Você está na página 1de 177

Cavaleiro

Errante
Os contos de Dunk & Egg vol. I
A história oferecida aqui ocorre cerca de cem anos antes
dos eventos descritos em A Guerra dos Tronos .
A
s chuvas de primavera haviam amolecido o solo,
então Dunk não teve problema algum para cavar o
túmulo. Ele escolheu um ponto na encosta oeste de
uma colina baixa, pois o velho sempre amara ver o pôr-do-sol.
“Mais um dia terminado,” ele suspiraria, “e quem sabe o que a
manhã nos trará, hein Dunk?”
Bem, uma manhã trouxera chuvas que os encharcaram
até os ossos, e a que veio depois trouxera rajadas de vento, e a
seguinte um calafrio. No quarto dia o velho estava fraco
demais para cavalgar. E agora ele se fora. Apenas alguns dias
atrás, ele estivera cantando conforme cavalgavam, a antiga
canção sobre ir para Vila Gaivota para ver uma bela donzela,
mas ao invés de Vila Gaivota ele cantara sobre Ashford. Para
Ashford para ver a bela donzela, hei-ho, hei-ho, pensou Dunk
miseravelmente.
Quando o buraco estava fundo o suficiente, ele levantou
o corpo do velho em seus braços e o carregou para lá. Ele havia
sido um homem pequeno, e esbelto; sem a cota de malha, o
elmo, e o cinto da espada, ele parecia não pesar mais do que
um saco de folhas. Dunk era enormemente alto para sua idade,
um garoto de ossos grandes, desajeitado e desalinhado de

3
dezesseis ou dezessete anos (ninguém tinha certeza de
verdade), que estava mais perto de dois metros de altura do
que de um metro e oitenta, e havia apenas começado a
preencher seu corpo. O velho havia elogiado a força dele com
freqüência. Ele sempre fora generoso com seus elogios. Era
tudo que ele tinha para dar.
Ele o deitou no fundo do túmulo e ficou de pé acima dele
por algum tempo. O cheiro da chuva estava no ar de novo, e
ele sabia que deveria encher o buraco antes que a ela caísse,
mas era difícil jogar a terra naquele velho rosto cansado.
Deveria haver um septão aqui, para dizer algumas preces
por ele, mas ele só tem a mim. O velho havia ensinado a Dunk
tudo o que sabia sobre espadas e escudos e lanças, mas nunca
havia sido muito bom em ensiná-lo palavras.
“Eu deixaria uma espada para você, mas ela enferrujaria
no solo,” ele disse por fim, em tom de desculpas. “Os deuses
lhe darão uma nova, eu acho. Eu queria que você não tivesse
morrido, sor.” Ele parou, incerto do que mais precisava ser
dito. Ele não sabia nenhuma prece, não por inteiro; o velho
nunca havia sido de fazer muitas preces. “O senhor era um
cavaleiro de verdade, e nunca bateu em mim quando eu não

4
merecia,” ele finalmente conseguiu, “exceto aquela vez em
Lagoa da Donzela. Foi o garoto da estalagem que comeu a
torta da viúva, não eu, eu lhe disse. Não importa agora. Que os
deuses fiquem com você, sor.” Ele chutou sujeira para dentro
do buraco, e então começou a enchê-lo metodicamente, nunca
olhando para a coisa no fundo. Ele teve uma vida longa, Dunk
pensou. Deveria estar mais perto de sessenta do que
cinqüenta, e quantos homens podem dizer isso? Pelo menos
ele vivera para ver outra primavera.
O sol estava indo para o oeste enquanto ele alimentava
os cavalos. Havia três: seu cavalo com as costas curvas, o
palafrém do velho e Trovão, seu cavalo de guerra, que era
cavalgado apenas em torneios e batalhas. O grande garanhão
preto não era tão ágil ou forte como havia sido outrora, mas
ele ainda tinha os olhos brilhantes e o espírito feroz, e era mais
valioso do que qualquer outra coisa que Dunk possuía. Se eu
vendesse Trovão e a velha Noz, e as selas e freios também,
sairia com prata suficiente para... Dunk enrugou a testa. A
única vida que ele conhecia era a vida de cavaleiro errante,
cavalgando de fortaleza para fortaleza, pegando serviço com
esse senhor e aquele senhor, lutando em suas batalhas e

5
comendo em seus salões até que a guerra tivesse terminado, e
depois seguir em frente. Havia torneios de quando em quando
também, embora menos freqüentes, e ele sabia que alguns
cavaleiros de cerca viravam ladrões durante invernos rígidos,
apesar de que o velho nunca fizera isso.
Eu poderia achar outro cavaleiro de cerca precisando de
um escudeiro para tomar conta de seus animais e limpar sua
cota de malha, ele pensou, ou talvez eu pudesse ir para alguma
cidade, para Lannisporto ou Porto Real, e me juntar à Patrulha
da Cidade. Ou então...
Ele havia empilhado as coisas do velho embaixo de um
carvalho. A bolsa de tecido continha três veados de prata,
dezenove moedas de cobre, e uma granada dentada; como a
maioria dos cavaleiros de cerca, a maior parte de sua riqueza
mundana havia sido investida em seus cavalos e armas. Dunk
agora possuía uma cota de malha da qual ele havia esfregado a
ferrugem mil vezes. Um meio-elmo de ferro com uma abertura
nasal larga e um amassado na têmpora esquerda. Um cinto de
espada de couro marrom rachado, e uma espada longa em
uma bainha de madeira e couro. Uma adaga, uma lâmina e
uma pedra de amolar. Grevas e gorjal, uma lança de guerra de

6
dois metros e meio de freixo torcido encimada por uma ponta
de ferro cruel, e um escudo de carvalho com uma beira de
metal machucada, carregando a insígnia de Sor Arlan de
Pennytree: um cálice alado, prata sobre marrom.
Dunk olhou para o escudo, recolheu o cinto da espada, e
olhou para o escudo de novo. O cinto era feito para os quadris
magros do velho. Nunca serviria nele, não mais do que a cota
de malha. Ele amarrou a bainha em um pedaço de corda de
cânhamo, amarrou-o em sua cintura, e desembainhou a
espada longa.
A lâmina era reta e pesada, bom aço forjado em castelo,
o punho de couro macio enrolado sobre madeira, o arção era
uma pedra preta macia e polida. Simples como era, a espada
dava uma sensação boa na mão dele, e Dunk sabia o quão
afiada ela era, tendo-a trabalhado com a pedra de amolar e
oleado muitas noites antes deles irem dormir.
Ela se encaixa no meu punho tão bem quanto jamais se
encaixou no dele, pensou para si, e há um torneio na Clareira
Ashford.
Pé-doce tinha um andar mais fácil do que a velha Noz,
mas Dunk ainda estava doído e cansado quando espiou a

7
estalagem à frente, uma construção alta de taipa e madeira ao
lado de um córrego. A luz amarela aquecedora derramando
pelas suas janelas parecia tão convidativa que ele não poderia
deixá-la passar. Eu tenho três pratas, ele disse para si mesmo,
o suficiente para uma boa refeição e tanta cerveja quanta eu
me importar de beber.
Enquanto ele desmontava, um garoto nu emergiu do
córrego escorrendo e começou a se secar em uma capa
marrom de tecido grosseiro. “Você é o cavalariço?” Dunk
perguntou a ele. O rapaz parecia não ter mais do que oito ou
nove anos, uma coisa esquelética pálida, os pés descalços
cobertos de lama até o tornozelo. O seu cabelo era a coisa mais
estranha a respeito dele. Ele não tinha nenhum.
“Eu vou querer meu palafrém escovado. E aveia para
todos três. Você pode tomar conta deles?”
O garoto olhou para ele ousadamente. “Eu poderia. Se
quisesse.”
Dunk enrugou a testa. “Eu não vou aceitar nada disso.
Sou um cavaleiro, vou fazê-lo saber disso.”
“Você não parece ser um cavaleiro.”
“Todos os cavaleiros são parecidos?”

8
“Não, mas eles também não parecem com você. O seu
cinto de espada é feito de corda.”
“Contanto que ele segure a minha bainha, serve. Agora
cuide dos meus cavalos. Você ganhará um cobre se fizer
direito, e um tapa na orelha se não fizer.” Ele não esperou para
ver como o cavalariço recebeu isso, mas se virou e abriu a
porta com o ombro.
A essa hora, ele teria esperado que a estalagem estivesse
cheia, mas a sala comum estava quase vazia. Um jovem lorde
em um fino manto de damasco estava inconsciente em uma
mesa, roncando suavemente até que uma mulher robusta,
baixa e com cara de coalhada saiu da cozinha e disse, “Sente
onde quiser. É cerveja que você quer, ou comida?”
“Os dois.” Dunk ocupou uma cadeira à janela, bem longe
do homem adormecido.
“Tem bom cordeiro, assado com uma crosta de ervas, e
alguns patos que meu filho abateu. O que você vai querer?”
Ele não havia comido em uma estalagem em meio ano
ou mais. “Os dois.”
A mulher riu. “Bem, você é grande o suficiente para
isso.” Ela pegou uma caneca de cerveja e a trouxe para a mesa

9
dele. “Você vai querer um quarto para a noite também?”
“Não.” Dunk não teria gostado de nada mais do que um
colchão macio de palha e um teto acima de sua cabeça, mas ele
precisava ser cuidadoso com o seu dinheiro. O chão serviria.
“Um pouco de comida, um pouco de cerveja e então é Ashford
para mim. Quão longe fica?”
“Um dia de cavalgada. Siga para o norte quando a
estrada bifurcar no moinho queimado. O meu menino está
cuidando dos seus cavalos ou ele fugiu de novo?”
“Não, ele está aqui,” disse Dunk. “Você parece não ter
nenhum consumidor.”
“Metade da cidade foi ver o torneio. Os meus iriam
também, se eu permitisse. Eles terão essa estalagem quando
eu me for, mas o menino preferiria desfilar por aí com
soldados, e a menina dá para suspiros e risinhos toda vez que
um cavaleiro passa. Eu juro que não saberia lhe dizer por quê.
Cavaleiros são feitos do mesmo jeito que outros homens, e eu
nunca ouvi falar de uma justa que mudou o preço dos ovos.”
Ela olhou Dunk curiosamente; sua espada e escudo diziam
uma coisa, seu cinto de corda e túnica de tecido grosso outra
bem diferente. “Você está rumando para o torneio?”

10
Ele tomou um gole da cerveja antes de responder. Era de
uma cor marrom de noz, e grossa na língua, do jeito que ele
gostava. “Sim,” disse. “Eu pretendo ser um campeão.”
“Ah, pretende é?” a estalajadeira respondeu,
suficientemente educada.
Do outro lado do cômodo, o lorde levantou a cabeça da
poça de vinho. Seu rosto tinha uma aparência pálida, doentio
embaixo de um ninho de rato de cabelo marrom cor de areia, e
uma barba rala loira cobria o seu queixo. Ele esfregou a boca,
piscou para Dunk, e disse, “Eu sonhei com você.” A mão dele
tremeu quando apontou um dedo. “Você fique longe de mim,
ouviu? Fique bem longe.”
Dunk encarou-o incerto. “Meu senhor?”
A estalajadeira se inclinou para perto. “Nunca se importe
com aquele ali, sor. Tudo que ele faz é beber e falar sobre seus
sonhos. Eu vou ver aquela comida.” Ela saiu apressada.
“Comida?” O lorde fez da palavra uma obscenidade. Ele
cambaleou de pé, uma mão na mesa para evitar cair. “Eu vou
vomitar,” ele anunciou. A frente da sua túnica estava uma
crosta vermelha com manchas antigas de vinho. “Eu queria
uma puta, mas não tem nenhuma aqui. Todas foram para a

11
Clareira Ashford. Pelos deuses, eu preciso de um pouco de
vinho.” Ele saiu cambaleando da sala comum de maneira
instável, e Dunk o ouviu subindo os degraus, cantando
baixinho.
Uma criatura triste, pensou Dunk. Mas porque ele
pensou que me conhecia? Ele ponderou aquilo um momento
sobre a sua cerveja.
O cordeiro estava tão bom quanto qualquer um que
jamais havia comido, e o pato estava ainda melhor, cozido com
cerejas e limões e nem um pouco tão gorduroso quanto a
maioria. A estalajadeira trouxe ervilhas amanteigadas
também, e pão de aveia ainda quente do seu forno. Isso é o
que significa ser um cavaleiro, ele disse para si mesmo
conforme sugou o último pedaço de carne do osso. Boa
comida, e cerveja quando eu quiser, e ninguém para me bater
na cabeça. Ele tomou uma segunda caneca de cerveja com a
refeição, uma terceira para descer, e uma quarta porque não
tinha ninguém para lhe dizer que ele não podia, e quando ele
havia terminado pagou a mulher com um veado de prata e
ainda recebeu de volta uma mão cheia de cobres.
Estava completamente escuro pela hora que Dunk saiu.

12
Seu estômago estava cheio e sua bolsa um pouco mais leve,
mas ele se sentiu bem quando caminhou até os estábulos. À
frente, ele ouviu um cavalo relinchar. “Calma, rapaz,” disse a
voz de um garoto. Dunk acelerou passo, enrugando a testa.
o
Ele encontrou o cavalariço montado em Trovão e vestido
com a armadura do velho. A cota de malha era mais comprida
do que ele, e ele teve que inclinar o elmo para trás em sua
cabeça careca ou então ele teria coberto seus olhos. Ele parecia
extremamente atento, e extremamente absurdo. Dunk parou
na porta do estábulo e riu.
O menino olhou para cima, corou, pulou para o chão.
“Meu senhor, eu não pretendia –”
“Ladrão,” disse Dunk, tentando soar severo. “Tire essa
armadura e fique feliz que Trovão não tenha lhe chutado nessa
cabeça estúpida. Ele é um cavalo de guerra, não um pônei de
menino.”
O menino tirou o elmo e jogou-o na palha. “Eu poderia
cavalgá-lo tão bem quanto você,” disse ele, ousado como
quiser.
“Feche a sua boca, não quero nada da sua insolência. A
cota de malha também, tire-a. O que você pensou que estava

13
fazendo?”
“Como posso lhe dizer, com a minha boca fechada?” O
garoto se contorceu para fora da cota de malha e a deixou cair.
“Você pode abrir a boca para responder,” disse Dunk.
“Agora pegue essa malha, sacuda a sujeira, e coloque-a de
volta onde encontrou. E o meio-elmo também. Você alimentou
os cavalos, como eu lhe disse? E escovou Pé-doce?”
“Sim, disse o menino, enquanto sacudia a palha da
malha. “Você vai para Ashford, não vai? Leve-me com você,
sor.”
A estalajadeira tinha-o avisado disso. “E o que a sua mãe
diria disso?”
“Minha mãe?” O garoto fez uma careta. “Minha mãe está
morta, ela não diria coisa alguma.”
Ele estava surpreso. A estalajadeira não era mãe dele?
Talvez ele fosse apenas aprendiz dela. A cabeça de Dunk
estava um pouco confusa da cerveja. “Você é órfão?” ele
perguntou incerto.
“Você é?” o garoto jogou de volta.
“Eu fui uma vez,” Dunk admitiu. Até que o velho me
acolheu.

14
“Se você me levasse, eu poderia ser seu escudeiro.”
“Eu não preciso de nenhum escudeiro,” ele disse.
“Todo cavaleiro precisa de escudeiro,” disse o garoto.
“Você parece precisar de um mais do que a maioria.”
Dunk levantou uma mão ameaçadoramente. “E você
parece precisar de uma tapa na orelha, eu acho. Encha para
mim um saco de aveia. Estou de partida para Ashford
sozinho.”
Se o garoto estava com medo, ele escondia bem. Por um
momento ele ficou parado lá desafiador, os braços cruzados,
mas justo quando Dunk estava quase para desistir dele o
garoto se virou e foi atrás da aveia.
Dunk estava aliviado. Uma pena que eu não possa...
mas ele tem uma vida boa aqui na estalagem, melhor do que
a que teria sendo escudeiro de um cavaleiro de cerca. Levá-lo
não seria gentileza alguma.
Ele ainda podia sentir a decepção do garoto, apesar
disso. Enquanto montava Pé-doce e pegava a rédea de Trovão,
Dunk decidiu que uma moeda de cobre poderia alegrá-lo.
“Aqui, garoto, pela sua ajuda.” Jogou a moeda para ele com
um sorriso, mas o cavalariço não fez tentativa alguma de pegá-

15
la. Ela caiu na terra entre seus pés descalços, e ali ele a deixou
ficar.
Ele irá pegá-la assim que eu me for, Dunk disse para si
mesmo. Ele virou o palafrém e cavalgou para fora da
estalagem, guiando os dois cavalos. As árvores estavam
brilhantes com o luar, e o céu estava sem nuvens e salpicado
de estrelas. Ainda assim enquanto cavalgou estrada abaixo ele
podia sentir o cavalariço observando suas costas, aborrecido e
silencioso.
As sombras da tarde estavam crescendo quando Dunk
puxou as rédeas na borda da larga Clareira Ashford. Sessenta
pavilhões já haviam se erguido no campo gramado. Alguns
eram pequenos, alguns grandes; alguns quadrados, alguns
redondos; alguns de tecido de vela, alguns de linho, alguns de
seda; mas todos eram vibrantemente coloridos, com longos
estandartes flutuando de seus mastros centrais, mais
brilhantes que um campo de flores silvestres com vermelhos
ricos e amarelos ensolarados, incontáveis tons de verde e azul,
pretos profundos e cinzas e roxos.
O velho havia cavalgado com alguns desses cavaleiros;
outros Dunk conhecia de estórias contadas em salas comuns e

16
ao redor de fogueiras. Apesar de nunca ter aprendido a mágica
de ler ou escrever, o velho havia sido incansável quando se
tratava de ensiná-lo heráldica, freqüentemente sabatinando-o
enquanto cavalgavam. Os rouxinóis pertenciam ao Lorde
Caron das Marcas, tão habilidoso com a harpa vertical quanto
era com uma lança. O veado coroado era para Sor Lyonel
Baratheon, a Tempestade Sorridente. Dunk distinguiu o
caçador de Tarly, o raio púrpura da Casa Dondarrion, a maçã
vermelha dos Fossoway. Ali rugia o leão de Lannister dourado
sobre carmim, e ali o mar de tartarugas verde escuro dos
Estermont nadava sobre um pálido campo verde. A tenda
marrom sob o garanhão vermelho só podia pertencer a Sor
Otho Bracken, que era chamado de Bruto de Bracken desde
que eliminara Lorde Quentyn Blackwood três anos atrás
durante um torneio em Porto Real. Dunk ouvira que Sor Otho
atingiu tão forte com o longo machado embotado que
empurrou para dentro o visor do elmo de Lorde Blackwood e o
rosto embaixo dele. Ele viu alguns estandartes de Blackwood
também, na extremidade oeste da clareira, tão distante de Sor
Otho quanto poderia estar. Marbrand, Mallister, Cargyll,
Westerling, Swann, Mullendore, Hightower, Florent, Frey,

17
Penrose, Stokeworth, Daffy, Parren, Wylde; parecia que todas
as casas senhoriais do oeste e do sul havia mandado um
cavaleiro ou três para Ashford para ver a bela donzela e
enfrentar as liças em honra dela.
Ainda assim, refinados de olhar como eram seus
pavilhões, ele sabia que ali não havia lugar algum para ele.
Uma capa de lã surrada seria todo o abrigo que ele tinha essa
noite. Enquanto os senhores e grandes cavaleiros ceavam com
capão e leitão, a ceia de Dunk seria um pedaço duro de bife
salgado. Ele sabia muito bem que se fizesse seu acampamento
naquele campo enfeitado, teria que sofrer tanto escárnio
silencioso quanto gozação aberta. Alguns talvez o tratassem
com gentileza, porém de uma forma que era quase pior.
Um cavaleiro de cerca deve se agarrar firme ao seu
orgulho. Sem isso, ele não era nada mais que um mercenário.
Eu devo merecer meu lugar naquela companhia. Se eu lutar
bem, algum senhor pode me levar para sua residência.
Cavalgarei em nobre companhia então, e comerei carne
fresca toda noite no salão de um castelo, e erguerei meu
próprio pavilhão em torneios. Mas primeiro tenho que me
sair bem. Relutantemente, ele deu as costas para a área do

18
torneio e levou seus cavalos para as árvores.
Nas bordas da grande clareira a uma boa meia milha da
vila e do castelo ele encontrou um lugar onde uma curva no
riacho havia formado uma piscina profunda. Juncos cresciam
grossos ao longo da borda, e um alto olmo frondoso presidia
sobre tudo. A grama primaveril ali era tão verde quanto o
estandarte de qualquer cavaleiro e tão macia ao toque. Era um
lugar bonito, e ninguém o havia reclamado ainda. Este será
meu pavilhão, Dunk disse para si mesmo, um pavilhão com
teto de folhas, ainda mais verdes que os estandartes dos Tyrell
e dos Estermont.
Seus cavalos vinham primeiro. Depois que havia cuidado
deles, tirou a roupa e vadeou na piscina para lavar a poeira da
viagem. “Um verdadeiro cavaleiro é limpo tanto quanto
temente aos deuses,” o velho sempre dizia, insistindo que eles
se lavassem da cabeça aos pés cada vez que a lua mudava,
tanto faz se eles cheirassem a azedo ou não. Agora que ele era
um cavaleiro, Dunk jurara que faria o mesmo.
Ele se sentou nu embaixo do olmo enquanto secava,
aproveitando a quentura do ar da primavera em sua pele
enquanto observava uma mosca-dragão se mover

19
preguiçosamente entre os juncos. Porque eles a chamariam de
mosca-dragão? Ele se perguntou. Não parece nem um pouco
com um dragão. Não que Dunk já tivesse visto um dragão. O
velho tinha visto, entretanto. Dunk ouvira a estória meia
centena de vezes, de como Sor Arlan tinha sido apenas um
garotinho quando seu avô o havia levado a Porto Real, e como
eles haviam visto o último dragão lá no ano antes dele morrer.
Tinha sido uma fêmea verde, pequena e atrofiada, suas asas
secas. Nenhum de seus ovos havia chocado. “Alguns dizem que
o Rei Aegon a envenenou,” o velho diria. “O terceiro Aegon
seria esse, não o pai do Rei Daeron, mas o que eles chamavam
de Maldição-dos-Dragões, ou Aegon o Azarento. Ele tinha
medo de dragões, pois havia visto a fera de seu tio devorar a
própria mãe. Os verões têm sido mais curtos desde que o
último dragão morreu, e os invernos mais longos e mais
cruéis.”
O ar começou a esfriar conforme o sol mergulhou
embaixo das copas das árvores. Quando Dunk sentiu os pêlos
arrepiados pinicando seus braços, ele bateu sua túnica e calões
contra o tronco do olmo para tirar o pior da sujeira, e os vestiu
de novo. Pela manhã ele poderia procurar o mestre dos jogos e

20
inscrever seu nome, mas ele tinha outros problemas que devia
resolver hoje à noite se esperava desafiar.
Ele não precisava estudar seu reflexo na água para saber
que não parecia muito um cavaleiro, então ele colocou o
escudo de Sor Arlan nas costas para exibir a insígnia.
Amarrando os cavalos, Dunk os deixou para aparar a grossa
grama verde embaixo do olmo enquanto saiu a pé para a área
do torneio.
Em tempos normais a clareira serviu como área comum
para o povo da vila de Ashford do outro lado do rio, mas agora
ela estava transformada. Uma segunda vila havia brotado da
noite para o dia, uma vila de seda ao invés de pedra, maior e
mais bela do que sua irmã mais velha. Dúzias de mercadores
haviam erigido suas barracas ao longo da borda do campo,
vendendo feltro e frutas, cintos e botas, peles e falcões,
cerâmicas, pedras preciosas, louça, temperos, plumas, e toda
sorte de outros bens. Malabaristas, marioneteiros, e mágicos
vagavam entre as multidões oferecendo seus negócios... Bem
como as prostitutas e batedores de carteira. Dunk manteve
uma mão cautelosa em seu dinheiro.
Quando sentiu o cheiro de salsichas fritando em cima de

21
um fogo fumarento, sua boca começou a encher de água. Ele
comprou uma com um cobre de sua bolsa, e um chifre de
cerveja para descer tudo. Enquanto comia ele observou um
cavaleiro de madeira pintada lutar contra um dragão de
madeira. A marioneteira que manejava o dragão era boa de
observar também; bem alta e atraente, com a pele cor de oliva
e o cabelo preto de Dorne. Ela era esguia como uma lança sem
seios dignos de nota, mas Dunk gostou do rosto dela e da
forma com que seus dedos faziam o dragão avançar e rastejar
na ponta de sua corda. Ele teria jogado um cobre para a garota
se tivesse um para gastar, mas agora mesmo ele precisava de
todo o dinheiro.
Havia armoreiros entre os mercadores, como ele
esperara. Um Tyroshi com uma barba azul bifurcada estava
vendendo elmos ornamentados, coisas lindas fantásticas
trabalhadas em forma de pássaros e bestas com entalhes de
ouro e prata. Em outro lugar ele encontrou um fabricante de
espadas vendendo lâminas de aço baratas, e outro cujo
trabalho era muito melhor, mas não era de uma espada que ele
precisava.
O homem que ele precisava estava bem no fim da fileira,

22
uma camisa de cota de malha e um par de manoplas de aço
articulado expostas em uma mesa diante dele. Dunk os
inspecionou de perto. “Você faz um bom trabalho,” ele disse.
“Não há melhor.” Um homem atarracado, o ferreiro não
tinha mais do que um metro e meio, embora tão largo quanto
Dunk na altura do peito e dos braços. Ele tinha uma barba
preta, e nenhum traço de humildade.
“Eu preciso de armadura para o torneio,” Dunk disse a
ele. “Um traje de malha boa, com gorjal, grevas, e um elmo
completo.” O meio-elmo do velho caberia na cabeça dele, mas
ele queria mais proteção para o seu rosto do que uma barra
nasal sozinha conseguiria fornecer.
O armoreiro o olhou de cima a baixo. “Você é grande,
mas eu já armei maiores.” Ele saiu de trás da mesa. “Ajoelhe,
eu quero medir esses ombros. Sim, e esse seu pescoço grosso.”
Dunk se ajoelhou. O armoreiro colocou um pedaço de couro
cru com nós ao longo dos ombros dele, grunhiu, escorregou-o
ao redor da sua garganta, grunhiu novamente. “Levante o
braço. Não, o direito.” Ele grunhiu uma terceira vez. “Agora
pode ficar de pé.” O interior de uma perna, a grossura da
panturrilha, e o tamanho da cintura dele geraram grunhidos

23
subseqüentes. “Eu tenho alguns pedaços no meu vagão que
podem servir para você,” o homem disse quando havia
terminado. “Nada embelezado com ouro nem prata, veja só,
apenas bom aço, forte e simples. Eu faço elmos que parecem
elmos, não porcos alados e frutas estrangeiras estranhas, mas
os meus irão servir melhor para você se pegar uma lança na
cara.”
“Isso é tudo que eu quero,” disse Dunk. “Quanto?”
“Oitocentos veados, porque eu estou me sentindo
generoso.”
“Oitocentos?” Era mais do que ele havia esperado. “Eu...
eu poderia negociar com você alguma armadura velha, feita
para um homem menor... um meio-elmo, uma cota de
malha...”
“Pate Ferreiro vende apenas seu próprio trabalho,” o
homem declarou, “mas talvez eu pudesse fazer uso do metal.
Se não estiver enferrujado demais, eu pego e armo você por
seiscentos.”
Dunk poderia implorar a Pate que lhe desse a armadura
por garantia, mas ele sabia que tipo de resposta aquele pedido
provavelmente teria. Ele havia viajado com o velho tempo

24
suficiente para aprender que mercadores eram notoriamente
desconfiados de cavaleiros de cerca, alguns dos quais eram
pouco melhores do que ladrões. “Eu lhe darei duas pratas
agora, e a armadura e o resto do dinheiro pela manhã.”
O armoreiro o estudou por um momento. “Duas pratas
lhe compram um dia. Depois disso, vendo meu trabalho para
quem aparecer.”
Dunk recolheu os veados de sua bolsa e os colocou na
mão calejada do armoreiro. “Você vai ter tudo. Eu pretendo
ser campeão aqui.”
“Ah é?” Pate mordeu uma das moedas. “E esses outros,
imagino que todos eles vieram apenas para torcer por você?”
A lua estava bem alta pela hora que ele virou de volta
para o seu olmo. Atrás dele, A Clareira Ashford estava acesa
com a luz de tochas. Os sons de canções e risadas cruzavam a
grama, mas seu próprio humor estava mais sombrio. Ele
conseguia pensar em apenas uma maneira de levantar
dinheiro para sua armadura. E se ele fosse derrotado... “Uma
vitória é tudo que eu preciso,” ele murmurou alto. “Isso não é
muita coisa para esperar.”
Mesmo assim, o velho nunca teria esperado por isso. Sor

25
Arlan não havia participado de uma disputa desde o dia em
que fora derrubado do cavalo pelo Príncipe de Pedra do
Dragão em um torneio em Ponta Tempestade, muitos anos
antes. “Não é todo homem que pode se gabar de ter quebrado
sete lanças contra o melhor cavaleiro dos Sete Reinos, ele
diria. “Eu não poderia esperar fazer melhor, então porque eu
deveria tentar?”
Dunk havia suspeitado que a idade de Sor Arlan tivesse
mais a ver com isso do que o Príncipe de Pedra do Dragão,
mas ele nunca ousara dizer isso. O velho tinha seu orgulho,
mesmo no fim. Eu sou rápido e forte, ele sempre dissera, o
que era verdade para ele não precisa ser verdade para mim,
ele disse a si mesmo teimosamente.
Ele estava se movendo através de um caminho de ervas
daninhas, remoendo as chances em sua cabeça, quando viu o
movimento de fogo entre os arbustos. O que é isso? Dunk não
parou para pensar. Repentinamente a espada estava em sua
mão e ele estava se batendo através da grama.
Ele pulou rugindo e amaldiçoando, apenas para parar
subitamente ao ver o garoto ao lado da fogueira. “Você!” Ele
baixou a espada. “O que você está fazendo aqui?”

26
“Cozinhando um peixe,” disse o garoto careca. “Você
quer um pouco?”
“Quer dizer, como você chegou aqui? Você roubou um
cavalo?”
“Eu vim atrás de um carro, com um homem que estava
trazendo alguns carneiros para o castelo para a mesa do meu
senhor de Ashford.”
“Bem, é melhor você ir ver se ele já foi, ou encontrar
outro carro. Não terei você aqui.”
“Você não pode me fazer ir,” disse o garoto,
impertinente. “Já enchi daquela estalagem.”
“Não vou aceitar mais da sua insolência,” Dunk avisou.
“Eu devia lhe jogar nas costas do meu cavalo agora e lhe levar
para casa.”
“Você teria que cavalgar todo o caminho até Porto Real,”
disse o garoto. “Você perderia o torneio.”
Porto Real. Por um momento Dunk se perguntou se
estava sendo ridicularizado, mas o garoto não tinha como
saber que ele havia nascido em Porto Real também. Outro
infeliz da Baixada das Pulgas, provavelmente, e quem pode
culpá-lo por querer sair daquele lugar?

27
Ele se sentiu estúpido de pé ali com a espada na mão
diante de um órfão de oito anos. Ele a embainhou, fazendo
cara feia para que o garoto visse que ele não aturaria nenhuma
bobagem. Eu deveria lhe dar uma boa surra no mínimo,
pensou, mas a criança parecia tão digna de pena que ele não
conseguia se forçar a fazer isso. Ele deu uma olhada ao redor
do acampamento. O fogo estava queimando alegremente
dentro de um círculo de pedras cuidadoso. Os cavalos haviam
sido escovados, e roupas estavam penduradas no olmo,
secando acima das chamas. “O que elas estão fazendo aqui?”
“Eu as lavei,” disse o menino. “E limpei os cavalos, fiz o
fogo, e peguei esse peixe. Eu teria erguido o seu pavilhão, mas
não encontrei nenhum.”
“Ali está meu pavilhão.” Dunk correu uma mão acima de
sua cabeça, nos galhos do alto olmo que crescia acima deles.
“Aquilo é uma árvore,” disse o garoto, sem se
impressionar.
“É todo o pavilhão que um verdadeiro cavaleiro precisa.
Eu preferiria dormir sob as estrelas do que em alguma tenda
fumarenta.”
“E se chover?”

28
“A árvore me protegerá.”
“A água vaza pela árvore.”
Dunk riu. “Sim. Bem, falando a verdade, me falta o
dinheiro para um pavilhão. E é melhor você virar esse peixe,
ou ele ficará queimado embaixo e cru em cima. Você nunca
seria um menino de cozinha.”
“Eu seria se quisesse,” disse o menino, mas ele virou o
peixe.
“O que aconteceu com o seu cabelo?” Dunk perguntou
para ele.
“Os meistres rasparam.” Subitamente autoconsciente, o
garoto puxou para cima o capuz de sua capa marrom escura,
cobrindo sua cabeça.
Dunk ouvira que eles faziam isso às vezes, para tratar
piolhos ou outros bichos ou certas doenças. “Você está
doente?”
“Não,” disse o menino. “Qual o seu nome?”
“Dunk,” disse ele.
O infeliz do garoto riu alto, como se essa fosse a coisa
mais engraçada que ele já tivesse ouvido. “Dunk?” disse ele.
“Sor Dunk? Isso não é nome de cavaleiro. É diminutivo de

29
Duncan?”
Era? O velho havia chamado-o apenas de Dunk desde
quando conseguia se lembrar, e ele não lembrava muito de sua
vida antes disso. “Duncan, sim,” disse ele. “Sor Duncan de...”
Dunk não tinha nenhum outro nome, ou alguma casa; Sor
Arlan havia encontrado-o vivendo selvagem nos buracos e
becos de Baixada das Pulgas. Ele nunca havia conhecido seu
pai ou sua mãe. O que ele diria? “Sor Duncan de Baixada das
Pulgas” não soava muito cavalheiresco. Ele poderia assumir
Pennytree, mas e se o perguntassem onde ficava? Dunk nunca
havia estado em Pennytree, nem o velho falara muito sobre o
lugar. Ele enrugou a testa um momento, e então falou de uma
vez, “Sor Duncan o Alto.” Ele era alto, ninguém poderia
contestar isso, e soava destemido.
Embora o pequeno insolente não parecesse pensar isso.
“Nunca ouvi falar de algum Sor Duncan o Alto.”
“Você conhece todos os cavaleiros dos Sete Reinos,
então?”
O menino olhou para ele ousadamente. “Os bons.”
“Eu sou tão bom quanto qualquer outro. Depois do
torneio, todos saberão disso. Você tem um nome, ladrão?”

30
O menino hesitou. “Egg,” disse ele.
Dunk não riu. A cabeça dele parece mesmo um ovo.
Meninos pequenos podem ser cruéis, e homens crescidos
também. “Egg,” disse ele, “Eu devia bater em você até sangrar
e te mandar de volta, mas a verdade é que, eu não tenho
pavilhão algum e nenhum escudeiro também. Se você jurar
que fará o que lhe disserem, eu deixo você me servir no
torneio. Depois disso, bem, nós vamos ver. Se eu decidir que
você merece o que ganha, você terá roupas nas costas e comida
na barriga. As roupas podem ser de tecido grosseiro e a
comida bife salgado e peixe salgado, e talvez algum cordeiro de
tempos em tempos, quando não tiverem guardas por perto,
mas você não ficará com fome. E eu prometo não bater em
você a não ser quando você merecer.”
Egg sorriu. “Sim, meu senhor.”
“Sor,” Dunk corrigiu. “Eu sou apenas um cavaleiro de
cerca.” Ele se perguntou se o velho estava olhando-o de cima.
Eu vou ensiná-lo as artes de batalha, do mesmo jeito que o
senhor me ensinou, sor. Ele parece um rapaz promissor, pode
ser que um dia dará um cavaleiro.
O peixe ainda estava um pouco cru por dentro quando

31
eles comeram, e o menino não tinha retirado todas as
espinhas, mas ainda era muito melhor que bife salgado duro.
Egg logo adormeceu ao lado do fogo que estava
morrendo. Dunk deitou de costas ali perto, suas mãos grandes
atrás da cabeça, olhando o céu noturno. Ele podia ouvir
música ao longe na área do torneio, a meia milha de distância.
As estrelas estavam em toda parte, milhares e milhares delas.
Uma caiu enquanto ele observava, um rastro verde brilhante
que relampejou contra o negro e se foi.
Uma estrela cadente traz sorte para aquele que a vê,
Dunk pensou. Mas o resto deles está todo em seus pavilhões
agora, encarando seda ao invés do céu. Então a sorte é só
minha.

Pela manhã, ele acordou com o som de um galo


cantando. Egg ainda estava lá, enrolado embaixo da segunda
melhor capa do velho. Bem, o menino não havia fugido
durante a noite, já era um começo. Ele cutucou-o para acordar
com o pé. “Levante. Há trabalho a fazer.” O garoto levantou

32
suficientemente rápido, esfregando os olhos. “Ajude-me a
selar Pé-doce,” Dunk disse a ele.
“E o desjejum?”
“Há bife salgado. Depois que terminarmos.”
“Eu preferia comer o cavalo,” disse Egg. “Sor.”
“Você vai comer o meu punho se não fizer o que eu digo.
Pegue as escovas. Estão no saco da sela. Sim, esse.”
Juntos eles escovaram a pelagem do alazão, colocaram a
melhor sela de Ser Arlan nas costas dela, e prenderam
apertado. Egg era um bom trabalhador uma vez que se
concentrasse nisso, Dunk percebeu.
“Acho que estarei fora a maior parte do dia,” ele disse ao
menino enquanto montava. “Você deve ficar aqui e pôr o
acampamento em ordem. Certifique-se de que nenhum ladrão
venha meter o nariz.”
“Posso ter uma espada para espantar eles?” perguntou
Egg. Ele tinha olhos azuis, Dunk viu, muito escuros, quase
roxos. A cabeça careca dele fazia-os parecerem enormes, de
certa forma.
“Não,” disse Dunk. “Uma faca é o suficiente. E é melhor
você estar aqui quando eu voltar, está ouvindo? Roube-me e

33
fuja e eu vou caçar você, eu juro que vou. Com cachorros.”
“Você não tem cachorro algum,” Egg observou.
“Eu pego alguns,” disse Dunk. “Só para você .” Ele virou a
cabeça de Pé-doce em direção à clareira e se distanciou a um
trote veloz, esperando que a ameaça fosse o suficiente para
manter o garoto honesto. Tirando as roupas que ele estava
vestindo, a armadura no saco, e o cavalo embaixo dele, tudo
que Dunk possuía no mundo estava lá no acampamento. Eu
sou um grande tolo para confiar tanto no garoto, mas não é
mais do que o velho fez por mim, ele refletiu. A Mãe deve tê-lo
mandado para mim para que eu pudesse pagar minha
dívida.
Enquanto cruzava o campo, ele ouviu o barulho de
martelos vindo da margem do rio, onde carpinteiros estavam
pregando barreiras de justa e erguendo um imponente
palanque. Alguns novos pavilhões estavam crescendo também,
enquanto os cavaleiros que haviam chegado mais cedo
dormiam para recuperar-se das celebrações da noite passada
ou sentavam-se para fazer o desjejum. Dunk sentia o cheiro de
fumaça de lenha, e bacon também.
Ao norte da clareira fluía o rio Cockleswent, um afluente

34
do poderoso Mander. Além da margem rasa estavam a vila e o
castelo. Dunk havia visto muitas vilas de mercado durante
suas viagens com o velho. Essa era mais bonita que a maioria;
as casas pintadas com cal com seus telhados treliçados tinham
uma aparência convidativa. Quando ele era menor, costumava
se perguntar como seria viver em tal lugar; dormir toda noite
com um telhado sobre sua cabeça, e acordar toda manhã com
as mesmas paredes ao seu redor. Pode ser que logo eu saiba.
Sim, e Egg também. Poderia acontecer. Coisas mais estranhas
aconteciam todos os dias.
O Castelo de Ashford era uma estrutura de pedra
construída no formato de um triângulo, com torres redondas
erguendo-se com nove metros de altura em cada ponta e
grossas paredes creneladas correndo entre elas. Estandartes
laranja tremulavam de suas ameias, exibindo a insígnia do sol
branco com asna do seu senhor. Homens de armas em
uniformes laranja e branco estavam de pé fora dos portões
com alabardas, observando as pessoas irem e virem,
aparentemente mais atentos em brincar com uma bonita

menina leiteira do que manter alguém fora. Dunk puxou as


rédeas na frente do homem baixo de barba que ele tomou pelo

35
seu capitão e perguntou pelo mestre dos jogos.
“É Plummer que você está procurando, ele é intendente
aqui. Vou mostrar o caminho.”
Dentro do pátio, um cavalariço pegou Pé-doce para ele.
Dunk pendurou o velho escudo por cima de um ombro e
seguiu o capitão da guarda de volta para os estábulos até um
torreão construído em um ângulo da cortina da muralha.
Degraus inclinados levavam até a passarela da muralha. “Veio
colocar o nome do seu mestre nas liças?” o capitão perguntou
conforme eles subiam.
“É o meu próprio nome que eu vou colocar.”
“É mesmo?” O homem estava rindo? Dunk não tinha
certeza. “Aquela porta ali. Vou deixá-lo aqui e voltar para o
meu posto.”
Quando Dunk empurrou a porta, o intendente estava
sentado em uma mesa de montar, arranhando em um pedaço
de pergaminho com uma pena. Ele tinha cabelo cinza fino e
um rosto estreito fino. “Sim?” ele disse, levantando os olhos.
“O que você quer, homem?”
Dunk fechou a porta. “Você é Plummer o intendente? Eu
vim para o torneio. Para entrar nas liças.”

36
Plummer enrugou os lábios. “O torneio do meu senhor é
uma competição para cavaleiros. Você é um cavaleiro?”
Ele acenou com a cabeça, se perguntando se suas orelhas
estavam vermelhas.
“Um cavaleiro com um nome, talvez?”
“Dunk.” Porque dissera isso? “Sor Duncan. O Alto.”
“E de onde você pode ser, Sor Duncan o Alto?”
“De todo lugar. Eu fui escudeiro de Sor Arlan de
Pennytree desde que eu tinha cinco ou seis anos. Esse é o
escudo dele.” Ele mostrou-o ao intendente. “Ele estava vindo
para o torneio, mas ele pegou um resfriado e morreu, então eu
vim em seu lugar. Ele me ordenou antes de morrer, com sua
própria espada.” Dunk desembainhou a espada longa e a
colocou na mesa de madeira arranhada entre eles.
O mestre das liças deu não mais que um olhar à lâmina.
“É uma espada, com certeza. Nunca ouvi falar desse Arlan de
Pennytree, entretanto. Foi escudeiro dele, você diz?”
“Ele sempre disse que pretendia que eu fosse cavaleiro,
como ele era. Quando ele estava morrendo pediu a sua espada
e me fez ajoelhar. Ele me tocou uma vez no meu ombro direito
e no esquerdo, e disse algumas palavras, e quando eu me

37
levantei ele disse que eu era um cavaleiro.”
“Hmpf.” O homem Plummer esfregou o nariz. “Qualquer
cavaleiro pode nomear um cavaleiro, isso é verdade, apesar de
que é mais costumeiro fazer vigília e ser ungido por um septão
antes de tomar seus votos. Havia alguma testemunha na sua
nomeação?”
“Só um pássaro, em um arbusto. Eu o ouvi enquanto o
velho estava dizendo as palavras. Ele me ordenou que fosse
um bom cavaleiro e honesto, a obedecer aos sete deuses,
defender os fracos e inocentes, servir o meu senhor fielmente e
defender o reino com toda a minha força, e eu jurei que o
faria.”
“Sem dúvida.” Plummer não se importou de chamá-lo de
sor, Dunk não pôde deixar de notar. “Vou precisar consultar o
Senhor Ashford. Você ou o seu falecido mestre seriam
conhecidos de algum dos bons cavaleiros reunidos aqui?”
Dunk pensou um momento. “Havia um pavilhão
exibindo o estandarte da Casa Dondarrion? O negro, com o
raio roxo?”
“Este seria Sor Manfred, daquela Casa.”
“Sor Arlan serviu o senhor seu pai em Dorne, três anos

38
atrás. Sor Manfred pode lembrar-se de mim.”
“Eu o aconselharia a falar com ele. Se ele se
responsabilizar por você, traga-o aqui com você pela manhã,
nesta mesma hora.”
“Como disser, meu Senhor.” Ele se dirigiu para a porta.
“Sor Duncan,” o intendente o chamou.
Dunk se virou.
“Você tem consciência,” disse o homem, “de que aqueles
derrotados em torneio abrem mão de suas armas, armadura, e
cavalo para os vitoriosos, e devem pagar para resgatá-los de
volta?”
“Eu sei.”
“E você tem o dinheiro para pagar tal resgate?”
Agora ele sabia que suas orelhas estavam vermelhas. “Eu
não vou precisar do dinheiro,” disse ele, rezando para que
fosse verdade. Tudo que preciso é de uma vitória. Se eu
vencer minha primeira liça, terei a armadura e o cavalo do
perdedor, ou seu ouro, e aí posso suportar uma perda eu
mesmo.
Ele desceu vagarosamente os degraus, relutante para
seguir em frente com o que devia fazer em seguida. No pátio,

39
ele puxou pela gola um dos cavalariços. “Devo falar com o
mestre de cavalos do Senhor Ashford.”
“Eu o encontrarei para você.”
Estava frio e escuro nos estábulos. Um garanhão cinza
desobediente avançou quando ele passou, mas Pé-doce apenas
relinchou suavemente e esfregou o focinho na mão dele
quando a levou ao nariz dela. “Você é uma boa garota, não é?”
ele murmurou. O velho sempre dissera que um cavaleiro
nunca devia amar um cavalo, uma vez que mais de alguns
provavelmente morreriam embaixo ele, mas ele nunca dera
ouvidos ao seu próprio conselho também. Dunk havia
freqüentemente o visto gastar seu último cobre em uma maçã
para a velha Noz ou alguns grãos de aveia para Pé-doce e
Trovão. O palafrém havia sido o cavalo comum de Sor Arlan, e
ela havia carregado-o incansavelmente por milhares de
milhas, para cima e para baixo nos Sete Reinos. Dunk se sentia
como se estivesse traindo um velho amigo, mas que escolha ele
tinha? Noz era velha demais para valer muita coisa, e Trovão
deveria carregá-lo nas liças.
Algum tempo passou antes que o mestre dos cavalos se
desse ao trabalho de aparecer. Enquanto esperava, Dunk

40
ouviu uma explosão de trompetes das muralhas, e uma voz no
pátio. Curioso, ele guiou Pé-doce até a porta do estábulo para
ver o que estava acontecendo. Um grande grupo de cavaleiros
e arqueiros montados entrou pelos portões, cem homens no
mínimo, cavalgando alguns dos cavalos mais esplêndidos que
Dunk já vira. Algum grande senhor tinha vindo. He agarrou o
braço de um cavalariço que passava correndo. “Quem são
eles?”
O menino olhou para ele estranhamente. “Você não está
vendo os estandartes?” Ele se soltou e saiu correndo.
Os estandartes... quando Dunk virou a cabeça, uma
lufada de vento levantou a flâmula de seda negra em cima do
alto mastro, e o feroz dragão de três cabeças da Casa
Targaryen pareceu estender suas asas, soprando fogo
escarlate. O porta-estandarte era um cavaleiro alto em
armadura de escalas brancas entalhada com ouro, uma capa
branca fluindo de seus ombros. Dois dos outros cavaleiros
estavam com armaduras brancas da cabeça até o calcanhar
também. Cavaleiros da Guarda Real com o estandarte real.
Não é de se admirar que o Senhor Ashford e seus filhos
tenham vindo correndo pelas portas da fortaleza, e a bela

41
donzela também, uma garota baixa com cabelo amarelo e o
rosto redondo rosado. Ela não parece tão bela para mim,
pensou Dunk. A garota das marionetes era mais bonita.
“Garoto, deixe essa porcaria e cuide do meu cavalo.”
Um cavaleiro havia desmontado na frente dos estábulos.
Ele está falando comigo, Dunk percebeu. “Eu não sou um
cavalariço, meu senhor.”
“Não é inteligente o suficiente?” O rapaz vestia uma capa
negra com a borda de cetim escarlate, mas por baixo estava
uma vestimenta brilhante como chamas, com vermelhos,
amarelos e laranjas. Esguio e reto como uma faca, embora com
altura apenas mediana, ele tinha mais ou menos a idade de
Dunk. Cachos de cabelo prata-dourado emolduravam um
rosto esculpido e imperioso; a tez alta e maçãs do rosto
agudas, nariz reto, pele pálida suave sem marcas. Os olhos
dele eram de uma cor violeta profunda. “Se você não consegue
cuidar de um cavalo, arranje-me um pouco de vinho e uma
garota bonita.”
“Eu... meu senhor, perdão, eu também não sou nenhum
criado. Tenho a honra de ser um cavaleiro.”
“A ordem dos cavaleiros caiu em dias tristes,” disse o

42
príncipe, mas aí um dos cavalariços veio correndo, e ele virou-
se para entregar-lhe as rédeas do seu palafrém, um esplêndido
baio cor de sangue. Dunk foi esquecido por um instante.
Aliviado, ele se retirou de volta para dentro dos estábulos para
esperar pelo mestre dos cavalos. Ele se sentia desconfortável o
suficiente perto dos senhores em seus pavilhões, não tinha o
que fazer falando com príncipes.
De que o belo jovem era um príncipe ele não tinha
dúvidas. Os Targaryen eram o sangue da perdida Valyria do
outro lado dos mares, e os seus cabelos prata-dourados e olhos
violeta os distinguiam de homens comuns. Dunk sabia que o
Príncipe Baelor era mais velho, mas o jovem podia muito bem
ser um de seus filhos: Valarr, que era freqüentemente
chamado de “Jovem Príncipe”, para distingui-lo de seu pai, ou
Matarys, “o Príncipe mais jovem ainda,” como o bobo do velho
Lorde Swann havia nomeado-o uma vez. Havia outros
príncipes também, primos de Valarr e Matarys. O bom Rei
Daeron tinha quatro filhos crescidos, três com filhos deles
próprios. A linhagem dos reis dragões tinha quase morrido
durante o tempo do seu pai, mas era comumente dito que
Daeron II e seus filhos tinham deixado-a segura por todos os

43
tempos.
“Você. Homem. Você chamou por mim.” O mestre dos
cavalos do Lorde Ashford tinha um rosto vermelho tornado
mais vermelho por seu uniforme laranja, e uma maneira
brusca de falar. “O que é? Eu não tenho tempo para –”
“Eu quero vender este palafrém,” Dunk interrompeu
rapidamente, antes que o homem pudesse dispensá-lo. “Ela é
um bom cavalo, com pés firmes –”
“Eu não tenho tempo algum, já lhe disse.” O homem deu
não mais que um olhar a Pé-doce. “O meu senhor de Ashford
não tem necessidade alguma de tal coisa. Leve-a à vila, talvez
Henly lhe dê uma prata ou três.” Rápido assim, ele estava se
virando.
“Obrigada, meu senhor,” disse Dunk antes que ele
pudesse ir. “Meu senhor, o rei veio?”
O mestre de cavalos riu dele. “Não, graças aos deuses.
Essa infestação de príncipes já é provação suficiente. Onde eu
vou encontrar lugar para todos esses animais? E alimento?”
Ele saiu berrando com seus cavalariços.
Quando Dunk deixou o estábulo, Lorde Ashford havia
escoltado seus hóspedes principescos para o salão, mas dois

44
dos cavaleiros da Guarda Real em sua armadura branca e
capas brancas como a neve ainda permaneciam no pátio,
falando com o capitão da guarda. Dunk estacou diante deles.
“Meus senhores, eu sou Sor Duncan o Alto.”
“Prazer em conhecê-lo, sor Duncan,” respondeu o maior
dos dois cavaleiros brancos. “Eu sou Sor Roland Crakehall, e
esse é meu Irmão Juramentado, Sor Ronnel de Valdocaso.”
Os sete campeões da Guarda Real eram os guerreiros
mais destemidos em todos os Sete Reinos, com exceção talvez
apenas do próprio príncipe da coroa, o próprio Baelor Quebra-
Lanças. “Vocês vieram para entrar nas liças?” Dunk perguntou
ansiosamente.
“Não seria adequado para nós correr contra aqueles a
quem juramos proteger,” respondeu Sor Donnel, de barba e
cabelo vermelhos.
“O príncipe Valarr tem a honra de ser um dos campões
da Senhora Ashford,” explicou Sor Roland, “e dois de seus
primos pretendem desafiar. O resto de nós veio apenas
assistir.”
Aliviado, Dunk agradeceu os cavaleiros brancos por sua
gentileza, e cavalgou através dos portões do castelo antes que

45
outro príncipe pensasse em acossá-lo. Três príncipes, ele
ponderou enquanto virava o palafrém na direção das ruas da
Vila Ashford. Valarr era o filho mais velho do príncipe Baelor,
segundo na linha de sucessão ao Trono de Ferro, mas Dunk
não sabia quanto da famosa perícia de seu pai com lança e
espada ele poderia ter herdado. Sobre os outros príncipes
Targaryen ele sabia ainda menos. O que eu vou fazer se tiver
que correr contra um príncipe? Vou ser ao menos permitido
desafiar alguém de nascimento tão alto? Ele não sabia a
resposta. O velho sempre dissera que ele era grosso como a
parede de um castelo, e justo agora ele sentia isso.
Henly gostou da aparência de Pé-doce o suficiente até
ouvir que Dunk queria vendê-la. Então tudo que o cavalariço
podia ver nela eram defeitos. Ele ofereceu trezentas pratas.
Dunk disse que teria três mil. Depois de muita discussão e
xingamento, eles acertaram em setecentos e cinqüenta veados
de prata. Aquilo era bem mais perto do preço inicial de Henly
do que o de Dunk, o que o fez se sentir o perdedor na disputa,
mas o cavalariço não iria mais alto, então no fim ele teve não
teve escolha a não ser ceder. Uma segunda discussão começou
quando Dunk declarou que o preço não tinha incluído a cela, e

46
Henly insistia que tinha.
Finalmente estava tudo resolvido. Enquanto Henly saiu
para buscar seu dinheiro, Dunk acariciou a crina de Pé-doce e
disse a ela que fosse corajosa. “Se eu vencer, volto e compro
você de volta, eu prometo.” Ele não tinha dúvida de que todos
os defeitos do palafrém iriam evaporar nos dias seguintes, e
ela valeria o dobro do que valia hoje.
O cavalariço deu a ele três moedas de ouro e o resto em
prata. Dunk mordeu uma das moedas de ouro e sorriu. Ele
nunca havia provado ouro antes, nem segurado. “Dragões,” os
homens chamavam as moedas, uma vez que elas eram
estampadas com o dragão de três cabeças da casa Targaryen
de um lado. O outro trazia a figura do rei. Duas das moedas
que Henly lhe dera tinham o rosto do Rei Daeron; a terceira
era mais velha, bem usada, e mostrava um homem diferente.
O nome dele estava lá, embaixo da cabeça, mas Dunk não
conseguia ler as letras. O ouro tinha sido raspado dos lados
também, ele notou. Ele mencionou isso para Henly, e em voz
alta. O cavalariço resmungou, mas lhe deu mais algumas
pratas e uma mão cheia de cobres para compensar o peso.
Dunk devolveu alguns dos cobres, e acenou na direção de Pé-

47
doce. “Isso é para ela,” ele disse. “Certifique-se que ela tenha
alguns grãos de aveia hoje à noite. Sim, e uma maçã também.”
Com o escudo em seu braço e o saco com a armadura
velha pendurado em seu ombro, Dunk partiu a pé pelas ruas
ensolaradas da Vila Ashford. O peso de todo aquele dinheiro
em sua bolsa o fez sentir-se estranho; quase tonto por um lado
e ansioso por outro. O velho nunca havia confiado a ele mais
do que uma moeda ou duas de cada vez. Ele poderia viver por
um ano com aquela quantidade de dinheiro. E o que eu vou
fazer quando acabar, vender Trovão? Aquela estrada acabava
em mendicância ou fora da lei. Essa chance nunca vai vir de
novo, eu devo arriscar tudo.
Quando ele espirrou de volta cruzando a foz para a
margem sul do Cockleswent, a manhã estava quase terminada
e a área do torneio tinha ganhado vida mais uma vez. Os
vendedores de vinho e cozinheiros de salsicha estavam
fazendo um comércio ágil, um urso dançante estava se
arrastando com a música do seu mestre enquanto um cantor
cantava “O urso, o urso e a bela donzela,” malabaristas
estavam jogando seus mal abares, e os marioneteiros estavam
acabando de finalizar outra luta.

48
Dunk parou para ver o dragão de madeira morrer.
Quando o cavaleiro de marionete cortou a cabeça dele e a
serragem vermelha se espalhou na grama, ele riu alto e jogou
dois cobres para a garota. “Um por ontem à noite,” ele gritou.
Ela pegou as moedas no ar e jogou de volta para ele um sorriso
mais doce que qualquer um que ele já tivesse visto.
É para mim que ela sorri, ou para as moedas? Dunk
nunca tinha estado com uma garota, e elas o deixavam
nervoso. Uma vez, há três anos, quando a bolsa do velho
estava cheia depois de meio ano em serviço do cego Senhor
Florent, ele dissera a Dunk que havia chegado o tempo de
levá-lo a um bordel e torná-lo homem. Ele estivera bêbado,
entretanto, e quando ficou sóbrio não se lembrara. Dunk ficara
envergonhado demais para lembrá-lo. Ele não tinha certeza se
queria uma prostituta, de qualquer maneira. Se não pudesse
ter uma donzela bem nascida como um cavaleiro de verdade,
ele queria uma que no mínimo gostasse mais dele do que de
sua prata.
“Você beberia um chifre de cerveja?” ele perguntou para
a garota das marionetes enquanto ela estava recolhendo o
sangue de serragem de volta para dentro do seu dragão.

49
“Quero dizer, comigo? Ou uma salsicha? Eu comi uma salsicha
ontem à noite, e estava boa. Elas são feitas com porco, eu
acho.”
“Eu lhe agradeço, meu senhor, mas nós temos outra
apresentação.” A garota se levantou, e correu para o forte e
gordo Dornês que manejava o cavaleiro de marionete
enquanto Dunk ficou lá se sentindo estúpido. Ele gostou do
jeito que ela corria, no entanto. Uma garota bonita, e alta. Eu
não teria que me ajoelhar para beijar essa. Ele sabia beijar.
Uma garota de uma taverna tinha mostrado a ele uma noite
em Lannisporto, um ano atrás, mas ela era tão baixa que teve
que sentar-se na mesa para alcançar os lábios dele. A
lembrança fez suas orelhas queimarem. Que grande tolo que
ele era. Era na justa que devia estar pensando, não em beijos.

Os carpinteiros do Senhor Ashford estavam pintando


com cal as barreiras de madeira na altura da cintura que iriam
separar os competidores. Dunk observou eles trabalharem
durante algum tempo. Haviam cinco faixas, viradas para o

50
norte de modo que nenhum dos competidores cavalgasse com
o sol em seus olhos. Um palanque com três níveis havia sido
levantado no lado leste das liças, com uma cobertura laranja
para proteger os senhores e senhoras da chuva e do sol. A
maioria iria se sentar em bancos, exceto pelas quatro cadeiras
de espaldar alto que haviam sido erigidas no centro da
plataforma, para o Senhor Ashford, a bela donzela, e os
príncipes visitantes.
Na ponta leste da clareira, um manequim havia sido
instalado e uma dúzia de cavaleiros estava disputando contra
ele, fazendo o braço do mastro rodopiar toda vez que eles
atingiam o escudo espedaçado suspendido de um dos lados.
Dunk observou o Bruto de Bracken ter a sua vez, e depois o
Senhor Caron das Marcas. Eu não tenho um assento tão
seguro quanto qualquer um deles, ele pensou incerto.
Em outro lugar, homens estavam treinando a pé, indo
uns contra os outros com espadas de madeira enquanto seus
escudeiros gritavam conselhos da arquibancada. Dunk
observou um jovem atarracado tentar segurar um cavaleiro
musculoso que parecia flexível e veloz como um gato da
montanha. Ambos tinham a maçã vermelha dos Fossoway

51
pintada em seus escudos, mas a do homem mais jovem logo
estava feita em pedaços. “Aqui está uma maçã que ainda não
está madura,” o mais velho disse quando bateu com força no
elmo do outro. O Fossoway mais jovem estava com
hematomas e sangrando quando se rendeu, mas o seu inimigo
estava malmente abalado. Ele levantou o visor, olhou ao redor,
viu Dunk e disse, “Você aí. Sim, você, o grande. Cavaleiro do
cálice alado. Isso que você carrega é uma espada longa?”
“É minha por direito,” Dunk disse defensivamente. “Eu
sou Sor Duncan o Alto.”
“E eu Sor Steffon Fossoway. Você se importaria de me
testar, Sor Duncan o Alto? Seria bom ter alguém novo com
quem cruzar espadas. Meu primo não está maduro ainda,
como você pôde ver.”
“Faça-o, Sor Duncan,” apressou o Fossoway derrotado
enquanto removia seu elmo. “Eu posso não estar maduro, mas
meu bom primo está podre até o caroço. Chute as sementes
para fora dele.”
Dunk abanou a cabeça. Porque esses senhores estavam
envolvendo ele em suas disputas? Ele não queria tomar parte
alguma. “Eu lhe agradeço. Sor, mas tenho assuntos para

52
tratar.” Ele estava desconfortável carregando tanto dinheiro.
Quanto mais cedo ele pagasse o Ferreiro Pate e pegasse sua
armadura, mais feliz estaria.
Sor Steffon olhou para ele com desdém. “O cavaleiro de
cerca tem assuntos.” Ele olhou ao redor e encontrou outro
provável oponente parado por perto. “Sr Grance, bom vê-lo.
Venha me testar. Eu sei cada truque fraco que meu primo
Raymun domina, e me parece que Sor Duncan precisa voltar
para as cercas. Venha, venha.”
Dunk saiu bruscamente com o rosto vermelho. Ele não
tinha muitos truques, fracos ou não, e não queria ninguém o
vendo lutar até o torneio. O velho sempre dissera que quanto
melhor você conhecesse o seu inimigo, mais fácil seria vencê-
lo. Cavaleiros como Ser Steffon tinham olhos agudos para
encontrar a fraqueza de um homem com um olhar. Dunk era
forte e rápido, e seu peso e alcance estavam a seu favor, mas
ele não acreditava por um momento que suas habilidades
fossem iguais às desses outros. Sor Arlan havia lhe ensinado
da melhor maneira que sabia, mas o velho nunca havia sido o
maior dos cavaleiros nem quando jovem. Grandes cavaleiros
não viviam suas vidas em cercas, ou morriam ao lado de

53
estradas lamacentas. Isso não vai acontecer comigo, Dunk
jurou. Eu vou mostrar para eles que posso ser mais do que
um cavaleiro de cerca.
“Sor Duncan.” O Fossoway mais jovem se apressou para
alcançá-lo. “Eu não deveria tê-lo encorajado a testar meu
primo. Eu estava com raiva da arrogância dele, e você é tão
grande, eu pensei... Bem, foi errado da minha parte. Você não
está vestindo armadura alguma. Ele teria quebrado sua mão se
pudesse, ou um joelho. Ele gosta de espancar os homens no
pátio de treinamento, para que eles fiquem com hematomas e
vulneráveis mais tarde caso ele os encontre nas liças.
“Ele não machucou você.”
“Não, mas eu sou o sangue dele, apesar de que o dele é o
ramo sênior da macieira, como ele nunca cansa de me
lembrar. Eu sou Raymun Fossoway.”
“Prazer em conhecê-lo. Você e o seu primo vão correr no
torneio?”
“Ele vai, com certeza. Quanto a mim, quem dera eu
pudesse. Sou apenas um escudeiro por enquanto. Meu primo
prometeu me tornar cavaleiro, mas insiste que eu não estou
maduro ainda.” Raymun tinha um rosto quadrado, um nariz

54
achatado e cabelo curto e lanoso, mas o sorriso dele era
cativante. “Você tem a aparência de um desafiador, eu acho.
Em qual escudo pretender bater?”
“Não faz diferença,” disse Dunk. Isso era o que você
deveria dizer, embora fizesse toda a diferença do mundo. “Não
vou entrar nas liças até o terceiro dia.”
“E até lá alguns dos campeões já terão caído, sim,” disse
Raymun. “Bem, que o Guerreiro sorria sobre você, sor.”
“E sobre você.” Se ele é apenas um escudeiro, o que eu
quero sendo um cavaleiro? Um de nós é um tolo. A prata na
bolsa de Dunk tilintava com cada passo, mas ele poderia
perder tudo em um instante, ele sabia. Mesmo as regras desse
torneio trabalhavam contra ele, tornando muito improvável
que ele fosse enfrentar um inimigo verde ou fraco.

Havia uma dúzia de maneiras diferentes segundo as


quais um torneio podia acontecer, de acordo com o capricho
do senhor que o realizava. Alguns eram batalhas falsas entre

55
times de cavaleiros, outros eram corpo a corpos selvagens
aonde a glória iria para o último lutador que se mantivesse de
pé. Onde combates individuais eram a regra, os pares eram às
vezes determinados por lote, e às vezes pelo mestre dos jogos.
Lorde Ashford estava organizando este torneio para
celebrar o décimo terceiro dia do nome de sua filha. A bela
donzela sentar-se-ia ao lado de seu pai como a Rainha do
Amor e da Beleza. Cinco campeões vestindo suas prendas
iriam defendê-la. Todos os outros deveriam necessariamente
ser desafiadores, mas qualquer um que conseguisse derrotar
um dos campeões tomaria seu lugar e ficaria como campeão
ele mesmo, até tal momento em que outro desafiador o
derrubasse. Ao fim de três dias de justa, os cinco que
restassem determinariam se a donzela manteria a coroa de
Amor e Beleza, ou se outra a usaria em seu lugar.
Dunk encarou as liças gramadas e as cadeiras vazias no
palanque e ponderou suas chances. Uma vitória era tudo o que
ele precisava; daí ele poderia nomear a si mesmo um dos
campeões da Clareira Ashford, mesmo que apenas por uma
hora.
O velho havia vivido perto de sessenta anos e nunca

56
tinha sido um campeão. Não é pedir muito, se os deuses forem
bons. Ele relembrou todas as canções que ouvira, canções do
cego Symeon Olhos-de-Estrela e o nobre Serwyn do Escudo
Espelhado, do Príncipe Aemon o Cavaleiro do Dragão, Sor
Ryam Redwyne, e Florian o Tolo. Todos eles haviam obtido
vitórias contra inimigos muito mais terríveis do que qualquer
um que ele enfrentaria. Mas eles eram grandes heróis, homens
corajosos de nascimento nobre, exceto por Florian. E o que
sou eu? Dunk de Baixada das Pulgas? Ou Sor Duncan o Alto?
Ele supunha que iria descobrir a verdade sobre isso logo.
Ele levantou o saco com a armadura e virou os pés na direção
das barracas dos mercadores, à procura de Ferreiro Pate.
Egg havia trabalhado bravamente no lugar do
acampamento. Dunk estava satisfeito; ele estivera

amedrontado que seu escudeiro fosse fugir de novo. “Você


conseguiu um bom preço pelo seu palafrém?” o menino
perguntou.
“Como você sabia que tinha vendido ela?”
“Você saiu montado e voltou a pé, e se ladrões a tivessem
roubado, você estaria mais aborrecido do que está.”
“Consegui o suficiente para isto.” Dunk pegou sua

57
armadura nova para mostrar ao garoto. “Se algum dia você for
um cavaleiro, você precisará saber diferenciar aço bom de aço
ruim. Olhe aqui, este bom trabalho. Essa malha é de corrente-
dupla, com cada elo ligado aos outros, vê? Dá mais proteção
do que corrente única. E o elmo, Pate arredondou o topo, vê
como ele curva? Uma espada ou um machado irá escorregar
dele, onde poderiam ter cortado um elmo de topo achatado.”
Dunk abaixou o grande elmo sobre sua cabeça. “Como está?”
“Não tem visor,” Egg indicou.
“Tem buracos para o ar. Visores são pontos de fraqueza.”
Ferreiro Pate tinha dito isso. “Se soubesse quantos cavaleiros
levaram uma flecha no olho enquanto levantavam o visor para
inspirar ar fresco, você nunca iria querer um,” ele havia dito a
Dunk.
“Também não tem crista,” disse Egg. “É feio.”
Dunk levantou o elmo. “Feio está bom para mim. Vê
como o aço é brilhante? Será sua tarefa mantê-lo assim. Você
sabe como esfregar malha?”
“Em um barril de areia,” disse o menino. “Mas você não
tem um barril. O senhor comprou um pavilhão também, sor?”
“Não consegui um preço tão bom assim.” O menino é

58
ousado demais para o seu próprio bem, eu deveria tirar isso
dele com uma surra. Ele sabia que não faria isso, no entanto.
Ele gostava da ousadia. Ele mesmo precisava ser mais ousado.
Meu escudeiro é mais corajoso do que eu, e mais inteligente.
“Você fez bem aqui, Egg,” Dunk disse a ele. “Pela manhã, você
virá comigo. Dar uma olhada no terreno do torneio. Nós
compraremos aveia para os cavalos e pão fresco para nós.
Talvez um pouco de queijo também, eles estavam vendendo
queijo bom em uma das barracas.”
“Eu não vou precisar entrar no castelo, vou?”
“Porque não? Um dia eu pretendo viver em um castelo.
Espero ganhar um lugar acima do sal antes de terminar.”
O menino não disse nada. Talvez ele tema entrar no
salão de um Lorde, Dunk refletiu. Isso não é mais do que
poderia se esperar. Vai superar isso com o tempo. Ele voltou
a admirar sua armadura, e a imaginar por quanto tempo a
usaria.

Sor Manfred era um homem magro com uma expressão


azeda em seu rosto. Ele vestia uma sobrecasaca preta cortada

59
com o raio roxo da Casa Dondarrion, mas Dunk haveria se
lembrado dele de qualquer maneira pela sua juba desalinhada
de cabelo vermelho-dourado. “Sor Arlan serviu o senhor seu
pai quando ele e Lorde Caron queimaram o Rei Abutre para
fora das Montanhas Vermelhas, sor,” ele disse ajoelhado sobre
um joelho. “Eu era só um garoto na época, mas eu fui
escudeiro dele. Sor Arlan de Pennytree.
Ser Manfred fez uma careta. “Não. Eu não o conheço.
Nem você, garoto.”
Dunk mostrou a ele o escudo do velho. “Essa era a
insígnia dele, o cálice alado.”
“O senhor meu pai levou oitocentos cavaleiros e perto de
quatro mil a pé para as montanhas. Não pode esperar que eu
me lembre de cada um deles, nem que escudos carregavam.
Pode ser que você estivesse conosco, mas...” Sor Manfred deu
de ombros.
Dunk ficou sem palavras por um instante. O velho se
feriu a serviço de seu pai, como você pode tê-lo esquecido?
“Eles não vão me permitir desafiar a menos que um cavaleiro
ou Lorde se responsabilize por mim.”
“E o que isso tem a ver comigo?” disse Sor Manfred. “Eu

60
lhe dei o suficiente do meu tempo, sor.”
Se ele voltasse ao castelo sem Sor Manfred, estaria
perdido. Dunk olhou o relâmpago roxo bordado na lã preta da
sobrecasaca de Sor Manfred e disse, “eu me lembro do seu pai
contando no acampamento como sua casa obteve sua insígnia.
Em uma noite de tempestade, enquanto o primeiro da sua
linhagem carregava uma mensagem cruzando as Marcas
Dornesas, uma flecha matou seu cavalo sob ele e o jogou no
chão. Dois dorneses saíram da escuridão em cota de malha e
elmos com crista. A sua espada havia quebrado sob ele quando
caíra. Quando viu aquilo, ele pensou que estivesse condenado.
Mas quando os dorneses fecharam-no para matá-lo, o
relâmpago ribombou no céu. Era um roxo brilhante e
abrasador, e ele quebrou, atingindo os dorneses em seu aço e
matando-os a ambos onde eles estavam. A mensagem
concedeu a vitória ao Rei da Tempestade sobre os dorneses, e
em agradecimento ele elevou o mensageiro à senhoria. Ele foi
o primeiro Senhor Dondarrion, então tomou para suas armas
um relâmpago roxo bifurcado, em um campo negro salpicado
de estrelas.”
Se Dunk pensara que o conto impressionaria Sor

61
Manfred, ele não poderia ter estado mais errado. “Todo
menino de cerâmica e tratador de cavalos que já serviu meu
pai ouve essa história cedo ou tarde. Conhecê-la não torna
você um cavaleiro. Retire-se daqui, sor.”

Foi com um coração de chumbo que Dunk retornou para


o Castelo Ashford, se perguntando o que ele poderia dizer para
que Plummer o concedesse o direito de desafiar. O intendente
não estava em sua câmara do torreão, no entanto. Um guarda
disse que ele poderia ser encontrado no Grande Salão. “Devo
esperar aqui?” Dunk perguntou. “Quanto tempo ele vai
demorar?”
“Como eu poderia saber? Faça o que quiser.”
O Grande Salão não era tão grande, no que dizia respeito
a salões, mas Ashford era um castelo pequeno. Dunk entrou
por uma porta lateral, e enxergou na hora o intendente. Ele
estava de pé com Lorde Ashford e uma dúzia de outros
homens no fim do salão. Caminhou em direção a deles, sob
uma parede coberta de tapeçarias de lã de frutas e flores.

62
“– mais preocupado se eles fossem seus filhos, eu
aposto,” um homem aborrecido estava dizendo conforme
Dunk se aproximava. Seu cabelo liso e a barba cortada
quadrada eram tão claros que pareciam brancos na penumbra
do salão, mas quando chegou mais perto viu que eles eram na
verdade de uma cor prateada com um toque dourado.
“Daeron fez isso antes,” outro respondeu. Plummer
estava de pé de uma maneira que bloqueava a visão de Dunk
do interlocutor. “Você nunca deveria ter comandado que ele
entrasse nas liças. Ele pertence ao campo de um torneio não
mais do que Aerys, ou Rhaegel.”
“Com o que você quer dizer que ele antes montaria uma
puta do que um cavalo,” o primeiro homem disse. C0m uma
compleição robusta e poderosa, o príncipe – ele com certeza
era um príncipe – vestia uma brigandina de couro coberta de
botões de prata sob uma pesada capa negra com bainha de
arminho. Cicatrizes de varicela marcavam suas bochechas,
apenas parcialmente escondidas pela sua barba prateada. “Eu
não preciso ser lembrado das falhas do meu filho, irmão. Ele
tem apenas dezoito anos. Ele pode mudar. Ele vai mudar,
amaldiçoados sejam os deuses, ou eu o verei morto.”

63
“Não seja um tolo completo. Daeron é o que é, mas ele
ainda é seu sangue e meu. Não tenho dúvidas de que Sor
Roland irá encontrá-lo, e Aegon com ele.”
“Quando o torneio acabar, talvez.”
“Aerion está aqui. Ele é uma lança melhor que Daeron,
em todo caso, se é o torneio que lhe preocupa.” Dunk podia ver
o interlocutor agora. Ele estava sentado no assento alto, um
maço de pergaminhos em uma mão, com Lorde Ashford
pairando em seu ombro. Mesmo sentado, ele parecia ser uma
cabeça mais alto que o outro, a julgar pelas longas e retas
pernas esticadas diante dele. Seu cabelo curto era escuro e
salpicado de cinza, seu queixo forte sem barba. O nariz dele
parecia ter sido quebrado mais de uma vez. Apesar de estar
vestido com simplicidade, em um gibão verde, manto marrom,
e botas usadas, havia um peso nele, um senso de poder e
certeza.
Dunk se deu conta de que havia entrado no meio de algo
que nunca deveria ter ouvido. É melhor eu ir e voltar depois,
quando eles tiverem terminado, ele decidiu. Mas já era tarde
demais. O príncipe com a barba prateada de repente tomou
conhecimento dele. “Quem é você, e o que quer se infiltrando

64
entre nós?” ele cobrou rudemente.
“Ele é o cavaleiro que o nosso bom intendente estava
esperando,” o homem sentado disse, sorrindo para Dunk de
uma maneira que sugeria que estivera consciente dele o tempo
inteiro. “Você e eu somos intrusos aqui, irmão. Chegue mais
perto, sor.”
Dunk avançou, incerto sobre o que era esperado dele.
Ele olhou para Plummer, mas não conseguiu auxílio nenhum
ali. O intendente com o rosto fino que havia sido tão firme
ontem agora permanecia em silêncio, estudando as pedras do
chão. “Meus senhores,” ele disse, “eu pedi ao Sor Manfred
Dondarrion que se responsabilizasse por mim para que eu
pudesse entrar nas liças, mas ele se nega. Ele diz que não me
conhece. Sor Arlan o serviu, no entanto, eu juro. Eu tenho a
espada e o escudo dele, eu –”
“Um escudo e uma espada não fazem um cavaleiro,”
declarou Lorde Ashford, um homem grande e careca com um
rosto redondo e vermelho. “Plummer falou comigo sobre você.
Mesmo se nós aceitarmos que essas armas pertenceram a esse
Sor Arlan de Pennytree, pode muito bem ser que você o tenha
encontrado morto e as roubado dele. A menos que você tenha

65
alguma prova melhor do que diz, algo escrito ou –”
“Eu me lembro de Sor Arlan de Pennytree,” o homem no
assento alto disse quietamente. “Ele nunca ganhou um torneio
que eu saiba, mas nunca se envergonhou também. Em Porto
Real há dezesseis anos ele venceu Lorde Stokeworth e o
Bastardo de Harrenhal no corpo a corpo, e muitos anos antes
em Lannisporto ele derrubou do cavalo o próprio Leão Cinza.
O leão não era tão cinza na época, com certeza.”
“Ele me contou sobre isso, muitas vezes,” disse Dunk.
O homem alto estudou-o. “Então você se lembrará do
nome verdadeiro do Leão Cinza, não tenho dúvida.”
Por um momento não havia absolutamente nada na
cabeça de Dunk. Mil vezes o velho havia lhe contado aquela
estória, mil vezes, o leão, o leão, o nome dele, o nome dele...
estava perto do desespero quando de repente, veio. “Sor
Damon Lannister!” Ele gritou. “O Leão Cinza! Ele é o Senhor
de Rochedo Casterly agora.”
“É sim,” disse o homem alto agradavelmente, “e ele entra
nas liças pela manhã.” Ele sacudiu o maço de papéis em sua
mão.
“Como você pode se lembrar de um cavaleiro de cerca

66
insignificante que aconteceu de derrubar Damon Lannister de
seu cavalo dezesseis anos atrás?” disse o príncipe com a barba
prateada, franzindo o cenho.
“Eu torno um hábito aprender o que puder de todos os
meus inimigos.”
“Por que você se deu ao trabalho de competir com um
cavaleiro de cerca?”
“Foi a nove anos, em Ponta Tempestade. Lorde
Baratheon realizara um torneio para celebrar o nascimento de
um neto. Os lotes fizeram de Sor Arlan meu oponente na
primeira disputa. Nós quebramos quatro lanças antes de eu
finalmente derrubá-lo de seu cavalo.”
“Sete,” insistiu Dunk, “e aquilo foi contra o Príncipe de
Pedra do Dragão!” Tão logo as palavras tinham saído ele as
desejou de volta em sua boca. Dunk o burro, grosso como a
muralha de um castelo, ele podia ouvir o velho repreendendo.
“E foi.” O príncipe com o nariz quebrado sorriu
gentilmente. “Contos crescem quando são contados, eu sei.
Não pense mal de seu velho mestre, mas foram apenas quatro
lanças, receio eu.”
Dunk estava grato que o salão estava escuro; ele sabia

67
que suas orelhas estavam vermelhas. “Meu senhor.” Não, isso
está errado também. “Vossa Graça.” Ele caiu de joelhos e
baixou a cabeça. “Como o senhor diz, quatro, eu não quis... eu
nunca... o velho, Sor Arlan, ele costumava dizer que eu era
grosso como a muralha de um castelo e lento como um
auroque.”
“E forte como um auroque, pela sua aparência,” disse
Baelor Quebra-Lanças. “Nenhum mal foi feito, sor. Levante-
se.”
Dunk ficou de pé, se perguntando se deveria manter a
cabeça baixa ou se tinha permissão para olhar no rosto de um
príncipe. Eu estou falando com Baelor Targaryen, Príncipe
de Pedra do Dragão, Mão do Rei e herdeiro aparente do
Trono de Ferro de Aegon o Conquistador. O que um cavaleiro
de cerca ousaria dizer para tal pessoa? “O s-senhor devolveu o
cavalo e a armadura dele e não pegou nenhum resgate, eu
lembro,” ele gaguejou. “o velho – Sor Arlan, ele me disse que o
senhor era a alma do cavalheirismo, e que um dia os Sete
Reinos estariam seguros em suas mãos.”
“Não por muitos anos ainda, eu rezo,” disse Príncipe
Baelor.

68
“Não,” disse Dunk, horrorizado. Ele quase disse, eu não
quis dizer que o rei deveria morrer, mas se interrompeu a
tempo. “Sinto muito, meu senhor. Vossa graça, quero dizer.”
Com algum atraso ele lembrou que o homem atarracado
havia se dirigido ao Príncipe Baelor como irmão. Ele é o
sangue do dragão também, tolo que eu sou. Só poderia ser o
Príncipe Maekar, o mais novo dos filhos do Rei Daeron.
Príncipe Aerys era estudioso e Príncipe Rhaegel louco,
complacente e doente. Nenhum dos dois cruzaria metade do
reino para participar de um torneio, mas Maekar era tido
como um formidável guerreiro, em seu próprio direito, apesar
de sempre à sombra de seu irmão mais velho.
“Você deseja entrar nas liças, é isso?” Perguntou o
Príncipe Baelor. “Essa decisão reside com o mestre dos jogos,
mas eu não vejo razão alguma para lhe negar.”
O intendente inclinou sua cabeça. “Como quiser, meu
senhor.”
Dunk tentou gaguejar um agradecimento, mas o
Príncipe Maekar o cortou. “Muito bem, sor, você é muito
grato. Agora saia.”
“Você deve perdoar meu nobre irmão, sor,” disse

69
Príncipe Baelor. “Dois de seus filhos se perderam no caminho
para cá, e ele teme por eles.”
“As chuvas de primavera incharam muitos dos riachos,”
disse Dunk. “Talvez os príncipes estejam apenas atrasados.”
“Eu não vim aqui para receber conselhos de um
cavaleiro de cerca,” Príncipe Maekar declarou a seu irmão.
“Você pode ir, sor,” Príncipe Baelor disse a Dunk, sem
deixar de ser gentil.
“Sim, meu senhor.” Ele se curvou e virou.
Mas antes que pudesse sair, o príncipe chamou por ele.
“Sor. Mais uma coisa. Você não é do sangue de Sor Arlan?”
“Sim, meu senhor. Quero dizer, não. Não sou.”
O príncipe acenou na direção do escudo usado que Dunk
carregava, e ao cálice alado em sua face. “Pela lei, apenas um
filho legítimo tem o direito de herdar as armas de um
cavaleiro. Você vai precisar encontrar um novo símbolo, sor,
uma insígnia própria.”
“Eu encontrarei,” disse Dunk. “Obrigada novamente,
Vossa Graça. Eu lutarei bravamente, o senhor verá.” Tão
bravamente quanto Baelor Quebra-Lanças, o velho
freqüentemente diria.

70
Os vendedores de vinho e produtores de salsicha
estavam fazendo um comércio ágil, e as prostitutas andavam
descaradamente entre as barracas e pavilhões. Algumas eram
bastante bonitas, uma garota de cabelos vermelhos em
particular. Ele não conseguia evitar olhar para os seios dela, a
maneira com que eles mexiam sob sua veste solta quando ela
passou desfilando por ele. Ele pensou na prata em sua bolsa.
Eu poderia tê-la, se quisesse. Ela gostaria bastante do tilintar
das minhas moedas, eu poderia levá-la de volta para o
acampamento e tê-la, a noite toda se quisesse. Ele nunca
havia se deitado com uma mulher, e por tudo o que sabia
poderia morrer em sua primeira disputa. Torneios podiam ser
perigosos... mas prostitutas podiam ser perigosas também, o
velho o havia avisado sobre isso. Ela pode me roubar
enquanto eu durmo, e o que eu faria então? Quando a garota
ruiva olhou de volta para ele por cima do ombro, Dunk abanou
a cabeça e seguiu andando.
Ele encontrou Egg na apresentação das marionetes,
sentado de pernas cruzadas no chão com o capuz de sua capa
puxado todo para a frente para esconder sua calvície. O
menino havia ficado com medo de entrar no castelo, o que

71
Dunk entendeu igualmente como timidez e vergonha. Ele não
se acha digno de se misturar com senhores e senhoras,
quanto mais com grandes príncipes. Havia sido o mesmo
quando ele era pequeno. O mundo além da Baixada das Pulgas
havia parecido tão assustador quanto excitante. Egg precisa
de tempo, isso é tudo. Por hora, parecia mais bondoso dar ao
garoto alguns cobres e deixá-lo se divertir entre as barracas do
que arrastá-lo contra a vontade para dentro do castelo.
Essa manhã os marioneteiros estavam fazendo a estória
de Florian e Jonquil. O dornês gordo estava manejando
Florian em sua armadura feita de retalhos coloridos, enquanto
a garota alta tinha as cordas de Jonquil. “Você não é
cavaleiro,” ela estava dizendo enquanto a boca da marionete se
mexia para cima e para baixo. “Eu conheço você. Você é
Florian o Bobo.”
“Eu sou, minha senhora,” a outra marionete respondeu,
se ajoelhando. “Um bobo tão grande quanto qualquer um que
já tenha vivido, e um cavaleiro tão bom quanto, também.”
“Um bobo e um cavaleiro?” disse Jonquil. “Nunca ouvi
falar em tal coisa.”
“Doce senhora,” disse Florian, “todos os homens são

72
bobos, e todos os homens são cavaleiros, no que diz respeito às
mulheres.”
Era uma boa apresentação, triste e doce ao mesmo
tempo, com uma luta de espadas vívida no final, e um gigante
bem pintado. Quando acabou, a mulher gorda foi para o meio
da multidão para recolher moedas enquanto a garota
empacotava as marionetes.
Dunk pegou Egg e foi até ela.
“Meu senhor?” disse ela, com um olhar de relance e um
meio sorriso. Ela era uma cabeça mais baixa que ele, mas
ainda assim mais alta que qualquer outra garota que ele já
tivesse visto.
“Aquilo foi bom, disse Egg animado. “Eu gosto do jeito
que você faz eles se moverem, Jonquil e o dragão e tudo o
mais. Eu vi uma apresentação de marionetes no ano passado,
mas eles se moviam aos solavancos. Os seus são mais suaves.”
“Obrigada,” ela disse ao menino educadamente.
Dunk disse, “As suas figuras são bem esculpidas
também. O dragão, especialmente. Uma fera assustadora.
Você mesma os faz?”
Ela acenou. “Meu tio as esculpe. Eu as pinto.”

73
“Você poderia pintar algo para mim? Eu tenho o
dinheiro para pagar.” Ele escorregou o escudo do ombro e o
virou para mostrar a ela. “Preciso pintar alguma coisa sobre o
cálice.”
A garota olhou para o escudo, e depois para ele.
“O que você iria querer que eu pintasse?”
Dunk não havia considerado isso. Se não fosse o cálice
alado do velho, o quê? A cabeça dele estava vazia. Dunk o
burro, grosso como a muralha de um castelo. “Eu não... não
estou certo.” As orelhas dele estavam ficando vermelhas,
percebeu miseravelmente. “Você deve me achar um tolo
completo.”
Ela sorriu. “Todos os homens são bobos, e todos os
homens são cavaleiros.”
“Que cor de tinta você tem?” ele perguntou, esperando
que aquilo pudesse lhe dar uma idéia.
“Eu posso misturar tintas para fazer qualquer cor que
você quiser.”
O marrom do velho sempre havia parecido sem vida
para Dunk. “O campo deve ser da cor do pôr-do-sol,” ele disse
subitamente. “O velho gostava do pôr-do-sol. E o símbolo...”

74
“Um olmo,” disse Egg. “Um grande olmo, como o que
tem perto do lago, com um tronco marrom e galhos verdes.”
“Sim,” disse Dunk. “Isso serviria. Um olmo... mas com
uma estrela cadente em cima. Você poderia fazer isso?”
A garota acenou. “Dê-me o escudo. Eu o pintarei essa
noite mesmo, e devolvo a você pela manhã.”
Dunk entregou a ela. “Eu me chamo Sor Duncan o Alto.”
“Sou Tanselle,” ela riu. “Tanselle Alta-Demais, os
meninos costumavam me chamar.”
“Você não é alta demais,” Dunk disse abruptamente.
“Você é perfeita para...” ele percebeu o que estivera prestes a
dizer, e corou furiosamente.
“Para?” disse Tanselle, inclinando a cabeça
inquisitivamente.
“Marionetes,” ele terminou pateticamente.

O primeiro dia do torneio amanheceu radiante e claro.


Dunk comprou um saco de suprimentos, então eles puderem
fazer o desjejum com ovos de ganso; pão frito, e bacon, mas

75
quando a comida estava pronta ele descobriu que não tinha
apetite. A barriga dele parecia dura como uma rocha, mesmo
sabendo que não iria correr hoje. O direito do primeiro desafio
iria para cavaleiros mais bem nascidos e mais renomados,
para lordes e seus filhos e campeões de outros torneios.
Egg tagarelou durante todo o desjejum, falando desse
homem e daquele homem e como eles poderiam se sair. Ele
não estava zombando de mim quando disse que conhecia
todos os cavaleiros dos Sete Reinos, Dunk pensou com
remorso. Ele achou humilhante ouvir tão atentamente as
palavras de um menino órfão magricela, mas o conhecimento
de Egg poderia lhe ser útil se enfrentasse um desses homens
em uma disputa.
A clareira era uma massa revolta de pessoas, todas
tentando abrir caminho com cotoveladas para uma visão
melhor. Dunk era tão bom de cotoveladas quanto qualquer
um, e maior que praticamente todos. Ele se espremeu para
frente até uma elevação a seis jardas da cerca. Quando Egg
reclamou que tudo que poderia ver eram traseiros, Dunk
sentou o menino em seus ombros. Do outro lado do campo, o
palanque estava enchendo com senhores e senhoras bem

76
nascidos, alguns moradores ricos da vila, e uns vinte cavaleiros
que haviam decidido não competir hoje. De Príncipe Maekar
ele não viu sinal algum, mas reconheceu Príncipe Baelor ao
lado do Senhor Ashford. A luz do sol relampejou dourada no
fecho de ombro que prendia sua capa e na pequena coroa fina
em sua têmpora, mas fora isso ele estava vestido de maneira
bem mais simples que a maioria dos outros lordes. Ele não
parece um Targaryen de verdade, com aquele cabelo escuro.
Dunk disse isso a Egg.
“Dizem que ele saiu à mãe,” o menino o lembrou. “Ela
era uma princesa dornesa.”
Os cinco campeões haviam erguido seus pavilhões no
lado norte das liças com o rio por trás deles. Os dois menores
eram laranja, e os escudos pendurados do lado de fora exibiam
o sol-branco-e-asna. Estes seriam os filhos do Senhor Ashford
Androw e Robert, irmãos da donzela. Dunk nunca havia
ouvido outros cavaleiros falarem da proeza deles, o que
significava que eles provavelmente seriam os primeiros a cair.
Além dos pavilhões laranja ficava um tingido escuro de
verde, muito maior. A rosa dourada de Jardim de Cima
dardejava acima dele, e o símbolo estava estampado no grande

77
escudo verde do lado de fora da porta. “Aquele é Leo Tyrell,
Senhor de Jardim de Cima,” disse Egg.
“Eu sabia disso,” disse Dunk, irritado. “O velho e eu
servimos Jardim de Cima antes de você sequer ter nascido.”
Ele mesmo mal se lembrava daquele ano, mas Sor Arlan
freqüentemente falava de Leo Espinho-Longo, como ele era
algumas vezes chamado; um competidor sem igual, mesmo
com toda prata em seu cabelo. “Aquele deve ser Lorde Leo ao
lado da tenda, o esbelto de barba cinza de verde e dourado.”
“Sim,” disse Egg. “Eu o vi em Porto Real uma vez. Ele
não é alguém que você gostaria de desafiar, sor.”
“Menino, eu não estou pedindo conselhos sobre quem
desafiar.”
O quarto pavilhão era costurado a partir de pedaços de
tecido em forma de diamante, alternando vermelho e branco.
Dunk não conhecia as cores, mas Egg disse que elas
pertenciam a um cavaleiro do Vale de Arryn chamado Sor
Humfrey Hardyng. “Ele venceu um grande corpo a corpo em
Lagoa da Donzela no ano passado, sor, e derrotou Sor Donnel
de Valdocaso e os Senhores Arryn e Royce nas liças.
O último pavilhão era do Príncipe Valarr. Era de seda

78
negra, com uma fila de flâmulas escarlate pontiagudas
penduradas no teto como longas chamas vermelhas. O escudo
em sua entrada era preto reluzente, estampado com o dragão
de três cabeças da Casa Targaryen. Um dos cavaleiros da
Guarda Real estavam de pé ao lado dela, sua armadura branca
brilhante severa contra o negro do tecido da tenda. Vendo-o
ali, Dunk se perguntou se um dos desafiadores iria ousar tocar
o escudo do dragão. Valarr era neto do rei, afinal, e filho de
Baelor Quebra-Lanças.
Ele não precisava ter se preocupado. Quando as
trombetas soaram para chamar os defensores, todos os cinco
campeões da donzela foram chamados à frente para defendê-
la. Dunk podia ouvir o murmúrio de excitação na multidão
conforme os campeões apareceram um por um no lado sul das
liças. Arautos anunciaram o nome de cada um dos cavaleiros
por vez. Eles pararam diante do palanque para baixar suas
lanças em saudação ao Lorde Ashford, Príncipe Baelor, e a
bela donzela, então circularam para o lado norte do campo
para selecionar seus oponentes. O Leão Cinza de Rochedo
Casterly bateu no escudo de Lorde Tyrell, enquanto seu
herdeiro de cabelos dourados Sor Tybolt Lannister desafiou o

79
filho mais velho do Lorde Ashford. Lorde Tully de Correrio
tocou o escudo com desenhos de diamantes de Sor Humfrey
Hardyng, Sor Abelar Hightower encostou no escudo de Valarr,
e o Ashford mais novo foi chamado por Sor Lyonel Baratheon,
o cavaleiro a quem chamavam de Tempestade Sorridente.
Os desafiadores trotaram de volta para o lado sul das
liças para esperar seus inimigos: Sor Abelar em cores de prata
e fumaça, uma torre de vigia de pedra em seu escudo, coroada
com fogo; os dois Lannister em vermelho, carregando o leão
dourado de Rochedo Casterly; a Tempestade Sorridente
brilhando em tecido-de-ouro, com um veado negro no peito e
no escudo e uma galhada de chifres de ferro em seu elmo;
Lorde Tully vestindo uma capa listrada de azul e vermelho
presa com uma truta de prata em cada ombro. Eles apontaram
suas lanças de três metros e meio para o céu, as lufadas de
vento revolvendo e repuxando as flâmulas.
No lado norte do campo, escudeiros seguravam cavalos
de batalha brilhantemente ornados para os campeões
montarem. Eles colocaram seus elmos e pegaram lança e
escudo, em esplendor para igualar aquele dos seus inimigos;
as sedas laranja esvoaçantes dos Ashford, os diamantes

80
vermelhos e brancos de Sor Humfrey, Lorde Leo em seu cavalo
de batalha branco com arreios de cetim verde estampados com
rosas douradas, e é claro Valarr Targaryen. O cavalo do jovem
Príncipe era negro como a noite, para combinar com a cor de
sua armadura, lança, escudo e arreios. Em cima de seu elmo
estava um reluzente dragão de três cabeças, de asas abertas,
esmaltado em um vermelho rico; o gêmeo dele estava pintado
na superfície negra reluzente de seu escudo. Cada um dos
defensores tinha um fiapo de seda laranja amarrado em um
braço; uma prenda concedida pela bela donzela.
Conforme os campeões trotaram para suas posições a
Clareira Ashford ficou quase parada. Então uma trombeta
soou, e a quietude se tornou tumulto em metade de um
instante. Dez pares de esporas douradas entraram nos flancos
de dez grandes cavalos de guerra, mil vozes começaram a
gritar e berrar, quarenta cascos com ferraduras bateram e
cortaram a grama, dez lanças mergulharam e se estabilizaram,
o campo pareceu quase sacudir, e campeões e desafiadores se
juntaram em um ruído violento de madeira e aço. Em um
instante, os cavaleiros tinham passado um do outro, girando
para outra tentativa. Lorde Tully oscilou em sua sela, mas

81
conseguiu manter o assento. Quando os comuns perceberam
que todas as dez lanças tinham quebrado, um grande rugido
de aprovação foi ouvido. Era um presságio esplêndido para o
sucesso do torneio, e um testemunho da habilidade dos
competidores.
Escudeiros entregaram lanças novas aos competidores
para substituir as quebradas que puseram de lado, e mais uma
vez as esporas foram fundo. Dunk podia sentir a terra
tremendo sob as solas dos seus pés. Em cima de seus ombros,
Egg gritava alegremente e balançava seus braços de cabo de
cachimbo. O jovem príncipe foi o que passou mais perto deles.
Dunk viu a ponta de sua lança negra beijar a torre de vigia no
escudo de seu oponente e escorregar para bater com força no
peito dele, ao mesmo tempo em que a lança do próprio Sor
Abelar explodiu em estilhaços contra a placa de peito de
Valarr. O garanhão cinza com arreios prata e fumaça recuou
sobre as duas patas traseiras com a força do impacto e Sor
Abelar Hightower foi levantado de seus estribos e foi atirado
violentamente no chão.
Lorde Tully viera abaixo também, derrubado do cavalo
por Sor Humfrey Hardyng, mas ele saltou de pé

82
imediatamente e desembainhou sua espada longa, e Sor
Humfrey jogou de lado sua lança – intacta – e desmontou para
continuar sua luta a pé. Sor Abelar não foi tão ágil. Seu
escudeiro correu, tirou seu elmo e chamou por socorro, e dois
criados levantaram o cavaleiro zonzo pelos braços para ajudá-
lo a voltar para seu pavilhão. Em outro lugar do campo, os seis
cavaleiros que haviam restado montados estavam correndo
seu terceiro ataque. Mais lanças de despedaçaram, e dessa vez
Lorde Leo Tyrell mirou sua ponta tão acertadamente que
arrancou completamente o elmo do Leão Cinza de sua cabeça.
Com o rosto desnudo, o Senhor de Rochedo Casterly levantou
a mão em saudação e desmontou, rendendo a disputa. A essa
altura Sor Humfrey havia derrotado Lorde Tully até fazê-lo se
render, mostrando-se habilidoso com uma espada como era
com uma lança.
Tybolt Lannister e Androw Ashford correram um contra
o outro três vezes mais antes de Sor Androw finalmente perder
escudo, assento e disputa todos de uma vez. O Ashford mais
jovem durou ainda mais, quebrando não menos que nove
lanças contra Sor Lyonel Baratheon, a Tempestade Sorridente.
Ambos campeão e desafiador perderam suas selas em seu

83
décimo ataque, apenas para levantarem-se juntos para
continuar lutando, espada contra maça. Finalmente um
abatido Sor Robert Ashford admitiu a derrota, mas no
palanque seu pai parecia tudo menos decepcionado. Ambos os
filhos do Senhor Ashford haviam sido expulsos do rol dos
campeões, era verdade, mas eles tinham se portado
nobremente contra dois dos melhores cavaleiros dos Sete
Reinos.
Eu devo fazer ainda melhor, entretanto, pensou Dunk
enquanto assistia vitorioso e derrotado se abraçarem e saírem
juntos do campo. Não é suficiente para mim lutar bem e
perder. Devo vencer no mínimo o primeiro desafio, ou perco
tudo.
Sor Tybolt Lannister e a Tempestade Sorridente iriam
agora tomar seus lugares entre os campeões, substituindo os
homens que tinham derrotado. Os pavilhões laranja já
estavam vindo abaixo. A alguma distância dali, o jovem
príncipe sentava à vontade em uma cadeira de acampamento
elevada diante de sua grande tenda negra. Estava sem o elmo.
Ele tinha cabelo escuro como seu pai, mas uma mecha
brilhante corria por ele. Um criado trouxe a ele um cálice de

84
prata e ele deu um gole. Água, se ele for sábio, Dunk pensou,
vinho se não for. Ele se pegou imaginando se Valarr tinha de
fato herdado a medida da proeza de seu pai, ou se tinha
apenas acontecido de ele escolher o oponente mais fraco.
Uma fanfarra de trompetes anunciou que três novos
desafiadores haviam entrado nas liças. Os arautos gritaram
seus nomes. “Sor Pearse da Casa Caron, Senhor das Marcas.”
Ele tinha uma harpa de prata estampada em seu escudo,
apesar de seu casaco ser estampado com rouxinóis. “Sor
Joseth da Casa Mallister, de Guardamar.” Sor Joseth exibia
um elmo alado; em seu escudo, uma águia prateada voava
sobre um céu índigo. “Sor Gawen da Casa Swann, Senhor de
Pedrelmo no Cabo da Fúria.” Um par de cisnes, um negro e
um branco, lutavam furiosamente em seu brasão. A armadura,
capa e jaezes do cavalo de Lorde Gawen eram uma profusão de
branco e preto também, até as listras em sua bainha e lança.
Lorde Caron, harpista e cantor e cavaleiro de renome,
tocou a ponta de sua lança na rosa de Lorde Tyrell. Sor Joseth
tocou nos diamantes de Sor Humfrey Hardyng. E o cavaleiro
preto e branco, Lorde Gawen Swann, desafiou o príncipe negro
com o guardião branco. Dunk esfregou o queixo. Lorde Gawen

85
era ainda mais idoso que o velho, e o velho estava morto. “Egg,
quem é o menos perigoso destes desafiadores?” ele perguntou
ao menino nos seus ombros, que parecia saber tanto sobre
esses cavaleiros.
“Lorde Gawen,” o menino disse na mesma hora. “O
inimigo de Valarr.”
“Príncipe Valarr,” ele corrigiu. “Um escudeiro deve
manter uma língua educada, garoto.”
Os três desafiadores tomaram seus lugares enquanto os
três campeões montavam. Homens estavam fazendo apostas
ao redor deles e gritando encorajamento aos seus escolhidos,
mas Dunk tinha olhos apenas para o príncipe. No primeiro
ataque ele atingiu um golpe de raspão no escudo de Lorde
Gawen, com a ponta embotada da lança escorregando para o
lado exatamente como tinha feito com Sor Abelar Hightower,
só que dessa vez ela foi desviada para o outro lado, no ar vazio.
A lança do próprio Lorde Gawen quebrou totalmente contra o
peito do príncipe, e Valarr pareceu prestes a cair por um
instante antes de recuperar seu assento.
Na segunda vez nas liças, Valarr virou sua lança para a
esquerda, mirando no peito de seu oponente, mas atingiu ao

86
invés disso o seu ombro. Mesmo assim, o golpe foi suficiente
para fazer o cavaleiro mais velho perder sua lança. Um braço
abanou procurando equilíbrio e Lorde Gawen caiu. O jovem
príncipe desceu da sela e desembainhou sua espada, mas o
homem caído o afastou com um aceno da mão e levantou seu
visor. “Eu me rendo, Vossa Graça,” ele gritou. “Boa luta.” Os
senhores no palanque o ecoaram, gritando, “Boa luta! Boa
luta!” enquanto Valarr se ajoelhava para ajudar o lorde de
cabelos grisalhos a ficar de pé.
“Não foi não,” Egg reclamou.
“Fique quieto, ou pode voltar para o acampamento.”
Longe dali, Sor Joseth Mallister estava sendo carregado
para fora do campo inconsciente, enquanto o senhor da harpa
e o senhor da rosa estavam indo um contra o outro
furiosamente com machados longos embotados, para o deleite
da multidão ruginte. Dunk estava tão atento a Valarr
Targaryen que mal os viu. Ele é um bom cavaleiro, mas não
mais que isso, ele se encontrou pensando. Eu teria uma
chance contra ele. Se os deuses fossem bons, eu poderia até o
derrubar do cavalo, e uma vez a pé meu peso e força iriam
fazer diferença.

87
“Pegue-o!” Egg gritava alegremente, se mexendo em seu
lugar nas costas de Dunk em sua excitação. “Pegue-o! Bata
nele! Sim! Ele está bem ali, bem ali!”Parecia que ele estava
torcendo por Lorde Caron. O harpista estava tocando um tipo
de música diferente agora, levando Lorde Leo para trás e para
trás enquanto aço cantava sobre aço. A multidão parecia quase
igualmente dividida entre eles, então a torcida e os
xingamentos se misturavam livremente no ar da manhã.
Pedaços de madeira e pintura estavam voando do escudo de
Lorde Leo enquanto o machado de Lorde Pearse arrancava as
pétalas de sua rosa dourada, uma por uma, até que o escudo
finalmente se despedaçou e se partiu. Mas enquanto isso
acontecia, a cabeça do machado se prendeu por um instante
na madeira...e o machado do próprio Lorde Leo veio com força
sobre o cabo da arma do inimigo, quebrando-o não mais que a
um palmo de sua mão. Ele jogou para o lado deu escudo
quebrado, e subitamente era ele que estava no ataque. Dentro
de momentos, o cavaleiro harpista estava sobre um joelho,
cantando sua rendição.
Pelo resto da manhã e adentrando pela tarde, foi mais do
mesmo, conforme desafiadores tomaram o campo em pares e

88
trios, e às vezes cinco ao mesmo tempo. Trompetes soaram, os
arautos chamaram nomes, cavalos de guerra atacaram, a
multidão torceu, lanças quebraram como gravetos, e espadas
ressoaram sobre elmos e malha. Foi, o povo e altos senhores
ambos concordavam, um dia de justa esplêndido. Sor Humfrey
Hardyng e Sor Humfrey Beesbury, um ousado jovem cavaleiro
em listras amarelas e negras com três colméias em seu escudo,
despedaçaram nada menos que doze lanças cada um em um
conflito épico que o povo comum logo começou a chamar de
“Batalha de Humfrey.” Sor Tybolt Lannister foi derrubado do
cavalo por Sor Jon Penrose e quebrou sua espada na queda,
mas lutou de voltas com apenas o escudo para vencer a
disputa e permanecer um campeão. O caolho Sor Robyn
Rhysling, um grisalho velho cavaleiro com uma barba de duas
cores, perdeu seu elmo para a lança de Lorde Leo em seu
primeiro ataque, e mesmo assim se recusava a se render. Três
vezes mais, eles foram um contra o outro, o vento chicoteando
o cabelo de Sor Robyn enquanto os estilhaços de lanças
quebradas voavam em volta de seu rosto desnudo como facas
de madeira, o que Dunk pensou ser ainda mais impressionante
quando Egg lhe disse que Sor Robyn havia perdido seu olho

89
para o estilhaço de uma lança quebrada há menos de cinco
anos atrás. Lorde Tyrell era cavalheiresco demais para mirar
outra lança na cabeça desprotegida de Sor Robyn, mas mesmo
assim a coragem teimosa de Rhysling (ou seria estupidez?)
deixou Dunk aturdido. Finalmente o Senhor de Jardim de
Cima atingiu um baque sólido na placa de peito de Sor Robyn
logo acima do coração e o mandou dando piruetas para o chão.
Sor Lyonel Baratheon também lutou várias disputas
notáveis. Contra inimigos inferiores, ele iria com freqüência
cair em uma gargalhada estrondosa no momento em que
tocassem seu escudo, e iria rir durante todo o tempo em que
estava montando e atacando e os derrubando de seus estribos.
Se seus desafiadores estivessem usando algum tipo de crista
em seus elmos, Sor Lyonel iria arrancá-los e atirá-los para a
multidão. As cristas eram adornos, feitos de madeira esculpida
ou couro moldado, e às vezes dourados ou esmaltados ou
mesmo forjados em prata pura, então os homens que ele
derrotava não apreciavam esse gesto, apesar de que o tornara
um grande favorito entre os comuns. Antes de muito tempo,
apenas homens sem crista o escolhiam. Porém, por mais alto e
por maior a freqüência que Sor Lyonel gargalhava sobre um

90
desafiador, Dunk pensou que as honras do dia deveriam ir
para Sor Humfrey Hardyng, que triunfou sobre quatorze
cavaleiros, cada um deles formidável.
Enquanto isso o Jovem Príncipe se sentava do lado de
fora de seu pavilhão negro, bebendo de sua taça de prata e se
levantando de tempos em tempos para montar seu cavalo e
vencer mais um oponente indistinto. Ele havia vencido nove
vitórias, mas parecia a Dunk que cada uma delas era vazia. Ele
está derrotando homens idosos e escudeiros elevados, uns
poucos senhores bem nascidos e com pouca habilidade. Os
homens perigosos de verdade estão passando pelo seu escudo
como se não o vissem.
Mais tarde no dia, uma fanfarra escandalosa anunciou a
entrada de um novo desafiador nas liças. Ele entrou em um
grande cavalo de batalha vermelho cujos jaezes negros eram
cortados para revelar relances de amarelo, vermelho e laranja
por baixo. Quando ele se aproximou do palanque para fazer
sua saudação, Dunk viu o rosto por baixo do visor levantado, e
reconheceu o príncipe que havia conhecido nos estábulos do
Senhor Ashford.
As pernas de Egg apertaram ao redor de seu pescoço.

91
“Pare com isso,” Dunk exclamou, os separando com força.
“Você quer me engasgar?”
“Príncipe Aerion Chamaviva,” um arauto chamou, “da
Fortaleza Vermelha de Porto Real, filho de Maekar, Príncipe
de Solarestival da Casa Targaryen, neto de Daeron o Bom,
Segundo de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Rhoynar, e dos
Primeiro Homens, e Senhor dos Sete Reinos.”
Aerion carregava um dragão de três cabeças em seu
escudo, mas ele estava representado em cores muito mais
vívidas que o de Valarr; uma cabeça era laranja, uma amarela,
uma vermelha, e as chamas que exalava tinham um brilho de
folha de ouro. Seu casaco era um arabesco de fumaça e fogo
entrelaçados juntos, e seu elmo enegrecido era encimado por
uma crista de chamas vermelhas esmaltadas.
Depois de uma pausa para abaixar sua lança para o
Príncipe Baelor, uma pausa tão breve que era quase
negligente, ele galopou para o lado norte do campo, depois do
pavilhão de Lorde Leo e da Tempestade Sorridente,
diminuindo apenas quando se aproximou da tenda do Príncipe
Valarr. O jovem príncipe se ergueu e ficou de pé rigidamente
ao lado seu escudo, e por um momento Dunk estava certo que

92
Aerion pretendia bater no escudo... mas então ele riu e trotou
à frente, e atirou sua ponta com força contra os diamantes de
Sor Humfrey Hardyng. “Venha, venha, pequeno cavaleiro,” ele
cantou em uma voz alta e clara, “chegou a hora de você
enfrentar o dragão.”
Sor Humfrey inclinou sua cabeça rigidamente para o seu
inimigo enquanto seu cavalo de batalha era trazido, e então o
ignorou enquanto montava, prendia seu elmo, e pegava a
lança e o escudo. Os espectadores tornaram-se quietos
enquanto os dois cavaleiros assumiam seus lugares. Dunk
ouviu o clangor do Príncipe Aerion abaixando seu visor. A
trombeta soou.
Sor Humfrey deu partida vagarosamente, pegando
velocidade, mas seu oponente arranhou o cavalo de batalha
vermelho com força com ambas as esporas, vindo com tudo.
As pernas de Egg apertaram de novo. “Mate-o!” ele gritou
subitamente. “Mate-o, ele está bem ali, mate-o, mate-o, mate-
o!” Dunk não tinha certeza para qual dos cavaleiros ele estava
gritando.
A lança do Príncipe Aerion, com a ponta dourada e
pintada em listras de vermelho, laranja e amarelo, virou para o

93
outro lado da barreira. Baixo, baixo demais, pensou Dunk no
momento em que viu aquilo. Ele irá errar o cavaleiro e
atingir o cavalo de Sor Humfrey, ele precisa trazê-la para
cima. Então, com o horror do entendimento, ele começou a
suspeitar que Aerion não pretendesse fazer tal coisa. Ele não
pode querer...
No último instante possível, o garanhão de Sor Humfrey
se afastou para longe da ponta que se aproximava, com os
olhos girando de terror, mas tarde demais, a lança de Aerion
pegou o animal logo acima da armadura que protegia seu
esterno, e explodiu por detrás do seu pescoço em uma mancha
de sangue brilhante. Berrando, o cavalo caiu para os lados,
desfazendo a barreira de madeira em pedaços enquanto caía.
Sor Humfrey tentou pular para longe, mas um pé ficou preso
em um estribo e eles ouviram o grito dele quando sua perna foi
esmagada entre a cerca despedaçada e o cavalo que caía.
Toda a Clareira Ashford estava gritando. Homens
correram para o campo para extrair Sor Humfrey, mas o
garanhão, morrendo em agonia, os chutava quando eles se
aproximavam. Aerion, tendo corrido negligentemente ao redor
da carnificina, para o fim das liças, girou seu cavalo e voltou

94
galopando. Ele estava gritando também, embora Dunk não
conseguisse distinguir as palavras sobre os gritos quase
humanos do cavalo moribundo. Saltando da sela, Aerion
desembainhou sua espada e avançou em seu oponente caído.
Seus próprios escudeiros e um de Sor Humfrey tiveram que
detê-lo. Egg se contorceu nos ombros de Dunk. “deixe-me
descer,” o menino disse. “O pobre cavalo, deixe-me descer.”
O próprio Dunk sentia-se enjoado. O que eu faria se
Trovão tivesse tal destino? Um mestre-de-armas despachou o
garanhão de Sor Humfrey, encerrando os terríveis gritos.
Dunk virou-se e forçou caminho entre a multidão. Quando
chegou em campo aberto, ele retirou Egg de seus ombros. O
capuz do menino havia caído para trás e os olhos dele estavam
vermelhos. “Uma visão terrível, é verdade,” ele disse ao garoto,
“mas um escudeiro precisa ser forte. Receio que você verá
fatalidades piores em outros torneios.”
“Não foi fatalidade alguma,” disse Egg, com a boca
tremendo. “Aerion pretendia fazer isso. Você viu.”
Dunk franziu o cenho. A ele parecera a mesma coisa,
mas era difícil aceitar que qualquer cavaleiro pudesse ser tão
rude, menos ainda um que era o sangue do dragão. “Eu vi um

95
cavaleiro verde como a grama de verão perder o controle de
sua lança,” disse ele teimosamente, “e não vou mais escutar
nada sobre isso. A justa está encerrada por hoje, eu acho.
Venha, garoto.”
Ele estava certo sobre o fim das disputas do dia. Pela
hora em que o caos havia sido resolvido, o sol estava baixo no
oeste, e Lorde Ahsford havia ordenado uma pausa.
Enquanto as sombras da noite se arrastavam sobre a
clareira, uma centena de tochas era acesa ao longo da fila de
mercadores. Dunk comprou um chifre de cerveja para ele e
meio chifre para o garoto, para animá-lo. Eles vagaram
durante algum tempo, ouvindo uma ária vivida em flautas e
tambores e assistindo uma apresentação de marionetes sobre
Nymeria, a rainha guerreira com os dez mil navios. Os
marioneteiros tinham apenas dois navios, mas conseguiram
uma batalha naval animadora do mesmo jeito. Dunk queria
perguntar à garota Tanselle se ela havia terminado de pintar
seu escudo, mas podia ver que ela estava ocupada. Vou
esperar até que ela tenha terminado por hoje. Talvez ela
tenha sede então.
“Sor Duncan,” uma voz chamou atrás dele. E novamente,

96
“Sor Duncan.” De repente Dunk lembrou que aquele era ele.
“Eu o vi entre os comuns hoje, com esse menino nos seus
ombros,” disse Raymun Fossoway enquanto se aproximava,
sorrindo. “De fato, era difícil deixar de notar vocês dois.”
“O menino é meu escudeiro. Egg, este é Raymun
Fossoway.” Dunk teve que puxar o garoto para frente, e
mesmo assim Egg abaixou a cabeça e encarou as botas de
Raymun enquanto murmurava um cumprimento.
“Prazer em conhecê-lo, garoto,” Raymun disse com
simpatia. “Sor Duncan, porque não assistir da bancada? Todos
os cavaleiros são bem vindos lá.”
Dunk se sentia à vontade entre o povo e os criados; a
idéia de reclamar um lugar entre os senhores, senhoras e
cavaleiros estabelecidos o deixava desconfortável. “Eu não
quereria nenhuma vista mais próxima daquela última
disputa.”
Raymun fez uma careta. “Nem eu. O Senhor Ashford
declarou Sor Humfrey o vencedor e o premiou com o corcel do
Príncipe Aerion, mas mesmo assim, ele não vai poder
continuar. Sua perna foi quebrada em dois lugares. Príncipe
Baelor mandou seu próprio meistre para cuidar dele.”

97
“Haverá outro campeão no lugar de Sor Humfrey?”
“Lorde Ashford tinha em mente conceder o lugar ao
Lorde Caron, ou talvez ao outro Sor Humfrey, aquele que deu
uma luta tão esplêndida a Hardyng, mas Príncipe Baelor disse
a ele que não seria adequado remover o escudo e o pavilhão de
Sor Humfrey sob as circunstâncias. Acredito que eles
continuarão com quatro campeões no lugar de cinco.”
Quatro campões, Dunk pensou. Leo Tyrell, Lyonel
Baratheon, Tybolt Lannister, e Príncipe Valarr. Ele tinha
visto o suficiente desse primeiro dia para saber o quanto era
pequena a chance que ele teria contra os três primeiros. O que
restava apenas...
Um cavaleiro de cerca não pode desafiar um príncipe.
Valarr é o segundo na linha de sucessão do trono. Ele é filho
de Baelor Quebra-Lanças, e o sangue dele é o sangue de
Aegon o Conquistador e do Jovem Dragão e de Príncipe
Aemon o Cavaleiro do Dragão, e eu sou um garoto qualquer
que o velho encontrou atrás de uma loja de cerâmica na
Baixada das Pulgas.
A cabeça dele doía só de pensar nisso. “Quem seu primo
pretender desafiar?” ele perguntou a Raymun.

98
“Sor Tybolt, se tudo sair como o previsto. Eles estão bem
equiparados. Meu primo mantém um olho aguçado em todas
as disputas, no entanto. Se algum homem estivesse
machucado amanhã, ou mostrasse sinais de exaustão ou
fraqueza, Steffon será rápido em bater no escudo dele, pode
contar com isso. Ninguém jamais o acusou de um excesso de
cavalheirismo.” Ele riu, como que para tirar a dureza de suas
palavras. “Sor Duncan, você se juntaria a mim para um copo
de vinho?”
“Tenho algo de que preciso tratar,” disse Dunk,
desconfortável com a idéia de aceitar hospitalidade que ele não
poderia retornar.
“Eu poderia esperar aqui e trazer seu escudo quando a
apresentação de marionetes acabar, sor,” disse Egg. “Eles vão
fazer Symeon Olhos-de-Estrela depois, e fazer o dragão lutar
também.”
“Aí está, veja, o seu problema está resolvido, e o vinho
espera,” disse Raymun. “É uma safra do Porto, também. Como
você pode recusar?”
Sem ter desculpas, Dunk não tinha escolha a não ser
segui-lo, deixando Egg na apresentação de marionetes. A maçã

99
da Casa Fossoway tremulava acima de um pavilhão cor-de-
ouro onde Raymun servia seu primo. Atrás dele, dois criados
estavam temperando um bode com mel e ervas sobre um
pequeno fogareiro. “Há comida também, se você estiver com
fome,” disse Raymun negligentemente enquanto levantava a
abertura para Dunk. Um braseiro com carvões iluminava o
interior e tornava o ar agradavelmente aquecedor. Raymun
encheu dois copos de vinho. “Dizem que Aerion está com ódio
do Lorde Ashford por ter premiado seu cavalo a Sor Humfrey,”
ele comentou enquanto servia, “mas eu aposto que foi o tio
dele que aconselhou isso.” Ele entregou a Dunk o copo de
vinho.
“Príncipe Baelor é um homem honrado.”
“Como o Brilhante Príncipe não é?” riu Raymun. “Não
fique tão ansioso, Sor Duncan, não há ninguém aqui além de
nós. Não é segredo algum que Aerion é um trabalho mal feito.
Graças aos deuses ele está bem longe na linha de sucessão.”
“Você acredita mesmo que ele pretendia matar o
cavalo?”
“Existe alguma dúvida sobre isso? Se Príncipe Maekar
estivesse aqui, teria sido diferente, eu prometo a você. Aerion é

100
todo sorrisos e cavalheirismo contanto que seu pai esteja
assistindo, se o que dizem é verdade, mas quando ele não
está...”
“Eu vi que a cadeira do Príncipe Maekar estava vazia.”
“Ele deixou Ashford em busca de seus filhos, junto com
Roland Crakehall da Guarda Real. Há um boato descontrolado
de cavaleiros ladrões por aí, mas eu aposto que o príncipe está
apenas bêbado por aí de novo.”
O vinho era bom e com gosto de fruta, um copo tão bom
quanto qualquer um que já tivesse provado. Ele o revirou na
boca, engoliu e disse, “Que príncipe é esse agora?”
“O herdeiro de Maekar. Daeron, ele é chamado, em
homenagem ao rei. Chamam-no de Daeron o Bêbado, embora
não onde seu pai possa ouvir. O menino mais novo estava com
ele também. Eles deixaram Solarestival juntos mas nunca
chegaram a Ashford.” Raymun secou seu copo e o colocou de
lado. “Pobre Maekar.”
“Pobre?” disse Dunk, espantado. “O filho do rei?”
“O quarto filho do rei,” disse Raymun, “não tão ousado
quanto Príncipe Baelor, nem tão inteligente quanto o Príncipe
Aerys, nem tão gentil quanto Príncipe Rhaegel. E agora ele

101
tem que sofrer vendo seus próprios filhos serem ofuscados
pelos filhos de seu irmão. Daeron é um beberrão, Aerion é
vaidoso e cruel, o terceiro filho era tão não promissor que eles
o entregaram para a Cidadela para fazer dele um meistre, e o
mais novo–”
“Sor! Sor Duncan!” Egg entrou subitamente, arquejando.
Seu capuz tinha caído, e a luz do braseiro brilhava em seus
grandes olhos escuros. “Você tem que correr, ele está
machucando ela!”
Dunk saltou de pé, confuso. “Machucando? Quem?”
“Aerion!” o menino gritou. “Ele está machucando ela. A
garota das marionetes. Corra.” Girando, ele correu de volta
noite adentro.
Dunk fez menção de segui-lo, mas Raymun segurou seu
braço. “Sor Duncan. Aerion, ele disse. Um príncipe do sangue.
Tenha cuidado.”
Era um bom conselho, ele sabia. O velho teria dito o
mesmo. Mas ele não conseguia ouvir. Soltou-se da mão de
Raymun e se empurrou para fora do pavilhão com os ombros.
Ele podia ouvir gritos na direção da fila de mercadores. Egg
estava quase fora de vista. Dunk correu atrás dele. Suas pernas

102
eram longas e as do menino curtas; ele rapidamente cobriu a
distância.
Uma parede de observadores havia se reunido ao redor
dos marioneteiros. Dunk empurrou com os ombros entre eles,
ignorando seus xingamentos. Um homem de armas com o
uniforme real deu um passo à frente para bloquear sua
passagem. Dunk colocou uma mão enorme em seu peito e
empurrou, mandando o homem abanando os braços para trás
para se estatelar sobre o traseiro na sujeira.
A barraca do marioneteiro tinha sido virada de lado. A
gorda mulher dornesa estava no chão chorando. Um homem
de armas estava sacudindo as marionetes de Florian e Jonquil
em suas mãos enquanto outro ateava fogo neles com uma
tocha. Mais três homens estavam abrindo baús, espalhando
mais marionetes no chão e pisoteando-as. O dragão-marionete
estava espalhado ao redor deles, uma asa quebrada aqui, sua
cabeça ali, seu rabo em três pedaços. E no meio de tudo isso
estava o Príncipe Aerion, resplandecente em um gibão de
veludo vermelho com longas mangas em forma de adaga,
torcendo o braço de Tanselle com as duas mãos. Ela estava de
joelhos, suplicando a ele. Aerion a ignorou. Ele forçou-a a

103
abrir a mão e agarrou um de seus dedos. Dunk ficou ali
estupidamente, não acreditando inteiramente no que via.
Então ele ouviu um ruído, e Tanselle gritou.
Um dos homens de Aerion tentou agarrá-lo, e saiu
voando. Três longos passos, e então Dunk agarrou o ombro do
príncipe e o virou com força. Sua espada e adaga foram
esquecidas, junto com tudo que o velho já havia ensinado a
ele. Seu punho arrancou Aerion de seus pés, e a ponta de sua
bota entrou na barriga do príncipe. Quando Aerion foi pegar
sua faca, Dunk pisou em seu pulso e então o chutou
novamente, bem na boca. Ele poderia tê-lo chutado até a
morte bem ali e naquela hora, mas os homens do príncipe se
fecharam sobre ele. Ele tinha um homem em cada braço e
outro batendo em suas costas. Tão logo ele se livrasse de um,
mais dois estavam sobre ele.
Finalmente eles o empurraram e prenderam seus braços
e pernas no chão. Aerion estava de pé novamente. A boca do
príncipe estava sangrando. Ele empurrou dentro dela com um
dedo. “Você amoleceu um dos meus dentes,” ele reclamou,
“então vamos começar por quebrar todos os seus.” Ele afastou
o cabelo dos olhos. “Você me parece familiar.”

104
“Você me confundiu com um cavalariço.”
Aerion sorriu vermelho. “Eu me lembro. Você se recusou
a pegar meu cavalo. Porque jogou sua vida fora? Por essa
puta?” Tanselle estava enrolada no chão, aninhando sua mão
machucada. Ele deu um empurrão nela com a ponta de sua
bota. “Ela dificilmente vale isso. Uma traidora. O dragão não
deve perder nunca.”
Ele é louco, pensou Dunk, mas ele ainda é o filho de um
príncipe, e ele quer me matar. Ele poderia ter rezado então, se
soubesse uma oração até o fim, mas não havia tempo. Mal
havia tempo para sentir medo.
“Nada mais a dizer?” disse Aerion. “Você me entedia,
sor.” Ele cutucou sua boca ensangüentada de novo. “Pegue um
martelo e quebrem todos os dentes dele Wate,” ele comandou,
“e depois vamos abri-lo e mostrar a ele a cor de suas
entranhas.”
“Não!” disse a voz de um menino. “Não o machuquem!”
Pelos deuses, o menino, o corajoso e tolo menino,
pensou Dunk. Ele lutou contra os braços que o seguravam,
mas não fez bem algum. “Segure a língua, seu garoto estúpido.
Corra. Eles vão machucá-lo!”

105
“Não eles não vão.” Egg chegou mais perto. “Se
machucarem, irão responder ao meu pai. E ao meu tio
também. Larguem-no, eu disse. Wate, Yorkel, vocês me
conhecem. Façam o que eu digo.”
As mãos segurando seu braço esquerdo se foram, e
depois as outras. Dunk não entendeu o que estava
acontecendo. Os homens de armas estavam se afastando. Um
até se ajoelhou. Então a multidão se abriu para Raymun
Fossoway. Ele havia colocado malha e elmo, e sua mão estava
na espada. Seu primo Sor Steffon, logo atrás dele, já havia
desembainhado a espada, e com eles estava meia dúzia de
homens de armas com o distintivo da maçã vermelha
costurado em seus peitos.
Príncipe Aerion não lhes deu atenção alguma. “Seu
infelizinho insolente,” ele disse a Egg, cuspindo a boca cheia
de sangue nos pés do garoto. “O que aconteceu com seu
cabelo?”
“Eu cortei, irmão,” disse Egg. “Não queria ficar parecido
com você.”

106
O segundo dia do torneio foi nublado, com um vento
violento soprando do oeste. As multidões devem ser menores
em um dia como esse, pensou Dunk. Teria sido mais fácil para
eles encontrarem um ponto perto da cerca para ver a justa
bem de perto. Egg poderia ter sentado na barra, enquanto eu
ficava atrás dele.
Ao invés disso Egg teria um assento na galeria privada,
vestido em sedas e peles, enquanto a vista de Dunk seria
limitada às quatro paredes da cela na torre na qual os homens
do Senhor Ashford o tinham confinado. A câmara tinha uma
janela, mas era virada para o lado errado. Mesmo assim, Dunk
se espremeu no assento da janela quanto o sol surgiu, e olhou
depressivamente além da vila, do campo e da floresta. Eles
tinham tirado seu cinto de corda de cânhamo, e sua espada e
adaga junto com ele, e haviam tirado sua prata também. Ele
esperava que Egg ou Raymun se lembrasse de Noz e Trovão.
“Egg,” ele murmurou baixo sob a respiração. Seu
escudeiro, um garoto pobre retirado das ruas de Porto Real.
Alguma vez um cavaleiro tinha sido feito de tolo assim? Dunk
o burro, grosso como a muralha de um castelo e lento como
um auroque.

107
Ele não tinha tido permissão para falar com Egg desde
que os soldados do Senhor Ashford tinham recolhido todos
eles na apresentação de marionetes. Nem Raymun, nem
Tanselle, nem ninguém, nem o próprio Senhor Ashford. Ele se
perguntava se ele alguma vez veria algum deles novamente.
Por tudo que ele sabia, eles pretendiam mantê-lo nessa
pequena sala até que morresse. O que eu pensei que fosse
acontecer? Ele se perguntou amargamente. Eu derrubei o
filho de um príncipe e chutei-o no rosto.
Sob estes céus cinza, a riqueza esvoaçante dos senhores
bem nascidos e dos grandes campeões não pareceria tão
esplêndida como no dia anterior. O sol, emparedado atrás das
nuvens, não iria pincelar com brilho seus elmos de aço, nem
fazer seus entalhes de ouro e prata cintilarem e relampejarem,
mas mesmo assim, Dunk desejou estar na multidão para
assistir a justa. Seria um bom dia para cavaleiros de cerca,
para homens em cota de malha simples em cavalos sem
adornos.
Ele podia ouvi-los, pelo menos. As trombetas dos
arautos soavam longe, e de tempos em tempos um rugido da
multidão lhe dizia que alguém tinha caído, ou se levantado, ou

108
feito algo especialmente ousado. Ele ouviu batidas de casco
fracas também, e uma vez bem de vez em quando o bater de
espadas ou o quebrar de uma lança; Dunk sentia uma pontada
toda vez que ouvia este último; fazia-o se lembrar do barulho
que o dedo de Tanselle havia feito quando Aerion o quebrou.
Havia outros sons também, mais próximos; passos no
corredor fora de sua porta, o bater de cascos no pátio lá
embaixo, gritos e vozes das paredes do castelo. Às vezes eles
cobriam o torneio. Dunk supôs que assim era melhor.
“Um cavaleiro de cerca é o tipo mais verdadeiro de
cavaleiro, Dunk,” o velho havia dito a ele, há muito tempo
atrás. “Outros cavaleiros servem aos senhores que os mantém,
ou a quem devem suas terras, mas nós servimos onde
queremos, por homens em cujas causas acreditamos... todo
cavaleiro jura proteger os fracos e inocentes, mas nós
mantemos nossos votos melhor, eu acho.” Estranho como
aquela lembrança parecia forte. Dunk já tinha quase esquecido
aquelas palavras. E talvez o velho as tivesse esquecido
também, perto do fim.
A manhã virou tarde. Os sons distantes do torneio
começaram a enfraquecer e morrer. O ocaso começou a

109
escorrer para dentro da sela, mas Dunk ainda sentava no
assento da janela, olhando para fora na escuridão crescente e
tentando ignorar sua barriga vazia.
Então ele ouviu passos e um tilintar de chaves de ferro.
Ele se desenrolou e ficou de pé quando a porta abria. Dois
guardas entraram, um carregando uma lamparina. Um criado
seguiu com uma bandeja de comida. Atrás veio Egg. “Deixem a
lâmpada e a comida e vão,” o menino disse a eles.
Eles fizeram como ele mandou, entretanto Dunk notou
que deixaram a pesada porta de madeira entreaberta. O cheiro
da comida o fez perceber o quão faminto estava. Havia pão
quente e mel, uma vasilha de mingau de ervilhas, um espeto
de cebolas assadas e carne bem passada. Ele se sentou ao lado
da bandeja, quebrou o pão com as mãos, e colocou um pouco
na boca. “Não há faca alguma,” ele observou. “Eles pensaram
que eu iria esfaquear você, garoto?”
“Eles não me disseram o que pensaram.” Egg vestia um
gibão de lã negra com a cintura justa e mangas compridas
arrematadas com cetim vermelho. Em seu peito estava
costurado o dragão de três cabeças da Casa Targaryen. “Meu
tio diz que eu devo implorar humildemente seu perdão por tê-

110
lo enganado.”
“Seu tio,” disse Dunk. “Esse seria o Príncipe Baelor.”
O menino pareceu miserável. “Eu nunca quis mentir.”
“Mas mentiu. Sobre tudo. Começando pelo seu nome.
Nunca ouvi falar de um Príncipe Egg.”
“É diminutivo de Aegon. Meu irmão Aemon me chama
de Egg. Ele está longe na Cidadela, aprendendo a ser um
meistre. E Daeron às vezes me chama de Egg também, assim
como as minhas irmãs.”
Dunk levantou e mordeu um pedaço de carne. Bode,
temperado com alguma erva senhorial que ele nunca havia
provado antes. Gordura correu pelo seu queixo. “Aegon,” ele
repetiu. “É claro que seria Aegon. Como Aegon o Dragão.
Quantos Aegons foram reis?”
“Quatro,” disse o menino. “Quatro Aegons.”
“Dunk mastigou, engoliu, e rasgou mais um pouco do
pão. “Porque você fez isso? Era alguma brincadeira, fazer de
tolo o estúpido cavaleiro de cerca?”
“Não.” Os olhos do menino se encheram de lágrimas,
mas ele se manteve lá bravamente. “Eu iria ser escudeiro de
Daeron. Ele é meu irmão mais velho. Eu aprendi tudo o que

111
tinha que aprender para ser um bom escudeiro, mas Daeron
não é um cavaleiro muito bom. Ele não queria correr no
torneio, então depois que deixamos Solarestival ele fugiu da
nossa escolta, só que ao invés de voltar ele seguiu direto para
Ashford, pensando que eles nunca procurariam por nós
naquela direção. Foi ele que raspou a minha cabeça. Ele sabia
que meu pai mandaria homens nos caçando. Daeron tem
cabelo comum, meio marrom pálido, nada especial, mas o meu
é como o de Aerion e do meu pai.”
“O sangue do dragão,” disse Dunk. “Cabelos prata-
dourado e olhos roxos, todo mundo sabe disso.” Grosso como
a muralha de um castelo, Dunk.
“Sim. Então Daeron o raspou. Ele queria que nos
escondêssemos até que o torneio tivesse acabado. Só que aí
você me confundiu com um cavalariço, e...” ele abaixou os
olhos. “Eu não me importava se Daeron lutasse ou não, mas eu
queria ser o escudeiro de alguém. Eu sinto muito, sor. Sinto
mesmo.”
Dunk olhou para ele pensativamente. Ele sabia como era
querer tanto alguma coisa que você contaria uma mentira
monstruosa só para chegar perto dela. “Eu pensei que você

112
fosse como eu,” disse ele. “Talvez você seja. Apenas não do
jeito que eu pensava.”
“Ainda somos os dois de Porto Real,” disse o menino
esperançosamente.
Dunk teve que rir. “Sim, você do topo da Colina de
Aegon e eu do fundo dela.”
“Isso não é tão longe, sor.”
Dunk deu uma mordida em uma cebola. “Preciso chamá-
lo de meu senhor ou Vossa Graça ou algo assim?”
“Na corte,” o menino admitiu, “mas outras vezes você
pode continuar me chamando de Egg se quiser, Sor.”
“O que eles farão comigo, Egg?”
“Meu tio quer ver você. Depois que você terminar de
comer, sor.”
Dunk afastou o prato para o lado, e ficou de pé.
“Terminei agora, então. Eu já chutei um príncipe na boca, não
pretendo deixar outro esperando.”
Lorde Ashford havia cedido seus próprios aposentos
para o Príncipe Baelor pela duração de sua estadia, então foi
para o solar do senhor que Egg – não, Aegon, ele teria que se
acostumar com aquilo – o conduziu. Baelor estava sentado

113
lendo à luz de uma vela de cera de abelha. Dunk se ajoelhou
diante dele. “Levante-se,” disse o príncipe. “Você aceitaria
vinho?”
“Se for do seu agrado, Vossa Graça.”
“Sirva ao Sor Duncan um copo do Dornês vermelho
doce, Aegon,” o príncipe comandou. “Tente não derramar
nele, você já lhe fez mal o suficiente.”
“O menino não vai derramar, Vossa Graça,” disse Dunk.
“Ele é um bom garoto. Um bom escudeiro. E ele não quis me
fazer mal algum, eu sei.”
“A pessoa não precisa querer fazer mal para fazê-lo.
Aegon deveria ter vindo a mim quando viu o que o irmão dele
estava fazendo com aqueles marioneteiros. Ao invés disso ele
correu para você. Isso não foi bondade alguma. O que você fez,
sor... bem, eu talvez fizesse o mesmo em seu lugar, mas eu sou
um príncipe do reino, não um cavaleiro de cerca. Nunca é
sábio bater em um neto do rei por raiva, não importa o
motivo.”
Dunk acenou com a cabeça gravemente. Egg ofereceu a
ele um cálice de prata, transbordando com vinho. Ele aceitou e
tomou um longo gole.

114
“Eu odeio Aerion,” disse Egg com veemência. “E eu tive
que correr para Sor Duncan tio, o castelo era longe demais.”
“Aerion é seu irmão,” disse o príncipe com firmeza, “e os
septãos dizem que devemos amar nossos irmãos. Aegon,
deixe-nos agora, eu gostaria de falar com Sor Duncan em
particular.”
O menino largou o jarro de vinho e se curvou
rigidamente. “Como quiser, Vossa Graça.” Ele foi até a porta
do solar e fechou-a suavemente atrás de si.
Baelor Quebra-Lanças estudou os olhos de Dunk por um
longo momento. “Sor Duncan, permita-me perguntar isso –
quão bom cavaleiro você é? Quão habilidoso com as armas?”
Dunk não sabia o que dizer. “Sor Arlan me ensinou
espada e escudo, e como atingir anéis e manequins.”
“Príncipe Baelor parecia perturbado com aquela
resposta. “Meu irmão Maekar retornou para o castelo algumas
horas atrás. Ele encontrou seu herdeiro bêbado em uma
estalagem a um dia de cavalgada para o sul. Maekar nunca
admitiria tal coisa, mas eu acredito que era sua esperança
secreta que seus filhos pudessem ofuscar os meus nesse
torneio. Ao invés disso ambos o envergonharam, mas o que ele

115
fará? Eles são sangue de seu sangue. Maekar está com raiva, e
vai precisar de um alvo para sua ira. Ele escolheu você.”
“Eu?” disse Dunk miseravelmente.
“Aerion já encheu o ouvido de seu pai. E Daeron também
não o ajudou. Para desculpar sua própria covardia, ele disse ao
meu irmão que um cavaleiro ladrão enorme, encontrado por
acaso na estrada, fugiu com Aegon. Temo que você tenha sido
colocado como esse cavaleiro ladrão, sor. No conto de Daeron,
ele passou todos esses dias perseguindo você aqui e ali, para
recuperar o irmão.”
“Mas Egg lhe contará a verdade. Aegon, quero dizer.”
“Egg contará, não tenho dúvida,” disse Príncipe Baelor,
“mas o garoto já foi conhecido por mentir também, como você
tem bom motivo para lembrar. Em qual filho meu irmão
acreditará? Quanto à questão desses marioneteiros, à altura
que Aerion terminar de distorcê-lo a estória será alta traição.
O dragão é a insígnia da Casa Real. Retratar um sendo
executado, com sangue de serragem escorrendo de seu
pescoço... bem, foi sem dúvida inocente, mas estava longe de
ser sábio. Aerion chama de um ataque velado à Casa
Targaryen, um incitamento à revolta. Maekar irá

116
provavelmente concordar. Meu irmão tem uma natureza
irritável, e colocou suas melhores esperanças em Aerion, uma
vez que Daeron tem sido uma decepção tão grave para ele.” O
príncipe tomou um gole de vinho, e colocou o cálice de lado.
“O que quer que meu irmão acredite, uma verdade está acima
de contestação. Você colocou as mãos no sangue do dragão.
Por essa ofensa, deve ser julgado, e avaliado, e punido.”
“Punido?” Dunk não gostava do som daquilo.
“Aerion gostaria da sua cabeça, com ou sem dentes. Ele
não a terá, eu lhe prometo, mas não posso negá-lo um
julgamento. Como meu real pai está a longas léguas daqui,
meu irmão e eu devemos nos sentar para julgar você, junto
com Lorde Ashford, a quem pertencem esses domínios, e
Lorde Tyrell de Jardim de Cima, seu suserano. Da última vez
que um homem foi considerado culpado de machucar alguém
do sangue real, foi decretado que ele deveria perder a mão
ofensora.”
“Minha mão?” disse Dunk, horrorizado.
“E o seu pé. Você o chutou também, não foi?”
Dunk não conseguia falar.
“Com certeza, eu irei aconselhar meus companheiros

117
juízes a serem misericordiosos. Eu sou a Mão do Rei e o
herdeiro do trono, minha palavra carrega algum peso. Mas a
do meu irmão também. Aí está o risco.”
“Eu,” disse Dunk, “Eu... Vossa Graça, eu...” Eles não
pretendiam cometer traição alguma, era apenas um dragão
de madeira, ele queria dizer, mas suas palavras haviam-no
desertado de uma vez por todas. Ele nunca tinha sido bom
com palavras.
“Você tem outra escolha, entretanto,” disse Príncipe
Baelor suavemente. “Se é uma escolha melhor ou pior, eu não
posso dizer, mas o lembro que qualquer cavaleiro acusado de
um crime tem o direito de exigir um julgamento por combate.
Então eu lhe pergunto mais uma vez, Sor Duncan o Alto –
quão bom cavaleiro você é? Verdadeiramente?”

“Um julgamento de sete,” disse Príncipe Aerion,


sorrindo. “Esse é o meu direito, acredito.”
Príncipe Baelor tamborilou os dedos na mesa, franzindo
o cenho. À sua esquerda, Lorde Ashford acenou

118
inclinando para frente na direção de seu filho. “Você está com
medo de enfrentar esse cavaleiro de cerca sozinho e deixar que
os deuses decidam a verdade sobre as suas acusações?”
“Com medo?” disse Aerion. “De alguém assim? Não seja
absurdo, Pai. Meu pensamento é pelo meu amado irmão.
Daeron foi injustiçado por esse Sor Duncan também, e tem o
primeiro clamor ao sangue dele. Um julgamento de sete
permite que nós dois o encaremos.”
“Não me faça favor algum, irmão,” murmurou Daeron
Targaryen. O filho mais velho do Príncipe Maekar parecia
ainda pior do que quando Dunk o havia encontrado na
estalagem. Ele parecia estar sóbrio agora, seu gibão vermelho
e preto sem manchas de vinho, mas seus olhos estavam
injetados de sangue, e uma fina camada de suor cobria sua
testa. “Fico contente em torcer por você enquanto executa o
malfeitor.”
“Você é gentil demais, doce irmão,” disse Príncipe
Aerion, todo sorrisos, “mas seria egoísta de minha parte
negar-lhe o direito de provar a verdade de suas palavras no
que diz respeito ao dano do seu corpo. Devo insistir em um
julgamento de sete.”

119
Dunk estava perdido. “Vossa Graça, meus senhores,” ele
disse ao estrado. “Eu não entendo. O que é esse julgamento de
sete?”
Príncipe Baelor se mexeu desconfortavelmente em seu
assento. “É outra forma de julgamento por combate. Antiga,
raramente invocada. Cruzou o Mar Estreito com os Ândalos e
seus sete deuses. Em qualquer julgamento por combate,
acusador e acusado estão pedindo aos deuses que decidam a
questão entre eles. Os Ândalos acreditavam que se os sete
campeões lutassem em cada lado, os deuses, sendo assim
honrados, estariam mais dispostos a conceder suas mãos e
certificar-se que um resultado justo fosse alcançado.”
“Ou talvez eles apenas tivessem um gosto por luta de
espadas,” disse Lorde Leo Tyrell, um sorriso cínico tocando
seus lábios. “Mesmo assim, Sor Aerion está dentro de seus
direitos. Deve ser um julgamento de sete.”
“Então eu devo lutar contra sete homens?” Perguntou
Dunk sem esperanças.
“Não sozinho, sor,” disse Príncipe Maekar
impacientemente.
“Não se faça de tolo, não servirá para nada. Devem ser

120
sete contra sete. Você deve encontrar outros seis cavaleiros
para lutar ao seu lado.”
Seis cavaleiros, pensou Dunk. Eles poderiam muito bem
ter dito a ele que encontrasse seis mil. Ele não tinha irmãos,
nem primos, nem antigos companheiros que tivessem estado
ao seu lado em batalha. Porque seis estranhos arriscariam suas
próprias vidas para defender um cavaleiro de cerca contra dois
príncipes reais? “Vossas Graças, meus senhores,” disse ele, “e
se ninguém tomar meu lado?”
Maekar Targaryen olhou-o de cima friamente. “Se uma
causa é justa, bons homens irão lutar por ela. Se você não
conseguir encontrar campeões, sor, será porque você é
culpado. Alguma coisa poderia ser mais clara?”
Dunk nunca se sentira tão sozinho como quando
caminhou para fora dos portões do Castelo Ashford e ouviu a
ponte levadiça chacoalhar atrás de si. Uma chuva suave estava
caindo, leve como orvalho em sua pele, e ainda assim ele
sentiu calafrios com o toque dela. Do outro lado do rio, anéis
coloridos aureolavam os escassos pavilhões onde fogos ainda
queimavam. Metade da noite já havia ido embora, ele
imaginou. A aurora o atingiria dentro de algumas horas. E

121
com ela viria a morte.
Eles haviam devolvido a ele sua espada e prata, ainda
assim enquanto ele vadeou pela margem, seus pensamentos
estavam vazios. Ele se perguntou se eles esperavam que ele
selasse seu cavalo e fugisse. Ele poderia, se quisesse. Esse seria
o fim de sua vida de cavaleiro, com certeza; ele não seria mais
que um fora-da-lei dali para frente, até o dia em que algum
senhor o capturasse e arrancasse sua cabeça. Melhor morrer
um cavaleiro do que viver desse jeito, ele disse a si mesmo
teimosamente. Molhado até o joelho, ele se arrastou além das
liças vazias. A maioria dos pavilhões já estava escura, seus
donos adormecidos há muito tempo, mas aqui e ali algumas
velas ainda queimavam. Dunk ouviu gemidos suaves e gritos
de prazer vindos de dentro de uma tenda. Isso o fez se
perguntar se morreria sem nunca ter conhecido uma donzela.
Então ele ouviu o relincho de um cavalo, um relincho
que de alguma maneira ele sabia ser de Trovão. Ele virou seus
passos e correu, e ali estava ele, amarrado com Noz do lado de
fora de um pavilhão redondo iluminado de dentro por um
brilho dourado vago. Do mastro central dele o estandarte
pendia encharcado, mas Dunk ainda podia distinguir a curva

122
escura da maçã Fossoway. Ela tinha a aparência da esperança.
“Um julgamento por combate,” disse Raymun
pesadamente. “Pelos deuses, Duncan, isso significa lanças de
guerra, clavas, machados de batalha... as espadas não serão
embotadas, você entende isso?”
“Raymun o Relutante,” zombou seu primo Sor Steffon.
Uma maçã feita de ouro e granadas prendia sua capa de lã
amarela. “Você não precisa temer, primo, esse é um combate
de cavaleiros. Como você não é cavaleiro algum, sua pele não
está em risco. Sor Duncan, você tem pelo menos um Fossoway.
O que está maduro. Eu vi o que Aerion fez com aqueles
marioneteiros. Estou com você.”
„“E eu,” retrucou Raymun com raiva. “Eu apenas quis
dizer–”
Seu primo o interrompeu. “Quem mais luta conosco, Sor
Duncan?”
Dunk abriu as mãos desesperadamente. “Eu não
conheço mais ninguém. Bem, exceto por Sor Manfred
Dondarrion. Ele não iria nem dar sua palavra de que eu era
um cavaleiro, nunca arriscará a vida por mim.”
Sor Steffon parecia um pouco perturbado. “Então

123
precisamos de mais cinco bons homens. Felizmente, tenho
mais do que cinco amigos. Leo Espinho-Longo, a Tempestade
Sorridente, Lorde Caron, os Lannister. Sor Otho Bracken...
sim, e os Blackwood também, embora você nunca vá conseguir
colocar Blackwood e Bracken do mesmo lado de um corpo a
corpo. Eu vou falar com alguns deles.”
“Eles não ficarão felizes em ser acordados,” seu primo
interpôs.
“Excelente,” declarou Sor Steffon. “Se estiverem com
raiva, lutarão bem mais ferozmente. Você pode confiar em
mim, Sor Duncan. Primo, se eu não voltar antes do
amanhecer, traga minha armadura e certifique-se que Ira
esteja selada e adornada para mim. Encontro vocês dois no
cercado dos desafiadores.” Ele riu. “Esse será um dia lembrado
por muito tempo, eu acho.” Quando ele saiu andando da
tenda, parecia quase feliz.
Raymun nem tanto. “Cinco cavaleiros,” ele disse
sombriamente depois que seu primo se fora. “Duncan, eu
odeio destruir suas esperanças, mas...”
“Se seu primo conseguir trazer os homens de quem
falou...”

124
“Leo Espinho-Longo? O Bruto de Bracken? A
Tempestade Sorridente?” Raymun ficou de pé. “Ele conhece
todos eles, não tenho dúvida, mas eu estaria menos certo de
que algum deles o conheça. Steffon vê isso como uma chance
para a glória, mas significa a sua vida. Você deveria encontrar
seus próprios homens. Eu ajudarei. Melhor você ter campeões
demais do que de menos.” Um barulho feito do lado de fora fez
com que Raymun se virasse. “Quem vai aí?” ele indagou,
quando um menino passou curvado pela abertura, seguido por
um homem magro em uma capa preta encharcada de chuva.
“Egg?” Dunk ficou de pé. “O que você está fazendo
aqui?”
“Sou seu escudeiro,” disse o garoto. “Você precisará de
alguém para armá-lo, sor.”
“O senhor seu pai sabe que você deixou o castelo?”
“Pelos deuses, espero que não.” Daeron Targaryen abriu
o fecho de sua capa e deixou-a escorregar de seus ombros
magros.
“Você? Você está louco de vir aqui?” Dunk puxou sua
faca da bainha. “Eu devia enfiar isso na sua barriga.”
“Provavelmente,” Príncipe Daeron admitiu. “Embora eu

125
preferisse que você me servisse um copo de vinho. Olhe as
minhas mãos.” Ele estendeu uma e deixou que todos vissem
como tremia.
Dunk deu um passo na direção dele, encarando-o. “Eu
não me importo com as suas mãos. Você mentiu sobre mim.”
“Eu tinha que dizer alguma coisa quando meu pai exigiu
saber onde meu irmãozinho tinha se metido,” o príncipe
respondeu. Ele se sentou, ignorando Dunk e sua faca.
“Verdade seja dita, eu nem percebi que Egg tinha sumido. Ele
não estava no fundo do meu copo de vinho, e eu não tinha
procurado em nenhum outro lugar, então...” ele deu um
suspiro.
“Sor, meu pai vai juntar os sete acusadores,” Egg
interrompeu. “Eu implorei para que não o fizesse, mas ele não
ouve. Ele diz que é a única maneira de redimir a honra de
Aerion, e de Daeron.”
“Não que eu alguma vez tenha pedido que minha honra
fosse redimida,” disse o Príncipe Daeron amargamente.
“Quem quer que a tenha pode ficar com ela, no que me diz
respeito. Ainda assim, aqui estamos nós. Pelo que valha, Sor
Duncan, você tem pouco a temer de mim. A única coisa que eu

126
gosto menos do que cavalos são espadas. Coisas pesadas, e
terrivelmente afiadas. Eu farei o meu melhor para parecer
galante no primeiro ataque, mas depois disso... bem, talvez
você pudesse me dar uma boa pancada do lado do elmo. Faça-
o ressoar, mas não alto demais, se entende o que quero dizer.
Meus irmãos têm a minha medida quando o assunto é lutar,
dançar, pensar, e ler livros. Mas nenhum deles é metade do
que eu sou em deitar inconsciente na lama.”
Dunk podia apenas encará-lo, e se perguntar se o
príncipe estava tentando fazê-lo de bobo. “Porque veio?”
“Para avisá-lo do que o aguarda,” disse Daeron. “Meu pai
comandou que a Guarda Real lute com ele.”
“A Guarda Real?” disse Dunk, pasmo.
“Bem, os três que estão aqui. Graças aos deuses tio
Baelor deixou os outros quatro em Porto Real com nosso avô
real.”
Egg forneceu os nomes. “Sor Roland Crakehall, Sor
Donnel de Valdocaso, e Sor Willem Wylde.”
“Eles têm pouca escolha na questão,” disse Daeron. “Eles
juraram proteger as vidas do rei e da família real, e meus
irmãos e eu somos o sangue do dragão, que os deuses nos

127
ajudem.”
Dunk contou nos dedos. “Isso faz seis. Quem é o sétimo
homem?”
Príncipe Daeron deu de ombros. “Aerion encontrará
alguém. Se for preciso, comprará um campeão. Não lhe falta
ouro.”
“Quem você tem?” perguntou Egg.
“O primo de Raymun, Sor Steffon.”
Daeron fez uma careta. “Apenas um?”
“Sor Steffon foi até alguns de seus amigos.”
“Eu posso trazer pessoas,” disse Egg. “Cavaleiros. Eu
posso.”
“Egg,” disse Dunk, “Estarei lutando contra seus irmãos.”
“Você não vai machucar Daeron, no entanto,” disse o
menino. “Ele lhe disse que vai cair. E Aerion... eu lembro,
quando era pequeno, ele costumava ir até os meus aposentos à
noite e colocar sua faca no meio das minhas pernas. Ele tinha
irmãos demais, ele dizia, talvez uma noite fizesse de mim sua
irmã, então ele poderia casar comigo. Ele jogou meu gato no
poço também. Ele diz que não, mas ele sempre mente.”
Príncipe Daeron deu de ombros, cansado. “Egg diz a

128
verdade. Aerion é bem monstro. Ele acha que é um dragão em
forma humana, sabe. Por isso que ficou tão irado com a
apresentação das marionetes. Uma pena que ele não tenha
nascido um Fossoway, daí ele pensaria que era uma maçã e
todos nós estaríamos bem mais seguros, mas aí está.”
Curvando-se, ele recolheu a capa caída e sacudiu a chuva dela.
“Devo me esgueirar de volta para o castelo antes que meu pai
se pergunte por que estou demorando tanto para amolar
minha espada, mas antes que eu vá, gostaria de uma palavra
em particular, Sor Duncan. Caminharia comigo?”
Dunk olhou o príncipe desconfiadamente por um
momento. “Como quiser, Vossa Graça.” Ele embainhou sua
adaga. “Preciso pegar meu escudo também.”
“Egg e eu vamos procurar cavaleiros,” prometeu
Raymun.
Príncipe Daeron deu um nó em sua capa ao redor do
pescoço e puxou o capuz. Dunk seguiu-o para fora sob a chuva
fraca. Eles caminharam na direção dos vagões dos
mercadores.
“Eu sonhei com você,” disse o príncipe.
“Você disse isso na estalagem.”

129
“Disse? Bem, é verdade. Meus sonhos não são como os
seus, Sor Duncan. Os meus são verdade. Eles me assustam.
Você me assusta. Eu sonhei com você e um dragão morto, veja
bem. Uma grande fera, enorme, com asas tão grandes que
poderiam cobrir essa clareira. Ele tinha caído em cima de você,
mas você estava vivo e o dragão estava morto.”
“Eu o matei?”
“Isso eu não poderia dizer, mas você estava lá, e o dragão
também. Nós já fomos mestres dos dragões, nós Targaryens.
Agora todos eles se foram, mas nós permanecemos. Eu não
estou querendo morrer hoje. Só os deuses sabem por que, mas
eu não quero. Então me faça uma gentileza se puder, e
certifique-se de que seja o meu irmão Aerion que você mate.”
“Eu também não estou querendo morrer,” disse Dunk.
“Bem, não vou matá-lo, sor. Retirarei minha acusação,
também, mas não servirá de nada a menos que Aerion retire a
dele.” Ele deu um suspiro. “Pode ser que eu o tenha matado
com a minha mentira. Se matei, sinto muito. Estou condenado
a ir para algum inferno, eu sei. Provavelmente um sem vinho.”
Ele teve um arrepio, e com isso se separaram, ali na chuva fina
e fria.

130
Os mercadores tinham parado seus vagões na borda
oeste da clareira, sob uma cobertura de bétula e freixo. Dunk
ficou parado sob as árvores e olhou sem esperanças para o
lugar vazio onde o vagão dos marioneteiros havia estado. Se
foram. Ele temera que fosse assim. Eu fugiria também, se não
fosse grosso como a muralha de um castelo. Ele se perguntou
o que faria para conseguir um escudo agora. Ele tinha a prata
para comprar um, supunha, se pudesse encontrar um à venda.
“Sor Duncan,” uma voz chamou do escuro. Dunk se
virou para encontrar Ferreiro Pate de pé atrás de si, segurando
uma lanterna de ferro. Por baixo de uma capa de couro curta,
o armoreiro estava despido da cintura para cima, seu peito
largo e braços grossos cobertos com cabelo negro grosso. “Se
veio atrás do seu escudo, ela o deixou comigo.” Ele olhou Dunk
de cima a baixo. “Dois pés e duas mãos, eu conto. Então será
julgamento por combate, é?”
“Um julgamento de sete. Como sabia?”
“Bem, eles poderiam tê-lo beijado e feito de você um
lorde, mas não parecia provável, e se tivesse sido da outra
maneira, você estaria com algumas partes faltando. Agora me
siga.”

131
O vagão dele era fácil de distinguir pela espada e a
bigorna pintadas na lateral. Dunk seguiu Pate para dentro. O
armoreiro pendurou a lanterna em um gancho, sacudiu-se
para fora de sua capa molhada, e puxou uma túnica de tecido
grosseiro em sua cabeça. Uma tábua com dobradiças desceu
de uma parede para fazer uma mesa. “Sente-se,” disse ele,
empurrando um banco baixo na direção dele.
Dunk se sentou. “Para onde ela foi?”
“Eles vão para Dorne. O tio da garota, ali está um
homem sábio. Bem longe é bem esquecido. Fique e seja visto, e
é bem provável que o dragão se lembre. Além disso, ele não
achava que ela devesse ver você morrer.” Pate foi até o fim do
vagão, remexeu nas sombras por um tempo, e voltou com o
escudo. “A sua borda era aço velho barato, quebradiço e
enferrujado,” disse ele. “Fiz-lhe uma nova, duas vezes mais
grossa, e coloquei algumas faixas nas costas. Será mais pesado
agora, mas mais forte também. A garota fez a pintura.”
Ela tinha feito um trabalho melhor do que ele poderia ter
esperado. Mesmo à luz da lanterna, as cores do sol poente
eram ricas e brilhantes, a árvore alta e forte e nobre. A estrela
cadente era um rasgo brilhante de pintura através do céu de

132
carvalho. Porém agora que Dunk o tinha nas mãos, parecia
todo errado. A estrela estava caindo, que tipo de insígnia era
aquela? Ele cairia tão rápido quanto ela? E o pôr-do-sol
anuncia a noite. “Eu deveria ter ficado com o cálice,” disse ele
miseravelmente. “Tinha asas, pelo menos, para voar para
longe, e Sor Arlan disse que a taça estava cheia de fé e
camaradagem e coisas boas para beber. Este escudo está todo
pintado como a morte.”
“O olmo está vivo,” observou Pate. “Vê como as folhas
são verdes? Folhas de verão, com certeza. E eu já vi escudos
estampados com crânios e lobos e corvos, até mesmo homens
enforcados e cabeças ensangüentadas. Eles serviram bem o
suficiente, e esse também servirá. Você conhece a antiga rima
dos escudos? Carvalho e ferro, guardem-me com zelo...”
“Ou então eu morrerei, condenado a algum inferno,” terminou
Dunk. Ele não havia pensado naquela rima em anos. O velho a
havia ensinado a ele, há muito tempo atrás. “Quanto você quer
pela nova borda, e tudo o mais?” ele perguntou a Pate.
“De você?” Pate coçou a barba. “Um cobre.”

133
A chuva tinha praticamente parado quando a primeira
luz fraca difundia-se no céu leste, mas ela tinha feito seu
trabalho. Os homens do Senhor Ashford haviam removido as
barreiras, e o campo do torneio era um grande pântano de
lama cinza-marrom e grama torcida. Tendões de neblina
estavam se contorcendo ao longo do solo como pálidas
serpentes brancas quando Dunk fez seu caminho de volta na
direção das liças. Ferreiro Pate caminhou com ele.
O palanque já tinha começado a encher, os senhores e
senhoras apertando suas capas ao redor de si contra o frio
matutino. O povo estava se movendo na direção do campo
também, e centenas deles já estavam de pé ao longo da cerca.
Tantos vindos para me ver morrer, pensou Dunk
amargamente, mas ele estava errado em relação a eles. Mais
alguns passos à frente, uma mulher gritou, “Boa sorte para
você.” Um homem idoso deu um passo à frente para pegar sua
mão e disse, “Que os deuses lhe dêem força, sor.” Então um
irmão mendicante em uma veste marrom surrada proferiu
uma prece sobre sua espada, e uma donzela beijou seu rosto.
Eles estão do meu lado. “Por quê?” ele perguntou a Pate. “O
que eu sou para eles?”

134
“Um cavaleiro que se lembrou de seus votos,” disse o
ferreiro.
Eles encontraram Raymun do lado de fora do cercado
dos desafiadores no lado sul das liças, esperando com o cavalo
de seu primo e o de Dunk. Trovão se mexia irrequieto sob o
peso de enfeites, armadura na cabeça, e um manto de malha
pesada. Pate inspecionou a armadura e declarou o trabalho
bom, mesmo que outra pessoa a tivesse forjado. De onde quer
que a armadura tivesse vindo, Dunk estava grato.
Então ele viu os outros: o homem de um olho só com a
barba de duas cores, o jovem cavaleiro com o casaco listrado
de amarelo e preto com as colméias no escudo. Robyn
Rhysling e Humfrey Beesbury, ele pensou aturdido. E Sor
Humfrey Hardyng também. Hardyng estava montado no
cavalo vermelho de Aerion, agora ornado em seus diamantes
vermelho e brancos.
Ele foi até eles. “Sors, estou em dívida convosco.”
“A dívida é de Aerion,” respondeu Sor Humfrey
Hardyng, “e nós pretendemos cobrá-la.”
“Ouvi dizer que sua perna estava quebrada.”
“Ouviu a verdade,” disse Hardyng. “Não posso andar.

135
Mas enquanto puder sentar sobre um cavalo, posso lutar.”
Raymun puxou Dunk de lado. “Eu esperava que
Hardyng fosse querer outra chance com Aerion, e ele quis. Por
fim, o outro Humfrey é irmão dele por casamento. Egg é
responsável por Sor Robyn, a quem conhece de outros
torneios. Então vocês são cinco.”
“Seis,” disse Dunk maravilhado, apontando. Um
cavaleiro estava entrando no cercado, seu escudeiro guiando
seu cavalo atrás dele. “A Tempestade Sorridente.” Uma cabeça
mais alto que Sor Raymun e quase da mesma altura que Dunk,
Sor Lyonel vestia um casaco de tecido-de-ouro exibindo o
veado coroado de Baratheon, e carregava seu elmo com chifres
debaixo do braço. Dunk lhe estendeu a mão. “Sor Lyonel, não
posso lhe agradecer o suficiente por ter vindo, nem Sor Steffon
por tê-lo trazido.”
“Sor Steffon?” Sor Lyonel lhe deu um olhar confuso. “Foi
seu escudeiro que veio até mim. O menino, Aegon. Meu
próprio garoto tentou enxotá-lo, mas ele escorregou por entre
as pernas dele e virou um jarro de vinho na minha cabeça.” Ele
riu. “Não houve um julgamento de sete por mais de cem anos,
você sabia disso? Eu não perderia uma chance de lutar contra

136
os cavaleiros da Guarda Real, e torcer o nariz do Príncipe
Maekar no meio do caminho.”
“Seis,” disse Dunk esperançosamente a Raymun
Fossoway enquanto Sor Lyonel se juntava aos outros. “Seu
primo trará o último, com certeza.”
Um rugido subiu da multidão. No lado norte da clareira,
uma coluna de cavaleiros veio trotando das névoas do rio. Os
três da Guarda Real vinham primeiro, como fantasmas em
suas armaduras esmaltadas brancas reluzentes, longas capas
brancas esvoaçando atrás deles. Até mesmo os seus escudos
eram brancos, vazios e limpos como um campo de neve recém-
caída. Atrás cavalgava o Príncipe Maekar e seus filhos. Aerion
estava montado em um cavalo cinza malhado, laranja e
vermelho cintilando pelos cortes na vestimenta do cavalo a
cada passo. O cavalo de guerra de seu irmão era um baio
menor, armado em escamas sobrepostas pretas e douradas.
Uma pluma de seda verde fluía do elmo de Daeron. Foi o pai
deles que fez a aparição mais assustadora, entretanto. Dentes
de dragão negros e curvos cruzavam em seus ombros, ao longo
da crista de seu elmo, e descendo em suas costas, e a enorme
clava espinhada presa à sua sela era uma arma com aparência

137
tão letal quanto qualquer uma que Dunk já tivesse visto.
“Seis,” Raymun exclamou subitamente. “Eles são apenas
seis.”
Era verdade, Dunk viu. Três cavaleiros negros e três
brancos. Eles estão com um homem a menos também. Era
possível que Aerion não tivesse conseguido encontrar um
sétimo homem? O que isso significaria? Eles lutariam seis
contra seis se nenhum dos dois não encontrasse um sétimo?
Egg escorregou para o seu lado enquanto ele estava
tentando decifrar. “Sor, está na hora de colocar sua
armadura.”
“Obrigada, escudeiro. Se você fizer a gentileza?” Ferreiro
Pate deu uma mãozinha ao garoto. Cota de malha e gorjal,
grevas e manoplas, barrete e protetor na virilha, eles o
transformaram em aço, verificando cada fivela e cada fecho
três vezes. Sor Lyonel sentou-se amolando sua espada em uma
pedra de amolar enquanto os Humfreys conversavam em voz
baixa, Sor Robyn rezava, e Raymun Fossoway caminhava de
um lado para o outro, se perguntando onde seu primo teria
ido.
Dunk estava completamente armado à altura em que Sor

138
Steffon finalmente apareceu. “Raymun,” ele chamou, “minha
malha, por favor.” Ele havia mudado para um gibão reforçado
para vestir por baixo do seu aço.
“Sor Steffon,” disse Dunk, “e os seus amigos? Precisamos
de mais um cavaleiro para completar nossos sete.”
“Você precisa de dois, receio eu,” disse Sor Steffon.
Raymun amarrou a parte de trás da cota de malha.
“Meu senhor?” Dunk não entendia. “Dois?”
Sor Steffon pegou uma manopla de aço articulado fino e
escorregou sua mão para dentro dela, flexionando seus dedos.
“Eu vejo cinco aqui,” disse ele enquanto Raymun afivelava seu
cinto de espada. “Beesbury, Rhysling, Hardyng, Baratheon, e
você.”
“E você, disse Dunk. “Você é o sexto.”
“Eu sou o sétimo,” disse Sor Steffon, sorrindo, “mas para
o outro lado. Eu luto com Príncipe Aerion e os acusadores.”
Raymun estivera prestes a entregar a seu primo o elmo.
Ele parou como se tivesse sido atingido. “Não.”
“Sim.” Sor Steffon deu de ombros. “Sor Duncan entende,
tenho certeza. Eu tenho um dever para com o meu príncipe.”
“Você disse a ele para confiar em você.” Raymun tinha

139
ficado pálido.
“Disse?” Ele tirou o elmo das mãos de seu primo. “Sem
dúvida eu fui sincero na hora. Traga-me o meu cavalo.”
“Pegue você mesmo,” disse Raymun raivosamente. “Se
você acha que eu quero tomar parte nisso, você é tão burro
quanto é vil.”
“Vil?” Sor Steffon fez um ruído de desdém. “Guarde sua
língua, Raymun. Nós dois somos maçãs da mesma árvore. E
você é meu escudeiro. Ou esqueceu seus votos?”
“Não. Você esqueceu os seus? Jurou ser um cavaleiro.”
“Eu serei mais do que um cavaleiro antes do fim desse
dia. Lorde Fossoway. Eu gosto do som disso.” Sorrindo, ele
colocou sua outra manopla, virou-se, e cruzou o cercado até o
seu cavalo. Embora os outros defensores o encarassem com
olhos reprovadores, ninguém fez um movimento para detê-lo.
Dunk assistiu Sor Steffon guiar seu cavalo de batalha de
volta para o outro lado do campo. Suas mãos se fecharam em
punhos, mas sentia a garganta seca demais para falar.
Nenhuma palavra iria comover alguém como ele de qualquer
forma.
“Ordene-me.” Raymun colocou uma mão no ombro de

140
Dunk e virou-o. “Eu tomo o lugar do meu primo. Sor Duncan,
ordene-me.” Ele ficou sobre um joelho.
Franzindo o cenho, Dunk moveu uma mão para o punho
de sua espada, então hesitou. “Raymun, eu... eu não deveria.”
“Você precisa. Sem mim, você tem apenas cinco.”
“O garoto está certo,” disse Sor Lyonel Baratheon. “Faça-
o, Sor Duncan. Qualquer cavaleiro pode fazer um cavaleiro.”
“Você duvida de minha coragem?” perguntou Raymun.
“Não,” disse Dunk. “Não é isso, mas...” ainda assim ele
hesitava.
Uma fanfarra de trompetes cortou o ar nevoento da
manhã. Egg veio correndo até eles. “Sor, Lorde Ashford o
chama.”
A Tempestade Sorridente deu uma sacudida impaciente
na cabeça. “Vá até ele, Sor Duncan. Eu darei ao escudeiro
Raymun sua ordenação.” Ele escorregou a espada para fora da
bainha e afastou Dunk para o lado com o ombro. “Raymun da
Casa Fossoway,” ele começou solenemente, tocando a lâmina
no ombro direito do escudeiro, “em nome do Guerreiro eu lhe
dou a responsabilidade de ser bravo.” A espada moveu de seu
ombro direito para o esquerdo. “Em nome do Pai eu lhe dou a

141
responsabilidade de ser justo.” De volta ao direito. “Em nome
da Mãe eu lhe dou a responsabilidade de defender os jovens e
inocentes.” O esquerdo. “Em nome da Donzela eu lhe dou a
responsabilidade de proteger todas as mulheres.”
Dunk os deixou ali, sentindo-se tão aliviado quanto
culpado. Ainda estamos com um a menos, pensou enquanto
Egg segurava Trovão para ele. Onde encontrarei outro
homem? Ele virou o cavalo e cavalgou vagarosamente na
direção do palanque, onde Lorde Ashford aguardava. Do lado
norte das liças, Príncipe Aerion avançou para encontrá-lo. “Sor
Duncan,” disse ele alegremente, “parece-me que você tem
apenas cinco campeões.”
“Seis,” disse Dunk. “Sor Lyonel está ordenando Raymun
Fossoway. Lutaremos com você seis contra sete.”
Homens já tinham vencido com números piores, ele
sabia. Mas Lorde Ashford sacudiu a cabeça. “Isso não é
permitido, sor. Se não conseguir encontrar outro cavaleiro
para tomar o seu lado, você deve ser declarado culpado dos
crimes dos quais é acusado.”
Culpado, pensou Dunk. Culpado de amolecer um dente,
e por isso devo morrer. “Meu senhor, imploro um momento.”

142
“Você o tem.”
Dunk cavalgou devagar ao longo da cerca. O palanque
estava apinhado de cavaleiros. “Meus senhores,” ele os
chamou, “nenhum de vocês lembra-se de Sor Arlan de
Pennytree? Eu fui escudeiro dele. Nós servimos muitos de
vocês. Comemos às suas mesas e dormimos em seus salões.”
Ele viu Manfred Dondarrion sentado na bancada mais alta.
“Sor Arlan foi ferido a serviço de seu pai.” O cavaleiro disse
algo à senhora ao seu lado, sem dar atenção alguma. Dunk foi
forçado a seguir em frente. “Lorde Lannister, Sor Arlan o
derrubou do cavalo uma vez em um torneio.” O Leão Cinza
examinou suas mãos enluvadas, estudiosamente recusando-se
a levantar os olhos. “Ele era um bom homem, e me ensinou a
ser um cavaleiro. Não apenas a espada e a lança, mas honra.
Um cavaleiro defende os inocentes, disse ele. Isso é tudo que
eu fiz. Preciso de mais um cavaleiro para lutar ao meu lado.
Um, isso é tudo. Lorde Caron? Lorde Swann?” Lorde Swann
riu suavemente enquanto Lorde Caron sussurrava em seu
ouvido.
Dunk puxou as rédeas na frente de Sor Otho Bracken,
baixando a voz. “Sor Otho, todos o conhecem como um grande

143
campeão. Junte-se a nós, eu o imploro. Em nomes dos deuses
antigos e novos. Minha causa é justa.”
“Isso pode até ser,” disse o Bruto de Bracken, que teve ao
menos a graça de responder, “mas é a sua causa, não minha.
Eu não o conheço, garoto.”
Com o coração doente, Dunk girou Trovão e galopou
para frente e para trás diante das bancadas de homens pálidos
e frios. O desespero o fez gritar. “NÃO EXISTEM
CAVALEIROS DE VERDADE ENTRE VOCÊS?”
Apenas o silêncio respondeu.
Do outro lado do campo, Príncipe Aerion riu. “Não se
zomba do dragão,” ele gritou.
Então veio uma voz. “Eu tomarei o lado de Sor Duncan.”
Um garanhão negro emergiu das névoas do rio, um
cavaleiro negro em suas costas. Dunk viu o escudo de dragão, e
a crista esmaltada vermelha em cima de seu elmo com suas
três cabeças rugintes. O Jovem Príncipe. Abençoados sejam os
deuses, é ele mesmo?
Lorde Ashford cometeu o mesmo erro. “Príncipe
Valarr?”
“Não.” O cavaleiro negro levantou o visor de seu elmo.

144
“Eu não pensava em entrar nas liças em Ashford, meu senhor,
então não trouxe armadura alguma. Meu filho foi bom o
suficiente para me emprestar a dele.” Príncipe Baelor sorriu
quase tristemente.
Os acusadores caíram em confusão, Dunk podia ver.
Príncipe Maekar esporeou sua montaria para frente. “Irmão,
você perdeu o juízo?” Ele apontou um dedo vestido de malha
para Dunk. “Esse homem atacou meu filho.”
“Esse homem protegeu os fracos, como todo cavaleiro de
verdade deve fazer,” respondeu Príncipe Baelor. “Deixe que os
deuses determinem se ele estava certo ou errado.” Ele deu um
puxão em suas rédeas, virou o enorme cavalo de batalha de
Valarr, e trotou para o lado sul do campo.
Dunk trouxe Trovão para o lado dele, e os outros
defensores de reuniram ao redor deles; Robyn Rhysling e Sor
Lyonel, os Humfreys. Bons homens todos eles, mas são bons o
suficiente? “Onde está Raymun?”
“Sor Raymun, por favor.” Ele se aproximou, um sorriso
severo iluminando seu rosto debaixo do elmo emplumado.
“Meus perdões, sor. Eu precisei fazer uma pequena mudança
na minha insígnia, ou então seria confundido com meu primo

145
desonrado.” Ele mostrou a todos eles seu escudo. O campo
dourado polido continuava o mesmo, e a maçã Fossoway, mas
sua maçã era verde ao invés de vermelha. “Temo que eu ainda
não esteja maduro... mas melhor verde do que bichado, hein?”
Sor Lyonel riu, e Dunk deu um sorriso largo a despeito
de si mesmo. Até Príncipe Baelor pareceu aprovar.
O septão de Lorde Ashford tinha vindo para a frente do
palanque e levantado seu cristal para chamar a massa às
preces.
“Ouçam-me, todos vocês,” disse Baelor em voz baixa.
“Os acusadores estarão armados com lanças de guerra pesadas
para o primeiro ataque. Lanças de freixo, de dois metros e
meio, amarradas com faixas para evitar a quebra e com uma
ponta de aço afiada o suficiente para entrar na placa de peito
com a força de um cavalo de guerra atrás dela.”
“Devemos usar o mesmo,” disse Sor Humfrey Beesbury.
Atrás dele, o septão estava clamando aos Sete que olhassem
para baixo e julgassem essa disputa, e concedessem a vitória
aos homens cuja causa fosse justa.
“Não,” disse Baelor. “Ao invés disso nos armaremos com
lanças de torneio.”

146
“Lanças de torneio são feitas para quebrar,” interpôs
Raymun.
“Elas também são feitas com três metros e meio de
comprimento. Se nossas pontas atingirem o alvo, as deles não
poderão nos tocar. Mirem no elmo e no peito. Em um torneio é
algo galante quebrar sua lança contra o escudo de um
oponente, mas aqui isso pode muito bem significar a morte. Se
pudermos derrubá-los dos cavalos e nos mantermos em
nossas próprias selas, a vantagem é nossa.” Ele direcionou o
olhar para Dunk. “Se Sor Duncan for morto, é considerado que
os deuses o julgaram culpado, e a disputa acaba. Se ambos
seus acusadores forem mortos, ou retirarem suas acusações, o
mesmo é verdade. Se outra coisa acontecer, todos sete de um
lado ou de outro devem perecer ou se render para que o
julgamento acabe.”
“Príncipe Daeron não lutará,” disse Dunk.
“Não lutará bem, de qualquer maneira,” riu Sor Lyonel.
“Contra isso, temos que lidar com três das Espadas Brancas.”
Baelor recebeu aquilo com calma. “Meu irmão errou
quando exigiu que a Guarda Real lutasse por seu filho. Seu
juramento os proíbe de machucar um príncipe do sangue.

147
Felizmente, eu sou um.” Ele deu a eles um sorriso vago.
“Mantenham os outros longe de mim por tempo suficiente, e
eu lido com a Guarda Real.”
“Meu príncipe, isso é cavalheiresco?” Perguntou Sor
Lyonel Baratheon quando o septão estava terminando sua
invocação.
“Os deuses nos farão saber,” disse Baelor Quebra-
Lanças.
Um silêncio de expectativa tinha caído sobre a Clareira
Ashford.
A oito jardas dali, o garanhão cinza de Aerion relinchou
de impaciência e coiceou o chão lamacento. Trovão estava
muito parado em comparação; ele era um cavalo mais velho,
veterano de meia centena de lutas, e sabia o que era esperado
dele. Egg entregou a Dunk seu escudo. “Que os deuses estejam
com você, sor,” disse o menino.
A imagem de seu olmo e estrela cadente o encorajou.
Dunk escorregou o braço esquerdo pela alça e apertou seus
dedos ao redor do punho. Carvalho e ferro, guardem-me com
zelo, ou então eu morrerei, condenado a algum inferno.
Ferreiro Pate a lança para ele, mas Egg insistiu que ele deveria

148
colocá-la na mão de Dunk.
Em ambos os lados, seus companheiros pegaram suas
próprias lanças e se espalharam em uma longa fila. Príncipe
Baelor estava à sua direita e Sor Lyonel à sua esquerda, mas a
estreita fenda de visão do grande elmo limitava a visão de
Dunk ao que estava diretamente à frente dele. O palanque se
fora, e o mesmo acontecera com o povo que enchia a cerca;
havia apenas o campo lamacento, a pálida névoa soprando, o
rio, a vila, e o castelo ao norte, e o príncipe em seu cavalo cinza
com chamas em seu elmo e um dragão em seu escudo. Dunk
observou o escudeiro de Aerion entregar a ele uma lança de
guerra, com dois metros e meio de comprimento e negra como
a noite. Ele vai atravessar meu coração com ela se puder.
Uma trombeta soou.
Por um instante Dunk se sentou parado como uma
mosca no âmbar, apesar de todos os cavalos estarem se
movendo. Uma sensação súbita de pânico o atravessou. Eu
esqueci, ele pensou loucamente, eu esqueci tudo, eu vou me
envergonhar e perder tudo.
Trovão o salvou. O grande garanhão marrom sabia o que
fazer, mesmo que seu cavaleiro não soubesse. Ele entrou em

149
um trote lento. Então o treinamento de Dunk assumiu o
controle. Ele deu um leve toque de espora no cavalo de guerra
e apontou sua lança. Ao mesmo tempo girou o escudo até que
ele cobria a maior parte do lado esquerdo de seu corpo. Ele o
segurou em um ângulo, para desviar os ataques para longe de
si. Carvalho e ferro guardem-me com zelo, ou então eu
morrerei, condenado a algum inferno.
O barulho da multidão era não mais que o quebrar de
ondas distantes. Trovão entrou em um galope. Os dentes de
Dunk se chocavam com a violência do ritmo. Ele apertou seus
calcanhares para baixo, apertando as pernas com toda a força
e deixando seu corpo tornar-se parte do movimento do cavalo.
Eu sou Trovão e Trovão sou eu, nós somos uma só fera,
estamos unidos, somos um só. O ar dentro do seu elmo era tão
quente que ele mal podia respirar.
Em uma justa de torneio, seu inimigo estaria à esquerda
do outro lado da barreira de disputa, e ele precisaria virar a
lança para o outro lado do pescoço de Trovão. O ângulo
tornaria mais provável que a madeira quebrasse com o
impacto. Mas esse jogo que eles jogavam hoje era mais letal.
Sem nenhuma barreira para dividi-los, os cavalos de batalha

150
atacaram direto um no outro. O preto enorme do Príncipe
Baelor era muito mais veloz que Trovão, e Dunk o viu
pressionando, mais à frente pelo canto de sua fenda de visão.
Ele sentia mais do que via os outros. Eles não importam,
apenas Aerion importa, apenas ele.
Ele viu o dragão vindo. Respingos de lama espirravam de
trás dos cascos do cinza de Príncipe Aerion, e Dunk podia ver
as narinas do cavalo dilatando. A lança negra ainda angulava
para cima. Um cavaleiro que segura sua lança para cima e
traz para a linha no último momento sempre arrisca abaixá-
la demais, o velho havia dito a ele. Ele trouxe sua própria
ponta para mirar no centro do peito do príncipe. Minha lança
é parte do meu braço, ele disse a si mesmo. É meu dedo, um
dedo de madeira. Tudo que preciso fazer é tocá-lo com meu
longo dedo de madeira.
Ele tentou não ver a afiada ponta de ferro no fim da
lança negra de Aerion, crescendo a cada passo. O dragão, olhe
para o dragão, pensou ele. A grande fera de três cabeças
cobria o escudo do príncipe, asas vermelhas e fogo dourado.
Não, olhe apenas para onde pretende atingir, ele lembrou
subitamente, mas sua lança já tinha começado a escorregar da

151
mira. Dunk tentou corrigir, mas era tarde demais. Ele viu sua
ponta bater no escudo de Aerion, atingindo o dragão entre
duas de suas cabeças, abrindo um buraco em uma chuva de
chamas pintadas. Com o baque surdo, ele sentiu Trovão recuar
embaixo de si, tremendo com a força do impacto, e meio
instante depois algo se esmagou do seu lado com uma força
terrível. Os cavalos se chocaram violentamente, as armaduras
ressoando e rangendo enquanto Trovão oscilava e a lança de
Dunk caía de sua mão. Então ele tinha passado de seu inimigo,
agarrando-se à sela em um esforço desesperado para manter
seu assento. Trovão se lançou para os lados na lama imunda e
Dunk sentiu as patas traseiras escorregarem de baixo dele.
Eles estavam escorregando, rodopiando, e então os quartos do
garanhão bateram no chão com força. “Para cima!” Dunk
rugiu, batendo violentamente com as esporas. “Para cima,
Trovão!” e de algum jeito o velho cavalo de guerra encontrou
seus pés novamente.
Ele podia sentir uma dor aguda embaixo da costela, e
seu braço esquerdo estava sendo puxado para baixo. Aerion
tinha enfiado sua lança através de carvalho, lã e aço; noventa
centímetros de freixo estilhaçado e ferro afiado espetados em

152
seu lado. Dunk esticou a mão direita, agarrou a lança logo
abaixo da cabeça, cerrou os dentes, e a arrancou de dentro de
si com um puxão selvagem. O sangue veio, encharcando os
anéis da sua malha para avermelhar seu casaco. O mundo
girou e ele quase caiu. Vagamente, em meio à dor, ele podia
ouvir vozes chamando seu nome. Seu belo escudo estava
inutilizado agora. Ele o jogou para o lado, elmo, estrela
cadente, lança quebrada e tudo, e desembainhou a espada,
mas doía tanto que ele não pensava que conseguisse
empunhá-la.
Virando Trovão em um pequeno círculo, ele tentou
entender o que estava acontecendo em outros lugares no
campo. Sor Humfrey Hardyng se segurava ao pescoço de sua
montaria, obviamente ferido. O outro Sor Humfrey jazia
imóvel em um lago de lama ensangüentada, uma lança
quebrada se projetando de sua virilha. Ele viu Príncipe Baelor
passar galopando por ele, com a lança ainda intacta, e jogando
um dos Guardas Reais de sua sela. Outro dos cavaleiros
brancos já estava no chão, e Maekar tinha sido derrubado do
cavalo também. O terceiro da Guarda Real estava afastando
Sor Robyn Rhysling.

153
Aerion, onde está Aerion? O som de cascos batendo
atrás de si fez com que Dunk virasse a cabeça abruptamente.
Trovão guinchou e se empinou, os cascos se debatendo
futilmente enquanto o cinza de Aerion se jogou contra ele a
todo galope.
Dessa vez não havia esperança de recuperação. Sua
espada longa saiu rodopiando de sua mão, e o chão subiu para
encontrá-lo. Ele aterrissou com um impacto violento que o
sacudiu até os ossos. A dor o atravessou, tão aguda que ele
soluçou. Por um momento tudo que ele podia fazer era ficar
deitado ali. O gosto do sangue encheu sua boca. Dunk o burro,
achou que podia ser um cavaleiro. Ele sabia que tinha que
encontrar seus pés de novo, ou morreria. Gemendo, se forçou
a ficar de quatro. Ele não conseguia respirar, nem ver. A fenda
de visão do seu elmo estava cheia de lama. Cambaleando
cegamente para os pés, Dunk afastou a lama com um dedo
coberto de malha. Ali, aquilo...
Através de seus dedos, viu um dragão voando, e uma
clava espinhada girando na ponta de uma corrente. Então sua
cabeça pareceu explodir em pedaços.
Quando seus olhos abriram, ele estava no chão de novo,

154
estirado de costas. A lama tinha saído do elmo, mas agora um
olho estava fechado por sangue. Acima não tinha nada além do
céu cinza escuro. Seu rosto latejava, e ele podia sentir o metal
frio e úmido pressionando contra sua bochecha e têmpora. Ele
quebrou minha cabeça, e eu estou morrendo. O pior era que
os outros morreriam com ele, Raymun e Príncipe Baelor e o
resto. Eu falhei com eles. Não sou campeão algum. Não sou
nem um cavaleiro de cerca. Não sou nada. Ele se lembrou do
Príncipe Daeron gabando-se que ninguém conseguia ficar
jogado inconsciente na lama tão bem quanto ele. Ele nunca
tinha visto Dunk o burro¸tinha? A vergonha era pior que a
dor.
O dragão apareceu acima dele.
Três cabeças ele tinha, e asas brilhantes com chamas,
vermelho e amarelo e laranja. Ele estava rindo. “Já está morto,
cavaleiro de cerca?” Perguntou ele. “Implore por misericórdia
e admita sua culpa, e talvez eu reclame apenas uma mão e um
pé. Ah, e aqueles dentes, mas o que são alguns dentes? Um
homem como você pode viver anos com mingau de ervilha.” O
dragão riu de novo. “Não? Coma isso, então.” A bola de
espinhos girou e girou no céu, e caiu na direção de sua cabeça

155
tão rápido quanto uma estrela cadente.
Dunk rolou.
Onde encontrou força ele não sabia, mas encontrou. Ele
rolou sobre as pernas de Aerion, jogou um braço vestido de
aço ao redor de sua coxa, o arrastou xingando na lama, e rolou
para cima dele. Deixe-o girar sua maldita clava espinhada
agora. O príncipe tentou forçar a borda de seu escudo na
cabeça de Dunk, mas seu elmo amassado amorteceu a maior
parte do impacto. Aerion era forte, mas Dunk era mais forte, e
maior e mais pesado também. Ele agarrou o escudo com
ambas as mãos e torceu até as faixas arrebentarem. Então o
trouxe para baixo sobre o elmo do príncipe, de novo e de novo
e de novo, esmagando as chamas esmaltadas de sua crista. O
escudo era mais grosso do que o de Dunk, carvalho sólido
reforçado com ferro.
Uma chama quebrou. E depois outra. O príncipe ficou
sem chamas bem antes de Dunk ficar sem golpes.
Aerion finalmente largou o punho de sua clava inútil e
tateou pelo punhal em seu quadril. Ele conseguiu soltá-lo de
sua bainha, mas quando Dunk esmurrou a mão dele com o
escudo a faca voou para a lama.

156
Ele podia acabar com Sor Duncan o Alto, mas não com
Dunk da Baixada das Pulgas. O velho havia ensinado-o a justa
e a luta com espadas, mas esse tipo de luta ele tinha aprendido
mais cedo, nas ruelas escuras e becos enviesados atrás das
tabernas de vinho da cidade. Dunk jogou o escudo amassado
para longe e puxou para cima o visor do elmo de Aerion.
O visor é um ponto de fraqueza, ele se lembrou de
Ferreiro Pate dizendo. O príncipe tinha parado completamente
de relutar. Seus olhos eram roxos e cheios de terror. Dunk teve
uma súbita vontade de agarrar um e espremê-lo como uma
uva entre dois dedos de ferro, mas aquilo não seria
cavalheiresco. “RENDA-SE!” ele gritou.
“Eu me rendo,” sussurrou o dragão, os lábios pálidos
malmente movendo. Dunk piscou olhando para ele. Por um
momento não podia acreditar no que seus ouvidos tinham
ouvido. Está feito, então? Ele virou cabeça devagar de um lado
para o outro, tentando enxergar. Sua fenda de visão estava
parcialmente fechada pelo baque que havia machucado o lado
esquerdo de seu rosto. Ele viu de relance o Príncipe Maekar,
com a maça na mão, tentando lutar para chegar até seu filho.
Baelor Quebra-Lanças o segurava.

157
Dunk pulou de pé e puxou o Príncipe Aerion atrás de si.
Se atrapalhando com as amarras de seu elmo, ele as rasgou e
jogou-o longe. Imediatamente ele foi afogado em imagens e
sons; grunhidos e xingamentos, os gritos da multidão, um
garanhão gritando enquanto outro corria sem cavaleiro para o
outro lado do campo. Em todo lugar o aço cantava sobre o aço.
Raymun e seu primo estavam atacando um ao outro na frente
do palanque, ambos a pé. Seus escudos eram ruínas
despedaçadas, a maçã verde e a vermelha ambas desfeitas em
gravetos. Um dos cavaleiros da Guarda Real estava carregando
um irmão ferido para fora do campo. Os dois eram parecidos
em suas armaduras e capas brancas. O terceiro dos cavaleiros
brancos estava no chão, e a Tempestade Sorridente tinha se
juntado ao Príncipe Baelor contra o Príncipe Maekar. Maça,
machado de batalha, e espada longa ressoaram e se chocaram,
rangendo contra elmo e escudo. Maekar estava sofrendo três
golpes para cada um que dava, e Dunk podia ver que aquilo
acabaria logo. Devo dar um fim nisso antes que mais de nós
sejam mortos.
Príncipe Aerion fez um movimento rápido na direção de
sua clava. Dunk chutou-o nas costas e o jogou de cara no chão,

158
então agarrou uma de suas pernas e o arrastou para o outro
lado do campo. Quando chegou até o palanque onde o Lorde
Ashford se sentava, o Príncipe Brilhante estava marrom como
uma latrina. Dunk puxou-o de pé e o chacoalhou, sacudindo
um pouco da lama no Senhor Ashford e na bela donzela. “Diga
a ele!”
Aerion Chamaviva cuspiu uma boca cheia de grama e
sujeira. “Eu retiro minha acusação.”
Depois Dunk não poderia ter dito se saiu andando do
campo por si mesmo ou se tinha precisado de ajuda. Ele sentia
dor em todos os lugares, em alguns mais do que outros. Sou
um cavaleiro de verdade agora? Ele lembrou de ter se
perguntado. Sou um campeão?
Egg o ajudou a remover suas grevas e gorjal, e Raymun
também, e até mesmo Ferreiro Pate. Ele estava zonzo demais
para distingui-los. Eles eram dedos e polegares e vozes. Pate
era o que estava reclamando, Dunk sabia. “Olhe o que ele fez
com a minha armadura,” disse ele. “Toda dentada e batida e
arranhada. Sim, eu lhe pergunto, porque eu me preocupo?
Terei que cortar essa malha dele, eu acho.”
“Raymun,” disse Dunk urgentemente, agarrando as

159
mãos de seu amigo. “Os outros. Como se saíram?” Ele tinha
que saber. “Alguém morreu?”
“Beesbury,” disse Raymun. “Morto por Donnel de
Valdocaso no primeiro ataque. Sor Humfrey também está
gravemente ferido. O resto de nós está com hematomas e
ensangüentado, não mais. Exceto você.”
“E os outros? Os acusadores?”
“Sor Willem Wylde da Guarda Real foi carregado para
fora do campo inconsciente, e eu acho que quebrei algumas
das costelas de meu primo. Pelo menos assim espero.”
“E o Príncipe Daeron? Ele sobreviveu?”
“Uma vez quer Sor Robyn o derrubou do cavalo, ele ficou
onde caiu. Pode ter quebrado um pé. Seu próprio cavalo o
pisoteou enquanto estava correndo solto pelo campo.”
Zonzo e confuso como estava, Dunk sentiu uma enorme
sensação de alívio. “O sonho dele estava errado, então. O
dragão morto. A menos que Aerion tenha morrido. Mas não
morreu, não é?”
“Não,” disse Egg. “Você o poupou. Não se lembra?”
“Suponho que sim.” Suas lembranças do combate já
estavam ficando confusas e vagas. “Em um momento me sinto

160
bêbado. No momento seguinte dói tanto que eu sei que estou
morrendo.”
Eles o fizeram deitar-se de costas e falaram acima dele
enquanto ele olhava em cima o revolto céu cinza. Parecia a
Dunk que ainda era manhã. Ele se perguntou quanto tempo a
luta tinha durado.
“Pelos deuses, a ponta da lança levou os anéis fundo na
carne dele,” ele ouviu Raymun dizendo. “Vai gangrenar a
menos que...”
“Deixem-no bêbado e ponham um pouco de óleo
fervendo no ferimento,” alguém sugeriu. “É assim que os
meistres fazem.”
“Vinho.” A voz tinha um tom metálico e vazio. “Óleo não,
isso o mataria, é vinho fervendo. Eu mandarei Meistre
Yormwell dar uma olhada nele quando terminar de cuidar de
meu irmão.”
Um cavaleiro alto estava de pé acima dele, em uma
armadura negra dentada e danificada por muitos golpes.
Príncipe Baelor. O dragão vermelho em seu elmo tinha
perdido uma cabeça, ambas as asas, e a maior parte da cauda.
“Vossa Graça,” disse Dunk, “Eu sou seu homem. Por favor. Seu

161
homem.”
“Meu homem.” O cavaleiro negro colocou uma mão no
ombro de Raymun para se estabilizar. “Eu preciso de bons
homens, Sor Duncan. O reino...” Sua voz pareceu
estranhamente arrastada. Talvez ele tivesse mordido a língua.
Dunk estava muito cansado. Era difícil permanecer
acordado. “Seu homem.” Ele murmurou uma vez mais.
O príncipe moveu a cabeça lentamente de um lado para
o outro. “Sor Raymun... meu elmo, se puder fazer essa
gentileza. O visor...o visor está quebrado, e meus dedos...dedos
parecem madeira.”
“Imediatamente, Vossa Graça.” Raymun pegou o elmo
do príncipe e grunhiu. “Meu bom Pate, uma mãozinha.”
Ferreiro Pate arrastou para perto um pequeno banco.
“Está esmagado para baixo atrás, Vossa Graça, perto do lado
esquerdo. Esmagado em cima do gorjal. Este é um aço bom,
para deter um golpe assim.”
“Maça do irmão, mais provável,” disse Baelor com a voz
enrolada. “Ele é forte.” Ele fez uma careta de dor. “Isso... é
estranho, eu...”
“Aqui vem ele.” Pate levantou o elmo danificado. “Bons

162
sejam os deuses. Oh deuses, oh deuses, oh deuses
preservem...”
Dunk viu algo vermelho e molhado cair de dentro do
elmo. Alguém estava gritando, alto e terrível. Contra o céu
cinza vazio oscilou um alto príncipe em armadura negra com
apenas metade de um crânio. Ele podia ver sangue vermelho e
osso pálido por baixo e alguma outra coisa, algo cinza-azulado
e mole. Uma expressão estranha e perturbada passou pelo
rosto de Baelor Quebra-Lanças, como uma nuvem passando
diante de um sol. Ele levantou a mão e tocou na parte de trás
da cabeça com dois dedos, tão levemente. E então ele caiu.
Dunk o segurou. “Para cima,” eles dizem que ele falou,
do mesmo jeito que tinha feito com Trovão no corpo a corpo,
“para cima, para cima.” Mas ele nunca se lembrou disso
depois, e o príncipe não se levantou.

Baelor da Casa Targaryen, Príncipe de Pedra do Dragão,


Mão do Rei, Protetor do Reino, e herdeiro aparente ao Trono

163
de Ferro dos Sete Reinos de Westeros, foi para o fogo no pátio
do Castelo Ashford no banco norte do Rio Cockleswent. Outras
grandes casas podem escolher enterrar seus mortos na terra
escura ou afundá-los no frio mar verde, mas os Targaryens
eram o sangue do dragão, e seus fins eram escritos com
chamas.
Ele tinha sido o melhor cavaleiro da sua idade, e alguns
argumentaram que ele deveria ter ido enfrentar a escuridão
vestido em malha e aço, com uma espada nas mãos. No fim,
entretanto, os desejos de seu pai real prevaleceram, e Daeron
II tinha uma natureza pacífica. Quando Dunk passou
arrastando os pés pelo esquife de Baelor, o príncipe vestia uma
túnica de veludo negro com o dragão de três cabeças bordado
em fio escarlate no seu peito. Ao redor de sua garganta estava
uma pesada corrente de ouro. Sua espada estava embainhada
ao seu lado, mas ele usou um elmo, um fino elmo dourado com
visor aberto para que os homens pudessem ver seu rosto.
Valarr, o Jovem Príncipe, manteve vigília ao pé do
esquife enquanto seu pai jazia exposto. Ele era uma versão
mais baixa, mais esguia, mais bonita de seu genitor, sem o
nariz quebrado duas vezes que tinha feito Baelor parecer mais

164
humano que régio. O cabelo de Valarr era castanho, mas uma
brilhante mecha de ouro-prateado corria por ele. A visão dela
lembrou Dunk de Aerion, mas ele sabia que isso não era justo.
O cabelo de Egg estava crescendo de novo tão brilhante quanto
o de seu irmão, e Egg era um garoto bastante decente, para um
príncipe.
Quando parou para oferecer desajeitadas simpatias, bem
misturadas com agradecimentos, Príncipe Valarr piscou olhos
azuis frios para ele e disse, “Meu pai tinha apenas trinta e nove
anos. Ele tinha em si tudo para ser um grande rei, o maior
desde Aegon o Dragão. Porque os deuses o levariam e
deixariam você?” Ele sacudiu a cabeça. “Saia daqui, Sor
Duncan. Saia daqui.”
Sem dizer uma palavra, Dunk saiu mancando do castelo,
até o acampamento perto da piscina verde. Ele não tinha
resposta alguma para Valarr. Nem para as perguntas que fazia
a si mesmo. O meistres e o vinho fervido tinham feito seu
trabalho, e seu ferimento estava curando limpo, porém teria
uma cicatriz profunda e repuxada entre seu braço esquerdo e o
mamilo. Ele não podia ver o ferimento sem pensar em Baelor.
Ele me salvou uma vez com sua espada, e uma vez com uma

165
palavra, mesmo que fosse um homem morto enquanto estava
lá de pé. O mundo não fazia sentido algum quando um grande
príncipe morria para que um cavaleiro de cerca pudesse viver.
Dunk se sentou embaixo de seu olmo e encarou morosamente
os seus pés.
Quando quatro guardas com o uniforme real apareceram
tarde em seu acampamento um dia, ele tinha certeza que eles
tinham vindo matá-lo afinal. Fraco e cansado demais para
esticar a mão e pegar uma espada, ele ficou sentado com as
costas para o olmo, esperando.
“Nosso príncipe implora o favor de uma palavra em
particular.”
“Qual príncipe?” perguntou Dunk, cauteloso.
“Esse príncipe,” disse uma voz brusca antes que o
capitão pudesse responder. Maekar Targaryen saiu de trás do
olmo.
Dunk ficou de pé lentamente. O que ele quer comigo
agora?
Maekar fez um movimento, e os guardas evaporaram tão
subitamente quanto tinham aparecido. O príncipe o estudou
por um longo momento, então se virou e caminhou para longe

166
dele para ficar ao lado da piscina, olhando para o seu próprio
reflexo na água. “Eu mandei Aerion para Lys,” ele anunciou
abruptamente. “Alguns anos nas Cidades Livres podem mudá-
lo para melhor.”
Dunk nunca havia estado nas Cidades Livres, então ele
não sabia o que dizer sobre aquilo. Estava satisfeito que Aerion
tivesse ido embora dos Sete Reinos, e esperava que ele nunca
voltasse, mas isso não era algo que você diria a um pai a
respeito do filho dele. Ele se manteve em silêncio.
Príncipe Maekar virou para encará-lo. “Alguns homens
dirão que eu matei meu irmão. Os deuses sabem que isso é
uma mentira, mas vou ouvir os sussurros até o dia em que eu
morrer. E foi a minha maça que desferiu o golpe fatal, não
tenho dúvida. Os únicos outros inimigos que ele enfrentou no
corpo a corpo foram os três da Guarda Real, cujos votos os
proibia de fazer algo mais do que se defender. Então fui eu. É
estranho dizer, mas eu não me lembro do golpe que quebrou o
crânio dele. Isso é misericórdia ou maldição? Um pouco dos
dois, acho eu.”
Pela maneira com que olhou para Dunk, parecia que o
príncipe queria uma resposta. “Eu não saberia dizer, Vossa

167
Graça.” Talvez ele devesse odiar Maekar, mas ao invés disso
sentia uma estranha simpatia pelo homem. “O senhor usou a
maça, meu senhor, mas foi por mim que o Príncipe Baelor
morreu. Então eu o matei também, tanto quanto o senhor.”
“Sim,” admitiu o príncipe. “Você os ouvirá sussurrando
também. O rei está velho. Quando ele morrer, Valarr subirá ao
Trono de Ferro no lugar de seu pai. Cada vez que uma batalha
for perdida ou uma plantação falhar, os tolos dirão, „Baelor
não teria deixado isso acontecer, mas o cavaleiro de cerca o
matou.‟”
Dunk podia ver a verdade naquilo. “Se eu não tivesse
lutado, o senhor teria tirado a minha mão. E o meu pé. Às
vezes eu me sento embaixo dessa árvore e olho para os meus
pés e me pergunto se não podia ter aberto mão de um deles.
Como meu pé poderia valer a vida de um príncipe? E os outros
dois também, os Humfreys, eles eram bons homens também.”
Sor Humfrey Hardyng havia sucumbido aos seus ferimentos
apenas na noite anterior.
“E que resposta a sua árvore lhe dá?”
“Nenhuma que eu consiga ouvir. Mas o velho, Sor Arlan,
todos os dias ao cair da noite ele diria, „me pergunto o que a

168
manhã trará.‟ Ele nunca sabia, não mais do que nós sabemos.
Bem, pode ser que alguma manhã virá quando eu vou precisar
daquele pé? Quando o reino precisará daquele pé, até mesmo
mais do que da vida de um príncipe?”
Maekar refletiu sobre aquilo algum tempo, com a boca
cerrada sob a barba prata-pálido que fazia seu rosto parecer
tão quadrado. “Não é malditamente provável,” disse ele
rudemente. “O reino tem tantos cavaleiros de cerca quanto
tem cercas, e todos eles têm pés.”
“Se Vossa Graça tiver uma resposta melhor, eu gostaria
de ouvi-la.”
Maekar franziu o cenho. “Pode ser que os deuses tenham
um gosto por brincadeiras cruéis. Ou talvez não existam
deuses. Talvez nada disso tenha algum sentido. Eu perguntaria
ao Alto Septão, mas da última vez que fui até ele, me disse que
nenhum homem pode de fato entender as maquinações dos
deuses. Talvez ele devesse tentar dormir embaixo de uma
árvore.” Ele fez uma careta. “Meu filho mais novo parece ter
criado um afeto por você, sor. Já é tempo dele ser um
escudeiro, mas ele me diz que não servirá a nenhum cavaleiro
a não ser você. Ele é um menino desobediente, como deve ter

169
notado. Você o aceitaria?”
“Eu?” a boca de Dunk abriu e fechou e abriu de novo.
“Egg...quero dizer, Aegon, ele é um bom rapaz, mas, Vossa
Graça, eu sei que é uma honra do senhor, mas...eu sou apenas
um cavaleiro de cerca.”
“Isso pode ser mudado,” disse Maekar. “Aegon deve
retornar para o meu castelo em Solarestival. Há um lugar para
você lá, se assim o desejar. Um cavaleiro da minha residência.
Você jurará sua espada a mim, e Aegon pode ser seu escudeiro.
Enquanto você o treina, meu mestre de armas irá terminar o
seu próprio treinamento.” O príncipe deu a ele um olhar
astuto. “O seu Sor Arlan fez tudo o que podia por você, não
tenho dúvida, mas você ainda tem muito a aprender.”
“Eu sei, meu senhor.” Dunk olhou ao seu redor. Para a
grama verde e os juncos, o alto olmo, as ondulações dançando
ao longo da superfície da piscina ensolarada. Outra mosca-
dragão estava se movendo sobre a água, ou talvez fosse a
mesma. O que vai ser, Dunk? Ele se perguntou. Moscas-
dragão ou dragões? Alguns dias atrás ele teria respondido na
mesma hora. Era tudo que ele sempre sonhara, mas agora que
a perspectiva estava ao seu alcance, o assustava. “Bem antes de

170
Príncipe Baelor morrer, eu jurei ser seu homem.”
“Presunçoso de sua parte,” disse Maekar. “O que ele
disse?”
“Que o reino precisava de bons homens.”
“Isso é bem verdade. E então?”
“Eu terei o seu filho como escudeiro, Vossa Graça, mas
não em Solarestival. Não por um ano ou dois. Ele já viu o
suficiente de castelos, eu julgaria. Eu o terei apenas se puder
tê-lo na estrada comigo.” Ele apontou para a velha Noz. “Ele
cavalgará o meu cavalo, vestirá minha capa velha, e manterá
minha espada afiada e minha malha esfregada. Dormiremos
em estalagens e estábulos, e uma vez ou outra no salão de
algum cavaleiro estabelecido ou senhor menor, e talvez
embaixo de árvores quando for preciso.”
Príncipe Maekar lhe deu um olhar incrédulo. “O
julgamento afetou o seu juízo, homem? Aegon é um príncipe
do sangue. O sangue do dragão. Príncipes não são feitos para
dormir em dutos e comer bife salgado duro.” Ele viu Dunk
hesitar. “O que é que você está com medo de me dizer? Diga o
que quiser, sor.”
“Daeron nunca dormiu em um duto, eu aposto,” disse

171
Dunk, em voz baixa, “e todo bife que Aerion comeu era grosso
e raro e sangrento, provavelmente.”
Maekar Targaryen, Príncipe de Solarestival, considerou
Dunk da Baixada das Pulgas por um longo tempo, sua
mandíbula trabalhando silenciosamente embaixo de sua barba
prateada. Finalmente ele se virou e saiu andando, sem nunca
dizer uma palavra. Dunk o ouviu se afastar a cavalo com seus
homens. Quando eles tinham ido embora, não havia som
algum além do vago ruído das assas da mosca-dragão
enquanto ela deslizava em cima da água.
O menino veio na manhã seguinte, quando o sol estava
subindo. Ele vestia botas velhas, calções marrons, uma túnica
de lã marrom, e uma velha capa de viagem. “O senhor meu pai
diz que vou servi-lo.”
“Servi-lo, sor,” Dunk lembrou a ele. “Você pode começar
por selar os cavalos. Noz é sua, trate-a bem. Não quero
encontrá-lo em cima de Trovão a menos que eu o coloque lá.”
Egg foi até as selas. “Para onde estamos indo, sor?”
Dunk pensou por um momento. “Eu nunca estive nas
Montanhas Vermelhas. Você gostaria de dar uma olhada em
Dorne?”

172
Egg deu um sorriso largo. “Ouvi dizer que eles têm
apresentações de marionetes muito boas,” disse ele.

173
NOTAS
1. O título do conto em inglês é “The Hedge Knight”, e
em português foi lançado (em Portugal) uma revista em
quadrinhos com esse conto, que se eu não me engano vai ser
lançada aqui também. Tanto a versão de Portugal quanto a
daqui se chamam “O Cavaleiro Errante”. Só que a tradução
literal é “O cavaleiro de cerca” como eu coloquei aqui. Esse
título que escolheram combina mais com o ~espírito~ da
história, pelo Dunk viver por aí jogado no mundo, só que ele
causa alguns problemas pra tradução. Quando o Maekar diz “o
reino tem tantos cavaleiros de cerca quanto tem cercas” (p.
164) a frase perderia o significado se eu tivesse traduzido
“hedge knight” como “cavaleiro errante”, porque a pessoa (no
caso tu XD) que lesse não entenderia qual a relação entre o
número de cavaleiros e o número de cercas. No entanto, manti
o título como “O cavaleiro Errante” por fatores ~poéticos~
(aka fica mais bonito na capinha lol). A palavra “hedge”
significa especificamente aquelas cercas-vivas, que tem
plantas ao redor, que são altas e podem proteger de chuva e
sol, e em Westeros um “hedge knight” é um cavaleiro que vaga
pelos lugares sem um mestre e sem propriedades. O nome vem
do fato de que esses cavaleiros geralmente dormem ao relento,
embaixo dessas cercas-vivas, que são chamadas de hedges.

2. No original, o inseto que o Dunk observa é a


“dragonfly”, que traduzindo para o português é a libélula, só
que, novamente, eu tive que mudar pra que a história não
ficasse sem coerência. Apenas substituí o nome brasileiro do
inseto pela tradução literal das duas palavras que compõe o
nome em inglês: dragon e fly. Quando o Maekar faz a
proposta pro Dunk ele fica observando o inseto e diz “o que vai
ser, moscas-dragão ou dragões?” (p. 165); então se eu tivesse
traduzido como libélula o jogo de palavras ficaria sem sentido.

3. Quando o Dunk fica observando o movimento entre os


mercadores e observa os “batedores de carteira” (p. 21), no
original está escrito “cutpurses”, que é uma palavra do inglês
antigo, que denomina os ladrões que roubavam cortando o
cordão que prendia a bolsa das pessoas enquanto elas
estivessem distraídas. Não existe tradução literal em
português porque esse tipo de roubo nunca existiu aqui, era
algo comum da idade média. A única tradução mais próxima é
“batedor de carteira”, que é um conceito moderno, e em inglês
significa “pickpocket”.

4. Como tu sabes, egg significa ovo, só que eu manti o


nome dele como Egg porque senão “ovo” não ia fazer sentido
como diminutivo de Aegon; e porque quando o Dunk diz que
“a cabeça dele parece mesmo um ovo” (p. 30), essa foi apenas
a explicação que o Dunk encontrou para o apelido, e mesmo
assim foi só uma coincidência, por ele estar com o cabelo
raspado, porque o Dunk nunca perguntou o motivo dele se
chamar Egg.

5. Quando o Raymun diz pro Dunk “Ordene-me” (p.


137), no original está escrito “Knight me”. Em inglês, o verbo
to Knight significa “elevar alguém ao grau de cavaleiro”. Em
português esse termo não existe, provavelmente porque nós
não passamos pela Idade Média, e nossa monarquia nunca foi
de caráter muito bélico, portanto não existiu a tradição dos
cavaleiros como uma força militar. A palavra que se aproxima
desse significado, de conferir um grau social e de
responsabilidade a alguém, é ordenar ou nomear, que é a
palavra geralmente usada nas cerimônias militares, só que eu
achei que “nomeie-me” não soa bem (lol).

6. Quando o Dunk diz “acima do sal” (p. 57), essa é a


tradução literal do original “above the salt”. Essa expressão
vem da Idade Média, quando o sal era uma especiaria muito
rar, porque era obtido através de um processo trabalhoso de
evaporação da água do mar. Então, em cerimônias e
banquetes, o sal era colocado em um recipiente ornamentado
feito geralmente de ouro ou qualquer outro material nobre, e
ficava no centro da mesa dos convidados mais nobres e de
maior nível social, que eram os únicos que tinham acesso ao
sal. Assim, surgiu essa expressão pra denominar a área
reservada às pessoas mais importantes.

Você também pode gostar