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GUARULHOS
2020
JOÃO PEDRO CERDEIRA LELIS SILVA
GUARULHOS
2020
CERDEIRA LELIS SILVA, João Pedro.
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Prof. Dr. Denilson Lopes (membro externo)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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Profa. Dra. Izilda Cristina Johanson (membro interno)
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
AGRADECIMENTOS
Agradeço, antes de mais nada, à professora Paloma Vidal, minha orientadora, pela
longa trajetória que traçamos desde 2014, quando eu, então calouro relutante do curso de
Letras, assisti seu maravilhoso curso de Introdução aos Estudos Literários. Desde então,
caminhamos juntos pela iniciação científica, monitoria, diversos grupos de estudos e oficinas
de escrita até chegar ao mestrado. Agradeço à Paloma não apenas pela orientação sempre
minuciosa e por todo o conhecimento compartilhado ao longo destes anos todos, mas por todo
carinho, inspiração e companheirismo que me fazem ter certeza de ter encontrado nela uma
grande amiga.
Também agradeço muito ao prof. Denilson Lopes e à profa. Izilda Johanson, pela
participação na banca de defesa, e sobretudo pela contribuição significativa e muito generosa à
minha formação. Ao Prof. Denilson agradeço pelas muitas conversas e pela vasta bibliografia
sobre gênero e cultura, que foram referências para mim desde a iniciação científica. À Profa.
Izilda agradeço por toda interlocução dentro e fora de suas aulas incríveis e pela ampla a
indicação de leitura de autoras que foram essenciais para este trabalho. Gostaria de dizer que
ambos, assim como minha orientadora, são para mim grandes modelos intelectuais.
Agradeço também ao Prof. Marcelo Moreschi, que participou de minha banca de
qualificação, por toda atenção e pelas valiosas contribuições.
Também manifesto toda minha gratidão à Universidade Federal de São Paulo que foi,
nos últimos seis anos, meu segundo lar. Espaço onde aprendi coisas maravilhosas e fiz
amizades verdadeiras. Agradeço não apenas à instituição em si, mas a cada funcionária e
funcionário: secretárias e secretários, bibliotecárias e faxineiras, bem como as cozinheiras e
atendentes do Restaurante Universitário e do Café, aos voluntários e voluntárias do GRAU que
cuidam de maneira impecável dos animais abandonados no campus, aos seguranças, porteiros
e por todos aqueles e aquelas que, mesmo em funções muitas vezes invisibilizadas, contribuem
para o bom funcionamento deste espaço.
Agradeço todas as professoras e professores do departamento de Letras por tudo o que
me ensinaram, em especial ao Prof. Eduíno Orione, ao Prof. Pedro Marques e à querida Profa.
Ana Cláudia Romano, por todo carinho e bom humor de sempre.
Agradeço aos amigos e amigas do Grupo de Estudos da Deriva e do Laboratório de
Práticas de Escrita (LAPES) pela interlocução intelectual e artística sempre tão valiosa.
Às amigas Sarah Kelly Mattos, Bruna Landim, Nathália Ferraz, Camila Alvarez,
Mariana Vasquez, Ana Maitê Oliveira, Caroline do Vale e Vanessa Caspon e aos amigos Victor
Cedro, André Queiróz, Henrique Lima e Gabriel Bordonal por serem sempre alicerce, sorriso e
apoio e pelas maravilhosas conversas sobre literatura, política, arte e todas as outras coisas que
sempre nos movem.
Agradeço especialmente aos meus amigos Laura Guedes Cavichon e Eder Gado
Ambrósio, por essa amizade de anos, por todas as conversas incríveis, todos os cafés e por
sempre me sentir tão bem-vindo e tão querido em sua casa.
Agradeço à minha mãe, por tudo, sempre.
A presente dissertação propõe-se a discutir o conceito de “poética queer”, através da leitura dos
romances Acenos e afagos (2008) e Manual do Podolatra Amador ( 2006), do romancista e
contista João Gilberto Noll e do romancista e poeta Glauco Mattoso, respectivamente. Ambos
autores trazem como marca de suas obras uma centralidade do homoerotismo, bem como um
deslocamento dos discursos normativos que regulariam e mediariam de modo normativo o
corpo e o sexo –, com a finalidade de estabelecer comparações a respeito de estruturas e
elementos comuns que sirvam para esboçar uma poética queer. A partir de definição de Tamsin
Spargo (2018) e Anselmo Pereira Alós (2010), de que o que caracteriza fundamentalmente o
queer é sua oposição às noções de normalidade no campo do sexo e do gênero a partir de suas
construções históricas e discursivas, pretendemos considerar os aspectos gays e queer em seus
textos não como uma representação prescritiva, mas, tal como propõe Denilson Lopes (2002),
como uma série de elementos interiores à estrutura do texto literário, uma vez que, como sugere
a filósofa norte-americana Judith Butler na introdução de seu Problemas de gênero (2003), a
representação atuaria como uma força normativa da linguagem, criando e regulando aquilo que
deveria meramente representar. Assim sendo, encontramos na literatura comparada as
ferramentas que possibilitam pensar a respeito de uma poética de um modo descritivo, evitando
um caráter prescritivo que seria, por definição, contrário ao queer. Por fim, esta pesquisa visa
refletir e contribuir para o debate acadêmico a respeito das intersecções entre os estudos queer,
os estudos gays e lésbicos, e os estudos literários, com uma discussão teórica que, ancorada no
estudo comparativo destes autores brasileiros, pretende refletir teoricamente sobre as
características e os limites do que se poderia chamar uma “escrita queer”, concatenando
elementos e discussões a respeito de linguagem, autoria, alteridade, subjetividade e
performance.
This dissertation proposes to discuss the concept of “queer poetics”, through the reading of the
novels Acenos e afagos (2008) and Manual do Podolatra Amador (2006), by the novelist and
short story writer João Gilberto Noll and the novelist and poet Glauco Mattoso, respectively -
two authors whose literary works are marked by a centrality of homoeroticism, as well as a
displacement of the normative discourses that would regulate and mediate in a normative way
the body and sex –, in order to establish comparisons regarding common structures and
elements that could outline a queer poetics. Based on the definition of Tamsin Spargo (2018)
and Anselmo Peres Alós (2010), that what fundamentally characterizes queer is its opposition
to the notions of normality in the field of sex and gender based on their historical and
discursive constructions, we intend to take into account the gay and queer aspects in their texts
not as a prescriptive representation, but, as proposed by Denilson Lopes (2002), as a series of
elements inside the structure of the literary text, since, as suggested by the American
philosopher Judith Butler in the introduction of her Gender Trouble (2003), representation
would act as a normative force in language, creating and regulating what it should merely
represent. Therefore, we find in comparative literature the tools that make it possible to think
about a poetics in a descriptive way, avoiding a prescriptive character that would, by definition,
be contrary to queer. Finally, this research aims to reflect and contribute to the academic debate
regarding the intersections between queer studies, gay and lesbian studies and literary studies,
with a theoretical discussion that, anchored in the comparative study of these Brazilian authors,
intends to reflect theoretically on the characteristics and limits of what could be called "queer
writing", concatenating elements and discussions about language, authorship, alterity,
subjectivity and performance.
Keywords: Literary theory; Queer theory; Brazilian contemporary literature; Glauco Mattoso;
João Gilberto Noll.
“Possibility is not a luxury; it is as crucial as bread.“
– Judith Butler, Undoing Gender.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 12
Desde meados da década de 1990, no Brasil, podemos observar uma série de ganhos
relativos aos debates que circundam a visibilidade e os direitos de grupos minoritários,
notadamente os grupos LGBT, que passam a receber atenção de telejornais e novelas, embalados,
como afirma Denilson Lopes (2002, p. 19), “pela polêmica suscitada em torno do projeto de união
civil entre pessoas do mesmo sexo, apresentado pela então vereadora Marta Suplicy”, e também
pela ampliação dos movimentos sociais, com a constituição da ABGLT (Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas e Travestis), que contava, nos anos 2000, com mais de oitenta coletivos filiados
(idem, ibdem). Outros avanços, já na segunda década do século XXI como, por exemplo, o
reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, no ano de 2013, e a criação do
1
projeto Transcidadania em 2015, deixaram a esperança profética do século XXI como um período
de estabilização social e até mesmo de uma institucionalização e uma legitimação da
homossexualidade. Um movimento semelhante pôde ser percebido também no espaço
universitário, com o surgimento dos estudos gays e lésbicos, a partir dos anos 1990, em estudos
interdisciplinares em que a homossexualidade começa a ganhar visibilidade no espaço acadêmico.
Entretanto, se nas últimas décadas nunca se falou tanto em gênero e sexualidade, tanto no
espaço acadêmico quanto na esfera política e social, os últimos anos marcam o início de um
grande retrocesso. Uma amostra disso é a retomada do discussão de “cura gay” em 2017, que
retrocede o debate a respeito da diversidade sexual em pelo menos vinte anos, contrariando as
determinações do Conselho nacional de Psicologia e a Organização Mundial de Saúde. Também
através do governo Bolsonaro que, desde sua campanha eleitoral em 2018, disseminou e dissemina
uma paranoia quanto a uma suposta ideologia de gênero, sobretudo na educação e na arte, são
marcas de um conservadorismo crescente que se opõe aos progressos realizados nestes campos.
Um exemplo notório dessa onda conservadora que tem tomado conta do Brasil foram os
ataques de ódio sofridos pela filósofa estadunidense Judith Butler, que esteve em São Paulo em
novembro de 2017 para um seminário intitulado “Os fins da democracia” bem como para a
promoção de seu novo livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. Inúmeros
manifestantes se reuniram com um abaixo-assinado, cartazes e até mesmo uma boneca em
1
Haddad lança Transcidadania: Iniciativa voltada para travestis e transexuais prevê bolsa de R$ 840 e qualificação
pelo Pronatec. Disponível: http://www.pt.org.br/haddad-lanca-transcidadania/
2
tamanho real da intelectual, que foi queimada sob gritos como “queimem a bruxa” . Esta caça às
bruxas, longe de ser uma simples encenação paródica da Inquisição, demonstra, no imaginário
popular, uma crescente hostilidade aos estudos de gênero bem como a qualquer voz que se levante
sob um discurso de igualdade nesse sentido.
Butler, que chegou a ser alvo de tentativas de violência física, afirmou em entrevista ao site
3
Inside Higher Ed, como comentado no jornal O Globo :
Como fica claro na fala da filósofa, o motivo para essas manifestações de ódio é
principalmente a ignorância. As pessoas que se colocaram contrárias ao seminário da autora
desconhecem profundamente seu trabalho, bem como o de outras(os) estudiosas(os), sua
relevância e contribuição para a sociedade. Sob uma noção equivocada, os estudos de gênero, sob
a figura da própria Butler, são encapsulados sob o rótulo “ideologia” e entendidos como uma
ameaça aos valores cristãos e à instituição familiar, da qual a própria filósofa seria uma fundadora
e divulgadora.
Essa hostilidade, que podemos entender como uma “demonização do queer”, oriunda do
desejo de primazia de valores religiosos, nacionalistas e moralizantes que cada vez ganham mais
espaço e legitimidade dentro do próprio aparelho do Estado, somadas à ignorância, despontam
sobretudo como um poder de censura, como a ocorrida com a exposição Queermuseu –
Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, de curadoria de Gaudêncio Fidélis, realizada no
espaço Santander Cultural, em Porto Alegre, que, como divulgado pelo jornal El País, “ reunia 270
trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de gênero e de diversidade
2
'Queimem a bruxa': O protesto que pede #ForaButler e é contra a 'ideologia de gênero'. Disponível em:
http://www.huffpostbrasil.com/2017/11/07/queimem-a-bruxa-o-protesto-que-pede-forabutler-e-e-contra-a-ideologi
a-de-genero_a_23269386/. Acesso em 20 de dezembro de 2017
3
Judith Butler: 'É preocupante ver tantas pessoas levadas pela ignorância. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/cultura/judith-butler-preocupante-ver-tantas-pessoas-levadas-pela-ignorancia-22068145#
ixzz51ppefG4O stest. Acesso em 20 de dezembro de 2017.
sexual. As obras – que percorrem o período histórico de meados do século XX até o presente –
são assinadas por grandes nomes como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril,
4
Hudinilson Jr., Lygia Clark, Leonilson e Yuri Firmesa.” A exposição foi fechada poucas semanas
após sua abertura, devido a uma verdadeira chuva de protestos e inúmeras acusações de apologia à
pedofilia, à zoofilia e ao vilipêndio.
O fechamento do Queermuseu, bem como os ataques dirigidos a Judith Butler, e tantos
outros dirigidos às manifestações intelectuais e artísticas ligadas a grupos LGBT, são retratos não
somente do conservadorismo, mas também dessa crescente ignorância sobre o assunto que assola
o senso comum subsidiada por uma concepção de “ideologia de gênero”, que me parece enraizada
originalmente tanto no antiacademicismo quanto no moralismo e no fundamentalismo religioso.
Essa noção de “ideologia” tem sido difundida popularmente e chegou até mesmo a ser utilizada
como plataforma política na campanha de Jair Bolsonaro, que pregava avidamente a necessidade
de combatê-la. Sobre essa noção de “ideologia”, Butler afirmou em um texto também de 2017,
traduzido pela Folha de São Paulo:
Como comenta a filósofa, a noção de ideologia de gênero, tal como empregada por estes
grupos conservadores, está ligada a algo “tanto ilusório quanto dogmático”, o que, como ela
assinala, está muito longe de corresponder ao que de fato são os estudos de gênero e a teoria queer.
Estes estudos, como ela afirma, são críticos e questionam premissas que as pessoas comumente
adotam em seu cotidiano e que fazem, direta ou indiretamente, a manutenção de poderes
repressivos, como a homofobia. Contudo, esse tipo de colocação não é exclusiva dos grupos de
4
Queermuseu: O dia em que a intolerância pegou uma exposição para Cristo. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html
5
Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobre-o-fantasma-do-genero-e-
o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml?fbclid=IwAR3sjVV0f4vlTIa_AuMoW-B8VqrMLxQMsngNGjR-H0p4zGSjzVd
X3y00cTE
extrema-direita que garantiram a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da república, mas pode
ser também encontrado em várias esferas da sociedade, inclusive no meio acadêmico.
Uma indagação que me acompanhou – e, acredito, que acompanhou várias(os)
pesquisadoras(es) dos estudos de gêneros em sua trajetória acadêmica – durante a realização dessa
pesquisa foi “Você não acha o seu trabalho um pouco militante? ”. Acentuo que, conscientes dos
usos da palavra “ideológico” e de suas discussões, colegas no meio acadêmico a substituíram por
outra, que, contudo, não deixa de conter uma crítica muitas vezes infundada em seu interior:
militante.
Há uma associação muito forte, mesmo dentro da academia, entre os estudos de gênero e o
ativismo político. Mas, me parece, todas as escolhas, de tema, de forma, de bibliografia, são
políticas. Pesquisar, por exemplo, assuntos como o modernismo brasileiro, teorias de
ensino-aprendizagem, linguística aplicada – dentre uma infinidade de áreas às quais um(a)
profissional de Letras pode se dedicar na pós-graduação – me parece igualmente político. Essa
crítica, todavia, é destinada apenas aos estudos voltados a literaturas “minoritárias”, como os
estudos de gênero e raça. Outra indagação comumente dirigida e correlata: “Mas será que um
departamento de literatura é adequado ao desenvolvimento deste tipo de pesquisa?”. A resposta a
essa pergunta me parece essencial para o desenvolvimento deste trabalho: se, como afirmei, todas
as escolhas neste trabalho são uma escolha inalienavelmente política, também é necessário refletir
a respeito do sujeito implicado nesta escolha.
Se tomamos todo conhecimento como um conhecimento não apenas interessado, mas
também – na esteira de diversas autoras que compõem o presente referencial teórico, dentre elas
Simone de Beauvoir, Gayatri Spivak e Patricia Hill Collins – como um conhecimento situado, na
medida em parte de uma subjetividade, de uma episteme, de uma realidade social, etc; ou mesmo,
se tomamos a noção de Kristeva de que todo texto é um mosaico de citações, cabe também que
discutamos a respeito de quais foram as subjetividades, as epistemes, as realidades sociais, e
mesmo qual o gênero, a raça, a sexualidade e a classe social dos sujeitos aos quais são atribuídas
as formulações e teorias que compõem a disciplina que chamamos Teoria Literária, e suas áreas
correlatas como a história e a crítica literária e as relações de poder implicadas nos paradigmas de
estudos e mesmo no cânone literário. Assim, o motor deste trabalho é, de verdade, assumidamente
político. Deste modo, a resposta desta pergunta é bastante simples: a pertinência do assunto para
os estudos literários é baseada no argumento de que neste trabalho não se trata de um alinhamento,
de uma junção ou de um entrecruzamento dos estudos literário e da teoria queer, mas, pelo
6
contrário, de um enviadescimento dos estudos literários, cuja finalidade é a criação de saberes e o
estudos de assuntos que foram historicamente marginalizados na formação da literatura brasileira.
Por enviadescer compreendo um movimento não somente de crítica e análise de obras literárias
“queer”, mas uma mudança epistemológica na maneira como concebemos a crítica e a teoria
literária, questionando a pretensa universalidade e neutralidade de suas bases como reificação de
uma heteronorma patriarcal e falocêntrica, de modo a conceber um conhecimento que se
reconhece como situado, isto é, que parte de um lugar, neste caso, um lugar queer. Isso significa
em termos práticos, que o que pretendo nesta pesquisa é pensar os estudos queer não como uma
metodologia emprestada da filosofia ou das ciências sociais, mas trazê-lo, junto das obras, como
um objeto de estudo no campo dos estudos literários. Em outras palavras, menos que investigar a
obra de João Gilberto Noll e de Glauco Mattoso à luz da teoria queer, o que está em jogo neste
trabalho é uma reflexão a respeito das possibilidades queer da literatura – e, em certo grau, dos
estudos literários – a partir da leitura dos romances Acenos e afagos, de João Gilberto Noll, e
Manual do podólatra amador, de Glauco Mattoso, compreendidos aqui como estudos de caso. O
recorte desta pesquisa, portanto, poderia abranger outras(os) autoras(es), como, por exemplo,
Roberto Piva, Silviano Santiago ou Cassandra Rios, cujas obras seriam, sem dúvida, valorosas
para esta discussão. A escolha de João Gilberto Noll e Glauco Mattoso se pauta não apenas num
certo caráter queer de suas obras, ricas em elementos que contribuem para a nossa investigação a
respeito dessa poética queer, mas também por possuírem, ambos, características comuns que nos
possibilitam uma análise comparativa de suas obras. Assim sendo, é na necessidade de um
contraponto a essa demonização popular e dessa marginalização acadêmica que se justifica
sobretudo a necessidade de pesquisa, sobretudo nas ciências humanas, a respeito do queer e seus
desdobramentos. E no campo dos estudos literários, como veremos adiante, essa necessidade se
mostra em particular importante tanto pelas possibilidades que a literatura permite enquanto
campo de criação da linguagem.
Como metodologia, considero o campo dos estudos de queer, como já afirmei, tanto objeto
de análise como principal paradigma de pesquisa. Compreendemos paradigma de pesquisa
segundo a definição de Altmicks (2014): como um termo “para designar o conjunto de valores,
concepções, procedimentos e modelos epistemológicos compartilhados por cientistas postos sob a
égide de uma mesma escola teórica.” (ALTMICKS, 2014, p. 386). Deste modo, busco na teoria
queer os modelos epistemológicos que fundamentam essa pesquisa, bem como os pressupostos,
6
Neologismo que empresto da canção Enviadescer d a cantora transexual Linn da Quebrada.
definições e chaves de leitura e reflexão que utilizaremos em empreitada, dentro da “constelação
de crenças, valores, técnicas, etc”, como Altmicks afirma ao prosseguir, citando Kuhn:
Antes de iniciar a discussão que pretendo realizar aqui a respeito de uma poética queer,
acredito ser essencial explicar, ainda que apressadamente, o que é a teoria queer. Surgida nos
Estados Unidos entre o final da década de 1980 e princípio da década de 1990, a teoria queer
difundiu-se rapidamente em diversas áreas das ciências humanas, como a história, a sociologia,
a linguística e os estudos literários e do discurso. A empreitada de defini-la, evidentemente,
demonstra-se um tanto complexa na medida em que o assunto é muito amplo, recente, ainda em
constante debate e reformulação, de modo que, como assinala Tamsin Spargo “a teoria queer
não é um arcabouço conceitual ou metodológico único ou sistemático, e sim um acervo de
engajamentos intelectuais com as relações entre sexo, gênero e desejo sexual.” (SPARGO,
2017, p. 13). Como evidenciado pela autora, a teoria queer não deve ser pensada como um
procedimento metodológico único, mas como um conjunto de engajamentos intelectuais
diversos no campo do gênero e da sexualidade, avessos a concepções normativas ou
essencialistas.
Deste modo, evitando definições laboriosas que condensam os estudos queer a uma
única ótica niveladora, o que buscarei, na primeira parte deste capítulo é introduzir este debate,
delineando seus aspectos centrais. Uma maneira interessante de iniciarmos a discussão, neste
trabalho, é pela definição de “Queer theory” no apêndice no manual Teoria literária – uma
introdução (1999) do crítico literário e professor Jonathan Culler:
Repressão que desloca sentidos para a margem e que, por isso, não são
observados e analisados no conjunto da diversidade definida pela oposição
simplificada. Para que isso não seja mais um procedimento característico,
deve-se observar o lugar de onde o discurso é gerado e, portanto, que outros
sentidos não previstos pelo centro sejam apontados, na medida em que são
gerados à margem. A contribuição de Spivak permite novas possibilidades
para a crítica da cultura. É através dessa reflexão, para hoje, tão clara, que se
dá o desenvolvimento dos inúmeros caminhos teóricos que desembocarão na
constituição da Teoria Queer. (idem, ibidem)
Assim sendo, podemos compreender que os estudos queer surgem de uma crítica ao
binarismo que ao longo do século XX era central aos estudos de gênero, visando dar conta
daquilo que é estranho à norma da identidade heterossexual, a partir de uma certa
desestabilização do sujeito, que, no que lhe concerne, deixa de ser concebido dentro da lógica
pretensamente neutra do “centro”, e passa a ter sua formação questionada e desnaturalizada,
como afirma Alós:
A teoria queer possibilita uma ruptura epistemológica que desloca as noções
tradicionais do sujeito como único, substituindo o conceito de um ‘eu’ singular
e unívoco pelo de um ‘eu’ concebido performativamente através de um
processo no qual são mobilizados atos repetitivos e estilizados. Ao invés de
privilegiar a origem, a autonomia e o centramento, a concepção queer do
sujeito privilegia a dispersão, a improvisação e a descontinuidade. O
pertencimento nacional, racial ou de gênero implica diferentes
experimentações da existência, irredutíveis umas às outras. O recurso à ideia
de uma, ou várias, ‘subjetividade(s)’ torna-se inevitável nesse contexto. É
necessário pensar no sujeito como a construção de um interesse a dar
coerência a um corpo, como o efeito de inúmeras relações sociais. (ALÓS,
2010, p. 856)
Essa “ruptura epistemológica”, cujo modelo de um “eu” singular e único é substituído por
um sujeito descontinuado e fragmentado, é central para a teoria queer. Esse sujeito
“moderno”, que encontra sua origem possivelmente no cogito cartesiano, vem sendo, como
afirma Stuart Hall (2005, p. 7), questionado e constantemente desconstruído, dando origem a
uma multiplicidade de identidades simultâneas e por vezes contraditórias ou não-resolvidas no
interior do sujeito, que passa a não possuir mais uma identidade fixa e imutável, de modo a
poder significar e dar coerência ao corpo. Uma dessas significações é o gênero. Esta “ruptura
epistemológica”, no que tange aos estudos de gênero, figura como uma das preocupações
centrais da filósofa Judith Butler, que como nos lembra Salih (2018), ela “tem se preocupado,
em grande parte com a análise e a consequente desestabilização da categoria ‘o sujeito’, o que
faz com que ela seja vista por muitos como a t eórica queer por excelência” (SALIH, 2018, p.
18) [itálicos da autora].
É em seu livro Problemas de gênero (2003), que Butler inicia sua discussão a respeito do
sexo e do gênero no contexto dos discursos onde estes são formados.
Gender Trouble, de Butler, trava discussão com a noção, comum nos textos
feministas norte-americanos, de que uma política feminista exige uma noção
de identidade feminina, de características essenciais que as mulheres
compartilham como mulheres e que conferem a elas interesses e metas
comuns. Para Butler, ao contrário, as categorias fundamentais da identidade
são produções culturais e sociais, mais provavelmente o resultado da
cooperação política do que sua condição de possibilidade. Elas criam o efeito
do natural (lembre-se de Aretha Franklin: "Você faz com que eu me sinta
como uma mulher natural") e, impondo normas (definições do que é ser uma
mulher), ameaçam excluir aquelas que não estão de acordo. (CULLER, 1999,
p. 103)
O filósofo queer Paul B. Preciado elenca o modo ritualístico que “cria” o gênero no
corpo sexuado de cada indivíduo ao mencionar frases comuns que ouvimos por ocasião do
nascimento de uma criança, ou mesmo – ele aponta – através de ecografias de um corpo ainda
em desenvolvimento no interior do corpo materno. Menos que uma mera descrição do corpo
biológico – se este, por exemplo, é dotado de pênis ou vagina, constatação essa que seria
apenas fruto de uma observação empírica, como assinalar que a criança possui olhos, mãos, etc;
– afirmações como “É um menino!” ou “É uma menina!” atuam de modo performativo, que
Preciado define como “fragmentados de linguagem carregados historicamente do poder de
investir um corpo como masculino ou feminino”, que cumprem a função definir e criar o
gênero naquele corpo, bem como de corrigir (mesmo a partir de procedimentos médicos), ao
longo da vida destes sujeitos, corpos que ameacem os discursos que constitui a economia do
gênero. A identidade sexual não é, portanto, para a teoria queer, uma interpretação – seja ela
essencial ou cultural – de um corpo definido pré-discursivamente, mas um efeito da inscrição
das do gênero no corpo. “O gênero é, antes de tudo, prostético”, afirma o filósofo (PRECIADO,
2014, p. 28), “ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído e,
ao mesmo tempo, inteiramente orgânico. Foge das falsas dicotomias metafísicas entre o corpo e
a alma, a forma e a matéria.”.
“Desse ponto de vista,”, diz Jonathan Culler (1999, p. 103) “a elocução ‘É uma
menina!’ ou ‘É um menino!’ pela qual um bebê é, tradicionalmente, saudado quando vem ao
mundo, é menos uma elocução constativa do que a primeira de uma longa série de
performativas que criam o sujeito cuja chegada anunciam.”:
Se, como vimos, o gênero dentro do espectro da teoria queer é concebido como uma
série de gestos performativos, isto é, através de gestos estilizados ligados discursivamente a
prescrições regidas por uma economia heterossexual, isso significa que homens ou mulheres
são o seu gênero por uma repetição desses gestos, que dependem das convenções sociais, das
maneiras habituais de se agir numa cultura. “Assim como há maneiras regulares, socialmente
estabelecidas de prometer, fazer uma aposta, dar ordens e casar, há maneiras socialmente
estabelecidas de ser homem ou mulher”, lembra Culler (1999, p. 103).
Mas, como se estabelecem estes modos de agir que assinalam as categorias de
masculino e feminino? Butler inicia seu Problemas de gênero com uma discussão a respeito da
noção de representação, chave para compreendermos esta problemática. Diz a filósofa:
Em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma identidade
definida, compreendida pela categoria de mulheres, que não só deflagra os
interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio discurso, mas
constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é
almejada. Mas política e representação são termos polêmicos. Por um lado, a
representação serve como termo operacional no seio de um processo político
que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos
políticos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma
linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a
categoria das mulheres. (BUTLER, 2003, p. 17-18).
Isso significa que mesmo discursos como o discurso feminista, que deveria visar uma
emancipação dos sujeitos que pretende representar, acabam, também, por dar forma a esse
sujeito, conformando-o em suas próprias regras e prescrições. Isso significa que também as
críticas no campo das identidades de gênero serão inevitavelmente produzidas “dentro do
poder” que visam combater. Deste modo, menos que pensar uma crítica “exterior ao poder” –
o que parece, de fato, não existir, na medida em que estes sujeitos são formados pelos discursos
que combatem – o que a teoria queer buscará, dentro desta crítica performativa, será uma
desestabilização e uma subversão destes discursos.
Quando pensamos na literatura, evidentemente, estas questões reverberam em diversas
outras. A primeira delas é a da representação literária – que é, provavelmente, um dos
principais paradigmas dos estudos literários desde Platão e Aristóteles, que concebem a
7
representação da natureza como essência da poesia e das artes em geral. A concepção de
7
Não ignoro a problemática da tradução da palavra mimesis, que como aponta Gazoni (2006 p. 36), foi
traduzida, nas versões mais antigas da Poética como “imitação”, e em traduções mais recentes, como
“reprodução”, sem que nenhuma destas palavras pudessem traduzir inteiramente o significado de mímesis. Gazoni
opta, em sua própria tradução comentada do texto de Aristóteles, por não traduzir mímesis. Ainda que
compreendamos as problemáticas e os debates imbricados na tradução do termo, opto, aqui, por utilizar da
representação ainda encontra partidários nos últimos séculos, como é o caso de Erich
Auerbach, que em seu livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental,
originalmente publicado em 1946, busca traçar um panorama da representação desde a Odisseia
de Homero até autores contemporâneos como Virginia Woolf. Contudo, a representação nunca
deixou de ser, da antiguidade até a contemporaneidade, alvo de debates e críticas. Diz Antoine
Compagnon:
tradução “reprodução”, meramente com a finalidade de aproximar-me do léxico presente nos autores
contemporâneos que utilizo, tal como Judith Butler.
diferencial e negativa dos signos entre si dentro do sistema linguístico, de maneira que a
significação se dá unicamente pela diferenciação deste em relação aos demais signos, e não por
um referente externo. Para Peirce, há uma ruptura entre a “ligação original” entre o signo e seu
referente no mundo, “e a série dos interpretantes caminha indefinidamente de signo em signo,
sem nunca encontrar uma origem, numa semiosis qualificada de ilimitada. (COMPAGNON,
2006, p. 97).
Para estes autores, não existe um referencial exterior à própria linguagem, mas
produzido, em seu interior, por um processo de significação: “O mundo sempre é já
interpretado, pois a relação linguística primária ocorreu entre representações, não entre palavra
e coisa, nem entre o texto e o mundo. Na cadeia sem fim nem origem das representações, o
mito da referência se evapora” (idem, ibidem). Essa ruptura entre linguagem e mundo, central
para os estudos da literatura a partir do século XX, dá origem – segundo Compagnon – a uma
releitura da Poética aristotélica:
A teoria literária, invocando Aristóteles e negando que a realidade se referia à
realidade devia, pois, mostrar, através de uma retomada do texto da Poética,
que a mímesis, aliás, nunca definida por Aristóteles, não tratava, na verdade,
em primeiro lugar, da imitação em geral, mas que depois de um
mal-entendido, ou de um contrassenso, que essa palavra se viu sobrecarregada
da reflexão plurissecular sobre as relações entre a literatura e o mundo,
segundo o modelo da pintura. Para chegar-se a essa distinção, basta observar
que, na Poética, Aristóteles não menciona, em lugar nenhum, outros objetos
da mimesis ( mimesis praxeos), a não ser ações humanas; em outras palavras,
basta observar que a mímesis aristotélica conserva um elo forte e privilegiado
com a arte dramática, em oposição ao modelo pictural – a tragédia é, aliás,
superior à epopeia, segundo Aristóteles – mas sobretudo que aquilo que cabe
à mimesis, tanto na epopeia como na tragédia, é a história, muthos, como
mimesis da ação, trata-se, pois, de narração e não de descrição. [...] E essa
representação da história não é analisada por ele como imitação da realidade,
mas como produção de um artefato poético. Em outras palavras, a Poética não
acentua nunca o objeto imitado ou representado, mas o objeto imitador ou
representante, isto é, a técnica da representação, a estrutura do muthos. Enfim,
colocando a tragédia e a epopeia, ambas sob a mimesis, Aristoteles demonstra
preocupar-se muito pouco com o espetáculo, com a representação no sentido
de encenação, e volta-se essencialmente para a obra poética enquanto
linguagem, logos, muthos e lexis, enquanto texto escrito e não realização
vocal. O que lhe interessa, no texto poético, é sua composição, sua poiesis, isto
é, a sintaxe que organiza os fatos em história e ficção. Donde o esquecimento
da poesia lírica, jamais mencionada por Aristóteles, já que lhe falta, como à
história de Heródoto, a ficção, isto é, a distância. A exclusão da poesia lírica
seria mesmo a prova de que a mímesis aristotélica não visa ao estudo das
relações entre à literatura e a realidade, mas à produção de uma ficção poética
verossímil. (COMPAGNON, 2006, p. 101-102).
Em outras palavras, a partir das contribuições da semiótica de Peirce e da linguística de
Saussure herdadas pela teoria literária do século XX, o texto de Aristóteles – que, tal como
afirma Compagnon, a teoria literária reivindica como seu ancestral primeiro – passa a ser
relido numa chave que exclui da representação o real, substituindo-o pelo verossímil, uma vez
que todas as reproduções comentadas pelo filósofo são das ações humanas, isto é, narrativas de
ações humanas. Compagnon chama também a atenção ao fato de que a encenação da tragédia
não é a preocupação de Aristóteles, mas unicamente o texto dramático, enquanto “logos,
muthos e lexis” – razão, história e palavra. Assim sendo, a preocupação do autor seria a da
composição do texto, da “sintaxe que organiza os fatos da história e ficção” em detrimento do
real. O interesse do texto na ficção fica evidente com a exclusão da poesia lírica, bem como da
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história , de modo que “a mimesis seria a representação de ações humanas pela linguagem, ou é
a isso que Aristóteles a reduz, e o que lhe interessa é o arranjo narrativo dos fatos em história, a
poética seria, na verdade, uma narratologia.” (COMPAGNON, 2006, p. 102).
Se, como vimos, a teoria literária concebe, a partir do século XX, que a língua é um
sistema e não meramente um jogo de nomenclaturas no qual um signo corresponde a um
objeto, o paradigma é deslocado da relação entre literatura e realidade para a significação. O
referente não seria, assim, uma representação do mundo previamente existente, mas o produto
de uma semiosis ( COMPAGNON, 2006, p. 107). Isso quer dizer que o sentido do signo não é
produzido através de uma relação entre palavra e objeto, entre texto e mundo, mas, na verdade,
na relação entre um signo e outro, entre um texto e outro, numa cadeia de significação que
Barthes classifica como gregária. É essa a separação entre a linguagem e o mundo a
responsável por essa força da representação para a construção de sujeitos da maneira que Butler
denunciou em Problemas de Gênero (2003). Uma vez “desnaturalizado” o sentido clássico da
mimesis, que reduziria a linguagem a uma representação/imitação de um mundo
preestabelecido, o que encontramos é uma linguagem autorreferencial e gregária, uma vez que
o signo linguístico só existe na medida em que é reconhecido através de sua repetição. Esse
gregarismo, que veremos adiante através das considerações de Roland Barthes, seria o
responsável, afinal, pela criação dos sujeito e da realidade enquanto significação, uma vez que,
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“Pois não diferem o historiador e o poeta por fazer uso, ou não, da metrificação (seria o caso de metrificar os
relatos de Heródoto, nem por isso deixariam de ser, com ou sem metro, algum tipo de história), mas diferem por
isso, por dizer, um, o que aconteceu, outro, o que poderia acontecer. Por isso a poesia é mais filosófica e também
mais virtuosa que a história.” (ARISTÓTELES: 2006, p. 67)
para lembrar novamente Butler (2003), a manutenção do gênero se dá por uma repetição de
signos, atos e gestos que prescreveriam a construção dos corpos generificados.
A partir disso, retomo a concepção de Butler de que – uma vez que é a representação a
responsável pela criação e a normatização dos sujeitos representados – não há um discurso
“exterior ao poder”. Interiores aos discursos que visam combater, na medida que “a concepção
de gênero performativo de Butler remete a uma concepção de crítica também performativa.”
(CYFER, 2014, p. 46), a oposição dos discursos normativos seria baseada numa subversão
crítica da performance gênero, tal como afirma Cyfer: “a performance crítica será aquela que,
em vez de confirmar as regras de feminilidade e masculinidade, as irá problematizar (trouble),
ou seja, são performances que desestabilizam a coerência entre comportamento, orientação
sexual e identidade de gênero.” (CYFER, 2015, p 46).
Barthes (2007), em claro diálogo com Michel Foucault e com a semiótica de Kristeva e
de Bakhtin, concebe o poder como um objeto ideológico, presente em todas as relações a partir
da linguagem. Ele afirma que “Assim que ela [a linguagem] é proferida, mesmo que na
intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder. Nela, infalivelmente,
duas rubricas se delineiam: a autoridade da asserção, o gregarismo da repetição. (BARTHES,
2007. p. 12-13). Por outro lado, o signo linguístico só existe na medida em que é reconhecido,
isto é, através de sua repetição, do gregarismo “o signo é seguidor, gregário; em cada signo
dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta
na língua.” (idem, p. 13). O enunciado, contudo, também implica uma face assertiva da
linguagem, na medida em que o signo não se consolida numa simples repetição de seu
significante, mas numa reiteração que se dá na organização dos signos. Assim, “sou ao mesmo
tempo, mestre e escravo: não me contento com repetir o que foi dito, com alojar-me
confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito.” (idem, ibidem).
É a partir desta consideração que Barthes constata aquilo que chamou de fascismo da
linguagem, “pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.” (2007, p. 14). Na
linguagem nada se cria, e enunciar, por tanto, se limita a um reorganizar de signos em
estruturas pré-fixadas, cujo sentido é criado a partir da reiteração de seu uso. Compreendendo,
em vista desse argumento, que a linguagem ainda que usada para de um modo assertivo,
objetivo, está sempre carregada, por assim dizer, de uma “ditadura da forma”, na medida em
que – como demonstram os exemplos de Barthes – o sentido presente no interior de cada
enunciado sempre se dá obrigatoriamente através do gregarismo. Diante disso, Barthes elege a
literatura como um campo de subversão do poder, ou como ele mesmo diz, do “trapacear” com
o poder no interior da linguagem:
Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. [...] Porque ela encena a
linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engrena o saber no
rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o saber reflete
incessantemente sobre o saber, segundo um discurso que não é mais
epistemológico, mas dramático. (BARTHES, 2007, p. 15-18).
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Barthes utiliza o conceito de “neutro” para pensar a literatura desde, pelo menos, seu célebre ensaio “A
morte do autor”: “A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o
preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve.”
(BARTHES, 1988, p. 24).
foi amplamente definido em um de seus últimos seminários no Collège de France, intitulado O
neutro:
O autor elenca, neste excerto, o modo como a literatura, sendo o neutro, é capaz de
“burlar o paradigma”, isto é, capaz de burlar o eixo paradigmático, que como definiu Saussure,
é o responsável pela criação de sentido do signo linguístico através da oposição. Isso significa,
na esteira de Barthes, que a literatura seria capaz de se estabelecer na ambivalência do signo,
explorando suas multiplicidades de significação. Deste modo, estabelecendo tal conexão entre
Aula e O neutro, o que acredito ser possível de inferir é que é através desta ambivalência do
signo, privilegiada no texto literário, que fulgura a possibilidade de subversão do poder na
linguagem, através de um “trapacear” com a linguagem, para falar a língua de Barthes. Diana
Klinger formula, da seguinte forma, o que ela chama de uma “tarefa política da escrita”:
Talvez a tarefa política da escrita não seja nem um fundar uma nova
comunhão do indivíduo com o absoluto (como queriam, por exemplo, os
românticos alemães) nem ‘aquecer a vida gelada’ do moderno leitor solitário,
mas embaralhar os fios da linguagem, isto é, do comum, da comunidade. Por
que se Ulisses volta para casa, para a comunidade, o faz interditando seu
próprio desejo, evitando mergulhar no canto que o seduz. (KLINGER, 2014,
p. 51)
Essa tarefa, como afirma a autora, não seria como as comumente presentes na história
da literatura, como a “comunhão do indivíduo com o absoluto”, relativa ao romantismo alemão,
nem mesmo, de modo análogo, como o nacionalismo da agenda modernista brasileira.
Tampouco se assemelha ao engajamento compulsório da literatura por Sartre, para quem a
prosa é por definição um engajamento politico. A tarefa política da linguagem seria para
Klinger este “embaralhar os fios da linguagem”, que se aproxima da noção de Barthes de a
escrita como campo para a subversão do “fascismo da linguagem”. Se a linguagem, como
Barthes afirma, nos obriga a dizer sempre sujeitados a uma estrutura que sempre reiteramos,
nos lançando sempre aos territórios comuns, à comunidade, cumpre a literatura o papel político
de embaralhar o comum da linguagem, de construir um novo território.
Todavia, concebendo as problemáticas imbricadas na concepção de representação, uma
vez que essa seria uma força prescritiva da linguagem, é necessário pensar alternativas
metodológicas que viabilizem teoricamente nossa poética queer. Acredito que uma dessas
alternativas – talvez a que melhor estabeleça diálogo com a teoria queer de Judith Butler – é a
concepção de uma linguagem performativa da literatura.
John L. Austin, em seu Quando dizer é fazer (1990), foi um dos primeiros a teorizar a
respeito de uma linguagem performativa ou, de outro modo, de uma qualidade performativa de
determinados enunciados linguísticos. A teoria de Austin influenciou não apenas os estudos
literários, como pretendo demonstrar, mas também pode ser compreendida como um dos
pontos de partida para os estudos de Butler a respeito da performance de gênero. Assim sendo,
parece importante sublinhar o trabalho de Austin como um ponto conversor entre os estudos
literários e queer, de modo a pensar uma poética queer. Iniciarei, portanto, discorrendo a
respeito do que o autor chama de linguagem performativa. Para defini-la, ele parte de dois
critérios:
A. que nada “descrevam” nem “relatem”, nem constatem, e nem sejam
“verdadeiros ou falsos”; B. cujo proferimento da sentença é, no todo ou em
parte, a realização de uma ação, que não seria normalmente descrita
consistindo em dizer algo. (AUSTIN, 1990, p. 24).
O autor chama a atenção para enunciados que não “descrevam” nem “relatem”, isto é,
que não sejam descritivos, nem narrativos, mas que, por outro lado, sejam responsáveis pela
realização de uma ação. Alguns exemplos dados pelo autor (idem, ibidem), são frases como
“Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth” e “Aceito esta mulher como minha
legítima esposa”, quando, evidentemente, enunciadas em contexto apropriado e por alguém que
detenha o poder de realizar esta ação. “Cabe perguntar, então,”, ele prossegue (idem, p. 26) “se
podemos fazer afirmações como: ‘Casar-se é dizer umas tantas palavras’, ou ‘Apostar é
simplesmente dizer algo’?”.
Austin pondera a respeito da concepção de que seria possível, afinal, a realização de um
destes atos sem um enunciado, escrito ou oral, mediante a outras alternativas. “Por exemplo,
em algumas culturas, um casamento pode ser efetuado por coabitação, ou posso apostar
valendo-me de uma máquina automática colocando uma moeda em sua ranhura.” (idem,
ibidem). Ele sugere, a partir disso, um deslocamento, destas proposições ao afirmar que
“‘casar-se, em alguns casos, é simplesmente dizer algumas palavras’, ou "apenas dizer
determinada coisa é apostar’." (idem, ibidem)
Deste modo, longe de resumir atos como apostar ou casar-se como um simples proferir
de palavras, ele aponta que uma conjuntura favorável é necessária na emissão destes
enunciados para que estes sejam “felizes”, isto é, sejam capazes de realizar uma ação. Alguns
dos elementos presentes nesta conjuntura são, por exemplo, a autoridade do enunciador para
proferir a enunciação, bem como seu contexto, tal que, como lembra Austin, para que a
elocução “Os declaro marido e esposa” seja, de fato, feliz, é necessário que ela seja proferida
por alguém apto a celebrar um casamento (como um padre), que os noivos (a quem o
enunciado se dirige) não tenham impedimentos legais de casarem-se (sejam solteiros, por
exemplo) e que a ambientação seja apropriada (como uma igreja). Há também uma espécie de
“seriedade” que deve ser tomada com o enunciado:
Não devo estar, digamos, pilheriando ou escrevendo um poema. Mas temos a
tendência a pensar que a seriedade das palavras advém de seu proferimento
como (um mero) sinal externo e visível, seja por conveniência ou outro
motivo, seja para de informação, de um ato interior e espiritual. Disto falta
pouco para que acreditemos ou que admitamos sem o perceber que, para
muitos propósitos, o proferimento exteriorizado é a descrição verdadeira ou
falsa da ocorrência de um ato interno. (AUSTIN, 1990, p. 27)
Embora o autor afirme que para a elocução ser “feliz”, não devemos, por exemplo, estar
escrevendo um poema, isso não configura um problema real para pensarmos a linguagem
performativa no campo do literário. Como Austin evidencia, as condições para a realização da
performance são contextuais. E me parece acertado afirmar que o contexto do texto literário é
ele próprio, em várias de suas esferas, isto é, não depende de nenhum contexto exterior à
própria obra. A respeito da literatura, Culler afirma que “há muito tempo os teóricos afirmam
que devemos atentar para o que a linguagem literária faz t anto quanto para o que ela diz e o
conceito da performativa fornece uma justificativa linguística e filosófica para essa ideia: há
uma categoria de elocuções que, sobretudo, fazem algo.” (1999, p. 97) [itálicos do autor]. De
maneira análoga às elocuções performativas mencionadas por Austin, a literatura, enquanto
enunciado, não é verdadeira ou falsa, tampouco – como vimos – se refere (representa) a um
estado anteriormente preestabelecido de coisas. “A elocução literária também cria o estado de
coisas ao qual se refere, em diversos aspectos. Primeiro e mais simplesmente, cria personagens
e suas ações, por exemplo.” (idem, ibidem). Culler, como exemplo disso, relembra a afirmação
La Rochefoucauld (idem, ibidem) de que nenhuma pessoa seria capaz de se apaixonar se não
estivesse, antes, tido contato com a noção de amor romântico presente na literatura e nas artes
(isso, evidentemente, pode ser também estendido ao cinema, as telenovelas, etc). Me parece
que, do mesmo modo, nenhuma pessoa seria mulher ou homem sem antes ter tido contato com
suas prescrições. Isso traz força ao argumento de Butler da representação como força normativa
da linguagem: é a própria linguagem que cria, per se, os critérios de reconhecimento e as regras
segundo as quais o sujeito será formado. A ideia de um estado anterior das coisas é atacada,
alterando a lógica da mímesis: não é a linguagem que imita o real (e o gênero), mas o real que é
criado a partir do signo:
Deste modo, Culler (1999, p. 104) demarca uma diferença entre o que está em jogo para
Austin e para Butler quando falam em uma linguagem performativa, tendo em seus horizontes
tipos diferentes de atos. “Austin está interessado em como a repetição de uma fórmula numa
única ocasião faz algo acontecer” (idem, p. 104-105), isto é, em como o uso de determinado
enunciado numa ocasião específica, como, por exemplo, “Eu aceito essa mulher como minha
esposa”, na ocasião de um casamento, é capaz de transformá-lo em ação. Em contraparte, “Para
Butler, esse é um caso especial de repetição maciça e obrigatória [destes enunciados] que
produz realidades históricas e sociais” (idem, p. 105). Continua Culler:
Ambas concepções, como elencou Culler, abrem diferentes caminhos para uma reflexão
a respeito do literário. Por um lado, austinianamente, podemos pensar a literatura como a
criação de uma realidade que é a própria obra, de maneira que cada uma de suas partes realizam
ações em si mesmas. Por outro lado, como afirmou Culler, a literatura se realizaria através da
“repetição maciça que toma das normas”, transfigurando a realidade a partir delas. Ambas
perspectivas são facilmente aproximáveis da teoria da performance de gênero de Judith Butler,
uma vez que, como vimos, para ela o gênero tanto se realiza através de reição de prescrições
discursivamente delimitadas quanto é também performativo na medida em que o gênero seria,
afinal, apenas a reição de determinados gestos dotados de significação que seriam responsáveis
pela criação do próprio gênero.
Cada uma das duas abordagens encontra suas vantagens e problemáticas para pensar a
literatura, e igualmente me parece que cada uma responde, de certa forma, às duas
características da linguagem que Barthes concebeu em Aula, gregária e assertiva, na maneira
em que a primeira acontece a partir sempre da reiteração dos signos preestabelecidos, enquanto
a outra encontra, a partir da organização (e das “trapaças” propiciadas por ela) da linguagem,
um poder de criação que pode subverter as normas. Essa associação com a semiótica
barthesiana desponta como uma chave possível para estabelecer a ligação entre o “embaralhar
os fios da linguagem”, que mencionou Klinger, e a “performance crítica” de Butler,
mencionada do Cyfer, de modo que a possibilidade de subversão dos “poderes” imbricados na
linguagem não seria, ou não somente, oriunda numa “trapaça” da teia de significação, mas
também na criação performativa de uma realidade objetiva.
Assim sendo, me parece um epicentro possível do que vim esboçando até agora, no
sentido de pensar uma poética queer, é a noção de que não se trata de pensar uma literatura
sobre o queer, ou sobre gays, lésbicas, mulheres ou etc; não se trata de estudar meios ou modos
de representar destas identidades enquanto objetos prontos. Em vista do que demonstrei, creio
ser possível afirmar que tais abordagens seriam notadamente “anti-queer”. Uma poética queer
eficaz seria a que abordaria a problemática de linguagem literária não através da representação,
mas da performance, uma vez que, sendo na própria linguagem, como as concepções de
performatividade de Austin e Butler explicitam, em que o gênero é construído, é também nela
que podemos assinalar um espaço profícuo para a sua desestabilização.
Estes forjaram para sua própria exaltação as grandes figuras viris: Hércules,
Prometeu, Parsifal; no destino desses heróis a mulher tem apenas um papel
secundário. Sem dúvida, existem imagens estilizadas do homem enquanto
preso a suas relações com a mulher: pai, sedutor, marido ciumento, bom filho,
mau filho; mas foram igualmente os homens que as fixaram e elas não
atingem a dignidade do mito: não passam, por assim dizer, de clichês. Ao
passo que a mulher é exclusivamente definida em relação ao homem. A
assimetria das duas categorias, masculina e feminina, manifesta-se na
constituição unilateral dos mitos sexuais. Diz-se, por vezes, "o sexo" para
designar a mulher; é porque ela é a carne com suas delícias e seus perigos.
Quanto ao fato de, para a mulher, ser o homem o sexual e o carnal, é uma
verdade que nunca foi proclamada porque não houve ninguém para a
proclamar. (BEAUVOIR, 1970, p. 182-183)
Beauvoir argumenta que, ainda que existam imagens estilizadas do homem em relação à
mulher, como a figura paterna, o sedutor, o filho bom e/ou o rebelde, etc., os homens forjaram
para si grandes mitos de virilidade: ela cita, entre outros, Hércules e Prometeu, mas é possível,
sem dúvida, pensar uma infinidade de outros, como a figura judaico-cristã de Adão, o primeiro
homem, esculpido do barro por Deus à sua imagem e semelhança. Eva, pelo contrário, veio da
costela do homem, assinalando simbolicamente o lugar secundário da mulher na criação:
apenas uma parte do homem, que em seu corpo não lhe faria falta. Criada dele e para ele. O
mito bíblico da criação é, sem dúvida, muito eloquente para elucidar o ponto de Simone de
Beauvoir: enquanto o homem, fundido ao universal, encontra sua origem no divino justificando
o movimento de transcender o corpo e animalidade em prol de um projeto existencial maior, a
mulher é apenas carne – nada mais. Relegada à imanência do corpo, seus papéis são sempre
em função do homem, não constituindo, portanto, um projeto para si, uma vez que “engendrar,
aleitar não são atividades, são funções naturais; nenhum projeto nelas se empenha. Eis por que
nelas a mulher não encontra motivo para uma afirmação altiva de sua existência: ela suporta
passivamente seu destino biológico.” (BEAUVOIR, 1970, p. 83) [itálicos da autora].
Desta forma, podemos compreender ainda mais profundamente esse papel do mito como
consolidação da mulher como o segundo sexo. Posto que o mito é criado pelos homens e para
os homens, toda a significação que advém dele, todo o sentido que é dado ao mundo (e, em
especial, todo o significado que é dado à mulher) é construído pelo homem. A falta de um mito
da mulheridade pensando a partir das mulheres é, talvez, o caráter central de toda a
não-reciprocidade entre homem e mulher. Do mesmo modo, me parece, funda-se a alteridade
ligada aqueles que escapam a heterossexualidade compulsória: posto que não somente o
homem, mas o homem heterossexual, é o pretenso neutro, o criador do Mito e dos discursos no
qual se reconhece e se fundamenta como sujeito, corpos queer e não-héteros de modo geral, se
constroem também como o negativo, como um Outro irrecíproco.
À vista disso, retomo a afirmação de Ana Cristina Cesar de que quando falamos de
Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa é imprescindível lembrar que falamos de mulheres.
Beauvoir realiza o mesmo movimento no prefácio de O segundo sexo, quando afirma: “Sou
uma mulher.” (BEAUVOIR, 1970, p. 9). Que Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa sejam
mulheres parece evidente a quase qualquer pessoa. O mesmo vale para Simone de Beauvoir.
Assim sendo, qual a necessidade de ambas autoras de, digamos, constar aquilo que é um tanto
quanto óbvio? Uma resposta desponta novamente em O Segundo sexo (1970):
Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que
ocupam os machos na humanidade. Se quero definir-me, sou obrigada
inicialmente a declarar: "Sou uma mulher". Essa verdade constitui o fundo
sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. Um homem não começa
nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que seja
homem é natural. É de maneira formal, nos registros dos cartórios ou nas
declarações de identidade que as rubricas, masculino, feminino, aparecem
como simétricas. A relação dos dois sexos não é a das duas eletricidades, de
dois polos. O homem representa ao mesmo tempo o positivo e o neutro, a
ponto de dizermos "os homens" para designar os seres humanos, tendo-se
assimilado ao sentido singular do vocábulo vir o sentido geral da palavra
homo.
A autora afirma que um homem não escreveria “um livro sobre a situação singular que
ocupam os machos na humanidade”. Com essa proposição, a filósofa demarca uma primeira
oposição: ela, mulher, escreveu um livro – o próprio O Segundo Sexo – a respeito da situação
singular das fêmeas na humanidade. Ela aponta que adjetivar-se enquanto mulher é essencial
para definir-se, enquanto para os homens – “tendo-se assimilado ao sentido singular do
vocábulo vir o sentido geral da palavra homo”, colocando-se num lugar discursivo
pretensamente neutro. Se a mulher é este “Outro absoluto”, o negativo, como afirmou
Beauvoir, e o homem é, ao mesmo tempo, o suposto neutro e o positivo, aquele que não carece
demarcar-se, através do qual se pensa a mulher, é “O Outro”, que necessita adjetivar-se,
marcar sua diferença diante da neutralidade, daqueles que detém poder. Daí a recusa popular do
termo cisgênero, como outrora do termo heterossexual: cabe sempre ao dissenso distinguir-se
da norma rotulando-se quer como mulher, quer como transgênero, bissexual, gay, etc.
Destarte, falar em uma “literatura da mulher”, isto é, lembrar que o corpo que é anterior
ao texto é o de uma mulher – por mais vaga que noções como mulheridade ou de feminino
possam ser a partir do pós-feminismo de Butler – serve como contestação de uma hegemonia,
de um enunciado que, quando masculino, é tomado por neutro. O conceito de neutro de
Beauvoir está atrelado à suspensão de uma relatividade entre os dois pólos, de modo que –
dentro da filosofia de Beauvoir – me parece equivocado pensar as categorias de “homem” e
“mulher” como diametralmente opostas, uma vez que o homem, isto é, o neutro, é pensado
como o universal, não posicional (diferentemente da mulher, que seria o relativo).
Uma vez que “A representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos
homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a
verdade absoluta.” (BEAUVOIR, 1970, p. 183) não parece um acaso que a tradição e a história
literária tenham resguardado um cânone resumido, majoritariamente, na produção de homens
brancos heterossexuais e o chama, sem mais ou sem menos, Literatura, segundo o mesmo
movimento em que o substantivo “homem” é usado em sinonímia com “humano”. Deste modo,
falar em uma literatura da mulher (ou queer, gay, lésbica, negra, etc) se justifica, não para a
criação de “novas categorias”, quiçá menores ou ao menos mais específicas do que o que
tradicionalmente chamamos Literatura, mas para um questionamento do que está implicado e
resguardado na definição da instituição do literário, assinalando a diferença da produção escrita
de mulheres e homens não em temática, estilo ou dicção, mas unicamente sublinhando que,
como sugeriu Beauvoir, cada qual se relaciona e atua no mundo a partir da própria experiência,
do próprio corpo, avessamente à ideia de uma voz neutra, incorpórea e/ou agenérica, situando
todo conhecimento como conhecimento situacionado, naquilo que podemos conceber como
uma epistemologia do ponto de vista.
De uma maneira que me parece análoga, Denilson Lopes (2002) comenta que, em certa
ocasião, o escritor e crítico literário Silviano Santiago “se apresentou substantivamente como
escritor, gay, parafraseando Murilo Mendes, que se dizia escritor, católico”. Esta afirmação de
Santiago é capaz de sintetizar e demonstrar o que viemos descrevendo tanto em aspectos dessa
epistemologia do ponto de vista quanto do caráter estrutural do elemento gay/queer como
interior a definição do texto. Lopes afirma:
Ser um escritor, gay é afirmar uma afetividade que, longe de acentuar o
isolamento e a alienação do homem contemporâneo, é uma forma de redefinir
práticas políticas marcadas pelo cotidiano, de uma ética de um sujeito plural e
de uma estética da existência, para lembrar uma vez mais Foucault, para quem
a homossexualidade é um modo de vida, o que implica a formação de uma
ética concreta, prática, constituída por regras facultativas que produzem a
existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que
10
constituem modos de existência ou estilos de vida’ . (LOPES, 2002, p. 38)
Foucault aponta para uma especificidade do modo de viver, que pode ser “partilhado por
indivíduos de idade, estatuto e atividade diferente”, podendo dar lugar a relações particulares,
diferentes das que se dão dentro da institucionalização patriarcal das relações heterossexuais,
dando lugar a uma nova ética e cultura. Pensar, portanto, essa imagem de um “escritor, gay”,
atrela-se por conseguinte a uma escritura gay (e/ou queer), onde o que está em jogo não são
10
A citação de Lopes remete a DELEUZE, 1992, p. 123.
questões meramente temáticas (representacionais), mas uma escrita contextualizada, que parte
de um corpo, uma subjetividade e de um determinado “modo de vida”, no sentido foucaultiano.
Dessa maneira, conceber e aceitar conceitos como “escritor gay” ou “literatura da
mulher” seja, afinal, uma contestação de uma suposta neutralidade da escrita, uma negação de
que a voz que fala através de um texto seja, tal como o cogito de Descartes, uma enunciado sem
enunciador. Encarados desta forma, esses conceitos se aproximam mais de “modos de escrita”,
pois compreendem que a pretensa universalidade a qual se supõe a neutralidade do discurso
literário está intimamente atrelada a relações de poder que sustentam o lugar central e neutro do
masculino heterossexual, e do mesmo modo pressupõe uma redefinição de práticas e estéticas,
que “Não mais a estética tradicional, nem mesmo a crítica, apenas a escritura, como
experiência limite barthesiana, entre a ficção e a ciência.” (LOPES, 2002, p. 38-39).
Tendo levantado essas questões, outra – essa, mais polêmica – também aparece: é
possível falar em lugar de fala quando pensamos literatura? Se por um lado a noção de
alteridade, de poder ser outras pessoas, é essencial para uma obra de arte, pelo outro, considerar
que Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles e Simone de Beauvoir são mulheres, e que Silviano
Santiago é um “escritor, gay”, e mais: considerar que ser mulher ou ser gay são informações
relevantes para a produção de um texto literário, pois imbricadas nela estão modos de vida e
modos de escrita, já não seria, de certo modo, inserir-se na discussão do lugar de fala?
A noção de lugar de fala é alvo de polêmicas e indefinições, tal como afirma Ribeiro
(2017): “Acredito que muitas pessoas ligadas a movimentos sociais, em discussões nas redes
sociais, já devem ter ouvido a seguinte frase ‘fique quieto, esse não é seu lugar de fala’, ou já
devem ter lido textos criticando a teoria sem base alguma, com o único intuito de criar
polêmica vazia. (RIBEIRO, 2017, p. 55). Tal como comenta a autora, o lugar de fala é
popularmente utilizado como uma espécie de moral legisladora que determina quais pessoas
podem emitir juízo ou discurso sobre determinados assuntos referente a grupos minoritários.
Se tomarmos lugar de fala nestes termos, é evidente que um sem fim de problemáticas
relativas sobretudo à autoria se colocariam, inclusive quando consideramos que alguns dos
mais importantes textos que figuram no, por assim dizer, “cânone gay” brasileiro, foram
escritos por homens heterossexuais, como, por exemplo, Bom Crioulo, de Adolfo Caminha –
texto que, apesar de apresentar em vários momentos uma perspectiva patologizada e perversa
da homossexualidade, é tido como o primeiro romance brasileiro a figurar uma relação
homossexual como elemento central de sua narrativa (Trevisan, 2009) – ou mesmo o
importante Grande Sertão: Veredas (1956), que, como lembra Trevisan (2009, p. 9), foi
definido pelo escritor Dominique Fernandez em resenha à tradução francesa da obra como “um
monumento da literatura homossexual”.
Além disso, a concepção popular de lugar de fala, nos estudos literários, seria responsável
por reduzir a produção a temáticas vivenciadas pelos autores, de modo que acabaríamos por
voltar a restringir concepções de “literatura da mulher” ou “literatura gay” aos lugares-comuns
que foram criticados por Ana Cristina Cesar, enquanto, que como vimos – e acredito ser
importante sublinhar uma vez mais – pensar esses conceitos na chave de uma “epistemologia
do ponto de vista”, na esteira das considerações de Simone de Beauvoir, Michel de Foucault e
Denilson Lopes, é mais interessante na medida em que, assinalando o queer, o gay ou o
feminino como uma contestação do pretenso neutro universal, se mostra mais interessante na
medida em que todo o conhecimento e produção discursiva, científica e artística passa a ser
contextualizado como produto de um determinado corpo e sujeito, colocado em uma situação
específica (tanto material e social quanto discursiva) no mundo. Em outras palavras, não
caberia aqui reiterar uma noção ética normativa de correspondência autor-obra, na qual um
escritor homem, por exemplo, deveria contentar-se em escrever narrativas sobre homens; mas,
de outro modo, acredito que falar numa epistemologia do ponto de vista seria simplesmente
compreender como ponto fundante de uma análise que, seja a narrativa sobre homens ou
mulheres, o escritor homem – e do mesmo modo a escritora – escrevem a partir de suas
respectivas subjetividades, para as quais, sem dúvida, o gênero é um aspecto essencial.
Diante disso, é necessário investigar alternativas à definição popular de lugar de fala. Em
seu O que é lugar de fala? (2017), Djamila Ribeiro afirma que há uma imprecisão a respeito da
origem do termo (p. 57), embora ela defenda que se origine do conceito de feminist standpoint
– o ponto de vista feminino, na tradução de Ribeiro -, utilizado por diversas filósofas e
intelectuais feministas, como Patrícia Hill Collins em seu livro Pensamento do feminismo
negro (1990), que Ribeiro cita:
Como Collins evidencia, o que está em jogo para o feminist standpoint, mais do que o
sujeito específico, são as experiências historicamente compartilhadas por grupos sociais.
“Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as experiências
individuais, mas de entender como o lugar social ocupado por certos grupos restringe
oportunidades.” (RIBEIRO, 2017, p. 60). Tal constatação se mostra muito importante para a
discussão a respeito do lugar de fala, uma vez que, em oposição à acepção popular do termo, o
lugar de fala não estaria atrelado à problemática universalização de uma experiência singular,
mas a uma discussão a respeito de estruturas comuns relativas à experiência de determinados
grupos de sujeitos. Ribeiro (idem, p. 63) prossegue dissertando sobre como as experiências
coletivas de determinados grupos sociais são resultantes dos lugares sociais que estes ocupam,
de modo que:
[...] não poder acessar certos espaços acarreta a não existência de produções e
epistemologias desses grupos nesses espaços; estar de forma justa nas
universidades, meios de comunicação, política institucional, por exemplo,
impossibilita que as vozes dos indivíduos desses grupos sejam catalogadas,
ouvidas, inclusive em relação a quem tem mais acesso à internet. O falar não
se restringe ao ato de emitir palavras, mas a poder existir. Pensamos lugar de
fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes
consequente da hierarquia tradicional (RIBEIRO, 2017, p. 63-64).
Tendo discutido questões como lugar de fala, de identidade autoral, e conceitos como de
“literatura da mulher” e “literatura gay”, uma nova questão aparece pungente: a respeito de
nacionalidade. Longe de reiterar discursos os nacionalistas que permearam, desde o
romantismo, a literatura brasileira, o que pretendo discutir aqui pode ser sintetizado em alguns
questionamentos que servirão como fio condutor da última parte deste capítulo: existem
diferenças entre ser um sujeito homossexual no Brasil e em outro lugar, como, por exemplo, os
Estados Unidos? Pode uma teoria desenvolvida originalmente na América do Norte, como é o
caso da teoria queer, dar conta de uma realidade particular como a brasileira?
Diferentemente dos países do norte, marcados, tanto que diz respeito aos direitos da
comunidade LGBT quanto aos movimentos raciais, por uma segregação violenta, o que
encontramos no Brasil, é uma ambiguidade que visa mascarar as estruturas de opressão, tanto
em relação às questões raciais – oriunda das políticas de mestiçagem e de embranquecimento –
quanto em relação às questões ligadas à homossexualidade, advinda de uma série de políticas e
legislações que marcam a história do Brasil, sobre as quais discorrerei superficialmente a partir
do importante estudo de João Silvério Trevisan, intitulado Devassos no Paraíso (2018).
Trevisan comenta que a repressão em relação às práticas homossexuais no Brasil
“começou com a herança recebida da história europeia, em 1500, quando nos tornamos
geograficamente uma nação nos moldes ocidentais” (TREVISAN, 2018, p. 160). Em Portugal,
ele afirma (idem, ibidem), o crime de sodomia constava nas Ordenações do Reino de Portugal
desde o Renascimento, além de uma vasta literatura jurídica pautada no direito romano e na
moral católica e manuais de comportamento, dentre eles, Trevisan cita As ordenações
Manuelitas, que foram aplicadas no Brasil por serem vigentes na metrópole à época do início
da colonização. Nelas, diz o autor, “a sodomia passou a ser equiparada ao crime de
lesa-majestade. Além da pena por fogo, foi acrescentado o confisco dos bens e a infâmia dos
filhos e dos descendentes dos condenados” (idem, p. 161).
Contudo, a independência do Brasil em relação a Portugal e sua Constituição do Império
– de caráter iluminista e influenciada pela filosofia britânica de Jeremy Bentham, além do
Código Napoleônico – trataram de modificar este cenário com a retirada do crime de sodomia.
“Se exercida sem violência ou indecência pública, segundo eles, a prática sexual não devia
absolutamente cair sob os domínios da lei” (idem, p. 163). Deste modo, a constituição imperial
tratou de substituir o crime de sodomia por um novo, o de “ofensa contra a moral e os bons
costumes”, que figurou até o Código Penal Republicano de 1890 com nomes variados que
traziam um com”silêncio tácito” (idem, ibidem) em relação à homossexualidade, na medida em
que os crimes contra o pudor se dirigiam a uma vasta gamas de situações, como a “corrupção
de menores” (aplicada, como lembra o autor, somente à corrupção de “mulheres honestas”).
Assim, uma indefinição jurídica é instaurada, e a opinião pública se torna, afirma Trevisan,
“mais um conceito vazio” (idem, ibidem). O Código penal de 1940, que como bem lembra bem
o autor, ainda vigora, continuou sem menções explícitas à homossexualidade.
Contudo, a falta de uma menção clara à homossexualidade não significa uma aprovação
jurídica da mesma. Sob essa gama de crimes genéricos contra o pudor, contra a família e os
bons costumes, a homossexualidade foi silenciosamente condenada. Se como vimos com Butler
e Foucault, os sujeitos são formados negativamente pelas leis que visam representá-los, que
papel teria esse “silêncio tácito” na formação do sujeito? A resposta que desponta é a de uma
ética da ambiguidade, surgida a partir de um regime de indefinição, de maneira que é
necessário considerar estes estatutos e prescrições culturais em uma análise queer da cultura
brasileira, como Lugarinho afirma: “Se a teoria queer é realmente eficaz em uma cultura com
um centro que deseja subverter e relativizar, entretanto, é preciso observar que nas culturas de
periferias ela deverá possuir outros estatutos que urgem serem apontados.” (LUGARINHO,
2010, p. 43).
Deste modo, o que se mostra pungente a partir das considerações do autor é que pensar as
relações homossexuais a partir da teoria queer não significa pensar o “queer lusófono” como
um acontecimento recente que se dá sob a égide dos estudos estadunidenses, mas, pelo
contrário, utilizar-se da teoria para refletir e discutir a respeito das identidades brasileiras, tanto
dentro das condições em que os discursos identitários são produzidos quanto em suas
subversões, sem sujeitá-las a um modelo teórico ou epistemológico rígido, mas pelo contrário,
buscando assinalar as relações de ambiguidade específicas do Brasil.
O que busquei ao longo deste primeiro capítulo foi, ainda que de modo introdutório,
levantar alguns pressupostos teóricos que me parecem centrais para a reflexão a respeito de
uma poética queer, como a representação, a performance, a nacionalidade, etc. Contudo, última
pergunta – que desponta, sem dúvida, como uma metacrítica às possíveis contradições que
possam surgir na linha argumentativa que procuro aqui costurar – parece carecer de atenção e
de considerações teórico-metodológicas.Como busquei evidenciar a princípio, a representação
funcionaria como uma força prescritiva da linguagem, que, como afirma Judith Butler, seria a
responsável por determinar e construir os sujeitos – noção essa que parece se confirmar através
das minhas considerações a respeito de uma “literatura feminina” através das contribuições de
Ana Cristina Cesar e de Simone de Beauvoir. Sendo assim, quando observarmos que a
relevância de se pensar a autoria feminina está ligada não a um pré-estabelecimento de certas
temáticas ou dicções que seriam próprias das mulheres (o que seria, afinal, uma prescrição),
mas a compreensão de uma subjetividade particular que, segundo Beauvoir, seria sempre
relativizada, inessencial, quando contraposta ao pretenso neutro do masculino – a empreitada
de sistematizar uma poética queer não acabaria por ser, também, uma tentativa de representar o
queer – ou o que seria uma literatura queer, e, deste modo, essencializá-lo, tornando-o,
paradoxalmente, “anti-queer”?
O conceito de queer não será tomado aqui como algo acabado, completamente definido,
de modo que seria possível meramente adjetivar um conjunto de textos como queer segundo
critérios estéticos ou éticos fixos estabelecidos previamente. Isso pode ser justificado tanto
etimologicamente, quando observamos que a tradução mais literal do substantivo é estranho,
11
esquisito, ou – por que não? – viado ; quanto através das considerações de Tamsin Spargo que,
como citei no início deste capítulo, compreende a teoria queer não como uma teoria singular,
mas como um arcabouço teórico plural e diverso (SPARGO, 2017, p. 13).
Deste modo, é importante refletir sobre a possibilidade de uma poética que não se baseie
numa representação ideal do texto literário, mas que o conceba como autônomo frente à teoria
literária e outras disciplinas. Em termos práticos, isso significa que uma poética queer não deve
pretender, em grau algum, estabelecer critérios normativos segundo os quais um texto de
literatura deveria ser considerado um “texto queer”, mas, inversamente, investigar estruturas
queer presentes nesses textos, isto é, como as possibilidades queer a partir de suas próprias
estruturas e linguagem. Cabe aqui, a partir disso, refletir sobre o conceito de “poética”. Cito
Anselmo Peres Alós:
11
Ainda que, comumente, a palavra queer – quando relacionada à homossexualidade – seja mais
recorrentemente traduzida por “bicha”, a palavra “viado” me parece mais interessante uma vez que uma das
possíveis origens apontadas para este substantivo seja a partir de uma contração de “desviado”, guardando em seu
campo semântico a noção de dissenso que fulgura também em “estranho”.
linguística estrutural buscou a descrição do funcionamento da língua, a poética
estrutural buscou descrever o funcionamento da literatura, particularmente dos
textos narrativos. Tzvetan Todorov utiliza o termo 'poética' em seus estudos
descritivos das estruturas narrativas, como em Poética e Crítica, enquanto
Jonathan Culler o usa, em um sentido muito próximo, no seu Structuralist
Poetics. (ALÓS, 2010, p. 842)
Nitrini afirma que, partindo do ideário de uma identidade nacional uniforme e capaz
influenciar a produção literária de um autor da própria ou de outra cultura, a concepção de
literatura comparada do século XIX, é atravessada de um cosmopolitismo que se contrapõe “às
tendências a cerradas interiorizações”, que são marcas da criação desta mesma identidade
nacional. Deste modo, podemos compreender que a literatura comparada desponta com a
finalidade de, através de uma comparação entre nações, encontrar elementos que seriam
identitários de suas nações, bem como estabelecer relações de influência entre elas.
Mas, assim como a filosofia hegeliana, as teorias de Goethe e seus contemporâneos
apontam para uma visão de progresso e de harmonização das produções humanas, concepções
que “a historiografia mais recente questiona e a história concreta parece desmentir”
(PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 93). Perrone-Moisés, evidencia, em suas palavras, uma
atualização destes conceitos à luz de teorias que começam a germinar ao longo do século XX,
dentre elas, o dialogismo bakhtiniano e, em especial, a intertextualidade de Julia Kristeva.
Para esclarecer melhor essas noções, é preciso primeiro explicar brevemente a definição
de Bakhtin de “discurso”. Diferente de conceito de texto, que na obra do autor se apresenta
como um objeto concreto da linguística, o discurso é a língua em “sua integridade concreta e
viva” (BAKHTIN, 2008, p. 207 apud MARCUZZO, 2008, p. 3). Crítico de Saussure, que
concebe a linguagem como um sistema fechado em si mesmo, Bakhtin, por outro lado, tal
como afirma Marcuzzo (2008, p. 3), defende que “a verdadeira substância da língua é
constituída justamente nas relações sociais, via interação verbal, realizada por meio da
enunciação ou das enunciações”. Ela prossegue:
Como aponta Perrone-Moisés, Julia Kristeva retoma o dialogismo bakhtiniano para sua
teoria da intertextualidade. Para Kristeva, todos os textos são construídos como uma absorção
de outros textos, num mosaico de citações. Como é possível observar a partir do excerto citado,
a literatura comparada, sob a influência da intertextualidade, deixa de se pautar numa relação
de fonte e influência – que para os estudos brasileiros também pode ser refletida na relação de
metrópole e colônia, na medida em que a recepção passa a ser concebida não de modo passivo,
mas como um “confronto produtivo com o Outro”.
Deste modo, a valoração entre os textos comparados, seja em quesitos temporais ou de
originalidade, é suprimida em detrimento das relações de integralização, rapto e absorção de
elementos de um texto para o outro, seja ele literário ou não, na medida em que “a noção de
texto em Kristeva é ampla. Torna-se sinônimo de ‘sistema de signos’, quer trate de obras
literárias, de linguagens orais, de sistemas simbólicos, sociais ou inconscientes’ (NITRINI,
1997, p. 161). Isso significa que, tomando os pressupostos de Kristeva e do pós-estruturalismo
francês do qual ela faz parte, toda a construção de sentido passa a ser considerada texto, de
maneira que a intertextualidade se refere a presença e a correlação de estruturas comuns em um
determinado texto absorvidas não somente da tradição literária, mas de todo o pensamento e
produção humana. Nitrini ainda afirma:
Barthes utiliza a palavra “Imitação” para em seguida descartá-la, pois não se trata da
palavra em seu sentido corriqueiro, ou mesmo uma releitura da noção de mimesis, mas de uma
imitação particular, uma deformação narcisista do livro sedutor, “para que a obra passe do
outro a mim, é necessário que eu a defina em mim como escrita por mim, e que, ao mesmo
tempo, eu a deforme, a torne Outra, por amor” (Idem). A respeito dessa deformação narcisista,
Barthes utiliza o exemplo de uma composição de Bach que, tocada por ele próprio, é executada
de maneira singular, “mal tocada”, em relação a uma pianista profissional. Ele a toca mais
lenta, promovendo mudanças na velocidade e na dinâmica, deixando aparecer certos fraseados
que passam despercebidos quando a peça é “bem tocado” – deformando-a, tomando-a para si e
tornando-a uma nova música, que lhe também é agradável.
Em outras palavras, Barthes afirma que a escrita parte sempre de leituras afetivas, de
livros que amamos, num processo de tomar o texto do Outro como signo de si, na escrita de um
novo texto. Tal como ocorre em Bakhtin e em Kristeva, a teoria de Roland Barthes aponta para
a noção de que o texto, em especial o literário, não surge do nada, mas, pelo contrário, nele
reverberam outros textos e discursos, que são transformados ou deformados, raptados ou
articulados para sua criação. Deste modo, o que buscarei em minha análise a respeito da
literatura de Glauco Mattoso e João Gilberto Noll, em termos de comparação, está voltada a
encontrar estes câmbios textuais no que diz respeito aos aspectos queer na obra de cada um dos
autores, detectando estruturas que aparecem nestes textos que possam ter sido assimiladas de
discursos comuns, e que, por sua regularidade, possam servir de alicerce para refletirmos sobre
uma poética queer.
3. A EPOPEIA LIBIDINAL DE ACENOS E AFAGOS
João Gilberto Noll, desde seu debute literário em 1980 com o livro de contos O cego e a
dançarina, produziu, entre contos e romances, uma vasta e rica obra que tem como uma de suas
principais marcas a construção de uma realidade esfacelada através de uma experiência quase
sempre errante através de uma fragmentação do sujeito. Este sujeito descomposto, que surge
através dos conflitos identitários e que, no campo da sexualidade, está ligado a uma imputação
da “garantia biológica e [d]as coerências históricas que determinam o modo de singularizar as
experiências vividas” (GARCIA, 2003, p. 198) que fazem parte de uma ordem social
estabelecida pela modernidade.
Garcia aponta para a criação de um sujeito “disparatado”, termo que encontra sua origem
em Michel Foucault, e que remete à extravagância, ao contrassenso, e que “no dispositivo da
sexualidade, a palavra é compreendida a partir do sentido da normalidade e associa a
dissidência e o dissenso, de modo que o desligamento da norma relega o/a transgressor(a) a um
sujeito despropositado” (GARCIA, idem, ibidem). É esse sujeito despropositado que
protagoniza a narrativa de Noll. Quase sempre à deriva, como o desertor de guerra de A céu
aberto (1996) ou como o emigrante expatriado de Berkeley em Bellagio (2002, p. 20), “que
temia se extraviar da própria língua sem ter por consequência o que contar”, ou mesmo como o
desmemoriado “candidato ao Alzheimer” d e Lorde ( 2004, p. 18), o narrador-protagonista
raramente possui um passado, um destino, ou quaisquer coisas que lhe garantam um
reconhecimento como sujeito linear. Errante, desprovido de personalização, uma vez que sua
identidade não se fixa, este sujeito se reduz ao próprio corpo, que é interpretado por Gabriel
Giorgi (2008) a partir do conceito de “vida nua” de Agamben:
a ‘vida nua’ refere sempre a uma ‘zona de indistinção’ entre a vida humana
socialmente reconhecida e a vida ‘meramente biológica’, isto é, isto é, a vida
desprovida das marcas que a tornam objeto de proteção e reconhecimento por
uma ordem legal e político dado. A cidadania, evidentemente, é o modelo
desse reconhecimento, porém não é o único: o consumidor, o trabalhador, o
membro de uma comunidade, etc., são todas marcas que assinalam os corpos a
12
universos específicos de reconhecimento (GIORGI, 2008, p. 12).
12
Em tradução livre minha
Em outras palavras, a vida nua está ligada a uma ausência de marcas de reconhecimento
que servem para amparar e legitimar a existência do sujeito dentro de uma comunidade.
Sempre isento destas marcas, o narrador nolliano se encontra nesta “zona de indistinção”, neste
entre-lugar da vida socialmente reconhecida e de uma existencial meramente biológica, isto é,
relegada ao próprio corpo em suas funções primitivas, como a sobrevivência e – mais
marcadamente – o desejo sexual. É esse sujeito despropositado, nu, guiado pelo desejo que
figura na “epopeia libidinal” (NOLL, 2008, p. 48) de Acenos e afagos (2008). Igualmente, é
partir disso que, acredito, é possível pensar a literatura de João Gilberto Noll a partir de uma
noção de esfacelamento: na narrativa nolliana a realidade, o tempo, o Outro, se desfazem e
esfarelam a partir de uma perda do sentimento universalista implantado pela modernidade,
incumbida de conferir sentido à realidade. Assim, a insuficiência dos discursos que deveriam
garantir essas marcas de reconhecimento, legitimação e coerência do sujeito, acabam por dar
luz a uma fragmentação e uma rarefação não apenas da própria realidade, mas das relações com
o Outro.
O que encontramos em Acenos e afagos é uma narrativa de um corpo que performa seu
desenvolvimento, ao longo de múltiplas experiências do narrador-personagem do surgimento
até a consumação de seu desejo pelo seu amigo de infância, a quem se refere apenas por “O
engenheiro”. O romance, menos que um bildungsroman – na medida em que o esfacelamento
impediria qualquer “formação” no sentido do cânone literário da modernidade – revela,
linearmente, da infância à morte de seu narrador personagem, as experiências e encontros
frente ao desejo, que o modifica e transforma. Concebido dentro do texto como,
provavelmente, a única espontaneidade de um sujeito fragmentado, o desejo é o fio condutor do
desenvolvimento do corpo e da experiência errática. Assim sendo, o sujeito trava
infindavelmente uma batalha contra os discursos hegemônicos que deveriam formá-lo.
Deste modo, uma primeira hipótese que aparece a respeito da queerness de Acenos e
Afagos, é sobre do modo subversivo ou transgressor como o personagem, desejo encarnado, se
relaciona com esses discursos. Se Butler, em Problemas de Gênero, inverteu a lógica que pensa
o gênero binário como matriz da heterossexualidade, isto é, se é a compulsoriedade da
heteronorma a responsável pela produção binária do gênero, o que me parece interessante como
ponto de partida é examinar como o texto performa o desejo (neste caso homossexual,
panssexual ou queer – mas jamais heterossexual em stricto sensu) para a distorção da lógica
binária constituinte do gênero, possibilitando a criação de novas identidades.
Iniciando nossa leitura pelos primeiros quadros narrativos, o que encontramos no
romance são imagens da infância do protagonista em Porto Alegre, junto do amigo. Não como
uma origem do desejo ou do trauma, como quer a psicanálise, nem como retórica
autobiográfica para subsidiar uma literatura confessional ou autoficcional, como ocorre na
literatura de Glauco Mattoso, que veremos adiante. A criança, esse “eu” que é encenado
quando o narrador relata a si mesmo, não é uma tábula rasa a ser constituída e formada ao
longo do texto, mas estabelecida como um ser já desejante. Nesse sentido, a infância, neste
texto, não é uma pré-história ou um ponto de partida. Não se trata da perda da inocência, de
uma primeira incidência do desejo ou do amor. Tampouco é o caso de uma “autodescoberta”
gay, assunto recorrente na literatura e no cinema contemporâneo. Também não se trata de uma
passagem da infância à pubescência. O pretérito imperfeito empregado neste momento do
texto, ao cumprir sua função gramatical de demonstrar uma continuidade de ações – a repetição
sucessiva e sem início de uma mesma imagem – nos dá a tônica da literatura de Noll: o desejo
como sendo, desde sempre, desejo. Em outras palavras, o desejo como é construído na
literatura de Noll não encontra origem nem finalidade, mas é sempre um movimento que
conduz o narrador em direção ao Outro.
O romance se inicia com a descrição dos dois meninos – o narrador e o rapaz que,
quando adulto, será chamado no texto de “engenheiro” – que travam, no chão de um
consultório ortodôntico, uma luta corporal. Menos que uma mera rivalidade entre os dois, que
“aqui no chão do corredor jurávamos, calados, inimizade sem fim.” (idem, p. 8), ou
simplesmente uma expressão da violência que é parte da constituição da masculinidade na
infância, o embate entre os corpos infantis apresenta um ludus sexual que se exprime a partir de
um hiato, de um vácuo produzido, nas palavras do narrador, pela impossibilidade de uma
intenção aberta. O desejo sexual, ainda que não nomeado, espreita os meninos em seu contato
corporal. Eles param e ficam aguardando: “Aguardando o quê? Nem nós dois sabíamos com
alguma limpidez.” (idem, p. 7). É no silêncio, naquilo que não ousa dizer o seu nome, que a
interação sexual é, gradualmente, construída.
Também a espacialização parece relevante: não na privacidade do internato, como no O
Ateneu de Pompeia ou no isolamento marítimo do cânone de Adolfo Caminha, Bom Crioulo –
espaços comuns nas narrativas homossexuais e bastante aprofundados pela crítica – o “bom
trânsito do prédio” (NOLL, 2008, p. 8) do consultório do dentista, difere do ambiente íntimo
comum às narrativas iniciáticas relativas ao homoerotismo. Quase como em um cruising
antecipado, a espacialização denota sobretudo uma irregularidade dos embates que, contudo,
continuam a progredir ao longo de encontros.
Se por um lado, o desejo ainda não se nomeia, pelo outro, o corpo fala com eloquência
através do toque íntimo e dos sons, O embate é tecido numa sinestesia muda que se situa entre
uma virilidade construída através violência e um homoerotismo que se dá através da mesma,
subvertendo-a num “dilema meio fosco entre o gozo e sua imediata negação” que atinge o
ápice de seus vértices simultaneamente: o gesto de estrangulamento (viril) é seguido do toque
no pênis ereto (homoerótico). A solução para a ambiguidade estabelecida neste dilema
silencioso é o retorno para a luta corporal, para o contato lúdico entre os rapazes, que se atacam
como “répteis serpenteando, deitados de lado, agora frente a frente. Onde o corpo de um
recuava, o do outro avançava.” (idem, p. 10), num contrato mútuo e mudo que privilegia a
prática e a experimentação em detrimento da especulação e da linguagem.
O que se pode depreender das páginas que se seguem ao primeiro relato é uma
reformulação desse ludus que ainda que mantenha seu componente experimental, começa a se
inscrever também como narrativa, como marca biográfica definitiva da trajetória dos rapazes.
Um exemplo disso é masturbação conjunta e silenciosa – que se desenha, do mesmo modo,
entre o homoerótico e o viril, este numa trégua revestida de cumplicidade.
A narrativa atravessa uma passagem do toque lúdico, através da luta, para um novo
toque, sensual, desta vez no próprio corpo. O corpo se torna matéria bruta e a sensação de
partilha é único componente da experiência: estando ajoelhados, e de costas um para o outro,
não se veem nem se tocam. Sem imagens, sons e tato, é apenas o estar juntos que os une. É
neste momento que a pura e simples experimentação corporal onde compartilham o gozo. A
cumplicidade torna-se elemento fundamental para a narrativa a partir do compartilhamento de
um gozo proibido que “constituía-se num ingrediente tentador a mais para um novo arranque
do erotismo, naquela dispersão erógena da infância.” (idem, p. 9). A interdição, encarnada no
mais das vezes pelo medo de ser pego pelo dentista, durante o ludus que se repete no
consultório, traz consigo o elemento repressivo. Tal como na dicotomia viril/homoerótico, a
repressão funciona no texto através de uma lógica retroalimentada subversiva que desestabiliza
e ressignifica o elemento constituinte da normalização dos corpos. Isto é, do mesmo modo que
o gesto homoerótico desestabiliza a virilidade (expressa no embate corporal) da qual ele é
produto, a repressão, responsável pelo interdito do desejo, é a culpada por alimentá-lo.
Se consideramos o elemento repressivo como ancorado numa lógica de interdição
imposta através de uma heterossexualidade compulsória, o que encontramos na narrativa – o
gozo alimentado pela própria interdição – é uma subversão que se dá não na exterioridade do
discurso, mas em sua própria matriz. Deste modo, como vimos, a sequência de dicotomias que
despontam no texto atuam em seu interior para a criação de um efeito de ambiguidade, na
medida em que não se associam completamente aos discursos dominantes da heteronorma
patriarcal, mas tampouco abrem mão completamente deles, na medida em que “trapaceiam”
com seus elementos constituintes, como a virilidade, ao torná-los ponto de partida do gozo
homoerótico.
Todavia, a principal dicotomia que será atravessará todo o romance de Noll é
norma/dissenso. Tendo como horizonte que “o sexo deveria ser feito entre um homem e uma
mulher e que dessa luta em meio aos lençóis se gestaria a criança, essas crianças correndo por
tudo como nós” (NOLL, 2008, p. 9), o erotismo lúdico dos meninos passa a ser interpretado,
por eles mesmos, como secundário à sua “história principal” (NOLL, 2008, p. 9). Deste modo,
a narrativa joga com o processo formativo compulsório da heterossexualidade na vida dos
rapazes: o uso do futuro do pretérito “deveria” sugere, se não uma obrigatoriedade das práticas
sexuais voltadas à reprodução, uma naturalidade delas. A “natureza” é colocada como central e
a biologia torna-se destino, de maneira que o gozo lúdico entre os meninos, interditado, é
assinalado pelo próprio narrador como um desvio daquilo que deveria ser em suas biografias.
Em sua História da sexualidade (1999), Michel Foucault afirma que, a partir do século
XVII, houve “menos que um discurso sobre o sexo do que de um multiplicidade de discursos,
produzidos por toda uma série de mecanismos que funcionam em diferentes instituições.”
(FOUCAULT, 1999, p. 34), dentre estas instituições, ele menciona a biologia, a medicina, a
psiquiatria, a psicologia, a ciência política e a moral (idem, ibidem). Deste modo, todas essas
áreas do conhecimento foram responsáveis pela criação de “verdades” a respeito da sexualidade
humana, de maneira que “a ‘Natureza Humana’ não é senão um efeito de negociação
permanente das fronteiras entre humano e animal, corpo e máquina, mas também entre órgão e
plástico.” (HARAWAY, 1995 apud. PRECIADO, 2014)
Essa lógica normativa é manifestada no romance inicialmente a partir da figura do pai
do narrador-protagonista, que lhe presenteia com “um livro sobre as coisas do sexo, cujo autor,
João Mohana, pontificava como o padreco que era.” (p. 9). Para além da ironia implícita
contida num livro de educação sexual cuja autoria é assinada por um padre, o uso do nome de
João Mohana, padre e médico maranhense, autor de facto de uma vasta literatura voltada à
educação sexual e relacionamentos conjugais, reitera a função moralizante e prescritiva do
13
material, uma vez que, compreendendo o manual como uma pedagogia de práticas sexuais , a
“pontificação” de Mohana a respeito do sexo cumpre o efeito de educar sexualmente o
personagem e formá-lo como sujeito sexuado sob determinados discursos que, resguardados
13
Discorrei mais aprofundadamente a respeito do gênero manual como pedagogia sexual no capítulo de
análise do romance Manual do podólatra amador, de Glauco Mattoso.
por instituições como a religião, que cumprem o papel de naturalizá-las, são reiterados como
mecanismos de manutenção de práticas sexuais socialmente construídas.
Todavia, a prescrição do manual é malograda, uma vez que o livro – que deveria servir
de dispositivo regulamentador para a reiteração de práticas sexuais qualificadas segundo
discursos normalizantes – acaba por servir unicamente para alimentar o impulso sexual do
protagonista: “Nunca punhetei tanto quanto durante a leitura deste manual. [...] O fato de estar
ali, de pau duro, não poderia ter sido previsto, mas agora acontecia, e ninguém se dava conta se
era um disparate ou simplesmente uma iniciação ao transe” (NOLL, 2008, p. 9). O sêmen sob
as páginas do manual aparece aqui como marca de uma aprendizagem: não através do conteúdo
presente no livro, uma vez que este é completamente subvertido, mas pelo próprio gozo, que é
utilizado textualmente para marcar a passagem da personagem da inocência do ludus a uma
sexualidade consciente: “Naquele ponto eu já sabia: a animosidade seria abastecida de novo
pela atração. E o meu amigo sabia, ou era bronco de pele?” (idem, p. 9).
Essa consciência, que o personagem não está certo se compartilhada pelo amigo, atua
como uma espécie de subversão do ludus. Isto é, uma vez que há uma consciência do desejo
por parte do sujeito, a brincadeira entre os rapazes torna-se um pretexto deliberado para o toque
íntimo, o que se comprova através de reflexividade imbricada ao ápice do encontro dos
rapazes, quando “e repente, aflito, trêmulo, o guri me trouxe o cu para perto da minha boca.”
(idem, p. 10). Ele prossegue:
O contato íntimo entre os rapazes se mostra desejado previamente pelo narrador, que
“viajava inebriado no mais secreto dele, sem nada pedir ou oferecer, sem nada pensar”,
revelando o seu desejo – que, como diz, escondia solenemente do amigo – ao lambê-lo.
Imediatamente após seu fastígio, o ludus h omoerótico encontra seu final: “Juramos não contar
essa tarde a ninguém. Nunca. Nós a enterraríamos um pouco em cada um e, quando
estivéssemos crescidos, a imagem da luta no chão frio já estaria esfarelada, sem que
soubéssemos reaver os fragmentos.” (NOLL, 2008, p. 11). É em seu encerramento que o
caráter lúdico da interação homoerótica se estabelece em seu ápice, onde o corpo é explicitado
em sua transfiguração como brinquedo do outro: “E nos fizemos de túmulo, para enterrar de
vez o brinquedo que cada um criara no corpo do colega.” (idem, ibidem). A imagem do
brinquedo, além de conferir ludicidade à relação, atua também como metáfora do crescimento:
enterrar o brinquedo seria, afinal, um abandono da infância.
Esse enterro do lúdico e da infância, que se dá no interior de ambos, atua junto a uma
aposta nos discursos de normalidade, na medida em que ao projetar um futuro o narrador
assume uma difusão e apagamento da imagem: “Eu precisava mesmo era reconstruir uma
família, refazer o caminho do meu pai” (NOLL, 2008, p. 16), reflete já adulto, prestes a deixar
o seminário. A imagem do pai, tanto como aquele que lhe dá um manual de pedagogia sexual
cristã quanto como daquele cujo caminho deve ser reconstruído, é fundamental para a narrativa
na medida em que atua como pilar edificante de uma heteronormatividade patriarcal que o
narrador buscará, sob diferentes formas, hora reiterar, hora subverter.
Assim, texto atua como um jogo no qual as regras são lançadas unicamente para serem
quebradas numa demonstração da insuficiência das oposições binárias essenciais para a
estrutura do gênero, que como veremos, conduzirá a trama narrativa. Relegando o protagonista
a uma espécie de indefinição do sujeito e do corpo, onde os binômios – masculino/feminino,
heterossexual/homossexual – se chocam e se misturam, a narrativa performa um entre-lugar
onde tais categorias se revelam como plásticas.
E fui ao encontro dele em seu escritório seboso. Sentei diante de sua mesa
cheia de lascas e ele me contou: vou me encontrar daqui a pouco com o amigo
atracado num navio no porto. Vamos? Navio no Guaíba? perguntei. Navio, ele
respondeu correndo em direção ao cais, me deixando atrás a lhe implorar,
calma, calma, guri! (NOLL, 2008, p. 19)
Meu amigo engenheiro estava nu como todos os outros e todos traziam seus
caralhos vencidos, quando muito no pinga pinga de sêmens já usados. Vi que
o prepúcio circuncidado do meu amigo havia uma tatuagem e essa tatuagem
me atordoou: uma ínfima abelha. Ele deveria fazer parte, a algum tempo,
daquele clube marinho que pretendida me excluir. (NOLL, 2008, p. 26-27)
O texto chama atenção para a tatuagem em forma de abelha que o engenheiro possui no
pênis, denunciando, tal como infere no narrador, o pertencimento de seu amigo aquele “clube
marinho”. Esta constatação, por conseguinte, serve para reconfigurar o personagem. Se antes o
engenheiro se mostrava como uma figura de sexualidade ambígua, iniciando, como vimos,
“meio assexuado” e posteriormente vítima de especulação quando findado o relacionamento
com a garota, agora a sexualidade do engenheiro passa a ser clara. Do mesmo modo, o narrador
passa também a ser reconfigurado, por oposição. Se ele havia se colocado, até o momento,
como “entendido”, portanto, conhecedor desses “idílios secretos” a partir do Bar Torpedo, o
que encontramos aqui é uma inversão dos papéis uma vez que, diante da orgia no submarino, o
protagonista acaba por não participar e até demonstra, como vimos, ciúmes do engenheiro.
Percebe-se que, afinal, o engenheiro, e não o narrador, é que era um verdadeiro iniciado numa
sociedade sexual no submarino alemão, de maneira que todas as características depositadas
sobre ele, como “assexual”, “enrustido” e mesmo “hétero” (em relação à garota), se
demonstram, se não equivocadas, insuficientes para dar conta da experiência complexa do
personagem.
Do mel (em associação ao esperma) até o ferrão (fálico) são muitas as interpretações que
se poderiam depreender da figura da abelha tatuada no pênis do engenheiro. Contudo, menos
do que buscar uma interpretação literal para a figura, acredito que alguns elementos que se
vinculam a ela indiretamente sejam mais interessantes para nossa leitura queer. Dentre elas,
chamo a atenção os efeitos de estranhamento, e, em especial, o de bizarro. Longe de um apelo
tipificadamente sensual que comumente poderíamos associar a uma tatuagem, e em especial, a
uma tatuagem íntima, a figura de um inseto figura mais estranha ou atípica do que
propriamente erotizada. Tanto a tatuagem de abelha quanto o submarino propriamente, trazem
em si uma artificialidade que, sem dúvida, é muito importante para a leitura de Acenos e afagos
tanto a partir tanto da ruptura com a noção de verossimilhança quanto ao trazer consigo uma
espécie de carnavalização “viada” cuja força reside numa estética de afetação e, como veremos
mais adiante na narrativa, num efeito de paródia que é essencial para a desnaturalização do
gênero.
Em virtude desses aspectos, acredito que seja fundamental, na reflexão de uma poética
queer, considerarmos mais um elemento estético: o camp. “Enquanto comportamento”, lembra
Lopes, “o camp pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos homossexuais,
ou simplesmente à afetação.” (LOPES, 2002, p. 84) No campo da estética, ele argumenta que o
camp estaria na esfera do brega, do exagero, na associação da cultura pop e de uma afetação
deliberada.
O camp, nas suas origens, não pode ser chamado de fundamentalmente gay,
mas especialmente nesse século tornou-se um elemento definidor, sem ser
totalizador, da identidade homossexual. Apesar disso, o camp só emerge
teoricamente no clássico ensaio de Susan Sontag, “Notas sobre o Camp”
(1964), simultaneamente a um corte na história dos movimentos e
representações homossexuais, representado pelo influxo da Contracultura nos
anos 60, que procurou dar mais visibilidade e mesmo assimilar
comportamentos originários de tradições culturais mais diversificadas e
“menores” dentro da história ocidental, momento decisivo para a disseminação
do camp para longe dos guetos homossexuais. (LOPES, 2002, p. 84)
Não pretendo, neste momento, discorrer muito amplamente sobre o conceito de camp,
mas delinear alguns aspectos que serão, neste trabalho, importantes para nossa reflexão sobre
Noll e as possibilidades queer da literatura. Susan Sontag, como lembra Lopes, foi uma das
primeiras a teorizar sobre o camp. Para ela, o camp e stá associado com um modo de enxergar a
realidade como fenômeno estético, como artifício. Como afirma Souza (2014, p. 3448) “A
autora faz uma analogia entre a relação dos homossexuais com o camp e aquela dos judeus com
o liberalismo, enquanto gestos de autolegitimação.” Sontag, ele argumenta, associa o camp aos
homossexuais “justamente por apontar que essa posição seria a de descobrir que a cultura e o
poder hegemônicos não possuem “o monopólio do refinamento” (SONTAG, p. 336), isto é,
eles negam a superioridade de uma cultura erudita como modo de integração à sociedade.”
(idem, ibidem). O autor (idem, ibidem) argumenta que, mesmo que Sontag aponte o camp
como apolítico, ele neste aspecto, é muito político, “caso interpretemos essa sensibilidade
frente uma tendência à normatização de sensibilidades na sociedade contemporânea” (SOUZA,
2014, p. 3449). Deste modo, o camp pode ser assinalado como rebeldia ou transgressão “ao
fugir de significações pré-determinadas, caminhos fixos, e brincar com significados,
ambiguidades, o camp destrona hierarquias e disparidades através de máscaras e artifícios,
evidenciando outras formas de se viver.” (idem, p. 345)
Essa concepção me parece importante não apenas para estabelecer relações entre o
camp e os estudos queer, mas para a leitura do romance de Noll, uma vez que não concebemos
sua obra, neste trabalho, como apolítica na medida em que, ainda que não encontramos na
narrativa nolliana a militância panfletária que é comum a vários de seus contemporâneos, me
parece indubitavelmente político um uso da linguagem, que a partir de sua estrutura, busca
subverter e esvaziar as categorias do gênero.
Diante disso, me parece interessante recuperar brevemente a discussão acerca da
oposição entre político e militante que discorri na introdução desta dissertação sob as lentes da
leitura queer de Acenos e afagos. Se por um lado, como afirmei, não encontramos nessa
narrativa elementos que seriam militantes, na medida em que a experiência esfacelada e a
desidentidade que é construída através da ambiguidade da linguagem de Noll não
possibilitariam um terreno fértil para um texto engajado, pelo outro, me parece importante
também que, rememorando Foucault e Barthes, lembrar que as relações de poder são inerentes
à linguagem. Deste modo, as trapaças com a linguagem que ocorrem no interior do texto
através da subversão insistente das dicotomias construídas em seu interior não são,
evidentemente, despolitizadas. Em outras palavras, trata-se da performance crítica que
encontramos em Butler, mencionada no primeiro capítulo. Assim sendo, me parece seguro
assinalar uma evidente politização do texto em sua empreitada de subversão das prescrições
discursivas do gênero através de sua linguagem.
14
3.5 “Vivemos na promessa que esse tesão possa enfim se materializar”
14
NOLL, 2008, p. 34.
intercurso com a mulher. Entretanto, ele afirma, “entre ela e eu precisaria despontar um terceiro
corpo, um corpo de formosura sem par, sim, um corpo imaginário, com a qual eu desdobraria
uma cena voraz” (idem, ibidem).
Esse terceiro corpo que surge na fantasia, o corpo imaginário que se impõe entre ele a
mulher, é provavelmente um fantasma oriundo da falta, uma ausência presentificada do
engenheiro, que, fantasmático. mediará todas as relações sexuais do personagem. Ele questiona
se haverá também um quarto corpo, idealizado pela mulher, de modo que o distanciamento
entre os corpos se assinala na presentificação de corpos ausentes.
Tal presentificação do engenheiro será manifesta, como veremos, em todas as relações do
narrador: todos os outros serão, em diferentes instâncias, colocados em relação ao engenheiro,
que, agora ausente, é mitificado no texto através das idealizações de virilidade – estas que, no
que lhes concerne, serão as responsáveis pela construção deste outro corpo, virtual, que o
narrador persegue e que não corresponde, como ficará claro ao final do romance, ao seu duplo
empírico.
A caminho de Porto Alegre, o tempo se rarefaz: “lá se vão duas décadas” (NOLL, 2008,
p. 36). A temporalidade e a geografia fluídas funcionam não apenas como um encapsulamento
do tempo na narrativa, mas como parte da fragmentação e do esfacelamento que são
característicos da obra: dentro de uma frase, décadas são atravessadas, o espaço e o corpo são
modificados sem maiores explicações e, em simultâneo, nada parece se modificar: a figura do
engenheiro, ainda ausente, permanece viva, permeado a memória e o desejo do narrador.
Ele agora encontra-se casado e pai de um adolescente. Por um lado, seu casamento figura
como realização do destino biológico expresso ainda na infância, como já observamos.
Todavia, longe de figurar uma completa aderência aos discursos heteronormativos ao qual o
protagonista é confrontado desde a infância, o casamento com Clara funciona no texto
novamente a partir de uma dinâmica de esvaziamento os discursos responsáveis pela
manutenção da sexualidade. Se por um lado é casado, por outro lado, dorme no mesmo quarto
da esposa unicamente porque “O dormir no mesmo quarto representava a construção de um
quadro familiar sólido, diante do filho adolescente” (idem, p. 41), mas não dividem a mesma
cama. O casamento aparece na obra como uma encenação que cumpre tanto um papel de
legitimação social quanto, sobretudo, um papel de formação e exemplo para o filho, de maneira
similar ao manual de sexo que o pai do narrador lhe dera. Assim sendo, o gênero e a
sexualidade estabelecidos como “normais” são reiteradas e passadas adiante, mesmo que, como
seja evidenciado na diegese, essas categorias se mostrem não apenas insuficientes como
completamente falidas. Um exemplo disso são as relações extraconjugais que o personagem
mantém com outros homens, sob o olhar indiferente da esposa:
Apesar das escapadas, o personagem alterna-se, ainda que em raras vezes, também em
relações com sua esposa. “Empregarei meu tesão no quarto de casal”, ele diz, na tentativa de
gerar uma segunda criança com sua esposa, “talvez a filha que nós dois sempre sonhamos em
horas de franco enlace” (NOLL, 2008, p. 47). Durante o coito marital, a relação torna-se
secundária diante dos devaneios do personagem, que sonha com uma vida familiar funcional a
partir do nascimento da menina (que não se realiza), evidenciando cada vez mais as
necessidades de afeto da personagem. A descontinuidade desse sujeito, perdido entre carências
e fragmentos, chega ao ápice quando ele manifesta, para si próprio, a disposição a trocar sua
vida de “entendido” por uma vida estritamente familiar (idem, ibidem).
Essa oscilação reitera mais uma vez as marcas da ambiguidade: não gay ou hétero –
talvez, bi ou panssexual -. mas um corpo conduzido pela necessidade do encontro com o Outro,
uma vez que, longe um interesse sexual pleno em sua esposa, o que o levaria deixar suas
relações homoeróticas em detrimento de uma vida familiar normativa é a carência afetiva que
se mantém pungente quando contraposta às relações efêmeras e exclusivamente carnais com os
homens sob a lembrança sempre vívida do engenheiro.
Contrariando, do mesmo modo, a lógica que rege a família nuclear heteropatriacal, o
protagonista esboça – entre a censura e o desejo – atração por seu próprio filho:
Meu filho nada borboleta. Sim, nunca o vi nu. Ele nada borboleta com seu
belo físico, de verdadeira fibra atlética. À noite vou bater no quarto dele, pedir
que me conte o que anda lendo. Por enquanto ele nada borboleta com seu
tórax de cinema. Quando volta ao vestiário, vou atrás. Ele se seca, nu. Olho a
sua nudez e penso que eu sou um dos responsáveis por ela. Ele é um homem, e
eu devo tirar os olhos do seu corpo e lhe falar com voz de pai. Cheio de
disfarces encosto meu olhar em seu tronco, ando por sua barriga, desço mais, o
pau circuncidado, encosto agora o olhar em suas pernas musculosas, em seus
pés de dedos meio murchos devido à água da piscina. Volto a subir pelo
mesmo corpo, subo mais, mais, quando ouço a sua voz exclamar “pai”!?
Parece ter perguntado algo que prefiro não entender (NOLL, 2008, p 57.).
Silva (2010, p. 73) argumenta que “O narrador apresenta a rarefação dos papéis sociais
em torno do que comumente se configura a ordem familista e masculinizante da figura paterna
como fundadora do eu”. Essa rarefação dos papéis familiares centrais para a lógica patriarcal,
figuram em outros romances de Noll, como A céu aberto ( 1996), cuja narrativa se inicia
justamente pela busca do pai em meio a uma guerra, motivada pela incapacidade do
protagonista de tratar, sozinho, da enfermidade de seu irmão caçula e culmina, por fim, na
relação incestuosa entre os dois irmãos.
A desestabilização das figuras parentais na literatura nolliana pode ser sintetizada em
um questionamento de Denilson Lopes: “O que fazer, no dia-a-dia, depois da morte do pai?”
(LOPES, 2003 apud. VIDAL, 2009). Paloma Vidal afirma, a respeito desse aspecto na
narrativa de Noll:
Por onde andaria o baiano? Como estava? Os cadáveres tinham sido traslados
para o país europeu, pois as autoridades exigiam a perícia dos orifícios anais
das vítimas, para medirem o tamanho dos estragos. Especula-se sobre a
morbidez erótica da cena estatal alemã. Há indícios fortes de que no interior
da embarcação praticava-se a sodomia em conjuminações feéricas ou mesmo
dramáticas, entre dezenas de participantes. A intimidade sexual a dois passava
a ser uma ação medrosa, paliativa. Entraríamos na idade orgiástica. [...]
Encontraram cus dilacerados. Paus sofredores por tanta acareação com seus
pares. Eu procurava pela internet qualquer notícia que falasse sobre o
episódio. (NOLL, 2008, p. 52)
A narrativa neste ponto se dilui numa indefinição entre as notícias que o narrador
procura, e que mencionam muito pouco a respeito do baiano/engenheiro, e a especulação
imaginativa do protagonista. “O silêncio desse grupo de comunicação queria dizer com isso
que, depois do naufrágio, este cidadão não titubeou, escolhendo desembarcar das manchetes
diretamente para o refúgio missionário luterano nos interiores de Angola”, infere o
personagem. (idem, ibidem). Ele prossegue:
“Vejo o meu amor por ele mesmo, um senhor gato que ficara em uma praia da
costa angolana. Certamente para descansar um pouco de um período de
insônias ardentes. Pegou um avião em Berlim para os funerais dos colegas.
Depois soube que se arrependeu da viagem à Alemanha. Precisou responder
inquéritos. Teve o ânus vasculhado. Enfiaram uma vara no seu cu com uma
luz na ponta. [...] De bruços, o engenheiro tapou a cabeça entre os braços para
não ver o que se passava. Seu cu jamais fora comido. Com o ânus em boas
condições, foi mandado para a sala de interrogatório, desde que não voltasse a
se aproximar de círculos diabólicos. Que você saiba, disseram: você será
seguido. Sim, sua experiência no submarino conhecera um atenuante: fodia e
não era fodido. Os oficiais sentiram uma ponta de admiração por esse comedor
aventureiro. Alguns riram, outros gargalhavam. Não importava se o pau dele
voltasse do ato meio cagado. Importava, sim, que ele fosse um épico da orgia,
que enrabasse um batalhão e continuasse sempre disponível para reiniciar.”
(NOLL, 2008, p. 54-55)
O narrador, neste excerto, adquire traços de onisciência, criando uma imagem a partir de
algo que “Depois soube”. A imagem fornece ao engenheiro uma série de atributos relacionados
à virilidade dentro de uma economia heterocentrada e patriarcal que opõe a dicotomia
ativo/passivo ao binômio masculino/feminino, de modo a despertar “uma ponta de admiração”
mesmo nos oficiais responsáveis por interrogá-lo e violentar seu corpo com exames invasivos.
A imagem deste “épico da orgia”, assim, contribui para essa construção de masculinidade viril,
de certo modo normativa, que impregnará o romance e o imaginário do personagem de maneira
que a relação que se estabelecesse os dois, ainda que imaginada, se enquadrará – neste
momento – numa lógica de paródia da heterossexualidade, com o engenheiro ocupado o papel
viril/masculino e relegando o protagonista à alteridade feminina.
Utilizo da noção de “alteridade” uma vez que o narrador, até este momento, não se
explicita num arquétipo tipificadamente feminino, pelo contrário: trata-se de um homem com
todas as características sociais atribuídas à heterossexualidade normativa, como o casamento
[com uma mulher] e a paternidade. Contudo, esse entrecruzamento de duas masculinidades não
resultará, como no principiar da narrativa, num embate resultante da distorção do viril através
do homoerótico, mas, pelo contrário, se realizará, como mostrarei adiante, numa relação
dialética onde a inflação da masculinidade de um provocará diametralmente a redução da
masculinidade do outro.
Foi quando acordei. E estava deitado num leito branco, bem deitado no meio
de um salão. Capela de velório? Ou, por outra, câmara ardente? Os que me
velam se retiravam para um cafézinho? Tudo se expressava em branco. Vi que
havia apenas outra pessoa além de mim. Estava sentada num banco, recostada
na parede branca. Verifiquei sem titubear ser o meu amigo engenheiro. Ele se
levantou e veio ao meu encontro. Podemos ir, ele falou, ajudando-me a
levantar. Não senti dor, nem ao menos desconforto. Nem fraqueza. A primeira
coisa que me perguntei era se eu não tinha sido incluído numa versão ligeira
do paraíso. Eu e ele isolados numa ilha em branco. Mas o quê? Estava todo
vestido, com o meu velho sapato. Sapato? Mais um motivo para me considerar
morto. E nas palmilhas havia um inusitado acúmulo de terra, incomum para
um urbanóide como eu. O que fazia ali meu amigo engenheiro? Não tinha
ideia do porquê sua presença em qualquer uma das hipóteses – vivo ou morto
(NOLL, 2008, p. 78)
Raptei o teu cadáver. Você respirava de forma bem espaçada e sem mover o
diafragma. Ao tossir, senti que você ia emplacar entre os vivos. [...] Botei
minha boca sobre a tua e te passei ar, mais ar. Notei que sua pele se reavivou.
Coloquei teu corpo deitado e inerme no branco traseiro do quarto. Eu não
tinha dúvidas. Sabia enfim que você fora enterrado vivo. [...] Eu me sentia o
pai da vida sempre que lembrava que só eu poderia mesmo te capturar. [...]
Como você foi resgatado da terra logo, não mais do que uma hora depois do
enterro, deu então pra te pegar vivo. (NOLL, 2008, p. 84).
15
Tradução literal do título “Camp: the lie that tells the truth”, de Core, publicado em 1984.
Tirei a roupa. Desabotoei sua camisa. Ele se levantou, abri sua calça. Percebi
que ele precisava de uma mãozinha para dar curso ao crescendo do nosso
frenesi. Fui descendo pela boca pelo peito dele, descendo mais até a barriga
cujo o fio de pêlos ia se alargando pouco a pouco, até chegar ao tufo
pentelhudo. Ao alcançar lá em baixo, vi que o pau dele não apresentava
ereção. Fiquei frio. Pensei como poderia ser isso, porque estava convicto que o
engenheiro passara tempos comendo toda a tripulação do submarino alemão.
Aquele homem azeitonado, descendente de negros, quem sabe também de
índios, teria comido todos, em meu entendimento, como um rito de passagem,
para atingir então a verve do sêmen universal. Mas não, ao contrário, ele fora
comido por dezenas de alemães. Andava impotente. Por tanto, a meta da
tripulação era ter contato com as entranhas do mundo O engenheiro
protagonizava um sacrifício dos mares. (NOLL, 2008, p. 91)
A descrição do “terreno pantanoso” que começa a surgir onde outrora havia o pênis da
narradora, serve como ápice do processo lento de modificações corporais que viemos
observando, e é o princípio das transformações fisiológicas que darão origem a uma vagina,
tendo o início na formação de um “hímen a partir de uma base genital ainda incipiente” (idem,
ibdem). O que posso inferir a partir disso é como a categorização binária prescritiva de gênero
e mesmo dos dimorfismos sexuais parecem não funcionar na narrativa de Noll, onde as
personagens vagueiam e atravessam suas fronteiras segundo a lei do desejo. O corpo, aqui,
torna-se algo acessório e mutável. A saída que à narrativa encontra à aparente continuidade da
natureza é a descontinuidade artificial.
Transformações fisiológicas desta natureza não são inéditas na literatura de Noll. Em A
céu aberto (1996), após a realização do encontro com o pai, militar de alta patente, lhe obriga a
servir no campo de batalha, tarefa da qual o narrador rapidamente deserda. Sua fuga se
converte em uma deriva onde o tempo e a espacialização são indeterminadas, e que termina
após reencontrar seu irmão, com quem acaba por ter relações sexuais incestuosas. É após o
intercurso entre os irmãos, que a transformação do irmão de efetua:
Ele vestia uma camisola azulada que lhe vinha até os pés descalços.
Transparente a camisola, e do outro lado havia o corpo de uma mulher.
Precisarei romper com esse negócio de pensar nessa figura aí como meu
irmão, falei dentro de mim; […] Perguntei cheirando-lhe o pescoço levemente
perfumado se ela andava distraída. […] Dentro daquele corpo de mulher
deveria existir a lembrança do que ele fora como homem. (NOLL, 1996, p.
74).
E é na relação com o Outro que a transformação desse sujeito vazio, nu, chega ao seu
ápice: é nas últimas páginas do romance que ele conhece um homem chamado George, “um
pouquinho parrudo, não tão velho quanto eu [...] vi uma tatuagem no braço. Um sol com seus
muitos raios em volta” (NOLL, 2004, p. 120). Agora em Liverpool, o escritor acaba por ser
contratado para lecionar língua portuguesa em uma universidade local e é num pub da cidade
em que ocorre o encontro, breve e significativo:
E ali notei que ele era o comparsa de bebida para pousar a mão no meu braço
caso eu pedisse um copo em demasia. [...] O fato de ele ter um pequeno
negócio, de eu ser um futuro professor de português na cidade, isso tudo tinha
um jeito de combinar de tal forma que nada poderia atrapalhar. Eu tinha
encontrado a cidade, o meu lar, o meu homem, e mesmo que eu pedisse o
terceiro copo nada iria se esboroar (NOLL 2004, p. 121)
Após a breve conversa, os dois homens vão para um hotel, onde têm relações sexuais.
Ao acordar, na manhã seguinte, sozinho, o escritor presume que George havia o deixado.
Sozinho, numa cidade que parece se desmanchar através do vidro fosco pela chuva, ele decide
descobrir o espelho do quarto e, depois de tanto tempo encarar a própria imagem:
A primeira coisa que vi foi o sol rodeado de raios tatuado no braço. Abaixei a
cabeça para não surpreender o resto. Murmurei: Mas era no meu braço esse sol
ou no do George? O espelho confirmava, não adiantava adiar as coisas com
indagações. Tudo já fora respondido. Eu não era quem eu pensava. Em
consequência, George não fugira, estava aqui. Pois é, no espelho, apenas um:
ele. (NOLL, 2004, p. 123-124)
Esse hímen duraria até o primeiro cacete que me comesse. De quem seria?
Não se mostrava de todo ruim, mas dava a aflição o pau dele tocando o ponto
mais fundo, bem aqui dentro, em extrema sensibilização – aqui mesmo, onde
a vista não alcança. [...] O que serviria de dor virava um limiar de gozo, tão
insustentável que até pode te induzir ao grito -, eu mesma gritei. E me
envergonhei. Ao atingir, no entanto, essa fronteira avançada do gozo feminino,
percebia que o transe era pouco, eu queria mais. Naquele embate carnal, eu
fechava um ciclo e iniciava outro, o de passivo? Bye bye para o meu pau? Mas
não me sentia preparada para ser fêmea de vez. Não queria que o engenheiro
se viciasse a gozar dentro de mim. Precisava sair correndo daquele quarto com
cheiro de mofo, não voltar mais, ser comido por uma onça, mordido por uma
serpente que por sua vez morreria com o meu veneno inglório. Acabar assim,
tudo bem, mas com os signos de homem na minha superfície, não com os de
mulher (NOLL, p. 143-144).
Essa tensão entre os gêneros se articula com o desbotar da relação com o engenheiro:
“Como eu poderia ter amado esse homem por tanto tempo, décadas?” (idem, p. 158). Ela
começa, então, a esboçar o desejo de deixá-lo para fugir com um dos homens designados para
garantir sua segurança e do engenheiro, fuga essa que ocorre – não por uma decisão final de
abandonar o homem que amou por toda a vida, mas, surpreendentemente, pela morte do
engenheiro por envenenamento.
“Viúva” do engenheiro, a narradora passa a peregrinar errante com o segurança,
foragida da ameaça iminente da polícia federal. “Sozinha ou sozinho?”, ela questiona sua
transformação, ainda em processo: “Sem o engenheiro tinha virado de vez uma mulher? Ou
voltaria de vez à condição masculina? Apalpei-me entre as pernas, parei. E para quem eu havia
me transformado em organismo feminino? E os outros como me veriam? (idem, p. 183). Sem o
engenheiro, agente de sua transformação, a narradora se situa num lugar indefinido entre o
binário, ainda que seu corpo continue a processar lentas transformações, como sua menarca –
que ocorre, simbolicamente, durante o enterro do engenheiro numa cova feita às pressas pelo
segurança. Entretanto, durante o coito com seu novo parceiro, é possível observar que, longe de
uma vagina completa, o corpo da personagem regressa a uma “zona pantanosa” –, estado este
no qual permanece até a fatal morte da personagem – assassinada aos tiros pelo segurança e
enterrada ao lado do engenheiro. A transição de volta ao entre-lugar biológico, que
presumivelmente culminaria num regresso ao masculino, se dá, possivelmente pela perda do
engenheiro. A imagem que encerra o romance, dos corpos enterrados juntos, põe final ao arco
amoroso e sexual iniciado no embate lúdico da infância e que serviu de fio condutor não apenas
para o texto, mas para esse sujeito esvaziado e descontinuado, que se modulou e transformou-se
a partir do desejo e do encontro com o Outro. Tal encontro assiná-la-se igualmente importante
para nossa reflexão, uma vez que ele evidencia a mobilidade e a plasticidade da identidade em
detrimento de uma suposta fixação. Em outras palavras, é no encontro com o Outro, guiado seja
pelo afeto ou pela espontaneidade do desejo, que figura a possibilidade da reinvenção do eu.
4. MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR, UMA BIOGRAFIA QUEER
Pedro José Ferreira da Silva é o nome que consta no registro civil do poeta e escritor
brasileiro Glauco Mattoso. Sua alcunha, na verdade, é um trocadilho com glaucomatoso,
palavra utilizada para se referir às pessoas portadoras de glaucoma, doença congênita
responsável pela perda da visão do autor. O duplo “tt” de Mattoso, como explica Cecília
Palmeiro (2014), é uma filiação ao poeta barroco Gregório de Mattos, cuja escrita satírica é
uma clara influência da obra de Glauco. Palmeiro (2014, p. 125-126), a partir desta
constatação, define o pseudônimo de Mattoso como performático, na medida em que assiná-la
tanto um estatuto médico (o glaucoma) quanto um estatuto literário (à alusão a Gregório de
Mattos), deste modo assinalando implicitamente tanto a cegueira quanto o gênero satírico como
aspectos constituintes de sua obra:
A crítica comenta como o pseudônimo Glauco Mattoso cumpre uma função de,
simultaneamente, desvelar e ocultar um corpo, na medida em que de um lado, identifica sua
característica biográfica mais notória, o glaucoma – aspecto este que, como veremos, é também
responsável como ponto de partida para a agressão e a discriminação a qual Mattoso foi
submetido, elemento central de sua obra – ao mesmo tempo em que oculta sua identidade
empírica a partir da criação de uma nova, reduzida unicamente à deficiência. Diante disso,
Palmeiro comenta como esse pseudônimo desestabiliza a dimensão autobiográfica da produção
literária de Glauco Mattoso, aspecto este que discutirei neste capítulo.
16
Todas as citações do texto de Palmeiro (2014) empregadas ao longo deste trabalho foram livremente traduzidas
por mim.
Contudo, como ainda lembra Palmeiro, “o jogo do simulacro textual não se detém aqui”
(idem, ibidem). Ao longo de sua obra, sobretudo em suas publicações no Jornal Dobrabil,
Mattoso emprega cerca de outros vinte pseudônimos, sendo o principal “Pedro, o Podre”, bem
como variações oriundas de traduções tais qual Peter the Rotten, Pedro el Podrido, Pierre le
Pourri. “Essa propagação”, argumenta a autora (idem, ibidem), “dissemina a identidade como
uma cadeia significante sem ponto de partida ou de chegada. A origem (o grau zero onde se
poderia encontrar algum tipo de identidade essencial) está sempre elidido, apagado, negado em
17
uma identidade em joda -sacana”
Mas, por outro lado, aqui o pseudônimo é mais que uma assinatura que não
remete a nada. Se converteu no apelido do escritor. Esse nome textual (já que
o autor é um sujeito textual, ou uma função particular do dispositivo que
chamamos sujeito) se refere falsamente e em sacanagem a uma condição
física, e em última instância volta a esse corpo. O escritor é renomeado
segundo ao autor: Glauco usa seu pseudônimo como apelido na vida real.
Neste sentido, a identidade aparece como uma performance, criada e
sustentada na prática da escrita. (PALMEIRO, 2014, p. 126).
Ela reitera o aspecto performativo da alcunha Glauco Mattoso, argumentando que ainda
que o ponto de origem (uma suposta identidade essencial) se perca, o nome textual é mais que
uma assinatura vazia, mas atua numa inversão da lógica do pseudônimo na medida em que o
autor o adota, na vida real, como apelido. Ela apela ao importante O que é um autor? de Michel
Foucault, onde o filósofo afirma que o autor não é uma pessoa empírica, um indivíduo real,
mas uma função do discurso que vincula um texto a um nome em ordem classificatória. “A
autoria trata sobre o estatuto dos discursos. e sobre o regime jurídico de propriedade e penal,
que se aplica particularmente a discursos transgressivos produzidos sob circunstâncias de
censura.” (idem, p. 125). A pseudonímia de Glauco, contudo, ela argumenta, “sacaneia” a ideia
de propriedade intelectual e responsabilidade, “e, ao mesmo tempo exibe variações poéticas
sobre o assunto, expandindo o raio do jogo de simulação” (idem, ibidem).
Em outras palavras, o que se pode observar a partir da alcunha de Glauco Mattoso é uma
inversão da lógica do estatuto autoral, uma vez que ao invés da criação de uma voz autoral que
17
Opto aqui por não traduzir o verbo “joder”, devido o uso feito pela autora em seu texto, onde ela opõe o verbo
em espanhol ao português “sacanagem”. Ela diz: “El sustantivo sacanagem estaría cerca de la idea de “joda” en
español porteño: un chiste, algo divertido, pero también como algo malo, negativo, desagradable o hasta
inmoral. ” (PALMEIRO, 2014, p. 125).
seria um “estatuto discursivo” de sua obra, Pedro José Ferreira da Silva incorpora, ao adotar
para si o nome, a persona de Glauco Mattoso. Com efeito, esse gesto performativo cumpre a
função de uma espécie de reinvenção do eu, que embora desenhe um movimento similar as
mutações do protagonista de Acenos e afagos, uma vez que evidencia a plasticidade da
identidade, dá um passo a mais na medida em que, excedendo o nível diegético, desfaz as
fronteiras entre o real e a ficção.
Conhecido por sua extensa publicação, os primeiros textos de Mattoso em livro estão em
Apocrypho Apocalypse (1975), coletânea realizada com outros poetas. Embora seja mais
conhecido por sua produção de sonetos – que ganhou força na década de 1990, quando o autor
já estava completamente cego, também se dedicou, na década de 1970, à produção do periódico
literário Jornal Dobrabil, posteriormente fac-similado e publicado em 1981. Além disso,
contribuiu, na mesma época, ao jornal gay Lampião da Esquina junto de nomes como João
Silvério Trevisan, Darcy Penteado e Peter Fry. Sua obra Manual do podólatra amador:
aventuras e leituras de um tarado por pés (2006), que pretendo analisar, foi originalmente
publicada em 1986, e reeditada posteriormente em 2006, e possui um gênero híbrido, entre a
biografia e a ficção, em que o relato biográfico estilizado se confunde com uma paródia do
gênero manual e com a citação comentada de outros autores “podólatras”, numa narrativa cujo
fio condutor é o fetichismo do narrador-personagem por pés masculinos.
O ponto de partida de nossa análise, cujo horizonte, como foi dito, é a reflexão a respeito
de possíveis estruturas pertinentes a uma poética queer, está no próprio título da obra. Se, para
lembrarmos Spargo (2017), a quem recorri no primeiro capítulo, o conceito de queer
encontra-se intimamente ligado à oposição dos discursos normalizadores no terreno do sexo e
do gênero, o que poderíamos encontrar de queer num gênero textual que tem como fim instruir
e prescrever, como é no caso de um manual? Como nos lembra Foucault (1981), ao longo da
história humana foram muitos os manuais a respeito do sexo. Desde versões modernas – hétero
ou gays – do tântrico Kama Sutra até manuais conservadores de sexo cristãos como o que
figura nas primeiras páginas da narrativa de Noll, são muitas as pedagogias do sexo produzidas
com a intenção de relatar ou, em maior ou menor grau, estabelecer um senso de normalidade,
virtude ou saúde entre as práticas sexuais entre seres humanos, diferindo-as das que, em
contraparte, seriam anormais, viciosas ou patológicas.
Contudo, Manual do podólatra amador não é, de fato, um manual, mas uma pretensa
autobiografia – ainda que, como veremos, seu estatuto autobiográfico seja contestável. Assim
sendo, ainda que tal constatação nos livre do caráter prescritivo inerente ao gênero manual, ela
traz consigo uma nova questão: qual efeito, em termos de linguagem, está imbricado em
nomear Manual uma autobiografia? No texto de paródia a forma dos manuais de sexualidade –
que ao longo da modernidade foram responsáveis pelos saberes capazes de disciplinar a
sexualidade humana – ao substituir a linguagem universalizadora familiar a esse tipo de texto
por uma voz singular, subjetiva, que relata, em oposição às prescrições, a experiência vivida de
seu protagonista, bem como sua leitura ácida, porém erudita, de uma ampla gama de autores
que abordaram, de uma forma ou outra, a podolatria – desde canônicos autores eróticos, como
Sade e Masoch até o conto de fadas Cinderela, e mesmo A pata da gazela (1870), do romântico
brasileiro José Alencar. Deste modo, o autor cria uma teia de significações que, longe de
meramente traçar uma história literária do fetiche por pés, cumpre uma função descritiva e, ao
mesmo tempo, criativa de uma prática sexual descolada do falocentrismo.
Nem eu, com cinco anos, nem ele, com sete, sabíamos na pele que era estar de
pau duro, sentir tesão e gozar. [...]. Nem atinávamos por que ‘cazzo’ essas
coisas tinham que ser escondidas dos adultos. O fato é que ele deve ter visto
alguém mais velho fazendo. Talvez tenha até participado de alguma
sacanagem com o irmão adolescente. Quanto a mim, o simples fato de uma
brincadeira escondida já bastava para ficar mais interessante. [...] Pois bem.
Um dia, no meio da brincadeira, ele me convidou meio em segredo: – Vamo
fodê? (MATTOSO, 2006, p. 22-23)
O excerto destacado situa ambos personagens num entrelugar que desestabiliza a
inocência que poderia ser presumida a partir da demarcação de suas idades. Ainda eram por
demasiado jovens para ejacular ou mesmo para uma ereção, tampouco sabiam por que as
práticas sexuais deveriam ser feita longe dos adultos. Em outras palavras, ainda desconheciam
quase que totalmente o sexo. Contudo, o assunto não parecia completamente estranho ao
amigo, que lhe convida, durante uma brincadeira: “Vamo fodê?”. Diferentemente de Noll, onde
o contato erótico se dá através do embate lúdico, o que observamos aqui é um convite abrupto
que interrompe o ludus.
Reforçando a precocidade do convite, frente a uma criança marcadamente imatura, ele
assiná-la: “E eu entendi ‘feder’” (MATTOSO, 2006, p. 23). A troca da vogal que transforma
“foder” em “feder”, aqui, além de servir para sublinhar essa inocência do narrador, cumpre o
papel de preconizar a relação da personagem com o chulé e outros temas escatológicos que
figurarão na narrativa. Assim, a linguagem de Mattoso cria ecos e polissemias que, do mesmo
modo que os muitos trechos de outras obras citados no romance, é responsável por criar uma
teia de significação em torno da podolatria, fazendo dela não apenas uma categoria dentro do
campo do sexo, mas uma maneira de inventar práticas eróticas que funcionam em uma lógica e
em uma linguagem próprias.
O intercurso entre as crianças é realizado num banheiro que ficava no quintal. A prática,,
no entanto, longe de configurar em sexo propriamente dito, é voltada praticamente inteira à
podolatria: “Tirou a roupa e mandou que eu fizesse o mesmo, e enquanto eu permanecia em pé
e muito curioso para ver o que iria acontecer, ele se atirou no chão e começou a me lamber o
dedão” (idem, ibidem). Ele prossegue:
A primeira reação foi tirar o pé debaixo da cara dele. Mas quanto mais eu
recuava, mais sua boca procurava pelo chão. Quando encostei na parede, ele
me limpou toda a poeira do pézinho e foi subindo com a língua pela perna, até
alcançar a minha fimose, que era um bico de chaleira na ponta dum pintinho
minusculo e mole como uma bolinha de manteiga (MATTOSO, 2006, p. 23)
Ainda que com a adição de um princípio de sexo oral, o foco da narrativa é detido
principalmente na relação com os pés, sobretudo na continuidade do relato, quando as posições
se invertem: “Descobri que a mesma parte do corpo que ele usava para me chutar a canela
quando brigávamos, podia por na boca. [...] Aquilo era fabuloso, por parecia tão absurdo… e,
ao mesmo tempo não exigia sacrifício.” (idem, p. 24). Tal como os excertos destacados
explicitam, o deslocamento do pênis para o pé como objeto central da relação erótica, cumpre a
função de reconfigurar as práticas sexuais para fora dos binômios ativo/passivo ou mesmo
homem/mulher (uma vez que, como veremos adiante, o narrador também terá relações com
mulheres – onde a podolatria também terá papel), deslocando as relações de poder e
subvertendo-as a partir do prazer.
Foster (2006), em seu prefácio à edição de 2006 de O Manual do Podólatra Amador,
fornece algumas chaves de leitura interessantes para iniciarmos uma discussão a respeito não
apenas do Manual, mas de toda a obra mattosiana. Ele diz:
Ainda que o narrador tenha encontrado em seu “Inimiguinho” de infância uma iniciação
sexual precoce, uma segunda experiência ganha destaque no relato como fundamental para a
articulação não apenas do Manual do podólatra amador, mas para parte significante da obra de
Glauco Mattoso. “Onde morávamos era um quarteirão de sobradinhos geminados, ilhados entre
loteamentos descampados e ruas lamacentas. [...] a molecada era naturalmente selvagem como
peixe n’água [...] a ponto de pôr pra fora a sua crueldade espontânea sempre que a chance
oferecesse.” (MATTOSO, 2006, p. 39). Esse é o cenário desenhado para a violência a qual o
narrador acaba por ser submetido por garotos mais velhos: “Eu era uma vítima em potencial”,
diz, “fraco de vista, estreava meus óculos após a primeira cirurgia de glaucoma e evitava toda
atividade física que pudesse ferir o olho” (idem, p. 40).
Com “meus nove para dez anos” (idem, ibidem), o personagem passa a ser atacado pelos
rapazes maiores. A primeira vez, relata, tomaram o quebra-queixo que o menino comprara à
porta do colégio “com o suado trocado que mamãe relutava em dar de quando em quando”
(idem, ibidem):
Depois de mordido por todos, o doce foi jogado por terra, pisado por tênis
surrados e pés descalços, e eu tive que lamber aquele bagaço, mastigá-lo e
engoli-lo, misturado ao pó, desgrudando-o da sola de um quichute sem usar as
mãos. A partir daí, a molecada se animou com a cena da minha língua sendo
emporcalhada, e passei a lamber e chupar solas descalças. (MATTOSO, 2006,
p. 40)
Sim, respeitável público, solas descalças e sujas, apoiadas sobre o meu rosto,
entrando pelos olhos, narinas, lábios. Antes que eu tivesse tempo de
planejá-las, escolhê-las, preferi-las ou prepará-las (e quem sabe eu chegasse a
desejá-las se não tivessem se antecipado a qualquer fantasia), lá estavam elas,
as solas. [...] O pivete pisou na minha boca, esbofeteou-me dos dois lados com
a sola e o peito do pé, chutou-me a testa e a cicatriz, chutou-me a testa e me
deixou unhada, sempre rindo, repetindo aqueles bordões provocativos e
cutucando meu nariz com a ponta dos dedos a cada pergunta. (idem, p. 45)
Os excertos trazem uma cena violência a qual o narrador, ainda muito jovem, foi
submetido, e cuja centralidade foi, novamente, os pés. Junto o relato, entre parêntesis, o autor
expressa a ambivalência do desejo quando comenta que talvez pudesse chegar a desejar aqueles
pés (uma vez que, inclusive, já havia adquirido gosto pela prática com o “Inimiguinho”), se o
gesto abrupto não houvesse antecipado qualquer fantasia. Palmeiro (2014) aponta a
reincidência desta cena de violência na infância, que figura abundantemente na obra de
Mattoso. Realizando variações sobre o mesmo tema, o trauma se delineia em diversas formas
na lírica de Glauco Mattoso: hora cego, hora dotado de visão, o personagem de Mattoso é
submetido sempre à podolatria, às vezes acrescidas de uma gama diversa de elementos
escatológicos, como fezes e urina, tal como podemos observar em dois sonetos de Mattoso:
SONETO AUTOBIOGRÁFICO XX
A imagem criada pelo poema guarda uma semelhança clara com o relato de Manual do
podólatra amador: o eu-lírico relata que ainda na infância é submetido à humilhações físicas e
sexuais de rapazes mais velhos. Há, na segunda estrofe, uma relação com o sexo anal
(“Curravam-me”) e com o sexo oral (“lamber sebinho em suas varas”) – desta vez também
escatologizado através do “sebinho”. Contudo, a centralidade do relato, nas estrofes
posteriores, também é centrada no pé: “O que dava mais nojo era a poeira/Da sola dos seus
tênis, misturada/Com doce, pão, cocô ou xepa de feira.”. Por fim, a conclusão do poema
assiná-la a sina do personagem: foi o trauma exprimido no gosto “do solado e da calçada” que
acabou por fazê-lo a “a escória dos podólatras, mais nada”.
Se somos pó e ao pó retornaremos,
andei meio caminho já na vida.
Até o cosmo é poeira, hoje sabemos.
/No tênis dum moleque uma lambida
é mais que tudo aquilo que já lemos,
lembrança que jamais será esquecida.
Este segundo soneto traz novamente uma cena de violência da “molecada”, ocorrida em
sua juventude, que em muitos aspectos se assemelha tanto com o poema anterior quanto com a
passagem de Manual do podólatra amador. O poema se inicia com “Meninos, eu vi”,
referência ao décimo canto do poema de Gonçalves Dias intitulado I-Juca Pirama. No final do
poema de Dias, “Um velho Timbira, coberto de glória” (DIAS, 1851, p. 12) rememora para os
mais jovens a história épica do tupi I-Juca Pirama, protagonista do longo poema narrativo.
18
Sobre esse “meio do caminho da vida”, Roland Barthes (2005, p. 5) defende que evidentemente não pode se
tratar da metade aritmética da vida, uma vez que não podemos conhecê-lo de antemão – seria necessário
conhecer a data de própria morte. Deste modo, Barthes afirma que se trata de uma mudança significativa da vida,
onde a partir da consciência da mortalidade (idem, p. 8), o sujeito é instado a redefinir suas práticas de vida. Para
uma leitura mais aprofundada deste poema de Mattoso, bem como das leituras possíveis de suas referências a
Dante e Gonçalves Dias, ver CERDEIRA, J. P.: Dos pés como dildo: uma leitura contrassexual da poesia de
Glauco Mattoso. Revista InterteXto / ISSN: 1981-0601 v. 11, n. 02. Uberaba, 2018.
prefiguravam a cegueira e o glaucoma) os garotos do bairro o submetiam a
cenas de humilhação sádica (hoje conhecidas como bullying) . Uma dessas
investidas não apenas se resulta mais cruel, mas como uma marca da cena
originária do fetiche: o obrigaram a lamber-lhes os pés e os sapatos, urinaram
em sua boca, etc. Essa experiência recorreu, no mito de Glauco, o caminho do
trauma à dimensão produtiva do gozo: se transformou em um masoquista
fetichista dos pés, particular me interessado no mau odor e a podridão, e
realocou a marca do desejo do falo no pé. É uma reapropriação crítica do
sentimento de dor física e moral da vítima que subverte a instituição da
autoridade sádica transformando essa sensação em gozo masoquista explorado
na literatura (PALMEIRO, 2014, p. 127-128)
A autora comenta o movimento realizado pelo autor, que irá transformar a violência em
gozo. Segundo ela, este movimento se realiza através de uma reapropriação crítica do
sentimento de dor física, ou, para retomar as palavras de Mattoso, o “ódio remoído e com um
fingido espírito esportivo de quem aguenta calado uma brincadeira passageira” (MATTOSO,
2006, p. 45), transformando esses sentimentos num gozo masoquista. “Se Mattoso encontrou
assim uma linguagem para nomear a violência”, prossegue Palmeiro (2014, p. 129), “não se
tratou do agenciamento linguístico da vítima através da denúncia e da acusação sob a forma do
testemunho (profundamente vinculada aos traços identitários)”.
Com efeito, a linguagem Mattosiana não apenas recusa, como sugere Palmeiro, a forma
do testemunho, como também escarnece dos gêneros confessionais, tanto do holocausto quanto
da ditadura militar, novamente desestabilizando os papéis de opressor/oprimido, de maneira a
subverter a lógica da violência, transformando a dor em gozo e o algoz em parceiro sexual, uma
vez que a violência passa a ser desejada. Longe de diminuir a gravidade desses episódios
históricos, Mattoso busca, através de sua linguagem destituir o poder do opressor pela via da
paródia, convertendo a violência em fetichismo. Caixeta afirma:
Brasil: nunca mais (1985), texto organizado pela Arquidiocese de São Paulo e
prefaciado pelo Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, lançando um ano antes do
Manual, é uma das principais referências quanto ao crime de tortura cometido
pelo militarismo brasileiro durante o regime militar. Divido em seis partes
(assim como o Manual, 2.ª edição), o livro aborda, desde descrição de métodos
de tortura ao sistema repressivo e os extremos vividos em situações de
represália e restrição de direitos e liberdade. (CAIXETA, 2016, p. 186)
“O texto autoficcional de Mattoso,”, ela acrescenta (idem, ibidem), “apesar de não fazer
referência ao livro da Arquidiocese de São Paulo, possui certa semelhança quanto às descrições
empreendidas sobre a prática de tortura”, embora, como ela lembra, o foco dado por Mattoso
através de uma inversão da lógica da prática de tortura, uma vez que narrada por um
masoquista podólatra.
Caixeta argumenta que a tortura é trazida em três diferentes esferas na obra de Mattoso:
a primeira é a do bullying escolar, que, segundo a autora, seria a responsável pela
desconstrução da figura da criança como ingênua e assexuada, além de – acrescento, na esteira
de Palmeiro – servir, como vimos, como ponto de articulação da poética mattosiana. A segunda
esfera seria a do trote estudantil, que, como ela afirma, “explicita a figura do jovem
inconsequente e aventureiro, cuja intenção nada mais é do que se divertir pelo processo de
aceitação num novo grupo” (CAIXETA, 2016, p. 188). Por fim, a terceira é de ordem militar,
“que é consagrada como absurda e fere os princípios dos direitos humanos.” Ela influencia a
nós, leitores, repensarmos nossos conceitos quanto à crueldade e o sofrimento, mas também, os
espaços do prazer com o sofrimento, haja vista que o ponto de vista é alterado de acordo com
aquele que vivência o ato” (idem, ibidem). A busca pela violência e pelo lugar de submissão é
melhor sublinhado no início da vida adulta, quando para além do bullying escolar, tal como nos
lembra Caixeta, uma nova forma de tortura desponta no imaginário do protagonista: o trote.
Ainda que o Manual do podólatra amador se apresente – até mesmo em sua ficha
catalográfica – como um livro de memórias autobiográficas, seu estatuto biográfico é
discutível. Em seu Pacto autobiográfico (2008), o crítico francês Philippe Lejeune define o
gênero autobiográfico como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de
sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Para o autor, todo gênero autobiográfico é baseado
em uma relação onomástica entre a pessoa autoral, o narrador e o protagonista. Contudo,
Velasco lembra que “Lejeune mesmo reconhece a impossibilidade de uma diferenciação entre
autobiografias e romances autobiográficos a partir de uma análise meramente textual” (2015, p.
2), uma vez que as estruturas narrativas de uma autobiografia são igualmente utilizadas em
textos ficcionais, de modo que “é precisamente essa identidade do nome entre
autor-narrador-personagem que vai firmar com o leitor o ‘pacto autobiográfico’.” (idem,
ibidem).
Ainda que encontremos tal correspondência nominal entre o narrador, o protagonista e o
nome autoral impresso na capa do Manual do podólatra amador, como vimos, Glauco Mattoso
não é o nome verdadeiro da pessoa empírica do autor, ainda que este o utilize no livro como
sendo seu nome de batismo, referindo-se sempre a seu personagem, desde a infância, como
Glauco ou Glauquinho, o que reforça sua dimensão performática, uma vez que, ao invés de
nomear um personagem com seu próprio nome, ele, inversamente, encarna em sua vida
empírica a persona literária.
Com efeito, a quebra do pacto onomástico não é a única ambivalência entre o ficcional e o
autobiográfico presente no texto. Ao longo da narrativa, são vários os momentos em que o
próprio narrador denuncia a ficcionalidade do texto. Um exemplo disso é no relato no momento
o narrador se mostra atraído por seu irmão caçula, Glauber, que era, como descreve o
protagonista “bem malandrinho, [...] tinha plena consciência do cheiro do seu pé, e nunca
passava alvaiade nos tênis, como queria mamãe.” (MATTOSO, 2006, p. 63). Ele então
rememora as brincadeiras de infância ao lado do irmão, quando “as brigas não passavam de
bate-bocas, mas bastavam para criar o clima de animosidade propício ao jogo sadomasô [...]
aquele que quisesse fazer as pazes tinha que se aproximar humildemente e se submeter a um
‘castigo’ imposto pelo outro.” (idem, 63-64). O castigo, Mattoso relata, era sempre o mesmo:
no banho, juntos, o castigado deveria lavar os pés do outro, “primeiro com água & sabão,
depois com a língua. Uma escravidãozinha de alguns minutos”. Ele prossegue com seu relato:
É óbvio que o inventor do jogo fui eu, porém não tardou pra que
espontaneamente passássemos do pé pro pau e nos chupássemos mutuamente.
Ao menos da boca pra fora e na minha versão, já que da boca pra dentro fiquei
mais chupando o dedo (MATTOSO, 2006, p. 64).
“Antes que alguém pense que o protagonistão aqui conseguiu ficar, belo e
faceiro, por coma da carne seca & por baixo da sola molhada, vamos
desmoronar logo o castelinho. Pra começo de conversa, nunca cheguei a pôr o
beiço no pé de Melchiades. Trepamos muito, é verdade, e aprendi
praticamente tudo com ele. Mas a coisa sempre começava de cima pra baixo,
no beijo de língua, pra depois descer até o pau dele e terminar com meu cu
penetrado, muita saliva lubrificando e a boca seca do Glauquinho engolindo a
dor anal sem gemer. Foi assim quase todo fim de semana, durante meses.
(MATTOSO, 1986, p. 41 apud. CAIXETA, 2016, p. 146) [negritos da autora]
“Antes que alguém pense que o protagonistão aqui conseguiu ficar, belo e
faceiro, por coma da carne seca & por baixo da sola molhada, vamos
desmoronar logo o castelinho. Pra começo de conversa, nunca cheguei a pôr o
beiço no pé de Melchiades. Trepamos muito, é verdade, e aprendi
praticamente tudo com ele. Mas a coisa sempre começava de cima pra baixo,
no beijo de língua, pra depois descer até o pau dele e terminar com meu cu
penetrado, muita saliva lubrificando e a boca seca do Glauquinho engolindo a
dor anal sem gemer. Hoje já me pergunto se fui mesmo pra cama com meu
ídolo, ou se só fiz cu doce pras cantadas dele. O pior é que posso nem
sequer tê-lo conhecido... Mas acho que havia algo de verdadeiro, ou pelo
menos de verídico ou de verossímil, na minha dor anal, pois data já
daquela época a prisão de ventre que literalmente me enfeza na
maturidade... (MATTOSO, 2006, p. 59 apud. CAIXETA, 2016, p. 126-127)
Como fica claro na comparação dos excertos, há uma certa retificação na segunda edição,
que chama a atenção para a ficcionalidade do relato, de modo que são cada vez mais os
elementos que permitiram comprometeriam a classificação da obra como biográfica. Como
observamos no segundo excerto, a dúvida sobre se o narrador realmente conhecera seu “ídolo”
coloca em xeque o pacto biográfico da obra, evidenciando sua ficcionalidade através de uma
linguagem ambígua que não permite que nos fixemos nem numa lógica puramente ficcional,
nem puramente biográfica.
Deste modo, a ambiguidade da linguagem constrói um personagem ficcional sem,
contudo, deixar-se de ancorar no real, que é o volante na medida em que parte do desejo, do
prazer e da experiência, reformulando o personagem Glauco Mattoso em sua pessoa civil. A
partir de constatações similares, Caixeta (2016) assinala a identidade criada em Manual do
Podólatra amador como uma construção heteronímica e indica, como um dos principais dos
denunciadores da formação deste heterônimo, a própria cegueira do autor: “A cegueira possui
um espaço determinante, não só na figura do Pedro José, mas desse eu narrado no Manual e
confessado em sonetos, glosas, contos e crônicas.” (CAIXETA, 2016, p. 149). Ela prossegue:
Conceber o Manual de Mattoso – e, talvez, parte considerável de sua obra literária –
as como parte de uma criação literária mais próxima
não como uma biografia stricto sensu, m
da autoficção e da performance, nos permite pensar Glauco Mattoso não como um sujeito
anterior que antecede e assina um projeto literário, mas, pelo contrário, como um produto da
própria escrita, escrita essa que ainda assim é biográfica, na medida em que se aproxima do real
através pelo elemento da cegueira, ao mesmo tempo em que abre para uma reinvenção de si.
Deste modo, compreender a cegueira como elemento estruturante e articulador tanto da obra
quanto da identidade (literária) de Glauco Mattoso parece um movimento natural na leitura do
autor, uma vez que, como assinala novamente Calixto, “tendo em vista que o autor deixa
entredizer em seu próprio nome e em toda a sua obra, que ele não é apenas um escritor cego,
mas é um escritor porque é cego.” Assim sendo, Glauco Mattoso dilui as fronteiras entre a arte
a vida, através de uma performance de si mesmo, em que se adota, na vida, seu pseudônimo
artístico e se traz signos biográficos – como a cegueira e a podolatria –, para toda a sua obra.
Através de experimentos estéticos e sexuais como o que ele relata ao final do Manual
do podólatra amador: incentivado pela amiga Sílvia (MATTOSO, 2006, p. 171), o
autor-narrador decide divulgar seus “serviços” como podólatra: “A coisa foi amadurecendo por
dois anos, desde que parei de postar anúncios. E parei não por que desistisse do método postal,
mas porque as revistas que anunciavam começavam a escassear, com a retração do mercado
frente a crise econômica e a disseminação da AIDS” (idem, ibidem).
Passado esse tempo de amadurecimento, no qual uma reflexão sobre a AIDS e a
respeito das técnicas de evitá-la anunciada pelo governo à época, como a masturbação a dois,
ele cria um anúncio: “fiz circular em folhas tamanho ofício a partir do dia 2 de Abril de 85.
Deliberadamente omiti os termos sadismo e masoquismo. Quem lesse captaria o sentido
implícito conforme sua própria cabeça, inclusive quanto a outras implicações sexuais” (idem, p.
174). Ao invés das revistas gays cada vez mais escassas, Glauco opta por um novo método de
divulgação: espalha as folhas, dobradas, em pontos estratégicos da cidade, como “degraus,
corredores, assentos, prateleiras, balcões” (p. 175).
Tal aspecto novamente caminha novamente para uma indefinição das fronteiras entre
vida e obra. O experimento, ainda que sexual, participa de uma lógica de performance e de
intervenção urbana outsider, a partir dos cartazes, que também atentam contra a dicotomia do
público/privado, uma vez que publiciza a intimidade do fetiche, através de uma lógica de
negociação, que, como vimos, coloca a vítima num lugar de poder.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez que, como demonstrei ao longo desta dissertação, não parece adequado
estabelecer um conjunto de parâmetros ou regras que prescreveriam as característica de uma
poética queer, à imagem das poéticas clássicas, uma vez que ela cumpria uma função normativa
que é avessa aos estudos queer, o que se desponta como pertinente à guisa de conclusão desta
pesquisa é sobretudo uma última reflexão a respeito de nosso corpus de análise.
Tendo discutido duas obras que, como se pode facilmente observar, são tão distintas entre
si, é necessário também que regressemos às considerações teóricas que teci no início deste
trabalho de maneira a utilizá-las como mediadoras da comparação que pretendo realizar entre
Acenos e afagos (2008) e Manual do Podólatra Amador (2006). Assim, o que buscarei nestas
últimas páginas é uma leitura comparativa de ambos textos à luz das teorias e hipóteses sobre
as que discorri, sublinhando suas características comuns e divergentes, observando os
elementos e estruturas que, depreendidos, poderiam ser considerados para a formulação de
nossa poética.
Ao nível diegético de análise, tanto em Acenos e afagos quanto em Manual do podólatra
amador o que encontramos são narrativas iniciadas por uma experimentação erótica na
infância. A infância, nesses textos, por um lado, fulgura totalmente despida de discursos de
inocência que transformam os sujeitos em sujeitos assexuais ou pré-sexuais; por outro, a
existência do desejo, em ambos casos, não se configura dentro de uma leitura psicologizada,
que cumpriria o papel – sobretudo quando falamos de desejos homossexuais – de estabelecer
uma origem ou uma explicação para o desejo. Opostas a esses psicologismos, o que
observamos nas duas narrativas são, para utilizar do léxico de Preciado, corpos falantes, uma
vez que “Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes,
assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou
como masculinas, femininas ou perversas.” (PRECIADO, 2014, p. 21). Em outras palavras, o
que me parece essencial nessas cenas de infância não está numa descoberta, revelação ou
aceitação, aspectos esses que costumam a estereotipadamente figurar em narrativas gays. Além
da quebra de uma expectativa de inocência e pureza atrelada à infância, o que encontramos são
corpos que performam nas narrativas de Noll e Mattoso ascendem a lógica dos contratos
sexuais normativos estabelecidos, através do estabelecimento de novas práticas, calcadas na
espontaneidade desejo.
Enquanto estratégia narrativa, as cenas de infância se mostram um espaço bastante útil
para essa primeira ascensão dos contratos sexuais na medida em que, guardando em si
aspectos de ludicidade, estabelecem uma espécie de entre-lugar no qual a prática, movida tanto
pelo desejo quanto pela curiosidade infantil quanto ao corpo do Outro, antecede temporalmente
os saberes, isto é, as pedagogias sexuais responsáveis pela construção e manutenção dos
discursos que regulam os contratos sexuais dentro das estruturas da heteronorma. I sso pode ser
percebido em Mattoso, sobretudo na substituição de “foder” para “feder” na fala das crianças,
bem como numa precocidade do corpo infantil que se sublinha neste momento do texto, uma
vez que, como afirma o narrador, tanto ele quanto seu Inimiguinho nem sequer haviam tido
uma ejaculação ou mesmo ereção à altura de seu encontro (MATTOSO, 2006, p. 22). Já em
Noll a partir da indistinção das fronteiras entre o lúdico e o erótico, que se dá na passagem da
brincadeira viril de luta ao toque sensual, e posteriormente, na relação com o pai, que
presenteia o narrador-personagem com um manual de sexo. A apresentação do gênero manual –
comum a ambos textos – também é um aspecto interessante para a teia narrativa. Em Noll,
atrelada ainda à infância, o manual desponta inicialmente como parte de um discurso
disciplinatório cristão do sexo, com o qual o autor dialoga e subverte por diversas vezes. Em
Mattoso, “Manual” compõe o título da obra, sugerindo inicialmente que Manual do podólatra
amador poderia ser uma introdução à práticas podólatras. Contudo, o texto, a partir de seus
muitos elementos pretensamente biográficos traz a narrativa de uma suposta universalidade
prescritiva intrínseca ao gênero manual para a particularidade, para o singular da experiência
vivida. Deste modo, Mattoso subverte a lógica prescritiva e normalizadora da construção
heteronormativa e patriarcal do sexo, através de uma subversão da forma – o manual – segundo
a qual tais discursos são apresentados.
Assim, em ambas obras, o sexo é colocado no âmbito da experimentação e do jogo: os
corpos não seguem as práticas roteirizadas e normativas, mas partem do potencial criativo do
desejo para a construção de práticas espontâneas no campo do erótico. Mas, quais são as
estratégias textuais empregadas nestes romances para a construção dessa experimentação de
maneira a não recair numa lógica representativa (mimética) que minaria seu potencial
transgressor, instrumentalizando sua potencialidade criativa ao absorvê-la como parte (ou
variação) das estruturas de poder vigentes?
Se retomarmos as considerações de Roland Barthes (2007) a respeito do potencial
subversivo que a literatura possui frente ao “fascismo da linguagem”, isto é, a capacidade que a
literatura, enquanto “neutro”, possui de burlar os paradigmas de significação a partir de seu uso
particular da linguagem, o que me parece como mais central e significativo para a formulação
de uma poética queer a partir dos romances de Mattoso e Noll diz respeito às oposições
dicotômicas que, de modo análogo em ambos os textos, são construídas e destruídas, criando,
assim, uma linguagem deliberadamente ambígua, cuja trama de significações subverte e
trapaceia com as estruturas responsáveis pela criação de marcas identitárias generificadas, de
modo que o sujeito acaba por configurar-se num eu sempre movente, relativo, cuja identidade
não se assenta sob nenhum signo fixado. É a partir disso que o corpo ganha espaço para
performar suas possibilidades, dando à luz novas práticas e modos de vida.
Em Noll, encontramos primeiramente a oposição viril/homoerótico, que se dá justamente
na passagem do ludus violento das crianças à interação homoerótica. Menos que a substituição
do polo viril pelo homoerótico, como vimos, há uma interação codependente entre ambos: o
homoerotismo se dá no interior do toque viril, de modo a causar entre eles momentos de
indistinção. Em processo similar, o romance de Noll trabalha outras oposições como
norma/dissenso e masculino/feminino. A dicotomia norma/dissenso pode ser entendida como,
em certa medida, um fio condutor da trama narrativa, sendo responsável por várias das cenas
construídas na diegese do texto: a relação de gozo com o manual cristão dado pelo pai, como
vimos, e também o fim da interação infantil, por exemplo, que se dá quase em simultâneo a
uma explicitação da voz narrativa de que ambos, o narrador-protagonista e o amigo, sabiam que
o sexo era algo a ser feito entre homem e mulher, com finalidade de gerar uma nova vida
(NOLL, 2008, p. 9). Também a saída do seminário após a relação com um colega, o casamento
e a infidelidade conjugal participam dessa relação de retroalimentação dos polos
norma/dissenso que cumpre o papel de subvertê-la. Como síntese desses pólos, o texto de Noll
caminha em direção a um espaço de ambiguidade deliberada em sua linguagem, que
poderíamos chamar – para recuperar o léxico do próprio autor – de “linguagem entendida”.
Linguagem essa que, ao longo do texto possibilitará a subversão do binômio
masculino/feminino que se expressa, sobretudo, nas transformações corporais do narrador.
Em Mattoso, a principal dicotomia apresentada é de gozo/violência – que cumpre a
função de organizar toda a obra do autor sob um signo objetivo de subversão da lógica do
poder. A partir de seu fetiche masoquista e sua adoração por pés, o narrador mattosiano se
reapropria da violência a qual é submetido dada a sua condição de cego e a transforma em
prazer sexual, desta maneira destituindo o agressor de seu poder e desestabilizando as posições
de agressor e vítima – outra oposição importante na literatura de Glauco Mattoso. A
desestabilização destes papéis, ainda que não seja, em si mesma, queer, é importante como
ponto de partida para a redefinição de práticas e prazeres que deságuam na criação de uma
contrassexualidade, na qual a violência e a dominação, sobretudo ligadas à podolatria, ocuparão
um lugar importante.
Em ambos os autores, esse movimento em direção a uma espécie de implosão das
dicotomias sempre ocorre mediado pelo encontro com o Outro. As relações que permeiam as
obras, quase sempre entre homens – embora a categoria “homem”, em ambos textos seja
constantemente esvaziada e reinventada através tanto da linguagem quanto da lógica condutora
do desejo – me permitem retomar as considerações de Foucault em sua entrevista Da amizade
como modo de vida, sobre a qual discorri anteriormente, no qual o filósofo fala sobre “modos
de vida”:
Tão longe quanto me recordo, desejar rapazes é desejar relações com rapazes.
E isso foi sempre, para mim, algo importante. Não forçosamente sob a forma
do casal, mas como uma questão de existência: Como é possível para homens
estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus
quartos, seus lazeres, suas aflições, seu saber, suas confidências? O que é isso
de estar entre homens "nus", fora das relações institucionais, de família, de
profissão, de companheirismo obrigatório? É um desejo, uma inquietação, um
desejo-inquietação que existe em muitas pessoas. (FOUCAULT, 2010)
Foucault assinala uma ausência de relações institucionais formalizando e mediando as
relações homoafetivas, que permitiria a criação, através do desejo, de um sem-fim de
configurações de relacionamentos que não sejam “forçosamente sob a forma do casal”. Diante
disso, ele questiona: "Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas,
moduladas através da homossexualidade?" (FOUCAULT, 2010). O que me parece pungente, a
partir dessas considerações, bem como – e sobretudo – a partir da leitura dos romances de Noll
e Mattoso, é que a relação homossexual, o estar entre homens, n o caso destes textos, por se
encontrar fora do campo discursivo que estabelece e institucionaliza as relações heterossexuais,
desponta como um espaço criativo para a criação de contratos sexuais calcados na
espontaneidade do desejo, por conseguinte, para a reformulação de identidades.
Em outras palavras, quando pensamos as relações heterossexuais, podemos perceber que
elas se encontram circunscritas dentro de uma tradição que simultaneamente as legitima e as
normatiza, tendo como base uma série de discursos que, através de uma estrutura dialógica, não
são apenas prescritos, mas em última instância interpretados, assimilados e reiterados, fazendo
a manutenção da legitimidade e da impressão de “naturalidade” e neutralidade destas relações
no seio da estrutura patriarcal, mas também conformam os sujeitos dentro da oposição binária
homem/mulher calcada, como nos diz Butler (2003), na heterossexualidade compulsória:
Assim sendo, a homossexualidade, estando apartada da lógica binária, bem como não
participando dos discursos que constroem as relações heterossexuais, poderia se inserir num
campo de espontaneidade na medida em que permite a criação de modos de relacionar-se e de
viver junto que não se circunscrevem, e que, portanto, não são conformados, à tradição
heterocentrada. Deste modo, me parece importante sublinhar a homossexualidade em ambos
romances – ainda que encontremos, sobretudo em Noll, também relações entre homens e
mulheres – como ponto de partida para essa implosão das dicotomias responsáveis pela
desestabilização e pela descontinuação das identidades.
Em Noll, o ponto máximo disso se encontra nas transformações corporais quando, junto
do Engenheiro, parodiam uma vida marital. É a partir dessa vida plasticizada junto ao Outro,
onde as práticas sexuais entre eles desestabilizam os principais binômios do gênero, como
homem/mulher e ativo/passivo, que o corpo do narrador passa a se modificar, aceitando os
signos ambíguos que já permeavam a identidade, que é definida principalmente através do
signo ambíguo “entendido”. Em Mattoso, tudo encontra origem na cegueira. Ainda que,
evidentemente, não encontremos nenhum grau de criação subjetiva do eu no glaucoma
propriamente dito, ele marca o ponto de origem das transformações do eu, uma vez que é a
partir dele que o autor criará a persona Glauco Mattoso, que num movimento em direção à
exterioridade do literário, adotará para si.
O Outro se coloca num lugar de importância dentro da obra de Mattoso não apenas pela
alteridade que ele cria consigo mesmo através dessa relação performática com seu personagem,
trapaceando com a lógica sob a qual compreendemos a noção de autoria, mas através de seu
“mito fundador”: os abusos sofridos pelo narrador quando jovem são responsáveis, não pela
podolatria – uma vez que a prática já havia aparecido antes, com o Inimiguinho –, mas pelo
elemento masoquista, que atua no texto como “trapaça” com a lógica da violência e, situando a
memória num lugar de ambiguidade entre o gozo e o trauma, desestabiliza a posição de vítima
de Mattoso, que como vimos, cria a partir desse entrelugar novas práticas de prazer.
Se, para a teoria queer – na esteira do pensamento pós-moderno – não encontramos um
eu singular capaz de dar conta da experiência, mas um eu que é sempre múltiplo na medida em
que é constituído por uma variedade de discursos, o aspecto que me parece mais queer nas
obras de Mattoso e de Noll, possivelmente a estrutura central para pensarmos uma poética
queer, é justamente a capacidade de criação desse novo eu, sempre ressignificado através de um
desejo que produz não apenas novas possibilidades de práticas sexuais que escapam à
normalização, mas novas identidades que não se conformam nas categorias pré-estabelecidas
pelos discursos de poder.
Atrelado a esse aspecto, sem dúvida, está também o que aqui chamei de “performance
do eu”. Mas o que essa performance do eu contribui para uma poética queer? A ruptura, em
certo sentido, com uma noção de mimese que implicaria uma realidade pronta, é apenas o
primeiro grau. Diferentemente de uma autobiografia ou de um relato memorialístico, o que
encontramos aqui é uma supressão de um eu unificado e imutável característico da
modernidade. O sujeito autoral aqui é construído através do próprio texto, num relato que não
se compromete com fatos empíricos, mas que de todo modo não os rejeita, estilizando-os
através da performance. O eu que se escancara a partir das obras é um eu plástico, mutável e
inacabado; tanto no que diz respeito à diegese, como nas transformações ocorridas no narrador
de Acenos e afagos, quanto exteriores a ela, como ocorre através do pseudônimo de Mattoso,
ssim
bem como na pretensão de “autobiografia ficcional” de Manual do podólatra amador. A
sendo, o eu que desponta nessas narrativas é uma possibilidade de transgressão e uma
desestabilização das conformidades do sujeito, assim como foi concebido na modernidade a
partir de uma fragmentação e de uma indeterminação que cumpria o papel de reformar e
transformar o sujeito através da espontaneidade expressa no desejo
Me parece, diante de tudo o que expus, que o elemento central e fundante de uma poética
queer seja a maneira como os textos utilizam de sua linguagem – aspecto esse essencial, uma
vez que a noção de poética com a qual vim trabalhando remete, sem dúvida, a um problema de
linguagem – para a subversão das complexas relações de poder que se dão no interior da
própria linguagem e para a criação de um novo eu que desestabilize esse poder. A palavra
subversão, junto a outras de seu campo semântico, provavelmente foi a mais repetida ao longo
dessa dissertação e encontro nela a chave para responder, ainda que não definitivamente, à
discussão central que aqui iniciei.
Portanto, o que cabe de conclusão e de reflexão final é que as possibilidades queer da
literatura são tão infinitas quanto as possibilidades do próprio gênero. Isso nos leva a
discussões já visitadas, como a da “epistemologia do ponto de vista” ou a noção de lugar de
fala, indispensáveis quando pensamos em gênero. O que depreendemos delas, para a resposta
desta questão final, vem do questionamento das formas canonizadas e pretensamente
universalizadas. Se existe uma forma de fazer literatura gay ou feminina, essa forma é
basicamente toda a produção literária gay ou feminina, que muitas vezes é marginalizada,
esquecida ou tida como menor. Se há singularidade nessa pluralidade de formas, em detrimento
ao suposto neutro, ela vem da experiência desse Outro irrecíproco – para retornar ao léxico de
Beauvoir – ou da subversão ao discurso de poder da matriz heterossexual – caso queiramos
pensar a partir de Butler ou mesmo de Foucault.
Não se trata, portanto, de uma questão de enredo: toda narrativa pode ser queer. Do
contrário, retornaríamos à problemática da representação ou a negação de termos como
“literatura da mulher”, uma vez que este acabaria por remeter a temáticas estereotipadamente
femininas. Do mesmo modo, não se trata de escrever um “Romeu e Júlio”, numa paródia
acrítica de Shakespeare, na qual a única mudança é o sexo de Julieta: é preciso um
deslocamento tanto estético quanto ético, de modo a trazer, pela forma, questões que escapam à
heteronorma. Todavia, tal proposição não deságua num engajamento obrigatório do texto: são
poucos os elementos estreitamente militantes que podemos observar nas obras que estudamos.
Isso não significa, contudo, que a podolatria não possa ser política. Digo isso, no fim das
contas, por que tudo – incluindo essa dissertação – que faz uso da linguagem é político.
Com isso, apenas quero afirmar que a linguagem é posicional e que escrever é, no fim das
contas, tomar partido. Se, desde o formalismo russo, os estudos literários caminham numa
direção analítica voltada não “ao que foi dito”, mas ao “como”, de modo a colocar um fim na
dicotomia forma/conteúdo, uma vez que o conteúdo passa a ser, afinal, parte de forma, me
parece essa a maneira adequada de pensar uma poética queer: a partir do “como” isto é, dos
procedimentos linguísticos e estéticos que investem contra a heteronorma, não pela reprodução
de retificante de uma existência, por exemplo, lésbica, gay ou transsexual – isso seria recair em
novas prescrições de o que deveriam ser lésbica, gay ou transsexual –, mas por uma linguagem
que, consciente de sua plasticidade e de sua relação íntima com as relações de poder,
possibilite, em seu interior, a criação de novos sujeitos, práticas, afetos e modos de vida.
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