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UNIVERSIDADE FEDERALFLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
DOUTORADO

BARUC CARVALHO MARTINS

QUANDO A NOITE VEM: A CEGUEIRA EM GLAUCO MATTOSO E JORGE


LUIS BORGES

NITERÓI – RJ
2022
BARUC CARVALHO MARTINS

QUANDO A NOITE VEM: A CEGUEIRA EM GLAUCO MATTOSO E JORGE


LUIS BORGES

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura,
referente ao curso de Doutorado em Literatura
Comparada da Universidade Federal
Fluminense (UFF) como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor.
Área de concentração: Estudos Literários
Linha de pesquisa: Literatura,
Intermidialidade e Tradução

Orientador:
Prof. Dr. Adalberto Müller Junior

NITERÓI – RJ
2022
BARUC CARVALHO MARTINS

QUANDO A NOITE VEM: A CEGUEIRA EM GLAUCO MATTOSO E JORGE


LUIS BORGES

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura,
referente ao curso de Doutorado em Literatura
Comparada da Universidade Federal
Fluminense (UFF) como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor.
Área de concentração: Estudos Literários
Linha de pesquisa: Literatura,
Intermidialidade e Tradução

Aprovada em 25 de novembro de 2022.


BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________
Prof. Dr. Adalberto Müller Jr. – UFF
Orientador
______________________________________________________________
Prof. Dr. Hernán Ulm – Universidad de las Artes, Buenos Aires
______________________________________________________________
Profª. Drª. Viviana Bosi – USP
______________________________________________________________
Profª. Drª. Diana Irene Klinger – UFF
______________________________________________________________
Prof. Dr. Franklin Alves Dassie – UFF
SUPLENTES
Denilson Lopes Silva (ECO-UFRJ)
Erick Felinto de Oliveira (UERJ)
NITERÓI – RJ
2022
AGRADECIMENTOS

A Glauco Mattoso, pela partilha com a disponibilização de livros, entrevista e as


reverberações com o tema da minha pesquisa desde o mestrado. Obrigado, muito
obrigado.
A Adalberto Müller Junior, meu “orientador vitalício”, que me acompanhou da graduação
em Letras, passando pelo mestrado até aqui no doutorado.
Aos meus pais, Valdir e Genilda, pela confiança e incentivo em minha trajetória pessoal
e profissional.
Ao meu companheiro de vida, André Borba, por todos esses anos e momentos vividos de
espera, estudo e estresse com a escrita dessa tese (nem tudo são flores).
À minha irmã, Estéfane, com quem aprendo a cada dia um pouco mais.
À minha avó Lourdes (in memoriam) pela lembrança das cantigas.
À minha avó Joaninha (in memoriam), que nos deixou esse ano e que nos ensinou tanto.
Aos meus queridos/as primos/as, tios/as e toda a sorte de familiares. Em especial: tia
Floripes, tia Cleodice, tia Zete, tia Nininha (in memoriam), tio Gois, tia Dejanira, tia
Marinalva, tia Ceiça, tia Clenilda, Kyara, Lucas, Tiago, Angélica, Alice, Piedade,
Fernanda, Socorro e Mônica.
Aos amigos da antiga república e que espero vê-los sempre: Jéssika, Daiane, Greice Kelle,
Jessiquinha, Damildes, Maike e Cristóvão.
Aos amigos que não deixo de ver: Da Bahia, Thamires, Monalisa e Greice. E agora
também o pequeno Derek.
Aos amigos que cultivei na militância e que hoje não vejo com a mesma frequência como
gostaria, a exemplo de Babi.
Aos amigos do Grupo de Todos os Nomes: Andrea, Jasmin, Larissa, Jessica, Victor,
Lucas Brasil, Débora, Laís, Luiza, Thaís, Karina e Yasmin.
Aos amigos da rua e de sempre: Philippe, Sylvester, Arcanjinho, Raul Marx, Ronaldo.
Aos amigos da escola Nair Valladares, da escola Sebastião Loubach e do Coleduc. Em
especial: Paulo, Felipão, Simonne, Frazão, Isa, Dani, Raquel, Joice, Sophia, Deywer e
tantos outros.
Às trans mais maravilhosas e finíssimas que tenho visto pouco, mas que a saudade já é
muita: Sofia, Linda Brasil, Fernanda Bravo (mammys) e Geovana.
À (sempre) amada – e querida – trans compulsória e agora professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro que me aliciou na filosofia de Gilles Deleuze para que logo
depois eu pudesse partir para outros intercessores: Thiago Ranniery. Também te amo,
bee!
À minha mana que sempre vem me visitar no Rio só pra closar: André Leite.
A todos os professores de Língua Portuguesa e Literatura que tive durante a vida e que,
dentro das limitações e precariedades da escola pública, me proporcionaram o melhor dos
ensinos. Em especial: Andreza, Esileide, Rogevanio, Araújo, Jorge Leal, Givanice e
Andréia.
A todos os professores da Universidade Federal de Sergipe, da Universidade Federal
Fluminense e da Universidade Federal do Rio de Janeiro que contribuíram não só para o
pensamento crítico em construção nessa tese, mas também para a minha formação na
vida. Em especial: Bia Colucci, Ulisses Rafael, Claudete Daflon, Stefania Chiarelli, Ida
Alves, Denise Brasil, Ulysses Pinheiro, Carla Francalanci, Gabriel Mograbi, Rafael
Hadock-Lobo, Antonio Saturnino Braga e Guido Imaguire.
Ao pessoal maravilhoso que frequentava o LIS e do extinto grupo de pesquisa Ritmo,
Imagem e Pensamento: Alex Martoni, Hernán Ulm, Elisa Duque, Carolina Leal, Julia
Scamparini, Laís Martins da Costa, Guilherme Foscolo, Laura Navallo, Pedro Drumond,
Sayd Mansur, Isabela Nunes, Cristina Ferrari, João e Leonardo.
À minha banca de qualificação, Hernán Ulm e Diana Klinger, pelos preciosos
comentários e análise acurada do texto, que me proporcionou uma revisão pensando em
novos problemas.
E, claro, a todas aquelas pessoas que, para não gastar tantas páginas e linhas, não consegui
mencionar.
Resumo
Qual o papel da cegueira na trajetória de escritores que antes enxergavam? Esta tese se
propõe a investigar como a cegueira aparece como um elemento integrante das obras de
Glauco Mattoso e de Jorge Luis Borges, tanto em sua fase vidente quanto em sua fase
cega. Desse modo, pretende-se aproximar esses dois autores a partir do confronto de suas
obras entre uma fase visual e uma fase cega, com o intuito de pensar como uma série de
mudanças se processam em diferentes níveis – temático e expressivo – e comparecem ao
longo de suas trajetórias literárias. Com isso, argumento que, com a cegueira, ocorre uma
diferença de aspecto e natureza na mobilização da memória, na estrutura da experiência
e na própria relação que esses autores estabelecem com a literatura – seja em relação ao
autor, seja em relação ao leitor, seja à obra e à tradição literária em si. Nesse sentido, na
primeira parte desta tese, investigo as relações entre cegueira e memória, cartografando
os modos de aparecimento da memória, ao mesmo tempo, como um tema e como um
problema expressivo que se apresenta na imanência do texto literário e da vida do autor.
Na segunda parte, investigo as relações entre cegueira e experiência, cartografando o
problema físico da cegueira, que é apresentado também como um problema literário –
sugiro, nesse ponto, uma interpretação sobre o papel da cegueira na composição artística
por meio dos sentidos de si (Daniel Stern). Na terceira parte, analiso as relações entre
cegueira e literatura. Argumento nessa parte sobre a cegueira como um potencial literário
que se apresenta como produtor de diferença. Consequentemente, cartografo dois
movimentos: um movimento centrífugo, operado por Glauco Mattoso, que utiliza a
linguagem para sair da linguagem, atingindo o seu Fora; e um movimento centrípeto,
operado por Jorge Luis Borges, que vai mais fundo na linguagem para também atingir o
seu Fora.
Palavras-chave: Cegueira. Glauco Mattoso. Jorge Luis Borges. Literatura.
Abstract
What is the role of blindness in the trajectory of writers who once could see? This
dissertation aims to investigate how blindness appears as an inner element in the works
of Glauco Mattoso and Jorge Luis Borges, both in their visual phase and their blind one.
Thus, I intend to approach these two authors from the confrontation of their works
between a “visual” phase and a blind phase with the intention of thinking how a series of
changes take place at different levels – thematic and expressive – and appear throughout
their literary trajectories. With this, I argue that, with blindness, a difference of aspect and
nature occurs in the mobilization of memory, in the structure of experience, and in the
very relationship that these authors establish with literature – whether in relation to the
author, the reader, the work and the literary tradition itself. In this sense, in the first part
of this dissertation, I investigate the relations between blindness and memory, mapping
the ways in which memory appears, at the same time, as a theme and as an expressive
issue that presents itself in the immanence of the literary text and of the author's life. In
the second part, I investigate the relations between blindness and experience, mapping
the physical problem of blindness that is also presented as a literary issue. I suggest, at
this point, an interpretation of blindness' role in the artistic composition via the senses of
self (Daniel Stern). In the third part, I analyze the relations between blindness and
literature. I claim blindness as a literary potential that presents itself as a producer of
difference. Consequently, I draw two movements. A centrifugal movement, operated by
Glauco Mattoso, who uses language to step off language, reaching its Outside; and a
centripetal movement, operated by Jorge Luis Borges, who reaches the Outside by
delving deeper into language itself.
Keywords: Blindness. Glauco Mattoso. Jorge Luis Borges. Literature.
Resumen
¿Cuál es el papel de la ceguera en la trayectoria de los escritores que alguna vez pudieron
ver? Esta tesis pretende investigar cómo la ceguera aparece como elemento interno en las
obras de Glauco Mattoso y Jorge Luis Borges, tanto en su fase visual como en la ciega.
De este modo, se pretende acercarse a estos dos autores desde la confrontación de sus
obras entre una fase “visual” y una fase ciega con la intención de pensar cómo se produce
una serie de cambios a distintos niveles – temáticos y expresivos – que aparecen a lo largo
de sus trayectorias literarias. Con ello, sostengo que – en el contexto ciego – hay una
diferencia de aspecto y naturaleza en la movilización de la memoria, en la estructura de
la experiencia y en la propia relación que estos autores establecen con la literatura – ya
sea en relación con el autor, el lector, la obra y la propia tradición literaria. En este sentido,
en la primera parte de esta tesis, investigo las relaciones entre la ceguera y la memoria,
mapeando las formas en que la memoria aparece, al mismo tiempo, como tema y como
problema expresivo que se presenta en la inmanencia del texto literario y de la vida del
autor. En la segunda parte, investigo las relaciones entre la ceguera y la experiencia,
mapeando el problema físico de la ceguera que se presenta también como problema
literario. Sugiero, en este punto, una interpretación del papel de la ceguera en la
composición artística a través de los sentidos del yo (Daniel Stern). En la tercera parte,
analizo las relaciones entre ceguera y literatura. Reivindico la ceguera como un potencial
literario que se presenta como productor de diferencia. En consecuencia, trazo dos
movimientos. Un movimiento centrífugo, operado por Glauco Mattoso, que utiliza el
lenguaje para salirse de él, alcanzando su exterior; y un movimiento centrípeto, operado
por Jorge Luis Borges, que se adentra en el lenguaje para alcanzar también su exterior.
Palabras clave: Ceguera. Glauco Mattoso. Jorge Luis Borges. Literatura.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………………...14

I - A NOITE DA MEMÓRIA
2. TRADUÇÕES DE CEGO, TRAIÇÕES DE VIDENTE……………………………..20
2.1 Entre o olhar e a visão.................................................................................................42
2.2 A memória dos cegos.................................................................................................64
2.2.1. Borges e a memória................................................................................................68
2.2.2. Mattoso e a memória..............................................................................................76
3. OS LIVROS QUE NÓS SOMOS TÊM LÍNGUA?......................................................82
3.1 A Babel de Borges......................................................................................................83
3.2 A Babel de Mattoso....................................................................................................97

II - A NOITE DA EXPERIÊNCIA
4. PERCEPÇÃO, CONSCIÊNCIA E SENTIDO NA ESCRITA DE BORGES E
MATTOSO....................................................................................................................111
4.1 A cegueira física.......................................................................................................113
4.2 A questão do método: a cegueira como vida ou como literatura...............................118
4.3 Experiência e energia: a transformação da estrutura da experiência.........................122
4.3.1 Percepção visual e os sentidos de si.......................................................................124
4.3.2 Mattoso e Borges: a visão aquém e além do olhar..................................................132
4.4 Passagens tecnoliterárias: Baudelaire, Mattoso e Borges.........................................140
5. A NOITE E A MORTE: O GESTO E A ÉTICA DA ESCURIDÃO..........................151
5.1 Narrativa do sonho e da morte..................................................................................152
5.2 Sonho e morte em Borges.........................................................................................154
5.3 Sonho e morte em Mattoso.......................................................................................167

III - A NOITE DA LITERATURA


6. PERSONAGEM, PROCEDIMENTO OU PERSPECTIVA? A CEGUEIRA COMO
PROBLEMA LITERÁRIO............................................................................................184
6.1 O caleidoscópio da cegueira: entrando no texto com Borges....................................185
6.2 A cegueira no texto...................................................................................................193
6.3 A cegueira na crítica literária....................................................................................197
6.4 A incomunidade dos escritores cegos.......................................................................201
6.4.1. Problema metodológico: cegueira como singularidade........................................203
6.5 O caleidoscópio da cegueira: saindo do texto com Mattoso......................................204
7. QUANDO A NOITE VEM: A CEGUEIRA COMO POSSIBILIDADE DE
ESCRITA.......................................................................................................................209
7.1 Escrita e reescrita em Mattoso..................................................................................210
7.2 Escrita e reescrita em Borges....................................................................................222
7.3 A forma-prisão da cegueira......................................................................................226

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................234
9. REFERÊNCIAS…………………………………………………………………….238
10. APÊNDICE: ENTREVISTA COM GLAUCO
MATTOSO....................................................................................................................254
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Panfleto do Jornal Dobrabil publicado em 1977, f. 30


Figura 2. Primeiro poema de Glauco Mattoso: “Kaleidoscópio”, f. 47
Figura 3. Fragmento de um texto de Glauco Mattoso no Jornal Dobrabil, f. 48
Figura 4. Fotografia de Jorge Luis Borges em 1983, f. 61
Figura 5. Jornal Dobrabil frente e verso, f. 98
Figura 6. Fotografia de Evgen Bavcar, f. 132
Figura 7. Caleidoscópio presente na caixa de Baking Powder, da Royal, f. 138
Figura 8. Texto “Homossexual mata a mãe e se suicida”, f. 168
Figura 9. Texto “Os 10 mandamentos do torturador”, f. 170
Figura 10. Poema “abjura nº 5”, f. 175
Figura 11. Poema “Manifesto obsoneto” presente no Jornal Dobrabil, f. 211
Figura 12. Poema “Brasil, país do futurismo”, publicado em 1977, f. 217
Ser ciego tiene sus ventajas. Yo le debo a la sombra algunos
dones: le debo el anglosajón, mi escaso conocimiento del
islandés, el goce de tantas líneas, de tantos versos, de tantos
poemas, y de haber escrito otro libro, titulado con cierta
falsedad, con cierta jactancia, Elogio de la sombra. (Jorge
Luis Borges, “La ceguera”, 1977)1

Borges decidiu reinventar o futuro. Parescia ver o mundo


com oculos cor-de-rosa. (…) Commigo dava-se o inverso.
Quanto mais cego, mais me appegava ao passado, às
reminiscencias da memoria visual. Fiz dos traumas de
infancia (como os abusos sexuaes de que fui victima à mercê
da molecada suburbana) a materia-prima de minha poetica
sadomasochista e escatologica.2 (Glauco Mattoso, “A
negação do negro”, 20013)

1
“Ser cego tem suas vantagens. Eu devo à sombra alguns dons: devo-lhe o anglo-saxão, meus parcos
conhecimentos de islandês, o prazer de tantas linhas, de tantos versos, de tantos poemas, e de ter escrito
outro livro, intitulado com certa falsidade, com certa jactância, Elogio da Sombra.” (BORGES, 2000b, p.
317)
2
Mattoso utiliza uma ortografia própria como resposta crítica ao Novo Acordo Ortográfico, celebrado por
Brasil, Portugal e demais países de Língua Portuguesa na década de 1990 e que passou a valer em 2012.
3
Esse texto não foi publicado impresso, apenas on-line, em um blog que Mattoso administrava. Tive acesso
a ele por meio do próprio Mattoso, via comunicação eletrônica, a quem agradeço imensamente. Atualmente,
o texto pode ser acessado em: https://www.musarara.com.br/a-cegueira-como-maldicao.
1. INTRODUÇÃO

O escritor é sempre visto como um homem de palavras, que se tornam visíveis


pela materialidade do texto impresso, e, nesse percurso, ele se depara, no processo
criativo, com lugares de sombras, de escuridão, em que o não dito se torna dito. A
trajetória literária de Jorge Luis Borges, um escritor argentino do século XX que ficou
cego na década de 1950, deixa entrever esse lugar da escuridão como uma vontade de
escrita incontrolável. Poesia e cegueira, literatura e cegueira, são, em sua produção
artística, duas instâncias de um único movimento – o qual, pela escrita, recorta o espaço
sensível para fazer surgir a obra4.

Glauco Mattoso, por seu turno, poeta paulistano que ficou cego aos 44 anos, em
meados da década de 1990, não vê a noite – termo que aparece em Borges para designar
ora o desconhecido, ora a cegueira – como uma possibilidade para a escrita, mas para a
perversão. Ao contrário de Borges, Mattoso volta-se para o trauma que sofreu em sua
infância ao ser pisoteado e violentado por adolescentes de seu bairro para produzir uma
obra literária extensa em que ganham centralidade a abjeção, o masoquismo e a cegueira.
Dentro desse mundo estranho e abjeto, o kaleidoscópio de Mattoso é o espelho invertido
do caleidoscópio de Borges: ambos olham para temas e assuntos bastante próximos, mas
de perspectivas completamente distintas.

Na história crítica de nossa civilização ocidental, o lugar dos olhos e da visão


circunscreveu relações precisas em períodos históricos determinados – da visão como
uma ética e estética entre os gregos antigos até a visão como dispositivo de um poder-
saber na sociedade moderna, mobilizada, sobretudo, pelo aparato científico. Todavia, a
despeito dessas rupturas históricas, houve também uma continuidade que, como uma
linha de força, atravessou os diferentes períodos e permitiu à visão ser um espaço de pura
intensidade a partir, principalmente, da relação com o seu limite interno, a cegueira.

4
Não se tratará aqui de uma interpretação geral da obra literária de J. L. Borges ou de G. Mattoso, mas de
um recorte específico – a cegueira – feito para pensar a relação entre vida/corpo, signo/obra. Sobre a noção
de signo e obra, ver Deleuze. Cf. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª ed. Tradução de Antonio Piquet
e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

14
Desse modo, cegueira e escuridão tornaram-se elementos importantes em grandes
projetos literários5. Porém, se cegueira e escrita comparecem no modo de composição da
obra, como pensar essa relação a partir de um poeta cego? O que ele coloca em jogo
quando capta os signos literários, quando recorta o espaço sensível do mundo, quando
configura a sua dicção? Assim, é com o intuito de investigar essas relações que esta tese
busca justapor, comparativamente, as produções de Jorge Luis Borges e Glauco Mattoso,
escritores que se tornaram cegos durante a vida.

Nesse sentido, pretende-se colocar em contato a obra desses autores a partir do


confronto entre as fases vidente6 e cega de cada um para pensar a escuridão – o outro
nome da cegueira, da noite ou da morte – como um operador fundamental de seus projetos
literários. A perspectiva que tomo é a de estabelecer uma comparação não como forma
de assimilação ou de inclusão, mas de explicitação da diferença com o objetivo de dar
consistência à distância mesma que articula obra e autor em diferentes textos e
materialidades de escrita. O que coloca no mesmo nível, para efeito de análise crítica,
obras literárias e não literárias – algo próximo ao que Paul De Man (1983) já realizara –
e que solicita, dada a novidade da pesquisa em tela no campo dos Estudos Literários, uma
abordagem mais especulativa e menos analítica no trato com as obras e os autores
estudados. Não à toa, por isso, a opção por uma abordagem dessa natureza gerou como
resultado, no contexto dessa pesquisa, uma preocupação menor com questões históricas
e culturais – ainda que estas não sejam desprezadas nem subalternizadas na investigação
– e uma atenção maior com o modo como a cegueira coloca e surge, ela mesma, como
um problema.

Com isso, novas questões surgiram por meio da relação das obras com a cegueira,
como a mobilização de um novo tipo de memória, de uma nova estrutura da experiência
e de uma articulação própria que autores cegos estabelecem com a literatura – seja em
relação ao autor, seja em relação ao leitor, à obra ou à tradição literária. Questões que,
por exemplo, articulam problemas que se interpenetram, pois não há como desvencilhar
memória, experiência e literatura no texto literário.

5
John Milton em Paraíso Perdido, James Joyce em Ulysses, entre outros. Do ponto de vista da crítica
literária, Paul De Man (1983) buscou analisar a cegueira como uma forma de interpelar na própria crítica
algo de mais urgente e essencial do que o meramente dito.
6
Essa palavra guarda uma ambiguidade intrínseca. Em um sentido, diz respeito às pessoas que enxergam
com os olhos, ou seja, refere-se aos que clinicamente são chamados de normovisuais. Em outro sentido, diz
respeito àqueles indivíduos que são dotados de uma capacidade de prever o futuro.

15
Assim, a presente tese é dividida em três partes, uma divisão meramente
instrumental – já que há uma codeterminação entre essas três partes na obra dos autores
analisados –, que visa dar conta de múltiplas perspectivas na análise da memória, da
experiência e da literatura. Na primeira parte, investiga-se o problema da memória na
passagem entre a fase vidente e a fase cega de cada autor. Argumenta-se sobre essa
questão que a cegueira despertou neles um sentido novo para o fazer literário, pois
promoveu uma atenção maior, uma revisitação de formas literárias antigas – como o
soneto – e uma intensificação na recorrência e desenvolvimento de temas e
procedimentos, como a noção de escrita aliada à biblioteca, em Borges, e a repetição da
tara e do fetiche como motivo para reabilitar a violência sofrida, como ocorre em Mattoso.

Com a cegueira, assim, as imagens se adensaram, constituindo novas imagens


literárias. Além disso, a audição assumiu uma função importante na marcação do ritmo e
a memória, que já era privilegiada, foi decisiva para trazer conteúdos de suas épocas
videntes para dentro das novas obras. Dessa forma, a um só tempo, Borges e Mattoso
avançaram e alargaram o seu complexo projeto de escrita, dando novos matizes para
problemas teóricos que procuravam responder com a escrita, como a questão da
compreensão do infinito – que é trabalhada de maneiras distintas por cada um.

Na segunda parte, procura-se discutir a questão da cegueira como um elemento


que modifica a estrutura da experiência. Tomo esse conceito a partir da análise que
Walter Benjamin faz da obra de Charles Baudelaire (BENJAMIN, 2017, p. 106). Para
Benjamin, as transformações na cidade moderna, com o hiperestímulo sensorial da vida
urbana, alteraram radicalmente a experiência, e isso surge expresso na obra do autor
francês. Com isso, discute-se nessa parte a relação entre experiência e bíos, a
singularidade da cegueira experienciada por Borges e Mattoso, o problema metodológico
da relação entre literatura e vida e os aspectos tecnológicos que são implicados com a
escrita de um autor cego na contemporaneidade.
Nesse sentido, essa segunda parte busca também analisar as alterações sensoriais
que foram produzidas com a cegueira e o novo arranjo tecnológico e midiático que é
propiciado a partir dessa nova situação, como a relação do escritor cego com o papel,
rádio, televisão, computador e novas mídias – nesse último caso, na produção literária de
Mattoso –, o papel da memória nessa mudança social da experiência (BENJAMIN, 1987),
o modo como os sentidos e a percepção trabalham sem a contribuição dos olhos para a
composição literária e a repercussão dessas questões nas próprias obras. Argumenta-se

16
sobre isso, por meio das noções de sentidos de si de Daniel Stern, que há a presença de
um elemento não linguístico que comparece no momento da escrita e que reelabora as
suas estratégias.
Ainda assim, esse registro não fica só para além da linguagem, mas também se
articula no nível imediatamente linguístico, como é o caso das construções metafóricas
que apontam para um campo de experiência em que a noção de noite aproxima-se da
noção de morte e, entre elas, constiui-se uma rede de implicações entre o corpo do escritor
e a obra, a cegueira física e a cegueira literária – o que expressa, nesse modo de relação
que é propiciado pela cegueira, um tipo de ética.
Além disso, também se esboça nessa segunda parte uma tentativa de pensar a
condição física do autor em termos propriamente literários. Argumenta-se para a relação
dúbia que se estabelece entre morte e cegueira e como isso, por meio de análises literárias
e dos Disability studies, um campo de pesquisa estadunidense que problematiza a questão
da deficiência física como uma potencialidade, pode indicar uma reflexão sobre o próprio
fazer literário e sobre a relação com o outro.
Essa relação com a vida, porém, não tem como objetivo, frise-se, fazer uma
análise histórica e cultural detalhada, pois o que se procura é uma abordagem especulativa
sobre a relação que a cegueira engaja ao se analisar, comparativamente, a vida e a obra
dos autores – visto que a inexistência de um corpus teórico para o problema que investigo
me forçou a criar ferramentas conceituais de análise, pois não me interessa a biografia,
mas o bíos que comparece no momento da escrita.
Na terceira e última parte, investiga-se a cegueira por meio da própria tradição
literária e da articulação entre autor e leitor cegos na composição de suas obras. Busca-se
pensar a cegueira como uma possibilidade para a literatura, como um elemento integrante
de sua própria estruturação interna. Desse ponto de vista, não haveria literatura sem
cegueira – assim como para De Man (1983) não há legibilidade na leitura sem a cegueira
que é constituinte dessa mesma leitura.

Com efeito, para tal empresa, inquire-se sobre o estatuto epistemológico e literário
da cegueira na obra de Borges e Mattoso com o objetivo de mapear o modo como ela
aparece como um problema nas suas obras. As relações entre a fase cega e a fase vidente
são justapostas e combinadas, de modo a reler ambas as fases para pensar a existência de
algum nível de articulação (in)comum que se apresenta por meio da cegueira. Essa

17
articulação, porém, só pode ser assumida de um ponto de vista narrativo – o que recoloca
o problema metodológico.

Argumenta-se, com isso, que há diferentes formas da cegueira compor o texto


literário, participando, às vezes, como um procedimento, uma personagem ou uma
perspectiva. No entanto, a fase cega permitiu uma explicitação dos temas e dos
procedimentos – ou seja, tornou-os videntes – ao passo que, na fase vidente, eram
implícitos – ou seja, cegos. Consequentemente, entre a fase cega e a fase visual, ocorreu
uma permanência diferencial e diferenciante de uma singualirade dada pela cegueira. Essa
singularidade, como argumento nas páginas que se seguem, é o que extravasa na
literatura.

No caso de Borges, essa singularidade implica um desejo de ficção que gera um


movimento centrípeto na linguagem, fazendo com que, por meio da linguagem, o texto
literário avance cada vez mais para dentro da linguagem com o objetivo de atingir o seu
Fora. Já no caso de Mattoso, essa singularidade é o delírio do desejo que gera, por outro
lado, um movimento centrífugo que sai da linguagem por meio da linguagem com o
mesmo objetivo de atingir o seu Fora.

18
I – A NOITE DA MEMÓRIA

19
2. TRADUÇÕES DE VIDENTE, TRAIÇÕES DE CEGO

Na tradição da literatura ocidental, Homero é sem dúvida um vulto que se destaca.


Durante mais de dois milênios, o nome do poeta da Ilíada foi lembrado como uma das
figuras centrais da literatura. Tão central que toda a história da tradição gramatical pode
ser contada como a história da tentativa de exegese de seus textos, como é o caso da
primeira gramática, a de Dionísio, o Trácio (OLIVEIRA, 2011).

Contudo, na recepção da literatura homérica, sobretudo com a consolidação da


escrita como modo privilegiado de acesso ao saber, nota-se um esquecimento paulatino
da relação intrínseca entre cegueira e poesia. Na Grécia Antiga, o ato de ver não era
sinônimo de olhar, pois, conforme acreditava-se, “a memória de um homem era mais
extraordinária quando ele se encontrava desprovido de visão” (VIDAL-NAQUET, 2002,
p. 13). Além disso, essa outra visão – ou, se preferirmos, essa visão outra – compunha-
se naquela sociedade como um modo de existência que aliava ética e estética (JAEGER,
1994, p. 62).

É assim que Homero, por isso, segundo aponta Pierre Vidal-Naquet (2002),
guardava no próprio nome – em tradução livre do grego antigo: “aquele que não vê” –, a
interferência profunda de um desvio da visão como artifício integrante de sua poética. A
possível cegueira de Homero, se o Homero histórico de fato houver existido, ratifica a
posição de Augusto de Campos (1978, p. 84), segundo a qual a poesia tem mais a ver com
a música e a arquitetura do que com a literatura7. O Homero da Ilíada colocou uma
tradição de pé por meio da oralidade, de um cultivo de palavras que não possuía no papiro
ou no papel – pelo menos não de modo massivo – a marca de uma “visualidade” que lhe
fosse útil para assegurar um interesse visual antes do que um interesse imaginativo.

Hoje, os versos da Ilíada, impressos em livros físicos sem e com relevo,


disponibilizados em versões on-line com audiodescrição ou simplesmente armazenados
em sites e livrarias virtuais, conformam hábitos e estratégias de leitura radicalmente
diferentes daqueles empregados pelos leitores da época clássica. Essa diferença entre a
Ilíada falada e cantada e a Ilíada impressa não é apenas temporal, mas ontológica, como
demonstra Milman Parry (1971) – pois, para ele, a poesia oral de Homero só pode ser

7
Segundo Paul De Man, essa é uma tópica comum nas teorias da representação presentes no século XVIII
(DE MAN, 1983, p. 124).

20
corretamente pensada quando se leva em consideração o dado fático de um contexto pré-
literário que repercute num sistema de composição próprio, gerado pela repetição de
segmentos fixos de frases que estão presentes na transmissão oral da linguagem cotidiana
e, mais especialmente, da linguagem poética, isto é, da linguagem empregada por poetas
antigos (PARRY, 1971, p. 329). Mudou-se, em mais de 2500 anos, além disso, a própria
concepção de leitura e, com ela, o papel do autor e da obra – inclusive, e mais
substancialmente, em sua materialidade.

O ilustre Homero não tinha motivos para se preocupar com a sua assinatura, sua
imagem na mídia, sua construção de homem público. A incerteza que pairou sobre a
existência ou não do Homero histórico revela uma preocupação com a autoria que não
fazia muito sentido em seu período histórico – uma vez que a noção moderna de autor só
se tornou, de fato, importante na modernidade (FOUCAULT, 2009). De todo modo, a
linha que conecta a cegueira à sua obra é a mesma que fez com que os seus textos fossem
eternizados nesses primeiros séculos: sua qualidade de transmissão oral, de
armazenamento mnemônico (PARRY, 1971).

O recurso oral e mnemônico, que consolidou a forma fixa dos versos clássicos,
serviu a Jorge Luis Borges em seu momento de retomada na produção literária, após ficar
cego inteiramente de um olho e parcialmente de outro, em meados dos anos de 1950.
Considerado um Homero criollo pela reverência e comparação que estabelecia com o
poeta grego, Borges operou um retorno ao modo de escrita de Homero para garantir o
controle do processo criativo (SCHITTINE, 2016, p. 356-357), haja vista que a perda da
visão o deixou dependente tanto da atividade de leitura, por meio da necessidade de
ledores que fizessem o trabalho de repassar o texto para ele, quanto de escrita, por meio
do trabalho de amanuenses, profissionais que cuidam da transcrição oral dos textos. O
que terá contribuído para a incorporação da métrica clássica, com sua sonoridade rítmica
bem marcada, visto que era mais fácil de recordar. Muito mais fácil, aliás, do que a
estrutura sintaticamente complexa e truncada dos textos em prosa, que só mais tarde
voltaria a explorar. Segundo Borges,

Uma consequência importante da cegueira foi meu gradual abandono


do verso livre em favor da métrica clássica. Na verdade, a cegueira
obrigou-me a escrever novamente poesia. Já que os rascunhos me eram
negados, eu devia recorrer à memória. É obviamente mais fácil
memorizar o verso que a prosa, e o verso rimado mais que o verso livre.

21
O verso rimado é, pode-se dizer, portátil. Pode-se andar pela rua ou
estar no metrô enquanto se compõe e aprimora um soneto, pois a rima
e a métrica possuem virtudes mnemônicas. (BORGES, 2009, p. 70).

Com isso, Borges passou a guardar versos inteiros na memória, trabalhando o


ritmo e as sonoridades, de modo a fazer relações simbólicas e mágicas8 entre as palavras.
Esse fato terá significado, em sua trajetória literária, um retorno à poesia, pois, até então,
ele havia concentrado a sua produção em textos em prosa, sobretudo, contos. Ainda assim,
essa escolha pela poesia não o fez esquecer completamente da prosa, pois, depois de
assegurar o domínio técnico do poema, Borges preocupou-se em “pensar em um fio
narrativo para os poemas” (op. cit., p. 357) – isso quando não escrevia pequenos
fragmentos em que prosa e poesia se combinavam, como fez em O fazedor.

Esse Borges cego, todavia, não se encontrou, desde o início, lapidado. Foi sendo
construído aos poucos, como resultado de um processo de cegueira que se anunciava
desde cedo. Borges teve uma cegueira crônica (WALTER, 2017)9 que, paulatinamente,
foi lhe deixando no escuro. Essa doença era familiar, seu pai e bisavô também a tiveram.
Além disso, diversos outros familiares de Borges também ficaram cegos durante a vida
(SCHITTINE, 2016).
No início de 1990, ou seja, por volta de 40 anos depois da cegueira do escritor
argentino, Glauco Mattoso, poeta paulista, também ficou cego; mas, contrariamente a
Borges, a doença deveu-se ao glaucoma. Também como Borges, Mattoso passou por um
processo de reelaboração da memória por meio da produção de rascunhos mentais e orais
(ALVES, 2004, p. 13). O intuito desse procedimento era o de garantir uma reserva de
informações que fosse necessária para a constituição de seu estilo. Segundo Mattoso, com
a cegueira, o seu processo de criação se tornou até mais visual:

Paradoxalmente, a cegueira me enclausurou e me libertou, escureceu e


iluminou. Minha poesia ficou até mais “visual” que antes, pois agora
imagino até o formato da letra, como se estivesse impressa e ampliada
diante de mim. “Vejo” até a fonte, serifada e tudo. Além da imagem,

8
Retomo aqui o texto “A arte narrativa e a magia”, presente no livro Discussão, publicado em 1932, em
que Borges defende que a ficção deve operar por meio de uma lógica de causalidade própria. Cf. BORGES,
Jorge Luis. “A arte narrativa e a magia”. In: BORGES, Jorge Luis. Obras completas de Jorge Luis Borges.
Tradução de Joseley Vianna Batista. São Paulo: Globo, 1998, vol. 1, p. 240-247.
9
Não é claro entre os biógrafos de Borges qual seria a oftalmopatia responsável por sua cegueira. As
especulações vão desde o glaucoma crônico, passando por complicações de miopia até catarata
(SCHITTINE, 2016). Segundo Mario Enrique de la Piedra Walter (2017), que analisou as obras, entrevistas,
documentos e biografias de Borges com o objetivo de realizar um diagnóstico etiológico da cegueira, a
causa mais provável é a de um tipo de miopia degenerativa (WALTER, 2017, p. 193).

22
trabalho na memória um “salvamento de arquivos” tão eficaz que
dispensa gravador ou ditado, e mantém o poema guardado na cabeça
durante uma noite, entre a insônia, o sono e o sonho, para ser
“recuperado” na manhã seguinte, já digitado no computador falante.
(MATTOSO, 2004a, p. 196)

A cegueira de Mattoso foi decisiva na construção de sua persona poética. O


próprio nome do poeta é uma clara referência à doença, já que quem é acometido pelo
glaucoma é chamado de glaucomatoso. O nome de registro do poeta é Pedro José Ferreira
da Silva, nascido em São Paulo, em 1951. Como observou Steven Butterman (2005),
Mattoso apropriou-se do estigma da cegueira para dar a sua escrita uma assinatura
particular, de um poeta marginal, underground, que se incorporava à tradição literária –
a consoante dobrada no nome “Mattoso” remete ao poeta barroco seiscentista Gregório
de Mattos, o Boca do Inferno (BUTTERMAN, 2005, p. 63) – para subvertê-la.
Além disso, o processo de escrita de Mattoso como poeta cego encontra especial
relação com Borges. Em 1997, Jorge Schwartz convida-o para entrar na equipe de
tradutores das obras completas de Borges. Mattoso aceita o convite para assinar,
justamente, o livro de estreia do argentino: Fervor de Buenos Aires. Essa coletânea é
aclamada pela crítica, recebe o Prêmio Jabuti de 1999 e com o dinheiro Mattoso compra
um computador adaptado para cegos.
Com essa nova tecnologia, que evidentemente ainda não estava acessível para
Borges, Mattoso supera o hiato em que tinha ficado a sua produção, sem títulos durante
os primeiros anos da década de 1990, e começa a escrever compulsivamente. Esse novo
momento representou para ele uma ruptura de paradigma. Uma passagem de uma fase
“iconoclasta” para uma “podorasta” que ocorre por dentro da tradição literária, como
defende o eu dramático10 no poema “Ensaístico”:

Ensaístico [241]

Chamemo-la de fase iconoclasta,


à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.

A nova não é casta, nem contrasta


com velhas anarquias. Só me entrego
ao pé, onde em soneto a língua esfrego.
Chamemo-la de fase podorasta.

10
Ao invés do eu lírico, figura que comparece para explicitar uma subjetividade no poema, Mattoso trabalha
com o eu dramático, porque toda a sua construção poética é sempre encenada, teatralizada, performática.

23
Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:

Na universidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida. (MATTOSO, 2004b, p. 131)

Durante a fase visual, Mattoso utilizava técnicas e procedimentos próximos aos


dos poetas concretistas (MATTOSO, 2001b) – a ideia presente na brincadeira entre os
verbos “pintar” e bordar”, presente na primeira quadra, refere-se também ao aspecto
visual. Desse modo, a experiência com o Jornal Dobrabil, o experimentalismo com a
tipografia e a distribuição espacial das palavras – tudo isso ainda durante a ditadura
empresarial-militar brasileira da década de 1970 –, foram substituídos pelo paralelismo
sonoro e rítmico – como ocorre com o uso das células métricas, que Mattoso, fazendo um
retorno podólatra à tradição literária chama de “pé” (MATTOSO, 2022c, p. 29). Do ponto
de vista político, porém, ambas as fases mantêm a atitude anarquista de Mattoso. Além
disso, com a fase cega ele explora mais a dupla relação entre a podolatria11 e a
homossexualidade, como se vê presente no neologismo “podorasta”.
Com isso, situando a sua nova fase em meados da década de 1990, muito depois
das primeiras propostas das vanguardas modernistas e da vanguarda concretista,
respectivamente, no início e em meados do século XX, a poesia de Mattoso se vê, mais
uma vez, sob a necessidade de transgredir poeticamente, literariamente. Então, como a
vanguarda já tinha se transformado em nova norma, volta-se criticamente para a tradição,
retomando a forma tradicional do soneto – gênero racional por excelência por representar
a forma do silogismo e garantir um espaço para reflexão e autoconsciência em sua própria
estrutura de estrofes e pausas (STERZI, 2012, p. 170) – e praticando o “experimentalismo
usando o próprio cânone como laboratório” (MATTOSO, 2004a, p. 194). De maneira
semelhante, por isso, ao que os autores pós-modernos já faziam como procedimento,
conforme mapeia Umberto Eco (1985).

11
A construção desse termo é defendida por Mattoso em Manual do podólatra amador, pois possui uma
escrita mais vernacular e econômica para designar o desejo a tudo que envolve os pés (MATTOSO, 2006,
p. 15-16).

24
Destarte, a poética de Mattoso se constituiu na fricção entre uma forma pura –
com o uso do soneto e do decassílabo heróico12, o pé clássico – e um conteúdo impuro13.
Ele procurou manter nos últimos anos a grafia das palavras com a forma anterior à dada
pela Reforma Ortográfica promovida pelo governo de Getúlio Vargas, em 1938, com o
objetivo de contestar politicamente a imposição ortográfica, e assumiu a sátira e a
manipulação irônica como técnicas que permitem ao poeta “sonetar o soneto”, num
projeto estético que deglute os objetos literários por um processo que vai além da
antropofagia oswaldiana ao recolocar na máquina antropofágica o que foi vomitado por
ela. A esse procedimento, Glauco, o novo antropófago, dá o nome de coprofagia
(MATTOSO, 2004a, p. 200-201).
Nesse sentido, a cegueira em Mattoso faz uso do humor e do
erotismo/pornográfico14 como procedimento de despressurização da malha sensível que
hierarquiza socialmente os indivíduos e desejos, ou seja, Mattoso subverte as relações
sociais e o ordenamento dos corpos ao investir num desejo abjeto que circula livremente
por objetos que se tornam sensíveis por meio do olhar caleidoscópico do eu dramático.
Essa desorganização diz respeito ao movimento de explicitação e crítica da norma sexual
que conforma e rebaixa os desejos nos corpos a uma relação convencionalmente marcada
entre pênis, vagina e seios, já que, consoante Judith Butler (2017), o discurso que reduz
a prática sexual a um desses três elementos não passa de uma fantasia literalizante que
institui partes do corpo como detentoras de prazer e outras não por meio de um ideal
normativo de um corpo já portador de gênero específico:

Diz-se que os prazeres residem no pênis, na vagina e nos seios, ou que


emanam deles, mas tais descrições correspondem a um corpo que já foi
construído ou naturalizado como portador de traços específicos de
gênero. Em outras palavras, algumas partes do corpo tornam-se focos
concebíveis de prazer precisamente porque correspondem a um ideal
normativo de um corpo já portador de um gênero específico. Em certo
sentido, os prazeres são determinados pela estrutura melancólica do
gênero pela qual alguns órgãos são amortecidos para o prazer e outros,
vivificados. A questão de saber que prazeres viverão e que outros

12
Ver entrevista no final da tese.
13
Isso aparece em vários livros da fase cega de Mattoso, mas, especialmente em O poeta pornosiano
(2011b), livro que trabalhei no mestrado, esse procedimento é mais patente.
14
Para efeito de definição conceitual, não faço distinção entre erotismo e pornografia. O termo significa
uma prática de engajamento libidinal que tanto pode servir para sugerir quanto para realizar diferentes
formas de práticas sexuais. Tal orientação é também acompanhada por Mattoso no Manual do podólatra
amador (2006). Para Mattoso, assim, a relação libidinal é sempre uma relação de transgressão com relação
a uma lei.

25
morrerão está frequentemente ligada a qual deles serve às práticas
legitimadoras de formação da identidade que ocorrem na matriz das
normas de gênero. (BUTLER, 2017, p. 127)

Consequentemente, Mattoso tanto dota a sua escrita de uma crítica social que
critica a norma sexual, que diz o que deve ser motivo de gozo, quanto utiliza do
mecanismo da pornografia para engendrar um discurso político – algo que é comum na
história da pornografia, mas que só perdeu proeminência no século XIX (HUNT, 1999).
Além disso, ele questiona os limites da literatura (entre baixa e alta, por exemplo) e, mais
à fundo, põe em evidência o lugar físico/corporal/desejante da poesia por meio de um
jogo sintático e discursivo que está menos preocupado com a construção de símbolos e
metáforas, como acontece nos textos de Borges, do que com a intensidade que surge da
ambiguidade de palavras e expressões que são geradas por meio de seus efeitos de sentido.

Consequentemente, ao fazer esse desejo circular pelo corpo do texto, ele critica, a
um só tempo, o corpo socialmente instituído, por uma diferença que conforma o gênero
sexual, e o corpo literário, que conforma o gênero literário, mesmo quando, ironicamente,
faz uso da mais conservadora e tradicional das formas literárias do ocidente desde a Idade
Média: o soneto. É esse, aliás, o papel da manipulação – que na superfície do texto se
parece com a ironia – e do humor no emprego de palavras com múltiplos sentidos e que
Steven Butterman (2005), a partir de Mikhail Bakhtin, vai chamar de presença de uma
subversão carnavalesca na obra de Mattoso (BUTTERMAN, 2005, p. 71).

Isso pode ser visto, por exemplo, no poema “Borgiano”, em que Mattoso estabelece
relação direta entre o modo em que mobiliza a cegueira na sua poesia e como Borges o
faz, refletindo também sobre a sua própria vida:

Borgiano

“Fervor de Buenos Aires” foi a estréia.


Seguiu-se à sagração da sua cidade
a Universal da Infâmia, a Eternidade,
e a História alcança as raias da Epopéia.

Estive na portenha urbe europeia;


também perdi a visão na meia idade;
coincidência ou não, também fui Sade,
um bruxo logo abaixo de Medéia.

Talvez eu tenha achado no Argentino

26
um tom de tango astral na escura zona
e o dom da decadência do Destino.

Mas falta algo, que Borges não menciona...


Algum lugar no cosmo que imagino...
Alguém lambendo o pé do Maradona! (MATTOSO, 2004, p. 57)

Após apresentar algumas das principais obras de Borges na primeira quadra, o eu


dramático apresenta um paralelo com o escritor argentino e sugere semelhanças e
diferenças. As semelhanças estão em toda a segunda quadra – ter passado por Buenos
Aires (“portenha urbe europeia”), também ter ficado cego e ser um bruxo – e as diferenças
correspondem à atitude literária e, por consequência, ao conteúdo trabalhado (“Mas falta
algo, que Borges não menciona... / Algum lugar no cosmo que imagino... / Alguém
lambendo o pé do Maradona!”). Essas diferenças correspondem ao papel transgressor de
Mattoso, que subverte as distinções entre alta e baixa literatura, em paralelo com a perfeita
conformidade de Borges ao cânone literário. Como consequência, essa diferença entre
eles não era a de uma sutil différance derridiana, mas a de um muro bem estabelecido
pela própria história literária.
Nesse poema, o recurso à literatura clássica é realizado por Mattoso por meio da
utilização do pé clássico: o decassílabo heroico, sua medida preferida15. Além do
decassílabo heroico ser uma forma clássica bastante conhecida pela tradição literária, para
Mattoso ele implica numa sonoridade que controla o ritmo. No poema em tela, o ritmo é
composto por duas rimas opostas nas duas primeiras quadras (ABBA-ABBA), seguida
de duas alternadas nos últimos dois tercetos (CDC-DCD). A estrutura do verso se segue
com a formação de uma sinérese no início do terceiro verso da segunda estrofe
(coin/ci/dên/cia ou/ não/, tam/bém/ fui/ Sa/de) e de uma elisão no início do último terceto
(Mas/ fal/tal16/go,/ que/ Bor/ges/ não/ men/cio/na...).
O ritmo do poema explora também a dimensão icônica da linguagem ao marcar o
final do primeiro hemistíquio do último verso do poema (Al/guém/lam/ben/do o/pé) com
um pé forte – que na terminologia mattosiana seria o pé masculino – bem na palavra “pé”,
sendo seguido por um pé fraco – o pé feminino17. Assim, além de apontar para a imagem
da bola caindo no pé de Maradona simplesmente pelo uso do ritmo, o poema também
subverte o padrão heteronormativo que marca o futebol – um esporte sabidamente
masculinizado e, por vezes, machista –, por meio de um desvio de gênero, que é indicado

15
Ver entrevista no final da tese.
16
Fusão das sílabas “ta” e “al” por meio da vogal “a”.
17
Mattoso adota essas terminologias em Tractado de Versificação (2022c).

27
também pela alternância da estrutura rítmica no conjunto do poema, e de um desvio
sexual, na medida em que bola recupera no jargão popular a ideia de testículo.
Borges era um poeta moderno que adorava fazer também um retorno à literatura
clássica, seja em termos de autores ou de formas (como é o caso do soneto). Não que ele
não se interessasse por autores contemporâneos – muitos desses ele os lia, como George
Welles, Kafka, Joyce etc., inclusive, devido à sua proficuidade na leitura, ele foi um dos
primeiros comentadores deles em terras argentinas (SCHITTINE, 2016) –, mas o seu
estilo racional e rígido o faziam ser um escritor sem muita experimentação formal – pelo
menos, do ponto de vista da materialidade da linguagem, pois é muito conhecido o seu
experimentalismo em termos de narrativa. O inverso do que acontece, por exemplo, com
Mattoso.
Jornal Dobrabil, um panfleto que parodiava o periódico Jornal do Brasil, um dos
símbolos da imprensa nacional durante o período da ditadura empresarial-militar no
Brasil, trazia um trabalho de diagramação bastante particular. Mattoso, que trabalhava à
época na biblioteca do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, utilizava uma máquina de
escrever manual, do tipo Olivetti (MATTOSO, 2001b). Com isso, ao descobrir a
existência de um meio espaço que propiciava a introdução de uma letra entre dois
caracteres, operou um raqueamento18 dessa ferramenta para fins estéticos.
Importante notar que em termos históricos, conforme Friedrich Kitler (1999), a
máquina de escrever implicou uma mudança na “rede discursiva” de processamento,
armazenamento e transmissão de informações. No terreno da literatura, esse impacto
gerou como consequência o apartamento do controle da mão, do olho e da consciência do
processo de escrita, que se tornou maquínico e inumano, na medida em que o aparelho
técnico acrescentou o espaçamento, o processamento e a transmissão maquínica dessa
mesma informação.
Kitler (1999) observou ainda que, não à toa, a máquina de escrever foi feita “por
cegos e para cegos” (KITLER, 1999, p. 22) e a consequência desse fato, trabalhado por
escritores, gerou o desenvolvimento de uma literatura não figurativa – em outras palavras,
cega – capaz de apresentar uma resposta expressiva para a decadência da imagística da
ilusão ótica e sonora com que o cinema e a fotografia a haviam golpeado – visto que as
imagens audiovisuais do cinema e visuais da fotografia ao invés de sugerir, requerendo

18
Aportuguesamento do termo hacking, que implica um sabotamento de um dado sistema computacional
ou, no caso em tela, de um dispositivo técnico.

28
uma atitude ativa do espectador (como acontece com a literatura), apresentam de maneira
integral as imagens.
Nesse sentido, o trabalho de raqueamento desenvolvido por Mattoso no Jornal
Dobrabil restitui, por um lado, à máquina de escrever o seu componente humano, por
meio de uma operação artesanal que imprime no próprio coração do dispositivo técnico
a sua marca, e, por outro, intensifica a sua despersonalização ao fazer desaparecer o autor
junto com a obra, por meio de um processo de múltiplas assinaturas que indeterminam a
autoria, e pelo próprio caráter reprodutível da obra, já que ela é realizada em um
dispositivo técnico.
Além disso, o jornal era impresso em formato panfleto, dobrado – por isso também
o jogo polissêmico com o próprio título da obra –, xerocado e enviado pelos correios
como forma de garantir um nível de segurança pessoal contra uma interceptação do
material pelo regime militar e uma postura anticomercial – algo compartilhado com os
poetas “marginais” da década de 1970 – ao mesmo tempo em que procurava reduzir o
número de cópias e manter a autonomia do trabalho individual (MATTOSO, 2001b).
Segundo Viviana Bosi (2011), essa postura anticomercial não dizia respeito apenas a uma
inadequação comercial dos autores às editoras – que não se interessavam por obras pouca
lucrativas –, mas também a uma preocupação que os autores tinham pelo projeto estético
que essas obras engajavam (BOSI, p. 2011, p. 12).

29
Figura 1. Panfleto do Jornal Dobrabil publicado em 1977. Ver: MATTOSO, 2001a, p. 2. #Paratodosverem: fac-símile
do panfleto do Jornal Dobrabil, em formato A3 dobrado, representando a primeira página.

Destarte, como se vivia em um momento de ditadura, o jornal, de verve satírica e


anárquica, buscava criticar o regime ditatorial por meio de um investimento no desejo
como algo imediatamente político. Conforme Steven Butterman, essa característica de
Mattoso se manteve quando ele passou para a sua fase cega (BUTTERMAN, 2005, p. 2).
Além disso, por mais que estivéssemos tratando de um período bastante anterior à
cegueira, Mattoso já antevia essa condição:

Na década de 70, o país atravessava seu mais longo período de


repressão, representado pelo regime militar implantado em 64 e
endurecido em 68; eu atravessava meu mais longo período de
questionamento, não só quanto à sexualidade ou à expressão artística,
como também em relação à doença que me levaria, algum dia, à
cegueira. Politicamente reprimido pela censura e psicologicamente
reprimido pela clausura, quebrei o isolamento através da ruptura
estética. (MATTOSO, 2001b)

30
Já em Borges as obras literárias eram mais racionais, traziam questões e debates
filosóficos extensos e profundos. Além disso, Borges era um homem conservador.
Denunciava o autoritarismo e as ditaduras, mas chegou a apoiar a ditadura militar
argentina, apesar de ter se arrependido depois (SCHWARTZ, 2017, p. 408-409). Desse
modo, ele fazia dos textos literários uma continuação, por outros meios, de problemas
éticos, lógicos, metafísicos etc. que lhe interessavam.
Até por isso, na literatura de Borges há uma confluência entre os ensaios e os
contos, de modo a não ser possível determinar onde um acaba e o outro começa e de
marcar, pela introdução do comentário no gênero literário, a crítica à cena política e ao
discurso militante. Deriva disso, por exemplo, a crítica à cor local, como a ideia de um
símbolo nacional estanque e acabado, e, na superfície do texto, a crítica política manifesta,
como é o caso do poema “El otro”, publicado em 1975 na obra El libro de arena, em que
fica patente o que pensa da geopolítica, sobretudo quanto ao papel dos Estados Unidos e
da antiga União Soviética, e sobre povos tradicionais, quando um Borges velho conversa
com um Borges jovem e apresenta seu ponto de vista nos seguintes termos:

– En lo que se refiere a la historia... Hubo otra guerra, casi entre los


mismos antagonistas. Francia no tardó en capitular; Inglaterra y
América libraron contra un dictador alemán, que se llamaba Hitler, la
cíclica batalla de Waterloo. Buenos Aires, hacia mil novecientos
cuarenta y seís, engendró otro Rosas, bastante parecido a nuestro
pariente. El cincuenta y cinco, la provincia de Córdoba nos salvó, como
antes Entre Rios. Ahora, las cosas andan mal. Rusia está apoderándose
del planeta; América, trabada por la superstición de la democracia, no
se resuelve a ser un imperio. Cada dia que pasa nuestro país es más
provinciano. Más provinciano y más engreído, como se cerrara los ojos.
No me sorprendería que la enseñanza del latín fuera reemplazada por la
del guaraní. (BORGES, 1989, p. 13)19

Em Fervor de Buenos Aires, livro publicado em 1923, Borges reencontra a capital


argentina após um período em que precisou viajar pela Europa na companhia da família.
Seu pai, Jorge Guillermo Borges, estava ficando cego e saiu à procura de médicos que

19
“– No que se refere à História... Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não
tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a
cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, por volta de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro
Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou,
como antes Entre Ríos. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América,
presa pela superstição da democracia, não se decide a ser império. Cada dia que passa nosso país está mais
provinciano. Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o
ensino do latim fosse substituído pelo do guarani.” (BORGES, 2000b, p. 11-12)

31
pudessem resolver o seu problema. Nesse retorno, uma nova cidade surgiu para Borges
e, com ela, uma nova atividade: a de caminhar à noite. Hábito que manteve por “quase
quarenta anos; era a sua forma de se inspirar e escrever” (SCHITTINE, 2016, p. 329).
Assim, inspirado por um certo nacionalismo e numa tentativa de encontrar na
literatura o universal no particular argentino, proposta próxima e ao mesmo tempo
distante dos projetos de vanguarda da época, como o ultraísmo – vanguarda espanhola à
qual Borges se filiara inicialmente, mas que rejeitava nesse livro de estreia a interpretação
realizada por alguns críticos que viam nele uma simples assimilação da vanguarda
(BORGES, 2009, p. 39) –, Fervor inaugurou, sobretudo, a tópica borgiana sobre a qual
viria a se debruçar, quase que obsessivamente, em toda a sua produção futura, pois,
segundo ele,

olhando-o em perspectiva, penso que nunca me afastei dele. Tenho a


sensação de que todos os meus textos seguintes simplesmente
desenvolveram temas apresentados em suas páginas. Sinto que durante
toda a minha vida tenho estado reescrevendo esse único livro.
(BORGES, 2009, p. 39)

Nesse contexto, Fervor foi um livro escrito em versos brancos e livres que se
preocupava com a construção de metáforas visuais que trabalhassem a imagem da nova
Buenos Aires após esse período no estrangeiro. Era um livro de memória, de memória
afetiva da cidade, do que nela a cidade poderia suscitar: impressões, histórias, relatos.
Para isso, a imagem do crepúsculo e da sombra são frequentes e marcam tanto a dimensão
de observação do eu lírico, que era realizada à noite – lembremos que Borges nessa época
passou a fazer passeios noturnos –, quanto a dimensão onírica e surrealista que são
constitutivas, para o eu lírico, do fazer poético. Vejamos o poema “El sur”:

EL SUR el olor del jazmín y la madreselva,


el silencio del pájaro dormido,
Desde uno de tus patios haber mirado el arco del zaguán, la humedad
las antiguas estrellas, – esas cosas, acaso, son el poema.
desde el banco de (BORGES, 1984, p. 19) 20
la sombra haber mirado
esas luces dispersas O SUL
que mi ignorancia no ha aprendido a
nombrar De um dos pátios ter olhado
ni a ordenar em constelaciones, as antigas estrelas,
haber sentido el círculo del agua do banco da
en el secreto aljibe, sombra ter olhado

20
Todos os poemas de Fervor terão pareadas a versão original com a versão traduzida por Mattoso, já que
este último é, ao mesmo tempo, tradutor de Borges e objeto desta pesquisa.

32
essas luzes dispersas o odor do jasmin e da madressilva,
que minha ignorância não aprendeu a o silêncio do pássaro adormecido,
nomear o arco do saguão, a umidade
nem a ordenar em constelações, – essas coisas são, talvez, o poema.
ter sentido o círculo da água (BORGES, 1998, p. 17)
na secreta cisterna,

Em “El sur”, o eu lírico observa a partir das sombras – mesmo lugar que Funes,
personagem do conto “Funes, el memorioso”, publicado em 1940, vai se situar para
conversar com o narrador (BORGES, 1998, p. 545) – para fazer um percurso não tanto
espacial, mas metafísico/existencial pelo sul de Buenos Aires (SCHWARTZ, 2017, p.
470). Nesse lugar da sombra, ele pode ver e o que ele vê não é o outro, mas a incompletude
de si mesmo – “desde el banco de / la sombra haber mirado / esas luces dispersas / que
mi ignorancia no ha aprendido a nombrar / ni a ordenar em constelaciones” (BORGES,
1984, p. 19).
Essa dimensão existencial da sombra também adquire aspecto espacial, como em
“A praça San Martín”:

LA PLAZA SAN MARTÍN A PRAÇA SAN MARTÍN


A Macedonio Fernández A Macedonio Fernández

En busca de la tarde Em busca da tarde


fui apurando en vano las calles. fui esquadrinhando em vão as ruas.
Ya estaban los zaguanes entorpecidos de Já estavam os alpendres entorpecidos de
sombra. sombra.
Con fino bruñimiento de caoba Com fino brunimento de mogno
la tarde entera se había remansado en la plaza, a tarde inteira tinha-se remansado na praça,
serena y sazonada, serena e sazonada,
bienhechora y sutil como una lámpara, benfeitora e sutil como uma lâmpada,
clara como una frente, clara como uma fronte,
grave como ademán de hombre enlutado. grave como gesto de homem enlutado.
Todo sentir se aquieta Todo sentir se aquieta
bajo la absolución de los árboles sob a absolvição das árvores
– jacarandás, acacias – – jacarandás, acácias –
cuyas piadosas curvas cujas piedosas curvas
atenúan la rigidez de la imposible estatua atenuam a rigidez da impossível estátua
y en cuya red se exalta e em cuja rede se exalta
la gloria de las luces equidistantes a glória das luzes eqüidistantes
del leve azul y de la tierra rojiza. do leve azul e da terra avermelhada.
¡Qué bien se ve la tarde Como se vê bem a tarde do fácil sossego dos
desde el fácil sosiego de los bancos! bancos!
Abajo Abaixo
el puerto anhela latitudes lejanas o porto anela latitudes longínquas
y la honda plaza igualadora de almas e a profunda praça igualadora de almas
se abre como la muerte, como el sueño. se abre como a morte, como o sonho.
(BORGES, 1984, p. 21) (BORGES, 1998, p. 19)

33
O poema, já no título, traz uma localização de onde se passa a história: Praça San
Martín. Logo abaixo, o autor faz um endereçamento para o escritor argentino Macedonio
Fernández, um expoente da vanguarda argentina (DE ROSSO, 2021, p. 7) e que tanto
impactou a Borges nas conversas que compartilhava aos sábados em um bar localizado
na Plaza del Once (BORGES, 2016). Durante o que se narra no poema, o eu lírico procura
a tarde – momento em que o dia está quase indo e a noite chegando – com o objetivo de
encontrar alguma coisa que surge das sombras nesse interstício do dia (“Ya estaban los
zaguanes entorpecidos de sombra”).
Nesse contexto, a escolha pelo substantivo “tarde” mostra que o que se procura é
o próprio momento. Essa escolha por um substantivo é uma ferramenta também para
marcar uma recursividade entre os lugares das coisas, acontecimentos e do próprio poeta,
pois, quando se diz “el puerto anhela latitudes lejanas”, ao alcançar essas latitudes, que é
trabalho e busca também do poeta, a praça, igualadora de homens, se abre como a morte,
como o sonho – e o eu lírico talvez esteja se referindo ao fato de que essa praça fica
localizada num bairro que possui linhas férreas, com muita circulação de pessoas
(SCHWARTZ, 2017, p. 348). A imagem de justaposição entre morte e sonho pode
apontar também para o fato da criação imaginativa, da ficção, que só se torna possível
por meio do espaço físico e literário da praça.
Nesse sentido, essas imagens são agrupadas num mesmo campo semântico em
que sombra, penumbra, noite e crepúsculo convocam, por um lado, uma atmosfera
notívaga e, por outro, denotam uma incerteza quanto à racionalidade e à fixação de um
sentido. Dessa forma, é interessante perceber que, mesmo que tematicamente Fervor se
concentre em buscar elementos nacionais – o que vai se repetir de maneira marcada em
três obras posteriores, como é o caso de Luna de enfrente (1925), Cuaderno San Martín
(1929) e Evaristo Carriego (1930) – essa insistência na incompletude, na incerteza e na
boemia apontam para uma preponderância de um tropo discursivo que será agenciado
depois, na virada literária de um Borges já cego: a escuridão.
Com efeito, a tradução de Fervor realizada por Mattoso, assinada juntamente com
Jorge Schwartz, procurou manter semelhanças e analogias lexicais entre as duas línguas
(brunimento etc.) e, naquilo que foi possível, a mesma estrutura sintática. Nesse sentido,
ainda que o Espanhol e o Português sejam línguas estruturalmente próximas, a escolha
pela manutenção desses termos não pode ser considerada um simples trabalho de
transposição linguística, haja vista que o próprio trabalho de tradução requer uma

34
operação intelectual e criativa e Mattoso tinha a plena consciência disso – tanto é que a
paródia e a sátira mattosianas são expressões realizadas de seu trabalho de tradução.
Além disso, a tentativa de manter o léxico mais próximo do texto base pode ser
pensada também como um recurso expressivo para criar um efeito próximo àquele
empregado por Borges, que fazia uso de um vocabulário rico e diversificado, mas, em
alguns momentos, com um traço local, sobretudo, quanto ao léxico representativo de
lugares. De todo modo, esse procedimento visa causar no leitor antes uma aproximação
com a experiência da escrita do que com a simples reprodução do texto borgiano. Até
porque, conforme Walter Benjamin (2013), a (boa) tradução não visa comunicar “um
conteúdo inessencial” (BENJAMIN, 2013, p.102) – pois isso é desnecessário –, mas criar
uma relação entre o “visado” e “modo de visar” (op. cit., p. 114), de modo tensionar a
relação paradoxal de traduzibilidade e intraduzibilidade da obra tanto quanto for possível.
Nesse movimento, o tradutor aproxima-se do poeta, pois, na medida em que o
objeto de tradução está ausente, é necessário que ele atue para fazer com que a obra
original continue viva na obra traduzida. O que faz dessa ausência um lugar de cegueira
para o tradutor, que, cego, procura ser vidente: ver o ainda não visto da obra original em
sua própria língua. Para Benjamin (2013), essa pervivência da obra original na obra
traduzida acontece porque o laço que une ambas é vital e a vida só pode ser pensada
propriamente em termos históricos. No caso das obras literárias, esse percurso histórico
da obra é dado pela fama (op. cit., p. 104-105). É ela que garante a continuidade da obra
pela necessidade constante de tradução.
A tradução é, dentro desse ponto de vista, uma forma que decorre as suas leis do
original (op. cit., p. 102-103). O que não quer dizer que a obra traduzida seja meramente
dependente, haja vista que há algo nela que não está mais no original, pois, ele mesmo,
não é uma coisa fixa e acabada. Ou seja, a obra original guarda um aspecto irredutível
que não cessa de se diferenciar ao mesmo tempo em que guarda para si, em seu conjunto,
certa identidade, mas uma identidade na diferença.
Nesse contexto, quando Mattoso escreve a tradução de Fervor ele está, ao mesmo
tempo, tanto aproximando a obra do texto original quanto marcando-a com a sua presença
ao mesmo tempo em que procura se distanciar, apagar o seu trabalho, torná-lo, de algum
modo, translúcido – mas sem que isso signifique um simples desaparecimento do tradutor,
pois as marcas dele são preservadas no texto, visto que, como já estava cego durante a
confecção da tradução, o trabalho de escrita de Mattoso ocorreu de maneira coletiva, o
que indetermina os momentos de sua passagem pelo texto: “tive que accompanhar a

35
leitura em voz alta que Jorge Schwartz (cathedratico de hispanicas na USP e coordenador
da traducção) foi fazendo commigo, pessoalmente ou por telephone, até chegarmos a um
consenso sobre cada poema”21.
Desse modo, Mattoso engajou uma escrita-tradução, que ocorreu mediada,
primeiramente, pela voz mais do que pela forma gráfica. Com isso, entre a presença do
encontro físico e a quase presença do telefonema, Mattoso procurou encontrar, pelo som
– essa materialidade estranha –, o corpo textual de Borges – esse corpo vivo presente na
palavra falada. O processo de tradução se deu, por isso, não apenas cruzando línguas, mas
materialidades: da voz e da escrita.
Já Borges desenvolveu em diversos textos a sua ideia de tradução. Para Efrain
Kristal (2002), a tradução em Borges é um aspecto tão importante que todo o seu projeto
literário poderia ser relido para perceber como o problema da tradução é mais do que um
aspecto meramente temático e aparente, estendendo-se até a forma e a composição
(KRISTAL, 2002, p. 89). O que faz o trabalho de tradução aproximar-se da cegueira –
não à toa o título do livro de Kristal é Invisible Work –, pois a tradução opera de modo
invisível na estrutura textual ao articular termos visíveis e, no caso de Borges, ela
reelabora estratégias de escrita com o intuito de garantir o contrato ficcional entre leitor
e obra.
Nesse sentido, é como se a literatura fantástica presente no texto borgiano fosse
consequência dessas estratégias que possuem na tradução a própria base onde a escrita se
produz. Como efeito não esperado disso, acredito ser possível resolver o problema sobre
a natureza e a extensão dos objetos criados pela literatura borgiana, pois, ao serem
articulados pela tradução, boa parte desses objetos literários, como veremos durante toda
a tese, produzem-se num interstício – que, muitas vezes, aparece como um vacilo de
sentido, um “não saber ao certo”, “não ter certeza” sobre o relato – entre verdade (o dado
histórico, a relação lógica irrefutável, etc.) e mentira (a situação irreal de personagens e
ações, a existência de objetos impossíveis etc.) que impedem a determinação de um plano
de existência específico – como o da realidade, o da ficção, etc.
Nesse contexto, há dois textos de Borges, em particular, que merecem destaque:
“Pierre Menard, autor del Quijote” (1944) e “Los traductores de las 1001 Noches”
(1936)22. No primeiro caso, tem-se um conto-ensaio em que o personagem principal,

21
Ver entrevista no apêndice.
22
Há inúmeros outros textos de Borges que poderíamos citar como exemplo, como “Las versiones
homéricas” e “La busca de Averroes”. Borges, aliás, tornou-se um importante objeto de teóricos da tradução

36
Pierre Menard, um tradutor francês, procurou reescrever Dom Quixote, de Miguel
Cervantes. O intuito não era o de simplesmente traduzir a obra dando cores e contornos
próprios, mas o de ser o “Cervantes do Quixote” nessa composição (BORGES, 1984, p.
446) – pois

No quería componer otro Quijote – lo cual es fácil – sino el


Quijote. Inútil agregar que no encaró nunca una transcripción
mecánica del original; no se proponía copiarlo. Su admirable
ambición era producir unas páginas que coincidieran – palabra
por palabra y línea por línea – con las de Miguel de Cervantes.
(BORGES, 1984, p. 446)23

Desse modo, Menard tentou escrever uma versão que é ipsi litteris igual a
original, mas sem sê-la: pois o decurso dos anos fez com que a atividade de leitura e de
interpretação – que, para o narrador, não só fazem a obra, mas também a integram numa
genealogia própria (op. cit., p. 450) – modificaram-na substancialmente. A compreensão
de noção de tradução, assim, é vista em profunda articulação e sintonia com a de leitura,
porque é por meio da leitura que uma obra é criada – em certo sentido, por isso, Borges
antecipa a Estética da Recepção, que compreende o papel de leitura como mais um
elemento de criação da obra. Importante destacar também que em “Pierre Menard” o
narrador retoma a biografia de um Menard já morto e cujas páginas da versão do Quixote
foram perdidas. Essa lacuna sobre a qual se instala a escrita e a narração é reiteradamente
repetida em Borges e parece indicar para o próprio lócus problemático de onde o autor
faz a ficção: o lugar do invisível, que é também o lugar da tradução – e, como defendo
nessa tese, o da cegueira.
Além disso, a tentativa de recriar o Quixote por Menard não foi realizada com o
texto integral de Cervantes, mas com três capítulos da primeira parte do livro espanhol:
capítulo IX, que traz a crítica ao texto de Benengeli; XXXVIII, que traz a disputa bélica
em que o homem de armas é visto como mais eminente do que o homem de letras e um
fragmento do capítulo XXII em que há um “diálogo com Ginés de Passamonte, sujeito
que está escrevendo um livro sobre sua própria vida e que declara que o livro está

devido, justamente, à tematização e desenvolvimento que ele dá, de maneira inovadora, ao tema. Um
trabalho importante de destacar a respeito: KRISTAL, Efrain. Invisible Work:Borges and Translation.
Nashville: Vanderbilt University Press, 2002.
23
“Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou
uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir
algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.”
(BORGES, 1998 p. 493)

37
obviamente inacabado porque sua própria vida ainda não acabou” (PONTES; MARTINS,
2020, p. 115).
Segundo Newton de Castro Pontes e Edson Soares Martins (2020), esses trechos
revelam problemas literários que interessam a Borges na medida em que ele rompe com
a diegese ao introduzir a crítica literária como dicção da narração (op. cit., p. 117). É esse
o sentido, por exemplo, das citações e do foco do narrador não no texto em si do Quixote,
mas nas leituras que se fazem dele, aproximando, assim, a noção de leitura da de escrita.
Já em “Los traductores de las 1001 Noches” Borges desenvolve uma ideia
parecida24. Num texto mais ensaístico que o anterior, o autor discute três traduções das
Mil e uma noites, um livro que reúne um compilado de histórias árabes que foram
catalogadas ao longo dos séculos e cujo manuscrito é do século IX: uma de um inglês,
capitão Burton; uma de um francês, doutor Mardrus, e uma de um alemão, Enno
Littmann. Nesse texto, o autor percorre o modo como a tradução é apropriada por esses
diferentes tradutores para revelar a relação de suas versões com o contexto histórico e
social atual de cada um ao invés daquele presente na obra que lhes serve como original.
Nesse sentido, Borges apresenta dois modos mais gerais de traduzir: um de
Newman, que defende uma tradução mais literal do texto original, e uma de Arnold, que
defende uma tradução mais concisa e sintética. Para Borges, porém, o que deve chamar a
atenção na tradução não é a diferença ou usabilidade desses dois modos, mas o próprio
tradutor e os seus “hábitos literários” (BORGES, 1998, p. 441). Ou seja, o que interessa
na tradução é o modo com que o tradutor lê o original e imprime sobre ele a sua marca.
Por isso, para Borges a boa tradução é aquela que aplica a “infidelidade criadora” (op. cit.
453) – talvez esse seja o sentido também em que Borges recupera o significado de
tradução como (boa) traição25.
Conforme Josefina Ludmer (2021a), essa ideia de autoria em que o autor imprime
a sua marca sobre a obra diz respeito ao modo com que Borges foi alçado à cânone
literário. Ainda segundo Ludmer (2021a), esse processo de canonização de Borges é
correlato à autonomia literária da Argentina, que, na Argentina, é um processo que se
estende do século XIX e segue até meados do século XX. Isso e dá com o estabelecimento

24
Entre nós, o estudo dos textos de Borges sobre a tradução tem início nos anos 1980/1990 e tem uma
bibliografia extensa. Cf. ARROJO, Rosemary. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. Rio de Janeiro:
Imago, 1993; COSTA, Walter Carlos. Borges, o original da tradução. Cadernos de Tradução, Florianópolis,
n.15, 2005, p. 163-186.
25
Cf. CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: _____. Metalinguagem & outras
metas. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1992.

38
do Estado-nacional, o florescimento de editoras nacionais – como a Emecé, editora que
vai publicar as Obras completas de Borges –, o que culmina o que se chama de “alta
literatura”, marcada pela presença de um projeto literário explicitado pelo autor, na qual
obra e texto são, nessa perspectiva de literatura autônoma, bem estabelecidos e fixados
discursivamente.
Voltando para a tradução de Mattoso de Fervor de Buenos Aires, na tradução do
bruxo podólatra, o elemento pragmático, que é expresso pelo consumo da obra em outro
período histórico e em outra língua, se desprende da simples articulação sintática e
recoloca novos problemas para o leitor, para o autor e para a obra, como: qual o papel que
palavras de uso especificamente local – como “La Recoleta”, que é o nome de um
cemitério – e estrangeiro – como “Afterglow” – ajudam a significar no texto? Qual a
possibilidade de leitura que um texto em Português, forjado para um leitor de português,
propicia ao ler sobre uma realidade estrangeira? Qual o lugar da tradução na
leitura/criação – para usar uma temática presente nos textos borgianos – da obra?
Certamente, para o leitor, qualquer que seja ele, haverá uma dificuldade na leitura
do texto. Isso se dá por razões hermenêuticas mais imediatas que estão ligadas à
dificuldade que qualquer atividade de leitura coloca para o leitor, mas também pelo
aspecto específico da obra borgiana, que requer essa dificuldade como meio expressivo
de colocar problemas de interesse filosófico e literário, e pela dificuldade intrínseca à
própria tradução ao lidar com a questão da tradução da linguagem também do ponto de
vista do leitor, e não mais do tradutor.
Parte dessa dificuldade, todavia, é respondida pelo próprio interesse de Borges
pelo universal, que garante uma redução dos desafios de leitura em termos de distância
geográfica, e repercute na tradução de Mattoso com o foco não na repetição das cadeias
sonoras e do ritmo físico do texto, mas da construção de imagens poéticas semelhantes.
Nesse sentido, significativo dessa discussão é o poema “Amanhecer”, pois, por
mais que Fervor, de modo geral, procure apresentar algum elemento nacional para debate,
o que aparece aqui é uma mudança de plano, de modo a discutir uma dimensão universal
do fazer poético que só é possível por meio da noite – uma palavra que também aponta
para aquele mesmo campo semântico da sombra, do escuro, da morte, e, como o eu lírico
defende, da poesia.

AMANECER En la honda noche universal


que apenas contradicen los faroles

39
una racha perdida
ha ofendido las calles taciturnas Na profunda noite universal
como presentimiento tembloroso que apenas contradizem os postes de luz
del amanecer horrible que ronda uma ventura perdida
los arrabales desmantelados del mundo. ofendera as ruas taciturnas
Curioso de la sombra como pressentimento trêmulo
y acobardado por la amenaza del alba do amanhecer horrível que ronda
reviví la tremenda conjetura os arrabaldes desmantelados do mundo.
de Schopenhauer y de Berkeley Curioso pela sombra
que declara que el mundo e acovardado pela ameaça da aurora
es una actividad de la mente, revivi a tremenda conjectura
un sueño de las almas, de Schopenhauer e de Berkeley
sin base ni propósito ni volumen. que declara que o mundo
Y ya que las ideas é uma atividade da mente,
no son eternas como el mármol um sonho das almas,
sino inmortales como un bosque o un río, sem base nem propósito nem volume.
la doctrina anterior E já que as idéias
asumió otra forma en el alba não são eternas como o mármore
y la superstición de esa hora mas imortais como um bosque ou um rio,
cuando la luz como una enredadera a doutrina anterior
va a implicar las paredes de la sombra, assumiu outra forma na aurora
doblegó mi razón e a superstição dessa hora
y trazó el capricho siguiente: quando a luz como uma trepadeira
Si están ajenas de sustancia las cosas vai implicar as paredes da sombra,
y si esta numerosa Buenos Aires persuadiu minha razão
no es más que un sueño e traçou o capricho seguinte:
que erigen en compartida magia las almas, Se estão alheias de substância as coisas
hay un instante e se esta numerosa Buenos Aires
en que peligra desaforadamente su ser não é mais que um sonho
y es el instante estremecido del alba, que erigem em compartilhada magia as
cuando son pocos los que sueñan el mundo almas,
y sólo algunos trasnochadores conservan, há um instante
cenicienta y apenas bosquejada, em que periga desmedidamente seu ser
la imagen de las calles e é o instante estremecido da aurora,
que definirán después con los otros. quando são poucos os que sonham o mundo
Hora en que el sueño pertinaz de la vida e só alguns notívagos conservam,
corre peligro de quebranto, cinzenta e apenas esboçada,
hora en que le sería fácil a Dios a imagem das ruas
matar del todo Su obra! que definirão depois com os outros.
Hora em que o sonho pertinaz da vida
Pero de nuevo el mundo se ha salvado. corre perigo de quebranto,
La luz discurre inventando sucios colores hora em que seria fácil a Deus
y con algún remordimiento matar de todo Sua obra!
de mi complicidad en el resurgimiento del
día Porém de novo o mundo se salvou.
solicito mi casa, A luz discorre inventando sujas cores
atónita y glacial en la luz blanca, e com algum remorso
mientras un pájaro detiene el silencio de cumplicidade no ressurgimento do dia
y la noche gastada solicito minha casa,
se ha quedado en los ojos de los ciegos. atônita e glacial na luz branca,
(BORGES, 1984, p. 38-39) enquanto um pássaro detém o silêncio
e a noite gasta
permaneceu nos olhos dos cegos.
AMANHECER (BORGES, 1998, p. 36-37)

40
O poema “Amanecer” traz mais do que simplesmente a formulação de uma ideia
platônica de noite universal. Ele recorre a uma série de imagens visuais – a ideia como o
lugar metafísico não só do filósofo, mas também do poeta e do visto; a trajetória de uma
existência forjada pelo modo com que se mobiliza a luz; a noite como um momento
mágico em que o impossível se torna possível (“Hora en que el sueño pertinaz de la vida/
corre peligro de quebranto,/ hora en que le sería fácil a Dios/ matar del todo Su obra!”) e,
sobretudo, a imagem da conservação do passado nos olhos dos cegos (“y la noche gastada
/se ha quedado en los ojos de los ciegos”).
Nessa perspectiva, esse último recurso aponta para uma característica que
relaciona a cegueira com algo recorrente na história da literatura, que é o caso da vidência.
Mesmo porque, vidência é o nome dado ao atributo daqueles que usam os olhos para ver
(o que clinicamente, recebe o nome de pessoas normovisuais), mas é também o nome
dado à qualidade dos que enxergam para além dos limites sensíveis imediatos. Nesse
último caso, a essas pessoas videntes também utilizamos como sinônimo o substantivo
profeta.
Em certo sentido, assim, profeta é aquele que não usa os olhos físicos, mas os
espirituais, aquele que enxerga algo além e através das coisas, antecipando o futuro e
desvelando do mundo a sua aparência. É essa, por exemplo, a característica de Tirésias
na tragédia de Édipo rei, de Sófocles (2001). Na história grega, Tirésias expõe a corrupção
do poder para Édipo, que, após cometer o parricídio e casar-se com a sua própria mãe,
também fica cego. Porém, ao contrário de Tirésias, a cegueira de Édipo não lhe garante
ver mais além, pois ela surge como uma maldição que se abate sobre Édipo, de modo a
forçá-lo a ficar condenado a ver a si mesmo, como um olhar que se volta para dentro e
para sempre. Ainda assim, em Édipo em Colono (2002), continuação da obra de Sófocles,
em que, com a cegueira, Édipo se torna sábio, decidindo sobre o seu destino antes de
morrer, e faz com que a sua voz enxergue por ele. Uma voz que não capta uma luz de
fora, mas que, ela mesma, é fonte e lócus da própria luz.

41
2.1 Entre o olhar e a visão

Nesse contexto, a relação entre ver, conhecer e saber excede, em muito, a questão
meramente literária e se imiscui na própria dinâmica do pensamento ocidental. Platão,
por exemplo, defendia que a tarefa dos filósofos era a de concentrar um ver que permitisse
ter acesso à essência das coisas (NOVAES, 1988, p. 10-11). Consequentemente, a
Forma/Ideia era o próprio visto. Já Aristóteles, ainda que contrariamente a Platão
postulasse um comprometimento ontológico com o mundo sensível ao invés de conceber
um mundo apenas das Formas, defendia que os olhos, mais do que qualquer outro órgão,
estavam conectados ao saber (CHAUÍ, 1988, p. 38)26. Dessa forma, tal concepção
permitiu a ambos, ainda que de modos radicalmente distintos, promoverem uma mudança
no olhar, orientando-o numa direção metafísica (BORNHEIM, 1988, p. 89-90).
Já entre os primeiros teólogos medievais, a inspiração platônica fez do olhar uma
atividade que criava um vínculo com o espaço interno do indivíduo. Com Santo
Agostinho, que condena fortemente o pecado da visão mundana, esse espaço ganhou a
forma de uma interioridade (BORNHEIM, 1988, p. 90), marca de uma experiência
subjetiva e pessoal que tinha como télos fazer conectar a consciência humana com a “luz
natural”, a centelha do intelecto divino que já está presente no homem.
No Renascimento, as transformações técnicas e científicas transformaram o olhar.
Como produto dessas mudanças, surgiu a perspectiva como modo de operar uma junção
entre macrocosmo e microcosmo (BOSI, 1988, p. 74). O desenvolvimento do aparato
técnico, todavia, ao invés de unir, fez separar, decompondo a densidade do espaço em
grandezas materiais mensuráveis e observáveis. Assim, foi com o telescópio que Galileu
separou os olhos da visão. Segundo Marilena Chauí,

O telescópio, objeto tecnológico (mais do que simplesmente técnico), é


a razão corrigindo o olhar, ensinando-o a ver, libertando-o de si mesmo
ao mostrar-lhe que a umidade dos olhos, refletindo e refratando a luz,
modifica os raios luminosos, deforma os objetos e incapacita o olho
para a boa visão. Assim, a imagem visual será objetivamente verdadeira
quando e somente quando o telescópio corrigir a imagem subjetiva

26
Na crítica literária, De Man (1986) ressalta a distinção entre a teoria literária, que surge pela leitura
literária, compreendendo-a como mais imanente ao texto e à materialidade textual, e a Teoria (filosófica),
que procura ultrapassar o texto literário, buscando nele um nível de generalidade que está além de sua
superfície. Portanto, ele condiciona a resistência da teoria (literária) à Teoria (filosófica) a um embate entre
dois modos de ver ou entre-ver o material sensível e, quando apreendido, epistemológico, já que o theoros
é quem articula esse problema de análise crítica.

42
ilusória, isto é, aquilo que nossos olhos não equipados vêem. O
essencial no telescópio não é que aproxime ou aumente objetos, mas
que transforme o próprio ato de ver, fazendo-o resultar do ato de
conhecer, depositado no instrumento. O perspicillum cria o olhar
perspicaz, separando os olhos e a visão, fazendo desta o modelo
intelectual daqueles. (CHAUÍ, 1988, p. 55)

A correção da visão operada pelo telescópio teve como objetivo encontrar um


ponto de equivalência que fosse verificável por qualquer outro olhar humano. Desse
modo, a noção de objetividade operada pela nova ciência teve como correlato a
introdução da técnica como extensão do homem27. Contrapunha-se, assim, do ponto de
vista de uma atitude metodológica, uma ciência contemplativa e teórica da Antiguidade
a uma ciência ativa e experimental dos modernos.
Com René Descartes, esse olhar sofre uma inflexão. Descartes aproveita do
Renascimento somente o “o olho central e imóvel da perspectiva geométrica”. (BOSI,
1988, p. 75). Como resultado, rebaixa o corpo e o isola da mente. O olhar agora, ao
contrário do que acontecia com o olhar platônico, que era iluminado de fora, passa a ter
uma luz própria, sendo irradiado a partir da razão, que, instalada no ego, ilumina o mundo
e percebe as coisas (LEBRUN, 1988, p. 23-24).
Com a Revolução Industrial e o aparecimento da cidade moderna, surgiu uma
nova organização sensível para o olhar. Conforme Michel Foucault (1999), o predomínio
da visão e da objetividade configurou a episteme moderna: um tipo de racionalidade que
envolvia técnicas de governo que atingiam os estratos mais íntimos e distantes da vida
social. O modelo do panóptico de Jeremy Bentham (FOUCAULT, 2014) é revelador
desse movimento: não se trata mais de iluminar todo o espaço, mas de fazer com que a
distribuição espacial entre luz e sombra introjete no indivíduo a regra de cumprir o dever
de obediência ao Estado.
Nesse sentido, segundo Jonathan Crary (2012), no século XIX o estatuto da visão
se entrelaçou com o da modernidade para produzir tanto o observador quanto, e ao mesmo
tempo, um conhecimento sobre ele – com a separação dos sentidos e a primazia da visão;
com a mudança da perspectiva do olhar, passando de objetivo para subjetivo, o que
implicou uma intensificação pela máxima objetivação ao mesmo tempo em que a visão
subjetiva se produzia como um objeto de saber pelas ciências; com a participação da
câmara escura, da fotografia e do estereoscópio na reconfiguração do sujeito que observa

27 Essa ideia esteve no início da ciência moderna e foi defendida por Francis Bacon (MARCONDES, 2007,
p. 184).

43
e que é observado; com a reorganização industrial do corpo no século XVIII para
privilegiar a visão; entre outros.
Além disso, esse predomínio da visão veio atrelado a uma nova disposição do
olhar, que deixou de ser uma atividade segura realizada pela razão. Ainda consoante Crary
(2012), o estereoscópio marcou essa mudança ao tornar indiscernível a separação entre
dentro e fora, sujeito e objeto. Assim, orientado por uma perspectiva binocular (não
vemos a mesma coisa em cada olho), a representação perdeu a sua autonomia,
transformando-se em efeito da atividade de um sujeito que vê28.
Destarte, o estereoscópio expressou, por sua vez, a concretude de uma experiência
moderna que se estabeleceu a meio caminho entre subjetividade e objetividade, como
ocorre na poesia de Charles Baudelaire29, com a observação do eu lírico imprimindo a
sua marca por meio das sensações experimentadas pelas deambulações, ou na de Cesário
Verde, que produz a sua poesia finissecular nesse mesmo registro ao “transpor a
tradicional subjetividade do lirismo na expressão objectivada de um 'eu' funcional (como
o das personagens do romance realista)” (MACEDO, 199, p. 20). Com isso, é como se
ambos destacassem a diferença que se processa na sucessão de imagens que são exibidas
no aparelho ao compor as cenas urbanas por meio de uma justaposição de momentos
significativos. Esse é também o elo que aproxima e envolve o estereoscópio na
experiência cinematográfica que vai surgir no final do século XIX.
De todo modo, o estereoscópio relaciona a visão a uma profundidade e
tangibilidade plenamente visual. Conforme Crary,

O efeito desejado com o estereoscópio não era simplesmente a


semelhança, mas a tangibilidade aparente, imediata. Trata-se,
entretanto, de uma tangibilidade que se transformou em uma
experiência puramente visual, de uma espécie que Diderot nunca
poderia ter imaginado. (CRARY, 2012, p. 120-122)

28 No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant (1999, p. 39) afirma que o que ele realiza
com a Crítica é uma revolução copernicana que consolida a ruptura radical que a modernidade tinha
iniciado com o ceticismo quanto à falsa pressuposição de um conhecimento inteiramente independente do
sujeito. Para Kant, ao contrário, não existe objeto sem sujeito. Logo, o primado do conhecimento não está
na metafísica, mas na epistemologia – o que inverte a direção da antiga ordem de aquisição do
conhecimento (mundo > sujeito) para uma que dá predomínio à atividade do homem (sujeito > mundo).
Essa mudança de paradigma, porém, é diferente da que Crary percebe, pois, para, ele há uma normatividade
que se torna presente com a observação e que é reelaborada empiricamente; o que para Kant, por seu turno,
diz respeito às condições transcendentais referentes ao sujeito, qualquer que seja ele.
29 Este é também um sintoma do que Walter Benjamin percebe a partir da mudança na estrutura da
experiência que a poesia de Baudelaire expressa no século XIX (BENJAMIN, 2017, p. 106).

44
Na filosofia contemporânea, Merleau-Ponty deu um procedimento formal para
essa questão que foi trazida à luz pelo estereoscópio. Conforme o autor, o olhar implica
uma relação com o corpo, uma intencionalidade, uma direção, um movimento. Num giro
literário, é como se para ver fosse preciso ser o homem da multidão de Baudelaire: uma
figura que deseja o choque promovido pelo contato com a experiência impessoal da
multidão.
Assim, para ver seria preciso também estar envolvido numa prática em que o
próprio ato da visão é, ao mesmo tempo, objeto e agência de si mesmo, de modo que só
se vê ao invadir as coisas, possuindo-as à distância (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 98),
mas sem nunca se apropriar delas. Desse modo,

O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível.


Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no
que vê então o “outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele
se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por
transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for
assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas
um si por confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele
vê, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si
que é tomado portanto entre coisas, que tem uma face e um dorso, um
passado e um futuro...
Esse primeiro paradoxo não cessará de produzir outros. Visível e
móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no
tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se
move, ele mantém as coisas em círculo a seu redor, elas são um anexo
ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne,
fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo
do corpo. Essas inversões, essas antinomias são maneiras diversas de
dizer que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, lá onde persiste,
como a água-mãe no cristal, a indivisão do senciente e do sentido.
(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 19-20)

Nessa perspectiva, ver é como um “aceder a um ser latente” (NOVAES, 1988, p.


14). Essa natureza dinâmica e cinética do olhar reelabora o lugar do visível para o
pensamento. Como resultado, pensar é colocar, a cada vez, o problema: o que é ver? O
que é o visível? (MERLEAU-PONTY apud NOVAES, 1988, p. 10). Destarte, dentro
desse quadro teórico, o invisível se converte em condição de possibilidade transcendental
para o próprio visível ao invés de se tornar uma simples negação deste – pois o invisível
é “aquilo pelo que o visível é visível, seu avesso e estofo, uma de suas dimensões, uma
ausência que conta no mundo” (CHAUÍ, 1988, p. 58).
Assim sendo, do ponto de vista da construção literária, o invisível estaria para o
visível como o cego para o vidente ou a imaginação para o autor. Desse modo, como

45
elemento presente na cultura, a cegueira seria a contraparte de uma modernidade que se
iniciou com as Luzes da Razão, num projeto de universalização da luminescência para
todo o globo30, e que agora se esforça para invadir a última camada do corpo humano.
Não à toa, por isso, um dos registros da biopolítica mapeados por Judith Butler (2015) se
refere, justamente, ao problema da visibilidade dado pelo reconhecimento de direitos – o
que se constitui, também, como um limite de inteligibilidade para o humano.
Em Mattoso, o problema que os olhos dão a ver e pensar comparece em seu
primeiro poema, “Kaleidoscópio”, publicado no livro Apocrypho Apocalyse de 1975 e
depois republicado no Jornal Dobrabil em 1977 (fig. 2).

30 O que seria o imperialismo do século XIX, senão a guerra continuada por uma disputa do espaço
luminoso do mundo para controlar, esquadrinhar e governar? É aqui que vemos o projeto colonial se
articular com uma teoria da iluminação (razão e iluminação são sinônimas, neste caso). É aqui que se vê o
Coração das trevas, de Conrad, como um contraponto. Essa crítica à iluminação está presente, mas de
maneira localizada ao desenvolvimento do capitalismo, por exemplo, na teoria crítica da Escola de
Frankfurt e espraiada em diversos autores críticos ao colonialismo e ao imperialismo da razão ocidental,
como Franz Fanon, Jacques Derrida, Lélia González, Homi Bhabha etc. A esse respeito, Ailton Krenak
(2020) estabelece a crítica ao projeto colonial devido justamente a essa oposição entre luz e sombras que
se assenta sobre uma ideia fixa que sedimenta os lugares de eu e outro: “A ideia de que os homens europeus
podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade
esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse
chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui
na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em
diferentes períodos da história”. (KRENAK, 2020, p. 11)

46
Figura 2. Primeiro poema de Glauco Mattoso: “Kaleidoscópio”. #Paratodosverem: reprodução fac-símile da primeira
página, em formato A3 dobrado, do Jornal Dobrabil. Entre muitos textos, está presente no centro esquerdo o poema
“Kaleidoscopio”.

KALEIDOSCOPIO

Relendo cartas com olho unico.


Delenda Carthago com olho punico.
Lenda escripta com olho runico.
Lente elliptica com olho conico.
Mente espirita com olho cynico.
Demente hysterica com olho clinico.
Serpente herética com olho bíblico.
Sentença enclítica com olho obliquo.
Substancia lithica com olho liquido.
Sciencia critica com olho lógico
Verdecencia cryptica com olho glauco
Experiencia optica com olho cego.
(primeiro poema de) GLAUCO MATTOSO (MATTOSO, 2001a, p.
12)

Nesse poema, o eu dramático constrói um jogo em que a palavra olho aparece


numa estrutura paralelística em que a cada verso o olho recebe um novo adjetivo que o
altera numa disposição que sugere, segundo Marcelo Diniz (2018), uma estrutura infinita.
A forma comutatória, o jogo de palavras e de sentido e os elementos que fazem perceber

47
o olho como um lugar destinado a uma experiência da cegueira na poesia, que é exposto
nos dois últimos versos – “Verdecencia cryptica com olho glauco / Experiencia optica
com olho cego” –, ratificam, por meio da assinatura, a existência de um poeta condenado
(no sentido em que a palavra condenação incorpora o destino trágico) à cegueira.
Consoante Diniz,

Kaleidoscopio é uma Semente hermética: a multiplicidade de


leitura própria da arte comutatória se estabelece em tensão com o
centro, o olho, a cegueira, que virá a se tornar em um dos
principais eixos narrativos da obra em sonetos de Glauco
Mattoso. Tensão que parece resultar em um poema tão lúdico e
impessoal quanto obsessivamente biográfico em seu destino
narrativo. A parologia obsessiva de Kaleidoscopio elabora a
vertigem epifânica da linguagem, a virada em que verdecencia
cryptica da cegueira anunciada, em lugar de enclausurar o sujeito,
é assumida como assinatura futura de uma experiência da
cegueira. Kaleidoscópio é o primeiro poema cuja assinatura é de
Glauco Mattoso. (DINIZ, 2018, p. 21)

Essa estrutura finita, operada pela forma comutatória, indica também a existência
de um olhar sem objetivo, errante, que se vê olhando – o olho tangível do Merleau-Ponty
(2013)? –, como um olho que se olha no espelho e, nesse percurso, entre um olho e outro,
a visão se configura como uma espécie de entre-visão, lugar, a um só tempo, do poeta e
do cego, como se percebe nessa manchete da mesma edição do Jornal Dobrabil, também
assinada por Glauco Mattoso:

Figura 3. Fragmento de um texto de Glauco Mattoso no Jornal Dobrabil. #Pratodosverem: escrito com diversas
bolinhas, depreende-se a frase de Glauco Mattoso: “Me atrevo a entre ver através da treva”.

48
Já em Borges o olhar é concentrado e virtuoso. Com isso, ele não escreve uma
cena, como o faz Mattoso, em que o olhar se concentra no esquadrinhamento do espaço
e se constitui, em boa parte dos casos, como a apresentação de uma cena teatral. O
trabalho de Borges, por outro lado, é o de deixar a descrição para que o leitor complete,
fazendo com que a complementaridade entre obra e leitor signifique um melhor
aproveitamento daquilo que é apresentado ou narrado nos textos. Segundo Denise
Schittine,

Seja por sua cegueira ou por excesso de abstração e lógica, Borges


acreditava que um texto deveria ter a força para gerar imagens mentais
poderosas nos leitores. O processo de leitura é a conjugação de ver as
palavras e dotá-las de sentido pela voz e pelas imagens interiores. Esse
processo sempre o encantou não só como leitor, mas também como
autor. Ele acreditava e defendia a ficção no lugar da realidade, a palavra
no lugar da imagem. Enfim, acreditava no “mundo de papel”, seu
universo de criação. (SCHITTINE, 2016, p. 203)

Nesse contexto, o tratamento do problema da cegueira em Borges não se dá apenas


a nível temático, mas como uma vontade de escrita. É verdade que a cegueira lhe chegou
tarde e que já tinha conquistado boa parte do prestígio que viria a ter depois. Porém, ela
foi para ele desde o início um problema, porque Borges gostava, sobretudo, de ler. Era
por meio da leitura que era convocado a escrever, e não, de modo geral, devido às
observações que fazia do mundo. Mesmo porque, apesar de gostar de fazer uma
caminhada noturna, a maior parte do tempo que lhe restava ele passava em casa, lendo
alguns poucos e decisivos livros. Por isso, uma série de temas (o problema do infinito, da
tradução, da ficção etc.) de seu extenso corpus literário partia de livros que havia lido e
que sempre retornava para ler.
Em outra perspectiva, com Mattoso, a cegueira possibilitou, por um lado,
condensar a sua escrita em temas que variavam extensivamente pouco no conteúdo e na
forma, mas, por outro, fez com que o seu projeto de escrita se transformasse numa
obsessão. Como resultado, taras e violências da infância foram trabalhadas e
retrabalhadas exaustivamente, como se o autor estivesse preso dentro de um circuito em
que a única coisa que lhe restava era escrever.
Assim como os personagens dos poemas de Mattoso vivem às voltas com um
desejo que precisam dar vazão, mesmo que esse desejo seja o de submissão, o mesmo
parece acontecer com o autor, que transfere a sua energia libidinal para o papel como
forma de cumprir a sua maldição – “o dom da decadência do Destino” (MATTOSO, 2004,

49
p. 57). Pois, se os personagens de Mattoso assumem o triste Destino como algo que
precisam continuar seguindo, como percebeu Marcelo Diniz (2018), assim também o
próprio Mattoso, como se realizasse uma continuidade entre autor e obra, não se vê livre
desse mesmo trágico Destino.
A teatralidade de Mattoso, por isso, não diz respeito apenas à composição da cena
e de ações dos personagens no espaço dramático que é gerado pelo poema, mas também
pelo modo como o eu lírico repercute o eu biográfico em um tipo de engajamento em que
não é necessário saber o estatuto de verdade do que é dito nos poemas, pois a mentira
ficcional é parte do contrato de leitura a que nós somos levados a aceitar junto com
Mattoso – que realiza um outro contrato: o do masoquismo.
Destarte, o aspecto negativo da cegueira percebido por Mattoso é contrastado com
o aspecto positivo compreendido por Borges, que via a cegueira como um estilo de vida
que lhe tinha garantido alguns dons, como o aprendizado de outras línguas, a escrita de
novos poemas e a produção de alguns livros, como Elogio de la sombra (BORGES, 1989,
p. 281). Conforme Mattoso,

Borges sustenta que a cegueira não é uma desgraça. Eu entendo que a


cegueira não é uma desgraça: é uma calamidade, uma catastrophe. Elle
diz que é uma bençam; eu digo que é uma maldicção. Em ambos os
casos, comtudo, ha sempre a coincidencia que nos approxima: a
compulsão de poetar, para protestar ou para pretextar. (MATTOSO,
2001)31

Na produção poética de Mattoso, o problema da cegueira surge depois,


temporalmente falando, da podolatria e do masoquismo32. O ponto em comum, porém,
entre esses três elementos na produção mattosiana é a performatividade, que aparece
como fator ontológico de seu projeto literário (DINIZ, 2018, p. 20). A performatividade
diz respeito à forma como Mattoso introduz a performance e o teatro em seus escritos,
fazendo com que um fio de narratividade extravase para além da verdade e da ficção (op.
cit., p. 31), de modo a estabelecer um outro protocolo de leitura, engajando novas
expectativas nos leitores.

31
Cf.: MATTOSO, Glauco. “A negação do negro (Borges e eu)”. Musa rara, 22 abr de 2013. Disponível
em: <https://www.musarara.com.br/a-cegueira-como-maldicao>. Acesso em: 28 out. 2019. A versão que
utilizei é do original atualizado ortograficamente pelo próprio Mattoso e que me foi enviado por e-mail no
dia 27 de outubro de 2019. Há um outro link que traz essa versão já modificada que foi enviada pelo próprio
Mattoso com a entrevista presente no apêndice: < https://blogocular.wordpress.com/2022/08/02/a-negacao-
do-negro-borges-e-eu/>.
32
É claro que para o heterônimo Glauco Mattoso a poesia é consubstancial à podolatria e ao masoquismo,
mas, nesse caso, refiro-me à trajetória literária biográfica de Pedro José Ferreira da Silva.

50
Com isso, quando Mattoso em Cegueira ordeira (MATTOSO apud DINIZ, 2018,
p. 22-23) convoca a figura de Tirésias como profeta cego, ele o faz de forma a subverter
as expectativas do mito grego, pois equivale Tirésias a um bebê e, nesse movimento,
frente à vulnerabilidade da situação, o profeta submete-se a quem tem poder. Consoante
Diniz,

A redução do profeta ao bebê parece descrever a conversão da cegueira,


com todo seu valor de fatalidade, segundo o traço da vulnerabilidade e
da redução do cego instrumento sexual do outro. Tirésias às avessas
emblematiza a condição bem recorrente no imaginário mattosiano: a
total submissão da condição sexual análoga à submissão da vida à
fatalidade. Condição sempre ambivalente, uma vez que a submissão
possui o rendimento erótico do gozo obsceno. (op. cit., p. 22)

Nesse contexto, a cegueira em Mattoso apresenta-se como a expressão de uma


violência que adquire sentido pelo masoquismo e pela podolatria – o desejo por tudo que
está relacionado ou envolve o pé (MATTOSO, 2006, p. 61). O masoquismo e a podolatria
aparecem como algo contingente, dividindo a sua atenção com a abjeção, a
experimentação de temas sexuais, a crítica social e desejante, como acontece no Jornal
Dobrabil (2001a) e em Manual do podólatra amador (2006), por exemplo. Porém, é com
a mudança para a fase cega que ambos, podolatria e masoquismo, são articulados com a
cegueira por meio da constatação de um fatum – o Destino trágico (DINIZ, 2018).
Em Manual do podólatra amador, livro publicado originalmente em 1986,
Mattoso faz um percurso próprio e pessoal sobre a sua trajetória literária/sexual com o
objetivo, nem sempre explícito, de expor as relações em que desejo, sexualidade e política
se tocam. No livro escrito em formato de ensaios, Mattoso não deixa de incorporar uma
dose de ironia e sátira entre as observações e análises que faz ao mesmo tempo em que
articula diferentes textos, livros e autores. Quando explicita a questão da podolatria em
sua trajetória, logo se volta para a questão da “profissionalização” daqueles que a utilizam
como uma forma de terapêutica, ainda que sempre haja a possibilidade de um
aproveitamento erótico, como explica em uma carta-convite em que convocam os homens
para um serviço “linguopedal”:

Este convite não é um daqueles pretextos para uma prestação de serviço


erótico remunerado. É realmente uma massagem, embora possa ter suas
funções eróticas. Tão científica quanto o do-in ou o shiatsu, a massagem
linguopedal produz efeitos relaxantes, terapêuticos ou afrodisíacos,
conforme a necessidade e a predisposição do “paciente”. (MATTOSO,
2006, p. 173)

51
Em 2018, Mattoso publica o livro Curso de reflexologia em que retoma o tema da
podolatria como uma possibilidade massoterapêutica, mas dessa vez centralizando a
atenção para a questão da cegueira, pois esse curso interessaria especialmente “aos cegos
em particular” (MATTOSO, 2018, p. 9). Isso porque, segundo o autor, os cegos seriam
mais propícios à profissão devido à baixa ocupação no mercado de trabalho e a
sensibilidade deles com o toque (op. cit., p. 10-11). Além disso, a massoterapia podiátrica
estabeleceria uma aproximação com a filosofia budista na medida em que ambas
articulariam as relações entre “eu” (massagista cego) e “outro” (massageado) numa
bipolaridade yin/yang (op. cit. p. 25), haja vista a troca de energias vitais durante a
massagem. É o que se discute no poema “Massagem fazer pode tanto bem”:

MOTTE 262

Massagem fazer pode tanto bem


àquelle que a faz quanto a quem a ganha.

GLOSAS

Principio japonez, chinez ou zen,


o facto é que, si holistico o conceito,
tal como a acupunctura e o cha bem feito,
massagem fazer pode tanto bem.
Melhor fará si aquelle que está sem
visão massagear quem de tamanha
desgraça não padesce: o pé se banha
em agua quente e appalpa-se na sola.
Trocada, a vibração aos dois consola:
àquelle que a faz quanto a quem a ganha.

Chamei “linguopedal” e assim funcciona


aquella que aprendi quando moleque:
se lava com saliva, até que seque,
a sola e o vão dos dedos, onde a zona
lambida todo o corpo activa e acciona.
Ceguinho que se preza não faz manha,
não nega, não rejeita nem extranha:
si aggrado alguem e algum prazer me vem,
massagem tanto pode fazer bem
àquelle que a faz quanto a quem a ganha. (MATTOSO, 2018, p. 31)

O eu dramático descreve as posições do massageador cego e do massageado como


duas relações de poder simetricamente opostas: o massageador está numa posição de
submissão (“Melhor fará si aquelle que está sem/ visão massagear quem de tamanha/
desgraça não padesce”) ao passo em que o massageado está numa posição superior. Essa

52
relação de submissão, porém, também gera seus ganhos para os “de baixo”, haja vista
que, na comunicação de energias que o cego e o cliente trocam – pois o cliente descarrega
as energias negativas no cego e o cego as capta e converte em energias positivas devido
à sua condição subalterna de indivíduo deficiente33 – ambos ganham.
Em certo sentido, há uma brincadeira no poema com a dialética do senhor e do
escravo descrita por Hegel (1992) ou, se quisermos ampliar a discussão para uma análise
culturalmente mais localizada, com a harmonia antagônica exemplificada por um dos
“construtores” da identidade nacional brasileira, Gilberto Freire (2003), em sua obra
Casa-grade e Senzala, na qual defende a ideia de uma convivência amistosa de contrários,
ou de uma democracia racial realizada.
No entanto, como brincadeira, o poema desfaz com o rigor filosófico e a descrição
sociológica para levar o tema da submissão para um outro lugar em que o desrealiza,
apresentando-o como uma paródia farsesca em que os humilhados – no caso, os cegos –
ganham de maneira mais decisiva, haja vista que, ao assumirem o protagonismo na cena
e na narração, são eles que, de fato, controlam a narrativa.
Além disso, nos últimos versos há uma virada apresentada na situação pelo eu
dramático ao deixar claro a atitude de manipulação do cego com toda essa situação. Essa
atitude de manipulação, aliás, é uma característica do masoquista, pois ele nunca chega a
assumir o papel de vítima (PHILIPS apud BUTTERMAN, 2005, p. 189). Segundo
Deleuze (1973), o masoquismo, ao contrário do sadismo, volta a sua crítica contra as
instituições, pois ele estabelece um contrato entre as partes (vítima e carrasco), mas um
contrato de modo a fazer com que se acentue a extrema severidade da lei, e não se procure
uma forma de abrandá-la, como se vê com a ideia de contrato social inscrita na tradição
da filosofia política moderna (DELEUZE, 1973, p. 99).
Para Deleuze (op. cit., p. 20), não pode haver um contrato entre sadismo e
masoquismo, pois o sádico rejeita a instituição de qualquer contrato, haja vista que ele
abre a possibilidade de criar pequenos anúncios que vem a aumentar o prazer do

33
“Pergunta-se: como é que elle só repassa boas vibrações ao cliente em vez das más? Simplesmente devido
à sua condição de ‘perdedor’ (no caso de ter ficado cego) ou de ‘privado’ (no caso do cego de nascença): o
indivíduo neutraliza symptomas alheios que, comparativamente à sua propria cegueira, tornam-se ‘males
menores’ e perdem efeito durante a manipulação do pé symptomatico, accabando por dissiparem-se. Ja as
energias positivas, por outro lado, tendem a se propagar em escala crescente nesse fluxo de ‘duas mãos’
entre o pé e a mão, uma vez que, para o cego, seu cliente normovisual approveita melhor as boas coisas da
vida, por mais queixoso que poctualmente esteja de algum ‘problema’ transitorio. Essa ‘inveja’ do cego em
relação normovisual resulta benefica para ambos, uma vez que, absorvida pelo massotherapeuta, a
‘vantagem’ do normovisual é ‘devolvida’ ao invejado, cabendo ao invejoso, por sua vez, a reciproca
vantagem de sentir-se gratificado por bem exercer sua actividade e por ganhar a approvação do paciente,
sendo ou não remunerado o seu serviço.” (MATTOSO, 2018, p. 25)

53
masoquista, algo que o sádico rejeita por não querer ver a sua vítima contente e perder a
sua posição de autoridade total. Além disso, é fundamental no pensamento de Deleuze a
existência de uma espécie de dimensão “heautônoma” em que a existência do sadismo
comporta uma dimensão masoquista que é própria do sadismo e a existência do
masoquismo, por outro lado, comporte uma dimensão sádica deste último (op. cit., p. 40-
41), sem que para isso seja possível uma fusão entre ambos. Porém, essa impossibilidade
teórica da existência do sadomasoquismo é confrontada no longo poema “Submisso
Compromisso”, publicado em 2019, na antologia Theatro Lyrico:

[4] SUBMISSO COMPROMISSO (maio/junho/2010)

Um pacto sexual que alguem invente


ainda deixaria algo pendente.
Correlação de forças raramente
no sadomasochismo encontra a gente.

O verdadeiro sadico não quer


que a victima desfructe da tortura
e tanto faz ser homem ou mulher.

Masoca é mais complexo: ou o subjeito


que soffre goza e finge só soffrer,
ou só finge soffrer tendo prazer,
ou soffre mas não tem qualquer proveito.

Este ultimo só goza si puder,


mais tarde, masturbar-se. O algoz procura
alguem que jamais goze, eis seu mester.

Um pacto entre os dois typos ha quem tente,


mas só quando um for cego e outro vidente.
Possivel tal contracto certamente
será, por razão basica e evidente:

54
Seus olhos, quando o sadico os puzer
em cyma de quem vive na mais pura
cegueira, lhe dirão: é de colher!

Um cego que ja viu, cujo defeito


privou-o desse dom, sob o poder
de alguem que o faz soffrer e que o quer ver
nas trevas para sempre, é o par perfeito.

Ainda si ao masoca gozo der


ser cego aos pés de quem até lhe fura
os olhos, proporção não tem qualquer.

O sadico estará sempre contente


e o cego será cego eternamente.
“Na practica, funcciona como, o tracto?”,
perguntam-me e, em detalhe, aqui eu relato:

Eu quero ver o cego se exforçando


ao maximo. Assim, provas eu imponho
e o puno si relucta ao meu commando.

Privado da visão, elle tacteia


e appalpa o que lhe surge pela frente.
Pois bem: impedirei que o cego tente
usar a mão, que às costas algemei-a.

Terá que adjoelhar-se e, então, eu mando


que as fuças exercite. Estou risonho,
attento ao que elle, aos poucos, vae fuçando.

Treinando a habilidade, meu sapato


irá, pois, descalçar, si for sensato.
Si o cego argumentar não estar apto

55
a usar a bocca, o açoite o instiga ao acto.

Em volta dum “genupede” é que eu ando,


lambadas lhe applicando, e o pé lhe ponho
na cara, até que diga “Sim!”, chorando.

Então me sento, e o cego que me “leia


nos lábios” o desenho saliente
na sola do sapato e que lhe aguente
o peso, até chegar a vez da meia.

Os dentes no cadarço eu concordando


estou que elle utilize. Nem por sonho,
porem, na meia! Alli, tem que ser brando!

Apenas com a lingua e o buccal tacto,


o cego põe descalço o meu pé chato.
Eu ponho os pés num pufe e o cego faz
aquillo de que o invalido é capaz.

Ja fora elle admestrado em, pelo chão,


buscar os meus chinellos e trazel-os
na bocca, às costas presa cada mão.

Vencer limitações é o desaffio


do invalido: terá que, apoz o pé,
meu cu lavar na lingua. Imponho até
que o faça assim que as tripas exvazio.

Barreiras hygienicas terão,


então, que ser rompidas, ja nos pellos
anaes, ja no interior do rectal vão.

A lingua que se lixe, sejam más

56
ou boas as fragrancias do meu “ass”.
Emfim reeducado, o cego em paz
se sente ao me chupar o pau fodaz.

O sacco, elle ensaboa, e esse sabão


é a lingua babugenta. Seus modellos
de asseio agora teem nova noção.

A bocca do invidente, eu sentencio,


não pode sentir nojo: a funcção é
sujar-se emquanto limpa o meu chulé,
a minha merda e a gosma do meu cio.

Assim, no apprendizado, a fellação


perfaz uma licção sem desmazellos
nem falhas, como ao dono attende um cão.

Quem sabe um cego tenha, por detraz


do azar fatal, seu ecstase fugaz...
Contractos sexuaes são, pois, assaz
formaes e o mestre, apenas, se compraz. (MATTOSO, 2019, p. 19-22)

Nesse poema, Mattoso faz uma estudo sobre o problema do pacto sadomasoquista
e encontra uma solução: é necessário que o sádico seja vidente e o masoquista cego para
reequilibrar as forças por meio da desproporção que a deficiência causa. Assim, o lugar
da vítima jamais estaria no mesmo nível do carrasco na formalização do contrato, pois a
deficiência manifestaria, desde o início, um desnível entre ambos muito mais essencial e
necessário do que aquele do clássico contrato masoquista. Desse modo, o sádico não se
importaria com a formalização do contrato, haja vista que o prazer do cego não poderia
ser visto por ele e a condição da vítima colocaria o carrasco em posição ontologicamente
diferente da posição dela.
O ponto de Mattoso apresentado pelo eu dramático, assim, é que para ele a ideia
de contrato supõe uma posição de igualdade ontológica, mas não formal – pois o
masoquista quer que se estipule no contrato que ele é a vítima –, entre as partes, ao passo

57
que, no contrato sadomasoquista, o que ocorre é uma desigualdade ontológica que
nenhuma cláusula pode vir a resolver, haja vista que o centro da desigualdade está em
algo fora da linguagem e que não se pode consertar: a deficiência física.
Por outro lado, segundo Lucio Medeiros (2019) no prefácio da obra Theatro
Lyrico, a cada conjunto de 8 estrofes há uma mudança no padrão rítmico, que acontece
na metade da estrofe subsequente a esse conjunto, que “modifica as rimas, mantendo o
molde, para sinalizar desvios narrativos” (MEDEIROS, 2019, p. 7). Esses desvios
narrativos se somam ao ponto de vista do sádico vidente, que é performado pelo eu
dramático, de modo que, no conjunto, geram uma tensão – pois o contrato sadomasoquista
parece uma tentativa de fazer o eu dramático voltar-se contra si mesmo (já que em alguns
poemas ele aparece como um cego masoquista e em outros, como é o caso desse poema,
como vidente sádico). Consequentemente, a solução apresentada pelo eu dramático para
o problema do contrato sadomasoquista se coloca também como um problema literário,
visto que desfaz a unidade entre autor e escrita – uma unidade que se apreenta como
superficial – ao focar na expressividade do sadomasoquismo em termos de uma
despersonalização do autor – que, a despeito de ser cego, assume a posição de vidente no
texto literário.
Em “Peor cego”, poema da antologia “Vicio de officio”, publicada em 2020 em
formato e-book, apesar de não desenvolver formalmente essa questão, o eu dramático
mattosiano expõe as razões que fazem do cego o parceiro ideal para o sádico, mas, claro,
desde que ele rejeite o seu lugar de submissão – pelo menos, de maneira aparente. O que
toca, mais uma vez, no problema político da relação entre explorador e explorado,
presente numa sociedade tão desigual como a nossa:

PEOR CEGO [5714]

Um cara, analysando para mim


o sadico proverbio, foi bastante
feliz, ao fallar tudo o que me encante,
embora alguns contestem. Falla assim:

“Um cego, para mim, será ruim


si nada ver quizer, pois se garante
na sua teimosia, na constante
vontade de ir assim até seu fim.”

“O cego bom será quem ser refem


não queira da cegueira, quem se faça
rebelde contra a sua van desgraça,
sabendo que dó delle ninguem tem.”

58
“Ahi, sim, mais gostoso o tesão vem,
pois, vendo um impotente, no que passa
de extrema dor, ainda mais devassa
é minha picca, que elle chupa bem!” (MATTOSO, 2020, p. 49)

Nesse sentido, essa desorganização da política pelo desejo em Mattoso é realçada


por uma variedade de temas pornográficos que não se restringem somente à podolatria,
mas que passam por uma série de temas e de situações que ora apresentam diferentes tipos
de práticas sexuais e ora transformam todo o mundo em matéria sensível e desejante –
como é o caso de antologias como O poeta pornosiano34 (2011b), Poesia vaginal (2015),
entre outras.
Seja como for, o olhar do poeta cego percebe de maneira particular o mundo,
transformando-o em matéria sensível para, depois, investir a sua energia libidinal como
forma de criação e construção poética e literária. A não recursividade entre os lugares de
vítima e carrasco em Mattoso aponta em seu projeto literário, ao que me parece, para uma
intensificação da escrita que ganha um impulso obsessivo com a cegueira – não à toa, a
maior parte da sua produção literária se deu depois que ficou cego e ocorreu de maneira
quase febril35.
Com efeito, perder os olhos é também uma forma de exercitar um tipo de leitura
e de conhecimento radicalmente diferentes. No caso de Borges, o auxílio de sua mulher,
María Kodama; de sua mãe, que lhe serviu por muitos anos como ledora; e de amigos e
parentes, o fez recorrer a um exercício de alteridade no momento mais privado que até
então tivera: a leitura, já que a cegueira lhe privou da experiência da solidão presente no
ato mesmo de leitura. Como não aprendeu braile, ele necessitou de um ledor para
continuar cultivando essa experiência. Conforme Denise Schittine (2016), nos momentos
de leitura com o ledor, Borges fazia diversos comentários, passava de um livro a outro
sem cerimônia e auxiliava, inclusive, no processo de criação das obras.

Essas leituras compartilhadas geravam uma aliança especial, autor e


ledores dividiam um ato íntimo. Borges arranjava suas ideias, formava
o seu texto, e quem escrevia assistia assombrado ao ato criativo. Não
era uma das coisas mais fáceis, é verdade. Primeiro porque o ouro, o

34
Em minha dissertação trabalhei a relação entre política e desejo em O poeta pornosiano (2011b),
postulando uma inscrição dessa proposta ético-estético-política de Mattoso como um procedimento pós-
pornográfico. Cf. MARTINS, Baruc Carvalho. Pornopoiesis: o devir-corpo do mundo e o devir-mundo do
corpo. Niterói, 2019. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Instituto de Letras. Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2019.
35
É ilustrativo disso que no ano de 2020 Mattoso tenha publicado por volta de 20 livros entre versões
digitais e impressas.

59
elemento alquímico da construção do texto, não era entregue a quem
escrevia: Borges guardava cuidadosamente dentro do cérebro. Depois,
porque todo o processo de tessitura, de cunhagem e burilamento do
texto era desgastante e demorado. Borges ditava cinco ou seis palavras
que iniciavam o verso de um poema e depois pedia imediatamente para
que o amanuense as lesse. A frase seria relida duas ou três, quatro,
quantas vezes fosse preciso até que o autor encontrasse o fio da meada
e ditasse mais cinco ou seis palavras, nunca mais do que isso. Agora,
com um par de frases feitas, ditava a pontuação e pedia novamente para
o ledor reler o trecho, enquanto escutava, marcava o ritmo com as mãos:
como um maestro sem batuta. Depois de várias horas de trabalho,
finalmente se chegava a um verso que não precisava de correção
alguma. (SCHITTINE, 2016, p. 368-369)

A cegueira trouxe, ainda, uma maior exposição e visibilidade. Ao contrário de


Mattoso, Borges não costumava se colocar muito em seus textos. Apesar dos seus escritos
serem narrativas para homenagear amigos e, sobretudo, familiares – há uma clara divisão
na obra borgiana entre os temas paternos, que se ligam ao interesse pelo anglo-saxão e
literatura inglesa, haja vista a ascendência inglesa de sua avó, e maternos, que se ligam à
história militar da Argentina e de outros países da América Latina, por meio das figuras
ilustres de sua família. Além disso, ao mesmo tempo em que os temas foram se tornando
mais pessoais nos textos literários, Borges foi aparecendo cada vez mais em conferências,
como a em que ele proferiu o texto “La ceguera”, em 1977.
Segundo Schittine, o fato de estar cego contribuiu para garantir um distanciamento
para que ele pudesse expor o seu ponto de vista em aulas e conferências sem que ficasse
envergonhado ou tímido, como era comum em sua infância e adolescência (op. cit., p.
331). Uma outra hipótese que podemos lançar mão é a do processo de midiatização dos
escritores na segunda metade do século XX, sobretudo, devido ao advento da televisão36.
Muitos escritores passaram a ser chamados para programas de entrevistas, seus livros
foram promovidos em programas de grande alcance. Além disso, revistas, jornais e
cinema estampavam em imagens as celebridades do momento.
No caso de Borges, que, à época, já era uma estrela no mundo literário – sendo
lido e discutido por intelectuais do mundo todo, entre eles, Michel Foucault e Jacques
Derrida –, isso significou uma necessidade da exposição de sua imagem, até mesmo para
garantir a continuidade da fama.
Com isso, é plenamente compreensível que entre os textos de sua fase cega haja
tantas referências sobre a sua vida pessoal – algo que, conforme Moriconi (2002, p. 137-

36
Cf. SÁ, Sergio de. A reinvenção do escritor: literatura e mass media. 1. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.

60
138), se tornou comum na literatura por meio da mistura entre escrita e performance. Não
que a performance – concebida aqui como a participação do próprio corpo do autor como
um elemento integrante da obra – fosse o caso de Borges, que parecia rejeitá-la – pois
esta implicava um excesso de encenação e de exposição de si mesmo –, mas é nítido que
haja uma relação tecnológica que condiciona, juntamente com uma questão pessoal, a
proliferação de um material mais subjetivamente marcado na obra borgiana pós-1950,
seja no material textual, seja no paratextual, como é o caso das fotografias.

Figura 4. Fotografia de Jorge Luis Borges em 1983. Fonte: Getty Images. #Paratodosverem: foto em preto e branco
de Borges de perfil. Ele está velho e olha para frente. O olho da esquerda está cerrado e o olho da direita está aberto.
Ao fundo, há uma inscrição de identificação com o nome “Borges”.

Nesse sentido, é curioso que Josefina Ludmer (2021b) perceba como um dos
aspectos da pós-autonomia literária – a condição da literatura na atualidade, com o fluxo
textual constituído em rede, o sentido sem metáfora, o advento dos grandes
conglomerados editoriais etc. –, justamente, a reformulação do lugar do autor, que se
transforma em uma figura midiatizada e pública com o objetivo de garantir a venda de
livros (LUDMER, 2021b, p. 307), mas não reconheça isso em Borges, mesmo do ponto
de crítica que ela estabelece com o texto borgiano a partir do presente (LUDMER,
2021a).37
Não que, devido a isso, Borges se torne um autor pós-autônomo, como defende
Ludmer (2021a) ao utilizar outros critérios. A relativa elasticidade da classificação que

37
É verdade que entre o texto “¿Cómo salir de Borges?” (2000) e “Literaturas postautónomas: otro estado
de la escritura” (2013) há um intervalo de 13 anos, mas mesmo no último texto há diversos momentos em
que Borges é citado. Uma hipótese plausível para essa ausência talvez seja o foco, quase exclusivo, dos
teóricos nos textos de Borges dos anos 1940 – época em que se considera como momento em que os seus
melhores textos foram produzidos e em que, de fato, ele teve pouca exposição.

61
ela levanta para designar um projeto de escrita como pós-autônomo, por se situar no nível
da experiência propriamente cultural, torna o limite entre aquilo que é descrito como
autonomia ou como pós-autonomia um artifício de escolha do observador. É evidente,
porém, que, do ponto de vista da circunscrição de categorias literárias ou culturais, a
ciência empregada pela crítica literária não é – nem pode ser – exata.
A questão, contudo, é que, ao defender a produção borgiana como pós-autônoma,
ela coloca sob a mesma categoria uma coleção de objetos muito maior do que a esperada
e, com isso, desfaz a própria categoria, que, já sem um limite razoavelmente bem definido,
não pode se referir a nenhum objeto particular. Isso acontece porque não existe objeto
literário que não seja passível de uma análise cultural. Consequentemente, não há, de fato,
uma literatura pós-autônoma, nem sequer autônoma, na medida em que, para
compreender algo como literatura pós-autônoma, bastaria integrar essa literatura em um
sistema cultural. Porém, tanto o sistema cultural quanto a literatura são objetos de disputa
epistemológica, e não coisas dadas.
De todo modo, essa incorporação da subjetividade nas obras borgianas não se deu
de maneira tranquila. Em “Borges y yo”, texto presente no livro El Hacedor, publicado
em 1960, Borges discute a relação não só entre a vida pública – de autor conhecido e
celebrado no mundo – e a privada, mas também entre autoria e personagem:

BORGES Y YO

Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me
demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges
tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario
biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del sigo XVIII, las etimologías,
el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo
vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación
es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me
justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas válidas, pero esas páginas no
me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje
o la tradición. Por lo demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante
de mí podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa
costumbre de falsear y magnificar. Spinoza entendió que todas las cosas quieren perseverar en su
ser; la piedra eternamente quiere ser piedra y el tigre un tigre. Yo he de quedar en Borges, no en
mí (si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos otros o que en
el laborioso rasgueo de una guitarra. Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologías
del arrabal a los juegos con el tiempo y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y
tendré que idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del
otro.
No sé cuál de los dos escribe esta página. (BORGES, 1984, p. 808)38

38
“BORGES E EU

62
No texto acima, o narrador tenta descrever a postura de um duplo, que compartilha
com ele dos mesmos gostos, mas, mesmo assim, é diferente – pois há atributos nesse
outro que não há nele, como a qualidade de um “ator”. O narrador, dessa forma, parece
ver nisso um aspecto performativo pelo qual esse outro constitui não só a sua identidade
no espaço público, mas a sua própria ontologia. Além disso, a voz do narrador que fala
no texto é uma voz já mediada pelo outro, o Borges autor. Mesmo porque, por mais que
o narrador se refira à angústia do Borges “real” que tenta falar sobre o modo como que
sua vida é falseada e magnificada pelo Borges autor, o que se vê é uma personagem, mais
uma máscara criada pelo Borges autor – “Yo he de quedar en Borges, no en mí (si es que
alguien soy)”.
O que resta ao Borges real, então, é o esquecimento ou sua captura pelo Borges
autor. Em ambos os casos, porém, esse será um trabalho de memória, de como proceder
com a questão dos restos, do que fica de Borges no mundo, independentemente de ele ser
o Borges autor ou o Borges real. Desse ponto de vista, vemos entrar em jogo um
procedimento borgiano que rasura as fronteiras do real, convertendo a própria relação
entre realidade e ficção em um problema que só pode ser formulado do ponto de vista da
própria ficção – ainda que ele nunca transforme tudo em ficção, mas apenas indetermine
a sua fronteira39.
Nesse contexto, o problema da cegueira ganha especial sentido quando apresenta
a questão sobre a memória não só do ponto de vista da conservação do passado, mas da

Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez
já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo
correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico. Agradeçam-
me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa
de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em
atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para
que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que
alcançou certas páginas válidas, mas essas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja
de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a
perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou
cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que
todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu
permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do
que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me
dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora
são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do
esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.” (BORGES, 2000a, p. 206)
39
Sempre se pode argumentar que esse procedimento deriva de Dom Quixote, de Cervantes, ou que ele seja
característico da modernidade como um todo. Isso, no entanto, não invalida a possibilidade de uma leitura
que procura circunscrever um atributo (im)propriamente borgiano.

63
própria reelaboração do presente: de que modo a identidade pessoal, de homem público
ou de indivíduo, seja em Borges ou em Mattoso, pode apresentar aquilo que se diz ser?
Quais traços presentes nas obras trabalham a memória, tanto no plano do conteúdo quanto
no da expressão? Como a materialidade do livro pode implicar um problema para a
conservação da memória? Como um escritor cego lida com a questão da memória no ato
de escrita?
As questões levantadas por esses problemas são muitas e dizem respeito, em uma
primeira mirada, ao modo com que o trabalho de escrita reelabora, empiricamente, as
coordenadas dos projetos de vida de cada um. A lida com o papel, as leituras e releituras,
o trabalho com a organização mnemônica e reflexiva são apenas alguns elementos que
suscitam no autor, seja ele cego ou não, um estado de constante experimentação. Escrever
é colocar no papel um traço de vida40 mesmo nos casos em que autor e obra procuram
não coincidir – como é o caso de Borges –, um processo que só existe para nós como
experiência, mas num sentido diferente ao daquele empregado por boa tarde da tradição
racionalista, que via a experiência como um rebaixamento do que poderia a natureza
humana, devido à atividade dos sentidos.

2.2 A memória dos cegos

Na tradição ocidental, a experiência foi compreendida como uma das categorias


centrais para a apreensão do saber. Aristóteles, na Metafísica (2002), formalizando um
problema platônico que contrapunha experiência à ciência racional, afirma que a
experiência é derivada da memória, pois a memória permite a permanência no indivíduo
de recordações, e reúne essas recordações numa unidade que constitui o objeto (Met., I,
980b30-981a1). Assim, a experiência, ainda que não explicasse as causas de um
fenômeno ou implicasse um conhecimento universal, representou para Aristóteles uma
condição de possibilidade para a arte e a ciência41 (op. cit., I, 981a 1-2).

40
Para essa relação entre literatura e vida, ver: DELEUZE, Gilles. “A literatura e a vida”. In: DELEUZE,
Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 11-16.
41
Ciência, no sentido aristotélico, diz respeito ao conhecimento da causa dos fenômenos. Já a arte diz
respeito ao conhecimento universal que se adquire após analisar a recorrência de alguma coisa em casos
particulares. Nesse sentido, grosso modo, a arte – como técnica – está vinculada a um saber prático e a
ciência a um saber teórico.

64
Essa articulação entre experiência e epistemologia, iniciada na Antiguidade, teve
repercussões durante toda a história da filosofia ocidental, influenciando diferentes
correntes (como empiristas e idealistas) e autores, indo de Platão e Aristóteles, passando
por Tomás de Aquino e Ockham até chegar a Locke, Hume, Leibniz etc.42
De todo modo, essa proliferação da experiência no pensamento filosófico se
dirigiu no sentido de problematizar o seu papel na estruturação da ciência, seja em direção
a um sujeito que experimenta – e que, portanto, surge como origem de toda experiência,
sobretudo na tradição que se inicia com a modernidade –, seja da experiência como
método objetivo e impessoal para acessar o conhecimento.
No entanto, em Empirismo e subjetividade (2012), ao investigar o pensamento de
Hume, Gilles Deleuze defende que a experiência não é constituída por um sujeito, mas,
em sentido inverso, é ela que o constitui. Como resultado, a experiência seria antes um
processo e prática (experiência = experimentação) do que ferramenta para garantir a
legitimidade de um sujeito cognoscente.
Nessa perspectiva, o sentido de experiência como “experimentar”, “pôr à prova”,
restitui a essa palavra parte do significado presente no mesmo étimo grego (ULM, 2014,
p. 19). Segundo Hernán Ulm (2014), a experiência institui uma disputa legal que solicita,
ética e politicamente, um engajamento dos indivíduos na produção de uma arte ou um
saber43.
Desse modo, a experiência se converte em prática e se aproxima da atividade do
pensamento justamente pelo aspecto de violência que lhe institui:

Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está


fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência
de verdade e que são mais exigentes que ela. O que se está fazendo não
é o que acaba, mas menos ainda o que começa. A história não é
experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase
negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à
história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada,
incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica.
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 133)

42
Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5a ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
43
Este é o mesmo sentido do quid juris? kantiano, pois esse significado da experiência como
experimentação coloca, a cada vez, a questão da legitimidade da existência de determinadas formas de vida.
Cf. LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Tradução de Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-
1, 2017, p. 23.

65
De outra parte, a memória possui estreita relação com a noção de experiência.
Aristóteles percebeu no papel da memória um ponto de virada decisivo na trajetória dos
seres rumo ao conhecimento (Met., I, 980a 27-29). Segundo o estagirita, a memória
garantiria um armazenamento de percepções, mas esse armazenamento não chegaria a
constituir um conhecimento do objeto e de suas causas. Ainda assim, essa retenção de
informações passadas que a memória opera teria a possibilidade de tornar esses dados
perceptivos presentes, de maneira ativa, por meio da recordação.
Nesse sentido, Aristóteles situa o problema da memória em duas dimensões: uma
retentiva, de conservação dos dados sensoriais, e outra recordativa, que delimita o seu
caráter voluntário e racional. Na tradição do pensamento ocidental, ambas as dimensões
foram discutidas por diferentes correntes e áreas não só da Filosofia, mas de outras
disciplinas, como a Psicologia, Sociologia etc.
Ao assumir um dos polos desse debate, Henri Bergson buscou desenvolver uma
teoria da memória que teve como centralidade o problema de sua conservação. Em
Matéria e Memória (2010), Bergson defendeu, por um lado, um apartamento entre a
memória e a sua base meramente física e, por outro, uma distinção entre memória e
recordação. Desse modo, a memória pura compreenderia a conservação de todo o fluxo
da consciência como virtualidade e a recordação seria concebida como uma atualização
dessa mesma memória por meio de uma escolha deliberada feita por parte do agente que
busca recordar.
Assim, nesse movimento do indivíduo para recordar, o corpo surgiria como a
diferença que se processa no sujeito por meio dessa atividade rememorativa:

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão


do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado
ao presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos de um
“estado virtual”, que conduzimos pouco a pouco, através de uma série
de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se
materializa numa percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna
um estado presente e atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de
nossa consciência em que se desenha nosso corpo. Nesse estado virtual
consiste a lembrança pura. (BERGSON, 2010, p. 280)

No plano ulterior da memória pura, a memória não enfrentaria limites e seria como
um fundo consubstancial a todas as coisas. Já quando passamos para a dimensão da
recordação, o indivíduo atuaria dentro do espaço da memória pura, passando de um ponto
a outro da memória para realizar a sua atualização, mas esta só se processaria ao mudar

66
de plano. Com isso, a memória não se encerraria com a sua atualização – mas
permaneceria latente.
Destarte, a noção de memória seria também como um fundo metafísico que
garantiria uma existência, em certo sentido, mais real das coisas, na medida em que essa
atualização implicaria uma disposição temporal da consciência no presente, dado pela
noção de duração44. Como resultado, o tempo se apresentaria como um elemento
constituinte da própria memória, pois a materialização da lembrança implica a
configuração do presente, a um só tempo, como uma experiência sensorial e motora.

É preciso portanto que o estado psicológico que chamo “meu presente”


seja ao mesmo tempo, uma percepção do passado imediato e uma
determinação do futuro imediato. Ora, o passado imediato, enquanto
percebido, é, como veremos, sensação, já que toda sensação traduz uma
sucessão muito longa de estímulos elementares; e o futuro imediato,
enquanto determinando-se, é ação ou movimento. Meu presente
portanto é sensação e movimento ao mesmo tempo; e, já que meu
presente forma um todo indiviso, esse movimento deve estar ligado a
essa sensação, deve prolongá-la em ação. Donde concluo que meu
presente consiste num sistema combinado de sensações e movimentos.
Meu presente é, por essência, sensório-motor. (BERGSON, 2010, p.
161-162)

Nesse contexto, vemos, ainda que por uma via distinta à de Aristóteles, um novo
encontro entre as categorias de memória e experiência, que estão articuladas, dessa vez,
pela noção de tempo e limitadas espacialmente pela de corpo. Dentro desse quadro
teórico, o corpo seria como o momento em que a consciência adquire uma identidade
própria, afastando-se do fluxo impessoal da memória pura. Assim, o corpo cumpriria um
duplo papel: por um lado, manifestaria a diferença entre o passado e o futuro e, por outro,
realizaria a identidade individual do agente que recorda.
Em todo caso, ambas, quer seja a memória ou a experiência, engajariam uma
prática ético-estético-política da existência, executando uma espécie de prova do mundo,
pois o corpo só se produziria como um efeito contingente dessa experimentação que o
indivíduo realiza no fluxo do tempo e que define, por sua vez, a temporalidade própria da
memória. Como consequência, segundo a bela imagem ilustrada no conjunto da teoria de
Bergson, a nossa própria ontologia seria como um ritmo de duração que se prolonga na
materialidade plástica do mundo.

44
Estou seguindo aqui a indicação dos diferentes graus de existência presentes na obra de Étienne Souriau.
Cf. LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Tradução de Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-
1, 2017.

67
Além disso, os dispositivos técnicos que surgiram com a modernidade – a prensa
de tipos móveis de Gutemberg, a fotografia, o cinema etc. – buscaram conservar a
informação de um modo mais preciso e abrangente que o da memória humana. O que
tornou, em certa medida, obsoleto o trabalho da técnica memorialística da Antiguidade,
que se preocupava com o cultivo de uma memória artificial, produto de um treinamento
que se fundamenta na rememoração de lugares e imagens e se constitui como uma espécie
de “escrita interior” (YATES, 2007, p. 23).

2.2.1 Borges e a memória

Em Borges, a memória recebe tratamento literário em, pelo menos, dois contos
“Funes, el memorioso” e “La memoria de Shakespeare”. “Funes”, publicado em 1942 no
jornal La Nación – portanto, ainda durante a fase visual de Borges –, traz a história de um
peão de Fray Bentos que desenvolve uma memória prodigiosa após um acidente em que
caiu do cavalo e bateu a cabeça. Com isso, Irineu Funes nunca mais esqueceu o que
percebia, e isso converteu a atividade de lembrar em uma espécie de maldição:

Su propia cara en el espejo, sus propias manos, lo sorprendían cada vez.


Refiere Swift que el emperador de Lilliput discernía el movimiento del
minutero; Funes discernía continuamente los tranquilos avances de la
corrupción, de las caries, de la fatiga. Notaba los progresos de la muerte,
de la humedad. Era el solitario y lúcido espectador de un mundo
multiforme, instantáneo y casi intolerablemente preciso. Babilonia,
Londres y Nueva York han abrumado con feroz esplendor la
imaginación de los hombres; nadie, en sus torres populosas o en sus
avenidas urgentes, ha sentido el calor y la presión de una realidad tan
infatigable como la que día y noche convergía sobre el infeliz Ireneo,
en su pobre arrabal sudamericano. Le era muy difícil dormir. Dormir es
distraerse del mundo; Funes, de espaldas en el catre, en la sombra, se
figuraba cada grieta y cada moldura de las casas precisas que lo
rodeaban. (BORGES, 1984, p. 490) 45

45
“Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes. Menciona Swift que
o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os
tranquilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o
solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato.
Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém em
suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão
infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano.
Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distanciar-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra,
imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam.” (BORGES, 1998, p. 545)

68
Segundo Rodrigo Quian Quiroga (2011), o tema para o conto de “Funes” surgiu
após Borges refletir sobre o trabalho de James Joyce ao escrever Ulysses, um livro que
gastou 400 mil palavras para fazer o relato de um único dia (QUIROGA, 2011, posição
148). Para Borges, o trabalho de Joyce implicava uma memória monstruosa, que buscava
lembrar uma quantidade quase infinita de detalhes46. Quando escreve “Funes”, Borges
enuncia os riscos desse tipo de memória, apontando a impossibilidade de Funes
estabelecer generalizações, ou seja, de pensar (BORGES, 1984, p. 490).
Como exemplo dessa dificuldade, Borges produz um experimento mental típico
da Filosofia, articulando em um texto literário uma dicção presente também no ensaio
filosófico. Nesse experimento, Borges cita a tentativa de Funes, primeiro, em estabelecer
um sistema de numeração próprio e, depois, em conceber um novo tipo de linguagem. No
primeiro caso, cada número era substituído por uma palavra – o que, como notou o
narrador, acabava por destruir a própria noção de sistema numérico, já que não era mais
possível conhecer nem relacionar grandezas (op. cit., p. 489).
Já no segundo caso, Funes procurou pensar um sistema de linguagem em que para
cada signo correspondesse a apenas um referente. Porém, consoante o que foi percebido
por ele próprio, tal sistema gerava alguns problemas ligados à ambiguidade e à tarefa
interminável de evocar memórias que fossem arranjadas por meio desses dados (op. cit.,
489). Assim, o trabalho do sujeito de descrever uma experiência narrada despertava no
narrador o terror de estar diante do infinito – uma imagem assustadora que Borges, de
diferentes maneiras e em diversas obras, vai evocar para pensar como seria escrever “o”
infinito (SCHWARTZ, 2017, p. 357-360).
Curioso notar, porém, que no próprio conto há uma informação cifrada que
contrasta, no todo, dois modos de pensar as memórias prodigiosas. Essa informação diz
respeito à menção ao livro Naturalis Historia, de Plínio (BORGES, 1984, p. 488). Esse
livro, uma espécie de enciclopédia de histórias antigas, traz o relato de várias pessoas com
memórias extraordinárias; porém, ao contrário de Borges, que via na possibilidade de ter
uma memória infinita algo negativo, Plínio valoriza o desenvolvimento da alta capacidade
de conservar a informação (QUIROGA, 2011, posição 196).
Uma resposta para essa inversão promovida por Borges talvez esteja no transcurso
histórico que gerou uma diferença tecnológica significativa entre os dois, pois, no caso

46
Como mostra Quiroga (2011, posição 249), é irônico que Borges denuncie os problemas de uma memória
excepcional quando ele próprio, sobretudo após a cegueira, desenvolveu essa capacidade.

69
de Plinio, a arte da memória, cultivada como uma espécie de estilística de si, era
socialmente considerada uma virtude ao passo que na época de Borges, com a invenção
de diversos dispositivos técnicos que trabalharam para acumular informações e, em certa
medida, colonizar a memória – caso, como já foi dito, da imprensa, da fotografia, cinema
etc. –, o lugar da memória na sociedade passou a ser não mais tão bem visto e Funes
parece ser o paradigma dessa nova realidade; já que ele metaforiza o dispositivo técnico
para muito além do seu período histórico – basta ver como os computadores elevaram
exponencialmente a capacidade de armazenamento de dados – ao acumular memórias
indefinidamente.
Conforme Quiroga (2011), do ponto de vista psicológico, o receio de Borges
quanto à situação de Funes encontra respaldo na neurociência contemporânea, pois o
excesso de memória gera problemas na identificação de regras e do sentido contextual,
na capacidade de generalização por meio da repetição de ações etc. Problemas que são
percebidos, inclusive, clinicamente, como é o caso de alguns tipos de autismo e de
doenças que incidem sobre o funcionamento do cérebro.
De todo modo, essa questão da memória em “Funes” resulta na perda da própria
identidade de si, pois a concentração excessiva nos detalhes faz com que ele redimensione
as fronteiras corporais que também circunscrevem os conceitos e as experiências
cotidianas:

Entonces vi la cara de la voz que toda la noche había hablado. Ireneo


tenía diecinueve años; había nacido en 1868; me pareció monumental
como el bronce, más antiguo que Egipto, anterior a las profecías y a las
pirámides. Pensé que cada una de mis palabras (que cada uno de mis
gestos) perduraría en su implacable memoria; me entorpeció el temor
de multiplicar ademanes inútiles. (BORGES, 1984, p. 490)47

Nesse sentido, Funes discute o problema da perda da identidade corporal por meio
da instalação do sujeito numa temporalidade que discretiza48 os instantes, impedindo a
passagem de um momento a outro, sua associação sensorial e motora e consequente

47
“Então vi o rosto da voz que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos; nascera em 1868; pareceu-
me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que
cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória;
entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis.” (BORGES, 1998, p. 545-546)
48
As noções de discreto e contínuo são conceitos matemáticos que implicam dois movimentos: um referente
à sucessão dos números naturais, no caso do discreto, e o outro referente à representação dessa sucessão
em um “arquétipo de continuidade” (COSTA; DÓRIA, 1991/2, p. 123). Aqui, faço uma passagem do ponto
de vista da matemática para o ponto de vista literário para pensar as relações entre os dois planos da
memória em Bergson: discretização como o plano da lembrança e o continuum como o plano da memória
pura.

70
conversão em lembranças. A discretização faz de Funes, assim, um indivíduo condenado
ao presente. Um presente infinito e inexperienciável, haja vista que a única coisa que
consegue fazer é perceber demais o instante – o que faz, contrariamente, com que não
perceba nada, pois ele não consegue organizar esse material sensível numa unidade mais
geral, capaz de abstrair e refletir sobre a realidade ou, em outros termos, pensar, no sentido
de pensar como uma atividade psicológica.
Além disso, essa instalação numa temporalidade discretizada intercepta o
movimento contínuo da memória e faz com que o indivíduo nem consiga recordar o
passado nem esquecer, pois esquecer, seguindo Bergson (2010), é passar de um ponto a
outro da memória, estabelecer conexões, coisa que Funes está impossibilitado de fazer.
Desse modo, a única que ele consegue fazer é acumular informações, como uma
fotografia que guarda os detalhes de uma imagem, um gravador que grava os detalhes do
som etc.
Com isso, não só Funes, mas os eventos não preservam qualquer identidade, pois
cada aspecto da recordação vai levando a um detalhe diferente numa progressão e
fragmentação infinitas. Essa radicalização da memória, como aponta o narrador, leva
também a uma tarefa interminável, pois prolonga, na experiência narrada, o instante para
muito além do tempo que, de fato, ele levou para se realizar. Segundo Quiroga (2011),
essa constatação é uma consequência lógica que foi postulada por William James, um dos
filósofos a quem Borges tinha mais apreço (QUIROGA, 2011, posição 226). Ou seja, é
como se Borges fizesse na literatura uma aplicação prática de uma hipótese teórica,
continuando, por outros meios, o desenvolvimento do mesmo problema – o que o próprio
Borges vai chamar de conto conjectural (PONTES; MARTINS, 2020, p. 118).
Já em “La memoria de Shakespeare”, conto publicado em 1980 – portanto, já na
fase cega de Borges –, o ponto de vista sobre a memória muda radicalmente. O conto traz
a história de Hermann Soergel, um homem de letras alemão, que um dia recebeu de
Thomas Daniel Thorpe, um escritor relativamente famoso, a memória de Shakespeare. O
encontro entre os dois aconteceu após um congresso shakespeariano em que o major
Barclay, num bar que tinha ar britânico, contou a eles a história islã do anel do rei
Salomão, o qual, segundo a lenda, consegue ler a língua dos pássaros (BORGES, 1989,
p. 393). Então, Hermann e Barclay trataram a história como mera invenção, mas Thorpe,
não. Para ele, a história era verdade.
Após despedirem-se, Hermann e Thorpe retornaram juntos para o hotel onde
estavam e, em seu quarto, ele lhe explicou o motivo de sua insistência na verdade da

71
história: o anel do rei Salomão existia de fato e ele garantia ao portador a memória de
Shakespeare. Ainda segundo Thorpe, a memória de Shakespeare era passada por meio de
um ritual que consistia no seguinte: “El poseedor tiene que oferecerlo en voz alta y el otro
que aceptarlo. El que lo da lo pierde para siempre” (op. cit., p. 394)49. O ritual era, por
isso, um contrato que gerava como consequência a impossibilidade de o possuidor ter
aquilo que possui.
Segundo Schittine, há uma relação histórica entre leitura e voz alta em
Shakespeare e cultura islâmica que é pensada nessa passagem e que diz respeito “à
importância mnemônica para se guardar um texto, seja ele visual, oral, de imagens ou
sons” (SCHITTINE, 2016, p. 182). Além disso, há uma possibilidade de interpretação
dessa passagem também pela importância do teatro para a memória de Shakespeare, já
que no teatro é a voz falada, e não a escrita, que ganha proeminência. Em todo caso,
parece-me plausível propor que a cegueira seja o ponto de unidade desse ritual, pois o
cego – tanto no caso de Borges quanto de Mattoso – precisa reelaborar a memória para
fazer literatura.
Nesse contexto, conforme a narrativa avança, vemos um conflito surgir. A
memória que Hermann recebe do vendedor vai infiltrando-se em sua própria memória, de
modo a fazê-lo perder a sua identidade pessoal, já que “la identidad personal se basa en
la memoria” (BORGES, 1989, p. 398)50. A memória de Shakespeare não o ensina a ser
Shakespeare, pois a única coisa que ela lhe dá são as circunstâncias do Shakespeare
histórico:

Comprendí que las tres facultades del alma humana, memoria,


entendimiento y voluntad, no son una ficción escolástica. La memoria
de Shakespeare no podía revelarme otra cosa que las circunstancias de
Shakespeare. Es evidente que éstas no constituyen la singularidad del
poeta; lo que importa es la obra que ejecutó con ese material deleznable.
(BORGES, 1989, p. 397)51

49
“O possuidor tem de oferecê-lo em voz alta e o outro, de aceitá-lo. Aquele que o oferece perde-o para
sempre.” (BORGES, 2000b, p. 446)
50
“a identidade pessoal baseia-se na memória” (BORGES, 2000b, p. 450).
51
“Compreendi que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento e vontade, não são uma
ficção escolástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outra coisa que as circunstâncias de
Shakespeare. É evidente que estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa é a obra que
executou com esse material inconsciente.” (BORGES, 2000b, p. 449-450). O trecho final “lo que importa
es la obra que ejecutó con ese material deleznable” traz uma tradução imprecisa. “Material deleznable”
aponta não para um “material inconsciente”, mas para o fato de que a obra se constitui com base em algo
incerto, desprezível, informe, que escapa às determinações. “Si el hombre es deleznable, cómo puede ser
adorable una imagen del hombre” (BORGES, 1989, p. 262). “Toda obra humana es deleznable, afirma
Carlyle, pero su ejecución no lo es” (op. cit., p. 455).

72
Nesse sentido, a referência a Shakespeare, a qual, aliás, sequer pode ser
considerada sem que antes se coloque a questão sobre a própria existência de
Shakespeare, coloca um problema não só para definir o que são as circunstâncias, mas
também o que é esse “ser” do Shakespeare. No prólogo de prólogo de “Macbeth”
(BORGES, 1999), Borges questiona as tentativas realizadas no século XIX para a
identificação do Shakespeare histórico sendo que, no “curso de mais de duzentos anos, a
ninguém ocorrera pensar que Shakespeare não fosse o autor de sua obra” (BORGES,
1999, p. 154).
Com efeito, parece óbvio que Borges não rejeita a possibilidade de um
Shakespeare histórico, mas o que ele sublinha é a autonomia da ficção para existir em
seus próprios termos. Segundo Ludmer (2021a), esse artifício da autonomia da ficção em
Borges, que concebe ficção e realidade como duas realidades de mesmo nível, mas
diferentes (LUDMER, 2021a, p. 246), na verdade, é apenas uma manifestação aparente,
pois a sua escrita, caso se faça uma apropriação crítica de sua obra, também desfaz a
autonomia para pensar uma realidade complexa da ficção, como um sistema em rede, pós-
autonômo – no sentido de que esse elemento “pós” engaja um movimento de alteridade,
e não de simples negação ou oposição. Desse ponto de vista, Borges poderia ser pensado,
em uma outra chave hermenêutica, também como um irradiador da pós-autonomia a partir
do que pode os seus próprios textos – o que coloca a sua obra num espaço de entre-lugar
entre a autonomia e a pós-autonomia literárias (LUDMER, 2020a, p. 251).
Muito embora, como afirmei anteriormente, os conceitos de autonomia e de pós-
autonomia não sejam bem justificados, há um aspecto importante na argumentação de
Ludmer: o foco na especificidade textual de Borges. Esse foco, ao contrário do argumento
cultural, faz com que o resultado da pesquisa seja restrito ao caso analisado. Assim, as
intrincadas relações entre diferentes tipos de texto (ensaio, diário, relato descritivo,
comentário etc.); a estrutura aberta da narração; a conjuração de um sentido fixo e último
para as coisas; podem ser vistas como um aspecto do estilo borgiano que configura um
tipo de literatura específica. A pós-autonomia, portanto, seria esse nome de um projeto
literário – mas não um nome comum, e sim um nome próprio, o qual percebe a
singularidade do texto borgiano como um elemento de sua composição.
Nesse sentido, a relação entre mundo e ficção também guarda um componente
pragmático. Do ponto de vista da autonomia literária, essa relação entre ficção e mundo
possui como guia a ficção e tem como orientação diretiva a necessidade de produção para

73
um público – no caso da literatura, o leitor. Diz Borges sobre a sua hipótese de urgência
da escrita para Shakespeare:

Atrevo-me a aventurar outra conjetura: Shakespeare, para escrever,


precisava do estímulo do palco, da urgência da estréia e dos atores. Daí
que, uma vez vendido seu teatro, o Globo, deixou cair a pena. As peças,
além disso, eram propriedade das companhias, não dos autores ou
adaptadores. (BORGES, 1999, p. 154)

Nesse contexto, em “La memória de Shakespeare”, o narrador desenvolve a ideia


de que não basta ter a memória de alguém para ser um bom escritor. A memória, entendida
aqui como um armazenamento de todas as circunstâncias que envolvem a vida de alguém,
só lhe garante, dentro desse ponto de vista, informação. Mais uma vez, assim, vemos se
repetir a tese algorítmica que está presente nos dispositivos técnicos e que defende a
memória como simples acumulação de informações. Ou seja, ela não lhe dá algo de mais
essencial: a singularidade, o traço único que faz Shakespeare ser Shakespeare. Borges
parece defender aqui, por isso, uma crítica ao dispositivo técnico que revela que a
ontologia de Shakespeare não está no Shakespeare histórico, mas na ficção. É só nela, por
meio dela, que é possível pensar e referenciar Shakespeare.
Uma leitura pós-autônoma dessa passagem, porém, advoga a necessidade de se
conceber o modo como a memória de Shakespeare implica algo que é irredutível até
mesmo à ficção, pois no conto a memória não é apenas vista como simples
armazenamento de informação. Até porque, se assim o fosse, ela não geraria uma angústia
em Hermann, a ponto de lutar para manter a sua identidade pessoal. Nesse ponto, a
narrativa desenvolve uma outra consequência: a memória de Shakespeare estava
colonizando os sonhos de Hermann (BORGES, 1989, p. 396), ou seja, ele estava
perdendo o “seu” inconsciente. Consequentemente, Hermann estava deixando de criar
ficções próprias.
Nesse segundo caso, o conto de Borges parece tocar num outro aspecto da crítica
contemporânea ao dispositivo técnico, no que diz respeito ao modo como a mídia coloniza
a nossa memória a partir do inconsciente. Para Mark Fisher (2020), a mídia, movida pelo
impulso neoliberal, não só diz o que devemos falar, mas coloniza o nosso modo de
pensar, de maneira a colocar como alternativas o que não são de fato. Como consequência,
cria-se um campo de possíveis em que a afirmação e a negação são eleitas, seguindo o
interesse do capital, para coabitar um mesmo espaço, sem que o agente possa ter a
possibilidade de pensar algo diferente. Assim, a mídia, por meio do dispositivo técnico,

74
nos diz o que devemos reconhecer como aceitável e como pensável. Isso é o que constitui
o “realismo” – aspecto ideológico interno à forma social e tecnológica que constitui o
nosso presente.
Nessa perspectiva, a memória de Hermann estava sendo canibalizada pela
memória de Shakespeare, de modo a fazer com que este assumisse o lugar daquele. Com
a memória de Shakespeare, é como se Hermann não só tivesse recebido um tipo de
memória nova, mas fosse possuído pela própria memória. Com isso, ao contrário de
Funes, que discretizou a memória, Hermann se viu apanhado pelo continuum da memória,
em direção à memória pura – ainda que nunca chegue até ela –, como se caísse no labirinto
de lentes do dispositivo fotográfico. Mesmo porque, a memória de Shakespeare lhe foi
oferecida, primeiro, como a capacidade de ler a língua dos pássaros.
A língua dos pássaros, no Corão, remete à língua dos anjos (CHEVALIER, 2015,
p. 687) e, por isso, diz respeito a um conhecimento mais elevado tanto do ponto de vista
metafísico quanto físico (elevar-se como afastar-se do chão, da terra). Nessa perspectiva,
conquistar a língua dos pássaros é adquirir um conhecimento divino e que mantém a
oposição entre transcendência e imanência intacta.
Contudo, quando o narrador de “La memória de Shakespeare” introduz o
problema de uma memória que desorganiza a identidade pessoal do indivíduo, não vemos
a passagem de um plano terreno para um superior, mas um trabalho da memória dentro
de um mesmo nível – pois a memória de Shakespeare é vista não como uma exterioridade
transcendente, mas imanente. Além disso, esse trabalho só pode acontecer por meio da
cegueira.
Há vários elementos no conto que atestam isso. Em primeiro lugar, a posição do
narrador, que é cego e não reconhece o rosto de Thorpe, que é quem lhe deu esse
dom/maldição (BORGES, 1989, p. 393). Em segundo lugar, a questão do contrato
ritualístico que faz a passagem da memória de Shakespeare e que precisa ser pensado a
partir da cegueira: o narrador detém uma impossibilidade ontológica de ter a visão-
memória que possui. Em terceiro lugar, a questão da imagem do pássaro como algo que
garante a visão espiritual ao invés da física, pois o tema de “ver com os olhos do espírito”,
como disse anteriormente, está bastante sedimentado na tradição ocidental e deixa
margem para a potencialidade da cegueira. Em quarto lugar, o tratamento dado a relação
entre Oriente e Ocidente.
Lembremos que a história se passa num ambiente inglês para falar sobre um autor
inglês, mas a história que é contada diz respeito a um mito islâmico. Na extensa

75
bibliografia de Borges, o tema do Oriente serviu não só para discutir o desconhecido, o
inesperado, algo que foge à racionalidade mesmo sendo – e até por isso mesmo –
intrínseca a ela, mas também, e sobretudo, o papel da ficção para o escritor, como se pode
perceber em seu interesse pelas histórias das Mil e uma noites, que despertaram no
argentino a atenção para o Oriente (SCHWARTZ, 2017, p. 369-370).
Dessa forma, a inclusão do Oriente num tema de feição tão ocidental quanto
Shakespeare parece sugerir a introdução da magia no relato histórico – até porque, uma
das questões centrais na interpretação da expressão “memória de Shakespeare” é a
existência de uma memória do Shakespeare histórico – ou de uma tentativa de
ficcionalização da própria ficção, dando uma maior consistência ficcional ao conto – o
que não lhe garante um incremento da carga dramática, apenas intensifica ainda mais a fé
poética, que assegura para o texto uma “suspensão da incredulidade” (BORGES, 1999,
156).

2.2.2 Mattoso e a memória

Diferentemente de Borges, Mattoso não trabalhou a memória de maneira temática


tão intensa quanto o escritor argentino. Ainda assim, é possível encontrar na obra
mattosiana um interesse – e até fixação – pela memória. Apesar da ampla variedade de
situações, a poética de Mattoso está concentrada em alguns temas: podolatria,
masoquismo, sadismo, crítica social, abjeção, cegueira. Alguns desses temas, porém, nem
sempre são desenvolvidos como temas, apenas como elementos subsidiários e
constituintes dos textos. É o caso, por exemplo, da abjeção e da cegueira.
Nesse contexto, a memória compareceu nos primeiros textos de Mattoso como
uma tentativa, ainda esparsa, de significar lugares e experiências da infância. O próprio
nome de Mattoso, como já disse anteriormente, faz referência à experiência com o
glaucoma. Porém, é com relação a algumas situações específicas que proliferam imagens
poéticas ligadas, sobretudo, ao masoquismo e à abjeção, como é o caso do amigo de
infância que pisava nele – o “inimiguinho” (MATTOSO, 2006, p. 23) – ou dos garotos
do bairro que o espancaram após fazer uma cirurgia para tratar o glaucoma (op. cit., p
40).
76
Essas cenas constituíram imagens primordiais que impregnaram a fase cega de
Mattoso, criando uma fixação quanto ao trabalho e variação do mesmo tema. Não tanto
pela cegueira em si, mas pela tara por pés que havia desenvolvido e sedimentado ao longo
dos anos, ainda que, conforme o próprio Mattoso, essa tara ainda não estivesse explícita.
É o que explica, por exemplo, a respeito da violência que sofreu dos garotos do bairro:

Sim, respeitável público, solas descalças e sujas, apoiadas sobre meu


rosto, entrando pelos olhos, narinas, lábios. Antes que eu tivesse tempo
de planejá-las, preferi-las ou prepará-las (e quem sabe eu nem chegasse
a desejá-las se não tivessem antecipado a qualquer fantasia), lá estavam
elas, as solas. (op. cit., p. 41)

Recebendo um tratamento diferente, Mattoso trata dessa questão de maneira


explícita no poema “Autobiográfico”:

Autobiográfico [20]

Um fato me marcou pra toda a vida:


aos nove anos fui vítima dos caras
mais velhos, que brincavam com as taras,
levando-me da escola pra avenida.

Curvaram-me num beco sem saída,


zoavam inventando coisas raras,
como lamber sebinho em suas varas
e encher a minha boca de cuspida.

O que dava mais nojo era a poeira


da sola dos seus tênis, misturada
com doce, pão, cocô ou xepa da feira.

O gosto do solado e da calçada


na língua fez de mim, queira ou não queira,
a escória dos podólatras, mais nada. (MATTOSO, 2004, p. 33)52

O soneto “Autobiográfico” apresenta, por meio da poesia, uma narrativa direta


sobre o que aconteceu com Mattoso durante a infância. Mais uma vez, o recurso à
primeira pessoa não serve apenas para construir a persona poética, mas para aliar o relato
histórico com o relato ficcional num tipo de construção que privilegia a teatralidade. O
aspecto de teatralização, por isso, é mais do que um simples desenvolvimento da cena e
da construção de personagens, ele interfere no próprio jogo do real que é insinuado pelo

Esse soneto já havia aparecido na antologia Paulisséia Ilhada – Sonetos trópicos, publicada em 1999.
52

Em ambos os casos, porém, a publicação ocorreu na fase cega de Mattoso.

77
poema e contribui também para a formação de imagens mentais53 – seja pelo exercício de
rememoração de símbolos bem definidos, seja pelo recurso à construção de suas próprias
imagens –, como era ensinado pelos tratados de memória do Renascimento (YATES,
2007, p. 141-143). Segundo Diniz, em Mattoso o “teatro parece ser o dispositivo que
converte o registro autobiográfico em projeto de escritura autoficcional” (DINIZ, 2018,
p. 36).
Além disso, assim como acontece com Borges com relação às escolhas literárias
para recomposição das obras já publicadas, Mattoso refaz de maneira consciente e
deliberada o seu corpus literário, adequando a sua obra para novos interesses e estratégias
do presente. Conforme Marcelo Diniz (2018), Mattoso utiliza do recurso da palinódia
(correção de um poema por outro) entre Manual do podólatra amador e “Rockabullying”
com o objetivo de estabelecer um novo contrato veridador, de modo a colocar o narrado
acima da verdade e da ficção ao mesmo tempo em que resigna a sua escrita, devido à
deficiência, ao Destino:

Se a palinódia nomeia o gênero da enunciação de um poema que corrige


outro poema, o uso e o abuso da palinódia em Glauco Mattoso toma o
procedimento como paródia que eleva o narrado acyma da verdade ou
da ficção. A correção procedida pela palinódia parece implicada em um
jogo erótico e perverso entre entrevistado e entrevistador, no qual, em
lugar do esclarecimento do vivido, opera-se todo um questionamento
acerca da implicação do sujeito na violência que ele sofre. Algo que se
acrescenta nessa narrativa em relação ao que é narrado no Manual é o
fato de o abuso ser determinado pela negociação com os algozes dos
elementos propriamente relacionados à visão: os livros escolares, os
gibis e os óculos que lhe são tomados pelos colegas e que só lhe seriam
devolvidos depois do devido serviço que a vítima prestasse aos algozes.
A palinódia explora os signos do Destino da cegueira a fim de elaborar
esse ponto acyma da verdade ou da ficção. (DINIZ, 2018, p. 31-32)

Nesse sentido, Mattoso desenvolve, desde o início, uma narrativa sobre a cegueira
tendo como elemento central a sua própria relação com a doença. Isso não quer dizer,
porém, que a cegueira origine a podolatria e o masoquismo. O que ela indica é a existência
de um ponto de confluência entre essas três coisas. Até porque, associar a podolatria e o
masoquismo a uma relação monocausal faz perder de vista dentro do projeto poético
mattosiano a relação conflituosa entre desejo e política, pois a redução desses dois termos

53
Faço um uso meramente instrumental do termo para apontar para uma especificade do tipo de imagem.
Não defendo, com isso, uma distinção dualista entre imagens mentais e imagens sensíveis.

78
a uma doença poderia sugerir uma série de implicações indesejáveis sobre como a
podolatria e o masoquismo são meras consequências da cegueira.
Além disso, a cegueira na obra mattosiana é vista como o mal maior, a “violência
propriamente dita” (op. cit., p. 32). Mattoso pensa a cegueira, ao contrário do masoquismo
e da podolatria, como uma maldição do Destino, mas que ele, resignadamente, a aceita.
Com isso, ele não quer tratar o seu fetiche como um caso para clinicalizar – há diversas
menções críticas à Psicanálise espalhadas em diferentes livros de Mattoso, cito como
exemplo a título ilustrativo o conjunto de poemas “Devaneando no divan”, escritos entre
maio de 2010 e outubro de 2011 e presentes na antologia Theatro Lyrico (MATTOSO,
2019, p. 13) –, nem tratar a si mesmo como uma vítima. Aliás, os momentos em que a
palavra vítima aparece nos poemas de Mattoso são, em geral, matizados com a malícia e
a manipulação do eu dramático para expressar um problema político ou, como no poema
abaixo, o assunto revela-se tão grave que o espaço desejante perde prioridade para o
espaço, explicitamente, político. Veja-se sobre isso o soneto “Da tortura baseada”:

#1536 DA TORTURA BASEADA [19/7/2017]

Na base de Guantánamo, segundo


aquelles que la passam temporada,
isola-se do resto deste mundo
a victima, suspeita ou accusada...

Si adepta é do terror, não me aprofundo


no caso, mas, ainda que culpada,
será que com tortura o mais inmundo
dos crimes é punido, e a voz calada?

Duvido: só nos contam que, la dentro,


o preso apanha e arrasta-se no centro
da roda de soldados sorridentes...

Recebe ponctapés e lambe botas,


até que saia e aponcte os idiotas,
ou morra, sem a lingua e sem os dentes... (MATTOSO, 2011a, p. 78)

Nesse poema, o eu dramático expõe a situação dos presos que vão para
Guantánamo – uma prisão estadunidense que fica localizada em território cubano e que é
conhecida internacionalmente pelas violações de Direitos Humanos54. Ao invés de

54
SYMBOLIA. Os pesadelos de Guantánamo. Agência Pública. 6 de julho de 2015. Disponível em:
<https://apublica.org/hq/2015/07/os-pesadelos-de-guantanamo/>. Acesso em: 01 de dez de 2021.

79
assumir o lugar do masoquista, promovendo uma resistência política à ação do Estado55,
o eu dramático, sem entrar na discussão sobre o problema da ação efetivamente praticada
pelos presos ser terrorismo ou não (“Si adepta é do terror, / não me aprofundo no caso”),
duvida se “o mais inmundo dos crimes é punido, e a voz calada” com a tortura. Ou seja,
o eu dramático duvida se um crime, qualquer que ele seja, possa ser pago com a tortura.
De todo modo, o recurso à memória em Mattoso imprime uma conversão crítica
de seu passado em material de trabalho, de modo a estabelecer com esse procedimento
uma crítica subversiva também do presente, devido ao modo com que a memória se vê
atrelada ao consumo e a mercantilização da vida. Conforme Franklin Alves,

Estar cego, ou preso, numa de suas metáforas mais usadas no que


concerne à cegueira, é, paradoxalmente, a condição de sua liberdade:
cabe ao poeta passar em revista tudo o que viu, leu e viveu quando ainda
tinha o sentido da visão, aventurar-se em (re)construir
contemplativamente seu passado. Mattoso lembra porque a situação
atual – afastado da vida ativa por ser cego – o faz lembrar. Tal
afastamento e o tempo livre decorrente deste, aproximam seu trabalho
ao do artesão, ao da memória criadora. (ALVES, 2004, p. 15)

Sobram em Mattoso as referências à cultura de massa, como o cinema e a internet,


e o interesse obsessivo por temas diversos que expandem a escrita para zonas
inexploradas. Com isso, a memória mattosiana tanto repercute o problema da acumulação
– Mattoso, inclusive, rejeita a ideia de memória como esquecimento56 – quanto o da
colonização do inconsciente – com a repetição dos mesmos temas –, presente no
dispositivo técnico. Porém, há uma consciência de Mattoso, que não há nos narradores de
Borges, que o faz resignar-se a esse projeto de escrita. A compulsão à escrita de diferentes
temas, assim, é adotada por Glauco como o correlato necessário do masoquismo. É o seu
modo de responder, na escrita, a um apelo sexual. O que torna a expressão “memória
desejante”, quando aplicada ao corpus mattosiano, plenamente inteligível.
Além disso, o trabalho da memória em Mattoso, desenvolvido como consequência
da cegueira, permite um outro trabalho dos sentidos durante o processo de criação poética.
Sem os olhos, Glauco consegue por meio da memória alcançar a imaginação sem a
mediação da visão física (op. cit., p. 19). Com isso, as imagens tomam a forma de imagens
mentais ou de outras imagens que são produzidas por meio de outros sentidos (como

55
Se há algo como uma “política de esquerda” em Mattoso, ela precisa ser pensada, precipuamente, a partir
do modo com que ele articula o desejo em suas obras.
56
Ver entrevista com Mattoso no apêndice.

80
olfato, audição, tato, paladar e propriocepção57) e da relação que eles estabelecem entre
si.
Destarte, tanto em Borges quanto em Mattoso a cegueira estabelece como
paradigma a utilização e tratamento da memória. Cegos não pensam da mesma forma que
videntes, isto é, autores cegos não organizam o seu material literário da mesma forma que
autores videntes. O que esse princípio heurístico mostra é que há um efeito que é
produzido na passagem entre a literatura e a vida, mas que pode – e até deve – ser
trabalhado de maneiras distintas a depender do projeto literário de cada um. Isso não quer
dizer, porém, que a memória esteja restrita a uma possibilidade de tratamento literário ou
a uma simples organização do fazer literário ou poético. O que se afirma é simplesmente
que não é possível escrever sem memória e que a cegueira é um modo, entre tantos, de se
pensar a memória como uma questão para a escrita.

57
O sentido da propriocepção diz respeito à capacidade de localização que permite a locomoção do
indivíduo no espaço.

81
3. OS LIVROS QUE NÓS SOMOS TÊM LÍNGUA?

A ideia de uma biblioteca como representante do conhecimento é bastante antiga


e está bem estabelecida em nossa tradição ocidental. A Biblioteca de Alexandria, que
surgiu no século III a. C. como produto do imperialismo de Alexandre, o Grande, talvez
seja o exemplo mais conhecido de um espaço físico que significa o conhecimento
acumulado pela humanidade e que ganhou destaque para muito além do âmbito
acadêmico – basta lembrar que essa biblioteca foi reconhecida como uma das 7
Maravilhas do Mundo.
Nesse sentido, a representação da Biblioteca de Alexandria, uma obra
arquitetônica grandiosa, para além do conteúdo que habitava as suas paredes, significou
para alguns autores, entre eles, Jorge Luis Borges58, a possibilidade de reecontrar na
bibiblioteca não só o conhecimento, mas parte do que nós somos. Além disso, esse olhar
borgiano para a biblioteca possibilitou também uma aproximação com o mito bíblico de
Babel, na medida em que, assim como Babel, a história da biblioteca é compreendida
como a história da diversidade das línguas, das culturas, do conhecimento.
Sem nutrir interesse pelo humanismo – e, por extensão, pela história –, Glauco
Mattoso pensa a biblioteca como um espaço possível para gozar e para realizar um gozo
abjeto, estranho, queer. A catalogação, o enciclopedismo, enfim, as técnicas
biblioteconômicas que aprendeu durante o curso superior e em seu trabalho na biblioteca
do Banco do Brasil são empregadas na escrita literária para dar vazão a esse excesso, que
é indicado pelo desejo. Desse modo, se Borges faz uma aproximação da biblioteca com
o mito de Babel, Mattoso revela a diferença entre ambos por um deslocamento do
interesse mobilizado pelo autor. O que interessa para Mattoso quando cria uma leitura
para o artifício da biblioteca ou do mito de Babel é pensar o problema de como gozar com
isso59.
Em certa medida, assim, Mattoso está para Borges como Derrida está para Hegel:
o primeiro é a figura de desconstrução do segundo, pois ele não visa destruí-lo, mas
subvertê-lo, transgredí-lo, de modo a fazer com que os temas sejam sempre trabalhados

58
Faço menção ao poema “Alejandría, 641 A.D.”, que será discutido logo mais adiante.
59
Estou fazendo um jogo com a expressão freudiana de inconsciente (Es), que, na tradução para o
Português, ora foi traduzida por “Id” (expressão latina), ora por “Isso”.

82
de outra maneira; multiplicando os sentidos, desestabilizando-os, ao invés de encerrá-los
– mesmo que provisoriamente.

3.1 A Babel de Borges

Desde criança, Borges sabia que a cegueira seria a sua sina. Como uma espécie de
maldição hereditária – título que ele mesmo buscava evitar –, a doença havia cegado o
pai e, até por isso, ele se preparava desde pequeno para o momento em que fosse ficar
cego. O que pode ter contribuído para o desenvolvimento de sua incrível memória
(QUIROGA, 2011, posição 245). Conforme Rodrigo Quian Quiroga,

María Kodama60 recuerda que en un primer encuentro con Borges, éste


le pidió buscar un pasaje en un libro. Según Borges, dicho pasaje estaba
en una página impar, cerca de la mitad del libro. Kodama comenzó
leyendo en una página al azar y sorprendentemente Borges pudo guiarla
a la página indicada, a pesar de haber estado ciego por varios años y de
haber leído el libro en 1916 – dato que solía anotar en la primera o
última página –, décadas antes de este encuentro con Kodama.
(QUIROGA, 2011, posição 249)61

A extraordinária memória de Borges se notabiliza também pelo fato de ter


realizado uma leitura prolífica na biblioteca de seu pai quando ainda era pequeno
(SCHWARTZ, 2017, p. 104). Além disso, Borges trabalhou durante muitos anos em
bibliotecas. O seu primeiro emprego foi como assistente na Biblioteca Miguel Cané, onde
ficou por quase nove anos. O conto “A biblioteca de Babel” fazia referência a esse lugar
de trabalho (SCHITTINE, 2016, p. 338).
Já em 1955, já cego, ele assumiu o cargo de diretor da Biblioteca Nacional de
Buenos Aires, cujo posto fora ocupado anteriormente por mais dois cegos: Paul Groussac
e José Marmol (op. cit., p. 343). A própria arquitetura do prédio dessa biblioteca chamava
atenção: “portinhas que se abriam, escadas que desciam e outras escadas que voltavam a

60
Esposa de Borges.
61
“Maria Kodama recorda que, num primeiro encontro com Borges, ele lhe pediu para procurar uma
passagem num livro. Segundo Borges, essa passagem estava numa página ímpar, próximo da metade do
livro. Kodama começou a ler numa página aleatória e, surpreendentemente, Borges conseguiu guiá-la para
a página certa, apesar de ter estado cego durante vários anos e de ter lido o livro em 1916 – um fato que
costumava escrever na primeira ou última página –, décadas antes deste encontro com Kodama.”
(QUIROGA, 2011, posição 249, tradução minha)

83
subir. Quase um Piranesi, além de ser um labirinto” (MARÍA ESTHER VÁZQUEZ apud
SCHITTINE, 2016, p. 342).
O interesse pelos livros, e pela biblioteca em particular, o fez navegar em
complexos temas que serviram de fonte para os seus contos. Ainda segundo Quiroga
(2011, posição 297), a biblioteca de Borges continha títulos variados que iam desde a
natureza do tempo (Alexander Gunn, 1929), passando pela ideia de quarta dimensão
(Hinton, 1939) até a análise da mente (Bertrand Russell, 1921).
Nesse contexto, Filosofia e Ciência confluíam no sentido de permitir ao escritor
resolver por outros meios problemas que circundavam áreas distintas. Com isso, Borges
colocava a literatura como uma forma de pensamento imanente a campos, inclusive, mais
rígidos do saber, como é o caso das ciências duras62. Com muitos anos de distância, ele
antecipava o que Deleuze e Guattari (2010) tinham formalizado com base na articulação
imanente entre Filosofia, Ciência e Arte.
De todo modo, essa resolução de problemas não significava para Borges pôr um
fim às discussões que matemáticos e físicos formulavam, mas aplicar questões
filosóficas, ou que lhe despertavam o interesse imediato, em termos literários, procurando
encontrar um ponto de incomensurabilidade – uma espécie de lugar onde a lógica não
fazia mais sentido – nessas obras.
Para tal intento, Borges investia na imaginação, por ser uma ferramenta
virtualmente infinita para pensar problemas, e circunscrevia como objeto de sua
investigação coisas que possuíam extensões ou naturezas que já se sabiam serem
impossíveis de sondar completamente em uma perspectiva objetivamente humana. Como
resultado, os temas que lhe interessavam guardavam sempre essa natureza mágica ou
mística, como é o caso do infinito, da memória e da escuridão.
Em Historia de la noche (1997), publicado em 1977, Borges, já em sua fase cega,
conduziu um deslocamento da cegueira, fazendo-a ir de tema a procedimento expressivo,
numa antologia organizada por meio de uma métrica em versos brancos e livres – algo
diferente do que vinha gestando nesse novo período cego.
Com isso, ele promoveu a manipulação de uma memória que fazia analogias
mentais e orais e servia à fabricação de novas imagens poéticas. Soma-se a esse gesto,

62
Entre 24 e 29 de novembro de 1997, o Centro de Estudos Avançados e a Faculdade de Direito e Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires, a Fundação Jorge Luis Borges e a Secretaria de Cultura da Cidade
de Buenos Aires realizaram a jornada “Borges y la Ciencia”, da qual participaram cientistas de várias
universidades da Argentina e do exterior.

84
também, o esforço por fazer uma poesia que refletisse o seu próprio modo de composição,
num nível de expressão metapoética que recobre não só a poesia, mas todo ato criativo
de usar a palavra.
No poema que abre a antologia, “Alejandría, 641 A.D.”, Borges resume e adensa a
imagem de uma biblioteca infinita em chamas que sintetiza a ideia do homem como obra
e a humanidade/mundo como biblioteca. Assumindo a perspectiva de um muçulmano, o
poema adquire uma forma narrativa, que passa de uma narração em terceira para primeira
pessoa, aproximando o relato histórico da queda da biblioteca de Alexandria com figuras
religiosas, como Adão e Maomé (Muhammad). A objetividade da história é enlaçada pelo
misticismo, conjugando na noção de uma biblioteca infinita o engenho do que há de
(im)próprio no gênero humano:

ALEJANDRÍA, 641 A.D.

Desde el primer Adán que vio la noche


y el día y la figura de su mano,
fabularon los hombres y fijaron
en piedra o en metal o en pergamino
cuanto ciñe la tierra o plasma el sueño.
Aquí está su labor: la Biblioteca.
Dicen que los volúmenes que abarca
dejan atrás la cifra de los astros
o de la arena del desierto. El hombre
que quisiera agotarla perdería
la razón y los ojos temerarios.
Aquí la gran memoria de los siglos
que fueron, las espadas y los héroes,
los lacónicos símbolos del álgebra,
el saber que sondea los planetas
que rigen el destino, las virtudes
de hierbas y marfiles talismánicos,
el verso en que perdura la caricia,
la ciencia que descifra el solitario
laberinto de Dios, la teología,

85
la alquimia que en el barro busca el oro
y las figuraciones del idólatra.
Declaran los infieles que si ardiera,
ardería la historia. Se equivocan.
Las vigilias humanas engendraron
los infinitos libros. Si de todos
no quedara uno solo, volverían
a engendrar cada hoja y cada línea,
cada trabajo y cada amor de Hércules,
cada lección de cada manuscrito.
En el siglo primero de la Hégira,
yo, aquel Omar que sojuzgó a los persas
y que impone el Islam sobre la tierra,
ordeno a mis soldados que destruyan
por el fuego la larga Biblioteca,
que no perecerá. Loados sean
Dios que no duerme y Muhammad, Su Apóstol. (BORGES, 1997, p. 9-
10)63

63
“ALEXANDRIA, 641 A. D.

Desde o primeiro Adão que viu a noite


E o dia e a figura de sua mão,
Fabularam os homens e gravaram
Tudo o que cinge a terra ou plasma o sonho.
Aqui está seu lavor: a Biblioteca.
Dizem que os volumes que abarca
Ultrapassam o número dos astros
Ou os grãos de areia do deserto. O homem
Que quisesse esgotá-la perderia
A razão e os olhos temerários.
Aqui a memória pródiga dos séculos
Que foram, as espadas e os heróis,
Os lacônicos símbolos da álgebra,
O saber que perscruta os planetas
Que regem o destino, as virtudes
De ervas e de marfins talismânicos,
O verso em que perdura a carícia,
A ciência que decifra o solitário
Labirinto de Deus, a teologia,
A alquimia que busca o ouro no barro
E também as figurações do idólatra.
Declaram os infiéis que, se ardesse,
Arderia a história. Enganam-se.
As vigílias humanas engendraram
Os infinitos livros. Se de todos

86
A biblioteca de Alexandria condensa neste poema a experiência humana e marca o
conflito entre dois modos de conceber a humanidade desde a biblioteca e duas formas de
se pensar as tecnologias da memória: o modo cristão/ocidental, que vê na biblioteca um
mero arquivo histórico, ou seja, uma ferramenta à parte do gênero humano, e o modo
mouro/oriental, que vê na biblioteca a condição de possibilidade transcendental para a
própria existência humana, pois há uma insinuação nos versos finais da forma profética
que os livros assumem para a nossa ontologia.
Isso porque, de modo geral, o poema é dividido em dois momentos. No primeiro,
há a descrição que Omar (o mouro incendiário) faz, elogiando a biblioteca e os livros e
articulando-os com a história humana; já no segundo, há a tarefa que lhe cumpre, de
queimar tudo, em nome do Deus que parece só aceitar um livro, o Livro Sagrado, e que
ordena que todos os demais sejam queimados. Entre essas duas coisas, nos versos finais,
o próprio Omar revela, em tom vidente/profético, que o ato de queimar representa também
o ato de preservar os livros (“ordeno a mis soldados que destruyan/ por el fuego la larga
Biblioteca,/ que no perecerá”). Esses livros que ficam, que persistem, que configuram o
conhecimento, a história e os homens, são livros que também desaparecem, que se
apagam, que se tornam, por isso, cegos – são a ausência presente da tradição.

Assim, nessa perspectivização, o Oriente parece triunfar sobre o Ocidente,


marcando a vitória da Noite sobre o Dia, pois já não se pode mais ver aquilo que o fogo
queimou, mas não consumiu. Esta última imagem remete à tradição cristã de dois modos.
Em primeiro lugar, quando subverte a noção de infiel64 presente no cristianismo – quando
o infiel era compreendido como o mouro, mas nunca o cristão – e, em segundo lugar, com
a imagem de uma biblioteca que queima e não se consome, uma metáfora da imagem da

Nenhum permanecesse, voltariam


A engendrar cada folha e cada linha,
Cada trabalho e cada amor de Hércules,
Cada lição de cada manuscrito.
No primeiro dos séculos da Hégira,
Eu, aquele Omar que dominou os persas
E que impõe o Islã por sobre a terra,
Ordeno a meus soldados que destruam
Pelo fogo essa vasta Biblioteca,
Que não perecerá. Louvados sejam
Deus, que não dorme, e Muhammad, Seu Apóstolo.” (BORGES, 2000b, p. 183-184)
64
Refiro-me à passagem “declararan ‘los infieles que si ardiera, ardería la historia’” (BORGES, 1997, p.
10). Em outro poema desta antologia, “Alhambra”, Borges faz o mesmo procedimento (SCHWARTZ,
2017, p. 42)

87
sarça-ardente, que está presente no Antigo Testamento no momento em que Moisés
recebe a missão de libertar o povo de Israel (Êxodo 3:1-22).
Destarte, tal operação introduz na concepção de biblioteca, que carrega dentro de si
todo o projeto de humanidade, um elemento místico65 que foge ao controle do próprio
homem: a noite como momento de realização de nossa natureza. Desse modo,
paradoxalmente, o que nos constitui é o que nos torna mais alienados de nós mesmos. A
fabulação aparece, então, como uma atividade humana que serve para desumanizar, pois
a sua ontologia não pode ser encontrada em nenhum lugar em que a prática humana seja
objetivamente observável.

METÁFORA DE LAS MIL Y UNA NOCHES

LA PRIMERA metáfora es el río.


Las grandes aguas. El cristal viviente
que guarda esas queridas maravillas
que fueron del Islam y que son tuyas
y mías hoy. El todopoderoso
talismán que también es un esclavo;
el genio confinado en la vasija
de cobre por el sello salomónico;
el juramento de aquel rey que entrega
su reina de una noche a la justicia
de la espada, la luna, que está sola;
las manos que se lavan con ceniza;
los viajes de Simbad, ese Odiseo
urgido por la sed de su aventura,
no castigado por un dios; la lámpara;
los símbolos que anuncian a Rodrigo
la conquista de España por los árabes;
el simio que revela que es un hombre,
jugando al ajedrez; el rey leproso;
las altas caravanas; la montaña

65
Segundo Erick Felinto, a incorporação do elemento místico em Borges remete à tradição hermética que
participa da modernidade e tem longa história na tradição literária moderna (FELINTO, 2008).

88
de piedra imán que hace estallar la nave;
el jeque y la gacela; un orbe fluido
de formas que varían como nubes,
sujetas al arbitrio del Destino
o del Azar, que son la misma cosa;
el mendigo que puede ser un ángel
y la caverna que se llama Sésamo.
La segunda metáfora es la trama
de un tapiz, que propone a la mirada
un caos de colores y de líneas
irresponsables, un azar y un vértigo,
pero un orden secreto lo gobierna.
Como aquel otro sueño, el Universo,
el Libro de las Noches está hecho
de cifras tutelares y de hábitos:
los siete hermanos y los siete viajes,
los tres cadíes y los tres deseos
de quien miró la Noche de las Noches,
la negra cabellera enamorada
en que el amante ve tres noches juntas,
los tres visires y los tres castigos,
y encima de las otras la primera
y última cifra del Señor; el Uno.
La tercera metáfora es un sueño.
Agarenos y persas lo soñaron
en los portales del velado Oriente
o en vergeles que ahora son del polvo
y seguirán soñándolo los hombres
hasta el último fin de su jornada.
Como en la paradoja del eleata,
el sueño se disgrega en otro sueño
y ése en otro y en otros, que entretejen
ociosos un ocioso laberinto.
En el libro está el Libro. Sin Saberlo,

89
la reina cuenta al rey la ya olvidada
historia de los dos. Arrebatados
por el tumulto de anteriores magias,
no saben quiénes son. Siguen soñando.
La cuarta es la metáfora de un mapa
de esa región indefinida, el Tiempo,
de cuanto miden las graduales sombras
y el perpetuo desgaste de los mármoles
y los pasos de las generaciones.
Todo. La voz y el eco, lo que miran
las dos opuestas caras del Bifronte,
mundos de plata y mundos de oro rojo
y la larga vigilia de los astros.
Dicen los árabes que nadie puede
leer hasta el fin el Libro de las Noches.
Las Noches son el Tiempo, el que no duerme.
Sigue leyendo mientras muere el día
y Shahrazad te contará tu historia. (BORGES, 1997, p. 13-15)66

66
“METÁFORAS DAS MIL E UMA NOITES

A primeira metáfora é o rio.


As grandes águas. O vívido cristal
Que guarda essas queridas maravilhas
Que foram do Islã e que são tuas
E minhas hoje. O todo-poderoso
Talismã que também é um escravo;
O gênio confinado na vasilha
De cobre pelo selo salomônico;
O juramento de um rei que entrega
Sua rainha de uma noite à justiça
De uma espada, a lua, que está só;
Aquelas mãos que se lavam com cinza;
As viagens de Simbad, esse Odisseu
Urgido pela sede de aventura,
Não castigado por um deus; a lâmpada;
Os símbolos que anunciam a Rodrigo
A conquista da Espanha pelos árabes;
O símio que revela que é um homem,
Num jogo de xadrez; o rei leproso;
As altas caravanas; a montanha
De pedra-ímã que espedaça a nave;
O sheik e a gazela; um orbe fluido
De formas que variam como nuvens,
Sujeitas ao arbítrio do Destino
Ou do Acaso, que são a mesma coisa;

90
Em “Metáforas de las mil y una noches”, quatro imagens poéticas são constituídas
como uma abertura operada pela cegueira: a primeira é o rio que possui uma absoluta
plasticidade de forma – “la lámpara; / (...) el rey leproso; / (...) un orbe fluido / de formas
que varían como nubes” (BORGES, 1997, pp. 13-4)67 – ; a segunda é a trama de um

O mendigo que pode ser um anjo


E a caverna que se chama Sésamo.
A segunda metáfora é a trama
De um tapete, que oferece ao olhar
Um caos de várias cores e de linhas
Irresponsáveis, acaso e vertigem,
Mas uma ordem secreta o governa.
Como aquele outro sonho, o Universo,
Esse Livro das Noites está feito
De cifras tutelares e de hábitos:
Os sete irmãos e as sete viagens,
O trio de cádis e os três desejos
De quem avistou essa Noite das Noites,
A negra cabeleira enamorada
Em que o amante vê três noites juntas,
Os três vizires e os três castigos,
E sobre as outras todas a primeira
E última cifra do Senhor; o Um.
A terceira metáfora é um sonho,
Agarenos e persas o sonharam
Nos portais do velado Oriente
Ou em vergéis que agora são do pó
E seguirão os homens a sonhá-lo
Até o último fim de sua jornada.
Como no paradoxo do eleata,
O sonho se desfaz em outro sonho
E este, em outro e em outros, que entretecem
Ociosos um ocioso labirinto.
No livro está o Livro. Sem sabê-lo,
Conta a rainha ao rei a já esquecida
História deles dois. Arrebatados
Pelo tumulto de antigas magias,
Desconhecem quem são. Seguem sonhando.
A quarta é a metáfora de um mapa
Daquela região indefinida, o Tempo,
De quanto medem as graduais sombras
E o perpétuo desgaste de alguns mármores
E os passos de diversas gerações.
Tudo. A voz e o eco, o que miram
As duas opostas faces do Bifronte,
Mundos de prata e mundos de ouro rubro
E a vigília demorada dos astros.
Dizem os árabes que ninguém consegue
Ler até o fim esse Livro das Noites.
As Noites são o Tempo, o que não dorme.
Segue a leitura enquanto morre o dia
E Sherazade te contará tua história.” (BORGES, 2000B, p. 186-187)
67
“a lâmpada; / (...) o rei leproso; / um orbe fluido / De formas que variam como nuvens” (BORGES,
2000b, p. 186).

91
tapete,68 em que o caos das cores e de linhas irresponsáveis revelam o governo de uma
ordem secreta (op. cit., p. 14); a terceira trata do sonho que se volta para o desconhecido,69
perfazendo um caminho de paradoxos que se expressam em um continuum, que faz um
sonho levar a outro e depois outro etc., formando, assim, um “ocioso laberinto” (op. cit.,
p. 15), onde imanência e transcendência se tocam – “En el libro está el Libro” (op. cit., p.
15)70 –; a última imagem, então, é a do mapa que configura o Tempo, região indefinida,
“de cuanto miden las graduales sombras / y el perpetuo desgaste de los mármoles / y los
passos de las generaciones” (op. cit., p. 15)71, de maneira a confluir o atual e o virtual –
“la voz y el eco” (op. cit., p. 15) –, numa escrita que se desenvolve junto com a leitura:

Dicen los árabes que nadie puede


leer hasta el fin el Libro de las Noches.
Las Noches son el Tiempo, el que no duerme.
Sigue leyendo mientras muere el día
y Shahrazad te contará tu historia. (op. cit., p. 15)72

A menção a Xerazade no final do poema não é gratuita. Desde o título, Borges toma
a história das Mil e uma noites como modelo de texto e de escrita, um compilado de
fábulas, histórias fantásticas e narrativas moralizantes que foram reunidas ao longo de
quase dez séculos (SCHWARTZ, 2017, p. 369). Neste livro, a história do rei Shariar, que
desposava uma mulher por noite para então matá-la após a consumação do matrimônio,
ganha uma inflexão quando Xerazade passa, noite após noite, a contar histórias incríveis,
suspendendo o dia de sua morte até o momento em que ela lhe mostra um filho e o ciclo
se quebra. Desse modo, as histórias que compõem o livro das Mil e uma noites são como
o resultado da atividade de Xerazade, que cumpre um papel de elo ficcional entre elas
(idem).
Com isso, Xerazade expressa a possibilidade de uma memória prodigiosa, que
envolve a apropriação e o cultivo de uma história alheia. Assim, Xerazade é a metáfora

68
“trama de un tapiz” (BORGES, 1997, p. 14).
69
Referência ao desconhecido seja pela aproximação com o Oriente, seja com a natureza, como se vê nos
versos: “Agarenos y persas lo soñaron / en los portales del velado Oriente / o en vergeles que ahora son del
povo” (op. cit., p. 14).
70
“No livro está o Livro” (BORGES, 2000b, p. 187).
71
“De quanto medem as graduais sombras / E o perpétuo desgaste de alguns mármores / E os passos de
diversas gerações” (BORGES, 2000b, p. 187).
72
Dizem os árabes que ninguém consegue
Ler até o fim esse Livro das Noites.
As noites são o Tempo, o que não dorme.
Segue a leitura enquanto morre o dia
E Sherazade te contará tua história. (BORGES, 2000B, p. 187).

92
da própria experiência literária, que, como Borges (SCHWARTZ, 2017, p. 364), faz uso
de uma memória impessoal em seu processo de escrita – haja vista que as histórias são
anônimas, e surgiram de um longo processo de traduções e reelaborações da tradução oral
e literária do ocidente e do oriente; além, claro, da ideia de infinito, que envolve o próprio
nome do compilado de histórias e que expressa o fascínio do homem por romper a própria
ideia incomensurável da noção de infinito73. Tudo isso é articulado a partir da identidade
entre Noite, Tempo e – acrescento – Memória74. A Noite que implica o sonho e a
imaginação, mas também a morte; o Tempo que implica a reiteração indeterminada para
a atividade de contar histórias e a Memória como o elo que vincula um ao outro numa
tarefa infinita que só pode ser resolvida por um agente finito: o homem.
No poema “The thing I am”, título que faz menção a um trecho de uma frase
proferida pelo personagem Parolles e que está presente no livro All's Well That Ends Well,
de William Shakespeare, a memória aparece justamente como essa força impessoal que
conjura a identidade e faz do sujeito um mero objeto de si mesmo, de modo que a memória
está no escuro e o escuro na memória: “Soy apenas la sombra que proyectan / esas íntimas
sombras intrincadas. / Soy su memoria, pero soy el otro” (BORGES, 1997, p. 63)75. O
esquecimento surge como elemento constituinte da memória e ferramenta essencial na
produção literária, haja vista que é necessário esquecer-se de si mesmo para escrever: “He
olvidado mi nombre. No soy Borges” 76(idem).
Dessa forma, o escuro se converte em potência da palavra, garantindo ao escritor a
configuração de um espaço para a realização da prática literária, pois o escuro é o
território do informe, do mágico, do desconhecido. O próprio Borges revela que a
cegueira não significou para ele a escuridão absoluta, mas a entrada da vida numa
“indefinida neblina luminosa”77. Esse novo estado alcançado pela cegueira o fez elaborar
uma concepção de literatura como produto de uma atividade que busca desafiar a Noite.

73
‘Neste há outra beleza. Creio que ela reside no fato de a palavra ‘mil’ ser, para nós, quase um sinônimo
de ‘infinito’. Dizer ‘mil noites’ é dizer infinitas noites, as muitas noites, as inumeráveis noites. Dizer ‘mil
e uma noites’ é acrescentar uma ao infinito.” (BORGES, 2000b, p. 259)
74
Curioso que em Funes el memorioso (BORGES, 1984), conto publicado em 1942 no jornal La Nación,
Funes, o personagem que possui uma prodigiosa memória que o impede de esquecer, sempre fica no escuro.
75
“Sou apenas a sombra que projetam / Essas íntimas sombras intrincadas. / Sou sua memória, e sou
também o outro” (BORGES, 2000b, p. 214).
76
“Esqueci o meu nome. Não sou Borges.” (BORGES, 2000b, p. 214)
77
BORGES, Jorge Luis; D'AVILA, Roberto. Conexão Roberto D'Avila. 1985. (17m17s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8VZ-ykJARhs>. Acesso em: 1 de setembro de 2020.

93
Nesse sentido, Borges aproxima-se de Merleau-Ponty ao perceber na escuridão
uma espécie de analogia com o que Merleau-Ponty advogava sobre o invisível – já que
para o filósofo o invisível

não é um negativo positivo que dublaria a positividade do visível, mas


aquilo pelo que o visível é visível, seu avesso e estofo, uma de suas
dimensões, uma ausência que conta no mundo. Oco e cavidade da
abóbada; poro por onde transitam zonas claras e obscuras, sustentando
a concordância e a conveniência entre as coisas, sua pura diferenciação.
O invisível “é o forro que atapeta o visível”. (CHAUÍ, 1988, p. 58)

Como resultado, é como se a escuridão surgisse para Borges como condição de


possibilidade para toda escrita e expressasse a contraface da literatura. Com isso, para
fazer literatura é necessário instalar-se na Noite, aceitar e vencer o perigo da escuridão
como uma batalha que se trava em nome da própria vida.
Destarte, no poema que encerra a antologia e que dá nome ao livro, Borges
consolida a sua visão sobre a Noite, articulando-a com a cegueira e o papel da escrita.

HISTORIA DE LA NOCHE

A lo largo de sus generaciones


los hombres erigieron la noche.
En el principio era ceguera y sueño
y espinas que laceran el pie desnudo
y temor de los lobos.
Nunca sabremos quién forjó la palabra
para el intervalo de sombra
que divide los dos crepúsculos;
nunca sabremos en qué siglo fue cifra
del espacio de estrellas.
Otros engendraron el mito.
La hicieron madre de las Parcas tranquilas
que tejen el destino
y le sacrificaban ovejas negras
y el gallo que presagia su fin.
Doce casas le dieron los caldeos;
infinitos mundos, el Pórtico.
Hexámetros latinos la modelaron
y el terror de Pascal.
Luis de León vio en ella la patria
de su alma estremecida.
Ahora la sentimos inagotable
como un antiguo vino
y nadie puede contemplarla sin vértigo
y el tiempo la ha cargado de eternidad.

94
Y pensar que no existiría
sin esos tenues instrumentos, los ojos. (BORGES, 1997, p. 71-72)78

Já no título, Borges fez um jogo entre a noção de história como narrativa e como
relato histórico, que conduz a uma certa historicidade. O objeto dessa história que aparece
no título é a noite, mas, conforme o poema avança, vemos com mais nitidez tratar-se da
história da palavra. Além disso, tal história se confunde ainda com a história humana
propriamente dita – “A lo largo de sus generaciones” (op. cit., p. 71) –, passando por uma
história científica com o surgimento da ideia de infinito79 – “terror de Pascal” (idem) –
até um além da história, numa temporalidade mítica – “Otros engendraron el mito. / La
hicieron madre de las Parcas tranquilas / que tejen el destino” (idem).
História e mito, ciência e teologia, a palavra para Borges enlaça os planos da
linguagem, mostrando não haver diferenciação entre o aspecto ficcional e o não ficcional
de um texto, pois a ficção, dentro desse ponto de vista, é a forma da linguagem. Não é

78
“HISTÓRIA DA NOITE

Ao longo de diversas gerações


os homens erigiram a noite.
Em seu começo era cegueira e sonho
e espinhos que laceram o pé desnudo
e o temor dos lobos.
Nunca saberemos quem forjou a palavra
para o intervalo de sombra
que cinde os dois crepúsculos;
nunca saberemos em que século foi cifra
do espaço de estrelas.
Outros engendraram o mito.
Transformaram-na em mãe das Parcas tranqüilas
que tecem o destino
e lhe sacrificavam ovelhas negras
e o galo que pressagia seu fim.
Doze casas lhe deram os caldeus;
infinitos mundos, o Pórtico.
Hexâmetros latinos a modelaram
e o terror de Pascal.
Luis de Léon nela encontrou a pátria
de sua alma estremecida.
Agora a sentimos inesgotável
como um antigo vinho
e ninguém pode contemplá-la sem vertigem
e o tempo a impregnou de eternidade.

E pensar que não existiria


sem esses tênues instrumentos, os olhos. (BORGES, 2000b, p. 220)
79
No século XVII, em aproximação ao que pensava René Descartes, Blaise Pascal constatou que a
imperfeição é uma coisa natural na racionalidade humana (PASCAL, 1984, p. 55 e 75) e que o infinito é
uma realidade positiva, ainda que ameaçadora, frente a qual o homem deve se debruçar, mesmo
reconhecendo a sua limitação para conhecê-la. Assim, o infinito aparece em Pascal acoplado a uma crítica
que é produzida pela compreensão da infinitização do espaço, constatada pelo avanço científico: onde
devemos colocar o homem em relação ao espaço infinito do universo? (CHAUÍ, 2005, p. 14).

95
possível separá-la do acontecimento a fórceps, como fazem os médicos que separam as
mães dos bebês.
Desse modo, a ficção é a realidade da linguagem como atividade humana, pois só
é possível pensar de maneira ordenada a partir de ficções (RANCIÈRE, 2005, p. 54). Isso
não quer dizer, porém, como defende Rancière (2005), que a ficção seja redutível à
linguagem, mas que, consoante Borges, a ficção se apresenta no texto literário como uma
força vital, impulso criador que desloca o eixo veridador, que define o que é verdadeiro
ou falso, para muito além das fronteiras bem definidas do método científico.
Esse fato expressa uma função também na estrutura do poema, pois a história só
pode ser contada pela linguagem, de modo que a identidade entre noite e palavra também
se dá de forma paradoxal – haja vista que para escrever é preciso vencer a noite, mas o
uso da palavra na escrita depende da escuridão. Assim, a realização da literatura é a marca
de uma impossibilidade, pois não é possível conquistar plenamente a noite e escrever o
infinito e é esta, precisamente, a tarefa do escritor.
Aqui, há uma novidade na fase cega frente à fase visual de Borges: enquanto no
conto “La biblioteca de Babel”, publicado no livro Ficciones em 1944, a noção de infinito
é articulada com a de uma biblioteca que contém toda a possibilidade do universo, mas
essa relação é realizada sem articular, de forma preponderante, a questão da noite e da
cegueira como aparece, por exemplo, no poema “Historia de la noche”.
Destarte, nesse poema em tela a cegueira e o sono antecedem a noite. A inversão
não é ontológica, mas uma diferença de aspecto: os homens elevaram a noite e, com isso,
forjaram a palavra no interstício da sombra. Como resultado, a palavra se tornou
inesgotável e poderosa demais, pois possui uma extensão infinita e uma natureza caótica
– por isso, o “terror de Pascal”, que via na revolução copernicana a imagem de um
universo indecifrável e labiríntico (SCHWARTZ, 2017, p. 395).
No dístico final, o eu lírico afirma que a palavra possui como condição de existência
os olhos. O eu lírico condensa na metáfora dos olhos o aspecto da pura visualidade,
tomando a palavra como efeito do visível. Como se, ao avançar na investigação sobre a
palavra, encontrássemos o seu avesso: a imagem – mas uma imagem que só é possível
pela palavra. Segundo Marilena Chauí (1988), os gregos antigos tinham na noção de
verdade (alétheia) esse tipo de articulação entre palavra e imagem:

Alétheia é o verdadeiro não por demonstração, não por conformidade


às coisas e aos fatos, não por adequação, mas por asserção e eficácia. A

96
visão-palavra Alétheia é afirmação eficaz porque mágica: faz ser o que
é dito e põe no visível o que a palavra enuncia. Por isso, tirando do
esquecimento, tira do oculto, recorda e manifesta, realiza e imortaliza o
que é dito-visto. É palavra religiosa e palavra do poder, pois o
visionário, falando, torna visível o invisível, fazendo-o ser. (CHAUÍ,
1988, p. 46-47)

Nesse sentido, vemos como Borges concebe a literatura como uma tensão entre a
palavra e a noite, isto é, como o conflito entre duas dimensões de um único termo: a
visibilidade. Com isso, a oposição entre noite e cegueira revela-se meramente aparente –
haja vista que parece haver na obra de Borges dois usos para a cegueira. Um primeiro é
o uso corrente da fala coloquial, como quando se diz em tom pejorativo “você está cego”,
indicando uma relação entre o ver e o uso correto da razão, e um segundo, que funciona
como um procedimento preparatório para a escrita –, pois a cegueira é o modo em que o
escritor precisa se instalar para ter condições de gerar literatura. Afinal, como mostra a
tradição literária ocidental, a cegueira já aparece no nome do maior expoente da poesia
mundial, Homero, o qual, ainda que haja incerteza sobre sua existência, traz no próprio
nome – literalmente, “aquele que não vê” – o gesto inaugural da arte.

3.2 A Babel de Mattoso

Por seu turno, Mattoso, assim como Borges, também tinha muita proximidade
com a biblioteca. Formado em Biblioteconomia e depois em Letras pela Universidade de
São Paulo (USP), trabalhou como bibliotecário durante alguns anos na biblioteca do
Banco do Brasil. Lá, além do acesso a diversos tipos de livro, aprendeu a utilizar a
máquina de escrever em proveito próprio, de modo a desenvolver a técnica responsável
pela diagramação do Jornal Dobrabil. Esse raqueamento da máquina de escrever
desenvolvido por Mattoso implicou também uma nova organização do seu material
literário, pois o princípio da catalogação foi pervertido pelas aproximações de temas e
gêneros textuais tão díspares como a podolatria, pornografia, política, abjeção,
comentário do leitor, entre outros.

Nesse contexto, há um trabalho de utilização ativa do espaço para compor a obra,


algo que vem da influência da poesia concreta, e que representou em sua obra o trabalho
de recortes, colagens, e uma série de relações intertextuais com fatos, outras obras e

97
autores contemporâneos para promover um ataque não só aos temas desenvolvidos, mas
também às formas de representação (BOSI, 2011, p. 41-42).

Figura 5. Jornal Dobrabil frente e verso. Ver: MATTOSO, 2001a, p. 1.


#Paratodosverem: fac-símile da capa do Jornal Dobrabil, que mostra frente e verso do jornal.

Além disso, no Jornal Dobrabil, Mattoso adotava – seja como estratégia literária
ou de segurança pessoal, já que o jornal circulava em pleno período da ditadura
empresarial-militar –, diversos pseudônimos, entre eles: Pedro, o Podre; Garcia Loca;
Massashi Sugawara; P. David; Pedlo o Glande etc. e o próprio Glauco Mattoso, ele
mesmo um nome de nome. Essas estratégia de multiplicação das identidades respondia a
um interesse político-estético de problematização da identidade pessoal e autoral com o
objetivo de criticar o princípio de autoridade que regia o governo do Brasil e as artes em
geral (MATTOSO, 2001b).

Segundo Steven Butterman (2005), a antiestrutura do jornal resvalava,


contraditoriamente, no desejo obsessivo de ordenar e categorizar – algo que, ao que
parece, poderia sugerir um vínculo com a antiga atividade de bibliotecário de Mattoso:

The appearence of the contents of the Jornal Dobrabil is that of random


images, appropriated maxims, word games, poems, editorials, letters –
the impression clearly one of anti-structure, of collage. In fact, Mattoso
openly declares in one of his spontaneous mini-manifestoes, “Chega de
literatura de estrutura” (Jornal Dobrabil 21). Closer inspection reveals,
however, an obsessive preoccupation with categorization and order. For
example, one of the “supplementos inseparaBeis do jornal dobraBil”,

98
the “Jornal Dadarte” (parodying the Jornal da Tarde, a daily
newspaper, and punning on “arte dada”, that is, “gratuita” or
“dadaísta”), consistently includes only aesthetic considerations and
examples of avant-garde writing techniques, while the “Galeria
Alegria” and the “Gazela Esportiva” (parodying the Gazeta Esportiva,
a sports newspaper, and playing on a feminine word for “veado”) are
reserved for subject matter and artistic compositions that pertain to gay
activism and homoeroticism. Further evidence of superior organization
comes in the form of the Index of Names at the end of the compilation,
a carefully composed organizational tool, listing references to authors
included, regardless of whether they have contributed as producers of
entire poems or excerpted or even utilized for fragments of less than a
sentence (BUTTERMAN, 2005, p. 118-119)80

Nos escritos posteriores de Mattoso esse intresse pela organização racional ganha
uma proeminência na fase cega com o soneto – forma racional, por excelência (STERZI,
2012, p. 170) –, ao qual se dedica entre os anos de 1999 e 2012, depois partindo para
outras experimentações formais – como o madrigal, poema de mote glosado, dissoneto
etc. –, mas sem nunca perder de vista o interesse pela racionalidade, sobretudo para
subvertê-la, e pela curva melódica possibilitada pela rima.

Em 2008, por exemplo, Mattoso trata de uma tópica bastante conhecida na


literatura borgiana: o livro das Mil e uma noites. Em perspectiva podorasta, porém, ele
vira do avesso o tema trabalhado por Borges ao enfatizar, não mais a escrita, mas a
podolatria e o masoquismo. O título do livro é sugestivo para isso: As mil e uma línguas.
No Manuel do podólatra amador, Mattoso já tinha adiantado que o interesse pela
literatura árabe se dirigia a relação de dominação e submissão a que estavam submetidos,
por um lado, respectivamente, sultões e xeiques, e, por outro, felás e beduínos, devido à
hierarquia que cada um se posiciona em relação aos pés:

80
“A aparência do conteúdo do Jornal Dobrabil é a de imagens aleatórias, máximas apropriadas, jogos de
palavras, poemas, editoriais, cartas – a impressão, claramente, é de que seja uma antiestrutura, uma
colagem. De fato, Mattoso declara abertamente, num dos seus minimanifestos espontâneos, ‘Chega de
literatura de estrutura’ (Jornal Dobrabil 21). Uma investigação mais atenta revela, contudo, uma
preocupação obsessiva com a categorização e a ordenação. Por exemplo, um dos ‘supplementos
inseparaBeis do jornal dobraBil’, o ‘Jornal Dadarte’ (paródia com o Jornal da Tarde, um jornal diário,
acrescentando ao nome ‘arte dada’, ou seja, ‘gratuita’ ou ‘dadaísta’) inclui consistentemente apenas
considerações estéticas e exemplos de técnicas de escrita de vanguarda, enquanto que a ‘Galeria Alegria’ e
a ‘Gazela Esportiva’ (paródia da Gazeta Esportiva, um jornal desportivo, que brinca com uma palavra
feminina para ‘veado’) estão reservadas para temas e composições artísticas que pertencem ao ativismo gay
e ao homoerotismo. Outras evidências de uma organização superior vêm na forma do Índice de Nomes no
final da compilação, uma ferramenta organizacional cuidadosamente composta, listando referências a
autores incluídos [no jornal], independentemente de terem contribuído como produtores de poemas inteiros
ou extraídos ou mesmo utilizados para fragmentos de menos de uma frase.”(BUTTERMAN, 2005, p. 118-
119, tradução minha)

99
Os mulçumanos, por sua vez, sabem bem o que representa o pé como
símbolo de dominação ou submissão, de carícia ou de castigo: enquanto
os sultões, califas, emires, xeiques, e paxãs são gostosamente
massageados nos haréns das Mil e uma noites, os felás e beduínos são
palmatoriados nas solas, método chamado de “falanga” ou “falaka” e
empregado como punição até na ocidentalizada Turquia, pra quem não
lembra do filme O expresso da meia-noite. (MATTOSO, 2006, p. 38)

Nesse sentido, se em Borges o tema das Mil e uma noites desperta interesse pelo
que narrativamente ele possibilita de discussão sobre a ficção e a escrita com metáforas
que elevam o interesse pela alta literatura, em Mattoso o tema sofre um processo de
tangenciamento e marginalização, de modo a enfatizar aquilo que desperta o desejo no eu
dramático, que é a podolatria, perfazendo uma imagística mais próxima do que se
convencionou chamar baixa literatura – ou de uma leitura que, ironicamente, se abaixa.
Com isso, a ideia de uma história que se estende progressivamente ao longo do tempo,
ganhando novos contornos pela personagem Xerazade e pelas traduções das histórias que
foram sendo realizada ao longo dos anos, é pervertida e subvertida pela fixação nos pés e
no masoquismo.

Essa mudança, contudo, não é uma saída de Mattoso da literatura, mas uma
introdução do desejo no tema das Mil e uma noites com o objetivo de trabalhar, a um só
tempo, de maneira desejante e narrativa, a questão do infinito que aparece ou surge por
meio da ficção. Veja-se sobre esse assunto o poema “Soneto babélico”, presente na
antologia As mil e uma línguas:

SONETO BABÉLICO [851]

Mil modos de se dar a mesma pala:


falar, hablar, parler, parlare, é tudo
igual à oposição ao ficar mudo.
Não, no, non nega e opõe-se ao que se cala.

São línguas que equivalem a não dá-la


o sânscrito, o aramaico, cujo estudo
não traz mais eloqüência ao linguarudo

100
nem latiniza o grego na senzala.

Gugu, dadá é papo que começa.


Amém e tenho dito é fim de papo.
As armas e os barões na glória ingressa.

Buceta ou pau na língua ilustra o trapo.


Não há calão que cale ou pé que impeça
a boca à qual não tapa o esparadrapo. (MATTOSO, 2008, p. 16)

O conto mítico da origem das línguas em Babel é recuperado no poema de Mattoso


com uma inversão importante. No primeiro quarteto, o eu dramático deixa claro que a
diferença entre as línguas é uma realidade e aquilo a que elas, no geral, se opõem, é ao
silêncio. Na segunda quadra, porém, é introduzido um elemento de perversão mattosiana:
o eu dramático afirma que não adianta ensinar línguas para o linguarudo nem a língua
grega aos moradores da senzala.

Nesse ponto, o eu dramático analisa os polos opositivos que serão desenvolvidos


em outros poemas: o linguarudo – tanto no sentido de língua comprida quanto de
acadêmico, alguém que fala demais porque conhece novas línguas – remete ao polo do
dominado, em que o cego por vezes comparece81, e o grego na senzala remete ao polo do
opressor – grego, nesse caso, é uma metonímia referente a pé grego82, que expressa
também a sistematização dos pés métricos da poesia, uma sistematização que marcará
toda a poesia ocidental (de safo a Dickinson, de Homero a Mattoso, de Píndaro a Borges,
todo mundo se submeteu às delícias dos pés!) . Com isso, a hierarquia social é subvertida
dando lugar a uma nova configuração gerada por uma hierarquia desejante. Ainda assim,
esses polos opositivos se equivalem, haja vista que ninguém aprende nada sobre novas
línguas: tanto em um nível epistemológico quanto desejante, fisiológico.

Em seguida, nos dois primeiros versos do primeiro terceto, o eu dramático marca


os limites do uso da fala (“Gugu, dadá é papo que começa. / Amém e tenho dito é fim de

81
“‘Tá vendo? Tanto o cego diz que engraxa, / que alguem appareceu cobrando a taxa! / Agora ele que
lamba o pé do moço!’” (MATTOSO, 2011, p. 112)
82
Pé grego remete ao formato de pé. Mattoso, devido à podolatria, interessa-se pelas formas e classificações
dos pés. O pé que lhe dá mais prazer e, ao mesmo tempo, dor é o pé egípcio, porque era o pé do menino
que o violentou na infância (DINIZ, 2018, p. 26).

101
papo”) e se utiliza de uma brincadeira carnavalesca com a palavra dadá tanto para apontar
para o atributo do bebê quanto para a atitude negativa presente no dadaísmo. Já no último
verso do mesmo terceto, o eu dramático retoma Camões em Os Lusíadas83, ou seja, vai
até a tradição da língua portuguesa, no ponto em que ela é normatizada pela sua figura
mais elevada, para dizer que o uso da língua marca a entronização do falante na “glória”
(da palavra?).

Com efeito, é no último terceto em que o eu dramático expõe o seu interesse:


utilizar a língua como objeto e lócus do desejo. Com isso, no primeiro verso (“Buceta ou
pau na língua ilustra o trapo”), ele afirma que, por meio ou utilizando a língua, a buceta
e o pau, duas metonímias pornográficas que apontam para os sujeitos que fazem o uso da
fala, ilustram (tanto no sentido de exemplificar e tornar ilustre quanto o de lustrar – nesse
último sentido, como uma corruptela utilizada pela linguagem coloquial) o trapo – ou
seja, ilustram aquilo que há de mais marginal.

Nos dois versos seguintes, o eu dramático queeriza – ou seja, estranha e perverte


– com mais um jogo entre calão como impropério, fala baixa, como quando se diz “baixo
calão”, e calo, uma deformidade presente no pé – que, no caso em análise, é grande –,
aspecto que transfere simbolicamente o atributo do falo para o pé. Já no último verso, o
eu dramático afirma que a boca comporta tudo, o pau, a buceta ou o calão, já que nem
sequer o esparadrapo consegue tapar.

Nesse sentido, o problema da diferença das línguas e do seu consequente arranjo


combinatório infinito que interessou a Borges, perde sentido em Mattoso, que se preocupa
mais com a relação desejante que é possível pensar em Babel por meio do desvio
significante operado pela ideia de língua – de seu significado como idioma para parte do
corpo. Dessa forma, o que se vê é uma mudança de perspectiva também do ponto de vista
ontológico com relação à literatura, pois, se para Borges a literatura se faz com as palavras
e no intrincado encadeamento de sentido propiciado pela linguagem, para Mattoso a
literatura se faz com o corpo e pelo modo com que o corpo, em sua relação contextual e
pragmática, possibilita a escrita. Diz Mattoso:

83
“As armas e os barões assinalados” (Lus. I, 1). Cf. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Editora Porto,
1972.

102
Eu não acredito em uma literatura que seja fruto da pura imaginação
criadora, que seja alguma coisa artificial. Eu não acredito nisso. Eu
acredito em uma literatura que seja fruto de uma vivência e de um
trauma. Tem que haver um conteúdo, assim, sofrido, penoso,
angustiante. Você pode ver, todos os grandes clássicos eram
angustiados, lidavam com grandes dramas pessoais, com grandes
tragédias. Sofreram muitos desgostos. Isso faz parte. Eu acho que a
literatura nasce como uma expressão disso. É uma espécie de grito de
revolta, de desabafo. Toda literatura é mais ou menos isso. E no meu
caso, o componente é esse: a deficiência que me levou à cegueira, e o
bullying que me levou ao sadomasoquismo, e assim acabei me
identificando com os outros injustiçados, com outros excluídos,
humilhados. (CAIXETA; RICHARD, 2014, p. 246)

Um outro elemento importante nas obras de Glauco é o enciclopedismo, que


surgiu como um elemento que adveio de sua função como bibliotecário. Ele consiste no
tratamento dos mais diferentes assuntos e temas com o objetivo de fazer atravessá-los
pela estética mattosiana. Esse enciclopedismo, com isso, aparece não só na relação entre
diferentes obras, mas na própria obra em si. É o caso, por exemplo, de O poeta pornosiano
(2011b). Nesse livro, Glauco discute meio ambiente, saúde, política, análise de
instituições (igreja, polícia e governo), relação de ensino-aprendizagem entre aprendiz e
mestre etc., mas sempre de modo a fazer com que o desejo se imiscua nos temas e nos
assuntos tratados e reorganize pragmaticamente o ponto de vista relacionado a eles.

Além disso, o enciclopedismo também aponta para uma atitude de racionalização


do discurso na medida em que procura circunscrever ou delimitar um tema ou assunto.
Segundo Mattoso,

Eu tenho uma tendência ao enciclopedismo. Aquela mania de


“verbetar” tudo, fazer uma coisa sobre cada assunto, de tentar cobrir
todos os campos do conhecimento. Isso é uma mania de quem estudou
filosofia também, pois as pessoas que estudam filosofia ficam com essa
mania metodológica de tentar classificar o conhecimento, catalogá-lo e
enquadrá-lo em categorias. E eu sempre fiz isso. De uma forma meio
brincalhona, mas sempre fiz. E acho que um pouco da minha
preocupação “biblioteconômica” acabou passando para a literatura que
eu faço. Eu acho que isso é uma atitude de defesa também, porque sendo
deficiente eu preciso me proteger em cima do que eu já li, me resguardar
na minha bagagem. (CAIXETA; RICHARDD, 2014, p. 244)

O enciclopedismo também aparece em Borges, que trata de temas e gêneros


variados, como ensaio, poema, conto, comentário, com o objetivo de discutir política,

103
metafísica, epistemologia, ética, filosofia da mente, literatura etc. Sobre isso, ao contrário
de Mattoso, Borges procura seguir os temas de maneira mais racional e argumentativa,
desenvolvendo os argumentos e as suas consequências, ao passo que Mattoso preocupa-
se mais em como é possível gozar com esses temas, mesmo que seja um gozo indigesto,
abjeto, como é o caso do gozo masoquista, que faz da excitação o próprio gozo (DINIZ,
2018, p. 29).

Além disso, o enciclopedismo em Borges aparece também na própria obra. O


conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, publicado em 1940 pelo jornal Sur, apresenta a
história da descorta de um planeta fictício, Tlön, que somente lhe foi possível devido ao
contato com um espelho e enciclopédia. Segundo Ludmer (2021a), Borges mescla nesse
conto o elemento criollo e a ordem enciclopédica. Como resultado, ele realiza uma
“apropriação crítica da tradição nacional” (LUDMER, 2021a, p. 257) ao aproximar a
tradição da alta cultura argentina com a tradição da cultura nacional popular e expor, no
movimento mesmo dessa aproximação, a natureza política que subjaz em qualquer
relação cultural. Com isso,

Modula la enciclopedia de la alta cultura de 1880 a propósito de la


reproducción, los espejos y la paternidad. Reproduce la enciclopedia y
el orden enciclopédico y la transforma en un territorio fantástico. Le
inventa un mundo, una lengua sintética sin nociones ideales, y le da
sistema filosófico y una realidad cuyo principio es la reproducción:
cada enciclopedia genera otra que la bastardea, la duplica o la
multiplica. Y ese orden enciclopédico de Tlön, que contiene el Orbis
Tertius retorna “a la realidad” como imperio y se introduce en “el
mundo real” por los criollos, los gauchos. Y al combinar el orden
enciclopédico con el elemento criollo de la literatura gauchesca desnuda
esa marca o rasgo de la alta cultura, y lo muestra como un artefacto de
dominación. Borges reordena los elementos de una tradición y los
vuelve no en contra sino contra la tradición misma, con la ficción de
un orden imperial que habla el post-inglés de Tlön. Exhibe el
fundamento mismo de la combinación de lo criollo y la enciclopedia de
la alta cultura argentina porque muestra que el orden mismo del saber
enciclopédico (que requiere esa relación con los criollos) es una
organización jerárquica del saber que reemplaza, en las periferias, poder
total con saber total. Una de las marcas fundamentales de la alta cultura
argentina (que inventó la generación del ochenta, en el momento mismo
en que se establece el Estado nacional) se muestra de golpe como una
construcción imperial-colonial. (LUDMER, 2021a, p. 256-257)84

84
“Ele modula a enciclopédia da alta cultura de 1880 no que diz respeito à reprodução, espelhos e
paternidade. Ele reproduz a enciclopédia e a ordem enciclopédica e a transforma em um território fantástico.
Ele inventa um mundo para ele, uma linguagem sintética sem noções ideais, e lhe dá um sistema filosófico

104
Com efeito, a ideia de biblioteca pode apontar, também, para outras duas questões.
A existência de uma biblioteca física, aquela em que reunimos em casa ou em um espaço
reservado os livros que nos interessaram durante a vida, e a de uma biblioteca mental,
mais plástica e dinâmica, em que reunimos passagens de livros e autores que nos
interessaram. Conforme Denise Schittine, essas duas bibliotecas coexistem durante a
nossa vida, mas, com a cegueira, é a biblioteca mental, sobretudo para os cegos que não
aprenderam braile, a que ganha preponderância (SCHITTINE, 2016, p. 192).

Desse modo, a ideia de uma biblioteca mental se aproxima ainda mais da ideia de
memória, tanto do ponto de vista de uma memória como armazenamento quanto memória
como atividade reflexiva de um sujeito. Pois, de um lado, pelo menos de uma perspectiva
psicológica, a biblioteca mental armazena os conteúdos e informações que cultivamos
durante a vida e, de outro, o que ela guarda já é mediado por uma atividade reflexiva que
seleciona as informações que serão trabalhadas, fazendo com que outros conteúdos sejam
esquecidos.

No caso de Borges, a biblioteca mental cumpriu o papel de lhe ajudar com a escrita
mesmo quando ainda era vidente. A biblioteca física dele era pequena, mas a mental,
devido à sua memória prodigiosa, era enorme. Conforme Schittine a respeito de Borges,

A memória de livros lidos, de trechos, de opiniões de autores, de


citações estava arquivada com a minuciosidade de um bibliotecário em
sua cabeça. Quando necessitava de um livro, tirava-o desta “caixa de
Pandora” que era seu cérebro. (op. cit., p. 194)

Esse procedimento, guardadas as devidas proporções, também se fazia presente


em Mattoso. A sua memória alimentava uma biblioteca mental que possibilitou, inclusive,

e uma realidade cujo princípio é a reprodução: cada enciclopédia gera outra que a desvirtua, duplica ou
multiplica. E essa ordem enciclopédica de Tlön, que contém o Orbis Tertius, retorna “à realidade” como
um império e é introduzida no “mundo real” pelos criollos, os gaúchos. E ao combinar a ordem
enciclopédica com o elemento crioulo da literatura gaúcha, ele põe a nu essa marca ou traço de alta cultura,
e a mostra como um artefato de dominação. Borges rearranja os elementos de uma tradição e os volta não
contra esses elementos, mas contra a própria tradição, com a ficção de uma ordem imperial que fala o pós-
inglês de Tlön. Ele expõe o próprio fundamento da combinação do criollo e da enciclopédia da alta cultura
argentina porque mostra que a própria ordem do conhecimento enciclopédico (que requer esta relação com
os criollos) é uma organização hierárquica do conhecimento que substitui, nas periferias, o poder total pelo
conhecimento total. Uma das marcas fundamentais da alta cultura argentina (inventada pela geração dos
anos 80, no exato momento em que o Estado nacional foi estabelecido) mostra-se subitamente como uma
construção imperial-colonial.” (LUDMER, 2021a, p. 257, tradução minha)

105
a retomada de sua produção literária após a cegueira. Assim como Borges, Mattoso já se
preparava para o momento em que iria ficar cego. Assim como Borges, a memória ganhou
proeminência com a cegueira. Porém, diferentemente de Borges, a aproximação com os
livros em Mattoso se deu de um ponto de vista, politicamente, diferente.

Borges teve acesso à biblioteca no ambiente conservador de sua casa, por meio da
biblioteca de seu pai. Já Mattoso teve acesso à biblioteca devido ao trabalho na biblioteca
do Banco do Brasil e, lá, aproveitava para ler livros proibidos pela ditadura empresarial-
militar brasileira. Com isso, a imagem de Paraíso que Borges85 tinha da biblioteca
Mattoso a substituía pela imagem de um Inferno. Consoante Mattoso:

A memória é muito importante porque eu li o máximo que podia.


Inclusive, escolhi o curso de Biblioteconomia para ter mais acesso a
acervos bibliográficos, sem necessidade de tê-los em casa, justamente
para poder manusear e ler o que eu precisasse. E, como estávamos no
regime militar, a parte censurada dos livros das bibliotecas era recolhida
aos depósitos, aos infernos das bibliotecas. E eu, sendo bibliotecário,
tinha acesso a esses infernos e podia manusear obras pornográficas,
obras de esquerda. Li freneticamente, como se eu tivesse já prevendo
que depois de cego eu não teria como conferir tudo o que havia lido,
então eu teria que confiar na minha memória. Claro que não é uma
memória prodigiosa, matemática, não é isso. Mas eu tenho as noções
do que eu li e se precisar, por exemplo, eu tenho na biblioteca
determinado livro que posso pedir para alguém conferir para mim. (...)
Eu não sei exatamente, mas a gente vai indo e acaba encontrando. Então
a minha memória é fundamental. Sem ela eu não teria condições de
fazer todos os sonetos que eu fiz. Porque, no momento da composição
do soneto, eu não tenho ninguém para me ajudar. Não tenho dicionário
de rima, não tenho dicionário comum, não tenho nada. É tudo na
memória: vocabulário, rima, todos os recursos... tem que ser tudo de
cabeça. Depois que está composto, aí, sim, eu posso pedir para alguém
dar uma conferida em uma ou outra palavra, ver se usei a acepção
correta ou não, se estou usando em sentido figurado ou próprio. Dá para
conferir no dicionário, mas aquilo que todo mundo normalmente
consulta enquanto está escrevendo, eu não posso consultar, eu tenho
que usar apenas o meu arquivo mental, o repertório mental. Se eu não
tivesse lido tudo o que eu li, na velocidade que eu li, eu não teria essa
bagagem na cabeça. Não seria possível. (CAIXETA; RICHARD, 2014,
p. 2014)

85
Essa relação é um pouco mais problemática. No conto “La biblioteca de Babel”, Borges (1984) trabalha
a imagem da biblioteca como Inferno (SCHWARTZ, 2017, p. 104). É o exato oposto do que em El Hacedor
no “Poema de los dones” Borges afirma sobre a biblioteca: “Yo, que me figuraba el Paraíso / Bajo la especie
de una biblioteca.” (BORGES, 1984, p. 809).

106
Com efeito, a dimensão de uma biblioteca como universo e o livro como
representação do próprio homem possui diferenças importantes em Borges e Mattoso. Em
“El libro de arena”, conto presente no livro de mesmo nome e que foi publicado em 1975,
Borges recorre a imagem de um livro sem início nem fim, o livro sagrado, “el Libro de
los Libros” (BORGES, 1989, p. 69), que revela a existência de um objeto capaz de
comportar, nele mesmo, toda a possibilidade de escrita e leitura: o Livro de Areia.

A história começa com a chegada, ao entardecer – mais uma vez, Borges faz uso
de uma imagem que fica no interstício entre dia e noite –, de um homem desconhecido
que lhe apresenta o Livro de Areia, que, em seu próprio nome, traz a marca do infinito:
“Me dijo que su libro se llamaba el Libro de Arena, porque ni el libro ni la arena tienen
ni principio ni fin”86 (BORGES, 1989, p. 69). O vendedor vendia bíblias, mas, juntamente
com elas, trazia esse outro livro sagrado. No início relutante, o narrador, pouco a pouco,
vai sendo convencido da veracidade do livro de areia até que decide comprá-lo por meio
de uma troca: o narrador dá ao vendedor o valor de sua aposentadoria e uma Bíblia de
Wiclif em letras góticas. Consumada a compra, o vendedor vai embora à noite, como se
entregasse a escrita e toda a possibilidade de ficção nesse instante.

Então, com receio de que outras pessoas tenham acesso ao livro, o narrador tenta,
primeiro, escondê-lo atrás de volumes das histórias das Mil e uma noites – uma metáfora
que pode apontar para o sentido do que afirmei anteriormente: as Mil e uma noites
exprimem em Borges a vontade de escrita, de uma escrita que só tem como objeto ela
mesma. Depois, percebendo que o livro havia se tornado para ele um objeto de pesadelo,
decide escondê-lo em um lugar impossível de ser localizado devido, justamente, à
proliferação de livros: na Biblioteca Nacional, que possui mais de 900 mil exemplares.

Ressalte-se nessa descrição do narrador alguns elementos paratextuais que dizem


respeito à vida de Borges: os volumes das Mil e uma noites presentes na biblioteca, a
miopia e a descrição dos trajes e da mala cinza carregada pelo homem que pode
corresponder à cegueira do próprio autor. Sobre ese último ponto, afirma o eu lírico do
poema “El ciego”, presente na antologia El oro de los tigres, publicado em 1972 –

86
“Disse-me que o seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a realidade têm princípio
ou fim.” (BORGES, 2000b, p. 80)

107
portanto, na fase cega de Borges: “El azul y el bermejo son ahora una niebla / Y dos voces
inútiles. El espejo que miro / Es una cosa gris.” (BORGES, p. 1984, p. 1098)87.

Em Mattoso, o mundo só existe como um teatro de sadismo e masoquismo. Desse


ponto de vista, o livro, ou seja, a existência humana, diz respeito à uma compulsão pelo
gozo. Assim como em Borges a imagem do infinito surge para pensar o espaço da
biblioteca e os limites do livro, em Mattoso o infinito sofre uma inflexão importante.
Conforme Marcelo Diniz, em Mattoso a ideia de possessão cumpre o papel ora de
introduzi-lo na tradição literária, que vê na obsessão compulsiva para escrever algo da
ordem do sobrenatural – esse é o sentido em que poeta e profeta se aproximam –, ora de
incentivo para o gozo e, por consequência, para o seu projeto literário, pois a

narrativa de Glauco Mattoso se espanta com a quantidade monstruosa,


com a vertigem do inumerável, o excesso de um gozo que se dá por uma
espécie de excitação com o infinito. Se a possessão no sentido clássico
sempre remete à expressão elevada do espírito, a possessão mattosiana
é a própria tara: irracional, inexplicável, em que o fetichismo exerce a
função energética de devolver ao sujeito sua condição de gozo. Se o
gozo mattosiano é a própria excitação, o sonetário como projeto de
repetição infinita da fantasia pode ser considerado como o paroxismo
dos sintomas de seu masoquismo, de sua podosmofilia e de sua cegueira
transfigurados em pensamento pornográfico e político. (DINIZ, 2018,
p. 44-45)

Nesse sentido, parece-me claro que a forma com que Mattoso conduz o seu projeto
estético e literário alia desejo e escrita, constituindo não mais uma vontade de escrita,
como em Borges, mas um delírio da escrita, pois não se trata mais de seguir investindo
sobre novas possibilidades de escrita para empreender novos argumentos e consequências
racionalmente válidas, engendrando a escrita, de dentro, num processo virtualmente
infinito.

Em Mattoso, a escrita só surge quando mobilizada por um desejo que possui um


objeto de interesse claramente visado (no caso, o pé), mas que pode repercutir num
investimento libidinal mais amplo, perfazendo uma série de objetos para os quais não
havia, por parte do desejo, uma inclinação previamente determinada – o desejo, nesse
sentido, só surgiria depois, não só devido à proliferação de objetos desejantes, mas

87
“O azul e o vermelho são agora cerração, / Duas palavras inúteis. O espelho que miro / É uma coisa
cinzenta.” (BORGES, 2000a, p. 510)

108
também ao aspecto propriamente pornô-erótico que, em geral, aparece na última estrofe
e leva o leitor a completar na imaginação o que vem, efetivamente, “depois” – o que cria
uma aproximação com a ideia de uma “escrita-filme”, já que as cenas apresentadas
continuam para além da superfície visível do espaço textual (seria uma cegueira que
convoca a existência de um acontecimento?). Além disso, o interesse pela escrita não vem
de dentro, mas de fora: é o aspecto extralinguístico que conduz o autor para mais uma
aventura de escrita para a qual ele está condenado. É essa a direção do fatum mattosiano
que alinha cegueira e escrita, pois ser condenado pelo Destino faz com que Mattoso se
sinta não só impelido, mas obrigado a escrever.

109
II – A NOITE DA EXPERIÊNCIA

110
4. PERCEPÇÃO, CONSCIÊNCIA E SENTIDO NA ESCRITA DE BORGES E
MATTOSO

Nos Estados Unidos, um campo de estudos tomou forma nas décadas finais do
século XX com o intuito de pensar a emergência de questões ligadas às pessoas com
deficiência. Esse campo, intitulado Disability studies, consistiu, segundo Lennard Davis
(1995), numa tentativa de reverter o olhar normalizante que a sociedade, impregnada por
uma hegemonia cultural da normalidade, cultiva diariamente. Ainda consoante Davis, os
Disability studies, ao buscarem reverter esse olhar, funcionam também como uma nova
ferramenta hermenêutica para investigações distintas, como os estudos de literatura e de
história literária (DAVIS, 1999, p. 510).

Nesse contexto, como tentativa de colocar a normalidade como problema, os


estudiosos dos Disability studies procuraram historicizar a categoria de normalidade
(DAVIS, 1995), inquirir a linguagem empregada para designar a deficiência e os efeitos
de sentido que são mobilizados por ela (LINTON, 1998), questionar as relações entre
história (oficial) e doença ou aspectos clinicamente desviantes (BAYNTON, 2005), entre
muitas outras abordagens. No centro dessa discussão, porém, como indicado por Davis
(1999), está a noção de normal, que vai se estabelecer no século XIX com o surgimento
da estatística e da eugenia (DAVIS, 1999, p. 504).

Segundo Foucault (2010), como aspecto preparatório para o estabelecimento da


noção de anormal, é também no século XIX, sobretudo em sua segunda metade, que a
psiquiatria vai se destacar ao assumir para si a função de uma “ciência das condutas
normais e anormais” (FOUCAULT, 2001, p. 391). Com essa nova psiquiatria, a figura
do anormal vai ser construída por meio de uma nova tecnologia de poder que irá pôr em
continuidade e imobilidade a infância (op. cit., p. 386). Desse modo, a noção de doença
será relegada – já que não se trata mais de um momento de irrupção, mas de uma falha
no desenvolvimento, uma falta, que se contrapõe à noção de Estado e cria todo um
domínio de referência próprio. Diz Foucault:

O estado como objeto psiquiátrico privilegiado não é exatamente uma


doença, aliás não tem nada a ver com uma doença, com seu
desencadeamento, suas causas, seu processo. O estado é uma espécie
de fundo causal permanente, a partir do qual podem se desenvolver

111
certo número de processos, certo número de episódios que, estes sim,
serão precisamente a doença. Em outras palavras, o estado é a base
anormal a partir da qual as doenças se tornam possíveis. (op. cit., p.
397)

Essa noção de estado apresentada por Foucault traz ainda uma não
correspondência também com a reprodução – já que o anormal é colocado para fora da
linha serial que defende a boa genealogia –, pois no fundo desse corpo anormal, que é
gerenciado pela noção de estado, está o corpo dos pais, dos ancestrais, da família, da
hereditariedade (op. cit., p. 399). Com a hereditariedade, a psiquiatria do anormal se
afastou radicalmente de uma tecnologia do prazer ou do instinto sexual e se voltou para
uma “tecnologia do casamento são ou malsão, útil ou perigoso, proveitoso ou nocivo”
(op. cit., p. 401). De modo a desembocar, como consequência última dessa virada da
psiquiatria, numa teoria da degeneração.

Destarte, a psiquiatria passou a atuar na defesa social, impedindo que o


degenerado – a um só tempo, portador desse perigo de contaminação para o
desenvolvimento da sociedade e incurável – pudesse se alastrar indevidamente. Surgiu,
então, um novo tipo de racismo, o racismo contra o anormal, que mobilizou uma série de
instituições na tentativa de eliminar esse mal estrutural (op. cit., p. 403). Tratava-se, por
isso, da eugenia.

Nesse sentido, essa virada interna na racionalidade, operada no século XIX,


promoveu uma disseminação acentuada e sem precedentes do campo, até então restrito,
dos anormais ao mesmo tempo em que se preocupou em marcar não os indivíduos em si,
mas uma estrutura transcendental que os alinhava hereditariamente para recobrir sobre
eles o sentido de uma incurabilidade, por um lado, e o risco de um desenvolvimento
doentio do corpo vivo da sociedade, que era dado pelo signo da nação, por outro.

Essa mudança foi operada em toda a estrutura social, incluindo, e sobretudo, na


forma de produção nascente naquele período, haja vista que a industrialização, como
sublinha Davis (1999, p. 505), requereu um corpo estandardizado – em outros termos,
normalizado – tanto para servir como corpo trabalhador – que deveria ser, ao mesmo
tempo, dócil e produtivo, como demonstra Foucault (2014) em Vigiar e Punir – quanto
para servir como corpo consumidor de um produto uniformizado: a mercadoria.

112
Para Davis (1999), portanto, está em jogo nos Disability studies a investigação de
uma complexa relação que perpassa os discursos sobre deficiência e que repercutem, no
plano literário, as bases morais que subjazem o discurso; as categorias e a produção de
sentido social da anormalidade e a formação social dos corpos como dotados de
significado social:

Even “normal” bodies signify moral traits as well as the traits ascribed
to disabled characters. Beautiful (and noble, gentle, or bourgeois)
characters should be morally virtuous; cripled or deformed people are
either worthy of pity or are villains motivated by bitterness or envy.
Disability studies interrogates the formation of bodies, the signification
of bodies, and the national interests in producing templates for bodies
and souls. That nonnationals, women, and minorities are seen as sharing
the traits of the disabled, and that disabled people are feminized or
racialized, also complicates the explication of bodies in narrative forms.
(DAVIS, 1999, p. 510)88

4.1 A cegueira física

Em 1972, Borges publica a antologia “El oro de los tigres” e, entre os seus poemas,
um trata sobre a condição de sua cegueira de maneira mais direta:

EL CIEGO
A Mariana Grondona
I
Lo han despojado del diverso mundo,
De los rostros, que son lo que eran antes,
De las cercanas calles, hoy distantes,
Y del cóncavo azul, ayer profundo.
De los libros de queda lo que deja

88
“Até mesmo corpos ‘normais’ significam traços morais, assim como os traços atribuídos a personagens
deficientes. Personagens bonitos (e nobres, gentis ou burgueses) devem ser moralmente virtuosos. Já
pessoas aleijadas ou deformadas ou são dignas de piedade ou são vilões motivados por amargura ou inveja.
Os estudos sobre deficiência interrogam a formação dos corpos, o significado dos corpos e os interesses
nacionais na produção de modelos para corpos e almas. Essas pessoas compreendidas como não nacionais,
como mulheres e minorias, são vistas como compartilhando os traços dos deficientes e os deficientes, por
sua vez, são feminizados ou racializados – o que também complica a explicação dos corpos em formas
narrativas.” (DAVIS, 1999, p. 510, tradução minha)

113
La memoria, esa forma del olvido
Que retiene el formato, no el sentido,
Y que los meros títulos refleja.
El desnivel acecha. Cada paso
Puede ser la caída. Soy el lento
Prisionero de un tiempo soñoliento
Que no marca su aurora ni su ocaso.
Es de noche. No hay otros. Con el verso
Debo labrar mi insípido universo.

II
Desde mi nacimiento, que fue el noventa y nueve
De la cóncavas parras y el aljibe profundo,
El tiempo minucioso, que en la memoria es breve,
Me fue hurtando las formas visibles de este mundo.
Los días y las noches limaron los perfiles
De las letras humanas y los rostros amados;
En vano interrogaron mis ojos agotados
Las vanas bibliotecas y los vanos atriles.
El azul y el bermejo son ahora una niebla
Y dos voces inútiles. El espejo que miro
Es una cosa gris. En el jardín aspiro,
Amigos, una lóbrega rosa de la tiniebla.
Ahora sólo perduran las formas amarillas
Y sólo puedo ver para ver pesadillas. (BORGES, 1984, p. 1098)89

89
“O CEGO
A Mariana Grondona
I
Foi despojado do diverso mundo
E dos rostos, que são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Resta dos livros o que lhe consente
A memória, essa forma de olvido
Que retém o formato, não o sentido,
E que reflete os títulos somente.
O desnível espreita. Cada passo
Pode ser uma queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento

114
Como vimos, esse não é o primeiro texto a tratar sobre a condição de sua cegueira
de maneira temática nem, muito menos, de abordar a cegueira de maneira sub-reptícia. O
que acontece aqui, porém, é algo um pouco diferente. Os versos vão mesclando um tom
confessional com a escrita literária para revelar as transformações físicas pelas quais o eu
lírico passou. A essa altura, o texto borgiano parece conjurar a ideia difundida na segunda
metade do século XX de morte do autor ou de uma redução de seu papel a uma mera
função discursiva no interior do texto, como aparece em Foucault (FOUCAULT, 2009,
p. 294).

A data de nascimento (“que fue el noventa y nueve”) marca o registro histórico


que revela que o poema não quer ser uma pura ficção. A forma como descreve a perda da
visão – “El tiempo minucioso, que en la memoria es breve,/ Me fue hurtando las formas
visibles de este mundo” – e, junto com ela, a perda do espectro de cores azul e vermelho
e da predominância do cinza e do amarelo, representa uma mirada particular para a sua
própria cegueira. Algo que diz respeito à própria vida de Borges, como é confirmado pela
conferência “La ceguera”90, apresentada em 1977.

A rosa ali, portanto, é a presença ausente do que anseia, mas não pode alcançar –
já que não pode mais ver o vermelho. Por mais que o poema seguinte da mesma antologia
seja “On his blindness”, é, sobretudo, neste poema que o próprio Borges assume o posto
do eu lírico para falar sobre a sua experiência com essa nova condição. De todo modo,
não há uma saída do texto, pois o que ocorre é a confluência entre o eu lírico e o eu

Que não marca sua aurora nem seu ocaso.


É noite. Não há outros. Com o verso
Devo lavrar meu insípido universo.

II
Desde meu nascimento, no ano noventa e nove
Das côncavas parreiras e do algibe profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.
Os dias e as noites limaram os perfis
Dessas letras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos fatigados
As vazias bibliotecas e os vazios atris.
O azul e o vermelho são agora cerração,
Duas palavras inúteis. O espelho que miro
É uma coisa cinzenta. No jardim eu aspiro,
Amigos, uma lúgubre rosa da escuridão.
Agora só perduram contornos amarelos,
E só consigo ver para ver pesadelos. (BORGES, 2000a, p. 510)
90
Essa conferência pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=036yqajUDik. Curioso que a
conferência seja assistida em preto e branco, nessa cor cinzenta que é descrita por Borges como a sua
realidade.

115
biográfico na superfície textual, em que um serve de objeto e justificativa para o outro.
Com isso, o desvio que aparece em Borges, identificado pela cegueira, ilustra o desvio do
próprio fazer literário. É como se Borges desse uma resposta – interna ao texto, é verdade
– para o problema político da se perceber a cegueira como uma falta. Para ele91,
poderíamos compreendê-la, por outro lado, como uma virtude. A virtude da escrita, do
fazer literário.

Em Mattoso, como dito anteriormente, a temática da cegueira comparece de


maneira disseminada em uma série de textos. Ele, em geral, não chega a tematizá-la em
si, mas, em alguns poemas, procura refletir sobre a sua condição de escritor cego. É o
caso, por exemplo, de “Dissonnetto sobre a perda do sentido”, poema publicado na
antologia Deshumanismo em dissonetto:

Dissonnetto sobre a perda do sentido [3018]

Perverso e pervertido, eu participo,


o tempo todo, desse verbo impuro
chamado “perverter”. Mas, si sou duro
no verso, soffro e faço o falso typo.

Eu fodo, arrombo, roubo, estupro e extripo


no symbolo, somente, admitto. Juro,
comtudo, que quem viu e está no escuro
mais sadico é que um “kapo” teuto ou nippo.

Cruel e revoltado, meu desejo


é ser torturador, mas indefeso,
submisso e subjugado é que me vejo,
inerme e enclausurado no meu vezo.

Sem amor proprio, ou brio, ou nojo, ou pejo,

91
Estou assumindo essa afirmação como um proposição propriamente literária a partir do modo em que o
eu lírico e o eu biográfico se indeterminam no texto.

116
odeio, mas me humilho e, sob o peso
da bota de quem vê, meu malfazejo
impulso alvo é do riso e do desprezo. (MATTOSO, 2021a, p. 73)
No dissoneto acima – forma de poema criada pelo próprio Glauco, constituída de
quatro quartetos, em que se emprega uma técnica paralelística que cria uma outra voz,
dissonante, no soneto –, o eu dramático discute a questão da perversão e da
impossibilidade de ser o que gostaria (torturador), dado que é cego. Na segunda estrofe,
o poema cria uma disjunção na voz poética ao fazer referência entre um fora e um dentro
do texto e revelar que esse lado cruel está só no texto (“Eu fodo, arrombo, roubo, estupro
e extripo/ no symbolo, somente, admito”).

Em entrevista ao programa Estação Plural, da TV Brasil, em 2017, Glauco


afirmou que há uma diferença entre o eu biográfico, que é sádico, e o eu lírico de seus
poemas, que é masoquista. No entanto, essa distinção é sublimada na superfície textual
devido ao fato de que o eu dramático, por ser masoquista, não tem compromisso com a
verdade. Além disso, o eu dramático também guarda especial interesse pela tortura
infligida a outrem, sobretudo quando pode assumir esse lugar, além de também poder
atuar ativamente nisso, como indica o ato de colocar-se como sujeito dos verbos: “Eu
fodo, arrombo, roubo, estupro e extripo”.

A abjeção é outro elemento importante do projeto estético mattosiano e diz


respeito à sua relação com o fetiche. Como masoquista, o eu dramático, que é cego,
resigna-se a sofrer nas mãos de um vidente as piores coisas e dos piores modos. Como a
estrutura da sociedade possui a hegemonia cultural dos normovisuais sobre os cegos, é
como se o eu dramático aceitasse, como ocorre com a opressão sexual, a opressão social.
Porém, como o masoquista sempre manipula a cena para controlar a narrativa, o cego “dá
o troco” na sociedade ao liberar um gozo improdutivo92.

Além disso, a abjeção prepara o terreno, junto com o masoquismo, para a crítica
ao discurso politicamente correto nas artes e na sociedade, que rebaixa a diferença à
diversidade social – como criticado pelo movimento queer a respeito da presença da

92
Penso aqui no problema do gasto de energia libidinal esboçado por Bataille por meio da noção de
dispêndio (2013) e no problema do gozo queer referente à obra de arte, esboçado por De Lauretis (2011) a
partir da noção lacaniana de jouissance (gozo). Ambos serão tratados mais adiante. Para uma análise sobre
o gozo improdutivo no cinema brasileiro contemporâneo, ver: BARBOSA, André Antônio. Constelações
da frivolidade no cinema brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em
Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2017.

117
heteronormatividade no meio LGBTQIA+ e da invisibilização de outras identidades
políticas (MISKOLCI, 2016) – e a ideia de um humanismo, que pressupõe a existência
de um sujeito universal.

Nesse contexto, a atração por pés do eu dramático mattosiano gera uma crítica
política à sua condição física, no modo em que a cegueira é compreendida socialmente, e
ainda expressa, no nível textual, novas formas de sexualidade, mais fluidas, que
descentralizam o discurso falocêntrico (BUTTERMAN, 2005, p. 219).

4.2 A questão do método: a cegueira como vida ou como literatura?

Há, certamente, muitos modos de ler essa articulação entre literatura e vida em
Borges e, no que nos interessa também nessa pesquisa, em Mattoso. Essa articulação já
apareceu no século XIX, mas de maneira a desprezar o texto em busca de caracteres gerais
que o integrassem em famílias bem determinadas. Desse modo, como destaca Tânia
Carvalhal (2006), vinculada aos ideais positivistas do século XIX, a análise literária se
baseava na “psicologia” do autor e da relação com o seu “meio” como categorias centrais
de análise ao circunscrever a investigação por meio da pesquisa de fontes e influências
com o intuito de constituir uma família literária e explicar seus vínculos com a história.
Nesse primeiro momento, a crítica impressionista (CANDIDO, 2012) e as influências do
determinismo e do historicismo positivista concebem a tradição literária como algo que
se depreenderia no texto literário por meio das características idiossincráticas do autor
relativamente ao seu meio social, seja em função do seu “gênio” ou do seu “estilo”.

No século XX, como crítica ao historicismo e ao impressionismo, o Formalismo


russo e o New Criticism norte-americano, deslocaram a análise biográfico-historicista e o
impressionismo crítico para a materialidade da obra, partindo da imanência do texto
literário como característica fundamental para a análise. A partir dos anos 1960, quando
se formulam as primeiras reações ao estruturalismo na França , diversos outros autores
procuram repensar o lugar da história na investigação literária sem reduzir a importância
do texto literário enquanto fato imanente. Entre eles, Julia Kristeva, a qual, já no final da
década de 1960, cunha o termo interxtextualidade a partir dos estudos de Tynianov e
Bakhtin – dois autores que estabeleceram uma relação crítica com o formalismo russo –

118
para pensar o “processo de produtividade do texto literário” (op. cit., p. 50), de modo a
conceber o texto por meio de uma pluralidade de vozes que o engendram. Em outra
perspectiva, também no final dos anos 1960, Hans Robert Jauss (1994), um dos
fundadores da Estética da Recepção, faz um outro deslocamento na análise literária,
passando do texto em si para o leitor e concebendo esse último como polo ativo e criativo
da obra literária por meio de uma experiência historicamente situada. Com isso, as
relações entre tradição e ruptura se modificaram decisivamente.

Essas transformações pelas quais passaram esses conceitos interferiram na


compreensão da qualidade do texto e das literaturas que eram tomadas à margem – como
as literaturas tidas como “marginais”93 –, permitindo uma discussão crítica da
incorporação das influências externas e ocidentalizadas ao mesmo tempo em que se
interrogava a primazia do cânone europeu para normatizar o gosto literário e, por
consequência, os referenciais entre alta e baixa literatura.

Nesse contexto, o advento da Semana de Arte de 1922 (com seu ideário estético
internacional e local) e a noção de antropofagia defendida por Oswald de Andrade,
expoente da primeira fase do modernismo brasileiro, afirmam uma atitude crítica ao
colocar na máquina modernista e antropofágica o global e o local, minando, conforme
Silviano Santiago (2000), qualquer ideia de unidade ou de pureza. Daí talvez resulte uma
possibilidade de repensar toda a genealogia literária, e suas relações constituintes entre
tradição e ruptura, a partir do próprio movimento criativo das obras, esboçado como um
duplo movimento (de leitura e escrita ou, dito de outra forma, de escrita de escrita).

Com efeito, essas diferenças entre os pontos de vista de análise nunca implicaram
uma relação exclusivista, do tipo: ou se analisa o autor ou se analisa a obra ou se analisa
a interpretação. A diferença, como se percebe rapidamente nos escritos do século XIX,
traduz-se, precipuamente, no ponto de vista preponderante adotado pela abordagem
metodológica. Em todo caso, a diferença metodológica também repercute numa mudança
do objeto, pelo menos do ponto de vista de um objeto imediatamente epistemológico. Isso
porque, a depender da corrente que se filie, o crítico vai se deparar não só com novos

93
Para uma visão mais nuançada a respeito das literaturas “marginais”, ver: BOSI, Viviana. Poesia em
risco (itinerários a partir dos anos 60). São Paulo, 2011. Trabalho apresentado ao Concurso de Livre-
Docente - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2011.

119
resultados, mas também com um novo objeto – mais uma vez, um objeto que é concebido
como imediatamente de pesquisa94.

Nesse contexto, ao interrogar as obras de Borges e de Mattoso com o olhar crítico


estamos, em certa medida, ajudando a compô-las. Não só porque, do ponto de vista
hermenêutico, a interpretação colabora com a criação da obra, mas também porque a
pesquisa requer a construção de um objeto específico e, no caso da articulação entre
literatura e vida, de um objeto com características radicalmente diferentes às daquelas
utilizadas, por exemplo, em uma análise puramente textual, que dominou não só o New
Criticism, mas se espraiou por diferentes autores que são desde “desconstrucionistas”
(como Paul De Man, Jacques Derrida, etc.) até autores pós-estruturalistas que veem a
linguagem como o “novo estruturalismo” (como Agamben, Rancière etc.)
(LAZZARATO, 2014, p. 20).

Não quero, com isso, também negar a validade da disputa que se firmou,
sobretudo, na década de 1970 entre defensores dos Estudos Culturais, de um lado, e
defensores dos Estudos Literários, de outro, segundo a qual, grosso modo, confrontava-
se uma análise culturalista a uma análise “imanente” do texto95 – no sentido restritivo de
imanente como algo exclusivamente textual. Para mim, esse confronto, quando colocado
nesses termos, parece inócuo. Seja porque deixa de levar em consideração as nuances que
cada uma dessas correntes trabalha em seus diversos autores, seja porque não nos é
possível reduzir ferramentas e modos de abordagem metodológica a características
exclusivas de determinadas correntes.

Em todo caso, a pergunta sobre se é possível relacionar literatura e vida, hoje, tem
uma resposta trivial: sim. A grande questão, no entanto, é: de que modo? Flora Süssekind
(2004), por exemplo, em Literatura e Vida Literária, tentou aproximar a literatura da
vida cultural, procurando também implicar o próprio crítico nessa articulação; já Viviana
Bosi (2011), procurou destacar o contexto de produção em paralelo com a obra como
forma de revelar as convergências e divergências da escrita. Já se pensamos vida como

94
Estou frisando o problema de um objeto ser tomado do ponto de vista epistemológico para evitar mal-
entendidos sobre a concepção de objeto tomado de um ponto de vista ontológico. Ainda que essa divisão
entre epistemologia e ontologia sirva de maneira mais consistente para objetos naturais, torna-se difícil uma
distinção entre ambos os tipos quando se tem um problema – concretamente insolúvel – sobre a referência
de objetos literários. De todo modo, quando se olha para a questão apenas do ponto de vista da análise
crítica a força dessa distinção perde sentido e a categoria de objeto, nesse caso, fica bem estabelecida como
objeto de conhecimento.
95
Para uma discussão mais pormenorizada, ver: BORDINI, Maria da Glória. Estudos Culturais e Estudos
Literários. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.41, n.3, p.11-22, setembro, 2006.

120
um componente meramente biológico, podemos ser tentados a cair em certo biografismo
impressionista e determinista que se fez presente a partir do século XIX. Se, por outro
lado, pensamos na categoria de vida como um artifício irredutível ao meramente
biológico, como advoga Gilles Deleuze (ESPOSITO, 2017, p. 242-244), assumimos um
novo paradigma para estabelecer a análise literária e, com ele, criamos uma articulação
nova entre literatura e vida.

Para Deleuze (2002), quando se fala sobre a vida não se fala sobre “a” vida, mas
sobre uma vida. O artigo indefinido coloca o problema de se conceber não uma coisa,
nem um sujeito ou um objeto, mas um nível de efetuação do acontecimento – o próprio
acontecimento – a que o próprio Deleuze chama de campo transcendental e que é
composto por virtualidades. Dessa forma, uma vida guarda a força impessoal presente na
vida empírica e é – ou se define como – o que a escapa. Essa vida, ainda consoante
Deleuze, não pode ser compreendida por meio da temporalidade de um momento, mas da
temporalidade de um “entre-momento” (DELEUZE, 2002, p. 14). Com isso, uma vida se
impõe à consciência imediata, mas não é reduzida nem se confunde com ela. Além disso,
uma vida é algo que surge por meio do jogo que se efetua no extremo entre a vida e a
morte, nessa fronteira em que se está além de toda moralidade e de todo discurso sobre o
Ser.

Nesse contexto, os exemplos que Deleuze (2002) utiliza para ilustrar o seu
pensamento se confundem entre exemplos literários e não literários: o confronto de Maine
de Biran com a sua própria filosofia, os personagens de Dickens, a obra romanesca de
Lernet Holenia. Assim, Deleuze cartografa, entre diferentes planos de realização do
pensamento (filosofia, arte e, mesmo, ciência), esses momentos em que uma vida se
apresenta, como imagem de algo de pura potência, intensidade, beatitude.

Nessa perspectiva, por fugir ao discurso, uma vida não pode ser expressa em uma
linguagem, mas a sua força e intensidade podem ser sentidas na linguagem. Desse modo,
de uma perspectiva deleuziana, é nonsense falar sobre a possibilidade de se escrever sobre
a vida, pois a vida, ela mesma, não pode ser representada – e a linguagem, seja ela escrita
ou não, é um meio de representação. Ainda assim, é possível pensar em como essa vida
se insinua na materialidade textual e qual o grau de insucesso – já que é, concretamente,
impossível escrever a vida – que os autores tiveram com as suas obras na tentativa de
representá-la – já que, se não é possível escrever a vida, tampouco se pode escrever sem
ela e é, justamente, a escrita com ela que possibilita a criação literária (DELEUZE, 1997).
121
Quando passamos para a análise de obras de autores cegos, porém, lidamos com
um outro conjunto de virtualidades que invadem e extravasam o texto. A singularidade
da vida imanente desses autores, que não se confunde com as suas experiências vividas,
permite uma nova mirada sobre o objeto literário, na medida em que a falta dos olhos
implica uma reconfiguração do ato de ver e da própria experiência.

Por isso, ainda que a base biológica não seja redutível à vida e que a virtualidade
possa extravasar em qualquer base material – nas mais diferentes possíveis –, a forma
com que a vida se atualiza importa para auxiliar, embora não defina peremptoriamente,
na formação do conjunto de virtualidades que o agente realiza96– pois, caso não fosse
assim, recuaríamos até a ciência pré-aristotélica e cairíamos numa espécie de platonismo
por meio da defesa de um “moderno” funcionalismo generalizado97 – ou muito menos
tem disponível – porque a virtualidade é potencialmente infinita. Além disso, o sentido
de virtualidade em Deleuze não é o de uma possibilidade que se apresenta e logo some
com a atualização de um objeto, mas o de uma consubstancialidade que existe com o
agente, significando a contraface da sua atualização que permanece latente, pois, para
Deleuze, um objeto nunca se atualiza de fato; mas sempre está em vias de se atualizar.

De todo modo, o corpo físico do autor não é um mero apêndice transparente que
some com a produção do texto literário – nem mesmo quando se busca traduzir algo,
como no caso de Mattoso com relação a Borges ou nos trabalhos e nos problemas de
tradução colocados por Borges. Também ele tem algo a nos dizer sobre a criação literária.

4.3 Experiência e energia: a transformação da estrutura da experiência

A irromper no chão de Paris em pleno século XIX, marcando a transição que fazia
a cidade moderna suplantar a antiga, o gesto do cisne de Baudelaire em direção ao céu,
como um enfrentamento derradeiro que conjura a morte para tomar soberanamente a vida

96
Deleuze não fala isso nesses termos e mesmo que as suas teses sobre a vida se pareçam mais com a de
um funcionalismo generalizado (LAPOUJADE, 2015, p. 143), acredito ser importante fazer essa intrusão
na terminologia deleuziana para pensar problemas recentes colocados pela Filosofia em sua interface com
a Ciência e como isso colabora para pensar a questão da cegueira na prática literária.
97
A obra A Redescoberta da Mente, de John Searle (2006), embora não tenha como interesse central esse
tema, é uma vigorosa resposta para esse problema quando esquecemos de levar em conta a base material
para só nos determos nas possibilidades culturais (virtualmente ilimitadas) de realização do indivíduo.

122
(BATAILLE, 1989), faz escapar mais do que o esforço de proferir palavras pela própria
impossibilidade de sua natureza animal. Trata-se, antes, da incomensurabilidade do gesto
que abre o tempo histórico no seu próprio curso, interceptando-o transversalmente e
introduzindo, nesse intervalo, a própria diferença. Como uma alegoria, conforme defende
Walter Benjamin, que destrói e conserva-se ao mesmo tempo, arrancando-se “aos
contextos orgânicos da vida” (BENJAMIN, 2015, p. 163).

Em “Le Cygne”/ “O Cisne”98, o fundo sobre o qual o poema se produz é tomado


por uma consistência estranha, que dá a essa abertura, operada pela alegoria, o preço da
impossibilidade sobre a qual se inscreve o ato de escrita de qualquer poema. Isso que
passa e que mobiliza, junto às palavras, o próprio corpo do cisne ao exprimir uma fissura
no tempo, faz sentir, no movimento, a força de estar vivo e compondo, nos termos de
Daniel Stern (2010), uma experiência de vitalidade.

Não se trata, pois, uma experiência no sentido de uma sensação, uma percepção
ou um sentimento – pois estes, no modo como pensa algumas vertentes da Psicologia,
reclamariam a origem de um sujeito logocentrado –, mas algo que passa e promove na
sensação, por exemplo, a intensidade, um entre-lugar no tempo e no espaço. “ Eau, quand
donc pleuvras-tu ? quand tonneras-tu, foudre ? ”99, dizia o cisne, deixando escoar entre as
palavras, entre a imanência dos seus elementos (água/chover, trovão/trovejar), a Vida ao
reivindicar para cada um o cumprimento afirmativo de sua potência.

A súplica do cisne é também uma tentativa de fazer durar o que é fugaz nesse
“entre-tempo” em que se passa da cidade antiga para a moderna. É como uma investida
que redefine uma partilha do sensível, nos modos de ver, falar e sentir, mas sem
necessitar, como em Jacques Rancière (2005), da soberania da linguagem. Antes, porém,
o gesto do cisne se aproxima mais da Parresía de Foucault ao redefinir os termos de um
regime de enunciabilidades e de visibilidades, constituindo-se para além da linguagem e
de seu correspondente indigesto, também chamado de humano100.

98
“O Cisne” [trad.]. Cf.: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução e organização de Júlio
Catañon Guimarães. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2019.
99
Na tradução de Júlio Castañon: “‘Água, quando cairás? quando soarás, trovão?’” (BAUDELAIRE, 2019,
p. 300). Uma tradução alternativa poderia reforçar o aspecto de objeto direto interno presente nas duas
orações, como em: “Quando, água, choverás? quando troarás, trovão?”
100
Sobre as diferenças entre as noções de parresía em Foucault e de partilha do sensível em Rancière tendo
como base noção de soberania da linguagem, ver: LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades/
Signs, machines, subjectivities. Tradução de Paulo Domenech Oneto com a colaboração de Hortência
Lencastre. São Paulo: Edições Sesc São Paulo: n-1 edições, 2014.

123
Ao lado do cisne, a escrita parece se produzir inteiramente. Deleuze (1997) já
afirmava que a literatura tinha a ver com uma passagem de Vida. Uma vida, frise-se, que
não pode ser subsumida por qualquer substrato orgânico. Está, para além de toda
exterioridade, no Fora. Com isso, a escrita faz rachar a sintaxe ao mobilizar uma nova,
fazendo a língua devir-outro de si mesma. Assim, a literatura libera em nós aquilo que
havia sido rebaixado no uso cotidiano, promovendo uma nova conexão com o mundo
nesse instante mesmo de vacilo em que vida e morte entram em uma relação que torna
indiscernível os lugares de cada uma e faz algo como uma vida possa surgir.

Nesse sentido, se a escrita dá acesso à produção desses novos modos de instalação


no sensível, a escuridão é o fundo afirmativo que permite à transparência da luz exprimir-
se de uma maneira nova, atravessando novas dimensões na constelação mesma em que
se dá o acontecimento – ou antes, a Vida. Não só Homero, como já dissemos, é exemplo
disso, mas também Espinosa. Segundo Deleuze, para Espinosa o ofício de polir lentes se
atrelava ao método geométrico e compunha com ele, mais do que um conhecimento, um
modo de vida. O filósofo polia lentes para dar passagem a uma outra dimensão, a do
terceiro olho, com o intuito de “ver a vida para além das falsas aparências, das paixões e
das mortes” (DELEUZE, 2002, p. 20).

É a partir da escuridão, assim, que o poeta escreve. O próprio Bataille,


concordando com René Char e, em certa medida, com Sartre, pôde afirmar que o que
separa a visão poética de uma visão comum do dia a dia é que a primeira busca fechar
(ou abrir em um outro sentido) soberanamente os olhos (BATAILLE, 1989, p. 35).

4.3.1 Percepção visual e os sentidos de si

Antes de avançarmos em direção a uma compreensão mais afinada da relação


entre a visão, a cegueira e a literatura, façamos uma digressão pela óptica e pela psicologia
contemporâneas.

Assumindo uma perspectiva da neurociência sobre os olhos, em A imagem,


Jacques Aumont (1993) apresenta um esboço de teorias neurofísicas e da percepção para
pensar as características presentes na visão. Segundo ele, os olhos são apenas um dos

124
instrumentos da visão, mas não o mais complexo – já que a visão resulta de processos
sucessivos e consubstanciais que agregam operações ópticas, químicas e nervosas.

Do ponto de vista das operações ópticas, os olhos funcionam como uma câmera
fotográfica com seu conjunto de lentes, pois eles tanto capturam uma grande quantidade
de luz quanto focam em um único ponto (AUMONT, 1993, p. 19-20). Já do ponto de
vista das operações químicas, a retina, no fundo do olho, absorve os quanta luminosos e
os transforma, por reação química, em outras substâncias, as quais se comunicam com
regiões do cérebro de nível superior que processam essa informação química e a converte
em imagem visual (op. cit., p. 20, 21). Esse último é o terceiro estágio que opera a
passagem das operações químicas para as nervosas. Para Aumont (op. cit., p. 22), é nesse
último estágio que se processa o essencial.

A percepção visual se apresenta, então, como uma atividade de localização e


interpretação de “certas regularidades nos fenômenos luminosos que atingem nossos
olhos. Em essência, essas regularidades referem-se a três características da luz: sua
intensidade, seu comprimento de onda, sua distribuição no espaço” (idem).

Com isso, a interpretação da intensidade da luminosidade do objeto é, desde o


início, mediada pela interpretação da quantidade real de luz emitida por esse objeto
(idem). Nós, do ponto de vista psicológico, não sabemos a quantidade real de luz de um
objeto, porque isso necessitaria sair de nossas estruturais perceptivas – coisa que só nos
é possível hoje com o acréscimo na observação de algum aparelho tecnológico.

O comprimento de onda, que define a cor que enxergamos, assim como acontece
com a percepção da intensidade, também se expressa como um efeito de nosso sistema
perceptivo (op. cit., p. 25). Já a distribuição da luz no espaço nos faz perceber o limite
dos objetos por meio de nossa capacidade perceptiva de discriminar alterações de
luminâncias (a quantidade de luz real efetivamente emitida por uma fonte luminosa):

O sistema visual está equipado “por construção” com instrumentos


capazes de reconhecer uma borda visual e sua orientação, uma fenda,
uma linha, um ângulo, um segmento; esses perceptos são como as
unidades elementares de nossa percepção dos objetos e do espaço. (op.
cit., 29)

125
Aumont acrescenta também o fato de que os elementos da percepção, como
luminosidade, bordas e cores, são produzidos de modo simultâneo – o que faz um
elemento ser codependente do outro – e que, embora a visão seja um sentido espacial, ela
também se desdobra temporalmente – haja vista que a percepção e o processamento da
imagem acontecem no tempo (op. cit., p. 31)

Conforme o físico Helmholtz (apud QUIROGA, 2011, posição 1547), os olhos,


sobretudo por essa distribuição das funções exemplifica por Aumont, captura poucas, mas
precisas informações – o que faz com que o cérebro realize inferências inconscientes para
dar sentido à realidade exterior. Ou seja, o cérebro interpreta informações incompletas e
faz predições com base em experiências passadas. Como resultado, nós processamos
signos, e não cópias do que vemos. Geramos, com isso, abstrações, conceitos, universais
platônicos101. Damos um significado ao que impacta nossa retina e descartamos a
infinidade de detalhes (QUIROGA, 2011, posição 1606)

Se cego, porém, a escuridão tem um outro gosto. Um gosto que substitui a


predominância dos olhos pelo tato e a audição. Ainda que os olhos, ou um certo regime
de visualidade, compareçam para o escritor cego – e eles, definitivamente, comparecem
–, surgem apenas como produto de uma agitação no seio do sensível. Os olhos, aqui, não
são mais percepção, mas perceptos e configuram-se não como a identidade entre o órgão
e o sentido (olho/visão), mas por meio da captação das propriedades invariantes abstratas
das coisas que estão dispostas na dinamicidade dos eventos, buscando extrair delas
informações crossmodais, ou seja, informações que poderiam ser “transpostas” para
qualquer modalidade sensória. A esse tipo de captura criativa, que é o que sustenta a
criação artística, Daniel Stern (2000), um etólogo norte-americano, dá o nome de
percepção amodal, que se situa num nível pré-linguístico, anterior à diferenciação dos
sentidos (tato, olfato, paladar, visão, audição e propriocepção).

O conceito de percepção amodal surge como um termo derivado das pesquisas que
Stern realizou com bebês para pensar os sentidos de si. Segundo Stern, ao contrário das
teorias desenvolvimentistas de Piaget, que defende a existência de estágios ou fases para
aquisição da linguagem sendo substituídos à medida que avança o desenvolvimento da

101
Whitehead (1956) chama isso de “superjeto”, que reconfigura a relação de preensão entre sujeito e objeto
a partir de “ideias eternas” (formas, valores etc).

126
criança, há uma coexistência dos sentidos de si não verbais mesmo após o período de
aquisição da linguagem.

O exemplo que usa para esse movimento, particularmente em Diary of a Baby,


publicado em 1990, ao invés de The Interpersonal World of Infant – publicado antes, em
1985 –, é o da música: o aparecimento de outro sentido de si não exclui o anterior, mas,
como uma nota que é acrescentada à primeira, ambos os sons se alteram na presença do
outro, de modo que o aparecimento do segundo sentido também altera o primeiro e ambos
coexistem (STERN, 1998, p.10).

Na obra mais conhecida de Stern, The Interpersonal World of the Infant, somos
apresentados a quatro sentidos de si, com modos de funcionamento e organizações
próprias, cada um sendo acionado por meio da configuração de um domínio de relação
que já os constitui, são eles: sentido de si emergente (sense of an emergente self); sentido
de si nuclear (sense of a core self); sentido de si (inter)subjetivo (sense of a
(inter)subjective self) e o sentido de si verbal (verbal self).

Posteriormente, ele acresce a essa sistematização o sentido de si narrativo


(narrative self). No entanto, essa nova conceituação só é adicionada após o período de
aquisição da linguagem. O que nos interessa aqui, no entanto, é justamente os três
primeiros sentidos de si não verbais que ocorrem fora da consciência e que são ativados
ainda muito cedo, estando diretamente relacionados com o nosso sistema de percepção
do mundo. São justamente esses sentidos também que, por exceder à linguagem, vão
interessar a Félix Guattari em seus últimos anos de vida, sobretudo, em Caosmose (1992).
Maurizio Lazzarato mostra como essa influência de Stern em Guattari fez este último
propor a especificidade do cinema por meio de sua materialidade que é baseada na
imagem102 (LAZZARATO, 2014, p. 90-96).

Por volta dos anos 2000, em uma introdução revista do livro The Interpersonal
World of the Infant, Stern substitui a clara sequência temporal que definia o período de
surgimento de cada um dos três sentidos de si (por volta de 2 meses para o primeiro; de
2 a 3 meses para o segundo e entre 7 e 9 meses para o terceiro sentido) por uma
compreensão que toma os três sentidos de si como já virtuais desde o início,
desenvolvendo-se conjuntamente (STERN, 2000, p. xiv). Conforme Guattari apud

102
Certamente, há uma aproximação possível entre o que é exposto por Lazzarato (2014) a partir de Guattari
sobre o cinema e o que é defendido por Hernán Ulm (2014) sobre a diferenciação entre imagem e palavra.

127
Lazzarato, “os diferentes sentidos de si, anteriores ao sentido linguístico de si, não são
absolutamente etapas na acepção freudiana, mas, sim, ‘níveis de subjetivação’, focos e
vetores de subjetivação não verbais que se manifestam ao longo da vida em paralelo com
a fala e a consciência” (LAZZARATO, 2014, p. 91).

O sentido de si emergente corresponde à gênese, “matriz” para Stern ou “foco de


subjetivação” para Guattari, que permite todo ato criativo e a constituição dos outros
sentidos de si a partir da apreensão do mundo que é gerada por meio a) da percepção
amodal – a qual se situaria num momento anterior à diferenciação dos sentidos,
fornecendo uma constelação de informações abstratas, crossmodais, ou seja, que teriam
uma capacidade intrínseca de transmissibilidade para qualquer modalidade sensória –; b)
da percepção fisionômica – com a experiência direta dos afetos categoriais, ainda sem
fronteiras definidas e, por isso, participando também como um tipo específico de
percepção amodal – e c) dos afetos vitais – os quais seriam experimentados de forma
subjacente e concomitante, em presença ou não, dos afetos categoriais e seriam marcados
por termos dinâmicos cinéticos, como “surgir”, “esvaecer”, “crescendo”, “decrescendo”
etc. (STERN, 2000, p. 60).

Em Diary of a Baby, o sentido de si emergente – que pertence a um domínio em


que o mundo é apresentado como experimentação (World of Feelings) – assume a forma
de uma plasticidade musical. A criança apreende as coisas não em termos de
concreto/abstrato, mas em termos de tons, ritmos e intensidades. Para cada momento
vivido, uma multiplicidade de feelings-in-motion: sensações e percepções crescem ao
mesmo tempo e estão sempre mudando a cada momento (STERN, 1998, p. 14). Não há
dentro e fora. Só há exterioridade que produz interioridade. As coisas são apreendidas a
partir dessa diferença de volume que elas evocam (como feeling tone) no presente
experienciado. Desse modo, o bebê ainda não consegue perceber duas experiências ao
mesmo tempo. Porém, a experiência seguinte não desaparece com a primeira. No presente
da experiência, por isso, é possível ouvir o eco dessa primeira experiência na segunda –
que não desaparece, mas fica em segundo plano: one melody loud, the other quiet (op.
cit., p. 27-28).103

O segundo sentido, sentido de si nuclear, auxilia na impressão de um corpo


coerente, que mais ou menos controla suas ações numa relação interpessoal (STERN,

103
“uma melodia alta, já a outra silenciosa” (STERN, 1998, p. 27 e 28, tradução minha)

128
2000, p. 69). A interação com o olhar é a marca desse sentido de si. Uma interação que
não procura nada, pois já é em si mesma (STERN, 1998, p. 51). Assim, o tema-e-variação
da voz da mãe opera para manter a interação com o bebê. Nesse ínterim, constituem-se
três eventos de si: consigo, com o outro e com alguém que faz as vezes de si – por
exemplo: quando a mãe brinca com o braço do bebê para apanhar alguma coisa, ensinando
ações. Isso forma um embrião para a definição dos lugares de ator-agente e paciente e da
instituição dos pronomes: eu, ela (no caso da mãe) e nós (eu, ela e nós).

A ação de ser carregado, nesse momento inicial da vida, permite também outra
compreensão do espaço (autolocomoção) e outra compreensão do tempo (separação entre
o tempo cronológico e o tempo subjetivo) (STERN, 1998, p. 74). Ao contrário do sentido
de si emergente, o bebê já consegue considerar duas experiências, mas estas se
desenvolvem ao mesmo tempo. Ainda assim, tudo se passa no presente que agora se
alonga. O que constitui representações abstratas a partir dos modos-de-estar-com104 que
atuam na integração dos invariantes de si e compõem o sentido de si nuclear.

O terceiro sentido, o sentido de si subjetivo, marca a percepção da criança de que


ela tem uma mente e de que pode compartilhá-la com outras pessoas (STERN, 2000, p.
124). Agora, o bebê procura objetos que existam na mente para além do presente. Há,
com isso, desenvolvimento da memória (STERN, 1998, p. 85). Assim, comparecem para
permitir a relação intersubjetiva: focos de atenção (a criança já indica com o olhar e
compartilha isso com a mãe) e comunicação de intenções e compartilhamento de estados
afetivos (STERN, 2000: 128).

Para estabelecer a comunicação com o bebê, a mãe se utiliza de uma espécie de


sintonização que Stern dá o nome de affect attunement105, permitindo à mãe, por meio
das propriedades amodais da criança colocadas em jogo na interação, sintonizar-se
diretamente com os estados afetivos do bebê. Aqui, todavia, não se trata de uma
“imitação” – pois a mãe expressou isso em suas próprias “palavras” (STERN, 2010, p.
114) –, nem de uma representação do comportamento – pois a sintonização está ligada
diretamente aos estados afetivos –, nem, por isso, de uma resposta reflexiva do bebê –
pois esse ato antecede à cognição.

104
Ways-of-being-with. Aqui, estaria referido o Representations of Interactions that have been
Generalizeds (RIGs), mas o próprio Stern muda o nome do termo para melhor descrever a experiência
vivida por meio de uma proximidade com as noções já utilizadas na clínica.
105
Sintonização afetiva.

129
Nesse contexto, esse esboço, ainda que demasiadamente breve, dos sentidos de si
na obra de Daniel Stern permite-nos perceber como os modos de operação e
funcionamento desses sentidos implicam diretamente no acesso e comunicação da
experiência. Com a aquisição da linguagem, conforme Stern (2000), a nossa experiência
é fragmentada, os eventos episódicos de cada momento se transformam em eventos
generalizados. As palavras do uso comum correm, então, em paralelo com a
complexidade e riqueza da experiência global, dividindo nossa compreensão em dois
mundos: de um lado, a experiência vivida e, do outro, a experiência narrada. Todavia,
ainda segundo Stern, isso não rebaixa a linguagem, mas a redimensiona de acordo com a
participação decisiva e constituinte do não verbal.

Na arte, e no caso específico dos poetas, Stern fornece o exemplo de Baudelaire e


dos poetas simbolistas franceses (STERN, 2000, p. 155) que procuraram as propriedades
amodais das coisas para transpor de uma modalidade sensória para outra com o objetivo
de criar “um processo subjetivo mais transcendental” (STERN, 2010, p. 78). Desse modo,
os poetas captariam as propriedades invariantes abstratas das coisas dispostas na
dinamicidade dos eventos em que se situam para delas extrair as informações
crossmodais.

Retomemos agora nosso tema, o da cegueira, e de sua relação com a poesia.


Quando o poeta cego enfrenta a violência desse desafio – ou seja, o desafio que constitui,
e que requer, a própria criação artística –, conecta-se, decisivamente, com algo que o
excede, no lugar mesmo do impessoal por onde passa a vida. Com a cegueira, nos casos
concretos de Mattoso e Borges, esse limiar se reestrutura com a mobilização de um novo
ritmo, o qual engendra, por sua vez, uma nova temporalidade e experiência na criação
literária com o retorno da métrica clássica e pela imagística auditiva das palavras, que
requer uma atuação maior do corpo. Essa mudança no corpo do autor, causada pela
cegueira, requer uma nova atuação conjunta – já que os sentidos sempre atuaram
conjuntamente – entre os outros sentidos que restaram funcionando para a formação de
imagens literárias.

Com isso, torna-se necessário convocar novas forças que não compareciam antes
ou, se compareciam, participavam em menor escala. É preciso, assim, acessar a
experiência de um jeito diferente do uso cotidiano da linguagem – não mais estando
interessado na representação dos acontecimentos – já que os olhos servem,
primeiramente, à representação, pois a representação é concebida como sinônimo de
130
representação visual –, mas no próprio acontecimento. É necessário, por fim, de um novo
trabalho da percepção e da atenção que permita a comunicação direta, por contágio, com
o campo de forças que atua a cada momento no presente vivido, mesmo quando se procura
representar algo106.

Com efeito, esse trabalho só pode ser feito se mobilizarmos os outros sentidos de si
que participam de nossa experiência de apreensão das coisas. Em Forms of Vitality
(2010), Daniel Stern expande a noção de affect attunement para formas dinâmicas de
vitalidade (dynamic forms of vitality), tomando-as como um fenômeno subjetivo que se
desenvolve e constitui no próprio movimento, integrando tempo, força, espaço e
intenção/direcionalidade. Assim, nada pode ser experimentado e/ou percebido sem as
formas dinâmicas de vitalidade.

Desse modo, a percepção amodal constitui as formas de vitalidade na medida em


que fornece informações abstratas sobre forma, quantidade, nível de intensidade etc. ao
invés de informações concretas sobre coisas vistas, ouvidas, tocadas. É com as formas de
vitalidade dinâmicas que os artistas trabalham, como é o caso de Evgen Bavcar (figura 6)
– um fotógrafo cego que faz o registro da luz ao captar formas que passam e atravessam
o artista no momento da criação. De modo que não há trabalho estético que se dê sem
elas, diferindo apenas entre os usos mais ou menos eficazes que se possa fazer. Essas
formas de vitalidade atravessam, carregam e fabricam a intensidade e o contorno temporal
do conteúdo (STERN, 2010, p. 23). Nesse sentido, muito embora quase sempre apareçam
juntos, conteúdo e formas de vitalidade dinâmicas não se confundem.

106
Há duas coisas em operação nesse trecho: uma é a descrição do que é requerido para a criação literária
pelo autor que se tornou cego – no caso de Mattoso e Borges – e a outra está na característica constitutiva
de toda criação literária que tenha a escrita como base. É verdade que, para Stern, todos os artistas teriam
que mobilizar essa experiência outra, mas nos autores que investigo encontrei algo que os convoca a utilizar
de maneira diferente essa experiência: a necessidade de complementaridade para extravasar a criação
literária.

131
Figura 6. Fotografia de Evgen Bavcar em que dois corpos femininos nus são envolvidos por pássaros de papel.
#Paratodosverem: Fotografia em preto e branco em que duas mulheres nuas estão sentadas no chão. Não dá para ver
o rosto delas. Uma série de pássaros de papel, sustentados por braços sem corpo, aparecem no quadro e dividem o
espaço com elas.

4.3.2 Mattoso e Borges: a visão aquém e além do olhar

Na obra mattosiana, a pornografia não se desenvolve primeiramente como tema,


mas se dá, ou se exprime, diretamente na literatura a partir do nível expressivo, de modo
que não é possível quebrar ou separar palavras de suas relações morfossintáticas e
pragmáticas. É necessário ver o todo, como o poema aparece. Nada se esconde sob a obra
porque ela se dá por inteiro e tudo que faz é se mostrar em sua própria superfície. É na
superfície ou no que aparenta – no sentido de tudo que aparece – que reside a sua força
e onde os verdadeiros conteúdos da literatura de Glauco podem dar às caras, mesmo ele
estando às escuras – pois o poeta tenta captar essa vida por vir que não para de passar,
como o cisne de Baudelaire ou a tara masoquista e homossexual de Mattoso.

132
O modo como o poema mattosiano, ele mesmo, se coloca na tradição literária
promove, então, uma genealogia bélica própria. Pois, se participa da tradição, é
simplesmente para atingir o seu avesso. Com isso, é a própria língua portuguesa que
atinge por meio de uma composição que se coloca no entre-lugar do cânone e da
vanguarda. Aqui, seguindo Gilles Deleuze (1997), Mattoso faz minorar a língua,
rachando a sintaxe ao mesmo tempo que produz uma nova; convocando, nesse
movimento, tudo aquilo que excede a linguagem e está para além do humano – visto que
o interesse de Guattari pelos sentidos de si de Daniel Stern ao perceber a participação do
não-verbal, do não-linguageiro, na experiência, reside, justamente, no que impede
qualquer compreensão da percepção como uma simples propriedade humana.

A literatura, por isso, ao permitir um acesso diferenciado na experiência por meio


de um nível de subjetivação que excede a linguagem, também faz passar e captar forças
que excedem o humano e, no entanto, o constituem: são forças cósmicas, geológicas,
vegetais, animais etc. que atravessam o poeta e a obra e fazem-no dispor o seu plano de
composição (DELEUZE; GUATTARI, 2010).

Nessa perspectiva, o gozo improdutivo (BATAILLE, 2013; DE LAURETIS,


2011) do cego masoquista passa por um grito interno que impede qualquer fechamento
do poema ao produzir um processo de corporificação da literatura que está sempre a se
conectar com elementos cada vez mais heterogêneos que se relacionam entre si. Esse
movimento autopoiético107 operado por Mattoso, e que põe em causa a sua poesia, faz da
antropofagia um método de outra intensividade, que o próprio Glauco dá o nome de
“coprofagia” – indo além da antropofagia oswaldiana ao recolocar na máquina
antropofágica aquilo que foi vomitado por ela (MATTOSO, 2004).

Sobre esse assunto, vejamos o que acontece no poema “Para o diálogo platônico
entre um joven e um cego”, presente na antologia O poeta pornosiano:

#2188 PARA O DIALOGO PLATONICO ENTRE UM JOVEN E UM


CEGO [8/2/2008]

107
Sobre o problema e a constituição de um sistema autopoiético na arte, ver: GOMES, Guilherme Foscolo
de Moura. Fúria do Comentário: hipertrofia hermenêutica na era da mimesis. Rio de Janeiro, 2015. Tese
(Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

133
“Ficou cego? Merece! Eu ca desfructo!”
– Você desfructa? É justo... É joven, rico...
“Pois é: soffra você, cada minuto!”
– Mereço, eu sei... Por isso pago o mico...

“Por que ter dó dum cego? Eu piso, eu chuto!”


– E aos seus pezões meus versos eu dedico...
“Você pode ser util como um puto...”
– Sim, com um fellador me identifico...

“Agora eu brindarei! Chupe, supporte!”


– E eu brindo ao meu azar, à sua sorte!
“Então engula a porra! Eu bebo o vinho!”

– Serei seu novo escravo, si quizer...


“Eu tenho é preferencia por mulher,
mas dá prazer a boca dum ceguinho...” (MATTOSO, 2011b, p. 148)

O travessão e as aspas presentificam as falas do eu dramático, no primeiro caso, e


do personagem que o antagoniza, o jovem sádico, no segundo. Esse recurso serve para
compor uma cena aos moldes da leitura de uma peça teatral. A tópica da dominação e da
desigualdade também comparece aqui, mas, ao contrário de outros poemas em que o eu
dramático mattosiano apenas apresenta situações do cotidiano, nesse ele também fala
sobre o papel do poeta que, cego e humilhado, dedica seus versos “aos pezões”.

Assim como acontece em um filme, o registro presente no poema insinua no leitor


um antes e um depois do que é visto, mas, como não há o recurso a imagens como as do
cinema e a descrição no poema é realizada procurando evitar o uso de metáforas para
intensificar o aspecto desejante focado na superfície textual, o que se imagina no além da
cena é, na verdade, a continuidade do desejo ao invés da continuidade direta dela. Com
isso, a continuidade ficcional entre autor – Glauco Mattoso – e o eu dramático se constitui
de forma opaca, não só porque a linguagem não é transparente, mas também porque o
elemento que a torna opaca não está presente no texto em si, mas surge além ou aquém
dele: no desejo que mobiliza no autor o seu delírio de escrita.

134
Já Borges não se move por um apetite sexual, mas por um desejo de ficção108.
Com a cegueira, esse desejo intensificou a presença de elementos que se apresentaram
em sua fase visual, entre eles, as cores – já que a sua cegueira não foi total: ele ficou cego
completamente de um olho, mas parcialmente do outro – e o interesse mais acentuado
pelas possibilidades da ficção. Na conferência “La Ceguera”109, apresentada em 1977,
Borges fala, entre outras coisas, sobre as cores que perdeu – preto, branco e, sobretudo, o
vermelho, que desapareceu por completo –, sobre as cores que ainda persistem, mas com
um grau de precisão mais baixo – verde e azul –, e sobre a cor que permaneceu luminosa
durante toda a vida: o amarelo (BORGES, 1989, p. 276-277).

Nesse contexto, a presença do amarelo fez-se repercutir em diversas de suas obras


devido à reminiscência da imagem do tigre em uma viagem que fez ao jardim zoológico
(op. cit., p. 276). No poema “El oro de los tigres”, publicado em 1972, na antologia de
mesmo nome, Borges discute, tematicamente, a importância do amarelo em sua literatura:

EL ORO DE LOS TIGRES

Hasta la hora del ocaso amarillo


Cuántas veces habré mirado
Al poderoso tigre de Bengala
Ir y venir por el predestinado camino
Detrás de los barrotes de hierro,
Sin sospechar que eran su cárcel.
Después vendrían otros tigres,
El tigre de fuego de Blake:
Después vendrían otros oros,
El metal amoroso que era Zeus,
El anillo que cada nueve noches
Engendra nueve anillos y éstos, nueve,
Y no hay un fin.

108
Müller (2015) fala a respeito de um “desejo de ficção” nos filmes de Orson Welles. Cf. MÜLLER,
Adalberto. Orson Welles: banda de um homem só. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
109
Essa conferência pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=036yqajUDik. Curioso que,
dada as condições técnicas do momento, a conferência seja assistida em preto e branco, nessa cor cinzenta
que é descrita por ele como a realidade do escritor.

135
Con los años fueron dejándome
Los otros hermosos colores
Y ahora sólo me quedan
La vaga luz, la inextricable sombra
Y el oro del principio.
Oh ponientes, oh tigres, oh fulgores
Del mito y de la épica,
Oh un oro más precioso, tu cabello
Que ansían estas manos.
East Lansing, 1972. (BORGES, 1984, p. 1139)110

O eu lírico expressa no poema um regime de analogia que conecta a cor à literatura


por meio das relações possíveis entre o tigre de William Blake, o ouro de Zeus e o anel
presente na Edda menor – segundo Jorge Schwartz (2017), trata-se de uma obra sobre
mitologia e poesia nórdicas escrita por Snorri Sturluson no século XIII (SCHWARTZ,
2017, p. 199).111 O poema termina em um tom confessional – o qual, destoa, como vimos,

110
“O OURO DOS TIGRES

Até a hora do ocaso amarelo


Quantas vezes terei contemplado
O poderoso tigre de Bengala
Ir e vir pelo predestinado caminho
Por detrás das barras de ferro,
Sem suspeitar que eram seu cárcere.
Depois viriam outros tigres,
O tigre de fogo de Blake;
Depois viriam outros ouros,
O metal amoroso que era Zeus,
O anel que a cada nove noites
Engendra nove anéis e estes, nove,
E não há um fim.
Com os anos foram me deixando
As outras belas cores
E agora só me restam
A vaga luz, a inextricável sombra
E o ouro do princípio.
Oh, poentes, oh, tigres, oh, fulgores
Do mito e da épica,
Oh, um ouro mais precioso, teus cabelos
Que estas mãos almejam.
East Lansing, 1972.” (BORGES, 2000a, p. 555)
111
Conforme Schwartz (2017), devido ao processo de catalogação, há dois tipos de Edda. Uma descoberta
pelo bispo islandês Brynjólfur Sveinson, no século XVII e que foi conhecida como Edda antiga ou poética;
e uma que foi trabalhada por Snorri Sturluson e que passou a ser conhecida como Edda prosaica. A primeira
é referenciada, por exemplo, nos dois primeiros poemas de Borges e em “La flor de Coleridge”, presente
na obra Otras inquisiciones. Já a segunda, é referenciada no ensaio “Las kenningar”, presente na obra

136
da fase visual de Borges, mas que se torna mais comum em sua fase cega. Já nos dois
últimos versos – “Oh un oro más precioso, tu cabello/ Que ansían estas manos” –, o
interesse pela cor é afirmado como o interesse por aquilo que não se pode possuir. Essa
relação é comum na literatura medieval e muitos críticos a descrevem como a procura de
um objeto do desejo – como é o caso presente no trovadorismo e em outras produções
galego-portuguesas112 –, mas poderíamos pensar também que esse objeto de desejo
enunciado é a própria ficção, que se furta a posse pelo autor.

Em um ensaio de junho de 1939 – portanto, quando ainda era vidente –, intitulado


“Quando a ficção vive na ficção”, Borges (1999) afirma que o seu interesse pela ficção
surgiu após ver uma lata de biscoitos e notar como havia uma imagem cifrada da lata
dentro dela mesma. Algo próximo ao das caixas da Royal:

Historia de la eternidad (SCHWARTZ, 2017, p. 199). Além disso, em El otro, el mismo, Borges escreveu
um poema especificamente sobre Snorri Sturluson (BORGES, 1984, p. 907).
112
Cf. VIEIRA, Yara Frateschi. Olhos e coração na lírica galego-portuguesa. Revista do Centro de Estudos
Portugueses, [S.l.], v. 29, n. 42, p. 11-36, dez. 2009. ISSN 2359-0076. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/view/6526>. Acesso em: 04 mai. 2022.
doi:http://dx.doi.org/10.17851/2359-0076.29.42.11-36.

137
Figura 7. Caleidoscópio presente na caixa de Baking Powder, da Royal. #ParaTodosVerem: uma caixa de Baking
Powder em vermelho, amarelo, branco e azul, da marca Royal, que traz a inscrição de uma lata dentro de outra e
assim sucessivamente.

Essa estrutura caleidoscópica, por isso, fê-lo ver nesse enigma – que, para o
menino Borges, não era mais do que uma brincadeira da imaginação – a figura assustadora
do infinito. Tematicamente, o infinito é a imagem mais recorrente em sua literatura e que
aparece desde o início – seja em suas reflexões filosóficas sobre o tempo, seja em suas
incursões sobre a literatura, sobretudo, com o livro Ficções, que, apesar da variedade de
temas tratados, pode ser facilmente compreendido, em seu conjunto, como um tratado
literário sobre o infinito.

Nesse contexto, a imagem caleidoscópica da lata de biscoitos expressa também a


conversão da inquietação que Borges tinha com os espelhos em procedimento formal de
seus escritos por meio de uma temporalidade circular113 e diferencial – ou seja, produtora
de diferenças –, seja pela recorrência dos mesmos temas em épocas distintas (como o
tigre, o infinito, o labirinto, o punhal, Buenos Aires etc.) ou da estrutura paralelística que

113
Isso não quer dizer que Borges prefira o tempo circular ao tempo cronológico. Como mostra Schwartz,
o tempo é retratado em Borges de diferentes formas, sem que haja a predominância, no conjunto de sua
obra, de um modelo sobre o outro (SCHWARTZ, 2017, p. 480).

138
seus poemas adotam (em “El oro de los tigres”, há uma estrutura dessa entre “Después
vendrían otros tigres” e “Después vendrían otros oros”); seja pela problemática que o
efeito caleidoscópico gera para a noção de representação – haja vista que a coerência entre
os lugares de sujeito e objeto sofrem um processo radical de indeterminação quando
assumimos o ponto de vista do caleidoscópio.

Veja-se sobre isso o poema “El espejo”, presente na antologia Historia de la


noche:

EL ESPEJO

Yo, de niño, temía que el espejo


Me mostrara otra cara o una ciega
Máscara impersonal que ocultaría
Algo sin duda atroz. Temí asimismo
Que el silencioso tiempo del espejo
Se desviara del curso cotidiano
De las horas del hombre y hospedara
En su vago confín imaginario
Seres y formas y colores nuevos.
(A nadie se lo dije; el niño es tímido.)
Yo temo ahora que el espejo encierre
El verdadero rostro de mi alma.
Lastimada de sombras y de culpas,
El que Dios ve y acaso ven los hombres. (BORGES, 1989, p. 193)114

114
“O ESPELHO

Quando menino, eu temia que o espelho


Me mostrasse outro rosto ou uma cega
Máscara impessoal que ocultaria
Algo na certa atroz. Temi também
Que o silencioso tempo do espelho
Se desviasse do curso cotidiano
Dos horários do homem e hospedasse
Em seu vago extremo imaginário
Seres e formas e matizes novos.
(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)
Agora temo que o espelho encerre
O verdadeiro rosto de minha alma,

139
Nesse poema, o espelho é apresentado como algo que revela e oculta a verdade,
ou seja, que somente revela ocultando-se. O que faz dele uma presença sem conteúdo,
porque a única coisa que faz é refletir. Essa imagem do espelho mobilizada por Borges
expressa o interesse da literatura. O autor, para fazer literatura, precisa implicar-se com
esse espelho, mas ele mesmo não se deixa representar e essa tentativa, sempre buscada,
termina por afirmar a falência da literatura, mesmo nos casos em que ela obtém o maior
sucesso – visto que assumir a realização completa da literatura pelo escritor se dá pela
representação, mas ela é impossível desde o início, do mesmo modo que é impossível
escrever o infinito. Logo, o que sobra é esse desejo.

Dessa forma, a vontade de escrita de Borges revela-se mais do que uma atitude do
autor, pois ela é o próprio campo transcendental em que autor e obra surgem.

4.4 Passagens tecnoliterárias: Baudelaire, Mattoso e Borges

Não passou despercebido ao olhar atento de Walter Benjamin (2015) que a


modernidade não inaugurasse apenas um novo momento histórico, mas também, e de
modo até mais impactante, um novo modo de percepção. Pois, como o próprio Benjamin
nos lembra, no “interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das
coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”
(BENJAMIN, 1987, p. 169).

Correlativo a isso também foi a constatação de que a produção artística de Charles


Baudelaire não se restringia a uma simples mudança estilística frente a toda uma história
literária, mas, antes, promovia uma explicitação da fratura que a sociedade francesa vivia,
com a mudança da cidade antiga para moderna, a partir, fundamentalmente, da
materialidade mesma em que a obra é criada. O que implicou para Benjamin, como
mostra Otte (2007, p. 233), a constituição de um método que envolvesse num elo comum

Lastimada de sombras e de culpas,


O que Deus vê e talvez sejam os homens.” (BORGES, 2000b, p. 211)

140
autor e eu lírico. Ainda assim, frise-se, sem que fosse necessário a utilização de
biografismos de qualquer ordem.

Com efeito, é partindo dessa constatação que dá novo sentido à história e à cultura,
que Benjamin afirma em Baudelaire a percepção de uma mudança na própria estrutura da
experiência (BENJAMIN, 2015, p. 106). De tal modo que a compreensão do
superestímulo da modernidade, com as constantes descargas elétricas que atingiam
diretamente o sistema nervoso das pessoas e o próprio aparecimento da multidão, levou
Baudelaire a adotar uma postura que transformasse o choque no modo próprio de sua
poética.

Talvez se possa ver o trabalho específico da resistência ao choque nos


seguintes termos: atribuir ao acontecimento, à custa da integridade do
seu conteúdo, um lugar temporal exato no plano do consciente. Seria
um trabalho de ponta da reflexão, que faria do acontecimento uma
vivência. Se a reflexão não existir, instala-se invariavelmente o
agradável ou (na maior parte dos casos) desagradável sobressalto que,
segundo Freud, sanciona a ausência de resistência ao choque.
Baudelaire fixou essa descoberta numa imagem crua, a do duelo em que
o artista, antes de ser vencido, dá um grito, assustado. Esse duelo é o
próprio processo da criação. Baudelaire insere assim a experiência do
choque no âmago do seu trabalho artístico. Esse testemunho sobre si
próprio, confirmado por vários contemporâneos, é da maior
importância. Vendo-o assim entregue ao susto, é natural que Baudelaire
o provoque também. Vallès deixou testemunho do seu jogo de feições
excêntrico; Portmartin, baseando-se num retrato de Nargeot, chega à
conclusão de que o rosto de Baudelaire foi confiscado; Claudel acentua
o tom cortante que o caracterizava nas conversas; Gautier fala dos
“espaçamentos” a que Baudelaire gostava de recorrer quando recitava
poesia; Nadar descreve o seu passo abrupto. (BENAJMIN, 2015, p.
114)

Também passava por essa constatação, ainda segundo Benjamin (2015), o lugar
do mercado que em Baudelaire é tomado como uma instância objetiva (op. cit., p. 161).
Aliás, sobre isso reside uma das importantes defesas de Baudelaire que concede à obra,
subtraindo-se a toda concepção utilitarista da obra de arte e reivindicando a
inapreensibilidade mesma da experiência estética, um caráter que basta por si mesma – já
que é assumida como mercadoria. Mais do que isso: pois,

o que confere à sua descoberta um caráter propriamente revolucionário


é que Baudelaire não se limitou a reproduzir na obra de arte a cesura

141
entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a criar uma
mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o
valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o
processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria
realidade da mercadoria enquanto tal. Uma mercadoria em que valor de
uso e valor de troca se anulariam mutuamente, e cujo valor residiria,
por esse motivo, na inutilidade, e cujo uso, na sua intocabilidade, não é
mais uma mercadoria: a mercadorização absoluta da obra de arte é
também a abolição mais radical da mercadoria. A partir daí, tem-se a
desenvoltura com que Baudelaire põe a experiência do choc no centro
do próprio trabalho artístico. (AGAMBEN, 2007, p. 75)

Nesse sentido, tal movimento em Baudelaire de tomar a obra de arte como pura
mercadoria não tem outro objetivo além do de atingir o avesso da economia que insiste
na cisão entre valor de uso e valor de troca para estabilizar os lugares de sujeito e objeto,
eu e o mundo, subjetivo e objetivo etc. Ao invés disso, o que se quer nessa operação,
seguindo Bataille (2013), é promover um movimento generalizado que coisifique todo o
mundo para, a partir daí, dar ao homem a possibilidade de uma atitude que o faça situar-
se livremente, soberanamente, frente a si mesmo – o que, consequentemente, implica
numa resposta literária para a resolução do problema da dialética do senhor e do escravo.
Diz Bataille:

Para Marx, “a resolução do problema material é suficiente”, mas para o


homem o fato “de não ser apenas uma coisa, mas de ser
soberanamente”, estabelecido como “sua consciência infalível”, em
princípio não permanece menos diferente de “uma resposta satisfatória
às exigências materiais”. A originalidade de Marx, no plano desse
resumo, provém de sua vontade de só atingir um resultado moral
negativamente, por uma supressão dos obstáculos materiais. Leva a
atribuir-lhe um cuidado exclusivo com os bens materiais: não se
percebe bem, na nitidez provocante, uma descrição completa e a
aversão por formas religiosas em que a verdade do homem está
subordinada a fins ocultos. A proposição fundamental do marxismo é
libertar inteiramente o mundo das coisas (da economia) de todo
elemento exterior às coisas (à economia): foi indo ao extremo das
possibilidades implicadas nas coisas (obedecendo sem reserva a suas
exigências, substituindo o governo dos interesses particulares pelo
“governo das coisas”, levando a suas consequências últimas o
movimento que reduz o homem à coisa), que Marx quis resolutamente
reduzir as coisas ao homem, o homem à livre disposição de si mesmo.
(BATAILLE, 2013, p. 127)115

115
A citação de Bataille me interessa para efeito de pensar como a noção de energia se conecta à dimensão
mais geral da produção capitalista. Porém, há uma divergência entre Bataille e o que efetivamente Marx
defende, já que, para Marx, a relação fundamental é entre o trabalho e a liberdade, e não entre o homem e

142
Dessa forma, surge particularmente emblemático também o lugar da energia,
correlativo à composição de uma economia geral em que a inscrição de coisa pode dar
vez a uma libertação de si e dos outros. Ainda conforme Bataille, o pressuposto geral do
potlatch, das trocas primitivas que fundariam uma economia, não reside sobre o consumo
da riqueza, mas sobre um jogo ambíguo dado por um dispêndio da energia que, na
verdade, também indica, necessariamente, um acréscimo. Porém, o jogo do dispêndio
posto em prática pelo potlatch não conferiria qualquer resultado se não fosse também
desenvolvido por um outro que entrasse na relação e conferisse, ao doador, o poder da
dádiva. Pois, a “virtude exemplar do potlatch encontra-se nessa possibilidade para o
homem de apreender o que lhe escapa, de conjugar os movimentos sem limites do
universo com o limite que lhe pertence” (op. cit., p. 80).

Precisamente por esse movimento ambíguo, para o doador do potlatch nada se


perde verdadeiramente – visto que se acresce a si a partir da dádiva um poder que se dá
pela própria perda – e, para o donatário, nem se ganha – visto que este precisa retribuir o
poder da dádiva do doador. Assim, o resultado da relação doador/donatário não se situa
numa simples economia produtiva de perdas e ganhos, mas da conquista, pelo doador, de
uma posição assumida com a última palavra que a ele é conferida. É pela posição, pois,
que se conquista o prestígio, que também se fundam os lugares de sujeito e objeto, que se
constitui a luta de classes.

Entretanto, assumir uma posição guarda um risco, o risco de explosão (op. cit., p.
83). Por isso, quem assume uma posição toma para si esse risco de consumir uma energia
que logo será dissipada e que reivindica, em sua improdutividade constitutiva, a
inapreensibilidade de sua própria apreensão. Tal qual a poesia que é “criação por meio da
perda” (op. cit., p. 23). Prossegue Bataille:

O homem se encontra necessariamente em uma miragem, sua reflexão


o engana, enquanto ele se obstina em apreender o inapreensível, em
empregar como utensílios arrebatamentos de ódio desenfreado. A
posição, onde a perda é mudada em aquisição, corresponde à atividade
da inteligência, que reduz os objetos de pensamentos a coisas. Com
efeito, a contradição do potlatch não se revela apenas em toda a história,
mas também, mais profundamente, nas operações de pensamento. É que

a coisa. A relação entre o homem e a coisa é produto do capitalismo e é justamente dela que Marx quer se
libertar.

143
geralmente, no sacrifício ou no potlatch, na ação (na história) ou na
contemplação (no pensamento), o que procuramos é sempre essa
sombra – que por definição não poderíamos apreender – que em vão
chamamos de poesia, de profundidade ou de intimidade da paixão.
Somos enganados necessariamente, visto que queremos apreender essa
sombra. (op. cit., pp. 82 e 83)

Essa impossibilidade de apreensão, marca da poesia e do potlatch, foi buscada ao


extremo por Baudelaire. Porém, não no sentido de atingir um objeto inacessível – mas de
alcançar a própria impossibilidade (BATAILLE, 1989, p. 41). O desafio dessa
impossibilidade, signo mesmo da poesia que reflui contra si mesma, também foi buscado,
em outra perspectiva, pelos trabalhos de Glauco Mattoso e Jorge Luis Borges.

Em Mattoso, a fricção entre forma e conteúdo é um dispositivo poético que


impede qualquer fechamento do poema a um significado fixo. Nesse entremeio que é o
próprio poema, Mattoso mobiliza uma outra experiência que faz do choque interno,
próprio da constituição do poema, a sua realização primeira.

Quanto a isso, também, algumas ressalvas. É sabido que a própria poesia, pelo
menos como apregoam os modernos, entre eles Mallarmé, se constitui, formalmente,
como uma experiência de crise (SISCAR, 2010, p. 115). O que também se faz presente
como procedimento na poesia, e mesmo na prosa, de Baudelaire. No entanto, o que o faz
diferir de Glauco é a atitude pós-vanguarda que este último toma ao converter como signo
da crise o intervalo que se produz entre a tradição e a vanguarda. Diz Glauco:

Transgressão significa questionar a norma. Enquanto a pornografia era


mais censurada, transgredia-se pornograficamente. Agora talvez seja o
caso – não de caretear puritanamente, impugnando o erotismo (já que
isso seria obscurantismo e não iconoclasmo) – mas, por exemplo, o caso
de investigar na obscuridade aspectos ainda tabus, como certos padrões
de higiene, zonas erógenas pouco exploradas, sabores e odores menos
preferidos... Mas quero levantar outro ponto acerca da transgressão:
quando a vanguarda passa a ser uma constante, o jeito é transgredir
retomando um molde tradicional (como o soneto) e praticar o
experimentalismo usando o próprio cânone como laboratório, como
faço agora. (MATTOSO, 2004, p. 194)

Não sem razão, por isso, a natureza de crise que expressa a poesia é vertida num
jogo estranho. Por um lado, Glauco utiliza-se do artifício de manter a grafia das palavras
como a utilizada no início do século XX, criando por vezes um interessante

144
balanceamento dos vocábulos; e, por outro, promove uma justaposição de palavras,
morfemas e fonemas para produzir efeitos de sentido inesperados. Desse modo, não há
utilização de metáforas e de uma consequente antropomorfização do poema – como
defendido por Deleuze e Guattari (2003) a partir do trabalho direto com os objetos feito
por Kafka –, mas de puras imagens, num processo que prescinde da mediação, derivada
logicamente pelo uso da metáfora, para atingir a excitação sexual mais rapidamente.

Acresce-se, pois, a esses procedimentos, e como que constituindo o seu motor


interno, o trabalho da pornografia. A pornografia, converte-se, assim, em máquina de
guerra116 ao dar consistência a uma abertura que conjura todo o fechamento do poema.
Assim como ocorreu com a noção de vitalidade de Stern: a operação de Glauco, situando-
se entre forma e conteúdo, tradição e vanguarda, solicita o agenciamento de forças novas,
de uma energia que atravessa autor e obra por meio do desejo.

Essa circulação da energia ao impedir o fechamento do poema ativa no eu


dramático masoquista uma posição de destaque. Essa posição, como visto em Bataille
(2013), garante ao doador – que na obra de Mattoso está do lado do personagem cego
masoquista – um ganho com a perda, haja vista que a manipulação operada pelo
masoquista consegue garantir um gozo improdutivo (BATAILLE, 2013) ao cego devido
à – e não apesar de – sua condição de deficiência. Além disso, ao se colocar do lado do
doador, o eu dramático promove um jogo vicário entre os lugares de vítima e de objeto e,
nesse movimento, ao rir do sádico o masoquista desarma a dialética que havia se
constituído entre ele e o sádico quando trabalharam na formação do contrato sexual.

Como consequência, o desejo que o autor dispende para a criação do poema tem
como consequência a máxima potenciação da poesia, o aumento das suas forças pela
superação dos limites. O que implica também, seguindo mais uma vez Bataille, uma
introdução a si desses novos limites dados pela superação (BATAILLE, 2013, p. 79).
Nisso, também, fica evidente o lugar que a pornografia ocupa em Glauco. Não o da
simples cópula para a procriação, mas o de uma pornografia gay, que redimensiona os
lugares da abjeção e da transgressão no fazer poético e em sua estrutura formal.

No Tractado de Versificação, Mattoso acompanha Manuel Cavalcanti Proença em


seu livro Ritmo e Poesia, publicado em 1955, para pensar os aspectos sonoros e rítmicos
da produção poética. A ideia não é nova, é verdade, mas é particularmente interessante

116
Tomo de empréstimo a noção de máquina de guerra a partir de Deleuze e Guattari (1997).

145
para pensar a perversão e a cegueira, pois o objetivo do livro, como mostra Mattoso, é o
de “revisitar as trilhas (ou antes, os trilhos) da versificação e revitalizar os figurinos da
poesia sob a optica (ou otica) do ouvido, isto é, revalorizar o conceito da ‘musa’ no
adspecto ‘musical’ do poema” (MATTOSO, 2022c, p. 11).

Para tanto, Mattoso incorpora uma defesa de Proença, que afirma que o maior
tamanho do pé é o de quatro tempos, o mesmo tamanho que se utiliza na música (op. cit.,
p. 30). Consequentemente, para manter o ritmo, Proença também defende a existência de
uma acento tônico secundário – que serve, aliás, de justificativa para a própria existência
do pé de quatro tempos (op. cit., p. 32-33), defesa que também é acompanhada por
Mattoso. A esse interesse rítmico – que, friso, é dado também pela cegueira –, Mattoso
acresce à tradição literária um dado de perversão ao sexualizar a estrutura de pés. O pé
masculino (forte) é contrastado com o pé feminino (fraco) e, entre eles, surgem os pés
andróginos, que podem ser compreendidos tanto como versos masculinos quanto
femininos a depender do tipo de leitura que se faça (op. cit., p. 343-344).

Como consequência inesperada dessa sexualização, Mattoso acaba, na verdade,


por dessexualizar os versos, pois, mesmo nos casos em que defende o “machismo” da
tradição – caso em que defende como parâmetro escatológico o verso agudo, ou seja, o
verso que termina numa palavra oxítona, cuja a última sílaba tônica é também a última
sílaba (op. cit., p. 53) –, ele procura expor a estrutura sexualizada do modelo poético
(“feminista”, “machista”, “heterossexual” etc.) com o objetivo de perverter a tradição
com a presença do circuito desejante, que é expresso pelo fetiche da podolatria – nesse
caso, há uma articulação intrínseca entre o pé métrico e o pé físico.

Com efeito, Bataille (2013) já havia conferido para esse tipo de transgressão, dada
pela atividade sexual perversa (= desviada de uma finalidade genital), uma categoria de
forma improdutiva específica: a do dispêndio (op. cit., p. 21). Ainda conforme Bataille, é
particularmente decisivo, desse ponto de vista, que o capitalismo e a burguesia tenham
rebaixado o dispêndio a ponto de fazer esfacelar o seu funcionamento social, que, não à
toa, promove o homem para além de si mesmo. Diz Bataille:

Enquanto classe que possui a riqueza, tendo recebido com a riqueza a


obrigação do dispêndio funcional, a burguesia moderna se caracteriza
pela recusa de princípio que ela opõe a essa obrigação. Ela se distinguiu
da aristocracia pelo fato de só ter consentido em despender para si, no

146
interior dela mesma, isto é, dissimulando seus dispêndios, na medida
do possível, aos olhos das outras classes. Essa forma particular é devida,
na origem, ao desenvolvimento de sua riqueza à sombra de uma classe
nobre mais poderosa do que ela. A essas concepções humilhantes de
dispêndio restrito corresponderam as concepções racionalistas que ela
desenvolveu a partir do século XVII, e que não têm outro sentido além
de uma representação do mundo estritamente econômica, no sentido
corrente, no sentido burguês da palavra. O ódio do dispêndio é a razão
de ser e a justificação da burguesia: ele é ao mesmo tempo o princípio
de sua pavorosa hipocrisia. Os burgueses utilizaram as prodigalidades
da sociedade feudal como um agravo fundamental e, após terem-se
apoderado do poder, se julgaram, devido a seus hábitos de
dissimulação, em condições de praticar uma dominação aceitável pelas
classes pobres. E é justo reconhecer que o povo é incapaz de odiá-los
tanto quanto seus antigos senhores: na medida em que, precisamente, é
incapaz de amá-los, pois aos burgueses não é possível pelo menos
dissimular uma face sórdida, tão voraz, sem nobreza e tão
horrivelmente pequena, que toda vida humana diante deles parece
degradada. (op. cit., p. 28)

Não sem razão, pois, Bataille acompanha a própria maquinaria interna da noção
de dispêndio para encontrar nela, e não em algo externo, uma saída afirmativa. É assim,
por exemplo, que conclui pela necessidade de dar velocidade a esse próprio dispêndio “a
fim de realizar um modo de dispêndio tão trágico e tão livre quanto possível e, ao mesmo
tempo, a fim de introduzir formas sagradas tão humanas, que as formas tradicionais se
tornem comparativamente desprezíveis” (op. cit., p. 32). Dessa forma, a transgressão que
vemos em Glauco também passa por atingir um ponto de tensão no seio da ambiguidade
do dispêndio que o leva a mobilizar uma saída afirmativa por meio do confronto interno
de sua poética.

Em Borges, o interesse por uma estética que leva ao extremo a experimentação


com a linguagem é manifesta no prólogo de 1972 de El oro de los tigres. No texto original
desse prólogo, a palavra que ele usa para manifestar isso é modernismo: “pero se me
obligaran a declarar de dónde proceden mis versos, diría que del modernismo”
(BORGES, 1984, p. 1081, grifo meu). Já na versão traduzida, a palavra é substituída por
simbolismo: “mas, se me obrigassem a declarar de onde procedem meus versos, diria que
do simbolismo” (BORGES, 2000a, p. 493, grifo meu)117.

117
O “modernismo” hispano-americano corresponde ao simbolismo francês (de Mallarmé, Rimbaud e
Baudelaire), e se inicia com a publicação de Azul (1888), de Rubén Darío, e que se expande na Argentina
com a obra de Leopoldo Lugones. A tradutora tomou a liberdade de ‘traduzir” uma coisa na outra, talvez
para evitar fazer uma nota de rodapé. O equivalente ao nosso modernismo em espanhol é mais comumente
designado com o termo “vanguardas”.

147
De todo modo, a afinidade de Borges com a escuta das palavras, a importância da
sonoridade e força que elas evocam antes de qualquer significado mostra que essa
aproximação com o simbolismo não é gratuita. Na conferência sobre a cegueira, ele
interroga a dignidade das palavras que designam os nomes das cores por meio das formas
significantes delas:

Pensemos en scharlach, en alemán, en scarlet, en inglés, escarlata en


español, écarlate, en francés. Palavras que parecen dignas de ese gran
color. En cambio, “amarillo” suena débil en español; yellow en inglés,
que se parece tanto a amarillo, creo que en español antiguo era
amariello. (BORGES, 1989, p. 277)118

O interesse pelas formas que as palavras assumem, mais do que simplesmente


pelos sons ou significados, denota um interesse por uma magia que é evocada pelas
palavras. Desse modo, Borges parece apenas intuir na forma das palavras algo de
misterioso e fundamental que se furta à compreensão. O seu trabalho com a repetição de
temas tem parte de seu sentido identificado com essa atividade de interrogar a mesma
palavra para perceber como se processa a diferença que se apresenta a cada novo
questionamento.

Essas pequenas diferenças buscadas por Borges no nível temático repercutem


também no nível expressivo pela variação sintática e sonora que as mesmas palavras
evocam quando assumem posições em estruturas paralelísticas ou quando são tomadas
como metáforas de outras palavras ou temas. Mesmo porque, ainda que nestes casos
Borges esteja apenas prescrutando um tema de um modo diferente, há uma insistência
que corresponde à forma da palavra que a deixa ou fazendo o significante flutuar com a
proliferação de assuntos trabalhados em um único tema ou condensa a sua força
significante em um ponto mínimo – o que força a palavra a significar múltiplos referentes,
mas sem conseguir fixar o significante, que fica num contínuo movimento de vibração.

Como exemplo do primeiro ponto, pensemos em Buenos Aires. A expressão é


elevada a nível temático e, com isso, ora vemos Borges relatar impressões que teve ao

118
Pensemos em scharlach, em alemão, scarlet, em inglês, escarlata, em espanhol, écarlate, em francês.
Palavras que parecem dignas dessa grande cor. Ao contrário, amarillo, em espanhol, soa fraco; yellow em
inglês, tão parecido e amarelo. Parece-me que em espanhol antigo era amariello. (BORGES, 2000b, p. 312)

148
caminhar pelas ruas, ora discutir questões de linguagem a partir da dimensão local, ora
fazer incursões mais universais – como é o caso de Funes – por meio do mesmo lugar. Já
como exemplo da segunda tese, pensemos na ideia de infinito que ora é apresentada como
uma questão de linguagem em “Tlön”; ora da recorrência dos espelhos que aparecem em
seus poemas e que apresentam uma questão existencial insolúvel sobre a relação entre
identidade e autorreferencialidade; ora da tradução; ora da matemática em “Funes”; entre
outros. Nesse caso, a mesma palavra, “infinito”, serve para indicar, da maneira mais
visual possível, os seus referentes.

Desse modo, o recurso à metáfora é o que “faz ver” na escrita borgiana e é ele,
mais do que a atividade especulativa que efetivamente é realizada por Borges, que
consegue imprimir à palavra “infinito” uma nova dimensão. Pois, dado que a palavra
implica um sentido combinatório sem precedentes, a escolha das imagens literárias que
vão compor essa propriedade do conceito “infinito” se torna fundamental para Borges –
até porque as palavras trazem uma carga mágica que as habilita a serem mais ou menos
eficazes ao empreendimento literário.

Nesse contexto, a cegueira não só não anulou essa característica de produção de


metáforas com o objetivo claramente visual como também a intensificou. O mesmo não
aconteceu, porém, com Mattoso, que procurou substituir, cada vez mais em sua fase cega,
as metáforas por uma linguagem mais literal com o objetivo de produzir imagens mais
visuais. Essas imagens, contudo, não possuem semelhança com as imagens técnicas que
inundam a nossa modernidade – pois as imagens mattosianas são, em certa medida, uma
sátira à sua existência.119

Conforme Susan Buck-Mors, a última versão do ensaio de Walter Benjamin sobre


a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica revela que uma das características do
fascismo foi ter violado o aparato técnico não por dar às massas o que lhes é de direito,
mas por permitir que se expressem. Consequentemente, assistiu-se a uma entronização
generalizada da estética na vida política e que teve como fim a guerra (BUCK-MORS,
2012, p. 173). Com isso, a estetização da vida implicou uma alienação sensorial que
promoveu um fechamento dos nossos sentidos para a experiência estética. As já citadas

119
Para uma discussão sobre a relação entre a produção de imagens, literatura e outras materialidades,
ver: MÜLLER, Adalberto. A imagem sob a imagem: ensaios sobre literatura & artes. Niterói: Eduff,
2022.

149
transformações tecnológicas do século XIX, o hiperestímulo da sociedade e o
desenvolvimento da ciência são exemplos disso.

Destarte, ainda consoante Buck-Mors (2012) isso fez com que a nossa experiência
estética se transformasse em uma forma de anestesia – dado que o descontrole energético
promovido pela sociedade moderna requereu do nosso organismo biológico defesas que
o permitissem viver sem levar a uma paralisia de nosso sistema sensorial. Assim, para
resolvermos esse problema colocado pela modernidade devemos não evitar as novas
tecnologias, mas perpassá-las (op. cit., p. 174)

Nesse sentido, as imagens promovidas por Mattoso e Borges, por mais divergentes
que possam ser, não apenas comunicam algo sobre a técnica – já que já são, a seu modo,
dispositivos técnicos –, mas também apresentam uma crítica sobre ela, na medida em que
se utilizam de estruturas presentes no cinema – com o recurso da construção de cenas
fragmentárias, como em Mattoso, ou da concisão discursiva, como em Borges –; na
internet – com o modelo de leitura hipertextual pela recorrência dos mesmos temas tanto
em Mattoso quanto em Borges – e no próprio mercado de consumo – como acontece pela
disposição do desejo kitsch em Mattoso, que multiplica os objetos de consumo ao
transformá-los em objetos literários, e em Borges pela consciência da improdutividade
do livro como objeto comercial – o próprio livro de areia pode ser pensado como uma
metáfora da indisponibilidade para consumo dos livros que verdadeiramente importam.

Além disso, a inquietação da escrita, que leva tanto Borges quanto Mattoso a não
parar de escrever, pode ser pensada também como um efeito adverso da farmacopolítica
(PRECIADO, 2008) que domina a indústria anestésica para os desviantes clínicos, como
é o caso dos cegos – haja vista que, mesmo com o avanço da medicina, como defende
Mattoso em entrevista à TV Brasil120, não há analgésicos nem anestésicos que reduzam a
dor dos cegos – claro, de certos tipos e graus das doenças que geram a cegueira.

120
Cf. FETICHE. Estação plural, São Paulo: TV Brasil, 23 de fev. 2017. Programa de TV. 53m05s.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=APavu7e4dug&t=875s>. Acesso em: 05 de abr.
2022.

150
5. A NOITE E A MORTE: O GESTO E A ÉTICA DA ESCURIDÃO

Não se sabe ao certo – porque não é possível saber – quando o homem começou
a sonhar e a ter consciência da morte. Postular esse momento, porém, permite uma mirada
especulativa sobre o primeiro recurso – ou, em uma chave de interpretação propriamente
literária, o recurso primeiro – à imaginação. É indiferente, para essa jornada, perceber se
a experiência onírica é compartilhada com outros animais ou não, se eles possuem a
capacidade de ter essa consciência da morte ou não. Para boa parte de nossa tradição
filosófica, influenciada por Aristóteles e que assentou as suas bases na ideia da
especificidade do homem como possuidor do logos, a resposta necessária para esse
problema é não. Porém, dado os avanços da biologia no último século, soa ridículo,
quando não antropocêntrico, aceitar essa tese121.

De todo modo, não proponho pensar na universalidade da questão da necessidade


do sonho e da consciência da morte ou da exclusividade desses para o homem, quero
apenas pensar na possibilidade do momento original de ambos. Também não quero entrar
na seara presente na existência ou não de mundos possíveis, que é derivada da lógica
modal, pois esse comprometimento ontológico, além da fática impossibilidade de
justificação, não acrescenta em nada a discussão que pretendo fazer. Quero apenas e
simplesmente pensar essa possibilidade.

Fazer esse movimento de especulação é já entrar em um terreno no qual esses dois


operadores – o sonho e a consciência da morte – são, ao mesmo tempo, objeto de estudo
e material com o qual entramos em relação para iniciar a pesquisa. Ou seja, não lidamos
nem com a realidade como é (metafísica) nem como a realidade deveria ser (ética), mas
com a possibilidade de algo que é construído sob uma perspectiva intrinsecamente
plausível. Ou seja, em termos científicos, referimo-nos a uma hipótese; mas, como não
proponho um método científico, tratar-se-á antes de uma hipótese travestida da forma
narrativa – já que estamos no campo do literário.

121
Penso, sobretudo, nas contribuições de Donna Haraway desde, pelo menos, o seu já clássico Manifesto
do Ciborgue. Cf. HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no
final do século XX”. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (org. e trad.).
Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Organização e tradução de Tomaz Tadeu. 2ª. ed.
Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2009, p. 33-118.

151
5.1 Narrativa do sonho e da morte

A pergunta sobre a morte é, na linguagem comum, considerada uma das perguntas


fundamentais: o que acontece com a morte? Sem dúvida, desde criança, pergunto-me
sobre a morte e sobre os sentidos de morrer. Faço isso, evidentemente, porque sei, desde
quando me apercebi dessa condição, que sou um ente que finda. Com isso, o limite físico
foi, para mim, o limite da vida, pois todos os seres que vivem morriam. Constatei isso
após observar em minha comunidade a experiência da morte.

Em Poço Verde, interior do estado de Sergipe, é comum, quando há um doente


em estado muito grave, vizinhos e amigos se reunirem em sua casa. Junto com orações e
rezas, a depender do estado terminal do doente, é colocada uma vela em sua mão e ali,
todos juntos e juntas, acompanham a sua passagem. Depois de morto, inicia-se o período
de sentinela em que a casa é aberta para visitas e orações ao passo que o caixão com o
morto fica na sala sendo velado. A sentinela acontece, geralmente, entre a noite e a
madrugada e se estende até o momento do enterro. Na sequência, o cortejo segue pelas
ruas da cidade, passando pela igreja (em geral, católica) e logo após se dirige para o
cemitério. Enquanto o caixão percorre as ruas, as lojas ficam com as portas à meia altura.

Nesse contexto, parece claro que a importância dada à reunião na casa do doente
terminal, em velar o seu corpo e acompanhar o seu enterro, faz parte de um mesmo
processo ritualístico que só pode ser corretamente pensado quando levamos em conta que
toda essa mobilização da sociedade diz respeito ao caráter de membro da comunidade que
aquele sujeito tinha. Em Dialética da Colonização, Alfredo Bosi (1992) defende que no
Brasil atual muitos rituais católicos de regiões escondidas do país são resquícios de uma
resistência da cultura popular, que preserva tradições cristãs medievais que vieram com
os colonizadores, frente à hierarquia oficial da Igreja, que prega o vernáculo oficial desde
o Concílio Vaticano II (BOSI, 1992, p. 50).

Contudo, talvez seja o caso de pensar esses rituais não como exemplos de algo
cristão que se perdeu, mas de algo comunitário que sempre esteve aí latente. Porém, penso
comunitário não no sentido de comunidade como algo que implique, primeiramente,
relações de linguagem; mas, e sobretudo, relações ontológicas – assim como defendido,
em relação à prática africana, por Sobonfu Somé (ROCHA, 2014). Desse modo, na

152
comunidade os viventes constituem-se mutuamente, perfazendo uma rede complexa de
relações em que cada membro é parte presente do outro.

Segundo Rafael Hadock-Lobo (2006), Emmanuel Lévinas, ao contrário de Martin


Heidegger, vê na relação com o outro que a morte propicia o aspecto mais fundamental
de seu pensamento filosófico. Para Heidegger em Ser e tempo, ainda consoante Hadock-
Lobo (2006), o momento em que o homem se depara com a morte do outro abre para ele
a reflexão sobre a compreensão do ser por refletir sobre a sua própria morte. Essa
dimensão reflexiva apresenta para o homem a morte como absoluta possibilidade, pois a
morte concede ao homem o elemento que lhe era estranho e que é necessário para
completar a si.

Essa completude que a morte garante não se expressa do ponto de vista temporal,
mas de algo que, por estar vivo e ser vivente, o homem requer, já que a morte, a
experiência da morte, é o que lhe falta. Assim, a morte, em termos heideggerianos, seria
o que permite ao homem interrogar-se a si mesmo a partir da condição fática de sua
própria morte. Com isso, o homem, como único ente capaz – certamente,
antropocentrismo heideggeriano – de compreender o ser, assume uma posição filosófica
privilegiada, já que essa compreensão que ele faz do ser, como sublinha Levinas, é já o
ser (LEVINAS, 1997, p. 76).

É nisso que a expressão Dasein (o “ser-aí” ou “ser deste mundo”, em algumas


traduções) aparece como tentativa de dar conta da especificidade do homem como um ser
que, estando presente no mundo, procura, pelo menos de um ponto de vista
normativo/diretivo, ir além da presença. Desse modo, o homem como Dasein se coloca
como essa abertura que tem na morte o elemento fundamental do que lhe possibilita ser.
O homem é, nesses termos, um ser-para-a-morte.

Porém, em Heidegger a morte é assumida de um ponto de vista narcísico, como


“minha morte”, ao passo que em Lévinas ela é vista como abertura radical para o outro,
que se processa como uma distância insuperável. Algo próximo ao seguinte modelo que
aproxima a ideia de infinito à de alteridade e de visão: infinito <-> distância <-> outro <-
> visão. Com isso, Lévinas não só opera uma passagem da Ontologia para a Ética, mas
também esboça uma mudança de perspectiva, realizada pela centralidade não mais no
finito da finitude humana, mas no infinito do que se expressa na experiência

153
“fenomênica” que é propiciada pela morte, entendida aqui como “morte do outro” por
meio de uma visão que estranha o próprio eu. Consoante Hadock-Lobo,

Para Heidegger, a morte significaria a minha morte como


aniquilamento, ao passo que, em Lévinas, o que emerge dessa
constatação é a infinitude do outro, a constatação da alteridade absoluta
e infinita, pois, como em diversos momentos já disse Lévinas, nós
vivemos em um mundo onde há outro e onde sempre haverá. Eu me
vou, como disse Heidegger (em nenhum momento Lévinas vai negar a
finitude do eu), mas o outro permanece. E é por isso que a morte do
outro passa a apresentar uma força muito maior no pensamento
levinasiano: na morte empírica do outro tomamos consciência do fato
mais importante de nossas vidas – e não se trata aqui de nossa própria
finitude, como diria Heidegger, de percebermos nossa total
propriedade, o que haveria de ser mais nosso – que é a responsabilidade
emergente da ausência do outro. Na morte empírica de quem amamos
percebemos que o outro nunca esteve lá, que somente deixava seus
rastros na epifania de seu rosto invisível. Assim, a morte do outro me
faz compreender a infinita responsabilidade que tenho diante do mundo
– e, aqui sim, podemos falar de propriedade, da conscientização da
própria responsabilidade que tenho e de meu surgimento como sujeito
ético. (HADOCK-LOBO, 2006, p. 84)

5.2 Sonho e morte em Borges

Borges, em Elogio de la sombra, publicado em 1969, apresenta com o poema “A


cierta sombra, 1940” um ponto de vista que articula sonho, morte e tempo por meio de
um diálogo com um outro, o escritor britânico Thomas De Quincey:

A CIERTA SOMBRA, 1940

Que no profanen tu sagrado suelo, Inglaterra,


El jabalí alemán y la hiena italiana.
Isla de Shakespeare, que tus hijos te salven
Y también tus sombras gloriosas.
En esta margen ulterior de los mares
Las invoco y acuden

154
Desde el innumerable pasado,
Con altas mitras y coronas de hierro,
Con Biblias, con espadas, con remos,
Con anclas y con arcos.
Se ciernen sobre mí en la alta noche
Propicia a la retórica y a la magia
Y busco la más tenue, la deleznable,
Y le advierto: oh, amigo,
El continente hostil se apresta con armas
A invadir tu Inglaterra,
Como en los días que sufriste y cantaste.
Por el mar, por la tierra y por el aire convergen los ejércitos.
Vuelve a soñar, De Quincey.
Teje para baluarte de tu isla
Redes de pesadillas.
Que por sus laberintos de tiempo
Erren sin fin los que odian.
Que su noche se mida por centurias, por eras, por pirámides,
Que las armas sean polvo, polvo las caras,
Que nos salven ahora las indescifrables arquitecturas
Que dieron horror a tu sueño.
Hermano de la noche, bebedor de opio,
Padre de sinuosos períodos que ya son laberintos y torres,
Padre de las palabras que no se olvidan,
¿Me oyes, amigo no mirado, me oyes
A través de esas cosas insondables
Que son los mares y la muerte? (BORGES, 1984, p. 991)122

122
“A CERTA SOMBRA, 1940

Que não profanem teu sagrado solo, Inglaterra,


O javali alemão e a hiena italiana.
Ilha de Shakespeare, que teus filhos te salvem
E também tuas sombras gloriosas.
Nesta margem ulterior dos mares
Invoco-as e acodem,
Do inumerável passado,
Com altas mitras e coroas de ferro,
Com Bíblias, com espadas, com remos,

155
Nesse poema, o eu lírico destaca uma série de imagens relacionadas à Inglaterra
(e a um certo nacionalismo britânico) por meio da justaposição entre a sua história
política e literária. Como indica o título, o poema retrocede no tempo para analisar a
batalha que a Grã-Bretanha travou contra o exército nazifascista. Porém, esse retorno é
realizado sem uma descrição objetiva do conflito. Tal procedimento tem como intuito
marcar a disjunção que se cria entre a história científica – ou seja, a história factual,
observável, da realidade – e a história literária para fazer com que a segunda salve a
primeira da esperada tragédia (“En esta margen ulterior de los mares/ Las invoco y
acuden/ Desde el innumerable pasado,/ Con altas mitras y coronas de hierro,/ Con Biblias,
con espadas, con remos,/ Con anclas y con arcos.”).

Como resultado do trabalho da história literária de desrealizar o futuro prometido


pela história científica, o sonho, matéria da história literária, transforma o fato em
literatura e a morte, que seria tragédia, em uma épica. Já o mar, que garante a distância
geográfica entre Argentina e Inglaterra, também manifesta a distância entre o autor e o
texto; expressa o tempo em toda sua extensão e natureza – já que representa a fugacidade
e a eterna renovação da água – e aparece como elemento que traz o amigo, a um só tempo,
histórico e literário, De Quincey.

Com âncoras e com arcos.


Pairam sobre mim na alta noite
Propícia à retórica e à magia
E procuro a mais tênue, a inconsciente,
E lhe advirto: oh, amigo,
O continente hostil apresta-se com armas
A invadir tua Inglaterra,
Como nos dias em que sofreste e cantaste.
Por mar, por terra, pelo ar convergem os exércitos.
Torna a sonhar, De Quincey.
Tece para baluarte de tua ilha
Redes de pesadelos.
Que por seus labirintos de tempo
Errem sem fim os que odeiam.
Que sua noite se meça por centúrias, por eras, por pirâmides,
Que as armas sejam pó, pó os rostos,
Que nos salvem agora as indecifráveis arquiteturas
Que causaram horror a teu sonho.
Irmão da noite, bebedor de ópio,
Pai de sinuosos períodos que já são labirintos e torres,
Pai das palavras que não se esquecem,
Ouves-me, amigo não contemplado, ouves-me
Através dessas coisas insondáveis
Que são os mares e a morte?” (BORGES, 2000a, p. 393)

156
Desse modo, De Quincey se converte no signo de uma alteridade que invade o
texto literário para desfazer a propriedade do autor, haja vista que ele é para o eu lírico o
autor de textos que foram lidos por Borges. Mais uma vez, por isso, o texto borgiano
prepara um jogo de vicariedade entre os lugares de autor e leitor que são estabelecidos
pela relação com a escrita. No final do poema, ao aproximar a noite e o delírio por meio
da figura de De Quincey (“Hermano de la noche, bebedor de opio”), o eu lírico faz um
chamamento ao seu amigo literário e acrescenta ao lado da figura do mar, como um
instrumento de presença do que está ausente, a morte.

Separados em meio século entre a morte de De Quincey e o nascimento de Borges,


o autor argentino nunca chegou a ver o autor britânico. Com isso, a experiência da morte
do outro nunca chegou a ser realizada – pelo menos no sentido de que seria necessário
observar a morte empírica do outro para ter acesso a esse tipo de experiência. De todo
modo, o problema da morte do outro como experiência fenomênica da morte, como
descrito por Lévinas (HADOCK-LOBO, 2006), não carece da visão física, embora em
muitos casos ela cumpra um papel importante, pois o que está em jogo aí é a percepção
da circunstância da morte de um outro por uma visão-distância que interroga e intensifica
a separação entre eu e outro.

Dessa forma, ao convocar a presença de De Quincey, o eu lírico procura encontrar


no rosto do autor britânico o que falta para realizar o seu empreendimento messiânico,
segundo o qual um fora (a literatura) age e transforma a realidade. Com isso, ao contrário
de Lévinas, essa experiência fenomênica da morte requerida pelo eu lírico não é somente
ética, mas propriamente literária – já que De Quincey não está reduzido a uma
intangibilidade e inafabilidade que questiona o ser do homem, mas a uma produção
literária viva – com suas palavras, sons e imagens – que reverbera para dentro do texto
literário com a força disruptiva da tradição.

Em “El inmortal”, presente no livro El Aleph, publicado em 1949, em sua fase


vidente, Borges aproxima, mais uma vez, a ideia de tempo com a de morte por meio da
imagem do mar. O conto começa com a descoberta de um manuscrito que estava no final
da Ilíada, longo poema homérico, que fora traduzida para o inglês por Alexander Pope.
Em seguida, passa para apresentar o texto do manuscrito – o que cria um enclave com o
conjunto do conto, pois com o início do manuscrito há uma mudança da voz narrativa e
da estrutura textual, que sai de uma descrição ficcional para o relato em forma de diário,
forma híbrida por natureza, já que agrega diferentes estratégias de escrita.
157
O texto passa a ter, então, uma segunda origem com o início do manuscrito. Nele,
acompanhamos a história de Marco Flamínio Rufo, um tribuno militar romano, que, após
o encontro com um cavaleiro que veio do oriente no jardim de Tebas, no século III a. C.,
procura pelo rio que leva à Cidade dos Imortais (BORGES, 1984, p. 533-534). No relato
de Rufo é contado que nessa noite o narrador não dormiu ao passo que o cavaleiro, com
o amanhecer, acabou morrendo sem encontrar o rio que desejava.

Em seguida, o narrador-personagem segue a jornada do cavaleiro e ao avançar no


deserto encontra o rio imortal. Nesse momento, ele se depara com uma tribo de homens
que, do ponto de vista dele, não seriam civilizados, pois careciam de linguagem e estavam
nus:

En la arena había pozos de poca hondura; de esos mezquinos agujeros


(y de los nichos) emergían hombres de piel gris, de barba negligente,
desnudos. Creí reconocerlos: pertenecían a la estirpe bestial de los
trogloditas, que infestan las riberas del Golfo Arábigo y las grutas
etiópicas; no me maravillé de que no hablaran y de que devoraran
serpientes. (BORGES, 1984, p. 535)123

Sendo seguido por um troglodita, Rufo chega até a Cidade dos Imortais e lá se
depara com uma estrutura muito antiga que o apavora pela sequência interminável de seus
elementos, como janelas inalcançáveis, corredores sem saída, muros monumentais, entre
outros. Nessa jornada pela Cidade, o narrador é contaminado pela arquitetura infinita do
espaço, que reverbera nele a angústia pela impossibilidade de descrição, haja vista que a
vertigem do espaço, causada pelo labirinto, corroeu a sua racionalidade:

Ignoro si todos los ejemplos que he enumerado son literales; sé que


durante muchos años infestaron mis pesadillas; no puedo ya saber si tal
o cual rasgo es una transcripción de la realidad o de las formas que
desatinaron mis noches. (BORGES, 1984, p. 538)124

123
“Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam
homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos
trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não
falassem e que devorassem serpentes.” (BORGES, 1998, p. 596)
124
“Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; sei que durante muitos anos infestaram meus
pesadelos; já não posso saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que
desatinaram minhas noites.” (BORGES, 1998, p. 598)

158
Na volta da Cidade dos Imortais, encontra o troglodita o esperando, desenhando
no chão. O que desenhava não era uma escrita em termos linguísticos. Então, Rufo
começa a analisar hipóteses sobre a precariedade da linguagem e da vida dos trogloditas.
Decide, por fim, ensinar a linguagem para aquele que o seguiu e, após essa decisão,
nomeia-o de Argos, o nome do “cão moribundo da Odisseia” (BORGES, 1998, p. 600).
A dificuldade dessa tarefa, porém, prosseguiu até que Rufo se deu conta de que os
trogloditas eram, na verdade, os imortais que construíram a Cidade e que Rufo, o cão da
Odisseia, era o próprio Homero (BORGES, 1984, p. 540).

A imortalidade tornou o corpo e a sensação indiferentes para os trogloditas,


fazendo-os se refugiarem no pensamento, na especulação (op. cot., p. 540-541), uma
espécie de realização platônica do pensamento engendrado por ele mesmo. O narrador
personagem compreendeu, então, o caráter dessa imortalidade como uma não relação com
a morte: “Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las criaturas lo son, pues ignoran
la muerte; lo divino, lo terrible, lo incomprensible, es saberse inmortal” (op. cit., p.
540)125. Ao transformar o homem em imortal, o narrador-personagem encontra o limite
da alteridade, que desfaz a experiência – já que essa requer a sensibilidade – e parece
conjurar – ou, em outro sentido, parece acelerar ao máximo – a tese do Dasein
heideggeriano por meio da desconexão do homem com o mundo.

Nesse sentido, de um modo completamente diferente, Borges encontra no


troglodita e também em Rufo – já que esse contato com a Cidade dos Homens também o
transforma em imortal – Funes, o herói trágico do conto “Funes, el memorioso”, que não
consegue perceber nada, mas não porque pensa demais, como os trogloditas, e sim porque
já não pode pensar.

Com isso, a imortalidade trouxe consigo um problema para o vivente devido à sua
(não) relação com a morte:

La muerte (o su alusión) hace preciosos y patéticos a los hombres. Éstos


conmueven por su condición de fantasmas; cada acto que ejecutan
puede ser último; no hay rostro que no esté por desdibujarse como el
rostro de un sueño. Todo, entre los mortales, tiene el valor de lo
irrecuperable y de lo azaroso. Entre los Inmortales, en cambio, cada
acto (y cada pensamiento) es el eco de otros que en el pasado lo

125
“Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o
divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal.” (BORGES, 1998, p. 601)

159
antecedieron, sin principio visible, o el fiel presagio de otros que en el
futuro lo repetirán hasta el vértigo. No hay cosa que no esté como
perdida entre infatigables espejos. Nada puede ocurrir una sola vez,
nada es preciosamente precario. Lo elegiaco, lo grave, lo ceremonial,
no rigen para los Inmortales. Homero y yo nos separamos en las puertas
de Tánger; creo que no nos dijimos adiós. (op. cit., p. 541-542)126

Não há rosto possível para o imortal porque ele não cessa de aparecer como
máscara, personagem. O imortal não é um ente, uma coisa, mas uma relação que se dá
entre os homens, como acontece com a força despersonalizadora da tradição:

Homero compuso la Odisea; postulado un plazo infinito, con infinitas


circunstancias y cambios, lo imposible es no componer, siquiera una
vez, la Odisea. Nadie es alguien, un solo hombre inmortal es todos los
hombes. Como Cornelio Agrippa, soy dios, soy héroe, soy filósofo, soy
demonio y soy mundo, lo cual es una fatigosa manera de decir que no
soy. (BORGES, 1984, p. 541) 127

Em certo sentido, por isso, o imortal afirma o poder da literatura em realizar a obra
e desrealizar o autor, transformando-o em mais um componente literário. É importante
também o lugar da noite na estrutura do conto, pois ela aparece como um elemento que,
desde o início, une a realidade do personagem à realidade da literatura. Rufo encontra o
cavaleiro numa noite que não dormiu (BORGES, 1984, p. 534) e deixa de ser um imortal
no momento que conseguiu dormir à noite até o amanhecer (op. cit., p. 542). Já o jardim
e o labirinto são duas imagens utilizadas por Borges para representar o problema do
infinito – como é o caso do conto “El jardín de senderos que se bifurcan”, presente no
livro Ficciones, publicado em 1944 – e que também se expressa na noite. A essas imagens
se soma também a imagem onírica presente na areia, tanto a do deserto quanto a que está

126
“A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de
fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o
rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais,
ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio
visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja
como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente
precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas
portas de Tânger; creio que não nos dissemos adeus.” (BORGES, 1998, p. 603)
127
“Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o
impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é
todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o
que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.” (BORGES, 1998, p. 602)

160
no rio arenoso, e que sobrevém para enlaçar os planos de realidade, pois é por meio não
só do rio, mas também do deserto que Rufo encontra a Cidade dos Imortais.

No final do texto, o narrador interrompe a voz do diário e retoma a narrativa para


refletir sobre o que significou a história. Essa estratégia metaliterária, em um primeiro
momento, causa um recuo entre o texto presente no manuscrito e a reflexão que é
realizada sobre ele, mas logo em seguida o segundo narrador se aproxima do primeiro ao
revelar não ter certeza sobre a verdade do relato. Esse “vacilo do sentido” presente na
narração pode ser pensado não só como uma das estratégias de Borges para mostrar como
a tentativa de descrição objetiva da realidade sempre comporta uma dimensão não
descritiva, não objetivável, mas também como a presença de uma cegueira que impede o
fechamento total do sentido, seja ele literário ou não – já que a dimensão especulativa do
texto borgiano faz com que os efeitos produzidos por seus escritos não sejam vistos
simplesmente de um ponto de vista literário.

Já no poema “Blind Pew”, presente na antologia El Hacedor, publicada em 1962,


dessa vez em sua fase cega, Borges apresenta, de maneira mais manifesta, a cegueira
como elemento integrador que articula num campo comum o sonho e a morte:

BLIND PEW

Lejos del mar y de la hermosa guerra,


Que así el amor lo que ha perdido alaba,
El bucanero ciego fatigaba
Los terrosos caminos de Inglaterra.

Ladrado por los perros de las granjas,


Pifia de los muchachos del poblado,
Dormía un achacoso y agrietado
Sueño en el negro polvo de las zanjas.

Sabía que en remotas playas de oro


Era suyo un recóndito tesoro
Y esto aliviaba su contraria suerte;

161
A ti también, en otras playas de oro,
Te aguarda incorruptible tu tesoro:
La vasta y vaga y necesaria muerte. (BORGES, 1984, 826)128

O título remete ao personagem Blind Pew, um pirata cego e decadente, presente


no romance Treasure Island, de Robert Louis Stevenson (1999), uma das influências
preferidas de Borges (SCHWARTZ, 2017, p. 467-468), que vive no mundo dos piratas e
se situa como um componente desse mundo – já que é um legítimo pirata –, mas que
também se apresenta como um estranho a ele – pois não pode contemplar o tesouro que
deseja possuir. Desse modo, Borges percebe nesse dilema de Pew o problema vivido pelo
cego em sua condição de deficiência física.

Por que continuar roubando? Qual o desejo que envolve possuir sem ter a
experiência de contemplação de algo tão visual como o tesouro? O que, em outros termos,
significa possuir um tesouro sem poder ver o reconhecimento do outro ou sem que nós
próprios consigamos vê-lo – porque o objeto só se apresenta aos nossos sentidos quando
temos condição de apreendê-lo sensivelmente, nesse caso, com os olhos? Curiosa
proximidade sonora e ontológica entre tesouro e ouro (“Sabía que en remotas playas de
oro/ Era suyo un recóndito tesoro”). É como se a própria palavra evocasse, por relação
paronomástica, a imagem de uma riqueza que reluz com um brilho dourado e, por
extensão, a cor e a intensidade figurassem a própria coisa a conquistar.

128
“BLIND PEW

Longe do mar e da formosa guerra,


Que assim o amor todo o perdido louva,
O bucaneiro cego fatigava
Os terrosos caminhos da Inglaterra.

Escorraçado pelos cães das granjas,


Caçoada dos meninos do povoado,
Dormia um enfermiço e gretado
Sono no enegrecido pó das sanjas.

Sabia que em remotas praias de ouro


Era seu um recôndito tesouro
E isso serenava sua adversa sorte;

A ti também, em outras praias de ouro,


Te aguarda incorruptível teu tesouro:
A vasta e vaga e necessária morte.” (BORGES, 2000a, p. 225)

162
Desse modo, o eu lírico borgiano parece ver nessa relação não a possibilidade da
posse do tesouro, mas a da conquista que é engendrada em virtude dele. Com isso, o eu
lírico transfere a luminância do ouro presente no objeto físico para o objeto espiritual.
Além disso, essa mudança se processa porque há uma correlação entre tesouro e morte,
como uma espécie de consolação para a cegueira, que é realizada no último verso (“A ti
también, en otras playas de oro,/ Te aguarda incorruptible tu tesoro:/ La vasta y vaga y
necesaria muerte”).

O ouro e a noite como tesouros. O eu lírico repercute Borges, que se apresenta no


texto literário por meio da cegueira. O cego Pew expressa o desejo borgiano pela
literatura, mesmo em meio a uma condição física – a qual deixou Borges com apenas
algumas cores, entre elas, o amarelo, a cor do ouro, e a escuridão informe – que surge
para demovê-lo dessa vontade. O que sobra para Borges – não mais para o eu lírico –,
portanto, é essa vontade, que é o próprio tesouro incorruptível, e que une autor e
personagem na morte: vazio ou escuridão insondáveis, que guardam mistérios que
nenhuma mente humana, por melhor e mais desenvolvida que ela seja, pode solucionar.
Isso não significa a existência de outra escuridão ou cegueira ou mesmo o fim delas, mas
o enigma que se mostra a partir delas.

Em “Poema de los dones”, presente no livro El Hacedor, publicado em 1960, a


condição física expressa pelo eu lírico comunica com o eu biográfico do autor o lugar
da cegueira como um possibilitador da escrita:

POEMA DE LOS DONES


A María Esther Vázquez

Nadie rebaje a lágrima o reproche


Esta declaración de la maestría
De Dios, que con magnífica ironía
Me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños


A unos ojos sin luz, que sólo pueden
Leer en las bibliotecas de los sueños

163
Los insensatos párrafos que ceden

Las albas a su afán. En vano el día


Les prodiga sus libros infinitos,
Arduos como los arduos manuscritos
Que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)


Muere un rey entre fuentes y jardines;
Yo fatigo sin rumbo los confines
De esa alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente


Y el Occidente, siglos, dinastías,
Símbolos, cosmos y cosmogonías
Brindan los muros, pero inútilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca


Exploro con el báculo indeciso,
Yo, que me figuraba el Paraíso
Bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra


Con la palabra azar, rige estas cosas;
Otro ya recibió en otras borrosas
Tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías


Suelo sentir con vago horror sagrado
Que soy el otro, el muerto, que habrá dado
Los mismos pasos en los mismos días.

¿Cuál de los dos escribe este poema


De un yo plural y de una sola sombra?

164
¿Qué importa la palabra que me nombra
si es indiviso y uno el anatema?

Groussac o Borges, miro este querido


Mundo que se deforma y que se apaga
En una pálida ceniza vaga
Que se parece al sueño y al olvido. (BORGES, 1984, p. 809-810)129

129
“POEMA DOS DONS

Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite


Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Deu-me a um só tempo os livros e a noite.

Da cidade de livros tornou donos


Estes olhos sem luz, que só concedem
Em ler entre as bibliotecas dos sonhos
Insensatos parágrafos que cedem

As alvas a sua afã. Em vão o dia


Prodiga-lhes seus livros infinitos,
Árduos como os árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e de sede (narra uma história grega)


Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu fatigo sem rumo os confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente


E o Ocidente, centúrias, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam as paredes, mas inutilmente.

Em minha sombra, o oco breu com desvelo


Investigo, o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Tendo uma biblioteca por modelo.

Algo, que por certo não se vislumbra


No termo acaso, rege estas coisas;
Outro já recebeu em outras nebulosas
Tardes os muitos livros e a penumbra.

Ao errar pelas lentas galerias


Sinto às vezes com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, habituado
Aos mesmos passos e nos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema


De uma só sombra e de um eu plural?
O nome que me assina é essencial,
Se é indiviso e uno esse anátema?

165
Nesse poema, a cegueira aparece como uma positividade expressa no próprio
título. Na sequência, vemos o eu lírico – que, nesse caso, coincide, literariamente, com o
próprio Borges – agradecer a Deus pelos livros e a noite ao passo em que observa a
passagem da biblioteca física para a biblioteca dos sonhos, a biblioteca mental. Nessa
passagem, impregnada por uma condição física que foi marcada pelo “azar” – tanto do
ponto de vista de uma casualidade banal quanto de um destino infeliz130 –, o eu lírico
tanto incorpora o autor, que é transformado também em personagem, quanto introduz sua
escrita em uma genealogia de outros escritores cegos, como é o caso de Paul Groussac –
um escritor argentino e ex-diretor, também cego, da Biblioteca Nacional da Argentina –
citado na última estrofe. O que expressa, por isso, nessa alteridade colocada em jogo pela
cegueira um outro – ou outros – que se situa em uma distância insuperável para a voz que
fala no poema (“Otro ya recibió en otras borrosas/ Tardes los muchos libros y la sombra
(...) Que soy el otro, el muerto, que habrá dado/ Los mismas pasos en los mismos días”).

Destarte, a incorporação literária do autor, converte-o em um imortal para quem a


voz poética não mais alcança, pois o autor é o morto, ou seja, ele é o que está preso em
uma facticidade em que não há possibilidade de comunicação, já que ambos estão em
planos distintos. Além disso, essa incorporação gera uma abertura à alteridade pela voz
poética que interroga a si mesma não só sobre a necessidade e relevância da autoria, mas
também sobre quem escreve no momento mesmo da escrita, se é uma pessoa só ou uma
coletividade (“¿Cuál de los dos escribe este poema/ De un yo plural y de una sola
sombra?/ ¿Qué importa la palabra que me nombra/ si es indiviso y uno el anatema?”).

No fim do poema, o eu lírico observa o mundo ao mesmo tempo em que, com o


olhar, o intervém e o transforma. Nos dois últimos versos, a escuridão-visão indefinida
de Borges, a “pálida ceniza” a qual foi condenado pelo seu tipo particular de cegueira, é
equiparada ao sonho e ao esquecimento e, como consequência disso, permite ao autor,
que é também um personagem de sua própria história, escrever. A escrita literária, assim,
é preparada por Borges pelo modo de ser da cegueira; mas um modo de ser que não aponta

Groussac ou Borges, olho este querido


Mundo que se deforma e que se apaga
Numa empalidecida cinza vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.” (BORGES, 2000a, p. 207-208)
130
A tradução de Josely Vianna Baptista (BORGES, 2000a) traduz a expressão por “acaso”. O que condiz
com a intenção esboçada pelo eu lírico na primeira estrofe do poema. Porém, a tradução perde a
ambiguidade da expressão “azar” em espanhol.

166
para a cegueira em si, e sim para as diferentes e infinitas formas em que o autor recorre
aos textos da tradição literária para realizar a sua obra.

A estrutura do poema expressa, ainda, a circularidade que se pensa a relação entre


os livros e a noite, pois o poema é composto em 10 quartetos com rimas intercaladas e
alternadas que vão se cruzando e refazendo (ABBA, CDCD, AEEA, FGGF, HIIH, JKKJ,
LMML, INNI, OLLO, PQQP), numa espécie de reverberação caleidoscópica que indica
o infinito da tarefa de escrever e do objeto de construção literária. Com isso, a cegueira
não é identificada como um momento na linha temporal cronológica da vida do eu lírico,
mas um elemento consubstancial ao próprio fazer literário, já que para escrever é preciso
sonhar e para sonhar é necessário que haja noite.

5.3 Sonho e morte em Mattoso

A noção de morte em Glauco Mattoso antes de ser objeto de uma inquirição


metafísica, existencial ou literária, é o comentário irônico sobre a realidade do poeta. A
particularidade do texto mattosiano diz respeito ao modo com que ele indetermina o eu
literário com o eu biográfico numa estrutura de escrita que, embora faça uso – e, em
alguns casos, até abuse – da metáfora, procura ser literal para engajar a perversão do
desejo sexual e garantir um protocolo de leitura que realce ao máximo o efeito causado
pela sátira – haja vista que o funcionamento desta depende da relação pragmática que o
leitor consegue observar entre o que se passa fora do texto com o que ele depreende no
texto.

A noção de perversão, tal como formulada por Freud (2016), trata sobre a fixação
por um objeto de desejo que não possui como finalidade a reprodução. Além disso, Freud
percebe a perversão, contrariamente ao que se fazia na época, como algo presente, de
maneira geral, na atividade sexual de todas as pessoas (FREUD, 2016, p. 54). Lacan, por
sua vez, repercutindo Freud, retoma elementos importantes da perversão por meio da
literatura. Segundo Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. e Maria Cristina Poli (2013), ao
analisar Em busca do tempo perdido, de Proust, Lacan nota que “a lógica da perversão
situa-se numa captação inesgotável do desejo do Outro” (ROSA JR.; POLI, 2013, p. 706)

167
em que há um gosto pelo inanimado, circunstância em que o sujeito está preso em seu
próprio fetiche, e pelo desejo anônimo e clandestino (idem).

Surge, assim, um problema de identificação/reconhecimento do desejo, cuja


nomeação/determinação do objeto desejante sempre se furta para o sujeito. Porém,
acreditando ter o objeto do desejo em posse, o perverso substitui o significante da
castração simbólica – que determina o reconhecimento da falta não só em si mesmo, mas,
e principalmente, também no Outro – por um “engodo perverso: gozar da lei supondo
assim capturar o falo” (op. cit., p. 707).

Um primeiro elemento presente nessa discussão pode ser depreendido na maneira


jocosa com que Mattoso retrata uma morte brutal por meio do comentário de uma notícia,
publicado em 1980 – portanto, em sua fase vidente –, no Jornal Dobrabil:

Figura 8. Texto “Homossexual mata a mãe e se suicida”. #Paratodosverem: Fragmento fac-símile do texto de Glauco
Mattoso no Jornal Dobrabil que reproduz a estrutura de uma notícia.

HOMOSSEXUAL MATA A MÃE E SE SUICIDA


Nos casos de marasmo, letargia e escassez de assunto, o termo
“homossexual” é o melhor remédio. Não qualifica absolutamente nada,
mas onde ele entra, arrasa. Só tem um porém, aventado por professores
de litteratura e de jornalismo: com ele vem o impacto e vai-se a
seriedade. Quem levaria a sério um título como esse? Só mesmo
morrendo de rir... (MATTOSO, 2021a, p. 45)

No momento de publicação do comentário dessa notícia, a homossexualidade


ainda era considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), saindo da
Classificação Internacional de Doenças (CID) somente em 17 de maio de 1990. Desse
modo, ao observar a escolha lexical para estampar a manchete, Mattoso opera uma

168
perversão temática ao rir do assassinato da mãe de um homossexual e, nesse movimento,
redireciona a energia libidinal ao expor a hipocrisia e o preconceito de “professores de
literatura e de jornalismo”, que veem na escolha do termo objeto de riso, pois o atributo
(homossexualidade) realiza a substituição de um substantivo (filho).

O resultado, porém, não é reversível sem que se perca o comprometimento


sensacionalista dos jornais que veem na homossexualidade um caso de anormalidade, de
estranhamento, abjeção. Além disso, o termo “homossexual” não só não é reversível pelo
substantivo, mas também por um outro adjetivo que não traga uma carga de abjeção
intrínseca, como é o caso de heterossexual – haja vista que a frase “Heterrosexual mata a
mãe e se suicida” é nonsense, pois o sentido social (e Mattoso investe no realce e
subversão desse sentido) não permite que a palavra “heterossexual” ocupe explicitamente
a função de sujeito justamente por ela não representar a função de desvio, que é tão
necessária para o sensacionalismo.

Em “Os 10 mandamentos do torturador”, publicado no Jornal Dobrabil em 1981


– portanto, ainda em plena ditadura –, Mattoso se volta não só para o torturado, mas
sobretudo para o torturador para pensar o problema das mortes causadas pelo regime
autoritário:

169
Figura 9. Texto “Os 10 mandamentos do torturador”. #Paratodosverem: fac-símile de uma página do Jornal
Dobrabil, que contém o texto “Os 10 mandamentos do torturador” no canto esquerdo.

Os 10 mandamentos do torturador
I – AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS: O torturador ama
e é temente* a um deus, sim senhor. Que deus, não vem ao caso. Mas
ama, excepto que abaixo de deus só está elle, torturador. Sim, pois para
amar a deus conforme o mandamento, o torturador tem que estar acima
de todas as coisas e, por que não dizer, pessoas. É verdade que, na
practica, o torturador não consegue ser tão omnipotente, mas resta-lhe

170
o consolo de poder ao menos pisar na cara do torturado e trepar-lhe no
corpo.
II – NÃO TOMAR SEU SANCTO NOME EM VÃO: “Sancto nome”
é o caralho. “Vão” é o das nadegas. Quer dizer: não tomar no cu. Um
authentico torturador nunca toma no cu, nem no sentido proprio, nem
no figurado. Quem toma é o torturado.
III – GUARDAR DOMINGOS E FESTAS DE GUARDA: Isto é, o
domingo e a festa de guarda são os dias de folga do torturador, que
ninguém é de ferro, excepto o torturado. No domingo todo mundo
descansa, excepto o torturado e os guardas de plantão. Estes substituem
os torturadores de folga e fazem a festa. Dahi a expressão “festas de
guarda”. Desse modo, matam-se trez coelhos: o torturador aproveita
para coçar o sacco, e os guardas para tirar sua casquinha. O terceiro
coelho é o torturado.
IV – HONRAR PAE E MÃE: Excepto, naturalmente, os paes do
torturado. Estes podem ser ofendidos moral e até physicamente, si
necessario** na presença do torturado.
V – NÃO MATAR: Um torturador nunca mata. O torturado sempre se
suicida, é atropelado ao tentar fugir, ou alvejado em tiroteio, ou
justiçado pelos companheiros de prisão. Esqueci de alguma outra
sahida?
VI – NÃO PECCAR CONTRA A CASTIDADE: Um torturador de
respeito nunca practica violencias sexuaes contra pessoas virgens. Isto
porque todo torturado já perdeu o cabaço no cangaço, ou então no
cagaço da tortura. Portanto, o torturador só pecca si poupar o torturado
do estupro.
VII – NÃO FURTAR: Torturador piedoso não furta nem um grampinho
de sua victima. Espera primeiro que esta esteja inappelavelmente finada
e o objecto em questão não possa ser reclamado. Ahi Já não é mais
furto, concorda?
VIII – NÃO LEVANTAR FALSO TESTEMUNHO: Nem pensar. Um
verdadeiro torturador não falseia nada. Siquer avente. O proprio
torturado se encarrega de formular as perguntas do interrogatorio,
respondel-as e assignar em baixo. Ao torturador cabe apenas estimular
a lingua do sujeito.
IX – NÃO DESEJAR A MULHER DO PROXIMO: Torturador não
precisa desejar a mulher de ninguém. O torturado está alli pra isso:
servir de mulher, nem que seja na marra, servir de boceta com seu cu e
com sua bocca e, si o torturador achar que não basta, servir de mulher
de malandro, de capacho e até de amarellinha. (MATTOSO, 2001a, p.
53)

O texto “Os 10 mandamentos do torturador” aproxima as Escrituras do lócus


caótico e perverso que é realizado pela prática da tortura efetiva – há diversas citações a
momentos emblemáticos da ditadura, como o encobrimento de mortes com casos de
supostos suicídio, estupro, entre outros. Com isso, além de um trabalho de transgressão,

171
que aproxima o que não é aproximável, como o texto sagrado e o texto profano, há
também uma perversão ao mostrar que essa aproximação é possível, mas somente ao
mudar radicalmente a sua direção moral. Como resultado, o olhar do narrador deseja, por
seu interesse masoquista, passar da exposição à efetiva atividade, como se assumisse, a
um só tempo, os lugares de torturador e de torturado.

Surge, então, uma dimensão do reconhecimento, em que o jogo de olhares – entre


ver e ser visto – é encenado pelo narrador, que está fora dos eventos narrados, assumindo
uma posição heterodiegética, e que confronta a trama de maneira desejante, como quando
intensifica a ambiguidade lexical em “Ao torturador cabe apenas estimular a lingua do
sujeito”, sendo que a expressão “estimular a língua” tanto se refere a fazer falar quanto a
transformar a língua em objeto sexual para uma prática, por exemplo, podólatra. O que
faz o olhar apontar, internamente, para o seu aspecto tangível, mas sem que nunca, de
fato, ele concretiza essa função – já que olhar é sempre olhar algo à distância.

Além disso, a assimetria entre as posições de torturador e torturado repercute


também numa assimetria nesse jogo de olhares, pois, enquanto o torturador vê tudo
mesmo quando não enxerga131 – olhar absoluto, olhar do poder como o olhar do panóptico
foucaultiano que vê mesmo quando não vê (FOUCAULT, 2014, p. 195) –, o torturado só
vê quando lhe é permitido ver. Porém, essa relação entre o olhar ativo do torturador e o
olhar passivo do torturado é reelaborada pelo narrador, que transmuta as posições de
torturado e torturador pela forma desejante em que conduz a sua observação (uma
atividade, reafirmo, que é realizada pelo olhar).

O outro, assim, mesmo quando visto em situação de iminência de morte ou de


realização efetiva da morte é transformado em objeto desejante, em energia libidinal que
vitaliza a escrita e o texto literário. Desse modo, o outro não é, de fato, “o outro”. Pelo
menos não no sentido de uma integridade unificada pela ideia de “outro”, como visto em
Lévinas, porque o que é experimentado por Mattoso é um objeto parcial – que quase
sempre se apresenta na superfície do texto por meio da imagem do pé.

Nesse contexto, o eu também se desfaz de sua unidade essencial ao realizar uma


dramatização de si mesmo, mas sem que, para isso, ele desapareça completamente. Esse

131
É fundamental essa dimensão do olhar absoluto do torturador para gerar terror no torturado, pois, se o
torturado fosse apenas violentado nos momentos em que ocorre a violência física, o terror se dissiparia
rapidamente no momento em que essa violência se encerrasse.

172
aspecto do não desaparecimento do sujeito é importante, pois marca a diferença entre a
poesia concreta do período e o tipo específico de poemas “concretos” realizados por
Mattoso (BUTTERMAN, 2005, p. 164). Aliás, é justamente nesses poemas concretos da
década de 1970 e 1980 que Mattoso, consoante Butterman, promove uma crítica à
ditadura e à repressão em geral (op. cit., p. 165). Ponto também percebido por Viviana
Bosi (2011), que credita a essa dramatização do eu de Mattoso o aspecto de uma
desconfiança que o eu dramático nutre em relação a si e aos outros (BOSI, 2011, p 260).

De todo modo, a presença de uma subjetividade apresenta uma proximidade com


o masoquismo na medida em que o termo sujeito – inclusive, em perspectiva etimológica
– envolve o predicado “ser assujeitado”. O que pede algum grau de unidade daquele que
experiencia a opressão ao passo em que aquele que a perpetra não se preocupa com isso.
Vemos, assim, que a dialética do senhor e do escravo, tão repercutida em diversos poemas
de Mattoso, é pervertida por um jogo que coloca no sujeito, e não no objeto, o lugar
ontologicamente determinado do oprimido. Porém, como acontece em toda dialética, esse
lugar comporta uma dimensão antitética em que o objeto-opressor assume o papel de
sujeito-oprimido e é aí onde a perversão mattosiana conclui a sua transgressão ao garantir
para o oprimido, em meio à violência, um gozo – mas um gozo improdutivo.

Para De Lauretis (2011), interpretando Lacan, a noção de gozo (jouissance) se


desprende da noção determinada de gênero (como algo identificável em categorias que
garantem inteligibilidade social: masculino, feminino etc.) e se volta para a noção de
sexualidade, ou seja, para as práticas sexuais. A autora pensa com essa noção de gozo
algo que se realiza por uma pulsão de morte, ou seja, por algo que põe em risco a sua
própria existência. Segundo André Barbosa (2017), essa noção de gozo – ou melhor: de
gozo improdutivo132 – apresentada por De Lauretis afasta o interesse político pelo futuro
(o futuro utópico, possível) e por uma prática sexual que tem como fim o genital ou a
reprodução para se interessar pela relação desejante do agora que se constitui por meio
de objetos parciais – a perversão e gozo improdutivo, portanto, se encontram, assim como
acontece nas obras de Mattoso.

132
Essa expressão também é utilizada por Barbosa (2017). Cf. BARBOSA, André Antônio. Constelações
da frivolidade no cinema brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em
Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2017.

173
Dentro de um contexto histórico de recrudescimento das liberdades individuais, o
moralismo propagandeado pela ditadura, por meio de diferentes instituições do aparelho
do Estado que visavam garantir a Moral e os Bons Costumes, não era, de todo, contrário
ao desejo, pois a intelligentsia da ditadura empresarial-militar brasileira distribuiu,
concomitantemente, a tortura e a pornografia. Como mostra María Elvira Díaz-Benítez
(DÍAZ-BENÍTEZ, 2011, p. 15), a década de ouro dos filmes pornôs se deu, justamente,
entre os anos 1970 e 1980. O que se interditou, contudo, foi a existência de corpos e de
sexualidades dissidentes com o padrão heteronormativo, a exemplo de homens e mulheres
gays, travestis e transexuais etc. que foram perseguidos, vigiados, torturados e até mortos.

Assim, parece-me perfeitamente aceitável supor a existência não só de um


higienismo moral, mas também de um higienismo desejante durante o período da
ditadura, porque o intuito do regime de exceção não era o de acabar com o desejo, mas
regulá-lo, normalizá-lo133. Consequentemente, a ação de Mattoso com o seu gozo
improdutivo era ainda mais eloquente. A um só tempo, ele percebia a sua condição de
vítima social do regime (como gay e podólatra) e atuava criticamente para expô-lo naquilo
que ele tinha de mais sério na salvaguarda de sua imagem pública: a sua moral.

Já em “abjura nº 5”, poema publicado no Jornal Dobrabil em 1977, Mattoso


retoma a temática da ditadura, mas focando no aspecto negativo que representa a atitude
do eu dramático:

133
A esse respeito, ver a tese de Renan Honório Quinalha (2017). Cf. QUINALHA, Renan Honório. Contra
a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). São Paulo, 2017. Tese
(Doutorado em Ciências) - Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2017.

174
Figura 10. Poema “abjura nº 5”. #Paratodosverem: fac-símile do poema de Glauco Mattoso.

abjura nº 5

Minha idéia não atura


mais embuste e impostura
arrenega e esconjura
tudo que termina em ura
Não acredito na cura
na sutura, na atadura
Não creio na benzedura
nem me fio em ferradura
Não acredito na jura
Não me iludo com lisura
Não aceito assinatura

175
e não leio as Escritura
A ciência é uma aventura
Religião, conjectura
Política é peta pura
e a arte uma loucura
Chega de literatura
de estrutura, de urdidura
cesura e nomenclatura
Isso tudo é uma frescura
Decidindo de cultura
só se vê cavalgadura
Quem lança candidatura
o que quer é sinecura
!Não me venha com figura
!Sai pra lá com formosura
Catadura de bravura
não quero nem ver pintura
Qual azar nem jetatura
!ventura nem desventura
Me rio da acupuntura
e de só comer verdura
Não sei o que é fartura
doçura de rapadura
Minha boca se satura
só do gosto da amargura
Proibiu-se-me a leitura
Já nem posso ver gravura
Minha esperança futura
é uma treva bem escura
Tenho horror de ditadura
de censura, de tortura
captura e de clausura
!Vou fugir da viatura
“Pela rua da amargura

176
”Água fria na fervura
“Não há bem que sempre dura
”nem mal que sempre se atura
Se me levam no cambura
!nem mandado de soltura
Eu, hem! Quem veste armadura
tem bem mais musculatura
Acho graça em abertura
Me faz rir a linha dura
sucessão na prefeitura
pela primogenitura
Fico longe de conjura
!Fora com a compostura
...Nem me importo com mesura
!Vade retro, conjuntura
Não há nada nesta altura
que se salve da mistura
A mentira é o que perdura
A verdade não se apura
Glauco Ma77oso (MATTOSO, 2001a, p. 21)

Já no título, o poema expressa um esboço da negatividade mattosiana que procura


afirmar algo pela sua perversão negativa – ou, se quisermos, por sua negatividade queer
– termo que Teresa De Lauretis (2011) retoma para pensar o aspecto criativo e não
identitário da negatividade queer, que se articula com uma pulsão de morte que rejeita a
assimilação por uma estrutura social, representando sempre o não conformável, o excesso
(DE LAURETIS, 2011, p. 256).

O poema é constituído pela conjunção de afirmações negativas e afirmativas que,


no quadro geral, queerifica com as instituições e instâncias de poder e interrompe a ideia
da busca de um sentido ou de uma verdade para os fatos (“e não leio as Escritura/ A
ciência é uma aventura/ Religião, conjectura/ Política é peta pura/ e a arte uma loucura/
(...) A mentira é o que perdura/ A verdade não se apura”).

177
Do ponto de vista do procedimento, essa queerização mattosiana, que expressa
uma repetição obsessiva e pulsional, impede que o sentido seja dado como absoluto por
meio do papel da ironia – pelo menos, do que aparenta ser na superfície do texto – e da
circularidade sonora, que faz da rima em “ura” uma estratégia de aproximação
significante entre diferentes e extrovertidos significados. Nisso, tanto o que o poema
expressa sobre a cegueira (“Minha esperança futura/é uma treva bem escura”) quanto no
que defende sobre a ditadura (“Tenho horror de ditadura/ de censura, de tortura/ captura
e de clausura / !Vou fugir da viatura”) podem ser lidos de modo perverso, pois o fetiche
masoquista, embora realize uma experiência da tortura, não deixa que ela seja,
efetivamente, experimentada como uma tortura (BUTTERMAN, 2005, p. 181-182), já
que a vítima, frente a toda dor que lhe é infligida, consegue gozar – um gozo improdutivo,
é verdade – com o aparelho de repressão do Estado.

Em 2022, já em sua fase cega, Mattoso publicou, em formato e-book, o poema


“Inveja de quem veja”, presente na antologia Vida que cegue. Nesse poema, o eu
dramático mattosiano discute a dimensão ética da morte por meio da cegueira:

INVEJA DE QUEM VEJA [8912]

Aquelles que teem medo de morrer


e enxergam esperança no futuro,
ainda que illusoria, são aquelles
que menos dó terão de quem se macta.
No fundo, teem inveja da coragem
fatal dum suicida, mas se exquescem
daquillo que perdeu quem tira a vida,
ou seja, alguma simples esperança
de dores supportar, ja no presente.
Não vejo o suicida como quem
coragem ganha para se mactar,
mas como quem perdeu as esperanças.
Não vejo, si não vejo nada mais,
motivo que me impeça de morrer
de morte provocada por mim mesmo.

178
Mas, como me restou uma fugaz
lembrança do passado, no qual Deus
ainda me exsistia, addio o gesto
até que ja tambem perca a memoria. (MATTOSO, 2022d, p. 20)

O título remete ao problema, já visto na tópica mattosiana, da cegueira como


maldição. Com isso, ao ponderar sobre o aspecto moral do suicídio, o eu dramático
percebe que, atrelado ao sentimento que se tem sobre a ação de tirar a própria vida, está
a projeção de horizontes de futuro a que esse sentimento se torna, em certa medida,
corresponsável. Assim, se se avalia que o suicida é representado por meio de um
sentimento de coragem, esquece-se das dores do presente e foca-se apenas nas esperanças
do futuro. Por outro lado, se se avalia que o suicida é representado por meio de um
sentimento de melancolia, em que para ele já não há mais esperanças nem no futuro nem
no presente, como faz o eu dramático, concentra-se na dimensão das dores do presente.

Nesse sentido, o olhar do outro sobre o suicida é medido moralmente por meio
das capacidades que são engajadas nas expectativas de diferentes modos de vida. Porém,
para quem não vê, como é o caso do eu dramático, a morte surge como a impossibilidade
não só de ver, mas também de se ver, ou seja, de ser reconhecido no olhar do outro, de
ter solidariedade ou empatia. Com isso, para continuar vivendo e tendo a vida, e não a
morte, como uma possibilidade, o eu dramático situa não mais o presente ou o futuro
como uma a possibilidade em meio ao caos, mas o passado. E como o passado para ele é
algo que não pode ser mais alcançado, o eu dramático adia a morte como o gesto
diametralmente oposto ao de Borges no “Poema de los dones”, em que o eu lírico rejeita
a memória, mas não o esquecimento.

Entretanto, essa esperança do eu dramático mattosiano que busca no passado é o


que se revolve, como num buraco de minhoca especulado pela física contemporânea, para
o futuro, como visto no poema “Um optimismo”, presente também na antologia Vida que
cegue:

UM OPTIMISMO [8913]

Não perco uma scentelha de esperança

179
nos tempos que virão, nalgum futuro
ao menos provisorio, para breve,
pois, quando o meu cocô demora dias
la dentro, constipando um intestino
soffrido, de repente expulso o peido
comprido, fedidão, que representa
a fé numa alegria de viver.
Portanto, um optimismo significa
cagar, poder cagar, sentir allivio,
em summa, a perspectiva de que merda
é tudo que esperamos nós da vida,
depois dos mais frustrados ideaes. (MATTOSO, 2022d, p. 21)

Lidos em conjunto, já que um aparece na sequência do outro no livro, vemos como


o segundo poema recobre o primeiro por meio de uma antiestética que faz a defesa de um
padrão de beleza socialmente invertido para o que designamos como “esperança”. Essa
antiestética tem na cegueira elemento especial, pois a condição de cego é parte do
elemento de abjeção, já que representa o desvio que tanto a cegueira, do ponto de vista
da normalidade clínica, quanto a sujeira, da normalidade social, sustentam. Além disso,
o deslocamento da noção de esperança também se apresenta de um ponto de vista de sua
própria orientação política, na medida em que o resultado almejado, o ato de cagar,
consolida a vida como uma esperança de merda – o que gera uma contradição em seus
próprios termos, pelo menos de um ponto de vista social.

É relevante destacar que, nesse mesmo sentido, David Foster (2006) ao analisar o
aspecto de teatralização presente em Manual do podólatra amador, aproxima essa
questão do desvio, operada pela cegueira e abjeção, com a estética queer:

A teatralização – que inclui cenas de tortura real entre os ingredientes


sadomasoquistas de seu psicodrama erótico – funciona não só como
negação do politicamente correto, mas também como releitura
conceitual, onde sujeira e cegueira se misturam promiscuamente,
selando o timbre ultrajante do “desvio” com a tinta indelével da
deficiência física. (FOSTER, 2006a, p. 13)

180
Mattoso, com isso, substitui a imagem da falta como necessidade para a escrita –
como aquilo que no texto borgiano aparece como esquecimento e a intransponível
diferença de grandeza entre o finito e o infinito, por exemplo – por uma imagem do
excesso. Desse modo, a escuridão da morte é contrastada pela luz da memória, mas esse
contraste entre ambos não perfaz todo o esquema – haja vista que a vida, como lembra
Deleuze (2002), se constitui no limite com a morte. Além disso, a morte proporciona, em
um sentido deleuziano, um tipo de destruição que é necessário para a vida.

Nesse contexto, em ambos os casos das trajetórias analisadas, seja em Mattoso ou


em Borges, como materialidades precárias prestes a desaparecer, trata-se de seguir o
excesso da Vida, de engendrar-se com ele. Dessa forma, a passagem da falta para o
excesso representa uma mudança do paradigma que organiza os fluxos desejantes. Do
ponto de vista teórico, essa foi também a mudança que fez Deleuze, após a influência de
Guattari, optar pela figura do esquizo frente à do perverso (LAPOUJADE, 2015, p. 137).

Em O Anti-Édipo (2004), o signo dessa mudança é expresso pela substituição dos


dois inconscientes (de pulsões e de pensamento) pela imanência de um único inconsciente
maquínico, autoprodutor (= produção de produção). À categoria de dispêndio, Deleuze e
Guattari, citando em nota as pesquisas de Bataille, dá o nome de produção de consumo
(DEELUZE; GUATTARI, 2004, p. 10), para marcar o aspecto puramente maquínico do
processo, em que uma máquina engendra outra sem, necessariamente precisar do homem
como elemento que integra ou que organiza essa produção por meio de uma reflexão
sobre a sua utilidade.

Essa nova configuração do inconsciente implicou uma crítica direta, a um só


tempo, ao Imaginário freudiano e ao Simbólico lacaniano – ainda que, aqui, seja uma
crítica apenas ao Lacan do inconsciente simbólico, devido à sua relação estruturante com
a linguagem, e não o do Real. O desejo, então, dentro desse novo quadro teórico, foi
redimensionado para assumir uma natureza imediatamente real – ou seja, sem necessitar
de uma mediação com a linguagem ou com um tropos linguístico – e remodelado, de
modo substituir a narrativa de sua articulação original com a falta para aquela que pensa
a sua articulação, desde o princípio, com o excesso. Consequentemente, Deleuze e
Guattari tomaram o esquizo e o paranoico como duas figuras que representam os dois
polos extremos do inconsciente, um de excesso e outro que introduz a falta, sendo que,
por entre eles, trabalharia, por isso, o inconsciente (DELEUZE; GUATTARI, 2004 p.
357).
181
Portanto, aquilo que o escritor faz ao mobilizar a escrita é produzir-se inteiramente
com ela, junto a ela, num único e mesmo campo de experimentação. Desse modo, Borges,
de um lado, e Mattoso, do outro, produziram-se ao mesmo tempo em que foram
produzidas suas obras, conectando os seus fluxos vitais com os fluxos do mundo. Já dizia
Deleuze que a tarefa de uma literatura menor134 corresponde à constituição de um deserto
– o deserto ficcional de Borges ou o deserto masoquista de Mattoso – sobre o qual é
preciso arrastar a língua, servir-se “da sintaxe para gritar, para dar uma sintaxe ao grito”
(DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 54). Um grito que não precisa ser o grito do excesso,
como em Mattoso, mas que pode ser – e no caso de Borges isso é mais consistente – o
grito da criação literária; já que o grito promove uma torção do sentido: ele constitui a
significação sendo, ele mesmo, assignificante.

Nesse sentido, o lugar da cegueira é o mesmo lugar da escrita: o do excesso, como


se percebe no poema “abjura nº 5”. A cegueira é um outro nome para a escuridão, para o
sonho, para o interstício, para o desejo e o desconhecido... é o interstício, a abertura que
se apresenta primeiramente como limitação. Ao fazerem literatura, a cegueira de
escritores cegos inquire os seus próprios modos de fazer literário, invadindo temas e
procedimentos e estabelecendo novos compromissos éticos e ontológicos com o mundo.

Quando se é cego, assim, talvez não haja como apagar a facticidade de ser cego,
assim como o animal terrestre não pode apagar a facticidade de não saber voar, mas
sempre se pode ir além ao engajar a Vida de maneira criativa para realizar o mundo de
um outro modo, como é o caso do que acontece por meio da literatura e de um desejo –
ou delírio – da ficção.

134
Deleuze e Guattari aplicam a noção de literatura menor à análise das obras de Franz Kafka. Nesse
sentido, literatura menor diz respeito ao mecanismo de transgressão a uma matriz linguística por dentro da
própria língua, como ocorreu com a língua alemã com a dicção de Kafka, um judeu de Praga.

182
III – A NOITE DA LITERATURA

183
6. PERSONAGEM, PROCEDIMENTO OU PERSPECTIVA? A CEGUEIRA
COMO PROBLEMA LITERÁRIO

Até aqui, a cegueira foi pensada como elemento que participa das obras de Jorge
Luis Borges e Glauco Mattoso, como possibilidade que se apresenta na criação e na
recomposição da sensibilidade artística e como vínculo que articula a ética e a estética.
No entanto, quero, agora, iniciar uma discussão da cegueira como um problema para a
literatura, sobretudo, por meio dos modos em que ela surge nas obras de Mattoso e de
Borges.
Isso significa dizer que, para pensar a cegueira como um problema para a
literatura, é necessário, antes, revisitar o texto literário não só com o olhar crítico, mas
também com o olhar cego, ou seja, com o olhar daquele que vê no entre-visto, para
acompanhar, entre as zonas de maior visibilidade da obra, os seus momentos de
insignificância, de não visto, de uma ausência presente em sua materialidade mesma.
Trata-se, portanto, de uma espécie de cartografia, mas não de uma cartografia
intensiva135, como a desenvolvida por Félix Guattari e Gilles Deleuze, muito embora a
intensividadde não deixe de estar presente, mas de uma cartografia negativa, em que o
adjetivo “negativa” não aponta para uma dimensão do método dialético, mas de uma
atitude transgressiva que se apresenta aos objetos e à prática textual.
Como resultado, ao indagar ao texto literário quais são os modos que a cegueira
aparece (personagem, procedimento ou perspectiva?), parece-me que a resposta são todos
e nenhum. Todos, no sentido em que a cegueira sempre pode ser pensada como ocupando
mais de um lugar no esquema ou na estrutura de composição textual. Nenhum, no sentido
de que – mesmo quando ela se apresenta como perspectiva ou procedimento, que são as
maneiras mais produtivas para se pensar aspectos não desenvolvidos pelo conteúdo
imediatamente dado da superfície textual, ou seja, pelo efetivamente “dito” – a cegueira
não pode ser identificada, mas apenas apontada – propriedade dêitica e provisória – como
um elemento presente no texto.

135
O “método” da cartografia intensiva foi esboçado por Félix Guattari e trabalhado junto com Gilles
Deleuze. Para uma tentativa de apresentação do que seria esse “método”, ver: ROLNIK, Suely. Cartografia
sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS,
2014.

184
6.1 O caleidoscópio da cegueira: entrando no texto com Borges

“Alles Nahe werde fern.”136 A frase de Goethe é retomada em um dos momentos


finais da conferência “La ceguera”. Segundo Borges, a frase refere-se não só ao
crepúsculo da tarde, mas também à vida, no período em que as coisas visíveis se afastam
dos olhos do mesmo modo que, com o tempo, o que é inessencial vai deixando nosso
corpo (BORGES, 1989, p. 285-286).

Como vimos, nos primeiros livros de Borges a figura da tarde aparece como um
elemento que, por um lado, justifica a deambulação realizada pelo próprio Borges nas
ruas de Buenos Aires e, por outro, serve literariamanete ao propósito de compor novas
imagens poéticas. Em Los conjurados, antologia publicada em 1985, um ano antes de sua
morte, Borges retoma o problema da tarde como uma questão literária em dois poemas:
“La joven noche” e “La tarde”.

LA JOVEN NOCHE

Ya las lustrales aguas de la noche me absuelven


de los muchos colores y de las muchas formas.
Ya en el jardín las aves y los astros exaltan
el regreso anhelado de las antiguas normas
del sueño y de la sombra. Ya la sombra ha sellado
los espejos que copian la ficción de las cosas.
Mejor lo dijo Goethe: Lo cercano se aleja.
Esas cuatro palabras cifran todo el crepúsculo.
En el jardín las rosas dejan de ser las rosas
y quieren ser la Rosa. (BORGES, 1989, p. 464)137

136
“Tudo que é próximo se afasta.” (GOETHE apud BORGES, 2000b, p. 322)
137
“A JOVEM NOITE

As lustrais águas dessa noite já me absolvem


das cores variadas, das variadas formas.
As aves e os astros no jardim já exaltam
o regresso almejado das antigas normas
do sonho e da sombra. A sombra já selou

185
Em “La joven noche”, o poema, de estrutura sintética e que comprime em uma
única estrofe todo o seu conteúdo, a noite é apresentada não como um momento do dia,
mas como uma força que invade o eu lírico para escrever aquilo que só pode ser dito
como um segredo: a ficção. Assim, muito embora sejamos apresentados no início com
uma clara citação à vida do autor por meio do efeito gerado pela cegueira (“Ya las
lustrales aguas de la noche me absuelven/ de los muchos colores y de las muchas
formas”), logo em seguida vemos a mesma noite introduzindo o eu lírico numa dimensão
em que a ficção é predominante: o jardim.

Como resultado, o eu lírico se vê num lugar mágico em que as próprias coisas


particulares anseiam pelo universal (“En el jardín las rosas dejan de ser las rosas/ y
quieren ser la Rosa”). Nesse mundo que se torna visível pela ficção, o platonismo é a
regra, pois, ao separar as coisas sensíveis das coisas inteligíveis, a Ideia platônica se revela
como pura imagem. Com isso, um novo tipo de visualidade, que prescinde dos olhos,
comparece. Porém, esse novo tipo de visualidade não é dado por uma reelaboração dos
sentidos que extravasa o sujeito, como analisamos anteriormente por meio dos trabalhos
de Daniel Stern, mas por uma organização propriamente literária.

Nesse sentido, o platonismo que comparece aqui é um platonismo literário, pois o


universal surge como ficção. No poema seguinte, “La tarde”, Borges prossegue com essa
comparação acrescentando o papel da alegoria:

LA TARDE

Las tardes que serán y las que han sido


son una sola, inconcebiblemente.
Son un claro cristal, solo y doliente,
inaccesible al tiempo y a su olvido.
Son los espejos de esa tarde eterna
que en un cielo secreto se atesora.

os espelhos que imitam a ficção das coisas.


Melhor o disse Goethe: ‘O próximo se afasta’.
Essas quatro palavras cifram todo o crepúsculo.
No jardim as rosas deixam de ser as rosas e querem ser a Rosa.” (BORGES, 2000b, p. 523)

186
En aquel cielo están el pez, la aurora,
la balanza, la espada y la cisterna.
Uno y cada arquetipo. Así Plotino
nos enseña en sus libros, que son nueve:
bien puede ser que nuestra vida breve
sea un reflejo fugaz de lo divino.
La tarde elemental ronda la casa.
La de ayer, la de hoy, la que no pasa. (BORGES, 1989, p. 465)138

Nesse mundo tornado possível pela ficção, as palavras resvalam umas nas noutras
como reflexos de espelhos que se comunicam pela atividade da luz. Esse lugar não é só o
lugar do eu lírico, mas também o do autor, que precisa se instalar nesse mundo ficcional
que detém uma temporalidade própria – o cristal é a metáfora para algo independente,
como uma criação necessariamente literária, verbal (BORGES, 1984, p. 382) – para que
a escrita literária aconteça e possa ter contato com o fundo sobre o qual a linguagem se
apresenta como ela é – no caso de Borges, como algo essencialmente metafórico e que
trabalha realizando operações analógicas próprias (“En aquel cielo están el pez, la aurora,/
la balanza, la espada y la cisterna./ Uno y cada arquétipo”).

No texto “La metáfora”, presente no livro Historia de la eternidad, publicado em


1936, Borges, ao mostrar a recorrência de metáforas sobre a relação, por exemplo, entre
sono, noite e morte e metáforas que relacionam mulheres a rosas, constata que o grande
problema literário ligado à metáfora não está no seu esgotamento, mas no seu modo de
enunciar:

138
“A TARDE

As tardes que serão e as que têm sido


são uma só, inconcebivelmente.
São um claro cristal, só e dolente,
inacessível ao tempo e a seu olvido.
São os espelhos dessa tarde eterna
que em um secreto céu se entesoura.
Naquele céu estão o peixe, a aurora,
a balança, a espada e a cisterna.
Um arquétipo, e todos. Assim Plotino
em seus livros (são nove) nos descreve;
bem pode ser que nossa vida breve
seja um fugaz reflexo do divino.
A casa a tarde elementar devassa.
A de ontem, a de hoje, a que não passa.” (BORGES, 2000b, p. 524)

187
El primer monumento de las literaturas occidentales, la Ilíada, fue
compuesto hará tres mil años; es verosímil conjeturar que en ese enorme
plazo todas las afinidades íntimas, necesarias (ensueño-vida, sueño-
muerte, ríos y vidas que trascurren, etcétera), fueron advertidas y
escritas alguna vez. Ello no significa, naturalmente, que se haya agotado
el número de metáforas; los modos de indicar o insinuar estas secretas
simpatías de los conceptos resultan, de hecho, ilimitados. (BORGES,
1984, p. 384)139

Nesse contexto, antes de ser um personagem ou um procedimento, a noite aparece


em “La tarde” como uma perspectiva – que cria zonas de luz e escuridão, de vidência e
enceguecimento (DERRIDA, 2012b, p. 73) –, mas uma perspectiva intuitiva, segundo a
qual o autor precisa assumir uma posição para ver o que não é possível pela visão
cotidiana. Essa perspectiva não se mede pela extensão do que alcança, mas pelas formas
que consegue captar. Com isso, liberado dos olhos mas não dos outros sentidos, o artista
intui a própria imagem naquilo que ela tem de mais essencial. Nesse processo, a imagem,
por sua vez, furta-se essencialmente a sua captura pela expressão literária. Como
resultado, o que o artista consegue fazer é apenas enunciar o enigma que está cifrado
nesse processo criativo e que é também um processo de contemplação.

Já no fim do poema, o eu lírico faz referência ao filósofo Plotino para retomar não
um tema da razão, mas da teologia: a vida como reflexo fugaz do divino. Em “El espejo
de los enigmas”, ensaio publicado em 1952 no livro Otras inquisiciones, Borges faz
menção a um trecho de uma passagem do livro de São Paulo para pensar o problema da
cegueira como um Destino compartilhado por todos os homens:

Un versículo de San Pablo (I, Corintios, XIII, 12) inspiró a León Bloy:
Videmus nune per speculum in aenigmate: tunc autem facie ad faciem.
Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum.
Torres Amat miserablemente traduce: “Al presente no vemos a Dios
sino como en un espejo, y bajo imágenes oscuras: pero entonces le
veremos cara a cara. Yo no le conozco ahora sino imperfectamente: mas
entonces le conoceré con una visión clara, a la manera que soy yo
conocido.” 44 voces hacen el oficio de 22; imposible ser más palabrero
y más lánguido. Cipriano de Valera es más fiel: “Ahora vemos por

139
“O primeiro monumento das literaturas ocidentais, a Ilíada, foi composto há cerca de três mil anos; é
plausível supor que nesse enorme transcurso de tempo todas as afinidades íntimas, necessárias (sonho-vida,
sono-morte, rios e vidas que transcorrem, etc.), foram alguma vez percebidas e escritas. Isso não significa,
naturalmente, que se tenha esgotado o número de metáforas; as maneiras de indicar ou insinuar essas
secretas simpatias dos conceitos resultam, de fato, ilimitadas.” (BORGES, 1998, p. 423)

188
espejo, en oscuridad; mas entonces veremos cara a cara. Ahora conozco
en parte, conoceré como soy conocido.” Torres Amat opina que el
versículo se refiere a nuestra visión de la divinidad; Cipriano de Valera
(y León Bloy) a nuestra visión general. (BORGES, 1984, p. 720)140

O recurso ao texto bíblico parece-me, de modo geral, claramente literário. A ideia


de uma ontologia especular do humano que o impede de ver as coisas se aproxima dos
próprios interesses literários de Borges, que procura encontrar na cegueira algo além da
simples limitação física. Além disso, já que nos constituímos como espelhos e não
podemos ver diretamente as coisas, ficamos na escuridão. A escuridão, nesse sentido, é
um termo epistemológico que define o nosso acesso ao conhecimento verdadeiro.

Em “La escritura del Dios”, de El Aleph (1949), o narrador é um sacerdote de um


deus antigo cativo em uma prisão circular em que em um dos lados está o seu carrasco e
do outro um jaguar. Com o incêndio da pirâmide que protegia, promovido por Pedro de
Alvarado, o narrador-personagem foi condenado a ficar para sempre nessa prisão, que,
em apenas alguns e raros momentos, recebe a visita da luz. O cativeiro do narrador-
personagem situa-se, assim, num nível de cegueira que o faz perder o contato com o
mundo.

Com isso, na ociosidade eterna que vivia, o narrador procura recordar. A imagem
da memória como recurso para a escuridão/cegueira, que é engajada no período de
cegueira de Borges, é também mobilizada aqui. Nesse processo rememorativo, lembra-se
de uma antiga tradição do deus e que faz conjurar os males: a existência de uma sentença
mágica, única no mundo e que foi criada no tempo em que todas as coisas foram feitas.
Desse modo, percebendo-se no fim dos dias, o narrador começa a interrogar a si mesmo,
num primeiro momento, sobre onde apareceria esse símbolo – o que o fez chegar na
constatação de que estaria na pelagem do jaguar – e, num segundo momento, sobre o que
pode ser essa palavra divina.

140
“Um versículo de são Paulo (I Coríntios 13, 12) inspirou Léon Bloy: “Videmus nunc per speculum in
aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus
sum”. Torres Amat miseravelmente traduz: “No presente não vemos Deus senão como em um espelho e
sob imagens obscuras: mas então o veremos face a face. Agora eu não o conheço senão imperfeitamente:
mas então o conhecerei com uma visão clara, da maneira que eu sou conhecido”. Quarenta e duas palavras
fazendo o trabalho de vinte e duas; impossível ser mais palavroso e mais frouxo. Cipriano de Valera é mais
fiel: “Agora vemos por espelho, na escuridão; mas então veremos face a face. Agora conheço em parte;
mas então conhecerei como sou conhecido”. Torres Amat entende que o versículo se refere a nossa visão
da divindade; Cipriano de Valera (e Léon Bloy), a nossa visão geral. (BORGES, 2000a, p. 108-19)

189
Nesse momento de profundo questionamento, o narrador questiona a relação entre
linguagem e tempo e como essa relação resultaria não em uma sentença, mas na
condensação do símbolo em uma única palavra:

¿Qué tipo de sentencia (me pregunté) construirá una mente


absoluta? Consideré que aun en los lenguajes humanos no hay
proposición que no implique el universo entero; decir el tigre es
decir los tigres que lo engendraron, los ciervos y tortugas que
devoró, el pasto de que se alimentaron los ciervos, la tierra que
fue madre del pasto, el cielo que dio luz a la tierra. Consideré que
en el lenguaje de un dios toda palabra enunciaría esa infinita
concatenación de los hechos, y no de un modo implícito, sino
explícito, y no de un modo progresivo, sino inmediato. Con el
tiempo, la noción de una sentencia divina parecióme pueril o
blasfematoria. Un dios, reflexioné, sólo debe decir una palabra y
en esa palabra la plenitud. Ninguna voz articulada por él puede
ser inferior al universo o menos que la suma del tiempo. Sombras
o simulacros de esa voz que equivale a un lenguaje y a cuanto
puede comprender un lenguaje son las ambiciosas y pobres voces
humanas, todo, mundo, universo. (BORGES, 1984, 597-598)141

O narrador constata que as propriedades presentes nessa palavra estão mais


próximas da imagem – que é mostração, instantaneidade e simultaneidade – do que da
própria palavra em si. Borges, com isso, retoma o Mito da Caverna de Platão, que
descreve o processo verdadeiro para a iluminação do pensamento, para procurar o avesso
da palavra na linguagem. No fim do conto, o narrador recebe a revelação: um conjunto
de fórmulas casuais que, caso sejam ditas em voz alta, poderiam torná-lo todo-poderoso.
Com a revelação, o narrador-personagem passa a entender tudo, mas, em contrapartida,
esqueceu quem era:

141
“Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas
linguagens humanas não existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os
tigres que o geraram, os cervos e as tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a
terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra
enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um
modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou
blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma palavra
articulada por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros
dessa palavra, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as
ambiciosas e pobres palavras humanas, tudo, mundo, universo.” (BORGES, 1998, p. 665)

190
Que muera conmigo el misterio que está escrito en los tigres. Quien ha
entrevisto el universo, quien ha entrevisto los ardientes designios del
universo, no puede pensar en un hombre, en sus triviales dichas o
desventuras, aunque ese hombre sea él. Ese hombre ha sido él y ahora
no le importa. Qué le importa la suerte de aquel otro, qué le importa la
nación de aquel otro, si él, ahora es nadie. Por eso no pronuncio la
fórmula, por eso dejo que me olviden los días, acostado en la oscuridad.
(BORGES, 1984, p. 599)142

Importante notar que, depois de compreender tudo, depois de ter acesso ao divino,
o narrador permanece na escuridão. A escuridão de onde vê o mundo, mas também a
escuridão que o impede de conquistar o conhecimento de tudo – haja vista que, como foi
informado pelo narrador, caso proferisse as fórmulas em voz alta tudo se resolveria e
voltaria para luz. Além disso, a importância da fala para a realização do feitiço, marca o
contraste entre a tentativa de presentificar o que é dito ao mesmo tempo em que deixa na
invisibilidade o objeto verbal proclamado143.

Conforme Erick Felinto (2008), antes de ser um objeto temático, a cegueira é vista
de modo mais essencial em Borges. Segundo Felinto, Borges defende a impossibilidade
de uma compreensão racional da existência, de modo que nunca apreendemos
completamente o que se passa conosco porque a nossa percepção é, antes de tudo,
subjetiva – o que seria, para todos os efeitos, um eco de Kant em Borges:

Os heróis borgianos são sempre traídos por sua engenhosidade e


habilidades intelectuais. Segundo Quilliot, tal derrota se origina da
ilusão que o pensamento elabora de ser exterior àquilo mesmo que ele
pensa. Quando o sujeito pensa perceber uma realidade exterior, na
verdade o que ele produz é uma representação de si mesmo e de suas
próprias estruturas de percepção, fenômeno que Quilliot chama de
autorépresentation involontaire. Assim, o trágico dessa situação não é
tanto o fato de sermos enganados por nossos sentidos, como o fato de
que a verdade está sempre diante de nossos olhos, sem que nunca a
possamos perceber. (FELINTO, 2008, p. 151)

142
“Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os
ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras,
mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte
daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não pronuncio a
fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão. (BORGES, 1998, P. 667)
143
Esse contraste foi observado por Derrida (1973) e retornarei a ele para desenvolver algumas questões
logo mais adiante.

191
Além disso, ainda consoante Felinto (2008, p.150), a referência à filosofia em
Borges se dá seguindo uma tradição mística mais do que pela filosofia tradicional. Com
isso, a trajetória literária de Borges se integra em uma tradição gnóstica – ou seja, uma
tradição que vê na individualidade/subjetividade a conquista do verdadeiro conhecimento
(op. cit., p. 27-29) – e promove um ponto de vista sobre o mito de Babel, que é um dos
temas mais recorrentes da história da linguagem e que suscita debates em diferentes áreas
por articular as três mortes essenciais apresentadas pela modernidade: a morte do sujeito,
a morte da linguagem e a morte de Deus (op. cit., p. 15). Para cada uma dessas mortes,
porém, a literatura moderna, além de decretá-las, também se insurge contra elas:

Se, por um lado, a literatura moderna decreta a fragmentação de Deus,


do sujeito e da linguagem, por outro lado manifesta uma tríade
compensatória na afirmação de um modelo gnóstico de teologia, do
poder demiúrgico do autor, e da possibilidade de uma “magia da
linguagem”, baseada numa pureza original do verbo poético. É isso que
chamo de magia da linguagem (termo do qual Borges e Benjamin, por
exemplo, lançam mão), que constitui um elemento importante para
compreender o processo de dessacralização da modernidade. O mito de
Babel excita o imaginário ocidental com a obsessão de recuperar a
magia primitiva do verbo, de retornar a um estado paradisíaco em que
a comunicação absoluta e transparente ainda era possível. Tal obsessão
logo atinge o campo literário, dando lugar a diferentes idéias sobre a
magia da linguagem e manifestando-se nos modernos através de
sentimentos e anseios contraditórios. (op. cit., p. 15-16)

Essa magia da linguagem encerra, portanto, uma procura e uma realidade. A


procura é o movimento que o autor faz para atingir esse delírio da linguagem no lugar
mesmo em que toda a lógica se desfaz; já a realidade é a realidade da linguagem ao revelar
a sua natureza mais íntima. Com isso, o mito de Babel, por colocar o problema da unidade
e diversidade das línguas, guarda esse enigma de como a linguagem verdadeiramente é.
Assim, é como se, para Borges, ao procurarmos investigar esse mito encontramos um
paradoxo, que é o paradoxo constitutivo da própria linguagem.

Conforme Felinto (2008), as obras de Borges são atravessadas por uma reflexão
sobre Babel que tem um eixo teórico orientado por dois movimentos conflitivos e
complementares sobre a natureza da linguagem. De um lado, acompanhamos um
movimento de expansão babélica da linguagem – que diz respeito tanto à multiplicação
das línguas quanto à reelaboração, por meio da produtividade linguística, de uma mesma

192
língua, como é o caso, por exemplo, de “Tlön” (op. cit., 161) –; de outro, acompanhamos
um movimento de condensação antibabélica da linguagem – nesse caso, a criação de
novos signos por meio de novas palavras não é mais central, mas sim os modos de arranjá-
los; com isso, “o problema da criatividade literária deixa de se mover em torno do
conceito de originalidade para converter-se no da entonação diferenciada de certas
metáforas” (op. cit., p. 156), como aparece de maneira expressa no texto “La metáfora”
e em “La escritura del Dios”.

A cegueira se coloca, então, como um problema para esses dois movimentos, pois
tanto a expansão quanto a condensação da linguagem dependem de um terreno a priori
instável, mutável e irrepresentável da linguagem e isso não é possível se considerarmos a
linguagem como algo preenchido apenas por uma luz transparente que enlaça o senciente
ao sentido. Essa instabilidade, para existir, deve ser a marca de um vacilo do sentido, que
seria como o elemento constitutivo da linguagem. E esse elemento, para Borges, estaria
justamente na ideia de cegueira.

Algo metaforicamente próximo, por isso, ao que a física contemporânea opera ao


agregar a ideia de uma matéria escura, para aquilo que não emite luz e foge aos cálculos
referentes à massa dos corpos, e de energia escura, para aquilo que foge ao
comportamento matematicamente previsto da velocidade dos corpos e que promove o
processo de expansão do universo. Porém, de que maneira essa cegueira estaria presente
na própria materialidade do texto literário?

6.2 A cegueira no texto

Segundo Jacques Derrida (2012b), uma tendência se erigiu com a tradição greco-
romana ao ressaltar o papel da visão como elemento estruturante da organização do
pensamento. Em paralelo, assistiu-se, contrariamente ao senso comum, a assunção da
escrita fonética, devido ao papel da fala, como correlato desse processo. A um só tempo,
assim, os pensadores do Ocidente elegeram os olhos como metáforas privilegiadas do
saber e a fala como objeto central de interesse para o pensamento. É, assim, por exemplo,
que o projeto da metafísica – que é, segundo Derrida, o da determinação do ser pela

193
presença (DERRIDA, 1973, p. 122) –, pode ser representado como a tentativa de
aproximar e apresentar de maneira imediata o referente.

Para Derrida (2012b), esse movimento que elege a fala como elemento mais
autêntico para o saber é o mesmo que define o logos como o objeto do pensamento a ser
buscado. Com isso, o fonocentrismo da tradição do pensamento ocidental pode ser
descrito como uma especificação do logocentrismo, na medida em que o logos representa
a proporção do discurso e o conceito define a hegemonia desse modo de discurso frente
a outros (DERRIDA, 2012b, p. 77). Há, por isso, na tradição do Ocidente um paradoxo
aparente entre a valorização da fala, de um lado, que é cega, e da visão, de outro. Esse
paradoxo, contudo, não representa um quadro completo da situação.

Consoante Derrida (2012b), a fala procura presentificar o dito. Porém, à medida


em que formamos frases e enunciados, a estrutura do que é falado assume, por sua
característica sintática, uma forma espacializada. Nesse momento, vemos a escrita
imiscuir-se onde a fala reinava absoluta, assumindo, em relação à fala, a função de um
complemento. Com isso, a escrita deixa um rastro de textualização que impede o
encerramento da fala como pura presença e revela a farsa montada pela metafísica, pois
tudo é rastro (op. cit. p. 78- 79).

Nesse contexto, ainda seguindo Derrida (2012b), conforme a tradição do


pensamento apresenta a relação entre fala – com atributos como “cega” e “viva” e estando
do lado da natureza – e a escrita – com propriedades como “visível” e “morta” e estando
do lado da cultura – como pares opositivos e elege a centralidade de uma em detrimento
da outra, o que se está fazendo, na verdade, é defender valores como se fossem uma
descrição objetiva da realidade linguística.

Em seus últimos escritos, Derrida (2012b) passou a considerar o haptocentrismo


– a figuralidade que privilegia o tocar – como elemento mais central na história do
pensamento do que o ocularcentrismo (op. cit., p. 84). O risco do tocar é maior do que o
do olhar, pois, para Derrida, ao olhar conservamos a coisa como ela é ao passo que ao
tocar nós modificamos a coisa pela impossibilidade de haver distância (idem).

Em todo caso, todos esses elementos hegemônicos que organizam o pensamento


– fonocentrismo, logocentrismo, ocularcentrismo e mesmo o haptocentrismo – possuem
especial relação com a cegueira, pois, para Derrida (2012b), as artes ditas visuais são, na
verdade, artes do visível – já que instauram uma tensão entre visibilidade e invisibilidade.

194
O desenho, por exemplo, procura tornar visível o invisível e o que ele dá a ver é a própria
invisibilidade. Com isso, no movimento em que o desenhista inventa o desenho, ele não
antecipa nada e, devido a isso, cria um acontecimento – que é aquilo que vem sem
possibilidade de antecipação. Por não saber previamente, por não pré-ver, o que vem, o
desenhista cria a sua obra como se fosse um cego e, à medida em que ele traça o traço,
ele vê com o objetivo de perseguir o que vai ser gerado, mas que ele próprio ainda não
sabe exatamente. Desse modo, a experiência estruturalmente cega do desenho comporta,
paradoxalmente, uma vidência em meio à cegueira:

A operação de desenho não lida nem com o inteligível nem com o


sensível, e é por isso que ela é, de certa maneira, cega. Esse
enceguecimento não é uma enfermidade. É preciso ver no sentido
corrente do termo para desdobrar essas potências de cegueira. Mas a
experiência do traço em si mesma é uma experiência de cego: ab-ocular
(etimologia de aveugle, [cego em francês]), sem olhos. (DERRIDA,
2012b, p. 87)

Em Memórias de Cego, texto que serviu ao catálogo da exposição Partis Pris, a


qual foi exibida no museu do Louvre, em Paris, entre outubro de 1990 e janeiro de 1991,
Derrida (2010) relaciona o ato de desenhar com o de escrever por meio da ideia de traço
e o traço é, para ele, algo que escapa à visão:

Improvisada ou não, a invenção do traço [trait] não segue, não se regula


pelo que é presentemente visível, e estaria ali pousando, diante de mim,
como um tema. Mesmo se o desenho é mimético, como se diz,
reprodutivo, figurativo, representativo, mesmo se o modelo está
presentemente diante do artista, é preciso que o traço [trait] proceda
na noite. Ele escapa ao campo da visão. Não somente porque não é
ainda visível, mas porque não pertence à ordem do espetáculo, da
objectividade especular – e aquilo que ele então faz advir não para de
ser mimético em si. A heterogeneidade permanece abissal entre a coisa
desenhada e o traço [trait] desenhando, seja ele entre uma coisa
representada e a sua representação, o modelo e a imagem. (DERRIDA,
2010, p. 51-52, grifo meu)

Em outro texto, “Pensar em não ver”, texto de uma conferência que proferiu na
Itália em 2002, Derrida (2012b) avança nessa discussão e defende que o próprio ver da
vista envolve um enceguecimento que é dado pelo ponto cego (blind spot), elemento
constitutivo da visão (DERRIDA, 2012b, p. 73-74). Com isso, a atitude de análise, que

195
demanda observação e um olhar dirigido, implica também uma aproximação radical entre
o pensar e a cegueira, haja vista que o pensar representa um ponto cego do próprio
pensamento, já que foge às conceituações que visam determiná-lo (p. 74).

Nesse sentido, para Maria Continentino Freire (2012), ao revelar a fragilidade do


olhar, Derrida procura defender a necessidade de suplementaridade dos sentidos:

A desconstrução da plenitude do olhar não pretende eleger um outro


sentido mais adequado para substituir os olhos na aventura do
pensamento, mas sim, mostrar a necessidade de suplementariedade dos
sentidos e a falta de uma orientação precisa, segura, neste percurso.
Assumindo o risco da queda, as mãos adiantadas ao corpo no gesto da
inscrição é o próprio retrato da invenção do pensamento. (FREIRE,
2012, p. 189)

A ideia de suplemento é desenvolvida em Derrida (1973) por meio de duas


características: 1) a de acumulação e cumulação da presença e 2) a substituição. Com isso,
o suplemento, para Derrida, é aquilo que serve para representar alguma outra coisa e,
nesse movimento, acumula e tenta revelar a plenitude daquilo que serve de referente, mas
em outro sentido o suplemento substitui o que visa representar e só o substitui porque é
diferente dele (DERRIDA, 1973, 177-178). Além disso, o suplemento é o que vem de
fora (idem).

Dentro desse ponto de vista, a suplementariedade dos sentidos esboça uma intensa
vicariedade entre as posições que os sentidos ocupam no processo de experimentação do
mundo e de análise/observação da realidade e as funções que, correspondentemente,
desempenham, pois o suplemento manifesta a perda da centralidade de um sentido sobre
o outro ao mesmo tempo em que produz um excesso de significação pela própria interação
que eles, necessariamente, estabelecem entre si.

O conceito de suplemento em Derrida apresenta também uma íntima relação com


a cegueira. Essa relação aparece esboçada de maneira mais consistente em Gramatologia.
Nesse livro, Derrida (1973) parte da obra de Jean-Jacques Rousseau para questionar o
fonocentrismo que se tornou hegemônico na história da filosofia e, de maneira mais
recente, na ciência. O fonocentrismo demanda, assim, a existência do fonologismo como
ciência que serve de base para outras ciências, como é o caso da linguística e da

196
antropologia, e que tem como elemento estruturante a centralidade da fala em detrimento
da escrita (DERRIDA, 1973, p. 127).

6.3 A cegueira na crítica literária

Entretanto, em Blindness and Insight, uma coletânea de ensaios que foram


publicados ao longo dos anos, Paul De Man (1983) traz uma crítica à leitura de Derrida
por meio do jogo entre uma percepção não antecipadora (insight) e uma cegueira
(blindness) constitutiva da linguagem (literária) que extravasa também na leitura crítica.
Com isso, ao analisar Gramatologia, De Man percebe um problema central na
interpretação feita de Rousseau: Derrida procurou desconstruir o próprio Rousseau
quando, na verdade, deveria desconstruir a crítica rousseauniana (DE MAN, 1983, p. 139-
140).

Para De Man (1983), Derrida esteve cego ao que o próprio texto de Rousseau
apresentou. O texto rousseauniano tomado para análise de Derrida é essencialmente
híbrido por trazer tanto uma reflexão filosófica quanto um modo retórico ficcional – como
é o caso de Essai sur l’origine des langues (op. cit., p. 110-111). Desse modo, ao analisar
as duas figuras retóricas, mimesis e metáfora, Derrida comete um equívoco. Para Derrida,
ainda consoante De Man (1983), o fato de Rousseau optar pela figura da mimesis no Essai
faz com que ele seja logocêntrico. Porém, o modelo de mimesis empregado por Derrida
é o do século XVIII, que não põe o estatuto ontológico da entidade imitada em questão
ao mesmo tempo em que procura presentificá-la (op. cit., p. 123-125). E presentificar,
nestes termos, significa seguir a metafísica da presença (op. cit., p. 125).

Contudo, segundo De Man (1983), Rousseau, em sua análise sobre a arte, revela
compreender o sentido não como plenitude e presença, como vê Derrida, mas sim como
vazio – pois, quando no Essai Rousseau afirma a prioridade da música sobre a pintura,
ele não o faz em termos substanciais, mas estruturais, haja vista que a música é
apresentada como vazia de substância, puro jogo de relações (op. cit., p. 127-128). Com
isso, ao invés de defender uma estrutura mimética para a música, o que Rousseau defende
é uma estrutura não mimética:

197
The successive structure of music is therefore the direct consequence of
its non-mimetic character. Music does not imitate, for its referent is the
negation of its very substance, the sound. Rousseau states this in a
remarkable sentence that Derrida does not quote: “It is one of the main
privileges of the musician to be able to paint things that are invisible.
An art that operates entirely by means of motion can accomplish the
amazing feat of conveying the very image of repose. Sleep, the quiet of
night, solitude and even silence can enter into the picture that music
paints…” The sentence starts off by reaffirming that music is capable
of imitating the most inward, invisible and inaudible of feelings; the use
of the pictorial vocabulary suggests that we have re-entered the
orthodoxy of eighteenth-century representational theory. But as the
enumeration proceeds, the content of the sentiment which, in Du Bos,
was rich in all the plenitude and interest of experience, is increasingly
hollowed out, emptied of all trace of substance. (op. cit., p. 130)144

A leitura de De Man (1983), com isso, “desconstrói”, em seus próprios termos, a


leitura de Derrida ao inverter a direção de investigação, colocando Rousseau para ler
Derrida (op. cit., p. 123). Nesse movimento, De Man (1983) encontra um padrão de
cegueira na interpretação de Derrida, que está presente, mas de maneiras distintas, em
outros autores analisados por ele em capítulos anteriores, como Lukács, Blanchot e
Poulet:

The critical reading of Derrida's critical reading of Rousseau shows


blindness to be the necessary correlative of the rhetorical nature of
literary language. Within the structure of the system: text-reader-critic
(in which the critic can be defined as the “second” reader or reading)
the moment of blindness can be located differently. If the literary text
itself has areas of blindness, the system can be binary; reader and critic
coincide in their attempt to make the unseen visible. Our reading of
some literary critics, in this volume, is a special, somewhat more
complex case of this structure: the literary texts are themselves critical
but blinded, and the critical reading of the critics tries to deconstruct the
blindness. It should be clear by now that “blindness” implies no literary
value-judgment: Lukács, Blanchot, Poulet, and Derrida can be called

144
“A estrutura sucessiva da música é, portanto, a consequência direta de seu caráter não mimético. A
música não imita, pois sua referência é a negação de sua própria substância: o som. Rousseau afirma isso
em uma frase notável que Derrida não cita: ‘É um dos principais privilégios do músico ser capaz de pintar
coisas que são invisíveis. Uma arte que opera inteiramente por meio do movimento pode realizar a incrível
façanha de transmitir a própria imagem de repouso. O sono, o silêncio da noite, a solidão e até o silêncio
podem entrar no quadro que a música pinta...’ A frase começa reafirmando que a música é capaz de imitar
o mais interior, invisível e inaudível dos sentimentos. O uso do vocabulário pictórico sugere que reentramos
na ortodoxia da teoria representacional do século XVIII. Porém, à medida que a enumeração prossegue, o
conteúdo do sentimento que, em Du Bos, era rico em toda sua plenitude e interesse da experiência, é cada
vez mais esvaziado, esvaziado de todos os traços de substância.” (op. cit., p. 130, tradução minha)

198
“literary,” in the full sense of the term, because of their blindness, not
in spite of it. In the more complicated case of the non-blinded author –
as we have claimed Rousseau to be – the system has to be triadic: the
blindness is transferred from the writer to his first readers, the
“traditional” disciples or commentators. These blinded first readers 145–
they could be replaced for the sake of exposition, by the fiction of a
naïve reader, though the tradition is likely to provide ample material –
then need, in turn, a critical reader who reverses the tradition and
momentarily takes us closer to the original insight. The existence of a
particularly rich aberrant tradition in the case of the writers who can
legitimately be called the most enlightened, is therefore no accident, but
a constitutive part of all literature, the basis, in fact, of literary history.
And since interpretation is nothing but the possibility of error, by
claiming that a certain degree of blindness is part of the specificity of
all literature we also reaffirm the absolute dependence of the
interpretation on the text and of the text on the interpretation. (DE
MAN, 1983 p. 141)146

Importa destacar nessa passagem que a cegueira identificada por De Man passa
da obra para a crítica porque as duas se constituem dentro do âmbito da linguagem
literária, pois, tanto para De Man (1983) quanto para Rousseau, não há diferenciação entre
a linguagem em geral e a linguagem literária, pois ambas, devido ao seu caráter sucessivo,
diacrônico, se apresentam como uma narrativa (op. cit., p. 131). Além disso, a cegueira
se apresenta como estrutural para a crítica, pois o discurso crítico possui uma discrepância
constitutiva entre os insights descobertos pela investigação e os métodos e conclusões
proferidos. Essa discrepância faz do crítico um vidente cego sobre o seu próprio texto,

145
Chama-se de blind Reading ou peer blind o leitor que não conhece a identidade do autor.
146
“A leitura crítica de Derrida da leitura crítica realizada por Rousseau mostra a cegueira como sendo a
correspondente necessária da natureza retórica da linguagem literária. Dentro da estrutura do sistema: texto-
leitor-crítico (no qual o crítico pode ser definido como o ‘segundo’ leitor ou ‘segunda’ leitura), o momento
da cegueira pode ser localizado de formas distintas. Se o próprio texto literário tem áreas de cegueira, o
sistema pode ser binário; leitor e crítico coincidem em sua tentativa de tornar visível o invisível. Nossa
leitura de alguns críticos literários, neste volume, é um caso especial, um pouco mais complexo desta
estrutura: os próprios textos literários são críticos, mas cegos, e a leitura crítica dos críticos tenta
desconstruir a cegueira. Já deveria estar claro que a ‘cegueira’ não implica nenhum juízo de valor literário:
Lukács, Blanchot, Poulet e Derrida podem ser chamados de ‘literários’, no sentido pleno da palavra, por
causa de sua cegueira, não apesar dela. No caso mais complicado do autor não ser cego – como afirmamos
ser o caso de Rousseau – o sistema tem que ser triádico: a cegueira é transferida do escritor para seus
primeiros leitores, os discípulos ou comentaristas ‘tradicionais’. Estes primeiros leitores cegos – eles
poderiam ser substituídos, para fins de exposição, pela ficção de um leitor ingênuo, embora a tradição
provavelmente forneça amplo material – então precisam, por sua vez, de um leitor crítico que reverta a
tradição e nos leve momentaneamente mais perto da percepção original. A existência de uma tradição
aberrante particularmente rica no caso dos escritores que podem legitimamente ser chamados de mais
esclarecidos, não é, portanto, um acidente, mas uma parte constitutiva de toda a literatura, a base, de fato,
da história literária. E como a interpretação nada mais é do que a possibilidade de erro, ao afirmar que um
certo grau de cegueira faz parte da especificidade de toda literatura, reafirmamos também a dependência
absoluta da interpretação do texto e do texto da interpretação.” (DE MAN, 1983 p. 141, tradução minha)

199
necessitando sempre de uma segunda, terceira, quarta leitura, por exemplo, sobre o seu
texto para iluminar esses pontos (op. cit., p. 110).

Com efeito, para além dessas questões apresentadas por De Man (1983), que são
questões, sobretudo, retóricas, Derrida (1973) constrói a sua argumentação por meio de
relações analógicas sem apresentar uma justificação interna bem desenvolvida – pois ele
passa do desenho para a escrita por meio da analogia com o traço e defende que o traço é
uma exterioridade. Porém, essa exterioridade para ele só pode ser pensada por meio da
linguagem – o que cria uma circularidade na sua argumentação, haja vista que o que usa
para argumentar é o mesmo que ele encontra em sua investigação: uma relação
metafórica. É claro, porém, que dado o objeto de estudo, não seria possível “sair” da
linguagem. Ainda assim, a indicação sobre o Fora da linguagem poderia – e acredito que
até deveria – ser indicada de outra forma.

Além disso, a cegueira é vista sempre por Derrida como um elemento retórico que
extravasa o padrão hegemônico do pensamento da modernidade – nisso, Derrida
repercute Borges – e trabalha como um visível do invisível que desorganiza as dicotomias
e a lógica binária. O que deixa sem sentido a pergunta, que para esta investigação é
decisiva, sobre qual a especificidade do escritor cego – já que todos seríamos, em algum
grau, cegos.

Com isso, em ambos os casos – circularidade por meio da metáfora e cegueira


restrita ao ponto de vista retórico – o cerne do problema parece-me estar na epistemologia
– e, de certo modo, na própria ontologia também, haja vista que o acesso à realidade pode
determinar também a natureza de determinada realidade – do extralinguístico: se ele só é
acessível por meio da linguagem ou não. Caso a resposta para essa pergunta seja sim,
estamos como Derrida, defendendo a possibilidade de uma cegueira restrita aos limites
da linguagem, mesmo, e sobretudo, nos casos em que ela a extravase. Já se a resposta for
não, estamos como Gilles Deleuze e pensadores mais próximos ao pragmatismo, que
veem a irredutibilidade do extralinguístico à linguagem147.

147
Estou seguindo a crítica que Lazzarato faz com relação ao pós-estruturalismo, sobre o modo como
autores pós-estruturais assumiram a linguagem em um lugar de transcendência. Cf. LAZZARATO,
Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades / Signs, machines, subjectivities. Edição bilíngue Português /
Inglês. São Paulo: Sesc São Paulo / n-1 edições, 2014.

200
6.4 A incomunidade dos escritores cegos

Nesse último caso, a cegueira do escritor cego apresentaria uma singularidade


irredutível à obra. Com isso, a obra de um escritor cego não guardaria nada comum com
a de um escritor vidente, a não ser sua relação de incomunidade. A ideia de uma
incomunidade foi proposta por Hernán Ulm (2014) para pensar a relação entre imagem e
palavra e define o modo de relação das diferenças sem que, para isso, elas sejam
integradas em uma unidade:

In-comum indica a negação do comum tanto como in-comunidade


indica a afirmação do movimento da dispersão que define nosso modo
de estar no presente (“in” como prefixo de interioridade): estamos no
interior de um movimento que nos afasta, tanto como literatura e
cinema abrem o movimento de nossa não reconciliação. As imagens
disputam a língua e as palavras disputam o olho: as certezas de uma
viram dúvidas na outra. A disputa in-comum se refere, por isso, tanto
ao que não pode se reunir nelas, como ao fato de que a disparidade sem
unidade é nossa condição. Disputar in-comum tem o sentido de mostrar
as divergências e fazer da divergência o elemento da dispersão. Desse
modo, o espaço aberto da incomunidade se apresenta também como
uma incomodidade. A incomodidade é aquilo que, nos arrancando de
nosso cômodo, não admite nos hospedar nem nos sentir hóspedes, nos
deixando por fora de toda hospitalidade: signo que diagnostica a fratura
que tem cindido nossa experiência. A escrita já não nos recebe entre
suas páginas e as imagens audiovisuais não cessam de nos recusar (ou
de nos apanhar) nas telas (nunca estamos tão afastados de nós mesmos
como no interior dos escritos e das telas). O ser tem fugido das palavras
e já não nos acolhe nas imagens. Não há “casa do ser” e, desse modo,
nada se “co-responde” com ele. (ULM, 2014, pp. 27-8)

Nesse contexto, deslocando o problema da relação entre materialidades das mídias


para materialidades dos corpos, o cego se volta contra os olhos no mesmo movimento em
que o escritor vidente se volta contra a cegueira. A escrita do cego se faz com o ouvido
ao traçar os grafemas no espaço-tempo do campo perceptivo e da memória ao passo que
o ouvido do vidente se faz com a mão ao traçar os fonemas no papel. É por isso também
que o cego pode ver, que há uma vidência do cego. Como está sem olhos, ele tem o poder
da imagem que o atormenta e o move na escuridão – Mattoso disse ter ficado mais visual
(MATTOSO, 2004a, p. 196) e Borges ter perdido a possibilidade de ficar completamente
na escuridão com a privação da cor preto e a insistência de uma neblina luminosa e

201
informe presente no seu dia a dia (BORGES, 1989, p. 276-277). Já ao escritor vidente,
por ter olhos, lhe é privada a escrita da imagem-palavra (a palavra-visão que se exprime
imediatamente para o cego) e só lhe resta a imagem mental, que lhe surge mediatamente
por meio da palavra148.

Em uma postagem realizada em maio de 2017 no blog “Corrector Orthographico”,


Mattoso ilustra em parte essa discussão ao ressaltar a importância da grafia para um
escritor cego por meio da utilização da imagem de um monumento – que tanto aponta
para o fato de que a grafia é uma forma de imagem quanto para a autonomização dela em
relação ao discurso estritamente linguístico, fazendo-a figurar como uma instituição
cultural:

Nunca me canso de dizer que a orthographia é o patrimonio ambiental


da falla. Por isso, a exemplo dos ecologistas que tanto battalham pelos
biomas e topomas do systema terraqueo, eu battalho pelo graphoma dos
graphemas e acho cada “PH”, cada “Y”, cada lettra dupla um
monumento ou especimen a ser preservado, tal como uma egreja
barroca em Minas, um sobrado em Salvador ou uma arara na matta
tropical, equivalendo a uma cathedral gothica ou uma arena romana na
Europa. (MATTOSO, 2017)

Nesse sentido, a cegueira não revela uma experiência que é comum entre todos os
escritores cegos, mas uma experiência diferente e diferencial entre eles. A singularidade
do escritor cego diz respeito ao aspecto que é próprio a cada escritor cego, mas, ao mesmo
tempo, é impróprio a ele, na medida em que ela não é uma característica comum a todos
os escritores cegos e, por não ser comum, não pode comparecer também como um
elemento presente em sua individualidade. Dessa forma, a cegueira do escritor cego opera
em um nível além do individual e aquém do coletivo.

148
Em ambos os casos, a criação artística se dá por meio das – ou entre as – imagens. Segundo Müller
(2022, p. 24-29), o artista/o escritor cria sempre a partir de uma imagem prévia, que surge na confluência
entre matéria e memória. E a obra, para além da imagem de superfície (seja ela visual ou metafórica) cria
uma “rede” de imagens que o receptor amplifica no ato da leitura (mas isso ocorre com mais intensidade
na imagem poética).

202
6.4.1 Problema metodológico: cegueira como singularidade

Essa singularidade é o que extravasa na literatura. No caso de Borges, essa


singularidade é a ficção e a necessidade de um enredamento cada vez mais intenso com
a linguagem. No caso de Mattoso, é o desejo e um enredamento cada vez mais intenso
com aquilo que excede a linguagem. Se a imagem de um Fora da linguagem é possível,
o movimento da literatura de Mattoso é centrífugo porque procura sair da linguagem pela
linguagem ao passo que o movimento de Borges é centrípeto porque procura sempre ir
mais para dentro dos labirintos criados pela linguagem para, nesse movimento, também
encontrar o seu fora. Essa distinção entre dois movimentos, no entanto, é meramente
ilustrativa, pois, seja em Borges com a tensão entre o ficcional e o não ficcional, seja em
Mattoso com o trabalho linguístico das combinações formais dos poemas, nunca há a
exclusão de um elemento contrário na direção que adotam em suas trajetórias literárias.

Com efeito, identificar essas singularidades cria outro problema. O primeiro é o


de identificação, pois a singularidade é, seguindo essa conceituação, algo que não se deixa
definir. O segundo é o problema da especificidade e escopo, se a noção de uma
singularidade desse tipo justifica o qualificativo de cegueira e, se significar, qual o escopo
de aplicação – se antes ou depois da fase cega, por exemplo. Para a primeira questão, a
resposta é mais simples e não demanda tanta justificação: trata-se de uma identificação
provisória, ou seja, um recurso instrumental que se apresenta no curso de uma
investigação.

Quanto à segunda questão, ela é um problema metodológico, no sentido de que


não pode ser respondida de um ponto de vista científico, estritamente. Como o objeto que
me debruço é um objeto linguístico e uso a linguagem para pensá-lo criticamente,
encontro-me, mesmo nos casos em que procuro estabelecer uma descrição mais objetiva
– e uma descrição, nesses casos, já é uma interpretação, como mostra De Man (1983, p.
108 –, criando mais uma narrativa, no mesmo sentido em que a história do pensamento
realizada por Derrida na Gramatologia é uma história em sentido ficcional, narrativo, e
não literal (DE MAN, 1983, p.138).

Assim, ao indicar a existência de uma singularidade da cegueira em Borges e


Mattoso estou também propondo uma leitura que retrocede ao período vidente de Mattoso

203
e Borges e reorganiza os elementos de suas obras não só entre as fases – visual e cega –,
mas intra – tomando a fase visual ou cega, isoladamente – e infra – fundo imanente a
cada fase – também.

6.5 O kaleidoscópio da cegueira: saindo do texto com Mattoso

Em Tractado de metagrammatica, antologia de 2021, mas ainda no prelo, Glauco


Mattoso expressa o problema literário da cegueira e da crítica ao jogar com os lugares de
leitor e autor e refletir sobre a sua trajetória literária:

METAGRAMMATICA [7216]

A lingua, que se mette entre dois dentes


e pode ser mordida, pronuncia,
sem pappas, palavrões, orthographia
corrige e, em verso, offende presidentes.

Sim, lambe sujas botas, mas silentes


jamais seus ais serão na poesia
dum cego menestrel que desaffia
padrões bem comportados e decentes.

Um critico que estude este poeta


na certa achará, sim, contradicção
possivel entre verve e erudição,
calão e forma culta mais correcta.

Mas acha a voz poetica que, inquieta,


em vario linguajar vem dizer não
ao cynico discurso dos que estão
dictando, no poder, tudo o que veta. (MATTOSO, 2021b, no prelo)

204
O poema está estruturado na forma do dissoneto mattosiano, com quatro quartetos.
A estrutura paralelística do dissoneto cria uma relação interna entre as estrofes, como
quando se tem um paralelismo sintático com a repetição de porções de texto, pois o relato
do eu lírico vai se acrescentando ao texto, como se fosse um desenvolvimento racional
do que é dito. Esse poema, porém, ao contrário de boa parte dos poemas mattosianos, não
se compõe como uma cena. O seu modo de dicção é outro149, pois o que ele procura é
fazer refletir sobre as próprias regras de sua poesia.

No início da primeira estrofe, o aspecto físico, demasiadamente biológico, da


língua é equiparado à sua função linguística. Num primeiro gesto de subversão, o eu
dramático iguala os valores compreendidos socialmente como baixos – como cerrar os
dentes, morder – com outros tidos como elevados – caso da pronúncia, fala, versificação.
Essa equiparação quebra com a eminência de um valor sobre o outro. Na sequência, o eu
lírico descreve o aspecto masoquista de sua poesia ao esconder o choro do poeta cego
para não incomodar, mais do que já incomoda, aqueles para quem ele desafia os “padrões
bem comportados e decentes”.

Desse modo, o eu dramático camufla seu verdadeiro interesse manipulatório com


a humilhação de sua poesia frente ao cânone tradicional. Não há aí ironia, pois a estrutura
da ironia, de modo geral, solicita que haja uma explicitação clara da relação entre o que
é dito e o que se quer realmente dizer ao passo que na manipulação mattosiana, muito
embora saibamos o que é dito, o que se quer realmente dizer é dissimulado e isso faz parte
da própria estratégia do masoquista.

Na terceira estrofe, o eu dramático faz referência ao crítico literário que estuda a


sua obra em uma chave de contradição entre o aspecto formal e de conteúdo e, na estrofe
seguinte, mostra que essa contradição é insuficiente para apreender o movimento da voz
poética que “em vario linguajar vem dizer não/ ao cynico discurso dos que estão/
dictando, no poder, tudo o que veta”. Nessa última estrofe, o cinismo do poeta cego
masoquista é substituído pelo cinismo dos políticos fora da cena cotidiana, da realidade
do povo. Essa inversão destaca o elemento da negatividade, que se expressa na obra
mattosiana como uma forma de produtividade, mais do que o da contradição.

149
Retórico (no sentido de De Man) ou argumentativo (no sentido da teoria do discurso) ou discursivo (no
sentido de Benveniste, por oposição a história).

205
Esse elemento da negatividade, compreendido como mais decisivo do que a
contradição, parece ser o oposto do que defende Erick Felinto (2008), que afirma a
paradoxalidade como o elemento mais marcante da experiência da modernidade
(FELINTO, 2008, p. 16). Para ele, por isso, é o paradoxo, e não a negatividade, o
elemento central da literatura moderna e que está presente em diferentes autores,
incluindo, e de maneira especial, Borges, por meio da negação e afirmação simultâneas.

É compreensível a afirmação de que a negação requer uma afirmação anterior para


que possa negar e que, por isso, não existiria uma negação pura, independente da
afirmação, como afirma Deleuze reverberando Spinoza150. Porém, o foco dado pela
negatividade por Mattoso diz respeito ao poder de corrosão e subversão de suas obras.
Em Mattoso, a negatividade é um recurso que atravessa diferentes obras e atinge uma
tripla subversão: subversão da forma, subversão da cultura contemporânea e subversão
do espaço do mundo151. Essa negatividade, por isso, é o que poderíamos chamar de
“negatividade queer”, no sentido em que desorganiza o próprio discurso em que se
institui, problematizando as relações entre dentro e fora do texto, autor e leitor, cego e
vidente, sujeito e objeto etc.

Em “Dissonnetto classista”, essa subversão, operada pela negatividade, faz ecoar


na tradição literária e na atividade do escritor o desarranjo promovido pelo poeta cego:

DISSONNETTO CLASSISTA [0186]

Differe um escriptor dum excretor.


Um excretor se explica: só dejecta.
Um escriptor appenas se punheta
na penna, que virou computador.

150
“O princípio espinosista é que a negação não é nada, porque jamais o que quer que seja chega a faltar a
algo. Negação é um ser de razão, ou melhor, de comparação, que resulta do fato de agruparmos todas as
espécies de seres distintos num conceito abstrato no intuito de os relacionar a um mesmo ideal fictício, em
nome do qual dizemos que uns ou outros faltam à perfeição desse ideal (carta XIX, para Blyenbergh).”
(DELEUZE, 2002, p. 98)
151
Na minha dissertação de mestrado, desenvolvi melhor essa tripla subversão na obra O poeta pornosiano.
Cf.: MARTINS, Baruc Carvalho. Pornopoiesis: o devir-corpo do mundo e o devir-mundo do corpo. Niterói,
2019. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Instituto de Letras. Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2019.

206
Depende um escriptor do seu leitor.
Testado está que em terra analphabeta
aquelle que sonnetta é bom poeta,
aqui ou no exterior, seja onde for.

Subtil, porem, é outra differença,


que toca alguns mellindres e pudores:
Emquanto se fabricam escriptores,
alguns são escriptores de nascença.

Resalva-se a cegueira, cujas dores


augmentam quanto mais o cego pensa,
usando de poetica licença,
naquillo de que gozam seus leitores. (MATTOSO, 2021b, no prelo)

Usando a forma do dissoneto, como em “Metagrammatica”, em “Dissonneto


classista” também se discute a atividade de escrita. Porém, ao contrário do outro, nesse
poema a cegueira é expressa como um motivo para a escrita. Com isso, plenamente
consciente da presença do leitor e da relação contratual que se estabelece entre ambos, o
eu dramático exprime a importância da humilhação do eu dramático, que é cego, para que
os leitores continuem consumindo as suas obras. Desse modo, a ideia da obra como
consumo, como um produto feito para o consumo, é satiricamente apresentada para o
leitor como um fardo que ele deve carregar ao se importar mais com as dores do poeta do
que com o poeta em si. Essa declaração do eu dramático, como já é evidente, não passa
de mais um artifício do masoquista, que manipula as zonas de visibilidade e de escuridão,
os lugares que devemos olhar com mais complacência ou com mais raiva, com mais gozo
ou com mais nojo.

Além disso, é como se nessa inversão do motivo da escrita, promovida na estrofe


final, ao expor o leitor como corresponsável pela tragédia do poeta cego, o eu dramático
girasse um espelho para quem está para além do texto. Nesse momento, a estrutura de 4
versos em 4 quadras assume um sentido espacial de um verdadeiro labirinto de espelhos.
No centro móvel dele, porém, não está mais o eu dramático, mas o próprio leitor. Com

207
esse giro, assim, Mattoso abre em seu poema a estrutura de um caleidoscópio152 – como
o caleidoscópio de perda e destruição do universo mítico (LÉVI-STRAUSS, 1989).
Porém, ao contrário do caleidoscópio borgiano, que nos leva mais e mais para dentro de
seus labirintos verbais, Mattoso nos leva para fora e nos expõe, junto com o poema, na
farsa de sua poesia.

152
Para uma discussão sobre a imagem do caleidoscópio em Mattoso ligada à relação entre leitura e escrita,
ver: SILVA, Susana Souto Silva. O caleidoscópio Glauco Mattoso. Maceió, 2008. Tese (Doutorado em
Letras e Lingüística: Estudos Literários) – Facultade de Letras. Universidade Federal de Alagoas, Maceió,
2008.

208
7. QUANDO A NOITE VEM: A CEGUEIRA COMO POSSIBILIDADE DE
ESCRITA

Escrever, em certa medida, é um ato de inscrição. O ato de escrita envolve o


escrevente em sua atividade com o papel. Para Derrida (2012b), a escrita literária
comporta uma dimensão de assinatura, uma espécie de ato performativo que se constitui
como um resto exterior “a tudo o que na obra significa alguma coisa” (DERRIDA, 2012b,
p. 34) e que promove um comprometimento com algo. Desse modo, o nome próprio se
integra a esse ato discursivo, mas não se constitui como um elemento da linguagem, mas
presente na linguagem.

Ainda segundo Derrida (2012b), uma obra possui assinatura quando não está
limitada ao seu conteúdo semântico (idem). Com isso, ela se coloca do lado do
acontecimento e, sendo acontecimento, dispõe de uma dimensão não antecipável, que a
engendra de fora. Além disso, a assinatura prevê uma contra-assinatura, a qual nunca é
pessoal, mas pública, na medida em que requer um outrem, uma instituição para contra-
asssinar (op. cit., p.36-37) e essa assinatura acontece com o corpo daquele que contra-
assina também (op. cit., p. 32).

Para Mattoso, a assinatura não é só um elemento presente na atividade de escrita,


mas revela a sua própria ontologia enquanto autor/personagem. Nome de nome, Glauco
Mattoso é uma persona literária que surgiu em meio a diversos heterônimos de Pedro
José Ferreira da Silva e que tomou sua produção literária de assalto. Conforme a vista foi
escurecendo, Mattoso foi reelaborando o contrato literário, mas mantendo o seu desejo e
a sua obsessão. O nome de Glauco escreve e encena, é uma escrita-performance –
potência da escrita?153 – que mobiliza uma certa disposição do material linguístico em
torno disso que se poderia, genericamente, dar o nome de estilo.

Nesse sentido, o corpo de Glauco, assim como o de Borges, se vê presente na obra.


Essa presença, no entanto, não é a presença temática, mas a da própria composição, como
um sintoma que se dá a ver na obra. Para Silviano Santiago (2020), o corpo numa obra
literária é parte escritural de um texto. Ele não está presente no interior da obra, mas se
apresenta como metáfora (SANTIAGO, 2020, p.12-13). Nesse jogo de relações, o corpo

153
Penso na potência de escrita como uma potência da literatura, tal como a esboçada por Deleuze (1997).

209
é matéria plástica, preso em sua vicariedade essencial, e comunica sua relação com o
mundo extralinguístico nos seus próprios termos. Derrida (2012b) percebe no corpo –
ainda que seja um corpo especificamente literário, sem a presença do bíos, ao contrário
do que é defendido por Santiago (2020) como uma grafia-de-vida – que está presente na
obra de arte também essa qualidade de deslocamento. Para ele, o corpo do autor como
presença na obra “é uma experiência de enquadramentos, de deiscência, de
deslocamentos” (DERRIDA, 2012b, p. 31). Portanto, o próprio corpo do autor comporta
também essa discriminação entre uma zona de visibilidades e outra de invisibilidades.

7.1 Escrita e reescrita em Mattoso

No final dos anos 1990, já em sua fase cega, Mattoso publicou a trilogia
Centopéia: Sonetos Nojentos & Quejandos, Paulisséia Ilhada: Sonetos Tópicos e Geléia
de Rococó: Sonetos Barrocos, e, na sequência, nos anos 2000, publicou Panacéia:
Sonetos Colatarais. Em 2001, lançou, pelo selo independente Rotten Records, do qual é
também sócio, o álbum “Melopéia: sonetos musicados”, que trouxe versões próprias dos
sonetos desses quatro livros e contou com a participação de diferentes artistas do cenário
nacional. O álbum foi composto com abordagem experimental, antropofágica
(MATTOSO, 2022a, p. 111), trazendo uma variedade de estratégias sonoras para recriar
o choque entre a pureza da forma e a impureza do conteúdo.

Alguns desses sonetos foram releituras de poemas mais antigos de Glauco, como
é o caso de “Manifesto Obsoneto”, que aparece em 1981 no Jornal Dobrabil e que foi
depois musicado em uma interpretação de Alexandre Nero154:

154
Para ouvir a trilha: BRITO, Matheus de. Manifesto Obsoneto. YouTube, 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oVFJINfIjeI>. Acesso em: 10 de abr. 2022.

210
Figura 11. Poema “Manifesto obsoneto” presente no Jornal Dobrabil. #Paratodosverem: cópia fac-símile do Jornal
Dobrabil contendo o poema “Manifesto obsoneto”.

MANIFESTO OBSONETO

dedicado a Kairo & Kac


(mas a indireta vai pra
outros poetas ditos su-
jos que nunca esquecem
o modess e trocam de
meia de meia em meia
hora)

Isso não é poesia que se escreva,

211
é pornografia tipo Adão & Eva:
essa nunca passa, por mais que se atreva,
do que o Adão dá e do que a Eva leva.

Quero a poesia muito mais lasciva,


com chulé na língua, suor na saliva,
porra no pigarro, mijo na gengiva,
pinto em ponto morto, xota em carne viva:

Ranho, chico, cera, era o que faltava!


Sebo é na lambida, rabo não se lava!
Viva a sunga suja, fora a meia nova!

Pelo pelo na boca, jiló com uva!


Merda na piroca cai como uma luva!
Cago de pau duro! Nojo? Uma ova!
GLAUCO MATTOSO

EMENDA: um versificador mais atento certamente notará que não vou


muito atrás do assentido, digo, do acento, mas enfrento um metrinho
rijo, digo, rígido, e fico em cima da rima... (MATTOSO, 2001a, p. 52)

Nesse procedimento entre o livro e a música, dois objetos de consumo de massa,


o corpo do poeta se situa deslocado entre as palavras presentes no livro e a matéria sonora.
Duplo deslocamento: intra-arte, pois a obra em si é percorrida por um deslocamento do
corpo do autor, e interarte, pois a distância entre diferentes materialidades midiáticas
situa o corpo do autor – e, portanto, no nível da composição – como uma facticidade que
representa a impossibilidade da tradução, ou seja, como a presença da própria
impossibilidade da tradução na passagem de uma mídia a outra.

Nesse contexto, o problema da cegueira acelerou em Mattoso uma percepção


literária, que já tinha em sua fase visual, e que correspondia ao problema da originalidade
artística. Conforme Steven Butterman (2005), a escrita de Glauco recupera a importância
do plágio como elemento de criação por meio da influência do barroco e do modernismo
antropofágico – mesmo que contra ele. A sua criação, assim, requer o procedimento de

212
um “plágio inteligente” (BUTTERMAN, 2005, p. 133-134) em que repete e modifica
outros autores por meio de colagens:

In more purely aesthetic terms, collage writing is a strategy that Mattoso


consciously uses to escape from the confinements of structure, resulting
in polysemic creations that offer an almost unlimited play of signifiers
and consequently a multitude of interpretations. (BUTTERMAN, 2005,
p. 134)155

Essa repetição criativa, que em termos derridianos aparece como “mimed


writing156” (BUTTERMAN, 2005, p. 135), é expressa por Mattoso na recriação de
poemas da tradição, como é o caso de “Rhapsodia jorgeana do lima”. Nesse poema, há,
por parte do eu dramático, uma clara inclinação a pensar o aspecto factual que é gerado
pela cegueira:

RHAPSODIA JORGEANA DO LIMA [5906]

O Jorge canta a lagryma que eu choro,


a lagryma que diz ser velho thema.
Differem do suor que, em cada poro,
nos brota, seu sabor e seu dilemma.

Salgada, nada nella commemoro


que valha celebrar, pois com extrema
tristeza a thematizo neste foro
poetico, onde não falta problema.

Meus olhos para ver utilidade


tiveram. Hoje soffrem na cegueira
que, fora o desespero que me invade,

155
“Em termos puramente estéticos, a escrita em colagem é uma estratégia que Mattoso usa
conscientemente para escapar dos confinamentos da estrutura, resultando em criações polissêmicas que
oferecem um jogo quase ilimitado de significantes e, consequentemente, uma infinidade de interpretações.”
(BUTTERMAN, 2005, p. 134, tradução minha)
156
“Escrita mimética” (BUTTERMAN, 2005, p. 135, tradução minha)

213
agudas dores causa a noite inteira.

Um olho tão inutil servirá de


salobra mina d'agua, ao menos, queira
ou não seu portador. Da cavidade
o traste me exorbita na caveira. (MATTOSO, 2020b, p. 97)

O poema está escrito em quatro quartetos, mas que originalmente tinha a forma
de um soneto – com dois quartetos e dois tercetos. Essa técnica paralelística criada por
Mattoso, conhecida como dissoneto, atua como uma paródia formal do soneto. Com isso,
Mattoso recupera o soneto “Lágrima – Velho Tema” (LIMA, 1949, p. 14), do poeta
modernista Jorge de Lima, publicado originalmente em 1907, para subverter o seu
conteúdo ao focar não mais no interesse que a lágrima gera como imagem poética, mas
da sua condição física da cegueira – já que a lágrima, manifestação visível da dor, não
alivia o sentimento do eu dramático que é confrontado com a sua cegueira e com as
“agudas dores” que sofre constantemente. São, aliás, essas agudas dores que traçam uma
diagonal entre o texto literário e o autor – ainda que seja impossível de decidir se esse
autor é uma persona poética ou não.

Em outros poemas, no entanto, o plágio inteligente mattosiano pode ser pensado


como um procedimento de apropriação de elementos do próprio Mattoso. É o que
acontece, por exemplo, com o “Soneto pós-moderno”, publicado no livro Panacéia:
Sonetos Colaterais, em 2000, e o “Dissonnetto postmoderno”, publicado na reedição do
mesmo livro, mas dessa vez em formato e-book, em 2022, realizado por palinódia.

SONETO PÓS-MODERNO

Cinema Novo, Bossa Nova, tudo


é novo nesta terra! A velharia
nos vem só do estrangeiro. O que seria
de Chaplin sem o velho cine mudo?

Temos tempos modernos! Também mudo


meu modo de pensar a poesia.

214
Concreto e verso livre contagia,
mas algo mais à frente aguarda estudo:

É o raio do soneto, que ora volta


liberto das amarras do conceito
e sem as igrejinhas como escolta.

Depois do modernismo, vem refeito.


Até o vocabulário já se solta:
ao puro é duro, e ao sujo está sujeito. (MATTOSO, 2000, p. 78)

DISSONNETTO POSTMODERNO [0399]

Cinema Novo, Bossa Nova, tudo


é novo nesta terra! A velharia
nos vem só do extrangeiro. O que seria
do Chaplin sem o velho cine mudo?

Temos tempos modernos! Tambem mudo


meu modo de pensar a poesia.
Concreto ou verso livre contagia,
mas algo mais à frente agguarda estudo:

é o raio do sonnetto, que ora volta


liberto das admarras do conceito,
que em reestrophações não vê defeito,
mas sem as egrejinhas como excolta.

Depois do modernismo, vem refeito


e nem aos marginaes causa revolta.
Até o vocabulario ja se solta:
ao puro é duro, e ao sujo está subjeito. (MATTOSO, 2022a, p. 74)

215
Ambos os sonetos, no nível temático, tratam do tema da originalidade literária e
ambos trazem uma estrutura composta por decassílabos, o estilo preferido de Glauco
devido à sonoridade157. Porém, a inclusão de dois versos no poema de 2022 muda a
estrutura do poema de 2000 ao incluir o resultado das suas experimentações não só no
conteúdo, ou seja, naquilo que é dito pelo poema, mas também em seu procedimento.

Nos dois primeiros quartetos dos dois primeiros poemas, a ironia mattosiana
corrói com a ideologia progressista que apresenta o novo como algo moralmente melhor
e que serviu, entre os modernos, para destacar o autor como alguém dotado de um poder
para criar ex nihilo a sua obra (Cinema Novo, Bossa Nova158, tudo / é novo nesta terra! A
velharia nos vem só do extrangeiro”). Essa ideologia progressista implica também a
adoção de um ordenamento temporal do mundo em uma estrutura teleológica (de início,
meio e fim).

Em “Brasil, país do futurismo”, poema publicado em 1977, no Jornal Dobrabil –


portanto, em sua fase visual –, Mattoso repercute essa ideologia do progresso, mostrando
o que ela tem de danosa ao conjugar o jargão prolixo e pomposo com a vida depravada
da classe política do Brasil, que escamoteia o fato de que o país vive numa ditadura:

157
Ver entrevista no apêndice da tese.
158
É preciso ressaltar que nesses exemplos o que se depreende é a necessidade socialmente vocalizada de
um apelo à novidade, ao novo. Isso não quer dizer que as obras do Cinema Novo ou da Bossa Nova não
tivessem consciência de estarem se apropriando de outros estilos e reproduzissem o chavão moderno do
progresso. Penso que a escolha por esses estilos foi proposital para marcar o papel de alienação que a
publicidade enseja, assim como acontece, por exemplo, com a venda de camisas de Che Guevara, um
revolucionário socialista, em lojas caras.

216
Figura 12. Poema “Brasil, país do futurismo”, publicado em 1977. #Paratodosverem: fac-símile do poema “Brasil,
país do futurismo”, de Glauco Mattoso.

BRASIL, PAÍS DO FUTURISMO

uísque frenesi
prostitucional amante
incompassivamente
eu I
vinis fremente
peste queima
uma
preciosa análise constituinte
estou felicíssimo e contente
vou a nau
ou a vau pro carnaval
nunca vi coisa assim sensacional
este é um país que vai pra frente
inconstitucionalissimamente (MATTOSO, 2001a, p. 18)

217
Já nas duas estrofes seguintes de “Soneto pós-moderno”, o autor traz uma
mudança no tratamento do problema da originalidade com o retorno do soneto pelo eu
dramático. Transformado em dissoneto, o segundo poema abre o primeiro, inquirindo sua
estrutura ao mesmo tempo em que a realiza, pois o dissoneto é o soneto tornado paródia
de si mesmo. Além disso, a inclusão do verso “que em reestrophações não vê defeito”
exprime no segundo o que já estava, ainda que de maneira virtual, latente no primeiro: a
possibilidade de escrever sonetos “liberto das amarras do conceito / e sem as igrejinhas
como escolta”.

O que pode apontar para a própria qualidade do soneto em ser um tipo de poema
que conjura, conforme João Adolfo Hansen (2017, p. 172), a ideia de originalidade ao
dispor, conscientemente ou não, o trabalho de escrita sobre uma tradição que lhe é
imanente e fartamente conhecida. Já na última estrofe, ao acrescentar o verso “e nem aos
marginaes causa revolta”, por um lado, o eu dramático reflete sobre a recepção de sua
obra, deixando no ar se isso se dá na recepção atual que se faz de seus poemas ou se isso
já se dava à época da escrita do primeiro poema; por outro, aponta para a criação de outros
nomes da poesia que aparecem na virada dos anos 1980, como Paulo Henriques Britto,
Tite de Lemos e outros poetas que retomaram o soneto e as formas ditas “clássicas”159.

Com efeito, essa indecisão sobre a intencionalidade é parte do jogo mattosiano,


assim como as entrevistas que ele concede e que formam, junto com as suas antologias,
o seu corpus literário – haja vista que o Pedro José Ferreira da Silva não fala mesmo
quando dá entrevistas pessoais, pois quem assina e o representa é sempre Glauco
Mattoso. Além disso, a distinção entre a materialidade do papel e a materialidade do e-
book, possibilita, no segundo caso, um protocolo de leitura distinto, haja vista que a
presença do hipertexto no e-book opera uma mudança na experiência de leitura
simplesmente pela diferença presente nessa nova materialidade. O que reforça a ideia
manifesta no poema, de uma coexistência criativa entre o passado e o presente, num
suporte que agrega e reelabora essa distinção com a presença de links, ou seja, de relações.

Já em “Sonnetto sonoro”, a reescrita, realizada também por palinódia, não


acontece transformando o poema base em dissoneto, mas numa estrutura de bloco único:

159
Viviana Bosi (2011), em sua análise da poesia a partir dos anos 1970, percebe a confluência de uma
miríade de temas e de propostas estéticas, entre elas, o retorno lúdico às formas tradicionais de literatura,
como o soneto (BOSI, 2011, p. 143).

218
SONETO SONORO

As vozes das vizinhas são distintas,


algumas estridentes, outra mansa.
Adultas ou com timbre de criança,
ninfetas, quarentonas, velhas, trintas.

Talvez não imagines nem consintas,


mas meu ouvido cego não descansa:
rastreia, pelo prédio, a vizinhança;
permeia portas, tetos, luzes, tintas.

És tu, balzaquiana, que me passas


total tranqüilidade no teu tom,
poupando-me de dores e desgraças!

Não sei se és linda, pálida, marrom.


Não penso em estaturas, pesos, raças.
Só penso em tua voz, calor tão bom! (MATTOSO, 2000, p. 55)

SONNETTO SONORO [0376]

As vozes das vizinhas são distinctas,


algumas estridentes, outra mansa.
Adultas ou com tymbre de creança,
nymphetas, quarentonas, velhas, trintas.
Talvez não imagines nem consintas,
mas meu ouvido cego não descansa:
rastreia, pelo predio, a vizinhança;
permeia portas, tectos, luzes, tinctas.
És tu, balzaquiana, que me passas
total tranquillidade no teu tom,

219
poupando-me de dores e desgraças!
Não sei si és linda, pallida, marron.
Não penso em estaturas, pesos, raças.
Só penso em tua voz, calor tão bom! (MATTOSO, 2022a, p. 51)

Nesse poema, a reestrofação vem acompanhada da reescrita das palavras,


seguindo uma ortografia arcaica, assim como acontece em toda a antologia. Essa
mudança, contudo, não altera a sonoridade das palavras, mas cria uma différance, em
termos derridianos, entre os dois poemas que só se torna possível devido à particularidade
da escrita. Para Mattoso, a ortografia é mais do que um simples elemento gráfico, pois se
constitui como parte de sua visão literária quanto ao que seria específico de sua dicção
poética, como afirma:

É como occorre com o perfil ideologico dum militante de qualquer


causa: uma questão de coherencia entre theoria e practica, entre attitude
e preferencia. Si sou adepto da democracia, não a defendo só porque
seja ethicamente mais correcta, mas tambem porque me dá mais
liberdade de excolher o que prefiro ler, assistir, vestir, comer ou desejar
eroticamente. Em summa: mesmo sendo contradictorio, como todo
mundo eventualmente pode ser, me engajo de corpo e alma, coração e
mente, naquillo em que accredito, ou seja, a construção exsistencialista
dum “eu biográfico” que seja, ao mesmo tempo, cumpridor duma
“missão” espiritual, tal como no kardecismo, e coadjuvante numa
collectividade pluralista e diversificada, digna de representatividade no
plano social e politico. Dentro desse contexto, reconhesço a necessidade
duma norma official que seja adoptada na alphabetização e nos
curriculos escholares, mas tambem defendo a liberdade do escriptor que
adopte, como Belli, Pessoa ou Lobato, sua propria norma
orthographica, pois uma coisa não exclue a outra.160

Com efeito, o poema também faz menção a um “ouvido cego”, que a tudo observa.
Esse ouvido cego apresenta a ideia da escuta como um olhar. Essa ideia já foi esboçada
também por Derrida com relação ao ato de leitura (DERRIDA, 2010, p. 10), mas, na
máquina de escrita mattosiana, essa ideia recebe o incremento de uma figura perversa,
haja vista que o interesse pela abjeção se imiscui na relação entre os sentidos.

Nesse contexto, a experimentação formal repercute não só com a criação de


dissonetos, mas também de outras estruturas fixas de versificação, como o madrigal, o

160
Ver entrevista no final da tese.

220
mote glosado, romance lírico161 etc. Porém, em todos esses casos, a abjeção mostra um
vínculo com a cegueira por meio da obscenidade – literalmente, traz o interdito, o que
deveria estar fora da cena, portanto, o que deveria permanecer cego ao conhecimento,
para dentro do espaço literário.

No poema “Madrigal interformal”, presente na antologia Tractado de


metagrammatica, o eu dramático expõe o procedimento do fazer poético ao mesmo tempo
em que perverte a estrutura formal com a imagem de uma carnavalização operada pelo
cego:

MADRIGAL INTERFORMAL [0001]

Em verso decasyllabo, qual é a


feição que em madrigal transforme a idéa?

Bem simples: duma oitava, appenas passo


o disticho final para o começo,
compondo uns epigrammas... e um abbraço!
Os themas vão do drastico ao travesso
e, si o leitor julgar que bom palhaço
um cego permanesce, eu ganho appreço. (MATTOSO, 2021, no prelo)

Muito embora o madrigal, conforme Orlando Genó (1999) e Olavo Bilac &
Guimaraens Passos (1905, p. 127), não tenha uma estrutura métrica bem definida, ele
pode ser composto por versos de 7 – redondilha maior –, 10 ou 6 sílabas poéticas
entremeadas, e ter uma quantidade curta de versos em que o eu lírico manifesta “um
pensamento espirituoso e elegante, um galanteio, um elogio discreto ou uma discreta
confissão de amor. Concisão, graça e delicadeza, – são as suas qualidades essenciaes.”
(BILAC; GUIMARAENS, 1905, p. 126-127). Além disso, o madrigal realiza um “jogo
conceitual” por meio do qual utiliza as palavras para esconder um sentimento intenso
(GENÓ, 1999, p. 102).

161
Como é o caso de Raymundo Curupyra, o Caypora (2022b), um romance escrito em versos.

221
Dessa forma, o eu dramático de “Madrigal interformal” transforma o tipo lírico
em tema do poema e perverte a técnica de versificação não só ao inverter a ordem dos
versos (“duma oitava, appenas passo/ o disticho final para o começo”) que deveriam
obedecer a uma regra fixa – mesmo no caso da estrutura ser plástica –, mas também ao
colocar como traço definidor do bom poeta permanecer, já que é cego, como um bom
palhaço. Nesse caso, a cegueira não é indicada no texto como um tropo retórico que
beneficia a escrita – como é o caso de Borges –, mas como condição física que, ao
confirmar o espaço de desigualdade social entre o autor cego e o leitor vidente, faz o
segundo se regozijar da dor do primeiro e, nessa mesma medida, gera um gozo no cego
devido ao aspecto masoquista que atravessa não só os personagens, mas também o
protocolo de leitura literária que é estabelecido entre autor, leitor e obra.

7.2 Escrita e reescrita em Borges

Em sua fase cega, também Borges, que já tinha a prática de reeditar os seus livros
após a publicação, num trabalho de reescrita de seus textos – como é o caso de Fervor de
Buenos Aires162 e de Luna De Enfrente163, entre outros – ou de outros autores – como a
reescrita de Dom Quixote em Pierre Menard –, operou a releitura, mas sem se configurar
como uma palinódia, em duas versões de um poema que compartilha entre eles apenas o
mesmo título: “On his blindness”. Como sugere o título, ambos os poemas tratam da
condição da cegueira do escritor, mas com significativas diferenças, sobretudo, quanto ao
foco dado para a literatura, de um lado, e para a condição física do autor, de outro.

A primeira versão está presente na antologia El oro de los tigres, publicada em


1972:

ON HIS BLINDNESS

162
Já cego, escreveu no prólogo do libro: “No he reescrito el libro. He mitigado sus excesos barrocos, he
limado asperezas, he tachado sensiblerías y vaguedades y, en el decurso de esta labor a veces grata y otras
veces incómoda, he sentido que aquel muchacho que en 1923 lo escribió ya era esencialmente – ¿qué
significa esencialmente? – el señor que ahora se resigna o corrige.” (BORGES, 1984, p. 13)
163
No prólogo: “Poco he modificado este libro. Ahora, ya no es mío.” (BORGES, 1984, p. 55)

222
Indigno de los astros y del ave
Que surca el hondo azul, ahora secreto,
De esas líneas que son el alfabeto
Que ordenan otros y del mármol grave
Cuyo dintel mis ya gastados ojos
Pierden en su penumbra, de las rosas
Invisibles y de las silenciosas
Multitudes de oros y de rojos
Soy, pero no de las Mil Noches y una
Que abren mares y auroras en mi sombra
Ni de Walt Whitman, ese Adán que nombra
Las criaturas que son bajo la luna,
Ni de los blancos dones del olvido
Ni del amor que espero y que no pido. (BORGES, 1984, p. 1099)164

Na primeira versão do poema, publicada em 1972, o eu lírico conduz o leitor por


uma série de imagens que cruzam o aspecto visível – o azul profundo, o alfabeto, o lintel,
os ouros, os vermelhos – com o invisível – os brancos do esquecimento, a ficção das Mil
Noites e Uma que que conduzem a imaginação, o amor. Na justaposição entre essas
imagens, o eu lírico descreve a vida de um escritor cego. À essa altura, a cegueira de
Borges já havia sido tema de inúmeros textos e ganhado tratamento especial em Elogio
de la sombra, o fato é que nesse poema a cegueira não é só tema de reflexão, mas também
expressa a atitude do fazer poético sem apontar, diretamente, para uma causa física, pois
mesmo quando o faz (“Cuyo dintel mis ya gastados ojos/ Pierden en su penumbra”),

164
“ON HIS BLINDNESS

Indigno dos astros e da ave


Que sulca o azul profundo, ora secreto,
Dessas linhas que são o alfabeto
Que outros ordenam e do mármore grave
Cujo lintel meus fatigados olhos
Perdem em sua penumbra, dessas rosas
Invisíveis e das silenciosas
Profusões de ouros e de vermelhos
Sou, mas não das Mil Noites e Uma
Que abrem em minha sombra o mar e o alvor
Nem de Walt Whitman, esse Adão nomeador
Das crianças que existem sob a lua,
Nem desses brancos dons do esquecimento
Nem do amor que espero sem um lamento.” (BORGES, 2000a, p. 511)

223
devido à construção extremamente metafórica, o efeito é o de uma criação estritamente
literária.

No prólogo de A rosa profunda (1975), de maneira próxima ao esboçado nessa


primeira versão do poema “On his blindness”, Borges fala sobre a sombra como uma
zona de cegueira em que ele se instala:

Empiezo por divisar una forma, una suerte de isla remota, que será
después un relato o una poesía. Veo el fin y veo el principio, no lo que
se halla entre los dos. Esto gradualmente me es revelado, cuando los
astros o el azar son propicios. Más de una vez tengo que desandar el
camino por la zona de sombra. Trato de intervenir lo menos posible en
la evolución de la obra. No quiero que la tuerzan mis opiniones, que
son lo más baladí que tenemos. El concepto de arte comprometido es
una ingenuidad, porque nadie sabe del todo lo que ejecuta. Un
escriptor admitió Kipling, puede concebir una fábula, pero no penetrar
su moraleja. Debe ser leal a su imaginación, y no a las meras
circunstancias efímeras de una supuesta “realidad”. (BORGES, 1989,
p. 77, grifo meu)165

Já a segunda versão foi publicada em 1985, no livro Los Conjurados, um ano antes
de sua morte:

ON HIS BLINDNESS

Al cabo de los años me rodea


una terca neblina luminosa
que reduce las cosas a una cosa
sin forma ni color. Casi a una idea.
La vasta noche elemental y el día
lleno de gente son esa neblina

165
“Começo por divisar uma forma, uma espécie de ilha remota, que depois será um relato ou um poema.
Vejo o fim e vejo o princípio, não o que se encontra entre os dois. Isto gradualmente me é revelado, quando
os astros ou o acaso são propícios. Mais de uma vez tenho de voltar sobre meus passos pela zona de
sombra. Tento intervir o menos possível na evolução da obra. Não quero que seja torcida por minhas
opiniões, que são o que temos de mais frívolo. O conceito de arte engajada é uma ingenuidade, porque
ninguém sabe exatamente o que executa. Um escritor, admitiu Kipling, pode conceber uma fábula, mas
não penetrar sua moral. Deve ser leal a sua imaginação, e não às meras circunstâncias efêmeras de uma
suposta ‘realidade’.” (BORGES, 2000b, p. 89)

224
de luz dudosa y fiel que no declina
y que acecha en el alba. Yo querría
ver una cara alguna vez. Ignoro
la inexplorada enciclopedia, el goce
de libros que mi mano reconoce,
las altas aves y las lunas de oro.
A los otros les queda el universo;
a mi penumbra, el hábito del verso. (BORGES, 1989, p. 480)166

Nessa segunda versão, o eu lírico reflete sobre a sua condição física e revela que
o platonismo (“que reduce las cosas a una cosa/ sin forma ni color”) não é um objetivo
ou realidade literária, mas um problema que o atormenta. Dessa forma, a ideia da cegueira
como uma limitação vantajosa, que é apresentada na conferência “La ceguera” ou que é
esboçada em Historia de la noche e em Elogio de la sombra, é substituída por uma
melancolia que o poeta cultiva em relação aos normovisuais, para os quais “les queda el
universo”. Com isso, esse resto que fica para o eu lírico assume a forma de uma resignação
em que ele tem de cumprir o que pode, porque é o que restou para ele: a atividade de
versificação, o ofício próprio do poeta.

Nesse ponto, Borges parece repercutir, pelo menos em um nível superficial,


Mattoso, que concebe a cegueira como uma maldição. Ainda assim, há em Borges um
tom menos lamurioso e negativo quanto ao papel da cegueira, pois a atividade do verso,
ao contrário de Glauco, que relaciona a cegueira a um trauma de infância, surge para ele
como algo que, dadas as circunstâncias, é positivo – haja vista que as imagens que são

166
“ON HIS BLINDNESS

Com o passar dos anos me rodeia


uma constante névoa refulgente
que aos poucos reduz todo o existente
a algo informe e sem cor. Quase uma idéia.
A vasta noite elementar e o dia
cheio de gente são essa neblina
de luz incerta e fiel que não declina
e que espreita na aurora. Gostaria
de ver um rosto algum dia. Ignoro
a inexplorada enciclopédia, o prazer
de livros que minha mão sabe ler,
as altas aves e as luas de ouro.
Aos outros todos resta o universo;
a minha penumbra, o hábito do verso.” (BORGES, 2000b, p. 539)

225
mobilizadas são todas construções positivas (“La vasta noche elemental y el día/ lleno de
gente son esa neblina/ de luz dudosa y fiel que no declina/ y que acecha en el alba”).

7.3 A forma-prisão da cegueira

Nesse contexto, como a cegueira se apresenta como forma-prisão, ela possibilita


a escrita ao mesmo tempo em que se apresenta como limitação física para o autor. A ideia
de uma forma-prisão ligada à escrita, mais precisamente à composição literária, é
apresentada Silviano Santiago (2020) no livro Fisiologia da composição, em que relê a
obra Memórias do Cácere, de Graciliano Ramos, no período em que o autor se tornou
preso político durante o governo de Getúlio Vargas, em paralelo com o romance Em
Liberdade, do próprio Silviano Santiago, em que elege Graciliano como narrador para
fazê-lo falar sobre o período pós-prisão – coisa que nunca fez.

Desse modo, entre ambos os livros surge uma continuidade entre a identidade do
estilo e a mesma grafia-de-vida (SANTIAGO, 2020, p. 18). Para Santiago, essa
continuidade marca também uma diferença, afinal, os livros não foram escritos, de fato,
pela mesma pessoa. Porém, em outro sentido, eles os são. E isso se dá pela participação
do corpo do próprio Graciliano na obra. No livro hospedeiro, ou seja, em Memórias, o
corpo se torna tematizado, já em Em Liberdade, no livro hóspede, ele invade a
composição e se torna presente.

Entre um e outro, o corpo de Graciliano se constitui por meio da própria


textualidade, mas como um estranho, a quem a linguagem não representa a Casa, mas a
própria prisão, seja pela lei, seja pela sintaxe (op. cit., p. 21). De todo modo, Santiago
percebe na condição física/fisiológica do autor/personagem elementos que indicam
aspectos distintivos de sua composição, como a própria prisão que não cessa com o fim
do cárcere e que é, por seu turno, indispensável para a criação artística.

O corpo de Glauco Mattoso e de Jorge Luis Borges, no entanto, agregam o aspecto


temático ao composicional de modo a criar um duplo jogo entre a prisão que representa
estar cego e a possibilidade de escrita que se apresenta por meio dessa condição. Essa
ideia de forma-prisão repercute no poema “Memorias do Carcere”, presente no livro

226
Deshumanismo em dissonetto, de Glauco Mattoso, e em “El cautivo”, presente no livro
El hacedor, de Jorge Luis Borges (BORGES, 1984, p. 788).

MEMORIAS DO CARCERE [6093]

Lamber o chão? Fazer alguem usar


a lingua nessa sordida funcção?
No Orkut era commum alguem, na mão
de sadicos, passar por tal azar.

Nas redes é possivel encontrar


imagens em que todo um sujo chão
terá que ser lambido. Risos são
ouvidos. As prisões são bom logar.

Na nossa dictadura, diz Gabeira,


assim se torturou. O preso tinha
que limpo deixar onde se caminha
com botas militares. Ha quem queira?

Às vezes algemado, de colleira


em volta do pescoço, foi a minha
lembrança que excitou a punhetinha:
Nas botas se lambeu, tambem, sujeira. (MATTOSO, 2001a, p. 144)

No poema “Memorias do carcere”, o eu dramático repercute o problema da tortura


publicizado pelas redes sociais, como o Orkut, em que pessoas são colocadas para lamber
o chão sujo. Na terceira estrofe, o eu dramático aproxima essa cena de tortura ao
experimentado na época da ditadura, mas, ao invés de criticar o uso da tortura, como fez
Gabeira, o eu dramático se diverte com a cena, que lhe gera gozo.

Essa queerização tipicamente mattosiana, distorce o sentido palatável – tanto no


sentido de ser algo moralmente aceito pela sociedade quanto digerido, haja vista o traço
de sujeira que se infiltra na língua do eu dramático – de uma descrição convencional de
227
tortura. Mattoso se submete à prisão da cegueira porque se submeteu, antes, à prisão da
forma fixa e da ortografia. Para ele, a atitude masoquista invade também a prática do fazer
poético167 e, com isso, coloca-o numa posição de extrema obediência. Essa passividade
do autor frente à língua é a mesma do eu dramático frente ao seu carrasco.

Desse modo, a cegueira, seguindo essa orientação/ontologia masoquista do eu


poético, repercute a sua condição como um fazer que invade a própria estrutura da obra,
mesclando gêneros e tipos literários, como é o caso do poema e do relato testemunhal –
o que contribui para criar uma temporalidade própria, entre o lírico (onde há uma
ausência, por meio de suspensão, da sequencialidade temporal: momento em que reflete
sobre a tortura) e o dramático (onde há a presença dessa mesma sequencialidade:
momento em que descreve a ocorrência e as ações que levam à tortura, nas redes sociais
e na ditadura).

Assim, é como se o poema colapsasse o plano do discurso com o plano da


realidade ao justapor a reflexão, o aspecto pragmático da tortura da ditadura e dos tempos
atuais e o aspecto, ao mesmo tempo, discursivo e pragmático dessas duas torturas (a
antiga e a atual) por meio dos relatos de Gabeira e das postagens nas redes sociais. Esses
planos colapsam e, simultaneamente, reverberam entre si, como numa comunicação
caleidoscópica em que um espelho comunica e apresenta para o outro uma presença da
ausência de si mesmo. Isso se reflete na falta que cada plano carrega para se atualizar em
sua contraparte, haja vista que entre os planos nunca há uma transparência e comunicação
total, pois para o jogo manipulatório de Mattoso fazer sentido é necessário que se consiga
diferenciar, ainda que não de maneira definitiva, o limite de cada plano.

Destarte, Adalberto Müller (2022) percebe no processo de composição de Em


liberdade, de Silviano Santiago, uma reverberação caleidoscópica entre os diferentes
modos em que a narração é estendida sobre o corpo presente de Graciliano e o corpo
imanente de Silviano Santiago:

Quem fala aí, na primeira pessoa, é o “personagem” do diário inventado


(Em liberdade), Graciliano Ramos, o autor de São Bernardo. Mas quem
fala por trás do “personagem-autor”, senão o crítico-autor Silviano
Santiago? Nesse jogo de espelhos de categorias literárias, mise en abîme
para enlouquecer qualquer estruturalista de plantão, um se reflete no

167
Ver a entrevista no apêndice.

228
outro, ad infinitum. Por isso mesmo, Silviano Santiago escapou das
armadilhas que temia: o de fazer um romance-documentário dos anos
de ditadura. (MÜLLER, 2022, p. 173)

A referência ao mise em abîme, que indica a ocorrência de uma teia narrativa que
se estrutura numa circularidade aberta com outras, talvez pudesse ser pensada, a partir do
poema de Glauco, como uma ocorrência que excede o textual, no sentido de que uma
narrativa, apesar de pressupor uma sequencialidade típica da linguagem e a presença de
palavra, requer um contato com a vida, naquilo que ela tem de irredutível. Essa relação
entre narrativa e vida foi apresentada por Walter Benjamin (1987), no célebre ensaio “O
narrador”. Cumpre destacar nesse ensaio a relação entre narrativa e experiência viva, em
que o contador da história, nos termos de Benjamin, se envolvia no relato contado de
maneira orgânica, e não meramente textual.

Já em “El cautivo”, texto de Borges, o narrador conta a história de um garoto


raptado por índios e que depois volta ao lugar onde foi sequestrado. O local se passa em
Júnin ou em Tapalquén, mesmo lugar onde circulam os relatos. A imprecisão do lugar se
soma à imprecisão da história, que é contada pela segunda vez, criando um efeito
especular, assim como acontece com a mise en abîme de Em liberdade, em que a única
coisa que importa é a metáfora, ou seja, o problema de como seguir acreditando na
mentira ficcional. Porém, de imediato, o garoto não lembra de seu passado e, quando o
recorda, tem um excesso de êxtase que é acompanhado, em um momento posterior, pela
sua fuga, dado que “el indio no podía vivir entre paredes y un día fue a buscar su desierto”
(BORGES, 1984, p. 788)168.

No entanto, no momento em que reconhece o lugar, o narrador se pergunta sobre


o enigma daquele momento, o qual só o personagem conhece e nem o narrador nem o
leitor têm pleno acesso. Essa indisposição, colocada para o leitor, de conhecer o segredo
mais íntimo da personagem confronta a ideia de um conhecimento total da obra, dado por
um narrador onisciente, para apresentar um narrador que nem conhece tudo dos
personagens nem, muito menos, da história. Nesse solo arenoso da narrativa, que excede
a todo tempo a própria narrativa, o narrador é uma metonímia da condição humana:
limitado espacialmente e temporalmente, sem um conhecimento absoluto das coisas e
com uma profunda curiosidade por aquilo que desconhece.

168
“o índio não podia viver entre paredes e um dia foi em busca de seu deserto.” (BORGES, 2000a, p. 185)

229
Então, a humanidade do narrador poderia corresponder também a uma
desumanidade, na medida em que o garoto ao voltar à casa, já não sabia mais a sua língua
e tudo só se revelou para ele como uma experiência de estranhamento. No momento em
que reconhece o lugar, o narrador faz questão de frisar a confluência entre a temporalidade
da lembrança (passado) e a temporalidade do reencontro (presente). Talvez nesse
movimento de reencontro, o que se passou não foi de fato um reconhecimento, pois, se
as duas temporalidades habitaram o mesmo espaço, ele não deixou de ser índio ao mesmo
tempo em que se redescobriu familiar. Além disso, esse encontro com seu passado-
presente se deu não pela linguagem – já que não conhecia mais a língua de seus pais –,
mas por meio do contato direto com objetos do espaço da casa.

Desse modo, a pergunta final do narrador, que reflete se o garoto conseguiu


reconhecer os pais e a casa, é antes uma pergunta sobre a projeção que ele faz com o
objetivo de preencher, psicologicamente, as condições de satisfação do enigma do que o
retrato fiel e objetivável da simples observação da realidade da personagem. Ou seja, é
antes a ficção da ficção do que a procura por uma realidade científica, observável, da
ficção. Destarte, a ideia do cativeiro aparece num duplo sentido, primeiro como o assalto
perpetrado pelos índios que não possuem nome – o que os torna figuras de radical
alteridade que se voltam contra o colono, haja vista o território rural da história – e, em
segundo lugar, como um catalisador que cativa, ou seja, guarda, as memórias em seu
próprio corpo. Além disso, o cativeiro se passa sem paredes ou muros, como ocorre no
livro de Santiago, mas na própria condição de ser forçado a sair de sua terra contra a sua
vontade.

Num tratamento propriamente borgiano, poderíamos acrescentar a essa leitura o


papel da cegueira que é dado recursivamente quando tomamos o texto que está disposto
na página imediatamente anterior e que justifica o êxtase do garoto:

ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM

Cierro los ojos y veo una bandada de pájaros. La visión dura un


segundo o acaso menos; no sé cuántos pájaros vi. ¿Era definido o
indefinido su número? El problema involucra el de la existencia
de Dios. Si Dios existe, el número es definido, porque Dios sabe
cuántos pájaros vi. Si Dios no existe, el número es indefinido,
porque nadie pudo llevar la cuenta. En tal caso, vi menos de diez

230
pájaros (digamos) y más de uno, pero no vi nueve, ocho, siete,
seis, cinco, cuatro, tres o dos pájaros. Vi un número entre diez y
uno, que no es nueve, ocho, siete, seis, cinco, etcétera. Ese
número entero es inconcebible; ergo, Dios Existe. (BORGES,
1984, p. 787)169
O cativeiro de “O cativo”, que virá logo a seguir, é antecipado e preparado pelo
cativeiro do narrador de “Argumentum ornithologicum”, que vê uma pequena quantidade
de pássaros um número inexplicável. Isso que não pode ser descrito pelo narrador é a
imagem-visão, propriamente literária, que só o narrador consegue enxergar e que só foi
possível ao fazer avançar o visível até a sua dimensão imaginativa. A leveza e liberdade
dos pássaros contrasta com a clausura dos olhos fechados e, precisamente, por esse
paradoxo é que foi possível ver. Com isso, numa tentativa setecentista de provar a
existência de Deus, o narrador borgiano recorre não ao argumento ontológico, mas ao
argumento ornitológico, que se dedica a afirmar os modos de distinção das aves, para
provar a existência d’Ele.

Nesse contexto, o jogo entre o argumento ontológico e o argumento ornitológico


é particularmente interessante pela relação que estabelece com a ideia de infinito que está
presente no início da filosofia moderna, em um pensador tão emblemático quanto
decisivo para a tradição do pensamento ocidental, como é o caso de René Descartes.
Partindo do “eu”, tomado como uma entidade de existência indubitável, e não do mundo
(JESUS, 1998, p. 348), Descartes constrói o seu edifício teórico, que é constituído por
ideias distintas, certas e claras. Tal empresa é operada por ele por meio das provas da
existência de Deus, presente em suas Meditações Metafísicas (1983), que procuravam
responder ao ceticismo ao fundamentar a existência do eu, do mundo e das coisas
materiais por meio de um método que objetivava garantir certeza matemática (op. cit., p.
359).

Assim, a primeira prova da existência de Deus de Descartes parte da ideia de Deus


presente no eu para constatar a existência d’Ele por meio da necessidade de causação para

169
“ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM

Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos
pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se
Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é
indefinido, porque ninguém conseguiu fazer a conta. Neste caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e
mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez
e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etcétera. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus
existe.” (BORGES, 2000a, p. 184)

231
a realidade objetiva da ideia de Deus. Desse modo, o que Descarte percebe como
problema é que a ideia de infinito, que é requerida pela ideia de Deus, não pode ser
derivada do eu, já que este é finito. Com isso, Descartes altera a ordem que havia
dominado a filosofia até então, ao colocar o infinito como anterior ao finito, permitindo
um acesso direto a ele (JESUS, 1998, p. 349; KOYRÉ, 2006, p. VII).

Nesse sentido, essa conclusão a que chega Descartes se realiza por um voltar-se a
si. Uma descoberta, a um só tempo, da subjetividade moderna via interioridade e de uma
reflexividade que tem na solidão a forma privilegiada para experiência de uma prática
filosófica. Destarte, na segunda prova, conforme Luciano Marques de Jesus (1998), Deus
não é considerado simplesmente o autor de Sua ideia presente no eu, mas o criador do
próprio eu (JESUS, 1998, p. 353). Como resultado, é o próprio eu que é a ideia de Deus
(op. cit., p. 355).

Além disso, nessa segunda prova, Descartes também prova a existência do mundo
externo (argumento cosmológico), partindo da existência do eu para chegar à conclusão
sobre a existência de Deus (op. cit., p. 356), e, na terceira prova, Descartes prova a
existência de Deus partindo de Sua essência (op. cit., p. 358). Assim, a relação ideia de
Deus/existência de Deus/essência de Deus constitui uma série real que divide, de um lado,
o espaço interno infinito da interioridade – que é acessado por meio da reflexão – e, de
outro, o espaço externo infinito das grandezas que se localizam ou podem ser localizadas
nesse espaço exterior.

Com isso, Deus se apresenta como elemento comum que reúne interioridade e
exterioridade, podendo somente ser concebido, muito embora jamais compreendido, por
meio de uma prática solitária que defende o aperfeiçoamento da razão com o objetivo de
promover uma revisão não só da cultura, mas também das formas de aquisição do saber,
com o intuito de suprir a deficiência natural da razão humana (SILVA, 1983, p. 135-136).

Por isso, quando analisamos essa dimensão do infinito na obra de Borges, que
defende a existência de Deus por meio de uma visão-paradoxo, o narrador de
“Argumentum ornithologicum” parece procurar salvar a si mesmo, já que encontra no
cativeiro, na forma-prisão do cego, algo tão sublime quanto a existência de Deus – que
excede por dentro e por fora as tentativas de uma totalização racional não só da
observação, mas também da própria experiência.

232
Detalhe não menos importante diz respeito à figura encontrada pelo narrador ao
fim de sua investigação. Ela não representa uma palavra ou uma coisa, mas um número –
a classe de objetos que não tem materialidade por excelência e que busca funcionar como
um suplemento para algo que sempre se furta a ela. Além disso, essa classe sofre, desde
o princípio, com uma disputa sobre a sua própria ontologia, como ocorre entre
nominalistas – que não acreditam na existência de uma coisa chamada “número” – e
platonistas – que defendem a sua existência.

Nesse sentido, a cegueira parece resolver para Borges o problema de como é


possível ver o infinito, haja vista que ela permite conceber uma visão que contradiz a si
mesma. Ainda assim, a cegueira não garante a visão do infinito, apenas abre o caminho
para a possibilidade de conhecê-la. E isso, dentro de um ponto de vista borgiano, é tudo
para a literatura.

233
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trilhar o caminho da escrita é um desafio. Cada autor, no contato com o papel em


branco, é interrogado pelo silêncio, pelo aspecto opaco e transparente do papel, pela
confusão de ideias. Não sem razão, é comum que esse momento seja marcado por um
interstício de improdutividade que torna difícil a articulação das imagens pensadas em
palavras escritas. Como resultado, ou espera-se por um momento que não se tem certeza
de quando vai ser ou desiste-se da tarefa de escrever. Como a última alternativa
dificilmente é aceita por quem escreve, enfrenta-se o desafio.

No entanto, para um escritor cego, como vimos durante essa tese, esse contato não
se dá com o papel físico, mas com o mental. A mudança de aspecto altera o nível de foco
e concentração. Não há como voltar para olhar para um papel que não existe e ver onde,
em qual linha, paramos. A cegueira opera, por isso, uma necessidade de readequação
biofísica dos sentidos para preparar o corpo do vivente a essa nova realidade. Desse modo,
os cegos passam a perceber de maneira diferente, sentir de maneira diferente, pensar de
maneira diferente. Essa diferença diz respeito às próprias estruturas perceptivas, ao modo
como elas se arranjam em nosso esquema individual.

Sem o aporte dos olhos, a nossa estrutura sensível precisa reelaborar os dados que
recebem do ambiente externo com o objetivo de preencher esse espaço que era dado pela
visão. Surgem, assim, as imagens táteis, auditivas, olfativas etc. – que já existiam antes,
mas que recebem um foco e intensidade muito maior com a cegueira, sobretudo com
quem se tornou cego.

Nesse sentido, essa limitação física não deixa de ser compreendida pelos escritores
cegos que analisei como uma limitação física, mas, ao tomar consciência dela, eles podem
desenvolver estratégias de escrita que sejam possíveis de acordo com a sua nova
condição. Na trajetória de Glauco Mattoso e de Jorge Luis Borges, essas estratégias
corresponderam, por um lado, à reelaboração da memória, da estrutura da experiência e
do sistema perceptivo, e, por outro, à canalização de um desejo para continuar movendo
o projeto de escrita de cada um.

234
No caso de Borges, esse desejo mobilizador é dado por sua vontade de escrita,
com o intuito de ir sempre mais fundo nas possibilidades da ficção170; já com relação a
Mattoso, esse desejo mobilizador é dado pelo delírio da escrita, com o intuito de seguir
um fluxo desejante que extravasa o texto por todos os lados. Consequentemente, ambos
fazem da cegueira o objeto e terreno sobre o qual se assenta as suas obras – mesmo no
caso das obras dos períodos videntes de cada um –; porém, talvez até por conta disso, o
projeto estético de cada um é diametralmente oposto ao do outro.

Mattoso opera um movimento centrífugo da literatura, pois procura sair da


linguagem fazendo uso dela ao passo que Borges engaja um movimento centrípeto, pois
procura sempre ir mais fundo para dentro dos labirintos criados pela linguagem com o
intuito de também ultrapassá-la. Além disso, Mattoso preocupa-se com a facticidade do
corpo, com a dimensão obsessiva e passional que o corpo mobiliza com o masoquismo,
a podolatria e a homossexualidade – ferramentas que são, a um só tempo, estéticas,
políticas e literárias; já Borges preocupa-se com a racionalidade, o mistério e a discussão
de grandes temas humanos, filosóficos e literários.

Com isso, a abjeção e negatividade de Mattoso, que é retratada por temas baixos
e pela posição de subalternidade, é contrastada pela especulação, positividade e
tratamento de elevados temas e motivos literários trabalhados por Borges. Nesse
contexto, a cegueira, assumida como uma perspectiva, encontra entre um projeto literário
e outro a incomensurabilidade da vida, num jogo de espelhos que apresenta o
caleidoscópio por inteiro: como um conjunto de imagens diferentes e divergentes,
ecoando o estilo (im)próprio de cada autor.

Lévi-Strauss (1989) pondera sobre o processo de mutação constante, que é


característico do universo mítico, argumentando que, muito embora haja uma
permanência da forma como estrutura básica que cria o mito, os seus elementos estão
sempre promovendo novos arranjos em que sofrem deformações e reestruturações
estruturais. Desse ponto de vista, é o arranjo, e não o elemento, que é efetivamente
estrutural e o caleidoscópico é, dentro desse modelo de inteligibilidade, o suporte ou a
condição que torna isso possível:

170
Cf. MÜLLER, Adalberto. Orson Welles: banda de um homem só. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.

235
Essa lógica trabalha um pouco à maneira do caleidoscópio, instrumento
que também contém sobras e pedaços por meio dos quais se realizam
arranjos estruturais. Os fragmentos são obtidos num processo de quebra
e destruição, em si mesmo contingente, mas sob a condição de que seus
produtos ofereçam entre si certas homologias: de tamanho, de
vivacidade de cor, de transparência. Eles não tem mais um ser próprio
em relação aos objetos manufaturados que falavam uma “linguagem”
da qual se tornaram os restos indefiníveis; mas, sob um outro aspecto,
devem tê-lo suficientemente para participar de maneira útil da formação
de um ser de tipo novo: este consiste em arranjos nos quais, por um jogo
de espelhos, os reflexos equivalem a objetos, vale dizer, nos quais
signos assumem o lugar de coisas significadas; esses arranjos atualizam
possibilidades cujo número, mesmo bastante elevado, não é todavia
ilimitado, pois que é função de disposições e equilíbrios realizáveis
entre corpos cujo número é por sua vez finito; enfim e sobretudo, esses
arranjos engendrados pelo encontro de fatos contingentes (o giro do
instrumento pelo observador) e de uma lei (a que preside a construção
do caleidoscópio, que corresponde ao elemento invariante dos limites
de que falávamos há pouco) projetam modelos de inteligibilidade de
algum modo provisórios, pois que cada arranjo se exprime sob a forma
de relações rigorosas entre as suas partes e essas relações têm como
conteúdo apenas o próprio arranjo, ao qual, na experiência do
observador, não corresponde nenhum objeto (se bem que seja possível
que, por esse viés, determinadas estruturas objetivas sejam reveladas
antes de seu suporte empírico, ao observador que jamais as tenha visto
antes, como por exemplo certos tipos de radiolárias e diatoméias).
(LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 52-53)

Como um resto, a cegueira expressa o que sobra de e em cada um: a relação com
a vida, a dimensão ética que ela engaja com relação aos outros – os infinitos outros
presentes e requeridos pela obra –, o silêncio da visão e o invisível da palavra. Ou seja, a
cegueira apresenta aquilo que não pode ser expresso nem compreendido, como a radical
diferença que invade o comum e o ordinário e que é tão fundamental para qualquer projeto
literário.

Contudo, do ponto de vista do escritor, ela é mais singela. É a limitação e o desvio


particular que faz com que o cego possa continuar escrevendo. Procedimento,
personagem, perspectiva. A cegueira se apresenta como tudo isso, porque ela também é
caleidoscópica, mas o seu funcionamento é diferente de um caleidoscópico tradicional.
Enquanto este apresenta em seu conjunto de espelhos a reverberação especular de objetos,
ela apresenta a reverberação do vazio, da noite, da morte, do sonho.

De uma perspectiva literária, por isso, a cegueira sempre acresce à obra o que,
aparentemente, falta, mas esse acréscimo não é uma coisa, pois em Borges e Mattoso esse
acréscimo indica o vazio, o excesso, o desejo. Com isso, a obra nunca fica completa, mas

236
está sempre por acabar, como a longa tradição dos imortais apresentados por Borges ou
como a profusão de cenas sadomasoquistas em Mattoso ou, ainda, como a própria
literatura.

237
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253
10. APÊNDICE

A entrevista abaixo foi realizada por e-mail em agosto de 2022. O próprio Glauco
respondeu o e-mail com as respostas já escritas no dia 2 de agosto, sem precisar de
transcrição. Como o apreço pela grafia é um dos elementos de sua poética, não fiz
nenhuma edição em seu texto, nem mesmo reduzi as respostas.

Entrevista com Glauco Mattoso

Figura 3. Glauco Mattoso em casa. Foto: Arquivo pessoal.

#Paratodosverem: Glauco Mattoso, de olhos fechados, recosta o queixo no "Diccionario Contemporaneo da Lingua
Portugueza", do gramático português Caldas Aulete.

1. Durante a sua fase vidente, seus poemas tinham um trabalho de


espacialização bem marcado, como é o caso de “Jornal Dobrabil”. Porém,
com a fase cega você não teve mais como trabalhar diretamente essa
espacialização. Isso impactou no seu trabalho? Você acredita que continuou

254
trabalhando essa espacialização de algum modo diferente na sua fase cega ou
você abdicou disso?

GM - Tive que abdicar. Somente a dactylographia permittia trabalhar com o cylindro e o


espaçador de forma a montar aquelle concretismo artezanal. No computador, meu
programma para cegos (o dosvox, da UFRJ) até utiliza uma fonte monoespaçada, isto é,
lettra embaixo de lettra com rigorosa comptagem de characteres no fim de cada linha,
mas isso nem de longe lembra a liberdade que eu tinha na machina de escrever, indo e
voltando, inserindo nas entrelinhas, calculando distancias horizontaes e verticaes na area
da folha de papel. Emfim, o concretismo ficou para traz, mas a noção de
experimentalismo verbivocovisual permanesceu viva, appenas transferindo o campo
laboratorial da folha em branco para a tela "fallada", na qual meço o decasyllabo
escandindo-o metrica e rhythmicamente, mentalizando não appenas a tonicidade
syllabica, mas tambem o formato das lettras na linha, a fonte, serifada ou não, caixa alta
ou baixa, tudo por causa da memoria visual, ainda muito nitida, razão, aliaz, da minha
permanente angustia na cegueira.

2. Como era o processo de censura operado pela ditadura empresarial-militar


na década de 1970 e como você procurou subvertê-la?

GM - Na verdade, a censura funccionava mais nas emissoras de radio e TV, nas redacções
e nas editoras commerciaes. Jornaes como o ESTADÃO, JORNAL DA TARDE ou
TRIBUNA DA IMPRENSA chegavam a ter um censor na propria redacção, prohibindo
materias que ja estavam diagrammadas e que eram, na ultima hora, substituidas por
trechos dos LUSIADAS, receitas de culinaria ou simplesmente por janellas em branco.
Cheguei a colaborar no SUPPLEMENTO DA TRIBUNA no tempo em que morei no Rio,
e constatei que as janellas em branco eram mais eloquentes, em termos de protesto contra
a dictadura, que as proprias materias censuradas. No JORNAL DOBRABIL não havia
censura nem autocensura, pois o pamphleto circulava por correspondencia, remettido a
poucos intellectuaes e artistas. Claro que corri o risco de que o poezine fosse parar na
mão de algum cagueta, mas nunca fui chamado a depor na PF, como occorreu com os
editores do tabloide LAMPEÃO DA EXQUINA, no qual tambem collaborei. Mas minha
subversão extrapolou o scenario politico e transgrediu, mais que a auctoridade, a auctoria,
pois anarchizei as noções de originalidade, plagio, apocrypho, parodia e pastiche, numa
estrategia de coprophagia da anthropophagia oswaldiana que ja explicitei alhures.

255
3. Como foi a sua transição para a sua fase cega? O que você teve que reelaborar
em termos de produção artística para poder continuar publicando?

GM - Foi uma transição muito traumatica e dolorosa, pois eu, embora deficiente
progressivo, estava accostumado às artes visuaes (alem da pagina impressa, as
illustrações, photos, desenhos, cartuns, quadrinhos), lembrando que tambem collaborei
em gibis e zines, em revistas pornographicas e na grande imprensa. A perda total da visão
me fez pensar em parar de vez com a creação litteraria e, durante alguns annos, dediquei-
me appenas à producção musical, editando (com meu socio Portuguez, batterista da banda
punk Garotos Podres) CDs de rock independente pelo sello Rotten Records. Depois de
participar da traducção da obra completa de Borges (premiada com um Jaboty) foi que
adquiri meu primeiro computador fallante e descobri que poderia retomar a carreira
poetica, desde que adoptasse uma esthetica differente das vanguardas mais radicaes. A
solução foi practicar o experimentalismo "por dentro" do poema, entre a thematica e a
forma fixa, em vez de anarchizar "por fora", isto é, no contexto da pagina impressa,
illustrada ou diagrammada. O sonnetto, claro, foi a formula que priorizei, mas varias
outras foram empregadas e até "inventadas", como o dissonnetto, o limeirique
reformatado, o madrigal glosado ou o infinitilho.

4. Um de seus primeiros trabalhos quando já estava cego foi a tradução de


Fervor de Buenos Aires, de Jorge Luis Borges. Esse é o livro de estreia de
Borges e, de certa forma, dada a sua cegueira, é um livro de estreia seu
também. Qual foi a importância desse livro e da figura de Borges em sua
trajetória?

GM - Foi maior a importancia da figura de Borges que da propria obra. Embora a obra
inaugural tenha, comparativamente, a mesma importancia de PAULICÉA
DESVAIRADA do Mario, Borges me marcou mais pelas inevitáveis comparações
biographicas que pela maravilhosa bibliographia, pois me identifico tambem com outros
cegos e glaucomatosos, como Milton, Adheraldo ou Joyce. Borges, como esses auctores,
foi fundamental na minha comprehensão da cegueira como questão philosophica, ou seja,
não como essencia humana, mas deshumana e, portanto, excepcional, singular, pessoal,
emfim, exsistencialista. Em certa medida, endosso estas palavras attribuidas a Borges
num texto do meu blog commentado mais addeante:

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{Um escriptor, um artista ou qualquer pessoa deveria ver nas coisas que lhe succedem
uma como ferramenta, deveria pensar que tudo lhe é dado com alguma finalidade. O que
lhe accontesce, inclusive as humilhações, fracassos, desgraças, é-lhe dado como uma
argilla, como materia para sua arte. É preciso tentar beneficiar-se disso. Taes coisas nos
foram destinadas para as transformarmos, a fim de que, a partir das circumstancias
dolorosas de nossas vidas, possamos fazer algo de eterno ou que adspire a sel-o. Si um
cego pensar dessa maneira, estará salvo. A cegueira é uma dadiva.}

5. Como foi o processo de tradução de Fervor? O que você procurou destacar


em sua tradução?

GM - O trabalho valeu pela chance de exercitar uma dicção espontanea, independente de


elaborações mais complexas, pois, ainda sem computador fallante, tive que accompanhar
a leitura em voz alta que Jorge Schwartz (cathedratico de hispanicas na USP e
coordenador da traducção) foi fazendo commigo, pessoalmente ou por telephone, até
chegarmos a um consenso sobre cada poema. Mais livre me senti tempos depois, quando,
já no teclado do dosvox, traduzi sozinho Salvador Novo e Giuseppe Belli, transcreando-
os, em sonnetto, à minha maneira.

6. Como foi o seu processo de cegueira? Você tem algum grau de visão ainda ou
perdeu completamente a visão dos dois olhos?

GM - A cegueira progressiva foi lenta e gradual (costumo brincar que foi lenta e gradual
como a nossa redemocratização septentista), não como o glaucoma de Ray Charles, que
perdeu tudo ainda creança, mas, ao longo de varias cirurgias, consegui addiar a perda do
residuo no olho esquerdo, ja que o direito pifou aos vinte e o esquerdo aos quarenta.
Depois disso, a deficiencia era tal que tive de me apposentar por invalidez e, aos quarenta
e quattro, ja não via mais nada, siquer focos de luz. O glaucoma congenito, como no caso
de Dudu Braga (filho de Roberto Carlos, recentemente fallescido) não depende de
recursos financeiros nem medicinaes, pois fui operado por grandes ophthalmologistas,
como Hilton Rocha, nos septenta, e até no hospital Albert Einstein, da ultima vez, nos
noventa, e mesmo assim ninguem consegue deter essa cegueira.

7. Como se deu a sua relação com as cores em seu processo de cegueira? Você
foi perdendo alguma cor específica?

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GM - Sim, perdi primeiro as nuances do vermelho, que se tornou cinza. Os demais
matizes foram desmaiando mais devagar. O amarello e, por fim, o branco leitoso foram
as ultimas percepções, lembrando que, nos sonhos e na memoria, todas as cores se
manteem nitidas e vivas. A proposito, transcrevo um trecho do ensaio que fiz para
contraponctear uma palestra de Borges, cuja integra pode ser conferida no meu
BLOGOCULAR:

https://blogocular.wordpress.com/2022/08/02/a-negacao-do-negro-borges-e-eu/

{Em 1973, quando ingressei no curso de lettras vernaculas da USP, já estava cego do olho
direito, que não resistira à cirurgia feita no anno anterior para tentar deter o advanço do
glaucoma. Ainda enxergava do esquerdo, porem à custa duns oculos fundo-de-garrafa
que me corrigiam a crescente myopia. Do olho perdido a lembrança mais nitida era a bolla
de luz em que se transformava um simples poncto luminoso, desfocado pelo effeito
myope. Quando a luz era vermelha, a cor desmaiara progressivamente até converter-se
em branco. Quando o vermelho coloria um objecto opaco, sem brilho, era percebido como
um cinza escuro. O vermelho e o verde foram as primeiras cores desapparescidas, mas o
verde, tambem desbotado para o cinzento, não me causava tanta sensação de ausencia
quanto a falta do vermelho. Duas decadas depois, a mesma descoloração se repetiria na
retina do olho esquerdo, prefigurando a cegueira imminente. Ironicamente, emquanto eu
perdia o vermelho de vista, a vista ganhava um tom advermelhado em seu adspecto
exterior, devido à hemorrhagia interna. Não por acaso dei às tonalidades rubras a mesma
emphase com que Borges decantava o escarlate.}

8. Você fala muito em entrevistas sobre a importância da memória na sua fase


cega, em como ela te ajudou a construir imagens, recordar sonoridades,
reafirmar traumas etc. Queria que você comentasse, por outro lado, o papel
do esquecimento. Qual a importância de esquecer, por exemplo, determinados
temas para focar em outros?

GM - Não creio que algo possa nem deva ser appagado da memoria, seja facto ou thema
bom ou mau, desfructado ou soffrido. Do contrario eu teria que ser adepto, conforme um
de meus auctores predilectos, duma postverdade ou dum duplipensar, tendo que
reescrever a historia de tempos em tempos. Não. Inclusive por uma questão neurologica,
psychica, tenho que manter as connexões cerebraes bem activas, para compensar a falta
do estimulo visual, da leitura, das imagens na tela, para não ficar esclerosado antes do

258
tempo. (rindo) O que pode occorrer é o seguinte: ao contrario do que pensam alguns, não
batto sempre na mesma tecla (excepto quando usava a lettra "o" minuscula para compor
os graphismos no DOBRABIL) e não thematizo appenas as maldades, fealdades e
sujidades que mais chamam a attenção dos observadores, pois, por traz duma scena pornô
ou escatologica, sempre alguma questão psychologica, social, politica, economica ou
ecologica está sendo posta em debatte. Embora alguns adspectos sejam mais recorrentes
que outros, todos podem ser temporariamente preteridos, mas accabam por retornar à
pauta lyrica, caso, por exemplo, das reminiscencias infantojuvenis ou das conjecturas

philosophicas ou religiosas.

9. Qual a importância da grafia para o cego? Você já deu entrevistas falando


sobre a questão política da Reforma Ortográfica, sobre o fetiche da forma e
em seu blog afirmou que a escrita é o “patrimonio ambiental da falla”. Entre
essas três coisas – a questão política, o fetiche e o interesse pela escrita – você
vê alguma associação?

GM - Sim, sem duvida. É como occorre com o perfil ideologico dum militante de qualquer
causa: uma questão de coherencia entre theoria e practica, entre attitude e preferencia. Si
sou adepto da democracia, não a defendo só porque seja ethicamente mais correcta, mas
tambem porque me dá mais liberdade de excolher o que prefiro ler, assistir, vestir, comer
ou desejar eroticamente. Em summa: mesmo sendo contradictorio, como todo mundo
eventualmente pode ser, me engajo de corpo e alma, coração e mente, naquillo em que
accredito, ou seja, a construção exsistencialista dum “eu biográfico” que seja, ao mesmo
tempo, cumpridor duma "missão" espiritual, tal como no kardecismo, e coadjuvante numa
collectividade pluralista e diversificada, digna de representatividade no plano social e
politico. Dentro desse contexto, reconhesço a necessidade duma norma official que seja
adoptada na alphabetização e nos curriculos escholares, mas tambem defendo a liberdade
do escriptor que adopte, como Belli, Pessoa ou Lobato, sua propria norma orthographica,
pois uma coisa não exclue a outra.

10. Como você trabalha a questão das imagens em seus poemas? Você acha que
a cegueira interferiu na produção delas? Se sim, de que modo?

GM - A cegueira me bloqueou o accesso a varias coisas, como às redes sociaes, muito


dependentes do factor audiovisual. Mas não me bloqueou a memoria, de modo que posso
reconstituir ou construir quaesquer scenarios para ambientar minha poesia ou prosa, sem

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risco de inexactidão ou impropriedade. Si necessario, recorro à audiodescripção de
alguem para formatar na mente uma scena de filme, de reportagem, de gravação via
cellular ou registrada por photo ou illustração artistica. Em termos creativos, portanto, a
cegueira nada altera. Só altera no dia a dia, quando fico dependente da adjuda ou da
vontade dos outros e perco minha autonomia.

11. Seus textos poéticos trabalham, em geral, com formas fixas de poemas. Porém,
dada essa limitação, você diversifica e experimenta as formas, criando um
processo de combinação formal praticamente infinito. Quais critérios você
usa no seu processo de experimentação?

GM - Parto do principio de que, em arte, nada se cria, tudo se copia... ou se reinventa.


Quando accrescento mais versos ao sonnetto e transformo tercettos em quartettos, não
estou innovando, pois o estrambotte é prova de que algo ja foi testado. Quando uso o
madrigal como motte glosado, não estou creando um novo genero, pois até a chave de
ouro do sonnetto ja foi motte. Nem o infinitilho é algo totalmente original, pois a rhyma
estrophicamente parallela pode ser ordenada num eschema illimitado, donde o tamanho
variavel da estrophe e a denominação que cunhei, "infinitilho". O artista appenas
experimenta, mas não inventa... (rindo)

12. Como você pensa o ritmo no processo de produção dos poemas? Você usa, por
exemplo, apenas as sonoridades das palavras ou busca a construção de
alguma imagem por meio do som?

GM - No decasyllabo heroico, por exemplo, verso que practico com maior frequencia, o
rhythmo está bem definido pela tonicidade na segunda, sexta e decima syllabas. Mesmo
antes da cegueira, eu ja metrificava com os dedos duma mão, battidos em sequencia como
si tamborilassem na mesa, marcando o compasso dum samba, zidum, ziriguidum,
ziriguidum, onde o som de "dum" coincide com o accento tonico. Quando, na hora de
compor, surge duvida na articulação de determinada syllaba, penso no dedo que ella
occupa e na posição numerica desse dedo, practicamente "visualizando" e tacteando, ao
mesmo tempo, o correcto compasso. Claro que, depois de muitos annos de practica, o
verso sae prompto da cabeça, sem necessidade de batter os dedos a cada linha.

13. Você já citou a coprofagia como um recurso para se manter, de certa forma,
na vanguarda. Uma vanguarda pós-moderna que se volta para a tradição
para subvertê-la. Porém, dado todo esse período que você vem trabalhando

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com essa atitude e estética coprofágicas, você não acha que já esteja se
transformando em tradição? Como o seu experimentalismo hoje lida com o
problema da originalidade artística?

GM - Acho que essa questão ja ficou respondida accyma, mas reitero que a originalidade
não pode ser um problema. Original não tem que ser a obra, mas o auctor. Cada auctor
deixa a sua marca exsistencial. Um sonnetto de Drummond não é tão differente nem
innovador em relação a um sonnetto de Camões, mas as impressões digitaes
drummondiana e camoneana sempre serão distinctas. Com a orthographia à guisa de
detalhe ornamental, a lyra mattosiana não corre risco de ser confundida com a
drummondiana ou a camoneana... (rindo)

14. Aos 70 anos, você ainda é bastante ativo e tem realizado para mim os seus
melhores trabalhos. Como a pandemia e a questão política aparece para você
hoje não só em termos de tema para os seus poemas, mas também com relação
à sua vida concreta.

GM - Concordo que a edade traz a maturidade tambem na creação artística e na percepção


da realidade, momentanea ou historica. Sou da geração do postguerra e não vivi as crises
decorrentes dos dois conflitos mundiaes, mas tenho informação sufficiente para saber que
a crise financeira de 1929 ou a hyperinflação da republica de Weimar teem parallelo com
a crise brazileira immediatamente anterior ao plano real. No caso da pandemia, vivi a
guerra mundial que meus paes viveram, não em termos de excombros de bombardeios,
que no Brazil não occorreram, mas em termos de paranoia da agonia em larga escala, da
morte em massa, do desabbastescimento e da desassistencia. Como numa guerra, os
sobreviventes junctam os cacos e tocam o barco. No caso das vicissitudes democraticas,
ja passamos por momentos peores e sobrevivemos para entendermos que tudo é cyclico,
pode se repetir, mas tambem pode ser evitado ou combattido pela mobilização e pela
resistencia cultural.

15. Em seus textos a questão da cegueira aparece junto com o masoquismo, a


homossexualidade e a podolatria. Essas quatro coisas aparecem também
como elementos presentes em sua vida. Como você pensa os seus poemas por
meio dessa articulação entre literatura e vida?

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GM - De facto, você identificou os traços
characteristicos no DNA do meu "eu lyrico", que,
na minha concepção, tem que ser coherente com
meu "eu biographico". Dum lado, o espiritismo
(meu pae era kardecista e minha mãe catholica) e,
doutro, o exsistencialismo, conciliam as possíveis
contradicções que explicam minha condição de
cego que enxergou, de victima de bullying que
transformou o trauma em consolo masochista, de
capacho que se tornou chinello velho, de estuprado Figura 4. Glauco Mattoso podólatra. Foto:
Arquivo pessoal.
que se tornou escholado. Parto do principio de que
#Paratodosverem: Glauco Mattoso com a boca
o poeta, pessoanamente, tem todo o direito de aberta segura um pé de madeira, que parece
querer entrar em sua boca.
exaggerar, de dramatizar e de phantasiar, mas não
de ser infiel à propria biographia. Por isso não temo o risco de ser hyperbolico e prefiro
não ser hypocrita. Me indigno com as injustiças, divinas ou humanas, sociaes ou pessoaes,
mas tenho commigo que faço parte duma civilização, ou duma barbarie sophisticada, na
qual a hierarchia dos sortudos em relação aos azarados perpassa todas as eras historicas e
na ONU as terras de cego continuam governadas por reis zarolhos. Si minha poesia
reflecte minha phantasia tanto quanto retracta minha realidade, não nego que me vejo
como um cego hindu de casta inferior que, respaldado no KAMA SUTRA, serve de
pedicure buccal e fellador aos videntes de castas superiores. Não por acaso, a experiencia
de ter sido oralmente utilizado como jogo orgastico pelos normovisuaes, bem como
comforto podologico, segue sendo uma das pulsões mais fortes e ferteis da minha creação
poetica. Dahi por que, antes de ser estudado como um caso de homosexualidade ou de
cegueira, tenho sido enquadrado como um caso "queer", ou seja, excentrico em relação
ao phallocentrismo ou às genitalidades em geral, incluindo as analidades. Por isso mesmo
digo que danso na chorda bamba da singularidade em meio à pluraridade. Um cego com
lettreiro na testa na terra dos cegos marcados a ferro em braza. (rindo)

16. Seus poemas são muito narrativos e constroem cenas com imagens vívidas.
Você já falou muito da relação de sua poesia com o teatro, mas essa relação
também não poderia ser pensada a partir do cinema?

GM - Claro que sim. No livro O CINEPHILO ECLECTICO dei varios exemplos dessa
symbiose e, em cyclos como "O cego e os capitães" (do livro DESILLUMINISMO EM

262
DISSONNETTO), faço directas analogias, no caso, com o livro de Jorge Amado e com o
filme de Buñuel. O proprio romance lyrico RAYMUNDO CURUPYRA, O CAYPORA,
ganhador dum Jaboty, daria um ropteiro de longa metragem.

17. Você trabalhou temas que não era consenso pelo mainstream da esquerda,
como a podolatria. Como você vê hoje, após a majoritária aceitação da
sociedade para a questão da homossexualidade, o problema da “higienização”
das práticas sexuais.

GM - O problema da esquerda é que sempre chegou attrazada na hora de encampar as


especificidades das minorias, depois de ter compactuado tacitamente com a direita,
durante decadas, na perseguição aos gays. Agora que, antes tarde do que nunca, a
esquerda se syntoniza com as causas minoritarias, ella propria pisa em ovos nessa
palhaçada do "politicamente correcto", na rabeira das crises sanitarias, como as da AIDS
ou da covid. Para peorar as coisas, ella, a esquerda, não consegue lidar com practicas
contraculturaes como a escatologia ou o sadomasochismo, este contrariando a noção
egualitaria tão cara às ideologias socialistas, ja que envolve convivencias entre
dominadores e dominados, entre individuos racial ou socialmente antagonicos, entre
liberdades e oppressões. Nesse contexto, a esquerda não sabe siquer como encarar um
filme pornô para cegos, uma audiodescripção de scena SM protagonizada por
personagens politicamente incorrectos, practicantes de discursos tidos como
"preconceituosos", "racistas" ou de "abuso de vulneravel"... Tadinha da esquerda! (rindo)
Fico com pena, pois me sinto libertario e solidario às causas sociaes mais collectivas...

18. Como você lida com a questão da internet hoje? Acompanho suas postagens
no Facebook que são atualizadas pelo Akira e percebo também que você tem
publicado muitos e-books.

GM - Veja que ironia... Justamente quando a pandemia paralysou o mercado editorial e a


vida cultural, foi quando contractei um webmaster para, remotamente, publicar todos os
livros que ja não teriam chance de sahir impressos por alguma editora, fosse commercial
ou alternativa. Com o passar dos mezes, publiquei mais de cincoenta titulos em dois
annos, um rhythmo muito mais accelerado que antes da quarentena. Mas toda essa
productividade depende, logicamente, de quem me adjude nas plataformas virtuaes e nas
redes sociaes, pois, sozinho, tenho autonomia apenas para trocar emails no computador
fallante, ja que nem mesmo uso cellular... (rindo)

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19. Como se deu o seu processo de leitura com a cegueira? Você lê e-books, livros
físicos em alto relevo, alguém lê os livros para você ou você só rememora os
livros que leu em sua fase vidente?

GM - Nunca me adaptei ao braille e só consigo ter paciencia com este computador


fallante, que me lê/sonoriza textos ja convertidos ao formato TXT. Não tenho paciencia
com audiolivros, nem accessibilidade às plataformas sonoras. Mas curto quando alguem
lê para mim um jornal diario ou um livro. Actualmente estou namorando um dispositivo
ultramoderno chamado orcam-myeye, que escanneia e transforma em som quaesquer
textos em quaesquer superficies, paginas impressas, rotulos, bolletos, emballagens, o que
for, mas essa modernidade é uma invenção israelense que sae cara demais, por emquanto,
para que esteja ao alcance do meu bolso... (rindo)

20. O que você acha da literatura hoje? Tem lido muitos textos recentes ou só os
mais antigos?

GM - Não dá tempo, salvo em raras excepções, para ler novidades, por isso revisito os
classicos que ja conhesço e procuro conhescer um pouco do que ficou faltando, antes que
os annos passem e eu nem consiga comer todos os bollos e puddins que mal posso
saborear por causa do quadro diabetico... (rindo) Mas dá para perceber que, tal como
occorre nas demais artes, a litteratura passa por immensa crise de mediocridade nessa
postmodernidade que paresce interminavel. Fico torcendo para que, cyclicamente
retornando, alguns ismos sejam objecto de algum renascimento, typo um
neoneoclassicismo phantastico ou um neoultraromantismo delirante... Só não quero que
o mattosianismo se torne uma corrente, pois prefiro continuar isolado como um caso de
exquisitice pathologica, pero no mucho.

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