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© 2020 by Brigid Kemmerer. Esta tradução de A Heart so Fierce and Broken é publicada
por VR Editora mediante acordo com Bloomsbury Publishing Inc. Todos os direitos
reservados.
© 2021 VR Editora S.A.
Marco Garcia
Thaíse Costa Macêdo
Carolina Caires Coelho
Ana Lima Cecílio e Juliana Bormio de Sousa
Gabrielly Alice da Silva e Pamella Destefi
Jeanette Levy
Shane Rebenschied
Pamella Destefi
© 2020 by Kelly de Groot
Kemmerer, Brigid
Feroz e dilacerado coração [livro eletrônico] / Brigid Kemmerer; tradução Raquel Nakasone.
- Cotia, SP: Plataforma21, 2021. - (Cursebreakers; 2)
ePub
Título original: A heart so fierce and broken
ISBN 978-65-88343-06-7
1. Ficção juvenil I. Título. II. Série.
21-59381 CDD-028.5
HARPER
GREY
LIA MARA
GREY
Desde que encontramos os soldados na taverna de Jodi ontem,
ando tenso e irritado. Fico esperando o capitão aparecer aqui no
Worwick e me arrastar de volta para Ironrose. Ou pior, arrastar-me
para as sombras atrás do estádio, onde eles poderão me decepar.
Essas preocupações são irracionais. Poucas pessoas sabem
quem eu realmente sou e o que eu sei:
A feiticeira Lilith, que está morta. Eu mesmo cortei a garganta
dela.
Minha mãe, que não é minha mãe. Saí de lá sem levar nada
comigo. Deixei toda a prata e cobre que eu tinha, além de todos os
avisos que eu poderia dar. Espero que ela tenha pegado o dinheiro
e ido embora. Mas, se alguém for atrás dela procurando por mim,
ela não teria outra resposta além da verdade: eu apareci e sumi.
Karis Luran, que – se as ameaças de Lilith não forem falsas –
usaria essa informação para acabar com Rhen. Se ele acreditar
nela.
Meu mal humor contaminou Tycho, agravado pela onda de calor
que estamos enfrentando. O clima de hoje trouxe uma camada de
nuvens espessas que prometiam tempestade, mas apenas
causaram uma umidade enjoativa que só deixou tudo viscoso e
todos infelizes. Ele está varrendo o espaço entre os assentos do
estádio e a arena, transformando cada gesto em um ataque. A
poeira flutua no ar, espalhando-se por toda parte, incluindo os caros
assentos almofadados que acabei de limpar.
– Ei – digo.
Ele se vira, encolhendo-se um pouco.
– Largue essa vassoura – digo, tentando controlar meu tom.
Mergulho o pano no balde e o torço para limpar os assentos de
novo. – Está sujando tudo.
Ele deve ter se sentido mal, porque voltou trazendo outro pano
para limpar a grade. Trabalhamos quietos por um tempo,
desfrutando do silêncio do fim de tarde.
Calado assim, ele me lembra meu irmão Cade, que tinha treze
anos quando eu tinha dezesseis. Não sei por que, eles não são nem
um pouco parecidos. Cade falava pelos cotovelos, enquanto eu às
vezes passo horas sem ouvir uma palavra de Tycho. Mas Cade
sabia abaixar a cabeça e trabalhar quando era necessário. Ele
ajudou a cuidar da fazenda depois que fui embora.
Depois que Lilith matou todos eles, esforcei-me para expulsar
meus irmãos da memória. Talvez o distanciamento do meu tempo
como guarda tenha feito com que lembranças antigas
preenchessem o espaço entre os meus pensamentos. Talvez a ideia
de que eles não eram meus irmãos tenha causado o mesmo efeito.
Não tenho certeza se gosto disso. Ainda mais agora que estamos
sem tarefas.
– Está muito quente para correr – digo.
– Está muito quente para fazer qualquer coisa. – Tycho enche
uma mão de água e refresca a nuca.
– Ah, ia perguntar se você quer pegar as espadas de treino.
– Espera. Sério? Quero. – Ele fica de pé prontamente, sem ligar
para o calor.
– Então vá.
Largo o balde no depósito e penduro os panos no varal. Quando
o alcanço no armeiro, Tycho está segurando uma espada de treino
leve, balançando-a como quem praticou. Ele já é bom o suficiente
para que eu lhe confiasse uma lâmina real – em outro tempo e lugar.
Como Hawk, não conheço nenhum movimento mais avançado do
que simples bloqueios e ataques.
Nós treinamos no espaço estreito entre o armeiro e os estábulos,
onde Worwick armazena seus equipamentos grandes. A jaula do
rasvador também está aqui, nossa única plateia, embora sua forma
escura esteja imóvel. Worwick estava falando sério sobre os cinco
cobres, porque tentou cobrar na noite passada. Estava dando certo,
até que um homem reclamou que não tinha pagado para ver uma
pilha de pele e penas meio mortas.
Agora ele dorme a maior parte do dia, encolhido sob as asas.
Tycho está me cansando, então ofereço uma abertura. Ele
percebe imediatamente e ataca. Mal tenho tempo de driblar sua
lâmina.
Ele está ofegante, mas dá um sorriso.
– Quase peguei você.
Não consigo não sorrir de volta.
– Quase.
Empurro sua espada com a minha e afasto o cabelo molhado de
suor da cara.
– A brincadeira acabou, garotos – um homem diz, preenchendo o
espaço com sua voz. Eu o reconheço antes de vê-lo: é Kantor. Um
dos “campeões” de Worwick.
Worwick tem dois competidores no torneio: Kantor e Journ.
Ambos são de meia-idade e muito bons com a espada – eles
precisam ser para enfrentar qualquer um que pisar aqui –, mas, para
Worwick, o valor deles está no show que fazem ao público. Um é
quieto e reservado quando não está na frente da multidão, carrega
balas nos bolsos para oferecer às crianças que torcem nas laterais
do estádio, e depois volta para casa para sua doce esposa e seus
três filhos. É um bom homem que trabalha muito, luta de forma justa
e leva uma vida honesta.
O outro é Kantor.
Kantor é um homem que aposta contra si mesmo, de forma que,
mesmo quando perde, sai ganhando. Worwick não deveria permitir,
mas tenho certeza de que Kantor divide seu lucro com ele. Ele é
barulhento e grosseiro e mente sem pudor. Ele é um ótimo vilão
para a plateia. Infelizmente, longe da plateia também.
Tycho está devolvendo a espada na parede, mas Kantor pega
uma espada de verdade e habilmente a derruba de sua mão,
fazendo-a cair no chão.
– Quando é que você vai aprender a segurar uma espada como
um homem? – ele provoca.
– Deixe ele em paz – digo.
Tycho pega a arma sem falar nada, mas noto sua carranca,
apesar de ele manter a cabeça baixa.
Kantor tem o cérebro de uma criança que encontrou diversão; ele
mal trocou o peso de perna e vejo que vai derrubar a espada de
Tycho de novo – e, desta vez, ele quer machucar.
Dou um passo à frente, balanço minha espada de treino em sua
direção e imobilizo a espada dele na parede.
Sua cabeça gira para mim. Ele está com a boca aberta, mas a
fecha rapidamente.
– Eu devia cortar sua mão por isso. – Ele libera a espada.
Eu poderia cortar a mão dele antes que ele se aproximasse da
minha, mas encolho os ombros e desvio o olhar. A melhor forma de
lidar com Kantor é não o levar a sério.
– As espadas de treino cegam as boas. Se quiser brincar, use as
suas ou fale com Worwick.
Ele franze a testa, mas estou certo e ele sabe disso. Mas seu
orgulho não o deixa largar a arma. Ele se afasta, girando a espada
nas mãos e arrastando-a no chão. E para na jaula do rasvador.
– O que Worwick vai fazer com essa coisa? – Kantor cutuca a
criatura com a ponta da arma, mas ela não se mexe.
– Não o machuque – Tycho diz.
– Machucar? Ele está praticamente morto. – Kantor chega mais
perto e desfere um golpe entre as barras, perfurando a carne do
animal com a lâmina de aço.
O rasvador rosna e fica de pé abrindo as asas e espalhando
sangue. Ele se debate, procurando agarrar Kantor, guinchando tão
alto que seu grito ecoa pela arena e os cavalos do estábulo ficam
agitados e começam a relinchar.
Kantor recua, tropeça nos próprios pés e cai no chão com tudo.
Três longos arranhões vermelhos atravessam seu antebraço. Kantor
xinga e se levanta, erguendo a espada como se fosse enfiá-la na
barriga da criatura.
Tycho se coloca na frente dele, apoiando as costas nas barras.
– Não!
Espero o rasvador atacar Tycho também, mas ele desmorona e
rosna.
Kantor parece prestes a passar por cima de Tycho de qualquer
maneira.
Dou um passo adiante:
– Chega.
Kantor ergue a espada alguns centímetros.
– Saia, ou acabo com vocês dois.
A espada de treino ainda está na minha mão. Meus dedos
apertam o punho.
Não sei o que Kantor vê na minha expressão, mas a surpresa
preenche seus olhos. Ele solta uma gargalhada rouca.
– Você quer me enfrentar, garoto? Por causa daquela coisa? –
Ele faz um gesto com a espada. – Vá em frente, então. Vamos ver
quanto tempo você aguenta.
Fico tentado.
– O que está acontecendo? – Worwick pergunta. Sua voz ressoa
pelo pequeno espaço. O guincho da criatura deve ter chamado sua
atenção. Deve ter chamado a atenção de metade da cidade.
Em minha visão periférica, vejo Worwick se aproximar, mas não
tiro os olhos do homem à minha frente. E Kantor não tira os olhos de
mim.
– Kantor! Hawk! – Worwick parece confuso. – O que… o que
vocês estão fazendo?
– Kantor ia matar o seu rasvador – Tycho diz depressa. – Hawk
não deixou.
– Ah, eu só estava brincando – Kantor fala de modo arrastado.
Ele abaixa a espada e estende o braço. – Essa coisa maldita me
atacou.
– Você atacou antes – esclareço.
Atrás de mim, o rasvador rosna de novo.
– Chega de bobagem – Worwick diz. – O grão-marechal baixou
um decreto real para ser lido antes do torneio. Os boatos estão
correndo soltos na rua, a casa vai lotar à noite.
Isso é o suficiente para desviar minha atenção de Kantor.
– Decreto real?
– O príncipe está oferecendo quinhentas pratas para qualquer um
que apresentar alguém com sangue de feiticeiro.
Congelo. Sangue de feiticeiro. Rhen não pode falar abertamente
porque daria legitimidade aos boatos, mas está procurando o
herdeiro.
Está procurando por mim.
– Quinhentas pratas! – Kantor finalmente abaixa a espada e
desvia o olhar. – Worwick, eu entregaria você por quinhentas pratas.
– A magia deve ser provada – Worwick diz. Seus olhos se
iluminam. – Tycho, Hawk, vocês costumam ir à cidade. Não viram
magia em Rillisk, não?
Como se fôssemos dizer um nome e permitir que ele recebesse a
recompensa.
Pelo menos isso me oferece alguma medida de segurança. Eu
nunca fui capaz de usar magia. Talvez Lilith estivesse errada. Talvez
eu não seja herdeiro de nada.
Você quer saber a verdade, não quer? Sobre o sangue que corre
em suas veias? Você não quer saber como foi o único guarda a
sobreviver?
Quero que ela esteja errada.
Mas ela está certa. Eu sei disso. Minha mãe admitiu antes que eu
fugisse.
– Ninguém nunca viu magia – Tycho diz. – Os feiticeiros foram
mortos antes de eu nascer.
– Não todos, aparentemente – Worwick fala. – Hawk, você está
doente?
– Não, estou bem. – Obrigo meus braços a se moverem e
penduro a espada na parede.
– Kantor, você machucou meu rasvador? – reprova Worwick. –
Hawk, dê uns pontos nele, sim?
– Sim. – Não tenho ideia de como fazer isso. Minha cabeça não
para de dar voltas.
Quinhentas pratas é uma fortuna para a maioria. As pessoas em
Emberfall vão entregar umas às outras por essa recompensa. Rhen
deve estar desesperado.
– Preparem-se para a multidão, garotos – Worwick diz. – Tycho,
cuide da cerveja. Não quero filas. Vamos fazer um bom lucro só com
as apostas, tenho certeza.
– Vou cuidar. – Kantor dá risada. Ele empurra o ombro do
homem, bem-humorado. Worwick sorri e volta para a frente do
estádio.
Suspiro e olho para Tycho.
– Vá buscar linha. Vou pegar a agulha.
•• ••
O torneio só acaba bem depois da meia-noite. Quando finalmente
subimos a escada para o sótão que compartilhamos, Tycho nem se
dá ao trabalho de acender o lampião e se joga na cama. Acho que
ele vai pegar no sono logo, mas ele diz:
– Não consigo nem imaginar quinhentas pratas de uma vez.
Já eu não preciso nem imaginar, e digo:
– Ouvi isso a noite toda.
– Você acha que é pesado?
– Pesado o suficiente pra fazer você caminhar curvado. – O que
não é verdade, mas ele ri. Em seguida, ele se cala.
Fico olhando para as vigas de madeira gastas sobre a minha
cama. O sótão cheira a feno e cavalo e segura o calor do estábulo
abaixo, mas eu não ligo. É quente, seguro e seco aqui. Não há
motivos para desconfiar de Tycho.
– Eu compraria minha liberdade de Worwick – ele diz baixinho.
Viro a cabeça para olhar para ele, apenas uma sombra vaga na
escuridão.
– Sua liberdade?
– Fiz um juramento a ele. – Pausa. – Mais dois anos.
– Por quê?
– Azar. Dívidas.
Nunca vi Tycho apostar um cobre sequer.
– Suas?
– Do meu pai – ele dá um longo suspiro. – Tenho duas irmãs mais
novas, e sei o que Worwick faria com elas. Meu irmão não tem nem
seis anos. Minha família não tinha nada. Então…
Volto a olhar para as vigas.
– Eu já fiz um juramento uma vez… por vontade própria.
– O meu também foi por vontade própria – ele diz.
Não é a mesma coisa. Ou talvez seja.
– Dois anos não é muito – Tycho continua. – Quanto tempo você
levou pra conseguir sua liberdade?
Esta conversa está trazendo lembranças à tona. Lembranças que
eu preferia manter enterradas.
– Uma eternidade.
Tycho ri suavemente.
– Sei o que quer dizer.
Não. Ele não faz ideia.
Ele volta a falar, mas agora de um jeito hesitante.
– Hawk, eu não… não conto pra ninguém – um tom de
preocupação se infiltra nas suas palavras. – Se as pessoas
souberem que fiz um juramento a Worwick, elas… bem, ele
poderia… – ele se interrompe.
Penso em como Tycho normalmente desaparece quando a noite
se arrasta e restam poucos homens sóbrios. Minha opinião sobre
Worwick melhora um pouco, já que ele não faz Tycho se matar de
trabalhar, permitindo que ele se esconda.
– Vou guardar seu segredo.
Ele não fala nada, e depois de um momento, eu o observo. A
escuridão é quase absoluta, mas seus olhos captam um brilho de
algum lugar.
Fico me perguntando se ele se arrependeu de ter me contado.
– Pode confiar em mim, Tycho.
– Eu sei.
Ele diz de um jeito tão simples. É um nível de confiança que
invejo.
– Para quem você fez o juramento? – ele pergunta.
Fecho os olhos. Sem avisar, meus pensamentos invocam o
Castelo Ironrose, os quilômetros de corredores de mármore, o teto
arqueado. Lembro-me da arena de treinamento, do armeiro e dos
estábulos tão claramente que seria capaz de encontrar o caminho
com os olhos vendados, mesmo agora.
Você se arrepende do juramento? Rhen uma vez me perguntou.
Não me arrependi. Não me arrependo. Nem mesmo agora.
Tycho ainda está esperando uma resposta. Balanço a cabeça.
– Ninguém importante.
– Também vou guardar seu segredo, Hawk – a voz de Tycho é
suave.
Suas intenções são boas, e ele pode até estar falando sério
agora, mas ele me entregaria para comprar sua liberdade.
– Não é um segredo – digo preguiçosamente. Viro-me e desvio o
olhar. – Só não tenho nada de interessante para compartilhar.
Ele suspira, e eu respiro de forma lenta e regular para que ele
pense que adormeci. Por fim, a respiração dele se iguala à minha,
acentuada por um leve ronco ao fim de cada expiração.
Nossa conversa me impede de pegar no sono muito cedo.
Quando Rhen me liberou do juramento, disse para eu começar
uma nova vida do outro lado, em Washington DC, lar de Harper.
Minhas visitas à cidade dela se limitavam a uma hora a cada
estação, de modo que seu mundo não me é totalmente estranho,
mas eu não poderia fazer minha vida em um lugar tão diferente de
Emberfall. Os costumes, as roupas, o dinheiro… já vi tudo, porém
não sei se seria capaz de me adaptar.
Sangue de feiticeiro. Se há mágica em meu sangue, não faço
ideia de como acessá-la. Olho para as vigas e lembro-me de como
era fácil para Lilith me transportar pelo véu até Washington DC.
Fecho os olhos e rememoro a sensação. Por um instante, o ar à
minha volta parece mais pesado, e seguro o fôlego, tentando decidir
se consegui fazer o mesmo.
Abro os olhos. As vigas do estábulo continuam acima de mim. A
respiração de Tycho ressoa suavemente pelo sótão.
Pelos infernos.
Encontro o fio solto na borda do colchão, puxando-o lentamente
até que a costura comece a se desfazer. Sou cuidadoso, para poder
consertá-la mais tarde. Coloco a mão na abertura e enfio os dedos
na palha até sentir o peso da prata.
É uma pulseira – ou era, até eu negociar o valor de um dia de
trabalho intenso com um ferreiro para que ele a removesse do meu
braço. Agora tenho uma cicatriz no pulso e três quartos de uma
argola de prata. Quando estava preso na maldição com Rhen, Lilith
a prendeu em meu braço com magia para que eu cruzasse o véu
até o outro lado.
Não faço ideia se ainda funciona. É a única magia com a qual já
tive contato, e não é nem minha, mas de Lilith. A pulseira está
enfeitiçada com a magia dela.
Coloco os dedos ao redor da prata e fecho os olhos. Quase
contra a minha vontade, minha mente visualiza uma parede… e
praticamente no mesmo instante, estou atravessando-a.
Os cheiros do estábulo e do sótão desaparecem, e o ar fica
gelado de repente. O suave som dos movimentos dos cavalos é
substituído por um zumbido baixo, e eu abro os olhos. Paredes
brancas, longas luzes tubulares e diminutas no alto. Pilhas e pilhas
de livros se estendem infinitamente ao meu redor. Nunca vi tantos
livros, nem mesmo na biblioteca real de Ironrose. Este lugar não é
nem um pouco parecido com o castelo. Tirando os livros, tudo neste
quarto é liso e elegante e quase artificialmente branco.
Não estou em Rillisk. Tampouco em Emberfall. Estou em
Washington DC. Ou talvez a quilômetros de distância, onde quer
que Rillisk se correlacione no mundo de Harper.
A pulseira ainda funciona.
Por um momento, fico sentado respirando o ar frio, um alívio
depois da umidade pesada de Emberfall. Não faço ideia de onde
estou, mas é silencioso e estou seguro. Rhen não pode me
encontrar aqui. É provável que ninguém possa me encontrar aqui.
Estou tentado a ficar.
Mas para onde eu iria? O que eu faria? Ninguém deste lado
precisa de um guarda. Nem de um tratador, pelo que sei. As garotas
que eu sequestrava para Rhen raramente tinham habilidade com
armas ou cavalos, e ainda que por certo tivessem habilidades
próprias e úteis neste lugar, não são habilidades compartilhadas por
mim.
Ouço barulho de metal, seguido por um guincho, e me levanto
depressa. Queria ter uma arma, mas a única coisa na minha mão é
a pulseira de prata.
Uma senhora empurra uma espécie de carrinho em um canto.
Seu cabelo é longo e grisalho, preso em uma trança que desce
sobre um ombro. Ela se assusta quando me vê, mas sua expressão
logo se suaviza e recebo um sorriso gentil.
– Sei que a biblioteca é vinte e quatro horas, mas estudantes não
podem passar a noite aqui.
Respiro fundo.
– Desculpe.
Seus olhos percorrem meu corpo, avaliando as roupas de Rillisk,
que não se parecem nem um pouco com as roupas deste lado. Ao
chegar aos meus pés descalços, seus lábios se curvam para baixo.
– Você tem onde dormir?
Fico pensando o que ela faria se eu dissesse que não, e para
onde eu iria – ou para onde ela me enviaria. Ela parece bondosa.
Imagino se poderia me refugiar aqui.
Um homem surge em uma esquina, mais jovem e mais pesado
que a mulher, e franze as sobrancelhas ao me ver. Ele parece tão
surpreso quanto ela, mas seus olhos me avaliam friamente. Ele fala
baixo, meio ofegante, mas se faz entender.
– Sem-teto? – ele sussurra. – Devo chamar a polícia?
Ela dá um breve aceno com a cabeça, em seguida se aproxima
de mim.
– Está com fome? Podemos arranjar algo pra você comer.
Meus ouvidos se prendem na pergunta dele. Polícia. Executores
deste lado. Já os vi antes. Não são coisa boa para alguém como eu.
Aqui não é meu refúgio. Não agora. Não assim.
Fecho os olhos. Vejo a parede. Atravesso-a.
Uma escuridão silenciosa, rápida e repentina, pressiona minhas
pálpebras. Estou seguro. Estou de volta. Inspiro profundamente e
abro os olhos.
Tycho está parado bem na minha frente.
Pelos infernos. A pulseira escorrega dos meus dedos e cai no
chão de madeira fazendo barulho.
Ele está de olhos arregalados e ofegante.
– Você desapareceu – seus olhos saltam para a minha cama, a
dois metros de distância, e de volta para o meu rosto. – Então
reapareceu aqui.
Não digo nada. Não posso negar.
Ele me encara no escuro.
– É você que eles estão procurando?
– Você selará seu destino com essa pergunta.
Tycho engole em seco.
– Hawk, é você?
A tensão se juntou a nós no sótão como um juiz silencioso,
prendendo-me no lugar.
– Sim.
– O que eles vão fazer se te encontrarem?
– Eles não vão me encontrar.
As palavras parecem uma ameaça, e ele recua. O que deveria
provocar empatia em mim, mas não é o que acontece. Aprendi a
guardar as emoções a sete chaves e fazer o que preciso fazer. Bem
demais.
Tycho respira fundo e consegue se controlar, ajeita a postura e
olha para mim. É mais corajoso do que pensa.
– Conte-me o que eles vão fazer.
– Não tenho certeza, mas é provável que as coisas não terminem
bem para mim.
– Eles vão te matar?
– Sim.
Sua voz fica mais baixa.
– Você fez algo muito ruim?
– A resposta para essa pergunta é longa e complexa. – Examino
sua expressão. – Mas não. Não da maneira como está imaginando.
Não estou sendo perseguido pelo que fiz, mas pelo que sou.
Ele me observa. Eu o observo. Poderia quebrar seu pescoço em
um piscar de olhos. Poderia derrubá-lo do sótão para parecer que
ele caiu da escada durante a noite. Ninguém desconfiaria. Tycho é
uma sombra. Provavelmente ninguém lamentaria.
Eu lamentaria.
O pensamento me acerta como uma flecha penetrante e
verdadeira. Esfrego as mãos no rosto. Eu lamentaria. Não quero
machucá-lo. Ele confia em mim. Talvez só em mim.
Ele toca meu antebraço e eu abaixo a mão.
– Vou guardar seu segredo – ele diz baixinho, tão sincero quanto
antes da revelação.
– Mesmo que você pudesse comprar sua liberdade?
Ele parece surpreso, e depois magoado.
– Não vou comprar a minha liberdade com a sua morte.
É minha vez de recuar. Quase fiz exatamente isso com ele.
Respiro fundo e estendo a mão para bagunçar seu cabelo, dando-
lhe um empurrãozinho.
– Fico honrado em ter sua confiança, Tycho.
Ele cora, consigo ver mesmo na escuridão.
– Bem, eu fico honrado em ter a sua, Hawk.
A tensão entre nós se dissipou tão brandamente que é quase
como se eu a tivesse imaginado. Lembro-me de como era confiar
em alguém. Lembro-me de como era ter um amigo. Não tinha
percebido o quanto eu sentia falta disso até alguém me dar
gratuitamente.
– Grey – digo baixinho. – Não Hawk.
Ele arregala os olhos, mas sorri.
– Grey.
– Vou colocar você em perigo por guardar meu segredo. – Digo
com uma voz séria. – Se eu for pego e eles descobrirem que você
sabia.
– Então não seja pego.
Dou risada.
– Volte para a cama – digo. – Os cavalos vão pedir o café da
manhã antes do amanhecer.
Ele sobe na cama dele e eu na minha, e o silêncio cai sobre nós
novamente. Dessa vez, é mais leve. Meu coração não dispara,
querendo escapar de uma ameaça invisível.
– Jodi disse que você come feito um nobre – Tycho fala. – Você
era um nobre? Antes?
– Não. – Sinto-me tão aliviado por poder falar com alguém que
tenho vontade de despejar toda a história a seus pés, só para dividir
o fardo. – Eu era um guarda. Na Guarda Real.
– Ah. – O peso da informação o obriga a ficar em silêncio por um
tempo, até que ele se vira para me olhar. – Espere.
Congelo, tentando imaginar se isso vai mudar as coisas.
– Sim?
– Então você estava fingindo. Com as espadas de treino.
– Sim, estava.
– Você pode me ensinar? – ele pergunta.
Ele parece tão ávido que dou risada. Eu provavelmente poderia
ter trocado seu silêncio por aulas de esgrima.
– Pode ou não? – ele pressiona. – Se a gente treinar em
segredo?
– Sim – digo sorrindo. – Posso, sim.
CAPÍTULO CINCO
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
O sangue de Sorra mancha as minhas vestes. Não tenho mais
nada para usar e me recuso a pedir qualquer coisa para o homem
terrível que me fez prisioneira, então me conformo.
As manchas e respingos secaram e viraram um marrom feio no
tecido creme. Minhas próprias lágrimas marcam o decote. Ambos
são um lembrete conveniente do que eu perdi.
Do que Parrish perdeu.
Ele poupou a garota na floresta e, em troca, eu causei a morte de
seu amor.
Talvez eu esteja errada sobre tudo isso. Certamente mamãe e
Nolla Verin estão corretas em sua visão cruel do mundo. Talvez
minha ânsia pela paz entre nossos reinos seja realmente uma
fraqueza. Talvez meu desejo de ser herdeira seja uma fraqueza. Se
tivéssemos planejado um ataque a Emberfall – de fato, a
conselheira de mamãe, Clanna Sun, era a favor –, nada disso teria
acontecido.
Muitas pessoas teriam morrido.
A ideia é desagradável, então a afasto.
Os soldados do príncipe me trancaram em um quarto luxuoso que
dá para o pátio do castelo. Como provavelmente nunca mais vou
dormir, passo a noite olhando os paralelepípedos lá embaixo.
Quando amanhece, o sol toca minhas lágrimas e seca minhas
bochechas.
Observo o horizonte, esperando algum sinal de que vieram me
resgatar. Sem dúvida minha mãe não vai acreditar na minha carta,
depois que o príncipe se mostrou tão desconfiado com ela e minha
irmã. Sem dúvida minha irmã vai ordenar que me permitam voltar
para casa, ou virá negociar ao meu lado.
Sem dúvida.
Espero por horas, até que o sol esteja alto no céu. Um cavaleiro
solitário surge na borda da floresta, galopando em um ritmo
constante. Pela primeira vez, a esperança floresce em meu coração.
Mas então vejo o dourado e vermelho de Emberfall.
Afundo de volta no chão de mármore.
Sou tão tola. Não acredito que confiei nele.
Acho que você confia em sua mãe. Infelizmente, eu não.
A raiva irrompe através da tristeza em meu peito. Ele está certo:
eu confio em minha mãe. Confio que ela vai colocar fogo nesse
castelo quando vier me resgatar. Que ela vai garantir que Rhen
jamais se sente no trono. Que ela vai quebrar cada osso de seu
corpo e arrancar cada fio de cabelo e incendiar cada fibra de seu…
A porta do meu quarto se abre e eu engasgo na minha fúria.
O príncipe Rhen está parado ali, vestido em fino couro com fios
dourados, majestoso, perfeito e frio.
Estou no chão com minhas roupas sujas, quase queimando de
ódio. Quero me atirar contra ele.
Em vez disso, fico de pé, adotando uma postura tão majestosa
quanto a dele.
– Você vai se arrepender das suas ações. Minha mãe vai dobrar
as forças que já estava planejando enviar para esse seu país
amaldiçoado.
– As forças que ela provavelmente não pode bancar?
Mordo os dentes com firmeza.
– Entendo a sua raiva – ele diz.
– Você não sabe de nada.
– Sei de muita coisa. – Ele estreita os olhos. – Sei que você veio
aqui no meio da noite impulsionada por motivos questionáveis. Sei
que sua mãe extorquiu meu pai por anos e tentou fazer o mesmo
comigo. Sei que sua mãe e sua irmã não se importam com meu
povo, só com a hidrovia que vai lhes garantir uma nova rota para
trocar moedas. – Ele dá um passo em minha direção, com os olhos
sombrios de fúria. – Sei que milhares de pessoas foram mortas por
causa disso. Isso é o que sei.
– Eu também sei de muitas coisas. – Sustento seu olhar. – Sei
que mentiu para o seu povo.
– Não menti.
– Você mente. – Cuspo as palavras. – Sei que você está
procurando esse herdeiro porque tem medo da magia dele. Sei que
você me aprisionou porque tem medo da minha mãe. Suas ações
revelam sua fraqueza, príncipe Rhen.
– Pelo contrário. Minhas ações revelam minha força.
– Matar pessoas inocentes nunca deveria ser visto como força.
Suas sobrancelhas se erguem.
– Não é isso que vocês fazem?
– Você matou minha guarda depois que eu o procurei para
discutir uma maneira de garantir a paz para o nosso povo.
– Meus guardas só pegaram em armas quando os seus pegaram
– ele diz. – Eu disse que você ficaria segura, como foi provado. Ela
também deveria estar segura.
– Você conta mentiras a seu povo, príncipe Rhen. – Minha voz
quase falha, e respiro fundo para firmá-la. – Não vou acreditar em
nada do que disser.
Ele puxa um pergaminho dobrado da cintura.
– Acreditaria na sua mãe?
Prendo a respiração. O guarda voltou com a resposta dela.
Lanço-me para a frente e arranco-a de sua mão, esperando que
ele não ceda, mas não é o que acontece. Os guardas estão parados
atrás dele ao longo da entrada, porém já vi o que eles fizeram com
Sorra e não sou estúpida, apesar de minhas últimas escolhas
infelizes. Dou um passo para trás e abro a carta apressadamente.
São as palavras da minha mãe, e fico tão chocada ao vê-las que
demoro um momento para ler a carta.
Na língua comum de Emberfall, ela escreveu:
GREY
LIA MARA
GREY
Quando o pai de Rhen era o rei, um dos últimos testes para ser
admitido na Guarda Real era uma partida entre um guarda e um
prisioneiro da masmorra. O prisioneiro recebia armadura completa e
armas. O guarda ficava com os membros acorrentados. Sem
armadura nem armas. Se o prisioneiro vencesse, ganharia a
liberdade. Se o guarda vencesse, recebia o direito de jurar sua vida
a serviço da Coroa.
Tiramos cartas para distribuir os prisioneiros entre os
concorrentes, e meu oponente era um soldado enorme chamado
Vail. Tinha sido condenado à morte por roubar os cofres do exército,
mas os boatos diziam que ele foi pego violando cadáveres. Ele era
todo marcado de cicatrizes, muito cruel e tinha praticamente duas
vezes o meu tamanho – eu era um garoto de dezessete anos.
As partidas ocorriam na presença da família real. Antes desse
dia, eu só tinha os visto de longe: o rei e sua rainha distante, o
príncipe Rhen e suas irmãs.
O guarda que me antecedeu tinha falhado. O rei parecia
decepcionado.
O príncipe Rhen parecia entediado.
Eles tocaram um sino e soltaram Vail na arena.
Eu tinha assistido às partidas anteriores. A maior parte dos
guardas recuava primeiro para esperar uma abertura. Com Vail, eu
sabia que isso nunca aconteceria. Ele avançou com sua espada, e
eu lancei as correntes ao redor da arma, segurando firme. Quando
ele tentou se soltar, pulei em sua garganta e esmaguei sua traqueia.
Ele caiu como uma pedra.
A partida terminou em menos de dez segundos. O sino ainda
nem tinha parado de soar.
O príncipe não parecia mais entediado.
– Você teve sorte de ele não ter arrancado as suas mãos – disse
o comandante da guarda da lateral da arena. – Avançando em
direção à espada com as mãos nuas assim.
– Não foi sorte – respondi.
Fiz o juramento no dia seguinte. Um juramento que durou uma
eternidade.
E que eu nunca tinha me arrependido de ter feito até aquele
momento.
Quando a carroça estaciona no pátio de paralelepípedos do
Castelo Ironrose, os guardas quase me arrastam para fora. Quero
cravar as unhas nas tábuas lascadas do piso do veículo. Quero
fugir. Quero me esconder.
Dustan seguiu na frente, provavelmente para informar minha
captura, porque o pátio está lotado. Meus olhos captam tudo, e é
quase insuportável. Guardas estão alinhados nas paredes do
castelo, mas reconheço poucos. Rhen está no centro,
absolutamente imóvel. Harper está ao seu lado, segurando sua
mão. Os nós dos dedos dela estão brancos. Não consigo olhar nos
olhos deles. Então fico olhando para as pedras a seus pés, cada
segundo mais próximas.
Nunca vi o pátio tão silencioso, como se até os cavalos sentissem
o peso deste momento. Não fiz nada de errado, mas, mesmo assim,
culpa e vergonha queimam meu estômago.
Não assim, penso. Não assim.
Mas é claro que seria assim. Eu garanti que seria assim três
meses atrás.
Meus pés ficam parados no lugar.
Um punho me acerta entre os ombros com tanta força que sou
lançado para a frente e caio de joelhos. A dor ricocheteia pela minha
perna, e reprimo um grito.
– Você está diante do príncipe herdeiro e sua dama – diz um dos
guardas. – Tem que se ajoelhar.
Preciso falar algo, mas não quero.
Minha voz é apenas um som áspero:
– Perdoe-me, meu senhor.
O guarda dá mais um soco entre as minhas omoplatas, e desta
vez preciso usar as mãos para me apoiar.
– Você deve se dirigir ao príncipe como “Sua Alteza” – ele
vocifera.
– Perdoe-me, Sua Alteza – repito.
O silêncio que se segue engole minhas palavras. Rhen não fala
nada. Harper não fala nada. Como eu gostaria de poder
desaparecer de Emberfall, pois aceitaria qualquer outro destino que
não envolva ficar acorrentado aos pés das pessoas que outrora jurei
proteger.
– Olhe para mim – Rhen finalmente diz.
Se as palavras transparecessem raiva ou autoridade, talvez eu
obedecesse. Mas seu tom é suave, afetado pela traição.
Não consigo olhar para ele. É como se eu o tivesse traído.
Uma mão agarra meu cabelo e então percebo que um dos
guardas vai me forçar a olhar para cima.
Rhen intervém:
– Não.
A mão me solta.
– Olhe para mim – ele repete, e desta vez é uma ordem.
Ergo a cabeça e olho para ele.
O príncipe Rhen ainda é o mesmo e, ao mesmo tempo, não é. A
incerteza e a insegurança dos estágios finais da maldição foram
substituídas por uma determinação feroz. Este é o homem que
suportou as torturas da feiticeira, estação após estação, para me
poupar. O homem que deu sua vida para salvar o povo de
Emberfall. O homem que será o rei.
Seus olhos, afiados como sempre, examinam os meus,
procurando respostas.
– Está sob juramento a alguém? – ele fala com uma voz baixa e
ameaçadora.
A pergunta me surpreende, e de repente compreendo que ele
deve pensar que fugi porque fiz um juramento a Lilith.
– Não, meu… Sua Alteza.
– Você não está jurado a ninguém?
– Ninguém a não ser ao senhor.
Seus lábios se comprimem.
– Eu liberei você do juramento.
– Então peço que me dê minha liberdade.
Os olhos de Rhen não deixam os meus. Ele está tentando me
entender.
Eu poderia solucionar suas dúvidas. Sou o herdeiro. Sou o
homem que você procura.
E o que é irônico: Fugi para poupá-lo de todo esse problema.
Harper dá um passo à frente e se ajoelha diante de mim. Seus
olhos estão arregalados, cheios de uma tristeza sombria.
– Grey – ela sussurra. – Grey, por favor. Você está… Você está
vivo. Todo esse tempo, pensamos… pensamos que estava morto.
Queria poder apagar o sofrimento que vejo em seu olhar, mas ele
é tão profundo quanto a traição no olhar de Rhen.
– Uma princesa não deveria se ajoelhar diante de um prisioneiro
– digo baixinho.
As palavras são um eco das tantas vezes que as pronunciei
quando era guarda, e espero lembrá-la de sua posição, espero
obrigá-la a se levantar.
Em vez disso, ela coloca uma mão na minha bochecha, e essa é
quase minha perdição. Fecho os olhos e viro o rosto.
– Grey – ela murmura. – Por favor, ajude-me a entender. Por que
você fugiu?
– Comandante – Rhen diz bruscamente.
Olho para ele no mesmo instante. Só para me lembrar de que
não sou mais um guarda.
A expressão do príncipe está mais serena, mas ele notou meu
movimento. Não consigo ver nenhuma emoção em seu rosto agora.
Não é um bom sinal.
– Levem-no – ele ordena. – Limpem-no, cuidem de suas feridas e
deixem-no ileso. Mandem uma refeição para ele.
– Sim, meu senhor. – Dustan agarra meu braço.
– E comandante?
Estremeço, mas não olho.
Os olhos de Rhen estão frios.
– Cuide para que ele não fuja.
CAPÍTULO QUINZE
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
O caos impera no pátio.
Fico observando e esperando das sombras.
Ninguém repara nos dois homens carregando Grey e o garoto
para fora do pátio enquanto todos são levados para dentro do
castelo.
Ninguém repara na pequena carroça partindo do lado escuro dos
estábulos, com um homem de pele marrom atiçando os cavalos, em
voz baixa.
Ninguém repara na princesa Harper assistindo à carroça
desaparecer floresta adentro.
E, finalmente, ninguém repara que estou subindo nas costas de
um palafrém prateado para também desaparecer floresta adentro.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
GREY
Acordo de frente para uma fogueira, deitado de bruços sobre uma
pilha de cobertores macios. Não me lembro de ter pegado no sono e
não reconheço nada. As paredes são recobertas por painéis de
madeira e a lareira é pequena. Não estou no palácio.
Respiro fundo, e cada ferida do meu corpo protesta. Reprimo um
grito.
– Da última vez que costurei você, você me ignorou e saiu pra
lutar contra um monstro. – A voz de Noah é baixa, vinda do lado
oposto da sala. – Acho que isso pode te segurar no lugar.
Tenho que me esforçar para virar a cabeça. Noah está curvado
em uma cadeira de madeira no canto próximo à porta, com uma
caneca fumegante entre as mãos. À sua esquerda, há uma ampla
cama de estrado. O rosto de Tycho está enterrado nos cobertores,
mas reconheço seu cabelo loiro e seu braço levemente musculoso
caído no chão.
Mesmo daqui, posso ver as listras vermelhas que adornam suas
costas. Desvio os olhos.
É minha culpa.
Há outro homem deitado na cama, mas só vejo suas botas. Deve
ser Jacob.
Não faço ideia de onde estamos, mas, no momento, não me
importo. Ergo uma mão para esfregar os olhos, e até isso dói de
formas que eu não imaginava.
– As feridas do chicote precisaram receber pontos?
– Algumas, sim. As de Tycho eram mais superficiais, mas não
muito. Acho que pegaram leve com ele. – Sua voz está cheia de
repulsa.
– Você está bravo.
– Pode apostar que estou bravo. Sei que as coisas são…
diferentes aqui, mas não importa. Guerra e tortura são duas coisas
distintas.
Não discordo dele. Depois de tudo o que Lilith fez, isto parece
pessoal demais – e, de alguma forma, mais humilhante. Aperto o
cobertor. Falando em humilhação, meu corpo tem necessidades.
– Noah, eu preciso…
– O quê? Ah. – Ele se levanta da cadeira.
Ficar de pé exige toda a minha força, mesmo com Noah me
segurando debaixo dos braços.
– Temos que ir lá fora. Você pode se apoiar em mim.
Não quero me apoiar, mas, após alguns passos, meus ouvidos
estão zumbindo e minha visão fica turva, então cedo. Seguimos por
um corredor curto e saímos por uma porta. O ar é fresco e límpido –
um alívio e, ao mesmo tempo, um ataque às minhas costas nuas. O
alvorecer é uma promessa roxa no horizonte. Ainda é cedo, então
Noah fecha a porta atrás de nós. Um trecho de grama leva a um
pequeno celeiro, que brilha ao luar.
De repente, reconheço onde estamos. A última vez que estive
aqui era pleno inverno, e a neve cobria tudo de branco.
É a Crooked Boar. A pousada que ofereceu abrigo para Rhen e
Harper. A pousada onde tudo mudou.
Esfrego os olhos de novo.
Ele me conduz para um pequeno bosque.
– Você quer que eu fique pra te dar apoio? Ou prefere
privacidade?
Neste momento, não me importo, mas fico grato que ele esteja
me permitindo um pouco de dignidade.
– Consigo ficar de pé – digo, sem muita certeza. Ele se afasta,
mas apenas o suficiente para se apoiar na pousada e desviar os
olhos. Quando termino, ele já está de volta sem que eu precise
chamá-lo.
– Você está sendo gentil. Não acho que eu mereço.
– Quando me tornei médico, fiz um juramento prometendo ajudar
pessoas que precisassem de mim. – Eu me apoio nele. – Elas
merecendo ou não.
Perto da porta, hesito. Mesmo aqui, neste lugar seguro, só a ideia
de entrar em um espaço fechado faz meu coração acelerar.
– Gostaria de ficar aqui fora – digo.
Penso que Noah vai recusar, mas ele muda a direção para me
ajudar a alcançar o banco ao lado da parede dos fundos da
pousada.
No entanto, não consigo ficar confortável sentado ali. Contento-
me em apoiar os antebraços nos joelhos e cerrar os dentes contra a
dor nas minhas costas. Ficamos em silêncio por um longo tempo,
respirando o ar do amanhecer.
– O que aconteceu, exatamente? – Noah enfim pergunta. – Por
que eles desmaiaram daquele jeito?
Eu me lembro do estrondo, do clarão e do silêncio repentino.
Eu me lembro do desespero que senti quando percebi que Rhen
queria açoitar Tycho para me forçar a me render.
É um nível de crueldade que eu não esperava.
– Não sei – respondo.
– Sei que existe magia aqui, mas é difícil acreditar, até você ver
dezenas de pessoas caírem duras feito pedra de repente.
Meus ombros ficam tensos.
– Foi você, não foi?
Não digo nada.
– Se não foi você – ele continua –, foi Tycho, mas ele estava
inconsciente, e você não. Então…
Fico olhando minhas mãos. O sangue está seco nos nós dos
meus dedos, misturando-se com a terra e a areia.
– Se você descobriu, o príncipe logo vai descobrir também. –
Ergo os olhos para a grama e os estábulos. – Vamos ter que sair
daqui. O estalajadeiro e sua família correm perigo em minha
presença.
No entanto, não faço ideia para onde ir ou para onde levar Tycho.
– É você que todos estão procurando – Noah diz. – O feiticeiro. –
Ele pausa. – O herdeiro.
Ele fala como se não pudesse acreditar, mas assinto.
– Você sabia? Durante todo o tempo que ficou preso na
maldição… você sabia?
– Não. – Minha voz fica esganiçada pela raiva, alimentada pela
dor nas minhas costas. – Você acha que eu teria aguentado o que
aguentei se soubesse que possuo algum tipo de magia? Sério?
Ele está me encarando, impassível, e solto um suspiro. A raiva
que sinto não é por Noah.
– Só descobri quando levei Lilith para o outro lado. Ela tentou
comprar a liberdade com a verdade. Mesmo então, eu não sabia
como manejar a magia. – Pauso. – Ainda não sei o que fiz no pátio.
– Quando Lilith te contou a verdade… por que você fugiu? Por
que foi embora?
– Karis Luran já tinha espalhado a dúvida no primeiro dia em que
veio a Ironrose. Eu sabia que minha existência ameaçava a linha de
sucessão. – Espero um pouco. – Pensei que seria mais fácil se todo
mundo pensasse que eu estava morto.
Ele fica em silêncio por um tempo.
– Isso parece mais fácil, Grey?
Penso nos olhos sombrios de Rhen quando conversamos em
seus aposentos, na desconfortável tensão de seu corpo quando ele
me contou sobre Silvermoon e tudo o que estava em risco.
– Não imaginei que Rhen teria mais medo da magia que de
perder o trono. Eu errei.
Noah faz uma careta.
– O medo faz as pessoas tomarem atitudes que nunca
esperaríamos.
– De fato. Ele provou isso ontem à noite.
– Por que você não contou pra ele de uma vez? – ele pergunta,
mas depois suspira sem esperar uma resposta. A raiva se infiltra
mais uma vez em suas palavras. – Esquece. Eu vi o que ele estava
disposto a fazer pra conseguir uma resposta, e só posso imaginar o
que ele teria feito depois.
– Emberfall já está correndo o risco de entrar em uma guerra civil.
Um ataque de Karis Luran pode estar iminente, especialmente
agora que Rhen fez a filha dela de prisioneira. – Paro de repente
conforme um lampejo de uma memória corta a confusão da minha
mente. Lia Mara ao meu lado, segurando Tycho para me ajudar a
libertá-lo da parede. Isso aconteceu mesmo? Será que ela fugiu?
Não consigo juntar as peças, e provavelmente não importa mais.
Balanço a cabeça. – Rhen está tentando manter seu país sob
controle.
Noah não diz nada. Mudo de posição, buscando me ajeitar, e
coloco os braços exatamente onde estavam.
– Você devia voltar para Ironrose – digo. – Agora, enquanto ainda
é cedo. Você será visto como um traidor se for descoberto comigo.
– Não.
Ele fala de modo tão simples. Viro a cabeça para olhá-lo, mas
seus dentes estão cerrados, seus braços, tensos, apoiados sobre os
joelhos.
– Não?
– Já falei pra Jake que prefiro ser cúmplice da sua fuga do que
das ações de Rhen.
– Por causa do seu juramento?
– Porque é errado. – Ele me encara, e sua voz é severa. – De
onde venho, pessoas como eu têm experiência com esse… tipo de
tortura. Não vou fazer parte disso. Não me importo se isso faz de
mim um traidor.
Eu o observo.
– Noah… já existem boatos sobre você possuir magia. Se fugir
comigo…
– Magia. – Ele faz uma careta. – É medicina. Ciência. Sabe o que
é engraçado? Do outro lado, eu era julgado pela cor da minha pele.
Por gostar de homens. Daí venho para cá e ninguém liga pra essas
coisas. Aqui, eles questionam se um curandeiro é nobre o suficiente
pra amar um príncipe. Eles questionam como eu consigo resolver
uma alergia ou fazer a febre baixar. – Ele revira os olhos.
Uma brisa sopra entre o celeiro e a pousada, fazendo-me tremer.
Meu coração implora por ação, mas não posso fazer muita coisa.
– Quanto tempo vai levar pra essas feridas melhorarem? –
pergunto.
– Semanas. – Ele faz uma pausa. – Talvez menos. Vou ver se a
esposa do estalajadeiro tem gengibre ou açafrão pra amenizar a
inflamação.
Abaixo a voz, apesar de ainda ser cedo e todos estarem
dormindo.
– Eles acham que estamos aqui por quê?
– Eles só viram Jake e eu, e eles nos conhecem. Dissemos que
você e Tycho foram feridos em um assalto na estrada e
precisávamos passar algumas noites aqui.
Uma boa desculpa, nada que vá levantar suspeitas. Terei que
encontrar uma camisa antes que alguém veja minhas costas.
– Tycho passou por… muita coisa – digo, olhando para ele de
relance. – Ele acordou ontem à noite?
– Sim, várias vezes. – Ele pausa. – Ficou perguntando se
conseguimos tirar você dali também.
Fico vendo o rosto do garoto no sótão de Worwick. Vou guardar
seu segredo, Hawk.
Passo uma mão no queixo.
– Eu jamais devia tê-lo envolvido nisto. Em nada disto.
Para minha surpresa, Noah ri baixinho.
– Você provavelmente não teria conseguido impedi-lo. O garoto
se jogaria de um precipício por você.
Tomo fôlego para responder, mas ouço cascos batendo no chão e
paro. Já estou de pé antes que meu corpo proteste.
– Dois cavalos, no mínimo – digo para Noah. – Talvez mais. –
Levo a mão à cintura automaticamente, procurando pela espada,
mas não acho nada.
Como se eu pudesse lutar.
– Vá para dentro – digo. – Esconda os outros. Vou pegar um
cavalo. Eles estão me procurando.
– Você não pode cavalgar! Você não…
– Vá!
Não vamos conseguir ser rápidos o suficiente. Os cascos já estão
quase na propriedade. Os guardas vão vasculhar as instalações e
acabar com qualquer um que se colocar no caminho.
Um cavalo surge na lateral da pousada, e penso que está tudo
acabado. Eles devem ter enviado mais homens para que eu não
escape pelos fundos. Minhas mãos estão cerradas em punhos. Não
sinto mais a dor em minhas costas.
– Grey?
Congelo. É Harper… e, atrás dela, em outro cavalo, está Zo.
Não sei o que isso significa. Olho para elas.
Harper desmonta sem hesitar.
– Não tenho muito tempo. Rhen vai ter uma reunião com os
conselheiros. A Guarda Real vai procurar por você durante o dia. –
Ela se atrapalha com um alforje, carregando-o pela clareira em
minha direção. Sua expressão está sombria e preocupada. – Aqui,
trouxe algumas roupas… – Seus olhos percorrem meu corpo, e sua
voz se interrompe. – Ah, Grey.
Ela ainda nem viu o pior, mas sei que há duas marcas dos
chicotes que envolveram minhas costelas. Uma delas segue
paralela à cicatriz que ganhei lutando contra Rhen em sua forma
monstruosa – o que parece condizente com essa situação, de algum
jeito.
Ela estica a mão para tocar meu braço. Seus dedos são quentes
e gentis.
Quando tenta me virar, não deixo.
– Não.
Seus olhos encontram os meus, e sua compaixão é quase pior
que a humilhação pelo que aconteceu. Uma tensão pesada paira
entre nós, quebrada só quando Noah se aproxima para pegar o
alforje.
– Ele precisa vestir uma camisa – diz.
Isso a impele a agir.
– Hum. Sim. Roupas! Aqui. – Ela abre a bolsa e puxa uma
camisa.
Se sentar no banco já foi doloroso, imagino como vai ser mover
meus braços por dentro das mangas.
Mas minha imaginação não faz justiça ao que sinto. Atear fogo no
meu corpo seria melhor. Noah ajuda como pode, mas, quando o
tecido folgado desliza em minhas costas, fico zonzo e suado.
O olhar piedoso de Harper não colabora.
Jogo-me no banco, porque a alternativa é me jogar no chão aos
seus pés. Digo com a voz rouca:
– Eu disse o que ele faria. Disse que não o culparia por isso.
As palavras me soam falsas. Ou… incompletas.
Eu não culparia Rhen se ele fizesse isso comigo.
Harper se senta ao meu lado. Não consigo olhá-la nos olhos.
– Eu o culpo por isso – ela diz baixinho.
– Milady – Zo fala, perto dos cavalos. – Se quiser evitar que nos
descubram, temos que ir embora.
– Ainda não. – Harper pega minha mão. – Grey…
Finalmente olho para ela.
– Não suporto sua pena.
Ela fecha os dedos nos meus antes que eu retire a mão.
– Não estou com pena de você. – Harper me observa. – É você,
não é? – Faz uma pausa. – Você possui magia.
Isto é diferente de quando Noah me perguntou a mesma coisa.
Harper estava presa conosco. Ela correu muitos riscos. A cicatriz
em sua bochecha é prova disso. Pensar que eu poderia ter lutado
contra Lilith de outra forma é quase avassalador.
– Sinto muito – digo. – Eu não sabia.
– Você é irmão de Rhen. – Sua voz está bem baixa. – Durante
todo o tempo que passamos presos na maldição, nenhum de vocês
sabia.
– Teria sido pior saber. – Conforme digo essas palavras, percebo
que não sei se é verdade. Franzo a testa. – E claramente não
importa mais, se ele planeja enviar a Guarda Real atrás de mim.
– Eu… queria que você tivesse me contado. Queria que tivesse
contado para ele. – Agora ela franze a testa, como se percebesse
como as coisas teriam acabado se eu tivesse contado. – Eu
queria… queria…
– Eu queria muitas coisas enquanto estávamos presos na
maldição. Querer não resolve nada. – Paro de falar e olho para Zo
mais uma vez. – Você não pode ficar aqui. Se for descoberta
comigo… Rhen será obrigado a tomar alguma atitude, e não gosto
de pensar no que ele seria capaz de fazer.
A expressão de Harper endurece.
– Primeiro, gostaria de vê-lo tentar fazer algo. Segundo, você fez
todo mundo naquele pátio tombar, incluindo ele. Ele morre de medo
de ser prisioneiro da magia de novo. – Ela faz uma pausa. – Ele não
vai sair atrás de você sem uma estratégia. Quero ver se consigo
impedi-lo antes que isso aconteça.
Ela é tão feroz. Lembro por que todos em Emberfall acreditam
que ela tem um exército à disposição.
No entanto, ela não vai conseguir impedir Rhen. Se ele estava
disposto a fazer o que fez, não vai parar agora.
A porta dos fundos da pousada range. Espero ver o estalajadeiro
ou sua esposa, mas é Tycho que sai cambaleando. Está pálido e
sem camisa, com um olhar um pouco perturbado.
Jacob está atrás dele, esfregando os olhos.
– Viu? Eu disse que eles ainda estavam aqui. Oi, Harp.
– Oi – ela diz, com os olhos no rapaz. – Tycho, aqui. Sente-se.
Não é uma ordem, mas ele abaixa a cabeça e murmura:
– Sim, milady. – E se senta no banco tão cuidadosamente quanto
eu.
Harper examina suas costas com seus olhos ferinos, então vira-
se para mim com a mandíbula cerrada.
– Ele foi longe demais.
Eu não retruco. Ficamos em silêncio. Uma brisa faz Tycho tremer.
Preciso de um plano. Quando fugi de Ironrose meses atrás,
estava ferido, mas não tão gravemente. Ninguém estava me
procurando, então consegui encontrar trabalho com Worwick.
Agora todos estarão procurando por mim. E provavelmente por
Tycho também.
Nenhum de nós está em condições de se defender. Qualquer um
que nos der abrigo estará se colocando em risco.
– Precisamos fugir – digo.
Tycho me olha. Seus olhos estão nublados de dor e exaustão,
mas a esperança se acende quando ele ouve minhas palavras.
– Sim.
Balanço a cabeça.
– Não sei para onde podemos ir.
Nos limites do prédio, percebo um movimento através da névoa e
das sombras do amanhecer. Um corpo encapuzado surge na
esquina.
Levanto-me. Zo desembainha a espada.
– Acalmem-se – Lia Mara retira o capuz. – Sei de um lugar para
onde vocês podem ir.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
LIA MARA
Menos de doze horas atrás, vi este homem ser açoitado até a pele
de suas costas se abrir, e agora ele está de pé como se estivesse
pronto para enfrentar um exército. Ele deve ter sido um guarda
feroz. Ele é feroz agora, mesmo pálido e fraco no silêncio gelado do
quintal. Seu olhar faz meu coração saltar e palpitar, e não tenho
certeza se devo correr, ficar parada ou procurar uma arma.
– O que você está fazendo aqui? – ele pergunta. Um fio de
tensão em sua voz denuncia sua exaustão.
– A mesma coisa que você, acho.
– Você nos seguiu.
Levanto as sobrancelhas.
– Você estava quase morto. Não foi muito difícil.
A princesa Harper coloca uma mão no braço de sua guarda.
– Guarde a espada – ela diz baixinho. E se vira para mim: – Você
disse que sabe de um lugar para onde eles podem ir?
– Claro. Ele seria bem-vindo em Syhl Shallow.
– Não – Grey fala.
– Estou oferecendo asilo em um lugar onde o príncipe Rhen não
pode te procurar.
– Então você está sugerindo que eu troque a tortura de um
soberano por outro.
– Tortura? – Quase solto uma gargalhada. – Você é o legítimo
herdeiro de Emberfall. Minha mãe não vai te machucar. – Ela
provavelmente vai encher o bolso dele de prata e seus ouvidos de
promessas. Nolla Verin vai ver seus olhos escuros e ombros largos
e bajulá-lo inteirinho.
Eu deveria estar feliz – orgulhosa, até – mas esses pensamentos
fazem meu estômago se revirar.
Dou um passo à frente, e ele fica mais tenso. Ergo as mãos.
– Você mal consegue ficar de pé. Você disse que não tem para
onde ir. – Olho para a princesa Harper. – Quer acreditem em minha
mãe e em meu povo ou não, eu realmente vim aqui na esperança
de trazer paz para os nossos países. Estou oferecendo paz agora.
Harper franze a testa e olha para ele.
– Grey… você não está seguro aqui.
– Syhl Shallow fica a vários dias daqui. – Ele inspira devagar. –
Se cavalgarmos rápido.
– Podemos ir assim que possível e descansar sempre que você
precisar.
– Não – diz o homem parado perto da parede da pousada. Foi ele
e o curandeiro que arrastaram Grey do pátio. Príncipe Jacob. Sua
pele está bronzeada do verão, seu cabelo é escuro e encaracolado
como o de Harper.
Harper pragueja baixinho e diz:
– Jake, por favor.
– Ele está sob juramento agora. Eu decido para onde ele vai.
Olho para Grey.
– Você é o príncipe herdeiro e jurou sua vida a outro homem?
– Não jurei minha vida. E não sou o príncipe herdeiro. – Grey olha
para Jacob. – Jurei te levar assim que puder. Para te devolver a
Decê, preciso da pulseira que a feiticeira me deu… e que ficou em
Rillisk quando eles me prenderam.
Príncipe Jacob xinga.
– Eu disse que não seria fácil. Falei isso quando o pegamos pela
primeira vez.
– Tycho e eu não podemos voltar a Rillisk ou seremos
reconhecidos – Grey diz. – Rhen provavelmente já enviou guardas
para lá.
A expressão de Harper é sombria.
– Enviou.
Jacob cruza os braços.
– Ótimo. Que seja. Ainda assim, não vou deixar que ele vá para
outro país e correr o risco de nunca mais vê-lo de novo.
– Você será bem-vindo em Syhl Shallow – digo. – Posso garantir
sua segurança também.
Eles ficam me encarando em silêncio.
O vento corta o quintal, balançando a minha capa.
– Vim aqui procurando paz. Gostaria de ter a oportunidade de
provar para vocês.
Ninguém fala nada.
Finalmente, Tycho diz:
– Ouvi dizer que, em Syhl Shallow, a rainha executa seus
prisioneiros e come suas partes.
Agora minhas mãos viram punhos.
– E que, em Emberfall, o príncipe herdeiro açoita garotos
inocentes quase até a morte por interesses políticos. Ah, perdão, eu
testemunhei isso com meus próprios olhos.
Tycho enrubesce e desvia o olhar.
Grey passa uma mão pelo queixo, suspira e diz:
– Vamos para noroeste, na direção do desfiladeiro.
Levanto a sobrancelha.
– Você concorda?
– Ainda não. Mas se Rhen está me procurando em Rillisk, se está
pensando que vou encontrar aliados e amigos lá, faz sentido seguir
na direção oposta. – Ele me olha nos olhos. – Se bem que ele deve
estar te procurando também, e não é segredo nenhum para onde
você vai. Uma princesa de Syhl Shallow vai encontrar poucos
amigos em Emberfall.
– Então vamos formar um bom time.
Jacob olha para Harper.
– Você devia vir com a gente.
– Preciso voltar.
– Não! – ele esbraveja. – Isso foi longe demais, Harp. Você sabe.
Você não quis vir comigo antes, mas pode vir agora. – Ele faz uma
pausa. – Podemos finalmente voltar para casa.
Ela empalidece um pouco, mas continua firme.
– Jake… Rhen não é cruel. Você não viu como ele ficou ontem à
noite… depois… depois que vocês saíram… – Sua voz falha.
– Eu não me importo – Jacob diz.
Ela enxuga as lágrimas e endireita a postura.
– Eu me importo. – Ela para e olha para Grey. – E Rhen se
importa também. Grey… ele não tem ideia.
– Agora ele sabe – Grey fala. Sua voz é suave. – E mesmo
assim, enviou soldados a Rillisk.
– Por favor. – Ela olha para Jacob. – Por favor, o que ele fez foi
horrível, mas você tem que entender…
– O que eu entendo é que estamos em perigo – Grey interrompe.
– E não temos o tempo a nosso favor.
– Venha com a gente – Jacob pede.
Por um momento, Harper olha para ele e depois para Grey, se
demorando nele um pouco mais.
– Desculpe por não ter impedido – ela diz baixinho.
– Uma princesa não deve pedir desculpas… – ele começa.
– Devo, sim – ela continua. – E uma princesa deve, sim. – Ela dá
um passo para trás. – Vou fazer o que puder. Prometo.
•• ••
Depois que Harper parte para Ironrose, pegamos a carroça. Jacob e
Noah seguem nos cavalos, e uma grande lona cobre a traseira.
Grey e Tycho estão deitados de bruços sobre uma fina camada de
palha, falando tão baixo que não consigo ouvir em meio aos
rangidos e chiados do veículo – ou às batidas do meu coração
acelerado. Estou deitada de barriga para cima na lateral, com as
mãos sobre o abdômen, observando a lona brilhar conforme o sol se
ergue no céu.
A confortável viagem com Nolla Verin alguns dias atrás parece
mais um sonho que uma lembrança.
Fico me perguntando o que minha irmã achou quando Parrish
voltou com a minha carta. Gostaria de imaginar que ela está
esperançosa por mim – ou ao menos preocupada comigo.
Conforme seguimos, penso na princesa Harper. Grey afirmou que
não há nada entre eles, mas claramente há algo. Quando ela o
ajuda, se coloca em risco. Coloca seu país em risco. Considerando
o apoio militar prometido por Decê que nunca veio, surgem mais
perguntas que respostas. Eu poderia entender se ela quisesse se
aliar a Grey como herdeiro legítimo, mas, nesse caso, ela nunca o
mandaria embora. Muito menos comigo. Ela deve saber que minha
mãe vai querer usar Grey contra Rhen, mas parecia realmente
desesperada para vê-lo a salvo, sem se importar com as possíveis
consequências.
Por fim, a carroça para, e emergimos no meio de uma floresta tão
apinhada de árvores e folhagens que o sol mal consegue nos
encontrar.
Jacob está começando a desatrelar os cavalos, e Grey diz:
– Solte-os. Eles carregam a marca real. Vamos ter que ir a pé.
– Você quer caminhar até Syhl Shallow?
– Eu não quero caminhar para lugar algum. – Grey olha para
cima e ao redor, piscando diante das faixas de luz que atravessam
as folhas. – Podemos pegar alguns cavalos na próxima cidade. –
Ele olha para o irmão de Harper. – Posso pedir a sua espada?
Jacob faz uma careta.
– Bem, eu te diria que não.
Grey se aproxima dele. Seus ferimentos vazaram pela camisa e
criaram um labirinto de linhas rosadas e vermelhas em suas costas,
e ele se move com dificuldade.
– A sua vida não está em risco. A minha, sim.
Jacob cruza os braços e endurece o olhar.
– Você mal consegue ficar em pé. O que vai fazer com isso?
– Só dê a espada para ele – Noah diz.
– Está bem, então. – Jacob olha para Grey de cima a baixo. – Se
conseguir segurar, pode ficar com ela.
A mão de Grey voa tão rápido que eu só percebo que ele se
moveu quando seu punho acerta o queixo de Jacob. Solto um
suspiro quando o outro homem começa a cair. Grey agarra o cabo e
puxa a lâmina antes de Jacob atingir o chão.
– Feito. – Grey aponta para a espada em sua cintura. – O cinto
também.
Jacob se levanta apoiando-se em um braço e cospe sangue na
folhagem.
– Odeio você.
Noah suspira e pega uma mochila pesada, jogando-a sobre o
ombro. Ele me encara com seus olhos castanhos.
– Lia Mara, não é? Vamos andando. Venha, Tycho.
Ele se vira. Comparado aos outros homens, admiro sua quietude,
sua não estupidez. Apresso-me para caminhar ao lado dele. Tycho é
como uma sombra.
– Você não sabe para onde está indo! – Jake grita atrás de nós.
– Sei para onde é o noroeste – Noah responde. – Não vou te
costurar de novo, Grey.
– Você disse que fez um juramento. Você tem que me ajudar, não
importa o que aconteça. – As folhas e os arbustos fazem barulho
atrás de nós, então sei que eles estão nos seguindo.
Por algum motivo, pensei que fôssemos caminhar um pouco até
encontrar uma cidade, mas nos esgueiramos pela floresta por horas.
O terreno é acidentado e nosso ritmo é lento, então ninguém fala
nada até que eu esteja faminta, Grey mancando e Tycho ofegando.
O garoto enxuga o suor dos olhos vermelhos, e me pergunto se ele
também está secando lágrimas.
– Talvez a gente devesse descansar – digo, e Tycho me lança um
olhar grato.
Grey olha ao redor.
– Estamos a menos de oito quilômetros do riacho. Podemos
acampar aqui e sair de novo depois da meia-noite.
Oito quilômetros. Agora eu quero chorar. Caminho ao lado de
Tycho. Ele mantém os lábios cerrados, e está obrigando as pernas a
se moverem.
– Oito quilômetros não vão levar muito tempo – digo, em parte
tentando convencer a mim mesma. – E riacho significa água.
Grey deve ter ouvido meu tom de encorajamento, porque olha
para nós e nota a expressão de Tycho.
– Se houvesse caranguejos cozidos no final, você sairia correndo
– ele diz.
Um sorrisinho escapa em meio à melancolia do rapaz.
– Eu chegaria antes que você.
– Podemos não falar sobre comida, por favor? – Jacob diz.
Voltamos para o silêncio. Grey perde o equilíbrio ao passar por
uma árvore caída, mas se recupera apoiando a mão em outro
tronco. Ele não fala nada, mas demora um pouco até conseguir
prosseguir.
Chegamos em um ponto em que não sei dizer se isso é força ou
teimosia.
– Você não pode usar magia para se curar? – pergunto. – Ouvi
histórias de feiticeiros…
– Não posso usar magia.
Tycho o observa.
– Você usou magia para nos libertar. – Ele faz uma pausa, então
olha para mim. – E… lá no Worwick.
– No Worwick, eu tinha uma pulseira enfeitiçada. Em Ironrose… –
Ele suspira. – Não faço ideia do que aconteceu em Ironrose.
– Talvez a gente devesse te dar uma porrada de novo pra ver o
que acontece – Jacob diz.
Grey o encara.
– Tente.
– Não o provoque – Noah pede.
– Por que vocês homens transformam tudo em violência? –
interrompo. – Nem todos os problemas podem ser resolvidos com
uma espada.
– Sua mãe com certeza acha que sim. – Grey me encara com
olhos ferozes. – Nem todos os problemas podem ser resolvidos com
a sua língua.
As palavras não são sugestivas, mas fico vermelha mesmo
assim. Mesmo ferido e mancando, com suor e sangue grudando em
sua camisa, ele é implacável. Sinto falta das brincadeiras fáceis de
Sorra e Parrish. Brincadeiras que nunca mais vou ouvir por conta
das minhas próprias escolhas. Da minha lealdade equivocada. Eu
queria ser rainha, mas mamãe fez a escolha certa ao nomear Nolla
Verin.
Minha garganta começa a fechar, então afasto esses
pensamentos antes que eles consigam me dominar.
– Eu me ofereci para te ajudar – digo. – Não sou sua inimiga.
– Você é inimiga de Emberfall. É uma ameaça à Coroa.
Agora entendo. É o ex-guarda quem está falando. Sustento seu
olhar.
– Você também.
Ele cerra a mandíbula e não responde nada.
•• ••
Ouvimos o barulho do riacho muito antes de vê-lo fluindo depressa
entre as árvores. O curso d’água é mais largo do que eu esperava,
com pelo menos seis metros de uma margem à outra e algumas
poças rasas onde a água se acumulou.
Tycho quase cai de joelhos na lama, colocando as mãos na água
corrente e levando-a aos lábios.
– Temos que fervê-la antes – Noah diz, mas todos já estamos
imitando Tycho.
Só percebi que estava com muita sede quando a água fria tocou
meus lábios. Mesmo quando fiquei trancada em um quarto no
Castelo Ironrose, eu ainda tinha acesso à comida e água. Não
consigo me lembrar de já ter passado o dia todo sem sustento.
Estou sugando minhas mãos como um animal, mas ainda não estou
satisfeita.
Uma mão se fecha no meu braço.
– Vá com calma – Grey diz. Pela primeira vez, sua voz não é
dura, apenas cansada. – Você vai acabar vomitando.
Me pergunto se essa é uma tentativa de aliviar a tensão entre
nós, mas, quando ergo a cabeça, ele já está se afastando. Jacob
está juntando lenha em uma pilha. Seco as mãos nas calças e o
sigo, pegando gravetos e folhas secas. Ele me olha surpreso.
– Ei, obrigado.
– Você fica surpreso porque quero ajudar?
Ele sorri timidamente, o que o deixa muito parecido com sua irmã.
Há uma dureza escondida em sua expressão, uma farpa que Harper
não ostenta, mas não vejo falsidade ou malícia. Penso no veneno
entre ele e Grey.
– Considerando o que já vi da realeza – Jacob responde –, sim,
fiquei surpreso.
– Você também é da realeza, não?
Seus olhos se fecham e se tornam indecifráveis.
– De onde eu venho, se queremos que algo seja feito, fazemos
nós mesmos.
Acendemos a fogueira, e o crepúsculo lança sombras compridas
sobre o riacho, trazendo uma brisa fresca que sopra entre as
árvores. Em algum lugar nos galhos acima, uma ave de rapina emite
um aviso. O silêncio entre nós não é confortável nem sociável. Meu
estômago se retorce de fome, mas não temos nada para comer.
– Eu tenho prata – Jacob diz para Grey. – Posso caminhar até a
cidade.
– Há alguma cidade perto? Eu também posso ir – ofereço. –
Podemos fingir ser um casal viajando juntos.
Grey me encara com seus olhos escuros.
– Quanto mais seguirmos ao norte, mais habitantes de Emberfall
terão visto os invasores de Syhl Shallow. Seu sotaque vai te
denunciar. – Ele olha para Jacob. – E o seu vai te revelar como
estrangeiro.
– E daí? Você acha que eles vão mandar um recado a Rhen
dizendo que um cara aleatório de sotaque estranho apareceu do
nada?
– O príncipe ofereceu uma recompensa de quinhentas pratas. Se
acha que as pessoas não estão procurando alguém que possa ser
sacrificado para a Coroa, está redondamente enganado.
Jacob parece querer retorquir, mas Tycho intervém:
– Os guardas executaram um homem em Rillisk. – Sua
expressão é tensa. – Sem provas.
Jacob fecha a boca.
Grey se mexe e faz uma careta. As listras rosadas em sua
camisa ficaram vermelhas, mas ele recusou cuidados.
– Você não vai querer adentrar uma cidade desconhecida no
escuro. Não agora.
Ao seu lado, Tycho suspira.
– Eu daria quase qualquer coisa por uma travessa de
caranguejos da Jodi agora.
Grey dá um sorriso triste.
– Eu daria qualquer coisa por um arco e uma dúzia de flechas.
Jacob inclina a cabeça para trás e olha para o céu.
– Eu daria qualquer coisa por um hambúrguer no capricho da
Chewie’s.
– Oh, sim. – Noah solta uma risada baixa e gostosa, indicando
uma lembrança compartilhada pelos dois.
Sorrio, encantada.
– O que é hambúrguer?
Penso que eles vão relaxar e me explicar, mas, em vez disso,
suas expressões se fecham do mesmo jeito como Jacob fez quando
estávamos recolhendo lenha.
– Acho que nunca mais vamos ver um hambúrguer de novo – ele
diz. – A não ser que Grey nos leve pra casa.
Eu o observo, pensando nas suspeitas de minha mãe sobre Decê
e na maneira como Harper não demonstrou ter a postura de uma
governante – tampouco Jacob. Quando estávamos discutindo sobre
onde encontrar asilo, ninguém mencionou Decê como um lugar
seguro. Nem mesmo a princesa Harper. Tampouco houve menção à
assistência do rei de Decê para lidar com a desordem política em
Emberfall – nem menção alguma sobre a aliança deles correr risco
se Rhen não fosse o herdeiro legítimo.
A não ser que Grey nos leve pra casa.
Olho para Grey.
– Decê só pode ser encontrada através da magia.
Ele me olha de volta com uma expressão inescrutável.
Agora que achei um fio solto, tudo começa a se desenrolar.
– É por isso que não há forças para oferecer apoio a Emberfall.
Elas estão presas em Decê.
Os olhos escuros de Grey não revelam nada, mas Jacob parece
envergonhado. Noah, resignado.
Tycho parece fascinado.
– Há forças ou não? – pergunto para Grey. – Um exército
esperando sua magia?
Ele não responde.
Mas isso diz tudo.
Deixo um suspiro escapar por entre os dentes. Acima, a ave de
rapina guincha mais uma vez.
– Não foi a história que seu príncipe contou para o povo.
Ele não nega nada.
– Fizemos isso para salvar nosso povo. E funcionou.
Bem, pelo menos essa parte é verdade. Mas agora entendo por
que os súditos de Rhen começaram a se voltar contra ele. Ele fez
promessas que não está conseguindo cumprir. Ele comprou a
confiança deles com mentiras, e agora vai ficar mais fraco do que
quando começou.
Olho para Noah e Jacob.
– E vocês estão presos aqui. Não podem voltar para casa.
Eles trocam um olhar.
– Sim – Jacob finalmente diz. – Mais ou menos.
Meu coração acelera, tentando compreender as implicações
dessa descoberta.
– E nenhum de vocês é da realeza, não é?
– Não – Jacob confessa, encolhendo os ombros. – Mas Noah é
médico de verdade.
– Então a princesa Harper não é uma princesa.
– Ela salvou o príncipe de um destino terrível – Grey diz. – Ela
arriscou a vida por Emberfall, e arriscou a vida para me proteger. Ela
pode não ser uma princesa por nascimento, mas é em espírito.
Todos ficamos em silêncio, mas agora há uma tensão reflexiva no
ar. De algum lugar da escuridão, outro guincho ecoa pelas árvores.
Por fim, a maioria dos homens encontra refúgios nas sombras,
mas, apesar da exaustão, meus pensamentos ainda estão agitados.
Grey também não está dormindo. Quando olho para ele, a luz do
fogo brilha em suas bochechas, e percebo que ele está me
observando.
Eu o encaro e espero.
– Você é esperta – ele diz.
Não esperava por isso. A frase não soa como um elogio – nem
como um insulto. Não consigo decifrar seu tom de voz. A ave de
rapina grita para a noite de novo, e eu estremeço.
Grey não desvia o olhar.
– Você sabia que eu era o herdeiro – ele diz baixinho, cuidadoso.
– E descobriu a verdade sobre Decê. O que mais você sabe,
princesa?
Mantenho os olhos no fogo e tento afugentar qualquer desânimo.
– Na verdade, não sou uma princesa. Sou a mais velha de duas
irmãs, mas somente a herdeira escolhida recebe esse título, e não
sou eu.
– Então o que você sabe, irmã mais velha?
Hesito, mas ele é tão franco, tão desprovido de hesitação, que
me faz querer agir do mesmo jeito.
– Sei que você deve ter sido muito leal ao príncipe Rhen para
querer guardar seu segredo. – Faço uma pausa. – Vejo como Tycho
é leal a você, e acho que as atitudes do príncipe Rhen foram quase
uma traição.
Grey esmaga um galho entre os dedos e joga os pedaços no
fogo. Quando ele fala, sua voz está áspera.
– Uma vez, eu disse que ele nunca era cruel. Quis dizer isso
como um sinal de respeito. – Ele se interrompe. – Agora, sinto como
se o tivesse desafiado, e ele aceitou o desafio.
Nolla Verin pode ser cruel, mas não consigo imaginá-la pegando
alguém querido para mim e torturando-o – mesmo por interesses
políticos. A despeito dos meus sentimentos por Rhen, esses
homens têm uma história comum. Não sou capaz nem de pensar o
que deve ter custado a Grey para suportar a tortura – tampouco o
que deve ter custado a Rhen para executá-la.
O ar ficou mais pesado e desconfortável, então viro a cabeça e
olho para ele, forçando leveza na voz.
– Mais cedo, quando todo mundo estava pensando em comida,
você disse que queria uma dúzia de flechas. Por quê?
O esboço de um sorriso se infiltra em sua tristeza.
– Se eu tivesse uma dúzia de flechas, teríamos comida pra uma
semana.
Ah. É claro. Eu devia ter desejado uma dúzia de flechas também.
Ele estremece e pressiona a mão na lateral do corpo. Sua camisa
está grudada em uma ferida aberta. O pássaro guincha novamente,
parecendo mais perto.
– Devo acordar Noah? – sussurro.
– Não. – Grey desgruda a camisa, ofegando com o esforço. Ele
se mexe, e depois se mexe de novo, sem conseguir encontrar uma
posição confortável. Outro guincho ressoa pela floresta. – Se eu
tivesse uma flecha, acertaria essa criatura.
Asas batem sobre as árvores. Em seguida, outro guincho se
interrompe abruptamente.
– Bem – Grey olha para os galhos acima –, acho que alguém já
cuidou disso.
As folhas farfalham, e uma forma negra cai do céu. Um ganso
enorme bate no chão com um baque.
Grey pragueja e recua. Eu solto um grito de surpresa.
Seus olhos encontram os meus, e sua mão agarra a espada ao
seu lado.
Emergindo da escuridão acima, outra forma desce, impulsionada
por um par de largas asas negras que quase cobrem a pequena
clareira. Patas cinzentas feito fumaça pousam nas folhas
silenciosamente. Ele é lindo e assustador, e eu respiro fundo.
– Um rasvador – murmuro, dividida entre medo e fascinação.
Parte de mim quer se afastar, mas outra parte quer se aproximar
para olhá-lo mais de perto. Nunca tinha visto um rasvador fora das
páginas dos livros, e as histórias que li sobre seus feitos desumanos
nas florestas de gelo não me prepararam para esse encontro.
– Sim, princesa – a criatura diz. Suas palavras são suaves, pouco
mais que um sussurro no ar. Suas presas cintilam ao luar conforme
ele fala. Seus olhos são totalmente negros, sem vestígio algum de
branco. – E você – ele diz para Grey –, é Hawk ou Grey?
Ao meu lado, Grey engole em seco. Sua mão está segurando a
espada com firmeza.
O pelo da criatura absorve a escuridão enquanto ela se inclina
sobre nós em uma reverência elegante e intencionalmente
zombeteira, com as asas abertas.
– Oh, perdão. Devo chamá-lo de “Sua Alteza”?
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
Quando acordamos, Iisak nos informa que os guardas estão se
preparando para deixar a cidade mais próxima, e que devem
avançar à frente de nosso grupo. Grey acha que esta é nossa
chance de encontrar cavalos, especialmente porque temos a pele
do cervo para trocar, o que nos oferece uma boa história. Passamos
o dia no acampamento, até que Iisak diz que eles seguiram em
frente. Embrulhamos a pele e os chifres e planejamos entrar na
cidade perto do pôr do sol.
Blind Hollow é uma cidade pequena enterrada na base das
montanhas que fazem fronteira com Emberfall e Syhl Shallow. Ao
emergir das árvores e pisar no vale, fico quase sem fôlego com a
beleza da paisagem. O extenso céu azul no alto se torna violeta ao
longe. Árvores recobrem a encosta da montanha, estendendo-se
por todos os lados. A folhagem é de um verde vibrante, mas o ar
aqui é um pouco mais frio, fazendo com que o início do vermelho do
outono se adiante, colorindo tudo.
Tycho está de boca aberta. Isso me lembra dos comentários de
Nolla Verin na carruagem, quando eu fiz a mesma expressão.
– Aproveite para olhar agora – Grey diz. – Você não pode exibir
essa cara quando entrarmos na cidade.
– As montanhas são maiores do que eu imaginava.
– Não é Rillisk, certamente. – Grey se adianta para tomar a frente
do grupo.
Nós cinco juntos chamaríamos muita atenção, então Noah e
Jacob aguardam nas árvores. O sotaque deles os entregariam
imediatamente. Iisak desapareceu, mas não deve estar longe.
Pensei que Grey me pediria para ficar para trás também, mas me
ofereci para ser sua irmã muda por conta de uma doença na
infância.
– Isso pode nos render um pouco de compaixão. Para negociar.
Seus lábios se curvaram ligeiramente, mas seus olhos
continuaram inescrutáveis.
– Inteligente – ele disse, e foi tudo.
Ele tem se mantido ativo e ocupado o dia todo, virando e
revirando a pele para garantir que ela seque, caminhando até Blind
Hollow para verificar o tráfego, interrogando Iisak para obter
informações sobre a cidade e onde podemos esperar problemas.
Passei o dia com o arco e a flecha, torcendo para encontrar algo
que nos ofereça mais peles para trocar.
Pelo menos, essa foi a desculpa que dei aos homens. Na
verdade, eu precisava de uma tarefa para manter minhas mãos e
minha cabeça ocupadas. Não deu muito certo. A despeito de
qualquer tarefa delegada às minhas mãos, meus pensamentos
estavam alegres demais para se voltarem para outra coisa que não
para aquele momento perto da fogueira, quando Grey passou o
polegar em meus lábios.
Só essa lembrança é o suficiente para me fazer tremer. Fico
lançando olhares secretos para ele, como se meus olhos não
quisessem focar nada além dele. Naquela noite em que me escondi
em seu quarto em Ironrose, pensei que ele era agressivo e frio,
mas, depois de passar alguns dias em sua presença, descobri que
ele não é nada disso. Ele é quieto e forte e confiante.
Pergunto-me o que minha irmã acharia dele. Ela tirou sarro de
minha inexperiência com os homens, mas agora queria cochichar e
rir com ela na privacidade da nossa carruagem.
Mas é claro que não teremos momentos de cochichos e
risadinhas quando alcançarmos o Palácio de Cristal, em Syhl
Shallow. Minha mãe vai incumbir Nolla Verin de seduzi-lo, para
garantir uma aliança antes de oferecer apoio para que ele
reivindique seu trono.
Meu humor azeda quando chegamos à cidade propriamente dita.
O crepúsculo paira sobre o vale, trazendo a brisa fresca da
montanha. Lampiões estão pendurados perto das portas,
tremulando como velas. As ruas de pedras não estão lotadas, mas
há bastante gente e recebemos alguns olhares curiosos.
Trancei meu cabelo ruivo e o enrolei em uma corda, enfiando-o
em um casaco que peguei emprestado de Jacob. Tycho está
levando a pele sobre o ombro, enquanto Grey carrega os chifres nas
costas. Tycho e eu estamos com nossas adagas presas no quadril,
e Grey é o único que tem uma espada. Tycho reclamou disso, mas
Grey disse que estranhariam simples caçadores terem tantas
armas.
Penso naquele homem e sua filha de novo. Ele só tinha uma faca
na cintura.
Mate-os, Nolla Verin disse.
Ah, irmã.
Grey me olha, notando minha expressão, e franze a testa.
– Você parece perturbada – ele murmura.
Tomo fôlego para falar, mas me lembro que sou a irmã muda.
Não faço ideia de como explicar o que quero, então apenas balanço
a cabeça e encolho os ombros.
Ele se aproxima.
– Nada de ruim vai acontecer com você.
Ele acha que estou nervosa com a cidade. Eu provavelmente
deveria estar, cercada de pessoas que devem ter visto a destruição
causada pelos soldados de minha mãe, mas não estou. Os guardas
de Rhen seguiram adiante, e Blind Hollow parece silenciosa e
pacata.
Ainda assim, há certo charme na atenção que ele me dispensa.
Minha irritação se dissipa. Observo seus olhos sinceros e assinto.
Tycho respira fundo.
– Estão sentindo cheiro de comida?
Eu não tinha percebido, mas, assim que ele fala, sinto o aroma.
Há várias casinhas e lojas na estrada, e mais à frente parece haver
um estabelecimento maior, com um amplo telhado de palha e uma
chaminé enorme soltando fumaça no ar. Não há paredes
encerrando as pessoas, e homens e mulheres vêm e vão por todos
os lados. O cheiro de carne assada enche a rua, e o azedo do
hidromel se sobrepõe a tudo.
– Vamos começar ali – Grey diz. – Se tivermos sorte, vamos
encontrar um comprador esta noite, ou alguém disposto a fazer
alguma permuta por cavalos.
Uma placa pende no canto do telhado, indicando a taverna Rusty
Rooster. Mesas de todos os tamanhos alinham-se no chão, e a
maioria está ocupada. Grey passa direto por elas e se dirige ao bar
no centro da sala, gesticulando para que nos acomodemos.
O taverneiro é um senhor alto e magro, de barba grossa e careca
brilhante. Ele nos oferece um sorriso largo e contagiante.
– Viajantes! – diz amavelmente. – Bem-vindos a Blind Hollow.
Meu nome é Eowen. Hidromel?
– Água, por favor – Grey pede. – Sou Rand. Esta é minha irmã,
Mora, e meu primo Brin.
Eowen traz uma jarra e três canecas, além de uma travessa cheia
de biscoitos, geleia e queijo.
– Vocês parecem cansados da viagem. – Ele sorri para mim. –
Estrada difícil, garota?
Fico me perguntando se pareço exausta. Toco os dedos na boca
e balanço a cabeça.
Grey diz:
– Desculpe, minha irmã não fala.
– É? – Eowen dá risada e bate no balcão. – Então vai fazer o
marido feliz!
Faço uma careta.
Grey ri.
– Verdade.
Jogo a caneca de água nele.
Mas ele é rápido e desvia antes que se molhe todo. Ofereço-lhe
um sorrisinho afetado.
Espero que ele retruque, mas ele me dá um sorriso torto. Seus
olhos brilham.
– Ela também não sabe a força que tem.
Oh. Oh. Ele está me provocando. Meu coração dispara com
selvageria. Lanço um olhar para pedir desculpas para o taverneiro
conforme ele limpa o balcão.
Tycho pigarreia e estica a mão para pegar um biscoito.
– Temos pele para vender, se souber de alguém que queira
comprar.
– Sempre há mercados de pele, especialmente com a chegada
do inverno. – Eowen suspira, abandonando o sorriso. – Perdemos
nosso caçador local. O pobre homem foi morto por aqueles
demônios cruéis de lá da montanha.
Meu coração dá tropeços dentro do meu peito.
Aqueles demônios cruéis de lá da montanha.
Eowen suspira de novo.
– Agora a Guarda Real está na cidade procurando algum tipo de
feiticeiro. Supostamente o herdeiro do trono, se puder acreditar.
Aposto que é apenas um homem como outro qualquer. Ninguém
ligou para Blind Hollow durante anos. – Ele faz uma pausa. – Vocês
são do norte? Deviam saber.
– Sou do Vale Wildthorne – Grey diz. – Eu sei.
A expressão de Eowen revela melancolia.
– Agora a cidade está tomada pela tristeza. Ouvi falar de uma
mulher cujos filhos foram assassinados um a um. Na calada da
noite, disseram. Ninguém sabe quem fez isso. Ela apareceu na
praça coberta de sangue.
Ao meu lado, Grey fica imóvel.
– Isso aconteceu depois que seu filho mais velho conquistou um
lugar na Guarda Real – Eowen continua. – Dá pra acreditar nisso?
Receber toda aquela prata todos os meses e perder todos os filhos?
Grey pigarreia.
– Um fardo terrível, tenho certeza.
– O que aconteceu com o seu caçador? – Tycho pergunta, com
uma voz apressada.
O taverneiro balança a cabeça.
– Fredd. Um bom homem. Uma de suas filhas fugiu. Ela disse
que foi assassinato. Aqueles animais o executaram pelas costas.
Estava tentando captar as palavras ditas sobre a mulher que
perdeu todos os filhos, mas de repente meu sangue vira gelo.
Gostaria de poder falar.
Mas não faço ideia do que diria.
– Sua irmã está bem? – Eowen fala.
Grey olha para mim. Não sei o que ele vê no meu rosto, mas
seus olhos ficam frios e sombrios e inescrutáveis. Sua expressão
me lembra a primeira vez em que o vi. É quase assustador.
Ele encara o taverneiro.
– Efeitos persistentes da doença que roubou sua voz, acho.
Tento esboçar um sorriso forçado mais uma vez, mas não tenho
certeza se consegui. Provavelmente pareço confusa.
Eowen estreita os olhos para mim.
– Ah. – Algo do outro lado da taverna chama sua atenção, e ele
diz: – Aqui está a filha de Fredd. Ela vai saber onde vocês podem
conseguir um bom preço pela pele. Raina! Garota, este homem tem
pele para vender.
Preciso reunir todas as minhas forças para não seguir seu olhar.
Agarro o braço de Grey. Minhas unhas cravam sua pele, mas não
posso evitar.
Ele se inclina para mim e pergunta:
– O que há de errado?
Uma garota às nossas costas diz timidamente:
– Posso levá-los até o ferreiro, senhor. O filho dele trabalha com
couro e peles. Era um dos melhores clientes de papai.
Posso ouvir a tristeza em sua voz. Meu coração vacila em meu
peito.
Não faço ideia se ela vai me reconhecer, mas não posso me virar.
Não posso.
Sinto muito, quero dizer. Sinto muito.
Lembro-me de Harper dizendo as mesmas palavras para mim,
enquanto eu as rejeitava.
Grey endireita a postura, e eu fixo os olhos na caneca. Minha
mão ainda está firmemente agarrada ao seu antebraço.
– Seria muita gentileza da sua parte – ele diz. – Sinto muito por
seu pai.
Ele puxa minha mão.
– Venha, a garota pode nos ajudar.
Não posso arriscar que ela me reconheça.
– Temos que fugir – sibilo para ele.
Ele não me questiona. Seus olhos ficam sombrios de
compreensão.
– Finja que está passando mal – ele fala baixinho e depressa. –
Desmaie.
Levanto do banco e me jogo no chão.
– Lia Mara! – Tycho grita.
Ele me chamou pelo meu nome. Emito um sinal de alarme
conforme Grey me ergue. Uma agitação toma conta das pessoas à
nossa volta.
– Chamamos um curandeiro? – uma mulher pergunta.
– É só um desmaio – diz ele. – Isso sempre acontece. – Para
meu espanto absoluto, ele me toma em seus braços. Parte de mim
quer protestar, mas outra parte quer ficar bem aqui. Pressiono o
rosto em seu pescoço para me esconder. Ele cheira levemente a
lenha queimada.
– A garota me conhece – sussurro em sua pele. – Eu estava lá.
Na floresta.
– Perdão – ele fala para Eowen. – Temos que voltar para o
acampamento para que minha irmã se recupere. Talvez eu possa
encontrar esse ferreiro de manhã?
Faz-se um momento de silêncio. Mantenho o rosto escondido,
apesar de estar desesperada para ver como esta cena está sendo
recebida.
– Claro – ela diz.
Sinto Grey assentir.
– Venha – fala para Tycho, e nos viramos para sair.
A conversa começa a se restabelecer à nossa volta. Somos
apenas viajantes querendo vender alguns itens, após uma
esquisitice passageira, nada muito interessante.
Meu cabelo fica preso no braço de Grey, e giro o pescoço. A
trança se solta da gola do casaco.
– Esperem. – Raina diz atrás de nós. – Qual é mesmo o nome de
sua irmã?
– Mora – Grey responde. – Perdão, gostaria de voltar ao
acampamento antes que escureça.
– Não, o garoto a chamou por outro nome. – A vozinha de Raina
ganha força. – Eu ouvi.
– Ela sabe – digo em seu pescoço.
– Vamos precisar sair correndo. Quando eu te colocar no chão…
– Eowen! – Raina grita. Sua voz está entrecortada e cheia de
sofrimento, mas ela berra: – Ela estava lá! É ela!
Meus pés pisam na rua. A mão de Grey encontra a minha. Tycho
está bem ao meu lado.
Gritos enchem o ar atrás de nós e disparamos pelas pedras. Não
sou rápida, mas meu coração empresta força às minhas pernas.
Voamos pela cidade, cortando as casas, mergulhando em vielas.
Um vento gelado sopra pelas ruas, e sei que Iisak deve estar perto.
A noite cobriu o céu, formando sombras e escuridão por toda parte.
Uma mulher solta um berro conforme nos apressamos por seu
quintal.
Meu coração retumba.
– Vamos despistá-los na floresta – diz Grey, quase me
arrastando. – Vamos dar uma volta nesta casa e desaparecer entre
as árvores.
Iisak paira acima como se estivesse nos alertando de algo.
Ele sabe, penso. Estamos fugindo.
Fazemos uma curva fechada e finco os pés no chão, pronta para
disparar com tudo.
Em vez disso, dou de cara com um guarda vestido de dourado e
vermelho.
CAPÍTULO VINTE E OITO
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
Na manhã seguinte, seguimos pelo desfiladeiro em direção a Syhl
Shallow, conforme as nuvens clareiam às nossas costas.
Dormi pouco durante a noite, temendo que Dustan e seus
homens estivessem nos esperando em uma emboscada antes que
alcançássemos o desfiladeiro, mas uma névoa densa se espalhou
com o ar frio da manhã, nos oferecendo cobertura.
Permanecemos em silêncio, apesar da neblina. Iisak nos segue
acima, escondido pelas nuvens. Por enquanto, Lia Mara cavalga ao
meu lado, com o olhar fixo adiante. Suas costas estão eretas e seus
olhos, límpidos, mas seu humor parece tão pesado quanto o clima.
O meu também, aliás.
A sensação é a mesma que naquele momento no Castelo
Ironrose, quando meu coração me implorava para que eu me
mantivesse firme e resistisse. Assim que eu cruzar a fronteira de
Syhl Shallow, não poderei voltar atrás. Procurar ajuda – ou asilo –
de Karis Luran é a coisa mais traiçoeira que eu poderia imaginar, a
não ser que eu mesmo enfiasse uma espada diretamente em Rhen.
Fico me perguntando o que Dustan vai lhe contar sobre o que
aconteceu em Blind Hollow, sobre como as pessoas se viraram
contra os guardas para me apoiar. Sobre como lutamos com os
súditos de Rhen e expulsamos os guardas e soldados da cidade.
Se pretendo me enganar, estou falhando. Na verdade, cruzar a
fronteira não será minha primeira traição.
Considerando o segredo que guardei, provavelmente não é nem
a segunda.
Uma corneta ressoa pelo vale, um som alto e repetitivo.
Lia Mara ofega e ergue a cabeça. Uma grande forma assoma à
nossa frente. Galhardetes verdes e pretos pendurados no alto
balançam com o vento. Pela primeira vez esta manhã, seus olhos
brilham.
Já ouvi essas cornetas antes, quando eles invadiram Emberfall
para sitiar nosso território. Minha mão coça para desembainhar a
espada.
Iisak atravessa as nuvens e pousa atrás do nosso grupo. Ele me
disse mais cedo que não queria ser mal interpretado. Se temos algo
em comum, deve ser o medo.
Neste instante, é melhor que suas garras, suas presas e sua
brutalidade estejam ao meu lado.
Então digo a mim mesmo que não estou aqui para lutar. Nem
para me render.
Meu coração bate acelerado, discordando.
Formas surgem em meio à neblina à nossa frente. Soldados a
cavalo, vestidos de verde e preto. Uma dúzia, pelo menos. A maioria
carrega bestas.
Estão todos preparados.
Obrigo minhas mãos a permanecerem nas rédeas.
Lia Mara grita algo para eles. Sua voz é alegre. Aliviada. Eles a
respondem, e ela me olha, falando depressa:
– Desmonte. Eles querem que você se desarme.
Não quero fazer nenhuma dessas coisas. Quero dar meia-volta,
atravessar o desfiladeiro e seguir direto para Ironrose para implorar
perdão.
Não. Não quero isso. As palavras que Lia Mara me disse ontem
pesam em minha mente, aprisionando-me aqui.
Solto os pés dos estribos e desço do cavalo, olhando para Jacob,
Noah e Tycho, que está pálido. Eles vão me imitar.
Corra, meus pensamentos sussurram. Cada instrução aprendida
no meu treinamento ruge para que eu lute ou fuja. Eles são
inimigos. Você está em desvantagem. Corra.
Mas eles não são meus inimigos. Não agora.
Meus dedos soltam o laço do cinto da espada e a arma cai no
chão. As adagas também. Atrás de mim, os outros fazem o mesmo.
Minha respiração está curta, mas eu me afasto do cavalo e ergo as
mãos para mostrar que estou desarmado.
Lia Mara ainda está falando; sua voz é melódica, mas autoritária.
Os soldados de Syhl Shallow avançam juntos e param a uma curta
distância. Os dois no centro desmontam, enquanto os outros
mantêm suas bestas apontadas para nós.
Jacob se posiciona ao meu lado com as mãos erguidas. Sua voz
é baixa e suave.
– Você não parece muito seguro sobre isso.
– Não estou.
– Ainda podemos reaver as armas. Se quiser ir embora, é só
falar.
Olho para ele e vejo que está falando sério. Ele é tão destemido
quanto Harper, e tão brutal quanto eu.
– Eu subestimei você, Jake.
– Sim.
Os dois soldados se aproximam. Ambos estão barbeados e têm
cabelos pretos e pele clara, embora um seja de meia-idade, com
alguns fios grisalhos em suas têmporas. Sua armadura tem um
adorno extra, uma cruz de couro verde e preta com um contorno
prateado, provavelmente a distinção de um oficial. Ele olha de mim
para Jake e depois para o resto, avaliando nosso grupo em um
relance. Não dá sinal de surpresa ao ver Iisak. Então seu olhar frio
retorna para mim.
Quando ele fala, sua voz é profunda e áspera, com um sotaque
mais pesado que o de Lia Mara:
– Você manteve a filha da rainha em segurança até a fronteira. –
Ele faz uma pausa e estende a mão. – Meus agradecimentos. Sou o
capitão Sen Domo. Bem-vindo a Syhl Shallow, príncipe Grey de
Emberfall.
Príncipe Grey.
Não o corrijo.
•• ••
Lia Mara estava certa. Somos levados à guarita para esperar por um
dignitário do palácio. Ao contrário dos edifícios de tijolos vermelhos
aos quais estou acostumado em Emberfall, este posto de guarda foi
construído diretamente na encosta da montanha, com paredes de
madeira e aço contra a rocha exposta. Há poucas janelas, mas
tochas iluminam cada cômodo.
Todos falam a minha língua, mas eu não falo a deles, o que me
deixa em desvantagem. Certamente fell siralla não vai me fazer
ganhar pontos com esses guardas.
Seja como for, fico em silêncio, pois a tensão aqui é densa e
ambígua. Tycho se mantém por perto, ou, para minha surpresa,
perto do rasvador. Iisak está próximo de uma das janelas estreitas, e
os guardas lhe dão espaço. Eles nos observam com atenção,
especialmente quando Lia Mara é conduzida para uma área
separada. Lembro que certa vez eu mesmo observei Karis Luran e
seu povo com o mesmo escrutínio, com a espada a postos.
Por fim, eles nos trazem um pouco de comida e nos oferecem
privacidade. Os guardas nos deixam sozinhos e uma porta pesada é
fechada.
Jake me olha.
– Você acha que eles nos trancaram aqui?
– Se não trancaram, há guardas de sentinela do outro lado.
Noah é o primeiro a avançar na comida. Há frutas, queijo e uma
grande fatia de pão na travessa. Ele arranca um pedaço do pão e
fica brincando com ele em vez de colocá-lo na boca de uma vez.
– Isto está parecendo uma cela de espera. – Ergo as
sobrancelhas, então ele acrescenta: – Onde eles te deixam
esperando antes de colocá-lo na prisão.
– Prisão? – Tycho pergunta.
– Eles não vão colocar ninguém na prisão – digo, apesar de não
estar inteiramente certo disso.
Lia Mara fez muitas garantias sobre sua mãe, mas também disse
que ela não a respeitava. Karis Luran pode nos jogar em uma cela
de prisão para negociar com Rhen usando a mim e Jake também, já
que ele é irmão de Harper.
Olho para a janela. É muito estreita para passar um corpo, mas
larga o suficiente para deixar a chuva entrar. A sala está molhada e
fria e se parece muito com uma cela. Tycho aperta os braços com
mais força contra o corpo.
– Você vai ficar bem – digo para ele.
Seus olhos encontram os meus, e ele assente.
Iisak, apoiado contra a parede, endireita a postura. Suas asas
estão firmemente coladas ao seu corpo, o único sinal de sua própria
tensão. Ele escolhe uma maçã da pilha de frutas sobre a mesa e a
oferece para Tycho.
– Pegue – ele diz, gentil. – Coma, garoto.
Jake os observa e se aproxima de mim, falando com uma voz
baixa:
– Não te preocupa que eles tenham levado Lia Mara?
– Ela é filha de Karis Luran. Provavelmente está sendo
interrogada antes que nos permitam sair.
Se nos permitirem sair.
A porta se abre e o capitão Sem Domo entra. Ele ainda mantém a
mesma expressão austera. Sinto falta da minha espada. Só por
precaução.
Ele dá um aceno com a cabeça.
– Sua Alteza, vamos escoltá-lo até o palácio. A rainha está
preparada para oferecer sua hospitalidade a você.
Isso parece fácil demais.
– E meu grupo?
Suas sobrancelhas tremem, como se ele se surpreendesse com a
pergunta.
– Por que… sim, claro. – Ele olha além de mim. – Com exceção
de sua… criatura. A rainha vai vê-la separadamente.
Tycho dá um passo para trás.
– Não.
O rasvador continua na parede.
– Não se preocupe – ele diz. – Eles não vão encostar a mão em
mim. – Ele solta um longo rosnado junto com as palavras. – Não é,
capitão?
Os lábios do capitão se contraem de desgosto, mas ele diz:
– Certamente. – Ele olha para mim. – Sua Alteza? Uma
carruagem espera vocês.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
Minhas horas nunca foram tão cheias, meu sono nunca foi tão
profundo. Minhas manhãs são tomadas por aulas: de syssalah, de
política da corte, de costumes e tradições de Syhl Shallow. Nolla
Verin está sempre ao meu lado, mas não parece uma companheira,
e sim uma espiã pronta a relatar meu progresso à sua mãe.
Mantenho minha guarda, e ela também.
Todos os dias, compartilho o almoço com Karis Luran. Jake
nunca sai do meu lado. Quando jantamos, fico frio e distante,
ressentido com a maneira como ela me manipulou tão rapidamente
– fazendo-me provar minha magia e trabalhar contra Rhen – e com
a maneira como ela escondeu sua filha depois de uma
demonstração cruel de vingança contra aquele guarda.
– Toda vez que ela pede vinho – Jake murmura para mim durante
uma de nossas refeições – acho que ela vai cortar o pulso de algum
pobre coitado com um pedaço de vidro.
Com certeza. Não gosto dela. Não confio nela.
Não é segredo nenhum.
– Você não gosta de mim, jovem príncipe – ela me diz no terceiro
dia.
– Preciso gostar?
– Não. – Ela sorri. – Esperar adoração é se deixar vulnerável.
Eu definitivamente estou longe de adorá-la. No entanto, seus
súditos não pensam assim. Sua crueldade é vista como justa e
fundamental.
E, apesar do meu ressentimento, ela parece ser uma governante
honesta. Ela se preocupa com seus súditos. O povo de Syhl Shallow
é bem alimentado e educado. Dois anos de serviço militar são
exigidos de cada família, o que confere aos soldados um sentimento
de unidade que me surpreende cada vez que encontro Talfor e
Cortney na cidade.
Os cofres de seu castelo podem estar secando sem o imposto
antes pago pelo pai de Rhen, mas Karis Luran faz o que pode para
ajudar seu povo e, apesar de sua brutalidade, eles parecem amá-la
por isso. O que me faz questionar como o tratamento que Rhen me
dispensou foi recebido, e como seus súditos responderão quando
ele enviar soldados para retomar Porto Silvermoon.
Como sempre, queria não pensar em Rhen.
Minhas tardes são preenchidas com treinamento dos guardas e
soldados enquanto nos preparamos para partir. Esse é o único
momento em que posso relaxar, porque tenho uma espada na mão.
Eles lutam de um jeito diferente aqui, e gosto do desafio de
aprender seus métodos e armas. Não gosto do desafio do jantar,
porque todas essas refeições incluem pessoas importantes:
generais e chefes militares, bem como líderes das Casas Reais.
Não sou Rhen, que consegue influenciar as pessoas com pouco
mais do que um olhar. Pelo menos parece que minha constante
recusa em ser manipulado funcionou a meu favor. Ninguém me
pede para demonstrar minha magia. Ninguém me desafia de forma
alguma.
Ninguém exceto Iisak, que quase me arrasta para fora de meus
aposentos depois de escurecer, insistindo que preciso me fortalecer.
Meus poderes parecem tão pequenos e inferiores em comparação
com o que eu vi Lilith fazendo. Ela nos amaldiçoou e nos aprisionou
no ciclo infinito de sua magia. Eu mal consigo afetar mais que duas
pessoas ao mesmo tempo.
Na véspera de nossa partida, estamos no campo de treinamento
deserto ao luar. Iisak insiste que eu posso usar a magia em minha
esgrima para ganhar precisão e força – e, uma vez que eu aprender
isso, poderia fazer o mesmo por meus soldados.
Não está dando certo. Jake e Tycho se ofereceram para ajudar,
mas não preciso de magia para vencê-los. Quando nos separamos
pela décima vez, eles estão exaustos. O suor cintila ao luar. Olho
para o palácio. De vez em quando, consigo ver Lia Mara de relance,
mas hoje seu quarto está escuro e não há sombras em sua janela.
Noah está observando da lateral.
– Talvez você devesse amarrar um braço nas costas – ele diz.
Afasto um cabelo molhado dos olhos e suspiro. Nosso tempo de
preparação está acabando. Estou correndo para um fim incerto, e
não faço ideia de como parar.
– Talvez você precise de um novo oponente – Nolla Verin fala.
Eu me viro e a vejo emergindo da escuridão com seus guardas.
Em vez das vestes que normalmente adornam seu pequeno corpo,
hoje ela está usando uma armadura de couro preto com detalhes
em prata, e seu cabelo escuro está trançado para trás com uma fita
verde. Em suas mãos, há uma espada e uma adaga.
Levanto as sobrancelhas.
– Está se oferecendo?
– Sim. – Ela ergue a lâmina e ataca.
Não estou completamente despreparado, mas mal consigo
bloqueá-la antes que ela gire e avance. Tento tirar a adaga de sua
mão. Ela se esquiva e se recompõe rapidamente. Observo seus
movimentos, procurando uma fraqueza.
Ela não me dá tempo. Seu próximo ataque é brutal e veloz.
Minha resposta também.
Ela se afasta de novo, respirando mais rápido e lançando-me um
sorriso ferino.
– Se me fizer sangrar, minha mãe não vai ficar muito contente.
– Então é melhor você proteger seu lado esquerdo.
Desta vez, ataco primeiro usando toda a minha força. Sua espada
é mais leve e ela recua quase imediatamente, mas ela é mais ágil
do que meus pensamentos. Seus golpes parecem vir de todos os
lados ao mesmo tempo, e ela é implacável. Lembro-me de Lia Mara
elogiando as habilidades de sua irmã – e não estava errada.
Em outro lugar e tempo, eu estaria claramente admirado, mas
estou cansado, e isso parece apenas uma performance. Assim
como na manhã em que galopamos pela cidade, não posso ganhar.
Ela tem razão: Karis Luran mandaria cortar minha cabeça se eu
ferisse sua herdeira, independentemente de nossa aliança.
Sua espada por pouco não passa pela minha guarda, e ela quase
acerta meu braço.
– O que você disse sobre o meu lado esquerdo? – ela provoca.
Ela está certa, então sorrio.
– Anotado.
– Achei que você usaria magia. Esperava ver uma demonstração.
– Até agora não precisei de ajuda.
– Tente matá-lo. Normalmente isso funciona – Jake diz.
Nolla Verin estreita os olhos e avança. Ela consegue ser ainda
mais rápida. Nossas lâminas se tornam um borrão ao luar. Ela ataca
cada vez com mais força, e, quando atinge meu ombro para me
desarmar, percebo que ela realmente pode estar tentando me matar.
Tento afastar sua espada, mas ela é uma fração de segundo mais
rápida, e acabo lhe oferecendo uma abertura. Ela golpeia, mirando
nas minhas costelas. As estrelas aguardam debaixo de meu
sangue, alimentadas pela luta e pelos ferimentos, esperando meu
comando. Faço uma tentativa de enviá-las para minha arma,
esperando que elas acelerem minha defesa e a detenham.
Nolla Verin voa para trás, caindo com tanta força no chão de terra
do campo de treinamento que sai derrapando por metros.
Seus guardas se colocam imediatamente na sua frente, com as
espadas na mão apontadas para mim.
– Não! – Ela tosse. – Eu pedi para que ele fizesse isso.
– Falei – Jake comenta.
Os guardas baixam as armas devagar. Estou tão surpreso quanto
ela, mas guardo a espada e me aproximo, estendendo a mão. Ela
olha e se levanta sozinha, observando-me com novo e nítido
interesse e maior consideração.
– Como eu disse, um novo oponente.
– Como você disse.
Sua respiração está um pouco mais rápida agora, e suas
bochechas estão rosadas ao luar.
– De novo?
Hesito.
– Sim – Tycho diz.
Ela balança a espada. Eu mal tenho tempo de detê-la. Nossas
lâminas colidem e voam pelo ar noturno até que eu sinto as estrelas
esperando.
Gentilmente, Lia Mara disse na floresta.
Dou um empurrão um pouco mais sutil.
Nolla Verin erra o próximo bloqueio por vários centímetros e é
lançada para trás. Aproveito a chance e tento desarmá-la, mas ela
perde o equilíbrio e cai com força no chão.
Seus guardas já estão a postos mais uma vez, mas ela está
sorrindo para mim.
– Belo truque.
Não consigo não sorrir em resposta.
– A magia exige que eu pense muito. Prefiro usar só a espada.
– Não vai precisar pensar muito se praticar – Iisak diz.
Desta vez, quando ofereço a mão, Nolla Verin aceita. Uma vez de
pé, ela olha para mim com seus olhos frios e calculistas, e não solta
minha mão.
– Caminhe comigo – ela pede.
Meu sorriso se esvai. Olho para a parede escura do palácio.
– Preciso me retirar.
– Por favor?
Tomo fôlego para recusar, mas, por um breve momento, vejo um
vislumbre de emoção em seus olhos. Apesar de tudo o que Lia Mara
disse sobre se julgar inferior à irmã, ela nunca falou mal de Nolla
Verin. A garota na minha frente mostra ferocidade para o mundo,
mas eu me pergunto o quanto disso foi desenvolvido apenas para
agradar sua mãe – e o que se esconde por trás dessa fachada.
Assinto e ofereço meu braço.
Nolla Verin dá risada e começa a andar.
– As damas de Emberfall realmente precisam de ajuda para
caminhar?
– Não. Mantenha-se longe, se quiser.
Ela bufa, perplexa, e percebo que eu estava certo. Grande parte
de sua agressividade é apenas uma fachada para esconder sua
insegurança. Na verdade, ela me lembra um pouco Rhen. Eles
provavelmente teriam formado uma aliança poderosa.
No entanto, um deles com certeza não sobreviveria uma semana.
Caminhamos em silêncio pelo campo de treinamento. As
sombras vão aumentando conforme nos afastamos das tochas da
parede dos fundos do palácio. Seus guardas nos seguem à
distância, assim como Jake, o que me surpreende.
Nolla Verin olha por sobre o ombro para onde Tycho e Iisak estão.
– Mamãe não gostou que você libertou aquela criatura de suas
correntes.
– Ele não é meu escravo.
Ela olha para mim.
– Com o que você o ameaçou, então, para fazê-lo lhe obedecer?
– Com nada.
Quero perguntar se as damas de Syhl Shallow precisam de
ameaças e correntes para garantir que uma promessa seja
cumprida, mas não estou com vontade de discutir com ela.
Caímos em um silêncio espinhoso e desconfortável. Eu preferia
estar lutando. Parecia a primeira vez que ela estava sendo honesta
e aberta comigo.
Talvez porque ela estivesse tentando me matar.
Penso em tudo que Lia Mara disse e em tudo o que descobri
sozinho. Nolla Verin é rápida para atender os desejos de sua mãe, e
imagino quão profundo é esse reflexo.
– Você quer esta aliança?
– Sim. Será uma dádiva para o nosso povo ter acesso às
hidrovias de Porto Silvermoon, e também será bom para Emberfall
ter fundos para ajudar a reconstruir tudo o que foi perdido.
– Tudo o que foi perdido durante a invasão de Syhl Shallow, você
quer dizer.
– Tudo o que foi perdido enquanto a família real estava
“escondida”. – Ela olha para mim. – Não nos responsabilize por
todos os seus problemas.
– Não estou fazendo isso. – No entanto, estou. É impossível não
fazer isso. – Minha pergunta não foi essa, princesa.
– Qual é a sua pergunta?
– Você quer essa aliança? – Paro e viro-me para ela. – Comigo?
– É claro.
Aquela emoção cintila em seus olhos mais uma vez, mas, quanto
mais falo com ela, mais vejo-a com dúvidas. Vulnerável. Lia Mara
teceu infinitos elogios sobre sua irmã durante a viagem até aqui, e
certamente todos que conheci poderiam discorrer sobre os talentos
de Nolla Verin em um cavalo, com um arco e flecha ou com uma
espada. Sua fama é merecida, tenho certeza, mas talvez todas
essas habilidades escondam o fato de que ela só parece tão perfeita
para o trono porque não tem coragem de desafiar a mãe. Talvez
todas as suas habilidades e suas ações escondam o fato de que ela
é jovem, inexperiente e insegura.
Depois de passar tanto tempo com Lia Mara na floresta, comecei
a me perguntar por que Karis Luran escolheria sua filha mais nova
para ser sua herdeira – para negociar primeiro uma aliança com
Rhen, depois comigo. Lia Mara acha que não foi escolhida porque é
tranquila e pacífica, porque não tem a crueldade de sua irmã.
Agora me pergunto se não é porque ela seria capaz de enfrentar
a mãe.
E Nolla Verin não.
Olho para o palácio e vislumbro algo em sua janela.
– Por quanto tempo sua mãe vai manter sua irmã aprisionada?
Ela segue meu olhar.
– Lia Mara está em um aposento da realeza no Palácio de Cristal.
Ela não está aprisionada.
Posso ouvir a incerteza em sua voz. Está bem escondida, mas
está lá.
– Você está preocupada com ela.
– Sim, estou.
Mas ela não a visita. Sei por Iisak e pelos recados que ele traz
para mim. Nolla Verin não vai se contrapor aos desejos da mãe.
O silêncio cai sobre nós mais uma vez, pesado com coisas não
ditas.
Nolla Verin sabe que ofereci meu casaco para Lia Mara na
varanda, mas nunca mencionou. Imagino o que ela suspeita. O que
ela pensa. Com o que se preocupa.
Não sou de reclamar. E ela provavelmente está se perguntando
as mesmas coisas sobre mim. Aprendi há muito tempo como ocultar
cada pensamento atrás do semblante estoico de um guarda. Ela
deve ter aprendido o mesmo.
Talvez eu esteja errado. Nolla Verin não se parece com Rhen.
Ela se parece comigo.
Penso em Iisak, na noite em que lutamos. Eu também precisava
disso, ele disse.
Olho para ela.
– Está descansada, princesa?
– De alguma forma, eu dei um jeito de me recompor sem precisar
do seu braço.
Sorrio.
– Que bom.
Sem avisar, saco a espada, e ela também sorri.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS
LIA MARA
GREY
GREY
LIA MARA
GREY
LIA MARA
GREY
GREY
Seguimos com calma no percurso até Emberfall. Em vez de ir pela
floresta em segredo, viajamos em grande estilo, parando em todas
as cidades ao longo do caminho. Gastamos dinheiro e falamos de
esperança. Fazemos refeições fartas e dançamos ao som de
músicas animadas e nos beijamos sob as estrelas quando as noites
silenciam e se alongam.
Muitas pessoas desconfiam dos guardas de Syhl Shallow, mas o
que aconteceu em Blind Hollow se espalhou, e Lia Mara é cativante
e gentil e as conquista sem esforço.
À medida que nos aproximamos do centro de Emberfall, os
rumores vão ficando mais sombrios. Conhecemos as maiores
cidades, como Porto Silvermoon, que tentou recusar o governo de
Rhen. Mas ele enviou seus soldados para restaurar a ordem, com
resultados variados. O medo está no ar, tão espesso e potente que
posso sentir seu gosto em minha língua. Perto de Ironrose, há
pouca folia. Em vez de nos acolher abertamente, os habitantes
pegam nossas moedas e nos sussurram suas preocupações. Os
homens apertam minha mão furtivamente e dizem que esperam que
eu traga unidade para Emberfall – e juram lealdade baixinho.
É humilhante. E surpreendente.
A cada parada, espero encontrar guardas e soldados nos
esperando para nos impedir de avançar, mas não encontramos
nenhum.
Depois de duas semanas, alcançamos a floresta que cerca o
castelo. Da última vez que fiz esse caminho, estava acorrentado,
com Jake pronto para enfiar uma faca em minhas costas.
Hoje, estou vestindo as cores de Syhl Shallow e de Emberfall,
com uma rainha ao meu lado.
Conforme avançamos floresta adentro, não ouço nada, nem
mesmo sinos anunciando nossa chegada.
– Está silencioso – Lia Mara murmura.
– Silencioso demais – Jake diz, com uma voz pesada. – O que
aconteceu com os sinos?
– Não deveria haver guardas tentando nos barrar? – Tycho
pergunta.
Não somos um grupo pequeno, somos vinte pessoas. Não
escondemos nosso destino, e mesmo agora nos aproximamos do
castelo abertamente. Devia haver alguém vindo nos receber.
Franzo a testa.
– Tem algo errado – Lia Mara diz.
Iisak nos segue do alto. Dou um assobio para chamá-lo. Ele
desce e pousa no chão à nossa frente.
Aponto a cabeça para a frente.
– O que está acontecendo no castelo?
– Dezesseis guardas na frente, vinte atrás. – Ele pausa. – O
homem que você enfrentou no torneio está entre eles.
Dustan. Pergunto-me por que os guardas não tentaram nos
barrar.
Faço meu cavalo seguir adiante. Iisak retorna aos céus, mas,
para o resto de nós, a viagem através do extenso gramado até a
frente do castelo parece interminável.
Daqui, posso ver os guardas alinhados em posição de sentido,
como devem, sem manifestar alarme, preocupação ou
descontentamento. Galhardetes dourados e vermelhos balançam
contra o vento nas muralhas acima. Reconheço Dustan
imediatamente. Ele é o único guarda que me olha nos olhos, e sua
expressão é fria.
Sei que ele apontaria a arma para mim agora mesmo. Mas ele
recebeu ordens para não fazer isso.
Não há nada de errado. Rhen escolheu não reconhecer nossa
presença. Este é um jogo de poder, nada mais.
Apesar de tudo, isso me faz sorrir. Pelos infernos, Rhen é um
baita de um maldito arrogante.
Faço nosso grupo parar e olho para Lia Mara.
– Gostaria de falar com ele sozinho – digo.
Ela abre a boca e franze a testa, mas não fala nada.
– Ele pode tentar te matar – Jake fala.
Olho para o castelo e balanço a cabeça.
– Acho que não.
Lia Mara ainda parece preocupada. Pego sua mão e pouso um
beijo nela.
– Se ele quisesse me machucar, não teria permitido que
chegássemos tão perto.
Ela segura minha mão.
– Ele já machucou você antes.
– Eu não esqueci.
Seus olhos estão sombrios de medo e suspeita.
– Não confio nele, Grey.
– Eu o conheço melhor do que ninguém. Sei do que ele é capaz.
– Bato os calcanhares contra os flancos do cavalo e disparamos
para a frente.
– Fale para Harper aparecer – Jake diz atrás de mim. – Quero ver
minha irmã.
Sigo direto para os guardas. Dustan dá um passo à frente.
– Você recebeu ordens de ir embora – ele diz com uma voz baixa.
– Não recebo mais ordens. – Desmonto do cavalo e me viro para
ele.
Para minha surpresa, ele coloca a mão na espada.
Automaticamente, começo a desembainhar a minha.
– Comandante. – A voz de Rhen desce dos degraus da frente do
castelo, onde ele está parado à sombra de um pilar.
Minha mão congela. A palavra, a voz… elas não deveriam me
afetar tanto depois de todo esse tempo, mas ainda me afetam. Não
consigo fugir do meu passado, por mais que eu tente.
Mas Dustan também para, então permito que minha espada volte
para a bainha. Olho para Rhen. Seus olhos estão frios e sua
expressão é cautelosa, como quando praticávamos esgrima.
– Gostaria de falar com você em privado.
– Por que, se faz campanha contra mim tão abertamente? – Seu
tom é sombrio e feroz.
– Não estou fazendo campanha.
– Ah, não? Sua viagem não foi segredo.
– Nem suas ações. Quantos soldados perdeu em Silvermoon?
Um músculo tensiona em sua mandíbula.
– Quantas cicatrizes você tem nas costas, Grey?
Um fio de gelo sobe pela minha espinha e meus pensamentos
esfriam, expulsando a emoção e deixando apenas o que precisa ser
feito.
– Você não contou, Rhen?
Eu nunca o chamei pelo primeiro nome, e nunca com tanta
audácia, na frente dos outros. Isso surte o efeito esperado: ele fecha
os olhos e aquele músculo em sua mandíbula fica tenso como uma
corda de arco.
– O que você quer?
– Já falei. Quero falar com você em privado.
Ele me faz esperar pela resposta.
Tive mais de trezentas estações para me acostumar com as suas
artimanhas, então não me importo de esperar.
Talvez ele perceba, porque dá um passo para trás.
– Podemos falar no Salão Principal.
Dustan se move para me seguir pela escadaria, mas Rhen
acrescenta:
– Comandante, espere aqui fora.
Então estamos dentro do castelo e a pesada porta de madeira se
fecha, fazendo um barulho que ecoa pela sala vazia. Posso sentir a
movimentação dos guardas e criados nos corredores, e sei que
nunca ficaremos realmente sozinhos. Mas, neste momento, o
castelo parece mais frio e vazio do que durante todo o tempo em
que estivemos presos na maldição.
Os movimentos de Rhen são tensos e precisos, e a raiva em sua
expressão é inconfundível. Fico observando-o enquanto ele dá
voltas ao meu redor, como um espadachim esperando uma
abertura.
– Vamos desembainhar nossas espadas e resolver isso de uma
vez? – digo sombriamente.
Ele para e faz uma carranca.
– Sei que você pretendia liderar um exército contra mim.
– Isso foi antes. – Faço uma pausa, tentando imaginar o quanto
ele sabe. Tentando imaginar como ele sabe. – Não vim aqui para
lutar com você.
– Eu sei. Isso é pior. Eu teria preferido o exército.
– Não tomei nenhuma atitude contra você – digo.
Ele dá uma gargalhada sem humor.
– Cada atitude que você tomou foi contra mim.
Ele está muito bravo. Eu também, além de arrependido, mas a
raiva dele tem um sabor diferente que não entendo muito bem.
Também está amargo – uma amargura sustentada pela dor.
Não sei bem o que esperava, mas não era isso.
– Na verdade, eu tentei poupar você de tudo isso.
– Não. Você tentou se poupar de tudo isso. Você nunca tentou
me poupar de nada.
– Eu fugi, me escondi. Não voltei para cá por vontade própria.
Você me arrastou acorrentado. – Faço uma pausa. – Não causei a
discórdia em seu reino.
Ele desvia o olhar e posso ver o quanto tudo isso pesa sobre ele.
Ele sempre carregou o fardo de seu povo.
Essa raiva e amargura não têm a ver comigo. Sou tomado por
pena.
– Rhen – digo baixinho, dando um passo em sua direção.
Ele vacila e recua.
O movimento é tão inesperado que congelo no lugar. Só então
percebo que a tensão em sua mandíbula e a rigidez em seu corpo
não são raiva e fúria.
Mas medo.
Naquela noite, eu me ajoelhei em seus aposentos, ele falou de
Lilith, e eu notei o medo em sua voz, quando ele perguntou se eu
estava sob juramento. A cada estação, ele sofreu com as torturas
dela. A maldição nos manteve aprisionados, mas ele aguentou
muito mais do que eu.
– Não quero machucar você – digo.
– Não me subestime. Você se aliou a um reino que aterrorizou
nosso povo. Você lutou contra eles por mim, Grey, e agora vem aqui
ao lado deles. Karis Luran…
– Karis Luran está morta.
– Eu sei.
– Como? Como você sabe?
– Ela não era a única que contava com espiões.
Fico surpreso. Não tínhamos espiões quando eu era comandante
da guarda. Não tínhamos ninguém.
Dou mais um passo à frente, mas desta vez ele fica parado.
– Você também aterrorizou seu povo – digo, com uma voz baixa e
rouca. – Você está perdendo seu país.
– Eu já o salvei antes. Posso salvá-lo de novo.
– A mentira não vai salvá-lo desta vez.
– E você vai? Com Syhl Shallow? Você era um guarda, Grey. Um
guarda excepcional, mas nada mais que um corpo para proteger a
realeza. – Seu tom fica cruel. – O povo dela não vai respeitar você.
Nem ela. Karis Luran governava através do sangue e do medo, e o
novo governante não será capaz de manter o trono com palavras
doces.
– Não fale de Lia Mara com desdém.
– E você não acha que os grão-marechais das minhas cidades
vão olhar para você com o mesmo desdém? O homem que quer ser
rei e se submeteu a uma mulher que veio até o meu castelo na
calada da noite com a ingênua esperança de estabelecer a paz?
– Eu não me submeti a ela, e você faria bem de considerar a
oferta.
– Não vou me aliar a Syhl Shallow. Não quis antes, nem quero
agora. Se isso fizer de você meu inimigo, então que seja.
Ele fala alto, então abaixo a voz:
– Sou seu irmão, Rhen.
Ele fica imóvel.
– Você já me ofereceu sua mão e me chamou de amigo –
acrescento.
Ele não diz nada.
Fico me perguntando se há alguma maneira de recuperar algo,
de seguir adiante. Talvez haja história demais entre nós.
Ouço passos na escada nos fundos do Salão Principal.
– Grey!
Harper atravessa a sala apressada, e sua saia ondula com seus
passos irregulares. Ela é provavelmente a única pessoa neste
castelo que parece feliz em me ver. Penso que vai se aproximar de
mim e pular no meu pescoço como naquela noite em que fui trazido
de volta para Ironrose – e então Rhen realmente sacaria a espada.
Ela nem tem a chance. Ele segura seu braço e a puxa para si.
Não é um movimento severo. É… aflito.
– Também não quero machucá-la – digo baixinho.
Harper não se afasta de Rhen. Em vez disso, pousa a mão sobre
a dele. Só então percebo que ele está tremendo.
– Um amigo teria me dito – Rhen fala. – Um irmão teria me dito.
Talvez ele esteja certo. Nós dois cometemos erros. Mesmo
quando a maldição começou, ambos cometemos erros de
julgamento.
Dou um passo para trás e olho para Harper.
– Seu irmão quer vê-la antes de irmos embora.
Ela engole em seco.
– Sim. Sim, claro.
Ela me encara por muito tempo, e posso ver a emoção contida
ali. Ela sabe quais demônios assombram os pensamentos de Rhen,
e mesmo assim continua ao lado dele. Apesar de tudo, fico aliviado
de ver que ele não está sozinho.
– Como já disse, não poderia ter escolhido ninguém melhor,
milady.
Ela abre a boca e fala baixo:
– Ele só está tentando proteger seu povo, Grey.
– Assim como eu.
– Então você vai atacar meu país – Rhen finalmente diz.
– Nosso país. – Hesito. – E sim. Na hora certa.
Por um segundo, ele parece triste e desanimado, mas então sua
expressão se suaviza e seus olhos estão desprovidos de emoção.
Puxo um pergaminho dobrado do casaco e o estendo para ele.
O papel está lacrado com cera verde e preta.
Ele não faz menção de pegá-lo.
– O que é isso?
– Um presente, irmão.
Ele continua imóvel, então Harper o pega. Rhen não se mexe.
Suas mãos se fecham em punhos.
– Pelo bem de Emberfall – digo.
– Saia.
Eu saio.
EPÍLOGO
RHEN
Juliet Young sempre escreveu cartas para sua mãe. Mesmo depois
da morte dela, continua escrevendo – e as deixa no cemitério. É a
única coisa que tem ajudado a jovem a não se perder de si mesma.
Já Declan Murphy é o típico rebelde. O cara da escola de quem
sempre desconfiam que fará algo errado, ou até ilegal. O que
poucos sabem é que, apesar da aparência durona, ele se sente
perdido. Enquanto cumpre pena prestando serviço comunitário no
cemitério local, vive assombrado por fantasmas do passado. Um
dia, Declan encontra uma carta anônima em um túmulo e reconhece
a dor presente nela. Assim, começa a se corresponder com uma
desconhecida... exceto por um detalhe: Juliet e Declan não são
completos desconhecidos um do outro. Eles estudam na mesma
escola, porém são tão diferentes que sempre se repeliram. E agora,
sem saber, trocam os segredos mais íntimos. Mas, aos poucos, a
vida real começa a interferir no universo particular das confidências.
E isso pode separá-los ou uni-los para sempre. Entre cartas, e-mails
e relatos, Brigid Kemmerer constrói uma trama intensa, repleta de
descobertas e narrada sob o ponto de vista dos dois personagens.
Uma história de amor moderna de arrebatar o coração.
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Darkdawn
Kristoff, Jay
9786550080259
704 páginas
Com o irmão caçula nos braços, Mia Corvere saboreia seu triunfo.
Foi uma longa jornada até aqui. A menina assustada que
presenciara o enforcamento do pai tornou-se a assassina mais
temida de toda a República de Itreya. Passados oito anos desde
que começou a planejar sua vingança, Mia finalmente instaurou o
caos na Cidade das Pontes e dos Ossos ao ceifar a vida do grão-
cardeal e do cônsul.