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Stephanie levava uma vida tranqüila em

Londres, até descobrir que os


negócios do pai iam mal e que
Santino, sócio dele, poderia
arruiná-lo. Preocupada, Stephanie
tentou um acordo com Santino,
que lhe fez uma proposta: ela se
casaria com ele, iria morar em seu
castelo na Sicília e tomaria conta
de sua filha Julia, de quatro anos
de idade; em troca, Santino
salvaria seu pai. Stephanie aceitou
o acordo, abandonou sua casa,
seu pai e foi viver num país es-
tranho. Conquistou a pequena
Julia, mas sofria com a arrogância
e a frieza de Santino. E quase
Copyright: enlouqueceu quando percebeu que
ANNE MA o amava. O que seria agora de sua
vida?
THER
Título original: "AUTUMN OF THE WITCH"
Publicado originalmente em 1973 pela Mills & Boon Ltd.
Londres. Inglaterra.

Horizonte Perdido
Anne Mather

CAPITULO I

Bem no alto das rochas negras da baía de Fortezzo, na costa ocidental da


Sicília, levanta-se o velho castelo de Strega. Construído há mais de cem
anos, possui a majestade solene que desperta o respeito. Pietro Bastinado,
entre outros, julgava que o castelo era a moradia perfeita para seu
proprietário, Santino Ventura. A família Ventura possuiu essa faixa de terra
durante muitas gerações, adquirida algumas vezes por meios bárbaros e
impiedosos, terra que desconhecia outra autoridade a não ser a do senhor
do castelo.
Embaixo dos muros cinzentos, marcados pelos anos, as plantações de uvas,
de figos, de laranjas ,e limões terminavam numa planície verdejante, que
seria árida não fosse o sistema de irrigação artificial construído pelos
colonos da família Ventura, a quem cabia a exploração daquelas terras.
Para oeste, em contraste completo com a paisagem luxuriante, estavam as
águas límpidas do Mediterrâneo, que eram sempre bem-vindas após os
trabalhos extenuantes do dia. Aquela era uma terra de contrastes, pensou
Pietro Bastinado, ao fazer a curva no caminho que levava ao castelo no alto
do morro. Terra de opulência e de miséria, de pomares férteis e de regiões
áridas, de gente exuberante e de um imenso isolamento. Terra que
escrevera sua própria lei durante séculos e que não se sujeitava à
autoridade de ninguém de fora.
Santino Ventura, cunhado de Pietro Bastinado era um dos homens mais ricos
da ilha. Não dependia do sucesso das safras para garantir sua prosperidade.
Aprendera desde cedo que a riqueza genuína não cai do céu, que deve ser
ganha à força do suor. Rompendo a tradição de muitos anos, ampliou os
horizontes familiares e entrou no mundo das finanças. Usou sua cabeça
extraordinária e seu tino inato para os negócios, especulou com sucesso na
Bolsa e conquistou a reputação merecida de ser um homem totalmente
inflexível, uma vez que os sentimentos não interferiam nunca em seu
raciocínio prático. Santino era um homem duro, severo, prepotente, como
reconheciam até mesmo seus colaboradores, um homem de ideais extremos,
embora zelasse apaixonadamente pelo bem estar de sua gente. Sua única
fraqueza, se é que isso podia ser chamado de fraqueza, era o amor que
devotava à filha pequena, cuja mãe, a irmã de Pietro, morrera nas dores do
parto.

Pietro manobrou o Lancia esporte diante dos degraus que levavam ao


interior do castelo e retirou as luvas de crochê que estava usando. Subiu
com passos rápidos a pequena escada e abriu a porta da frente, penetrando
na ante-sala do castelo.
Uma mulher de idade, vestida inteiramente de preto, à maneira dos
antepassados, saiu de uma porta embaixo da escada e aproximou-se de
Pietro. Chamava-se Sophia Vascente e era a criada mais antiga da casa.
- Bon giorno, Sophia - disse Pietro, com cortesia. - Como está passando? Lá
fora está mais fresco que aqui dentro.
- Ainda é cedo, signore - comentou Sophia, com o rosto sério. O senhor veio
ver o patrão?
Pietro sorriu de bom humor.
- Ele está acordado?
- Ele não se levantou ainda, signore. Quer tomar um cafezinho enquanto
espera?
- Ah, seria uma boa idéia. Santino já tomou café?
- Eu levei a bandeja ao seu quarto. Ele deve ter ouvido o ruído do carro e vai
descer num instante.
Pietro levantou as sobrancelhas.
- Você acha que eu cheguei muito cedo, Sophia?
- O patrão foi dormir tarde ontem à noite. Ele passou um pouquinho da hora.
- A novidade que eu tenho para contar vai acordá-lo num minuto disse
Pietro, com um sorriso. - Vou esperá-lo na biblioteca. Você me leva o café lá,
por favor?
- Pois não.
Pietro atravessou o hall em direção à porta forrada de couro da sala de
trabalho de Santino. Era ali que ele passava os dias quando estava no
castelo. Vizinha a essa sala, havia uma outra menor, que Pietro recebera
para seu uso exclusivo. A companhia tinha escritórios em Palermo, se bem
que a maior parte dos negócios era realizada no exterior, em Roma, Paris,
Nova York, Londres. Santino Ventura era diretor de diversas empresas
associadas e sua opinião era sempre consultada nas decisões importantes.
Os demais diretores sabiam que Santino era um homem de inteira confiança
e que nunca se deixava influenciar por considerações pessoais. Pietro, no
entanto, julgava que a grande consideração que Santino desfrutava no
trabalho era conseqüência, antes de mais nada, do grande respeito que
inspirava aos outros.
Sophia levou a bandeja do café ao escritório e colocou-a em cima da mesa.
Logo depois Santino entrou.
Santino Ventura era um homem de trinta e poucos anos cujos traços duros e
severos refletiam as diversas experiências amargas que a vida escrevera ali.
Os cabelos pretos eram lisos e abundantes e as costeletas compridas
acentuavam o perfil anguloso de sua raça. Embora não possuísse a beleza
cativante dos homens de sua raça, Santino despertava sempre interesse das
mulheres devido ao magnetismo animal que se refletia nos olhos fundos e na
boca sensual. No entanto, ele se ocupava muito raramente com mulheres.
Depois da morte de Sancha, passara a levar uma existência singularmente
isolada e dedicava pouco tempo à vida social. que apreciara antes com tanto
entusiasmo. Dedicava as poucas horas livres que tinha à filha de quatro
anos, menina sensível, solitária e propensa à tristeza.
Santino entrou no escritório com passos rápidos e cumprimentou seu
assistente com animação na voz.
- Bom dia, Pietro! Como está? Você acordou cedo como sempre. . .
que notícias tem para mim?
Pietro engoliu rapidamente o último gole de café e colocou a xícara no pires.
- Eu saí de Londres ontem à noite. O avião foi obrigado a descer em Zurique
devido a problemas mecânicos e só chegamos a Palermo nas primeiras horas
da manhã. Foi por isso que vim diretamente para cá.
Não tinha muito tempo para ficar na cama, de qualquer maneira. - - Você fez
bem - disse Santino, com um sorriso. Apanhou uma cigarrilha em cima da
mesa e acendeu-a pensativamente. - E como ficou o negocio com a WAA?
Você chegou a realizar alguma coisa concreta?
Você se refere à compra das ações?
Exatamente.
Bem, eu entrei em contato com as proprietárias.
Ótimo. E então?
Pietro fez uma careta e estendeu a mão para o bule de café.
- Olha, Santino, eu não gosto muito desse tipo de negócio.
- As ações estão divididas em partes iguais entre as duas mulheres,
Jennifer McMaster e Evelyn Lacey.
- E daí?
- Jennifer está devendo a Deus e todo mundo. Não fiquei sabendo porém da
situação da outra mulher.
- Mas eu sei! - interveio Santino. Retirou a perna de cima do braço da
cadeira e inclinou-se para a frente, a fim de examinar alguns papéis em cima
da mesa. - Aqui está o contrato. Você já leu?
- Já. É meio violento.
Santino levantou-se com agilidade da cadeira.
- Eu não tenho culpa se Robert McMaster é um irresponsável! Eu não posso
me responsabilizar pelo fracasso do diretor da firma. Puxou uma tragada
com irritação. - Você sabe perfeitamente que eu queria unir as duas
companhias. Se Robert McMaster não tem capacidade para tocar o negócio,
isso significa seu enterro!
Pietro deu um suspiro. Santino tinha razão, evidentemente. A companbia
aérea W AA vinha perdendo dinheiro nos últimos três anos. Estava
enfrentando uma crise séria e seus diretores não podiam cometer nenhum
erro. Mesmo assim, Robert McMaster não avaliava o calibre do homem com
quem estava tratando. Santino Ventura tinha passado a perna em homens
mais fortes que ele.
- Bem, já que você acha o caso tão desagradável, eu vou me ocupar
pessoalmente desse assunto - afirmou Santino, com decisão.
- Eu não disse isso - negou Pietro, sem jeito.
- Não disse, mas pensou. Eu sei que você não aprecia meus métodos e eu
preciso de um homem que não tenha receio das conseqüências.
- Eu posso cuidar desse caso - disse Pietro, com um movimento da cabeça.
Santino observou-o atentamente.
- Eu sei disso. Mas prefiro tratar pessoalmente esse negócio. Você pode vir
comigo, se quiser.
- O que você pretende fazer?
- Antes de mais nada, quero essa companhia aérea. Não é um grande
negócio, não é nem mesmo um negócio especialmente interessante. Mas eu
necessito urgentemente de suas linhas. - Sorriu com o canto da boca. -
Robert McMaster não sabe disso, bem entendido, a menos que você tenha
dito a ele, por isso temos que agir com muita cautela.
Pietro passou os dedos entre os cabelos lisos, com sua aparência jovem e
inexperiente.
- Eu não entendo o que você quer dizer, Santino. Quais são suas intenções
exatamente?
Santino fixou-o com os olhos brilhantes.
- Vamos liquidar a companhia, meu caro.
- Não me diga que você pretende levá-los à falência! - exclamou Pietro
surpreso.
- Não disse isso. Apenas dar um susto em Robert McMaster. Ele já nos
causou amolações demais no passado. Perdemos muito tempo com ele. Acho
que está na hora de irmos à desforra...
- Mas não seria suficiente incorporar a companhia?
- Isso é um jogo, Pietro, mais nada. Nós não vamos pechinchar o preço. Na
realidade, creio que estou sendo extremamente generoso. Ninguém paga
esse preço pelas ações. Eu poderia destruí-lo, se quisesse.
- Mas por que você faria isso? - perguntou Pietro, com candura.
- Exatamente. Por que faria isso se há outras alternativas mais
interessantes? Ah, eu sei que você me considera um monstro, um homem
sem coração. - Santino deu uma risada e mudou bruscamente de assunto. -
Olha, a conversa está boa mas está na hora de fazer uma visita a Lucia.
Pietro balançou a cabeça pensativamente.
- Você me surpreende, Santino. Num momento está considerando
seriamente a falência de um homem que tentou lhe passar a perna. No
momento seguinte você me dá a impressão de um pai afetuoso que adora a
filha pequena. A transição é muito grande, homem.
Santino deu um sorriso e o relaxamento da fisionomia desfez as linhas
fundas em volta da boca e dos olhos.
- O que você quer que eu faça, Pietro? Deixar Robert McMaster jogar fora
milhões de liras? Eu não sou tão irresponsável assim com o dinheiro dos
acionistas. Às vezes eu penso que você está meio encantado com a mulher
dele...
- Eu mal a conheço! - exclamou Pietro, com vivacidade. - Você a conhece
muito melhor que eu.
- Está bom, mas você tem que reconhecer que ela é muito mais moça que o
marido e merecia um homem mais atraente, não?
- Pode ser. Mas ela sabia a idade dele quando casou! Isso não é desculpa.
- Está bom, você ganhou desta vez.
- Além disso, Jennifer é a segunda mulher de Robert McMaster, pelo que
ouvi contar.
- Não me diga! Como você ficou sabendo? Por ela própria?
- Não. Quem me contou foi Stephanie, a filha do primeiro casamento. .
- Ah, agora estou começando a entender! - comentou Santino, com um
sorriso malicioso nos lábios. - Não é Jennifer McMaster que o preocupa,
mas a filha de Robert...
- Escute, Santino, vamos conversar de outra coisa. Eu não estou
absolutamente interessado na filha nem na mulher de Robert McMaster!
Santino acedeu ao pedido de Pietro e a conversa tomou outro rumo.
No íntimo, porém, ele tinha a impressão que o envolvimento de seu
assistente com a família McMaster não era exclusivamente profissional.

Lucia Ventura ,era uma criança adorável. Aos quatro anos de idade, apesar
de ser pequena e delicada, Lucia era a meiguice em pessoa e passava a maior
parte do tempo na companhia dos adultos. Como Santino viajava
freqüentemente é era difícil achar uma companhia da mesma idade nos
arredores do castelo, Lucia contentava-se em conversar e brincar com os
empregados da casa.
Ela estava no quarto dos brinquedos com Maria Vitali quando Santino abriu a
porta e espiou para dentro. Ela largou imediatamente o que estava fazendo
e correu atirar-se nos seus braços.
Santino pegou-a no colo, balançou-a no alto e apertou-a contra o peito,
enquanto Lucia dava gritinhos de alegria com os braços passados em volta do
seu pescoço.
- Olhe só, Lucia, quem veio fazer uma visita a você! - disse Santino,
colocando a menina no chão. - Você não vai dar um beijo no tio Pietro?
Lucia levantou a cabeça e piscou o olho para Pietro.
- Bom dia, tio Pietro. Você veio para ficar?
- Por algum tempo - disse Pietro, olhando de relance para Santino.
- Você está muito bonitinha com esse vestido novo, Lucia.
Lucia olhou para ó 'vestidinho estampado de algodão.
- Foi Maria que fez para mim. Não foi, Maria?
Maria Vitali, que se levantara quando Santino entrou no quarto dos
brinquedos, observava a cena em silêncio, de braços cruzados, sorrindo
benevolentemente. Santino fez um gesto com a cabeça indicando que ela
podia se sentar de novo. A babá obedeceu em silêncio.
- E suas lições, Lucia? Você estudou tudo direitinho?
Lucia torceu o nariz.
- Já, papai.
- Você está falando a verdade, filha?
A menina apertou os lábios com força.
- Ah, papai, é tão difícil! Eu não consigo aprender todas essas letras de cor.
Pietro interveio na conversa.
- Você não acha que Lucia é muito pequena para aprender a ler e a fazer as
quatro operações?
- De jeito nenhum. Os exercícios que dei são muito fáceis. Minha filha não
devia encontrar dificuldade em fazê-los.
- E quem está ensinando a ela?
- Eu ou Maria, quando estou fora. Maria em geral toma as lições que eu
ensinei - explicou Santino. - Ah, Pietro, não faça essa cara de pouco caso!
Lucia necessita de alguma coisa para se distrair. Em muitos países, crianças
de sua idade vão à escola maternal.
- Mas Maria não está qualificada para ensiná-la - observou Pietro.
- Se Sancha estivesse viva. . .
- Não vamos conversar sobre isso agora - interveio Santino, com o rosto
repentinamente fechado.
Lucia, que ouvira a conversa em silêncio, resolveu tomar parte.
- Posso ir brincar, papai, em vez de fazer a lição? Só hoje, porque o tio
Pietro está aqui...
- Está bom, Lucia. Vamos dar um passeio agora de manhã. Você, o tio Pietro
e eu. Está contente?
- Ah, papai, que beleza!
- E nosso negócio? - perguntou Pietro, em voz baixa.
- Vamos deixar para amanhã. Venha Pietro, vamos aproveitar essa manhã
ensolarada de verão.
- Estou indo - disse Pietro, com um sorriso.
Ótimo. Vamos pedir a Sophia para preparar um lanche.

Foi somente no fim da tarde, quando o iate estava ancorado nas águas
tranqüilas da baía, que Santino voltou novamente a abordar o assunto da
companhia aérea. Enquanto Lucia brincava com o salva-vidas passado em
volta do peito, os dois homens conversavam no deck sentados em cadeiras
de lona.
- Diga uma coisa, Pietro, o que você faria com Robert McMaster?
Pietro deitou-se de bruços e apanhou o maço de cigarros caído no chão.
Hesitou um instante antes de responder.
- Sinceramente, eu não sei.
- Vamos examinar os fatos, Pietro. Esse homem levantou um empréstimo
usando meu crédito e agora acha que pode tocar o barco sozinho:
- Ele está há muito tempo nesse ramo - observou Pietro, tentando desculpar
a ação de Robert McMaster. - Ele acredita sinceramente no esforço
individual.
- Concordo! - exclamou Santino, com impaciência. - Mas ele não tem
capacidade para se virar sozinho.
Não, não tem.
- Há anos que essa crise vem se anunciando. . .
- Eu sei disso. Mesmo assim, é triste constatar que um homem isolado não
pode sobreviver no mundo de hoje.
- Pietro, você está completamente louco! - exclamou Santino, com
impaciência. - Você sabe perfeitamente qual é o motivo dessa crise!
O motivo único e exclusivo é a companhia ser pequena demais. Ela não tem
capital nem crédito suficiente para enfrentar as despesas crescentes.
Ninguém quer afastar Robert McMaster do negócio. Isso está acontecendo
por culpa única e exclusiva dele.
- Eu sei, eu sei - disse Pietro, correndo os dedos entre os cabelos.
- Você tem toda a razão. Não há nada mais verdadeiro que isso.
Santino observou-o em silêncio durante um instante.
- Há momentos em que eu também critico minha maneira de agir.
Mas, quando isso acontece, não me esqueço que Robert McMaster não
hesitaria em me passar para trás se estivesse numa posição de
superioridade. Essa é a maneira como todos agem, sem exceção. Eu levei
algum tempo para aprender isso e você ainda é muito moço, Pietro. Você
precisa primeiro suprimir a fraqueza de seu caráter. No fundo, tudo se
resume nisso.
- Pode ser. Mas às vezes eu me assusto com essas jogadas violentas.
Pietro voltou a atenção para Lucia, que estava deitada de bruços na beira do
iate, enchendo o balde com água e tentando apanhar algum peixinho
distraído.
- Diga uma coisa, Santino. Você nunca pensou em casar de novo?
Santino voltou-se surpreso e hesitou alguns segundos antes de responder.
- Não, nunca pensei - disse por fim, com a voz glacial.
- Por quê? Já faz quatro anos que Sancha morreu e Lucia precisa
urgentemente de uma mãe.
A expressão de Santino se endureceu repentinamente e Pietro arrependeu-
se de abordar esse assunto delicado.
- Lucia tem Maria e a mim. Isso basta.
Pietro balançou a cabeça na dúvida.
- Maria é velha, Santino, e você está sempre viajando.
- Pietro, eu sei que você diz isso com boas intenções. Você é meu cunhado e
meu amigo. Mas esse assunto já foi discutido uma vez e definitivamente
resolvido. Eu gostava muito de Sancha e fiquei desatinado quando ela
morreu. Não preciso de nenhuma mulher em casa, nem de uma companhia
para a velhice. Sei me virar sozinho. E quando meus apetites naturais
querem satisfação, vou a Palermo. O que posso querer além disso?
- Pense em Lucia - insistiu Pietro, com paciência. - À medida que os anos
passam, aumenta a necessidade de uma companhia feminina.
Você acha que pode substituir o carinho de uma mãe?
- Você está me aborrecendo com essa conversa, Pietro! - explodiu Santino,
com impaciência, encarando o cunhado com uma expressão dura. - Primeiro
você me enche com a história de Robert McMaster. . .
depois me vem com essa história de carinho maternal! Você está se
comportando como as tias velhas, Pietro. Por que não vê isso, em vez de me
dar esses conselhos?

CAPITULO II

No momento em que Stephanie desceu a escada, ouviu de longe a discussão


na sala. A voz estridente de Jennifer chegava claramente até onde estava.
Ficou um instante parada, indecisa, segurando o corrimão. Os tons mais
baixos do pai tentavam encobrir a voz alta da mulher, mas Jennifer acabaria
levando a melhor por pura persistência. Stephanie deu um suspiro de
Desânimo e desceu os últimos degraus. Qual seria o motivo daquela briga?
Os dois viviam se agredindo ultimamente e a ansiedade do pai, com respeito
à companhia aérea que dirigia, não era motivo suficiente para aquelas
discussões constantes.
Stephanie deu outro suspiro e dirigiu-se lentamente até a sala. O sol da
tarde atravessava as frestas das venezianas e iluminava a bela cristaleira
antiga que fora de sua mãe. Aquela sala mudara pouco com o decorrer dos
anos, embora Jennifer trocasse as cortinas de tempos em tempos e
cobrisse as almofadas do sofá e insistisse com o marido para dar sumiço
naquela velharia que pertencera à primeira mulher. Robert McMaster,
contudo, era inflexível nesse ponto. A sala conservava o caráter da primeira
esposa, a mãe de Stephanie. A sala de estar continuava sempre igual, como
Stephanie e conhecia desde menina.
Foi até a janela que dava para o jardim e desejou que Allan chegasse mais
cedo e a levasse embora de casa. Estava farta de ouvir aquelas vozes
irritantes que discutiam na biblioteca.
Allan era um piloto recém-formado que trabalhava na WAA, a companhia
aérea de Robert McMaster. Os dois saíam sempre juntos ultimamente, pelo
menos desde o aniversário de Stephanie, quando ela completou dezoito anos,
e ela previa que o rapaz ia pedi-la em casamento, mais dia menos dia.
Allan ganhava um bom ordenado e ela estava disposta a trabalhar afim de
contribuir com uma pequena parte para as despesas domésticas. Trabalhava
atualmente algumas horas por dia num hospital psiquiátrico infantil e não
deixaria sua atividade sem um motivo sério. Além disso, a maior parte de
suas amigas casadas trabalhava para ajudar os maridos e ela não faria
exceção. Suspirou novamente. Será que estava precipitando a situação?
Tinha apenas dezoito anos e, se sua mãe estivesse viva, certamente não
pensaria em sair tão cedo de casa. Afastou-se da janela a seu rosto
refletido no espelho oval em cima da lareira. Aqueles olhos fundos e
cansados eram dela? Por que se irritava tanto com os comentários de
Jennifer? Afinal, não tinha medo de sua madrasta. A verdade é que tinha
horror das brigas e evitava, sempre que possível, qualquer atrito com
Jennifer ou seu pai.
Com um olhar crítico, examinou sua imagem no espelho. Não podia ser
considerada um tipo de beleza, como reconhecia honestamente, mas havia
alguma coisa no seu porte que atraía imediatamente a atenção das pessoas,
homens e mulheres. Talvez fosse um certo ar cativante que não incluía em
nenhuma definição convencional. Ou então a pequena inclinação dos olhos nos
cantos, sem falar na beleza dos cabelos ondulados e nas curvas dos quadris,
que não tinham as linhas angulosas e retas dos manequins de moda. Ou, quem
sabe, era sua personalidade exuberante, que agradava aos outros? Seja
como for, Stephanie sempre tivera um grupo de fãs e, em vista disso, podia
dizer que tinha alguma experiência dos homens.
Levou um susto ao ouvir a campainha da frente tocar. Estava tão distraída
que não ouvira o ruído do carro de Allan. Afastou-se rapidamente da sala de
estar e atravessou o hall no momento exato em que Jennifer saía da
biblioteca. Ela observou-a de alto a baixo com a expressão critica que lhe
era habitual.
- De roupa nova, hein! Muito bem, você está gastando... Não conhecia esse
conjunto.
- Nem podia, porque o comprei esta semana. Com o meu dinheiro.
Ela teve o prazer de ver os lábios da madrasta se apertarem com raiva e
sentiu uma certa dor na consciência. Afinal, Jennifer tinha ordens
expressas do pai de não lhe dar dinheiro para comprar roupas, uma vez que
ela podia pagá-las com seu próprio ordenado.
Stephanie fez sinal para a criada, dando a entender que ia abrir a porta da
frente, e dirigiu-se para lá. Allan lhe deu um beijo no rosto e comentou o
vestido novo antes de entrar no hall, onde Jennifer estava parada junto do
corrimão, observando os dois.
- Como vai, Allan?
- Muito bem, obrigado. E você? Muito ocupada com a venda das ações?
- Ah, estou simplesmente exausta. Robert anda de péssimo humor e sou eu
que agüento as sobras. Estou pronta - disse para Allan.
- Vamos, então - disse Allan, dirigindo um sorriso educado a Jennifer.
O carro esporte de Allan estava estacionado na frente da casa, com a
capota de lona levantada. Ele deu a mão a Stephanie antes de ajeitar-se no
seu lugar, em frente à direção. O pequeno carro arrancou, levantando os
cascalhos da entrada. Stephanie acomodou-se no banco de couro e relaxou o
corpo. Finalmente estava longe de casa! Allan dirigiu-lhe um olhar
compreensivo.
- Jennifer continua enchendo a paciência?
- Ah, você nem faz idéia! Eu não agüento mais. Gostaria de jazer alguma
coisa para impedir essa mulher de torturar meu pai. . .
- Esse negócio com Santino Ventura está deixando todo mundo doido -
comentou Allan. - Depois que o assunto for resolvido, de uma forma ou de
outra, as coisas vão entrar nos eixos.
- Deus te ouça! - disse Stephanie mordendo o beiço. - Às vezes eu fico na
dúvida se as coisas vão voltar um dia a ser como eram.
- Não seja derrotista! - exclamou Allan. - Mais cedo ou mais tarde seu pai
vai aceitar a proposta de Santino.
- Você acha? Pois olhe, na minha opinião, papai não vai ceder nunca. Eu o
conheço melhor do que você e sei que ele morreria de desgosto se fosse
afastado da companhia. Papai é um homem ativo, Allan, e foi assim a vida
inteira. Você não pode aposentar de uma hora para a outra um homem com
esse temperamento.
- Mas ninguém está sugerindo isso. A sugestão de Santino era fundir as
duas companhias. Seu pai conservaria a direção. Pelo menos, foi o que ouvi
falar.
- Está certo, mas durante quanto tempo? Essa é a questão. As grandes
companhias sabem o que estão fazendo. Aceitam unir-se com as pequenas e,
lentamente, vão tomando conta de tudo. Foi sempre assim.
- Por essa razão que papai está lutando com unhas e dentes. .. e não é só
contra Santino, mas também contra os outros diretores. - E os acionistas?
São a favor ou contra ele?
- Jennifer, pelo menos, está contra. Tia Evelyn também. Quando aquele
rapaz italiano esteve aqui. . .
- Ah, sim, Pietro.
- Você o conheceu?
- Não, pessoalmente. Eu o vi uma vez no escritório de seu pai. O que ele faz
exatamente? .
Ele é o assistente pessoal de Santino.
- Ah, bom. Continue o que você... estava contando.
- Pois bem, quando Pietro esteve aqui, ele fez uma porção de perguntas
sobre as ações e os interesses dos acionistas. Jennifer topou na hora a
oferta, mas tia Evelyn foi mais reticente. As duas no fundo não se
interessam a mínima pela companhia, contanto que recebam os dividendos
nas datas certas. Para papai, no entanto, não há outra coisa além disso... é
sua vida inteira que está em jogo.
- Compreendo. Mas isso podia ter sido evitado. Seu pai não percebeu a
alguns meses que as coisas iam mal?
- O que ele podia fazer? As grandes empresas levam uma tremenda
vantagem sobre as pequenas, como é o caso da W AA. Elas podem viajar com
os aviões quase vazios e ainda falam em reduzir os preços dos bilhetes A
companhia do papai depende exclusivamente dos bilhetes vendidos, sem
contar que necessita de aviões novos e de equipamentos mais modernos que
custam uma fortuna. Ela não pode adquirir isso sem financiamento bancário.
Allan segurou na mão que estava caída em cima do colo.
- Muito bem! Você defende seu pai com unhas e dentes!
- Que remédio! Se não fosse Jennifer... Você sabe como ela é extravagante!
- Também por que seu pai foi casar com uma mulher tão moça? Agora ele
tem que agüentar as conseqüências.
- Mas nem por isso a situação é mais fácil para mim. Ah, você deve estar
farto de ouvir minhas queixas. . .
- Pelo contrário. Gosto quando você discute esses problemas comigo.
- Isso prova que você me considera mais que um simples amigo.
Stephanie olhou de relance para Allan e adivinhou o que o rapaz ia falar em
seguida. Naquele instante, ela não estava preparada para ouvir sua
declaração. O pânico tomou conta de sua mente quando compreendeu que os
sentimentos que nutria por Allan não eram suficientemente fortes para
justificar o casamento. Para impedi-lo de exteriorizar seu pensamento,
começou a contar histórias das crianças na clínica psiquiátrica onde
trabalhava, falou do último filme que viu na televisão, comentou tudo que lhe
passou pela cabeça. Com isso, conseguiu adiar a hora das confidências. Allan
ficou ligeiramente magoado, naturalmente, porque era um rapaz sensível e
percebeu seu artifício. Felizmente, ele preferiu não insistir no assunto e não
fez nenhum comentário inoportuno.

Eram sete e meia quando Allan a deixou em casa. No em


que Stephanie despediu-se de Allan diante do portão, avistou um mercedes
enorme estacionado diante de sua casa. Era a primeira vez que via aquele
carro na sua rua.
- Passo dentro de uma hora - disse Allan, despedindo-se dela.
- Sim, estarei esperando - respondeu Stephanie distraidamente.
Acenou com a mão e entrou em casa. Deixou as luvas no hall e ficou na
dúvida se entrava na sala de trabalho do seu pai quando ouviu vozes que
vinham lá de dentro. Não era possível que os dois estivessem discutindo de
novo, sobretudo porque tinham convidados em casa. Mesmo assim, podia
ouvir perfeitamente a voz de seu pai, encobrindo outras mais baixas. Quem
podia ser a visita que provocava essa discussão calorosa? Seria algo
relacionado com a fusão das duas companhias? Era Pietro que tinha voltado
com uma nova proposta? .
Vencida pela curiosidade, Stephanie aproximou-se lentamente da sala.
Com uma súbita determinação, virou a maçaneta e abriu a porta. A sala
parecia apinhada de gente, sobretudo porque todos os ocupantes estavam
de pé, em vez de estarem sentados confortavelmente nas cadeiras e no
sofá. Jennifer também estava lá, juntamente com Harold Mortimer, o
tesoureiro do pai. Robert McMaster estava apoiado na mesa diante de um
homem moreno que Stephanie nunca tinha visto antes, embora o rapaz que
estivesse ao lado dele fosse conhecido. Era Pietro Bastinado. Todos os
olhares se voltaram na sua direção quando entrou na sala.
Stephanie encontrou os olhos do desconhecido fixos no seu rosto e corou
com o olhar penetrante.
- Ah, você chegou em boa hora, minha filha! - disse Robert endireitando-se.
- Essa conversa lhe diz respeito tanto quanto a nós. - Ele passou a mão
cansada na testa e sentou-se pesadamente na poltrona. Pelo visto, eles
querem me afastar da companhia. . .
Stephanie fechou a porta atrás de si e aproximou-se de seu pai. Avistou de
passagem a fisionomia abalada de Harold Mortimer e deu um sorriso na
direção de Pietro, antes de voltar sua atenção para o desconhecido que
presenciava a cena em silêncio. Com um gesto de impaciência, voltou-se de
frente para o pai.
Do que vocês estão falando?
- Robert está dramatizando a situação, como sempre. Na minha opinião a
sugestão de Santino Ventura é perfeitamente aceitável.
Ah, então aquele homem era Santino Ventura, pensou Stephanie com um
sobressalto. O gênio por trás da organização internacional que desejava
fazer um consórcio com a companhia do seu pai. Era natural que presença na
sala causasse tanta apreensão.
Ela tornou a dirigir a palavra ao pai.
- Você disse que eu tenho o direito de saber o que se passa aqui.
Queria de ouvir uma explicação.
Santino Ventura deu um passo em direção à mesa. Ele estava com os braços
cruzados em cima do peito e encarava os presentes com a fisionomia
impassível.
- A situação é a seguinte - começou Santino num inglês impecável.
- Seu pai levantou dinheiro graças à suposta fusão das duas companhias... a
dele e a minha. No fundo ele utilizou o nome da minha organização para se
sair de uma situação insustentável. Eu só posso adiantar que eu não estou
disposto a tolerar uma ação desse tipo especialmente da parte de um
homem que está no mundo dos negócios há tanto tempo...
Stephanie ouviu a explicação em silêncio e olhou atônita para a cabeça
abaixada do pai.
- É verdade o que ele disse?
Robert McMaster levantou a cabeça grisalha.
- Isso não tem mais importância agora.
- Claro que tem! - exclamou Stephanie sem se controlar. - Eu pensei que
você fosse lutar até o fim. Deve haver alguma maneira de pedir. . .
- Não há nenhuma maneira interrompeu o pai com a voz cansada.
- Santino Ventura não me deu outra opção. Ele vai decidir o que deve ser
feito. Pensando no bem-estar dos meus funcionários, espero que ele tome a
decisão certa. É tudo o que eu tenho a dizer.
- Mas como? - exclamou Stephanie atônita.
Robert McMaster voltou-se para Santino com a fisionomia vencida.
- Se eu não concordar, ele se retira do negócio.
- Não! - exclamou Stephanie.
- Exatamente - interveio Santino. - Seu pai fez um empréstimo em meu
nome e eu não posso tolerar uma ação desse tipo.
- Nesse caso a companhia de papai vai à falência - disse Stephanie com os
olhos saltados.
- Não há dúvida. Estou consciente disso.
Stephanie voltou-se em desespero para Harold Mortimer, o tesoureiro do
pai.
- Não há outra alternativa?
Harold balançou a cabeça negativamente.
- Infelizmente não.
- Mas essa companhia é a vida do meu pai! - exclamou Stephanie com
ansiedade, voltando-se para encarar Santino Ventura.
- Não fui eu que criei essa situação - disse o siciliano impassível.
- E qual é a solução? - perguntou Stephanie a Harold Mortimer.
O tesoureiro olhou para a pasta que segurava na mão.
- O senhor Santino Ventura vai tomar conta da companhia.
- Tomar conta da companhia? - repetiu Stephanie levando as mãos ao rosto.
- Mas como? Mesmo se a firma for à falência, nós temos a maioria das
ações!
- A única solução é salvar a companhia - interveio Jennifer. - E uma vez que
seu pai não pode continuar sem o apoio econômico de Santino. . .
- Quer dizer que vocês vão vender as ações?
Que remédio. . .
- Ah, não é possível!
- Evelyn é da mesma opinião - disse Robert McMaster com um suspiro. - É
preferível salvar uma parte do que perder tudo. Ah, minha filha, vamos
deixar as coisas seguirem seu curso normal. Não há outro jeito. Tudo está
nas mãos de Santino Ventura.
Stephanie balançou lentamente a cabeça.
- Não pode ser verdade. Tem que haver uma solução!
Nesse momento, Santino Ventura fez um gesto com a mão e caminhou para a
porta, seguido de Pietro. Voltou-se dali e dirigiu-se a todos com uma
expressão de triunfo.
- Creio que nossa conversa está terminada. Vou voltar para o hotel e
refletir sobre o que foi combinado. Comunicarei minha decisão no momento
oportuno.
Robert McMaster limitou-se a assentir com a cabeça, sem fazer o menor
gesto para levantar-se da cadeira e acompanhar o visitante até a porta.
- Eu também vou andando - disse Harold Mortimer, se despedindo.
Robert McMaster não respondeu ao seu aceno. Jennifer acompanhou as
visitas até a porta da frente, enquanto Robert permanecia afundado na sua
poltrona. Quando Jennifer voltou à sala, Stephanie interpelou-a com
irritação na voz.
- Como você teve a coragem de fazer isso com meu pai?
Jennifer fechou a porta e se apoiou no batente.
- Você não sabe do que está falando. Eu não fiz nada contra seu pai. Tudo o
que aconteceu é resultado de sua própria imprevidência. Quer saber de uma
coisa? Estou de pleno acordo com Santino Ventura. Seu pai devia tomar mais
cuidado em vez de agir dessa forma.
- Por favor, vamos parar com essa discussão - interveio Robert com a
cabeça entre as mãos. - Eu dispenso a opinião de vocês duas.
- Não há nada que possa ser feito? - insistiu Stephanie. - Por que, você não
concorda com a união das duas empresas, como foi sugerido?
- Porque Santino voltou atrás - respondeu o pai.
- E por que você não aceitou quando ele propôs a primeira vez?
Você deve ter tido um motivo para recusar. Você está com cinqüenta e cinco
anos, papai. Não pensa em se aposentar um dia?
- Não é isso, filha - respondeu o pai com a voz cansada. - Veja minha
situação atual. Eu tenho uma mulher que está habituada a um certo luxo.
Quanto tempo poderíamos viver de rendas se eu fosse afastado da direção
da companhia?
- Ah, Robert, essa conversa não pega! - interveio Jennifer com impaciência.
- Você só sabe pregar economia aos outros. Por que eu haveria de
economizar se tenho ações na companhia que valem uma fortuna? A proposta
de Santino é mais que generosa, é extravagante - disse Jennifer com um
risinho de excitação. - Ele acha provavelmente que as mulher jovens não
devem fazer economia. . .
- Você é uma tonta! - exclamou Stephanie com raiva. - Não percebe a jogada
de Santino? - Ele está oferecendo esse dinheirão pelas ações simplesmente
porque você é a mulher do dono da companhia.
Jennifer deu um passo à frente e desferiu um tapa com toda força no rosto
de Stephanie.
- Não fale comigo dessa forma, sua pirralha! Quem você pensa que é?
Stephanie recuou um passo, com a mão no rosto vermelho e Robert
MaCaster despertou finalmente de sua letargia.
- Pelo amor de Deus, Jennifer, comporte-se como uma pessoa civilizada.
Parem com essa briga estúpida. Você sabe que Stephanie tem razão.Ventura
está usando você contra mim.
- E daí? Eu não vou mudar de opinião por causa disso.
- Ninguém está dizendo que sim - disse Robert afundando na cadeira.
Stephanie aproveitou a pequena calmaria para sair da sala. Correu pela
escada acima e foi refugiar-se no quarto de dormir, onde atirou-se de
bruços na cama. Compreendeu finalmente que seu pai não mandava mais nada
e era um boneco que os outros dirigiam à vontade. Não havia maneira de
fugir do inevitável! Chorou de dor pensando no homem que lutara a vida
inteira para manter-se à frente da companhia e que agora era posto para
trás.
Que culpa ele tinha de ser desprovido da energia e do dinamismo
indispensáveis no mundo de hoje? Somente tia Evelyn podia impedir que a
companhia passasse às mãos de estranhos, mas ela não mexeria um dedo
nesse sentido. Evelyn ficara magoada com o irmão quando ele se casara com
Jennifer e as relações dos dois estavam estremecidas desde então.
Além disso, ela estava sendo tentada a vender as ações por um preço
fabuloso, da mesma forma que Jennifer.
Stephanie deu um suspiro de desânimo e levantou-se da cama. Estava
trocando de roupa quando avistou o telefone em cima da mesinha de
cabeceira. Deitou-se de bruços na cama e levantou o fone do gancho. Discou
o número do apartamento de Allan e aguardou que alguém atendesse.
- Allan? Escute, eu não vou poder ir à tal festa com você.
- O que aconteceu?
- Não posso explicar pelo telefone.
- Seu pai está passando mal?
- Mais ou menos. Eu também estou com um pouco de dor de cabeça.
Não se prenda por minha causa.
- Ah, sozinho eu não vou!
- Você me desculpe, Allan, mas não dá mesmo. Você me liga amanhã?
- Está bom, Stephanie. Mas eu preferia que você me dissesse o que
aconteceu.
- Não houve nada. Estou cansada e com um pouco de dor de cabeça.
Até amanhã.
- Adeus. Um beijo. .
Stephanie desligou antes que Allan sugerisse passar na sua casa. Continuou
um momento olhando para o telefone vermelho, vendo de novo as feições
morenas de Santino Ventura na sua frente.
Levantou-se finalmente da cama, espreguiçou e foi ao banheiro. Talvez uma
ducha fria curasse a depressão que sentia.
Tinha acabado de pentear os cabelos quando ouviu o telefone tocar.
Não se deu ao trabalho de atendê-lo. Ninguém telefonaria para ela a essa
hora da noite. Ficou surpresa quando a empregada bateu de leve na porta e
perguntou se podia atender o telefone.
- Quem é?
- É o senhor Pietro Bastinado.
Stephanie atravessou o quarto e retirou o fone do gancho.
- Alô?
- Stephanie, sou eu, Pietro.
- Ah, sim, como vai? Que surpresa você telefonar para mim.
- Você tem algum programa para hoje?
- Não, por quê?
- Eu gostaria de convidá-la para jantar.
Stephanie caiu sentada na cama.
- Jantar?
Que motivo Pietro tinha para fazer esse convite? E como podia aceitá10
após ter dito a Allan que estava com dor de cabeça? Mas não seria a
oportunidade ideal para confraternizar com o inimigo? Talvez Pietro
tivesse alguma influência sobre Santino Ventura. Nesse caso... Sem hesitar
mais tempo, Stephanie aceitou o convite.
- Está combinado. Onde podemos nos encontrar? - Eu passo aí dentro de
meia hora. Está bom?
- Perfeito. Estou esperando por você.
Stephanie sentiu uma onda súbita de excitação diante da perspectiva de
sair com Pietro. Não diria nada a seu pai nem a Jennifer, e avisaria a
empregada para não comentar nada sobre o telefonema que recebera de
Pietro.
Trocou de roupa às Pressas, pintou-se e pôs dois brincos de diamantes nas
orelhas. Em seguida, desceu a escada com o casaquinho de pele em cima dos
ombros. Estava conversando com a empregada no hall da entrada quando seu
pai saiu da biblioteca.
- Você vai sair?
- Fui convidada para ir a uma festinha com Allan.
- Ele vai passar para pegá-la?
- Não, eu vou encontrá-lo lá.
-Antes que o pai acrescentasse alguma coisa, -Stephanie beijou-o
rapidamente no rosto e dirigiu-separa a porta. Chegou a tempo. No momento
em que desceu os degraus da entrada, um táxi parou na frente da casa.
Ao avistar Stephanie no alto da escada, Pietro desceu do táxi e segurou a
porta para ela. Stephanie deu uma corridinha na sua direção para não ser
vista da janela de casa. Foi somente quando se sentiu segura no interior do
táxi que relaxou.
- Você contou a seu pai que ia sair comigo? - indagou Pietro.
- Não, achei preferível não falar nada - disse Stephanie mordendo o lábio. -
Meu pai não entenderia...
- Provavelmente - concordou Pietro, tirando o maço de cigarros do bolso e
lhe oferecendo um. - Estou curioso para saber por que você aceitou meu
convite. . .
Stephanie corou ligeiramente com o comentário inesperado.
- Porque estava com vontade de sair um pouco - disse por fim.
- Ah. sim? Podia ser com qualquer pessoa ou foi especialmente em minha
honra?
- Por que você quer saber? - perguntou com a cabeça baixa.
- Por que você é muito bonita e nós italianos damos um valor especial às
mulheres belas.
- Ah, você está brincando - disse Stephanie com um sorriso.
- Juro que não. Você sabe que é bonita e eu, afinal de contas, sou italiano.
Você me interessa, me intriga. E sua razão para aceitar . convite me intriga
ainda mais.
Stephanie passou a língua nos lábios secos.
- Por que você acha que eu aceitei o convite?
- Bem, você pode ter diversas razões. Mas vamos conversar sobre isso mais
tarde, certo?
- Como você quiser.
- Ótimo - disse Pietro com um sorriso.
Ela afundou no assento do carro tomada subitamente de um pressentimento
estranho. Era fácil imaginar que podia usar e abusar desse italiano na
segurança de sua casa, mas a situação era bem diferente ali,naquele carro
escuro, sozinha, sem ninguém para defendê-la. Por que Pietro a convidara
para jantar fora? Que interesse podia ter pela sua companhia?
Jantaram num pequeno restaurante italiano num bairro residencial da
cidade. Stephanie não conhecia a casa que estava se tornando cada dia mais
freqüentada pelos apreciadores da boa comida napolitana. Pietro foi
recebido com uma atenção especial pelo maitre e o serviço foi impecável. A
comida era um pouquinho temperada demais para o gosto de Stephanie, mas
o vinho estava divino e ela elogiou-o com entusiasmo.
Pietro sorriu, segurando o copo com as duas mãos, na altura dos olhos. .
- Esse vinho vem da Sicília, cara. Dos vinhedos do castelo de Strega.
- Castelo de Strega? - repetiu Stephanie intrigada. - Que nome estranho. . .
- É realmente estranho. Significa o castelo da bruxa. É a residência de meu
cunhado, Santino Ventura.
- Ah, só podia ser! - exclamou Stephanie com surpresa, deixando o copo em
cima da mesa.
- Você não simpatizou com Santino?
- Eu mal o conheço.
- Mas você condena naturalmente sua atitude?
- Claro. Meu pai está envolvido no caso.
- Pois é.
Stephanie inclinou-se sobre a mesa e encarou-o nos olhos.
- Por que você me convidou para jantar?
Pietro tirou um cigarro do maço e acendeu-o lentamente.
- O que você acha deste restaurante? Gosta da decoração?
Stephanie acompanhou seu olhar com a cabeça.
É muito bonito e a decoração é de ótimo gosto.
- Pois fique sabendo que pertence a uma das empresas de Santino.
- Ah, é? - murmurou Stephanie com indiferença. - Você não respondeu ainda
à minha pergunta. Por que me convidou para jantar fora?
Pietro bateu a cinza do cigarro no cinzeiro.
- Você também não me disse por que aceitou o convite. Estamos quites.
- Ah, isso não tem importância agora.
Claro que tem - insistiu Pietro inclinando-se para ela. Escute uma coisa,
Sthephanie... eu dou minha palavra de honra que não tenho nada a ver com o
que aconteceu hoje à tarde em sua casa.
Stephanie encarou-o surpresa.
- É difícil acreditar.
- Sou responsável, por acaso, pelas ações do meu cunhado? O que Santino
faz não me diz absolutamente respeito. Eu não tenho nenhuma influência
sobre ele.
- Nenhuma?
- Nenhuma. Se você pensou que podia influenciar Santino através de mim, se
enganou redondamente. Eu não decido nada.
Stephanie inclinou a cabeça em silêncio. Seu plano falhara lamentavelmente.
A frustração estava visível no seu rosto, como Pietro percebeu.
- Eu fiz o que pude - continuou Pietro. - Estou falando sinceramente. Não
queria, por nada desse mundo, que isso acontecesse. Fiz o possível para
Santino desistir do tal projeto, mas ele foi inflexível.
- Agradeço sua boa vontade - disse Stephanie levantando a cabeça.
- Foi muita delicadeza de sua parte nos ajudar nesta situação difícil.
- Não foi a seu pai que eu quis ajudar, Stephanie, foi a você disse Pietro com
os olhos brilhantes, estendendo a mão para segurar na dela. - Eu não quero
que você me queira mal pelo que sucedeu. Sobre tudo porque eu sinto muita
estima por você. Entendeu agora por que a convidei para jantar?
Ela ouviu a explicação em silêncio. Pietro, pelo visto, interpretara mal sua
ação.
- Pietro - disse Stephanie com a voz apreensiva. - Eu agradeço muito o que
você fez por nós... por mim... mas não interprete mal minhas palavras. Você
está completamente enganado a respeito dos meus sentimentos.
- Eu estou de pleno acordo!
Stephanie levou um susto enorme ao ouvir perto de si a voz alta e sonora de
Santino Ventura. Pietro soltou a mão dela no mesmo instante e voltou-se
sem jeito para o homem moreno que estava em pé ao lado da mesa.

CAPITULO III

Santino Ventura observava os dois com o porte arrogante e seguro de um


homem bem-sucedido. Stephanie, assustada e trêmula com esse
aparecimento inesperado, não podia entender como o italiano havia
encontrado os dois naquele restaurante. Há quanto tempo exatamente ele
estava ali, ouvindo o que diziam? Sentiu que devia falar alguma coisa, nem
que fosse para fingir uma naturalidade que não sentia, mas estava
completamente muda de susto diante do olhar penetrante de Santino.
Pietro, por seu lado, conservou-se num silêncio respeitoso. Santino falou
com ele em italiano, muito rapidamente, censurando-o provavelmente por sua
conduta.
Pietro tentou desculpar-se com um gesto da mão, típico dos italianos, mas
Santino não lhe deu a oportunidade de defender-se.
Aproveitando a conversa dos dois, Stephanie levantou-se furtivamente da
mesa. O momento lhe pareceu oportuno para dar o fora rapidamente dali. Os
dois estavam tão absortos na discussão que não notariam sua ausência. Mas
ela se enganou. No momento em que apanhou a bolsa e preparou-se para sair,
uma mão comprida e morena surgiu na sua frente e segurou-a pelo braço. O
aperto forte dos dedos deixou marcas vermelhas na pele e ela fez uma
careta de dor.
- Você vai ficar aqui! - ordenou Santino com firmeza.
Stephanie estava com a respiração ofegante e tentou desesperadamente
recuperar -seu sangue-frio.
- Você está me machucando! - exclamou. - Eu não faço parte de sua
organização e você não me assusta com suas ordens.
- Ah, não? - indagou Santino voltando os olhos brilhantes na sua direção. -
Você se julga diferente dos - outros por acaso? Você pensa que tem algum
poder especial sobre os homens? - perguntou com uma ironia visível na voz. -
No fundo, você é tão vulnerável e irresponsável quanto Pietro!
- Suas críticas não me atingem! - disse Stephanie trêmula de raiva.
- O que seu pai diria se soubesse que sua filha única se encontra
secretamente com meu assistente?
- Eu não vim aqui por razões pessoais! - retrucou Stephanie com despeito.
- Ah, não? E quem vai acreditar nisso? Sua madrasta, porventura?
- Por que você pergunta? Você tem a intenção de contar a ela?
Santino balançou a cabeça com indolência e soltou o pulso dela.
- Não sei ainda.
- Escute aqui, Santino - disse Pietro, intervindo na conversa.
Ela não tem culpa nenhuma. Eu a convidei.
Santino interrompeu-o com um gesto autoritário da mão.
- Vamos sentar novamente e tomar alguma coisa. Nós temos um assunto
importante a discutir com essa moça.
Sem esperar pelo consentimento dos dois, Santino puxou uma cadeira e
sentou-se com uma naturalidade espantosa. Fez sinal para o garçom e pediu
uma garrafa de champagne, enquanto Stephanie e Pietro hesitavam ainda se
deviam ou não voltar à mesa. O garçom fez um gesto cerimonioso com a
cabeça e se afastou prontamente para atender o pedido. Um minuto depois
estava de volta com uma garrafa de champagne dentro de um balde de gelo,
embrulhada num guardanapo impecável. O garçom retirou a rolha com todo
cuidado e serviu um pouquinho na taça que estava diante de Santino. No
momento em que Santino provou a bebida e assentiu com a cabeça, o garçom
serviu as outras taças em cima da mesa e tornou a colocar a garrafa no
balde de gelo.
- Deseja mais alguma coisa, padrone? - perguntou com uma inclinação do
tronco. .
Santino levantou a cabeça.
- Bene, Luigi. E sua mãe, como está passando?
- Ela está bem agora, padrone - disse Luigi, esfregando as mãos com
nervosismo. - Ela teria muito prazer em receber sua visita em nossa casa.
- Fica para outra vez, Luigi - disse Santino com um sorriso. - Eu estou numa
correria medonha e não tenho tempo para nada.
O garçom assentiu com um gesto brusco da cabeça e se afastou da mesa.
Stephanie, que acompanhara a cena com um interesse crescente, sentiu um
arrepio de apreensão quando a atenção de Santino se voltou para ela. Havia
um ar de energia tão grande nele que chegava a ser inquietante. Ela foi
forçada a admitir que aquele homem não podia ser esquecido facilmente.
- Você pensou então que podia me influenciar através de Pietro? perguntou
Santino à queima-roupa.
Não havia vantagem em negar a evidência, pensou Stephanie balançando os
ombros com indiferença. Santino apanhou uma cigarrilha no maço c colocou-
a entre os dentes. Depois de acendê-la e de soprar o fumo para alto;
perguntou com a voz insolente:
- Por que você tem tanto medo que seu pai seja afastado da companhia?
- Essa pergunta é ridícula! - retrucou Stephanie com raiva.
no momento seguinte, porém, ela se arrependeu de sua reação. Não podia
enfrentar aquele homem em campo aberto, e sabia disso.
- Ah, é? Por quê? Outros homens... homens mais fortes que seu pai...
sucumbiram diante de minha organização. Além disso, se ele se comportasse
como era previsto, teríamos levado o projeto ao seu termo e unido as duas
companhias.
- Meu pai não queria essa união - disse Stephanie, procurando manter a
calma. - Ele desejava uma oportunidade para levantar um empréstimo... seu
interesse era consolidar sua companhia. Com a união das duas companhias
ele só teria a perder. A autoridade e as decisões importantes seriam
retiradas de suas mãos e ele seria apenas uma figura decorativa na
organização.
Santino balançou a cabeça lentamente.
- E o que há de tão terrível nisso? Seu pai quer trabalhar a vida inteira?
Muitos homens anseiam pela aposentadoria como um descanso merecido.
Sobretudo porque ele não é mais jovem. . . .
- Você não conhece meu pai. A aposentadoria seria seu atestado de óbito!
Santino colocou a cigarrilha entre os dentes.
Por que você diz isso?
Minha madrasta é muito mais moça que meu pai. . .
Eu sei disso - interrompeu Santino com rispidez.
Nesse caso, é fácil entender o motivo de sua recusa.
- Não há dúvida que sua madrasta é uma mulher extravagante e que está
acostumada ao luxo.
- Jennifer não se importa a mínima com a companhia. Para ela tanto faz
quem esteja na direção, contanto que ela receba os dividendos.
Mas o acordo que lhe ofereci é perfeitamente razoável.
- Eu sei disso. Por sinal, ela tentou seduzir meu pai com sua oferta.
- Na minha opinião, os problemas de seu pai são mais de ordem pessoal do
que profissional - acrescentou Santino com um suspiro. - Eu não me sinto
responsável pelas excentricidades de sua madrasta.
- Eu sabia que você ia tirar o corpo fora! - exclamou Stephanie com os
punhos cerrados.
- O que você quer? Eu não sou um conselheiro matrimonial. Dirijo um grupo
de empresas que confiam nas minhas decisões. O sentimento não entra na
minha atividade.
- Está na cara! - murmurou Stephanie apertando as unhas na palma da mão.
Santino examinou em silêncio a ponta acesa da cigarrilha.
- Vamos voltar, portanto, ao motivo de sua vinda aqui esta noite...
O que você pretendia exatamente? Persuadir Pietro a interceder por seu
pai?
Stephanie ouviu a pergunta em silêncio, com a cabeça inclinada.
- Mas pela maneira como você tentava se soltar das mãos de Pietro, eu diria
que seu propósito não era muito forte - acrescentou Santino em tom de
zombaria.
- Eu não tenho a obrigação de ficar sentada aqui ouvindo suas grosserias -
desabafou Stephanie, fazendo menção de se levantar da mesa.
Pietro tomou seu partido.
- Santino, você não está vendo que essa moça é inocente? Ela só está
interessada nos problemas do pai, mais nada. O que tem isso de mais? Você
não gostaria que Lucia fizesse o mesmo por você?
Os olhos frios de Santino pousaram sobre os de seu assistente.
- Eu lhe disse antes, Pietro, para você não se meter nessa conversa.
você fala como um idiota apaixonado. Ninguém duvida de seus sentimentos.
Pietro enrubesceu como um adolescente apanhado em flagrante e Stephanie
ficou com pena dele.
- Bem, eu vou andando - disse ela, fazendo menção de se levantar da mesa.
- Um minuto! - ordenou Santino com o olhar gelado. - Eu não terminei ainda o
que estava dizendo e não tenho o costume de repetir duas vezes a mesma
coisa. - Voltou-se para Pietro. - Você mencionou Lucia. Posso saber por quê?
Pietro balançou a cabeça sem jeito.
- Foi apenas uma comparação.
Santino colocou a cigarrilha entre os dentes enquanto servia mais
champagne.
- Eu não quero mais, obrigada - disse Stephanie colocando os dedos em cima
de sua taça.
- A comparação de Pietro me deu uma idéia - prosseguiu Santino
pensativamente.
- Qual foi? - perguntou Pietro com curiosidade.
- Uma boa idéia - repetiu Santino, retirando a cigarrilha da boca e soprando
a fumaça para o alto. - Você disse que Lucia precisava de uma companhia
feminina, está lembrado?
Pietro apertou os olhos e fixou-o com curiosidade. Em seguida, abriu a boca
e olhou para seu cunhado como se não pudesse acreditar nas suas palavras.
- Você está falando sério? Não me diga que vai convidar Stephanie para
tomar conta de Lucia? Não, não é possível... Que história é essa, Santino? O
que você está planejando desta vez?
- Nada de mais - disse Santino impassível.
Stephanie, que ouvira em silêncio a conversa entre os dois com um
pressentimento estranho, sentiu-se de repente tomada de pânico. Embora
não entendesse inicialmente o que eles conversavam em voz baixa, sabia que
não podia ser nada de bom para ela. E quem era essa tal de Lucia a respeito
de quem a conversa girava? Era a mulher dele? Irmã? Sua filha? Stephanie
refletiu rapidamente, procurando lembrar o que seu pai dissera a respeito
de Santino Ventura. Era casado?
Ao voltar de seu devaneio, seus olhos encontraram de cheio com os de
Santino e ela sentiu a face pegar fogo diante do olhar insolente do italiano.
- Você me serve perfeitamente - disse Santino lentamente, inclinando a
cabeça para o lado.
- Posso saber para quê? - perguntou Stephanie intrigada.
Santino apagou a cigarrilha com um gesto displicente.
- Eu tenho uma filha. Chama-se Lucia. A mãe dela morreu quando Lucia
nasceu. Ela tem apenas quatro anos e necessita urgentemente de uma
companhia feminina, uma moça sensível e inteligente, de preferência, a quem
possa recorrer nas suas dificuldades. É difícil encontrar alguém nessas
condições na ilha. As moças em geral se casam cedo e as velhas não saem de
casa. Além disso, gostaria que Lucia aprendesse inglês, o que lhe seria muito
útil mais tarde. E você preenche exatamente essas condições.
Stephanie nãó sabia se devia achar graça ou chorar. A proposta era
totalmente ridícula. Fixou-o boquiaberta, em silêncio, sem lhe ocorrer uma
idéia sequer para lhe dar uma resposta à altura. Como esse italiano
arrogante podia imaginar que aceitaria um emprego de babá? Era incrível
que semelhante idéia tivesse passado pela cabeça dele! Ela não conhecia os
costumes na Sicília, mas jamais podia imaginar que os homens
subestimassem a esse ponto as mulheres.
- Eu francamente não entendi o que você disse - começou Stephanie,
escolhendo cuidadosamente as palavras. - Não me lembro de ter dito
durante nossa conversa que estava procurando emprego, muito menos de
babá. - Procurou descontrair os músculos do rosto, mas a fisionomia
permaneceu tensa mesmo assim. - Além disso, você é a última pessoa no
mundo de quem eu aceitaria um emprego.
Santino ouviu a resposta em silêncio.
- Se você não entendeu minha proposta, a culpa não é minha disse por fim,
acendendo outra cigarrilha. - De qualquer maneira, eu aconselharia que você
refletisse um pouco mais sobre a sugestão, antes de recusá-la
sumariamente.
Stephanie mordeu o lábio com impaciência.
- Evidentemente eu não entendi o que você disse - observou com a voz
glacial. - Pode repeti-la de novo?
Santino tragou a fumaça escura da cigarrilha e soltou o fumo lentamente
para o alto.
- Seu pai precisa de dinheiro. Você mesma reconheceu isso. Eu estou
sugerindo um acordo no qual garanto um capital suficiente para seu pai
modernizar e expandir as instalações de sua companhia aérea. Não vou
interferir na sua administração, contanto que ele aceite os termos do
contrato. Não desejo naturalmente que ele concorra com minha companhia
aérea, mas forneça um serviço adicional para uma clientela diferente.
Stephanie sentiu as pernas bambas. Um tremor percorreu seu corpo inteiro
e ela mal ouviu as palavras que Pietro dirigiu ao cunhado. Seu único
pensamento era saber que lhe fora dada a oportunidade de salvar o pai de
uma situação insustentável e que ela tinha em mãos a chance única de
protegê-lo das ameaças de Jennifer e dos outros acionistas.
Mas quanto custava isso para ela?
Pietro, ao notar a palidez do seu rosto, apanhou um copo de vinho e levou-o a
seus lábios. A bebida a estimulou e Sthephanie afundou na cadeira,
segurando com força a beira da mesa.
- O que foi, Stephanie? - perguntou Pietro com a fisionomia preocupada.
Colocou a cadeira ao lado da dela e observou-a com solicitude.
Stephanie balançou a cabeça lentamente e a expressão impassível de
Santino teve um efeito maior sobre seus nervos que o vinho que tomara.
Levantou os ombros com determinação e endireitou o corpo.
- Posso fumar um cigarro, por favor?
Pietro colocou um cigarro entre seus lábios e acendeu o isqueiro. Santino
observava os dois em silêncio.
- Quando você estiver em condições de conversar, me avise - disse ele, sem
a menor consideração por seus sentimentos.
- Santino, pelo amor de Deus, deixe Stephanie em paz! - exclamou Pietro
com os punhos cerrados.
Santino fez um gesto expressivo com as mãos.
- Se, você não se comportar, Pietro, vou pedir para se retirar da mesa.
Esse assunto diz respeito unicamente a Stephanie e a mim.
Pietro apertou os lábios com força, com um gesto de frustração e de
rebeldia, mas não fez menção de levantar-se.
- Então, Stephanie, você aceita ou não minha sugestão? - insistiu Santino
com a voz impassível.
- Você está disposto a fazer um empréstimo à companhia de meu pai se eu
servir de babá para sua filha, é isso?
- Mais ou menos.
Stephanie balançou a cabeça perplexa. Voltou-se em seguida para Pietro,
como se pedisse socorro, mas Pietro limitou-se a fazer um gesto com a mão.
Pelo visto, ele também estava totalmente sob o controle de seu cunhado.
- Mas não seria preferível contratar uma moça com mais prática?
- perguntou Stephanie, procurando ganhar tempo. - Há centenas de pajens
nessas condições que dariam tudo para passar uns tempos na Sicília.
- Eu fiz a proposta a você - disse Santino com frieza.
não havia maneira de arrancar nada dele. O italiano era totalmente
desprovido de qualquer emoção.
- Mas como seria possível? - perguntou Stephanie com a voz sumida.
- Isso depende exclusivamente de você.
- Não, você não entendeu minha pergunta. Eu tenho um emprego aqui.
Trabalho numa clínica psiquiátrica infantil. Não posso sair assim de uma hora
para a outra, sem mais nem menos.
- Isso é com você.
Stephanie deu um suspiro de desânimo.
- E minha casa, minha família? - Ela passou a mão nos cabelos com
nervosismo. - Eu também tenho um namorado. Pensamos em ficar noivos no
Natal.
Embora a afirmação não fosse estritamente correta, não havia razão para
omiti-la. Santino porém limitou-se a balançar os ombros com indiferença,
sem fazer nenhum comentário.
Pietro, no entanto, achou o momento oportuno para intervir.
- Você não me falou nada que ia ficar noiva!
Stephanie levantou a cabeça.
- Eu achei que isso não lhe dizia respeito. - Voltou-se para Santino.
- Preciso refletir com mais calma sobre sua proposta.
- Eu não tenho muito tempo.
Stephanie deu um suspiro fundo.
- Como posso decidir um assunto desses na hora?
- Por que não? A questão é muito simples. O que você prefere: ajudar seu
pai num momento de dificuldade ou deixar que ele vá à falência?
- Isso não é justo!
- Nada na vida é justo, se você pensar bem. - observou Santino com frieza. -
Agora vou me retirar. Pietro vai acompanhá-la até em casa.
Eu lhe dou doze horas para decidir. - Olhou para o relógio de pulso.
- Espero uma resposta sua até as onze horas de amanhã. Você pode
telefonar para mim neste número. Basta dizer sim ou não.
- Mas eu não posso. . .
Santino levantou-se da cadeira e estendeu a mão.
- Arivederci, signorina Pietro! .
Pietro levantou-se prontamente, pediu licença a Stephanie e acompanhou o
cunhado até a porta do restaurante. Ouviu atentamente suas
recomendações enquanto Stephanie observava os dois com o coração na
mão.
O que ia fazer? Podia recusar uma oferta dessas? Nunca perdoaria a si
mesma se o pai fosse à ruína por uma negligência de sua parte.
Quando Pietro voltou, ela estava em pé ao lado da mesa.
- Preciso voltar sem demora para casa.
- Pois não - disse Pietro afastando-se para deixá-la passar.
Lá fora, o vento gelado da noite bateu no rosto dela com força, provocando
um arrepio de frio. Mas o frio vinha de dentro, um frio inspirado pela
presença de Santino e Stephanie teve a impressão de que nunca mais se
libertaria desse sentimento penoso.
- Desculpe o que aconteceu - disse Pietro quando tomaram um táxi na
esquina.
- Não foi nada. Você não tem culpa.
- O que você vai fazer agora? - perguntou Pietro após um instante de
silêncio.
- Não sei ainda. Vou pensar - respondeu Stephanie com a voz sumida.
- Você vai contar a seu pai?
- Não! - exclamou com vivacidade. - Não posso fazer isso. Tenho que tomar a
decisão sozinha.
Pietro assentiu com a cabeça e Stephanie teve a impressão exata de que ele
aguardava essa resposta dela. Quando o táxi parou defronte de casa, ela
desceu sem aguardar que Pietro lhe desse a mão.
- Boa noite, Pietro. Muito obrigada por tudo.
- O prazer foi meu.
Antes que ele pudesse acrescentar alguma coisa, Stephanie afastou-se
rapidamente e subiu os degraus da escada de dois em dois.
Por infelicidade, Jennifer estava plantada na sala de entrada. Vestida com
um robe de tafetá vermelho escuro, que acentuava a beleza morena do seu
corpo esguio, Jennifer estava realmente muito bonita, como Stephanie foi
obrigada a reconhecer.
- Ah! até que enfim você voltou! - observou ela com frieza no momento em
que Stepl}anie fechou a porta da frente. - Onde você andou até essas
horas?
Stephanie não respondeu. Atravessou rapidamente a sala em direção à
escada, murmurando uma desculpa em voz baixa.
- Allan passou aqui. Ele queria saber onde você estava. Seu pai disse que
vocês dois iam se encontrar numa festa. Allan ficou surpreso com a
resposta. Evidentemente, um dos dois estava enganado.
Stephanie voltou-se para a madrasta com o rosto cansado.
- O que Allan disse? , - Ficou aborrecido, naturalmente. Afinal, você disse
que não podia sair porque estava com dor de cabeça.
- Ah, que inferno! - murmurou Stephanie entre os dentes. - Que inferno,
meu Deus!
- Modere sua linguagem - observou Jennifer em tom de zombaria.
Deu um bocejo. - Ah, estou morta de sono. Onde você foi afinal?
- Sair.
- Isso eu estou vendo.
- Boa noite, Jennifer - murmurou Stephanie em voz baixa, começando a
subir a escada.
- Você saiu com Pietro, por acaso? - insistiu Jennifer. - Ele não desgrudou
os olhos de você a tarde inteira. Aposto que vocês saíram juntos... Acertei?
Stephanie parou de novo, com a mão no corrimão, e voltou-se para sua
madrasta. Jennifer fitou-a em silêncio e deu uma risadinha de zombaria.
- Coitado do Allan! Esperou horas por você, conversando com seu pai na
biblioteca.
- Você se enganou, Jennifer - disse Stephanie com a voz perfeitamente
calma. - Eu não estou absolutamente interessada em Pietro Bastinado. .
Jennifer franziu a testa.
- Então com quem você saiu? Você não conhece mais ninguém a não ser os
amigos de Allan. E não foi, claro, com nenhum deles que você saiu. Isso está
na cara! - Ela embrulhou-se no robe e observou atentamente sua filha
adotiva, como se lhe ocorresse uma idéia de repente. Ah, já sei! Você foi se
encontrar com Santino. . .
Fez uma pausa e aguardou com ansiedade a reação de Stephanie. A reação
porém não foi suficientemente rápida para desfazer a suspeita de Jennifer:
Ela encarou-a com os olhos brilhantes.
- Não me diga que você tentou negociar com Santino?
Stephanie balançou a cabeça lentamente, mas Jennifer não se deu por
vencida. Segurou o corrimão da escada e encarou-a com raiva. Stephanie
abafou uma exclamação de susto e subiu correndo a escada. Ouviu a voz
metálica de Jennifer chamando-a de baixo, mas fingiu que não era consigo.
Atravessou correndo o corredor e foi refugiar-se no quarto de dormir.
Passou a chave na porta para que Jennifer não pudesse entrar.
- Stephanie! - gritou Jennifer do corredor. - Abra essa porta que eu quero
conversar com você.
- Me deixe em paz, Jennifer - respondeu Stephanie indo para o banheiro. -
Eu vou dormir. Estou morta de cansaço.
- Stephanie, se você esteve com Santino e se meteu na venda das ações, eu
juro que você vai acertar contas comigo!
Stephanie apertou os lábios com força e entrou no banheiro. Fechou a porta
por dentro e abriu a torneira de água para encobrir as batidas de Jennifer
no corredor. Em seguida, sentou-se exausta na beira da banheira e afundou
o rosto nas mãos. O que ia fazer agora, Deus do céu?
Dormiu mal aquela noite. Virou muitas vezes de um lado para o outro da
cama, sem sono. Quando adormecia, o sono era agitado, repleto de imagens
desagradáveis, um verdadeiro pesadelo povoado de demônios, bruxas,
castelos pegando fogo. Acordou banhada de suor, tremendo de medo, as
roupas da cama amontoadas nos seus pés. Levantou-se aos primeiros raios
do sol e foi até a janela que dava para a cidade. Em alguma parte daquele
aglomerado de casas e de edifícios Santino Ventura estava dormindo num
quarto luxuoso de hotel, sem sonhar com nada, tranquilamente, indiferente
aos problemas e às angústias dos outros. Nada o perturbava
emocionalmente. Não tinha nenhum sentimento de compaixão ao próximo. .
Por que ela fora escolhida para exercer as funções de babá? Que diferença
havia entre ela e uma pajem com experiência? Qualquer outra pessoa seria
mais indicada do que ela. Não tinha nenhuma prática de tomar conta de
crianças, muito menos ensinar a ler e a escrever. Não sabia quase nada de
italiano e Lucia evidentemente não falava uma palavra de inglês. A situação
era realmente insustentável.
Afastou-se da janela e deitou de bruços na cama, olhando fixamente para o
telefone vermelho em cima da mesa de cabeceira. Allan já estava acordado?
O que tinha pensado de sua saída na noite anterior? Ah, por que fora dizer
que estava com dor de cabeça? Allan ia pensar mil coisas, inc1usive que tinha
saído com Pietro por alguma razão pessoal. . .
Virou de costas e olhou para o teto. Que importância isso tinha no final das
contas? Se fosse morar no tal castelo de Strega, nunca mais tornaria a ver
Allan. . . , Ficou no quarto até tarde, a fim de evitar um encontro
desagradável com Jennifer. Quando faltavam cinco minutos para as onze,
telefonou para o número que Santino lhe dera na véspera. Uma voz
masculina atendeu e insistiu para saber quem desejava falar com o signor
Ventura. Alguns segundos depois o próprio Santino atendeu o telefone.
A voz dele era fria e impessoal pelo telefone, exatamente como se lembrava
de ter ouvido na noite anterior.
- Você dormiu bem?
- Mais ou menos.
- Decidiu alguma coisa?
- Decidi.
- Sim ou não?
- Sim.
- Essa é sua decisão final?
- É.
- Antes que pudesse acrescentar alguma coisa, Santino desligou o telefone.
Colocou o fone no gancho e ficou um instante parada, olhando
pensativamente para o aparelho vermelho. O siciliano era um bruto
insensível, não era um homem de carne e osso, um ser humano racional. Os
labios dela tremeram de nervosismo. Dera sua palavra e agora tinha que
contar ao pai sua decisão. .
-Abriu a porta do quarto e desceu lentamente a escada. Felizmente
Jennifer não estava por perto, mas Miller, a empregada, olhou surpresa
para ela quando a viu descer no hall de entrada.
- Ué, você não tomou café hoje?
- Não estava com vontade. Mais tarde, talvez. Obrigado, Miller.
Você está sentindo alguma coisa?
- Não, tudo bem - disse Stephanie com um sórriso sem graça. Não dormi
muito bem à noite. Deve ser isso. Meu pai já saiu? - Ainda não. Está na
biblioteca, conversando com o senhor Ventura.
Stephanie voltou-se intrigada para a empregada.
- Com o senhor Ventura? Não é possível!
- Como não, se fui eu que atendi o telefone?
Stephanie passou a língua nos lábios secos.
- E Jennifer? Onde ela foi?
- Ela saiu há uma hora, mas não disse onde ia.
- Ah, bom. Você leva por favor o café para mim na biblioteca? Vou ter uma
conversa com meu pai.
- Pois não. Num minuto.
Stephanie atravessou o hall e dirigiu-se à sala do pai. Bateu de leve na porta
e entrou. O pai estava falando realmente no telefone, como Miller dissera, e
voltou-se no momento em que Stephanie entrou na sala. Ele parecia ouvir
com atenção o que Santino estava dizendo. As sobrancelhas grisalhas
estavam levantadas no alto do nariz, como se estivesse admirado com as
palavras que ouvia e fez sinal com a mão para a filha aproximar-se da mesa e
sentar-se ao lado.
Pelo visto, Stephanie não teria que contar ao pai a decisão que tomara.
Santino antecipara-se a ela. Ele queria deixar tudo bem claro,
evidentemente.
Após alguns instantes, o pai passou a mão na testa franzida, coberta de
gotinhas de suor.
- Tudo isso me parece um pouco excessivo - comentou pelo telefone.
Stephanie prestou atenção e ouviu a voz metálica de Santino no outro lado
da linha, enquanto o pai balançava a cabeça repetidas vezes. - Sim, sim, eu
sei, eu sei. Mas é difícil aceitar, mesmo assim. Eu nunca podia imaginar que. .
Stephanie franziu a testa, intrigada. Imaginar o quê? O que Santino disser
que espantara seu pai? Ela gostaria de ouvir a conversa numa extensão.
Bateu de leve no braço do pai para chamar sua atenção mas ele afastou a
mão dela com impaciência. Evidentemente, não queria perder uma palavra do
que o italiano dizia.
- Bem, se é isso que os dois desejam; está tudo certo... Não nego que a
notícia me surpreendeu, mas eu sei que os jovens decidem as coisas
impulsivamente. E minha filha tem apenas dezoito anos, embora seja uma
mulher adulta pela lei. Mas eu preferia que ela tivesse confiado em mim...
Sim, sim, eu entendo que a situação seja delicada... mas, de qualquer forma,
era de esperar... - Robert deu um suspiro fundo, interrompendo a frase pelo
meio. Stephanie ouviu a conversa com uma apreensão crescente. O que
Santino estava dizendo que provocava esse espanto visível no pai? - Com
respeito à companhia a solução é perfeitamente satisfatória - prosseguiu
Robert McMaster pelo telefone. - Talvez seja uma atitude egoísta da minha
parte, mas estou muito contente com sua decisão.
Stephanie cruzou e descruzou os dedos, nervosamente. Essa frase pelo
menos fazia sentido. Santino tinha cumprido sua promessa. O pai voltaria a
dirigir a companhia aérea graças ao seu empréstimo. Ela, por sua vez, ia
acompanhar o italiano à Sicília, onde moraria num castelo no alto do morro,
na solidão de uma ilha que até hoje desafiava as leis de continente.
Nesse momento, seu pai lhe dirigiu um sorriso.
- Você quer falar com Stephanie? Claro. Ela está aqui ao meu lado. Vou
passar o telefone para ela. Um segundo. Como? Ah, vai passar aqui depois do
almoço? Combinado. Estou à sua espera, então, para acertarmos tudo. Até
mais tarde.
Stephanie estendeu a mão úmida e segurou o telefone. O que Santino queria
falar com ela? Não ficara tudo combinado? Robert lhe dirigiu um olhar
estranho e foi com dificuldade que ela levou o fone ao ouvido.
- Alô?
- Stephanie? Preste atenção ao que eu vou dizer.
A voz dele parecia tão fria e metálica que chegava a incomodar. Ela afastou
instintivamente o fone do ouvido.
- Estou ouvindo. Pode falar.
- Seu pai ainda está aí?
- Sim. Está ao meu lado.
- Peça para ele se afastar!
Por quê?
- Eu não quero falar com você na frente dele. Faça o que eu pedi.
- Não estou entendendo bem - disse Stephanie dirigindo ao pai um olhar sem
jeito.
Como se tivesse ouvido a conversa entre os dois, Robert McMaster
levantou-se da cadeira e caminhou até a porta.
- Vou sair um instante - murmurou de lá. - Assim vocês dois têm mais
liberdade.
- Não precisa! - disse Stephanie, cobrindo o fone com a mão.
Robert porém acenou com a mão e saiu da sala fechando silenciosamente a
porta atrás de si. Stephanie aguardou um segundo para recuperar... sangue
frio antes de levar o fone novamente ao ouvido.
- Pronto, papai já saiu da sala. O que você queria dizer?
- Você está sozinha? Não tem mais ninguém na sala?
- Estou sozinha. Por quê?
- É muito simples, Stephanie. Eu disse a seu pai que você ia embarcar para a
Sicília comigo... como minha mulher.

CAPITULO IV
Stephanie estava diante do espelho da penteadeira observando
atentamente sua imagem refletida ali. O vestido longo de tafetá branco
acentuava o brilho dourado dos cabelos e os olhos, pintados por um
maquilador de renome, pareciam enormes no rosto pequeno. O vestido de
soirée era lindo, feito com rendas italianas, modelava os seios e os quadris
como uma luva, e era certamente a roupa mais cara que ela já vestira na
vida.
Mesmo assim, ela o odiava!
Afastou-se do espelho com a mão na garganta e procurou regularizar as
batidas aceleradas do coração. Ao fazer isso, a aliança de diamante que
usava na mão direita prendeu nos fios do véu. Soltou-a com cuidado, alisando
a superfície facetada da pedra. Brilhava no dedo com uma elegância
incomparável, mas lhe parecia pesada demais! A sensação de peso era
conseqüência da palavra que empenhara e Santino sabia disso,
provavelmente, quando lhe dera esse presente de noivado.
Santino!
Afundou o rosto entre as mãos. Dentro de uma hora seria sua mulher e
depois... Prendeu a respiração. Ah, Deus do céu, por que fora empenhar sua
palavra?
Acalmou-se com dificuldade, foi até a janela e respirou fundo o ar fresco da
manhã. Não podia entregar os pontos agora. Não deixaria o pai desconfiar
que havia algo profundamente errado no casamento. Santino o convencera
que o namoro começara há algumas semanas e que o tinham ocultado por
causa da união das companhias e do possível transtorno que podia decorrer
disso. Robert McMaster deixara-se convencer pela conversa de Santino mas
Jennifer, pelo jeito, não acreditava numa palavra da história, embora não
pudesse fazer nada para impedir o casamento.
Ao contar primeiro a decisão a Robert McMaster, Santino evitara que
Stephanie mudasse de idéia no último momento. O plano era perfeito em
todos os detalhes. Ela se tornara uma simples boneca nas mãos dele.
O que podia alegar quando o pai abordasse o assunto diretamente? Não
podia dizer, evidentemente, que Santino a convidara para ser babá da filha
pequena. Isso destruiria a confiança que Robert depositava ,no futuro
genro. Santino fora muito arguto ao envolver os dois numa situação sem
saída.
Ela tremeu ao se voltar para a penteadeira. Era fácil considerar as
alternativas, mas não podia escolher nenhuma delas. Se desistisse,
arruinaria a oportunidade que o pai tinha de se recuperar economicamente.
Santino não sugerira o casamento na noite em que se encontraram no
restaurante italiano porque tinha certeza que Stephanie recusaria
terminantemente a proposta, impossibilitando a execução de seu plano. Ao
sugerir a viagem na condição de babá, ele preparara o caminho para obter o
consentimento dela.
Santino tinha certeza que Stephanie não voltaria atrás na palavra dada.
Ela, por sua vez, estava furiosa diante da total falta de respeito de seus
sentimentos. Mesmo agora, não podia acreditar que Santino abusara de sua
confiança para obter o consentimento do pai. E nem mesmo a afirmação dele
de que o casamento era uma simples questão de conveniência tranqüilizava
sua mente. Na opinião dela, fora o maior erro de sua vida.
Santino não gostava dela e não tinha feito o menor segredo disso. Para <alar
a verdade, abandonara-a nas mãos de Pietro e de um outro homem de
confiança, Mario Vecchi, que fazia parte de sua comitiva. Mesmo assim,
Santino insistira no casamento, sabendo de antemão que ela abominava a
idéia de embarcar para a Sicília na condição de pajem de sua filha. No
fundo, nada fazia sentido.
Stephanie sentou-se diante da penteadeira e apoiou o queixo na mão.
Era possível haver alguém mais desumano que Santino? Ou será que ele não
era, no íntimo, tão impiedoso quanto parecia à primeira vista? Pietro gostava
dele e lhe votava uma lealdade total, se bem que o temesse. Luigi, garçom do
restaurante italiano, também gostava dele, embora não ocultasse o medo
que Santino lhe inspirava. E ela?
Stephanie deu um suspiro de desânimo. Sentia apenas medo, mais nada.
Santino não era um homem que inspirasse afeto. O que havia por trás da
máscara implacável que exibia aos outros? Não fraquejava nunca? Sentia
ternura pela filha pequena? Ou era ela, como Stephanie seria em breve,
apenas um brinquedo que usava e do qual se descartava quando se cansava
dele? Afundou o rosto entre as mãos e os ombros estremeceram de
ansiedade. Fosse qual fosse a resposta a essas perguntas, Santino não
fizera o menor esforço para tranqüilizar o pai e Jennifer de suas justas
apreensões. Não tivera o menor gesto de carinho na presença dos outros,
embora Stephanie tivesse certeza que era apreciada e desejada pelo
italiano.
Ouviu uma batida na porta e levantou-se bruscamente do banquinho.
Quem é? - perguntou assustada.
Sou eu - respondeu o pai de fora.
Pode entrar. A porta está aberta.
Ah, minha filha! - exclamou Robert McMaster ao entrar no quarto e avistar
a beleza do vestido branco de noiva. Havia lágrimas nos olhos quando a
contemplou embevecido e Stephanie controlou-se para não desatar
igualmente no choro. - Você está linda com esse vestido! - disse, balançando
a cabeça. - Linda e muito parecida com sua mãe. Eu não
quero pensar que você vai nos deixar dentro de algumas horas. É isso
realmente que você quer, minha filha?
Não era a primeira vez que o pai fazia essa pergunta. Ela dera a entender
antes que estava perfeitamente feliz com o casamento mas, naquele
momento, a questão produziu uma repercussão mais profunda na sua
lembrança. Esforçou-se para não explodir no choro e contar tudo ao pai.
- Você sabe que sim, papai. Por que haveria de me casar com Santino se não
desejasse isso?
- Ah, eu não sei. Fiz a mim mesmo essa pergunta uma dezena de vezes na
última semana. Por falar nisso, eu não sabia que você conhecia Santino há
mais tempo. Ele me disse que vocês se encontraram aqui na ocasião das
primeiras negociações.
Stephanie abaixou a cabeça sem jeito.
_ Nós não comentamos nada com ninguém - disse, seguindo a recomendação
de Santino. - Queríamos que você decidisse primeiro a união das duas
companhias antes de anunciarmos nosso propósito. Foi somente depois que
achamos conveniente comunicar o fato a você.
Robert balançou os ombros.
- Bem, se foi assim, está tudo certo. Mas você podia ter comunicado sua
decisão com mais antecedência ao Allan. O rapaz está desconsolado, como
você pode imaginar.
- Faço idéia - disse Stephanie, mordendo o lábio. - Infelizmente, não foi
possível agir de outro modo. Eu sei que me conduzi mal com ele, mas tenho
certeza agora que nós dois não seríamos felizes no casamento.
- Eu pensava que sim, que vocês se davam muito bem.
- Tudo não passou de amizade. Sentíamos prazer na companhia um do outro.
Só isso.
Stephanie dizia a verdade, num certo sentido. Desde a ruptura com Allan,
sentira um certo alívio.
- Quer dizer que você espera ser feliz nesse casamento? .
- Claro que sim, papai - disse Stephanie, procurando ocultar seus
sentimentos verdadeiros.
- Faço votos que esse casamento seja a decisão mais certa para você minha
filha. Se bem que Santino seja mais velho que você e já tenha sido casado
antes. Aliás, você não conhece ainda a filha dele.
- Lucia tem apenas quatro anos, papai.
- Eu sei, mas você já pensou nas exigências normais do casamento. Lembre-
se que Santino não é nenhum rapaz inexperiente... Ele é um homem vivido.
Robert começou a andar nervosamente de um lado para o outro do quarto,
como se a situação delicada atormentasse sua mente.
- Eu também não sou mais criança. Sei como essas coisas são, não me
assuste.
- Você pode saber na teoria, mas na prática é outra coisa. Você tem certeza
do que está fazendo?
- Absoluta. Você não precisa se preocupar. Estou perfeitamente consciente
de minha decisão.
O pai passou os dedos entre os cabelos ralos.
- Nesse caso, desejo sinceramente que vocês dois sejam felizes! Santino vai
ajustar contas comigo, se você sair ferida desse casamento...
Stephanie tocou no rosto cansado do pai com a ponta dos dedos.
- Você é um amor papai. Muito obrigada por tomar minha defesa.
Robert McMaster afastou-se e assuou o nariz ruidosamente. Voltou-se em
seguida e perguntou com uma inflexão mais calma na voz:
- Você está pronta? O carro vai passar para nos pegar dentro de meia hora.
Stephanie olhou mais uma vez para seu reflexo no espelho.
- Eu estou pronta. Mas por que temos que ir no carro de Santino?
Não podíamos ir no seu?
- O Mercedes dele é maior e vai levar quatro pessoas, sem contar claro o
motorista. Você. Jennifer, Mario Vecchi e eu. - Robert fez um gesto de
impaciência. - Não entendo por que Santino anda com um guarda-costas para
todo lado!
Stephanie corou ao ouvir as palavras do pai.
- Talvez ele se preocupe comigo - disse sem jeito. .
- Nesse caso, por que não concordou com uma cerimônia na igreja, em vez
desse casamento civil? Podia ter esperado mais uma semana...
Stephanie passou os dedos sobre a pequena coroa de pérolas que fora da
sua mãe e que prendia o véu na cabeça. O casamento civil era o único ponto
fraco no plano de Santino. Como não estavam casados na igreja, podiam
separar-se quando bem entendessem. Não tinham nenhum compromisso um
com o outro. Mas ela não podia dizer isso ao pai; contentou-se por isso em
dar um sorriso sem graça e segurou-o pelo braço.
Olhando em direção à porta. - Vamos descer papai. Eu gostaria de tomar
alguma coisa antes de sair.
- Boa idéia. Vamos preparar um coquetel.
Jennifer estava na sala quando entraram de braços dados. Os únicos
convidados eram Harold Mortimer e a mulher Evelyn, a irmã de Robert,
encontrar-se com eles no registro civil. Stephanie tinha receio que sua tia
não fosse áo casamento, sobretudo porque Jennifer estaria presente mas
pelo visto. a idéia de rever a sobrinha levou Evelyn a Jazer uma concessão
dessa vez.
Quanto a Santino, fazia três dias que Stephanie não o via. Pietro disse que
não iam convidar ninguém a não ser alguns amigos Íntimos.
Stephanie respirou aliviada quando Mario Vecchi entrou na sala e anunciou
que o carro estava lá fora à espera da noiva e dos pais. Alto, de cabelos
grisalhos, Mario Vecchi era mais velho que os outros homens da comitiva de
Santino e, em outras circunstâncias, Stephanie teria apreciado sua
companhia. No momento, porém, sua presença não era muito benquista.
Afinal, Mario lembrava a ela o que a aguardava na ilha. O casamento civil foi
tão rápido que Stephanie teve a impressão de não estar casada. Mas a
aliança de ouro na mão esquerda era real, bem como a pressão dos dedos de
Santino no momento em que se inclinou para beijá-la publicamente no
encerramento da cerimônia. Era certamente o casamento mais estranho que
já presenciara na vida e ficou contente quando todos entraram novamente
nos carros e rum aram para o hotel onde Santino estava hospedado e onde
os aguardava uma pequena recepção.
Santino sentou-se ao lado de Stephanie no banco de trás, enquanto Mario
Vecchi ia na frente, ao lado do motorista. Separados dos dois homens por
um vidro espesso, Santino tomou a liberdade de conversar com Stephanie
num tom mais íntimo.
- Pronto, o casamento está consumado! - disse com um sorriso irônico nos
lábios. - Você se comportou muito bem.
- Isso é um elogio?
- Não seja amarga. Stephanie. Acredite em mim. Essa foi a melhor, solução
para todos.
Para você talvez. Mas não para mim.
- E seu pai, não conta?
- Ah Sim, não posso me esquecer dele. Você deve estar se sentindo um
herói!
- Mais ou menos. Por que você fala comigo nesse tom agressivo?
Para ocultar o medo que lhe inspiro?
- Eu não tenho medo de você e nunca tive! - explodiu Stephanie com raiva.
- Ah, não? Então por que você me trata com tanto respeito?
- Eu não me habituo a tratá-lo com intimidade, só isso.
Ele balançou os ombros e tirou o maço de cigarros do bolso.
- Não vamos discutir esse assunto agora. Temos tempo de sobra, mais
tarde.
Stephanie afastou o rosto e olhou fixamente pela janela do carro. Tinham
tempo de sobra, pensou furiosa. Tempo para acordar e tempo para dormir,
tempo para sonhar e para pensar no que esse siciliano podia querer dela.
Um almoço suntuoso foi servido aos convidados no salão do hotel.
Entretanto, embora Stephanie procurasse se conduzir naturalmente, não
conseguiu apreciar nenhum dos pratos divinos que o garçom lhe serviu.
Tomou diversas taças de champagne, porém e começou a sentir-se
ligeiramente tonta quando a sobremesa foi servida. Santino percebeu isso a
m1po e conduziu-a discretamente para o bufê de salgados e de frios.
- Coma alguma coisa! - disse com firmeza.
Stephanie estendeu a mão, apanhou um canapé e levou-o à boca.
- Não estou com fome - murmurou, com a voz meio arrastada. Você não pode
forçar uma pessoa a comer sem fome. Já basta ter me obrigado a casar sem
vontade. . .
- Comporte-se! - murmurou ele, com o rosto sério. - Não faça nenhum
comentário como esse, mesmo que não tenha ninguém por perto, está
ouvindo?
- Você está me machucando, seu bruto! - disse Stephanie, tentando soltar-
se dos dedos que agarravam seu braço com força.
- É para você aprender a ser obediente no futuro.
Nesse momento, felizmente, um conhecido aproximou-se de Santino e ele
soltou seu braço com uma palavra casual. Stephanie continuou perto da mesa
de frios, aterrada com a idéia de viajar com esse italiano grosso para a
Sicília. Notou que havia alguém ao seu lado e levantou a cabeça sem jeito,
enxugando uma lágrima que rolou pelo rosto. Era apenas Pietro, no entanto,
e ele fingiu que não tinha percebido seu gesto.
- Sua tia está perguntando por você, Stephanie.
- Tia Evelyn? Ah, que bom! - exclamou, enxugando os olhos com lencinho de
cambraia. - Onde ela está? Eu estou com os olhos vermelhos, Pietro?
- Não, você está linda, cara! - murmurou Pietro, com sinceridade.
Pela primeira vez, Stephanie apreciou a idéia de ter um admirador na pessoa
de Pietro.
- Muito obrigada. Pietro. Você é um anjo.
- Eu sempre vou estar ao seu lado... Se algum dia você precisar de mim,
basta fazer um sinal.
Stephanie sorriu com tristeza para ele e foi ao encontro de sua tia, que
estava conversando com o irmão. Evelyn Lacey era uma mulher de sessenta e
tantos anos, exuberante e simpática, que andava permanentemente com uma
bengala na mão. Sofria de reumatismo e fizera um grande esforço para ir ao
casamento da sobrinha.
- Então, minha querida? Está com mais juízo depois que casou?
- Você já foi apresentada a meu marido? - indagou Stephanie, - com um
sorriso.
- Santino? Mas claro! Somos velhos conhecidos. Robert me disse que ficou
surpreso com esse casamento. Pois eu não fiquei nem um pouco. Era
exatamente o que esperava de você, minha querida.
Stephanie olhou para a tia com os olhos arregalados.
- Você esperava isso? - repetiu espantada. - Por quê?
- Que dúvida! Santino é um homem irresistível. Se eu tivesse sua idade, o
pescaria para mim!
Stephanie caiu na risada com a idéia absurda da tia. Evelyn evidentemente
não podia imaginar o motivo que a levara a casar-se com Santino.
- Fico contente de saber que você simpatiza com ele - disse.. No momento
seguinte ela sentiu a presença de alguém ao seu lado e, embora não voltasse
a cabeça na direção do recém-chegado, tinha certeza que era Santino.
- Olhe só quem está ai! - exclamou Evelyn, com um sorriso. Estávamos
falando de você nesse momento. Meus parabéns pelo casamento. Você
conseguiu finalmente o que queria.
Santino deu um sorriso com o canto da boca e Stephanie percebeu um traço
de candura no rosto moreno.
- Muito obrigado por ter vindo ao nosso casamento, tia Evelyn disse Santino
beijando a mão da mulher de idade. - Você vai direto para o céu quando
morrer!
- E você vai direto para o inferno!- retrucou Evelyn, com uma gargalhada
descontraída. Voltou-se para o irmão. - Então, Robert? Onde está sua
mulher, que não estou vendo?
- Eu estou aqui, lia Evelyn - disse Jennifer, a dois passos dali. E você, como
está passando? Melhorou do seu reumatismo? Você está com boa
aparência...
- Não tão boa quanto você! - disse .Evelyn, com uma risada. E esse casaco de
pele que você está usando? Comprou para o casamento?
Não entendo como Robert pôde fazer uma- despesa dessas nas
circunstâncias atuais...
Santino aproximou-se nesse momento e segurou Evelyn pelo braço.
- Vamos tomar alguma coisa, tia Evelyn? Você não bebeu ainda desde que
chegou. Posso lhe oferecer uma taça de champagne? Vamos fazer um brinde
a sua sobrinha e ao nosso 'casamento. . .
Evelyn fixou-o no fundo dos olhos e sorriu encabulada.
- Está bem, está bem, eu sei que eu falo demais - disse, seguindo-o até a
mesa posta na outra extremidade do salão.
Stephanie hesitou um instante e depois foi ao encontro dos dois. Eles
estavam em pé ao lado do bufê, bebendo champagne e conversando em voz
baixa. Ela não sabia que Santino conhecia tia Evelyn com tanta intimidade.
- Sua mulher é muito bonita, Santino - disse Evelyn, no momento em que
Stephanie se aproximou dos dois. - Tome muito cuidado para não perdê-la.
Santino voltou-se e fixou-a com uma olhar enigmático, misto de admiração e
de ironia. Stephanie corou com as palavras da tia, mas Santino limitou-se a
balançar os ombros com indolência.
- O vestido também é muito bonito - disse, com a fisionomia impassível.
- Ah, deixe disso, Santino! Confesse que você está encantado com sua
mulher!
- Por favor, tia Evelyn! - suplicou Stephanie, corada como um pimentão.
Evelyn bebeu o último gole de champagne e devolveu a taça vazia Santino.
- Por favor, Santino, sirva-me outra taça enquanto troco uma palavra com
minha sobrinha.
Santino apanhou a taça e afastou-se com uma pequena inclinação da cabeça.
- Que bom encontrá-la aqui, tia Evelyn! - exclamou Stephanie, ao se viram
sozinhas.
- Você é uma ingrata. Você nunca mais foi lá em casa!
Slephanie deu um suspiro sem jeito.
- Ah, você sabe como é... Eu nunca tenho tempo para nada.
Anos atrás, quando as críticas de Jennifer atormentavam mais do que agora
seu coração sensível, Stephanie costumava refugiar-se na casa da tia. Nos
últimos meses, contudo, fora poucas vezes lá.
- Sim, eu sei como é. Na sua idade os programas não faltam, sobretudo
agora, que você é uma mulher casada. Como está se sentindo, filha?
Slephanie inclinou a cabeça antes de responder.
- Como devia me sentir, tia?
- Sou eu que estou perguntando.
- Estou contente, naturalmente.
- Está mesmo? Pois olhe, não é essa a impressão que você me dá.
Você me parece antes com o mosquito que foi apanhado na teia da aranha.
Se seu pai não enxerga isso é porque ele é mais cego do que imaginava. . .
- O que é isso, tia? - exclamou Stephanie, surpresa com o comentário
agressivo da mulher de idade.
- E não é verdade, por acaso?
- O quê?
- Que você se meteu numa boa?
- Juro que não estou entendendo...
- Ah, não se faça de sonsa, minha querida - disse Evelyn, olhando em volta e
inclinando-se para Stephanie, como se fosse dizer um segredo.
- Você não me engana, menina.
- Do que você está falando, tia? - perguntou Stephanie, com ansiedade na
voz.
- Eu sei o motivo verdadeiro do seu casamento.

CAPITULO V

As coisas pareciam girar em sua volta e ela segurou-se com força na beira
da mesa. Evelyn notou seu rosto lívido e assustou-se.
- O que é isso, Stephanie? As pessoas vão dizer que você bebeu demais, se
você desmaiar no meio do salão!
O comentário cru da tia foi uma ducha fria. Stephanie voltou a si e olhou
espantada para os lados.
- Então? - indagou Evelyn, após um momento. -É verdade ou não que esse
casamento não é uma união de amor?
- Como você sabe? - indagou Stephanie, com a voz sumida.
- Santino não é nenhum idiota. Ele não financiaria a companhia de seu pai se
não tivesse uma razão para agir assim, sobretudo nessas circunstâncias. . .
- Que circunstâncias, tia?
- Ah, nada, nada. Seja como for, a realidade é essa. O que você vai fazer
agora?
- Em que sentido você pergunta'?
- Ah, por favor, Stephanie, não se faça de ingênua comigo! Eu também já
passei por tudo isso... Como você não tem mãe para conversar esses
assuntos, eu me sinto na obrigação de comentar o caso com você.
- Se for com respeito à cegonha, você não precisa se preocupar,
titia - disse Stephanie, cruzando e descruzando os dedos. Ela percebeu que
Santino estava conversando com Pietro e Mario a alguma distância dali.
Evelyn fixou-a com impaciência.
- Não me venha com essa conversa só porque estou querendo ajudá-la!
Stephanie mordeu o lábio com nervosismo.
- Se você quer realmente me ajudar, devia ter impedido esse casamento? -
disse Stephanie, com franqueza, encarando-a nos olhos.
- Impedido o casamento? - repetiu Evelyn, balançando a cabeça. Eu não faria
isso de jeito nenhum!
- Por que não?
- Porque Santino é o homem certo para você. Só assim você vai saber o que é
obedecer e respeitar a vontade de um marido. Você sempre fez o que quis
com seus namorados. Santino não é um desses adolescentes que morre de
medo das mulheres! Ele é um homem de fato, o senhor de um castelo na
Sicília...
- Pode ser. Mas não foi por isso que ele casou comigo. Ele não precisa de
uma mulher, ele quer apenas uma companhia para a filha pequena.
- Talvez seja essa sua idéia. Mas você não mora na mesma casa com um
homem sem manter contatos íntimos com ele. O que você vai fazer quando
Lucia estiver dormindo? Quando suas funções de governanta não forem
necessárias?
Stephanie levou a mão à garganta.
-Não sei...
- Ah, que fim levou Santino com minha bebida? - exclamou tia Evelyn, de
repente. - Santino!
Santino aproximou-se das duas e estendeu a taça de champanhe a Evelyn.
- Então, trocaram muitas confidências?
Stephanie afastou a cabeça sem jeito.
- Pode ficar sossegado - disse Evelyn. - Eu sou a discrição em pessoa. Onde
está meu irmão? Preciso ter uma conversinha com ele...
- Você vai falar com ele a respeito do que conversamos? - perguntou
Stephanle, assustada.
- Não, não se preocupe! Por que haveria de estragar a alegria dele?
Deixo isso para Jennifer.
Evelyn afastou-se lentamente pelo meio da sala, apoiada na bengala que
levava sempre consigo, enquanto Stephanie permanecia parada e muda como
uma estátua.
Santino aproximou-se dela e fitou-a com o rosto preocupado.
- O que vocês duas conversaram? Por que você está com essa cara?
Stephanie passou a língua nos lábios secos.
- Ah, as fofocas de sempre...
- Eu imaginei - disse Santino, com frieza. - Queria avisar você que vamos
partir dentro de vinte e três minutos exatamente.
- Partir? Para onde? - indagou Stephanie, espantada.
- Você já esqueceu que vamos viajar hoje à tarde?
- Ah, sim! - disse Stephanie, levando a mão ao pescoço. - Minha mala! Eu
tenho que trocar de roupa.
Mario providenciou tudo. Há um quarto no hotel com suas coisas.
- Onde é? - perguntou Stephanie, com nervosismo.
- Mario vai acompanhá-la. - Santino voltou-se e estalou os dedos.
Mario Vecchi aproximou-se no mesmo instante. Santino deu as instruções
necessárias e voltou-se para Stephanie. - Você está bem? Não precisa de
nada? Não quer que eu a acompanhe?
Stephanie controlou com dificuldade o acesso de riso nervoso que
borbulhava na garganta. Imagine Santino acompanhando-a até o quarto de
dormir e vendo-a se trocar diante do espelho! Era só o que faltava!
Sobretudo agora, quando as palavras da tia estavam impressas na sua
imaginação.
- Não, muito obrigada. Não precisa. Eu vou sozinha!
Stephanie fez meia-volta e dirigiu-se para a porta do salão, seguida por
Mario Vecchi.
O quarto reservado para ela fazia parte da suíte de Santino e podia
acomodar facilmente umas dez pessoas. Atravessaram uma sala enorme
decorada de creme e verde-musgo, inteiramente atapetada. No momento em
que Mario abriu a porta do quarto, Stephanie deu uma exclamação de
surpresa diante do luxo do aposento. Ela nunca tinha visto nada igual na
vIda.
- Seu quarto é esse aqui - disse Mario, com um sorriso. - Deseja mais alguma
coisa?
- Não, muito obrigada - respondeu Stephánie, olhando em sua volta com a
boca caída. - Que quarto imenso!
Mario assentiu com a cabeça.
- Nós sempre ocupamos esta suíte. Sua mala está aqui. Todas as outras
bagagens foram mandadas para o aeroporto. Quando tiver terminado de se
vestir, basta me chamar que eu vou acompanhá-la de volta até o salão.
Stephanie agradeceu e fechou a porta por dentro. Despiu-se rapidamente,
tomou banho de chuveiro e vestiu as roupas limpas' que estavam na mala.
Depois de pronta, mirou-se com atenção no espelho da penteadeira.
Estava um pouco pálida, mas não quis pintar o rosto para disfarçar a palidez.
Na realidade, a brancura da face combinava com seu estado de espírito. Era
natural que estivesse apreensiva sobre o futuro.
Ouviu uma batida urgente na porta e voltou-se prontamente no banquinho da
penteadeira.
Quem é? - perguntou, com a voz ligeiramente trêmula.
- Signorina! Está em cima da hora! - disse Mario, do lado de fora.
- Num minuto.
Deu um suspiro e balançou a cabeça com desânimo. Que importância tinha se
Mario a chamasse de signorina em vez de signora? No fundo, ela não se
sentia casada. Não tinha a aparência de uma mulher casada. Na realidade,
em todos os sentidos da palavra, não estava casada com o italiano! .
Levantou-se do banquinho, abriu a porta do quarto e saiu no corredor.
- Desculpe o atraso, Mario. Eu me demorei mais do que devia no banho.
- Não foi nada, signorina. O patrão está meio impaciente.
Mario levou a mala onde ela guardara o vestido branco de noiva, abriu
a porta para ela passar e acompanhou-a pelo corredor comprido. Não havia
maneira de fugir do inevitável, pensou Stephanie, com um arrepio.
Todos os caminhos levavam ao salão verde-musgo onde Santino a esperava.
Ele estava andando impacientemente de um lado para o outro e amarrou a
cara quando os dois entraram.
- Onde vocês estavam? Estamos em cima da hora!
Mario fez um gesto expressivo com as mãos, à maneira dos latinos, e trocou
algumas palavras rápidas com Santino em italiano. Stephanie não entendeu o
que os dois conversaram. Robert e Jennifer estavam parados perto dali, na
companhia de Harold Mortimer e da mulher.
Robert aproximou-se da filha ao notar seu ar desconsolado.
- Você está pronta? - perguntou com carinho.
Stephanie sentiu uma vontade incontrolável de cair na risada. Pronta?
Ela nunca estaria pronta nem preparada para esse casamento!
Controlou com dificuldade o riso nervoso e despediu-se do pai.
- Adeus papai. Você vai me escrever?
- Sem falta! E, logo que puder, irei até lá para ver como você está.
Afinal, essa é a vantagem de possuir uma companhia aérea. Não falta
condução!
Stephanie sorriu sem graça e voltou-se para Jennifer. Sua madrasta falara
muito pouco durante o dia e sua reação ao casamento não fora em absoluto o
que Stephanie esperava dela. Jennifer despediu-se de Stephanie sem muito
entusiasmo e, no momento em que trocaram um beijo, ela comentou em voz
baixa, de maneira a não ser ouvida por ninguém:
- Você se sacrificou à toa, querida.
Stephanie ouviu o comentário em silêncio, sem esconder sua surpresa.
Jennifer sorriu com o canto dos lábios e se afastou dali, para que Harold e a
mulher se despedissem dela. Finalmente foi a vez de tia Evelyn. Sem fazer
nenhum comentário sardônico, como era seu hábito, ela deu um beijo na
sobrinha.
- Seja muito feliz, minha filha - murmurou com lágrimas nos olhos.
- Você tem tudo para ser.
Stephanie ouviu com emoção as palavras sinceras da tia e despediu-se dela
quando Santino fez um sinal indicando que estava na hora de partir.
Na calçada do hotel havia repórteres, fotógrafos, cinegrafistas. .Os dois
sentaram no banco de trás do Mercedes, ao lado de Pietro e de Mario,
enquanto Giulio ia no banco da frente, ao lado do motorista.
Stephanie teria preferido ir ao aeroporto com menos gente no carro.
Havia três pares de olhos que a observavam discretamente, com um misto
de curiosidade e de respeito, enquanto Santino examinava os papéis que
retirou de uma pasta preta que Pietro lhe estendeu. Nenhuma recém casada
fora tratada com maior indiferença pelo marido. Ela devia sentir-se à
vontade, mas não se sentia. Experimentava em vez disso um sentido imenso
de _ solidão, como se tivesse deixado para trás todas as pessoas queridas a
fim de partir com esse italiano frio e indiferente para uma ilha distante.
Nem mesmo o sacrifício que fazia por seu pai era suficiente para banir a
terrível impressão de isolamento.
Enquanto Santino estava absorto na -leitura dos documentos, Stephanie
aproveitou para examiná-lo detidamente, com o canto dos olhos. Notou os
pêlos negros que nasciam nas costas das mãos e que surgiam por entre as
abotoaduras de ouro no punho da camisa. Os dedos dele eram compridos e
morenos, e o único anel que usava tinha um brasão da família gravado em
baixo-relevo. Stephanie examinou-o com atenção e procurou visualizar sua
filha. Era morena como o pai ou era uma dessas italianas de pele clara e
cabelos alourados? Santino era um homem indiscutivelmente cativante e ela
não entendia como podia manter uma forma física impecável sendo uma
pessoa tão ocupada.
Ele levantou a cabeça em dado momento, mas não fez nenhum comentário ao
encontrar os olhares dos três homens voltados para os dois.
A impaciência porém estava visível na sua fisionomia, bem como uma espécie
de insolência, e Stephanie abaixou a cabeça sem jeito. Em seguida, voltou
deliberadamente sua atenção para a janela do carro. Naquele momento ela o
odiava de todo coração pelo que tinha feito consigo e quando ele percebesse
que ela não ia ceder um palmo, a mandaria de volta para a Inglaterra, com
um pedido de divórcio.
A chegada da comitiva ao aeroporto foi auspiciosa. No interior do avião,
todo o compartimento da frente fora reservado para Santino e sua
comitiva. Iam viajar diretamente para Palermo e, de lá, tomariam o carro
para o castelo de Strega.
Era gostoso poder andar de um lado para o outro durante a viagem e
Stephanie fiçou contente quando o jantar foi servido pela aeromoça porque
tinha alguma coisa com que se ocupar. Santino não estava sentado ao lado
dela. Tinha uma mesinha diante da poltrona e comeu o jantar delicioso com
uma mão enquanto com a outra fazia cálculos numa folha de papel. Stephanie
teve que se contentar com a companhia de Pietro.
Em Palermo, outro motorista de uniforme cinza os esperava no aeroporto.
Somente Mario os acompanhava dessa vez. Pietro e Giulio iam no outro
carro, atrás. Os dois automóveis eram pretos com frisos dourados e
Stephanie pensou com um misto de ironia e de amargura que davam a
impressão de um cortejo fúnebre. A noite tinha descido rapidamente e
Santino não podia trabalhar no interior escuro do automóvel. Aquele era o
momento oportuno para conversarem um pouco antes de chegarem ao
castelo, mas ele parecia absorto num assunto que o inquietava. Assim, o
longo trajeto transcorreu em silêncio, num clima de solidão e de tristeza.
Levaram duas horas exatamente para chegar. Nesse meio tempo, Stephanie
começou a sentir arrepios de frio e enroscou-se no seu canto como uma
gata, sem abrir a boca. Estava mental e fisicamente gelada. Não havia muito
o que ver. A escuridão era completa. Além das luzes dos faróis, não se
enxergava mais nada, a não ser alguns riachos que corriam à beira da
estrada. Os perfumes da ilha penetravam pelas janelas do carro e podia
reconhecer os aromas fortes dos limoeiros, dos pés de jasmins e das
laranjeiras em flor.
Deu um suspiro alto. Havia tanta coisa para ver, tanta coisa para conhecer
que preferia ter passado a noite em Palermo e viajar no dia seguinte para o
castelo. Sentia-se totalmente exausta para assumir suas funções de dona-
de-casa aquela noite. Estava realmente morta de sono.
Finalmente o carro começou a subir a ladeira Íngreme que levava ao castelo
no alto do morro. Ao perceber sua fisionomia abatida, Mario comentou com
animação:
- Estamos chegando, signorina. Esse é o castelo de Strega. Já estamos em
casa.
- Signorina não, signora - corrigiu Santino, com sua voz cortante.
- Seusi, padrone! - disse Mario, sem jeito.
Santino fez um gesto com a cabeça e endireitou-se no banco. Voltou-se em
seguida para Stephanie, que olhava pela janela aberta para as primeiras
luzes que se avistavam ao longe.
- Chegamos. Sophia está esperando por nós.
- Quem é Sophia? - perguntou Stephanie, com a voz cansada.
- A nossa caseira. Ela toma conta da casa na minha ausência. Deve ter
preparado o jantar em sua honra. Você está com fome?
Stephanie balançou a cabeça negativamente. Beliscara uns sanduíches c uns
salgadinhos no avião, e tomara alguns goles de vinho tinto, mas agora estava
sem nenhum apetite. Só a idéia de comer lhe dava náusea.
- Há mais alguém a nossa espera?
- A essa hora não - disse Santino, olhando para o relógio. - Já passa das dez.
Lucia deve estar dormindo. Você vai conhecê-la amanhã cedo.
Stephanie ouviu o comentário em silêncio. Agora que estavam praticamente
no castelo, estava transida de medo. Não tinha idéia do que Santino
esperava dela e preferia poder ir diretamente para a cama - sozinha.
O carro parou diante da escada que terminava numa porta dupla de madeira
de lei. Santino desceu e deu a volta para abrir a porta do lado dela.
Stephanie tropeçou com as pernas dormentes da longa viagem e Santino
estendeu a mão e segurou-a pelo braço. O contato físico foi rápido. Mesmo
assim, ela sentiu o perfume penetrante de sua pele e a musculatura rígida
das pernas. No momento seguinte, contudo, Santino soltou seu braço e
inclinou-se para o interior do carro, de onde retirou a pasta preta com os
documentos. Stephanie caminhou como uma sonâmbula em direção à luz que
vinha da porta aberta.
Uma mulher de idade estava de pé na soleira. Vestida inteiramente de
preto, à maneira dos antepassados, tinha a fisionomia distante e fria.
Stephanie hesitou um instante antes de subir os degraus que levavam à sala
da frente. Era aquela a caseira de que Santino falara? A mulher tinha a
aparência de poucos amigos.
Santino passou por ela nesse momento e cumprimentou de longe a
empregada.
- Buona sera, Sophia. Come stà lei?
- Graze, padrone, sto molto bene.
Stephanie entrou em pânico ao se dar conta de que precisava aprender
rapidamente italiano para se fazer entender no castelo. Até então os
membros da comitiva de Santino falavam inglês. Ao chegar no alto da
escada, Santino voltou-se e colocou a mão no ombro de Stephanie,
empurrando-a praticamente em direção à porta, enquanto Mario se ocupava
das bagagens. O outro carro chegara nesse meio tempo e havia mãos de
sobra para transportar as malas.
- Esta é minha mulher, Sophia - disse Santino, apresentando-a à caseira. -
Ela é inglesa e só fala um pouquinho de italiano. Você precisa ensinar a ela
nossa língua.
- Buona sera signora - disse Sophia, estendendo a mão a Stephanie.
- Bem-vinda ao castelo de Strega.
Stephanie deu um sorriso sem graça e respondeu ao cumprimento da mulher
em italiano, consciente de que Santino a observava atentamente.
Sophia afastou-se da porta para os dois passarem. Stephanie entrou
lentamente no hall do castelo e, no primeiro momento, ficou deslumbrada
com a beleza imponente do interior. A escuridão da noite acentuava a
aparência sombria do exterior do castelo, mas os lustres de cristal
lançavam faíscas de luz em todas as direções, banhando a sala de uma
claridade férrica. Para Stephanie, acostumada à pequena casa do pai na
Inglaterra, o castelo renascentista italiano parecia o cenário de um filme
fabuloso. Não podia acreditar que ia morar ali e ser a dona de tudo aquilo.
Era verdade que uma menina de quatro brincava nos azulejos do piso?
Que carregava as bonecas no colo na escada suntuosa de mármore? Que
andava pela casa de pés descalços e deixava marcas em cima do assoalho
brilhante? Era pouco provável que Lucia gozasse de tanta liberdade assim,
especialmente se levasse em conta a figura severa e silenciosa de Sophia.
Santino, pelo visto, estava perfeitamente à vontade naquele ambiente de
sonho. Atirou com displicência o sobretudo em cima da cadeira e atravessou
o vestíbulo em direção à sala situada na outra extremidade.
- Venha até aqui, Stephanie. Sophia vai nos servir um café com leite e uns
sanduíches.
- Si, padrone - disse Sophia, com uma pequena inclinação da cabeça.
Stephanie acompanhou o marido até a sala iluminada por um abajur de canto.
Havia um grande tapete persa que cobria parte do assoalho e cadeiras
macias de couro com almofadas estampadas de diversas cores. As paredes
cor de havana tinham pinturas que representavam paisagens típicas da
Sicília, como plantações de uvas e de laranjas, sem falar em algumas belas
marinhas. As cortinas que cobriam as janelas eram cor de vinho. A sala
refletia um bom gosto estupendo e Stephanie ficou curiosa em saber quem
era o responsável pela decoração do castelo. - Sente-se - disse Santino,
indicando uma das cadeiras. de couro. Stephanie afundou na almofada macia
com a impressão estranha de que as coisas seguiam seu curso inevitável.
Gostaria de tirar os sapatos de salto alto que incomodavam seus pés, mas
era tudo tão imponente em sua volta que ela ficou sem jeito, como se o
ambiente luxuoso lhe inspirasse um sentimento de respeito.
Santino porém desabotoou tranqüilamente o paletó e flexionou os músculos
doloridos do pescoço. Estava com a fisionomia cansada. O dia fora muito
exaustivo para os dois, pelo visto. Santino, apesar de toda sua tremenda
vitalidade, sofria como qualquer um os inconvenientes da fadiga muscular.
Stephanie observou-o um instante em silêncio, sem saber o que dizer para
iniciar a conversa, porque o silêncio estava começando a pesar entre os dois.
- Por que você está me olhando com essa cara? - perguntou Santino ao notar
a expressão ansiosa do seu rosto. - Eu não vou pular em cima de você e
exigir os direitos conjugais. Quando lhe pedi em casamento, deixei bem
claro meus inotivos. Eles não mudaram de lá para cá. Continuam sendo os
mesmos. É sua imaginação que é muito viva e pinta as coisas de uma forma
assustadora. - Ele deu alguns passos na sua direção, enquanto afrouxava o
nó da gravata. - Nós não tivemos oportunidade de conversar desde que nos
vimos pela primeira vez, mas agora temos tempo de sobra.
Stephanie ouviu o comentário com a cabeça ligeiramente inclinada.
As palavras dele eram frias e distantes, semelhantes às que empregara
àquela noite no restaurante italiano, quando a convidara para acompanha-lo
ao castelo de Strega.
- Por que você diz que eu tenho a imaginação viva? De onde você tirou essa
idéia?
- Como todas as mulheres que eu conheço, você supõe que a emoção seja
parte essencial das ações humanas. Mas isso não é verdade, pelo menos
comigo. Eu notei, desde nosso primeiro encontro, que você me observa com
um misto de curiosidade e de interesse. Conscientemente ou não, você
procurou descobrir algum motivo profundo para minha atitude, a fim de
descobrir meu ponto fraco.
- Você está sonhando!
- Não é verdade?
- Claro que não! - disse Stephanie, torcendo a alça da bolsa com nervosismo.
Ela odiou a ironia que estava visível no rosto dele. Como tinha a audácia de
imaginar que estava interessada nele, um homem que tentara arruinar
deliberadamente seu pai, um homem desprovido dos sentimentos mais
elementares? Outras mulheres podiam sentir atração por sua masculinidade
exuberante, mas ela não se contentava com um sensualismo superficial. -
Para seu governo, o único homem cuja opinião eu admiro mora na
Inglaterra... e não aqui, nesta ilha inculta e atrasada. - Ela levantou a cabeça
com insolência. - Ele é um homem culto e não um selvagem. . .
A escolha das palavras talvez fosse meio infeliz mas, naquele momento, seu
único desejo era atingi-lo. Ela foi bem-sucedida, aliás. Santino ouviu o
comentário agressivo com uma irritação visível e Stephanie congratulou-se
intimamente pelo alcance de suas palavras. Mas quando o silêncio se
prolongou de novo, ficou meio apreensiva com as possíveis represálias que
podiam ocorrer.
Felizmente Sophia entrou nesse instante com a bandeja de café.
- Ah, muito obrigada, Sophia. Pode deixar a bandeja em cima da mesinha que
nós nos servimos.
Sophia cruzou os braços em cima da cintura.
- O senhor deseja que acompanhe a senhora ao seu quarto?
- Não, não precisa, Sophia - disse Santino, com vivacidade, olhando com um
sorriso cruel para Stephanie. - Nós vamos subir juntos. Você arrumou as
camas?
Si, padrone. Fiz exatamente como o senhor mandou.
Bene, hene, Sophia, Você pode ir se deitar. Boa noite, Sophia.
Boa noite - disse Sophia, dirigindo-se para a porta.
Ah, um minuto, Sophia. Onde estão os outros?
O senhor Pietro e o senhor Francisco já foram dormir. O senhor Mario está
no quarto, - Bem, então fica para amanhã. Boa noite e muito obrigado,
Sophia, por ter preparado esse lanche fora de hora.
- Grazie, padrone. Buona noite, signora.
- Boa noite, Sophia - disse Stephanie, levando a mão ao pescoço. Depois que
a empregada saiu, ela levantou-se com nervosismo da poltrona.
- Pelo amor de Deus, fique sentada! - exclamou Santino, com impaciência. -
Prove pelo menos uma xícara do nosso café, É muito diferente do líquido
aguado que servem na Inglaterra, Puro ou com creme?
- Com uma colherinha de creme - murmurou Stephanie, Santino serviu o
café e estendeu a xícara para ela, Stephanie segurou-a cuidadosamente,
evitando tocar nos dedos dele e afastando o rosto dos olhos brilhantes que
pareciam se divertir com seu nervosismo.
- Algumas colheres de açúcar fariam bem a você no momento comentou
Santino, com ironia. - Você está precisando de mais energia no sangue. Está
branca como cera! Minha presença a incomoda?
-Como era inútil discutir com ele, Stephanie preferiu não responder.
Bebeu em vez disso o café em goles pequenos e manteve os olhos afastados.
Após terminar, colocou a xícara na bandeja e balançou a cabeça
negativamente quando Santino lhe ofereceu uma segunda xicara. Ela estava
terrivelmente consciente do italiano na sua frente, da força física do corpo
moreno, da energia que transpirava de sua pessoa. De repente, o castelo de
Strega se transformou numa prisão hedionda e Santino era seu carcereiro.
Sentiu um aperto no coração e começou a tremer. Santino percebeu seu
tremor e fitou-a com atenção.
- O que foi agora, Stephanie? Por que você está com essa cara de vítima? Eu
não sou o tal selvagem que você falou. Sou um homem civilizado. - Levantou-
se e caminhou até a porta. - Venha, vou acompanhá-la até seu quarto. Você
está cansada e eu também.
Stephanie levantou-se com dificuldade da poltrona e caminhou com
dignidade em direção à porta; passou por ele e atravessou o hall. Santino
fechou a porta atrás de si, apagou as luzes da sala e seguiu-a em direção à
escada de mármore iluminada por arandelas douradas.
Ela não notou na sua passagem o corrimão de ferro lavrado, nem apreciou os
nichos nas paredes, onde estavam diversas imagens antigas de santos.
Estava coro muito sono para poder desfrutar esses requintes de bom gosto.
No alto da escada havia uma galeria de onde se avistava o hall embaixo e
havia ali muitas pinturas a óleo penduradas nas paredes.
Homens de feições severas e mulheres de peles claras rivalizavam uns com
os outros em solenidade e graça. Nenhum deles porém possuía tanta
arrogância e orgulho quanto Santino, o atual senhor do castelo.
Santino foi na frente quando entraram na ala ocidental do castelo.
Parou diante de uma porta alta e esperou por ela. Depois de abrir a porta
trabalhada, em madeira de lei, fez sinal para ela entrar no quarto.
Stephanie obedeceu e deparou com um aposento enorme, imponente como
um pavilhão, no centro do qual avistou uma cama de dossel que não teria
destoado num palácio dó século dezoito. Tudo no quarto parecia construído
segundo uma escala grandiosa. A penteadeira com o espelho de várias faces,
a escrivaninha trabalhada a mão, os guarda-roupas imensos que cobriam as
paredes. Um carpete macio de lã branca era a única concessão ao gosto de
nossa época.
Stephanie voltou-se pata Santino, que estava apoiado na porta, com a
indolência atraente de um felino.
- Eu vou dormir aqui? - perguntou com a voz aflita.
Santino endireitou o tronco.
- Mandei arrumar este quarto especialmente para você. Foi nessa cama que
dormiram todas as antigas donas do castelo. - Ele franziu a testa. - Eu
também nasci nessa cama...
- E você?
- Não se assuste, não vou dormir aqui. Eu nunca usei este aposento.
Stephanie olhou em volta. A única luz vinha da lâmpada de cabeceira e era
insuficiente para banir a impressão terrível de solidão.
- Este quarto é grande demais para mim - murmurou, tomando coragem. - Eu
preferia dormir num quarto menor...
- Por favor, Stephanie, não complique as coisas! Há um minuto atrás você
disse que estava cansada e queria dormir. Agora, de repente, mudou de
idéia. - Passou os dedos com impaciência entre os cabelos negros. - Durma
hoje aqui. Amanhã nós conversamos com mais calma sobre isso.
Stephanie juntou as mãos numa atitude suplicante.
- Onde você vai dormir?
Ele soltou o nó da gravata e desabotoou a camisa.
- No quarto ao lado. Ah, antes que me esqueça. O banheiro fica ali - disse,
apontando para uma segunda porta.
Havia uma terceira porta em frente, como Stephanie percebeu.
- E a outra, de onde é?
- Do quarto de vestir. Está sempre fechado. Não é usado para nada.
- Stephanie sentiu um arrepio de apreensão. Santino dirigiu-se para a porta.
No momento em que virou a maçaneta, com a intenção evidente de deixá-la,
ela deu um passo à frente.
- Como eu faço se precisar de alguma coisa?
Santino encarou-a com impaciência.
- Você não vai precisar de nada, Stephanie. Durma bem.
Ao dizer isso, fechou a porta atrás de si com um movimento firme da mão. .
Stephanie ficou parada diante da porta, ouvindo os passos que se afastavam
pelo corredor. Lá embaixo, as ondas quebravam sobre as pedras.
Foi até a porta e saiu na sacada. Ao luar, podia enxergar vagamente as
rochas escarpadas que terminavam no mar. O ruído das ondas quebrando era
mais alto ali que no quarto. Debruçou-se um instante no parapeito e avistou
o abismo a seus pés. Com um arrepio de frio, tornou a entrar no quarto e
fechou a porta atrás de si.
Uma mariposa enorme, assustada com esse movimento brusco, voou
diretamente para cima dela. Stephanie abafou um grito de pavor e derrubou
a borboleta com a mão. Ela ficou um instante no chão, batendo as asas.
Stephanie fechou os olhos e pisou em cima dela com toda a força.
De repente, não se importou mais com o fato de Santino ser o responsável
por sua infelicidade. Desejava apenas que ele estivesse ali, ao seu lado, a
fim de que pudesse esquecer o ocorrido graças à energia contagiante de sua
personalidade.

CAPITULO VI

Apesar dos acontecimentos recentes, Stephanie dormiu profundamente na


primeira noite passada no castelo. O corpo exausto afundou na maciez do
colchão de casal que a envolvia como uma carícia.
Acordou na manhã seguinte com a impressão esquisita de que havia alguém
no quarto. Os raios do sol atravessavam as venezianas fechadas, embora
fossem apenas sete horas da manhã. Stephànie apoiou o cotovelo no
travesseiro e afastou os cabelos dos olhos.
Olhou em volta e deu uma exclamação de surpresa quando avistou uma
menina parada diante da porta aberta, indecisa se devia ou não entrar no
quarto. Stephanie apertou o lençol em volta do corpo, sentou-se na cama e
observou a menina que estava de pijama estampado, os cabelos pretos e
compridos presos na nuca com uma fitinha de seda.
- Bom dia - disse com um sorriso. - Você é a Lucia?
A menina continuou observando-a em silêncio, durante um bom momento.
- Dov' e papa? - perguntou em seguida.
Stephanie traduziu mentalmente a pergunta e ficou sem jeito quando
entendeu o significado. Lucia esperava naturalmente encontrar o pai no
quarto dela.
- Seu pai está dormindo no quarto dele, Lucia.
- Non capisco - disse a menina, com os olhos muito grandes voltados na sua
direção.
Stephanie deu um suspiro de desânimo. Era natural que Lucia não
entendesse seu italiano macarrônico. Tomou coragem, pulou da cama e
passou em volta do corpo o robe azul-escuro que deixara em cima da
cadeira. Lucia deu um passo em direção à porta, como se estivesse
assustada com o gesto de Stephanie. Somente com muito cuidado Stephanie
conseguiu aproximar-se da menina.
- Eu me chamo Stephanie - disse lentamente. - Ste-pha-nie. Diga para eu
ouvir.
Lucia observou-a em silêncio, como o pai tinha o costume de fazer.
Em seguida, balançou a cabeça de um lado para o outro, fazendo voar seu
rabinho de cavalo.
- Non capisco - repetiu com os lábios trêmulos.
Nesse instante, Stephanie ouviu uma batida leve na porta e levantou-se para
receber o possível visitante. Era Santino, que saíra à procura da filha. Ele
esperava evidentemente que Stephanie ainda estivesse dormindo e olhou
surpreso para as duas quando as viu no canto do quarto. Lucia deu uma
exclamação de alegria ao avistar o pai, correu na sua direção e se atirou em
seus braços. Stephanie ficou parada no mesmo lugar e passou a mão nos
cabelos soltos que caíam em cima do rosto.
- Desculpe incomodá-la - disse Santino. - Lucia entendeu mal a explicação de
Sophia e pensou que nós dois estávamos dormindo no mesmo quarto.
Stephanie apertou o robe em volta do corpo e passou a mão nos olhos
sonolentos.
- Não foi nada. Eu estava acordada quando Lucia entrou. Ela é um amor de
menina...
Lucia estava olhando fixamente para ela. Santino dirigiu-se à filha em
italiano. Censurou-a provavelmente por ter acordado Stephanie e a menina
abaixou a cabeça com o rosto tristonho.
- Ah, por favor, não ralhe com ela - interveio Stephanie, com dó da
fisionomia triste da menina. - Eu gostei muito da visita. Só assim fiquei
conhecendo sua filha.
Santino percorreu de relance seu corpo esguio, sumariamente vestido, e
voltou a fixar sua atenção no rosto. Stephanie ficou curiosa em saber o que
se passava atrás daqueles olhos negros.
- Por sinal, dormi muito bem neste quarto enorme - prosseguiu Stephanie,
rompendo o silêncio repentino que pairava no ambiente. Acho que vou me
habituar a ele.
- Eu não disse? É tudo uma questão de hábito. - Ele fez sinal a Lucia e
dirigiu-se para a porta. - Nós vamos deixar você dormir à vontade. Lucia não
vai incomodá-la mais esta manhã. Se eu fosse você, voltaria para a cama e
dormiria mais um pouco. É muito cedo ainda. Sophia vai trazer seu café
dentro de uma hora, mais ou menos.
- Mas eu não estou com sono! - exclamou Stephanie.
Santino abriu a porta e saiu para o corredor.
- Então faça o que tiver vontade - observou com indiferença, fechando a
porta atrás de si.

Foi fácil encontrar a escada que levava ao andar térreo no fim da galeria.
Estava a meio caminho quando ouviu um ruído que vinha de baixo. Um homem
acabara de entrar no hall e estava retirando as luvas e passando as mãos
nos cabelos diante do espelho. Era Pietro. Stephanie deu uma exclamação de
alegria ao vê-lo. Pelo menos havia alguém acordado com quem podia
conversar.
Pietro voltou a cabeça ao ouvir o ruído de passos e lhe dirigiu um sorriso
cordial.
- Olá! Você caiu da cama?
Stephanie desceu correndo os últimos degraus da escada.
- Foi Lucia que me acordou.
- Ela devia estar ansiosa para conhecê-la. Dormiu bem?
- Como uma pedra.
- Bom sinal. Pelo visto você vai gostar daqui...
- Quem sabe? - Olhou em volta de si. - Onde estão os outros?
- Mario está dormindo. Giulio está em Palermo e eu... eu vim mais cedo para
conversar um pouquinho com você.
- Ah, muito obrigada.
- Onde está Santino?
- Dormindo. Lucia está com ele.
- Ah, bom. Lucia é uma criança muito possessiva, como você vai perceber
mais tarde. Quando o pai está em casa. ela monopoliza sua atenção.
- Isso é natural numa criança criada sem a mãe.
- Pode ser - concordou Pietro. - Stephanie, eu queria lhe dizer uma coisa há
algum tempo, mas não tive a oportunidade. . .
Stephanie ouviu-o em silêncio, com a fisionomia intrigada. Esperava que
Pietro não insistisse num assunto que estava morto e enterrado. Já
bastavam seus problemas atuais para ter que se preocupar com mais um.
- Aquela noite no restaurante, quando Santino pediu para você vir morar
aqui, para fazer companhia a Lucia, eu desconfiei que havia alguma coisa
estranha no pedido. Não tinha certeza, naturalmente. Mais tarde, não quis
interferir em sua decisão, sobretudo porque eu também queria que você
viesse morar aqui... - Ele estendeu a mão e segurou a dela. - Estou muito
contente com sua presença nesta casa.
Stephanie retirou a mão com um gesto brusco e fixou-o nos olhos.
- Pietro, não vamos falar sobre esse assunto, por favor. Eu não desejo
manter uma relação ilícita com homem nenhum.
- Mas não é isso que estou sugerindo, Stephanie - disse Pietro, com um
suspiro. - Sei que você não é desse tipo. Mas nós podemos ser amigos. . .
- Nós somos amigos - disse Stephanie, com a cabeça baixa. Mas Santino não
vai gostar que sejamos muito íntimos.
Ah, esqueça Santino! Ele não gosta de você!
- Isso não é coisa que se diga, Pietro. Mesmo que seja verdade.
- Não me leve a mal, Stephanie, Santino sabe quais são os sentimentos que
tenho por você. Eu nunca fiz segredo disso. - Pietro apontou com a mão para
fora. - Você não se sente tentada a dar um passeio? O sol está quente e o
mar deve estar divino... O que você vai fazer em casa? Esperar que seu
marido trace o programa do seu dia?
Stephanie endireitou os ombros com um gesto de rebeldia.
- Eu não sou uma criada para obedecer às ordens de ninguém.
- Então venha tomar um banho de mar comigo!
- Agora? - exclamou Stephanie. - Onde?
- Na praia embaixo do morro. Você trouxe sua roupa de banho?
- Está no quarto - disse com animação. Ela desejava tomar banho de mar
com Pietro e estava ao mesmo tempo indecisa se devia aceitar o convite. -
Está bem, a que horas?
- Agora. A água está morna a essa hora do verão.
Stephanie hesitou um segundo. Balançou em seguida a cabeça e subiu
correndo a escada em direção ao quarto de dormir. Apanhou o biquíni na
mala aberta e voltou imediatamente para o andar térreo.
Pietro estava apoiado no corrimão da escada, conversando com Sophia.
A empregada não escondeu sua desaprovação quando avistou a toalha de
banho e o biquíni que Stephaoie levava na mão.
- Não vai tomar café? - perguntou Sophia, com o rosto sério.
- Não, muito obrigada, Sophia. Eu vou dar um mergulho com Pietro antes do
café. Se Santino acordar, diga que eu volto logo.
- Pois não - disse Sophia, com seu rosto severo.
Pietro afastou-se do corrimão e lhe deu o braço.
- Vamos, Stephanie, antes que você mude de idéia. O clima aqui está
visivelmente frio esta manhã.
Stephanie sorriu com o canto dos olhos 'e saiu com Pietro em direção à
porta da frente. Sophia observou os dois em silêncio, com a testa franzida.
Stephanie voltou-se com ansiedad~ para Pietro.
- Você acha que ela vai contar a Santino?
- É provável que sim - disse Pietro, abrindo a porta da frente. Por quê? Você
se importa com isso?
- Não, absolutamente. Santino disse para eu fazer o que bem entendesse.
Bolas, eu não vou ficar sozinha no quarto!
Pietro encarou-a surpreso.
- Como, sozinha no quarto?
Stephanie corou ao perceber o que tinha dito e tentou corrigir 'o efeito de
suas palavras.
- Ah, é toda uma história! Santino foi até o quarto procurar Lucia.
Eu estava acordada. Disse a ele que não queria dormir porque não estava
com sono. Aí ele disse para fazer o que tivesse vontade.
- Nesse caso, tudo bem - disse Pietro, fechando a porta da frente.
O Lancia esporte estava parado diante da escada., - Vou apanhar a toalha e
o calção no porta-malas.
Stephanie aproveitou o momento para admirar o castelo à luz do dia.
Afinal, seria sua casa durante algum tempo. Embaixo dos muros cinza,
rachados pelo tempo, o morro descia suavemente e terminava num vale, onde
estavam as plantações de laranjas, de limões, de oliveiras. As encostas do
morro, por sua vez, estavam cobertas de vinhas. Ao longe, avistavam-se os
rolos de fumaça que saíam das casas dos colonos. Pietro aproximou-se dela
com a toalha na mão e surpreendeu seu olhar animado.
- Gostou da paisagem?
- Ah, é linda e muito diferente do que imaginava! - exclamou com os olhos
brilhantes. - Aquelas plantações ao longe pertencem ao castelo?
- Sim. Santino é dono de tudo que sua vista alcança. Antigamente todas
essas terras eram áridas. Não se podia plantar nada. Santino introduziu os
métodos modernos de irrigação e o vale se tornou verdejante, como você
pode ver. Por que você fez essa pergunta? Está surpresa com a riqueza de
seu marido? .
- Não, não foi por isso. Estava curiosa para saber de quem eram essas
plantações tão lindas.
Pietro cobriu a vista com a mão, para percorrer toda a paisagem em volta.
- Você não imagina a pobreza que havia antes aqui. Esses colonos não tinham
absolutamente nada, nem recursos para explorar a terra. Deviam o pouco
que tinham ao padrone.
E você, Pietro? Faz muito tempo que você mora aqui?
- Desde que Sancha se casou com Santino.
Puxa, há quantos anos!
- Nossa família é do norte da Itália.
- Santino gostava muito de sua irmã? - perguntou Stephanie, sem poder
adiar sua curiosidade.
Pietro passou a mão no pescoço.
- Penso que sim, à maneira dele. Uma coisa é certa. Ele se desinteressou
completamente das outras mulheres depois da morte de Sancha.
- Como? Não entendo...
- Santino é homem, Stephanie. Os homens precisam de mulheres.
Stephanie corou e afastou a cabeça.
- Vamos? - sugeriu sem jeito, dirigindo-se para o carro.
Atravessaram o gramado ao lado da casa e passaram por um portão branco
que formava uma barreira no alto do morro. Um caminho estreito de
cascalho levava ao sopé do morro. Lá embaixo estava a baía de Fortezzo, um
dos pontos mais pitorescos da ilha. Stephanie descontraiu-se e olhou para
fora. Avistou o castelo do alto do morro, imponente e majestoso como
sempre. Parecia muito remoto e inacessível visto daquela distância. Pietro
desceu do carro e abriu a porta do seu lado.
- Vamos fazer o resto do caminho a pé.
Ele foi na frente por uma trilha aberta na encosta, de onde se avistava uma
extensão da praia que ia terminar na enseada. Não havia lugar para sentar
na areia, mas as pedras altas eram abrigos naturais contra o sol e o vento.
Stephanie olhou em volta e escolheu uma bem grande para trocar de roupa.
- Eu vou vestir meu calção aqui mesmo - disse Pietro, surpreendendo seu
olhar. - Vire o rosto. Stephanie se afastou com um risinho enquanto Pietro
desabotoava a camisa com a maior naturalidade desse mundo. Ela teve
alguma dificuldade no entanto em trocar de roupa na gruta apertada.
Quando terminou, avistou a cabeça dele surgir na superfície da água. Ele
acenou na sua direção, chamando-a para entrar na água. Stephanie levou as
mãos aos cabelos. Não tinha touca de banho e os cabelos iam ficar
encharcados. O que podia fazer? Seu único receio, no fundo, dizia respeito a
Santino.
Como podia esconder que fora à praia se voltasse para casa com os cabelos
molhados?
Tomando coragem, afastou os pensamentos negativos da cabeça e mergulhou
nas águas mansas da enseada e nadou em direção a Pietro.
Os dois passaram meia hora dentro da água. Nadaram, boiaram, pegaram
jacaré e se divertiram como duas crianças. Fazia muito tempo que Stephanie
não se sentia tão bem disposta. Quando saíram finalmente do mar e foram
sentar em cima das pedras, ela estava cansada mas imensamente feliz.
Pietro estendeu-se ao comprido ao seu lado. O sol queimava a 'pele com
intensidade e alguns minutos depois o biquíni estava completamente seco.
Pietro, deitado de bruços, com a cabeça apoiada no braço, observava-a com
o olhar indolente, enquanto ela protegia os olhos com o braço estendido.
- Está contente de ter vindo?
- Você sabe porque vim para a Sicília. Quanto à praia... estou muito contente
de ter vindo. Você teve uma idéia maravilhosa. - Ela olhou para o alto. - Que
horas são? Não está na hora da gente voltar?
- São nove e meia - disse, colocando o relógio no pulso.
- Já? - exclamou Stephanie assustada. - Meu Deus, faz mais de uma hora
que estamos aqui!
Pietro deu um suspiro, virou de costas e espreguiçou-se com indolência.
- Não se assuste. Santino não acorda antes das dez. Ele dorme sempre
muito tarde, E Lucia?
- Deve ter tomado café com Maria.
- Maria... quem é Maria?
- A babá. Você não a encontrou ainda?
- Não. Eu não sabia que Lucia tinha uma babá.
- Maria é uma velha que não sabe ler nem escrever. Ela só serve para fazer
companhia a Lucia. - De qualquer forma... - Stephanie apanhou a calça
comprida estendida na areia e vestiu-a por cima do biquíni. - Eu não sabia
que havia mais alguém na casa. Seria interessante você me contar como é o
sistema no castelo.
- Bem, é muito simples. Maria toma conta de Lucia. Dá banho nela, ajuda-a a
vestir-se e lhe faz companhia a maior parte do dia. No fundo, é uma
perfeita babá.
- E os outros empregados?
Pietro vestiu a calça.
- Não são muitos. Sophia você conhece. Depois tem Dominica, a cozinheira,
Carlos, o jardineiro, e uma mocinha que vem todos os dias da vila para ajudar
Sophia a arrumar a casa. São só esses. Sem falar em Mario, Giulio e eu que
fazemos parte da quadrilha permanente de Santino. Num certo sentido, nós
também somos empregados da casa. Mario é o mais dedicado de todos. Ele
tem verdadeira adoração por Santino.
- Entendo. Mas como é que Lucia e eu vamos conversar uma com a outra? Ela
não fala uma palavra de inglês e não entende meu italiano macarrônico. . .
- Eu ainda não ouvi você falar italiano. Diga alguma coisa para eu ver.
Stephanie apanhou a toalha caída no chão.
- Ah, eu tenho vergonha. Meu italiano é péssimo.
- Diga assim mesmo, só para eu ter uma idéia. O que você sabe falar?
- Uma meia dúzia de palavras.
- Eu vou ensinar a você uma porção frases, as mais usadas no cotidiano.
Enquanto isso, diga alguma coisa para mim. Por exemplo: "Bom dia, como está
passando?" Stephanie deu um sorriso sem graça.
- Está bom, vou tentar... Buon giorno, come stà lei oggi?
Pietro caiu na gargalhada.
- Sua pronúncia não é das melhores, cara, mas acho que você vai fazer
progressos rapidamente. Lucia vai entender o que tiver vontade de
entender. Morou?
- Morei.
- Bene. Vamos, então.
Caminharam por cima das pedras e pegaram a mesma trilha por onde tinham
descido. Chegaram ao castelo sem nenhum incidente. Quando entraram na
sala da frente, Santino estava sentado no canto da mesa, conversando ao
telefone. Havia ruídos de atividade pela casa inteira e Stephanie teve a
impressão de que se ausentara mais tempo do que seria normal no primeiro
dia que estava no castelo.
Santino despediu-se por fim do seu interlocutor e voltou-se para os
dois com o rosto interrogativo. Na calça creme de linho, bem justa no corpo,
a camisa azul-marinho, amarrada na frente com um cordão branco, ele tinha
um aspecto bem diferente do italiano bem-sucedido, impecavelmente
vestido que Stephanie conhecera em Londres. Embora a roupa esporte que
vestia aquela manhã fosse tão elegante quanto os ternos que usava
habitualmente na cidade. Santino olhou de relance para Pietro e fixou sua
atenção em Stephanie.
- Acho bom você tirar o biquíni molhado do corpo, Stephanie, para não se
resfriar no primeiro dia que passa aqui.
Stephanie corou como um pimentão, sentindo-se terrivelmente culpada por
ter ido à praia com Pietro. Tinha a impressão exata de que Santino vira os
dois em cima das pedras, que acompanhara de longe cada uma de suas ações.
A sensação era mortificante e humilhante ao mesmo tempo.
- Meu biquíni está seco! - disse com irritação. - Além disso, não sabia que
estávamos sendo vigiados.
Santino levantou-se da posição negligente em que estava e observou os dois
com um sorriso nos lábios.
- Você voltou de mau humor, querida? Foi Mario que me contou onde vocês
estavam. O que você faz me é completamente indiferente. Eu estava apenas
fazendo uma sugestão para seu próprio bem. Não podia imaginar que seria
mal recebida.
Stephanie não podia sentir-se mais humilhada na vida. Louca de raiva e de
frustração, fez meia-volta e subiu correndo a escada em direção ao quarto.
Após ter fechado a porta, atirou-se na cama e afundou o rosto no
travesseiro. Como ele podia falar com ela nesse tom? Por que a tratava com
tanta indiferença? Não tinha porventura nenhuma idéia de decência?
Por mais absurdo que fosse o casamento, os dois eram marido e mulher, para
todos os efeitos!
Levantou-se e foi ao banheiro. Tirou a roupa do corpo e entrou embaixo do
chuveiro, escorrendo os cabelos que estavam pegajosos da água salgada.
Era meio-dia quando saiu do quarto e desceu a escada em direção ao andar
térreo. Estava vestida com uma blusa amarela de algodão e uma saia creme.
Embora os cabelos não estivessem completamente secos, prendeu-os atrás
da cabeça, de modo que pareciam lisos e bem arrumados.
Não encontrou ninguém no hall. No entanto, ao dirigir-se à sala de estar,
ouviu vozes que vinham dali. Ao chegar à porta, avistou Santino e Lucia
deitados no tapete, brincando como duas crianças. Lucia empurrava o pai
para trás e Santino a levantava no alto com uma gargalhada.
Havia algo ao mesmo tempo comovente e inquietante naquela cena,
Stephanie os observou com uma emoção estranha. Era um misto de alegria e
de tristeza, e ela indagou consigo mesma como seria se Santino agisse
sempre com a mesma naturalidade.
No momento em que ele tornou a levantar a filha nos braços, avistou-a
parada junto da porta. Interrompeu a brincadeira e colocou a menina no
chão. Lucia ficou parada perto do pai, com o braço passado em volta de sua
cintura.
- Ah, você apareceu finalmente - disse Santino. - Então, está preparada
para assumir a condição de dona-de-casa?
Stephanie endireitou os ombros e passou a língua nos lábios secos.
- Eu não fazia idéia que você tinha urgência. Como você não dá nenhuma
importância ao que eu faço ou não faço. . .
- O que você queria? - interrompeu Santino com impaciência.
Que eu acompanhasse atentamente suas ações?
Stephanie torceu as mãos com nervosismo. Lucia acompanhava a conversa
com os olhos arregalados e ela não tinha vontade de discutir com Santino
diante da menina.
- Eu ainda não fui apresentada a Lucia - disse - Ah, desculpe esse
esquecimento da minha parte - disse Santino com ironia, voltando-se para a
filha pequena. - Mas isso vai ser remediado imediatamente. Lucia... essa é
sua nova mamãe. Questa e mamma, si.
Stephanie olhou sem jeito para Santino.
- Ela pode me chamar de Stephanie, se quiser.
- Por quê? - indagou Santino encarando-a com frieza. - Você vai ser a mãe
dela, em todos os sentidos da palavra.
- Eu sei, mas essa palavra implica uma certa permanência. . .
- E sua presença aqui não é permanente?
Stephanie sentiu um aperto no coração. Ela ia morar realmente naquela casa
a vida inteira? Não havia uma saída para esse acordo absurdo que aceitara?
Engoliu em seco, com uma impressão de ânsia no estômago.
Até aquele instante conseguira relegar todas as implicações de sua decisão
para uma parte remota da mente. Agora, no entanto, a realidade indiscutível
surgia na sua frente, sem nenhum disfarce e com da o sentido de
irremediável que pressentira na noite anterior.
CAPITULO VII

Felizmente, Sophia apareceu pouco depois e anunciou que o almoço estava na


mesa. Assim, Stephanie não foi obrigada a conversar muito com Lucia. Não
era fácil fazer amizade com a menina, embora a curiosidade fosse um
estímulo poderoso e Lucia estivesse ansiosa para conhecer a moça inglesa
que viera de tão longe. Mesmo assim, o apego que tinha pelo pai ia dificultar
a tarefa de Stephanie, uma vez que Lucia considerava a presença dela no
castelo como uma intrusão à intimidade dos dois.
Almoçaram numa saleta que se comunicava com a sala de estar. Havia
somente eles três. Pietro e Mario não estavam presentes e Giulio comia com
a família quando estava na ilha. A refeição pelo menos atraiu toda a atenção
de Stephanie: que adorou o melão com presunto cru, servido antes do prato
principal, um frango a passarinho com batatas coradas e legumes. Queijos e
frutas completavam a refeição. O café era forte e aromático e Stephanie
não resistiu à tentação de tomar uma segunda xícara.
Santino estava saboreando a cigarrilha que acendera depois do café quando
uma mulher de idade hesitou antes de entrar na saleta. Stephanie imaginou
que fosse Maria, a babá de Lucia, e sua suspeita foi confirmada quando a
menina começou a sacudir vigorosamente a cabeça dizendo "No! No!", muitas
e muitas vezes, no instante em que a mulher se aproximou dela. .
Lucia pulou do seu banquinho e correu para o pai, passou os braços em volta
do pescoço dele e suplicou para ficar mais um pouquinho. Santino porém
balançou a cabeça com um sorriso, soltou os braços da menina e a passou à
babá. Lucia foi levada embora aos berros e Stephanie, perturbada pela cena,
manteve os olhos voltados fixamente para a mesa na sua frente.
Santino levantou a cabeça e endireitou o corpo.
- Você desaprovou minha atitude?
- O que você faz com sua filha não me diz respeito - comentou Stephanie
encarando-o.
- Pois devia dizer. Como você vai cuidar dela quando eu estiver ausente,
gostaria de ouvir sua opinião.
- Quando você estiver fora, eu saberei o que fazer. Enquanto você estiver
aqui, a responsabilidade é sua.
Santino mordeu com impaciência a ponta da cigarrilha.
- Eu não suporto sua indiferença.
- Stephanie fixou-o nos olhos.
- O que você pode fazer para mudar isso?
- Você conhece a resposta tão bem quanto eu - respondeu Santino de cara
fechada. Depois de um instante, perguntou com uma inflexão mais atenciosa:
- Pietro falou alguma coisa com você a respeito de minha partida?
- Não, não falou nada. Por quê?
- Bem, eu pensei que enquanto vocês estavam tomando banho de mar hoje de
manhã, ele podia ter dito a você que, a partir de amanhã você está livre para
fazer o que lhe agradar, contanto que não descuide de Lucia. . .
Ah, você não precisa me lembrar! - exclamou Stephanie com indignação,
enquanto Santino se inclinava na cadeira com uma expressão irônica no
olhar. - Eu sei qual é a opinião que você tem sobre as mulheres, mas você se
engana redondamente a meu respeito. Você não precisa se inquietar com
essa possibilidade. . .
- Eu não sei do que você está falando.
Stephanie afastou a xícara da frente.
- Não se faça de sonso! Você se referiu claramente à intimidade entre
Pietro e eu. . .
Santino puxou uma tragada comprida e soltou a fumaça para o alto por cima
de sua cabeça.
- Não se irrite, minha cara. Meu comentário não tinha uma intenção crítica.
- Não, não tinha... - Stephanie apertou os lábios com. força. Evidentemente
você não se importa a mínima com o que eu faço ou não!
- Isso é verdade - concordou Santino inclinando-se para a frente.
- O que você queria? Que eu a vigiasse como um marido ciumento?
Stephanie endireitou os ombros.
- Claro, você tem que preservar sua reputação de signor Ventura.
- Meu nome é Santino. Não se esqueça mais disso. - Os dois estavam
discutindo agora com uma agressividade visível e a mão dele apertou com
força o pulso que estava pousado em cima da mesa. - Você adora me irritar!
Stephanie recuou diante da raiva que notou em sua expressão, mas não se
deixou intimidar.
- Por que haveria de chamá-lo pelo nome? Você é um estranho para mim. Não
há intimidade nem sentimento de confiança neste nosso casamento. Por que
haveria de obedecê-lo?
- Porque eu quero! - respondeu com fúria, os olhos injetados de raiva. - E se
você não gosta do meu sistema, sugiro que use esse período de repouso para
amadurecer um pouco, em vez de se comportar como uma adolescente toda
vez que eu digo alguma coisa que fere sua sensibilidade.
Stephanie controlou-se com dificuldade. Estava prestes a dizer um
desaforo.
- Quer dizer então que nós dois temos liberdade de agir?
Santino apertou as sobrancelhas no meio da testa.
- O que você quer saber? Se eu vou passar minhas noites em Roma na cama
de alguma mulher? Nesse caso, a resposta é não - disse Santino com frieza.
- Quando eu quiser uma mulher, não vou fazer segredo disso a ninguém, mas
certamente não será enquanto estiver ocupado com conferência até altas
horas da noite. - Soltou o pulso dela e levantou-se da cadeira com um
movimento brusco. - Você é uma criança, Stephanie. Você e Lucia vão se dar
muito bem. Vocês são duas crianças.
- Até mais tarde. Tenho que sair.
Depois que Santino se afastou da sala, Stephanie afundou o rosto nas mãos
com uma exclamação abafada, tremendo incontrolavelmente. As palavras
dele a humilhavam cruelmente, eram sempre destrutivas e agressivas.
Parecia incrível que esse homem desumano, que podia arrasá-la com duas
palavras, era ao mesmo tempo extremamente carinhoso com a filha pequena.
Na noite anterior, quando Santino demonstrara uma pequena consideração
por seus sentimentos, Stephanie julgara que estava enganada a respeito
dele, mas esses momentos de fraqueza eram bem raros. Santino, pelo visto,
não se importava a mínima com o que ela fazia contanto que cuidasse de
Lucia e não interferisse na sua vida.
Stephanie deu um suspiro de desânimo e levantou-se da mesa. A tarde se
estendia à sua frente, triste e desinteressante, e ela pensou com um
sentimento de amargura no que ia fazer para encher seus dias vazios.
Esses pensamentos porém só causavam depressão. Stephanie estava
começando a compreender que, para conservar a saúde mental inalterada,
devia aceitar a situação tal como era e procurar usar sua inteligência para
torná-la mais suportável. Agindo de acordo com esse propósito, voltou ao
quarto e arrumou suas coisas no guarda-roupa, pendurou os vestidos nos
cabides, as calças dobradas nas gavetas e os sapatos nos respectivos
lugares. Pelo jeito não havia arrumadeira no castelo. Talvez a primeira
mulher de Santino tivesse uma empregada unicamente para si. Entretanto,
não havia nenhum indício da passagem de Sancha pelo castelo, a menos que a
decoração do quarto fosse de sua inspiração.
Após guardar as malas no alto do armário, Stephanie deu uma olhada em
volta para ver se estava tudo em ordem. Preferia ocupar um aposento
menor, mais íntimo e jeitoso. Deu um suspiro de cansaço e olhou para a cama
imensa de casal. Santino dormia ali com Sancha? Era esse o quarto do casal?
Stephanie sentiu um gosto amargo na boca ao pensar essas coisas.
As relações que Sancha mantinha com Santino, o quarto onde dormiam, as
palavras que sussurravam na penumbra - todas essas coisas não lhe diziam
respeito. Mesmo assim, não conseguia afastá-las completamente da
lembrança e sofria com isso.
Ao descer, alguns minutos depois, avistou a porta da sala aberta para uma
varanda. Foi até lá e encontrou Lucia tomando um suco de laranja. Ela tinha
acabado de acordar do cochilo que tirava depois do almoço e seus olhos
ainda estavam sonolentos. Maria também estava sentada numa cadeira de
vime, sorrindo e balançando a cabeça, esquecida provavelmente da cena que
ocorrera à mesa do café.
Foi Maria que percebeu primeiro a presença de Stephanie. Levantou-se da
cadeira e cumprimentou-a com cerimônia.
Stephanie hesitou no primeiro instante; em seguida, tomou coragem e
entrou na varanda.
- Boa tarde, Maria. Você, Lucia, dormiu bem?
Lucia levantou a cabeça ao ouvir seu nome e olhou para Stephanie com
curiosidade, sem entender muito bem por que ela estava sempre circulando
pela casa. Lucia, aparentemente, não aceitava de bom grado a presença de
mais uma mulher em casa, apesar da explicação que Santino lhe dera que
Stephanie era sua "nova mamãe".
Stephanie apertou as mãos com nervosismo e sentou-se ao lado de Maria,
fazendo sinal com a mão para a empregada tornar a se sentar.
Maria aceitou o convite com relutância.
- Posso tomar também um suco de laranja?
Maria compreendeu o que ela tinha dito por seu gesto e apanhou a jarra em
cima da mesa. Serviu um copo e estendeu-o para ela. Stephanie provou a
bebida e ficou maravilhada com o gosto. Nunca tinha tomado um suco de
laranja tão gostoso na vida! Não tinha nada a ver com os produtos enlatados
que havia na Inglaterra. Lucia a observou em silêncio, com' seus olhos muito
grandes. Entretanto, quando Stephanie surpreendeu seu olhar, ela voltou a
cabeça e continuou a brincar com seu copo.
Como estava muito cheio, o resultado foi o que se podia esperar. Derramou o
suco de laranja em cima da mesa e Stephanie foi obrigada a levantar-se
rapidamente para não receber o líquido no colo. Lucia caiu na risada ao ver
seu rosto espantado.
Maria tirou um pano do bolso do avental e enxugou o tampo da mesa.
O suco que caíra no chão podia ser limpo mais tarde. Stephanie voltou a
ocupar seu lugar na mesa e, com as mãos ligeiramente trêmulas, serviu
novamente o copo de Lucia, sem enchê-lo até em cima dessa vez.
A menina parou de rir e se afastou da cadeira. Aparentemente estava sem
vontade de tomar mais suco e Stephanie não a contrariou. Em vez disso,
voltou a atenção para a paisagem magnífica que se tinha da varanda e ficou
deslumbrada com a distância que a vista alcançava. Daquele ponto a estrada
que dava a volta no morro parecia um caminho estreito, ziguezagueando pela
encosta da montanha. Àquela hora da tarde os colonos estavam voltando dos
trabalhos no campo e um caminhão carregado de lenha subia penosamente a
serra. Podia avistar os rolos de fumaça que subiam das casas, sentir o
perfume forte dos limoeiros e ouvir o som melodioso de um violão. Uma onda
de calor distorceu momentaneamente a paisagem e Stephanie voltou a vista
para a varanda.
- Que paisagem mais linda! - exclamou, apontando para longe com o dedo.
Lucia limitou-se a balançar os ombros, com o queixo entre as mãos.
Stephanie deu um suspiro de desânimo. Tinha que encontrar uma maneira de
se comunicar com a menina. Procurou na lembrança alguma frase que sabia
em italiano.
- Lei deve cercare di parlare inglese, Lucia - disse por fim.
Lucia respondeu alguma coisa em voz baixa e Maria franziu a testa
desaprovadoramente.
- Você fala inglês, Maria?
Maria sorriu encabulada.
- Um pouquinho.
- O padrone deseja que eu ensine inglês a Lucia, capito?
Enquanto falava, fazia gestos que acompanhavam as palavras.
- Si, signora. Entendi. E para eu ir embora?
- Não, não foi isso que eu falei, Maria. .Pode ficar à vontade disse Stephanie
passando a mão no rosto com impaciência. - Lucia não sabe nenhuma palavra
de inglês?
- Não, senhora.
- Então como eu posso ensiná-la?
Nesse momento a porta da varanda se abriu e Santino apareceu. Lucia
correu imediatamente na sua direção e lhe fez muitas festas. Passou os
braços em volta do seu pescoço e Santino levantou-a no alto. Lucia deu
gritinhos de alegria. Stephanie observou a cena com o rosto sério. Como era
possível ensinar inglês à menina antes de aprender italiano? Como as pessoas
se comunicavam entre si quando falavam línguas diferentes? Ficou com raiva
de sua frustração e levantou-se da cadeira. Foi até o parapeito da varanda e
procuro,u controlar suas emoções.
Santino despediu Maria e aproximou-se dela na companhia de Lucia.
Stephanie sabia que Santino estava ao seu lado, perto do parapeito, mas
concentrou a atenção na paisagem que se estendia diante dos seus olhos.
- Por que você está com a cara amarrada? - perguntou Santino, com a voz
ligeiramente ríspida. - O que aconteceu dessa vez? Ou você ainda está com
raiva do que disse à mesa do café?
Stephanie voltou-se para encará-lo.
- Se eu estou de mau humor é simplesmente porque não encontro uma
maneira de me comunicar com sua filha.
Ela empregou essa palavra propositalmente, para a menina não perceber que
estavam falando dela.
Santino olhou para Lucia e voltou a fixá-la com atenção.
O problema é a língua ser diferente.
- Pois é. A língua.
- Por que você não experimenta o sistema de ensinar brincando?
Lucia conhece algumas palavras em inglês, que eu próprio ensinei a ela.
- Como não sou muito favorável ao ensino tradicional, sugiro que vocês
conversem sobre coisas que interessam a ela. Você sabe naturalmente como
é. . .
- Claro que eu sei! - exclamou Stephanie com impaciência. - Segundo esse
sistema, as crianças vão construindo as frases pouco a pouco com as
palavras isoladas que aprenderam. No fundo, é o mesmo sistema que a
criança pequena usa para aprender a falar. Isso é muito fácil na teoria, mas
na prática é bem diferente. Você acha que Lucia vai se dar a esse trabalho?
Ouvir uma palavra e depois repeti-la? Pode ser, mas acho difícil. . .
- Não custa nada tentar. Afinal, faz apenas vinte e quatro horas que você
está aqui. Não é possível obter resultados concretos nesse período tão
curto. Você não pode querer que Lucia fale imediatamente inglês com você.
A gente só chega ao fim começando primeiro.
Stephanie inclinou a cabeça. Santino tinha razão naturalmente, como
sempre, e era por isso que se sentia tão frustrada na sua companhia.
Enquanto Lucia não fizesse camaradagem com ela, as chances de conversar
e de conquistar-lhe a simpatia eram nulas. A verdade é que Stephanie
estava ansiosa para terminar rapidamente sua obrigação e poder ir embora
da ilha.
- E quanto tempo você acha que isso vai levar!
- Alguns meses provavelmente ou talvez alguns anos, até ela compreender e
falar corretamente inglês. Que importância isso tem? Nós não temos
pressa... ela tem a vida inteira para aprender.
- A vida inteira? - repetiu Stephanie perplexa.
- Sim, a vida inteira. Não se esqueça que nosso acordo é permanente.
Stephanie deu uma exclamação de desabafo e saiu da varanda. Não queria
que Santino visse a amargura e a frustração que suas palavras causavam
nela.

Ela não o avistou mais antes do momento da partida. Não sabia nem mesmo
para onde ele ia. Santino não dissera nada e ela não se dignara a perguntar.
Jantou sozinha na pequena sala de almoço. Santino estava muito ocupado e
comeu alguma coisa no escritório. Embora ela preferisse não ser obrigada a
discutir com ele durante a refeição, o jantar solitário foi mais insuportável
do que sua companhia. Acabou levando a bandeja para o quarto de dormir, a
fim de esquivar-se ao olhar interrogador de Sophia.
Sentou-se na pequena sacada e contemplou as ondas que quebravam nas
pedras, enquanto pensava consigo, tomada de tristeza e de desânimo, se ia
suportar por muito tempo a permanência no castelo.

Na manhã seguinte, dormiu até tarde. Passava das nove quando desceu ao
andar térreo. Encontrou uma moça que não conhecia no hall e imaginou ser
Teresa, a criada que vinha ajudar Sophia nas tarefas da casa.
- Buon giorno - disse Stephanie, com um sorriso.
- Buon giorno, signora. A vete fato colazione?
Stephanie balançou a cabeça tentando adivinhar o sentido da, pergunta.
Provavelmente a moça queria saber se ela desejava tomar café.
- Si, grazie - respondeu com um sorriso, sentindo-se muito feliz de ser
entendida pela rapariga.
Ao contrário do que podia esperar, contudo, a moça continuou a varrer e a
espanar a sala como se a resposta dela fosse negativa. Teresa entendera,
pelo visto, que Stephanie já tinha tomado café. Stephanie deu um suspiro de
impaciência. Foi só então que avistou Pietro perto da porta, com um sorriso
no canto dos lábios.
- Por que você está rindo? - ela perguntou com irritação. - Você também não
ia viajar com Santino?
- Você preferia que eu fosse?
- Ué, Santino disse...
- Santino viajou com Mario. Eu fiquei para tomar conta de você.
- Ah, é bom saber. Mas por que você está rindo?
- Porque você está morta de fome e ninguém lhe serviu café...
- Só podia estar! Acabei de acordar nesse minuto.
- Por que você não pede a Teresa para lhe trazer o café?
- Eu pedi! - exclamou Stephanie, com vivacidade. - Mas ela não entendeu e
continuou a varrer a sala.
- Claro. Ela perguntou se você tinha tomado café e você disse que sim.
- Ah, bolas! Eu entendi o contrário, se eu queria tomar café. Foi por isso que
respondi, sim, quero.
Pietro caiu na risada.
- Foi isso que pensei. Mas não há de ser nada. Vamos remediar essa pequena
confusão.
Deu alguns passos na direção do hall e chamou a empregada em voz alta.
Teresa apareceu e Pietro pediu-lhe que trouxesse o café da signora.
Teresa entendeu finalmente o que tinha ocorrido, sorriu encabulada e
dirigiu-se à cozinha.
- Bene. Está tudo resolvido - disse Pietro, voltando-se para Stephanie. - Ela
vai levar o café na biblioteca. Só assim eu lhe faço companhia.
Stephanie sorriu e acompanhou Pietro até a sala de trabalho de Santino.
Afundou numa poltrona com um suspiro de alívio.
- O que foi? .
- Ah, Pietro, como eu posso ensinar inglês a Lucia se não sei uma palavra de
italiano?
- Logo você vai aprender. Vou lhe ensinar alguma coisa nesses dias. Pietro
afastou os papéis da mesa e sentou-se no canto, na frente dela.
- Não é difícil como você está imaginando. Vamos inventar um sistema para
você aprender rapidamente algumas frases novas todos,os dias, frases que a
gente usa sempre na conversa. Por exemplo, "Eu estou morta de fome".
Stephanie deu uma risada sem querer. Pietro era realmente uma simpatia e
tirava qualquer pessoa da fossa.
- Onde está Lucia? - perguntou ela.
- Com Maria, acho. As duas tomam café as oito e depois vão para o quarto
dos brinquedos.
- Lucia brinca com alguém?
- As vezes. Teresa tem irmãos e irmãs de sua idade que vêm algumas vezes
ao castelo.
- Quando Santino está aqui?
-É.
- Acho que podemos alterar esse sistema - disse Stephanie,
pensativamente.
Teresa entrou nesse instante com a bandeja do café e a colocou na frente
de Stephanie. Ela serviu as duas xícaras e estendeu uma para Pietro. Provou
em seguida as rosquinhas amanteigadas feitas no, forno da cozinha. Estavam
uma delícia e Stephanie gostou mais dessa refeição matinal, na companhia
divertida de Pietro, que de todas as outras que tomara desde sua chegada.
Depois do café, Pietro acompanhou-a ao quarto dos brinquedos. Stephanie
teria preferido, naturalmente, que Pietro estivesse presente na primeira
aula para ajudá-la, mas não podia tomar todo seu tempo. Assim, com seu
livro de italiano embaixo do braço, ela entrou com um certo receio no quarto
dos brinquedos de Lucia.
Lucia tinha quatro aposentos no castelo. Um quarto grande onde estavam
todos os seus brinquedos e jogos, uma saleta menor onde ficava o aparelho
de televisão e o sofá, o quarto de dormir, inteiramente decorado com
motivos infantis, e, finalmente, a sala de banho, com uma pequena banheira
de louça esmaltada. Lucia acompanhou Stephanie em sua visita pelas
diversas dependências do castelo sem dizer uma palavra.
Quando voltaram ao quarto dos brinquedos, ela apanhou uma caixa e
mostrou a Stephanie seus brinquedos favoritos.
Stephanie ficou contente com esse gesto da menina. Era um bom sinal no
início do relacionamento que as duas pretendiam manter no futuro. Depois
de mostrar os brinquedos durante alguns minutos, Lucia ficou com ciúme do
ursinho de pelúcia um dos seus bichos preferidos - e o arrancou com
impaciência das mãos de Stephanie. Jogou-o com maus modos dentro da
caixa de papelão e foi refugiar-se no colo de Maria.
Stephanie sorriu e não fez nenhum comentário. Levantou-se em seguida da
cadeira onde estava sentada e dirigiu-se à porta. Não queria apressar as
coisas e fazer amizade com Lucia era uma tarefa mais difícil do qúe
imaginava, sobretudo porque a menina vivera até então uma existência
praticamente isolada. Pietro lhe fez companhia à hora do jantar e os dois
conversaram muito.
Debateram o problema de Lucia e do castelo, comentaram as viagens
freqüentes de Santino, riram às gargalhadas com alguns casos pitorescos
ocorridos na ilha. Pietro era um excelente contador de histórias e
Stephanie aprendeu muita coisa sobre Santino sem querer. Ficou sabendo,
por exemplo, que ele era adepto de inovações que melhoravam a condição de
vida dos colonos, como hospitais, escolas, centros de bem-estar social,
ambulatórios. Santino mandou vir de fora especialistas para tomar conta e
dirigir esses estabelecimentos. Ele tratava os colonos como criaturas
humanas merecedoras de toda simpatia e exigia de volta uma lealdade à
toda prova. Se era inflexível quando se tratava de negócios, era
extremamente humano com tudo que dizia respeito ao bem-estar dos
moradores da ilha. Mesmo assim, possuía uma certa arrogância que lhe era
natural, e ninguém podia dizer que ele se identificava intimamente com a
gente humilde. No fundo, era um grande proprietário de terras que
acreditava nos bens de raiz, embora tratasse os colonos com uma dedicação
extrema.
Essa pelo menos era a opinião de Pietro.
- O que você acha da vida no castelo, agora que a conhece um.
pouco mais? - perguntou Pretro, num intervalo da conversa.
Stephanie ficou indecisa. Segurou o copo de conhaque com as duas mãos
antes de responder. .
- Não sei. Ainda não tive tempo para examinar tudo em detalhe.
Passei a manhã com Lucia e à tarde dei uma volta pelo jardim.
- Sophia não se ofereceu para lhe mostrar os arredores?
- Que esperança! Sophia me trata como se eu não existisse. Mas eu vou dar
um jeito nisso. O que ela está pensando? Que eu vou abaixar a cabeça e
aturar seu mau humor?
- O que você vai fazer?
- Eu tenho meu sistema - disse Stephanie, com um sorriso misterioso.
Terminou de beber o conhaque e colocou o copo vazio em cima da mesa. -
Ah, fiquei encantada com o jardim, com os canteiros de flores. Eu fazia
idéia que a ilha fosse árida, por causa do vento e do ar marinho.
- Esse jardim era o orgulho de Sancha. Foi ela que mandou instalar água
encanada na varanda, para regar os canteiros de rosas. Ela adorava as rosas.
- E do que mais ela gostava? Fale-me um pouco sobre sua irmã, Pietro. Tenho
muita curiosidade em saber.. .
- Não há muito que contar.
- Como ela conheceu Santino?
- Os dois foram criados juntos. Eram quase da mesma idade. Sancha ia
fazer trinta e oito anos em agosto, se estivesse viva.
Trinta e oito anos!
- Que idade ela tinha quando Lucia nasceu?
- Uns trinta e poucos anos. Estava convencida que não podia ter filhos.
Quando finalmente ficou grávida, depois de muitos anos de casada, Sancha
passou muito mal e Santino consultou diversos médicos até levá-la para
Londres, onde foi internada numa maternidade. Foi uma época terrível na
vida do casal. Sancha não voltou mais a si depois do parto.
Santino quase enlouqueceu de dor.
Stephanie ouviu a história, comovida. A lembrança do caso ainda abalava
profundamente Pietro. Era natural que Santino dedicasse à primeira mulher
um verdadeiro culto.
- No início, Santino pôs a culpa nos médicos. Afirmava para quem quisesse
ouvir que deviam ter salvo a vida da mãe antes de mais nada.
Podiam ter feito uma operação cesariana, em último caso. Foi somente mais
tarde, porém, que Santino ficou sabendo a verdade. Sancha dera instruções
expressas no sentido de ter um parto natural. Ela queria ter a experiência
do parto em toda sua realidade e pediu aos médicos para não contarem nada
a Santino. Quando ele ficou sabendo disso, era tarde demais.
- Que horror!
Pietro balançou a cabeça em silêncio.
- Santino vai ficar uma fera se souber que contei essa história. Isso é
segredo na família...
- Fui eu que insisti para saber.
- Não há de ser nada. Eu agüento as conseqüências - disse Pietro, com um
sorriso.

Mais tarde, deitada na cama enorme de casal, Stephanie lembrou-se


novamente da história que ouvira no jantar e afundou a cabeça no
travesseiro, sensível à dor de Santino pela perda da mulher. Ele não
precisava nada dela, muito menos de sua compaixão.
Na manhã seguinte, Stephanie foi novamente ao quarto dos brinquedos
depois do café. Lucia estava brincando com a casa de bonecas que ganhara
do pai e dirigiu a ela um olhar de satisfação, como se aguardasse sua vinda.
Maria estava passando a ferro algumas roupas da menina e cumprimentou-a
com sua maneira cerimoniosa de sempre.
Stephanie avistou alguns desenhos e pinturas na parede e aproximou-se
para examiná-los de perto. Eram excelentes, por sinal, e representavam os
objetos e paisagens familiares que a menina conhecia. Lucia, ao perceber
seu interesse, levantou-se do banquinho e caminhou para perto dela.
- Isso é um barco, Lucia? - perguntou Stephanie, em inglês, apontando para
um dos desenhos. .
Lucia franziu a testa e examinou o desenho com atenção.
- E una barca - disse, em italiano.
- Isso mesmo, um barco - repetiu Stephanie. - Una barca. .. um barco. Você
sabe dizer isso? Um barco. . .
Lucia observou-a em silêncio. Apontou em seguida para outro desenho
pendurado na parede.
- C' e mia bambola.
Stephanie quebrou a cabeça para adivinhar o sentido de bambola.
- Ah, sim, sua boneca - exclamou por fim, com um sorriso de triunfo. - Essa
é minha boneca - repetiu lentamente em inglês, para Lucia ouvir.
Lucia mordeu o beiço.
Boneca - disse, devagar.
- Isso mesmo, Lucia, boneca. olha! - Stephanie inclinou-se e apanhou a
boneca na caixa de papelão. - Essa é sua boneca.
Lucia arrancou a boneca de suas mãos, com ciúme, como se não suportasse
que uma pessoa estranha pegasse nos seus brinquedos preferidos. Voltou em
seguida sua atenção para os desenhos pendurados na parede.
Che cosa e questo? - perguntou Isso é uma rosa.
Una rosa - repetiu Lucia, em italiano.
Isso mesmo, uma rosa.
Uma rosa! - repetiu Lucia, lentamente. Ela correu na direção da babá com o
desenho na mão. - Isso é uma rosa - exclamou com alegria.
Maria sorriu e Lucia voltou para perto de Stephanie.
- Mais! - pediu Lucia, apontando para as pinturas na parede.
A manhã passou rapidamente e quando Maria veio avisar que o almoço
estava servido, Stephanie ficou surpresa. Lucia despediu-se com tristeza de
sua nova amiguinha de brincadeira e pediu para ela ficar mais um pouco.
Stephanie porém preferiu não apressar as coisas.
- Arrivederci, Lucia - disse, saindo do quarto de brinquedos.
Pietro não lhe fez companhia à mesa do almoço. Quando perguntou por ele
mais tarde, ficou sabendo que não estava no castelo. Tinha ido a Palermo e
só voltaria à tarde. Stephanie estava ansiosa para contar a alguém os
progressos que fizera com Lucia mas teria que esperar um pouco mais, pelo
visto. Enquanto isso, decidiu pôr em prática seu segundo plano.
Atravessou o hall e dirigiu-se à cozinha. Estava ligeiramente ansiosa ao
penetrar pela primeira vez no território de Sophia. A cozinha era grande,
moderna, bem equipada e inteiramente coberta de azulejos. A única
concessão ao passado era um moedor de café manual que estava em cima de
uma prateleira. .
Além de Sophia, havia mais três pessoas na cozinha. Uma mulher gorda, que
devia ser Dominica, a cozinheira; o homem alto e magro que segurava a
caneca de café com as duas mãos devia ser Carlo, o jardineiro; e Teresa, a
arrumadeira que já conhecia. Todos os quatro estavam voltados para ela com
uma expressã6 de espanto, como se não adivinhassem o motivo que ela tinha
para entrar na cozinha.
- Sophia, eu queria ser apresentada aos empregados da casa -. disse
Stephanie, por fim, rompendo o silêncio que pesava no ambiente.
Sophia hesitou um segundo, com o olhar desaprovador. Em seguida, com um
movimento imperceptível dos ombros, atendeu o pedido. Stephanie apertou
a mão de cada um deles, enquanto Sophia fazia as apresentações.
- Vocês devem estar curiosos para saber o que vim fazer aqui disse
Stephanie, com um sorriso. Voltou-se para Sophia. - Por favor, Sophia,
traduza o que eu disser para eles ouvirem.
Sophia fez uma careta de desagrado.
- Eu entendo muito mal inglês, signora.
- Ah, faz uma forcinha - insistiu Stephanie. - Meu marido disse que você
entende tudo perfeitamente.
Santino não dissera isso, evidentemente, mas Stephanie julgou que a menção
do nome de Santino ia facilitar as coisas. E ela tinha razão.
Sophia enrubesceu e murmurou uma desculpa entre os dentes, dando a
entender que faria o possível para obedecer seu pedido.
Falando lentamente, para que Sophia pudesse traduzir suas palavras,
Stephanie explicou que tinha a intenção de trabalhar com cada um deles em
particular, durante um determinado período, para saber como era o serviço
e quais as reformas ou melhorias que podiam ser feitas. Ela disse em
seguida que não tinha o propósito de mudar nada no momento, a menos que
fosse para melhorar o serviço, e terminou cumprimentando todos eles pelo
excelente desempenho de suas funções.
Ninguém comentou nada quando ela terminou sua breve fala. Stephanie não
ficou sabendo por isso se aprovavam ou desaprovavam suas palavras.
Sophia também não demonstrou a menor emoção e Stephanie tinha a
impressão exata que nenhum deles prestara atenção ao que dissera. Todos
se mantinham absolutamente mudos e não abriram a boca nem mesmo para
fazer uma pergunta.
- Ninguém deseja perguntar nada? - insistiu Stephanie, pela segunda vez.
A mulher gorda balançou a cabeça negativamente. Não adiantava insistir,
pensou Stephanie completamente vencida. Ela tinha que aprender primeiro a
língua para se fazer compreender pelos empregados. Somente depois podia
tomar certas providências referentes à administração do castelo.
Fez meia-volta e, por um descargo da consciência, disse da porta:
- Espero que esteja claro para todos.
Sophia deu um passo à frente.
- Eu trabalho no castelo há mais de trinta anos...
- Sim, eu sei. E o que tem isso? - perguntou Stephanie.
- Minha primeira patroa deixou tudo aos meus cuidados.
- Eu também não vou interferir no seu serviço, Sophia.
Pelo que entendi, a senhora vai se encarregar de tudo aqui.
Não foi isso que eu disse! - exclamou Stephanie, com vivacidade.
- Pelo menos não foi nesse sentido que você está dando. Eu desejo apenas
supervisionar os trabalhos na casa, o menu, a compra de mantimentos, a
limpeza dos quartos... Nada disso vai interferir com seu serviço, Sophia. Sei
que vocês todos são excelentes empregados. Eu desejo apenas estar
informada a respeito de tudo que se passa no castelo.
Os empregados ouviram suas palavras com um certo nervosismo.
- Amanhã de manhã, Sophia, eu gostaria que você me levasse para conhecer
as diversas dependências do castelo. Até agora eu só conheço meu quarto e
o apartamento de Lucia. E estou certa de que há muitas outras
dependências neste castelo tão grande. . .
Sophia ouviu em silêncio seu pedido e Stephanie saiu da cozinha com a
impressão que sua tarefa de dona-de-casa não seria muito fácil. Os
empregados estavam habituados a fazer tudo sem prestar contas a ninguém.
Pietro voltou ao castelo no fim da tarde. Stephanie estava se preparando
para o jantar. Ela ouviu o ruído do carro na entrada e terminou rapidamente
sua maquilagem, ansiosa para contar a ele as últimas novidades.
No momento em que desceu a escada, encontrou Pietro andando de um lado
para o outro do hall, profundamente nervoso e com o rosto amarrado. Lucia
estava sentada em cima da arca antiga, balançando as pernas. Parecia
indiferente à conversa que Pietro mantinha com Maria num italiano muito
rápido para Stephanie entender.
- O que foi que aconteceu, Pietro? Por que você está com essa cara?
- Você ainda pergunta! - exclamou Pietro, mais furioso que ela podia
imaginar. Stephanie ficou parada no meio da sala, com as mãos caídas,
olhando para um e para o outro com o rosto perplexo.
- Eu não estou sabendo de nada.
Pietro deu um passo em sua direção.
- Como não, cara? Você conseguiu mandar embora todos os empregados
numa tarde!

CAPITULO VIII

- Não é possível!
Stephanie levou as mãos à boca, horrorizada com a notícia.
- Mas é! - disse Pietro, passando os dedos entre os cabelos. - Leve Lucia
embora, Maria.
Lucia porém não queria sair no meio da discussão. Maria tentou arrastá-la à
força, mas a menina correu na direção de Stephanie e agarrou-se nas pernas
dela como fazia habitualmente com as do pai.
- Se ela não quer ir embora, pode deixar - disse Pietro, fazendo sinal para
Maria se retirar da sala. - O que aconteceu exatamente? perguntou, depois
que a babá saiu.
Stephanie deu um suspiro de cansaço, soltou os braços de Lucia da sua
perna e lhe estendeu a mão.
- Pouca coisa, na realidade. Disse a Sophia que desejava tomar parte da
direção da casa.
- Você disse isso? - perguntou Pietro, perplexo.
- O que tem isso de mais? Eu não vou vegetar como um legume, alheia às
coisas que se passam aqui. Eu sou a mulher de Santino, bolas, pelo menos no
nome. Ele não pode querer decidir tudo sozinho. Eu também mereço um
certo respeito, ué!
Pietro passou com nervosismo os dedos entre os cabelos soltos.
Que confusão você aprontou, cara.
- Para onde eles foram? Não ouvi ninguém sair daqui.
- Eles simplesmente pegaram suas coisas e saíram. A vila onde moram é
perto daqui e todos eles, com exceção de Teresa, têm suas famílias.
Cario é o marido de Dominica.
- Sinto muito, Pietro, mas eu não podia prever essa reação por parte deles.
E agora, o que se pode fazer?
- A única solução é conversar com Sophia e dizer que ela compreendeu mal
suas palavras.
Stephanie fixou-o incredulamente.
- Você está sonhando! Eu pedir desculpas a Sophia? Contrato outros e
pronto!
- Quem vai trabalhar para você? - perguntou Pietro, com o olhar parado. -
Essa gente é terrivelmente leal. Eles não virão trabalhar aqui em hipótese
alguma se souberem que estão tomando o lugar de Sophia e dos outros.
- Nesse caso, a 'solução é procurar empregados numa outra parte.
- Não, isso não resolve. Sophia e os outros têm que voltar para aqui.
Você já imaginou o que Santino vai dizer? Sophia trabalha na casa há mais
de trinta anos. Santino era um moleque quando ela veio para cá.
Ela é uma espécie de mãe postiça. . .
- Eu não sabia disso - murmurou Stephanie, com um tremor nervoso. - De
qualquer forma, não vou me humilhar diante dos empregados.
Eu não fiz nada errado. Eu não despedi ninguém. Sophia sentiu-se ofendida
porque eu me conduzi como uma mulher emancipada e não como uma covarde.
Na Inglaterra, dona-de-casa inglesa que se ela trabalhar!
- Mas nós não estamos na Inglaterra, cara.
- Eu sei que não estamos, mas eu também não sou siciliana, caro. Como
ficamos, então?
Pietro mordeu o lábio com nervosismo.
- Só há uma solução. Eu vou conversar com Sophia.
- E o que você vai dizer?
- Não sei ainda. - Ele passou a palma úmida da mão na nuca. Posso tentar
convencê-la de que você tinha somente a intenção de supervisionar tudo do
alto, sem interferir em casa.
- Mas não é verdade. Eu disse a eles que tinha a intenção de trabalhar com
cada um para ver quais eram exatamente suas funções aqui. Eu posso fazer
esses serviços como qualquer pessoa. Fiz um curso de trabalhos domésticos
e passei com nota dez!
- Está bom, está bom, não vamos brigar por causa disso! Eu concordo que
você tem razão de sobra para se sentir entediada aqui sem fazer nada e que
seus motivos são legítimos. Mas isso não altera o fato de que Sophia goza de
uma situação privilegiada nesta casa. Você não pode simplesmente mandá-la
embora, sem mais nem menos. .
- Mas eu nunca pensei nisso! Pietro, procure entender. Eu quero assumir
minha função de dona-de-casa. Se vou morar aqui, é natural que assuma
certas responsabilidades.
- Mas quando Sancha estava viva. . .
- Ah, eu sabia que você ia dizer isso! Eu já sei. Sophia me falou.
Sancha deixava os empregados dirigirem a casa sem interferir em nada.
Mas o que ela fazia? Com o que ela se ocupava?
- Ela fazia muitas coisas.
- Quais, por exemplo? - perguntou Stephanie, com impaciência.
Fazia jardinagem ou bordados?
- Entre outras coisas. Você viu as pinturas que estão na sala? Foi ela que
pintou.
- Ah, é? Eu não sabia.
- Sancha levava uma vida muito retirada. Cuidava do jardim, bordava,
costurava e, quando estava meio deprimida, pintava naturezas mortas,
paisagens. . .
- Infelizmente, eu não sei fazer nenhuma dessas coisas. Sei quando muito
cerzir meias e arrancar ervas daninhas dos canteiros... Mas não tenho
nenhum talento artístico. Agora eu entendo por que Sophia se referia a
Sancha como uma perfeita dona-de-casa.
- Bem, isso não vem ao caso. Nosso problema no momento é fazer o jantar!
As pessoas acharam graça! Imagine só uma queixa porque os empregados
não deixam
Stephanie olhou para Lucia que parecia entediada com a conversa
interminável entre os adultos.
- Eu posso cuidar disso.
- Você? - exclamou Pietro, com os olhos arregalados.
Stephanie limitou-se a balançar a cabeça e atravessar a sala em direção à
cozinha. Ao chegar lá, deparou-se com uma cena desanimadora. A cozinheira
tinha ido embora no meio do jantar. Deixara os legumes descascados em
cima da pia e uma porção de panelas sujas em cima do fogão.
Atrás da porta, pendurado num cabide, estava um avental enorme que
Stephanie passou na cintura. Começou a limpar as panelas sujas e os pratos
empilhados na pia. Felizmente, o fogão de lenha estava aceso e tinha água
'quente à vontade. Por outro lado, a atmosfera da cozinha estava abafada e
Stephanie começou a suar profusamente.
Estava lavando uma panela quando Pietro entrou na cozinha e olhou
horrorizado para os braços e mãos cobertos de sabão.
- Dio mio, Stephanie, deixe isso pra lá. Vamos jantar fora!
Stephanie afastou um cacho de cabelos que caía em cima dos olhos.
Por quê? Será que eu não sou capaz de lavar essa louça?
Não é Ísso.
Ah, Pietro, vá dar uma volta no jardim enquanto termino isso aqui. Mais
tarde vamos conversar com calma, depois do jantar.
- O que você pretende fazer para o jantar?
Dominica deixou uma sopa pronta. Está guardada no forno. Eu vou esquentá-
la e podemos comê-la com pão e frios. Fora isso, há muitas frutas e queijos
na geladeira. Amanhã vou organizar o menu da semana.
Por hoje isso basta.
Stephanie voltou a limpar e arear as panelas. Não queria pensar nas reações
de Santino por enquanto. No momento havia outros problemas mais urgentes
para serem resolvidos, mil e uma coisas que até então tinham ficado a cargo
dos empregados. No dia seguinte, deveria limpar o fogão, fazer as camas,
espanar e varrer as salas e os quartos, preparar as refeições e comprar
mantimentos. Balançando a cabeça, esfregou com força o fundo da panela.
Primeiro uma coisa, depois outra. Uma de cada vez, sem correria nem
precipitação.
Nó momento, a coisa mais importante era fazer o jantar.
Acabaram comendo na copa, porque era mais prático. Pietro conversou com
Maria nesse meio tempo e a babá concordou em ficar. Stephanie respirou
aliviada ao ouvir a notícia. O que teria feito se tivesse que tomar conta de
Lucia, além de ocupar-se dos outros serviços do castelo?
Para Lucia, no entanto, tudo era novidade. Depois do jantar, Stephanie deu a
ela um pano de pratos e ensinou-a a enxugar os talheres.
Apesar de sua idade, Lucia fez o serviço com cuidado, sem derrubar nada no
chão, embora Maria a observasse com um certo nervosismo.
No momento em que Stephanie foi para a cama aquela noite, estava
completamente exausta. Mas tinha a satisfação de saber que o fogão estava
limpo, que a mesa estava posta para o café da manhã e que todos iam dormir
de barriga cheia. Sua única preocupação ao deitar na cama era não perder a
hora na manhã seguinte, porque tinha a impressão de que podia dormir uma
semana a fio.

Felizmente Lucia incumbiu-se de acordá-la cedo no dia seguinte. Entrou no


quarto na ponta dos pés, como era seu costume, segurando nas mãos os
desenhos de que Stephanie tinha gostado no dia interior.
Às sete da manhã, portanto, Stephanie estava sentada na cama com Lucia ao
seu lado, comentando os desenhos que a menina lhe mostrava enquanto Lucia
repetia as palavras em inglês que aprendera na véspera.
Nos dias seguintes, porém, aconteceram muitas novidades no castelo.
Como era de se esperar, nem tudo transcorreu sem atritos no início.
Embora Pietro tivesse abandonado temporariamente suas obrigações para
dar uma mão na cozinha, apanhando carvão e lenha para o fogão, colhendo
legumes e verduras na horta, varrendo a entrada da casa e cortando lenha
com a serra, havia muita coisa ainda para ser feita. Stephanie fazia as
camas, varria e espanava as salas, os quartos, a cozinha. Adorava cozinhar e
não encontrou nenhuma dificuldade no preparo das refeições.
Ao dar uma volta lá fora, Stephánie descobriu que havia três carros
guardados na garagem. Com a aprovação de Pietro, foi a Palermo uma manhã
para comprar mantimentos. Levou Lucia e Maria consigo. Almoçaram num
restaurante muito simpático que encontraram no caminho do mar.
Na viagem de volta, Stephanie refletiu sobre os acontecimentos recentes
que haviam abalado a vida no castelo. Pietro ia telegrafar para Santino
contando as novidades? Quando Santino voltaria para casa? E Sophia,
continuaria inabalável na sua decisão?
Certa noite, uma semana depois do início da crise, Pietro e Stephanie
estavam sentados na pequena sala de jantar, saboreando lentamente o café.
- Eu estive com Sophia hoje - disse Pietro, num intervalo da conversa.
Stephanie levantou a cabeça ao ouvir a notícia e sentiu uma sensação
esquisita na boca do estômago. Ela previa que, mais cedo ou mais tarde,
teria que tomar uma decisão com respeito aos empregados da casa.
Embora todos comessem razoavelmente bem e não houvesse surgido nenhum
problema insuperável, o castelo não estava recebendo o cuidado que
merecia. Fazia vários dias, por exemplo, que ninguém passava o aspirador de
pó nos tapetes e que ninguém arejava os quartos fechados.
- Onde você a encontrou? Ela veio até o castelo?
- Não, ela não veio aqui. Ela não viria aqui por nada desse mundo.
- Você não faz idéia como os sicilianos são orgulhosos. Eu a encontrei na vila.
Ela está morando com o irmão e a mulher.
- Ah, é? - perguntou Stephanie, sem demonstrar muito interesse. E o que
ela falou? Quais são as novidades? .
- Ela não comentou nada. Fui eu que mencionei o fato. Contei que você e
Maria estavam dando conta de tudo, sozinhas.
Stephanie não gostou de ouvir essa notícia. Preferia que Pietro não
comentasse nada com Sophia sobre a vida que levavam no castelo. Pietro
percebeu a gafe que cometera e tentou remediá-la.
- Não fique com raiva de mim, Stephanie. Não fiz por mal Sophia é uma
pessoa muito humana. Ela está tão aborrecida quanto você com o que
aconteceu.
- Ela está disposta a voltar?
- Acho que não. De qualquer forma, está arrependida de ter ido embora.
Você tem que reconhecer que seria melhor para todos se ela voltasse e
trouxesse consigo os outros empregados.
- Não há dúvida.
Apesar de seus esforços, Stephanie não podia continuar muito tempo no
mesmo ritmo. Estava começando a sentir-se exausta por cuidar de tantas
coisas ao mesmo tempo e suas costas doíam dos trabalhos que era obrigada
a fazer. Mesmo assim, não ia permitir que os empregados rissem nas suas
costas de seu fracasso como dona-de-casa. Após recolher os talheres e os
pratos sujos na mesa, começou a arrumá-los na bandeja.
- E Santino, quando pretende voltar? - perguntou por fim, satisfazendo uma
curiosidade que a perseguia há vários dias.
Pietro apagou o cigarro no cinzeiro antes de responder.
- Segundo suas previsões, ele deve estar de volta nos próximos dias.
Você pode imaginar que estarei em maus lençóis por não ter comunicado
nada a ele do que se passou aqui.
- Você não tem culpa nenhuma. Eu assumi a inteira responsabilidade do meu
ato.
- Você acha mesmo que ele vai aceitar essa explicação? Ah, você não
conhece Santino. Este é o castelo de Strega, a residência da família
Ventura durante gerações e gerações. Os comportamentos desse tipo não
são tolerados aqui. Nunca aconteceu nada parecido no castelo antes.
- Ah, isso é ridículo! - exclamou Stephanie, levantando-se da cadeira. - Se
você tem medo da reação de Santino, é preferível passar um telegrama para
ele urgentemente!
Pietro também se levantou, com o rosto vermelho.
- Eu não disse isso, Stephanie! Eu deixei por acaso de fazer alguma coisa
que você pediu? Não cuidei do fogão, não colhi os legumes na horta e não fiz
uma porção de outras coisas sem nunca me queixar?
Stephanie abaixou a cabeça encabulada.
- Desculpe, Pietro. Eu não falei por mal. Mas o que mais podíamos ter feito
nas circunstâncias?
- Podíamos ter conversado com Sophia, insistindo para ela voltar, ou
podíamos ter passado um telegrama para Santino. Ele viria e poria tudo em
ordem.
Stephanie apanhou a bandeja com os talheres e as louças do jantar.
- Eu acho que vocês todos dão importância demais a Santino. Afinal, ele não
é nenhum Deus. É apenas um homem como a gente e eu prefiro resolver
sozinha meus problemas.

A tarde estava especialmente abafada. Stephanie estava suando em bicas


na cozinha enquanto amassava meio quilo de morangos que iam entrar na
torta que preparava para o jantar. Pietro fora a Palermo numa viagem de
negócio e Lucia estava dormindo no seu quarto, enquanto Maria cochilava Da
varanda coberta. Havia um clima de sonolência pela casa inteira e Stephanie
morria de vontade de largar tudo e dar um mergulho no mar. Podia sentir a
água salgada na pele, as ondas quebrando nas suas pernas... Afastou um fio
de cabelo suado do rosto e deu um suspiro. Embora estivesse apenas de
calça comprida e blusa esporte aberta no peito, estava empapada de suor e
não via a hora em que se enfiasse embaixo do chuveiro frio.
Na tranqüilidade da tarde, o ruído do automóvel lá fora ecoou alto no
interior da casa. Pietro tinha voltado mais cedo? Talvez fossem dar um
mergulho mais tarde, antes de escurecer.
_ Ela olhou para as mãos vermelhas do suco dos morangos e deu um suspiro
de desânimo. Esmigalhou as últimas frutas na peneira e reuniu todas as
folhas e. cascas para jogar no lixo. Estava lavando as mãos na torneira
quando ouviu passos no corredor. Enxugou as mãos no avental e aguardou
com um sorriso nos lábios a entrada de Pietro. Levou um susto, porém,
quando avistou Santino na porta da cozinha - e ele estava simplesmente uma
fera!
- O que aconteceu aqui? - perguntou em voz alta;
Stephanie encostou-se na pia, com as pernas moles.
- Ah, é uma história muito longa - começou sem jeito.
- Estou vendo que é longa! Onze dias é longa demais!
- Onze dias? - repetiu ela, sem entender imediatamente o sentido das
palavras.
Fazia exatamente onze dias que Sophia e os outros empregados tinham
saído do castelo.
- Onze dias, nem mais nem menos! - Ele a percorreu de alto a baixo, sem
piedade, notando os cabelos desarrumados, as manchas vermelhas no rosto,
as calças amassadas que estava usando. - O que você está querendo? Que as
pessoas riam de você nas suas costas? E de mim também?
A coragem de Stephanie voltou ao ouvir essas palavras maldosas.
- É só com isso que você se importa? Com sua casa, com sua reputação?
Santino deu um passo à frente e parou a alguns metros dela. Fazia um
esforço sobre-humano para controlar sua fúria.
- Eu não vou discutir esse assunto com alguém que se veste como
uma faxineira - disse com raiva. - Vá lavar o rosto, trocar de roupa e venha
conversar comigo dentro de quinze minutos na minha sala!
Stephanie notou que a pronúncia dele se tornava mais carregada quando
estava irritado e não havia dúvida que ele estava furioso no momento.
Mas ela preferia morrer a fazer sua vontade! Não era nenhuma empregada
para obedecer suas ordens. Com um gesto brusco, voltou as costas e
continuou a escorrer os morangos para a torta.
A única coisa que a intrigava no momento era saber como Santino
descobrira os dias exatos que Sophia e os outros tinham debandado da casa.
Pietro telegrafara contando? Ou fora a própria Sophia? Não havia outra
explicação possível. Mas Pietro teria dito a ela se tivesse agido dessa forma.
- Stephanie! - berrou Santino, sem se conter. - Eu não estou
falando para as paredes! Quero uma explicação e vou ter essa explicação,
por bem ou por mal! .
Ele fez meia-volta e saiu da cozinha, batendo a porta com toda força.
Stephanie caiu no banquinho da cozinha com os braços pendentes. Estava
totalmente esgotada com aquela cena de violência e não podia nem pensar na
idéia de enfrentá-lo na sua sala de trabalho. Mesmo assim, ela não estava
com disposição para ficar mais tempo na cozinha, aguardando a volta dele.
Com determinação, deixou o escorredor em cima da pia, enxugou as mãos na
toalha e saiu da cozinha.
Não avistou Santino no hall nem na sala de estar; devia estar esperando-a
na biblioteca, folheando a pilha de cartas e de envelopes comerciais que
tinham chegado na sua ausência.
Ao entrar no quarto de dormir, Stephanie tirou a roupa suja e dirigiu-se ao
banheiro. Tomou um banho demorado de imersão para acalmar os nervos e
fez massagem nos músculos doloridos das costas. Era uma delícia afundar o
corpo na água morna e esquecer de todos os seus problemas, relaxar o corpo
e a cabeça, sair do banho com outra disposição para enfrentar a vida. . .
Lavara os cabelos no dia anterior, mas estavam molhados com o vapor da
água quente. Após embrulhar-se numa toalha, voltou ao banheiro e apanhou
os grampos para prender as pontas. No momento em que escovava os cabelos
diante do espelho da penteadeira, viu as horas no relógio de pulso. Passara
meia hora do prazo dado por Santino!
Estremeceu ao ouvir um ruído atrás de si. Voltou a cabeça e deu
uma exclamação de susto quando avistou Santino em pé na porta do quarto,
segurando a maçaneta com os dedos contraídos. A raiva estava visível na sua
fisionomia e Stephanie encolheu-se toda diante da fúria que ameaçava
explodir a qualquer instante.
- Você não ouviu o que lhe disse? - perguntou, com a voz gelada. -
Ou você prefere que eu lhe mostre como a gente se faz obedecer na Sicília?
Ao dizer isso, entrou no quarto e bateu a porta atrás de si.
Stephanie estava aterrada. Ela não podia imaginar que Santino fosse subir
ao seu quarto e encontrá-la nasqueles trajes.
- Quer fazer o favor de sair do meu quarto - disse, com a voz
trêmula. - Você não me intimida com suas ameaças!
- Ah, não? Você tem certeza que não? - Ele balançou a cabeça
com o rosto contraído. - Pois você vai ver que sim!
- Pelo amor de Deus, Santino, o que você quer de mim? Você está
farto de saber o que aconteceu aqui na sua ausência. O que mais você quer
ouvir? Eu fiz a única coisa possível nas circunstâncias. .. eu tentei me virar
com a ajuda de Maria e de Pietro - ela estendeu a mão para impedi-lo de se
aproximar. - Não fiz nada de mal. Lucia recebeu toda a atenção a que está
habituada e eu posso dizer, com toda honestidade, que ela me trata agora
como uma amiga, e não mais como uma estranha. . .
Santino cruzou os braços e encarou-a nos olhos.
- Continue.
- O que mais você quer saber? - Ela passou os dedos pelos cabelos úmidos. -
Por qüe não pergunta à pessoa que lhe contou? - - Como você acha que eu
fiquei sabendo? Você não mandou dizer
nada. Pietro tampouco me informou sobre o que estava acontecendo. Que
atitude eu posso tomar quando minha mulher - minha mulher! - se comporta
como uma criada?
- Você tem do trabalho doméstico uma impressão sórdida. Na Inglaterra, a
mulher toma conta de casa depois do casamento!
- Isto não é uma casa. É um castelo! Você não pode comparar um
sobradinho de bairro com o castelo de Strega!
A arrogância da voz irritou-a mais do que o sentido das palavras.
Stephanie levantou a cabeça com toda a dignidade que tinha.
- A situação é absolutamente idêntica nos dois casos.
- Você tem doze quartos num sobrado para limpar? - perguntou
Santino, com sarcasmo. - Além disso, há trabalhos aqui que exigem pessoas
experientes, molduras e tapeçarias que não podem ser comidas por bichos e
devoradas por traças simplesmente porque não foram devidamente
espanadas. Você poliu a arca de entrada que é uma obra antiqüíssima?
- Não, não poli.
- Por que não poliu?
- Porque não tive tempo.
- Exatamente. Você não teve tempo. E você não terá tempo nunca enquanto
insistir nessa idéia absurda de bancar a dona-de-casa.
- Não é idéia absurda coisa nenhuma! Eu fiz o que pude. Está certo, eu não
poli os móveis antigos e não passei o aspirador de pó nos tapetes persas,
sem falar que há poeira nos quartos fechados, mas nós fizemos o que
pudemos. Lucia e Maria continuaram a levar a mesma vida de sempre, exceto
que Lucia me ajuda na cozinha quando tem vontade e, Pietro foi uma mão na
roda. . .
Ah, sim, Pietro! Por falar nisso, onde ele está?
- Foi a Palermo, tratar de uns negócios.
- Não sei como ele encontra tempo para cumprir suas obrigações
ajudando-a a tomar conta da casa - observou Santino, com sarcasmo.
Stephanie fez um gesto de impaciência.
- Por que você não faz um esforço para compreender? Custa tanto assim?
- Compreender o quê? Na minha opinião você se comportou como
uma perfeita louca, ao despedir Sophia e dirigir o castelo sozinha, sem a
colaboração dos empregados.
- Eu não despedi Sophia! Ela foi embora por livre e espontânea
vontade!
- Está bem, vamos dizer então que você tornou a situação insustentável para
ela aqui.
- Por quê? Só por que queria ter a supervisão das coisas que se
fazem no castelo? Será que é pedir demais?
- O que você sabe a respeito de dirigir um castelo? Sophia trabalha aqui há
mais de trinta anos. Você queria ensiná-la a fazer esse trabalho?
Stephanie apertou a toalha em volta do corpo, desejando que não
estivesse com essa desvantagem na sua discussão com Santino.
- Eu não quis ensinar coisa nenhuma a ela! Eu queria antes que
ela me ensinasse tudo que sabe.
- Para quê? Quando Sancha estava viva, ninguém interferia no serviço da
casa.
Stephanie estava farta com a discussão e a menção de Sancha foi a gota
d'água.
- Ah, já sei, Sancha era perfeita! Eu estava aguardando o momento em que
ela ia entrar na discussão. Ela é a medida da perfeição. Todos comparam as
coisas no castelo com a época em que ela estava viva. - Ela deu um suspiro e
encarou com insolência o rosto moreno que se transformava visivelmente na
sua frente. - Sua mulher. .. sua primeira mulher, não é mais a dona do
castelo. Agora sou eu! Você me trouxe aqui, você me obrigou a vir aqui, você
fez de mim o que eu sou e agora você tem que agüentar as conseqüências. Eu
não posso nem quero me comparar com Sancha. Ela deixava tudo por conta
dos empregados e não tomava parte em nada. Eu não sou desse jeito! Eu sou
diferente. Eu sou uma mulher emancipada e não uma criatura doce e cordata
que faz todas as vontades do marido, que se contenta em costurar, cuidar
do jardim e pintar uns quadros quando está deprimida. . .
- Silenzio!
A exclamação em italiano era um sinal evidente de que Santino estava uma
fera. Nem por isso Stephanie sentiu-se intimidada. Era como se tudo que
tinha acontecido com ela nas últimas semanas explodisse subitamente numa
onda de desabafo.
- Eu não vou me calar! - gritou com fúria. - Vou dizer tudo que
me passa pela cabeça! Você me trouxe aqui contra minha vontade, mas eu
não sou sua boneca, nem você é meu patrão!
Santino deu um passo à frente e segurou-a pelo pulso com violência.
- Você não vai falar comigo nesses termos! - berrou com cólera. -
Você não vai mencionar o nome de Sancha em tom de zombaria!
- Por quê? Por quê? Por que não posso me defender de suas acusações? Eu
sou uma criatura humana, fique sabendo, e não um autômato como você!
- Na Sicília a mulher obedece ao homem - disse com fúria. -
O homem é o dono da casa e ninguém discute suas ordens. Queira ou não,
você é a mulher de um siciliano e me deve obediência. Estou me explicando
claramente?
- É verdade também que na Sicília os homens batem nas mulheres?
Santino fitou-a com insolência. A toalha que a cobria era totalmente
inadequada para protegê-la dos olhares penetrantes do italiano e Stephanie
sentiu-se profundamente humilhada com essa exposição forçada de sua
nudez.
No esforço final para se libertar da mão dele, levantou o braço livre e
desferiu um tapa com toda a força na face direita dele. O ruído do tapa
ecoou alto no silêncio do quarto e Stephanie olhou horrorizada para as
marcas dos dedos que estavam impressas no rosto moreno.
A reação de Santino foi inteiramente inesperada. Em vez de agredi-la por
sua vez, apertou-a com mais violência que antes e passou os dedos em volta
do pescoço branco e delicado, como se fosse estrangulá-la, enquanto a
fitava com os olhos brilhantes e a boca entreaberta. Stephanie estava
tomada por outras sensações inquietantes. A proximidade do corpo dele
abalava seu sistema nervoso, sobretudo porque as pernas musculosas
roçavam inquietantemente nas suas. Ela sentiu o aroma forte de tabaco.
misturado com o calor do corpo, e foi tomada do desejo intenso de roçar o
corpo contra o dele, para excitá-lo tanto quanto ele a excitava.
Santino não era indiferente ao contato da mulher como dava a entender.
Era visível no momento que ele experimentava sensações que não tinham
nada a ver com o ódio.
Os dedos que apertavam o pescoço aumentaram a pressão, como se ele
quisesse destruir a fonte de sua tentação; em seguida, porém, tornaram-se
delicados, acariciantes, alisaram a pele macia com movimentos lentos e
ritmados. Ela fechou os olhos para não revelar o desejo que sentia. Era
loucura deixá-lo tocar dessa forma, pensou no seu delírio, sabendo quem era
ele e que opinião tinha dela, mas não podia fazer nada.
Santino levantou seu queixo fino com o polegar e fitou-a com os olhos
brilhantes. Ele parecia estar travando uma batalha interior e os músculos do
maxilar tremiam de tensão enquanto a fixava com a boca entreaberta.
Demorou-se um momento no rosto e desceu em direção à curva dos seios.
- Dio mio - murmurou, com a voz surda. - Ti voglio.
Com um gemido, puxou-a com força para junto de si, enquanto cobria sua
boca de beijos apaixonados. Stephanie não tinha vontade nem força para
resistir. Estava consumida pelo desejo de conhecer o contato de seu corpo e
de sua boca, e os braços nus estreitaram o corpo dele no momento em que
se dobrou para trás. Ela estava perdida num mundo de desejo que tornava a
submissão a esse homem não apenas algo desejável como absolutamente
necessário.
Santino também tinha perdido completamente o domínio e o controle de
seus atos. O corpo submisso e flexível de Stephanie nos seus braços
afastou todos os pensamentos racionais da cabeça. Afundou o rosto na
maciês dos cabelos compridos e mostrou a ela que também sabia ser
humano. . .

CAPITULO IX

O deleite contudo foi apenas momentâneo.


Como se viesse de muito longe, Stephanie ouviu o grito agudo de
Lucia:
- Papa! Papa! Che cosa fai?
Santino endireitou-se imediatamente e afastou-a com um gesto brusco.
Havia uma expressão de desagrado no momento em que abotoou a
camisa e endireitou o nó da gravata, antes de voltar-se e receber a filha.
Os olhos dele passaram por Stephanie com indiferença. Ela apertou a toalha
em volta do corpo, sentou-se no banquinho da penteadeira e afastou a
cabeça para não vê-lo Lucia aproximou-se lentamente, observando-a com
curiosidade. Stephanie fez um esforço para parecer normal. Levantou-se,
sorriu para a menina
e, com um aceno de mão, entrou no banheiro. Que Santino conversasse com
a filha e desse a explicação que bem entendesse. Ela não ia ficar ali sentada
como uma idiota, sabendo que ele a desprezava por ter cedido ao seu
desejo.
Esperou no banheiro até ter certeza que não havia mais ninguém no quarto.
Voltou então para lá e sentou-se desanimada na beira da cama.
A lembrança da cena com Santino era tão viva que não podia pensar em mais
nada. Mirou-se no espelho, esperando encontrar alguma alteração na
fisionomia. Entretanto, com exceção das manchas vermelhas no pescoço e na
boca inchada, a aparência continuava idêntica. Sentiu um calafrio e passou a
mão nos cabelos para ver se ainda estavam úmidos. Os cabelos
tinham secado nesse meio tempo e estavam enrolados nas pontas. Olhou
para os pés e procurou acalmar seu tremor. Alguém tinha que fazer o jantar
e estava começando a ficar tarde. Santino, naturalmente, não ia passar
fome e cabia a ela vestir-se; descer e servir a mesa, como tinha feito nos
dias anteriores.
Depois de vestir a calça comprida e a blusa esporte que estavam em cima da
cama, desceu a escada e ouviu o ruído de um carro na entrada.
Talvez fosse Pietro de volta de Palermo. Estava necessitada de sua
companhia e gostaria muito de desabafar suas mágoas com ele.
O ruído do motor porém afastou-se de casa e cla concluiu que só
podia ser Santino indo embora. No mesmo instante, a despeito dos
sentimentos anteriores de rejeição, sentiu um vazio imenso no coração. Era
horrível pensar que Santino a tratava com tanta indiferença e que não se
dava nem ao trabalho de avisá-la que ia sair.
Na cozinha, trabalhou sozinha durante uns vinte minutos, até que Maria
apareceu para ajudá-la.
- Olá, Maria. Onde estão os outros? - perguntou Stephanie com um sorriso.
- Lucia saiu com o pai - disse Maria, com o rosto sério.
- Ah, é? Você sabia que ele estava de volta?
- Quem?
- Meu marido. Foi você quem mandou chamá-lo, Maria?
Maria levantou os braços para o alto.
- Eu? Deus me livre!
- Está bem. Não tem importância. E o senhor Pietro já voltou de
Palermo?
- Eu não o vi aqui - disse Maria, com o rosto ansioso. – Posso ajudá-la em
alguma coisa?
- Muito obrigada, Maria, mas já estou no fim.
Maria evidentemente estava confusa e ansiosa com a volta repentina de
Santino. Ah, se ao menos pudesse conversar com ela, pensou Stephanie,
observando atentamente a mulher de idade. Seria tão bom contar seus
problemas para alguém. Conversar com Maria, no entanto, era sempre difícil,
lima vez que as duas tinham dificuldade em entender o que a outra dizia.
Maria saiu da cozinha e Stephanie colocou as panelas sujas na pia.
Estava começando a ser vencida pela frustração. Santino realmente era um
grosso em sair de casa sem avisar nada e em levar Lucia consigo!
Ele não tivera nem mesmo a delicadeza de preveni-la e ela ficava sozinha em
casa preparando o jantar sem saber se haveria alguém para comê-lo!
Às oito horas, somente Maria e ela sentaram-se na mesa da copa para
comer. Antes de fazer o café, as duas lavaram os pratos e os talheres.
Embora Stephanie gostasse da companhia de Maria, a atitude ansiosa da
babá começou a enervá-la. A partir do momento em que escureceu no
castelo, Maria passou a se assustar com todos os ruídos que ouvia e seus
olhos se voltavam continuamente para a porta da cozinha, como se temesse
a vinda de alguém. Talvez a babá estivesse inquieta com a demora de Lucia,
pensou Stephanie, tentando desculpá-la.
Em dado momento, porém, ela perdeu completamente a paciência.
- Por que você não vai descansar um pouco no quarto, Maria?
Quando Santino voltar, você ouve o barulho do carro. . .
- Onde eles foram? - perguntou Maria, com os olhos arregalados.
- Não faço idéia, Maria. Santino não me avisou onde ia.
Maria apertou com nervosismo o cinto do avental.
Eu não devia ter ficado aqui.
- Por que você diz isso, Maria?
- Ah, patroa, eu devia ter ido com os outros. Eu não devia ter
ficado aqui. O patrão está muito zangado...
- Pior para ele! O que você queria que a gente fizesse?
- Eu estou com medo - disse Maria, sem prestar atenção nas palavras de
Stephanie. - Eu preciso ir embora, patroa - insistiu a babá.
- Como você pode sair agora? - exclamou Stephanie, com irritação.
- Você não pode andar sozinha nessa escuridão.
- A patroa está zangada comigo?
- Não, Maria, eu não estou zangada com você. - Stephanie soltou
o avental e pendurou-o no cabide atrás da porta. - Eu só não entendo por
que você está tão assustada. Afinal, você sabia que meu marido ia voltar
mais cedo ou mais tarde.
- Ah, o patrão está muito zangado com você?
- Por que haveria de comigo estar? - perguntou Stephanie, passando a mão
no rosto cansado. - Você não tem culpa nenhuma do que aconteceu aqui.
Maria imaginava provavelmente que a raiva de Santino era dirigida
especialmente contra ela. .
- Está bem, Maria, eu vou levar você de carro até a vila - disse
Stephanie, com um suspiro.
A expressão de Maria iluminou-se no mesmo instante. Com manifestações
efusivas de agradecimento, levantou-se às pressas e foi apanhar seu
agasalho no quarto. Stephanie acompanhou-a com a vista e olhou em volta de
si para ver se tinha deixado tudo em ordem na cozinha.
Maria não levou sua trouxa de roupas, apenas um embrulho pequeno.
Estava esperando por ela no alto da escada quando Stephanie manobrou o
carro na entrada.
A viagem à noite na estrada estreita, ao lado do despenhadeiro, foi meio
assustadora, sobretudo porque Stephanie só conhecia aquele trajeto de dia.
Alguns minutos depois avistaram as primeiras luzes da vila. Ela perguntou a
Maria onde desejava ficar. Maria hesitou um instante e depois apontou para
uma casa antiga da fazenda que se avistava no alto do morro. -
- Meu irmão mora ali - disse.
- Ah, sim. Estou vendo. Quando você vai voltar, Maria?
- Amanhã sem falta, patroa - disse Maria, descendo do carro. -
Muito obrigada e desculpe o trabalho. .
Stephanie fez a volta e retomou pelo mesmo caminho. Estacionou o carro
embaixo do alpendre, bateu a porta e entrou em casa.
Deixara as luzes acesas na sala e havia um silêncio na casa que a
deixou ligeiramente inquieta. Lembrou-se das histórias que lera sobre as
vinganças ocorridas na Sicília e lhe ocorreu no momento que podia haver
alguém escondido no castelo a sua espera.
Foi até a cozinha e olhou espantada para o relógio.Eram apenas nove horas
da noite. Pensava que fosse bem mais tarde. Tanta coisa acontecera nesse
meio tempo!
O fogão necessitava de carvão, mas não estava com disposição para ir lá
fora apanhá-lo. Pietro teria que fazer isso quando voltasse de Palermo.
Não sabia o que ia fazer do seu tempo. Não estava com sono e
não costumava dormir antes das onze. Não sabia também se Santino ia
voltar aquela noite com Lucia, e quem ia tomar conta da menina na ausência
de Maria.
Um ruído vindo da entrada levou-a a se voltar bruscamente naquela direção,
com o coração batendo. O que fora? Alguém estava tentando entrar pela
janela? Onde estava o telefone? O mais próximo estava na própria sala da
frente e não era possível usá-lo sem ser vista por alguém que estivesse ali.
Além do mais, era provável que estivesse imaginando coisas. Ouvira
possivelmente um estalo do assoalho ou dos móveis, que fora ampliado pelo
silêncio no interior da casa.
Mesmo assim, sua pulsação estava acelerada quando abriu a porta da cozinha
e entrou pé ante pé no corredor que levava à sala da frente.
O hall estava deserto e não havia nenhum sinal de ladrão. Ela estava-se
comportando como uma idiota.
Estava mais calma quando atravessou o vestíbulo e foi até 'a sala de estar.
A porta da saia estava fechada. No momento em que virou a maçaneta,
Stephanie deu um grito de susto ao avistar um homem de pé no meio da
peça, de costas para ela. Levou a mão à garganta, com falta de ar, branca
como cera. Nesse instante, o homem se voltou de frente para ela e
Stephanie reconheceu, com uma exclamação de alívio, as feições familiares
de Pietro.
Ao notar que ela estava prestes a perder os sentidos, Pietro deu uma
corrida na sua direção e passou o braço em volta da cintura.
- O que foi, Stephanie? - perguntou com ansiedade. - O que você tem? Onde
você estava que eu não a vi?
Stephanie balançou a cabeça, com um nó na garganta. Tomada de uma
fraqueza repentina, deitou a cabeça no ombro de Pietro e começou a soluçar
baixinho.
- Ah, eu não sabia que você estava de volta. Eu pensei que havia
ladrões no castelo. . .
Pietro afastou os cabelos do rosto com um gesto carinhoso.
- Você se assustou à toa, cara. Não há ladrões aqui. Mas onde você estava
que eu não ouvi você chegar?
- Levei Maria até a vila. Ela não quis passar a noite aqui. Eu não
vi seu carro quando cheguei.
Pietro ia dar uma explicação quando foi interrompido pela voz irônica de
Santino.
- Que cena encantadora! Juntos afinal. . .
Stephanie afastou-se bruscamente de Pietro e voltou-se na direção da voz.
Santino estava apoiado no batente da porta, contemplando os dois com o
olhar divertido.
- Santino! Onde você estava?
- Seu amiguinho e eu voltamos juntos - disse Santino, com a voz
impassível, dirigindo um olhar sarcástico para Pietro. - E você? Levou Maria
à fazenda do irmão?
- Foi ela que pediu.
- Por que ela quis ir embora de repente?
- Estava com medo de passar a noite aqui.
- Medo do quê?
- De você, naturalmente.
De mim? - indagou Santino, com a testa franzida. - Não, não
é de mim que ela tem medo é de Sophia e dos outros empregados.
- E Lúcia, onde ela está? Vou levá-la para a cama.
- Não se preocupe. Já tomei todas as providências. Lucia está dormindo.
- Quem a levou para a cama?
- Sophia voltou – disse Pietro, intervindo na conversa.- Os outros
empregados também. Sophia botou Lucia na cama.
- Sophia voltou?
- Por que você fez essa cara, Stephanie? - perguntou Santino. -
Você devia estar contente de ter novamente um tempo livre para dedicar-se
às suas coisas...
Stephanie ouviu o comentário em silêncio. Saiu da sala e atravessou o hall
em direção à escada. Estava nos primeiros degraus quando ouviu a voz de
Santino nas suas costas.
- Um momento, Stephanie!
Ela parou, sem se voltar. Santino caminhou até onde ela estava.
- Stephanie, precisamos ter uma conversa antes de você dormir.
- Sobre o quê?
- Você sabe do que se trata.
- Não tenho a menor idéia.
- Stephanie, olhe para mim.
Ela apertou os lábios com despeito e encarou-o nos olhos.
- Você não pode esperar até amanhã?
- Não, não posso.
- Por quê? Que pressa é essa agora?
Santino estava controlando com dificuldade sua irritação e havia linhas
fundas em volta da boca.
- Eu quero conversar com você sobre o que aconteceu hoje à tarde.
Ela voltou-se de repente e fixou-o com a fisionomia alterada.
- Não me fale mais do que aconteceu hoje à tarde! - exclamou
com raiva. - Eu não quero saber e não quero ouvir suas explicações.
- Eu quero ficar sozinha, entendeu?
- Stephanie!
- Ah, vá para o inferno! .
Ela fez meia-volta e subiu correndo a escada, entrou no quarto e bateu a
porta com toda força atrás de si. Ouviu os passos dele no corredor, depois
uma voz de criança. Lucia acordara provavelmente com a discussão e
chamava o pai aos berros. Stephanie respirou aliviada. A confrontação com
Santino fora adiada por algumas horas. Nesse meio-tempo, teria a
oportunidade de acalmar suas emoções abaladas.
Na manhã seguinte, Stephanie acordou com a impressão exata de que
alguma coisa desagradável estava para acontecer de um momento para o
outro. Teria que enfrentar o mau humor de Sophia, antes de mais nada, e no
momento isso lhe parecia algo absolutamente insuportável.
Estava se vestindo quando Lucia entrou no quarto, como era seu costume
desde que os empregados tinham ido embora.
Naquela manhã, porém, Lucia olhou para Stephanie com a fisionomia
preocupada, como se estivesse abalada ainda com os acontecimentos que
presenciara na véspera.
- Buon giorno, Lucia - disse Stephanie ao vê-la.
Lucia hesitou um segundo antes de responder em inglês.
- Good morning, Stephanie.
Era uma brincadeira que as duas faziam: Stephanie dizia "bom dia" em
italiano e a menina respondia em inglês. Lucia achava divertido ensinar
italiano a Stephanie enquanto aprendia seu inglês. Santino porém não
gostava que a filha a chamasse pelo primeiro nome, em vez de usar o
tratamento habitual de "mamãe". Lucia, contudo, tinha aceito Stephanie
mais como uma companheira de brincadeiras do que como uma figura
materna.
Naquela manhã, no entanto, a atmosfera estava visivelmente carregada.
Stephanie queria conversar com a menina e dizer a ela que estava tudo bem
e que não havia motivo para inquietação. Mas, enquanto Stephanie terminava
de vestir-se e pentear os cabelos, Lucia começou a circular normalmente
pelo quarto, como fazia sempre. Apanhava os objetos de que gostava, fazia
perguntas sobre seus usos e tornava a colocá-los nos respectivos lugares.
Como um presente especial, Stephanie deu à menina um vidrinho de
perfume. Era um spray de plástico, perfeitamente seguro
para uma menina de sua idade e Lucia bateu palmas de alegria quando o
recebeu das mãos dela. Com uma graça incomparável, passou os braços em
volta do pescoço de Stephanie e beijou-a no rosto com seus lábios quentes.
Stephanie abraçou a menina com um sorriso de satisfação e sentiu um
prazer enorme de ter dado tanta alegria a ela com aquele presentinho
insignificante. As duas estavam rindo juntas do uso que Lucia fazia do spray
quando ouviram uma batida na porta.
- Quem é? - perguntou Stephanie, em voz alta.
Santino entrou sem responder. Ficou surpreso ao ver a filha nos braços de
Stephanie. Dirigiu-se à menina em italiano, com o rosto amarrado.
Lucia olhou com pena para Stephanie, desceu do seu colo e correu para o pai.
- Ela estava incomodando você?
Santino estava vestido com uma calça cinza e uma malha preta e sua
elegância contrastava visivelmente com os trajes sumários de Stephanie.
- Não, de jeito nenhum. Ela me dá muita alegria com suas visitas.
Em geral, nós passamos a manhã juntas.
- Vou levá-la para tomar café - disse Santino impassível. – Até mais tarde.
Ele saiu do quarto e fechou a porta. Stephanie ficou olhando naquela direção
durante alguns segundos. Era idiota sentir-se ofendida somente porque
Santino levara a filha para tomar café. Afinal, ele não sabia que Lucia
costumava passar alguns minutos no quarto dela todas as manhãs.
Mesmo assim, o olhar que Santino lhe dirigiu da porta perturbou-a
terrivelmente.
Nem mesmo de olhos fechados ela conseguia esquecer a dureza de sua
expressão.
Stephanie tomou café na saleta de almoço. Teresa parecia meio encabulada
quando cumprimentou-a e Stephanie fez todo o possível para colocá-la à
vontade. Afinal, Teresa não tinha culpa de nada. Ela seguia em tudo o
exemplo dos mais velhos e obedecia cegamente à liderança de Sophia.
Estava na sala da frente, indecisa se devia subir ao quarto dos brinquedos,
quando Sophia apareceu. Ela vinha toda de preto, como era seu hábito e
Stephanie preparou-se para enfrentar seu olhar de triunfo. Sophia no
entanto não estava absolutamente triunfante. Muito pelo contrário, tinha
uma expressão de indecisão e olhou sem jeito para Stephanie.
- Buon giorno, signora - disse,educadamente. - Já tomou café?
- Já, muito obrigada, Sophia.
- Eu trouxe a lista do menu da semana para a senhora dar sua
aprovação.
Stephanie engoliu em seco. Balbuciou uma desculpa qualquer em voz baixa e
percorreu rapidamente a lista que Sophia lhe estendeu. Seus dedos tremiam
enquanto segurava a folha de papel, com os diversos pratos sugeridos pela
caseira.
- Dominica mandou perguntar se a senhora prefere a massa no almoço ou no
jantar?
Stephanie passou a língua nos lábios secos.
- No jantar, Sophia. Ah, essa sobremesa aqui... o pudim de creme.
.. pode ser feito para o almoço?
- Si, signora. E Dominica mandou dizer que, se a senhora tiver alguma
preferência por algum prato especial, ela está às suas ordens para prepará-
lo.
- Ah, muito obrigada, Sophia. Diga a ela que vou pensar e que
depois eu me comunico com você. Por falar nisso, Sophia, fiquei muito
contente com sua volta.
- Grazie, signora.
O rosto severo da caseira amaciou por um momento quando deu um sorriso
de satisfação, dirigindo-se para a cozinha.
Stephanie acompanhou-a com a vista, abobalhada. Ela se enganara
redondamente imaginando que Sophia ia considerar a volta uma vitória.
O que Santino dissera aos empregados para obter esse resultado?
Ela não o viu na hora do almoço, embora Pietro estivesse presente à mesa.
Parecia exausto, por sinal, como se tivesse trabalhado sem parar a manhã
inteira.
- Maria voltou - disse Pietro ao ocupar seu lugar. - Você sabia?
- Não, eu não fui ao quarto de Lucia hoje de manhã. Acho que ela
passou o tempo todo com o pai. - Pode ser. Ele costuma fazer companhia a
Lucia quando está em casa.
- O que aconteceu ontem à noite, depois que eu saí? Santino estava muito
bravo?
- Você quer dizer antes ou depois de nos encontrar juntos?
- Antes e depois. - Bem, ele estava uma fera, como você deve ter notado.
Não sei como não teve uma coisa... Botou toda a culpa em mim,
evidentemente, por não ter avisado nada do que se passou aqui. Mas o que o
deixou realmente uma onça foi. encontrá-Ia chorando nos meus braços.
Stephanie abaixou a cabeça sem jeito.
- Não vejo por quê. - murmurou em voz baixa. - Ele não se importa a mínima
comigo.
- Você tem certeza? - Pietro balançou a cabeça pensativamente.
- Bem, o importante é que os empregados estão aí e tudo voltou à
normalidade! Confesso que estava meio pregado de carregar lenha nas
costas...
Stephanie sorriu com o canto dos olhos, fazendo um desenho na toalha com
a ponta do dedo.
- Como foi que Santino descobriu o que se passava aqui? Foi você que
contou?
- Não, foi Sophia.
- Sophia? Como?
- Depois que eu tive aquela conversa com ela.
- Mas por que ela não disse nada antes?
- Você não acredita, mas Sophia não é tão severa quanto parece à primeira
vista. Ela foi embora porque se sentiu ferida no seu amor-próprio, só isso.
Os sicilianos são terrivelmente orgulhosos e suscetíveis. Não aceitam a
menor crítica de ninguém.
- Eu faço idéia! - E depois, o que aconteceu? · - Ela ficou na dúvida,
evidentemente, do que devia fazer. Havia diversas alternativas. Você podia
procurá-la e pedir-lhe para voltar. Ou você podia contratar novos
empregados. Sophia não sabia o que estava acontecendo realmente.
- E ai?
- Quando ela soube que você estava tomando conta de tudo sozinha,
somente com a ajuda de Maria, não hesitou mais um momento. Passou um
telegrama para Santino explicando a situação. Era o castelo que estava em
jogo. Ela estava preocupada com o cuidado que o castelo exige para
ser mantido em dia. Entendeu agora a razão do telegrama?
Stephanie balançou a cabeça pensativamente.
- Não fazia idéia. Quer dizer que era o castelo que a preocupava?
- Custo a acreditar.
- Mas é verdade. Não se ofenda à toa, Stephanie, e não veja antipatia onde
só existe desconfiança. Não é possível fazer amizade com alguém da noite
para o dia.
- Eu sei: De qualquer forma, não posso me queixar. Sophia me consultou hoje
de manhã sobre o menu da semana.
- Então, está vendo? - disse Pietro com um sorriso. - Ela está
disposta a fazer certas concessões. Agora é sua vez.
- O que eu devo fazer?
- Não precipite as coisas. Faz somente duas semanas que você está aqui.
Não é muito tempo, como você mesma reconhece. Seu sucesso com Lucia
prova que todas as coisas são possíveis se forem levadas com jeito.
Stephanie deu uma risada.
- Ah. Pietro, o que seria de mim sem você?
Enquanto Lucia descansava depois do almoço, Stephanie aproveitou para
arrumar o quarto. Terminada a arrumação, voltou-se com curiosidade para a
porta fechada do aposento pegado ao seu, que Santino dissera ser o quarto
de vestir. Até aquele momento não tivera tempo nem vontade de explorar o
quarto fechado. Entretanto, como tinha algumas horas livres
na parte da tarde, decidiu espiar o que havia lá dentro.
Foi até a cozinha para pedir a Sophia a chave do quarto. Ao ser informada
do que se tratava, a expressão do rosto de Sophia se transformou
imediatamente.
- O quarto de vestir está sempre fechado à chave, signora – disse com o
rosto sério. . .
Ela estava ajudando Dominica a descascar os legumes para o jantar.
- Eu sei. Santino me disse. Mas eu gostaria de ver como está.
Ela não queria criar mais problemas na casa além dos que já existiam.
Seu instinto alertou-a para não insistir nesse assunto delicado. Mesmo
assim, ela preferiu seguir seu impulso original.
- Eu não vou mexer em nada, Sophia. Só quero ver se as paredes estão
úmidas e se é preciso arejá-lo um pouco. Afinal, esse quarto fica pegado ao
meu...
Sophia olhou sem jeito para a cozinheira, como se pedisse socorro.
- O patrão não gosta que ninguém entre nesse quarto, signora.
Por quê?
- Não sei, signora.
- Depois eu me entendo com ele - insistiu Stephanie.
Sophia deu um suspiro de resignação.
- Pois não, signora. - Sem mais uma palavra, atravessou a cozinha
e apanhou o molho de chaves que estava pendurado atrás da porta.
Aqui estão as chaves da casa. Esta aqui é a do quarto de vestir.
Stephanie segurou o molho com um pressentimento esquisito.
- Muito obrigada, Sophie. Eu vou ver como está o quarto e depois
devolvo as chaves.
- Si, signora.
A chave não entrou na fechadura da porta que comunicava com o seu quarto.
Com toda certeza era da porta externa, que dava para o corredor.
Stephanie tentou novamente e a chave entrou perfeitamente na fechadura.
O quarto parecia muito escuro a princípio. As venezianas estavam fechadas
e somente alguns raios de luz penetravam pelas frestas. Stephanie
encontrou o interruptor ao lado da porta e acendeu a luz do centro.
Deu uma exclamação de espanto com a cena que viu.
Ninguém entrava de fato naquele quarto há muitos anos! Havia teias em
toda parte e nunca tinha visto aranhas tão grandes na sua vida. O quarto
estava coberto de poeira. Havia muitas telas podres e comidas por bichos
encostadas nas paredes, bem como algumas molduras douradas e
trabalhadas a mão. Num canto da peça, em cima de uma mesa imunda, havia
tubos de tinta usados pelo meio, abertos, uma palheta coberta de tinta
ressecada, bem como diversos pincéis dentro de um vidro, cujo fundo estava
seco e escuro.
Havia um cheiro de mofo e de umidade que chegava a incomodar. Era incrível
encontrar um quarto tão sujo e desarrumado como esse num castelo onde
todos os aposentos eram impecavelmente cuidados.
Stephanie teve a impressão exata de penetrar no passado. Era ali que
Sancha pintava seus quadros, e onde guardava os materiais de pintura.
Quando ela morreu, o quarto foi trancado e nunca mais ninguém entrou ali.
Era por isso que Sophia hesitara tanto antes de lhe dar a chave.
Ela sabia o que estava conservado ali, mas preferia não falar nada.
Stephanie estava decidida a fechar a porta e afastar-se dali quando ouviu
passos atrás de si. Voltou-se assustada com um movimento brusco da
cabeça.
- Por que você abriu essa porta? - perguntou Santino.
- Eu não sabia o que havia lá dentro.
- Você está sempre se metendo onde não é chamada! Por que tinha que abrir
esse quarto?
Stephanie deu um passo para trás, para defender-se de sua raiva.
- Eu não fiz nada de mal. Não mexi em nada, me contentei em espiar. Mas se
você quer saber minha opinião, esse quarto está precisando urgentemente
ser limpo e arejado. Há umidade subindo pelas paredes e teias de aranha
que não acabam mais. Sem falar em outros bichos.
- Que outros bichos?
- Traças, cupins que estão roendo as molduras... Eu reconheço que não devia
ter aberto esse quarto... Não sabia que era aí que Sancha guardava suas
pinturas.
- É o único quarto do castelo que conserva sua personalidade inalterada -
disse Santino com o rosto sombrio. - Como é possível destruir tudo isso?
Stephanie fechou a porta e segurou o molho de chaves na mão. Santino tinha
linhas de cansaço em volta dos olhos e da boca. Era natural que se irritasse
com ela por ter invadido sua privacidade. Mas Stephanie jamais podia
imaginar que era ali que estavam conservadas as lembranças de Sancha.
- Eu não quero sua compaixão - disse Santino, como se lesse seus
pensamentos. - Não sou um adolescente apaixonado que suspira pelo
passado. No fundo, foi bom você ter aberto esse quarto. Vou dar ordens ao
Mario para fazer uma limpeza em regra nesse quarto e jogar todas essas
telas velhas no lixo. . .
- Não faça isso! - exclamou Stephanie colocando a mão no braço dele. - Você
não pode destruir assim o passado.
- Por que não? Eu detesto o sentimentalismo! O que você pensa que
encontrou aqui? Os sonhos românticos de sua imaginação? Pois olhe, tudo
isso não significa nada para mim. . .
- Claro, você não admite nenhuma forma de emoção - disse Stephanie
levando a mão à garganta. - Até mesmo a lembrança de Sancha só desperta
em você um gesto de indiferença.
- Não é verdade! - exclamou Santino com raiva. - Você não tem idéia da
complexidade da vida. Seu mundo está todo na imaginação e não na realidade
de todos os dias! .
- Meu mundo pelo menos não é cruel como o seu. Meu mundo é povoado de
criaturas reais e não de autômatos de sangue frio como você!
Stephanie se assustou com a expressão do rosto dele e deu um passo atrás,
em direção ao quarto de dormir. Santino entrou também e fechou a porta
atrás de si.
- Não me chame de autômato de sangue frio! - exclamou furioso.
- Eu vou lhe mostrar quem tem sangue quente, se sou eu ou você!
Stephanie ouviu suas palavras aterrada, sobretudo porque a expressão dos
olhos dele não prometia nada de bom. Santino Ventura não era um
homem como os outros. A moralidade dele não era a mesma que a dela.
Seu código de comportamento era outro.
- Você não pode fazer isso! - berrou alarmada, recuando um passo. - Você é
um homem educado. Esse casamento é apenas um contrato de conveniência.
- Era realmente - concordou Santino com frieza, parando na sua frente. -
Mas você decidiu de outra forma no dia em que começou a interferir na
minha vida privada. - Agora sou eu que vou violar sua intimidade!
- Saia da minha frente, seu bruto! - gritou Stephanie com a respiração
ofegante. - Não toque em mim... Eu o odeio!
Ela levantou a mão para agredi-lo mas Santino segurou seu pulso e torceu-o
atrás das costas.
- Não, você não me odeia - disse com insolência, puxando-a para si e
cobrindo sua boca de beijos. - O marido precisa dominar a mulher para ser
amado.
Stephanie debateu-se como uma possessa. Todas as emoções que Santino
despertara nela no dia anterior foram relegadas a um segundo plano.
Agora havia apenas o instinto puramente primitivo da sobrevivência. Mas ela
não podia competir com ele em força física. Por mais que arranhasse o rosto
dele com as unhas, desse pontapés e o ferisse como uma gata selvagem, foi
finalmente dominada. Santino levantou-a no colo como se fosse uma criança
e levou-a para a cama. Dominou-a com o peso do corpo e silenciou seus
protestos com o ardor de seus beijos.

CAPITULO X

Estava escuro quando ela abriu os olhos. Permaneceu alguns segundos tonta,
sem saber onde estava e o que tinha acontecido. Em seguida, quando sua
mente voltou a funcionar normalmente, lembrou-se de tudo e uma sensação
insuportável de desânimo tomou conta de si. Fechou os olhos e tentou
mergulhar novamente no esquecimento, mas de nada serviu.
Estava desperta agora e o corpo jovem e saudável não queria sucumbir ao
sono.
Desceu da cama e foi até a porta, onde estava o interruptor da luz.
Em seguida, embrulhou-se no robe que deixara ao pé da cama e sentou-se no
banquinho da penteadeira. Mirou-se no espelho e ficou surpresa com a
palidez do rosto e com as olheiras fundas. Ela se lembrava vagamente de ter
chorado muito, encolhida no canto da cama.
Afundou o rosto nas mãos e apoiou os cotovelos na borda da penteadeira,
tremendo convulsivamente. O que faria agora? O que podia fazer?
Levantou a cabeça e viu no espelho o reflexo da porta do quarto de vestir.
Fazia apenas algumas horas que ela abrira aquela porta. Mordeu o lábio com
força, até doer. Por que tinha feito isso? Por que não procurara uma outra
ocupação, algo que não tivesse chamado a atenção de Santino?
Santino!
Os lábios inchados tremeram. Santino a humilhara muito além do que podia
imaginar. Agira com uma perfeita indiferença por seus sentimentos e a
recordação do que ocorrera horas antes era suficiente para fazê-la chorar
lágrimas amargas. Enxugou-as com as costas da mão. As lágrimas eram
inúteis agora. O que estava feito estava feito, e nada podia alterar isso.
Esfregou as mãos no rosto. Ele se conduzira como se quisesse puni-la.
Não tivera um gesto de ternura, nem antes nem depois. Os motivos de sua
ação estavam claros como o dia. Queria puni-la, humilhá-la, destruir as
ilusões românticas que conservava intactas. E tinha sido bem-sucedido, em
parte. Entretanto, a despeito de tudo, apesar da crueldade que
manifestara, a recordação mais amarga era ter sucumbido ao desejo, e não
havia nada que pudesse apagar essa lembrança de sua memória.
Levantou-se com um suspiro e foi ao banheiro. Tomou um banho demorado
de imersão com sais perfumados. Descansou o corpo e a mente na água
morna e esfregou o corpo vigorosamente com a esponja, na esperança de
apagar da pele todos os vestígios de seu contato. Depois enxugou os cabelos
e vestiu o roupão de banho. Era impossível descer até o andar térreo aquela
noite e correr o risco de encontrar-se novamente com Santino.
Ouviu a batida na porta com o coração apreensivo e hesitou um segundo
antes de atravessar o quarto e abrir. Era Sophia que estava do lado de fora,
com uma bandeja nas mãos. Ela entrou e colocou a bandeja ao lado da cama.
- Está passando melhor? .
- Estou, muito obrigada, Sophia - respondeu Stephanie sem jeito.
- O patrão pediu para não incomodá-la, mas eu pensei que podia estar com
fome, apesar de sua dor de cabeça.
- Onde está ele?
- Saiu há uma meia hora. Foi jantar com o senhor Marchesi e sua esposa.
- Ah, foi jantar fora. . .
- Ele não disse nada?
- Eu me esqueci completamente do que ele disse antes de sair. Essa dor de
cabeça. . .
- Ah, eu sei como é. Eu também tenho isso às vezes.. Deseja mais alguma
coisa?
- Não, muito obrigada, Sophia. Ah, antes que me esqueça... A porta do meu
quarto não tem chave?
Sophia ficou surpresa com a pergunta.
- Tem, sim senhora. Está no molho que lhe dei hoje à tarde.
- Ah bom, eu vou procurar. Até amanhã, Sophia, e mais uma vez muito
obrigada por ter me trazido o jantar.

Stephanie acordou na manhã seguinte com o ruído de alguém arranhando a


porta com as unhas. Ela pulou da cama e foi abrir a porta que estava
fechada à chave. Lucia entrou no quarto com uma risada e olhou com
animação para Stephanie. Provavelmente tinha alguma novidade para contar
antes do café. .
Stephanie deu um sorriso sem graça e voltou para a cama. Lucia disse "Good
morning, Stephanie" e pulou na cama ao seu lado. Foi só então que ela
avistou a bandeja de comida na mesinha de cabeceira.
-Che cosa e questo? - perguntou surpresa. - Seu café?
- Não, é o jantar de ontem.
- O jantar? Por quê? Você está doente?
- Ah, é uma história muito comprida, Lucia - disse Stephanie com os olhos
sonolentos, sem vontade de explicar à menina a razão da bandeja de comida
ao lado da cama. Sobretudo a Lucia, a filha de Santino. Sentiu um tremor de
frio e procurou afastar o sentimento de desânimo que tentava ganhá-la de
novo. Levantou-se da cama e foi ao banheiro:
Lucia a seguiu de perto. Stephanie voltou-se com impaciência.
- Ah, me deixe em paz, pelo amor de Deus! Eu vou tomar banho.
O rosto sorridente da menina murchou como uma flor ao ouvir essas
palavras rudes. Ela abriu a boca como se fosse chorar e, no instante
seguinte, as lágrimas começaram a rolar pelo canto dos olhos. Stephanie viu
a tristeza dá menina e compreendeu tarde demais a crueldade que tinha
cometido sem querer. .
Com uma exclamação de dor, ajoelhou-se aos pés dela e abraçou-a com
ternura.
- Não chore, Lucia, não chore - repetiu muitas vezes, alisando os cabelos
pretos e beijando o rosto molhado de lágrimas. - Foi sem querer, Lucia. Eu
não fiz por mal.
Nos primeiros instantes ela teve a impressão de ter cometido um crime
imperdoável e de haver destruído a confiança que Lucia depositava nela.
Lentamente porém a menina respondeu a sua afeição até que passou os
braços em volta do seu pescoço e abraçou-a com ternura, colando os lábios
quentes no seu rosto.
- Che cosa hai, Stephanie? - murmurou desconsolada, sem compreender o
que se passava.
- Não foi nada, Lucia, já passou - disse Stephanie. - Eu estava com raiva...
mas você não tem culpa.
Sentou-a no banquinho de plástico que estava perto da porta do banheiro.
- O que vamos fazer hoje, amiga? - perguntou com um sorriso, fitando-a nos
olhos. - Você e eu? Vamos passear pelo jardim? Vamos dar uma volta de
carro?
- Si, si - exclamou Lucia com animação. - Vamos passear pelo jardim. Você e
eu.
- Isso mesmo! Agora vá tomar seu café enquanto eu me visto, si?
- Sim - disse Lucia, correndo em direção à porta, esquecida das lágrimas que
chorara há alguns minutos atrás.
Depois que a menina saiu, Stephanie olhou demoradamente para a cama
desfeita. Não desejava outra coisa a não ser mergulhar novamente no sono,
mas não adiantava adiar o inevitável. Mais cedo ou mais tarde se encontraria
com Santino.
Na realidade, foi somente alguns dias depois que tornou a vê-lo. Santino
passava a maior parte do tempo viajando do castelo para seus escritórios
em Palermo, pondo em dia os compromissos que se acumularam durante sua
ausência. Mario e Pietro o acompanhavam sempre e Stephanie passava os
dias praticamente sozinha. Sentiu muita falta de Pietro, que falava inglês
perfeitamente, e com quem passeava e tomava banho de mar.
Sophia, em compensação, passou a tratá-la com muita dedicação.
Era estranho que sua vida na Inglaterra, a família, os amigos e tudo o mais
tivessem deixado de ocupar seus pensamentos. Somente... o castelo de
Strega era uma realidade imediata, de todos os dias.
Lucia estava aprendendo inglês lentamente e aceitava de todo coração a
companhia de Stephanie. Nunca as duas tinham sido mais amigas e
conversavam com maior intimidade.
Stephanie encontrava-se com Santino apenas de passagem, no hall, na
varanda, na escada e os dois limitavam-se a trocar algumas palavras de
cortesia. Santino tomava as refeições na sua sala de trabalho e só muito
ocasionalmente Pietro tinha um tempo livre para lhe fazer companhia no
jantar. Stephanie, por sua vez, passou a comer pouco e a dormir mal, e era
natural que isso se refletisse na sua disposição.
O tempo esfriou repentinamente, dando por encerrada a temporada
turística e os banhos de mar. Certa vez ela foi até Palermo com Lucia.
Outra vez, atravessaram a ilha na direção oposta e foram conhecer as
plantações de uvas em Marsala. Com exceção desses dois passeios,
Stephanie passava os dias no castelo.
Uns dez dias depois do episódio do quarto de vestir, Pietro lhe fez
companhia ao jantar. Em dado momento, comentou que Santino pretendia
viajar no dia seguinte de manhã.
- Ah, é? Para onde ele vai dessa vez? - perguntou Stephanie com os
cotovelos em cima da mesa. .
- Primeiro a Nova York, depois ao Japão - explicou Pietro servindo o copo
dela de vinho tinto. - Experimente esse vinho, Stephanie, é de nossas vinhas.
Stephanie provou um gole, mas estava muito preocupada com outro assunto
para sentir o aroma incomparável.
- O que ele vai fazer no Japão?
- Pretende adquirir uma linha aérea japonesa, a fim de ter vôos
internacionais.
- Ah, então foi por isso que ele comprou a companhia de papai?
- Em parte, sim. - Pietro serviu-se outro copo de vinho. - Esse vinho tinto
está estupendo. Eu vou dizer isso ao Marchesi. Ele é o administrador das
plantações.
Stephanie segurou o copo com as duas mãos.
- Você tem idéia de como está indo a companhia de papai?
- Ouvi dizer que vai bem. Você não escreveu mais para ele?
- Escrevi quando cheguei, mas ele não respondeu ainda. Talvez esteja muito
ocupado.
- Com certeza.
- Santino encontrou-se com ele em Londres?
- Não sei. Provavelmente.
Stephanie deu um suspiro.. Pietro não tinha a intenção de dar novamente
com a língua nos dentes. Mudando de conversa, perguntou:
- Você também vai viajar amanhã?
- Vou.
- Por quê? Santino não confia mais em você?
- Não muito - disse Pietro, com um sorriso. - Mas você estará bem aqui, não
é mesmo? Afinal, Sophia agora está do seu lado...
- Sophia?
- Pois é. E nem mesmo Santino ousa discutir com ela.
- Quando que Sophia tomou meu partido?
- Na manhã em que você abriu o quarto de vestir. Sophia tomou sua defesa.
Você precisava ouvir o que ela disse. - Pietro balançou a cabeça com o rosto
sorridente. - E Santino ouviu a bronca de bico calado.
Nem mesmo tentou se defender. Eu fiquei simplesmente boquiaberto com a
briga dos dois.
- Posso imaginar - murmurou Stephanie, sem jeito.
Pietro terminou o copo de vinho e recostou-se na cadeira.
- Acho que vou andando, cara. Santino deseja que eu bata alguns relatórios
que ele vai levar amanhã. Pretendo fazer isso esta noite.
- Eu vou sentir falta de você, Pietro - murmurou Stephanie.
- Eu também vou sentir falta de você - repetiu Pietro, colocando a mão em
cima da sua. - Você está abatida, querida. Aproveite essas férias para
descansar um pouco. Cuidar da casa foi um esforço muito grande para você.
- Eu estou bem - disse Stephanie, sensibilizada com as palavras atenciosas
de Pietro. - Obrigada mesmo assim pelo conselho.
- Desculpem interrompê-los, mas eu precisava conversar um instante com
você, Pietro - disse Santino, entrando na sala. .
Pietro afastou a cadeira e levantou-se da mesa.
- Você me dá licença, Stephanie. Não se esqueça do que falei.
Depois que os dois saíram da sala de almoço, Stephanie levantou-se da
cadeira com um suspiro e foi direto para o quarto. Sentou-se na sacada, sem
acender a luz e passou algum tempo imersa na escuridão, contemplando o
mar ao luar claro da noite. O barulho distante das ondas criava uma
tranqüilidade muito grande e, após alguns minutos, o sossego tomou conta de
sua mente e ela descontraiu-se completamente.
Estava há algum tempo ali, imersa na contemplação, quando ouviu uma batida
leve na porta do quarto.
- Pode entrar - disse em voz alta, sem se levantar.
Quando a porta abriu, ela avistou, sob a luz do corredor, a silhueta
inconfundível de Santino. Imediatamente o coração começou a bater mais
depressa. Ele ficou parado junto da porta, sem poder enxergá-la na
escuridão do quarto.
- Stephanie, onde está você?
Stepbanie levantou-se da cadeira ao ouvir a voz familiar e acendeu a luz.
Santino entrou no quarto, fechou a porta atrás de si e ficou apoiado no
batente, enquanto ela o observava em silêncio.
- Você não fala mais comigo? - perguntou ele em voz baixa.
Stephanie levou a mão à garganta.
- O que você veio fazer aqui? Este é meu quarto. Não posso ter sossego nem
aqui?
- Eu vim avisar que vou viajar amanhã de manhã. E também por um outro
motivo.
- Qual motivo?
- Eu queria conversar com você antes de partir.
- Nós não temos mais nada a dizer um ao outro.
- Não? Nesse caso, você é incrivelmente ingênua.
- Eu não sou mais, como você sabe perfeitamente.
- Você não entende o que estou tentando dizer ou quer que me prostre a
seus pés? Aliás, fui tentado a fazer isso nos últimos dias.
Stephanie encarou-o com o rosto interrogativo.
- Eu devo ser muito obtusa, mas realmente não sei onde você quer chegar .
Santino soltou uma exclamação de impaciência e atravessou o quarto com
algumas passadas rápidas. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a de leve.
- Você acha mesmo que eu iria destruir sua inocência com tanta indiferença
se tivesse consciência disso? As mulheres inglesas são tão seguras e
sofisticadas que não me passou pela cabeça que você fosse inocente do
ponto de vista sexual. Eu lhe peço perdão pelo que aconteceu. Sei que isso
não basta, mas o que posso fazer?
Stephanie ouviu o comentário em silêncio.
- Há uma outra coisa que queria dizer - continuou Santino.
- O que é?
- É a respeito do seu pai. Sobre o acordo que fizemos.
- O que tem o acordo? Aconteceu alguma coisa com meu pai?
- Que eu saiba, não. Mas ouvi dizer que ele e a mulher vão se separar. Não
posso dizer se esse rumor é verdadeiro ou não.
- O que você ia dizer a respeito de meu pai?
- Eu comprei as ações que eram de Jennifer e de Evelyn.
Stephanie refletiu sobre a notícia em silêncio, durante alguns segundos.
- Por que elas venderam? - perguntou por fim. - Eu pensei que meu pai
tivesse salvo a companhia com o capital que você lhe concedeu.
- Por que você comprou as ações da companhia? Para ser o único dono?
- Não, não foi por isso - disse Santino com vivacidade. - Eu não podia correr
o risco que alguém fizesse uma oferta sedutora a Jennifer e a persuadisse
a vender as ações. Eu tenho interesse na companhia e não gostaria que as
ações passassem às mãos de estranhos.
- E o que você pretende fazer agora? Afirmar sua autoridade? É isso que
você está querendo sugerir?
- Não, não é isso! - exclamou Santino com impaciência. - Você está sempre
pensando o pior de mim! Reconheço que minha conduta destruiu qualquer
possibilidade de amizade entre nós dois, mas isso não é motivo para você
interpretar erradamente minhas palavras. As razões que eu tenho para
comunicar isso a você são muito simples. - Fez uma pausa e acrescentou em
seguida. - Eu resolvi deixar você partir.
- Como, não entendo? - perguntou Stephanie perplexa.
- Deixar você ir embora... voltar para a Inglaterra... para seu pai.
Stephanie sentou na cama sem entender porque as palavras dele lhe
causavam uma tristeza tão grande.
- Por que você decidiu isso, assim, de repente?
- Eu não sou tão cruel quanto você imagina. Quando a trouxe para o castelo,
minhas intenções eram bastante simples, ridiculamente simples. Sua atitude
porém me deixou furioso. A maneira como você defendeu seu pai e tentou
conquistar a confiança de Pietro me irritou profundamente. As mulheres
sicilianas não fazem essas coisas, elas deixam isso por conta dos homens.
Assim, ao mesmo tempo que desejava uma companhia para Lucia, usei sua
confiança em meu próprio benefício. Foi divertido no começo. Você obedecia
meus menores caprichos. Reconheço agora que foi um comportamento meio
infantil da minha parte, mas a única desculpa é que não pretendia que você
permanecesse aqui para sempre. Nosso casamento civil pode ser anulado a
qualquer momento.
- Eu pensava deixá-la partir quando Lucia estivesse bastante crescida para
ir à escola.
- Quer dizer então que foi tudo um jogo?
- Mais ou menos. Mas nem tudo correu como eu esperava. Você não tem
culpa do que aconteceu em seguida; quando me deixei seduzir por seu
encanto. Depois que Sancha morreu, eu jurei a mim mesmo que não me
casaria de novo. Não queria sofrer novamente a perda de uma pessoa
querida. Talvez Sancha ainda estivesse viva se eu não insistisse para termos
um filho. - Ele passou os dedos entre os cabelos. - Nada disso lhe diz
respeito, mas estou tentando mostrar que não sou o monstro que você
supõe.
Stephanie ouviu a explicação em silêncio, profundamente abalada pela
confissão de Santino. No fundo o jogo terminara, ele não tinha a intenção de
prendê-la mais tempo e ela estava livre para partir no momento que
desejasse. Nesse caso, por que estava tão terrivelmente deprimida com
essa oportunidade?
- Só lhe peço uma coisa - prosseguiu Santino, - Vou viajar para os Estados
Unidos e o Japão e Lucia vai ficar aqui sozinha. Eu gostaria que você lhe
fizesse companhia até eu voltar. Você faria isso por mim?
- É um favor que lhe peço...
Stephanie assentiu com a cabeça.
- Como você vai explicar a Lucia sua decisão?
- Não sei ainda. Vou pensar em alguma explicação razoável. Pretendo passar
uns dois meses em casa, no fim dessa viagem, e vou levar.
Lucia para dar um passeio comigo em alguma parte.
Stephanie não sabia o que dizer. Sua cabeça estava completamente confusa.
- Você não está contente com a perspectiva de voltar para casa?
- Devia estar, não?
Ele observou-a atentamente e notou sua respiração irregular, a blusa que
levantava e descia sobre o peito em movimentos rápidos.
- O que você vai fazer quando voltar?
- Vou retomar provavelmente meu trabalho na clínica infantil.
- Eu gostaria de mantê-la até você encontrar um rapaz com quem deseje
casar - disse Santino,
-Não, de forma alguma! - retrucou Stephanie com vivacidade.
-Você acha tão desagradável assim receber alguma coisa de mim?
- Eu não quero nada de você! - disse Stephanie com os lábios pálidos.
- Pois olhe, sua madrasta não desprezou um tostão meu na venda das ações.
- Eu não tenho nada a ver com ela!
- Eu sei disso. Mas você continua sendo minha mulher, legalmente falando.
- Mas eu não quero dinheiro de você - disse Stephanie com irritação. - Não
torne as coisas mais penosas do que já estão no momento.
- Você sente prazer em me contrariar, não é verdade?
- Eu não quero contrariar ninguém - respondeu Stephanie com a voz cansada.
- Ah, por favor, me deixe em paz. Eu vou fazer o que você pediu e ficar aqui
até você voltar. Querer mais do que isso é abusar de minha boa vontade.
Santino hesitou um instante, como se fosse acrescentar alguma coisa, antes
de sair a passos rápidos do quarto.
Stephanie caiu exausta na cama. A cabeça estava latejando horrivelmente e
sentia uma náusea insuportável. Nenhuma dessas sensações porém era tão
dolorosa quanto a constatação de que não queria voltar para casa porque
estava perdidamente apaixonada por Santino. Não adiantava pensar que ele
a iludira vergonhosamente, que a magoara e a humilhara imperdoavelmente,
que a possuíra de uma forma violenta, contra sua vontade. Todos esses
motivos se dissolviam como uma bolha no ar diante do fato inegável de que
ela tinha pavor de perdê-lo.

CAPITULO XI

Três semanas depois da partida de Santino, Stephanie recebeu um


telegrama do Japão. Abriu com ansiedade o envelope que Sophia lhe
estendeu com o pressentimento estranho que eram más notícias. As
primeiras palavras dançaram diante de seus olhos e ela apoiou-se na cadeira
com as pernas repentinamente moles.
SANTlNO INTERNADO HOSPITAL INTERVENÇÃO DE EMERGBNCIA
APÊNDICE REMOVIDO ,SEGUE CARTA PRIETO
As extremidades dos dedos esfriaram de repente. Ela estendeu o telegrama
para Sophia, que a observava com a expressão ansiosa. Sophia apanhou o
telegrama mas, antes de lê-lo, deu um passo à frente e segurou
Stephanie pelo braço, para ela não cair desacordada no chão. Minutos depois
Stephanie voltou a si e percebeu que estava deitada no sofá da sala. Carlo e
Sophia estavam a seu lado, observando-a ansiosamente.
Seus olhos piscaram diversas vezes com a luz forte do dia e ela deu um
sorriso para tranqüilizar os dois.
- É a primeira vez que me acontece isso. Desculpem o susto que eu dei. - Foi
o telegrama - disse Sophia.
- Ah, sim, o telegrama - repetiu Stephanie afundando a cabeça na almofada
do sofá. - Você leu o telegrama, Sophia?
- Li, sim, senhora. Mas Carlo disse que a operação não é muito perigosa.
- Espero que não seja Santino está em boas mãos. Não sei por que fiquei tão
assustada com esse telegrama...
- Felizmente, não foi nada - comentou Sophia. - O pior já passou. Mesmo
assim, acharia bom consultar o médico.
- Não, não precisa! - exclamou Stephanie com vivacidade. - É a primeira vez
que me acontece isso. É porque eu estava em jejum. - Se o patrão estivesse
aqui, faria questão de chamar o médico.
- Mas ele não está aqui - disse Stephanie levantando-se do sofá. Realmente,
Sophia, não há motivo para consultar o médico. Eu estou perfeitamente bem.
Nesse momento Lucia entrou na sala e eles mudaram rapidamente de
conversa, fingindo que não tinha acontecido nada. Mesmo assim, Stephanie
não pôde se esquecer do incidente e uma dúvida séria começou a fermentar
na sua mente.
Mas não podia ser isso! repetiu com firmeza. Santino estivera casado oito
anos com Sancha antes que Lucia fosse concebida. Entretanto, quando
considerava a possibilidade de estar grávida, isso explicava diversas
ocorrências aparentemente inexplicáveis. Por exemplo, na última semana se
sentira especialmente cansada depois do menor esforço e, embora não
tivesse ânsias de vômito pela manhã, tinha sempre um pouquinho de enjôo ao
deitar.
Sentou-se diante da penteadeira do quarto de dormir e mirou-se no espelho.
Era verdade? Estava de fato grávida? Estaria com um filho de Santino no
ventre?
A possibilidade era ao mesmo tempo animadora e meio assustadora.
Animadora porque desejava de todo coração que fosse verdade. Queria
sentir a emoção de carregar uma criança na barriga, especialmente sabendo
ser um filho de Santino. Assustadora, porém, porque se sentia insegura e
não desejava que Santino a aceitasse unicamente por causa do filho.
Levantou-se do banquinho e andou nervosamente de um lado para o outro do
quarto. O que podia fazer? O que devia fazer?
A operação inesperada de Santino alterara uma série de coisas. Antes de
mais nada, ele passaria alguns dias no hospital e sua viagem se prolongaria
inevitavelmente depois disso. Quanto tempo ficaria fora? Um mês... dois
meses? Podia esperar tanto tempo, sabendo que mais cedo ou mais tarde
alguém ia notar alguma coisa?
Olhou novamente para sua imagem no espelho. Não havia evidentemente
nenhum sinal por enquanto, mas no momento em que a cintura começasse a
aumentar... Consolou-se com o pensamento que isso levaria ainda algumas
semanas, mas havia outros indícios e Sophia tinha os olhos atentos. O
pequeno episódio do desmaio, por exemplo, foi amplamente comentado na
cozinha pelos empregados.
Debruçou-se na janela e avistou o dia cinzento de dezembro. O
Mediterrâneo estava irreconhecível sob o céu encoberto e a chuva que batia
tristemente nas vidraças. Se Santíno tivesse voltado antes que isso
acontecesse, antes que suspeitasse alguma coisa... Seria muito mais fácil
despedir-se dele sem saber de nada.
Fechou os olhos e lembrou-se do rosto moreno com uma perfeita clareza.
Agora que sentia a urgência de partir, experimentava ao mesmo tempo uma
saudade enorme ao pensar que nunca mais o veria de novo.
Suportaria isso? Aceitaria ter um filho que não era reconhecido pelo pai?
Que papel desempenharia Santíno em tudo isso? O que faria se descobrisse
que ela tivera um filho depois da separação? Que direitos teria sobre a
criança?
Estremeceu com um arrepio de frio. Teria que confessar o fato a ele.
Mas, de que maneira?

A carta de Pietro chegou três dias depois. Era breve e precisa, como se
fosse ditada pelo próprio Santino. Fora escrita no dia seguinte ao telegrama
e dizia tudo que era necessário saber. Santino fora operado do apêndice e
estava se recuperando rapidamente.
O resto da carta referia-se a assuntos gerais. O negócio em Nova Iorque
fora realizado satisfatoriamente mas Santino sofrera a crise de apendicite
antes de concluir as negociações em Tóquio. Devia por isso permanecer mais
duas ou três semanas lá, além do prazo previsto.
Stephanie recebeu a notícia com inquietação. Não tinha mais nenhuma
dúvida sobre sua condição e, segundo as previsões, somente daí a dois ou
três meses Santino estaria de volta ao castelo. Não podia esperar tanto
tempo. Os sinais da gravidez estariam evidentes no corpo esguio, sobretudo
para o homem que conhecia intimamente os contornos de seu físico.
Por outro lado, não podia partir do castelo e deixar Lucia sozinha.
A única solução seria encontrar alguém que a substituísse provisoriamente.
Confiou seus planos a Sophia, dizendo que precisava voltar para a Inglaterra
e que não podia esperar por Santino. Sophia ouviu com ansiedade a notícia e
foi difícil convencê-la de que a viagem de Stephanie era inadiável.
Finalmente, ela concordou com o inevitável e apresentou uma sugestão.
Camila, a irmã mais moça de Teresa, estava com doze anos e tinha terminado
o primário. Ela aceitaria o emprego de babá ou, se Stephanie preferisse,
podia ajudar na arrumação da casa enquanto Teresa tomava conta de Lucia
temporariamente.
A sugestão foi aprovada imediatamente. Lucia não teria que se habituar com
uma pessoa estranha. Conhecia Teresa há muitos anos e se dava muito bem
com ela. Muito em breve Santino estaria de volta e levaria Lucia consigo
para conhecer os países do continente. Lucia era muito pequena para se
apegar a alguém especialmente e logo se esqueceria de Stephanie.
Nesse meio tempo, Stephanie escreveu uma carta para Santino explicando
que seria mais fácil para os dois se não estivesse no castelo no momento de
sua volta. A carta era direta, fria, impessoal e ela hesitou algum tempo
antes de fechá-la no envelope e colocá-la pessoalmente em cima da sua mesa
de trabalho, para que ele a encontrasse logo que entrasse na sala.
O vôo para Londres transcorreu sem incidentes. Ela não avisou a ninguém
que estava de volta e seu desembarque no aeroporto internacional de
Londres foi um tanto melancólico. Tomou um táxi no portão do aeroporto e
rumou para o bairro onde seu pai morava.
Miller, a empregada da família há muitos anos, recebeu-a com uma
exclamação de surpresa, ao avistá-la sozinha na porta de casa.
- O que é isso, Stephanie? Você voltou sozinha? O que aconteceu?
- Pois é, Miller, eu voltei sozinha. Como estão todos em casa?
- Você não sabe? Seu pai está em Paris. Ele viajou para lá no mês passado.
- Em Paris? Eu não fazia a menor idéia - disse Stepbanie com a expressão
repentinamente desconsolada. - Quando vai voltar?
Miller balançou a cabeça lentamente.
- Pelo jeito, não vai voltar tão cedo. Seu pai agora é diretor de uma das
agências da companhia em Paris. Eu não sei como se chama exatamente, mas
sei que tem a ver com peças e equipamentos de aviões.
Stephanie sentou-se acabrunhada ao lado do telefone.
- Só faltava essa!
- Seu marido não falou nada? Foi ele que indicou seu pai para esse cargo.
-Eu não sabia de nada, Miller. Caso contrário não teria vindo aqui à procura
do meu pai.
Miller fitou-a em silêncio um instante.
- Que pena! E agora, o que você vai fazer?
Stephanie ouviu a pergunta com um nó na garganta.
- E Jennifer? Também foi para lá?
- Claro, ela embarcou no mesmo dia que seu pai. Estava muito animada com a
perspectiva de morar em Paris. Contou que tinham alugado um apartamento
muito lindo numa grande avenida, toda arborizada.
Stephanie sentiu uma ânsia de vômito. O que ia fazer agora? Embarcar para
Paris à: procura de seu pai?
- Eu venho aqui somente duas vezes por semana - explicou Miller. - Passo o
aspirador de pó e ventilo os quartos. Foi sorte você me encontrar aqui: O
resto do tempo a casa fica fechada.
Stephanie ouyiu a explicação com o rosto triste. Não podia morar sozinha
naquela casa fechada, evidentemente. Além disso, estava. com pouco
dinheiro e não queria hospedar-se num hotel.
Só havia uma única pessoa a quem podia recorrer num momento de
dificuldade: sua tia Evelyn.
Levantou-se, apanhou sua mala de mão e despediu-se da empregada.
- Vou andando, Miller. Vou dar um pulo na casa da minha tia. Você tem o
endereço de papai em Paris?
- Tenho sim. Um minuto que vou pegar.
Santino podia ter contado a ela, antes de embarcar para o Japão.
- Há quanto tempo papai está em Paris, MilIer?
- Umas três semanas, mais ou menos.
Após despedir-se de Miller, Stephanie tomou um táxi para a casa da tia.
Estava escurecendo rapidamente e o vento frio arrepiou seu corpo, apesar
da roupa grossa que usava. Apertou o casaco forrado em volta dos ombros e
afundou no banco do táxi.
As luzes da janela estavam acesas quando desceu do táxi. Tocou a
campainha na entrada e aguardou um minuto antes que alguém atendesse.
- Quem é? - perguntou uma voz de mulher pelo vão da porta entreaberta.
Stephanie reconheceu imediatamente a velha criada da tia.
- Betsy, sou eu, Stephanie. Titia está?
A porta se abriu mais um dedo e a empregada olhou para fora com
desconfiança.
- Stephanie! Que fim você levou, menina?
Como vai você, Betsy? Abra por favor que eu estou gelando aquifora!
- Betsy! Betsy! Quem é?
A voz estridente da tia ecoou pela sala da entrada. Betsy afastou-se e
Stephanie entrou no momento em que a tia acendeu a luz do hall.
- Stephanie, que surpresa agradável! - exclamou a tia. - Betsy, o que você
está fazendo parada aí? Convide minha sobrinha para entrar! Venha até
aqui, minha querida. Betsy, traga um chá e aqueles bolinhos que você fez
para o lanche. . .
- Pois não, dona Evelyn.
Evelyn examinou com atenção a fisionomia abatida de Stephanie e levou-a
pelo braço para o calor da sala de visita, onde a lareira estava acesa.
- Que surpresa é essa, minha querida? Eu pensei que você estava na Sicilia.
Santino veio com você?
Stephanie reclinou-se nas almofadas do sofá e desfrutou o bem-estar
aconchegante do ambiente familiar.
- Não, ele não veio comigo. Eu vim sozinha. Nós nos separamos.
- Não diga! - exclamou Evelyn espantada. - Vocês brigaram?
Por quê?
- Isso era de esperar. Nosso casamento foi um fracasso desde o primeiro
dia, como você sabia. Não é surpreendente que tenha chegado ao fim...
- E onde está Santino? Você sabia que seu pai está em Paris?
- Não, eu não sabia. Santino não me disse nada. Eu passei em casa e Miller
me contou as novidades.
- E Santino, onde está no momento?
- Em Tóquio. Ele sofreu uma crise de apendicite e foi operado lá mesmo.
Mas eu acho que já está quase bom.
- Mas você não tem certeza?
- Ah, titia, não seja implicante! Como posso saber se ele já ficou bom?
- Escrevendo para ele.
- Mas nós estamos separados, você não entende?
Evelyn ouviu a resposta em silêncio.
- Você não vai perguntar por que eu vim aqui? .
- Bem, imagino que seja porque seu pai está em Paris e você não tem mais
ninguém para procurar.
- Pois é. Você vai me receber em sua casa?
- Que dúvida! Eu sou sua tia, menina. Sou a primeira pessoa que você deve
procurar num momento de dificuldade.
- E papai, titia, por que ele foi para Paris? O que aconteceu com a
companhia?
Evelyn hesitou um instante antes de responder.
Eu sei que Jennifer e você venderam as ações. Santino me contou.
- Pois é. Imagino que seu pai aproveitou a oportunidade.
- Que oportunidade?
- Santino lhe ofereceu um bom emprego. Agora ele é diretor da agência,
sem ter que agüentar com as responsabilidades econômicas. A sugestão
agradou, a todo mundo, inclusive a Jennifer, que está adorando Paris.
- É bom saber que estão todos contentes...
Evelyn balançou a cabeça e fitou-a com atenção.
- E você, minha filha? O que aconteceu com você? Você está com o rosto
abatido. Não me diga que está grávida.. .
Stephanie engoliu em seco. Somente sua tia podia adivinhar as coisas com
essa rapidez. Ela acabara de dizer que se separara de Santino.
Queria ter a coragem de negar a verdade, mas a angústia estava visível nos
seus olhos e a expressão da tia se transformou de repente numa fisionomia
compreensiva. .
- Ah, pobrezinha... Eu sempre digo as coisas nos momentos errados. -
Apertou as mãos de Stephanie com ternura. - Mas é verdade, não é mesmo,
filha? Eu estou vendo no seu rosto. Mas por que você saiu de casa numa hora
dessas?
Vencida pela simpatia e compreensão que estavam visíveis nos olhos da tia,
Stephanie narrou entre lágrimas todos os sentimentos recalcados dos
últimos meses.
Era fantástico como tudo parecia mais bonito à luz do dia. Com o sol
atravessando as cortinas e os ruídos da rua que subiam até o quarto,
Stephanie continuou deitada algum tempo refletindo sobre seu futuro.
Na noite anterior, ela e a tia conversaram até tarde.. Evelyn achou que ela
agira precipitadamente ao sair de casa sem aguardar a volta de Santino.
Stephanie porém voltou a repetir que não desejava nada dele, muito menos
sua compaixão. Tudo no fundo não passara de uma aventura irresponsável.
Ao partir do castelo sem esperar sua volta, ela facilitara as coisas para
todos.
Num ponto, porém, Evelyn mostrou-se inflexível. Stephanie devia
permanecer algum tempo em sua casa até decidir o que pretendia fazer.
Quando Stephanie mencionou o assunto do dinheiro, Evelyn disse que ficaria
ofendida se voltasse a falar nisso outra vez.
Stephanie aceitou ficar provisoriamente em casa da tia. Estava contente, no
íntimo, com essa decisão. Era bom poder contar com alguém num momento
de aperto. Muito em breve teria que assumir de novo a responsabilidade por
suas ações e esse período passado em casa da tia seria uma espécie de
convalescença para recuperar as forças.
Ela descansou realmente nas semanas seguintes. Tia Evelyn era uma criatura
excepcionalmente - generosa que a deixava tão à vontade como se estivesse
na sua própria casa. Além disso, como passava a maior parte do tempo
ocupada com suas atividades, não interferia nos programas da sobrinha.
Jogava bridge com as amigas e fazia parte de diversas instituições de
caridade, além de ser presidente de uma sociedade de auxílio mútuo.
Stephanie, no entanto, raramente saía de casa. Perdera completamente o
contato com suas amigas de solteira. Certa noite pensou telefonar para
Allan, pata saber como ele estava, mas mudou de idéia no último momento.
Não adiantava reatar um relacionamento que fora insatisfatório na primeira
vez, sem falar que Allan contaria naturalmente aos conhecidos o que ela
desejava silenciar.
Preferiu por isso guardar o anonimato, saindo apenas o estritamente
necessário. Não escreveu nenhuma carta para Santino nem para qualquer
outra pessoa do castelo, embora pensasse freqüentemente em Pietro e em
Lucia. Durante o dia conseguia distrair-se, mas nas horas silenciosas da
noite seus pensamentos voltavam a atormentá-la. Com isso sua saúde
deteriorou.
Seguindo o conselho de sua tia, Stephanie marcou hora no médico.
Após o exame clínico geral, ele constatou imediatamente sua gravidez.
- Onde está seu marido? - perguntou o médico ao ver o resultado dos
exames na sua frente.
- Nós estamos separados - disse Stephanie sem jeito.
- Seu marido é inglês?
- Não, é siciliano.
O médico ouviu a resposta com surpresa.
- Siciliano? Curioso... E não há possibilidade de uma reconciliação entre os
dois?
- Não, não há - respondeu Stephanie com firmeza.
- Bem, nesse caso, vou lhe receitar uns comprimidos para dormir.
Além disso, você deve comer mais e fazer força para engordar um
pouquinho. Você está abaixo do seu peso e isso não é muito aconselhável
durante a gravidez. . .
- Mas eu estou me sentindo muito bem - disse Stephanie.
- Acredito. Você está bem de saúde, mas um pouco magra para sua altura.
Espero que da próxima vez que vier aqui você esteja dormindo sem auxílio
desses comprimidos...
- Vou fazer o possível, doutor - disse Stephanie com um sorriso,
despedindo-se do médico.

Dezembro foi um mês horrivelmente frio. A neve caiu mais cedo do que nos
outros anos, a temperatura desceu alguns graus abaixo de zero, as estradas
estavam escorregadias e perigosas. Stephanie recebeu uma visita do pai no
início do mês. Embora conversassem sobre diversos assuntos ela não disse
nada sobre a gravidez. Disse que ficaria em casa da tia até as férias do
Natal e que depois pretendia alugar um apartamento. Seu pai, por sua vez,
estava muito contente com o trabalho em Paris e Jennifer estava
simplesmente adorando a vida que levava na cidade maravilhosa.
Faltavam apenas algumas semanas para o Natal e Evelyn passava a maior
parte do tempo organizando festas e comemorações para pessoas de idade
sem família. Outras noites, ia jogar bridge com as amigas ou assistir alguma
peça nova nos teatros. Stephanie estava se habituando a passar as noites
diante do aparelho de televisão. Vez por outra tinha a companhia de Betsy,
mas como as duas tinham preferência por programas diferentes, a
empregada preferia assistir aos programas favoritos na cozinha ou no seu
quarto.
Certa noite em que Stephanie estava sentada na sala diante do aparelho de
televisão, ouviu a campainha da frente tocar. Betsy tinha saído para visitar
uma amiga e Evelyn fora a um jantar beneficente e não ia voltar antes das
onze. Levantou-se surpresa do sofá e olhou instintivamente para o relógio.
Eram quase nove horas.
Ficou ligeiramente apreensiva com a perspectiva de atender sozinha a porta
da rua. Ouvira tantas histórias de assaltos ultimamente que sua cabeça
estava repleta de lembranças trágicas, sem falar que o romance policial que
estava lendo tinha também a descrição de um assalto a mão armada a uma
residência familiar.
A campainha tocou de novo, mais insistente dessa vez, e ela sentiu um
tremor nas pernas. Prendeu a respiração quando ouviu um ruído metálico no
silêncio da noite, como se alguém introduzisse uma chave na fechadura. Seu
coração começou a bater rapidamente. No instante seguinte, ouviu a porta
abrir silenciosamente e avistou um vulto recortado contra a luz do poste em
frente de casa. Ela levou a mão à boca, como se fosse dar um grito, mas sua
voz ficou engasgada na garganta, de medo.
Com a mão trêmula, procurou o interruptor da luz. No momento em que a
lâmpada elétrica iluminou a sala da frente, ela arregalou os olhos e avistou
perplexa a figura familiar de Santino. . .

CAPíTULO XII

A reação imediata de Stephanie foi dar um suspiro de alívio. Ao mesmo


tempo, não podia acreditar na realidade diante de seus olhos e apoiou-sena
porta com a cabeça zonza. Santino aproximou-se dela com um olhar de
preocupação. As primeiras palavras que disse refletiram sua aflição.
- Você está bem, Stephanie? Desculpe o susto que lhe dei. Eu pensei que não
houvesse ninguém em casa. Stephanie respirou fundo, procurando recuperar
sua calma.
- Não foi nada. Como você entrou? Você tem a chave de casa?
- Ah, quantas perguntas ao mesmo tempo! Deixe eu tirar primeiro esse
sobretudo. Que tempo pavoroso, não? Você tem aquecedor em casa?
- Entre aqui na sala. A lareira está acesa. - Ela afastou-se da porta da sala
para lhe dar passagem. - E você, como está? Você se recuperou
completamente da operação? .
- Felizmente. Você ficou preocupada com isso?
- Claro que fiquei. Levei um susto enorme quando recebi o telegrama. . . .
- Ah, vamos conversar de coisas mais importantes - disse Santino retirando
o casaco grosso forrado de pêlo de carneiro. Jogou o casaco nas costas de
uma cadeira e ficou de frente para a lareira, aquecendo as mãos. - Se você
estava tão aflita com minha saúde por que não esperou eu voltar do Japão?
- Não foi possível.
- Por que não?
Santino até o momento não percebera nada em sua figura, embora ela
estivesse com uma malha de lã e de calça comprida.
- Eu não fugi! - exclamou Stephanie com vivacidade. - Ah, de que adianta
explicar? Eu teria que partir de qualquer forma logo que você chegasse.
Para que aguardar mais alguns dias? Eu achei que seria mais fácil para nós
dois partir na sua ausência.
- Mas eu lhe pedi o favor especial de ficar em casa até eu voltar. .
- Você me desculpe, mas não foi possível.
- Por que não? Você podia ter um mínimo de consideração por mim.
- Como estão os outros? - perguntou Stephanie mudando bruscamente de
conversa. - Lucia está bem?
- Está muito bem, pelo menos depois que eu voltei. Mas ela ficou desolada
com sua partida. Esperava que você fosse voltar, como prometeu a ela antes
de embarcar, e não se conformou com sua ausência prolongada.
- Ah, pobrezinha!
- Por que você não escreveu para ela? Ela ficaria contente em receber uma
carta sua. Pelo menos ficaria sabendo que você não se esqueceu dela depois
que retomou a vida aqui.
- Eu pensei que você não gostaria que eu escrevesse.
- Por que não haveria de gostar?
- Não sei. . . com receio de que ela se apegasse a mim, provavelmente.
Imaginei que você desejava uma ruptura completa com o passado.
- Eu disse isso alguma vez?
- Não, mas deu a entender quando me mandou embora.
Santino voltou-se e aproximou-se dela.
- Eu não mandei você embora. Sugeri apenas que você tinha liberdade de
voltar para casa.
- É a mesma coisa, no fundo! Eu pensei que você não queria mais me ver.
- Você não percebe a diferença entre o desejo e a necessidade?
Stephanie apoiou-se nas costas da poltrona.
- Eu estou muito confusa no momento - disse com a voz cansada. Mas você
não me disse ainda como entrou aqui.
- Eu telefonei para cá, ao desembarcar no aeroporto, e falei com sua tia.
- Ah, é? Ela não me contou nada.
- Fui eu que pedi para não dizer nada a você. Tinha receio de que você não
quisesse me receber. Daí a chave!
- Minha tia foi muito camarada em lhe dar a chave da porta disse Stephanie
com um sorriso. - Mas por que você me procurou aqui?
Eu deixei o endereço do meu advogado na sua mesa. Todos os detalhes da
separação podem ser tratados diretamente com ele.
- Eu mudei de idéia - disse Santino mordendo o lábio. - Não quero mais o
anulamento.
Stephanie apertou com força o encosto da cadeira.
- Não estou entendendo. . .
Santino deu um passo na sua direção.
- Precisamos ter uma conversa a esse respeito. Minha decisão anterior foi
tomada muito precipitadamente. Eu pensei com mais calma no assunto
quando estava no Japão. Acho que devíamos tentar mais uma vez.
Stephanie encarou-o boquiaberta.
- Do que você está falando? Tentar de novo o quê?
Santino voltou-se e começou a andar nervosamente de um lado para o outro
da sala. A impaciência estava visível no seu rosto.
- Sua tia me disse que você está morando aqui provisoriamente.
- Estou.
- Meu primeiro impulso foi telefonar para seu pai em Paris. Imaginei que
você estivesse lá. Foi só depois que me lembrei de sua tia.
- Eu preferi vir para cá.
- Como eu sei que você não tem a intenção de morar com seu pai e como você
não pode permanecer aqui indefinidamente, sugiro que você volte comigo
para o castelo.
- Eu não vou voltar com você para o castelo. Eu não preciso de sua caridade.
Ele soltou uma exclamação de impaciência e aproximou-se dela. Stephanie
fechou os olhos, imaginando a tempestade de fúria que ia desabar. Em vez
disso, porém, Santino passou os braços em volta de sua cintura e puxou-a
para si com um gesto de ternura. Ele inclinou a cabeça e beijou-a na curva
macia do pescoço.
- Isso é caridade por acaso?
Levantou seu queixo delicado e beijou-a demoradamente na boca.
- Isso é caridade também?
Stephanie tentou resistir, empurrando para longe com as mãos o peito forte
que roçava no seu corpo, mas pouco a pouco o calor e a urgência da paixão se
comunicaram a ela. Era impossível resistir quando desejava tanto ceder ao
seu desejo.
- Você sabe que eu gosto muito de você? Que sempre gostei, desde os
primeiros dias que nos conhecemos?
- Como é possível? - perguntou Stephanie incredulamente. - Você disse que
não gostava antes de viajar...
- Eu sei que disse. E tinha minhas razões para falar isso. Aliás, mesmo agora,
tenho certas dúvidas se estou fazendo a coisa certa, mas não consigo agir
de outro modo. Eu quero você, Stephanie, eu tenho necessidade de você, e
eu estou decidido a fazer com que você também goste de mim!
- Não vai ser preciso, Santino. Eu também gosto muito de você.
Mais do que você pode imaginar.
- Verdade? - perguntou Santino estreitando-a nos braços. - Depois de tudo
que eu fiz?
- As mulheres são criaturas imprevisíveis, Santino. Elas nem sempre gostam
do que devem. -. Ela deu um sorriso triste. - Foi por isso que você veio aqui?
Ou você ficou com tanta raiva de mim que deseja me dar uma lição de
obediência?
Santino apertou-a contra si.
- Quando estou abraçado com você eu não sei pensar coerentemente... Tudo
que desejo é fazer amor...
Beijou-a de novo na boca, num beijo interminável, e Stephanie teve a
impressão que sua alma tinha fugido do seu corpo.
- Sua tia disse que ia chegar antes das onze murmurou Santino no seu
ouvido.
Eu sei - disse Stephanie passando as mãos nos cabelos revoltos.
- Vamos conversar ali - disse Santino, levando-a pela mão para o sofá.
Sentou-se ao lado dela e beijou-lhe as palmas das mãos. - Há certas coisas
que precisam ser ditas.
Stephanie aninhou-se ao seu lado, feliz como uma gata.
- Que coisas? - perguntou com a voz lânguida.
- Quando eu embarquei para o Japão, eu lhe disse que achava melhor nos
separarmos. Mas as coisas não saíram como eu esperava. A operação me
forçou a passar alguns dias em Tóquio, exatamente no momento em que
desejava voltar com urgência para a Sicília, antes que você partisse do
castelo. Você não imagina minha angústia quando soube que devia
permanecer várias semanas no Japão. Foi então que recebi a carta de
Sophia.
- Sophia escreveu para você?
- Ela contou que você tinha embarcado para a Inglaterra, que não tinha
voltado ainda e que não sabia que fim você tinha levado. Ela estava tão
preocupada quanto eu.
- Ela não disse mais nada?
- Não, por quê? Havia mais coisas?
- Não, não foi nada. Continua o que você estava contando.
- Eu não podia sair imediatamente do Japão. As negociações estavam num
ponto decisivo e foi por isso que pedi a Pietro para ir a Paris, a fim de se
encontrar com seu pai. Eu imaginava que você estivesse lá. Fiquei
desesperado. Finalmente, desisti das negociações em Tóquio e voei para a
Sicília. Desejava ver Lucia e Sophia antes de vir para cá.
- Que pena! Eu não podia imaginar que você me queria de volta.
- Mas por que você não me esperou? Por que você partiu antes de minha
chegada? .
- Você não suspeitou nada? - murmurou Stephanie.
- Não, juro que não.
- Eu estou grávida, Santino. Foi por isso que não esperei por você.
- Você está grávida? - exclamou Santino perplexo.
Stephanie segurou o rosto dele com as duas mãos.
- Não fique com raiva de mim, meu bem. Eu quero esse filho, eu não vou
perdê-lo de maneira nenhuma e gostaria muito que você concordasse comigo.
- Foi por isso então que você partiu? Só por isso?
- Foi. Só por isso.
- Ah, Stephanie, que idiota eu fui esse tempo todo. Eu imaginei mil coisas. . .
- Eu não podia dizer que estava grávida se você não me queria. Eu não queria
sua caridade, nem sua compaixão.
Ele percorreu o corpo esguio com os olhos e demorou-se na pequena barriga
por baixo da malha de lã.
- Nosso filho.
- Você está zangado comigo?
- Zangado com você? Por que haveria de estar? Eu sou o primeiro a saber?
- Ninguém mais sabe, com exceção de minha tia.
- Você não ia me contar?
- Como podia se eu pensava que você me odiava?
- Era a mim que eu odiava, não a você - exclamou Santino com ardor. -
Depois que fizemos amor, eu queria morrer de vergonha. Eu achei que tinha
destruído tudo que podia haver entre nós, definitivamente.
- E você quase destruiu. . . Santino beijou a palma de sua mão e fitou-a nos
olhos.
- Você acha que sua tia vai deixar eu dormir aqui esta noite?
Stephanie voltou a cabeça para o lado. - Talvez - murmurou em voz baixa. -
Este sofá é bem grande e confortável.
- Dormir no sofá? - exclamou Santino com uma expressão de decepção.
- A menos que você queira dormir na minha cama. . .

O filho nasceu seis meses depois no castelo de Strega, na mesma cama em


que Santino viera ao mundo muitos anos antes. Stephanie fez questão
absoluta de ter a criança no castelo, como era o costume tradicional na
família e, quando faltava uma semana para a data prevista, uma parteira com
grande experiência hospedou-se em sua casa.
Roberto Santino Ventura surpreendeu a todos vindo ao mundo com tanta
rapidez que não tiveram tempo de chamar o médico da família para
acompanhar o serviço da parteira.
Santino levou pessoalmente o bebê aos braços de Stephanie e ajoelhou-se
ao lado da cama, beijando a mão dela com ternura. Stephanie voltou a
cabeça para o filho com orgulho, depois para o marido.
- Depois que você ficar boa, vamos fazer uma viagem juntos... só nós dois. . .
- Eu não estou doente - disse Stephanie apoiando-se no cotovelo e
ajeitando-se na cabeceira da cama. - É você que está com o rosto abatido.
Você sofreu muito com a expectativa? Você preferia estar viajando e
receber a notícia depois?
- Não, foi melhor assim. Pelo menos estava presente para ajudá-la no que
fosse preciso.
- Lucia já soube que ganhou um irmãozinho?
- Eu contei a ela. Você não faz idéia de como ela ficou contente!
- Será que ela não vai ter ciúme do bebê?
- Não, de jeito nenhum. Ela vai ter a ocasião de satisfazer seus instintos
maternais...
- Espero que sim - disse Stephanie com um suspiro.
Santino inclinou-se e beijou-a no rosto.
- Eu já disse que te adoro?
Stephanie descontraiu-se, sorrindo com o canto da boca.
- Já, mas não custa nada dizer de novo. . .

FIM

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