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CLARICE LISPECTOR A PAIXÃO SEGUNDO G.

Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A
então percebido os fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.
humana - e só realizaria o meu destino especificamente humano se
me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu,
ao que já é inumano.

E entregando-me com a confiança de pertencer ao


desconhecido. Pois só posso rezar ao que não conheço. E só posso
amar à evidência desconhecida das coisas, e só posso me agregar
ao que desconheço. Só esta é que é uma entrega real.

E tal entrega é o único ultrapassamento que não me exclui. Eu


estava agora tão maior que já não me via mais. Tão grande como
uma paisagem ao longe. Eu era ao longe. Mas perceptível nas
minhas mais últimas montanhas e nos meus mais remotos rios: a
atualidade simultânea não me assustava mais, e na mais última
extremidade de mim eu podia enfim sorrir sem nem ao menos
sorrir. Enfim eu me estendia para além de minha sensibilidade.

O mundo independia de mim - esta era a confiança a que eu


tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou
entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei
o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra
mentisse por mim?

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