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A Deal With The Elf King BWC Elise Kova
A Deal With The Elf King BWC Elise Kova
ELISE KOVA
MAPA DE MIDSCAPE
TABELA DE CONTEÚDOS
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
para quem precisa de uma pausa
e uma segunda taça de vinho
CAPÍTULO 1
EXISTEM APENAS DUAS RAZÕES PELAS QUAIS OS ELFOS VÊM AO NOSSO MUNDO: GUERRA ou esposas. Em ambos os
casos, eles vêm por morte. Eles vêm hoje.
Minhas mãos tremem enquanto pego o próximo frasco. Minha calma e
meu otimismo estão escondidos em algum lugar entre os recipientes cheios
de ervas alinhados nas prateleiras da minha loja. Se eu cavar fundo o
suficiente por eles, continuar olhando entre eles e continuar misturando seus
conteúdos, posso encontrar algum semblante de paz. Há mais dois
cataplasmas para fazer, mais uma poção para dormir, uma poção
fortalecedora, várias pomadas medicinais... já se foram cerca de cinco horas
de trabalho e tenho apenas mais duas horas para fazer tudo.
Se a Rainha Humana não for encontrada entre as mulheres de Capton, a
guerra se abaterá sobre nós. A guerra levaria à destruição de toda a
humanidade sob o poder da magia selvagem dos elfos. Encontrá-la cumpriria
o tratado e garantiria a segurança da humanidade por mais um século. Mas
se você é ela, você poderia muito bem estar morta.
É a falta de uma rainha que deixa toda a cidade nervosa, inclusive eu.
O toque da campainha acima da porta da minha loja rouba a minha
atenção do meu trabalho.
— Sinto muito; só estou aberta para emergências por hoj... — Fico
imóvel enquanto coloco o pote pesado de raiz de valeriana seca em meu
balcão. Há um reflexo familiar na superfície dele – um homem com cabelo
castanho claro e olhos de corça, carregando uma grande bolsa. Eu olho para
cima rapidamente, confirmando minha suspeita.
— Luke! O que você faz aqui tão cedo?
Luke está com uma vestimenta mais tradicional do que normalmente
usa como Guardião da Bruma. Suas calças escuras foram passadas
recentemente e sua túnica azul brilhante não tem nenhum vestígio de sujeira.
Os Guardiões da Bruma cuidam do templo e da floresta nos limites da
cidade, no sopé da grande montanha. Eles são os que tradicionalmente lidam
com os elfos e impedem qualquer um em Capton de cruzar acidentalmente a
Bruma – a barreira que separa nosso mundo da terra dos elfos e da magia
selvagem.
Meu trabalho é rapidamente esquecido. Eu levanto o balcão e passo
para o outro lado. Luke deixa cair a bolsa com um baque pesado e me pega
em seus braços. O abraço dura um pouco mais do que o normal para simples
amigos se cumprimentando.
Seu aperto afrouxa, mas ele não me libera totalmente. Seus braços
frouxos descansam em volta da minha cintura e eu não sei o que fazer com
minhas mãos. Elas finalmente se acomodam em seus ombros. Embora o que
eu queira mesmo seja tocar seu peito.
— Eu tinha que ver você. — Ele passa os nós dos dedos pela minha
bochecha. Eu inclino minha cabeça em direção ao seu toque e engulo em
seco.
Eu quero beijá-lo.
Eu tenho tido vontade de beijá-lo há pelo menos seis meses, ou mais.
Eu sabia disso quando ele veio comigo em minha missão para encontrar
raízes de inverno nas profundezas dos pântanos frígidos. Eu sabia quando ele
me disse que a falta da Rainha Humana significava que seus deveres como
um dos Guardiões da Bruma seriam triplicados, impedindo-o de passar tanto
tempo comigo.
Eu provavelmente queria beijá-lo antes mesmo de entender o que era
beijar – quando éramos crianças brincando na floresta, no início de nossa
amizade para vida toda. Mas perceber que você tem vontade de beijar
alguém torna tudo agonizante demais. Se eu ainda pensasse que éramos
apenas amigos, poderia tê-lo beijado várias vezes por causa de um desafio,
um capricho ou se ele pedisse. Eu poderia ter continuado em sua companhia
sem meu estômago revirar.
Mas esse desejo torna cada movimento entre nós insuportável.
Principalmente porque não posso beijá-lo. Fazer isso seria cruel... para nós
dois.
— Bem, você já me viu agora. — Eu finalmente me afasto, alisando
meu avental. Fico em guerra comigo mesma quando estou perto dele. Cada
segundo dói. Eu quero que ele me pegue em seus braços novamente. Mas eu
não posso querer isso. Eu sei, no fundo, que eu não posso. Eu não tenho
tempo para ele; o dever me chama. Ele já é uma distração grande demais
apenas como amigo.
— Tenho certeza que você está ocupado com os Guardiões hoje, se
preparando para a chegada da delegação dos elfos esta noite. Podemos sair
para a floresta amanhã. — Supondo que haja um amanhã.
— Eu quero te levar esta manhã — ele diz em um tom que eu pensei ser
reservado apenas para meus sonhos. — Mas eu quero ir além da floresta.
— Do que você está falando? — Eu pergunto, voltando para o outro
lado do balcão, onde continuo adicionando várias ervas secas em um dos
meus bens mais valiosos – uma chaleira de prata.
É um dos dois presentes de Luke. A chaleira foi um presente quando
me formei em Herbologia no instituto em Lanton, do outro lado do estreito
para o continente. O outro presente, um colar, ele me deu quando eu era
apenas uma menina e eu nunca o tirei desde então. Ambos são de tirar o
fôlego.
Mas os artigos élficos geralmente são impressionantes. E extremamente
raros. Eu geralmente mantenho o colar escondido para evitar chamar a
atenção para o fato de que tenho dois itens de fabricação élfica em minha
posse. Não quero criar problemas para Luke por qualquer favoritismo.
— Eu quero levar você embora. — Ele aponta para a bolsa a seus pés.
— Eu preparei suprimentos para viagem. Há um barco no porto pronto para
partirmos.
Eu balanço minha cabeça, como se eu pudesse empurrar suas palavras o
suficiente para que elas se alinhassem em uma ordem que fizesse sentido.
— Viagem? Um barco?
— Começaremos em Lanton, obviamente. Você ainda tem conexões da
época em que estudava no instituto, certo? Talvez pudéssemos ficar com
alguns de seus velhos amigos enquanto traçamos o nosso caminho. — Luke
sugere casualmente, como se estivéssemos falando sobre caminhar até os
penhascos ao sul da cidade. Porém, ele não quebra o contato visual comigo,
e é por isso que eu sei que ele está falando sério. O pavor tem um gosto tão
metálico quanto o medo. — E então quem sabe para onde a partir daí? Você
quer explorar os vastos desertos do sul? Ou talvez as Montanhas Ardósia a
oeste?
Eu forço o riso. Eu gostaria de poder fingir que ele está brincando.
— O que deu em você? Não podemos simplesmente partir. Tenho
obrigações aqui – e você também, por falar nisso. Quem vai consertar os
ossos, parar as febres e garantir que a Fraqueza seja mantida sob controle se
eu for embora? — Embora haja pouco que eu possa fazer sobre esse último.
A Fraqueza tem sido uma doença fulminante que assola o povo de Capton.
Supera minhas tentativas de combatê-la a cada passo.
— Nosso trabalho é o que fazemos, não quem somos. Nada nos prende
aqui. Não somos como os velhos da cidade que só são mantidos vivos pelo
Rio Bruma. Podemos ir embora. Nós vamos dar um jeito.
— Mesmo se isso fosse verdade, os elfos estão chegando hoje. Tenho
que terminar meu trabalho antes da assembleia na cidade; eu não posso
decepcionar todo mundo. O senhor Abbot precisa de seu chá e Emma
precisa de sua poção fortalecedora ou seu coração–
— Luella, nós temos que ir embora. — Luke se aproxima e se apoia no
balcão com os cotovelos. Sua voz se transforma em um sussurro enquanto
ele olha para o andar de cima.
— Eles ainda não acordaram — Falo sobre meus pais. O quarto deles
fica em cima da minha loja e tem estado silencioso pelas horas que estive
acordada trabalhando.
— Os Guardiões ainda não encontraram a Rainha Humana. A magia da
linha está desaparecendo há algum tempo. — Eles dizem que o poder da
Rainha Humana é passado de uma rainha para a próxima quando a ex-rainha
morre. Ninguém sabe o que acontecerá se não houver uma Rainha Humana
para ser tomada. Ainda é algo desconhecido. — Alguns dos meus
companheiros Guardiões pensam que talvez ela simplesmente não esteja
aqui. Talvez a magia tenha acabado. O que é mais um motivo para irmos
embora enquanto podemos.
Desde que o tratado entre os elfos e os humanos foi assinado três
milênios atrás, houve uma Rainha Humana selecionada em Capton a cada
cem anos como um relógio. Encontrá-la nunca era difícil; ela é a única
humana com magia, afinal de contas. Mas desta vez nenhuma jovem de
Capton consertou algo com um pensamento, ou fez as plantas crescerem em
terra estéril, ou fez com que os animais jurassem lealdade a ela.
Agora, já se passaram cento e um anos desde que a última Rainha
Humana foi escolhida, e a cidade está sofrendo por causa disso.
— Se ela não está aqui, é mais uma razão pela qual não posso ir. A
Fraqueza está se espalhando pela cidade. As pessoas estão morrendo cedo,
com apenas cento e dez anos. Tenho que fazer o que puder para impedir isso.
— E se houver uma guerra por vir, os curandeiros serão mais necessários do
que nunca. Mas não consigo dizer isso. Eu mal consigo pensar nisso.
— Se não houver uma rainha, você não poderá fazer nada para impedir
isso. A conexão da cidade com a Bruma está morrendo, e as pessoas
morrerão com ela. A expectativa de vida será reduzida a nada mais do que
daqueles que estão fora de nossa ilha. — Luke agarra minhas mãos. — Os
elfos estão chegando, e eu tive um sonho terrível com isso. Por favor, vamos
embora agora.
— Luke — eu digo suavemente, estendendo a mão para acariciar a
sombra dourada em seu queixo. A barba constante é nova. Não sei dizer se
ele está deixando crescer ou apenas a mantendo bem aparada. De qualquer
forma, acho que gosto. — Você parece que não dormiu. E está sob um
tremendo estresse, com um longo dia pela frente. Deixe-me fazer uma poção
fortalecedora para você e algo para ajudá-lo a dormir esta noite.
— Não dormi porque estou me preparando para que a gente parta antes
que a guerra comece. — Luke se afasta do balcão e passa por baixo da
divisória. Estou encurralada – balcão de um lado, prateleiras de ervas do
outro, Luke diante de mim, sem saída. — Eu quero levá-la embora. Eu quero
mantê-la segura.
— Luke — eu digo cautelosamente, quase implorando. Eu quero fingir
que ele está brincando, mas posso perceber que ele está falando mortalmente
sério. — Eu não posso simplesmente ir embora.
— Sim, você pode, é claro que pode. — O tom de sua voz relaxa por
um momento. A maneira como ele está olhando para mim agora me deixa
sem fôlego. Eu tenho que me lembrar de respirar. — Eu quero te levar
embora e passar um tempo com você, e somente com você, Luella. Você
com certeza sabe... eu te amo há muito tempo.
Abro e fecho a boca, várias vezes. Sim, eu sabia. E eu também o amo.
Eu o amo o suficiente para sonhar com este momento. Mas em meus sonhos
eu estava vestindo algo mais bonito do que meu avental de trabalho e não
cheirava a óleo de lavanda.
Sua expressão cai com meu silêncio.
— Ah, entendi... Eu pensei que você poderia–
— Eu também te amo. — Assim que eu digo as palavras, a sensação
retorna. O formigamento desaparece dos meus dedos dos pés. Meu corpo
inteiro explode com histeria. — Eu te amo desde que eu era criança.
— Então fuja comigo, Luella. — Luke agarra minhas mãos. Seus
polegares percorrem meus dedos.
Minha alma está voando sobre o telhado. Mesmo assim, meus pés estão
profundamente enraizados na terra das pessoas que jurei servir.
— Você sabe que eu não posso. — Eu sussurro.
— Mas você me ama.
— Eu amo.
— Então vamos. — Ele puxa minhas mãos.
— Eu não posso. — As palavras fluem de mim. Sua expressão se
transforma em algo que não reconheço. — Eu quero, Luke. Eu gostaria de
poder ir com você. Mas não posso simplesmente ir embora. Esta cidade
investiu muito em mim; eu tenho que estar aqui quando eles precisam de
mim.
O povo de Capton pagou por meus anos no instituto quando meus pais
não puderam. Eles pagaram por minha hospedagem e alimentação. Eles me
apoiaram a cada passo com o troco suado e gasto que tiraram do fundo do
bolso.
— Além disso — eu continuo, mais suave — se a Rainha Humana não
for encontrada, e o conselho não puder resolver as coisas com os elfos, não
há nenhum lugar para onde possamos correr. Toda a humanidade estará
condenada a essa altura. Prefiro ficar aqui com o nosso povo e enfrentar o
que vier.
— Podemos encontrar uma maneira. — Ele insiste. Eu balanço minha
cabeça. — Se você me ama, realmente me ama, então isso é tudo de que
você precisa. Nosso amor é o suficiente.
— Mas... — Eu não consigo terminar.
Em um passo largo, ele fecha a distância entre nós. Um braço envolve
minha cintura. A outra mão segura minha bochecha. Ele inclina meu rosto
para cima e eu não luto contra ele. Eu não quero.
Os lábios de Luke encontram os meus enquanto meus olhos se fecham.
A barba por fazer que reveste em torno dos seus lábios é áspera no meu
rosto. Mas quase não noto; meu único foco é beijá-lo. Quanto movimento é
demais e quanto é de menos, quando se trata de beijar?
Inesperadamente, eu desejo desesperadamente ter cedido aos meninos
no instituto e permitido que eles “me ensinassem a beijar” quando
descobriram que eu nunca tinha sido beijada antes. Eu estive esperando por
este momento. Eu estive esperando por esses lábios.
No entanto... conforme ele se afasta, fico estranha e insatisfeita. Nada
disso é exatamente como eu imaginei que aconteceria. Eu não estou
flutuando. Meu coração não está batendo forte. Algo em mim está desolado
e... triste?
O som de alguém limpando suavemente a garganta vem da porta atrás
de nós. Luke se vira. Meu rosto está quente quando encontro os olhos
sorridentes de minha mãe – no mesmo tom de avelã que os meus. Para tornar
o momento estranho e embaraçoso ainda pior, minha chaleira começa a chiar
e a poção para dormir que eu estava preparando agora está fervendo na
minha bancada.
— Ah! — Eu corro, começando a limpar a bagunça.
Minha mãe ri, ajudando a tirar a chaleira do fogo.
— Luke, que bom ver você. Gostaria de ficar para o café da manhã?
— Eu adoraria. — Ele dá um sorriso arrojado. Espero que a
necessidade de encher seu estômago o distraia de sua ideia insana de ir
embora. E quando ele estiver cheio, sua cabeça volte ao lugar.
— Tenho trabalho a fazer. — Lembro desnecessariamente a ambos.
— E fazer isso com o estômago vazio é inútil. — Minha mãe enfia
mechas rebeldes de cabelo flamejante – do mesmo tom brilhante que o meu
– de volta em seu coque. — Faça uma pausa, minha filha trabalhadora. Você
não vai salvar uma vida nos vinte minutos que leva para comer um bolinho e
um ovo cozido.
— Um de seus bolinhos parece adorável, Sra. Torrnet.
— É Hannah, Luke, você sabe disso. — Minha mãe dá um risinho e eu
rolo meus olhos. — Agora, subam, vocês dois.
Um prato de bolinhos está no centro da mesa – lavanda e laranja. É
incrível a quantidade de plantas diferentes que crescem na ilha de Capton.
Muitas. Tantas que deveria ser impossível. Mas a principal fonte de água da
ilha flui através da própria Bruma, tornando o impossível possível aqui.
Meu pai está sentado na ponta da mesa. Seus óculos pendurados na
ponta do nariz enquanto folheia uma papelada – sem dúvida, examinando os
discursos antes da assembleia na cidade hoje.
— Bom dia, Luke — ele diz sem olhar para cima. Luke tem estado por
perto desde que aprendemos a andar e é tão importante nesta casa quanto a
panela de ferro de minha mãe ou meu jardim de ervas em vasos na janela
dos fundos. — Estou surpreso em ver você hoje. — Ele faz uma pausa. —
Embora eu suponha que hoje seja um dia em que normalmente você
acompanha Luella até a floresta.
— Achei que poderíamos terminar antes do nascer do sol. Dessa forma,
eu poderia voltar às minhas funções como Guardião. — Luke diz
cordialmente enquanto se senta, pegando um bolinho. Nenhuma menção
sobre tentar me roubar, felizmente.
— O que os Guardiões estão fazendo sobre tudo isso? — Mamãe
pergunta atrás de mim, mexendo na frigideira. Nossa cozinha ocupa metade
da casa de arenito – estilo galé, diriam os marinheiros.
— Mãe–
— Estamos fazendo o nosso melhor para encontrar a Rainha Humana.
— Luke diz calmamente.
— Bem, talvez não devesse haver uma Rainha Humana — mamãe
bufa.
— Hannah. — Papai avisa.
— É verdade, Oliver, e você sabe disso. O Conselho de Capton é tão
ruim quanto os Guardiões. — Mamãe é tão agressiva quanto a água fervente
de onde tira os ovos.
— Podemos apenas ter um café da manhã tranquilo, por favor? — Eu
imploro.
Estou tão cansada de ouvir sobre os Guardiões apontando o dedo para o
Conselho de Capton por não estarem mais empenhados em tentar encontrar a
Rainha Humana interrogando os habitantes da cidade, e o Conselho
apontando o dedo para os Guardiões por não compartilharem mais de suas
relíquias élficas ou histórias que podem ajudar a identificar a Rainha
Humana.
Meu pai acha que deve haver algo que os Guardiões estão escondendo.
Luke afirma o contrário e diz que o Conselho não compartilha informações
suficientes com o Templo. Ambos esperam que eu fique do seu lado e
preciso de todo o meu esforço para lembrá-los de que tudo o que me importa
é manter as pessoas desta ilha saudáveis – e que não faço parte dos
joguinhos deles.
— Se não houver Rainha Humana, então toda a humanidade terá uma
morte horrível enquanto eles usam magia selvagem para arrancar a pele de
nossos ossos, nos transformar em feras de florestas abandonadas, congelar
nosso sangue, ou coisa pior. Acho que podemos dizer que nenhum de nós
quer isso. — Meu pai diz examinando seus papéis.
— Já estamos morrendo. — Minha mãe coloca os ovos em uma
travessa e os coloca sobre a mesa. — Você já ouviu falar sobre a Fraqueza.
Homens e mulheres estão adoecendo de repente. Estamos morrendo como
qualquer ser humano normal no continente.
— Uma vez que haja uma Rainha Humana, a ordem será restaurada e o
tratado será cumprido — diz meu Pai. — Sem mais dessa Fraqueza.
— Isso é verdade? Sabemos se as coisas vão voltar ao normal com
certeza? — Mãe se vira para Luke.
— É o que os textos que descrevem o tratado dizem. — Luke descasca
um ovo.
Ela suspira e agarra um bolinho, arrancando um pedaço e resmungando.
— Embora eu odeie a ideia desse negócio de Rainha Humana, se tem
que acontecer, então que seja feito. Meu coração sangra pela família cuja
filha será levada... — Mamãe aperta minha mão. Eu sou muito velha –
historicamente, as rainhas demonstraram ter tendências mágicas aos
dezesseis ou dezessete anos. Lembro-me de alguns anos atrás, quando meus
pais me vigiavam como falcões. Felizmente, não há nenhum traço de magia
em mim. — Que situação sinistra para ver sua filha se casar.
— Falando em casamentos. — Luke diz casualmente. — Luella já
contou a vocês?
Meus pais trocam um olhar comigo. Eu olho nervosamente entre eles e
Luke. Não tenho ideia do que ele está falando.
— Nos contou o quê? — Papai pergunta.
— Luella concordou em se casar comigo.
CAPÍTULO 2
A ASSEMBLEIA ACONTECERIA DALI A QUATRO HORAS, NO FINAL DA TARDE. DEU TEMPO somente de ir para casa,
reabastecer minha cesta e me refrescar. Não sou a única com a ideia de tratar
de negócios antes da reunião. Alguns dos pescadores trouxeram suas pescas.
Vejo alguns habitantes da cidade exibindo bordados. Todo mundo está muito
feliz por ter algo mais em que se concentrar – ou fingir que está se
concentrando – além da chegada iminente dos elfos.
No entanto, rumores e teorias zumbem no ar ao meu redor como
abelhas em um campo. Eu ouço os sussurros e especulações. O que vai
acontecer? A rainha será encontrada?
Eu ignoro tudo, concentrando-me em meus deveres. Não há como a
guerra estourar depois de três mil anos de paz. Foi nisso que decidi me
segurar enquanto distribuía meus potes e embrulhos.
— Ouçam, ouçam, cidadãos de Capton — grita o pregoeiro do palco do
outro lado da praça. Um grupo de homens e mulheres cansados se enfileiram
atrás dele – meu pai está entre eles. — Nós declaramos aberta esta reunião
do Conselho de Capton.
Eu paro com o resto dos habitantes da cidade, ouvindo os vários
anúncios. Existem alguns assuntos administrativos para resolver – algumas
disputas sobre territórios de pesca com Lanton, um acordo para demolir um
antigo armazém. Mas todo mundo está apenas esperando a parte importante.
— Sobre a questão da Rainha Humana — meu pai diz. Ele está junto
com o Guardião-Chefe. — O conselho ouviu suas preocupações e decidiu–
Ele não consegue terminar.
— Olhem, lá! — alguém grita.
Todas as cabeças se voltam na direção das longas escadas que vão da
cidade ao templo. Sobre elas, uma pequena legião marcha. Eles são liderados
por um homem que cavalga um cavalo feito de sombras, sua forma se
contorcendo e desaparecendo como névoa a cada movimento.
Seus longos cabelos negros se espalham pelos ombros. Eu posso ver um
brilho do que parece roxo, ou azul, na luz do sol fulminante. Faixas de ferro
se entrelaçam quase organicamente em torno de suas têmporas, antes de se
projetar em um leque de pontas afiadas na parte de trás de sua cabeça –
quase como espinhos enormes – para fazer uma coroa. Suas orelhas se
estendem de seu rosto em pontas que combinam com as lanças de sua coroa.
Quando ele e seus soldados estão nos limites de nossa praça, posso ver que
seus olhos são de um azul celeste brilhante, quase do mesmo tom dos pilares
do templo.
Ele não é nada como o monstro antigo e nodoso que eu imaginei ou que
as histórias o fizeram parecer. A única coisa que essas histórias parecem ter
retratado com precisão é o poder absoluto que irradia do homem.
O rosto do Rei Elfo, etéreo, bonito, jovem, duro como diamantes, é tão
lindo quanto aterrorizante. Ele é como uma flor venenosa – impressionante e
mortal. Isso, eu percebo quando seus olhos brilham em um azul ainda mais
brilhante, é a face da morte.
CAPÍTULO 3
O REI ELFO ESTÁ SENTADO NO TOPO DE SEU CORCEL DE SOMBRAS, OLHANDO PARA NÓS como se não fôssemos nada
mais do que formigas. Uma legião de elfos, blindados e armados, está parada
atrás dele. Embora ele esteja, surpreendentemente, sem armadura.
Enquanto ele desmonta, percebo que nunca testemunhei uma
demonstração de contrastes mais perfeita. Seu físico é como se feito de
mármore, mas seus movimentos são tão fluidos quanto o tecido de seda que
cai de seus ombros. Sua túnica prateada de mangas compridas é ajustada
firmemente ao corpo e pressionada com tanta firmeza que quase dá a ilusão
de aço martelado. Ainda assim, posso imaginar meus dedos deslizando sobre
o tecido sedoso em todo o plano liso de seu peito largo.
Eu rapidamente olho para os meus dedos do pé, desejando afastar
qualquer encantamento mágico que ele lançou sobre si mesmo. Mas meus
olhos são atraídos de volta para ele contra a minha vontade. Eu não posso
não olhar para ele. Não quando ele dispensa o cavalo como se ele fosse nada
mais do que fumaça na brisa. Não quando seus cavaleiros armados começam
a se mover. E certamente não quando ele marcha para a plataforma onde a
Guardiã-Chefe, o Conselho e meu pai estão de pé.
— Sua Majestade. — A voz da Guardiã-Chefe treme enquanto ela se
curva. — Estávamos esperando uma delegação, um embaixador ou algum–
— Vocês tiveram um ano — ele diz lentamente, desgosto escorrendo de
cada palavra. — Tenho sido paciente. Enviei uma delegação ao templo dos
Guardiões. Mesmo assim, não tenho uma rainha.
— Fomos–
— Silêncio. — Ele ferveu, inclinando-se perto dela. — Você esqueceu
quem eu sou? Você falará apenas quando falarem com você.
Os cavaleiros elfos se movem ao nosso redor, circulando-nos como se
fôssemos gado. Eu vejo alguns irem aos pares pelas ruas da cidade. O que
eles procuram? Alguém atrasado?
Eu mordo minhas bochechas e resisto à vontade de dizer algo.
Certamente eles não iriam arrancar um homem doente de seu leito apenas
para aterrorizá-lo nas ruas... iriam?
— Eu terei minha rainha, aqui e agora. Não podemos permitir mais
atrasos — continua o rei. Ele se vira para enfrentar os cidadãos de Capton.
— Eu sei que vocês a esconderam, mexendo com forças que vocês não
entendem.
— Sua Majestade. — As palavras soam estranhas na boca do meu pai.
Eu gostaria que ele ficasse em silêncio. A última coisa que quero são aqueles
olhos elfos desprovidos de emoção voltados para ele. — Talvez não haja
nenhuma rainha este ano?
— Ela está aqui, eu tenho certeza. Apenas está escondida. — Ele passa
o braço por cima da multidão. — Entreguem-na para mim ou eu vou
vasculhar todas as casas em busca dela. Entreguem-na para mim ou eu
pegarei todas as mulheres jovens e as levarei embora através da Bruma, uma
por uma, até que eu tenha minha rainha.
Ser levado através da Bruma como um humano normal significaria
morte. Ele mataria todas as mulheres para encontrar uma. Eu aperto minha
mandíbula com força.
— Luella. — Os dedos de Luke se fecham ao redor dos meus. Eu olho
para ele com surpresa. Onde ele estava se escondendo na multidão? —
Vamos lá, ainda podemos fugir.
— Você está louco? — Eu sibilo.
— Ainda dá tempo — ele insiste. — Vamos. Os elfos vão me deixar
passar como Guardião, o barco ainda está esperando e–
Um grito o interrompe.
— Emma, Emma! — Ruth grita. — A Fraqueza, ela a reivindicou!
Eu me movo para sair, mas Luke me segura firme.
— Me deixe ir.
— Agora é nossa chance, enquanto há uma distração.
— Eu disse para me deixar ir! — Eu arranco minha mão da dele e
corro, empurrando as pessoas que não me dão espaço. Ruth – a mãe de
Emma – está ajoelhada ao lado da filha, uivando. As lágrimas escorrendo
pelo seu rosto.
— Eles trouxeram a Bruma sobre nós! Eles estão aqui para a guerra.
Estamos condenados! — Ela grita.
— Ruth, Ruth, por favor. — Eu me ajoelho rapidamente, deixando cair
minha bolsa e a cesta no chão ao meu lado. — Deixe-me vê-la.
— Você disse que não sabe o que é a Fraqueza. O que você pode fazer?
Você nem mesmo entregou a poção dela esta manhã. — Ruth me fere com a
verdade.
— Você tem razão. Eu não sei o que é a Fraqueza. — Eu admito,
mantendo minha voz baixa e uniforme, esperando que ela corresponda ao
meu tom e se acalme. — Mas não é isso o que ela tem. A Fraqueza apenas
reivindicou os mais velhos entre nós — até agora — fazendo os residentes
de Capton falecerem quando apenas um humano normal o faria. Emma tem
apenas dezenove anos. — Minha idade.
— A Fraqueza tomou o coração dela, a poção dela, ela– isso é por
causa dele! — Ruth aponta para o Rei Elfo, segurando Emma contra o peito.
Seus cachos dourados se agitam em todas as direções com os movimentos
bruscos de Ruth. — Ele fez isso. Ele a matou primeiro. Ela não era sua
rainha, então você a matou!
— Ruth, pare — eu digo severamente, me lançando para agarrar seu
braço. É tarde demais, a atenção do Rei Elfo está em nós. Como se não
tivesse acontecido desde o momento em que a comoção começou. — Emma
está respirando, está vendo? — Eu puxo a mão de Ruth em direção à boca de
Emma. Ela sente a respiração lenta e superficial que eu já tinha visto e seu
rosto se contorce de alívio.
— Ah! Benditos sejam os deuses antigos. — Ruth balança para frente e
para trás. — O que há de errado com ela?
— Provavelmente é apenas a emoção. Sem a poção dela, foi demais. —
Eu digo pensativamente. Espero que seja só isso. É por isso que não pude
fugir com Luke. Apenas uma manhã tomando café da manhã com ele e meus
pais, e eu tenho uma paciente no chão, inconsciente. — Deite-a, por favor.
O coração de Emma é fraco. Desde que estávamos na escola. Na
verdade, ela foi minha primeira paciente e tratá-la é uma onda de nostalgia
até hoje. Nós escapulíamos para a floresta, às vezes com Luke, às vezes não.
Eu fazia suas misturas de frutas vermelhas, folhas, água do rio, flores, às
vezes até lama, e ela as tomava obedientemente.
Mesmo quando estávamos apenas brincando, sempre quis ajudar. Ela
sempre jurou que minhas poções funcionavam, mesmo naquela época.
Felizmente, nunca saio de casa sem minha mochila. Minha cesta tem
criações personalizadas – adaptadas às necessidades individuais das pessoas.
Mas minha bolsa é um kit básico com os fundamentos de herbologia e meu
caderno pessoal. Nunca posso ter certeza do que alguém pode me pedir por
capricho ou do que posso precisar a qualquer momento.
Pego uma série de ervas e amasso em um pequeno copo de madeira.
Estou tão absorta que nem percebo que atraia uma audiência. Uma sombra
eclipsa a luz do sol, lançando-me na escuridão.
Ruth gagueja incoerentemente, olhando para o homem esguio. Eu viro
meu olhar para o alto, encontrando os olhos do Rei Elfo, que pairam sobre
mim.
— Continue. — Sua voz é um sussurro de seda.
— Eu...
— Não toque nela! — Luke grita, passando pela fila de pessoas que se
afastaram de Ruth, Emma e de mim. — Não encoste um dedo nela.
— Luke, pare. — Qualquer afeto que eu sentia por ele está murchando
rapidamente. É como se ele tivesse se transformado em um estranho nas
últimas vinte e quatro horas. Há outra pessoa ocupando o contorno do
homem que conheci.
O rei se vira lentamente para enfrentar Luke. Ele inclina a cabeça, como
se estivesse olhando para um gato, ou um rato, ou mesmo uma mosca.
Provavelmente é tudo o que somos para ele.
A temperatura despenca repentinamente. Um frio de inverno faz meus
dentes baterem e minhas mãos tremerem. Estou dividida entre continuar
ajudando Emma e assistir o que acontece com Luke.
Luke toca sua pulseira de Guardião, segurando-a contra ele.
— Sim, Guardião da Bruma — o Rei Elfo diz suavemente. — Agarre
sua labradorita1. Ela irá proteger você do Saber, mas não fará nada para
proteger o mundo ao seu redor.
O Saber? Nunca ouvi falar disso antes. Mas não posso demorar
pensando nisso enquanto as pedras sob os pés de Luke ganham vida de
repente. Elas sobem, curvando-se de forma anormal e formando uma cela de
prisão em torno de onde Luke está. Eu fico olhando com admiração e horror
para a magia selvagem.
O Rei Elfo olha para mim.
— Bem? Cure-a. — Ele comanda, impaciente.
Eu observo, impotente, enquanto Luke luta contra sua prisão, mas as
barras de pedra não se movem. Ele está tão indefeso quanto o resto de nós
em face do poder que desafia todas as leis da natureza. Eu gostaria de poder
fazer algo por ele, mas sei que não posso. Não há nada na minha bolsa de
ervas que possa reverter a magia selvagem.
O gemido suave de Emma traz minha atenção de volta para ela. Ela é
quem mais precisa de mim agora – e quem eu posso ajudar.
Independentemente das ordens do Rei Elfo, ela é meu dever.
Com a última das ervas em meu copo, coloco-o cuidadosamente no
chão diante de mim. Na minha bolsa está uma pequena caixa de pólvora.
Acendo um pedaço de pau-brasil seco e o coloco no copo. Ele se inflama ao
queimar rapidamente, incinerando as ervas esmagadas e chamuscando a
borda.
Eu faço uma oração silenciosa aos deuses antigos para que isso
funcione. E mergulho meu dedo na fuligem e nas cinzas. Eu esfrego uma
linha embaixo do nariz de Emma. Parece um bigode ridículo que fazíamos
uns nos outros quando éramos crianças como um tipo piada, quando alguém
adormecia durante o intervalo entre as aulas.
A respiração superficial de Emma pega o cheiro das cinzas e ela acorda
de repente.
— Emma. — Eu fico pairando sobre ela, então eu sou a primeira que
ela vê – não o Rei Elfo. Ela não precisa de mais choques. — Emma, como
você se sente?
— Luella? Eu... O que aconteceu? — Ela murmura.
Eu olho para Ruth.
— Leve-a de volta para casa; ela precisa descansar. Eu passarei lá mais
tarde com uma poção fortalecedora.
— Tudo bem.
— Eu posso ver agora. — Duas palavras do Rei Elfo congelaram todos
nós no lugar.
A respiração de Emma é rápida e superficial. Ela vai desmaiar de novo
com tanta emoção. Eu me levanto do chão e fico entre Emma e o Rei Elfo.
— Vão — eu digo a elas. — Vão para casa. Ninguém irá impedir
vocês.
Elas se levantam lentamente e começam a se afastar quando o rei diz:
— Você não fala por mim.
— Emma não é sua rainha. — Eu me viro para encará-lo. Minhas
entranhas se liquefazem. Mas jurei fazer o que é certo com os meus
pacientes. Jurei ajudar esta cidade. E se ajudar Emma significa enfrentar o
Rei Elfo, então este é apenas mais um dia de trabalho. — Ela precisa
descansar. Você tem que deixá-la ir.
— Ela está livre para ir. — O rei acena com a cabeça para seus
cavaleiros e eles permitem que Emma e Ruth passem. — Porque você está
certa, ela não é a minha rainha. Eu encontrei a mulher que procuro.
— Que bom, agora vá embora. — Murmuro baixinho. Mas quando meu
olhar se volta para trás, encontro sua atenção apenas em mim. O peso de seu
olhar me lembra o quão ousada eu tenho sido e todo o meu interior se desfaz.
— Você se escondeu por tanto tempo — ele diz, perigosamente baixo.
— Não tenho ideia do que você está falando.
Ele dá um grande passo à frente, invadindo meu espaço. Assim tão
perto, posso sentir o cheiro dele. O ar ao seu redor é perfumado com uma
colônia de sândalo, musgo e uma nota fresca e cintilante como o ar antes de
uma tempestade. É um aroma adorável, terroso e inebriante que contrasta
fortemente com a carranca de nojo que ele usa.
Tento me afastar, mas estou presa. Ele estende a mão, deslizando a
ponta dos dedos pela minha garganta. Eu tremo, congelada no lugar.
Os dedos do rei se engancham no colar que Luke me deu anos atrás.
Eles escorregam até o pingente e ele fecha o punho. Sua expressão escurece
para algo quase sinistro e me pergunto se deveria estar implorando por
minha vida.
Sua outra mão trabalha em volta da minha garganta, embalando minha
cabeça. Seus dedos se movem. Ele está prestes a quebrar meu pescoço? É
assim que eu vou morrer?
— Você saberá, em breve. — Diz ele antes de arrancar o colar.
O mundo fica branco, então se enche de gritos.
CAPÍTULO 4
ESTOU TONTA E SEM FÔLEGO. A ENERGIA CHIA E SE QUEBRA EM MEU CORPO. UM PODER inexplicável que eu não
deveria possuir ameaça me partir.
Como fogos de artifício, a magia explode de mim em rajadas. Ela
atinge os postes de luz que cercam a praça. O vidro se estilhaça e cai no chão
como pétalas de cerejeira. Onde antes ficava o ferro, agora existem árvores.
Um tapete exuberante de musgo e grama se desdobra nas pedras da
praça. Moitas e trepadeiras brotam dele e rastejam pelos edifícios como
tentáculos retorcidos e ferozes tentando retomá-los. O mundo ao meu redor é
transformado, substituído pelo natural. É como se a natureza tivesse surgido
dos meus pés para se opor à audácia da arrogância da humanidade em se
opor a ela.
Eu posso ver isso agora. Isso? Não. Tudo. Eu posso ver tudo.
Meus olhos nunca estiveram mais abertos. Eu vejo cada pulso de magia
– de vida – naqueles ao meu redor. Eu vejo a essência crua da existência e
isso rouba meu fôlego e compostura.
Lágrimas frias e amargas correm pelo meu rosto. De repente estou com
calor. Sou fogo derretido em um mundo que se tornou gelo.
O rei finalmente me libera e eu tropeço para trás, caindo no chão, com
os braços para trás para me apoiar. O musgo cresce sobre meus dedos.
Pequenas videiras surgem, agarrando meus pulsos. Eu puxo minha mão e
aperto meu peito sob a minha camisa, ofegante. Meu cabelo vermelho cobre
meu rosto ao redor do meu queixo e eu o uso por um breve segundo de
privacidade enquanto fecho meus olhos.
Isso não pode ter sido real. Diga-me que tudo isso é um pesadelo, tenho
vontade de gritar.
Mas enquanto me endireito, não posso deixar de ver. A praça se tornou
algo saído de um livro de histórias. Plantas e humanos pulsam com uma luz
esverdeada. Os objetos inanimados são cinzentos.
Pisco várias vezes, observando as auras entrarem e saírem da minha
consciência. Tudo ao meu redor está inundado com a mesma cor... exceto
ele.
O rei é azul claro. A aura que o cerca é diferente da mágica calma e
ordenada de vida. Sua magia é contorcida, raivosa e violenta. Muito parecida
com a carranca em seu rosto. Seja qual for a visão que me foi concedida, se
desvanece enquanto continuo a olhar boquiaberta para ele.
Ele me encara, olhos ilegíveis, sobrancelha franzida.
— O que... — Eu grito, tentando encontrar minha voz. — Como?
Ele inclina a cabeça para o lado.
— Então você realmente não sabia.
— Eu... — Minha garganta fecha e eu engasgo com o ar.
Saber.
Saber que eu sou a Rainha Humana, ele quer dizer.
— Diga-me o que está acontecendo? — Eu consigo dizer, mas sou
ignorada.
— Então a questão é: quem? — O rei se vira, varrendo os olhos pela
praça. As pessoas que conheci, meus amigos e minha família, olham em
choque, completamente pasmas. — Quem a escondeu? Quem deu isso a ela?
— O rei exige, segurando o colar que ele arrancou da minha garganta.
— Isso... — No momento em que eu falo, os olhos do Rei Elfo estão de
volta em mim, acusadores e opressivos. Mesmo se eu tivesse a capacidade
de mentir, não poderia. Meus olhos já me traíram enquanto se dirigiam para
o meu amigo de infância enjaulado. — Luke. Foi um presente de Luke.
— Como você ousa? — Luke cospe as palavras para mim. Seu rosto
está feio, horrível. É a cara do ódio. Os olhos com que sonhei – olhos que,
horas atrás, olharam para mim com admiração quando ele declarou que se
casaria comigo – agora não consigo reconhecer. — Eu te amei, queria te
proteger e agora você me condena?
— Isso... isso teria vindo à tona de qualquer maneira. — Eu defendo
minhas ações por instinto. Isso só o deixa mais bravo. Ele não consegue ver
que o melhor caminho possível é a honestidade? Tenho certeza de que tudo
isso é algum tipo de mal-entendido. Tem que ser.
— O que significa isso? — a Guardiã-Chefe exige.
— O que você fez? — Outro dos Guardiões pergunta.
Luke não diz nada. Ele continua a cravar punhais em mim apenas com
os olhos, segurando-me no chão como se eu fosse nada mais do que sujeira
para ele.
Ele disse que me amava.
O rei marcha para perto de Luke e a prisão de pedra que o continha
derrete. Ele agarra o rosto de Luke com tanta força que suas unhas cravam
em seu queixo, tirando sangue.
— Diga a eles o que você fez. — Rosna o rei.
— Eu não fiz nada. — Luke afirma.
O Rei Elfo lança Luke no centro da praça, em um círculo criado por
todos os reunidos. Luke cambaleia, girando, procurando alguém para ficar
do seu lado. Todos nós podemos ouvir a mentira em sua voz. Seus olhos
pousam em mim. Eles imploram por algo que não sei se posso dar. Eu
poderia ter sido capaz, uma vez, mas não mais.
— Diga a ela o que você fez. — Ordena o rei.
— Eu tentei levar você embora. — Luke respira. Posso ver que seus
olhos estão vermelhos, as lágrimas brotando neles. — Por que você não
fugiu comigo?
— Como ela conseguiu isso? — O Rei Elfo empurra o colar que Luke
me deu na cara dele.
— Alguém me ajude, por que ninguém me ajuda? — Luke se vira,
implorando aos habitantes da cidade.
Ninguém se apresenta.
— O que aconteceu? — Finalmente encontro minha voz. Usando o que
resta de minha força, eu me levanto, recolhendo minha bolsa de onde ela
caiu ao meu lado. — Diga-me. — Eu exijo.
Ele desmorona.
— Eu... eu nunca quis que você se machucasse. Eu nunca quis que nada
disso acontecesse. — Posso ver a mentira nos olhos inconstantes de Luke
enquanto ele fala. Mentiras, mentiras, mentiras. — Eu pensei... pensei que
poderíamos encontrar outra maneira.
— O que você está dizendo? — Eu sussurro. Os olhos de Luke voltam
para mim.
— Você se lembra do dia em que fui com você e Emma para a floresta?
Quando tínhamos doze anos? Foi a primeira vez que ela teve um de seus
ataques e você fez uma poção para ela. — Eu me lembro, exatamente como
ele diz. — Eu vi então – como você exerceu magia sem perceber. Como
pequenas flores brotaram em suas pegadas entre a grama atrás de você, sem
que você nunca tenha notado. Como as árvores pareciam farfalhar saudações
enquanto você passava e, no entanto, você sempre pensou que era o vento.
A floresta parecia tão viva quando eu era criança, como se tivesse
personalidade própria – uma amiga, tanto quanto um lugar. Eu pensava que
tinha sido apenas algo que desapareceu com a idade e a maturidade. Mas
agora não tenho certeza.
— Eu sabia que você era a rainha. — Ele admite. Os habitantes da
cidade engasgam.
A Guardiã-Chefe dá um passo à frente.
— Como você ousa. — Ela diz o que todos estão pensando.
— Mas eu não podia desistir de você. Eu não iria. Eu te amava naquela
época, assim como te amo agora. — Luke continua, falando apenas para
mim. — Então eu encontrei esse colar nas lojas dos Guardiões e dei para
você. Achei que isso iria mantê-la escondida e quando tivéssemos idade o
suficiente, eu iria–
— Me levar embora — eu termino, em um sussurro. Ele engole em
seco e acena com a cabeça.
Como se fosse um comando, o rei joga o colar que arrancou da minha
garganta para o palco. Ele cai aos pés da Guardiã-Chefe.
— Marca élfica, um antigo estilo de token. Há séculos que não
negociamos mercadorias desse tipo com Capton, então não tenho dúvidas de
que estava muito bem escondido. Obsidiana negra para silenciar os poderes
dela e labradorita para protegê-la do Saber caso ela encontrasse algum elfo
que tentasse descobrir seu Nome Verdadeiro.
Eu olho para o colar e depois volto para Luke.
— Você disse que me protegeria.
— Eu estava tentando poupar você. — Luke implora com uma voz
estridente e chorosa que eu nunca ouvi dele antes. — Eu pensei que poderia
salvá-la de um futuro terrível.
As ações de Luke, minhas habilidades para cura, o fato de que sempre
me senti ligada com o dever, tudo faz sentido agora. Um sentido terrível,
horrível.
— Luella. — Luke cambaleia em minha direção. — Eu já te amava,
mesmo naquela época. Eu fui feito para você, e você foi feita para mim.
Um braço esguio bloqueia o caminho de Luke, impedindo-o de chegar
mais perto de mim. Nunca pensei que ficaria grata pelo Rei Elfo. Mas não
sei o que faria se Luke se atrevesse a me tocar agora. Já é difícil ter ele
olhando para mim.
— Não — eu digo sob minha respiração para Luke. — Você não me
ama, nunca amou.
Ele tenta contornar o Rei Elfo. Mas o rei continua a se posicionar no
caminho de Luke, agarrando seu pulso.
— Você tem que acreditar em mim. Tudo o que fiz foi tentar salvá-la
desse futuro miserável.
— Você tentou me salvar às custas de todos que eu amava! Você veria
todos eles sofrerem e morrerem porque você queria me manter escondida
para você.
— Por amor!
— Isso não é amor! — Eu permito que minha voz ecoe até o topo das
montanhas. As árvores estremecem com a minha raiva. Suas raízes sacodem
a base da terra bem abaixo de meus pés. O vento uiva e uma tempestade se
fecha no horizonte. — Amor é escolha — eu continuo antes que ele possa
dizer outra palavra. — Você... você queria me possuir. Você queria me
manter para você, independentemente de como eu pudesse ter me sentido.
Você nunca me permitiu tomar uma decisão sozinha e nossa cidade, nosso
povo, sofreu por causa do seu egoísmo. Me enoja pensar no que poderia ter
acontecido com todo o nosso mundo se você tivesse conseguido prosseguir
no seu plano.
Todos os funerais de pessoas da cidade que participamos, mortos antes
de seu tempo por causa da Fraqueza, passam diante de mim. Luke, de pé
com os outros Guardiões, lamentando sua perda como se ele realmente se
importasse – como se suas ações não tivessem levado as suas morte. Suas
lágrimas não significaram nada naquele tempo, assim como seu remorso
significa agora.
— Luella–
— Pare — eu sussurro. — Nunca diga meu nome de novo. — Eu
desejo que a terra se abra e o engula por inteiro. Com a forma como me sinto
agora... ela poderia muito bem obedecer ao meu comando. — Levem-no
daqui. Eu quero que ele vá. — Eu falo a ninguém em particular. Eu não me
importo com quem faria isso.
É o Rei Elfo que presta atenção em mim. Ele arranca a pulseira de
Guardião de Luke sem nem um segundo de hesitação. Seus olhos cintilam
em um azul brilhante, ele cruza os braços diante de si e, em seguida,
lentamente os separa – como se estivesse esticando um caramelo entre as
mãos. Luke fica rígido e fica na ponta dos pés de maneira anormal. Os dedos
do rei ficam ainda mais tensos, puxando. Um som patético e choroso escapa
de Luke enquanto ele se contorce. Barulhos enchem o ar. Os habitantes da
cidade começaram a gritar.
— Não! Não o machuque! — Corro até o Rei Elfo e agarro seu braço.
Ele olha ofendido e em choque para o meu toque. — Eu não o quero morto.
— Meu coração está sendo dilacerado. Eu não posso suportar testemunhar
Luke sendo dividido em dois. O Rei Elfo tenta me afastar, mas eu seguro
rápido, me firmando em meus calcanhares. — Ele deve ser julgado pelo
Conselho de Capton. Ele deve pagar pelos seus crimes de forma justa e
honesta.
O Rei Elfo estreita os olhos para mim com uma carranca e, por um
momento, acho que ele irá me ignorar. Eu não o liberto. O que mais ele pode
querer tirar desta cidade? Ele já tem minha vida. Se eu sou a Rainha Humana
– e eu sou, não há como negar depois daquela demonstração anterior – ele
não deveria precisar de mais nada.
— Luke não importa para você — eu digo, minha voz fina. — Meu
povo vai se certificar de que a justiça seja feita. Você tem a mim, deixe-o ir.
O rei solta Luke e ele cai no chão, ofegante. Dois Guardiões avançam e
o agarram por baixo de seus braços. Eles começam a arrastá-lo para longe,
Luke implorando e murmurando desculpas o tempo todo.
Nenhum dos habitantes da cidade escuta. Eles o encaram abertamente,
seus rostos frios e fechados.
O Rei Elfo se volta para mim.
— Venha, minha Rainha, devemos partir imediatamente. Você é
necessária além da Bruma — diz ele gravemente.
Estou dormente do topo da minha cabeça até os dedos dos pés. Ele
agarra meu braço, me trazendo de volta à realidade. Eu olho para ele. Mil
objeções em minha língua e ainda não consigo reunir forças para dizer
nenhuma delas.
Desde menina, aprendi o destino da Rainha Humana. Se eu contar a ele
sobre meus deveres como curandeira, será como apelar para ouvidos surdos.
Se eu implorar a ele para me deixar ficar um pouco mais, sei que ele vai
recusar porque é assim que as coisas são.
Se eu me recusar a ir, meu mundo morre.
— Não há tempo. Você e eu devemos nos casar.
CAPÍTULO 5
DEVEMOS NOS CASAR. EU. COM O REI ELFO. NÃO CONSIGO PENSAR DIREITO.
— Quando? — Eu consigo perguntar.
— Agora. O tempo é essencial — diz a Guardiã-Chefe.
Minha atenção se desvia da Guardiã-Chefe, pousando em um homem
ao lado dela – meu pai. Minhas costelas batem contra meus pulmões e deixo
escapar um suspiro suave de ar que sufoca em uma emoção mais crua do que
lágrimas.
— Mas... — Eu começo.
— Não há tempo — o rei diz rispidamente. — O fato de que fui capaz
de vir aqui e precisar usar tanta magia selvagem neste plano é prova
suficiente de que a Bruma está oscilando. As linhas entre nossos mundos
estão se partindo – o que, garanto, é algo que você não quer.
Eu procuro um lampejo de alguma bondade ou resignação nos olhos do
rei. Mas tudo que vejo é pura determinação. Eu me pergunto se ele está
suportando isso sozinho por força de vontade também. Eu me pergunto o
que ele está escondendo sob sua superfície cuidadosamente composta.
Talvez ele não esteja escondendo nada e seja apenas um homem de pedra e
magia.
— Faremos isso agora — diz a Guardiã.
Procuro minha mãe na multidão, mas não consigo encontrá-la. Entre os
arbustos e as árvores, ambos criados magicamente, e o fato de quase toda
Capton estar reunida, não a vejo em lugar nenhum. Eu me volto para meu
pai. Sua boca está pressionada em uma linha dura. Ele não diz nada.
Ele sabe que isso tem que ser feito, assim como eu. Não há escolha.
Nós marchamos em um grande grupo até o templo. Estou em silêncio,
rígida, caminhando ao lado do Rei Elfo. Tento manter minha cabeça erguida,
mas estou cansada, muito cansada. Num momento eu estava na praça da
cidade. No outro, estou no salão principal do templo sendo ungida com óleo,
com os habitantes da cidade me cercando e a Guardiã-Chefe folheando um
livro gigante no altar.
A luz do sol desce através do vitral atrás da Guardiã-Chefe. Ela atinge
meus ombros, mas não consegue iluminar o vazio escuro que cresce dentro
de mim. Estou cercada – as pessoas estão amontoadas nas fileiras
organizadas de bancos de sequoia, esculpidos nas poderosas árvores que
cercam o templo – mas me sinto sozinha. Eu nem mesmo consigo admirar a
arquitetura orgânica do templo como eu normalmente faria, com todos os
seus tetos abobadados sustentados por galhos retorcidos, como se tivesse
sido cultivado em vez de feito à sombra da grande sequoia em seu coração.
Silêncio ensurdecedor ressoa em meus ouvidos enquanto fico em frente
ao Rei Elfo. Estou prestes a me casar... com o Rei Elfo. Esse pensamento
quase me faz vomitar.
— Posso ter um minuto? — Eu sussurro.
— Não há tempo — sussurra a Guardiã-Chefe de volta, sem ser
indelicada.
— Para o banheiro, por favor. — Se eu ficar, vou vomitar. Ou desmaiar.
Talvez os dois, um depois do outro.
— Isso vai acabar logo. — Ela encontra sua página e começa a ler. —
Diante dos deuses antigos, nos restos da fortaleza do outrora reino de
Alvarayal, à sombra da pedra angular original, honramos o pacto feito...
Não vomite. Não vomite. Eu não ouço mais a Guardiã-Chefe. Tudo o
que ouço na minha cabeça é aquela frase singular se repetindo
incansavelmente.
O Rei Elfo levanta as mãos. A sensação de seus olhos perfurando
minha testa traz meus olhos até os dele. Eu engulo secamente.
— Que as mãos deles se juntem pela primeira vez — repete a Guardiã-
Chefe com firmeza e alguma agitação. Deve ser a segunda vez que ela diz
isso. Eu me seguro para não responder a ela que não tenho ideia do que está
acontecendo.
Normalmente, a Rainha Humana é identificada aos dezesseis ou
dezessete anos. Ela tem de um a três anos para estudar no templo sob a
orientação dos Guardiões. Ela é alimentada com comida de além da Bruma,
ensinada sobre os caminhos élficos e lhe é ensinado o conhecimento secreto
que os Guardiões protegem.
O Rei Elfo estende as mãos com expectativa. Eu levanto meus dedos
trêmulos e os coloco nos dele. Seu aperto frio fecha em torno do meu. Seus
olhos cintilam em um azul brilhante, assim como brilhavam antes de prender
Luke.
Suponho que eu esteja indo para um tipo diferente de prisão.
Uma brisa fria passa por mim. É rápida, estimulante, mas não me faz
tremer. Eu fico mais ereta. O gelo se condensa na parte de trás da minha
cabeça, irradiando uma compostura fria pela minha espinha e pelos meus
membros. Meus olhos estão fixos nos dele enquanto minha boca se move.
— Eu honrarei o pacto — digo. Acho que estou repetindo a Guardiã-
Chefe, mas não posso ter certeza. Não posso ter certeza de nada além do Rei
Elfo. Eu já coloquei os olhos em alguém – em qualquer coisa – mais perfeito
antes? Como eu poderia ter medo disso?
Isso é o certo. É assim que o mundo deveria ter sido o tempo todo. Uma
profunda sensação de calma não natural me preenche.
— Eu honrarei o pacto — ele repete.
— Vou cumprir minha obrigação para com este mundo e com aqueles
do outro lado da Bruma. — Começo novamente — Eu irei defender as
pedras angulares. Usarei os poderes transmitidos através do meu sangue pelo
destino para o bem de todos nós – para a paz. Vou manter a ordem que é
tanto natural quanto construída.
— Vou honrar meu marido.
— Vou honrar minha esposa.
Sim, certo, minha mente deixa escapar traiçoeiramente. Mas o
pensamento foi bloqueado pela minha resolução. Estou me casando com o
rei do gelo. Terei que ser uma rainha frígida para combinar.
A Guardiã-Anciã diz mais algumas palavras e a cerimônia estava feita.
Nós soltamos nossas mãos e pela segunda vez em um dia eu fico
olhando para as minhas. Que magia foi feita aqui? O que eu fiz?
Eu me casei, foi o que fiz. Sempre que me imaginava casada – se é que
me imaginava casada – Luke era quem estaria estava parado na minha
frente. Eu volto meu olhar para o Rei Elfo, vendo seus olhos azuis brilhantes
ainda em mim.
— Devíamos partir para a Bruma — diz ele.
Eu concordo.
O rei estende a mão para mim e eu a pego. Sua pele é lisa e fria ao
toque, seu aperto inesperadamente suave. Ele me conduz através das palmas
das nossas mãos, unidas de uma forma rígida e desajeitada. Saímos do
santuário, contornamos pelo lado e começamos a descer por um caminho
lateral. Eu sei, sem que ninguém tenha que me dizer, que isso nos levará em
direção à Bruma.
Os habitantes da cidade se aglomeram atrás de nós, movendo-se
silenciosamente para pairar ao pé da trilha. A floresta está úmida; as árvores
enredam seus ramos na névoa como dedos nos cabelos de um amante. Vejo
flores brotando e desabrochando ao meu lado enquanto caminho. Elas se
abrem para me encarar, como se este mundo estivesse dizendo adeus para
mim.
Adeus... Eu tremo, mas o pensamento fica na minha mente. Adeus,
estou indo embora. Eu tremo de novo, mais violentamente desta vez, e quase
posso imaginar o gelo invisível tremendo em meus ombros. Aquele núcleo
frio na parte de trás da minha mente se quebra.
— Luella! — Eu ouço a voz da minha mãe, quebrando o silêncio e eu
congelo.
Minha frágil compostura se parte.
Eu olho por cima do meu ombro. Fomos mais longe do que eu pensava.
Minha mãe e meu pai estão na entrada da trilha, perto do santuário. Meu pai
a segura com força, alisando o cabelo rubi para longe de seu rosto coberto de
lágrimas. Ele murmura algo que não consigo ouvir. Mas posso ver que as
palavras são fisicamente dolorosas para ele dizer.
— Luella! — Ela grita novamente.
— Mãe! — Meu coração está disparado mais uma vez. O calor inunda
meu corpo e minhas bochechas. Eu largo a mão do rei e começo a correr.
Ele agarra meu cotovelo. Eu giro no lugar.
— Nós temos que ir para além da Bruma. Precisamos deste tempo
precioso.
Os olhos do Rei Elfo voltaram à cor normal. A magia brilhante que
brilhava neles se foi. É então que percebo o que ele fez.
— Você usou magia em mim — eu sussurro em realização. Aquele frio
selvagem, seus olhos brilhantes, ambas as características que estou
começando a associar à magia dos elfos. O ódio se mistura com o horror em
minhas entranhas e contorce meu rosto.
— A cerimônia–
— Você precisava consentir.
— Seu desgraçado. — Eu me afasto dele mais uma vez. Maldita
Bruma. Maldito casamento. Malditos homens que pensam que podem me
manipular para me levar ao altar.
Um juramento feito sob influência mágica não deve ser mantido. Mas
eu sei que ninguém vai ficar do meu lado.
Eu sou a Rainha Humana. Mesmo que eu não tenha sido treinada para o
meu papel, eu sei o suficiente pelas histórias, que estão mais profundamente
enraizadas na sociedade de Capton do que as árvores ao meu redor, a qual
dizem que a Rainha Humana não tem escolha. Por magia ou circunstância...
o juramento que fiz foi forçado.
— Como você ousa. — Ele ferve com a minha linguagem.
— Deixe-me dizer adeus.
— Não.
— Eu vou. — Eu atiro de volta para ele com um olhar feroz.
Ele dá mais um passo à frente, fechando a distância mais uma vez com
suas passadas largas. Lembro-me de que estou lidando com uma criatura
perigosa. Ele pode parecer um homem, mas eu sei a verdade.
Ele não é nada mais do que uma tempestade de magia violenta.
— Muito bem. — Sua voz diminui, permitindo que somente eu ouça.
— Eu vou permitir isso a você, como minha futura rainha. E, também,
porque sei que você não teve o benefício de ter uma educação adequada.
Você não foi treinada para ser minha noiva. Mas espero que você aprenda
rápido, porque não vou tolerar minha rainha falando comigo dessa maneira.
Ele quer que eu me acovarde. Minhas pernas falham em resposta à
demanda silenciosa. Mas eu empurro meu queixo desafiadoramente. Estou
cansada demais para pensar com sensatez – bravura e estupidez são as duas
faces da mesma moeda. Se ele acha que pode me “treinar”, terei que mostrar
a ele que não é isso que deve esperar dessa rainha.
— Eu vou me despedir.
O rei me encara, mas permanece parado enquanto eu me afasto. Seus
olhos escurecem mais uma vez e sua magia me libera de seu domínio
frígido. Ele sabe que sou dele, agora e para sempre. Ele aguenta ficar sem
controle por mais cinco minutos, para eu poder abraçar meus pais uma
última vez.
Corro para os braços de minha mãe a minha espera. Ela salta do meu
pai para me pegar. Eu estendo um braço e ele se junta a nós também.
— Luella, Luella! — Mamãe chora, como se meu nome fosse a única
coisa que ela soubesse dizer. — Eu sinto muito.
— Eu não fazia ideia. — Papai diz.
— Eu sei. Eu também não. — Estamos todos juntos neste momento
terrível, prestes a ser dilacerados para sempre, e é tudo culpa de Luke. Eu
posso estar destinada a ir desde sempre. Mas ele me tomou a chance de um
adeus apropriado. Espero que ele apodreça em uma cela para sempre por
tudo o que fez.
— Lamento por não termos preparado você para isso. Se soubéssemos,
teríamos. — Mãe me aperta com mais força. Se ela continuar me segurando
com tanta firmeza, ela me espremerá e as lágrimas que estou segurando irão
cair.
— Eu sei. — Eu repito e me afasto. — Não chore, está tudo bem. —
Tento acalmá-la enquanto minha própria voz falha ao ver as lágrimas da
minha mãe. — Eu sei que você teria deixado eu me preparar para ser a
rainha. Você não sabia. Nenhum de nós sabia disso. Não foi culpa de
nenhum de nós. — Eu engulo em seco, tentando afogar minhas emoções. —
Mas agora posso ir e posso fazer a diferença. A Fraqueza chegará ao fim.
Não é como eu queria, mas ainda posso ajudar Capton.
Eu aperto meus pais com força mais uma vez e paro de tentar conter as
lágrimas. Eu respiro trêmula e choro com minha família. Essa parece a
última coisa que faremos juntos.
— Solstício de verão — diz mamãe.
— Vou tentar. — Eu penso no que o Sr. Abbot disse. E sobre como eu
nunca ouvi falar de a Rainha Humana deixar o templo antes. Espero ser
diferente.
— Luella. — A voz insensível do Rei Elfo fez a gente se separar. —
Nós precisamos partir.
Me viro rapidamente para meus pais.
— Vocês dois fiquem seguros, ok? Vou tentar enviar cartas. Eu amo
muito vocês dois.
— Não vá. — Mamãe agarra minha mão.
— Ela precisa ir. — Meu pai envolve a esposa com os braços, para a
afastar de mim.
Dou um passo para longe e depois outro. Os dedos da minha mãe se
enroscam nos meus, agarrando-se como as videiras que cresceram na praça.
Nós nos separamos e uma onda de emoção estala em mim. Uma que nunca
mais ressoará novamente. A visão do rosto de minha mãe, o som de seus
soluços, abafaram o que quer que fosse aquele sentimento feliz, para sempre.
— Sinto muito. — Eu sussurro. Eu sinto por mais do que posso
compreender neste momento.
Dando as costas a eles e ao mundo que conhecia, lentamente caminho
até o homem que é rei, marido e estranho para mim.
— Obrigada por me dar esse momento. — Eu digo a contragosto.
— Porque há gentileza em mim — ele diz rispidamente e estende a mão
para mim. Seus olhos permanecem normais – sem flashes brilhantes – então
eu hesitantemente pego sua mão e ando com ele mais profundamente na
floresta, ao longo da trilha que serpenteia em direção ao sopé da montanha
mais alta da ilha.
O som dos soluços de minha mãe desaparece. O eco da explosão de
emoção do meu pai, quando ele desmoronou ao lado dela, apenas em meus
ouvidos. O som parou de ecoar há pelas árvores.
A legião de elfos nos segue nas sombras escuras da floresta profunda.
Eu, uma rainha estranha, me movo para o grande desconhecido que é a
Bruma. A trilha se desfaz e fica cada vez mais coberta. O que antes era um
caminho pavimentado com paralelepípedos, agora é apenas uma trilha de
pedras.
Logo, não há mais um caminho. Eu estou mais longe na floresta do que
nunca e a escuridão do que eu presumo ser a Bruma se fecha ao meu redor.
A névoa densa e sombria obscurece as árvores. Ela se enrosca em torno
de nós e na escuridão eu vejo os contornos de figuras vagando a distância.
Alguns parecem humanos e outros, bestas. Eu estremeço, não inteiramente
por causa do frio.
Meus dedos se fecham um pouco mais firmemente em torno dos do rei.
Certamente devemos estar ao pé da montanha agora. Eu olho para trás e
não vejo nada além de elfos e escuridão. A floresta profunda lateja com
ansiosa energia. Há poder aqui, esticado ao meu redor, vibrando sob a
tensão.
Então, ao longe, vejo um raio de luz. A escuridão se torna um túnel. As
árvores tão condensadas que formam uma parede quase perfeita. Videiras e
galhos se erguem no alto conforme a luz aumenta.
Piscando, eu saio do outro lado da Bruma pela primeira vez e dou meus
primeiros passos na cidade dos elfos.
CAPÍTULO 6
ESTAMOS PARADOS NO TOPO DE UMA LONGA ESCADA – EMBORA NÃO TENHA METADE da distância do caminho
íngreme que leva de Capton ao terreno do templo. Atrás de mim, um corte
na encosta da montanha forma uma parede. A única abertura é a mancha
escura na pedra lisa da qual acabamos de sair.
Abaixo de nós, uma cidade cinza se espalha em um vale aninhado em
uma bacia formada por montanhas. Os ventos do inverno uivam através das
construções e árvores estéreis, correndo para beliscar minha pele. Parece
frio, intimidador, desanimador, e nada como a alegria calorosa que eu
sempre imaginei pairando sobre Capton.
— Bem-vinda a sua nova casa — o rei diz, soando qualquer coisa,
menos acolhedor.
— Não é o que eu esperava. — Minha voz está falhando, cansada das
ondas de emoção nas quais estou navegando.
— O que você esperava?
— Algo mais... luxuoso. — As casas são simples, não melhores do que
as que temos em Capton, embora tenham um estilo de construção diferente.
Nossas casas são mais pragmáticas e quadradas. Esses prédios têm telhados
de palha e segundo e terceiro andares que os fazem parecer um castelo de
cartas oscilante.
Mesmo sendo diferente, é... monótono. Eu esperava um mundo repleto
de vida e magia. Mas a vista que me recebe parece uma pintura triste, uma
em que o artista esqueceu que tinha mais cores do que apenas azul e cinza.
— Porque você pensaria isso?
— Os elfos parecem bastante sofisticados. Com base nas mercadorias
que os Guardiões sempre mantiveram trancafiadas. — Eu encolho os
ombros. O sentimento me lembra de minhas poucas posses no meu quarto no
sótão – do bule élfico ainda em minha loja. Eu agarro a bolsa que levei
comigo para a assembleia esta manhã. Pelo menos tenho algo de casa.
Graças a Deus, nunca saio sem meu diário e itens essenciais.
Ele bufa e não diz mais nada sobre o assunto, se contentando em dizer
simplesmente:
— Venha.
Eu o sigo escada abaixo com os dentes batendo. A legião de elfos
marcha atrás de nós. Embora tenha sido um entardecer quente e agradável
em Capton, aqui é um amanhecer de inverno congelante. A cidade está
acordando. As ruas ainda estão praticamente vazias. Tudo está
estranhamente quieto e coberto por uma geada para combinar com o céu
cinza.
No centro da cidade está um grande lago. Um rio corre dele para a
montanha atrás de nós, provavelmente até Capton. No centro deste lago há
uma escultura de um elfo e uma mulher humana.
Eu faço uma pausa. O rei também para, assim como a legião, vários
passos atrás.
— Essa é a primeira Rainha Humana?
Ele hesita por um momento, como se estivesse debatendo se deveria me
responder.
— Sim. E um dos meus predecessores, muito distante.
— Predecessores? — Eu olho para ele. — Você não é o Rei Elfo?
— Que pergunta estranha. — Ele estreita os olhos para mim. — Como
você pode duvidar disso depois de tudo o que aconteceu?
— Não, eu... — Eu aperto a ponte do meu nariz e suspiro. Tem sido um
dia muito longo. — Eu pensei que todas as Rainhas Humanas fossem
casadas com o mesmo Rei Elfo.
Ele inclina a cabeça para trás e ri. Seria um som adorável, se não fosse
às minhas custas.
— Você acha que um homem está vivo há três mil anos?
— Bem...
— Os rumores sobre a longevidade dos elfos são muito exagerados em
suas histórias humanas. Nós, elfos, vivemos tanto quanto os humanos de
Capton. — O rei me encara. — Nossas vidas foram amarradas uma à outra
desde o momento em que nos casamos. Quando você morrer, estarei
marcado para morrer não muito depois.
— Então, seu pai era o rei casado com Alice?
Ele fica rígido, tenso. Os músculos de sua mandíbula saltam enquanto
ele luta contra o que quer que seu primeiro instinto lhe influencie a dizer.
— Ele era.
Sem mais uma palavra sobre o assunto, seguimos em frente. Embora eu
desse qualquer coisa para parar e sondar as profundezas das emoções que ele
estava tentando esconder. O que Alice foi para ele? E qual era realmente o
lugar dela neste mundo?
Eu olho para trás, para a estátua dos primeiros Rei Elfo e Rainha
Humana. O rei segura uma grande tábua em suas mãos, erguendo-a para
cima. A rainha está de joelhos diante dele. Mãos pressionadas no chão a seus
pés, como se estivesse em servidão.
Eu estudo os detalhes da escultura desgastados pelo tempo, tentando
reunir todas as informações que posso dela. Mas a aparência do rei e da
rainha desapareceu, e estão cobertos de geada e neve. Ainda assim, eu quero
encontrar algum sentimento através dela – a primeira mulher a se colocar de
bom grado na minha posição pelo bem da paz entre os humanos e as
criaturas mágicas de além da Bruma.
A magia dela está em mim agora, se forem verdadeiras as histórias
sobre a magia ser passada de rainha para rainha.
— Como você soube eu era a rainha? — Eu pergunto enquanto nos
aproximamos de um castelo à distância. Está encravado entre duas
montanhas, o castelo cobrindo toda a largura da abertura que conecta este
vale a qualquer mundo que esteja além. O rei olha de relance para mim e eu
não sei dizer se ele está irritado porque eu quebrei o silêncio de novo ou não.
Eu continuo de qualquer maneira. — Eu entendo que o colar estava tentando
me esconder – minha magia – mas como você sabia antes de tirá-lo?
— Eu vi você fazendo mágica.
— Mas a obsidiana negra não ocultou minha magia?
— Algumas pessoas nunca podem ser escondidas; elas foram feitas
para serem vistas.
— Você tinha certeza — eu insisto, sem aceitar sua resposta vaga e
poética.
— Eu toquei em você — ele diz simplesmente.
— Você soube por um toque?
— Você ouviu mais cedo, o colar era de labradorita e obsidiana negra.
A obsidiana negra era para esconder seu poder. A labradorita é uma pedra
rara, extraída aqui no Entre Mundos que pode impedir que eu, ou qualquer
outro elfo, execute o Saber. Normalmente, a labradorita bloqueia o Saber
tanto da visão quanto do toque. Contudo–
— Espere, o que é o Saber?
Ele suspira, como se a conversa estivesse rapidamente se tornando
tediosa. Azar o dele de que eu não me importo em ser chata. Eu me importo
com as respostas.
— O Saber é quando um elfo identifica o verdadeiro nome de um
objeto, criatura ou pessoa. O Nome Verdadeiro é o som dado à essência crua
do que uma coisa é – um som único para cada criatura e coisa. Os elfos
realizam o Conhecimento pela visão, ou toque, e pela nossa magia inata. —
Diz ele. — Uma vez que um Nome Verdadeiro é conhecido, o elfo pode
manipular a criatura ou a coisa o quanto quiser.
— Um elfo pode fazer qualquer coisa contra algo ou alguém de quem
tenha um Nome Verdadeiro? — Eu penso em Luke, se contorcendo
dolorosamente.
— Contanto que um elfo tenha um Nome Verdadeiro, eles são limitados
apenas por seus próprios poderes e imaginação.
Tento suprimir um estremecimento e falho.
— E você sabe meu Nome Verdadeiro agora?
— Sim. Pude sentir seu Nome Verdadeiro, apesar da labradorita,
quando nos tocamos – algo que eu não deveria ter sido capaz de fazer. A
labradorita deveria ter protegido você. Mas pude sentir seu verdadeiro nome
porque você é a Rainha Humana e esteve destinada a mim desde o seu
nascimento. E como eu disse, mesmo se eu não tivesse tocado em você, eu
vi você fazer magia rudimentar sem perceber. — Seus pés diminuem a
velocidade até parar quando nos aproximamos de uma praça, antes de uma
ponte levadiça gigante. — Falando em labradorita, você vai precisar disso
para o seu tempo aqui. Sua mão, por favor.
Eu me obrigo a estender o braço. Ele puxa um anel feito da mesma
pedra arco-íris – que agora conheço como labradorita – e o coloca no meu
dedo anular esquerdo. Eu luto contra o desejo de arrancá-lo. Tudo o que vejo
é outro símbolo daquela pedra terrível que um outro homem colocou em
mim, tentando me reivindicar. Só consigo pensar em Luke.
— Eu preciso mesmo? — Eu sussurro.
— Sim — diz ele com firmeza. Embora o Rei Elfo hesite antes de soltar
minha mão. — Se você desejar mudar o dedo em que está, você pode fazer
isso. Eu não me importo se você usar isso como um símbolo de nosso
casamento. É meramente para protegê-la de outros elfos que tentarem usar o
Conhecimento em você. Se outra pessoa descobrir seu Nome Verdadeiro,
pode ser perigoso.
— Alguém me machucaria?
— Nenhuma rainha ou rei é imune a inimigos — ele responde
gravemente, acenando com a cabeça em direção à legião atrás de nós.
— Quem… — Antes de fazer a pergunta, sou silenciada pelo que
parece ser uma general se aproximando.
A pele dela é de um marrom rico e suas longas tranças são pretas, com
listras de um azul brilhante. Seus olhos são da cor do mar agitado. Uma
espada está presa a seu quadril e seus movimentos são contidos e rígidos.
Três cordões estão presos a belas ombreiras. Botões decorativos estão presos
sobre o seio.
Os botões me lembram dolorosamente do alfinete ornamentado que
meu pai ganhou quando se tornou membro do conselho. Respiro fundo,
tentando sufocar uma onda repentina de emoção. Estou lutando para
encontrar meu lugar em um novo mundo. Não posso permitir que alguns
botões sejam o que me quebre na frente do Rei Elfo e seus soldados.
— Sua Majestade. — Ela abaixa a cabeça.
— Leve a rainha para seus aposentos e providencie para que ela seja
vestida de forma adequada à sua posição. Não podemos esperar nem mais
um minuto. Fica mais frio a cada hora. — As palavras do rei se condensam
em fumaça branca, como se quisessem dar ênfase.
— Sim, milorde.
O Rei Elfo não perde tempo ao me deixar para trás com esta mulher.
— Espere! — Eu chamo por ele. Ele faz uma pausa, olhando por cima
do ombro. Uma sobrancelha escura se arqueia. — Qual é o seu nome?
A linha fina de sua boca se divide em um sorriso malicioso, como se ele
também não pudesse acreditar que se casou com alguém que não sabia seu
verdadeiro nome.
— Você pode me chamar de rei, ou sua majestade, ou seu soberano.
Eu definitivamente não aceito essa resposta. Não. Nem por um
momento.
— Do que eu te chamaria se fosse sua amiga? — Minha pergunta o faz
pensar; seu rosto relaxa com algo que eu quase diria que é vulnerabilidade.
— Eu não tenho amigos. — Ele disse fracamente. Outros poderiam
interpretar o tom como indiferença fria. Mas eu ouço uma dor que ainda não
entendo em suas palavras.
— Seus súditos, então?
Ele faz uma careta com isso, mas finalmente cede.
— Rei Eldas. Vejo você em uma hora. E então vamos começar.
CAPÍTULO 7
—COMEÇAR O QUÊ? — EU PERGUNTO. EU SEI QUE SUAS ORELHAS PONTUDAS PODEM me ouvir. Mas ele me ignora.
Ele vira uma esquina no túnel escuro à minha frente e desaparece.
Agora estou sozinha com uma elfa desconhecida, que lidera uma legião
de mais elfos desconhecidos, em uma terra desconhecida de magia
selvagem. A Rainha Humana simplesmente existe. Isso antes parecia tão
injusto. Mas agora que a bunda que estará naquele trono é a minha, ficarei
feliz em apenas sentar e recuperar o fôlego.
Foi um longo, longo dia.
No entanto, meu dever é ficar sentada... que tipo de “trabalho” é esse?
— Venha comigo, Majestade. — A maneira como a general elfa tem
que forçar a formalidade por entre os dentes cerrados me diz que, mesmo
que ela já soubesse que a Rainha Humana chegaria, ela não está exatamente
satisfeita em responder a uma humana agora. — Vou lhe mostrar seus
aposentos reais.
Enquanto ela anda, noto um corte, nodoso e cheio de crostas na mão
que ela repousa sobre o punho da espada. A infecção tornou as bordas
avermelhadas.
— Eu posso dar uma olhada nisso — eu digo, sem pensar.
A general para, piscando várias vezes para mim. Ela finalmente
pergunta:
— Olhar o quê?
— Sua mão. — Já estou vasculhando minha bolsa. Usei alguns
suprimentos com Emma, mas ainda devo ter–
— É apenas um acidente de treinamento — diz ela com desdém.
— Bem, está infeccionando e não será nenhum problema para mim. —
Encontro o frasco de pomada que procurava. É bom para ferimentos leves.
— Temos um curandeiro no castelo para essas coisas — diz a general
antes mesmo que eu possa pegar o frasco da minha bolsa.
— Sim, mas eu tenho–
— Você é uma rainha — ela me interrompe em um tom baixo e intenso.
Seus olhos se voltam para os cavaleiros ainda vários passos atrás. — Curar
alguém como eu está abaixo de você.
Abaixo de mim? Curar e ajudar está... abaixo de mim agora? As
palavras vão de encontro a tudo que eu já conheci.
De repente, os tons de cinza deste lugar estão mais escuros, mais
sombrios. Tudo assume um aspecto cada vez mais sem vida, se é que isso é
possível. Eu fui tirada da minha casa, do meu povo, da minha família, e
agora eles vão me tirar a única coisa na qual eu sou boa? A única coisa pela
qual eu me esforcei?
Eu tento criar coragem, abrindo minha boca. Mas não sai sequer uma
palavra.
— Agora venha comigo, por favor. — Ela praticamente cospe a palavra
“por favor”, como se minha oferta fosse chocante ou problemática demais
para ela.
Apenas um suspiro escapa dos meus lábios. Eu não posso lutar contra
nada disso. Focar muito nisso vai me oprimir com tudo o que foi tirado de
mim. A melhor coisa que posso fazer, por enquanto, é tentar sobreviver.
Não posso julgar esta vida até tentar vivê-la. Espero que ela me
surpreenda. E, se não... Só tenho que lembrar que minha presença aqui
acabou com a Fraqueza em Capton e garantiu mais cem anos de paz.
O castelo está mais para uma fortaleza construída diretamente na
encosta da montanha, e me pergunto o que ele tenta manter do lado de fora.
Passando pelo centro da fortaleza, há um único caminho de pedras, com duas
pontes levadiças em cada extremidade. A estrada de paralelepípedos foi
suavizada com o tempo; sulcos profundos feitos por carroças cobrem toda a
extensão do caminho.
Essa é a única entrada e saída da cidade, eu percebo. Se tentarem tomar
a cidade, o castelo deve ser tomado primeiro.
Uma terceira ponte levadiça está entre as duas entradas deste longo
túnel. Atrás dela há um pequeno pátio subterrâneo iluminado por tochas em
suportes de parede manchados de fuligem. Elas estão diante de duas portas
pesadas.
— O que tem por esse caminho? — Eu aponto para o fim do túnel.
— Nada de seu interesse. — A mulher para, com a mão na espada. —
Estamos indo por aqui. — Ela aponta para as portas.
— É além da cidade? — Eu pergunto de qualquer maneira.
— Sim. O que, também, não é de seu interesse. Agora venha.
Seus soldados devem ter ouvido uma ordem não dita a eles; a legião
agora nos cerca em um semicírculo, como se estivessem vigiando atacantes
invisíveis.
Sem outra opção, eu a sigo até o que deve ser a entrada do castelo. Os
olhos da guarda brilham em um tom azul e então ela se vira para mim.
— Essas portas são fechadas por magia. Não adianta muito para você
tentar fugir.
— Por que você acha que terei motivos para fugir? — Eu pergunto,
como se o pensamento já não tivesse passado pela minha cabeça... mais de
uma vez.
— Esperançosamente você não terá. — Essa resposta não é exatamente
promissora. Ela empurra as portas e elas se abrem para um patamar ao pé de
uma longa escadaria.
— Qual o seu nome? — Eu pergunto.
Ela parece resistente em me dizer. Talvez eu ter forçado Eldas a admitir
seu nome tenha sido o que a está fazendo ceder.
— Rinni.
— Você é algum tipo de general?
— Você é sempre tão incessante com as perguntas? — Suas palavras
são mais afiadas do que minhas tesouras de podar.
— Talvez. — Eu encolho os ombros. Em seguida, repito a pergunta: —
Então, você lidera os soldados?
— Às vezes — ela diz finalmente. — Eu sou considerada por muitos a
segunda em comando, depois do Rei Eldas. — Quase pude vê-la pesando
suas opções e o que significaria para ela não responder às minhas perguntas.
Isso me faz pensar quanta influência eu tenho aqui.
Posso ser uma humana na cidade dos elfos, mas eu sou a rainha deles.
Tenho uma magia que o Rei Elfo pessoalmente, assim como uma legião de
seus elfos, vieram buscar em Capton. Eu olho para o anel na minha mão
esquerda. Ele pesa como mil pedras.
No topo da escada há uma sala com teto alto e pesados lustres de ferro
pendurados. Velas gotejam estalactites de cera em direção ao piso de
madeira escura em que estamos agora. Mais duas escadas, uma de cada lado
da sala, sobem para um patamar e depois para um mezanino que circunda o
corredor.
Entre as escadas há uma parede de cristais. Mais detalhes foram
meticulosamente entrelaçados entre os milhares de fragmentos minúsculos.
Eles lançam um padrão rendado no chão. É a única coisa leve ou brilhante
neste lugar frio e triste.
— Venha, seus aposentos estão na ala oeste. — Ela sobe a escada
esquerda e eu a sigo até o mezanino.
— É sempre assim tão silencioso? — Eu sussurro para não ter que
ouvir minha voz ecoando neste espaço cavernoso e vazio.
— Sim.
— E as pessoas que cuidam do castelo?
— Existem alguns servos. — Ela não olha para mim quando responde.
— Onde?
— Só porque você não os vê, não significa que eles não estão aqui. É
impróprio para o povo ver a Rainha Humana antes de sua coroação.
Portanto, a equipe aqui é extremamente pequena e mantida fora de vista.
— Sinto muito pelo trabalho extra que eles devem ter tido que fazer por
terem mão de obra reduzida. — Porém, eles têm sua magia selvagem, eu
suponho. O que pode levar dois dias para um humano, provavelmente leva
uma hora para um elfo.
Devo ter esgotado a conversa, porque Rinni não diz mais nada.
Atrás de uma porta está uma área de estar que se conecta a outra área de
estar. Passamos por uma porta aberta após outra em uma sequência
aparentemente interminável de salas sem nenhum propósito óbvio a não ser
existir. Depois da quinta ou sexta sala, há um corredor com uma escada no
final. Subimos três lances e chegamos a um amplo patamar com apenas uma
porta.
— Estes são os seus aposentos.
Rinni abre a porta e eu pisco para a luz que inunda o quarto. O teto é da
altura do primeiro e do segundo andar da casa de arenito da minha família
juntos, e fileiras de janelas se alinham na parede dos fundos. Rinni espera
enquanto eu passo meus olhos pelo cômodo principal e depois pelo quarto –
há um closet maior do que o sótão que eu usei como quarto em minha antiga
casa, um banheiro maior que minha loja e uma cama que poderia facilmente
acomodar cinco pessoas.
— Por que tudo é tão gigante? — Eu pergunto, ressurgindo do quarto
para a sala principal vazia.
— Gigante? — Ela arqueia as sobrancelhas.
— As portas são grandes, os tetos são altos, os móveis ocupam mais
espaço do que uma pequena carruagem.
— Tudo tem o tamanho adequado para um castelo. Você vai se
acostumar com isso. E se houver móveis de que você não goste, você pode
adquirir um novo. A rainha geralmente mobilia seus aposentos com o que
ela escolhe. Eldas decretou que você terá acesso total aos recursos
financeiros reais para solicitar qualquer coisa que torne sua estadia aqui mais
confortável.
Isso foi inesperadamente gentil da parte dele. No entanto, ao mesmo
tempo, não quero o dinheiro dele. Foi difícil o suficiente aceitar a caridade
do povo de Capton, e ela vinha de pessoas com quem passei minha vida
inteira – de pessoas para as quais jurei ajudar e curar por toda a minha vida
em gratidão. Além disso, desconfio de quaisquer presentes que possam
conter ressalvas. E o dinheiro do Rei Elfo deve vir com mil amarras.
Já estou com saudades da minha loja e de ganhar o meu próprio
dinheiro... o pouco dinheiro que era, já que fazia a maior parte do meu
trabalho de graça para pagar o investimento que Capton fez em mim.
— Isso explica por que está tão vazio. — Eu olho em volta, me
perguntando o que Alice teria escolhido ali.
— Já estamos atrasadas o suficiente. Venha, temos que vesti-la para o
rei.
— Me vestir?
— Você pode ter se casado com o Rei Eldas nesses trapos, mas
certamente não se sentará no trono vestida assim. — Suas palavras exalaram
desgosto.
— Oi? — Eu olho para o que estou vestindo. — Minhas roupas são
práticas.
— Para uma camponesa, talvez. Mas agora você é uma rainha e vai se
vestir como uma, mesmo que não aja de acordo.
DEPOIS DE UMA HORA SENDO CUTUCADA, ESPETADA E PUXADA, ESTOU algo que Rinni considera “adequado”.
Fico me encarando no espelho que se apoia em um dos cantos do
quarto. Um colar de pérolas – mais comprido do que eu – está enrolado no
meu pescoço. Rinni fez uma tentativa de domar os nós e as ondas do meu
cabelo e falhou. Meu vestido é feito de uma seda fina da cor das folhas de
outono; o corpete em seu topo mantém minhas costas retas. Eu não costumo
usar cores quentes por causa do meu cabelo. Mas, me vendo agora, pareço
feroz.
Pelo menos até eu olhar nos meus olhos.
Abaixo deles estão sombras escuras que nunca estiveram lá antes. Eu
me inclino em direção ao espelho para ver melhor. Eles são da mesma cor
avelã de sempre, mas um vazio se instalou onde imagino que a determinação
costumava estar.
— Quem é você? — Murmuro para a mulher me encarando de volta.
Não conheço essa mulher cujo vestido é mais arrumado do que a vida dela.
Estou acostumada a ter tudo sob controle. Sempre tive um plano – desde
jovem até o instituto.
Agora... ganhei um castelo e uma coroa que nunca pedi e perdi tudo o
que sempre quis.
Seja forte, insisto comigo mesma enquanto encaro as listras verdes em
meus olhos castanhos. Tenho que tentar tirar o melhor proveito disso. Vou
encontrar algo que posso fazer aqui, algum propósito. Mesmo se eu quisesse
escapar – não, nem pense nisso, Luella.
— Aqui. — Rinni emerge do closet após um longo período remexendo
nele. Eu me endireito para longe do espelho. Ela segura uma coroa de folhas
de sequóia douradas nas mãos, que pousa na minha testa. — Agora você
pelo menos parece uma rainha. Você pode até enganar a Corte se não abrir a
boca.
— Desculpe?
— Eu ouvi cada um dos palavrões enquanto arrumava o seu cabelo.
Metade deles eu nem sequer conhecia e estou no quartel desde os sete anos.
Venha comigo.
— Toda a minha existência será governada por você, me dizendo para
onde ir e quando? — Eu pergunto, imóvel.
— Eu certamente espero que não. — Rinni responde, já na outra sala.
— Eu tenho coisas mais importantes para fazer do que bancar sua babá.
Então, por favor, aprenda rapidamente sua nova posição
— Bancar a babá? Isso é jeito de falar com sua rainha? — Eu digo,
dando uma última olhada em mim mesma no espelho. A rainha. Eu sou a
rainha. Se eu disser a mim mesma várias vezes, talvez eu acredite. Talvez eu
seja tomada pelo fato de que toda essa situação é a minha nova realidade.
— Comece a agir como uma rainha e eu começarei a falar com você
como uma. — A voz de Rinni está mais distante. Eu ouço a porta dos meus
aposentos se abrir. — Agora, a menos que você saiba o caminho para a sala
do trono, sugiro que se apresse.
Levantando minhas saias até minhas canelas. Eu posso fazer isso.
Descemos as escadas e passamos por outra série interminável de salas,
subimos outro lance de escadas, passamos por uma biblioteca, atravessamos
um corredor e, em seguida, subimos um lance final de escadas para uma
pequena antecâmara. Rinni pressiona o ouvido contra a porta.
— Escutar através das paredes é impróprio para uma general – ou
cavaleira – o que você é mesmo?
Ela me lança um olhar furioso.
— Estou me certificando de que ele não esteja no meio de algo
importante. — Rinni abre a porta e acena para eu entrar.
A sala do trono fica no centro do castelo, acima do átrio principal, pelo
que posso perceber. A parede dos fundos é feita do mesmo vitral que o átrio
abaixo. Mas a cuidadosa treliça de cristais forma painéis mais largos aqui.
Posso ver as colinas e vales além.
Até onde a vista alcança, é marrom e cinza. As florestas são tão estéreis
quanto os campos. As árvores estão tão murchas quanto as que vi na cidade.
O que meus olhos veem é um mundo frio e cruel.
O panorama é obscurecido por dois grandes tronos. O trono à minha
direita é feito de madeira de sequóia. Tem uma forma orgânica, como se uma
árvore se enraizasse na pedra da sala e crescesse com a forma de uma
cadeira.
A madeira vermelha faz um nítido contraste com o trono de ferro ao seu
lado. Um homem, tão severo e insensível quanto a cadeira em que se senta –
como a coroa em sua testa – olha para mim. Eldas arrasta os olhos por cada
centímetro do meu corpo em julgamento.
— Você fez bem, Rinni. Até mesmo a pedra mais áspera pode ser
polida, ao que parece. — Eldas diz finalmente. Eu giro o anel de labradorita
em volta do meu dedo. É como se eu estivesse passando por um teste.
— Estou feliz por atender aos seus padrões — eu digo secamente.
Ele franze os lábios. A tensão irradia dele em uma maré que quase me
derruba.
— Eu apreciaria se você começasse a manter suas observações para si
mesma.
— O quê?
— Há muito a ser feito, e a coisa mais importante para você se lembrar
é que a rainha tem um dever, um trabalho. — Ele aponta para o trono ao lado
dele. — Vamos ver o que você pode fazer... Sente-se.
Seguro minhas saias com tanta força que deixo rugas quando meus
dedos se abrem. Mas mantenho minhas frustrações pelo fato de que estou
aqui apenas para existir, como uma boneca. Estou muito cansada para
discutir. Posso manter minha boca fechada e ficar bonita por um tempo
enquanto o rei preside audiências, faz decretos, vê os bobos-da-corte
dançarem sobre suas cabeças, ou o que quer que os Reis Elfos façam.
Os saltos dos meus sapatos batem ruidosamente no chão enquanto eu
me arrasto.
— Rainhas devem flutuar, não andar como um cavalo. — Ele tem
permissão para fazer comentários, mas eu não? Eu inclino minha cabeça
para o lado, pressionando meus lábios fechados em uma linha firme. Ele
sorri, entendendo meu jogo silencioso. — Bom. Eu vou aceitar o cavalo.
Pelo menos eles ficam em silêncio.
Eu bufo apenas para irritá-lo e acho que vejo seus olhos se contraírem.
Eu giro, minhas saias ondulando ao meu redor enquanto estou diante do
trono de sequóia – meu trono – e me sento.
No segundo em que estou sentada no trono, eu queimo com chamas
invisíveis. A magia me possui pela segunda vez em um dia, deixando-me em
carne viva. Minha visão se turva, embaça e, em seguida, se expande mais
ampla do que eu jamais pensei ser possível.
Vejo as raízes deste trono – desta árvore – serpenteando por metros de
pedra e argamassa. Elas afundam profundamente no chão, penetrando a
rocha e se estendendo até as verdadeiras fundações da própria terra.
Minha cabeça gira. Eu quero vomitar. Tento gritar. Mas acho que não
me movo. Pelo menos, meu corpo não se move.
Minha mente continua a se espalhar pelo solo e pela rocha. Uma raiz
toca a outra. Estou nas árvores da cidade, depois nas florestas áridas muito
abaixo do castelo. Sinto a grama dos campos, quebradiça e seca.
Morrendo. O mundo está morrendo.
Nutrição. Vida! Cada planta e animal clama por mim com uma voz
singular. Nos dê.
Dê.
Dê, dê!
Suas raízes estão em mim, suas pontas de madeira empurrando sob
minhas unhas, em meu abdômen, serpenteando por minha garganta. O
próprio mundo está tateando por mim e sou incapaz de impedi-lo.
A terra está com sede e eu sou a chuva. Os animais estão com fome e
minha carne é seu alimento.
Pegue. Pegue.
Eles vão me consumir, tudo de mim, muito rapidamente.
Eu estou sumindo.
Não há o suficiente para mim e para eles. Não há o suficiente neste
mundo. Tudo está morrendo e gritando pela minha ajuda – uma ajuda que
não sei se posso dar. Eu não sei como dar.
Duas mãos me libertam. As garras da terra se enrolam e murcham,
gritando silenciosamente em protesto. A luz volta para mim. Olhos – meus
olhos – podem ver novamente. Mas o mundo está nebuloso. As coisas estão
muito claras e se movendo muito rapidamente.
O mundo se inclina e eu me inclino com ele. A bile sobe pela minha
garganta e respinga no chão. É o primeiro som que meus ouvidos podem
ouvir. Agora ouço conversas, xingamentos, pés se movendo.
— Pegue... Poppy, vai... Não... Fique...
Fique.
Dois braços fortes estão ao meu redor. Eles me apertam enquanto eu
estremeço violentamente. Estou apoiada contra algo estável – mais sólido do
que a própria terra.
— Saraphina. — A palavra é sussurrada para mim por uma voz
familiar. Não, não é uma palavra. É um nome. É meu nome. Não sei como
sei disso, mas nada jamais ressoou com mais verdade. — Saraphina — a
voz repete, afundando profundamente em minha alma. — Calma. Calma.
Calma.
A palavra se instala em meus ossos com um calafrio. Ela se espalha
pelo meu corpo, de forma familiar, mas não é indesejável desta vez.
Me congele, eu quero implorar. Me envolva no gelo, no frio, em algo
que fará com que este fogo horrível que queima debaixo da minha pele
desapareça. Me congele, ou eu vou morrer.
— Saraphina, fique comigo.
Eu não posso obedecer. O mundo se transforma em uma escuridão fria
e eu escapo.
Mas desta vez, não há dor.
CAPÍTULO 8
EU FORÇO MEUS OLHOS A ABRIREM E A ENFRENTAREM O AMANHECER AMARGO. ESTOU de volta aos meus aposentos,
deitada na minha enorme cama. Penas cutucam minha bochecha e olho
através da fronha.
Quando tento sentar, descubro que não consigo. Meus braços se
recusam a apoiar meu corpo. Não consigo nem endireitar os cotovelos.
Com bastante insistência, eu consigo virar de costas e soltar um gemido
monumental. Sinto como se tivesse nadado o largo e agitado rio estreito
entre Capton e Lanton. Sou uma baleia encalhada, ofegante e implorando
pela vida.
Implorando pela vida.
Os ecos violentos da terra necessitada voltam para mim. Eu solto um
gemido e levo minhas mãos aos ouvidos. É inútil tentar bloquear as
demandas sussurrantes; o som está vindo de dentro de mim. Os gritos de
fome reverberam em minha medula.
— Você está acordada — diz um homem ao lado da minha cama.
Abro os olhos e minhas mãos caem frouxamente no travesseiro. Em um
primeiro momento, minha mente me engana e estou de volta à minha cama.
Meu pai se senta ao meu lado, torcendo uma toalha para colocar de volta na
minha testa. Eu pisco e a ilusão se foi. Nada mais do que a memória de um
conforto que eu nunca mais presenciarei.
— Quem é você? — Eu pergunto com a voz rouca.
— Willow.2
— O nome combina com você. — Ele é todo braços e pernas, como
uma criança abandonada, e esguio como um salgueiro. Os olhos do homem
são de um triste tom de azul e ele me olha com um olhar pesado. — Eu não
quero sua pena — murmuro.
— Goste ou não, você a tem. — Ele torce um pano na bacia ao meu
lado e o coloca de volta na minha testa.
— Estou com febre? — Eu pergunto.
— Leve. Está baixando. O rei não vai nos dizer seu Nome Verdadeiro,
então há um limite do que podemos fazer por você — diz ele de uma forma
que implica que isso é um ponto de discórdia. Qualquer um capaz de
enfrentar o Rei Eldas é meu amigo, eu decido. — Portanto, temos que usar
medicamentos mais tradicionais.
— Que são?
— Poções, unguentos ou quaisquer remédios de ervas que possamos
inventar.
— Você fala como se essas coisas fossem insuficientes. — Eu olho para
ele, talvez com uma expressão um pouco mais afiada do que eu imaginava, a
julgar por sua reação.
— Eu não tive a intenção de te ofender.
— Bem, você ofendeu. — Tento me sentar uma segunda vez. Willow
me ajuda a me posicionar contra a enorme cabeceira esculpida, colocando
uma das várias centenas de travesseiros nas minhas costas para que os
desenhos intrincados não machuquem a minha coluna. — O que você está
me dando?
— Uma poção.
— Obviamente. — Eu rolo meus olhos. — O que há nela?
— Uma infusão de manjericão, gengibre e sabugueiro.
— Você nem está usando o seu homônimo? — Eu arqueio minhas
sobrancelhas para ele enquanto afundo, tentando encontrar uma posição
confortável. Tudo dói, até a minha pele. — Casca de salgueiro branco e não
se incomode em colocar canela para melhorar o gosto. Um pouco de ulmária
seria bom, se você tiver. — Ele continua a me encarar. — Você pode ter
certeza, eu sei do que estou falando. Eu estudei para isso. É meu trabalho.
Era meu trabalho. A correção mental me deixa oca. Eu tinha uma vida,
um propósito e agora... acabou.
— Muito bem. — Willow mal resiste em revirar os olhos e voltar para
uma longa mesa que está ao pé da cama. Não me lembro de estar lá quando
investiguei meus aposentos pela primeira vez.
— Por quanto tempo eu fiquei desmaiada?
— Cerca de doze horas — ele diz como se não fosse nada importante.
— Doze horas... — Repito. Minha atenção se dirige para a janela. — O
que aconteceu? — Eu sussurro.
Meus ossos tremeluzem e meus músculos gritam enquanto eu empurro
o pesado edredom, tentando sair da cama. Meus pés descalços tocam o chão,
minha camisola caindo em volta das minhas panturrilhas.
— Sua Majestade!
Eu ignoro o chamado e o movimento de Willow. Meu único foco é a
janela. Eu cambaleio até ela e espio a terra abaixo.
O mundo cinza que me saudou quando cheguei, encontrou sua cor.
Flores silvestres florescem em manchas ao longo de campos agora
verdes. Eu vejo um novo desenvolvimento das florestas. Algumas árvores já
têm botões de primavera em seus ramos. Posso ver os fazendeiros
começando a cultivar o solo. Até o céu mudou do inverno para a primavera
durante a noite.
Isso é mais do que apenas doze horas de mudança. Parece que meses se
passaram. Até onde a vista alcança, o mundo é exuberante e vivo.
— O quê? — Meus joelhos cedem e Willow está ao meu lado. Ele é
mais forte do que parece. Seu braço está em volta dos meus ombros e ele me
conduz de volta para a cama. — O que aconteceu?
— Você não sabe? — Ele pergunta.
— Eu não sei de nada — respondo secamente.
— Minha rainha... você aconteceu.
— O quê?
Willow suspira e passa a mão sobre os cachos pretos e bem definidos
que são cortados quase rente o couro cabeludo. Seus olhos brilhantes passam
rapidamente entre mim e a janela. Eventualmente, ele recua, continuando a
misturar a poção como eu instruí. Eu fico olhando pela janela, resignando-
me a permanecer no escuro. Ninguém aqui vai–
— Levou um ano para encontrarmos você... um ano longo, frio e
sombrio. Aconteceu alguma coisa, não é?
— Só alguém chamado Luke — eu murmuro. Seus olhos estão em mim
e acho que talvez estejamos prestes a nos entender. — Você tem razão. Não
fui treinada como uma rainha deveria ser. Eu não sabia. Minha magia foi
escondida de mim antes que eu pudesse perceber.
Não foi minha culpa, eu queria dizer. Não foi. Então por que eu me
culpo pelas ações de Luke? Foi ele quem fez isso comigo... em nome do
amor.
Eu faço uma careta e olho para trás, mais amarga do que o amanhecer.
Passei anos sofrendo por causa daquele homem patético que não fez nada
além de me fazer sentir impotente e fraca – que tentou aprisionar minhas
habilidades. Capton sofreu e perdeu sua única curandeira por causa dele. É o
suficiente para me fazer querer gritar até que minha garganta esteja em carne
viva.
Se eu nunca mais pensar no amor, ainda não será o suficiente. Tudo o
que Luke fez “por amor” confirma todos os motivos pelos quais eu sabia que
seria uma má ideia me envolver com ele – com qualquer pessoa. O amor é
uma distração perigosa do dever.
— Não parece que você teve muita escolha sobre o assunto. Bem, não
que qualquer rainha tenha escolha sobre seu destino. Eu quero dizer, você
não teve muita escolha sobre a sua magia ser escondida. Você não pode se
culpar pelas ações de outra pessoa. — Willow derrama sua mistura em um
copo e carrega-o até mim.
— Eu não tive escolha sobre nada. Se eu tivesse tido, as coisas teriam
sido diferentes. — Eu me preparo e bebo a poção em um único gole. Eu
estremeço com o gosto. Mas é exatamente como deve ser. Penso em todos os
remédios que eu fiz com esse mesmo sabor. Bastava uma gota na minha
língua e eu sabia quais as ervas presentes – uma magia que eu nunca percebi.
— Então não, eu não sei de nada. Eu deveria ter aprendido o que diabos os
Guardiões ensinam por anos. Mas eu não aprendi e agora estou no escuro
aqui. — Eu olho com cansaço para o homem alto. Ele é minha única tábua
de salvação. — Portanto, qualquer ajuda além das poções seria muito bem
vinda.
Willow pega o copo de mim e o segura com as duas mãos.
— O que você quer saber? — Ele pergunta finalmente. — As
verdadeiras naturezas do rei e da rainha são mantidas bem guardadas... mas
vou lhe contar o que eu puder.
— Vamos começar com o que, nos nomes dos Deuses Esquecidos,
aconteceu quando me sentei naquele trono. — Eu aponto para a janela, mas
é difícil até mesmo levantar meu braço. — Depois, podemos tratar sobre
como as estações mudaram da noite para o dia. E, talvez, em algum
momento no decorrer disso, você possa me dizer por que eu sinto como se
tivesse caído vários lances de escada enquanto estava com uma febre
entorpecente.
— O básico, então. — Ele coloca a xícara de volta na mesa e então
garante de me ajeitar na cama. Eu quero dispensá-lo e dizer que posso fazer
isso sozinha. Mas o fato é que não posso. Além disso, há algo calmante em
sua aura. Algo que não quero afastar. — Você sabe como a Bruma foi feita?
— Eu sei sobre o tratado de paz entre os humanos e os elfos. — Saber é
uma palavra bastante forte. Eu ouvi sobre isso em contos populares e
canções desde a infância. — Eu sei que os elfos vivem atrás da Bruma com
todo o resto do povo – não humano – que lida com magia selvagem. E sem a
Bruma para nos proteger, proteger os humanos sem magia, nosso mundo
seria devastado.
Eu percebo que “nós”, humanos sem magia, não é mais o certo. Eu sou
a Rainha Humana e, por causa dessa posição, herdei magia. Tenho poderes
com os quais nenhum outro humano poderia sonhar e, em vez de me sentir
forte, me sinto... sozinha. Não me encaixo mais perfeitamente no meu povo
e mesmo assim não sou exatamente uma do povo do outro lado da Bruma.
Estou presa no limbo, destinada a nunca realmente pertencer a nenhum deles
até o final dos meus dias.
— Há alguma verdade nisso. — Ele meio se senta, meio que se inclina
na beira da cama e cruza os braços. — Pelo que eu entendi… há muito
tempo havia apenas um mundo. Esse mundo foi então dividido em dois – o
Reino dos Mortais e o Além – com o que chamamos de Véu. Então, o Reino
dos Mortais foi dividido em dois novamente, criando o Entre Mundos e o
Mundo Natural.
— Há três mundos no total? O Além, o Entre Mundos e o Mundo
Natural? — Eu tento entender.
— Sim, e você vem do Mundo Natural.
— E onde estou agora é o Entre Mundos. — Concluo. Willow acena
com a cabeça. — O que é o Além?
— Ninguém sabe. Bem... o Rei Eldas deve saber. Dizem que o véu que
nos separa do Além foi feito pelo primeiro Rei Elfo para separar os vivos e
os mortos. Ao fazer isso, ele separou os elfos da imortalidade que eles
receberam dos primeiros deuses. Em razão disso, outras raças dobraram os
joelhos perante os elfos. Eles honraram o sacrifício de todos os elfos para dar
o descanso final a todos e proclamaram o Rei Elfo como o Rei dos Reis – o
governante de todos os mortais.
— As pessoas morriam antes de o véu ser feito? — Eu pergunto.
— De acordo com a lenda, não. — Ele faz uma pausa. — E antes que
você pergunte, não tenho ideia sobre a logística das pessoas que viviam no
passado, quando deveriam ter morrido. As histórias variam e cada uma é
mais horrível que a anterior.
— Eu sei o que é ouvir histórias inacreditáveis. — Murmuro, pensando
em todos os contos sobre os elfos – uma mistura de verdade e lendas
embelezadas. — Então, de certa forma, os elfos são os guardiões dos
mortos?
— Você pode pensar nisso dessa forma. É uma parte do motivo pelo
qual nos foi concedida a capacidade de encontrar os Nomes Verdadeiros de
pessoas, bestas e coisas.
— Encontrar os Nomes... isso é o Saber?
— Sim, e é o poder mais forte no Entre Mundos.
— Como a Bruma foi feita? Quando o mundo se dividiu em Entre
Mundos e Mundo Natural?
Willow olha pela janela.
— Depois que o véu foi feito, a paz reinou, por um tempo.
Eventualmente, brigas e disputas internas prevaleceram. Elfos, vampiros,
fadas, dríades, sereias e todo o povo com magia selvagem, nós extraímos
nosso poder do Além.
Sereias, vampiros, fadas, dríades e muito mais. Todas as criaturas
mágicas e mortais das histórias que me contaram quando criança são reais.
Elas sempre foram reais, permanecendo apenas do outro lado da Bruma. Eu
estremeço com a ideia.
— E quanto aos humanos, então? — Eu pergunto. — Tivemos magia
selvagem e a perdemos?
— Não, os humanos eram diferentes... Muito depois que as fadas
descenderam das driades, os antigos espíritos da natureza fizeram os
humanos da própria terra. Então, os primeiros humanos extraíram sua magia
da natureza.
Tento me imaginar dizendo a meus amigos do instituto que os primeiros
humanos foram feitos por dríades e que já tivemos magia. Só de imaginar
suas expressões quase me fazem rir.
— Então humanos e fadas são parecidos? — Eu pergunto.
— Não... pense em fadas como uma evolução que aconteceu ao longo
do tempo e pelo acaso. Os humanos foram projetados – feitos pelas dríades.
— Explica Willow. — Não muito depois, as dríades morreram e os
primeiros humanos foram rapidamente banidos. Alguns os culpavam pela
morte das dríades. Mas eu acho que qualquer coisa diferente é facilmente
usada como desculpa para o ódio.
— Então as grandes guerras começaram e mais uma vez os elfos se
levantaram para fazer uma barreira, desta vez chamada de Bruma, para
separar o Mundo Natural – e os humanos que vieram dele – dos vários povos
e criaturas do Entre Mundos — eu concluo logicamente. Meu cérebro está
operando apenas com metade da capacidade. Tudo está exausto, inclusive a
desordem entre minhas orelhas. Se eu não falar tudo em voz alta, posso não
entender o mundo em que me encontro agora.
— Exatamente, Entre Mundos é um meio-termo. Mas há apenas um
problema. Você sabe qual é? — Ele olha para mim. Agora meus olhos
seguem os dele para a janela.
— Se você criar um mundo entre o Mundo Natural e o Além... então
ele é não natural — eu percebo.
— Alguém teve que preencher a lacuna — ele incentiva.
A verdade está surgindo para mim mais brilhante do que o sol nos
campos no horizonte.
— A Rainha Humana.
— Você entendeu! — Ele se inclina e dá um tapinha no meu nariz. Em
seguida, recua, assustado. — Sinto muito, Sua Majestade, eu não deveria
ter–
Eu começo a rir e esfrego meu nariz levemente.
— Está tudo bem.
— Você é minha rainha, eu realmente não deveria–
— Willow, está tudo bem — eu repito, mais firme. — É bom ter
alguém me tratando bem, como um amigo.
Ele parece subitamente desconfortável e se levanta. Quando ele
continua falando, sua cabeça está baixa e suas mãos estão ocupadas
limpando suas ferramentas e separando seus suprimentos.
— De toda forma, sim, a Rainha Humana é a conexão do Entre Mundos
com o Mundo Natural.
— Todos os lugares no Entre Mundos estão assim? Na Primavera? —
Eu pergunto.
Ele concorda.
— Por causa da Rainha Humana – você – ter se sentado no trono, a
natureza pôde fluir para este mundo.
— Através de mim — eu sussurro e estremeço, pensando na magia que
se alastrou pelo meu corpo. A dor fantasma de raízes cavando em mim
acende sob minha pele. A sensação de minha alma, minha vida, sendo
arrancada de meus ossos é muito aterrorizante. Sinto mil necessidades
gritando comigo ao mesmo tempo e sou apenas uma mulher. Não há a menor
possibilidade de ajudar todos eles.
Tudo que eu quero é minha loja. Eu quero meus pacientes. Eu quero um
mundo que eu possa entender e um pequeno canto para cuidar.
Eu quis cuidar das pessoas, sim... Mas nada me preparou para isso.
Nem meus pais, nem o instituto, nem os Guardiões. Minha inaptidão pode
ser mais um prejuízo do que uma ajuda.
— Isto responde às suas perguntas? — Willow interrompe meu
momento de autopiedade.
— Mais uma.
— Sim?
— Por que a Rainha Humana tem magia? — Eu pergunto. — Nenhum
outro humano tem.
— Sim, a magia foi perdida para os humanos quando a Bruma foi
erguida.
Eu resisto a apontar o quão injusto é que a coisa que mantém os
humanos protegidos da magia selvagem – a Bruma – também remove a
magia natural dos humanos.
— A rainha consegue manter sua magia porque ela se casa com o Rei
Elfo? — Eu faço uma pausa. — Não, não pode ser isso... porque a magia
chega à Rainha Humana antes que ela se case com o rei.
— A magia da rainha é um pouco misteriosa. — Parece que ele também
já se perguntou isso muitas vezes. — A lenda prevalecente é a de que a
primeira Rainha Humana foi, na verdade, em parte, uma assistente na
construção da Bruma. Por essa razão, sua magia pode penetrar na Bruma, e
essa magia é passada de mulher para mulher na cidade de onde ela veio.
— Entendi. — Eu suspiro.
— Não é uma resposta realmente satisfatória, é? — Ele interpretou mal
minha decepção.
— É magia. Estou descobrindo que a magia só faz sentido vagamente.
— Eu balanço minha cabeça e murmuro. — Eu só queria que fosse
diferente, é tudo tão... — Então, eu continuo mais forte — Você estava vivo
quando a última rainha esteve aqui, certo?
— Sim, mas eu era uma criança.
Lembro-me do que Eldas disse. As histórias dos elfos que viveram por
centenas de anos são muito exageradas. Duvido que Willow seja muito mais
velho do que eu. Na verdade, eu não ficaria chocada se ele fosse um ou dois
anos mais novo.
— O que aconteceu depois que ela se sentou no trono? — O que eu
gostaria de saber era: como será o resto da minha existência aqui?
— Ela–
— Sua Alteza, eu realmente devo insistir! — Uma explosão de
comoção e uma voz estridente de mulher interrompe Willow. — Ela ainda
está muito fraca.
— Ela o quê? — Eu pressiono. Willow olha impotente para mim
enquanto tento conseguir informações dele.
A porta se abre e não recebo minha resposta. Dois novos rostos estão
em cena agora. Ao fundo está uma mulher com a mesma tonalidade da pele
negra de Willow, seu cabelo crespo e grisalho preso em um coque
bagunçado.
Na frente dela está um jovem com cabelos negros – tons cintilantes de
roxos e azuis podem ser vistos nele, distribuídas como manchas – que é
muito singular para ser casual. Mesmo que eu só tenha visto pouquíssimas
vezes, aquele cabelo está gravado na minha memória. No entanto, o nariz
desse homem é um pouco mais achatado, os olhos um pouco mais
arredondados.
Mesmo com as diferenças, não há como negar minha suposição inicial
– Eldas tem um irmão.
CAPÍTULO 9
— A NOVA RAINHA HUMANA ESTÁ FINALMENTE AQUI. — ELE SORRI AMPLAMENTE para mim e bate palmas. —
Que honra finalmente conhecê-la. Espero não estar interrompendo nada?
— Não, Príncipe Harrow. — Willow olha para os dedos dos pés,
parecendo instantaneamente desconfortável. A inquietação de Willow traz
arrepios pelo meu corpo. Algo está errado apenas pela mera presença de
Harrow.
— Bom. Vocês dois podem sair. — Harrow acena para Willow e a
mulher atrás dele.
— Eu disse a você, Alteza, que ela precisa descansar. — A elfa idosa
coloca as mãos nos quadris enquanto olha para o príncipe como se ele fosse
uma criança. — Você pode se divertir mais tarde.
Se divertir? Eu realmente não gosto de como isso soa. A inquietação
que estava formigando em mim se transformou em garras arranhando minha
pele.
— Posso me divertir a hora que eu quiser. Esse é um dos benefícios de
ser um príncipe — diz ele com um sorriso lento abrindo caminho em seus
lábios. — Agora, saiam. Ambos, para longe. Eu decreto esta uma reunião de
negócios da realeza.
— Eldas vai saber sobre isso. — A mulher ainda não se mexeu.
— Corra e diga ao meu irmão. — Harrow revira os olhos. — Você
sempre faz isso, Poppy.
— Alguém tem que mantê-lo sob controle. Não é como se sua mãe
fizesse isso — ela murmura. Mas, em vez de sair, ela se aproxima de mim e
coloca a mão na minha testa. — Eu sou Poppy, querida. Venho de uma longa
linhagem de curandeiros reais. Então, se você precisar de qualquer coisa,
basta chamar por mim ou por Willow.
Eu concordo. Algo em seus maneirismos me lembra o doce e velho Sr.
Abbot, e meu coração dói. Nunca cheguei a dizer adeus a ele ou a qualquer
um dos meus outros pacientes. O pensamento de todas as pessoas que deixei
para trás – pessoas que precisavam de mim – fez meus olhos arderem. Eu
quase choro e imploro para Poppy ficar enquanto ela se afasta e sai. Willow
segue atrás, me dando uma última olhada cautelosa.
— Então, você é a Rainha Humana. Nós estivemos esperando todo esse
tempo por... você ? — Harrow me avalia no segundo em que estamos
sozinhos. Mesmo que a poção de Willow esteja começando a fazer efeito, eu
nem me preocupo em tentar me endireitar. É impossível ser intimidante
deitada em uma cama.
— Aparentemente — eu digo secamente.
— Dado o seu show no trono, acho que o fato é óbvio. — Ele se
aproxima lentamente.
— Que bom que pudemos esclarecer isso. Há mais alguma coisa em
que eu possa ajudá-lo? — Eu estreito meus olhos para ele.
Seus olhos azul marinho brilham em um azul glacial em resposta – algo
que passei a associar com o Saber. Ele acabou de tentar encontrar meu Nome
Verdadeiro, e estremeço ao pensar no que ele poderia ter feito com ele.
Harrow franze a testa e olha para o anel de labradorita em minha mão. Eu
aperto meus dedos em um punho. Não esperava que os inimigos
mencionados por Eldas estivessem dentro do castelo.
— Meu irmão, detalhista como sempre e perpetuamente bom em
arruinar minha diversão. — Harrow suspira. — Bem, levante-se.
— O quê?
— Eu disse, levante-se.
— Você não pode...
— Não posso o quê? — Ele arqueia as sobrancelhas. — Mandar em
você? O que você vai fazer sobre isso? Você ao menos sabe como usar sua
magia? — Eu franzo meus lábios. — Você não é a única que usa uma coroa
neste castelo. — Ele bate no aro de ferro em sua testa para dar ênfase.
— Não, eu não sou. Eldas também usa. E a coroa dele é muito mais
impressionante do que a sua.
Raiva passa pelos olhos dele, tão rápido que quase não noto. Mas é
rapidamente disfarçada pelo riso e substituída por uma diversão perversa.
— Bem, você não é uma covarde. Seria chato se você fosse. Agora
levante-se. Eu concordei em deixar alguns membros de honra da sua corte
darem uma espiada em sua nova rainha.
— Sua corte pode apodrecer.
Seu olho estremece.
— Levante-se ou eu te forçarei.
— Saia do meu quarto.
— Ou o quê?
Ele tem razão. Não tenho ideia de como usar minha magia. E mesmo se
eu tivesse uma maneira de contatar Eldas, duvido que ele ficaria do meu lado
ou se importaria com a minha situação. Foi ele quem me fez sentar no trono
sem aviso e depois lavou suas mãos em relação a mim. Estou sozinha aqui.
— Foi o que eu pensei. — Seu sorriso se alarga. Ele se vira para meus
lençóis e seus olhos brilham novamente. Os lençóis me envolvem como um
casulo e sou erguida no ar. Eu luto contra os lençóis que me comprimem,
mas eles são muito apertados. Meus braços estão presos; minhas pernas são
uma linha reta.
A magia acesa nos olhos de Harrow se desvanece quando ele me coloca
de pé, na frente do closet. Os lençóis caem inofensivamente em uma poça ao
redor dos meus pés.
— Você vai se vestir sozinha? Ou eu tenho que fazer suas roupas
vestirem você? A escolha é sua.
Com um último olhar para ele, vou em direção ao meu closet com o
máximo de dignidade que meu corpo exausto permite.
HARROW CHAMA ESTE LUGAR DE RECANTO DO ALMOÇO. O QUE É UM NOME inapropriado, já que a sala
aparentemente não tem nada a ver com almoço ou recantos.
É grande. Claro que é grande. Tão grande quanto tudo aqui.
Espelhos dourados alinham-se na parede à direita na entrada, refletindo
as janelas com cortinas pesadas que dão para a cidade à esquerda. Há cinco
mesas espalhadas pela sala, quatro menores postas para quatro pessoas e
uma grande mesa no centro posta para seis.
É nela que três pessoas se sentam. Todos eles prontamente ignoram a
torre de bolos e lanches no centro da mesa para me encarar.
— Não me deixe distraí-los. — Aproximo-me à frente de Harrow e
pego uma das brilhantes tortas de frutas do topo da pilha no centro da mesa.
— Não sou tão fascinante quanto esta comida.
— Discordamos de todo o coração. — Uma mulher com cabelos pretos
e lisos até a cintura se inclina para frente, colocando os cotovelos sobre a
mesa.
— Talvez devêssemos acreditar em sua palavra. Ela certamente tem
autoridade sobre o quão interessante ela é. — Um homem de pele morena
ajusta seus óculos grossos e toma um gole de chá da xícara delicada à sua
frente.
O terceiro não levanta os olhos do livro que está lendo.
Harrow se senta e põe os pés na cadeira vazia.
— Sua Majestade, conheça meus amigos. Jalic é um belo exemplo de
homem com óculos.
Jalic revira os olhos.
— Este homem forte e quieto é o Sirro — continua Harrow.
O homem me olha através de seus longos cílios e ondas de cabelo
castanho. Ele deve ter realmente decidido que sou menos interessante do que
seu livro, porque ele retorna ansiosamente a leitura.
— E por último, mas não menos importante, a acrobata mais adorável
de toda Lafaire, a primeira e única...
— Ariamorria — ela termina com um sorriso de dentes tortos. — Mas
me chame de Aria. Encantada em conhecê-la, Sua Majestade.
— Sim, o prazer é todo meu — minto, e coloco a pequena torta na
boca. Eu estava esperando o gosto de cereja. Eu não esperava que ela
também tivesse algum tipo de pimenta tão picante capaz de fazer vapor sair
pelas minhas orelhas. Tão rápido quanto a torta entrou na minha boca, ela
sai. Eu cuspo no chão e abano minha língua.
— Ela parece um cachorro! — Aria ri com Harrow.
— Acho que ela realmente é a rainha verdadeira, já que a comida do
Entre Mundos não tem gosto de cinza. — Jalic tenta, e não consegue,
esconder sua diversão por trás da xícara de chá. Até Sirro ri.
Corro para me servir de uma xícara de chá. Está quase fervendo, mas
estou pronta para escaldar minhas papilas gustativas se isso fizer parar a
queimação da pimenta. Me sinto tonta e eu me encosto em uma das cadeiras.
— Eu acho que você colocou muito — Aria diz para Harrow. — Ela
parece fraca.
— Se ela desmaiar de novo, tenho certeza que meu irmão a levantará do
chão como fez da última vez. Talvez comecemos a chamá-la de rainha dos
desmaios? Poderíamos fazer com que metade da cidade adotasse o título
antes da coroação, se tentássemos.
Mais risadas. Eu agarro a cadeira com os nós dos dedos brancos e luto
para encontrar minha voz.
— Por quê? — Eu olho para Harrow e, em seguida, viro meu olhar para
o resto deles. Nenhum deles tem a decência de fingir culpa.
— Oh! Não pareça tão mortífera. — Harrow dá um tapinha na minha
mão. — É tudo um pequeno teste, para termos certeza de que você é a
verdadeira rainha.
— Achei que minha reação ao sentar no trono fosse o suficiente? — Eu
aponto para as janelas que nos separam de um dia de primavera. — Isso não
é o suficiente?
— Você nos trouxe primavera após anos de inverno. O que você quer,
uma medalha? — Harrow arqueia as sobrancelhas. — Esse é o seu trabalho,
humana.
O trabalho da Rainha Humana é existir. As palavras se repetem
continuamente e cada vez mais eu percebo o quanto elas são verdadeiras. No
início, pensei que isso significava que a Rainha Humana era ignorada e
deixada de lado, um peão para o tratado de paz duradouro. Então, depois de
falar com Willow, pensei que a Rainha Humana tinha que existir para
“recarregar” a natureza do Entre Mundos. Eu pensei, tolamente, que isso
viria com algum respeito ou até reverência.
Não.
Eles não se importam. Eu sou apenas uma ferramenta para fazer suas
flores desabrocharem e tornar os campos férteis. Sou um saco ambulante de
estrume a seus olhos.
— Obrigada pelo teste. Estou feliz por ter conseguido responder as suas
dúvidas. — Eu me endireito para longe da cadeira. Minha boca ainda está
pegando fogo e minha cabeça está começando a latejar. A dor divide minhas
têmporas e não sei se é por causa da febre ou da comida extremamente
picante. — Agora, se me dão licença. — Eu me movo para sair.
Harrow segura meu pulso.
— Não, fique. Não terminamos com você ainda.
— É raro as pessoas terem uma prévia da rainha antes de sua coroação
– uma verdadeira honra! — Diz Aria. — Queremos conhecê-la.
— Me torturando no processo?
— Pare de ser tão dramática. — Ela estreita os olhos. — Sinceramente,
se você não consegue lidar com um pouco de diversão sombria, você não
sobreviverá por muito tempo aqui no Entre Mundos.
— Espere até ela ver sua primeira rixa de ursos. Aposto que ela vai
desmaiar. Vamos pedir vários ursos como presente de coroação? — Jalic
apoia o queixo na palma da mão e circula a colher no chá. Eu nem quero
saber o que é uma “rixa de ursos”.
— Eu vou embora — digo mais uma vez e arranco meu pulso das mãos
de Harrow.
— Duvido que ela sobreviva a coroação. — Aria ri e o som irrompe
pela minha cabeça.
Eu me recuso a deixá-los me provocar. Eu vou ser uma pessoa melhor e
ir embora.
Mas Harrow tem outros planos. As portas se fecham magicamente na
minha frente.
— Fique. Precisamos informá-la dos detalhes de sua coroação, dos
rituais da primavera, e antes que você perceba, será o solstício de verão.
Você não vai querer passar vergonha por não conhecer os costumes dos
elfos, não é? Especialmente não depois de fazer meu irmão parecer um
idiota ao se esconder por um ano.
— Eu não fiz ninguém parecer idiota. — Eu fico de costas para eles e
cerro os punhos.
— Ah, você fez sim. Não que eu me importe — continua Harrow. —
Foi um bom show de assistir. Eldas raramente fica fora de si.
— Deixe-me sair.
— Eu não acho que vou deixar.
Eu giro, como uma tempestade e bato minha mão na mesa com tanta
força que os pratos tilintam alto. Um dos vasos cheio de rosas recém-
cortadas quase tomba.
— Ah, pare com a cara assustadora. — Aria acena com a mão no ar
como se eu fosse um inseto irritante.
— Se você não me deixar ir–
— Vou perguntar a mesma coisa que perguntei antes. — Harrow se
inclina para a frente. — O que você vai fazer?
Meu braço balança antes que seus olhos possam piscar. Pego uma das
rosas do vaso. Minha intenção era jogá-la na cara dele – jogar todo o
emaranhado de espinhos nele e depois acertá-lo na cabeça com o vaso.
Mas os espinhos cortaram minha própria carne primeiro. O sangue
pinga na toalha de mesa branca e sinto um puxão na palma da minha mão. É
sutil, como um sussurro, um amigo invisível que está pronto para cumprir
minhas ordens.
Magia, eu percebo um segundo antes que seja tarde demais. Esse puxão
é mágica.
As rosas na mesa estão subitamente se contorcendo como serpentes.
Elas explodem de seu vaso e Harrow me solta em estado de choque. Aria
praticamente salta da cadeira para trás para evitar a água e as vinhas. O livro
de Sirro cai no chão.
Eu dou um passo para trás, a rosa escorregando dos meus dedos. As
rosas nas mesas estão inquietas. Elas crescem até que os botões de rosa
fiquem do tamanho de pires e os espinhos sejam pequenas adagas. As vinhas
serpenteiam pela sala, procurando brechas para penetrar profundamente
nesse povo cruel.
— O que diab... — Harrow pragueja.
— Abra, Harrow! — Aria implora a ele. As portas se abrem.
— Hora de ir! — Jalic foge da sala antes que as vinhas possam fechar
sua rota de fuga. Sirro está logo atrás.
— Harrow, deixe a rainha em paz. — Aria o puxa.
— Como você se atreve — ele sussurra enquanto é arrastado para a
porta.
— Como você se atreve — eu repito de volta, fervendo. — Saia daqui e
nunca mais volte a me incomodar.
Mesmo que eles tenham recuado, minha raiva alimenta ainda mais as
vinhas. Uma rede espinhosa se espalha pela porta e se arrasta pelas paredes e
pelo teto. Rosas do tamanho de guarda-chuvas agora florescem como lustres.
Eu caio de joelhos, com falta de ar. Tento liberar a magia, mas ela tem
tanto poder sobre mim quanto sobre as vinhas.
As janelas estão completamente cobertas e eu fico na escuridão. Eu
ouço a folhagem sensível, esmagando os móveis, quebrando os espelhos de
vidro. O deslizar continua, se aproximando de mim como serpentes. As
vinhas deslizam sobre minhas pernas, deixando cortes profundos em seu
rastro. Eu nem mesmo grito. Estou cansada demais para me importar.
Morte por vinhas. Não era assim que eu esperava partir. Eu fecho meus
olhos e suspiro.
Não.
Não... Se eu morrer agora, nunca poderei voltar para Capton. Se eu
morrer, outra jovem será escolhida, porque o poder será passado. Ela pode
ser como eu e ter seus próprios objetivos e sonhos. Ela será tirada de pessoas
que precisam dela. Este ciclo miserável continuará.
Se eu viver, posso ter uma chance de acabar com isso, não é? O
pensamento desonesto é como um flash na escuridão. Um trovão silencioso
que soa quase como as vozes dos meus pais – murmurando tarde da noite
sobre a injustiça de todo esse sistema – persegue o tal pensamento. Meus
olhos se abrem novamente.
Talvez meu pai estivesse certo. Talvez haja uma saída desta prisão que
há séculos é imposta às mulheres de Capton. Se os elfos podem separar
mundos, não podemos encontrar uma maneira de ligar o Mundo Natural ao
Entre Mundos? Isso sequer já foi tentado?
Mesmo se eu falhar, não posso voltar para casa se estiver morta. Capton
ainda precisa de mim. De alguma forma, ainda vou encontrar uma maneira
de ajudá-los. Jurei aos meus amigos e parentes que faria isso.
— Chega — eu tento comandar as vinhas. — É o bastante.
Eu tento lutar com minha magia para colocá-la de volta sob controle,
mas o poder é uma besta espinhosa tanto quanto as plantas que se alimentam
dela. Eu empurro as vinhas das minhas pernas, soltando um grito de dor, e
tento me levantar.
Se minha magia as fez, minha magia pode controlá-las. Tenho que
acreditar que isso é possível. Eu consegui sair do trono de alguma forma,
não foi? E o mundo me tinha em garras muito mais profundas naquela hora.
Este não é o trono mergulhado em milhares de anos de magia. Estas são
apenas algumas flores. Elas só têm o poder que lhes dei.
Concentre-se, Luella.
Em vez de recuar e me reprimir, estendo minha vontade até as vinhas.
Lentamente, eles começam a se contrair.
É isso. Não sei se estou encorajando a mim ou às vinhas. Diminuam;
me deixem ver o dia. A luz pisca pelas janelas enquanto as plantas recuam,
pouco a pouco.
Todas de uma vez, elas estremecem. Eu vejo como a magia murcha,
roubada de minhas mãos. A vida nas videiras se desvanece. Elas secam,
ficam quebradiças, pretas e depois se transformam em pó, que se desfaz
como fumaça.
Em seu rastro, a sala é uma ruína que cheira a rosas, e parado na porta
está um Eldas carrancudo.
CAPÍTULO 10
EU SAÍ PELA PORTA ERRADA, PERCEBO INSTANTANEAMENTE. EXISTEM SEIS PORTAS NA sala do trono, três de cada
lado. Normalmente entro pela porta mais à esquerda, a mais longe dos
tronos. Mas ele me deixou com tanta raiva que me virei.
Passei pela porta do meio ou da direita? Não tenho certeza.
Estou cara a cara com um corredor longo e silencioso. As portas estão à
esquerda, as janelas à direita. Cada porta à minha esquerda tem um cadeado
pesado. No final do corredor, há uma escada.
Subo as escadas? Ou volto? Isso não é realmente uma dúvida.
Certamente não vou voltar e correr o risco de voltar para ele. É isso.
No andar seguinte, há um patamar que tem um único sofá e uma
pequena mesa na outra extremidade, em frente a uma tapeçaria luxuosa –
provavelmente uma sala de espera para aqueles que aguardam uma audiência
com o rei. Estou prestes a seguir em frente quando um brilho chama minha
atenção.
Eu paro, mudando meu peso para frente e para trás. Alguma coisa está
brilhando na franja inferior da tapeçaria. Eu me movo rapidamente, agacho e
estendo a mão para investigar. A tapeçaria dá passagem às minhas mãos.
Puxo o tecido pesado de lado para revelar uma abertura e rastejo por ela.
O brilho que vi foi a luz do sol vinda de uma janela estreita no final
deste corredor impossivelmente estreito. Eu tenho que andar de lado
enquanto as paredes tentam me esmagar. Mas, ao fazer isso, noto que há
pequenas perfurações na pedra. É como se o construtor não tivesse
preenchido totalmente todas as lacunas com argamassa.
Através desses buracos, tenho vislumbres da sala do trono abaixo.
Vozes ecoam até mim. Eldas anda de um lado para o outro diante dos tronos,
as mãos cruzadas com tanta força que estou surpresa por seus ossos não
estarem se quebrando. Rinni também está lá. Ela está relaxada diante do rei
furioso. Isso claramente não é novidade para ela.
— Como posso fazer isso, Rinni?
— Se alguém pode, é você, Eldas.
— Ela não vai ouvir. Eu não posso trabalhar com ela. Esperei pela
rainha que me prometeram e não a recebi. — Eldas para, deslizando seu
longo cabelo sobre o ombro. — Seu poder é apenas uma fração do da Rainha
Alice. É mais uma prova de que a linha de rainhas está diminuindo. Se o
poder da Rainha Humana se extinguir completamente, então nosso mundo
estará condenado.
— Essa é uma preocupação para o futuro. Concentre-se no aqui e agora
— aconselha Rinni calmamente.
— O aqui e agora indica que ela pode ser a última Rainha Humana.
— Você está sendo dramático — diz Rinni. Ela é precisa, mas há um
fantasma de dúvida vagando em torno de suas palavras. — Você acabou de
começar a trabalhar com ela. Dê-lhe uma chance.
— Como posso “dar uma chance a ela” quando ela adora me
desrespeitar? — Eldas para, virando-se para enfrentar sua cavaleira com a
palma da mão na bochecha. — Ela, na verdade, me bateu.
Todo o espectro de emoções passa pelo rosto de Rinni. Eu vejo sua testa
franzir com preocupação. Então seus lábios se abrem em choque. Eu a vejo
fechá-los rapidamente para conter o que parece ser uma risada.
— Rinni–
— Já era tempo, Eldas.
— Ela já conquistou você? Ela está até roubando meus aliados. —
Eldas franze a testa e retoma seu andar ritmado.
— Você se tornou insuportável nos últimos meses. — Rinni não mede
palavras e cruza as mãos presunçosamente. — Alguém precisava colocá-lo
em seu lugar, e eu certamente não estava conseguindo chegar até você.
Eldas aperta a ponte de seu nariz e pende sua cabeça, o cabelo negro
deslizando sobre seus ombros e protegendo seu rosto.
— Suponho que fui um pouco brusco.
Rinni bufa.
— Um pouco?
Exatamente o que eu diria. Não tenho certeza se estou aliviada por
Eldas estar admitindo isso ou ainda mais zangada. Se ele sabia que estava
sendo um idiota, por que se permitir agir dessa forma?
Eldas para, olhando para a porta pela qual eu saí. Há uma expressão
turva nublando seu olhar. Não consigo decifrar a profundidade de tudo isso...
mas se eu puder arriscar? Parece remorso?
Não, não pode ser. Ele foi cruel e sabia bem disso. Esses fatos superam
todo o resto. No entanto, quanto mais eu fico olhando para ele, mais
nublados meus próprios sentimentos se tornam. Seu coração é muito mole,
Luella, eu me repreendo.
— Eu me pergunto se... — Eldas murmura.
— Se o quê? — Rinni pressiona.
— Se ela está bem — Eldas termina. Eu estava certa, há preocupação
em seus olhos. — Eu deveria checar–
— Não. — Rinni corre e segura seu cotovelo. — Eu não sei exatamente
o que você fez, mas eu suspeito que seja melhor dar a ela algum espaço.
Você provavelmente é a última pessoa que Luella quer ver agora.
— Eu duvido–
— Eldas, eu estou errada? — Rinni o interrompe com a pergunta
impassível e um olhar severo.
Ela não está, eu acho. Não sei o que faria se Eldas tentasse correr para
mim e se desculpar agora. Eu gostaria de pensar que aceitaria. Mas parte de
mim quer que ele se preocupe um pouco mais com o que acabou de fazer, ter
certeza de que ele está realmente arrependido antes de aceitar um pedido de
desculpas.
— Tudo bem — ele murmura. — Vou me desculpar amanhã.
Eu duvido que ele vá. Eu duvido muito.
— Acho que isso é sensato — diz Rinni.
Eldas se arrasta até seu trono, afundando nele pesadamente.
— Primeiro o fada, agora ela. O Rei Fada deixou claro que ele pensa
que sou mais mole, mais fraco que meu pai. Ele quer que as terras sejam
devolvidas a eles e quer o reconhecimento no Conselho dos Reis.
Eu me inclino para mais perto das aberturas. Eu vejo como Eldas se
ajeita, apoiando o peso sobre um cotovelo. Ele ergue a cabeça com a mão,
como se de repente sua coroa ficasse pesada demais para suportar. Ele
parece cansado... vulnerável.
Ele não se parece em nada com um rei agora. Ele parece um homem.
Um homem cansado e exaurido.
Então me lembro de como ele usou meu nome verdadeiro contra mim
para me tratar como uma marionete e qualquer simpatia evapora.
— Esperar por ela este último ano foi um erro. Fiquei muito tempo
isolado no castelo, mantendo todos afastados, esperando pela coroação —
murmura Eldas, tão baixinho que quase não ouço. — Meu povo pensa que
eu os abandonei. Os outros reis desta terra pensam que sou fraco.
— Você ficou isolado no castelo porque estava esperando por sua
rainha e a coroação dela – para se apresentarem ao povo de Entre Mundos
como um só, com a Rainha Humana. Não foi um erro; você estava honrando
nossos costumes — diz Rinni de maneira gentil e tranquilizadora. — As
pessoas vão entender quando tudo voltar ao normal.
Eldas esteve isolado? Esperando por mim? Ele mencionou algo sobre
isso ontem, mas se perdeu em meio a toda a agitação. Minhas unhas
arranham levemente contra a pedra. Só pensei nele como um Rei Elfo
poderoso – frio e insensível. Eu apenas pensei nele dominando este castelo
em toda a sua glória.
Mas... e se ele for tão prisioneiro deste sistema terrível quanto eu? O
pensamento me trai, despertando uma simpatia que não quero nutrir por este
homem.
— As estações voltaram e as pessoas estão felizes. Os preparativos para
os rituais da primavera já estão começando — continua Rinni. — Na
coroação, os outros governantes verão o poder dela e não questionarão você.
O botão de simpatia murcha imediatamente com a lembrança de meu
papel para ele. Eu sou uma ferramenta. Dei ao mundo a primavera e agora
vou reforçar seu reinado. Meu propósito aqui nunca terá nada a ver com o
que eu quero.
Eldas suspira.
— Eu espero que isso seja verdade.
— Tenho certeza que será.
Eldas encara um canto distante da sala. Rinni continua de pé, na
expectativa. Ela vê algo que eu não vejo. Eu teria interpretado isso como o
fim da conversa. Mas ela permanece.
— Rinni — diz ele, finalmente, sua voz fina. — Você é a única mulher
que já jantou na minha mesa particular. Você está ao meu lado há mais
tempo do que qualquer um de meus conselheiros ou magistrados. Você... —
Eldas engasga um pouco com mais emoção do que eu pensava que ele era
capaz de demonstrar. — Você é a única amiga que eu já tive. Diga-me, o que
devo fazer? A primavera está aqui, mas as rajadas de inverno sopram do
Véu. Se ela não aprender a controlar seu poder, temo o pior. Eu temo falhar
com ela. Temo que ela só conheça este lugar como eu conheço – como um
sofrimento. E, além de tudo isso, a coroação se aproxima. Eu gostaria que
ela encontrasse seu lugar antes disso.
Eu fico na ponta dos pés, encostada na parede para ver melhor. Eu
gostaria de poder ver sua expressão. Quero saber se a preocupação e a
sinceridade que ouço em sua voz são genuínas.
Rinni se aproxima lentamente do trono. Eu vejo quando ela se aproxima
e coloca a mão na bochecha do rei. Meu estômago dá um nó por um motivo
que não consigo explicar.
Eldas levanta o olhar. Ele olha para ela com olhos ansiosos. Rinni não
remove a palma da mão de seu rosto e Eldas não faz nenhum movimento
para afastá-la. Duvido que ele faria o mesmo se fosse eu quem o tocasse.
Mas, também, a primeira vez que toquei nele, em meu marido, foi para bater
nele.
Eu não deveria estar vendo isso. No entanto, não consigo desviar meu
olhar.
— No fundo, você é um bom homem, Eldas. Mas você é muito áspero
em seu exterior. Você sabe disso. — O polegar dela acaricia a bochecha de
Eldas. Algo sobre eles juntos parece bom – parece certo. Isso deixa meu
estômago ainda mais perturbado. — Ela não entende o porquê, porque você
não a deixa. E você também não está se esforçando para entendê-la. Eu
admito que tive as mesmas falhas. Fiquei ressentida com ela por se esconder,
e pelo que a ausência dela fez com que você suportasse no ano passado. Por
ela ter forçado você a gastar tanto poder mantendo a Bruma e continuar a ver
ela enfraquecer enquanto o Entre Mundos morre. Mas nada disso foi culpa
dela. Eu acredito nisso, e sei que você também. Você não pode culpá-la pelo
Entre Mundos ou pelas suas próprias circunstâncias. Estou tentando
conhecê-la agora, e você também precisa tentar.
— Se ela ao menos–
— Não procure desculpas — diz Rinni com firmeza, deixando cair a
mão. — Conheça ela. Alice não era o que você esperava até se abrir com ela.
Talvez com Luella seja o mesmo.
Eldas considera isso e por um momento seu rosto fica suave e
pensativo. A máscara de mármore havia dado lugar a um homem. Mas ele se
esconde atrás das paredes que construiu no momento em que percebe que
está exposto. Eldas balança a cabeça e se empurra para levantar do trono. Ele
pega a mão de Rinni com as suas, apertando-a.
— Eu respeito seu conselho, Rinni. Você sabe que sim... Mas Alice, ela
era uma coisa rara. Eu não fui feito para amar–
— Essas são as palavras de sua mãe — Rinni diz cortante.
Eldas ignora seu comentário.
— Eu nasci para uma coisa: meu dever para com o Entre Mundos.
— E essas são as palavras do seu pai. — Ela suspira.
— Qualquer outra coisa é uma distração. — Eldas termina, ignorando
completamente as objeções de Rinni. — Eu não posso dar a ela aqui o que
ela tinha em Capton. Não posso dar a ela uma família e amigos. Não posso
dar a ela o que eu nunca conheci. Mas talvez eu possa ensiná-la a lidar com
sua magia e a enfrentar este mundo brutal; Vou fazer o meu melhor para dar
isso a ela.
CAPÍTULO 13
EU OBSERVO ENQUANTO ELDAS VAI EMBORA E ENTÃO ME AFASTO DOS BURACOS NA parede. Minhas panturrilhas
têm cãibras de ficar na ponta dos pés e eu mudo meu peso de um pé para o
outro. Isso ajuda a dissipar um pouco da energia nervosa em meu corpo.
Parte de mim gostaria de não ter presenciado essa conversa. Não sei o
que pensar de Eldas agora. Acho que uma parte do meu coração já está
sofrendo em simpatia por ele. Isso é equilibrado rapidamente pela outra parte
do meu coração que sangra por Capton e todos de quem sinto mais falta a
cada hora – que sangra por sua crueldade.
Ele estava certo. O Entre Mundos é brutal e é um mundo que eu
gostaria de não viver.
É seu dever, lembro a mim mesma por instinto. Sempre que as coisas
ficavam difíceis, eu me concentrava em meu dever como curandeira para
com o povo de Capton. Mas agora... esse dever se foi e sem ele sou pouco
mais do que uma marionete de Eldas vagando pelos corredores do castelo.
Não quero que meu propósito seja fortalecer seu governo com minha
mera existência. Tudo em mim anseia por fazer mais. Mas o que pode ser
feito? Meu lugar aqui parece raso e vazio.
Lentamente, eu subo as escadas. Não sei para onde estou indo, mas sigo
pelo corredor para o qual o último degrau me leva. Ando de cômodo em
cômodo até que o cheiro da floresta e da terra façam cócegas em meu nariz,
roubando-me de meus pensamentos.
O cheiro é como um relâmpago em um dia claro – aparentemente vindo
do nada. Este castelo frio e cinza está vazio de vida, então qualquer sinal
dela desperta minha curiosidade. Sigo o aroma por um trecho de salas
conectadas que se abrem em um espaço que eu melhor descreveria como um
laboratório.
Prateleiras cheias de potes revestem as paredes acima dos balcões
cheios de béqueres coloridos, caldeirões borbulhantes e prateleiras para secar
ervas. Mesas altas me flanqueiam de cada lado, com banquinhos ao redor
delas e ferramentas espalhadas em cima. A parede oposta é feita de vidro,
vaporizado com umidade. A vegetação está embaçada pelo nevoeiro.
Suor cobre instantaneamente minha pele quando entro no
conservatório. A estufa ocupa toda a largura do castelo. Há pedras no chão,
pedras no teto e vidro em ambos os lados voltados para o norte e o sul. As
plantas crescem ao longo de treliças, formando um arco até o teto. Existem
prateleiras de vasos e canteiros acima do solo.
Aqui sinto o cheiro de lavanda e dente-de-leão se misturando com rosa
– o que quase me faz vomitar depois do incidente no salão de almoço – e os
aromas terrosos de sálvia e alecrim. Vejo arbustos, sabugueiros, valeriana,
prímula, hortelã e erva-cidreira. Existem plantas que eu nunca tinha visto
antes e algumas que eu só vi em livros.
— Ah! — Eu me assusto, parando no meio do caminho. O homem que
avistei põe-se de pé. Eu quase o dei um ataque do coração, de tanto susto. —
Olá, Willow. — Eu sorrio.
— Luella. — Ele dá um suspiro de alívio. — O que você está fazendo
aqui?
Eu encolho os ombros, sem estar pronta para falar sobre o que
aconteceu com Eldas.
— Eu estava andando por aí.
— Um bom lugar para conhecer; bem-vinda à estufa real. — Ele tira as
luvas de jardinagem e as coloca na cesta ao seu lado. Tesouras de poda e
punhados de hortelã-pimenta as acompanham. Ele sorri brilhantemente. —
Você gostaria de fazer um tour?
— Muito — eu digo sem hesitação. Qualquer coisa para me distrair.
Ele me mostra seu complexo sistema de irrigação e sua caixa de
compostagem no canto dos fundos. Willow tem grande orgulho pela
organização do galpão de jardinagem e das salas de secagem. Mas minha
atenção continua onde as plantas estão crescendo.
Vivas.
Estou ciente delas quando passo ao lado, de uma maneira que nunca
experimentei. A aura delas é como uma saudação sutil, um aceno de cabeça
de que elas estão cientes da minha presença. Os girassóis se viram para mim,
em vez de para o sol quando passamos. Estou tão ansiosa para conhecê-los
quanto eles estão por mim.
— O que é isto? — Eu paro em uma planta com uma base preta e
bulbosa, e folhas vermelhas, cerosas, em forma de coração.
— Coração-Real. — Willow dá um passo ao meu lado. Enquanto fala,
ele verifica a planta, procurando por insetos.
— O que ela faz? Eu acho que não temos isso no Mundo Natural.
— Curioso. — Willow murmura. — Eu pensei que todas as plantas no
Entre Mundos também estivessem no Mundo Natural. Talvez você
simplesmente não esteja familiarizada com ela?
— Talvez — eu digo. Mas eu duvido. Passei anos aprendendo todas as
ervas conhecidas pelo homem. Se eu não sei sobre ela, estou confiante em
dizer que ninguém a conhece.
— Em qualquer caso, as folhas são usadas em muitos antídotos, para
aumentar a potência e a rapidez com que o antidoto seja absorvido pelo
sangue. Mas a casca, essa é a parte realmente interessante. Você pode usá-la
para desacelerar o coração de uma pessoa a quase nada – o mínimo
necessário para a vida.
— Aposto que também é usada em envenenamentos. — Ele acena com
a cabeça em confirmação. Posso ver como seria útil retardar a propagação do
veneno.
— Dizem que a casca também pode ser usada para a memória... mas
isso é algo não explorado por muitos.
— Por que não?
— É mais um boato do que qualquer informação sólida. “O Coração-
Real lembra”, é o que diz o velho ditado. Embora ninguém saiba de onde ele
veio. — Willow encolhe os ombros. — Eu fiz alguns experimentos, mas
nunca consegui encontrar uma maneira de trazer à tona qualquer tipo de
propriedade mental.
— Entendo. — Estendo a mão e toco levemente as folhas macias do
Coração-Real. Uma vaga sensação de nostalgia me invade.
Eu posso sentir a terra molhada e úmida ao meu redor. Quase consigo
ver o contorno de uma mulher usando uma coroa de folhas. Suas mãos me
envolvem – com segurança. E então, só há escuridão. Eu estou enterrada.
Mais e mais fundo, eu cresço conforme a terra muda acima de mim,
engrossando, endurecendo.
Memórias, não minhas próprias, mas as mantidas em algum lugar além
da base avermelhada da planta, nadam em minha mente.
Então, a sensação muda. Tornando-se um puxão. Dois botões brotam e
eu rapidamente afasto minha mão, segurando-a contra o peito.
— Eu sinto muito.
Willow olha com admiração.
— Não se desculpe. É magnífico.
— O quê?
— Normalmente a planta leva trezentos anos para amadurecer. O que se
espera são as flores. Elas são oque podem curar qualquer veneno. O
Coração-Real só as produz em uma certa idade.
— Oh!
— Isso é incrível. — Ele sorri para mim. Willow viu algo maravilhoso.
Eu vi mais um sinal de que minha magia está fora do meu controle.
— Será que… outras propriedades aparecem em uma certa idade? —
Eu pergunto. — Talvez as de memória?
— Eu duvido. Mas podemos testar isso.
— Não... eu tenho que ir. — Eu empurro as sensações fantasmas para
fora da minha mente e olho para as plantas com tristeza. Se eu fosse apenas
Luella, a herbologista, passaria horas aqui. Mas agora sou Luella, a Rainha
Humana que pode acidentalmente fazer as plantas crescerem. Serão boas
plantas como o Coração-Real? Ou plantas violentas como as vinhas que fiz
no recanto do almoço?
Eu não deveria ficar para descobrir.
— Espere. — Willow agarra meu ombro, me impedindo de sair. — Tem
mais uma coisa.
— Willow, me desculpe–
— Há diários mantidos pelas rainhas anteriores. — Ele sorri, sabendo
que certamente não vou dizer não a isso. — Poppy me contou sobre eles
quando estávamos conversando sobre sua situação. Pensei que eles poderiam
ajudar a fazer você se sentir mais em casa aqui... talvez até ajudar com a sua
magia? — Ele começa a voltar para o laboratório enquanto fala e eu o sigo.
Willow vai até uma estante de livros no canto e pega um banquinho entre ela
e a parede. — Prateleira de cima. Fique a vontade.
Eu inspeciono a prateleira de cima. Existem vinte e cinco diários de
todas as formas e tamanhos com nomes escritos em cada lombada. Alguns
nomes são duplicados com números ordenados abaixo deles. O último da
linha tem “Alice” rabiscado a tinta.
— Você sempre soube que eles estavam aqui?
— Verdade seja dita, eu nunca olho para essa prateleira. — Ele ri. —
Mas eu estava conversando com vovó Poppy sobre você e ela mencionou
que estava pensando em pedir que você nos ajudasse aqui. Eu questionei se
Eldas permitiria... mas ela disse que haviam precedentes.
— Outras Rainhas Humanas que já ajudaram? — Não me atrevo a criar
esperanças. Já fiz isso muitas vezes.
— Na verdade, sempre foi muito comum. O que faz sentido, quando
você pensa no que a magia da rainha faz. — Willow sorri um sorriso um
pouco torto. Só pensar nisso faz um sorriso brotar em meus lábios.
— O que eu faria?
— Você poderia ajudar a cuidar das plantas. Ou misturar coisas para
nós se você quiser e se nós precisarmos.
É um começo.
— Eu poderia ir à cidade?
— Talvez depois da sua coroação. — Sua expressão agora é
preocupantemente, incerta.
— Poderia ter pacientes?
— Eu... duvido muito. — Ele franze a testa e minha expressão reflete a
dele. Eu olho pesarosamente para os diários. Como elas foram felizes aqui?
Elas foram felizes aqui? Acho que só há uma maneira de descobrir. Mas já
posso dizer que, se meu diário um dia for colocado nesta prateleira, ele não
estará cheio de alegria apenas por eu passar meus dias regando plantas.
— De qualquer forma, as outras rainhas mantiveram esses registros. —
Willow continua. — Você pode encontrar algo útil em algum desses diários
que a ajude a se adaptar. Poppy também já deu sua permissão.
— Estão faltando algumas rainhas. — Especificamente, as primeiras
cinco.
— Eu acho que as primeiras não mantiveram diários? Ou talvez eles
tenham se perdido ou sido destruídos. Isso foi há três mil anos. Temos sorte
pelos diários que ainda temos. — Ele encolhe os ombros e se dirige para a
saída. — Está quase na hora do almoço. Acho que vou buscar alguma
comida para nós. Você tem alguma preferência?
— Nada picante — eu digo rapidamente. — Fora isso, pode ser
qualquer coisa. — Eu coloco a ponta do meu dedo no diário de Alice.
— Volto logo com a comida — ele diz por cima do ombro e se afasta.
Enquanto tiro o livro da estante, a ideia de levá-lo ao Sr. Abbot passa
pela minha cabeça. Ele sem dúvida adoraria até mesmo segurar algo que sua
irmã tocou. Eu me pergunto se eu poderia, de alguma forma, fazer o livro
chegar até ele. O pensamento faz brotar uma ideia enquanto folheio as
páginas.
Se eu pudesse voltar... eu seria muito mais útil em Capton. A primavera
está aqui em Entre Mundos, o povo vai ficar bem e tenho certeza de que
Eldas pode manter sua carranca sem mim.
Meus dedos formigam como se o livro estivesse me dando permissão.
Alice fez suas anotações de forma ordenada. Há o nome de uma erva no
topo de cada página, com um esboço lindo e meticulosamente detalhado do
espécime em questão. À direita do desenho, estão as propriedades e as
instruções de preparação.
Ao final de todos os itens, existem notas sobre magia – a magia da
rainha – e como usá-la. Eu coloco o livro na mesa e começo a folhear as
páginas ansiosamente, examinando as notas mágicas.
EU TINHA OITO ANOS QUANDO SAÍ FURTIVAMENTE DE CASA PELA PRIMEIRA VEZ.
A pequena janela na parte de trás do sótão era grande o suficiente
apenas para o meu corpo criança se contorcer através dela. As saliências que
emolduravam as janelas eram largas o suficiente apenas para apoiar meus
pés ágeis. E eu era estúpida apenas o suficiente para pensar que subir em
árvores altas significava que eu era perfeitamente capaz de escalar pela
parede e descer do terceiro andar de uma casa de três andares para que eu
pudesse coletar flores raras que só florescem durante a noite.
Eu era jovem e imprudente.
Agora estou mais velha... e aparentemente ainda imprudente.
O luar penetra pelas janelas do recanto do almoço. De alguma forma, a
sala que destruí já foi reparada. Um arrepio sobe pela minha espinha e me
pergunto se é a sensação fantasma da magia élfica que eu sei que deve ter
sido usada para reparar o dano, ou se há realmente um calafrio deixado para
trás pelo poder.
Minha bolsa está pendurada, atravessada em meu corpo e estou com as
roupas com que cheguei aqui. Roupas robustas, que podem aguentar escalar
as sequoias mais altas da floresta ou derrapar encosta abaixo. O tipo de
roupa que usaria na minha loja, pela qual anseio agora.
Eu respiro fundo, debatendo comigo mesma sobre meu plano. O que
acontecerá se eu realmente for embora? O Rei Elfo precisa de uma Rainha
Humana. Bem, ele tem uma. Mesmo que eu esteja longe, ainda estamos
casados, tecnicamente. O Entre Mundos precisava de uma recarga através da
rainha vinda do Mundo Natural. E eles conseguiram isso.
E, com base na conversa que ouvi dele com Rinni, causei mais mal do
que bem na vida de Eldas. Ótimo, esse sentimento é mútuo. Se eu for
embora, nós dois poderemos voltar a viver como quisermos, agora que
cumprimos nossos deveres.
— Eu tenho que ir — eu digo para fortalecer minha decisão.
Talvez as outras rainhas não tivessem nada melhor para fazer do que
existir, mas eu tenho trabalho. Eu fiz as árvores florarem e o Entre Mundos
renascer. Meu trabalho aqui está feito, pelo que posso dizer. Agora, é hora de
ver se há outra opção que nenhuma rainha ousou tentar explorar – ir para
casa.
Eu abro a janela. Mesmo que agora as árvores na cidade abaixo estejam
envoltas pela primavera, seus galhos pesados com seu recente
desenvolvimento, minha respiração congela no ar. Eu me pergunto se esta
cidade é perpetuamente gelada pela magia de todos os elfos que vivem nela.
Seja o que for, estou ansiosa pelo clima muito mais quente da costa.
Imagino o sol na minha pele enquanto colho flores e ervas que crescem
selvagens nas colinas. Imagino o bater das ondas sendo abafado pelas
árvores enquanto as podo e as recolho para encher os potes da minha loja.
As memórias me encorajam. A ideia de ficar mais um minuto sequer
aqui com Eldas e Harrow é demais. Vou murchar lentamente se for forçada a
viver o resto dos meus dias aqui.
Eu seguro uma rosa em minha mão direita – desta vez eu cortei os
espinhos para evitar que a magia no meu sangue se envolvesse na minha
equação mágica. Várias outras flores sem espinhos estão na minha mão
esquerda. Minha bolsa tem manchas úmidas de todas as outras flores que
roubei dos vasos – agora vazios – ao redor do recanto do almoço.
Com base no que dizem os diários e no que vi durante minha prática
com Willow hoje, preciso de matéria-prima para usar minha magia. A magia
selvagem é poderosa porque desafia as leis da natureza. Mas eu sou a
personificação do natural e a natureza prospera no equilíbrio. Portanto, tudo
o que faço deve ser mantido em equilíbrio.
— Vamos tentar de novo — negocio com a flor. — Desta vez, você tem
que me ouvir, ok?
Ela parece se mexer sob meus dedos. Certamente é minha imaginação.
Mas, se não for, espero que seja um bom presságio.
Eu me acalmo e lembro a mim mesma de que posso fazer isso antes de
colocar a flor no parapeito da janela. Eu pressiono meus dedos da mão
direita nela para evitar voe com o vento. Eu inalo, como se estivesse
sugando a vida e a energia das flores na minha mão.
Força e equilíbrio, eu penso. Eu tiro a vida das flores na minha mão
esquerda e transfiro para a rosa debaixo da palma da minha mão. Não estou
destruindo, nem criando, apenas mudando e reorganizando a essência. Poder
surge através de mim, formigando, correndo por debaixo da minha pele. Isso
me encoraja de uma forma que nada nunca fez antes.
Espiando pela janela, eu olho para baixo, pelos sete andares até a rua da
cidade lá embaixo. A rosa ganha vida. Gavinhas agarram a rocha. O caule se
alonga. Observo enquanto se transforma em uma treliça descendo a encosta
da montanha.
Talvez Eldas esteja certo e controlar a magia não seja tão difícil afinal,
uma vez que você tenha uma base.
— É melhor você aguentar. — Sento no peitoril e coloco meus
calcanhares nas vinhas. Estou colocando muita confiança em alguns diários
antigos e em alguns testes preliminares. Mas não tenho muitas opções no
momento. Eldas pensa que eu não tenho qualquer controle sobre meus
poderes, então agora é a hora de eu correr, se for o caso. Assim que eu
começar a mostrar maestria, ele pode tentar me prender com mais afinco.
Cuidadosamente, eu mudo meu peso, virando enquanto ainda posso
agarrar o peitoril. Fecho a janela atrás de mim e começo a descer lentamente.
Há algumas outras janelas pelas quais eu passo, mas elas estão escuras
ou têm cortinas fechadas na frente delas. Quando chego no chão, minhas
mãos e ombros doem, mas a descida não foi tão difícil quanto eu esperava.
As trepadeiras pareciam embalar meus pés e fazer apoios convenientes para
que eu me segurasse.
As plantas estavam cuidando de mim, eu percebo. Eles sempre
cuidaram. Galhos de árvores se esforçando para me apoiar, ou dobrando para
que eu pudesse alcançá-los... não era apenas minha imaginação, mesmo que
tenham me dito isso quando eu era menina. Por todo esse tempo houveram
pequenos sinais e dicas sobre quem eu realmente era e eu os ignorei.
Meus pensamentos vagam para Luke. Espero que ainda não o tenham
julgado, porque a primeira coisa que quero fazer quando voltar é realmente
dizer a ele como me sinto. Então, quero explicar o risco no qual ele colocou
todo o Entre Mundos ao me esconder. Ninguém em Capton parece realmente
entender o que está acontecendo por trás da Bruma.
A cidade está quieta. Postes de luz cintilam com fogo azul, dando a
tudo um brilho incrustado cor de safira. As casas são tão altas quanto minha
casa de arenito em Capton, se não mais altas. Posso ver as lojas escuras de
modistas, marceneiros, ferreiros e sapateiros – todos os negócios que alguém
esperaria encontrar em uma cidade, mas as mercadorias em suas vitrines me
fazem desacelerar meus passos, apesar de tudo.
Os produtos dos elfos são raros em Capton e extremamente preciosos.
Aqui, minha chaleira feita por elfos é apenas uma chaleira. Vejo outra igual
na vitrine de uma ourivesaria quando passo em frente.
Tudo que um dia eu vi como exótico, precioso e mágico é comum no
Entre Mundos. De chamas azuis a magia fria, e arquitetura perfeita demais
que se transforma em pontos perversos em muitos dos edifícios, é uma terra
que de alguma forma parece um lar e está muito longe disso.
Alguns farristas noturnos estão circulando, mas eles se mantêm à
distância. Eu evito principalmente as tavernas onde eles parecem estar se
reunindo. Eu ajusto meu cabelo sobre minhas orelhas, tentando esconder o
fato de que elas não são pontudas como a de todos os outros aqui.
Ocasionalmente vejo guardas municipais patrulhando em duplas – seus
uniformes exatamente como os que foram a Capton com Eldas. Mas é uma
noite tranquila. Todo mundo está quieto, e ninguém suspeita de mim.
Risos e gritos ecoam do outro lado do lago, chamando minha atenção.
Olho e vejo Harrow e seus amigos saindo de um beco mal iluminado.
Harrow está suspenso entre os dois homens. Aria gira em torno deles, rindo
e cutucando sua forma inerte.
Eu ando mais rápido.
Quando chego aos pés da escada que leva ao túnel da montanha do qual
Eldas e eu emergimos, faço uma pausa. Não há maneira furtiva de subir. Há
uma faixa de luar pálida que ilumina toda a subida.
Olhando para trás, mal posso ver as vinhas na lateral do castelo, como
uma fita verde desenrolada desde a janela. Ao amanhecer eles saberão que
eu escapei. Mas encolher as vinhas de volta a uma rosa era um risco que eu
não queria correr. Preciso da minha força para o que quer que esteja por vir.
Sim, eles saberão que fugi. Portanto, a melhor coisa que posso fazer é
tomar uma boa vantagem inicial. Se eu conseguir chegar a Capton esta noite,
então posso explicar que mantive minha parte no trato aqui e o conselho,
esperançosamente, me protegerá. Talvez Luke – por mais que eu deteste a
ideia de trabalhar com ele – ainda saiba uma maneira de me esconder. Ou
talvez possa haver uma exceção pelo fato de que uma pequena cidade
costeira precisa desesperadamente de um curandeiro.
Respiro fundo e começo a correr.
Os elfos não cruzam a Bruma por nada além do raro comércio de
mercadorias, esposas ou guerra. Não há razão para que um elfo solitário
deixe a cidade a esta hora da noite. Não tenho dúvidas de que Eldas escolhe
pessoalmente quem pode atravessar a Bruma e quando. Corro o mais rápido
que posso e rezo para que ninguém veja.
Não paro de correr enquanto mergulho na escuridão do interior do
túnel. Eu corro para a névoa de obsidiana que obscurece a luz. Quase bato de
cabeça em uma árvore, parando apenas no último segundo, quando ela surge
do nada.
Com as duas mãos, consigo evitar bater o nariz no tronco. Eu me
inclino para trás e olho ao redor. A luz da cidade élfica desapareceu. A
escuridão me cerca.
Não me lembro de ter feito curvas quando Eldas me escoltou através
da Bruma. Mas talvez tenhamos. Dou a volta na árvore e avanço mais lenta e
deliberadamente desta vez.
Só é possível ver alguns metros à minha frente por vez. Toda a
visibilidade desapareceu e agora é como se eu fosse a luz. Eu sou a única
entidade real aqui. Tudo além de mim são sombras e pesadelos.
O musgo úmido cede sob meus pés. Procuro pedras e sinais dos
caminhos para o templo. Já estou caminhando por um bom tempo, não é?
Embora talvez pareça mais porque estou sozinha. Estou muito, muito
sozinha.
EU CANTO PARA MIM MESMA. É UMA DAS CANÇÕES QUE LEMBRO DE TER CANTADO quando criança, mas não
consigo lembrar de onde ou com quem a aprendi. É uma canção macabra
sobre um humano que se apaixona por uma criatura da floresta. Meu canto é
terrível, mas é melhor que o silêncio.
ME ENCONTRE DEBAIXO DOS RAMOS PRATEADOS,
“
UM GALHO SE QUEBRA ATRÁS DE MIM. EU GIRO NO LUGAR. A MELODIA ASSUSTADORA permanece no ar enquanto eu
mal consigo distinguir um movimento na escuridão.
Eu ouço o rosnado primeiro, um rosnado baixo que ativa meu impulso
primitivo, como presa, de fugir. Então, um brilho de luz rompe a névoa. Dois
olhos amarelos luminosos e brilhantes olham para mim.
Passo a passo, a besta enorme se aproxima. É o maior lobo que já vi,
com patas quase do tamanho de minhas botas. Seu pelo é de uma cor de
ardósia escura, como se tivesse nascido da própria névoa. Seus lábios estão
franzidos, deixando à mostra seus dentes afiados como navalhas.
Eu sincronizo com seus passos, avançando para trás.
— Não — eu sussurro. A palavra estremece. — Por favor, não.
Por que eu tinha que cantar? Eu poderia muito bem ter simplesmente
gritado: Estou aqui, bestas terríveis da Bruma! Venham me comer! Agora
vou morrer sozinha no escuro por causa de uma música que nem gosto tanto.
Minhas costas pressionam contra um grande tronco de árvore e eu olho
ao redor, procurando por um lugar para escalar. Droga. Claro que não há
galhos.
Eu olho de volta para a besta rosnando, encontrando seus olhos
enquanto alcanço minha bolsa e pego as outras rosas. Se eu conseguir fazer
um galho crescer, talvez consiga subir alto o suficiente. Porém, a julgar por
suas pernas poderosas, já estou a uma distância de uma única mordida.
— Não sou uma boa refeição — digo. — Por que você não volta de
onde veio?
Achei que não fosse possível, mas o lobo apenas rosna ainda mais.
Minha mão se fecha em torno dos caules de rosas. Eu pressiono minha
outra palma na árvore atrás de mim. O que eu pretendo fazer? Fazer um
galho crescer? Conseguirei subir a tempo?
Eu poderia tentar fazer uma gaiola de raízes, como as de pedras que
Eldas fez com Luke. Mas a complexidade de fazer algo grande e forte o
suficiente me deixa nervosa. Enquanto isso, o lobo continua se aproximando.
Escolha, Luella, antes de virar comida.
Um galho então.
As rosas murcham e se desfazem sob meus dedos. Mas nada acontece.
A magia se espalha em mim e se extingue inofensivamente no ar.
O lobo solta um rugido e ataca. Tento subir na árvore, inutilmente. No
processo, escorrego no musgo úmido e caio para trás.
O mundo se move lentamente.
É isso. É assim que eu vou morrer. Minha mãe sempre disse que eu ia
muito fundo nas florestas. Ela sempre me disse que se alguma coisa
acontecesse comigo, seria por eu ter me afastado demais de casa.
Você estava certa, mãe.
Minhas costas batem na terra e meus ossos estremecem. Eu quase
mordo minha língua. Meus dentes cerram e meus ouvidos zumbem. Eu
imagino a sensação do trono arranhando sob minha pele. Dessa vez, são as
garras do lobo. Em seguida virão os dentes, e sangue, e–
Sinto um hálito quente perto do meu ouvido. Farejando.
Eu abro meus olhos e encontro o olhar luminoso do lobo. Farejando a
lateral do meu rosto. O macho – o que agora tenho certeza – me rodeia. Ele
cheira minhas mãos e enterra o nariz na minha bolsa.
Quando ele termina sua inspeção, ele se senta, enrola o rabo espesso em
torno das patas e me encara com expectativa.
— O quê? — Eu lentamente me sento. — Você não vai me comer? —
O lobo continua me observando. — Então por que todo esse rosnado? — Eu
esfrego minha nuca. Ainda está doendo. — E o que te fez parar? Não que eu
esteja reclamando.
Ele inclina a cabeça para mim. Suas orelhas se contraem. É então que
noto um sulco profundo em sua orelha direita.
— Espere... você é... não, você não poderia ser... — Eu me ajoelho,
finalmente dando uma boa olhada no lobo. Ele continua a olhar com
expectativa. Sua cauda sobe e então cai pesadamente. — Você é o mesmo
lobo daquele dia que estive na floresta com Luke?
Tem que ser. Ele tem os mesmos brilhantes e conhecidos olhos do lobo
que vimos daquela vez... agora que ele não está rosnando para mim.
— Então é a segunda vez que você me assusta assim? — Eu rio
alegremente. Uma pessoa sã provavelmente guardaria rancor do animal,
mas, na verdade estou achando graça. — Há quanto tempo você está me
observando? Você é atrevido, não é? Você sabia quem eu era muito antes de
eu saber?
Ele inclina a cabeça na outra direção. Talvez seja um sim.
— Você sabe como sair daqui? — Eu enlouqueci. Estou falando com
um lobo. — Você pode chegar à borda da floresta, certo? Onde ela se
encontra com o terreno do templo? Foi onde nos encontramos da última vez.
Eu quero voltar para lá.
O lobo continua a me encarar por mais alguns segundos. Com um
suspiro, me coloco de pé. Um lobo como guia? É querer demais.
— Bem, de qualquer maneira, obrigada por não me comer, de novo. —
Eu estendo minha mão em um aceno de adeus.
O lobo se move. Suas pernas são tão poderosas quanto eu imaginava,
porque antes que eu pudesse piscar, ele cruzou o espaço entre nós e
pressionou a cabeça na minha palma. Eu fico olhando maravilhada enquanto
meus dedos afundam no pelo áspero e denso. Mesmo que pareça ter nascido
da névoa da Bruma, ele é sólido. Então, ele se afasta lentamente, segurando
meu olhar.
Ele se vira e desaparece na escuridão.
— Isso foi... — Eu começo a dizer, mas sou interrompida por um
lampejo dourado. Eu mal posso distinguir o corpo do lobo na névoa
ondulante. Mas posso ver seus olhos brilhantes. Ele parece estar me
esperando. — Você quer que eu siga?
O lobo começa a avançar. Eu corro para acompanhar. Provavelmente
estou seguindo-o até sua árvore-banheiro favorita. Eu nem sei se esse animal
faz xixi. É mesmo um animal? Ou uma besta feita de sombras, como o
cavalo em que Eldas cavalgou até Capton?
Não importa. Ele é a melhor chance que tenho de sair deste lugar.
Caminhamos pela floresta escura pelo que deve ser mais ou menos uma hora
antes de eu soltar um gemido de frustração.
— Obrigada por nada — murmuro. — Eu vou por aqui agora. Parece
tão boa quanto qualquer outra direção que tomamos.
Um latido e um rosnado me param no meio do caminho.
— O quê?
Outro rosnado baixo.
— Tudo bem, vou te seguir um pouco mais. — Eu jogo minhas mãos
para o ar, resignada.
Caminhamos até as árvores darem lugar a uma clareira cheia de musgo.
Um círculo de pedras contorna uma placa maior no centro de uma pequena
elevação. Isso quase parece uma lápide e eu estremeço.
— Este não é o terreno do templo — eu repreendo. O lobo bufa e
caminha até o grande memorial vertical. Ele se deita ao lado dele. — Mas
este é o seu lugar favorito?
Ele inclina a cabeça e levanta as sobrancelhas para mim, como se
dissesse: Não é aqui que você queria ir?
— Não, não é para onde eu queria ir — murmuro enquanto me
aproximo da grande pedra.
Há algo escrito nela, desbotado pelo tempo. Está escondido atrás de um
manto do mesmo musgo verde que cresce em sua base. Há algo
distintamente semelhante a um templo neste lugar. Ele me lembra dos
antigos santuários que pontilham os caminhos esquecidos que vagueiam na
floresta.
— O que está escrito? — Eu sussurro, estendendo a mão para limpar o
musgo das gravuras.
— Nada que você possa ler. — A voz de Eldas quebra o silêncio, e eu
nem me preocupo em suprimir um gemido.
CAPÍTULO 15
—ORA, NÃO É QUE VOCÊ SE PARECE COM UMA RAINHA PROPRIAMENTE DITA? — Harrow murmura suas palavras.
O cabelo do príncipe está pegajoso e grudado em suas bochechas, que têm
uma palidez doentia. — Já está aqui, passando seus dias com plantas em vez
de pessoas.
— Descobri que as plantas raramente me atacam, ao contrário de
pessoas. — Eu lentamente fecho o livro, resistindo à vontade de correr e
examina-lo para diagnosticar a doença que ele tem.
— Peço licença para discordar. — Ele ofega.
— Você precisa de cuidados médicos.
— Eu preciso de Poppy. Onde ela está?
— Willow mencionou que ela saiu, está em algum tipo de missão
especial. — Pelo menos acho que foi isso que ele disse mais cedo. Eu estava
muito focada em estudar para ter mais detalhes e Willow estava muito
focado em coçar atrás das orelhas de Hook para se aprofundar na explicação
do que Poppy estava fazendo.
Harrow pragueja.
— Willow estará de volta em breve–
— Eu não quero o substituto. — Harrow diz com raiva. A dor está
deformando seu rosto, tornando-o ainda mais feio do que o normal.
— Então que tal uma rainha?
— Como se eu fosse deixar você me tocar — diz ele, mas não faz
nenhum esforço para sair.
— Uhum. — Eu reviro meus olhos para a sua atitude de criança e
aponto para um dos bancos. — Sente-se.
— Como você ousa–
— Como ouso tentar curar você depois que você foi um babaca
comigo? — Eu o corto. — Agora, sente-se aqui, seu príncipe arrogante,
antes que sua teimosia o faça desmaiar ou vomitar. — Ambos parecem
igualmente possíveis.
Harrow me encara sem expressão. Seus olhos estão vidrados e opacos –
por causa da febre, provavelmente, considerando todo o suor que ele está
exalando. Sua camisa se agarra à porta e então é sugada de volta para sua
pele enquanto ele se move para se sentar. Eu rapidamente folheio os diários.
Eu sei como curar doenças, mas pode haver maneiras ainda mais eficazes
encerradas nessas páginas empoeiradas.
Atrevo-me a tentar usar minha magia agora, dentre todas as
oportunidades?
— Você já acordou se sentindo mal?
Ele ri e balança a cabeça em negativa. Eu olho para ele. O banco range
quando ele se inclina contra a mesa.
— Então, isso começou no decorrer do dia?
— Muitas coisas aconteceram no decorrer de... ontem à noite, esta
manhã, em algum... momento, escorregando entre minhas mãos, dedos...
vida... ah, dane-se tudo isso. — Ele está falando coisas sem sentido nenhum.
— Harrow, me diga onde está doendo.
— Em todo lugar. — Ele bufa e cai. Vejo sua cabeça ficar mole e
Harrow se ajeita enquando usa a mesa para se apoiar. Corro até ele, minha
mão em seu ombro.
— Solte-me, humana.
— Pare — eu digo, mais suavemente, tentando com todas as minhas
forças tirar a impaciência da minha voz. Uma parte feia de mim quer deixá-
lo sofrer. Mas meu treinamento – tudo a que dediquei minha vida até este
momento – não me deixa. — Eu posso te curar. Mas preciso saber o que
deve ser feito. Suas feridas são internas, não consigo vê-las. Então eu preciso
que você me diga o que causou tudo isso.
— Festas demais, só isso.
Eu o vi ontem à noite, eu me lembro. Ele parecia estar em péssimo
estado. Mas ele estava com seus amigos, com certeza eles estavam cuidando
dele…? Embora Aria parecesse bastante alegre, considerando o seu estado...
— Você não parece que veio de uma festa — murmuro. — Você parece
que entrou em uma luta e perdeu.
Ele fica furioso.
— Já acabou de zombar de mim?
— Não tenho certeza. Posso zombar de você até se tornar um paciente
obediente?
Harrow grunhe para mim. Seu som é ecoado pelo rosnado de Hook,
baixo e feroz. Harrow pisca, assustado, notando o lobo pela primeira vez.
Ele aponta e solta uma gargalhada.
— Espere... Há realmente um lobo aí? Ou estou alucinando de novo?
— Realmente há um lobo ali. — Eu me afasto com cuidado,
estabilizando-o e me certificando de que ele não vá desmaiar antes de eu
voltar. — Eu vou preparar algo que vai fazer você se sentir melhor. Por
favor, não desmaie nos próximos cinco minutos.
Eu me movo deliberadamente pela estufa. Colho babosa, dente de leão,
trevo vermelho, cardo leiteiro, urtiga e um grande ramo de manjericão. De
volta ao laboratório, misturo todos os ingredientes com cúrcuma, mel,
gengibre seco e salgueiro. Enquanto eu inspeciono minha mistura, uma outra
ideia passa pela minha cabeça.
Alucinando de novo, ele disse. Harrow ainda está tonto. Se eu não
preparar isso logo, ele vai virar uma poça no chão. Possivelmente uma poça
morta.
Não sei o que ele ingeriu, mas volto correndo e pego com cuidado uma
única folha do Coração-Real. Willow disse que aumenta as propriedades do
antídoto. Se houver algo suspeito no sistema dele, espero que isso ajude.
Segurando um punhado de manjericão com o punho esquerdo, coloco
minha mão no recipiente. Eu respiro fundo e me preparo. Dou vida para
ganhar uma mistura mais potente, penso alto para mim mesma.
O manjericão murcha quando tiro a vida dele. O poder surge através de
mim, misturando-se com a minha própria magia. A magia cresce dentro de
mim e eu a empurro através da palma da mão no recipiente para a mistura
que criei.
Fortaleça as ervas, eu ordeno enquanto a magia muda minha mistura
de uma cor escura para um verde brilhante. Eu dou uma cheirada cautelosa.
Tem o cheiro certo. Tudo parece certo.
Mas posso confiar no meu instinto quando se trata de magia?
Eu olho para trás, para Harrow. Ele está cedendo rápido. Ele não parece
que sequer vai aguentar até que Willow esteja de volta.
Eu tenho que tentar.
Lentamente, despejo uma porção espessa da mistura em um copo.
Adiciono água apenas o suficiente para torná-la bebível. Harrow olha para
mim com ceticismo quando a entrego a ele.
— Você vai me matar agora? — Ele sussurra. — Vai se vingar de mim
pelo que fiz a você enquanto estou fraco?
— Por favor. Tenho coisas melhores para fazer com meu tempo do que
matar você. — Eu levo a caneca aos lábios dele. — Beba. E não se atreva a
reclamar do sabor. Você tem sorte de eu ter adicionado mel.
O mel, na verdade, é ótimo na prevenção de inflamações e na contenção
de infecções. Mas duvido que Harrow saiba disso e prefiro que ele pense que
lhe fiz um favor.
Harrow bebe devagar. Sua garganta balança e a cor começa a voltar
para suas bochechas. Quase posso ver sua febre diminuindo. Ele se senta
mais ereto e enxuga a testa.
Eu volto para o recipiente e pego encho uma segunda xícara. Eu acabei
de fazer mágica sem nenhum problema. Ontem à noite, esta manhã... tirando
o fracasso de quando tentei fazer um galho crescer na Bruma, estou
melhorando. Talvez ainda haja esperança para mim. Quando não estou
pensando demais nas coisas ou quando não estou em pânico, minhas mãos
parecem saber o que fazer.
Mesmo que eu saiba que seria uma tola se pensasse que o trono será
conquistado facilmente. Ainda assim, é bom ter algo dando certo pelo menos
uma vez.
Harrow é muito mais cético em relação a esta caneca do que a primeira.
Eu odeio o fato de que devo interpretar isso como um bom sinal de que ele
está voltando a si.
— O que há nisso? — Ele cheira a caneca.
— Você viu tudo que eu coloquei nela. Duvido que você entenda o
porquê. Mas você não precisa entender. Apenas beba. Quanto mais você
colocar para dentro de você, melhor.
— É nojento. — Harrow torce o nariz enquanto toma um gole da minha
infusão.
— Mas está claramente ajudando. — Eu cruzo meus braços.
Ele continua a beber em silêncio. Eu viro minhas costas para ele e volto
para os diários. Finjo passar os olhos por eles, mas estou muito nervosa com
a presença de Harrow para me concentrar. E eu continuo olhando de relance
para ele, para ter certeza de que minha magia não vai matá-lo
inesperadamente.
— Por que você me curou? — Sua pergunta interrompe meus
pensamentos e eu encontro seus olhos. Ele parece muito mais jovem quando
não tem aquele sorriso malicioso que tem usado desde a primeira vez em que
nos conhecemos.
— Porque era a coisa certa a fazer — digo finalmente. — Porque esse é
o meu trabalho.
— Eu acho que o mais velho dos meus irmãos discordaria sobre esse
ser o seu “trabalho”.
— Mais velho dos seus irmãos? — Eu arqueio minhas sobrancelhas,
focando nisso em vez de pensar a fundo sobre Eldas e seu controle sobre
minhas circunstâncias. Não vou deixar Harrow, dentre todas as pessoas,
abalar a base na qual Eldas e eu estamos no momento. — Você tem mais
irmãos?
— Pelo menos finja esconder sua decepção com o fato. — Ele revira os
olhos. — Eldas é o mais velho, depois Drestin e então eu.
— Vocês todos têm a mesma mãe e o mesmo pai?
— Que tipo de pergunta é essa – sim, todos temos os mesmos pais.
— Eu sei que sua mãe não era a última Rainha Humana. — Eu
descanso minha mão levemente no diário de Alice. Ela parecia ter um...
relacionamento estranho com o Rei Elfo anterior.
— Own, você está investigando nossa linhagem porque quer saber se
terá que dar à luz à pequena cria barulhenta de Eldas? Não se preocupe, o
Rei Elfo toma amantes para ter seus herdeiros.
Eu ignoro as observações. Não vou ficar aqui por tempo suficiente para
abordar o tópico de quem estará lidando com a geração de herdeiros.
Felizmente, o tópico da consumação de nosso casamento não apareceu nem
nas conversas, nem nos diários que li. Fico satisfeita em ver que a descrição
do povo sobre as uniões noturnas de seus governantes também foi muito
exagerada nas histórias que li quando menina.
— Onde está Drestin?
— Ele está fora, em Westwatch. — Harrow dá mais um gole em sua
bebida. — Ah, isso mesmo, você não sabe nada sobre nós. Deixe-me
explicar.
— Eu posso descobrir por conta própria — eu digo secamente.
— Westwatch é a fortaleza ao longo da grande muralha que faz
fronteira com as florestas das fadas — ele explica de qualquer maneira. —
Foi construída há algumas centenas de anos e ajuda a manter as lutas
internas das fadas fora de nossas terras. Uma nomeação tão honrosa para o
nobre Drestin. — Harrow olha para o canto da sala, zangado com algo que
não consigo ver.
Eu rio suavemente e balanço minha cabeça.
— O que é tão engraçado?
— Você me lembra de uma amiga, só isso. Ela tem duas irmãs e as lutas
que elas travam são lendárias. — Eu me pergunto como Emma está. Espero
que o coração dela esteja aguentando o suficiente para que Ruth não se
descontrole o tempo todo. Ela deve ter poção suficiente em estoque para
alguns dias... mas ela terá que pegar a balsa para Lanton por mais quando
acabar. Agora é meu coração que está doendo por ela.
— Não me compare a vocês, humanos, e seus problemas patéticos de
plebeus.
Eu rio alto.
— Perdoe-me, poderoso Príncipe Elfo. Porque você soa tão acima de
nós, o povo humilde, quando você claramente está com ciúmes de seus
irmãos.
— Você não sabe nada sobre mim. — Harrow joga a caneca para o
outro lado da sala. O pouco líquido que restou nela se espalha no chão antes
de a caneca cair com um estrondo alto, se espatifando no chão.
Eu pulo, mas imediatamente trabalho para manter minha compostura.
— Limpe isso, humana. — Ele aponta para a bagunça que fez e sai
rapidamente em direção à porta.
Harrow congela quando o rosnado de Hook se transforma em um latido
raivoso. Ele se vira e, no momento em que seus olhos encontram os do lobo,
Hook ataca.
— Hook, não! — Eu grito. A magia vibra dentro de mim. Eu vejo a
poção que fiz para Harrow se tornando vapor no chão e desaparecendo. O
equilíbrio atende às minhas demandas por instinto – uma poção em troca de
uma barreira.
Novas plantas crescem impossivelmente das tábuas do assoalho de
madeira. Hook para de repente, latindo para a parede de mudas que ergui
entre ele e Harrow. Ele olha para mim com seus olhos dourados enquanto
Harrow olha para nós.
— Hook, não — eu repito, de alguma forma conseguindo manter minha
voz firme apesar da magia que acabei de realizar. Como eu fiz isso?
Felizmente, Hook recua.
— Você... — Os olhos arregalados de Harrow ocupam quase tanto
espaço em sua cabeça quanto suas orelhas enormes.
— Essa foi a segunda vez que salvei sua vida hoje. Um obrigado seria
apropriado — eu digo com os olhos estreitos.
Tudo o que recebo é um olhar furioso, e a partida rápida de Harrow,
deixando-me com a emoção e o espanto pela magia que ainda formiga em
meus dedos.
CAPÍTULO 18
NÃO CONTO PARA WILLOW O QUE ACONTECEU COM HARROW. NÃO TENHO CERTEZA do porquê. Eu sei que
Willow ficaria do meu lado e eu sei que ele ficaria orgulhoso de mim por
quão habilmente usei minha magia.
Mas algo sobre a conversa com Harrow fez com que parecesse
particular. Tenho a impressão de que ele não gostaria que as pessoas
soubessem de seu estado de vulnerabilidade. Por mais que eu queira ignorar
esse sentimento, não posso. A privacidade de meus pacientes é sagrada para
mim, no Mundo Natural e no Entre Mundos.
Então Willow e eu trabalhamos sem ele saber de nada. Dei alguma
desculpa sobre uma tentativa de poção que deu errado para explicar as
tábuas do chão, que Willow consertou com sua magia selvagem.
Naquela noite o óleo de luzes queima até o fim, e ainda estou acordada
ao amanhecer. Eu vasculho os diários que tirei do laboratório, procurando
por qualquer pista de como o equilíbrio se estabelece entre a rainha, o trono
e as estações. Começo com o diário de Alice, mas a qualidade de suas
anotações diminui de acordo com que sua idade aumenta.
As linhas de sua caneta estão trêmulas. Os desenhos, outrora magistrais,
agora não passam de esboços ásperos, vacilantes e difíceis de decifrar. Sem
aviso, eles param completamente.
Isso enche meu peito com uma dor profunda como nenhuma outra que
já senti. Eu posso vê-la naquele laboratório, trabalhando até a última energia
de seus dedos enquanto eles ainda cooperam. Imagino suas mãos tremendo
sem sua permissão até que ela não consiga mais segurar uma caneta. Eu a
imagino sozinha, com saudades do seu irmão – do conforto de sua família –
e desejando sentir o cheiro do ar salgado de Capton apenas mais uma vez.
Eu me imagino, daqui a noventa anos, murchando neste lugar frio com
nada além da agonia do trono enchendo meus dias. É um pensamento frio e
sombrio, que tento guardar junto com o diário de Alice.
Depois disso, leio as anotações das rainhas de antes dela. É mais fácil
folhear as páginas que levam à morte final quando não tenho nenhum tipo de
conexão pessoal com elas. Consegui endurecer minhas emoções depois do
terceiro diário – o diário com as notas amorosas sobre as rosas.
Ela ficou com o coração partido com a ideia de sair do lado de seu rei,
mesmo na morte.
Uma batida na minha porta tira meus olhos da página. Eu os esfrego.
Hook se aninhou ao pé da minha cama mais uma vez. Ele há muito tempo
desistiu de tentar colocar o focinho sobre as páginas do meu livro ou me
cutucar para chamar minha atenção.
— Você está acordada? — Rinni pergunta pela porta.
— Sim. — Eu estico meus braços acima da cabeça e minha coluna
estala em vários lugares.
Rinni entra.
— Vim informá-la de que surgiu um assunto urgente.
— Sério?
— Parece que uma delegação do Rei Fada chegou ontem à noite — ela
relata.
— Eu pensei que não houvesse um Rei Fada; apenas um monte de clãs
e suas lutas internas?
— De vez em quando eles encontram união suficiente para declarar
alguém rei e jurar para o resto do mundo que estão estruturados. Este último
tem durado mais tempo, mas vamos ver se ele consegue continuar. Nenhum
Rei Fada jamais manteve seu poder por tempo suficiente para chegar a
participar do Conselho dos Reis. — Rinni encolhe os ombros. —
Independentemente disso, Eldas me enviou para informá-la que ele não será
capaz de se encontrar com você esta manhã como planejado.
— Tudo bem. — Eu pulo da minha cama. — O que você fará hoje?
— O que eu... farei?
— Você está ocupada? — Eu reformulo.
Hook se espreguiça com um gemido baixo e sacode o pelo.
— Normalmente, eu estaria auxiliando Eldas com a delegação... mas
ele me designou aos seus cuidados.
— Eu não consigo saber se você está chateada com isso ou não. — Eu
sorrio.
Rinni se eriça.
— Eu... — Ela limpa a garganta — Vossa Majestade, protegê-la é uma
honra.
— É mesmo? — Eu arqueio minhas sobrancelhas e caminho para o
meu closet. Deixo a porta aberta enquanto me troco para poder falar com ela.
— Ainda não consigo dizer se você gosta de mim ou não.
— Não é meu trabalho gostar de você, meu trabalho é servi-la.
— Sim, mas… — Eu coloco minha cabeça para fora e Rinni
prontamente olha de soslaio para os meus ombros nus. — Eu preferiria
muito que você gostasse de mim. Se não, tenho certeza de que podemos
encontrar outro guarda que goste.
Ela bufa e franze os lábios.
— Acho que já te disse isso; Eu gosto de você o suficiente.
— Ah! Então, que bom. E tem certeza que não estou prendendo você?
Você parece alguém muito importante.
— Eu sou o braço direito do rei. — A menção faz eu pausar, trazendo
de volta a memória de Rinni segurando a bochecha de Eldas. Eu não consigo
evitar me perguntar se há mais aí. Harrow mencionou algo sobre o Rei Elfo
ter amantes... — Mas é exatamente por isso que ele me quer protegendo-a.
Não há ninguém mais em quem ele confie para mantê-la segura.
Eu mal consigo me conter para não perguntar se há algo que ela possa
fazer a respeito de Harrow.
— Bem, então eu gostaria de mobiliar meu quarto hoje. Você disse que
era algo que as rainhas podiam fazer. — Eu saio do closet. Rinni inclina a
cabeça em um incrível reflexo de Hook. Eu me esforço para segurar uma
risada ao olhar para os dois, em posições iguais.
— Sim, mas geralmente elas fazem isso após a coroação, quando
podem ir à cidade.
— Então, estou condenada a ficar sem móveis por três meses?
Rinni franze os lábios.
— Eu tenho uma ideia – acredito que a mobília das antigas rainhas
esteja em algum lugar do castelo. Você poderia usá-las por enquanto?
— Tudo bem, mostre o caminho.
Nós vagamos pelo castelo vazio até uma sala nos fundos. Claramente
está sendo usada como depósito, mas é do tamanho de um pequeno salão de
baile. Os únicos dançarinos são fantasmas de lona cobrindo os móveis
embaixo.
— Tudo isso... pertenceu a antigas rainhas?
— Pelo que sei, sim.
É como um cemitério. Com curiosidade mórbida, tiro o primeiro tecido
e revelo uma espreguiçadeira estofada com um macio couro marrom. É só
uma peça de mobília, tento e insisto comigo mesma. Mas posso ver o
contorno de onde a rainha se sentou.
Eu tremo e abaixo o lençol. A sala ficou dez vezes mais fria.
— Acho que quero escolher meus próprios móveis.
— Mas–
Eu insisto.
— Não há uma maneira de escaparmos? Posso cobrir minha cabeça,
prender meu cabelo e...
— Seus olhos — interrompe Rinni.
— O que tem eles?
— Seus olhos traem você. Elfos têm olhos azuis.
Eu amaldiçoo baixinho.
— Eu não posso usar nada disso aqui... — Eu balanço minha cabeça. —
Foi uma boa tentativa, obrigada, mas não posso... Seria estranho. Como se
eu estivesse vivendo com fantasmas. — Rinni dá um suspiro de simpatia.
Pelo menos ela parece entender por que sua sugestão não funciona. — Tem
certeza de que não tenho como ir à cidade comprá-los?
Ela faz uma pausa, enrolando e desenrolando os dedos em torno da
espada.
— Rinni?
— Talvez possa haver uma maneira, se nós formos muito cuidadosas.
— Os olhos de Rinni são evasivos, como se ela estivesse duvidando de si
mesma por sequer dizer alguma coisa.
— Ah, é? — Eu encorajo, ansiosamente.
— Eu te explico enquanto andamos. — Rinni faz um gesto para que eu
a siga e eu rapidamente aperto o passo.
O plano é bastante simples.
Rinni me leva de volta para seu quarto e lá eu troco o meu vestido por
algumas de suas roupas. Ela tem um apartamento modesto: as prateleiras de
armas, eu já esperava; Mas não esperava o material de pintura. Rinni não diz
nada sobre seu hobby, então faço o mesmo. Não sei se deveria ser um
segredo que a mão direita do rei também é uma artista. De qualquer forma,
não quero arriscar a paz que encontramos.
Eu cuidadosamente coloco meu cabelo debaixo de um chapéu. Embora
ninguém me conheça ainda, Rinni diz que o vermelho é uma tonalidade
muito distinta para deixar solto e livre, ainda que algumas faíscas laranja-
avermelhadas flutuem teimosamente em volta das minhas orelhas.
A parte final da minha produção é um par de óculos com lentes verdes.
Aparentemente, todos os elfos terem a mesma cor de olhos influenciou em
usarem óculos de cores variadas. É como se eu estivesse usando um dos
vitrais do templo dos Guardiões no rosto, mas aceito de bom grado se for
essa a forma de sair do castelo sem problemas.
— Eu acho que isso vai dar certo. — Rinni me avalia uma última vez.
Ela mudou de seu traje militar usual para roupas comuns.
— Vai ser ótimo. — Eu me avalio em seu espelho alto e fino. —
Vamos?
— Uma última coisa. — Rinni olha para Hook. — Ele tem que ficar
aqui.
Eu franzo meus lábios.
— Hook é–
— Hook vai se tornar rapidamente identificável como o lobo da rainha.
— Rinni cruza os braços sobre o peito. — Se o seu cabelo não pode
aparecer, tampouco o Hook pode.
Suspirando, me viro para Hook.
— Você vai ter que ficar aqui. — Ele choraminga. — Não, eu estou
falando sério. Rinni está certa, não há outra maneira. — Um latido. — Não
use esse tom comigo. Você irá voltar para os meus aposentos, agora.
Ele dá um uivo desafiador e começa a pular pela sala. Antes que eu
possa impedi-lo, o ar estremece, as sombras se alongam e o lobo desliza
entre elas para o vazio. Rinni está tão surpresa quanto eu.
— O que você fez? — Ela sussurra.
— Eu... eu não sei. — O pânico sobe pela minha garganta e sai com um
chamado suave. — Hook? — Nada. — Hook, volte. — Levo minhas mãos
aos lábios e solto um assobio estridente. O lobo vem saltando de volta ao
meu comando e eu enterro meus dedos em seu pelo. — Bom garoto. Você
ouviu meu assobio? Você realmente é o melhor dos garotos!
— Isso sim é útil. — Diz Rinni com admiração. — Um lobo que pode
usar a Passagem da Bruma... Agora sim eu já vi tudo.
— Ok, Hook, vá embora brincar na Bruma. Eu te chamo mais tarde.
Ele obedece ao meu comando e Rinni e eu partimos pelos corredores
dos fundos do castelo. Todos os caminhos levam de volta ao átrio principal e
às duas portas que Rinni destranca com magia.
Inspiro profundamente no momento em que entramos na cidade. Como
se estivesse dando as boas-vindas à primavera com um grande abraço,
estendo meus braços por cima da cabeça e fico na ponta dos pés. Os dias
estão ficando inegavelmente mais quentes, mesmo que ainda estejam um
pouco frios para o meu gosto à noite.
— Você parece feliz. — Rinni finalmente comenta enquanto
caminhamos ao redor do grande lago no centro da cidade.
A neve desapareceu das estátuas no centro da água e seus detalhes estão
mais claros. A rainha não estava apenas ajoelhada... parece que ela está
enterrando algo. Quem sabe? Eu vejo um grande monte sob suas mãos e
talvez uma pequena muda que parece quase... familiar. Já vi aquelas folhas
antes, não vi? Mas o significado de ela enterrar alguma coisa, ou o que ela
pode estar enterrando, não me ocorre – é algo para eu pesquisar nos diários.
Provavelmente é apenas a rainha plantando uma árvore comemorativa
ou algo semelhante. Eu rapidamente mudo meu foco de volta para Rinni.
— É bom sair do castelo. — Fico de olho em seu rosto, procurando
qualquer sinal de que ela saiba sobre minha fuga há duas noites. Não vejo
nenhum indício.
Ela pensa em sua resposta por vários passos.
— Eu entendo que possa parecer que você é algum tipo de refém,
especialmente antes da coroação. Mas, uma vez que você seja
adequadamente apresentada ao Entre Mundos, você poderá explorar Quinnar
como quiser. As rainhas passadas até mesmo faziam viagens para as várias
fortalezas e terras em todo o Reino dos Elfos... ou para a cabana real. E, é
claro, você vai cruzar a Bruma todos os anos para se comunicar com o
Mundo Natural.
Eu franzo meus lábios. Eu posso ver onde ela quer chegar – qual a sua
lógica. Eu olho para cima, em direção à longa escada que leva ao túnel da
montanha, que cruza de volta para o Mundo Natural.
— Rinni, por que você quis se tornar uma cavaleira? — Eu pergunto.
— Eu... porque meu pai era um cavaleiro e eu era sua única filha — diz
ela, a tensão levantando ligeiramente seus ombros.
— Então, isso sempre foi o esperado de você? — Eu raciocino. Ela
acena com a cabeça. — Se você pudesse ser o que quiser... o que escolheria?
— Com base no que vi em seu quarto, suspeito que já sei a resposta.
— Uma cavaleira, como meu pai, e como seu pai antes dele. Venho de
uma longa linhagem de cavaleiros que serviram aos Reis Elfos durante
séculos.
— Não. — Eu paro de andar e Rinni também. — O que você
escolheria? Esqueça sua família. Você é órfã por um minuto e não tem ideia
de quem foram seus pais ou o que eles fizeram. O que você seria?
Rinni franze os lábios. Posso dizer que a pergunta é incômoda para ela.
Mas ela parece estar fazendo um esforço mesmo assim.
— Uma pintora — ela diz, finalmente. — Mas–
— Sem mas. — Eu interrompo. — Você quer ser pintora. Você é uma
cavaleira porque é o que se espera de você. E tudo bem. — Tento não julgá-
la por isso. Willow também vem à minha mente, seguindo os passos de
Poppy e dos avós de Poppy. Os elfos parecem gostar de fazer coisas por
causa da tradição. — Mas você não fez essa escolha por si mesma, não de
verdade. Você escolheu isso porque era esperado que você escolhesse e
porque eu imagino que criaria uma tensão em sua família se você não
escolhesse.
Ela suspira e começa a andar novamente, como se pudesse deixar essa
conversa para trás. Ainda não estou pronta para desistir. Mas eu mudo o
foco.
— Eu não estou tentando atacar ou chatear você — eu digo.
— Eu não deixaria você me chatear — ela murmura.
— Que bom! — Eu dou risada e sorrio para ela. Eu vejo o sorriso mais
ínfimo em troca. — Só estou tentando dizer que... não somos tão diferentes.
E, talvez, por causa disso, você possa entender como me sinto. Eu também
tenho meus próprios sonhos, Rinni. Eu tinha uma loja. Eu quero ajudar as
pessoas com meus talentos para ervas e poções. A cidade inteira dependia de
mim e investia em mim para que eu pudesse fazer isso. Essa profissão – a
fitoterapia – é a minha pintura. Mas o mundo quis que eu fosse algo
diferente. Então, não, eu não sou uma refém no sentido literal. Mas sinto
como se fosse, especialmente porque a vida que planejei para mim está fora
do meu alcance.
Rinni suspira e passa a mão pelo cabelo com mechas azuis.
— Suponho que, colocado dessa forma, eu consiga te entender.
— Obrigada. — Eu a cutuco e Rinni me olha surpresa. Eu dou a ela um
sorriso brilhante. — Agradeço a tentativa.
Um leve rubor cruza suas bochechas. Ela está chocada por alguém
elogiá-la?
— De toda forma. — Rinni diz apressadamente .— Chegamos.
— É aqui?
— O melhor marceneiro de Quinnar.
A loja do marceneiro está repleta de peças de exibição e livros com
diagramas de móveis complexos. A serragem flutua, vinda da sala de
marcenaria nos fundos, fazendo com que o marceneiro limpe
meticulosamente o balcão. Eu me decido por algumas peças que ele já tem
em pronta-entrega, ao invés de buscar por algo muito customizado.
— Suspeito que ele saiba quem eu sou. — Digo a Rinni quando saímos
da loja.
— Talvez. Provavelmente. Especialmente depois de me ver com você.
Mas ele é de uma longa linha de marceneiros — diz ela. Por que isso não me
surpreende? — Eles têm trabalhado com o castelo por gerações, então confio
em sua discrição. Eu não teria levado você lá se não confiasse.
Estamos na metade do caminho de volta para o castelo quando ela faz
uma pausa.
— Ah! Aqui. Há algo que eu quero que você experimente.
Nos movemos através do fluxo de pessoas na rua. À luz do dia, Quinnar
é uma cidade completamente diferente. Elfos se agitam, carrinhos se
enfileiram na frente das lojas: pessoas vendendo de tudo, desde comida,
passando por jóias, até poções suspeitas que me fazem torcer o nariz.
Rinni me leva a um carrinho onde uma mulher frita uma massa em uma
frigideira. Rinni pede dois e a mulher pega os bolinhos, corta ao meio e os
recheia com queijo. Depois de mais um minuto na frigideira, as misturas
derretidas são entregues a Rinni.
— Aqui. Eles são um dos meus lanches favoritos, e como sempre que
estou patrulhando a cidade na primavera — explica Rinni enquanto nos
dirigimos para a margem do lago, até nos sentarmos em um banco. — Eles
começam a cozinhar essas coisinhas enquanto se aproximam os rituais de
primavera.
— O que são rituais de primavera? — Harrow já os mencionou antes.
— É um grande festival de artes para dar as boas-vindas à primavera
quando ela volta ao mundo. Normalmente as fronteiras do reino são
abertas... Provavelmente é por isso que a delegação das fadas está aqui.
Haverá música e dança, apresentações, canto e poesia. — Rinni suspira
melancolicamente. — Você vai amar. E então, na noite do fogo, o próprio
céu se torna uma tela e o Rei Elfo pinta cores brilhantes nele.
— Literalmente? — Eu não consigo segurar a pergunta.
— Claro. — Rinni ri. — Eldas é o mais próximo do Véu e o mais forte
entre nós. Não há quase nada que ele não possa fazer.
Tento imaginar Eldas pintando o céu com fogo, suas mãos ágeis
comandando a magia com a habilidade de um tecelão em seu tear. Rinni
ergue os olhos, como se já pudesse ver os traços brilhantes. Há admiração
em seus olhos. Isso faz meu estômago se revirar, uma sensação que
prontamente ignoro.
— Quando isso acontece?
— Normalmente uma ou duas semanas após a coroação.
— Ah. — Eu fico olhando para a comida em minhas mãos e suprimo
qualquer melancolia. Eu não preciso ver Eldas fazendo pinturas de fogo no
céu. O que eu preciso é ir para casa. Eu preciso cuidar de meus pacientes.
Na verdade, eu nem quero ver os rituais de primavera. Porque, se eu estiver
aqui para ver, terei que ficar no Entre Mundos e nunca poderei voltar de
verdade para o meu mundo.
— Há algo de errado com o bolinho? — Rinni pergunta, apontando
para a massa frita e interpretando mal minha expressão. — É bom, eu
prometo.
— Ah, tenho certeza de que é. — Eu rapidamente dou uma mordida. O
bolinho é crocante por fora, mas macio e fofo por dentro. A fritura adiciona
um belo toque ao que parece ser uma base de milho para a massa. O queijo
se estica em fios na minha boca, assim como o bolinho enquanto tento
arrancar uma mordida, arrancando risos tanto de Rinni, quanto de mim.
Por um momento, esqueço quem sou e onde estou.
No momento em que percebo que me distraí, o bolinho grelhado de
queijo já acabou e o momento despreocupado se vai com ele. Mas, por um
breve instante, as coisas não eram tão ruins. Elas não eram nada ruins. Eu
estava comendo uma comida deliciosa e rindo com uma amiga. Estávamos
curtindo o clima e a agitação tranquila da cidade ao nosso redor.
Foi uma felicidade acidental. Um breve vislumbre de como minha vida
poderia ter sido... talvez até mesmo como deveria ter sido, se eu tivesse sido
preparada para isso. Se eu tivesse vindo aqui para ser a rainha, não estaria
gastando meu tempo procurando por uma maneira de quebrar o ciclo. Em
vez disso, encontraria maneiras de explorar e aproveitar minhas novas
circunstâncias.
Suspiro enquanto meu olhar volta para a abertura na montanha que leva
através da Bruma.
— Devíamos voltar para o castelo — eu digo.
— Sim, antes que alguém te veja.
Começamos a voltar para valer. Até que algo chama minha atenção,
fazendo eu parar no meio do caminho.
No fim de um beco entre dois prédios está Aria. Ela fala com olhares
inconstantes e relances nervosos para uma criatura ágil que tem dois chifres
de veado brotando do topo de sua cabeça e asas de libélula nas costas. Eu
vejo o homem chifrudo entregar uma pequena bolsa para Aria.
Então, seus olhos encontram os meus. Ela congela e eu rapidamente me
afasto, dando vários passos rápidos para alcançar Rinni.
— Você está bem?
— Sim, tudo bem. — Passo levemente a mão pela borda do chapéu,
procurando por algum fio de cabelo solto. Não tem como ela me reconhecer
com essas roupas, certo? — Eu pensei ter visto algo estranho. Mas, para
mim, há muitas coisas estranhas aqui. — Eu forço um sorriso e Rinni sorri
de volta.
— Estaremos de volta ao castelo em breve. — Ela acena com a cabeça
para o castelo imponente à nossa frente e dá dois passos ansiosos. — Ele,
pelo menos, é um pouco familiar–
Um borrão no canto do meu olho se solidifica em uma forma pesada
atrás de mim. Uma mão aperta um pano úmido sobre minha boca antes que
eu possa dizer qualquer coisa. O cheiro de algo forte enche o meu nariz e eu
rapidamente prendo a respiração por instinto.
Mas é tarde demais.
Não sei em que mistura o pano foi embebido, mas não é nada bom.
Meus músculos começam a ficar fracos e minha visão fica turva. Meus
pulmões já estão queimando de tanto segurar a respiração. Mas eu não posso
puxar mais ar. Se eu inspirar mais um pouco, vou perder a consciência.
Perco Rinni de vista enquanto sou arrastada entre duas construções.
Não consigo sequer gritar.
CAPÍTULO 19
CADA VEZ MAIS LONGE, SOU ARRASTADA PARA FORA DAS RUAS DA CIDADE. A brilhante luz do sol está ofuscada.
Uma silhueta aparece diante de mim – com chifres, feições angulosas e
afiadas, asas delicadas que se estendem de forma não natural de suas costas.
A criatura que vi com Aria.
— Continue segurando, ela ainda está acordada — um homem rosna.
Pisco lentamente e luto contra todos os instintos de puxar o ar. Meus
pulmões estão agoniados. Vou precisar que respirar logo. Com sorte, se eles
pensarem que eu desmaiei, removerão o pano.
O mais naturalmente que consigo, finalmente fecho meus olhos e
permito que meu corpo fique pesado. Eldas havia dito que havia inimigos.
Por que eu não escutei? Por que não levei isso mais a sério?
O movimento para quando ouço gritos à distância. São palavras
confusas e frenéticas. A escuridão atrás das minhas pálpebras está
rapidamente se tornando mais do que fingimento. Eu vou desmaiar em
breve.
No entanto, bem quando penso que estou prestes a perder minha batalha
pela consciência, o pano é removido. Eu luto contra a vontade de respirar
fundo. Em vez disso, inalo lentamente para não alertar meus agressores.
— Vá e jogue-os para fora da trilha. — Meus olhos ainda estão
fechados, mas posso identificar o homem com chifres apenas pela voz. —
Eu vou escondê-la.
— Você não tem nenhuma ritumancia preparada — outra voz sibila, tão
baixa que eu mal consigo ouvir as palavras. Ritumancia era a magia
selvagem... das fadas?
Será que é Aria? Acho que quem fala é uma mulher... mas não tenho
certeza. Há mais movimento. Acho que há três ou quatro pessoas agora?
Meu coração troveja em meu peito. Quero chamar ajuda – chamar
Eldas. Ele caminhou pela própria Bruma e me encontrou quando tentei fugir.
Não sei como a Bruma funciona, mas ele virá se eu chamar, não é? Eu
duvido... Não tem como ele me ouvir. Ele acha que ainda estou em
segurança em seu castelo.
No entanto, o pensamento faz surgir uma ideia.
Rinni deve ter olhado para trás e percebido que eu sumi. A comoção
que ouço aumentar à distância deve ser ela liderando cavaleiros em uma
busca por mim. Eu só tenho que aguentar e resistir o suficiente para que eles
não me levem muito longe.
Isso eu consigo fazer, não consigo?
Duas mãos me agarram, me levantando. Eu ouço o zumbido de asas
poderosas. Meu estômago afunda quando, estou de repente, flutuando como
uma pena.
Nós estamos voando?
Abro os olhos e vejo o bater turvo das asas de libélula do homem com
chifres. Ele está voando comigo, eu percebo. Respiro fundo e penso na praça
em Capton. Eu usei minha magia para transformar as edificações de volta
em algo do Mundo Natural. Transformei ferro em árvores. Transformei
pedra em musgo. Posso fazer algo para me salvar.
É agora ou nunca. Eu abro meus olhos e olho para o rosto do homem
com chifres. Ele ainda não percebeu que não estou tão incapacitada quanto
ele imagina. Estou surpresa com o quão humano seu rosto parece, apesar de
suas asas e chifres. Mas não permito nenhuma distração.
Estendo as mãos para o colar de contas em seu pescoço e fecho meu
punho ao redor dele. O homem olha para baixo, quase me deixando cair. Um
silvo e uma maldição escapam dele.
Transforme, eu ordeno, transforme-se em vinhas, galhos de árvores,
qualquer coisa! As contas estremecem, quase ganhando vida. Ele me
empurra em seus braços, esticando o pescoço para longe. Tento me
concentrar em minha magia, mas escorrego de suas mãos.
O colar se desfaz e eu caio no chão, aterrissando com um baque forte.
Por sorte ainda não estávamos muito alto. Mas estávamos alto o suficiente
para que o impacto roube o ar de meus pulmões.
Ele pousa ao meu lado, se aproximando com um rosnado.
— Como você ousa, humana.
Eu nem mesmo gasto meu fôlego tentando falar alguma coisa. Minha
magia ainda pode ser muito pouco convincente para eu comandar e ela me
responder. Mas eu sei de outra coisa que vai me socorrer.
Trazendo meus dedos aos lábios, solto um assobio estridente.
— Hook, venha! — Eu grito. O homem com chifres avança para mim
conforme vejo o ar ao lado dele tremeluzir. Hook salta por entre as sombras.
— Hook!
Meu lobo solta o que soa quase como um rugido em vez de um rosnado
e avança em direção ao homem. Meu atacante mal tem chance de reagir
antes que Hook esteja sobre ele. Hook crava os dentes nas asas do homem,
que solta um grito de pura agonia.
Eu me arrasto até minhas costas baterem em uma das paredes sujas dos
edifícios.
— Hook — eu chamo fracamente. A besta se tornou nada mais que
raiva e dentes. Ele arranca uma das asas do homem. — Hook, pare! — Eu
me coloco de pé.
Ele me atacou. Ele tentou me sequestrar. E, no entanto, assim como
com Luke, não consigo me forçar a vê-lo mutilado pelos ataques violentos
de Hook.
— Hook–
— Lá está! — A voz de Rinni ecoa sobre a minha. Ela está na entrada
do beco. Soldados a acompanham, correndo em nossa direção. O homem foi
derrubado. A mandíbula de Hook está presa sobre o joelho dele e o lobo se
recusa a soltar.
Ainda assim, ele levanta as mãos, entrelaça os dedos e os baixa em um
soco na cabeça de Hook.
— Pare com isso! — Eu grito. Os cavaleiros não conseguem nos
alcançar rápido o suficiente. Ele continua batendo em Hook até que o lobo o
solte e, mesmo assim, o homem não cede. — Eu disse para parar!
Ele olha para mim enquanto eu corro para segurar seus braços. O
homem tira uma lâmina da manga e me puxa para perto. A prata fria está sob
minha mandíbula; a ponta perversa e afiada belisca meu queixo.
— Não se aproximem! Cheguem mais perto e eu a matarei.
— Mate-a e você condena a todos nós, seu tolo. — A voz de Eldas atrás
de nós é a própria zombaria encarnada. Ele desliza do chão, subindo para
preencher o ar. As sombras parecem se alongar. A temperatura do ar cai.
O homem fica rígido. Ele tenta se virar, mas não consegue. Seus braços
se desenrolam ao meu redor e eu vejo seu corpo bater frouxamente contra a
parede oposta. Tremendo, eu olho para sua forma ensanguentada,
contorcendo-se.
Uma mão se fecha ao redor do meu cotovelo. Eldas me puxa para ele.
Seu braço desliza em volta da minha cintura e estamos lado a lado,
conectados.
Protegida. Segura. O Rei Elfo olha para todo o mundo com raiva e se
contorcendo em poder. Mesmo assim, sou a sua outra face. Ele me agarra
com firmeza, mas gentilmente.
— Eldas... — Eu sussurro. — Não faça isso. — Meus olhos vão do
homem para Hook. O lobo geme baixinho. Apenas a imagem do meu
agressor batendo na cabeça dele quase me faz querer retirar minhas palavras.
— Luella, este não é o seu mundo — ele me lembra. Eu ouço entre suas
palavras, este homem não é Luke. — Essa escória fada tentou te machucar, e
ele vai morrer por isso.
— Se você... se você tivesse nos dado nossa terra... isso não teria
acontecido. — Meu suposto sequestrador suspira. — O Entre Mundos está
morrendo sob o domínio dos elfos. Não vamos parar até que conseguirmos o
que é nosso e sejamos livres para controlar nosso próprio destino.
— Ele deve ser levado à justiça – ser preso e levado para julgamento.
— Eu olho para Eldas, implorando para a estátua de um homem que tem
raiva fervendo por trás de seus olhos – mais intensa do que qualquer emoção
que eu já vi nele.
— Isto é justiça. Minha justiça.
Desvio meus olhos, pressionando meu rosto no peito de Eldas enquanto
um som horrível de ruptura e laceração enche meus ouvidos. Eu posso ter
gritado. O braço de Eldas aperta ainda mais em torno de mim e o mundo fica
escuro enquanto ele me puxa através da Bruma com ele.
CAPÍTULO 20
ELDAS ME DEIXA EM MEU QUARTO. SEM DIZER UMA PALAVRA, ELE CONVOCA UM FOGO para crepitar no suporte de
lenha na lareira. Sento-me no chão diante do fogo. Um cobertor é colocado
suavemente sobre meus ombros trêmulos. Ele murmura que estarei segura.
Ele desaparece e retorna mais uma vez, desta vez com Hook aninhado
em seus braços. Eldas põe o lobo aos meus pés. Hook choraminga e seus
olhos geralmente brilhantes estão distantes e vidrados. Mas ele responde
com um bufo suave quando eu alcanço e coço sua cabeça.
Eu olho para trás para agradecer a Eldas por me trazer Hook, por
garantir a segurança do meu lobo, mas ele se foi. E estou sozinha, com o
som miserável de um corpo se retorcendo ecoando muito longe em meus
ouvidos.
Eldas. Civilizado, brutal, frio, quente, gentil, mas podendo facilmente
atingir a crueldade. Ele chamou o Entre Mundos de um lugar cruel quando
eu entreouvi a conversa dele com Rinni. Eu não compreendi totalmente
naquele momento.
Este... este não é o meu mundo, eu repito para mim mesma uma e outra
vez. As regras que sempre conheci não se aplicam aqui. Eu fui uma tola ao
pensar que essas regras eram apenas relacionadas à magia e às pessoas que a
exerciam.
Mas não é apenas mágica. Tudo é diferente.
Como eu poderia me encaixar aqui?
O sol está quase desaparecendo no céu quando o Rei Elfo volta. Ele não
surge no meu quarto pela Passagem da Bruma. Desta vez, ele usa a porta.
Eldas paira na entrada, esperando por algo. Não consigo nem olhar para
ele. Eu não sei o que vou ver. Será um assassino? Será o homem cuja carícia
ascende minha carne?
Minhas mãos estão enterradas no pelo de Hook, buscando por força. Eu
pressiono meus olhos fechados e inspiro tremulamente. Tudo o que vejo é o
rosto de um homem – um fada – que foi morto... morto por Eldas...
Eu fico olhando para o fogo, tentando queimar as memórias para longe
da minha mente. Eu não quero enfrentar essa verdade. Eu não consigo lidar
com as coisas se tornando mais complicadas. O peso de Eldas de repente
aparece ao meu lado e me empurra do meu transe. Eu só percebo que ainda
estou tremendo quando que seu braço timidamente se envolve em torno de
mim. Eu me recosto nele, apesar de tudo. Parte de mim acha que eu deveria
temê-lo. A outra parte precisa dele e de toda estabilidade que ele pode
oferecer.
Como se sentisse essa necessidade, Hook levanta cautelosamente a
cabeça, apoiando-a pesadamente em meu joelho.
— Eu queria proteger você — ele diz baixinho, finalmente. Eu pulo
com a quebra repentina no silêncio em que estive sufocada a tarde toda. —
Foi por isso que eu disse para você ficar no castelo. — Eu posso ouvir sua
voz vacilante, como se ele estivesse lutando contra seu próprio
temperamento. Mas, pela primeira vez, desde que o conheci, ele luta e
vence. — Independentemente de porque isso aconteceu, sinto muito por
você ter tido que suportar isso.
— Você está certo — eu sussurro, continuando a encarar o fogo. — Eu
deveria ter escutado. Eu deveria ter ficado no castelo. Eu só queria ter um
momento de liberdade, algo que fosse meu. Mas se eu tivesse feito o que
você pediu, aquele homem ainda estaria vivo. Por minha causa–
— Não. — Eldas diz com firmeza, não me permitindo terminar o
pensamento. Seu toque é suave, em contraste com a palavra, enquanto sua
mão livre repousa sob meu queixo – sua carícia suave substituindo a
memória da lâmina presa em minha garganta enquanto ele guia meu rosto
para olha-lo em seus olhos. — Isso não foi culpa sua. Eu entendo, Luella.
Mesmo que eu desejasse que você tivesse ouvido meus avisos e não tivesse
saído. Eu entendo a vontade de fugir deste lugar. — Eu vejo desejo e
saudade brilhando nas águas de uma profunda tristeza em seus olhos. —
Aquele homem morreu apenas porque tentou atacar a Rainha Humana.
— Por quê? Por que ele me atacaria? — Agarro a camisa de Eldas com
cuidado, como se estivesse me agarrando a uma resposta que provavelmente
não está lá. — Eu não quero machucar pessoas. Eu trouxe a primavera!
— Nem todo mundo ama a Rainha Humana. — Eldas diz solenemente.
— Mas–
— Alguns vêem ela – você – como uma ideia antiquada. Alguns
desejam ser unificados, reunidos com o Mundo Natural e dominar a
humanidade. — Eu tremo e Eldas me puxa para mais perto. Eu permito que
ele faça isso. Assassino e protetor, as duas palavras circulam em minha
cabeça enquanto o lado do meu corpo é pressionado contra o dele. O
movimento parece ter sido inconsciente, porque, por um momento, ele fica
tão surpreso quanto eu. Limpando a garganta, Eldas recupera o foco.
— Outros já sentiram que a linhagem de Rainhas Humanas está
desaparecendo. Cada rainha é mais fraca que a anterior.
— Meu poder é realmente mais fraco? — A sensação sempre foi muito
forte para mim. Apesar disso, as palavras de Luke, de que até os Guardiões
sabiam que o poder da rainha estava desaparecendo, voltam à minha mente.
— Você pode achar difícil de acreditar — ele admite, como se estivesse
lendo minha mente — mas é. Pense em como o trono a devastou na primeira
vez em que você se sentou nele. Além disso, a natureza em Entre Mundos já
não é tão estável como antes e isso está criando dificuldades à medida que os
alimentos se tornam mais escassos e a terra fértil é mais valorizada do que
nunca.
Eu abaixo minha cabeça.
— E eles culpam a Rainha Humana pela situação difícil da terra.
— Eles não entendem que a rainha faz tudo o que pode.
Eu balanço minha cabeça.
— Precisamos encontrar uma maneira de quebrar o ciclo.
— Eu sei. — Eldas muda. Ele agora tem uma expressão endurecida,
mas não fechada. Ele é decidido, tudo o que eu esperaria de um rei. Seus
olhos estão pesados enquanto ele encara as chamas. Eu me pergunto o que
ele vê na luz dançante. — Nós devemos; por nosso mundo e pelos futuros
reis e rainhas. Temo que você possa ser a última rainha. Mas mesmo se nada
disso fosse verdade, ninguém deveria ter que suportar o que você tem... o
que você continuará a suportar. E nenhum outro rei deveria... — Ele se
interrompe.
— Deveria o quê?
— Deveria ter que ver sua rainha com uma faca em sua garganta. —
Seu olhar se volta para mim. Está cheio de uma emoção que não ouso
nomear – uma expressão completamente presa entre o desejo e o desespero.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Você estava... preocupado comigo?
Ele ri alegremente. Nossos rostos estão perto o suficiente para que seus
sopros divertidos se choquem contra minhas bochechas e balancem meu
cabelo.
— Claro que eu estava preocupado com você. É meu dever protegê-la.
— Eldas estende a mão e enfia uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
O movimento terno contrasta com suas palavras.
Um peso se afunda em mim.
— Eu não sou nada mais do que seu dever? — Não sei o que espero
que ele diga. Me arrependo imediatamente por perguntar.
— Você é... — Seus olhos se estreitam ligeiramente, como se estivesse
tentando me ver melhor.
A pausa é terrível. Meu cérebro consegue preenchê-la com mil palavras
presas por trás de seus olhos enigmáticos. Eu o imagino dizendo sim. Mas eu
posso ouvi-lo dizendo não. Eu me endireito, tentando me distanciar dele e da
sua resposta.
— Está tudo bem — eu digo apressadamente. — Você não tem que
responder. Eu entendo o peso do dever. — E meu dever é o que me tem feito
buscar uma forma de encerrar esse ciclo. Encerrá-lo seria a maior ajuda para
Capton, não é? E então eu poderia voltar e escapar dessa terra de magia
selvagem.
Eldas alivia sua tensão mudando de assunto.
— Hook parece estar bem. — Ele estica a mão para coçar atrás das
orelhas do lobo. Hook permite, embora não se mova de seu lugar.
— Graças aos Deuses Esquecidos.
— Você realmente se importa com a criatura.
— Eu me importo com todos os meus amigos. — Eu olho de relance
em sua direção. Espero que ele entenda o que estou insinuando – seja meu
amigo e eu também me preocuparei com você. Eldas devolve meu olhar
atentamente, como se esperasse que eu dissesse mais. Mas há outro nó em
minha garganta. Em vez disso, procuro uma alternativa. — Posso te
perguntar mais uma coisa?
— Você pode me perguntar qualquer coisa. — Sua sinceridade me
assusta.
Eu rapidamente deixo isso de lado. Falar de política vai esfriar o calor
que sobe em minhas bochechas.
— O homem era uma fada, certo?
Ele concorda.
— Todos eles têm aquela aparência? Chifres de veado e asas de
libélula?
— Muitos têm, sim. Embora suas características variem. No entanto,
muitas vezes eles usam um encanto, um glamour, para se parecerem com
outra coisa.
Estremeço ao pensar que essas criaturas podem estar espreitando em
qualquer lugar. Pela primeira vez, estou grata pelo castelo estar tão vazio. Eu
prossigo. Falar está ajudando a apagar a visão e o som da morte daquele
homem.
— Então eles poderiam ser qualquer um? — Eu sussurro.
— A água limpa lava o glamour das fadas. — Eldas diz tranquilizador.
— A fronteira com as fadas é bloqueada por uma parede e por água. As
únicas pontes são fortemente protegidas. As fadas não entram em nossas
terras sem sabermos.
— Mas a delegação de fadas–
— Eu os mandei embora — diz ele secamente. — Eu não suportava
olhar nem mais um segundo para eles. E se eles tivessem se envolvido de
alguma forma com tudo isso, eu não iria querê-los em meu território.
Ninguém mais irá entrar ou sair de meu reino até a sua coroação, ou até... até
que você volte ao Mundo Natural. Rinni cuidará da retirada deles
pessoalmente.
Eu me seguro para não pedir a ele que não seja muito duro. Mas então
aquele som horrível enche meus ouvidos e estou lutando contra os tremores
outra vez. Este não é meu mundo, ou a minha justiça.
— Como eles roubaram você de Rinni? — Eldas pergunta.
— Fiquei um passo atrás dela, só por um momento... Tudo aconteceu
tão rápido — murmuro. Por mais que eu não queira pensar sobre isso, algo
mais vem à superfície dentre as memórias manchadas de vermelho. — Aria
estava lá. — Eu sussurro.
— O quê? — Eldas fecha a cara. — Com os sequestradores? — Ele
pergunta rapidamente.
— Não, não... Eu a vi falando com aquele homem logo antes.
— Você tem certeza que era o mesmo homem? Você tem certeza de que
era ela? — Eldas se move para me olhar diretamente nos olhos. — Você
precisa ter certeza absoluta.
Eu tento ordenar minhas memórias, mas depois de passar o dia as
afastando e apagando... Eu balanço minha cabeça.
— Eu imagino que sim? Não. Era ela, tem que ter sido. Talvez tenha
sido como eles me identificaram, já que Harrow permitiu que Aria, Jalic e
Sirro me vissem antes da coroação.
Eldas está em silêncio, olhando para o fogo. Ele vê algo que não vejo.
— Você acha que ela estava envolvida? — Atrevo-me a perguntar. Não
gosto da ideia de alguém que poderia estar envolvida em uma tentativa de
sequestro e conseguir entrar e sair do castelo. Depois de mais um minuto de
silêncio, pressiono: — Eldas?
— Não — ele diz, finalmente. — Duvido que ela...
— Mas como você–
— Aria é a sobrinha do atual Rei Fada.
— Ela é fada? — Eu pisco, assustada.
— Apenas parte. E seu lado elfo é muito mais dominante. O irmão do
Rei Fada era seu pai, embora ele tenha morrido quando ela era nova. Aria foi
criada em Quinnar com a mãe. — Eldas balançou a cabeça. — Os benefícios
para a diplomacia, sem um grande risco para nós, são parte do motivo pelo
qual permito a amizade de Harrow com ela. Nós a examinamos
minuciosamente quando eles se tornaram amigos, anos atrás. Ela é um
problema, sim... — Ele suspira. — Mas o tipo de problema que Aria pode
trazer está muito abaixo do sequestro da Rainha Humana. O problema que
ela traz é desencaminhar meu irmão, um tanto impressionável, ao convencê-
lo a ficar fora até tarde da noite ou beber demais.
— Você pode afirmar isso com certeza? — Eu não posso evitar
perguntar.
— Se ela estivesse envolvida em uma conspiração para sequestrar você,
ela estaria agindo contra sua família e seus próprios interesses. Se o Rei Fada
estiver envolvido, então qualquer acordo que ele espera conseguir com os
elfos está perdido. E, Aria só pensa em si mesma. Tentar machucar você
limitaria severamente as perspectivas dela — explica Eldas.
Eu considero tudo o que ele disse. Faz sentido, eu suponho. E o que eu
sei sobre a política do Entre Mundos? Muito pouco. Estive tão focada em
aprender a lidar com minha magia e em procurar uma maneira de quebrar o
ciclo que não tive a chance de aprender tudo a fundo.
— Se você tem certeza — murmuro.
— Se ela estiver envolvida, eu cuidarei dela pessoalmente. — Eldas
jura para mim.
Eu rapidamente mudo de assunto, não querendo pensar em Aria sendo
dilacerada, membro por membro.
— O homem disse algo sobre querer sua terra – querer ela de volta. O
que ele quis dizer?
Eldas passa a mão pelo cabelo. Eu observo enquanto a cortina de seda
cai sem esforço de volta ao lugar.
— Quando as fadas começaram suas lutas internas, foram anos de
disputas sangrentas que se espalharam pelas áreas ao redor. Houve ataques
feitos a assentamentos de elfos quando as fronteiras entre nossas terras não
eram tão minuciosas quanto elas são hoje em dia. A maioria era sem motivo
algum – os fada apenas saqueavam recursos ou simplesmente pegavam
nosso povo no fogo cruzado. Isso levou a uma rápida retaliação.
— Uma retaliação comandada por seu pai? — Eu me pergunto de onde
Eldas herdou sua veia brutal.
— Não, muito antes dele. — Eldas encara o fogo. — Eventualmente, os
elfos ergueram uma muralha – uma delimitada por água em toda a sua
extensão. — Lembro-me do que Harrow dissera sobre o irmão deles,
Drestin, receber uma posição de honra em uma muralha em algum lugar. —
A muralha foi uma tentativa de afastar as invasões. Mas quando a poeira
começou a baixar e os clãs se cansaram de suas guerras, foi descoberto que a
muralha havia invadido uma grande faixa do antigo território das fadas.
— E agora eles querem as terras de volta?
— Eles as querem há séculos. Mas quando eles fizeram sua
reivindicação, nosso povo já havia se estabelecido no local. Mesmo se a
devolvêssemos a eles, não há como saber quem as assumiria e nem quem as
governaria. A delegação fada que estava aqui chegou para discutir a extinção
da taxa paga pelas fadas para entrar no território dos elfos – eles acreditam
que, se sua terra ancestral não pode ser devolvida, eles deveriam pelo menos
ser capazes de entrar livremente nela. Mas depois de hoje, duvido que algum
dia eu–
— Não deixe que o dia de hoje mude as coisas. — Eu digo
rapidamente. — Aquele homem pagou por seus crimes. A menos que ele
estivesse agindo em nome do Rei Fada... Não deixe todo o povo das fadas
sofrerem pelas escolhas dele.
Eldas me estuda tão intensamente que eu me mexo e aperto mais o
cobertor em torno de mim, como se eu pudesse me proteger de seu olhar
penetrante.
— Você gostaria que eu não os mandasse embora?
— Eu gostaria que você governasse de forma justa, com força e com
honra.
Um sorriso cansado surge nos cantos de seus lábios.
— Você me lembra dela, às vezes.
— Quem? — Imagino alguma amante que ele possa ter dispensado
antes de eu vir para o castelo.
— Alice. — Certamente não quem eu esperava.
Eu agarro o cobertor com mais força.
— Você deve tê-la conhecido bem, não é?
Uma sombra cruza seu rosto e Eldas balança a cabeça, como se tivesse
se arrependido por dizer algo. Posso senti-lo se fechando mentalmente bem
antes de ele recuar fisicamente. Eu vejo quando ele se levanta, lutando
contra o estranho desejo de puxá-lo de volta para que ele continue diante do
fogo comigo.
— Você deveria descansar um pouco — ele diz suavemente, mas com
firmeza.
— Eldas–
— Vejo você de manhã, para praticar sua magia
— Mas–
Eu não consigo terminar. Ele já saiu pela porta, se retraindo em uma
velocidade que nunca vi antes. Eu olho para Hook, que dá um gemido baixo
e inclina a cabeça para mim em resposta.
— Eu também não o entendo.
O lobo se levanta, se espreguiça e depois se senta onde Eldas estava. Eu
me inclino contra ele, buscando apoio, e a besta bufa levemente. Mas ele não
se move. Hook apenas fica ali, parado, enquanto eu adormeço em seu ombro
peludo.
CAPÍTULO 21
NA MANHÃ SEGUINTE, RINNI CHEGA COMO DE COSTUME. ELA NÃO DIZ NADA SOBRE me encontrar dormindo no
chão. Na verdade, ela está estranhamente quieta.
Hook ainda parece sonolento por tudo o que aconteceu ontem e digo a
ele para ficar em meus aposentos. Ele não resiste, e já estou pensando no que
posso preparar para ele mais tarde no laboratório com Willow que possa
fazer meu companheiro se sentir melhor.
— Rinni, sobre ontem... — Eu começo enquanto caminhamos para a
sala do trono. Ela nem mesmo se vira na minha direção. — Eu quero me
desculpar com você.
Silêncio.
— Você estava certa — eu continuo com toda a sinceridade que tenho.
— Eu estava errada. Devíamos ter ficado no castelo.
Mais silêncio.
— Rinni–
— Eu estarei esperando por você, quando você terminar com o rei, para
levá-la até Willow. — Rinni diz, suas palavras estão vazias de emoção. A
raiva teria sido mais fácil de lidar.
— Eu posso ir encontrar Willow sozinha.
— Sua Majestade me instruiu para que você não fique sem escolta,
mesmo no castelo. Porém, eu gostaria de acelerar nossa caminhada, porque
tenho assuntos a discutir com os outros cavaleiros chefes em relação às
patrulhas e segurança da cidade.
— Eldas deu a entender que o castelo estaria seguro agora que a
delegação se foi.
— É a vontade do nosso rei. — Rinni para diante da porta da sala do
trono. — E não estamos em posição de ir contra a sua vontade.
Rinni não me dá a chance de dizer mais nada antes de eu ser conduzida
à sala do trono para outra manhã praticando magia.
Eldas está distante mais uma vez. É como se em qualquer oportunidade
em que ele se aproxime de mim, mesmo ligeiramente, ele compensasse na
próxima vez que nos encontrarmos. Ele fica vários passos longe de mim o
tempo todo. O que só me faz pensar ainda mais sobre as suas carícias
anteriores, quando começamos a trabalhar juntos.
Eu poderia pensar que a distância entre nós faria eu me sentir melhor.
Este é o homem que rasgou outra pessoa ao meio. Mas ela só me deixa
nervosa. De alguma forma, é mais um lembrete do que ele é capaz. Eu quero
o homem carinhoso que veio até mim na noite passada. No entanto, não sei
onde ou como encontrá-lo.
Minha magia reflete minhas emoções. De vez em quando ela
corresponde à minha vontade e às instruções de Eldas. Eu continuo a
explorar o trono, tentando descobrir o que é aquele lugar escuro. Tudo que
posso descobrir antes que minha magia falhe é que o trono parece ter
crescido a partir daquele ponto.
Assim que Eldas considera que acabamos, ele sai sem dizer uma
palavra. Não tenho nem a chance de falar sobre ontem. Envolvendo os
braços em volta de mim mesma, vou para o laboratório, com Rinni me
escoltando em silêncio.
Felizmente, ao menos Willow está normal.
Ele me ouve enquanto falo sobre o incidente na cidade, permitindo que
eu exponha todos os sentimentos confusos que estiveram em minha mente
desde ontem à tarde.
— As fadas são um caos — ele suspira quando eu termino. — O que é
triste, porque elas têm magia e tradições tão fascinantes... Ouvi dizer que
alguns dos rituais que eles realizam para alimentar sua ritumancia às vezes
podem levar dias. Às vezes, eles levam anos de busca para conseguir
encaixar todos os pontos em seu lugar para seus rituais. E os próprios rituais
são compostos de dança, meditação ou, às vezes, até esportes sangrentos.
Não quero pensar em sangue.
— Eu sei como os elfos amam tradições. — Digo, tentando afastar o
pensamento sanguinário.
Willow dá uma risadinha enquanto se estica por cima da mesa e aperta
minha mão.
— Estou feliz por você estar bem.
— Eu também. Mas estou com medo de ter colocado Rinni em
problemas.
— Se alguém pode se sair bem, é Rinni. Não há nenhuma chance daqui
até o Véu de que Eldas algum dia puna Rinni.
Minha mente vaga de volta para aquela sala secreta com vista para a
sala do trono, a mão de Rinni no rosto de Eldas. Graças aos diários,
confirmei o que Harrow disse – os Reis Elfos tomam amantes. O
pensamento dá origem a uma pergunta, que sei que não consigo mais
segurar.
— Qual é a relação entre Eldas e Rinni? — Eu reúno minha coragem
para perguntar.
— Rinni é o braço direito de Eldas e é a general do exército de Lafaire.
— E aqui está ela, desperdiçando seu tempo me protegendo.
Willow toca meu nariz e sorri. Eu não posso deixar de sorrir.
— Pare com isso. Você é a Rainha Humana. Protegê-la é tudo, menos
perda de tempo. É uma honra, na verdade.
Eu suspiro e reformulo minha pergunta anterior.
— Eldas e Rinni são... íntimos?
Willow pisca várias vezes. Eu percebo que ele fica instantaneamente
desconfortável.
— Luella, isso não é uma pergunta que se faça sobre o Rei Elfo.
— Pense em mim como uma mulher perguntando sobre o homem com
quem ela é casada, então.
— Eu realmente não sei de nada. Eu não me intrometo nos assuntos
reais. Você teria que perguntar a um deles. Não diz respeito a mim.
Eu tamborilo meus dedos contra a mesa enquanto penso.
— Sabe, essa é uma excelente ideia, Willow. Acho que vou perguntar a
Rinni quando terminarmos.
— Você não pode estar falando sério.
— Eu estou.
Willow coça o couro cabeludo nervosamente.
— Tudo bem, mas se você for fazer isso, vamos fazer tortinhas de
frutas primeiro.
— Tortinhas de frutas?
— Elas são as favoritas de Rinni.
— E como você sabe disso?
— Estou no castelo praticamente desde que nasci. Eu ficava aqui em
cima com Poppy, estudando para ser o próximo curandeiro do castelo. Mas...
suponho que ouvi algumas coisas sobre as poucas outras pessoas com quem
convivi no castelo. — Ele encolhe os ombros.
Eu me seguro para não apontar que, se ele ouviu “algumas coisas”, ele
provavelmente também ouviu a verdade sobre Rinni e Eldas. Willow está
certo, não cabe a ele contar. E, algumas coisas, são melhores se obtidas
diretamente da fonte.
NO FIM DO DIA WILLOW ME LEVA, BEM COMO UMA PEQUENA CAIXA DE TORTINHAS DE limão e laranja que passamos
a tarde preparando, para o quarto de Rinni. Há também uma pequena bolsa
de guloseimas para Hook que Willow insistiu em preparar. Mais tarde verei
se elas agradam a Hook. Espero que elas deixem meu lobo novinho em
folha.
Quando paramos na porta de Rinni, eu respiro fundo e bato.
— Sim? — Rinni abre a porta. Ela está com um avental amarrado na
cintura. Sua armadura e trajes de sempre foram trocados por roupas largas e
manchadas de tinta. O visual combina com ela, eu percebo. Seus olhos
disparam entre mim e Willow. — O que você está fazendo aqui?
— Ela insistiu. — Willow disse rapidamente.
— Nós precisamos conversar. — Eu entro sem a permissão dela.
— Tudo bem... — Rinni troca um último olhar com Willow antes de
fechar a porta. — O que você precisa de mim, Vossa Majestade?
— Eu quero falar sobre... — As palavras me faltam quando eu noto o
retrato em que ela está trabalhando. Um par familiar de olhos calorosos olha
para mim com um sorriso pequeno e enigmático. Os detalhes são incríveis.
Embora o retrato rapidamente se torne inacabável conforme a tinta escorre
do rosto da pessoa – meu rosto. — Você está... me pintando?
— Sim. — Rinni limpa as mãos em um pano. — Foi uma encomenda.
— Feita por quem?
— Por quem você acha? — Rinni limpa a garganta e exorta o tom
coloquial de volta ao formal. — Eu quis dizer, Vossa Majestade, que o
próprio Rei Elfo encomendou esta peça.
Eldas quer uma pintura minha? Com qual propósito? Eu olho entre
Rinni e a pintura. Uma coisa de cada vez. Estendo a caixa de tortinhas.
— Aqui, uma oferta de paz e um pedido de desculpas.
— O que é? — Rinni pega a caixa com ceticismo. Assim que ela abre,
ela rosna — Aquele Willow.
— Ele disse que você gostava de tortinhas de frutas — eu digo
apressadamente.
— Sim. Adoro. — No entanto, ela parece muito mal-humorada
enquanto diz isso. Rinni empurra algumas tintas para o lado em sua mesa e
coloca a caixa nela, enfiando uma torta na boca. — Eu só odeio que ele
tenha compartilhado com você minha única fraqueza.
Eu dou risada.
— Bem, agora você está em um estado vulnerável, quero dizer que,
Rinni, eu realmente sinto muito.
Ela suspira enquanto come sua segunda torta.
— Tudo bem, eu aceito suas desculpas.
— Obrigada. — Eu olho de volta para a pintura, pensando no outro
motivo pelo qual vim até aqui. Se houvesse algo entre Eldas e Rinni, então
certamente ele não pediria a ela para pintar um retrato meu. Isso seria
simplesmente cruel. — Somos amigas de novo?
— Ah, tudo bem — ela diz dramaticamente. Eu abro um sorriso. —
Acho que somos amigas.
— Bom, porque há uma coisa que eu quero te perguntar.
— Vá em frente, você tem cinco tortinhas restantes antes que minha
guarda seja levantada novamente.
— Eu queria falar sobre Eldas.
As mãos de Rinni congelam. Acho que é demais até para as cinco
tortinhas restantes.
— O que tem ele?
— Você e ele estão romanticamente envolvidos? — Eu pergunto
diretamente. Rinni não olha para mim e meus nervos vão à loucura. —
Porque, se vocês estiverem, eu entendo. Ou se não estiverem, mas você tiver
sentimentos por ele, eu gostaria de saber. Eu não vou entrar no seu caminho.
— Você é a esposa dele — ela diz delicadamente, ainda sem olhar para
mim.
— Sim, e somos tudo menos um casal normal. — Eu suspiro. Há um
fantasma de dor em meu estômago. Ele está tentando acabar com uma
esperança que eu nem sequer sabia que tinha começado a brotar. — Eu sei
que o Rei Elfo toma amantes. Faz sentido, na verdade. Nossas circunstâncias
não são propícias ao companheirismo.
— Luella, eu não vou atrapalhar nada que esteja surgindo entre vocês
dois. — Rinni ergue os olhos com um pequeno sorriso. — Nós não somos
amantes. E eu não tenho nenhum interesse em ser amante de Eldas.
— Você não tem? — Eu pergunto devagar. — Mas vocês dois
parecem... Há... — Eu me atrapalho com minhas palavras enquanto descubro
que eu torcia para eles serem. Eu poderia estar procurando por um motivo
para acabar com essa frustração que começa a brotar toda vez que estou
perto de Eldas. — Há claramente uma conexão entre vocês dois.
— Há. — Agradeço que Rinni não negue. — Nós crescemos juntos.
Temos quase a mesma idade. E não tenho certeza se você sabe... mas o
príncipe herdeiro não tem permissão para deixar o castelo enquanto seu pai
estiver vivo. Então, ele nunca deixou este castelo quando criança. Depois,
ele optou por continuar sua reclusão para ser coroado ao seu lado. Ele só não
esperava que demorasse um ano...
Eu sei sobre a escolha de Eldas de permanecer isolado.
— Por que o príncipe herdeiro não pode sair enquanto seu pai estiver
vivo?
— Porque existe apenas um Rei Elfo. E isso mantém a transição de
poder – de um reinado para o outro – organizada.
Não tenho certeza se concordo com tudo isso.
— Então ele foi mantido no castelo, sozinho?
— Sim... — Rinni franze a testa brevemente. Nem mesmo a próxima
tortinha consegue tirar essa expressão dela. Mesmo ela, como alguém que
conhece as tradições, claramente pensa que manter um menino em cativeiro
é um pouco extremo. — Como você pode imaginar, ele não tinha muitos
amigos.
— Dá para notar. — As palavras escapam dos meus lábios e sinto uma
pontada de arrependimento por elas.
— Talvez. — Rinni sorri levemente. — Ele não tinha muitas opções de
companhia e eu estava aqui o tempo todo, já que meu pai era o braço direito
do pai dele. Nós nos tornamos próximos. — Rinni cruza os braços e se
inclina contra a parede do fundo. Ela encontra meus olhos. — Suponho que
devo te dizer que sim, em certo momento, exploramos um relacionamento
romântico.
— Há quanto tempo?
Rinni pensa sobre isso por um momento.
— Três ou quatro anos atrás? Pensando nisso agora, acho que ele estava
em pânico ao ver a última Rainha Humana chegando ao fim de sua vida.
Mais do que apenas a dor do luto... Acredito que ele se sentiu confinado ao
seu papel e estava se rebelando à sua maneira contra a ideia de se casar. Ele
tinha idade suficiente para entender seu destino e estava perdendo Alice ao
mesmo tempo.
Eu me pergunto se Eldas se vê em mim. Se minha rebelião contra meu
destino está despertando nele pensamentos negativos ou sentimentos de
desesperança. Talvez a mera sugestão de que possa haver uma saída seja
quase mais dolorosa do que a resignação na qual ele caiu.
— Ele procurou conforto onde pôde encontrar e eu fui receptiva. Eu
estaria mentindo se dissesse que não haviam passado alguns pensamentos
românticos sobre ele e eu naquela altura. Então, fizemos uma tentativa
desastrada por alguns meses, apenas dois ou três, na verdade. E, antes que
você pergunte, não fizemos muito mais do que nos beijar. Também, não vou
dar mais detalhes sobre nosso relacionamento. É passado, já acabou, e ele e
eu não funcionamos romanticamente juntos. As cores são desbotadas nessa
paisagem da minha vida e não tenho vontade de voltar à essa tela
novamente.
— Justo — eu digo. — Obrigada por sua honestidade.
— Claro, eu apoio vocês dois. Eldas e eu somos melhores como amigos
e aliados. Mas, se influenciou em algo, a tentativa de sermos amantes apenas
nos aproximou. Então você está certa sobre existir um vínculo. Não há outro
homem a quem eu prefira servir, no pincel ou na espada, ou de qualquer
forma necessária... exceto no quarto.
Eu solto uma risada. Mas a leviandade é cortada pelos pensamentos
persistentes de Eldas lutando contra seu destino. Eu o imagino jovem, e
desajeitado. Meu sorriso desaparece com um suspiro.
— Rinni, eu sei que pedi muito a você hoje. Mas posso pedir sua ajuda
com algo?
— Vai te custar mais tortinhas.
— Combinado. — Eu rio e continuo. — Eu quero conhecer Eldas
melhor. — Penso no que Rinni disse na sala do trono, sobre Eldas não tentar
me conhecer. Mas, sendo justa, isso vale para os dois lados. — Eu gostaria
de jantar com ele.
Eu gostaria de sentar em sua mesa privada.
Rinni arqueia as sobrancelhas enquanto um sorriso um tanto encantador
surge em seus lábios.
— Tudo bem, tenho certeza de que isso pode ser arranjado.
— Não quero que seja nada formal. — Penso em um dos enormes
salões de banquete do castelo e nas ilustrações que vi nos livros quando
criança. — Não quero que sejamos o rei e a rainha sentados nas
extremidades de uma mesa tão longa que poderíamos muito bem estar em
salas separadas.
Rinni ri.
— Eu sei do que você está falando.
— Bom. Você vai perguntar a ele? Estou preocupada de que, se eu fizer
isso, Eldas dirá não. — Considerando como ele parece se retrair toda vez
que nos aproximamos, ele pode muito bem fazer isso. — E também estou
preocupada de a sala do trono ter se tornado uma sala de aula ou um campo
de batalha para nós. Se nos encontrarmos lá, então nós–
— Vocês não conseguirão relaxar — ela termina por mim. — Não
precisa dizer mais nada. Eu posso fazer isso acontecer.
— Obrigada. — Eu cruzo o quarto e puxo Rinni para um abraço rápido.
Ela está rígida e tão estranha quanto a primeira vez em que abracei Willow.
Mas ela parece ter se acostumado com a ideia um pouco mais rápido do que
meu amigo curandeiro.
— Claro, Vossa Majestade — ela diz, um tanto estranha quando eu me
afasto.
— Já ultrapassamos as formalidades. — Eu vou em direção à porta. —
Me chame de Luella.
Naquela noite, enquanto Hook se enrosca ao pé da minha cama, fico
olhando para o teto. Em uma semana, consegui dois amigos e um lobo. Para
ser honesta, as coisas não estão indo tão mal quanto eu esperava.
Mas os maiores obstáculos ainda continuam – construir uma amizade
genuína com Eldas e, com a ajuda dele, descobrir uma maneira de quebrar o
ciclo.
Eu bocejo.
— Um passo de cada vez — murmuro antes de rolar e adormecer.
ELDAS E EU NÃO NOS ENCONTRAMOS NO DIA SEGUINTE, OU NO DIA DEPOIS DESSE, então me ocupo com os diários e
com Willow no laboratório. Mesmo que Eldas não me ajude, eu vou
continuar procurando uma maneira de quebrar este ciclo – por mim, por ele e
por nossos mundos.
Fiquei preocupada de que Rinni tivesse falado com ele sobre o jantar e
tivesse sido ainda mais horrível do que eu poderia esperar. No terceiro dia,
Rinni me disse que ele havia começado algumas novas negociações com as
fadas, e é isso o que o está distraindo.
Eu penso em nossa conversa e me pergunto se eu, ao menos em parte,
causei essas novas negociações. Me atrevo a pensar que sim. Isso me enche
de uma sensação efervescente, como se eu fosse uma bebida borbulhante,
mantida sob pressão.
Felizmente, no quarto dia sou distraída pela chegada da minha mobília.
O marceneiro faz a entrega pessoalmente e se encarrega de ajudar Rinni e eu
a arrumarmos os móveis em seus lugares. Ele é um senhor tão doce, e não
posso deixar de notar que ele está massageando os dedos rangentes quando
terminamos.
Depois que tudo está organizado de uma forma que agrade aos dois, o
levo comigo ao laboratório e dou a ele um cataplasma semelhante ao que fiz
para o Sr. Abbot. Felizmente, nem Willow, nem Rinni me dizem que ajudar
um “plebeu” está “abaixo de mim”.
O marceneiro fica envergonhado, mas, com o incentivo de Willow,
aceita o presente. Passo o resto do dia trabalhando com Willow,
experimentando minha magia e aprendendo com os livros deixados pelas
rainhas anteriores.
Eu janto sozinha no meu quarto, exceto por Hook. Meu lobo se enrosca
sob minha nova mesa com vista para as janelas da sala principal – ao invés
de para as portas. Folheio delicadamente as páginas frágeis escritas pelas
mulheres que vieram antes de mim, em busca de pistas. O diário mais antigo
tem pouco mais de dois mil anos. Não há registros deixados pela primeira
rainha ou por suas sucessoras. Então, estou aprendendo com mulheres que
estavam tão no escuro quanto eu.
Na noite do quinto dia, finalmente encontro algo que pode ser útil. Está
mais ou menos no meio do diário da Rainha Elanor – a quarta rainha antes
de mim. Aparentemente, não sou a primeira pessoa que pensa em quebrar
esse ciclo.
A CADA NOVA RAINHA, O TRONO COBRA UM TRIBUTO MAIOR. Nosso poder parece estar diminuindo de
geração em geração. É possível que em breve não haja uma Rainha
Humana.
Suspeito que o próprio trono esteja buscando equilíbrio com o outro
lado da Bruma – com o Mundo Natural. A Rainha Humana não traz
equilíbrio o suficiente sozinha. As leis da natureza estão gastas demais.
Se houvesse alguma maneira de equilibrar os dois mundos, talvez o
Entre Mundos não precisasse mais de uma Rainha Humana. Mas eu não
tenho como provar nada disso...
NA MANHÃ SEGUINTE, ESTOU ME ARRUMANDO PARA IR AO LABORATÓRIO QUANDO ouço a batida distinta de Rinni.
— Posso entrar?
— Estou decente — eu respondo.
— Que roupas são essas? — Rinni pergunta assim que põe os olhos em
mim.
— São algumas peças que Willow me ajudou a encontrar. — Eu passo
minhas mãos sobre as pesadas calças de lona. — Não me diga que, no dia
em que eu finalmente ouso não usar um vestido, Eldas quer se encontrar
comigo?
Rinni sorri.
Eu gemo.
— É isso mesmo, não é?
— É, mas você tem até a noite para se trocar.
— Ele aceitou meu convite para jantar? — Não sei dizer se a agitação
em meu estômago são como borboletas ou vespas. Estou animada ou
nervosa? Ambos. Há uma guerra de insetos alados acontecendo dentro dele.
— Ele aceitou, finalmente — murmura Rinni. Ela leva a mão à boca e
tosse, como se tentasse esconder o fato de que a última palavra escapou. Eu
faço um favor a ela e não falo nada sobre isso. — Sim, ele aceitou. Você
jantará na Ala Leste esta noite.
— Ooh! A misteriosa Ala Leste. — Eu agito meus dedos no ar. — Que
emocionante.
— E é. Geralmente, apenas a família real é permitida lá.
Não deixo passar que não sou considerada parte da “família real”.
Posso até manter o Entre Mundos vivo, mas claramente não mereço a honra
de ser vista como uma deles. Meus pensamentos vagam para Harrow. Eu
ainda não o vi desde que o curei. Eu deveria ser grata por isso, mas estou
estranhamente preocupada.
Embora Eldas não pareça muito preocupado com Aria, não consigo
evitar pensar que ela pode estar tramando alguma coisa... Não. Isso é apenas
o meu medo por tudo o que envolve o homem com chifres que está
influenciando minhas opiniões sobre ela.
Afasto os pensamentos. Harrow é apenas mais um dos motivos pelos
quais estou feliz por não fazer parte dessa família. Vou embora em dois
meses.
— Obrigada por me avisar. A que horas devo estar pronta?
— Eldas espera você às oito horas.
— Que bom, então posso passar o dia inteiro no laboratório e ainda
terei tempo para me trocar.
— Você gostaria que eu a ajudasse a se arrumar esta noite?
Eu penso em aceitar a oferta dela. Definitivamente existem vestidos
com fechos que eu não consigo alcançar sozinha.
— Não, obrigada — eu finalmente decido. Se Eldas vai me conhecer,
ele deve conhecer meu verdadeiro eu – não qualquer penteado ou vestido
que Rinni considere apropriados.
— Então eu voltarei faltando quinze minutos. — Rinni faz uma
reverência e sai.
O dia é uma estranha mistura de muito longo e muito curto. As horas
parecem se arrastar enquanto estou no laboratório. Cada vez que olho para o
relógio de pêndulo, tenho certeza de que metade do dia já se passou, quando,
na verdade, apenas se passaram cinco minutos.
Eu mal consigo me concentrar.
Mas, rápido demais, estou de volta ao meu quarto e Rinni está batendo
na porta outra vez.
— Entre — eu digo.
Ela aparece na porta do meu banheiro.
— Você escolheu isso para vestir?
— Não é negociável — declaro. — Ele se encontrará comigo vestida
desse jeito ou não me encontrará.
— Muito bem. — O fantasma de um sorriso surge no rosto de Rinni
enquanto ela me conduz. Felizmente ela não faz comentários sobre Hook
estar nos seguindo. Ele se tornou minha sombra no castelo, uma vez que fico
muito mais confortável com ele por perto. A essa altura, me conhecer
envolve conhecer Hook.
Atravessamos a sala do trono para chegar à Ala Leste. Presumo que
tenha sido um caminho mais curto do que descer até o átrio principal. Rinni
me leva através da porta pela qual Eldas geralmente desaparece. Ela
atravessa corredores silenciosos, abarrotados de armaduras intrincadas,
pedras pontiagudas em pedestais, tapeçarias e retratos. Há menos espaço
aberto aqui do que na ala oeste. Menos salões de baile, salas de jantar, salas
sem sentido. Eles foram substituídos por escadas em espiral e uma
quantidade infinita de portas que atrapalham meus olhos curiosos.
Finalmente chegamos ao nosso destino – uma porta tão comum quanto
qualquer outra. Rinni dá uma batida suave.
— Vossa Majestade — ela diz. — Sua rainha está aqui para se juntar a
você.
CAPÍTULO 22
EU CONGELO LIGEIRAMENTE COM AS PALAVRAS “SUA RAINHA”. ME SINTO NERVOSA pelo anel de labradorita em
volta do meu dedo, de repente ciente da presença dele outra vez. Eu não
quero ser de ninguém. Eu não quero ser uma posse. Quase começo a correr,
mas consigo me manter no lugar.
Essas palavras não pretendiam passar uma ideia de propriedade. Eu vim
aqui por vontade própria. Eu queria ver se o homem gentil que vislumbrei
realmente está lá. Se ele consegue confiar em mim. Se, talvez, nossa parceria
pode se firmar, para que tenhamos uma chance real de tirar o Entre Mundos
da confusão em que está. Não estou aqui por obrigação, ou medo, ou porque
ele ordenou que eu estivesse.
— Mande-a entrar. — A voz grave de Eldas ressoa através de mim.
A porta se abre para o corredor em que estou e Rinni dá um passo para
o lado. Eu entro e tento permanecer ereta enquanto ando, uma das mãos
enterrada no pelo de Hook para me dar forças. Quando a porta se fecha atrás
de mim, as vespas vencem as borboletas no meu estômago e eu pressiono
meus lábios, tentando não deixar que palavras nervosas saiam.
Eldas está diante de uma grande lareira. Há uma mesa entre nós que
parece acomodar confortavelmente quatro pessoas, mas está posta apenas
para dois. A comida brilha na luz fraca – carne assada, bandejas de vegetais
e algum tipo de bolo, redondo e gelado, decorado com asas de borboleta – as
quais espero que não sejam de verdade – na parte superior.
Eu mal consigo inspecionar a comida antes de meus olhos vagarem
para o homem que realmente estou aqui para ver. Eldas está vestindo uma
túnica adornada, da cor da meia-noite. Pequenos botões de pérola estão
pregados no centro de alguns X em seu peito e dão a aparência de estrelas
espalhadas. Sua pele contrasta com suas roupas escuras, fazendo-o parecer
um rei da luz das estrelas, ao invés de um rei da morte.
— A coroa é realmente necessária? — Eu deixo escapar,
completamente desarmada meramente pela sua aparência. Quase parece que
ele se esforçou por mim.
— O quê? — A surpresa interrompe sua expressão educada e sua mão
voa para a linha escura de ferro em sua cabeça. Eldas abaixa a mão de
repente, como se estivesse envergonhado pelo movimento. — Eu sou um rei,
por que não usaria minha coroa?
— Porque sou apenas eu quem vou me encontrar com você.
— Mais uma razão. Eu sou seu rei. Por que eu não teria a aparência de
um?
Seu rei. As palavras rugem em contraste com “sua rainha”. Se eu sou
sua rainha, isso significa que ele é meu rei? Será que, em vez de ele me
possuir, nós possuímos um ao outro? Nós pertencemos um ao outro?
Pela primeira vez, gostaria de ter dedicado um pouco mais de tempo a
todo esse negócio de relacionamento e romance durante minhas aulas no
instituto, em vez de ter me concentrado exclusivamente em herbologia.
Talvez eu fosse menos estranha e menos inclinada a pensar demais nas
coisas.
— Eu... — As palavras fogem de mim. Em vez disso, vou até ele e
sinto seu olhar em mim a cada passo. Hook fica para trás, como se, de
alguma forma, soubesse que preciso fazer isso sozinha. — Eu vim aqui
como eu mesma, como Luella. — Estendo minhas mãos e o deixo olhar para
a saia de cintura alta e a blusa esvoaçante que escolhi – tecido simples,
design simples, algo que eu usaria em Capton. — Eu estava esperando que
eu pudesse... — eu tento alcançá-lo e ele recua. Eu estendo minhas mãos e
espero. Eldas assente e permite que meus dedos se enrolem em torno de sua
coroa. É mais pesada do que eu esperava, tão pesada que me pergunto como
ele consegue manter a cabeça erguida. — me encontrar com Eldas, e não
com o Rei Elfo. — Eu coloco a coroa na mesa, grata por não tê-la deixado
cair.
— O Rei Elfo é quem e o que eu sou. Não há nada mais.
Essas palavras espelham coisas que eu disse muitas vezes antes. Ele não
pretendia que elas machucassem e, ainda assim, machucam. Tremores
internos sacodem meus ossos. O nervosismo está tentando me dominar,
porque nunca me senti mais vulnerável.
Pela primeira vez, eu percebo que as roupas, a coroa, aquela sala do
trono horrível e ecoante... são todas diferentes formas de armadura para ele.
Elas o protegem de quem quer que seja o homem sem elas. E, agora, estou
ainda mais curiosa sobre quem esse homem realmente é.
— Eu entendo — sussurro.
— Não, não entende. — Ele olha de volta para o fogo como se não
pudesse lidar com meu escrutínio. Como se ele soubesse a conclusão à qual
cheguei.
— Eu entendo, sim. — Insisto. — Porque eu tinha minha própria
armadura. Eu tinha minha loja, meu trabalho, meu dever. Eu tive que me
manter longe de tudo porque, se eu me expusesse por um momento, talvez
eu pudesse me machucar – talvez eu pudesse perder o controle.
Seus olhos se voltam para mim. O fogo estala e uma tora de madeira se
quebra.
— Isso não serviu de muita coisa. — Murmuro. Mesmo tentando me
proteger, Luke desferiu um golpe quase mortal no meu coração. Seu olhar se
suaviza ainda mais. — Então eu não vou me retrair. Bem, estou tentando não
me retrair. Quero conhecer você, Eldas.
— Por quê? — Ele parece chocado por alguém querer.
— Que tipo de pergunta é essa? — Eu rio alegremente. Ainda assim,
seus ombros tensos indicam que foi uma pergunta genuína. — Eu sou,
tecnicamente, sua esposa.
— Apenas uma formalidade... E eu a forcei a fazer esses juramentos. —
Ele leva um copo de cristal lapidado aos lábios. Mal esconde uma careta. —
Sinto muito por minhas ações no templo em Capton. Eu deveria ter me
desculpado antes.
Um pedido de desculpas sincero e espontâneo? Eu mal contenho um
suspiro chocado. Progresso, isso é realmente um progresso .
— Obrigada por suas desculpas. — Eu franzo meus lábios. Parte de
mim não quer perdoá-lo. Ainda assim... — Honestamente, sem sua ajuda, eu
provavelmente teria vomitado em seus sapatos.
Agora ele não esconde a careta.
— Talvez eu esteja menos arrependido.
Eu rio levemente. É um som frágil, para combinar com nossos avanços
delicados.
— O que você está tomando?
— Isto? — Ele gira o copo. O gelo faz barulho. — É hidromel feito
pelas fadas. Foi enviado juntamente com as desculpas do Rei Fada pelo
incidente em Quinnar.
— Posso experimentar? — Há um pequeno bar com um copo extra e
uma garrafa de líquido da mesma cor do que está no copo de Eldas.
— Eu não pensei que você iria querer, já que é feito pelas fadas. Eu só
abri porque é forte e porque esta noite... eu precisava de um pouco de força.
— Você precisava de forças para estar perto de mim? — Eu arqueio
minhas sobrancelhas.
— Talvez você seja a única coisa que eu acho aterrorizante em Entre
Mundos.
Eu dou uma risadinha enquanto me sirvo de um pouco da bebida.
Enquanto isso, Hook toma meu lugar ao lado da lareira. Lobo e homem se
olham com cautela enquanto eu volto e ergo meu copo para Eldas,
distraindo-o de Hook.
— Por forças, para esta noite.
Ele me encara pelo meu gesto por um tempo longo o suficiente para
que eu me sinta desconfortável.
— Vocês brindam por aqui?
— Brindamos. — Pela primeira vez, seu olhar normalmente reservado
parece convidativo. Seus olhos são frios, mas como uma manhã fresca de
inverno para a qual você está pronta para dar as boas vindas. Eldas levanta
seu copo. — Por este mundo. Pelo próximo. Pelas pessoas que encontramos
no percurso e pelos laços que compartilhamos. — Ele bate levemente seu
copo contra o meu e bebe. Eu faço o mesmo.
— Isso é um brinde élfico? — Eu pergunto.
— É.
— É adorável.
Ele não parece saber como responder ao elogio, então, em vez disso,
muda de assunto.
— Vejo que a besta ainda insiste em vagar pelo meu castelo.
— Hook — eu corrijo suavemente. — Sim, ele ainda permanece
comigo.
— Você deve retornar à Bruma eventualmente. — Eldas repreende
levemente. No entanto, apesar de seu tom, ele se inclina para frente e alcança
Hook. O lobo fica tenso, mas permite que Eldas o coce suavemente entre as
orelhas.
— Ele vai e volta, quando precisa. Às vezes, ele foge por conta própria,
mas sempre volta. E ele é uma boa companhia sempre que está aqui. — Não
quero pensar em Hook me deixando de vez, como sugere o tom de Eldas.
— Isso é bom. Este castelo pode ser solitário. — Eldas franze os lábios
levemente, como se isso fosse algo que ele não tivesse a intenção de dizer.
— Você sabe bem, não é?
— Tanto quanto você. — Eldas responde e eu fico em silêncio. Nós
tomamos longos goles de hidromel.
— Você realmente ficou trancado aqui enquanto esperava por mim? —
A pergunta sai fraca. Tenho medo da resposta.
— Rinni te contou, não é? — Ele não olha para mim quando responde.
Duvido que ele goste de se sentir vulnerável. Mas não vou me desculpar por
me interessar pelos seus sentimentos.
— Contou. Não fique zangado com ela.
— Você continua me dizendo com quem posso ou não ficar zangado.
— Eldas me olha de soslaio. Quase posso vê-lo lutar contra um sorriso
superior, e isso me faz sorrir.
— Considere meu conselho como qualquer outra opinião: uma
recomendação. — Eu tomo outro gole enquanto a conversa pausa. Eu
espero. Nada. — Você não respondeu minha pergunta.
— Sim, eu continuei trancafiado aqui. Eu queria me apresentar ao
mundo ao mesmo tempo em que minha rainha, mas... — Ele passa uma mão
pelo cabelo e balança a cabeça. — Nada está indo de acordo com o
planejado. Então você veio... e sua natureza destruiu o último resquício de
meus planos cuidadosamente elaborados. Você realmente não é nada como
eu esperava. — Antes que eu possa comentar sobre o sentimento quase
carinhoso, ele se vira para a mesa. — Vamos comer?
— Muito bem.
Eu rapidamente deixo de lado os pensamentos sobre como Eldas
esperava que eu fosse. Estou quase com medo de descobrir a resposta.
Não… não é isso... Na verdade, eu tenho medo de descobrir o que anseio
que seja a resposta: que eu não sou nada como ele esperava, mas de uma
forma que ele pode estar gostando. Um sentimento que é perigosamente
mútuo.
— Você cozinhou tudo isso? — Ele torce o nariz em desgosto.
— Claro que não. Eu tenho alguém para fazer isso.
— É que o castelo parece tão vazio. — Eu sento no meu lugar e ele no
dele. — Tenho me perguntado quem é que cozinha.
— Existem passagens internas. Pense nelas como um castelo dentro de
outro. Os servos operam de lá. Muito poucos podem ser vistos deste lado. —
Ele faz uma pausa, os olhos parando rapidamente nos meus. — Magia
também ajuda.
— Magia ajuda — eu repito com uma risada. — Suponho que sim.
— Bem, com certeza você não pode conjurar uma costela de cordeiro
apenas com o pensamento em seu mundo.
— Você pode–
Antes que eu possa terminar, Eldas levanta a mão, apontando para o
canto da sala. Uma névoa azul se acumula em seus dedos, espelhando uma
pequena nuvem. Com uma explosão tempestuosa, a névoa se condensa em –
muito provavelmente – uma costela de cordeiro.
— Aproveite, Hook. — Eldas se recosta em sua cadeira, gira o copo e
toma um gole. Quando ele percebe meu olhar chocado, ele cai na
gargalhada. — Você não achou que eu podia.
— Como?
— Aprendi o nome verdadeiro daquela costela de cordeiro e posso criar
duplicatas dela.
Enquanto ele fala, Hook rói seu presente.
Eu tenho mil perguntas girando em minha mente, mas tudo que posso
dizer é:
— Você realmente deve gostar de cordeiro.
Eldas solta uma gargalhada e rapidamente cobre a boca com a mão. Sua
expressão envergonhada leva à minha própria explosão de risos. De repente,
estamos rindo juntos.
— Como pode ter havido qualquer problema com comida no Entre
Mundos se isso pode ser feito?
— Apenas elfos podem fazer isso, e muito poucos entre nós possuem a
habilidade. E essa comida não é nem de perto tão nutritiva quanto algo
natural – algo real. — Ele me encara através da borda do copo enquanto
toma um gole. Algo nos músculos de sua garganta se contraindo é
estranhamente fascinante.
Volto rapidamente para a minha comida, mudando de assunto para
aprender mais sobre os rituais da primavera que estão chegando. Eldas está
ansioso para me contar, especialmente sobre seu papel neles. Ele se prolonga
ao contar sobre seus deveres como o Rei Elfo – como ele abre e fecha as
cerimônias, como ele é quem apresenta a rainha como aquela que traz a
primavera. Eu não consigo evitar de sorrir enquanto ele fala sem parar.
Ele está genuinamente animado para ser rei, para finalmente governar.
E mesmo assim... estamos tentando encerrar o ciclo. Não estarei aqui para
ver esses rituais de primavera. Eu não serei apresentada.
Enquanto conversamos, se torna mais fácil nos abrirmos. Eldas é um
cavalheiro propriamente dito, quase a ponto de me deixar desconfortável.
Ele faz questão de que meu copo seja reabastecido sempre que começa a
esvaziar – o que acontece com frequência, já que o hidromel é doce e
efervescente. Ele me serve sempre quando demonstro interesse em
experimentar alguma coisa.
Enquanto comemos, não fico surpresa por notar que tudo está delicioso.
A comida no Entre Mundos é mágica por si só. Todos os sabores parecem
mais destacados, ricos e únicos. Será que eu realmente saboreei alguma
coisa antes de vir para cá?
— Ouvi dizer que você está ajudando na estufa. — Eldas faz uma
tentativa de criar outro assunto.
— Willow tem sido bom para mim. — Eu imediatamente saio em sua
defesa, embora nada no tom de Eldas sugerisse que eu não poderia ajudar. —
Ele não só me deixou ajudar com as plantas, como também me deu acesso
aos diários das outras rainhas e me ensinou mais sobre a magia dos elfos.
Ele inclina ligeiramente a cabeça quando eu menciono os diários.
— Sim, eu ouvi que lá você se sente em casa. A ponto de que o boato
sobre a capacidade da rainha de curar doenças tenha se espalhado pela
cidade.
— Tenho certeza de que não sou a primeira rainha a fazer isso. —
Lembro-me do simples cataplasma que fiz para o marceneiro.
— Rainhas não têm interesse em se encontrar com o povo comum de
Quinnar, ou com o povo em geral.
Eu bufo com a observação.
Eldas pousa o garfo e arqueia as sobrancelhas.
— Eu disse algo engraçado?
— Não é que as rainhas não tinham interesse, elas não eram permitidas
a se interessar.
— Isso não é verdade.
— Ah, é? — Eu sorrio. A expressão se encaixa em minhas bochechas
coradas fácil demais. Quantos copos de hidromel já tomei? — Talvez você
deva ler alguns dos diários das antigas rainhas. Você pode achar a versão
delas esclarecedora. Se você está se esforçando para me conhecer, então
poderia fazer o mesmo com elas.
— Eu tentei conhecer Alice.
— Você tentou mesmo? — Eu sorrio, mas o abandono quando sua
expressão se torna inesperadamente pensativa.
Ele hesita, a voz repentinamente pesada e triste.
— Ela... ela era uma mulher gentil.
— Eu estou com o diário dela, se você quiser ler — eu digo
gentilmente.
Ele fica imóvel e uma excitação infantil quase pisca em seus olhos.
— Eu gostaria muito.
— Vou emprestar para você. Eu já terminei de ler.
— Isso seria muito gentil da sua parte.
— Eu quero ser gentil com você.
Eldas ocupa a boca com um longo gole de sua bebida e depois se
concentra na comida que ainda está em seu prato. Talvez seja apenas a luz
do fogo, mas acho que vejo um leve rubor em suas bochechas. Eu me rendo,
voltando a me concentrar em minha própria comida.
— Você está certa — diz ele sem tirar os olhos do prato. E isso é bom,
porque desta forma ele não vê a minha expressão surpresa. Eu estou certa?
— Eu nunca dediquei algum tempo para me informar adequadamente sobre
as antigas rainhas, além de Alice, e isso é algo que eu deveria remediar se eu
quiser ser um rei eficiente tanto para você quanto para meu futuro herdeiro.
Ele ainda mantém a suposição de que estarei aqui por mais de dois
meses. Eu me seguro para não ressaltar isso. Esta noite foi repleta de
cordialidade e, nesse momento, há algo que me deixa triste na ideia de ir
embora.
Nenhuma tristeza que um pouco mais de hidromel não consiga
consertar.
— Vou recomendar algumas leituras além do diário de Alice, então —
digo, finalmente. — Algumas coisas sobre a vida das rainhas. E algumas
informações interessantes sobre a magia delas que descobri e que podem
nos ajudar a encerrar este ciclo.
— Você ainda acha que pode acabar com a necessidade de se ter uma
Rainha Humana?
— Meu plano não mudou.
Eldas se levanta e vai até a lareira novamente. Ele se inclina contra ela,
sua forma imponente formando uma linha escura contra a luz do fogo. Eu
coço Hook atrás das orelhas, olhando para ele – não, admirando-o.
A luz atinge suas maçãs do rosto de maneira que ficam ainda mais altas.
Seus olhos estão iluminados, assustadoramente bonitos. E os arco-íris
escondidos em seu cabelo negro nunca foram mais evidentes.
— É por nós dois, você sabe — eu digo cautelosamente, me levantando
com o copo na mão. A sala balança e quase tira uma risadinha dos meus
lábios. Mas agora não é hora de rir. Ainda tenho consciência suficiente para
saber disso. — Bem como em benefício de todos os que virão depois de nós.
Pense no que podemos mudar, Eldas. Sonhe em como a vida de seu herdeiro
poderia ser diferente – como a sua vida poderia ser.
— Há muito tempo passei da idade de sonhar. — Seus olhos frios e
assustados demonstram a verdade por trás dessa afirmação.
— Talvez você devesse tentar começar a sonhar de novo. É fácil:
apenas sonhe, Eldas, e depois siga elas. — Eu toco seu cotovelo levemente e
isso atrai seus olhos para os meus.
— Eu não fui feito para sonhar. Eu fui feito para governar.
— Eu acho que você foi feito para qualquer coisa que quiser.
— Você não me conhece nem um pouco. — A preocupação permeia
suas palavras.
— Acho que estou começando a conhecer. Eu sei que quero. — Meus
dedos percorrem seu braço até sua mão. Eles dançam em sua pele macia,
brincando com o punho de sua túnica ao redor de seu pulso, pedindo por
mais. — O que você queria quando criança? Diga-me, quais são as suas
esperanças?
Eldas olha do meu toque para os meus olhos. Ele inala lentamente. Suas
pupilas estão dilatadas.
— Minha vida inteira girou em torno de ser treinado para ser o rei. Para
servir meu povo, para proteger a Rainha Humana e o ciclo. Meu pai nunca
me avisou...
— Que seria ela quem tentaria destruir esse ciclo? — Meu peito se
aperta.
— Que ela seria aquela de quem eu precisaria me proteger.
— Eu só bati em você uma vez. — Uma risadinha escapa e levo o copo
aos lábios, grata por ele parecer ter achado graça também. — Desculpe
novamente por isso.
— Me desculpe por ter insultado você. Devemos considerar que
estamos quites?
— Estarmos quites é um começo.
— Um começo para o que, exatamente?
Quando foi que ele chegou tão perto? Nós nos inclinamos, como
árvores em uma tempestade de vento, para frente e para trás, ambos nos
aproximando do espaço pessoal um do outro até que quase não haja
nenhuma lacuna entre nós.
Hook cutuca minhas costas. Ele não estava encolhido no canto um
momento atrás? Eu estou muito desequilibrada. Eu tropeço para frente.
Minha bebida se derrama na túnica luxuosa de Eldas apenas para, logo em
seguida, eu pousar minhas mãos contra a mancha úmida que agora cobre seu
peito. Suas mãos me pegam. Mas ele não me afasta como eu esperava. Ele
me encara, com o rosto corado de uma forma que me deixa tonta.
A linha dura de seus lábios é repentinamente mais suave, brilhando com
o hidromel das fadas. A luz em seu rosto o faz parecer banhado em ouro, e
não esculpido em mármore. Eu me pergunto qual seria o gosto dele se eu o
beijasse agora.
É disso que tenho fugido durante toda a minha vida? É assim que é
gostar de outra pessoa? O pensamento trapaceiro vagueia pela minha mente
enquanto eu olho para ele. Como eu pude querer me esconder disso?
— Me desculpe — murmuro. — Eu não tive a intenção. Foi culpa de
Hook.
Um sorriso preguiçoso cruza seus lábios. Ele sabe de algo e não vai me
contar. É isso que sua expressão diz. Mas eu não chego a tentar descobrir.
Ele me distrai com uma mão em meu rosto, seu polegar passeando em meus
lábios.
— Peça desculpas à bebida. Porque, em vez de estar em sua língua,
agora ela está apenas nas minhas roupas – uma lamentável piora.
— Eldas — eu sussurro de forma intensa. Minha cabeça se inclina
ligeiramente contra sua palma. Sinto uma ansiedade dentro de mim, uma
necessidade profunda à qual nunca me rendi, e tudo em mim me diz que
ceder é a pior ideia possível. Mas não consigo pensar direito. Entre o
hidromel e seu toque, eu não quero pensar.
— Luella? — Meu nome é uma pergunta. O que ele está perguntando?
— Sim. — Seja o que for, sim.
Seu aperto em mim aumenta; ele vira meu rosto para cima. Minha boca
encontra a dele. Seu braço se fecha em volta de mim, me puxando para ainda
mais perto. Nós cheiramos a mel e temos gosto de sonhos esquecidos. Nós
nos movemos com desespero.
O copo que eu estava segurando cai, se estilhaçando, quase quebrando
nosso transe. Mas Eldas passa a língua por meus lábios e eu emito um
gemido que eu não sabia que poderia produzir. Eu permito que ele entre em
minha boca e sua língua desliza contra a minha suavemente – tão
suavemente.
No entanto, seus movimentos são ásperos e necessitados. Ele é um
homem de contrastes. Macio e duro. Frio, mas mesmo assim me deixa em
chamas.
Minhas costas estão contra a parede perto da lareira. Meus ombros
arqueiam e eu me pressiono contra ele. Ele segura meu rosto até que ambos
estejamos tontos e ofegantes, tentando respirar.
Eldas me encara, os lábios separados e brilhantes. Eu encontro seu
olhar rodeado de choque e admiração. O fogo queima em azul, como seus
olhos. Os cacos de vidro do meu copo estilhaçado agora são pétalas de rosa.
— Nós... Eu... — Ele respira pesadamente. Então, sem aviso, Eldas se
afasta. Há pânico em seus olhos e medo em seus movimentos. — Você vai
embora.
— Eu estou bem aqui. — Eu tento alcançá-lo. Todo o bom senso me
deixou.
— Não, você vai embora de Entre Mundos. Vai me deixar. Nós... Eu
não posso. — A verdade nos deixa sóbrios. — Eu tenho que ir.
— Eldas–
Ele se foi antes que eu pudesse dizer mais do que seu nome. O fogo se
torna laranja outra vez e os únicos vestígios do rei são fragmentos da Bruma
através da qual ele acabou de fugir.
CAPÍTULO 23
O QUARTO DE HARROW É O ÚLTIMO LUGAR ONDE QUERO IR. MAS NÃO POSSO DIZER isso abertamente. E não posso
abandonar um paciente.
— Eu... Claro. — Eu rapidamente monto uma cesta com todos os itens
essenciais em que consigo pensar, e sigo atrás de Eldas. — Vá, Hook — eu
ordeno a besta. Não quero levá-lo ao quarto de Harrow. Eu não me
surpreenderia se o jovem príncipe descobrisse e depois tentasse fazer com
que Hook fosse tirado de mim como consequência. Hook me olha com seus
olhos amarelos e inclina a cabeça. — Está tudo bem, Hook, volte para a
Bruma. Vou assobiar para você voltar mais tarde.
Hook se esconde entre as sombras enquanto Eldas e eu partimos.
Caminhamos pelo castelo silencioso e entramos na Ala Leste. Reconheço os
corredores apertados cheios de relíquias e tapeçarias pelos quais passei para
o jantar da noite anterior. Chegamos a um patamar em altura semelhante ao
do meu quarto e entramos nos destroços de um aposento.
Sinais de sexo espalham-se pelo chão. Roupas estão jogadas. Há
vestígios de uma festa que aconteceu há muito tempo e que estão esperando
para ser limpos por tempo suficiente para que um cheiro rançoso paire no ar.
Eldas faz uma pausa com um suspiro pesado. Ele olha por cima do
ombro para mim.
— Desculpe por isso... O quarto é por aqui.
Nós cuidadosamente passamos por cima de objetos suspeitos enquanto
atravessamos uma arcada com cortinas transparentes. Atrás dela está uma
grande cama circular que está tão bagunçada quanto o resto do quarto. Eldas
deita Harrow e eu tomo a liberdade de limpar uma mesa lateral para arrumar
meu material de trabalho.
— Diga-me do que ele vai precisar. — Eldas gentilmente posiciona os
cobertores ao redor de seu irmão mais novo.
— Quando ele acordar, ele vai precisar beber o resto da mistura. Então,
depois disso, esse pó deve ser misturado com água e ele deve tomar tudo de
uma vez. Mas posso voltar e cuidar dele.
Eldas da beira da cama olha para cima. Seu joelho quase toca minha
coxa enquanto ele se vira para me encarar mais. Continuo a me concentrar
em minhas ervas e unguentos.
— Você faria isso pelo idiota do meu irmão?
— Até os idiotas precisam de cuidados. — Eu paro e meus olhos vagam
para Harrow. Ele não se parece mais com o terror antagônico que conheci.
Adormecido, ele parece mais jovem e suave – quase vulnerável. — Não...
ele não é um idiota, só é um pouco desencaminhado, aposto. — As pessoas
com as piores atitudes frequentemente são aquelas com os piores
sofrimentos. — Nesse caso, especialmente, ele precisa de cuidados. — Mais
do que posso dar. Suspeito que os problemas de Harrow sejam mais
profundos do que físicos.
— Ele precisa. — Eldas concorda fracamente. — É minha culpa que ele
seja assim. — Eu fico em silêncio enquanto Eldas fala. — Gerenciar os
sucessores a Rei Elfo tem sido complicado ao longo da história. O Rei Elfo
sempre foi capaz de ascender ao trono, em parte graças às proteções que
cercam o herdeiro desde o nascimento. Então, os seus irmãos nunca foram
necessários... Com nosso irmão, Drestin, foi simples. Ele foi direcionado e
aceitou de bom grado seu posto em Westwatch.
— Mas Harrow... Nossa mãe sempre foi branda com ele. Ele era o
único filho a quem ela poderia se apegar por mais tempo. Ela sempre foi
louca por ele; meu pai também. E eu...
— Você se ressentiu dele por isso — eu termino.
— Sim. — Eldas fecha os olhos com força e enterra o rosto nas mãos.
— Eu era o herdeiro de todo o Entre Mundos e tinha inveja do meu irmão
mais novo.
— Não foi fácil para você. — A tristeza cresce em mim. É como se eu
tivesse finalmente penetrado através da sólida parede feita de gelo que cerca
este homem e captado algo real, algo quente – dor. — Você não podia sair.
Você foi o herdeiro desde o momento em que nasceu e foi preparado como
tal. Seu pai estava em uma situação complicada entre sua mãe e sua rainha.
Estar entre ele, ela e Alice não pode ter sido fácil–
— Alice foi minha salvadora — ele interrompe. — Sem ela, eu teria
ficado louco.
— Ah. — Todas as suas menções anteriores de Alice assumem um
novo significado.
— Ela foi boa para mim. Minha mãe sabia que eu estava destinado a ser
rei e que o destino me tiraria dela. Desde o momento em que nasci, ela me
entregou às amas de leite e lavou as mãos no que diz respeito a mim.
Jantares de família passam diante de meus olhos. Ainda posso ouvir os
ecos dos meus pais me colocando na cama, me garantindo que não havia
monstros espreitando nos cantos do nosso sótão. Lembro-me da primeira vez
que minha mãe me levou ao campo para me mostrar o que sabia sobre ervas
e plantas. Seus lamentos enquanto eu vinha embora enchem meus ouvidos e
a visão dos olhos vermelhos do meu pai piscam diante dos meus olhos.
Eldas me odiou naquele momento? Ele me odiou pela família que eu
tinha e que lhe foi negada? Ele me arrancou deles tão cruelmente por causa
do seu rancor?
As perguntas queimam em minha língua enquanto as lágrimas queimam
em meus olhos. Provavelmente é a verdade. Eu definitivamente deveria
odiá-lo ainda mais agora.
Mas... não. Eu não posso. Algo em mim está mudando agora que o vi
dessa forma e sei o que sei. Está mudando mais do que pelos beijos contra a
parede. Posso nunca mais ser capaz de olhar para ele da mesma maneira.
Talvez eu não queira. O que eu sinto por ele é algo que jamais imaginei
sentir e não desgosto disso.
— Alice teve pena de mim quando ninguém mais teve — ele continua,
alheio à minha turbulência. — Ela era a melhor coisa que eu tinha. E eu
lamentei sua morte diariamente por muito tempo.
Assim como lamento a sua partida quando ela nem mesmo aconteceu –
quase posso ouvir as palavras não ditas e me pergunto se as inventei
inteiramente.
— Eldas, eu–
— Onde ele está? — Uma voz rude corta o ar quando a porta da sala
principal se abre. Falando de mães... — Onde está o meu menino querido?
— Uma mulher com traços afiados e olhos tão frios quanto os de Eldas entra
como uma tempestade, cortinas tremulando atrás dela. Eu me pergunto se
parte do motivo pelo qual ela não pôde tolerar Eldas era o quanto ele se
parecia com ela. — O que você fez com ele?
Eu pisco, percebendo que sua atenção repousa exclusivamente em mim.
— O quê? Eu?
— Você entrou neste castelo e não causou nada aos meus filhos além de
tormento — ela repreende e rodeia a cama até o outro lado. — Você nem
deveria estar na Ala Leste. Fique nas suas redondezas, rainha. — Ela diz
meu título como um insulto.
— Eu–
— Mãe, Luella tem ajudado Harrow. — Eldas diz secamente, se
levantando da beira da cama. — Sem ela–
— Sem ela, meu bebê não estaria neste caos; olhe para ele. — Ela
afasta o cabelo escuro de Harrow de seu rosto coberto de suor.
Eu quero ter pena dessa mulher. Quero encontrar simpatia por ela como
tenho por Eldas. Eu tento e me imagino na posição dela. Ela é, na verdade, a
amante do ex-rei, sem nenhum título real. Desde o primeiro momento em
que buscou um relacionamento com o pai de Eldas, ela deve ter sabido que
seu filho primogênito seria tirado dela. Tento buscar profundamente por
compaixão, mas seus olhares assassinos em minha direção tornam isso muito
difícil.
— Você sabe o que Harrow precisará — digo a Eldas. — Se você
precisar de mim ou tiver dúvidas, sabe como me encontrar.
— Sim, obrigado, Luella. — A maneira como ele diz isso não deixa
dúvidas de que ele está falando sério.
— Ele não vai tomar nada que essa garota tenha feito. — A mulher olha
para a mesa de cabeceira com meus suprimentos.
— Mãe–
— Ela tem quantos anos? Dezoito?
— Dezenove — eu corrijo calmamente.
— Uma criança. Traga Poppy.
— Não há como fazer isso — diz Eldas com frieza. — Mandei Poppy
para uma missão importante que ainda levará pelo menos dois meses; e não
vou chamá-la de volta. Então, se você deseja que Harrow receba cuidados,
você permitirá que Luella–
— O neto de Poppy, então. Mesmo aquele rato de homem seria melhor
que ela.
Eu vejo as mãos de Eldas apertarem atrás de suas costas a ponto de os
nós de seus dedos ficarem brancos como papel. Os músculos de sua
mandíbula ficam tensos. Mas seus olhos estão cheios de tristeza, mesmo
enquanto ele fala da forma mais fria e amarga que já o ouvi.
— Eu sou o rei, e o que acontece no meu castelo é de minha exclusiva
decisão.
— “Seu castelo.” Você não é o meu Senhor. Eu sou sua mãe.
— Uma pena que você nunca tenha agido assim.
— Eldas. — Eu toco seu cotovelo levemente, tentando tirá-lo disso.
— Como você se atreve a falar comigo desse jeito.
— Como você se atreve a falar com minha esposa desse jeito! — As
palavras de Eldas reverberam em mim. Elas me protegem contra o frio
crescente e geram um calor que flui por meus braços e se instala em minhas
bochechas.
Ele não está te defendendo, Luella, não de verdade. Sou apenas uma
oportunidade fácil para ele atacar a mãe. Eu olho para longe, escondendo
meu rosto enquanto tento mentir para mim mesma.
— Harrow precisa descansar — eu digo baixinho.
— Sim, estamos saindo. — Eldas se vira e sua grande palma repousa na
parte inferior das minhas costas enquanto ele me conduz para fora do quarto.
Ele fica em silêncio enquanto me leva de volta aos meus aposentos.
O tempo todo, sua mão permanece em mim. Está quente, para um
homem tão frio. Não faço nenhum esforço para sair de seu alcance.
Hook já está de volta e solta um gemido baixo no momento em que nos
vê, levantando a cabeça das patas.
— Desculpe por mandá-lo embora — peço desculpas a Hook e
finalmente me afasto de Eldas para me agachar e coçar o lobo atrás das
orelhas. — Eu não queria correr o risco de Harrow acordar e ser mau com
você.
— Ninguém neste castelo fará mal a Hook. Se o fizessem, teriam que
enfrentar minha ira.
Eu olho para Eldas. Ele parece balançar ligeiramente. A exaustão está
rastejando em suas bordas e eu resisto à vontade de correr para o laboratório
e fazer algo para ajudá-lo a relaxar e dormir profundamente.
— Porque ele é parte de você?
— Não, isso não tem nada a ver comigo – mas sim porque você se
preocupa com ele. Você, e tudo o que é seu, é minha responsabilidade
proteger.
— Responsabilidade — eu sussurro, seguido por uma risada triste.
— É uma honra proteger — ele esclarece sem hesitação.
— Obrigada — é tudo o que digo. O que mais posso dizer sobre essa
firme declaração? Ela trouxe o calor de volta às minhas bochechas.
— Obrigado, Luella. — Seus olhos permanecem em mim, quase na
expectativa. — Por... — Ele balança a cabeça, como se não conseguisse
encontrar as palavras.
— Pela noite passada?
Pânico cintila nele. Eldas parece inclinar-se para frente, como se atraído
para mim pela memória do nosso beijo. Eu não me importaria se ele me
beijasse de novo, finalmente admito para mim mesma. O pensamento
desperta meu próprio pânico e eu engulo em seco. Vendo isso, ele
imediatamente se afasta.
— É melhor deixar a noite passada no fundo da garrafa de hidromel —
diz ele finalmente.
— É essa a sua maneira de dizer que estava bêbado? — Eu pergunto. A
decepção me inunda. Tento erguer barreiras antes que ela me tome por
completo.
— Nós dois bebemos demais.
E é assim que ele diz que está arrependido. Eldas me estuda com o
canto do olho, claramente esperando pela minha resposta.
— Certo, nós bebemos — eu me forço, embora dolorosamente, a
concordar. Se ele quer voltar atrás, eu vou deixar. Estou tentando ir embora,
de qualquer maneira.
Ele tem seus deveres. Eu tenho os meus. Ignorar a noite passada e
qualquer coisa que possa estar fervilhando entre nós é o melhor. Estamos
destinados apenas à dor de cabeça se continuarmos.
No entanto, Eldas parece murchar um pouco. Mas ele corrige
rapidamente a curvatura em seus ombros, sem dúvida chegando à mesma
conclusão que eu.
Sem outra palavra, ele vai embora. Eu o assisto ir, antes de levar Hook
para nossos aposentos.
Pela primeira vez desde que encontrei Hook, a vasta paisagem de meus
aposentos parece solitária. Pela primeira vez, e apesar de todo o bom senso
me dizer para não fazer isso, me pergunto como seria se Eldas ficasse.
CAPÍTULO 25
COMO O JANTAR NA MINHA MESA, MAIS DETERMINADA DO QUE NUNCA A VASCULHAR os diários das rainhas.
Especificamente, procuro informações sobre o Coração-Real. A recuperação
de Harrow, em ambos os casos, excedeu minhas expectativas. Já que estou
familiarizada com todas as outras ervas e já as usei muitas vezes antes, só
posso deduzir que a variável está no Coração-Real.
Para minha alegria, Willow se junta a mim para jantar e ficamos até
tarde da noite discutindo sobre o Coração-Real e suas propriedades mágicas.
Ele me ajuda a folhear os diários em busca de alguma informação sobre
alguma rainha trabalhando com a erva rara. A única coisa que encontramos é
uma única menção no diário da rainha que trouxe aquele Coração-Real do
laboratório dos pântanos do norte – a mesma rainha que falou sobre encerrar
o ciclo. Eu procuro para ver se os dois assuntos estão conectados de alguma
forma, mas quando a busca não dá em nada, eu sei que estou apenas
procurando aquilo que quero ver.
Willow se senta em uma cadeira na minha frente, ocupando metade da
minha mesa. Sento-me na outra ponta, a comida esquecida enquanto
vasculhamos. Hook está enrolado entre nossos pés, aceitando de bom grado
que o cocemos com eles.
O relógio que encomendei badala nove vezes, quebrando o transe em
que eu estava. Eu olho para cima pela primeira vez em horas e esfrego meus
olhos. Sombras turvas e pálidas dançam do lado de fora das janelas do meu
quarto.
— Ah…
Willow também olha para cima, virando-se de mim para as janelas atrás
dele. Ele faz uma pausa, os lábios franzidos, estudando a neve que cai com
tanta intensidade quanto fazia com o diário momentos atrás.
— Se na primavera nevar, ao Rei deve avisar. No verão nevou, a rainha
ainda não acordou.
— O quê?
Willow repete a frase em resposta à minha pergunta.
— Não, eu ouvi você... O que isso significa?
— Ah, é um verso antigo. — Ele se afasta da janela. — Se na
primavera nevar, ao Rei deve avisar – acho que isso implica que pode haver
algo errado com a rainha. Porque não devemos ter neve enquanto ainda for
primavera. No verão nevou–
— A rainha ainda não acordou — eu termino. — Quer dizer que ela
não voltou ainda. A última rainha está morta e é inverno quando deveria ser
verão. — Willow confirma com a cabeça. Eu fico olhando para a neve
caindo, a apreensão enchendo minhas entranhas. Todo esse gelo zombando
da primavera que fora horas atrás — Eu acho que você deveria ir.
— Tem certeza?
— Eu preciso ver Eldas. — Me machuca dizer essas palavras e a dor
delas será apenas o começo da agonia desta noite.
Willow suspira e fecha o diário que estava folheando. As anotações que
ele estava fazendo estão enfiadas dentro dele. Ele se levanta e Hook faz o
mesmo. Willow acaricia o lobo entre as orelhas.
— Vejo você amanhã, Hook. Você também, Luella.
Eu gostaria que ele não parecesse um pouco preocupado e duvidoso ao
dizer isso.
— Vejo você amanhã. — Eu espero que sim.
— Se você precisar de mim, me chame, não importa a hora. — Willow
sai e eu ando de um lado para o outro pelo meu quarto, várias vezes, em
frente às grandes janelas.
Não fico surpresa quando alguém bate na minha porta.
— Entre, Eldas.
A porta se abre e eu nem me preocupo em olhar. Mas, com certeza, sua
voz interrompe meus pensamentos inquietos.
— Como você sabia que era eu?
— Apenas um palpite. — Eu olho por cima dos ombros ao encolhê-los.
— Não tenho o hábito de vir ao seu quarto à noite.
— Bem, considerando que está nevando...
Seu olhar muda, como se ele tivesse visto somente eu desde o momento
em que abriu a porta. Uma carranca repuxa seus lábios. Seus olhos estão
duros e severos.
— Sim, está.
— Você não veio aqui por causa disso?
— Eu estava vindo por um novo diário. Mas você está certa, de fato
este é um assunto mais urgente.
— Eu terei que me sentar no trono novamente, não é? — Eu giro
nervosamente o anel de labradorita em minha mão direita.
— Sim, terá. — Ele parece se desculpar, as palavras cheias de
preocupação.
— Então vamos.
— Agora? — Ele parece surpreso com a ideia.
— Quando mais? Isso deve ser feito, e prefiro acabar logo com isso
quando tenho a noite toda para me recuperar. — Está mais para “enquanto eu
consigo reunir alguma coragem”. Antes que o medo realmente se instale.
— Luella, você vai ficar bem. — Nem ele parece convencido.
Eu encolho os ombros. Eu sei o que tenho lido. O trono não fica mais
fácil. As rainhas simplesmente se acostumam. Não tenho escolha a não ser
suportar o mundo tentando drenar cada gota de minha vida.
— Luella. — A nota suave na voz de Eldas guia meus olhos até ele. —
Você teve mais tempo para permitir que sua magia se acomodasse e se
adaptasse ao Entre Mundos. Você sabe o que está por vir.
— Eu só quero acabar logo com isso — eu digo fracamente. — Por
favor, me leve até lá.
— Muito bem. — Ele força.
Parece que, de repente, estamos na sala do trono. Está tão frio que
minha respiração se condensa e luto contra um calafrio. Estou com um
vestido simples – de mangas compridas, felizmente – mas o algodão não é
nem de longe grosso o suficiente para isso.
— Pelo menos quando eu me sentar no trono novamente, vai ficar mais
quente. — Eu tento sorrir, mas Eldas não espelha a emoção, então ela
rapidamente sai do meu rosto. Ele exala preocupação a cada passo.
— Estarei aqui o tempo todo — ele diz enquanto paramos diante do
trono. — Vou tirar você, como da última vez, se for necessário.
Última vez. O pensamento faz meu corpo doer. Eu me posiciono contra
o trono. Se eu pude sair de casa, ir para Lanton, me tornar um herbalista, me
tornar a Rainha Humana e manipular a terra, então eu posso fazer isso. Eu
me recuso a deixar um trono me controlar.
— Vamos acabar com isso — eu digo, parecendo mais estável do que
me sinto.
Me virando, eu me inclino para trás e me solto para cair no assento. Se
eu tentar me sentar com lentidão, posso me afastar no último segundo. O
medo pode me dominar e transformar o inevitável em algo mais insuportável
do que já é.
Logo antes de meu corpo atingir o trono, eu olho para cima e tudo que
vejo é Eldas.
Estou aqui, seus olhos parecem dizer. Eu estarei aqui.
Não tenho chance de agradecê-lo. O ar é sugado de meus pulmões e
estou mergulhada na escuridão. Mantenha seu juízo com você, Luella, eu me
ordeno. Eu sei o que está por vir e não vou deixar o choque roubar meus
sentidos.
Cada vez mais fundo, despenco no âmago da terra. A sensação fica em
algum lugar entre a primeira e a segunda vez que interagi com o trono. Estou
tão imersa quanto na primeira. Mas é menos violento, como na segunda.
Os dedos fantasmas de Eldas se espalham onde eu imagino que meu
estômago estaria, se eu tivesse um estômago nessa forma. Concentre-se,
posso ouvi-lo comandar. A magia responde a você. Você a controla. E não
ela a você.
Lentamente, minha consciência entra em foco. Não é como enxergar,
mas mais como se minha consciência estivesse se aguçando para o mundo ao
meu redor. Estou dentro de um casulo feito pelas raízes de sequoia do trono.
Estou no ponto escuro dentro do qual não consegui ver antes, presa em uma
gaiola de raízes retorcidas.
Tudo se estende a partir daqui. Tudo se origina deste ponto.
A semente, lembro-me de ter lido outra rainha a chamar assim em um
diário. A partir dessa semente, a vida do Entre Mundos é sustentada. Esta é a
semente da árvore que nutre o mundo da magia selvagem. A Bruma cria as
fronteiras, mas sem a semente elas seriam um recipiente vazio.
Os primeiros Rainha Humana e Rei Elfo trabalharam juntos para fazer
a Bruma. O pensamento intruso vagueia pela minha cabeça como se alguém
o sussurrasse para mim.
Olá? Eu tento chamar.
Silêncio.
Tento alcançar o mundo ao meu redor, mas não encontro nada. No
entanto, minhas mãos parecem tocar tudo. Neste lugar tenebroso, um lugar
de começos primordiais, vejo uma imagem nebulosa.
Uma mulher com uma coroa, avançando. Plantando...
Plantando? Plantando o quê? Eu já vi isso antes?
O Coração-Real lembra.
Lembra do quê?
Mas as imagens fugazes se foram, e com sua partida a exaustão segue o
rastro. Devo permanecer focada em minha tarefa. Os ecos de mil rainhas
existem neste vazio escuro e não posso me perder entre eles.
Magicamente, eu exploro as grandes raízes que sustentam o Entre
Mundos. Eu sinto os mesmos gritos vindos de toda a terra. Mas eles estão
menos famintos e exigentes desta vez.
Eles sabem que eu voltei, eu percebo. As plantas, os animais – a própria
vida no Entre Mundos sabe que a rainha voltou para cuidar deles. Eles não
estão gritando no vazio de um inverno aparentemente sem fim, mas
revelando suas necessidades para que o verão possa irromper em um mundo
que ainda está desperto.
Tudo bem, eu cedo. Peguem o que precisarem.
Assim que a permissão é dada, eu sinto os tentáculos como vermes sob
minha carne. Eles cavam em mim com uma violência inevitável. Eu cerro
meus dentes com a dor. Ela é entorpecida enquanto o mundo começa a
drenar a magia de dentro de mim.
Chega, tento dizer em uma ordem. É o suficiente.
Mas o Entre Mundos não escuta. Este mundo antinatural é carente e
faminto. Mais, mais, mais, ele parece dizer. Tudo está desequilibrado e ele
não sabe quando parar.
Chega!
As vinhas se apertam ao meu redor. Não consigo dizer uma palavra.
Elas se contorcem dentro de mim. Elas vão me rasgar neste lugar escuro e
solitário.
De repente, os tentáculos invisíveis se soltam. Meus pulmões são meus.
Minha mente está livre e existe apenas eu dentro da minha própria cabeça.
Estou pressionada contra algo sólido e quente. Duas raízes ainda se
agarram a mim, mas… Não, não são raízes. São braços. Abro os olhos para
a luz fraca da sala do trono.
Eldas é tudo o que vejo.
Ele embala minha forma trêmula contra ele; seu abraço é a única coisa
que evita que meus ossos se quebrem. Quero agradecê-lo, mas estou exausta.
Falar é difícil. Pensar é difícil.
— Você foi bem — ele murmura. Minha cabeça repousa entre seu
ombro, bem na curva de seu pescoço.
— Foi o suficiente? — Eu pergunto com rouquidão.
— Foi o suficiente. Você é mais do que suficiente.
Espero que sim. Meus olhos se fecham. Parece o suficiente. Este
mundo, antes frio, agora está quente. No fundo da minha mente, eu percebo
que conheço essa sensação. Já senti isso antes.
Ele me segurou assim quando mal me conhecia, depois da primeira vez
que sentei no trono. Os pensamentos vagos escorregam entre meus dedos,
tão vítimas da escuridão opressora quanto eu.
Acordo na minha cama várias horas depois.
O amanhecer apareceu, pintando o quarto com um pincel de aquarela
em tons de pervinca e madressilva. Sinto como se tivesse corrido uma
maratona. Não que eu já tenha feito uma coisa dessas na minha vida. Mas eu
vi meus colegas fazerem isso em Lanton e parecia exaustivo.
Quando começo a me erguer para fora da cama, um coro de estalos dos
meus ossos acorda Hook. Ele choraminga e pula ansiosamente na minha
cara. Nariz úmido, língua quente e hálito aquecido são minha festa de
saudação de volta à realidade.
— É bom ver você também — eu digo baixinho, correndo meus dedos
por seu pelo escuro. — Desculpe por preocupá-lo.
Depois que Hook se certifica de que não estou morta – apesar de como
meu corpo tenta afirmar o contrário – balanço minhas pernas para fora da
cama e tento ficar de pé. Eu sofro, e apenas a caminhada até o banheiro me
deixa sem fôlego. Não é tão ruim quanto da primeira vez, mas ainda não
consigo me imaginar fazendo isso regularmente. Já tenho que sofrer a cada
mês por causa do meu corpo com útero5. Não gostaria de sofrer a cada mês,
ou mais, por causa da minha magia.
Um suspiro suave interrompe o silêncio e faço uma pausa, olhando para
a porta do meu quarto. Algo se move na sala principal. As orelhas de Hook
se contraem, mas ele já está outra vez acomodado ao pé da cama, apenas
levantando a cabeça quando percebe que não vou voltar. Eu afasto a ideia de
algum ladrão ou assassino fada vasculhando minhas coisas. Se Hook não
considera o som uma ameaça, ou mesmo algo que valha a pena investigar,
não ficarei preocupada.
Silenciosamente, eu deslizo para a sala principal. Lá, em meu sofá
ricamente estofado, está um Eldas claramente desconfortável. Suas longas
pernas estão dobradas contra uma das extremidades, os joelhos pendurados
na beirada. Um cobertor fino, que encontrei no fundo do meu closet e usei
como acessório para o veludo exuberante da mobília, está estendido sobre
ele. É comicamente pequeno, quase como se ele estivesse usando um
guardanapo para se aquecer.
Com os pés leves, esgueiro-me de volta para o quarto.
— Saia, Hook — eu sussurro e puxo o edredom dobrado ao pé da cama.
Não precisei dele para me aquecer desde que Hook passou a morar comigo.
— Saia.
Ele lamenta e cede.
Arrasto o cobertor de volta para a sala principal. O tecido chia
levemente em contato com o tapete e Eldas se mexe, resmungando em seu
sono. A gravidade ameaça arrancar o edredom de meus dedos cansados, mas
eu seguro rápido, esperando que ele se acalme mais uma vez.
Cuidadosamente, coloco o cobertor sobre ele.
Eldas se mexe ligeiramente, mas não acorda. Seus olhos não se abrem
até, pelo menos, uma hora depois. Estou recostada na cadeira da minha
escrivaninha, com o diário no colo, os pés apoiados na mesa enquanto olho
fixamente para um ponto, imersa em pensamentos. Há algo nos limites da
minha mente. Algo que me lembro de ter lido que tem relação com...
Eu o ouço se mexer e olho por cima do meu ombro.
— Bom dia — eu digo.
— Bom... — Ele pisca os olhos sonolentos, esfregando-os.
— Bom? — Repito com um pequeno sorriso. Eldas cansado e
ligeiramente vulnerável não é uma visão terrível de se ter pela manhã. O
brilho laranja do fim da alvorada beija sua pele, fazendo-o parecer mais
homem do que criatura etérea de magia selvagem e morte.
— Meu Deus... Seu cabelo.
— O que há de errado com meu cabelo? — Eu levanto a mão para
minhas tranças ainda a serem penteadas, o sorriso se transformando em uma
carranca. A última vez em que pensei no meu cabelo foi quando Luke
comentou sobre como ele queria que ele ficasse comprido de novo.
— É como fogo nesta luz — ele murmura.
— Cabeça de fogo. Sim, já ouvi isso antes. — Fecho o diário e suspiro,
deixando-o cair sobre a mesa com mais força do que pretendia. — Durante
todo o tempo de escola. Não irrite a cabeça de fogo, pode sair fumaça de
seus ouvidos. A cabeça de fogo–
— Você parece uma Deusa — emenda Eldas. — Eu não mudaria uma
coisinha sequer em você, Luella. — Meu coração traidor salta com suas
palavras. Então, como se tivesse lembrado de si mesmo, ele pigarrea e se
senta ereto, o cobertor enrolando-se em sua cintura. — De onde isso...
— Minha cama. Você parecia com frio esta manhã — eu respondo a
pergunta inacabada. Parece que Eldas tem dificuldade em formar
pensamentos completos logo de manhã, e há algo surpreendentemente
cativante sobre o fato.
— Estou acostumado com o frio. — Ele ri sombriamente. — Rei de
Gelo, é do que eles me chamam.
— Que bom que você tem uma rainha de fogo, então. — As palavras
deixam minha boca antes que eu possa pensar sobre o que exatamente estou
dizendo. Um rubor sobe para minhas bochechas.
— Ah, e por que isso é bom? — Ele se levanta, lábios ligeiramente
curvados. Eu não respondo, minha língua está pesada e pegajosa na minha
boca enquanto Eldas se aproxima. — Você vai me manter aquecido?
Uma única sobrancelha se arqueia e, de alguma forma, isso é o que me
deixa em chamas. Eu franzo os lábios, tentando pensar em algo inteligente
para dizer. Tentando evitar que meus nervos me façam dizer algo estúpido.
Tentando não me lembrar da sensação daqueles lábios sorridentes nos meus.
Achei que tínhamos concordado, mais ou menos, em não seguir por
esse caminho depois de alguns erros cometidos enquanto estávamos
bêbados?
— Eu acho que já mantive. — Aponto para o cobertor que agora está
no chão.
— Ah, sim. — Ele ri. — Claro. — Eu ouço uma nota de decepção em
sua voz? Certamente estou imaginando. Eldas estuda meu rosto enquanto
faço o calor nele esfriar. — Você está corada; você está com febre de novo?
— Não, eu estou bem. — Eu me levanto rapidamente, um pouco rápido
demais enquanto o mundo balança. Eldas me pega com uma mão firme.
— Você não está.
— Eu estou. — Eu toco as costas de sua mão levemente. Quero dizer a
mim mesma que é apenas para tranquilizá-lo. Mas, na verdade, quero o
choque que dispara dos meus dedos direto para meu peito sempre que o toco.
Eu quero a sensação dele comigo, em mim. Em mim? Minha mente estala.
— Deixe-me levá-la de volta para a cama.
Você não está ajudando, Eldas! Eu quero gritar.
— Obrigada, mas eu vou ficar bem. Eu não preciso de ajuda. — Me
atrapalho com minhas palavras, tentando não pensar em todas as implicações
na expressão que eu certamente não quis dizer.
O transe foi quebrado. Como se percebendo que sua mão ainda estava
em mim, ele rapidamente se afasta. Eldas fala enquanto dobra
apressadamente o edredom. Um rei dobrando um edredom é algo para o qual
vale a pena me encostar na minha mesa e observar. Especialmente quando os
músculos largos de suas costas se tensionam contra a túnica fina que ele está
vestindo.
— Bem, você deveria continuar dormindo o máximo que puder para
recuperar suas forças. Amanhã você vai se encontrar com a melhor
costureira da cidade.
— Eu tenho muitas roupas.
Ele faz uma pausa e gentilmente coloca o edredom no sofá. Quando ele
fala novamente, ele não olha para mim.
— Ela vai tirar suas medidas para fazer o seu vestido do dia da
coroação. É uma honra para a costureira vestir a rainha para o evento.
— Entendo... — Murmuro.
— E claro, ela não sabe que você pretende ir embora antes disso. —
Eldas se vira e as costas largas que eu estava admirando se tornam uma
parede de gelo que nunca poderei escalar.
— Eldas, eu–
Eu não consigo terminar antes que ele feche a porta atrás de si. O som
soa em meus ouvidos mais alto do que o silêncio que se abate sobre mim em
seu rastro.
CAPÍTULO 27
A COSTUREIRA MONTA UM ATELIÊ IMPROVISADO NO CASTELO. ELA É UMA DENTRE UMA “elite de poucos” que tem
permissão para me ver e, pelo que sei, foi intensamente analisada por Eldas.
É difícil acreditar que já se passou mais de uma semana desde o ataque. De
certa forma, ainda parece que foi ontem. Ainda estou pulando com cada som
e cada movimento em minha visão periférica quando viro uma esquina. Em
outros aspectos, é como uma eternidade.
Rinni me acompanha até uma sala com grandes janelas com vista para
Quinnar em três lados – quase como uma varanda fechada. Aqui, a
costureira montou três mesas sob cada janela, metros de tecido, rendas e
jóias brilhando à luz do sol. Sou orientada a ficar em um pedestal no centro
da sala, enquanto Rinni e Hook montam guarda do lado de fora da porta.
A costureira passa por mim. Ela estala os dedos e gelo invisível é
arrastado sobre minha pele enquanto fitas de medição se desenrolam por
meus braços e pernas. Eu faço o que ela instrui, estendendo um braço e
depois o outro. As medições são infinitas e dá tempo à minha mente para
vagar além das vidraças.
Quinnar parece uma donzela na primavera. Pesadas guirlandas de flores
silvestres, colhidas dos campos para os quais meu quarto tem vista, foram
magicamente tecidas em toldos, sacadas e varandas. Os menestréis
começaram a caminhar pelas ruas, nos bancos ao redor do lago central e
cantando suas canções.
É uma fachada alegre em um mundo moribundo. O trono estava menos
agressivo, mas de alguma forma mais exaustivo do que da última vez. Seu
preço é menos físico e é mais sentido nos recessos da minha magia – um
esvaziamento dos poderes que tenho.
Meu poder – o poder de uma longa linha de Rainhas Humanas – está
diminuindo, e temo por este mundo se Eldas e eu não encerrarmos o ciclo.
Eu franzo a testa com o pensamento.
— Desculpe-me, Majestade, eu te piquei? — A costureira pergunta,
levantando os olhos da musselina que está cobrindo meu corpo.
— Ah, não, estou bem. — Eu forço um sorriso. Eu estava carrancuda
por perceber que comecei a me importar com este mundo – não apenas da
maneira que me importo com qualquer coisa viva. Não... Minha preocupação
é mais profunda do que isso. Talvez seja o trono, ou talvez seja Eldas, mas
estou começando a me importar com o Entre Mundos como se ele pudesse
ser um lar para mim.
Eu fico olhando para a estátua da primeira Rainha Humana, ajoelhada
diante do primeiro Rei Elfo, e não posso deixar de me perguntar se algum
dia eles farão uma estátua de mim – a última rainha. Não há como ter certeza
de que sou a última... mas um pressentimento incômodo sussurra com
certeza de que sou. De uma forma ou de outra, as Rainhas Humanas terão
seu fim comigo.
O que você faria? Eu pergunto com o coração dolorido, desejando que
a primeira rainha pudesse me ouvir. Se pelo menos você pudesse me guiar...
— Vossa Majestade! — A costureira guincha quando eu desço do
pedestal, interrompendo seu trabalho. A musselina cai de meus quadris.
— Desculpe, só um momento, preciso dar uma olhada em algo. — Eu
rapidamente atravesso para as janelas, olhando para a estátua.
Desta posição, posso ver detalhes que são escondidos pelas mãos da
rainha quando estamos no nível do solo. Aninhado em suas mãos, em
concha, está um broto. Eu estava certa – ela não está ajoelhada diante dele,
ela está enterrando algo. E esse algo é uma planta.
— Quando aquela estátua foi construída? — Eu pergunto.
— Desculpe?
— Aquela no centro do lago, quando foi criada?
A costureira murmura pensativa.
— Eu não tenho certeza. Sempre esteve em Quinnar. Talvez no tempo
da segunda ou terceira Rainha Humana.
Uma das cinco primeiras rainhas – alguém cujo diário não chequei.
— Se é tão antiga, como os detalhes ainda estão preservados?
— Eu acredito que o Rei Elfo cuida disso. — Ela aponta de volta para o
centro da sala. — Podemos retomar, Vossa Majestade?
Eu volto para o pedestal, a mente zumbindo. A escultura foi uma
criação antiga, quando o trono era jovem e a memória da primeira rainha era
recente. Existe um significado oculto nisso? Ou é realmente apenas para
homenagear aquela primeira rainha? Essas perguntas me levam a imaginar o
que a estátua pode estar realmente retratando... É a criação da Bruma? Ou
talvez do trono?
Meus pensamentos continuam girando em torno do que li nos diários,
em busca de uma conexão com a revelação da verdadeira natureza da
estátua. Posso estar lendo muito sobre isso. Mas tenho que encontrar uma
maneira de quebrar o ciclo. Essa é a única solução. Se eu não fizer isso, o
Entre Mundos estará em perigo.
Então, eu volto para Capton e para tudo o que sempre quis.
Mas o que eu quero?
— O que você quer? — A alegre costureira ecoa meus pensamentos.
— Desculpa, o quê? — Eu pisco de volta à realidade. Ela aponta para a
mesa de tecidos.
— Para o seu vestido, Vossa Majestade. O que você quer? Seda ou
veludo? Ou talvez chiffon? Consigo pensar em alguns tons de joias para a
sua pele, mas quero ter certeza de incorporar a sua opinião. Afinal, a beleza
natural de uma mulher é melhorada por sua própria confiança.
Ela colocaria um ovo se soubesse que o que melhoraria minha
confiança seria um par de calças de lona resistentes e algum tipo de camisa
ou túnica respirável que eu não me importaria em sujar totalmente.
— Eu confio no seu julgamento — eu digo, finalmente.
Seu rosto ligeiramente se enrijece.
— Você tem... tem certeza? Nada do que eu trouxe é do seu agrado?
Porque se não for eu posso–
— Não, eles são maravilhosos — eu interrompo. Eu não tive a intenção
de ofendê-la. — Vamos ver... — Eu desço para correr minhas mãos sobre os
tecidos, parando em um tão leve quanto o ar. — Esse aqui, qualquer cor que
você achar melhor, mas esse aqui.
— Oh, seda fiada pelas fadas. — Ela praticamente ronrona enquanto
passa os dedos sobre ela. — Você tem bom gosto, Vossa Majestade.
— Fico feliz em ouvir isso. — Eu dou uma risadinha. Mas um
pensamento cruza minha mente com a menção de algo ser feito por fadas. —
Ouvi dizer que as fadas são boas artesãs.
— Elas são habilidosas em seus teares, sim. Mas os elfos são os
melhores artesãos da terra. — Ela diz.
— Ah, é claro! Do meu lado da Bruma, não há nada mais valioso do
que produtos feitos por elfos. — Eu sorrio e ela continua a saborear meus
elogios. Espero tê-la suficientemente desprevenida para aproveitar outra
oportunidade. — Eu ouvi muito sobre as coisas que as fadas podem fazer...
especialmente coisas para celebrações.
— Como hidromel?
— Sim, mas outras coisas também. — Não tenho certeza de como
abordar isso casualmente e já posso dizer que estou exagerando.
Uma sombra cruza seu rosto, mas ela o ilumina com um sorriso forçado
quase imediatamente.
— Você honra a todos nós por ter um interesse ativo em todos os
habitantes de Entre Mundos.
— É meu papel como Rainha Humana. — Bem, quando estou prestes a
desistir de aprender mais alguma coisa sobre o glimmer, ela me surpreende.
— Não tenho certeza do que você ouviu, Vossa Majestade... — A
costureira mantém a cabeça baixa, escrevendo notas em um livro de registros
que trouxe. — Mas eu…
— Você?
— Eu não deveria. — Sua caneta faz uma pausa.
— Por favor, me diga — eu encorajo. — Esta ainda é uma terra nova
para mim. Eu tenho muito a aprender. — Não é uma mentira.
— Eu suspeito que você pode ter ouvido algo semelhante do jovem
príncipe Harrow. — Não preciso confirmar o fato; meu silêncio é o
suficiente para levá-la a continuar. — Por favor, tenha cuidado, Vossa
Majestade. Nós, nas cidades, temos visto os recentes... interesses amorosos
do príncipe. Especialmente desde a chegada da delegação das fadas.
— Tais como?
Ela balança a cabeça.
— Eu não deveria ter dito nada. Perdoe-me, Majestade. Por favor, se
você puder... se em sua imensa bondade você puder deixar de mencionar que
eu disse alguma coisa ao rei?
— Eu te asseguro que não vou — eu digo apressadamente, tentando
deixá-la à vontade. — Mas eu preciso saber, porque estou morando no
mesmo castelo que Harrow. Por favor, diga-me se há algo que eu deva estar
ciente?
— Não sei de mais nada. — Ela balança a cabeça e eu deixo o assunto
de lado. Se ela sabe de algo, está nervosa demais para dizer.
Terminamos logo depois e eu peço licença de seu ateliê. No momento
em que saio, fico cara a cara com Harrow, Jalic, Sirro e Aria.
— Vossa Majestade. — Jalic é o primeiro a me notar e inclina a cabeça.
Os outros seguem o exemplo. Até mesmo a etiqueta relutante é uma
melhoria significativa em relação à primeira vez, e me pergunto se minhas
interações com Harrow tiveram algo a ver com a mudança de tom deles.
Hook passa por mim saltitante. Ele circula Aria duas vezes, rosnando
baixo. Aria se aproxima de Harrow, agarrando seus braços.
— Esta besta está sujando minhas saias. — Aria dá um tapa de leve no
nariz de Hook enquanto ele o enterra nas camadas de tecido. — Xô, xô!
— Hook, venha — eu ordeno. Hook olha entre mim e Aria e solta um
bufo frustrado, mas obedece. No entanto, seu foco permanece intensamente
na mulher. É divertido assistir Aria lutar contra uma carranca aberta. — Boa
tarde, vocês quatro. Onde estão indo? — Eu pergunto.
— Por quê? Você gostaria de vir? Divertir-se um pouco mais com a
gente? — Jalic enfia as mãos nos bolsos e me dá um sorriso casual.
— Não exatamente.
— Isso é jeito de falar com uma rainha? — Rinni pergunta e Jalic olha
de soslaio.
— Vou ver a costureira — anuncia Aria, estufando o peito levemente.
— É uma tremenda honra ser vestida pela mesma mulher que veste a rainha.
— Ela acaricia levemente o braço de Harrow. Não há dúvida de quem fez
essa “honra” acontecer.
— Bom, a costureira parece muito talentosa — digo suavemente, e
encontro um pequeno deleite em ver a expressão de Aria inclinar-se para a
decepção com minha falta de raiva por ela ser vestida pela mesma pessoa
que eu. — Na verdade, acho que todos vocês deveriam ter suas roupas para a
coroação feitas por ela.
— Não vou encomendar nada para a coroação. — A maneira como
Aria estica o pescoço, como se estivesse tentando competir contra a minha
altura, evoca a forma como imagino a aparência de um cisne territorial. —
Vou mandar fazer algo para a Trupe de Máscaras.
— Ah, sim, você mencionou que Aria estaria se apresentando em
algum lugar. Carron, não é? — Eu olho para Harrow.
— Você contou para ela? Essa era minha surpresa. — Aria sibila.
Então, rapidamente se recompõe. — É uma grande honra.
— Parabéns.
— Obrigada, Sua Majestade. — Ela age como se eu tivesse acabado de
lhe dar uma medalha, curvando-se com um floreio dramático de suas mãos.
— Em breve estarei em turnê com eles. Mas não se preocupe, estaremos de
volta para a noite da coroação. Tenho certeza que será uma performance que
vale a pena lembrar.
— Mal posso esperar para ver — minto. Mesmo que eu não estivesse
tentando ir embora antes da coroação, não tenho interesse em nada que tenha
a ver com Aria.
— Bom. — Ela sorri levemente. — Vamos embora; não queremos
atrapalhar a rainha de... seja lá o que ela faça.
Rinni dá um passo à frente, mas eu não me movo, ainda bloqueando a
entrada do salão.
— Eu leio muito, na verdade. — Eu encontro os olhos de Aria.
— Bom para você. — Seu sorriso está rapidamente se tornando de
escárnio.
— Carron não fica longe de Westwatch, não é? Bem ao longo da
muralha que faz fronteira com a selva das fadas?
— Seu conhecimento da geografia do Entre Mundos é impressionante
— diz Aria de forma arrastada.
— Você se encontrará com alguém de sua família lá?
Aria estreita os olhos enquanto todo o seu corpo fica tenso. É uma
mudança sutil que ela corrige rapidamente com a pose de uma atriz. Mas foi
um vislumbre de algo real.
Eu fiquei muito boa em perceber quando as pessoas baixam suas
guardas, em grande parte graças a Eldas.
— Toda a família com a qual me associo regularmente está aqui em
Quinnar, Vossa Majestade. Se me der licença, gostaria de respeitar o tempo
da costureira. — Ela parece ansiosa demais para descartar todo o tópico da
conversa. — Já é tarde e temos uma festinha hoje à noite.
— Uma festinha? — Eu olho para Harrow.
— Aqui, no castelo — ele diz, dando-me um aceno. Então, sua voz
reverte para o tom mais descuidado e um tanto cruel que ouvi dele na
primeira vez. — Duvido que você esteja interessada.
— Sim, nada com que você tenha que se preocupar. Já sabemos que
vocês, humanos, não acham divertidas o mesmo tipo de coisas que nós, elfos
— diz Aria um tanto maliciosamente. Eu não consigo evitar me perguntar se
ela se refere ao glimmer.
— Eu tenho outros assuntos mais importantes para tratar, de toda
forma. — Eu esboço um sorriso e me afasto. — Divirtam-se.
Os quatro entram no salão, fechando a porta atrás deles. Eu
prontamente estendo a mão e Hook está ao meu lado. Eu coço atrás de suas
orelhas, olhando para a porta.
— Rinni, me leve até Eldas.
— Mas ele–
— Agora — eu digo com firmeza. Em seguida, adiciono, mais
suavemente — por favor. Há algo que preciso discutir urgentemente com
ele.
— Muito bem. — Rinni acena com a cabeça e começa a descer o
corredor. Ela não parece zangada comigo, mas uma breve sensação de
desconforto passa por mim.
Pela primeira vez, dei uma ordem a alguém no Entre Mundos, como
uma rainha faria.
E eu fui ouvida.
CAPÍTULO 28
RINNI ME LEVA PARA A PASSAGEM SECRETA COM VISTA PARA A SALA DO TRONO. EU finjo surpresa para benefício
dela. Ela coloca um dedo sobre os lábios e nos movemos em silêncio,
olhando para baixo.
Uma tela de ferro foi erguida no centro da sala, dividindo o espaço ao
meio. Eldas está de lado, sentado em seu trono de ferro. Do outro, está um
homem vestido de veludo exuberante e madrepérola. A tela é
intrincadamente tecida, obscurecendo principalmente a aparência de Eldas.
Ele continua a se isolar, tanto quanto possível, mesmo sendo forçado a
governar devido ao atraso na coroação.
— É assim que ele tem governado no último ano — sussurra Rinni em
meu ouvido. — Enquanto ele esperava por você.
Tudo o que vejo é uma gaiola. Uma barreira física separando Eldas de
qualquer tipo de conexão real com qualquer pessoa além de Rinni, Harrow,
Sevenna, Poppy ou Willow. Eu me pergunto como deve ter sido finalmente
escapar do castelo quando ele marchou para Capton. Foi naquele dia em que
ele se partiu? O dia em que ele não aguentou mais a solidão consumidora
dessa sala?
Ele está acorrentado pelas tradições de seu posto e, de repente, quero
libertá-lo do ciclo tanto quanto a mim e a todo o Entre Mundos. Como ele
seria sem as algemas do dever? Ele disse que nunca se permitiu sonhar...
Qual desejo ele iria descobrir, se ele se permitisse? Ele iria me querer? Uma
voz traiçoeira sussurra.
Os dois homens discutem assuntos dos campos ao redor de Quinnar.
— As plantas não crescem. O solo é como cinzas — diz o senhor.
— A rainha acabou de recarregar o trono. — Eldas responde
calmamente. — Dê tempo às coisas.
— Rainha Alice não precisava de tempo.
— A Rainha Alice teve cem anos para aperfeiçoar suas habilidades.
— Podemos não ter cem anos antes que Quinnar morra de fome se os
campos não se tornarem férteis.
— Eu sei que estes são tempos difíceis. Mas você deve ser paciente. —
A voz de Eldas permanece calma, mas ouço um tom predador.
— Diga isso para as pessoas que têm fome roendo seus estômagos. Que
tem estado em busca de nozes e raízes comestíveis na paisagem morta por
meses! — O homem estende as mãos. Então ele faz uma pausa e se curva.
— Perdoe-me, Sua Majestade, por falar fora de hora.
— Não deixe isso acontecer de novo. — Eldas diz com uma suavidade
perigosa. Eu me inclino em direção à parede quando tenho um vislumbre do
tipo de governante que ele é – do homem severo que conheci. — Vou abrir
os celeiros do castelo. Você terá uma cota de três vagões. Divida como achar
melhor.
O homem dá um passo para trás, curvando-se e murmurando
agradecimentos durante todo o caminho até a saída dos fundos. Rinni aperta
minha mão e saímos para descer as escadas. Ela não hesita antes de abrir a
porta lateral da sala do trono.
— Vossa Majestade? — Ela diz.
— Rinni? Você sabe que eu... — Os olhos de Eldas mudam e a carranca
inicial que ele usava desaparece no momento em que ele me vê. Hook passa
por nós, correndo até o trono. Eldas franze a testa ligeiramente, mas suas
mãos se enterram nos pelos de ambos os lados do rosto de Hook. — O que
está acontecendo? O que há de errado?
— Eu preciso falar com você sobre uma coisa. — Eu me aproximo
dele. Os olhos de Eldas se voltam para as portas traseiras que estão
obscurecidas pela parede de ferro. — Eu sei que você encontrar outras
pessoas, mas–
— Você é minha prioridade — diz ele, quase como se fosse um decreto.
Eu luto contra o rubor. — O que foi?
— Duas coisas. Acima de tudo, Aria.
— O que ela fez agora?
— Nada, explicitamente... Mas eu não confio nela — eu começo.
— Eu investiguei Aria pessoalmente após o incidente na cidade. —
Rinni diz.
— Eu sei. Mas é algo além disso. Eu acho que ela está... — Eu me
interrompo abruptamente. Prometi a Harrow que não trairia sua confiança.
Eldas arqueia as sobrancelhas. — Acho que ela talvez esteja envolvida em
alguma coisa.
— Não acho que ela seja capaz de atacar a coroa. — Rinni franze a
testa.
— Talvez nada tão sério, mas sério ainda assim? — Eu danço em torno
do tópico. — Eu não sei o quê. Mas ela parece suspeita.
— Luella. — Eldas diz pensativamente, descendo do trono. Suas mãos
estão cruzadas atrás das costas. Ele é o modelo de um rei, mas sua voz é de
um amigo – de um... não ouso pensar em de que outra forma meu nome soa
em sua língua. — Você ainda está cansada do trono. Eu sei que há um custo.
— Essa é a segunda coisa... Mas vou terminar a primeira dizendo,
observe Aria, por favor. Ela está indo para Carron. Ela tem conexões com as
fadas. E desde que a delegação fada esteve aqui, coisas ruins aconteceram à
família real – a suspeita doença de Harrow, meu sequestro.
— Seu sequestro foi realizado por um grupo rebelde de fadas – Acólitos
da Floresta Selvagem – que está tentando reivindicar o trono das fadas. Eles
farão qualquer coisa para mostrar seu poder... exceto expor onde seus líderes
se escondem — diz Rinni.
— E Harrow sempre foi um problema. Sua doença é pouco mais do que
uma noite de muitas indulgências. — Eldas suspira com uma nota de que o
assunto foi encerrado. Eu quero gritar. Não sei de que outra forma posso
explicar isso a eles.
— Eu não acho que Harrow está... — Eu não consigo terminar antes
que Eldas continue falando.
— Agora, qual é a segunda coisa relacionada ao trono?
Eu não vim aqui para isso. Mas depois do que ouvi, não posso ignorar.
— Eu preciso sentar nele novamente.
— Luella–
— Agora. — Eu travo os olhos com Eldas e vejo apreensão misturada
com o que eu ousaria dizer que é admiração. — Eu ouvi a discussão. Seu
povo precisa de campos férteis e florestas cheias de caça.
— Você ainda está muito fraca.
— Estou forte o suficiente.
Ele dá um passo à frente e solta as mãos de suas costas para pegar as
minhas. Estou chocada por ele estar me tocando na frente de Rinni. A
expressão terna em seu rosto é uma que eu nunca pensei que veria à luz do
dia, e certamente não perto de outras pessoas.
— Não posso arriscar que algo aconteça com você.
— Pelo bem do Entre Mundos? — Eu sorrio fracamente.
— Pelo... — Ele hesita. Eu espero com expectativa, mas seja o que for
que ele pretendia dizer, ele não vai ser franco sobre isso. Então, eu me volto
para onde os tópicos são seguros – nossas responsabilidades.
— Este é o meu dever — eu digo suavemente. Seus olhos se arregalam
ligeiramente. — Tanto quanto cuidar de Capton, é meu dever cuidar do Entre
Mundos.
— Muito bem, mas sente-se por pouco tempo — ele cede.
Eu dou um aceno de cabeça e ele solta minhas mãos. Eu passo por ele e
acho que o vejo se contorcer, como se ele estivesse resistindo à vontade de
me alcançar. Algo em mim sofre por ele, para permitir que Eldas me envolva
em seus braços e eu poder sugar qualquer força que puder.
Mas eu não paro.
Eu vou direto para o trono e me preparo para a dor que está por vir.
UMA CARRUAGEM DOURADA NOS ESPERA NO LONGO TÚNEL QUE SE ESTENDE POR baixo do castelo e pela
cordilheira ao redor de Quinnar. Eldas me informou, quando veio me buscar,
que viajaríamos com ela. “Eu quero que você saiba como chegar lá sem
mim” ele explicou quando eu questionei por que nós não poderíamos
simplesmente usar a Passagem da Bruma.
Isso só me deixou mais curiosa para saber onde “lá” fica.
Eu trouxe apenas uma bolsa comigo – uma que encontrei no meu
closet. Minha única bolsa é colocada pelos serventes na parte de trás da
carruagem, em cima de várias outras.
Lanço um olhar na direção de Eldas, mas guardo o comentário até
entrarmos na carruagem.
— Você acha que estou levando bagagem o suficiente?
— Eu suspeitei que você levaria muito pouco. Por isso, eu me
certifiquei de que os servos empacotassem algumas coisinhas extras para
você, só para garantir. Você pode me agradecer quando estiver
apropriadamente vestida em Westwatch. — Eldas se acomoda em seu
assento e eu sufoco uma risada por sua presunção brincalhona. A carruagem
parecia grande o suficiente por fora. Mas, de alguma forma, nossas coxas
ainda estão se tocando no banco do lado de dentro. Há outro assento em
frente, mas ele escolheu se sentar ao meu lado.
Tento ignorar a presença sólida dele. O esforço torna-se mais fácil à
medida que a carruagem avança, arrastando-se pelo longo túnel e emergindo
à luz do sol na extremidade oposta. Afasto as pesadas cortinas de veludo,
pressionando meu nariz contra o vidro enquanto passamos ao longo da
estrada sinuosa que atravessa os campos e que vejo há semanas pelas janelas
do meu quarto.
— Aqui — diz Eldas. Ele se inclina sobre mim e o que antes era o
toque de sua coxa agora é metade de seu corpo. Eu me pressiono contra a
parede oposta e as janelas, fingindo me concentrar no cenário mais do que
em suas mãos hábeis amarrando as cortinas. Eldas se acomoda de volta em
seu assento e recupera um diário gasto da pequena bolsa que ele trouxe para
a carruagem.
— O que é isso? — Eu pergunto.
Ele ri.
— Pensei que você estivesse mais interessada na paisagem?
— Estou mais interessada em você. — Assim que eu digo essas
palavras, eu as contraponho com um movimento brusco de minha cabeça de
volta para a janela, tentando esconder o profundo rubor escarlate subindo
pelo meu pescoço, ao redor das minhas orelhas e pintando minhas
bochechas. Espero que ele faça um comentário espertinho de volta. Mas ele
me poupa. Embora eu ouça o bufo suave de uma risada que transforma
minha barriga em gelatina.
— Você acreditaria em mim se eu dissesse que as rainhas não são as
únicas a manter diários?
— Eu acreditaria. — Meu rosto está começando a esfriar enquanto sou
distraída pela paisagem sinuosa. Campos se alinham contra pastagens, e
casas de fazenda ocupam boa parte da área. À distância, posso ver a terra se
elevando em colinas. Há a silhueta tênue de uma fortaleza na crista de uma
delas à distância.
— Meu pai me impressionou com a importância de catalogar meus
pensamentos e manter diários — continua Eldas. — Na verdade, estive
comparando os diários dos reis com os das rainhas para ver se consigo captar
algo importante para a nossa busca.
Nossa busca. Não só minha. Não mais. Ele realmente se comprometeu
com esta missão. Eu mordo o interior de minhas bochechas e espero antes de
falar para meu estômago se normalizar.
— Então, o que ouvi é que você está me deixando de fora?
Ele ri novamente. Nunca tinha ouvido Eldas rir tão alto antes.
Conforme o castelo cinza e oco se encolhe atrás de nós, parece que o vazio
em seu peito – o buraco frio e amargo que eu não pude atravessar quando
nos conhecemos – está desaparecendo.
— Sim, Luella. Eu estive deixando você de fora. Depois de tudo que
concedi a você, pensei que seria uma boa jogada negar algo a você agora.
— Eu sabia. — Eu me mexo no assento, tentando encontrar uma
posição confortável depois que solavancos na estrada sacodem a carruagem
e quase me colocam no colo de Eldas. — Por que você me concedeu tanto?
— Eu pergunto suavemente.
— Hmm? — A caneta de Eldas para. Estou surpresa que ele possa
escrever qualquer coisa com todo o balanço.
— Eu nunca esperei que você fosse um marido amoroso.
— E isso é um verdadeiro crime levando a situação atual em
consideração, não é?
Eu pretendia fazê-lo se sentir melhor com o comentário. Mas sua
resposta amarga e cansada me fez procurar seus olhos, seu rosto. Que
expressão estava em seu rosto quando disse isso? Qualquer que fosse, eu
perdi. Eu estava muito focada em minhas saias e agora Eldas está olhando
pela janela.
— Bem, esta não é exatamente uma situação normal.
— Não para você — ele admite. Ele tem sido treinado para isso a vida
toda. No entanto, não parece ter sido preparado muito bem para lidar com
uma Rainha Humana.
— Não, não para mim... — Eu prendo um suspiro e olho pela minha
própria janela. Se ao menos o trono não estivesse tentando me matar. Se ao
menos eu não estivesse no final de uma linhagem de três mil anos de
rainhas. Se ao menos eu tivesse sido mais forte, ou mais preparada, ou ainda
pudesse desejar ser rainha como alguém que é treinada para isso desde muito
jovem deseja. — Eu queria que tudo fosse diferente — eu sussurro em voz
alta.
Eu não queria que ele ouvisse. Mas, com aquelas orelhas compridas,
com certeza ouviu.
— Eu não. — Eldas diz, tão suave quanto. Tenho que me esforçar para
ouvi-lo por cima dos rangidos da carruagem.
— Você não queria? — Eu olho para ele, mas ele ainda está voltado
para a janela.
— Se as coisas fossem diferentes, você não seria você. — Ele
finalmente olha para mim. Seus olhos, antes gelados, agora são piscinas
mornas tão convidativas e quentes quanto os riachos nos quais eu me
desnudaria e nadaria sob as sequoias nas profundezas das florestas ao redor
do templo. — E descobri que gosto muito da exata mulher que você é. Eu
não mudaria uma única coisa.
Não sei como responder a isso, então não respondo. Eu tiro meus olhos
dos dele e olho pela janela. Eldas retorna ao seu diário. E silenciosamente
agradeço à carruagem por ser barulhenta o suficiente para que eu pense que
vai esconder meu coração retumbante.
O AMANHECER SURGE CLARO E NÍTIDO. ELE PISCA PARA MIM ATRAVÉS DA PEQUENA janela do segundo andar em
frente ao pé da cama. Eu rolo, puxando as cobertas ao meu redor.
Minha cabeça lateja um pouco. Provavelmente pode eu ter bebido um
pouco de vinho a mais na noite passada. Achei que estava embriagada pela
conversa. Mas agora sei que estava um pouco bêbada. Infelizmente, ao
contrário da última vez, não houveram beijos.
Abro os olhos, lembrando-me de onde estou. Este quarto evoca
memórias do meu sótão em casa. Desde a madeira exposta dos pisos e
paredes, até a poeira que paira no ar como quando uma vez imaginei que
fosse a aparência das fadas.
Mais cinco minutos, eu teria implorado naquela época. Dormir por
cinco minutos era um prazer. Eu tinha trabalho a fazer naquela época. Havia
pescadores que viriam e pegariam coisas para eles ou para suas famílias
antes de saírem para o mar pela manhã. Eu sabia quando cada cliente iria
aparecer e sempre tinha que me preparar para as visitas surpresa ao longo do
dia.
Agora... não tenho certeza de onde eu devo estar.
É no trono? É em Capton? É com Eldas? A incerteza me enche de
vergonha. Eu deveria saber perfeitamente a que lugar pertenço; eu sempre
soube. O dever no qual sempre confiei me guiava. Tantos se sacrificaram por
mim – meus amigos, meus pais, todos de Capton. Qualquer hesitação parece
uma traição.
— Não faça isso — imploro baixinho ao meu coração. Eu pressiono as
palmas das mãos nos meus olhos até ver estrelas. Eu não pedi por isso, por
nada disso. E agora... agora há uma parte de mim que não quer desistir
totalmente de tudo. Metade do meu coração está criando raízes aqui, tão
profundas quanto as do trono. Há tanto deste mundo que ainda tenho que ver
e explorar. Tanta magia com a qual eu poderia me deliciar se ousasse.
Eu ouço o chiado de algo fritando em uma panela e deixo cair minhas
mãos. No segundo que o cheiro de bacon atinge meu nariz, meu estômago
ronca alto e imediatamente pulo da cama. Se preciso repreender a mim
mesma, posso fazer isso de barriga cheia.
Envolvendo um robe de seda sobre minha camisola, desço as escadas
na ponta dos pés. Eu sabia que a casa era pequena demais para qualquer tipo
de criado. Eu também sabia que Eldas disse que gostava de cozinhar. Mas há
algo fascinante em realmente ver o homem trabalhando na cozinha.
Ele está com uma túnica de algodão simples, fina e humildemente feita.
Tem uma abertura larga e expõe suas fortes clavículas. Claro, é de mangas
compridas, mas ele as arregaçou mais uma vez. Um avental de lona foi
amarrado em volta de sua cintura estreita, tingido por manchas antigas e
novas. Ele esconde a calça preta justa por baixo. Escuros fios se soltam do
nó em que ele prendeu metade de seu cabelo, emoldurando sua mandíbula e
seu pescoço. A outra metade de seu cabelo se move em camadas de preto-
meia-noite.
Eu descanso meu queixo na palma da minha mão e assisto ele se mover.
É gracioso, não hesita e se move com facilidade. Confortável, eu percebo
imediatamente. Esta é a aparência de um homem em sua própria paz. Sua
testa não está sobrecarregada pela coroa de ferro, mas sim ligeiramente
franzida com o foco. Os olhos de Eldas são atentos e intensos. Mas ele tem
um pequeno sorriso nos lábios, como se cada volta da colher e cada
movimento da espátula o deliciasse.
É quase impossível imaginar que este seja o mesmo homem severo que
conheci no templo semanas atrás. E ele é seu marido, eu lembro a mim
mesma. Isso me leva a olhar mais uma vez para ele, de outra maneira.
Ele parece tão agonizantemente bonito como eu sempre soube que era...
de uma forma que eu raramente me permiti apreciar. O quanto ele é atraente
me desarmou em muitas ocasiões. Mas me permitir apreciá-lo como uma
esposa apreciaria faz minhas coxas ficarem tensas.
Algumas mulheres matariam para ser você. Para ter tudo isso, eu me
repreendo. E você quer fugir.
É como se ele sentisse minha agitação. Porque ele me olha com aqueles
olhos azuis deslumbrantes, assustado ao me encontrar. Tento abrir um sorriso
e despreocupadamente continuo descendo as escadas, como se não estivesse
apenas admirando-o descaradamente.
— Bom dia.
— Bom dia — ele repete. — Como você dormiu?
— Muito bem. As rainhas anteriores estavam certas; este lugar é
surpreendentemente revigorante depois do trono. — Eu omito o latejar surdo
em minha cabeça. A última coisa que quero é que ele sugira que pulemos o
vinho esta noite, considerando o quão delicioso estava. — E você?
— Excelentemente. — Ele sorri.
Eu olho para o sofá. Tenho minhas dúvidas sobre isso. Claro, seria bom
para um menino. Mas não tem como ele se acomodar lá.
— Você pode ficar na cama esta noite. Podemos trocar.
— Luella–
— Nada mais justo.
Eldas tem um brilho malicioso nos olhos.
— Eu sou o rei; acho que sou eu quem decido o que é justo.
— Eu acho que você está errado. A rainha também deve ter voz ativa.
— Se ela insiste, eu seria um tolo se lutasse contra.
— Que bom que você finalmente percebeu. — Assumo o mesmo lugar
da noite passada, admirando o banquete que ele preparou. — Você não
estava brincando sobre gostar de cozinhar.
— Não é nada demais.
— Humildade não combina com você. — Eu lanço a ele um sorriso
provocador e começo a beliscar. Há tiras de bacon, ovos fritos, fatias de pão
caseiro grelhadas na frigideira, e cada coisa tem um gosto melhor do que a
anterior.
— Calma, ninguém vai tirar isso de você — diz ele.
— Não posso deixar de notar que você está enchendo seu prato com a
mesma intensidade.
Eldas apenas sorri.
Quando terminamos, Eldas coloca os pratos em uma pia funda e me
manda subir para me vestir. Tento fazer isso o mais rápido possível. Minha
mãe sempre insistia que quem cozinhasse, não lavava. Mas cheguei tarde
demais. Quando estou de volta ao andar de baixo vestindo camisa e calça,
ele está secando as mãos no avental, uma satisfação ligeiramente presunçosa
brilhando em seus olhos.
— Cozinhando e agora limpando? — Eu arqueio minhas sobrancelhas.
— Você é realmente o mesmo Eldas do castelo?
— Aqui estou livre do castelo e de seus fardos. Este lugar é uma fuga
para mim também. — Ele fica um pouco mais ereto, como se não estivesse
mais esmagado pelo peso de sua posição ou pelo trauma com o qual aquelas
paredes o assombram. Eu mal resisto em dizer que ele deveria apenas viver
aqui, para sempre. — Acho que é hora de te mostrar a área externa.
Saímos pelas portas duplas nos fundos da cozinha. Vinhas rastejantes
cobrem todo o pergolado, oferecendo uma área sombreada sobre um pátio.
Os calçamentos se espalham por uma saliência, descem uma escada e
envolvem uma piscina de um azul cintilante. Eu ando até o muro baixo de
pedra ao lado da escada.
— Este lugar é... — As palavras saem em um sussurro.
À esquerda da piscina encontra-se um bosque de árvores rodeado por
jardins. Eles se espalham pela subida e para dentro da montanha até serem
totalmente reivindicados pela floresta no sopé da montanha. À direita da
piscina está um campo do qual as flores silvestres assumiram o controle. Há
mais jardins na extremidade oposta e posso ver o brilho da água entre as
fileiras de plantas que suspeito que só crescem em ambientes mais
pantanosos.
— É seu. — Eldas me lembra novamente. Sua respiração move as
pontas do meu cabelo em minha nuca. Meu corpo inteiro dói pelo som de
sua voz tão perto.
Diante de mim está um jardim com o qual eu não poderia ter sonhado
nem se tentasse. Atrás de mim está uma casa, simples e confortável. Uma
casa que eu teria desejado se algum dia tivesse pensado em me mudar para o
campo.
— É maravilhoso.
— Estou feliz que você gostou. As Rainhas Humanas cuidaram dela ao
lado dos Reis Elfos. Essas plantas foram trazidas do Mundo Natural. Alice
disse que elas sempre ajudaram a restaurar seu poder quando ela não podia
retornar ao Mundo Natural.
— Você pode trazer coisas entre os mundos? — Eu arqueio minhas
sobrancelhas.
— É preciso muita magia e cuidado, mas sim. Do Mundo Natural para
o Entre Mundos, e vice-versa. — Eldas acena com a cabeça. — Escondido
no Mundo Natural está um espelho deste jardim. Alice me disse que isso
mantém as plantas vivas aqui e pode ajudar a revitalizar a Rainha – por isso
pensei que vir aqui poderia ajudar você. Ela sempre disse que um pouco da
magia de seu mundo fluía, o suficiente para torná-la forte.
Espelhar – equilibrar, é o que quer dizer. É magia natural – a magia da
rainha – suspensa entre os mundos. Isso poderia ser usado de alguma forma
para as estações? Exige muito mais magia do que apenas para manter
algumas plantas vivas. Mas pode ser um começo... não pode?
A palma da sua mão pousa nas minhas costas, me distraindo. Eu fico
um pouco mais reta.
— Vá em frente, explore.
Passamos o dia inteiro vagando pelo terreno. Preciso de toda a minha
energia para não voltar correndo para a cabana em busca de um diário em
branco, para que eu possa começar a catalogar todas as várias plantas e
observar suas necessidades. Isso é um sonho, começo a dizer a mim mesma.
É um lindo sonho do qual irei, eventualmente, acordar. Mas, por enquanto,
vou aproveitar. Vou me deliciar com os jardins exuberantes, os arbustos
crescidos e selvagens e a magia que parece pairar tão alegremente no ar
quanto os ávidos polinizadores zumbindo de flor em flor.
— O que há para lá? — O caminho de cascalho que serpenteia entre
canteiros elevados passa por entre as árvores, entrando na densa floresta e
pela sombra da montanha no final do crepúsculo.
— A última coisa que eu gostaria de mostrar a você.
— O que é? — Eu exijo, com certa firmeza. O caminho me lembra do
templo e da longa caminhada que me levou através da Bruma.
— Isso leva a Bruma. — Ele confirma minha suspeita sem perceber.
— Mas eu pensei que Capton fosse a única entrada para a Bruma.
Eldas suspira. É a única indicação que tenho de que ele está carregando
um fardo de preocupação que não entendo.
— Capton é o lugar de onde a Rainha Humana é escolhida. Isso
acontece para honrar o antigo pacto feito entre os elfos e os humanos, já que
a casa da primeira rainha era naquela ilha e a primeira pedra angular foi
colocada lá – de onde a própria Bruma se desdobrou. No entanto... Aquele
não é o único ponto onde a Bruma pode ser cruzada.
— É mesmo? — Eu tinha ouvido sussurros em Lanton de vez em
quando... Comerciantes espalhando rumores sobre ataques de vampiros ao
sul ou navios naufragando no norte devido a bestas com magia selvagem
aterrorizando os mares. Mas eu pensei que essas histórias eram como todas
as outras histórias de magia da minha infância – grosseiramente exageradas
e baseadas mais em ficção do que em fatos.
— Posso te mostrar? — Ele estende a mão. — Eu posso nos atravessar
pela Passagem da Bruma até lá, se você quiser? Caso contrário, é uma longa
viagem.
— Pode. — Eu pego sua mão e a névoa escura que é seu poder envolve
a nós dois.
Atravessamos o crepúsculo e entramos em uma dimensão de escuridão
rodopiante. Cada vez que me transporto com Eldas através da Bruma torna-
se um pouco mais fácil do que a anterior. Ainda assim, este lugar entre os
mundos – não exatamente um ou outro – dá a sensação de que insetos
invisíveis correm pela minha pele.
Eu não pertenço a este lugar, e a entidade que é a Bruma deixa isso bem
claro.
— Eu reconheço este lugar. — É a mesma clareira cheia de musgo em
que esbarrei com Hook. Um círculo de pedras menores envolve uma grande
placa no centro de uma pequena elevação.
— Você acha que reconhece. — Eldas corrige. — Você nunca pisou
aqui antes.
Eu olho para a pedra e sua escrita desbotada.
— Outra pedra angular da Bruma?
— Exatamente. — As sombras giram em torno de Eldas enquanto ele
se move em direção à pedra. Elas o alcançam com fome. Gavinhas se
enrolam em torno dele, em torno de seus braços, ansiosas.
Não, eu percebo. A Bruma não o alcança. Ela ressoa a partir de Eldas.
Eu estava cega para o fato da última vez que estivemos aqui. Mas agora que
entendo sua magia, posso ver a coroa de escuridão da meia-noite que irradia
dele em ondas com cada movimento seu.
Eldas estende a mão para a pedra e um pulso de magia vibra para fora
dele. Seu poder não me amedronta mais. Ele ecoa em uma parte vazia e
carente de mim que clama para ser preenchida.
Um crepúsculo estrelado ilumina as palavras gravadas. Escritas que não
entendo brilham em conjunto com os olhos de Eldas. O poder afunda na
terra e a Bruma ao nosso redor se torna mais espessa.
Ele afasta a mão e seus ombros caem ligeiramente.
— É obrigação do Rei Elfo cuidar de todas as pedras angulares da
Bruma. Nós as carregamos com nosso poder para garantir que a Bruma
permaneça forte. As pedras angulares enfraquecem com o tempo, e quando
estão fracas... a Bruma pode ser cruzada por criaturas menores.
— Um único homem não consegue dar conta de todas as pedras
angulares. — Suponho que foi assim que começaram os rumores de criaturas
mágicas vagam pelo meu mundo de vez em quando.
Eldas balança a cabeça severamente.
— O Entre Mundos é um equilíbrio frágil, tensionado com o tempo.
Geração após geração, quase enlouquecemos nos perguntando se estes serão
os últimos anos de paz. A maioria dos reis se concentra no Véu. Manter a
ordem da vida e da morte é muito mais importante do que manter os
humanos no Mundo Natural e aqueles com magia selvagem aqui.
— Me deixe ajudar — ofereço antes que possa pensar melhor.
Ele dá uma risadinha e seus olhos cansados passam da pedra para os
meus.
— Claro, logo depois de você de alguma forma conseguir quebrar o
ciclo das rainhas ao criar estações que ocorrem naturalmente neste mundo
não natural. E então, fundamentalmente, mudar sua magia para se tornar
algo que pode manipular a Bruma.
Eu franzo os lábios, não querendo que meu instinto atrapalhe meu
cérebro. Eldas está diante de mim, seus olhos desbotando para seu tom
natural de azul enquanto o pico de magia se dissipa. Ele levanta a mão e
lentamente passa os dedos pelo meu queixo.
Seu cabelo é uma cascata de noite, misturando-se com suas roupas,
sendo eclipsado pela escuridão viva ao nosso redor. A palidez empoeirada de
sua pele tornou-se acinzentada, como se a mortalha da morte o cobrisse. Ele
tem um pé no Além. Eu tenho um pé no mundo da vida.
A única coisa que está nos ligando é aquele toque que está me
acendendo.
— Além disso, você vai me deixar no momento em que obtiver
sucesso. Você não seria capaz de ficar e ajudar.
Você poderia ficar, a voz em minha mente agora está gritando. Ficar
com ele!
É isso o que eu realmente quero? Ou estou arrebatada pelo momento?
Talvez ele realmente tenha me transportado para outro mundo com um
simples passeio de carruagem; ele me trouxe a um lugar onde minha guarda
está baixa e posso fingir que tudo vai dar certo. Para algum lugar em que
posso ignorar que estou permitindo que meu coração seja quebrado.
Ou eu realmente não sinto nada por ele? Será que todo esse anseio e
desejo torturante de alguma forma são a magia da Rainha Humana tentando
garantir sua própria preservação, levando-me a ficar com ele?
Eu pressiono meus olhos fechados e respiro trêmula. Eu não sei as
respostas. Mas eu quero saber. Eu preciso saber. Se eu ficar no Entre
Mundos, a escolha deve ser minha. Devo finalmente fazer uma escolha, por
minha própria vontade, livre das influências de qualquer homem,
independentemente de onde estou. Tenho que seguir meu próprio coração e
escolher o que quero para mim, não o que os outros querem para mim. E
nunca poderá ser minha escolha se eu não conseguir quebrar o ciclo. O que
eu realmente quero pode nem importar se eu falhar.
— Estou aqui agora — eu sussurro, finalmente abrindo meus olhos para
olhar para o rosto dele. — Desfaça os pensamentos sobre o amanhã. Vamos
viver por hoje.
Não sei inteiramente o que estou dizendo. Mas eu sei o que quero neste
momento – ele. Os olhos de Eldas se arregalam um pouco e é como sei que
ele ouviu.
Eu inclino minha cabeça ligeiramente. Sua mão ainda paira na minha
pele. As juntas de seus dedos engancham meu queixo.
— Beije-me de novo — eu exijo sem fôlego. — Beije-me como você
fez naquela noite no castelo. Vamos ceder a este sonho acordados, Eldas.
— Não — ele murmura. Tudo em mim estremece com sua negativa.
Mas então ele me puxa em sua direção, me prendendo com o toque mais
leve que se possa imaginar. — Não vou beijar você como beijei daquela vez.
— Minha respiração acelera. Através do leque de meus cílios, eu o vejo se
inclinar para frente. — Eu vou te beijar ainda melhor.
Seu outro braço, de repente, é fabricado pela escuridão em volta da
minha cintura. Eldas me envolve enquanto puxa meu corpo contra o dele
pela primeira vez. Sua forma esguia é longa e firme contra mim. Minhas
mãos, desajeitadas e inexperientes, pousam em seus quadris, tremendo como
pássaros nervosos prestes a levantar voo.
Tudo dói naquele momento. O segundo que sua respiração fica no meu
rosto é o segundo mais longo da minha vida. Eu estava certa quando percebi,
meses atrás, que querer beijar alguém faz toda a diferença.
E eu nunca quis beijar alguém mais do que quero beijar Eldas. Este não
é um desejo embriagado. Isso não é solidão ou necessidades não atendidas.
Eu quero que ele me beije. Agora. Aqui. Para sempre.
Ele sustenta meu olhar até o último momento. Seus lábios encontram os
meus e eu queimo.
Eu solto um gemido. Ele me puxa para mais perto, atendendo ao meu
comando silencioso, tentando sufocar a agonia ardente em mim com seu
corpo frio. Sua língua corre ao longo dos meus lábios, procurando por uma
entrada, e eu concedo. Eldas aprofunda o beijo com uma preguiça cruel.
Mais, meu corpo exige com uma necessidade que me faz corar. Eu
quero que suas mãos se movam. Quero que esses dedos longos acariciem a
curva do meu pescoço, do meu seio, do meu quadril. Quero sentir coisas que
só aprendi na teoria. Quero que ele me ensine e me guie por todos esses
caminhos carnais que ainda tenho para trilhar.
Mas, para meu desgosto supremo, ele se afasta. Seus lábios brilham
úmidos na escuridão e se curvam em um sorriso indecifrável. A cor inundou
seu rosto, dando-lhe um tom natural mais uma vez.
— Luella — ele sussurra, rouco e profundo. — Você está brilhando.
Eu percebo que é verdade. Um brilho quase imperceptível cobre minha
pele e dança com a escuridão. Nossos poderes irradiam juntos, misturando-
se, envolvendo-se em uma dança de opostos.
— Então — eu respondo com um tom sensual que eu não sabia que
podia ter — eu acho que você deveria continuar me beijando. Para que
possamos investigar adequadamente este estranho fenômeno.
Seu sorriso se transforma em um sorriso presunçoso e Eldas se inclina
para frente mais uma vez com os olhos semicerrados.
— Minha rainha, sempre uma pesquisadora.
Minha rainha. As palavras me deixam com os joelhos fracos. Elas não
me enchem mais de medo. Minha rainha. Essas duas palavras são quase tão
doces quanto me perder no sabor de sua boca.
— Meu rei — murmuro em resposta. — Eldas, meu rei. — Eu sou dele
e ele é meu.
Eldas me segura contra ele com um aperto esmagador no momento em
que digo seu nome. Ele me empurra e espero que caiamos no chão coberto
de musgo. Mas as sombras se erguem ao nosso redor e nós deslizamos entre
os mundos.
CAPÍTULO 31
MINHAS COSTAS SE ACOMODAM NO COBERTOR ACOLCHOADO QUE EU JOGUEI vagamente sobre minha cama esta
manhã. O colchão suspira ao meu redor, aceitando meu peso e o de Eldas.
Meus braços envolvem suas costas, puxando-o mais para perto. Eu dobro um
joelho e pressiono meus quadris para cima, contra os dele.
Sou desajeitada e, sem dúvida, inábil, mas Eldas se move comigo com
fluidez. Ele responde a cada movimento meu com atenção ávida. Ele se
desloca exatamente quando eu preciso que ele faça isso e minha respiração
acelera quando ele se esfrega contra mim pela primeira vez.
Ele se apoia em uma das mãos e libera a outra para percorrer meu
corpo. Sou delineada por seus dedos. Eu sou sua para ser moldada e
esculpida – sua para ser lapidada a partir da própria noite. Apenas com o
dedo indicador, ele desenha constelações em minhas roupas. Cada ponto
conectado por uma diferente necessidade dolorosa que eu nunca soube que
poderia sentir tão intensamente.
Seus lábios se afastam e meus olhos se abrem enquanto seus dentes se
afundam levemente na carne do meu pescoço. Eldas me beija como a
criatura das trevas que ele é, determinado a consumir até a última centelha
de minha luz. Outro gemido desliza pelos meus lábios e se transforma em
um suspiro agradável.
— Luella. — Ele rosna meu nome, tão quente e necessitado quanto a
expiração que ele dá em meio a qual é dito. Eu nunca soube que meu nome
poderia ser uma combinação tão erótica de sons e carícias.
— Eldas — eu respondo em igual medida. Ele se esfrega contra mim
com força. Um suspiro me escapa ao senti-lo.
— Eu posso sair daqui. — No entanto, enquanto ele fala, seu corpo o
contradiz. Ele continua a me beijar. Sua mão levanta minha camisa,
deslizando sobre o plano do meu estômago. Como eu desejei que ele me
tocasse lá novamente...
— Saia, e eu vou te encontrar — eu sussurro sem fôlego em resposta.
— Deixe-me aqui, insatisfeita e desejosa, e eu irei te caçar, Eldas.
Seus lábios encontram a concha da minha orelha e seus dedos
finalmente fazem o seu caminho até o meu peito. O gemido que seu toque
libera quase abafa seu sussurro.
— Ah, Luella, eu nunca sonharia em te deixar insatisfeita ou desejosa.
Então, como se para cumprir essa promessa, seus lábios se esmagam
contra os meus. Seu peso me empurra mais fundo na cama e minhas mãos
ganham vida com uma permissão que eu não sabia que estavam esperando.
Minhas unhas se cravam nos músculos esbeltos de suas costas enquanto sua
mão se fecha em volta do meu seio.
Por anos, meu corpo tem estado adormecido. Agora, como um membro
morto voltando à vida, choques e pontadas dançam por todo o meu ser. Eu
nunca havia realmente sentido nada antes desse momento. Eu arqueio
minhas costas para fora da cama, me pressionando contra ele, implorando
sem palavras para ele me tocar mais – para me conceder todos esses desejos
deliciosos que me foram negados.
Me consuma, quero dizer. Mas tudo o que escapa são gemidos entre
beijos cada vez mais ansiosos. As sombras escurecem, fechando-se em torno
de nós enquanto ele tira minha camisa. Aproveito a oportunidade para fazer
o mesmo e exploro-o avidamente com olhos, mãos e boca no segundo em
que seu peito largo é exposto.
No início ele está tenso ao meu toque. Seus olhos seguem minhas mãos,
exploram meu rosto, esperando por algum tipo de reação. A única reação
que posso oferecer a ele é uma mistura de espanto, admiração e desejo. As
saliências de seus músculos são iluminadas pelo brilho fraco de nossa magia.
Os sons que ele libera enquanto minhas unhas roçam levemente seus
mamilos me deixam selvagem.
Eu quero ir devagar. Eu quero ir rápido. Eu quero tudo de uma vez e
ainda quero que o relógio pare para que eu possa saborear cada segundo.
Estou distraída demais pelo gosto de sua boca para ficar com vergonha
de minha própria nudez cada vez maior. O desejo é forte demais para
questionar minhas mãos enquanto elas puxam desajeitadamente seu cinto e
sua calça. Os dedos de Eldas deixam meu corpo para ajudar e solto um
gemido que me faria corar em qualquer outra circunstância.
Mas não tenho dúvida neste momento. Meu mundo se reduziu a um
minúsculo foco, se reduziu somente a este homem. Este homem? Não. Em
meu marido.
Marido. A palavra suaviza minha mente, tão erótica quanto suas
carícias. Parece tão certo quanto seu peso em cima de mim e sua boca sobre
mim. Este incrível e poderoso espécime de homem é meu marido. Por uma
reviravolta do destino que eu nunca esperava, nossas vidas foram para
sempre entrelaçadas. Eu coloco uma perna em volta de seus quadris,
implorando para que ele se aproxime com o movimento.
Eldas paira acima de mim, seu cabelo uma cachoeira preta como meia-
noite que cai no travesseiro em volta da minha cabeça. Seus olhos estudam
os meus. Posso vê-lo sondando por uma hesitação, esperando que eu recue.
Eu passo meus dedos por seu cabelo negro e puxo sua boca para a
minha mais uma vez. Não há nada além de magia e ele. Eu trago ambos para
dentro mim com um silvo e um suspiro.
Eldas permanece parado e, por um momento, simplesmente existimos,
juntos como um. Suas mãos acariciam meu rosto enquanto ele continua a
observar, esperando por permissão para mais. Quando estou acostumada
com ele, eu dou um pequeno aceno de cabeça e ele se retira, apenas para
voltar rapidamente.
Nossos corpos se movem juntos, implacáveis. Somos um coro de
suspiros e gemidos. Eu nunca soube que havia tantos tons de sombra até que
conheci este homem. Ele se move com todos eles – através de todos eles –
tão etéreo, eterno e incompreensível quanto a própria Bruma.
Nesse momento, existimos além do tempo. Existimos para cada rei e
rainha que vieram antes de nós enquanto o tratado era cumprido como
apenas uma formalidade. Os tronos de sequóia e ferro estão finalmente
unidos mais uma vez.
EM ALGUM LUGAR DISTANTE, UM RELÓGIO BADALA. PELA SEGUNDA VEZ, ACORDO confusa e exausta. Os eventos da
noite anterior estão tão frescos quanto uma chuva quente de verão em minha
mente. Eles são tão reais quanto o peso do braço de Eldas em volta da minha
cintura.
Qualquer que fosse o brilho que cobria minha pele, desapareceu com a
noite que nos envolveu. Eu me pergunto se foi minha magia respondendo à
dele. Ou talvez fosse minha magia vindo à tona em um equivocado instinto
para me proteger do meu eterno oposto enquanto ele me tomava com paixão
feroz.
Com um suspiro que quase soa contente, deixo meus olhos se fecharem
mais uma vez e entrelaço meus dedos nos dele. Ele devolve meu aperto, mas
sua respiração permanece estável. Mesmo durante o sono, ele procura por
mim. Seu braço se aperta, como se afirmasse o pensamento intruso.
Eu poderia passar o resto da vida assim. Não adianta negar. Este
homem espinhoso, desajeitado e um tanto limitado emocionalmente se
tornou meu. E, quer eu pretendesse ou não, eu permiti me tornar dele.
Mas pensamentos errôneos sobre o que deve ser feito – meu dever para
com este mundo e o meu próprio – finalmente me puxam da cama e daquele
abraço caloroso. Eu saio despercebida em um amanhecer cinzento. Eldas
murmura enquanto pego meu robe e saio do quarto na ponta dos pés.
Ele me encontra algumas horas depois na sacada, observando as
piscinas e os jardins. O diário do qual ele fez uma cópia para mim está
escrito na língua antiga. Consigo ler, mas as palavras são pomposas e a
gramática é estranha, o que torna o andamento lento. Estou procurando
algum tipo de noção de equilíbrio entre os dois mundos. Não consigo tirar
esse pensamento da minha cabeça, mesmo agora.
Mas quando ouço a porta atrás de mim se abrir, sei que qualquer
esperança que tenho de me concentrar no diário desta rainha perdida
evaporou como o orvalho. Um encantador Eldas sem camisa cruza para onde
estou sentada sob o pergolado coberto de videiras e coloca uma caneca de
chá fumegante perto de mim.
Eldas se senta na cadeira à minha frente e olha para os jardins. Eu olho
para ele com o canto do olho, mas ele não parece notar. Seu foco está apenas
no cume da montanha. Posso imaginá-lo traçando o caminho que leva a
Bruma. Eu me pergunto se ele está pensando em todas as outras pedras
angulares que precisam de sua atenção.
— Obrigado — ele diz, finalmente. As palavras são suaves e um tanto
acanhadas. Eles trazem um calor suave às minhas bochechas.
— Pela noite passada? — Eu arqueio minhas sobrancelhas. — Eu
deveria estar agradecendo por isso também.
Ele desvia o olhar, os olhos distantes, mas a expressão relaxada, aberta,
terna – todas as emoções que eu nunca pensei que ele fosse capaz de ter.
— Por permitir que eu não me sentisse sozinho. Por me mostrar cada
lado magnífico de você. Por me dar algo que eu não merecia, mas irei
estimar para sempre – não apenas noite passada, mas todo o nosso tempo
juntos até este momento.
Quando ele traz seus olhos de volta para mim, não sei como reagir. Meu
coração inchou a ponto de bater dolorosamente contra minhas costelas. Eu
mordo meu lábio, tentando me impedir de dizer algo tolo.
O mundo não mudou. Ainda é o mesmo. Meus medos, meus deveres
ainda se complementam e contrastam com os dele. No entanto, de alguma
forma, o mundo parece ter mudado, mesmo que apenas ligeiramente. Como
se algo finalmente tivesse se encaixado no lugar.
— Eu deveria te agradecer também. A noite passada foi incrível. —
Finalmente pego a caneca fumegante e a levo aos lábios. Eu conheço metade
das ervas na infusão apenas pelo cheiro, e as confirmo e identifico o resto
pelo sabor. — Isso é bom — interrompo o que quer que Eldas estava prestes
a dizer em seguida. — Você fez essa mistura?
— Eu gostaria de poder levar o crédito por isso. — Ele sorri também e
qualquer constrangimento inicial após nossa primeira noite juntos
desaparece. — Mas, infelizmente, eu não posso, e você provavelmente me
pegaria na mentira assim que eu tentasse.
Eu sorrio.
— Talvez você tenha mantido em segredo um dedo verde, que tenha
afinidade por plantas esse tempo todo. Afinal, você escondeu de mim que
cozinhava.
— Se eu tivesse essa afinidade, você acha que eu manteria isso em
segredo, já que isso pode me enaltecer para você? — Ele ri. — Não, este é o
resto da mistura de Alice.
— Ah. — Eu fico olhando para o líquido bronzeado na caneca. Menta,
casca de limão, morango seco e chá-da-índia secas sob o sol quente, todos
dançam na minha língua. — Tem gosto de verão.
— A época favorita dela para beber isto — afirma. — Vocês duas
teriam se dado bem.
— Teria sido bom conhecê-la. — Eu tomo outro gole. O sabor tornou-
se um tanto triste e cheio de nostalgia. — Eu teria tantas perguntas.
— Talvez você pudesse fazê-las a mim? — Eldas passa um de seus
dedos muito hábeis pela borda de sua caneca. Eu me movo, meu assento de
repente se torna muito menos confortável enquanto o movimento evoca
memórias de nossa noite juntos.
— A essa altura, elas seriam principalmente sobre minha magia.
— Entendo. — Ele faz uma pausa. — A essa altura?
Tomo outro longo gole para não ter que responder imediatamente.
Tenho que escolher minhas próximas palavras com cuidado.
— No início, poderia ter perguntado como qualquer rainha aguentou
esta situação. Como ninguém mais foi tão inflexível quanto a encontrar
uma... solução.
— Uma saída, você quer dizer. — As palavras são fáceis o suficiente,
mas há uma ponta de frieza em seu tom. Uma que agora eu facilmente
interpreto como mágoa. Ele me vê como mais uma pessoa fugindo dele,
condenando-o à reclusão. Seus olhos caem para o diário sobre a mesa, quase
o acusando de tentar me levar embora.
— Uma forma de fortalecer o Entre Mundos — insisto. Essa é a minha
missão agora. Garantir a segurança do Entre Mundos. Fazer isso é a melhor
maneira de ajudar a todos aqui e, além disso, será a única maneira de saber
se o que estou sentindo por Eldas é real. Ou se todas essas emoções
profundas e complexas apenas nascem da proximidade e da aparente
necessidade.
Amor é escolha, eu disse a Luke, o que parece ter sido há uma
eternidade, mas que nunca achei mais verdadeiro. Não posso ter certeza do
que sinto por Eldas se não o escolher livremente.
— Mas você não tem mais essas dúvidas? — Ele olha para mim através
dos cílios longos e escuros.
— Não, eu não tenho. — Eu aceno um braço em direção à área ao
nosso redor. — Só isso já é o paraíso. E o conservatório no castelo é um
bálsamo de acolhimento que seria suficiente entre as viagens até aqui.
— Entendo. — Eu ouço desapontamento em seu tom?
— Além disso... — No segundo que eu falo, Eldas me olha com
interesse. Eu não deveria ter dito nada. Esperança iluminou seu rosto mais
do que o sol – mais do que o rubor mágico que revestiu minha pele na noite
passada enquanto fazíamos amor. — Eu posso entender como algumas
rainhas encontraram companhia em seus reis.
Eu tento dar a ele um sorriso e enfatizar a palavra “companhia”. Não é
amor. Não posso dizer isso ainda. O que aconteceria se eu tivesse sucesso,
voltasse para casa e descobrisse que não posso mais ir embora uma vez que
esteja cercada por minha loja e pacientes? E se a Bruma arrancar esses
sentimentos de mim no momento em que eu emergir de volta ao Mundo
Natural? E se eu realmente me importar com ele, mas não puder deixar
minha loja novamente?
Ele ficaria arrasado. E essa é uma armadilha que não vou sequer
arriscar armar para ele. Deixe que ele pense que isso é um prazer casual. Já
passei do ponto de ser capaz de proteger meu coração. Estou indefesa para as
consequências. Mas ele? Talvez eu ainda possa poupá-lo.
Claro, tudo isso partindo do pressuposto que ele sinta qualquer coisa
por mim de volta. Só porque ele não estava com Rinni, não significa que
nunca esteve com uma mulher. Sua habilidade na cama torna difícil para
mim imaginar que a noite passada foi sua primeira vez. Por outro lado...
nunca tendo estado com um homem antes, eu não tenho exatamente uma
grande lista de comparações de habilidade.
Eu expulso os pensamentos da minha mente. Recuso-me a imaginá-lo
com outra mulher, e não faço ideia se esses sentimentos que ameaçaram me
queimar viva ontem à noite sejam unilaterais. Por enquanto, vamos ignorar
perigosamente todas essas incógnitas como ignoramos que nosso tempo
juntos aqui está diminuindo. Isso é mais seguro para nossos corações.
Eldas ri, ignorando minhas inúmeras preocupações sobre o que o futuro
reserva para nós.
— E diga-me, minha rainha, eu fui uma companhia boa o suficiente —
o jeito que ele diz a palavra é um pouco frio, mas ainda com um tom de
brincalhão — para você na noite passada? Porque se você me achou
insuficiente de alguma forma, isso é algo que devo mudar imediatamente. —
Ele expõe seu sorriso perverso e isso mexe comigo.
— Bem, você me conhece. Sou meticulosa em minha coleta de
informações sobre um tópico. Mais dados são necessários.
Ele solta um rosnado baixo antes de agarrar meu rosto e esmagar seus
lábios contra os meus. Eu alegremente obedeço enquanto ele me puxa para
seu colo. Meu corpo rígido tenta protestar, mas eu me movo de qualquer
maneira. Minhas pernas se abrem e ficam de cada lado dele e ele se esfrega
contra mim.
Eu mordo seu lábio inferior, o que provoca um som delicioso. Ele se
levanta, me segurando com as duas mãos, minhas pernas enroladas em sua
cintura. Com um movimento de sua mão e uma explosão de sua magia
gelada, as xícaras desaparecem. Eu mal percebo quando minhas costas
batem na pequena mesa.
Ele puxa as amarras do meu robe enquanto meus dedos apalpam suas
calças com igual fervor. Por que nos incomodamos em nos vestir? Como se
não soubéssemos que era isso que acabaríamos fazendo.
Tão nus como estávamos na noite passada, Eldas não perde tempo.
Seus quadris colidem com os meus novamente e eu solto um grito de alegria.
Estou preenchida por profundo sofrimento e necessidade ao mesmo tempo.
Meu corpo está exausto, mas ansioso para se mover com ele – ansioso por
seu toque.
Nossos gemidos e suspiros enchem o vale enquanto toda vergonha e
hesitação são esquecidas e nós continuamos a sonhar unidos aquele sonho
insaciável de tudo que poderíamos ser.
CAPÍTULO 32
—HARROW E A MAMÃE JÁ DEVERIAM ESTAR AQUI. — DRESTIN OLHA PARA O ALTO relógio de pêndulo preso entre
as estantes cheias na sala em que nos reunimos para tomar algumas bebidas
antes do jantar.
— A chuva pode tê-los atrasado. — Eldas está ao lado de uma lareira
acesa, a luz laranja projetando sua forma nas sombras. Lá fora, a chuva bate
no vidro.
— Não é a chuva. Harrow ainda está empenhado em fazer
brincadeirinhas. Eu ouço os rumores sobre o príncipe mais jovem até mesmo
aqui, em Westwatch. Não tenho dúvidas de que ele é a causa desse atraso. —
Drestin toma um longo gole de sua bebida. A minha está praticamente
intocada. — Precisamos acabar com isso, casá-lo e dar-lhe terras. Quanto
mais cedo ele tiver responsabilidades reais sobre seus ombros, melhor.
— Ele não está pronto. — Eldas protesta.
— Eu não estava pronto quando você me deu Westwatch e era apenas
um ano mais velho do que Harrow é agora. Foi a melhor coisa que poderia
ter sido feita por mim. — Os olhos azuis brilhantes de Drestin se voltam
para Carcina. Ela está sentada ao meu lado no sofá e parece
significativamente mais confortável do que em nosso encontro anterior. — A
melhor coisa, depois de conhecido você, é claro.
— Você não tem que me bajular. Sei que eu era apenas um requisito
para o título — diz Carcina com um sorriso brincalhão.
— Ah, sim, me perdoe. Isso é tudo o que você é, mãe da minha criança,
luz do meu mundo, deusa entre todas as mulheres – apenas mais um item
que eu tive que assumir. — Drestin brinca de volta e fico satisfeita em ver
um carinho genuíno em seus olhos. Esses olhos se voltam para mim e depois
para Eldas com a mesma rapidez. Foi apenas um olhar, mas sei o que ele está
pensando.
Um casamento que aconteceu por necessidade, mas sustentado por um
amor genuíno que cresceu contra todas as probabilidades. Tomo um gole da
minha bebida para evitar dizer qualquer coisa sobre o assunto. Se Eldas está
ciente das implicações ocultas, ele não diz nada.
— Devíamos jantar. — Eldas sugere, olhando para o relógio mais uma
vez. — Carcina, você não deveria ficar até tão tarde sem comer.
— Estou bem. — Carcina dá um tapinha no estômago. — Talvez se
este bebê ficar com fome o suficiente, ele venha rastejando para fora até a
mesa exigindo comida. — Ela ri. — Estou pronta para que isso acabe.
— A maioria das mulheres está, neste estágio — eu digo. Ela me encara
com um olhar curioso. — Antes, em Capton – em meu mundo — eu
esclareço, sem saber o quanto eles sabem sobre o outro lado da Bruma — eu
estudei em um Instituto para ser uma herbalista. Não me especializei em
obstetrícia, mas trabalhei de perto com as que se especializaram. Existem
muitos bálsamos e bebidas que você pode usar para ajudar com várias
indisposições neste estágio... como pés inchados ou dores nas costas. —
Observei ambos quando ela estava mancando conosco para nossos quartos.
— Talvez você pudesse contar aos meus curandeiros sobre esse
conhecimento do Mundo Natural. Preciso de qualquer ajuda que puder ter.
— Eu ficaria feliz em fazer eu mesma para você, se tivermos
suprimentos aqui.
— Vossa Majestade–
— Apenas Luella, por favor — eu a lembro, não pela primeira vez.
— Luella — diz ela timidamente. — Eu não gostaria de incomodá-la.
— Não me incomodaria, eu adoraria. — Eu sorrio.
— É melhor não lutar com ela quando ela coloca algo na cabeça. —
Eldas acrescenta com um pequeno sorriso. Lembro que não muito tempo
atrás, ajudar os outros estava “abaixo de mim” como a Rainha. Agora, é
inquestionável.
— Então, talvez depois do jantar eu mostre o laboratório do curandeiro.
— Carcina pousa a mão na minha. — Obrigada, Luella.
— Não há de que.
O jantar é um momento íntimo. Já que Harrow e Sevenna ainda não
chegaram, nós nos retiramos para uma sala de jantar menor e mais informal
da qual eu tive um vislumbre em nosso caminho para a sala de estar. Isso me
lembra do primeiro jantar que Eldas e eu compartilhamos.
Normalmente, o pensamento daquele jantar me faria lutar contra
fantasias persistentes dele me empurrando contra uma lareira. Mas não esta
noite. A preocupação com Harrow e o que poderia tê-lo detido me
incomoda.
No entanto, egoisticamente, sou grata pela ausência de Sevenna. Isso
me dá a oportunidade de conhecer Carcina e Drestin. E para eles me
conhecerem sem as opiniões de Sevenna envenenando o ar.
Depois do jantar, os homens decidem por uma bebida antes de dormir
enquanto Carcina e eu escapamos para o laboratório e jardins de Westwatch.
Isso dá aos irmãos a oportunidade de colocar a conversa em dia e a mim de
aprender o caminho para o estoque de suprimentos de cura em Westwatch. A
paranóia agora se instalou no fundo da minha mente, pois ainda não há
notícias de Harrow.
Algo está errado e o ar está pesado com o que quer que seja.
— Aqui estamos. — Carcina acende as lâmpadas da sala com um
movimento de mão e um lampejo de seus olhos. Pequenas coisas sobre a
magia selvagem me deixam com inveja de seu flagrante desprezo pela
lógica.
O laboratório é semelhante ao de Quinnar. Em vez de uma estufa anexa,
ele se abre através de portas em arco para um jardim em um terraço de frente
para a cidade de Westwatch. A organização é um pouco diferente, mas uma
rápida varredura pela sala mostra onde os curandeiros daqui estão mantendo
suprimentos semelhantes.
— Tudo o que precisamos está aqui — eu digo enquanto mexo nos
armários. — Eu poderia levar para você de manhã?
— Eu não gostaria de deixá-la sozinha aqui.
— Não é seguro? — Eu não posso evitar perguntar.
— Adicionamos segurança extra para sua visita. — Ela sorri com
orgulho.
— Então está tudo bem. Estou acostumada a trabalhar sozinha. É assim
que eu trabalharia na minha loja. Meu horário favorito era a primeira hora da
manhã, antes que alguém pudesse me perturbar.
— Sua loja?
— Eu abri uma loja depois de me formar no instituto. — Parece que foi
há anos. O tempo se distorceu enquanto eu passava pela Bruma. Deve passar
mais rápido no Entre Mundos, porque as memórias de meus contadores
gastos e tigelas toscas estão escapando por meus dedos. Parece que estive no
Entre Mundos desde sempre.
O desvanecimento dessas conexões me apavora. Eu tenho que voltar.
Não posso saber quem realmente sou ou o que estou sentindo até voltar.
— Entendo. — Ela está claramente confusa, mas aceita o comentário na
esportiva e não aprofunda.
— De qualquer forma... Se não te incomodar me ter trabalhando
sozinha no laboratório dos seus curandeiros, eu não me importo de fazer
isso. Você parece cansada e precisa descansar.
— Esta criança ainda nem veio ao mundo e já está sugando minha
energia e paciência. — Seu corpo enfatiza o ponto com um bocejo.
— Vá e descanse; estará pronto no café da manhã.
— Obrigada novamente, Luella. — Ela começa a ir embora, mas faz
uma pausa antes. — Eu não sabia o que esperar da Rainha Humana. Eu
admito... eu estava um pouco nervosa. Mas estou feliz que seja você.
Não consigo pensar em nenhuma resposta antes que Carcina peça
licença para se deitar.
Enquanto trabalho, tento identificar a sensação angustiante e inquieta
que está impulsionando minhas mãos com um propósito frenético. Culpa, eu
finalmente percebo. Me sinto culpada. Mas pelo que?
Por ir embora.
Eu franzo a testa para o líquido borbulhando em um pequeno caldeirão.
Não tenho nada pelo que me sentir culpada. Estou fazendo a coisa certa por
nossos dois mundos e por nós. Eu nunca poderia ficar com Eldas e ser feliz,
não de verdade, a menos que eu saiba que vou ficar por vontade própria.
— É mais eficaz quando você faz essa cara? — A voz de Eldas
interrompe meus pensamentos. Meu corpo estremece, assustado, e eu o
encaro. Ele está recostado em uma mesa, com os braços cruzados, parecendo
deliciosamente presunçoso.
— Há quanto tempo você está aí?
— Tempo suficiente para ver você trabalhar.
Devo ter estado realmente perdida em meus pensamentos para não
notar a chegada de Eldas.
— E que visão e tanto é.
— O quê? — Eu digo as palavras em uma expiração, já tentando pescar
todas as emoções complexas que ele de alguma forma encaixou nas
pequenas poças de azul que são seus olhos. Há admiração, uma nota de
tristeza, anseio, resignação? Mais coisas que eu não consigo nomear.
— Você nasceu para fazer isso. — Diz ele.
— Você já me viu trabalhar antes. — Eu corro meu dedo ao longo do
topo de um frasco antes de guardá-lo.
— Sim, mas nunca assisti de verdade. Eu nunca prestei atenção. — A
tristeza que vejo nele é sonora. — Luella... se não conseguirmos quebrar o
ciclo antes da coroação... eu faria tudo o que pudesse, mesmo assim, para
ajudá-la a controlar o trono. Tudo o que você precisasse, eu daria a você.
Talvez possamos até encontrar uma maneira de você trabalhar como
curandeira em Quinnar também. Talvez, mesmo que você faça parte do
Entre Mundos, poderíamos até explorar opções para você visitar Capton
mais do que apenas no solstício de verão.
Meu estômago se revira e quando falo não consigo olhar para ele. Eu
sei que ele está tentando ajudar. Mas essa conversa traz à tona a massa
emaranhada de emoções que não consigo entender completamente quando se
trata de pensar na minha vida antiga, na minha vida agora e no que quer que
me aguarde no futuro.
— Isso não seria inconvencional para uma rainha?
— Sim, mas o convencional é sempre novo em algum ponto. Eu li os
diários também. Outras ansiavam por algo semelhante – por um propósito
além do trono. Ajudar os curandeiros não era suficiente. É tarde demais para
elas, mas para você, para as futuras rainhas... — Ele passa a mão pelo cabelo
e desvia o olhar. Eu o observo com o canto do olho. — Se houver mais
rainhas, é claro.
— Por falar nisso. — Eu me viro e me encosto no balcão. — Há algo
que preciso lhe dizer.
— Sim? — Eldas está claramente sobressaltado com minha mudança
repentina de humor.
— O diário que tenho lido… descobri hoje de quem era.
— De quem?
— Da rainha Lilian.
— Lilian — ele sussurra. Ele sem dúvida ouviu o nome por meio de
histórias que lhe contaram durante toda a vida. — A primeira rainha. Então–
Eu aceno, sabendo o que ele vai dizer a seguir.
— Eu acho que sei como as estações, o trono e a magia da rainha estão
ligados. Acho que entendi o que a primeira rainha e o primeiro rei fizeram e
como tudo funciona. — Eu desvendei um grande mistério. Eu deveria estar
mais feliz. E ainda assim eu observo com pavor enquanto Eldas se levanta.
Estamos em uma fronteira da qual não há como voltar atrás. — Preciso ler
mais e pesquisar, é claro. E só porque eu entendo como a Bruma foi feita e
como as estações mudam, não garante que serei capaz de fazer qualquer
coisa com a informação, mas–
Suas mãos agarram aos meus ombros. Eldas esboça um sorriso
brilhante. Mas seus olhos estão dolorosamente tristes.
— Isto é excelente. Se alguém consegue descobrir, é você. Eu disse isso
o tempo todo e agora você tem o que precisava.
— Eu sei mas...
— Mas? — Ele vacila.
Não fique feliz com isso, quero dizer. Não quero que ele finja estar feliz
com a minha partida. O fato de que ele ficaria feliz incha meu coração a
ponto de doer. O sorriso em seu rosto zomba de mim e me pego duvidando
dos traços de dor em seus olhos; são reais ou estou apenas imaginando que
sejam porque quero que sejam?
— Eldas, o que você sente por mim? — Atrevo-me a perguntar,
baixinho e com medo.
— O quê? — Suas mãos caem dos meus ombros. Talvez isso seja
resposta suficiente.
— O que você sente por mim? — Eu pergunto novamente, mais alto e
mais firme.
— Quando você diz–
— Você me ama?
Parece que minhas palavras se materializaram e o atingiram entre as
costelas. A boca de Eldas abre e fecha várias vezes. Talvez ele tenha
calculado os números da nossa equação e chegado ao mesmo resultado que
eu – que era melhor não pensar sobre o que esses sentimentos realmente
eram. Era melhor não perguntar ou saber, para nós dois.
Enquanto ele me encara, mortalmente silencioso, quero que o ar
espesso da noite me envolva. Eu quero que ele me leve embora e me
carregue através da Bruma neste momento. Eu não aguento esperar por sua
resposta.
Se ele disser que não me ama, meu coração ficará partido. Se ele disser
que sim, então meu coração ainda ficará partido se – quando – eu
inevitavelmente partir. E, se eu não for embora... Vou me perguntar se os
sentimentos dele, como os meus, poderiam ter sido de alguma forma
manipulados por magia ou circunstâncias. Se eles alguma vez foram reais,
ou uma sobrevivência distorcida do coração. Vou questionar tudo para
sempre e só isso seria a nossa ruína.
— Não responda. — Eu balanço minha cabeça. — É melhor se você–
— Luella, eu–
Nenhum de nós consegue terminar. Drestin entra correndo. Ele está
ofegante como se já estivesse correndo há algum tempo. Seus olhos passam
por mim e pousam em Eldas.
— É Harrow — ele ofega. — Houve um ataque.
CAPÍTULO 33
— UM ATAQUE? — ELDAS REPETE, PARECENDO UM TANTO ATORDOADO. EU TAMBÉM tenho dor de cabeça com a
mudança repentina na conversa.
— Antes de nos sentarmos para comer, enviei cavaleiros. Eu estava
preocupado. Eles encontraram a mamãe em sua carruagem nos arredores de
Westwatch. Mas Harrow não estava com ela. Ela disse que ele queria parar
em Carron antes de vir para cá e ela não pôde dizer não – claro que não, não
para seu querido Harrow. Então ela o deixou ir. Seu cavalo e guarda foram
encontrados estripados fora de Carron. Não há sinal de Harrow.
— Carron, por que ele estava–
— Aria — eu paro Eldas. — Ele foi ver a apresentação de Aria. Ela
mencionou que se apresentaria em Carron com a Trupe de Máscaras como o
início das apresentações que antecedem a Coroação. — Eu olho entre os dois
homens. — Quão longe é Carron?
— É subindo ao longo da muralha, a uma hora de Westwatch —
responde Drestin.
— Vamos.
— Você deveria ficar aqui. — Eldas diz com firmeza.
— Eu vou — digo com tanta força que quase posso ouvir as palavras
ecoando em seus crânios duros. — Vocês dois vão precisar de mim.
Drestin olha entre Eldas e eu, as sobrancelhas arqueadas com um olhar
um tanto surpreso. Rinni pode estar familiarizada com o relacionamento
informal entre Eldas e eu. Mas parece que Drestin ainda não.
— Vossa Majestade–
Eu ignoro sua surpresa e rejeito sua objeção.
— Existe um portão para as terras fadas em Carron?
— Não — responde Eldas.
— Nenhuma maneira de atravessar a muralha? — Eu pressiono.
— Não. — Eldas repete.
— Bem... — Seu irmão começa, ganhando uma sobrancelha arqueada
de Eldas. — Houveram relatos de locais onde a muralha foi enfraquecida.
Fazendeiros conversando, espalhando rumores de fadas ultrapassando. Mas
eu ainda não confirmei...
Minha mente está se movendo tão rápido quanto minhas mãos
frenéticas. Enquanto os homens falam, eu termino a poção que eu estava
preparando e a coloco em uma bolsa de couro que roubo de um pino perto
das portas que dão para os jardins. Deixo-os por um momento para procurar
nos jardins por qualquer coisa fresca que eu possa precisar para magia ou
cura de emergência.
Infelizmente, não consigo encontrar nenhum Coração-Real. Parece que
a informação inicial de Willow sobre a planta ser incrivelmente rara é
verdadeira.
— Luella, fique... — Eldas tenta dizer enquanto eu entro novamente no
laboratório.
— Eu já disse a vocês dois, eu irei. — Eu encaro os dois elfos em seus
olhos azuis, tentando me comunicar apenas com minha postura – com peito
aberto e firme – de que isso não é uma negociação. — Tenho informações
das quais você podem precisar.
— E o que poderia ser? — Drestin pergunta.
— Estamos perdendo tempo, apenas confie em mim. — Eu olho para
Eldas. — Por favor.
Ele dá um pequeno aceno de cabeça e estende a mão.
— Para Carron.
Meus dedos se fecham em torno dos de Eldas. Juntos, entramos na
névoa escura que se eleva sob os pés de Eldas. Vamos pela Passagem da
Bruma até uma estrada lamacenta a uma curta caminhada de uma cidade do
tamanho de Capton. Drestin emerge de uma nuvem de névoa ao nosso lado.
Redemoinhos escuros permanecem no ar por apenas um momento antes de
se dissipar com o vento e deixar um homem onde eles estiveram.
Carron está ao longo da muralha, exatamente como Drestin disse.
Muito parecida com o Westwatch, há uma ponte que cruza o trecho mais
estreito do rio. Se eu fosse uma fada procurando esconder algo no território
dos elfos, este certamente seria o lugar onde eu tentaria fazer isso.
Nos campos à direita da cidade, tendas foram erguidas. Elas se
iluminam por dentro, suas cores brilhando como doces na escuridão
cintilante que se segue à noite após a chuva. Ao longe, bandeiras tremulam
com a brisa noturna. Podemos ouvir murmúrios eufóricos nos campos.
— Vá e investigue a Trupe de Máscaras. — Eldas ordena a seu irmão.
— Procure por quaisquer sinais de jogo sujo.
— E você?
— Vou para a cena do crime. — Eldas não espera a resposta de Drestin;
já estamos nos movendo através da Bruma novamente.
Saímos diante a uma cena sangrenta. Um cavalo foi esfolado, suas
entranhas se espalharam no chão. Seu cavaleiro – um guarda cujo rosto eu
não reconheço, mas que usa a armadura da cidade de Quinnar – foi rasgado
quase ao meio.
— Lobos? — Eu pergunto, observando as marcas de garras.
— Não é um lobo. — Eldas diz sombriamente. — Essas são garras de
fadas.
Eu estremeço e penso na criatura com chifres no beco. Então fadas
podem ter asas, chifres e garras. Elas são as criaturas que assombravam
meus pesadelos, não os elfos.
Eldas se agacha, procurando qualquer pista sobre quem pode ter feito
isso ou o que aconteceu com Harrow. Eu continuo encarando o elfo morto:
olhos arregalados, sangue empoçado na lama. Eu afasto meu olhar e varro as
planícies que cercam a estrada. Em minha mente, tento recriar a cena que
aconteceu.
Não há lugar para se esconder, o que significa que Harrow e seu guarda
assistiram seus atacantes chegando. Glamour das fadas? Eu olho para a
estrada. Não.
— Eldas, algo não está certo aqui.
— Sim — ele rosna. — Meu irmão pode estar morto! — Eldas se
levanta com sua voz. — Algo está muito errado. Precisamos explorar a área.
Eles não podem ter ido longe.
Eu permaneço calma diante de sua raiva e pânico. Eu já tive famílias
descontando sua tristeza por parentes doentes sobre mim. A preocupação
transforma os corações dos homens em algo irreconhecível. Mas o melhor
senso acaba prevalecendo, mais cedo ou mais tarde.
— Veja. — Eu aponto para a estrada. — Choveu durante o jantar, o que
significa que qualquer glamour de fadas não teria funcionado. Você disse
que a água ou desfaz, certo? — Ele faz uma pausa, balançando a cabeça
lentamente. Eu continuo — Além disso, quaisquer pegadas também devem
ter sido lavadas. Essas são as nossas. Então, há essas... — Profundas poças
de água acumuladas em dois conjuntos de pegadas. Um conjunto de botas, o
outro de patas maiores do que quaisquer outras que eu já vi. Maiores que as
de Hook.
Falando nisso... Levo meus dedos aos lábios e solto um assobio
estridente.
— Hook, venha — eu ordeno. O lobo salta entre as sombras da noite. É
bom vê-lo novamente depois de alguns dias – bom saber que ele ainda virá
quando eu chamar. Mas este não é o Hook fofinho que eu conheço. Ele solta
um rosnado baixo com a carnificina. Seus olhos estão alertas e suas orelhas
pressionadas contra a cabeça.
— Hook. — Eu chamo sua atenção para mim. — Você consegue
identificar o cheiro de Harrow para nós?
Como de costume, Hook parece entender meu comando. Ele caminha
até os cavalos, farejando ao redor deles. Enquanto eu presumo – espero –
que Hook esteja sentindo o cheiro de Harrow, Eldas pergunta:
— Aonde você quer chegar? — Posso vê-lo tentando tirar a
preocupação de sua mente para que possa pensar com clareza outra vez.
— Acho que os corpos foram colocados aqui.
— Por quê?
— Para nos despistar e nos fazer perder tempo procurando ao longo dos
campos e estradas. — Eu olho para trás, para Carron. — Harrow estava aqui
para ver a apresentação de Aria. Aria, provavelmente, sabia que ele viria. Ela
poderia ter avisado a um grupo de fadas que ele estava a caminho.
— Aria não agiria contra sua família. Prejudicar Harrow prejudica as
chances de seu pai.
Minhas suspeitas persistem fortemente, apesar desse lembrete. Mas
expressá-las agora não ajudará.
— Ela pode ter feito isso sem querer, dito a coisa errada para a pessoa
errada?
Eldas resmunga com a ideia de seu irmão ser traído, mas finalmente
não se opõe.
— Precisamos vasculhar a cidade. — Eu agarro o saco ao meu lado
com força e os frascos de ervas que trouxe comigo tilintam suavemente em
torno das plantas perdidas. Quando digo a Eldas que estou preocupada com
o estado em que podemos encontrar Harrow? Por quanto tempo mais posso
manter o segredo de Harrow antes que seja prejudicial para ele? — Leve-nos
para lá.
Eldas não diz nada e agarra minha mão. Enterro meus dedos livres no
pelo de Hook e nós três caminhamos pela Bruma para as ruas lamacentas de
Carron. Imediatamente, o nariz de Hook está no chão.
Ele fareja ao longo da estrada, indo e voltando até que parece ter um
cheiro.
— Eu posso ir com o Hook, você pode procurar–
— Eu não vou sair de perto de você. — Eldas diz com firmeza e vai
atrás de Hook.
A pequena cidade está estranhamente silenciosa. Cada morador trancou
sua casa e foi ver a apresentação da Trupe de Máscaras. O brilho líquido das
lamparinas reflete nas vidraças escuras e se extingue nos cantos, lançando os
becos nas sombras mais escuras e sinistras que eu já vi.
Seria o momento perfeito para atacar um príncipe. Harrow foi atraído
por Aria e, se minha suspeita estiver correta, pelo apelo do glimmer que ela
poderia estar fornecendo a ele. Posso imaginá-lo caminhando por essas ruas
silenciosas, dizendo ao guarda para recuar enquanto o negócio era fechado
para preservar seu segredo. Imagino sua sombra no beco através do qual
Hook nos leva. Eu imagino o dinheiro trocando de mãos em mãos por
glimmer enquanto seu guarda era eviscerado. Aria sorrindo docemente,
sabendo que ela se juntou à Trupe de Máscaras com o único propósito desta
primeira apresentação – para deixar Harrow tão perto das terras das fadas.
Quando Harrow percebeu alguma coisa, já era tarde demais.
— Não entendo. — Eldas mantém sua voz baixa. Ele se move com uma
graça quase felina e silenciosa. — Harrow deveria ser capaz de dominar
alguns fadas. Ele tem tanta conexão com o Véu quanto Drestin e, embora
possa ser estúpido, ele é inteligente o suficiente para não cair nas meias-
verdades deles.
— A menos que fosse mais do que algumas fadas? — E a menos que
ele tivesse ingerido tanto glimmer que o deixasse fora de seu juízo perfeito.
— Com o seu guarda–
— A menos que ele tenha dito a seu guarda para esperar em outro lugar.
— Por que ele faria isso? — Eldas para e me encara. Minha expressão
deve deixar transparecer algo, porque seus olhos se estreitam. — O que você
sabe?
Já falei demais e sei disso.
— Eu não sei de nada além de que temos que encontrar Harrow.
— Você está mentindo para mim — ele sibila. Sua testa está franzida de
raiva, mas seus olhos estão feridos. — Eu te conheço bem o suficiente para
saber como o ar muda ao seu redor quando você tenta me enganar.
Eu engulo em seco.
— Não há tempo agora–
— Diga-me o essencial, então.
— Estou tentando respeitar meu paciente — digo fracamente.
— Isso é uma ordem.
— Mas–
— Luella! — Ele pressiona, a preocupação contrastando com a
frustração em sua voz.
— Harrow está usando glimmer — eu deixo escapar.
— O quê? — O branco luta para consumir os olhos de Eldas enquanto
suas pálpebras se mantêm dolorosamente abertas. — Como você–
— Ele me disse — eu digo rapidamente. Então, o nervosismo e o medo
me levam a falar ainda mais rápido. Corro para contar a Eldas o que vi no
beco – o que suspeito ser glimmer passando para as mãos de Aria do seu
cúmplice fada. Sobre o que Harrow me contou em sua cama e sua confusão
sobre como ele se tornou viciado na substância que nunca quis tomar. Minha
teoria de Aria ter usado isso para atrair Harrow até aqui, sozinho.
— Eles estavam planejando isso... Ir atrás de você naquele dia não era
nada mais do que uma oportunidade inesperada. É por isso que sua tentativa
de sequestro pareceu tão aleatória. Foi um crime de conveniência. Mas a
verdadeira trama era Harrow o tempo todo, porque os instigadores fadas
sabiam que eles tinham uma mulher que tinha seus ouvidos. — Eldas ferve.
Espero que a raiva em seus olhos seja dirigida aos fadas e não a mim, mas
não tenho certeza. — Você e eu discutiremos suas escolhas de esconder tudo
isso de mim com mais detalhes quando meu irmão estiver seguro.
— Tudo bem. — Quero objetar, apontar que tentei dizer a ele,
respeitando os desejos do meu paciente, mas sei que não é a hora nem o
lugar. Ele tem razão. A segurança de Harrow é a prioridade agora.
Hook solta um gemido baixo e começamos a segui-lo novamente. O
lobo nos leva a um canto esquecido da cidade. Pilhas de lixo revestem a
muralha e enchem o ar com seu fedor. Eldas tapa o nariz, recuando. Eu já
senti cheiros piores de algumas plantas raras, mas o odor ainda me atordoa.
De alguma forma, Hook consegue manter o rastro através de tudo isso e
nos leva a uma série de tábuas encostadas na parede – escondidas pelo lixo
empilhado na frente delas. Hook arranha e solta um rosnado baixo. Quando
Eldas e eu nos aproximamos, ouvimos o eco fraco de pessoas falando,
palavras indiscerníveis. Através das rachaduras nas tábuas, é visível a linha
escura de um túnel na parede.
— Fique aqui — ele sibila.
— Mas você precisa–
— Eu não preciso de você. Você é meu ponto fraco, porque não posso
permitir que nada aconteça com você. E se você tivesse sido franca comigo
desde o início, tudo isso poderia ter sido evitado — ele rosna para mim com
uma raiva que eu não pensei que Eldas pudesse abrigar em relação a mim.
Eu cambaleio para trás como se ele tivesse me batido. No entanto, mesmo
com sua raiva, sua preocupação e compaixão por mim transparecem. Isso me
lembra que o Eldas que passei a conhecer e gostar ainda é o homem que está
diante de mim. — Fique aqui, se esconda e fique segura com Hook. Se algo
acontecer com você, serei forçado a despedaçar cada fada com minhas
próprias mãos.
Antes que eu possa dizer qualquer outra coisa, Eldas empurra as tábuas
de lado, entra na escuridão e me deixa sozinha. Eu cerro meus dentes. Hook
solta outro gemido baixo.
Imagens de Eldas emboscado, ferido e sangrando, preenchem minha
mente. Certamente Aria sabia que ele viria atrás de Harrow, não é? A menos
que eles pensassem que poderiam levar Harrow para longe muito antes que
alguém percebesse? Esses pensamentos giram em torno da imagem de
Harrow, drogado ao ponto da incoerência.
Encontro os olhos dourados luminescentes de Hook.
— O que você faria? — Eu sussurro. O lobo olha de volta para o buraco
na parede. — Se você insiste, não posso argumentar contra isso.
Eu pesco na minha bolsa um ramo de sarça. Eu colhi as plantas que tirei
dos jardins de Westwatch com cuidado. Cada uma por um motivo diferente,
com base nas percepções de uma rainha do passado. Por semanas tenho lido
e praticado os métodos que elas escreveram.
A memória do meu último ataque perdura. Eu não estava confiante com
minha magia naquela época. Eu precisava de Hook e Eldas para ter uma
chance. Mas não sou a mesma mulher que era. Eu sei como usar meus
poderes e confio na terra sob meus pés para me manter segura.
— Vamos. — Eu aceno em direção à abertura e Hook avança na
escuridão, sem medo. Tento imitá-lo, seguindo de perto. Enquanto
caminhamos, empurro a magia da minha mão para a sarça, carregando-a
com energia para usar em uma grande explosão.
O silêncio é quebrado à distância por um grito agudo que é
interrompido com um som nauseante.
— Vá! — Peço a Hook e ele pula na frente. Eu tropeço na escuridão,
correndo minha mão ao longo da parede áspera. Isso corta a minha pele, mas
continuo pressionando com firmeza.
Logo, uma lasca de luz me guia. Consigo distinguir a sombra de Hook,
correndo para frente. Ele cruza para o luar antes de mim. Os ruídos de luta
sobem em meus ouvidos. Eu continuo bombeando meus pés para frente.
Eu nunca estive em uma luta de verdade antes. Estudei como curar, não
como machucar. Mas eu também nunca fui casada antes, cruzei a Bruma,
tive magia, dormi com um homem ou amei assim antes. Eu tenho sido capaz
de lidar com todas essas primeiras coisas a passos largos.
Eu posso fazer isso.
Eu saio para uma floresta. Instantaneamente, eu noto como as terras das
fadas são diferentes do Reino dos Elfos. Partículas de magia flutuam no ar
entre as árvores, lançando tons de azul e verde em tudo. Vinhas floridas que
não reconheço pendem como cortinas nos galhos frondosos das árvores. Até
a terra parece diferente sob meus pés; é mais bruta, mágica e muito mais
parecida com o que eu originalmente esperava do Entre Mundos.
O rosnado de Hook seguido por um grito me traz de volta à realidade.
Eu corro para frente, avançando entre as árvores até uma clareira baixa. Dois
fadas estão mortos, suas gargantas cortadas com uma violenta linha escura.
Eldas enfrenta uma fera com patas que combinam com as pegadas que vimos
na estrada. O animal é do tamanho de um urso, coberto de pelos em volta do
rosto e das patas, mas o resto do corpo é coberto por escamas que parecem
úmidas, como as de uma serpente.
A lamúria de Hook chama minha atenção através da clareira para onde
o lobo está sendo espancado por outro fada com chifres de carneiro. Os
olhos do homem brilham em um violeta brilhante e suas mãos se movem
pelo ar, magia vaporosa traçando seus movimentos. Tanto a besta quanto o
homem usam colares com pesadas labradoritas em volta do pescoço.
Seguro a sarça e afundo os pés no chão.
Um braço se fecha em volta de mim e a lâmina de uma adaga está na
minha garganta.
— Rei Eldas! — Aria grita por cima do meu ombro. Meus ouvidos
zumbem. Eu tinha razão; era ela o tempo todo. Nunca fiquei tão zangada por
estar certa. — Se você não vai negociar conosco por seu querido irmão,
então talvez por sua rainha?
Os olhos brilhantes de Eldas deixam a besta para nos encarar. Uma
raiva diferente de todas que eu já vi transforma suas belas feições em pura
raiva. Ondas de sombra irradiam dele e a presença da Bruma engrossa com
sua magia.
— Deixe-a ir — ele rosna.
— Nos deixe ir e concorde em nos dar a terra que é nossa por direito!
— Ela empurra a adaga mais perto da minha garganta.
— Aria, não faça isso — diz o homem com chifres de carneiro, a voz
fraca com esgotamento. — Você deveria fugir. — Vejo algo que reconheço –
uma emoção que já vi em Eldas inúmeras vezes. Admiração, compaixão.
Estou começando a juntar as peças do enredo simples que parece ter sido...
Aria se apaixonou por um dos fadas rebeldes. Amor era a única coisa que
poderia fazer alguém agir contra seus próprios interesses.
— Você insulta a tentativa de diplomacia do seu povo – da sua família –
e prejudica sua causa com isso. — Eldas estende os braços e uma série de
lâminas de prata aparecem. Ele convoca cada uma com nada mais do que um
pensamento – o Nome Verdadeiro de uma arma que ele aprendeu e guardou
na memória ao longo de sua vida. — Mate-a e você mata todos nós.
— Nossas terras são frias e cruéis — grita Aria. — Ela só torna o Reino
dos Elfos viável para comida e caçadas.
— Isso não é… — Eu não consigo dizer uma palavra. Aria me puxa
com mais força e a adaga pica minha garganta quando ouso falar. O sangue
escorre pela lâmina, caindo na terra.
— Silêncio — ela rosna para mim. — Temos uma maneira de você não
ser mais necessária. Um ritual que irá restaurar esta terra.
Ritumancia... Willow explicou isso como o ato de realizar rituais para
obter magia. Nunca esperei que Aria fosse ser aquela a me dar a peça que
faltava para finalmente montar o quebra-cabeça de como encerrar o ciclo.
Mas ela deu.
Eu só tenho que sobreviver o suficiente para testar minha teoria.
— Nem mais um passo. — Aria grita quando Eldas começa a se mover;
os olhos dele ainda estão grudados em mim com pânico. — Eu conheço
você, você não ousará arriscar a vida da Rainha Humana.
Gotículas estão pingando da mão que cortei na parede por um bom
tempo agora, misturando-se ao meu sangue escorrendo de sua lâmina. Eu
sorrio; aprendi muito cedo o quão perigoso meu sangue pode ser quando
misturado com a natureza.
— Ele não vai — eu sussurro. — Mas eu vou.
Magia explode ao meu redor com uma força que eu não sentia desde a
tarde com Harrow no recanto do almoço. Eu libero meu controle e ela flui
para a terra sem restrições.
Eu sou como uma praga na terra. A morte se espalha ao meu redor
enquanto o poder é consumido e sugado da própria terra. Equilíbrio, tudo
requer equilíbrio.
A sarça escapa pelos meus dedos e se contorce para fora. As trepadeiras
espinhosas envolvem Aria e ela solta um grito. Posso sentir suas pequenas
adagas cravando-se em sua carne como se as videiras fizessem parte do meu
próprio corpo.
No entanto, nenhum dos espinhos crescem em minha direção. Aria está
encasulada em uma prisão perversa – presa, mas não morta – e estou livre
para me afastar enquanto as trepadeiras torcem a mão que segura a adaga
para longe da minha garganta como violentos cordões de marionetes. A terra
racha sob meus pés enquanto eu caminho. Uma sarça espinhosa e raivosa me
segue e corre em direção à besta quando eu aponto em sua direção.
A criatura com garras e escamas tenta fugir. Mas não pode superar
minha magia. O ar muda conforme Eldas volta sua atenção para o fada
remanescente. As armas que ele convocou chovem como uma saraivada de
aço no homem restante. Aria solta um grito – frio e longo – de pura angústia.
Eu abaixo minha mão no momento em que o último fada é envolto em
sarça. De repente, a energia deixa meu corpo e eu caio de joelhos. Eles se
chocam contra o solo rochoso, agora rachado e seco – sem qualquer vida,
exceto minhas trepadeiras.
CAPÍTULO 34
HOOK CORRE ATÉ MIM, LAMBENDO MEU ROSTO ENQUANTO ESTOU AJOELHADA. É como se eu tivesse acabado de
me sentar no trono. Meu corpo treme e dói. A exaustão turva minha visão.
— Você o matou! — Aria grita. — Meu amor, meu amor... — Suas
palavras se transformam em soluços. Não tenho certeza se ela para de falar
ou se minha mente para de prestar atenção nela – se focando em me manter
consciente.
Eu realmente fui feita para trazer vida, não morte. Mesmo usando este
último como um método para atingir o equilíbrio, exige um alto custo.
Ondas de magia rolam dentro de mim como um mar agitado e eu balanço
ligeiramente. Estou toda pegajosa, escorregadia de suor, como se meu corpo
estivesse tentando eliminar a sensação incômoda de tornar a terra estéril.
— Luella–
— Estou bem — digo enquanto Eldas se ajoelha ao meu lado. Eu olho
para ele e depois de volta para Aria. Ela agora olha entorpecida para o
mundo ao seu redor, minhas vinhas afundando em sua carne em vários
pontos. Não importa o que aconteça, eu não poderia matá-la. Simplesmente
não está em mim. Portanto, deixarei para Eldas e sua justiça decidir o que
acontecerá a seguir. — Você lida com ela. Eu cuidarei de Harrow.
— Vou levar vocês dois de volta para Westwatch — declara. — Voltarei
e lidarei com eles quando souber que você está segura.
— Mas...
— Eles não vão a lugar nenhum nos próximos cinco minutos. — Eldas
acena com a cabeça para a planta que nos cerca. — Você realmente é incrível
— ele murmura enquanto desliza o braço sob o meu e em volta dos meus
ombros. Com Eldas me ajudando, cambaleamos até onde Harrow está. Ele
está em algum tipo de torpor; seus olhos estão encobertos e meio abertos,
sem foco. A boca de Eldas está apertada em uma linha sombria.
— Vou ajudá-lo — digo.
— Eu sei que você vai. — Eldas se inclina para frente, apoiando a
palma da mão em Harrow. Ele acrescenta com um murmúrio ligeiramente
amargo: — Ajudá-lo a todo custo parece ser um de seus pontos fortes.
As sombras se espessam ao nosso redor antes que eu possa comentar
sua afirmação e então são prontamente afugentadas pelas luzes da entrada de
Westwatch. Dois guardas se assustam com nossa aparição repentina. Eldas
grita ordens e desaparece mais uma vez, deixando Harrow e eu para trás.
Percebo que Hook não se juntou a nós e espero egoistamente que ele esteja
cuidando de Eldas nas terras das fadas enquanto Eldas lida com Aria e as
repercussões do que aconteceu.
A meu pedido, Harrow é levado para um quarto não muito longe do
laboratório. Cada passo é mais difícil do que o anterior, mas o tilintar das
misturas na minha bolsa me mantém em movimento. Harrow precisa do
remédio que fiz e muito mais.
Sevenna não está em lugar nenhum enquanto estou tratando de Harrow
– uma bênção. Posso me mover sozinha e sem obstáculos durante a primeira
hora de seu tratamento. Depois disso, sou cercada por outros curandeiros.
Harrow está estável o suficiente, e eu escapo antes que o que quer que
estivesse segurando Sevenna ceda.
Meus aposentos estão frios e vazios quando volto para eles pouco
depois do amanhecer. Eu olho para a cama, mas a ideia de dormir sozinha
sem Hook ou Eldas para me manter aquecida não é atraente. Em vez disso,
eu tomo banho, lavando os acontecimentos da noite, e então me enrolo no
sofá da nossa sala, caindo no sono apesar de tudo.
Metade do dia já se passou quando eu acordo. Eldas é a primeira coisa a
entrar em foco. O diário de Lilian está em seu joelho, aberto no meio.
Mesmo com sua velocidade de leitura sobre-humana, ele provavelmente não
dormiu se está tão adiantado.
— Você acordou — diz ele sem sequer olhar para cima.
— Parece que sim. — Eu me endireito. Cada músculo grita em
protesto. Eu poderia dormir mais dois dias facilmente. — Como está
Harrow?
— Dizem que ele está estável. Os curandeiros esclareceram a... Como
você chamou? Febre que ele pegou por estar na chuva? Embora ele ainda
não tenha acordado. — Os olhos de Eldas finalmente se voltam para mim.
— Achei que você não gostaria que todos soubessem sobre o glimmer
— digo cautelosamente.
— Tantas presunções que você faz. — Ele fecha o diário lentamente.
— Você presumiu que eu não gostaria que as pessoas soubessem sobre o
envolvimento de meu irmão com glimmer.
— Eu estava errada?
— Você presumiu que eu não deveria saber.
— Eu estava tentando respeitar os desejos dele — eu digo calmamente.
— Ele claramente não podia ser confiável para ter uma opinião sobre o
que era melhor para ele se ele estava usando glimmer!
— Essa não é minha escolha a fazer.
— Você presumiu — toda vez que ele diz isso, a palavra se torna ainda
mais uma acusação — você poderia ter entrado em uma situação para a qual
estaria terrivelmente despreparada.
— Eldas — eu digo suavemente, mas com firmeza. Seus olhos estão
preocupados e cansados. Agora não é hora de ter essa conversa. Respiro
fundo e tento começar do início. — Não contei a você sobre o glimmer
porque não queria trair a confiança de Harrow. Duvido que ele tenha contado
a alguém sobre isso – exceto talvez para Jalic ou Sirro, que podem estar na
trama de Aria também. Não sei. Se eu traísse a confiança que ele depositou
em mim, ele provavelmente teria recuado ainda mais e mantido esse segredo
guardado até o túmulo. — Um túmulo que poderia ter vindo muito cedo se a
noite passada tivesse terminado de forma diferente. — Eu temia
genuinamente por ele, Eldas. E eu estava preocupada que se eu desse a ele
um motivo para afastar a única pessoa com quem ele começou a se abrir,
isso seria muito mais prejudicial do que qualquer outra coisa. Lamento não
poder imaginar que nada disso aconteceria.
O rei franze os lábios e olha para a janela. Ele apóia o cotovelo no
braço da poltrona em que está sentado e leva a mão aos lábios, como se
estivesse fisicamente tentando se forçar a não dizer algo de que se
arrependerá.
— Os fadas faziam parte de um grupo chamado Acólitos da Floresta
Selvagem. Um benefício de eles não serem capazes de mentir é que isso
pode tornar mais fácil interrogá-los depois de certo ponto.
Lembro-me de Rinni dizer esse nome antes uma vez e ignorar suas
observações sobre o interrogatório. Acho que não quero saber o que ele quis
dizer.
— Aria estava ajudando-os a se infiltrar na corte de seu tio. Foi assim
que eles puderam entrar sorrateiramente com os dignitários, mas sem que o
Rei Fada soubesse. Não posso acreditar que permiti que ela entrasse em
minha casa. — Eldas direciona sua frustração para dentro de si. Ele nem
parece estar falando comigo.
— O que você fez com Aria? — Eu tenho que perguntar. Posso não
querer saber de verdade, mas preciso saber.
— Ela será trancada e a chave será perdida por um tempo — diz Eldas,
finalmente. — Eu quis matá-la ali mesmo. Mas ela ainda é a sobrinha do Rei
Fada; ele deve ser aquele a decidir o destino dela. Permitir que ele faça isso
será uma demonstração de boa vontade e me mostrará se ele leva a sério o
relacionamento entre nossos reinos ou não.
Eu faço uma careta com a ideia de ter que julgar um membro da família
– alguém que amo.
— E o resto do grupo?
— Aqueles que eu consegui caçar enfrentaram minha justiça. — Não há
um pingo de remorso em sua voz. Mortos, então. Eu engulo em seco e tento
não julgar Eldas pelo que ele deve fazer como rei. — Esperançosamente,
esse plano, planejado há tanto tempo, ter dado errado os manterá recolhidos
por um tempo. Então, quando quebrarmos o ciclo, isso realmente acabará
com as alegações de favoritismo pelos elfos da Rainha Humana e da terra
morrendo. O que estamos fazendo vai ajudar a todos... mesmo que eles não
saibam ainda.
— Falando nisso, acho que sei como fazer – quebrar o ciclo — digo.
Ele arqueia as sobrancelhas. — Acho que a solução é mais simples do que
poderíamos imaginar. É uma questão de restaurar o equilíbrio entre o Entre
Mundos e o Mundo Natural – como o jardim da rainha. — Eu posso ver a
solução começando a iluminar os olhos de Eldas enquanto eu falo. — Acho
que com algo como a ritumância das fadas, podemos reunir os requisitos
necessários para encontrar o equilíbrio. O que pode fazer sentido – a magia
da Rainha Humana é mais parecida com a das fadas do que com a dos
elfos... provavelmente porque as fadas são mais próximas das dríades e tudo
mais. — Acredito que minha lógica esteja certa, já que as fadas eram
descendentes das dríades e as dríades mais tarde criaram os humanos, mas já
faz um tempo que Willow e eu discutimos a história de Entre Mundos.
— Bom. — No entanto, ele contradiz sua palavra balançando a cabeça
enquanto se levanta.
— Você não parece feliz. — Eu vejo enquanto ele encara o fogo
crepitante na lareira atrás de sua cadeira.
— Claro que não estou feliz — ele murmura sombriamente.
Meu peito se aperta. Eu esperava que ele estivesse com raiva. Mas eu
não esperava o quão doloroso isso seria.
— Eldas, eu–
— Meu irmão poderia ter se machucado. Você poderia ter se
machucado. — Ele olha por cima do ombro.
— Eu não sabia a extensão da situação, não realmente. Achei que seu
irmão estava em uma situação difícil. Eu não pensei sobre a política que
pode estar envolvida. — Eu lentamente me levanto, permitindo que o mundo
gire e se estabilize. Minha magia e meu corpo estão exaustos.
— É o melhor — ele murmura.
— O quê?
Eldas se vira e sua expressão é irreconhecível. Não vejo aqueles olhos
frios desde nosso casamento.
— Que você vá embora em breve.
— Você está falando sério? — Eu sussurro.
— Claro que estou. É o que você queria, não é? Você tem uma ideia e
com base no que li desse diário, você não está muito longe. — Eldas me
encara. — Você não será mais necessária aqui e pode ir – se livrar de mim.
Nenhum rei jamais terá que sofrer com uma Rainha Humana novamente.
— Pare com isso — eu sussurro. Cada palavra é como uma ferida
física, cortando-me mais profundamente do que pensei ser possível. Estou
chocada que o chão não esteja ensanguentado. — Eu sei que você está
chateado e... você tem um motivo para estar zangado comigo. Mas Eldas,
eu...
— O que você sente por mim? — Ele se vira para mim enquanto joga
minha pergunta de volta para mim. Eu me inclino contra a cadeira para me
estabilizar. Caso contrário, posso ser arremessada ao chão por seu olhar.
— Você nunca me respondeu isso também — eu o lembro fracamente.
— Se você perguntou, então você deve ter algum tipo de ideia do que
eu posso sentir. — Eldas recupera sua altura. — Mas eu quero saber sobre
você, Luella. O que você sente por mim? Você me ama?
Cada poro, cada parte crua da minha essência grita, sim! Mas meus
lábios não se movem. Eles tremem silenciosamente e meus olhos ardem.
Sim, diga sim, Luella. Mas se eu disser sim agora... sempre vou duvidar de
mim mesma.
— Diga-me, Luella, você me ama? — Sua voz assume uma nota quase
implorante.
Eu pressiono meus lábios com mais força, lutando contra todos os
instintos. Minha mente está em guerra com meu coração. Meu senso de
dever para com Capton e o Entre Mundos lutam contra uma vontade
impulsiva que esses sentimentos trouxeram à tona em mim. O silêncio é a
melhor coisa para nós, mesmo que ele não veja isso agora.
— Diga-me agora ou lavarei minhas mãos em relação a você para
sempre.
Como posso fazê-lo entender?
— Eldas, eu–
— Sim ou não, você me ama? — Sua voz aumenta um pouco.
Eu vejo quando ele se quebra sob meu silêncio e hesitação.
— Não. Claro que não. Quem poderia? — Ele ri tristemente e balança
a cabeça. — Eu já suspeitava que não, dados os segredos que você escolheu
manter.
— Eldas, não é tão simples.
— É, sim. — Ele me espeta com um olhar e eu não consigo respirar. —
É uma pergunta simples, com uma resposta simples. Suas ações e tudo que
você não pôde falar me disseram tudo o que eu preciso saber.
— Eu queria – nossa situação é – não podemos ter certeza – eu tenho
que ir para saber... — É impossível para mim formar uma frase coesa. O
mundo está estrondando sob meus pés. Eu ouço os gemidos e fraturas de
estresse ao meu redor como teia de aranha. Faça ele entender, eu tenho que
fazê-lo entender. Mas quando mais preciso de palavras, todas elas me faltam,
até mesmo as frenéticas. — Eldas–
Ele fecha a porta atrás de si. O clique suave da trava me atinge como
um tambor. Eu balanço e, em seguida, corro para a porta e a abro com um
puxão. Mas eu já sei o que me espera – um corredor vazio.
Ele se foi.
CAPÍTULO 35
ELDAS RETORNA SOZINHO PARA QUINNAR. ELE VOLTA PELA PASSAGEM DA BRUMA sem dizer sequer uma palavra
para mim. Eu descubro através de Drestin que ele se foi e esse é realmente o
maior golpe de todos. A carruagem na volta é tão fria e solitária quanto os
corredores do castelo que me aguardam. Nem mesmo a presença de Hook
pode afastar o frio. Passo as horas tendo um longo debate comigo mesma
sobre o que eu poderia ou deveria ter feito de forma diferente ao longo do
caminho.
Quando o castelo de Quinnar é visível à distância, erguendo-se alinhado
com o topo das montanhas e elevando-se sobre os campos, não tenho certeza
do que sinto. Uma parte de mim está estranhamente nostálgica pelo lugar.
Outra parte de mim prefere estar em qualquer lugar que não seja esta
carruagem, aproximando-se cada vez mais.
Rinni está esperando por mim quando a carruagem para antes da
entrada do túnel do castelo.
— O que aconteceu? — ela pergunta– não, exige.
— Harrow–
— Eu sei o que aconteceu com Harrow. Eu sou a general de Eldas,
então é claro que ele me contou sobre isso. — Rinni se aproxima de mim,
enganchando seu cotovelo no meu e me levando até as portas. Hook segue
logo atrás. Sua voz se transforma em um sussurro quando ela olha para trás,
para ter certeza de que os soldados que estavam do lado de fora da minha
carruagem não estão nos seguindo. — O que aconteceu entre vocês dois?
— Nada aconteceu — minto.
— Isso é o que ele disse e é obviamente uma mentira.
— Rinni–
— Eu comecei a ver mudanças nele – mudanças para melhor, Luella.
Comecei a ver um lado mais caloroso e gentil dele. Me deu fé e esperança no
homem que nos lidera. — Paramos no grande hall de entrada. A grande
escadaria se arqueia para cima na extremidade oposta, dividindo-se na sala
vazia. Ela me traz de volta memórias de quando cheguei.
Incrivelmente, acho que tudo era mais simples naquela época. Quando
Eldas não era nada mais do que um rei. E eu mal entendia meu papel como
rainha.
— Mas desde que ele voltou... Ele voltou a ser o antigo Eldas. — Rinni
termina. — E eu sei que isso deve significar que algo aconteceu entre vocês
dois.
— Eu não posso mudá-lo, Rinni. — Eu encolho os ombros como se o
peso do mundo não estivesse sobre eles. Se Rinni acreditar que não me
importo, talvez Eldas também acredite, e então talvez eu acredite. E aí, de
alguma forma, este lugar insuportável em que estou pode se tornar mais
fácil.
Ela pisca, assustada.
— Eu não estou pedindo ou esperando que você o mude. Ele estava
mudando a si mesmo porque acreditava que poderia ser um homem digno de
amor – seu amor.
Eu não consigo suportar suas palavras. Eu não quero ouvir isso dela. Eu
queria ouvir de Eldas. Não, eu não queria ouvir de jeito nenhum. É
impossível, não podemos amar um ao outro. Não nessas circunstâncias, não
tão rapidamente.
Mas o que eu sei sobre o amor? O que eu um dia já soube sobre o
amor? Nada, e é por isso que eu estraguei tudo.
Preciso voltar ao que entendo e ao que não vai me machucar – meu
dever.
— Desculpe, Rinni, eu acho que você pode estar enganada. Mas eu
realmente não tenho tempo para discutir isso. Os dias estão ficando mais
frios e tenho trabalho a fazer. Hook, venha.
Rinni me encara com indiferença enquanto vou em direção ao meu
quarto. Ela eventualmente vem como uma sombra atrás de mim, mas posso
dizer que é apenas por obrigação. Ela não diz mais nada enquanto eu me
escondo para pensar e trabalhar.
Espero que ela acabe ficando do lado de Eldas... Ele precisa dela muito
mais do que eu agora.
Eldas não fala comigo por três dias. No quarto, ele quebra o silêncio
com um bilhete. Quatro linhas simples e sem emoção, nada mais.
É TÃO TARDE QUE APENAS A PRIMEIRA NEBLINA DO AMANHECER COMEÇOU A BEIJAR O céu.
Somente Willow e Rinni vieram se despedir de mim. Eldas permitiu
que eu partisse noite adentro sem sequer me despedir. Ele me dispensou
daquela vasta e solitária sala do trono com pouco mais do que um desejo de
boa sorte. Ninguém mais vai se despedir porque esta missão ainda é nosso
grande segredo. Se eu tiver sucesso, o Entre Mundos se alegrará com uma
segurança nunca antes vista; não dependerá mais de uma única pessoa para o
bem-estar de suas terras. Se eu falhar... Eldas virá me buscar antes da
coroação e ninguém saberá que sua rainha “tentou escapar dele”.
Sou como um pedaço de carvão, lentamente sendo esmagada, abaixo de
tudo o que me rodeia. Embora eu não saiba se vou me tornar um diamante...
ou pó.
Willow me encara com olhos vermelhos brilhantes, fungando.
— Eu pensei... Eu não tinha ideia de que você estava indo embora. Não
dessa forma... eu teria... eu teria...
Eu o puxo para um abraço apertado, que ele devolve sem hesitação.
— Está tudo bem. Sinto muito por ter mantido isso em segredo. Mas eu
precisava.
Willow foi minha única insistência a Eldas e Rinni sobre essa partida –
ele saberia para onde eu fui e estaria aqui. Ele tem sido bom demais comigo
para que eu simplesmente vá embora sem dizer uma palavra a ele. E ele
notaria que eu tinha ido embora e alarmaria outras pessoas caso contrário.
Então, manter isso em segredo dele não era mais uma opção.
— Está tudo bem — ele diz com uma voz trêmula. — Eu não estou
bravo, eu… Há muito mais sobre Quinnar e Entre Mundos que eu queria
mostrar a você. Eu queria que você estivesse aqui para os rituais da
primavera, os festivais da colheita e o Yule.
Meu coração se parte um pouco por tudo que não vou ver. Mas ainda
me pergunto se essas fraturas serão suavizadas no segundo que eu voltar
para Capton. Será que todo o anseio e afinidade que eu tenho por esse
mundo mágico desaparecerão quando eu já não estiver agindo sob a
suposição de que eu preciso estar aqui?
— Eu adoraria vê-los com você. E, quem sabe, talvez eu vá. Tudo isso
pode falhar. Eu posso estar de volta para a coroação em duas semanas. —
Eldas deixou isso muito claro para mim antes de eu partir – nosso negócio
era por três meses. Não importa se estou no Entre Mundos ou em Capton. Se
o cronômetro zerar sem que o ciclo seja quebrado, estarei na coroação.
Nós nos separamos e eu esfrego seus ombros. O homem mal consegue
conter as lágrimas e isso faz meus próprios olhos arderem. Nunca imaginei,
quando comecei a procurar uma saída, que ir embora seria tão difícil.
— Além disso — eu digo, firmando a coragem em meu rosto —
comigo em Capton, você terá Poppy de volta. Você não ficará tão
sobrecarregado.
— Eu estava dando conta — ele murmura. Então, em uma
demonstração incomum, Willow envolve seus braços em volta de mim com
força. — Fique segura, Luella.
— Você também. — Desta vez, quando nos afastamos, me volto para
Rinni. Seu rosto está mais contorcido de emoção do que eu esperava. Bem
quando eu pensei que ela estava começando a abandonar qualquer amizade
que pudéssemos ter criado.
— Isso é um erro — ela finalmente diz.
— Não, a linhagem de rainhas está ficando mais fraca. Lilian nunca
pretendeu que durasse tanto. Nós devemos–
— Você deixá-lo é um erro — ela interrompe. Willow encara seus pés,
claramente desejando que ele não estivesse aqui para esta conversa em
particular. — Ele te ama, Luella.
Então por que ele não disse isso?
Por que eu não disse?
Forço um sorriso em meio à profunda tristeza que está enraizada no
meu coração. Por enquanto, as raízes são tão finas e tênues quanto o
Coração-Real que estou levando comigo. Mas, com o tempo, elas vão
engrossar com determinação ou arrependimento. Espero que com o primeiro.
— Algumas coisas simplesmente não são feitas para acontecer.
— Essa é uma desculpa patética e você sabe disso.
— Rinni. — Willow diz com uma nota de repreensão.
— Você está fugindo dele porque está com medo, porque sabe que é
real. — Rinni me provoca, me encarando. — Você foi corajosa o suficiente
para vir até aqui de cabeça erguida. Você foi ousada o suficiente para tentar
fugir quando chegou pela primeira vez, embora não tivesse ideia do que
faríamos com você por isso. Você foi forte o suficiente para enfrentar os
Acólitos da Floresta Selvagem pelo bem de Harrow – dentre todas as
pessoas.
— Mas–
— Mas sentir algo real é do que você foge. — Ela fala por cima de
mim. — Por quê?
Eu balanço minha cabeça.
— Eu não espero que você entenda.
— Que bom, porque eu não entendo. — Rinni me surpreende dando um
passo à frente e me puxando para ela. O abraço é duro, como se ela se
odiasse por dá-lo, mas se odiaria ainda mais se não desse. — Escute —
sussurra Rinni. — A Bruma só responde a Eldas e a sua magia. Suas bênçãos
sobre você são o que permitirá que você volte para Capton. Mas, uma vez lá,
lembre-se de que você tem algo que poucos tem – um guia. Quando o bom-
senso alcançar você, estaremos esperando.
— Eu não–
— Agora vá e conserte as coisas. — Rinni quase me empurra em
direção a passagem sob o arco. Ela se vira e não olha enquanto eu caminho.
Ela já está voltando para a cidade. Willow permanece. Seus olhos tristes são
as últimas coisas que vejo antes que a Bruma me cerque.
A magia de Eldas está enrolada em meus tornozelos enquanto eu
caminho sozinha para a escuridão. Eu lhe concedo a passagem, ele disse, e
me agraciou com magia, como eu imagino que um rei concede o título a um
cavaleiro. Mas este manto em meus ombros é frio e solitário.
Uma lamúria baixa interrompe meus pensamentos.
Eu paro e me viro para a origem do som. Hook está empoleirado em
uma pedra. A escuridão se funde com seu pelo e tudo que posso ver são seus
olhos. Mas eu sei que é ele.
— Venha aqui. — Eu me agacho e Hook salta. Ele me olha com
tristeza, como se soubesse. Como se ele pudesse sentir o cheiro da tristeza
em mim. — Eu preciso ir — sussurro para a primeira parte de Eldas que já
amei, muito antes de saber que Hook era uma extensão dele, de uma forma
estranha, mas bonita. — Por favor, saiba, eu tenho que fazer isso. Não há
lugar para mim no Entre Mundos, não de verdade. Isso é por nossos dois
mundos e por todas as jovens que poderiam vir depois de mim.
Hook choraminga de novo e eu abaixo minha cabeça. O lobo se
aproxima e meus braços deslizam ao redor de seu pescoço peludo. A represa
que construí contra as lágrimas se rompe. Eu soluço no pelo de Hook.
Eu lamento pela perda de tempo. Eu lamento por tudo o que poderia ter
sido. Lamento pelas doces lembranças que nunca terei a chance de criar,
porque o amor que eu poderia ousar dizer que floresceu entre nós foi
condenado pelas circunstâncias antes que pudesse realmente começar. Eu
lamento, em luto, por sua pele sob as pontas dos meus dedos, seu cabelo
sedoso roçando em mim, a rouquidão que poderia retumbar em sua voz. Eu
até acho que já sinto falta da vista de Quinnar através das janelas do castelo,
e dos festivais que eu nunca pude ver.
Não tenho certeza de há quanto tempo estou curvada na Bruma,
chorando. Mas eu choro até que não haja mais lágrimas. Com as palmas das
mãos, seco minhas bochechas e coloco minha expressão de volta no lugar.
Minha respiração ainda está irregular quando me levanto. Eu despejei tudo
com o choro e só o que resta é minha determinação.
— Vamos lá, você e eu, uma última vez.
Hook caminha comigo pela Bruma. Os tentáculos de névoa que me
cercam começam a se dissipar e uma floresta crepuscular começa a entrar
em foco. A linha entre o meu mundo e o dele se dilui e no momento em que
a cruzo é como uma rachadura na parte de trás da minha cabeça.
O resto da magia de Eldas me deixa, desaparecendo com o vento, como
se nunca tivesse estado lá para começar. Já dei dez passos quando um último
lamúrio me alerta para o fato de que agora estou caminhando sozinha. Eu
paro e olho para trás, para Hook. Ele se senta à beira da Bruma, não ousando
ir mais longe. Suas orelhas e sua cauda estão baixas e imóveis, a face
inclinada para baixo com tristeza.
— Volte — eu ordeno fracamente. — E obrigado, por tudo. — Hook dá
um latido, depois outro. — Se cuide, Hook — eu me forço a dizer.
Um uivo solitário ecoa pela floresta de sequoias salpicadas de sol
enquanto desço pelo caminho e chego ao templo.
Eu não olho para trás. Eu mantenho meus olhos no mundo que tenho
desejado. O ar está como eu me lembro – doce com turfa, com aroma de
seiva de sequóia e um cheiro forte de maresia. O final da primavera está na
floresta e me enche de uma vitalidade que não pode ser reproduzida no Entre
Mundos. Isso suaviza as dores da partida, revigorando meus passos. É vida,
não apenas a ilusão dela que reinava no Entre Mundos.
Um Guardião varrendo a área em frente ao templo principal é o
primeiro a me ver. Ele franze a sobrancelha e inclina a cabeça, como se
estivesse tentando descobrir por que alguém de Capton teria ido parar na
floresta profunda, perto da Bruma.
— Você... — Sua vassoura bate contra a passarela de pedra enquanto
seu aperto se afrouxa. Os músculos de sua mandíbula também falham.
Palavras falharam com ele. — Você… Você… Você é–
— Eu preciso falar com a Guardiã-Chefe. — Eu olho para o santuário
na sombra da montanha que se eleva acima de Capton. A montanha parece a
mesma do outro lado da Bruma, como um espelho. E onde o castelo está em
Quinnar, o templo fica em Capton.
O homem corre sem dizer mais nada. Ele volta não apenas com a
Guardiã-Chefe, mas também com o resto dos Guardiões da Bruma. Eles
ficam parados, em choque e pasmos, parecendo como se todos tivessem
acabado de levar um golpe na cabeça.
— Luella? — A Guardiã-Chefe sussurra. — É realmente você?
— Sou eu. — Eu confirmo. — Estou aqui em uma missão para nossos
dois mundos.
— Uma missão? — Ela sussurra quase com reverência. Eles me
encaram como se eu fosse algum tipo de Deusa encarnada, caminhando entre
eles. Acho que sou a primeira rainha que voltou fora do solstício de verão. E
sem uma horda de elfos ao meu redor.
— Eu posso andar livremente pelo terreno do templo? — Eu pergunto.
Eu sei que existem alguns lugares exclusivos apenas aos Guardiões da
Bruma.
— Claro, Vossa Majestade. — A Guardiã-chefe faz uma reverência e eu
vou para o santuário, sem me preocupar com a discussão de títulos ainda.
Não sei como as pessoas em Capton se referem a mim. Eu nem sei ainda se
vou ficar.
Eu paro no altar diante do qual Eldas e eu estávamos quase três meses
atrás. Parece que foi há uma vida inteira. Uma dor surda vibra através de
mim como um tambor baixo a cada batida do coração até que eu não aguento
mais olhar para ele.
Se minha teoria estiver correta e o equilíbrio precisa ser restaurado,
então o templo é um espelho do castelo de Quinnar, e o que os Guardiões
chamam de santuário é apenas o hall de entrada.
Me virando, ando como se estivesse de volta ao Entre Mundos, mas ao
contrário. Eu avanço lentamente, os Guardiões me seguindo, até chegar a
uma clareira no centro do terreno do templo. Diante de mim está a maior
sequoia da floresta.
— O trono era a raiz desta árvore — eu sussurro. Uma energia
semelhante zumbe dentro de seu poderoso tronco. Essa energia chove dos
galhos frondosos que se elevam acima de mim.
— Perdão? — A Guardiã-Chefe dá um passo ao meu lado.
— Desculpe, vou explicar em breve.
Eu cruzo o limiar de pedra e grama, e caminho até a árvore.
Tudo foi feito para estar em equilíbrio, para funcionar. Lilian baseou
parte da magia dos primeiros rei e rainha na ritumância – a ideia de que o
arranjo de itens e ações no tempo pode conter magia inerente. Não é
idêntico, pois não há nada igual à magia da rainha. Mas é semelhante o
suficiente para que Lilian pudesse deixar um pedaço fora do lugar.
Eu ando até a grande árvore – o espelho do trono no Mundo Natural.
Em sua base, eu me ajoelho e coloco o Coração-Real no chão ao meu lado.
Começo a cavar com as mãos.
Este solo... a terra que nutriu esta árvore e as jovens que vieram dela
por décadas. Ele conterá o primeiro Coração-Real do Mundo Natural. Eu tiro
o colar que encontrei com o diário de Lilian do meu pescoço e o enterro
primeiro. Então, eu cuidadosamente tiro o Coração-Real de seu pote e
arrumo suas raízes ao redor do colar.
A planta representa o trono.
O colar de Lilian representa aquele lugar escuro para onde minha
consciência ia.
O Coração-Real envolve tudo. Ele restaura o equilíbrio. O Coração-
Real se lembra de onde esteve e minhas mãos dão tapinhas com firmeza na
terra ao redor dele.
Um espelho perfeito do Entre Mundos no Mundo Natural, agora está
completo. A peça que faltava, que mantinha os mundos fora de equilíbrio,
está restaurada. Sento-me no chão, olhando para a árvore com um pequeno
sorriso. Bastou uma planta, um colar e um pouco de compreensão.
— Obrigada por tornar isso tão simples, Lilian — eu sussurro.
— O que você fez? — A Guardiã-Chefe pergunta.
Os Guardiões me cercam, olhando em confusão. Eles não podem sentir
a magia que está começando a fluir por esta árvore. Eles não sabem que a
essência deste mundo está sendo absorvida pelos galhos que raspam as
nuvens e empurram através da Bruma – através de um emaranhado de raízes
– e entram no Entre Mundos.
Eles não estão cientes de nada disso. Mas eu estou. Porque mesmo que
eu nunca volte para o Entre Mundos novamente, eu sempre serei a última
Rainha Humana.
Eu finalmente digo:
— Eu encerrei o ciclo.
CAPÍTULO 37
TRÊS DIAS DEPOIS, ESTOU MAIS UMA VEZ EM MEU ANTIGO QUARTO NO SÓTÃO DA CASA de arenito da minha família.
— Não é muito, mas é meu — eu sussurro. É o que eu costumava dizer.
Há o colchão de feno, meus livros estão alinhados em um canto, minha
cômoda de roupas e tudo o que antes via como minha vida – exceto por
minha loja – estão ordenadamente em um só lugar. Esta é a primeira vez que
vejo tudo isso desde que voltei dos salões grandiosos do Entre Mundos. Eu
esperava achar confortável e reconfortante. E é reconfortante... mas de uma
forma meio triste. Como um velho par de sapatos, amolecidos na medida
certa, mas ainda assim inutilizáveis depois que você cresceu.
— Luella? — Diz papai, subindo a escada estreita que leva ao sótão.
Ele tem duas canecas nas mãos. O cheiro familiar da mistura de chá de
menta que fiz para ele anos atrás enche o ar. — Eu pensei que você poderia
querer algo para acalmar seus nervos.
— Obrigada. — Eu pego uma caneca e bebo.
— Sua mãe e eu temos algo novo para você vestir hoje. — Ele acena
com a cabeça para o vestido colocado sobre a cama. É um lindo vestido de
verão de algodão amarelo brilhante, amarrado com uma fita de seda branca.
— Claro, provavelmente não é muito em comparação com os vestidos que
você teve que usar como a Rainha Humana, mas eu suspeito que você se
divertirá muito mais com esse. — Ele ri.
— Tenho certeza que vou. — Só o que quero são minhas calças de lona.
Tudo que eu quero é minha loja. Tudo que eu quero é ser normal mais uma
vez.
Mas não sei mais o que é normal. Não sei como encontrar algo que não
reconheço.
— Você vai adorar o novo parque da cidade. — Papai bebe seu chá,
sorrindo de orelha a orelha. Ele queria me mostrar no caminho, mas os
Guardiões não queriam arriscar que eu fosse vista antes da “grande
revelação”. Então, voltamos direto para casa; assim eu poderia me arrumar
em meu próprio quarto, com minhas próprias coisas – como minha mãe
insistiu. — O conselho está até falando em chamá-lo de Luella Park.
Eu rio suavemente.
— O que vem depois, uma estátua minha lá?
— Engraçado, a ideia foi lançada e pareceu que foi bem recebida. —
Meu pai também ri, mas fico em silêncio.
Uma estátua da primeira rainha em Quinnar. Uma estátua da última
rainha em Capton. O equilíbrio sendo mantido de outra maneira. Faz sentido
que eu fique, que deixe Eldas, quando olho para isso de uma perspectiva da
ordem natural. A Primeira Rainha ficou com seu Rei. Eu deixei o meu.
Minhas unhas cravam em minha xícara.
— O que foi? — Meu pai pergunta, percebendo meu silêncio pesado.
— Nada. — Eu balanço minha cabeça. — Você tinha razão, estou um
pouco nervosa; é só isso.
— Vai ficar tudo bem. Todos ficarão muito felizes em ver você. Um
final perfeito depois de toda a feiura que Luke nos trouxe. Será um
encerramento para todos.
— Eu espero que sim — murmuro.
— Deixe ela em paz, Oliver — mamãe grita do andar de baixo. — Ela
precisa se preparar. Assim como você!
— Estou indo, Hannah! — Papai me dá um beijo no topo da minha
cabeça, como ele fazia quando eu era uma menininha, e vai embora.
— Papai — eu digo timidamente, parando-o. — Depois de hoje, tudo
voltará ao normal, certo?
Ele me encara, confuso.
— Por que não voltaria?
— Nada. Bom. É só isso. Obrigada mais uma vez pelo chá. — Eu bebo
enquanto o vejo sair, esperando que ele esteja certo.
Quando minha caneca está vazia, coloco o vestido que meus pais
escolheram. É até o joelho, com uma saia leve, com laços charmosos na
frente e mangas curtas. Eu me sinto muito melhor finalmente sem as roupas
do Entre Mundos ou as vestes emprestadas dos Guardiões.
Vagando enquanto espero por meus pais, dou uma volta em minha loja.
Posso ver que Poppy fez alguns ajustes enquanto eu estava fora. Vou
precisar colocar algumas coisas de volta no lugar.
Também posso ver o fantasma de Luke parado na porta. Mas mesmo
essa memória odiosa não é tão amarga como antes. Por tudo que ele
arriscou, por mais tolo que fosse... talvez tenha sido por causa do que ele fez
que Eldas e eu pudemos finalmente nos encontrar. Se eu não estivesse tão
desesperada por uma saída, talvez simplesmente aceitasse Eldas como ele
era. Não como o homem que ele estava se tornando.
A sensação fantasmagórica de suas mãos na minha pele me dá um
arrepio. Mas a memória é imediatamente afastada pela voz de minha mãe.
— Você está pronta para ir? — Ela e o papai estão parados ao pé da
escada.
— Sim — eu digo, e nós partimos.
Nós pegamos o longo caminho pela cidade e acabamos atrás de onde o
palco costumava ser. Posso ver sinais das novas melhorias feitas nesta área.
Há mudas de vinhas que crescem sobre prédios na rua, esperando para serem
queimadas ou usadas para compostagem.
Meu pai me leva pela lateral do palco. Tenho um vislumbre de toda a
cidade – das pessoas por quem voltei. As pessoas que amo e a quem devo.
Eu respiro fundo.
— Vamos lá — ele diz.
Eu sou conduzida ao palco antes que eu possa me recompor. Acho que
fui anunciado pelo líder do Conselho ou pela Guardiã-Chefe? Talvez pelos
dois? Eu fico olhando para fora, parada onde Eldas esteve meses atrás,
olhando para os rostos de todos que eu conheci.
Meu coração está na minha garganta, tentando me estrangular. Errado,
isso está errado, algo em mim grita, a Rainha Humana não foi feita para ser
vista antes de sua coroação. Não estou no lugar certo, eu percebo. Não fui
destinada a estar aqui, com essas pessoas. Mesmo que eu os ame, e que
sempre farão parte de meu coração, eu nunca vou me encaixar neste mundo
novamente.
Com todos os olhos em mim, eu me viro e corro.
CAPÍTULO 38
EU CORRO PELA CIDADE, COM O CORAÇÃO DISPARADO ANTES DE EU PERDER O FÔLEGO. Corro com as saias embolando
nos joelhos, o cabelo solto ao vento, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Mas
não sei do que estou correndo – ou para onde. Não sei por que estou
chorando.
Tudo que sei é que há essa dor dentro de mim, mais profunda do que eu
jamais conheci. É corrosiva, insaciável e impossível de descrever. Mesmo
que eu tenha acalmado o trono, suas raízes ainda estão em mim, me
chamando de volta.
Não, estas não são as raízes do trono. Estas são raízes da minha própria
criação. Estas raízes cresceram de algo que eu nunca pedi e nunca quis. Elas
abalaram a base do meu mundo – meu dever – e agora estou caindo em um
abismo profundo do qual talvez nunca escape.
Eu corro para além da periferia da cidade, diminuindo a velocidade
enquanto alcanço as colinas próximas à floresta. Eu vejo o rio que atravessa
a floresta, serpenteando pela Bruma. Eu penso em segui-lo, mas a magia de
Eldas não está mais em mim. Eu ficaria tão perdida ao navegar na Bruma
quanto estive na primeira vez em que me perdi.
Eu também não consigo entrar na floresta. Eu não pertenço a este lugar.
Essas árvores crescem muito próximas às minhas memórias. Eu olho por
cima do ombro para a cidade. A maioria das pessoas ainda está na praça.
Posso imaginar sua confusão e mágoa.
Meu rosto úmido queima. Eles vão ficar com raiva de mim. Depois de
tudo o que eles investiram em mim, depois de tudo o que eu fiz para voltar
para eles. Eu corri.
E eu corri porque... porque... porque não tenho mais um lugar em
Capton. Minha antiga posição na comunidade ainda está aqui, mas nada
parece certo. Este lugar não é mais minha casa. Devo passar o resto dos
meus dias aqui, com saudades? Fazendo poções com metade do meu
coração? Eu me viro para o mar, vagando em direção às falésias, e fico
olhando para a linha do horizonte, olhando para a vasta extensão de terra
além de Capton.
Eu poderia explorar este mundo agora, suponho. Se eu não pertenço
mais a este lugar e não pertenço ao Entre Mundos, então talvez eu encontre
onde pertenço lá fora. Enquanto esses pensamentos passam em minha mente,
a culpa surge em mim, afogando-os.
Meu peito aperta e deixo escapar um soluço estrangulado. Não
exatamente um choro, não exatamente uma risada.
— Bem, você conseguiu o que queria, Luella — murmuro com uma
nota de raiva autodirigida. — E agora?
— E o que você queria? — A voz da minha mãe interrompe meus
pensamentos. Eu me viro, surpresa ao vê-la parada ali. Seu cabelo ruivo
flamejante está lutando para escapar da trança com a brisa do mar.
— Mamãe... — Eu digo fracamente. — Eu sinto muito.
— Não se desculpe; você passou por muita coisa e eu suspeito que os
Guardiões – embora amáveis – não procuraram saber como você estava
apropriadamente — diz ela gentilmente. — Podemos sentar?
— Claro. — Sento-me na grama para onde ela gesticulou.
Mamãe se senta ao meu lado, puxando a saia ao redor dela enquanto eu
faço o mesmo.
— Eu disse a seu pai que era muito, muito cedo para você. Ele está
preocupado com você. Engraçado, acho que ele está mais preocupado com
você agora do que quando você partiu.
— O quê? — Eu me viro para encará-la. Minha mãe tem um sorriso
terno, mas ilegível. — Mas estou de volta...
— E você não tem sido a mesma. — Ela enfia um pouco de cabelo atrás
da minha orelha. — O que você queria? — Ela repete sua pergunta.
— Queria corresponder às expectativas de todos. Eu não queria
decepcionar o povo de Capton depois deles terem investido tanto em mim —
eu digo. — Eu queria liberdade. Eu queria um propósito. Eu queria...
— Você queria? — Ela encoraja.
— Eu queria saber se o que eu sentia por ele era real — eu admito,
tanto para ela quanto para mim ao mesmo tempo. As palavras são pequenas
e frágeis, como se dizê-las em voz alta pudesse quebrar esses sentimentos
tremulando em meu peito.
— Ele — diz ela suavemente. — Você quer dizer o Rei Elfo?
— Sim, Eldas.
— O que você sentiu por ele? — Sua expressão é ilegível. Ela ficará
brava se eu admitir que encontrei uma maneira de amar alguém que ela só
conheceu como um homem bruto? Ela poderia entender que, embora ele
tenha me tirado dela, há um lado gentil e atencioso nele? Que ele mandou
Poppy para cá e ficou comigo quando eu estava fraca depois do trono
porque ele se importava, e que cozinhou bacon para mim, e faz aquela coisa
com sua língua que eu–
Eu coro e me volto para o oceano, o calor chegando até minhas orelhas.
— Não sei.
— O que você acha que foi? — Mamãe não está me deixando escapar
tão facilmente.
— Amor — eu admito.
— Diga-me por que você acha isso? — Ela pergunta naquela voz
simples, sem nenhuma pista sobre o que ela realmente pode estar pensando.
Respiro fundo e conto a ela sobre meu tempo no Entre Mundos. Ao
contrário dos Guardiões, que tiveram a visão geral necessária dos fatos
básicos, conto tudo para minha mãe, exceto os momentos que
compartilhamos na cabana que ainda me fazem corar. Ela ouve falar de cada
emoção feia, bela e improvável que descobri dentro das paredes cinzentas do
castelo.
Minha voz está tão crua quanto meu coração quando eu termino e as
estrelas estão florescendo em um céu distante.
— Entendo — ela diz, pensativa.
O silêncio que se segue pesa na minha garganta e é difícil de engolir.
Eu fervo de agonia e minha mãe tem um sorriso enigmático no rosto
enquanto olha para as águas escuras que se estendem entre nós e Lanton.
— Do que você está sorrindo? — Eu finalmente pergunto.
— Muitas coisas. Estou sorrindo porque ainda tenho muito orgulho da
minha filha, por ser forte e capaz. Por fazer algo tão impressionante que mal
consigo compreender. — Minha mãe ficou um pouco perdida quando tentei
explicar a Bruma, o trono de sequóia e as estações, tanto da primeira vez
quanto desta. — Estou sorrindo porque estou feliz por minha filha ter
encontrado um lugar ao qual pertencia e poderia ser feliz. Realmente, isso é
tudo que os pais sempre querem ouvir.
— Mas... — Eu estava feliz? A imagem de Eldas flutuando na água da
piscina da cabana enquanto eu cuidava do jardim passa pela minha mente.
Eu acho que estava.
— Então, o que você vai fazer agora? — Ela ignora minha hesitação.
— Eu não tenho certeza — eu admito.
— Você vai voltar para o Entre Mundos?
Eu puxo meus joelhos para o meu peito e envolvo meus braços em
torno deles.
— Eu não posso ir embora.
— Por quê?
— Eu não posso deixar você e o papai.
— Querida... — Ela envolve um braço em volta dos meus ombros. —
Todo filho deve, eventualmente, ir embora. Às vezes, é para uma casa na
mesma rua. Outras vezes, é para algum lugar muito distante. Mas se esse
filho acabar onde pertence, e for feliz e amado... isso é tudo que qualquer pai
e mãe desejam.
Suas palavras doem de uma forma reconfortante. É a mesma sensação
de quando termina o verão para uma criança, a mesma sensação que tive
quando olhei para o meu antigo quarto. Dói por causa do quão feliz eu fui
aqui, mesmo que eu saiba que não posso mais ser.
— Não posso abandonar as necessidades de Capton.
— Capton vai ficar bem — ela insiste.
— Vocês tiveram Poppy. — Eu olho para ela com um olhar um pouco
acusatório. — Poppy se foi e ela não vai voltar. Agora, quem vai cuidar dos
idosos de Capton? Os doentes? Os feridos? — Mamãe abre a boca, mas eu
continuo apressadamente. — E não diga que as pessoas ficarão felizes por
mim. Eles merecem receber de volta o que investiram em mim. Todos se
sacrificaram muito – você e papai também. Se eu fosse embora, não estaria
colocando em prática a educação do instituto que todos pagaram por mim.
— Eu iria decepcionar você, quero dizer, mas não consigo.
Ela respira fundo. Posso dizer apenas pela maneira como ela inspira que
ela tem muitos pensamentos que está prestes a compartilhar. Eu me preparo.
— Em primeiro lugar, me parece que você já colocou essa educação em
prática salvando todo o Entre Mundos e interrompendo o ciclo das futuras
rainhas. Esse é um resultado muito bom de seus estudos. Se alguém fez por
merecer um descanso, é você.
— Mas isso não é...
— Não foi para isso que você foi à escola? — Mamãe arqueia as
sobrancelhas em um jeito que diz não mexa comigo, mocinha. — Não
explicitamente, mas foram uma aplicação e resultado dignos de seus estudos,
você não acha?
— Mas, curar–
— Sim, esta questão de cura. Acima de tudo, nós nos viramos muito
bem e vamos continuar assim com ou sem você. Luella, você é talentosa e
uma ajuda incrível, mas a cidade não precisa de você para sobreviver. —
Suas palavras tristes, mas fortes, me abalam profundamente. Eu fico imóvel,
tentando apenas me concentrar na grama balançando ao meu redor e no chão
abaixo de mim. Eu guardei tudo que pensei que era e que precisava só para
estar nesta cidade. Se eu não for necessária... o que devo fazer? — Mas se
você está preocupada, então você deve saber que seu pai e o conselho
receberam notícias de Royton esta manhã.
— Royton? — Eu ecoo. A Royton Academy é conhecida por formar
alguns dos melhores fitoterapeutas de todo o país. É mais ao longe na costa,
aninhada em terras mais quentes e tropicais, onde todos os tipos de plantas
podem ser cultivadas durante todo o ano. — O que tem Royton?
— Há uma estudante do instituto que eles estão mandando para cá. Ela
estará aqui dentro de uma semana para ajudar com qualquer coisa que
Capton possa precisar enquanto você se resolve – pelo tempo que levar para
isso. A carta diz que ela foi paga integralmente por pelo menos cem anos e
podemos usar seus serviços por quanto tempo quisermos.
— Mas Royton está a dias de distância... — Meus dedos tremem.
Eldas fez isso. Ele é o responsável pelas notícias dadas a Royton. Ele
providenciou para que alguém viesse, para que eu não tivesse que me
preocupar enquanto me acomodava. Ele pagou a eles uma enorme soma para
servir a esta pequena cidade. Não há outra explicação para como uma
graduada de Royton soube e porque ela veio para cá, dentre todos os lugares.
O que Eldas estava pensando quando arranjou essa nova curandeira?
A parte cínica em mim diria que ele estava tentando provar que eu não
era tão necessária para esta comunidade quanto eu pensava. Ele fez isso para
tirar meu propósito de mim e me forçar a ficar no Entre Mundos. Mas, se
essa fosse sua intenção... ele sem dúvida teria me contado antes de eu partir.
Ele estava me dando uma escolha – a escolha de ficar em Capton, ou ir
embora, não importa se fosse para o Entre Mundos ou não.
O amor é escolha.
Apenas sonhe, Eldas, e siga esses sonhos.
Eu tenho que ir para saber.
Palavras que eu disse a ele, que eu não sabia, ecoaram de volta para
mim. Ele ouviu. Uma e outra vez. Aquele homem é imperfeito e limitado.
Ele pode ser cruel e frio. Mas ele está disposto a tentar e a me ouvir. De
alguma forma, ele ouviu coisas que eu nem sabia que estava dizendo. Ele
ouviu... e eu não fiz o mesmo.
Nossas interações passam pela minha mente. Sua aparência, seus
toques, mesmo na frente dos outros. A maneira como ele me abraçou durante
a noite. A forma como nossa magia ressoou juntas. As promessas que ele me
fez.
Eldas, o que você sente por mim? Minha pergunta ecoa de volta e agora
posso ver as entrelinhas. Ele te ama mais do que tudo, sua idiota.
— Luella. — A voz gentil de minha mãe me traz de volta ao presente.
— A única coisa que sempre foi a mais importante para mim e para seu pai
foi a sua felicidade. Onde você será mais feliz?
— Vai ficar tudo bem? — Não me refiro apenas a eles, ou a todos aqui
em Capton, sem mim. Eu quero que ela me diga que tudo vai ficar bem.
— Eu conheço você. Você vai fazer ficar bem se não estiver. — Ela
aperta minha mão.
— Se eu voltar... se eles me aceitarem... vou me tornar mais parte
daquele mundo do que deste.
— Mas você ainda pode visitar de vez em quando? — Ela pergunta. Eu
concordo com a cabeça. — Então, não é muito diferente do que qualquer pai
ou mãe terá que suportar eventualmente, não é? As crianças devem crescer e
viver suas próprias vidas. Se você quiser, Luella, vá.
— Mesmo se eu quisesse voltar... não posso. — Pânico está crescendo
em mim. Eu deveria ter pedido por uma forma de voltar. Por que não
encontrei um motivo para pedir a Eldas que me desse sua bênção para
voltar?
— Por que não?
— Porque o único que pode atravessar a Bruma – ou dar a outros a
capacidade para isso – é o próprio Eldas. — Mesmo como Rainha Humana,
não consegui encontrar a saída da Bruma quando tentei fugir. Eu estava
perdida, dando voltas, sem esperança até que ele veio me resgatar. — As
duas vezes que passei foram com a bênção de sua magia ou com ele como
guia.
Um guia. Rinni disse que eu tinha um guia para a Bruma. Hook. Rinni
quis dizer Hook.
— Espere — eu sussurro para o horizonte. — Eu posso voltar.
Minha mãe sorri como se soubesse disso o tempo todo.
— Então o que você está esperando?
— Mas–
— Vá — ela insiste uma última vez. — Vá e seja feliz.
MEU CORAÇÃO BATE EM MEUS OUVIDOS TÃO ALTO QUE QUASE ABAFA AS VOZES DOS meus pais lá embaixo enquanto
estou fazendo minha mala. Mamãe se encarrega de explicar as coisas ao meu
pai. Eu estico meus ouvidos, ouvindo sua reação. Sua voz suave ressoa até
mim, mas não consigo entender o que ele diz. No momento em que desço as
escadas, com a bolsa por cima do ombro, ele tem um sorriso cansado, mas
genuíno.
Eles me desejam o melhor e me abraçam com tanta força que meus
ossos estalam. Digo a eles que posso voltar em dez minutos. Mas também é
possível que eu não volte por uma semana, um mês ou um ano. Não tenho
ideia das mudanças que meu retorno pode causar no Entre Mundos. Não
tenho ideia se Eldas vai me deixar ficar, ou se a coroação vai me unificar
com aquele mundo a ponto de eu não poder voltar. A mágica mudou e estou
apostando nos resultados.
Pela primeira vez na minha vida, estou agindo sem um plano e sem o
dever para me guiar. Tudo o que estou ouvindo é aquela batida frenética do
meu coração.
Eu agora estou à beira da Bruma mais uma vez. Estou arriscando tudo
aqui. Mas o que há de diferente?
Eu respiro fundo e entro na Bruma; uma sensação gelada desce pela
minha espinha. Trazendo meus dedos aos lábios, dou um assobio que ecoa
no silêncio anormal.
— Hook? — Eu chamo uma e outra vez. Bem quando estou prestes a
desistir, os olhos dourados de Hook piscam para mim na escuridão. —
Hook! — Ele salta até mim e eu caio de joelhos. O lobo lambe meu rosto e
eu não perco tempo. — Eu preciso voltar. Eu preciso chegar até Eldas. Você
pode me levar até lá?
Muito parecido com a minha primeira vez na Bruma, Hook inclina a
cabeça para a esquerda e para a direita antes de finalmente se afastar. Ele se
arrasta para a escuridão e eu reúno minhas forças para segui-lo, esperando
que ele não me leve de volta a uma pedra angular. No momento em que vejo
o luar suave entrando na boca de uma caverna, começo a correr.
Hook salta ao meu lado com um latido feliz. Eu sorrio para ele e ele
parece quase rodopiar ao meu redor. Bem vinda de volta! Seus movimentos
parecem dizer.
Eu paro e olho para Quinnar. O ar da primavera está quente agora,
mesmo à noite, e é quase pegajoso em comparação com o frio da Bruma. As
flores balançam na brisa, farfalhando nas árvores. Elas complementam as
flâmulas e bandeirolas que foram espalhadas pela cidade.
A música se espalha pelo ar. As pessoas estão nas ruas, dançando, rindo
e bebendo. Faíscas de magia são lançadas e eu vejo bestas de papel e
pássaros ganharem vida e se alegrarem entre os foliões. Sinto o cheiro dos
bolinhos que Rinni e eu provamos. Vejo acrobatas girando em aros
impossivelmente suspensos no ar sobre o lago.
Vejo uma cidade em comemoração – como se eles de alguma forma
soubessem que eu voltaria. O mundo que vi pela primeira vez como morto e
cinzento está agora em plena floração. É mágico e parece algo que eu
poderia chamar de lar.
O focinho quente de Hook pressiona minha mão e eu me agacho para
coçá-lo atrás das orelhas.
— Obrigada por me guiar através da Bruma. Vá brincar, não preciso de
atenção agora. — Ele lamenta. — Vou assobiar para você de novo. — Eu
prometo.
Hook se senta, insistente.
— Ah, tudo bem. Venha então. — Eu rio, parte nervosismo e parte uma
alegria que eu não esperava encontrar novamente.
Eu começo a descer a escada correndo, quase tropeçando em mim
mesma. Felizmente, coloquei minhas calças para que quando eu quase fosse
cair de cara no chão, eu não acabasse com as minhas saias em volta das
minhas orelhas na frente dos foliões.
— Espere… — Uma elfa diz — você acabou de–
Eu não espero ela terminar. Eu começo a correr. Hook sabe, como
sempre, para onde estou correndo. Ele avança no meio da multidão, latindo e
uivando para as pessoas saírem do caminho, e eu tento desesperadamente
acompanhar.
Chegamos à entrada do túnel do castelo, bloqueada por uma fileira de
cavaleiros. Eu paro diante deles. Hook para às minhas costas, mantendo as
multidões invasoras à distância.
— Eu... eu preciso... — Eu suspiro e alcanço minha bolsa. Não saí da
loja despreparada. Tomo um gole de um fortificante que trouxe e fico mais
reta, ainda sem fôlego. — Eu preciso ver o rei.
— Você é–
— Mas você é uma–
— Não é?
Todos os guardas parecem falar entre si ao mesmo tempo. Eles são
silenciados por uma voz familiar.
— Deixe-me passar! — Rinni ordena, abrindo caminho para a frente.
Ela para, piscando para mim até um sorriso malicioso aparecer em suas
bochechas. — Você está quase atrasada.
— Desculpe deixá-la esperando. — Eu sorrio. — Eu perdi a noção do
tempo do outro lado da Bruma. Eu perdi a coroação?
— Ainda não. — Rinni me guia para o túnel. Eu ouço o retumbar de
uma massa de pessoas do outro lado das portas do castelo. Rinni as abre com
um piscar de seus olhos.
Eu entro no castelo e, pela primeira vez, vejo cores. Tapeçarias de azuis
brilhantes e verdes vibrantes estendem-se do teto ao chão, penduradas ao
longo das colunas largas que sustentam a grande entrada. Mais guirlandas de
flores estão penduradas nas grades do mezanino.
Vasos de flores se alinham no grande salão atrás da multidão reunida.
Homens e mulheres de todas as cores e formas estão aqui e todos os seus
olhos se voltam de onde o Rei Elfo está nas escadas – presumivelmente
tendo acabado de fazer um discurso – para pousar em mim.
Mas os olhos dele são os únicos nos quais me concentro. Sua boca está
ligeiramente aberta. O choque quebrou sua máscara usual e ele me encara
em um silêncio atordoado.
Eu sei que há pessoas importantes aqui – lordes e ladies. Gente de seu
reino, nosso reino, se ele me deixar compartilhar com ele. Eu sei que
cheguei diante deles com os joelhos sujos e com o que eles consideram
roupas normais. Eu sei que a primeira impressão que eles teriam sobre mim
deveria ser boa e que eu arruinei tudo. Eu arruinei os anos de planejamento,
sacrifício e sofrimento de Eldas até este momento. Nada disso saiu de acordo
com o planejado.
Eu nem pensei no que iria dizer. Então eu abro minha boca e digo a
primeira coisa que vem à minha mente. Eu deixo minhas palavras ecoarem
até o topo do salão.
— Eu te amo, Rei Eldas!
CAPÍTULO 39
O SILÊNCIO É ENSURDECEDOR. EU PODERIA OUVIR UMA PÉTALA DE FLOR DE CEREJEIRA caindo de tão quieto. Não sei
quais são as reações de todos. A única pessoa em que estou focada é Eldas.
A única pessoa cuja opinião importa mesmo remotamente para mim aqui é
ele.
Seu choque se transforma em algo que me atrevo a dizer que é caloroso.
Depois o horror inicial com a minha explosão – por como nada disso está de
acordo com suas tradições – desaparece. Ali estão os olhos que reconheço.
Olhos pelos quais me apaixonei e ansiava ver quando estava no Mundo
Natural.
— E eu te amo — diz ele, finalmente.
Quatro palavras e as coisas se encaixam. Eu tenho muito que preciso
descobrir aqui. Existem muitas incógnitas em torno do que serei para este
mundo agora que uma Rainha Humana não é mais necessária para fazer as
estações mudarem. Mas vou descobrir tudo, porque o homem que está diante
de mim é a única possibilidade que quero aceitar.
— Se... — Eldas pigarreia. — Nos deem licença por um momento. —
Eldas estende a mão e eu atravesso a sala até ele, tentando fazer o meu
melhor para não escorregar e manter minha cabeça erguida.
Posso não parecer com uma das rainhas que eles conhecem. Mas talvez
com o tempo eles aceitem o tipo diferente de rainha que sou. Eu subo
lentamente as escadas e os dedos de Eldas se enrolam nos meus. Minha
magia chama a dele e faíscas invisíveis voam entre nossas peles, me
deixando sem fôlego.
Ele me acompanha escada acima, até uma sala lateral, fechando a porta
rapidamente atrás de nós.
Eldas atira-se em mim. Eu posso ter esperado que ele ficasse um pouco
irritado com a forma como eu lidei com as coisas, mas há um fogo em seus
olhos que não está nem um pouco zangado. Suas mãos estão no meu rosto,
segurando minhas bochechas.
— Diga de novo — ele sussurra como um suspiro de alívio que está
segurando desde que eu saí.
— Eu te amo — repito o que disse antes, mas desta vez apenas para ele.
— Eu te amo desde o chalé. Desde... não sei quando. Em algum lugar ao
longo do caminho me apaixonei por você. Você e eu... Essas circunstâncias
em que nos conhecemos têm sido um pouco confusas. Mas eu te amo apesar
de todas elas.
— Então por que você ficou longe? — Ele sussurra. — Por que você
não me contou antes de sair?
— Porque eu fui covarde — admito em voz alta por mim e por ele. —
Tive medo de pensar que só te amava porque não tinha outra opção. Achei
que o amor tinha sido criado apenas para a minha própria sobrevivência, já
que achava que não havia outra saída – que ficaria presa aqui para sempre.
Tive medo de um amor que veio da falta de escolha. Tive medo de nem
saber o que era o amor, porque acho que nunca o senti antes.
— Mas quando você pôde sair... quando teve a escolha que desejava...
você voltou. — Eldas me delinia com seus olhos e eu tenho um arrepio de
puro deleite. Um olhar nunca foi mais íntimo. Sou despida apenas com um
olhar.
— Eu tive que voltar. Encontrei minha resposta enquanto estava em
Capton – amo você por tudo que você é e por tudo que somos juntos. Não é
minha imaginação; não é sobrevivência. Sim, Eldas, tive liberdade e escolha,
e eu escolho você. Sei que nada disso aconteceu de maneira convencional,
mas é genuíno. E pensei que talvez pudéssemos fazer uma nova tentativa.
— Uma tentativa? — Ele arqueia as sobrancelhas escuras e eu rio
baixinho.
— Fizemos isso ao contrário, você sabe, não é? Nós nos casamos,
fomos para a cama, nos apaixonamos. Normalmente é o contrário.
— Gostei de como tudo aconteceu — diz Eldas. Sua voz é seda para os
meus ouvidos. Ele roça minha pele e meu corpo fica tenso. — Porque isso
me levou a você.
— Eu acho que posso concordar com isso — eu respiro.
Ele esmaga seus lábios contra os meus com um beijo inquieto de desejo
reprimido e carícias ansiosas. Ele me pressiona contra a porta, tateando
minha bunda, puxando meu cabelo. Pela primeira vez na vida, odeio usar
calças.
Eu o beijo com o mesmo fervor. Eu corro meus dedos por seus cabelos
negros, descaradamente derramando-os sobre seus ombros e cobrindo nossos
rostos. Eu acaricio sua bochecha enquanto sua boca se move contra a minha.
Provo sua língua repetidamente e espero que seja apenas a primeira prova de
muitas que terei dele hoje.
E quando ele se afasta, fico com os joelhos fracos e dependo da porta
atrás de mim para me apoiar. Estou pronta para rolar no chão com ele nu.
Estou pronta para que todo o salão ouça meus gritos de êxtase, desde que
isso signifique que ele se mova dentro de mim mais uma vez.
— E agora? — Eu respiro, olhando entre ele, com o chão e a porta atrás
de mim.
Eldas me puxa para ele e seu outro braço desliza de volta para a minha
cintura.
— Agora — ele rosna sobre meus lábios. Seus dedos deslizaram em
meu cabelo e eu inclino minha cabeça para trás para dar a ele total acesso. —
Agora, minha rainha, minha esposa, vou levá-la para a cama.
— Mas as pessoas–
— Deixe-os esperar. Afinal, somos o rei e a rainha. Nossa coroação
ocorrerá quando tiver que ser.
DOIS DIAS ESCORREGAM POR MEUS DEDOS TÃO FACILMENTE QUANTO OS DEDOS DE Eldas pelo meu cabelo quando
estamos na cama. O meu aparecimento na cerimônia tem sido o assunto da
cidade e as especulações têm disparado a torto e a direito sobre por que a
Rainha Humana veio correndo, o que isso tem a ver com o anúncio de Eldas
sobre as estações, e porque a Rainha Humana estava usando roupas tão
simples. Tem havido algumas especulações de que nosso próprio amor foi o
que quebrou o ciclo das Rainhas Humanas.
Essa é uma história que com certeza vou reescrever. O amor é
poderoso, mas também é poderoso o trabalho árduo que Eldas e eu
realizamos. O trabalho árduo que continuaremos a fazer para sermos bons
governantes para esta terra.
Se dependesse de mim, teríamos ficado em seus aposentos por toda a
eternidade. Mas o dever eventualmente chama. Mais cedo ou mais tarde, a
coroação tem que acontecer. Pudemos protelar por um ou dois dias, mas
qualquer um a mais iria passar do escândalo para o comportamento obsceno.
Estamos diante da entrada principal da sala do trono. Eu tenho a mão de
Eldas na minha em um aperto, com os nós dos dedos brancos.
— Não fique nervosa — ele sussurra.
— Fácil para você falar — eu respondo e tento alisar as rugas invisíveis
em minhas saias. O vestido que a costureira fez para mim é de tirar o fôlego.
Camadas de chiffon em forma de folhas que quase têm uma aparência de
escama quando estou parada. Mas quando eu me movo, parece que as folhas
saíram das árvores do final do verão em um vendaval. Teria sido uma pena
ver essa arte vestível ir para o lixo se eu não tivesse retornado.
— Tudo o que você precisa fazer é sentar.
— Você sabe que essa foi uma das primeiras coisas que você me disse,
mais ou menos. — Eu sorrio para ele e ele ri. Mas a preocupação
rapidamente corrói minha leviandade. — Devíamos ter testado o trono antes,
apenas para ter certeza de que ele não vai tentar se desviar de mim.
— Estávamos ocupados. — Eldas sorri. Dou um puxão em sua mão e
roubo a expressão com um beijo. Meu marido não pode ficar tão bonito sem
acabar com meus lábios nos dele.
— Depois disso, vamos ficar menos ocupados. Eu quero saber o que
está acontecendo.
— Acontecendo? Sobre o que?
— Tudo — eu digo. — Estou aqui para governar ao seu lado, afinal.
Sou mais do que um rosto bonito agora que as estações estão bem sem mim.
Ele me dá um pequeno sorriso e está prestes a dizer algo quando
Harrow e Sevenna entram. Harrow ainda parece magro e um pouco mais
pálido do que eu gostaria. Mas seus olhos são brilhantes e penetrantes. Seus
movimentos são fortes.
Minha mão cai da de Eldas e, ignorando Sevenna inteiramente, eu
atravesso até Harrow e o pego em meus braços.
— Bons deuses, ela está me abraçando — eu ouço Harrow murmurar.
Mas ele está relaxado em meus braços. Uma mão ainda dá um tapinha de
leve em meu ombro.
— Eu estava tão preocupada com você. — Eu o solto e me afasto. Eldas
havia me informado sobre a situação de Harrow entre as sessões sob os
lençóis – tivemos que comer em algum momento – mas esta é a primeira vez
que o vejo.
— Parece que preocupei a todos. — Ele parece culpado. Eu posso dizer
que ainda há algumas discussões a serem feitas sobre o envolvimento de de
Harrow com glimmer e Aria. Mas há tempo para isso. E estou aqui agora.
Portanto, posso pelo menos ter certeza de que Eldas não puna muito
severamente o jovem.
— Estamos apenas felizes que você esteja bem. — Eu falo com
confiança por todos na sala.
— Harrow, vá e fale com seu irmão. — Sevenna comanda friamente. —
Eu gostaria de uma palavra com a Rainha Humana.
Ele obedece, olhando entre sua mãe e eu antes de sair. Mesmo que
Eldas e Harrow conversem baixinho entre si, eles olham para trás
regularmente. Sevenna ignora seus filhos.
— Harrow me contou o que você fez por ele — ela admite a
contragosto. Suas mãos estão cruzadas diante dela – com nós dos dedos
brancos. — E eu acho que metade do reino sabe sobre sua declaração para
meu filho mais velho.
— Eu sei que não é tradicional–
— Oh, acho que você fez tradição com isso — diz ela secamente. Não
sei dizer se ela está satisfeita, orgulhosa, zangada ou chateada, então tento
manter meu rosto em branco. Sevenna suspira. — No entanto, Eldas me
escreveu e contextualizou. Ele me informou sobre sua escolha.
— Minha escolha?
— Que você teve liberdade, e você voltou. Você escolheu meu filho e
seu juramento a ele como esposa. — Eu vejo sua garganta apertar enquanto
ela engole em seco. Sevenna força as próximas duas palavras quase
violentamente. — Muito obrigada.
Eu mal resisto em perguntar a ela o quão difícil era dizer isso. Mas
estou muito chocada por ela ter dito. Além disso, esta é a mãe do meu
marido e do homem que amo. É hora de começar a suavizar as arestas do
nosso relacionamento para o bem de todos.
— De nada. — Mesmo que essa mulher me deixe mais nervosa do que
qualquer outra pessoa, posso falar com calma e franqueza quando se trata de
meus sentimentos por Eldas. — Eu amo seu filho. E quero amar Harrow
como um irmão, se ele permitir. O mesmo com Drestin e Carcina. — Eu
olho por cima do ombro e vejo Harrow olhando em nossa direção. Ele sem
dúvida ouviu seu nome.
Sevenna bufa suavemente.
— Boa sorte com isso. Meu caçula é selvagem.
— E eu não sei?
Compartilhamos um sorriso que quase parece camaradagem. Há mais
trabalho a ser feito aqui e mais camadas para chegar até Sevenna. Mas terei
tempo para passar por elas.
Vou ter o resto da minha vida no Entre Mundos.
A mão do meu marido desliza na minha enquanto as portas se abrem.
Trombetas soam e uma chuva de pétalas cai magicamente em cascata do teto
com a nossa entrada. O andar de Eldas é tão rígido quanto sua coroa, seu
rosto é severo. Mas não posso deixar de sorrir maravilhada enquanto observo
a sala.
A mesma massa de pessoas de antes está aqui. Antes, eles haviam
chegado para um anúncio. Mas agora eles estão aqui para uma coroação – a
última coroação de uma Rainha Humana. A sala está cheia de magia
selvagem e todas as criaturas que a exercem. Nela, vejo minha casa – um
lugar ao qual pertenço e não falta nada. É a casa que escolhi.
Eldas me acompanha ao meu trono e, em seguida, enfrenta a sala.
— A Rainha Humana voltou. — Sua voz ecoa nas vigas mais altas do
teto. — O ciclo começa de novo. Mas este ciclo que começamos agora será
eterno. — Ele aceita uma coroa de folhas de sequóia douradas de uma
almofada segurada por Willow. Os olhos do jovem brilham com lágrimas de
alegria. — Todos saúdem a Rainha Luella. A última Rainha da Primavera.
— Todos saúdam a Rainha Luella — a sala ecoa enquanto Eldas coloca
a coroa na minha testa.
Juntos, Eldas e eu sentamos em nossos tronos e a sala irrompe em
aplausos. Finalmente relaxo em meu assento. Não há nada mais do que o
sussurro silencioso de magia na minha pele, zumbindo através da Bruma –
uma magia que me lembra de onde vim, enquanto olho para onde estou.
Posso finalmente relaxar aqui. Estendo minha mão e Eldas a pega com
um sorriso. Tudo está em equilíbrio e o mundo está bem.
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primavera dos elfos? Um pouco de felicidade conjugal? Acesse meu site
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você pode esperar de A DANCE WITH THE FAE ROGUE.
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[←1]
A pedra labradorita ou labradorite, como também é chamada, é considerada um mineral
pertencente ao grupo dos feldspatos. É considerada por muitos místicos como a pedra mais
potente no quesito de proteção contra energias negativas, pois ela cria um escudo através da
aura, fortalecendo as energias desta a partir de dentro.
[←2]
O nome Willow significa salgueiro.
[←3]
Yule é uma celebração pagã, que está ligada ao Solstício de Inverno.
[←4]
Em sentido figurativo, Glimmer pode significar vislumbre, razão pela qual esse nome foi
dado à substância.
[←5]
Corpo feminino, na tradução literal. A equipe do bwc optou por um termo mais abrangente.
Table of Contents
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39