o artigo, estaria vencendo as tropas fascistas na guerra civil. A
Ação Integralista também aparece, no papel de vilã: é fascista, como os outros
"malvados" da história.
A estrutura de Os subterrâneos da liberdade também parece corresponder, em
princípio, à da estória romanesca. Nos três romances, há a luta entre o bem e o mal,
heróis e vilões, entre luz e trevas. O desfecho da trilogia, porém, não é muito favorável
aos valorosos comunistas: Mariana é presa, João e os companheiros do secretariado estão
na cadeia, Prestes é condenado pelo Tribunal de Segurança, Getúlio continua no poder e
o partido enfrenta seu pior momento. O "triunfo da virtude sobre o vício" só aparece no

final da história como frágil esperança.


A vocação "pedagógica" da obra de Jorge Amado e a queda que efetivamente
enfrentam os seus heróis, inclusive o partido, levam a considerá-la como estruturada
segundo o modo trágico. Para Hayden White, existe no modo trágico de se contar a
história uma "queda do protagonista e [um] abalo do mundo que ele habita". No entanto,
completa ele, esses eventos

"não são considerados ameaçadores para aqueles que sobrevivem à prova


agônica. Para os espectadores da luta houve uma aquisição de conhecimento.
E pensa-se que essa aquisição consiste na epifania da lei regeneradora da
existência humana que a pugna vigorosa do protagonista contra o mundo
produziu."45

Em outras palavras, ao fazer história dentro e por meio do romance, Jorge Amado a
compõe segundo um padrão. Ao narrar os reveses enfrentados pelo partido comunista e
seus membros entre 1937 e 1940, ele parece dizer: "aprendam com os exemplos",
"mantenham a esperança", "continuem lutando". O final de Os subterrâneos da
liberdade aponta para uma redenção que para os comunistas certamente viria. Não só na
ficção: também, e principalmente, na vida. Na história. Apesar de todas as quedas, teria
havido a aquisição de um certo conhecimento sobre que caminho seguir daí em frente.
Há em Os subterrâneos da liberdade um discurso da história, cujo estilo pode ser

caracterizado. Apesar de admitir a inclusão de várias versões dos fatos históricos em seu
texto, o narrador da trilogia lhes confere um tipo de coerência que é ideológica. Ele

45 Hayden White. Meta-história. p. 24.


155

elabora uma narrativa que começa aparentemente fragmentária, mas se revela unívoca e
tende para a generalização e para a homogeneidade. Seu tempo é cronológico e respeita
as datas de fatos políticos importantes. Seu narrador, empregando o ponto de vista em
terceira pessoa, observa os fatos sem participar deles, mas conduzindo-os por trás.
Elimina quaisquer dúvidas; preenche de sentido todos os vazios. Essa narrativa histórica
também apresenta vocação teleológica: a reconstituição do passado só interessa tendo-se
em vista a construção do futuro.

III.2.2 Intervalos

Graciliano Ramos, ao escrever Memórias do cárcere, tinha consciência do vínculo


existente entre a história pessoal e a história de um grupo, de uma época. Sabia estar
elaborando um texto autobiográfico. Apesar disso, suas intenções iam além da
autobiografia, como insinua no capítulo-prefácio de sua obra.46
No leito do intenso rio da consciência que compõe Memórias do cárcere, aqui e
ali, encontram-se cacos da história. Às vezes, o narrador os recolhe e observa. Mas eles
voltam a submergir na pessoalidade do testemunho e no fluxo constante do pensamento.
Se existe um discurso da história em Memórias do cárcere, ele só acontece aos pedaços e
através da memória pessoal e das reflexões do narrador.
Foi assim, por exemplo, com os depoimentos dos companheiros de prisão de
Graciliano à polícia e ao Tribunal de Segurança Nacional. O assunto lateja na narrativa.
Em "Pavilhão dos Primários", o narrador comenta a saída de Rodolfo Ghioldi para ser
interrogado na Polícia Central. Três dias depois, o argentino retornou à Detenção.
Conversando com o narrador sobre como havia sido o depoimento, ele confessaria:
"Menti demais e já nem sei o que disse."47 O narrador reflete sobre o episódio:

"Ignorando até que ponto os carrascos estão seguros, os padecentes se


desnorteiam nessa brincadeira de gato com rato, deixam escapar um gesto,
uma imprudência necessária à clareza do processo. E o embuste avança,
pouco a pouco se fabricam as malhas de uma vasta rede, outras pessoas vêm
complicar-se nela, trazer novos subsídios ao inquérito."48

46 A intenção de fazer história por meio da autobiografia pode ser verificada por exemplo quando o autor
afirma: "Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade
urgente de recompô-lo." MC, I. p. 10. A esse respeito, v. Capítulo II, item I.1 desta dissertação.
47 MC, II. p. 81.
48 Ibid. p. 77.
156

Vários capítulos depois, um militar jovem, fraco e marcado pelas torturas era
chamado de novo para depor. Ao soar a ordem, ele se ergueu aflito, gritando: "Ah! meu
Deus! Não agüento mais. Vão matar-me."49 Nas reflexões do narrador, volta a imagem
do jogo entre gato e rato:

"Pata macia de gato acariciando um rato. Em horas assim este se encolhe


cheio de pavor, agarra-se a ilusões fugitivas, busca imaginar ocorrências
vulgares."50

A "literatura inimiga" dos jornais também informava a respeito dos interrogatórios


a que eram submetidos os presos da fracassada revolução de 1935. Uma cobertura
minuciosa foi dedicada aos trabalhos do Tribunal de Segurança, que julgava os presos
políticos.
Em 5 de janeiro de 1937, enquanto Graciliano Ramos estava preso na Sala da
Capela da Casa de Correção, o jornal O Estado de São Paulo publicou a seguinte notícia:

"OS PROCESSOS DE
FORMAÇÃO DE CULPA
DO COMMUNISTAS
_____________
Foi summariado hontem o
argentino Rodolpho Ghioldi
⎯ Indicação de advogados
_____________
EXCLUSÃO DE SARGENTOS
_____________
RIO, 4 ('Estado') ⎯ Foi summariado hoje Rodolpho Ghioldi, de
nacionalidade argentina e um dos principaes accusados de responsabilidade
nos acontecimentos de Novembro de 1935.
A diligencia realisou-se na Policia Central, sob a presidencia do juiz Raul
Machado."51

Na edição de 6 de janeiro, o noticiário se deteve no sumário de culpa de Pedro


Ernesto, ex-prefeito do Rio de Janeiro, também preso como subversivo. A defesa
questionava a legitimidade do Tribunal de Segurança, constituído especialmente para
julgar os acusados de 1935:

"[...] a apresentação da defesa não implica no reconhecimento da


legitimidade do orgam judicante. Não se nega a defesa a responder á
denuncia, embora isto lhe repugne devido á 'organisação e o funccionamento
de um apparelho de justiça que, violando principios expressos da

49 Ibid. p. 217.
50 Ibid.
51 O Estado de São Paulo, 5-1-1937, p. 1.
157

Constituição Federal, ainda se reveste de caracteristicas de inqualificavel


teratologia [...]'."

Mais adiante, uma nota:

"O TRIBUNAL DE SEGURANÇA


NACIONAL

O juiz do Tribunal de Segurança Nacional, dr. Pereira Braga, iniciará


amanhan o summario de varios indiciados, realisando-se o acto na Casa de
Correção. O ex-capitão Agildo Barata, cabeça do movimento no extincto 3º
Regimento de Infantaria, será summariado depois de amanhan, perante o
coronel Costa Netto, membro do Tribunal Especial, que para isso
comparecerá áquelle presidio, onde se acha recolhido o accusado."52

O que nem os juízes nem os jornais sabiam é que a ida do magistrado à Correção
iria resultar em novos protestos. No dia 8 de janeiro, o coronel Costa Netto foi

praticamente ignorado pelos ex-militares presos Sócrates Gonçalves e Benedito de


Carvalho. No dia 12, foi a vez de Agildo Barata e Álvaro de Sousa ocuparem as
primeiras páginas da imprensa:

"OS PRESOS POLITICOS HOSTILISAM


O TRIBUNAL DE SEGURANÇA
_______________
O juiz Costa Netto precisou empregar força para que dois
accusados comparecessem á sua presença na Casa de Correcção,
onde se achavam presos
_______________
A CONSTITUCIONALIDADE DA JUSTIÇA ESPECIAL
_______________
Rio, 11 ('Estado') ⎯ Decorreu novamente agitado o summario de culpa
dos presos politicos na Casa de Correcção. [...]
No pateo da Casa de Correcção estava postado um destacamento da
Policia Militar. Installada a sessão, o juiz Costa Netto mandou intimar os
accusados, ex-capitães Alvaro de Souza, José Leite Brasil e Agildo Barata
Ribeiro.
Dos tres, apenas o ex-capitão José Leite Brasil compareceu
espontaneamente.
Os srs. Agildo Barata e Alvaro de Souza recusaram-se a principio a
comparecer. O juiz Costa Netto determinou então que fossem os mesmos
trazidos á força. Varios guardas, dando cumprimento á ordem, dirigiram-se á
galeria onde os accusados se encontravam e os compelliram a ir até a sala de
audiencia. Proromperam [sic] elles em gritos e insultos ás autoridades
constituidas e ao regime. Chegados á sala onde se realisava a sessão, ambos
recusaram-se a sentar-se. O coronel Costa Netto ordenou aos guardas que
fizessem os accusados assumir attitude devida. Com o emprego de força
ambos assentaram-se. O ex-capitão Agildo Barata, porém, voltou as costas
aos juízes. Nesse momento ouve-se, vindo do pateo da Correcção: 'Morra o
Tribunal de Segurança'.

52 O Estado de São Paulo, 6-1-1937, p. 1.


158

De dentro da sala de audiencia o sr. Agildo Barata grita 'morra'.


O juiz, mantendo a sua autoridade, impõe silencio ao accusado:
'Cale-se, não pode gritar. Saiba respeitar a Justiça'.
........................................
O sr. Agildo Barata interrogado respondeu em tom agressivo:
'Não me interessa este tribunal illegal. Não quero me defender perante elle
e tambem não responderei a nenhuma pergunta'.
Terminou erguendo um viva á Alliança Nacional Libertadora, palavras
repetidas por seu companheiro com os punhos erguidos."

Em um capítulo de "Casa de Correção", quarto volume de Memórias do cárcere,


Graciliano Ramos conta o mesmo episódio sob seu ponto de vista:

"Naquela manhã, narrados os últimos sucessos, internos e externos,


repisamos assuntos, caímos em silêncio. De repente ouvimos altos brados.
Erguemo-nos, chegamos à porta, enxergamos à direita um grupo confuso. Já
me habituara a cenas iguais: iam levando um acusado ao interrogatório.
Trouxemos cadeiras para a calçada, aí nos instalamos curiosos. Um novelo
de corpos agitados passava diante de nós, a pequena distância. Arregalando
os olhos, distingui Álvaro de Sousa, suspenso, a debater-se com desespero,
nas mãos de quatro homens que lhe seguravam rijo os braços e as pernas. A
cabeça, desgovernada, subia, descia, em duros solavancos, tentava equilíbrio;
o rosto se avermelhava, furioso; a boca torcia-se, vomitava injúrias ao
governo, à justiça nova, ao exército. Alongando o pescoço, mostrava a
cicatriz da navalhada que lhe cortara músculos importantes, modificara a
fisionomia. Batida pelo sol, aparentava insana mistura de raiva e escárnio. Os
insultos não diminuíam. E transportaram assim o capitão Álvaro de Sousa,
meio despido, a exibir marcas de tiros na barriga e no tórax, fardo incômodo.
........................................
Novo magote nos perturbou a conversa, mas esse mexia-se tardo, em
desânimo visível. Ainda uma pessoa, chamada a prestar declarações,
resolvera deitar-se, e não houvera meio de colocá-la em posição vertical.
Necessário transportá-la daquele jeito, provisoriamente aleijada. Espantou-
me nela a ausência de contorções, uma serenidade a contrastar com os
destemperos de Álvaro, pouco antes. Os carregadores moviam-se vagarosos,
sem esforço, e outros indivíduos vinham atrás, como gatos-pingados a
realizar um enterro pobre. Tínhamos na verdade a impressão de nos
acharmos num cemitério. No primeiro momento não reconheci a figura
inerte, franzina, leve, metida num pijama de riscas. A alguns metros do
portão a carga exígua deu sinal de vida e chegou-me a voz metálica de
Agildo, cortante como lâmina:
⎯ Bem. Já fiz o meu protesto. Larguem-me, vou levantar-me.
Não pedia: apesar de falar baixo, dava uma ordem, concisa e dura. [...]
........................................
Não alcançando, na situação desfavorável, a obediência a que se
habituara, encolheu-se, retesou os músculos e jogou um vigoroso pontapé na
cara do [policial] negro. A ponta do tamanco feriu carne, cartilagens, e o
infeliz recuou limpando as ventas ensangüentadas. Finda essa proeza, rápido
bote de cobra, Agildo retomou o sossego. Um instante depois marchava
seguido pelos guardas, lento, economizando energia para ofensas acres ao
juiz atrabiliário."53

53 MC, IV. p. 122-4.


159

A notícia sobre o protesto dos dois ex-militares presos segue o padrão do artigo
sobre a tentativa de putsch integralista analisado no tópico anterior. Enquanto texto
narrativo, ela define o tempo e o lugar ("Rio, 11") e encadeia os fatos primeiro
resumidamente (por meio do título, dos subtítulos e do lead), depois com detalhes (corpo
da notícia). Nesse texto, o foco narrativo se mantém em terceira pessoa, o que imprime
ao discurso um efeito de objetividade e de veracidade. Nenhuma concessão é feita à
primeira pessoa; ela não aparece nem mesmo no plural, como "ponto de vista do jornal"
sobre qualquer dos fatos.
Novamente, porém, a caracterização dos personagens mostra de que lado estava a
imprensa, fosse espontaneamente ou à força, devido à vigilância governamental sobre

ela. Existem no texto dois grupos, o dos guardas e o dos presos, e também a figura do
juiz Costa Netto.
Os guardas são meros "cumpridores da ordem", fosse qual fosse sua atitude. Eles
não arrastaram os acusados para a sala de audiências, mas os "compeliram a ir" até ela.
Eles empregaram a força fazendo com que os ex-militares se sentassem, mas apenas
porque haviam sido obrigados a isso.
Os acusados são rebeldes, mal-educados e agressivos. Cometem o grande pecado
de "prorromper em gritos e insultos à autoridade constituída", que é, sob esse ponto de

vista, incontestável. Além disso, apresentam traços de infantilidade: Agildo Barata volta
as costas para o juiz como um menino travesso o faria diante de um pai zangado; grita,
em situação imprópria; e, "emburrado", se recusa a responder às perguntas que lhe são
feitas, levantando o punho e entoando "vivas" à Aliança Nacional Libertadora.
O magistrado, segundo o texto, age de acordo com o que a situação lhe exige. Já
que os acusados se mostraram rebeldes, "precisou empregar a força". Já que eles não
queriam se sentar, ordenou aos guardas que os forçassem a isso. Já que Agildo Barata
resolveu gritar, "impôs silêncio ao acusado", fazendo valer "sua autoridade" e
reclamando respeito. Ele é a encarnação de uma entidade abstrata: a Justiça.
Enquanto discurso histórico, a notícia constitui um texto coerente, homogêneo,

articulado segundo um ponto de vista próprio e que ela mesma define: o respeito aos

poderes constituídos e o desprezo por aqueles que ousam se colocar contra ele. No caso
desse texto, como no da notícia analisada no tópico anterior, trata-se de um discurso
160

estruturado como estória romanesca, de acordo com a tipologia de Hayden White.


Embora inconclusa, a luta entre bem e mal acaba, nesse caso, vencida pelos "homens da
lei e da ordem"54. Além disso, a linguagem mantém os mesmos padrões: registro formal,
conotação praticamente inexistente.
A narrativa do episódio em Memórias do cárcere tem características
completamente diferentes, a começar pelo foco narrativo em primeira pessoa, expresso
desde o início do texto. O plural empregado pelo narrador no começo do trecho
("repisamos", "caímos", "ouvimos") se refere a ele e à sua mulher, que lhe fazia uma
visita e também presenciou os acontecimentos narrados a seguir. Junto com ela e com
outros presos que também assistiam ao episódio, o narrador só enxerga "um grupo

confuso". É apenas quando "arregala os [próprios] olhos" que consegue distinguir, na


massa informe, Álvaro de Sousa sendo carregado pelos guardas da polícia especial.
A partir daí, tem início uma descrição muito particular e muito expressiva da cena.
O trabalho literário com a linguagem é intenso. À metáfora que representa o grupo
("novelo de corpos agitados") contrapõe-se à caracterização metonímica de Álvaro de
Sousa. Ele é pernas e braços segurados pelos guardas, "cabeça desgovernada" que sobe e
desce, "rosto avermelhado", boca a se torcer e vomitar injúrias, pescoço a se alongar
mostrando a cicatriz da navalhada que levara, barriga e tórax a exibirem marcas de tiros.

Em resumo: um "fardo incômodo".


A descrição exagerada, "estourada" de Álvaro de Sousa, que lembra os perfis de
outros presos feitos em "Pavilhão dos Primários"55, se une ao ritmo veloz da narrativa
nesse ponto. As ações se sucedem rapidamente, transmitindo uma sensação de
movimento, energia e força. As cores também conferem emoção ao episódio: o narrador
o enxerga em corpo e sol, vermelho e dourado, "raiva e escárnio".
Na seqüência, o transporte de Agildo Barata segue a passos de tartaruga. O novo
quadro se opõe à cena anterior. Desaparecera o "novelo de corpos"; os carregadores eram
agora um grupo de "gatos-pingados", movendo-se um após o outro. Agildo, a princípio, é
uma "figura inerte", depois definida metaforicamente como uma "cobra" de bote veloz e

54 É preciso lembrar que o texto transcrito é apenas um fragmento da notícia publicada. Nesta, Agildo
Barata e Álvaro de Sousa, depois de sumariados pelo juiz Costa Netto, são devidamente punidos, sendo
transferidos da Casa de Correção para a Casa de Detenção com ordem de incomunicabilidade.
55 V. Capítulo II, item II.5.
161

certeiro. Outro traço recorrente do personagem é a "voz metálica", sinédoque que numa
pincelada o caracteriza.
A descrição da revolta de Agildo se dá em dois momentos. No primeiro, a
serenidade e o vagar do cortejo emprestam a ele um ar fúnebre, de inércia. No segundo, a
rapidez da reação do militar contra os policiais que o carregavam, mais do que
caracteriza um "sinal de vida", ressalta a esperteza do personagem que, ao contrário de
Álvaro de Sousa, não desperdiça energia com "subalternos", economizando-a para
enfrentar o juiz. Agildo é um todo de inteligência e estratégia; Álvaro é uma colagem de
força e fúria.
Retorna também no trecho a descrição animalizada dos personagens. Além da

"cobra" que é Agildo, os guardas são "gatos-pingados". Como já foi visto, os policiais
são várias vezes identificados com gatos que perseguem ratos, os presos. No caso do
texto analisado, esta é uma imagem implícita. Aparecem de novo as cores: o vermelho
contrasta com o preto nas ventas ensangüentadas do guarda agredido.
Ao contrário do que acontece em Jorge Amado, não há nesse trecho de Memórias
do cárcere heróis ou vilões puros. A caracterização complexa dos personagens foge a
maniqueísmos. Embora a fúria de Álvaro de Sousa possa ter aspectos positivos, como
demonstrar coragem, resistência e força, a descrição "aos pedaços", as cicatrizes, a boca

a vomitar injúrias e os solavancos da cabeça têm muito de violência e de grotesco. Por


outro lado, a estratégia "ofídica" de Agildo Barata revela-se demonstração de
inteligência, embora a serpente seja tradicionalmente vinculada à idéia de maldade e
velhacaria. Além disso, os policiais em momento nenhum são elogiados ou criticados.
Apenas demonstram firmeza na primeira cena, para se tornarem vítimas caladas e
conformadas do ataque do ex-capitão na segunda.
A postura do narrador de Memórias do cárcere também é outra em relação a Os
subterrâneos da liberdade. Ele não se esconde, mas se mostra. É curioso, observador.
Além disso, se espanta. E revela às vezes certa dificuldade para enxergar, como se os
fatos se embaralhassem sob sua vista. Só distingue Álvaro de Sousa depois de certo

esforço. O mesmo acontece com Agildo Barata: num primeiro momento, o narrador não

o reconhece; instantes depois, só o faz pela voz, e não pela imagem. Apesar disso, a
visualidade do texto forjado por ele é fortíssima.
162

Trata-se de um texto de impressões. Os sentidos, ultra-sensibilizados. Nenhum


efeito de objetividade, pelo contrário. Também nenhuma explicação ou julgamento para
os fatos. Eles são apenas colocados de modo veemente sob a vista do leitor, até mesmo
com uma pitada de ironia. Como não sorrir com o "bote" que dá o mirrado Agildo no
supostamente forte policial negro? Além disso, o rebaixamento irônico está presente na
animalização dos dois militares: o segundo é uma cobra oportunista; o primeiro, uma
espécie de besta enfurecida.
O caso do Tribunal de Segurança vai ser objeto de uma outra caracterização em
Memórias do cárcere, esta ainda bem mais irônica que o episódio do protesto de Álvaro
de Sousa e Agildo Barata. É justamente no capítulo seguinte àquele em que se encontra o

trecho analisado acima.


Uma noite, depois do chá, os presos da Correção trouxeram alguns bancos do
refeitório e fizeram da Sala da Capela um teatro improvisado, em que se representou, de
forma burlesca, o Tribunal Especial. O humorista Aparício Torelly, com um paletó preto
e pasta de algodão na gola, tornou-se o juiz. Um tenente de estrutura frágil era o réu.
Ivan Ribeiro, cuspindo sobre os magistrados trechos do programa da Aliança Nacional
Libertadora, representou um dos advogados de defesa, logo retirado da sala. A Moreira
Lima, o "bacharel feroz", coube ser o segundo. O teor da "defesa" que empreendeu foi o

seguinte:

"[...] senhores juízes, [...] o acusado mostra pelo menos uma virtude: não
procura inocentar-se. Obrigado a interrogatório, permeneceu quieto, e a
denúncia está sólida. As faltas dele são graves ⎯ todo mundo sabe. [...] É
um infeliz, um pobre-diabo, ruína física. Pela cara vemos perfeitamente: um
imbecil, um idiota. Sem dúvida obedeceu às instruções dos agentes de
Moscou. Assim, venerandos juízes, não venho pedir justiça, que este
indivíduo é um canalha ⎯ todo mundo sabe. Espero clemência, e baseio-me
nas tradições misericordiosas da nossa cultura ocidental. Uma pena suave,
meritíssimos juízes, aí uns trinta anos, porque enfim este bandido serviu de
instrumento."56

A "sentença módica" foi logo proferida: trinta anos na Ilha Grande. Todos riram: a
platéia e os guardas.

A dramatização da sessão do Tribunal de Segurança tem um sentido catártico.


Depois de uma semana "se chateando" com a presença do juiz57, os detentos da Sala da

56 MC, IV. p. 129-130.


57 Ibid., p. 126.
163

Capela arremedam seus trabalhos e seus personagens. Imitando-os com ironia, podem rir
da situação constituída para oprimi-los. É uma outra forma de desobediência à ordem e
de subversão do sentido. As autoridades constituídas propunham a violência e o
sofrimento; os presos respondiam com uma comédia.
Aristóteles afirma, na Poética, que a comédia é a "imitação de maus costumes" e
que "o ridículo reside num defeito e numa tara que não apresentam caráter doloroso ou
corruptor"58. No caso dos "comediantes" da Sala da Capela, representar uma "caricatura"
do Tribunal Especial, como a chamou Graciliano Ramos, significou não a dramatização
de uma situação indolor, mas a reversão da dor em riso. Além disso, há na comédia uma
moral implícita. Se ela imita "vícios" e "defeitos", isso significa que, no contexto dos

presos de Memórias do cárcere, o Tribunal de Segurança era considerado um "'vício" ou


"defeito" do sistema, que deveria ser apontado e destruído pelo escárnio.
Ainda nesse episódio, o narrador ocupa a posição de platéia. Permaneceu junto aos
outros, "de pé, olhos e ouvidos atentos"59, a atenção concentrada no que estava por vir.
Nesse trecho, ele se abstém até mesmo de comentários e reflexões. A cena do teatro é
proposta ao leitor sem explicações, e o foco narrativo, voltando-se para o exterior, ganha
um máximo de objetividade, sendo predominante o ponto de vista em terceira pessoa
nesse capítulo. Com isso, o narrador de Memórias do cárcere delega ao leitor a

interpretação dos fatos narrados.


Trata-se de uma representação dentro de outra, e o que sobressai é a ironia dos
demais presos contra o poder constituído, e não propriamente a do narrador. Pelo espaço
destinado à cena em Memórias do cárcere, pode-se supor sua simpatia em relação à
opinião dos companheiros de cadeia. Essa concordância também é expressa pelo riso
uníssono ao final da apresentação, do qual a voz do narrador faz parte. Ele afirma que "a
platéia ria"60, e ele mesmo está na audiência. No entanto, sua anuência se faz de modo
impessoal e apenas insinuado.
Os processos a que foram submetidos os presos políticos de 1935 recebem assim,
em Memórias do cárcere, uma representação que vai ganhando forma. Ela começa com

menções breves a interrogatórios a que são sujeitos os acusados na polícia, como foi o

58 Aristóteles. Op. cit. p. 246.


59 MC, IV. p. 125.
60 MC, IV., p. 130.
164

caso de Rodolfo Ghioldi ou do militar torturado em "Pavilhão dos Primários", passa


pelos sumários de culpa de Sócrates Golçalves e outros pelo Tribunal de Segurança, para
se estruturar de modo mais acabado no protesto de Agildo Barata e Álvaro de Sousa e no
teatro na Sala da Capela.
Ao nível mais aparente do discurso, não há vínculos entre um fato e outro. Eles são
narrados como cenas e só se relacionam se olhados em conjunto. Mesmo os últimos
episódios, articulados em capítulos subseqüentes, mantêm um certo ar de fragmento, pela
falta de elementos coesivos de linguagem que os unam. O capítulo sobre Agildo e
Álvaro de Sousa, por exemplo, segue-se à narrativa da transferência de Olga Benario e
Elisa Berger e começa "sem avisar" que o assunto será outro, ignorando referências de

tempo ou circunstância: "Um juiz do Tribunal Especial veio interrogar os presos que
tinham processo."61 Acontece quase o mesmo no capítulo seguinte, que narra a "comédia
dos presos": "Uma noite, depois do chá, os militares trouxeram para o salão todos os
bancos do refeitório"62. A diferença é a referência de tempo, ainda assim muito vaga e
sem relação direta com os episódios anteriores: "uma noite".
A coerência entre um episódio e outro exige, para ser estabelecida, a participação
do leitor. Graciliano Ramos reafirma, na estrutura de Memórias do cárcere, o que já
anunciara no capítulo-prefácio. O escritor tinha consciência de que sua versão sobre os

fatos era apenas uma versão, entre tantas possíveis:

"Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que


notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não
as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se,
completam-se e não dão hoje impressão de realidade."63

Recusa-se, assim, no próprio corpo de Memórias do cárcere, a preencher de


sentido todas as indagações que o texto suscita. Graciliano narra, mas, na medida do
possível, não interpreta de modo a chegar a uma conclusão definitiva.
À primeira vista, parece difícil descobrir o fio historiográfico entremeado ao
discurso literário e autobiográfico das Memórias do cárcere. Mas ele existe. O livro de

61 Ibid. p. 118.
62 Ibid., p. 125.
63 MC, I. p. 10. O texto comporta variantes. A 25.ed. traz "... e me dão hoje impressão de realidade". Um
dos manuscritos da obra, reproduzido em Clara Ramos. Cadeia. p. 37 e ss., traz "... conjugam-se,
completam-se, têm visos de realidade". Aparentemente, a intenção do autor no trecho era afirmar a
impressão de realidade de suas lembranças e das de outros, e não negá-la.
165

Graciliano resgata fatos históricos de modo fragmentário, e esta talvez seja a


característica mais marcante do seu modo de fazer história. A dialética entre a história de
um homem e a da época vivida por ele fundamenta Memórias do cárcere e, no limite,
chega a propor uma "nova historiografia", que assume a particularidade de sua visão
sobre os fatos.
Ela é também mais complexa. Em princípio, naquilo que possui de relato histórico,
a narrativa de Graciliano parece estar mais próxima do que Hayden White chamou de
sátira ou ironia: "drama da disjunção, [...] dominado pelo temor de que o homem é
essencialmente um cativo do mundo [...] e pelo reconhecimento de que [...] a consciência
e a vontade humanas são sempre inadequadas para a tarefa de sobrepujar em definitivo a

força obscura da morte"64. No "livro da cadeia", é flagrante a impotência dos


personagens, que eram também personalidades históricas, frente às imposições do
"mundo": o governo, a opinião pública, a polícia. Nem o final da narrativa inconclusa,
em que todos, inclusive o narrador, continuam presos, significa para eles qualquer tipo
de redenção.
O episódios da rebeldia dos militares contra o Tribunal Especial e da representação
na Sala da Capela, porém, mostram que existem traços latentes de estória romanesca e de
comédia nesse texto. Com o chute desferido no rosto do policial negro ao encaminhar-se

para a sessão do tribunal, Agildo Barata mostra-se mais forte do que o sistema repressivo
e sua dignidade prevalece com um sabor de vitória sobre a violência. Embora seja
relativizada pela animalização sofrida pelo personagem e esteja implícita no texto, a
visão do narrador retrata um herói a triunfar, ainda que momentaneamente, sobre o mal
que eram a polícia e o governo. Por outro lado, a dramatização do Tribunal de Segurança
feita pelos detentos da Correção pôde significar uma saída, embora fugaz, para a angústia
de enfrentar uma justiça que lhes era contrária a priori. De acordo com Hayden White, a
comédia é o modo em que "a esperança do temporário triunfo do homem sobre seu
mundo é oferecida pela perspectiva de reconciliações ocasionais das forças em jogo"65.
De alguma forma, entre as quatro paredes da prisão, os acusados assumiram os papéis de

acusadores e puderam rir da situação difícil que tinham de viver.

64 Hayden White. Meta-história. p. 24.


65 Hayden White. Meta-história. p. 24, grifo do texto.
166

Relatando o episódio, o narrador fornece ao leitor mais uma alternativa para o tipo
de representação histórica dos fatos que vivera, além da satírica, que atravessa o texto
como um todo, e da romanesca, que emerge em alguns momentos. Ao fazê-lo, acaba por
problematizar não somente a si mesmo enquanto narrador de memórias, mas também
como narrador da história, mostrando que, apesar de articulá-la segundo um modo
predominante, há outros, tão aceitáveis como o seu, e que ele mesmo acaba por
incorporar.
Existe uma analogia entre o narrador das memórias que se fragmenta em vários, tal
como foi analisado anteriormente66, e o historiador que se vislumbra nas Memórias do
cárcere. Este também é plural e propõe a dramatização do Tribunal Especial enquanto

uma das representações possíveis desse episódio da cadeia. A própria teatralidade da


narrativa nessa cena é simbólica. Nada é absolutamente "verdadeiro"; o fato é a
representação do fato.

III.2.3 Tecelões e pescadores

Em sua obra Mimesis, Erich Auerbach define dois tipos básicos de representação
da realidade na literatura ocidental. O primeiro é baseado no texto homérico e
caracterizado por meio da análise de um episódio da Odisséia, o do reconhecimento de
Ulisses pela ama Euricléia, na sua volta a Ítaca. O segundo tem como paradigma o texto
bíblico e é estabelecido a partir do relato do sacrifício de Isaac, no livro do Gênesis.
Auerbach mostra que a Odisséia é caracterizada por certa prolixidade. Nela, todos
os fenômenos são exteriorizados, tudo é explicado e toda a ação é rigorosamente
articulada, de modo que mesmo fatos isolados estão sempre entrelaçados em correlação
"mútua, ininterrupta e fluente"67. Segundo ele, há no texto homérico "um desfile
ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte
alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda,

um vislumbre de profundezas inexploradas"68. Isso se dá por meio da estrutura sintática,

mediante o uso freqüente de conjunções, advérbios, partículas; por meio da

66 V. Capítulo II, item II.6 desta dissertação.


67 Erich Auerbach. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2.ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976. p. 4.
68 Erich Auerbach. Op. cit.
167

caracterização dos personagens, sempre pródiga em adjetivos e epítetos; e pelo emprego


do discurso direto com a função de exteriorizar pensamentos, entre outras coisas. Dessa
forma, seria possível analisar o texto homérico, mas não interpretá-lo, pois todas as
respostas já são fornecidas no nível mais superficial do discurso.
Em contrapartida, o texto bíblico é marcado por fatos que não se explicam, por
silêncios e indeterminações. Há nele sentidos ocultos, que cabe ao leitor desvendar. Aos
adjetivos e digressões da poesia homérica, o relato bíblico opõe meras alusões a certos
traços dos personagens, apenas aqueles que devem ser conhecidos dentro dos limites da
ação. Ao discurso direto empregado para exteriorizar pensamentos da Ilíada e da
Odisséia, a Bíblia opõe o diálogo com a intenção de "manifestar algo implícito, que

permanece inexpresso"69. Às seqüências de orações perfeitamente articuladas do texto de


Homero e à rigorosa concatenação dos fatos proposta por ele, o texto bíblico opõe frases
curtas e justapostas.
Para Auerbach, é difícil imaginar contrastes de estilo tão marcantes em dois textos
igualmente antigos e épicos:

"De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados,


definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num
primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se
desenvolvem com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado
formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o
restante fica na escuridão; os pontos culminantes e decisivos para a ação são
os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente; tempo e
espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e
sentimentos permanecem inexpressos; só são sugeridos pelo silêncio e por
discursos fragmentários. O todo, dirigido com máxima e ininterrupta tensão
para um destino e, por isso mesmo, muito mais unitário, permanece
enigmático e carregado de segundos planos."70

Essas diferenças exigem dos leitores de Homero e da Bíblia atitudes diferentes. Se


tudo é explicado e exteriorizado, o leitor pode debruçar-se sobre o texto numa postura
distensa. Ele apenas frui o que lhe está colocado e compartilha de sentimentos e
pensamentos trazidos pela narrativa. O texto não exige dele adesão, apenas simpatia. É o
caso das narrativas homéricas. O texto bíblico, na concepção de Auerbach, é mais

"tirânico". Ele impõe ao leitor uma atitude investigativa, instiga-o a leituras e releituras,
e o leitor "se vê motivado a se aprofundar uma e outra vez no texto e a procurar em todos

69 Ibid., p. 8.
70 Ibid., p. 9.
168

os seus pormenores a luz que possa estar oculta"71. Auerbach afirma ainda que o leitor
busca nos textos de Homero uma realidade, enquanto na Bíblia busca a verdade. O teor
religioso das narrativas bíblicas se manifesta em sua estrutura textual:

"O mundo das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser
uma realidade historicamente verdadeira ⎯ pretende ser o único mundo
verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo."72

Os modos de representação da realidade propostos por Auerbach são encontrados


nas obras de Jorge Amado e de Graciliano Ramos analisadas neste trabalho, embora não
de modo puro. Em ambos os livros, o emprego de certos procedimentos da ficção tornou-
se um meio de representar a realidade histórica, e cada autor o fez a seu modo, segundo
um estilo próprio.
Os subterrâneos da liberdade constituem um discurso "preenchido". As
convicções ideológicas do autor estruturam uma obra em que tudo é resposta, nada é
dúvida. O narrador tudo define e explica, e não resta ao leitor perguntar nada. Os bons
são bons, os maus praticam suas vilanias. O socialismo é a verdade a se construir; o
capitalismo, a mentira a se destruir. O mundo acabado proposto por Jorge Amado nessa
obra assemelha-se em certos traços com a Odisséia tal como lida por Auerbach. A
narrativa homérica não suscita a expectativa teleológica diante de um futuro não
realizado. Mas o efeito de Os subterrâneos da liberdade é menos a projeção para um
tempo vindouro e mais a construção de uma realidade que o narrador mostra como já
existente no presente da narrativa, que só precisa ser trazida à tona. A luta comunista no
livro já se mostra potencialmente vitoriosa, embora isso ainda seja desconhecido pelos
outros círculos da sociedade. A verdade, para o narrador criado por Jorge Amado, já se
encontra viva e ativa nos "subterrâneos"; resta agora que venha à luz. Cria-se por meio
do livro, assim, a ilusão de um mundo acabado e certo de seus valores.
O mesmo acontece para o discurso histórico que permeia Os subterrâneos,
estruturado por meio da ficção. A história narrada ali é cheia de certezas: sobre o
passado, sobre o presente, sobre o futuro. O que é interpretação da história torna-se

história. Como Penélope à espera do tempo vindouro, que é promessa de felicidade com
o retorno do marido ao lar, o narrador de Os subterrâneos da liberdade tece. E o melhor

71 Erich Auerbach. Op. cit. p. 12.


72 Ibid.,p. 11.
169

tecido é o mais bem acabado. Sem nós aparentes. Sem buracos ou falhas nas junções
entre trama e urdidura.
O pólo oposto está em Memórias do cárcere. Na obra de Graciliano, quase tudo é
questionamento, perplexidade, busca de um sentido que não se completa. O narrador é
um entre vários. Os ladrões demonstram escrúpulos. Os heróis se revelam mesquinhos.
Os inimigos mostram compreensão. As ideologias não se harmonizam, mas destróem
qualquer entendimento. Os fatos são as versões que são contadas sobre eles. O fluxo de
consciência constitui um esforço para se superar o que é rompido e incoerente, mas
acaba por reafirmar o fragmentário a cada página. A história é apenas uma das narrativas
possíveis, por um dos narradores possíveis.

Memórias do cárcere é um livro feito de lacunas. Como a Bíblia para Auerbach,


economiza em adjetivos. O discurso direto, tão problemático nessa obra, não exterioriza
pensamentos nem demonstra maior grau de comunicação entre as pessoas, mas ressalta
questões insolúveis pelo mero trabalho da consciência. As digressões, quando aparecem,
não levam a conclusões definitivas. Restam ao leitor as dúvidas. Em que versão
acreditar? A qual dos valores explicitados ali se apegar? Existe, entre as opiniões
veiculadas ali, uma que seja melhor ou mais correta?
Memórias do cárcere exige do leitor um trabalho de interpretação constantemente

renovado. O livro de Graciliano não é "tirânico" como a Bíblia, pois não quer ser livro
sagrado, nem aspira à redenção final: atingir todo o conhecimento até então só entrevisto
fragmentariamente. Mas ele é, no mínimo, exigente. Lido e relido, oferece apenas a
sensação de que existe ali um mistério, não sobrenatural, mas humano, que permanece
oculto. O narrador de Memórias do cárcere é como um pescador a trançar sua rede. Para
a boa pesca, os vãos são tão ou mais importantes do que os nós firmes e perfeitos. Mas
esse pescador de sentidos os tece largos demais, e seus peixes escapam para o mar
desconhecido.
Em Memórias do cárcere, o fragmentário, os questionamentos, a dúvida são
levados a uma tal intensidade que já não exigem do leitor adesão e busca da verdade.

Pelo contrário, o texto de Graciliano o afasta e avisa: "Não acredite inteiramente no que

está escrito nestas páginas. Trata-se apenas de uma visão pessoal sobre o assunto". Ainda
assim, essa perspectiva individual e lacunar do fato consegue ser mais abrangente do que
170

um discurso generalizante. Por ela, é possível vislumbrar o momento retratado em sua


riqueza de elementos contraditórios. O caos do fragmento está mais próximo da vida do
que a narrativa homogênea e bem acabada.
Os subterrâneos da liberdade são, entre as duas narrativas aqui analisadas, a obra
que constitui um maior esforço para motivar o leitor à busca de um sentido "verdadeiro".
No contexto ideológico da trilogia, ele é a doutrina socialista. Paradoxalmente, porém, ao
fornecer respostas para todas as dúvidas, o livro de Jorge Amado provoca no leitor uma
postura distensa e, de certa forma, confortável. No contexto da época em que foram
publicados, este talvez fosse um dos objetivos do autor. Uma espécie de garantia para os
militantes de que o tempo da certeza viria em breve na vida, e já podia existir na

literatura. Por isso, enquanto propaganda e incitamento à ação, os livros talvez não
tenham funcionado tanto. Ao mesmo tempo que a linguagem retórica de alguns trechos
tentava impelir a luta dos comunistas pelo poder, a estrutura mais profunda do texto
tinha efeito calmante, quase anti-revolucionário. Se a verdade já existia na vida, como o
narrador tenta mostrar aos seus leitores, por que então se esforçar para alcançá-la?

III.3 Viver-lembrar-narrar

"A que parte da alma pertence a


memória? É evidente que a esta parte da
qual brota também a imaginação."
(Aristóteles)

Em um dos fragmentos de sua obra Infância em Berlim em 1900, Walter Benjamin


comenta o fascínio que sobre ele exercera um dos jogos a que se dedicara quando
criança. Era a caixa das letras. Ela continha as letras do alfabeto gótico em pequenas
placas. Colocadas sobre um anteparo, as letras se ligavam umas às outras, formando as
palavras.
A saudade do jogo infantil faz o narrador de Infância em Berlim refletir sobre a
possibilidade de se resgatar o passado. "Nunca podemos recuperar totalmente o que foi
esquecido"73, diz ele. "A mão pode ainda sonhar com essa manipulação [das letras no

filete], mas nunca mais poderá despertar para realizá-la de fato"74.

73 Walter Benjamin. "Infância em Berlim em 1900". In: Rua de mão única. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
s.d. (Obras Escolhidas, II). p. 105.
74 Ibid.
171

Apesar de não acreditar na recuperação integral do "tempo perdido", o narrador


benjaminiano não só rememora o jogo das letras, como também o jardim zoológico, a
jaula da lontra, a casa da avó, as escapadas noturnas da criança para roubar doces na
despensa, a mãe sentada à janela com a caixa de costura, a caça a borboletas nos parques
de Berlim, os livros da biblioteca da escola, as doenças. Curiosamente, sua obra de
memórias da infância não se chamou Meus verdes anos ou Minha vida, mas ganhou o
título de Infância em Berlim em 1900, como se essa infância particular, a vivida por
Walter Benjamin, pudesse servir de paradigma de outras infâncias semelhantes vividas
no mesmo tempo e lugar.
Willi Bolle mostra, na leitura que faz da obra de Benjamin, que a Infância em

Berlim, mais do que um esforço de recuperação da memória autobiográfica, é uma


tentativa de compreender a cultura dessa cidade na virada do século "a partir da
percepção do detalhe cotidiano, historicamente significativo". Além disso, o livro de
Benjamin buscaria também "preservar, através do registro escrito, a memória do que era
essa cidade, antes que fosse destruída"75. Não se pode esquecer que, na época em que
estava sendo elaborada essa obra de Benjamin, o nazismo chegava ao poder na
Alemanha. Ao contrário de Proust, de quem era leitor dedicado, Benjamin procurava
voluntariamente rememorar o passado para transmiti-lo ao futuro enquanto patrimônio.

Willi Bolle afirma ainda que o sujeito da rememoração voluntária e consciente em


Benjamin não é "de modo algum um memorialista confortavelmente reclinado na
poltrona da contemplação", mas um "sujeito histórico, quer dizer, um indivíduo exposto
e vulnerável, mas também capaz de agir". E adverte: "Preservar pressupõe um projeto de
construção do presente"76.
É também como "sujeitos históricos" que Jorge Amado e Graciliano Ramos se
propuseram, ambos mais ou menos na mesma época, a resgatar do passado vivido os
anos do Estado Novo. Jorge se decidiu a escrever Os subterrâneos da liberdade no
exílio, como intelectual militante do partido comunista e sustentado por ele, numa época
em que o governo Dutra havia recolocado o PCB na ilegalidade e em que Getúlio

75 Willi Bolle. "Cultura, patrimônio e preservação". In: Antonio Augusto Arantes (org.). Produzindo o
passado: estratégias da construção do patrimônio cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 12.
76 Ibid. p. 13, grifos do autor.
172

Vargas, o ex-ditador, se preparava para voltar ao poder pelo voto direto77. Graciliano
iniciou Memórias do cárcere em janeiro de 1946, já como membro do PCB e
respondendo a apelos de colegas para que registrasse o seu depoimento sobre o período
de sua prisão. A esquerda brasileira certamente esperava do autor de Angústia uma
denúncia tão veemente dos abusos sofridos pelos comunistas e simpatizantes no final dos
anos 30 que pudesse torná-los mais conhecidos e bem aceitos pelo público.
Ambas as obras propõem uma reconstrução do passado a partir de uma
perspectiva particular, do detalhe, do cotidiano. Elas o fazem, porém, segundo gêneros
textuais diferentes. Os subterrâneos da liberdade são estruturados como romance
histórico. Marilene Weinhardt, comentando as concepções de Georg Lukács sobre esse

gênero, afirma que "ao romance histórico não interessa repetir o relato dos grandes
acontecimentos, mas ressuscitar poeticamente os seres humanos que viveram essa
experiência. Ele deve fazer com que o leitor apreenda as razões sociais e humanas que
fizeram com que os homens daquele tempo e daquele espaço pensassem, sentissem e
agissem da forma como o fizeram". E completa: "Trata-se de uma norma da figuração
literária, aparentemente paradoxal, que se alcance esta apreensão focalizando os detalhes
do cotidiano que parecem insignificantes. [...] O mundo do romance é o da esfera
popular"78.

Ao conceber sua trilogia sobre o Estado Novo, Jorge Amado não somente
imaginou personagens historicamente verossímeis, como transformou personagens
históricos em seres de ficção. Além disso, os "grandes acontecimentos" aparecem na
obra, mas sempre vistos e vividos através do pequeno, do particular: a vida de cada
personagem, de cada grupo, seus hábitos e crenças. Ou, pelo menos, dos hábitos e
crenças que o narrador apresenta.
O romance histórico, enquanto reconstituição de uma época, está mais próximo do
que hoje se conhece como "história das mentalidades" ou "história do cotidiano". Por sua
riqueza de detalhes, consegue fornecer uma visão mais matizada e menos generalizante
de um período do que o discurso historiográfico tradicional, que tende à abstração. Ele

77 Sobre as circunstâncias históricas que envolveram a criação de Os subterrâneos da liberdade, ver o


Capítulo I, item I.2 desta dissertação.
78 Marilene Weinhardt. "Em torno do romance histórico". In: Figurações do passado: o romance histórico
contemporâneo no Sul. Tese de doutoramento. Universidade de São Paulo, 1994. p. 53.
173

torna também mais relativo um traço que a historiografia tradicional procura reforçar: a
pretensão à verdade histórica.
Numa gradação entre discurso historiográfico e ficção histórica, o romance
histórico corresponde ao primeiro passo. A ficção se assume como versão, enquanto a
história se quer verdade. O efeito de realidade criado por uma obra como Os
subterrâneos da liberdade é certamente menor do que o de qualquer relato
historiográfico sobre o mesmo período.
Existem diferenças, porém, no terreno da própria ficção. O romance histórico ainda
guarda mais semelhanças com o gênero épico do que a prosa confessional e de
memórias. Entendendo-se o lírico como a manifestação de sentimentos, representações

ou reflexões subjetivas79, percebe-se que este se constrói segundo uma postura ainda
mais particularizante, enquanto o épico mantém um "gesto" mais universalizante. O
narrador épico busca observar e relatar, mais do que se expressar. A tendência desse tipo
de gênero a constituir um discurso homogêneo, coerente e integrado é, portanto, maior.
Quanto mais expressamente pessoal um relato, menos seu narrador fica obrigado a
respeitar regras e padrões externos a si próprio. Pode dar vazão ao caos, à perplexidade, à
ausência de explicações. Não foi por coincidência que tanto a prosa confessional quanto
o romance histórico se estruturaram como gêneros literários no final do século XVIII.

Eles correspondem ao desenvolvimento da noção de individualidade, por um lado, e da


consciência histórica, por outro.
Os subterrâneos da liberdade constituem o resultado de um esforço de memória
voluntária sobre um determinado período histórico. A história contada pela trilogia
aparece como um conjunto de detalhes, de hábitos. Apesar de manter a tendência à
homogeneidade e à coerência, Os subterrâneos estão um passo mais próximos da
concepção benjaminiana de história do que o discurso historiográfico tradicional e
generalizante, herdado do século XIX.
Benjamin, porém, ao querer resgatar a imagem da cidade de Berlim na virada do
século, o faz não somente pelo detalhe, mas com o detalhe. Em outras palavras, as

particularidades da vida da criança berlinense não apenas constituem em si fragmentos

79Essa concepção aparece na Estética de Hegel e é retomada por Massaud Moisés. A criação literária:
poesia. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1987. p. 230 e ss.
174

através dos quais se vislumbra a cultura da cidade, mas o próprio texto da Infância em
Berlim se estrutura em fragmentos, cenas rápidas ou, nas palavras de Willi Bolle,
tableaux. O narrador dessa obra também não fornece os nexos entre os vários tableaux
que a formam. Estabelecer a coerência entre eles exige do leitor um esforço considerável
de interpretação. Parafraseando Fernando Pessoa, é como se ele dissesse: "Entender?
Entenda quem lê!". Com isso, o narrador permite que o leitor construa um sentido
próprio para o fato ou para a imagem que lhe põe sob os olhos e questiona a existência
de uma verdade histórica.
Além disso, o trabalho "historiográfico" da memória em Benjamin se faz por meio
do mais pessoal dos gêneros, a autobiografia. Essa escolha também relativiza a idéia de

uma "verdade" exterior ao indivíduo e ressalta que em qualquer esforço de memória,


tanto individual como coletiva, está sempre presente o trabalho da imaginação. Sob esse
aspecto, as concepções de Benjamin sobre memória e história aproximam-se do conceito
de imaginação histórica proposto por Hayden White em Meta-história e outras obras80.
Nesse sentido, o esforço de reconstrução da experiência da cadeia feito por
Graciliano Ramos em Memórias do cárcere é mais "benjaminiano" do que o de Jorge
Amado em Os subterrâneos da liberdade. Essa classificação é relativa, pois nenhum dos
dois escritores, ambos contemporâneos de Walter Benjamin, chegou a conhecer as idéias

do intelectual alemão para escrever essas obras. No entanto, se Benjamin "foi um dos
primeiros a explorar a terra incógnita da micro-história"81 como quer Willi Bolle,
Graciliano Ramos intuiu para escrever Memórias do cárcere que "uma verdade expressa
de relance nas fisionomias" e "boatos verossímeis" valiam mais do que as "verdades
convencionais e aparentes"82.
Assim, Graciliano escolheu resgatar o passado por meio da autobiografia.
Empregou a primeira pessoa, apesar de se incomodar com a pessoalidade que ela
conotaria. Se não constituiu um discurso tão fragmentário quanto os tableaux de
Benjamin, fez uso do fluxo de consciência, que rompe muitas vezes a cronologia e a
lógica do espaço, além de apagar os nexos entre os capítulos, o que acabou por fazer

80 V. a esse respeito o item 1 deste capítulo.


81 Willi Bolle. "Cidade e memória". In: Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em
Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p. 317.
82 MC, I. p. 9-10.
175

deles um conjunto de cenas justapostas. E o trabalho densamente literário de Graciliano


com a linguagem aproxima o texto das Memórias do cárcere de sua obra como
ficcionista. Lembrar é também imaginar; literalmente, "formar imagens".
Philippe Lejeune, em Le pacte autobiographique, definiu a autobiografia como um
gênero literário caracterizado pela relação entre algo interno ao discurso, o ponto de
vista, e algo externo a ele, a pessoa do autor. Segundo ele, não há autobiografia se não
for estabelecida no texto uma identidade de nome entre o autor e o narrador da obra. Para
Lejeune, a afirmação dessa identidade entre o narrador do discurso e aquele que o assina
pode ser chamado de "pacto autobiográfico", firmado entre autor e leitor. Ou seja: o
autor afirma que ele e o narrador são a mesma pessoa; o leitor acredita nisso, e os dois

"assinam" uma espécie de contrato.83


A autobiografia também apresenta para Lejeune um "pacto referencial", que ele
explicou da seguinte forma:

"Le pacte référentiel, dans le cas de l'autobiographie, est en général


coextensif au pacte autobiographique, difficile à dissocier, exactement,
comme le sujet de l'énonciation et celui de l'énoncé dans la première
personne. La formule en serait non plus 'Je soussigné', mais 'Je jure de dire la
vérité, toute la vérité, rien que la vérité'".84

É possível encontrar o momento em que se estabelece o "pacto autobiográfico" em


Memórias do cárcere. Ele acontece no capítulo-prefácio à obra, em que Graciliano
Ramos, o autor, expõe seus motivos para escrever o livro e se identifica com a primeira
pessoa que falará a partir daí. Philippe Lejeune mostrou, porém, que existe um tipo de
ambigüidade, específico da autobiografia em primeira pessoa, que está na distância que
separa o sujeito do enunciado do sujeito da enunciação. Quem é o "eu" que narra: o autor
ou o narrador, que é esse autor no passado? E como se pode afirmar que o eu do
enunciado não é mera criação do eu da enunciação?
Em Graciliano Ramos, essa ambigüidade alcança níveis ainda mais altos. O
narrador de Memórias do cárcere se desdobra em vários, assim como os seus tempos e
espaços. Graciliano ainda problematizou o pacto autobiográfico, pois, em nenhum

momento das Memórias, identificou expressamente o seu nome com o do narrador-


protagonista, chamado freqüentemente de "Fulano". Graciliano escreveu de certa forma

83 Philippe Lejeune. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975 (Coll. Poétique). p. 26-7.
84 Ibid., p. 36.
176

uma autobiografia que se desmantela enquanto gênero, e que vai se tornando


heterobiografia até um limite máximo que, se tivesse sido ultrapassado, o obrigaria
escrever um novo livro, em outro gênero.
Memórias do cárcere também põe em questão o pacto referencial. No capítulo-
prefácio, o autor afirma que não contará uma história verdadeira, mas apenas verossímil.
A caracterização dos personagens, o trabalho literário com a linguagem, a predominância
do fluxo de consciência na estruturação do discurso mergulham o leitor no imaginário.
Trata-se de uma verdade que duvida de si mesma.
Em Graciliano Ramos, o esforço de reconstituição da memória coletiva só acontece
por meio da memória biográfica. Isso acontece não só em Memórias do cárcere, mas

também em outras obras do escritor. É por meio da memória estruturada enquanto fluxo
de consciência que Luiz da Silva, o protagonista de Angústia, reconstrói não somente a
sua história, mas a de um grupo do qual fazia parte. Como afirmava o próprio Graciliano,
sua intenção ao escrever Angústia não tinha sido fazer romance psicológico, mas mostrar
a situação deplorável de um intelectual frustrado e pobre às voltas com o sistema numa
capital de província. Em Infância, algo semelhante acontece. Ao escutar a narrativa do
malandro José em Memórias do cárcere, Graciliano considerou que sua infância não
deveria ter sido muito melhor do que a dele e refletiu:

"Meu pai fora um violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a


lembrança deles me instigava a fazer um livro a respeito da bárbara educação
nordestina."85

Essas declarações mostram que o esforço autobiográfico de Infância teve uma


intenção maior de flagrar e registrar um tipo de "pedagogia nordestina" de que o autor
fora "vítima", assim como outros meninos e meninas que viveram infâncias semelhantes.
Além disso, Memórias do cárcere se constrói segundo um dos gêneros
memorialísticos, a autobiografia, o que não acontece com Os subterrâneos da liberdade.
Na primeira obra, a memória é o livro. Na segunda, ela é um dos elementos que vão

constituir o discurso ficcional.

No início da trilogia de Jorge Amado, são os personagens que lembram, e não o


narrador. No primeiro volume, sempre que um personagem novo é introduzido, as

85 MC, III. p. 222.


177

lembranças têm a função, interna à narrativa, de estabelecer um passado para os


personagens, apresentando-os ao leitor. Um exemplo disso é o capítulo de Os ásperos
tempos em que Mariana aparece pela primeira vez. Depois de dizer que o aniversário da
operária era no dia em que se passava a ação e contar sobre os preparativos para os
modestos festejos, o narrador emprega um flashback:

"Mariana recordará sempre a primeira 'batida' da polícia em sua casa.


Ela não havia completado mesmo quatorze anos e era franzina e irrequieta.
Os policiais apareceram pela madrugada e ela, através da porta entreaberta
do seu quarto, os via tirando livros da pequena estante [...]".86

A lembrança de Mariana serve, no contexto da obra, para definir seu caráter de


comunista.
Em outros momentos da trilogia, as recordações dos personagens têm a função de
estabelecer vínculos entre os diferentes círculos de personagens da narrativa ou entre
tempos diferentes da ação. É o que acontece quando o tenente Apolinário relembra, dos
campos de batalha da Espanha, a conversa que tivera com Mariana no Brasil, ou quando
Manuela, grávida, se recorda dos primeiros tempos de namoro com Paulo, cheios de
ternura e de sonhos87. Em ambos os casos, trata-se de referências a fatos internos à
trama.
À medida que o enredo de Os subterrâneos da liberdade se aproxima do final, a
estrutura e a função da memória se modificam. Em A luz no túnel, não só os personagens
começam a se recordar de fatos que ultrapassam sua "biografia" particular e alcançam
um nível mais geral do enredo, como também o narrador passa a assumir a função de

lembrar.
Assim, nos últimos dias de 1938, o banqueiro Costa Vale rememora praticamente
tudo o que acontecera até o momento em quase todas as frentes de ação da narrativa: a
parceria com os americanos na Empresa do Vale do Rio Salgado, os preparativos para o
casamento de Paulo Carneiro Macedo da Rocha com Rosinha da Torre, a situação
política internacional, um escândalo numa operação com algodão no qual se envolvera
Lucas Puccini, o lançamento da revista Perspectivas pelo arquiteto Marcos de Sousa88. O

narrador flagra seus pensamentos por meio do discurso indireto livre.

86 OSL, I. p. 62.
87 V. respectivamente OSL, II. p. 160-1 e 272.
88 OSL, III. p. 135 e ss.
178

No último capítulo desse volume, é a vez de o narrador "historiar" ou relembrar os


fatos imediatamente anteriores àqueles que serão narrados em seguida. A memória do
narrador, voltada aos acontecimentos da trama, começa a ganhar um tom mais geral e
abrangente:

"A polícia política, desde a queda de Zé Pedro e Carlos, andava numa


enorme atividade. Estava presente nas fábricas, batidas se sucediam em casas
de elementos suspeitos de ligações com os comunistas, algumas equipes de
pichadores tinham sido presas, os processos se sucediam no Tribunal de
Segurança e as sentenças a largos anos de prisão eram ditadas a cada dia."89

Essa memória do conjunto dos fatos, apresentada tanto pelo discurso indireto livre
(quando feita pelos personagens) quanto pelo discurso indireto (quando é de
responsabilidade do narrador), acompanha o mesmo processo de "coletivização" da

história individual de cada personagem na história dos grupos a que pertencem e da


unificação de suas consciências na voz aglutinadora do narrador, que acaba por se
identificar com a "voz do povo"90. Além disso, ela vai se aproximando cada vez mais do
estilo do discurso historiográfico tradicional, ainda que mantendo o seu caráter de ficção
romanesca, já que o narrador, ao longo da trilogia, concentra cada vez mais em suas
mãos as rédeas da narrativa, impondo-se, ao final, como a voz entre todas as vozes,
detentora da verdade sobre os fatos narrados.
Já Memórias do cárcere se constrói sobre o fio do paradoxo. A memória se
desdobra em muitas, como os tempos, os espaços e os narradores desse texto. Há um
autor que se lembra de um preso que ele foi, e um preso que rememora fatos anteriores à
sua prisão ou mesmo episódios relativos a ela.
No início da obra de Graciliano, as incursões da consciência pela memória
parecem querer resgatar a segurança que o narrador perdera ao deixar a vida fora da
cadeia. As lembranças são uma espécie de "porto seguro" para uma identidade que se
diluía à medida que se distanciava da liberdade. Elas se voltam assim para fatos
anteriores ao dia da prisão. Quando o narrador é detido e levado para o quartel do 20º
Batalhão em Maceió, ele relembra: "Estivera ali em 1930, envolvera-me estupidamente

numa conspiração besta com um coronel, um major e um comandante de polícia, e vinte

89 OSL, III. p. 92.


90 V. a esse repeito o Capitulo I, item I.6 desta dissertação.
179

e quatro horas depois achava-me preso e só"91. Procurando compreender sua situação
atual, ele a compara com uma acontecida anteriormente, para concluir: "Tudo se
desarticulava"92.
Tempos depois, na Ilha Grande, a lembrança recorrente, entre outras, é a viagem
para o Rio de Janeiro no porão do vapor Manaus. Por um lado, ela estabelece um vínculo
entre dois momentos diferentes da narrativa, constituindo um processo de referência
interna ao enredo. É como se a distância entre o narrador e o mundo exterior já tivesse se
tornado tão grande que o passado se circunscrevesse à experiência da prisão. Ou, de certa
forma, trata-se de um reconhecimento de que a identidade do narrador antes de ser detido
desaparecera, dando lugar a um outro, que é o narrador dentro da cadeia.

Por outro lado, a recordação de fatos do enredo é, como a rememoração de


acontecimentos anteriores a ele, analógica. O que está sendo vivido pelo narrador no
momento faz com que ele se lembre de algo do passado que de alguma forma se
relaciona ao presente do enunciado. "Realmente me achava, como no porão do Manaus,
atacado pela sitiofobia: pensar em alimento me dava nojo"93, pensava ele na Colônia
Correcional.
Esse exemplo simples mostra o padrão dos fluxos de memória no "livro da cadeia"
de Graciliano. No navio, os sons de piano lembram uma viagem ao Rio feita pelo

narrador muitos anos antes. O "pátio branco" da Colônia Correcional faz com que o
narrador se recorde da própria infância: "dei um salto para trás, vi-me pequeno, a correr
num pátio branco de fazenda sertaneja, a subir na porteira do curral, a ouvir os bodes
bodejarem no chiqueiro"94. A perna doente que o impede de andar traz de volta a
lembrança do hospital. E o medo de não atender a um pedido do soldado Alfeu na Ilha
Grande revive no pensamento uma noite de lua em que o narrador fugira de um marido
enganado que nem sabia se o tinha visto.
Se, em Os subterrâneos da liberdade, a memória tinha função eminentemente
narrativa, pois "costurava" episódios do enredo para constituir a "grande" história ali
narrada, em Memórias do cárcere ela se dá aos "cacos" e impõe mais inquietações do

91 MC, I. p. 29.
92 Ibid.
93 MC, III. p. 134.
94 Ibid., p. 49.
180

que fornece respostas. Qual seria, por exemplo, a relação entre o episódio do marido
traído e o pedido do soldado Alfeu para que o narrador escrevesse por ele um discurso de
homenagem ao aniversário do diretor do presídio? O sentimento de medo é a semelhança
declarada entre os dois fatos. Mas haveria outras? E qual a relação entre a correria
infantil por entre os bodes da fazenda e a presença do narrador no pátio branco da
Colônia?
Walter Benjamin, para falar da memória coletiva, utiliza uma metáfora
arqueológica. No fragmento "Escavando e recordando", diz ele que "a memória não é um
instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a
vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas"95. Para

Benjamin, aquilo que compõe a memória deve ser observado com insistência para que
possa revelar um sentido oculto à primeira vista e que se encontra por baixo dos fatos.
Estes, segundo o escritor,

"nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa


entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens que,
desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como
preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a
torsos na galeria do colecionador."96

Os restos do passado, seus tesouros em ruína, seus objetos fragmentados é que


guardam o sentido que o arqueólogo tanto procura.
O narrador de Memórias do cárcere, ao apresentar para o leitor lembranças que se
justapõem, parece querer mostrar que, para além dos fatos que elas resgatam, existe um
sentido, que ele não enuncia expressamente e que cabe ao leitor interpretar. O pedido do
soldado Alfeu e a recordação da noite de fuga, por exemplo, falam não só de medo, mas
de traição, de uma leviandade que poderia ter más conseqüências, da apreciação pública
sobre uma ação que teoricamente ficaria em segredo. A lembrança do pátio branco da
fazenda sertaneja parece identificar presos e crianças como vítimas de uma violência
semelhante, de um rebaixamento que atinge a animalização, tocando em problemas que a
situação da cadeia suscitava, mas que não se esgotavam no espaço entre seus muros.

Assim como para Benjamin, em Memórias do cárcere a história só se constrói a


partir da biografia, da memória individual, que ganha universalidade de sentido à medida

95 Walter Benjamin. "Imagens do pensamento". In: Rua de mão única. p. 239.


96 Ibid.
181

que é comparada com outros fatos e situações. Ecléa Bosi, em Memória e sociedade,
lembra que a ligação entre memória individual e memória coletiva já existia entre os
gregos, encarnada na figura divina de Mnemosyne, mãe das Musas, que "dispensa a seus
eleitos uma onisciência do tipo divinatório, não de seu passado individual, mas do
passado em geral, do tempo antigo"97.
A autora também explica, a partir de conceitos de Frederic Charles Bartlett, que a
memória, mesmo a autobiográfica, é elaboração grupal, porque passa por um processo de
"convencionalização":

"a 'matéria-prima' da recordação não aflora em estado puro na linguagem do


falante que lembra; ela é tratada, às vezes estilizada, pelo ponto de vista
cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado."98

Em Graciliano Ramos, a consciência de que se quer resgatar a memória de um


grupo por meio do discurso autobiográfico resulta num texto que problematiza o eu e o
outro o tempo todo e chega a questionar até mesmo se a voz do narrador tem de ser a
única a ser ouvida. O próprio narrador é um outro.
Graciliano também sabia que a "veracidade" de um texto de memórias é apenas
convencional e que o esforço de repensar e refazer as experiências do passado implica
necessariamente o uso da imaginação.
No ensaio "Sobre lembranças encobridoras" (1899), Freud mostra que o processo

de formação das lembranças pela consciência é semelhante à elaboração onírica. Assim


como os sonhos, as recordações são construídas a partir da condensação e do
deslocamento. Sentimentos em relação a pessoas, por exemplo, são deslocados para
outros objetos, assim como características de vários objetos, ligadas a algum tipo de
afeto, são condensadas num único. O psicanalista afirma ainda que as pessoas em geral
"constróem tais coisas inconscientemente ⎯ quase como trabalhos de ficção"99. Assim,

esse tipo de lembrança não constituiria uma reprodução da impressão original na

97 Ecléa Bosi. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 4.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p. 89.
98 Ecléa Bosi. Memória e sociedade: lembranças de velhos. p. 64.
99 Sigmund Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Volume III (1893-1899). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 346. A respeito da relação entre memória e
ficção v. também Adélia Bezerra de Meneses. "Memória e ficção II (Memória: matéria de mimese)". In:
Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 143-160.
182

consciência do sujeito, mas um "traço de memória da infância [...] traduzido em uma


forma plástica e visual numa época posterior ⎯ a época do despertar da lembrança"100.

Por fim, Freud chega a duvidar da existência de lembranças "fiéis" aos fatos
vividos:

"Pode-se, na verdade, questionar se temos mesmo alguma lembrança da


nossa infância: lembranças relativas a nossa infância podem ser tudo o que
possuímos. Nossas lembranças infantis mostram-nos nossos primeiros anos
não como eles foram, mas como nos apareceram nos períodos posteriores em
que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos do despertar, as
lembranças infantis, como nos acostumamos a dizer, não emergiram; elas
foram formadas nessa época. E inúmeros motivos, sem nenhuma referência à
precisão histórica, participam de sua formação, assim como da seleção das
próprias lembranças."101

Apesar de Freud se referir, no ensaio citado, à memória individual e às lembranças


relativas à infância do indivíduo, seu questionamento também se aplica a qualquer tipo
de memória, individual ou coletiva. Ao rememorar fatos de sua vida, não estaria o sujeito
que lembra reelaborando esses fatos numa forma nova e condicionada pelo presente? Ao
narrar acontecimentos do passado, não estaria o historiador recriando esses
acontecimentos segundo uma perspectiva particular e determinada pelo momento em que
elabora seu discurso?
Por meio do fragmento ou de um movimento totalizante, através de uma
consciência ou de muitas, sugerindo ou explicando, duvidando ou afirmando, Graciliano
Ramos e Jorge Amado problematizaram, em Memórias do cárcere e em Os subterrâneos
da liberdade, as complexas relações entre ficção, memória e história que qualquer
narrador, seja ele historiador ou ficcionista, tem de enfrentar ao elaborar o seu discurso.
Jorge optou pelo romance histórico; Graciliano, pela autobiografia. Nesses relatos sobre
o final dos anos 30, aparecem também retratos do início dos anos 50. Eles mostram as
preocupações, os anseios, a visão sobre o que era e o que tinha sido desses escritores tão
diferentes, ligados pela atuação política. Imaginando o passado, Jorge Amado e
Graciliano Ramos registraram o presente e projetaram um futuro.

100 Ibid., p. 353.


101 Sigmund Freud. "Sobre lembranças encobridoras". In: Op. cit., vol.III, p. 354, grifos do autor.
183

IV. LEITORES / LEITURAS

"A massa ainda comerá do biscoito fino que


fabrico."
(Oswald de Andrade)

A contraparte de um texto é o seu leitor. "Ler é escrever também (ainda que


imaginariamente)", disse Silviano Santiago1.
O historiador norte-americano Robert Darnton mostrou, em ensaio sobre os leitores
de Rousseau no século XVIII, que a resposta do público aos textos que lhe são
oferecidos é um retrato desse mesmo público e de sua cultura:

"A leitura ainda permanece um mistério, embora a façamos todos os dias.


[...] se pudéssemos realmente compreendê-la, se pudéssemos compreender
como elaboramos o significado a partir de pequenas figuras impressas numa
página, poderíamos começar a penetrar num mistério mais profundo ⎯ saber
como as pessoas se orientam no mundo de símbolos tecido em torno deles
por sua cultura. Mesmo assim, não poderíamos presumir que sabemos a
maneira como outros povos leram, em outras épocas e em outros lugares.
Porque uma história ou antropologia da leitura nos obrigaria a confrontar o
que há de diverso em mentalidades estranhas à nossa."2

A repercussão à publicação de Memórias do cárcere e de Os subterrâneos da


liberdade ficou registrada nos jornais. A obra de Graciliano Ramos saiu do prelo em 27
de outubro de 1953, dia em que o autor, morto em março do mesmo ano, completaria
sessenta e um anos. A trilogia de Jorge Amado veio a público logo depois, em maio de

1954. De novembro de 1953 até abril de 1954, inúmeras leituras de Memórias do cárcere
foram publicadas3. A obra foi até mesmo considerada "o livro do momento" pelo
periódico Semana literária, que noticiou seu aparecimento4. O lançamento de Os
subterrâneos da liberdade também foi seguido de uma discussão razoavelmente ampla a
seu respeito pela imprensa, entre críticos de diferentes posições políticas5.
Em 15 de dezembro de 1953, portanto quase dois meses após o lançamento de
Memórias do cárcere, a Livraria José Olympio, editora de Graciliano, elaborou um

1 "O teorema de Walnice e sua recíproca". In: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 (Col. Literatura e Teoria Literária, 44). p. 72.
2 Robert Darnton. "Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade romântica". In: O
grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal,
1986. p. 277.
3 O Arquivo Graciliano Ramos, mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo (IEB/USP) possui originais desses artigos disponíveis para consulta.
4 "O livro do momento". In: Semana literária. S.l., [1953?], p. 24.
5 A respeito da repercussão de Os subterrâneos da liberdade e outras obras de Jorge Amado anteriores a
Gabriela, cravo e canela (1958), v. Alfredo Wagner Berno de Almeida. Jorge Amado: política e
literatura. Rio de Janeiro: Campos, 1979.
184

boletim que comentava a "extraordinária repercussão crítica e de livraria" que vinha


obtendo "a grande obra póstuma de Graciliano Ramos"6. Ele noticiava que a primeira
edição do livro, de 10.000 exemplares, já estava se esgotando e transcrevia fragmentos
de artigos sobre Memórias do cárcere recolhidos na imprensa.
Grande parte desses artigos ressaltava a "fidelidade" de Graciliano aos fatos
vividos e "sinceridade" ao elaborar seu próprio retrato. A polêmica mais importante
estava ligada a questões políticas. Luis Delgado viu na obra "uma série de documentos
psicológicos" e uma "outra parte [...] de assunto sociológico". Mais adiante, Delgado
afirmou o interesse de Memórias do cárcere porque "em Graciliano Ramos, apesar de
seus preconceitos, de suas intenções de partidário, haveria certo fundo de isenção, de

lealdade". No mesmo boletim, José Lins do Rego se oporia ao suposto partidarismo do


amigo recém-falecido:

"Eu não considero Graciliano um escritor comunista, e nunca o considerei


como tal. Eis porque seu livro de memórias é importante, aliás tão importante
como tudo o que saiu da pena deste grande escritor. Graciliano foi apenas um
homem livre, e os quatro volumes das Memórias do cárcere são resultado de
um profundo sentimento humano, pois Graciliano faz parte daqueles
escritores que nunca misturaram a política com a literatura."7

Alguns críticos foram mais longe do que José Lins, questionando até mesmo o
comunismo do homem Graciliano, e não somente o do escritor. O jornalista Costa Rego,
colega de trabalho de Graciliano em seus últimos anos de vida, se perguntava, após tecer
considerações gerais sobre o "livro da cadeia":

"Além disso, teria sido ele um comunista? [...] Parecia-me unicamente um


introvertido, que não gostasse do capitalismo como não gostava do
solecismo. Agora, lendo-lhe a obra póstuma, encontro uma passagem [...], na
qual, descrevendo o empenho de abreviar certa visita, acrescentava: 'Pedia a
Deus que ele se retirasse logo...'.
Assim, esse estranho comunista mantinha relações com Deus."8

O raciocínio de Costa Rego é simplista. Confunde o apelo verbal à figura de Deus,


tão próprio da cultura brasileira, com a manifestação de uma crença sincera em sua
existência, algo que Graciliano, ao que se sabe, não afirmava. Para o jornalista, além

6 A vida dos livros, nº 194. Rio de Janeiro,15-12-1953. Mimeografado.


7 Opinião de Roquette Pinto. Ibid.
8 Costa Rego. "Um estranho comunista". In: 1º Caderno. [Rio de Janeiro], 7-10-1953.
185

disso, o narrador de Memórias do cárcere, o Graciliano do enunciado, era o autor, o


Graciliano da enunciação. Mas essa relação é problemática, como já foi visto.
Serra Barros, em resenha para o Diário de Minas, seguiu a mesma linha de
raciocínio. Tomou declarações do narrador de Memórias do cárcere, supostamente
Graciliano Ramos em 1936, quando o escritor ainda não era membro do partido, como se
fossem do cidadão Graciliano nos anos após 1945, data de seu ingresso nos quadros
partidários, afirmando: "Graciliano Ramos foi sempre um suspeito comunista, nada
mais"9. E depois: "Ora, o comunismo é contra o capitalismo, mas ser contra o
capitalismo não quer dizer que sejamos comunistas. Há semelhanças em alguns pontos
ou objetivos, mas nada se pode julgar."10

Outros autores, um pouco mais cuidadosos, viram na aversão de Graciliano à


"literatura de cartaz" e no seu apego à obra literária como realização artística a razão de
Memórias do cárcere não ter se tornado um panfleto. Para Oscar Mendes,

"[...] não se encontram neste livro manifestações explícitas de simpatia


grande, de devotamento à causa, de exaltação do comunismo. Recusa-se a
fazer conferências partidárias na prisão, o que provoca hostilidade e
isolamento em torno de sua pessoa. O retrato que traça de muitos de seus
companheiros comunistas não é nada favorável."11

Para Hildon Rocha,

"Manteve-se isento e independente ⎯ digamos, imparcial ⎯ procurando


resguardar a arte e a verdade humana, excluindo-as da órbita dos seus
impulsos de homem comprometido ideologicamente."12

A decantada "imparcialidade" de Graciliano Ramos em Memórias do cárcere

agradou a direita e irritou o partido. Enquanto Henrique Pongetti dizia que seu
"anticomunismo" rendia homenagens ao escritor, porque o que Graciliano tinha contado
a respeito das prisões era "aquilo que um patriota de quépi ou de boina diria com a
mesma dolorosa veemência"13, Oswald de Andrade se indignava por ouvir dizer que o
amigo se abstivera de publicar sua obra sobre a cadeia em vida "por imposição político-
partidária"14.

9 Serra Barros. "Memórias do cárcere". In: Diário de Minas. Belo Horizonte, 29-11-1953.
10 Ibid.
11 Oscar Mendes. "Memórias (I)". In: O Diário. Belo Horizonte, 31-1-1954.
12 Hildon Rocha. "Concluindo sobre as 'Memórias do cárcere'". In: A noite. Rio de Janeiro, 8-3-1954.
13 Henrique Pongetti. "Graciliano, o morto que fala". In: O Globo. Rio de Janeiro, 5-11-1953.
14 Oswald de Andrade. "O encarcerado". In: Correio da manhã. Rio de Janeiro, 10-11-1953.
186

As restrições do PCB a Memórias do cárcere realmente existiram e resultaram até


mesmo num questionamento a respeito da fidelidade do texto da primeira edição à última
vontade do autor. A polêmica foi iniciada ainda em 1953 pelo crítico Wilson Martins e
continuou até os anos 90. Martins acreditava que a versão publicada da obra de
Graciliano tinha sofrido intervenção partidária. Clara Ramos, filha do escritor,
analisando originais datilografados da obra que continham versões diferentes do texto,
manteve a questão, apoiando Martins15. O caso rendeu divergências familiares, já que a
publicação do texto por José Olympio tinha sido supervisionada pela mãe de Clara,
Heloísa Ramos, e por seu irmão Ricardo.
Polêmica à parte, a repercussão das Memórias do cárcere nos jornais mostrou com

clareza a polarização ideológica das leituras que se fizeram da obra. A crítica comentou,
é certo, alguns de seus aspectos formais, como a agudeza na caracterização dos
personagens ou a posição do narrador frente aos fatos do enredo, em que vários
observaram um certo "aprofundamento psicológico", para eles próprio do estilo do autor.
Mas a maioria dos artigos se manteve no comentário sobre o conteúdo de Memórias do
cárcere, como a ignomínia sofrida por Graciliano ao ser preso sem processo e a
precariedade dos cárceres brasileiros. Como conclusão freqüente, a constatação de que o
"livro da cadeia" reafirmava a individualidade de Graciliano Ramos como escritor e

como homem, o que de alguma forma o opunha às diretrizes uniformizantes do seu


partido político. Por sua vez, o PCB, ao menos no que foi possível verificar, silenciou
publicamente sobre o aparecimento das Memórias. A opinião do partido sobre o livro
ficou conhecida de modo oficioso, por meio de depoimentos de militantes ou ex-
militantes, amigos e familiares do autor de Vidas secas.16
No caso do lançamento de Os subterrâneos da liberdade, a reação do público
também ficou mais voltada aos aspectos políticos da obra do que propriamente às suas
qualidades literárias. Alfredo Wagner Berno de Almeida, que resenhou as principais
análises da obra de Jorge Amado na época de sua publicação, comentou que,

15 A respeito dessa polêmica, v. "Mesa-Redonda". In: José Carlos Garbuglio et alii. Op. cit. p. 420-1. V.
também Clara Ramos. "Graciliano reescrito?". In: Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 252-262 e, da mesma autora, Cadeia. Rio de Janeiro: José
Olympio/Secretaria de Cultura, 1992.
16 V. a esse respeito o Capítulo II, item II.1 desta dissertação.
187

"Feito o lançamento, instaura-se uma discussão que, embora já houvesse


espocado timidamente em análises relativas à obra de Amado, ainda não se
consolidara como um recurso idôneo para a compreensão de determinado
momento de sua trajetória e quiçá da história da literatura brasileira. Ela
concerne à aplicação do realismo socialista."17

A apreciação do gênero dos romances de Jorge Amado, no entanto, era a face


aparente de uma polarização político-ideológica que envolvia a intelectualidade da
época. Em julho de 1954, dois meses após a publicação de Os subterrâneos da
liberdade, o periódico Imprensa popular, ligado aos comunistas, promoveu uma
polêmica sobre o livro ao estilo de uma tribuna livre, abrindo espaço para leitores
indiferenciados. A obra foi qualificada como "prosa de extraordinária beleza",
"exuberante" e "extraordinária", o que demonstrava a sintonia entre esses intérpretes e os

princípios estéticos defendidos pelo partido.


Pedro Motta Lima, por exemplo, viu em Os subterrâneos da liberdade a expressão
de uma "consciência do papel do escritor a serviço da classe operária e do povo" e uma
recusa ao ocultamento da tendência ideológica. Motta Lima ressaltou em seu artigo que

"a tendência é o selo obrigatório, que não falta embora tentem ocultá-lo
quando se trata de tendência inconfessável, nem mesmo no abstracionismo,
no surrealismo aparentemente delirante, nas fugas oníricas, em todo o
aparente apoliticismo em arte e literatura"18.

E concluiu: "Fundamentalmente, [Jorge Amado mostrou em Os subterrâneos da


liberdade] a qualidade [...] de escritor de partido"19.
A repercussão da trilogia de Jorge chegou até mesmo a alguns países estrangeiros,
como a Argentina e a União Soviética. A propósito da tradução russa de Os subterrâneos
da liberdade, saída no mesmo ano da edição brasileira, o Pravda publicou artigos de
Nikolai Gabinski, Vera Kuteischikova e Inna Tinianova. Gabinski alcunhou a obra de
"grande vitória da literatura progressista no mundo"20. Inna Tinianova viu como tema de
toda a produção de Jorge Amado, desde sua estréia, "a verdade sobre a vida do povo do
Brasil, sobre seus sofrimentos e sua luta". A respeito de Os subterrâneos da liberdade, a
autora se perguntava: "Por que nos parece tão monolítico e tão variado o novo livro de

17 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit. p. 218.


18 Pedro Motta Lima. "'Os subterrâneos da liberdade', um grande romance". In: José de Barros Martins
(ed.). Jorge Amado: trinta anos de literatura. São Paulo: Martins, 1961. p. 237.
19 Ibid.
20 Nikolai Gabinski. [Sem título]. In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 239.
188

Jorge Amado [...]? Por que vemos nele uma enciclopédia da vida? Por que a primeira
edição brasileira esgotou-se numa semana em São Paulo e somente a segunda edição
chegou ao Rio?" A resposta veio em seguida: "A força deste livro reside em que o autor
penetra a essência dos problemas históricos da época"21.
Ainda que elogiado por seus pares, alguns esquerdistas como Dalcídio Jurandir
enxergaram "falhas" na nova obra de Jorge Amado. Companheiro de partido de Jorge,
Jurandir criticou, por exemplo, a falta de "verdade" histórica em alguns episódios do
romance, como no da reconstituição da greve de Santos:

"[...] a ação do romance [...] desdobra-se em dois episódios culminantes que


não se presume apenas do romance mas da realidade brasileira: a greve de
Santos e a luta camponesa no Vale do rio Salgado. Correspondem à realidade
'historicamente concreta' esses dois episódios? Penso que não. O da greve de
Santos aconteceu sim, mas em 1946, o romancista recuou o fato para 1938. A
luta do rio Salgado não ocorreu, o autor antecipou-a."22

Ainda assim, o intérprete considerou Os subterrâneos da liberdade uma "boa


arma" na luta revolucionária, um "sopro de ar puro no meio de tanto romance que só
retrata a degradação, só avilta o homem, só procura caluniar a vida, desfigurando-a
através de um naturalismo estúpido ou de um virtuosismo literário vazio e inumano"23.
Para Jurandir, a qualidade da trilogia de Jorge residia em seu caráter pioneiro: era talvez
a primeira realização de fôlego do realismo socialista no Brasil, ainda que tivesse fugido
de suas regras sob certos aspectos.
Jorge Amado também encontrou críticas negativas a seu novo trabalho entre
aqueles que discordavam das propostas estéticas ou políticas do partido comunista. Para
esses críticos, as qualidades literárias que pudessem ser encontradas na obra de Jorge
sucumbiam diante de seu sectarismo. Álvaro Augusto Lopes escreveu no jornal A
tribuna, de Santos, ainda em 1954, que enxergava em Os subterrâneos da liberdade "um
idealismo que não recua em face do martírio", semelhante ao "dos primeiros cristãos do
tempo das perseguições". O crítico foi taxativo a respeito da obra: "Em 'Os subterrâneos
da Liberdade' há menos literatura do que labor panfletário...".24

21 Inna Tinianova. [Sem título]. In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 243-4.
22 Dalcídio Jurandir. "Conflitos e personagens no romance". Apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op.
cit. p. 223. Publicado em Imprensa popular. Rio de Janeiro, 19-9-1954.
23 Id. [Sem título]. In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 238.
24 In: José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 239-40.
189

O crescente partidarismo dos livros de Jorge já vinha sendo atacado pela crítica
desde o lançamento de Seara vermelha (1946). Em 1962, comentando a pretensão de
alguns escritores em geral, e de Jorge Amado em particular, de fazer "literatura
socialista", Otto Maria Carpeaux acusou o autor de Seara vermelha de ter feito uma
leitura apressada de Marx e Engels, cujo resultado seria a "falsa literatura marxista" de
suas obras de alto teor político. Chamando o trabalho do escritor baiano de "literatura
mal amada" ou de "subliteratura", o crítico foi sentencioso: "para representar a luta de
classes, não basta cometer erros de gramática e escrever palavrões"25.
A reação do público a Os subterrâneos da liberdade foi, assim, inversa à
repercussão de Memórias do cárcere. O partido comunista enxergou no livro de

Graciliano Ramos uma traição aos princípios estéticos do partido e, por extensão, ao
próprio partido e à causa revolucionária. Jorge Amado, por outro lado, reafirmou com
sua trilogia sobre o Estado Novo a condição de maior escritor comunista do país, porta-
voz da revolução em terras brasileiras. É preciso lembrar que, enquanto se encontrava no
exílio, Jorge fora agraciado com o Prêmio Stalin da Paz de 1952 pelo conjunto de sua
obra, o que conferiu a ele uma aura de escritor oficial do partido. Por outro lado, a
intelectualidade de direita ou contrária às posições comunistas louvava a obra de
Graciliano por sua suposta imparcialidade e "apego à verdade", enquanto repudiava a

produção recente de Jorge Amado por seu "sectarismo".


A polêmica sobre os dois autores resgata um momento da história brasileira em
que um escritor valia não apenas pelo modo como escrevia ou pelos temas que abordava
em suas obras, mas principalmente por sua atuação política. A guerra fria travada lá fora
pelas grandes potências tornava-se, no Brasil, uma guerra de idéias e de projetos para o
país. Entre 1953 e 1954, intensificou-se a campanha de oposição ao governo Vargas, que
acabou por resultar no suicídio do presidente, em agosto de 1954. A política fervilhava
na boca do cidadão comum. Carlos Lacerda, que capitaneava a oposição, chegou mesmo
a utilizar Memórias do cárcere como argumento contra o chefe do governo. Num artigo
na Tribuna da imprensa de dezembro de 1953, ele comentou o livro de Graciliano,

usando-o como libelo anti-varguista:

25 Apud Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit. p. 208-9.


190

"A revolta, o nojo e a ira justa que nos empolgam na evocação dos
crimes consentidos pelo sr. Vargas, e dos quais jamais se penitenciou, são
inevitáveis. [...] o Brasil viveu cenas em nada destoantes dos horrores
impostos à Alemanha e à Rússia pelas ditaduras com que namorou e namora
o sr. Getúlio Vargas, criminoso impune e principal responsável pela rapsódia
de afrontas que constitui essas 'Memórias do cárcere'.
........................................
Na hora de sua morte, o sr. Getúlio Vargas há de sentir o remorso das
infâmias praticadas, com o seu consentimento e em seu proveito, contra o
gênero humano, tal como as descreve Graciliano Ramos.
Tomara que o atormentem essas visões do inferno a que ele condenou
o escritor e, com ele, tantas criaturas."26

A política extravasava a literatura.


Na base dessas leituras, porém, e quase que à revelia dos próprios leitores, estava
uma questão de forma. Embora se aproximassem quanto ao tema tratado, Memórias do
cárcere e Os subterrâneos da liberdade eram radicalmente diferentes em suas estruturas
e linguagem.
Em Graciliano Ramos, a busca da melhor maneira de narrar os episódios da prisão
rendeu, como em toda a sua obra, um texto mais trabalhado e complexo. Graciliano,
porém, escrevia para um país de analfabetos, onde o público leitor era (e continua sendo)
bastante reduzido. Durante toda a sua vida de escritor, Graciliano se preocupou com sua
relação com o público, chegando até mesmo a se penitenciar por não conseguir atingir
um número maior de pessoas com seus livros. Em Memórias do cárcere, o narrador se
refere várias vezes ao problema, chegando a afirmar que Angústia não venderia cem
exemplares.27
O "biscoito fino" de Graciliano, para usar uma expressão de Oswald de Andrade,

não era para todos os paladares. O escritor alagoano se recusou a vida inteira a abrir mão
do trabalho literário fosse pelo que fosse. Graciliano escrevia e reescrevia seus textos,
alterando-os, eliminando o que considerava supérfluo, modificando até mesmo o registro
de linguagem utilizado neles. O romance São Bernardo, por exemplo, que começou
como um conto escrito ainda nos anos 20 e intitulado "A carta", foi totalmente reescrito,
depois de pronto, na linguagem de Paulo Honório, segundo o próprio autor28.

26 Carlos Lacerda. "Memórias do cárcere". In: Tribuna da imprensa. Rio de Janeiro, 5/6-12-1953.
27 MC, IV. p. 83.
28 A informação está em uma carta de Graciliano à esposa Heloísa. In: José Carlos Garbuglio et alii. Op.
cit., p.235.
191

Jorge Amado, por sua vez, sempre pareceu buscar a direção oposta. No início de
sua carreira, escrevendo quase que um livro por ano, pouca atenção dedicava à forma de
seus romances. Falando a respeito de Os subterrâneos da liberdade em entrevista a Alice
Raillard, Jorge comentaria:

"[...] é um romance alentado. Sua forma não me agrada em nada, é um


romance que eu escrevia do jeito que vinha, sem me preocupar muito com o
estilo; o que mais me interessava era o que eu escrevia, o conteúdo muito
mais do que a forma."

No entanto, segundo ele próprio, a elaboração do livro foi para ele uma "aula de
romance":

"Em termos de concepção romanesca, de narração, aprendi muito com ele


[...]. Tive muito trabalho montando um universo muito grande, onde
coexistem pessoas de classes sociais diferentes, desde a burguesia até o povo
mais pobre."29

Pedro Motta Lima também aponta uma mudança na maneira de escrever do amigo
Jorge Amado a partir de Os subterrâneos da liberdade:

"O romancista desenvolveu extraordinariamente sua técnica, passou a


considerar mais o ofício, revela uma paciência de artífice, reconhecendo a
velha e provada necessidade de 'suar', inseparável de toda obra duradoura.
[...] há três anos, lá na Europa, ele confidenciou que estava sentindo a
necessidade de refazer duas e mais vezes determinadas páginas ou capítulos.
[...] Processo bem diferente daquele que leva a obras de afogadilho, escritas
por um menino prodígio em trinta dias."30

O aprimoramento da técnica narrativa em Os subterrâneos da liberdade não


significou, porém, maior complexidade formal ou de linguagem. O livro se oferece à
leitura sem apresentar maiores dificuldades de compreensão ou necessidade de
interpretações mais detidas ou cuidadosas. Para Jorge Amado, que assumia o rótulo de
escritor comunista, a simplificação da forma era uma meta a atingir, não importando o
quanto de "suor", muito ou pouco, fosse vertido na composição das obras. O objetivo
dos escritores do partido era "escrever sobre o povo, para o povo". A linguagem
complexa e hermética das vanguardas não servia para eles, pois, se a adotassem, só
seriam compreendidos pela elite cultural e econômica que queriam justamente combater.

29 Alice Raillard. Op. cit. p. 136.


30 Pedro Motta Lima. Op. cit. p. 236.
192

No ensaio "O teorema de Walnice e sua recíproca", Silviano Santiago procurou


apresentar de modo sintético a complexa dialética que existe entre quantidade de leitores
e qualidade artística das obras literárias no Brasil. Silviano mostrou que, para os
modernistas da primeira fase, não caberia haver um aviltamento da qualidade por parte
do produtor de arte. Eles acreditavam que o caminho era esperar por uma "melhoria
progressiva do público leitor", que incluiria a democratização e o aperfeiçoamento da
educação no país, para que esse público pudesse, um dia, "fazer jus aos critérios de
qualidade impostos e exigidos pelo artista"31.
Para Silviano, esta seria uma concepção elitista de arte. No entanto, segundo o
crítico,

"O elitismo artístico [só] começa a ser nefasto no momento em que a obra de
arte não pode abdicar de uma [...] de suas responsabilidades para com o
público: o da sua formação. Há momentos históricos [...] em que ao artista
cabe a função de ser o principal responsável pelo aprimoramento intelectual
de um público cada vez mais amplo".32

Mas Silviano também não defende a "popularização" da arte e da cultura a


qualquer preço. Comentando os efeitos dos meios de comunicação de massa,
especialmente da televisão, sobre o público, o ensaísta afirmou que "o silêncio da
resposta (isto é, da leitura) é a morte da obra de arte". A televisão, ocupando um espaço
cada vez mais importante na vida dos brasileiros a partir da década de 70, teria se
estabelecido como um veículo "popular" e ao mesmo tempo "autoritário", pois não
deixaria os seus espectadores falarem e não permitiria o diálogo entre a obra e o leitor33.
O texto de Silviano Santiago constituiu-se como resposta a um ensaio de Walnice
Nogueira Galvão a respeito de Jorge Amado, escrito em 1973 a propósito do lançamento
de Teresa Batista, cansada de guerra (1972). Nele, Walnice criticou duramente o
escritor baiano por considerá-lo "dependente do mercado" de livros e, portanto, do gosto
do público:

"Se o escritor é comandado pelo gosto do mercado, sua obra não pode
ir contra o gosto do mercado, nem como forma nem como idéias. Não pode
ser nova, já nasce velha. [...]
A ficção comandada pelo gosto do mercado mais amplo está proibida
de inovar, pois a inovação cria dificuldades de leitura e por isso se destina a

31 Silviano Santiago. "O teorema de Walnice e sua recíproca". Op. cit. p. 73.
32 Silviano Santiago. "O teorema de Walnice e sua recíproca".
33 Ibid., p. 72.
193

um público minúsculo de iniciados. [...] A ficção ao gosto do mercado tem


que patinhar no velho discurso realista tão característico dos best-sellers,
onde a narrativa flui sem anzóis que enredem a atenção do leitor no próprio
discurso, ou na matéria narrada que não pode ser perigosa."34

A autora completou ainda que, nessas obras, a função crítica da literatura fica
amordaçada, pois elas jamais se opõem ao sistema social, político e cultural vigente;
apenas o reforçam.35
Complementando o raciocínio de Walnice, Silviano Santiago disse no ensaio
citado que,

"Se as obras recentes de Jorge Amado são fracas, é porque ele, escritor
político, consciente de que uma das tarefas da obra de arte é a formação do
público, não contribui positivamente para se chegar a tal fim. A sua
concepção de populismo [...] mascara o velho preconceito de que tudo que
existe no povo é bom. Preconceito que deixa o proletário, primeiro, contente
com com o imobilismo sócio-político da sociedade brasileira, segundo, auto-
suficiente numa nação em que sofre as piores formas de injustiça e, terceiro,
orgulhoso por ser a força maniqueísta do Bem numa sociedade tomada pelos
ricos e pelo Mal. As constantes soluções sobrenaturais, embebidas em
sincretismo religioso, para conflitos sociais e concretos, encontradas também
nos seus romances, apontam para o irracionalismo político, para a ausência
de visão lúcida e racional sobre o autoritarismo do antagonista."36

Em sua carreira literária, Graciliano Ramos aproximou-se cada vez mais da


complexidade e da originalidade, embora não se considerasse modernista como os
escritores da década de 20 e repudiasse a idéia de que o emprego de traços estéticos de
vanguarda significasse necessariamente qualidade em literatura. Com isso, o escritor se
distanciou a princípio do grande público. Enquanto Graciliano ainda vivia, o "sucesso
editorial" de seus livros ficou restrito aos grupos de intelectuais que liam e apreciavam
sua obra. Irritado com a resistência dos herdeiros de Graciliano em modificar o texto de
Memórias do cárcere sob a direção do partido, Maurício Grabois chegou mesmo a
comentar: "Daqui a dez anos, ninguém vai saber quem foi Graciliano Ramos."37 Ocorreu
o inverso. Graciliano foi sendo cada vez mais lido e apreciado depois de sua morte.
O caminho de Jorge Amado foi diferente. Ele sempre procurou falar diretamente a
um número cada vez maior de leitores, embora isso pudesse significar na maioria das

34 Walnice Nogueira Galvão. "Amado: respeitoso, respeitável". In: Saco de gatos: ensaios críticos. São
Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. p. 13-4.
35 Ibid., p. 14.
36 Silviano Santiago. "O teorema de Walnice e sua recíproca". Op. cit. p.74.
37 Ricardo Ramos. Op. cit. p. 196.
194

vezes uma crescente simplificação formal e uma repetição temática em suas obras. Ao
escreverem sobre os livros do escritor baiano, Walnice Nogueira Galvão e Silviano
Santiago escolheram a "última fase" do autor, que Alfredo Wagner Berno de Almeida
chamou de fase do "romance picaresco" e que Alfredo Bosi caracterizou como momento
das "crônicas amaneiradas de costumes provincianos"38. Após 1958, ano em que
publicou Gabriela, cravo e canela, o escritor, antes visto com reservas por seu
"sectarismo", passou a receber um reconhecimento ainda mais amplo do público.
A eleição de Jorge Amado para a Academia Brasileira de Letras em 1961
completou a consagração "oficial" do escritor e marcou, para Alfredo Wagner Berno de
Almeida, a sua reconciliação com a intelectualidade mais conservadora39. Enquanto

isso, seus antigos admiradores o acusavam de "ser um simples comunista, reabilitado


com a burguesia"40. O passo seguinte nessa trajetória foi a elaboração de uma quantidade
cada vez maior de romances, praticamente um por ano durante as décadas de 60 e 70,
todos com altos índices de vendagem. O antigo "homem de esquerda" tornava-se escritor
de best-sellers.
A leitura das obras de Jorge Amado anteriores a Gabriela mostra, porém, que
pouca coisa havia mudado em seus livros, apesar das aparências. Em Os subterrâneos da
liberdade, encontram-se vários dos traços que Walnice e Silviano enxergaram em Teresa

Batista: o preconceito de que tudo o que existe no povo é bom, o orgulho do proletário
por ser a força do bem numa sociedade presidida pelos ricos inescrupulosos, o apego a
formas literárias "velhas", como as narrativas de caráter marcadamente romanesco, a
desconsideração pelo trabalho com a linguagem, que é marcada por clichês.
Os subterrâneos da liberdade, todavia, não são literatura best-seller, apesar de
apresentarem características de linguagem e de estrutura que esses mesmos intérpretes
apontam como sendo traços da "literatura ao gosto do mercado". Para características
literárias semelhantes criam-se, assim, duas interpretações. Até Gabriela, Jorge Amado é
"escritor comunista"; depois de Gabriela, vira uma espécie de Sidney Sheldon brasileiro.
Evidentemente, havia diferenças temáticas entre as obras anteriores e posteriores ao livro

mais famoso de Jorge. A história da baiana ingênua e sensual trazia uma carga muito

38 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1985. p. 459.
39 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Op. cit. p. 245 e ss.
40 Ibid., p. 261.
195

maior de erotismo, colocava as questões político-ideológicas em segundo plano e se


apegava à narração de costumes. Mas o estilo de Jorge permanecia.
O aprendizado literário de Jorge Amado se deu, ao longo dos anos 30 e 40, sob a
orientação da esquerda, em geral, e do partido comunista, em particular. Em 1932, já
instalado no Rio de Janeiro, Jorge se aproximou de Raquel de Queirós e da militância
esquerdista, travando contato com a literatura proletária russa e com o "realismo bruto"
norte-americano41. Nessa época, havia lançado apenas um livro, O país do carnaval
(1931), tinha vinte anos e estava em início de carreira. Na década de 40, o escritor
chegou à sua maturidade literária, atingida, segundo alguns críticos, com a publicação de
Terras do sem fim (1942)42. Nessa época, ele já era membro do PCB e havia passado

pelos cárceres do Estado Novo.


Em seguida, sucederam-se, na carreira do escritor, os escritos partidários, que
incluem tanto romances, como São Jorge dos Ilhéus (1944) e Seara vermelha (1946),
quanto obras de teor propagandístico, como Vida de Luís Carlos Prestes (O Cavaleiro da
Esperança) (1942) e Homens e coisas do Partido Comunista (1946). Depois de Os
subterrâneos da liberdade (1954), que os críticos viram como ápice do partidarismo na
literatura de Jorge, veio Gabriela (1958), diferente das obras anteriores na aparência e
matriz dos romances e novelas que a sucederam.

Gabriela resultou de uma aguda crise ideológica do escritor, conseqüência das


revelações do XX Congresso dos PC's soviéticos sobre o stalinismo. Jorge Amado conta
o episódio a Alice Raillard:

"Foi somente quando O Estado de São Paulo publicou um relatório


sobre o Congresso e o stalinismo foi publicamente desmascarado que eles
convocaram o Comitê Central [do PCB] — um Comitê aumentado, do qual
eu mesmo participei. Foi dramático. Considero esta reunião do Comitê
Central, em abril ou maio de 56, uma das experiências mais estranhas e, de
uma certa forma, mais enriquecedoras da minha vida."43
Jorge recebeu críticas amargas do partido, que não aceitava as mudanças que ele
empreendera em seu modo de escrever. Além disso, a crítica de esquerda construiu,

41 Alfredo Bosi. Op. cit. p. 457.


42 Para Antonio Candido, que resenhou o romance na época de sua publicação, Terras do sem fim é o
maior livro de Jorge até então: "ao Jorge Amado descuidado e impaciente dos livros anteriores, [Terras
dos sem fim] é um símbolo, não sem beleza, da força que tem a inteligência ordenadora do artista sobre o
material bruto da evidência documentária e o impulso irresistível da inspiração". In: "Poesia, documento e
história" (1945). Apud José de Barros Martins (ed.). Op. cit. p. 179.
43 Alice Raillard. Op. cit. p. 264.
196

segundo o próprio Jorge Amado, uma teoria segundo a qual sua obra se dividia em duas
partes, uma anterior a Gabriela e outra, posterior:

"Diziam que a obra se tornara folclórica, que era a negação da obra passada,
não sei mais o quê, como se os elementos da vida, do folclore, não
estivessem presentes em livros como Jubiabá, Mar morto, a presença de
Iemanjá, do candomblé etc., ou em Capitães da areia... Tudo isso é uma
tolice incomensurável."

Jorge protestou contra essa visão:

"Não, minha obra é uma unidade, do primeiro ao último momento. Só se


pode dizer que existe, no início, uma profusão do discurso político,
correspondendo ao que eu era então." 44

A aplicação das doutrinas estéticas de esquerda e, posteriormente, do realismo


socialista nas obras literárias levou, na obra de Jorge, a uma simplificação da forma para
se estender a compreensão do texto a amplas camadas de público, e não apenas mantê-la
restrita às elites culturais. Paradoxalmente, o princípio estrutural da literatura best-seller
é semelhante. As leis do mercado pedem um discurso de estrutura simplificada, para que
possa ser compreendido mais imediatamente pelo público e conquistar, assim, um
número cada vez maior de leitores nas camadas sociais alfabetizadas.
Não existiram, portanto, as mudanças profundas que a crítica apontou entre a obra
de Jorge Amado anterior a Gabriela e os romances que a este se seguiram. A base
estrutural do texto de Jorge continuou a mesma. A "fase socialista" e a "fase picaresca"
apresentam textos semelhantes na estrutura. O abandono do discurso político explícito e
profuso nos livros pós-XX Congresso, porém, fez com que os romances de Jorge, antes
vistos com reservas pelos leitores mais conservadores, conquistassem um novo tipo de
público e ganhassem o reconhecimento das instâncias "oficiais" da cultura, como a
Academia Brasileira de Letras. Realismo socialista e best-seller foram, na obra do autor
baiano, dois lados de uma mesma moeda.
Graciliano Ramos, por sua vez, se tornou cada vez mais lido à medida que sua obra
foi sendo apreciada pelos círculos acadêmicos e adotada como paradigma literário nas

escolas de 1º e 2º graus. Graciliano, porém, continua o "escritor difícil" que sempre foi.
Seus textos resistem a se entregar para leitores passivos e indolentes. Eles cobram
participação. Ao negar o descuido formal como condição para a legibilidade de sua obra

44 Ibid., p. 266-7.
197

por muitos, Graciliano também se recusou a fechar os olhos para um problema central da
cultura brasileira: a arte como criação e objeto de consumo das elites. O que fez foi olhá-
lo de frente e problematizá-lo em seus livros.
Como Mário de Andrade, mestre Graça poderia dizer:

"Eu sou um escritor difícil


Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez."45

A "dificuldade" estava em tentar recriar, do ponto de vista literário, uma realidade


cultural complexa e por vezes contraditória. Como o próprio Graciliano afirmou pouco
antes de sua morte, "vivendo em sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres"46. A
ressurreição socialista jamais o alcançou.

45 "Lundu do escritor difícil" (1928). In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1987. p. 306.
46 Graciliano Ramos. Viagem (Tcheco-Eslováquia e URSS). 4.ed. São Paulo: Martins, [1970]. p. 59.
198

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A Classe Operária (1937/1952-3).
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O Estado de São Paulo (nov.1935-jun.1945).
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Prêmio Lima Barreto de 1936).
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A vida dos livros. Rio de Janeiro, n.194, 15-12-1953. Mimeografado.
208

RESUMO

Este trabalho vê Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado,


e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, como esforços de
reconstrução, através da literatura, da história política brasileira
no final dos anos 30. São também esforços de memória, já que as
duas obras têm como pano de fundo experiências vividas por
seus autores. A análise e a interpretação de cada um dos livros
ocupam o primeiro e segundo capítulos da dissertação. No
terceiro capítulo, procurei esboçar os perfis dos discursos
historiográfico e memoriográfico que permeiam o texto literário
nas duas obras. O quarto capítulo mostra, à guisa de conclusão,
que as diferentes versões de Jorge Amado e Graciliano Ramos
sobre a mesma época são resultado de projetos políticos e
literários que dividiam a esquerda brasileira no início da década
de 50, quando os livros foram publicados.

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