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A Heart so Fierce and Broken

© 2020 by Brigid Kemmerer. Esta tradução de A Heart so Fierce and Broken é publicada
por VR Editora mediante acordo com Bloomsbury Publishing Inc. Todos os direitos
reservados.
© 2021 VR Editora S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da VR Editora

Marco Garcia
Thaíse Costa Macêdo
Carolina Caires Coelho
Ana Lima Cecílio e Juliana Bormio de Sousa
Gabrielly Alice da Silva e Pamella Destefi
Jeanette Levy
Shane Rebenschied
Pamella Destefi
© 2020 by Kelly de Groot

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kemmerer, Brigid
Feroz e dilacerado coração [livro eletrônico] / Brigid Kemmerer; tradução Raquel Nakasone.
- Cotia, SP: Plataforma21, 2021. - (Cursebreakers; 2)
ePub
Título original: A heart so fierce and broken
ISBN 978-65-88343-06-7
1. Ficção juvenil I. Título. II. Série.
21-59381                CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção: Literatura juvenil 028.5
Cibele Maria Dias − Bibliotecária − CRB-8/9427

Todos os direitos desta edição reservados à


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Dedico este livro a você, que está lendo esta história.
Mire-se no espelho.
Você quebra maldições!
Você é forte.
Você é incrível.
Você está mudando o mundo simplesmente por estar nele.
E eu
tenho
muito
orgulho
de você.
CAPÍTULO UM

HARPER

Sinto falta de saber exatamente que horas são.


É uma das poucas coisas de que sinto falta de Washington DC e,
quando as trevas tomam conta, o jantar vira uma lembrança distante
e Rhen ainda não voltou para seus aposentos, quero saber que
horas são. Estou acostumada a ficar esperando na escuridão, mas,
na rua, eu tinha o celular do meu irmão, e ficava contando cada
minuto.
Agora sou a princesa Harper de Decê, e Emberfall ainda não se
desenvolveu a ponto de ter eletricidade.
Rhen e eu temos aposentos separados, o que é condizente com
nossos papéis de príncipe herdeiro e dama com quem ele vai se
aliar, mas ele sempre vem me ver antes de se recolher no próprio
quarto.
Ele nunca demorou tanto. Ou… acho que não.
O calor do dia se esvaiu e o ar fresco entra pelas janelas abertas,
transformando o fogo em brasas brilhantes. Lá fora, tochas cintilam
nas guaritas que cercam Ironrose – fachos de luz espaçados
uniformemente, impedindo o caminho de virar um verdadeiro breu. É
tão diferente de quando Ironrose era amaldiçoado… quando as
guaritas eram frias, escuras e vazias, e os únicos habitantes do
castelo eram Rhen, Grey e eu.
Agora, o castelo está apinhado de nobres e servos e guardas, e
nunca estamos sozinhos de verdade.
E Grey se foi. Há meses.
Pego a vela da mesinha de cabeceira e a acendo nas brasas da
lareira. É um movimento automático, como ligar um interruptor se
estivesse em casa. Zo, minha guarda pessoal e melhor amiga aqui,
está de folga hoje, e ela merece descansar. Assim como Freya,
minha dama de companhia. As luzes em seu quarto se apagaram
horas atrás, e eu egoistamente queria que ainda estivessem acesas.
Preciso de uma amiga.
Ouço uma batida leve na porta e me apresso para abri-la.
Não é Rhen, embora eu não esperasse que ele batesse antes de
entrar. É Jake.
Quando éramos crianças, Jake era gentil e bonzinho, o irmão
mais velho perfeito. Mas, na adolescência, com nossa mãe no leito
de morte, nosso pai arruinou nossa vida. Jake cresceu forte e, para
ajudar a pagar as contas, aceitou trabalhar para os agiotas que
assombravam nossa porta. Para quem não era da família, Jake
passou rapidamente de alguém adorável para alguém temível.
Ficar preso em Emberfall, um país tão bonito quanto selvagem e
perigoso, não mudou o temperamento do meu irmão. No dia em que
chegamos, ele ficou deslocado e inseguro, mas foi se acostumando
ao papel fictício de príncipe Jacob de Decê. Seu cabelo escuro
cresceu um pouco, e ele usa uma espada na cintura como se
tivesse nascido com ela. Ninguém mexia com ele em DC, e ninguém
mexe com ele aqui.
Hoje ele está com uma expressão sombria.
– Ei – digo baixinho. – Entra.
Fecho a porta quando ele entra.
– Você ainda está acordada – ele diz.
– Estou esperando Rhen. – Faço uma pausa. – Você também
está acordado.
Ele hesita.
– Noah e eu estamos fazendo as malas.
Noah é seu namorado, outrora residente em um movimentado
pronto-socorro de DC, agora “curandeiro” do castelo.
Levanto as sobrancelhas.
– Fazendo as malas?
A expressão de meu irmão não muda.
– Vamos embora de manhã.
Fico tão surpresa que dou um passo para trás.
Jake esboça um sorriso.
– Não pra sempre, Harp. Não é pra tanto.
– Mas… como assim, vocês estão indo embora?
Ele encolhe os ombros, fica inquieto e vai até a janela.
– Estamos aqui há meses. Sei que você gosta de bancar a
princesa palaciana, mas eu me sinto preso. – Ele para e me
observa. – É só por umas semanas. No máximo um mês.
Solto um suspiro.
– Um mês.
Tantas coisas podem acontecer em um mês. Sei muito bem.
– Eu não terei como saber de você – digo. – E se algo acontecer?
A gente leva dias, semanas pra conseguir enviar um recado. Ainda
não sabemos o que está acontecendo em Syhl Shallow e tem a
coroação de Rhen e…
Ele me encara.
– Não precisa se preocupar comigo, Harper.
– Claro que eu me preocupo. – Tivemos que nos separar depois
que Grey me sequestrou nas ruas de DC, e foi horrível não ter
notícias dele. Não quero mais sentir isso. – Você falou com o Rhen?
Ele não vai gostar.
Jake endurece o olhar.
– Ele não é meu carcereiro.
– Eu sei, mas…
– Ele sabe. Já falei com ele.
Não sei o que dizer.
– Pedi pra ele não te contar nada – Jake acrescenta. – Eu queria
falar com você.
Contraio os lábios.
– Parece que você já cuidou de tudo, então.
– Não, Harp. – Ele faz uma pausa. – Quero que você venha com
a gente.
– Jake, não posso. Você sabe que não posso.
– Sim, você pode. Você pode sair daqui tanto quanto eu. – Ele se
afasta da janela e para na minha frente, e quando recomeça a falar,
sua voz está mais tranquila. – Ele também não é seu carcereiro.
Você não tem que passar suas noites esperando por ele.
– Ele está governando um país – digo. – Não está bebendo com
os amigos.
– Ele tem dezoito anos, assim como você. – Jake espera. – Você
quer se casar com ele?
A pergunta tira meu fôlego.
Meu irmão está me observando.
– Harp… você sabe que é isso que te espera se ficar aqui. Essa
aliança que ele arranjou com um país de mentira depende desse
casamento.
Eu sei disso. Claro que sei.
Fico quieta por muito tempo. Jake passa por mim e vai até a
lareira.
– Você não respondeu à pergunta.
Casamento.
– Eu não… eu não sei.
Ele joga uma lenha na fogueira e a cutuca com o atiçador.
– Você não deveria saber. Esse é o meu ponto. – A lenha começa
a pegar fogo, e Jake olha para mim por cima do ombro. – Você não
deveria estar nessa posição em que seu namorado tem que se
casar com você para salvar o país.
Vou para o sofá e me ajeito na almofada.
– Nossa, Jake, estou tão feliz que você veio.
Ele olha para o fogo, reluzindo com força agora, fazendo seu
cabelo castanho brilhar luzes douradas e vermelhas.
– Sei que as coisas não estavam boas em DC, mas também não
estão boas aqui.
– Saímos de Washington encarando um homem armado – digo.
– Eu sei, eu sei. – Ele fica em silêncio, mas sei que não está
concordando.
Não sei o que dizer.
– Não posso ir embora, Jake.
– Você o ama.
– Sim.
Ele suspira, então vem se sentar ao meu lado no sofá. Encosto a
cabeça em seu ombro, e ficamos olhando para o fogo.
– Os boatos estão saindo do controle – ele finalmente diz. –
Sobre ele não ser o legítimo herdeiro. Sobre Karis Luran atacar de
novo.
– Esses boatos estão correndo há meses.
– As pessoas estão comentando que as forças de Decê nunca
chegaram. Que essa aliança é uma farsa. – Jake faz uma pausa, e
seus olhos se iluminam. – Não estou indo só porque quero sair
daqui. Quero descobrir o que está acontecendo de verdade fora do
castelo.
– Rhen não mentiria pra gente.
Jake fica me observando por um tempo.
– Ele está mentindo para o país todo – ele finalmente diz. – Se
você acha que ele não mentiria pra gente, precisa prestar mais
atenção.
Engulo em seco. Rhen não é assim.
– Não começa, Jake.
– Só estou pedindo pra você pensar. – Ele balança a cabeça,
amargurado. – Noah disse que você não viria. Pensei que você ao
menos consideraria.
Fico olhando para ele. Meu incansável irmão, que fez tantas
coisas terríveis só para me proteger. Em sua essência, há bondade
e compaixão. Eu sei que há.
– Sinto muito.
Ele cerra os dentes.
– Queria saber se Grey está vivo ou morto.
– Eu também – digo, e dou um suspiro.
– Não pelos mesmos motivos que você. – Ele me olha. – Foi ele
quem nos prendeu aqui. – Jake sacode a cabeça e passa a mão no
maxilar. Seu corpo está tenso agora. – Se ele aparecer, vou fazê-lo
se arrepender.
Quase não é uma ameaça. Grey provavelmente está morto – ou
preso do outro lado, o que também não é bom.
– Por que você está tão bravo?
Nuvens carregadas nublam seus olhos.
– Passei meses vendo eles te usarem, Harper.
– Ninguém está me usando…
– Estão, sim. Grey te trouxe aqui para quebrar uma maldição da
qual você nem fazia parte. E quando você escapou, ele te trouxe de
novo.
– Eu quis voltar. – Eu quis mesmo. Não me arrependo da escolha
que fiz.
Até este momento, olhando nos olhos de Jake, eu nunca tinha
entendido que ele se arrepende da escolha que eu fiz. Pode até ter
salvado sua vida, mas agora ele está preso aqui sem ter como voltar
para casa.
A trava da porta faz um clique, e me viro surpresa para encontrar
Rhen parado ali.
O príncipe ainda está vestido com suas roupas formais: um
casaco azul afivelado até a garganta e uma espada na cintura. O
fogo reluz no seu cabelo e o tinge de dourado, mas seus olhos
estão cansados. Ele nos vê perto da lareira e para. A tensão no
cômodo é tão pesada que ele provavelmente pode senti-la.
– Perdoem-me – Rhen diz com cuidado. – Está tarde. Pensei que
estivesse sozinha.
Jake suspira.
– Você deveria ficar sozinha. Estou saindo. – Ele se inclina para
me dar um beijo na testa. – Se cuida, Harper. Sério.
Isso suaviza todas as outras palavras.
– Obrigada, mano.
Jake para perto de Rhen antes de puxar a maçaneta.
– Vou embora amanhã mesmo – ele diz.
– Na verdade, hoje – Rhen fala, no mesmo tom seco de Jake. –
Já passou da meia-noite. – Ele olha para a janela escura. – Dustan
vai acompanhá-lo junto com um pequeno contingente de guardas.
Você pode ir ao amanhecer, se quiser.
Jake fica desconcertado por um momento, mas logo se recupera.
– Que bom.
Rhen ergue uma sobrancelha.
– Pensou que eu ia voltar atrás?
– Pensei que você encontraria coisas mais importantes para
fazer.
– Certamente eu tenho. – Rhen abre a porta e a segura para ele.
Uma clara dispensa.
Jake abre a boca para discutir.
Rhen pode ser paciente se quiser, mas sinto que agora não é um
desses momentos.
– Jake, você conseguiu o que queria.
– Nem perto. – Mas isso é o suficiente para fazê-lo desistir, e ele
se dirige para a porta.
Quando ele sai, Rhen cruza o quarto até mim. Cada dia
acrescenta novas sombras sob seus olhos – uma desconfiança
escura e vigilante que nunca abranda.
– Você está bem? – pergunto enquanto ele se aproxima. Ele
sempre aparece retraído depois das reuniões com seus
conselheiros, mas hoje está em um outro nível: distante. Parece tão
severo que, se eu não o conhecesse, me afastaria. – O que está
acontecendo? Está tarde. Pensei…
Suas mãos agarram minha cintura, e eu ofego. Então sua boca
está sobre a minha.
Rhen é tão forte e tão poderoso que ainda me surpreende
quando é gentil. Ele caminha pelo quarto como se quisesse
começar uma guerra, mas me beija como se eu fosse a coisa mais
delicada do castelo. Suas mãos estão tão repletas de ternura que eu
posso sentir através da camisola macia. Coloco as mãos em seu
casaco e sinto seu cheiro, permitindo que sua proximidade apague
um pouco da inquietação que Jake alimentou.
Rhen recua, mas ainda está tão perto que quase toca meus
lábios. Seus olhos perfuram os meus.
– Eu senti sua inquietação do outro lado do castelo – ele diz.
Esfrega um polegar na minha bochecha. – Estou sentindo agora.
Fico vermelha e olho para baixo. Meus dedos remexem as fivelas
de seu casaco, como se precisassem ser arrumadas, mas é claro
que não precisam.
– Estou bem.
– Harper – ele diz baixinho. Pousa uma mão sobre a minha,
forçando-a a parar.
Adoro o jeito como ele pronuncia meu nome, o jeito como seu
sotaque carrega os erres, transformando-os em um ronronar. Ele é
sempre tão formal que esse parece um segredo nosso.
Ele coloca um dedo no meu queixo e levanta minha cabeça.
– Conte-me seus medos.
– Jake acabou de me dizer que está indo embora.
– Ah. – Rhen suspira. – Seu irmão é impaciente e imprudente, e
poderia esperar uma hora melhor. Mas também poderia ser pior.
Prefiro que ele vá com minhas bênçãos a descobrir que ele causou
confusão no reino. Dustan não vai permitir que ele arranje muitos
problemas.
– Estou surpresa que você esteja enviando seu comandante da
guarda.
– Eu preferia não enviar, mas são poucos os guardas a quem
posso confiar essa tarefa. A Guarda Real ainda não foi testada, mas
seu irmão insiste em partir, quer eu goste ou não.
Bem, definitivamente Jake é assim.
Rhen me observa.
– Você prefere que eu mande Zo?
– Não. – Meu irmão está indo embora, e eu não suportaria perder
minha amiga também. – Jake disse que quer que eu vá com ele?
Rhen congela.
– Não. E qual a sua decisão?
Essa é uma das coisas de que mais gosto nele. Ele é imponente,
decidido e nunca vacila – mas nunca me priva das minhas escolhas.
– Eu disse que não vou.
Ele solta o ar e me beija de novo.
– Passei tanto tempo esperando por você que tenho medo que o
destino a leve para longe.
Encosto a testa em seu pescoço e inalo o calor de seu cheiro.
– Não vou a lugar algum.
Ele fica em silêncio por um momento, mas sei que sua
preocupação ainda não se dissolveu.
Mordo o lábio, sem querer aumentar a tensão.
– Jake disse que os boatos sobre outro herdeiro aumentaram.
– Sim.
Pressiono uma mão em seu peito, pensando em tudo o que Jake
me contou.
– Fale comigo, Rhen.
Ele suspira, e seu tom fica sério.
– O herdeiro existe. Há registros com o selo do meu pai. Eu
queria adiantar a coroação, mas muitos nobres já deixaram claro
que querem uma prova de que a linha sucessória é sólida, então eu
devo fazer o meu melhor para provar.
– Como você vai encontrá-lo?
– Talvez seja impossível. Na verdade, talvez ele não esteja vivo.
Temos muito pouco para usar em nossa busca. Se a mãe dele era
uma feiticeira, como os registros indicam, ele deveria possuir magia,
como Lilith. Uma vez, ela me disse que a teia da magia não
terminava com ela, que podia sentir a existência de outra pessoa. A
magia foi banida de Emberfall por anos, mas se espalharmos que
alguém tem esse poder, pode não ser tão fácil esconder.
Lilith. Só esse nome é o suficiente para me fazer tremer.
– O que você vai fazer se o encontrar?
– Se ele possuir magia, será aniquilado.
Eu o repreendo:
– Rhen!
Ele não diz nada. Não precisa. Seu olhar já diz tudo.
Dou mais um passo para trás.
– Este homem é seu irmão.
– Não. Ele é um estranho. – Ele não cede. – Passei quase uma
eternidade aprisionado por uma feiticeira, o que quase arruinou meu
país. Não vou permitir que Emberfall seja destruído por outro
feiticeiro.
Estou paralisada, congelada, apesar do fogo ao meu lado. Não
sei o que dizer. Já o vi ordenar a morte de um homem antes, mas
ele tinha matado um dos nossos guardas, e teria nos matado se
tivesse a chance.
Isso é diferente. Calculado. Premeditado.
Rhen avança um pouco e estica a mão para tocar meu rosto.
Eu recuo, e ele fica sério.
– Não queria magoar você – ele diz baixinho, e sei que é
verdade. – Não pensei que seria uma surpresa. Você viu com seus
próprios olhos o estrago que Lilith causou.
Sim. Eu vi. Eu a vi torturando Rhen várias vezes. Ele não podia
impedi-la.
– Tenho certeza de que está certo – digo, mesmo não tendo
certeza alguma. Solto o ar, vacilante, e coloco uma mão na barriga.
Rhen provou que vai fazer o que for preciso para salvar
Emberfall. Está provando agora.
– Não se afaste de mim – ele pede suavemente, com um novo
timbre na voz. Não é vulnerabilidade… jamais seria. Mas é algo
próximo. – Por favor. Não posso suportar.
Ele parece muito cansado. Seu corpo está tão tenso! Me
pergunto quando foi a última vez que ele dormiu. Respiro fundo e
expulso o tremor dos meus dedos, então me aproximo e o envolvo
em meus braços.
– Conte-me os seus medos – digo calmamente.
– Não sabemos nem se Lilith está morta – Rhen diz. – Se ela
encontrar esse herdeiro… se eles se aliarem contra mim…
– Já se passaram meses. Ou ela está presa do outro lado ou
Grey está.
– Ou ele fez um juramento a ela, como vimos, e ela está
ganhando tempo.
Grey se colocou a serviço dela para me salvar logo antes de
enfiar a espada na garganta de Lilith e desaparecer para o outro
lado. Para Washington DC.
– Ele não a ajudaria – eu digo. – Rhen, ele não faria isso.
– Preciso proteger meu povo, Harper.
Ele se inclina contra mim e sua respiração se acalma. Pouso uma
mão em sua bochecha, ele fecha os olhos. Meses atrás, quando
ainda era um monstro, houve um momento em que ele pressionou o
rosto na minha mão e se acalmou desse mesmo jeito. Eu senti seu
medo. Estou sentindo agora.
– Você não é mais um monstro – sussurro.
– Enviei guardas para a casa da mãe de Grey em Wildthorne
Valley – ele diz com cuidado.
Minha mão fica imóvel na bochecha dele.
– O quê? Quando?
– Na semana passada. Por precaução. – Ele faz uma pausa. –
Eles voltaram hoje.
Grey me contou que Lilith tinha matado sua família inteira, menos
sua mãe.
– O que eles encontraram?
– Ela não estava lá. Os moradores disseram que ela vendeu seus
animais e se mudou meses atrás. – Outra pausa. – Há boatos de
que um homem ferido ficou com ela por um tempo, mas ninguém o
viu.
Fico sem ar por um momento.
– Grey pode estar vivo – sussurro.
– Sim. – A voz de Rhen é dura, mas sinto a preocupação e
incerteza por trás dela. – Pelo que disseram, suspeito que Grey
esteja vivo.
Olho para ele.
– Grey não está a serviço dela, Rhen.
– Então por que ele não voltou para Ironrose?
Tento pensar em uma resposta, mas falho.
– Karis Luran pode atacar a qualquer momento – Rhen diz. – O
herdeiro pode aparecer a qualquer momento. – Ele para. – E Lilith
pode estar só esperando o momento perfeito…
Apoio a cabeça em seu peito e olho para a janela de novo,
observando as estrelas cobrindo o céu.
– Oh, Grey. Onde você está?
– Onde? – Rhen solta um suspiro, e eu noto a saudade, tristeza e
preocupação contidas na palavra. Ele dá um beijo na minha cabeça.
– Onde?
CAPÍTULO DOIS

GREY

O fim da tarde sempre carrega o peso do sol, mas eu não me


importo, porque os estábulos estão silenciosos e raramente tenho
mais do que o tratador como companhia.
Este é o último lugar onde virão me procurar, então aproveito.
O suor deixa meus braços pegajosos, atraindo poeira e palha
enquanto balanço o forcado. O calor vai piorar antes de melhorar,
mas estou acostumado. O Torneio de Worwick só começa quando
escurecer, e tudo está deserto, exceto por mim e Tycho. Mais tarde,
os estábulos ficarão barulhentos com homens gritando para seus
cavalos ou discutindo sobre as armas que vão alugar no final do
corredor. Assim que a bebida começar a fluir e o estádio se encher
de gente ávida por um show, a algazarra será ensurdecedora.
Agora, porém, o estádio está vazio e os estábulos estão
precisando de uma boa limpeza – bem diferente do luxo
extravagante de Ironrose de quando eu era comandante da Guarda
Real de Emberfall.
Tycho murmura uma canção enquanto limpa as baias, mas não
consigo ouvir a melodia em meio à respiração dos cavalos. Ele é
pequeno para a idade, magro e forte, e parece ter doze, não quinze
anos. Mesmo assim, é ágil e competente. Seu cabelo loiro escuro
vai até abaixo do queixo, escondendo o azul de seus olhos.
Tycho também gosta desse momento do dia, só que por motivos
diferentes. Homens com a barriga cheia de cerveja de vez em
quando vêm procurar diversão depois do torneio. Já ouvi alguns
deles oferecendo a Worwick algumas moedas pela hora de Tycho. E
já vi Worwick considerando a oferta.
O garoto sabe se fazer invisível.
Passei as últimas semanas tentando garantir que ele também
saiba se defender.
– Quantas faltam? – pergunto.
– Três – ele responde, passando um braço na testa. – Pelos
infernos, como está quente.
Olho pela janela da baia. Temos algumas horas até o sol se pôr.
– Eu fico com essas. Vá para o Growling Dog. Jodi disse que teria
caranguejos de Silvermoon essa semana.
Ele sai da sua baia.
– Hawk, a taverna de Jodi é do outro lado da cidade.
Hawk. Três meses, e ainda não me acostumei com o nome.
Afasto o cabelo molhado da testa e sorrio.
– Então é melhor se apressar. Caranguejos no vapor valem um
cobre cada.
Ele solta um suspiro, mas, um momento depois, ouço suas
passadas no chão de terra do corredor.
– Quando eu ganhar, vou pedir uma dúzia – ele diz.
Ele não vai ganhar. Mesmo com a vantagem que eu lhe dei.
Mas está chegando perto.
Quando cheguei aqui, ainda estava me recuperando da batalha
com Lilith. Pesadelos me atormentaram durante semanas,
deixando-me exausto e enfraquecido. Limpar baias e armas sugava
quase toda a minha energia.
Depois que melhorei, a monotonia da vida no torneio começou a
me deixar entediado e inquieto. Estava sentindo falta do esforço
físico da Guarda Real. Algumas horas com um forcado e um trapo
não eram nada em comparação com as horas de treinos e esgrima.
Passei a acordar antes do amanhecer para correr pela cidade na
escuridão da madrugada ou para escalar o telhado do estádio.
Não sei por quanto tempo Tycho ficou me observando antes que
eu o descobrisse, mas eu ainda estava aterrorizado com a ideia de
ser encontrado. Sorte a dele que eu não tinha uma espada.
Ou sorte a minha, talvez. Minha habilidade certamente chamaria
atenção. Se alguém aparecer procurando por um espadachim
habilidoso, não quero dedos apontados para mim. Às vezes, pratico
com Tycho usando lâminas, tomando o cuidado de executar apenas
movimentos básicos e deixá-lo acertar alguns golpes.
Uma carroça range do lado de fora, seguida das pesadas
passadas dos cavalos de tração. A voz estrondosa de um homem
chama:
– Tycho! Hawk! Venham ver o que eu trouxe!
Worwick. Suspiro. Poderia ser qualquer coisa, desde uma placa
de gelo a um prego enferrujado ou um cadáver de pescador.
Nesse calor, torço muito para que não seja o último.
Saio dos estábulos limpando as mãos nas calças. Há uma caixa
enorme na carroça, maior que um homem, coberta por um tecido
amarrado nos cantos. Os cavalos estão molhados de suor, e a
saliva escorre de suas bocas.
Worwick sempre abusa dos animais. Vou ter que lavá-los antes
de atravessar a cidade. Tycho talvez vença hoje, afinal.
Parece que ele encontrou uma pilha de tesouros do rei. Ele
praticamente salta do assento da carroça e, considerando seu peso,
isso quer dizer alguma coisa. Ele puxa um lenço do bolso e enxuga
a testa encharcada.
– Você não vai acreditar – ele diz. – Você simplesmente não vai
acreditar.
– O que você trouxe?
– Onde está Tycho? – Worwick quase solta uma gargalhada de
alegria. – Quero ver a reação dele.
Apostando uma corrida comigo até a taverna em busca de
caranguejos cozidos no vapor que terei que pagar se você ficar
enrolando demais.
– Foi para a cidade pegar unguento para um dos cavalos.
– Ah, que pena. – Ele suspira de decepção. – Então vou ter que
me contentar com a sua reação.
Eu provavelmente não terei reação nenhuma, e ele sabe disso.
Worwick me acha austero e sem graça. Passei tempo demais
servindo o príncipe herdeiro – tanto na sua forma humana quanto
monstruosa – para me impressionar com qualquer coisa que
Worwick possa ter debaixo de seu lençol.
Ele não é mau, apenas um pouco rude, e vive para o que pode
lhe render moedas extras no bolso. Como comandante Grey, eu
teria pena dele.
Como Hawk, eu simplesmente o tolero.
– Vá em frente, então – digo.
– Me ajuda a tirar o pano.
As cordas estão apertadas e amarradas com nós duplos. Já
estou no segundo quando percebo que ele ainda está no chão me
observando.
Típico. A corda se solta e eu ergo o tecido.
É uma jaula. Estou olhando para uma... criatura que não consigo
identificar. É meio humana, e sua pele é cinza escura como um céu
noturno nublado. De suas costas, saem asas que estão amarradas
com uma corda, e seu longo rabo repousa no chão. Suas patas têm
garras, e um tufo de pelo preto está molhado de suor.
Ela não se move.
– Minha nossa – Worwick diz. – Será que morreu?
– Se não morreu, está quase. – Noto um olhar sombrio nele. –
Quanto tempo ela ficou coberta assim?
– Duas horas.
– Nesse calor?
Ele coloca uma mão na boca.
– Oh, céus.
– Ela precisa de água. – Salto da carroça e vou buscar um balde
no estábulo.
Quando volto, a criatura ainda não se mexeu. Subo na carroça de
novo e me agacho ao lado da jaula. Vejo suas costelas se
expandindo lentamente. Pelo menos, está respirando. Pego um
punhado de água e estendo a mão através das barras, derramando-
a em seu rosto. Seu nariz é um pouco mais estreito do que o de um
humano; sua mandíbula, mais larga. A água escorre pela sua pele
cor de fumaça.
– O que é? – pergunto a Worwick. – Onde você a pegou?
– É um rasvador – ele diz. – Dizem que foi capturado lá no norte,
nas florestas de gelo além de Syhl Shallow. Eu o ganhei em um jogo
de cartas! A sorte sorriu pra mim hoje, meu caro.
Um rasvador. Lembro-me de ter ouvido uma história sobre algo
assim, mas faz tanto tempo que esqueci.
– Pensei que fosse um mito. Para assustar crianças.
– Pelo visto, não é mito.
Pego mais um pouco de água e deixo-a escorrer pelo seu rosto,
então estalo a língua como faço com os cavalos. Os cílios do
rasvador tremulam, e só.
– Você acredita – Worwick diz – que eles estavam cobrando dois
cobres das pessoas que quisessem olhar pra ele? Totalmente
lamentável.
Ergo as sobrancelhas. Compaixão não é algo comum em
Worwick.
– Concordo.
– Exatamente! Por um rasvador? As pessoas com certeza
pagariam cinco.
Ah. Agora sim.
Na terceira vez que encho a mão, a criatura se contrai. Ela mexe
a boca, querendo água. Suas unhas arranham o chão da jaula
enquanto ela tenta se aproximar de mim. Seus movimentos são
fracos e penosos.
– Calma – digo suavemente. – Tem mais. – Pego mais. Vou ter
que buscar uma concha.
O rasvador respira fundo, abrindo as narinas, e solta um som
baixo vindo do peito. Coloco a mão mais perto de seus lábios.
Seus olhos se abrem; são negros. O som baixo vira um rosnado.
– Calma – digo mais uma vez. – Não vou te machucar…
Ele avança na minha mão. Sou rápido, mas ele é mais. Suas
presas se afundam em meu pulso antes que eu tire o braço da jaula.
Consigo me soltar e cambaleio para trás, tropeçando no balde de
água e quase caindo da carroça.
Workwick olha para mim, então começa a gargalhar.
– Não, não. Foi melhor que você estivesse aqui. Não acho que
Tycho teria coragem de colocar a mão aí dentro.
Pelos infernos. Meu pulso está sangrando muito. A poeira e o
suor o fazem arder.
O rasvador se recolheu para o outro lado da jaula. Daqui, é
possível ver que a criatura é descaradamente masculina. Está claro
para mim, com seus dentes meio expostos e seus olhos profundos,
cheios de uma advertência sombria.
– Você vai ter que esperar pela água agora – digo.
– O que você acha que devemos fazer com ele? – Worwick
pergunta.
Dou um suspiro. Meu pulso está queimando e estou morrendo de
fome. Vou ter que buscar Tycho e voltar antes de escurecer, senão
vou acabar pagando caro.
– Não podemos deixá-lo aqui fora no sol. Vamos levar a carroça
para o estádio. Podemos decidir o que fazer com ele depois do
torneio.
– Hawk, você é um bom homem. – Ele dá tapinhas no meu
ombro. – Estarei no escritório, se precisar de mim.
Que sorte a minha.
•• ••
Tycho está sentado no bar, com meio prato de caranguejos comidos
na sua frente e um sorriso no rosto. Está cedo, então o lugar não
está cheio e Tycho está sozinho. Ele parece tão satisfeito que fico
quase feliz por Worwick ter aparecido no pátio com um problema
para que eu resolvesse.
Não consigo deixar de sorrir em resposta e digo:
– Não fique se achando.
Ele dá uma risadinha para Jodi, a jovem atrás do bar.
– Acho que vou querer mais uma dúzia. Hawk vai pagar.
Ela sorri, e seus olhos castanho-dourados brilham.
– Se é o que diz.
Eu bufo.
– Você vai passar mal com o que já comeu. Não vou te carregar
de volta.
– Eu sei. – Ele empurra o prato para mim. – A outra metade é pra
você.
Sento no banco ao lado dele, e Jodi desliza um prato e uma faca
no balcão. A viagem pela cidade foi longa, cansativa e estragou meu
apetite, mas pego um caranguejo mesmo assim. Tycho
normalmente é muito reservado, então não quero estragar seu bom
humor.
Jodi se inclina no bar. Seu cabelo castanho vai até a cintura, com
penas e pedras trançadas em alguns dos fios. Ela está bronzeada
do sol, tem sardas nas bochechas e um pequeno espaço entre os
dois dentes da frente. Seu peito quase transborda do vestido
quando ela se apoia nos antebraços, oferecendo-me um largo
sorriso.
Isso não passa despercebido por mim, mas passei tanto tempo
renunciando a qualquer tipo de relacionamento que esqueci como é
sentir a faísca da atração.
Não. Não é verdade. Eu me lembro de Harper. Lembro da
bondade em seus olhos, de sua infinita determinação e da sensação
de sua mão na minha quando lhe ensinei a lançar facas na neve.
O que era proibido naquela época, e continua sendo. Pensar em
Harper não vai me levar a lugar algum, então a afasto da mente.
– Vinho ou cerveja? – Jodi pergunta.
– Água. – Corto uma pata de caranguejo com a faca e retiro a
carne. – Por favor.
Ela faz beiço.
– Você nunca bebe.
Encolho os ombros.
– Tycho já gastou meu dinheiro na comida.
Não é verdade, mas estou sem cabeça para brincadeiras. Não
era permitido beber quando eu era guarda e, na única vez que dividi
uma garrafa de rum com Rhen, quase apaguei. Como Hawk, fico
imaginando quais verdades deixaria escapar de meus lábios se eu
ousasse beber.
Pensando bem, talvez não deixasse escapar nada. Na Guarda
Real, sempre senti que minha vida tinha se dividido em dois atos.
Havia o antes, quando eu era um jovem campesino procurando um
jeito de ajudar a manter minha família viva.
E havia o depois, quando me tornei guarda e minha função era
manter a família real viva. Houve momentos em que minha própria
família virou uma memória distante, quase como se fossem apenas
pessoas imaginárias, e não indivíduos com os quais eu vivi e me
importei.
Agora acho que encontrei um terceiro ato. Às vezes, o castelo e a
maldição parecem tão imaginários quanto minha família. Não faço
ideia de quanto daquele guarda sobrou.
Jodi coloca um copo de água na minha frente. Bebo metade em
um só gole, limpo a boca com um guardanapo, então corto outra
pata de caranguejo com a faca.
– Você come feito um nobre – ela diz, com um tom reflexivo. –
Acho que nunca tinha percebido isso antes.
Meus dedos hesitam, mas obrigo minha mão a se mover para
cortar outra casca. Ela não está errada, mas jamais tinha pensado
nisso: meus modos à mesa são de um homem treinado para jantar
com a realeza.
Tento agir de um jeito mais atrapalhado, apesar de parecer
forçado. Em um momento, prestes a arrancar uma pata com a faca,
sorrio para Jodi e dou um empurrãozinho bem-humorado em Tycho,
dizendo:
– Provavelmente você só está acostumada com bêbados que
arrancam a carne com os dentes.
Tycho dá um sorriso tímido.
– Pelo menos, não estou bêbado. – Ele repara na atadura
improvisada no meu braço. – O que você fez?
Quebro uma pata de caranguejo com as mãos, ciente de que Jodi
está me observando.
– Worwick tem um novo bicho de estimação.
– Um novo bicho de estimação?
Antes que eu possa responder, as portas da taverna se abrem
com tanta força que batem na parede. Meia dúzia de homens
entram totalmente armados, ostentando o brasão dourado e
vermelho de Emberfall.
Não é a Guarda Real, mas soldados do Exército do Rei. Eu
congelo, depois me obrigo a focar na comida. Ao meu lado, Tycho
também fica em silêncio por seus próprios motivos.
De repente, estou desejando ter uma espada na cintura. Meus
dedos casualmente envolvem o cabo da faca.
Provavelmente estou apenas sendo tolo. Eu só dei uma olhada
superficial e não reconheci nenhum deles. Seria muito improvável
que eles me reconhecessem. Meu cabelo cresceu um pouco e
minha barba está por fazer.
Com sorte, ninguém está me procurando. Não tenho como saber.
Um dos homens se aproxima do bar e joga uma moeda de
bronze no balcão de madeira.
– Comida e vinho para os meus homens, por gentileza.
Jodi pega a moeda e faz uma reverência.
– Agora mesmo, meu lorde.
Ele não é um lorde, mas o título com certeza o agrada. Dois de
seus homens assobiam da mesa perto da porta.
O soldado joga outra moeda no balcão e pigarreia:
– Você tem a minha gratidão.
– E você, a minha. – Ela pega a moeda e, enquanto ele se vira,
Jodi pisca para mim.
Mal consigo sorrir de volta. Estou preocupado demais com o que
eles estão fazendo aqui. Estamos longe da fronteira. Esta não é
uma cidade que costuma receber muitos soldados.
O homem para antes de se afastar. Olha para mim.
Bebo um gole de água e avalio o peso da faca entre os meus
dedos. Posso enfiá-la em sua garganta sem nem pensar. Meu braço
se lembra do movimento. Esta é mais leve que as minhas facas de
lançar, então não levaria tanto…
– Isso é caranguejo cozido no vapor? – ele pergunta. – Não
vemos crustáceos há séculos.
Pigarreio e forço meus dedos a soltarem a faca. Quando falo,
minha voz sai rouca.
– O caranguejo da Jodi é o melhor da cidade.
– Então, viemos ao lugar certo.
Finalmente olho para ele. Tenho que correr o risco, senão vai
parecer que estou escondendo algo.
Ele é grandalhão, tem o cabelo escuro e a pele corada. Não o
reconheço. O alívio preenche meu peito e eu respiro fundo.
– Não vai se arrepender. – Faço uma pausa. – Longa viagem?
– Para o norte, para Forja Hutchins – ele diz. – Assuntos oficiais.
– Claro – aceno com a cabeça e levanto do banco. – Boa viagem,
soldado. – Deixo um punhado de moedas ao lado do prato. – Tycho,
precisamos voltar.
Não terminamos o que estava na bandeja, mas ele se apressa e
me segue até a porta. Nós saímos no sol ardente.
Antes de a porta se fechar, ouço um dos soldados dizer:
– Pelo amor da prata, capitão, a população sabe que as cidades
estão se rebelando por causa de outro herdeiro. Os boatos estão
por toda parte.
Agarro a manga da camisa de Tycho e prendo a respiração,
querendo ouvir mais.
– O que você acha que o príncipe vai fazer quando o encontrar?
– pergunta outro homem.
O capitão bufa.
– Arrancar a cabeça dele, provavelmente. O rei está morto. O
príncipe herdeiro vai tomar o seu lugar. Ele não vai permitir que um
desconhecido…
A porta se fecha, deixando-nos debaixo do sol.
Tycho me olha.
– Esses soldados te deixaram nervoso.
Não gosto que ele tenha notado isso. Dou-lhe um empurrão com
meu ombro.
– E você também.
Ele cora e desvia o olhar.
Não devia ter dito isso. Estava tentando tirar o foco de mim, mas
acabei apontando-o diretamente para ele.
– Corrida até em casa? – pergunto.
– Achei que estivesse sem moedas.
– Se você ganhar, fico com todas as suas baias amanhã.
Ele sorri e dispara sem hesitar, sem nem considerar o calor ou a
comida pesando na barriga. Provavelmente vou encontrá-lo
vomitando caranguejo no meio do caminho.
Continuo caminhando.
O rei está morto.
O príncipe herdeiro vai tomar o seu lugar.
O príncipe herdeiro deveria tomar o seu lugar. Sinto um aperto no
peito que eu não esperava. Uma vez, jurei minha vida a Rhen
exatamente por este motivo. Para fazer parte de algo maior do que
eu.
Agora estou aqui, nas ruas empoeiradas de Rillisk, como um
mero tratador. O meio-irmão secreto do príncipe herdeiro de
Emberfall. O herdeiro desaparecido que não quer ser encontrado.
Fazendo parte de absolutamente nada.
CAPÍTULO TRÊS

LIA MARA

Estou olhando pela janela da carruagem há quilômetros. O ar


deste lado das montanhas tem um certo peso, uma viscosidade
densa que me faz querer viajar de manto e calça em vez de minhas
vestes reais. Mas a beleza da paisagem vale a pena. Além das
montanhas, Syhl Shallow se estende por quilômetros de terras
planas, algumas cidades esparsas e um rio estreito. Emberfall é rica
em vales e florestas e terrenos variados.
Há também algumas cidades destruídas, restos carbonizados
deixados pelos nossos soldados quando mamãe tentou tomar esta
terra pela primeira vez.
Essas ruínas sempre forçam meu olhar de volta para a
carruagem. Não tenho vontade alguma de ver a destruição causada
pelo nosso povo.
Já pensei que poderia mudar esse padrão, até que mamãe
nomeou minha irmã mais nova como herdeira.
À minha frente, minha irmã não parece se abalar com o clima e o
cenário. Nolla Verin está nas sombras, bordando com um fio
vermelho e prata. Deve ser um adorno para um de seus cavalos.
Ela não se abalaria diante de cidades destruídas. Nolla Verin não
se abalaria diante de nada.
É por isso que foi nomeada herdeira, e não eu.
Ela esboça um sorriso.
– Lia Mara, você sabe que seremos vistas como hostis – ela diz
em syssalah, nossa língua.
Não tiro os olhos da vegetação exuberante.
– Mamãe tentou destruir este país. Como poderia ser diferente?
– Estou pensando que você seria um alvo fácil, inclinada para
fora da janela com a boca aberta.
Fecho a boca e me endireito no assento, deixando que a cortina
se feche.
O sorriso de Nolla Verin fica maior.
– E todo mundo sempre diz que você é a esperta.
– Ah, sim. Se bem que eu prefiro isso a ser robusta.
Ela ri baixinho.
– Faça uma lista. Quando eu for rainha, vou mandar executar
todos eles por você.
Quando eu for rainha.
Dou um sorriso e torço para que ela não veja a tristeza por trás
dele.
Não é que eu tenha inveja. Há muito tempo, prometemos uma à
outra que apoiaríamos quem fosse escolhida. E apesar de ela ser
dois anos mais nova que eu, já aos dezesseis era a mais preparada
para herdar a coroa de nossa mãe. Nolla Verin praticamente nasceu
com um arco e flecha na mão, para não dizer uma espada na
cintura. Assim como nossa mãe, ela não hesita se tiver que usá-los.
Ela é capaz de domar o cavalo mais agressivo dos estábulos, e de
fato muitas das Casas Reais começaram a enviar seus potros para
que ela os treinasse, só para poderem se gabar que eles foram
domesticados pela grande filha da rainha.
Nolla Verin e nossa mãe também compartilham a mesma
afinidade por julgamentos rápidos e brutais.
É isso que me deixa triste. Minha irmã se diverte com a ideia de
uma execução.
E ela não está brincando.
A semelhança entre elas não para por aí. Nolla Verin e mamãe
também compartilham o mesmo tipo físico: são pequenas, ágeis e
atléticas. Perfeitas para o campo de batalha. A única característica
que puxei da nossa mãe é meu cabelo vermelho, embora eu deixe o
meu comprido até a cintura, enquanto ela mantém o dela mais curto.
Seu cabelo é preto e brilhante. Não sou pequena nem ágil, o que faz
com que muitos na corte comentem sobre a minha inteligência
quando querem ser gentis – e sobre minha “robustez” quando não
querem.
Minha irmã voltou ao bordado. Seus dedos voam para cima e
para baixo do tecido. Se está nervosa, não dá nenhum sinal.
Nossa comitiva de viagem não é grande. Sorra e Parrish, meus
guardas pessoais, seguem cavalgando atrás. Tik e Dyhl, os guardas
de Nolla Verin, vão no centro. Minha mãe tem quatro guardas
pessoais, que cercam sua carruagem na frente.
– E se o príncipe rejeitar a oferta de mamãe? – pergunto.
Ela ergue os olhos.
– Ele seria um tolo. Nossas forças podem destruir o país patético
dele.
Observo a janela. Até agora, não achei Emberfall patético. E o
príncipe Rhen foi capaz de nos fazer recuar pelo desfiladeiro, então
me parece que seria melhor sermos cautelosas.
– Hum – digo. – E você acha que essa destruição vai fazer com
que as pessoas queiram trabalhar nas hidrovias de que tanto
precisamos?
– Nosso povo pode aprender.
– Acho que eles poderiam aprender mais rápido com quem já tem
a habilidade.
Ela dá um suspiro complacente.
– Você provavelmente imploraria pelas instruções oferecendo
nozes e mel.
Desvio o olhar para a paisagem. Eu pediria ajuda em vez de dar
ordens com uma espada na mão, mas este é mais um lembrete do
motivo de Nolla Verin ter sido escolhida, e eu não.
– Podemos deixar alguns viverem, se for necessário – ela diz. –
Eles estarão desesperados para ajudar.
– Podemos deixar todos viverem, se mamãe conseguir uma
aliança.
– Vamos conseguir. A criatura monstruosa do príncipe Rhen está
morta. Nossos espiões reportaram que as cidades dele estão
começando a questionar seu direito ao trono. Se quiser manter seu
país estúpido, ele vai ter que aceitar.
Ela é tão prática. Esboço um sorriso.
– E se você não gostar dele?
Ela revira os olhos.
– Como se isso importasse. Posso me deitar com um homem
sem gostar dele.
Coro diante de seu atrevimento.
– Nolla Verin, você já… fez aquilo?
– Bem, não. – Seus olhos encontram os meus, e seus dedos
estão paralisados. – E você?
Fico mais corada ainda.
– Claro que não.
Nolla Verin arregala os olhos.
– Então você devia fazer primeiro e me dizer o que esperar. Está
entediada? Vou chamar Parrish agora mesmo. Ou você prefere
Dyhl? Pode ficar com a carruagem…
Dou risada e jogo uma almofada de brocado nela.
– Você não vai fazer isso.
Ela se esquiva da almofada sem perder o ponto do bordado.
– Só estou pedindo para você agir como uma irmã.
– E a noiva do príncipe Rhen?
– A princesa Harper? – Nolla Verin puxa a linha com força e dá
um nó. – Ela também pode se deitar com quem quiser.
– Não se faça de sonsa, irmã.
Ela suspira.
– Não estou preocupada. A aliança deles não significa nada. Três
meses se passaram desde que o príncipe supostamente fez uma
aliança com a misteriosa Decê. E as forças dela nunca chegaram.
Mamãe acha que o príncipe não foi totalmente honesto com seu
povo, e estou inclinada a acreditar nisso.
Eu também. Enquanto Nolla Verin prefere passar seu tempo no
campo de treinamento, eu prefiro gastar minhas horas de todas as
semanas sob a tutela de sua conselheira-chefe, Clanna Sun,
aprendendo sobre estratégia militar ou sobre os intricados
entrelaçamentos entre as Casas Reais. Nos últimos meses, pareceu
que o príncipe Rhen estava organizando um exército que poderia
representar uma ameaça para nós, mas que, de alguma forma,
nunca se materializou. De fato, acho muito curioso que o príncipe
continue cortejando a princesa de Decê se a aliança deles se
quebrou. Emberfall é fraco. Ele precisa se unir a um país com
condições de oferecer o apoio de que eles precisam para prosperar.
Um país como Syhl Shallow.
A cortina tremula na janela e, à distância, vejo os destroços
carbonizados de outra cidade arruinada. Minha garganta aperta. Os
soldados de mamãe foram meticulosos.
Olho para minha irmã.
– O que faz você pensar que o príncipe vai sequer nos conceder
uma audiência?
– Mamãe acha que ele quer. – Seus dedos voam pelo tecido. –
Você se lembra de quando a feiticeira veio ao Palácio de Cristal,
alguns meses atrás?
Eu me lembro. A mulher tinha uma bela pele de alabastro
emoldurada por tranças pretas e sedosas, e usava um vestido azul-
escuro. Ela apareceu alegando ser uma feiticeira, e mamãe riu na
cara dela, mas a mulher fez um dos guardas desabar a seus pés
sem encostar uma mão nele. Depois disso, mamãe lhe concedeu
uma audiência. Elas ficaram na sala do trono por horas.
Nolla Verin e eu ficamos para trás cochichando sobre o episódio.
Não é preciso ser um grande estudioso de história para saber que
qualquer um que possuísse magia havia sido expulso das florestas
de gelo de Iishellasa décadas atrás. Eles usaram a magia para
cruzar o Rio Congelado, então pediram para se instalar em Syhl
Shallow, mas minha avó recusou. Então eles buscaram abrigo em
Emberfall – onde receberam asilo, mas, mais tarde, houve alguma
espécie de trapaça contra o rei, e todos foram executados.
Exceto a feiticeira, ao que tudo indica.
– É claro. Ela era a última.
Minha irmã balança a cabeça.
– Parece que há mais um sobrevivente. Mamãe me contou ontem
à noite enquanto nos preparávamos para a viagem.
Óbvio que ela contou para Nolla e não para mim. Porque Nolla
Verin é sua herdeira.
Não tenho inveja. Minha irmã será uma grande rainha.
Engulo em seco.
– Mais um sobrevivente?
– Sim. Ela estava à sua procura.
– Por quê?
– Porque ele é mais do que um homem com magia no sangue. –
Ela perfura o tecido com a agulha. O fio escarlate voa pela seda
branca como uma ferida sangrando. – O outro feiticeiro é o legítimo
herdeiro do trono de Emberfall.
Eu engasgo.
– Sério?
– Sim. – Seus olhos brilham. Nolla Verin adora uma boa fofoca. –
Mas o príncipe não faz ideia de quem seja.
Que escândalo. A magia não é mais bem-vinda em Emberfall,
tampouco em Syhl Shallow. Fico pensando se o povo de Rhen sabe.
Imagino como eles reagiriam.
Não quero passar o resto da minha vida assim, colhendo
informações sobre reinos em guerra como um cachorro procurando
restos em uma tábua de carne.
Engulo em seco mais uma vez.
– Mamãe sabe quem é o herdeiro?
– Não. Antes de sair, a feiticeira disse que só há um homem que
sabe sua identidade.
– Quem?
– O comandante da guarda do príncipe. – Ela faz um nó e corta o
fio com o dente. – Seu nome é Grey.
•• ••
Ao cair da noite, estamos a quilômetros da última cidade pela qual
passamos, e minha mãe manda os guardas pararem e montarem
acampamento. Se estivéssemos viajando em Syhl Shallow, enormes
tendas seriam erguidas para o nosso conforto, mas aqui em
Emberfall devemos ser discretos.
Nolla Verin e eu dividimos uma tenda apertada. Sorra e Parrish,
meus guardas, espalharam cobertores pelo chão, para deixar o
lugar parecendo um ninho de travesseiros e cobertores. Nós não
dividíamos um espaço como esse desde que éramos muito jovens,
e me sinto grata pela chance de nos aproximarmos novamente.
Minha irmã já se recostou nos travesseiros, e seus olhos se
estreitam com malícia.
– Esses cobertores são bem macios. Tem certeza de que não
quer dividi-los com Parrish?
Minhas bochechas queimam de calor. Uma coisa era brincar na
privacidade de nossa carruagem. Outra coisa totalmente diferente é
dizer essas coisas quando o homem em questão está do outro lado
de um pano opaco. Ser nomeada herdeira a deixou mais atrevida –
e roubou um pouco da minha própria confiança.
– Fique quieta – sussurro.
Seu sorriso se alarga.
– Só estou perguntando. Pode lhe render uma noite mais
interessante.
Olho para a sombra de Parrish do outro lado da tenda, e me
aproximo de Nolla Verin.
– Acho que ele gosta de Sorra.
Suas sobrancelhas se erguem.
– Você acha?
Ajeito os cobertores à minha volta com cuidado e forço um tom
entediado, porque não quero que ela incomode meus guardas.
– Faz tempo que suspeito.
Já fiz mais que suspeitar. Um ano atrás, durante a celebração do
solstício de inverno, peguei Parrish e Sorra se beijando no bosque
escuro atrás do palácio. Eles se separaram depressa, com estrelas
nos olhos e um rubor nas bochechas pálidas de Sorra.
– Não parem por minha causa – falei, e voltei correndo para a
festa antes que minhas próprias bochechas começassem a arder.
Nenhum homem jamais olhou para mim do jeito que Parrish
estava olhando para Sorra. Pensei nesse beijo muito mais do que
gostaria de admitir.
Sorra é sempre fria e distante, impassível e feroz como todos os
guardas, com seu cabelo castanho preso em uma trança apertada
sob a armadura. Ela não usa adornos em seu corpo esbelto, nada
de kohl escurecendo seus olhos ou ruge iluminando suas
bochechas, mas qualquer um pode notar a beleza suave de seu
rosto. Parrish também é esbelto, mais magro do que a maioria dos
homens, mas é rápido e habilidoso. Muitos pensam que ele é quieto,
mas eu sei que ele é simplesmente cuidadoso com o que diz.
Quando estou sozinha com meus guardas, ele é bastante
engraçado. De fato, ele é capaz de arrancar um sorriso de Sorra
com pouco mais de um olhar.
Minha irmã está me observando. Ela fala tão baixinho que quase
não consigo ouvir.
– Lia Mara, você gosta do Parrish?
– O quê? Não! Claro que não.
Seus olhos examinam meu rosto.
– Você gosta da Sorra?
– Não. – Eu finalmente a encaro. – Eu gosto… – Perco a fala e
suspiro.
– De quem? – Ela dá uma risadinha e se aproxima. – Ah, você
precisa me contar.
– Gosto da ideia de um homem interessado em mim. – Meu rubor
se intensifica. – Gosto da ideia de ter companhia.
– Argh. – Ela rola de costas, decepcionada. – Você é uma
princesa, Lia Mara. Todos estão interessados em você.
Isso é decididamente falso. Nenhum homem da corte está
procurando uma mulher que prefere discutir estratégia ou mitologia
antiga a exibir suas habilidades no campo de batalha – ou no salão
de baile.
– Não quero que um homem se interesse por mim porque sou
filha de Karis Luran. Não quero a atenção de ninguém que se
interesse por mim só porque posso lhe trazer favores políticos com
a nossa mãe.
– Bem, os homens acreditam que é somente para isso que as
mulheres da nossa linhagem servem.
Ela se mostra tão pragmática que nem parece se incomodar.
Talvez nem estivesse me provocando quando falou sobre se deitar
com o príncipe ou quando me pediu para experimentar primeiro para
lhe contar depois. Talvez minha irmã encare tal coisa como mais
uma obrigação régia. Algo que ela precisa fazer para ser perfeita.
Deito-me nos cobertores ao lado dela, olhando para o tecido
escuro.
– É por isso que os homens das minhas histórias são muito mais
apaixonantes.
– Ah, tenho certeza de que essas páginas sem graça deixam
você com calor à noite.
– Você é tão vulgar. – Dou risada e viro a cabeça para olhar para
ela.
Ela faz um gesto obsceno e sorri. Eu bato na sua mão, e ela solta
uma gargalhada.
Sei que ela será uma rainha excepcional, mas quero me lembrar
da minha irmã assim: sorrindo com suavidade só para mim, sem
aquela determinação cruel no olhar.
Um grito ecoa pelo acampamento, seguido por mais gritos, e
então uma garota berra. Um homem fala apressado na língua de
Emberfall, com um sotaque muito mais forte que o do nosso tutor.
Demoro um pouco para captar as palavras.
– Por favor – ele está dizendo. – Não queremos fazer mal. Por
favor, deixem-nos passar.
Nolla Verin já está saindo da barraca, e eu a sigo depressa.
Nossos guardas fizeram uma fogueira, e algumas lebres estão
penduradas em um espeto. Só que ninguém está prestando atenção
na comida. Tik e Dyhl têm suas bestas apontadas para um homem
de meia-idade, de joelhos, agachado sobre uma jovem, protegendo-
a com o corpo. Uma barba espessa cobre a maior parte de seu
rosto. Algumas peles marrons estão empilhadas ao lado.
Minha mãe está parada à luz do fogo, alta, esbelta e imponente,
com seu cabelo ruivo sobre os ombros.
– O que está fazendo aqui? – ela pergunta.
– Sou caçador. Vi o fogo e pensei… – Ele ofega quando Dyhl se
aproxima o suficiente para tocar a ponta de sua besta nas costas
dele. Se Dyhl puxar o gatilho, o impacto da arma vai fazer com que
a flecha acerte tanto o homem como a garota.
– E-e-eu estou desarmado – ele gagueja.
– Você tem uma faca na cintura – minha mãe diz. Está bem ali à
vista. Ela não suporta tolos.
Ele faz como se fosse pegar a arma, mas Tik, de pé na frente
dele, levanta um pouco a besta. Então o homem ergue a mão,
mostrando inocência.
– A faca está cega! – ele grita. A garota choraminga. – É para
tirar a pele dos animais. Pegue. Pegue tudo o que eu tenho.
Meu coração bate forte no peito. Nós cruzamos muitas cidades
em ruínas – destruição causada pelos nossos soldados. A
população aqui é esparsa, mas estamos tentando fazer a jornada
até o castelo do príncipe discretamente. Se permitirmos que este
homem vá embora e ele espalhar que estamos aqui, podemos
sofrer um ataque antes de chegar. Como minha irmã disse, estamos
em um território hostil.
Hostil por conta de nossas próprias ações, uma vozinha sussurra
para mim.
Se eu já não queria ver o resultado de nossos ataques em
Emberfall, certamente não vou querer ver uma execução diante dos
meus olhos.
Ao meu lado, Nolla Verin não parece abalada, mas curiosa. Está
esperando para ver como nossa mãe vai lidar com essa invasão.
Para minha surpresa, ela se vira para Nolla Verin.
– Minha filha vai decidir o seu destino, caçador.
Minha irmã endireita a postura. Esta não é a primeira vez que
mamãe nos procura para tomar uma decisão, mas é a primeira vez
que uma vida de verdade está em jogo.
Os olhos do homem se fixam na minha irmã. Abaixo, a garota
observa a cena. Lágrimas escorrem por suas bochechas sujas.
– Por favor – o homem implora com a voz rouca. – Não
participamos da disputa entre seu povo e o nosso.
Não consigo ver a expressão dela, mas os olhos do homem se
enchem de sofrimento com o que ele encontra ali, e ele vira a
cabeça para falar baixinho com a garota encolhida embaixo dele.
Um soluço irrompe de seu peito.
Eu agarro a mão de minha irmã.
– Nolla Verin – sussurro. – Estamos aqui para encontrar o
caminho para a paz.
Ela esmaga meus dedos, então me encara. Torço para ver um
lampejo de indecisão em seus olhos. De desalento por ter que tomar
essa decisão.
Não há nada. Ela olha para Dyhl.
– Mate-o.
A garota berra. A besta dispara. O homem desaba. A moça não
está mais visível. A flecha deve ter atravessado os dois de uma vez.
O silêncio envolve a floresta.
Mas não dura muito. Nolla Verin olha para os guardas e diz:
– Dobrem o número de vigias esta noite. Não quero outro caçador
tropeçando no nosso acampamento.
Ela se vira para voltar para a nossa barraca.
Não consigo segui-la. Todos os guardas na clareira
provavelmente sentem meu descontentamento.
Mamãe com certeza sente.
Dou as costas para os cadáveres. Não posso voltar para a
barraca, mas posso caminhar. Sorra e Parrish virão atrás de mim,
apesar de eu achar que não preciso de guardas. Não agora.
Adentro a escuridão pesada ao redor do acampamento.
Ouro cintila entre as árvores, mal iluminado pela luz do fogo. Eu
congelo, estreitando os olhos.
Não é ouro. É algo dourado. Cabelos. Uma garota, maior do que
a que estava embaixo do homem. Suas mãos estão sobre o rosto,
seus ombros tremem. Uma longa tira de peles pende de um ombro.
Está chorando.
Seus olhos encontram os meus e ela ofega. Fica imóvel, com o
pânico estampado na cara.
Balanço a cabeça de leve. Tão de leve que é quase
imperceptível. Não, quero dizer. Fique longe.
Corra.
– Lia Mara – minha mãe me chama.
Eu não devia me importar com uma desconhecida e sua filha.
Filhas. Engulo em seco.
Não devia me importar.
Mamãe não vai me chamar duas vezes. Viro-me, esperando uma
bronca.
Parrish, meu guarda, está bem ali, quase ao meu lado. Ele me
seguiu pelas árvores, como é sua função, e com um olhar sei que
ele também viu a garota. Sua besta está à mão, pronta, e uma onda
de medo sobe pelas minhas entranhas.
Ele sacode a cabeça brevemente, em um movimento tão diminuto
quanto o meu.
– Você não devia se enfiar na floresta – ele fala. – Vai saber quais
perigos se escondem entre as árvores.
Tento conter um suspiro de alívio. Ele não vai persegui-la.
Observo o local onde a garota estava escondida. Só há
escuridão.
Se eu olhar para Parrish, mamãe vai saber que há algo errado.
Endireito os ombros.
– Sim, mãe.
– Venha.
Ela está sentada perto da fogueira. Perto dos cadáveres.
Este vai ser meu castigo. Por ser tão mole. Por suplicar por
piedade.
É por isso que Nolla Verin será a rainha.
CAPÍTULO QUATRO

GREY
Desde que encontramos os soldados na taverna de Jodi ontem,
ando tenso e irritado. Fico esperando o capitão aparecer aqui no
Worwick e me arrastar de volta para Ironrose. Ou pior, arrastar-me
para as sombras atrás do estádio, onde eles poderão me decepar.
Essas preocupações são irracionais. Poucas pessoas sabem
quem eu realmente sou e o que eu sei:
A feiticeira Lilith, que está morta. Eu mesmo cortei a garganta
dela.
Minha mãe, que não é minha mãe. Saí de lá sem levar nada
comigo. Deixei toda a prata e cobre que eu tinha, além de todos os
avisos que eu poderia dar. Espero que ela tenha pegado o dinheiro
e ido embora. Mas, se alguém for atrás dela procurando por mim,
ela não teria outra resposta além da verdade: eu apareci e sumi.
Karis Luran, que – se as ameaças de Lilith não forem falsas –
usaria essa informação para acabar com Rhen. Se ele acreditar
nela.
Meu mal humor contaminou Tycho, agravado pela onda de calor
que estamos enfrentando. O clima de hoje trouxe uma camada de
nuvens espessas que prometiam tempestade, mas apenas
causaram uma umidade enjoativa que só deixou tudo viscoso e
todos infelizes. Ele está varrendo o espaço entre os assentos do
estádio e a arena, transformando cada gesto em um ataque. A
poeira flutua no ar, espalhando-se por toda parte, incluindo os caros
assentos almofadados que acabei de limpar.
– Ei – digo.
Ele se vira, encolhendo-se um pouco.
– Largue essa vassoura – digo, tentando controlar meu tom.
Mergulho o pano no balde e o torço para limpar os assentos de
novo. – Está sujando tudo.
Ele deve ter se sentido mal, porque voltou trazendo outro pano
para limpar a grade. Trabalhamos quietos por um tempo,
desfrutando do silêncio do fim de tarde.
Calado assim, ele me lembra meu irmão Cade, que tinha treze
anos quando eu tinha dezesseis. Não sei por que, eles não são nem
um pouco parecidos. Cade falava pelos cotovelos, enquanto eu às
vezes passo horas sem ouvir uma palavra de Tycho. Mas Cade
sabia abaixar a cabeça e trabalhar quando era necessário. Ele
ajudou a cuidar da fazenda depois que fui embora.
Depois que Lilith matou todos eles, esforcei-me para expulsar
meus irmãos da memória. Talvez o distanciamento do meu tempo
como guarda tenha feito com que lembranças antigas
preenchessem o espaço entre os meus pensamentos. Talvez a ideia
de que eles não eram meus irmãos tenha causado o mesmo efeito.
Não tenho certeza se gosto disso. Ainda mais agora que estamos
sem tarefas.
– Está muito quente para correr – digo.
– Está muito quente para fazer qualquer coisa. – Tycho enche
uma mão de água e refresca a nuca.
– Ah, ia perguntar se você quer pegar as espadas de treino.
– Espera. Sério? Quero. – Ele fica de pé prontamente, sem ligar
para o calor.
– Então vá.
Largo o balde no depósito e penduro os panos no varal. Quando
o alcanço no armeiro, Tycho está segurando uma espada de treino
leve, balançando-a como quem praticou. Ele já é bom o suficiente
para que eu lhe confiasse uma lâmina real – em outro tempo e lugar.
Como Hawk, não conheço nenhum movimento mais avançado do
que simples bloqueios e ataques.
Nós treinamos no espaço estreito entre o armeiro e os estábulos,
onde Worwick armazena seus equipamentos grandes. A jaula do
rasvador também está aqui, nossa única plateia, embora sua forma
escura esteja imóvel. Worwick estava falando sério sobre os cinco
cobres, porque tentou cobrar na noite passada. Estava dando certo,
até que um homem reclamou que não tinha pagado para ver uma
pilha de pele e penas meio mortas.
Agora ele dorme a maior parte do dia, encolhido sob as asas.
Tycho está me cansando, então ofereço uma abertura. Ele
percebe imediatamente e ataca. Mal tenho tempo de driblar sua
lâmina.
Ele está ofegante, mas dá um sorriso.
– Quase peguei você.
Não consigo não sorrir de volta.
– Quase.
Empurro sua espada com a minha e afasto o cabelo molhado de
suor da cara.
– A brincadeira acabou, garotos – um homem diz, preenchendo o
espaço com sua voz. Eu o reconheço antes de vê-lo: é Kantor. Um
dos “campeões” de Worwick.
Worwick tem dois competidores no torneio: Kantor e Journ.
Ambos são de meia-idade e muito bons com a espada – eles
precisam ser para enfrentar qualquer um que pisar aqui –, mas, para
Worwick, o valor deles está no show que fazem ao público. Um é
quieto e reservado quando não está na frente da multidão, carrega
balas nos bolsos para oferecer às crianças que torcem nas laterais
do estádio, e depois volta para casa para sua doce esposa e seus
três filhos. É um bom homem que trabalha muito, luta de forma justa
e leva uma vida honesta.
O outro é Kantor.
Kantor é um homem que aposta contra si mesmo, de forma que,
mesmo quando perde, sai ganhando. Worwick não deveria permitir,
mas tenho certeza de que Kantor divide seu lucro com ele. Ele é
barulhento e grosseiro e mente sem pudor. Ele é um ótimo vilão
para a plateia. Infelizmente, longe da plateia também.
Tycho está devolvendo a espada na parede, mas Kantor pega
uma espada de verdade e habilmente a derruba de sua mão,
fazendo-a cair no chão.
– Quando é que você vai aprender a segurar uma espada como
um homem? – ele provoca.
– Deixe ele em paz – digo.
Tycho pega a arma sem falar nada, mas noto sua carranca,
apesar de ele manter a cabeça baixa.
Kantor tem o cérebro de uma criança que encontrou diversão; ele
mal trocou o peso de perna e vejo que vai derrubar a espada de
Tycho de novo – e, desta vez, ele quer machucar.
Dou um passo à frente, balanço minha espada de treino em sua
direção e imobilizo a espada dele na parede.
Sua cabeça gira para mim. Ele está com a boca aberta, mas a
fecha rapidamente.
– Eu devia cortar sua mão por isso. – Ele libera a espada.
Eu poderia cortar a mão dele antes que ele se aproximasse da
minha, mas encolho os ombros e desvio o olhar. A melhor forma de
lidar com Kantor é não o levar a sério.
– As espadas de treino cegam as boas. Se quiser brincar, use as
suas ou fale com Worwick.
Ele franze a testa, mas estou certo e ele sabe disso. Mas seu
orgulho não o deixa largar a arma. Ele se afasta, girando a espada
nas mãos e arrastando-a no chão. E para na jaula do rasvador.
– O que Worwick vai fazer com essa coisa? – Kantor cutuca a
criatura com a ponta da arma, mas ela não se mexe.
– Não o machuque – Tycho diz.
– Machucar? Ele está praticamente morto. – Kantor chega mais
perto e desfere um golpe entre as barras, perfurando a carne do
animal com a lâmina de aço.
O rasvador rosna e fica de pé abrindo as asas e espalhando
sangue. Ele se debate, procurando agarrar Kantor, guinchando tão
alto que seu grito ecoa pela arena e os cavalos do estábulo ficam
agitados e começam a relinchar.
Kantor recua, tropeça nos próprios pés e cai no chão com tudo.
Três longos arranhões vermelhos atravessam seu antebraço. Kantor
xinga e se levanta, erguendo a espada como se fosse enfiá-la na
barriga da criatura.
Tycho se coloca na frente dele, apoiando as costas nas barras.
– Não!
Espero o rasvador atacar Tycho também, mas ele desmorona e
rosna.
Kantor parece prestes a passar por cima de Tycho de qualquer
maneira.
Dou um passo adiante:
– Chega.
Kantor ergue a espada alguns centímetros.
– Saia, ou acabo com vocês dois.
A espada de treino ainda está na minha mão. Meus dedos
apertam o punho.
Não sei o que Kantor vê na minha expressão, mas a surpresa
preenche seus olhos. Ele solta uma gargalhada rouca.
– Você quer me enfrentar, garoto? Por causa daquela coisa? –
Ele faz um gesto com a espada. – Vá em frente, então. Vamos ver
quanto tempo você aguenta.
Fico tentado.
– O que está acontecendo? – Worwick pergunta. Sua voz ressoa
pelo pequeno espaço. O guincho da criatura deve ter chamado sua
atenção. Deve ter chamado a atenção de metade da cidade.
Em minha visão periférica, vejo Worwick se aproximar, mas não
tiro os olhos do homem à minha frente. E Kantor não tira os olhos de
mim.
– Kantor! Hawk! – Worwick parece confuso. – O que… o que
vocês estão fazendo?
– Kantor ia matar o seu rasvador – Tycho diz depressa. – Hawk
não deixou.
– Ah, eu só estava brincando – Kantor fala de modo arrastado.
Ele abaixa a espada e estende o braço. – Essa coisa maldita me
atacou.
– Você atacou antes – esclareço.
Atrás de mim, o rasvador rosna de novo.
– Chega de bobagem – Worwick diz. – O grão-marechal baixou
um decreto real para ser lido antes do torneio. Os boatos estão
correndo soltos na rua, a casa vai lotar à noite.
Isso é o suficiente para desviar minha atenção de Kantor.
– Decreto real?
– O príncipe está oferecendo quinhentas pratas para qualquer um
que apresentar alguém com sangue de feiticeiro.
Congelo. Sangue de feiticeiro. Rhen não pode falar abertamente
porque daria legitimidade aos boatos, mas está procurando o
herdeiro.
Está procurando por mim.
– Quinhentas pratas! – Kantor finalmente abaixa a espada e
desvia o olhar. – Worwick, eu entregaria você por quinhentas pratas.
– A magia deve ser provada – Worwick diz. Seus olhos se
iluminam. – Tycho, Hawk, vocês costumam ir à cidade. Não viram
magia em Rillisk, não?
Como se fôssemos dizer um nome e permitir que ele recebesse a
recompensa.
Pelo menos isso me oferece alguma medida de segurança. Eu
nunca fui capaz de usar magia. Talvez Lilith estivesse errada. Talvez
eu não seja herdeiro de nada.
Você quer saber a verdade, não quer? Sobre o sangue que corre
em suas veias? Você não quer saber como foi o único guarda a
sobreviver?
Quero que ela esteja errada.
Mas ela está certa. Eu sei disso. Minha mãe admitiu antes que eu
fugisse.
– Ninguém nunca viu magia – Tycho diz. – Os feiticeiros foram
mortos antes de eu nascer.
– Não todos, aparentemente – Worwick fala. – Hawk, você está
doente?
– Não, estou bem. – Obrigo meus braços a se moverem e
penduro a espada na parede.
– Kantor, você machucou meu rasvador? – reprova Worwick. –
Hawk, dê uns pontos nele, sim?
– Sim. – Não tenho ideia de como fazer isso. Minha cabeça não
para de dar voltas.
Quinhentas pratas é uma fortuna para a maioria. As pessoas em
Emberfall vão entregar umas às outras por essa recompensa. Rhen
deve estar desesperado.
– Preparem-se para a multidão, garotos – Worwick diz. – Tycho,
cuide da cerveja. Não quero filas. Vamos fazer um bom lucro só com
as apostas, tenho certeza.
– Vou cuidar. – Kantor dá risada. Ele empurra o ombro do
homem, bem-humorado. Worwick sorri e volta para a frente do
estádio.
Suspiro e olho para Tycho.
– Vá buscar linha. Vou pegar a agulha.
•• ••
O torneio só acaba bem depois da meia-noite. Quando finalmente
subimos a escada para o sótão que compartilhamos, Tycho nem se
dá ao trabalho de acender o lampião e se joga na cama. Acho que
ele vai pegar no sono logo, mas ele diz:
– Não consigo nem imaginar quinhentas pratas de uma vez.
Já eu não preciso nem imaginar, e digo:
– Ouvi isso a noite toda.
– Você acha que é pesado?
– Pesado o suficiente pra fazer você caminhar curvado. – O que
não é verdade, mas ele ri. Em seguida, ele se cala.
Fico olhando para as vigas de madeira gastas sobre a minha
cama. O sótão cheira a feno e cavalo e segura o calor do estábulo
abaixo, mas eu não ligo. É quente, seguro e seco aqui. Não há
motivos para desconfiar de Tycho.
– Eu compraria minha liberdade de Worwick – ele diz baixinho.
Viro a cabeça para olhar para ele, apenas uma sombra vaga na
escuridão.
– Sua liberdade?
– Fiz um juramento a ele. – Pausa. – Mais dois anos.
– Por quê?
– Azar. Dívidas.
Nunca vi Tycho apostar um cobre sequer.
– Suas?
– Do meu pai – ele dá um longo suspiro. – Tenho duas irmãs mais
novas, e sei o que Worwick faria com elas. Meu irmão não tem nem
seis anos. Minha família não tinha nada. Então…
Volto a olhar para as vigas.
– Eu já fiz um juramento uma vez… por vontade própria.
– O meu também foi por vontade própria – ele diz.
Não é a mesma coisa. Ou talvez seja.
– Dois anos não é muito – Tycho continua. – Quanto tempo você
levou pra conseguir sua liberdade?
Esta conversa está trazendo lembranças à tona. Lembranças que
eu preferia manter enterradas.
– Uma eternidade.
Tycho ri suavemente.
– Sei o que quer dizer.
Não. Ele não faz ideia.
Ele volta a falar, mas agora de um jeito hesitante.
– Hawk, eu não… não conto pra ninguém – um tom de
preocupação se infiltra nas suas palavras. – Se as pessoas
souberem que fiz um juramento a Worwick, elas… bem, ele
poderia… – ele se interrompe.
Penso em como Tycho normalmente desaparece quando a noite
se arrasta e restam poucos homens sóbrios. Minha opinião sobre
Worwick melhora um pouco, já que ele não faz Tycho se matar de
trabalhar, permitindo que ele se esconda.
– Vou guardar seu segredo.
Ele não fala nada, e depois de um momento, eu o observo. A
escuridão é quase absoluta, mas seus olhos captam um brilho de
algum lugar.
Fico me perguntando se ele se arrependeu de ter me contado.
– Pode confiar em mim, Tycho.
– Eu sei.
Ele diz de um jeito tão simples. É um nível de confiança que
invejo.
– Para quem você fez o juramento? – ele pergunta.
Fecho os olhos. Sem avisar, meus pensamentos invocam o
Castelo Ironrose, os quilômetros de corredores de mármore, o teto
arqueado. Lembro-me da arena de treinamento, do armeiro e dos
estábulos tão claramente que seria capaz de encontrar o caminho
com os olhos vendados, mesmo agora.
Você se arrepende do juramento? Rhen uma vez me perguntou.
Não me arrependi. Não me arrependo. Nem mesmo agora.
Tycho ainda está esperando uma resposta. Balanço a cabeça.
– Ninguém importante.
– Também vou guardar seu segredo, Hawk – a voz de Tycho é
suave.
Suas intenções são boas, e ele pode até estar falando sério
agora, mas ele me entregaria para comprar sua liberdade.
– Não é um segredo – digo preguiçosamente. Viro-me e desvio o
olhar. – Só não tenho nada de interessante para compartilhar.
Ele suspira, e eu respiro de forma lenta e regular para que ele
pense que adormeci. Por fim, a respiração dele se iguala à minha,
acentuada por um leve ronco ao fim de cada expiração.
Nossa conversa me impede de pegar no sono muito cedo.
Quando Rhen me liberou do juramento, disse para eu começar
uma nova vida do outro lado, em Washington DC, lar de Harper.
Minhas visitas à cidade dela se limitavam a uma hora a cada
estação, de modo que seu mundo não me é totalmente estranho,
mas eu não poderia fazer minha vida em um lugar tão diferente de
Emberfall. Os costumes, as roupas, o dinheiro… já vi tudo, porém
não sei se seria capaz de me adaptar.
Sangue de feiticeiro. Se há mágica em meu sangue, não faço
ideia de como acessá-la. Olho para as vigas e lembro-me de como
era fácil para Lilith me transportar pelo véu até Washington DC.
Fecho os olhos e rememoro a sensação. Por um instante, o ar à
minha volta parece mais pesado, e seguro o fôlego, tentando decidir
se consegui fazer o mesmo.
Abro os olhos. As vigas do estábulo continuam acima de mim. A
respiração de Tycho ressoa suavemente pelo sótão.
Pelos infernos.
Encontro o fio solto na borda do colchão, puxando-o lentamente
até que a costura comece a se desfazer. Sou cuidadoso, para poder
consertá-la mais tarde. Coloco a mão na abertura e enfio os dedos
na palha até sentir o peso da prata.
É uma pulseira – ou era, até eu negociar o valor de um dia de
trabalho intenso com um ferreiro para que ele a removesse do meu
braço. Agora tenho uma cicatriz no pulso e três quartos de uma
argola de prata. Quando estava preso na maldição com Rhen, Lilith
a prendeu em meu braço com magia para que eu cruzasse o véu
até o outro lado.
Não faço ideia se ainda funciona. É a única magia com a qual já
tive contato, e não é nem minha, mas de Lilith. A pulseira está
enfeitiçada com a magia dela.
Coloco os dedos ao redor da prata e fecho os olhos. Quase
contra a minha vontade, minha mente visualiza uma parede… e
praticamente no mesmo instante, estou atravessando-a.
Os cheiros do estábulo e do sótão desaparecem, e o ar fica
gelado de repente. O suave som dos movimentos dos cavalos é
substituído por um zumbido baixo, e eu abro os olhos. Paredes
brancas, longas luzes tubulares e diminutas no alto. Pilhas e pilhas
de livros se estendem infinitamente ao meu redor. Nunca vi tantos
livros, nem mesmo na biblioteca real de Ironrose. Este lugar não é
nem um pouco parecido com o castelo. Tirando os livros, tudo neste
quarto é liso e elegante e quase artificialmente branco.
Não estou em Rillisk. Tampouco em Emberfall. Estou em
Washington DC. Ou talvez a quilômetros de distância, onde quer
que Rillisk se correlacione no mundo de Harper.
A pulseira ainda funciona.
Por um momento, fico sentado respirando o ar frio, um alívio
depois da umidade pesada de Emberfall. Não faço ideia de onde
estou, mas é silencioso e estou seguro. Rhen não pode me
encontrar aqui. É provável que ninguém possa me encontrar aqui.
Estou tentado a ficar.
Mas para onde eu iria? O que eu faria? Ninguém deste lado
precisa de um guarda. Nem de um tratador, pelo que sei. As garotas
que eu sequestrava para Rhen raramente tinham habilidade com
armas ou cavalos, e ainda que por certo tivessem habilidades
próprias e úteis neste lugar, não são habilidades compartilhadas por
mim.
Ouço barulho de metal, seguido por um guincho, e me levanto
depressa. Queria ter uma arma, mas a única coisa na minha mão é
a pulseira de prata.
Uma senhora empurra uma espécie de carrinho em um canto.
Seu cabelo é longo e grisalho, preso em uma trança que desce
sobre um ombro. Ela se assusta quando me vê, mas sua expressão
logo se suaviza e recebo um sorriso gentil.
– Sei que a biblioteca é vinte e quatro horas, mas estudantes não
podem passar a noite aqui.
Respiro fundo.
– Desculpe.
Seus olhos percorrem meu corpo, avaliando as roupas de Rillisk,
que não se parecem nem um pouco com as roupas deste lado. Ao
chegar aos meus pés descalços, seus lábios se curvam para baixo.
– Você tem onde dormir?
Fico pensando o que ela faria se eu dissesse que não, e para
onde eu iria – ou para onde ela me enviaria. Ela parece bondosa.
Imagino se poderia me refugiar aqui.
Um homem surge em uma esquina, mais jovem e mais pesado
que a mulher, e franze as sobrancelhas ao me ver. Ele parece tão
surpreso quanto ela, mas seus olhos me avaliam friamente. Ele fala
baixo, meio ofegante, mas se faz entender.
– Sem-teto? – ele sussurra. – Devo chamar a polícia?
Ela dá um breve aceno com a cabeça, em seguida se aproxima
de mim.
– Está com fome? Podemos arranjar algo pra você comer.
Meus ouvidos se prendem na pergunta dele. Polícia. Executores
deste lado. Já os vi antes. Não são coisa boa para alguém como eu.
Aqui não é meu refúgio. Não agora. Não assim.
Fecho os olhos. Vejo a parede. Atravesso-a.
Uma escuridão silenciosa, rápida e repentina, pressiona minhas
pálpebras. Estou seguro. Estou de volta. Inspiro profundamente e
abro os olhos.
Tycho está parado bem na minha frente.
Pelos infernos. A pulseira escorrega dos meus dedos e cai no
chão de madeira fazendo barulho.
Ele está de olhos arregalados e ofegante.
– Você desapareceu – seus olhos saltam para a minha cama, a
dois metros de distância, e de volta para o meu rosto. – Então
reapareceu aqui.
Não digo nada. Não posso negar.
Ele me encara no escuro.
– É você que eles estão procurando?
– Você selará seu destino com essa pergunta.
Tycho engole em seco.
– Hawk, é você?
A tensão se juntou a nós no sótão como um juiz silencioso,
prendendo-me no lugar.
– Sim.
– O que eles vão fazer se te encontrarem?
– Eles não vão me encontrar.
As palavras parecem uma ameaça, e ele recua. O que deveria
provocar empatia em mim, mas não é o que acontece. Aprendi a
guardar as emoções a sete chaves e fazer o que preciso fazer. Bem
demais.
Tycho respira fundo e consegue se controlar, ajeita a postura e
olha para mim. É mais corajoso do que pensa.
– Conte-me o que eles vão fazer.
– Não tenho certeza, mas é provável que as coisas não terminem
bem para mim.
– Eles vão te matar?
– Sim.
Sua voz fica mais baixa.
– Você fez algo muito ruim?
– A resposta para essa pergunta é longa e complexa. – Examino
sua expressão. – Mas não. Não da maneira como está imaginando.
Não estou sendo perseguido pelo que fiz, mas pelo que sou.
Ele me observa. Eu o observo. Poderia quebrar seu pescoço em
um piscar de olhos. Poderia derrubá-lo do sótão para parecer que
ele caiu da escada durante a noite. Ninguém desconfiaria. Tycho é
uma sombra. Provavelmente ninguém lamentaria.
Eu lamentaria.
O pensamento me acerta como uma flecha penetrante e
verdadeira. Esfrego as mãos no rosto. Eu lamentaria. Não quero
machucá-lo. Ele confia em mim. Talvez só em mim.
Ele toca meu antebraço e eu abaixo a mão.
– Vou guardar seu segredo – ele diz baixinho, tão sincero quanto
antes da revelação.
– Mesmo que você pudesse comprar sua liberdade?
Ele parece surpreso, e depois magoado.
– Não vou comprar a minha liberdade com a sua morte.
É minha vez de recuar. Quase fiz exatamente isso com ele.
Respiro fundo e estendo a mão para bagunçar seu cabelo, dando-
lhe um empurrãozinho.
– Fico honrado em ter sua confiança, Tycho.
Ele cora, consigo ver mesmo na escuridão.
– Bem, eu fico honrado em ter a sua, Hawk.
A tensão entre nós se dissipou tão brandamente que é quase
como se eu a tivesse imaginado. Lembro-me de como era confiar
em alguém. Lembro-me de como era ter um amigo. Não tinha
percebido o quanto eu sentia falta disso até alguém me dar
gratuitamente.
– Grey – digo baixinho. – Não Hawk.
Ele arregala os olhos, mas sorri.
– Grey.
– Vou colocar você em perigo por guardar meu segredo. – Digo
com uma voz séria. – Se eu for pego e eles descobrirem que você
sabia.
– Então não seja pego.
Dou risada.
– Volte para a cama – digo. – Os cavalos vão pedir o café da
manhã antes do amanhecer.
Ele sobe na cama dele e eu na minha, e o silêncio cai sobre nós
novamente. Dessa vez, é mais leve. Meu coração não dispara,
querendo escapar de uma ameaça invisível.
– Jodi disse que você come feito um nobre – Tycho fala. – Você
era um nobre? Antes?
– Não. – Sinto-me tão aliviado por poder falar com alguém que
tenho vontade de despejar toda a história a seus pés, só para dividir
o fardo. – Eu era um guarda. Na Guarda Real.
– Ah. – O peso da informação o obriga a ficar em silêncio por um
tempo, até que ele se vira para me olhar. – Espere.
Congelo, tentando imaginar se isso vai mudar as coisas.
– Sim?
– Então você estava fingindo. Com as espadas de treino.
– Sim, estava.
– Você pode me ensinar? – ele pergunta.
Ele parece tão ávido que dou risada. Eu provavelmente poderia
ter trocado seu silêncio por aulas de esgrima.
– Pode ou não? – ele pressiona. – Se a gente treinar em
segredo?
– Sim – digo sorrindo. – Posso, sim.
CAPÍTULO CINCO

LIA MARA

Os dias passam. Quando finalmente nos aproximamos do castelo


do príncipe, estou exausta e acabada. Ainda estou dividindo a
carruagem com minha irmã, porque outra alternativa seria ir com
minha mãe. Nolla Verin pode não entender meu desalento, mas pelo
menos não vai ficar me dando lições sobre os deveres de uma
governante. Ela sabe por que estou chateada – provavelmente todo
mundo sabe –, porém não pede desculpas pelo que aconteceu com
o caçador e a garota.
Não espero desculpas. Não quero desculpas. Sei por que ela fez
essa escolha. Sei que nossa mãe está orgulhosa.
Eu também deveria estar orgulhosa. Só que não estou. Estou
sendo assombrada pela lembrança da garota encolhida debaixo do
pai.
E pelas bochechas cobertas de lágrimas da garota escondida na
floresta.
Não falei sobre ela com ninguém. Nem mesmo com Parrish. Ele
parece tão indiferente que comecei a pensar que imaginei a coisa
toda. Mas, naquela noite, eu o vi conversando baixinho com Sorra.
Ela olhou para mim por um breve momento e depois desviou o
olhar.
Não sei o que isso significa.
Nolla Verin me cutuca com sua agulha de bordado e dou um
salto.
– Preciso do seu melhor, irmã – ela diz.
Mantenho o olhar na janela encoberta pela cortina.
– Você não precisa de mim. Posso esperar com os cavalos.
Ela suspira e revira os olhos.
– Mamãe devia ter me deixado em casa – continuo.
Depois do que vi, eu teria preferido. Apesar do golpe da decisão
de nossa mãe, há uma certa liberdade em não me preocupar mais
em me tornar rainha. Está mais frio do outro lado da montanha. Eu
poderia ter passado esses dias relaxando na cama com um livro ou
passeando nas margens do rio em vez de encarando morte e
destruição.
De repente, essas ideias me parecem egoístas. Covardes. A
garota e seu pai teriam morrido de qualquer forma. Eu só não
saberia.
– Por favor, Lia Mara.
Um novo tom toma a voz de minha irmã, o que chama minha
atenção. Apesar de todos os seus comentários arrogantes, uma
incerteza se esconde no fundo de seus olhos.
– Você está nervosa – digo.
Ela encolhe os ombros e abaixa a cabeça para o pedaço de pano
em seu colo. Ao longo da viagem, flores e joias bordadas com todas
as cores preencheram o tecido, formando um círculo.
– Ele ainda é nosso inimigo – ela faz uma pausa. – Ele já tem
uma mulher que ama.
– Nolla Verin. – Eu a observo. Minha irmã é linda e tem traços
marcantes, mas é sua confiança despreocupada que todos notam
aonde quer que ela vá. – Você está com medo de ser rejeitada?
– Eu não – ela enfia a agulha no tecido. – Estou com medo da
nossa proposta ser rejeitada. Mamãe será forçada a mandar nossos
exércitos pelo desfiladeiro para destruir as cidades e tomar esta
terra.
Fico olhando para ela quase boquiaberta. É a primeira vez que
ela manifesta consternação com uma ação militar. Uma pequena
centelha de esperança acende em meu peito.
Ela me encara.
– Você está tão surpresa. Não pensou que eu teria medo de
fracassar na frente da mamãe?
Fecho a boca. Eu deveria saber. Nolla Verin não está preocupada
com as vidas perdidas. Está preocupada em não decepcionar nossa
mãe.
Preciso apagar o desgosto em meu olhar antes que ela perceba.
– Tenho total confiança em você, irmã.
Fora da carruagem, o som de sinos ressoa, alto e repetitivo. Nolla
Verin se senta ereta, guardando o bordado no compartimento sob o
assento. Imagino se é um presente para o príncipe. O pensamento
não tira o gosto amargo da minha boca.
– Fomos vistas – ela diz, apressada. – Mamãe diz que os sinos
significam algo. Soam alegres, não? Talvez seja um bom sinal.
Para mim, eles não soam nada alegres, mas como um golpe
mortal. Talvez signifique que os arqueiros do príncipe vão botar fogo
na nossa carruagem.
– Com certeza é um bom sinal – digo, forçando um sorriso.
A carruagem sacode e se move conforme os cavalos nos
conduzem para um novo terreno. Ruas de pedra, ao que parece.
Meu estômago se revira a contragosto. Uma hora atrás, nossos
guardas hastearam na carruagem nossas bandeiras e galhardetes
verdes e negros, adornando os cavalos com os adereços que
mantivemos escondidos durante a passagem por Emberfall.
Estou desesperada para me inclinar pela janela para ver o
castelo, mas minha irmã não me deixaria em paz. Se Nolla Verin
pode permanecer sentada tão empertigada e calma, posso fazer o
mesmo.
A carruagem para e esperamos. Um dos guardas de mamãe nos
anuncia e solicita uma audiência com o príncipe. Um dos guardas
dele anuncia que devemos aguardar o príncipe decidir se vai nos
convidar para entrar no castelo.
O que não é bem recebido pela mamãe.
De fato, não me surpreendo ao ouvi-la dizer que não vamos
esperar, e que se o assim denominado príncipe herdeiro de
Emberfall não nos receber, ela ficará feliz em retornar a Syhl
Shallow a fim de enviar suas forças para acertar as contas com o
povo dele.
Uma voz masculina diz:
– Karis Luran, você certamente pode me conceder o tempo de
atravessar os corredores de Ironrose antes de declarar guerra.
Deve ser o príncipe Rhen. Ninguém mais falaria com tanta
autoridade. Ele tem uma voz bonita, um tom ferroso, mas caloroso o
suficiente para parecer convidativo. Fico imaginando como ele é.
A expressão de Nolla Verin, sentada à minha frente, está
cuidadosamente neutra. Não demonstra tédio, tampouco interesse.
Ela se recosta no banco para esperar.
Quase imediatamente, a porta da carruagem é aberta por Sorra.
Ela se move com uma precisão fluida, cada movimento refletindo o
treinamento e a unidade de nossos guardas. A luz do sol invade a
carruagem de uma vez, cegando-nos por um instante.
Como a filha mais velha, devo sair primeiro. Houve um tempo em
que considerava esta uma posição de honra, mas nos últimos dias
comecei a me perguntar se mamãe não estava apenas preparando
o terreno para a atração principal: minha irmã.
Hoje, eu não ligo. Sou a primeira a ver o castelo erguido com
tijolos de cor creme, estendendo-se para o céu, com seus
galhardetes dourados e vermelhos flamulando na leve brisa de
verão. Sou a primeira a ver os largos degraus de mármore que
levam até a porta do castelo, e as duas dúzias de guardas
flanqueando nossas carruagens. Cada um carrega uma espada e
uma adaga, fazendo ouro e prata reluzirem à luz do sol. Cada
armadura ostenta sobre o coração um brasão de um leão e uma
rosa.
Sou a primeira a ver o príncipe, alto e loiro, tão impressionante
quanto minha irmã, só que à sua maneira. Seus olhos não revelam
nada. Está usando um casaco azul-escuro com fivelas no peito e
botas de cano alto. Também tem uma espada no quadril, o que me
surpreende. Mamãe nunca carrega armas. Ela diz que nosso povo
acharia que ela não confia neles.
Ao lado do príncipe, está uma bela jovem com pele clara e
cabelos escuros e encaracolados, usando um vestido vermelho que
varre as pedras do chão conforme ela se aproxima de nossas
carruagens. Ela caminha mancando, o que me faz questionar se a
mão no braço do príncipe tem a função de buscar apoio ou mostrar
que eles estão juntos. Ao contrário do príncipe, seu rosto revela
tudo: seus olhos estão arregalados, e sua boca, contraída com
preocupação.
Nossa presença aqui a enerva.
Somos parecidas.
A voz da minha mãe ressoa:
– Minha filha mais velha, Lia Mara.
O príncipe me oferece um aceno de cabeça, que eu retribuo.
Então dou um passo para o lado para que Nolla Verin possa sair da
carruagem.
Todos os olhos estão sobre a minha irmã, mas como já vi esse
espetáculo várias vezes, observo o príncipe. Quero ver se os olhos
dele brilham de interesse.
Ele é extremamente treinado ou indiferente, porque não noto
nada. Ele assiste à minha irmã sair da carruagem com a mesma
atenção que daria a uma curiosidade passageira.
– Minha filha mais nova, Nolla Verin – mamãe diz. – Herdeira do
trono de Syhl Shallow.
O príncipe também acena para ela, mas a princesa ao lado dele
olha de Nolla Verin para mim.
– Sua filha mais nova é a herdeira? – ela pergunta.
Minha mãe comprime os lábios. Ela não gosta de ser
questionada.
– Em Syhl Shallow, os herdeiros não são determinados pela
ordem do nascimento. – Ela olha para Rhen. – Se essa fosse a lei
em seu país, você não estaria tendo conflitos, garoto.
– Não estou tendo conflitos – ele diz.
Mamãe dá risada.
– Como sempre, você está escondendo bem seus segredos,
jovem príncipe, mas posso ver a fraqueza das mentiras que conta
para o seu povo.
– Meu povo está em paz. Se veio para semear discórdia, insisto
que se retire de uma vez.
– Ouvi boatos de que as cidades começaram a rejeitar o seu
direito ao trono. – Minha mãe olha para a princesa. – Os boatos
também dizem que o rei de Emberfall morreu em Decê, certo?
– Certo – príncipe Rhen responde. – Vocês viajaram de tão longe
para prestar condolências?
– Não. Foi obra de assassinos, entendo. – A voz dela está cheia
de ceticismo.
– Nosso povo deu o seu melhor para proteger o rei Broderick – a
princesa intervém.
Sua voz não carrega a mesma autoridade que a do príncipe
Rhen. Chega perto, mas não é a mesma coisa. Talvez não seja
perceptível para as outras pessoas, mas eu cresci entre a realeza, e
os dezoito anos na corte me ensinaram a diferença entre quem
nasceu para a realeza e quem apenas tenta imitá-la.
– Seu povo. – Minha mãe a encara, e seu tom confirma que ela
notou o mesmo que eu. – É isso mesmo, princesa Harper?
– É isso mesmo. – A voz dela parece aço. O príncipe Rhen aperta
sua mão, quase como se para impedi-la de falar mais.
– E a sua coroação, garoto? – mamãe pergunta. – Está
planejando alguma celebração?
O príncipe hesita.
Isso é suspeito. Prendo a respiração.
– E quanto à sua ascensão ao trono? – minha mãe continua. – E
quanto ao seu povo, que exige o verdadeiro herdeiro?
– Não há outro herdeiro – diz o príncipe Rhen, com a voz
entrecortada. – Ninguém reivindicou o trono. Ninguém apareceu.
Sou o príncipe herdeiro, e estou pronto para assumir o trono e
liderar meu povo.
– Ouvi dizer que você está oferecendo uma recompensa para
quem entregar um homem com sangue de feiticeiro. Isso tem a ver
com o caso?
Seu maxilar fica tenso.
– A magia causou estragos em meu país durante anos, como
você sabe. Não permitirei que ela prejudique meu povo novamente.
– Então temos objetivos parecidos. Acho que posso fornecer uma
medida de segurança para o seu povo.
O semblante do príncipe é sombrio.
– Explique.
Ela estica uma mão, e Nolla Verin dá um passo à frente.
– Vim propor paz entre nossos países. Vim oferecer a mão de
minha filha.
A expressão dele não se altera, mas, ao seu lado, a princesa
Harper parece que engoliu um peixe vivo.
– Você tentou destruir meu país e falhou – ele diz. – Não vou
fazer aliança nenhuma com Syhl Shallow.
– Você derrotou meu exército com magia e trapaças – minha mãe
fala. – Agora você não tem monstro nenhum esperando as suas
ordens. Seu reino está cada vez mais dividido. Você não tem nada
além da minha oferta para proteger seus súditos.
Ele morde os dentes com firmeza.
– Não vou fazer aliança nenhuma com Syhl Shallow.
– Estou oferecendo minha filha, minha herdeira, para assumir o
trono ao seu lado. Certamente até você deve saber quão rara é uma
oferta como essa vinda do meu povo. Não vai nem me receber para
uma reunião?
– Não tenho interesse nenhum na sua oferta. – Ele aperta a mão
de Harper, e me pergunto se agora é ela quem o impede de falar
mais. – Não tenho interesse nenhum em fazer uma aliança com o
seu país. Posso garantir a vocês uma travessia segura pelo
desfiladeiro, para que você retorne para governar Syhl Shallow, e eu
vou continuar governando Emberfall.
Nolla Verin dá um passo à frente, e seu cabelo preto reluz ao sol.
As listras verdes e negras em suas vestes são atravessadas por
uma costura prateada, que brilha a cada movimento.
– Ouvi dizer que você é um governante justo e bom – diz ela. –
Ainda assim, não vai nem considerar oferecer ao seu povo uma
aliança conosco?
O príncipe olha para ela do alto dos degraus de mármore.
– Eu vi a destruição causada pelo seu povo, garota.
A palavra é uma farpa cuja intenção é devolver a grosseria de
minha mãe chamando-o de garoto, mas minha irmã reage como se
ele tivesse lhe dado um tapa. Cada palavra que sai de sua boca é
afiada.
– Vou governar Syhl Shallow, e se você não vai aceitar nossa
proposta, é melhor respeitar minha posição.
Eu gostaria de poder pegar a mão dela e apertá-la com força, da
mesma forma como Harper parece fazer para manter o príncipe sob
controle. Este não é o tipo de homem que responde bem a ameaças
arrogantes.
De fato, seu olhar fica cruel.
– Perdoe-me por não demonstrar muito respeito por quem seria
capaz de massacrar meu povo.
Lembro-me do caçador e de sua filha, e tenho que engolir o bolo
de emoções que se acumulou na minha garganta.
Minha irmã levanta o queixo.
– Estamos aqui para impedir o massacre desnecessário do seu
povo.
– Temos um impasse – príncipe Rhen diz. – Porque não confio
em você.
– E se oferecermos informações do herdeiro desaparecido? –
Nolla Verin pergunta.
O príncipe Rhen fica imóvel. Todos os ouvidos estão atentos no
pátio. Até seus próprios guardas estão curiosos.
– Onde está seu comandante da guarda? – minha mãe fala.
– O comandante Dustan está viajando com Jacob, irmão da
princesa Harper e herdeiro do trono de Decê, junto com seu
talentoso curandeiro, Noah de Alexandria. – Ele faz uma pausa e
seu tom endurece. – Eles estão visitando as cidades para oferecer
assistência às pessoas feridas pelos seus soldados.
– Não – mamãe interrompe. – Onde está o comandante Grey? O
homem que estava com você na minha última visita.
– O comandante Grey está morto. Ele morreu durante a batalha
final com a feiticeira.
Ao seu lado, a princesa Harper vacila.
Minha mãe percebe.
– Em nosso último encontro, eu lhe contei sobre o primeiro
casamento de seu pai. Contei que ele foi consumado em Syhl
Shallow. Contei que uma criança mestiça nasceu lá. Você se
lembra? – Ela não espera uma resposta. – Contei do imposto que
seu pai pagava para guardar o segredo. Se você acha que seu povo
não está vendo você se desdobrar para encontrar um feiticeiro, seu
irmão, então você é um tolo ou pensa que seus súditos são.
Seu rosto está mais pálido, mas sua voz é firme.
– Meu povo sabe que farei qualquer coisa para mantê-los
protegidos.
Nolla Verin o encara.
– Se há um feiticeiro vivo e se ele é o herdeiro do seu trono,
acredito que podemos nos ajudar.
– Não há nada que vocês possam me oferecer. Guardas,
acompanhem as duas para fora do pátio.
Uma descarga percorre meu corpo. Nós falhamos.
Isso significa guerra. Mais morte. Mais destruição.
– Esperem – Harper diz. Sua voz está tomada pela emoção. –
Esperem. – Ela engole em seco. – Por que você perguntou sobre
Grey?
Minha mãe a encara e sorri.
– Você não acha que ele está morto, não é, princesa?
O príncipe Rhen vira a cabeça e diz alguma coisa baixinho, mas
Harper fecha os olhos. Uma lágrima escorre por sua bochecha.
– Não sabemos.
– Uma pena – mamãe fala. – Venham, minhas filhas. Deixaremos
o príncipe com sua escolha.
– Esperem – Harper chama. Suas saias vermelhas cintilam
conforme ela desce correndo os degraus do palácio. – O que vocês
sabem sobre Grey?
Nossos guardas avançam para impedi-la de se aproximar de
mamãe.
Os guardas do príncipe Rhen fazem a mesma coisa.
Elas se observam através da barreira de proteção. O rosto de
minha mãe está cuidadosamente neutro, mas o de Harper está
vermelho, e seus olhos são suplicantes.
– Você devia torcer para que ele esteja morto. Pelo bem do seu
príncipe. Pelo bem do seu reino.
Harper prende a respiração.
– Por quê?
– Segundo a feiticeira, Grey é o único que sabe quem é o
herdeiro.
Harper fica pálida. O príncipe Rhen se coloca ao seu lado com
uma expressão cheia de fúria.
– Esta não é a primeira vez que você tenta prejudicar meu
reinado com mentiras e trapaças. Você não terá outra chance. Saia.
Agora.
Mamãe se vira para a carruagem.
Nolla Verin também. Eu a sigo com o coração aos solavancos.
Um guarda fecha a porta.
– Ele é um tolo – ela diz para mim antes que os cavalos
comecem a nos puxar, tão alto que tenho certeza de que o príncipe
ouviu.
Penso no estrago que já causamos a esse país.
Penso no caçador na clareira e em sua filha encolhida debaixo
dele.
Tudo isso deveria ser diferente. Nolla Verin deu a entender que
eu teria oferecido uma aliança usando nozes e mel, mas ao menos
sei que não teria usado arrogância e desprezo.
O príncipe não é um tolo, quero dizer.
Como não sou a herdeira, não digo nada.
CAPÍTULO SEIS

GREY

A taverna de Jodi está abarrotada. A onda de calor deixa os


homens sedentos por cerveja e as mulheres procurando uma
desculpa para se abrigar do sol. Para aqueles que têm algumas
moedas a mais, o inebriante aroma de crustáceos e vegetais
assados se mistura com o sabor ligeiramente adocicado de licor.
Tycho e eu pegamos uma mesa nos fundos para fugir do barulho.
Os dias passaram e nossos segredos compartilhados parecem
tê-lo feito se ligar a mim como um irmão. Temos treinado de
manhãzinha, quando o céu começa a ficar cor-de-rosa e o estádio
ainda está deserto. Depois de alguns dias, sua habilidade com a
lâmina melhorou exponencialmente. É mais do que o treino, no
entanto. É a confiança. O muro que havia entre nós caiu – e eu nem
sabia que havia um muro.
Jodi traz uma jarra de água para substituir a que esvaziamos,
junto com uma cesta de pães fumegantes e uma grossa fatia de
queijo. Ela casualmente bate o quadril no meu ombro e se inclina de
modo que as penas em seu cabelo fazem cócegas em meu
antebraço.
– Queria poder me esconder aqui com vocês dois.
Ela cheira a morangos. Devia estar picando-os para preparar uma
bebida.
– Será bem-vinda. – Aponto com a cabeça para a taverna lotada.
– Mas acho que eles iriam te procurar rapidinho.
Ela faz uma careta.
– Você me protegeria deles, não é, Hawk?
Pego um pouco de pão da cesta.
– Melhor perguntar para Tycho. Ele é mais corajoso que eu.
Jodi dá um tapinha na minha nuca e se afasta.
Corto uma fatia de queijo com a faca e a coloco no pão, então
noto que Tycho está me encarando.
– O que foi?
Ele fala baixo.
– Acho que Jodi gosta de você.
Ela não poderia ser mais óbvia nem se subisse no meu colo e
começasse a tirar minha camisa.
– Percebi.
– Você não gosta dela?
Passo os olhos pela taverna; Jodi está se movendo entre as
mesas. Ela flerta com todos os clientes, mas nunca se demora com
eles como faz comigo.
Estamos longe, mas baixo a voz para garantir.
– Para ser guarda, é preciso renunciar à família.
– Renunciar?
– Fingir que ela não existe. – Eu hesito. – Família é
responsabilidade. Se usarem a família para manipular ou ameaçar
um guarda, ele poderá ser usado contra a Coroa.
Ele franze a testa.
– Então… o quê? É esperado que você não se importe com
ninguém?
Penso na minha mãe – ou na mulher que eu achava que era
minha mãe – me olhando partir com pânico nos olhos. Penso nos
meus nove irmãos e irmãs, assassinados um por um quando Lilith
tentou me fazer trair o príncipe Rhen.
Seus esforços foram em vão. Meu treinamento foi muito rígido,
minha lealdade era inabalável. Não havia ninguém que ela pudesse
ter usado contra mim.
Sem querer, meus pensamentos evocam Harper, sua bravura
feroz e sua bondade gentil. Lembro-me do dia em que ela
convenceu um grupo de soldados de Syhl Shallow de que era a
princesa de outra nação. Lembro-me que eles foram embora
cuspindo ameaças e promessas de vingança, e ela não saiu
correndo para se esconder. Ela me pediu para ensiná-la a lançar
facas.
Quando Lilith ameaçou matar Harper, eu me rendi. Ajoelhei-me e
ofereci-me em juramento a ela.
Recuso-me a permitir que esses pensamentos se apoderem de
mim.
– Esqueci como era me importar com alguém, Tycho.
Ele me observa por um longo momento.
– Não acho que isso seja verdade.
Penso em como eu quase o joguei do sótão, e não sei o que
dizer. Pego outro pedaço de pão da cesta.
– Não é possível treinar alguém para não sentir compaixão – ele
diz.
– Ah, certamente é.
Ele está franzindo a testa de novo. Pego mais uma fatia de pão e
a estendo para ele.
– Coma. Não quero ter que correr na volta.
Ele come, obediente. Ficamos em silêncio, e as gargalhadas e
conversas inebriantes ao redor preenchem a taverna. Perto da
porta, um senhor barrigudo está drenando o que deve ser sua
terceira caneca de cerveja. Seu nome é Riley, e ele está contando
uma história sobre uma cega que comprou um burro em vez de um
cavalo, e ele não conseguiu convencê-la do contrário. É um dos
poucos ferreiros em Rillisk, mas ele e Worwick têm um antigo
ressentimento, então ele não faz as ferraduras dos nossos cavalos.
Ele provavelmente cobrou de Worwick um preço justo, o que é muito
para Worwick.
Jodi passa pela nossa mesa novamente, deixando sua mão roçar
no meu braço. Divirto-me com a ideia de pegar seus dedos e puxá-
la para trás. Seria simples. Descomplicado. Eu poderia me perder
na persona de Hawk, deixando Grey para trás.
Quando ela se vira, eu a olho nos olhos e ela sorri.
Sorrio de volta, e ela fica corada.
Isso deveria ser fácil. Mas não é. Parece manipulação.
Quebro o contato visual e olho para o pão.
– Acabou? – pergunto para Tycho com a voz rouca.
Ele assente e pega alguns cobres na bolsinha em sua cintura.
A porta da frente da taverna se abre e um grupo de homens entra
devagar. O lugar está barulhento e lotado demais para que eles
chamem atenção, mas a luz reflete o aço e eu vislumbro algo
vermelho.
Congelo. Minhas mãos encontram a faca.
Mas não é o uniforme da Guarda Real. São os guardas do grão-
marechal. O líder é o mais velho, de cabelos grisalhos, barba
grossa, e um pano cobrindo um olho. Ele é seguido por três outros.
– Onde está o ferreiro chamado Riley? – ele pergunta com tanta
firmeza que o falatório na taverna vira um murmúrio. Todas as
cabeças se voltam para Riley.
Ele afasta a cadeira e se levanta. É um homem honesto, e parece
mais confuso do que preocupado.
– Aqui estou.
– Você está sendo acusado de usar magia em prol do seu
negócio. Venha conosco.
Riley recua um passo.
– Eu não… eu nunca… não sei magia.
Os guardas já o cercam. Os homens nas outras mesas se
afastaram. As conversas pararam.
Riley continua recuando. As pessoas saem do seu caminho como
se ele estivesse com uma doença contagiosa. Um dos guardas saca
uma espada.
– Eu não sei magia! – ele grita. – Sou um ferreiro!
O líder dá um sinal para os outros, que se movem pelas mesas
como se quisessem impedir sua fuga.
– Hawk – Tycho sussurra. – Hawk… temos que…
Eu o silencio com um olhar, porém seus olhos continuam
suplicantes. Não sei se ele quer que eu intervenha ou me renda ou
outra coisa que não entendo, mas não posso fazer nada. Não devo
chamar atenção. Não agora.
O homem de tapa-olho agarra o braço de Riley.
– Você tem que vir conosco.
Riley se solta. Seu rosto está vermelho de vergonha, raiva ou
ambos.
– Não fiz nada de errado! Você não pode prender cidadãos
honestos…
– Temos ordens. – Outro guarda agarra seu braço.
Riley olha ao redor, desesperado, mas as pessoas abriram
espaço e se afastaram.
– Ninguém vai me defender?
Com uma agitação de saias e rebeldia, Jodi passa por mim. Ela
está tomando fôlego para protestar.
Agarro seu braço e a puxo contra mim. Estamos longe o
suficiente para não atrair a atenção de Riley, mas, se ela continuar
assim, ele vai perceber.
– Jodi – sussurro contra seu cabelo. – Deixe que eles o levem
pacificamente.
Ela se debate um pouco, mas tem o bom senso de manter a voz
baixa.
– Ele é um bom homem.
– Então eles vão interrogá-lo e liberá-lo. Vai perder um dia de
trabalho e ganhar uma ótima história para contar aos outros na
próxima rodada de cerveja.
Do outro lado da mesa, Tycho está de olhos arregalados. Devo
parecer seguro, porque Jodi relaxa.
Riley está lutando contra os guardas. Ele é forte e consegue
soltar um braço.
O de tapa-olhos dá um soco na sua barriga. Riley se dobra com
um grunhido e quase cai de joelhos. Eles o agarram mais uma vez e
o arrastam para a porta.
– Vocês não podem fazer isso – ele sibila. – Fiquei sabendo do
alfaiate em Lackey’s Keep. Vocês não podem acusar gente honesta.
Os guardas o ignoram, puxando-o, indiferentes. Ao alcançar a
porta, um dos homens solta seu braço para pegar a maçaneta.
Riley se vira e toma uma das armas dele. Não sei quais são seus
motivos; talvez ele pense que vai conseguir se libertar lutando ou se
defendendo ou ganhando tempo, mas nunca terei a chance de
perguntar. Um dos guardas enfia uma espada em seu peito. Riley
solta um som abafado e cai.
Um suspiro coletivo percorre a taverna.
Jodi escapa de mim.
– Seus monstros! – ela grita, atirando-se no guarda que matou
Riley e empurrando-o. – Como você pôde fazer isso?
Ele pega seu braço e lhe dá uma breve sacudida. O de tapa-olho
ergue a espada.
Sem pensar, coloco-me na frente dela. A ponta da espada toca
meu peito e o aço pesa em minha camisa.
– Chega – digo. Seu olho se estreita.
Jodi está tremendo contra mim.
Penso no que disse para ela. Eles vão interrogá-lo e liberá-lo.
Eu devia saber. Na verdade, eu sabia.
Olhares são trocados pela taverna. As pessoas se remexem,
nervosas. Cadeiras se arrastam no piso de madeira. Respirações
ofegantes vêm de todas as direções.
Um homem fala de modo hesitante perto da porta da frente.
– Sempre pensei que tinha algo estranho na maneira como ele
ferrava os cavalos.
– A fornalha dele sempre parecia mais quente que a dos outros –
outro homem concorda.
– Você viu aquele cavalo trazido da Forja Hutchins? – uma
mulher fala. – Riley disse que tinha algo especial que o faria trotar
reto. E ele tinha mesmo.
A espada ainda está em meu peito.
– Ela atacou um guarda – o de tapa-olho diz.
– Ela está triste. Não queria machucá-lo. – Coloco uma mão no
bolso, tiro um punhado de cobres e os ofereço a ele. – Compre
umas cervejas para os seus homens por minha conta.
Ele me olha com frieza. A tensão paira no ar. Os outros clientes
esperam para ver se mais alguém vai morrer.
Chacoalho as moedas.
– Worwick vai ficar bravo se eu não aparecer para abrir o torneio.
Ele resmunga e guarda a espada.
– Fale pra ela cuidar da própria vida da próxima vez.
– Sim, senhor. – Viro-me e deposito as moedas na mão de Jodi.
Seus olhos estão cheios de lágrimas, e seus dedos tremem tanto
que fazem as moedas tilintarem. – Pegue umas cervejas pra eles –
digo baixinho.
– Ele era um bom homem – ela sussurra. – Ele era um bom
homem, não era, Hawk?
Fecho os dedos dela em torno das moedas para silenciá-las.
– Você precisa colocar ordem na taverna, Jodi. Não dê motivo pra
eles recomeçarem.
Acho que ela nota a urgência na minha voz, porque engole as
lágrimas e ajeita as saias, assentindo depressa.
Olho para Tycho, que me observa de olhos esbugalhados.
– Worwick vai receber uma multidão depois disso. Precisamos
voltar.
O sol do final da tarde ilumina a cidade quando emergimos da
taverna. Tycho se mantém calado ao meu lado conforme nos
esprememos pela aglomeração do lado de fora.
A fofoca viaja rápido.
Quando alcançamos as vielas desertas, Tycho arrisca uma
pergunta.
– Você acha que ele era um feiticeiro?
Olho para ele.
Ele engole em seco.
– Eles o mataram, Hawk.
Eles provavelmente vão ganhar um prêmio também.
– Eu te disse o que eles fariam.
– Mas… como eles sabiam se ele era culpado?
– Não importa. Não tem a ver com ser culpado ou não. Tem a ver
com deixar as pessoas aterrorizadas pensando que um feiticeiro
pode ser capturado e assassinado facilmente. Tem a ver com provar
que não existe ameaça à Coroa. – Sinto um gosto amargo na boca.
Um homem morreu por minha causa.
Não posso fugir disso. Não tenho para onde ir.
A voz de Tycho me arranca do meu devaneio.
– É por isso que tantas pessoas são suspeitas?
– É mais fácil pensar que alguém é culpado do que imaginar que
um inocente poderia estar comendo ostras em um minuto e, no
minuto seguinte, sangrando no chão.
Ele fica tão chocado que não diz nada. Caminhamos rápido.
Esfrego minha nuca, limpando o suor. Já estamos longe da taverna,
e a fofoca ainda não chegou tão longe. Uma garota está passando
com algumas ovelhas pela viela estreita, e Tycho e eu nos
encolhemos em uma porta para abrir espaço.
Ele está me olhando, mas não consigo encará-lo.
– Você teria feito?
Observo as costas tosadas das ovelhas enquanto elas passam
balindo.
– Feito o quê?
– Você o teria matado? – Ele engole em seco. – Quando era
guarda?
Lembro da época em que eu servia o rei Broderick, antes da
maldição. Lembro da quase-eternidade com o príncipe Rhen,
quando ficamos presos em Ironrose. Gostaria de pensar que ele
nunca me daria ordens desse tipo.
Mas eu sei. Não seria fácil, mas Rhen faria isso se acreditasse
ser a única forma de proteger seu povo.
Olho para Tycho.
– Eu teria seguido as ordens, Tycho. Quaisquer que fossem.
Ele me estuda. Não consigo decifrar sua expressão.
A última ovelha passa, e sigo em frente sem esperá-lo.
CAPÍTULO SETE

LIA MARA

Montamos acampamento muito antes do anoitecer.


O temperamento de Nolla Verin é uma força que deve ser
reconhecida. Ela grita com os guardas sobre a fogueira que deveria
ser mais quente, e grita até com a nossa mãe sobre as informações
que ela ofereceu antes que garantíssemos a aliança. Apesar do que
me disse mais cedo, ela nunca foi rejeitada, e sei que as palavras
do príncipe a atingiram.
Minha irmã está sentada ao meu lado olhando para o fogo,
trabalhando no bordado novamente.
– Você viu como ele estava agarrado naquela princesa aleijada?
Como se o reino dela tivesse dado qualquer sinal de que a aliança é
válida. – Ela bufa. – Eles permitiram que o rei fosse assassinado! O
príncipe é um tolo.
– Você já disse isso.
– Ele vai se arrepender, Lia Mara.
– Você já disse isso também.
Ela direciona os olhos ferozes para mim.
– Você não acha?
– Acho que o príncipe se importa com seu povo.
– Eu também me importo com meu povo.
Talvez, mas o príncipe Rhen nunca invadiu Syhl Shallow. Ele não
matou o nosso povo deliberadamente. Desvio o olhar para o fogo.
O silêncio entre nós fica pesado e se transforma em incerteza.
– Você acha que eu errei? – ela sussurra.
Olho para ela surpresa.
– Não. Acho que vocês buscam coisas diferentes para suas
nações.
– Poderíamos trabalhar juntos!
Engulo em seco. Elas não procuraram o príncipe Rhen como se
quisessem trabalhar com ele de verdade.
– Mamãe vai atacar? – pergunto baixinho. – Agora que ele
recusou a proposta?
Nolla Verin relaxa. Ela gosta de discutir estratégia.
– Ela vai esperar até que a população se recupere e esteja
dividida sobre essa história absurda de herdeiro. As sementes já
foram plantadas. Vamos conquistar as cidades e finalmente ter
acesso ao mar aberto.
– E esse comandante Grey? – pergunto.
– Vivo ou morto, não importa. – Ela dá um nó na linha e pega
uma adaga para cortá-la. – Você viu a cara do príncipe quando
mamãe mencionou o nome dele.
Eu vi a cara de Rhen. Harper também. Ambos estavam tomados
por pânico, saudade e medo.
Nolla Verin balança a cabeça.
– Mamãe estava certa ao revelar o que sabemos. O boato de que
um ex-guarda, um desertor, tem essa informação vai se espalhar
rapidamente.
Ela está certa. Um feiticeiro? Um herdeiro? Um guarda fugitivo? A
fofoca é suculenta demais para ser contida, e o reino de Rhen já
está dividido.
Nolla Verin encolhe os ombros.
– Nós já sabemos o mais importante: o reinado deste príncipe
logo chegará ao fim, de um jeito ou de outro. O que você acha?
Levo um tempo para perceber que ela está desviando minha
atenção para o seu bordado. Eu mal olhei para ele desde que
deixamos Syhl Shallow, mas agora vejo que ela acrescentou
algumas palavras no centro, com letras inclinadas fazendo voltas
pelos ornamentos espalhados pelo tecido.
Duas irmãs. Um coração.
As palavras deveriam me iluminar de alegria. Mas não é o que
acontece. Não consigo apagar da memória a morte do caçador e de
sua filha. A garota tinha uma irmã – que escapou porque eu me
recusei a denunciar a sua presença.
– Você não gostou – Nolla Verin diz.
– Não, eu gostei, sim. – Estico a mão para pegar o bordado.
Passo o dedo pela inscrição. – Seu talento é incomparável.
– Você parece triste. Pensei que isso a animaria.
– Sim. – Pego sua mão. – Estou honrada por ter o seu amor e
seu coração.
Ela sorri.
Não consigo deixar de sorrir também. Eu a amo de verdade.
Nolla Verin se inclina e me dá um beijo na bochecha.
– Pensei que ficaria ótimo no seu travesseiro.
Aperto o bordado contra o peito.
– Vou guardá-lo para sempre.
Ela se levanta e se alonga.
– Vai demorar? Estou morrendo de sono.
– Vá na frente.
Minha irmã entra na barraca, e seus guardas assumem a
posição.
Queria que Sorra e Parrish me fizessem companhia na fogueira,
pois o bom humor de Parrish seria bem-vindo. Mas minha mãe
ainda não se retirou, e eles nunca ficariam à vontade na presença
dela.
Um lado exausto meu acha que ela vai se juntar a mim para me
provocar falando sobre a performance de minha irmã e sobre as
minhas falhas, mas, por sorte, ela não faz isso.
No entanto, ela se aproxima para me dar um beijo na testa. Uma
rara demonstração de afeto.
– Você acha que eu esqueci que você é a minha primeira filha –
ela diz.
– Não acho isso.
– Sua mãe sabe.
Fico vermelha. Provavelmente o reino todo sabe.
– Também sei que você me acha fria e implacável – ela continua.
Não digo nada. Ela não está errada.
– Eu não sou cruel. Mas, fora de Syhl Shallow, o mundo está
repleto de homens que subestimam mulheres. Que as oprimem.
Não posso liderar mostrando fraqueza. Não posso me dar ao luxo
de ter empatia ou compaixão. Nem sua irmã.
Continuo calada. Permitir que um homem desarmado viva não
me parece uma fraqueza, mas talvez seja por isso que eu não tenha
sido escolhida para ser herdeira.
– Você não é inferior a Nolla Verin – ela diz. – Lembre-se disso,
Lia Mara. É por isso que seus estudos com Clanna Sun são tão
importantes. Sua irmã foi nomeada herdeira, mas ela vai precisar do
seu apoio.
– Obrigada, mamãe. – Não sei o que dizer. Acho que isso só
significa que Nolla Verin foi decepcionante e provavelmente não tem
nada a ver comigo.
Minha mãe me deixa ali e se retira para sua barraca. Logo Sorra
e Parrish se aproximam.
Parrish oferece um pedaço de carne seca de um saco, e eu faço
uma careta.
Ele dá risada e a enfia na boca.
Sorra faz a mesma careta que eu.
– Ele come como se fosse qualquer coisa – ela comenta.
– Com prazer. – Ele coloca outro pedaço na boca.
Mal consigo reunir energia para sorrir.
– Mamãe está chateada porque as coisas não saíram bem com o
príncipe.
Sorra assente.
– Ela não quer começar uma guerra. Os cofres do palácio não
são infinitos. As Casas Reais estão ressentidas porque ela não
conseguiu o acesso ao porto, como prometido.
– Não sabia disso. – Sento-me ereta. Eu sabia que tivemos que
contar com o imposto de Emberfall no passado, mas não fazia ideia
de que nossas reservas estavam tão baixas que as Casas Reais
estavam retirando seu apoio.
Sorra dá um sorriso.
– Talvez você soubesse mais se passasse mais tempo na corte
em vez de enfiada nos seus livros.
Faço a mesma careta que fiz para a carne seca, e ela solta uma
risada.
– Guerra custa caro – ela diz. – Mesmo que a aliança com Decê
seja falsa, bancar outra invasão não vai sair barato, e as Casas
Reais não estão dispostas a pagar mais quando os fundos já estão
tão baixos.
– Para não falar nas vidas perdidas – Parrish intervém.
Seu tom chama minha atenção, e viro a cabeça para ele.
Ele olha para Sorra, então suaviza:
– Não devíamos matar pessoas em nome de rotas comerciais.
Penso na garota que ele ignorou na floresta. Fico tentando
imaginar se Sorra sabe ou se ele guardou segredo. Fico tentando
imaginar se ele se sente inferior, como eu.
Sorra sustenta seu olhar.
– Daqui a pouco, nosso povo vai sofrer sem elas.
No início, esse era o motivo para mamãe atacar. Ela não estaria
propondo aliança nenhuma se não tivesse falhado. Se Sorra estiver
certa e o príncipe rejeitar mesmo essa aliança, não teremos outra
opção.
Parrish balança a cabeça, sombrio.
– Vamos destruir este país… vamos nos destruir.
– Parece que não temos mais escolha. Mamãe já tomou sua
decisão. Você está falando com a irmã errada, se acha que posso
mudar alguma coisa.
Observamos as chamas. O acampamento está silencioso, mas
meus pensamentos estão acelerados demais para que o sono me
encontre.
Duas irmãs, um coração.
Não compartilhamos um coração. Sei muito bem.
Mesmo com os comentários de mamãe sobre a feiticeira e a
criatura mágica que nos expulsou de Emberfall, o príncipe Rhen
estava certo sobre uma coisa: ele teve sucesso uma vez. Em meus
estudos, descobri que nada une mais as pessoas quanto um inimigo
em comum. Agora, seu reino parece duvidar se ele é o herdeiro
legítimo ou não, mas se ele encontrar esse comandante Grey, se
encontrar o herdeiro, talvez consiga solidificar sua posição. Ele se
importa com seu povo. Sua paixão é evidente. Ele pode muito bem
ter sucesso novamente.
Desdobro o bordado de Nolla Verin e corro o dedo sobre a
costura elegante.
Duas irmãs, um coração.
Se compartilho meu coração com alguém, é com o príncipe. Pelo
menos ele parece compassivo. Ponderado, não insensível.
Pergunto-me como ele teria reagido se Nolla Verin tivesse falado
com cuidado e respeito em vez de arrogância e desdém. Se ela
tivesse demonstrado preocupação com o povo dele, além de com o
nosso.
Fico tentando imaginar se ainda posso descobrir.
Você não é inferior a Nolla Verin. Sua irmã vai precisar do seu
apoio.
O príncipe não vai ouvir minha irmã.
Mas talvez me ouça.
– Quero falar com ele – digo baixinho.
Sorra olha para mim alarmada, mas o olhar de Parrish é mais
firme.
– Sua mãe nunca vai permitir – ele fala.
– Eu sei. – Faço uma pausa. – Devemos ser discretos, antes que
os outros percebam o que estamos fazendo.
Suas sobrancelhas se erguem.
– Você quer ir agora?
– Sim. – Meu coração retumba como um tambor. – Sele os
cavalos. Seja discreto.
Penso que eles vão recusar. São meus guardas há anos, mas
fizeram um juramento à minha mãe. Sorra me encara por tanto
tempo que a rainha consideraria insolência.
Eu sei que não é.
– Por favor – peço em voz baixa.
– Pela paz – Parrish diz ao meu lado. Ela olha para ele e se
acalma.
Ele coloca um dedo na ponta da sua armadura e a puxa para si.
– Pelo nosso futuro – diz. Então, encosta os lábios nos dela.
Minhas bochechas ardem, mas não consigo evitar um sorriso.
– Teremos tempo para isso depois. Agora, precisamos nos
apressar.
Parrish também sorri e se afasta. As bochechas de Sorra estão
vermelhas. Eles se viram para onde os cavalos estão amarrados
com movimentos silenciosos.
Quando vou ajudá-los, Parrish me olha, ainda sorrindo.
– Você estava errada.
– Errada?
– Acho que somos os guardas da única irmã que pode mudar
alguma coisa.
CAPÍTULO OITO

GREY

Boatos e tumulto sempre geram multidões, mas hoje o torneio está


mais apinhado do que nunca. A noite caiu trazendo uma brisa fresca
e um céu cheio de estrelas, mas há tanta gente no estádio que está
mais quente agora que ao meio-dia.
– O príncipe está assustado – um homem sussurra enquanto
espera pela cerveja na fila que se estende feito uma cobra. Worwick
deve tirar um lucro considerável esta noite. Nunca vi a fila chegar
até os estábulos. – Não existem feiticeiros em Emberfall há
décadas.
Estou selando cavalos para o treino, mas, quando estou
trabalhando, sou invisível. As pessoas falam livremente sem se
preocuparem comigo.
Nos tempos de guarda, parado contra a parede, era a mesma
coisa.
– Bem, alguma coisa estava controlando aquela criatura que
aterrorizou o castelo – outro homem diz. – Todo mundo diz que era
Karis Luran, mas não sei por que ninguém está se perguntando
sobre essa nova princesa. Talvez seja ela quem enviou a besta. Não
confio nessa aliança com sei lá que nação. Eles deixaram nosso rei
morrer.
Aperto a cilha e dou um tapinha no pescoço do cavalo.
– Rillisk tem sido liderada pelo grão-marechal há anos – uma
mulher zomba. – A família real volta, e de repente devemos nos
ajoelhar? Até parece.
– Cuidado com o que diz – o primeiro homem comenta. – Ouvi
falar que a realeza estará aqui hoje.
Meus dedos paralisam na fivela de uma rédea. O cavalo
pressiona a cara na minha mão, e eu sussurro para fazê-lo ficar
quieto.
O segundo homem solta uma risada preguiçosa.
– Realeza? Deve ser só mais um principelho de quem ninguém
nunca ouviu falar.
Solto a respiração que estava prendendo. Meses atrás, isso me
soaria preocupante, mas, desde que as fronteiras do sul foram
abertas, soube de realezas sem importância passando por Rillisk,
conforme reinos menores reabrem suas rotas comerciais.
– Hawk.
A voz rouca me faz dar um salto, mas é só Journ, o outro
competidor de Worwick. Prefiro sua companhia à de Kantor, mas ele
está pálido e coberto de suor, apoiando uma mão na parede.
Enrugo a testa.
– Está doente?
– Levei um coice. As ruas estão lotadas. Duas carruagens
bateram. Tentei ajudar. – Ele se curva com uma mão no peito. –
Worwick disse que você tem um cataplasma que usa nos cavalos.
Eu tenho, mas se ele mal consegue ficar de pé, um cataplasma
não será capaz de fazê-lo lutar. No entanto, não adiantaria falar com
Worwick. Peço para Tycho terminar os cavalos e volto a atenção
para Journ.
– Venha ao armeiro. Vou ver o que posso fazer.
Está mais fresco aqui, longe da multidão. O rasvador está deitado
imóvel na jaula, mas abre os olhos escuros como a noite quando
entramos no recinto. Journ desmorona em um banco. Ele tira a
camisa, e metade do seu peito está tomada por nódoas negras. Ele
ofega com o esforço.
– Diga a verdade – ele diz, ofegante. – Está tão feio quanto
parece?
– Acho que você quebrou a costela.
Ele xinga baixinho.
– Worwick vai ficar louco.
– Você não pode lutar assim.
– Você viu o estádio? Ainda nem escureceu totalmente e já não
há mais lugares disponíveis. Se eu não lutar, Worwick vai enfiar uma
espada em mim.
Isso me faz pensar em Riley, o ferreiro. Quando eu era uma arma
da Coroa, a culpa raramente me atormentava pelas ordens que eu
seguia.
Hoje, a culpa é um espinho que não consigo remover.
Journ se mexe e se contorce.
– Você pode dar um jeito? Talvez minha armadura dê algum
suporte.
– Posso tentar.
Coloco musselina em sua caixa torácica enquanto ele pragueja,
depois amarro-a com força. Ele transpira pelas bandagens antes
que eu termine, mas, quando prendo sua armadura no lugar, ele
consegue ficar de pé mais facilmente do que antes.
– Você tem minha gratidão, Hawk. – Ele bate no meu ombro,
desajeitado, e depois sibila.
– Até uma criança poderia te derrubar.
– Preciso dessas moedas hoje. – Ele respira com dificuldade e
pega uma espada na parede. – Segure, deixe-me tentar.
Nunca lutei com Journ ou Kantor porque é complicado esconder a
habilidade de quem é habilidoso. Mas ele está ferido e estamos
sozinhos, e Journ é um bom homem, então aceito.
Ele consegue fintar, atacar e desviar, mas seus movimentos são
pesados, e não estou oferecendo muita resistência.
Ainda assim, ele dá um sorrisinho.
– Posso até não ganhar, mas posso lutar.
Impulsiono a lâmina com força, e ele mal consegue bloquear o
golpe. Enquanto ele está tentando se recuperar, eu giro a arma,
prendo o cabo da arma dele e o desarmo. A ponta da minha espada
está em seu pescoço antes que ele consiga recuperar o fôlego.
– Você será desarmado em segundos. Isso não é bem uma luta.
Ele está piscando para mim, pressionando a barriga.
– Você andou praticando.
Abaixo a arma.
– Um pouco.
Ele estremece e se senta no banquinho, então solta um suspiro.
Tambores ecoam na arena, seguido por gritos nas arquibancadas.
Worwick está animando o público, abrindo os eventos da noite.
Preciso voltar. No meio da multidão, Tycho deve estar correndo
feito um doido para manter os cavalos e cavaleiros seguros.
Fico parado examinando Journ, que está passando o pulso úmido
na testa. Ele suspira de novo, sofrendo de dor. Se fosse Kantor, eu o
deixaria seguir para a arena.
– Por que você precisa dessas moedas? – pergunto.
– Vamos ter outro filho no fim do ano. – Ele se mexe e sorri, mas
é impossível encontrar uma posição confortável quando suas
costelas estão quebradas. – Mais uma boca pra alimentar… como
se já não fosse complicado alimentar as que eu já tenho.
Este não parece ser o momento certo para parabenizá-lo.
– Eu não sabia.
Ele tenta respirar fundo, mas ofega, trêmulo, e se põe de pé.
– Todos temos nosso fardo. – Ele pega um cinto de espada da
parede.
No estádio, um cavalo relincha, batendo os cascos no chão, e a
multidão aplaude.
Mordo o lábio, pensando em Riley.
Não devo nada a Journ. Não devo nada a Worwick.
Do outro lado da sala, a jaula do rasvador chacoalha conforme
ele se remexe e se alonga. Seus olhos negros como carvão
encontram os meus e ele sibila. O som é como uma repreensão,
mas provavelmente apenas dentro da minha cabeça.
Todos temos nosso fardo.
Não fiz nada hoje à tarde. Posso fazer algo agora.
– Tire a armadura – digo.
Ele solta uma risada rouca que termina em um chiado.
– Se eu tirar essa coisa, não vou conseguir colocar de volta.
– Preciso ajudar Tycho. Se não puder se curvar para tirar as
grevas, volto em meia hora.
– O que você vai fazer?
– Você não pode lutar, Journ.
Ele fecha os olhos.
– Hawk, eu tenho…
– Você não entendeu. Você não pode lutar. Eu posso. Agora tire a
armadura. Já volto.
CAPÍTULO NOVE

LIA MARA

Não espero ser recebida por uma fanfarra.


Tampouco espero ser encurralada na floresta e levada como
prisioneira.
Os guardas não estavam posicionados tão longe do terreno do
castelo mais cedo, mas talvez eles ampliem as patrulhas depois de
escurecer. Ou, o que é mais provável, talvez Rhen não confie em
minha mãe e estivesse esperando um ataque.
– Isso é um absurdo – digo para os guardas do príncipe Rhen
amarrando minhas mãos. – Eu já disse que viemos para discutir
uma maneira de manter a paz com o seu povo.
A escuridão cobre a floresta e esconde a expressão da maioria
dos homens que nos cercam, mas posso vê-los amarrando Sorra e
Parrish também. Eles não falam nada.
O guarda atrás de mim puxa a corda com força, e eu prendo a
respiração.
– Somos só três. Estamos desarmados. Certamente você não
espera que a gente ataque o castelo assim.
– Cuidado, Lia Mara – Sorra diz baixinho em syssalah.
Ao som da sua voz, um dos guardas desembainha uma espada,
mas outro homem intervém:
– Não. Deixe-os em paz. O príncipe vai decidir.
Ele avança na escuridão e para na minha frente. Muitos guardas
e soldados carregam arcos, mas ele tem apenas uma espada na
cintura. É um pouco mais velho, seu cabelo é escuro e ele não tem
um braço.
– Já vi a paz que seu povo quer trazer para Emberfall – ele diz.
Seu olhar é cruel, quase vingativo.
Olho para onde devia estar seu braço e me pergunto se foram os
soldados de Syhl Shallow que fizeram isso.
– Nossos exércitos se retiraram. Não posso desfazer o que quer
que tenha acontecido, mas posso tentar forjar um novo caminho.
Ele resmunga e se vira. Alguém me empurra no meio das costas,
e eu sigo em frente.
Somos conduzidos para dentro do castelo. Sob a luz do sol, os
tijolos de cor creme faziam o prédio parecer acolhedor e receptivo,
mas agora, na escuridão da noite, o castelo parece agourento. O
portão da frente se abre para um enorme saguão com carpete de
veludo e paredes de madeira escura, de onde pendem tapeçarias
de todas as cores. O teto se estende bem alto, e um lustre apagado
paira sobre nós. Durante o dia, este lugar deve ser um espetáculo
de riqueza e privilégios que rivalizam com o nosso palácio, mas,
agora, os cantos sombreados e os espaços ecoantes são
perturbadores.
– Esperem aqui – diz o homem sem um braço. Ele cruza o recinto
e sobe a larga escada do lado oposto.
Já faz um tempo que saímos. Fico tentando imaginar se os outros
guardas notaram nosso desaparecimento. Depois do que aconteceu
no pátio esta tarde, não sei se mamãe ousaria vir atrás de nós.
Quanto mais esperamos, mais questiono minhas atitudes.
Penso na filha do caçador, encolhida debaixo do pai.
Penso no homem de um braço só que nos conduziu para dentro
do castelo.
Penso no ódio em sua voz e no medo nos olhos da garota
escondida na floresta.
Existem pessoas além dessas negociações. Pessoas cujas vidas
serão afetadas por uma aliança, por uma guerra ou por um golpe.
Minha irmã foi nomeada herdeira, mas, hoje à tarde, ela errou.
Tenho uma chance de consertar as coisas.
Quando o príncipe surge no topo da escadaria, espero ver
surpresa ou raiva ou algum tipo de emoção em seu rosto, mas sua
expressão é fria e calculada, como antes. Seus trajes são casuais, o
que me faz pensar que interrompemos seu sono. A princesa não
está com ele.
Ele não desce as escadas de imediato, avaliando-me sem
pressa.
Dou meu melhor para me manter ereta e transparecer confiança,
o que é mais desafiador do que imaginei, ainda mais com minhas
mãos amarradas nas costas.
O príncipe para diante de mim, e eu não desvio de seu olhar
desconfiado.
Finalmente, ele diz:
– Quando Jamison mencionou sua intenção de discutir a paz,
pensei que não era a irmã que eu esperava.
É claro que não.
– Não fui nomeada herdeira, mas ainda sou filha da rainha.
Ele leva um tempo refletindo.
– Se você realmente deseja paz, por que não falou nada durante
a visita de vocês? Por que tentou invadir os terrenos de Ironrose
depois de escurecer? – Ele olha para os meus guardas. – Com a
mínima proteção, e nada menos.
Quase sinto Sorra e Parrish se agitando atrás de mim.
– Preciso de proteção? – pergunto ao príncipe. – Você não fez
nada contra nós hoje, mesmo podendo.
– Sua mãe não é tola. Se eu tivesse machucado qualquer um de
vocês, a vingança seria certa e rápida, não tenho dúvida.
Isso é verdade. Minha mãe não teria vindo até aqui sem tomar
providências.
– Não quero falar de violência.
– Ah, sim. Você quer falar de paz. – Seu tom é divertido, mas
seus olhos se estreitam de leve. – Perdoe-me se esqueci.
– Você não acredita em mim.
– Acredito que ou você é muito corajosa ou muito estúpida por
tentar influenciar minha opinião sobre Syhl Shallow dessa forma.
Sustento seu olhar.
– Não sou estúpida, príncipe Rhen.
– Você ainda não respondeu minha pergunta. Por que não falou
sobre o seu desejo de paz mais cedo?
Porque não queria ir contra minha mãe ou minha irmã.
Porque eu não sabia que as coisas sairiam tão mal.
Porque eu não sabia se ele me ouviria.
Ainda não sei.
– Estou aqui agora porque não quero mais derramamento de
sangue entre nossos reinos.
– Quero o mesmo.
Ele fala com tanta seriedade que acredito. Seu reino pode até
estar desmoronando, mas ele realmente se importa com seu povo –
tanto quanto eu me importo com o meu.
– Na verdade – ele acrescenta –, fiquei surpreso ao saber que
Karis Luran estava querendo fazer uma aliança, já que ela parece
tão segura de que pode tomar minhas terras sob suas próprias
condições.
Hesito, pensando no que Nolla Verin me disse e no que Sorra
falou no acampamento. O príncipe Rhen nunca vai acreditar que
minha mãe quer poupar vidas. Seus olhos analisam meu rosto.
– Se estiver querendo propor uma aliança, Lia Mara, talvez você
deva começar falando com honestidade.
– Ótimo. Minha mãe precisa ter acesso ao seu porto para
estabelecer rotas comerciais e gostaria de fazer negócio com o seu
povo.
Ele sorri, e sei que ele vê além de mim.
– A rainha de Syhl Shallow está precisando de prata. Que
interessante.
– Podemos estar precisando de prata, mas ainda somos
prósperos em armas e guerreiros.
– Ouvi dizer. – Ele não parece convencido. – Tentei discutir
negócios com a sua mãe meses atrás, e ela recusou.
– Não posso mudar o passado. Só posso me oferecer a você
como um símbolo de boa-fé.
– Se oferecer? – Seu sorriso se alarga. – Se está sabendo de
minha busca pelo legítimo herdeiro, então certamente sabe do meu
amor pela princesa Harper. Se está se oferecendo em casamento,
ficará dolorosamente desapontada.
– Nossa aliança não precisa ser através do casamento – explico,
erguendo o queixo. – Ouvi falar de como essas coisas funcionam
nas suas terras.
– É mesmo?
Isso é pior que as provocações de Nolla Verin. Sinto meu rosto
queimar, e ele dá risada.
Quero fazer cara feia para ele, mas ele é tão elegante, e eu já
estou em desvantagem.
– Não importa, príncipe Rhen. Vim falar sobre paz. Vim saber se
podemos encontrar uma maneira de salvar nosso povo de mais uma
guerra que nenhum de nós quer lutar. Se quiser zombar de mim,
que seja. Desamarre minhas mãos e permita-me ir embora. Minha
mãe e minha irmã não foram capazes de ver o amor que você sente
pelo seu povo, mas eu vejo. Pensei que talvez você pudesse ver o
mesmo em mim.
Seu sorriso some. Ele me examina durante muito tempo, e eu
não desvio o olhar.
E então, ele diz:
– Eu amo meu povo, como você diz. – Ele faz uma pausa e olha
para um dos guardas. – Desamarre-a.
Uma faca é sacada e liberta minhas mãos. Uma esperança súbita
irrompe em meu peito.
Outro servo é enviado para buscar papel e pena.
– Escreva uma carta para sua mãe – o príncipe instrui. – Diga
que vamos discutir uma aliança entre nossos reinos e que você vai
enviar um recado a Syhl Shallow quando chegarmos a um acordo
sobre os termos. Escolha um dos seus guardas para entregá-la,
para que sua mãe saiba que pode confiar em você. Eu enviarei um
dos meus guardas para trazer a resposta de Karis Luran. Se ela
está disposta a permitir que você negocie, então eu também estou.
Molho os lábios e pego a pena. Não consigo escrever rápido o
suficiente para transmitir tudo o que quero dizer.
Mamãe, por favor, perdoe minhas ações precipitadas, mas
vislumbrei um caminho para a paz e quis fazer tudo o que estava
ao meu alcance para proteger o povo de Syhl Shallow e também
de Emberfall. O príncipe concordou que eu negocie os termos do
comércio e das rotas pelo seu território. Sei que Nolla Verin foi
abençoada com o seu dom de liderança, mas eu fui abençoada
com o seu intelecto e sua visão. Por favor, permita-me a
oportunidade de unificar nossos reinos para o bem de todos.
Lia Mara
Assino meu nome com um floreio, depois desenho meu selo.
Olho para Parrish e Sorra.
– Desamarrem os dois – digo para o príncipe Rhen. Depois
acrescento: – Por gentileza.
Ele faz um sinal com a cabeça para um de seus soldados, e
meus guardas são liberados.
Parrish parece incerto. Seus olhos estão sombrios e desconfiados
na penumbra da sala.
Sorra está mais composta, examinando friamente a postura dos
guardas ao nosso redor.
Dobro a carta e a pressiono nas mãos de Parrish.
– Por favor, diga à minha mãe o quanto eu quero que isso
funcione.
Seus olhos encontram os meus, e ele assente. Mas, em seguida,
ele fala em syssalah:
– Isso não parece certo, Lia Mara.
– Eu tenho escolha?
– Sempre temos uma escolha.
Penso na garota na floresta.
– Se queremos a confiança dele, temos que oferecê-la.
Parrish desvia o olhar para o príncipe e então de volta para mim.
Ele concorda com a cabeça e pega a carta.
O príncipe Rhen olha para um de seus guardas.
– Vá com o guarda dela. Traga a resposta de Karis Luran.
O homem assente.
– Sim, meu senhor.
Parrish e Sorra trocam um olhar e, em seguida, meu guarda vai
embora, seguido pelo guarda de Rhen.
Respiro fundo. Fiz o que minha irmã não poderia fazer. Vamos
fazer um acordo de paz. Minha mãe terá acesso às hidrovias de que
precisa. Vidas serão poupadas.
Pelo nosso futuro, Parrish disse.
O príncipe dá um passo em minha direção.
– Você realmente acredita que sua mãe vai concordar com os
termos do acordo que você vai fazer?
– Sim, acredito.
Ele franze a sobrancelha.
– Acredito em você.
As palavras passam segurança, mas seu rosto, não.
– Então por que você parece descontente?
– Acho que você confia na sua mãe. – Pela primeira vez, seus
olhos não transmitem frieza, mas decepção. – Infelizmente, eu não.
Às minhas costas, Sorra diz apressada:
– É uma armadilha, Lia Mara.
O príncipe olha para os seus guardas.
– Prendam as duas. Levem ambas para…
Sorra se joga contra mim, e levo um momento para perceber que
ela está me tirando do alcance do homem prestes a agarrar meu
braço. Caio no chão.
– Corra! – Sorra grita para mim. Ela se vira para pegar a faca no
cinturão do guarda. Sem hesitar, ela o golpeia na barriga, e ele
tomba. Antes que ele atinja o chão, ela o esfaqueia de novo.
Sigo para a porta aos tropeços. Sorra ataca um terceiro guarda e,
com um rodopio ágil, apodera-se de uma espada também. O
sangue se espalha pelo ar em uma curva carmesim. Quero gritar,
mas estou sem fôlego. Tudo está acontecendo tão rápido. Há
guardas por toda parte.
Alguém desembainha uma espada, impulsionando-a com força e
acertando-a direto em Sorra.
Ela desmorona. Há muito sangue.
Grito com todas as minhas forças, torcendo para que Parrish
ainda esteja por perto, para que ele ouça.
Não. Não quero que ele veja.
Um homem agarra meu braço e me coloca de pé. Minha visão
parece tomada por sangue. Ainda não consigo respirar.
Eu queria paz, e agora Sorra está sangrando no chão.
– Você ficará segura – o príncipe está dizendo. Eu mal consigo
distinguir as palavras. – Mas sua presença aqui vai garantir que sua
mãe deixe Emberfall em paz de uma vez por todas.
CAPÍTULO DEZ

GREY

O estreito túnel que dá na arena abafa o som da multidão. Faz


meses que não uso uma armadura completa, mas meus membros
se lembram do peso. Journ é mais largo que eu, porém seu peitoral
me serve bem e as braçadeiras ficam justas em meus antebraços.
– Worwick gosta de provocar os lutadores – Journ diz. – Ele
costuma nos incitar a derramar sangue do oponente. Às vezes, é
melhor dar ao público um pouco do que eles querem.
Olho para seu braço machucado e não digo nada. Estamos
sozinhos no túnel e ninguém sabe que vou substituí-lo. Worwick vai
perceber no minuto em que eu pisar na arena, mas então será tarde
demais para ele questionar.
Se der sorte, vou conseguir oferecer um espetáculo bom o
suficiente para ele não se importar.
– Só que ele não vai gostar se você derramar sangue – Journ
alerta. – Ninguém gosta de ser feito de trouxa. Deixe que eles
pensem que podem ganhar por um tempo.
Eu sei disso, mas permito que ele continue falando. Meu coração
bombeia sangue pelas minhas veias.
– Quatro partidas – ele continua. – Você consegue se manter vivo
por quatro partidas?
– Vamos ver quando eu terminar.
Ele começa a rir, mas perde o fôlego e pressiona um braço no
abdômen.
– A maioria desses homens não são muito habilidosos. Eles só
estão aqui pra se divertir e conquistar o direito de se gabar. Mas de
vez em quando eles podem surpreender.
Assinto. Acima de nós, os tambores marcam um ritmo familiar. Os
gritos que se sucedem são quase ensurdecedores mesmo daqui.
Não preciso ser excepcional. Só preciso oferecer um bom
espetáculo. Só preciso me manter vivo.
Dou um passo em direção ao final do túnel. Journ toca minha
ombreira.
– Hawk – ele engole em seco –, fico te devendo essa.
Como eu gostaria que Kantor tivesse levado um coice no peito
em vez desse homem.
– Você não me deve nada.
– Vou te pagar um dia.
Sorrio.
– Então espero que eu sobreviva.
Os tambores rufam de novo. Worwick grita:
– Das profundezas do Vale Valkins, um homem quase forjado em
aço, poucas vezes derrotado, meu campeão, Journ de Everlea!
Piso na arena, e a multidão berra tão alto que temo que o telhado
desabe. Depois da penumbra silenciosa do túnel, a luz e o estrondo
são avassaladores. Desembainho a espada da maneira como vi
Journ fazer centenas de vezes e a ergo.
Worwick paira acima da plateia; estou de costas para ele, e não
faço ideia se ele percebeu. Prendo a respiração, esperando suas
próximas palavras.
– Teremos um evento especial para vocês esta noite – Worwick
cantarola, e levanta a voz: – Um evento muito especial.
Ele não percebeu. Bom.
– Como de costume, as apostas são fechadas assim que o
segundo competidor entra na arena – ele diz. – Acredito que
teremos uma boa partida. Um homem tão habilidoso como esse não
costuma visitar o Torneio de Worwick. Façam suas apostas agora.
Acho que veremos muito dinheiro mudando de mãos esta noite.
Quem sente o vento da sorte soprando? Será você? Ou você?
Ele é bom no que faz, porque sempre há mais uma aposta
desesperada a ser feita no último minuto.
– Agora, nosso segundo competidor está pronto para entrar.
Campeão Journ, para sua… – Ele para e pigarreia. – Ah, campeão
Journ, na sua posição, por favor.
Pelos infernos. Ele percebeu.
Bem, ele não pode fazer nada agora. Guardo a espada e sigo
para o centro da arena.
– Nosso oponente veio de Porto Silvermoon – Worwick diz. Vejo a
sombra de um homem correndo pelo túnel oposto. Estreito os olhos
e observo sua entrada. A multidão, a arena, tudo isso é um show.
A espada ao meu lado, a batalha diante de mim – essas coisas
são reais.
Minha mão encontra o cabo da arma. Não posso desembainhá-la
antes dele. Se é de Porto Silvermoon, deve ser um pescador ou um
estivador. Alguém que entrou nesta desafiado por amigos bêbados
de cerveja.
Seu cabelo fica visível: loiro feito areia. Em seguida, vejo seus
ombros, o couro de sua armadura, rico e reluzente. Não é uma
armadura emprestada, então. Cada fivela prateada cintila.
Listras douradas e vermelhas adornam seu ombro, unidas por um
brasão estampado em ouro de um leão entrelaçado com uma rosa.
Paraliso. Conheço esse brasão. Conheço essas listras.
– Do Castelo Ironrose – Worwick grita –, temos a honra de
receber o comandante da Guarda Real, Dustan de Silvermoon. –
Ele dá uma piscadela para mim de seu posto, como se isso fosse
uma espécie de brincadeira. – Mantenha a cabeça presa no
pescoço, Journ.
A multidão urra em aprovação.
Sem conseguir evitar, dou alguns passos para trás. Sei que ele só
está animando a plateia. Não faz ideia do que isso significa para
mim.
Conheço Dustan. Eu mesmo o escolhi. Ele foi um dos primeiros
guardas a fazer o juramento a Rhen sob o meu comando. Será que
isso quer dizer que o príncipe está aqui, assistindo à partida? Quero
procurar na multidão, mas é muita gente. Muito barulho. Não
consigo tirar os olhos do meu oponente se aproximando.
Meus instintos estão implorando para eu fazer alguma coisa, mas
não vejo saída.
Dustan não pegou a espada. Minha mão está escorregadia no
cabo da minha própria espada.
Ele desacelera e estreita os olhos de leve. Ao parar na minha
frente, franze a testa e tira a mão da arma.
– Você parece ansioso – ele diz, em um tom suave. – Journ, não
é?
Levo um tempo para registrar as palavras.
Ele não me reconhece.
É claro que não. Passaram-se meses. Só convivemos por
algumas semanas, e eu estava barbeado, de cabelo curto, vestindo
uma armadura ricamente adornada e ostentando a postura de um
líder.
Hoje, sou pouco mais que um tratador vestido como um lutador.
Sou Hawk. Quer dizer, agora sou supostamente Journ.
Dustan se inclina como se quisesse compartilhar um segredo.
– A Guarda Real não é tão cruel quanto os boatos fazem parecer.
Ele acha que estou nervoso com a partida.
– Estamos viajando há semanas – ele continua. – Meus homens
me desafiaram a participar.
Então Rhen não deve estar com ele. O príncipe não deixaria
Ironrose por semanas – e seu comandante da guarda certamente
não o deixaria desprotegido só por um desafio.
Estamos em silêncio há um tempo. A multidão está ficando
inquieta. Os pés estão batendo no chão implacavelmente. A
qualquer momento, eles vão começar a gritar.
– Não desista – Dustan diz, entendendo meu silêncio como
medo. – Vou pegar leve.
Como previsto, a plateia começa a gritar. Lutem. Lutem. Lutem.
Isso acelera meu batimento cardíaco e aguça meu foco.
Dustan coloca a mão no cabo da espada e me encara com olhos
questionadores.
Dou um aceno com a cabeça.
Ele começa a desembainhar a arma. Enquanto a lâmina vai
sendo liberada, ele se dá conta.
– Journ… tem alguma chance de já termos nos encontrado
antes?
– Não.
Desembainho a minha espada como se fôssemos velhos amigos,
impulsionando-a com força e velocidade antes que ele se prepare.
Ele mal tem tempo de bloquear o golpe. Nossas lâminas colidem, e
o choque do metal ressoa pela arena. A multidão grita em
aprovação.
Dustan logo fica em desvantagem, recuando enquanto espera
uma abertura para contra-atacar. Ele esperava que eu fosse um alvo
fácil. Ele me subestimou – um erro pelo qual eu o repreenderia, se
ainda fosse seu comandante.
Dustan vislumbra uma abertura e ataca com uma ferocidade tão
inesperada que sou forçado a retroceder. Meu corpo lembra os
movimentos dessa dança chamada esgrima. Ele avança para a
minha cintura, eu empurro sua lâmina para baixo e nos separamos.
Começamos a caminhar em um círculo.
– Eu já vi você – ele diz. Seus olhos estão sombrios de raiva. –
Quem é você?
– Não sou ninguém. – Ele ergue a espada e eu avanço.
Ele é bom. Melhor do que eu me lembrava. Quando nos
separamos novamente, uma tensão que ele provavelmente não
sente se acumula em meus antebraços. Uma hora na arena com
Tycho não chega nem perto do tempo que a Guarda Real se dedica
em treinamento.
Ele deve ter intuído isso, porque seu próximo ataque é brutal e
rápido e me joga no chão. Sinto o gosto de sangue e areia na
língua. Desvio antes que ele possa me imobilizar, e fico de pé para
acertar o ombro em sua barriga.
Pensei que poderia tirá-lo do chão, mas ele é ágil e agarra minha
armadura, usando meu impulso a seu favor. Caímos no chão juntos.
Ele coloca um joelho no braço que segura a espada antes que eu
possa erguê-la.
É um bom golpe, mas eu o conheço. Uso a mão livre para me
apoderar da adaga em seu cinto e a aponto para sua garganta. Ele
me xinga e recua, liberando meu braço e se desequilibrando.
Avanço mais e agora invertemos nossas posições.
Ele é rápido e levanta a espada para bloquear a minha, mas
estou em vantagem. Eu me forço para baixo até que ele esteja
correndo o risco de cortar o próprio pescoço. Está tão ofegante
quanto eu, mas parece sentir mais raiva que qualquer outra coisa.
– Diga-me quem é você.
– Foi um ótimo golpe, esse da armadura. Quem te ensinou isso?
Dustan fala entre os dentes cerrados. Está fazendo força, e uma
fina linha de sangue surge abaixo de sua espada.
– Se matar um guarda, vão cortar a sua cabeça.
Ele não é o único que pensa isso. O barulho da plateia virou um
murmúrio confuso.
A voz de Worwick, um pouco abafada, se impõe sobre a multidão.
– Journ! Devo lembrá-lo que essa não é uma batalha mortal.
Há uma movimentação do outro lado da arena. Os guardas
devem ter percebido que seu comandante está em perigo.
Posiciono a ponta de sua adaga bem no ponto vulnerável logo
abaixo de sua mandíbula.
– Diga a seus homens para recuarem.
– É ele! – uma voz grita da lateral. Soa familiar, mas não a
reconheço. – É ele. Sabia que não estava morto.
Uma pontada de medo perfura meu coração. Dustan está me
olhando, e vai mudando de expressão devagar. A raiva se
transforma em perplexidade.
– Comandante Grey?
Preciso fazer uma escolha. As espadas entre nós tremem com as
forças contrárias.
– Não ouse deixá-lo escapar – uma voz grita.
– Não sou seu comandante – digo para Dustan.
– Mas…
Dou um soco na lateral de seu rosto com a mão que segura sua
adaga. Mal ganho um segundo, mas disparo para o túnel. Uma
flecha assobia perto do meu ombro e se finca na parede. Outra vem
rapidamente, atingindo minha armadura e caindo no chão sem
causar danos.
O túnel se abre para o pátio do depósito, mas eu agarro a escada
da parede lateral e me puxo para cima, subindo dois degraus de
cada vez. Adentro o sótão assim que os guardas surgem no pátio.
Poeira e teias de aranha deslizam sob meus dedos, e prendo a
respiração. Meu coração está disparado, implorando por ar.
A multidão está enlouquecida na arena, as vozes ecoam por todo
o estádio. Os homens se dispersam, partindo em direções opostas.
Assim que ficam a uma distância segura, eu me agacho e sigo
rastejando contra o chão.
Estou do lado oposto do torneio, onde Tycho e eu dormimos
sobre os estábulos. Se fosse um homem de sorte, poderia rastejar
até lá, descer até os estábulos e sair galopando antes que alguém
descubra.
Penso no anel de prata escondido no meu colchão. Eu poderia
desaparecer completamente.
De qualquer forma, não sou um homem de sorte. O sótão deste
lado do estádio só vai até o armeiro. Eu precisaria descer e
atravessar a multidão para chegar até os estábulos.
Levo menos de dez minutos rastejando através das sombras
empoeiradas e encontro o armeiro vazio. Saio do sótão
silenciosamente, mas o rasvador se assusta e se debate na jaula,
assobiando para mim.
Eu o ignoro, pego umas facas na parede e as guardo em minhas
grevas, depois coloco mais duas sob o cinto da espada.
A voz de Worwick se sobrepõe à multidão, soando alta além da
porta.
– Sim, comandante. – Ele parece em pânico. Está bem próximo.
– Eu garanto, vou fornecer qualquer assistência necessária.
Enfio-me nas sombras, perto da jaula do rasvador. A escada para
o sótão fica ao lado da porta do torneio. Estou mais encurralado
aqui que na arena. Meu coração pulsa na garganta.
O rasvador guincha para mim, com as presas à mostra,
arranhando as garras no chão. Lembro-me da facilidade com que
ele cortou o braço de Kantor quando provocado. Talvez possa fazer
o mesmo com os guardas armados.
Pego uma adaga e começo a serrar a corda que mantém a jaula
fechada.
Ele para de guinchar.
Minha respiração está curta e ruidosa e essas malditas cordas
são grossas demais. Uma chave tilinta na fechadura. Pelos infernos.
O rasvador assobia para mim. Então sussurra:
– Depressa.
Minha mão congela. Olho para ele, sem saber se realmente ouvi
o que ouvi. Meus olhos encontram seus olhos escuros e firmes.
Uma brisa fria varre a sala. O rasvador arranha as costas da
minha mão e rosna:
– Depressa!
Não tenho tempo para pensar sobre o significado disso. Forço a
adaga. A corda cede. A porta se abre.
O rasvador se lança para a frente com tanta energia que me
empurra para trás. Fora da jaula, suas asas se abrem e ele grita
com raiva. Os homens berram e tropeçam conforme tentam sair do
seu caminho, trombando nos que tentam se aproximar da porta.
Sangue jorra quando as garras dele encontram pele.
Disparo no meio da confusão, de volta à escada, e me ergo.
– Rasvador! – eu o chamo com um silvo.
Não espero para ver se ele está me seguindo, e disparo.
Dessa vez, ao alcançar o pátio do depósito, não desço do sótão
suavemente. Caio com tudo e saio rolando. Levanto-me já correndo
a toda para o beco empoeirado atrás do torneio.
Com um guincho e um bater de asas, o rasvador parte para fora
do sótão, planando até alcançar o solo. Espero-o parar, como um
cachorro acorrentado que foi libertado e encontrou um novo dono,
mas isso não acontece. Suas patas cheias de garras empurram o
chão de terra, pegam impulso e ele levanta voo novamente, batendo
as asas com força contra o ar. Em segundos, ele paira bem acima
de mim.
Uma lufada de ar anuncia uma flecha e eu desvio para o lado, em
um movimento automático. Eu me esquivo da primeira, mas não da
segunda. A dor perfura minha coxa e minha perna queima. Tropeço
com tudo e desmorono, derrapando vários metros na terra.
Obrigo minhas pernas a me sustentarem de novo. Fico de pé, de
espada e adaga na mão, preparando-me antes que os guardas se
aproximem. Restam apenas três. Dustan é um deles. Seu lábio está
inchado e ferido no local onde desferi o soco. Não conheço os
outros dois, mas ambos estão com as flechas prontas e esperando.
Um tem três arranhões profundos no rosto e na mandíbula.
Os espectadores estão abarrotados na porta do pátio do
depósito. Journ está lívido com a confusão. Worwick, pela raiva.
Tycho, pela angústia.
Worwick agarra o braço de Tycho e o mantém no lugar.
Não tiro os olhos de Dustan, porque é sua atitude o que importa
aqui.
– Você seria capaz de morrer lutando, não é? – ele fala.
– Você não?
– Talvez não desse jeito. – Ele me observa como se não
conseguisse me desvendar. – O príncipe está à sua procura há
meses. Há muito suspeitamos que você estivesse morto.
Isso provavelmente facilitaria as coisas.
– Não cometi crime nenhum – digo. – Chame seus homens.
– Talvez eu acreditasse se você não tivesse fugido. – Ele faz uma
pausa. – Por quê?
Ele não está perguntando sobre hoje. Está perguntando sobre
tudo.
– Pelo bem de Emberfall.
Dustan deve ter percebido a verdade na minha voz, porque fica
parado.
– Explique.
Aperto o punho da espada.
– Não.
Ele gira a cabeça.
– Atire na outra perna.
– Não! – Tycho grita. Ele se solta de Worwick e corre. – Não!
Dustan se vira. O arqueiro se vira.
– Pare! – ordeno. Imagino a flecha voando direto para o peito do
garoto. Imagino seu sangue penetrando a terra. – Tycho, pare!
Ele não para. Espero a flecha disparar do arco.
Só que ela não dispara. Dustan dá alguns passos e agarra a
camisa de Tycho antes que ele consiga se aproximar de mim. Tycho
se debate e tenta dar um soco nele, mas Dustan o segura firme,
apertando a pegada até que a gola o prende e ele ofega sem
conseguir respirar.
– Chega – digo. – Ele não tem nada a ver com isso. Deixe-o em
paz.
Dustan o aperta mais e levanta seu braço. Tycho emite um som
lancinante de pânico.
É por isso que renunciei à família. Exatamente por isso.
– Por favor – peço com dificuldade.
Dustan sustenta o meu olhar.
– Você se rende?
– Vai soltá-lo? – pergunto, e logo percebo que isso poderia
acarretar em infinitos desfechos para Tycho. – Vai deixá-lo ileso?
– Se eu soltá-lo ileso, você vai se render pacificamente?
– Eu juro.
– Então eu também.
Largo a espada e a adaga e ergo as mãos em rendição. Ele solta
Tycho, que cai de joelhos, ofegante.
Dustan pega meus pulsos e os amarra com uma faixa de couro.
Tycho me olha do chão. Não consigo retribuir o olhar.
– Volte para Worwick – digo para ele.
– Não – Dustan intervém. – Brandyn, amarre o garoto.
Congelo, debatendo-me.
– Dustan, você jurou.
Dustan me dá um empurrão entre as omoplatas.
– Ele ficará ileso. Ande.
Atrás de mim, Tycho grita. Não posso ver o que está
acontecendo, mas não preciso. Sei que Tycho tem medo de
soldados.
Dou um giro e forço o ombro no peito de Dustan. Ele agarra
minha armadura e me ergue.
Abro a boca para xingar. Para implorar. Para reclamar. Não tenho
certeza, mas não tenho a chance de descobrir. Uma mão coberta
por armadura me atinge na mandíbula.
Eu caio sem resistência.
CAPÍTULO ONZE

LIA MARA
O sangue de Sorra mancha as minhas vestes. Não tenho mais
nada para usar e me recuso a pedir qualquer coisa para o homem
terrível que me fez prisioneira, então me conformo.
As manchas e respingos secaram e viraram um marrom feio no
tecido creme. Minhas próprias lágrimas marcam o decote. Ambos
são um lembrete conveniente do que eu perdi.
Do que Parrish perdeu.
Ele poupou a garota na floresta e, em troca, eu causei a morte de
seu amor.
Talvez eu esteja errada sobre tudo isso. Certamente mamãe e
Nolla Verin estão corretas em sua visão cruel do mundo. Talvez
minha ânsia pela paz entre nossos reinos seja realmente uma
fraqueza. Talvez meu desejo de ser herdeira seja uma fraqueza. Se
tivéssemos planejado um ataque a Emberfall – de fato, a
conselheira de mamãe, Clanna Sun, era a favor –, nada disso teria
acontecido.
Muitas pessoas teriam morrido.
A ideia é desagradável, então a afasto.
Os soldados do príncipe me trancaram em um quarto luxuoso que
dá para o pátio do castelo. Como provavelmente nunca mais vou
dormir, passo a noite olhando os paralelepípedos lá embaixo.
Quando amanhece, o sol toca minhas lágrimas e seca minhas
bochechas.
Observo o horizonte, esperando algum sinal de que vieram me
resgatar. Sem dúvida minha mãe não vai acreditar na minha carta,
depois que o príncipe se mostrou tão desconfiado com ela e minha
irmã. Sem dúvida minha irmã vai ordenar que me permitam voltar
para casa, ou virá negociar ao meu lado.
Sem dúvida.
Espero por horas, até que o sol esteja alto no céu. Um cavaleiro
solitário surge na borda da floresta, galopando em um ritmo
constante. Pela primeira vez, a esperança floresce em meu coração.
Mas então vejo o dourado e vermelho de Emberfall.
Afundo de volta no chão de mármore.
Sou tão tola. Não acredito que confiei nele.
Acho que você confia em sua mãe. Infelizmente, eu não.
A raiva irrompe através da tristeza em meu peito. Ele está certo:
eu confio em minha mãe. Confio que ela vai colocar fogo nesse
castelo quando vier me resgatar. Que ela vai garantir que Rhen
jamais se sente no trono. Que ela vai quebrar cada osso de seu
corpo e arrancar cada fio de cabelo e incendiar cada fibra de seu…
A porta do meu quarto se abre e eu engasgo na minha fúria.
O príncipe Rhen está parado ali, vestido em fino couro com fios
dourados, majestoso, perfeito e frio.
Estou no chão com minhas roupas sujas, quase queimando de
ódio. Quero me atirar contra ele.
Em vez disso, fico de pé, adotando uma postura tão majestosa
quanto a dele.
– Você vai se arrepender das suas ações. Minha mãe vai dobrar
as forças que já estava planejando enviar para esse seu país
amaldiçoado.
– As forças que ela provavelmente não pode bancar?
Mordo os dentes com firmeza.
– Entendo a sua raiva – ele diz.
– Você não sabe de nada.
– Sei de muita coisa. – Ele estreita os olhos. – Sei que você veio
aqui no meio da noite impulsionada por motivos questionáveis. Sei
que sua mãe extorquiu meu pai por anos e tentou fazer o mesmo
comigo. Sei que sua mãe e sua irmã não se importam com meu
povo, só com a hidrovia que vai lhes garantir uma nova rota para
trocar moedas. – Ele dá um passo em minha direção, com os olhos
sombrios de fúria. – Sei que milhares de pessoas foram mortas por
causa disso. Isso é o que sei.
– Eu também sei de muitas coisas. – Sustento seu olhar. – Sei
que mentiu para o seu povo.
– Não menti.
– Você mente. – Cuspo as palavras. – Sei que você está
procurando esse herdeiro porque tem medo da magia dele. Sei que
você me aprisionou porque tem medo da minha mãe. Suas ações
revelam sua fraqueza, príncipe Rhen.
– Pelo contrário. Minhas ações revelam minha força.
– Matar pessoas inocentes nunca deveria ser visto como força.
Suas sobrancelhas se erguem.
– Não é isso que vocês fazem?
– Você matou minha guarda depois que eu o procurei para
discutir uma maneira de garantir a paz para o nosso povo.
– Meus guardas só pegaram em armas quando os seus pegaram
– ele diz. – Eu disse que você ficaria segura, como foi provado. Ela
também deveria estar segura.
– Você conta mentiras a seu povo, príncipe Rhen. – Minha voz
quase falha, e respiro fundo para firmá-la. – Não vou acreditar em
nada do que disser.
Ele puxa um pergaminho dobrado da cintura.
– Acreditaria na sua mãe?
Prendo a respiração. O guarda voltou com a resposta dela.
Lanço-me para a frente e arranco-a de sua mão, esperando que
ele não ceda, mas não é o que acontece. Os guardas estão parados
atrás dele ao longo da entrada, porém já vi o que eles fizeram com
Sorra e não sou estúpida, apesar de minhas últimas escolhas
infelizes. Dou um passo para trás e abro a carta apressadamente.
São as palavras da minha mãe, e fico tão chocada ao vê-las que
demoro um momento para ler a carta.
Na língua comum de Emberfall, ela escreveu:

Aceito a proposta da minha filha. Vou garantir


um mês de negociações.
Abaixo disso, ela acrescentou em syssalah:

Não me decepcione, Lia Mara.


Meus olhos sustentam essas palavras por muito mais tempo do que
levo para lê-las.
Não me decepcione, Lia Mara.
Foi o que eu fiz no instante em que deixei o acampamento com
Sorra e Parrish. Não há acordo nenhum para ser negociado. Sou
prisioneira dele. Nada mais.
Olho para o príncipe Rhen.
– Sua mãe acreditou na carta – ele diz.
– Eu escrevi com honestidade – sibilo.
– Vou mandar trazerem algumas roupas. Avise os guardas se
precisar de algo.
Ele fecha a porta e me tranca aqui dentro.
CAPÍTULO DOZE

GREY

Acordo e vejo um céu ensolarado e uma perna queimando. Uma


carroça me transporta, e cada solavanco me lembra que estou
deitado em nada mais que tábuas de madeira. Eu me mexo e tento
me virar, mas minha mente está confusa. O metal tilinta contra a
madeira quando eu me movo.
Respiro fundo, então me apoio sobre um cotovelo. Grilhões
prendem meus pulsos e tornozelos. Minha cabeça gira.
– Devagar. Você ficou apagado por quatro horas. – Alguém
conhecido está sentado perto da frente da carroça. Tem pele
marrom-escura, cabelo curto. Está mais pesado que quando o vi em
Washington DC, mas nunca vou esquecer o homem que salvou
minha vida uma vez.
– Curandeiro – digo com uma voz rouca, surpreso. Minha
mandíbula dói para falar. Ergo uma mão para esfregar os olhos, e as
correntes deslizam em meus pulsos.
– As pessoas só me chamam de Noah – ele diz.
Eles devem ter me dado éter sonífero. Está difícil organizar os
pensamentos. Seis homens a cavalo seguem a carroça, mas o sol
reluz em suas armas e armaduras e faz minha cabeça latejar. Um
guarda que não conheço conduz o veículo. Estremeço e esfrego os
olhos novamente.
Sem aviso, uma lembrança dá um solavanco no meu estômago.
Volto os olhos para Noah.
– Onde está Tycho? O que fizeram com ele?
– Ele está bem. Dormindo. – Ele aponta. – Olhe.
Eu me sento com dificuldade. Uma bandagem apertada envolve
minha coxa, e as correntes nos meus tornozelos batem nas tábuas
enquanto eu me movo. Tycho está deitado em posição fetal atrás de
mim sob o banco do lado oposto do vagão, tão encolhido quanto
possível no canto. Pelo que posso dizer, ele parece ileso.
Ouço uma voz:
– Ele está acordado?
É a mesma voz que gritou da lateral da arena. Agora, com Noah,
consigo lembrar. Jacob. O irmão de Harper. Príncipe Jacob para
todos em Emberfall. Herdeiro do trono da imaginária Decê. Herdeiro
de nada, na verdade.
Durante os poucos dias em que convivemos, ele não tinha uma
opinião muito favorável sobre mim. O que era recíproco. Avalio as
correntes que me prendem aqui e duvido que isso tenha mudado.
– Está acordado – Noah diz, resignado.
Jacob segue a cavalo ao lado da carroça. Seu cabelo escuro está
mais comprido, e ele cavalga bem melhor do que eu me lembrava. É
claramente o irmão de Harper.
– Você disse que eu não podia esfaqueá-lo enquanto ele
estivesse inconsciente. Agora posso?
– Não.
– Por favor. – Seus olhos estão cheios de uma fúria honrada. –
Diga quais são os lugares que eu posso acertar para que ele não
morra.
Encaro Jacob.
– Você enfiaria uma faca em um homem acorrentado?
– Normalmente, não, mas abriria uma exceção pra você.
– Você guarda tanto rancor de mim. Nunca te fiz nada.
Noah bufa. A voz de Jacob é baixa e ameaçadora.
– Você nos prendeu aqui.
Ah. Eu fiz isso.
Jake está tão perto que seu cavalo está quase em cima da
carroça.
– Além disso, não sou o único que guarda “rancor” de você.
Ninguém sabe por onde você andou. Rhen passou meses te
procurando. Harper estava com medo de que você estivesse morto.
Mas não. Você está aqui, está bem. Mais do que bem. Agora todos
esses guardas estão se perguntando por que você os abandonou.
Por que você fugiu. Quer explicar isso? Você tentou matar o
comandante deles na arena.
Se eu tivesse tentando matá-lo, ele estaria morto. Mas o resto de
suas palavras está correto. Não posso lhe oferecer uma explicação.
Desvio o olhar.
– Fale – Jake ordena. – Agora.
Não digo nada, e ele puxa uma adaga. Minha cabeça gira. Minha
perna parece carregar uma barra de ferro quente na coxa, mas,
mesmo acorrentado, eu poderia saltar da carroça e colocar as
correntes em volta do seu pescoço antes que ele conseguisse enfiar
a lâmina em mim.
Não tenho nada a perder, e talvez ele pressinta isso. Algo em seu
olhar vacila.
– Jake – Noah diz, com um tom condescendente. – Só… guarde
isso.
Jacob xinga e guarda a adaga na bainha.
Suas palavras pesam, no entanto. Na verdade, lamento tê-lo
trazido aqui. Lamento ter abandonado minhas obrigações na
Guarda Real. Lamento saber o que sei sobre minha concepção e
lamento as consequências para com a minha relação com o príncipe
Rhen.
Olho para o céu. O ar está repleto dos aromas de verão de feno
cortado e frutas maduras. Estamos muito além de Rillisk se estamos
passando por fazendas. Há pouco movimento na estrada, então
ainda deve ser cedo. Worwick vai perder a cabeça quando descobrir
que Tycho e eu fomos levados ao mesmo tempo.
Os rangidos e ruídos da carroça ecoam no ar tranquilo da manhã.
Um guarda deveria estar cavalgando à frente como sentinela, mas
não o vejo. Os guardas e cavalos parecem cansados.
– Passamos a noite toda viajando?
– Sim. Estamos voltando para Ironrose pra que você nos leve pra
casa, e então Rhen pode fazer o que quiser com você.
As palavras se instalam em meu peito e comprimem meu coração
de um modo fatal.
– Ironrose fica a dois dias de Rillisk. Você pretende matar seus
guardas de exaustão pra economizar algumas horas?
Ele trava os dentes com firmeza.
– Dustan disse que podemos chegar depois do pôr do sol. Não
vou matar ninguém de exaustão.
– Vocês viajaram a noite toda e pretendem continuar durante o
dia. – Olho para os guardas seguindo a carroça. – Com homens que
provavelmente estão a seu serviço desde ontem de manhã.
A indecisão transparece em seus olhos, mas ele faz uma careta.
– Você não está mais no comando. Eu já não confiava em você
antes, e saber que esteve se escondendo esse tempo todo não faz
com que eu confie agora. Então fique sentado de boca fechada
senão vou mandar um dos guardas te amordaçar.
Eu me sento contra a grade da carroça e não digo mais nada.
Ele provavelmente não esperava que eu obedecesse, porque me
olha desconfiado enquanto avança para ficar paralelo a Noah. Suas
vozes são baixas e mal consigo ouvi-las com o vento, mas sei que
estão discutindo se é mais prudente esperar.
Eu não sei, nem deveria me importar.
Nós seguimos.
O sol finalmente começa a subir no horizonte. Vejo Dustan, com a
mandíbula escura de hematomas. Ele não me olha. Nenhum deles
me olha. Tycho acorda e fica encolhido no banco, mas os guardas o
deixam em paz. O calor cai sobre nós, e por fim um dos guardas
joga queijo, pão e um odre de água nas tábuas da carroça. Tycho e
eu dividimos a comida. Seus movimentos são miúdos e rápidos
como os de um coelho, e seus olhos estão atentos.
Permanecemos em silêncio. Estou prestando atenção para captar
alguma informação, mas os guardas são cuidadosos e ninguém diz
nada para mim.
Antes do anoitecer, um guarda cai do cavalo.
Noah o examina, abaixa a cabeça e enxuga o suor da testa.
– Insolação. Vamos ter que acampar para passar a noite.
– Não – Jacob fala. Está me encarando.
Levanto a sobrancelha e continuo calado. Ele faz uma careta.
– Jake – Noah suspira. – Ainda estamos a horas de distância.
Estou exausto. Você está exausto. Quero ir pra casa tanto quanto
você, mas estamos aqui há meses, alguns dias a mais não vão
fazer diferença. Você acha que Harper vai decidir vir com a gente à
meia-noite? Pense bem.
Então montamos acampamento. Um guarda amarra minhas
correntes em uma árvore, puxando os grilhões com tanta força que
quase me tira do chão. Ele está procurando briga, e eu sei bem o
que o tédio e a fadiga podem fazer com o temperamento de um
guarda, então não provoco. Tycho não está acorrentado, mas se
mistura à escuridão que só aumenta perto da árvore. Estou dividido
entre desejar que ele procure uma oportunidade para fugir, se ela se
apresentar, e temer que ele acabe morto. A escuridão cai – e Jacob,
Noah e os guardas caem no sono. Só Dustan fica acordado, de
sentinela atrás da carroça.
Sua exaustão é óbvia, mas admiro que ele coloque o bem-estar
de seus homens acima do seu.
Uma hora, o sono vence Tycho também, encolhido na grama
seca na base da árvore ao meu lado. O silêncio preenche o espaço
entre Dustan e eu, quebrado apenas pelo estalido da fogueira que
ninguém se deu ao trabalho de alimentar.
Não digo nada, ele muito menos, mas suas pálpebras começam a
tremular e ele se encosta na traseira da carroça. Apesar de tudo,
entendo sua posição. Provavelmente melhor do que ninguém.
– Comandante – digo baixinho.
Ele fica alerta imediatamente e estreita os olhos.
– Quê?
– Você tem um baralho?
– Não vou ser enganado a ponto de soltar você.
Ergo os pulsos acorrentados.
– Posso segurar cartas. Não precisa me soltar.
Ele hesita, mas percebe que o risco é baixo, porque ajeita a
postura e cruza o acampamento para se sentar na minha frente. Ele
toma o cuidado de ficar fora do meu alcance e me observar
enquanto puxa um baralho de uma bolsinha na cintura.
Dustan embaralha as cartas com agilidade, distribuindo-as com
destreza e prática. Pego meu monte, ele pega o dele e jogamos em
silêncio. Ele ganha a primeira partida, e eu, a segunda. Na terceira,
ele já relaxou no ritmo do jogo. Está concentrado nas cartas em
suas mãos e nas cartas trocadas entre nós, mas me lança um olhar
pesaroso quando descarto um príncipe e capturo um de seus reis.
Um estalo de madeira ecoa em um bosque próximo, e ambos
erguemos a cabeça. Depois de um instante, um cervo salta da
folhagem e corre para a escuridão.
Trocamos um olhar e voltamos para as cartas.
Dustan joga um quatro de espadas.
– Aquele golpe na arena. Com a armadura. Você perguntou quem
me ensinou. – Seus olhos encontram os meus. – Foi você.
Jogo um nove de espadas.
– Eu sei.
– Você poderia ter me matado.
Esfrego uma mão no queixo e suspiro.
– Um homem não deveria morrer por esporte.
– Mas você poderia ter escapado – ele pressiona.
– Verdade, com um alvo nas minhas costas. Não tenho nada
contra você, Dustan.
– Aquele Journ disse que você lutou no lugar dele. Porque ele
estava ferido.
Assinto e espero sua próxima jogada.
Ele me observa.
– Ele disse que foi um ato de bondade.
Encolho os ombros. Um ato de estupidez, provavelmente.
Dustan continua:
– Ele disse que teria se rendido se me visse na arena, para não
arriscar ferir um membro da Guarda Real. – Ele joga uma carta no
monte. – Você poderia ter se rendido.
Jogo outra carta.
– Não é do meu feitio me render.
Ele reflete enquanto jogamos.
Por fim, ele me encara.
– Por que você fugiu? – Não respondo, e ele prossegue: – Não
acredito que você seja um desertor. Um desertor não teria me
enfrentado.
Não retribuo o olhar.
– Talvez seja mais fácil presumir que eu seja.
– Não, não é. – Ele faz uma pausa. – Você disse que foi pelo bem
de Emberfall. O que isso significa?
Essas palavras saíram quando pensei que ele ia enfiar a espada
em meu peito. Lamento tê-las proferido.
– Não posso dizer, Dustan. Mas é verdade. Não decidi fugir
levianamente.
Ele suspira e esfrega os olhos. Sei que está cansado pelo longo
dia, mas há uma exaustão verdadeira por trás disso.
Escolho minha carta com cuidado e a adiciono ao monte entre
nós. Uma brisa quente faz o fogo tremular.
– Há quanto tempo está viajando com o príncipe Jacob?
– Quase duas semanas. – Ele encolhe os ombros. – Estamos em
uma missão de benevolência, na esperança de que os talentos do
curandeiro tornem Decê querida para o povo de Emberfall.
Mantenho o tom suave, como se o tempo não tivesse passado e
fôssemos guardas dividindo a fogueira e um jogo de cartas.
– Estou surpreso que o príncipe o tenha enviado.
Sua expressão fica sombria, e ele joga uma carta na pilha.
– Não é minha função questionar as ordens do príncipe.
Na verdade, é sim, se ele é o comandante da guarda, mas não o
corrijo. Jogo outra carta.
Dustan olha para Tycho.
– Quem é sua sombra?
– Um tratador. – Escolho as palavras com cautela, porque não
quero dar a Dustan mais poder do que ele já tem. – Ele fez um
juramento a Worwick.
– Pensei que ele fosse se lançar contra a espada para salvar
você.
– Ele viu um dos guardas do grão-marechal executar um homem
na taverna. – Espero um pouco. – Ficou preocupado que você fosse
fazer o mesmo comigo.
Dustan ergue a sobrancelha.
– Um homem foi executado?
– Sim. – Faço uma pausa e troco minhas cartas de lugar. –
Suspeito de possuir magia.
– Ah. – Ele assente. – Ouvimos coisas assim em outras cidades.
– Ele olha ao redor e sua voz baixa para um tom conspiratório. – Na
corte, estão falando do curandeiro, mas ninguém ousou acusá-lo
abertamente.
– As pessoas estão com medo.
Dustan encolhe os ombros.
– Ou apenas sendo gananciosas. No momento em que o príncipe
soltou a ordem, as pessoas já faziam fila para receber a
recompensa. Aquele monstro enfeitiçado nos aterrorizou por tempo
demais. O príncipe está desesperado para ter certeza de que isso
não voltará a acontecer. – Ele para e adiciona uma carta ao monte.
– É só uma questão de tempo para as pessoas perceberem que ele
não está procurando só um feiticeiro, mas o herdeiro desaparecido.
Pigarreio.
– Como você sabe disso?
Dustan espera com a mão sobre uma carta.
– Estávamos ambos no Salão Principal quando Karis Luran
revelou o que sabia.
Quando eu era guarda. Antes de saber qualquer coisa sobre
minha concepção. Tinha esquecido. Passo a mão no queixo.
– Isso deixa você preocupado – Dustan diz. Seus olhos
examinam meu rosto.
Estudo as cartas. Falei demais. Ele também. Longas noites e a
escuridão pesada não são uma boa combinação para quem quer
guardar segredos.
– Não tenho nada contra você, Grey – ele diz. – Na arena… se
você não tivesse… se tivesse apenas dito… – Ele se interrompe e
xinga. – Pelos infernos. Por que você fugiu? Por quê?
– Eu fugiria de novo se tivesse a chance.
Ele endireita a coluna, surpreso.
Mostro os pulsos acorrentados.
– Sou seu prisioneiro, Dustan. Não lhe devo nada. Você não me
deve nada. Permita-me guardar meus segredos.
Por um momento, ele me olha como se fosse me desafiar. Mas
está cansado demais ou relutante demais. Solta um suspiro.
– Pelo bem de Emberfall?
Assinto e jogo uma carta.
– Pelo bem de todos.
CAPÍTULO TREZE

LIA MARA

Ao amanhecer de ontem, minha cabeça estava uma confusão de


remorso e arrependimento, e o fato de minha mãe ter acreditado na
minha carta não melhorou as coisas.
Ao amanhecer de hoje, acordo com um novo propósito. Vou
encontrar uma saída desse castelo. Não serei usada como um
fantoche contra minha mãe e minha irmã. Não serei usada contra
meu povo.
Só que essas ideias ainda me causam desconforto. O príncipe
não está me usando contra Syhl Shallow. Ele está me usando para
proteger seu reino do meu.
Mais uma vez, afasto esses pensamentos.
Roupas foram trazidas, como prometido, mas não tive vontade
nem de tocá-las. Tive menos vontade ainda de jantar – frutos do mar
temperados que reviraram meu estômago quando tentei provar.
Certamente uma provocação para ressaltar que eles têm acesso à
água salgada que minha mãe tanto deseja.
A faixa dourada e vermelha que adorna as mangas das vestes
deixadas sobre a cadeira parece muito deliberada.
Apesar de tudo, é melhor usar as cores deles do que o sangue de
Sorra. Tiro minha roupa manchada e visto uma calça macia de
couro de bezerro e uma camisa verde. Essas roupas são mais
justas do que as minhas, e tenho consciência das curvas dos meus
quadris e do volume dos meus seios. Nolla Verin provavelmente
adoraria essas roupas, enquanto eu me sinto constrangida. Estou
feliz que os guardas estejam do lado de fora.
O quarto é ricamente decorado, com cobertores de veludo na
cama e móveis prateados por toda parte. É muito alto para que eu
possa pular da janela. Os guardas estão de sentinela atrás da porta,
e não tenho dúvida de que trocariam este aposento por uma cela de
prisão se eu lhes der motivo. Se vou fugir, precisarei encontrar outra
alternativa.
Tenho o tempo ao meu favor, e nada mais.
Treliças cheias de rosas cobrem as paredes externas do castelo,
mas nenhuma está perto o suficiente e, de qualquer maneira, elas
não suportariam meu peso. Não veio nenhuma faca com a comida,
embora eu duvide que conseguisse dominar dois guardas armados
sozinha. A lareira está apagada por causa do calor do verão. Não
seria possível incendiar o quarto esperando escapar com a
confusão.
Franzo a testa, estudando a lareira. Assim como no Palácio de
Cristal de Syhl Shallow, a lareira fica em uma parede entre dois
quartos, de modo que eles dividem uma mesma chaminé. No
Palácio de Cristal, há uma barreira de metal para conferir
privacidade entre os quartos, mas ela pode ser removida, se
necessário. Quando Nolla Verin e eu éramos crianças, entrávamos
nos quartos escondidas para espiar pessoas que achávamos muito
importantes.
Pergunto-me se aqui também é assim. Sento na lareira de
mármore e me inclino, tateando a parede escura na parte de trás.
Parece tijolo. Suspiro.
Até que meus dedos encontram uma reentrância no meio.
Exploro o local. Há uma pequena fenda em torno do tijolo que
acompanha o exterior da lareira.
Com mais firmeza agora, prendo os dedos na fenda no centro da
barreira e puxo.
Ela não se move.
É claro que não. É uma parede de tijolos. Suspiro mais uma vez.
A porta do meu quarto faz um clique e saio da lareira, limpando
as mãos sujas nas vestes que abandonei. Eu as esfrego depressa.
Penso que é Rhen querendo me provocar sobre minha mãe, mas,
para minha surpresa, é a princesa Harper. Fico ainda mais
espantada ao ver que ela não está mais usando o vestido adornado
com joias do dia em que nos vimos pela primeira vez, mas uma
calça e uma camisa semelhantes às minhas. Uma guarda com
tranças escuras até a cintura está atrás dela.
Meu rosto deve transparecer a raiva que estava guardando para
o seu amado, porque a princesa faz uma careta.
– Eu devia ter perguntado se você está recebendo visitas.
– Por quê? – Termino de limpar as mãos e jogo as roupas em
uma cadeira perto da lareira. – Não está sabendo? Sou uma
prisioneira.
Ela parece envergonhada.
– Estou sabendo. – Faz uma pausa. – Sinto muito.
Ela sente muito? Isso é tão inesperado que fico paralisada. Minha
voz sai cortante.
– Então você não deve estar ciente dos danos que meu povo
causou aos súditos do seu príncipe.
– Estou ciente. – Ela pressiona uma mão na barriga. – Sinto
muito mesmo.
Depois da frieza inflexível do príncipe, fico surpresa ao ver nela o
que parece ser preocupação genuína. Isso leva embora um pouco
da minha fúria.
– Você deve achar que sou uma grande tola – digo.
– Não.
– Bem, eu acho. – Desabo na base de mármore da lareira e dou
uma risada mal-humorada. – Pensei que pudesse fazer um acordo
de paz e, em vez disso, acabo sendo usada como um fantoche
contra a minha mãe.
– Não acho que você seja uma tola. Acho que é… – Ela hesita. –
Admirável.
– Então que pena que não foi você quem me capturou, e não seu
príncipe.
Ela tem uma expressão muito triste. Está prestes a se aproximar
de mim, mas sua guarda murmura:
– Milady. – É uma advertência, e ela para.
Pelo tom e pela resposta, é possível dizer que são próximas.
De repente, penso em Sorra tentando me proteger. Uma emoção
fica entalada na minha garganta, quente e súbita. Engulo em seco e
desvio o olhar com os dentes cerrados.
Os olhos da princesa Harper estão transbordando empatia.
– Sei que está com raiva. Você não… não precisa falar comigo.
Não digo nada.
– Eu só queria que você soubesse que… – Ela se interrompe,
estreitando os olhos de leve. – Tem algo preto na sua bochecha.
Fuligem. Resisto à urgência de me limpar.
– Deve ser o luto – minto. – Pela minha guarda que foi
assassinada.
Harper estremece visivelmente.
– De novo, sinto muito…
– Para uma princesa, você pede muitas desculpas. – Dou um
passo à frente, e sua guarda chega mais perto, mas Harper não
move um músculo sequer.
– Não quero ser sua inimiga – Harper diz baixinho.
Não quero ser inimiga dela. Apesar de nossas posições, acho
que ela tem uma essência admirável e bondosa. Em outra vida,
talvez fôssemos amigas. Mantenho a frieza no olhar, porém.
– Seu príncipe garantiu que não podemos ser outra coisa.
Um suspiro escapa de seus lábios.
– Eu sei.
Ficamos nos encarando em silêncio. Depois de muito tempo, ela
desvia o olhar.
– Se mudar de ideia, mande um dos guardas me chamar. – Ela
faz uma pausa. – Sei como é ficar sozinha aqui.
Concordo. Nunca vou procurá-la, e ela sabe disso.
Ela se retira e fecha a porta tão discretamente quanto chegou.
Volto para a lareira e enfio as pontas dos dedos na fenda
fuliginosa do tijolo. Puxo com toda a força, apoiando os pés contra a
parede oposta da lareira. Nada acontece. O suor começa a escorrer
sob a minha camisa. Xingo baixinho.
Tento de novo.
E de novo.
E de novo.
Até que, finalmente, depois do que parece uma eternidade, a
parede de tijolo se move.
Um centímetro, mas se move.
Alongo os músculos do ombro para relaxá-los. Preciso de mais
que um centímetro, mas esse pequeno sucesso me faz ansiar por
mais.
Então ouço sinos ressoando no pátio, e meu coração explode de
esperança. Sei que é improvável, mas corro para a janela para
procurar minha mãe.
Em vez dela, vejo guardas avançando pelas árvores junto com
uma carroça desconhecida, que ostenta o dourado e vermelho das
cores de Rhen.
Solto um suspiro e volto para a lareira.
CAPÍTULO CATORZE

GREY

Quando o pai de Rhen era o rei, um dos últimos testes para ser
admitido na Guarda Real era uma partida entre um guarda e um
prisioneiro da masmorra. O prisioneiro recebia armadura completa e
armas. O guarda ficava com os membros acorrentados. Sem
armadura nem armas. Se o prisioneiro vencesse, ganharia a
liberdade. Se o guarda vencesse, recebia o direito de jurar sua vida
a serviço da Coroa.
Tiramos cartas para distribuir os prisioneiros entre os
concorrentes, e meu oponente era um soldado enorme chamado
Vail. Tinha sido condenado à morte por roubar os cofres do exército,
mas os boatos diziam que ele foi pego violando cadáveres. Ele era
todo marcado de cicatrizes, muito cruel e tinha praticamente duas
vezes o meu tamanho – eu era um garoto de dezessete anos.
As partidas ocorriam na presença da família real. Antes desse
dia, eu só tinha os visto de longe: o rei e sua rainha distante, o
príncipe Rhen e suas irmãs.
O guarda que me antecedeu tinha falhado. O rei parecia
decepcionado.
O príncipe Rhen parecia entediado.
Eles tocaram um sino e soltaram Vail na arena.
Eu tinha assistido às partidas anteriores. A maior parte dos
guardas recuava primeiro para esperar uma abertura. Com Vail, eu
sabia que isso nunca aconteceria. Ele avançou com sua espada, e
eu lancei as correntes ao redor da arma, segurando firme. Quando
ele tentou se soltar, pulei em sua garganta e esmaguei sua traqueia.
Ele caiu como uma pedra.
A partida terminou em menos de dez segundos. O sino ainda
nem tinha parado de soar.
O príncipe não parecia mais entediado.
– Você teve sorte de ele não ter arrancado as suas mãos – disse
o comandante da guarda da lateral da arena. – Avançando em
direção à espada com as mãos nuas assim.
– Não foi sorte – respondi.
Fiz o juramento no dia seguinte. Um juramento que durou uma
eternidade.
E que eu nunca tinha me arrependido de ter feito até aquele
momento.
Quando a carroça estaciona no pátio de paralelepípedos do
Castelo Ironrose, os guardas quase me arrastam para fora. Quero
cravar as unhas nas tábuas lascadas do piso do veículo. Quero
fugir. Quero me esconder.
Dustan seguiu na frente, provavelmente para informar minha
captura, porque o pátio está lotado. Meus olhos captam tudo, e é
quase insuportável. Guardas estão alinhados nas paredes do
castelo, mas reconheço poucos. Rhen está no centro,
absolutamente imóvel. Harper está ao seu lado, segurando sua
mão. Os nós dos dedos dela estão brancos. Não consigo olhar nos
olhos deles. Então fico olhando para as pedras a seus pés, cada
segundo mais próximas.
Nunca vi o pátio tão silencioso, como se até os cavalos sentissem
o peso deste momento. Não fiz nada de errado, mas, mesmo assim,
culpa e vergonha queimam meu estômago.
Não assim, penso. Não assim.
Mas é claro que seria assim. Eu garanti que seria assim três
meses atrás.
Meus pés ficam parados no lugar.
Um punho me acerta entre os ombros com tanta força que sou
lançado para a frente e caio de joelhos. A dor ricocheteia pela minha
perna, e reprimo um grito.
– Você está diante do príncipe herdeiro e sua dama – diz um dos
guardas. – Tem que se ajoelhar.
Preciso falar algo, mas não quero.
Minha voz é apenas um som áspero:
– Perdoe-me, meu senhor.
O guarda dá mais um soco entre as minhas omoplatas, e desta
vez preciso usar as mãos para me apoiar.
– Você deve se dirigir ao príncipe como “Sua Alteza” – ele
vocifera.
– Perdoe-me, Sua Alteza – repito.
O silêncio que se segue engole minhas palavras. Rhen não fala
nada. Harper não fala nada. Como eu gostaria de poder
desaparecer de Emberfall, pois aceitaria qualquer outro destino que
não envolva ficar acorrentado aos pés das pessoas que outrora jurei
proteger.
– Olhe para mim – Rhen finalmente diz.
Se as palavras transparecessem raiva ou autoridade, talvez eu
obedecesse. Mas seu tom é suave, afetado pela traição.
Não consigo olhar para ele. É como se eu o tivesse traído.
Uma mão agarra meu cabelo e então percebo que um dos
guardas vai me forçar a olhar para cima.
Rhen intervém:
– Não.
A mão me solta.
– Olhe para mim – ele repete, e desta vez é uma ordem.
Ergo a cabeça e olho para ele.
O príncipe Rhen ainda é o mesmo e, ao mesmo tempo, não é. A
incerteza e a insegurança dos estágios finais da maldição foram
substituídas por uma determinação feroz. Este é o homem que
suportou as torturas da feiticeira, estação após estação, para me
poupar. O homem que deu sua vida para salvar o povo de
Emberfall. O homem que será o rei.
Seus olhos, afiados como sempre, examinam os meus,
procurando respostas.
– Está sob juramento a alguém? – ele fala com uma voz baixa e
ameaçadora.
A pergunta me surpreende, e de repente compreendo que ele
deve pensar que fugi porque fiz um juramento a Lilith.
– Não, meu… Sua Alteza.
– Você não está jurado a ninguém?
– Ninguém a não ser ao senhor.
Seus lábios se comprimem.
– Eu liberei você do juramento.
– Então peço que me dê minha liberdade.
Os olhos de Rhen não deixam os meus. Ele está tentando me
entender.
Eu poderia solucionar suas dúvidas. Sou o herdeiro. Sou o
homem que você procura.
E o que é irônico: Fugi para poupá-lo de todo esse problema.
Harper dá um passo à frente e se ajoelha diante de mim. Seus
olhos estão arregalados, cheios de uma tristeza sombria.
– Grey – ela sussurra. – Grey, por favor. Você está… Você está
vivo. Todo esse tempo, pensamos… pensamos que estava morto.
Queria poder apagar o sofrimento que vejo em seu olhar, mas ele
é tão profundo quanto a traição no olhar de Rhen.
– Uma princesa não deveria se ajoelhar diante de um prisioneiro
– digo baixinho.
As palavras são um eco das tantas vezes que as pronunciei
quando era guarda, e espero lembrá-la de sua posição, espero
obrigá-la a se levantar.
Em vez disso, ela coloca uma mão na minha bochecha, e essa é
quase minha perdição. Fecho os olhos e viro o rosto.
– Grey – ela murmura. – Por favor, ajude-me a entender. Por que
você fugiu?
– Comandante – Rhen diz bruscamente.
Olho para ele no mesmo instante. Só para me lembrar de que
não sou mais um guarda.
A expressão do príncipe está mais serena, mas ele notou meu
movimento. Não consigo ver nenhuma emoção em seu rosto agora.
Não é um bom sinal.
– Levem-no – ele ordena. – Limpem-no, cuidem de suas feridas e
deixem-no ileso. Mandem uma refeição para ele.
– Sim, meu senhor. – Dustan agarra meu braço.
– E comandante?
Estremeço, mas não olho.
Os olhos de Rhen estão frios.
– Cuide para que ele não fuja.
CAPÍTULO QUINZE

LIA MARA

Só me interessei pelos eventos no pátio quando ouvi um grito.


Não fazia ideia do que estava acontecendo, mas a princesa
Harper se ajoelhou e chamou o homem de Grey.
Então é este o homem que todos estavam procurando. Está vivo.
Ele é muito mais jovem do que eu esperava para um comandante
da Guarda Real do príncipe. Clanna Sun é a conselheira-chefe de
mamãe, e só conquistou essa posição aos cinquenta anos. Este
homem parece um pouco mais velho do que eu, embora esteja sujo,
exausto e ferido; a bandagem em sua coxa está manchada de
sangue. Seus olhos estão abatidos, sua postura é de derrota.
O que o guarda disse? Nós o encontramos em Rillisk, meu
senhor. Ele atendia por outro nome. Quando percebi quem era, ele
tentou fugir.
Por que ele estava se escondendo? Por que fugiria? Se ele sabe
a identidade do herdeiro, como a feiticeira disse, por que não
revelaria a seu príncipe? Se já ocupou uma posição tão elevada,
deveria provar sua lealdade.
Se ele não era leal, se guarda um segredo como esse por
motivos nefastos, eu esperaria ver algo como desprezo em seu
olhar. Ou determinação. Mas ele se ajoelha aos pés do príncipe
como se quisesse oferecer sua vida. Sua expressão está tomada
por remorso. Ele parece dividido. Parece… perdido.
Eles o arrastam para dentro do castelo, e fico aqui refletindo
sobre o que vi.
Volto para a barreira de tijolo. Já posso movê-la alguns
centímetros para qualquer direção. O trilho está velho e enferrujado,
mas quanto mais eu trabalho, mais sucesso tenho.
Trabalho e fico pensando.
Já vi esse olhar nos guardas de mamãe, em homens e mulheres
que dariam suas vidas por ela. É curioso ver essa expressão em
alguém que guarda um segredo como esse. Levando-a em conta,
eu esperaria que ele estivesse desesperado para compartilhar a
identidade do herdeiro desaparecido, especialmente se esse sujeito
tiver mesmo uma afinidade com a magia.
A parede de tijolo cede mais um centímetro. Esfrego o braço na
testa suada, deixando mais uma marca de fuligem.
O que será que Grey sabe que o príncipe não sabe? Por que
fugiu? Quem estaria protegendo? Não deve ser uma criança.
Segundo os costumes de Emberfall, o herdeiro deve ser mais velho
que o príncipe Rhen.
Será um amigo? Que tipo de amigo inspiraria tal devoção em
alguns meses? Certamente esse Grey deve saber que sua vida está
perdida se ele guardar um segredo como esse de seu príncipe. Que
amigo valeria isso? Que amigo exigiria isso?
Será um irmão? Posso me imaginar guardando um segredo para
proteger Nolla Verin, mesmo se isso colocasse minha vida em risco.
Mas é claro que isso é ridículo, porque se Grey tivesse um irmão,
então esse homem só poderia ser…
Minhas mãos paralisam no tijolo.
De repente, entendo o conflito na expressão dele. Entendo por
que ele fugiria. Entendo por que se esconderia.
Grey está sendo leal. Está protegendo o príncipe. Não há
desprezo em seu olhar porque ele está disposto a dar a própria vida
pelo príncipe Rhen.
O que mamãe disse?
Segundo a feiticeira, Grey é o único que sabe quem é o herdeiro.
Todos pensamos que a feiticeira tinha revelado essa informação
para Grey… e tenho certeza de que o príncipe Rhen também
pensou isso.
Estávamos errados.
Grey sabe porque ele é o herdeiro.
CAPÍTULO DEZESSEIS

GREY

Quando Rhen manda me chamar, o sol já se pôs faz tempo.


Largaram-me acorrentado sozinho em um quarto vazio durante o dia
todo, e o frio do piso de mármore penetrou em meus ossos,
causando uma forte dor que se recusa a passar. Os guardas
cumpriram as ordens ao pé da letra: estou limpo e minha ferida foi
enfaixada, mas não comi nada desde cedo. E não faço ideia do que
fizeram com Tycho.
Rhen está esperando em seus aposentos, que contrastam
fortemente com os meus. O fogo queima baixo na lareira,
espantando qualquer sombra do frio, exatamente como me lembro.
Tapeçarias vibrantes se estendem entre as janelas, uma ampla
cômoda acompanha a parede oposta, e uma seleção
impressionante de bebidas preenche um armário no canto. Frutas
frescas e pães quentes estão dispostos em uma mesa baixa perto
da cômoda.
Penso no tempo em que já estou sem comer e me pergunto se a
comida – claramente intocada, fora de alcance – foi posta ali de
propósito.
Observo o príncipe Rhen, aguardando impassível em sua
poltrona de veludo, e compreendo que sim.
Os guardas me fazem parar diante dele, mas sei que não devo
hesitar agora. Não há carpete aqui, porém me ajoelho, com a perna
ferida desajeitada e dura, e as correntes batendo no piso de
mármore. O ar oscila com incerteza e traição.
Dois guardas estão atrás de mim, e Dustan está à direita de
Rhen, próximo à lareira. O príncipe não fala nada. Eu espero. Todos
esperamos. Uma dor percorre minha perna, e quero
desesperadamente atenuá-la.
Isto é de propósito.
Tinha quase me esquecido que ele podia ser assim. O príncipe
Rhen é um estrategista brilhante e um perfeito cavalheiro, mas
também é capaz de ser patético das maneiras mais criativas. A
maldição o mudou – na verdade, nos mudou –, mas não diminuiu
sua habilidade de ser vingativo.
Não diminuiu minha habilidade de tolerá-lo.
Isso me permite encará-lo. Seus olhos não revelam nada, mas
nos conhecemos muito bem para que seus pensamentos me sejam
desconhecidos. Ele é bem treinado em esconder suas emoções, só
que sei que ele só é assim estoico quando está profundamente
desconfortável.
Eu também estou.
Rhen finalmente fala sem desviar o olhar.
– Soltem-no – ele ordena. – E nos deixem.
Dustan hesita.
– Meu senhor…
– Se Grey quisesse me machucar, não estaria morando a dois
dias de viagem, respondendo por outro nome. – Rhen continua me
encarando. – Soltem-no.
Dustan puxa uma chave de seu cinto e manda o outro guarda
sair. Os grilhões caem de meus pulsos e tornozelos, fazendo
barulho contra o mármore, e tenho que conter a vontade de esfregar
meus pulsos doloridos. Dustan enrola as correntes entre as mãos e
retorna para perto do fogo.
– Não, saia você também – ordena Rhen.
Dustan toma fôlego para protestar, mas vê a expressão de Rhen
e recua, fechando a porta.
O silêncio repentino amplia as emoções. Seus olhos ainda estão
fixos nos meus, e posso ver a incerteza e a traição neles tanto
quanto ele vê o mesmo nos meus.
– Então – ele diz. – Hawk, não é?
Ele está claramente me provocando, o que não parece bom.
– Dustan contou que você não estava nem trabalhando como
lutador – ele acrescenta. – Ele disse que você simplesmente estava
substituindo um homem ferido. Para ser sincero, estou surpreso. –
Ele se recosta e encolhe os ombros com elegância. – Eu falei que
escreveria uma carta de recomendação para você.
Estreito os olhos. Cerro os dentes para conter a dor na perna e
me forço a permanecer imóvel.
Ele percebe a sombra do sofrimento na minha expressão, porque
diz:
– Quer se mover?
Não consigo entender seu tom. Seus olhos ainda estão gélidos,
então não sei se é uma oferta genuína ou apenas um jeito de me
obrigar a admitir minha fraqueza.
Não respondo, e ele franze a testa. O gelo de sua expressão
derrete um pouco, e ele suaviza a voz:
– Você depositava sua confiança em mim. O que eu fiz para
perdê-la?
As palavras são sinceras e me pegam de surpresa.
– Meu senhor… Sua Alteza, o senhor não fez nada.
– Algo claramente mudou entre nós, Grey.
Desvio o olhar.
– Pelos infernos. Você foi trazido até mim acorrentado.
Certamente sabe que posso arrancar as respostas de você se eu
quiser.
Isso desperta minha fúria.
– Certamente sabe que sou mais perigoso para o senhor neste
momento do que o senhor é para mim.
Ele endireita a postura.
– Está me ameaçando?
– Isto não é uma ameaça.
Um silêncio tenso paira entre nós por um momento. Espero que
ele chame os guardas, que me execute por me atrever a desafiá-lo.
Eu deveria saber. O príncipe Rhen não é seu pai, pelo bem e pelo
mal.
Nosso pai. Esse pensamento me atinge com força, e não estou
preparado para ele.
Ele nota o lampejo de angústia na minha expressão.
– O que Lilith lhe contou? – ele pergunta. – Diga-me o que sabe.
– Não cometi crime algum. Pedi minha liberdade. Nada mais.
– Fez um juramento a ela?
– Não!
Sua voz ganha um tom de fúria.
– Está mentindo para mim?
– Eu nunca menti para o senhor. Cortei a garganta dela e a
abandonei do outro lado.
Ele se lança para trás, com a surpresa estampada no rosto. Sua
voz é pouco mais que um sussurro abafado.
– De verdade?
– De verdade. – Assinto.
Por um momento, o peso de seu alívio se dissipa pelo quarto.
Uma tensão que eu não tinha percebido se atenua. Rhen respira
fundo e passa uma mão pelo queixo.
Eu o observo.
– Eu não tinha considerado que o senhor estaria tão preocupado.
Ele agarra os braços da poltrona e se ergue um pouco, com raiva.
– Como não?
A porta se abre. Dustan espia.
– Meu senhor…
Rhen nem se digna a olhá-lo.
– Fora.
A porta se fecha, e o silêncio cai sobre nós mais uma vez.
Rhen estreita os olhos, que se tornam calculistas de novo.
– Ótimo. Você não está sob juramento. Claramente não está
morto. Por que deixou Ironrose?
Mudo o peso das pernas, o que não ajuda. O suor está se
acumulando na minha lombar.
– O senhor me liberou do meu juramento. Meu serviço está
terminado.
– Você sabe que guardas precisam ser dispensados oficialmente,
e não apenas ir embora. – O fogo crepita, acentuando suas
palavras. – Por que fugiu de Dustan?
Nenhuma resposta parece segura.
– Karis Luran pensa que você sabe a identidade do legítimo
herdeiro. Ela diz que Lilith alegou que só você sabe.
– Não tenho nenhuma informação que o senhor consideraria útil,
Sua Alteza.
Ele sorri sem prazer nenhum.
– Esta é uma resposta muito cautelosa, Grey.
Minha raiva finalmente explode.
– O senhor depositava sua confiança em mim. O que eu fiz para
perdê-la?
– Foi embora.
As palavras me atingem como uma punhalada nas costas. Tenho
que desviar o olhar. O silêncio se infiltra e preenche o espaço entre
nós.
– Eu disse a verdade – finalmente respondo. – Fui embora para
proteger o senhor. Para proteger a linha de sucessão. Nada de bom
pode ser extraído dessa informação, Sua Alteza. Eu juro.
Ele não fala nada.
– Permita-me viver – continuo. – Posso implorar, se quiser.
– Não posso. Você sabe que não posso. Se você sabe de algo…
– Por favor. – Coloco as mãos no chão, preparado para colocar
em prática o que disse. – Por favor. Vou sair daqui e nunca mais
falar sobre isso com ninguém. O senhor sabe que eu jamais o
colocaria em risco…
– Eu não sei disso.
– Sabe – digo ferozmente. – Jurei minha vida ao senhor e a
Emberfall, e provei isso várias vezes.
Seus olhos estão fixos nos meus. Lembro-me da última vez em
que nos encaramos assim. Estávamos no parapeito do castelo. Ele
estava prestes a se tornar um monstro.
Ele queria se jogar. Destruir a si mesmo antes que pudesse
destruir seu povo.
Ele estava com medo. Amedrontado como eu nunca tinha visto
antes.
Segurei sua mão com firmeza.
– Eu provaria agora, se me desse a oportunidade.
A emoção escapa de seus olhos. Ele se levanta e, por um
instante, acho que vai chamar os guardas para me arrastar para fora
daqui.
Mas ele estende a mão.
– Levante-se, Grey.
Meu coração dispara. Pego sua mão. Ele me ergue.
– Você poderia me fazer um pouco de companhia? Vou mandar
trazer uma refeição de verdade.
É um pedido, não uma ordem – o que quer dizer que posso
recusar.
Não quero recusar.
– Sim, Sua Alteza.
– Rhen – ele diz.
Minhas sobrancelhas se erguem.
Sua expressão fica um pouco acanhada, sua voz um pouco
melancólica.
– Faz tempo que penso que deveríamos ser amigos, Grey. Eu
deveria ter remediado isso séculos atrás.
– Eu não suportaria ver Lilith torturando um amigo – comento. –
Provavelmente você também não.
– Verdade. Mas posso jantar com um amigo.
Sorrio.
– Sim, você pode.
•• ••
Apesar da pequena amostra de iguarias dispostas no aparador,
Rhen pede pare enviarem o jantar, e uma travessa enorme de carne
assada e vegetais caramelizados surge quase instantaneamente.
Eu como feito um condenado encarando sua última refeição:
devagar, saboreando cada mordida, demorando-me a engolir. Tinha
esquecido do esplendor da comida na corte, e cada pedaço é muito
melhor do que qualquer coisa que Jodi poderia preparar em seu
melhor dia. Rhen também pediu vinho, e está bebendo de sua taça
quando o fogo se apaga atrás de nós.
Ele serviu um pouco para mim, mas não o toquei.
– Ainda prefere não beber? – ele pergunta.
– Ainda não.
Ele dá risada.
O quarto fica silencioso enquanto comemos e, no início, não é um
silêncio confortável. Não consigo esquecer por que fui arrastado
para cá.
Sei que Rhen não esqueceu.
Mas a familiaridade começa a expulsar a tensão entre nós.
Inúmeras lembranças de outras refeições compartilhadas se
misturam, muitas feitas neste próprio quarto. Inúmeros jogos de
cartas foram jogados pela madrugada, quando a maldição parecia
interminável e nenhum de nós conseguia dormir. Inúmeras
cavalgadas pela floresta e partidas de esgrima na arena quando ele
queria um desafio. Inúmeras vezes lamentando nossas perdas em
silêncio quando os dias se alongavam e parecia que a maldição
nunca seria quebrada.
Ele sempre foi o príncipe e eu, seu guarda, então não éramos
amigos de verdade. Assim como Rhen, arrependo-me disso. Mas
fomos prisioneiros por tanto tempo que éramos… algo.
Até agora, não tinha percebido o quanto senti falta de sua
companhia.
Quando ele abaixa a faca, fico tenso, mas ele só diz:
– Fale sobre o garoto que foi capturado com você.
– Tycho. Não é ninguém, só um tratador no Torneio de Worwick. –
A situação dele está me incomodando desde o momento em que fui
arrastado do pátio. – Ele está bem?
– Está um pouco assustado, de acordo com Dustan, mas está
bem.
Tycho ficou assustado com a possibilidade de ganhar quinhentas
pratas. Ironrose deve tê-lo deixado em estado de choque.
– Então ele não está acorrentado em uma cela?
Rhen balança a cabeça e ergue a taça de vinho.
– Noah o defendeu e disse que ele deveria receber cuidados,
então fizemos isso. – Ele faz uma pausa. – Dustan contou que ele
tentou salvar você.
– Ele teve sorte por Dustan não tê-lo partido em dois.
– Então ele não é ninguém. Ele arriscou a vida por você. – Rhen
levanta as sobrancelhas. – Um amigo?
Ele é muito sagaz. Vi guardas mentindo para o rei e se safando,
mas Rhen nunca poderia ser enganado.
– Sim – afirmo. – Um amigo.
– Ele está jurado a Worwick?
Tento entender onde essa pergunta vai dar, mas falho.
– Sim, por dívidas familiares.
– Vou enviar moedas para comprar sua liberdade.
O dinheiro não significa nada para Rhen, mas a intenção por trás
disso significa muito. Ele não faz nada sem um propósito, e me
pergunto se esta é uma espécie de oferta de paz.
No entanto, isso pode facilmente ser apenas um estratagema
para reconquistar minha confiança, que depois será usada contra
mim.
– Uma bolsa de prata do rei? – digo para encobrir a surpresa. –
Worwick vai fazer disso uma história muito melhor do que a simples
compra da liberdade de seu tratador.
Rhen sorri.
– É mesmo? Conte-me.
Eu hesito, então respiro fundo e conto sobre Worwick e o torneio.
Espero que ele me pergunte por que escolhi trabalhar nos estábulos
e não na arena, mas Rhen não me pressiona. Conto sobre Jodi e a
taverna, sobre Tycho e sua paixão pela esgrima. Comento sobre
Jodi e Tycho e os eventos na taverna, quando o ferreiro foi morto, e
como isso fez com que o garoto temesse pela minha morte quando
enfrentei Dustan na viela.
– Um bom amigo, então – Rhen diz.
– As noites eram longas; os dias, entediantes. Normalmente eu
era sua única companhia, e ele, a minha — digo.
O sorriso de Rhen desaparece, e tomo consciência do que disse.
Bebo um gole de água e desvio o olhar.
– Certamente ele deve ter a sua simpatia.
Isso faz com que ele dê risada.
– Com certeza. – Ele faz uma pausa. – Por que você foi embora?
Ele não está exigindo como antes. É uma pergunta verdadeira.
Expiro devagar.
– Acho que você sabe por quê.
– Por que você não revelaria a mim a identidade do herdeiro?
Não há resposta satisfatória para a sua pergunta. Nenhuma
verdade que não sentencie a minha morte.
Não digo nada, e ele pega sua taça. O líquido vermelho feito uma
joia reluz contra o fogo. Ele bebe de uma vez.
Conheço esse olhar. Ele é astuto. Ponderado. Calculista. Vai
descobrir sozinho se eu não tomar cuidado. A única coisa a meu
favor é que ele espera que o herdeiro possua magia, e eu nunca
mostrei nenhuma evidência disso.
Se eu fosse capaz de manipular a magia, poderia tê-la usado
contra Lilith há muito tempo.
Sinto o peso dos olhos de Rhen sobre mim.
– Esse tratador é muito jovem – ele comenta.
Não digo nada e corto um vegetal brilhante.
– Há mais alguém no torneio?
– Se eu me dispus a desistir do comando da guarda para manter
este segredo, você não vai adivinhar tão facilmente.
– Posso enviar meus guardas para Rillisk para interrogar todos.
– Antes ou depois de enviar o dinheiro para libertar Tycho?
Ele franze a testa.
– Não brinque comigo.
– Eu vi o destino dos outros homens que você quis interrogar. Vi
a maneira como as suas ordens são cumpridas. Ninguém no torneio
sabe de nada. Não os condene à morte porque você teme que seu
trono seja tomado.
Seu olhar fica mais afiado.
– Lembre-se do seu lugar, Grey.
– Você deveria se lembrar do seu, amigo. Você é o príncipe. Esse
herdeiro não é nenhuma ameaça para você.
Rhen se recompõe e vejo o primeiro lampejo de raiva em seus
olhos.
– Só esse boato sobre o herdeiro já é uma ameaça. Para todos
em Emberfall. Você sabia que alguns nobres estão questionando a
legitimidade do meu reinado? Estão comentando que alguns grão-
marechais não se sentem mais obrigados a se submeterem à
Coroa.
Sim, ouvi os boatos.
– E o que você vai fazer? – pergunto. – O que vai fazer com esse
herdeiro, se o encontrar?
– Você sabe o que vou fazer.
Engulo em seco. Sim. Sei o que ele vai fazer.
– Ele não é nenhuma ameaça para você – digo novamente.
Ele bate a mão na mesa entre nós.
– Você não tem como saber disso!
– Eu sei…
– Você não tem como! – As palavras explodem, mas ele se
interrompe e passa a mão pelo queixo. Precisa respirar fundo para
se acalmar, algo que nunca o vi fazer antes. – Lilith quase matou
Harper. Ela passou uma eternidade nos torturando. Se esse homem
possui magia, se for da mesma laia da feiticeira… como você pode
protegê-lo, Grey? Como?
Fico imóvel. De repente, entendo seu desespero para encontrá-
lo. Isso não tem nada a ver com o trono. Não de verdade.
Rhen está com medo. Não de perder o trono, mas da magia. Do
que ela pode fazer com ele e com Emberfall.
Eu sou o herdeiro, Rhen. Sou seu irmão. Não precisa ter medo de
mim.
As palavras aguardam na ponta da minha língua, mas não se
movem. Eu vi os guardas enfiarem uma faca em Riley. Ouvi os
boatos vindos das outras cidades. Antes, eu teria dado minha vida
para protegê-lo, mas agora tudo é diferente. Não estou sob
juramento. Sei que não sou uma ameaça para ele. Não quero
morrer para provar isso.
Rhen disse que perdeu a minha confiança, mas isso não é
verdade. Eu confio nele da mesma forma como sempre: ele vai
colocar a segurança de seu reino acima de qualquer outra coisa. Se
ele acha que a magia é uma ameaça a Emberfall, nossa história –
ou mesmo nosso sangue – não será o suficiente para me salvar.
– Manter isso em segredo é uma espécie de traição – Rhen diz.
Não digo nada. Não há o que dizer. Nada.
Suas bochechas estão vermelhas de raiva.
– Grey, não me faça arrancar as respostas de você.
– Passamos estação após estação permitindo que Lilith nos
torturasse. Você realmente acha que conseguiria arrancar essas
respostas de mim?
– Farei o que for necessário para proteger Emberfall.
– Assim como eu. Vou guardar este segredo para proteger você.
– Você faz isso para proteger a si mesmo.
– Também.
Ele se levanta com os olhos brilhando de fúria. Faz muito tempo
que não vejo Rhen com tanta raiva, e é quase aterrorizante que ela
seja dirigida a mim. Pior, agora posso ver claramente o medo por
trás dela. Meu peito fica apertado. Estação após estação, ele
enfrentou Lilith sem medo. Muitas vezes, para me poupar das
torturas.
– Eu juro que você não tem nada a temer deste homem e de sua
magia – digo baixinho.
Por um momento, receio que seu medo seja potente demais.
Então ele se recosta na poltrona e suspira. Sua raiva se dissipa.
– Vou dar a você um dia, Grey.
– Um dia?
– Sim. Vou conceder-lhe um dia para reconsiderar. Em liberdade,
desde que permaneça em Ironrose.
– Isso não é generosidade. Você acha que vou revelar algo. Mas
não vou.
– Devo chamar Dustan para começar a cortar seus membros
agora, então?
– Preferiria que não.
Ele sorri, mais arrependido que divertido.
– Senti sua falta, Grey.
– E eu a sua.
– Você tem até o pôr do sol de amanhã. – Ele fala mais alto. –
Comandante!
Sou colocado em um quarto diferente e, desta vez, não há
grilhões em meus pulsos. Um guarda permanece do lado de fora,
mas, como prometido, tenho alguma liberdade. Um fogo baixo
queima na lareira, e uma jarra de água, uma chaleira e um alguns
bolinhos estão dispostos em uma mesa lateral. Antes que eu possa
tocá-los, um criado entra trazendo uma pilha de roupas dobradas.
– Sua Alteza pensou que essas seriam do seu agrado – ele diz,
deixando as roupas em uma cadeira antes de sair rapidamente.
Pego as roupas. Tudo é feito de couro fino e tecido caro.
Sei que Rhen não acredita que posso ser comprado de modo a
revelar a identidade do herdeiro por alguns luxos. Talvez sua
amizade seja verdadeira.
Uma sombra tremula no canto da sala.
Mantenho a mão nas roupas, passando os dedos pela costura
bem trabalhada, mas minha atenção está na sombra agora.
Talvez Rhen queira me assassinar. Mas isso é ridículo. Ele
poderia ter ordenado a seus guardas antes.
Outro pequeno movimento, perto das cortinas que cobrem a
janela do canto. Eu me endireito, suspiro e me espreguiço como se
estivesse cansado, então me movo ao longo da parede, apagando
as arandelas uma a uma, fingindo estar me preparando para dormir.
Quando alcanço a arandela do canto, mergulho a mão nas cortinas,
esperando encontrar uma garganta ou um braço.
Mas encontro um rosto. Uma mulher grita e se agita contra mim
através do tecido transparente.
Afasto as cortinas e a prenso contra a parede, com uma mão em
sua garganta e a outra segurando seu braço acima da cabeça.
Nunca vi essa garota antes. Seu cabelo ruivo é longo e liso e vai
além das curvas acentuadas de sua cintura. Seu rosto e seus
braços têm manchas de fuligem. Seus olhos estão arregalados, sua
respiração é rápida.
– Quem é você? – pergunto baixinho.
– Meu nome é Lia Mara – ela sussurra, com uma voz áspera e
um sotaque de Syhl Shallow. – E você é o legítimo herdeiro.
CAPÍTULO DEZESSETE

LIA MARA

Pessoalmente, Grey é muito maior do que parecia no pátio. Por


conta da perna machucada, não esperava que ele fosse tão ágil ou
violento, o que é uma lástima, porque ele está prestes a esmagar a
minha garganta. Ele pressiona seu corpo contra o meu na parede,
mas coloco os dedos em seu pulso.
– Por favor – digo, tensa. – Tenho pouco tempo.
Ele nem se move.
– Como você sabe quem eu sou?
– Minha mãe. – Minha visão começa a escurecer. Estou ofegante.
– Por favor… preciso falar com você.
Ele me observa por muito tempo, até eu ter certeza de que vou
perder a consciência. Ele apagou a maioria das lamparinas da
parede, de modo que as sombras nos encobrem. Seus olhos são
profundos e escuros, como lenha carbonizada em uma lareira, muito
mais escuros do que os olhos das pessoas de Syhl Shallow.
Sua mão relaxa no meu pescoço e o doce ar inunda meus
pulmões. Seu corpo ainda me mantém contra a parede. Nunca
antes um homem esteve tão próximo de mim. Mesmo com uma mão
na minha garganta, Grey não está sendo bruto. Ele está tão perto
que quase sinto seu coração batendo contra o meu. Um rubor colore
minhas bochechas, e torço para que esteja escuro demais para ele
notar.
Seus dedos tocam meu pescoço.
– Agora você não diz nada?
Engulo em seco.
– Eu não… você não era o que eu esperava.
– E eu não esperava encontrar uma garota escondida na cortina,
então temos isso em comum. Quem é você?
– Lia Mara. – Faço uma pausa. – Minha mãe é Karis Luran.
Ele respira fundo bruscamente, e seus dedos pressionam minha
garganta.
– Não sou sua inimiga! – sussurro depressa.
– Uma espiã de Syhl Shallow certamente não é uma amiga.
– O príncipe Rhen sabe que estou aqui. – Sua expressão é
cética. – Bem… não aqui – acrescento. – Tenho pouco tempo antes
que os guardas percebam que não estou no quarto.
– Você é prisioneira.
– Não. Sim. – Grey é tão inflexível que fico nervosa. – Eu não…
não sou uma espiã. Vim ao castelo querendo propor paz.
– Ah, querendo propor paz. É bem comum que a entreguem
assim mesmo.
Faço um som de frustração e grito com ele em syssalah.
– Fell siralla! Quer parar de falar? Estou tentando explicar.
Ele ergue as sobrancelhas, como se dissesse vá em frente.
Explico rapidamente o que aconteceu depois que cheguei, que
Rhen recusou minha oferta e me fez prisioneira. Quando chego à
parte da execução de Sorra, minha voz vacila.
A expressão de Grey não se altera.
Obrigo-me a me acalmar.
– Vi quando trouxeram você no pátio. Sabia quem você era.
– Nem o príncipe sabe. Como você sabia?
– Eu não… tinha certeza. Minha mãe só disse que você conhecia
a identidade do herdeiro, então a princípio pensei que você estava
guardando esse segredo. Mas comecei a questionar por que você
não o revelaria para o príncipe. Você era o capitão da guarda, não
era?
– Comandante.
– Sim, comandante. Você renunciou à sua família, não? Se o
herdeiro fosse outro homem, você certamente forneceria essa
informação.
Seus olhos não revelam nada. Fico tentando imaginar se minha
hipótese o preocupa. Se eu fui capaz de entender, com certeza o
príncipe também será.
– Ele vai matar você se descobrir – digo baixinho.
– Naturalmente – ele diz sem emoção, sem uma dúvida sequer.
– Mas você deve possuir magia se é filho de um feiticeiro! Por
que permitiria ser feito prisioneiro?
Ele pragueja.
– Talvez eu tenha sangue de feiticeiro, mas até agora não me
serviu pra nada.
Eu o observo.
– Você poderia fugir. Minha mãe também está procurando você.
– Não quero nada de Karis Luran.
Sua voz é afiada como uma faca, e vacilo.
– Ela ofereceria apoio para que você reivindicasse o trono.
– Não pretendo reivindicar o trono.
– Nem mesmo pela paz entre Syhl Shallow e Emberfall?
– A paz entre nossos reinos não pode ser conquistada por meio
de armadilhas e traições. – Sua mão está quente sobre a minha
garganta, um lembrete de que ele pode me matar agora mesmo, e
todas as esperanças morreriam comigo. – Segundo a sua história,
parece que você aprendeu a lição sozinha.
Franzo a testa.
– Não vou pedir desculpas por tentar salvar a vida de milhares de
pessoas. Você e seu príncipe podem até acreditar que a solução
para todos os desafios da vida está na ponta de uma espada, mas
eu não acredito. – Olho diretamente em seus olhos. – Se não quiser
aceitar minha ajuda…
– Não quero.
Endireito os ombros, mas isso só faz meu peito pressionar o dele.
Forço minha voz a permanecer firme.
– Vou pedir que me solte, para que eu possa voltar para o meu
quarto e aguardar meu destino.
Ele está me encarando como se não soubesse o que fazer
comigo.
– Agora – acrescento.
É um pedido ousado. Ele poderia chamar os guardas, e eles
certamente me colocariam em algum lugar de onde eu não
conseguiria escapar pela lareira. Ele mesmo poderia me matar, para
manter seu segredo a salvo.
O peso de seu escrutínio se adensa no ar entre nós.
Ele franze a testa, mas sua mão solta meu pescoço.
Antes que ele possa dizer qualquer coisa, a porta range e ele dá
um pulo para trás. Eu me escondo atrás das cortinas novamente.
Espero que ele me arraste para fora, para se valer do meu truque
e escapar, mas, em vez disso, ele diz:
– Vá para o canto, vai ficar mais escondida.
Deslizo pela parede de pedras silenciosamente, até que ouço um
guarda anunciar:
– Harper, princesa de Decê.
Perco o ar. Por que a princesa visitaria um ex-guarda?
– Milady – Grey fala baixinho e surpreso. Não, mais que surpreso.
Ele estava tão impassível diante de mim que gostaria de poder ver
sua expressão agora.
O farfalhar de saias indica que ela está se movendo. Procuro
respirar devagar e pressiono o corpo contra a parede. Todas as
arandelas desta parte do quarto estão apagadas. Certamente estou
bem escondida. Espio atrás da cortina.
O que vejo quase me denuncia por completo.
Eles estão se abraçando. Meu coração dá uma guinada repentina
no peito.
Desejei tanto ter um livro para me distrair aqui, mas isto quase faz
valer todas as horas de tédio naquele quarto. A princesa e o guarda.
Que escândalo. Nolla Verin vai desmaiar quando eu contar.
Se um dia eu voltar a vê-la.
Grey coloca as mãos nos braços de Harper e a empurra para
trás.
– Você é a princesa de Decê. Você não pode…
– Eu não me importo! Grey, você está vivo.
– Estou. Até o pôr do sol de amanhã.
O rosto da princesa fica sério.
– Rhen me contou. – Ela dá um passo à frente, mas ele recua.
Ela para e aperta as mãos. – Por favor, Grey. Por favor, conte para
ele.
– Perdoe-me – ele diz com uma voz gentil de um jeito que eu não
imaginava. – Não posso.
– Eu vi o que Lilith fez com ele, Grey. Não posso vê-lo fazer
aquilo com você. Não posso. Sei por que ele tem medo, mas eu
disse… ele não… – Ela se interrompe. – Você acabou de voltar. Ele
não… ele não pode…
– Milady.
A voz dele carrega um tom de comando, e ela se recompõe.
Passa a mão esguia pelo rosto. Uma lágrima brilha à luz fraca das
velas.
– O que foi?
– Uma vez falamos sobre meu dever de sangrar para que ele não
sangre. Jurei oferecer minha vida para preservar a vida dele. Se eu
morrer levando este segredo, e isso fizer com que ele assuma o
trono sem ser questionado, que diferença faz?
– Não é a mesma coisa, e você sabe disso.
– É a mesma coisa. É exatamente a mesma coisa.
Sua voz fica afiada.
– Se ele fizer isso, não sei se vou conseguir perdoá-lo.
A expressão de Grey é de resignação, seus olhos estão
sombrios.
– Um rei deve colocar seu reino acima da mulher que ama.
Harper fica imóvel.
– É o que ele também diz. – Ela faz uma careta. – Homens
estúpidos com ideais estúpidos! Vocês ficaram presos juntos aqui
por uma eternidade, e não podem simplesmente conversar e
encontrar uma solução?
Eu estava certa. Nós poderíamos ser boas amigas.
– Milady. – Grey finalmente dá um passo adiante e coloca um
dedo em seu queixo, erguendo sua cabeça. – Se você o ama, deve
tentar entender seus motivos. Não subestime sua habilidade de
governar conforme for necessário. Já falamos sobre misericórdia e
fraqueza.
Ela suspira.
– Eu sei.
– Também não subestime minha habilidade de me manter vivo.
Ela ergue as sobrancelhas em uma expressão esperançosa.
Grey encolhe os ombros e baixa as mãos.
– Ele me concedeu um dia. Eu não esperava tanto.
Ela toma a mão dele entre as suas.
– Você vai encontrar um jeito. Prometa que vai tentar.
– Com certeza. Você tem a minha palavra. – Ele pausa. –
Gostaria que prometesse algo também.
– Qualquer coisa. – A princesa Harper se endireita. – Posso
construir a sua defesa… qualquer coisa que precisar. Diga o que
devo falar. Posso procurar seus conselheiros…
– Milady, você não entendeu. Meu pedido não é que você
interceda. – Ele hesita. – Não quero que você assista.
Ela fica pálida e dá um passo para trás.
– Grey…
A voz dele é firme:
– Vou manter minha promessa se mantiver a sua.
Ela engole em seco.
– Tudo bem. – Ela faz uma pausa. – Mas vou tentar impedi-lo.
Ele sorri sem achar graça.
– É por isso que você está destinada a permanecer ao lado dele.
Uma lágrima escorre por sua bochecha, mas ela a limpa
rapidamente.
– Você deve estar cansado, mas… – Sua voz se interrompe. Ela
levanta a cabeça com os olhos cheios de esperança novamente. –
Talvez a gente possa passar um tempo juntos amanhã? Ele disse
que você pode fazer o que quiser, desde que permaneça nos
terrenos do castelo.
Ele assente.
– Sim, é claro.
– Estou praticando esgrima. Zo está me ajudando.
O sorriso dele é tristonho.
– Estou ansioso para ver seu progresso.
– Ótimo – ela diz. Seu rosto quase desmorona, mas ela limpa os
olhos mais uma vez. – Amanhã de manhã?
– A hora que quiser.
A princesa sai do quarto tão silenciosamente quanto chegou.
Grey cruza o quarto, movendo-se depressa apesar de sua perna
ferida, e escancara as cortinas.
Eu o encaro.
– E pensar que você falou sobre armadilhas e traição.
Ele franze a testa.
– O quê?
– Você e a princesa. Não me admira que tenha fugido.
Para minha surpresa, ele dá risada.
– Rhen dificilmente me permitiria um centímetro de liberdade se
isso fosse verdade. – Ele logo fica sério, o que me faz pensar que
pode haver mais coisas além do que está dizendo. – Não fale do
que não sabe.
Interessante.
– Você falou sério? Que prefere morrer a lhe contar que você é o
herdeiro?
– Sim.
Ele responde tão rápido, tão sinceramente. Depois da elegante
conversa fiada do príncipe, sua franca honestidade é uma surpresa.
Ele franze a testa.
– Como você veio parar aqui?
– Pela lareira. Eu movi a barreira.
Suas sobrancelhas se erguem.
– Essas barreiras não são usadas há anos.
– Por isso levei o dia todo.
Ele olha para a lareira, então para mim. Mais uma vez, estou
consciente das curvas que minhas roupas revelam, e desejo poder
me enfiar de volta nas sombras.
– Você rastejou por uma lareira acesa?
Faço uma careta.
– Ela não estava acesa do meu lado, e sou mais ágil que pareço.
– Lá fora, os sinos anunciam a troca da guarda. – Vai me deixar
voltar para o meu quarto ou pretende revelar a minha fuga ao seu
príncipe?
Ele me observa por um longo tempo, então se afasta.
– Meu quarto é tão vigiado quanto o seu. Você não vai conseguir
fugir por aqui.
Eu me ajoelho na lareira e apoio as costas contra a parede lateral
para poder contornar as chamas.
– Você disse para a princesa não subestimar a sua habilidade de
se manter vivo.
– Até agora eu consegui.
– Eu também. Então não subestime a minha.
Eu me enfio na abertura estreita, sacudindo uma brasa acesa do
suéter, ciente de seus olhos sobre mim.
– Suponho que não tenha mudado de ideia. Sobre trabalhar com
minha mãe? Pela paz?
– Sua mãe é um monstro – ele diz.
Franzo a testa e coloco a mão na pedra, passando pela abertura
e olhando para ele através das chamas.
– Pelo que vi até agora, seu príncipe também.
Sem dizer mais uma palavra, faço valer meu dia de trabalho e
puxo a alça para encaixar a barreira suavemente de volta no lugar.
CAPÍTULO DEZOITO

GREY

Quando Rhen falou sobre liberdade e hospitalidade, estava


falando sério. Durmo direto e acordo muito antes do nascer do sol e,
apesar de ser cedo, recebo tudo que peço: um conjunto de barbear,
um prato com o desjejum e um par de botas que me servem melhor.
Por curiosidade, peço uma adaga, e o criado faz uma reverência e
diz:
– Imediatamente, meu senhor. – E sai correndo.
Enquanto espero, fico na janela observando o céu da alvorada
ficando cada vez mais claro conforme o sol desponta no horizonte.
O terreno do castelo se enche de cores, desde os galhardetes
dourados e vermelhos até as flores desabrochando por toda parte.
Passei tanto tempo preso no eterno outono que esqueci a beleza de
Ironrose no meio do verão.
Lia Mara fechou a divisória de tijolo da lareira, mas me peguei
estudando-a ontem à noite. A alça está quente quando coloco a
mão, e a barreira é tão pesada que tenho que me apoiar na parede
de tijolos para puxá-la. Fico impressionado com a força e a
ingenuidade dela. Acho que eu nem consideraria essa possibilidade.
Alguém bate na porta, e me afasto da janela.
– Entre.
Não é a criada, mas Dustan quem entra no quarto, permitindo
que a porta se feche em seguida.
– Por que você precisa de uma adaga?
– Só fiquei curioso para saber até onde a hospitalidade oferecida
se estenderia.
– Até aqui, acho. – Ele não está irritado. Parece até se divertir.
– Quem é meu carcereiro hoje, comandante? – Pergunto-lhe. –
Terei que me restringir aos meus aposentos?
– Você pode passear, se quiser. – Ele faz uma pausa e cruza os
braços. – E seu “carcereiro” sou eu.
– Gostaria de ver Tycho – digo.
Dustan assente. Cruzamos os outros quartos deste andar até a
escada que leva para o nível mais baixo.
Franzo a testa.
– Onde ele está?
– Na enfermaria.
Pensei que ele fosse dizer masmorra, mas isso é pior.
– Ele está ferido?
– Não. Você vai ver.
A enfermaria não é grande. Quando eu estava no comando da
Guarda Real, era praticamente um espaço vazio. Uma dúzia de
catres se alinhavam na parede de trás da sala, e uma pequena
bancada de suprimentos ficava na frente.
Durante a minha ausência nesses últimos meses, a enfermaria se
transformou. Os catres – que dobraram em número – são maiores e
contam com travesseiros macios, e um lençol branco os separa,
proporcionando aos pacientes alguma privacidade. A bancada foi
substituída por duas mesas compridas cheias de rolos de
musselina, pilhas de tecido e potes de todas as cores. As poucas
arandelas de parede foram trocadas por grandes lustres, que
iluminam o cômodo de forma que poucas sombras podem ser
vistas.
Perto do centro da sala, um homem de meia-idade pálido e sem
camisa está sentado em uma cama, repousando o braço no colo. O
suor brilha em sua testa. Em um banquinho à sua frente está Noah,
de costas para nós e, ao lado dele, em uma cadeira, está Tycho.
– Toque aqui – Noah diz, pressionando cuidadosamente os dedos
contra o ombro do homem. Ele estremece, mas fica parado
enquanto os dedos de Tycho copiam os de Noah.
– Você sente o osso? – Noah pergunta. – Clavícula quebrada.
Esse é o início de uma nova formação óssea sobre a linha de
fratura.
– Clavícula quebrada – Tycho repete.
O homem estremece de novo.
– É grave?
– Não – Noah fala. – Vou te dar uma tipoia.
– Você deu uma bela ajeitada nesse lugar, Noah – digo.
Ele olha para trás.
– O que mais eu podia fazer?
Há uma frieza em sua voz, ofuscada por Tycho, que gira em sua
cadeira sorrindo largamente.
– Grey! – Mas então seus olhos se fixam em Dustan, e o sorriso
se transforma em atenção cautelosa. – Você está bem?
– Estou bem. Fico feliz que tenha feito um amigo.
Noah se levanta do banquinho e se dirige para uma das mesas,
pegando um pedaço de musselina dobrada.
– Tycho é sempre bem-vindo. Ele está aprendendo rápido.
Tycho olha de Noah para mim e, em seguida, para Dustan.
– Podemos ir pra casa?
Como se Worwick fosse me receber de braços abertos. Se bem
que ele sempre gostou de um show.
Mas é inútil pensar nisso agora. Não vou a lugar algum.
– Ainda não – digo.
Ao meu lado, Dustan não revela nada em sua expressão.
– Prometi à princesa Harper que ela poderia me mostrar suas
novas habilidades. Vamos ver se ela está aceitando visitas?
Os olhos de Tycho se arregalam.
– Você conhece a princesa?
Noah rasga a musselina.
– Eles se conhecem há muito tempo.
Franzo a sobrancelha ao ouvir seu tom, mas a curiosidade de
Tycho se sobrepõe.
– Que tipo de habilidades?
– O tipo de que você gosta.
•• ••
Nos encontramos no pátio no meio da manhã, enquanto o sol brilha
enchendo o ar de calor e aromas de jasmim e madressilva dos
arbustos floridos que cercam o estábulo. Minha perna está
começando a doer por conta da movimentação, mas como
provavelmente serei acorrentado mais tarde, ignoro a dor.
Harper sorri para mim, segurando três facas.
– Olhe. Está olhando? Olhe.
A alegria dela é quase contagiosa. Não consigo deixar de sorrir
em resposta.
– Estou olhando, milady.
Zo se mantém atrás dela, com a mesma expressão de
desconfiança e decepção que vejo no rosto de todos os guardas
que já conheci.
Vocês também fizeram um juramento para proteger a Coroa,
quero dizer. Vocês entenderiam, se soubessem.
Ou talvez não.
Harper brinca com uma faca, e então a lança. Ela voa acima de
duas pedras, fincando-se na terra com tanta força que o cabo vibra.
Lembro-me do dia em que ela me pediu para ensiná-la a fazer
isso, como se só a decisão de aprender sobre armas fosse um
desafio. No início, pensei que fosse algo contra Rhen, mas logo
percebi que ela cresceu pensando que nunca poderia se defender.
O desafio era contra ela mesma. Ou quem ela pensava que era.
Ela joga as outras duas facas, que aterrissam rapidamente em
uma linha quase reta, e faz uma reverência.
Sorrio.
– Estou impressionado – digo com sinceridade.
– Zo e Dustan me ajudaram muito. – Ela faz uma pausa. – Ainda
não sou muito boa com a espada e tal, mas estou melhorando.
Ela tem uma espada na cintura, suportando o peso da arma e
armadura tão casualmente quanto Zo ao seu lado.
– Mostre-me.
As lâminas delas voam e se chocam sob o sol, mas ela está
certa. Sua esgrima é mais desajeitada e menos graciosa do que o
lançamento de facas. Harper tem dificuldade com o equilíbrio e a
força do lado esquerdo, um efeito da paralisia cerebral que a desafia
desde que ela nasceu.
Tycho se mantém perto da parede do castelo, calado como um
fantasma, com os olhos fixos na partida.
Dustan se aproxima de mim. Ele tem sido menos que uma
sombra a manhã toda, então fico surpreso quando ele fala baixinho:
– O que aconteceu com o garoto?
– Talvez ele tenha visto você acertando uma flecha na minha
perna e levando-o como prisioneiro.
Ele ignora meu tom.
– É mais que isso.
Encolho os ombros.
– Não conheço a história dele, só sei que não gosta de soldados.
– Mas gosta de esgrima.
Qualquer um pode ver isso. Entendo por que Noah comentou que
ele aprende rápido. Tycho nunca perde uma oportunidade de
observar e aprender.
– Ele sabe segurar uma espada e tem os pés ágeis.
Harper e Zo se separaram. Harper está ofegante, mas sorri.
– O que acha? – ela me pergunta.
– Acho que preciso ficar esperto com você.
Seu sorriso se alarga e suas bochechas ficam vermelhas. Ela
guarda a espada de volta na bainha em seu quadril. Sua
persistência é o que mais gosto nela. Em seu primeiro dia aqui, ela
ficou esperando, então apontou uma adaga para mim. Em Rillisk,
Dustan disse que eu estaria disposto a morrer lutando. Ela também.
Quando estávamos presos na maldição, nunca ousei pensar nas
garotas como nada além de um meio para um fim.
Mas agora a maldição foi quebrada e estou aqui olhando para
Harper, com seus olhos grandes e ferozes e seus cachos escuros
brilhando ao sol.
Seu sorriso desvanece, e a tristeza nubla seus olhos.
– Estava com saudade, Temível Grey.
– Eu também. – Abro um sorriso. – Mas não sou mais temível.
Ela se inclina.
– Você nunca vai ser não temível.
Por um momento fugaz, tento imaginar como seria correr um
dedo ao longo de sua pele.
Rhen vai me matar, de qualquer jeito. Provavelmente.
– Zo – diz o comandante Dustan. – Pode me emprestar sua
espada?
Isso desvia minha atenção. Zo entrega-lhe a arma, e Dustan se
vira para Tycho, oferecendo-lhe a espada.
– Grey diz que você tem pés ágeis.
Tycho se tornou uma lebre na mira de um predador, paralisado
contra a parede. Percebo um movimento acima dele e levanto o
olhar.
Nas sombras da janela, aquela garota de Syhl Shallow, Lia Mara,
está olhando para o pátio. Seus olhos brilham na escuridão, mas ela
se retira depressa, desaparecendo de vista.
Pisco e olho para Tycho, dizendo:
– Vá em frente. – Meu tom é controlado, quase entediado. –
Dustan vai ser justo.
Se existe algo capaz de arrancá-lo da parede é a promessa de
uma lição de esgrima, então não me surpreendo quando ele dá um
passo adiante e pega a espada. Ele testa o peso da arma e engole
em seco.
Dustan aguarda enquanto ele se prepara. Depois, assim como
fez no torneio, começa devagar, com um ataque leve.
Tycho quase derruba a espada de sua mão.
Solto uma risada e dou uma tossida para disfarçar, mas Dustan é
um bom esportista. Ele recua e se recompõe, olhando Tycho com
mais estima.
– Você não vai conseguir outra abertura como essa – aviso.
Tycho assente com firmeza. Desta vez, quando as espadas se
chocam, Dustan não é tão gentil.
Em algum momento, percebo que Rhen entrou no pátio. Ele está
rodeado por alguns guardas e se mantém perto do canto do castelo,
onde a trilha de paralelepípedos muda de cor e leva ao estábulo. Ele
está observando Dustan e Tycho, embora eu não consiga ver sua
expressão daqui.
Harper está cochichando com Zo. Diminuo a distância entre o
príncipe e eu.
Quando me aproximo, vejo que ele parece perturbado,
observando a partida como se procurasse uma distração, sem muito
interesse.
Endireito a postura.
– Aconteceu alguma coisa.
Ele me olha surpreso, e demoro um pouco para entender por que:
falei como um guarda que notou uma ameaça e aguarda ordens.
Rhen desvia o olhar, voltando a atenção para a partida. Ele fala
sem emoção:
– Ele é bom. Você o ensinou?
– Sim.
– Dá para perceber. Ele não hesita.
Tycho provavelmente desmaiaria se soubesse que o príncipe
herdeiro elogiou sua esgrima. É bom que Dustan o mantenha
ocupado.
– Ele é atento.
Os olhos de Rhen estão sombrios de tensão. A insegurança dos
últimos meses da maldição se foi, mas, depois de ver seu medo
ontem à noite, não tenho certeza de qual dos dois é melhor.
Do outro lado do pátio, Harper percebeu que estamos aqui.
Posso vê-la ponderando se deve se juntar a nós.
– Porto Silvermoon fechou as fronteiras – Rhen finalmente diz. –
Eles avisaram hoje cedo.
Viro-me para olhar para ele.
– Não entendo.
– O grão-marechal enviou uma notificação dizendo que eles não
vão reconhecer o governo de um herdeiro ilegítimo, nem uma
aliança com uma nação que não forneceu a assistência prometida
contra Syhl Shallow. Eles fecharam a fronteira e estão preparados
para usar sua força militar.
Fico imóvel. Porto Silvermoon é a maior cidade próxima, e o
único acesso de Emberfall ao mar. Fechar a fronteira vai trazer
enormes consequências para o comércio e as viagens, sem falar
nas pessoas que dependem da cidade para se alimentar e se
sustentar.
– Eles têm tanta? – pergunto baixinho.
– Com exércitos privados, podem facilmente ter. – Ele faz uma
pausa. – Esta não é a primeira cidade a declarar algo assim. Mas
Silvermoon é a maior, e a única com força suficiente para tal.
– Como você vai reagir?
Não espero que ele me conte, mas talvez nossa história me
garanta mais informações do que ele ofereceria espontaneamente.
– Vou reconquistar minha cidade – ele diz.
Eu o encaro.
– À força.
– Obviamente terá que ser à força.
– Você vai atacar seu próprio povo.
– Grey – seu tom é intenso –, se Silvermoon realmente levar isso
a cabo, outras cidades vão imitá-la. Não posso iniciar uma guerra
com todas. – Sua expressão é sombria. – Certamente há outras
cidades esperando para ver como vou reagir. E elas provavelmente
estão preparadas para se aliar a Silvermoon.
Se ele tentar tomar o porto de volta, pode haver uma guerra civil.
Vai haver uma guerra civil, se suas previsões estiverem corretas.
Enquanto isso, Syhl Shallow está só esperando para atacar
Emberfall.
Mal conseguimos manter o país a salvo enquanto nosso povo
estava unido. Com as cidades em guerra contra a Coroa, Karis
Luran pode conquistar tudo.
Mais uma vez, olho para a janela acima do pátio.
– Isso é um problema maior que a existência de outro feiticeiro –
Rhen diz. – É mais que magia colocando meu país em risco.
Entende por que tenho que conseguir essa informação de você?
– Sim.
Seus olhos brilham de surpresa.
– Então você vai me dizer o nome do herdeiro?
Paraliso. Se eu acreditasse que dizer o nome resolveria tudo,
revelaria agora mesmo.
Mas não vai resolver. Isto já foi longe demais. A minha execução
não vai silenciar a busca de seu povo pelo herdeiro. Não importa
mais. Eles não o querem.
Em seu coração, Rhen certamente já sabe disso, mas, assim
como eu, assim como Harper, ele não vai desistir sem antes lutar.
No pátio, Dustan e Tycho se afastam. O cabelo de Tycho está
molhado de suor e ele está ofegando bastante, mas parece
satisfeito consigo mesmo. Está procurando algo em mim –
aprovação, uma palavra, um julgamento, uma crítica. Algo.
Não consigo desviar o olhar de Rhen.
– Não. Não vou dizer.
Sua expressão fica severa.
– Você vai. Ao pôr do sol, você vai dizer.
As palavras são ditas com tanta firmeza que eu as sinto
penetrando minhas entranhas. Estação após estação, nunca senti
medo de verdade de Lilith, apesar de sentir ódio.
Pela primeira vez, tenho medo do que Rhen pode fazer.
CAPÍTULO DEZENOVE

LIA MARA

Um silêncio desconfortável caiu sobre o castelo. Tochas foram


acesas no pátio, os paralelepípedos foram varridos recentemente.
Não sei o que o príncipe Rhen planejou para seu ex-comandante,
mas os guardas que me trazem o jantar parecem submissos e
preocupados, e quase jogam a bandeja na lareira antes de saírem.
– O que está acontecendo? – pergunto.
Um dos homens me ignora, o que é esperado, mas o outro olha
para a janela e fecha a porta em seguida.
– Espere até escurecer. Você vai ver um belo show.
Ele vai embora e me deixa presa aqui.
Volto para a janela, mas nada do que vejo ali embaixo me oferece
pistas sobre o que vai acontecer. Uma multidão está se formando.
Pura fascinação mórbida em ação. Talvez esse seja mais um
exemplo de como não chego aos pés de minha irmã, porque não
suporto tortura. Minha mãe sabe usar a violência para conseguir o
que quer, mas raramente sou forçada a assistir. Também não tenho
a mínima vontade de assistir ao príncipe Rhen. Já vi crueldade
suficiente da parte dele.
Sento-me na lareira e pego a comida que trouxeram: frutos do
mar novamente. Isso revira meu estômago. Quero jogá-la pela
janela na multidão abaixo.
O fogo se transformou em brasas e não faço nada para reavivá-
lo. Do outro lado da barreira de tijolos, o quarto está silencioso. Não
está vazio, porém, porque posso ver as sombras oscilando pela
pequena fresta que deixei.
Grey está lá. Consigo sentir sua apreensão daqui. Tenho tantas
questões sobre ele e tão poucas respostas.
Ele é o legítimo herdeiro. Não deveria ter medo. Todos em
Emberfall estão agitados por causa de sua simples existência. Será
que ele não sabe que poderia ter o apoio da população? Por que
não quer assumir o trono? Por que prefere deixá-lo para um homem
que permitiu que seu povo caísse na pobreza e na ruína?
A luz se move pela fresta e ouço o som abafado de vozes na
porta ao lado. São três ou quatro guardas, ao menos. Devem estar
preocupados que ele tente fugir. A tensão é tanta que sinto meu
coração pulsando na garganta.
Quando ele sair, os guardas também sairão. Não há motivos para
vigiar um quarto vazio.
Você vai ver um belo show.
Posso sentir um mau agouro pairando sobre o castelo, e ele é
duas vezes mais forte nas pessoas que sabem o que está
acontecendo.
Grey será levado para o pátio. Seu quarto vai ficar vazio e
desprotegido. Muito provavelmente, todos estarão no pátio ou
pendurados na janela, observando. Meus próprios guardas já
trouxeram o jantar, e sei que eles não vão vir me ver até a troca da
guarda, perto da meia-noite. Já provei que sou inofensiva, então
eles não prestam muita atenção em mim.
Estou sempre sendo subestimada.
Desta vez, vou usar isso a meu favor.
CAPÍTULO VINTE

GREY

Um dia de liberdade pareceu uma decisão incomum na noite


passada. Um luxo proporcionado pela amizade.
Agora vejo que foi um movimento calculado para me mostrar o
que eu tenho a perder.
Conforme o pôr do sol se aproxima e nuvens pesadas se
acumulam no céu, começo a procurar uma rota de escape. Minha
cabeça gira, e qualquer saída me parece inútil. Dustan deve ter
percebido minha vigilância inquieta, porque quatro guardas me
acompanham para onde quer que eu vá.
Não sei o que Rhen vai fazer quando eu recusar a me render. Ele
não pode me torturar para sempre.
Ou melhor, talvez ele possa. Eu definitivamente não vou suportar
para sempre.
O pensamento envia uma corrente gélida de medo pela minha
espinha. Quando Lilith nos torturava, nós sabíamos que nossos
corpos por fim se esgotariam e a estação recomeçaria. Mesmo que
a crueldade dela não tivesse limites, nós tínhamos.
Alguém bate na porta no exato instante em que o sol desaparece
além da floresta. Fico paralisado entre a lareira e a janela. Cada
célula em meu corpo quer que eu saia correndo.
Só que não há para onde ir.
Penso na pulseira enfiada no meu colchão no sótão de Worwick.
Fecho os olhos e imagino o outro lado. Imagino que estou passando
pelo véu. Imagino o mundo de Harper, as luzes espalhafatosas e as
máquinas ensurdecedoras. Desejo a magia. Torço por ela. Rezo por
ela.
Outra batida na porta.
Meus olhos se abrem. Nada mudou.
Dustan avança para segurar a maçaneta. Rhen está parado do
lado de fora, rodeado por seis guardas.
– Você se rende? – ele pergunta.
Queria poder fugir. Queria poder voar. Queria poder voltar no
tempo e desfazer a maldição que nos aprisionou juntos neste
castelo e nos fez construir essa história que compartilhamos e que é
impossível jogar fora enquanto tudo está em risco.
– Não – digo.
– Levem-no.
Os guardas se aproximam com correntes. Eu deveria fugir. Seria
inútil, mas cada fibra de meu ser grita para que eu lute. Talvez seja a
presença de Rhen que me mantenha paralisado. Talvez seja a
lembrança do guarda obediente que fui. Talvez seja seu olhar ferido
que faz eu me questionar se ele realmente vai seguir com tudo isso
até o fim. Ele ainda espera que eu me renda. Talvez eu também
espere que ele se renda.
Então os grilhões me prendem, e não tenho chance de fazer
nada.
Algumas pessoas abrem caminho para nós enquanto passamos
pelos corredores escuros. Espero ser levado para a masmorra, mas
descemos a escada para o Salão Principal e seguimos para as
pesadas portas de vidro que dão no pátio onde passei a manhã com
Harper e Tycho.
Um guarda abre a porta, revelando o espaço iluminado por
tochas. Uma pequena multidão aguarda.
Ele não vai se render.
Meus pés congelam no lugar quase por conta própria. Os
guardas começam a me arrastar. Meu coração lateja nos ouvidos.
– Parem – Rhen diz. Os guardas esperam.
Ele se vira e caminha diretamente para mim.
– Grey – ele fala baixinho –, não me obrigue a fazer isso.
Não consigo olhar para ele. Cada expiração sôfrega sai da minha
garganta fraturada e interrompida.
Luto contra os mesmos pensamentos há dias: se eu contar a
verdade, ele vai me matar. Ele vai ter que me matar. Já vi o que ele
é capaz de fazer para proteger Emberfall. Para proteger seu trono.
Se eu não disser nada… ele vai me fazer desejar estar morto.
Quando eu era guarda, teria dado minha vida por ele, então esta
escolha deveria ser fácil, mas não é. Não vou simplesmente me
colocar diante de uma espada.
Não há espada. Não sou uma ameaça.
Eu não digo nada, e ele se vira.
Eles me arrastam pela porta. Meus olhos percorrem a multidão.
Harper não está ali. Nem Tycho.
Bom. Posso enfrentar essas pessoas. Posso enfrentar esse
tormento. Tycho está seguro em algum lugar, espero que vigiado
pela bondade de Harper. Tomara que o mandem para casa com o
saco de moedas que Rhen prometeu.
Apesar do grupo que se juntou no pátio, o espaço está silencioso.
Um cavalo dá um coice na parede do estábulo próximo. Minha
respiração parece ecoar o movimento.
Não faço ideia do que Rhen pretende fazer, mas os guardas me
rebocam até a parede do castelo e depois prendem minhas
correntes em um gancho suspenso no alto.
Uma paralisia repentina me domina. Serei açoitado. Há vários
outros ganchos ao longo da parede, mas nenhum foi usado desde
os tempos em que o pai de Rhen se sentava no trono. Se um servo
do castelo ofendesse o rei Broderick de alguma forma, ele mandava
açoitá-los aqui fora para que todos vissem. Ele os deixava
pendurados por horas, até que os insetos se amontoassem nas
feridas.
Meus olhos estão fixos nos meus pulsos, suspensos acima da
minha cabeça. Minha respiração fica mais lenta e entrecortada.
Imagino que vá doer, mas posso sobreviver a um açoitamento. Isso
é muito melhor do que ser arrastado por um cavalo ou ter meus
ossos quebrados um por um.
Fecho os olhos e espero o primeiro golpe do chicote.
Em vez disso, ouço pés sendo arrastados pelas pedras e a
respiração entrecortada e acelerada de alguém em pânico.
Meu coração para antes que ele diga qualquer coisa.
– Não – ele suplica. As correntes fazem barulho, e sei que ele
está se debatendo. – Por favor, eu não fiz nada.
Tycho.
Minhas mãos lutam contra a corrente. Não há brecha, e não
consigo ver nada além de tijolos e escuridão.
– Rhen! – grito. – Não faça isso. Solte-o!
Um assobio agudo corta o ar. Mal reconheço o som até o couro
atingir minhas costas.
Dói mil vezes mais do que eu tinha imaginado. É pior que uma
espada. Pior que uma flecha. O chicote parece se enterrar na minha
pele. Berro sem nem perceber.
Outro assobio agudo. Eu me preparo, mas esse chicote não me
atinge.
Tycho grita.
Vejo estrelas. Grudo os pés na parede e me apoio contra as
correntes.
Mais um assobio. Mais um chicote se enterra nas minhas costas.
Não consigo respirar. Não consigo pensar.
Outro chicote acerta Tycho.
– Rhen! – Não ouço minha própria voz. Não sei nem se estou
falando. – Rhen, pare! Ele é um garoto…
Outra chicotada. Esta é mais baixa, e juro que a senti na minha
espinha.
Não ouço mais o assobio. Só ouço Tycho gritar.
Ele está balbuciando palavras embargadas.
– Por favor. Pare. Por favor. Por favor. Por favor.
Está falando com os guardas, com Rhen, com qualquer um.
Menos comigo.
Mas ele sabe que eu poderia acabar com isso.
Outro açoite rasga minha pele, provocando uma dor ardente. As
estrelas em minha visão se multiplicam. Estou puxando as correntes
com tanta força que não consigo mais sentir as mãos.
Tycho grita de novo. Ele engasga e parece vomitar.
Ele não tem nada a ver com essa situação. Não significa nada
para Rhen. Não fez nada para merecer isso. A fúria parece me
engolir inteiro e me inflama de ódio. Estrelas preenchem minha
visão com uma luz cegante.
Outra chicotada me atinge, mas desta vez eu mal sinto. Ouço o
estalo do chicote em Tycho e seu grito retumbante.
Algo dentro de mim acorda. Um trovão enche o ar e um branco
ofuscante rouba minha visão, como se o sol tivesse caído na terra.
O vento sopra pelo pátio, tocando as feridas nas minhas costas,
roubando meu fôlego. Por um instante, penso que estou morto. Não
consigo ver. Não consigo ouvir.
Então tudo passa. As estrelas esmaecem até desvanecerem. Não
há vento.
O pátio está silencioso.
Espero a próxima chicotada, mas ela não vem. O sangue escorre
das minhas costas, quase imperceptível contra a dor lancinante.
Tudo que ouço é minha própria respiração rápida e irregular.
Debato-me contra as correntes, esperando que o chicote me
acerte mais uma vez. Nada acontece. Consigo apoiar os pés na
parede e me torcer para observar o pátio.
Todos estão caídos. As pessoas formam pilhas de corpos. Alguns
desabaram uns sobre os outros.
Ninguém se move.
Procuro Tycho na parede e o encontro a seis metros, pendurado
em suas correntes, inconsciente.
Ou morto.
Agora minha respiração fica irregular por outro motivo. Uso as
correntes para me alavancar pela parede até estar alto o suficiente
para soltar os grilhões. Levo mais tempo do que deveria e meus
braços ameaçam ceder. Uma vez no alto, apoio-me contra o gancho
e ofego de exaustão. Cada respiração, cada movimento dói de uma
nova forma. Perdi a conta de quantas vezes eles me açoitaram.
Minhas costas parecem estar em carne viva.
Desenrolo a corrente e caio de pé no chão.
Péssima escolha. Minha perna machucada cede e eu cambaleio,
tombando de joelhos. Minha visão fica turva. Chacoalho a cabeça e
pisco.
Toco minha mão, onde o chicote a enlaçou. A ferida é profunda e
sangra muito.
Rhen não está longe, caído nas pedras como os outros. Está
respirando ileso. Parece estar dormindo.
O que aconteceu?
Posso pensar nisso depois. Preciso libertar Tycho. Preciso fugir.
Quando me aproximo dele na parede, noto que ele também está
respirando, mas emite um chiado sôfrego e suas costas estão
tomadas por linhas entrecruzadas e sangrentas. Lágrimas
encharcam suas bochechas. Ele vomitou em si mesmo em algum
momento. Tento me erguer para libertá-lo, mas minhas costas
protestam e eu grito, desabando na parede.
Tento mais uma vez, e falho mais uma vez. De novo, minha visão
fica turva e chacoalho a cabeça.
Um grito surge de algum lugar do castelo, seguido de outro.
Redobro meus esforços, mas estou fraco demais para erguê-lo o
suficiente para soltar suas correntes.
Uma sombra aparece ao meu lado. Ela fecha os braços na
cintura de Tycho e me ajuda a levantá-lo.
– Aqui – uma voz suave e feminina diz. – Eu te ajudo.
Lia Mara. A garota de Syhl Shallow. Estou confuso, minha visão
está embaçada, e me pergunto se estou alucinando.
– Como… como você…?
– Rápido! – ela fala. – Os guardas do castelo estão de pé.
Eu me apresso. Cerro os dentes e me impulsiono, erguendo-me
da mesma forma que antes. O suor escorre em meus olhos e meus
músculos tremem, ameaçando ceder, mas com Lia Mara segurando
Tycho, consigo torcer suas correntes e me apoiar na parede.
Preciso de um centímetro. Junto o pouco de força que ainda me
resta.
Sua corrente finalmente se solta do gancho. Lia Mara tenta
sustentá-lo, mas Tycho desaba no chão. Quase caio em cima dele.
Meus dedos se afundam nos paralelepípedos, mas não consigo me
mover. Meus braços estão se retorcendo de cansaço e meus
pensamentos se embaralham e se dispersam.
Lia Mara está de joelhos na minha frente, com os cabelos ruivos
brilhando sob a luz das tochas.
– Você tem que fugir.
Não consigo correr. Não consigo nem ficar em pé.
– Vá – digo.
Seus olhos vão de mim para Tycho e para o castelo.
– Vá – digo novamente. Minha voz falha. – Você não vai
encontrar paz aqui.
Os gritos alcançam o pátio, e logo os guardas e os servos do
castelo irrompem pelas portas, inundando o espaço aberto. Lia Mara
se esconde nas sombras.
– Encontre o curandeiro Noah! – uma mulher berra, seguida de
um homem que, por sua vez, berra: – Proteja a princesa!
– Não! – a voz de Harper atravessa o pátio, aguda e
desesperada. – Onde ele está? Onde está Rhen?
– Aqui! – um guarda grita.
E de repente, Harper está lá, agachada sobre o príncipe.
– Rhen… Rhen, você consegue me escutar? – Ela pega sua
mão. – Ele está respirando. Noah, ele está respirando.
Pisco e vejo que Noah está ao lado dela.
– A pulsação está forte – ele diz, com uma mão no pescoço de
Rhen. – Parece que foi um episódio sincopal.
– Um… o quê?
– Ele desmaiou. – Em seguida, o curandeiro examina Dustan,
caído de bruços ao lado de Rhen. – Todos eles desmaiaram. – Ele
parece confuso. – Deixem todos no chão – ele diz para as dezenas
de guardas e servos brotando no pátio feito um enxame. – Jake!
Cuide para que as vias respiratórias estejam desobstruídas.
Harper olha em volta.
– Então eles todos só…
Seus olhos encontram os meus.
Não faço ideia do meu estado, mas deve ser tão grave quanto
parece, porque ela fica pálida e agarra o braço de Noah.
– Grey… – ela murmura.
Pisco de novo, e ela está de joelhos à minha frente.
– Oh, Grey… – Ela pega minhas mãos. Lágrimas brilham em
seus cílios. – Grey, eu não sabia.
À minha direita, um dos guardas caídos começa a se mexer,
balançando a cabeça vigorosamente.
Apoio uma mão no chão. Tenho que fugir.
– Eles precisam ir para a enfermaria – Noah diz. Está agachado
ao lado de Tycho, e sua voz está tomada pela fúria. – Acho que este
garoto está em choque.
– Eles estão acordando! – uma voz grita do outro lado do pátio.
Não posso ser levado para a enfermaria.
Harper me olha nos olhos.
– Por favor. – As palavras parecem ter sido arrancadas da minha
garganta.
Não preciso falar mais nada. Ela se levanta e começa a distribuir
ordens.
– Levem o príncipe para seus aposentos! Coloquem água para
ferver e preparem compressas quentes. Levem todos os guardas
inconscientes para a enfermaria. Jake! Preciso de você.
Seu irmão se aproxima, afastando a multidão.
– Harper, o que… – Ele se interrompe quando vê Tycho e eu
deitados nas sombras na lateral do castelo. Ele solta um longo
suspiro. – Minha nossa…
– Jake – Harper diz em um sussurro apressado –, preciso que
você os tire daqui.
Sua expressão fica severa de repente.
– Sem chance. Se eu os tirar daqui, a gente nunca vai voltar pra
casa.
– Olhe o que Rhen… olhe o que ele… – A voz dela falha. – Você
acha que vai conseguir voltar pra casa se ele tiver a chance de
terminar o que começou?
Jake vira para mim e, embora sua expressão seja sombria, ele
não é bondoso e misericordioso como sua irmã. Ele se joga no chão
ao meu lado para me olhar nos olhos.
– Se eu te ajudar, quero sua palavra de que você vai me levar pra
casa com Noah assim que conseguir.
– Sim – digo.
– Jure. Faça um juramento – ele diz.
– Eu juro. – Não faço ideia de como vou cumprir minha promessa,
mas juro prontamente, se isso significar que ele vai nos ajudar a
escapar daqui. – Juro que vou devolver vocês assim que possível.
– Feito. – Ele se levanta. – Harper, o que você quer que eu faça?
CAPÍTULO VINTE E UM

LIA MARA
O caos impera no pátio.
Fico observando e esperando das sombras.
Ninguém repara nos dois homens carregando Grey e o garoto
para fora do pátio enquanto todos são levados para dentro do
castelo.
Ninguém repara na pequena carroça partindo do lado escuro dos
estábulos, com um homem de pele marrom atiçando os cavalos, em
voz baixa.
Ninguém repara na princesa Harper assistindo à carroça
desaparecer floresta adentro.
E, finalmente, ninguém repara que estou subindo nas costas de
um palafrém prateado para também desaparecer floresta adentro.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

GREY
Acordo de frente para uma fogueira, deitado de bruços sobre uma
pilha de cobertores macios. Não me lembro de ter pegado no sono e
não reconheço nada. As paredes são recobertas por painéis de
madeira e a lareira é pequena. Não estou no palácio.
Respiro fundo, e cada ferida do meu corpo protesta. Reprimo um
grito.
– Da última vez que costurei você, você me ignorou e saiu pra
lutar contra um monstro. – A voz de Noah é baixa, vinda do lado
oposto da sala. – Acho que isso pode te segurar no lugar.
Tenho que me esforçar para virar a cabeça. Noah está curvado
em uma cadeira de madeira no canto próximo à porta, com uma
caneca fumegante entre as mãos. À sua esquerda, há uma ampla
cama de estrado. O rosto de Tycho está enterrado nos cobertores,
mas reconheço seu cabelo loiro e seu braço levemente musculoso
caído no chão.
Mesmo daqui, posso ver as listras vermelhas que adornam suas
costas. Desvio os olhos.
É minha culpa.
Há outro homem deitado na cama, mas só vejo suas botas. Deve
ser Jacob.
Não faço ideia de onde estamos, mas, no momento, não me
importo. Ergo uma mão para esfregar os olhos, e até isso dói de
formas que eu não imaginava.
– As feridas do chicote precisaram receber pontos?
– Algumas, sim. As de Tycho eram mais superficiais, mas não
muito. Acho que pegaram leve com ele. – Sua voz está cheia de
repulsa.
– Você está bravo.
– Pode apostar que estou bravo. Sei que as coisas são…
diferentes aqui, mas não importa. Guerra e tortura são duas coisas
distintas.
Não discordo dele. Depois de tudo o que Lilith fez, isto parece
pessoal demais – e, de alguma forma, mais humilhante. Aperto o
cobertor. Falando em humilhação, meu corpo tem necessidades.
– Noah, eu preciso…
– O quê? Ah. – Ele se levanta da cadeira.
Ficar de pé exige toda a minha força, mesmo com Noah me
segurando debaixo dos braços.
– Temos que ir lá fora. Você pode se apoiar em mim.
Não quero me apoiar, mas, após alguns passos, meus ouvidos
estão zumbindo e minha visão fica turva, então cedo. Seguimos por
um corredor curto e saímos por uma porta. O ar é fresco e límpido –
um alívio e, ao mesmo tempo, um ataque às minhas costas nuas. O
alvorecer é uma promessa roxa no horizonte. Ainda é cedo, então
Noah fecha a porta atrás de nós. Um trecho de grama leva a um
pequeno celeiro, que brilha ao luar.
De repente, reconheço onde estamos. A última vez que estive
aqui era pleno inverno, e a neve cobria tudo de branco.
É a Crooked Boar. A pousada que ofereceu abrigo para Rhen e
Harper. A pousada onde tudo mudou.
Esfrego os olhos de novo.
Ele me conduz para um pequeno bosque.
– Você quer que eu fique pra te dar apoio? Ou prefere
privacidade?
Neste momento, não me importo, mas fico grato que ele esteja
me permitindo um pouco de dignidade.
– Consigo ficar de pé – digo, sem muita certeza. Ele se afasta,
mas apenas o suficiente para se apoiar na pousada e desviar os
olhos. Quando termino, ele já está de volta sem que eu precise
chamá-lo.
– Você está sendo gentil. Não acho que eu mereço.
– Quando me tornei médico, fiz um juramento prometendo ajudar
pessoas que precisassem de mim. – Eu me apoio nele. – Elas
merecendo ou não.
Perto da porta, hesito. Mesmo aqui, neste lugar seguro, só a ideia
de entrar em um espaço fechado faz meu coração acelerar.
– Gostaria de ficar aqui fora – digo.
Penso que Noah vai recusar, mas ele muda a direção para me
ajudar a alcançar o banco ao lado da parede dos fundos da
pousada.
No entanto, não consigo ficar confortável sentado ali. Contento-
me em apoiar os antebraços nos joelhos e cerrar os dentes contra a
dor nas minhas costas. Ficamos em silêncio por um longo tempo,
respirando o ar do amanhecer.
– O que aconteceu, exatamente? – Noah enfim pergunta. – Por
que eles desmaiaram daquele jeito?
Eu me lembro do estrondo, do clarão e do silêncio repentino.
Eu me lembro do desespero que senti quando percebi que Rhen
queria açoitar Tycho para me forçar a me render.
É um nível de crueldade que eu não esperava.
– Não sei – respondo.
– Sei que existe magia aqui, mas é difícil acreditar, até você ver
dezenas de pessoas caírem duras feito pedra de repente.
Meus ombros ficam tensos.
– Foi você, não foi?
Não digo nada.
– Se não foi você – ele continua –, foi Tycho, mas ele estava
inconsciente, e você não. Então…
Fico olhando minhas mãos. O sangue está seco nos nós dos
meus dedos, misturando-se com a terra e a areia.
– Se você descobriu, o príncipe logo vai descobrir também. –
Ergo os olhos para a grama e os estábulos. – Vamos ter que sair
daqui. O estalajadeiro e sua família correm perigo em minha
presença.
No entanto, não faço ideia para onde ir ou para onde levar Tycho.
– É você que todos estão procurando – Noah diz. – O feiticeiro. –
Ele pausa. – O herdeiro.
Ele fala como se não pudesse acreditar, mas assinto.
– Você sabia? Durante todo o tempo que ficou preso na
maldição… você sabia?
– Não. – Minha voz fica esganiçada pela raiva, alimentada pela
dor nas minhas costas. – Você acha que eu teria aguentado o que
aguentei se soubesse que possuo algum tipo de magia? Sério?
Ele está me encarando, impassível, e solto um suspiro. A raiva
que sinto não é por Noah.
– Só descobri quando levei Lilith para o outro lado. Ela tentou
comprar a liberdade com a verdade. Mesmo então, eu não sabia
como manejar a magia. – Pauso. – Ainda não sei o que fiz no pátio.
– Quando Lilith te contou a verdade… por que você fugiu? Por
que foi embora?
– Karis Luran já tinha espalhado a dúvida no primeiro dia em que
veio a Ironrose. Eu sabia que minha existência ameaçava a linha de
sucessão. – Espero um pouco. – Pensei que seria mais fácil se todo
mundo pensasse que eu estava morto.
Ele fica em silêncio por um tempo.
– Isso parece mais fácil, Grey?
Penso nos olhos sombrios de Rhen quando conversamos em
seus aposentos, na desconfortável tensão de seu corpo quando ele
me contou sobre Silvermoon e tudo o que estava em risco.
– Não imaginei que Rhen teria mais medo da magia que de
perder o trono. Eu errei.
Noah faz uma careta.
– O medo faz as pessoas tomarem atitudes que nunca
esperaríamos.
– De fato. Ele provou isso ontem à noite.
– Por que você não contou pra ele de uma vez? – ele pergunta,
mas depois suspira sem esperar uma resposta. A raiva se infiltra
mais uma vez em suas palavras. – Esquece. Eu vi o que ele estava
disposto a fazer pra conseguir uma resposta, e só posso imaginar o
que ele teria feito depois.
– Emberfall já está correndo o risco de entrar em uma guerra civil.
Um ataque de Karis Luran pode estar iminente, especialmente
agora que Rhen fez a filha dela de prisioneira. – Paro de repente
conforme um lampejo de uma memória corta a confusão da minha
mente. Lia Mara ao meu lado, segurando Tycho para me ajudar a
libertá-lo da parede. Isso aconteceu mesmo? Será que ela fugiu?
Não consigo juntar as peças, e provavelmente não importa mais.
Balanço a cabeça. – Rhen está tentando manter seu país sob
controle.
Noah não diz nada. Mudo de posição, buscando me ajeitar, e
coloco os braços exatamente onde estavam.
– Você devia voltar para Ironrose – digo. – Agora, enquanto ainda
é cedo. Você será visto como um traidor se for descoberto comigo.
– Não.
Ele fala de modo tão simples. Viro a cabeça para olhá-lo, mas
seus dentes estão cerrados, seus braços, tensos, apoiados sobre os
joelhos.
– Não?
– Já falei pra Jake que prefiro ser cúmplice da sua fuga do que
das ações de Rhen.
– Por causa do seu juramento?
– Porque é errado. – Ele me encara, e sua voz é severa. – De
onde venho, pessoas como eu têm experiência com esse… tipo de
tortura. Não vou fazer parte disso. Não me importo se isso faz de
mim um traidor.
Eu o observo.
– Noah… já existem boatos sobre você possuir magia. Se fugir
comigo…
– Magia. – Ele faz uma careta. – É medicina. Ciência. Sabe o que
é engraçado? Do outro lado, eu era julgado pela cor da minha pele.
Por gostar de homens. Daí venho para cá e ninguém liga pra essas
coisas. Aqui, eles questionam se um curandeiro é nobre o suficiente
pra amar um príncipe. Eles questionam como eu consigo resolver
uma alergia ou fazer a febre baixar. – Ele revira os olhos.
Uma brisa sopra entre o celeiro e a pousada, fazendo-me tremer.
Meu coração implora por ação, mas não posso fazer muita coisa.
– Quanto tempo vai levar pra essas feridas melhorarem? –
pergunto.
– Semanas. – Ele faz uma pausa. – Talvez menos. Vou ver se a
esposa do estalajadeiro tem gengibre ou açafrão pra amenizar a
inflamação.
Abaixo a voz, apesar de ainda ser cedo e todos estarem
dormindo.
– Eles acham que estamos aqui por quê?
– Eles só viram Jake e eu, e eles nos conhecem. Dissemos que
você e Tycho foram feridos em um assalto na estrada e
precisávamos passar algumas noites aqui.
Uma boa desculpa, nada que vá levantar suspeitas. Terei que
encontrar uma camisa antes que alguém veja minhas costas.
– Tycho passou por… muita coisa – digo, olhando para ele de
relance. – Ele acordou ontem à noite?
– Sim, várias vezes. – Ele pausa. – Ficou perguntando se
conseguimos tirar você dali também.
Fico vendo o rosto do garoto no sótão de Worwick. Vou guardar
seu segredo, Hawk.
Passo uma mão no queixo.
– Eu jamais devia tê-lo envolvido nisto. Em nada disto.
Para minha surpresa, Noah ri baixinho.
– Você provavelmente não teria conseguido impedi-lo. O garoto
se jogaria de um precipício por você.
Tomo fôlego para responder, mas ouço cascos batendo no chão e
paro. Já estou de pé antes que meu corpo proteste.
– Dois cavalos, no mínimo – digo para Noah. – Talvez mais. –
Levo a mão à cintura automaticamente, procurando pela espada,
mas não acho nada.
Como se eu pudesse lutar.
– Vá para dentro – digo. – Esconda os outros. Vou pegar um
cavalo. Eles estão me procurando.
– Você não pode cavalgar! Você não…
– Vá!
Não vamos conseguir ser rápidos o suficiente. Os cascos já estão
quase na propriedade. Os guardas vão vasculhar as instalações e
acabar com qualquer um que se colocar no caminho.
Um cavalo surge na lateral da pousada, e penso que está tudo
acabado. Eles devem ter enviado mais homens para que eu não
escape pelos fundos. Minhas mãos estão cerradas em punhos. Não
sinto mais a dor em minhas costas.
– Grey?
Congelo. É Harper… e, atrás dela, em outro cavalo, está Zo.
Não sei o que isso significa. Olho para elas.
Harper desmonta sem hesitar.
– Não tenho muito tempo. Rhen vai ter uma reunião com os
conselheiros. A Guarda Real vai procurar por você durante o dia. –
Ela se atrapalha com um alforje, carregando-o pela clareira em
minha direção. Sua expressão está sombria e preocupada. – Aqui,
trouxe algumas roupas… – Seus olhos percorrem meu corpo, e sua
voz se interrompe. – Ah, Grey.
Ela ainda nem viu o pior, mas sei que há duas marcas dos
chicotes que envolveram minhas costelas. Uma delas segue
paralela à cicatriz que ganhei lutando contra Rhen em sua forma
monstruosa – o que parece condizente com essa situação, de algum
jeito.
Ela estica a mão para tocar meu braço. Seus dedos são quentes
e gentis.
Quando tenta me virar, não deixo.
– Não.
Seus olhos encontram os meus, e sua compaixão é quase pior
que a humilhação pelo que aconteceu. Uma tensão pesada paira
entre nós, quebrada só quando Noah se aproxima para pegar o
alforje.
– Ele precisa vestir uma camisa – diz.
Isso a impele a agir.
– Hum. Sim. Roupas! Aqui. – Ela abre a bolsa e puxa uma
camisa.
Se sentar no banco já foi doloroso, imagino como vai ser mover
meus braços por dentro das mangas.
Mas minha imaginação não faz justiça ao que sinto. Atear fogo no
meu corpo seria melhor. Noah ajuda como pode, mas, quando o
tecido folgado desliza em minhas costas, fico zonzo e suado.
O olhar piedoso de Harper não colabora.
Jogo-me no banco, porque a alternativa é me jogar no chão aos
seus pés. Digo com a voz rouca:
– Eu disse o que ele faria. Disse que não o culparia por isso.
As palavras me soam falsas. Ou… incompletas.
Eu não culparia Rhen se ele fizesse isso comigo.
Harper se senta ao meu lado. Não consigo olhá-la nos olhos.
– Eu o culpo por isso – ela diz baixinho.
– Milady – Zo fala, perto dos cavalos. – Se quiser evitar que nos
descubram, temos que ir embora.
– Ainda não. – Harper pega minha mão. – Grey…
Finalmente olho para ela.
– Não suporto sua pena.
Ela fecha os dedos nos meus antes que eu retire a mão.
– Não estou com pena de você. – Harper me observa. – É você,
não é? – Faz uma pausa. – Você possui magia.
Isto é diferente de quando Noah me perguntou a mesma coisa.
Harper estava presa conosco. Ela correu muitos riscos. A cicatriz
em sua bochecha é prova disso. Pensar que eu poderia ter lutado
contra Lilith de outra forma é quase avassalador.
– Sinto muito – digo. – Eu não sabia.
– Você é irmão de Rhen. – Sua voz está bem baixa. – Durante
todo o tempo que passamos presos na maldição, nenhum de vocês
sabia.
– Teria sido pior saber. – Conforme digo essas palavras, percebo
que não sei se é verdade. Franzo a testa. – E claramente não
importa mais, se ele planeja enviar a Guarda Real atrás de mim.
– Eu… queria que você tivesse me contado. Queria que tivesse
contado para ele. – Agora ela franze a testa, como se percebesse
como as coisas teriam acabado se eu tivesse contado. – Eu
queria… queria…
– Eu queria muitas coisas enquanto estávamos presos na
maldição. Querer não resolve nada. – Paro de falar e olho para Zo
mais uma vez. – Você não pode ficar aqui. Se for descoberta
comigo… Rhen será obrigado a tomar alguma atitude, e não gosto
de pensar no que ele seria capaz de fazer.
A expressão de Harper endurece.
– Primeiro, gostaria de vê-lo tentar fazer algo. Segundo, você fez
todo mundo naquele pátio tombar, incluindo ele. Ele morre de medo
de ser prisioneiro da magia de novo. – Ela faz uma pausa. – Ele não
vai sair atrás de você sem uma estratégia. Quero ver se consigo
impedi-lo antes que isso aconteça.
Ela é tão feroz. Lembro por que todos em Emberfall acreditam
que ela tem um exército à disposição.
No entanto, ela não vai conseguir impedir Rhen. Se ele estava
disposto a fazer o que fez, não vai parar agora.
A porta dos fundos da pousada range. Espero ver o estalajadeiro
ou sua esposa, mas é Tycho que sai cambaleando. Está pálido e
sem camisa, com um olhar um pouco perturbado.
Jacob está atrás dele, esfregando os olhos.
– Viu? Eu disse que eles ainda estavam aqui. Oi, Harp.
– Oi – ela diz, com os olhos no rapaz. – Tycho, aqui. Sente-se.
Não é uma ordem, mas ele abaixa a cabeça e murmura:
– Sim, milady. – E se senta no banco tão cuidadosamente quanto
eu.
Harper examina suas costas com seus olhos ferinos, então vira-
se para mim com a mandíbula cerrada.
– Ele foi longe demais.
Eu não retruco. Ficamos em silêncio. Uma brisa faz Tycho tremer.
Preciso de um plano. Quando fugi de Ironrose meses atrás,
estava ferido, mas não tão gravemente. Ninguém estava me
procurando, então consegui encontrar trabalho com Worwick.
Agora todos estarão procurando por mim. E provavelmente por
Tycho também.
Nenhum de nós está em condições de se defender. Qualquer um
que nos der abrigo estará se colocando em risco.
– Precisamos fugir – digo.
Tycho me olha. Seus olhos estão nublados de dor e exaustão,
mas a esperança se acende quando ele ouve minhas palavras.
– Sim.
Balanço a cabeça.
– Não sei para onde podemos ir.
Nos limites do prédio, percebo um movimento através da névoa e
das sombras do amanhecer. Um corpo encapuzado surge na
esquina.
Levanto-me. Zo desembainha a espada.
– Acalmem-se – Lia Mara retira o capuz. – Sei de um lugar para
onde vocês podem ir.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

LIA MARA
Menos de doze horas atrás, vi este homem ser açoitado até a pele
de suas costas se abrir, e agora ele está de pé como se estivesse
pronto para enfrentar um exército. Ele deve ter sido um guarda
feroz. Ele é feroz agora, mesmo pálido e fraco no silêncio gelado do
quintal. Seu olhar faz meu coração saltar e palpitar, e não tenho
certeza se devo correr, ficar parada ou procurar uma arma.
– O que você está fazendo aqui? – ele pergunta. Um fio de
tensão em sua voz denuncia sua exaustão.
– A mesma coisa que você, acho.
– Você nos seguiu.
Levanto as sobrancelhas.
– Você estava quase morto. Não foi muito difícil.
A princesa Harper coloca uma mão no braço de sua guarda.
– Guarde a espada – ela diz baixinho. E se vira para mim: – Você
disse que sabe de um lugar para onde eles podem ir?
– Claro. Ele seria bem-vindo em Syhl Shallow.
– Não – Grey fala.
– Estou oferecendo asilo em um lugar onde o príncipe Rhen não
pode te procurar.
– Então você está sugerindo que eu troque a tortura de um
soberano por outro.
– Tortura? – Quase solto uma gargalhada. – Você é o legítimo
herdeiro de Emberfall. Minha mãe não vai te machucar. – Ela
provavelmente vai encher o bolso dele de prata e seus ouvidos de
promessas. Nolla Verin vai ver seus olhos escuros e ombros largos
e bajulá-lo inteirinho.
Eu deveria estar feliz – orgulhosa, até – mas esses pensamentos
fazem meu estômago se revirar.
Dou um passo à frente, e ele fica mais tenso. Ergo as mãos.
– Você mal consegue ficar de pé. Você disse que não tem para
onde ir. – Olho para a princesa Harper. – Quer acreditem em minha
mãe e em meu povo ou não, eu realmente vim aqui na esperança
de trazer paz para os nossos países. Estou oferecendo paz agora.
Harper franze a testa e olha para ele.
– Grey… você não está seguro aqui.
– Syhl Shallow fica a vários dias daqui. – Ele inspira devagar. –
Se cavalgarmos rápido.
– Podemos ir assim que possível e descansar sempre que você
precisar.
– Não – diz o homem parado perto da parede da pousada. Foi ele
e o curandeiro que arrastaram Grey do pátio. Príncipe Jacob. Sua
pele está bronzeada do verão, seu cabelo é escuro e encaracolado
como o de Harper.
Harper pragueja baixinho e diz:
– Jake, por favor.
– Ele está sob juramento agora. Eu decido para onde ele vai.
Olho para Grey.
– Você é o príncipe herdeiro e jurou sua vida a outro homem?
– Não jurei minha vida. E não sou o príncipe herdeiro. – Grey olha
para Jacob. – Jurei te levar assim que puder. Para te devolver a
Decê, preciso da pulseira que a feiticeira me deu… e que ficou em
Rillisk quando eles me prenderam.
Príncipe Jacob xinga.
– Eu disse que não seria fácil. Falei isso quando o pegamos pela
primeira vez.
– Tycho e eu não podemos voltar a Rillisk ou seremos
reconhecidos – Grey diz. – Rhen provavelmente já enviou guardas
para lá.
A expressão de Harper é sombria.
– Enviou.
Jacob cruza os braços.
– Ótimo. Que seja. Ainda assim, não vou deixar que ele vá para
outro país e correr o risco de nunca mais vê-lo de novo.
– Você será bem-vindo em Syhl Shallow – digo. – Posso garantir
sua segurança também.
Eles ficam me encarando em silêncio.
O vento corta o quintal, balançando a minha capa.
– Vim aqui procurando paz. Gostaria de ter a oportunidade de
provar para vocês.
Ninguém fala nada.
Finalmente, Tycho diz:
– Ouvi dizer que, em Syhl Shallow, a rainha executa seus
prisioneiros e come suas partes.
Agora minhas mãos viram punhos.
– E que, em Emberfall, o príncipe herdeiro açoita garotos
inocentes quase até a morte por interesses políticos. Ah, perdão, eu
testemunhei isso com meus próprios olhos.
Tycho enrubesce e desvia o olhar.
Grey passa uma mão pelo queixo, suspira e diz:
– Vamos para noroeste, na direção do desfiladeiro.
Levanto a sobrancelha.
– Você concorda?
– Ainda não. Mas se Rhen está me procurando em Rillisk, se está
pensando que vou encontrar aliados e amigos lá, faz sentido seguir
na direção oposta. – Ele me olha nos olhos. – Se bem que ele deve
estar te procurando também, e não é segredo nenhum para onde
você vai. Uma princesa de Syhl Shallow vai encontrar poucos
amigos em Emberfall.
– Então vamos formar um bom time.
Jacob olha para Harper.
– Você devia vir com a gente.
– Preciso voltar.
– Não! – ele esbraveja. – Isso foi longe demais, Harp. Você sabe.
Você não quis vir comigo antes, mas pode vir agora. – Ele faz uma
pausa. – Podemos finalmente voltar para casa.
Ela empalidece um pouco, mas continua firme.
– Jake… Rhen não é cruel. Você não viu como ele ficou ontem à
noite… depois… depois que vocês saíram… – Sua voz falha.
– Eu não me importo – Jacob diz.
Ela enxuga as lágrimas e endireita a postura.
– Eu me importo. – Ela para e olha para Grey. – E Rhen se
importa também. Grey… ele não tem ideia.
– Agora ele sabe – Grey fala. Sua voz é suave. – E mesmo
assim, enviou soldados a Rillisk.
– Por favor. – Ela olha para Jacob. – Por favor, o que ele fez foi
horrível, mas você tem que entender…
– O que eu entendo é que estamos em perigo – Grey interrompe.
– E não temos o tempo a nosso favor.
– Venha com a gente – Jacob pede.
Por um momento, Harper olha para ele e depois para Grey, se
demorando nele um pouco mais.
– Desculpe por não ter impedido – ela diz baixinho.
– Uma princesa não deve pedir desculpas… – ele começa.
– Devo, sim – ela continua. – E uma princesa deve, sim. – Ela dá
um passo para trás. – Vou fazer o que puder. Prometo.
•• ••
Depois que Harper parte para Ironrose, pegamos a carroça. Jacob e
Noah seguem nos cavalos, e uma grande lona cobre a traseira.
Grey e Tycho estão deitados de bruços sobre uma fina camada de
palha, falando tão baixo que não consigo ouvir em meio aos
rangidos e chiados do veículo – ou às batidas do meu coração
acelerado. Estou deitada de barriga para cima na lateral, com as
mãos sobre o abdômen, observando a lona brilhar conforme o sol se
ergue no céu.
A confortável viagem com Nolla Verin alguns dias atrás parece
mais um sonho que uma lembrança.
Fico me perguntando o que minha irmã achou quando Parrish
voltou com a minha carta. Gostaria de imaginar que ela está
esperançosa por mim – ou ao menos preocupada comigo.
Conforme seguimos, penso na princesa Harper. Grey afirmou que
não há nada entre eles, mas claramente há algo. Quando ela o
ajuda, se coloca em risco. Coloca seu país em risco. Considerando
o apoio militar prometido por Decê que nunca veio, surgem mais
perguntas que respostas. Eu poderia entender se ela quisesse se
aliar a Grey como herdeiro legítimo, mas, nesse caso, ela nunca o
mandaria embora. Muito menos comigo. Ela deve saber que minha
mãe vai querer usar Grey contra Rhen, mas parecia realmente
desesperada para vê-lo a salvo, sem se importar com as possíveis
consequências.
Por fim, a carroça para, e emergimos no meio de uma floresta tão
apinhada de árvores e folhagens que o sol mal consegue nos
encontrar.
Jacob está começando a desatrelar os cavalos, e Grey diz:
– Solte-os. Eles carregam a marca real. Vamos ter que ir a pé.
– Você quer caminhar até Syhl Shallow?
– Eu não quero caminhar para lugar algum. – Grey olha para
cima e ao redor, piscando diante das faixas de luz que atravessam
as folhas. – Podemos pegar alguns cavalos na próxima cidade. –
Ele olha para o irmão de Harper. – Posso pedir a sua espada?
Jacob faz uma careta.
– Bem, eu te diria que não.
Grey se aproxima dele. Seus ferimentos vazaram pela camisa e
criaram um labirinto de linhas rosadas e vermelhas em suas costas,
e ele se move com dificuldade.
– A sua vida não está em risco. A minha, sim.
Jacob cruza os braços e endurece o olhar.
– Você mal consegue ficar em pé. O que vai fazer com isso?
– Só dê a espada para ele – Noah diz.
– Está bem, então. – Jacob olha para Grey de cima a baixo. – Se
conseguir segurar, pode ficar com ela.
A mão de Grey voa tão rápido que eu só percebo que ele se
moveu quando seu punho acerta o queixo de Jacob. Solto um
suspiro quando o outro homem começa a cair. Grey agarra o cabo e
puxa a lâmina antes de Jacob atingir o chão.
– Feito. – Grey aponta para a espada em sua cintura. – O cinto
também.
Jacob se levanta apoiando-se em um braço e cospe sangue na
folhagem.
– Odeio você.
Noah suspira e pega uma mochila pesada, jogando-a sobre o
ombro. Ele me encara com seus olhos castanhos.
– Lia Mara, não é? Vamos andando. Venha, Tycho.
Ele se vira. Comparado aos outros homens, admiro sua quietude,
sua não estupidez. Apresso-me para caminhar ao lado dele. Tycho é
como uma sombra.
– Você não sabe para onde está indo! – Jake grita atrás de nós.
– Sei para onde é o noroeste – Noah responde. – Não vou te
costurar de novo, Grey.
– Você disse que fez um juramento. Você tem que me ajudar, não
importa o que aconteça. – As folhas e os arbustos fazem barulho
atrás de nós, então sei que eles estão nos seguindo.
Por algum motivo, pensei que fôssemos caminhar um pouco até
encontrar uma cidade, mas nos esgueiramos pela floresta por horas.
O terreno é acidentado e nosso ritmo é lento, então ninguém fala
nada até que eu esteja faminta, Grey mancando e Tycho ofegando.
O garoto enxuga o suor dos olhos vermelhos, e me pergunto se ele
também está secando lágrimas.
– Talvez a gente devesse descansar – digo, e Tycho me lança um
olhar grato.
Grey olha ao redor.
– Estamos a menos de oito quilômetros do riacho. Podemos
acampar aqui e sair de novo depois da meia-noite.
Oito quilômetros. Agora eu quero chorar. Caminho ao lado de
Tycho. Ele mantém os lábios cerrados, e está obrigando as pernas a
se moverem.
– Oito quilômetros não vão levar muito tempo – digo, em parte
tentando convencer a mim mesma. – E riacho significa água.
Grey deve ter ouvido meu tom de encorajamento, porque olha
para nós e nota a expressão de Tycho.
– Se houvesse caranguejos cozidos no final, você sairia correndo
– ele diz.
Um sorrisinho escapa em meio à melancolia do rapaz.
– Eu chegaria antes que você.
– Podemos não falar sobre comida, por favor? – Jacob diz.
Voltamos para o silêncio. Grey perde o equilíbrio ao passar por
uma árvore caída, mas se recupera apoiando a mão em outro
tronco. Ele não fala nada, mas demora um pouco até conseguir
prosseguir.
Chegamos em um ponto em que não sei dizer se isso é força ou
teimosia.
– Você não pode usar magia para se curar? – pergunto. – Ouvi
histórias de feiticeiros…
– Não posso usar magia.
Tycho o observa.
– Você usou magia para nos libertar. – Ele faz uma pausa, então
olha para mim. – E… lá no Worwick.
– No Worwick, eu tinha uma pulseira enfeitiçada. Em Ironrose… –
Ele suspira. – Não faço ideia do que aconteceu em Ironrose.
– Talvez a gente devesse te dar uma porrada de novo pra ver o
que acontece – Jacob diz.
Grey o encara.
– Tente.
– Não o provoque – Noah pede.
– Por que vocês homens transformam tudo em violência? –
interrompo. – Nem todos os problemas podem ser resolvidos com
uma espada.
– Sua mãe com certeza acha que sim. – Grey me encara com
olhos ferozes. – Nem todos os problemas podem ser resolvidos com
a sua língua.
As palavras não são sugestivas, mas fico vermelha mesmo
assim. Mesmo ferido e mancando, com suor e sangue grudando em
sua camisa, ele é implacável. Sinto falta das brincadeiras fáceis de
Sorra e Parrish. Brincadeiras que nunca mais vou ouvir por conta
das minhas próprias escolhas. Da minha lealdade equivocada. Eu
queria ser rainha, mas mamãe fez a escolha certa ao nomear Nolla
Verin.
Minha garganta começa a fechar, então afasto esses
pensamentos antes que eles consigam me dominar.
– Eu me ofereci para te ajudar – digo. – Não sou sua inimiga.
– Você é inimiga de Emberfall. É uma ameaça à Coroa.
Agora entendo. É o ex-guarda quem está falando. Sustento seu
olhar.
– Você também.
Ele cerra a mandíbula e não responde nada.
•• ••
Ouvimos o barulho do riacho muito antes de vê-lo fluindo depressa
entre as árvores. O curso d’água é mais largo do que eu esperava,
com pelo menos seis metros de uma margem à outra e algumas
poças rasas onde a água se acumulou.
Tycho quase cai de joelhos na lama, colocando as mãos na água
corrente e levando-a aos lábios.
– Temos que fervê-la antes – Noah diz, mas todos já estamos
imitando Tycho.
Só percebi que estava com muita sede quando a água fria tocou
meus lábios. Mesmo quando fiquei trancada em um quarto no
Castelo Ironrose, eu ainda tinha acesso à comida e água. Não
consigo me lembrar de já ter passado o dia todo sem sustento.
Estou sugando minhas mãos como um animal, mas ainda não estou
satisfeita.
Uma mão se fecha no meu braço.
– Vá com calma – Grey diz. Pela primeira vez, sua voz não é
dura, apenas cansada. – Você vai acabar vomitando.
Me pergunto se essa é uma tentativa de aliviar a tensão entre
nós, mas, quando ergo a cabeça, ele já está se afastando. Jacob
está juntando lenha em uma pilha. Seco as mãos nas calças e o
sigo, pegando gravetos e folhas secas. Ele me olha surpreso.
– Ei, obrigado.
– Você fica surpreso porque quero ajudar?
Ele sorri timidamente, o que o deixa muito parecido com sua irmã.
Há uma dureza escondida em sua expressão, uma farpa que Harper
não ostenta, mas não vejo falsidade ou malícia. Penso no veneno
entre ele e Grey.
– Considerando o que já vi da realeza – Jacob responde –, sim,
fiquei surpreso.
– Você também é da realeza, não?
Seus olhos se fecham e se tornam indecifráveis.
– De onde eu venho, se queremos que algo seja feito, fazemos
nós mesmos.
Acendemos a fogueira, e o crepúsculo lança sombras compridas
sobre o riacho, trazendo uma brisa fresca que sopra entre as
árvores. Em algum lugar nos galhos acima, uma ave de rapina emite
um aviso. O silêncio entre nós não é confortável nem sociável. Meu
estômago se retorce de fome, mas não temos nada para comer.
– Eu tenho prata – Jacob diz para Grey. – Posso caminhar até a
cidade.
– Há alguma cidade perto? Eu também posso ir – ofereço. –
Podemos fingir ser um casal viajando juntos.
Grey me encara com seus olhos escuros.
– Quanto mais seguirmos ao norte, mais habitantes de Emberfall
terão visto os invasores de Syhl Shallow. Seu sotaque vai te
denunciar. – Ele olha para Jacob. – E o seu vai te revelar como
estrangeiro.
– E daí? Você acha que eles vão mandar um recado a Rhen
dizendo que um cara aleatório de sotaque estranho apareceu do
nada?
– O príncipe ofereceu uma recompensa de quinhentas pratas. Se
acha que as pessoas não estão procurando alguém que possa ser
sacrificado para a Coroa, está redondamente enganado.
Jacob parece querer retorquir, mas Tycho intervém:
– Os guardas executaram um homem em Rillisk. – Sua
expressão é tensa. – Sem provas.
Jacob fecha a boca.
Grey se mexe e faz uma careta. As listras rosadas em sua
camisa ficaram vermelhas, mas ele recusou cuidados.
– Você não vai querer adentrar uma cidade desconhecida no
escuro. Não agora.
Ao seu lado, Tycho suspira.
– Eu daria quase qualquer coisa por uma travessa de
caranguejos da Jodi agora.
Grey dá um sorriso triste.
– Eu daria qualquer coisa por um arco e uma dúzia de flechas.
Jacob inclina a cabeça para trás e olha para o céu.
– Eu daria qualquer coisa por um hambúrguer no capricho da
Chewie’s.
– Oh, sim. – Noah solta uma risada baixa e gostosa, indicando
uma lembrança compartilhada pelos dois.
Sorrio, encantada.
– O que é hambúrguer?
Penso que eles vão relaxar e me explicar, mas, em vez disso,
suas expressões se fecham do mesmo jeito como Jacob fez quando
estávamos recolhendo lenha.
– Acho que nunca mais vamos ver um hambúrguer de novo – ele
diz. – A não ser que Grey nos leve pra casa.
Eu o observo, pensando nas suspeitas de minha mãe sobre Decê
e na maneira como Harper não demonstrou ter a postura de uma
governante – tampouco Jacob. Quando estávamos discutindo sobre
onde encontrar asilo, ninguém mencionou Decê como um lugar
seguro. Nem mesmo a princesa Harper. Tampouco houve menção à
assistência do rei de Decê para lidar com a desordem política em
Emberfall – nem menção alguma sobre a aliança deles correr risco
se Rhen não fosse o herdeiro legítimo.
A não ser que Grey nos leve pra casa.
Olho para Grey.
– Decê só pode ser encontrada através da magia.
Ele me olha de volta com uma expressão inescrutável.
Agora que achei um fio solto, tudo começa a se desenrolar.
– É por isso que não há forças para oferecer apoio a Emberfall.
Elas estão presas em Decê.
Os olhos escuros de Grey não revelam nada, mas Jacob parece
envergonhado. Noah, resignado.
Tycho parece fascinado.
– Há forças ou não? – pergunto para Grey. – Um exército
esperando sua magia?
Ele não responde.
Mas isso diz tudo.
Deixo um suspiro escapar por entre os dentes. Acima, a ave de
rapina guincha mais uma vez.
– Não foi a história que seu príncipe contou para o povo.
Ele não nega nada.
– Fizemos isso para salvar nosso povo. E funcionou.
Bem, pelo menos essa parte é verdade. Mas agora entendo por
que os súditos de Rhen começaram a se voltar contra ele. Ele fez
promessas que não está conseguindo cumprir. Ele comprou a
confiança deles com mentiras, e agora vai ficar mais fraco do que
quando começou.
Olho para Noah e Jacob.
– E vocês estão presos aqui. Não podem voltar para casa.
Eles trocam um olhar.
– Sim – Jacob finalmente diz. – Mais ou menos.
Meu coração acelera, tentando compreender as implicações
dessa descoberta.
– E nenhum de vocês é da realeza, não é?
– Não – Jacob confessa, encolhendo os ombros. – Mas Noah é
médico de verdade.
– Então a princesa Harper não é uma princesa.
– Ela salvou o príncipe de um destino terrível – Grey diz. – Ela
arriscou a vida por Emberfall, e arriscou a vida para me proteger. Ela
pode não ser uma princesa por nascimento, mas é em espírito.
Todos ficamos em silêncio, mas agora há uma tensão reflexiva no
ar. De algum lugar da escuridão, outro guincho ecoa pelas árvores.
Por fim, a maioria dos homens encontra refúgios nas sombras,
mas, apesar da exaustão, meus pensamentos ainda estão agitados.
Grey também não está dormindo. Quando olho para ele, a luz do
fogo brilha em suas bochechas, e percebo que ele está me
observando.
Eu o encaro e espero.
– Você é esperta – ele diz.
Não esperava por isso. A frase não soa como um elogio – nem
como um insulto. Não consigo decifrar seu tom de voz. A ave de
rapina grita para a noite de novo, e eu estremeço.
Grey não desvia o olhar.
– Você sabia que eu era o herdeiro – ele diz baixinho, cuidadoso.
– E descobriu a verdade sobre Decê. O que mais você sabe,
princesa?
Mantenho os olhos no fogo e tento afugentar qualquer desânimo.
– Na verdade, não sou uma princesa. Sou a mais velha de duas
irmãs, mas somente a herdeira escolhida recebe esse título, e não
sou eu.
– Então o que você sabe, irmã mais velha?
Hesito, mas ele é tão franco, tão desprovido de hesitação, que
me faz querer agir do mesmo jeito.
– Sei que você deve ter sido muito leal ao príncipe Rhen para
querer guardar seu segredo. – Faço uma pausa. – Vejo como Tycho
é leal a você, e acho que as atitudes do príncipe Rhen foram quase
uma traição.
Grey esmaga um galho entre os dedos e joga os pedaços no
fogo. Quando ele fala, sua voz está áspera.
– Uma vez, eu disse que ele nunca era cruel. Quis dizer isso
como um sinal de respeito. – Ele se interrompe. – Agora, sinto como
se o tivesse desafiado, e ele aceitou o desafio.
Nolla Verin pode ser cruel, mas não consigo imaginá-la pegando
alguém querido para mim e torturando-o – mesmo por interesses
políticos. A despeito dos meus sentimentos por Rhen, esses
homens têm uma história comum. Não sou capaz nem de pensar o
que deve ter custado a Grey para suportar a tortura – tampouco o
que deve ter custado a Rhen para executá-la.
O ar ficou mais pesado e desconfortável, então viro a cabeça e
olho para ele, forçando leveza na voz.
– Mais cedo, quando todo mundo estava pensando em comida,
você disse que queria uma dúzia de flechas. Por quê?
O esboço de um sorriso se infiltra em sua tristeza.
– Se eu tivesse uma dúzia de flechas, teríamos comida pra uma
semana.
Ah. É claro. Eu devia ter desejado uma dúzia de flechas também.
Ele estremece e pressiona a mão na lateral do corpo. Sua camisa
está grudada em uma ferida aberta. O pássaro guincha novamente,
parecendo mais perto.
– Devo acordar Noah? – sussurro.
– Não. – Grey desgruda a camisa, ofegando com o esforço. Ele
se mexe, e depois se mexe de novo, sem conseguir encontrar uma
posição confortável. Outro guincho ressoa pela floresta. – Se eu
tivesse uma flecha, acertaria essa criatura.
Asas batem sobre as árvores. Em seguida, outro guincho se
interrompe abruptamente.
– Bem – Grey olha para os galhos acima –, acho que alguém já
cuidou disso.
As folhas farfalham, e uma forma negra cai do céu. Um ganso
enorme bate no chão com um baque.
Grey pragueja e recua. Eu solto um grito de surpresa.
Seus olhos encontram os meus, e sua mão agarra a espada ao
seu lado.
Emergindo da escuridão acima, outra forma desce, impulsionada
por um par de largas asas negras que quase cobrem a pequena
clareira. Patas cinzentas feito fumaça pousam nas folhas
silenciosamente. Ele é lindo e assustador, e eu respiro fundo.
– Um rasvador – murmuro, dividida entre medo e fascinação.
Parte de mim quer se afastar, mas outra parte quer se aproximar
para olhá-lo mais de perto. Nunca tinha visto um rasvador fora das
páginas dos livros, e as histórias que li sobre seus feitos desumanos
nas florestas de gelo não me prepararam para esse encontro.
– Sim, princesa – a criatura diz. Suas palavras são suaves, pouco
mais que um sussurro no ar. Suas presas cintilam ao luar conforme
ele fala. Seus olhos são totalmente negros, sem vestígio algum de
branco. – E você – ele diz para Grey –, é Hawk ou Grey?
Ao meu lado, Grey engole em seco. Sua mão está segurando a
espada com firmeza.
O pelo da criatura absorve a escuridão enquanto ela se inclina
sobre nós em uma reverência elegante e intencionalmente
zombeteira, com as asas abertas.
– Oh, perdão. Devo chamá-lo de “Sua Alteza”?
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

GREY

Se Rhen em pessoa tivesse caído das árvores, eu ficaria menos


surpreso.
O rasvador parece maior que no Worwick, apesar de sua jaula ser
pequena e eu nunca tê-lo visto de pé. Nem vestido. Ele está de
calças pretas, sustentadas por um pedaço de couro, deixando seu
peito largo à mostra. A roupa faz com que o rasvador pareça mais
humano – e, de algum jeito, menos humano.
Aquelas garras ainda parecem tão afiadas quanto antes.
Ao meu lado, Tycho se mexe e esfrega uma mão no rosto.
– O que… o que está… – Ele nota o rasvador e fica imóvel. –
Estou sonhando?
– Está acordado. – Noah e Jacob estão dormindo a alguns
metros de distância, então o barulho não os acordou ainda. Não sei
se isso é bom ou ruim.
– Pensei que os rasvadores tinham sido aprisionados em
Iishellasa – Lia Mara diz, em um misto de medo e fascínio.
A criatura vira seus olhos negros e brilhantes para ela.
– Nada disso.
Quando ele fala com a voz baixa e clara, posso sentir cada
palavra na minha pele, como o sopro de um vento gelado. É algo
meio sobrenatural e perturbador, e aperto a espada. Rhen não é o
único que tem um histórico ruim com magia.
– Se eu quisesse te machucar, não teria me anunciado. – O
rasvador cutuca o ganso com a pata.
Ao meu lado, Tycho treme, apesar do calor do verão, e sei que
ele também sente. Ele é o primeiro a se livrar do espanto e se
ajoelha, rastejando para a frente para agarrar o ganso pelo pescoço.
Ele se senta de cócoras perto do fogo e começa a retirar as penas
do animal.
– Até que o rapaz tem bom senso – a criatura fala.
– O rapaz está morrendo de fome – Tycho diz.
– De onde você veio, rasvador? – pergunto, ainda com a mão no
punho da espada.
– Você sabe de onde eu vim. Você mesmo cortou as cordas, Sua
Alteza.
– Pare de me chamar de “Sua Alteza”.
– Então pare de me chamar de “rasvador”. – Ele enfatiza a
palavra, com um V do fundo da garganta e um R que termina em um
rosnado baixo. Desta vez, estremeço como se um pedaço de gelo
roçasse minha pele, e tenho menos vontade ainda de retirar a mão
da arma.
Ao meu lado, Lia Mara está imóvel. Ela fala de um modo objetivo:
– Como devemos te chamar?
– Meu nome é Iisak. – A maneira como ele pronuncia seu nome é
como um sibilo e, ao mesmo tempo, não é. É como pegar a palavra
gelo e arrastá-la até parar.
– Iisak – Lia Mara diz. – Obrigada pelo ganso.
Ainda não estou pronto para ver Iisak como nosso salvador.
– Você esteve nos seguindo.
– Eu vi quando eles o levaram como prisioneiro. Vi quando eles
arrastaram você acorrentado para o castelo. – Ele faz uma pausa. –
Vi quando eles torturaram você e o rapaz.
Tycho franze a testa e mantém os olhos no pássaro, mas eu não
desvio o olhar.
– Por quê?
– Você me libertou. Estou te devendo.
– Eu te libertei para distraí-los. Você não me deve nada.
– Talvez, mas você me deu uma chance de escapar. Você me
disse para onde ir.
Não consigo decidir se essa criatura está brincando comigo ou se
está sendo sincera. Olho para Tycho, que removeu as penas
maiores e agora está trabalhando nas menores.
Uma lembrança vem de repente. Eu devia ter doze ou treze anos.
Era o verão em que meu pai – o homem que eu pensava ser meu
pai – foi ferido. Meu irmão mais novo, Cade, estava tentando, sem
sucesso, depenar um ganso para levarmos ao mercado. Ele estava
desesperado para ajudar. Tínhamos perdido metade da colheita e
havia pouco para vender. Estávamos todos famintos, preocupados e
incertos sobre o que o futuro nos traria.
Mais ou menos como agora.
Afasto a memória.
– Segure-o perto do fogo – digo para Tycho. – Deixe as penas
queimarem um pouco. Vai ficar mais fácil de puxar. – Volto para
Iisak. – E devo acreditar que você me seguiu durante todo esse
tempo porque eu abri a porta da sua jaula?
– Eu te segui porque você é claramente um feiticeiro, e mesmo
assim não usa nenhum dos poderes disponíveis para você. Eu te
segui porque você é o legítimo herdeiro do trono desse país
amaldiçoado, e mesmo assim não o reivindica. – Ele para,
estreitando os olhos. – Eu te segui porque você viaja com uma filha
de Karis Luran, e não consigo chegar em Iishellasa sozinho.
– As florestas de gelo? – Lia Mara pergunta. – Ninguém pode
cruzar o Rio Congelado.
Iisak abre as asas, fazendo o fogo tremular.
– Eu posso. – Sua expressão fica sombria conforme suas asas
voltam para o lugar. – Mas talvez ainda não. Passei meses preso
em uma jaula. – Essas palavras trazem um vento cortante que agita
as folhas no alto.
– Talvez nunca – Lia Mara diz –, se minha mãe descobrir a sua
existência. Os rasvadores se submeteram a um acordo que os
obriga a permanecerem fora de Syhl Shallow desde antes de eu
nascer.
– Então você entende por que acho que podemos nos ajudar.
O dia foi longo e exaustivo e repleto de perguntas. Não faço ideia
de quais são as decisões corretas.
– Estamos viajando devagar agora – digo. – Mas amanhã vamos
encontrar cavalos e armas e poderemos seguir mais depressa.
– Você vai encontrar flechas no seu encalço. – Ele estreita os
olhos e solta aquele rosnado baixo de novo. – Eu vejo muita coisa lá
de cima. As cidades estão cheias de guardas procurando vocês
dois.
Fico imóvel. Sabia que Harper não conseguiria impedir Rhen. Ele
organizou guardas e executores mais rápido do que eu esperava. A
ideia de ter que sair correndo de novo neste exato instante é quase
avassaladora demais para suportar. Mesmo se eu conseguisse,
duvido que Tycho conseguiria.
O garoto se vira. As penas formam uma pilha a seus pés.
– Eu seria capaz de matar para ter uma adaga. Empresta sua
espada?
Começo a puxar a arma, mas Iisak dá um passo à frente, arranca
a carcaça das mãos de Tycho e, com dois golpes de suas garras,
corta o pássaro em pedaços.
Tycho fica olhando para a carcaça, e depois olha para Iisak.
– Ah… obrigado. – Ele se move com cuidado e coloca a carne
nas pedras que estavam no fogo.
Iisak lambe o sangue de suas garras.
Já vi muitas criaturas monstruosas e já fiz muitas coisas terríveis,
de modo que não me abalo com a cena, mas penso que Lia Mara
vai fazer uma careta. Em vez disso, ela parece intrigada.
– Como você saiu de Iishellasa sem quebrar o acordo?
A criatura sorri.
– Eu quebrei.
– Então você espera que eu possa interceder por você com
minha mãe.
– Se eu só me importasse comigo, poderia tentar entrar em Syhl
Shallow sozinho. – Ele faz uma pausa. – Acredito que sua mãe
tenha algo de grande valor para mim. Estou disposto a arriscar ser
punido por quebrar o acordo para obtê-lo.
– O que é? – pergunto.
– Isso é entre a rainha e eu.
Lia Mara o observa.
– Se permitirmos que viaje conosco, o que vai nos oferecer?
Tycho olha para ela.
– Você viu o que ele fez com o ganso? Como vai impedi-lo de
viajar com a gente?
Iisak sorri, mas suas presas o tornam mais assustador do que
tranquilizador.
– Consigo ver o que vocês não veem lá do alto. Posso vasculhar
as cidades em busca de guardas e executores antes de vocês se
arriscarem. – Ele me olha nos olhos. – Até lá, posso alimentar seu
povo, Sua Alteza.
Eles não são meu povo, mas mesmo assim meu orgulho fica
ferido.
– Pare de me chamar assim.
– Posso te ajudar com a magia.
Estremeço quando outra brisa gelada e sobrenatural sopra em
minhas costas, fazendo as marcas dos chicotes arderem.
– Como?
– Nós dois somos criaturas mágicas. Os feiticeiros já foram
aliados de meu povo. – Iisak se aproxima e fico tenso, e mais uma
vez coloco a mão na espada. Tycho não estava errado. Já vi o
estrago que ele pode fazer.
O rasvador para, agachando-se nas folhas à minha frente.
– Se você soubesse como usar sua magia, não teria medo de
mim.
Engulo em seco. Seus olhos estão na altura dos meus, e me
pergunto como foi que não notei a inteligência e sagacidade neles.
Ainda assim, é como encarar um predador. Lia Mara está
completamente imóvel ao meu lado.
Iisak estica uma pata.
– Seu pulso, Sua Alteza?
Lembro o que aconteceu no dia em que Worwick me fez arrancar
a lona da jaula dele. Eu tentei lhe oferecer água e ele afundou
aquelas presas em meu braço. Há um brilho de desafio em seus
olhos agora, e estou vagamente consciente de Tycho e Lia Mara
nos observando com a respiração suspensa.
Solto a espada e estico a mão.
Espero um toque gelado, assim como suas palavras, mas seus
dedos são quentes. Ele vira meu braço para ver a parte inferior.
Ele passa uma garra tão afiada quanto navalha ao longo da
cicatriz irregular deixada por seus dentes, e eu me esforço para me
manter imóvel.
– Você poderia ter curado isto.
– Você poderia não ter me mordido.
Ele ignora minha provocação.
– Seu sangue é cheio de mágica. Aposto que você a invoca sem
saber. Já sobreviveu a um ferimento que teria matado outra pessoa?
– Não, nunca.
Paro e reflito.
Em nosso primeiro outono, quando Rhen foi amaldiçoado a se
transformar em um monstro, ele aterrorizou o castelo e matou quase
todo mundo. Eu fui ferido, todos fomos, mas fui um dos únicos que
sobreviveu.
No segundo outono, eu fui o único que sobreviveu.
Sempre atribuí isso à minha habilidade e a um pouco de sorte.
– Provavelmente você poderia curar suas feridas agora – Iisak
diz. – As do garoto também.
– Como? – Tycho pergunta.
Iisak não tira os olhos de mim.
– Como se aprende a caminhar sobre duas pernas?
Franzo a testa.
– Equilíbrio?
– Necessidade. – Ele afunda as garras em meu braço.
Eu xingo e recuo. Iisak está fazendo força, e o arrasto comigo.
Tento acertá-lo com a mão livre, mas, apesar de seu tamanho, ele é
mais leve e mais rápido do que eu esperava. Ele usa meu antebraço
como alavanca e se impulsiona para me chutar na garganta.
Caio de costas e sou lançado na terra e nas pedras do
acampamento. As feridas nas minhas costas se abrem. A dor
explode pelo meu corpo. Preciso pensar, encontrar a espada, gritar
por socorro. Ele deve ter atingindo meus músculos e tendões,
porque não consigo mais mover meus dedos. O sangue escorre
pelo meu braço. Vejo apenas estrelas e escuridão.
– Concentre-se, Sua Alteza. – Ele está ajoelhado sobre o meu
peito. Uma mão ainda segura meu braço. Três longos cortes
marcam todo o meu antebraço. O sangue parece estar por toda
parte. Sinto o gosto de ferro. – Concentre-se.
Fecho os olhos com força, abro. Não consigo respirar. A terra e
as folhas estão moendo as minhas costas. A dor é como uma coisa
viva e mordaz, arrancando urros da minha garganta. Ouço vozes e
gritos selvagens que não sou capaz de compreender.
Iisak se inclina, até que não vejo nada além de seus olhos.
– Você já fez isso antes – ele diz, com uma voz que é mais um
rosnado que um sussurro. Sinto que minha pele congelou no ponto
em que sua respiração me toca. – Faça de novo.
Meus pensamentos se reviram e se contorcem enquanto as
estrelas preenchem minha visão. Todos estão gritando. Alguém está
me arrastando, mas Iisak rosna e me segura forte, com as garras
enfiadas em meu braço. Não consigo pensar. Não consigo enxergar
nada. Minha garganta está queimando, meus pulmões estão
gritando por oxigênio, mas a dor é tão absoluta que não me lembro
de respirar.
Passei uma eternidade ao lado do príncipe Rhen, sobrevivendo
ao monstro, sobrevivendo a Lilith, sobrevivendo como um guarda, e
vou morrer em um acampamento no mato porque fui burro.
Subitamente, todos ficam em silêncio. Dedos suaves tocam meu
rosto.
– Grey – Lia Mara diz. Sinto sua respiração doce e quente em
minha bochecha. Ela deve estar ajoelhada na grama. – Você
sobreviveu ao que o príncipe Rhen fez com você. Vai sobreviver a
isto.
Meu corpo parece leve, como se não estivesse preso à terra. As
estrelas não estão apenas na minha visão. Eles preenchem minhas
veias e se incendeiam a cada batida do meu coração. Cada
pulsação toma para si um pouco da agonia, até que penso que só
posso estar morto, porque antes havia tanta dor e agora não há
nada mais.
A voz de Lia Mara parece vir de muito longe.
– Grey… respire. Você precisa respirar. – Ela diz, soando
ofegante.
– Está sentindo a magia – Iisak fala, soando triunfante.
Respiro fundo e as estrelas se dispersam, piscando até quase
desaparecerem. Mas ainda estão lá, como pequenos pontos de luz
por todo o meu corpo.
– Abra os olhos – Lia Mara pede.
Pisco e a vejo acima de mim. Seus olhos estão arregalados,
dourados pela luz do fogo, e seus cabelos parecem uma cortina
pendurada em seus ombros.
Iisak ainda está de joelhos em meu peito. Ele traz meu braço para
perto para que eu veja.
– Olhe com seus próprios olhos, Sua Alteza.
O sangue se foi. A ferida se foi. Só sobrou a cicatriz que já existia
antes.
– Necessidade – ele diz.
Atrás dele estão Tycho, Noah e Jacob, todos de olhos
esbugalhados, com uma expressão entre o pânico, a raiva e o alívio.
Olho para a pele macia de meu braço, então para Iisak. Estou
sem voz.
Até que percebo que minhas costas também já não estão
doendo.
– O que aconteceu? – Jacob pergunta. – O que diabos é esta
coisa? – Sua mão treme, e percebo que ele está segurando a
espada.
Iisak rosna e abre as asas levemente. Jacob ergue a arma.
– Não – digo, com uma voz áspera, como se estivesse gritando.
Agora que estou consciente das estrelas em minha corrente
sanguínea, elas parecem cintilar por todos os lugares. Olho para
Iisak. – Solte-me.
Ele recua e se coloca ao meu lado para observar os outros mais
atentamente.
Sento-me com cuidado, esperando que meu corpo proteste a
cada movimento, o que não acontece. Qualquer dor e queimação
das feridas nas minhas costas se foram. Assim como a dor na
minha garganta.
Respiro fundo e olho para o meu antebraço mais uma vez.
O sangue marca as folhas aos meus pés. Meu sangue.
– Jacob – digo devagar –, este é Iisak.
– Iisak – ele repete.
– Um amigo – Lia Mara diz.
Iisak endireita a postura.
– Conquistei meu lugar em seu grupo, então?
Flexiono os joelhos, e toco uma mão na parte de baixo das costas
cuidadosamente. Não sinto dor alguma.
– Sim – digo, sem conseguir evitar um tom de admiração. – Sim,
conquistou.
•• ••
Depois de um dia sem colocar nada para dentro além de água
corrente, o ganso assado parece a melhor coisa que já comi.
Praticamente rasgo a carne com as mãos. Se Jodi me visse agora,
não ousaria me comparar com um nobre. Tycho oferece um pedaço
a Iisak, mas a criatura faz uma careta e diz:
– Vou trazer mais.
Ele bate as asas e sai voando, sumindo na escuridão.
Do outro lado da fogueira, Noah puxa a carne de um osso e olha
para cima.
– Bem quando eu acho que estou entendendo este lugar, algo cai
do céu e vira tudo de cabeça para baixo.
Dou uma risada sem graça.
– Você está completamente curado? – ele pergunta.
Assinto, comendo cada pedacinho de carne do meu osso.
– Posso ver? – Fico imóvel, e ele acrescenta: – Você tinha
pontos. Quero ver se a pele sarou…
Concordo com a cabeça, e ele dá a volta na fogueira para se
ajoelhar ao meu lado. Ergo a camisa e, um momento depois, seus
dedos gelados tocam minhas costas.
– Os pontos se foram – ele diz, pensativo. – É como se tivessem
se passado seis semanas de cura. – Ele hesita.
Viro a cabeça para olhá-lo.
– Como?
– Não sei como sua magia funciona – ele diz magia como se
fosse algo profano –, mas ela não desfez o que aconteceu. As
chicotadas deixaram cicatrizes.
Não digo nada, então Noah abaixa a camisa e se coloca à minha
frente.
– Posso te ajudar a sentir as piores, se quiser.
Não quero. Jogo os ossos no fogo.
– Já vi as costas de homens açoitados.
Não estamos falando alto, mas nossos colegas de acampamento
estão quietos, e sei que estão prestando atenção em mim. Eu já fui
o espetáculo no pátio. Não gosto da ideia de transformar isso em
outro.
Noah deve perceber, porque se afasta e volta para seu lugar ao
lado de Jacob.
Sem aviso, outro ganso morto cai do céu, espalhando as folhas
do chão e fazendo o fogo tremular. Iisak desce mais devagar,
mantendo distância das chamas.
Tycho se move para pegar o ganso novamente, mas gesticulo
para que ele volte para a sua comida e agarro a carcaça. Preciso
me ocupar.
Começo a depenar o pássaro, uma habilidade há muito
esquecida que retorna sem esforço. Concentro-me nas centelhas
que parecem fluir por baixo da minha pele. Jacob estava certo:
Rhen não tem nada a temer em relação a mim. Não quero seu
trono. Não quero lhe fazer mal.
Mas, pela primeira vez, sinto-me capaz de oferecer algo além de
dor, tormento e medo.
– Posso usar essa magia para curar Tycho? – pergunto para
Iisak.
– Sim.
– Mostre-me.
– Você quer que eu rasgue a pele dele até os ossos?
Do outro lado da fogueira, Tycho paralisa. Não sei se Iisak está
nos provocando, mas ele dobra os dedos, o que me faz pensar que
não.
– Não – digo.
– Você está exausto. Dê um tempo para recuperar seus poderes
– Iisak diz. – Tente amanhã à noite.
Estou exausto, mas um pouco energizado também. Quase quero
pedir para ele rasgar a minha pele de novo só para sentir o fluir e
ondular da magia.
– Se pudermos caminhar mais um dia – digo –, é melhor
continuarmos seguindo para noroeste sem os cavalos. Se os
soldados já estão procurando nas cidades em volta, o ritmo lento vai
funcionar a nosso favor. Rhen esperaria que eu conseguisse
cavalos e armas e me movesse depressa, especialmente se
suspeita que Lia Mara esteja comigo e que nosso destino seja Syhl
Shallow. – Olho para o fogo, e ela me encara.
– Quanto você acha que a princesa Harper contou para ele? – ela
pergunta.
– Se os soldados estão procurando nessa região, tudo.
– Não – Jacob diz –, ela sabe que estou com você. Ela não
permitiria que ele viesse atrás de mim.
Puxo as penas do pescoço do ganso.
– Ela pode não ter escolha.
Jacob fica de joelhos.
– Está dizendo que ele pode machucá-la? – Seu tom é feroz, e
ele não espera a resposta. – Vou voltar. Agora mesmo. Devíamos
ter convencido Harper a vir com a gente…
– Não. Não acho que ele vá machucá-la. – Uma parte sombria de
meu cérebro sussurra que eu também nunca esperaria que ele
fizesse o que fez comigo. – Mesmo se formos encontrados, os
guardas não vão machucar você. Ele a ama. Ela o ama. Rhen está
com medo, mas todos estaremos seguros enquanto ela estiver em
Ironrose. Se ela tivesse vindo com a gente… não gosto nem de
pensar o que Rhen estaria disposto a fazer para encontrá-la.
Eles ficam em silêncio. Eu continuo arrancando as penas.
Depois de um tempo, Tycho diz:
– Do que ele tem medo?
– Da magia. – Paro para refletir sobre o quanto devo revelar. Mas
certamente não faz mais diferença agora. – Rhen estava
amaldiçoado antes. Ele sofreu muito, e Emberfall quase foi
destruída. Ele tem medo de ser amaldiçoado de novo. – Levanto a
cabeça. – Tem medo de mim.
– Ele conhece você – Jacob diz. – Você não é Lilith.
Noah está me observando.
– Mas talvez não importe. – Ele faz uma pausa, e fala com a voz
grave. – Se livrar da maldição e depois descobrir que existe alguém
capaz de machucá-lo de novo, alguém em quem ele confiava…
Engulo em seco.
Você depositava sua confiança em mim. O que eu fiz para perdê-
la?
Foi embora.
Talvez eu a tenha perdido antes mesmo de tê-la conquistado.
– Harper me contou um pouco do que vocês passaram – Noah
diz. – E ela só ficou aqui por um tempo curto. – Ele olha para Jacob.
– Rhen tem sido difícil nos últimos meses.
Jacob faz uma careta.
– Sim, porque ele é um babaca arrogante.
Noah não dá risada.
– Ou porque ele está sofrendo de TEPT. – Antes que eu
pergunte, ele esclarece: – Transtorno de estresse pós-traumático.
Acontece com quem foi exposto a algo muito aterrorizante. Eu via
acontecer com muitos soldados. Ou com crianças que foram
abusadas. É como se seu cérebro não conseguisse desligar o
medo.
Olho para Tycho e penso em como ele se esquivou daqueles
soldados na taverna de Jodi. Rhen sempre se manteve frio e
sereno, o controle em pessoa. Mas fico me lembrando das sombras
em seu rosto no pátio e tento imaginar quanto ele estava
escondendo o que realmente estava sentindo. Pela primeira vez,
pergunto-me se ele está mesmo tentando proteger seu povo – ou se
só está tentando se proteger.
De qualquer forma, ele me quer morto. Não importa.
Volto para o ganso em meu colo. Seguro o pássaro o mais perto
das chamas que consigo, deixando que elas queimem e sequem as
penas. Quando termino de depenar o animal, fico de pé, mas Iisak
já está aqui. Ele trabalha rápido com a ave, e eu coloco a carne nas
pedras.
Ele lambe o sangue das garras mais uma vez, e tento não pensar
se ele fez o mesmo com o meu sangue. É horrível imaginar que ele
ficou preso naquela jaula por tanto tempo, tendo consciência de
tudo o que fizeram com ele. Kantor enfiou a espada entre as barras
aquele dia, movido por nada mais que diversão. Não é o mesmo tipo
de humilhação a que Rhen me expôs, mas também não é muito
diferente.
– Se você possui magia – digo baixinho –, como ficou preso em
uma jaula por tanto tempo?
– Minha magia não é a mesma que a sua. A sua vem de dentro, e
a minha vem do vento e do céu. Posso assoprar gelo e pegar neve
das nuvens. – Ele estende a mão e sopra o ar na sua palma. Gelo
se acumula em sua pele, mas apenas por um momento, derretendo
quase instantaneamente, e Iisak joga a água nas folhas.
– Mas é verão – digo, tentando apaziguá-lo. Ele estava quase
morto quando Worwick o trouxe para o torneio. Pensei que fosse por
causa da lona que cobria a jaula, mas talvez houvesse algo mais.
– Sim, Sua Alteza. É verão aqui.
Um movimento chama minha atenção, e vejo que Lia Mara está
virando a carne nas pedras. Para uma filha de rainha, ela parece
não temer tarefa nenhuma, nem mesmo trabalho pesado. Seu
cabelo cintila vermelho, e a luz marca sua silhueta.
Ela percebe que estou observando, porque me olha e eu
rapidamente desvio o olhar de volta para Iisak.
– Você sabia quem eu era quando estava no Worwick?
– Eu soube que você era um feiticeiro no instante em que senti o
gosto do seu sangue.
As palavras trazem um vento gelado, e eu estremeço.
– Você colocou a mão na jaula tão corajosamente que pensei que
você soubesse, pensei que sua surpresa fosse uma farsa para
aquele estúpido. Nossos povos já foram aliados, como disse antes.
Pensei que você fosse me libertar quando a noite caísse.
– Mas não fiz isso.
Ele sorri, e seus dentes brilham.
– No fim, você fez.
– Eu só libertei você para me libertar – digo.
– E eu teria cortado a sua garganta se isso significasse a minha
liberdade. – As folhas farfalham nas árvores acima, e ele abre as
asas. Ele sai voando em busca de uma nova presa, dizendo: – Não
se culpe por escolhas que você acreditou serem as corretas no
momento. Não é coisa de príncipe.
Solto um resmungo e o observo.
– Não sou um príncipe – murmuro baixinho. Baixo os olhos para a
fogueira, e vejo que Lia Mara está me encarando.
– Você é um príncipe – ela diz.
Talvez sejam as estrelas em meu sangue, ou talvez o bem-estar
nas minhas costas e pernas. Talvez seja a sensação de finalmente
fazer alguma coisa certa.
Não sei se vou acompanhá-la até Syhl Shallow. Não sei nem se
vou sobreviver aos próximos dias. Mas, pela primeira vez, a palavra
príncipe não me faz tremer.
E, pela primeira vez, não a corrijo.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

LIA MARA

No terceiro dia, Grey estima que percorremos cento e vinte


quilômetros ao longo do riacho. Iisak nos avisa que há guardas do
castelo e executores nas cidades próximas. Podemos não ter
cavalos, mas ele surrupiou vários suprimentos e armas na calada da
noite. Temos uma adaga cada agora. Dois arcos, embora apenas
uma aljava de flechas. Duas espadas. E uma panela de ferro que
nos permite ferver água e preparar outras coisas além de aves
assadas.
De noite, Grey tenta usar sua magia para curar Tycho, mas ainda
não tiveram sucesso. Percebo sua frustração, apesar de ele não
compartilhar suas preocupações comigo – nem com ninguém. Uma
tensão exausta parece nos acompanhar silenciosamente pela
floresta, e é minha única companhia. Viajamos juntos, mas há uma
divisão clara em nosso grupo: Noah e Jacob, Grey e Tycho. Iisak
segue no céu, e eu caminho sempre sozinha.
Na quarta noite, o calor do verão é opressivo, e todos estão mal-
humorados e impacientes. Grey e Jacob estão se provocando há
horas, e estou quase pegando um arco para acertar uma flecha em
cada um. Tycho até abandonou Grey para se sentar em uma árvore
no outro lado do acampamento, onde Iisak se acomodou na
escuridão formada pelos galhos. Uma folha coberta de gelo cai, e
Tycho a pega, sorrindo.
– Bom truque.
Não consigo deixar de sorrir diante do fascínio em sua voz.
Do outro lado do acampamento, Jacob está discutindo.
– Roubamos armas. Não vejo por que não podemos roubar uns
cavalos.
– Uma arma desaparecida não vai ser notada imediatamente –
Grey diz. – Cinco cavalos, sim, e as pegadas podem ser seguidas
com facilidade.
– Sim, mas com cavalos podemos avançar mais rápido.
A expressão de Grey é fria.
– Com cavalos, somos um alvo maior…
– Vou sair para caminhar – digo. Minha irmã era difícil à sua
maneira, mas pelo menos nós nunca discutíamos. – Vou levar o
arco. Talvez possamos comer algo além de gansos selvagens.
– Olha – Jacob fala, sem prestar atenção em mim. – Deixei um
príncipe babaca para trás. Não tenha pressa para preencher a vaga.
Faço uma careta e coloco a aljava no ombro, seguindo para a
floresta com o arco.
O silêncio me recebe no mesmo instante, caloroso e bem-vindo
no crepúsculo que escurece lentamente. O arco é elegante e mais
pesado do que estou acostumada, e sua madeira polida é como
cetim. Dou voltas no acampamento em círculos cada vez mais
largos, afastando-me mais à medida que o sol começa a
desaparecer. Miro em um tronco podre a cerca de cem metros de
distância e disparo uma flecha. Ela se finca direto na madeira mole,
apenas alguns centímetros abaixo de onde eu esperava. Talvez o
arco não seja tão pesado assim.
Vou me esgueirando entre as árvores para pegar a flecha.
Quando me endireito, percebo um movimento à distância. Congelo.
Um cervo. Ele é grande e marrom e tem lindas manchas na parte
traseira. A duzentos metros de distância, o mais próximo que vou
conseguir chegar.
Ergo o arco e posiciono a flecha na corda.
De repente, todos os pelos da minha nuca se arrepiam. Prendo a
respiração.
Não estou sozinha. Não sei como sei, apenas sei.
Viro, pronta para disparar.
Uma mão pega o arco, segurando a flecha no lugar, e eu ofego,
encarando Grey. A ponta da flecha está em seu peito.
A raiva queima como uma tocha em meu estômago. Ele deve
pressentir as palavras prestes a irromperem de minha boca, porque
balança a cabeça rapidamente e leva um dedo aos lábios,
apontando para a frente.
Mais três cervos e juntaram ao primeiro.
Grey é tão determinado e confiante que acho que ele vai tomar o
arco de mim da mesma forma que tomou a espada de Jacob.
Mas ele não faz isso. Ele solta a flecha para que eu possa me
virar.
Estou dolorosamente ciente da posição dos meus dedos no arco.
Espero algum tipo de correção, um comentário sobre a minha
postura ou um questionamento sobre a minha habilidade, mas ele
fica em silêncio às minhas costas. Puxo a corda do arco com força e
a solto. A flecha voa.
O cervo cai sem fazer barulho. Os outros dispersam em uma
explosão de movimento.
– Ótimo disparo – Grey diz.
As palavras me fazem tremer.
– Obrigada.
Ele vai até a clareira onde o animal está caído. Não é de admirar
que ele tenha se esgueirado pelo mato sem ser percebido. Quando
está sozinho, ele se move feito um assassino.
Apoio o arco no outro ombro e me apresso atrás dele. O cervo é
maior do que eu esperava. De longe, era lindo, mas, de perto, seus
olhos estão vidrados. Estremeço.
Grey arranca a flecha e a limpa na grama, então a devolve para
mim. Sangue e outras coisas cintilam na ponta.
Engulo em seco e a enfio na aljava, pensando naquele caçador e
sua filha, que minha irmã condenou à morte.
– Vamos… – Pigarreio. – Vamos arrastá-lo?
– Não vamos estragar a pele. Vou procurar um tronco.
Ele pega um tronco e retira os galhinhos presos ao longo dele.
Usamos nossos cintos para amarrar as patas na madeira. Estou
nervosa e inquieta por dentro, especialmente quando Grey coloca
uma extremidade no ombro e a cabeça do animal tomba no chão,
arrastando as folhas com os chifres.
Fico encarando tempo demais, porque Grey diz:
– Está pesado. Posso chamar Jacob.
– Não… não, acho que consigo. – Coloco a outra extremidade no
ombro e me levanto, mas o peso quase me tira o fôlego. Cada
passo é um esforço.
Minha mãe ficaria mortificada. Qualquer coisa que exija força
bruta seria vista como algo inferior – uma tarefa para homens.
Rapidez, flexibilidade e agilidade são habilidades valorizadas nas
mulheres. Ponderação e determinação também.
Mas não arrastar animais pela floresta. Talvez eu devesse deixá-
lo buscar Jacob.
A ideia é como um tapa na minha cara. Eu não era digna para ser
rainha. Talvez eu só seja boa para arrastar animais pela floresta.
Na verdade, não sou boa nem nisso, porque estou prestes a
largar o fardo. Ofego.
– Grey… espere… um pouco… por favor. – Sem aguardar a
resposta, retiro o peso dos ombros.
Grey coloca a sua extremidade no chão e se vira para se apoiar
em uma árvore. A escuridão deixa o ar mais denso, e não consigo
captar sua expressão nas sombras. Pergunto-me se está
decepcionado. Ou exasperado. Não devia me importar, mas me
importo.
– Desculpe – ofereço.
Ele franze as sobrancelhas.
– Não precisa pedir desculpas.
A cabeça do cervo está inclinada para o lado, apoiada pelos
chifres, e os olhos mortos apontam para mim, julgadores. Faço uma
careta e desvio o olhar.
Grey está me observando. Ele pega a sua extremidade.
– Pronta?
Não estou, mas assinto.
Ele pega mais peso desta vez, mas eu mal aguento dois minutos.
O cervo cai no chão de novo. Estou ofegante.
– Podemos arrastá-lo?
– Você acha que vai ficar menos pesado no chão? – Ele não está
nem um pouco cansado.
Faço uma careta e passo uma mão na testa pesarosamente.
– Precisamos da pele – ele diz. Ele estica os braços acima da
cabeça e gira os ombros, um sinal de que também está fazendo
esforço. – Ela vai nos garantir uma boa história se formos
encontrados na floresta. Caçadores e comerciantes de peles se
tornarão mais comuns conforme avançarmos para o norte.
A menção a caçadores e comerciantes de peles me faz franzir a
testa. Pego o tronco de novo.
– Estou pronta.
Desta vez, mal consigo dar alguns passos. Vou acordar com um
hematoma amanhã. Apoio-me em uma árvore e respiro fundo.
– Sua mira é excelente – Grey diz. – Onde aprendeu a disparar
desse jeito?
– Organizamos competições todos os anos – digo com a
respiração entrecortada, mas gostando da distração. – Todas as
Casas Reais de Syhl Shallow enviam participantes. Tem tiro ao alvo,
jogos equestres, coisas assim. Vocês não têm nada do tipo?
Ele balança a cabeça.
– Às vezes, os guardas lutavam para entreter a nobreza, mas não
era nada oficial.
– Que pena. O Desafio da Rainha é um espetáculo. – Sorrio ao
me lembrar. – É uma celebração.
Ele não sorri de volta.
– Não tínhamos celebrações em Syhl Shallow.
Recuo, pensando no comentário de Tycho sobre minha mãe
comer suas vítimas.
– Não quis ofender – Grey diz, mas seu tom me faz questionar se
está sendo sincero. Antes que eu possa perguntar, ele pega a sua
extremidade do tronco e a coloca no ombro.
Cerro os dentes e o imito. O cervo parece mais pesado a cada
vez. Digo entre frases cortadas, ofegante.
– Minha irmã, Nolla Verin… é a melhor. Ela sempre… ganha os
prêmios. Nos… jogos equestres. – Paro para recuperar o fôlego. –
Sou boa com o arco, mas ela é melhor. Muitos são melhores. Alguns
dos competidores são… brutais. Eu não gosto… não gosto de
violência. Mesmo assim, eu fico… esperando o próximo ano. As
comidas, as festas. Eu sou… eu sou…
– Lia Mara, largue isso.
Solto o tronco e levo as mãos aos joelhos. A floresta está escura
agora, e mal consigo ver a silhueta de Grey. Ele parece enorme nas
sombras. Estamos avançando muito lentamente, e acho que ele vai
chamar um dos outros homens para ajudar. Depois do anúncio de
minha mãe, eu me senti incapaz. Como se fosse alguém inferior.
Depois, falhei com Rhen, e agora, de um jeito diferente, estou
falhando com Grey. Sinto-me incapaz aqui também.
Mas Grey não fala nada sobre chamar Jacob. Ele fica em silêncio
por um tempo, mas não me importo, porque estou tentando aliviar
os nós de tensão nos meus ombros. Por fim, ele diz:
– Estamos a menos de sessenta metros do acampamento. Você
aguenta?
Sessenta metros que podem parecer sessenta quilômetros, mas
me preparo e posiciono o tronco no ombro.
– Acho que sim.
– Sabia. – Ele fala como se eu devesse me orgulhar. Estou
suando e tropeçando e tentando não cair.
– Na Guarda Real – ele diz, puxando conversa, como se eu não
estivesse ofegando a cada passo –, éramos treinados para sermos
habilidosos com as armas, mas essa nunca era a primeira lição. Nos
ensinavam a nos vermos como pessoas diferentes. Como um grupo.
Todos os dias, gritávamos: Quem somos nós? Somos a Guarda
Real.
– Os soldados… de minha mãe… – respiro com dificuldade – …
recebem um treinamento parecido.
– Se um guarda não cumprisse as ordens, toda a unidade seria
punida. Isso trazia unidade e obediência rapidamente.
– Tenho certeza. – Quase tropeço em uma pedra.
– Depois de um tempo – ele continua –, os guardas começam a
considerar qualquer um que não pertencia ao grupo como uma
ameaça. Como um alvo. Fica mais fácil seguir ordens quando se
está em um estado constante de avaliação.
Mal estou prestando atenção. Meu foco está totalmente
direcionado em onde estou pisando no escuro e no peso do tronco
em meus ombros.
– Preciso soltar isso.
– Estamos quase lá. Mantenha os olhos no fogo.
Pisco com o suor escorrendo nos olhos, mas vejo o brilho do fogo
entre as árvores. Obrigo meus pés a continuarem.
– Depois que sua mãe invadiu Emberfall, qualquer um de Syhl
Shallow se tornou uma ameaça.
Aperto minhas mãos escorregadias de suor no tronco para tentar
aliviar o ombro. Parte de mim quer que ele vá mais rápido. Outra
parte quer se jogar de cara neste arbusto.
– Então quando digo que é estranho pensar em celebrações – ele
continua –, é porque esqueci que seu povo pode até ser nosso
inimigo, mas ainda são pessoas.
– Sim. – Nunca vamos alcançar aquela fogueira. – São pessoas.
Nós somos pessoas.
– Verdade.
Fecho os olhos com força.
– Eu não… consigo…
– Você é mais forte do que pensa. Mais um passo.
Dou mais um passo.
– Mais um.
Perco a noção de quantos passos faltam. Meus olhos não miram
mais no fogo, mas em seu corpo se movendo na escuridão. Sua voz
tornou-se hipnótica. Mais um. Mais um. Mais um.
Quando ele finalmente para, é tão inesperado que quase solto o
tronco.
– Minha nossa – diz Tycho. – Isso é um cervo?
Grey o larga no chão de terra ao lado do fogo e eu rapidamente o
imito. Meus joelhos se dobram no chão, mas não me importo.
– Sim.
– Finalmente – Jacob diz. – Algo com carne de verdade sobre os
ossos.
– Lia Mara é uma ótima arqueira – Grey fala.
– E uma bruta também – Jacob comenta. – Quanto essa coisa
pesa?
Uma bruta também. Não sei se devo corar ou franzir a testa.
Arranco a aljava das costas e me ocupo guardando tudo.
– Tive sorte.
Uma mão segura meu braço, e me viro já com farpas na língua.
A expressão suave de Grey se foi.
– Força e habilidade não têm nada a ver com sorte.
– Você carregou a maior parte do peso.
– Não é verdade. Esse animal tem quase três vezes o seu
tamanho, e o carregamos por quase um quilômetro. – Ele faz uma
pausa. – Será que sua irmã aguentaria isso?
Penso em Nolla Verin, com seu sorriso fácil e metros de cabelo
escuro. Ela é capaz de acertar uma flecha no alvo na escuridão de
uma noite nublada, e ninguém pode arrancá-la de um cavalo, mas,
como nossa mãe, ela é leve e graciosa.
– Não – admito. – Força física não é motivo de orgulho em Syhl
Shallow.
– Você achou que não conseguiria, mas conseguiu mesmo assim.
Isso é mais do que força física. – Seus olhos brilham nas sombras, e
sua voz é baixa. Não sei como, mas ele retirou a dor deste momento
e a transformou em algo caloroso. Algo melhor. Talvez minha mãe
desaprovasse isso, só que, pela primeira vez em muito tempo, eu
subitamente me sinto… capaz.
O rubor enfim encontra minhas bochechas, e desvio o olhar.
Lembro do que ele disse enquanto caminhávamos. Meu povo, seu
povo… não devia importar. Não esperava ouvir isso dele.
Após dias me sentindo uma estranha entre os homens, este é um
momento especial. Quero me agarrar a isso, dizer algumas
palavras. Ouvir o orgulho que há tanto tempo não sinto na voz dele.
– Sua Alteza – Iisak diz –, se nenhum dos humanos quiser o
coração, posso ficar com ele?
Grey olha para cima e se vira. Qualquer centelha que havia entre
nós desvanece.
– Não se preocupe, Iisak. O coração é seu.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

GREY

O fogo diminui, mas os outros estão caindo no sono, então não o


alimento. Do outro lado da fogueira, Lia Mara também está
acordada, com os olhos distantes e fixos no nada. Ela me
surpreendeu ao atravessar a lareira do quarto de Ironrose. E me
surpreendeu de novo esta noite. Ela é tão quieta e modesta que não
imaginei que pudesse manejar um arco com tanta confiança.
Tampouco esperava que ela carregasse aquele cervo no ombro.
Não estou acostumado a ser surpreendido pelas pessoas.
Como se notasse que eu a observo, ela desvia os olhos da
fogueira para mim.
– Você devia dormir. Posso ficar de vigia até Noah acordar.
Noah é sempre o primeiro a dormir, mas o primeiro a despertar,
bem antes do sol nascer no horizonte. Ele diz que seu treinamento
como médico lhe permite dormir em qualquer lugar, a qualquer hora.
Ele consegue se deitar e pegar no sono em segundos, um talento
que invejo.
Quando tento dormir, fico deitado na escuridão observando as
estrelas cintilando acima, pensando no que podemos perder se
Emberfall entrar em guerra civil. Também penso em Syhl Shallow e
quanto ainda temos que percorrer, e pergunto-me se realmente
estaremos mais seguros lá do que estamos aqui.
Prefiro ficar olhando as chamas morrerem enquanto a noite se
alonga.
– Não, obrigado.
Um sinal de teimosia brilha em seus olhos.
– Você acha que não vou conseguir acordar você?
– Não. Acho que não vou conseguir dormir.
– Ah. – Ela desvia o olhar para as sombras escuras onde Jacob,
Noah e Tycho estão deitados, sobre as folhas macias de um
pinheiro. Iisak deve estar em algum galho acima, ou talvez caçando.
As marcas de chicote de Tycho formaram crostas grossas, e
hematomas preenchem os espaços entre elas. Ele ainda se move
com dificuldade ao longo do dia e fica grato a cada vez que
montamos acampamento.
– Ele está sarando – Lia Mara diz.
– Eu deveria conseguir ajudá-lo. – Dobro os dedos e balanço a
cabeça. – Esta magia é inútil se só funcionar quando estou correndo
risco de vida.
– Você com certeza não achou que aprenderia esgrima em um
dia só.
– Não, mas… isso é diferente.
– Por quê? – Ela se levanta e pega uma pequena adaga de
nosso estoque. Ao retornar, senta-se ao meu lado. – Aqui. Pratique.
– Pratique?
Ela segura minha mão, tocando seus dedos pequenos e gelados
nos meus, vira meu pulso e ergue a adaga.
Minha mão livre se move para agarrar seu braço.
– O que está fazendo?
– Você deixou Iisak rasgar seu braço, mas tem medo de uma
adaga?
– Não tenho medo da adaga.
Ela ergue as sobrancelhas.
– Tem medo de mim?
Não. Sim. Não tanto dela, mas de quem e do que ela representa.
Quando começamos essa viagem, tinha certeza de que ela seria
exigente e dominadora, assim como Karis Luran. Achei que ela ia
arrancar um juramento de mim em troca de proteção, ou que logo
revelaria algum truque ou malícia. Fico pensando em nossa primeira
noite, quando pensei que Iisak ia me matar. Fico pensando na
maneira como ela se ajoelhou no mato, segurou minha mão e
sussurrou meu nome.
Não tenho mais certeza de nada.
Solto sua mão.
– Já vi o que você é capaz de fazer com um arco.
Ela sorri com melancolia. Preparo-me para a picada da lâmina,
mas ela é rápida. Antes que eu sinta a dor, o sangue já está
jorrando. Essas estrelas são mais lentas, pequenas centelhas de luz
sob a minha pele. Elas se dispersam quando presto atenção, como
se eu tentasse juntar a poeira sob os raios de sol. Uma gota de
sangue escorre pelo meu braço e desaparece na terra, e dou um
suspiro.
– Nem tudo pode ser conquistado através da força – Lia Mara diz.
– Obviamente.
– Sei que você pode ser gentil. Vi como você trata a princesa
Harper.
Noto um novo tom em sua voz, um tom que não compreendo:
uma mistura de incerteza com desejo e decepção. Busco seus
olhos, mas ela mantém o olhar fixo na faixa de sangue em minha
pele.
– Não houve nada entre a princesa e eu – digo.
– Houve algo entre você e a princesa.
– Jamais. De verdade.
– Tenho uma adaga, Grey. – Ela finalmente me encara. Suas
palavras são provocadoras, mas há um elemento de verdade em
seus olhos. – Não minta para mim
– Eu poderia te desarmar.
– Você poderia ser sincero comigo.
– A princesa… – Minha voz some em um suspiro. Não há mais
segredos. Lia Mara sabe da feiticeira. Sabe que Decê é uma farsa.
– Para entender minha relação com Harper, você precisa
entender o que aconteceu com o príncipe Rhen. Ele foi amaldiçoado
pela feiticeira Lilith. Ele tinha o outono para encontrar uma garota e
conquistar seu amor, ou se transformaria em uma criatura
monstruosa que aterrorizaria Emberfall.
Lia Mara arregala os olhos.
– A criatura monstruosa que atacou nossas forças?
– A própria. – Faço uma pausa. – No final da estação, se ele
falhasse, se transformaria em humano de novo e a estação
recomeçaria. Só que… os mortos continuavam mortos.
Ela me observa.
– A família real foi supostamente morta em Decê.
Eu a encaro de volta e aguardo até que ela entenda. Dizer as
palavras ainda parece uma traição.
– Foi ele – ela finalmente fala. Sua voz é pouco mais que um
sussurro. – Quando era um monstro.
– Sim.
Ela estremece.
– Pela primeira vez, sinto compaixão de verdade. – Ela fixa os
olhos nos meus. – E você?
– Também fiquei preso no castelo. Eu tinha que encontrar garotas
para quebrar a maldição.
Lia Mara franze a testa.
– Quanto tempo você levou para “encontrar” Harper?
– O tempo no castelo não passava no mesmo ritmo que em
Emberfall. Não tenho como saber. Alguns anos se passaram aqui,
mas, dentro das paredes de Ironrose… – Agora é minha vez de
estremecer. – Foi uma eternidade. Harper era nossa última
chance… e eu nem a escolhi.
– Não entendi.
– Ela me viu tentando levar outra jovem e me atacou com uma
barra de ferro.
Lia Mara faz uma careta e solta uma gargalhada repentina.
– Sabia que você gostava dela.
– Ela não queria nada além de ir pra casa. Ela lutou com todas as
forças. Mas, como não conseguiu, voltou a atenção para Emberfall.
Ela renovou a fé de Rhen de que ele poderia salvar seu povo. –
Faço uma pausa. – E se tornou uma princesa com suas palavras e
ações, e também com seu sangue.
– Ah – Lia Mara solta, claramente cética. – Então é apenas
admiração que você sente.
– Passamos por muitas coisas juntos, mas o destino não me
colocou em seu caminho para nada além de amizade.
– Porque você não sentia nada por ela ou porque você jurou
servir o príncipe?
Lia Mara é inteligente demais.
– E isso importa?
Ela me encara com firmeza.
– Sim.
– Como eu jurei servir ao príncipe, não poderia me apaixonar por
ninguém. Se está procurando segredos sórdidos, não vai encontrar
nada.
– Vi como ela te olhou no quintal da pousada. – Ela para. –
Harper permitiu que você escapasse, mesmo sabendo que isso
colocaria Emberfall em risco.
– Ela permitiu que eu escapasse porque sabe que eu não vou
colocar o reino em risco.
– Ela teria vindo com você, se você pedisse.
– Jacob pediu e ela recusou.
– Jacob não é você.
Estremeço e desvio o olhar.
– Seja como for, eu não teria pedido.
Espero que ela faça uma cara cínica, mas talvez tenha percebido
a sinceridade de minhas palavras, porque franze a sobrancelha e
seus olhos se enchem de tristeza.
– Você era muito leal.
Sim. Eu era. Olho para o fogo.
Ela aperta minha mão.
– Se um homem não merece mais a sua lealdade, não é culpa
sua, Grey.
Não sei o que dizer. Será que Rhen merece minha lealdade?
Seus dedos roçam meu pulso, leves como uma pena.
– Talvez você precise de uma distração.
Olho para o meu braço. Abaixo do sangue, a ferida se fechou.
– Faça de novo – peço com a voz rouca.
Ela ergue a adaga e a aproxima devagar.
Desta vez, a lâmina corta o dorso de sua mão. Ela ofega.
Eu também.
– O que você está…
– Shhh. – Ela pega minha mão e a coloca sobre a ferida. – Cure-
a.
Tento fazer as estrelas pularem da minha pele para a ferida dela,
mas é claro que elas se dispersam e saltam, de forma que não
consigo capturá-las.
– Se distraia – ela diz. – Fale. Conte-me algo. Pergunte-me algo.
Qualquer coisa.
– Quem é o espião da sua mãe dentro do Castelo Ironrose?
– Fell siralla! – Ela bate em minha testa. – Pare de se preocupar
com aquele príncipe estúpido!
É tão inesperado que dou risada.
Ela desvia o olhar, mas parece melancólica.
– Ele não merece a sua preocupação. O príncipe Rhen não é seu
aliado.
Não quero pensar em Rhen. O sangue de Lia Mara está pegajoso
sob os meus dedos, mas também não quero ver que não estou
conseguindo curar sua ferida. Mantenho a mão sobre a dela.
– O que você falou?
Um rubor surge em suas bochechas.
– Ah… acho que não tem tradução.
– Quem é a mentirosa agora?
– Fell siralla. – Ela fica mais corada. – Homem estúpido.
– Acho que eu preferia não saber a tradução.
Ela dá risada, e as centelhas de luz em meu sangue giram e
dançam em resposta. Todos os meus instintos querem forçá-las
para o ponto onde nossa pele se toca, mas tento esperar, ser
paciente. Ser gentil.
– Com quem você aprendeu a falar emberês tão bem?
– Com meus professores. Minha mãe diz que é o suprassumo da
ignorância e arrogância não falar a língua dos países fronteiriços.
Essa é uma avaliação bastante franca.
– Tenho certeza de que nossos guardas são instruídos, mas
todos os professores em Ironrose foram mortos no primeiro outono
da maldição.
– Sério? Jacob e Noah falam bem.
Balanço a cabeça.
– Eles falam inglês do outro lado, mas é parecido com emberês. –
Faço uma pausa, repetindo a pronúncia das suas palavras na minha
cabeça.
– Fell siralla – tento.
Ela sacode a cabeça.
– Mais suave: fell siralla. – As palavras saem de sua boca sem
esforço.
Tento de novo, e ela ri.
– Sua pronúncia é muito marcada. Mais suave.
– Fell siralla – digo, e desta vez ela morte o lábio para esconder a
risada.
Ela pega minha mão livre e a leva até a sua boca, sussurrando
em meus dedos:
– Fell siralla.
Mal ouço as palavras. Só consigo pensar em seus lábios macios
roçando meus dedos, tão leves quanto uma borboleta. Tenho
certeza de que já toquei a boca de uma mulher em algum ponto da
minha vida, mas agora, neste momento, não me lembro.
– Fale de novo. – Minha voz ficou rouca.
– Fell siralla.
Seus dedos relaxaram em meu pulso. Esfrego o polegar em seu
lábio inferior e sua boca se abre ligeiramente. Imagino como seria
passar os dedos em sua mandíbula. Em sua bochecha. Ao longo de
sua orelha.
Se soldados emergissem das árvores neste instante, eu estaria
morto.
– Você não está praticando – ela repreende, mas seus olhos
estão alegres.
– Homem estúpido – digo, obediente.
Ela ri contra os meus dedos. Então engasga e recolhe o braço.
– Isso.
Não há mais sangue nem ferimento. Pego sua mão e corro um
dedo pela sua pele macia.
Ela estremece.
– Viu? Sabia que você podia ser gentil.
Quero tocar sua boca de novo e provar exatamente isso para ela.
– Acha que pode tentar em Tycho? – pergunta.
Tycho. Por um momento louco e selvagem, mal consigo me
lembrar quem é Tycho, muito menos o que eu devia tentar.
Homem estúpido, realmente. Tusso.
– Sim, posso tentar.
– Quer acordá-lo?
Não sei. Preciso sacudir a cabeça para clarear as ideias, mas Lia
Mara toma isso como resposta. Atravesso a clareira na direção de
onde ele está dormindo. Seu tronco está nu, porque a camisa
machuca suas feridas. Apesar do calor, seus braços estão colados
em seu corpo, e sua respiração é lenta e profunda.
Agacho ao seu lado e coloco uma mão em seu ombro com
delicadeza.
Ele se mexe, tenta se virar e abre os olhos de repente, alerta.
Ergo as mãos.
– Calma – sussurro.
Seus olhos são ferozes, ainda não completamente despertos.
Fico me perguntando que tipo de sonho assombra seu sono.
– Grey… o que…
– Não tenha medo. Só queria tentar curar suas feridas.
– Ah. – Ele se acomoda nas folhas do pinheiro, pressionando o
rosto contra o antebraço. Sua respiração se acalma, mas há uma
nova tensão em seu corpo, como se ele pensasse que vou
machucá-lo. – Vá em frente.
Coloco a mão em seu ombro mais uma vez, o mais suavemente
que consigo. O hematoma é extenso, e o pior ferimento se estende
na parte inferior das costas. Algumas das feridas estão muito
vermelhas, e sei que Noah teme que estejam inflamadas. Nunca me
abalei com a violência, mas meu estômago se revira toda vez que
vejo seus machucados. Sou responsável por isso.
Passo a mão sobre uma marca mais superficial. Ele prende a
respiração, mas não diz nada.
– Não preciso tentar agora – digo baixinho.
– Não. Pode tentar.
Um vento gelado sopra entre os galhos acima, e sei que Iisak
deve estar próximo. As centelhas sob os meus dedos parecem mais
fortes. Fecho os olhos e penso em Tycho lá no Worwick. Implorando
para aprender esgrima. Colocando-se na frente de Kantor para
impedi-lo de machucar Iisak. Guardando meu segredo, mesmo
quando corria risco de vida.
Movo a mão, correndo os dedos pela pele machucada. Tycho
geme.
Abro os olhos. Os olhos dele estão fechados com força, seus
dentes estão cerrados. Nada aconteceu. Há uma lágrima em seus
cílios.
– Desculpe – digo.
– Continue tentando – ele sussurra.
– Tycho…
Ele engole em seco.
– Continue tentando.
Hesito antes de tocá-lo novamente. Isto é muito pior do que um
pequeno corte no dorso da mão.
– Ele confia tanto em você, Sua Alteza. – O rosnado suave de
Iisak chama minha atenção, e outra brisa gelada sopra entre as
árvores. Seus olhos escuros brilham para mim através da escuridão.
– Não desperdice isso.
Fecho os olhos e coloco a mão sobre a pior das feridas. A
respiração de Tycho vacila, mas ele se mantém imóvel. Não sei se
Lia Mara falou algo ou se imaginei sua voz. Gentilmente.
As centelhas e estrelas vibram e aguardam. Evito pensar em
esgrima ou em violência. Penso em Tycho rindo e dizendo que ia
chegar antes que eu na taverna de Jodi. Penso nele parado no
sótão, prometendo guardar meu segredo. Penso no pânico que senti
quando fui embora. Penso que ele foi a primeira pessoa em quem
confiei depois de muito tempo.
Vou guardar seu segredo, Hawk.
Meus olhos estão fechados, mas as estrelas parecem preencher
a minha visão, iluminando tudo, como no pátio. Elas estão por toda
parte. Quero agarrá-las e apontá-las para suas feridas, como faria
com uma espada em um inimigo, mas então percebo que Lia Mara
estava certa. Este é outro tipo de habilidade.
Passo as mãos sobre seus ferimentos, permitindo que as estrelas
dancem abaixo dos meus dedos. Tycho ofega de novo, mas não
paro. Percorro cada trecho de pele machucada, cada inchaço, cada
ponto dado por Noah.
– Ah – Iisak fala com um sopro, e estremeço mais uma vez. –
Você pegou o jeito.
Um soluço escapa da garganta de Tycho, e afasto a mão. As
estrelas cintilam e morrem. Abro os olhos.
– Desculpe…
Paro de falar. Os hematomas se foram. As feridas deixaram
cicatrizes, como as minhas, mas a pele está curada. Tycho apoia os
antebraços no chão e fica de joelhos. Lágrimas deixaram marcas
em seu rosto sujo de terra, e ele está tão ofegante quanto quando
apostávamos corridas pela cidade.
Então não consigo ver mais nada porque ele se lança para a
frente e envolve seus braços em meu pescoço. Sinto sua respiração
entrecortada em meu ombro, como se ele fosse uma criança.
– Sabia que você conseguiria.
Ele fala com tanta emoção que meu peito aperta. Minhas mãos
estão trêmulas, como se eu estivesse lutado uma batalha. Isto é
poderoso. Útil. Sinto tantas coisas que minha mente não consegue
processar tudo. Arrependimento por isso ter acontecido. Culpa por
não ter ajudado antes. Alívio por ter ajudado agora.
E, sob tudo isso, tão pequenina que quase não reconheço, sinto
uma pontinha de orgulho. Em vez da minha magia trazer medo e
sofrimento, como Lilith fazia, ou dor e morte, como a minha espada
fazia, ela trouxe cura e confiança, e isso não é pouca coisa.
CAPÍTULO VINTE E SETE

LIA MARA
Quando acordamos, Iisak nos informa que os guardas estão se
preparando para deixar a cidade mais próxima, e que devem
avançar à frente de nosso grupo. Grey acha que esta é nossa
chance de encontrar cavalos, especialmente porque temos a pele
do cervo para trocar, o que nos oferece uma boa história. Passamos
o dia no acampamento, até que Iisak diz que eles seguiram em
frente. Embrulhamos a pele e os chifres e planejamos entrar na
cidade perto do pôr do sol.
Blind Hollow é uma cidade pequena enterrada na base das
montanhas que fazem fronteira com Emberfall e Syhl Shallow. Ao
emergir das árvores e pisar no vale, fico quase sem fôlego com a
beleza da paisagem. O extenso céu azul no alto se torna violeta ao
longe. Árvores recobrem a encosta da montanha, estendendo-se
por todos os lados. A folhagem é de um verde vibrante, mas o ar
aqui é um pouco mais frio, fazendo com que o início do vermelho do
outono se adiante, colorindo tudo.
Tycho está de boca aberta. Isso me lembra dos comentários de
Nolla Verin na carruagem, quando eu fiz a mesma expressão.
– Aproveite para olhar agora – Grey diz. – Você não pode exibir
essa cara quando entrarmos na cidade.
– As montanhas são maiores do que eu imaginava.
– Não é Rillisk, certamente. – Grey se adianta para tomar a frente
do grupo.
Nós cinco juntos chamaríamos muita atenção, então Noah e
Jacob aguardam nas árvores. O sotaque deles os entregariam
imediatamente. Iisak desapareceu, mas não deve estar longe.
Pensei que Grey me pediria para ficar para trás também, mas me
ofereci para ser sua irmã muda por conta de uma doença na
infância.
– Isso pode nos render um pouco de compaixão. Para negociar.
Seus lábios se curvaram ligeiramente, mas seus olhos
continuaram inescrutáveis.
– Inteligente – ele disse, e foi tudo.
Ele tem se mantido ativo e ocupado o dia todo, virando e
revirando a pele para garantir que ela seque, caminhando até Blind
Hollow para verificar o tráfego, interrogando Iisak para obter
informações sobre a cidade e onde podemos esperar problemas.
Passei o dia com o arco e a flecha, torcendo para encontrar algo
que nos ofereça mais peles para trocar.
Pelo menos, essa foi a desculpa que dei aos homens. Na
verdade, eu precisava de uma tarefa para manter minhas mãos e
minha cabeça ocupadas. Não deu muito certo. A despeito de
qualquer tarefa delegada às minhas mãos, meus pensamentos
estavam alegres demais para se voltarem para outra coisa que não
para aquele momento perto da fogueira, quando Grey passou o
polegar em meus lábios.
Só essa lembrança é o suficiente para me fazer tremer. Fico
lançando olhares secretos para ele, como se meus olhos não
quisessem focar nada além dele. Naquela noite em que me escondi
em seu quarto em Ironrose, pensei que ele era agressivo e frio,
mas, depois de passar alguns dias em sua presença, descobri que
ele não é nada disso. Ele é quieto e forte e confiante.
Pergunto-me o que minha irmã acharia dele. Ela tirou sarro de
minha inexperiência com os homens, mas agora queria cochichar e
rir com ela na privacidade da nossa carruagem.
Mas é claro que não teremos momentos de cochichos e
risadinhas quando alcançarmos o Palácio de Cristal, em Syhl
Shallow. Minha mãe vai incumbir Nolla Verin de seduzi-lo, para
garantir uma aliança antes de oferecer apoio para que ele
reivindique seu trono.
Meu humor azeda quando chegamos à cidade propriamente dita.
O crepúsculo paira sobre o vale, trazendo a brisa fresca da
montanha. Lampiões estão pendurados perto das portas,
tremulando como velas. As ruas de pedras não estão lotadas, mas
há bastante gente e recebemos alguns olhares curiosos.
Trancei meu cabelo ruivo e o enrolei em uma corda, enfiando-o
em um casaco que peguei emprestado de Jacob. Tycho está
levando a pele sobre o ombro, enquanto Grey carrega os chifres nas
costas. Tycho e eu estamos com nossas adagas presas no quadril,
e Grey é o único que tem uma espada. Tycho reclamou disso, mas
Grey disse que estranhariam simples caçadores terem tantas
armas.
Penso naquele homem e sua filha de novo. Ele só tinha uma faca
na cintura.
Mate-os, Nolla Verin disse.
Ah, irmã.
Grey me olha, notando minha expressão, e franze a testa.
– Você parece perturbada – ele murmura.
Tomo fôlego para falar, mas me lembro que sou a irmã muda.
Não faço ideia de como explicar o que quero, então apenas balanço
a cabeça e encolho os ombros.
Ele se aproxima.
– Nada de ruim vai acontecer com você.
Ele acha que estou nervosa com a cidade. Eu provavelmente
deveria estar, cercada de pessoas que devem ter visto a destruição
causada pelos soldados de minha mãe, mas não estou. Os guardas
de Rhen seguiram adiante, e Blind Hollow parece silenciosa e
pacata.
Ainda assim, há certo charme na atenção que ele me dispensa.
Minha irritação se dissipa. Observo seus olhos sinceros e assinto.
Tycho respira fundo.
– Estão sentindo cheiro de comida?
Eu não tinha percebido, mas, assim que ele fala, sinto o aroma.
Há várias casinhas e lojas na estrada, e mais à frente parece haver
um estabelecimento maior, com um amplo telhado de palha e uma
chaminé enorme soltando fumaça no ar. Não há paredes
encerrando as pessoas, e homens e mulheres vêm e vão por todos
os lados. O cheiro de carne assada enche a rua, e o azedo do
hidromel se sobrepõe a tudo.
– Vamos começar ali – Grey diz. – Se tivermos sorte, vamos
encontrar um comprador esta noite, ou alguém disposto a fazer
alguma permuta por cavalos.
Uma placa pende no canto do telhado, indicando a taverna Rusty
Rooster. Mesas de todos os tamanhos alinham-se no chão, e a
maioria está ocupada. Grey passa direto por elas e se dirige ao bar
no centro da sala, gesticulando para que nos acomodemos.
O taverneiro é um senhor alto e magro, de barba grossa e careca
brilhante. Ele nos oferece um sorriso largo e contagiante.
– Viajantes! – diz amavelmente. – Bem-vindos a Blind Hollow.
Meu nome é Eowen. Hidromel?
– Água, por favor – Grey pede. – Sou Rand. Esta é minha irmã,
Mora, e meu primo Brin.
Eowen traz uma jarra e três canecas, além de uma travessa cheia
de biscoitos, geleia e queijo.
– Vocês parecem cansados da viagem. – Ele sorri para mim. –
Estrada difícil, garota?
Fico me perguntando se pareço exausta. Toco os dedos na boca
e balanço a cabeça.
Grey diz:
– Desculpe, minha irmã não fala.
– É? – Eowen dá risada e bate no balcão. – Então vai fazer o
marido feliz!
Faço uma careta.
Grey ri.
– Verdade.
Jogo a caneca de água nele.
Mas ele é rápido e desvia antes que se molhe todo. Ofereço-lhe
um sorrisinho afetado.
Espero que ele retruque, mas ele me dá um sorriso torto. Seus
olhos brilham.
– Ela também não sabe a força que tem.
Oh. Oh. Ele está me provocando. Meu coração dispara com
selvageria. Lanço um olhar para pedir desculpas para o taverneiro
conforme ele limpa o balcão.
Tycho pigarreia e estica a mão para pegar um biscoito.
– Temos pele para vender, se souber de alguém que queira
comprar.
– Sempre há mercados de pele, especialmente com a chegada
do inverno. – Eowen suspira, abandonando o sorriso. – Perdemos
nosso caçador local. O pobre homem foi morto por aqueles
demônios cruéis de lá da montanha.
Meu coração dá tropeços dentro do meu peito.
Aqueles demônios cruéis de lá da montanha.
Eowen suspira de novo.
– Agora a Guarda Real está na cidade procurando algum tipo de
feiticeiro. Supostamente o herdeiro do trono, se puder acreditar.
Aposto que é apenas um homem como outro qualquer. Ninguém
ligou para Blind Hollow durante anos. – Ele faz uma pausa. – Vocês
são do norte? Deviam saber.
– Sou do Vale Wildthorne – Grey diz. – Eu sei.
A expressão de Eowen revela melancolia.
– Agora a cidade está tomada pela tristeza. Ouvi falar de uma
mulher cujos filhos foram assassinados um a um. Na calada da
noite, disseram. Ninguém sabe quem fez isso. Ela apareceu na
praça coberta de sangue.
Ao meu lado, Grey fica imóvel.
– Isso aconteceu depois que seu filho mais velho conquistou um
lugar na Guarda Real – Eowen continua. – Dá pra acreditar nisso?
Receber toda aquela prata todos os meses e perder todos os filhos?
Grey pigarreia.
– Um fardo terrível, tenho certeza.
– O que aconteceu com o seu caçador? – Tycho pergunta, com
uma voz apressada.
O taverneiro balança a cabeça.
– Fredd. Um bom homem. Uma de suas filhas fugiu. Ela disse
que foi assassinato. Aqueles animais o executaram pelas costas.
Estava tentando captar as palavras ditas sobre a mulher que
perdeu todos os filhos, mas de repente meu sangue vira gelo.
Gostaria de poder falar.
Mas não faço ideia do que diria.
– Sua irmã está bem? – Eowen fala.
Grey olha para mim. Não sei o que ele vê no meu rosto, mas
seus olhos ficam frios e sombrios e inescrutáveis. Sua expressão
me lembra a primeira vez em que o vi. É quase assustador.
Ele encara o taverneiro.
– Efeitos persistentes da doença que roubou sua voz, acho.
Tento esboçar um sorriso forçado mais uma vez, mas não tenho
certeza se consegui. Provavelmente pareço confusa.
Eowen estreita os olhos para mim.
– Ah. – Algo do outro lado da taverna chama sua atenção, e ele
diz: – Aqui está a filha de Fredd. Ela vai saber onde vocês podem
conseguir um bom preço pela pele. Raina! Garota, este homem tem
pele para vender.
Preciso reunir todas as minhas forças para não seguir seu olhar.
Agarro o braço de Grey. Minhas unhas cravam sua pele, mas não
posso evitar.
Ele se inclina para mim e pergunta:
– O que há de errado?
Uma garota às nossas costas diz timidamente:
– Posso levá-los até o ferreiro, senhor. O filho dele trabalha com
couro e peles. Era um dos melhores clientes de papai.
Posso ouvir a tristeza em sua voz. Meu coração vacila em meu
peito.
Não faço ideia se ela vai me reconhecer, mas não posso me virar.
Não posso.
Sinto muito, quero dizer. Sinto muito.
Lembro-me de Harper dizendo as mesmas palavras para mim,
enquanto eu as rejeitava.
Grey endireita a postura, e eu fixo os olhos na caneca. Minha
mão ainda está firmemente agarrada ao seu antebraço.
– Seria muita gentileza da sua parte – ele diz. – Sinto muito por
seu pai.
Ele puxa minha mão.
– Venha, a garota pode nos ajudar.
Não posso arriscar que ela me reconheça.
– Temos que fugir – sibilo para ele.
Ele não me questiona. Seus olhos ficam sombrios de
compreensão.
– Finja que está passando mal – ele fala baixinho e depressa. –
Desmaie.
Levanto do banco e me jogo no chão.
– Lia Mara! – Tycho grita.
Ele me chamou pelo meu nome. Emito um sinal de alarme
conforme Grey me ergue. Uma agitação toma conta das pessoas à
nossa volta.
– Chamamos um curandeiro? – uma mulher pergunta.
– É só um desmaio – diz ele. – Isso sempre acontece. – Para
meu espanto absoluto, ele me toma em seus braços. Parte de mim
quer protestar, mas outra parte quer ficar bem aqui. Pressiono o
rosto em seu pescoço para me esconder. Ele cheira levemente a
lenha queimada.
– A garota me conhece – sussurro em sua pele. – Eu estava lá.
Na floresta.
– Perdão – ele fala para Eowen. – Temos que voltar para o
acampamento para que minha irmã se recupere. Talvez eu possa
encontrar esse ferreiro de manhã?
Faz-se um momento de silêncio. Mantenho o rosto escondido,
apesar de estar desesperada para ver como esta cena está sendo
recebida.
– Claro – ela diz.
Sinto Grey assentir.
– Venha – fala para Tycho, e nos viramos para sair.
A conversa começa a se restabelecer à nossa volta. Somos
apenas viajantes querendo vender alguns itens, após uma
esquisitice passageira, nada muito interessante.
Meu cabelo fica preso no braço de Grey, e giro o pescoço. A
trança se solta da gola do casaco.
– Esperem. – Raina diz atrás de nós. – Qual é mesmo o nome de
sua irmã?
– Mora – Grey responde. – Perdão, gostaria de voltar ao
acampamento antes que escureça.
– Não, o garoto a chamou por outro nome. – A vozinha de Raina
ganha força. – Eu ouvi.
– Ela sabe – digo em seu pescoço.
– Vamos precisar sair correndo. Quando eu te colocar no chão…
– Eowen! – Raina grita. Sua voz está entrecortada e cheia de
sofrimento, mas ela berra: – Ela estava lá! É ela!
Meus pés pisam na rua. A mão de Grey encontra a minha. Tycho
está bem ao meu lado.
Gritos enchem o ar atrás de nós e disparamos pelas pedras. Não
sou rápida, mas meu coração empresta força às minhas pernas.
Voamos pela cidade, cortando as casas, mergulhando em vielas.
Um vento gelado sopra pelas ruas, e sei que Iisak deve estar perto.
A noite cobriu o céu, formando sombras e escuridão por toda parte.
Uma mulher solta um berro conforme nos apressamos por seu
quintal.
Meu coração retumba.
– Vamos despistá-los na floresta – diz Grey, quase me
arrastando. – Vamos dar uma volta nesta casa e desaparecer entre
as árvores.
Iisak paira acima como se estivesse nos alertando de algo.
Ele sabe, penso. Estamos fugindo.
Fazemos uma curva fechada e finco os pés no chão, pronta para
disparar com tudo.
Em vez disso, dou de cara com um guarda vestido de dourado e
vermelho.
CAPÍTULO VINTE E OITO

GREY

Iisak estava errado. Os guardas de Rhen não seguiram na frente.


Não acho que eles esperavam nos encontrar – e eles
definitivamente não estavam preparados para topar diretamente
conosco. Um deles agarra Lia Mara e coloca uma faca em sua
garganta, ainda parecendo genuinamente surpreso por nos
encontrar aqui.
Ele fica igualmente surpreso quando a ponta da minha espada
encontra a veia pulsante em seu pescoço.
– Solte-a – digo.
Meia dúzia de soldados sacam suas armas, mas não abaixo a
minha. Os olhos de Lia Mara estão arregalados e em pânico
enquanto seus dedos se enterram na braçadeira do soldado,
tentando afastar a lâmina de seu pescoço. Ele é menos convincente
do que eu com minha espada, mas, de qualquer forma, ele não a
solta.
Ao meu lado, Tycho puxa sua adaga.
Como sempre, queria que ele apenas saísse correndo.
Os gritos que nos seguiram da taverna ficam mais altos, e uma
multidão se espalha ao redor da casa. Os gritos viram uma
cacofonia.
– É o herdeiro? – estão perguntando. – Aqui em Blind Hollow?
– Eles o encontraram com ela, bem como tinham falado. Será
que vão matá-los?
Meus olhos estão fixos no soldado prendendo Lia Mara.
– Posso te matar antes que você a mate. – Resolvo pressionar
um pouco, e o sangue sobe para o seu pescoço. Ele grunhe e cerra
os dentes, apertando-a mais forte. Lia Mara emite um som baixinho.
Seus olhos estão fechados, mas não há sangue em seu pescoço.
– Abaixe a arma, Grey – diz uma voz familiar vindo da escuridão.
– Vocês estão em desvantagem. – Dustan dá alguns passos para a
frente, e a luz dos lampiões ilumina seu rosto. Ele está com a
espada na mão, porém nenhum guarda me atacou.
Meus pensamentos ficaram gélidos e sombrios depois da
conversa na taverna, após o lembrete do que Lilith fez minha mãe
passar. Quando eu era guarda, aprendi a desligar as emoções e
fazer o que era necessário.
Posso fazer isso agora.
– Solte-a. Não vou pedir de novo.
O soldado desvia da minha lâmina, mas mantém Lia Mara presa.
Um de seus braços está pendurado frouxamente, e me pergunto se
ele deslocou o ombro dela. Ela geme e uma lágrima escorre por sua
bochecha.
O barulho da multidão se tornou um murmúrio abafado às minhas
costas.
Há tantos soldados aqui que eles podem nos render com
facilidade. Certamente um deles tem uma flecha apontada para o
meu peito neste momento. Mas, em vez de arrogância, noto uma
atenção cautelosa em suas expressões.
Não estão apenas preocupados com o soldado na mira da minha
espada.
Levo um tempo para perceber que estão com medo do que
aconteceu no pátio do castelo. Do que eu fiz.
– Ele é só um recruta – Dustan diz. – Não o mate por seguir
ordens.
– Então lhe dê novas ordens.
Lia Mara engasga de novo. Seus próprios movimentos ou os do
guarda fizeram a lâmina pressionar sua pele. O sangue brota em
uma linha vermelha em sua garganta. Seu braço inútil balança na
frente dele. Outra lágrima segue a primeira.
– Foi ela quem me salvou – uma vozinha diz. É Raina, a garota
da taverna. – Eu te disse, Eowen. É ela.
– A Coroa quer sangue! – uma mulher grita.
Os olhos de Dustan vão de mim para a multidão às minhas
costas. Rhen permitiu que o medo ditasse suas ações, e agora seu
povo está se virando contra ele.
– Vamos soltá-la – ele fala para mim – se você abaixar a espada.
– Já ouvi isso antes – digo.
– Não acredite nele – um homem grita.
– Eles mataram um homem em Kennetty semana passada! –
berra outro.
Uma fruta vermelha sai voando da escuridão e acerta o recruta
na cabeça. Outra vem logo depois. Então surge o que parece um
punhado de esterco, lançado por um homem mais velho.
– Parem com isso! – Dustan ordena.
A mão livre de Lia Mara toca o cabo da adaga do recruta. Em um
segundo, a arma está na mão dela, e no seguinte, na coxa dele. Ela
se libertou e ele está gritando antes mesmo de eu entender o que
aconteceu.
Um tijolo voa da multidão e atinge o recruta no rosto. Ele xinga e
cai no chão.
Os outros guardas avançam. Não sei se em nossa direção ou se
na direção das pessoas, mas mais frutas e tijolos começam a voar.
Seguro a mão de Lia Mara. Seu pescoço está sangrando, mas ela
está de pé. Os soldados se juntaram para enfrentar a multidão
crescente.
– Grey… – ela começa, mas eu a empurro para Tycho.
– Tire-a daqui – digo para ele, voltando a atenção para os
guardas.
– Vão para casa! – os homens estão falando para os curiosos,
mas rapidamente são engolidos pela gritaria.
A população está armada com machados, cajados e até algumas
espadas. Fico surpreso com a rapidez com que nos cercaram. Seus
alvos são a Guarda Real.
Dustan e seus homens são espadachins treinados, porém, e a
população logo perde a briga. Em meus anos na Guarda Real,
nunca recebemos ordens de lutar contra o povo de Emberfall.
Nunca precisamos. Isso é pior do que quando Rhen atacou seu
povo na forma de monstro. Pelo menos, ele não tinha consciência
do que estava fazendo.
O sangue jorra no ar. Golpeio, bloqueio e me defendo com a
espada, mas é impossível enfrentá-los todos de uma vez.
Algo prateado faz uma curva e ergo a espada para me proteger
bem no momento em que um punho atinge a lateral da minha
cabeça. Caio no chão, e um pé pisa na minha garganta. Olho para
cima e vejo dois guardas. Um deles levanta o braço, pronto para
enfiar a espada no meu peito. O outro mira no meu rosto.
Então uma espada acerta o primeiro homem na base de sua
armadura. Do céu, um guincho inumano corta a noite, e assim que o
segundo soldado se levanta do chão, garras o cortam. Ambos se
curvam para a frente.
Pisco, e vejo Jacob com uma mão estendida para mim. Sua outra
mão está segurando uma faca ensanguentada.
– Está ferido? – ele pergunta.
– Não. – Agarro sua mão e ele me puxa. Não muito longe, Noah
está de joelhos, tentando ajudar um camponês com uma flecha
fincada na perna. Atrás dele, um guarda ergue a espada.
Jacob nota no mesmo instante.
– Noah! – Ele tenta sair correndo, mas jamais conseguiria vencer
uma espada.
Desvio das lâminas que os guardas lançam e caem ao nosso
redor, e logo elas estão sendo arremessadas das minhas mãos. O
guarda de pé ao lado de Noah recebe uma no pescoço e outra na
cabeça. E cai quase instantaneamente.
Jacob se vira com a boca aberta de surpresa, mas já estou
atirando mais lâminas nos guardas que avançam para substituir os
outros.
– Me dê cobertura – digo.
Ele faz isso, mas, nessa hora, um guarda emerge da escuridão.
Estou pronto para lançar a faca, e Jacob corajosamente avança com
sua arma.
Iisak guincha novamente, e outro guarda é erguido da multidão.
O sangue está jorrando de sua pele e as pessoas gritam. Outras
comemoram. As asas do rasvador batem contra o céu noturno e o
corpo do soldado cai, sem vida.
– Recuar! – Dustan grita, com o pânico evidente em sua voz
entrecortada. – Recuar!
Os guardas que sobraram se viram e correm.
A população celebra. Há sangue em suas faces. Há braços
erguidos em vitória.
Noah ainda está de joelhos na lama, tentando ajudar um dos
guardas caídos, mas daqui não sei dizer se é uma causa perdida.
Ao meu lado, Jacob está ofegante.
– O que diabos acabou de acontecer? – ele diz.
Dou uma olhada nas pessoas à nossa volta, nos corpos no chão.
– Tycho e Lia Mara conseguiram chegar na floresta?
– Encontramos eles no meio do caminho. Vimos os guardas
recuando, e estávamos indo avisar…
Uma mão agarra meu braço e eu me viro, com uma faca meio
erguida, mas deparo com uma mulher de meia-idade e cabelo
grisalho preso em uma longa trança sebosa.
– Os guardas estavam atrás de você – ela diz.
Um homem sem dentes se aproxima e fala com uma voz
apressada:
– A criatura alada respondeu seu chamado.
– Dizem que o herdeiro possui magia! – outro homem grita. – Ele
conjurou a criatura?
– Você nos ajudou a expulsá-los daqui – outra mulher diz.
– O que está acontecendo? – Jacob pergunta.
Eu me desvencilho das pessoas e recupero minha espada caída
no chão.
– Precisamos ir para a floresta.
A comemoração parou, mas estou chamando mais atenção. Um
murmúrio corre pela multidão. Tochas próximas emitem uma luz
bruxuleante que ilumina dezenas de rostos. Sinto falta dos dias em
que eu era invisível porque todos os olhos estavam voltados para a
família real. Mantenho a cabeça baixa e avanço no meio da
multidão. As pessoas estendem as mãos para mim e me
pressionam enquanto eu passo, tocando meus braços nus, minhas
mãos cerradas, minhas costas. Todos os meus instintos suplicam
para eu desembainhar a espada e faça essas pessoas se
dispersarem, mas não posso. Eles expulsaram os soldados da
cidade. Elas me ajudaram.
Jacob não é tão paciente. Ele dá um passo para trás e saca a
espada.
– Ei! Se vocês acham que ele é o herdeiro, saiam da frente.
O que nos confere um pouco de espaço, e avanço.
Olho para ele e agradeço.
Ele sustenta meu olhar por mais tempo que o necessário.
– Sem problemas.
À frente, um grupo está reunido em volta de alguém no chão.
Mais tochas iluminam a noite, além de alguns lampiões. Uma mulher
está chorando. O sangue cobre a rua.
Conforme nos aproximamos, percebo que quem está chorando é
a mulher no chão. Suas roupas estão ensopadas de sangue, suas
mãos estão sobre a barriga inchada. Mesmo à luz das tochas, é
possível ver que ela está pálida. Atrás de mim, Jacob pragueja.
Um homem e uma garota estão ajoelhados ao lado da mulher
grávida. A garota segura as mãos da mulher.
Quando a moça ergue a cabeça, vejo que é Lia Mara.
Ela não fugiu. Não se escondeu.
– Grey… – ela diz, com uma voz hesitante. – Grey, você tem que
ajudá-la.
– Vou chamar Noah – Jacob diz.
Ajoelho-me ao lado da mulher. Lágrimas deixaram marcas em
seu rosto coberto de sangue. Seus olhos castanhos piscam para
mim.
– O bebê. Vou perder o bebê. – Ela fecha os olhos e mais
lágrimas se derramam.
– Não – Lia Mara diz baixinho. – Não, o bebê está bem.
O cabo de uma faca se projeta do abdômen da mulher, enterrado
logo abaixo de suas costelas.
Os olhos de Lia Mara encontram os meus. Estão suplicantes.
Solto o ar dos pulmões. Isto é mais que um corte no pulso. Mais
que marcas de chicote meio cicatrizadas.
Jacob reaparece, escorregando nas pedras sujas de sangue e
lama.
– Noah está ajudando um cara que foi pisoteado pelos cavalos de
um dos soldados. – Ele logo percebe o cabo da faca, porque suspira
e diz: – Nossa.
Olho para a mulher.
– Posso tocar em você?
Ela assente. Seus olhos estão arregalados e vidrados.
– Por favor – ela sussurra. Sua respiração está cortada e
acelerada, e suspeito que seu pulmão tenha sido atingido. – Por
favor.
Vi minha mãe grávida de oito filhos. Esta mulher não parece estar
nos últimos meses, embora eu esteja longe de ser um especialista.
Tenho mais experiência em tirar vidas do que em preservá-las.
Coloco a mão perto do cabo da faca. Lâminas de arremesso não
são muito compridas, mas podem causar estragos. Se eu retirar a
arma, ela pode sangrar até a morte.
Debaixo da minha mão, sua barriga se contorce e se contrai. A
mulher engasga, e novas lágrimas escorrem por suas bochechas.
– Ele está se mexendo.
Lia Mara sorri.
– Viu? Seu bebê vai sobreviver. – Ela reserva a expressão
preocupada para mim. Para que este bebê sobreviva, a mulher
precisa viver.
As estrelas em meu sangue estão prontas, cintilando sob a minha
pele. Tento me lembrar de como me senti com Lia Mara ou com
Tycho, como a magia saltou da minha pele para a deles. Pressiono
as duas mãos em torno do punho da arma e me esforço para clarear
a mente. A mulher choraminga.
– Shhh – Lia Mara diz. Ela se inclina e pousa uma mão na
bochecha dela. – Olhe para mim – diz suavemente. – Seu bebê vai
ficar bem.
– Jacob – digo baixinho.
– Sim.
– Puxe a faca.
Ele não hesita. A lâmina se solta da barriga dela. A mulher berra.
O sangue se derrama em minhas mãos. As estrelas em minha pele
cintilam e explodem e rodopiam.
O sangue continua a jorrar.
– Não está funcionando – Jacob diz.
Respiro fundo e me concentro. Pressiono os dedos contra a
ferida, mas o sangramento não para. A mágica se recusa a saltar de
mim para salvá-la. Ela estará morta em minutos.
– Gentilmente – Lia Mara sussurra.
Gentilmente. Penso em Tycho no sótão. Penso em Lia Mara
sussurrando em meus lábios. As estrelas giram e faíscam, e
começam a invadir minha visão, trazendo luz ao mundo. Preciso
que elas sejam mais rápidas para fechar esta ferida e salvar a jovem
mãe. Lia Mara comparou isso com esgrima, mas estava errada. Isto
é como agarrar um raio de sol e dizer onde ele deve brilhar.
Mas as centelhas e estrelas se movem mais prontamente agora,
de acordo com o meu comando. O sangue não está mais jorrando
sob os meus dedos. Sinto algo vibrando em minha mão. O bebê se
mexe mais uma vez.
Pisco, e as estrelas se espalham. O peito da mulher se ergue. Ela
solta um suspiro e fecha os olhos.
– O sangramento parou – Jacob diz.
Com as mãos, alargo o rasgo na roupa dela. Não há mais ferida
nenhuma ali.
Arrasto o pulso em minha testa subitamente encharcada e exalo
o ar preso.
– Ela está curada! – um homem grita às minhas costas, e gritos
de comemoração tomam conta do grupo. – Ele possui magia!
– Ele é o herdeiro! – uma mulher diz. Sua voz se ergue para a
multidão; – A magia dele curou Mina!
Em seguida, ela se ajoelha.
Engulo o ar, mas um homem atrás dela faz o mesmo. E mais
outro. Um murmúrio perpassa a multidão, e todos eles começam a
se ajoelhar.
– Precisamos sair daqui – digo para Lia Mara. Ela assente
rapidamente.
Fico de pé, esperando ter que abrir caminho entre a população,
mas, para minha surpresa, Tycho está ali. Tem sangue nos cabelos
e nas bochechas, mas parece ileso. Ele tem um menininho choroso
nos braços.
– Os guardas acabaram pisoteando as pessoas – Tycho diz. –
Quebraram a perna dele.
Uma mulher empurra Tycho e cai de joelhos diante de mim. Suas
roupas estão sujas de lama e seu cabelo se soltou da trança. Ela
pega minha mão, agarrando-se a mim com uma força
surpreendente.
– Por favor, Sua Alteza. Por favor, ajude.
Quero recusar o título, mas a recusa parece um luxo quando as
pessoas estão sofrendo de verdade.
Assinto para a mulher.
– Vou tentar.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

LIA MARA

Quando a noite começa a dar espaço para a aurora, a exaustão


toma conta de todos nós. Somos alojados nos melhores quartos da
melhor pousada que Blind Hollow tem a oferecer. Tenho um
quartinho inteiro só para mim, e um prato de comida foi deixado ao
lado de uma lareira estalando. O estalajadeiro me traz baldes de
água quente, roupas limpas e um conjunto de pentes para os meus
cabelos. Depois de dias caminhando pela floresta, sinto-me grata
pelo simples vestido azul com corpete rendado.
Estou limpa e vestida, só que o sono parece muito distante.
Sento-me diante do fogo e pressiono a mão trêmula no pescoço.
Noah fez um curativo, mas ainda está dolorido.
Nenhum homem jamais colocou uma arma na minha garganta.
Nem mesmo quando os guardas de Rhen me capturaram.
Ouço uma batida leve na porta e dou um salto. Pela primeira vez
na vida, sinto falta dos meus guardas, das minhas armas. Congelo
no lugar.
Uma voz fala do outro lado, suave no silêncio da manhã:
– Sou eu, Grey.
Solto um suspiro aliviado e abro a porta. Grey obviamente
recebeu a mesma hospitalidade que eu. Está de barba feita pela
primeira vez desde que nos encontramos no castelo de Rhen, e seu
cabelo escuro está úmido e despenteado. Suas roupas velhas foram
substituídas por calças escuras e uma camisa de malha larga. Vejo
que ele ainda carrega todas as suas armas.
Não consigo decidir de qual Grey gosto mais: do rústico, de mãos
ásperas pelo trabalho e feições sombrias na penumbra de uma
fogueira, ou deste Grey, atento e elegante, com olhos que veem
tudo.
Ele parece surpreso ao me ver à porta.
– Os outros estão dormindo. Pensei que você também estaria.
Balanço a cabeça.
Ele coloca um dedo no meu queixo.
– Você está ferida.
Meu coração palpita, e toco o curativo no pescoço.
– Não é nada. – Minha respiração vacila quando me lembro tanto
do medo quanto da atração, e preciso pigarrear.
Se ele quiser me curar, vou recusar. Sua exaustão é tão latente
que quase posso senti-la em mim.
Ele baixa a mão, de qualquer forma.
– Iisak está nos observando do telhado. Eles recuaram, mas
suspeitamos que os soldados voltem com reforços. – Ele faz uma
pausa. – Não podemos ficar aqui. Não quero provocar um
derramamento de sangue nesta cidade outra vez.
Ergo a sobrancelha.
– Você está dizendo que não vai dormir?
– Isso.
Dou um passo para trás e seguro a porta aberta.
– Quer entrar?
Ele hesita.
– Você devia descansar.
– Você também. Podemos ser teimosos juntos. – Afasto-me da
porta para permitir que ele tome sua decisão e paro ao lado da
mesa de comida. – O estalajadeiro trouxe uma garrafa de vinho.
Ele sacode a cabeça.
– Vinho me derruba.
Sorrio e pego a jarra de água. Esta é provavelmente a coisa mais
surpreendente que descobri sobre ele.
– Sério?
Ele assente e aceita o copo de água. Apesar do seu silêncio, ele
lança um olhar para a janela e para a porta.
– Você está desconfortável – digo. De alguma forma, saber que
não sou a única me traz um pouco de confiança.
– Dustan não vai nos permitir ganhar vantagem. Eu iria embora
agora, mas os outros precisam dormir.
– Você também – comento.
Ele encolhe os ombros e bebe metade do copo em um só gole.
– Você é um bom líder.
Ele faz uma careta, e depois balança a cabeça. Sua voz sai rouca
e cansada.
– Não estou liderando ninguém.
Sento-me em uma das poltronas perto da lareira e o observo com
olhos arregalados.
– Você certamente não está falando sério.
– Certamente estou. Noah e Jacob só estão procurando um jeito
de voltar pra Decê. Eles vão me seguir até que eu consiga isso.
Tycho não tem pra onde ir. Você está voltando pra casa. – Ele bebe
o resto da água e enche o copo. – Não acho que Iisak siga ninguém.
– Ele olha para mim. – Posso me sentar?
– Claro.
Ele retira o cinto da espada e coloca a arma ao lado da poltrona.
Apoia os braços nos joelhos, depois passa a mão pelos cabelos
úmidos. Parece prestes a dormir sentado, porém sua absoluta força
de vontade o mantém acordado.
Lembro do jeito como ele se arrastou pela floresta por
quilômetros, enquanto suas costas estavam tomadas por feridas
sangrentas. Lembro de sua voz tranquila e encorajadora na
escuridão do bosque enquanto carregávamos aquele cervo enorme.
“Mais um passo”, ele me dizia.
– Não percebe que se você os acordasse dizendo que devemos ir
embora neste instante, eles estariam vestidos e prontos em
minutos?
O músculo de sua mandíbula tensiona, mas ele não fala nada.
– Você era comandante da guarda de Rhen. Com certeza isto
não é novidade nenhuma.
– Isto é diferente.
– Muitas pessoas nesta cidade seguiriam você também. Você tem
alguma ideia do que fez para elas?
– Atraí soldados cruéis para cá?
– Fell siralla! Você não atraiu esses homens para cá. Rhen os
enviou. Eles não precisavam atacar o povo de Blind Hollow. – Minha
voz fica mais aguda. – Soldado nenhum precisava enfiar uma faca
na barriga daquela mulher. Teria sido um golpe fatal.
– Eu sei.
Sua voz é baixa e firme, e espero que ele fale mais, mas ele fica
em silêncio.
Sinto que aprendi muito sobre ele nos últimos dias, mas ainda há
muito mistério. Passei tempo demais esperando ser nomeada
herdeira, esperando poder oferecer uma vida melhor para o meu
povo, e minha mãe entregou essa oportunidade a Nolla Verin. A
situação de Grey é o oposto. Ele não quer a Coroa, mas ela parece
destinada a cair diretamente em seu colo.
– Os guardas estavam com medo de você – digo.
Ele assente, e seus olhos se dirigem para a marca em meu
pescoço.
– Eles deviam ter medo de você. Nem percebi que você estava
querendo a adaga.
– Sou filha de uma rainha. Sei me defender. – Apesar das
palavras, minha voz vacila. Saber e precisar são coisas muito
diferentes. – Você teria mesmo matado aquele homem?
– Se ele tentasse machucar você, sim.
Ele fala com simplicidade, mas mesmo assim meu coração
acelera de novo.
– Eu não gostaria de ver isso.
– Por quê?
Engulo em seco e olho para as minhas mãos.
– Porque eu realmente quero a paz. Zombei de você por usar a
violência como uma forma de resolver conflitos.
– Não é fraqueza querer a paz.
– Posso querer a paz à vontade, mas isso não impediu que
colocassem uma faca na minha garganta. – Meus olhos queimam. –
Isso não impediu que eles machucassem tantas pessoas.
– Salvamos tantas quanto conseguimos.
Ele salvou, junto com Noah. Grey cuidou dos casos mais críticos,
enquanto Noah ficou com os ferimentos mais leves. Quando as
pessoas voltaram para suas casas, tive a impressão de que fossem
construir um trono para ele bem ali na praça.
Grey suspira.
– E não teremos como reprimir essa fofoca.
– Por que você iria querer reprimir essa fofoca?
Ele me olha, e seus olhos estão cheios de exaustão e tristeza.
– Não desejo tomar o trono de Rhen, Lia Mara. Não desejo ferir
seus guardas e soldados. É por isso que fugi de Ironrose. Não quero
dividir Emberfall.
– Os guardas de Rhen atacaram o povo. Ele emitiu ordens para
encontrar você, e foi isso que fez com que seus súditos se
voltassem uns contra os outros. Ele deixou suas costas em carne
viva. E fez o mesmo com Tycho. Não acho que é você quem está
dividindo Emberfall.
Grey estremece. É quase imperceptível, mas eu noto.
– Perdoe-me – digo.
Ele finalmente ergue os olhos e me encara.
– Sua mãe matou aquele caçador? Aquele que o taverneiro
mencionou?
Fico imóvel e desvio o olhar.
– Os guardas dela mataram. Minha irmã deu a ordem.
– E aquela garota Raina?
Engulo em seco.
– Eu a vi na floresta. Ela assistiu à execução do pai da irmã. –
Hesito. – Permiti que ela fugisse.
Seu olhar pesa em minha pele. Preciso me esforçar para olhá-lo
nos olhos.
– O taverneiro mencionou uma mãe em Vale Wildthorne que
perdeu todos os seus filhos. Era a sua mãe?
– Sim. – Ele faz uma pausa. – Ou não, na verdade. Mas era a
mulher que eu pensava ser minha mãe. – Ele fica em silêncio por
um momento. – A feiticeira matou todos eles para me manipular.
Quando estávamos presos na maldição.
Tenho vontade de tocá-lo, mas fico incerta sobre como ele
receberia o gesto.
– Lilith parece verdadeiramente terrível.
– Ela era.
Não é à toa que ele não quer saber de magia. Não é à toa que
Rhen a tema tanto. A tristeza paira no quarto tão pesadamente
quanto a exaustão.
– Não é a magia que a fazia terrível, Grey.
Ele passa uma mão no rosto e, por um breve momento, vejo uma
centelha de vulnerabilidade em sua expressão. Ele a esconde bem,
sob o verniz aterrorizante de guarda, mas ele só é um pouco mais
velho que eu. Estamos ambos presos pelo dever e pelas
circunstâncias, ambos tentando fazer o que podemos para proteger
nosso povo.
– O que você vai fazer quando chegarmos ao desfiladeiro? –
pergunto.
Ele ergue as sobrancelhas.
– Vai me acompanhar a Syhl Shallow?
Da primeira vez que ofereci essa solução, meus objetivos eram
claros: provar para minha mãe que posso ser tão eficiente quanto
minha irmã, mas do meu próprio jeito. Eu traria o herdeiro de
Emberfall até o palácio e, pela primeira vez, seria a irmã louvada.
Mas agora, depois de passar dias na floresta com este homem, não
tenho certeza da resposta que quero ouvir.
Ao lado de Nolla Verin, ele seria incrível. Não tenho dúvida. Ele
tem um traço de praticidade cruel que combina com a dela, acho.
Mas gosto muito mais de sua vulnerabilidade gentil. Se ele ficar com
minha irmã, duvido que volte a ver essas coisas nele.
Grey está me observando.
– Depois do que aconteceu aqui… não posso ficar em Emberfall.
As palavras acertam meu coração. Endireito a postura, tentando
afastar a dor.
– Minha mãe está preparada para ajudá-lo a tomar o trono.
– Ela vai se decepcionar.
– Ela vai ser muito convincente.
Seu olhar fica mais afiado.
– O que você quer dizer com isso?
– Ela vai te oferecer prata. As terras que você quiser. Força
militar. O comando do exército inteiro, se você quiser. Ela está
desesperada para ter acesso às hidrovias de Emberfall. – Faço uma
pausa. – Ela vai te oferecer minha irmã… isso se Nolla Verin não se
oferecer primeiro.
– Nenhuma dessas coisas vai me convencer, Lia Mara.
Lembro daquele momento na floresta, quando a noite nos
cercava, silenciosa, e ele pressionou o dedo em meus lábios.
Homem estúpido.
– Minha irmã é muito bonita. Você não devia recusá-la
cegamente.
Seus olhos estão escuros e fixos nos meus.
– Não a estou recusando cegamente.
Minhas bochechas coram, e eu desvio o olhar. Meus olhos
percorrem seus ombros largos, os músculos tensos de seus
antebraços. Eu o observei durante a batalha, quando os soldados e
a população entraram em confronto, e entendo por que os guardas
de Rhen tiveram que arrastá-lo acorrentado para o pátio do castelo.
Deve ter lhe custado muito permitir que isso fosse feito com ele.
Quando levanto a cabeça, Grey ainda está me olhando, e fico
mais vermelha.
– Desculpe-me – digo.
Seus olhos brilham com algo como malícia – mas é algo mais
sombrio, mais quente.
– Se está pedindo desculpas, então eu também deveria pedir. –
Ele desvia o olhar, com uma mancha rosada nas bochechas. –
Agora você percebe por que não posso com vinho, se já sou
atrevido sem ele.
O grande guerreiro corando com um mero jogo de palavras.
Sorrio, mas minha própria exaustão me domina e tenho que reprimir
um bocejo.
– Você devia dormir – Grey diz baixinho.
Não quero dormir. A cada dia, estaremos mais perto do palácio
de mamãe, e do término de… o que quer que exista entre nós.
Por causa desse fim iminente, não posso pedir a ele para ficar.
Não sei se ele interpretou mal o meu silêncio, mas se levanta da
poltrona e habilmente coloca a espada de volta em seu lugar.
– Vou deixá-la descansar – ele diz.
Ele já está na porta quando eu digo:
– Grey?
– Milady?
Ele nunca me chamou assim, e isso dispara uma centelha por
mim. Sei que é simplesmente uma marca de respeito, mas agora,
entre nós, parece intensamente pessoal. Minha dama.
Paro na frente dele. A porta está aberta, então digo baixinho:
– Ainda não te agradeci por ter salvado a minha vida.
Ele também fala baixinho:
– Você se salvou.
Minhas bochechas esquentam novamente.
– Você acha que os soldados vão voltar?
– Sim. E logo.
Estremeço, pensando naquela faca na minha garganta. Engulo
em seco e sinto a pontada e a queimação. Pressiono a mão no
pescoço sem querer.
Os olhos de Grey estão pesados e sombrios na penumbra da
porta.
– Vou ficar de vigia na sua porta.
– Você não deveria se incomodar…
– Posso não querer ser rei, mas sei ser um guarda. – Ele passa
um dedo no meu queixo. – Não tema. Ninguém vai encostar em
você de novo.
Desta vez, estremeço por um motivo totalmente diferente.
Quero dizer tantas coisas… tantas coisas que não sei como dizer.
Antes que eu descubra, Grey puxa a maçaneta e fecha a porta ao
sair.
CAPÍTULO TRINTA

GREY

O café da manhã é servido ao amanhecer; é tanta comida que


mal conseguimos comer a metade. Os melhores cavalos da cidade
nos esperam para nos levar aonde quisermos. Todos que
encontramos são respeitosos. Damas fazem reverências e homens
se curvam quando passamos, e deixamos um rastro de sussurros
por onde pisamos.
Tudo isso me deixa muito desconfortável. Não sou nada para
essas pessoas. Estou fugindo de Emberfall, não a salvando. Cada
vez que alguém me chama de Sua Alteza, tremo e espero ver Rhen.
Estou cansado e irritado enquanto cavalgamos, e não sou o
único. A falta de sono não fez bem a ninguém, mas, se Dustan e
seus homens planejam voltar, precisamos ser rápidos e cautelosos.
Seguimos a oeste de Blind Hollow, apesar de isso acrescentar meio
dia de viagem pelo desfiladeiro. O calor do sol é intenso, mas vamos
em frente, desesperados para abrir distância entre nós e a cidade.
Iisak sobrevoa alto, até parecer menos uma criatura saída dos
contos de fadas e mais um falcão negro em uma corrente de ar.
Quando o sol está brilhando diretamente acima de nós,
desacelero para um trote e os outros fazem o mesmo. O pescoço e
os flancos do animal estão úmidos de suor, então viro para as
árvores, buscando o riacho. Desmonto e solto a cabeça do cavalo,
que mergulha o focinho na água gelada.
– Vamos descansar por meia hora – digo. Agacho-me na margem
e pego um punhado de água, deixando-a escorrer na minha nuca.
Perto de mim, Tycho quase cai de joelhos na margem lamacenta.
Suas bochechas estão vermelhas e ele espirra água na cabeça
antes de beber. Alguns metros rio abaixo, Lia Mara está fazendo o
mesmo. Observo a água escorrer pelo seu pescoço e a ponta de
sua trança cair na água. Suas bochechas também estão rosadas, e
seu cabelo está grudado na testa.
– Grey.
Endireito-me e noto Jacob atrás de mim. Sua camisa está
encharcada, e seu cabelo escuro está pesado de suor. Em seu
olhar, vejo cansaço e irritação.
– Meia hora? – ele questiona.
– Não devíamos nem ficar parados por tanto tempo.
– Todos estão exaustos. Tivemos cerca de duas horas de sono, e
cavalgamos a manhã toda. – Ele faz uma pausa, baixando a voz. –
Talvez os outros não digam nada, mas eu estou dizendo.
Ele pode até ter salvado minha vida na noite passada, mas não
alimento ilusões de que tenha sido para o meu benefício. Ele
precisa de mim para voltar para casa, e está me alfinetando desde a
manhã em que acordei acorrentado na carroça. Dou um passo à
frente, encurtando a distância entre nós. Minha voz sai igualmente
baixa:
– Se não consegue manter o ritmo, fique para trás.
– Não seja babaca. Estou te pedindo um dia de descanso…
– Um dia. – Dou risada sem achar graça. – Dustan vai cortar
nossas gargantas enquanto dormimos. Precisa de uma enfermeira
também, Jacob?
Ele empurra meu peito com força.
Eu o empurro de volta, e ele quase cai. Ele recupera o equilíbrio
antes que eu esteja pronto, e me agarra pela barriga. Caímos no
riacho gelado. O frio tira meu fôlego, e logo a água cobre meu rosto
enquanto ele me imobiliza.
Dou um soco na lateral de seu tronco, o que me concede alguns
centímetros de liberdade para respirar antes de Jacob me dar um
soco no queixo. Estou debaixo d’água de novo, e suas mãos me
prendem ali. Não consigo tomar impulso. Não consigo respirar. As
estrelas aguardam sob a minha pele, prontas para me curar, mas
não podem encher meus pulmões de ar.
De repente, ele agarra minha camisa e me puxa para cima. Eu
tusso e ofego.
– Um dia – ele diz ferozmente.
– Meio dia…
Ele me afoga de novo, e desta vez ouço Lia Mara e Tycho
gritando à distância. Minhas mãos estão presas em seus pulsos.
Enfio as unhas em sua pele, mas ele não cede.
A magia espera na forma de centelhas e estrelas debaixo da
minha pele. Lilith era capaz de fazer o sangue jorrar com apenas um
toque. Certamente isso não é muito diferente de curar. Separar em
vez de juntar. Uma luz dourada começa a turvar minha visão. Raios
de sol explodem no interior de minhas pálpebras.
Harper provavelmente vai me odiar para sempre se eu matar seu
irmão, mas, neste momento, é um risco que estou disposto a correr.
Envio as centelhas para os pulsos dele. Ele grita e se joga para
trás. Arrasto-me para fora do riacho, tossindo um bocado de água
na margem lamacenta ao meu lado.
Jacob ainda está ajoelhado na água, segurando um pulso contra
o peito. Sangue mancha sua camisa, mas acho que não é nada
grave. Seus olhos estão mortíferos, em vez de aterrorizados.
– Não é só por causa deles, seu idiota – ele diz, com a voz cheia
de menosprezo. – Você também está exausto. Senão eu não teria
sido capaz de te afogar.
Tusso novamente. Minha garganta parece áspera e seca.
Criamos um público. Lia Mara e Tycho estão na margem, lançando
olhares de mim para Jacob. Noah está na água, tentando afastar o
braço de Jacob de seu peito. Iisak se agacha na margem do riacho
e espera.
Não olho para ninguém.
A pior parte é que Jacob está certo. Estou exausto. Ele não
deveria ter conseguido me afogar. Não deveria ter conseguido me
dar um soco.
Arrasto-me para fora da água e afasto o cabelo molhado do rosto.
– Tudo bem, podemos descansar até escurecer. – Sem olhar para
trás, sigo para onde os cavalos estão amarrados para verificar
nossos suprimentos.
Ninguém me segue.
Que bom. Fico observando os outros voltarem para as suas
atividades em silêncio. Noah e Jacob estão fazendo uma fogueira.
Tycho parece estar tentando convencer Iisak a jogar baralho, e Lia
Mara pede para jogar também. Ela olha para mim como se quisesse
me convidar, mas algo que ela vê em minha expressão a convence
do contrário, porque volta o olhar para as cartas que Tycho está
distribuindo. Isso azeda meu humor sombrio.
Na noite passada, Lia Mara disse que eu estava liderando. Ela
está errada. Sinto-me fora de controle. Quando era o comandante
da guarda, eu tinha que seguir uma série de deveres. Eu tinha um
plano. Uma cadeia de comando. O príncipe dava as ordens, e eu as
seguia.
Agora, não tenho nada. Tenho apenas a mim mesmo. Syhl
Shallow pode ser o destino certo… ou pode muito bem ser o errado.
Apesar de tudo o que aconteceu, queria poder ouvir os conselhos
de Rhen. A quase eternidade aprisionados na maldição me ensinou
o que esperar dele, e ele de mim.
Rhen, o que você faria?, penso.
Ele não se aliaria à Syhl Shallow. Tenho certeza.
Suspiro, sentando-me com as costas apoiadas em uma árvore.
Meus olhos ardem por causa da água do riacho, então os esfrego. A
exaustão implora para que eu os mantenha fechados, o que faço
apenas por um momento. Minha mão cai no meu colo.
– Sabia que você estava cansado.
Acordo em um susto, vasculhando a terra e a vegetação rasteira
em busca de uma arma antes de perceber que é apenas Jacob. O
céu às suas costas ficou roxo e o sol se transformou em uma faixa
vermelha a oeste, pairando sobre as cadeias de montanhas. Por um
momento, fico desorientado e em pânico, mas não há preocupação
em seu rosto e tudo está silencioso. O aroma de algo cozinhando no
fogo acorda meu estômago com força. Eu nem me lembro de ter
adormecido.
Esfrego uma mão no rosto.
– Dormi por quanto tempo?
– Não o suficiente. Pegue. – Ele me entrega uma tigela de aço. –
Coma enquanto está quente.
Pego a tigela quente cheia de carne desfiada, queijo derretido e
um pedaço de pão que trouxemos de Blind Hollow. Minhas roupas
ainda estão úmidas, mas a fome é mais urgente, então me endireito
para me sentar com as pernas cruzadas e mergulho o pão na
comida. Eu provavelmente deveria agradecer a ele, mas não digo
nada. Ainda estou irritado e amargo, e não esqueci que Jacob me
afogou no riacho.
Quando ele se senta na grama à minha frente com uma tigela no
colo, meus dedos congelam. Olho para ele.
– Estou mais descansado agora – digo sombriamente.
Ele coloca um pouco de carne e queijo no pão.
– Esse é o seu jeito de dizer que você vai dar um chute na minha
bunda? Cala a boca e coma a sua comida.
As palavras saem fáceis, sem veneno. Ele não parece
arrependido, mas quase. Estamos a uma boa distância do fogo, e
não consigo ver seus olhos. Suspiro e levo o pão à boca. Comemos
em silêncio por um longo tempo, até que meus pensamentos
afiados amolecem e se transformam em algo menos volátil.
Jacob finalmente coloca a tigela de lado, e puxa a rolha de uma
garrafa que eu não tinha notado, estendendo-a para mim.
Hesito, depois balanço a cabeça.
Ele dá um longo gole e diz:
– É por isso que gosto mais de você que de Rhen. Ele não teria
ficado aqui.
Ele está certo. O orgulho de Rhen não teria permitido. Uso as
migalhas do pão para raspar o resto de queijo na tigela.
– Não se preocupe. Vou matar você quando terminar de comer.
Ele sorri brevemente.
– Você me encheu o saco na estrada de Rillisk pra Ironrose
dizendo que eu estava exigindo demais dos guardas. Você estava
fazendo a mesma coisa.
– Você estava correndo sem motivo. Eu estou tentando nos
manter vivos.
– Eu também.
Minhas mãos ficam imóveis de novo, e olho para ele.
A expressão de Jacob não muda.
– Você deve ter notado isso na noite passada.
Quando ele salvou a minha vida. Faço uma careta.
– Você só me quer vivo para te levar pra casa.
Ele pragueja e dá mais um gole na garrafa, então solta uma
risada sem humor.
– Uau.
Franzo a testa e não digo nada.
– Você não confia em absolutamente ninguém – ele diz –, e acho
que é isso, mais que qualquer outra coisa, que vai te derrubar.
– Não é verdade.
– É verdade. Você não confiou em Rhen o suficiente pra contar a
ele quem você é. Não confia em Lia Mara o suficiente pra concordar
de verdade em aceitar o asilo de Syhl Shallow. Eu vi você quase se
matar de exaustão porque não confiou que a população o manteria
seguro, e acho que vou ver isso mais vezes até Dustan enfiar uma
espada nas suas costas.
– Estávamos colocando a cidade em perigo…
– Que seja. Eles expulsaram os guardas dali, e fariam isso
novamente. Podíamos estar dormindo em camas agora mesmo, e
não na grama. – Ele faz uma pausa. Seus olhos estão pegando
fogo. – Você não confia em mim o suficiente quando digo que as
pessoas precisam descansar. Você não confia em mim, apesar de
eu ter entrado na briga pra salvar a sua vida.
Não sei o que dizer.
– Você fica me tratando como se eu fosse um idiota
incompetente, mas não sou descuidado nem fraco. Eu me virava
sozinho em DC antes de vir pra cá, e posso me virar sozinho em
Emberfall. Eu tirei você de Ironrose depois que Rhen acabou com
você e Tycho. E eu não só salvei você ontem, mas matei um dos
guardas de Rhen. Arrisquei o meu pescoço. Estou pronto pra invadir
o território inimigo com você. E acha que fiz tudo isso pela remota
possibilidade de que um dia você nos leve pra casa? Está de
brincadeira?
– Jacob…
– Ainda não terminei. Sei que você passou uns quatro bilhões de
anos aprisionado naquele castelo só com Rhen, e não vou nem te
dizer o que Noah acha que isso deve ter causado na sua saúde
mental, mas… – Ele se interrompe e emite um som de frustração. –
Ele não foi seu amigo, Grey. Ele teve uma eternidade pra ser seu
amigo, mas não foi. Mesmo quando você foi arrastado em correntes
de volta para o castelo, mesmo depois de tudo, ele tratou você
como um criminoso.
– Rhen está protegendo seu reino.
– Você não é mais um guarda. Não deve nada a ele. Pare de agir
como se devesse. – Estremeço. Ele toma mais um gole da garrafa e
suspira. – Você salvou a vida do Noah ontem, Grey. Você salvou a
minha vida. Posso ter feito você fazer um juramento a mim, mas já
fomos muito além disso.
Não tinha percebido.
Devia ter percebido.
– Perdoe-me… – começo.
– Ah, cala a boca. Pegue isto. – Jacob me oferece a garrafa. O
licor âmbar se agita e cintila na luz do fogo distante.
Tento recusar, mas suas palavras me atingiram. Você não é mais
um guarda.
Pego a garrafa e a viro, engolindo fogo.
Jacob faz uma careta.
– Certo. Calma lá, valentão.
Eu tusso e a devolvo.
– Isso tem um gosto horrível.
– Eu sei, é incrível. Aquele tal de Eowen disse que era o melhor
que ele tinha. – Jacob dá um longo gole. – Mais?
Eu devia recusar.
Mas aceito. Este gole queima tanto quanto o primeiro. Meus
pensamentos já estão soltos e fugidios.
Jacob está me observando.
– Me surpreende que você e Rhen não se embebedassem todos
os dias durante a maldição.
– Ele bebia. Às vezes.
Na última noite da última estação, Rhen e eu compartilhamos
uma garrafa de rum e brindamos a nossos erros. Ele me incentivou
a ir embora, a começar uma nova vida longe de Ironrose.
Ele estava tentando me proteger.
Faz tempo que penso que deveríamos ser amigos, Grey. Foi isso
o que ele disse quando fui arrastado de volta para o castelo.
No dia seguinte, ele me açoitou até eu ficar em carne viva. Por
medo do desconhecido.
Ele teve uma eternidade para ser seu amigo, Jacob disse.
De repente, quero secar esta garrafa inteira. Por esse motivo,
enfio a rolha no gargalo.
– Vamos alcançar Syhl Shallow em um dia – digo, com a voz
rouca.
– É o que Iisak disse.
– Lia Mara diz que pode garantir nossa segurança, mas mesmo
assim gostaria de transmitir força.
– O que quer dizer?
– Talvez você devesse cavalgar ao meu lado.
– Como um servo?
– Não. – Faço uma pausa. Isto não parece uma boa ideia, mas
minha habilidade de distinguir as coisas está desvanecendo
rapidamente. – Como segundo em comando.
Ele retira a rolha e dá um gole da garrafa.
– Não sou como você. Não posso ser como você era para Rhen.
Não. Ele não pode. Ele pode não ser descuidado e fraco, mas é
teimoso e impulsivo.
Talvez isso não seja de todo ruim.
Jacob está me observando.
– Ou você só está tentando fazer a mesma coisa que Rhen fez?
– Como assim?
– Está tentando fingir? – Sua expressão fica sombria. – Está me
pedindo para cavalgar ao seu lado e agir como seu capanga?
Hesito.
Ele revira os olhos e pega a garrafa para dar outro gole.
Eu a agarro antes e a afasto dele. Estamos ambos um pouco
bêbados agora, e minhas palavras estão confusas e mais honestas
que eu esperava.
– Você poderia fazer isso sem ter que fingir?
Ele me olha nos olhos. Acho que ele vai responder com
petulância e rebeldia, como sempre.
Em vez disso, ele diz:
– Sim, eu poderia.
– Receber ordens requer confiança, Jacob. Você teria que confiar
em mim.
– Tipo… não tentar te afogar?
Ergo os olhos para o céu.
– Esqueça o que eu pedi.
– Não. Eu posso fazer isso. – Ele faz uma pausa. – Se você
confiar em mim quando eu disser que está errado. – Ele levanta a
manga da camisa, onde mais de uma dúzia de pontos envolvem a
pele de seu pulso. – E não fizer isso.
Arregalo os olhos.
– Você tem minha palavra.
Ele oferece uma mão.
– Fechado.
Aperto-a.
– Posso me arrepender disso quando estiver sóbrio.
– É, eu também. – Ele tenta entregar a garrafa para mim.
– Chega. – Recuso. – Ainda estamos em perigo, Jacob.
– Tudo bem. – Ele suspira e desiste. – E mais uma coisa: se
vamos ser amigos, você tem que começar a me chamar de Jake.
CAPÍTULO TRINTA E UM

LIA MARA

Pela primeira vez em dias, o clima entre o nosso grupo de viagem


não está tão tenso. Estou jogando cartas com Noah e Tycho e Iisak,
apesar de o rasvador parecer mais interessado na conversa distante
entre Jake e Grey.
– Você consegue ouvi-los? – pergunto baixinho.
Ele acena a cabeça de leve, então joga uma carta na pilha entre
nós.
– Você não devia bisbilhotar – Noah diz, jogando outra carta.
– Não consigo evitar ser quem eu sou – Iisak fala.
– Eles vão se matar? – Tycho pergunta, meio brincando, meio
sério.
– Não – Iisak diz. Ele faz uma pausa e analisa as cartas em sua
mão. – O jovem príncipe é sábio.
Olho para onde os homens estão conversando, mas eles já se
levantaram e estão se aproximando do fogo. Volto a atenção para
as cartas rapidamente.
– Sua Alteza – Iisak solta –, junte-se a nós.
– Já pedi para parar de me chamar assim – Grey fala, sem
rancor. Ele se abaixa ao meu lado, vacilante, e esfrega os olhos.
Jake passa os dedos pelos ombros de Noah e diz:
– Vou puxar um ronco por umas horas.
– Puxar um ronco? – repito.
Jake sorri.
– Dormir.
Noah coloca a mão sobre a dele por um instante, então a solta.
Jake desaparece na escuridão.
Fico observando-o, muito consciente de Grey ao meu lado. Estive
preocupada com ele desde a briga com Jake… não. Na verdade,
desde que deixamos Blind Hollow.
– Vocês não se mataram – Tycho diz.
– Ainda não – Grey solta.
– Jake é um cara legal – Noah diz. Ele arruma as cartas na mão e
adiciona uma à pilha.
Grey emite um som evasivo.
– Eu pedi para ele cavalgar ao meu lado quando entrarmos em
Syhl Shallow.
Noah levanta a cabeça.
– Sério?
Grey assente.
– Vamos precisar mostrar força, se conseguirmos.
Encaro Iisak, com seus olhos negros como carvão. Agora
entendo o que ele quis dizer quando comentou que o príncipe é
sábio.
Tycho está imóvel ao lado de Noah. Posso captar as emoções em
seu rosto com tanta facilidade quanto se estivesse lendo palavras
em uma página.
Eu teria cavalgado ao seu lado.
Mas você não acha que sou forte o suficiente para mostrarmos
força.
Tycho se recupera rapidamente, então desce uma carta.
– Acho que também vou puxar um ronco. – Ele se levanta do
chão.
Grey não é tolo.
– Tycho.
O garoto para. Espera. A luz do fogo cintila em seus olhos.
– Isto não é um treino – Grey diz.
– Eu sei. – Ele desaparece na escuridão.
Grey o observa, e depois suspira.
– Pelos infernos. – Penso que ele vai atrás de Tycho, mas ele
pega as cartas. – Vou ficar com as cartas dele.
Jogamos em silêncio por muito tempo, com o fogo estalando ao
lado.
– Tycho é jovem – Grey por fim diz com uma voz baixinha –, e
pequeno para a idade…
– Como eu disse, ele se jogaria de um precipício por você – Noah
diz.
Grey suspira de novo.
– Tycho continuaria cavalgando hoje – digo.
Até eu sei que Jake está certo. Posso não concordar com seu
jeito de lidar com as coisas, mas a exaustão de Grey ficou evidente
a manhã toda. Ele ainda parece sonolento, com os olhos pesados.
– Jake é uma boa escolha – Iisak comenta, provocando uma
brisa gelada que faz o fogo crepitar. – Karis Luran respeita a força.
Grey olha para mim.
– O que mais ela respeita?
Fico vermelha e olho para as cartas.
– Força e virilidade. Ela diz que escolheu meu pai porque ele era
o que matava mais em combate. Ele é um general muito poderoso
no norte de Syhl Shallow. – Não gosto de pensar em seus feitos no
campo de batalha, de tentar imaginar se sou uma decepção tanto
para o meu pai quanto para a minha mãe. Já é ruim ser uma
decepção para um deles.
– Ele não reina ao lado dela?
– Ah, não. Ele não fica no palácio. Eu nem o conheço. Ela só o
escolheu para dar à luz a sua primogênita. E escolheu outro quando
quis ter outra filha.
Ninguém fala nada, e deixo de olhar para as cartas quando vejo
que todos estão me olhando.
– As pessoas não se casam em Syhl Shallow? – Noah pergunta.
– Ah, algumas, sim. Mas a rainha pode escolher seu… seu
parceiro. – Minhas bochechas ficam rosadas. – Uma rainha não
precisa de um rei ao seu lado.
– Mas ela queria que sua irmã se casasse com Rhen – Grey diz.
– Ela vai querer que Nolla Verin se case com você também, se
você reivindicar o trono.
Grey não fala nada, e não tenho coragem de olhar para ele.
Lembro de sua voz suave na pousada na noite passada. Não estou
recusando cegamente.
Minhas bochechas ficam quentes mais uma vez diante de seu
silêncio. Sinto o peso de seu olhar sobre mim.
– Na verdade – digo –, não entendo por que seguir a linhagem
dos reis, quando é a mulher que dá à luz. E o que tem a ver a ordem
de nascimento com aptidão para governar?
Grey desce uma carta.
– Aqui, acreditamos em destino. É por isso que o primogênito é
considerado o herdeiro. Porque o destino colocou aquela criança no
mundo primeiro. – Ele olha para mim. – E a mulher pode dar à luz,
mas ela não concebe o bebê sozinha.
– Então o destino escolhe o herdeiro. Vocês permitem que a sorte
escolha uma coisa assim?
– E como isso é diferente de deixar a escolha nas mãos de um
indivíduo? – Ele lança uma carta na pilha e erra por alguns
centímetros.
Eu o observo atentamente.
– Grey… você está bem?
Noah dá risada.
– Pelo menos Jake teve o bom senso de ir se deitar.
Grey fecha os olhos.
– Eu disse para você que não me dava bem com álcool.
Ergo as sobrancelhas. Agora entendo o motivo de sua fala
arrastada.
– Você está bêbado?
Ele esfrega os olhos.
– Talvez um pouquinho.
Noah ainda está sorrindo.
– Jake foi sorrateiro. – Ele olha para Iisak. – E vocês? Têm reis e
rainhas?
– Temos um governante – o rasvador diz, e a brisa que sopra
sobre nós é tão gelada que estremeço. – Se bem que estou longe
há tanto tempo que não sei mais quem está no poder. – Ele olha
para mim. – Sua mãe deve saber.
– O que ela vai exigir de você? Por quebrar o acordo?
– Provavelmente mais do que eu vou querer oferecer.
Penso em minha mãe, sabendo que ele não está errado. Quando
ele perguntou se podia nos acompanhar até Syhl Shallow, disse que
ela tinha algo de grande valor para ele.
Iisak joga outra carta no monte. O gelo cobre os cantos dela,
derretendo na grama abaixo.
– Vou pagar o preço que ela pedir e voltar para casa.
Não sei dizer se o tom em sua voz é saudade ou decepção, ou
ambos.
– O que ela tem? – pergunto baixinho.
– Algo muito precioso para mim. – Ele faz uma pausa. – Eu não
queria deixar as florestas de gelo. Os rasvadores não são
numerosos, e nossas fêmeas só podem dar à luz uma vez na vida.
Quando os feiticeiros foram destruídos, ficamos vulneráveis. O
acordo com Syhl Shallow nos ofereceu alguma proteção. Quebrá-lo
coloca todos em risco.
– Deve ser algo muito precioso mesmo, pra você se arriscar tanto
– Grey comenta.
– Eu não pretendia ficar longe por tanto tempo. – Iisak sorri com
tristeza, mostrando as pontas de suas presas. – Não pretendia ser
capturado.
– Eu vi você lutando em Blind Hollow – Noah fala. – Como é que
você foi capturado?
– Foi uma mistura de erro de julgamento e uma flecha na hora
certa. – Ele levanta o braço para apontar para uma faixa preta que
deve ser uma cicatriz. A linha desaparece sob sua asa. Ele olha
para mim. – Ficarei muito grato se puder interceder com sua mãe,
princesa.
– É claro. – Minhas bochechas enrubescem, e franzo a testa. –
Mas tenho que te avisar que minha mãe raramente aceita meus
conselhos. Posso não ser uma aliada, Iisak.
– Ser filha dela deve contar algo – ele diz.
Dou uma risada sem graça.
– É o que seria de imaginar.
– Eu ficaria muito agradecido.
– Vou fazer tudo o que puder – digo sinceramente.
Grey olha para mim.
– Sua mãe é uma tola se não aceita seus conselhos. Não
conheço sua irmã, mas acho difícil acreditar que a sabedoria ou a
compaixão dela superem a sua.
Assim como antes, sua voz é decidida demais, e suas palavras,
honestas demais.
– Minha mãe não valoriza compaixão – digo.
– Então ela é uma tola.
Rio baixinho.
– Você já disse isso.
– Rhen devia ter ouvido você. Devia ter negociado com você.
Você se importava com o povo de Emberfall.
– Sim – digo sombriamente. – Eu me importo.
– Ele também foi um tolo.
Do outro lado, Noah também ri.
– Você devia descansar mais, Grey.
Grey não desviou o olhar de mim.
– Você fugiu pela lareira.
Sorrio.
– Sim, fugi.
Ele está muito sério.
– Você parou para ajudar Tycho.
– Eu me lembro.
Ele não está sorrindo.
– Você arriscou sua vida, Lia Mara. – Ele faz uma pausa. –
Poderia ter sido descoberta.
Tomo fôlego para responder, para dizer que eu não podia deixar o
garoto pendurado sangrando na parede, assim como não podia
deixar minha mãe matar a filha do caçador escondida na floresta.
Mas Grey levanta a mão para ajeitar a mecha de cabelo que cai
sobre o meu rosto, e prendo a respiração.
– Garota corajosa – ele diz.
Ninguém jamais me chamou de corajosa. Já disseram que sou
inteligente. Forte. Estudiosa. Bondosa.
Mas nunca corajosa. Meu coração acelera no peito.
A distância, o céu troveja. As asas de Iisak se agitam e ele olha
para cima.
– Vai chover em breve.
Grey baixa a mão.
– Quão breve?
– Em uma hora, acho.
Meu coração ainda está acelerado, mas Grey junta as cartas.
– Acorde Jake e Tycho. Precisamos encontrar um abrigo.
•• ••
A chuva cai antes de estarmos prontos, acabando com o humor de
todos. As montanhas elevam-se à nossa esquerda, pesadas e
negras na escuridão da meia-noite. Meu coração vacila e estremece
com a visão.
Lar. Meu lar está do outro lado. Posso estar na minha própria
cama amanhã à noite, cercada de travesseiros macios e pilhas de
livros e todo o chá quente que eu puder beber.
E Grey provavelmente será empurrado para a minha irmã.
Forçado a aceitar seu direito de primogenitura.
Eu serei jogada nas sombras enquanto pessoas mais importantes
fazem coisas mais importantes.
O pensamento me machuca, então o afasto.
Nós seguimos pelas colinas enquanto a água encharca nossas
roupas. A trilha fica escorregadia e os cavalos patinam na lama,
mas nossa persistência é recompensada: encontramos uma
caverna. Não é muito profunda, mas é larga o suficiente para que
possamos proteger os cavalos da chuva e acender uma fogueira
para nos aquecer. Tenho roupas limpas de Blind Hollow na mochila
e, embora estejam um pouco úmidas da água que penetrou na
costura do couro, as calças e o casaco são muito mais confortáveis
do que as saias encharcadas de antes. Tiro minhas botas, deixo os
homens perto do fogo e vou para o outro lado perto dos cavalos
para me trocar.
Assim que termino, dou uma olhada rápida para ver se eles
também terminaram. Grey está de costas para mim, agora com uma
calça limpa e escura, mas ainda está sem camisa. A visão rouba
meu fôlego e faz meu coração parar. Mais de meia dúzia de
cicatrizes atravessam os músculos de seus ombros. Linhas grossas
e escuras marcam sua pele perfeita.
Eu vi o que aconteceu, e foi horrível.
Ver as cicatrizes também é terrível.
Grey começa a se virar, como se percebesse meu olhar, e finjo
que estou ajustando a corda dos cavalos. Quando olho de novo, ele
está completamente vestido, cruzando a caverna em minha direção.
Engulo em seco e me pergunto se ele notou que eu o encarava.
Não sei o que dizer. A chuva ou o tempo que passamos no ar
gelado o deixaram sóbrio, porque seus olhos estão mais claros e
afiados do que quando estávamos na fogueira.
Pigarreio.
– Desculpe – digo. – Eu estava… olhando para saber se vocês já
tinham se vestido.
– Estou vestido. – Ele coloca a mão no pescoço do cavalo ao
meu lado, acariciando sua crina. Ele é tão gentil com os animais que
sempre me surpreendo. Nolla Verin vai gostar disso, penso.
Minha garganta aperta.
– Vamos alcançar Syhl Shallow amanhã – ele diz baixinho. –
Quero sair antes do amanhecer. A chuva vai nos dar cobertura e
nos permitir chegar ao desfiladeiro sem sermos vistos.
Assinto com a cabeça, porque não faço ideia de como minha voz
vai soar.
– Que tipo de forças vamos encontrar do seu lado?
Levo um tempo para processar a pergunta. Ele não se aproximou
para conversar baixinho, mas para elaborar uma estratégia militar.
Qualquer emoção entre nós é coisa da minha cabeça. Pigarreio e
desvio o olhar.
– Nós… temos soldados de sentinela no desfiladeiro. – Tenho
que pigarrear de novo. – Eles vão me reconhecer, mas
provavelmente vão nos segurar na guarita até que alguém do
palácio venha nos buscar. – Minha mãe não vai permitir que eu saia
andando pelas ruas parecendo um rato arrancado da sarjeta.
Seus olhos percorrem meu rosto.
– Obrigado.
Ele está prestes a se virar, então pigarreio e o chamo:
– Grey.
Ele espera.
– Milady?
Não sei o que quero dele, mas não quero que este momento
acabe. Quero sentar perto do fogo e lhe ensinar syssalah. Quero
colocar o dedo nos lábios dele e sussurrar segredos no escuro.
Quero me aproximar e pressionar o rosto em seu peito e escutar
seu coração bater. Quero tocar as cicatrizes em suas costas e lhe
dizer que ele não mereceu nenhuma daquelas marcas.
Meu rosto deve estar pegando fogo.
Garota corajosa.
Não sou nem um pouco corajosa. Não posso fazer nada disso.
Ele pousa um dedo no meu queixo.
– Você devia dormir. Seu lar está à sua espera.
Engulo em seco.
– Não quero dormir.
– Eu também não.
Sua mão se demora em meu rosto, e estremeço.
– Está com frio? Venha se sentar comigo na fogueira.
Eu não devia. Estamos tão perto de Syhl Shallow, não quero
estragar minha chance de provar para minha mãe que tenho algo a
oferecer. Mas Grey pega minha mão e me puxa, e é como se ele
tivesse se apossado do meu coração.
Nos sentamos de pernas cruzadas, e seu joelho encosta no meu.
Estou muito consciente do contato, e desejo me aproximar, sentir o
seu calor em vez do calor do fogo. Coloco as mãos no colo,
mantendo os olhos nas chamas enquanto Noah e Jake ajeitam os
cobertores. Tycho já está quase dormindo do outro lado.
Grey se levanta e ergo a cabeça, surpresa, imaginando se ele
mudou de ideia. Ele deve notar o desalento em meu rosto, porque
me dá um meio sorriso.
– Só vou pegar um pouco de comida – ele diz baixinho.
Ele volta com queijo, carne seca e um odre de água.
A carne seca me lembra Parrish e Sorra em nossa última noite
juntos, e a reviro nas mãos.
– Você parece triste – Grey fala.
Olho para ele.
– Estava pensando em meus guardas.
– Vocês eram próximos.
– Sim. – Engulo um nó em minha garganta. – Sorra morreu por
minha culpa.
– Se ela morreu protegendo você, acho que ela veria isso como
uma grande honra.
– Você consideraria uma grande honra morrer pelo príncipe?
– Quando eu era seu guarda? Sim.
Ele realmente acredita nisso. Ouço a sinceridade em sua voz.
– E agora?
Ele parte um pedaço de carne ao meio.
– Eu sabia o que ele faria quando descobrisse quem eu era. Fico
me perguntando se eu devia só ter falado no primeiro dia, quando
fui arrastado de volta para o castelo. Fico me perguntando se as
coisas seriam diferentes.
– Acho que você tomou a decisão certa. – Tenho que enxugar
uma lágrima da bochecha. – Eu nunca deveria ter tentado negociar
com Rhen. Não sei por que pensei que ele seria honesto.
– Ele pode ser. – Ele faz uma pausa. – Ele se importa muito com
seu povo. Foi criado para ser um rei.
– Eu me importo muito com meu povo, e fui criada para ser uma
rainha. – Limpo os olhos. – O que não significa que eu deveria ser.
Ele estica a mão para capturar uma lágrima com o dedo, e se
demora em meu rosto.
– Não conheço sua irmã, mas ela deve ser realmente
impressionante para sua mãe escolhê-la em vez de você.
Penso em Nolla Verin, fico tentando imaginar se ela está
pensando em mim.
– Ela é – sussurro. – Ela será uma grande rainha. – Outra lágrima
cai, mas Grey a captura depressa. Sua mão está sobre a minha
bochecha. Meu coração palpita freneticamente em meu peito.
– Você seria uma grande rainha. Não tenho dúvida.
Coloco a mão sobre a dele. Meus olhos se enchem de novo.
– E você seria um grande rei.
Sua expressão muda e ele começa a retirar a mão, mas eu a
pressiono em minha bochecha e pisco para derramar as lágrimas.
– Você jurou sua vida a ele. Conheço você o suficiente para ver o
quanto isso pesa. Mas você jurou sua vida a ele apenas, ou a ele
como governante de Emberfall? Seu dever não está atrelado ao
homem, Grey. Mas ao país. Ao seu país.
Ele não está mais tentando retirar a mão. Seus olhos estão
escuros e firmes nos meus.
– Você não é arrogante – digo. – Você não é cruel. Você diz que
Rhen é um homem honrado, mas eu acho que você é. – Minha voz
se interrompe. – Eu vi em Blind Hollow. Seu povo o amaria, se você
lhes desse a oportunidade. Se você se desse a oportunidade.
Ele segura meu rosto com as duas mãos.
– Por favor… por favor, não chore por mim.
– Ah, fell siralla. – Fecho os olhos. – Não estou chorando por
você, homem estúpido.
– Então por que está chorando?
– Por mim. Porque você é um príncipe. Mais que um príncipe. Um
grande homem que devia ser rei.
– Lia Mara. – Ele está tão perto. Sinto sua respiração em meus
lábios. Suas mãos estão quentes e firmes em meu rosto. Quero
desesperadamente que ele se aproxime. Quero me atirar nele.
Quero…
Seus lábios tocam os meus.
Ofego e recuo. Meu coração está disparado. Fico olhando para
ele, para seus cabelos brilhando sob a luz do fogo, para a
intensidade inebriante em seu olhar.
Eu quero tanto. Ele está tão perto, e quero desfazer o último
momento, quero pressionar meus lábios contra os lábios dele. A
noite se adensa à nossa volta, e seria tão fácil fingir que somos
somente duas pessoas se abrigando da chuva. Quero mais que
suas mãos no meu rosto, no meu pescoço. Quero mais do que
jamais quis antes.
Coloco as mãos em seus pulsos e o afasto.
Por mais que queira, não posso tê-lo.
– Estou chorando porque você é um príncipe – digo baixinho. – E
eu… – Solto um suspiro. – Não sou uma princesa.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

GREY
Na manhã seguinte, seguimos pelo desfiladeiro em direção a Syhl
Shallow, conforme as nuvens clareiam às nossas costas.
Dormi pouco durante a noite, temendo que Dustan e seus
homens estivessem nos esperando em uma emboscada antes que
alcançássemos o desfiladeiro, mas uma névoa densa se espalhou
com o ar frio da manhã, nos oferecendo cobertura.
Permanecemos em silêncio, apesar da neblina. Iisak nos segue
acima, escondido pelas nuvens. Por enquanto, Lia Mara cavalga ao
meu lado, com o olhar fixo adiante. Suas costas estão eretas e seus
olhos, límpidos, mas seu humor parece tão pesado quanto o clima.
O meu também, aliás.
A sensação é a mesma que naquele momento no Castelo
Ironrose, quando meu coração me implorava para que eu me
mantivesse firme e resistisse. Assim que eu cruzar a fronteira de
Syhl Shallow, não poderei voltar atrás. Procurar ajuda – ou asilo –
de Karis Luran é a coisa mais traiçoeira que eu poderia imaginar, a
não ser que eu mesmo enfiasse uma espada diretamente em Rhen.
Fico me perguntando o que Dustan vai lhe contar sobre o que
aconteceu em Blind Hollow, sobre como as pessoas se viraram
contra os guardas para me apoiar. Sobre como lutamos com os
súditos de Rhen e expulsamos os guardas e soldados da cidade.
Se pretendo me enganar, estou falhando. Na verdade, cruzar a
fronteira não será minha primeira traição.
Considerando o segredo que guardei, provavelmente não é nem
a segunda.
Uma corneta ressoa pelo vale, um som alto e repetitivo.
Lia Mara ofega e ergue a cabeça. Uma grande forma assoma à
nossa frente. Galhardetes verdes e pretos pendurados no alto
balançam com o vento. Pela primeira vez esta manhã, seus olhos
brilham.
Já ouvi essas cornetas antes, quando eles invadiram Emberfall
para sitiar nosso território. Minha mão coça para desembainhar a
espada.
Iisak atravessa as nuvens e pousa atrás do nosso grupo. Ele me
disse mais cedo que não queria ser mal interpretado. Se temos algo
em comum, deve ser o medo.
Neste instante, é melhor que suas garras, suas presas e sua
brutalidade estejam ao meu lado.
Então digo a mim mesmo que não estou aqui para lutar. Nem
para me render.
Meu coração bate acelerado, discordando.
Formas surgem em meio à neblina à nossa frente. Soldados a
cavalo, vestidos de verde e preto. Uma dúzia, pelo menos. A maioria
carrega bestas.
Estão todos preparados.
Obrigo minhas mãos a permanecerem nas rédeas.
Lia Mara grita algo para eles. Sua voz é alegre. Aliviada. Eles a
respondem, e ela me olha, falando depressa:
– Desmonte. Eles querem que você se desarme.
Não quero fazer nenhuma dessas coisas. Quero dar meia-volta,
atravessar o desfiladeiro e seguir direto para Ironrose para implorar
perdão.
Não. Não quero isso. As palavras que Lia Mara me disse ontem
pesam em minha mente, aprisionando-me aqui.
Solto os pés dos estribos e desço do cavalo, olhando para Jacob,
Noah e Tycho, que está pálido. Eles vão me imitar.
Corra, meus pensamentos sussurram. Cada instrução aprendida
no meu treinamento ruge para que eu lute ou fuja. Eles são
inimigos. Você está em desvantagem. Corra.
Mas eles não são meus inimigos. Não agora.
Meus dedos soltam o laço do cinto da espada e a arma cai no
chão. As adagas também. Atrás de mim, os outros fazem o mesmo.
Minha respiração está curta, mas eu me afasto do cavalo e ergo as
mãos para mostrar que estou desarmado.
Lia Mara ainda está falando; sua voz é melódica, mas autoritária.
Os soldados de Syhl Shallow avançam juntos e param a uma curta
distância. Os dois no centro desmontam, enquanto os outros
mantêm suas bestas apontadas para nós.
Jacob se posiciona ao meu lado com as mãos erguidas. Sua voz
é baixa e suave.
– Você não parece muito seguro sobre isso.
– Não estou.
– Ainda podemos reaver as armas. Se quiser ir embora, é só
falar.
Olho para ele e vejo que está falando sério. Ele é tão destemido
quanto Harper, e tão brutal quanto eu.
– Eu subestimei você, Jake.
– Sim.
Os dois soldados se aproximam. Ambos estão barbeados e têm
cabelos pretos e pele clara, embora um seja de meia-idade, com
alguns fios grisalhos em suas têmporas. Sua armadura tem um
adorno extra, uma cruz de couro verde e preta com um contorno
prateado, provavelmente a distinção de um oficial. Ele olha de mim
para Jake e depois para o resto, avaliando nosso grupo em um
relance. Não dá sinal de surpresa ao ver Iisak. Então seu olhar frio
retorna para mim.
Quando ele fala, sua voz é profunda e áspera, com um sotaque
mais pesado que o de Lia Mara:
– Você manteve a filha da rainha em segurança até a fronteira. –
Ele faz uma pausa e estende a mão. – Meus agradecimentos. Sou o
capitão Sen Domo. Bem-vindo a Syhl Shallow, príncipe Grey de
Emberfall.
Príncipe Grey.
Não o corrijo.
•• ••
Lia Mara estava certa. Somos levados à guarita para esperar por um
dignitário do palácio. Ao contrário dos edifícios de tijolos vermelhos
aos quais estou acostumado em Emberfall, este posto de guarda foi
construído diretamente na encosta da montanha, com paredes de
madeira e aço contra a rocha exposta. Há poucas janelas, mas
tochas iluminam cada cômodo.
Todos falam a minha língua, mas eu não falo a deles, o que me
deixa em desvantagem. Certamente fell siralla não vai me fazer
ganhar pontos com esses guardas.
Seja como for, fico em silêncio, pois a tensão aqui é densa e
ambígua. Tycho se mantém por perto, ou, para minha surpresa,
perto do rasvador. Iisak está próximo de uma das janelas estreitas, e
os guardas lhe dão espaço. Eles nos observam com atenção,
especialmente quando Lia Mara é conduzida para uma área
separada. Lembro que certa vez eu mesmo observei Karis Luran e
seu povo com o mesmo escrutínio, com a espada a postos.
Por fim, eles nos trazem um pouco de comida e nos oferecem
privacidade. Os guardas nos deixam sozinhos e uma porta pesada é
fechada.
Jake me olha.
– Você acha que eles nos trancaram aqui?
– Se não trancaram, há guardas de sentinela do outro lado.
Noah é o primeiro a avançar na comida. Há frutas, queijo e uma
grande fatia de pão na travessa. Ele arranca um pedaço do pão e
fica brincando com ele em vez de colocá-lo na boca de uma vez.
– Isto está parecendo uma cela de espera. – Ergo as
sobrancelhas, então ele acrescenta: – Onde eles te deixam
esperando antes de colocá-lo na prisão.
– Prisão? – Tycho pergunta.
– Eles não vão colocar ninguém na prisão – digo, apesar de não
estar inteiramente certo disso.
Lia Mara fez muitas garantias sobre sua mãe, mas também disse
que ela não a respeitava. Karis Luran pode nos jogar em uma cela
de prisão para negociar com Rhen usando a mim e Jake também, já
que ele é irmão de Harper.
Olho para a janela. É muito estreita para passar um corpo, mas
larga o suficiente para deixar a chuva entrar. A sala está molhada e
fria e se parece muito com uma cela. Tycho aperta os braços com
mais força contra o corpo.
– Você vai ficar bem – digo para ele.
Seus olhos encontram os meus, e ele assente.
Iisak, apoiado contra a parede, endireita a postura. Suas asas
estão firmemente coladas ao seu corpo, o único sinal de sua própria
tensão. Ele escolhe uma maçã da pilha de frutas sobre a mesa e a
oferece para Tycho.
– Pegue – ele diz, gentil. – Coma, garoto.
Jake os observa e se aproxima de mim, falando com uma voz
baixa:
– Não te preocupa que eles tenham levado Lia Mara?
– Ela é filha de Karis Luran. Provavelmente está sendo
interrogada antes que nos permitam sair.
Se nos permitirem sair.
A porta se abre e o capitão Sem Domo entra. Ele ainda mantém a
mesma expressão austera. Sinto falta da minha espada. Só por
precaução.
Ele dá um aceno com a cabeça.
– Sua Alteza, vamos escoltá-lo até o palácio. A rainha está
preparada para oferecer sua hospitalidade a você.
Isso parece fácil demais.
– E meu grupo?
Suas sobrancelhas tremem, como se ele se surpreendesse com a
pergunta.
– Por que… sim, claro. – Ele olha além de mim. – Com exceção
de sua… criatura. A rainha vai vê-la separadamente.
Tycho dá um passo para trás.
– Não.
O rasvador continua na parede.
– Não se preocupe – ele diz. – Eles não vão encostar a mão em
mim. – Ele solta um longo rosnado junto com as palavras. – Não é,
capitão?
Os lábios do capitão se contraem de desgosto, mas ele diz:
– Certamente. – Ele olha para mim. – Sua Alteza? Uma
carruagem espera vocês.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

LIA MARA

Clanna Sun, a conselheira-chefe de mamãe, chega na guarita tão


rápido que deve ter cavalgado do palácio até aqui. É uma mulher
mais velha, uma ex-general do exército, com grossos cabelos
grisalhos, que caminha mancando por conta de um antigo ferimento.
No entanto, está quase sempre exibindo um sorrisinho no rosto,
como se tivesse visto as piores coisas que o mundo pode oferecer e
mesmo assim escolhesse ostentar bom humor. Ela me trata com
dignidade e respeito, e eu adoro estudar com ela.
Ela fica radiante ao me ver, abrindo um sorriso largo e me
puxando para um abraço.
– Minha querida, você surpreendeu a todos.
As palavras são um elogio e um insulto tão bem entrelaçados que
duvido que ela tenha percebido. Ela praticamente me arrasta para
fora da guarita e para dentro da carruagem.
– Mas… os outros… – protesto.
– Eles estão sendo bem-cuidados. Sua mãe insistiu. – Clanna
Sun me olha, e vejo algo como fascínio e confusão em sua
expressão. – Você nos trouxe o herdeiro de Emberfall, Lia Mara.
Como você fez isso?
O calor sobe para o meu rosto, mas eu endireito a postura. Estou
animada para ver Syhl Shallow pela janela da carruagem.
– O príncipe Rhen tentou matá-lo. Eu ofereci a Grey… –
interrompo-me e continuo: – Ofereci ao príncipe Grey asilo em
nosso território, e ele concordou.
– Muito bem. – Ela cruza as mãos sob o queixo. – Ah, sim. Lia
Mara, isso é motivo de celebração. Quando soubemos do seu plano
de negociar um acordo de paz, ficamos todos preocupados
pensando que nunca mais fôssemos vê-la.
Isso apaga qualquer elogio.
– Bem, aqui estou.
– Sim, sim. – Seus olhos estão brilhando. – Diga-me: o príncipe
Grey está preparado para tomar o trono? Para reivindicá-lo?
Tomar o trono. Engulo em seco.
– Acho que é um pouco cedo para fazermos suposições.
Ela franze a testa por um instante, mas logo recupera a
compostura e preenche o resto da viagem com perguntas sobre
Emberfall, sobre Grey, sobre aquele impostor cruel sentado no
trono.
Desejo o refúgio silencioso do meu quarto. Meu cabelo secou e
está cheio de grumos, e estou desesperada por roupas limpas. O
banho quente de Blind Hollow parece ter sido há um mês.
Ao chegarmos ao Palácio de Cristal, uma onda de saudade me
atinge com tanta força que tenho vontade de abrir a porta da
carruagem e subir os degraus correndo. As mil janelas da frente
cintilam mesmo no tempo nublado, e as duas fontes respingam
água alegremente. Posso me manter calma e reservada, como se
espera de alguém em minha posição, mas não consigo evitar o
largo sorriso que brota em meu rosto.
Até que vejo Nolla Verin no topo da escadaria, com as mãos
juntas abaixo do queixo. Abro a porta da carruagem para sair em
disparada.
Seu longo cabelo de ébano está solto, alcançando sua cintura, e
seus olhos estão arregalados de alívio e empolgação. Ela parece
mais jovem do que eu me lembrava, como uma donzela, não como
a princesa destinada a herdar o trono de nossa mãe.
No instante em que chego no topo da escada, envolvo-a em
meus braços e a balanço em um abraço apertado.
– Senti tanta saudade de você – digo.
– E eu de você. – Seus braços esguios estão apertados em meus
ombros, e mesmo quando eu paro de balançá-la, ela ainda me
segura com força. – Depois que nossos espiões informaram o que
aconteceu com Sorra… e que você fugiu… Fiquei tão preocupada,
irmã.
Eu recuo.
– Você sabia sobre Sorra?
– Claro.
Olho para a fachada de vidro do palácio, procurando o rosto dos
guardas parados ali. Muitos são conhecidos, mas Parrish não está
entre eles.
– Parrish sabe? – pergunto baixinho.
Ela franze as sobrancelhas.
– Tenho certeza de que todos os guardas sabem.
– Tenho que vê-lo. Preciso explicar…
– Você ficou fora por semanas e quer ver um guarda? Não, irmã.
Não seja tola. – Ela puxa minhas roupas esfarrapadas e faz uma
careta. – Na verdade, acho que a primeira pessoa que você devia
procurar é o alfaiate. – Ela franze o nariz. – Ou uma bacia de água
quente.
Dou um tapinha em seu braço, mas ela pega minha mão e me
puxa para o castelo. Os criados abrem as grandes portas de cristal
conforme nos aproximamos.
– Venha – ela diz. – Você é a heroína do dia, mas temos muito o
que fazer.
– Temos? Acabamos de chegar!
– Ah, sim. – Seus adoráveis olhos cintilam com malícia. – Conte-
me tudo. Quero saber tudo sobre o homem que devo seduzir.
•• ••
Horas depois, estou amarrando uma larga faixa sobre um manto de
seda preta adornado com fios prateados e verdes. Minha pele foi
esfregada, e meu cabelo, lavado e escovado, caindo como uma
cortina ruiva e brilhante pelas minhas costas.
Raramente me preocupo com qualquer tipo de maquiagem, mas,
pela primeira vez, permito que minhas aias delineiem meus olhos
com kohl e apliquem um pouco de ruge cor de rosa em minhas
bochechas. Os dias viajando debaixo do sol de verão trouxeram cor
ao meu rosto e um novo conjunto de sardas cruzou a ponte do meu
nariz.
– Veja só. – Nolla Verin bate palmas, reclinada em um divã. –
Minha irmã não parece mais um varredor de sarjeta.
Faço uma careta para ela.
Ela, é claro, está linda como sempre, com seus olhos brilhantes e
um pouco de brilho cintilando em suas pálpebras. Suas vestes são
brancas com costuras vermelhas, e seu cinto espartilho, carmesim
intenso feito sangue. Sua expressão é fria e calculista, e sei que ela
já está planejando como cortejar e encantar Grey.
O pensamento me faz virar para o espelho. Mesmo com uma
pequena quantidade de kohl e ruge, mal me reconheço. Não faço
ideia de por que me dei ao trabalho. Quero pedir às aias panos
úmidos para limpar tudo.
– Mamãe já vai chegar – Nolla Verin diz. – Ela vai querer que nos
encontremos com o príncipe na sala do trono.
Óbvio que sim. Soube que Grey e os outros foram discretamente
trazidos para o palácio e estão recebendo os mesmos cuidados que
eu. Provavelmente mais. Mamãe não vai poupar nada para
conquistá-lo.
Nolla Verin se endireita no divã.
– Lia Mara.
Algo em sua voz chama minha atenção.
– O quê?
– Você falou pouco sobre o que aconteceu depois que fugiu do
príncipe Rhen.
Olho mais uma vez para espelho, então desvio o olhar, porque
não quero ver meu rosto sem graça, meus olhos tomados de
saudade. Em vez disso, vou até a janela. O sol está começando a
surgir por entre as nuvens, iluminando a cidade. Em Emberfall, o
castelo era cercado por quilômetros de vegetação e florestas,
barreiras naturais entre Rhen e seu povo. Aqui, nosso palácio foi
construído na encosta da montanha, e além dos estábulos e
campos de treinamento, é possível ver a Cidade de Cristal. Nosso
povo pode olhar para cima e ver sua rainha.
Nolla Verin surge ao meu lado. Ela coloca a mão sobre a minha.
– Irmã. – Sua voz é baixa.
Olho para ela, surpresa com a emoção em seu tom.
– Sim?
– Ele… abusou de você?
– O quê? Não!
– Tem certeza? Porque você parece diferente. – Ela fala com
raiva. – Se ele colocou a mão em você contra a sua vontade, vou
arrancar cada osso de seu corpo e depois encher cada orifício
com…
– Nolla Verin! Você precisa descrever com tantos detalhes?
– Estou fazendo uma promessa. Vou usar minhas próprias mãos.
– Bem, eu agradeceria se você parasse de fazer meu estômago
se revirar. – Faço outra careta, desta vez, sem querer. – Ele nunca
me machucou. Pelo contrário.
Ela retorna ao divã.
– Então me conte. Conte-me sobre esse príncipe Grey.
Príncipe Grey. Esta é apenas a segunda vez que ouço essas
palavras, e das duas vezes, meu coração disparou. Penso na
maneira como ele enfrentou o capitão Sen Domo, e tenho vontade
de colocar a mão sobre o meu peito.
Mantenho os olhos na janela e as mãos no parapeito. Não faço
ideia do que dizer.
Ele é gentil. É bondoso.
Não. Ambas as qualidades o colocariam em desvantagem em
relação à minha cruel irmã.
Esses são segredos compartilhados apenas comigo. Para todas
as outras pessoas, Grey é estoico e brutal.
Ele é honesto e corajoso e leal. Ele ficou de guarda na minha
porta quando eu estava com medo de fechar os olhos. Ele é forte e
seguro, e faz com que eu me sinta forte e segura. Ele tem olhos
escuros e mãos cuidadosas, e eu poderia ouvi-lo falar a noite toda.
Reprimo as lágrimas.
– Hum. Talvez deva dizer que... ele é muito bonito? – eu lanço.
Minha irmã não fala nada.
Eu não digo nada.
Queria saber captar a sua expressão, saber se ela me descobriu,
e, se sim, o que está pensando. Uma brisa sopra pela janela e
refresca minhas bochechas quentes.
De repente, quero me trancar no meu quarto para me esconder
com meus livros, meus travesseiros e minha privacidade. Não quero
ser testemunha do que quer que aconteça entre Grey e minha irmã.
Entre o príncipe Grey e minha irmã.
Mordo o lábio e tento acalmar a dor em meu peito.
As portas se abrem e uma trombeta soa. O guarda anuncia:
– A rainha de Syhl Shallow, a estimada Karis Luran.
Viro-me sem querer, como se tivesse sido pega em flagrante.
Minha mãe está exatamente como eu me lembro, mas sei que
não devo envolvê-la nos braços como fiz com minha irmã. Minha
mãe com certeza não vai me abraçar, especialmente na frente de
uma dúzia de conselheiros e aias.
Mesmo assim, sua expressão é a mais calorosa que já vi em seu
rosto.
– Minha filha esperta – ela diz, estendendo a mão.
Ah, então estamos performando uma cerimônia. Eu devia ter
adivinhado quando a trombeta a anunciou. Atravesso a sala, pego
sua mão e faço uma reverência.
Ela segura meu queixo e levanta minha cabeça antes que eu
termine o movimento.
– Temos muito o que discutir, você e eu.
– Sim, mamãe.
– Fiquei muito aflita quando você partiu no meio da noite em uma
missão tola. – Sua mão se demora em meu queixo. – Pensei que
teríamos que deixar de considerá-la esperta. Felizmente, você
parece ter se redimido.
Talvez eu devesse ter encontrado minha mãe antes de minha
irmã. Todas as minhas velhas defesas retornam como aço forjado. A
jornada por Emberfall foi difícil e exaustiva, mas não chega nem
perto disso. Já estou cansada.
– Obrigada.
– Na verdade – ela diz –, você deveria saber que aquele homem
tentaria usá-la contra mim. Estou aliviada por você ter conseguido
fugir, mas espero que tenha aprendido algo com esta lição.
Meu sangue gela, como se o próprio Rio Congelado corresse em
minhas veias. Meu coração bate duas vezes mais rápido.
– Você… sabia? Sabia que ele tinha me aprisionado?
– Certamente, filha querida. Certamente. – Ela solta meu queixo.
– Gostaria que você se juntasse a nós na sala do trono enquanto eu
discuto os termos com nosso novo jovem aliado.
Ele pode não se aliar a você. Ele não quer nada disso.
Porém, assim como não podia dizer certas coisas para minha
irmã, também não posso pronunciar essas palavras para minha
mãe.
Fecho a boca, endireito a coluna e a sigo até o saguão.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

GREY

Pompa e circunstância não são novidade para mim. O Castelo


Ironrose de Rhen é coberto de mármore e madeira polida. O Palácio
de Cristal de Karis Luran é revestido de cristal e pedras, e há vidro
por toda parte. As roupas que recebemos são da mais alta
qualidade: calças de pele de bezerro escovada, botas pretas polidas
com cadarços de couro, túnicas e jaquetas de seda e adornadas
com brocado. Em vez do esperado verde e preto enfeitando as
roupas, todos os detalhes são em dourado e vermelho, as cores de
Emberfall.
Nossas armas foram devolvidas como uma demonstração de
confiança, mas eu sei que não é. Estamos em menor número aqui
no palácio. Estaremos sempre sendo observados.
Eu daria tudo pelo uniforme preto dos meus tempos na Guarda
Real, para ter braçadeiras forradas com facas nos antebraços e uma
armadura nas costas. Daria tudo para ser invisível de novo. Neste
quarto chique com uma parede de vidro voltada para uma cidade de
vidro, sinto-me como uma fera em uma gaiola. Noah, Jake e Tycho
estão me observando. Esperando.
Me esperando.
Meu coração é um martelar constante em meu peito. Não sei
como fazer isso.
Não é como quando estávamos na floresta. Quando eu dizia a
Tycho quais cavalos escolher para o torneio. Quando eu era
comandante da guarda.
Como comandante, eu podia dar ordens quase sem pensar. Sei
onde posicionar os guardas, sei lidar com multidões, sei dizer quem
pode estar escondendo uma arma ou quem deve ser vigiado.
Lia Mara saberia o que fazer. Ela foi criada para ser uma rainha –
e teve esse destino arrancado de si. Como príncipe Grey, fui jogado
em um papel para o qual estou completamente despreparado.
Assim como Harper, percebo. Ela assumiu o papel de princesa
como se tivesse nascido para isso. Ela formou um bom par com
Rhen e contou com sua inteligência, apesar de também não estar
preparada.
Rhen sempre planejou tudo com antecedência. Ele nunca ficava
confortável se tinha que agir no improviso. Ao contrário de Harper.
Às vezes, ela era impulsiva e pouco convencional, mas decidia e
tomava atitudes sem hesitar.
Também posso fazer isso. Guardas nunca recebem avisos
prévios.
Olho para os outros.
– Karis Luran quer me usar contra o príncipe Rhen. Esta é nossa
única vantagem. – Faço uma pausa. – E isso é muito pouco. Apesar
do que aconteceu em Blind Hollow, Rhen é o príncipe herdeiro
desde que eu era criança. Sua população o conhece. Eles já
confiaram nele. Mesmo com tudo o que está acontecendo em
Emberfall, tenho certeza de que ele pode uni-los de novo.
– Ele os uniu mentindo sobre a aliança com Decê – Jake diz. – E
não há aliança nenhuma.
– Isso vai quebrar a confiança deles – diz Noah. – As pessoas já
estão achando que tem algo de errado.
Olho para ele.
– Sim. Não temos exército… e Karis Luran sabe disso.
– Você tem magia – Tycho diz baixinho.
Fecho a mão e olho para meus dedos.
– Mas não tenho exército. Nem coroa. Posso até ter magia em
meu sangue, mas até agora não aprendi a usá-la direito.
– Não acho que salvar a vida de dezenas de pessoas é não usá-
la direito – Noah observa.
– Karis Luran não vai ficar impressionada com dezenas de vidas
salvas. Ela sabe que não fui criado na realeza. Sabe que eu era um
guarda. Espera que eu me renda e obedeça. Quer me usar como
um fantoche contra Emberfall. – Paro para organizar os
pensamentos. – Se eu me recusar a participar de seu jogo, ela pode
recusar a me oferecer asilo. Ou pior, ela pode nos entregar para
Rhen.
– Bem – Noah fala devagar –, não acho que seja tão ruim assim.
– Viro-me para ele, e ele passa a mão no queixo. – Rhen não vai
colaborar com ela. Não vai negociar com Lia Mara, e estava pronto
para matar você. Ele não faria uma aliança à esta altura… e ela não
estaria procurando uma se não estivesse desesperada. E por mais
que se importe com Harper, ele definitivamente não vai arriscar seu
reino pela vida de Jake. Não somos tão impotentes quanto você
acha.
Desvio o olhar.
– Talvez não. Mas não tenho ninguém. Não tenho… súditos.
Algumas partes de Emberfall podem até estar se rebelando contra o
príncipe Rhen, mas algumas não estão. Ele pode não ter um
exército completo, mas ainda tem súditos fiéis que lutariam por ele.
Tycho desencosta da parede e saca a espada.
– O que você está fazendo?
Ele para na minha frente e se ajoelha sem hesitar.
– Tycho – digo, com a voz entrecortada. – Pare.
Ele coloca a espada no chão de pedra e pressiona as mãos
juntas à frente do rosto. Seus olhos são firmes e sinceros. Não há
nenhum traço de dúvida em sua expressão, apenas uma
determinação tranquila.
– Eu juro minha lealdade a você, príncipe Grey de Emberfall. Meu
coração, minhas mãos e meu lar estão a seu serviço e a serviço do
trono. Juro meu… Juro ser… – Ele se atrapalha com as palavras e
fica aflito. – Esqueci o que deveria dizer. Mas estou fazendo um
juramento. – Ele engole em seco, com a mesma expressão de
quando eu disse que tinha pedido a Jake para cavalgar ao meu
lado. Mesmo assim, ele prossegue: – Sei que sou apenas uma
pessoa, mas vou te seguir. Lutar com você. Eu juro.
Eu deveria agarrar seus ombros, fazê-lo se levantar e lembrá-lo
de que isso é traição. Mas, quando olho para ele, a emoção se torna
um peso em meu peito que sei que não vai diminuir. Isto deixou de
ser uma traição no momento em que Rhen amarrou um garoto
inocente ao meu lado naquele pátio. Meu coração sempre soube.
Minha mente só demorou para aceitar.
Tycho é apenas uma pessoa, mas, até agora, isso é tudo o que
Rhen também tem. Olho para Jake e Noah. Não estou sozinho.
– Pegue sua espada – digo para Tycho, com a voz ainda rouca. –
Coloque-a nas mãos. Se vai fazer um juramento, faça como um
guerreiro.
•• ••
Guardas nos escoltam até a sala do trono, liderados pelo capitão
Sen Domo. O lugar está iluminado e quente, e as janelas voltadas
para a cidade devem ter uns quinze metros de altura. Nunca vi
painéis de vidro como esses. A parede dos fundos da sala do trono
é a própria rocha da montanha, vermelha-escura e marrom-clara
cortada por listras pretas, prateadas e douradas. Tendo crescido em
uma fazenda pobre, quando vi o Castelo Ironrose pela primeira vez,
fiquei tão pasmo quanto Tycho está agora, mas isso é algo
totalmente diferente. Tochas foram colocadas nas paredes de
granito, posicionadas a poucos metros umas das outras. Um estrado
elevado acompanha a parede de pedra, e dois tronos esculpidos em
ônix se estendem acima de suas ocupantes. Guardas estão por toda
parte, mas os quatro ao redor do estrado estão vestidos de maneira
distinta, com os rostos meio velados em aço para parecerem
andróginos, e suas armas são mais leves e menos óbvias. É a
Guarda Real de Syhl Shallow.
Karis Luran está sentada no maior dos tronos. Seu cabelo ruivo
emoldura uma expressão severa, suas maçãs do rosto são
pronunciadas e sua pele é clara. Ela não sorri. À sua esquerda deve
estar Nolla Verin, e agora compreendo por que Lia Mara falou tanto
da beleza de sua irmã. A garota é mais jovem do que eu esperava,
e seu cabelo preto como azeviche está torcido em uma massa
brilhante que se derrama ao lado dela no trono. Sua pele é macia,
pálida e perfeita, sua boca, rosada, e seus olhos são de um
castanho tão claro que parecem dourados.
Seus olhos, aliás, não são nem um pouco calorosos, mas
calculistas, conspiradores e frios.
À sua esquerda, em uma cadeira menor ligeiramente afastada,
está Lia Mara. Depois de dias na floresta, esqueci como seu cabelo
ruivo brilha sob a luz, como seus lábios parecem guardar um
segredo que ela vai revelar quando chegar a hora certa. Ela é linda,
afetuosa e honesta, e desejo com todas as minhas forças poder
arrastá-la do estrado para ficar ao meu lado.
Ela não me olha nos olhos.
Você é um príncipe, e eu não sou uma princesa.
Eu não tinha entendido antes. Mas agora entendo.
Karis Luran me encara.
– Nunca pensei que um guarda viraria príncipe – diz ela. – É uma
reviravolta para você, não?
As palavras soam como um elogio, mas, na verdade, foram
calculadas e pesadas para me lembrar do meu lugar. Por sorte,
passei anos servindo a família real de Emberfall. Passei uma
eternidade servindo Rhen. Ela pode dar o seu melhor, mas duvido
que chegaria perto do absurdo que já tive que enfrentar.
– Sim, Sua Majestade – digo sem emoção. – Nunca pensei em
considerar a senhora como uma possível aliada. O destino brinca
com todos nós.
Ela dá um leve sorriso.
– Você é mais educado do que seu irmão mais novo.
Sinto um sobressalto ao ouvir a palavra irmão, mas sei que não
devo demostrar surpresa.
– Deve ser culpa de minha educação comum.
Ela ri alto e, desta vez, parece genuíno.
– Acho que gosto mais de você. – Ela olha para Jake ao meu
lado. – Este é o príncipe Jacob de Decê? – pergunta. – Você
garantiu uma aliança com eles também?
Não sei se ela está zombando de mim ou tentando descobrir se
quero enganá-la da mesma forma que Rhen, mas, seja o que for,
não importa. Ela tem suas suspeitas, ou provavelmente já sabe a
verdade, se Lia Mara lhe contou.
– Decê era uma farsa para unir o povo de Emberfall contra a sua
invasão.
Nolla Verin engasga e sussurra algo para a mãe.
Mantenho os olhos em Karis Luran.
– Mesmo assim, Jake é um ótimo aliado.
– Verdade. – Ela sorri. – Veremos.
Isso pode significar qualquer coisa.
– Como vai o rasvador que veio conosco? O que aconteceu com
ele?
Seus olhos brilham, intrigados.
– Ele quebrou um acordo com Syhl Shallow, Sua Alteza. Ele
ficará confinado até que eu considere apropriado.
Mais uma vez, não sei se ela está fazendo uma concessão ao me
oferecer um título, ou se está zombando de mim. No entanto, só
penso em Iisak aprisionado novamente.
– Você parece preocupado – Karis Luran diz.
– Ele ajudou a salvar minha vida – digo. – E a vida de sua filha. –
Faço uma pausa. – Não conheço os termos de seu acordo, mas
acredito que uma indulgência é justa.
Ela acena com uma mão.
– Vou considerar, mas não quero falar daquela criatura.
– Como quiser, Sua Majestade. – Assinto.
Seu olhar fica mais aguçado. Pelos infernos. É um pequeno
adiamento, mas ela percebeu.
Seus lábios se curvam levemente.
– Estou certa de que você sabe que procuramos fazer uma
aliança com o príncipe Rhen.
– Sim.
– Como ele não é o herdeiro legítimo, presumo que devemos
buscar estabelecer essa aliança com você.
– Estou disposto a ouvir seus termos.
– Você certamente percebe que tenho mais a oferecer a você do
que você tem a me oferecer. Sei que chegou à nossa fronteira
carregando pouco mais do que suas próprias roupas.
– A senhora sabe de outro herdeiro do trono de Emberfall
disposto a ouvir seus termos? Pensei ser o único.
Ela fica imóvel.
– Não brinque comigo, garoto.
Ela eleva o tom, e faço o mesmo.
– Não sou o príncipe Rhen nem o rei Broderick. Qualquer
influência que a senhora exercia sobre eles não se aplica a mim.
Posso ter entrado em seu palácio sem nada, mas isso significa que
não há nada que possa ser tirado de mim.
– Posso tirar sua vida – ela rebate.
– Príncipe Rhen já tentou. Envie uma mensagem ao seu espião.
Pergunte o que aconteceu. Eu espero.
Ela se levanta, mas estou prestando mais atenção em Lia Mara
sentada ao lado, com os olhos fixos em mim. Quando olho para ela,
ela desvia o olhar.
Viro-me para Karis Luran e dou um passo em direção ao estrado.
– Não estou procurando prata nem poder. Se eu tomar o trono, se
eu fizer uma aliança com Syhl Shallow, será para o bem de meu
povo e o bem de Emberfall, e por nenhuma outra razão. Se quiser
estabelecer uma aliança, nos trataremos como iguais e
negociaremos compartilhando nossos objetivos. Mas se a senhora
acha que pode colocar uma coroa na minha cabeça e me manipular
como um fantoche, está muito enganada.
Karis Luran se senta e me encara. Após um momento, ela se
inclina para sua filha mais nova.
Nolla Verin fica de pé. Ela é mais esguia e menor que a irmã, e
sua cintura estreita é marcada por um cinto largo. Seus quadris
balançam à medida que ela se aproxima de mim. Ela pode ser ágil
com o arco e flecha e incrível com um cavalo, mas não carregaria
aquele cervo nem por três metros.
Não só por causa da força, embora isso conte. Mas por seu
temperamento. Seu olhar é frio e desdenhoso. Ela poderia atirar no
animal, mas teria ordenado que outros o carregassem.
Lia Mara pode não ter sido nomeada herdeira, mas ainda é filha
da rainha. Não tinha percebido que, durante todo o tempo que
passamos na floresta, ela nunca exigiu nada. Nunca emitiu uma
única ordem.
Ela se agachou na lama para segurar a mão de uma mulher
morrendo e implorou para que eu salvasse sua vida.
Nolla Verin estende uma mão para mim.
– Eu serei rainha – ela diz, e até sua voz é bonita, suave e
melódica. Ela se inclina para mim, olhando-me através de seus
cílios. – Não preciso de um rei para governar Syhl Shallow, assim
como você não precisa de uma rainha para governar Emberfall. Mas
espero que juntos possamos provar para nosso povo que uma
aliança de casamento pode trazer paz e prosperidade para todos.
Não acha?
Pego sua mão e faço uma reverência, como vi Rhen fazer muitas
vezes, tocando de leve meus lábios em sua mão. Preciso tomar
cuidado.
– Estamos de acordo, milady.
Ajeito a postura e ela se aproxima, até que seu quadril roça no
meu.
– Devemos oferecer uma pequena recepção amanhã para
celebrar o retorno de minha irmã. Gostaria de apresentá-lo às Casas
Reais, para que você possa ver tudo o que Syhl Shallow tem a
oferecer.
Ela ainda não soltou minha mão.
– Eu ficaria honrado.
– E talvez possamos dar um passeio de cavalo amanhã de
manhã? – Sua voz suaviza. – Sozinhos?
Isto parece uma armadilha.
– Talvez você possa me mostrar suas habilidades na montaria.
Sua irmã falou que você é muito talentosa.
Nolla Verin sorri.
– É mesmo? – Ela olha para Lia Mara e, pela primeira vez, uma
alegria genuína transparece em sua voz. – Obrigada, querida irmã.
– Claro. – Lia Mara, por outro lado, parece rígida. – Todos
conhecem o seu talento.
Queria que ela não precisasse fazer isso.
Queria que eu não precisasse fazer isso.
Nolla Verin olha para mim e aperta meus dedos.
– Até amanhã, então, príncipe Grey?
– Sim, milady. Amanhã.
Preciso reunir todas as minhas forças para manter os olhos em
seu rosto, em vez de olhar para além de Nolla Verin para encontrar
os olhos calorosos e acolhedores de sua irmã.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

LIA MARA

O dia amanhece frio e claro. A chuva passou e o vento ruge pelas


montanhas. A luz do sol brilha nos telhados da cidade, refletindo as
gotas de chuva deixadas pela tempestade.
Torci para que ainda estivesse chovendo, de modo que Nolla
Verin fosse obrigada a adiar a demonstração de suas habilidades na
montaria, mas isso provavelmente resultaria em alguma atividade
dentro do palácio. Pensar em minha irmã rindo por conta de um jogo
de dados, piscando seus longos cílios para Grey me faz querer
atear fogo no castelo.
Durante todos aqueles dias na floresta, eu desejei o conforto e a
quietude de meus aposentos, onde eu poderia me esconder com um
livro na janela, mas hoje estou inquieta. Sinto falta da calma de
Tycho. Sinto falta do conhecimento infinito de Noah. Sinto falta até
do sarcasmo ranzinza de Jake e dos terríveis talentos de Iisak.
Iisak. Não sei quais são os planos de minha mãe para o rasvador,
mas sei que ele estava preso antes que Grey o libertasse. Tento
imaginar como ele está lidando com o retorno ao cativeiro.
Tenho novas guardas de vigia em minha porta: Conys e Bea.
Ambas mulheres, ambas sérias e frias em sua formalidade. Ambas
escolhidas pela minha mãe. A alegre familiaridade que eu tinha com
Sorra e Parrish ficou no passado. Quero encontrá-lo e pedir
desculpas. Quero compartilhar minha tristeza. Quero consertar as
coisas. Toda vez que peço para vê-lo, dizem que ele está ocupado
com outras funções no palácio.
Hoje, não vou perguntar. Vou visitar Iisak e depois vou fazer o
que puder para encontrar Parrish sozinha. Amarro uma faixa sobre
meu manto, prendo o cabelo em uma trança solta e passo reto pelas
minhas guardas sem falar nada.
Conys e Bea me seguem feito sombras silenciosas, mas não me
questionam. Tenho certeza de que elas vão informar minhas
atividades para minha mãe mais tarde, mas espero que ela esteja
ocupada demais tentando conquistar a confiança de Grey para
perder tempo comigo. Antes, ela vivia preocupada comigo.
Escolho a rota mais longa pelo palácio para evitar ver Nolla Verin
e Grey. Ou minha mãe.
Em vez disso, viro uma esquina e quase esbarro em Tycho.
Ele recua de uma vez e se atrapalha com as palavras.
– Lia Mara! Ah… perdão. Milady. – Suas bochechas ficam
coradas, e ele tenta fazer uma reverência. – Sua… Sua Alteza?
Ele é tão transparente em tudo que não consigo deixar de sorrir.
– Tycho, somos amigos. Me chame de Lia Mara.
Seus olhos desviam para minhas guardas, e de volta para o meu
rosto.
– As coisas são diferentes aqui.
A frase rouba o sorriso em meu rosto.
– Não entre nós, certamente.
Ele dá uma risadinha.
– Se você diz.
– Para onde você estava indo com tanta pressa?
– Grey me pediu para acompanhá-lo no passeio com Nolla
Verin…
– Oh. – Contraio os lábios.
– Mas sua irmã foi muito convincente dizendo que eles deveriam
ter a oportunidade de se conhecerem…
Posso imaginar a cena perfeitamente. Nolla Verin seria capaz de
dar chicotadas nos nós dos dedos dele em seu esforço para ser
convincente. Se bem que ela provavelmente não faria isso na frente
de Grey.
– Ah, tenho certeza que sim.
– Jake também foi dispensado, mas disse que ia voltar para a
cama com Noah. – Ele fica corado mais uma vez.
– Bem, já que você está sem destino, se importaria em me
acompanhar à masmorra?
Ele ergue as sobrancelhas.
– À masmorra?
– Sim. Vou visitar Iisak.
Ele solta o ar.
– Ah, podemos vê-lo? Sim. Sim, é claro. – Ele arregala os olhos.
– Espere. Um momento, por favor.
– Certo.
Ele dispara pelo corredor e volta alguns minutos depois,
apressado e agitado. Ele olha para minhas guardas, endireita a
postura e oferece o braço para mim. Este não é um costume aqui,
mas ele está se esforçando tanto que apoio a mão em seu braço
como vi as mulheres fazerem em Emberfall. Caminhamos de braços
dados pelos corredores silenciosos iluminados por tochas.
– Você está ótimo – digo com sinceridade.
Na floresta, ele estava sempre um pouco selvático, com o cabelo
rebelde e os olhos sombrios com uma desconfiança vigilante. Agora
ele está de banho tomado, com os cabelos dourados penteados e
amarrados em uma trança. O corte de sua jaqueta deixa seus
ombros mais largos, e as botas lhe conferem dois centímetros de
altura, fazendo-o parecer menos com um garoto e mais com um
jovem.
Ele me olha timidamente.
– Obrigado. Você também.
As escadas estão bem-iluminadas, mas Tycho hesita ao meu lado
antes de descer. As masmorras raramente são ocupadas – portanto,
raramente vigiadas. A Prisão de Pedra fica no lado oeste de Syhl
Shallow e pode manter os prisioneiros cativos pelo tempo que for.
Há somente um guarda ali embaixo, um homem mais velho e
grisalho com uma cicatriz em um olho. Ele fica surpreso ao me ver e
se levanta depressa, oferecendo--me pouco mais que um aceno de
cabeça e um olhar curioso. Ninguém nesse palácio jamais teve
motivos para me temer.
– Sua Alteza – ele diz em Syssalah –, a senhorita veio à
masmorra? – ele pergunta, como se pensasse que me perdi.
– Sim. Gostaria de ver o rasvador.
O guarda sorri e suspira por entre os dentes.
– Ele quase arrancou meu braço quando levei o café da manhã.
Acho que a senhorita vai ficar melhor lá em cima.
Sinto a mão de Tycho tensionar em meu cotovelo e dou um
tapinha em seus dedos.
– Iisak salvou nossas vidas mais de uma vez. Vou arriscar meu
braço.
O guarda assente e estica uma mão para as celas.
– Ele está na última.
Começo a caminhar, e ele diz:
– Diga àquela criatura ingrata que ele ficou com a única que tem
janela.
Quando chegamos na cela, vejo que o guarda estava certo: uma
pequena janela perto do teto permite que a luz entre no recinto. Mas
a cela é sem dúvida a menor, com menos de dois metros
quadrados, o que já não seria suficiente para um homem, muito
menos para uma criatura cuja envergadura é de quatro metros. As
asas de Iisak estão dobradas firmemente contra suas costas e ele
está encolhido nas sombras. Seus olhos negros brilham à luz da
tocha. Uma tigela de ferro está tombada no canto oposto, e a
comida, esparramada na parede de pedra. Lembro que na floresta
ele se alimentava de carne crua, e imagino o que tentaram lhe
oferecer. Parece mingau.
Fico tentando imaginar se foi de propósito, então reflito sobre a
escolha da cela, quando havia tantas outras disponíveis. Penso em
minha mãe.
Tudo isso é deliberado.
Pergunto-me o que ela vai lhe exigir. Pergunto-me se vou
conseguir descobrir.
O rasvador não parece surpreso ao nos ver.
– Então eu sou ingrato?
Tycho se aproxima das barras primeiro.
– Você está bem?
– Estou em uma cela, garoto. Nada em uma cela está bem. – Ele
mostra os dentes para as guardas atrás de mim, e me pergunto o
que elas fariam se eu também colocasse as mãos nas grades.
Tycho enfia a mão no bolso e puxa um lenço.
– Os criados não me ofereceram animais – diz ele ironicamente
–, mas eu trouxe uns bolos doces e tortas de carne.
Então é isso que ele foi pegar em seu quarto.
Iisak parece surpreso com a oferta e levanta do chão para pegar
a comida embrulhada no lenço. Suas garras afiadas roçam os dedos
do garoto com uma suavidade inesperada.
– Meus agradecimentos.
Iisak se retira de volta para as sombras, mas não desembrulha a
comida. Não sei se ele vai mesmo comer.
– Não permita que sua bondade o deixe vulnerável – Iisak diz.
Em seguida, ele me encara com seus olhos escuros. – O mesmo se
aplica a você, princesa.
– Não estou preocupada em ser vulnerável.
Ele sorri com tristeza.
– Então acho que meu conselho chegou tarde demais.
Tycho ignora seus conselhos.
– Por que está aqui? Vão te machucar?
– A rainha gosta de negociar e de cobrar dívidas. Ela deixou claro
que minha transgressão custará caro. Não se preocupe, garoto.
Passei meses em uma gaiola. Sei ser paciente.
– O que vai lhe custar? – pergunto.
Ele fica me observando em silêncio.
Aproximo-me das barras, e Bea e Conys me acompanham, mas
não tentam me impedir.
– Ela tem o que você procura? – pergunto baixinho.
Ele fecha os olhos, e um sopro gelado se agita entre as grades.
– Não.
Não.
Ele poderia ter ido para casa em segredo, mas quis arriscar.
– Tem certeza? – Tycho diz apressado. – E se…
– Tenho certeza – Iisak fala.
– O que era? Se me contar, posso ajudar… – digo.
– Você não pode me ajudar. – Ele suspira, e uma camada de gelo
surge na parede de pedra atrás de si.
– Por favor – sussurro. – Deixe-me ajudá-lo.
– Você não pode me ajudar, princesa. Sua mãe não vai ceder.
Você sabe disso tanto quanto eu.
Fico corada.
– Mesmo assim, posso tentar.
– Sei que sim. É por isso que você precisa aprender logo sobre
bondade e vulnerabilidade.
Franzo a testa.
Iisak acena a mão.
– Chega de negociações e segredos. Onde está nosso jovem
príncipe?
Não quero pensar em Grey. Queria tanto não ter afastado suas
mãos das minhas bochechas quando estávamos sussurrando
segredos na caverna.
Queria tanto, e querer não é poder. Endireito a coluna.
– Cortejando minha irmã. A princesa de verdade.
– Cortejando?
– Sim.
Tycho me olha, olha para as minhas guardas e não diz nada.
– Então não sou eu quem você deveria visitar – Iisak diz.
Ajeito a postura.
– A rainha quer garantir uma aliança com Emberfall. Tenho
certeza de que Grey e Nolla Verin vão se dar muito bem. Eles
precisam de privacidade.
Iisak dá risada, e suas presas reluzem. De repente, sua risada se
transforma em um rosnado cruel que eu nunca ouvi antes, e ele se
afasta para as sombras.
– Lia Mara – minha mãe me chama atrás de mim.
Dou um salto e me viro, quase batendo as costas contra as
barras.
– Sim, mamãe.
Tycho parece tão surpreso quanto eu. Ele faz uma reverência
apressadamente e tenta se esconder nas sombras também. Acho
que ele se enfiaria na cela com o rasvador, se pudesse.
Eu também. Os olhos dela estão em chamas.
– Meus planos para esta criatura não são da sua conta.
– Eu pensei… pensei que poderia interceder em favor dele…
– Não. Você não pode. Ele quebrou um acordo e está ciente da
penalidade. Volte para os seus aposentos.
Agarro a mão de Tycho e o arrasto comigo antes que ela mude
de ideia.
Conforme subimos as escadas, ouço a voz dela, baixa e feroz.
– Minha querida criatura cruel. Primeiro, vamos começar com um
informe. Depois, vamos discutir sobre o que você pode fazer por
mim…
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

GREY

Eu preferia estar na sala do trono enfrentando Karis Luran, ou de


volta à arena do torneio enfrentando Dustan.
Eu quase preferia estar no pátio de Ironrose enfrentando Rhen.
Na verdade, eu preferia estar naquela caverna na fronteira de
Emberfall, respirando junto com Lia Mara. Eu devia tê-la beijado.
Devia ter pedido para que ela fosse a rainha. Devia ter implorado ao
destino por mais uma noite de viagem só para ver onde essa chama
entre nós nos levaria.
Mas vim parar em uma corrida de cavalos.
Nolla Verin avança rapidamente pela cidade, galopando pelas
ruas sem se importar com o que a cerca. Ela é, sem dúvida, uma
cavaleira habilidosa, mas poderia ter um pouco mais de
consideração por seus súditos. As pessoas têm que sair do seu
caminho depressa enquanto fazemos curvas fechadas e entramos
em becos estreitos.
Guardas nos seguem, mas nenhum lidera o grupo, o que me
surpreende. Nolla Verin parece estar fazendo sua própria rota
tortuosa pela cidade, e seus guardas precisam fazer o possível para
acompanhá-la. Alguns ficam para trás nas ruas mais movimentadas,
pois as pessoas são rápidas para abrir espaço para a sua princesa,
mas nem tanto para a Guarda Real. Se eu fosse guarda, teria
achado isso exaustivo.
Como o suposto herdeiro do trono de Emberfall, também acho
isso exaustivo.
Ela se mantém um pouco à frente. Sua vantagem é que ela
conhece a cidade e tem uma montaria leve, que pode se inclinar e
virar sem aviso prévio. Além de saber o destino.
Estou começando a achar que ela quer ver se consegue me
desmontar, mas passei mais de trezentas estações fugindo de uma
besta monstruosa através das florestas de Emberfall. Ela pode fazer
todas as curvas que quiser, mas não vai me tirar deste cavalo.
Eu deveria estar gostando disso. Gosto de cavalos. Gosto de
desafios.
Mas estou preocupado com Iisak. Estou preocupado com Lia
Mara. Esperava ultrapassá-la quando a segui para fora do palácio,
porém os corredores estavam quase vazios. Pensei que íamos fazer
um passeio tranquilo pela Cidade de Cristal, durante o qual eu
poderia perguntar sobre eles, mas Nolla Verin saiu em disparada,
claramente esperando que eu a acompanhasse.
Então eu a acompanhei.
Fico lembrando da discussão com Lia Mara, quando carregamos
o cervo na floresta, sobre como seu povo não era muito diferente do
meu. Isto entra em conflito com os meus anos de treinamento como
guarda, mas suas palavras invadiram meus pensamentos e se
recusaram a ir embora.
Quero conhecer o povo de Lia Mara.
Quero fazer isso com ela ao meu lado.
Em vez disso, estou perseguindo sua irmã a galope, enquanto as
pessoas e os prédios se misturam em um mar de tons de cinza,
vermelho e marrom, e o sol reflete no vidro e nas pedras prateadas.
Adiante, uma mulher grita e uma pequena figura dispara na
estrada à nossa frente. O cabelo preto e brilhante de Nolla Verin
balança como uma bandeira, e ela não dá sinais de que vai parar.
Não consigo alcançar suas rédeas, mas faço meu cavalo parar,
prendendo sua montaria na lateral.
Ela me lança um olhar surpreso ao olhar para trás, mas já prendi
as rédeas em uma das mãos e sento com força na sela. Meu cavalo
responde imediatamente, derrapando os cascos no pavimento
enquanto me inclino para agarrar um pedaço de tecido. Arranco a
criança do chão e a acomodo em meus braços pouco antes de os
guardas passarem por nós.
O cavalo empina e resiste, querendo voltar à perseguição.
Seguro as rédeas com firmeza e olho para a criança. Ela tem cerca
de quatro anos, cabelos pretos brilhantes e pele morena e quente.
Sua expressão está congelada entre fascínio e terror.
– Fique calma – digo, apesar de ser evidente que ela não
entende minhas palavras. Faço uma careta, e um sorrisinho surge
em seus lábios. Tento de novo e ganho um sorriso de verdade. –
Fell siralla – sussurro em um tom autodepreciativo, e ela dá risada.
Uma mulher aparece ao lado falando rapidamente, pedindo
desculpas. Lágrimas reluzem em seus cílios. A garotinha já está se
inclinando para ela com os braços esticados, e eu a devolvo para a
mãe.
Nolla Verin e os guardas deram meia-volta, e a mulher faz uma
reverência para a princesa herdeira, segurando a filha e falando
ainda mais rápido.
Nolla Verin a ignora completamente e olha para mim com um
sorriso curioso nos lábios.
– Esta mãe devia controlar melhor sua filha.
– A princesa deveria controlar melhor seu cavalo.
O sorriso desvanece. Seus lábios se comprimem. Neste
momento, ela se parece muito com sua mãe.
Eu não deveria irritá-la. Tanta coisa depende do que acontecer
aqui.
– Ou talvez sua montaria estivesse rápida demais para que você
visse a garota.
Ela esboça um sorrisinho.
– Talvez. Percebi que você estava tendo dificuldade em me
acompanhar.
– Como não? Você é claramente muito talentosa.
O sorriso se alarga e ela se vira, não dando nenhuma atenção à
mulher. Não tenho escolha a não ser segui-la ou reforçar sua
grosseria, então dou um empurrão no cavalo, desejando ter uma
moeda para jogar para a mulher.
Ela diz alguma coisa que não entendo.
– O que ela está dizendo? – pergunto a Nolla Verin.
Ela comprime os lábios.
– Está agradecendo.
– Ah.
Ela me lança um olhar perverso.
– Que tal uma corrida de volta ao palácio?
Está louca para atropelar mais inocentes? Penso. Em vez disso,
digo:
– Claro, Sua Alteza. Se importa de ir na frente?
Sua expressão se torna cruel e seu cavalo salta para a frente. Ela
avança me provocando:
– Vai se arrepender de me dar vantagem, príncipe Grey.
Não, vou gostar de cavalgar no sol. Preciso de um minuto. Ou
uma hora.
Quando Rhen estava tentando unificar seu povo para salvar
Emberfall, ele parecia negociar sem esforço nenhum. Um dia em
Syhl Shallow e eu queria poder solucionar todos os problemas com
uma espada.
Dois guardas ficaram para trás para me acompanhar. Seus
nomes são Talfor e Cortney, e eles são tão experientes em seus
papéis, que têm expressões levemente desinteressadas, apesar de
eu sentir seus olhos em mim conforme seguimos.
– Nós não teríamos pisoteado a garota – Cortney por fim diz, com
um sotaque pesado. Levo um momento para entender as palavras.
Assinto, sem fazer ideia se é verdade.
– Nolla Verin é muito determinada – Talfor acrescenta. – Ela
nunca cede. É por isso que é tão adequada para ser a rainha.
– Uma qualidade admirável, tenho certeza – digo.
– A mulher não agradeceu simplesmente – Cortney comenta.
Talfor rebate algo em syssalah e Cortney desvia o olhar. Conheço
muito bem o tom de um oficial superior repreendendo um de baixa
patente, então espero antes de dizer para Talfor:
– Conte-me o que ela disse.
Não sei se eles foram instruídos a me obedecer, mas ele franze a
testa e ajeita a gola de seu uniforme. O que já diz bastante.
– Exatamente o que ela disse – adiciono.
– Ela agradeceu pela bondade inusitada. – Seus olhos revelam
que ele está preocupado de ter falado demais, porque logo
acrescenta: – Talvez devêssemos seguir em frente. Se espera
alcançar Nolla Verin…
– Não espero – digo, encolhendo os ombros. Não faço questão
nenhuma de fazer meu cavalo ofegante voltar a galopar. – Ela é
rápida demais. – Estamos avançando devagar agora, e os
comerciantes e ambulantes nos observam com curiosidade. Rhen
provavelmente manteria distância do povo, mas ainda assim
caminharia entre eles. E ele definitivamente não sairia atropelando
as pessoas na rua por esporte.
Queria poder apagar Rhen da minha mente.
Preciso parar de pensar como um guarda e começar a pensar
como um príncipe. Não preciso perseguir ninguém pelas ruas.
Olho para Cortney e ofereço um meio sorriso.
– Tem uma moeda? Prometo que vou devolver. Seria bom parar
em alguma taverna por aqui.
Ela parece surpresa e se vira para Talfor. O homem encolhe os
ombros.
Cortney se volta para mim e lança um sorriso hesitante.
– Sim, Sua Alteza. Conheço um lugar.
•• ••
Comemos uma espécie de raiz frita coberta de uma carne ainda
chiando e um molho vermelho ácido. No início, Talfor e Cortney
falam medindo e ponderando as palavras, mas eles parecem
guardas decentes, então mantenho uma postura tranquila. Por fim,
eles relaxam.
– Alguns de nós pensamos que você sacaria a espada assim que
pisasse na sala do trono – Talfor está dizendo, enquanto corta um
pedaço de carne no prato. – Para tomar o trono ali mesmo.
– Cercado por três dúzias de guardas? Vocês pensaram que eu
era um tolo?
Cortney dá risada.
– Outros já fizeram isso.
Minha faca fica imóvel.
– Já tentaram assassinar a rainha?
– Ah, sim. O tempo todo. A rainha pode até nomear uma herdeira,
mas, pela lei, se for assassinada, quem lhe der o golpe mortal é o
novo governante.
Talfor ri.
– E então o que acontece? Ela deve esperar o próximo homem
ou mulher enfiar uma faca em sua barriga? Não, obrigado.
Congelo com a informação, tentando imaginar se Rhen sabe
disso.
Odeio que meu primeiro pensamento seja Rhen.
Mas os guardas estão certos. Se eu sacasse uma espada na sala
do trono, estaria morto antes de tocar em Karis Luran. E mesmo se
conseguisse derrubá-la, duvido que seus súditos me aceitariam.
Cortney fala com uma voz sombria de humor negro:
– Se alguém matasse a rainha, nós apenas o seguraríamos no
lugar para que Nolla Verin o matasse.
– O povo de Syhl Shallow parece bem leal. – Corto outro pedaço
de carne e o coloco na boca.
Eles trocam um olhar, e percebo que estão se perguntando se
estou zombando deles.
– De verdade – digo com sinceridade. – Só estou aqui há um dia,
mas não ouvi ninguém falar mal da rainha. Não vi olhares
insatisfeitos nem nenhuma sombra de descontentamento
direcionada à família real.
– Nada disso seria tolerado – Cortney diz, bufando. – A Prisão de
Pedra não está exatamente cheia de pessoas muito leais.
Talfor está me observando.
– Você notou tudo isso?
– Uma vez um guarda, sempre um guarda.
Eles trocam outro olhar, mas desta vez Talfor sorri.
– Parece que isso não é mais verdade, Sua Alteza.
Cortney se inclina na mesa e fala com uma voz baixa:
– É verdade que você possui magia?
Talfor a repreende de novo, e eu sorrio.
– Tudo bem. Podem falar livremente comigo.
Eles trocam mais um olhar, e então Talfor fala, tímido:
– Então é verdade?
– Sim.
– Você nos mostraria? – Cortney pede.
Alguém na corte uma hora vai solicitar uma demonstração, e eu
prefiro fazer aqui, nas sombras silenciosas de uma taverna, do que
na frente de toda a corte de Karis Luran. Saco minha adaga e eles
endireitam a coluna, alarmados, mas eu a levo depressa para a
palma da minha mão. O sangue logo aparece, mas agora sei como
encontrar a magia. A ferida se fecha. Sem esforço.
Talfor se afasta da mesa. Cortney fica me encarando, intrigada.
Limpo o sangue e bebo um gole de meu copo, corando um
pouco.
– Aí está.
Eles trocam mais um olhar. Cortney leva o braço para baixo da
mesa e saca a própria adaga.
– Faça em mim.
Fecho as mãos sobre a ferida e suavemente encontro a magia.
Sinto quando ela se curou, mas, se não sentisse nada, poderia
observar a reação dela. Seus olhos se arregalam e ela engasga. Diz
algo baixinho em syssalah, então limpa o próprio sangue.
– A rainha vai ficar muito impressionada – Talfor diz.
– Sei que ela valoriza mais a ferida do que a cura – comento.
Ele engole em seco.
– Sim, bem… poder curar também é útil.
– Posso facilmente desfazer a cura. Gostaria de ver uma
demonstração?
Ele recua.
– Não é necessário. – Ele pigarreia e me avalia com muita
atenção. – Sua Alteza.
Uma garçonete vem pegar nossos pratos e encher nossas
canecas com cidra. Cortney diz:
– Nolla Verin deve estar nos esperando.
– Verdade – digo, sem fazer menção de me levantar. – Você teria
um baralho, Talfor?
Ele olha para a frente da taverna, desconfortável.
– Os convidados da rainha chegarão ao final da tarde.
– Então isso é uma negativa?
Ele me lança um olhar pesaroso.
– Nolla Verin não vai gostar disso.
– Vocês são meus guardiões? Você vai ser punido se eu não
retornar a tempo?
Talfor parece alarmado.
– Recebemos ordens de mantê-lo a salvo. – Ele olha para
Cortney. – E de fazê-lo se sentir bem-vindo.
– Muito bem, então.
Eles ainda parecem incertos.
Inclino-me para a frente e digo baixinho:
– Se quisermos estabelecer uma aliança entre nossos países,
devo ser visto como um igual. Nolla Verin claramente quer fazer
disso uma competição. Se eu ganhar, será um insulto para Syhl
Shallow. Se eu perder, serei visto como fraco. A única forma de
ganhar é não jogar.
Cortney pigarreia.
– Uma vez guarda, realmente.
Dou um sorriso.
– Não quero que vocês sejam repreendidos por minha culpa.
Podemos voltar ao palácio, se quiserem. Mas prefiro aprender sobre
Syhl Shallow com o povo, não com os governantes.
Os guardas trocam outro olhar, mas Talfor finalmente suspira,
pegando uma bolsa em seu cinto.
– Baralho é o entretenimento favorito em Emberfall?
– Sim.
Ele junta as palmas e as sacode, fazendo algo tilintar. Suas mãos
se abrem e seis cubos de prata dançam na mesa entre nós.
– Bem-vindo a Syhl Shallow, Sua Alteza. Aqui, jogamos dados.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

LIA MARA

Nolla Verin está andando de um lado para o outro no meu quarto,


e o manto cor-de-rosa transparente de suas vestes flutuam ao seu
redor enquanto ela se move.
– Já se passaram horas – ela diz.
Mantenho os olhos no meu livro. Solicitei que me trouxessem
documentos em Iishellasa da biblioteca do palácio, na esperança de
descobrir o que minha mãe poderia pedir de Iisak, mas depois que
Grey “perdeu” Nolla Verin na cidade, não a escuto falar de outra
coisa.
– U-hum.
– O que ele poderia estar fazendo?
Viro uma página. Até agora, tudo o que descobri foram coisas
que Iisak já nos contou: que os rasvadores e feiticeiros foram
aliados, e que só era possível alcançar as florestas de gelo de
Iishellasa através da magia ou voando até lá. Dizia-se que suas
rochas e árvores tinham propriedades especiais que as tornavam
imunes às forças da magia. Os feiticeiros tentaram se estabelecer
em climas mais amenos, mas foram destruídos pelo rei de
Emberfall.
Bem, quase todos.
– Lia Mara!
– Desculpe, o que foi?
– Perguntei o que ele poderia estar fazendo.
– Eu realmente não sei.
– Talvez eu tenha exagerado. Ele pareceu incomodado quando
passamos por aquela criança na rua.
Levanto os olhos.
– O que aconteceu?
– Uma criança estava na rua. Eu não ia machucá-la, mas ele agiu
como se eu quisesse atropelá-la…
– Nolla Verin, o que Grey fez?
– Ele prendeu meu cavalo e pegou a criança. – Ela franze o nariz.
– Quase como se fosse uma babá.
Meu coração se agita em meu peito, e preciso me forçar a olhar
para os papéis antes que ela perceba que estou ficando corada.
Viro a página.
– Quase.
– Não, não como uma babá. – Ela faz um som de frustração e se
joga na ponta do meu divã. – Querida irmã, por favor, ajude-me.
Deixo os documentos de lado.
– Do que você precisa?
– Preciso entendê-lo. Descobrir o que o faria ceder ao que quer
que mamãe queira desta aliança. – Ela morde o lábio. – Não
aguento outra rejeição.
Parece tão injusto que eu deva ajudar minha irmã a elaborar um
plano para conquistar o coração de Grey, para manipulá-lo em
benefício de nossa mãe. Franzo a testa e não faço questão de
esconder.
– Por que está fazendo essa cara? – ela sussurra.
– Você está me pedindo para ajudar a enganá-lo. Ele é um bom
homem, Nolla Verin. Acho que ele seria um bom rei.
– Pode até ser que sim! Mas ele nunca será rei se não nos
unirmos contra aquele príncipe desprezível de Emberfall.
– Bem, talvez você tivesse mais sucesso em convencê-lo se
tentasse conversar com ele, em vez de sair a todo galope pelas ruas
da Cidade de Cristal.
Ela morde o lábio mais uma vez, então suspira.
– Talvez. – Ela se inclina para trás até que sua cabeça esteja em
meu joelho. – Ele é realmente muito bonito. Só apostei corrida
porque ele não falava nada.
Levo um tempo tentando entender o tom de sua voz. Quando
entendo, dou risada e afasto o cabelo de seu rosto.
– Nolla Verin, você está intimidada?
Ela ergue os olhos para mim.
– Você pensaria mal de mim se eu dissesse que… um pouco? –
Ela leva os braços contra o peito e suspira. – Ele é tão estoico. E a
forma como ele falou com mamãe… não sei se eu teria coragem.
– Hum.
Estou me esforçando muito para não pensar em Grey, mas minha
memória o conjura de pé na sala do trono, vestido com elegância,
com os outros atrás de si. Aquela determinação fria se fixou em
meus olhos da mesma forma que em Blind Hollow, ou no dia em que
fugimos do príncipe Rhen. Na frente de minha mãe, parecia que ele
não recuaria nem se houvesse um exército à sua frente.
– Você viu sua magia? – Nolla Verin pergunta, apressada e cheia
de curiosidade. – Quando o príncipe Rhen tentou matá-lo?
– O príncipe o açoitou. – Estremeço sem querer. – Foi horrível.
Grey fez com que ele e os guardas desmaiassem. Foi assim que
conseguimos fugir.
Ela endireita a postura.
– Desmaiaram?
– Sim. Nossos espiões não informaram isso?
– Disseram à mamãe que foi só o príncipe Rhen.
– Não. Todos que estavam no pátio desmaiaram.
– Quantas pessoas?
– Pelo menos duas dúzias.
Ela arregala os olhos.
– Preciso contar para a mamãe. Nossos espiões não relataram
que ele possuía tanto poder.
Franzo a testa, sentindo que, sem querer, coloquei Grey em
desvantagem. Se bem que talvez seja bom que minha irmã seja um
pouco cautelosa. Talvez elas não tentem manipular seus
sentimentos.
Nunca me senti tão dividida, tão fora do eixo. Também não quero
colocar meu país em desvantagem. Esses jogos políticos são
injustos demais, e não consideram que existam pessoas e emoções
reais no centro de tudo.
Alguém bate na porta.
– Entre – digo, quase aliviada.
Uma criada se aproxima e faz uma reverência para minha irmã,
ainda estirada no meu divã.
– Sua Alteza, o príncipe voltou. A rainha solicitou que ele a
acompanhe no jantar ao pôr do sol.
Nolla Verin sorri, e seu rosto se ilumina como se banhado pela
lua.
Comprimo os lábios.
– Você devia se arrumar.
•• ••
Vou jantar de verde-claro, e minhas vestes cintilam na luz. Minhas
amas amarraram uma larga faixa preta adornada com esmeraldas
por cima do manto. Enfiei um livro fino da minha coleção em uma
bolsinha escondida entre as dobras da roupa. Queria poder me
distrair com ele bem aqui na mesa de jantar, para evitar ver Nolla
Verin usando minhas informações para manipular Grey. Mas não
desejo que minha mãe coloque fogo na minha biblioteca. Então fico
sentada, educadamente calada, esperando o momento em que
todos vão se levantar da mesa para socializar e dançar e beber, e
vou poder desaparecer na varanda.
Velas estão acesas no salão apinhado, fazendo cada centímetro
de prata e ouro cintilar. Para sua “pequena reunião”, mamãe
convidou cerca de cem pessoas, em sua maioria famílias das cinco
Casas Reais. Grey está no meio da mesa central com Nolla Verin,
vestido com as roupas mais finas que mamãe conseguiu oferecer,
no vermelho e dourado de Emberfall. Jake, Noah e Tycho estão ao
lado dele, vestidos com roupas parecidas.
Nolla Verin está de branco. Ela se inclina para Grey e toca o
antebraço dele. Sua altura e a largura de seus ombros a fazem
parecer uma boneca ao lado do príncipe. Uma boneca pequenina,
letal e ágil. Não consigo ouvir o que está dizendo, mas ele dá risada.
Faço uma careta e fixo o olhar em meu prato. Estou na ponta da
mesa, sentada na frente de lady Yasson Ru. Ela tem ao menos
noventa anos, e fede como se não tomasse banho há cinco anos.
Ela grita cada palavra que direciona a mim, mas é a líder da mais
rica das Casas Reais.
Por sorte, uma aia a distrai sempre que ela tenta falar.
Seu rosto enrugado está carrancudo.
– NOSSA RAINHA REALMENTE ACHA QUE PODEMOS NOS
ALIAR A…
– Aqui, milady. Já provou o vinho aromático? – a ama diz,
colocando uma taça em sua cara.
A esposa de Yasson Ru, lady Alla Ru, está sentada ao meu lado,
dormindo.
Não quero olhar para Grey e Nolla Verin, mas meus olhos me
traem e se direcionam para lá contra a minha vontade. A mão dela
está em seu braço e ela está sussurrando algo bem perto de seu
pescoço. Grey está ouvindo, mas seus olhos encontram os meus.
Desvio o olhar e bebo o vinho aromático de uma vez.
Lady Yasson Ru me observa.
– A SENHORITA DEVIA EVITAR BEBER TÃO RÁPIDO ASSIM,
JÁ QUE É DA REALEZA…
– Milady, mais pão? – sua ama pergunta.
Lanço à garota um olhar agradecido.
Só preciso sobreviver até a sobremesa. Quando colocam o prato
à minha frente, uma pilha extravagante de chocolate com cobertura
de creme batido, quase o despejo na garganta.
– MINHA NOSSA, QUE APETITE A SENHORITA TEM – lady
Yasson Ru diz.
Ao meu lado, sua esposa acorda.
– O QUE FOI, YASSON? JÁ SERVIRAM O PRIMEIRO PRATO?
Afasto a cadeira.
– Com licença.
Os músicos no canto da sala começaram a tocar. A marcação
baixa e os instrumentos de corda se combinam para fazer meu
pulso acelerar. Passo pelos guardas e convidados, seguindo para as
portas de vidro da varanda.
Ninguém me para. Ninguém se importa. Não sou a rainha, e Nolla
Verin é a herdeira, então não sou digna de muita atenção nesta
reunião. Não fico feliz com isso, mas, de certa forma, a mudança de
ares me faz bem. No momento, só quero ficar invisível.
A varanda se estende pela lateral do castelo, com vista para as
montanhas escuras, assomando no alto, e a cidade iluminada pela
lua, cintilando à minha esquerda. Apenas duas tochas estão acesas,
permitindo-me observar perfeitamente a noite estrelada. O ar está
gelado demais para ser confortável, mas, por enquanto, vou
aproveitar a solidão. Pelo menos até que mais vinho seja servido e
os convidados inebriados comecem a se amontoar na varanda.
Estou sentindo os primeiros efeitos do vinho aromático. Não bebi
o suficiente para ficar mais ousada nem relaxada, mas o suficiente
para que meus pensamentos fiquem um pouco mais soltos.
Fico tentando imaginar o que Nolla Verin disse que o fez rir.
Com um suspiro, acomodo-me em uma cadeira acolchoada.
Pego meu livro e começo a ler, grata pelas histórias e aventuras de
outras pessoas.
– O que está lendo?
Dou um salto tão súbito que quase caio da cadeira. O livro sai
voando.
Grey o agarra no ar. A sombra de um sorriso se insinua em seus
lábios.
– Perdão – ele diz, entregando-me o livro.
Levanto-me. Tento ajeitar as vestes e o cabelo, aliviada pelas
sombras que escondem minhas bochechas vermelhas.
– Ainda bem que você não é um assassino.
– Verdade. – Ele olha a varanda vazia. – Você deveria ter
guardas.
– Para quê? Ninguém aqui ganharia nada com a minha morte. –
Ele franze a sobrancelha, e eu digo: – E o seus guardas, Sua
Alteza?
Ele sorri.
– Chegamos a um acordo.
– O que quer dizer?
– Que não preciso implorar por privacidade. – Ele pausa, e a
diversão some de seu rosto. – Não estou acostumado a ser o centro
das atenções.
– Parecia que você estava se divertindo no jantar – digo, irritada e
ciumenta. Assim que digo, desejo engolir as palavras de volta.
Grey me observa, e sei que ele percebeu. Ele sempre percebe
tudo.
– Fico feliz por ter passado essa impressão. – Ele faz uma pausa.
– Se estou incomodando, posso ir embora.
Não há uma resposta para isso.
Não, não quero que você vá embora. Quero que fique aqui
comigo debaixo da luz da lua, fingindo que estamos sentados sobre
as estrelas de novo, sem alianças, mães ou irmãs entre nós.
Engulo em seco. Os olhos de Grey, escuros contra a noite, não
deixaram os meus.
– Ou talvez eu possa me juntar a você? – ele diz.
Assinto, porque não confio em minha voz. Não me sento na
cadeira, porém. Ficar de pé parece mais seguro. O vento frio desce
da montanha, penetrando minhas vestes e me fazendo estremecer
ao pensar em Iisak preso nas masmorras.
Grey tira seu casaco e o estica para mim.
Pisco.
– O que está fazendo?
– Se estiver com frio. Não é um costume aqui que os homens
ofereçam seus casacos às damas?
Franzo a testa e endireito os ombros.
– Seria considerado rude reconhecer uma fraqueza.
– Sentir frio é uma fraqueza?
O vento sopra em meu pescoço. Não sei como agir. Vestir uma
peça de seu vestuário parece muito íntimo, algo que eu não deveria
fazer.
Suspiro, querendo desesperadamente aceitar a oferta.
Ele aguarda, atento ao meu silêncio, então pega o casaco com as
duas mãos.
– Posso?
Engulo em seco e depois assinto, fechando os olhos conforme
ele o coloca sobre meus ombros. Sinto o calor do couro e da seda e
o peso da peça contra minhas costas.
– Obrigada – digo.
Seus dedos, leves como uma pena, tocam meu queixo, erguendo
meu rosto. Suspiro com força e abro os olhos.
– Você não é nem um pouco fraca, Lia Mara.
Sorrio de leve.
– Carregar aquele cervo quase me matou.
– Não estou falando do cervo. – Ele faz uma pausa. – Estou
falando daquela hora em Blind Hollow, quando você deveria ter
fugido, mas resolveu ficar para ajudar os feridos. Estou falando
daquela hora quando você me ofereceu asilo, sendo que poderia
estar a quilômetros de distância muito antes do amanhecer. Estou
falando de cada hora e cada passo de nossa viagem até aqui. – Ele
baixa a voz, e diz suavemente: – Estou falando daquela hora que
Iisak rasgou meu braço e você pegou minha mão.
Ele está tão imóvel que poderia ser uma sombra, uma ilusão da
minha mente. Se o peso e o calor de seu casaco em meus ombros e
o mais leve brilho em seus olhos não me ancorassem, eu não
acreditaria que isso está acontecendo. Estou consciente da minha
respiração, da respiração dele. A música escapa pela porta,
invadindo nosso ninho de silêncio.
– Está bêbado de novo? – sussurro.
Ele dá risada, o que é tão raro que faz meu coração saltitar.
– Estou muito sóbrio, garanto.
Engulo em seco.
– Você deveria estar lá dentro, com Nolla Verin.
Ele não se move.
– Por que fugiu da festa?
– Não fugi. Ninguém sentiu minha falta.
Ele franze as sobrancelhas.
– Desde o momento em que chegamos aqui, você tem me
evitado. Não entendo o motivo.
– Minha irmã…
– Isto não tem a ver com sua irmã – ele rosna.
– É claro que tem a ver com minha irmã – insisto. – Você não
entende? Ela é a herdeira. A filha favorita. E você ainda me
pergunta por que eu fugi da festa, como se eu tivesse lugar aqui.
Meus objetivos não se alinham aos delas. O que eu tenho para
oferecer? – Estico os braços e me viro, indicando a vastidão que
nos rodeia. – Estou sozinha nesta varanda porque não tenho nada.
Nada! Não tenho trono, coroa, país ou…
Engasgo quando ele pega minha cintura e me segura no lugar.
Suas mãos são fortes e firmes, e ele fala baixinho:
– Nunca diga que você não tem nada a oferecer.
Estou respirando tão forte que estou a ponto de chorar ou rir ou
me partir em mil pedacinhos que vão se espalhar com o vento.
– Você sabe – ele fala devagar – que quando aquele soldado
colocou a faca na sua garganta, eu poderia ter arrancado a cabeça
dele.
Suas palavras são cruéis, objetivas, contrastando com a
suavidade em sua voz. Aquela escuridão profunda cintila em seus
olhos, anunciando o que ele pode se tornar quando necessário.
Estremeço.
– Você não precisou.
– E você não precisou de mim para salvá-la. – Ele faz uma
pausa. – E suas palavras ficaram na minha cabeça.
– Minhas palavras?
– Você disse que nem todos os desafios da vida podem ser
resolvidos na ponta de uma espada. Fiquei pensando nisso por dias.
– Ele espera um momento. – Você me fez perceber que não sou
mais uma arma nas mãos de outras pessoas.
Uma emoção aperta meu peito, mas sua proximidade e seu calor
me acalmaram.
– Você não é uma arma, Grey.
– Eu posso ser. – Sua mão se ergue da minha cintura para
afastar uma mecha de cabelo do meu rosto. – Mas você é muito
mais perigosa.
Mal consigo pensar com seus dedos correndo pelo meu rosto.
– Ah, sim, a pessoa mais perigosa da festa é sempre a garota
sentada sozinha com um livro.
Ele não sorri.
– Você se subestima. Sua irmã parece determinada a ser tão
cruel quanto possível só para impressionar sua mãe, tenho certeza.
E embora a crueldade possa ter o seu lugar, acredito que seu tipo
de força atrairia mais lealdade. É isso que te faz perigosa. Você não
invadiria o território inimigo com uma espada na mão e tomaria o
trono, mas se sentaria silenciosamente em uma cadeira, no escuro,
com seu livro – o canto da boca dele se curva para cima – e
pensaria na melhor maneira de conseguir o que precisa.
Fico corada.
– Não, Grey. Estou sentada aqui com um livro porque…
Ele se inclina e toca os lábios nos meus. De leve, como o toque
das asas de uma borboleta. É praticamente um beijo, é quase um
beijo, mas é o suficiente para acender um fogo em minhas
entranhas e roubar todos os pensamentos de minha cabeça.
Ficamos parados ali, respirando juntos.
Seus dedos ainda estão em minhas bochechas e seu polegar
está ao lado da minha boca.
– Perdão – ele começa. – Você não me deixou antes e…
Balanço a cabeça com força.
– Eu não deveria.
Desta vez, quando sua boca encontra a minha, não é com leveza.
Sua força irradia pelas mãos, e o beijo é um incêndio. Meus joelhos
ficam fracos e vacilam, mas minhas mãos estão firmes e seguras
em seu pescoço, em seus ombros, em seu cabelo rebelde.
Então seus braços envolvem minhas costas, segurando-me
contra ele, e isso é quase melhor do que seus beijos viciantes: ser
abraçada, sentir que sou desejada. Quando sua boca finalmente
deixa a minha, suspiro e pressiono o rosto abaixo de seu queixo.
Isso é uma tolice. É arriscado. É assustador. Qualquer um pode
entrar na varanda. Ele deveria me soltar.
Mas não me solta. Ele acaricia preguiçosamente meu cabelo, e
fico impotente diante de seu hálito e seu aroma enterrado em minha
cabeça.
– Fell siralla – ele diz, e dou risada.
– Não – respondo. – Fell bellama. Fell garrant. Fell vale.
– Espero que isso não seja pior que estúpido.
Balanço a cabeça em seu pescoço. Ele deve sentir minha
bochecha pegando fogo através da camisa.
– Homem bonito. Homem corajoso.
Ele espera, então diz:
– Eram três coisas.
– Você não deixa passar nada!
– Qual é a terceira?
Ele também nunca me deixa fugir de nada. Amo e odeio isso.
– Vai ter que aprender syssalah para descobrir.
– Fell vale – ele repete, e seu sotaque terrível me faz dar risada
de novo. – Você vai ter que me dar mais aulas – acrescenta.
– Alguém vai.
Ele esfrega um dedo em meu queixo, e levanto a cabeça. Seus
lábios encontram os meus novamente. O céu noturno parece se
fechar ao nosso redor, nos envolvendo no silêncio e no calor.
Então um guincho corta a noite.
Grey ergue a cabeça.
– Iisak.
Outro guincho. E outro. Mais alto e feroz do que já ouvi. Quero
cobrir as orelhas com as mãos.
Lembro do que minha mãe disse para o rasvador, mencionando
algo sobre hoje à noite. Oh, o que ela fez?
Não tenho muito tempo para pensar, porque todos lá dentro
começam a gritar.
CAPÍTULO TRINTA E OITO

GREY

As pessoas estão saindo aos montes pelas portas da varanda, e


Lia Mara e eu nos esprememos entre elas para voltar para o salão.
A maioria dos guardas está com a mão na arma, mas nenhum as
sacou. Cadeiras foram derrubadas, pratos estão quebrados no
chão.
No centro da sala, estão Karis Luran e Nolla Verin. Há um homem
aos pés delas com o peito e a barriga abertos. Quatro longos
arranhões atravessam seu rosto e não consigo reconhecê-lo. O
cheiro de sangue e coisas piores contamina o ar.
– Não… – Lia Mara sussurra ao meu lado. – Não.
Iisak está de lado, com uma coleira de prata na garganta presa a
uma corrente brilhante. Karis Luran segura a outra extremidade.
Seus dentes estão à mostra, e suas garras estão vermelhas de
sangue. Ele se afasta dela até onde a corrente permite.
A maioria dos convidados não fugiu, embora alguns pareçam um
pouco enjoados. Eles expressam uma mistura de horror e
fascinação.
As únicas pessoas que não parecem fascinadas são Tycho e
Noah. Um guarda os impede de se aproximar do homem no chão.
Noah está furioso.
Jake surge do meu lado, falando apressado:
– Ela disse que tinha uma demonstração para aqueles que
ousassem desafiá-la. Então arrastou esse cara aqui. Pensamos que
ela ia cortar a cabeça dele ou algo assim, o que já seria péssimo.
Daí um dos guardas trouxe Iisak.
De alguma forma, eu tinha esquecido por que Karis Luran tinha
uma reputação tão brutal entre a população de Emberfall.
De alguma forma, eu tinha esquecido o que os soldados dela
fizeram nas nossas cidades fronteiriças.
Esqueci porque estava olhando para Lia Mara, em vez de prestar
atenção a quem realmente está no poder.
Encaro Iisak do outro lado da sala. Ele está respirando rápido,
como se a corrente o atrapalhasse. Seus olhos são frios, sombrios e
resignados.
Ele é a arma nas mãos de outras pessoas. Ele disse que pagaria
caro. Realmente.
– Venha, Sua Alteza – Karis Luram diz. – Ele já deve estar morto.
Olho para ela.
– Não entendo.
– Disseram que você pode recuperar vidas – Nolla Verin diz. –
Mostre-nos.
Esta noite não é uma celebração. É um teste.
Sinto-me um idiota por não ter desconfiado. Respiro fundo e dou
um passo à frente.
Jake se aproxima e me bloqueia com seu ombro.
– Não faça isso de graça – ele diz, em um tom um pouco mais
alto do que um suspiro.
Olho em seu olhos, tranquilizando-me com sua frieza e
praticidade.
Dou um leve aceno com a cabeça e avanço. O abdômen do
homem está tão dilacerado que há mais sangue e músculos visíveis
do que pele. As garras de Iisak acertaram um olho, e o outro ficou
intacto. Uma bochecha foi perfurada tão profundamente que posso
ver os dentes abaixo dela. Sua respiração é lenta.
Nunca me abalei diante das consequências da violência, e agora
não é diferente. Viro-me para Karis Luran.
– O que a senhora me oferece em troca?
Ela estreita os olhos.
– Nada.
– Então não vou curá-lo. A senhora quis isso, não eu.
Atrás dela, a resignação escapa da expressão de Iisak. Seus
olhos estão fixos em mim.
– Por favor – Lia Mara ofega. – Por favor, Grey. Por favor, salve-o.
O desespero em sua voz aperta meu peito, e preciso reunir todas
as minhas forças para não me ajoelhar e pressionar as mãos nas
feridas dele. Prendo a emoção em um canto escuro da mente até
não sentir nada. Ele pode morrer aos meus pés. Eu poderia
desembainhar a espada e terminar a tarefa eu mesmo.
Não. Não poderia. Pela primeira vez, a emoção consegue se
libertar.
Mantenho-me imóvel. Karis Luran também.
Penso em pedir minha liberdade. Quero me livrar desta dança,
desta armadilha, deste jogo complexo. De certo modo, sinto-me tão
preso quanto Iisak.
Olho para o homem aos meus pés. Seu cabelo e barba são
marrons feito areia, e ele tem a constituição de um soldado, apesar
de não estar de uniforme.
– Uma vida por uma vida, acho.
Nolla Verin me encara e sorri.
– Quem você gostaria de matar?
– Não quero matar ninguém. Quero que a dívida do rasvador seja
perdoada.
– Não – Karis Luran diz. Sua voz é firme e decidida e não abre
espaço algum para negociação.
– Muito bem – digo, copiando seu tom.
– Grey! – Noah grita.
– Por favor – Lia Mara implora. Minha garganta se fecha.
– A dívida do rasvador vai ser perdoada depois de um ano de
serviço – Karis Luran diz.
– Ótimo. Transfira este ano de serviço para mim.
Ela me olha com frieza.
– Você não está em posição de fazer exigências. Ofereci asilo
para você e para o seu grupo.
– Não fiz exigências. A senhora fez. E a senhora ofereceu asilo
para mim e para o meu grupo porque espera garantir uma aliança
com o futuro rei de Emberfall.
– Grey, este cara tem cerca de cinco minutos, se tanto – Noah
avisa.
– Cinco minutos são suficientes para a sua magia? – Karis Luran
pergunta. – Ou vai desperdiçá-los tentando negociar?
Sua boca se curva levemente para baixo.
– A dívida do rasvador deve ser paga. Não vou entregá-lo a você
se vai liberá-lo do juramento.
– Então se eu mantiver seu ano de serviço, a senhora estaria
disposta a me entregar a corrente?
Sua expressão é arguta. De certa forma, ela me lembra Rhen.
– Sim – ela diz. – Se conseguir curar este homem, o ano de
serviço desta criatura será seu. Vou lhe entregar a corrente. – Ela dá
um puxão e Iisak rosna, mas não se move. – E quando fecharmos
os termos da aliança, você vai me permitir acesso aos – ela olha
para o homem no chão – talentos do rasvador também?
Isso parece um pouco aberto demais para o meu gosto.
– A meu critério.
– Três minutos – Noah diz. – Ele já perdeu muito sangue, Grey.
Karis Luran sorri.
– Eu realmente gosto mais de você que de seu irmão. Sim, a seu
critério. Cure Parrish para todos nós vermos, e você terá seu
rasvador.
Parrish. O nome me chama atenção, e tento me lembrar por quê.
Não consigo. Ele está morrendo. Deixo o pensamento de lado por
um momento e me ajoelho no sangue. Há tantas feridas que não
faço ideia por onde começar. Sua respiração está ruidosa.
Talvez minha indecisão seja visível, porque Noah diz:
– Precisa parar o sangramento. Todo o resto é secundário se ele
continuar sangrando assim.
Olho para os guardas bloqueando Noah.
– Solte-o.
– Não – Karis Luran diz. – Você sozinho. Se o curandeiro falar de
novo, faça-o se calar.
– Mamãe, por favor! – Lia Mara berra. – Por favor, Parrish seguiu
minhas ordens.
Finalmente entendo. Lembro quem é Parrish. O guarda dela. O
que a acompanhou até Ironrose na noite em que Rhen a fez
prisioneira. Uma fúria gélida toma meu peito.
– Este homem sabe o que fez – Karis Luran fala. – Se a vida dele
acabar aqui, todos vão saber também.
Quanto mais ela fala, mais próximo este homem está da morte.
Pressiono as mãos na pior ferida, torcendo para que seja a fonte da
maior parte do sangramento. Sangue e vísceras escorrem pelos
meus dedos. Fecho os olhos, procurando as centelhas que me
ajudaram antes. É mais fácil agora, como nos estágios iniciais da
esgrima, quando tudo se resume a focar a atenção nos pés e nos
braços. Um passo aqui, um impulso ali.
Mantenho os olhos fechados enquanto a carne, os músculos e a
pele começam a se reconstruir sob as minhas mãos. O sangue não
está mais escorrendo em torno dos meus dedos. As pessoas ao
redor estão de boca aberta. Ouço murmúrios em syssalah.
Abro os olhos e movo as mãos mais para cima, para seu peito,
que mal se move agora. Sua pele está assustadoramente pálida, e
já vi homens demais morrendo nas mãos de um monstro para saber
que isso não é um bom sinal. Envio a magia para ele, fazendo a
centelha encontrar a ferida e curá-la. Até que essa lesão também se
fecha, e o peito de Parrish sobe e desce rapidamente. Seu olho bom
se abre e ele solta um gemido baixo de dor. Ele me olha, tentando
levantar um braço para me afastar.
Ergo as mãos cobertas de sangue.
– Calma – digo. – Permita-me ajudar você.
Ele não se move. Seu rosto está tomado pelo medo, e ele fala
rápido em syssalah.
– Parrish – Lia Mara o chama, entre soluços. O que quer que ela
diz depois o faz abaixar o braço.
– Ela vai me matar – Parrish diz.
– Ela tentou. Agora vou tentar salvar você. – Mas não estou
seguro de que posso salvar seu olho, que pende estraçalhado
acima de sua bochecha.
Ele não move o braço, mas pressiono a mão em sua bochecha
ensanguentada. Ele sibila de dor e tenta se desvencilhar, porém sua
pele começa a se reconstituir, e seu olho bom se arregala de
surpresa.
Os murmúrios à nossa volta ficam mais altos. O olho danificado
se reconstrói enquanto a íris e a pupila se movem através do
branco. É a coisa mais repugnante e mais fascinante que já vi na
vida.
Então está feito. Ele está curado e eu estou exausto. Ambos
estamos pegajosos de sangue e suor e provavelmente outras coisas
piores.
Ele está me encarando maravilhado, respirando tão forte quanto
eu.
– Estou sonhando?
Não. Isto é um pesadelo. Obrigo-me a levantar e olhar para Karis
Luran. Estico a mão coberta de sangue.
– Meu pagamento.
A expressão em seu rosto é uma combinação de fúria, irritação e
aprovação.
– Muito bem. – Ela deposita a corrente esticada na minha mão.
Seus dedos deslizam pelo sangue.
Meus músculos parecem prontos para um tipo diferente de
batalha. Minha respiração é superficial, e meu foco, estreito. Queria
poder sacar uma espada e executá-la bem aqui.
– Se me dá licença, preciso voltar para os meus aposentos para
trocar de roupa.
– É claro – ela diz suavemente. Não sei dizer quem perdeu o
respeito dos outros, ela ou eu. – Não esqueça seu casaco.
Fico imóvel. Meu casaco.
– Aqui. – A voz de Lia Mara é quase um sussurro ao meu lado. –
Vá. Por favor. Antes que tudo piore.
Fecho os dedos ensanguentados no couro e na camurça,
esperando tocar nela, mas ela já soltou a mão.
Nolla Verin está me observando atentamente.
Obrigo-me a manter os olhos no meu grupo, ainda bloqueado
pelos guardas. O breve beijo que troquei com Lia Mara parece ter
sido há dias. Meses. Uma vida inteira. Agora estou coberto de
sangue, e acabei de protagonizar um espetáculo na frente de
estranhos.
– Liberem-nos – digo, mantendo a voz firme não sei como. –
Vamos voltar para os nossos aposentos.
Karis Luran assente, e os guardas abrem caminho. Tycho dispara
para mim. Noah se aproxima de Jake.
Não quero arrastar Iisak pela corrente, mas ele não se moveu das
sombras. Não consigo ler sua expressão e, a esta altura, meus
nervos estão tão à flor da pele que não me importo. Enrolo a
corrente na mão, faço uma reverência para Karis Luran e começo a
andar.
Ele me segue sem resistência. Só quero largar esta corrente, mas
penso que alguém pode pegá-la.
Conforme saímos do salão, Karis Luran fala com seus guardas:
– Levem Parrish para a masmorra. Arranquem o olho dele de vez.
Lia Mara grita.
– Não! Mamãe… não!
Paro no lugar.
– Não. – Jake coloca a mão no meu ombro e me dá um
empurrão. – Continue andando.
Não me movo. Aperto a mandíbula. Tento me virar.
Jake me dá outro empurrão. Sua voz apressada e desesperada
reflete o meu estado, mas ele se mantém firme.
– Ele está vivo. Você o salvou. Ganhou vantagem hoje, e não
pode perdê-la agora. Ande, Grey. Ande.
Meus pés se recusam a se mexer. Ainda estamos visíveis. Não
tenho dúvida de que Karis Luran deu a ordem para abalar, para
enviar algum tipo de mensagem à sua filha.
Dentro do salão, o homem grita. Imagino se estão cumprindo as
ordens dela ali mesmo.
Meu peito aperta, porque sei que estão fazendo isso ali mesmo.
Tento afastar Jake.
– Não o salvei para que ela o torture.
Iisak sibila.
– Ela vai exigir que você me devolva. Provavelmente vai me
obrigar a fazer coisa pior.
Isso me faz desistir. Passo uma mão no queixo. O grito de Lia
Mara está cravado em minha mente. Assim como o do homem.
– É só um olho – Jake diz.
– Odeio isso – Noah murmura.
Eu também.
Tycho pega a corrente. Ele é provavelmente a única pessoa que
eu permitiria que a tomasse da minha mão, então a solto. Seus
olhos estão sombrios e perturbados mais uma vez.
– Iisak é meu amigo – ele diz. Ele molha os lábios trêmulos e olha
para Jake. – E é só um olho.
Não tenho escolha.
Pelos infernos. Cerro os dentes e começo a caminhar.
O grito fica ecoando atrás de nós até bem depois que
alcançamos nossos aposentos e trancamos as portas.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE

LIA MARA

Mamãe vem até o meu quarto horas depois. É tarde e eu deveria


estar dormindo, mas eu sabia que ela viria, então nem vesti o
pijama. Seu guarda pessoal está com ela, com um semblante tão
feroz e punitivo que me pergunto se ela vai me executar aqui
mesmo em meus aposentos. Fico de pé em um pulo e recuo antes
de perceber o que estou fazendo.
– Mamãe – sussurro.
O sangue de Parrish mancha suas vestes, além de seu rosto e
suas mãos.
Tenho certeza de que ela está ciente de cada mancha, e está
aqui para me provocar.
– Você está tentando me humilhar? Ou só tem inveja de sua
irmã?
– Isto não é… Eu não estou… Nolla Verin…
– Você tem ideia do que está em jogo, Lia Mara? Você não sabe
quanto essa aliança é importante?
– Sim. – Engulo em seco. – Eu sei.
– Então explique por que você estava usando o casaco dele na
frente de todas as Casas Reais.
– Desculpe – sussurro. – Desculpe.
Ela se aproxima.
– Você não vai pedir mais desculpas. Não vai mais cometer erros.
Temos o herdeiro, e as Casas Reais prometeram seus fundos.
Amanhã, selarei uma aliança com este homem, e ele liderará nosso
povo para reivindicar o trono de Emberfall. Você vai ficar aqui.
Ela se vira para sair, e suas vestes esvoaçam em seu rastro.
Tento segui-la, mas seus guardas me impedem, mantendo-me no
lugar. Meu coração dispara em meu peito. Mamãe nunca colocou
seus guardas contra mim.
Depois que eles saem, não consigo respirar. Sinto o ar preso.
Minha irmã. Preciso falar com minha irmã.
Conto até dez. Até vinte. Cem. Conto até minha mãe e seus
guardas estarem longe.
Disparo para a porta e abro-a com tudo. Um guarda se vira para
me bloquear. Em vez de Bea e Conys, dou de cara com Parrish.
Seu olho arrancado foi costurado. Ele está pálido, mas firme,
segurando um bastão para me barrar.
Engasgo e dou um passo para trás.
– Parrish… Parrish, por favor. Faz tanto tempo que quero falar
com você…
Sua voz é fria e não revela nem um vislumbre do guarda com
quem já compartilhei momentos divertidos.
– A rainha deu ordens para que a senhorita não saia deste
quarto.
Este é o golpe de misericórdia. Minha mãe o colocou aqui como
um lembrete de que minhas ações têm consequências. De que só
estraguei tudo.
A consequência está bem diante de mim. O olho bom de Parrish
está nublado de dor, raiva e arrependimento.
– Desculpe – sussurro.
Ele não fala nada.
Não tenho mais nada a dizer.
Fecho a porta. Consegui o que queria: estou sozinha em meu
quarto.
CAPÍTULO QUARENTA

GREY

Iisak se recusa a me deixar tirar sua corrente. Eu me recuso a


enviá-lo de volta para a masmorra, e me recuso a prendê-lo em
meus aposentos. Ele ficou arrastando as correntes barulhentas pelo
chão de pedra por horas até que ameacei enforcá-lo se ele não
parasse de andar de um lado para o outro. Estou amargo e
obstinado, e não quero fazer nada além de sentar em frente ao fogo
para reavaliar cada escolha que fiz desde o momento em que
Dustan apareceu na arena de Worwick.
Em vez disso, fico observando as chamas enquanto penso em
Lia Mara. Queria não ter lhe oferecido meu casaco. Queria não tê-la
colocado em perigo. Queria não ter…
– Você parece inquieto, Sua Alteza.
Olho para Iisak. Ele está agachado no canto mais escuro do
quarto, o mais longe possível do fogo. Seus olhos pretos brilham.
– Pare de me chamar assim – solto.
– Acho que você devia se acostumar.
Pelos infernos. Passo a mão no cabelo.
– O que o perturba mais? O homem que perdeu um olho ou a
princesa?
– Não pode ser os dois?
– Certamente.
Pedi para que ele parasse de andar, mas agora ele está imóvel
demais. Calmo demais.
– E se ela tivesse lhe pedido para me machucar, em vez daquele
homem? Você teria mostrado as garras assim tão rápido?
– Sim.
Ele responde tão prontamente que minha fúria aumenta. Cerro os
dentes, pensando que devia ter pedido qualquer outra coisa que não
sua liberdade.
– Eu já mostrei minhas garras para você. Você curou a ferida em
segundos. Por que eu arriscaria deixá-la furiosa me recusando a
cumprir sua ordem?
Desvio o olhar. O fogo crepita e oscila.
– Nunca escondi minha vontade de voltar para casa. Vou passar
um ano a seu serviço ou a serviço dela fazendo o que quer que
tenha que fazer, e nem um minuto mais.
– Eu jamais vou lhe pedir para fazer… aquilo.
– Não faça promessas que não vai conseguir cumprir, Sua Alteza.
Olho para ele de novo.
– Já falei para parar.
– Envie-me de volta à masmorra se minha presença o incomoda.
– Não me tente.
– O que é tão tentador? – Ele estreita os olhos de leve. – De
verdade?
Cerro os dentes e desvio o olhar mais uma vez. Sei que ele só
está me provocando.
– Imagino que deva haver um certo alívio em ser um guarda. Em
saber que suas ações foram ordens de alguém. Em não ter
responsabilidade pelo que mandaram você fazer.
Ele fala isso como se eu não sentisse o peso de cada ação que já
tomei.
– Você não sabe nada sobre o meu tempo como guarda.
– Sei que você fugiu de seu direito de primogenitura e escolheu
um trabalho digno do degrau mais baixo da sociedade de Emberfall.
Não encontrou latrinas para limpar?
– Você quer brigar, Iisak?
Ele se ergue da parede, enrolando a corrente nas mãos, fazendo-
a tilintar a cada vez que ela toca suas garras.
– Acho que a questão é: você quer brigar?
Na verdade, eu quero. Meu coração implora por ação desde que
ouvi Karis Luran ordenar que arrancassem o olho de Parrish. Meus
músculos estão tensos com a necessidade de fazer algo.
Em nossa última estação juntos, a feiticeira Lilith torturou
secretamente Rhen todas as noites. Ele me acordava de manhã me
chamando para lutar na arena. Era mais difícil do que qualquer
treinamento que já tive na Guarda Real.
Eu nunca tinha entendido essa necessidade até agora.
Queria parar de pensar em Rhen.
Esfrego os olhos, mas noto um movimento à minha frente e levo
as mãos para baixo. Ele está bem perto de mim, mexendo-se
devagar e com cuidado. A luz do fogo reflete em sua corrente, em
suas asas, em seus olhos escuros como a noite.
Ele me ataca com suas garras quase mais rápido do que um
suspiro, mas estou pronto e salto para trás, derrubando a cadeira.
Minha mão encontra a adaga, porém a espada está fora de alcance.
– Não quero lutar com você – digo.
– Você quer lutar com alguém.
– O que você quer, Iisak? Quer que eu te mate? Quer que eu
acabe com o seu sofrimento?
Ele dá risada.
– Você acha que poderia me matar?
Sem esperar resposta, ele se lança contra mim, cravando as
garras em meu ombro. Antes que eu possa golpeá-lo com a adaga,
ele já se afastou.
Mas ele não é rápido o suficiente para manter a corrente fora do
meu alcance. Ela se estica e eu a seguro firme.
Apesar de sua altura, ele é muito mais leve que um humano, e eu
o puxo para mim com facilidade, enquanto seus pés se arrastam no
chão de pedra.
Assim que ele está perto o suficiente, eu o golpeio com a adaga.
Ele contra-ataca com suas garras. Ambos perdemos – ou talvez
ambos ganhamos. Ele mira na minha mão segurando a corrente. Eu
miro em seu ombro. Nós nos separamos, ambos sangrando.
Ele não me dá tempo para que eu me recupere, avançando mais
uma vez, tentando acertar meu rosto, meu pescoço. Bloqueio suas
garras com a adaga, mas meus antebraços estão desprotegidos.
Ele atinge algo vital, porque a arma escorrega da minha mão e cai
no chão. Minha magia responde quase no mesmo instante, curando
a ferida rapidamente e me permitindo atacá-lo com socos e força
bruta. Trombamos na outra cadeira, na cômoda, na pilha de lenha
ao lado da lareira. Uma cortina cai da parede.
Iisak se solta da minha pegada e enterra os dentes no meu
antebraço. Dou um soco nele, fazendo-o saltar para longe. Sua
boca está toda suja com o meu sangue.
Rolo no chão rapidamente e encontro a espada sob a cadeira,
mas Iisak se coloca em cima de mim antes que eu possa erguê-la.
Suas mãos miram em meu pescoço, e preparo-me para o golpe de
suas garras. Mas ele prende minha garganta com a corrente e me
pressiona contra o chão de pedra. Não consigo nem engolir. Com o
joelho, ele prensa o braço que segura a espada.
Tento me soltar com a mão livre, mas ele está em vantagem.
Encaro-o com os olhos queimando de fúria. Preciso juntar forças
para fazer as palavras saírem.
– O que você quer, Iisak?
Ele se inclina para mim até que seu rosto esteja a um centímetro
do meu. Suas presas ainda estão expostas, ainda tingidas com meu
sangue. Sua respiração é como um vento de inverno.
– Não, a pergunta é: o que você quer?
Tento dar outro soco, mas ele afasta minha mão e coloca as
garras na minha garganta, bem em cima da corrente. Agarro seu
pulso, mas ele pressiona os dedos com força. Sinto cada garra em
minha pele e congelo. Ele não me perfura, mas, se eu respirar,
talvez ele mude de ideia.
O que você quer?
Essas palavras parecem drenar minha vontade de lutar. Meu
peito está pesado abaixo dele, e minha garganta pulsa com
emoção.
Há tantas coisas que não quero.
Não quero que Lia Mara sofra por minha causa.
Não quero que as poucas pessoas que confiam em mim sofram
por sua lealdade.
Não quero que ninguém seja ferido.
Não quero que meu país seja destruído.
Pisco para Iisak, com a visão turva.
– Não quero entrar em guerra contra Rhen.
O rasvador relaxa as garras em meu pescoço e recua. Afasto a
corrente e, em seguida, rolo para o lado e me sento, esfregando o
pescoço. A magia em meu sangue se apressa para curar qualquer
ferimento, já não preciso nem pensar.
No entanto, sinto-me ferido por dentro, e as centelhas de magia
não podem curar isso.
Iisak se agacha diante de mim, equilibrando-se na planta dos pés.
– Seu irmão está em guerra contra seu próprio povo. Nós vimos
durante a viagem.
Penso na determinação inabalável de Rhen para reconquistar
Porto Silvermoon.
– Eu sei.
– Mesmo se você ainda fosse guarda dele, as pessoas estariam
resistindo ao seu domínio. Não pensou nisso?
– Sim. – Reflito sobre tudo o que Dustan foi obrigado a fazer
desde que parti, e me imagino em seu lugar. Não gosto de pensar
que eu teria voltado minha arma para o povo de Emberfall, mas,
levando em consideração meu juramento, sei que eu teria
obedecido.
Engulo em seco.
– Não há escolhas fáceis aqui, Iisak.
– Fáceis – ele rosna. – Escolhas nunca são fáceis. Existem
opções boas e ruins, mas a mais perigosa é não fazer escolha
nenhuma.
Viro-me para me sentar perto da lareira, procurando o calor do
fogo para combater o frio que Iisak envia para o ar. Parte de mim
queria que minha magia não fosse tão eficiente. Quero me sentir
dolorido e ferido por um tempo. Suspiro, olhando para ele.
– Obrigado.
Ele enrola a corrente nas mãos, assente e se senta próximo.
– Eu também precisava disso.
Lanço um olhar pelo quarto, pela mobília revirada e pela cortina
rasgada.
– Fico surpreso que não tenhamos atraído guardas.
– Nenhum barulho escapou deste quarto.
Pisco surpreso, então sorrio com melancolia.
– Sua magia?
– Estou ficando mais forte a cada dia. – Ele faz uma pausa. –
Você não usou a sua.
– Eu me curei.
Ele não fala nada, mas posso sentir seu julgamento frio. Eu
poderia ter feito mais do que me curar.
– Gostaria de compartilhar uma história com você – ele
finalmente diz.
– Certo.
– Seria bom que essa história não chegasse aos ouvidos de Karis
Luran.
Olho para ele, lembrando da noite em que compartilhei segredos
com Tycho. Talvez seja nossa luta, ou talvez nossa repugnância
mútua por Karis Luran. Talvez ele precise de um confidente tanto
quanto eu já precisei.
– Vou guardar seus segredos, Iisak.
– Nosso povo teve um aeliix – ele começa. – Um herdeiro. Uma
espécie de príncipe. Ele também não queria governar. – Ele faz uma
pausa. – Ele se ressentia por nosso confinamento nas florestas de
gelo. Queria acabar com o acordo com Syhl Shallow e garantir
acesso a céus mais quentes. Ele dizia que seu direito de
primogenitura era um fardo. Muitos pensavam que ele era mimado e
egoísta, mas, assim como seu irmão, sua resistência estava
fundamentada no medo. Governar é se responsabilizar por toda
uma população, se tornar um líder em vez de mero seguidor. Ser um
pai, em vez de filho. – Iisak torce os elos da corrente entre os dedos.
Eles se cobrem de gelo, que logo derrete com o calor do fogo e
goteja no chão. – Nosso aeliix fugiu de Iishellasa por Syhl Shallow e
nunca mais foi visto.
Fico observando-o.
– Esta história é sobre você, Iisak? Você fugiu de seu direito de
primogenitura?
– Não, Sua Alteza.
Franzo a testa.
Seus olhos estão tomados por sombras e resignação. Sua voz é
baixa, quase um sussurro.
– Meu filho fugiu.
Endireito a postura.
– Seu… filho.
– Acho que Karis Luran o manteve prisioneiro.
Na floresta, Lia Mara perguntou o que sua mãe tinha.
Algo de grande valor para mim, ele disse.
Encaro-o.
– Então isso te faz…
– O friist deles. – Ele sorri com tristeza. – O rei. – Ele olha para a
janela. – Mas fiquei longe muito mais tempo do que previ. Talvez
não haja mais uma coroa para reivindicar.
Este segredo é muito maior que qualquer coisa que Tycho tenha
compartilhado comigo no sótão. Respiro fundo com os dentes
cerrados.
– Você vai ser prisioneiro dela por um ano, Iisak.
– Eu teria arriscado uma vida inteira. – O fogo crepita atrás de
mim e reflete em seus olhos. – Você não?
Eu hesito, e ele sorri.
– Você também. Se fosse pai, você arriscaria. – Ele pausa. –
Quando parti de Iishellasa, tentei procurá-lo, mas fui capturado,
trocado, vendido, apostado.
– Para Worwick – digo.
– Sim. – Pausa. – E agora não sou prisioneiro dela. – Ele enrola
as correntes em suas garras de novo. – Sua Alteza, sou seu.
Engulo em seco.
– Você não é meu prisioneiro, Iisak.
– Você negociou com Karis Luran. Não pode me libertar. Há muita
coisa em risco.
Sempre há muita coisa em risco. Franzo a testa mais uma vez.
– Como você sabe que ela não está com ele?
– Ela teria pedido muito mais que um ano. – Ele se levanta do
chão e olha para a janela. – Ele pode ter ido embora há muito
tempo… ou pode estar morto. Esta era a última pista que eu tinha.
Agora entendo por que ele também precisava de uma briga.
– Vou encontrar um jeito de ganhar a sua liberdade – digo.
– Posso sobreviver a um ano. Você tem assuntos mais urgentes,
Sua Alteza.
Faço uma careta, mas ele tem razão.
– Rhen unificou seu povo para expulsar Syhl Shallow de
Emberfall. Ele salvou seu país. Não está certo invadir seu território e
tomá-lo dele – comento.
– Ele mentiu para o povo para manter o trono. – Ele faz uma
pausa. – Para não falar das ações que fizeram com que a
população caísse na pobreza e no desespero.
Sim. Rhen fez isso. Eu o ajudei. Não tínhamos escolha.
– Pelo que posso ver, há duas escolhas aqui. Se você aceitar seu
direito de primogenitura e voltar para tomar o trono, Karis Luran vai
lhe oferecer apoio em troca de uma aliança com Emberfall e acesso
às hidrovias de Rhen. Ou melhor, às suas hidrovias.
– Sim. – O fogo estala, e me ajeito para me sentar de pernas
cruzadas.
– Se negar seu direito de primogenitura – Iisak continua –, você
terá que fugir deste palácio. – Seus olhos estão firmes. – Karis
Luran não vai permitir que alguém com as suas habilidades vague
por aí sem controle. Rhen também não. Nem você nem seu grupo
falam a língua deles, e você seria reconhecido em Emberfall. Esse
seria um desafio e tanto para qualquer um.
– Portanto, minhas opções são destruir Rhen ou permitir que me
destruam. Ou seja, não tenho opção.
Iisak fica em silêncio por um tempo.
– Por que você fez um juramento ao príncipe Rhen?
– Para proteger a Coroa. – Hesito. – Para proteger a linha de
sucessão. Proteger o povo de Emberfall. – Hesito de novo, ouvindo
a verdade em minhas palavras. – Para fazer parte de algo maior que
eu mesmo.
– E você fez.
Passo uma mão no queixo. Eu fiz.
Jurei proteger a Coroa, o que significava proteger quem quer que
estivesse usando-a legitimamente. Jurei proteger o rei Broderick, e
depois que ele morreu, jurei proteger Rhen. Não só por quem ele
era, mas pelo que ele representava.
Será que estive lutando contra mim mesmo durante todo esse
tempo?
– Não vamos esquecer que você tem algo que Rhen não tem –
Iisak acrescenta.
Reviro os olhos.
– Magia.
– Não desdenhe disso! – Suas asas se abrem e seus olhos
brilham. – Se parasse de lutar contra si mesmo, acho que veria suas
habilidades se manifestarem totalmente. Se você é o último feiticeiro
que restou, poderia ser o mais poderoso de todos. Acho que o que
aconteceu com Rhen e seu povo é só uma fração do que você pode
fazer. Por que acha que Karis Luran está tão desesperada para
diminuir seus talentos?
Ele está certo. Não sei se gosto disso, mas ele está certo.
– Se você diz. Vou discutir os termos de uma aliança com Karis
Luran. – Meu peito está apertado. – E reivindicar o trono.
– Além disso, eu não estava me referindo apenas à magia.
– Não? O que mais eu tenho que Rhen não tem?
Ele solta aquele sorriso terrível, então joga a corrente de prata no
meu colo.
– Eu.
Pisco para ele, surpreso.
– Vamos à luta – ele diz, dobrando as garras. – Dessa vez, você
vai usar mais que suas próprias mãos.
CAPÍTULO QUARENTA E UM

LIA MARA

As refeições são trazidas a intervalos regulares, mas parece que


minha mãe estava falando sério. Não posso sair do quarto. Meus
guardas se recusam a falar comigo. Tenho minha cama e meus
livros e meu banheiro, e nada mais. Da janela do terceiro andar,
posso ver os campos de treinamento e os estábulos, mas depois de
avistar Grey caminhando com Nolla Verin, mantenho-me longe.
Ninguém vem me visitar.
Sinto falta da companhia dos meus amigos, mas, entre todas as
pessoas, sinto mais falta da minha irmã.
Queria poder falar com ela. Queria poder explicar.
Na terceira noite, estou deitada na cama olhando para a
escuridão, tentando imaginar se os guardas enfiariam a espada em
mim se eu tentasse passar por eles.
Conhecendo minha mãe, provavelmente sim. Eu deveria me
considerar sortuda por ela não ter feito isso com as próprias mãos.
Vejo uma sombra na parede e congelo. Vislumbro um movimento
no canto mais escuro. Suspiro com força.
Antes que eu tenha tempo para me perguntar se os guardas
responderiam a um grito, uma brisa gélida sopra pelo quarto.
– Não tema, princesa.
Iisak. Meus olhos estão arregalados, buscando algum ponto de
luz na escuridão do quarto. À medida que o pânico se dissipa,
consigo distinguir sua pele sombria e suas asas cor de fumaça
sobre os ombros. Ele ainda tem uma coleira de prata em volta do
pescoço, mas a corrente sumiu.
Sento-me depressa e olho para a porta.
– O que está fazendo aqui? – sussurro cautelosamente para os
guardas não ouvirem.
– Estou visitando uma prisioneira, como você fez uma vez.
A emoção se acumula na minha garganta, e minha boca faz uma
curva para baixo.
– Você deveria sair antes que seja pego. – Pressiono meus olhos
para impedir que as lágrimas caiam. – Só trago problemas, Iisak.
– Talvez, mas eu trago um recado de nosso jovem príncipe
rebelde.
Abaixo as mãos e pisco para ele.
– O quê?
Ele me estende um pedaço de papel dobrado, e eu quase caio da
cama na ânsia de pegá-lo. É tarde demais para acender uma vela –
os guardas perceberiam que há algo estranho. Vou para a janela
para ler à luz da lua.
A caligrafia de Grey é longa e inclinada. Ele deve ter escrito com
pressa, como se temesse ser descoberto.
Perdoe-me. Por favor, perdoe-me. Eu jamais queria
colocar você em perigo. Se houver alguma forma de
negociar sua liberdade, por favor, diga-me. Sua mãe joga
jogos perigosos, e não quero prejudicar você ou seus
entes queridos.
Fico pensando naquele breve momento na varanda e
pergunto-me se errei lhe oferecendo meu casaco. No
entanto, digo a mim mesmo que você estava com frio, e a
ideia de vê-la tremendo é algo que não posso suportar.
Especialmente quando penso nos breves momentos
que se seguiram. Espero ter ajudado a espantar o frio.
Quero me afundar nos travesseiros e apertar a carta em meu
peito, mas estou desesperada para ler o que mais ele escreveu.

Fiz um acordo com sua mãe na tentativa de salvar vidas


inocentes. Tentei exigir sua liberdade como parte do nosso
acordo, mas ela recusou. Se eu tivesse o poder de me
transportar para o seu quarto neste instante, eu o faria.
Pela insistência de sua mãe, tenho passado bastante
tempo com a sua irmã.
Aperto o papel e me obrigo a continuar lendo.
Ela está muito preocupada com você. A garota corajosa
que apostou corrida comigo pela cidade agora só fala
sobre o quanto está preocupada com você. Como passei
dias e dias tentando descobrir o que dizer para o homem
que agora é meu irmão, pensei que você devesse saber.
Seu,
Grey
Seu. Só que ele não é meu.
Uma lágrima cai no papel, e eu a enxugo depressa. Forço meus
ombros a se endireitarem e olho para Iisak, pouco mais que uma
sombra no quarto.
– Ele está bem? – pergunto.
– Está preso pelas circunstâncias, como todos nós. – Ele faz uma
pausa. – Mas sim. Está bem.
Como todos nós. Não tenho certeza se é verdade. Minha mãe
não se importa com o povo de Emberfall. Nem minha irmã. Penso
naquele caçador e na sua filha, mortos sem hesitação.
Penso na destruição que vimos na viagem até Emberfall, muitos
dias atrás.
Penso no príncipe Rhen e no que ele estava disposto a fazer para
impedir que um herdeiro tomasse seu trono.
Penso em Parrish, provavelmente parado na porta do meu quarto
neste exato instante, sendo castigado por cumprir uma ordem
minha.
Olho para Iisak, depois olho para a janela.
– Você pode me ajudar a sair daqui? – sussurro o mais baixo
possível, como se dar voz aos meus pensamentos pudesse levar as
palavras até os ouvidos de minha mãe.
Ele segue meu olhar e vai até a janela.
– Não aguento um humano por muito tempo.
– Você ergueu soldados de seus cavalos em Blind Hollow.
– Por apenas alguns centímetros, não por três andares. E eu não
estava preocupado com a vida deles.
Franzo a testa, então suspiro.
– Não posso fazer nada neste quarto, Iisak.
– Se pular dessa janela, o melhor que posso fazer é desacelerar
a sua queda em direção à morte.
Faço uma cara feia.
– Então é isso? Devo ficar sentada aqui lendo enquanto Grey sai
para enfrentar seu irmão, com minha irmã ao seu lado?
– Você preferia estar ao lado dele?
O rubor toma minhas bochechas antes que eu esteja preparada.
– Eu preferia não entrar em guerra com Emberfall. Já causamos
estrago demais.
– Você não é responsável por todo o estrago em Emberfall,
princesa. – Ele faz uma pausa. – Algumas coisas nem você pode
impedir.
Ele está dizendo que eu posso impedir algumas coisas?
Fracassei em tudo o que tentei. É quase um milagre que eu tenha
conseguido trazer Grey ao castelo a salvo. Talvez eu deva ficar
trancada no meu quarto enquanto todos resolvem os problemas do
mundo.
Não. Esta ideia é abominável para mim.
Já causamos estrago demais. Não podemos continuar fazendo
isso com Emberfall, independentemente de quem esteja no poder.
Mamãe não vai me permitir sair do quarto. Parrish não vai me
ajudar. Grey está em uma posição delicada.
Vou até a mesa e pego umas folhas de papel, um tinteiro e uma
pena.
– Você entregaria uma mensagem? – pergunto para Iisak.
– Para o príncipe? Certamente.
– Não. – Minha cabeça está girando, pensando no que eu diria
para Grey. A tinta escorre enquanto escrevo minha mensagem às
pressas.
Duas irmãs, um coração. Por favor, venha me ver. Preciso da
minha outra metade.
Sopro a tinta para secá-la, segurando o papel no ar.
– Preciso que leve isto para a minha irmã.
•• ••
Pensei que Nolla Verin fosse vir assim que lesse minha mensagem.
Ela não vem.
Fico acordada a maior parte da noite, observando os primeiros
raios de sol iluminarem o teto ao alvorecer. Do lado de fora do
quarto, ouço o alvoroço e a agitação dos criados no corredor. Nolla
Verin ainda não veio.
No meio da manhã, sento-me na janela esperando ver minha
irmã.
Por fim, ela aparece com Grey. Meu peito dá um solavanco
quando os vejo, mas hoje não me afasto da janela. Minha mãe os
segue, não muito longe. Eles se encontram com um grupo de
soldados no campo de treinamento, que se dividem em grupos.
Grey e minha irmã observam os guerreiros, enquanto a rainha se
mantém por perto. Sempre avaliando, sempre julgando. Cravo os
dedos no parapeito da janela.
Ah, irmã, penso. Olhe para cima. Olhe para cá e veja o quanto
preciso de você.
Talvez compartilhemos um só coração mesmo, porque ela se vira
e levanta a cabeça para mim. Solto um suspiro quando nossos
olhares se encontram.
– Por favor – sussurro.
Mesmo daqui, posso ver a tristeza em sua expressão,
demonstrando o pesar mencionado por Grey no bilhete.
Seus lábios se movem, formando as palavras com cuidado:
desculpe.
Afasto-me da janela, mas não sem antes vê-la se virar para
nossa mãe. Nolla Verin ouve tudo o que ela está dizendo, como
sempre. A herdeira obediente.
Naquela noite, quando o céu está escuro como breu e a lua paira
cheia no alto, Iisak retorna com outra mensagem de Grey.

Sua mãe está ansiosa para se mover logo. Ela me revela


pouco, mas os guardas e soldados falam, e parece que
meu passado me permite jogar em ambos os lados.
Aprendi muito durante nosso treino. Suas Casas Reais
são semelhantes aos grão-marechais de Rhen, e parece
que ela conquistou o apoio deles – ou seja, financiamento.
Eles querem acesso às hidrovias e portos de Rhen, e o
tempo é essencial agora, porque seu reino está
fragmentado e fraco. Vamos partir para Emberfall em
alguns dias.
Não sei quando voltarei.
Não sei se voltarei.
No passado, passei uma eternidade temendo cada
minuto que passava, e agora queria ter mais tempo.
Porém, mais do que qualquer outra coisa, queria poder
libertar você. Queria ter a sua força e compaixão ao meu
lado. Tudo o que sua mãe e sua irmã têm a oferecer é
brutalidade.
Isso tem seu lugar, claro, mas talvez nem tanto quanto
já pensei.
Seu,
Grey
Inspiro fundo e expiro devagar. Meu peito dói.
Olho para Iisak.
– Ele vai atacar Rhen.
– Sim.
Engulo em seco e abaixo a carta. Eu sabia que era isso que nos
aguardava ao final da estrada… mas não gosto nada disso.
Não vejo outra saída. Mesmo com todos os meus estudos,
minhas leituras e reflexões, toda a minha inteligência e compaixão…
o resultado é o mesmo.
– Ele está errado – digo.
– Errado, princesa?
– Ele está partindo para a guerra. – Minha voz é vazia. – Precisa
de toda a brutalidade que conseguir.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

GREY

Minhas horas nunca foram tão cheias, meu sono nunca foi tão
profundo. Minhas manhãs são tomadas por aulas: de syssalah, de
política da corte, de costumes e tradições de Syhl Shallow. Nolla
Verin está sempre ao meu lado, mas não parece uma companheira,
e sim uma espiã pronta a relatar meu progresso à sua mãe.
Mantenho minha guarda, e ela também.
Todos os dias, compartilho o almoço com Karis Luran. Jake
nunca sai do meu lado. Quando jantamos, fico frio e distante,
ressentido com a maneira como ela me manipulou tão rapidamente
– fazendo-me provar minha magia e trabalhar contra Rhen – e com
a maneira como ela escondeu sua filha depois de uma
demonstração cruel de vingança contra aquele guarda.
– Toda vez que ela pede vinho – Jake murmura para mim durante
uma de nossas refeições – acho que ela vai cortar o pulso de algum
pobre coitado com um pedaço de vidro.
Com certeza. Não gosto dela. Não confio nela.
Não é segredo nenhum.
– Você não gosta de mim, jovem príncipe – ela me diz no terceiro
dia.
– Preciso gostar?
– Não. – Ela sorri. – Esperar adoração é se deixar vulnerável.
Eu definitivamente estou longe de adorá-la. No entanto, seus
súditos não pensam assim. Sua crueldade é vista como justa e
fundamental.
E, apesar do meu ressentimento, ela parece ser uma governante
honesta. Ela se preocupa com seus súditos. O povo de Syhl Shallow
é bem alimentado e educado. Dois anos de serviço militar são
exigidos de cada família, o que confere aos soldados um sentimento
de unidade que me surpreende cada vez que encontro Talfor e
Cortney na cidade.
Os cofres de seu castelo podem estar secando sem o imposto
antes pago pelo pai de Rhen, mas Karis Luran faz o que pode para
ajudar seu povo e, apesar de sua brutalidade, eles parecem amá-la
por isso. O que me faz questionar como o tratamento que Rhen me
dispensou foi recebido, e como seus súditos responderão quando
ele enviar soldados para retomar Porto Silvermoon.
Como sempre, queria não pensar em Rhen.
Minhas tardes são preenchidas com treinamento dos guardas e
soldados enquanto nos preparamos para partir. Esse é o único
momento em que posso relaxar, porque tenho uma espada na mão.
Eles lutam de um jeito diferente aqui, e gosto do desafio de
aprender seus métodos e armas. Não gosto do desafio do jantar,
porque todas essas refeições incluem pessoas importantes:
generais e chefes militares, bem como líderes das Casas Reais.
Não sou Rhen, que consegue influenciar as pessoas com pouco
mais do que um olhar. Pelo menos parece que minha constante
recusa em ser manipulado funcionou a meu favor. Ninguém me
pede para demonstrar minha magia. Ninguém me desafia de forma
alguma.
Ninguém exceto Iisak, que quase me arrasta para fora de meus
aposentos depois de escurecer, insistindo que preciso me fortalecer.
Meus poderes parecem tão pequenos e inferiores em comparação
com o que eu vi Lilith fazendo. Ela nos amaldiçoou e nos aprisionou
no ciclo infinito de sua magia. Eu mal consigo afetar mais que duas
pessoas ao mesmo tempo.
Na véspera de nossa partida, estamos no campo de treinamento
deserto ao luar. Iisak insiste que eu posso usar a magia em minha
esgrima para ganhar precisão e força – e, uma vez que eu aprender
isso, poderia fazer o mesmo por meus soldados.
Não está dando certo. Jake e Tycho se ofereceram para ajudar,
mas não preciso de magia para vencê-los. Quando nos separamos
pela décima vez, eles estão exaustos. O suor cintila ao luar. Olho
para o palácio. De vez em quando, consigo ver Lia Mara de relance,
mas hoje seu quarto está escuro e não há sombras em sua janela.
Noah está observando da lateral.
– Talvez você devesse amarrar um braço nas costas – ele diz.
Afasto um cabelo molhado dos olhos e suspiro. Nosso tempo de
preparação está acabando. Estou correndo para um fim incerto, e
não faço ideia de como parar.
– Talvez você precise de um novo oponente – Nolla Verin fala.
Eu me viro e a vejo emergindo da escuridão com seus guardas.
Em vez das vestes que normalmente adornam seu pequeno corpo,
hoje ela está usando uma armadura de couro preto com detalhes
em prata, e seu cabelo escuro está trançado para trás com uma fita
verde. Em suas mãos, há uma espada e uma adaga.
Levanto as sobrancelhas.
– Está se oferecendo?
– Sim. – Ela ergue a lâmina e ataca.
Não estou completamente despreparado, mas mal consigo
bloqueá-la antes que ela gire e avance. Tento tirar a adaga de sua
mão. Ela se esquiva e se recompõe rapidamente. Observo seus
movimentos, procurando uma fraqueza.
Ela não me dá tempo. Seu próximo ataque é brutal e veloz.
Minha resposta também.
Ela se afasta de novo, respirando mais rápido e lançando-me um
sorriso ferino.
– Se me fizer sangrar, minha mãe não vai ficar muito contente.
– Então é melhor você proteger seu lado esquerdo.
Desta vez, ataco primeiro usando toda a minha força. Sua espada
é mais leve e ela recua quase imediatamente, mas ela é mais ágil
do que meus pensamentos. Seus golpes parecem vir de todos os
lados ao mesmo tempo, e ela é implacável. Lembro-me de Lia Mara
elogiando as habilidades de sua irmã – e não estava errada.
Em outro lugar e tempo, eu estaria claramente admirado, mas
estou cansado, e isso parece apenas uma performance. Assim
como na manhã em que galopamos pela cidade, não posso ganhar.
Ela tem razão: Karis Luran mandaria cortar minha cabeça se eu
ferisse sua herdeira, independentemente de nossa aliança.
Sua espada por pouco não passa pela minha guarda, e ela quase
acerta meu braço.
– O que você disse sobre o meu lado esquerdo? – ela provoca.
Ela está certa, então sorrio.
– Anotado.
– Achei que você usaria magia. Esperava ver uma demonstração.
– Até agora não precisei de ajuda.
– Tente matá-lo. Normalmente isso funciona – Jake diz.
Nolla Verin estreita os olhos e avança. Ela consegue ser ainda
mais rápida. Nossas lâminas se tornam um borrão ao luar. Ela ataca
cada vez com mais força, e, quando atinge meu ombro para me
desarmar, percebo que ela realmente pode estar tentando me matar.
Tento afastar sua espada, mas ela é uma fração de segundo mais
rápida, e acabo lhe oferecendo uma abertura. Ela golpeia, mirando
nas minhas costelas. As estrelas aguardam debaixo de meu
sangue, alimentadas pela luta e pelos ferimentos, esperando meu
comando. Faço uma tentativa de enviá-las para minha arma,
esperando que elas acelerem minha defesa e a detenham.
Nolla Verin voa para trás, caindo com tanta força no chão de terra
do campo de treinamento que sai derrapando por metros.
Seus guardas se colocam imediatamente na sua frente, com as
espadas na mão apontadas para mim.
– Não! – Ela tosse. – Eu pedi para que ele fizesse isso.
– Falei – Jake comenta.
Os guardas baixam as armas devagar. Estou tão surpreso quanto
ela, mas guardo a espada e me aproximo, estendendo a mão. Ela
olha e se levanta sozinha, observando-me com novo e nítido
interesse e maior consideração.
– Como eu disse, um novo oponente.
– Como você disse.
Sua respiração está um pouco mais rápida agora, e suas
bochechas estão rosadas ao luar.
– De novo?
Hesito.
– Sim – Tycho diz.
Ela balança a espada. Eu mal tenho tempo de detê-la. Nossas
lâminas colidem e voam pelo ar noturno até que eu sinto as estrelas
esperando.
Gentilmente, Lia Mara disse na floresta.
Dou um empurrão um pouco mais sutil.
Nolla Verin erra o próximo bloqueio por vários centímetros e é
lançada para trás. Aproveito a chance e tento desarmá-la, mas ela
perde o equilíbrio e cai com força no chão.
Seus guardas já estão a postos mais uma vez, mas ela está
sorrindo para mim.
– Belo truque.
Não consigo não sorrir em resposta.
– A magia exige que eu pense muito. Prefiro usar só a espada.
– Não vai precisar pensar muito se praticar – Iisak diz.
Desta vez, quando ofereço a mão, Nolla Verin aceita. Uma vez de
pé, ela olha para mim com seus olhos frios e calculistas, e não solta
minha mão.
– Caminhe comigo – ela pede.
Meu sorriso se esvai. Olho para a parede escura do palácio.
– Preciso me retirar.
– Por favor?
Tomo fôlego para recusar, mas, por um breve momento, vejo um
vislumbre de emoção em seus olhos. Apesar de tudo o que Lia Mara
disse sobre se julgar inferior à irmã, ela nunca falou mal de Nolla
Verin. A garota na minha frente mostra ferocidade para o mundo,
mas eu me pergunto o quanto disso foi desenvolvido apenas para
agradar sua mãe – e o que se esconde por trás dessa fachada.
Assinto e ofereço meu braço.
Nolla Verin dá risada e começa a andar.
– As damas de Emberfall realmente precisam de ajuda para
caminhar?
– Não. Mantenha-se longe, se quiser.
Ela bufa, perplexa, e percebo que eu estava certo. Grande parte
de sua agressividade é apenas uma fachada para esconder sua
insegurança. Na verdade, ela me lembra um pouco Rhen. Eles
provavelmente teriam formado uma aliança poderosa.
No entanto, um deles com certeza não sobreviveria uma semana.
Caminhamos em silêncio pelo campo de treinamento. As
sombras vão aumentando conforme nos afastamos das tochas da
parede dos fundos do palácio. Seus guardas nos seguem à
distância, assim como Jake, o que me surpreende.
Nolla Verin olha por sobre o ombro para onde Tycho e Iisak estão.
– Mamãe não gostou que você libertou aquela criatura de suas
correntes.
– Ele não é meu escravo.
Ela olha para mim.
– Com o que você o ameaçou, então, para fazê-lo lhe obedecer?
– Com nada.
Quero perguntar se as damas de Syhl Shallow precisam de
ameaças e correntes para garantir que uma promessa seja
cumprida, mas não estou com vontade de discutir com ela.
Caímos em um silêncio espinhoso e desconfortável. Eu preferia
estar lutando. Parecia a primeira vez que ela estava sendo honesta
e aberta comigo.
Talvez porque ela estivesse tentando me matar.
Penso em tudo que Lia Mara disse e em tudo o que descobri
sozinho. Nolla Verin é rápida para atender os desejos de sua mãe, e
imagino quão profundo é esse reflexo.
– Você quer esta aliança?
– Sim. Será uma dádiva para o nosso povo ter acesso às
hidrovias de Porto Silvermoon, e também será bom para Emberfall
ter fundos para ajudar a reconstruir tudo o que foi perdido.
– Tudo o que foi perdido durante a invasão de Syhl Shallow, você
quer dizer.
– Tudo o que foi perdido enquanto a família real estava
“escondida”. – Ela olha para mim. – Não nos responsabilize por
todos os seus problemas.
– Não estou fazendo isso. – No entanto, estou. É impossível não
fazer isso. – Minha pergunta não foi essa, princesa.
– Qual é a sua pergunta?
– Você quer essa aliança? – Paro e viro-me para ela. – Comigo?
– É claro.
Aquela emoção cintila em seus olhos mais uma vez, mas, quanto
mais falo com ela, mais vejo-a com dúvidas. Vulnerável. Lia Mara
teceu infinitos elogios sobre sua irmã durante a viagem até aqui, e
certamente todos que conheci poderiam discorrer sobre os talentos
de Nolla Verin em um cavalo, com um arco e flecha ou com uma
espada. Sua fama é merecida, tenho certeza, mas talvez todas
essas habilidades escondam o fato de que ela só parece tão perfeita
para o trono porque não tem coragem de desafiar a mãe. Talvez
todas as suas habilidades e suas ações escondam o fato de que ela
é jovem, inexperiente e insegura.
Depois de passar tanto tempo com Lia Mara na floresta, comecei
a me perguntar por que Karis Luran escolheria sua filha mais nova
para ser sua herdeira – para negociar primeiro uma aliança com
Rhen, depois comigo. Lia Mara acha que não foi escolhida porque é
tranquila e pacífica, porque não tem a crueldade de sua irmã.
Agora me pergunto se não é porque ela seria capaz de enfrentar
a mãe.
E Nolla Verin não.
Olho para o palácio e vislumbro algo em sua janela.
– Por quanto tempo sua mãe vai manter sua irmã aprisionada?
Ela segue meu olhar.
– Lia Mara está em um aposento da realeza no Palácio de Cristal.
Ela não está aprisionada.
Posso ouvir a incerteza em sua voz. Está bem escondida, mas
está lá.
– Você está preocupada com ela.
– Sim, estou.
Mas ela não a visita. Sei por Iisak e pelos recados que ele traz
para mim. Nolla Verin não vai se contrapor aos desejos da mãe.
O silêncio cai sobre nós mais uma vez, pesado com coisas não
ditas.
Nolla Verin sabe que ofereci meu casaco para Lia Mara na
varanda, mas nunca mencionou. Imagino o que ela suspeita. O que
ela pensa. Com o que se preocupa.
Não sou de reclamar. E ela provavelmente está se perguntando
as mesmas coisas sobre mim. Aprendi há muito tempo como ocultar
cada pensamento atrás do semblante estoico de um guarda. Ela
deve ter aprendido o mesmo.
Talvez eu esteja errado. Nolla Verin não se parece com Rhen.
Ela se parece comigo.
Penso em Iisak, na noite em que lutamos. Eu também precisava
disso, ele disse.
Olho para ela.
– Está descansada, princesa?
– De alguma forma, eu dei um jeito de me recompor sem precisar
do seu braço.
Sorrio.
– Que bom.
Sem avisar, saco a espada, e ela também sorri.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

LIA MARA

Todas as velas do meu quarto ainda estão acesas quando Iisak


pousa no parapeito da minha janela. Estou certa de que ele traz um
bilhete de Grey, mas não quero lê-lo. Quase desejo que ele não
tivesse aparecido esta noite. Meus pensamentos oscilam entre
desejo e lealdade, e duvido que serei uma boa companhia. Livros e
papéis estão espalhados pelo meu divã, e uma bandeja de frutas
cristalizadas meio comidas está ao meu lado.
– Está tarde – o rasvador diz. – Pensei que estaria dormindo.
Não olho para ele.
– Mesmo? De verdade?
Ele ignora meu sarcasmo.
– Sim. De verdade.
– Estou lendo sobre Iishellasa. Por que os feiticeiros foram
embora e largaram os rasvadores para trás? – Olho para ele. – Por
que eles não fizeram um acordo?
Ele não dá atenção às minhas perguntas.
– Você parece inquieta, princesa.
– Não estou.
Ele fica em silêncio por um instante, e eu me pergunto se ele vai
aceitar minha mentira.
Porque estou inquieta. Provavelmente vou morrer trancada neste
quarto. Às vezes, penso que minha mãe se esqueceu de mim.
Talvez eu não devesse ter me dado ao trabalho de fugir do castelo
de Rhen. Eu certamente teria me poupado uma boa dose de
sofrimento.
Eu engulo o nó na minha garganta e olho para os papéis.
– Sobre os feiticeiros e os rasvadores. Você sabe por quê? –
Prendo uma mecha de cabelo atrás da orelha. Uma lágrima escorre
pela minha bochecha e pousa nos documentos. Eu a seco
rapidamente.
Iisak entra no quarto, parando do outro lado dos papéis e se
agachando. Posso sentir o peso de seu olhar, mas mantenho meus
olhos abaixados.
Acho que ele vai bisbilhotar, mas ele bate um dedo nos papéis.
– Não é possível identificar um feiticeiro. Eles conseguiam
atravessar o Rio Congelado usando magia, sem precisar voar. – Ele
faz uma pausa. – Antes de fecharmos o acordo, podíamos voar
livremente, mas a população de Syhl Shallow tinha medo de
rasvadores. Os feiticeiros tentaram nos defender, mas a magia tinha
se tornado algo temível, e nós não queríamos fazer mal algum a
Syhl Shallow. Infelizmente, os desejos dos governantes não são os
desejos da população. Pequenos conflitos aconteciam quando meu
povo atravessava o rio até o seu lado. Uma criança morreu.
Olho para ele.
– Uma criança rasvador?
– Uma criança humana.
Ah. Franzo a testa.
– A mãe de sua mãe exigiu reparação. Os feiticeiros ajudaram na
negociação. Fechamos um acordo. Os feiticeiros se restringiram a
Iishellasa por um tempo, mas as florestas de gelo podem ser
traiçoeiras com os humanos, e eles foram ficando cada vez mais
insatisfeitos, até que passaram a procurar um novo lugar para se
assentar. À essa altura, sua mãe assumiu o poder. Karis Luran não
queria magia em Syhl Shallow, então eles cruzaram o desfiladeiro e
por fim se assentaram em Emberfall por um tempo.
Olho para ele.
– Onde eles foram destruídos.
– Muitos deles, sim. – Ele espera um pouco. – É por isso que não
tratamos o acordo levianamente, princesa.
– Mas agora minha mãe está disposta a relevar a magia de Grey.
– Ela deve estar desesperada para ter acesso a essas hidrovias.
– Hum.
Olho para baixo mais uma vez. Organizo os papéis em uma pilha,
então vou para a parede para apagar as velas. Não pretendia
direcionar a conversa para Grey.
– Você ainda parece inquieta – Iisak diz, e uma corrente de ar
gelado atinge meu rosto e levanta meu cabelo.
Apago a vela e sigo para a próxima. Pergunto-me se Parrish me
deixaria sair se eu colocasse fogo no quarto.
Antes de alcançar a outra vela, um vento gelado sopra pelo
recinto, espalhando os papéis e apagando todas as velas de uma
vez.
Faço uma careta para Iisak e ajeito os papéis de volta na pilha.
– Estou contente de ver Grey e Nolla Verin se dando tão bem –
digo.
– Você acha?
– Eu vi.
– Ah. Devo dizer ao príncipe que você não está interessada em
seu último recado, então?
Minhas mãos ficam imóveis na pilha de documentos. Meu
coração já está pulando em meu peito, implorando para que eu leia
suas palavras… até que me lembro do sorriso que ele deu para
Nolla Verin, e meu coração dá um solavanco tão forte que tenho que
pressionar uma mão na barriga.
– Sim – sussurro.
– Princesa?
– Não sou uma princesa.
Ele dá um passo em minha direção, e eu levanto uma mão.
– Pare. Por favor, pare. Não vale a pena, Iisak. Precisamos parar
com isso. O que vai acontecer? Meu povo estará em perigo se essa
aliança não der certo. Vamos ficar trocando cartas secretas para
sempre?
Ele me olha em silêncio, com seus olhos pretos brilhando na
escuridão.
Enxugo uma lágrima.
– Isso é uma traição com minha irmã, Iisak. Uma traição com
minha mãe. Uma traição com meu país. Não posso continuar. Já
errei demais. Não posso continuar.
– Errou! – ele sibila, e o gelo se acumula nos vidros. – Princesa,
não percebe que foi você quem tornou possível estabelecer esta
aliança? Se Syhl Shallow e Emberfall chegarem a um acordo, será
por conta dos seus esforços para alcançar a paz. Grey estava tão
disposto a abrir mão de seu direito de primogenitura que se deixou
ser amarrado e açoitado em vez de assumir a responsabilidade.
Ainda assim, você conseguiu convencê-lo do contrário. Você, Lia
Mara. Você não percebe como isso é poderoso?
– Poderoso! Você e Grey vivem insistindo que sou forte e
poderosa, quando não sou nada disso. Estou presa neste quarto.
Sou um obstáculo.
– Você está presa por causa de seu poder. Como não consegue
ver isso?
– Estou presa porque minha mãe quer que Grey se encante por
minha irmã. Como não consegue ver isso?
Ele se prepara para dizer algo, mas ergo a mão.
– Não, Iisak. Chega. Não posso continuar. Vou ficar olhando da
minha janela, e vou lhes desejar felicidades quando eles partirem
para Emberfall amanhã.
Ele me observa das sombras.
– É a última carta dele, princesa.
Fico imóvel. Eu deveria recusar.
Ah, não posso me enganar.
Lia Mara,
Eu deveria estar fazendo isto pelo bem do povo de
Emberfall. Até pelo povo de Syhl Shallow. Eu deveria estar
fazendo tudo isso para alcançar a paz e a estabilidade. Eu
quero essas coisas, claro, mas o que me motiva é que
você quer essas coisas.
Não suporto pensar em você presa aí. Sua mãe usa
você como uma arma contra mim – e está funcionando.
Estou tomando cuidado para garantir que este acordo nos
leve em direção à paz, e não à destruição de Emberfall.
Mas eu poderia abandonar tudo, Lia Mara. Vamos partir
de manhã. Não fui criado para ser um príncipe. Fui
treinado para ser uma arma nas mãos de outras pessoas.
Posso fazer isso de novo por você.
Você quer fugir? Ou devo continuar neste caminho?
O que você ordenar, vou obedecer.
Seu,
Grey
Fecho os olhos e pressiono a carta no peito. Lembro de seus olhos
no corredor daquela pousada em Blind Hollow, da rouquidão de sua
voz quando estávamos ambos exaustos, mas ele negligenciou o
próprio sono para vigiar minha porta. Não tema. Ninguém vai
encostar em você de novo.
Ele desistiria de tudo para me resgatar.
Porém, por conta de tudo o que acredito, não posso lhe pedir
isso.
Iisak está me observando.
– O que devo dizer a ele?
A emoção aperta minha garganta mais uma vez. Ajeito minhas
vestes e me recuso a permitir que mais lágrimas caiam.
– Diga a ele para ser um grande rei.
•• ••
Não consigo dormir. Visões horrendas assombram meus
pensamentos. Minha irmã indo para a guerra e sendo partida em
dois por um guarda de Emberfall. Grey cavalgando para a batalha e
sendo ultrapassado por dezenas de soldados, que o golpeiam mais
rápido do que ele pode se curar. Sombras rastejam pela minha
parede nas primeiras horas da manhã enquanto eu fico me
revirando na cama, bagunçando os lençóis. Quando ouço um leve
arranhar na janela e vejo uma sombra preenchendo a moldura, fico
tão aliviada quanto irritada.
– Iisak… – começo, mas então a figura se desdobra.
Não tem asas. Não é um rasvador, mas um homem. Meu coração
dispara e vacila, e eu respiro fundo. Levanto-me da cama e dou um
passo para trás.
– Calma, milady.
Oh. Oh.
– Grey – sussurro. Meu peito aperta e minha garganta incha.
Coloco as duas mãos juntas na boca.
Ele se aproxima e para na minha frente. Seus dedos compridos
limpam as lágrimas das minhas bochechas.
– Não chore – ele diz, em um tom profundo e carinhoso.
Seus olhos estão firmes nos meus e, em seu olhar, vejo saudade
e incerteza.
Agora que Grey está aqui, compartilhando o mesmo ar que eu,
esqueço cada palavra que disse para Iisak.
Olho para a janela.
– Iisak disse que não aguenta carregar humanos. Como… como
você… como?
– Ele aguenta carregar uma corda. E eu posso escalar.
Meu coração continua acelerando.
– São três andares!
Seus lábios se contraem.
– Ah… eu não olhei para baixo.
– Mas… os guardas do palácio…
– Por favor. – Ele me olha.
Eu o encaro de volta. Quero tantas coisas. Quero beijá-lo de
novo. Quero sentir seus dedos em minha pele. Quero sussurrar
segredos em volta de uma fogueira. Quero que o mundo se reduza
a nós dois e nada mais.
Tudo o que eu quero vai contra o que meu país precisa.
– Você disse que obedeceria a minha vontade – eu finalmente
digo.
– Não posso ser um grande rei se permitir que meus aliados
fiquem presos.
Franzo a testa e dou um passo para trás.
– Você não pode me resgatar. Grey… há muita coisa em jogo.
– Sinto como se nós dois precisássemos ser resgatados, Lia
Mara.
O tormento em sua expressão espelha o que eu mesma estou
sentindo. Aperto os dedos nos olhos.
– Você precisa ir.
– Você realmente quer que eu vá?
Não.
Não posso dizer isso. Não preciso dizer. Ele não se move.
– Estamos ambos comprometidos demais com a honra e o dever
– diz ele. – Foi um truque cruel do destino nos unir.
– Não acredito em destino – sussurro.
– Hum. Isso faz com que as coisas pareçam mais fáceis?
Engulo em seco.
– Não.
– Está muito tarde. Não deveria ter perturbado seu sono.
– Não ligo. – As palavras são ousadas, inapropriadas, e só
trazem mais dor e arrependimento. No entanto, não consigo me
conter. Quero me aproximar dele e inalar seu aroma.
– Eu resgataria você, se você permitisse.
Abro os olhos de uma vez. Nem percebi que os fechei. Ele está
tão perto.
– Grey…
– Todo mundo está tentando me manipular. – Ele solta um
suspiro. – Não posso confiar em ninguém.
Isso me desperta do encantamento.
– Pensei que você estivesse se dando bem com Nolla Verin.
– Sua irmã parece mais ansiosa para descobrir se consegue me
matar.
– Ela não é capaz de vencer de você. – Viro-me, pensando em
minha sedutora irmã. – Acredite em mim, você ganhou o interesse
dela.
Ele pega minha cintura, imobilizando-me e me puxando em sua
direção. Seus olhos escuros perfuram os meus.
– E eu ganhei o seu?
O quarto está tão tranquilo e silencioso, e sua paciência parece
eterna, porque ele me mantém assim até que a tensão se esvai de
meu corpo e eu assinto.
– Sim – sussurro. – Meu interesse é seu.
Ele se inclina para a frente, tocando seus lábios nos meus de
leve. Prendo a respiração.
– Sim? – ele sussurra de volta.
– Sim.
Ele me beija de novo, mais devagar ainda, com força e gentileza,
ainda segurando minha cintura. Aperto os dedos em seu casaco,
trazendo-o para mais perto, até que seu corpo esteja contra o meu,
quente e sólido em minha camisola. Sinto como se estivesse
voando… ou me afogando. Sinto um calor no meu peito, e chamas
se acendem dentro de mim.
Até que me afasto. Há muitas vidas em risco dos dois lados da
fronteira.
– Grey, você não pode me resgatar. Não pode.
Ele fica imóvel.
– Posso descê-la pela corda em minutos. Conheço a rotina dos
guardas.
Meu coração se anima um pouco demais com sua sugestão.
– Não. – Dou um passo para trás. – A paz com Emberfall é
importante demais. Você não pode fazer isso.
– Se você diz. – Ele parece se preparar, fechando os olhos como
deve fazer quando precisa ser violento.
Não gosto de vê-lo fazendo isso comigo. Fui treinado para ser
uma arma nas mãos de outras pessoas.
Puxo-o para mim.
– Não, Grey. Não. – Passo os dedos em suas bochechas, em
seus cílios, então toco os lábios em seu rosto. – Não se esconda de
mim.
Ele aceita meus toques, mas sinto a diferença em seu corpo.
– Você não pode me resgatar – digo mais uma vez, tão baixinho
que as palavras parecem uma ilusão. – Mas talvez… por
enquanto… você possa ficar.
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

GREY

Acabamos sentados sob a janela, comendo sobras de ameixas


cristalizadas e pãezinhos de sua bandeja, compartilhando o ar
noturno e curtindo o silêncio. Outro homem provavelmente
aproveitaria esse tempo para desamarrar a parte de trás de sua
camisola e convencê-la a ir para a cama, mas isso seria desonesto.
Não gosto da ideia de entrar furtivamente em sua prisão de luxo
para tirar vantagem dela. Essa é a primeira vez que ficamos
sozinhos de verdade, e isso de alguma forma a faz parecer mais
vulnerável. Mais preciosa.
Não sei qual de nós dois está mais comprometido com a honra e
o dever, mas eu estava pronto para escalar as paredes do castelo
carregando-a nas costas, então acho que não sou eu.
– O que vai fazer se alguém estiver à sua procura? – ela pergunta
baixinho.
– Meus aposentos não ficam longe. Iisak está de vigia. Jake e
Noah estão acordados me esperando.
– Aposentos? – Ela levanta as sobrancelhas. – Minha mãe fez
mesmo questão de fazer você se sentir bem-vindo.
Suspiro.
– Ela quer que eu sinta algo.
– Você não confia nela.
Olho para Lia Mara na penumbra. Estamos falando de sua mãe,
portanto eu não deveria responder. Mas nunca dissemos palavras
falsas um para o outro, e não quero começar agora.
– Não. Não confio. Você confia?
– Confio que ela faz o que acha ser melhor para Syhl Shallow.
Reviro os olhos.
– Exatamente.
– Se você não tivesse descoberto que é o herdeiro, teria ficado
com Rhen depois que a maldição se quebrou?
– Sim, é claro.
Mas, enquanto digo as palavras, percebo que não há clareza
nenhuma. Penso naqueles meses em Rillisk, quando eu era apenas
Hawk. Após uma eternidade sendo torturado por Lilith estação após
estação, enfrentando o perigo e a destruição do monstro em que
Rhen se transformava… havia ali uma simplicidade que eu
apreciava muito.
Olho para Lia Mara.
– Eu tinha dezessete anos quando me tornei guarda. Minha
família estava desesperada, e eu só queria encontrar um jeito de
ajudá-los. Não acho que o rei soubesse quem eu era. – Estremeço
de leve. – Ou talvez soubesse e gostasse de me ter por perto,
mesmo que nunca pudesse me reconhecer. Não faço ideia.
Ninguém guarda segredos tão bem quanto os mortos.
Os olhos dela estão cheios de compaixão, mas ela espera.
– Eu tinha acabado de ser designado como guarda da família real
quando fomos aprisionados na maldição. Eu não era um oficial. –
Faço uma pausa para me recordar. – Em seus melhores dias, Rhen
e suas irmãs eram inconstantes e caprichosos, mas o tédio trazia à
tona o pior. Muitas vezes, eles só buscavam um pouco de diversão,
e os guardas ansiosos para cumprir seus deveres eram alvos fáceis.
– Você disse que Rhen nunca era cruel.
– Ele teve seus momentos, mas crueldade verdadeira era rara. –
Olho para ela. – Talvez seja preciso aprender a ser cruel para poder
governar.
– Você realmente acredita nisso?
– Vejo a “lealdade” que sua mãe inspira em seu povo e acho que
não deve doer.
Lia Mara franze a testa.
– Acho que as pessoas só aguentam até um determinado limite
que, se ultrapassado, pode fazer com que elas se unam e se
rebelem. – Ela faz uma pausa. – Você disse que a maldição pareceu
uma eternidade. Mesmo que Rhen não fosse cruel, acho que deve
ter sido um alívio escapar daquele dever.
– Sim, foi sim. – É quase um alívio dizer. Apesar de tudo o que
passamos juntos, senti um certo alívio ao me sentir responsável
pelo meu próprio futuro.
Eu poderia ter contado para Rhen o que eu sabia. Naquele
momento, quando ouvi de Lilith. Mas não contei.
Caímos no silêncio de novo. A janela está banhada pela luz do
luar. A luta contra Nolla Verin no campo parece ter sido uma vida
atrás. Queria ter outra escolha, mas querer não resolve nada. Os
minutos passam, e estamos cada vez mais perto da minha partida.
Lia Mara, por fim, olha para mim. Seus dedos cobrem os meus.
– Estou feliz que tenha vindo, Grey.
Fecho os dedos em torno dos seus, e ela me puxa para si. Ela
me beija suavemente, tocando os lábios nos meus. Seus dedos se
enredam no cabelo da minha nuca, e o beijo se torna tudo menos
gentil.
– Eu devia ter vindo dias atrás – digo.
– Ah. Fell siralla. – Ela revira os olhos e me beija mais uma vez.
– Nah – digo, e repito as mesmas palavras que ela disse na
varanda tantos dias atrás: – Fell bellama. Fell garrant.
Ela pisca e ri, surpresa.
– Você andou praticando!
– Fell vale – digo. Beijo-a de novo, sussurrando contra seus
lábios: – Homem gentil.
Ela fica muito corada, então pressiona o rosto contra o meu peito.
Eu a seguro ali e respiro fundo.
A trava da porta dá um clique.
Pelos infernos. Eu quase pulo pela janela. Alcanço a corda por
um acaso do destino. Tenho dificuldade para apoiar os pés na
parede enquanto a corda balança violentamente. Minha respiração é
rápida, e a parede do palácio, fria como gelo no ar noturno.
Ou talvez seja só Iisak, voando pelo ar para pousar contra uma
saliência quatro metros acima de mim. Ele me observa com seus
olhos negros.
– Está com problemas, Sua Alteza?
Eu o encaro com raiva e balanço a cabeça vigorosamente.
Preciso estabilizar a respiração. Não faço ideia de onde os
guardas estão, então não posso ficar na parede do palácio por muito
tempo. Mas também não quero deixar Lia Mara correndo perigo.
Obrigo meu coração frenético a desacelerar, tentando me acalmar
para poder ouvir.
É Karis Luran.
– … estão progredindo bem. Agora você entende por que a
mantive confinada no quarto.
– Sim, mamãe. – A voz de Lia Mara está quase sumindo.
– Eu admito, estava preocupada que ele fosse voltar sua magia
contra nós, mas eu o vi no campo de treinamento. Talvez seu
sangue mestiço funcione a nosso favor. Ele não é a ameaça que os
feiticeiros já foram.
Não consigo nem fazer cara feia. Ela não está errada. E não
confio nela. Por que ela confiaria em mim?
Meus antebraços estão tensos contra a corda.
– Recebemos a informação de que as forças de Rhen estão
divididas entre as cidades, e não temos tempo a perder. As Casas
Reais querem fazer uma reunião para oferecer suas bênçãos aos
nossos generais. – Karis Luran faz uma pausa. – Depois do seu
comportamento na última festa, quero lhes mostrar que não há
conflito entre você e sua irmã. Quero mostrar que Grey está
comprometido com esta aliança e com Nolla Verin. Você não vai. Vai
permanecer longe.
– Sim, mamãe.
– Não me decepcione de novo. – O tom de ameaça em sua voz é
claro. Lembro de Cortney dizendo que a Prisão de Pedra não está
exatamente cheia de pessoas muito leais.
Silêncio.
Preciso mudar o peso de perna, mas não quero arriscar. Olho
para Iisak. Ele se inclina um pouco, e não sei como ele está se
equilibrando.
Meus antebraços estão queimando. Estou aqui há tempo demais.
Os guardas vão me ver.
De repente, o rosto de Lia Mara surge acima de mim. Seus olhos
estão tomados pela angústia. Uma lágrima escorre e acerta minha
bochecha.
Subo alguns metros até conseguir me apoiar no parapeito da
janela.
– Você precisa ir – ela sussurra.
– Lia Mara…
– Por favor. – Mais uma lágrima escorre.
Estico o braço para enxugá-la de sua bochecha. Ela dá um passo
para trás.
– Vá – ela sussurra.
– Por favor, espere. – Engulo em seco. – Temos tão pouco
tempo…
Ela limpa as lágrimas do rosto e endireita a postura.
– Por favor. Eu disse que não tenho nada a oferecer.
Acima de mim, Iisak diz:
– Sua Alteza, os guardas estão voltando para cá.
– Posso resgatar você – digo. As palavras saem dos meus lábios
sem hesitação. – Agora mesmo.
– Não preciso que você me resgate. – Ela sufoca entre as
lágrimas. – Por favor, Grey. Eu sabia o que nos esperava ao fim
dessa estrada.
Queria mais tempo, mas não temos.
Minha vida é cheia de desejos que nunca se tornarão realidade.
– Esta é a sua escolha? – digo.
Ela se recompõe e enxuga as lágrimas. Quando fala, sua voz é
firme e clara:
– Esta é a minha escolha. Pelo meu povo. Pelo seu. Você disse
que obedeceria a minha vontade, e eu já falei. Vá embora. Seja um
bom rei.
Não tenho saída. Sinto como se a maldição nunca tivesse
terminado. Os jogadores simplesmente mudaram.
Sua expressão é inflexível. Ela me deu uma ordem, e eu disse
que obedeceria.
– Como quiser. – Passo a corda em volta da bota e desço a
parede.
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

GREY

Karis Luran bate em minha porta ao amanhecer com um


contingente completo de guardas. Nolla Verin está a seu lado,
reservada e de olhos semicerrados.
– Príncipe Grey, trouxemos uma nova armadura adequada à sua
posição para você e seus homens.
Um criado dá um passo à frente e faz uma reverência para mim,
então os outros o acompanham. Eles me trazem uma armadura tão
nova que ainda cheira a couro e óleo. O couro preto do peitoral é
forrado de verde, as cores de Syhl Shallow, mas o brasão
estampado no centro é o selo dourado e vermelho de Emberfall: um
leão e uma rosa entrelaçados, com uma coroa de ouro gravada
acima, marcando minha posição na realeza.
Passo o dedo pelo brasão. A mesma insígnia já estampou meu
uniforme na Guarda Real. Só que sem a coroa.
– Nossas cores juntas vão dizer às pessoas que você está
buscando unidade – Karis Luran diz.
Eu a encaro.
– Suas armaduras terão as cores de Emberfall também?
Seus lábios se curvam levemente.
– Não. Pareceu uma tolice refazer as armaduras de todo o
exército.
Então eu serei visto como seu aliado, enquanto ela não arrisca
nada.
No entanto, não tenho nada para negociar.
– Obrigado.
Ela sorri, e parece uma víbora. Não há afeto nenhum entre essa
mulher e eu. Eu poderia estraçalhá-la bem aqui no corredor, se Lia
Mara quisesse sua liberdade.
– As Casas Reais vão se reunir nos campos de treinamento para
oferecer suas bênçãos para a nossa jornada. Gostaria que você
fizesse uma demonstração de sua magia, para mostrar nossa
vantagem sobre o povo de Rhen. – Ela faz uma pausa. – E você
deve manter aquela criatura acorrentada.
Atrás de mim, Iisak sibila.
Eu nem me movo.
– Não.
– Você jurou manter seu ano de serviço. Você disse que ele
cumpriria minhas ordens. Esta é a minha vontade, e assim será.
Meu coração está aos solavancos em meu peito, porque
pressinto uma armadilha. Nolla Verin está imóvel demais.
– Vou realizar um truque de magia – digo rigidamente –, mas não
vou acorrentar ninguém.
Seus olhos se acendem de ira.
– Então eu vou…
– Vou usar a corrente – Iisak diz, enquanto o gelo se acumula
pelas paredes de pedra dos meus aposentos. – Se isso faz a
senhora se sentir segura, Sua Majestade.
Karis Luran não olha para ele. Seus olhos não deixam os meus.
– Você manterá a ordem entre o seu grupo, ou eu mesma vou
tomar conta disso.
– Seus termos foram aceitos.
Espero que ela revele a armadilha, que exija mais, mas ela se
vira sem mais uma palavra, com os guardas em seu rastro. Os
criados colocam as armaduras no chão, fazem uma reverência e se
retiram.
Somente Nolla Verin fica para trás. Ela toca a armadura oferecida
por sua mãe. Passa um dedo no brasão, imitando meu gesto, e olha
para mim.
– Está sofrendo por saber o que precisa fazer com seu irmão?
Congelo.
– Sim – digo, com a voz subitamente rouca. – Cada instante me
causa sofrimento.
Ela olha para mim, surpresa, até que a surpresa se transforma
em desalento. Nunca vi tal emoção em seu rosto.
Mas, tão subitamente quanto surgiu, a emoção se dissipa,
trancafiada em algum lugar. Resta apenas a filha obediente.
– Vejo você no campo de batalha, príncipe Grey.
Faço uma reverência, e ela se vira.
Quando ela está longe no corredor, Jake se aproxima.
– O que diabos aconteceu?
Observo-a indo embora emanando tristeza.
– Foi estranho, de fato.
•• ••
Os campos de treinamento estão lotados com pelo menos mil e
duzentos soldados em posição de sentido, perfeitamente alinhados.
Galhardetes verdes e negros balançam com o vento, e cada
centímetro de armadura e armamento brilha à luz do sol. Os
membros das Casas Reais observam debaixo de tendas erguidas
ao longo das paredes do castelo, sentados em cadeiras adornadas
de joias, aguardando o início do espetáculo. A nova armadura me
veste bem, confortável e segura contra meu corpo. Ao vesti-la, senti
o peso do momento, como tantas outras vezes nesta jornada.
Quando estava na Guarda Real e vestia a armadura, significava
alguma coisa. Isto significa algo também.
Jake caminha ao meu lado, e fico grato por sua presença
constante. Antes, eu não seria capaz nem de imaginar isso. Agora,
pergunto-me como é que nos estranhamos por tanto tempo. Rhen
não o valorizou. Noah e Tycho seguem atrás, e Tycho segura a
corrente de Iisak. Quando saímos do castelo, Iisak disse:
– A rainha realmente acha que eu não poderia arrancar a
corrente do garoto?
Tycho deu um sorriso.
– A rainha acha que você precisaria fazer isso?
É tudo um espetáculo para o seu povo. Eu já sabia antes mesmo
de pisar neste campo. Karis Luran não quer parecer fraca na frente
das Casas Reais. Até meu truque de magia deve ser comedido,
nada que a subjugue.
Karis Luran e Nolla Verin aguardam de pé em um palco na frente
das tropas, junto a Clanna Sun e aos generais da rainha. Meu
tempo como guarda às vezes parece uma memória distante, mas
estou acostumado a essa ostentação. Caminho diretamente para o
palco e faço uma reverência.
– Sua Majestade – digo. – Estou pronto para seguir com a
senhora para Emberfall.
Tenho mais a falar, mas fico imóvel. Seu olhar sustenta o meu
com frieza.
– Diga – Jake sibila atrás de mim.
Meus lábios congelam. Estou pronto para reivindicar meu trono.
Vejo um movimento em uma das janelas do palácio, e sei que Lia
Mara está ali nos observando. Seja um bom rei.
Rhen seria um bom rei? Já pensei que sim, mas, agora, não sei.
E quanto a mim?
– Grey – Jake diz, cutucando meu ombro.
– Estou pronto para reivindicar meu trono e aliar o povo de
Emberfall com o povo de Syhl Shallow.
Karis Luran sorri. A seu lado, Nolla Verin mantém o semblante
fechado.
– Que bom – a rainha diz. – Estamos ansiosos para vê-lo no
trono, nosso aliado e amigo, e para garantir novas rotas comerciais
para ambos os nossos países. – Pausa dramática. – No passado,
acreditávamos que a magia representava perigo para a nossa
população, mas você demonstrou que vai inaugurar uma nova era.
Assinto.
– Estou preparado para oferecer uma demonstração às suas
Casas, como um sinal de boa-fé e de como posso beneficiar Syhl
Shallow.
– Muito bem – ela diz. Espero que ela indique uma das tendas,
onde um garoto supostamente ostenta um braço quebrado que devo
consertar.
Mas Karis Luran dá um passo à frente.
– Uma demonstração de lealdade – ela acrescenta – para provar
sua disposição em se aliar a meu povo.
Hesito.
– Você sabe – ela continua –, não tolero aqueles que se voltam
contra mim. Você viu o que fiz com o guarda que ousou me desafiar.
– Sim, Sua Alteza – digo com cuidado.
Não sou o único que suspeita que isto é uma armadilha. Jake
chega mais perto de mim, mas estamos cercados por milhares de
soldados. Certamente eu não poderia lutar contra todos eles. Se
Karis Luran pretende me atacar, estou morto. Posso ter conseguido
derrubar Rhen e seus guardas, mas não tenho ideia se meu poder
funcionaria em uma multidão desse tamanho. Ou se eu conseguiria
proteger todo o meu grupo.
Atrás de mim, Iisak rosna baixinho, e o gelo se forma no chão em
torno das minhas botas. Um aviso.
Eu sei, penso.
Só não sei o que fazer.
– Você vai provar sua lealdade a esta aliança – ela informa. – Vai
provar que será fiel à Nolla Verin e a mim.
– Tenho um mau pressentimento – Jake diz.
– Como? Como você quer que eu prove?
– Quando você foi admitido na Guarda Real, teve que passar por
um teste?
– Sim, é claro.
– Meus guardas também. Eles devem provar que estão dispostos
a fazer o que quer que sua rainha ordene.
– A senhora não é minha rainha – digo com audácia.
O sorriso dela se alarga.
– Ah, sim, mas você ainda não é rei, e seu poder depende do
meu. Se quer reivindicar seu trono, se você e seu povo querem
sobreviver em Syhl Shallow, deve provar sua disposição em fazer o
que é certo.
– Diga qual é o desafio. Eu disse que estava disposto a oferecer
um truque de magia.
– Você salvou um traidor. Você poupou a vida do meu guarda
Parrish.
– A senhora quis assim – Jake intervém.
– De fato – ela concorda. – Agora, vou pedir a você que use sua
mágica para executar um traidor. Vou pedir que prove sua lealdade,
príncipe Grey.
– Não – Noah diz depressa e baixinho atrás de mim. – Não. Você
não pode.
Fui treinado para ser uma arma nas mãos de outras pessoas.
Uma certeza gélida toma conta de mim. A magia sempre me
escapa. Ser príncipe nunca me pareceu natural. Mas meu povo
corre perigo. Minha vida corre perigo. Com violência e carnificina,
estou mais familiarizado.
Tycho certa vez olhou em meus olhos e disse: “Não é possível
treinar alguém para não sentir compaixão”.
Mas é possível. Sei que é. Sou a prova viva.
– Traga seu traidor. Vou fazer o que quer.
Seu sorriso se alarga, e ela olha para sua filha.
– Nolla Verin, vá buscar sua irmã.
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS

LIA MARA

Nolla Verin, vá buscar sua irmã.


Espero na janela. Mas não sei direito o que estou esperando.
Que Nolla Verin se recuse. É isso o que espero. A expressão de
Grey se tornou fria e impassível. Os soldados aguardam. As Casas
Reais aguardam. A tensão no ar é quase palpável.
Sigo querendo paz. Sigo querendo empatia.
Sigo querendo que as pessoas reajam como eu.
Esqueci que minha mãe governa por meio do medo e da
violência.
Esqueci que não valho nada para ela.
Nolla Verin parece atordoada, mas ela nunca desafiou nossa
mãe, então assente e desce do palco.
Meu coração acelera e depois quase para.
Não. Minha irmã.
Duas irmãs, um coração.
Por favor, Nolla Verin.
Ela desaparece dentro do palácio. Estará em minha porta em
minutos. Ela nunca desobedeceu à nossa mãe. Jamais.
Corro os olhos pelo quarto, como se armas magicamente fossem
aparecer na parede.
Sou tão tola. Grey ofereceu uma saída, e eu recusei.
Escancaro a porta e Parrish está lá, barrando meu caminho. Seu
olho destruído ainda está vermelho, com hematomas em torno dos
pontos que mantêm suas pálpebras fechadas. Já implorei antes e
ele sempre recusou. Ele nunca ouve minhas desculpas, então não
sei por que ouviria agora.
– Parrish, por favor – sussurro.
Ele estica o braço como se fosse bater a porta na minha cara.
Levanto a mão para impedi-lo, colocando meu peso contra a
porta.
– Por favor – digo. – Por favor. Parrish, ela vai fazer Grey me
matar.
Ele me encara com seu olho bom e uma expressão indecifrável.
– Sinto muito. Sinto muito por Sorra. Perdão. Eu trocaria de lugar
com ela. Voltaria no tempo se pudesse.
– Você queria paz – ele rosna, e eu nunca ouvi sua voz assim. –
Está conseguindo.
– Não. Não assim. Ele não quer ser uma arma nas mãos dos
outros. Você não entende. Por favor. Por favor, Parrish.
– Eu a amava! – ele ruge. – Está me implorando por sua vida,
sendo que eu a amava.
– Eu sei. – Minha voz se quebra. – Eu sei. Eu via toda vez que
vocês estavam juntos. Por favor. Nolla Verin está vindo…
– Chega. – Ele se move para fechar a porta, mas eu me coloco
na abertura.
Ele saca a adaga e a aponta para a minha garganta.
Congelo.
– Recebi ordens de usar força letal se tentasse sair.
Engulo em seco, e a lâmina se move contra minha pele.
– Parrish – digo, rouca.
Ele não fala nada. Vejo um lampejo de emoção em seu olho bom,
mas a lâmina não se move.
Fecho os olhos.
– Você também queria paz, Parrish. Você queria, e Sorra
também. – Preciso engolir em seco de novo. Sua lâmina é tão
afiada. – Ela amava você. Eu não sabia o que… – Engasgo. – Eu
não sabia o que Rhen ia fazer.
Ele continua sem falar nada. Nolla Verin deve estar perto.
– Grey salvou a sua vida. Ele não tem nada a ver com o que eu
fiz. Eu voltaria no tempo se pudesse. Voltaria para aquele momento
na floresta e diria que minha mãe estava certa.
– Não – Parrish diz. – Você não faria isso.
Sua faca não deixa meu pescoço.
Ele não está errado.
– Parrish… – tento de novo. – Você também pode fugir. Você
sabe o que ela vai fazer com você se conseguir essa aliança. Você
sabe que ela quer vingança.
– Não há mais nada que ela possa tomar de mim.
– Ela pode colocar você a serviço de Emberfall. Pode colocar
você para trabalhar junto com os homens que mataram Sorra. Pode
fazer você ter que trabalhar na mesma sala em que ela morreu.
– Chega.
Desta vez, sua voz é baixa. Minha respiração está quase trêmula.
Sinto o peso de sua adaga em minha garganta.
– Nós amávamos você também – ele diz.
Fecho os olhos. Uma lágrima escorre.
– Eu sei. E eu amava vocês dois.
Ele solta a adaga.
– Vá.
Abro os olhos de uma vez.
– Parrish – sussurro.
– Você é estúpida? – Seu olho bom brilha para mim. – Vá!
– Você tem que fugir. Você tem…
– Eles não estão atrás de mim, Lia Mara.
Ele está certo. Saio correndo. Não estou nem calçada. Meus pés
pisam no chão de pedra, e viro a esquina.
Nolla Verin está parada ali, usando uma armadura em vez de seu
manto, com um arco no ombro e uma espada na cintura, pronta
para seguir ao lado de Grey e atacar Emberfall. Seus olhos estão
vermelhos, mas determinados.
Paro de repente. Minha respiração ofegante ressoa pelo corredor.
Ela está calma. Sempre calma. Não sou mais rápida do que
minha irmã. Não luto melhor do que ela. Quando ela endireita os
ombros e começa a avançar, meus músculos gritam para que eu
corra, mas não consigo.
Ela é minha irmã. Minha irmã.
Ergo uma mão.
– Não vou lutar com você, Nolla Verin.
Ela vem até mim com uma expressão feroz. Ela será uma grande
rainha.
Então, em vez de pegar minhas mãos e me arrastar para fora do
castelo, ela me abraça e pressiona o rosto em meu ombro.
– Não consigo – ela diz chorando. – Não consigo.
Envolvo-a em um abraço apertado.
– Você consegue – sussurro. – Você consegue, sim.
•• ••
Não sei quanto tempo ficamos ali. O castelo está silencioso. Todas
as pessoas importantes estão no campo de treinamento, prontas
para marchar. Nolla Verin está chorando em meu ombro, e ficamos
agarradas por muito tempo. Ela me segura tão apertado que suas
armas pressionam minha barriga, e amanhã provavelmente terei
hematomas.
Se eu estiver viva.
– Eles vão vir atrás de você – finalmente sussurro. Minha irmã
está aqui comigo, e tudo vai ficar bem. Não significa nada arriscar
minha vida por esta aliança, pela paz, se eu não estiver disposta a
fazer o que disse. Não vou colocar Nolla Verin em perigo. – Você
tem que me levar.
– Eu amo você – ela diz. Ela recua e afasta o cabelo do meu
rosto. – Espero que saiba disso.
– Claro que sei. – Não menciono os momentos em que questionei
se ela amava mais sua busca pelo poder. Não menciono todas as
nossas diferenças. Seu amor é latente no ar entre nós. Quando fez
aquele bordado para mim, vi seu amor em cada ponto. – Também
amo você.
Ela me aperta com força.
– Desculpe por não ter vindo ver você.
– Seu coração estava comigo.
– Não. Meu coração estava cheio de dúvidas. – Ela funga,
procurando meus olhos. – Vai me contar o que aconteceu quando
ficou sozinha com Grey na floresta?
– Nada… de verdade. Nada. Nós… conversamos. – Meu rosto
fica quente. – Somos amigos.
– A verdade, irmã. – Sua voz é suave. – Por favor.
Meu coração se agita, e coloco uma mão no peito.
– Em Emberfall, eu sabia que ia trazer Grey para você. Sabia que
você precisaria fazer uma aliança com ele. Sabia que ele acharia
você linda e poderosa e todas as coisas que você é.
– Algo aconteceu entre vocês na varanda.
Franzo a testa.
– Foi um erro.
Ela pega minha mão e a coloca entre as suas.
– Lia Mara… não estou perguntando se você me traiu.
Escolho as palavras com cuidado.
– Então o que está me perguntando?
– Se você o ama.
Estremeço.
– Não sei.
– Você sabe.
Olho-a nos olhos. Seu olhar é penetrante e claro.
– Acho que eu poderia amá-lo. – Faço uma pausa. – Sei o que
ele deve fazer. Mamãe está sendo bastante meticulosa para garantir
essa aliança.
– Acho que ele poderia amar você também. – Ela aperta minhas
mãos. – Já notei quando ele fala de você. Quando ele olha para a
sua janela.
Viro as palmas das mãos para fora e aperto as suas mãos.
– Não quero nada além do seu bem, irmã. Eu sei… como as
coisas devem ser. – Meus olhos ameaçam verter lágrimas, e pisco
para afastá-las. – Você vai fazer a coisa certa. Ele também. Não
tenho dúvida.
Ela assente. Em seguida, balança a cabeça.
– Não sei qual é a coisa certa. – Ela fala em um sussurro.
– Nolla Verin… não entendo.
– O que você teria feito com o caçador na floresta?
– Do que está falando? O que isso tem a ver?
– Só me diga. Por favor.
Vomito as palavras:
– Eu teria deixado que ele vivesse.
Ela fecha os olhos. Uma lágrima escorre de seus cílios. O silêncio
à nossa volta se adensa pesadamente.
Coloco minhas mãos sobre as dela e digo:
– Ele provavelmente teria ido para a cidade e avisado que
estávamos em Emberfall.
– Emberfall tinha poucas forças disponíveis. Não teria importado.
Concordo.
Não sabia que ela tinha percebido.
– Tinha uma garota na floresta – ela diz. – Eu vi.
Seguro seus pulsos.
– O quê?
– Tinha uma garota na floresta. Outra filha. Os guardas não
viram. Mamãe teria ordenado sua execução também. – Ela suspira.
– Eu deixei que ela fugisse.
Meu coração está batendo rápido. Minha irmã nunca admitiu
sentir um pingo de compaixão.
– Eu também deixei que ela fugisse – digo.
Seus olhos estão fixos nos meus.
– Sério?
– Sim. Parrish também. – E agora meu guarda se arrepende de
cada uma de suas ações, tenho certeza.
– Mamãe sempre diz que me nomeou herdeira porque eu nunca
a questiono – Nolla Verin diz. – Eu faço o que precisa ser feito.
Sorrio com tristeza.
– E faz muito bem.
Ela balança a cabeça furiosamente.
– Eu faço o que ela diz porque não tenho coragem de questioná-
la. Você, sim.
– Ela com certeza discordaria de você chamando isso de
coragem. – Olho para os olhos perturbados de minha irmã e
endireito a postura. – Eu não importo, Nolla Verin. Você será uma
grande rainha. Ele será um grande rei. E nossos países vão
finalmente encontrar a paz. Faça o seu dever, estou pronta.
•• ••
O campo está absolutamente silencioso quando colocamos os pés
para fora do palácio. Esperava que Nolla Verin fosse amarrar
minhas mãos ou me prender de alguma forma, mas ela cruza os
dedos nos meus e caminhamos juntas em direção ao campo.
Mamãe parece satisfeita.
Ela ordenou que Grey me mate, e parece satisfeita.
Obrigo-me a desviar os olhos dela. Os soldados estão imóveis na
formação. Os guardas estão a postos. Ninguém vai questioná-la.
Ninguém vai impedir isso.
A grama desliza sob os meus pés descalços. Estou de manto
sem cinto, meu cabelo vermelho está solto. Tenho medo de olhar
para Grey. Tenho medo de ver dúvida ou tristeza ou hesitação em
sua expressão.
Mas tenho que olhar para ele. Ele deve saber que este é o único
jeito de seguir adiante. Ele deve saber que eu não vou culpá-lo por
isso.
Enquanto levanto a cabeça, vejo primeiro seus homens. Seus
amigos. Meus amigos. Iisak está acorrentado. Tycho está ainda
melhor com a armadura do que com as roupas elegantes do palácio.
Seu rosto está tomado por angústia. Noah parece enojado. Jake
parece querer enfrentar o exército inteiro para acabar com tudo isso.
E Grey…
Grey está parecendo um príncipe. Vestindo as cores de Syhl
Shallow e Emberfall, com uma postura régia e imponente. Não há
hesitação. Nem incerteza. O homem que sussurrou seus medos na
escuridão do meu quarto se foi, deixando um príncipe que em breve
será rei.
Eu esperava ver terror e sofrimento em seu olhar, mas seus olhos
escuros estão frios e preparados.
Eu resgataria você, ele disse tantas vezes.
E tantas vezes eu recusei.
Eu recusaria agora. Mas ele não está dizendo nada.
Minha mãe está falando, só não consigo ouvir as palavras. Não
preciso.
Ouço sua intenção.
Sinto o ar frio à minha volta e solto a mão de Nolla Verin para dar
um passo à frente. A expectativa no ar é quase palpável. Eu deveria
ter previsto. Eu deveria saber. Minha mãe não vacila. Ela governa
através do medo e do poder, e que melhor maneira de mostrar a seu
povo como ela pode ser cruel do que matando sua própria filha?
Paro diante de Grey. Ele não fala nada. Seus olhos não revelam
nada. Lembro-me por que já o achei assustador.
Acabe com isso, penso. Faça o que tem que fazer.
Ele tem que me matar, senão ela vai matá-lo. Eu sei. Ele também.
– Não faça isso – Noah rosna atrás dele.
Grey não vacila. Ele ergue as mãos, pousando-as em meus
ombros, deslizando-as para o meu pescoço. Prendo a respiração
quando seus polegares encontram minha pulsação. Ele certamente
sente meu coração acelerado.
Torço para que seja rápido. Torço para que eu não sinta dor.
Torço. Torço. Torço.
Ele não se move. Seus olhos estão pesados e firmes sobre os
meus, mas não há piedade ali.
– Acabe com isso – ofego. – Você precisa fazer isso. Pelo seu
povo, Grey.
– Você está hesitando – minha mãe fala. – Príncipe Grey, não
está disposto a provar sua lealdade? Não está disposto a fazer o
que eu peço?
– Vá logo – digo, apressada. Suas mãos estão geladas em minha
garganta. – Grey, você precisa fazer isso. Você não pode me
resgatar.
Minha mãe pega um arco de seu guarda mais próximo, coloca
uma flecha na corda e a aponta para mim.
– Devo demonstrar o que é força para você?
– Mamãe, não! – Nolla Verin intervém.
– Prefiro morrer nas suas mãos que nas mãos dela! – eu quase
grito para ele. – Vá logo, Grey. Por favor. Você disse que obedeceria
qualquer ordem que eu lhe desse. É uma ordem! Vá logo!
Ouço uma flecha. O mundo fica branco. Prendo a respiração,
preparando-me para a dor.
Não sinto nada. Pisco para Grey. Estamos sozinhos, cercados por
árvores, com as montanhas se estendendo à esquerda. O sol está
brilhando. Suas mãos ainda estão firmes em meu pescoço.
– O que aconteceu? – sussurro. – O que você fez?
Ele olha para mim e, pela primeira vez, seus olhos revelam
emoção.
– Eu atravessei para o outro lado. Não podemos ficar.
– Você… atravessou?
– Se vou ser rei – ele diz, com uma expressão feroz e
determinada –, devo parar de receber ordens.
CAPÍTULO QUARENTA E SETE

GREY

Espero retornar ao caos, mas os campos de treinamento estão


estranhamente silenciosos. Lia Mara agora está atrás de mim, e
minhas armas estão nas minhas mãos. Meu plano é pegar meu
grupo e enviá-los para o outro lado também, mas Karis Luran é uma
estrategista muito cruel. Ficamos fora menos de um minuto, mas
seus guardas os pegaram. Eles estão de joelhos, com uma besta
apontada para cada cabeça abaixada.
Não sei como salvá-los. Lia Mara está pressionada contra minhas
costas, e me pergunto se a salvei à custa deles. Ela tem minhas
facas em suas mãos, mas não podemos enfrentar um exército. Um
vento gelado sopra pelo campo de treinamento e me faz estremecer.
Karis Luran levanta o arco. Ela está a dois metros de mim, mas
olho para a ponta da flecha e não me movo.
– Você não vai me dominar pelo medo. Você não vai matar sua
filha.
– Saia, príncipe Grey. Vou acabar com isso. Você vai provar sua
lealdade, ou vou executar o seu grupo.
– Mamãe, por favor. – A voz de Nolla Verin está baixa e
embargada.
Um vento amargo açoita minhas bochechas. O rosnado de Iisak
ressoa pelos campos de treinamento. Sinto cada centelha e cada
estrela em meu sangue à espera. Estou mais seguro agora. A magia
não é mais algo para temer.
– Saia. – Os olhos de Karis Luran estão fixos nos meus. A ponta
da flecha está em meu rosto. – Ou vou executar vocês dois.
– Não.
– Não – Lia Mara diz com ferocidade. Ela dá um passo para a
frente com as armas levantadas.
– Matem todos.
Karis Luran puxa a corda. Ouço o estalo de bestas. Não faço
ideia se minha magia pode conter uma flecha, mas lanço minhas
faíscas e estrelas até que minha visão explode em dourado.
Ao meu lado, Lia Mara ergue o braço. Uma de suas facas sai
voando. Então a outra.
A flecha nunca acerta o alvo. O corpo de Karis Luran dá um
solavanco, e o arco cai no chão. Ela desmaia na grama. O sangue
jorra vermelho ao longo de seu pescoço.
Por um momento, acho que consegui. Que minha magia a matou.
Mas então vejo as facas em seu pescoço e em seu peito. Golpes
perfeitos. O sangue está formando uma poça no chão rapidamente.
Um silêncio repentino caiu sobre os campos de treinamento.
Lia Mara está com a respiração acelerada.
– Eu disse – ela diz com a voz trêmula – que eu sabia me
defender.
CAPÍTULO QUARENTA E OITO

LIA MARA

O cheiro de sangue paira pesado no ar. O corpo de minha mãe


está imóvel no chão, e uma mancha escura se espalha ao seu
redor.
Fico de joelhos. A adaga perfurou bem. No mesmo instante, o
sangue penetra minhas vestes. Vozes murmuram em syssalah. Os
guardas sacaram suas espadas, mas ninguém se move.
De repente, Nolla Verin está ao meu lado.
Matei minha mãe. Não consigo respirar.
Não consigo respirar.
– Perdoe-me – digo, soltando um soluço engasgado. Minhas
mãos estão pegajosas, e as pressiono contra o estômago.
Alguém se ajoelha ao meu lado. Penso que é Grey, mas é Noah.
Ele faz uma careta.
– Ela provavelmente já estava morta quando atingiu o chão.
– Que bom – Jake diz atrás de mim.
Sinto como se tudo estivesse acontecendo debaixo d’água. Meus
movimentos estão lentos. Viro a cabeça e encontro Noah esperando
ali.
– Ela… ela matou você – digo, com a voz trêmula. – Ouvi… ouvi
as bestas.
– Minha magia – Grey fala, também se ajoelhando ao meu lado. –
Mudei a direção das flechas.
Pisco para ele. Ele pega minha mão e a envolve entre as suas.
Minha voz sai quebrada.
– Grey, o que eu fiz?
– Você se salvou – ele diz. Seus dedos entrelaçam os meus. –
Você nos salvou.
– Eu matei… eu matei minha mãe.
– Respire – ele diz suavemente.
Asas se estiram no céu, encobrindo o sol. Pisco, e Iisak está de
pé, uma silhueta à luz do sol.
– Faça mais do que respirar, jovem rainha – ele rosna baixinho. –
Levante-se e cumprimente seu povo.
Fico imóvel.
Não posso fazer isso.
Não posso.
Não posso.
– Irmã. – Nolla Verin desvia minha atenção. Uma lágrima escorre
de seus olhos. – Estou feliz por ter sido você – ela sussurra.
Os murmúrios ao nosso redor ficam mais altos. Ouço alguns
gritos. Os soldados começaram a se mexer, inquietos. Um dos
generais está dizendo algo sobre a lei.
– Você precisa se levantar – Grey diz em um tom de urgência.
Pego sua mão e fico de pé. Cada centímetro de mim está
tremendo. A discussão dos generais se intensifica. Os guardas
pessoais de mamãe olham de mim para Nolla Verin, sem guardar as
armas.
Preciso falar. Eu deveria falar alguma coisa. Uma palavra de
ordem. Ou de ameaça.
Tudo o que consigo fazer é olhar para o cadáver de minha mãe.
Nolla Verin é a herdeira. Ela deveria ser a herdeira. Isto é o que
mamãe queria.
Viro-me para minha irmã e estendo uma mão.
– Consegue se levantar? – sussurro. – Você é a herdeira. Você é
a rainha. Não posso fazer isso.
Ela me encara, então pega minha mão. Puxo-a de pé e respiro
fundo. Minha irmã é a escolhida. Ela vai saber o que fazer.
Ela solta minha mão e dá um passo para trás. Olha friamente
para os guardas, para os soldados e para os generais.
– Meu povo – ela diz. – Ajoelhem-se para sua rainha.
Então ela se ajoelha e encosta a testa no chão.
– Rainha Lia Mara – ela fala.
Atrás dela, em uma onda, cada guarda, cada general e cada
soldado faz o mesmo.
– Rainha Lia Mara – eles repetem.
– Rainha Lia Mara – Grey diz, oferecendo-me uma reverência.
Meu peito não consegue conter a emoção. Meu coração bate tão
rápido e com tanta força que quero libertá-lo.
Respiro fundo e endireito os ombros.
– Meu povo – digo, esperando que o tremor em minha voz não
seja perceptível. – Levantem-se.
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE

GREY

Não partimos para a guerra.


Não partimos nem de Syhl Shallow. As pessoas querem celebrar
a nova rainha. Ao contrário de Emberfall, onde parece que todas as
cidades estão prontas para se posicionar contra Rhen, aqui as
pessoas estão radiantes. Lia Mara é conhecida. Seu povo a ama.
Eles amam a promessa de paz que ela trará ao país. Nolla Verin
está sempre ao seu lado, dando apoio quando necessário. As irmãs
se mostram corajosas e triunfantes em público, mas choram
silenciosamente à noite.
Sinto como se tivesse ganhado uma prorrogação, dando espaço
para Lia Mara assumir esse novo papel. Seus conselheiros afirmam
que as Casas Reais estão determinadas a seguir adiante com a
aliança com Emberfall, mas Lia Mara me olha através da mesa de
reunião e diz que esperaremos até que ela possa determinar o
melhor caminho para o seu povo.
Pergunto-me quanto disso é preocupação verdadeira por seus
exércitos e quanto é preocupação por mim. Não estou com pressa
para enfrentar Rhen, e isso não é segredo entre nós.
Eu perguntaria, mas nosso tempo juntos é limitado, e geralmente
bastante supervisionado. Ela foi de “ninguém” para alguém muito
importante. Eu entendo isso melhor que todos, talvez.
Lia Mara concordou em libertar Iisak de sua penalidade por
quebrar o acordo, mas ele se recusou. Ele diz que o acordo é
importante demais, e que vai pagar o que deve.
Uma noite, ele me confessa que vai permanecer um ano em Syhl
Shallow porque isso lhe garante tempo para descobrir o que
aconteceu com seu filho.
– Se você for para as florestas de gelo, Lia Mara vai lhe permitir
voltar – digo. – Ela provavelmente anularia o acordo, se você
solicitasse.
– Eu já disse a você que os desejos dos governantes nem
sempre são os desejos da população. – Ele olha para mim. – Não
vou arriscar que meu povo cruze o Rio Congelado. O acordo nos
mantém seguros também.
Assinto.
– Se você diz.
Algumas noites depois, estou lutando com Jake enquanto Tycho
e Nolla Verin treinam alguns golpes nas proximidades. Ele está
gritando e zombando dela toda vez que ela o ataca com a espada, o
que é hilário porque ela provavelmente poderia parti-lo em dois. Seu
rosto está brilhando, porém, e ela ri todas as vezes. É o sorriso mais
leve que já vi nela. Pela primeira vez, ela não precisa cumprir
expectativas, e pode ser apenas uma garota que ama sua irmã.
Jake se aproveita da minha distração para avançar minha guarda
e me desarmar. Ele fica tão surpreso que quase se esquece de
continuar, mas então me empurra com o ombro e eu caio.
Ele aponta a espada para a minha garganta e sorri.
– Esperei por este momento por semanas.
Sorrio de volta.
– De novo?
Ele guarda a espada e afasta o cabelo úmido dos olhos.
– Até parece. Vou curtir a vitória.
Em seguida, abaixa-se para se sentar na grama ao meu lado.
Ficamos observando Tycho e Nolla Verin por um tempo, mas a
partida se transformou mais em uma brincadeira do que em uma
luta de verdade.
Até que o silêncio entre nós começa a pesar.
Olho para ele.
– Tem algo preocupando você.
– Quando você desapareceu com Lia Mara… – ele diz devagar. –
Você atravessou, não é? Para o meu mundo.
Hesito um momento e depois assinto.
– Sim.
Ele não diz nada.
Espero um pouco, então digo:
– Eu fiz um juramento a você, Jake. – Fico surpreso com a minha
dificuldade em dizer as palavras. Durante todo o tempo que passei
com Rhen, uma amizade parecia inalcançável por inúmeras razões.
Já com Jake, é fácil. É como se ela estivesse apenas esperando, e
eu só precisasse permitir.
Assim como a magia.
Olho para ele.
– Se estiver pronto, posso levar você pra casa.
Mais uma vez, ele fica em silêncio.
Espero.
Por fim, ele diz:
– Quero ficar.
Encaro-o, surpreso. Ele franze a testa e desvia o olhar.
– Quando Harper voltou pra Rhen depois do que ele fez com
você… – Ele suspira. – Acho… acho que percebi que ela nunca iria
embora. Ela pode até estar brava com ele, mas ela o ama, sabe?
Faço que sim.
– Mas isso não significa que você tenha que ficar.
– Eu sei. – Ele faz uma pausa. – Mas não tenho por que voltar. –
Ele olha para mim. – Minha vida não era… não era fácil. Não que
seja fácil aqui, mas… – Sua voz fica embargada.
Mais uma vez, espero.
Finalmente, ele diz:
– Noah diz que vai ficar, se eu ficar. – Ele engole em seco. – Era
diferente quando você não conseguia nos levar de volta. Agora…
agora é uma escolha minha.
Lembro do momento em que Lilith me disse que eu poderia levar
Harper de volta a qualquer hora. Não faço ideia de como ela
encantou a pulseira que escondi no Worwick… mas tenho tempo
para aprender.
– Jake… ficar aqui também vai obrigar você a fazer uma escolha.
Ele franze a sobrancelha.
– Você vai ter que enfrentar Rhen em breve.
– Sim.
– Isso vai me colocar contra minha irmã.
Fico pensando nisso por um tempo. Eu também não quero entrar
em conflito com Harper.
– Se aprendi algo com a sua irmã quando éramos amigos, é que
não devemos subestimá-la.
•• ••
Os dias se transformam em semanas conforme o calor do verão
começa a ceder lugar para as noites frescas do outono – meu
primeiro outono de verdade desde que a maldição me aprisionou
com Rhen. Eu tinha me esquecido de como o ar muda, de como as
folhas se iluminam devagar para depois explodirem vermelhas e
amarelas de uma vez. De noite, as chaminés da cidade cospem
fumaça no ar e as folhas começam a cair.
Em uma noite particularmente fria, com o palácio silencioso e
meus amigos todos ocupados, procuro Lia Mara. Seus aposentos
estão vazios, mas um guarda me direciona ao Grande Salão – que
também está vazio.
No entanto, luzes cintilam da porta da varanda, então sigo em
frente.
Ela está lendo em uma cadeira.
– Eu devia ter procurado aqui primeiro – digo.
Ela sorri, então fica corada e se levanta. Percebo que ela
esconde o livro nas dobras de suas vestes.
– Eu ia perguntar se você gostaria de jantar comigo, mas você
está sempre tão ocupado, príncipe Grey.
– Eu sou ocupado? Não sou eu que estou governando um país.
Fico surpreso de encontrá-la fazendo algo tão improdutivo quanto
ler.
– Ler não é improdutivo. – O vento desce das montanhas e
levanta seu cabelo, fazendo as tochas oscilarem. Ela estremece.
Retiro o casaco e o coloco em seus ombros. Os movimentos são
os mesmos de antes, mas tudo é diferente agora.
Lia Mara olha para mim, e seus olhos estão pesados com tudo o
que aconteceu entre nós.
Afasto uma mecha de cabelo de sua bochecha, permitindo que
meus dedos deslizem pela curva de sua orelha. Seus lábios se
abrem e seus olhos se iluminam, mas esta noite não estamos
sozinhos. Seis de seus guardas estão na varanda, junto com Talfor
e Cortney.
Estou prestes a abaixar a mão, quando ela coloca a sua sobre a
minha em seu rosto.
Sorrio e me inclino para beijá-la. Suavemente. Castamente. Então
recuo.
Seus dedos se prendem em minha camisa e me seguram no
lugar.
– Você ficou tão determinada – digo.
Ela não sorri.
– Por favor, não se afaste.
Chegamos a este ponto uma dúzia de vezes. Meu coração bate
acelerado em meu peito, e não quero outra coisa além de puxá-la
para os meus braços.
Mas as coisas estão diferentes agora. Ela está diferente.
Abaixo a mão.
– O que a rainha de Syhl Shallow está lendo que a deixa corada?
Ela pega o livro como se tivesse esquecido que estava ali.
– Ah… algo sobre uma aliança. – Suas bochechas ficam mais
vermelhas. – Entre um homem e uma mulher.
Pego o livro de suas mãos. Não conheço a palavra na capa, mas
folheio as páginas.
– Sei que você não consegue ler.
– Você pode se surpreender. – Paro em uma página,
reconhecendo algumas palavras. – De fato, acho que Talfor disse
algumas dessas palavras quando estava se gabando de seu…
Ela arranca o livro da minha mão e me repreende de leve.
– Vou encontrar novos tutores para você.
– Não poderia ser a própria rainha?
Ela fica séria.
– Cada vez que alguém diz rainha, sinto um sobressalto, como se
estivessem falando da minha mãe. – Ela faz uma pausa. – Tenho
certeza de que você sentiu o mesmo quando Iisak começou a
chamá-lo de Sua Alteza.
Toco seu rosto de novo. Não consigo evitar. Temos tão poucos
momentos juntos que até isso parece destinado a acabar cedo
demais. Passo o polegar pelo seu queixo.
– Grey… – ela sussurra.
Seu tom é tão sério que a imito.
– Lia Mara?
– O que você quer fazer a respeito de Rhen?
Meus dedos paralisam em sua bochecha. Não, o que você quer
fazer a respeito de Emberfall?
O que você quer fazer a respeito de Rhen?
– Não quero iniciar uma guerra com ele. Mas muitas pessoas
sabem que o herdeiro existe, que estou vivo. Tenho medo que
Emberfall entre em colapso se ele tentar manter seu governo.
– Ele ainda é seu irmão, ainda é o príncipe. Você acha que ele se
renderia a você?
Olho para ela.
– Rhen lhe deu a impressão de que se renderia a qualquer um?
Ela franze a testa. Suspira.
– Bem, não posso manter minhas Casas Reais esperando para
sempre.
Assim, retornamos ao mesmo impasse do dia em que fugi do
pátio de Rhen. Uma rainha precisando de uma aliança. Um príncipe
sem um trono.
Lia Mara olha para seus dedos em meu peito.
– No dia em que Nolla Verin foi me buscar… ela perguntou se eu
estava apaixonada por você.
Fico imóvel.
– E o que você disse?
– Eu disse… disse que poderia me apaixonar por você. – Ela
para, e seus olhos encontram os meus. – Mas se você não sente o
mesmo, não quero que finja que… não quero que se sinta
obrigado…
Seguro-a pelos ombros e puxo-a para mim. Sua boca é quente e
doce, e ela desliza as mãos pelo meu peito até encontrar meus
ombros. Esqueço dos guardas. Esqueço Emberfall e Syhl Shallow e
tudo o que existe entre nós. Perco-me na sensação de seu corpo
contra o meu, sua cintura nas minhas mãos, seus dedos em meus
braços enquanto sua língua toca a minha.
Até que nossas bocas se afastam e ela pressiona a bochecha em
meu peito, enfiando a cabeça abaixo do meu queixo.
– Podemos fazer isso juntos? – ela pergunta. – Unificar Emberfall
e Syhl Shalllow?
Parece impossível. Mas tanta coisa pareceu impossível por tanto
tempo.
Uma folha vermelha do outono é trazida pelo vento, flutuando
pela varanda e pousando em sua cadeira.
– O primeiro dia do outono é o aniversário de Rhen – digo.
– Bem, em vez de levarmos um exército – ela diz baixinho –,
talvez devêssemos levar um presente.
CAPÍTULO CINQUENTA

GREY
Seguimos com calma no percurso até Emberfall. Em vez de ir pela
floresta em segredo, viajamos em grande estilo, parando em todas
as cidades ao longo do caminho. Gastamos dinheiro e falamos de
esperança. Fazemos refeições fartas e dançamos ao som de
músicas animadas e nos beijamos sob as estrelas quando as noites
silenciam e se alongam.
Muitas pessoas desconfiam dos guardas de Syhl Shallow, mas o
que aconteceu em Blind Hollow se espalhou, e Lia Mara é cativante
e gentil e as conquista sem esforço.
À medida que nos aproximamos do centro de Emberfall, os
rumores vão ficando mais sombrios. Conhecemos as maiores
cidades, como Porto Silvermoon, que tentou recusar o governo de
Rhen. Mas ele enviou seus soldados para restaurar a ordem, com
resultados variados. O medo está no ar, tão espesso e potente que
posso sentir seu gosto em minha língua. Perto de Ironrose, há
pouca folia. Em vez de nos acolher abertamente, os habitantes
pegam nossas moedas e nos sussurram suas preocupações. Os
homens apertam minha mão furtivamente e dizem que esperam que
eu traga unidade para Emberfall – e juram lealdade baixinho.
É humilhante. E surpreendente.
A cada parada, espero encontrar guardas e soldados nos
esperando para nos impedir de avançar, mas não encontramos
nenhum.
Depois de duas semanas, alcançamos a floresta que cerca o
castelo. Da última vez que fiz esse caminho, estava acorrentado,
com Jake pronto para enfiar uma faca em minhas costas.
Hoje, estou vestindo as cores de Syhl Shallow e de Emberfall,
com uma rainha ao meu lado.
Conforme avançamos floresta adentro, não ouço nada, nem
mesmo sinos anunciando nossa chegada.
– Está silencioso – Lia Mara murmura.
– Silencioso demais – Jake diz, com uma voz pesada. – O que
aconteceu com os sinos?
– Não deveria haver guardas tentando nos barrar? – Tycho
pergunta.
Não somos um grupo pequeno, somos vinte pessoas. Não
escondemos nosso destino, e mesmo agora nos aproximamos do
castelo abertamente. Devia haver alguém vindo nos receber.
Franzo a testa.
– Tem algo errado – Lia Mara diz.
Iisak nos segue do alto. Dou um assobio para chamá-lo. Ele
desce e pousa no chão à nossa frente.
Aponto a cabeça para a frente.
– O que está acontecendo no castelo?
– Dezesseis guardas na frente, vinte atrás. – Ele pausa. – O
homem que você enfrentou no torneio está entre eles.
Dustan. Pergunto-me por que os guardas não tentaram nos
barrar.
Faço meu cavalo seguir adiante. Iisak retorna aos céus, mas,
para o resto de nós, a viagem através do extenso gramado até a
frente do castelo parece interminável.
Daqui, posso ver os guardas alinhados em posição de sentido,
como devem, sem manifestar alarme, preocupação ou
descontentamento. Galhardetes dourados e vermelhos balançam
contra o vento nas muralhas acima. Reconheço Dustan
imediatamente. Ele é o único guarda que me olha nos olhos, e sua
expressão é fria.
Sei que ele apontaria a arma para mim agora mesmo. Mas ele
recebeu ordens para não fazer isso.
Não há nada de errado. Rhen escolheu não reconhecer nossa
presença. Este é um jogo de poder, nada mais.
Apesar de tudo, isso me faz sorrir. Pelos infernos, Rhen é um
baita de um maldito arrogante.
Faço nosso grupo parar e olho para Lia Mara.
– Gostaria de falar com ele sozinho – digo.
Ela abre a boca e franze a testa, mas não fala nada.
– Ele pode tentar te matar – Jake fala.
Olho para o castelo e balanço a cabeça.
– Acho que não.
Lia Mara ainda parece preocupada. Pego sua mão e pouso um
beijo nela.
– Se ele quisesse me machucar, não teria permitido que
chegássemos tão perto.
Ela segura minha mão.
– Ele já machucou você antes.
– Eu não esqueci.
Seus olhos estão sombrios de medo e suspeita.
– Não confio nele, Grey.
– Eu o conheço melhor do que ninguém. Sei do que ele é capaz.
– Bato os calcanhares contra os flancos do cavalo e disparamos
para a frente.
– Fale para Harper aparecer – Jake diz atrás de mim. – Quero ver
minha irmã.
Sigo direto para os guardas. Dustan dá um passo à frente.
– Você recebeu ordens de ir embora – ele diz com uma voz baixa.
– Não recebo mais ordens. – Desmonto do cavalo e me viro para
ele.
Para minha surpresa, ele coloca a mão na espada.
Automaticamente, começo a desembainhar a minha.
– Comandante. – A voz de Rhen desce dos degraus da frente do
castelo, onde ele está parado à sombra de um pilar.
Minha mão congela. A palavra, a voz… elas não deveriam me
afetar tanto depois de todo esse tempo, mas ainda me afetam. Não
consigo fugir do meu passado, por mais que eu tente.
Mas Dustan também para, então permito que minha espada volte
para a bainha. Olho para Rhen. Seus olhos estão frios e sua
expressão é cautelosa, como quando praticávamos esgrima.
– Gostaria de falar com você em privado.
– Por que, se faz campanha contra mim tão abertamente? – Seu
tom é sombrio e feroz.
– Não estou fazendo campanha.
– Ah, não? Sua viagem não foi segredo.
– Nem suas ações. Quantos soldados perdeu em Silvermoon?
Um músculo tensiona em sua mandíbula.
– Quantas cicatrizes você tem nas costas, Grey?
Um fio de gelo sobe pela minha espinha e meus pensamentos
esfriam, expulsando a emoção e deixando apenas o que precisa ser
feito.
– Você não contou, Rhen?
Eu nunca o chamei pelo primeiro nome, e nunca com tanta
audácia, na frente dos outros. Isso surte o efeito esperado: ele fecha
os olhos e aquele músculo em sua mandíbula fica tenso como uma
corda de arco.
– O que você quer?
– Já falei. Quero falar com você em privado.
Ele me faz esperar pela resposta.
Tive mais de trezentas estações para me acostumar com as suas
artimanhas, então não me importo de esperar.
Talvez ele perceba, porque dá um passo para trás.
– Podemos falar no Salão Principal.
Dustan se move para me seguir pela escadaria, mas Rhen
acrescenta:
– Comandante, espere aqui fora.
Então estamos dentro do castelo e a pesada porta de madeira se
fecha, fazendo um barulho que ecoa pela sala vazia. Posso sentir a
movimentação dos guardas e criados nos corredores, e sei que
nunca ficaremos realmente sozinhos. Mas, neste momento, o
castelo parece mais frio e vazio do que durante todo o tempo em
que estivemos presos na maldição.
Os movimentos de Rhen são tensos e precisos, e a raiva em sua
expressão é inconfundível. Fico observando-o enquanto ele dá
voltas ao meu redor, como um espadachim esperando uma
abertura.
– Vamos desembainhar nossas espadas e resolver isso de uma
vez? – digo sombriamente.
Ele para e faz uma carranca.
– Sei que você pretendia liderar um exército contra mim.
– Isso foi antes. – Faço uma pausa, tentando imaginar o quanto
ele sabe. Tentando imaginar como ele sabe. – Não vim aqui para
lutar com você.
– Eu sei. Isso é pior. Eu teria preferido o exército.
– Não tomei nenhuma atitude contra você – digo.
Ele dá uma gargalhada sem humor.
– Cada atitude que você tomou foi contra mim.
Ele está muito bravo. Eu também, além de arrependido, mas a
raiva dele tem um sabor diferente que não entendo muito bem.
Também está amargo – uma amargura sustentada pela dor.
Não sei bem o que esperava, mas não era isso.
– Na verdade, eu tentei poupar você de tudo isso.
– Não. Você tentou se poupar de tudo isso. Você nunca tentou
me poupar de nada.
– Eu fugi, me escondi. Não voltei para cá por vontade própria.
Você me arrastou acorrentado. – Faço uma pausa. – Não causei a
discórdia em seu reino.
Ele desvia o olhar e posso ver o quanto tudo isso pesa sobre ele.
Ele sempre carregou o fardo de seu povo.
Essa raiva e amargura não têm a ver comigo. Sou tomado por
pena.
– Rhen – digo baixinho, dando um passo em sua direção.
Ele vacila e recua.
O movimento é tão inesperado que congelo no lugar. Só então
percebo que a tensão em sua mandíbula e a rigidez em seu corpo
não são raiva e fúria.
Mas medo.
Naquela noite, eu me ajoelhei em seus aposentos, ele falou de
Lilith, e eu notei o medo em sua voz, quando ele perguntou se eu
estava sob juramento. A cada estação, ele sofreu com as torturas
dela. A maldição nos manteve aprisionados, mas ele aguentou
muito mais do que eu.
– Não quero machucar você – digo.
– Não me subestime. Você se aliou a um reino que aterrorizou
nosso povo. Você lutou contra eles por mim, Grey, e agora vem aqui
ao lado deles. Karis Luran…
– Karis Luran está morta.
– Eu sei.
– Como? Como você sabe?
– Ela não era a única que contava com espiões.
Fico surpreso. Não tínhamos espiões quando eu era comandante
da guarda. Não tínhamos ninguém.
Dou mais um passo à frente, mas desta vez ele fica parado.
– Você também aterrorizou seu povo – digo, com uma voz baixa e
rouca. – Você está perdendo seu país.
– Eu já o salvei antes. Posso salvá-lo de novo.
– A mentira não vai salvá-lo desta vez.
– E você vai? Com Syhl Shallow? Você era um guarda, Grey. Um
guarda excepcional, mas nada mais que um corpo para proteger a
realeza. – Seu tom fica cruel. – O povo dela não vai respeitar você.
Nem ela. Karis Luran governava através do sangue e do medo, e o
novo governante não será capaz de manter o trono com palavras
doces.
– Não fale de Lia Mara com desdém.
– E você não acha que os grão-marechais das minhas cidades
vão olhar para você com o mesmo desdém? O homem que quer ser
rei e se submeteu a uma mulher que veio até o meu castelo na
calada da noite com a ingênua esperança de estabelecer a paz?
– Eu não me submeti a ela, e você faria bem de considerar a
oferta.
– Não vou me aliar a Syhl Shallow. Não quis antes, nem quero
agora. Se isso fizer de você meu inimigo, então que seja.
Ele fala alto, então abaixo a voz:
– Sou seu irmão, Rhen.
Ele fica imóvel.
– Você já me ofereceu sua mão e me chamou de amigo –
acrescento.
Ele não diz nada.
Fico me perguntando se há alguma maneira de recuperar algo,
de seguir adiante. Talvez haja história demais entre nós.
Ouço passos na escada nos fundos do Salão Principal.
– Grey!
Harper atravessa a sala apressada, e sua saia ondula com seus
passos irregulares. Ela é provavelmente a única pessoa neste
castelo que parece feliz em me ver. Penso que vai se aproximar de
mim e pular no meu pescoço como naquela noite em que fui trazido
de volta para Ironrose – e então Rhen realmente sacaria a espada.
Ela nem tem a chance. Ele segura seu braço e a puxa para si.
Não é um movimento severo. É… aflito.
– Também não quero machucá-la – digo baixinho.
Harper não se afasta de Rhen. Em vez disso, pousa a mão sobre
a dele. Só então percebo que ele está tremendo.
– Um amigo teria me dito – Rhen fala. – Um irmão teria me dito.
Talvez ele esteja certo. Nós dois cometemos erros. Mesmo
quando a maldição começou, ambos cometemos erros de
julgamento.
Dou um passo para trás e olho para Harper.
– Seu irmão quer vê-la antes de irmos embora.
Ela engole em seco.
– Sim. Sim, claro.
Ela me encara por muito tempo, e posso ver a emoção contida
ali. Ela sabe quais demônios assombram os pensamentos de Rhen,
e mesmo assim continua ao lado dele. Apesar de tudo, fico aliviado
de ver que ele não está sozinho.
– Como já disse, não poderia ter escolhido ninguém melhor,
milady.
Ela abre a boca e fala baixo:
– Ele só está tentando proteger seu povo, Grey.
– Assim como eu.
– Então você vai atacar meu país – Rhen finalmente diz.
– Nosso país. – Hesito. – E sim. Na hora certa.
Por um segundo, ele parece triste e desanimado, mas então sua
expressão se suaviza e seus olhos estão desprovidos de emoção.
Puxo um pergaminho dobrado do casaco e o estendo para ele.
O papel está lacrado com cera verde e preta.
Ele não faz menção de pegá-lo.
– O que é isso?
– Um presente, irmão.
Ele continua imóvel, então Harper o pega. Rhen não se mexe.
Suas mãos se fecham em punhos.
– Pelo bem de Emberfall – digo.
– Saia.
Eu saio.
EPÍLOGO

RHEN

Fico revirando o pergaminho nas mãos por horas. Estou tentado a


jogá-lo na lareira, porque sei que meus olhos não serão os únicos
que conhecerão seu conteúdo.
– Não me lembro de já ter visto você tão indeciso quanto agora,
príncipe Rhen.
A voz vem das sombras, mas não me viro. A feiticeira está aqui
há semanas me provocando, me ameaçando.
Reviro o pergaminho nas mãos mais uma vez.
Harper está jantando com seu irmão, mas eu daria tudo pela
companhia dela agora.
Daria tudo para voltar no tempo até a manhã em que Grey foi
trazido acorrentado. Antes que eu recorresse à crueldade para
descobrir a verdade. Antes que ele fugisse, revelando sua magia e
seu direito de primogenitura a todos no pátio.
Antes que Lilith aparecesse em meus aposentos com uma nova
oferta.
Olho para a feiticeira. Uma cicatriz terrível atravessa seu
pescoço, deixando sua pele marcada onde a lâmina de Grey tentou
tirar sua vida.
Desdobro o pergaminho.

Você tem sessenta dias, irmão.


Não me obrigue a fazer isso.
Não me obrigue a fazer isso.
As mesmas palavras que eu lhe disse antes que os guardas o
trouxessem até o pátio e o pendurassem na parede.
Minhas mãos estão tremendo de novo.
– Se ao menos você estivesse com tanto medo da primeira vez –
diz ela em um sussurro cruel.
Se ao menos.
Se ao menos Grey tivesse me contado a verdade.
– Você poderia matar nós dois – digo. – Tome o que quiser.
– Se eu matar vocês, os exércitos de Syhl Shallow vão tomar
Emberfall. Seu povo não vai se submeter a mim. Não posso
influenciar todos eles, Sua Alteza. – Ela se aproxima de mim e
abaixa a voz. – Você não entende que meu objetivo nunca foi
governar seu reino sozinha? Meu objetivo é fazer isso com você ao
meu lado.
Desvio o olhar. Minha garganta está apertada. Não posso passar
por isso de novo.
– Vou deixá-lo tomar Emberfall. Não vou lutar contra ele.
– Você vai, se quiser manter Harper aqui com você. – Ela faz uma
pausa. – Não acha que ela gostaria de voltar para o mundo dela?
Eu só demoraria um instante.
Um mundo onde Harper estaria em perigo a cada minuto de cada
dia.
Um mundo que eu não poderia acessar se Lilith quiser manter
Harper longe.
Não consigo respirar.
– Grey encontrou um rasvador – Lilith diz. – Ele está fraco agora,
mas com ajuda sua magia vai se desenvolver depressa, e ele tem
um exército a seu dispor. Agora posso vencê-lo, mas, com o tempo,
ele pode tomar Emberfall se não o derrubarmos antes.
Sessenta dias. Queria poder lhe pedir uma eternidade. Queria
poder avisá-lo.
Lilith observa cada movimento meu.
Respiro fundo. Preciso pensar em um plano. Fecho as mãos para
impedi-las de tremer.
– Você não vai machucar Harper. Quero mantê-la protegida,
custe o que custar.
– Claro – ela diz com calma. – Dificilmente acho que Grey
permitiria que ela se ferisse.
– Não quero que ela saiba que você está aqui. Não quero que ela
saiba o que você está fazendo. Está me entendendo?
– Sou muito boa em guardar segredos. – Ela pausa. – Vai aceitar
minha oferta? Esperei tanto para tomar seu pobre e patético país.
Sua oferta. Como se eu tivesse escolha. Como se eu fosse
sacrificar Harper.
Olho para as palavras de Grey. Não me obrigue a fazer isso.
Amasso a carta e a atiro no fogo.
– Sim, Lilith. Eu vou.
AGRADECIMENTOS

Preparem-se. Aí vamos nós.


Feroz e dilacerado coração é meu décimo primeiro romance,
então é tentador pegar os agradecimentos dos livros anteriores e só
copiar e colar, especialmente porque meus filhos estão no quarto ao
lado se provocando. Mas sou verdadeiramente grata a cada uma
das pessoas que apoiam a mim e a minha carreira, e quero mesmo
tirar um tempo para citar todos que conseguir.
Também é tentador fazer uma lista numerada e acabar logo com
isso, então é isso o que vou fazer, já que esta é a única parte do
livro em que a editora não mexe.
Muito obrigada:
1) A Michael. (Meu marido. Ele é incrível. Ele sempre vem em
primeiro lugar. Você não estaria com este livro nas mãos se não
fosse pelo amor e pelo apoio dele.)
2) À minha mãe. Minha mãe é uma pessoa verdadeiramente
especial que… Não faço ideia do que ia dizer, porque tive que
separar uma briga entre meus filhos. Mas minha mãe é fenomenal,
e não sei o que faria sem ela. Sei que ela vai entender por que eu
esqueci o que ia dizer. Obrigada por tudo, mãe.
3) À minha melhor amiga, Bobbie Goettler. Eu <3 você, amiga.
Que bom que nos conhecemos naquele fórum tantos anos atrás.
4) À minha maravilhosa agente, Mandy Hubbard, que é corajosa,
destemida e gentil, e não sei o que faria sem ela.
5) À minha brilhante editora, Mary Kate Castellani, que é
igualmente corajosa, destemida e gentil, e que nunca desiste até
que meu texto seja o melhor possível.
Não acredito que estou fazendo uma lista numerada. Mas agora
já comecei, e é só uma questão de tempo antes que os garotos
comecem a brigar de novo, então vamos em frente!
6) À incrível equipe da Bloomsbury. Um enorme obrigada a Cindy
Loh, Claire Stetzer, Anna Bernard, Lily Yengle, Courtney Griffin,
Erica Barmash, Valentina Rice, Brittany Mitchell, Phoebe Dyer, Beth
Eller, Ellen Holgate, Emily Moran, Emily Marples, Cal Kenny,
Jeanette Levy, Donna Mark, Diane Aronson e Jill Amack e à equipe
de preparação e revisão de texto, assim como todos na Bloomsbury
que tiveram algum papel na missão de levar este livro ao mundo.
Por favor, saibam que minha gratidão é infinita, e não sei dizer o
quanto agradeço por seus esforços.
7) Às muitas pessoas que leram este manuscrito, em parte ou
inteiramente, e ofereceram suas contribuições e ideias.
Agradecimentos especiais a Bobbie Goettler, Jim Hilderbrandt,
Hannah McBride, Michelle MacWhirter, Diana Peterfreund, Lee
Bross, Shyla Stokes, Steph Messa, Joy George, Bill Konigsberg,
Reba Gordon, Rae Chang, Tracy Houghton, Nicole Choiniere-
Kroeker, Anna Bright e Allie Christo. Este livro não existiria sem
vocês todos. Obrigada.
8) À Jodi Picoult. (Sim, sério. Nossa! Vocês deviam ter visto a
minha cara quando eu recebi aquela primeira DM no Twitter.)
Obrigada por todas as ideias e contribuições. Ainda não consigo
acreditar que posso te chamar de amiga.
9) Aos colegas de pesquisa! Muito obrigada à dra. Maegan
Chaney--Bouis por todas as informações médicas. Adoro poder
escrever sobre a situação mais fantástica e bizarra que consigo
pensar e receber uma clara análise médica de volta. Um
agradecimento extra a Steve Horrigan da Stone Forge CrossFit
pelas informações sobre escalada com cordas, carregamento de
peso, treinamento militar e luta corpo a corpo, e por não se irritar
com minhas perguntas esquisitas. Todas as informações oferecidas
foram precisas e objetivas; todo e qualquer erro neste livro são por
minha conta.
10) Um agradecimento extra para os criadores de conteúdo que
falam de livros, e qualquer um que usa sua voz para espalhar o
amor pelos livros na internet. Vocês ajudaram a tornar esta série um
sucesso, e mesmo que não possa agradecer a cada um
individualmente, por favor, saibam que eu amo vocês e toda minha
gratidão ainda não é suficiente.
11) Aos garotos Kemmerer, Jonathan, Nick, Sam e ZachARY (se
soletra A-R-Y, mãe!). Obrigada por me darem espaço para que eu
realize meus sonhos. Mal posso esperar para ver vocês seguindo os
sonhos de vocês. E mais uma vez: se não pararem de brigar, vou
deletar este parágrafo.
12) A você. É, você que está aqui comigo acompanhando esta
história. Você também é parte do meu sonho. Sou muito grata por
você ter tirado um tempo para ler este livro. Significa muito para mim
que você tenha aberto um espaço no seu coração para os meus
personagens, porque sei que isso quer dizer que você vai carregá-
los para sempre, mesmo que só um pouquinho. Obrigada.
SUA OPINIÃO É MUITO IMPORTANTE
Mande um e-mail para opiniao@vreditoras.com.br
com o título deste livro no campo “Assunto”.

1a edição, maio 2021


Mensageira da sorte
Nia, Fernanda
9788592783839
426 páginas

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A SORTE É IMPREVISÍVEL ♦ Em pleno Carnaval carioca, durante


uma confusão em um protesto contra a AlCorp, Sam passa a ser
uma mensageira temporária no Departamento de Correção de
Sorte, uma organização extranatural secreta incumbida de nivelar o
azar na vida das pessoas. Para manter esse equilíbrio, os
mensageiros devem distribuir presságios de sorte para alguns
escolhidos. E o primeiro "cliente" de Sam é justamente o seu novo
vizinho e colega de classe, Leandro. O garoto é um youtuber em
ascensão e a ajuda dela, na forma de uma mensagem sobre nada
menos que paçoca, o impulsiona a fazer um vídeo que o levará para
o auge da fama. O que Sam não sabe é que Leandro também é
engajado nos protestos contra a corrupção da AlCorp, sem se
preocupar com os riscos que possa correr ou com as chances que
tem dado ao azar, e a garota se vê obrigada a usar a sorte do
Destino para protegê-lo. Perdida entre seus sentimentos por
Leandro e a culpa pela morte de seu pai, Sam começa a
compreender a linha tênue entre o livre-arbítrio e o acaso. Com uma
boa dose de sarcasmo, ela embarca na dura jornada para
desmascarar o que está deteriorando o sistema da Justiça, tanto a
natural quanto a extranatural. Em meio a uma rede de intriga,
corrupção e poder, a mensageira da sorte precisará fazer as pazes
com o passado e lutar até o fim para que a balança do Destino se
equilibre outra vez. ♦ "Em Mensageira da sorte, Fernanda Nia
mescla seu senso de humor característico com uma sensibilidade
ímpar, criando uma história maravilhosa sobre a busca do equilíbrio
em meio ao caos." – Bárbara Morais, autora da trilogia Anômalos
"Ação e suspense habilmente costurados no humor que flutua entre
o leve, o firme e o crítico, resultado de toda a experiência da autora
com quadrinhos e outras narrativas. Na sua estreia como autora de
romances, Fernanda Nia se torna a mensageira necessária de um
excelente presságio, e chega para somar na fantástica cena
brasileira que não se esquece de suas raízes e do momento em que
vivemos." – Felipe Castilho, autor de Ordem Vermelha e da série O
Legado Folclórico

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Aos perdidos, com amor
Kemmerer, Brigid
9788592783372
452 páginas

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Juliet Young sempre escreveu cartas para sua mãe. Mesmo depois
da morte dela, continua escrevendo – e as deixa no cemitério. É a
única coisa que tem ajudado a jovem a não se perder de si mesma.
Já Declan Murphy é o típico rebelde. O cara da escola de quem
sempre desconfiam que fará algo errado, ou até ilegal. O que
poucos sabem é que, apesar da aparência durona, ele se sente
perdido. Enquanto cumpre pena prestando serviço comunitário no
cemitério local, vive assombrado por fantasmas do passado. Um
dia, Declan encontra uma carta anônima em um túmulo e reconhece
a dor presente nela. Assim, começa a se corresponder com uma
desconhecida... exceto por um detalhe: Juliet e Declan não são
completos desconhecidos um do outro. Eles estudam na mesma
escola, porém são tão diferentes que sempre se repeliram. E agora,
sem saber, trocam os segredos mais íntimos. Mas, aos poucos, a
vida real começa a interferir no universo particular das confidências.
E isso pode separá-los ou uni-los para sempre. Entre cartas, e-mails
e relatos, Brigid Kemmerer constrói uma trama intensa, repleta de
descobertas e narrada sob o ponto de vista dos dois personagens.
Uma história de amor moderna de arrebatar o coração.
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Darkdawn
Kristoff, Jay
9786550080259
704 páginas

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Nobre amigo, depois de um breve silêncio, podemos enfim voltar os


olhos para a saga de nosso pequeno corvo. É certo que você deve
estar curioso para saber o que aconteceu após os eventos
sanguinários que abalaram as arenas de Godsgrave.

Com o irmão caçula nos braços, Mia Corvere saboreia seu triunfo.
Foi uma longa jornada até aqui. A menina assustada que
presenciara o enforcamento do pai tornou-se a assassina mais
temida de toda a República de Itreya. Passados oito anos desde
que começou a planejar sua vingança, Mia finalmente instaurou o
caos na Cidade das Pontes e dos Ossos ao ceifar a vida do grão-
cardeal e do cônsul.

No entanto, nem tudo é glória na vida da Faz-Rei. Os soldados


luminatii e os servos da Igreja Vermelha estão à sua caça. Mercurio
foi capturado e Mia deve salvá-lo antes que seu querido mentor
pereça dentro dos muros da escola de assassinos. Entre sua fuga e
o resgate do velho, ela precisa conquistar a confiança de Jonnen,
seu irmão. Pois, neste momento, o que sobrou de sua família deseja
vê-la morta.

Além disso, há algo mais assombrando seu destino. Um enigma


fúnebre que cresce sob Godsgrave à medida que a veratreva se
aproxima: os muitos eram um e serão de novo. Quando a noite
chegar, talvez em definitivo, Mia Corvere conseguirá sobreviver num
mundo em que até a luz dos sóis pode morrer?

"Com cenas de luta perversamente afiadas, muito bem


coreografadas e sangrentas, Kristoff oferece humor, corações
partidos e algumas surpresas de cair o queixo. Um final
pungente e emocionante para uma série de fantasia soberba". –
PUBLISHERS WEEKLY
"Os leitores que esperam acidez e alta contagem de corpos não
ficarão desapontados. Os personagens saltam para fora das
páginas. A construção do universo ficcional permanece tão
intrincada e fascinante quanto nos volumes anteriores". –
BOOKLIST

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Nevernight
Kristoff, Jay
9788592783259
608 páginas

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Há histórias sobre Mia Corvere, nem todas verdadeiras. Alguns a


chamam de Moça Branca. Ou a Faz-Rei. Ou o Corvo. A matadora
de matadores. Mas, uma coisa é certa, você deveria temê-la.
Quando ela era criança, Darius Corvere – seu pai – foi acusado de
insurreição contra a República de Itreya. Mia estava presente
quando o carrasco puxou a alavanca, viu o rosto do pai se
arroxeando e seus pés dançando à procura do chão, enquanto os
cidadãos de Godsgrave gritavam "traidor, traidor, traidor"... No
mesmo dia, viu a mãe e o irmão caçula serem presos em nome de
Aa, o Deus da Luz. E, embora os três sóis daquela terra não
permitam que anoiteça por completo, uma escuridão digna de trevas
tomou conta da menina. As sombras nunca mais a largaram. Mia,
agora com dezesseis anos, não se esqueceu daqueles que
destruíram sua família. Deseja tirar a vida de todos eles. É por isso
que ela quer se tornar uma serva da Igreja Vermelha – o mais mortal
rebanho de assassinos de toda a República. O treinamento será
árduo. Os professores não terão misericórdia. Não há espaço para
amor ou amizade. Seus colegas e as provas poderão matá-la. Mas,
se sobreviver até a iniciação, se for escolhida por Nossa Senhora do
Bendito Assassinato... O maior massacre do qual se terá notícia
poderá acontecer. Mia vai se vingar.

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Maze Runner: Correr ou morrer
Dashner, James
9788576835301
428 páginas

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Correr ou Morrer LEMBRE CORRA SOBREVIVA Ao acordar dentro


de um escuro elevador em movimento, a única coisa que Thomas
consegue se lembrar é de seu nome. Sua memória está
completamente apagada. Mas ele não está sozinho. Quando a caixa
metálica chega a seu destino e as portas se abrem, Thomas se vê
rodeado por garotos. "Bem-vindo à Clareira, fedelho." A Clareira.
Um espaço aberto cercado por muros gigantescos. Assim como
Thomas, nenhum deles sabe como foi parar ali. Nem por quê.
Sabem apenas que todas as manhãs as portas de pedra do
Labirinto que os cerca se abrem, e, à noite, se fecham. E que a
cada trinta dias um novo garoto é entregue pelo elevador. Porém um
fato altera de forma radical a rotina do lugar: chega uma garota, a
primeira enviada à Clareira. E mais surpreendente ainda é a
mensagem que ela traz consigo. Thomas será mais importante do
que imagina. Mas para isso terá de descobrir os sombrias segredos
guardados em sua mente e correr... correr muito! Correr ou Morrer é
o primeiro volume da saga Maze Runner, uma séria que já
conquistou milhares de fãs em todo mundo. Escrita pelo americano
James Dashner, é um thriller asfixiante, repleto de ação e suspense
psicológico. Aclamado pela crítica como um dos melhores livros de
2009, chegou as telas dos cinemas em 2014 em uma adaptação da
dos estúdios Fox. #Livro best-seller do New York Times #Sucesso
também nos cinemas #Autor referência em livros para Jovens
Leitores #Sucesso de vendas no Brasil

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