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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA
DOUTORADO
NITERÓI – RJ
2022
BARUC CARVALHO MARTINS
Orientador:
Prof. Dr. Adalberto Müller Junior
NITERÓI – RJ
2022
BARUC CARVALHO MARTINS
______________________________________________________________
Prof. Dr. Adalberto Müller Jr. – UFF
Orientador
______________________________________________________________
Prof. Dr. Hernán Ulm – Universidad de las Artes, Buenos Aires
______________________________________________________________
Profª. Drª. Viviana Bosi – USP
______________________________________________________________
Profª. Drª. Diana Irene Klinger – UFF
______________________________________________________________
Prof. Dr. Franklin Alves Dassie – UFF
SUPLENTES
Denilson Lopes Silva (ECO-UFRJ)
Erick Felinto de Oliveira (UERJ)
NITERÓI – RJ
2022
AGRADECIMENTOS
1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………………...14
I - A NOITE DA MEMÓRIA
2. TRADUÇÕES DE CEGO, TRAIÇÕES DE VIDENTE……………………………..20
2.1 Entre o olhar e a visão.................................................................................................42
2.2 A memória dos cegos.................................................................................................64
2.2.1. Borges e a memória................................................................................................68
2.2.2. Mattoso e a memória..............................................................................................76
3. OS LIVROS QUE NÓS SOMOS TÊM LÍNGUA?......................................................82
3.1 A Babel de Borges......................................................................................................83
3.2 A Babel de Mattoso....................................................................................................97
II - A NOITE DA EXPERIÊNCIA
4. PERCEPÇÃO, CONSCIÊNCIA E SENTIDO NA ESCRITA DE BORGES E
MATTOSO....................................................................................................................111
4.1 A cegueira física.......................................................................................................113
4.2 A questão do método: a cegueira como vida ou como literatura...............................118
4.3 Experiência e energia: a transformação da estrutura da experiência.........................122
4.3.1 Percepção visual e os sentidos de si.......................................................................124
4.3.2 Mattoso e Borges: a visão aquém e além do olhar..................................................132
4.4 Passagens tecnoliterárias: Baudelaire, Mattoso e Borges.........................................140
5. A NOITE E A MORTE: O GESTO E A ÉTICA DA ESCURIDÃO..........................151
5.1 Narrativa do sonho e da morte..................................................................................152
5.2 Sonho e morte em Borges.........................................................................................154
5.3 Sonho e morte em Mattoso.......................................................................................167
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................234
9. REFERÊNCIAS…………………………………………………………………….238
10. APÊNDICE: ENTREVISTA COM GLAUCO
MATTOSO....................................................................................................................254
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1
“Ser cego tem suas vantagens. Eu devo à sombra alguns dons: devo-lhe o anglo-saxão, meus parcos
conhecimentos de islandês, o prazer de tantas linhas, de tantos versos, de tantos poemas, e de ter escrito
outro livro, intitulado com certa falsidade, com certa jactância, Elogio da Sombra.” (BORGES, 2000b, p.
317)
2
Mattoso utiliza uma ortografia própria como resposta crítica ao Novo Acordo Ortográfico, celebrado por
Brasil, Portugal e demais países de Língua Portuguesa na década de 1990 e que passou a valer em 2012.
3
Esse texto não foi publicado impresso, apenas on-line, em um blog que Mattoso administrava. Tive acesso
a ele por meio do próprio Mattoso, via comunicação eletrônica, a quem agradeço imensamente. Atualmente,
o texto pode ser acessado em: https://www.musarara.com.br/a-cegueira-como-maldicao.
1. INTRODUÇÃO
Glauco Mattoso, por seu turno, poeta paulistano que ficou cego aos 44 anos, em
meados da década de 1990, não vê a noite – termo que aparece em Borges para designar
ora o desconhecido, ora a cegueira – como uma possibilidade para a escrita, mas para a
perversão. Ao contrário de Borges, Mattoso volta-se para o trauma que sofreu em sua
infância ao ser pisoteado e violentado por adolescentes de seu bairro para produzir uma
obra literária extensa em que ganham centralidade a abjeção, o masoquismo e a cegueira.
Dentro desse mundo estranho e abjeto, o kaleidoscópio de Mattoso é o espelho invertido
do caleidoscópio de Borges: ambos olham para temas e assuntos bastante próximos, mas
de perspectivas completamente distintas.
4
Não se tratará aqui de uma interpretação geral da obra literária de J. L. Borges ou de G. Mattoso, mas de
um recorte específico – a cegueira – feito para pensar a relação entre vida/corpo, signo/obra. Sobre a noção
de signo e obra, ver Deleuze. Cf. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª ed. Tradução de Antonio Piquet
e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
14
Desse modo, cegueira e escuridão tornaram-se elementos importantes em grandes
projetos literários5. Porém, se cegueira e escrita comparecem no modo de composição da
obra, como pensar essa relação a partir de um poeta cego? O que ele coloca em jogo
quando capta os signos literários, quando recorta o espaço sensível do mundo, quando
configura a sua dicção? Assim, é com o intuito de investigar essas relações que esta tese
busca justapor, comparativamente, as produções de Jorge Luis Borges e Glauco Mattoso,
escritores que se tornaram cegos durante a vida.
Com isso, novas questões surgiram por meio da relação das obras com a cegueira,
como a mobilização de um novo tipo de memória, de uma nova estrutura da experiência
e de uma articulação própria que autores cegos estabelecem com a literatura – seja em
relação ao autor, seja em relação ao leitor, à obra ou à tradição literária. Questões que,
por exemplo, articulam problemas que se interpenetram, pois não há como desvencilhar
memória, experiência e literatura no texto literário.
5
John Milton em Paraíso Perdido, James Joyce em Ulysses, entre outros. Do ponto de vista da crítica
literária, Paul De Man (1983) buscou analisar a cegueira como uma forma de interpelar na própria crítica
algo de mais urgente e essencial do que o meramente dito.
6
Essa palavra guarda uma ambiguidade intrínseca. Em um sentido, diz respeito às pessoas que enxergam
com os olhos, ou seja, refere-se aos que clinicamente são chamados de normovisuais. Em outro sentido, diz
respeito àqueles indivíduos que são dotados de uma capacidade de prever o futuro.
15
Assim, a presente tese é dividida em três partes, uma divisão meramente
instrumental – já que há uma codeterminação entre essas três partes na obra dos autores
analisados –, que visa dar conta de múltiplas perspectivas na análise da memória, da
experiência e da literatura. Na primeira parte, investiga-se o problema da memória na
passagem entre a fase vidente e a fase cega de cada autor. Argumenta-se sobre essa
questão que a cegueira despertou neles um sentido novo para o fazer literário, pois
promoveu uma atenção maior, uma revisitação de formas literárias antigas – como o
soneto – e uma intensificação na recorrência e desenvolvimento de temas e
procedimentos, como a noção de escrita aliada à biblioteca, em Borges, e a repetição da
tara e do fetiche como motivo para reabilitar a violência sofrida, como ocorre em Mattoso.
16
sobre isso, por meio das noções de sentidos de si de Daniel Stern, que há a presença de
um elemento não linguístico que comparece no momento da escrita e que reelabora as
suas estratégias.
Ainda assim, esse registro não fica só para além da linguagem, mas também se
articula no nível imediatamente linguístico, como é o caso das construções metafóricas
que apontam para um campo de experiência em que a noção de noite aproxima-se da
noção de morte e, entre elas, constiui-se uma rede de implicações entre o corpo do escritor
e a obra, a cegueira física e a cegueira literária – o que expressa, nesse modo de relação
que é propiciado pela cegueira, um tipo de ética.
Além disso, também se esboça nessa segunda parte uma tentativa de pensar a
condição física do autor em termos propriamente literários. Argumenta-se para a relação
dúbia que se estabelece entre morte e cegueira e como isso, por meio de análises literárias
e dos Disability studies, um campo de pesquisa estadunidense que problematiza a questão
da deficiência física como uma potencialidade, pode indicar uma reflexão sobre o próprio
fazer literário e sobre a relação com o outro.
Essa relação com a vida, porém, não tem como objetivo, frise-se, fazer uma
análise histórica e cultural detalhada, pois o que se procura é uma abordagem especulativa
sobre a relação que a cegueira engaja ao se analisar, comparativamente, a vida e a obra
dos autores – visto que a inexistência de um corpus teórico para o problema que investigo
me forçou a criar ferramentas conceituais de análise, pois não me interessa a biografia,
mas o bíos que comparece no momento da escrita.
Na terceira e última parte, investiga-se a cegueira por meio da própria tradição
literária e da articulação entre autor e leitor cegos na composição de suas obras. Busca-se
pensar a cegueira como uma possibilidade para a literatura, como um elemento integrante
de sua própria estruturação interna. Desse ponto de vista, não haveria literatura sem
cegueira – assim como para De Man (1983) não há legibilidade na leitura sem a cegueira
que é constituinte dessa mesma leitura.
Com efeito, para tal empresa, inquire-se sobre o estatuto epistemológico e literário
da cegueira na obra de Borges e Mattoso com o objetivo de mapear o modo como ela
aparece como um problema nas suas obras. As relações entre a fase cega e a fase vidente
são justapostas e combinadas, de modo a reler ambas as fases para pensar a existência de
algum nível de articulação (in)comum que se apresenta por meio da cegueira. Essa
17
articulação, porém, só pode ser assumida de um ponto de vista narrativo – o que recoloca
o problema metodológico.
18
I – A NOITE DA MEMÓRIA
19
2. TRADUÇÕES DE VIDENTE, TRAIÇÕES DE CEGO
É assim que Homero, por isso, segundo aponta Pierre Vidal-Naquet (2002),
guardava no próprio nome – em tradução livre do grego antigo: “aquele que não vê” –, a
interferência profunda de um desvio da visão como artifício integrante de sua poética. A
possível cegueira de Homero, se o Homero histórico de fato houver existido, ratifica a
posição de Augusto de Campos (1978, p. 84), segundo a qual a poesia tem mais a ver com
a música e a arquitetura do que com a literatura7. O Homero da Ilíada colocou uma
tradição de pé por meio da oralidade, de um cultivo de palavras que não possuía no papiro
ou no papel – pelo menos não de modo massivo – a marca de uma “visualidade” que lhe
fosse útil para assegurar um interesse visual antes do que um interesse imaginativo.
7
Segundo Paul De Man, essa é uma tópica comum nas teorias da representação presentes no século XVIII
(DE MAN, 1983, p. 124).
20
corretamente pensada quando se leva em consideração o dado fático de um contexto pré-
literário que repercute num sistema de composição próprio, gerado pela repetição de
segmentos fixos de frases que estão presentes na transmissão oral da linguagem cotidiana
e, mais especialmente, da linguagem poética, isto é, da linguagem empregada por poetas
antigos (PARRY, 1971, p. 329). Mudou-se, em mais de 2500 anos, além disso, a própria
concepção de leitura e, com ela, o papel do autor e da obra – inclusive, e mais
substancialmente, em sua materialidade.
O ilustre Homero não tinha motivos para se preocupar com a sua assinatura, sua
imagem na mídia, sua construção de homem público. A incerteza que pairou sobre a
existência ou não do Homero histórico revela uma preocupação com a autoria que não
fazia muito sentido em seu período histórico – uma vez que a noção moderna de autor só
se tornou, de fato, importante na modernidade (FOUCAULT, 2009). De todo modo, a
linha que conecta a cegueira à sua obra é a mesma que fez com que os seus textos fossem
eternizados nesses primeiros séculos: sua qualidade de transmissão oral, de
armazenamento mnemônico (PARRY, 1971).
O recurso oral e mnemônico, que consolidou a forma fixa dos versos clássicos,
serviu a Jorge Luis Borges em seu momento de retomada na produção literária, após ficar
cego inteiramente de um olho e parcialmente de outro, em meados dos anos de 1950.
Considerado um Homero criollo pela reverência e comparação que estabelecia com o
poeta grego, Borges operou um retorno ao modo de escrita de Homero para garantir o
controle do processo criativo (SCHITTINE, 2016, p. 356-357), haja vista que a perda da
visão o deixou dependente tanto da atividade de leitura, por meio da necessidade de
ledores que fizessem o trabalho de repassar o texto para ele, quanto de escrita, por meio
do trabalho de amanuenses, profissionais que cuidam da transcrição oral dos textos. O
que terá contribuído para a incorporação da métrica clássica, com sua sonoridade rítmica
bem marcada, visto que era mais fácil de recordar. Muito mais fácil, aliás, do que a
estrutura sintaticamente complexa e truncada dos textos em prosa, que só mais tarde
voltaria a explorar. Segundo Borges,
21
O verso rimado é, pode-se dizer, portátil. Pode-se andar pela rua ou
estar no metrô enquanto se compõe e aprimora um soneto, pois a rima
e a métrica possuem virtudes mnemônicas. (BORGES, 2009, p. 70).
Esse Borges cego, todavia, não se encontrou, desde o início, lapidado. Foi sendo
construído aos poucos, como resultado de um processo de cegueira que se anunciava
desde cedo. Borges teve uma cegueira crônica (WALTER, 2017)9 que, paulatinamente,
foi lhe deixando no escuro. Essa doença era familiar, seu pai e bisavô também a tiveram.
Além disso, diversos outros familiares de Borges também ficaram cegos durante a vida
(SCHITTINE, 2016).
No início de 1990, ou seja, por volta de 40 anos depois da cegueira do escritor
argentino, Glauco Mattoso, poeta paulista, também ficou cego; mas, contrariamente a
Borges, a doença deveu-se ao glaucoma. Também como Borges, Mattoso passou por um
processo de reelaboração da memória por meio da produção de rascunhos mentais e orais
(ALVES, 2004, p. 13). O intuito desse procedimento era o de garantir uma reserva de
informações que fosse necessária para a constituição de seu estilo. Segundo Mattoso, com
a cegueira, o seu processo de criação se tornou até mais visual:
8
Retomo aqui o texto “A arte narrativa e a magia”, presente no livro Discussão, publicado em 1932, em
que Borges defende que a ficção deve operar por meio de uma lógica de causalidade própria. Cf. BORGES,
Jorge Luis. “A arte narrativa e a magia”. In: BORGES, Jorge Luis. Obras completas de Jorge Luis Borges.
Tradução de Joseley Vianna Batista. São Paulo: Globo, 1998, vol. 1, p. 240-247.
9
Não é claro entre os biógrafos de Borges qual seria a oftalmopatia responsável por sua cegueira. As
especulações vão desde o glaucoma crônico, passando por complicações de miopia até catarata
(SCHITTINE, 2016). Segundo Mario Enrique de la Piedra Walter (2017), que analisou as obras, entrevistas,
documentos e biografias de Borges com o objetivo de realizar um diagnóstico etiológico da cegueira, a
causa mais provável é a de um tipo de miopia degenerativa (WALTER, 2017, p. 193).
22
trabalho na memória um “salvamento de arquivos” tão eficaz que
dispensa gravador ou ditado, e mantém o poema guardado na cabeça
durante uma noite, entre a insônia, o sono e o sonho, para ser
“recuperado” na manhã seguinte, já digitado no computador falante.
(MATTOSO, 2004a, p. 196)
Ensaístico [241]
10
Ao invés do eu lírico, figura que comparece para explicitar uma subjetividade no poema, Mattoso trabalha
com o eu dramático, porque toda a sua construção poética é sempre encenada, teatralizada, performática.
23
Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:
Na universidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida. (MATTOSO, 2004b, p. 131)
11
A construção desse termo é defendida por Mattoso em Manual do podólatra amador, pois possui uma
escrita mais vernacular e econômica para designar o desejo a tudo que envolve os pés (MATTOSO, 2006,
p. 15-16).
24
Destarte, a poética de Mattoso se constituiu na fricção entre uma forma pura –
com o uso do soneto e do decassílabo heróico12, o pé clássico – e um conteúdo impuro13.
Ele procurou manter nos últimos anos a grafia das palavras com a forma anterior à dada
pela Reforma Ortográfica promovida pelo governo de Getúlio Vargas, em 1938, com o
objetivo de contestar politicamente a imposição ortográfica, e assumiu a sátira e a
manipulação irônica como técnicas que permitem ao poeta “sonetar o soneto”, num
projeto estético que deglute os objetos literários por um processo que vai além da
antropofagia oswaldiana ao recolocar na máquina antropofágica o que foi vomitado por
ela. A esse procedimento, Glauco, o novo antropófago, dá o nome de coprofagia
(MATTOSO, 2004a, p. 200-201).
Nesse sentido, a cegueira em Mattoso faz uso do humor e do
erotismo/pornográfico14 como procedimento de despressurização da malha sensível que
hierarquiza socialmente os indivíduos e desejos, ou seja, Mattoso subverte as relações
sociais e o ordenamento dos corpos ao investir num desejo abjeto que circula livremente
por objetos que se tornam sensíveis por meio do olhar caleidoscópico do eu dramático.
Essa desorganização diz respeito ao movimento de explicitação e crítica da norma sexual
que conforma e rebaixa os desejos nos corpos a uma relação convencionalmente marcada
entre pênis, vagina e seios, já que, consoante Judith Butler (2017), o discurso que reduz
a prática sexual a um desses três elementos não passa de uma fantasia literalizante que
institui partes do corpo como detentoras de prazer e outras não por meio de um ideal
normativo de um corpo já portador de gênero específico:
12
Ver entrevista no final da tese.
13
Isso aparece em vários livros da fase cega de Mattoso, mas, especialmente em O poeta pornosiano
(2011b), livro que trabalhei no mestrado, esse procedimento é mais patente.
14
Para efeito de definição conceitual, não faço distinção entre erotismo e pornografia. O termo significa
uma prática de engajamento libidinal que tanto pode servir para sugerir quanto para realizar diferentes
formas de práticas sexuais. Tal orientação é também acompanhada por Mattoso no Manual do podólatra
amador (2006). Para Mattoso, assim, a relação libidinal é sempre uma relação de transgressão com relação
a uma lei.
25
morrerão está frequentemente ligada a qual deles serve às práticas
legitimadoras de formação da identidade que ocorrem na matriz das
normas de gênero. (BUTLER, 2017, p. 127)
Consequentemente, Mattoso tanto dota a sua escrita de uma crítica social que
critica a norma sexual, que diz o que deve ser motivo de gozo, quanto utiliza do
mecanismo da pornografia para engendrar um discurso político – algo que é comum na
história da pornografia, mas que só perdeu proeminência no século XIX (HUNT, 1999).
Além disso, ele questiona os limites da literatura (entre baixa e alta, por exemplo) e, mais
à fundo, põe em evidência o lugar físico/corporal/desejante da poesia por meio de um
jogo sintático e discursivo que está menos preocupado com a construção de símbolos e
metáforas, como acontece nos textos de Borges, do que com a intensidade que surge da
ambiguidade de palavras e expressões que são geradas por meio de seus efeitos de sentido.
Consequentemente, ao fazer esse desejo circular pelo corpo do texto, ele critica, a
um só tempo, o corpo socialmente instituído, por uma diferença que conforma o gênero
sexual, e o corpo literário, que conforma o gênero literário, mesmo quando, ironicamente,
faz uso da mais conservadora e tradicional das formas literárias do ocidente desde a Idade
Média: o soneto. É esse, aliás, o papel da manipulação – que na superfície do texto se
parece com a ironia – e do humor no emprego de palavras com múltiplos sentidos e que
Steven Butterman (2005), a partir de Mikhail Bakhtin, vai chamar de presença de uma
subversão carnavalesca na obra de Mattoso (BUTTERMAN, 2005, p. 71).
Isso pode ser visto, por exemplo, no poema “Borgiano”, em que Mattoso estabelece
relação direta entre o modo em que mobiliza a cegueira na sua poesia e como Borges o
faz, refletindo também sobre a sua própria vida:
Borgiano
26
um tom de tango astral na escura zona
e o dom da decadência do Destino.
15
Ver entrevista no final da tese.
16
Fusão das sílabas “ta” e “al” por meio da vogal “a”.
17
Mattoso adota essas terminologias em Tractado de Versificação (2022c).
27
também pela alternância da estrutura rítmica no conjunto do poema, e de um desvio
sexual, na medida em que bola recupera no jargão popular a ideia de testículo.
Borges era um poeta moderno que adorava fazer também um retorno à literatura
clássica, seja em termos de autores ou de formas (como é o caso do soneto). Não que ele
não se interessasse por autores contemporâneos – muitos desses ele os lia, como George
Welles, Kafka, Joyce etc., inclusive, devido à sua proficuidade na leitura, ele foi um dos
primeiros comentadores deles em terras argentinas (SCHITTINE, 2016) –, mas o seu
estilo racional e rígido o faziam ser um escritor sem muita experimentação formal – pelo
menos, do ponto de vista da materialidade da linguagem, pois é muito conhecido o seu
experimentalismo em termos de narrativa. O inverso do que acontece, por exemplo, com
Mattoso.
Jornal Dobrabil, um panfleto que parodiava o periódico Jornal do Brasil, um dos
símbolos da imprensa nacional durante o período da ditadura empresarial-militar no
Brasil, trazia um trabalho de diagramação bastante particular. Mattoso, que trabalhava à
época na biblioteca do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, utilizava uma máquina de
escrever manual, do tipo Olivetti (MATTOSO, 2001b). Com isso, ao descobrir a
existência de um meio espaço que propiciava a introdução de uma letra entre dois
caracteres, operou um raqueamento18 dessa ferramenta para fins estéticos.
Importante notar que em termos históricos, conforme Friedrich Kitler (1999), a
máquina de escrever implicou uma mudança na “rede discursiva” de processamento,
armazenamento e transmissão de informações. No terreno da literatura, esse impacto
gerou como consequência o apartamento do controle da mão, do olho e da consciência do
processo de escrita, que se tornou maquínico e inumano, na medida em que o aparelho
técnico acrescentou o espaçamento, o processamento e a transmissão maquínica dessa
mesma informação.
Kitler (1999) observou ainda que, não à toa, a máquina de escrever foi feita “por
cegos e para cegos” (KITLER, 1999, p. 22) e a consequência desse fato, trabalhado por
escritores, gerou o desenvolvimento de uma literatura não figurativa – em outras palavras,
cega – capaz de apresentar uma resposta expressiva para a decadência da imagística da
ilusão ótica e sonora com que o cinema e a fotografia a haviam golpeado – visto que as
imagens audiovisuais do cinema e visuais da fotografia ao invés de sugerir, requerendo
18
Aportuguesamento do termo hacking, que implica um sabotamento de um dado sistema computacional
ou, no caso em tela, de um dispositivo técnico.
28
uma atitude ativa do espectador (como acontece com a literatura), apresentam de maneira
integral as imagens.
Nesse sentido, o trabalho de raqueamento desenvolvido por Mattoso no Jornal
Dobrabil restitui, por um lado, à máquina de escrever o seu componente humano, por
meio de uma operação artesanal que imprime no próprio coração do dispositivo técnico
a sua marca, e, por outro, intensifica a sua despersonalização ao fazer desaparecer o autor
junto com a obra, por meio de um processo de múltiplas assinaturas que indeterminam a
autoria, e pelo próprio caráter reprodutível da obra, já que ela é realizada em um
dispositivo técnico.
Além disso, o jornal era impresso em formato panfleto, dobrado – por isso também
o jogo polissêmico com o próprio título da obra –, xerocado e enviado pelos correios
como forma de garantir um nível de segurança pessoal contra uma interceptação do
material pelo regime militar e uma postura anticomercial – algo compartilhado com os
poetas “marginais” da década de 1970 – ao mesmo tempo em que procurava reduzir o
número de cópias e manter a autonomia do trabalho individual (MATTOSO, 2001b).
Segundo Viviana Bosi (2011), essa postura anticomercial não dizia respeito apenas a uma
inadequação comercial dos autores às editoras – que não se interessavam por obras pouca
lucrativas –, mas também a uma preocupação que os autores tinham pelo projeto estético
que essas obras engajavam (BOSI, p. 2011, p. 12).
29
Figura 1. Panfleto do Jornal Dobrabil publicado em 1977. Ver: MATTOSO, 2001a, p. 2. #Paratodosverem: fac-símile
do panfleto do Jornal Dobrabil, em formato A3 dobrado, representando a primeira página.
30
Já em Borges as obras literárias eram mais racionais, traziam questões e debates
filosóficos extensos e profundos. Além disso, Borges era um homem conservador.
Denunciava o autoritarismo e as ditaduras, mas chegou a apoiar a ditadura militar
argentina, apesar de ter se arrependido depois (SCHWARTZ, 2017, p. 408-409). Desse
modo, ele fazia dos textos literários uma continuação, por outros meios, de problemas
éticos, lógicos, metafísicos etc. que lhe interessavam.
Até por isso, na literatura de Borges há uma confluência entre os ensaios e os
contos, de modo a não ser possível determinar onde um acaba e o outro começa e de
marcar, pela introdução do comentário no gênero literário, a crítica à cena política e ao
discurso militante. Deriva disso, por exemplo, a crítica à cor local, como a ideia de um
símbolo nacional estanque e acabado, e, na superfície do texto, a crítica política manifesta,
como é o caso do poema “El otro”, publicado em 1975 na obra El libro de arena, em que
fica patente o que pensa da geopolítica, sobretudo quanto ao papel dos Estados Unidos e
da antiga União Soviética, e sobre povos tradicionais, quando um Borges velho conversa
com um Borges jovem e apresenta seu ponto de vista nos seguintes termos:
19
“– No que se refere à História... Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não
tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a
cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, por volta de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro
Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou,
como antes Entre Ríos. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América,
presa pela superstição da democracia, não se decide a ser império. Cada dia que passa nosso país está mais
provinciano. Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o
ensino do latim fosse substituído pelo do guarani.” (BORGES, 2000b, p. 11-12)
31
pudessem resolver o seu problema. Nesse retorno, uma nova cidade surgiu para Borges
e, com ela, uma nova atividade: a de caminhar à noite. Hábito que manteve por “quase
quarenta anos; era a sua forma de se inspirar e escrever” (SCHITTINE, 2016, p. 329).
Assim, inspirado por um certo nacionalismo e numa tentativa de encontrar na
literatura o universal no particular argentino, proposta próxima e ao mesmo tempo
distante dos projetos de vanguarda da época, como o ultraísmo – vanguarda espanhola à
qual Borges se filiara inicialmente, mas que rejeitava nesse livro de estreia a interpretação
realizada por alguns críticos que viam nele uma simples assimilação da vanguarda
(BORGES, 2009, p. 39) –, Fervor inaugurou, sobretudo, a tópica borgiana sobre a qual
viria a se debruçar, quase que obsessivamente, em toda a sua produção futura, pois,
segundo ele,
Nesse contexto, Fervor foi um livro escrito em versos brancos e livres que se
preocupava com a construção de metáforas visuais que trabalhassem a imagem da nova
Buenos Aires após esse período no estrangeiro. Era um livro de memória, de memória
afetiva da cidade, do que nela a cidade poderia suscitar: impressões, histórias, relatos.
Para isso, a imagem do crepúsculo e da sombra são frequentes e marcam tanto a dimensão
de observação do eu lírico, que era realizada à noite – lembremos que Borges nessa época
passou a fazer passeios noturnos –, quanto a dimensão onírica e surrealista que são
constitutivas, para o eu lírico, do fazer poético. Vejamos o poema “El sur”:
20
Todos os poemas de Fervor terão pareadas a versão original com a versão traduzida por Mattoso, já que
este último é, ao mesmo tempo, tradutor de Borges e objeto desta pesquisa.
32
essas luzes dispersas o odor do jasmin e da madressilva,
que minha ignorância não aprendeu a o silêncio do pássaro adormecido,
nomear o arco do saguão, a umidade
nem a ordenar em constelações, – essas coisas são, talvez, o poema.
ter sentido o círculo da água (BORGES, 1998, p. 17)
na secreta cisterna,
Em “El sur”, o eu lírico observa a partir das sombras – mesmo lugar que Funes,
personagem do conto “Funes, el memorioso”, publicado em 1940, vai se situar para
conversar com o narrador (BORGES, 1998, p. 545) – para fazer um percurso não tanto
espacial, mas metafísico/existencial pelo sul de Buenos Aires (SCHWARTZ, 2017, p.
470). Nesse lugar da sombra, ele pode ver e o que ele vê não é o outro, mas a incompletude
de si mesmo – “desde el banco de / la sombra haber mirado / esas luces dispersas / que
mi ignorancia no ha aprendido a nombrar / ni a ordenar em constelaciones” (BORGES,
1984, p. 19).
Essa dimensão existencial da sombra também adquire aspecto espacial, como em
“A praça San Martín”:
33
O poema, já no título, traz uma localização de onde se passa a história: Praça San
Martín. Logo abaixo, o autor faz um endereçamento para o escritor argentino Macedonio
Fernández, um expoente da vanguarda argentina (DE ROSSO, 2021, p. 7) e que tanto
impactou a Borges nas conversas que compartilhava aos sábados em um bar localizado
na Plaza del Once (BORGES, 2016). Durante o que se narra no poema, o eu lírico procura
a tarde – momento em que o dia está quase indo e a noite chegando – com o objetivo de
encontrar alguma coisa que surge das sombras nesse interstício do dia (“Ya estaban los
zaguanes entorpecidos de sombra”).
Nesse contexto, a escolha pelo substantivo “tarde” mostra que o que se procura é
o próprio momento. Essa escolha por um substantivo é uma ferramenta também para
marcar uma recursividade entre os lugares das coisas, acontecimentos e do próprio poeta,
pois, quando se diz “el puerto anhela latitudes lejanas”, ao alcançar essas latitudes, que é
trabalho e busca também do poeta, a praça, igualadora de homens, se abre como a morte,
como o sonho – e o eu lírico talvez esteja se referindo ao fato de que essa praça fica
localizada num bairro que possui linhas férreas, com muita circulação de pessoas
(SCHWARTZ, 2017, p. 348). A imagem de justaposição entre morte e sonho pode
apontar também para o fato da criação imaginativa, da ficção, que só se torna possível
por meio do espaço físico e literário da praça.
Nesse sentido, essas imagens são agrupadas num mesmo campo semântico em
que sombra, penumbra, noite e crepúsculo convocam, por um lado, uma atmosfera
notívaga e, por outro, denotam uma incerteza quanto à racionalidade e à fixação de um
sentido. Dessa forma, é interessante perceber que, mesmo que tematicamente Fervor se
concentre em buscar elementos nacionais – o que vai se repetir de maneira marcada em
três obras posteriores, como é o caso de Luna de enfrente (1925), Cuaderno San Martín
(1929) e Evaristo Carriego (1930) – essa insistência na incompletude, na incerteza e na
boemia apontam para uma preponderância de um tropo discursivo que será agenciado
depois, na virada literária de um Borges já cego: a escuridão.
Com efeito, a tradução de Fervor realizada por Mattoso, assinada juntamente com
Jorge Schwartz, procurou manter semelhanças e analogias lexicais entre as duas línguas
(brunimento etc.) e, naquilo que foi possível, a mesma estrutura sintática. Nesse sentido,
ainda que o Espanhol e o Português sejam línguas estruturalmente próximas, a escolha
pela manutenção desses termos não pode ser considerada um simples trabalho de
transposição linguística, haja vista que o próprio trabalho de tradução requer uma
34
operação intelectual e criativa e Mattoso tinha a plena consciência disso – tanto é que a
paródia e a sátira mattosianas são expressões realizadas de seu trabalho de tradução.
Além disso, a tentativa de manter o léxico mais próximo do texto base pode ser
pensada também como um recurso expressivo para criar um efeito próximo àquele
empregado por Borges, que fazia uso de um vocabulário rico e diversificado, mas, em
alguns momentos, com um traço local, sobretudo, quanto ao léxico representativo de
lugares. De todo modo, esse procedimento visa causar no leitor antes uma aproximação
com a experiência da escrita do que com a simples reprodução do texto borgiano. Até
porque, conforme Walter Benjamin (2013), a (boa) tradução não visa comunicar “um
conteúdo inessencial” (BENJAMIN, 2013, p.102) – pois isso é desnecessário –, mas criar
uma relação entre o “visado” e “modo de visar” (op. cit., p. 114), de modo tensionar a
relação paradoxal de traduzibilidade e intraduzibilidade da obra tanto quanto for possível.
Nesse movimento, o tradutor aproxima-se do poeta, pois, na medida em que o
objeto de tradução está ausente, é necessário que ele atue para fazer com que a obra
original continue viva na obra traduzida. O que faz dessa ausência um lugar de cegueira
para o tradutor, que, cego, procura ser vidente: ver o ainda não visto da obra original em
sua própria língua. Para Benjamin (2013), essa pervivência da obra original na obra
traduzida acontece porque o laço que une ambas é vital e a vida só pode ser pensada
propriamente em termos históricos. No caso das obras literárias, esse percurso histórico
da obra é dado pela fama (op. cit., p. 104-105). É ela que garante a continuidade da obra
pela necessidade constante de tradução.
A tradução é, dentro desse ponto de vista, uma forma que decorre as suas leis do
original (op. cit., p. 102-103). O que não quer dizer que a obra traduzida seja meramente
dependente, haja vista que há algo nela que não está mais no original, pois, ele mesmo,
não é uma coisa fixa e acabada. Ou seja, a obra original guarda um aspecto irredutível
que não cessa de se diferenciar ao mesmo tempo em que guarda para si, em seu conjunto,
certa identidade, mas uma identidade na diferença.
Nesse contexto, quando Mattoso escreve a tradução de Fervor ele está, ao mesmo
tempo, tanto aproximando a obra do texto original quanto marcando-a com a sua presença
ao mesmo tempo em que procura se distanciar, apagar o seu trabalho, torná-lo, de algum
modo, translúcido – mas sem que isso signifique um simples desaparecimento do tradutor,
pois as marcas dele são preservadas no texto, visto que, como já estava cego durante a
confecção da tradução, o trabalho de escrita de Mattoso ocorreu de maneira coletiva, o
que indetermina os momentos de sua passagem pelo texto: “tive que accompanhar a
35
leitura em voz alta que Jorge Schwartz (cathedratico de hispanicas na USP e coordenador
da traducção) foi fazendo commigo, pessoalmente ou por telephone, até chegarmos a um
consenso sobre cada poema”21.
Desse modo, Mattoso engajou uma escrita-tradução, que ocorreu mediada,
primeiramente, pela voz mais do que pela forma gráfica. Com isso, entre a presença do
encontro físico e a quase presença do telefonema, Mattoso procurou encontrar, pelo som
– essa materialidade estranha –, o corpo textual de Borges – esse corpo vivo presente na
palavra falada. O processo de tradução se deu, por isso, não apenas cruzando línguas, mas
materialidades: da voz e da escrita.
Já Borges desenvolveu em diversos textos a sua ideia de tradução. Para Efrain
Kristal (2002), a tradução em Borges é um aspecto tão importante que todo o seu projeto
literário poderia ser relido para perceber como o problema da tradução é mais do que um
aspecto meramente temático e aparente, estendendo-se até a forma e a composição
(KRISTAL, 2002, p. 89). O que faz o trabalho de tradução aproximar-se da cegueira –
não à toa o título do livro de Kristal é Invisible Work –, pois a tradução opera de modo
invisível na estrutura textual ao articular termos visíveis e, no caso de Borges, ela
reelabora estratégias de escrita com o intuito de garantir o contrato ficcional entre leitor
e obra.
Nesse sentido, é como se a literatura fantástica presente no texto borgiano fosse
consequência dessas estratégias que possuem na tradução a própria base onde a escrita se
produz. Como efeito não esperado disso, acredito ser possível resolver o problema sobre
a natureza e a extensão dos objetos criados pela literatura borgiana, pois, ao serem
articulados pela tradução, boa parte desses objetos literários, como veremos durante toda
a tese, produzem-se num interstício – que, muitas vezes, aparece como um vacilo de
sentido, um “não saber ao certo”, “não ter certeza” sobre o relato – entre verdade (o dado
histórico, a relação lógica irrefutável, etc.) e mentira (a situação irreal de personagens e
ações, a existência de objetos impossíveis etc.) que impedem a determinação de um plano
de existência específico – como o da realidade, o da ficção, etc.
Nesse contexto, há dois textos de Borges, em particular, que merecem destaque:
“Pierre Menard, autor del Quijote” (1944) e “Los traductores de las 1001 Noches”
(1936)22. No primeiro caso, tem-se um conto-ensaio em que o personagem principal,
21
Ver entrevista no apêndice.
22
Há inúmeros outros textos de Borges que poderíamos citar como exemplo, como “Las versiones
homéricas” e “La busca de Averroes”. Borges, aliás, tornou-se um importante objeto de teóricos da tradução
36
Pierre Menard, um tradutor francês, procurou reescrever Dom Quixote, de Miguel
Cervantes. O intuito não era o de simplesmente traduzir a obra dando cores e contornos
próprios, mas o de ser o “Cervantes do Quixote” nessa composição (BORGES, 1984, p.
446) – pois
Desse modo, Menard tentou escrever uma versão que é ipsi litteris igual a
original, mas sem sê-la: pois o decurso dos anos fez com que a atividade de leitura e de
interpretação – que, para o narrador, não só fazem a obra, mas também a integram numa
genealogia própria (op. cit., p. 450) – modificaram-na substancialmente. A compreensão
de noção de tradução, assim, é vista em profunda articulação e sintonia com a de leitura,
porque é por meio da leitura que uma obra é criada – em certo sentido, por isso, Borges
antecipa a Estética da Recepção, que compreende o papel de leitura como mais um
elemento de criação da obra. Importante destacar também que em “Pierre Menard” o
narrador retoma a biografia de um Menard já morto e cujas páginas da versão do Quixote
foram perdidas. Essa lacuna sobre a qual se instala a escrita e a narração é reiteradamente
repetida em Borges e parece indicar para o próprio lócus problemático de onde o autor
faz a ficção: o lugar do invisível, que é também o lugar da tradução – e, como defendo
nessa tese, o da cegueira.
Além disso, a tentativa de recriar o Quixote por Menard não foi realizada com o
texto integral de Cervantes, mas com três capítulos da primeira parte do livro espanhol:
capítulo IX, que traz a crítica ao texto de Benengeli; XXXVIII, que traz a disputa bélica
em que o homem de armas é visto como mais eminente do que o homem de letras e um
fragmento do capítulo XXII em que há um “diálogo com Ginés de Passamonte, sujeito
que está escrevendo um livro sobre sua própria vida e que declara que o livro está
devido, justamente, à tematização e desenvolvimento que ele dá, de maneira inovadora, ao tema. Um
trabalho importante de destacar a respeito: KRISTAL, Efrain. Invisible Work:Borges and Translation.
Nashville: Vanderbilt University Press, 2002.
23
“Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou
uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir
algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.”
(BORGES, 1998 p. 493)
37
obviamente inacabado porque sua própria vida ainda não acabou” (PONTES; MARTINS,
2020, p. 115).
Segundo Newton de Castro Pontes e Edson Soares Martins (2020), esses trechos
revelam problemas literários que interessam a Borges na medida em que ele rompe com
a diegese ao introduzir a crítica literária como dicção da narração (op. cit., p. 117). É esse
o sentido, por exemplo, das citações e do foco do narrador não no texto em si do Quixote,
mas nas leituras que se fazem dele, aproximando, assim, a noção de leitura da de escrita.
Já em “Los traductores de las 1001 Noches” Borges desenvolve uma ideia
parecida24. Num texto mais ensaístico que o anterior, o autor discute três traduções das
Mil e uma noites, um livro que reúne um compilado de histórias árabes que foram
catalogadas ao longo dos séculos e cujo manuscrito é do século IX: uma de um inglês,
capitão Burton; uma de um francês, doutor Mardrus, e uma de um alemão, Enno
Littmann. Nesse texto, o autor percorre o modo como a tradução é apropriada por esses
diferentes tradutores para revelar a relação de suas versões com o contexto histórico e
social atual de cada um ao invés daquele presente na obra que lhes serve como original.
Nesse sentido, Borges apresenta dois modos mais gerais de traduzir: um de
Newman, que defende uma tradução mais literal do texto original, e uma de Arnold, que
defende uma tradução mais concisa e sintética. Para Borges, porém, o que deve chamar a
atenção na tradução não é a diferença ou usabilidade desses dois modos, mas o próprio
tradutor e os seus “hábitos literários” (BORGES, 1998, p. 441). Ou seja, o que interessa
na tradução é o modo com que o tradutor lê o original e imprime sobre ele a sua marca.
Por isso, para Borges a boa tradução é aquela que aplica a “infidelidade criadora” (op. cit.
453) – talvez esse seja o sentido também em que Borges recupera o significado de
tradução como (boa) traição25.
Conforme Josefina Ludmer (2021a), essa ideia de autoria em que o autor imprime
a sua marca sobre a obra diz respeito ao modo com que Borges foi alçado à cânone
literário. Ainda segundo Ludmer (2021a), esse processo de canonização de Borges é
correlato à autonomia literária da Argentina, que, na Argentina, é um processo que se
estende do século XIX e segue até meados do século XX. Isso e dá com o estabelecimento
24
Entre nós, o estudo dos textos de Borges sobre a tradução tem início nos anos 1980/1990 e tem uma
bibliografia extensa. Cf. ARROJO, Rosemary. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. Rio de Janeiro:
Imago, 1993; COSTA, Walter Carlos. Borges, o original da tradução. Cadernos de Tradução, Florianópolis,
n.15, 2005, p. 163-186.
25
Cf. CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: _____. Metalinguagem & outras
metas. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1992.
38
do Estado-nacional, o florescimento de editoras nacionais – como a Emecé, editora que
vai publicar as Obras completas de Borges –, o que culmina o que se chama de “alta
literatura”, marcada pela presença de um projeto literário explicitado pelo autor, na qual
obra e texto são, nessa perspectiva de literatura autônoma, bem estabelecidos e fixados
discursivamente.
Voltando para a tradução de Mattoso de Fervor de Buenos Aires, na tradução do
bruxo podólatra, o elemento pragmático, que é expresso pelo consumo da obra em outro
período histórico e em outra língua, se desprende da simples articulação sintática e
recoloca novos problemas para o leitor, para o autor e para a obra, como: qual o papel que
palavras de uso especificamente local – como “La Recoleta”, que é o nome de um
cemitério – e estrangeiro – como “Afterglow” – ajudam a significar no texto? Qual a
possibilidade de leitura que um texto em Português, forjado para um leitor de português,
propicia ao ler sobre uma realidade estrangeira? Qual o lugar da tradução na
leitura/criação – para usar uma temática presente nos textos borgianos – da obra?
Certamente, para o leitor, qualquer que seja ele, haverá uma dificuldade na leitura
do texto. Isso se dá por razões hermenêuticas mais imediatas que estão ligadas à
dificuldade que qualquer atividade de leitura coloca para o leitor, mas também pelo
aspecto específico da obra borgiana, que requer essa dificuldade como meio expressivo
de colocar problemas de interesse filosófico e literário, e pela dificuldade intrínseca à
própria tradução ao lidar com a questão da tradução da linguagem também do ponto de
vista do leitor, e não mais do tradutor.
Parte dessa dificuldade, todavia, é respondida pelo próprio interesse de Borges
pelo universal, que garante uma redução dos desafios de leitura em termos de distância
geográfica, e repercute na tradução de Mattoso com o foco não na repetição das cadeias
sonoras e do ritmo físico do texto, mas da construção de imagens poéticas semelhantes.
Nesse sentido, significativo dessa discussão é o poema “Amanhecer”, pois, por
mais que Fervor, de modo geral, procure apresentar algum elemento nacional para debate,
o que aparece aqui é uma mudança de plano, de modo a discutir uma dimensão universal
do fazer poético que só é possível por meio da noite – uma palavra que também aponta
para aquele mesmo campo semântico da sombra, do escuro, da morte, e, como o eu lírico
defende, da poesia.
39
una racha perdida
ha ofendido las calles taciturnas Na profunda noite universal
como presentimiento tembloroso que apenas contradizem os postes de luz
del amanecer horrible que ronda uma ventura perdida
los arrabales desmantelados del mundo. ofendera as ruas taciturnas
Curioso de la sombra como pressentimento trêmulo
y acobardado por la amenaza del alba do amanhecer horrível que ronda
reviví la tremenda conjetura os arrabaldes desmantelados do mundo.
de Schopenhauer y de Berkeley Curioso pela sombra
que declara que el mundo e acovardado pela ameaça da aurora
es una actividad de la mente, revivi a tremenda conjectura
un sueño de las almas, de Schopenhauer e de Berkeley
sin base ni propósito ni volumen. que declara que o mundo
Y ya que las ideas é uma atividade da mente,
no son eternas como el mármol um sonho das almas,
sino inmortales como un bosque o un río, sem base nem propósito nem volume.
la doctrina anterior E já que as idéias
asumió otra forma en el alba não são eternas como o mármore
y la superstición de esa hora mas imortais como um bosque ou um rio,
cuando la luz como una enredadera a doutrina anterior
va a implicar las paredes de la sombra, assumiu outra forma na aurora
doblegó mi razón e a superstição dessa hora
y trazó el capricho siguiente: quando a luz como uma trepadeira
Si están ajenas de sustancia las cosas vai implicar as paredes da sombra,
y si esta numerosa Buenos Aires persuadiu minha razão
no es más que un sueño e traçou o capricho seguinte:
que erigen en compartida magia las almas, Se estão alheias de substância as coisas
hay un instante e se esta numerosa Buenos Aires
en que peligra desaforadamente su ser não é mais que um sonho
y es el instante estremecido del alba, que erigem em compartilhada magia as
cuando son pocos los que sueñan el mundo almas,
y sólo algunos trasnochadores conservan, há um instante
cenicienta y apenas bosquejada, em que periga desmedidamente seu ser
la imagen de las calles e é o instante estremecido da aurora,
que definirán después con los otros. quando são poucos os que sonham o mundo
Hora en que el sueño pertinaz de la vida e só alguns notívagos conservam,
corre peligro de quebranto, cinzenta e apenas esboçada,
hora en que le sería fácil a Dios a imagem das ruas
matar del todo Su obra! que definirão depois com os outros.
Hora em que o sonho pertinaz da vida
Pero de nuevo el mundo se ha salvado. corre perigo de quebranto,
La luz discurre inventando sucios colores hora em que seria fácil a Deus
y con algún remordimiento matar de todo Sua obra!
de mi complicidad en el resurgimiento del
día Porém de novo o mundo se salvou.
solicito mi casa, A luz discorre inventando sujas cores
atónita y glacial en la luz blanca, e com algum remorso
mientras un pájaro detiene el silencio de cumplicidade no ressurgimento do dia
y la noche gastada solicito minha casa,
se ha quedado en los ojos de los ciegos. atônita e glacial na luz branca,
(BORGES, 1984, p. 38-39) enquanto um pássaro detém o silêncio
e a noite gasta
permaneceu nos olhos dos cegos.
AMANHECER (BORGES, 1998, p. 36-37)
40
O poema “Amanecer” traz mais do que simplesmente a formulação de uma ideia
platônica de noite universal. Ele recorre a uma série de imagens visuais – a ideia como o
lugar metafísico não só do filósofo, mas também do poeta e do visto; a trajetória de uma
existência forjada pelo modo com que se mobiliza a luz; a noite como um momento
mágico em que o impossível se torna possível (“Hora en que el sueño pertinaz de la vida/
corre peligro de quebranto,/ hora en que le sería fácil a Dios/ matar del todo Su obra!”) e,
sobretudo, a imagem da conservação do passado nos olhos dos cegos (“y la noche gastada
/se ha quedado en los ojos de los ciegos”).
Nessa perspectiva, esse último recurso aponta para uma característica que
relaciona a cegueira com algo recorrente na história da literatura, que é o caso da vidência.
Mesmo porque, vidência é o nome dado ao atributo daqueles que usam os olhos para ver
(o que clinicamente, recebe o nome de pessoas normovisuais), mas é também o nome
dado à qualidade dos que enxergam para além dos limites sensíveis imediatos. Nesse
último caso, a essas pessoas videntes também utilizamos como sinônimo o substantivo
profeta.
Em certo sentido, assim, profeta é aquele que não usa os olhos físicos, mas os
espirituais, aquele que enxerga algo além e através das coisas, antecipando o futuro e
desvelando do mundo a sua aparência. É essa, por exemplo, a característica de Tirésias
na tragédia de Édipo rei, de Sófocles (2001). Na história grega, Tirésias expõe a corrupção
do poder para Édipo, que, após cometer o parricídio e casar-se com a sua própria mãe,
também fica cego. Porém, ao contrário de Tirésias, a cegueira de Édipo não lhe garante
ver mais além, pois ela surge como uma maldição que se abate sobre Édipo, de modo a
forçá-lo a ficar condenado a ver a si mesmo, como um olhar que se volta para dentro e
para sempre. Ainda assim, em Édipo em Colono (2002), continuação da obra de Sófocles,
em que, com a cegueira, Édipo se torna sábio, decidindo sobre o seu destino antes de
morrer, e faz com que a sua voz enxergue por ele. Uma voz que não capta uma luz de
fora, mas que, ela mesma, é fonte e lócus da própria luz.
41
2.1 Entre o olhar e a visão
Nesse contexto, a relação entre ver, conhecer e saber excede, em muito, a questão
meramente literária e se imiscui na própria dinâmica do pensamento ocidental. Platão,
por exemplo, defendia que a tarefa dos filósofos era a de concentrar um ver que permitisse
ter acesso à essência das coisas (NOVAES, 1988, p. 10-11). Consequentemente, a
Forma/Ideia era o próprio visto. Já Aristóteles, ainda que contrariamente a Platão
postulasse um comprometimento ontológico com o mundo sensível ao invés de conceber
um mundo apenas das Formas, defendia que os olhos, mais do que qualquer outro órgão,
estavam conectados ao saber (CHAUÍ, 1988, p. 38)26. Dessa forma, tal concepção
permitiu a ambos, ainda que de modos radicalmente distintos, promoverem uma mudança
no olhar, orientando-o numa direção metafísica (BORNHEIM, 1988, p. 89-90).
Já entre os primeiros teólogos medievais, a inspiração platônica fez do olhar uma
atividade que criava um vínculo com o espaço interno do indivíduo. Com Santo
Agostinho, que condena fortemente o pecado da visão mundana, esse espaço ganhou a
forma de uma interioridade (BORNHEIM, 1988, p. 90), marca de uma experiência
subjetiva e pessoal que tinha como télos fazer conectar a consciência humana com a “luz
natural”, a centelha do intelecto divino que já está presente no homem.
No Renascimento, as transformações técnicas e científicas transformaram o olhar.
Como produto dessas mudanças, surgiu a perspectiva como modo de operar uma junção
entre macrocosmo e microcosmo (BOSI, 1988, p. 74). O desenvolvimento do aparato
técnico, todavia, ao invés de unir, fez separar, decompondo a densidade do espaço em
grandezas materiais mensuráveis e observáveis. Assim, foi com o telescópio que Galileu
separou os olhos da visão. Segundo Marilena Chauí,
26
Na crítica literária, De Man (1986) ressalta a distinção entre a teoria literária, que surge pela leitura
literária, compreendendo-a como mais imanente ao texto e à materialidade textual, e a Teoria (filosófica),
que procura ultrapassar o texto literário, buscando nele um nível de generalidade que está além de sua
superfície. Portanto, ele condiciona a resistência da teoria (literária) à Teoria (filosófica) a um embate entre
dois modos de ver ou entre-ver o material sensível e, quando apreendido, epistemológico, já que o theoros
é quem articula esse problema de análise crítica.
42
ilusória, isto é, aquilo que nossos olhos não equipados vêem. O
essencial no telescópio não é que aproxime ou aumente objetos, mas
que transforme o próprio ato de ver, fazendo-o resultar do ato de
conhecer, depositado no instrumento. O perspicillum cria o olhar
perspicaz, separando os olhos e a visão, fazendo desta o modelo
intelectual daqueles. (CHAUÍ, 1988, p. 55)
27 Essa ideia esteve no início da ciência moderna e foi defendida por Francis Bacon (MARCONDES, 2007,
p. 184).
43
e que é observado; com a reorganização industrial do corpo no século XVIII para
privilegiar a visão; entre outros.
Além disso, esse predomínio da visão veio atrelado a uma nova disposição do
olhar, que deixou de ser uma atividade segura realizada pela razão. Ainda consoante Crary
(2012), o estereoscópio marcou essa mudança ao tornar indiscernível a separação entre
dentro e fora, sujeito e objeto. Assim, orientado por uma perspectiva binocular (não
vemos a mesma coisa em cada olho), a representação perdeu a sua autonomia,
transformando-se em efeito da atividade de um sujeito que vê28.
Destarte, o estereoscópio expressou, por sua vez, a concretude de uma experiência
moderna que se estabeleceu a meio caminho entre subjetividade e objetividade, como
ocorre na poesia de Charles Baudelaire29, com a observação do eu lírico imprimindo a
sua marca por meio das sensações experimentadas pelas deambulações, ou na de Cesário
Verde, que produz a sua poesia finissecular nesse mesmo registro ao “transpor a
tradicional subjetividade do lirismo na expressão objectivada de um 'eu' funcional (como
o das personagens do romance realista)” (MACEDO, 199, p. 20). Com isso, é como se
ambos destacassem a diferença que se processa na sucessão de imagens que são exibidas
no aparelho ao compor as cenas urbanas por meio de uma justaposição de momentos
significativos. Esse é também o elo que aproxima e envolve o estereoscópio na
experiência cinematográfica que vai surgir no final do século XIX.
De todo modo, o estereoscópio relaciona a visão a uma profundidade e
tangibilidade plenamente visual. Conforme Crary,
28 No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant (1999, p. 39) afirma que o que ele realiza
com a Crítica é uma revolução copernicana que consolida a ruptura radical que a modernidade tinha
iniciado com o ceticismo quanto à falsa pressuposição de um conhecimento inteiramente independente do
sujeito. Para Kant, ao contrário, não existe objeto sem sujeito. Logo, o primado do conhecimento não está
na metafísica, mas na epistemologia – o que inverte a direção da antiga ordem de aquisição do
conhecimento (mundo > sujeito) para uma que dá predomínio à atividade do homem (sujeito > mundo).
Essa mudança de paradigma, porém, é diferente da que Crary percebe, pois, para, ele há uma normatividade
que se torna presente com a observação e que é reelaborada empiricamente; o que para Kant, por seu turno,
diz respeito às condições transcendentais referentes ao sujeito, qualquer que seja ele.
29 Este é também um sintoma do que Walter Benjamin percebe a partir da mudança na estrutura da
experiência que a poesia de Baudelaire expressa no século XIX (BENJAMIN, 2017, p. 106).
44
Na filosofia contemporânea, Merleau-Ponty deu um procedimento formal para
essa questão que foi trazida à luz pelo estereoscópio. Conforme o autor, o olhar implica
uma relação com o corpo, uma intencionalidade, uma direção, um movimento. Num giro
literário, é como se para ver fosse preciso ser o homem da multidão de Baudelaire: uma
figura que deseja o choque promovido pelo contato com a experiência impessoal da
multidão.
Assim, para ver seria preciso também estar envolvido numa prática em que o
próprio ato da visão é, ao mesmo tempo, objeto e agência de si mesmo, de modo que só
se vê ao invadir as coisas, possuindo-as à distância (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 98),
mas sem nunca se apropriar delas. Desse modo,
45
elemento presente na cultura, a cegueira seria a contraparte de uma modernidade que se
iniciou com as Luzes da Razão, num projeto de universalização da luminescência para
todo o globo30, e que agora se esforça para invadir a última camada do corpo humano.
Não à toa, por isso, um dos registros da biopolítica mapeados por Judith Butler (2015) se
refere, justamente, ao problema da visibilidade dado pelo reconhecimento de direitos – o
que se constitui, também, como um limite de inteligibilidade para o humano.
Em Mattoso, o problema que os olhos dão a ver e pensar comparece em seu
primeiro poema, “Kaleidoscópio”, publicado no livro Apocrypho Apocalyse de 1975 e
depois republicado no Jornal Dobrabil em 1977 (fig. 2).
30 O que seria o imperialismo do século XIX, senão a guerra continuada por uma disputa do espaço
luminoso do mundo para controlar, esquadrinhar e governar? É aqui que vemos o projeto colonial se
articular com uma teoria da iluminação (razão e iluminação são sinônimas, neste caso). É aqui que se vê o
Coração das trevas, de Conrad, como um contraponto. Essa crítica à iluminação está presente, mas de
maneira localizada ao desenvolvimento do capitalismo, por exemplo, na teoria crítica da Escola de
Frankfurt e espraiada em diversos autores críticos ao colonialismo e ao imperialismo da razão ocidental,
como Franz Fanon, Jacques Derrida, Lélia González, Homi Bhabha etc. A esse respeito, Ailton Krenak
(2020) estabelece a crítica ao projeto colonial devido justamente a essa oposição entre luz e sombras que
se assenta sobre uma ideia fixa que sedimenta os lugares de eu e outro: “A ideia de que os homens europeus
podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade
esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse
chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui
na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em
diferentes períodos da história”. (KRENAK, 2020, p. 11)
46
Figura 2. Primeiro poema de Glauco Mattoso: “Kaleidoscópio”. #Paratodosverem: reprodução fac-símile da primeira
página, em formato A3 dobrado, do Jornal Dobrabil. Entre muitos textos, está presente no centro esquerdo o poema
“Kaleidoscopio”.
KALEIDOSCOPIO
47
o olho como um lugar destinado a uma experiência da cegueira na poesia, que é exposto
nos dois últimos versos – “Verdecencia cryptica com olho glauco / Experiencia optica
com olho cego” –, ratificam, por meio da assinatura, a existência de um poeta condenado
(no sentido em que a palavra condenação incorpora o destino trágico) à cegueira.
Consoante Diniz,
Essa estrutura finita, operada pela forma comutatória, indica também a existência
de um olhar sem objetivo, errante, que se vê olhando – o olho tangível do Merleau-Ponty
(2013)? –, como um olho que se olha no espelho e, nesse percurso, entre um olho e outro,
a visão se configura como uma espécie de entre-visão, lugar, a um só tempo, do poeta e
do cego, como se percebe nessa manchete da mesma edição do Jornal Dobrabil, também
assinada por Glauco Mattoso:
Figura 3. Fragmento de um texto de Glauco Mattoso no Jornal Dobrabil. #Pratodosverem: escrito com diversas
bolinhas, depreende-se a frase de Glauco Mattoso: “Me atrevo a entre ver através da treva”.
48
Já em Borges o olhar é concentrado e virtuoso. Com isso, ele não escreve uma
cena, como o faz Mattoso, em que o olhar se concentra no esquadrinhamento do espaço
e se constitui, em boa parte dos casos, como a apresentação de uma cena teatral. O
trabalho de Borges, por outro lado, é o de deixar a descrição para que o leitor complete,
fazendo com que a complementaridade entre obra e leitor signifique um melhor
aproveitamento daquilo que é apresentado ou narrado nos textos. Segundo Denise
Schittine,
49
p. 57). Pois, se os personagens de Mattoso assumem o triste Destino como algo que
precisam continuar seguindo, como percebeu Marcelo Diniz (2018), assim também o
próprio Mattoso, como se realizasse uma continuidade entre autor e obra, não se vê livre
desse mesmo trágico Destino.
A teatralidade de Mattoso, por isso, não diz respeito apenas à composição da cena
e de ações dos personagens no espaço dramático que é gerado pelo poema, mas também
pelo modo como o eu lírico repercute o eu biográfico em um tipo de engajamento em que
não é necessário saber o estatuto de verdade do que é dito nos poemas, pois a mentira
ficcional é parte do contrato de leitura a que nós somos levados a aceitar junto com
Mattoso – que realiza um outro contrato: o do masoquismo.
Destarte, o aspecto negativo da cegueira percebido por Mattoso é contrastado com
o aspecto positivo compreendido por Borges, que via a cegueira como um estilo de vida
que lhe tinha garantido alguns dons, como o aprendizado de outras línguas, a escrita de
novos poemas e a produção de alguns livros, como Elogio de la sombra (BORGES, 1989,
p. 281). Conforme Mattoso,
31
Cf.: MATTOSO, Glauco. “A negação do negro (Borges e eu)”. Musa rara, 22 abr de 2013. Disponível
em: <https://www.musarara.com.br/a-cegueira-como-maldicao>. Acesso em: 28 out. 2019. A versão que
utilizei é do original atualizado ortograficamente pelo próprio Mattoso e que me foi enviado por e-mail no
dia 27 de outubro de 2019. Há um outro link que traz essa versão já modificada que foi enviada pelo próprio
Mattoso com a entrevista presente no apêndice: < https://blogocular.wordpress.com/2022/08/02/a-negacao-
do-negro-borges-e-eu/>.
32
É claro que para o heterônimo Glauco Mattoso a poesia é consubstancial à podolatria e ao masoquismo,
mas, nesse caso, refiro-me à trajetória literária biográfica de Pedro José Ferreira da Silva.
50
Com isso, quando Mattoso em Cegueira ordeira (MATTOSO apud DINIZ, 2018,
p. 22-23) convoca a figura de Tirésias como profeta cego, ele o faz de forma a subverter
as expectativas do mito grego, pois equivale Tirésias a um bebê e, nesse movimento,
frente à vulnerabilidade da situação, o profeta submete-se a quem tem poder. Consoante
Diniz,
51
Em 2018, Mattoso publica o livro Curso de reflexologia em que retoma o tema da
podolatria como uma possibilidade massoterapêutica, mas dessa vez centralizando a
atenção para a questão da cegueira, pois esse curso interessaria especialmente “aos cegos
em particular” (MATTOSO, 2018, p. 9). Isso porque, segundo o autor, os cegos seriam
mais propícios à profissão devido à baixa ocupação no mercado de trabalho e a
sensibilidade deles com o toque (op. cit., p. 10-11). Além disso, a massoterapia podiátrica
estabeleceria uma aproximação com a filosofia budista na medida em que ambas
articulariam as relações entre “eu” (massagista cego) e “outro” (massageado) numa
bipolaridade yin/yang (op. cit. p. 25), haja vista a troca de energias vitais durante a
massagem. É o que se discute no poema “Massagem fazer pode tanto bem”:
MOTTE 262
GLOSAS
52
relação de submissão, porém, também gera seus ganhos para os “de baixo”, haja vista
que, na comunicação de energias que o cego e o cliente trocam – pois o cliente descarrega
as energias negativas no cego e o cego as capta e converte em energias positivas devido
à sua condição subalterna de indivíduo deficiente33 – ambos ganham.
Em certo sentido, há uma brincadeira no poema com a dialética do senhor e do
escravo descrita por Hegel (1992) ou, se quisermos ampliar a discussão para uma análise
culturalmente mais localizada, com a harmonia antagônica exemplificada por um dos
“construtores” da identidade nacional brasileira, Gilberto Freire (2003), em sua obra
Casa-grade e Senzala, na qual defende a ideia de uma convivência amistosa de contrários,
ou de uma democracia racial realizada.
No entanto, como brincadeira, o poema desfaz com o rigor filosófico e a descrição
sociológica para levar o tema da submissão para um outro lugar em que o desrealiza,
apresentando-o como uma paródia farsesca em que os humilhados – no caso, os cegos –
ganham de maneira mais decisiva, haja vista que, ao assumirem o protagonismo na cena
e na narração, são eles que, de fato, controlam a narrativa.
Além disso, nos últimos versos há uma virada apresentada na situação pelo eu
dramático ao deixar claro a atitude de manipulação do cego com toda essa situação. Essa
atitude de manipulação, aliás, é uma característica do masoquista, pois ele nunca chega a
assumir o papel de vítima (PHILIPS apud BUTTERMAN, 2005, p. 189). Segundo
Deleuze (1973), o masoquismo, ao contrário do sadismo, volta a sua crítica contra as
instituições, pois ele estabelece um contrato entre as partes (vítima e carrasco), mas um
contrato de modo a fazer com que se acentue a extrema severidade da lei, e não se procure
uma forma de abrandá-la, como se vê com a ideia de contrato social inscrita na tradição
da filosofia política moderna (DELEUZE, 1973, p. 99).
Para Deleuze (op. cit., p. 20), não pode haver um contrato entre sadismo e
masoquismo, pois o sádico rejeita a instituição de qualquer contrato, haja vista que ele
abre a possibilidade de criar pequenos anúncios que vem a aumentar o prazer do
33
“Pergunta-se: como é que elle só repassa boas vibrações ao cliente em vez das más? Simplesmente devido
à sua condição de ‘perdedor’ (no caso de ter ficado cego) ou de ‘privado’ (no caso do cego de nascença): o
indivíduo neutraliza symptomas alheios que, comparativamente à sua propria cegueira, tornam-se ‘males
menores’ e perdem efeito durante a manipulação do pé symptomatico, accabando por dissiparem-se. Ja as
energias positivas, por outro lado, tendem a se propagar em escala crescente nesse fluxo de ‘duas mãos’
entre o pé e a mão, uma vez que, para o cego, seu cliente normovisual approveita melhor as boas coisas da
vida, por mais queixoso que poctualmente esteja de algum ‘problema’ transitorio. Essa ‘inveja’ do cego em
relação normovisual resulta benefica para ambos, uma vez que, absorvida pelo massotherapeuta, a
‘vantagem’ do normovisual é ‘devolvida’ ao invejado, cabendo ao invejoso, por sua vez, a reciproca
vantagem de sentir-se gratificado por bem exercer sua actividade e por ganhar a approvação do paciente,
sendo ou não remunerado o seu serviço.” (MATTOSO, 2018, p. 25)
53
masoquista, algo que o sádico rejeita por não querer ver a sua vítima contente e perder a
sua posição de autoridade total. Além disso, é fundamental no pensamento de Deleuze a
existência de uma espécie de dimensão “heautônoma” em que a existência do sadismo
comporta uma dimensão masoquista que é própria do sadismo e a existência do
masoquismo, por outro lado, comporte uma dimensão sádica deste último (op. cit., p. 40-
41), sem que para isso seja possível uma fusão entre ambos. Porém, essa impossibilidade
teórica da existência do sadomasoquismo é confrontada no longo poema “Submisso
Compromisso”, publicado em 2019, na antologia Theatro Lyrico:
54
Seus olhos, quando o sadico os puzer
em cyma de quem vive na mais pura
cegueira, lhe dirão: é de colher!
55
a usar a bocca, o açoite o instiga ao acto.
56
ou boas as fragrancias do meu “ass”.
Emfim reeducado, o cego em paz
se sente ao me chupar o pau fodaz.
Nesse poema, Mattoso faz uma estudo sobre o problema do pacto sadomasoquista
e encontra uma solução: é necessário que o sádico seja vidente e o masoquista cego para
reequilibrar as forças por meio da desproporção que a deficiência causa. Assim, o lugar
da vítima jamais estaria no mesmo nível do carrasco na formalização do contrato, pois a
deficiência manifestaria, desde o início, um desnível entre ambos muito mais essencial e
necessário do que aquele do clássico contrato masoquista. Desse modo, o sádico não se
importaria com a formalização do contrato, haja vista que o prazer do cego não poderia
ser visto por ele e a condição da vítima colocaria o carrasco em posição ontologicamente
diferente da posição dela.
O ponto de Mattoso apresentado pelo eu dramático, assim, é que para ele a ideia
de contrato supõe uma posição de igualdade ontológica, mas não formal – pois o
masoquista quer que se estipule no contrato que ele é a vítima –, entre as partes, ao passo
57
que, no contrato sadomasoquista, o que ocorre é uma desigualdade ontológica que
nenhuma cláusula pode vir a resolver, haja vista que o centro da desigualdade está em
algo fora da linguagem e que não se pode consertar: a deficiência física.
Por outro lado, segundo Lucio Medeiros (2019) no prefácio da obra Theatro
Lyrico, a cada conjunto de 8 estrofes há uma mudança no padrão rítmico, que acontece
na metade da estrofe subsequente a esse conjunto, que “modifica as rimas, mantendo o
molde, para sinalizar desvios narrativos” (MEDEIROS, 2019, p. 7). Esses desvios
narrativos se somam ao ponto de vista do sádico vidente, que é performado pelo eu
dramático, de modo que, no conjunto, geram uma tensão – pois o contrato sadomasoquista
parece uma tentativa de fazer o eu dramático voltar-se contra si mesmo (já que em alguns
poemas ele aparece como um cego masoquista e em outros, como é o caso desse poema,
como vidente sádico). Consequentemente, a solução apresentada pelo eu dramático para
o problema do contrato sadomasoquista se coloca também como um problema literário,
visto que desfaz a unidade entre autor e escrita – uma unidade que se apreenta como
superficial – ao focar na expressividade do sadomasoquismo em termos de uma
despersonalização do autor – que, a despeito de ser cego, assume a posição de vidente no
texto literário.
Em “Peor cego”, poema da antologia “Vicio de officio”, publicada em 2020 em
formato e-book, apesar de não desenvolver formalmente essa questão, o eu dramático
mattosiano expõe as razões que fazem do cego o parceiro ideal para o sádico, mas, claro,
desde que ele rejeite o seu lugar de submissão – pelo menos, de maneira aparente. O que
toca, mais uma vez, no problema político da relação entre explorador e explorado,
presente numa sociedade tão desigual como a nossa:
58
“Ahi, sim, mais gostoso o tesão vem,
pois, vendo um impotente, no que passa
de extrema dor, ainda mais devassa
é minha picca, que elle chupa bem!” (MATTOSO, 2020, p. 49)
34
Em minha dissertação trabalhei a relação entre política e desejo em O poeta pornosiano (2011b),
postulando uma inscrição dessa proposta ético-estético-política de Mattoso como um procedimento pós-
pornográfico. Cf. MARTINS, Baruc Carvalho. Pornopoiesis: o devir-corpo do mundo e o devir-mundo do
corpo. Niterói, 2019. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Instituto de Letras. Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2019.
35
É ilustrativo disso que no ano de 2020 Mattoso tenha publicado por volta de 20 livros entre versões
digitais e impressas.
59
elemento alquímico da construção do texto, não era entregue a quem
escrevia: Borges guardava cuidadosamente dentro do cérebro. Depois,
porque todo o processo de tessitura, de cunhagem e burilamento do
texto era desgastante e demorado. Borges ditava cinco ou seis palavras
que iniciavam o verso de um poema e depois pedia imediatamente para
que o amanuense as lesse. A frase seria relida duas ou três, quatro,
quantas vezes fosse preciso até que o autor encontrasse o fio da meada
e ditasse mais cinco ou seis palavras, nunca mais do que isso. Agora,
com um par de frases feitas, ditava a pontuação e pedia novamente para
o ledor reler o trecho, enquanto escutava, marcava o ritmo com as mãos:
como um maestro sem batuta. Depois de várias horas de trabalho,
finalmente se chegava a um verso que não precisava de correção
alguma. (SCHITTINE, 2016, p. 368-369)
36
Cf. SÁ, Sergio de. A reinvenção do escritor: literatura e mass media. 1. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.
60
138), se tornou comum na literatura por meio da mistura entre escrita e performance. Não
que a performance – concebida aqui como a participação do próprio corpo do autor como
um elemento integrante da obra – fosse o caso de Borges, que parecia rejeitá-la – pois
esta implicava um excesso de encenação e de exposição de si mesmo –, mas é nítido que
haja uma relação tecnológica que condiciona, juntamente com uma questão pessoal, a
proliferação de um material mais subjetivamente marcado na obra borgiana pós-1950,
seja no material textual, seja no paratextual, como é o caso das fotografias.
Figura 4. Fotografia de Jorge Luis Borges em 1983. Fonte: Getty Images. #Paratodosverem: foto em preto e branco
de Borges de perfil. Ele está velho e olha para frente. O olho da esquerda está cerrado e o olho da direita está aberto.
Ao fundo, há uma inscrição de identificação com o nome “Borges”.
Nesse sentido, é curioso que Josefina Ludmer (2021b) perceba como um dos
aspectos da pós-autonomia literária – a condição da literatura na atualidade, com o fluxo
textual constituído em rede, o sentido sem metáfora, o advento dos grandes
conglomerados editoriais etc. –, justamente, a reformulação do lugar do autor, que se
transforma em uma figura midiatizada e pública com o objetivo de garantir a venda de
livros (LUDMER, 2021b, p. 307), mas não reconheça isso em Borges, mesmo do ponto
de crítica que ela estabelece com o texto borgiano a partir do presente (LUDMER,
2021a).37
Não que, devido a isso, Borges se torne um autor pós-autônomo, como defende
Ludmer (2021a) ao utilizar outros critérios. A relativa elasticidade da classificação que
37
É verdade que entre o texto “¿Cómo salir de Borges?” (2000) e “Literaturas postautónomas: otro estado
de la escritura” (2013) há um intervalo de 13 anos, mas mesmo no último texto há diversos momentos em
que Borges é citado. Uma hipótese plausível para essa ausência talvez seja o foco, quase exclusivo, dos
teóricos nos textos de Borges dos anos 1940 – época em que se considera como momento em que os seus
melhores textos foram produzidos e em que, de fato, ele teve pouca exposição.
61
ela levanta para designar um projeto de escrita como pós-autônomo, por se situar no nível
da experiência propriamente cultural, torna o limite entre aquilo que é descrito como
autonomia ou como pós-autonomia um artifício de escolha do observador. É evidente,
porém, que, do ponto de vista da circunscrição de categorias literárias ou culturais, a
ciência empregada pela crítica literária não é – nem pode ser – exata.
A questão, contudo, é que, ao defender a produção borgiana como pós-autônoma,
ela coloca sob a mesma categoria uma coleção de objetos muito maior do que a esperada
e, com isso, desfaz a própria categoria, que, já sem um limite razoavelmente bem definido,
não pode se referir a nenhum objeto particular. Isso acontece porque não existe objeto
literário que não seja passível de uma análise cultural. Consequentemente, não há, de fato,
uma literatura pós-autônoma, nem sequer autônoma, na medida em que, para
compreender algo como literatura pós-autônoma, bastaria integrar essa literatura em um
sistema cultural. Porém, tanto o sistema cultural quanto a literatura são objetos de disputa
epistemológica, e não coisas dadas.
De todo modo, essa incorporação da subjetividade nas obras borgianas não se deu
de maneira tranquila. Em “Borges y yo”, texto presente no livro El Hacedor, publicado
em 1960, Borges discute a relação não só entre a vida pública – de autor conhecido e
celebrado no mundo – e a privada, mas também entre autoria e personagem:
BORGES Y YO
Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me
demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges
tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario
biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del sigo XVIII, las etimologías,
el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo
vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación
es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me
justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas válidas, pero esas páginas no
me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje
o la tradición. Por lo demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante
de mí podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa
costumbre de falsear y magnificar. Spinoza entendió que todas las cosas quieren perseverar en su
ser; la piedra eternamente quiere ser piedra y el tigre un tigre. Yo he de quedar en Borges, no en
mí (si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos otros o que en
el laborioso rasgueo de una guitarra. Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologías
del arrabal a los juegos con el tiempo y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y
tendré que idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del
otro.
No sé cuál de los dos escribe esta página. (BORGES, 1984, p. 808)38
38
“BORGES E EU
62
No texto acima, o narrador tenta descrever a postura de um duplo, que compartilha
com ele dos mesmos gostos, mas, mesmo assim, é diferente – pois há atributos nesse
outro que não há nele, como a qualidade de um “ator”. O narrador, dessa forma, parece
ver nisso um aspecto performativo pelo qual esse outro constitui não só a sua identidade
no espaço público, mas a sua própria ontologia. Além disso, a voz do narrador que fala
no texto é uma voz já mediada pelo outro, o Borges autor. Mesmo porque, por mais que
o narrador se refira à angústia do Borges “real” que tenta falar sobre o modo como que
sua vida é falseada e magnificada pelo Borges autor, o que se vê é uma personagem, mais
uma máscara criada pelo Borges autor – “Yo he de quedar en Borges, no en mí (si es que
alguien soy)”.
O que resta ao Borges real, então, é o esquecimento ou sua captura pelo Borges
autor. Em ambos os casos, porém, esse será um trabalho de memória, de como proceder
com a questão dos restos, do que fica de Borges no mundo, independentemente de ele ser
o Borges autor ou o Borges real. Desse ponto de vista, vemos entrar em jogo um
procedimento borgiano que rasura as fronteiras do real, convertendo a própria relação
entre realidade e ficção em um problema que só pode ser formulado do ponto de vista da
própria ficção – ainda que ele nunca transforme tudo em ficção, mas apenas indetermine
a sua fronteira39.
Nesse contexto, o problema da cegueira ganha especial sentido quando apresenta
a questão sobre a memória não só do ponto de vista da conservação do passado, mas da
Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez
já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo
correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico. Agradeçam-
me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa
de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em
atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para
que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que
alcançou certas páginas válidas, mas essas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja
de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a
perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou
cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que
todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu
permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do
que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me
dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora
são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do
esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.” (BORGES, 2000a, p. 206)
39
Sempre se pode argumentar que esse procedimento deriva de Dom Quixote, de Cervantes, ou que ele seja
característico da modernidade como um todo. Isso, no entanto, não invalida a possibilidade de uma leitura
que procura circunscrever um atributo (im)propriamente borgiano.
63
própria reelaboração do presente: de que modo a identidade pessoal, de homem público
ou de indivíduo, seja em Borges ou em Mattoso, pode apresentar aquilo que se diz ser?
Quais traços presentes nas obras trabalham a memória, tanto no plano do conteúdo quanto
no da expressão? Como a materialidade do livro pode implicar um problema para a
conservação da memória? Como um escritor cego lida com a questão da memória no ato
de escrita?
As questões levantadas por esses problemas são muitas e dizem respeito, em uma
primeira mirada, ao modo com que o trabalho de escrita reelabora, empiricamente, as
coordenadas dos projetos de vida de cada um. A lida com o papel, as leituras e releituras,
o trabalho com a organização mnemônica e reflexiva são apenas alguns elementos que
suscitam no autor, seja ele cego ou não, um estado de constante experimentação. Escrever
é colocar no papel um traço de vida40 mesmo nos casos em que autor e obra procuram
não coincidir – como é o caso de Borges –, um processo que só existe para nós como
experiência, mas num sentido diferente ao daquele empregado por boa tarde da tradição
racionalista, que via a experiência como um rebaixamento do que poderia a natureza
humana, devido à atividade dos sentidos.
40
Para essa relação entre literatura e vida, ver: DELEUZE, Gilles. “A literatura e a vida”. In: DELEUZE,
Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 11-16.
41
Ciência, no sentido aristotélico, diz respeito ao conhecimento da causa dos fenômenos. Já a arte diz
respeito ao conhecimento universal que se adquire após analisar a recorrência de alguma coisa em casos
particulares. Nesse sentido, grosso modo, a arte – como técnica – está vinculada a um saber prático e a
ciência a um saber teórico.
64
Essa articulação entre experiência e epistemologia, iniciada na Antiguidade, teve
repercussões durante toda a história da filosofia ocidental, influenciando diferentes
correntes (como empiristas e idealistas) e autores, indo de Platão e Aristóteles, passando
por Tomás de Aquino e Ockham até chegar a Locke, Hume, Leibniz etc.42
De todo modo, essa proliferação da experiência no pensamento filosófico se
dirigiu no sentido de problematizar o seu papel na estruturação da ciência, seja em direção
a um sujeito que experimenta – e que, portanto, surge como origem de toda experiência,
sobretudo na tradição que se inicia com a modernidade –, seja da experiência como
método objetivo e impessoal para acessar o conhecimento.
No entanto, em Empirismo e subjetividade (2012), ao investigar o pensamento de
Hume, Gilles Deleuze defende que a experiência não é constituída por um sujeito, mas,
em sentido inverso, é ela que o constitui. Como resultado, a experiência seria antes um
processo e prática (experiência = experimentação) do que ferramenta para garantir a
legitimidade de um sujeito cognoscente.
Nessa perspectiva, o sentido de experiência como “experimentar”, “pôr à prova”,
restitui a essa palavra parte do significado presente no mesmo étimo grego (ULM, 2014,
p. 19). Segundo Hernán Ulm (2014), a experiência institui uma disputa legal que solicita,
ética e politicamente, um engajamento dos indivíduos na produção de uma arte ou um
saber43.
Desse modo, a experiência se converte em prática e se aproxima da atividade do
pensamento justamente pelo aspecto de violência que lhe institui:
42
Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5a ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
43
Este é o mesmo sentido do quid juris? kantiano, pois esse significado da experiência como
experimentação coloca, a cada vez, a questão da legitimidade da existência de determinadas formas de vida.
Cf. LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Tradução de Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-
1, 2017, p. 23.
65
De outra parte, a memória possui estreita relação com a noção de experiência.
Aristóteles percebeu no papel da memória um ponto de virada decisivo na trajetória dos
seres rumo ao conhecimento (Met., I, 980a 27-29). Segundo o estagirita, a memória
garantiria um armazenamento de percepções, mas esse armazenamento não chegaria a
constituir um conhecimento do objeto e de suas causas. Ainda assim, essa retenção de
informações passadas que a memória opera teria a possibilidade de tornar esses dados
perceptivos presentes, de maneira ativa, por meio da recordação.
Nesse sentido, Aristóteles situa o problema da memória em duas dimensões: uma
retentiva, de conservação dos dados sensoriais, e outra recordativa, que delimita o seu
caráter voluntário e racional. Na tradição do pensamento ocidental, ambas as dimensões
foram discutidas por diferentes correntes e áreas não só da Filosofia, mas de outras
disciplinas, como a Psicologia, Sociologia etc.
Ao assumir um dos polos desse debate, Henri Bergson buscou desenvolver uma
teoria da memória que teve como centralidade o problema de sua conservação. Em
Matéria e Memória (2010), Bergson defendeu, por um lado, um apartamento entre a
memória e a sua base meramente física e, por outro, uma distinção entre memória e
recordação. Desse modo, a memória pura compreenderia a conservação de todo o fluxo
da consciência como virtualidade e a recordação seria concebida como uma atualização
dessa mesma memória por meio de uma escolha deliberada feita por parte do agente que
busca recordar.
Assim, nesse movimento do indivíduo para recordar, o corpo surgiria como a
diferença que se processa no sujeito por meio dessa atividade rememorativa:
No plano ulterior da memória pura, a memória não enfrentaria limites e seria como
um fundo consubstancial a todas as coisas. Já quando passamos para a dimensão da
recordação, o indivíduo atuaria dentro do espaço da memória pura, passando de um ponto
a outro da memória para realizar a sua atualização, mas esta só se processaria ao mudar
66
de plano. Com isso, a memória não se encerraria com a sua atualização – mas
permaneceria latente.
Destarte, a noção de memória seria também como um fundo metafísico que
garantiria uma existência, em certo sentido, mais real das coisas, na medida em que essa
atualização implicaria uma disposição temporal da consciência no presente, dado pela
noção de duração44. Como resultado, o tempo se apresentaria como um elemento
constituinte da própria memória, pois a materialização da lembrança implica a
configuração do presente, a um só tempo, como uma experiência sensorial e motora.
Nesse contexto, vemos, ainda que por uma via distinta à de Aristóteles, um novo
encontro entre as categorias de memória e experiência, que estão articuladas, dessa vez,
pela noção de tempo e limitadas espacialmente pela de corpo. Dentro desse quadro
teórico, o corpo seria como o momento em que a consciência adquire uma identidade
própria, afastando-se do fluxo impessoal da memória pura. Assim, o corpo cumpriria um
duplo papel: por um lado, manifestaria a diferença entre o passado e o futuro e, por outro,
realizaria a identidade individual do agente que recorda.
Em todo caso, ambas, quer seja a memória ou a experiência, engajariam uma
prática ético-estético-política da existência, executando uma espécie de prova do mundo,
pois o corpo só se produziria como um efeito contingente dessa experimentação que o
indivíduo realiza no fluxo do tempo e que define, por sua vez, a temporalidade própria da
memória. Como consequência, segundo a bela imagem ilustrada no conjunto da teoria de
Bergson, a nossa própria ontologia seria como um ritmo de duração que se prolonga na
materialidade plástica do mundo.
44
Estou seguindo aqui a indicação dos diferentes graus de existência presentes na obra de Étienne Souriau.
Cf. LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Tradução de Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-
1, 2017.
67
Além disso, os dispositivos técnicos que surgiram com a modernidade – a prensa
de tipos móveis de Gutemberg, a fotografia, o cinema etc. – buscaram conservar a
informação de um modo mais preciso e abrangente que o da memória humana. O que
tornou, em certa medida, obsoleto o trabalho da técnica memorialística da Antiguidade,
que se preocupava com o cultivo de uma memória artificial, produto de um treinamento
que se fundamenta na rememoração de lugares e imagens e se constitui como uma espécie
de “escrita interior” (YATES, 2007, p. 23).
Em Borges, a memória recebe tratamento literário em, pelo menos, dois contos
“Funes, el memorioso” e “La memoria de Shakespeare”. “Funes”, publicado em 1942 no
jornal La Nación – portanto, ainda durante a fase visual de Borges –, traz a história de um
peão de Fray Bentos que desenvolve uma memória prodigiosa após um acidente em que
caiu do cavalo e bateu a cabeça. Com isso, Irineu Funes nunca mais esqueceu o que
percebia, e isso converteu a atividade de lembrar em uma espécie de maldição:
45
“Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes. Menciona Swift que
o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os
tranquilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o
solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato.
Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém em
suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão
infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano.
Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distanciar-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra,
imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam.” (BORGES, 1998, p. 545)
68
Segundo Rodrigo Quian Quiroga (2011), o tema para o conto de “Funes” surgiu
após Borges refletir sobre o trabalho de James Joyce ao escrever Ulysses, um livro que
gastou 400 mil palavras para fazer o relato de um único dia (QUIROGA, 2011, posição
148). Para Borges, o trabalho de Joyce implicava uma memória monstruosa, que buscava
lembrar uma quantidade quase infinita de detalhes46. Quando escreve “Funes”, Borges
enuncia os riscos desse tipo de memória, apontando a impossibilidade de Funes
estabelecer generalizações, ou seja, de pensar (BORGES, 1984, p. 490).
Como exemplo dessa dificuldade, Borges produz um experimento mental típico
da Filosofia, articulando em um texto literário uma dicção presente também no ensaio
filosófico. Nesse experimento, Borges cita a tentativa de Funes, primeiro, em estabelecer
um sistema de numeração próprio e, depois, em conceber um novo tipo de linguagem. No
primeiro caso, cada número era substituído por uma palavra – o que, como notou o
narrador, acabava por destruir a própria noção de sistema numérico, já que não era mais
possível conhecer nem relacionar grandezas (op. cit., p. 489).
Já no segundo caso, Funes procurou pensar um sistema de linguagem em que para
cada signo correspondesse a apenas um referente. Porém, consoante o que foi percebido
por ele próprio, tal sistema gerava alguns problemas ligados à ambiguidade e à tarefa
interminável de evocar memórias que fossem arranjadas por meio desses dados (op. cit.,
489). Assim, o trabalho do sujeito de descrever uma experiência narrada despertava no
narrador o terror de estar diante do infinito – uma imagem assustadora que Borges, de
diferentes maneiras e em diversas obras, vai evocar para pensar como seria escrever “o”
infinito (SCHWARTZ, 2017, p. 357-360).
Curioso notar, porém, que no próprio conto há uma informação cifrada que
contrasta, no todo, dois modos de pensar as memórias prodigiosas. Essa informação diz
respeito à menção ao livro Naturalis Historia, de Plínio (BORGES, 1984, p. 488). Esse
livro, uma espécie de enciclopédia de histórias antigas, traz o relato de várias pessoas com
memórias extraordinárias; porém, ao contrário de Borges, que via na possibilidade de ter
uma memória infinita algo negativo, Plínio valoriza o desenvolvimento da alta capacidade
de conservar a informação (QUIROGA, 2011, posição 196).
Uma resposta para essa inversão promovida por Borges talvez esteja no transcurso
histórico que gerou uma diferença tecnológica significativa entre os dois, pois, no caso
46
Como mostra Quiroga (2011, posição 249), é irônico que Borges denuncie os problemas de uma memória
excepcional quando ele próprio, sobretudo após a cegueira, desenvolveu essa capacidade.
69
de Plinio, a arte da memória, cultivada como uma espécie de estilística de si, era
socialmente considerada uma virtude ao passo que na época de Borges, com a invenção
de diversos dispositivos técnicos que trabalharam para acumular informações e, em certa
medida, colonizar a memória – caso, como já foi dito, da imprensa, da fotografia, cinema
etc. –, o lugar da memória na sociedade passou a ser não mais tão bem visto e Funes
parece ser o paradigma dessa nova realidade; já que ele metaforiza o dispositivo técnico
para muito além do seu período histórico – basta ver como os computadores elevaram
exponencialmente a capacidade de armazenamento de dados – ao acumular memórias
indefinidamente.
Conforme Quiroga (2011), do ponto de vista psicológico, o receio de Borges
quanto à situação de Funes encontra respaldo na neurociência contemporânea, pois o
excesso de memória gera problemas na identificação de regras e do sentido contextual,
na capacidade de generalização por meio da repetição de ações etc. Problemas que são
percebidos, inclusive, clinicamente, como é o caso de alguns tipos de autismo e de
doenças que incidem sobre o funcionamento do cérebro.
De todo modo, essa questão da memória em “Funes” resulta na perda da própria
identidade de si, pois a concentração excessiva nos detalhes faz com que ele redimensione
as fronteiras corporais que também circunscrevem os conceitos e as experiências
cotidianas:
Nesse sentido, Funes discute o problema da perda da identidade corporal por meio
da instalação do sujeito numa temporalidade que discretiza48 os instantes, impedindo a
passagem de um momento a outro, sua associação sensorial e motora e consequente
47
“Então vi o rosto da voz que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos; nascera em 1868; pareceu-
me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que
cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória;
entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis.” (BORGES, 1998, p. 545-546)
48
As noções de discreto e contínuo são conceitos matemáticos que implicam dois movimentos: um referente
à sucessão dos números naturais, no caso do discreto, e o outro referente à representação dessa sucessão
em um “arquétipo de continuidade” (COSTA; DÓRIA, 1991/2, p. 123). Aqui, faço uma passagem do ponto
de vista da matemática para o ponto de vista literário para pensar as relações entre os dois planos da
memória em Bergson: discretização como o plano da lembrança e o continuum como o plano da memória
pura.
70
conversão em lembranças. A discretização faz de Funes, assim, um indivíduo condenado
ao presente. Um presente infinito e inexperienciável, haja vista que a única coisa que
consegue fazer é perceber demais o instante – o que faz, contrariamente, com que não
perceba nada, pois ele não consegue organizar esse material sensível numa unidade mais
geral, capaz de abstrair e refletir sobre a realidade ou, em outros termos, pensar, no sentido
de pensar como uma atividade psicológica.
Além disso, essa instalação numa temporalidade discretizada intercepta o
movimento contínuo da memória e faz com que o indivíduo nem consiga recordar o
passado nem esquecer, pois esquecer, seguindo Bergson (2010), é passar de um ponto a
outro da memória, estabelecer conexões, coisa que Funes está impossibilitado de fazer.
Desse modo, a única que ele consegue fazer é acumular informações, como uma
fotografia que guarda os detalhes de uma imagem, um gravador que grava os detalhes do
som etc.
Com isso, não só Funes, mas os eventos não preservam qualquer identidade, pois
cada aspecto da recordação vai levando a um detalhe diferente numa progressão e
fragmentação infinitas. Essa radicalização da memória, como aponta o narrador, leva
também a uma tarefa interminável, pois prolonga, na experiência narrada, o instante para
muito além do tempo que, de fato, ele levou para se realizar. Segundo Quiroga (2011),
essa constatação é uma consequência lógica que foi postulada por William James, um dos
filósofos a quem Borges tinha mais apreço (QUIROGA, 2011, posição 226). Ou seja, é
como se Borges fizesse na literatura uma aplicação prática de uma hipótese teórica,
continuando, por outros meios, o desenvolvimento do mesmo problema – o que o próprio
Borges vai chamar de conto conjectural (PONTES; MARTINS, 2020, p. 118).
Já em “La memoria de Shakespeare”, conto publicado em 1980 – portanto, já na
fase cega de Borges –, o ponto de vista sobre a memória muda radicalmente. O conto traz
a história de Hermann Soergel, um homem de letras alemão, que um dia recebeu de
Thomas Daniel Thorpe, um escritor relativamente famoso, a memória de Shakespeare. O
encontro entre os dois aconteceu após um congresso shakespeariano em que o major
Barclay, num bar que tinha ar britânico, contou a eles a história islã do anel do rei
Salomão, o qual, segundo a lenda, consegue ler a língua dos pássaros (BORGES, 1989,
p. 393). Então, Hermann e Barclay trataram a história como mera invenção, mas Thorpe,
não. Para ele, a história era verdade.
Após despedirem-se, Hermann e Thorpe retornaram juntos para o hotel onde
estavam e, em seu quarto, ele lhe explicou o motivo de sua insistência na verdade da
71
história: o anel do rei Salomão existia de fato e ele garantia ao portador a memória de
Shakespeare. Ainda segundo Thorpe, a memória de Shakespeare era passada por meio de
um ritual que consistia no seguinte: “El poseedor tiene que oferecerlo en voz alta y el otro
que aceptarlo. El que lo da lo pierde para siempre” (op. cit., p. 394)49. O ritual era, por
isso, um contrato que gerava como consequência a impossibilidade de o possuidor ter
aquilo que possui.
Segundo Schittine, há uma relação histórica entre leitura e voz alta em
Shakespeare e cultura islâmica que é pensada nessa passagem e que diz respeito “à
importância mnemônica para se guardar um texto, seja ele visual, oral, de imagens ou
sons” (SCHITTINE, 2016, p. 182). Além disso, há uma possibilidade de interpretação
dessa passagem também pela importância do teatro para a memória de Shakespeare, já
que no teatro é a voz falada, e não a escrita, que ganha proeminência. Em todo caso,
parece-me plausível propor que a cegueira seja o ponto de unidade desse ritual, pois o
cego – tanto no caso de Borges quanto de Mattoso – precisa reelaborar a memória para
fazer literatura.
Nesse contexto, conforme a narrativa avança, vemos um conflito surgir. A
memória que Hermann recebe do vendedor vai infiltrando-se em sua própria memória, de
modo a fazê-lo perder a sua identidade pessoal, já que “la identidad personal se basa en
la memoria” (BORGES, 1989, p. 398)50. A memória de Shakespeare não o ensina a ser
Shakespeare, pois a única coisa que ela lhe dá são as circunstâncias do Shakespeare
histórico:
49
“O possuidor tem de oferecê-lo em voz alta e o outro, de aceitá-lo. Aquele que o oferece perde-o para
sempre.” (BORGES, 2000b, p. 446)
50
“a identidade pessoal baseia-se na memória” (BORGES, 2000b, p. 450).
51
“Compreendi que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento e vontade, não são uma
ficção escolástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outra coisa que as circunstâncias de
Shakespeare. É evidente que estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa é a obra que
executou com esse material inconsciente.” (BORGES, 2000b, p. 449-450). O trecho final “lo que importa
es la obra que ejecutó con ese material deleznable” traz uma tradução imprecisa. “Material deleznable”
aponta não para um “material inconsciente”, mas para o fato de que a obra se constitui com base em algo
incerto, desprezível, informe, que escapa às determinações. “Si el hombre es deleznable, cómo puede ser
adorable una imagen del hombre” (BORGES, 1989, p. 262). “Toda obra humana es deleznable, afirma
Carlyle, pero su ejecución no lo es” (op. cit., p. 455).
72
Nesse sentido, a referência a Shakespeare, a qual, aliás, sequer pode ser
considerada sem que antes se coloque a questão sobre a própria existência de
Shakespeare, coloca um problema não só para definir o que são as circunstâncias, mas
também o que é esse “ser” do Shakespeare. No prólogo de prólogo de “Macbeth”
(BORGES, 1999), Borges questiona as tentativas realizadas no século XIX para a
identificação do Shakespeare histórico sendo que, no “curso de mais de duzentos anos, a
ninguém ocorrera pensar que Shakespeare não fosse o autor de sua obra” (BORGES,
1999, p. 154).
Com efeito, parece óbvio que Borges não rejeita a possibilidade de um
Shakespeare histórico, mas o que ele sublinha é a autonomia da ficção para existir em
seus próprios termos. Segundo Ludmer (2021a), esse artifício da autonomia da ficção em
Borges, que concebe ficção e realidade como duas realidades de mesmo nível, mas
diferentes (LUDMER, 2021a, p. 246), na verdade, é apenas uma manifestação aparente,
pois a sua escrita, caso se faça uma apropriação crítica de sua obra, também desfaz a
autonomia para pensar uma realidade complexa da ficção, como um sistema em rede, pós-
autonômo – no sentido de que esse elemento “pós” engaja um movimento de alteridade,
e não de simples negação ou oposição. Desse ponto de vista, Borges poderia ser pensado,
em uma outra chave hermenêutica, também como um irradiador da pós-autonomia a partir
do que pode os seus próprios textos – o que coloca a sua obra num espaço de entre-lugar
entre a autonomia e a pós-autonomia literárias (LUDMER, 2020a, p. 251).
Muito embora, como afirmei anteriormente, os conceitos de autonomia e de pós-
autonomia não sejam bem justificados, há um aspecto importante na argumentação de
Ludmer: o foco na especificidade textual de Borges. Esse foco, ao contrário do argumento
cultural, faz com que o resultado da pesquisa seja restrito ao caso analisado. Assim, as
intrincadas relações entre diferentes tipos de texto (ensaio, diário, relato descritivo,
comentário etc.); a estrutura aberta da narração; a conjuração de um sentido fixo e último
para as coisas; podem ser vistas como um aspecto do estilo borgiano que configura um
tipo de literatura específica. A pós-autonomia, portanto, seria esse nome de um projeto
literário – mas não um nome comum, e sim um nome próprio, o qual percebe a
singularidade do texto borgiano como um elemento de sua composição.
Nesse sentido, a relação entre mundo e ficção também guarda um componente
pragmático. Do ponto de vista da autonomia literária, essa relação entre ficção e mundo
possui como guia a ficção e tem como orientação diretiva a necessidade de produção para
73
um público – no caso da literatura, o leitor. Diz Borges sobre a sua hipótese de urgência
da escrita para Shakespeare:
74
nos diz o que devemos reconhecer como aceitável e como pensável. Isso é o que constitui
o “realismo” – aspecto ideológico interno à forma social e tecnológica que constitui o
nosso presente.
Nessa perspectiva, a memória de Hermann estava sendo canibalizada pela
memória de Shakespeare, de modo a fazer com que este assumisse o lugar daquele. Com
a memória de Shakespeare, é como se Hermann não só tivesse recebido um tipo de
memória nova, mas fosse possuído pela própria memória. Com isso, ao contrário de
Funes, que discretizou a memória, Hermann se viu apanhado pelo continuum da memória,
em direção à memória pura – ainda que nunca chegue até ela –, como se caísse no labirinto
de lentes do dispositivo fotográfico. Mesmo porque, a memória de Shakespeare lhe foi
oferecida, primeiro, como a capacidade de ler a língua dos pássaros.
A língua dos pássaros, no Corão, remete à língua dos anjos (CHEVALIER, 2015,
p. 687) e, por isso, diz respeito a um conhecimento mais elevado tanto do ponto de vista
metafísico quanto físico (elevar-se como afastar-se do chão, da terra). Nessa perspectiva,
conquistar a língua dos pássaros é adquirir um conhecimento divino e que mantém a
oposição entre transcendência e imanência intacta.
Contudo, quando o narrador de “La memória de Shakespeare” introduz o
problema de uma memória que desorganiza a identidade pessoal do indivíduo, não vemos
a passagem de um plano terreno para um superior, mas um trabalho da memória dentro
de um mesmo nível – pois a memória de Shakespeare é vista não como uma exterioridade
transcendente, mas imanente. Além disso, esse trabalho só pode acontecer por meio da
cegueira.
Há vários elementos no conto que atestam isso. Em primeiro lugar, a posição do
narrador, que é cego e não reconhece o rosto de Thorpe, que é quem lhe deu esse
dom/maldição (BORGES, 1989, p. 393). Em segundo lugar, a questão do contrato
ritualístico que faz a passagem da memória de Shakespeare e que precisa ser pensado a
partir da cegueira: o narrador detém uma impossibilidade ontológica de ter a visão-
memória que possui. Em terceiro lugar, a questão da imagem do pássaro como algo que
garante a visão espiritual ao invés da física, pois o tema de “ver com os olhos do espírito”,
como disse anteriormente, está bastante sedimentado na tradição ocidental e deixa
margem para a potencialidade da cegueira. Em quarto lugar, o tratamento dado a relação
entre Oriente e Ocidente.
Lembremos que a história se passa num ambiente inglês para falar sobre um autor
inglês, mas a história que é contada diz respeito a um mito islâmico. Na extensa
75
bibliografia de Borges, o tema do Oriente serviu não só para discutir o desconhecido, o
inesperado, algo que foge à racionalidade mesmo sendo – e até por isso mesmo –
intrínseca a ela, mas também, e sobretudo, o papel da ficção para o escritor, como se pode
perceber em seu interesse pelas histórias das Mil e uma noites, que despertaram no
argentino a atenção para o Oriente (SCHWARTZ, 2017, p. 369-370).
Dessa forma, a inclusão do Oriente num tema de feição tão ocidental quanto
Shakespeare parece sugerir a introdução da magia no relato histórico – até porque, uma
das questões centrais na interpretação da expressão “memória de Shakespeare” é a
existência de uma memória do Shakespeare histórico – ou de uma tentativa de
ficcionalização da própria ficção, dando uma maior consistência ficcional ao conto – o
que não lhe garante um incremento da carga dramática, apenas intensifica ainda mais a fé
poética, que assegura para o texto uma “suspensão da incredulidade” (BORGES, 1999,
156).
Autobiográfico [20]
Esse soneto já havia aparecido na antologia Paulisséia Ilhada – Sonetos trópicos, publicada em 1999.
52
77
poema e contribui também para a formação de imagens mentais53 – seja pelo exercício de
rememoração de símbolos bem definidos, seja pelo recurso à construção de suas próprias
imagens –, como era ensinado pelos tratados de memória do Renascimento (YATES,
2007, p. 141-143). Segundo Diniz, em Mattoso o “teatro parece ser o dispositivo que
converte o registro autobiográfico em projeto de escritura autoficcional” (DINIZ, 2018,
p. 36).
Além disso, assim como acontece com Borges com relação às escolhas literárias
para recomposição das obras já publicadas, Mattoso refaz de maneira consciente e
deliberada o seu corpus literário, adequando a sua obra para novos interesses e estratégias
do presente. Conforme Marcelo Diniz (2018), Mattoso utiliza do recurso da palinódia
(correção de um poema por outro) entre Manual do podólatra amador e “Rockabullying”
com o objetivo de estabelecer um novo contrato veridador, de modo a colocar o narrado
acima da verdade e da ficção ao mesmo tempo em que resigna a sua escrita, devido à
deficiência, ao Destino:
Nesse sentido, Mattoso desenvolve, desde o início, uma narrativa sobre a cegueira
tendo como elemento central a sua própria relação com a doença. Isso não quer dizer,
porém, que a cegueira origine a podolatria e o masoquismo. O que ela indica é a existência
de um ponto de confluência entre essas três coisas. Até porque, associar a podolatria e o
masoquismo a uma relação monocausal faz perder de vista dentro do projeto poético
mattosiano a relação conflituosa entre desejo e política, pois a redução desses dois termos
53
Faço um uso meramente instrumental do termo para apontar para uma especificade do tipo de imagem.
Não defendo, com isso, uma distinção dualista entre imagens mentais e imagens sensíveis.
78
a uma doença poderia sugerir uma série de implicações indesejáveis sobre como a
podolatria e o masoquismo são meras consequências da cegueira.
Além disso, a cegueira na obra mattosiana é vista como o mal maior, a “violência
propriamente dita” (op. cit., p. 32). Mattoso pensa a cegueira, ao contrário do masoquismo
e da podolatria, como uma maldição do Destino, mas que ele, resignadamente, a aceita.
Com isso, ele não quer tratar o seu fetiche como um caso para clinicalizar – há diversas
menções críticas à Psicanálise espalhadas em diferentes livros de Mattoso, cito como
exemplo a título ilustrativo o conjunto de poemas “Devaneando no divan”, escritos entre
maio de 2010 e outubro de 2011 e presentes na antologia Theatro Lyrico (MATTOSO,
2019, p. 13) –, nem tratar a si mesmo como uma vítima. Aliás, os momentos em que a
palavra vítima aparece nos poemas de Mattoso são, em geral, matizados com a malícia e
a manipulação do eu dramático para expressar um problema político ou, como no poema
abaixo, o assunto revela-se tão grave que o espaço desejante perde prioridade para o
espaço, explicitamente, político. Veja-se sobre isso o soneto “Da tortura baseada”:
Nesse poema, o eu dramático expõe a situação dos presos que vão para
Guantánamo – uma prisão estadunidense que fica localizada em território cubano e que é
conhecida internacionalmente pelas violações de Direitos Humanos54. Ao invés de
54
SYMBOLIA. Os pesadelos de Guantánamo. Agência Pública. 6 de julho de 2015. Disponível em:
<https://apublica.org/hq/2015/07/os-pesadelos-de-guantanamo/>. Acesso em: 01 de dez de 2021.
79
assumir o lugar do masoquista, promovendo uma resistência política à ação do Estado55,
o eu dramático, sem entrar na discussão sobre o problema da ação efetivamente praticada
pelos presos ser terrorismo ou não (“Si adepta é do terror, / não me aprofundo no caso”),
duvida se “o mais inmundo dos crimes é punido, e a voz calada” com a tortura. Ou seja,
o eu dramático duvida se um crime, qualquer que ele seja, possa ser pago com a tortura.
De todo modo, o recurso à memória em Mattoso imprime uma conversão crítica
de seu passado em material de trabalho, de modo a estabelecer com esse procedimento
uma crítica subversiva também do presente, devido ao modo com que a memória se vê
atrelada ao consumo e a mercantilização da vida. Conforme Franklin Alves,
55
Se há algo como uma “política de esquerda” em Mattoso, ela precisa ser pensada, precipuamente, a partir
do modo com que ele articula o desejo em suas obras.
56
Ver entrevista com Mattoso no apêndice.
80
olfato, audição, tato, paladar e propriocepção57) e da relação que eles estabelecem entre
si.
Destarte, tanto em Borges quanto em Mattoso a cegueira estabelece como
paradigma a utilização e tratamento da memória. Cegos não pensam da mesma forma que
videntes, isto é, autores cegos não organizam o seu material literário da mesma forma que
autores videntes. O que esse princípio heurístico mostra é que há um efeito que é
produzido na passagem entre a literatura e a vida, mas que pode – e até deve – ser
trabalhado de maneiras distintas a depender do projeto literário de cada um. Isso não quer
dizer, porém, que a memória esteja restrita a uma possibilidade de tratamento literário ou
a uma simples organização do fazer literário ou poético. O que se afirma é simplesmente
que não é possível escrever sem memória e que a cegueira é um modo, entre tantos, de se
pensar a memória como uma questão para a escrita.
57
O sentido da propriocepção diz respeito à capacidade de localização que permite a locomoção do
indivíduo no espaço.
81
3. OS LIVROS QUE NÓS SOMOS TÊM LÍNGUA?
58
Faço menção ao poema “Alejandría, 641 A.D.”, que será discutido logo mais adiante.
59
Estou fazendo um jogo com a expressão freudiana de inconsciente (Es), que, na tradução para o
Português, ora foi traduzida por “Id” (expressão latina), ora por “Isso”.
82
de outra maneira; multiplicando os sentidos, desestabilizando-os, ao invés de encerrá-los
– mesmo que provisoriamente.
Desde criança, Borges sabia que a cegueira seria a sua sina. Como uma espécie de
maldição hereditária – título que ele mesmo buscava evitar –, a doença havia cegado o
pai e, até por isso, ele se preparava desde pequeno para o momento em que fosse ficar
cego. O que pode ter contribuído para o desenvolvimento de sua incrível memória
(QUIROGA, 2011, posição 245). Conforme Rodrigo Quian Quiroga,
60
Esposa de Borges.
61
“Maria Kodama recorda que, num primeiro encontro com Borges, ele lhe pediu para procurar uma
passagem num livro. Segundo Borges, essa passagem estava numa página ímpar, próximo da metade do
livro. Kodama começou a ler numa página aleatória e, surpreendentemente, Borges conseguiu guiá-la para
a página certa, apesar de ter estado cego durante vários anos e de ter lido o livro em 1916 – um fato que
costumava escrever na primeira ou última página –, décadas antes deste encontro com Kodama.”
(QUIROGA, 2011, posição 249, tradução minha)
83
subir. Quase um Piranesi, além de ser um labirinto” (MARÍA ESTHER VÁZQUEZ apud
SCHITTINE, 2016, p. 342).
O interesse pelos livros, e pela biblioteca em particular, o fez navegar em
complexos temas que serviram de fonte para os seus contos. Ainda segundo Quiroga
(2011, posição 297), a biblioteca de Borges continha títulos variados que iam desde a
natureza do tempo (Alexander Gunn, 1929), passando pela ideia de quarta dimensão
(Hinton, 1939) até a análise da mente (Bertrand Russell, 1921).
Nesse contexto, Filosofia e Ciência confluíam no sentido de permitir ao escritor
resolver por outros meios problemas que circundavam áreas distintas. Com isso, Borges
colocava a literatura como uma forma de pensamento imanente a campos, inclusive, mais
rígidos do saber, como é o caso das ciências duras62. Com muitos anos de distância, ele
antecipava o que Deleuze e Guattari (2010) tinham formalizado com base na articulação
imanente entre Filosofia, Ciência e Arte.
De todo modo, essa resolução de problemas não significava para Borges pôr um
fim às discussões que matemáticos e físicos formulavam, mas aplicar questões
filosóficas, ou que lhe despertavam o interesse imediato, em termos literários, procurando
encontrar um ponto de incomensurabilidade – uma espécie de lugar onde a lógica não
fazia mais sentido – nessas obras.
Para tal intento, Borges investia na imaginação, por ser uma ferramenta
virtualmente infinita para pensar problemas, e circunscrevia como objeto de sua
investigação coisas que possuíam extensões ou naturezas que já se sabiam serem
impossíveis de sondar completamente em uma perspectiva objetivamente humana. Como
resultado, os temas que lhe interessavam guardavam sempre essa natureza mágica ou
mística, como é o caso do infinito, da memória e da escuridão.
Em Historia de la noche (1997), publicado em 1977, Borges, já em sua fase cega,
conduziu um deslocamento da cegueira, fazendo-a ir de tema a procedimento expressivo,
numa antologia organizada por meio de uma métrica em versos brancos e livres – algo
diferente do que vinha gestando nesse novo período cego.
Com isso, ele promoveu a manipulação de uma memória que fazia analogias
mentais e orais e servia à fabricação de novas imagens poéticas. Soma-se a esse gesto,
62
Entre 24 e 29 de novembro de 1997, o Centro de Estudos Avançados e a Faculdade de Direito e Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires, a Fundação Jorge Luis Borges e a Secretaria de Cultura da Cidade
de Buenos Aires realizaram a jornada “Borges y la Ciencia”, da qual participaram cientistas de várias
universidades da Argentina e do exterior.
84
também, o esforço por fazer uma poesia que refletisse o seu próprio modo de composição,
num nível de expressão metapoética que recobre não só a poesia, mas todo ato criativo
de usar a palavra.
No poema que abre a antologia, “Alejandría, 641 A.D.”, Borges resume e adensa a
imagem de uma biblioteca infinita em chamas que sintetiza a ideia do homem como obra
e a humanidade/mundo como biblioteca. Assumindo a perspectiva de um muçulmano, o
poema adquire uma forma narrativa, que passa de uma narração em terceira para primeira
pessoa, aproximando o relato histórico da queda da biblioteca de Alexandria com figuras
religiosas, como Adão e Maomé (Muhammad). A objetividade da história é enlaçada pelo
misticismo, conjugando na noção de uma biblioteca infinita o engenho do que há de
(im)próprio no gênero humano:
85
la alquimia que en el barro busca el oro
y las figuraciones del idólatra.
Declaran los infieles que si ardiera,
ardería la historia. Se equivocan.
Las vigilias humanas engendraron
los infinitos libros. Si de todos
no quedara uno solo, volverían
a engendrar cada hoja y cada línea,
cada trabajo y cada amor de Hércules,
cada lección de cada manuscrito.
En el siglo primero de la Hégira,
yo, aquel Omar que sojuzgó a los persas
y que impone el Islam sobre la tierra,
ordeno a mis soldados que destruyan
por el fuego la larga Biblioteca,
que no perecerá. Loados sean
Dios que no duerme y Muhammad, Su Apóstol. (BORGES, 1997, p. 9-
10)63
63
“ALEXANDRIA, 641 A. D.
86
A biblioteca de Alexandria condensa neste poema a experiência humana e marca o
conflito entre dois modos de conceber a humanidade desde a biblioteca e duas formas de
se pensar as tecnologias da memória: o modo cristão/ocidental, que vê na biblioteca um
mero arquivo histórico, ou seja, uma ferramenta à parte do gênero humano, e o modo
mouro/oriental, que vê na biblioteca a condição de possibilidade transcendental para a
própria existência humana, pois há uma insinuação nos versos finais da forma profética
que os livros assumem para a nossa ontologia.
Isso porque, de modo geral, o poema é dividido em dois momentos. No primeiro,
há a descrição que Omar (o mouro incendiário) faz, elogiando a biblioteca e os livros e
articulando-os com a história humana; já no segundo, há a tarefa que lhe cumpre, de
queimar tudo, em nome do Deus que parece só aceitar um livro, o Livro Sagrado, e que
ordena que todos os demais sejam queimados. Entre essas duas coisas, nos versos finais,
o próprio Omar revela, em tom vidente/profético, que o ato de queimar representa também
o ato de preservar os livros (“ordeno a mis soldados que destruyan/ por el fuego la larga
Biblioteca,/ que no perecerá”). Esses livros que ficam, que persistem, que configuram o
conhecimento, a história e os homens, são livros que também desaparecem, que se
apagam, que se tornam, por isso, cegos – são a ausência presente da tradição.
87
sarça-ardente, que está presente no Antigo Testamento no momento em que Moisés
recebe a missão de libertar o povo de Israel (Êxodo 3:1-22).
Destarte, tal operação introduz na concepção de biblioteca, que carrega dentro de si
todo o projeto de humanidade, um elemento místico65 que foge ao controle do próprio
homem: a noite como momento de realização de nossa natureza. Desse modo,
paradoxalmente, o que nos constitui é o que nos torna mais alienados de nós mesmos. A
fabulação aparece, então, como uma atividade humana que serve para desumanizar, pois
a sua ontologia não pode ser encontrada em nenhum lugar em que a prática humana seja
objetivamente observável.
65
Segundo Erick Felinto, a incorporação do elemento místico em Borges remete à tradição hermética que
participa da modernidade e tem longa história na tradição literária moderna (FELINTO, 2008).
88
de piedra imán que hace estallar la nave;
el jeque y la gacela; un orbe fluido
de formas que varían como nubes,
sujetas al arbitrio del Destino
o del Azar, que son la misma cosa;
el mendigo que puede ser un ángel
y la caverna que se llama Sésamo.
La segunda metáfora es la trama
de un tapiz, que propone a la mirada
un caos de colores y de líneas
irresponsables, un azar y un vértigo,
pero un orden secreto lo gobierna.
Como aquel otro sueño, el Universo,
el Libro de las Noches está hecho
de cifras tutelares y de hábitos:
los siete hermanos y los siete viajes,
los tres cadíes y los tres deseos
de quien miró la Noche de las Noches,
la negra cabellera enamorada
en que el amante ve tres noches juntas,
los tres visires y los tres castigos,
y encima de las otras la primera
y última cifra del Señor; el Uno.
La tercera metáfora es un sueño.
Agarenos y persas lo soñaron
en los portales del velado Oriente
o en vergeles que ahora son del polvo
y seguirán soñándolo los hombres
hasta el último fin de su jornada.
Como en la paradoja del eleata,
el sueño se disgrega en otro sueño
y ése en otro y en otros, que entretejen
ociosos un ocioso laberinto.
En el libro está el Libro. Sin Saberlo,
89
la reina cuenta al rey la ya olvidada
historia de los dos. Arrebatados
por el tumulto de anteriores magias,
no saben quiénes son. Siguen soñando.
La cuarta es la metáfora de un mapa
de esa región indefinida, el Tiempo,
de cuanto miden las graduales sombras
y el perpetuo desgaste de los mármoles
y los pasos de las generaciones.
Todo. La voz y el eco, lo que miran
las dos opuestas caras del Bifronte,
mundos de plata y mundos de oro rojo
y la larga vigilia de los astros.
Dicen los árabes que nadie puede
leer hasta el fin el Libro de las Noches.
Las Noches son el Tiempo, el que no duerme.
Sigue leyendo mientras muere el día
y Shahrazad te contará tu historia. (BORGES, 1997, p. 13-15)66
66
“METÁFORAS DAS MIL E UMA NOITES
90
Em “Metáforas de las mil y una noches”, quatro imagens poéticas são constituídas
como uma abertura operada pela cegueira: a primeira é o rio que possui uma absoluta
plasticidade de forma – “la lámpara; / (...) el rey leproso; / (...) un orbe fluido / de formas
que varían como nubes” (BORGES, 1997, pp. 13-4)67 – ; a segunda é a trama de um
91
tapete,68 em que o caos das cores e de linhas irresponsáveis revelam o governo de uma
ordem secreta (op. cit., p. 14); a terceira trata do sonho que se volta para o desconhecido,69
perfazendo um caminho de paradoxos que se expressam em um continuum, que faz um
sonho levar a outro e depois outro etc., formando, assim, um “ocioso laberinto” (op. cit.,
p. 15), onde imanência e transcendência se tocam – “En el libro está el Libro” (op. cit., p.
15)70 –; a última imagem, então, é a do mapa que configura o Tempo, região indefinida,
“de cuanto miden las graduales sombras / y el perpetuo desgaste de los mármoles / y los
passos de las generaciones” (op. cit., p. 15)71, de maneira a confluir o atual e o virtual –
“la voz y el eco” (op. cit., p. 15) –, numa escrita que se desenvolve junto com a leitura:
A menção a Xerazade no final do poema não é gratuita. Desde o título, Borges toma
a história das Mil e uma noites como modelo de texto e de escrita, um compilado de
fábulas, histórias fantásticas e narrativas moralizantes que foram reunidas ao longo de
quase dez séculos (SCHWARTZ, 2017, p. 369). Neste livro, a história do rei Shariar, que
desposava uma mulher por noite para então matá-la após a consumação do matrimônio,
ganha uma inflexão quando Xerazade passa, noite após noite, a contar histórias incríveis,
suspendendo o dia de sua morte até o momento em que ela lhe mostra um filho e o ciclo
se quebra. Desse modo, as histórias que compõem o livro das Mil e uma noites são como
o resultado da atividade de Xerazade, que cumpre um papel de elo ficcional entre elas
(idem).
Com isso, Xerazade expressa a possibilidade de uma memória prodigiosa, que
envolve a apropriação e o cultivo de uma história alheia. Assim, Xerazade é a metáfora
68
“trama de un tapiz” (BORGES, 1997, p. 14).
69
Referência ao desconhecido seja pela aproximação com o Oriente, seja com a natureza, como se vê nos
versos: “Agarenos y persas lo soñaron / en los portales del velado Oriente / o en vergeles que ahora son del
povo” (op. cit., p. 14).
70
“No livro está o Livro” (BORGES, 2000b, p. 187).
71
“De quanto medem as graduais sombras / E o perpétuo desgaste de alguns mármores / E os passos de
diversas gerações” (BORGES, 2000b, p. 187).
72
Dizem os árabes que ninguém consegue
Ler até o fim esse Livro das Noites.
As noites são o Tempo, o que não dorme.
Segue a leitura enquanto morre o dia
E Sherazade te contará tua história. (BORGES, 2000B, p. 187).
92
da própria experiência literária, que, como Borges (SCHWARTZ, 2017, p. 364), faz uso
de uma memória impessoal em seu processo de escrita – haja vista que as histórias são
anônimas, e surgiram de um longo processo de traduções e reelaborações da tradução oral
e literária do ocidente e do oriente; além, claro, da ideia de infinito, que envolve o próprio
nome do compilado de histórias e que expressa o fascínio do homem por romper a própria
ideia incomensurável da noção de infinito73. Tudo isso é articulado a partir da identidade
entre Noite, Tempo e – acrescento – Memória74. A Noite que implica o sonho e a
imaginação, mas também a morte; o Tempo que implica a reiteração indeterminada para
a atividade de contar histórias e a Memória como o elo que vincula um ao outro numa
tarefa infinita que só pode ser resolvida por um agente finito: o homem.
No poema “The thing I am”, título que faz menção a um trecho de uma frase
proferida pelo personagem Parolles e que está presente no livro All's Well That Ends Well,
de William Shakespeare, a memória aparece justamente como essa força impessoal que
conjura a identidade e faz do sujeito um mero objeto de si mesmo, de modo que a memória
está no escuro e o escuro na memória: “Soy apenas la sombra que proyectan / esas íntimas
sombras intrincadas. / Soy su memoria, pero soy el otro” (BORGES, 1997, p. 63)75. O
esquecimento surge como elemento constituinte da memória e ferramenta essencial na
produção literária, haja vista que é necessário esquecer-se de si mesmo para escrever: “He
olvidado mi nombre. No soy Borges” 76(idem).
Dessa forma, o escuro se converte em potência da palavra, garantindo ao escritor a
configuração de um espaço para a realização da prática literária, pois o escuro é o
território do informe, do mágico, do desconhecido. O próprio Borges revela que a
cegueira não significou para ele a escuridão absoluta, mas a entrada da vida numa
“indefinida neblina luminosa”77. Esse novo estado alcançado pela cegueira o fez elaborar
uma concepção de literatura como produto de uma atividade que busca desafiar a Noite.
73
‘Neste há outra beleza. Creio que ela reside no fato de a palavra ‘mil’ ser, para nós, quase um sinônimo
de ‘infinito’. Dizer ‘mil noites’ é dizer infinitas noites, as muitas noites, as inumeráveis noites. Dizer ‘mil
e uma noites’ é acrescentar uma ao infinito.” (BORGES, 2000b, p. 259)
74
Curioso que em Funes el memorioso (BORGES, 1984), conto publicado em 1942 no jornal La Nación,
Funes, o personagem que possui uma prodigiosa memória que o impede de esquecer, sempre fica no escuro.
75
“Sou apenas a sombra que projetam / Essas íntimas sombras intrincadas. / Sou sua memória, e sou
também o outro” (BORGES, 2000b, p. 214).
76
“Esqueci o meu nome. Não sou Borges.” (BORGES, 2000b, p. 214)
77
BORGES, Jorge Luis; D'AVILA, Roberto. Conexão Roberto D'Avila. 1985. (17m17s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8VZ-ykJARhs>. Acesso em: 1 de setembro de 2020.
93
Nesse sentido, Borges aproxima-se de Merleau-Ponty ao perceber na escuridão
uma espécie de analogia com o que Merleau-Ponty advogava sobre o invisível – já que
para o filósofo o invisível
HISTORIA DE LA NOCHE
94
Y pensar que no existiría
sin esos tenues instrumentos, los ojos. (BORGES, 1997, p. 71-72)78
Já no título, Borges fez um jogo entre a noção de história como narrativa e como
relato histórico, que conduz a uma certa historicidade. O objeto dessa história que aparece
no título é a noite, mas, conforme o poema avança, vemos com mais nitidez tratar-se da
história da palavra. Além disso, tal história se confunde ainda com a história humana
propriamente dita – “A lo largo de sus generaciones” (op. cit., p. 71) –, passando por uma
história científica com o surgimento da ideia de infinito79 – “terror de Pascal” (idem) –
até um além da história, numa temporalidade mítica – “Otros engendraron el mito. / La
hicieron madre de las Parcas tranquilas / que tejen el destino” (idem).
História e mito, ciência e teologia, a palavra para Borges enlaça os planos da
linguagem, mostrando não haver diferenciação entre o aspecto ficcional e o não ficcional
de um texto, pois a ficção, dentro desse ponto de vista, é a forma da linguagem. Não é
78
“HISTÓRIA DA NOITE
95
possível separá-la do acontecimento a fórceps, como fazem os médicos que separam as
mães dos bebês.
Desse modo, a ficção é a realidade da linguagem como atividade humana, pois só
é possível pensar de maneira ordenada a partir de ficções (RANCIÈRE, 2005, p. 54). Isso
não quer dizer, porém, como defende Rancière (2005), que a ficção seja redutível à
linguagem, mas que, consoante Borges, a ficção se apresenta no texto literário como uma
força vital, impulso criador que desloca o eixo veridador, que define o que é verdadeiro
ou falso, para muito além das fronteiras bem definidas do método científico.
Esse fato expressa uma função também na estrutura do poema, pois a história só
pode ser contada pela linguagem, de modo que a identidade entre noite e palavra também
se dá de forma paradoxal – haja vista que para escrever é preciso vencer a noite, mas o
uso da palavra na escrita depende da escuridão. Assim, a realização da literatura é a marca
de uma impossibilidade, pois não é possível conquistar plenamente a noite e escrever o
infinito e é esta, precisamente, a tarefa do escritor.
Aqui, há uma novidade na fase cega frente à fase visual de Borges: enquanto no
conto “La biblioteca de Babel”, publicado no livro Ficciones em 1944, a noção de infinito
é articulada com a de uma biblioteca que contém toda a possibilidade do universo, mas
essa relação é realizada sem articular, de forma preponderante, a questão da noite e da
cegueira como aparece, por exemplo, no poema “Historia de la noche”.
Destarte, nesse poema em tela a cegueira e o sono antecedem a noite. A inversão
não é ontológica, mas uma diferença de aspecto: os homens elevaram a noite e, com isso,
forjaram a palavra no interstício da sombra. Como resultado, a palavra se tornou
inesgotável e poderosa demais, pois possui uma extensão infinita e uma natureza caótica
– por isso, o “terror de Pascal”, que via na revolução copernicana a imagem de um
universo indecifrável e labiríntico (SCHWARTZ, 2017, p. 395).
No dístico final, o eu lírico afirma que a palavra possui como condição de existência
os olhos. O eu lírico condensa na metáfora dos olhos o aspecto da pura visualidade,
tomando a palavra como efeito do visível. Como se, ao avançar na investigação sobre a
palavra, encontrássemos o seu avesso: a imagem – mas uma imagem que só é possível
pela palavra. Segundo Marilena Chauí (1988), os gregos antigos tinham na noção de
verdade (alétheia) esse tipo de articulação entre palavra e imagem:
96
visão-palavra Alétheia é afirmação eficaz porque mágica: faz ser o que
é dito e põe no visível o que a palavra enuncia. Por isso, tirando do
esquecimento, tira do oculto, recorda e manifesta, realiza e imortaliza o
que é dito-visto. É palavra religiosa e palavra do poder, pois o
visionário, falando, torna visível o invisível, fazendo-o ser. (CHAUÍ,
1988, p. 46-47)
Nesse sentido, vemos como Borges concebe a literatura como uma tensão entre a
palavra e a noite, isto é, como o conflito entre duas dimensões de um único termo: a
visibilidade. Com isso, a oposição entre noite e cegueira revela-se meramente aparente –
haja vista que parece haver na obra de Borges dois usos para a cegueira. Um primeiro é
o uso corrente da fala coloquial, como quando se diz em tom pejorativo “você está cego”,
indicando uma relação entre o ver e o uso correto da razão, e um segundo, que funciona
como um procedimento preparatório para a escrita –, pois a cegueira é o modo em que o
escritor precisa se instalar para ter condições de gerar literatura. Afinal, como mostra a
tradição literária ocidental, a cegueira já aparece no nome do maior expoente da poesia
mundial, Homero, o qual, ainda que haja incerteza sobre sua existência, traz no próprio
nome – literalmente, “aquele que não vê” – o gesto inaugural da arte.
Por seu turno, Mattoso, assim como Borges, também tinha muita proximidade
com a biblioteca. Formado em Biblioteconomia e depois em Letras pela Universidade de
São Paulo (USP), trabalhou como bibliotecário durante alguns anos na biblioteca do
Banco do Brasil. Lá, além do acesso a diversos tipos de livro, aprendeu a utilizar a
máquina de escrever em proveito próprio, de modo a desenvolver a técnica responsável
pela diagramação do Jornal Dobrabil. Esse raqueamento da máquina de escrever
desenvolvido por Mattoso implicou também uma nova organização do seu material
literário, pois o princípio da catalogação foi pervertido pelas aproximações de temas e
gêneros textuais tão díspares como a podolatria, pornografia, política, abjeção,
comentário do leitor, entre outros.
97
autores contemporâneos para promover um ataque não só aos temas desenvolvidos, mas
também às formas de representação (BOSI, 2011, p. 41-42).
Além disso, no Jornal Dobrabil, Mattoso adotava – seja como estratégia literária
ou de segurança pessoal, já que o jornal circulava em pleno período da ditadura
empresarial-militar –, diversos pseudônimos, entre eles: Pedro, o Podre; Garcia Loca;
Massashi Sugawara; P. David; Pedlo o Glande etc. e o próprio Glauco Mattoso, ele
mesmo um nome de nome. Essas estratégia de multiplicação das identidades respondia a
um interesse político-estético de problematização da identidade pessoal e autoral com o
objetivo de criticar o princípio de autoridade que regia o governo do Brasil e as artes em
geral (MATTOSO, 2001b).
98
the “Jornal Dadarte” (parodying the Jornal da Tarde, a daily
newspaper, and punning on “arte dada”, that is, “gratuita” or
“dadaísta”), consistently includes only aesthetic considerations and
examples of avant-garde writing techniques, while the “Galeria
Alegria” and the “Gazela Esportiva” (parodying the Gazeta Esportiva,
a sports newspaper, and playing on a feminine word for “veado”) are
reserved for subject matter and artistic compositions that pertain to gay
activism and homoeroticism. Further evidence of superior organization
comes in the form of the Index of Names at the end of the compilation,
a carefully composed organizational tool, listing references to authors
included, regardless of whether they have contributed as producers of
entire poems or excerpted or even utilized for fragments of less than a
sentence (BUTTERMAN, 2005, p. 118-119)80
Nos escritos posteriores de Mattoso esse intresse pela organização racional ganha
uma proeminência na fase cega com o soneto – forma racional, por excelência (STERZI,
2012, p. 170) –, ao qual se dedica entre os anos de 1999 e 2012, depois partindo para
outras experimentações formais – como o madrigal, poema de mote glosado, dissoneto
etc. –, mas sem nunca perder de vista o interesse pela racionalidade, sobretudo para
subvertê-la, e pela curva melódica possibilitada pela rima.
80
“A aparência do conteúdo do Jornal Dobrabil é a de imagens aleatórias, máximas apropriadas, jogos de
palavras, poemas, editoriais, cartas – a impressão, claramente, é de que seja uma antiestrutura, uma
colagem. De fato, Mattoso declara abertamente, num dos seus minimanifestos espontâneos, ‘Chega de
literatura de estrutura’ (Jornal Dobrabil 21). Uma investigação mais atenta revela, contudo, uma
preocupação obsessiva com a categorização e a ordenação. Por exemplo, um dos ‘supplementos
inseparaBeis do jornal dobraBil’, o ‘Jornal Dadarte’ (paródia com o Jornal da Tarde, um jornal diário,
acrescentando ao nome ‘arte dada’, ou seja, ‘gratuita’ ou ‘dadaísta’) inclui consistentemente apenas
considerações estéticas e exemplos de técnicas de escrita de vanguarda, enquanto que a ‘Galeria Alegria’ e
a ‘Gazela Esportiva’ (paródia da Gazeta Esportiva, um jornal desportivo, que brinca com uma palavra
feminina para ‘veado’) estão reservadas para temas e composições artísticas que pertencem ao ativismo gay
e ao homoerotismo. Outras evidências de uma organização superior vêm na forma do Índice de Nomes no
final da compilação, uma ferramenta organizacional cuidadosamente composta, listando referências a
autores incluídos [no jornal], independentemente de terem contribuído como produtores de poemas inteiros
ou extraídos ou mesmo utilizados para fragmentos de menos de uma frase.”(BUTTERMAN, 2005, p. 118-
119, tradução minha)
99
Os mulçumanos, por sua vez, sabem bem o que representa o pé como
símbolo de dominação ou submissão, de carícia ou de castigo: enquanto
os sultões, califas, emires, xeiques, e paxãs são gostosamente
massageados nos haréns das Mil e uma noites, os felás e beduínos são
palmatoriados nas solas, método chamado de “falanga” ou “falaka” e
empregado como punição até na ocidentalizada Turquia, pra quem não
lembra do filme O expresso da meia-noite. (MATTOSO, 2006, p. 38)
Nesse sentido, se em Borges o tema das Mil e uma noites desperta interesse pelo
que narrativamente ele possibilita de discussão sobre a ficção e a escrita com metáforas
que elevam o interesse pela alta literatura, em Mattoso o tema sofre um processo de
tangenciamento e marginalização, de modo a enfatizar aquilo que desperta o desejo no eu
dramático, que é a podolatria, perfazendo uma imagística mais próxima do que se
convencionou chamar baixa literatura – ou de uma leitura que, ironicamente, se abaixa.
Com isso, a ideia de uma história que se estende progressivamente ao longo do tempo,
ganhando novos contornos pela personagem Xerazade e pelas traduções das histórias que
foram sendo realizada ao longo dos anos, é pervertida e subvertida pela fixação nos pés e
no masoquismo.
Essa mudança, contudo, não é uma saída de Mattoso da literatura, mas uma
introdução do desejo no tema das Mil e uma noites com o objetivo de trabalhar, a um só
tempo, de maneira desejante e narrativa, a questão do infinito que aparece ou surge por
meio da ficção. Veja-se sobre esse assunto o poema “Soneto babélico”, presente na
antologia As mil e uma línguas:
100
nem latiniza o grego na senzala.
81
“‘Tá vendo? Tanto o cego diz que engraxa, / que alguem appareceu cobrando a taxa! / Agora ele que
lamba o pé do moço!’” (MATTOSO, 2011, p. 112)
82
Pé grego remete ao formato de pé. Mattoso, devido à podolatria, interessa-se pelas formas e classificações
dos pés. O pé que lhe dá mais prazer e, ao mesmo tempo, dor é o pé egípcio, porque era o pé do menino
que o violentou na infância (DINIZ, 2018, p. 26).
101
papo”) e se utiliza de uma brincadeira carnavalesca com a palavra dadá tanto para apontar
para o atributo do bebê quanto para a atitude negativa presente no dadaísmo. Já no último
verso do mesmo terceto, o eu dramático retoma Camões em Os Lusíadas83, ou seja, vai
até a tradição da língua portuguesa, no ponto em que ela é normatizada pela sua figura
mais elevada, para dizer que o uso da língua marca a entronização do falante na “glória”
(da palavra?).
83
“As armas e os barões assinalados” (Lus. I, 1). Cf. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Editora Porto,
1972.
102
Eu não acredito em uma literatura que seja fruto da pura imaginação
criadora, que seja alguma coisa artificial. Eu não acredito nisso. Eu
acredito em uma literatura que seja fruto de uma vivência e de um
trauma. Tem que haver um conteúdo, assim, sofrido, penoso,
angustiante. Você pode ver, todos os grandes clássicos eram
angustiados, lidavam com grandes dramas pessoais, com grandes
tragédias. Sofreram muitos desgostos. Isso faz parte. Eu acho que a
literatura nasce como uma expressão disso. É uma espécie de grito de
revolta, de desabafo. Toda literatura é mais ou menos isso. E no meu
caso, o componente é esse: a deficiência que me levou à cegueira, e o
bullying que me levou ao sadomasoquismo, e assim acabei me
identificando com os outros injustiçados, com outros excluídos,
humilhados. (CAIXETA; RICHARD, 2014, p. 246)
103
metafísica, epistemologia, ética, filosofia da mente, literatura etc. Sobre isso, ao contrário
de Mattoso, Borges procura seguir os temas de maneira mais racional e argumentativa,
desenvolvendo os argumentos e as suas consequências, ao passo que Mattoso preocupa-
se mais em como é possível gozar com esses temas, mesmo que seja um gozo indigesto,
abjeto, como é o caso do gozo masoquista, que faz da excitação o próprio gozo (DINIZ,
2018, p. 29).
84
“Ele modula a enciclopédia da alta cultura de 1880 no que diz respeito à reprodução, espelhos e
paternidade. Ele reproduz a enciclopédia e a ordem enciclopédica e a transforma em um território fantástico.
Ele inventa um mundo para ele, uma linguagem sintética sem noções ideais, e lhe dá um sistema filosófico
104
Com efeito, a ideia de biblioteca pode apontar, também, para outras duas questões.
A existência de uma biblioteca física, aquela em que reunimos em casa ou em um espaço
reservado os livros que nos interessaram durante a vida, e a de uma biblioteca mental,
mais plástica e dinâmica, em que reunimos passagens de livros e autores que nos
interessaram. Conforme Denise Schittine, essas duas bibliotecas coexistem durante a
nossa vida, mas, com a cegueira, é a biblioteca mental, sobretudo para os cegos que não
aprenderam braile, a que ganha preponderância (SCHITTINE, 2016, p. 192).
Desse modo, a ideia de uma biblioteca mental se aproxima ainda mais da ideia de
memória, tanto do ponto de vista de uma memória como armazenamento quanto memória
como atividade reflexiva de um sujeito. Pois, de um lado, pelo menos de uma perspectiva
psicológica, a biblioteca mental armazena os conteúdos e informações que cultivamos
durante a vida e, de outro, o que ela guarda já é mediado por uma atividade reflexiva que
seleciona as informações que serão trabalhadas, fazendo com que outros conteúdos sejam
esquecidos.
No caso de Borges, a biblioteca mental cumpriu o papel de lhe ajudar com a escrita
mesmo quando ainda era vidente. A biblioteca física dele era pequena, mas a mental,
devido à sua memória prodigiosa, era enorme. Conforme Schittine a respeito de Borges,
e uma realidade cujo princípio é a reprodução: cada enciclopédia gera outra que a desvirtua, duplica ou
multiplica. E essa ordem enciclopédica de Tlön, que contém o Orbis Tertius, retorna “à realidade” como
um império e é introduzida no “mundo real” pelos criollos, os gaúchos. E ao combinar a ordem
enciclopédica com o elemento crioulo da literatura gaúcha, ele põe a nu essa marca ou traço de alta cultura,
e a mostra como um artefato de dominação. Borges rearranja os elementos de uma tradição e os volta não
contra esses elementos, mas contra a própria tradição, com a ficção de uma ordem imperial que fala o pós-
inglês de Tlön. Ele expõe o próprio fundamento da combinação do criollo e da enciclopédia da alta cultura
argentina porque mostra que a própria ordem do conhecimento enciclopédico (que requer esta relação com
os criollos) é uma organização hierárquica do conhecimento que substitui, nas periferias, o poder total pelo
conhecimento total. Uma das marcas fundamentais da alta cultura argentina (inventada pela geração dos
anos 80, no exato momento em que o Estado nacional foi estabelecido) mostra-se subitamente como uma
construção imperial-colonial.” (LUDMER, 2021a, p. 257, tradução minha)
105
a retomada de sua produção literária após a cegueira. Assim como Borges, Mattoso já se
preparava para o momento em que iria ficar cego. Assim como Borges, a memória ganhou
proeminência com a cegueira. Porém, diferentemente de Borges, a aproximação com os
livros em Mattoso se deu de um ponto de vista, politicamente, diferente.
Borges teve acesso à biblioteca no ambiente conservador de sua casa, por meio da
biblioteca de seu pai. Já Mattoso teve acesso à biblioteca devido ao trabalho na biblioteca
do Banco do Brasil e, lá, aproveitava para ler livros proibidos pela ditadura empresarial-
militar brasileira. Com isso, a imagem de Paraíso que Borges85 tinha da biblioteca
Mattoso a substituía pela imagem de um Inferno. Consoante Mattoso:
85
Essa relação é um pouco mais problemática. No conto “La biblioteca de Babel”, Borges (1984) trabalha
a imagem da biblioteca como Inferno (SCHWARTZ, 2017, p. 104). É o exato oposto do que em El Hacedor
no “Poema de los dones” Borges afirma sobre a biblioteca: “Yo, que me figuraba el Paraíso / Bajo la especie
de una biblioteca.” (BORGES, 1984, p. 809).
106
Com efeito, a dimensão de uma biblioteca como universo e o livro como
representação do próprio homem possui diferenças importantes em Borges e Mattoso. Em
“El libro de arena”, conto presente no livro de mesmo nome e que foi publicado em 1975,
Borges recorre a imagem de um livro sem início nem fim, o livro sagrado, “el Libro de
los Libros” (BORGES, 1989, p. 69), que revela a existência de um objeto capaz de
comportar, nele mesmo, toda a possibilidade de escrita e leitura: o Livro de Areia.
A história começa com a chegada, ao entardecer – mais uma vez, Borges faz uso
de uma imagem que fica no interstício entre dia e noite –, de um homem desconhecido
que lhe apresenta o Livro de Areia, que, em seu próprio nome, traz a marca do infinito:
“Me dijo que su libro se llamaba el Libro de Arena, porque ni el libro ni la arena tienen
ni principio ni fin”86 (BORGES, 1989, p. 69). O vendedor vendia bíblias, mas, juntamente
com elas, trazia esse outro livro sagrado. No início relutante, o narrador, pouco a pouco,
vai sendo convencido da veracidade do livro de areia até que decide comprá-lo por meio
de uma troca: o narrador dá ao vendedor o valor de sua aposentadoria e uma Bíblia de
Wiclif em letras góticas. Consumada a compra, o vendedor vai embora à noite, como se
entregasse a escrita e toda a possibilidade de ficção nesse instante.
Então, com receio de que outras pessoas tenham acesso ao livro, o narrador tenta,
primeiro, escondê-lo atrás de volumes das histórias das Mil e uma noites – uma metáfora
que pode apontar para o sentido do que afirmei anteriormente: as Mil e uma noites
exprimem em Borges a vontade de escrita, de uma escrita que só tem como objeto ela
mesma. Depois, percebendo que o livro havia se tornado para ele um objeto de pesadelo,
decide escondê-lo em um lugar impossível de ser localizado devido, justamente, à
proliferação de livros: na Biblioteca Nacional, que possui mais de 900 mil exemplares.
86
“Disse-me que o seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a realidade têm princípio
ou fim.” (BORGES, 2000b, p. 80)
107
portanto, na fase cega de Borges: “El azul y el bermejo son ahora una niebla / Y dos voces
inútiles. El espejo que miro / Es una cosa gris.” (BORGES, p. 1984, p. 1098)87.
Nesse sentido, parece-me claro que a forma com que Mattoso conduz o seu projeto
estético e literário alia desejo e escrita, constituindo não mais uma vontade de escrita,
como em Borges, mas um delírio da escrita, pois não se trata mais de seguir investindo
sobre novas possibilidades de escrita para empreender novos argumentos e consequências
racionalmente válidas, engendrando a escrita, de dentro, num processo virtualmente
infinito.
87
“O azul e o vermelho são agora cerração, / Duas palavras inúteis. O espelho que miro / É uma coisa
cinzenta.” (BORGES, 2000a, p. 510)
108
também ao aspecto propriamente pornô-erótico que, em geral, aparece na última estrofe
e leva o leitor a completar na imaginação o que vem, efetivamente, “depois” – o que cria
uma aproximação com a ideia de uma “escrita-filme”, já que as cenas apresentadas
continuam para além da superfície visível do espaço textual (seria uma cegueira que
convoca a existência de um acontecimento?). Além disso, o interesse pela escrita não vem
de dentro, mas de fora: é o aspecto extralinguístico que conduz o autor para mais uma
aventura de escrita para a qual ele está condenado. É essa a direção do fatum mattosiano
que alinha cegueira e escrita, pois ser condenado pelo Destino faz com que Mattoso se
sinta não só impelido, mas obrigado a escrever.
109
II – A NOITE DA EXPERIÊNCIA
110
4. PERCEPÇÃO, CONSCIÊNCIA E SENTIDO NA ESCRITA DE BORGES E
MATTOSO
Nos Estados Unidos, um campo de estudos tomou forma nas décadas finais do
século XX com o intuito de pensar a emergência de questões ligadas às pessoas com
deficiência. Esse campo, intitulado Disability studies, consistiu, segundo Lennard Davis
(1995), numa tentativa de reverter o olhar normalizante que a sociedade, impregnada por
uma hegemonia cultural da normalidade, cultiva diariamente. Ainda consoante Davis, os
Disability studies, ao buscarem reverter esse olhar, funcionam também como uma nova
ferramenta hermenêutica para investigações distintas, como os estudos de literatura e de
história literária (DAVIS, 1999, p. 510).
111
certo número de processos, certo número de episódios que, estes sim,
serão precisamente a doença. Em outras palavras, o estado é a base
anormal a partir da qual as doenças se tornam possíveis. (op. cit., p.
397)
Essa noção de estado apresentada por Foucault traz ainda uma não
correspondência também com a reprodução – já que o anormal é colocado para fora da
linha serial que defende a boa genealogia –, pois no fundo desse corpo anormal, que é
gerenciado pela noção de estado, está o corpo dos pais, dos ancestrais, da família, da
hereditariedade (op. cit., p. 399). Com a hereditariedade, a psiquiatria do anormal se
afastou radicalmente de uma tecnologia do prazer ou do instinto sexual e se voltou para
uma “tecnologia do casamento são ou malsão, útil ou perigoso, proveitoso ou nocivo”
(op. cit., p. 401). De modo a desembocar, como consequência última dessa virada da
psiquiatria, numa teoria da degeneração.
112
Para Davis (1999), portanto, está em jogo nos Disability studies a investigação de
uma complexa relação que perpassa os discursos sobre deficiência e que repercutem, no
plano literário, as bases morais que subjazem o discurso; as categorias e a produção de
sentido social da anormalidade e a formação social dos corpos como dotados de
significado social:
Even “normal” bodies signify moral traits as well as the traits ascribed
to disabled characters. Beautiful (and noble, gentle, or bourgeois)
characters should be morally virtuous; cripled or deformed people are
either worthy of pity or are villains motivated by bitterness or envy.
Disability studies interrogates the formation of bodies, the signification
of bodies, and the national interests in producing templates for bodies
and souls. That nonnationals, women, and minorities are seen as sharing
the traits of the disabled, and that disabled people are feminized or
racialized, also complicates the explication of bodies in narrative forms.
(DAVIS, 1999, p. 510)88
Em 1972, Borges publica a antologia “El oro de los tigres” e, entre os seus poemas,
um trata sobre a condição de sua cegueira de maneira mais direta:
EL CIEGO
A Mariana Grondona
I
Lo han despojado del diverso mundo,
De los rostros, que son lo que eran antes,
De las cercanas calles, hoy distantes,
Y del cóncavo azul, ayer profundo.
De los libros de queda lo que deja
88
“Até mesmo corpos ‘normais’ significam traços morais, assim como os traços atribuídos a personagens
deficientes. Personagens bonitos (e nobres, gentis ou burgueses) devem ser moralmente virtuosos. Já
pessoas aleijadas ou deformadas ou são dignas de piedade ou são vilões motivados por amargura ou inveja.
Os estudos sobre deficiência interrogam a formação dos corpos, o significado dos corpos e os interesses
nacionais na produção de modelos para corpos e almas. Essas pessoas compreendidas como não nacionais,
como mulheres e minorias, são vistas como compartilhando os traços dos deficientes e os deficientes, por
sua vez, são feminizados ou racializados – o que também complica a explicação dos corpos em formas
narrativas.” (DAVIS, 1999, p. 510, tradução minha)
113
La memoria, esa forma del olvido
Que retiene el formato, no el sentido,
Y que los meros títulos refleja.
El desnivel acecha. Cada paso
Puede ser la caída. Soy el lento
Prisionero de un tiempo soñoliento
Que no marca su aurora ni su ocaso.
Es de noche. No hay otros. Con el verso
Debo labrar mi insípido universo.
II
Desde mi nacimiento, que fue el noventa y nueve
De la cóncavas parras y el aljibe profundo,
El tiempo minucioso, que en la memoria es breve,
Me fue hurtando las formas visibles de este mundo.
Los días y las noches limaron los perfiles
De las letras humanas y los rostros amados;
En vano interrogaron mis ojos agotados
Las vanas bibliotecas y los vanos atriles.
El azul y el bermejo son ahora una niebla
Y dos voces inútiles. El espejo que miro
Es una cosa gris. En el jardín aspiro,
Amigos, una lóbrega rosa de la tiniebla.
Ahora sólo perduran las formas amarillas
Y sólo puedo ver para ver pesadillas. (BORGES, 1984, p. 1098)89
89
“O CEGO
A Mariana Grondona
I
Foi despojado do diverso mundo
E dos rostos, que são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Resta dos livros o que lhe consente
A memória, essa forma de olvido
Que retém o formato, não o sentido,
E que reflete os títulos somente.
O desnível espreita. Cada passo
Pode ser uma queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
114
Como vimos, esse não é o primeiro texto a tratar sobre a condição de sua cegueira
de maneira temática nem, muito menos, de abordar a cegueira de maneira sub-reptícia. O
que acontece aqui, porém, é algo um pouco diferente. Os versos vão mesclando um tom
confessional com a escrita literária para revelar as transformações físicas pelas quais o eu
lírico passou. A essa altura, o texto borgiano parece conjurar a ideia difundida na segunda
metade do século XX de morte do autor ou de uma redução de seu papel a uma mera
função discursiva no interior do texto, como aparece em Foucault (FOUCAULT, 2009,
p. 294).
A rosa ali, portanto, é a presença ausente do que anseia, mas não pode alcançar –
já que não pode mais ver o vermelho. Por mais que o poema seguinte da mesma antologia
seja “On his blindness”, é, sobretudo, neste poema que o próprio Borges assume o posto
do eu lírico para falar sobre a sua experiência com essa nova condição. De todo modo,
não há uma saída do texto, pois o que ocorre é a confluência entre o eu lírico e o eu
II
Desde meu nascimento, no ano noventa e nove
Das côncavas parreiras e do algibe profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.
Os dias e as noites limaram os perfis
Dessas letras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos fatigados
As vazias bibliotecas e os vazios atris.
O azul e o vermelho são agora cerração,
Duas palavras inúteis. O espelho que miro
É uma coisa cinzenta. No jardim eu aspiro,
Amigos, uma lúgubre rosa da escuridão.
Agora só perduram contornos amarelos,
E só consigo ver para ver pesadelos. (BORGES, 2000a, p. 510)
90
Essa conferência pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=036yqajUDik. Curioso que a
conferência seja assistida em preto e branco, nessa cor cinzenta que é descrita por Borges como a sua
realidade.
115
biográfico na superfície textual, em que um serve de objeto e justificativa para o outro.
Com isso, o desvio que aparece em Borges, identificado pela cegueira, ilustra o desvio do
próprio fazer literário. É como se Borges desse uma resposta – interna ao texto, é verdade
– para o problema político da se perceber a cegueira como uma falta. Para ele91,
poderíamos compreendê-la, por outro lado, como uma virtude. A virtude da escrita, do
fazer literário.
91
Estou assumindo essa afirmação como um proposição propriamente literária a partir do modo em que o
eu lírico e o eu biográfico se indeterminam no texto.
116
odeio, mas me humilho e, sob o peso
da bota de quem vê, meu malfazejo
impulso alvo é do riso e do desprezo. (MATTOSO, 2021a, p. 73)
No dissoneto acima – forma de poema criada pelo próprio Glauco, constituída de
quatro quartetos, em que se emprega uma técnica paralelística que cria uma outra voz,
dissonante, no soneto –, o eu dramático discute a questão da perversão e da
impossibilidade de ser o que gostaria (torturador), dado que é cego. Na segunda estrofe,
o poema cria uma disjunção na voz poética ao fazer referência entre um fora e um dentro
do texto e revelar que esse lado cruel está só no texto (“Eu fodo, arrombo, roubo, estupro
e extripo/ no symbolo, somente, admito”).
Além disso, a abjeção prepara o terreno, junto com o masoquismo, para a crítica
ao discurso politicamente correto nas artes e na sociedade, que rebaixa a diferença à
diversidade social – como criticado pelo movimento queer a respeito da presença da
92
Penso aqui no problema do gasto de energia libidinal esboçado por Bataille por meio da noção de
dispêndio (2013) e no problema do gozo queer referente à obra de arte, esboçado por De Lauretis (2011) a
partir da noção lacaniana de jouissance (gozo). Ambos serão tratados mais adiante. Para uma análise sobre
o gozo improdutivo no cinema brasileiro contemporâneo, ver: BARBOSA, André Antônio. Constelações
da frivolidade no cinema brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em
Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2017.
117
heteronormatividade no meio LGBTQIA+ e da invisibilização de outras identidades
políticas (MISKOLCI, 2016) – e a ideia de um humanismo, que pressupõe a existência
de um sujeito universal.
Nesse contexto, a atração por pés do eu dramático mattosiano gera uma crítica
política à sua condição física, no modo em que a cegueira é compreendida socialmente, e
ainda expressa, no nível textual, novas formas de sexualidade, mais fluidas, que
descentralizam o discurso falocêntrico (BUTTERMAN, 2005, p. 219).
Há, certamente, muitos modos de ler essa articulação entre literatura e vida em
Borges e, no que nos interessa também nessa pesquisa, em Mattoso. Essa articulação já
apareceu no século XIX, mas de maneira a desprezar o texto em busca de caracteres gerais
que o integrassem em famílias bem determinadas. Desse modo, como destaca Tânia
Carvalhal (2006), vinculada aos ideais positivistas do século XIX, a análise literária se
baseava na “psicologia” do autor e da relação com o seu “meio” como categorias centrais
de análise ao circunscrever a investigação por meio da pesquisa de fontes e influências
com o intuito de constituir uma família literária e explicar seus vínculos com a história.
Nesse primeiro momento, a crítica impressionista (CANDIDO, 2012) e as influências do
determinismo e do historicismo positivista concebem a tradição literária como algo que
se depreenderia no texto literário por meio das características idiossincráticas do autor
relativamente ao seu meio social, seja em função do seu “gênio” ou do seu “estilo”.
118
para pensar o “processo de produtividade do texto literário” (op. cit., p. 50), de modo a
conceber o texto por meio de uma pluralidade de vozes que o engendram. Em outra
perspectiva, também no final dos anos 1960, Hans Robert Jauss (1994), um dos
fundadores da Estética da Recepção, faz um outro deslocamento na análise literária,
passando do texto em si para o leitor e concebendo esse último como polo ativo e criativo
da obra literária por meio de uma experiência historicamente situada. Com isso, as
relações entre tradição e ruptura se modificaram decisivamente.
Nesse contexto, o advento da Semana de Arte de 1922 (com seu ideário estético
internacional e local) e a noção de antropofagia defendida por Oswald de Andrade,
expoente da primeira fase do modernismo brasileiro, afirmam uma atitude crítica ao
colocar na máquina modernista e antropofágica o global e o local, minando, conforme
Silviano Santiago (2000), qualquer ideia de unidade ou de pureza. Daí talvez resulte uma
possibilidade de repensar toda a genealogia literária, e suas relações constituintes entre
tradição e ruptura, a partir do próprio movimento criativo das obras, esboçado como um
duplo movimento (de leitura e escrita ou, dito de outra forma, de escrita de escrita).
Com efeito, essas diferenças entre os pontos de vista de análise nunca implicaram
uma relação exclusivista, do tipo: ou se analisa o autor ou se analisa a obra ou se analisa
a interpretação. A diferença, como se percebe rapidamente nos escritos do século XIX,
traduz-se, precipuamente, no ponto de vista preponderante adotado pela abordagem
metodológica. Em todo caso, a diferença metodológica também repercute numa mudança
do objeto, pelo menos do ponto de vista de um objeto imediatamente epistemológico. Isso
porque, a depender da corrente que se filie, o crítico vai se deparar não só com novos
93
Para uma visão mais nuançada a respeito das literaturas “marginais”, ver: BOSI, Viviana. Poesia em
risco (itinerários a partir dos anos 60). São Paulo, 2011. Trabalho apresentado ao Concurso de Livre-
Docente - Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2011.
119
resultados, mas também com um novo objeto – mais uma vez, um objeto que é concebido
como imediatamente de pesquisa94.
Não quero, com isso, também negar a validade da disputa que se firmou,
sobretudo, na década de 1970 entre defensores dos Estudos Culturais, de um lado, e
defensores dos Estudos Literários, de outro, segundo a qual, grosso modo, confrontava-
se uma análise culturalista a uma análise “imanente” do texto95 – no sentido restritivo de
imanente como algo exclusivamente textual. Para mim, esse confronto, quando colocado
nesses termos, parece inócuo. Seja porque deixa de levar em consideração as nuances que
cada uma dessas correntes trabalha em seus diversos autores, seja porque não nos é
possível reduzir ferramentas e modos de abordagem metodológica a características
exclusivas de determinadas correntes.
Em todo caso, a pergunta sobre se é possível relacionar literatura e vida, hoje, tem
uma resposta trivial: sim. A grande questão, no entanto, é: de que modo? Flora Süssekind
(2004), por exemplo, em Literatura e Vida Literária, tentou aproximar a literatura da
vida cultural, procurando também implicar o próprio crítico nessa articulação; já Viviana
Bosi (2011), procurou destacar o contexto de produção em paralelo com a obra como
forma de revelar as convergências e divergências da escrita. Já se pensamos vida como
94
Estou frisando o problema de um objeto ser tomado do ponto de vista epistemológico para evitar mal-
entendidos sobre a concepção de objeto tomado de um ponto de vista ontológico. Ainda que essa divisão
entre epistemologia e ontologia sirva de maneira mais consistente para objetos naturais, torna-se difícil uma
distinção entre ambos os tipos quando se tem um problema – concretamente insolúvel – sobre a referência
de objetos literários. De todo modo, quando se olha para a questão apenas do ponto de vista da análise
crítica a força dessa distinção perde sentido e a categoria de objeto, nesse caso, fica bem estabelecida como
objeto de conhecimento.
95
Para uma discussão mais pormenorizada, ver: BORDINI, Maria da Glória. Estudos Culturais e Estudos
Literários. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.41, n.3, p.11-22, setembro, 2006.
120
um componente meramente biológico, podemos ser tentados a cair em certo biografismo
impressionista e determinista que se fez presente a partir do século XIX. Se, por outro
lado, pensamos na categoria de vida como um artifício irredutível ao meramente
biológico, como advoga Gilles Deleuze (ESPOSITO, 2017, p. 242-244), assumimos um
novo paradigma para estabelecer a análise literária e, com ele, criamos uma articulação
nova entre literatura e vida.
Para Deleuze (2002), quando se fala sobre a vida não se fala sobre “a” vida, mas
sobre uma vida. O artigo indefinido coloca o problema de se conceber não uma coisa,
nem um sujeito ou um objeto, mas um nível de efetuação do acontecimento – o próprio
acontecimento – a que o próprio Deleuze chama de campo transcendental e que é
composto por virtualidades. Dessa forma, uma vida guarda a força impessoal presente na
vida empírica e é – ou se define como – o que a escapa. Essa vida, ainda consoante
Deleuze, não pode ser compreendida por meio da temporalidade de um momento, mas da
temporalidade de um “entre-momento” (DELEUZE, 2002, p. 14). Com isso, uma vida se
impõe à consciência imediata, mas não é reduzida nem se confunde com ela. Além disso,
uma vida é algo que surge por meio do jogo que se efetua no extremo entre a vida e a
morte, nessa fronteira em que se está além de toda moralidade e de todo discurso sobre o
Ser.
Nesse contexto, os exemplos que Deleuze (2002) utiliza para ilustrar o seu
pensamento se confundem entre exemplos literários e não literários: o confronto de Maine
de Biran com a sua própria filosofia, os personagens de Dickens, a obra romanesca de
Lernet Holenia. Assim, Deleuze cartografa, entre diferentes planos de realização do
pensamento (filosofia, arte e, mesmo, ciência), esses momentos em que uma vida se
apresenta, como imagem de algo de pura potência, intensidade, beatitude.
Nessa perspectiva, por fugir ao discurso, uma vida não pode ser expressa em uma
linguagem, mas a sua força e intensidade podem ser sentidas na linguagem. Desse modo,
de uma perspectiva deleuziana, é nonsense falar sobre a possibilidade de se escrever sobre
a vida, pois a vida, ela mesma, não pode ser representada – e a linguagem, seja ela escrita
ou não, é um meio de representação. Ainda assim, é possível pensar em como essa vida
se insinua na materialidade textual e qual o grau de insucesso – já que é, concretamente,
impossível escrever a vida – que os autores tiveram com as suas obras na tentativa de
representá-la – já que, se não é possível escrever a vida, tampouco se pode escrever sem
ela e é, justamente, a escrita com ela que possibilita a criação literária (DELEUZE, 1997).
121
Quando passamos para a análise de obras de autores cegos, porém, lidamos com
um outro conjunto de virtualidades que invadem e extravasam o texto. A singularidade
da vida imanente desses autores, que não se confunde com as suas experiências vividas,
permite uma nova mirada sobre o objeto literário, na medida em que a falta dos olhos
implica uma reconfiguração do ato de ver e da própria experiência.
Por isso, ainda que a base biológica não seja redutível à vida e que a virtualidade
possa extravasar em qualquer base material – nas mais diferentes possíveis –, a forma
com que a vida se atualiza importa para auxiliar, embora não defina peremptoriamente,
na formação do conjunto de virtualidades que o agente realiza96– pois, caso não fosse
assim, recuaríamos até a ciência pré-aristotélica e cairíamos numa espécie de platonismo
por meio da defesa de um “moderno” funcionalismo generalizado97 – ou muito menos
tem disponível – porque a virtualidade é potencialmente infinita. Além disso, o sentido
de virtualidade em Deleuze não é o de uma possibilidade que se apresenta e logo some
com a atualização de um objeto, mas o de uma consubstancialidade que existe com o
agente, significando a contraface da sua atualização que permanece latente, pois, para
Deleuze, um objeto nunca se atualiza de fato; mas sempre está em vias de se atualizar.
De todo modo, o corpo físico do autor não é um mero apêndice transparente que
some com a produção do texto literário – nem mesmo quando se busca traduzir algo,
como no caso de Mattoso com relação a Borges ou nos trabalhos e nos problemas de
tradução colocados por Borges. Também ele tem algo a nos dizer sobre a criação literária.
A irromper no chão de Paris em pleno século XIX, marcando a transição que fazia
a cidade moderna suplantar a antiga, o gesto do cisne de Baudelaire em direção ao céu,
como um enfrentamento derradeiro que conjura a morte para tomar soberanamente a vida
96
Deleuze não fala isso nesses termos e mesmo que as suas teses sobre a vida se pareçam mais com a de
um funcionalismo generalizado (LAPOUJADE, 2015, p. 143), acredito ser importante fazer essa intrusão
na terminologia deleuziana para pensar problemas recentes colocados pela Filosofia em sua interface com
a Ciência e como isso colabora para pensar a questão da cegueira na prática literária.
97
A obra A Redescoberta da Mente, de John Searle (2006), embora não tenha como interesse central esse
tema, é uma vigorosa resposta para esse problema quando esquecemos de levar em conta a base material
para só nos determos nas possibilidades culturais (virtualmente ilimitadas) de realização do indivíduo.
122
(BATAILLE, 1989), faz escapar mais do que o esforço de proferir palavras pela própria
impossibilidade de sua natureza animal. Trata-se, antes, da incomensurabilidade do gesto
que abre o tempo histórico no seu próprio curso, interceptando-o transversalmente e
introduzindo, nesse intervalo, a própria diferença. Como uma alegoria, conforme defende
Walter Benjamin, que destrói e conserva-se ao mesmo tempo, arrancando-se “aos
contextos orgânicos da vida” (BENJAMIN, 2015, p. 163).
Não se trata, pois, uma experiência no sentido de uma sensação, uma percepção
ou um sentimento – pois estes, no modo como pensa algumas vertentes da Psicologia,
reclamariam a origem de um sujeito logocentrado –, mas algo que passa e promove na
sensação, por exemplo, a intensidade, um entre-lugar no tempo e no espaço. “ Eau, quand
donc pleuvras-tu ? quand tonneras-tu, foudre ? ”99, dizia o cisne, deixando escoar entre as
palavras, entre a imanência dos seus elementos (água/chover, trovão/trovejar), a Vida ao
reivindicar para cada um o cumprimento afirmativo de sua potência.
A súplica do cisne é também uma tentativa de fazer durar o que é fugaz nesse
“entre-tempo” em que se passa da cidade antiga para a moderna. É como uma investida
que redefine uma partilha do sensível, nos modos de ver, falar e sentir, mas sem
necessitar, como em Jacques Rancière (2005), da soberania da linguagem. Antes, porém,
o gesto do cisne se aproxima mais da Parresía de Foucault ao redefinir os termos de um
regime de enunciabilidades e de visibilidades, constituindo-se para além da linguagem e
de seu correspondente indigesto, também chamado de humano100.
98
“O Cisne” [trad.]. Cf.: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução e organização de Júlio
Catañon Guimarães. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2019.
99
Na tradução de Júlio Castañon: “‘Água, quando cairás? quando soarás, trovão?’” (BAUDELAIRE, 2019,
p. 300). Uma tradução alternativa poderia reforçar o aspecto de objeto direto interno presente nas duas
orações, como em: “Quando, água, choverás? quando troarás, trovão?”
100
Sobre as diferenças entre as noções de parresía em Foucault e de partilha do sensível em Rancière tendo
como base noção de soberania da linguagem, ver: LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades/
Signs, machines, subjectivities. Tradução de Paulo Domenech Oneto com a colaboração de Hortência
Lencastre. São Paulo: Edições Sesc São Paulo: n-1 edições, 2014.
123
Ao lado do cisne, a escrita parece se produzir inteiramente. Deleuze (1997) já
afirmava que a literatura tinha a ver com uma passagem de Vida. Uma vida, frise-se, que
não pode ser subsumida por qualquer substrato orgânico. Está, para além de toda
exterioridade, no Fora. Com isso, a escrita faz rachar a sintaxe ao mobilizar uma nova,
fazendo a língua devir-outro de si mesma. Assim, a literatura libera em nós aquilo que
havia sido rebaixado no uso cotidiano, promovendo uma nova conexão com o mundo
nesse instante mesmo de vacilo em que vida e morte entram em uma relação que torna
indiscernível os lugares de cada uma e faz algo como uma vida possa surgir.
124
instrumentos da visão, mas não o mais complexo – já que a visão resulta de processos
sucessivos e consubstanciais que agregam operações ópticas, químicas e nervosas.
Do ponto de vista das operações ópticas, os olhos funcionam como uma câmera
fotográfica com seu conjunto de lentes, pois eles tanto capturam uma grande quantidade
de luz quanto focam em um único ponto (AUMONT, 1993, p. 19-20). Já do ponto de
vista das operações químicas, a retina, no fundo do olho, absorve os quanta luminosos e
os transforma, por reação química, em outras substâncias, as quais se comunicam com
regiões do cérebro de nível superior que processam essa informação química e a converte
em imagem visual (op. cit., p. 20, 21). Esse último é o terceiro estágio que opera a
passagem das operações químicas para as nervosas. Para Aumont (op. cit., p. 22), é nesse
último estágio que se processa o essencial.
O comprimento de onda, que define a cor que enxergamos, assim como acontece
com a percepção da intensidade, também se expressa como um efeito de nosso sistema
perceptivo (op. cit., p. 25). Já a distribuição da luz no espaço nos faz perceber o limite
dos objetos por meio de nossa capacidade perceptiva de discriminar alterações de
luminâncias (a quantidade de luz real efetivamente emitida por uma fonte luminosa):
125
Aumont acrescenta também o fato de que os elementos da percepção, como
luminosidade, bordas e cores, são produzidos de modo simultâneo – o que faz um
elemento ser codependente do outro – e que, embora a visão seja um sentido espacial, ela
também se desdobra temporalmente – haja vista que a percepção e o processamento da
imagem acontecem no tempo (op. cit., p. 31)
O conceito de percepção amodal surge como um termo derivado das pesquisas que
Stern realizou com bebês para pensar os sentidos de si. Segundo Stern, ao contrário das
teorias desenvolvimentistas de Piaget, que defende a existência de estágios ou fases para
aquisição da linguagem sendo substituídos à medida que avança o desenvolvimento da
101
Whitehead (1956) chama isso de “superjeto”, que reconfigura a relação de preensão entre sujeito e objeto
a partir de “ideias eternas” (formas, valores etc).
126
criança, há uma coexistência dos sentidos de si não verbais mesmo após o período de
aquisição da linguagem.
Na obra mais conhecida de Stern, The Interpersonal World of the Infant, somos
apresentados a quatro sentidos de si, com modos de funcionamento e organizações
próprias, cada um sendo acionado por meio da configuração de um domínio de relação
que já os constitui, são eles: sentido de si emergente (sense of an emergente self); sentido
de si nuclear (sense of a core self); sentido de si (inter)subjetivo (sense of a
(inter)subjective self) e o sentido de si verbal (verbal self).
Por volta dos anos 2000, em uma introdução revista do livro The Interpersonal
World of the Infant, Stern substitui a clara sequência temporal que definia o período de
surgimento de cada um dos três sentidos de si (por volta de 2 meses para o primeiro; de
2 a 3 meses para o segundo e entre 7 e 9 meses para o terceiro sentido) por uma
compreensão que toma os três sentidos de si como já virtuais desde o início,
desenvolvendo-se conjuntamente (STERN, 2000, p. xiv). Conforme Guattari apud
102
Certamente, há uma aproximação possível entre o que é exposto por Lazzarato (2014) a partir de Guattari
sobre o cinema e o que é defendido por Hernán Ulm (2014) sobre a diferenciação entre imagem e palavra.
127
Lazzarato, “os diferentes sentidos de si, anteriores ao sentido linguístico de si, não são
absolutamente etapas na acepção freudiana, mas, sim, ‘níveis de subjetivação’, focos e
vetores de subjetivação não verbais que se manifestam ao longo da vida em paralelo com
a fala e a consciência” (LAZZARATO, 2014, p. 91).
103
“uma melodia alta, já a outra silenciosa” (STERN, 1998, p. 27 e 28, tradução minha)
128
2000, p. 69). A interação com o olhar é a marca desse sentido de si. Uma interação que
não procura nada, pois já é em si mesma (STERN, 1998, p. 51). Assim, o tema-e-variação
da voz da mãe opera para manter a interação com o bebê. Nesse ínterim, constituem-se
três eventos de si: consigo, com o outro e com alguém que faz as vezes de si – por
exemplo: quando a mãe brinca com o braço do bebê para apanhar alguma coisa, ensinando
ações. Isso forma um embrião para a definição dos lugares de ator-agente e paciente e da
instituição dos pronomes: eu, ela (no caso da mãe) e nós (eu, ela e nós).
A ação de ser carregado, nesse momento inicial da vida, permite também outra
compreensão do espaço (autolocomoção) e outra compreensão do tempo (separação entre
o tempo cronológico e o tempo subjetivo) (STERN, 1998, p. 74). Ao contrário do sentido
de si emergente, o bebê já consegue considerar duas experiências, mas estas se
desenvolvem ao mesmo tempo. Ainda assim, tudo se passa no presente que agora se
alonga. O que constitui representações abstratas a partir dos modos-de-estar-com104 que
atuam na integração dos invariantes de si e compõem o sentido de si nuclear.
104
Ways-of-being-with. Aqui, estaria referido o Representations of Interactions that have been
Generalizeds (RIGs), mas o próprio Stern muda o nome do termo para melhor descrever a experiência
vivida por meio de uma proximidade com as noções já utilizadas na clínica.
105
Sintonização afetiva.
129
Nesse contexto, esse esboço, ainda que demasiadamente breve, dos sentidos de si
na obra de Daniel Stern permite-nos perceber como os modos de operação e
funcionamento desses sentidos implicam diretamente no acesso e comunicação da
experiência. Com a aquisição da linguagem, conforme Stern (2000), a nossa experiência
é fragmentada, os eventos episódicos de cada momento se transformam em eventos
generalizados. As palavras do uso comum correm, então, em paralelo com a
complexidade e riqueza da experiência global, dividindo nossa compreensão em dois
mundos: de um lado, a experiência vivida e, do outro, a experiência narrada. Todavia,
ainda segundo Stern, isso não rebaixa a linguagem, mas a redimensiona de acordo com a
participação decisiva e constituinte do não verbal.
Com isso, torna-se necessário convocar novas forças que não compareciam antes
ou, se compareciam, participavam em menor escala. É preciso, assim, acessar a
experiência de um jeito diferente do uso cotidiano da linguagem – não mais estando
interessado na representação dos acontecimentos – já que os olhos servem,
primeiramente, à representação, pois a representação é concebida como sinônimo de
130
representação visual –, mas no próprio acontecimento. É necessário, por fim, de um novo
trabalho da percepção e da atenção que permita a comunicação direta, por contágio, com
o campo de forças que atua a cada momento no presente vivido, mesmo quando se procura
representar algo106.
Com efeito, esse trabalho só pode ser feito se mobilizarmos os outros sentidos de si
que participam de nossa experiência de apreensão das coisas. Em Forms of Vitality
(2010), Daniel Stern expande a noção de affect attunement para formas dinâmicas de
vitalidade (dynamic forms of vitality), tomando-as como um fenômeno subjetivo que se
desenvolve e constitui no próprio movimento, integrando tempo, força, espaço e
intenção/direcionalidade. Assim, nada pode ser experimentado e/ou percebido sem as
formas dinâmicas de vitalidade.
106
Há duas coisas em operação nesse trecho: uma é a descrição do que é requerido para a criação literária
pelo autor que se tornou cego – no caso de Mattoso e Borges – e a outra está na característica constitutiva
de toda criação literária que tenha a escrita como base. É verdade que, para Stern, todos os artistas teriam
que mobilizar essa experiência outra, mas nos autores que investigo encontrei algo que os convoca a utilizar
de maneira diferente essa experiência: a necessidade de complementaridade para extravasar a criação
literária.
131
Figura 6. Fotografia de Evgen Bavcar em que dois corpos femininos nus são envolvidos por pássaros de papel.
#Paratodosverem: Fotografia em preto e branco em que duas mulheres nuas estão sentadas no chão. Não dá para ver
o rosto delas. Uma série de pássaros de papel, sustentados por braços sem corpo, aparecem no quadro e dividem o
espaço com elas.
132
O modo como o poema mattosiano, ele mesmo, se coloca na tradição literária
promove, então, uma genealogia bélica própria. Pois, se participa da tradição, é
simplesmente para atingir o seu avesso. Com isso, é a própria língua portuguesa que
atinge por meio de uma composição que se coloca no entre-lugar do cânone e da
vanguarda. Aqui, seguindo Gilles Deleuze (1997), Mattoso faz minorar a língua,
rachando a sintaxe ao mesmo tempo que produz uma nova; convocando, nesse
movimento, tudo aquilo que excede a linguagem e está para além do humano – visto que
o interesse de Guattari pelos sentidos de si de Daniel Stern ao perceber a participação do
não-verbal, do não-linguageiro, na experiência, reside, justamente, no que impede
qualquer compreensão da percepção como uma simples propriedade humana.
Sobre esse assunto, vejamos o que acontece no poema “Para o diálogo platônico
entre um joven e um cego”, presente na antologia O poeta pornosiano:
107
Sobre o problema e a constituição de um sistema autopoiético na arte, ver: GOMES, Guilherme Foscolo
de Moura. Fúria do Comentário: hipertrofia hermenêutica na era da mimesis. Rio de Janeiro, 2015. Tese
(Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
133
“Ficou cego? Merece! Eu ca desfructo!”
– Você desfructa? É justo... É joven, rico...
“Pois é: soffra você, cada minuto!”
– Mereço, eu sei... Por isso pago o mico...
134
Já Borges não se move por um apetite sexual, mas por um desejo de ficção108.
Com a cegueira, esse desejo intensificou a presença de elementos que se apresentaram
em sua fase visual, entre eles, as cores – já que a sua cegueira não foi total: ele ficou cego
completamente de um olho, mas parcialmente do outro – e o interesse mais acentuado
pelas possibilidades da ficção. Na conferência “La Ceguera”109, apresentada em 1977,
Borges fala, entre outras coisas, sobre as cores que perdeu – preto, branco e, sobretudo, o
vermelho, que desapareceu por completo –, sobre as cores que ainda persistem, mas com
um grau de precisão mais baixo – verde e azul –, e sobre a cor que permaneceu luminosa
durante toda a vida: o amarelo (BORGES, 1989, p. 276-277).
108
Müller (2015) fala a respeito de um “desejo de ficção” nos filmes de Orson Welles. Cf. MÜLLER,
Adalberto. Orson Welles: banda de um homem só. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
109
Essa conferência pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=036yqajUDik. Curioso que,
dada as condições técnicas do momento, a conferência seja assistida em preto e branco, nessa cor cinzenta
que é descrita por ele como a realidade do escritor.
135
Con los años fueron dejándome
Los otros hermosos colores
Y ahora sólo me quedan
La vaga luz, la inextricable sombra
Y el oro del principio.
Oh ponientes, oh tigres, oh fulgores
Del mito y de la épica,
Oh un oro más precioso, tu cabello
Que ansían estas manos.
East Lansing, 1972. (BORGES, 1984, p. 1139)110
110
“O OURO DOS TIGRES
136
da fase visual de Borges, mas que se torna mais comum em sua fase cega. Já nos dois
últimos versos – “Oh un oro más precioso, tu cabello/ Que ansían estas manos” –, o
interesse pela cor é afirmado como o interesse por aquilo que não se pode possuir. Essa
relação é comum na literatura medieval e muitos críticos a descrevem como a procura de
um objeto do desejo – como é o caso presente no trovadorismo e em outras produções
galego-portuguesas112 –, mas poderíamos pensar também que esse objeto de desejo
enunciado é a própria ficção, que se furta a posse pelo autor.
Historia de la eternidad (SCHWARTZ, 2017, p. 199). Além disso, em El otro, el mismo, Borges escreveu
um poema especificamente sobre Snorri Sturluson (BORGES, 1984, p. 907).
112
Cf. VIEIRA, Yara Frateschi. Olhos e coração na lírica galego-portuguesa. Revista do Centro de Estudos
Portugueses, [S.l.], v. 29, n. 42, p. 11-36, dez. 2009. ISSN 2359-0076. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/view/6526>. Acesso em: 04 mai. 2022.
doi:http://dx.doi.org/10.17851/2359-0076.29.42.11-36.
137
Figura 7. Caleidoscópio presente na caixa de Baking Powder, da Royal. #ParaTodosVerem: uma caixa de Baking
Powder em vermelho, amarelo, branco e azul, da marca Royal, que traz a inscrição de uma lata dentro de outra e
assim sucessivamente.
Essa estrutura caleidoscópica, por isso, fê-lo ver nesse enigma – que, para o
menino Borges, não era mais do que uma brincadeira da imaginação – a figura assustadora
do infinito. Tematicamente, o infinito é a imagem mais recorrente em sua literatura e que
aparece desde o início – seja em suas reflexões filosóficas sobre o tempo, seja em suas
incursões sobre a literatura, sobretudo, com o livro Ficções, que, apesar da variedade de
temas tratados, pode ser facilmente compreendido, em seu conjunto, como um tratado
literário sobre o infinito.
113
Isso não quer dizer que Borges prefira o tempo circular ao tempo cronológico. Como mostra Schwartz,
o tempo é retratado em Borges de diferentes formas, sem que haja a predominância, no conjunto de sua
obra, de um modelo sobre o outro (SCHWARTZ, 2017, p. 480).
138
seus poemas adotam (em “El oro de los tigres”, há uma estrutura dessa entre “Después
vendrían otros tigres” e “Después vendrían otros oros”); seja pela problemática que o
efeito caleidoscópico gera para a noção de representação – haja vista que a coerência entre
os lugares de sujeito e objeto sofrem um processo radical de indeterminação quando
assumimos o ponto de vista do caleidoscópio.
EL ESPEJO
114
“O ESPELHO
139
Nesse poema, o espelho é apresentado como algo que revela e oculta a verdade,
ou seja, que somente revela ocultando-se. O que faz dele uma presença sem conteúdo,
porque a única coisa que faz é refletir. Essa imagem do espelho mobilizada por Borges
expressa o interesse da literatura. O autor, para fazer literatura, precisa implicar-se com
esse espelho, mas ele mesmo não se deixa representar e essa tentativa, sempre buscada,
termina por afirmar a falência da literatura, mesmo nos casos em que ela obtém o maior
sucesso – visto que assumir a realização completa da literatura pelo escritor se dá pela
representação, mas ela é impossível desde o início, do mesmo modo que é impossível
escrever o infinito. Logo, o que sobra é esse desejo.
Dessa forma, a vontade de escrita de Borges revela-se mais do que uma atitude do
autor, pois ela é o próprio campo transcendental em que autor e obra surgem.
140
autor e eu lírico. Ainda assim, frise-se, sem que fosse necessário a utilização de
biografismos de qualquer ordem.
Com efeito, é partindo dessa constatação que dá novo sentido à história e à cultura,
que Benjamin afirma em Baudelaire a percepção de uma mudança na própria estrutura da
experiência (BENJAMIN, 2015, p. 106). De tal modo que a compreensão do
superestímulo da modernidade, com as constantes descargas elétricas que atingiam
diretamente o sistema nervoso das pessoas e o próprio aparecimento da multidão, levou
Baudelaire a adotar uma postura que transformasse o choque no modo próprio de sua
poética.
Também passava por essa constatação, ainda segundo Benjamin (2015), o lugar
do mercado que em Baudelaire é tomado como uma instância objetiva (op. cit., p. 161).
Aliás, sobre isso reside uma das importantes defesas de Baudelaire que concede à obra,
subtraindo-se a toda concepção utilitarista da obra de arte e reivindicando a
inapreensibilidade mesma da experiência estética, um caráter que basta por si mesma – já
que é assumida como mercadoria. Mais do que isso: pois,
141
entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a criar uma
mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o
valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o
processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria
realidade da mercadoria enquanto tal. Uma mercadoria em que valor de
uso e valor de troca se anulariam mutuamente, e cujo valor residiria,
por esse motivo, na inutilidade, e cujo uso, na sua intocabilidade, não é
mais uma mercadoria: a mercadorização absoluta da obra de arte é
também a abolição mais radical da mercadoria. A partir daí, tem-se a
desenvoltura com que Baudelaire põe a experiência do choc no centro
do próprio trabalho artístico. (AGAMBEN, 2007, p. 75)
Nesse sentido, tal movimento em Baudelaire de tomar a obra de arte como pura
mercadoria não tem outro objetivo além do de atingir o avesso da economia que insiste
na cisão entre valor de uso e valor de troca para estabilizar os lugares de sujeito e objeto,
eu e o mundo, subjetivo e objetivo etc. Ao invés disso, o que se quer nessa operação,
seguindo Bataille (2013), é promover um movimento generalizado que coisifique todo o
mundo para, a partir daí, dar ao homem a possibilidade de uma atitude que o faça situar-
se livremente, soberanamente, frente a si mesmo – o que, consequentemente, implica
numa resposta literária para a resolução do problema da dialética do senhor e do escravo.
Diz Bataille:
115
A citação de Bataille me interessa para efeito de pensar como a noção de energia se conecta à dimensão
mais geral da produção capitalista. Porém, há uma divergência entre Bataille e o que efetivamente Marx
defende, já que, para Marx, a relação fundamental é entre o trabalho e a liberdade, e não entre o homem e
142
Dessa forma, surge particularmente emblemático também o lugar da energia,
correlativo à composição de uma economia geral em que a inscrição de coisa pode dar
vez a uma libertação de si e dos outros. Ainda conforme Bataille, o pressuposto geral do
potlatch, das trocas primitivas que fundariam uma economia, não reside sobre o consumo
da riqueza, mas sobre um jogo ambíguo dado por um dispêndio da energia que, na
verdade, também indica, necessariamente, um acréscimo. Porém, o jogo do dispêndio
posto em prática pelo potlatch não conferiria qualquer resultado se não fosse também
desenvolvido por um outro que entrasse na relação e conferisse, ao doador, o poder da
dádiva. Pois, a “virtude exemplar do potlatch encontra-se nessa possibilidade para o
homem de apreender o que lhe escapa, de conjugar os movimentos sem limites do
universo com o limite que lhe pertence” (op. cit., p. 80).
Entretanto, assumir uma posição guarda um risco, o risco de explosão (op. cit., p.
83). Por isso, quem assume uma posição toma para si esse risco de consumir uma energia
que logo será dissipada e que reivindica, em sua improdutividade constitutiva, a
inapreensibilidade de sua própria apreensão. Tal qual a poesia que é “criação por meio da
perda” (op. cit., p. 23). Prossegue Bataille:
a coisa. A relação entre o homem e a coisa é produto do capitalismo e é justamente dela que Marx quer se
libertar.
143
geralmente, no sacrifício ou no potlatch, na ação (na história) ou na
contemplação (no pensamento), o que procuramos é sempre essa
sombra – que por definição não poderíamos apreender – que em vão
chamamos de poesia, de profundidade ou de intimidade da paixão.
Somos enganados necessariamente, visto que queremos apreender essa
sombra. (op. cit., pp. 82 e 83)
Quanto a isso, também, algumas ressalvas. É sabido que a própria poesia, pelo
menos como apregoam os modernos, entre eles Mallarmé, se constitui, formalmente,
como uma experiência de crise (SISCAR, 2010, p. 115). O que também se faz presente
como procedimento na poesia, e mesmo na prosa, de Baudelaire. No entanto, o que o faz
diferir de Glauco é a atitude pós-vanguarda que este último toma ao converter como signo
da crise o intervalo que se produz entre a tradição e a vanguarda. Diz Glauco:
Não sem razão, por isso, a natureza de crise que expressa a poesia é vertida num
jogo estranho. Por um lado, Glauco utiliza-se do artifício de manter a grafia das palavras
como a utilizada no início do século XX, criando por vezes um interessante
144
balanceamento dos vocábulos; e, por outro, promove uma justaposição de palavras,
morfemas e fonemas para produzir efeitos de sentido inesperados. Desse modo, não há
utilização de metáforas e de uma consequente antropomorfização do poema – como
defendido por Deleuze e Guattari (2003) a partir do trabalho direto com os objetos feito
por Kafka –, mas de puras imagens, num processo que prescinde da mediação, derivada
logicamente pelo uso da metáfora, para atingir a excitação sexual mais rapidamente.
Como consequência, o desejo que o autor dispende para a criação do poema tem
como consequência a máxima potenciação da poesia, o aumento das suas forças pela
superação dos limites. O que implica também, seguindo mais uma vez Bataille, uma
introdução a si desses novos limites dados pela superação (BATAILLE, 2013, p. 79).
Nisso, também, fica evidente o lugar que a pornografia ocupa em Glauco. Não o da
simples cópula para a procriação, mas o de uma pornografia gay, que redimensiona os
lugares da abjeção e da transgressão no fazer poético e em sua estrutura formal.
116
Tomo de empréstimo a noção de máquina de guerra a partir de Deleuze e Guattari (1997).
145
para pensar a perversão e a cegueira, pois o objetivo do livro, como mostra Mattoso, é o
de “revisitar as trilhas (ou antes, os trilhos) da versificação e revitalizar os figurinos da
poesia sob a optica (ou otica) do ouvido, isto é, revalorizar o conceito da ‘musa’ no
adspecto ‘musical’ do poema” (MATTOSO, 2022c, p. 11).
Para tanto, Mattoso incorpora uma defesa de Proença, que afirma que o maior
tamanho do pé é o de quatro tempos, o mesmo tamanho que se utiliza na música (op. cit.,
p. 30). Consequentemente, para manter o ritmo, Proença também defende a existência de
uma acento tônico secundário – que serve, aliás, de justificativa para a própria existência
do pé de quatro tempos (op. cit., p. 32-33), defesa que também é acompanhada por
Mattoso. A esse interesse rítmico – que, friso, é dado também pela cegueira –, Mattoso
acresce à tradição literária um dado de perversão ao sexualizar a estrutura de pés. O pé
masculino (forte) é contrastado com o pé feminino (fraco) e, entre eles, surgem os pés
andróginos, que podem ser compreendidos tanto como versos masculinos quanto
femininos a depender do tipo de leitura que se faça (op. cit., p. 343-344).
Com efeito, Bataille (2013) já havia conferido para esse tipo de transgressão, dada
pela atividade sexual perversa (= desviada de uma finalidade genital), uma categoria de
forma improdutiva específica: a do dispêndio (op. cit., p. 21). Ainda conforme Bataille, é
particularmente decisivo, desse ponto de vista, que o capitalismo e a burguesia tenham
rebaixado o dispêndio a ponto de fazer esfacelar o seu funcionamento social, que, não à
toa, promove o homem para além de si mesmo. Diz Bataille:
146
interior dela mesma, isto é, dissimulando seus dispêndios, na medida
do possível, aos olhos das outras classes. Essa forma particular é devida,
na origem, ao desenvolvimento de sua riqueza à sombra de uma classe
nobre mais poderosa do que ela. A essas concepções humilhantes de
dispêndio restrito corresponderam as concepções racionalistas que ela
desenvolveu a partir do século XVII, e que não têm outro sentido além
de uma representação do mundo estritamente econômica, no sentido
corrente, no sentido burguês da palavra. O ódio do dispêndio é a razão
de ser e a justificação da burguesia: ele é ao mesmo tempo o princípio
de sua pavorosa hipocrisia. Os burgueses utilizaram as prodigalidades
da sociedade feudal como um agravo fundamental e, após terem-se
apoderado do poder, se julgaram, devido a seus hábitos de
dissimulação, em condições de praticar uma dominação aceitável pelas
classes pobres. E é justo reconhecer que o povo é incapaz de odiá-los
tanto quanto seus antigos senhores: na medida em que, precisamente, é
incapaz de amá-los, pois aos burgueses não é possível pelo menos
dissimular uma face sórdida, tão voraz, sem nobreza e tão
horrivelmente pequena, que toda vida humana diante deles parece
degradada. (op. cit., p. 28)
Não sem razão, pois, Bataille acompanha a própria maquinaria interna da noção
de dispêndio para encontrar nela, e não em algo externo, uma saída afirmativa. É assim,
por exemplo, que conclui pela necessidade de dar velocidade a esse próprio dispêndio “a
fim de realizar um modo de dispêndio tão trágico e tão livre quanto possível e, ao mesmo
tempo, a fim de introduzir formas sagradas tão humanas, que as formas tradicionais se
tornem comparativamente desprezíveis” (op. cit., p. 32). Dessa forma, a transgressão que
vemos em Glauco também passa por atingir um ponto de tensão no seio da ambiguidade
do dispêndio que o leva a mobilizar uma saída afirmativa por meio do confronto interno
de sua poética.
117
O “modernismo” hispano-americano corresponde ao simbolismo francês (de Mallarmé, Rimbaud e
Baudelaire), e se inicia com a publicação de Azul (1888), de Rubén Darío, e que se expande na Argentina
com a obra de Leopoldo Lugones. A tradutora tomou a liberdade de ‘traduzir” uma coisa na outra, talvez
para evitar fazer uma nota de rodapé. O equivalente ao nosso modernismo em espanhol é mais comumente
designado com o termo “vanguardas”.
147
De todo modo, a afinidade de Borges com a escuta das palavras, a importância da
sonoridade e força que elas evocam antes de qualquer significado mostra que essa
aproximação com o simbolismo não é gratuita. Na conferência sobre a cegueira, ele
interroga a dignidade das palavras que designam os nomes das cores por meio das formas
significantes delas:
118
Pensemos em scharlach, em alemão, scarlet, em inglês, escarlata, em espanhol, écarlate, em francês.
Palavras que parecem dignas dessa grande cor. Ao contrário, amarillo, em espanhol, soa fraco; yellow em
inglês, tão parecido e amarelo. Parece-me que em espanhol antigo era amariello. (BORGES, 2000b, p. 312)
148
caminhar pelas ruas, ora discutir questões de linguagem a partir da dimensão local, ora
fazer incursões mais universais – como é o caso de Funes – por meio do mesmo lugar. Já
como exemplo da segunda tese, pensemos na ideia de infinito que ora é apresentada como
uma questão de linguagem em “Tlön”; ora da recorrência dos espelhos que aparecem em
seus poemas e que apresentam uma questão existencial insolúvel sobre a relação entre
identidade e autorreferencialidade; ora da tradução; ora da matemática em “Funes”; entre
outros. Nesse caso, a mesma palavra, “infinito”, serve para indicar, da maneira mais
visual possível, os seus referentes.
Desse modo, o recurso à metáfora é o que “faz ver” na escrita borgiana e é ele,
mais do que a atividade especulativa que efetivamente é realizada por Borges, que
consegue imprimir à palavra “infinito” uma nova dimensão. Pois, dado que a palavra
implica um sentido combinatório sem precedentes, a escolha das imagens literárias que
vão compor essa propriedade do conceito “infinito” se torna fundamental para Borges –
até porque as palavras trazem uma carga mágica que as habilita a serem mais ou menos
eficazes ao empreendimento literário.
119
Para uma discussão sobre a relação entre a produção de imagens, literatura e outras materialidades,
ver: MÜLLER, Adalberto. A imagem sob a imagem: ensaios sobre literatura & artes. Niterói: Eduff,
2022.
149
transformações tecnológicas do século XIX, o hiperestímulo da sociedade e o
desenvolvimento da ciência são exemplos disso.
Destarte, ainda consoante Buck-Mors (2012) isso fez com que a nossa experiência
estética se transformasse em uma forma de anestesia – dado que o descontrole energético
promovido pela sociedade moderna requereu do nosso organismo biológico defesas que
o permitissem viver sem levar a uma paralisia de nosso sistema sensorial. Assim, para
resolvermos esse problema colocado pela modernidade devemos não evitar as novas
tecnologias, mas perpassá-las (op. cit., p. 174)
Nesse sentido, as imagens promovidas por Mattoso e Borges, por mais divergentes
que possam ser, não apenas comunicam algo sobre a técnica – já que já são, a seu modo,
dispositivos técnicos –, mas também apresentam uma crítica sobre ela, na medida em que
se utilizam de estruturas presentes no cinema – com o recurso da construção de cenas
fragmentárias, como em Mattoso, ou da concisão discursiva, como em Borges –; na
internet – com o modelo de leitura hipertextual pela recorrência dos mesmos temas tanto
em Mattoso quanto em Borges – e no próprio mercado de consumo – como acontece pela
disposição do desejo kitsch em Mattoso, que multiplica os objetos de consumo ao
transformá-los em objetos literários, e em Borges pela consciência da improdutividade
do livro como objeto comercial – o próprio livro de areia pode ser pensado como uma
metáfora da indisponibilidade para consumo dos livros que verdadeiramente importam.
Além disso, a inquietação da escrita, que leva tanto Borges quanto Mattoso a não
parar de escrever, pode ser pensada também como um efeito adverso da farmacopolítica
(PRECIADO, 2008) que domina a indústria anestésica para os desviantes clínicos, como
é o caso dos cegos – haja vista que, mesmo com o avanço da medicina, como defende
Mattoso em entrevista à TV Brasil120, não há analgésicos nem anestésicos que reduzam a
dor dos cegos – claro, de certos tipos e graus das doenças que geram a cegueira.
120
Cf. FETICHE. Estação plural, São Paulo: TV Brasil, 23 de fev. 2017. Programa de TV. 53m05s.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=APavu7e4dug&t=875s>. Acesso em: 05 de abr.
2022.
150
5. A NOITE E A MORTE: O GESTO E A ÉTICA DA ESCURIDÃO
Não se sabe ao certo – porque não é possível saber – quando o homem começou
a sonhar e a ter consciência da morte. Postular esse momento, porém, permite uma mirada
especulativa sobre o primeiro recurso – ou, em uma chave de interpretação propriamente
literária, o recurso primeiro – à imaginação. É indiferente, para essa jornada, perceber se
a experiência onírica é compartilhada com outros animais ou não, se eles possuem a
capacidade de ter essa consciência da morte ou não. Para boa parte de nossa tradição
filosófica, influenciada por Aristóteles e que assentou as suas bases na ideia da
especificidade do homem como possuidor do logos, a resposta necessária para esse
problema é não. Porém, dado os avanços da biologia no último século, soa ridículo,
quando não antropocêntrico, aceitar essa tese121.
121
Penso, sobretudo, nas contribuições de Donna Haraway desde, pelo menos, o seu já clássico Manifesto
do Ciborgue. Cf. HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no
final do século XX”. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (org. e trad.).
Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Organização e tradução de Tomaz Tadeu. 2ª. ed.
Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2009, p. 33-118.
151
5.1 Narrativa do sonho e da morte
Nesse contexto, parece claro que a importância dada à reunião na casa do doente
terminal, em velar o seu corpo e acompanhar o seu enterro, faz parte de um mesmo
processo ritualístico que só pode ser corretamente pensado quando levamos em conta que
toda essa mobilização da sociedade diz respeito ao caráter de membro da comunidade que
aquele sujeito tinha. Em Dialética da Colonização, Alfredo Bosi (1992) defende que no
Brasil atual muitos rituais católicos de regiões escondidas do país são resquícios de uma
resistência da cultura popular, que preserva tradições cristãs medievais que vieram com
os colonizadores, frente à hierarquia oficial da Igreja, que prega o vernáculo oficial desde
o Concílio Vaticano II (BOSI, 1992, p. 50).
Contudo, talvez seja o caso de pensar esses rituais não como exemplos de algo
cristão que se perdeu, mas de algo comunitário que sempre esteve aí latente. Porém, penso
comunitário não no sentido de comunidade como algo que implique, primeiramente,
relações de linguagem; mas, e sobretudo, relações ontológicas – assim como defendido,
em relação à prática africana, por Sobonfu Somé (ROCHA, 2014). Desse modo, na
152
comunidade os viventes constituem-se mutuamente, perfazendo uma rede complexa de
relações em que cada membro é parte presente do outro.
Essa completude que a morte garante não se expressa do ponto de vista temporal,
mas de algo que, por estar vivo e ser vivente, o homem requer, já que a morte, a
experiência da morte, é o que lhe falta. Assim, a morte, em termos heideggerianos, seria
o que permite ao homem interrogar-se a si mesmo a partir da condição fática de sua
própria morte. Com isso, o homem, como único ente capaz – certamente,
antropocentrismo heideggeriano – de compreender o ser, assume uma posição filosófica
privilegiada, já que essa compreensão que ele faz do ser, como sublinha Levinas, é já o
ser (LEVINAS, 1997, p. 76).
153
“fenomênica” que é propiciada pela morte, entendida aqui como “morte do outro” por
meio de uma visão que estranha o próprio eu. Consoante Hadock-Lobo,
154
Desde el innumerable pasado,
Con altas mitras y coronas de hierro,
Con Biblias, con espadas, con remos,
Con anclas y con arcos.
Se ciernen sobre mí en la alta noche
Propicia a la retórica y a la magia
Y busco la más tenue, la deleznable,
Y le advierto: oh, amigo,
El continente hostil se apresta con armas
A invadir tu Inglaterra,
Como en los días que sufriste y cantaste.
Por el mar, por la tierra y por el aire convergen los ejércitos.
Vuelve a soñar, De Quincey.
Teje para baluarte de tu isla
Redes de pesadillas.
Que por sus laberintos de tiempo
Erren sin fin los que odian.
Que su noche se mida por centurias, por eras, por pirámides,
Que las armas sean polvo, polvo las caras,
Que nos salven ahora las indescifrables arquitecturas
Que dieron horror a tu sueño.
Hermano de la noche, bebedor de opio,
Padre de sinuosos períodos que ya son laberintos y torres,
Padre de las palabras que no se olvidan,
¿Me oyes, amigo no mirado, me oyes
A través de esas cosas insondables
Que son los mares y la muerte? (BORGES, 1984, p. 991)122
122
“A CERTA SOMBRA, 1940
155
Nesse poema, o eu lírico destaca uma série de imagens relacionadas à Inglaterra
(e a um certo nacionalismo britânico) por meio da justaposição entre a sua história
política e literária. Como indica o título, o poema retrocede no tempo para analisar a
batalha que a Grã-Bretanha travou contra o exército nazifascista. Porém, esse retorno é
realizado sem uma descrição objetiva do conflito. Tal procedimento tem como intuito
marcar a disjunção que se cria entre a história científica – ou seja, a história factual,
observável, da realidade – e a história literária para fazer com que a segunda salve a
primeira da esperada tragédia (“En esta margen ulterior de los mares/ Las invoco y
acuden/ Desde el innumerable pasado,/ Con altas mitras y coronas de hierro,/ Con Biblias,
con espadas, con remos,/ Con anclas y con arcos.”).
156
Desse modo, De Quincey se converte no signo de uma alteridade que invade o
texto literário para desfazer a propriedade do autor, haja vista que ele é para o eu lírico o
autor de textos que foram lidos por Borges. Mais uma vez, por isso, o texto borgiano
prepara um jogo de vicariedade entre os lugares de autor e leitor que são estabelecidos
pela relação com a escrita. No final do poema, ao aproximar a noite e o delírio por meio
da figura de De Quincey (“Hermano de la noche, bebedor de opio”), o eu lírico faz um
chamamento ao seu amigo literário e acrescenta ao lado da figura do mar, como um
instrumento de presença do que está ausente, a morte.
Sendo seguido por um troglodita, Rufo chega até a Cidade dos Imortais e lá se
depara com uma estrutura muito antiga que o apavora pela sequência interminável de seus
elementos, como janelas inalcançáveis, corredores sem saída, muros monumentais, entre
outros. Nessa jornada pela Cidade, o narrador é contaminado pela arquitetura infinita do
espaço, que reverbera nele a angústia pela impossibilidade de descrição, haja vista que a
vertigem do espaço, causada pelo labirinto, corroeu a sua racionalidade:
123
“Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam
homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos
trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não
falassem e que devorassem serpentes.” (BORGES, 1998, p. 596)
124
“Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; sei que durante muitos anos infestaram meus
pesadelos; já não posso saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que
desatinaram minhas noites.” (BORGES, 1998, p. 598)
158
Na volta da Cidade dos Imortais, encontra o troglodita o esperando, desenhando
no chão. O que desenhava não era uma escrita em termos linguísticos. Então, Rufo
começa a analisar hipóteses sobre a precariedade da linguagem e da vida dos trogloditas.
Decide, por fim, ensinar a linguagem para aquele que o seguiu e, após essa decisão,
nomeia-o de Argos, o nome do “cão moribundo da Odisseia” (BORGES, 1998, p. 600).
A dificuldade dessa tarefa, porém, prosseguiu até que Rufo se deu conta de que os
trogloditas eram, na verdade, os imortais que construíram a Cidade e que Rufo, o cão da
Odisseia, era o próprio Homero (BORGES, 1984, p. 540).
Com isso, a imortalidade trouxe consigo um problema para o vivente devido à sua
(não) relação com a morte:
125
“Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o
divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal.” (BORGES, 1998, p. 601)
159
antecedieron, sin principio visible, o el fiel presagio de otros que en el
futuro lo repetirán hasta el vértigo. No hay cosa que no esté como
perdida entre infatigables espejos. Nada puede ocurrir una sola vez,
nada es preciosamente precario. Lo elegiaco, lo grave, lo ceremonial,
no rigen para los Inmortales. Homero y yo nos separamos en las puertas
de Tánger; creo que no nos dijimos adiós. (op. cit., p. 541-542)126
Não há rosto possível para o imortal porque ele não cessa de aparecer como
máscara, personagem. O imortal não é um ente, uma coisa, mas uma relação que se dá
entre os homens, como acontece com a força despersonalizadora da tradição:
Em certo sentido, por isso, o imortal afirma o poder da literatura em realizar a obra
e desrealizar o autor, transformando-o em mais um componente literário. É importante
também o lugar da noite na estrutura do conto, pois ela aparece como um elemento que,
desde o início, une a realidade do personagem à realidade da literatura. Rufo encontra o
cavaleiro numa noite que não dormiu (BORGES, 1984, p. 534) e deixa de ser um imortal
no momento que conseguiu dormir à noite até o amanhecer (op. cit., p. 542). Já o jardim
e o labirinto são duas imagens utilizadas por Borges para representar o problema do
infinito – como é o caso do conto “El jardín de senderos que se bifurcan”, presente no
livro Ficciones, publicado em 1944 – e que também se expressa na noite. A essas imagens
se soma também a imagem onírica presente na areia, tanto a do deserto quanto a que está
126
“A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de
fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o
rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais,
ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio
visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja
como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente
precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas
portas de Tânger; creio que não nos dissemos adeus.” (BORGES, 1998, p. 603)
127
“Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o
impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é
todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o
que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.” (BORGES, 1998, p. 602)
160
no rio arenoso, e que sobrevém para enlaçar os planos de realidade, pois é por meio não
só do rio, mas também do deserto que Rufo encontra a Cidade dos Imortais.
BLIND PEW
161
A ti también, en otras playas de oro,
Te aguarda incorruptible tu tesoro:
La vasta y vaga y necesaria muerte. (BORGES, 1984, 826)128
Por que continuar roubando? Qual o desejo que envolve possuir sem ter a
experiência de contemplação de algo tão visual como o tesouro? O que, em outros termos,
significa possuir um tesouro sem poder ver o reconhecimento do outro ou sem que nós
próprios consigamos vê-lo – porque o objeto só se apresenta aos nossos sentidos quando
temos condição de apreendê-lo sensivelmente, nesse caso, com os olhos? Curiosa
proximidade sonora e ontológica entre tesouro e ouro (“Sabía que en remotas playas de
oro/ Era suyo un recóndito tesoro”). É como se a própria palavra evocasse, por relação
paronomástica, a imagem de uma riqueza que reluz com um brilho dourado e, por
extensão, a cor e a intensidade figurassem a própria coisa a conquistar.
128
“BLIND PEW
162
Desse modo, o eu lírico borgiano parece ver nessa relação não a possibilidade da
posse do tesouro, mas a da conquista que é engendrada em virtude dele. Com isso, o eu
lírico transfere a luminância do ouro presente no objeto físico para o objeto espiritual.
Além disso, essa mudança se processa porque há uma correlação entre tesouro e morte,
como uma espécie de consolação para a cegueira, que é realizada no último verso (“A ti
también, en otras playas de oro,/ Te aguarda incorruptible tu tesoro:/ La vasta y vaga y
necesaria muerte”).
163
Los insensatos párrafos que ceden
164
¿Qué importa la palabra que me nombra
si es indiviso y uno el anatema?
129
“POEMA DOS DONS
165
Nesse poema, a cegueira aparece como uma positividade expressa no próprio
título. Na sequência, vemos o eu lírico – que, nesse caso, coincide, literariamente, com o
próprio Borges – agradecer a Deus pelos livros e a noite ao passo em que observa a
passagem da biblioteca física para a biblioteca dos sonhos, a biblioteca mental. Nessa
passagem, impregnada por uma condição física que foi marcada pelo “azar” – tanto do
ponto de vista de uma casualidade banal quanto de um destino infeliz130 –, o eu lírico
tanto incorpora o autor, que é transformado também em personagem, quanto introduz sua
escrita em uma genealogia de outros escritores cegos, como é o caso de Paul Groussac –
um escritor argentino e ex-diretor, também cego, da Biblioteca Nacional da Argentina –
citado na última estrofe. O que expressa, por isso, nessa alteridade colocada em jogo pela
cegueira um outro – ou outros – que se situa em uma distância insuperável para a voz que
fala no poema (“Otro ya recibió en otras borrosas/ Tardes los muchos libros y la sombra
(...) Que soy el otro, el muerto, que habrá dado/ Los mismas pasos en los mismos días”).
166
para a cegueira em si, e sim para as diferentes e infinitas formas em que o autor recorre
aos textos da tradição literária para realizar a sua obra.
A noção de perversão, tal como formulada por Freud (2016), trata sobre a fixação
por um objeto de desejo que não possui como finalidade a reprodução. Além disso, Freud
percebe a perversão, contrariamente ao que se fazia na época, como algo presente, de
maneira geral, na atividade sexual de todas as pessoas (FREUD, 2016, p. 54). Lacan, por
sua vez, repercutindo Freud, retoma elementos importantes da perversão por meio da
literatura. Segundo Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. e Maria Cristina Poli (2013), ao
analisar Em busca do tempo perdido, de Proust, Lacan nota que “a lógica da perversão
situa-se numa captação inesgotável do desejo do Outro” (ROSA JR.; POLI, 2013, p. 706)
167
em que há um gosto pelo inanimado, circunstância em que o sujeito está preso em seu
próprio fetiche, e pelo desejo anônimo e clandestino (idem).
Figura 8. Texto “Homossexual mata a mãe e se suicida”. #Paratodosverem: Fragmento fac-símile do texto de Glauco
Mattoso no Jornal Dobrabil que reproduz a estrutura de uma notícia.
168
perversão temática ao rir do assassinato da mãe de um homossexual e, nesse movimento,
redireciona a energia libidinal ao expor a hipocrisia e o preconceito de “professores de
literatura e de jornalismo”, que veem na escolha do termo objeto de riso, pois o atributo
(homossexualidade) realiza a substituição de um substantivo (filho).
169
Figura 9. Texto “Os 10 mandamentos do torturador”. #Paratodosverem: fac-símile de uma página do Jornal
Dobrabil, que contém o texto “Os 10 mandamentos do torturador” no canto esquerdo.
Os 10 mandamentos do torturador
I – AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS: O torturador ama
e é temente* a um deus, sim senhor. Que deus, não vem ao caso. Mas
ama, excepto que abaixo de deus só está elle, torturador. Sim, pois para
amar a deus conforme o mandamento, o torturador tem que estar acima
de todas as coisas e, por que não dizer, pessoas. É verdade que, na
practica, o torturador não consegue ser tão omnipotente, mas resta-lhe
170
o consolo de poder ao menos pisar na cara do torturado e trepar-lhe no
corpo.
II – NÃO TOMAR SEU SANCTO NOME EM VÃO: “Sancto nome”
é o caralho. “Vão” é o das nadegas. Quer dizer: não tomar no cu. Um
authentico torturador nunca toma no cu, nem no sentido proprio, nem
no figurado. Quem toma é o torturado.
III – GUARDAR DOMINGOS E FESTAS DE GUARDA: Isto é, o
domingo e a festa de guarda são os dias de folga do torturador, que
ninguém é de ferro, excepto o torturado. No domingo todo mundo
descansa, excepto o torturado e os guardas de plantão. Estes substituem
os torturadores de folga e fazem a festa. Dahi a expressão “festas de
guarda”. Desse modo, matam-se trez coelhos: o torturador aproveita
para coçar o sacco, e os guardas para tirar sua casquinha. O terceiro
coelho é o torturado.
IV – HONRAR PAE E MÃE: Excepto, naturalmente, os paes do
torturado. Estes podem ser ofendidos moral e até physicamente, si
necessario** na presença do torturado.
V – NÃO MATAR: Um torturador nunca mata. O torturado sempre se
suicida, é atropelado ao tentar fugir, ou alvejado em tiroteio, ou
justiçado pelos companheiros de prisão. Esqueci de alguma outra
sahida?
VI – NÃO PECCAR CONTRA A CASTIDADE: Um torturador de
respeito nunca practica violencias sexuaes contra pessoas virgens. Isto
porque todo torturado já perdeu o cabaço no cangaço, ou então no
cagaço da tortura. Portanto, o torturador só pecca si poupar o torturado
do estupro.
VII – NÃO FURTAR: Torturador piedoso não furta nem um grampinho
de sua victima. Espera primeiro que esta esteja inappelavelmente finada
e o objecto em questão não possa ser reclamado. Ahi Já não é mais
furto, concorda?
VIII – NÃO LEVANTAR FALSO TESTEMUNHO: Nem pensar. Um
verdadeiro torturador não falseia nada. Siquer avente. O proprio
torturado se encarrega de formular as perguntas do interrogatorio,
respondel-as e assignar em baixo. Ao torturador cabe apenas estimular
a lingua do sujeito.
IX – NÃO DESEJAR A MULHER DO PROXIMO: Torturador não
precisa desejar a mulher de ninguém. O torturado está alli pra isso:
servir de mulher, nem que seja na marra, servir de boceta com seu cu e
com sua bocca e, si o torturador achar que não basta, servir de mulher
de malandro, de capacho e até de amarellinha. (MATTOSO, 2001a, p.
53)
171
que aproxima o que não é aproximável, como o texto sagrado e o texto profano, há
também uma perversão ao mostrar que essa aproximação é possível, mas somente ao
mudar radicalmente a sua direção moral. Como resultado, o olhar do narrador deseja, por
seu interesse masoquista, passar da exposição à efetiva atividade, como se assumisse, a
um só tempo, os lugares de torturador e de torturado.
131
É fundamental essa dimensão do olhar absoluto do torturador para gerar terror no torturado, pois, se o
torturado fosse apenas violentado nos momentos em que ocorre a violência física, o terror se dissiparia
rapidamente no momento em que essa violência se encerrasse.
172
aspecto do não desaparecimento do sujeito é importante, pois marca a diferença entre a
poesia concreta do período e o tipo específico de poemas “concretos” realizados por
Mattoso (BUTTERMAN, 2005, p. 164). Aliás, é justamente nesses poemas concretos da
década de 1970 e 1980 que Mattoso, consoante Butterman, promove uma crítica à
ditadura e à repressão em geral (op. cit., p. 165). Ponto também percebido por Viviana
Bosi (2011), que credita a essa dramatização do eu de Mattoso o aspecto de uma
desconfiança que o eu dramático nutre em relação a si e aos outros (BOSI, 2011, p 260).
132
Essa expressão também é utilizada por Barbosa (2017). Cf. BARBOSA, André Antônio. Constelações
da frivolidade no cinema brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em
Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2017.
173
Dentro de um contexto histórico de recrudescimento das liberdades individuais, o
moralismo propagandeado pela ditadura, por meio de diferentes instituições do aparelho
do Estado que visavam garantir a Moral e os Bons Costumes, não era, de todo, contrário
ao desejo, pois a intelligentsia da ditadura empresarial-militar brasileira distribuiu,
concomitantemente, a tortura e a pornografia. Como mostra María Elvira Díaz-Benítez
(DÍAZ-BENÍTEZ, 2011, p. 15), a década de ouro dos filmes pornôs se deu, justamente,
entre os anos 1970 e 1980. O que se interditou, contudo, foi a existência de corpos e de
sexualidades dissidentes com o padrão heteronormativo, a exemplo de homens e mulheres
gays, travestis e transexuais etc. que foram perseguidos, vigiados, torturados e até mortos.
133
A esse respeito, ver a tese de Renan Honório Quinalha (2017). Cf. QUINALHA, Renan Honório. Contra
a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). São Paulo, 2017. Tese
(Doutorado em Ciências) - Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2017.
174
Figura 10. Poema “abjura nº 5”. #Paratodosverem: fac-símile do poema de Glauco Mattoso.
abjura nº 5
175
e não leio as Escritura
A ciência é uma aventura
Religião, conjectura
Política é peta pura
e a arte uma loucura
Chega de literatura
de estrutura, de urdidura
cesura e nomenclatura
Isso tudo é uma frescura
Decidindo de cultura
só se vê cavalgadura
Quem lança candidatura
o que quer é sinecura
!Não me venha com figura
!Sai pra lá com formosura
Catadura de bravura
não quero nem ver pintura
Qual azar nem jetatura
!ventura nem desventura
Me rio da acupuntura
e de só comer verdura
Não sei o que é fartura
doçura de rapadura
Minha boca se satura
só do gosto da amargura
Proibiu-se-me a leitura
Já nem posso ver gravura
Minha esperança futura
é uma treva bem escura
Tenho horror de ditadura
de censura, de tortura
captura e de clausura
!Vou fugir da viatura
“Pela rua da amargura
176
”Água fria na fervura
“Não há bem que sempre dura
”nem mal que sempre se atura
Se me levam no cambura
!nem mandado de soltura
Eu, hem! Quem veste armadura
tem bem mais musculatura
Acho graça em abertura
Me faz rir a linha dura
sucessão na prefeitura
pela primogenitura
Fico longe de conjura
!Fora com a compostura
...Nem me importo com mesura
!Vade retro, conjuntura
Não há nada nesta altura
que se salve da mistura
A mentira é o que perdura
A verdade não se apura
Glauco Ma77oso (MATTOSO, 2001a, p. 21)
177
Do ponto de vista do procedimento, essa queerização mattosiana, que expressa
uma repetição obsessiva e pulsional, impede que o sentido seja dado como absoluto por
meio do papel da ironia – pelo menos, do que aparenta ser na superfície do texto – e da
circularidade sonora, que faz da rima em “ura” uma estratégia de aproximação
significante entre diferentes e extrovertidos significados. Nisso, tanto o que o poema
expressa sobre a cegueira (“Minha esperança futura/é uma treva bem escura”) quanto no
que defende sobre a ditadura (“Tenho horror de ditadura/ de censura, de tortura/ captura
e de clausura / !Vou fugir da viatura”) podem ser lidos de modo perverso, pois o fetiche
masoquista, embora realize uma experiência da tortura, não deixa que ela seja,
efetivamente, experimentada como uma tortura (BUTTERMAN, 2005, p. 181-182), já
que a vítima, frente a toda dor que lhe é infligida, consegue gozar – um gozo improdutivo,
é verdade – com o aparelho de repressão do Estado.
178
Mas, como me restou uma fugaz
lembrança do passado, no qual Deus
ainda me exsistia, addio o gesto
até que ja tambem perca a memoria. (MATTOSO, 2022d, p. 20)
Nesse sentido, o olhar do outro sobre o suicida é medido moralmente por meio
das capacidades que são engajadas nas expectativas de diferentes modos de vida. Porém,
para quem não vê, como é o caso do eu dramático, a morte surge como a impossibilidade
não só de ver, mas também de se ver, ou seja, de ser reconhecido no olhar do outro, de
ter solidariedade ou empatia. Com isso, para continuar vivendo e tendo a vida, e não a
morte, como uma possibilidade, o eu dramático situa não mais o presente ou o futuro
como uma a possibilidade em meio ao caos, mas o passado. E como o passado para ele é
algo que não pode ser mais alcançado, o eu dramático adia a morte como o gesto
diametralmente oposto ao de Borges no “Poema de los dones”, em que o eu lírico rejeita
a memória, mas não o esquecimento.
UM OPTIMISMO [8913]
179
nos tempos que virão, nalgum futuro
ao menos provisorio, para breve,
pois, quando o meu cocô demora dias
la dentro, constipando um intestino
soffrido, de repente expulso o peido
comprido, fedidão, que representa
a fé numa alegria de viver.
Portanto, um optimismo significa
cagar, poder cagar, sentir allivio,
em summa, a perspectiva de que merda
é tudo que esperamos nós da vida,
depois dos mais frustrados ideaes. (MATTOSO, 2022d, p. 21)
É relevante destacar que, nesse mesmo sentido, David Foster (2006) ao analisar o
aspecto de teatralização presente em Manual do podólatra amador, aproxima essa
questão do desvio, operada pela cegueira e abjeção, com a estética queer:
180
Mattoso, com isso, substitui a imagem da falta como necessidade para a escrita –
como aquilo que no texto borgiano aparece como esquecimento e a intransponível
diferença de grandeza entre o finito e o infinito, por exemplo – por uma imagem do
excesso. Desse modo, a escuridão da morte é contrastada pela luz da memória, mas esse
contraste entre ambos não perfaz todo o esquema – haja vista que a vida, como lembra
Deleuze (2002), se constitui no limite com a morte. Além disso, a morte proporciona, em
um sentido deleuziano, um tipo de destruição que é necessário para a vida.
Quando se é cego, assim, talvez não haja como apagar a facticidade de ser cego,
assim como o animal terrestre não pode apagar a facticidade de não saber voar, mas
sempre se pode ir além ao engajar a Vida de maneira criativa para realizar o mundo de
um outro modo, como é o caso do que acontece por meio da literatura e de um desejo –
ou delírio – da ficção.
134
Deleuze e Guattari aplicam a noção de literatura menor à análise das obras de Franz Kafka. Nesse
sentido, literatura menor diz respeito ao mecanismo de transgressão a uma matriz linguística por dentro da
própria língua, como ocorreu com a língua alemã com a dicção de Kafka, um judeu de Praga.
182
III – A NOITE DA LITERATURA
183
6. PERSONAGEM, PROCEDIMENTO OU PERSPECTIVA? A CEGUEIRA
COMO PROBLEMA LITERÁRIO
Até aqui, a cegueira foi pensada como elemento que participa das obras de Jorge
Luis Borges e Glauco Mattoso, como possibilidade que se apresenta na criação e na
recomposição da sensibilidade artística e como vínculo que articula a ética e a estética.
No entanto, quero, agora, iniciar uma discussão da cegueira como um problema para a
literatura, sobretudo, por meio dos modos em que ela surge nas obras de Mattoso e de
Borges.
Isso significa dizer que, para pensar a cegueira como um problema para a
literatura, é necessário, antes, revisitar o texto literário não só com o olhar crítico, mas
também com o olhar cego, ou seja, com o olhar daquele que vê no entre-visto, para
acompanhar, entre as zonas de maior visibilidade da obra, os seus momentos de
insignificância, de não visto, de uma ausência presente em sua materialidade mesma.
Trata-se, portanto, de uma espécie de cartografia, mas não de uma cartografia
intensiva135, como a desenvolvida por Félix Guattari e Gilles Deleuze, muito embora a
intensividadde não deixe de estar presente, mas de uma cartografia negativa, em que o
adjetivo “negativa” não aponta para uma dimensão do método dialético, mas de uma
atitude transgressiva que se apresenta aos objetos e à prática textual.
Como resultado, ao indagar ao texto literário quais são os modos que a cegueira
aparece (personagem, procedimento ou perspectiva?), parece-me que a resposta são todos
e nenhum. Todos, no sentido em que a cegueira sempre pode ser pensada como ocupando
mais de um lugar no esquema ou na estrutura de composição textual. Nenhum, no sentido
de que – mesmo quando ela se apresenta como perspectiva ou procedimento, que são as
maneiras mais produtivas para se pensar aspectos não desenvolvidos pelo conteúdo
imediatamente dado da superfície textual, ou seja, pelo efetivamente “dito” – a cegueira
não pode ser identificada, mas apenas apontada – propriedade dêitica e provisória – como
um elemento presente no texto.
135
O “método” da cartografia intensiva foi esboçado por Félix Guattari e trabalhado junto com Gilles
Deleuze. Para uma tentativa de apresentação do que seria esse “método”, ver: ROLNIK, Suely. Cartografia
sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS,
2014.
184
6.1 O caleidoscópio da cegueira: entrando no texto com Borges
Como vimos, nos primeiros livros de Borges a figura da tarde aparece como um
elemento que, por um lado, justifica a deambulação realizada pelo próprio Borges nas
ruas de Buenos Aires e, por outro, serve literariamanete ao propósito de compor novas
imagens poéticas. Em Los conjurados, antologia publicada em 1985, um ano antes de sua
morte, Borges retoma o problema da tarde como uma questão literária em dois poemas:
“La joven noche” e “La tarde”.
LA JOVEN NOCHE
136
“Tudo que é próximo se afasta.” (GOETHE apud BORGES, 2000b, p. 322)
137
“A JOVEM NOITE
185
Em “La joven noche”, o poema, de estrutura sintética e que comprime em uma
única estrofe todo o seu conteúdo, a noite é apresentada não como um momento do dia,
mas como uma força que invade o eu lírico para escrever aquilo que só pode ser dito
como um segredo: a ficção. Assim, muito embora sejamos apresentados no início com
uma clara citação à vida do autor por meio do efeito gerado pela cegueira (“Ya las
lustrales aguas de la noche me absuelven/ de los muchos colores y de las muchas
formas”), logo em seguida vemos a mesma noite introduzindo o eu lírico numa dimensão
em que a ficção é predominante: o jardim.
LA TARDE
186
En aquel cielo están el pez, la aurora,
la balanza, la espada y la cisterna.
Uno y cada arquetipo. Así Plotino
nos enseña en sus libros, que son nueve:
bien puede ser que nuestra vida breve
sea un reflejo fugaz de lo divino.
La tarde elemental ronda la casa.
La de ayer, la de hoy, la que no pasa. (BORGES, 1989, p. 465)138
Nesse mundo tornado possível pela ficção, as palavras resvalam umas nas noutras
como reflexos de espelhos que se comunicam pela atividade da luz. Esse lugar não é só o
lugar do eu lírico, mas também o do autor, que precisa se instalar nesse mundo ficcional
que detém uma temporalidade própria – o cristal é a metáfora para algo independente,
como uma criação necessariamente literária, verbal (BORGES, 1984, p. 382) – para que
a escrita literária aconteça e possa ter contato com o fundo sobre o qual a linguagem se
apresenta como ela é – no caso de Borges, como algo essencialmente metafórico e que
trabalha realizando operações analógicas próprias (“En aquel cielo están el pez, la aurora,/
la balanza, la espada y la cisterna./ Uno y cada arquétipo”).
138
“A TARDE
187
El primer monumento de las literaturas occidentales, la Ilíada, fue
compuesto hará tres mil años; es verosímil conjeturar que en ese enorme
plazo todas las afinidades íntimas, necesarias (ensueño-vida, sueño-
muerte, ríos y vidas que trascurren, etcétera), fueron advertidas y
escritas alguna vez. Ello no significa, naturalmente, que se haya agotado
el número de metáforas; los modos de indicar o insinuar estas secretas
simpatías de los conceptos resultan, de hecho, ilimitados. (BORGES,
1984, p. 384)139
Já no fim do poema, o eu lírico faz referência ao filósofo Plotino para retomar não
um tema da razão, mas da teologia: a vida como reflexo fugaz do divino. Em “El espejo
de los enigmas”, ensaio publicado em 1952 no livro Otras inquisiciones, Borges faz
menção a um trecho de uma passagem do livro de São Paulo para pensar o problema da
cegueira como um Destino compartilhado por todos os homens:
Un versículo de San Pablo (I, Corintios, XIII, 12) inspiró a León Bloy:
Videmus nune per speculum in aenigmate: tunc autem facie ad faciem.
Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum.
Torres Amat miserablemente traduce: “Al presente no vemos a Dios
sino como en un espejo, y bajo imágenes oscuras: pero entonces le
veremos cara a cara. Yo no le conozco ahora sino imperfectamente: mas
entonces le conoceré con una visión clara, a la manera que soy yo
conocido.” 44 voces hacen el oficio de 22; imposible ser más palabrero
y más lánguido. Cipriano de Valera es más fiel: “Ahora vemos por
139
“O primeiro monumento das literaturas ocidentais, a Ilíada, foi composto há cerca de três mil anos; é
plausível supor que nesse enorme transcurso de tempo todas as afinidades íntimas, necessárias (sonho-vida,
sono-morte, rios e vidas que transcorrem, etc.), foram alguma vez percebidas e escritas. Isso não significa,
naturalmente, que se tenha esgotado o número de metáforas; as maneiras de indicar ou insinuar essas
secretas simpatias dos conceitos resultam, de fato, ilimitadas.” (BORGES, 1998, p. 423)
188
espejo, en oscuridad; mas entonces veremos cara a cara. Ahora conozco
en parte, conoceré como soy conocido.” Torres Amat opina que el
versículo se refiere a nuestra visión de la divinidad; Cipriano de Valera
(y León Bloy) a nuestra visión general. (BORGES, 1984, p. 720)140
Com isso, na ociosidade eterna que vivia, o narrador procura recordar. A imagem
da memória como recurso para a escuridão/cegueira, que é engajada no período de
cegueira de Borges, é também mobilizada aqui. Nesse processo rememorativo, lembra-se
de uma antiga tradição do deus e que faz conjurar os males: a existência de uma sentença
mágica, única no mundo e que foi criada no tempo em que todas as coisas foram feitas.
Desse modo, percebendo-se no fim dos dias, o narrador começa a interrogar a si mesmo,
num primeiro momento, sobre onde apareceria esse símbolo – o que o fez chegar na
constatação de que estaria na pelagem do jaguar – e, num segundo momento, sobre o que
pode ser essa palavra divina.
140
“Um versículo de são Paulo (I Coríntios 13, 12) inspirou Léon Bloy: “Videmus nunc per speculum in
aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus
sum”. Torres Amat miseravelmente traduz: “No presente não vemos Deus senão como em um espelho e
sob imagens obscuras: mas então o veremos face a face. Agora eu não o conheço senão imperfeitamente:
mas então o conhecerei com uma visão clara, da maneira que eu sou conhecido”. Quarenta e duas palavras
fazendo o trabalho de vinte e duas; impossível ser mais palavroso e mais frouxo. Cipriano de Valera é mais
fiel: “Agora vemos por espelho, na escuridão; mas então veremos face a face. Agora conheço em parte;
mas então conhecerei como sou conhecido”. Torres Amat entende que o versículo se refere a nossa visão
da divindade; Cipriano de Valera (e Léon Bloy), a nossa visão geral. (BORGES, 2000a, p. 108-19)
189
Nesse momento de profundo questionamento, o narrador questiona a relação entre
linguagem e tempo e como essa relação resultaria não em uma sentença, mas na
condensação do símbolo em uma única palavra:
141
“Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas
linguagens humanas não existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os
tigres que o geraram, os cervos e as tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a
terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra
enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um
modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou
blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma palavra
articulada por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros
dessa palavra, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as
ambiciosas e pobres palavras humanas, tudo, mundo, universo.” (BORGES, 1998, p. 665)
190
Que muera conmigo el misterio que está escrito en los tigres. Quien ha
entrevisto el universo, quien ha entrevisto los ardientes designios del
universo, no puede pensar en un hombre, en sus triviales dichas o
desventuras, aunque ese hombre sea él. Ese hombre ha sido él y ahora
no le importa. Qué le importa la suerte de aquel otro, qué le importa la
nación de aquel otro, si él, ahora es nadie. Por eso no pronuncio la
fórmula, por eso dejo que me olviden los días, acostado en la oscuridad.
(BORGES, 1984, p. 599)142
Importante notar que, depois de compreender tudo, depois de ter acesso ao divino,
o narrador permanece na escuridão. A escuridão de onde vê o mundo, mas também a
escuridão que o impede de conquistar o conhecimento de tudo – haja vista que, como foi
informado pelo narrador, caso proferisse as fórmulas em voz alta tudo se resolveria e
voltaria para luz. Além disso, a importância da fala para a realização do feitiço, marca o
contraste entre a tentativa de presentificar o que é dito ao mesmo tempo em que deixa na
invisibilidade o objeto verbal proclamado143.
Conforme Erick Felinto (2008), antes de ser um objeto temático, a cegueira é vista
de modo mais essencial em Borges. Segundo Felinto, Borges defende a impossibilidade
de uma compreensão racional da existência, de modo que nunca apreendemos
completamente o que se passa conosco porque a nossa percepção é, antes de tudo,
subjetiva – o que seria, para todos os efeitos, um eco de Kant em Borges:
142
“Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os
ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras,
mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte
daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não pronuncio a
fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão. (BORGES, 1998, P. 667)
143
Esse contraste foi observado por Derrida (1973) e retornarei a ele para desenvolver algumas questões
logo mais adiante.
191
Além disso, ainda consoante Felinto (2008, p.150), a referência à filosofia em
Borges se dá seguindo uma tradição mística mais do que pela filosofia tradicional. Com
isso, a trajetória literária de Borges se integra em uma tradição gnóstica – ou seja, uma
tradição que vê na individualidade/subjetividade a conquista do verdadeiro conhecimento
(op. cit., p. 27-29) – e promove um ponto de vista sobre o mito de Babel, que é um dos
temas mais recorrentes da história da linguagem e que suscita debates em diferentes áreas
por articular as três mortes essenciais apresentadas pela modernidade: a morte do sujeito,
a morte da linguagem e a morte de Deus (op. cit., p. 15). Para cada uma dessas mortes,
porém, a literatura moderna, além de decretá-las, também se insurge contra elas:
Conforme Felinto (2008), as obras de Borges são atravessadas por uma reflexão
sobre Babel que tem um eixo teórico orientado por dois movimentos conflitivos e
complementares sobre a natureza da linguagem. De um lado, acompanhamos um
movimento de expansão babélica da linguagem – que diz respeito tanto à multiplicação
das línguas quanto à reelaboração, por meio da produtividade linguística, de uma mesma
192
língua, como é o caso, por exemplo, de “Tlön” (op. cit., 161) –; de outro, acompanhamos
um movimento de condensação antibabélica da linguagem – nesse caso, a criação de
novos signos por meio de novas palavras não é mais central, mas sim os modos de arranjá-
los; com isso, “o problema da criatividade literária deixa de se mover em torno do
conceito de originalidade para converter-se no da entonação diferenciada de certas
metáforas” (op. cit., p. 156), como aparece de maneira expressa no texto “La metáfora”
e em “La escritura del Dios”.
A cegueira se coloca, então, como um problema para esses dois movimentos, pois
tanto a expansão quanto a condensação da linguagem dependem de um terreno a priori
instável, mutável e irrepresentável da linguagem e isso não é possível se considerarmos a
linguagem como algo preenchido apenas por uma luz transparente que enlaça o senciente
ao sentido. Essa instabilidade, para existir, deve ser a marca de um vacilo do sentido, que
seria como o elemento constitutivo da linguagem. E esse elemento, para Borges, estaria
justamente na ideia de cegueira.
Segundo Jacques Derrida (2012b), uma tendência se erigiu com a tradição greco-
romana ao ressaltar o papel da visão como elemento estruturante da organização do
pensamento. Em paralelo, assistiu-se, contrariamente ao senso comum, a assunção da
escrita fonética, devido ao papel da fala, como correlato desse processo. A um só tempo,
assim, os pensadores do Ocidente elegeram os olhos como metáforas privilegiadas do
saber e a fala como objeto central de interesse para o pensamento. É, assim, por exemplo,
que o projeto da metafísica – que é, segundo Derrida, o da determinação do ser pela
193
presença (DERRIDA, 1973, p. 122) –, pode ser representado como a tentativa de
aproximar e apresentar de maneira imediata o referente.
Para Derrida (2012b), esse movimento que elege a fala como elemento mais
autêntico para o saber é o mesmo que define o logos como o objeto do pensamento a ser
buscado. Com isso, o fonocentrismo da tradição do pensamento ocidental pode ser
descrito como uma especificação do logocentrismo, na medida em que o logos representa
a proporção do discurso e o conceito define a hegemonia desse modo de discurso frente
a outros (DERRIDA, 2012b, p. 77). Há, por isso, na tradição do Ocidente um paradoxo
aparente entre a valorização da fala, de um lado, que é cega, e da visão, de outro. Esse
paradoxo, contudo, não representa um quadro completo da situação.
194
O desenho, por exemplo, procura tornar visível o invisível e o que ele dá a ver é a própria
invisibilidade. Com isso, no movimento em que o desenhista inventa o desenho, ele não
antecipa nada e, devido a isso, cria um acontecimento – que é aquilo que vem sem
possibilidade de antecipação. Por não saber previamente, por não pré-ver, o que vem, o
desenhista cria a sua obra como se fosse um cego e, à medida em que ele traça o traço,
ele vê com o objetivo de perseguir o que vai ser gerado, mas que ele próprio ainda não
sabe exatamente. Desse modo, a experiência estruturalmente cega do desenho comporta,
paradoxalmente, uma vidência em meio à cegueira:
Em outro texto, “Pensar em não ver”, texto de uma conferência que proferiu na
Itália em 2002, Derrida (2012b) avança nessa discussão e defende que o próprio ver da
vista envolve um enceguecimento que é dado pelo ponto cego (blind spot), elemento
constitutivo da visão (DERRIDA, 2012b, p. 73-74). Com isso, a atitude de análise, que
195
demanda observação e um olhar dirigido, implica também uma aproximação radical entre
o pensar e a cegueira, haja vista que o pensar representa um ponto cego do próprio
pensamento, já que foge às conceituações que visam determiná-lo (p. 74).
Dentro desse ponto de vista, a suplementariedade dos sentidos esboça uma intensa
vicariedade entre as posições que os sentidos ocupam no processo de experimentação do
mundo e de análise/observação da realidade e as funções que, correspondentemente,
desempenham, pois o suplemento manifesta a perda da centralidade de um sentido sobre
o outro ao mesmo tempo em que produz um excesso de significação pela própria interação
que eles, necessariamente, estabelecem entre si.
196
antropologia, e que tem como elemento estruturante a centralidade da fala em detrimento
da escrita (DERRIDA, 1973, p. 127).
Para De Man (1983), Derrida esteve cego ao que o próprio texto de Rousseau
apresentou. O texto rousseauniano tomado para análise de Derrida é essencialmente
híbrido por trazer tanto uma reflexão filosófica quanto um modo retórico ficcional – como
é o caso de Essai sur l’origine des langues (op. cit., p. 110-111). Desse modo, ao analisar
as duas figuras retóricas, mimesis e metáfora, Derrida comete um equívoco. Para Derrida,
ainda consoante De Man (1983), o fato de Rousseau optar pela figura da mimesis no Essai
faz com que ele seja logocêntrico. Porém, o modelo de mimesis empregado por Derrida
é o do século XVIII, que não põe o estatuto ontológico da entidade imitada em questão
ao mesmo tempo em que procura presentificá-la (op. cit., p. 123-125). E presentificar,
nestes termos, significa seguir a metafísica da presença (op. cit., p. 125).
Contudo, segundo De Man (1983), Rousseau, em sua análise sobre a arte, revela
compreender o sentido não como plenitude e presença, como vê Derrida, mas sim como
vazio – pois, quando no Essai Rousseau afirma a prioridade da música sobre a pintura,
ele não o faz em termos substanciais, mas estruturais, haja vista que a música é
apresentada como vazia de substância, puro jogo de relações (op. cit., p. 127-128). Com
isso, ao invés de defender uma estrutura mimética para a música, o que Rousseau defende
é uma estrutura não mimética:
197
The successive structure of music is therefore the direct consequence of
its non-mimetic character. Music does not imitate, for its referent is the
negation of its very substance, the sound. Rousseau states this in a
remarkable sentence that Derrida does not quote: “It is one of the main
privileges of the musician to be able to paint things that are invisible.
An art that operates entirely by means of motion can accomplish the
amazing feat of conveying the very image of repose. Sleep, the quiet of
night, solitude and even silence can enter into the picture that music
paints…” The sentence starts off by reaffirming that music is capable
of imitating the most inward, invisible and inaudible of feelings; the use
of the pictorial vocabulary suggests that we have re-entered the
orthodoxy of eighteenth-century representational theory. But as the
enumeration proceeds, the content of the sentiment which, in Du Bos,
was rich in all the plenitude and interest of experience, is increasingly
hollowed out, emptied of all trace of substance. (op. cit., p. 130)144
144
“A estrutura sucessiva da música é, portanto, a consequência direta de seu caráter não mimético. A
música não imita, pois sua referência é a negação de sua própria substância: o som. Rousseau afirma isso
em uma frase notável que Derrida não cita: ‘É um dos principais privilégios do músico ser capaz de pintar
coisas que são invisíveis. Uma arte que opera inteiramente por meio do movimento pode realizar a incrível
façanha de transmitir a própria imagem de repouso. O sono, o silêncio da noite, a solidão e até o silêncio
podem entrar no quadro que a música pinta...’ A frase começa reafirmando que a música é capaz de imitar
o mais interior, invisível e inaudível dos sentimentos. O uso do vocabulário pictórico sugere que reentramos
na ortodoxia da teoria representacional do século XVIII. Porém, à medida que a enumeração prossegue, o
conteúdo do sentimento que, em Du Bos, era rico em toda sua plenitude e interesse da experiência, é cada
vez mais esvaziado, esvaziado de todos os traços de substância.” (op. cit., p. 130, tradução minha)
198
“literary,” in the full sense of the term, because of their blindness, not
in spite of it. In the more complicated case of the non-blinded author –
as we have claimed Rousseau to be – the system has to be triadic: the
blindness is transferred from the writer to his first readers, the
“traditional” disciples or commentators. These blinded first readers 145–
they could be replaced for the sake of exposition, by the fiction of a
naïve reader, though the tradition is likely to provide ample material –
then need, in turn, a critical reader who reverses the tradition and
momentarily takes us closer to the original insight. The existence of a
particularly rich aberrant tradition in the case of the writers who can
legitimately be called the most enlightened, is therefore no accident, but
a constitutive part of all literature, the basis, in fact, of literary history.
And since interpretation is nothing but the possibility of error, by
claiming that a certain degree of blindness is part of the specificity of
all literature we also reaffirm the absolute dependence of the
interpretation on the text and of the text on the interpretation. (DE
MAN, 1983 p. 141)146
Importa destacar nessa passagem que a cegueira identificada por De Man passa
da obra para a crítica porque as duas se constituem dentro do âmbito da linguagem
literária, pois, tanto para De Man (1983) quanto para Rousseau, não há diferenciação entre
a linguagem em geral e a linguagem literária, pois ambas, devido ao seu caráter sucessivo,
diacrônico, se apresentam como uma narrativa (op. cit., p. 131). Além disso, a cegueira
se apresenta como estrutural para a crítica, pois o discurso crítico possui uma discrepância
constitutiva entre os insights descobertos pela investigação e os métodos e conclusões
proferidos. Essa discrepância faz do crítico um vidente cego sobre o seu próprio texto,
145
Chama-se de blind Reading ou peer blind o leitor que não conhece a identidade do autor.
146
“A leitura crítica de Derrida da leitura crítica realizada por Rousseau mostra a cegueira como sendo a
correspondente necessária da natureza retórica da linguagem literária. Dentro da estrutura do sistema: texto-
leitor-crítico (no qual o crítico pode ser definido como o ‘segundo’ leitor ou ‘segunda’ leitura), o momento
da cegueira pode ser localizado de formas distintas. Se o próprio texto literário tem áreas de cegueira, o
sistema pode ser binário; leitor e crítico coincidem em sua tentativa de tornar visível o invisível. Nossa
leitura de alguns críticos literários, neste volume, é um caso especial, um pouco mais complexo desta
estrutura: os próprios textos literários são críticos, mas cegos, e a leitura crítica dos críticos tenta
desconstruir a cegueira. Já deveria estar claro que a ‘cegueira’ não implica nenhum juízo de valor literário:
Lukács, Blanchot, Poulet e Derrida podem ser chamados de ‘literários’, no sentido pleno da palavra, por
causa de sua cegueira, não apesar dela. No caso mais complicado do autor não ser cego – como afirmamos
ser o caso de Rousseau – o sistema tem que ser triádico: a cegueira é transferida do escritor para seus
primeiros leitores, os discípulos ou comentaristas ‘tradicionais’. Estes primeiros leitores cegos – eles
poderiam ser substituídos, para fins de exposição, pela ficção de um leitor ingênuo, embora a tradição
provavelmente forneça amplo material – então precisam, por sua vez, de um leitor crítico que reverta a
tradição e nos leve momentaneamente mais perto da percepção original. A existência de uma tradição
aberrante particularmente rica no caso dos escritores que podem legitimamente ser chamados de mais
esclarecidos, não é, portanto, um acidente, mas uma parte constitutiva de toda a literatura, a base, de fato,
da história literária. E como a interpretação nada mais é do que a possibilidade de erro, ao afirmar que um
certo grau de cegueira faz parte da especificidade de toda literatura, reafirmamos também a dependência
absoluta da interpretação do texto e do texto da interpretação.” (DE MAN, 1983 p. 141, tradução minha)
199
necessitando sempre de uma segunda, terceira, quarta leitura, por exemplo, sobre o seu
texto para iluminar esses pontos (op. cit., p. 110).
Com efeito, para além dessas questões apresentadas por De Man (1983), que são
questões, sobretudo, retóricas, Derrida (1973) constrói a sua argumentação por meio de
relações analógicas sem apresentar uma justificação interna bem desenvolvida – pois ele
passa do desenho para a escrita por meio da analogia com o traço e defende que o traço é
uma exterioridade. Porém, essa exterioridade para ele só pode ser pensada por meio da
linguagem – o que cria uma circularidade na sua argumentação, haja vista que o que usa
para argumentar é o mesmo que ele encontra em sua investigação: uma relação
metafórica. É claro, porém, que dado o objeto de estudo, não seria possível “sair” da
linguagem. Ainda assim, a indicação sobre o Fora da linguagem poderia – e acredito que
até deveria – ser indicada de outra forma.
Além disso, a cegueira é vista sempre por Derrida como um elemento retórico que
extravasa o padrão hegemônico do pensamento da modernidade – nisso, Derrida
repercute Borges – e trabalha como um visível do invisível que desorganiza as dicotomias
e a lógica binária. O que deixa sem sentido a pergunta, que para esta investigação é
decisiva, sobre qual a especificidade do escritor cego – já que todos seríamos, em algum
grau, cegos.
147
Estou seguindo a crítica que Lazzarato faz com relação ao pós-estruturalismo, sobre o modo como
autores pós-estruturais assumiram a linguagem em um lugar de transcendência. Cf. LAZZARATO,
Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades / Signs, machines, subjectivities. Edição bilíngue Português /
Inglês. São Paulo: Sesc São Paulo / n-1 edições, 2014.
200
6.4 A incomunidade dos escritores cegos
201
informe presente no seu dia a dia (BORGES, 1989, p. 276-277). Já ao escritor vidente,
por ter olhos, lhe é privada a escrita da imagem-palavra (a palavra-visão que se exprime
imediatamente para o cego) e só lhe resta a imagem mental, que lhe surge mediatamente
por meio da palavra148.
Nesse sentido, a cegueira não revela uma experiência que é comum entre todos os
escritores cegos, mas uma experiência diferente e diferencial entre eles. A singularidade
do escritor cego diz respeito ao aspecto que é próprio a cada escritor cego, mas, ao mesmo
tempo, é impróprio a ele, na medida em que ela não é uma característica comum a todos
os escritores cegos e, por não ser comum, não pode comparecer também como um
elemento presente em sua individualidade. Dessa forma, a cegueira do escritor cego opera
em um nível além do individual e aquém do coletivo.
148
Em ambos os casos, a criação artística se dá por meio das – ou entre as – imagens. Segundo Müller
(2022, p. 24-29), o artista/o escritor cria sempre a partir de uma imagem prévia, que surge na confluência
entre matéria e memória. E a obra, para além da imagem de superfície (seja ela visual ou metafórica) cria
uma “rede” de imagens que o receptor amplifica no ato da leitura (mas isso ocorre com mais intensidade
na imagem poética).
202
6.4.1 Problema metodológico: cegueira como singularidade
203
e Borges e reorganiza os elementos de suas obras não só entre as fases – visual e cega –,
mas intra – tomando a fase visual ou cega, isoladamente – e infra – fundo imanente a
cada fase – também.
METAGRAMMATICA [7216]
204
O poema está estruturado na forma do dissoneto mattosiano, com quatro quartetos.
A estrutura paralelística do dissoneto cria uma relação interna entre as estrofes, como
quando se tem um paralelismo sintático com a repetição de porções de texto, pois o relato
do eu lírico vai se acrescentando ao texto, como se fosse um desenvolvimento racional
do que é dito. Esse poema, porém, ao contrário de boa parte dos poemas mattosianos, não
se compõe como uma cena. O seu modo de dicção é outro149, pois o que ele procura é
fazer refletir sobre as próprias regras de sua poesia.
149
Retórico (no sentido de De Man) ou argumentativo (no sentido da teoria do discurso) ou discursivo (no
sentido de Benveniste, por oposição a história).
205
Esse elemento da negatividade, compreendido como mais decisivo do que a
contradição, parece ser o oposto do que defende Erick Felinto (2008), que afirma a
paradoxalidade como o elemento mais marcante da experiência da modernidade
(FELINTO, 2008, p. 16). Para ele, por isso, é o paradoxo, e não a negatividade, o
elemento central da literatura moderna e que está presente em diferentes autores,
incluindo, e de maneira especial, Borges, por meio da negação e afirmação simultâneas.
150
“O princípio espinosista é que a negação não é nada, porque jamais o que quer que seja chega a faltar a
algo. Negação é um ser de razão, ou melhor, de comparação, que resulta do fato de agruparmos todas as
espécies de seres distintos num conceito abstrato no intuito de os relacionar a um mesmo ideal fictício, em
nome do qual dizemos que uns ou outros faltam à perfeição desse ideal (carta XIX, para Blyenbergh).”
(DELEUZE, 2002, p. 98)
151
Na minha dissertação de mestrado, desenvolvi melhor essa tripla subversão na obra O poeta pornosiano.
Cf.: MARTINS, Baruc Carvalho. Pornopoiesis: o devir-corpo do mundo e o devir-mundo do corpo. Niterói,
2019. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Instituto de Letras. Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2019.
206
Depende um escriptor do seu leitor.
Testado está que em terra analphabeta
aquelle que sonnetta é bom poeta,
aqui ou no exterior, seja onde for.
207
esse giro, assim, Mattoso abre em seu poema a estrutura de um caleidoscópio152 – como
o caleidoscópio de perda e destruição do universo mítico (LÉVI-STRAUSS, 1989).
Porém, ao contrário do caleidoscópio borgiano, que nos leva mais e mais para dentro de
seus labirintos verbais, Mattoso nos leva para fora e nos expõe, junto com o poema, na
farsa de sua poesia.
152
Para uma discussão sobre a imagem do caleidoscópio em Mattoso ligada à relação entre leitura e escrita,
ver: SILVA, Susana Souto Silva. O caleidoscópio Glauco Mattoso. Maceió, 2008. Tese (Doutorado em
Letras e Lingüística: Estudos Literários) – Facultade de Letras. Universidade Federal de Alagoas, Maceió,
2008.
208
7. QUANDO A NOITE VEM: A CEGUEIRA COMO POSSIBILIDADE DE
ESCRITA
Ainda segundo Derrida (2012b), uma obra possui assinatura quando não está
limitada ao seu conteúdo semântico (idem). Com isso, ela se coloca do lado do
acontecimento e, sendo acontecimento, dispõe de uma dimensão não antecipável, que a
engendra de fora. Além disso, a assinatura prevê uma contra-assinatura, a qual nunca é
pessoal, mas pública, na medida em que requer um outrem, uma instituição para contra-
asssinar (op. cit., p.36-37) e essa assinatura acontece com o corpo daquele que contra-
assina também (op. cit., p. 32).
153
Penso na potência de escrita como uma potência da literatura, tal como a esboçada por Deleuze (1997).
209
é matéria plástica, preso em sua vicariedade essencial, e comunica sua relação com o
mundo extralinguístico nos seus próprios termos. Derrida (2012b) percebe no corpo –
ainda que seja um corpo especificamente literário, sem a presença do bíos, ao contrário
do que é defendido por Santiago (2020) como uma grafia-de-vida – que está presente na
obra de arte também essa qualidade de deslocamento. Para ele, o corpo do autor como
presença na obra “é uma experiência de enquadramentos, de deiscência, de
deslocamentos” (DERRIDA, 2012b, p. 31). Portanto, o próprio corpo do autor comporta
também essa discriminação entre uma zona de visibilidades e outra de invisibilidades.
No final dos anos 1990, já em sua fase cega, Mattoso publicou a trilogia
Centopéia: Sonetos Nojentos & Quejandos, Paulisséia Ilhada: Sonetos Tópicos e Geléia
de Rococó: Sonetos Barrocos, e, na sequência, nos anos 2000, publicou Panacéia:
Sonetos Colatarais. Em 2001, lançou, pelo selo independente Rotten Records, do qual é
também sócio, o álbum “Melopéia: sonetos musicados”, que trouxe versões próprias dos
sonetos desses quatro livros e contou com a participação de diferentes artistas do cenário
nacional. O álbum foi composto com abordagem experimental, antropofágica
(MATTOSO, 2022a, p. 111), trazendo uma variedade de estratégias sonoras para recriar
o choque entre a pureza da forma e a impureza do conteúdo.
Alguns desses sonetos foram releituras de poemas mais antigos de Glauco, como
é o caso de “Manifesto Obsoneto”, que aparece em 1981 no Jornal Dobrabil e que foi
depois musicado em uma interpretação de Alexandre Nero154:
154
Para ouvir a trilha: BRITO, Matheus de. Manifesto Obsoneto. YouTube, 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oVFJINfIjeI>. Acesso em: 10 de abr. 2022.
210
Figura 11. Poema “Manifesto obsoneto” presente no Jornal Dobrabil. #Paratodosverem: cópia fac-símile do Jornal
Dobrabil contendo o poema “Manifesto obsoneto”.
MANIFESTO OBSONETO
211
é pornografia tipo Adão & Eva:
essa nunca passa, por mais que se atreva,
do que o Adão dá e do que a Eva leva.
212
um “plágio inteligente” (BUTTERMAN, 2005, p. 133-134) em que repete e modifica
outros autores por meio de colagens:
155
“Em termos puramente estéticos, a escrita em colagem é uma estratégia que Mattoso usa
conscientemente para escapar dos confinamentos da estrutura, resultando em criações polissêmicas que
oferecem um jogo quase ilimitado de significantes e, consequentemente, uma infinidade de interpretações.”
(BUTTERMAN, 2005, p. 134, tradução minha)
156
“Escrita mimética” (BUTTERMAN, 2005, p. 135, tradução minha)
213
agudas dores causa a noite inteira.
O poema está escrito em quatro quartetos, mas que originalmente tinha a forma
de um soneto – com dois quartetos e dois tercetos. Essa técnica paralelística criada por
Mattoso, conhecida como dissoneto, atua como uma paródia formal do soneto. Com isso,
Mattoso recupera o soneto “Lágrima – Velho Tema” (LIMA, 1949, p. 14), do poeta
modernista Jorge de Lima, publicado originalmente em 1907, para subverter o seu
conteúdo ao focar não mais no interesse que a lágrima gera como imagem poética, mas
da sua condição física da cegueira – já que a lágrima, manifestação visível da dor, não
alivia o sentimento do eu dramático que é confrontado com a sua cegueira e com as
“agudas dores” que sofre constantemente. São, aliás, essas agudas dores que traçam uma
diagonal entre o texto literário e o autor – ainda que seja impossível de decidir se esse
autor é uma persona poética ou não.
SONETO PÓS-MODERNO
214
Concreto e verso livre contagia,
mas algo mais à frente aguarda estudo:
215
Ambos os sonetos, no nível temático, tratam do tema da originalidade literária e
ambos trazem uma estrutura composta por decassílabos, o estilo preferido de Glauco
devido à sonoridade157. Porém, a inclusão de dois versos no poema de 2022 muda a
estrutura do poema de 2000 ao incluir o resultado das suas experimentações não só no
conteúdo, ou seja, naquilo que é dito pelo poema, mas também em seu procedimento.
Nos dois primeiros quartetos dos dois primeiros poemas, a ironia mattosiana
corrói com a ideologia progressista que apresenta o novo como algo moralmente melhor
e que serviu, entre os modernos, para destacar o autor como alguém dotado de um poder
para criar ex nihilo a sua obra (Cinema Novo, Bossa Nova158, tudo / é novo nesta terra! A
velharia nos vem só do extrangeiro”). Essa ideologia progressista implica também a
adoção de um ordenamento temporal do mundo em uma estrutura teleológica (de início,
meio e fim).
157
Ver entrevista no apêndice da tese.
158
É preciso ressaltar que nesses exemplos o que se depreende é a necessidade socialmente vocalizada de
um apelo à novidade, ao novo. Isso não quer dizer que as obras do Cinema Novo ou da Bossa Nova não
tivessem consciência de estarem se apropriando de outros estilos e reproduzissem o chavão moderno do
progresso. Penso que a escolha por esses estilos foi proposital para marcar o papel de alienação que a
publicidade enseja, assim como acontece, por exemplo, com a venda de camisas de Che Guevara, um
revolucionário socialista, em lojas caras.
216
Figura 12. Poema “Brasil, país do futurismo”, publicado em 1977. #Paratodosverem: fac-símile do poema “Brasil,
país do futurismo”, de Glauco Mattoso.
uísque frenesi
prostitucional amante
incompassivamente
eu I
vinis fremente
peste queima
uma
preciosa análise constituinte
estou felicíssimo e contente
vou a nau
ou a vau pro carnaval
nunca vi coisa assim sensacional
este é um país que vai pra frente
inconstitucionalissimamente (MATTOSO, 2001a, p. 18)
217
Já nas duas estrofes seguintes de “Soneto pós-moderno”, o autor traz uma
mudança no tratamento do problema da originalidade com o retorno do soneto pelo eu
dramático. Transformado em dissoneto, o segundo poema abre o primeiro, inquirindo sua
estrutura ao mesmo tempo em que a realiza, pois o dissoneto é o soneto tornado paródia
de si mesmo. Além disso, a inclusão do verso “que em reestrophações não vê defeito”
exprime no segundo o que já estava, ainda que de maneira virtual, latente no primeiro: a
possibilidade de escrever sonetos “liberto das amarras do conceito / e sem as igrejinhas
como escolta”.
O que pode apontar para a própria qualidade do soneto em ser um tipo de poema
que conjura, conforme João Adolfo Hansen (2017, p. 172), a ideia de originalidade ao
dispor, conscientemente ou não, o trabalho de escrita sobre uma tradição que lhe é
imanente e fartamente conhecida. Já na última estrofe, ao acrescentar o verso “e nem aos
marginaes causa revolta”, por um lado, o eu dramático reflete sobre a recepção de sua
obra, deixando no ar se isso se dá na recepção atual que se faz de seus poemas ou se isso
já se dava à época da escrita do primeiro poema; por outro, aponta para a criação de outros
nomes da poesia que aparecem na virada dos anos 1980, como Paulo Henriques Britto,
Tite de Lemos e outros poetas que retomaram o soneto e as formas ditas “clássicas”159.
159
Viviana Bosi (2011), em sua análise da poesia a partir dos anos 1970, percebe a confluência de uma
miríade de temas e de propostas estéticas, entre elas, o retorno lúdico às formas tradicionais de literatura,
como o soneto (BOSI, 2011, p. 143).
218
SONETO SONORO
219
poupando-me de dores e desgraças!
Não sei si és linda, pallida, marron.
Não penso em estaturas, pesos, raças.
Só penso em tua voz, calor tão bom! (MATTOSO, 2022a, p. 51)
Com efeito, o poema também faz menção a um “ouvido cego”, que a tudo observa.
Esse ouvido cego apresenta a ideia da escuta como um olhar. Essa ideia já foi esboçada
também por Derrida com relação ao ato de leitura (DERRIDA, 2010, p. 10), mas, na
máquina de escrita mattosiana, essa ideia recebe o incremento de uma figura perversa,
haja vista que o interesse pela abjeção se imiscui na relação entre os sentidos.
160
Ver entrevista no final da tese.
220
mote glosado, romance lírico161 etc. Porém, em todos esses casos, a abjeção mostra um
vínculo com a cegueira por meio da obscenidade – literalmente, traz o interdito, o que
deveria estar fora da cena, portanto, o que deveria permanecer cego ao conhecimento,
para dentro do espaço literário.
Muito embora o madrigal, conforme Orlando Genó (1999) e Olavo Bilac &
Guimaraens Passos (1905, p. 127), não tenha uma estrutura métrica bem definida, ele
pode ser composto por versos de 7 – redondilha maior –, 10 ou 6 sílabas poéticas
entremeadas, e ter uma quantidade curta de versos em que o eu lírico manifesta “um
pensamento espirituoso e elegante, um galanteio, um elogio discreto ou uma discreta
confissão de amor. Concisão, graça e delicadeza, – são as suas qualidades essenciaes.”
(BILAC; GUIMARAENS, 1905, p. 126-127). Além disso, o madrigal realiza um “jogo
conceitual” por meio do qual utiliza as palavras para esconder um sentimento intenso
(GENÓ, 1999, p. 102).
161
Como é o caso de Raymundo Curupyra, o Caypora (2022b), um romance escrito em versos.
221
Dessa forma, o eu dramático de “Madrigal interformal” transforma o tipo lírico
em tema do poema e perverte a técnica de versificação não só ao inverter a ordem dos
versos (“duma oitava, appenas passo/ o disticho final para o começo”) que deveriam
obedecer a uma regra fixa – mesmo no caso da estrutura ser plástica –, mas também ao
colocar como traço definidor do bom poeta permanecer, já que é cego, como um bom
palhaço. Nesse caso, a cegueira não é indicada no texto como um tropo retórico que
beneficia a escrita – como é o caso de Borges –, mas como condição física que, ao
confirmar o espaço de desigualdade social entre o autor cego e o leitor vidente, faz o
segundo se regozijar da dor do primeiro e, nessa mesma medida, gera um gozo no cego
devido ao aspecto masoquista que atravessa não só os personagens, mas também o
protocolo de leitura literária que é estabelecido entre autor, leitor e obra.
Em sua fase cega, também Borges, que já tinha a prática de reeditar os seus livros
após a publicação, num trabalho de reescrita de seus textos – como é o caso de Fervor de
Buenos Aires162 e de Luna De Enfrente163, entre outros – ou de outros autores – como a
reescrita de Dom Quixote em Pierre Menard –, operou a releitura, mas sem se configurar
como uma palinódia, em duas versões de um poema que compartilha entre eles apenas o
mesmo título: “On his blindness”. Como sugere o título, ambos os poemas tratam da
condição da cegueira do escritor, mas com significativas diferenças, sobretudo, quanto ao
foco dado para a literatura, de um lado, e para a condição física do autor, de outro.
ON HIS BLINDNESS
162
Já cego, escreveu no prólogo do libro: “No he reescrito el libro. He mitigado sus excesos barrocos, he
limado asperezas, he tachado sensiblerías y vaguedades y, en el decurso de esta labor a veces grata y otras
veces incómoda, he sentido que aquel muchacho que en 1923 lo escribió ya era esencialmente – ¿qué
significa esencialmente? – el señor que ahora se resigna o corrige.” (BORGES, 1984, p. 13)
163
No prólogo: “Poco he modificado este libro. Ahora, ya no es mío.” (BORGES, 1984, p. 55)
222
Indigno de los astros y del ave
Que surca el hondo azul, ahora secreto,
De esas líneas que son el alfabeto
Que ordenan otros y del mármol grave
Cuyo dintel mis ya gastados ojos
Pierden en su penumbra, de las rosas
Invisibles y de las silenciosas
Multitudes de oros y de rojos
Soy, pero no de las Mil Noches y una
Que abren mares y auroras en mi sombra
Ni de Walt Whitman, ese Adán que nombra
Las criaturas que son bajo la luna,
Ni de los blancos dones del olvido
Ni del amor que espero y que no pido. (BORGES, 1984, p. 1099)164
164
“ON HIS BLINDNESS
223
devido à construção extremamente metafórica, o efeito é o de uma criação estritamente
literária.
Empiezo por divisar una forma, una suerte de isla remota, que será
después un relato o una poesía. Veo el fin y veo el principio, no lo que
se halla entre los dos. Esto gradualmente me es revelado, cuando los
astros o el azar son propicios. Más de una vez tengo que desandar el
camino por la zona de sombra. Trato de intervenir lo menos posible en
la evolución de la obra. No quiero que la tuerzan mis opiniones, que
son lo más baladí que tenemos. El concepto de arte comprometido es
una ingenuidad, porque nadie sabe del todo lo que ejecuta. Un
escriptor admitió Kipling, puede concebir una fábula, pero no penetrar
su moraleja. Debe ser leal a su imaginación, y no a las meras
circunstancias efímeras de una supuesta “realidad”. (BORGES, 1989,
p. 77, grifo meu)165
Já a segunda versão foi publicada em 1985, no livro Los Conjurados, um ano antes
de sua morte:
ON HIS BLINDNESS
165
“Começo por divisar uma forma, uma espécie de ilha remota, que depois será um relato ou um poema.
Vejo o fim e vejo o princípio, não o que se encontra entre os dois. Isto gradualmente me é revelado, quando
os astros ou o acaso são propícios. Mais de uma vez tenho de voltar sobre meus passos pela zona de
sombra. Tento intervir o menos possível na evolução da obra. Não quero que seja torcida por minhas
opiniões, que são o que temos de mais frívolo. O conceito de arte engajada é uma ingenuidade, porque
ninguém sabe exatamente o que executa. Um escritor, admitiu Kipling, pode conceber uma fábula, mas
não penetrar sua moral. Deve ser leal a sua imaginação, e não às meras circunstâncias efêmeras de uma
suposta ‘realidade’.” (BORGES, 2000b, p. 89)
224
de luz dudosa y fiel que no declina
y que acecha en el alba. Yo querría
ver una cara alguna vez. Ignoro
la inexplorada enciclopedia, el goce
de libros que mi mano reconoce,
las altas aves y las lunas de oro.
A los otros les queda el universo;
a mi penumbra, el hábito del verso. (BORGES, 1989, p. 480)166
Nessa segunda versão, o eu lírico reflete sobre a sua condição física e revela que
o platonismo (“que reduce las cosas a una cosa/ sin forma ni color”) não é um objetivo
ou realidade literária, mas um problema que o atormenta. Dessa forma, a ideia da cegueira
como uma limitação vantajosa, que é apresentada na conferência “La ceguera” ou que é
esboçada em Historia de la noche e em Elogio de la sombra, é substituída por uma
melancolia que o poeta cultiva em relação aos normovisuais, para os quais “les queda el
universo”. Com isso, esse resto que fica para o eu lírico assume a forma de uma resignação
em que ele tem de cumprir o que pode, porque é o que restou para ele: a atividade de
versificação, o ofício próprio do poeta.
166
“ON HIS BLINDNESS
225
mobilizadas são todas construções positivas (“La vasta noche elemental y el día/ lleno de
gente son esa neblina/ de luz dudosa y fiel que no declina/ y que acecha en el alba”).
Desse modo, entre ambos os livros surge uma continuidade entre a identidade do
estilo e a mesma grafia-de-vida (SANTIAGO, 2020, p. 18). Para Santiago, essa
continuidade marca também uma diferença, afinal, os livros não foram escritos, de fato,
pela mesma pessoa. Porém, em outro sentido, eles os são. E isso se dá pela participação
do corpo do próprio Graciliano na obra. No livro hospedeiro, ou seja, em Memórias, o
corpo se torna tematizado, já em Em Liberdade, no livro hóspede, ele invade a
composição e se torna presente.
226
Deshumanismo em dissonetto, de Glauco Mattoso, e em “El cautivo”, presente no livro
El hacedor, de Jorge Luis Borges (BORGES, 1984, p. 788).
167
Ver a entrevista no apêndice.
228
outro, ad infinitum. Por isso mesmo, Silviano Santiago escapou das
armadilhas que temia: o de fazer um romance-documentário dos anos
de ditadura. (MÜLLER, 2022, p. 173)
A referência ao mise em abîme, que indica a ocorrência de uma teia narrativa que
se estrutura numa circularidade aberta com outras, talvez pudesse ser pensada, a partir do
poema de Glauco, como uma ocorrência que excede o textual, no sentido de que uma
narrativa, apesar de pressupor uma sequencialidade típica da linguagem e a presença de
palavra, requer um contato com a vida, naquilo que ela tem de irredutível. Essa relação
entre narrativa e vida foi apresentada por Walter Benjamin (1987), no célebre ensaio “O
narrador”. Cumpre destacar nesse ensaio a relação entre narrativa e experiência viva, em
que o contador da história, nos termos de Benjamin, se envolvia no relato contado de
maneira orgânica, e não meramente textual.
168
“o índio não podia viver entre paredes e um dia foi em busca de seu deserto.” (BORGES, 2000a, p. 185)
229
Então, a humanidade do narrador poderia corresponder também a uma
desumanidade, na medida em que o garoto ao voltar à casa, já não sabia mais a sua língua
e tudo só se revelou para ele como uma experiência de estranhamento. No momento em
que reconhece o lugar, o narrador faz questão de frisar a confluência entre a temporalidade
da lembrança (passado) e a temporalidade do reencontro (presente). Talvez nesse
movimento de reencontro, o que se passou não foi de fato um reconhecimento, pois, se
as duas temporalidades habitaram o mesmo espaço, ele não deixou de ser índio ao mesmo
tempo em que se redescobriu familiar. Além disso, esse encontro com seu passado-
presente se deu não pela linguagem – já que não conhecia mais a língua de seus pais –,
mas por meio do contato direto com objetos do espaço da casa.
ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM
230
pájaros (digamos) y más de uno, pero no vi nueve, ocho, siete,
seis, cinco, cuatro, tres o dos pájaros. Vi un número entre diez y
uno, que no es nueve, ocho, siete, seis, cinco, etcétera. Ese
número entero es inconcebible; ergo, Dios Existe. (BORGES,
1984, p. 787)169
O cativeiro de “O cativo”, que virá logo a seguir, é antecipado e preparado pelo
cativeiro do narrador de “Argumentum ornithologicum”, que vê uma pequena quantidade
de pássaros um número inexplicável. Isso que não pode ser descrito pelo narrador é a
imagem-visão, propriamente literária, que só o narrador consegue enxergar e que só foi
possível ao fazer avançar o visível até a sua dimensão imaginativa. A leveza e liberdade
dos pássaros contrasta com a clausura dos olhos fechados e, precisamente, por esse
paradoxo é que foi possível ver. Com isso, numa tentativa setecentista de provar a
existência de Deus, o narrador borgiano recorre não ao argumento ontológico, mas ao
argumento ornitológico, que se dedica a afirmar os modos de distinção das aves, para
provar a existência d’Ele.
169
“ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM
Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos
pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se
Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é
indefinido, porque ninguém conseguiu fazer a conta. Neste caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e
mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez
e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etcétera. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus
existe.” (BORGES, 2000a, p. 184)
231
a realidade objetiva da ideia de Deus. Desse modo, o que Descarte percebe como
problema é que a ideia de infinito, que é requerida pela ideia de Deus, não pode ser
derivada do eu, já que este é finito. Com isso, Descartes altera a ordem que havia
dominado a filosofia até então, ao colocar o infinito como anterior ao finito, permitindo
um acesso direto a ele (JESUS, 1998, p. 349; KOYRÉ, 2006, p. VII).
Nesse sentido, essa conclusão a que chega Descartes se realiza por um voltar-se a
si. Uma descoberta, a um só tempo, da subjetividade moderna via interioridade e de uma
reflexividade que tem na solidão a forma privilegiada para experiência de uma prática
filosófica. Destarte, na segunda prova, conforme Luciano Marques de Jesus (1998), Deus
não é considerado simplesmente o autor de Sua ideia presente no eu, mas o criador do
próprio eu (JESUS, 1998, p. 353). Como resultado, é o próprio eu que é a ideia de Deus
(op. cit., p. 355).
Além disso, nessa segunda prova, Descartes também prova a existência do mundo
externo (argumento cosmológico), partindo da existência do eu para chegar à conclusão
sobre a existência de Deus (op. cit., p. 356), e, na terceira prova, Descartes prova a
existência de Deus partindo de Sua essência (op. cit., p. 358). Assim, a relação ideia de
Deus/existência de Deus/essência de Deus constitui uma série real que divide, de um lado,
o espaço interno infinito da interioridade – que é acessado por meio da reflexão – e, de
outro, o espaço externo infinito das grandezas que se localizam ou podem ser localizadas
nesse espaço exterior.
Com isso, Deus se apresenta como elemento comum que reúne interioridade e
exterioridade, podendo somente ser concebido, muito embora jamais compreendido, por
meio de uma prática solitária que defende o aperfeiçoamento da razão com o objetivo de
promover uma revisão não só da cultura, mas também das formas de aquisição do saber,
com o intuito de suprir a deficiência natural da razão humana (SILVA, 1983, p. 135-136).
Por isso, quando analisamos essa dimensão do infinito na obra de Borges, que
defende a existência de Deus por meio de uma visão-paradoxo, o narrador de
“Argumentum ornithologicum” parece procurar salvar a si mesmo, já que encontra no
cativeiro, na forma-prisão do cego, algo tão sublime quanto a existência de Deus – que
excede por dentro e por fora as tentativas de uma totalização racional não só da
observação, mas também da própria experiência.
232
Detalhe não menos importante diz respeito à figura encontrada pelo narrador ao
fim de sua investigação. Ela não representa uma palavra ou uma coisa, mas um número –
a classe de objetos que não tem materialidade por excelência e que busca funcionar como
um suplemento para algo que sempre se furta a ela. Além disso, essa classe sofre, desde
o princípio, com uma disputa sobre a sua própria ontologia, como ocorre entre
nominalistas – que não acreditam na existência de uma coisa chamada “número” – e
platonistas – que defendem a sua existência.
233
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No entanto, para um escritor cego, como vimos durante essa tese, esse contato não
se dá com o papel físico, mas com o mental. A mudança de aspecto altera o nível de foco
e concentração. Não há como voltar para olhar para um papel que não existe e ver onde,
em qual linha, paramos. A cegueira opera, por isso, uma necessidade de readequação
biofísica dos sentidos para preparar o corpo do vivente a essa nova realidade. Desse modo,
os cegos passam a perceber de maneira diferente, sentir de maneira diferente, pensar de
maneira diferente. Essa diferença diz respeito às próprias estruturas perceptivas, ao modo
como elas se arranjam em nosso esquema individual.
Sem o aporte dos olhos, a nossa estrutura sensível precisa reelaborar os dados que
recebem do ambiente externo com o objetivo de preencher esse espaço que era dado pela
visão. Surgem, assim, as imagens táteis, auditivas, olfativas etc. – que já existiam antes,
mas que recebem um foco e intensidade muito maior com a cegueira, sobretudo com
quem se tornou cego.
Nesse sentido, essa limitação física não deixa de ser compreendida pelos escritores
cegos que analisei como uma limitação física, mas, ao tomar consciência dela, eles podem
desenvolver estratégias de escrita que sejam possíveis de acordo com a sua nova
condição. Na trajetória de Glauco Mattoso e de Jorge Luis Borges, essas estratégias
corresponderam, por um lado, à reelaboração da memória, da estrutura da experiência e
do sistema perceptivo, e, por outro, à canalização de um desejo para continuar movendo
o projeto de escrita de cada um.
234
No caso de Borges, esse desejo mobilizador é dado por sua vontade de escrita,
com o intuito de ir sempre mais fundo nas possibilidades da ficção170; já com relação a
Mattoso, esse desejo mobilizador é dado pelo delírio da escrita, com o intuito de seguir
um fluxo desejante que extravasa o texto por todos os lados. Consequentemente, ambos
fazem da cegueira o objeto e terreno sobre o qual se assenta as suas obras – mesmo no
caso das obras dos períodos videntes de cada um –; porém, talvez até por conta disso, o
projeto estético de cada um é diametralmente oposto ao do outro.
Com isso, a abjeção e negatividade de Mattoso, que é retratada por temas baixos
e pela posição de subalternidade, é contrastada pela especulação, positividade e
tratamento de elevados temas e motivos literários trabalhados por Borges. Nesse
contexto, a cegueira, assumida como uma perspectiva, encontra entre um projeto literário
e outro a incomensurabilidade da vida, num jogo de espelhos que apresenta o
caleidoscópio por inteiro: como um conjunto de imagens diferentes e divergentes,
ecoando o estilo (im)próprio de cada autor.
170
Cf. MÜLLER, Adalberto. Orson Welles: banda de um homem só. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
235
Essa lógica trabalha um pouco à maneira do caleidoscópio, instrumento
que também contém sobras e pedaços por meio dos quais se realizam
arranjos estruturais. Os fragmentos são obtidos num processo de quebra
e destruição, em si mesmo contingente, mas sob a condição de que seus
produtos ofereçam entre si certas homologias: de tamanho, de
vivacidade de cor, de transparência. Eles não tem mais um ser próprio
em relação aos objetos manufaturados que falavam uma “linguagem”
da qual se tornaram os restos indefiníveis; mas, sob um outro aspecto,
devem tê-lo suficientemente para participar de maneira útil da formação
de um ser de tipo novo: este consiste em arranjos nos quais, por um jogo
de espelhos, os reflexos equivalem a objetos, vale dizer, nos quais
signos assumem o lugar de coisas significadas; esses arranjos atualizam
possibilidades cujo número, mesmo bastante elevado, não é todavia
ilimitado, pois que é função de disposições e equilíbrios realizáveis
entre corpos cujo número é por sua vez finito; enfim e sobretudo, esses
arranjos engendrados pelo encontro de fatos contingentes (o giro do
instrumento pelo observador) e de uma lei (a que preside a construção
do caleidoscópio, que corresponde ao elemento invariante dos limites
de que falávamos há pouco) projetam modelos de inteligibilidade de
algum modo provisórios, pois que cada arranjo se exprime sob a forma
de relações rigorosas entre as suas partes e essas relações têm como
conteúdo apenas o próprio arranjo, ao qual, na experiência do
observador, não corresponde nenhum objeto (se bem que seja possível
que, por esse viés, determinadas estruturas objetivas sejam reveladas
antes de seu suporte empírico, ao observador que jamais as tenha visto
antes, como por exemplo certos tipos de radiolárias e diatoméias).
(LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 52-53)
Como um resto, a cegueira expressa o que sobra de e em cada um: a relação com
a vida, a dimensão ética que ela engaja com relação aos outros – os infinitos outros
presentes e requeridos pela obra –, o silêncio da visão e o invisível da palavra. Ou seja, a
cegueira apresenta aquilo que não pode ser expresso nem compreendido, como a radical
diferença que invade o comum e o ordinário e que é tão fundamental para qualquer projeto
literário.
De uma perspectiva literária, por isso, a cegueira sempre acresce à obra o que,
aparentemente, falta, mas esse acréscimo não é uma coisa, pois em Borges e Mattoso esse
acréscimo indica o vazio, o excesso, o desejo. Com isso, a obra nunca fica completa, mas
236
está sempre por acabar, como a longa tradição dos imortais apresentados por Borges ou
como a profusão de cenas sadomasoquistas em Mattoso ou, ainda, como a própria
literatura.
237
9. REFERÊNCIAS
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253
10. APÊNDICE
A entrevista abaixo foi realizada por e-mail em agosto de 2022. O próprio Glauco
respondeu o e-mail com as respostas já escritas no dia 2 de agosto, sem precisar de
transcrição. Como o apreço pela grafia é um dos elementos de sua poética, não fiz
nenhuma edição em seu texto, nem mesmo reduzi as respostas.
#Paratodosverem: Glauco Mattoso, de olhos fechados, recosta o queixo no "Diccionario Contemporaneo da Lingua
Portugueza", do gramático português Caldas Aulete.
254
trabalhando essa espacialização de algum modo diferente na sua fase cega ou
você abdicou disso?
GM - Na verdade, a censura funccionava mais nas emissoras de radio e TV, nas redacções
e nas editoras commerciaes. Jornaes como o ESTADÃO, JORNAL DA TARDE ou
TRIBUNA DA IMPRENSA chegavam a ter um censor na propria redacção, prohibindo
materias que ja estavam diagrammadas e que eram, na ultima hora, substituidas por
trechos dos LUSIADAS, receitas de culinaria ou simplesmente por janellas em branco.
Cheguei a colaborar no SUPPLEMENTO DA TRIBUNA no tempo em que morei no Rio,
e constatei que as janellas em branco eram mais eloquentes, em termos de protesto contra
a dictadura, que as proprias materias censuradas. No JORNAL DOBRABIL não havia
censura nem autocensura, pois o pamphleto circulava por correspondencia, remettido a
poucos intellectuaes e artistas. Claro que corri o risco de que o poezine fosse parar na
mão de algum cagueta, mas nunca fui chamado a depor na PF, como occorreu com os
editores do tabloide LAMPEÃO DA EXQUINA, no qual tambem collaborei. Mas minha
subversão extrapolou o scenario politico e transgrediu, mais que a auctoridade, a auctoria,
pois anarchizei as noções de originalidade, plagio, apocrypho, parodia e pastiche, numa
estrategia de coprophagia da anthropophagia oswaldiana que ja explicitei alhures.
255
3. Como foi a sua transição para a sua fase cega? O que você teve que reelaborar
em termos de produção artística para poder continuar publicando?
GM - Foi uma transição muito traumatica e dolorosa, pois eu, embora deficiente
progressivo, estava accostumado às artes visuaes (alem da pagina impressa, as
illustrações, photos, desenhos, cartuns, quadrinhos), lembrando que tambem collaborei
em gibis e zines, em revistas pornographicas e na grande imprensa. A perda total da visão
me fez pensar em parar de vez com a creação litteraria e, durante alguns annos, dediquei-
me appenas à producção musical, editando (com meu socio Portuguez, batterista da banda
punk Garotos Podres) CDs de rock independente pelo sello Rotten Records. Depois de
participar da traducção da obra completa de Borges (premiada com um Jaboty) foi que
adquiri meu primeiro computador fallante e descobri que poderia retomar a carreira
poetica, desde que adoptasse uma esthetica differente das vanguardas mais radicaes. A
solução foi practicar o experimentalismo "por dentro" do poema, entre a thematica e a
forma fixa, em vez de anarchizar "por fora", isto é, no contexto da pagina impressa,
illustrada ou diagrammada. O sonnetto, claro, foi a formula que priorizei, mas varias
outras foram empregadas e até "inventadas", como o dissonnetto, o limeirique
reformatado, o madrigal glosado ou o infinitilho.
GM - Foi maior a importancia da figura de Borges que da propria obra. Embora a obra
inaugural tenha, comparativamente, a mesma importancia de PAULICÉA
DESVAIRADA do Mario, Borges me marcou mais pelas inevitáveis comparações
biographicas que pela maravilhosa bibliographia, pois me identifico tambem com outros
cegos e glaucomatosos, como Milton, Adheraldo ou Joyce. Borges, como esses auctores,
foi fundamental na minha comprehensão da cegueira como questão philosophica, ou seja,
não como essencia humana, mas deshumana e, portanto, excepcional, singular, pessoal,
emfim, exsistencialista. Em certa medida, endosso estas palavras attribuidas a Borges
num texto do meu blog commentado mais addeante:
256
{Um escriptor, um artista ou qualquer pessoa deveria ver nas coisas que lhe succedem
uma como ferramenta, deveria pensar que tudo lhe é dado com alguma finalidade. O que
lhe accontesce, inclusive as humilhações, fracassos, desgraças, é-lhe dado como uma
argilla, como materia para sua arte. É preciso tentar beneficiar-se disso. Taes coisas nos
foram destinadas para as transformarmos, a fim de que, a partir das circumstancias
dolorosas de nossas vidas, possamos fazer algo de eterno ou que adspire a sel-o. Si um
cego pensar dessa maneira, estará salvo. A cegueira é uma dadiva.}
6. Como foi o seu processo de cegueira? Você tem algum grau de visão ainda ou
perdeu completamente a visão dos dois olhos?
GM - A cegueira progressiva foi lenta e gradual (costumo brincar que foi lenta e gradual
como a nossa redemocratização septentista), não como o glaucoma de Ray Charles, que
perdeu tudo ainda creança, mas, ao longo de varias cirurgias, consegui addiar a perda do
residuo no olho esquerdo, ja que o direito pifou aos vinte e o esquerdo aos quarenta.
Depois disso, a deficiencia era tal que tive de me apposentar por invalidez e, aos quarenta
e quattro, ja não via mais nada, siquer focos de luz. O glaucoma congenito, como no caso
de Dudu Braga (filho de Roberto Carlos, recentemente fallescido) não depende de
recursos financeiros nem medicinaes, pois fui operado por grandes ophthalmologistas,
como Hilton Rocha, nos septenta, e até no hospital Albert Einstein, da ultima vez, nos
noventa, e mesmo assim ninguem consegue deter essa cegueira.
7. Como se deu a sua relação com as cores em seu processo de cegueira? Você
foi perdendo alguma cor específica?
257
GM - Sim, perdi primeiro as nuances do vermelho, que se tornou cinza. Os demais
matizes foram desmaiando mais devagar. O amarello e, por fim, o branco leitoso foram
as ultimas percepções, lembrando que, nos sonhos e na memoria, todas as cores se
manteem nitidas e vivas. A proposito, transcrevo um trecho do ensaio que fiz para
contraponctear uma palestra de Borges, cuja integra pode ser conferida no meu
BLOGOCULAR:
https://blogocular.wordpress.com/2022/08/02/a-negacao-do-negro-borges-e-eu/
{Em 1973, quando ingressei no curso de lettras vernaculas da USP, já estava cego do olho
direito, que não resistira à cirurgia feita no anno anterior para tentar deter o advanço do
glaucoma. Ainda enxergava do esquerdo, porem à custa duns oculos fundo-de-garrafa
que me corrigiam a crescente myopia. Do olho perdido a lembrança mais nitida era a bolla
de luz em que se transformava um simples poncto luminoso, desfocado pelo effeito
myope. Quando a luz era vermelha, a cor desmaiara progressivamente até converter-se
em branco. Quando o vermelho coloria um objecto opaco, sem brilho, era percebido como
um cinza escuro. O vermelho e o verde foram as primeiras cores desapparescidas, mas o
verde, tambem desbotado para o cinzento, não me causava tanta sensação de ausencia
quanto a falta do vermelho. Duas decadas depois, a mesma descoloração se repetiria na
retina do olho esquerdo, prefigurando a cegueira imminente. Ironicamente, emquanto eu
perdia o vermelho de vista, a vista ganhava um tom advermelhado em seu adspecto
exterior, devido à hemorrhagia interna. Não por acaso dei às tonalidades rubras a mesma
emphase com que Borges decantava o escarlate.}
GM - Não creio que algo possa nem deva ser appagado da memoria, seja facto ou thema
bom ou mau, desfructado ou soffrido. Do contrario eu teria que ser adepto, conforme um
de meus auctores predilectos, duma postverdade ou dum duplipensar, tendo que
reescrever a historia de tempos em tempos. Não. Inclusive por uma questão neurologica,
psychica, tenho que manter as connexões cerebraes bem activas, para compensar a falta
do estimulo visual, da leitura, das imagens na tela, para não ficar esclerosado antes do
258
tempo. (rindo) O que pode occorrer é o seguinte: ao contrario do que pensam alguns, não
batto sempre na mesma tecla (excepto quando usava a lettra "o" minuscula para compor
os graphismos no DOBRABIL) e não thematizo appenas as maldades, fealdades e
sujidades que mais chamam a attenção dos observadores, pois, por traz duma scena pornô
ou escatologica, sempre alguma questão psychologica, social, politica, economica ou
ecologica está sendo posta em debatte. Embora alguns adspectos sejam mais recorrentes
que outros, todos podem ser temporariamente preteridos, mas accabam por retornar à
pauta lyrica, caso, por exemplo, das reminiscencias infantojuvenis ou das conjecturas
philosophicas ou religiosas.
GM - Sim, sem duvida. É como occorre com o perfil ideologico dum militante de qualquer
causa: uma questão de coherencia entre theoria e practica, entre attitude e preferencia. Si
sou adepto da democracia, não a defendo só porque seja ethicamente mais correcta, mas
tambem porque me dá mais liberdade de excolher o que prefiro ler, assistir, vestir, comer
ou desejar eroticamente. Em summa: mesmo sendo contradictorio, como todo mundo
eventualmente pode ser, me engajo de corpo e alma, coração e mente, naquillo em que
accredito, ou seja, a construção exsistencialista dum “eu biográfico” que seja, ao mesmo
tempo, cumpridor duma "missão" espiritual, tal como no kardecismo, e coadjuvante numa
collectividade pluralista e diversificada, digna de representatividade no plano social e
politico. Dentro desse contexto, reconhesço a necessidade duma norma official que seja
adoptada na alphabetização e nos curriculos escholares, mas tambem defendo a liberdade
do escriptor que adopte, como Belli, Pessoa ou Lobato, sua propria norma orthographica,
pois uma coisa não exclue a outra.
10. Como você trabalha a questão das imagens em seus poemas? Você acha que
a cegueira interferiu na produção delas? Se sim, de que modo?
259
risco de inexactidão ou impropriedade. Si necessario, recorro à audiodescripção de
alguem para formatar na mente uma scena de filme, de reportagem, de gravação via
cellular ou registrada por photo ou illustração artistica. Em termos creativos, portanto, a
cegueira nada altera. Só altera no dia a dia, quando fico dependente da adjuda ou da
vontade dos outros e perco minha autonomia.
11. Seus textos poéticos trabalham, em geral, com formas fixas de poemas. Porém,
dada essa limitação, você diversifica e experimenta as formas, criando um
processo de combinação formal praticamente infinito. Quais critérios você
usa no seu processo de experimentação?
12. Como você pensa o ritmo no processo de produção dos poemas? Você usa, por
exemplo, apenas as sonoridades das palavras ou busca a construção de
alguma imagem por meio do som?
GM - No decasyllabo heroico, por exemplo, verso que practico com maior frequencia, o
rhythmo está bem definido pela tonicidade na segunda, sexta e decima syllabas. Mesmo
antes da cegueira, eu ja metrificava com os dedos duma mão, battidos em sequencia como
si tamborilassem na mesa, marcando o compasso dum samba, zidum, ziriguidum,
ziriguidum, onde o som de "dum" coincide com o accento tonico. Quando, na hora de
compor, surge duvida na articulação de determinada syllaba, penso no dedo que ella
occupa e na posição numerica desse dedo, practicamente "visualizando" e tacteando, ao
mesmo tempo, o correcto compasso. Claro que, depois de muitos annos de practica, o
verso sae prompto da cabeça, sem necessidade de batter os dedos a cada linha.
13. Você já citou a coprofagia como um recurso para se manter, de certa forma,
na vanguarda. Uma vanguarda pós-moderna que se volta para a tradição
para subvertê-la. Porém, dado todo esse período que você vem trabalhando
260
com essa atitude e estética coprofágicas, você não acha que já esteja se
transformando em tradição? Como o seu experimentalismo hoje lida com o
problema da originalidade artística?
GM - Acho que essa questão ja ficou respondida accyma, mas reitero que a originalidade
não pode ser um problema. Original não tem que ser a obra, mas o auctor. Cada auctor
deixa a sua marca exsistencial. Um sonnetto de Drummond não é tão differente nem
innovador em relação a um sonnetto de Camões, mas as impressões digitaes
drummondiana e camoneana sempre serão distinctas. Com a orthographia à guisa de
detalhe ornamental, a lyra mattosiana não corre risco de ser confundida com a
drummondiana ou a camoneana... (rindo)
14. Aos 70 anos, você ainda é bastante ativo e tem realizado para mim os seus
melhores trabalhos. Como a pandemia e a questão política aparece para você
hoje não só em termos de tema para os seus poemas, mas também com relação
à sua vida concreta.
261
GM - De facto, você identificou os traços
characteristicos no DNA do meu "eu lyrico", que,
na minha concepção, tem que ser coherente com
meu "eu biographico". Dum lado, o espiritismo
(meu pae era kardecista e minha mãe catholica) e,
doutro, o exsistencialismo, conciliam as possíveis
contradicções que explicam minha condição de
cego que enxergou, de victima de bullying que
transformou o trauma em consolo masochista, de
capacho que se tornou chinello velho, de estuprado Figura 4. Glauco Mattoso podólatra. Foto:
Arquivo pessoal.
que se tornou escholado. Parto do principio de que
#Paratodosverem: Glauco Mattoso com a boca
o poeta, pessoanamente, tem todo o direito de aberta segura um pé de madeira, que parece
querer entrar em sua boca.
exaggerar, de dramatizar e de phantasiar, mas não
de ser infiel à propria biographia. Por isso não temo o risco de ser hyperbolico e prefiro
não ser hypocrita. Me indigno com as injustiças, divinas ou humanas, sociaes ou pessoaes,
mas tenho commigo que faço parte duma civilização, ou duma barbarie sophisticada, na
qual a hierarchia dos sortudos em relação aos azarados perpassa todas as eras historicas e
na ONU as terras de cego continuam governadas por reis zarolhos. Si minha poesia
reflecte minha phantasia tanto quanto retracta minha realidade, não nego que me vejo
como um cego hindu de casta inferior que, respaldado no KAMA SUTRA, serve de
pedicure buccal e fellador aos videntes de castas superiores. Não por acaso, a experiencia
de ter sido oralmente utilizado como jogo orgastico pelos normovisuaes, bem como
comforto podologico, segue sendo uma das pulsões mais fortes e ferteis da minha creação
poetica. Dahi por que, antes de ser estudado como um caso de homosexualidade ou de
cegueira, tenho sido enquadrado como um caso "queer", ou seja, excentrico em relação
ao phallocentrismo ou às genitalidades em geral, incluindo as analidades. Por isso mesmo
digo que danso na chorda bamba da singularidade em meio à pluraridade. Um cego com
lettreiro na testa na terra dos cegos marcados a ferro em braza. (rindo)
16. Seus poemas são muito narrativos e constroem cenas com imagens vívidas.
Você já falou muito da relação de sua poesia com o teatro, mas essa relação
também não poderia ser pensada a partir do cinema?
GM - Claro que sim. No livro O CINEPHILO ECLECTICO dei varios exemplos dessa
symbiose e, em cyclos como "O cego e os capitães" (do livro DESILLUMINISMO EM
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DISSONNETTO), faço directas analogias, no caso, com o livro de Jorge Amado e com o
filme de Buñuel. O proprio romance lyrico RAYMUNDO CURUPYRA, O CAYPORA,
ganhador dum Jaboty, daria um ropteiro de longa metragem.
17. Você trabalhou temas que não era consenso pelo mainstream da esquerda,
como a podolatria. Como você vê hoje, após a majoritária aceitação da
sociedade para a questão da homossexualidade, o problema da “higienização”
das práticas sexuais.
18. Como você lida com a questão da internet hoje? Acompanho suas postagens
no Facebook que são atualizadas pelo Akira e percebo também que você tem
publicado muitos e-books.
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19. Como se deu o seu processo de leitura com a cegueira? Você lê e-books, livros
físicos em alto relevo, alguém lê os livros para você ou você só rememora os
livros que leu em sua fase vidente?
20. O que você acha da literatura hoje? Tem lido muitos textos recentes ou só os
mais antigos?
GM - Não dá tempo, salvo em raras excepções, para ler novidades, por isso revisito os
classicos que ja conhesço e procuro conhescer um pouco do que ficou faltando, antes que
os annos passem e eu nem consiga comer todos os bollos e puddins que mal posso
saborear por causa do quadro diabetico... (rindo) Mas dá para perceber que, tal como
occorre nas demais artes, a litteratura passa por immensa crise de mediocridade nessa
postmodernidade que paresce interminavel. Fico torcendo para que, cyclicamente
retornando, alguns ismos sejam objecto de algum renascimento, typo um
neoneoclassicismo phantastico ou um neoultraromantismo delirante... Só não quero que
o mattosianismo se torne uma corrente, pois prefiro continuar isolado como um caso de
exquisitice pathologica, pero no mucho.
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