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Copyright © 1961 by Simon & Schuster, Inc.


Copyright da tradução © 2021 by Editora Intrínseca Ltda.
Publicado mediante acordo com a Gallery Books, uma divisão da Simon & Schuster,
Inc. Todos os direitos reservados.

TÍTULO ORIGINAL
West Side Story

REVISÃO
Júlia Ribeiro
Luiz Felipe Fonseca

PROJETO GRÁFICO
Lana J. Roff

DESIGN DE CAPA
Chelsea McGuckin

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Henrique Diniz

REVISÃO DE E-BOOK
Laura Zúñiga | Zúñiga Consultoria Textual GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti

E-ISBN

978-65-5560-319-4
Edição digital: 2021

1a edição Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 6o andar 22451-041 — Gávea
Rio de Janeiro — RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
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SUMÁRIO
[Avançar para o início do texto]

Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário

Apresentação: O eterno amor na rua


Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Capítulo nove
Capítulo dez
Sobre o autor
Leia também
Apresentação
O ETERNO AMOR NA RUA

A história é antiga, muito antiga: dois jovens de famílias


diferentes e em eterno combate apaixonam-se apesar de tudo e
de todos. O amor supera tudo, menos o inevitável — e o final
não é feliz.
A história é antiga, com ecos de mitos e lendas ainda mais
remotos, mas forte o suficiente para alimentar gerações.
Como esta: em 1947 o já famoso e respeitado dançarino e
coreógrafo Jerome Robbins propôs a dois amigos, o compositor e
maestro Leonard Bernstein e o escritor Arthur Laurents, uma
ideia para um musical ou, em suas palavras, um “teatro lírico”.
Robbins, filho de imigrantes judeus da Polônia (seu nome
original de família é Rabinowitz), criado num bairro judeu do
East Side de Manhattan, ofereceu um tema: o conflito entre
famílias judias, do Leste Europeu, e famílias irlandesas católicas,
durante o período do Pessach e da Semana Santa.
O tema exploraria algo essencial da história de Nova York —
os choques entre as diversas culturas que construíram a cidade e
que agora tomavam um novo formato nas ruas de todas as
metrópoles: as gangues de adolescentes. De um lado estariam os
Jets irlandeses e de outro, os Emeralds judeus — e no meio um
amor proibido entre uma imigrante israelense e um Jet. O título
provisório era East Side Story.
Durante cinco anos, o trio trabalhou para desenvolver a trama
do que seria East Side Story. Já na reta final, veio o desencanto
— a peça era muito parecida com outra de mesmo tema.
Fim do primeiro ato.
Em 1955, Arthur Laurents estava em Los Angeles, escrevendo
o roteiro de The Painted Veil, releitura de um filme de sucesso
de Greta Garbo então adaptado para Ava Gardner, quando soube
que Leonard Bernstein estava na cidade, conduzindo uma série
de concertos no famoso Hollywood Bowl, um teatro ao ar livre
muito disputado.
Durante um jantar e alguns drinques no Hotel Beverly Hills,
Laurents e Bernstein retomaram a conversa iniciada oito anos
antes. Laurents estava intrigado com a multiplicação das
gangues juvenis, atento à chegada de novos imigrantes vindos
da América Latina e impressionado com a velocidade com que o
tema migrara para o cinema, com filmes de sucesso como
Sementes de Violência e Juventude Transviada, lançados
naquele ano. Por que não voltar àquele plano de tanto tempo
atrás?, Laurents perguntou. Por que não atualizar a mesma
ideia?
E assim a história antiga, uma narrativa de amor e morte —
cujas raízes estão em poemas de Ovídio, de oitocentos anos
antes de Cristo, na Divina Comédia de Dante, do século XIV, e
numa outra obra de poesia, “A História Trágica de Romeu e
Julieta”, de Artur Brooke, impressa trinta anos antes da peça de
Shakespeare —, ganhou mais uma nova forma.
Agora do outro lado de Manhattan, com o elemento de tensão
entre duas gangues de jovens — os Jets, estadunidenses brancos,
e os Sharks, porto-riquenhos multirraciais —, e com um novo
integrante no time, o iniciante Stephen Sondheim, apresentado
por Oscar Hammerstein e encarregado das letras das canções,
estreava na Broadway Amor, Sublime Amor (West Side Story),
em 1957. Laurents queria James Dean para o papel de Tony, o
Romeu dos Jets (um ex-Jet, na verdade), mas a morte o levou
cedo demais.
Depois de uma verdadeira tempestade de prêmios e imenso
sucesso na Broadway e na turnê pelos Estados Unidos, estava
firmado um novo paradigma — um olhar moderno, inspirado na
realidade urbana do país na metade do século XX, no pós-guerra,
em plena Guerra Fria, com o mundo se redividindo e
empurrando migrantes para novas terras e novos desafios.
Quatro anos depois, Amor, Sublime Amor chegava às telas
dirigido pelo tarimbado Robert Wise e estrelado por Natalie
Wood — como Maria, a moça porto-riquenha que trabalha num
ateliê de costura — e Richard Beymer — como Tony, o ex-Jet
caucasiano. O sucesso foi ainda maior, em bilheteria e prêmios,
mas talvez o mais importante tenha sido a marca que deixou no
gênero musical. Apesar dos poucos atores de origem latino-
americana — a maior exceção foi a grande atriz e dançarina Rita
Moreno —, Amor, Sublime Amor abriu o formato do musical
para um estilo moderno, com uma câmera veloz que acompanha
os atores de perto, tendo os bairros do lado oeste de Manhattan
como cenário.
A linguagem visual de Amor, Sublime Amor mudou
radicalmente o modo de trazer música a uma narrativa
cinematográfica, com ecos que se vê, entre outros, na filmografia
de Jacques Demy e em filmes de outro século, como La La Land
e Em um Bairro de Nova York.
A história antiga se faz presente num ciclo sobre novas
diferenças, num mundo incapaz de se ver inteiro.

Ana Maria Bahiana


Jornalista, editora do site oficial do Golden Globes Awards e escritora
CAPÍTULO UM

Riff Lorton olhou o relógio que tinha afanado de um bêbado na


semana anterior, viu que eram quase nove horas e resmungou,
porque a maior parte da noite ainda estava por vir. Com o
horário de verão, eles tinham que começar os trabalhos mais
tarde, quando já tivesse de fato escurecido. Mas ele passara o dia
inteiro inquieto, ansioso e louco de vontade de começar, de fazer
os Jets levantarem a bunda e partirem para a ação.
Era compreensível que novatos como Baby-John ficassem
apenas à espera de ordens, mas noite após noite Riff precisava
mostrar aos Jets que podia mantê-los tão ocupados e se sentindo
tão importantes quanto na época em que era Tony quem fazia os
planos.
Havia algumas coisas que eles já poderiam fazer. Talvez ir ao
Central Park e procurar algum bêbado para roubar, já que um ou
outro membro dos Jets precisava de relógios. Ou circular pelos
arbustos até encontrar algum casal idiota trepando e ver se
conseguiam participar. Poderiam até se dispersar e andar
rebolando pelo parque sozinhos até um deles pegar algum veado
ridículo para dar uns socos antes de surrupiar sua carteira e seu
relógio.
Nenhuma é boa, Riff concluiu sobre essas possibilidades.
Quando escurecia, o parque ficava repleto de policiais que
batiam primeiro e perguntavam depois. Imaginavam que sempre
que vissem um sujeito atracado com uma mulher no parque
devia ser um estupro, então o espectador inocente poderia
acabar encrencado; quanto aos veados, alguns surpreendiam —
eram estivadores, motoristas de caminhão, faixas pretas de judô,
caras com jeito de lutadores —, e se envolver com eles podia
significar uma surra feia. E não era possível concluir nada sobre
os de aparência afeminada; podiam ser policiais à paisana,
designados para patrulhar os veados. O Central Park, então,
estava descartado.
Claro que havia as namoradas, mas os Jets gostavam de ir com
calma nesse assunto, porque, se as buscassem logo, elas ficariam
no pé deles o resto da noite; e do jeito que Graziella grudava
nele, Riff ia acabar virando um velho antes da hora por causa
dela.
Para uma garota tão esperta e experiente, Graziella andava
com umas ideias terríveis e idiotas sobre casamento, além de
tagarelar cada vez mais sobre a quantidade de jovens da idade
deles que se casavam a cada ano. Pelo amor de Deus! Ela até
havia mostrado a ele uma lista no jornal com nome e idade de
todos que deram entrada na documentação para casar, e muitos
daqueles otários só tinham dezoito anos.
Não senhor, Riff disse para si mesmo, e sabia que os outros
Jets concordariam. Ele estava satisfeito com as aventuras
amorosas deles, sem precisar se casar nem nada.
— Aqui é Action perguntando qual é a ação. — Riff sentiu o
segundo em comando dos Jets cutucá-lo. — O que vamos fazer
hoje à noite para sujar o nome da nossa bela cidade?
Riff bateu nos dentes com uma carteira de identidade que
dizia que ele tinha 22 anos. Com altura mediana, rosto e queixo
quadrados e cabelos bem curtos para ninguém conseguir segurá-
los em uma briga, Riff tinha olhos grandes, sagazes e bem
espaçados e um nariz já quebrado duas vezes.
Como os outros membros dos Jets, ele usava o uniforme
padrão dos dias quentes: calças de sarja ou jeans, camisetas
justas para mostrar os músculos bem desenvolvidos e botas
pretas de cano curto. À espera de uma decisão de Riff, os Jets o
rodearam quando ele se apoiou no poste de luz. Eles se
movimentavam, nervosos, como se ansiassem por alguma
confusão, os olhos brilhando em expectativa, os lábios
contraídos em linhas duras e cruéis, os dedos parecendo garras
pela tensão.
Riff olhou por cima da cabeça dos parceiros, como já fizera
tantas vezes em noites anteriores, na esperança de ver Tony
descendo a rua. Por que Tony tinha abandonado os Jets daquele
modo era algo que Riff não conseguia entender, e começava a
desconfiar da conversa fiada contada por Tony sobre a mãe dele.
A própria mãe de Riff, a de Action, a de A-Rab, a de Diesel, a de
Gee-Tar, todas eram ameaçadas sempre, mas, até aquele
momento, nenhum funeral havia acontecido.
— Pare de procurar o polaco — ele ouviu Action dizer. —
Tony não quer mais saber de nós.
— Sabe qual é o seu problema? — rebateu Riff.
Action deu um passo atrás e apertou as mãos para estalar os
dedos.
— Vai, diga logo qual é.
— No seu caso, duas cabeças não pensam melhor do que uma.
Baby-John riu.
— Boa, Riff. Alguém novo deve estar escrevendo suas tiradas.
— Baby-John se abaixou para escapar da mão de Action, depois
pulou para o meio-fio. — Tudo bem, Action. Desculpe pela
risada.
— Faça isso de novo e você não vai ter tempo para se
desculpar — advertiu Action a Baby-John, incluindo os outros
membros dos Jets na ameaça.
Action não conseguia se convencer de que Baby-John era o
tipo de recruta de que precisavam. Tony, ao apadrinhar o
menino, tinha ressaltado que a maioria deles começara a se
aproximar dos Jets aos treze ou quatorze anos, porque um
garoto que não estava dentro da gangue estava definitivamente
fora e poderia decidir ficar longe das ruas de uma vez. Mas havia
garotos e garotos, Action pensou, e Baby-John... Bem, esse era
um apelido e tanto para alguém encarregado de ficar por perto
com uma chave de roda na mão quando a briga acirrava e a
situação se complicava.
Com cada vez mais frequência, Action se perguntava se devia
desafiar Riff pela liderança dos Jets. Mas se fizesse isso e
conseguisse, teria que dizer aos Jets o que fazer, liderá-los de
verdade; do jeito que estava, ele podia reclamar de tudo o que
era decidido e manter Riff sempre atento para provar que
merecia a liderança.
Como Riff precisava se esforçar para ser um bom líder, os Jets
formavam um grupo unido e entrosado, e nenhuma das gangues
brancas dos outros quarteirões queria se meter com eles. Até os
bêbados sabiam que era melhor ficarem longe. Só os porto-
riquenhos andavam por perto, em número maior a cada dia, e se
os malditos tiras, o prefeito e todos os outros não tinham bom
senso suficiente para tomar uma atitude sobre isso, os Jets
tinham.
Talvez, Action pensou ainda esfregando os nós dos dedos, o
prefeito aparecesse por lá para dar uma medalha a eles; haveria
uma grande cerimônia, muitos discursos, várias bebidas e
mulheres e, no final, na hora da condecoração, os Jets
surpreenderiam os canalhas dizendo a eles o que fazer com as
medalhas, e como!
— Não sei — comentou Diesel quando ficou de pé depois de
fazer uma bananeira —, mas acho que não me lembro de uma
noite tão lenta como esta. — Olhou para as estrelas, então para
as luzes da rua. — Estou sem inspiração — acrescentou. — E não
me sinto cansado o suficiente para deitar em algum lugar e
dormir. Vamos maratonar uns filmes? — sugeriu.
— Nem pensar — retrucou Riff. — Vamos dar uma volta e ver
o que acontece. Você... e você — apontou para Mouthpiece e
Tiger. — Fiquem de olho em qualquer confusão.
Com ombros aprumados, polegares enganchados na pesada
fivela militar do cinto e passos firmes e exagerados, Riff foi em
frente, mantendo o olhar fixo em algum ponto distante.
Qualquer um em seu caminho teria que se afastar, porque aquele
território era deles.
Logo atrás, os Jets seguiam em grupos de dois e três, com
Baby-John tão perto de Riff quanto ousava, imitando-o tanto
quanto ousava, torcendo para que ninguém percebesse,
principalmente Riff, que ele também estava com os polegares
enganchados na fivela do cinto. Agora, Action, A-Rab, Big Deal,
Snowboy e Gee-Tar faziam o mesmo. A intenção era deixar claro
a todos que os Jets estavam à espreita, prontos para enfrentar
qualquer um por qualquer coisa, não importava o quê, e em
qualquer lugar, a qualquer momento.

Na aparência, na postura e na determinação, não era possível


distinguir os Jets de milhares de outras gangues que circulavam
pelos bairros, e o mais assustador era que eles não tinham alvos
para seu ódio. Com o olhar, as palavras e a ação, até mesmo com
o pensamento, eles detestavam tudo e todos que apareciam pela
frente. Sem direção, vagavam pela cidade, comprometidos com a
destruição. Nada estava em segurança, porque tudo e todos eram
seus inimigos. Consequentemente, com a crueldade de bestas
cegas e sem cérebro, os Jets atacavam qualquer coisa com que se
deparassem.
Sua vítima ou alvo podia ser um homem que haviam tratado
bem no dia anterior, um menino ou uma menina com quem se
divertiram minutos antes, um lojista que sempre lhes vendera
fiado, um prédio vazio com uma janela ainda intacta. Dedicadas
à devastação cega, incapazes de avaliar pessoas e instituições, as
gangues destruíam e, quando não encontravam mais ninguém
para eliminar, voltavam-se umas contra as outras.
Assim, a cidade se transformou em um campo de batalha de
mil ruas, dez mil casas, telhados, porões e becos. A cidade se
tornou perigosa, e as pessoas circulavam e viviam aterrorizadas.
Até os porto-riquenhos entrarem em cena. A partir daí, as
gangues passaram a ter um propósito e um alvo, e a cidade ficou
muito mais segura para todos, exceto para os porto-riquenhos.
Eles haviam chegado sem convite, por isso qualquer desgraça
que lhes acontecesse seria por culpa deles mesmos.
Algumas pessoas, mais reflexivas, se perguntavam o que
aconteceria se os porto-riquenhos fugissem ou fossem expulsos
da cidade. Era melhor ninguém ficar pensando muito nisso nem
projetar muito adiante. Na atual situação, as gangues investiam
contra os porto-riquenhos, e os porto-riquenhos pagavam na
mesma moeda. Num cenário otimista, eles poderiam exterminar
uns aos outros; e, com essa feliz esperança para o futuro, a
cidade continuava a fazer negócios e tudo o mais como de
costume — e a morrer.
Estava quente naquela noite, as pessoas viam os Jets das
janelas e varandas de seus apartamentos, e só quem aprovava o
comportamento dos garotos lhes dava atenção. O resto desviava
o olhar ou se escondia atrás de jornais e lenços, porque os Jets
significavam problema, e naquela área apinhada já havia mais
problema do que ar, luz ou esperança. Então, por que procurar
mais?
Em outras ruas havia outras gangues que dormiam até o fim
da manhã, arrumavam confusão de tarde e, como gatos vadios,
estavam a todo vapor à noite, para espreitar os porões, os becos,
os telhados, as ruas do populoso e decadente West Side de
Manhattan.
Não havia lugar para onde se mudar, lugar para onde ir. Já
fazia vinte anos que a Segunda Guerra Mundial tinha começado
e acabado, mas as moradias que as pessoas comuns conseguiam
pagar ainda eram escassas; e se um sujeito branco quisesse
deixar seu apartamento, não havia um único proprietário na
região que não se alegraria com a desocupação do imóvel, que no
mesmo instante poderia ser alugado de novo por um valor mais
alto.
E se ele quisesse transformar três quartos em cinco, seis ou
até oito, era só abarrotar cada um deles com porto-riquenhos e,
assim, garantir uma grana suficiente para passar a maior parte
do ano na Flórida ou na Califórnia. Ele nunca precisaria vistoriar
os prédios e os inquilinos, nem fazer reparos em corredores,
paredes e telhados. Se a construção desabasse, o proprietário
poderia transformar a área em um estacionamento.
Diante disso, mesmo quem não gostava dos Jets acabava
admitindo que eles faziam alguma coisa para salvar o pouco que
lhes restava do bairro. Embora não concordassem com os
métodos dos garotos, precisavam reconhecer que pelo menos
eles tomavam alguma atitude, o que era mais do que se poderia
dizer dos políticos e o papo furado cheio de pompa e
circunstância deles.
Nenhum dos políticos morava em West Side; nenhum deles
precisava lutar por um espaço para viver, por um pouco de ar
para respirar. E se a cidade estava violenta, superlotada,
decadente, se cada vez mais ruas se tornavam perigosas ao
anoitecer, de quem era a culpa? Ninguém nunca perguntou a
qualquer um dos moradores da região se eles queriam que os
porto-riquenhos fossem admitidos no país. Ninguém teve voz na
decisão, e eles se ressentiam disso. Nenhum dos jornais falava
em nome das pessoas de West Side, só jovens como os Jets, que
usavam sua voz e seus punhos. Era bom não esquecer disso.

Rangendo os dentes, batendo os calcanhares com força, sorrindo


com o canto da boca, os Jets atravessaram a rua devagar,
forçando os veículos a frear. Quando um motorista idiota botou
o corpo para fora da janela e mandou que andassem logo, Riff
parou, olhou com cara feia e caminhou em direção ao carro,
seguido de perto por Action e Diesel. O homem fechou a janela e
trancou as portas às pressas, afobado. Como peixes assustados
dentro de um aquário atacado por um gato, a única coisa que o
motorista e a mulher ao seu lado conseguiram fazer foi se mexer
inquietos enquanto os rapazes, com estudada coordenação,
cuspiam em toda a extensão do para-brisa e nas janelas, para só
então se afastarem e deixarem o carro passar. Quando ele seguiu,
os Jets chutaram o para-choque traseiro e depois quase choraram
de tanto rir; era só mais um carro de um caretão que eles
chutaram na bunda.
De volta à calçada e satisfeito consigo mesmo, Action apontou
para um homem e uma mulher porto-riquenhos de meia-idade
que saíam de uma pequena mercearia porto-riquenha. Os dois
viram os garotos, hesitaram, se entreolharam e, indecisos,
voltaram para a loja. Mas não escapariam com tanta facilidade.
Riff fez um sinal, e Snowboy, que gostava de se imaginar no
comando, abriu a porta da mercearia para lançar uma bombinha
de fedor na loja lotada.
— Que inferno! — disse Snowboy para Baby-John quando
voltou para se juntar aos Jets. — Eles vivem como porcos, então
não deviam achar ruim a comida feder a porco.
Baby-John assentiu com seriedade, guardando aquela
observação para usá-la no futuro. Não apenas Riff e Action
tinham lhe mostrado como lidar com motoristas arrogantes que
pensavam ter comprado a rua inteira ao pagarem por um carro,
como também Snowboy tinha tratado os porto-riquenhos de um
modo que eles jamais esqueceriam. E se fossem para casa e
contassem o ocorrido aos filhos, e esses garotos saíssem à
procura dos Jets, tudo bem também, porque qualquer porto-
riquenho que pisasse no território dos Jets arcaria com as
consequências.
Beligerantes, ávidos por contato, os Jets continuaram a ronda
pelo bairro.
Era a segunda noite em que eles varriam as bandas sem que
nada de importante acontecesse, e Riff sabia que os garotos
estavam começando a ficar impacientes e poderiam se voltar
contra ele, que era o que Action queria. Um líder precisava
tomar conta de seus homens, fazer as coisas acontecerem o
tempo todo, e quem não conseguia não era lá essas coisas como
líder.
Havia apenas um homem a quem Riff teria confiado os Jets, e
quando pensou de novo em Tony, só conseguiu sentir amargura.
Talvez fosse esse o problema, pensou; ele passava tanto tempo
acobertando Tony que não conseguia dar atenção aos rapazes e à
ação que eles demandavam.
De repente, ouviu Mouthpiece chamar: três porto-riquenhos
estavam do outro lado da rua, à esquerda. Riff se virou
rapidamente, e ele e seus companheiros partiram para seus
alvos. Mas os porto-riquenhos, em suas jaquetas azuis com
detalhes amarelos que os identificavam como Sharks, saíram em
disparada por um beco, e Riff esbravejou porque seria inútil
persegui-los.
Mas se havia três Sharks por perto, poderia haver outros. Riff
ouviu Action dizer que naquela noite transformaria alguns
daqueles tubarões em peixes insignificantes, e, enquanto os Jets
ecoavam essa vontade de brigar, começaram a procurar pelo
inimigo com mais empenho ainda. Quando iam dobrar uma
esquina e se dividir em dois esquadrões para cobrir um
território maior, Riff fez com a mão o sinal que para eles
significava o pior de todos os problemas: polícia. Como haviam
adquirido uma vasta experiência no trato com os policiais,
diminuíram o ritmo para um passo normal e esperaram que o
carro dos tiras os ultrapassasse e parasse.
Convicto de que os Jets pareciam inocentes, passando ali pela
rua apenas para uma caminhada e nada mais, Riff foi o primeiro
a se aproximar da viatura. Mouthpiece tinha corrido porque
carregava facas, dois pares de socos-ingleses e dois pedaços de
corrente de bicicleta, que enchiam um dos bolsos. Riff sorriu por
dentro ao ver a habilidade com que Mouthpiece desaparecia no
porão de um dos prédios. Atravessando áreas externas e subindo
e descendo escadas de incêndio, ele chegaria ao depósito secreto
de um porão, que servia de arsenal para o grupo.
Em uma manobra inteligente para impedir que os policiais
perseguissem seu comparsa responsável pela artilharia, Riff
colocou a mão na porta do carro para mantê-la fechada e se
inclinou para cumprimentar o policial à paisana e o
uniformizado que estava ao seu lado.
— Ora, se não é o detetive Schrank! — Riff cumprimentou o
homem de rosto simpático, agora irritado, que tentava abrir a
porta. — E o guarda Krupke! — Reconheceu o motorista, no lado
oposto, forçado por Action e Big Deal a ficar dentro do carro. —
Então, o que traz os senhores a este lado da cidade?
— Quem é aquele que saiu correndo? — perguntou Schrank.
— E tire a mão da porta antes que eu quebre todos os seus
dedos.
Riff deu um passo atrás, e seus olhos sinalizaram a Action que
deixasse os policiais saírem do carro.
— Que bela maneira de cumprimentar jovens cidadãos
ansiosos por viver em paz com nossos representantes da lei e da
ordem — queixou-se Riff com ironia.
Na calçada, Schrank deu vários passos hesitantes, como se
quisesse perseguir o garoto que ele vira se afastar. Seria, no
entanto, impossível encontrá-lo, por isso o detetive se limitou a
exibir grande parte de seus dentes em um sorriso forçado. Alto,
musculoso, robusto, com mãos grandes que já haviam quebrado
sua cota de cabeças, ele passou o peso do corpo de uma perna
para a outra enquanto desembrulhava um chiclete e o colocava
na boca.
— Quem saiu com tanta pressa? — insistiu.
Riff fez uma grande encenação contando os parceiros.
— Estamos todos presentes e conferidos. Agora, se nos disser
a que devemos o prazer de sua companhia, cantaremos dois
refrões muito animados da nossa canção de boas-vindas.
— Não é um prazer, e vocês não são uma boa companhia —
retrucou Schrank.
Ele estava na polícia havia trinta anos, e suas feições tinham
se endurecido pela experiência e por um fatalismo filosófico que
haviam tornado possível sua sobrevivência. Todas as pessoas
eram sórdidas, era o que Schrank pensava, mas as que causavam
problemas precisavam ser extirpadas e espancadas até a
submissão.
— Desapareçam daqui. Quem eu pegar terá o que merece —
advertiu ele aos Jets. — E não gosto dessa sua cara de arrogância,
A-Rab.
— Para meu azar... só tenho esta cara — contestou A-Rab. —
Se souber como posso mudar a minha cara...
— Claro — Krupke interrompeu-o no mesmo instante. —
Vamos entrar em um desses pátios aqui perto. Qualquer coisa
que eu fizer na sua cara só pode melhorá-la.
Schrank ergueu a mão para silenciar Krupke.
— Qual de vocês jogou uma bomba de fedor na bodega no
início da rua?
— Bodega? — perguntou Baby-John. — Por favor, senhor, se
isso for um palavrão, sou muito jovem e inocente para ouvir.
— Acho melhor você ir para casa, garoto — advertiu Schrank.
— Você é bobo demais para se misturar com esse tipo de gente.
Snowboy passou um braço sobre os ombros de Baby-John em
um gesto protetor. Ele havia usado a última bomba de fedor na
mercearia e estava limpo.
— Estamos mantendo o menino longe de problemas, detetive
Schrank. — Deu um tapinha na cabeça de Baby-John, que
revirou os olhos em fingida inocência. — Longe das más
companhias — completou.
— Então você não sabe nada sobre a mercearia? — Schrank
ignorou as firulas para se ater ao que importava.
Riff negou com a cabeça e ergueu a mão direita em juramento.
— Vimos dois Sharks minutos atrás — insinuou. — Talvez o
idiota do dono da mercearia não pagasse por proteção ou algo
assim. Agora, se quiser nos incorporar à polícia e nos equipar
com as armas da lei — sugeriu, e olhou com avidez para a pesada
coronha no coldre de Krupke —, estaríamos dispostos a prestar
serviços de graça.
— Pare com as gracinhas — protestou Schrank. — Não foram
os Sharks que fizeram isso. O dono da mercearia tem certeza de
que não foi um porto-riquenho.
Big Deal mostrou a palma das duas mãos enquanto meneava a
cabeça com ar desolado.
— Se não foram os porto-riquenhos, e com certeza não fomos
nós, chego a uma conclusão muito triste. O ataque deve ter sido
praticado por um policial.
— Talvez por dois policiais — corrigiu Snowboy. — Execrados
e traidores de seus juramentos profissionais.
— Isso mesmo — concordou Big Deal. — Um para abrir a
porta e outro para jogar a bomba. Terrível, terrível. Onde as
coisas vão parar?
— Você está me provocando — disse Schrank a Big Deal. —
Quem fez isso? Quem era o cara que fugiu? Vamos — insistiu. —
Há uma diferença muito grande entre ser um dedo-duro e
cooperar com a lei, ou vocês não sabem disso, seus baderneiros?
— Sabemos a diferença, senhor. — Riff olhou de Schrank para
Krupke. — Os senhores nos ensinaram.
— Talvez lhes interesse saber que estamos economizando
nossos centavinhos para comprar aos dois cavalheiros um
presente adequado por nos transmitirem tal conhecimento —
declarou Snowboy com floreios oratórios que fizeram Baby-John
se dobrar de tanto rir. — É o tipo de conhecimento concebido
para fazer de nós cidadãos melhores e sem o qual teríamos
continuado a viver na mais cega ignorância. Se assim fosse,
como poderíamos algum dia fazer justiça às nossas
responsabilidades cívicas?
Depois de levantar uma mão acanhada para conter os
aplausos, Snowboy fez uma reverência e deu um passo atrás
para fugir do alcance do cassetete de Krupke.
— Olha aqui, Riff — avisou Schrank —, e isso vale para toda a
sua corja. — Em um movimento rápido, Schrank segurou com a
mão direita o ombro de Riff, num gesto forte e doloroso. — O
que tenho a dizer pode deixar você surpreso. — Apertou seu
ombro com mais força ainda, até sentir o jovem estremecer. —
Vocês, bandidos, não são os donos das ruas.
— Nunca disse que éramos.
Apesar da dor, Riff sabia que sua voz soava normal e
despreocupada.
— Tem havido muitos confrontos e ataques com bombas entre
vocês e os porto-riquenhos — continuou o detetive. — Já falamos
isso para eles, e agora chegou a sua vez. Já que vocês, garotos,
precisam ficar em algum lugar, queremos que fiquem no seu
quarteirão e só. E ninguém tem permissão para bloquear a
calçada.
Action bateu palmas.
— O aviso é oficial! Não podemos nem ir trabalhar! Obrigado,
detetive Schrank!
— Obrigado por me lembrar — Schrank apontou para Action
—, porque este é o momento certo para mencionar o
reformatório. — Já sem sorrir, mascou o chiclete com uma forte
rotação do maxilar. — É isso aí — prosseguiu, e seu punho
esquerdo cerrado serviu de alerta para os Jets pararem um pouco
com as gracinhas. — Se eu não conseguir acabar com a baderna,
se não mantiver este bairro limpo e tranquilo, acabarei fazendo
rondas de novo, e isso significa andar na mesma rua que vocês,
o que eu não suportaria. Mas tenho ambições, e vocês terão que
colaborar com elas. Pelo menos terão que aturá-las. Então, é
desse jeito — seus dedos apertaram o ombro de Riff, e ele se
virou para fazer o jovem insolente perder o equilíbrio — que
quero vocês de volta ao seu quarteirão. Não quero ninguém fora
de sua área. Não quero que saiam à procura dos Sharks ou de
qualquer outra gangue porto-riquenha. Não quero que arrumem
nada que vá fazer os porto-riquenhos procurarem vocês.
Entendeu, Riff? Droga — sacudiu-o com força —, você entendeu?
— Entendi — respondeu Riff.
A dor era insuportável, deixava seu ombro dormente, mas ele
não daria ao homem essa satisfação. Os Jets precisavam sentir
orgulho dele, e ele achava que Tony também sentiria.
— Vocês querem que nosso comportamento seja o de sempre.
Pacífico.
— Quanto ao resto de seus arruaceiros — continuou Schrank
—, pode mandar meu recado para eles. Se não fizerem o que
digo, significa que querem levar porrada. E meus colegas e eu
estamos preparados, dispostos e ansiosos por satisfazê-los.
O impulso de sua mão fez Riff tropeçar e cair contra Action.
— Voltem para o quarteirão de vocês — insistiu Schrank. —
Krupke e eu vamos passar por lá mais vezes, porque queremos
avisá-los, meninos, quando for hora de ir para a cama.
Não havia afeição, nunca tinha havido, nunca poderia haver,
Schrank sentiu enquanto Krupke e ele voltavam para a viatura.
Antes de entrar, fez sinal com o polegar para que os meninos
seguissem seu caminho e, com o canto do olho, pôde ver que
Krupke admirava o modo como ele lidara com a situação.
Krupke se lembraria do fato, falariam dele; e o exemplo poderia
ter alguma utilidade para outros policiais que estivessem
cansados dessa maldita sociologia que pregava que os menos
favorecidos eram muitas vezes mal compreendidos.
Ele os compreendia muito bem e, se tivesse conseguido
colocar as mãos no garoto que jogara a bomba de fedor, teria
esfregado o nariz dele nela. Schrank respirou fundo e viu
Krupke concordar com a cabeça, porque o guarda entendia que
os dois tinham empregos ingratos e também perigosos.
Um policial, no entanto, não tinha tempo para pensar no
perigo. Se pensasse, começaria a ficar apreensivo, e para fazer
parte da polícia naqueles tempos era necessária uma total
indiferença ao medo. Jets e Sharks. Eram apenas duas das
gangues que infestavam West Side. Às vezes, ele tinha a
impressão de que havia mais gangues do que baratas. Mas tanto
gangues quanto baratas precisavam ser esmagadas.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Krupke.
Schrank respirou fundo de novo e suspirou.
— Vamos tentar encontrar os Sharks. Preciso ter uma
conversinha com Bernardo.
— Garoto difícil? — indagou Krupke.
— Igual aos outros. Fala inglês com sotaque, mas um bom
soco na boca é uma língua que ele com certeza entende. Todos
entendem.
Observaram os Jets circularem pela rua e detestaram a postura
de luta do grupo: pernas rígidas, o calcanhar das botas batendo
com força no chão, ombros gingando, polegares enganchados
nos cintos.
— Acha que devemos voltar àquela mercearia e ver se
conseguimos uma descrição do culpado? — sugeriu Krupke.
Schrank torceu o nariz.
— Não, não aguento o fedor.
— Da bomba ou do dono? — perguntou Krupke.
A risada de Schrank foi curta e amarga.
— Sem comentários.

*
Pelo modo como seus companheiros caminhavam, pelo jeito
como assobiavam, riam e contavam vantagens, Riff sabia que os
Jets achavam que haviam conseguido uma vitória e tanto, e
melhor ainda: em cima da polícia. Muita gente tinha visto os
tiras conversando com eles, tinha visto como ele resistira à
punição, e tudo isso chegaria aos ouvidos dos porto-riquenhos.
Poderia até chegar aos ouvidos de Tony, que talvez decidisse se
juntar aos Jets.
Se Tony quisesse voltar e assumir o comando, Riff
concordaria. Riff sorriu para si mesmo, porque sabia que, se isso
acontecesse, Action ficaria arrasado, mas tudo bem. Action o
vira se desembaraçar do policial babaca, apesar de seu punho
forte. Ele queria massagear o ombro dolorido, mas se recusava a
fazer isso porque queria que os Jets acreditassem que não
sentira nada. Ninguém poderia dizer que ele não tinha resistido
ao castigo como um verdadeiro líder.
Acima das janelas gradeadas de um joalheiro, o relógio da rua
indicava a Riff que eram quase dez da noite. As coisas tinham
acontecido muito depressa. De volta à sua esquina, os rapazes
seriam capazes de passar mais uma hora falando sobre o
assunto, interpretando seus papéis, contando uns aos outros o
que quase disseram a Schrank e Krupke e o que poderiam ter
feito se os malditos tiras tivessem ousado dar um soco que fosse.
Então já seriam onze horas.
Ainda cedo demais para voltar para casa, mas não para ir
atrás das garotas. Havia muito tempo pela frente até a manhã
chegar, horas sem nada para fazer, e toda aquela energia dentro
dele pronta, ansiosa, a ponto de explodir.
Ele precisava ver Tony, conversar de novo com ele, implorar
que voltasse. Enquanto Tony estivera no comando, cada minuto
tinha sido aproveitado, repleto de coisas a fazer. É verdade que,
naquela época, Tony e os outros Jets sempre estavam ocupados
lutando para dominar o território. Precisaram enfrentar muita
gente para se apropriar daquela área, e Riff e o restante da
gangue tinham cicatrizes para provar que haviam conquistado e
mantido o território. Ninguém das proximidades sequer pensara
em desafiá-los, até aparecer Bernardo, um dos primeiros porto-
riquenhos a se mudar para o quarteirão.
Os outros porto-riquenhos moravam em outras partes do
bairro, mas Bernardo continuava a trazê-los para a área dos Jets.
O que ele tinha em mente era muito óbvio: assumir o controle do
quarteirão. Se Bernardo e os Sharks conseguissem fazer isso,
todas as pessoas brancas teriam que se mudar, e essa seria mais
uma vitória para os porto-riquenhos, com seu incompreensível
linguajar próprio. Nesse caso, para onde eles iriam? Para dentro
do rio?
Não ele, disso Riff tinha certeza. Se era para alguém viver na
água, que fossem os Sharks. Malditos cucarachos! Nunca
tomavam banho, guardavam carvão na banheira; chutá-los para
dentro do rio seria até um favor para eles.
— Riff!
Riff encolheu os ombros e se recusou a se virar.
— Ei, Riff! — Anybodys estava ao seu lado. — O que Schrank
queria?
Riff olhou para a garota pálida, magra e intensa, com um corte
de cabelo quase masculino. Não tinha seios sob a camiseta, e sua
calça jeans surrada escorregava da cintura porque também lhe
faltavam quadris. Seus pés imundos estavam enfiados em um
par de tênis sujos amarrados com cadarços puídos, e quando
Baby-John correu para apalpar sua bunda, Anybodys se virou
para dar um chute nele pela direita, e o movimento foi igual ao
de um menino.
Como o chute não o atingiu, ela xingou Baby-John com voz
monocórdica e áspera, depois cuspiu nele.
— Te pego mais tarde — avisou ela a Baby-John. — O que
aconteceu, Riff?
— Tivemos uma conversa.
— Sobre o quê? — quis saber Anybodys.
— Sobre você — respondeu Riff. — Schrank perguntou se
queríamos nos livrar de você, e nossa resposta foi afirmativa.
Anybodys tentou segurá-lo pelo braço, mas Riff encolheu os
ombros e escapou.
— Não acredito — desafiou ela. — Você não diria uma coisa
dessas sobre uma Jet.
— Você não é uma Jet. Mas não por falta de tentativa —
admitiu Riff.
— Por que, então? — Anybodys apressou o passo para
acompanhar o ritmo de Riff e conseguiu agarrá-lo pelo cinto. —
Estou disposta a fazer o que qualquer um dos outros faz.
— É sério? — perguntou Riff.
— Faça um teste comigo.
— Vamos atrás de mulheres — disse Riff, a voz alta o
suficiente para chegar a seus companheiros. — Todos nós. Até
Baby-John. Vamos transar. Quem você recomenda?
O soluço que explodiu dos lábios de Anybodys foi abafado
por uma gargalhada dos outros. Sem refletir, ela tentou dar um
soco em Riff, mas ele se protegeu do golpe com o braço
esquerdo, e Baby-John correu de novo para pegar na bunda dela.
Lágrimas escorreram pelo seu rosto sujo, e a frustração a fez
procurar uma pedra, um pedaço de pau, uma garrafa, qualquer
coisa, mas não havia nada por perto; cercada pelos ruidosos Jets,
ela se virou para se lançar no meio do tráfego. Correu entre
rodas e para-lamas, alheia aos toques inesperados de buzina, até
chegar à outra calçada.
— Nada mau — comentou Action, elogiando Riff. — Tony
nunca se livrou dela tão depressa quanto você.

Era primavera, mês de maio, mas a noite amena era de um início


de verão. Do telhado de seu prédio, Maria Nunez olhou na
direção do Central Park e viu as janelas iluminadas e as manchas
irregulares de luz. Tinha sido curta a subida da escada de
incêndio até a escada que levava ao telhado, e ela evitara
conversas desnecessárias com o pai, a mãe, dois tios, duas tias e
vários amigos da família, todos amontoados na pequena cozinha
com uma única janela.
Acima, o céu estava repleto de estrelas, e nuvens finas e
tênues tinham sido desfeitas pela passagem da luz da lua. Ela
havia subido no telhado ao anoitecer para admirar o topo dos
edifícios não muito longe dali, mas separados por uma distância
infinitamente maior do lugar de onde viera na semana anterior.
A noite tinha chegado devagar à cidade para esconder a
forma, o ímpeto e a força dos monólitos, para esmaecer o tom do
metal polido e da pedra de design intrincado, para apagar os
prédios e trazer cores para fileiras e mais fileiras de janelas. As
pessoas viviam de um jeito diferente em edifícios tão ricos e
maravilhosos e, com o queixo apoiado na palma da mão, Maria
imaginou o luxo em que deviam se banhar e se vestir. Como
eram diferentes as ruas abaixo; em nada se pareciam com Porto
Rico, onde as moradias eram pouco mais do que casebres sem
piso, sem vidro nas janelas e, com certeza, sem encanamento. A
maioria das ruas não era pavimentada, não tinham calçada, e a
pobreza estava em toda parte.
Quando a buscaram no aeroporto na semana anterior,
precisou piscar várias vezes para se certificar de que o homem e
a mulher que corriam em sua direção com os braços estendidos
eram seu pai e sua mãe, porque eles pareciam muito mais
jovens, mais autoconfiantes, até mais bem-vestidos do que
quando os vira pela última vez, dois anos antes. Na época em
que o casal emigrou para Nova York, tinha ficado decidido que
ela e as irmãs não iriam, ficariam com parentes. Só Bernardo,
seu irmão, os acompanharia a Nova York até eles conseguirem se
estabelecer.
Seu pai franziu o cenho e se manteve calado quando ela
perguntou por que Bernardo não estava no aeroporto. Mas ela
logo soube a razão. Ele tinha dezoito anos e era bonito, mas seus
olhos eram amargos demais, seus lábios cerrados demais, sua
voz alta demais, e cada palavra sua destilava o ódio que ele
sentia dos americanos.
Eles tinham mais posses em Nova York; tinham mais de tudo,
inclusive ódio. E para se livrar desse sentimento, Maria teria
renunciado a todo o resto e voltado para Porto Rico, porque
acreditava que odiar era errado. Ela não queria odiar quando
amar era tão mais fascinante e prazeroso.
Maria bocejou, estendeu os braços e se perguntou se deveria
ir dormir. Poderia descer e estudar gramática inglesa, ou praticar
conversação com o pai e tentar lembrar que nesse idioma os
verbos são colocados nas frases de um modo diferente. Mas a
cozinha estava cheia de gente, e era provável que continuassem
a falar sobre San Juan e a pequena comunidade que um dia
haviam chamado de lar. Por que tinham ido embora de Porto
Rico? Não era preciso responder; bastava que tocassem em seus
bolsos e olhassem para a pia da cozinha, todas com torneiras.
Luzes intermitentes cortaram a cidade em diagonal, e Maria
acompanhou o voo com os olhos. Seria um avião que chegava de
Porto Rico? Ou fazia o caminho inverso? Mais uma vez, ficou
tentada a voltar para a cozinha, mas todos estariam conversando
em espanhol, e, ainda que falassem inglês, soaria como
espanhol. Ela queria falar inglês como os americanos, com
consoantes ásperas e vogais rápidas, sem melodia nem cadência.
Queria muito ser uma americana.
Maria se levantou para estender os braços e abraçar a lua e as
estrelas. Completara dezesseis anos no dia anterior, e sua mãe a
tinha beijado várias vezes, sempre dizendo que bela noiva ela
seria. E Chino Martin, amigo de Bernardo, a contemplara com
olhos repletos de amor. Mais tarde, ele conversou com Bernardo
e seus pais sobre sua vontade de se casar com ela. Era um jovem
tranquilo, que trabalhava como aprendiz em uma fábrica de
roupas na Sétima Avenida; algum dia seria um verdadeiro
sindicalista. Chino também era bonito, mas muito tímido, bem
diferente de Bernardo.
Na ponta dos pés, Maria rodopiou e beijou as mãos erguidas
ao céu e aos prédios distantes. Se se casasse com Chino, suas
irmãs ganhariam espaço, porque ela e Chino teriam um
apartamento só deles. E se fizessem amor, seria maravilhoso,
porque no dia do casamento teriam a privacidade que sua mãe e
seu pai não haviam conhecido durante quase vinte anos. Maria
cobriu o rosto. Precisava parar de pensar nessas coisas, ainda
que estivesse sozinha no telhado e apaixonada pelo mundo.
Isso incluía Chino Martin? Ela não tinha certeza. Sim, ela o
amava como amava tudo no mundo, porém não mais do que
isso.
Ouviu a pesada porta metálica que levava ao telhado se abrir
e, quando olhou, viu a sombra de um homem. O repentino medo
que sentiu por um instante desapareceu quando ela o ouviu
chamar seu nome, e o suspiro de alívio que deu foi alto o
suficiente para Bernardo entender que ela o tinha reconhecido.
— Por que está sozinha aqui em cima? — perguntou Bernardo,
com ar provocador.
— Por que não estaria? — retrucou ela.
— Porque não é seguro. Ainda que estivesse com Anita.
— Por que não? — insistiu Maria. — Anita não é sua
namorada?
— Acho que sim. — Apoiado no parapeito, ele acendeu um
cigarro, jogou o fósforo na direção da rua e observou a queda. —
Não é seguro ficar sozinha em um telhado. Há muitos
vagabundos por aí. Se um dos Jets a visse aqui, ninguém sabe o
que poderia acontecer.
Apesar do calor da noite, Maria estremeceu.
— Será que um deles teria feito... aquilo?
— Sem pensar duas vezes — afirmou Bernardo, e deu uma
longa tragada no cigarro. — Um deles jogou uma bomba de fedor
na mercearia do Guerra esta noite. Se eu pegar esse cara, não vai
sobrar nada dele.
— Sabe qual deles fez isso?
— O que importa? Foi um Jet. O primeiro que pegarmos vai
ser o primeiro a apanhar. Se eles pegarem um de nós, a gente
apanha.
— Por que precisa ser assim? — perguntou Maria ao irmão. —
Por que eles nos fariam mal?
— Porque dizem que nós fizemos mal a eles quando viemos
para cá. Sabe o que vou fazer?
— O quê?
— Talvez amanhã eu vá a Times Square com alguns dos
garotos: Pepe, Anxious, Toro e Moose. E vamos entrar numa
dessas lojas que vendem suvenires.
— Para roubar? — perguntou Maria, assustada.
Bernardo acariciou o rosto da irmã.
— Claro que não. Só para comprar umas miniaturas em ferro
da Estátua da Liberdade. Algumas são altas assim — ele indicou
uma medida de uns trinta centímetros —, o tamanho ideal para
bater na cabeça dos Jets. Sabe o que está escrito na Estátua da
Liberdade? — perguntou à irmã, desafiador.
— Não. Eu deveria saber?
— Algo sobre as muitas pessoas pobres que vêm para cá em
busca de uma vida melhor. Bem, talvez seja verdade —
prosseguiu Bernardo —, mas os Jets não acreditam nisso. Então,
a gente tem que enfiar essa ideia na cabeça dura deles. E as
miniaturas da Estátua da Liberdade parecem a maneira certa de
fazer isso.
Maria se levantou para confrontar o irmão. Com os olhos
arregalados e o coração acelerado, ela balançou a cabeça devagar
enquanto endireitava o nó da gravata de Bernardo que havia
deslizado para um lado do colarinho. Seu irmão era muito
atraente, mas sua boca era fina demais e seus olhos lembravam
os de um animal que ela uma vez vira em uma armadilha;
pareciam amedrontados, mas ao mesmo tempo desafiadores,
cheios de ódio. Em geral, a hostilidade dele era implícita, mas
bem mais temível do que uma raiva manifesta.
— Por que precisa ser assim? — repetiu ela. — Essas pessoas...
— Abriu os braços para abranger toda a cidade. — Não as odeio.
— Mas elas não gostam de você — respondeu Bernardo,
impaciente. — Olha aqui, não quero que você fique sozinha no
telhado.
Maria esfregou os olhos.
— Nem mesmo com Chino?
— Nem mesmo com Chino.
— Mas ele gosta de mim — argumentou. — É verdade que ele
falou com mamãe e papai... sobre se casar comigo?
— É verdade. — Bernardo abraçou a irmã e apertou-a contra o
peito. — Depois do noivado você poderá ficar a sós com Chino.
Mas, por enquanto, não vá a lugar nenhum sozinha — insistiu
ele. — Esses malditos americanos acham que têm mais direitos
que nós, e se virem uma garota como você... — Fez uma pausa,
deu um passo atrás, inclinou a cabeça e olhou para a irmã. —
Cara, você é uma ótima garota. Chino é um sujeito de sorte. Por
falar nisso, Maria, você sabia que ele emprestou o dinheiro da
sua passagem para nossos pais? Até pagou a vinda de uma das
meninas. Sabia disso?
Maria baixou a cabeça.
— Sabia. Por isso devo me esforçar ao máximo no meu
trabalho para poder pagar de volta a ele.
— Mas você gosta dele?
— Gosto.
Bernardo esmagou a ponta do cigarro com o pé e tirou um
novo do maço.
— E o ama?
— Não sei — respondeu Maria. — Mas ele é um bom rapaz.
— Vamos descer. — Bernardo segurou a mão da irmã. — O
pessoal já foi embora, e você já pode dormir. Aliás, esqueci de
perguntar: está gostando do novo emprego?
— Adorando! — Maria bateu palmas. — Imagine, trabalhar em
uma loja de noivas! Os vestidos, os véus, é tudo tão bonito.
— Você vai ser uma noiva linda! A mais linda de todas.
Quando Chino vir você caminhando para o altar, vai desmaiar.
Talvez ele não seja como os outros Sharks, porque tem um
emprego e vai trabalhar todo dia. Mas eu não ia querer nenhum
dos outros Sharks para você. — Abriu a porta do telhado para a
irmã e se curvou com elegância. — Sí, ele vai ser um bom
marido, Maria. Por isso você deve tentar se apaixonar por ele.
— Vou tentar, Bernardo — prometeu ela. — Vou tentar do
fundo do meu coração. Vai dormir agora também?
— Mais tarde. Preciso me encontrar com alguns dos rapazes.
— Para quê? — perguntou Maria. — Para brigar?
Bernardo beijou o rosto da irmã.
— Só para resolver umas coisas — respondeu, evasivo.
— Que Deus o acompanhe.
— Certo. Não me incomodo que Ele me faça companhia.
CAPÍTULO DOIS

Os Jets tentavam surpreender os Sharks em uma emboscada


havia mais de três semanas, e os porto-riquenhos não tinham
amarelado. Riff conseguira abrir caminho até a rua pelo corredor
de seu próprio prédio, e um paralelepípedo não tinha acertado
Bernardo por alguns centímetros.
A tensão aumentava a cada noite, até que Schrank e Krupke
passaram a rondar a área todos os dias ao anoitecer à procura de
Riff, Bernardo e suas gangues. Mas os garotos conheciam os
labirintos do bairro melhor do que a polícia e, encolhidos em um
monta-cargas apertado, espremidos em um porta-malas, no
fundo de um latão de lixo escuro ou sob as escadas de um
prédio, tanto os Jets quanto os Sharks aguardavam a área ficar
livre das rondas policiais. Quando isso acontecia, e podia ser às
duas, às três, ou às quatro da madrugada, os ataques
recomeçavam, e a cada manhã faziam mais vítimas e traziam
mais tensão à área.
Nas quatro últimas noites, os Sharks tinham levado a melhor
sobre os Jets e mostrado mais habilidade em suas emboscadas,
mas Riff e sua gangue contra-atacaram. Mouthpiece jogara outra
bomba de fedor na mercearia, na esperança de que os Sharks
revidassem com força total, mas Bernardo tinha se recusado a
fazer isso. Em represália, fez Pepe e Nibbles armarem uma cilada
para Baby-John em uma sessão de cinema à tarde.
Eles pressionaram a ponta de um picador de gelo contra as
costas de Baby-John e falaram para ele não gritar. Quando os três
chegaram ao banheiro masculino, Nibbles encheu a boca de
Baby-John com papel higiênico, empurrou-o para dentro de uma
cabine e começou a espancá-lo. Depois de quase afogarem o
garoto no vaso sanitário, Pepe cortou a orelha de Baby-John com
o picador de gelo e mandou-o levar aquilo, que era sua marca
registrada, para os Jets com uma mensagem: os Sharks estavam
dispostos a enfrentá-los, mas não a descontar nas pessoas mais
velhas. Se os covardes dos Jets não dessem um basta, iam se
ferrar de verdade.
— Isso já é demais! — exclamou Riff aos Jets. Estavam
reunidos no apartamento dele porque seus pais precisaram fazer
hora extra no trabalho. — Ninguém ataca Baby-John e consegue
se safar.
— Sou uma vítima — disse Baby-John, orgulhoso.
— Você agora está marcado — observou A-Rab. — O que faz
de você uma propriedade dos porto-riquenhos, eu acho.
Riff bateu na mesa com a ponta pesada de sua faca retrátil.
— Chega de conversa. Sabe qual Shark fez isso? — perguntou
a Baby-John.
— Um deles foi Nibbles — respondeu ele. — Mas aqueles
babacas cretinos são todos parecidos. Disseram que fizeram isso
comigo porque joguei a bomba de fedor na loja. — Baby-John
tocou com cautela no lóbulo da orelha. — Vocês vão deixar eles
escaparem dessa?
— Já chega disso. — Riff foi enfático. — Agora vamos
trabalhar sério. Atenda a porta, Diesel — pediu, porque tinham
ouvido alguém bater.
Riff esperava ver Tony na porta. Por vários dias havia deixado
mensagens para ele na caixa de correio, explicando como as
coisas andavam mal, como precisavam que ele voltasse. Mas era
Anybodys, e ela conseguiu escapulir para a cozinha passando
por baixo do braço de Diesel.
— Como é que você não me avisou desta reunião? — disse ela
para Riff, com tom desafiador.
— Pelo amor de Deus, você continua rondando a gente? —
perguntou Action.
Ele se levantou da cadeira que inclinara contra a parede e
estalou os lábios com aversão; Anybodys lhe causava arrepios.
— Quer que eu a jogue pela janela? — perguntou para Riff.
— Ninguém vai jogar ninguém pela janela — retrucou ela e,
para confirmar o que dizia, ameaçou-os com uma caneca de
cerveja que ela havia quebrado, deixando apenas a alça intacta,
mas o restante com pontas afiadas. — E agora, em quem preciso
dar uma lição para provar que tenho direito de ser uma Jet? Riff,
que tal me deixar entrar na gangue? — perguntou.
A-Rab tapou o nariz, vaiou e apontou para Anybodys.
— Que tal a gangue meter na... aaaah, quem iria querer isso?
— Seu cretino! — Anybodys avançou contra A-Rab. — Vou
retalhar sua cara!
Com um movimento rápido, Riff segurou Anybodys,
desarmou-a e jogou a caneca quebrada na lata de lixo perto da
pia.
— Cai fora, mocinha, cai fora — mandou Riff, empurrando-a
pela porta que Tiger havia aberto. Com a porta de novo trancada
e a corrente no lugar, Riff se voltou para os seus parceiros. —
Estão preparados, rapazes?
— Estamos. — Action liderou o coro.
— Ótimo. — Riff voltou para a mesa e olhou ao redor,
orgulhoso por não haver nenhum covarde no grupo. — Agora,
na minha opinião, tivemos que lutar muito para conquistar este
território, e me recuso a ficar parado vendo uns latinos nojentos
tomarem o que é nosso. Eles se contentam em atacar e fugir, mas
esse tipo de provocação está me enchendo o saco. Além do mais,
quero acabar logo com isso. Então, chegamos à única solução
possível. Vamos partir para cima com tudo e acabar com eles
numa briga daquelas.
— Todos nós contra todos eles? — Em um salto, Action se
levantou e, com os punhos cerrados, começou a golpear o
estômago de um oponente imaginário. — Eu estava esperando
justamente por isso.
— Agora você entendeu — disse Riff, ríspido. — Mas talvez
esses palhaços não queiram usar só os punhos. Talvez venham
com garrafas ou facas, ou até queiram nos encher de balas.
Os olhos de Baby-John se arregalaram.
— Usar armas, você quer dizer? Não que eu tenha medo —
acrescentou depressa —, mas armas? Onde vamos conseguir
armas para todos?
— Só estou dizendo que é possível — explicou Riff. — Estou
só dizendo que, se eles quiserem desse jeito, vamos estar
preparados? Estou pronto para acabar com tudo da maneira que
eles quiserem. Mas preciso saber o que vocês pensam disso.
Diesel e Action estavam de pé e gritaram que estavam
preparados para ir em frente. Mouthpiece e Gee-Tar fizeram de
conta que retalhavam o rosto um do outro. Big Deal fingiu
apunhalar Snowboy no coração, enquanto Snowboy apontava o
indicador para A-Rab. Estavam brincando com a morte, mas
preparados para ela; e quando Action começou a gritar que,
embora há muito tempo não metesse a faca em ninguém, não
havia perdido a habilidade, os lábios de Baby-John começaram a
tremer. Tocou na orelha, e a sensação do sangue seco acabou
com sua coragem.
— O que acho é que devemos lutar contra eles com os punhos,
ou até com pedras — sugeriu Baby-John —, mas nada de facas ou
armas de fogo. Não precisamos lutar como os latinos nojentos.
— Ele se perguntou se seu medo estava evidente. — Se não
quisermos uma luta suja e os desafiarmos para uma luta limpa,
provaremos que eles são covardes se não mostrarem uma luta
tão limpa quanto a nossa. Não é verdade?
Diesel cobriu o rosto de Baby-John com a palma da mão
direita e empurrou o menino para o lado.
— O que acha, Riff?
— Esta área é tudo que temos — respondeu Riff. — Não é
grande coisa. Você pode até pensar que ninguém ia querer esse
território. Mas os porto-riquenhos têm outra opinião. Ninguém,
mas ninguém mesmo, vai pegar o que é meu.
— Estamos com você — concordou Mouthpiece.
Dando um soco na mão esquerda com o punho direito, Riff
reconheceu o apoio dos Jets.
— Quero lutar por nosso território, como sempre fizemos. —
Repetiu o golpe na outra mão e ficou satisfeito ao ver que alguns
dos companheiros o imitavam. — Mas se eles quiserem usar
facas, estou pronto para usar a minha. E se marcá-los de cima a
baixo com nosso nome for o único modo de eles entenderem o
recado, estou pronto para fazer isso.
De um jeito bobo, Big Deal ria solto enquanto, com as duas
mãos, continuava a fazer movimentos que simulavam o uso de
uma faca. Tiger fingiu estripar Snowboy, que segurou a barriga
enquanto caía de joelho no chão. Action estalou os dedos com
tanta força que o som lembrou o estampido rápido de uma arma.
Riff estava satisfeito. O grupo o seguia em tudo. E quando girou
o braço direito para imitar o movimento de uma hélice, Baby-
John começou a correr em círculos e a fazer ruídos de disparos
com a boca.
— Tudo bem. — Riff fez um sinal para que os Jets se
acalmassem. — Já que somos brancos e não acreditamos que se
deva tirar vantagem injusta do inimigo, e também porque vejo
que não nos vem outra ideia, sugiro pedir aos Sharks que
mandem seu conselho de guerra se reunir com o nosso para
decidirmos sobre as armas. Mas eu mesmo levarei o desafio para
Bernardo.
Ninguém discordou de Riff porque, como líder dos Jets, essa
era uma de suas principais atribuições, talvez a mais importante.
— Você precisa levar um apoio — sugeriu Snowboy.
Action empurrou Gee-Tar e Mouthpiece para o lado.
— Eu vou, Riff.
— Tony vai — corrigiu Riff, contradizendo Action.
Se Action não tivesse se manifestado, Riff o teria escolhido
para acompanhá-lo. Mas era preciso mostrar a Action que o
chefe não era ele.
— Vou falar com Tony agora mesmo.
— Só um segundo — interveio Action. — Quem precisa de
Tony? Não sou a favor de puxar o saco de ninguém. Ele nos
abandonou, então não vamos fazê-lo voltar.
Riff era deliberadamente paciente, outra característica da
liderança.
— Precisamos de todos os homens que conseguirmos para
combater os Sharks.
— Você não me ouviu, Riff? — Action continuava balançando
a cabeça, fazendo que não. — Ou Tony não falou alto o
suficiente quando disse que iria embora?
— Chega, Action — retrucou Riff. — Não me diga que você
esqueceu que fomos Tony e eu que fundamos os Jets.
Não havia como questionar esse fato, e Action percebeu que
não tinha muito apoio dos outros Jets. É verdade que alguns dos
garotos pensavam o mesmo que ele sobre Tony, um maldito
polaco que metera o pé por causa de uma coisa qualquer sobre a
mãe dele. Mas Riff era o líder, e a verdade era essa; Tony tinha
fundado os Jets.
— Bem, ele age como se fosse bom demais para nós —
continuou Action, ainda argumentando. — E se é assim que ele
pensa, eu não bateria na porta dele se minha vida dependesse
disso.
— Os Jets contam mais do que qualquer um de nós sozinho —
disse Riff. — Isso é uma coisa que Tony verá.
— Você tem razão — disse Baby-John depois de se certificar
de que estava longe o suficiente dos outros para que a reação à
sua resposta não fosse um soco na cara. — Tony é como todos
nós. Tem orgulho de ser um Jet.
— Tony não dá as caras há mais de três ou quatro meses —
retrucou Action, com rispidez.
— Lembram do dia em que enxotamos os Emeralds? —
perguntou Snowboy.
— Sim — respondeu A-Rab. — Não teríamos conseguido sem
a Pantera Polonesa.
Baby-John esfregou a nuca.
— Para mim, ele salvou essa.
— Está decidido — afirmou Riff para encerrar a discussão. —
Tony vai comigo ao encontro com Bernardo. Ele nunca
abandonou nenhum dos Jets — disse, em provocação a Action —
e pensa como nós sobre este território. Posso garantir. Então,
Action, mais alguma pergunta?
— Sim — insistiu Action. — Quando vai ser? Não acho que
devemos deixar os porto-riquenhos na tranquilidade e na paz
por muito tempo.
— O que levanta uma questão importante. — A-Rab falou alto
para chamar a atenção de todos. — Onde vão achar Bernardo? —
Ficou na ponta dos pés, colocou a mão sobre os olhos e fingiu
procurar o líder dos Sharks. — Tenho uma informação. Não o
vejo — fungou —, nem sinto seu cheiro.
— É fácil — cantarolou Riff enquanto fazia um passo de
dança. — Vai ter um baile no centro comunitário hoje à noite.
Não vai?
— Vai — responderam os Jets em coro. — Então nós
pegamos...
— ... os Sharks — completou Riff. — Bernardo se acha um
dançarino e tanto, então é claro que vai estar lá. E nós também,
com toda a nossa...
— Força. — Big Deal fechou um olho como se pensasse em
algo. — Parece que ouvi em algum lugar que o centro
comunitário é território neutro e que Schrank, Krupke e
companhia aparecem muito por lá. A não ser que esteja
pensando em mudar isso, Riff.
— Deixamos assim por um tempo — decidiu Riff. — Mas se
Bernardo estiver lá, quero desafiá-lo. Agora, precisamos parecer
que vamos ao centro para dançar e socializar. Então, se arrumem
e fechem os zíperes.
Mouthpiece fez de conta que se barbeava.
— A que horas devemos chegar?
— Entre oito e meia e dez — respondeu Riff após pensar um
pouco. Olhou para Action à espera de sua opinião, e Action
concordou com a cabeça. — Não podemos chegar em grupo —
acrescentou. — Cada um deve fingir que foi lá apenas para
dançar, nada mais.
— Isso significa que devemos levar parceiras? — Baby-John
choramingou.
— Claro — confirmou Action. — Você pode ir com Anybodys.
*

Enquanto corria pelo corredor de um prédio, pulava por cima de


uma cerca para chegar à próxima rua e caminhava pelo meio
dela, Riff sentiu que de fato podia se orgulhar de quem era.
Sozinho agora, achou melhor continuar no meio da rua, onde o
perigo dos automóveis era menor do que o perigo dos Sharks,
que poderiam surgir de repente de algum beco, dar uma boa
surra nele e deixá-lo jogado na calçada, com a barriga espancada.
Era importante que chegasse ao centro comunitário preparado
para dançar como um rei e mostrar às outras gangues presentes
no baile que Riff Lorton era tão bom quanto Tony Wyzek, e que
a gangue não tinha se desmantelado só porque Tony caíra fora.
Com passos rápidos, estalando os dedos, Riff se sentia mais alto
do que os prédios, mais alto do que qualquer coisa, tão alto que
poderia ter alcançado uma nuvem com a mão e a usado para
polir os sapatos.
O tempo agora ia se arrastar até chegar a hora de ele ir ao
baile e lançar o desafio a Bernardo. Pensou se o porto-riquenho
ficaria com medo e deixaria o território para eles sem brigar.
Esperava que não. Se era isso que Bernardo planejava, a única
coisa a fazer seria jogar uma bomba de fedor em seu
apartamento. Ei, que tal isso? Seria um modo de lançar o desafio
ao inimigo, uma ideia que Tony tivera uma vez, algo que todas
as gangues de West Side — e da cidade inteira — precisariam
reconhecer como o método mais maneiro de estabelecer o limite.
Cara, isso, sim, seria dar um golpe no inimigo!
Tentado a voltar e perguntar o que os Jets achavam da ideia,
Riff se deu conta de que era tarde demais para reuni-los para um
ato tão imprudente. O que haviam planejado já era bastante
perigoso; o que ele queria fazer só levaria a correria, ataques e
fugas pelas escadas, às escuras, de um local onde eles talvez
tivessem que brigar não só com os Sharks, mas também com
todos os outros na casa.
O desafio no centro comunitário já valeria. Então, se Bernardo
ficasse com medo, eles poderiam tentar o outro método. Que
bando — Riff se encheu de orgulho ao pensar em seu grupo —,
todos sabiam quem eles eram e todos se afastavam quando eles
passavam, e era assim mesmo que devia ser.
Logo, logo, a rua seria dos Jets de novo, e cada quadra que
chegasse à rua deles pertenceria a eles, e cada quadra que
chegasse a cada quadra que chegasse à rua deles seria... — Riff
começou a correr, movimentando o braço direito à sua frente —
... deles também. Propriedade dos Jets, assim seria. E Tony ainda
não sabia, mas Riff o tinha escolhido para ser o homem que
ajudaria a ampliar o mundo dos Jets. Que honra ele estava lhe
concedendo!
A uma quadra da farmácia de Doc, Riff fez uma pausa para
tomar fôlego e acender um cigarro. Respirou devagar, sentiu o
ritmo de seu coração voltar ao normal e avaliou seu reflexo na
vitrine de uma loja. Satisfeito por não parecer muito
entusiasmado — e com certeza por não parecer preocupado,
porque a última coisa que ele queria que Tony visse era seu ar de
preocupação —, Riff começou a assobiar.
Poucos minutos antes, sua mente era um turbilhão de
pensamentos confusos; agora sabia o rumo que as coisas
tomariam se Bernardo estivesse no baile. O porto-riquenho
aceitaria o desafio e poderia escolher brigar com facas, até com
armas de fogo. Cerca de uma semana antes, Riff tinha dado de
cara com dois sujeitos da Musclers, uma gangue de pretos do
Harlem, e visto o corte que um deles levara da testa até o queixo
feito por um Shark.
Se realmente fosse acontecer, essa seria a grande briga deles.
Se Action, Diesel ou qualquer outro sabia, não importava,
porque ele sabia, e Tony logo seria informado de tudo.
Diante de seu reflexo no vidro da porta, Riff deu uma piscada
de olho para si mesmo, meneou de leve a cabeça e, com os cantos
dos lábios voltados para baixo, disse baixinho que tudo ficaria
bem. Jogou o cigarro por cima do ombro e, sem parar de assobiar
para aparentar tranquilidade, entrou na farmácia, as duas mãos
erguidas para garantir a Doc, que o olhava com ar desconfiado,
que estava ali para tratar de um assunto sério e não para roubar
o que quer que fosse de algum balcão.
— Tony já saiu? — perguntou e consultou o relógio.
Eram cinco e meia da tarde; droga, ele não queria ir à casa de
Tony.
— Está lá nos fundos — respondeu Doc.
Magro, mais baixo que a média, Doc usava óculos grossos que
sempre escorregavam de seu nariz. Seu jaleco branco tinha
manchas de suor embaixo dos braços, e os chinelos folgados que
usava lhe provocavam dores por não oferecerem sustentação aos
arcos de seus pés. Doc respirou fundo, interrompeu a contagem
dos comprimidos prescritos em uma receita e guardou o número
na cabeça.
— Por que quer vê-lo?
— Isso é assunto meu — respondeu Riff enquanto fingia
pegar um pente de uma prateleira sobre o balcão. — Não vou
roubar nada, Doc. Só seu empregado e meu amigo. Aliás, quanto
paga para ele?
— Isso é assunto meu e do Tony. Se tiver mesmo interesse —
Doc fez uma pausa — e estiver sendo sincero, talvez eu consiga
arrumar um emprego como o de Tony para você. Aí você saberia.
— Não enche — retrucou Riff, e seguiu para a porta dos
fundos.
Atrás da loja havia uma pequena área pavimentada
circundada pelas paredes de três prédios. Em um canto,
amontoavam-se caixas com embalagens vazias de vários
refrigerantes e garrafões de vidro de água destilada em
engradados de madeira. Contra uma parede, estavam apoiados
cartazes de papelão e uma variedade de artigos empoeirados que
Tony havia retirado do porão.
— Fizemos isso na semana passada — explicou Tony a Riff. —
Doc tinha decidido que precisava estocar tudo, até o dia em que
entrou no porão e quase quebrou o pescoço ao tropeçar em
alguma coisa. Por isso agora fomos obrigados a carregar toda
essa tralha para fora de novo. E sabe o que mais?
— O quê? — perguntou Riff com atenção.
— Vai tudo voltar — disse Tony.
— Não me parece um trabalho importante — observou Riff.
Tony deu um longo suspiro.
— Não consigo fazer muito além disso — admitiu ele, e se
surpreendeu ao dizer isso sem se envergonhar. Pelo amor de
Deus, ele não era mais velho do que Riff, então por que se sentia
um irmão mais velho dele ou algo assim? — Tenho pensado em
voltar para as aulas à noite. O que acha?
— Acho que você devia mandar examinar sua cabeça —
brincou Riff, mas logo levantou a mão em um gesto de paz,
porque os olhos de Tony tinham ficado sombrios. — Tony,
escute, estou aqui para tratar de um assunto realmente
importante. Vamos ao centro comunitário hoje à noite procurar
pelo Bernardo.
— Acho que ouvi por aí que ele está atrás de vocês. — Tony
enxugou o rosto, pois o calor opressivo do dia parecia ainda
mais sufocante no pátio. — Quer tomar alguma coisa?
Riff respondeu que não meneando a cabeça.
— Estou aqui para falar de uma coisa melhor. Da pessoa que
vai estar ao meu lado quando eu desafiar Bernardo. De uma vez
por todas, vamos abrir o jogo.
Tony fez que não com a cabeça.
— Se veio aqui contando comigo, pode desistir.
— Você está brincando? — perguntou Riff. — Espere. — Mais
uma vez ele ergueu a mão para impedir que Tony respondesse.
— Você vai dizer que não, e eu vou perguntar por quê. Então fale
logo.
— Porque isso é uma grande burrice, até eu consigo perceber
— respondeu Tony. — Riff, escute...
— Estou ouvindo — Riff o interrompeu. — Mas não é fácil,
porque quem está fazendo a pergunta sou eu, Tony. — Bateu no
peito do amigo, depois no próprio peito. — Sou eu, Riff, lembra?
Tony, pelo amor de Deus, pare de mexer nessa tralha! O assunto
é importante!
— Muito importante — ironizou Tony. — Planejar levar uma
surra daquelas. Em você não vai ficar bem.
Riff estava de fato intrigado com o amigo, preocupado, até,
por isso se afastou para olhar melhor para Tony. Poucos anos
antes, eles tinham jurado amizade eterna, do útero ao túmulo, do
berço ao pó, como costumavam dizer; agora ele não conseguia se
entender com Tony.
— O que há com você? — perguntou Riff. — Já nos
conhecemos há tanto tempo, cara. Há muito tempo, e achei que
eu conhecia você. — Meneou a cabeça devagar. — Pensei que
conhecia você como conheço a mim mesmo. Fico muito
decepcionado por saber que não é assim.
Tony riu e deu um soco de leve no ombro direito de Riff.
— Então não precisa ficar decepcionado. Pare de sofrer,
moleque.
— Não sou um moleque!
— Então cresça. — Tony foi incisivo. — Riff, eu queria
terminar isso aqui agora. — Apontou para as portas do porão,
abertas de par em par. — Talvez ir a alguma praia nadar um
pouco. Sabe, nunca fui à praia... O que acha, Riff? — Ele estava
animado. — Vamos... a Rockaway! Podemos ir nadar de noite.
Que tal?
— Pare com isso.
— Eu entendo. Você prefere se divertir com os Jets. Tudo bem,
moleque. — Tony repetiu a palavra com ênfase. — Diga à
garotada que mando lembranças.
— Os Jets são os melhores! — gritou Riff, chutando as ripas de
madeira de um engradado para provar o que dizia. — Os
melhores! — Levantou ainda mais a voz e olhou para os prédios
para ver se alguém ousava desafiar aquela bravata.
— Eram — respondeu Tony com ar tranquilo.
— São — insistiu Riff. — Você achou coisa melhor?
— Ainda não.
— O que está procurando, então?
Tony pensou por um momento.
— Não acho que você entenderia.
Riff bateu no peito.
— Tente pelo menos, cara. Sou muito esperto. Pode falar.
Um pensamento acometeu Tony certa noite, quando estava
sozinho, no metrô. Era um descontentamento com a persistente
sensação de inferioridade que nem sua posição de líder dos Jets
conseguia apagar. Ele era um ignorante, não sabia nada, e nem
toda aquela ideia de ser um grande homem no mundo mudaria
isso. Claro que ele era maneiro, mas e daí? Continuava sem saber
de nada. Ele era um ignorante. E, pelo jeito, seria ignorante para
sempre. Devia haver algo além disso.
Muitas horas mais tarde naquela noite, depois de ter pegado
um trem do Brooklyn para o Bronx, depois do Bronx para o
Queens e do Queens para Manhattan, Tony voltou para a sua rua
perto da Columbus Avenue, subiu as escadas escuras que
cheiravam a cada uma das refeições já preparadas na casa, a
cada garrafa de bebida ali consumida, a cada gota do suor
trazido pelo verão, ao sal de cada lágrima derramada por raiva
ou desespero, e se sentou no telhado até o amanhecer.
Essa foi sua última noite como Jet, sua última noite como
líder. Na manhã seguinte, saiu à procura de emprego, e Doc lhe
dera um na farmácia. Na verdade, ele não sabia se Doc lhe dera
um emprego porque seria mais barato tê-lo na folha de
pagamento do que deixar acontecer sabe Deus o quê na loja; mas
já fazia agora quatro meses que ele trabalhava ali, e se os Jets
não estavam gostando disso, sua mãe estava. E já era hora —
Tony pensou com vergonha, um sentimento novo também — de
ele fazer alguma coisa para deixá-la feliz.
Ou isso era careta demais? Ele não ousava contar aos Jets, não
ousava admitir a ninguém a confusão emocional a que essa ideia
o levara, e a maneira mais fácil de escapar era se afastando de
Riff, Ice e Action, que haviam assumido o comando dos Jets.
— Estou confiando isto a você — confessou Tony.
Riff se sentiu encorajado.
— O que significa que ainda somos amigos?
— E sempre seremos. — Tony sorriu, mas logo ficou sério. —
Tenho tido esse monte de sonhos — começou. — Estou sempre
em algum lugar tentando alcançar alguma coisa.
— O que você tenta alcançar? — perguntou Riff, com uma
diplomática demonstração de interesse.
— É difícil dizer. No início, pensei que eu ia chegar a algum
lugar. Não a um quilômetro de distância ou a cem, mas a
milhares de quilômetros. A lugares que só vemos no mapa.
— Então entre para a Marinha — brincou Riff —, se quer que
te ferrem e te tatuem em cada porto. O que vai ganhar com isso?
Pode conseguir a mesma coisa aqui e fazer de conta que está a
mil quilômetros de distância. Se quiser ver chinos, vá para
Chinatown. Se quiser ver a África, são duas ou três estações de
metrô mais adiante. Quer ver a Itália? A que distância fica
Mulberry Street? Mas se quiser ver Porto Rico, vá para Porto
Rico. É a única coisa que não quero ver por aqui.
Com um gesto, Tony refutou a lógica mesquinha de Riff.
— Não preciso andar milhares de quilômetros para encontrar
o que procuro, eu acho. Posso encontrar ao dobrar uma esquina
ou na minha porta. — Apontou para uma das janelas escuras do
prédio que se erguia acima de sua cabeça. — Ou lá em cima.
Riff se inclinou para trás.
— O que tem lá em cima?
A língua de Tony parecia inchada, como acontecia quando ele
sonhava.
— Não sei. — Era preciso um grande esforço para ele
conseguir falar. — Algo que me daria um grande barato, eu acho.
Mais do que um barato, até — continuou —, mas não sei
explicar.
— Você virou um viciado? — Riff parecia horrorizado. — Olha
aqui! — Apontou um dedo para Tony. — Se eu descobrir que
você...
— Não é nada disso — Tony o tranquilizou. — Estou em busca
de algo que me dê o mesmo barato que eu costumava ter... como
um Jet!
Riff refletiu por um instante.
— Eu sinto esse barato quando penso que ainda somos
amigos.
— E somos — confirmou Tony, segurando a mão de Riff e
apertando-a com força.
Por um momento, ambos simularam uma briga, e, então, com
um movimento rápido, Tony desequilibrou Riff.
— Derrotado mais uma vez.
— E feliz por ser derrotado, desde que seja por você. O grande
barato vem das pessoas, Tony — concluiu Riff.
— Sim — concordou Tony. — Foi ótimo ver você. Mas se
tivesse vindo com A-Rab, Diesel ou qualquer um dos outros —
fez que não com a cabeça —, não sei. Estou pensando agora, Riff,
no que é ser um Jet. — Meneou a cabeça de novo. — Desculpe,
isso não dá nenhum barato.
— Cara, parece que você se esqueceu dos fatos da vida. —
Magoado, Riff rebentou a lateral de outro engradado. — Dando
barato ou não, sem uma gangue para chamar de sua, o sujeito é
um órfão. Por aqui cada um precisa de uma gangue mais do que
de um pai e de uma mãe. Não estou me referindo à sua mãe —
explicou Riff —, não depois de ter me tratado tão bem. Mas,
Tony, fatos são fatos. Se você não pertence a nenhum grupo, não
está em lugar nenhum, e pertencer aos Jets o coloca no topo de
qualquer lugar.
Era impossível Tony negar a sinceridade do argumento de
Riff, impossível apagar a história de anos a fio juntos. Em
quadros luminosos, claros e nítidos, cenas e mais cenas se
aglomeraram no primeiro nível da memória de Tony, jogadas ali
por sua consciência. Ainda assim, ele não queria ceder.
— Riff, para mim já deu. — Ele gostaria de ter falado com
mais ênfase, mas sua garganta parecia obstruída. — De verdade.
— O problema é muito grande, Tony — argumentou Riff, pois
havia reparado na debilidade da resposta do amigo. Foi difícil
disfarçar a empolgação, mas conseguiu. — Os Sharks atacam
com vontade, Tony. Precisamos detê-los agora ou dar o fora
daqui. — Fez uma pausa para Tony avaliar quão desesperadora
era a situação antes de estender a mão para pedir ajuda. —
Nunca pedi nada a ninguém, mas estou pedindo a você. É de
ajuda que preciso, Tony. Ajuda com letras maiúsculas. Queremos
ver você no centro comunitário esta noite. Vai ter um baile.
Tony se afastou.
— Não posso ir.
— Já disse ao pessoal que você iria — insistiu Riff.
Furioso por ter sido envolvido sem ser consultado, Tony ficou
tentado a dar um cruzado de esquerda no amigo. Logo, porém,
percebeu por que Riff fizera aquilo. Porque ainda o considerava
um amigo, seu melhor amigo. Talvez Tony não sentisse o mesmo
por ele, mas isso não era desculpa para decepcioná-lo. Não
apenas decepcionar Riff, mas todos os Jets, o bairro inteiro.
Ele não gostava de Bernardo e dos Sharks. Ninguém os tinha
convidado para vir para cá, e se havia uma disputa acontecendo,
não fazia sentido perguntar quem era o responsável. Ela estava
acontecendo, era isso que importava, e Riff havia apelado para
ele não como um Jet, mas como um amigo.
Na noite em que se afastara dos Jets, Tony dissera a eles que
queria Riff no comando. Tinha colocado Riff na liderança. Agora
era sua responsabilidade, sem evasivas, manter Riff à frente de
todos os outros.
Tony sorriu.
— Eu não queria cair na sua conversa, mas não sabia o tipo de
lábia que eu ia encarar...
— Às dez horas? — perguntou Riff.
— Combinado, às dez — confirmou Tony. — Sabe de uma
coisa? Tenho a sensação de que vou me arrepender disso pelo
resto da vida.
Distribuindo socos, Riff lutou contra um inimigo imaginário.
— Quem sabe? Talvez o que você espera estará rebolando no
baile! Cara, quando foi a última vez que você se deu bem? —
perguntou ele. — A gente se vê!

Um paredão de nuvens se movimentou sobre suas cabeças e


bloqueou o sol. Tony sentiu-se encurralado no pátio quente e
estreito, tão sombrio quanto as paredes e as janelas escuras
acima dele. Ele se recriminou por não ter sido mais firme, por
não ter dito a Riff que não iria. Ele deveria, de uma vez por
todas, ter deixado tudo claro para que até os mais idiotas
compreendessem.
Deveria ter levado adiante seu plano de ir à praia. E, enquanto
estivesse sentado lá, com o gosto de sal nos lábios, os dedos
cavando a areia e os olhos nas estrelas, alguma coisa poderia ter
acontecido. A coisa mágica que ele procurava às cegas poderia
vir do céu como uma bala de canhão.
O que seria? Outra praia? Uma cachoeira? Milhares de
pássaros voando em perfeita formação? Rastros de um jato no
céu? Um trapézio suspenso da lua? Uma garota, talvez? Por que
não?
As nuvens tinham cruzado o céu, azul mais escuro agora que
o dia quente e cansativo se rendia ao crepúsculo. Ele ouviu Doc
chamar e dizer que era hora da saída de empregados, mas não de
chefes, e que o que não tivesse sido feito podia esperar até a
manhã seguinte. Era só ele não esquecer de trancar as portas do
porão, e depois podia entrar para tomar uma bebida gelada.
— Esta noite vai ser ainda mais quente — disse Doc da porta,
onde se abanava com um exemplar antigo de uma revista
farmacêutica. — E mais ainda amanhã.
— É o que parece — concordou Tony.
— Devo fechar mais cedo, por volta das nove, depois vou a
um cinema com ar-condicionado. Se quiser comer um sanduíche
comigo, beber uma cerveja, sinta-se convidado. E se quiser levar
uma garota, posso deixar essa passar e comprar um ingresso...
— Eu gostaria, Doc — respondeu Tony —, mas tenho um
encontro.
— Riff, você e duas garotas?
— Não exatamente. Vou encontrá-lo no centro comunitário.
Vai ter um baile hoje lá.
— Então não posso culpá-lo por recusar meu convite — disse
Doc, dando de ombros. — Mas como é possível dançar em uma
noite tão quente? Bom, você não vai estar sozinho, isso responde
à minha pergunta. Nos vemos amanhã de manhã?
— Amanhã de manhã. — Tony se ajoelhou para colocar a
tranca na porta do porão. — Fique tranquilo, Doc. Vou passar
aqui por volta das nove para ajudá-lo a baixar as grades.
— Obrigado. Que mundo é esse onde precisamos de grades de
ferro nas janelas?
— Culpa dos porto-riquenhos — disse Tony.
— E não de seu amigo Riff e seus parceiros? — Doc falou com
ironia. — Tudo bem, Tony, vejo você amanhã, e não se preocupe
com as grades. Eu me viro. Mas se cuide hoje à noite.
CAPÍTULO TRÊS

A loja de noivas era grande o suficiente para acomodar três


máquinas de costura, três manequins, uma pequena mesa para
cortar tecidos e um provadorzinho. Uma placa na janela
informava aos passantes que ali se falava inglês. Señora
Mantanios, a viúva de meia-idade que era proprietária da loja,
tinha imaginado que a placa seria capaz de atrair uma clientela
não porto-riquenha. No entanto, ao longo da primeira semana
em que a placa foi colocada, escrita com caligrafia perfeita, letras
douradas e grandes para que qualquer um conseguisse ler, a
Señora Mantanios não precisara usar uma única palavra em
inglês.
Indignada com tamanha intolerância das pessoas, a Señora
saíra cedo para tomar um banho e trocar de roupa. Dois amigos,
casamenteiros amadores, levariam até ela uma visita, um
cavalheiro viúvo há muitos anos. A noite não prometia alívio
para o calor, e ela queria ter jarras de chá, café e limonada na
geladeira, além de um pouco de vinho e cerveja.
Por vários momentos angustiantes ela hesitara em deixar a
loja nas mãos de Anita Palacio. Anita era uma costureira boa e
competente em Porto Rico, mas em Nova York estava fora de
controle. Ela lhe dissera que queria ficar até mais tarde para
ajudar Maria Nunez a reformar um vestido que usaria em um
baile naquela noite. O evento seria no centro comunitário, que
um dia já havia sido uma igreja, e tudo parecia muito
respeitável.
Depois de alertar várias vezes que as jovens deveriam conferir
se as duas portas estavam bem trancadas e se assegurar de
baixar a grade de ferro, para evitar que os anglos roubassem o
vestido do manequim na vitrine, a Señora foi embora.
Ela correu em direção ao apartamento onde morava, não
porque estivesse atrasada, mas para ficar menos tempo na rua.
Muitas e muitas vezes a Señora tinha sido alvo das obscenidades
ditas por garotos vulgares e imorais. Eram loiros, ruivos, alguns
sardentos, todos irlandeses, poloneses, sabe-se Deus o que mais,
e por que Ele havia criado esses países e seus povos era um
mistério que ela jamais entenderia.
Já com as duas portas da loja trancadas e as grades baixadas,
Maria saiu do provador com seu vestido branco.
— Acha que consegue fazer as mudanças até hoje à noite? —
perguntou.
Anita apenas confirmou com a cabeça, porque tinha vários
alfinetes na boca. Com quase dezoito anos e olhos castanhos e
selvagens que brilhavam ainda mais no escuro, Anita era poucos
centímetros mais alta do que Maria e tinha muitos centímetros a
mais nos seios, nos quadris e na bunda. Bernardo jurava que sua
namorada era derretida e derramada dentro dos vestidos que
usava, pois eles se ajustavam a ela como uma segunda pele.
Moldada, amigos, moldada, ele costumava dizer.
Anita tinha cabelos longos, que ela deixava soltos e rebeldes, e
usava delineador mesmo durante o dia. Seus lábios eram
volumosos e, como ela em geral usava muito batom, pareciam
sempre cheios de paixão. Durante o dia, trabalhava de
sapatilhas, mas vários sapatos com saltos de oito centímetros se
acumulavam ao lado da máquina de costura.
— Pode ficar parada um instante, por favor? — reclamou
Anita em espanhol.
— Fale comigo em inglês — pediu Maria.
— Se a gente quiser falar inglês, tem que pensar em inglês.
Mas eu gosto de pensar em espanhol — revirou os olhos com
exagero —, porque essa é a melhor língua para pensar em amor.
Mas, por favor, agora pare de se mexer.
Maria abriu um botão na gola para conseguir se movimentar
dentro do decote alto. Seu vestido de comunhão era de viscose
branca e macia, com bordado em ilhoses no pescoço, nos punhos
das mangas três quartos e na barra. Na cintura havia antes uma
faixa branca que Anita prometera substituir por uma vermelho-
escura ou azul, e Maria poderia usar uma fita no cabelo também.
Mas o decote era muito alto, e as mangas, longas demais;
ainda assim, se ela tivesse que fazer uma escolha entre as
mangas e o decote, ia preferir um ajuste no decote.
Maria pegou uma tesoura.
— Quero que aumente o decote — disse ela. — Deixe igual aos
de seus vestidos.
— Você ainda vai me fazer engolir alfinetes — protestou
Anita.
Ela usava uma régua para marcar a nova bainha do vestido,
que ficaria um pouquinho abaixo dos joelhos. Se Maria fosse
outra pessoa, não a irmã de Bernardo, ela teria recomendado
deixá-la acima dos joelhos, mas isso faria Bernardo ficar furioso,
e não era assim que Anita queria encontrá-lo naquela noite.
Nossa, havia momentos em que ele se enfurecia tanto que
seus olhos pareciam inflamados, tão febris que provocavam nela
todo tipo de coisas maravilhosas. Então ela o ajudava a se livrar
da raiva, ambos ficavam felizes em sua exaustão, e Bernardo
sussurrava da forma mais suave e doce que conseguia.
— Você precisa ficar quieta, Maria — insistiu ela —, caso
contrário, corre o risco de levar uma alfinetada você sabe onde.
— Você vai dar um jeito no pescoço?
— O pescoço está bom. Seria ótimo se todas as garotas que
conheço tivessem um pescoço lindo como o seu.
— Estou falando do decote do vestido. Um dedo só, que
diferença faz?
— Uma diferença enorme — retrucou Anita, e revirou os
olhos com uma expressão divertida para fazer Maria rir.
— Você está reformando este vestido para eu dançar. Para eu
dançar — insistiu Maria. — Não é mais para me ajoelhar diante
de um altar.
Anita colocou outro alfinete na bainha.
— Com aqueles rapazes, você pode começar dançando e
acabar de joelhos, implorando que a levem para o altar.
— Se não for um dedo, que seja um dedinho. — Maria
mostrou como era pequena essa medida entre o polegar e o
indicador dela. — Um dedinho de nada.
— Bernardo me fez prometer — suspirou Anita.
De onde estava, no chão, podia ver como eram bonitas as
pernas esbeltas de Maria. Garota de sorte... nunca precisaria
raspar as pernas nem se tornar para sempre refém de cremes e
loções para amaciar a pele.
— A culpa não é minha — explicou. — Bernardo me fez
prometer que cuidaria de você. E isso inclui a reforma do
vestido.
— Bernardo fez você prometer — debochou Maria. — Estou
neste país há um mês, e ele ainda me acompanha todos os dias
até a loja. E quando Chino não pode vir me buscar, Bernardo
vem para me levar para casa. Costuro aqui o dia todo e fico em
casa a noite inteira — reclamou. — Era isso que eu fazia em
Porto Rico.
— Você era uma menina em Porto Rico e não é muito mais
que isso aqui.
— É mesmo? Se sou uma menina, por que querem que eu me
case com Chino?
— Ah, não é nada disso — respondeu Anita. — Você tem
idade para se casar, mas não para usar um decote profundo.
— Mas terei idade suficiente para não usar nenhuma roupa —
replicou Maria, e logo escondeu o rosto, porque precisava e rir e
sentia que corava. — Você não pode contar para ninguém que eu
disse uma coisa dessas, nem mesmo para Chino.
— Com certeza não para Chino — disse Anita. — Como é —
ela agitou as mãos —, seu coração treme assim quando você olha
para ele?
Maria fez que não com a cabeça.
— Quando olho para Chino, nada acontece.
Anita gemeu ao se levantar.
— O que esperava que acontecesse?
— Não sei. — O tom de Maria era sério. — Alguma coisa, eu
acho. Ele é legal, mas... ele é legal.
Ela deu vários passos para chegar bem perto do espelho e ver
qual seria o comprimento do vestido. Estava ainda um pouco
abaixo dos joelhos, mas o que aparecia de suas pernas era
suficiente para deixá-la mais ou menos feliz. Agora só precisava
que Anita desse um jeito no decote, e um modo de conseguir
isso era fazê-la falar de outras coisas.
— O que acontece quando você olha para Bernardo?
— Não consigo olhar — brincou Anita. — Ele enche meus
olhos de estrelas até me cegar. Aí, sim, acontece.
— Entendo — disse Maria. — É por isso que você vai ao
cinema e não consegue contar para ninguém a história do filme.
Agora entendo o que acontece quando você e Nardo ficam na
varanda. Será que devo contar aos meus pais por que você não
sabe nada sobre os filmes a que assiste?
Anita prendeu os dedos no decote do vestido.
— Preste atenção no que diz, porque posso rasgar isto em
pedaços — ameaçou.
— Talvez se você pudesse pelo menos aumentar o decote... —
sugeriu Maria, e seus olhos garantiram a Anita que ela jamais
revelaria um segredo tão pessoal.
— No ano que vem. — Anita tentou parecer severa, mas não
conseguiu evitar um sorriso. — Temos tempo para fazer isso. —
Por um instante seus olhos se entristeceram. — Acredite em
mim.
Maria fez cara de choro e levantou um pouco o vestido; assim,
com os joelhos à mostra, estaria com um comprimento melhor.
— No ano que vem vou estar casada, e, se usar um vestido,
quem se importará com o comprimento?
— Tudo bem. — Anita ergueu as duas mãos em sinal de
rendição. — Até onde quer o decote?
— Até aqui. — Maria tocou no seu esterno, depois franziu o
cenho para si mesma no espelho. — Odeio este vestido!
— Então não o use e não vá ao baile — sugeriu Anita, e torceu
para que Maria aceitasse a sugestão.
Certa de que, não importava que ajuste fizesse no vestido,
Nardo acharia ruim, Anita se perguntou por que insistia na
discussão quando já poderia estar em casa, mergulhada em uma
banheira cheia de espuma. Estaria com as pernas e os braços
para o alto como em um strip-tease, e a cabeça cheia dos mais
deliciosos e imorais pensamentos, o que era uma boa maneira de
se livrar da tristeza e da inveja que sentia de Maria. Fale a
verdade, disse para si mesma, você até pode querer ser como a
irmã de Nardo, mas é impossível. Coloque mantos em Maria, e
ela parecerá a Madona.
— Não ir ao baile? — Maria estava chocada. — Nem você nem
ninguém pode me impedir de ir. Minha mãe deixou. — Ela
ponderou mais uma vez, batendo com a ponta do dedo no lábio
inferior. — Não podemos tingir o vestido de vermelho? Você
ficou linda com seu vestido vermelho.
— Não, não podemos! — Anita mantinha-se firme. — Maria,
por favor. Já tenho um grande trabalho pela frente só para deixar
o vestido pronto...
— Branco é para bebês — queixou-se Maria. — Vou ser a
única de branco no baile...
— ... se quiser ir ao baile, será de vestido branco — retrucou
Anita, incisiva. — Então, decida-se, por favor.
— De vestido branco — concordou Maria —, um pouco mais
decotado. — Ela insistia nisso. De repente, agarrou Anita pela
cintura e beijou-a no rosto. — Você é muito legal, Anita, e eu
amo você.
As fortes batidas na porta da frente deram a Anita uma
desculpa para se afastar da garota e evitar a vergonhosa
insensatez das lágrimas. É possível que, se estivesse mergulhada
na banheira, tivesse pensado em outra coisa: quanto tempo se
passara desde que ela se parecera com Maria. Mas, na verdade,
ela nunca tinha se parecido, não desde o momento em que
tomara consciência de que garotos eram diferentes.
Ela abriu a porta e deu um sorriso caloroso e sensual ao ver
Bernardo, seguido por Chino. Passou de leve a ponta da língua
entre os lábios, e Bernardo lançou-lhe uma rápida piscada de
olho antes de assumir uma expressão vazia.
Com o ombro, ele fez sinal para que Chino entrasse na loja e
se afastasse um pouco para Anita poder trancar a porta. Sem
jeito e com as mãos cruzadas nas costas, Chino balançou a
cabeça, e sua voz foi quase um sussurro quando cumprimentou
as duas, mas com os olhos fixos apenas em Maria, ainda com o
vestido branco.
— Como foram as coisas hoje? — perguntou Bernardo, após
oferecer o rosto para um beijo de Anita.
— Muito bem — respondeu ela. — Apareceram duas clientes.
E uma delas disse que gostaria que seu filho se casasse com uma
garota tão bonita quanto nós.
— Tão bonita quanto você — corrigiu Maria.
— Entendi o contrário — disse Anita. — Chino, por que está
encostado na porta? — Apontou para uma cadeira. — Sente-se
ali.
— Esta é uma loja para mulheres — argumentou Chino. Seus
dedos nervosos seguraram o colarinho da camisa, e ele se
abanou com seu chapéu de palha leve. — Dia quente lá fora —
observou, porque o clima era a única coisa sobre a qual ele
conseguia conversar com as garotas sem se sentir constrangido.
— Esqueça o dia — pediu Maria. — É esta noite que conta,
Nardo. — Virou-se para o irmão. — E é importante que eu me
divirta muito no baile.
— Por quê? — perguntou Bernardo. Ele tentou chamar a
atenção de Chino, para incentivá-lo a dizer algo, mesmo que
fosse uma das coisas que ele havia sugerido no caminho para a
loja, mas Chino insistia em continuar olhando para o chão. —
Por que isso é tão importante?
Com giros e piruetas diante do espelho de três painéis, que
faziam seu reflexo se multiplicar mais e mais, até que, de onde
estava Anita, parecia que um grupo de balé completo e vestido
de branco interpretava uma coreografia inocente, Maria foi na
direção do irmão, que agora sorria como nos velhos tempos.
Aquela noite seria tão especial, Maria pensou, que ela deveria
imitar Anita, e por isso beijou Chino no rosto. Sentiu sua pele
muito quente, muito macia, e nada mais.
— Porque esta noite é o verdadeiro começo da minha vida
como uma jovem da América! — entoou Maria. — Chino — ela
segurou suas mãos —, quero dançar esta noite. Dançar, dançar e
dançar! Mesmo depois que a música parar de tocar.
CAPÍTULO QUATRO

Vários anos antes, duas congregações religiosas se uniram, e a


mais antiga das duas igrejas em West Side, a que mais precisava
de reparos, havia sido colocada à venda. Por quase um ano a
igreja permanecera vazia, e suas janelas tinham, naturalmente,
se tornado um alvo, até que a instituição religiosa ofereceu ceder
o prédio às autoridades da cidade, caso encontrassem um bom
uso para ele. O presente tinha sido aceito, e a igreja foi
transformada em centro comunitário. Uma série de clubes para
meninos, meninas e adultos havia sido criada, e o centro
começara a funcionar, nunca com sucesso suficiente para encher
de orgulho os assistentes sociais e agentes comunitários que
trabalhavam nele, mas também sem ser um fracasso total.
Embora o centro estivesse aberto a todos, seu principal
objetivo era tirar a garotada das ruas e oferecer uma diversão
supervisionada e orientações a eles. Era um programa
inteligente e bem-intencionado, mas apresentava uma grande
falha: estava acessível a todos no bairro, inclusive aos porto-
riquenhos.
Quando se tornou evidente que os porto-riquenhos eram bem-
vindos, os moradores mais antigos do bairro começaram a evitar
o centro, e era quase impossível fazer com que seus filhos
usassem as instalações oferecidas. Então as famílias porto-
riquenhas também se afastaram, porque não queriam usar um
centro que era boicotado pelos anglos.
Pela maior parte do tempo, as áreas de convivência
permaneciam vazias, os livros e os jogos repousavam nas
prateleiras, a quadra de basquete não recebia ninguém e os
assistentes sociais se reuniam em um escritório onde,
debruçados sobre suas xícaras de café, meditavam e lamentavam
a escolha de suas carreiras. Era um trabalho desagradável e
ingrato.
Naquela noite de junho, no entanto, Murray Benowitz estava
feliz e confiante em relação ao futuro. Como em outras ocasiões,
ele tinha divulgado o baile sem grande otimismo e encorajado os
agentes a fazer o possível para atrair jovens para o evento, mas
lembrara à equipe de não se decepcionar se o evento não desse
certo.
Esse podia ser um ponto de vista amargo e preconceituoso,
mas era baseado em sua experiência. Como fazem muitos dos
que constroem carreira no serviço social e comunitário, Murray
Benowitz tinha observado o mundo com lentes cor-de-rosa e o
vira como o melhor de todos os lugares. Sua percepção agora era
outra; o mundo era cinzento, cruel e desolador. Mas ele
precisava sorrir para não chorar, sorrir quando a garotada
destruía equipamentos, rabiscava obscenidades nas paredes e
zombava dele por ser careta. Chamavam-no de Duas Caras, mas
ele aceitava e, estranhamente, ainda conseguia chamá-los por
seus nomes corretos.
Desde as oito horas daquela noite, os adolescentes já
movimentavam o centro comunitário, a ponto de Murray ter
precisado chamar dois monitores extras para ajudá-lo. Parado ao
lado do toca-discos, ele observava a decoração de papel crepom
não inflamável que fora pendurada de um jeito divertido sobre a
pista de dança.
A seleção de discos era muito boa. O ponche estava gelado.
Havia sacos extras de cubos de gelo, além de muitas taças e
guardanapos.
Embora tanto os Sharks quanto os Jets tivessem aparecido,
nenhuma briga havia acontecido. Murray ficara apreensivo, mas
os Sharks foram para um lado da pista de dança, os Jets para o
outro, e cada grupo dançou separadamente, como se houvesse
uma parede entre eles.
Bem, Murray pensou, era um bom começo. Logo ele e os
outros agentes tentariam reunir os dois grupos, mas garotos e
garotas continuavam a chegar ao baile, e ele estava ocupado
demais.
Circulando pelo salão, cumprimentando a garotada pelo nome
— quando lembrava —, parando aqui e ali para conversar e
conseguindo rir quando o chamavam de Duas Caras, Murray
preferiu não reconhecer que a dança se tornava cada vez mais
selvagem e mais primitiva. Para ele, dança mista e aberração
sexual sempre estiveram relacionadas. Mais tarde, se algum dia
conseguisse conquistar a confiança dos garotos do bairro e
provar que era amigo deles e queria ajudá-los, ele poderia falar
com o supervisor distrital sobre a necessidade de um professor
de dança.
Os olhos de Murray piscaram atrás dos óculos quando ele
olhou na direção da porta e viu os Sharks reunidos na entrada.
Reconheceu Bernardo, cuja namorada usava um vestido
vermelho vivo, e atravessou o salão para cumprimentar um dos
jovens que ele mais tinha interesse em influenciar.
Pelo canto do olho, percebeu uma agitação no local onde os
Jets tinham se concentrado, e decidiu apressar o passo. Chegou à
porta assim que Riff, Action e Tony Wyzek apareceram.
Seria mesmo uma noite e tanto! No fim de semana, escreveria
um relatório completo e entusiasmado para que as autoridades
soubessem que ele, finalmente, se sentia otimista quanto ao
progresso que vinha conseguindo.
Anos de dura experiência mostraram a Murray que o ar ao seu
redor ficava cada vez mais carregado à medida que os Sharks se
reuniam atrás de Bernardo, enquanto e os Jets formavam um
grupo atrás de Riff, Action e Tony.
Murray se perguntou se poderia ter entendido mal. Doc havia
dito que Tony Wyzek trabalhava em tempo integral agora e não
tinha mais nenhuma ligação com os Jets. Ainda assim, o garoto
podia ter tido uma recaída e sentido falta dos antigos
companheiros e de sua atitude coletiva de fazer valer a lei do
mais forte.
Ele precisava pensar e agir rápido, porque a impressão era de
que as duas gangues se enfrentariam ali mesmo. Viu que duas
das garotas dos Jets já estavam sem sapatos, prontas para usar o
salto alto como arma.
— Tudo bem, pessoal. — Murray forçou um sorriso, acenando
com as mãos para o alto na tentativa de ser ouvido. — Posso ter
um minuto de sua atenção, por favor? Atenção!
Acenou para um policial que espiou pela porta e, então,
Murray fez um gesto que dizia que estava tudo bem, tudo sob
controle, sem problemas à vista.
— Ótimo! — Murray agradeceu a reação ao seu pedido de
atenção, que, ele sabia, se devia em grande parte à ajuda do
policial que aparecera na porta. — Estou certo de que o baile vai
encher esta noite. O melhor em muito tempo. Mas a noite é uma
criança, passa pouco das dez horas, e queremos que ela traga
ainda mais diversão. — Ele fez uma pausa para respirar e se
forçou a não ouvir os rapazes e garotas que zombavam de sua
cordialidade profissional. — Espero que estejam se divertindo.
— Falou e disse, Duas Caras! — gritou uma jovem.
— Certo, mas percebi que estão dançando em lados diferentes
da pista, como se tivesse um Grand Canyon entre vocês.
— Uau! — exclamou um garoto, e fez uma pose com a mão no
quadril. — Quer que menina dance com menina? E menino com
menino?
— Quero que dancem uns com os outros. — Murray fez um
gesto que englobava Sharks e Jets. — Para que possam se
conhecer.
— Já conhecemos esses comerciantes de bombas de fedor! —
gritou um Shark.
Murray voltou a erguer as mãos.
— Vamos deixar o passado para trás — sugeriu. — Estamos
nos divertindo esta noite. À medida que formos nos conhecendo
melhor, vamos nos divertir ainda mais. Então, vamos começar
com uma dança para entrosar o pessoal. Quero que formem dois
círculos. Rapazes no de fora. Moças no de dentro.
— Ei, Duas Caras, e onde você fica? — gritou Snowboy.
Murray deu um sorriso forçado.
— Muito bem. Vamos colocar o disco, e então os rapazes
giram em um sentido e as garotas no outro...
— Safado! — gritou alguém.
— Dois círculos, pessoal. — Engrossou a voz para se fazer
ouvir apesar das risadas cínicas e maliciosas. — Então, quando a
música parar, cada rapaz dançará com a moça que estiver na sua
frente. Certo? Certo. Dois círculos, pessoal.
Com o rosto úmido de suor e os óculos embaçados, ele
conseguia ver que todos ainda estavam no mesmo lugar, que Jets
e Sharks continuavam a se desafiar.
As garotas, com maquiagem exagerada, penteados elaborados
e vestidos justos, os seios em evidência, por natureza ou
artifício, também se desafiavam. O silêncio se tornou mais
pesado, mais pleno e, com um explosivo suspiro de alívio que o
deixou envergonhado, Murray viu que o primeiro policial havia
retornado acompanhado de outro, que ele reconheceu como o
guarda Krupke.
Fez um sinal com a mão, chamou Krupke pelo nome e,
quando os Jets e os Sharks viram que o policial os encarava com
uma expressão hostil, decidiram formar círculos com suas
próprias garotas. Bernardo se colocou na frente de Anita; Riff
formou par com Graziella, que estalava os dedos sem parar,
ansiosa para que a música recomeçasse logo, já que adorava
dançar e eles estavam perdendo tempo.
Mas não era isso que Murray queria, por isso explicou de
novo. Olhou para Krupke, que gritou que as instruções eram
muito claras e qualquer um podia segui-las, então qual era o
problema?
Não havia como desafiar as ordens, então os tais círculos
foram formados, colocaram o disco para tocar e Murray aplaudiu
quando os garotos e as garotas começaram a girar em direções
opostas.
— É isso aí, garotada. Continuem girando. Para onde o círculo
roda e onde ele para, ninguém sabe! Muito bem, vamos lá!
Murray gritou e fez um sinal para que um dos agentes
interrompesse a música. Ele piscou e arregalou os olhos, e sua
expressão foi de decepção. Embora os círculos tivessem parado e
alguns Jets se encontrassem diante de garotas que haviam ido ao
baile acompanhadas por Sharks, eles se limitaram a olhar uns
para os outros, até o momento em que Riff, com expressão de
evidente contrariedade, afastou-se da garota Shark à sua frente e
fez sinal para que Graziella se aproximasse.
Foi um insulto gratuito, que indignou ainda mais os Sharks
por um Jet ter pensado nisso primeiro. Tremendo de raiva pela
humilhação pública, Bernardo estalou os dedos para Anita, as
gangues se separaram, e as garotas as seguiram.
Com um gesto, Murray pediu que colocassem logo outro disco
e suspirou aliviado quando o som vibrante e selvagem de um
mambo tomou conta do salão. Por mais estranho que pudesse
parecer, aquele era o tipo de música que talvez os acalmasse,
pensando de um ponto de vista antropológico. A música de fato
tinha o poder de às vezes entorpecer selvagens, e era disso que
precisavam naquele momento. Inebriá-los com música para que
não pensassem em ódio. Mais tarde, quando o baile acabasse, os
Jets e os Sharks iriam embora, e então a responsabilidade não
seria mais dele.
Murray Benowitz sentiu um calafrio. Pensou se Krupke se
incomodaria de lhe dar uma carona até a estação de metrô e
esperar até ele entrar em segurança no vagão que o levaria para
casa. Que modo de ganhar a vida!

Desde o momento em que botou os pés no baile, Tony se sentiu


deslocado. Não levou ninguém com ele, e todos estavam
acompanhados. E quando viu Bernardo e os Sharks, Riff e os
Jets, pareceu que não os conhecia. Se andasse na direção da
porta, ninguém perceberia, e ele poderia escapar. Se Riff fosse
burro o suficiente para desafiar Bernardo, o problema seria dele.
Foi quando reparou na garota de vestido branco encostada na
parede. Quando a viu, seus olhares se cruzaram, e qualquer
intenção que ele tivera de ir embora desapareceu. Como se
estivesse sendo conduzido, Tony Wyzek se aproximou de Maria
Nunez, olhou dentro de seus olhos escuros, estendeu as mãos e
foi levado por ela para um outro mundo.
O mambo chegara ao fim, e uma música mais lenta começava
a tocar na vitrola. Enquanto flutuavam até a pista de dança,
Tony segurou com delicadeza os dedos de Maria e baixou os
olhos para seu rosto em formato de coração, seus olhos
castanhos cristalinos, sua linda boca coberta por um batom
suave. Assentiu com a cabeça, demonstrando que aprovava o
vestido de Maria, branco, lindo, muito diferente de tudo que as
outras garotas estavam usando.
Seus dedos mal encostavam nas costas de Maria. O toque da
pequena mão em seu ombro era suave, delicado; quando a
conduziu em um giro e a pressão de sua mão foi um pouco mais
firme, ela estremeceu e pareceu querer afastá-lo, então Tony
pressionou os dedos apenas por um breve momento e logo os
relaxou.
Não havia o que temer, ele disse a Maria. Mesmo nunca tendo
estado nesse outro mundo, ele o conhecia bem. Era um mundo
aprazível, com campos verdes, ventos cálidos, pássaros coloridos
e flores perfumadas; ainda que caminhassem em nuvens, eles
não cairiam. Ele escutava a música, mas era como se ela viesse
de muito longe.
Maria sentiu que seu coração estava prestes a explodir. As
luzes sobre eles tinham esmorecido para que ela não pudesse ver
o garoto anglo com quem dançava? E por que não sentia medo
dele? Por que ele não olhava, agia, falava como Bernardo dizia
que os anglos faziam?
A noite estava quente. Ela sentia o suor escorrer por suas
costas, mas o toque dos dedos daquele garoto era tão fresco, e ele
dançava com leveza, sem pressioná-la, sem tentar “forçar a
barra”, que era a expressão que Bernardo usava para descrever o
modo dos anglos dançarem. Mas ela tinha visto como Bernardo
dançava com Anita, como todos os Sharks dançavam com suas
garotas, e eles não eram diferentes dos Jets.
— Não está achando que sou outra pessoa?
Ela o ouviu perguntar em uma voz agradável, muito tímida.
Então Maria meneou a cabeça, respondendo que não.
— Sei que não é.
— Ou que já nos vimos antes?
Tony se limitou a perguntar, em vez de gritar de alegria
porque ela não o abandonaria. Ele agora tinha certeza disso. Era
assim que precisava ser nesse mundo: as pessoas que entravam
juntas permaneciam nele juntas, para sempre.
— Sei que nunca nos vimos — respondeu Maria. — Eu... estou
feliz por ter vindo ao baile.
— Eu também. Sabe que quase fui embora? Então a vi e
entendi a mensagem.
Ela ficou confusa.
— Que mensagem?
Pensar era uma coisa, expressar o pensamento era outra. Ele
umedeceu os lábios.
— Não sei — começou ele devagar. — Nos últimos meses eu
meio que tenho me feito essas perguntas... Quem sou eu? O que
andei fazendo? Para onde estava indo? Algo grande e importante
ia acontecer comigo algum dia? Às vezes me sinto tão triste
que... desculpe — gaguejou — ... quer dizer, me sentia tão triste,
imaginando se não estaria me iludindo sobre o que aconteceria.
Entende o que quero dizer?
— Acho que sim. — Maria estava séria. Que olhos
maravilhosos ele tinha. Ela jamais ouvira alguém explicar
melhor essa sensação. — Claro que entendo — acrescentou,
então hesitou, e decidiu continuar: — Eu me senti assim no
avião.
— Nunca andei de avião — disse ele. — Deve ser maravilhoso.
Consciente de que a música havia acabado, Tony ficou feliz
que tivessem dançado em direção a um canto onde havia um
banco.
— Sabe — começou ele, depois que sentaram —, você parece
saber o que vou dizer antes mesmo de eu falar. — Ela pousou os
dedos na borda do banco, e ele os cobriu com a mão. — Estão
frios — notou ele.
— Os seus também.
Com delicadeza, ela ergueu a mão livre e tocou o rosto de
Tony, como fizera mais cedo naquela noite com Chino. A pele
era mais áspera, não mais quente, mas as pontas de seus dedos
pareciam ter tocado em um cabo elétrico.
— Seu rosto está quente.
Tony ousou tocá-la no queixo.
— O seu também.
— Mas é claro. — Maria sorriu. — Eles são uma coisa só. E
está quente. Está...
— Úmido? — ele sugeriu a palavra, e ficou feliz quando ela
concordou.
— Sim. Mas ainda assim não é pelo calor que está fazendo
hoje.
— Sabe o que acabei de ver quando você disse isso? Fogos de
artifício. Cata-ventos e foguetes enormes. Mas sem som, apenas
luzes. Lá — seu dedo indicador traçou uma trajetória —,
consegue vê-los?
— Sim — respondeu ela. — São lindos.
— Não está brincando? Não diz isso para me fazer de bobo?
Está vendo mesmo?
Com o dedo, Maria desenhou uma cruz acima do coração.
— Ainda não aprendi a brincar assim, e agora...
— ... sim?
— Acho que jamais aprenderei.
Os foguetes continuavam a subir, unindo-se no céu para
explodir em corações e estrelas antes de descerem em uma
cascata de luz. Num impulso, como a mão de Maria estava quase
em sua boca, Tony aproximou os lábios para beijar sua palma. E
quando a beijou, sentiu a jovem estremecer.
Ele se inclinou para a frente para absorver a adorável
fragrância de seus cabelos e seu perfume suave, e também beijá-
la nos lábios com muita delicadeza para que os limites daquele
mundo mágico não fossem violados. Foi então que sentiu em seu
ombro a mão violenta de alguém, que quase o fez cair do banco.
Anos de brigas de rua, reagindo a ataques repentinos com
reflexos instantâneos, felinos, ajudaram Tony a se levantar em
um salto. Não chegou a usar seus punhos cerrados e prontos
para atingir o alvo, porque ele percebeu que Bernardo se afastara
dele para olhar a garota que continuava no banco.
Viu o mundo mágico dos dois desmoronar. Claro, ele a tinha
visto chegar com Bernardo. A garota de vestido branco, cujo
nome ele nem sabia, era irmã de Bernardo. Tony ficou
transtornado e receoso de perder a coisa mais maravilhosa que
já havia encontrado na vida.
— Cai fora, americano — gritou Bernardo.
— Calma, Bernardo — pediu Tony, e ergueu a mão direita para
assegurar à garota que estava tudo bem, que ela podia confiar
que ele não começaria uma briga.
Os lábios de Bernardo se contraíram.
— Fique longe da minha irmã! — Então, virou-se para Maria.
— Não viu que ele era um deles?
— Não — respondeu ela. — Eu o vi sozinho, e ele não fez nada
de errado.
Bernardo estalou os dedos para que os Sharks se
aproximassem, e viu Chino atravessar com passo rápido a pista
de dança.
— Já falei para você que só há uma coisa que eles querem de
uma garota porto-riquenha! — exclamou ele, censurando a irmã.
— Isso é uma grande mentira — rebateu Tony.
— Calma, moleque — disse Riff quando parou ao lado de
Tony. — Mostre para ele.
Chino bateu no ombro de Bernardo e entrou na frente dele
para enfrentar Tony. Muito pálido, mas tentando manter a calma
para não parecer assustado, Chino olhou aquele americano alto
de cima a baixo.
— Saia daqui — disse. — Deixe-a em paz.
— Não se meta nisso, Chino — avisou Tony, então se virou de
repente, com medo de que Maria fosse embora.
Bernardo puxou com força o pulso de Maria para que ela
ficasse atrás dele.
— Agora deixe eu dizer uma coisa a você...
— Diga! — Riff se aproximou. — Se seus camaradas quiserem
resolver isso aqui mesmo, lá fora...
Murray Benowitz sabia que estava gritando, mas precisava
chamar a atenção do grupo.
— Pessoal, por favor! Tudo estava indo tão bem. Vocês sentem
prazer em arrumar problema? Vamos lá, um pouco de diversão
não vai fazer mal a ninguém. — Com a mão direita no alto, ele
fazia gestos frenéticos pedindo que a música recomeçasse. —
Todos de volta à dança — sugeriu. — Façam isso por mim.
Ainda segurando firme o pulso de Maria, Bernardo arrastou-a
para o lado da pista onde estavam os Sharks. Enfiou a mão livre
no bolso para evitar bater na irmã.
Nunca se sentira tão traído. Era como se tivesse sido
apunhalado pelas costas por alguém que ele amava, em quem
tanto confiava; e por quem ela fizera aquilo? Por um maldito
polaco que havia atacado tantos porto-riquenhos como ele
quanto qualquer americano de West Side.
— Não devíamos ter trazido você — gritou ele, furioso, ainda
agarrado ao pulso da irmã. — Pedi que ficasse longe deles. Qual é
o problema, não entende mais espanhol?
Chino ofereceu seu lenço para Maria, que o usou para secar os
olhos.
— Não grite com ela, Nardo.
— Com crianças é preciso gritar.
— E é isso que as assusta — reclamou Anita, passando o braço
sobre os ombros da amiga.
— Calem a boca — gritou Bernardo para todos. — Chino, leve
Maria para casa. Sem parar nem para um refrigerante. Direto
para casa!
Maria baixou o lenço.
— Nardo, por favor, é meu primeiro baile. Ele não disse nada...
— Sorte sua ser minha irmã — disse Bernardo com raiva. —
Agora leve-a para casa, Chino.
Não havia mais nada a dizer, Bernardo percebeu. Então se
virou e, com passos rápidos, atravessou a pista até a jarra de
ponche, encheu um copo com o líquido frio e bebeu-o em um
gole só. Sabia que as coisas chegariam a um ponto crítico e
estava ansioso para superá-lo. Claro que deixara a irmã chateada,
mas ela merecia uma lição.
Com as narinas dilatadas, Bernardo olhou para os Jets e
cuspiu para mostrar o que eles eram. Porcos imundos. Tão
imundos que sujavam tudo que tocavam, especialmente garotas.
Por nada neste mundo eles tocariam em uma porto-riquenha.
Não enquanto ele vivesse, pudesse brigar, pudesse esfaquear,
pudesse matar.
Ele via os Jets como um grupo muito unido, mas os Sharks
também estavam prontos para enfrentar qualquer situação. Na
porta, Chino se virou para dar um último aceno, e com a cabeça
Bernardo confirmou que ele devia levar Maria direto para casa.
Voltou a encher o copo para beber com mais calma e percebeu
que seu coração estava menos acelerado. Então se sentiu
tranquilo e preparado.
De certa forma, estava feliz porque teriam o confronto
naquela noite. A partir da manhã de segunda-feira, todos os
porto-riquenhos do bairro poderiam circular com segurança. Por
cima da borda do seu copo, viu que Diesel falava com Riff, e
ambos gesticulavam despreocupados e apontavam para Tony.
Mas Bernardo perguntou a si mesmo por que o polaco
continuava a olhar para sua irmã. Não era um olhar vulgar ou
desrespeitoso. Era uma pena que Maria tivesse que aprender
coisas sobre eles, mas não dava para evitar.
Ele e os Sharks não haviam insultado os americanos; tinham
se mostrado dispostos a obedecer ao idiota do Duas Caras e a
dançar com as garotas americanas. Portanto, a culpa não era dele
nem de qualquer um dos Sharks. Eles queriam um confronto?
Ótimo! Não seria ele quem os decepcionaria.
Ele ouvira dizer que os Jets estavam preparados para um
desafio e por isso tinha mandado que os Sharks marcassem
presença no baile com força máxima. Os Jets tinham aparecido,
que era o que ele queria, e seu único erro tinha sido permitir que
Maria também fosse ao baile. Mas os americanos, os anglos, é
que acabaram com a diversão dela.
Com o casaco fechado até o terceiro botão e as mãos enfiadas
nos bolsos, Bernardo atravessou a pista e parou a uma pequena
distância de Riff. Ele sabia que Pepe, Indio e Toro estavam logo
atrás, atentos.
— Acho que você estava me procurando.
Riff assentiu devagar enquanto olhava para Bernardo, da
ponta de seus sapatos de bico fino e muito bem engraxados até o
nó apertado de sua gravata.
— Ouviu certo — confirmou Riff. — Porque nós, Jets,
queremos ter uma conversa com o seu conselho de guerra, se é
que ele existe.
— Será um prazer — falou Bernardo, com uma grande
reverência.
Mesmo para tratar de uma guerra, ele ensinaria aos
americanos como os cavalheiros se portavam.
— Vamos lá para fora — sugeriu Riff.
Antes que Bernardo oferecesse a Riff um sorriso cínico, ele
apontou com a mão direita para Anita, Stella, Margarita e as
outras garotas.
— Meus rapazes e eu não vamos deixar nossas damas aqui
sozinhas. Onde podemos encontrar vocês, digamos, em uma
hora?
— Em frente à confeitaria no meio do quarteirão? — sugeriu
Riff.
— Por que não na confeitaria perto de onde eu moro? —
retrucou Bernardo, depois de uma risada curta. — Podemos nos
encontrar na frente do Coffee Pot, que é território neutro. Sabe
onde é? Ou quer que joguemos uma bomba de fedor para vocês
conseguirem achar? O americano dono do lugar não ia ligar.
— No Coffee Pot. — Riff assentiu com a cabeça. — E nada de
truques antes disso.
Bernardo fez um movimento com o dedo para incluir todos os
Sharks.
— Sabemos as regras, nativo — disse com desprezo.
— Nunca imaginei que soubessem alguma coisa — retrucou
Riff antes de se virar para Diesel. — Avise a todos.
Diesel fez um sinal de ok com o polegar e o indicador.
— Certo, chefe — confirmou e piscou para Bernardo. — Mal
posso esperar para enfiar meu soco-inglês na sua boca.
— Chega de conversa fiada — reclamou Riff com Diesel. —
Precisamos levar as garotas para casa. — Observou ao redor e
ficou aliviado ao ver Tony ainda lá, olhando para a porta. —
Tony! — chamou e estalou os dedos. — Venha cá.
Riff nunca soube se Tony o ouviu, porque o cara que ele
considerava seu melhor amigo andava em direção à porta
parecendo que estava com a cabeça na lua. Havia algo errado
com ele, Riff concluiu. Com certeza estava doente, e devia ser da
cabeça.
Mas esse era outro segredo que ele não compartilharia com
ninguém e, para evitar qualquer pergunta, virou-se para falar
com Action e Diesel. Eles deviam descer até o arsenal e começar
a subir o material, porque não sabiam qual seria a decisão de
Bernardo. Mas, fosse qual fosse, era certo que ele lamentaria a
escolha.

Uma coisa de cada vez, Tony pensou, quando se deu conta de


que estava na calçada em frente ao centro comunitário. A
questão era sair logo dali para que Riff e seus companheiros não
o segurassem pelo resto da noite.
O nome dela era Maria, um lindo nome, que o fazia pensar
nos mais belos sons do mundo: um suave badalar de sinos, o
doce canto de um pássaro, os sussurros dos amantes, a maneira
como sua mãe falava desde que ele arranjara um emprego. Até as
estrelas no céu de verão pareciam mais brilhantes.
Tinha acontecido, ele encontrara o que tanto havia procurado,
o que lhe havia escapado.
Tudo bem, ela era irmã de Bernardo. E daí? Não podia fazer
nada a respeito. Isso era ruim, muito ruim, talvez ele não
conseguisse pensar em nada pior. Mas nos filmes que havia
visto, qualquer que fosse o sentimento da família, a garota
sempre sentia outra coisa. E ele percebia que com Maria
acontecia o mesmo.
Precisava vê-la de novo para ter certeza disso. Ela era irmã de
Bernardo, por isso sabia onde morava, e naquele instante ele
teria dado dez anos de sua vida para poder ir até o apartamento
do garoto, tocar a campainha e pedir para ver Maria Nunez.
Escondido sob o vão escuro da porta de um prédio, Tony viu
Riff, os Jets e suas garotas passarem. Ouviu Snowboy sugerir
que fossem tomar um café no Pot enquanto esperavam por
Bernardo e seus cucarachos, e escutou quando Graziella
perguntou a Riff se havia algo que elas poderiam fazer para
ajudar.
— Muita coisa — respondeu Gee-Tar. — Mas fica para depois.
— Acha que ainda vai ter forças para isso? — zombou Pauline.
— Suficiente para fazer você gritar “chega” — disse Gee-Tar,
esfregando-se nela.
Foi difícil para Tony esperar até que eles desaparecessem ao
dobrar a esquina. Só então saiu da sombra e caminhou depressa
pelo meio-fio até chegar ao apartamento onde Bernardo morava.
Ele sabia exatamente qual era o apartamento, porque seis ou sete
meses antes os Jets e ele tinham considerado a sério a ideia de
invadir a casa de Bernardo e dar uma surra nele, bem ali em seu
próprio território.
O plano tinha sido ele ir pelos telhados, descer a escada de
incêndio nos fundos da casa e abrir caminho de qualquer jeito
por uma janela, enquanto Riff, Diesel e os outros atiravam na
fechadura da porta da frente.
Todas as residências na área tinham uma estrutura bem
parecida, de modo que era bem provável que a janela voltada
para a escada de incêndio fosse a de um quarto, o que era um
problema. E se a mãe e o pai deles estivessem dormindo naquele
quarto?
Era um risco que precisava correr, Tony pensou enquanto se
esgueirava pela passagem que levava ao pátio, parando por um
instante para se orientar.
À medida que seus olhos se acostumavam com a escuridão, os
varais e umas poucas peças de roupa penduradas de qualquer
jeito se tornavam visíveis. Com a respiração pesada, empurrou
uma lata de lixo para baixo da escada de incêndio que ele não
conseguia alcançar. Subiu com cuidado na tampa, flexionou os
joelhos e deu um salto. A lata virou, mas ninguém naqueles
apartamentos silenciosos percebeu. Era um som ao qual tinham
se acostumado; cães e gatos assaltavam a vizinhança e a todo
instante latas de lixo eram viradas.
Degrau por degrau, impulsionou o corpo escada acima até um
dos joelhos tocar a primeira barra transversal, e então subiu
depressa até chegar ao terceiro andar, onde diminuiu o ritmo.
Fez uma pausa no patamar de ferro em ângulo acentuado que
levava à escada de incêndio dos Nunez. Arriscou subir só até a
metade. Ou seria melhor subir meio lance acima da janela?
Assim, se o pior acontecesse, estaria mais perto do telhado. Mas
não, ele poderia ficar encurralado lá em cima. Seria mais fácil
escapar na escuridão abaixo.
Um telefone tocou de repente no meio da noite. Do outro lado
do pátio, a descarga de uma privada ecoou como um misto de
gargarejo gutural e barulho de canos velhos; um gato miou perto
de uma cerca nos fundos; um rebocador soou um apito triste no
rio; um bebê chorou, e não houve jeito de se calar.
Tony tirou algumas moedas do bolso, fez uma breve oração e
jogou uma na janela. Ouviu o som do metal contra o vidro e
tentou descobrir se alguém se movimentava na escuridão
interior.
— Maria — sussurrou. — Maria...
Precisou piscar várias vezes para acreditar no que estava
vendo, pois havia um vulto branco na janela, e o vulto a abria
cada vez mais. Viu que era Maria, subiu os seis degraus, três de
cada vez, mas se deteve quando ia chamar seu nome, pois ela
estava com um dedo sobre os lábios.
— Shh — sussurrou ela. — Rápido, qual é seu nome?
— É Tony. — Ele se ajoelhou no peitoril. — Anton Wyzek. É
polonês.
— É um belo nome — disse ela, ainda em meio a sussurros. —
Agora você precisa ir embora.
— Ir embora? Acabei de chegar. Escute, vamos a algum lugar
onde possamos conversar. — Ele percebeu que ela ainda usava o
vestido branco, mas seus cabelos estavam soltos e emolduravam
seu rosto em graciosas ondas. — Vamos só conversar.
Maria fez que não com a cabeça.
— Você precisa ir embora.
— Quer mesmo que eu vá?
Ela se sentou no peitoril, tensa e em silêncio.
— Você precisa ficar calado.
Tony segurou sua mão e colocou-a sobre o coração.
— E o que faço com isto? — perguntou ele.
— Deixe-o bater — respondeu ela. De repente, virou-se e olhou
para o interior do apartamento. — Você tem que ir embora. Se
Bernardo...
— Ele está no baile — argumentou Tony, e sentiu-se culpado
porque sabia que não era verdade.
Maria meneou a cabeça.
— Daqui a pouco ele terá que levar Anita para casa.
— Ele sente por Anita o que sinto por você? — perguntou ele,
cheio de coragem.
— Acho que sim.
— Então ele não voltará para casa. — Tony estava orgulhoso
de sua lógica. — Escute, vamos para o telhado, rapidinho. Para
conversar — acrescentou —, só para conversar, eu prometo.
— Acredito em você — afirmou ela, tranquilizando-o. — Mas
se Bernardo voltar para casa... Por que ele odeia você?
— Porque ele tem motivo para isso. — Mais uma vez, como no
baile, segurou suas duas mãos. — É sobre isso que quero falar
com você. Por favor, é importante. A menos que queira que eu
desça e vá para a sua porta da frente. Vou fazer isso, se preferir.
Maria se inclinou para trás para observar o contorno
esquelético da escada de incêndio e os degraus até o telhado.
— Você me segura? — perguntou.
— Com a minha vida — prometeu ele.
De mãos dadas, começaram a subir em silêncio a escada de
incêndio. Tony murmurou que Maria não devia olhar para baixo,
apenas para cima, na direção das estrelas; enquanto ela subia,
ele se mantinha apenas meio passo atrás, e seus braços,
agarrados às laterais da escada, formavam um semicírculo de
proteção ao seu redor.
Subiram passo a passo até Maria alcançar o parapeito. Ao
saltar para o telhado coberto com papel de piche, ela girou de
novo, pois aquele momento merecia uma dança.
Quão fortes haviam sido seus braços, quão confiante ela se
sentira, quão suave a voz dele soara em seu ouvido quando lhe
disse para não ter medo, não olhar para baixo, apenas para as
estrelas, pois as estrelas olhavam para eles também.
Ela correu para ele descalça e segurou suas mãos. Em silêncio,
giraram e giraram, e, quando seus cabelos soltos voaram e
roçaram no rosto e na boca de Tony, ela riu e em seguida parou
para descansar em seus braços.
— Só por um minuto — disse ela.
— Só por um minuto — repetiu ele.
Ela sorriu, seu olhar no dele.
— Um minuto é muito pouco.
— Uma hora, então. — Ele devolveu o sorriso, mas logo ficou
sério. — Antes que fiquemos assim para sempre.
Maria prestou atenção na noite como se ela fosse dizer quanto
tempo seria.
— Não posso — afirmou, mas não fez o menor esforço para
sair de seus braços.
— Estou preparado para ficar aqui até de manhã — confessou
ele. — Depois você pode me convidar para descer, tomar o café
da manhã e conhecer seus pais. Acha que eles vão gostar de
mim?
Ele percebeu a tristeza invadi-la e também ficou triste, mas
eles precisavam encarar os fatos para que pudessem planejar as
coisas como elas deveriam ser.
— Gosto de sua mãe simplesmente porque ela é sua mãe.
Gosto de seu pai porque ele é seu pai...
— Tenho três irmãs mais novas — interpôs ela.
— Ótimo. — Ele estava entusiasmado. — Gosto delas também.
Gosto de todos os seus amigos e parentes e de todos os amigos e
parentes deles e de todos os...
— Você não mencionou Nardo.
Tony deu um longo suspiro.
— Gosto dele também, porque é seu irmão.
— E se minha mãe, meu pai, minhas irmãs e Nardo não
fossem meus parentes? Nesse caso você os odiaria?
— Maria, você precisa me entender. Você me perguntou
aquilo em que tento não pensar. Me ajude, Maria. — Ele se
ajoelhou para repousar a cabeça na coxa esbelta dela. — Você
precisa me ajudar, porque não vou deixar você ir embora. Não
vou — repetiu com veemência enquanto seus braços a
envolviam. — Não me importo que venham aqui, que nos vejam,
que digam ou que façam alguma coisa. Não vou deixar você ir
embora.
— Tony, por favor, levante-se. — Ela pousou a mão de leve em
sua cabeça para acariciar os cabelos curtos e espessos, que ela
sabia que seriam macios e finos como seda se ele os deixasse
crescer. — Não quis dizer aquilo.
— Mas que bom que disse. — Ele não queria se levantar, mas
eles precisavam olhar um para o outro, para que ela não tivesse
nenhuma dúvida sobre tudo que ele dizia. — Não ligo se eles
subirem aqui e arrancarem meu coração — prosseguiu ele. —
Sem você, ele não serviria para nada.
— Não diga uma coisa dessas. — Seu dedo cobriu os lábios
dele. — Sem você, acho que eu também não gostaria de viver.
— Você acha?
— Tenho certeza! — exclamou ela, enquanto emoldurava o
rosto dele com as mãos e ficava na ponta dos pés para beijar
seus lábios. Seu beijo foi delicado, mas tão mágico quanto Tony
sabia que seria. — Sim, tenho certeza! — sussurrou ela, e o
abraçou. — Precisamos ficar juntos. Mas agora você deve ir.
Quero pensar sobre o que faremos.
Ela falava sério. Sentindo-se de repente muito mais velha do
que ele, muito mais sábia, Maria compreendeu o mundo
selvagem que habitavam. Ela precisava voltar para o quarto e
raciocinar melhor.
— É muito importante que a gente reflita sobre isso.
— Eu ajudo você a descer a escada. Mas continue a olhar para
cima.
— Mesmo que eu olhasse para baixo, enxergaria apenas o céu
— afirmou ela.
— E as estrelas — acrescentou ele.
— E a lua. E o sol — completou ela.
— Como poderia enxergar o sol se está de noite? — O tom
dele mudou de repente. — Nos vemos amanhã? Então vamos
conversar sobre nossa decisão e sobre o que fazer. Onde posso te
encontrar? A que horas?
— Sabe onde é a loja de noivas da Señora Mantanios?
Ele respondeu que sim com a cabeça.
— Trabalho lá. Sou costureira.
Tony apoiou a mão dela em seu rosto.
— Cuidado com as agulhas. Não quero acidentes. A que horas
nos vemos?
— Às seis?
— Às seis — confirmou ele. — De qual nome você gosta mais?
Tony ou Anton?
— Gosto dos dois. Mas Anton é mais poético. Te adoro, Anton
— disse. — Significa te amo.
Ele bateu na testa para despertar seu rudimentar e
adormecido conhecimento de polonês.
— Maria, ja kocham cie. É polonês — explicou. — Não soa tão
bem quanto em espanhol, mas significa a mesma coisa.
— Me beije — pediu ela. — É uma língua nova para nós dois.
Mas já a falamos muito bem. — Ela contemplou as estrelas de
novo. — Mesmo lá em cima — apontou para uma estrela
cintilante —, se houver um garoto e uma garota em um telhado e
eles puderem nos ver e nos ouvir, talvez não entendam o que
estamos dizendo. Mas se nos virem nos beijando, saberão.
— Que te amo — disse ele, enquanto cobria a boca de Maria
com os lábios.
— E que eu te amo — murmurou ela, antes que o vento os
levasse para o céu, rumo às estrelas.

Embora ela quisesse ficar acordada para relembrar tudo muitas e


muitas vezes, o sono a envolveu em questão de minutos e,
sonolenta, murmurou que precisava dormir, e quem quer que a
estivesse perturbando poderia, por favor, ir embora?
— Acorde, Maria. É Anita. — Ela ouviu o sussurro em seu
ouvido. — Acorde!
Maria se sentou de súbito, sobressaltada, sentindo a mão fria
do medo apertar sua garganta.
— Meu Deus, qual é o problema?
— Nenhum — continuou Anita, ainda sussurrando. —
Bernardo quer que você vá para o telhado. Está todo mundo lá,
Chino, Pepe, Indio. As garotas também. Não há problema algum,
só estamos fazendo uma festa. Agora você não gosta mais de
festa?
Maria bocejou aliviada, espreguiçou-se e passou os dedos
pelos cabelos soltos.
— Estava dormindo — queixou-se, porque ansiava por voltar
aos seus sonhos. — E não estou arrumada.
— Hoje em dia uma garota não leva mais de um minuto para
se arrumar. — Anita sorriu. — Vamos, se você se apressar, eu
espero.
— Bernardo está zangado? — perguntou Maria.
Anita franziu os lábios e levantou um ombro.
— Quando não está? Vamos, Maria, se apresse, por favor. Há
outras garotas que gostariam de namorar Bernardo. Não se
preocupe com sapatos e meias. Um par de sapatilhas velhas está
mais do que bom.
Chino havia colocado seu pequeno rádio transistor em uma
caixa de ovos vazia, e vários rapazes e moças tiraram os sapatos
para dançar só de meias. Bernardo, porém, com o cotovelo
apoiado em um parapeito, dava longas tragadas em um cigarro e
observava com olhos frios e imóveis a cidade ao redor.
Era uma cidade tão grande, tão vasta, mas que se recusava a
conceder-lhe um pequeno lugar que fosse. Que tipo de vida ele
poderia levar ali? Não havia nada que lhe importasse, nada de
que se orgulhasse. Ele fracassaria, mas outros sofreriam por
conta disso.
— Até que enfim! — disse ele em resposta à saudação da irmã.
— Aposto que se fosse por aquele polaco, você viria na hora.
— Ela estava dormindo, Nardo — interveio Anita defendendo
a amiga. — E parece que você gosta que tudo seja feito na hora.
Bernardo estendeu a mão como se fosse beliscar o seio de
Anita.
— Desde quando você reclama? — Confuso de repente com a
presença da irmã, Bernardo estalou os dedos. — Quero falar com
você, Maria. Não como um irmão, mas como um tio.
Cruzando os braços, Anita cobriu os seios.
— Um tio! Sorte que ela tem um pai e uma mãe!
— Que não conhecem este país melhor do que ela — rebateu
Bernardo.
— Desde quando você é tão entendido? — provocou Anita.
Pepe fez uma pausa em sua dança com Consuelo.
— Deixe com o Nardo — disse. — Ele sabe como as coisas são
por aqui.
— Então, por que ele não escreve um livro sobre a América?
— perguntou Anita. — Nenhum de vocês é tão inteligente. Neste
país, as garotas têm tanto direito a se divertir quanto os garotos.
Elas podem dançar com quem quiserem na América.
— É mesmo? — Bernardo fez uma reverência. — Você fala
como se Porto Rico não fizesse parte da América.
— Não, para você não faz! Imigrante! — disparou Anita. — E
nem comece a me chamar por todos os meus nomes, porque na
América mudei para um só, e se você não gosta dele...
Bernardo jogou fora o cigarro e enfiou a mão direita nos
cabelos de Anita. Com os dedos abertos, segurou sua nuca para
que ela não conseguisse desviar de seus lábios.
— Você gosta? — perguntou ele quando acabou de beijá-la.
Anita bateu as pálpebras.
— Gosto.
— Então, comporte-se — avisou Bernardo, enquanto
empurrava Anita para o lado e acenava para Chino. — Chino,
como estava minha irmã quando a trouxe para casa?
Chino parecia inquieto e nervoso.
— Bem. Um pouco chateada. Mas eles só dançaram.
Indignada com o comportamento de Bernardo, Anita
empurrou-o com as duas mãos.
— Por que tantas perguntas? Está achando que é um policial
ou o quê? Tudo bem que um irmão se preocupe com a irmã, mas
que tal se preocupar um pouco também com a namorada e o
futuro dela? Deixe que Chino e seus pais tomem conta da Maria.
Talvez eles não tenham feito um trabalho muito bom com o
filho. — Olhou para Bernardo e sorriu quando admirou seus
olhos estreitos, que lhe davam um ar sombrio e romântico. —
Mas fizeram tudo certo com Maria. Olhe para ela! E me diga que
não se envergonha de pensar e falar tantos absurdos!
— Eles não sabem mais do que ela — retrucou Bernardo. —
São apenas bebês na América... todos eles.
— Mas ela estava só dançando — insistiu Anita. — Todo
mundo sabe disso.
— Só dançando — Bernardo a imitou —, com um americano,
que na verdade é polaco.
Anita apontou para Bernardo.
— Mas olha quem está falando — debochou. — O cucaracho...
— Isso não foi legal — reclamou Bernardo.
— Acha isso mesmo? — Anita não se intimidou, porque os
olhos de Bernardo revelavam o que ele estava pensando de fato.
— Como você não vai perguntar, vou dizer a você. Acho que
Tony é bonitinho. E ele trabalha.
Chino ergueu a mão para chamar a atenção.
— Como entregador. — Olhou para Maria, que observava as
estrelas. — E sabe o que os entregadores viram? Assistentes. E já
que vai me perguntar, Anita — ele se curvou para ela —, vou te
contar. Um assistente vira um operador. Membro titular do
sindicato.
— Ah, pare com isso, Chino. — Bernardo interrompeu-o com
rispidez enquanto tirava um cigarro do maço e o acendia. — Se
aquele polaco nojento quiser entrar para o sindicato, ele pode
entrar antes de você e ganhar mais, só porque é americano.
— Isso não é verdade — interpôs Maria, interrompendo o
irmão.
Tudo bem ficar em silêncio, pensou, e em silêncio ouvir e
aprender. Mas ouvira o suficiente para perceber que Bernardo
odiava Tony, e se ele continuasse a pensar e a falar daquele jeito,
o ódio só aumentaria.
Havia muitas coisas que ela precisava fazer, e uma das mais
importantes era impedir que o irmão sentisse tanto ódio. As
únicas coisas em que Bernardo conseguia pensar eram ódio e
destruição, fazendo Maria se lembrar de algo que o padre de sua
paróquia lá em Porto Rico havia dito, que aqueles que viviam
pela espada morreriam pela espada.
— Se Tony nasceu na América, ele não é polaco — afirmou
Maria. — Ainda que não tivesse nascido na América, só pelo fato
de querer vir para cá, ele não seria estrangeiro. Seria americano
como nós.
Bernardo esperou Anita e suas amigas pararem de aplaudir
antes de zombar de sua irmã com uma pequena reverência.
— Maria, minha querida, você pode até acreditar nisso, mas
ele não. Só há uma coisa em que ele acredita: que você é fácil por
ser porto-riquenha!
— Que coisa terrível! — gritou Anita, e passou o braço sobre
os ombros de Maria. — Você precisa pedir desculpas. Não
apenas para Maria, mas para todas as garotas que estão aqui.
— E por quê? — perguntou Pepe.
— Por nada — respondeu Anita, irritada. — Talvez você ainda
não tenha percebido, mas todas nós aprendemos uma coisa esta
noite.
— O que isso quer dizer? — indagou Bernardo.
Anita colocou as mãos em concha sobre os ouvidos de Maria.
— Quer dizer que, porque nós, garotas, viemos para a
América com o coração aberto, vocês, seus inúteis, pensam que
também viemos com as pernas abertas!
— E não vieram? — rebateu Pepe.
— Canalha! — Anita conseguiu dar um tapa no rosto dele. —
Você será mandado de volta para Porto Rico. Em breve, espero, e
algemado.
Pepe riu, cutucou o nariz de Anita com o dedo indicador e se
esquivou de suas mãos agitadas. Bernardo puxou Maria para o
lado, e os Sharks e suas garotas rodearam Pepe e Anita, que
xingava Pepe em espanhol.
De repente, a porta do telhado se abriu, e Bernardo ouviu
alguém chamá-lo pelo nome. Era seu pai.
— Bernardo? — chamou o pai de novo, apertando o cinto do
roupão. — Maria? Você estava dormindo.
— Não me ouviu entrar, pai? — perguntou Bernardo fazendo
um sinal para que Anita e Pepe se calassem. — Estávamos aqui
em cima curtindo um pouco, e pensei que Maria ia gostar de
encontrar Chino de novo.
— Isso mesmo, Sr. Nunez — confirmou Chino —, pedi que
Bernardo chamasse a Maria para cá. Espero que o senhor não se
importe. Estávamos só ouvindo rádio e conversando.
— Ouvindo rádio e conversando — repetiu Maria. — Estamos
fazendo muito barulho, pai?
— O suficiente para me acordar. — O Sr. Nunez bocejou. —
Mas a noite está agradável. Mais fresca. Quanto tempo ainda vão
ficar aí em cima, Bernardo?
— Vamos descer agora mesmo. Chino vai levar Maria até a
porta. Vamos deixar as garotas em casa, e depois vou me
encontrar com os caras no Coffee Pot. Quer ir também, pai?
— Já está muito tarde, mas agradeço. — O Sr. Nunez bocejou
mais uma vez. — Boa noite. — Então, virou-se para a filha. —
Maria, vou deixar a porta aberta.
— Eu tranco depois, pai.
Ela se virou para o irmão de novo, mas ele estava de costas,
contemplando a escuridão que dominava a cidade.
CAPÍTULO CINCO

O Coffee Pot era uma pequena lanchonete com uma única janela
e luzes muito fortes, mais do que o necessário. Mas era essa
iluminação intensa que permitia aos policias terem, de suas
viaturas, uma visão do interior, porque o proprietário do Coffee
Pot já não aguentava mais que seu estabelecimento fosse usado
como local de treinamento para ladrõezinhos baratos.
Os cardápios presos nas paredes brancas esmaltadas estavam
cobertos por uma grossa camada de gordura, o que dificultava a
leitura de alguns dos pratos mexicanos, porto-riquenhos e
americanos.
Na frente do longo balcão havia uma fileira de bancos altos
com assentos de couro já gasto pelo uso, deixando à mostra o
estofado de algodão sujo. Um balconista cansado lavava copos
de café como um sonâmbulo, e, sentados nos bancos altos, um
homem negro bem-vestido e sua acompanhante ouviam a
música alta e estridente que saía do jukebox. Quando Riff abriu a
porta com um chute, o balconista e o casal de clientes ergueram
rapidamente os olhos. Com um movimento suave, o homem
deslizou algumas moedas pelo balcão, segurou a mulher pelo
braço e conduziu-a para a rua e para longe de possíveis
confusões.
— Relaxe — disse Riff para o balconista assustado, mostrando
uma nota de um dólar. — Café para todos. Alguém nos procurou
por aqui?
O balconista se arrastou em direção à cafeteira alta que havia
anos não era polida.
— Não, ninguém, Riff. Escutem, companheiros, o simples fato
de estar vivo já me traz a dose de problemas que consigo
suportar. Não me tragam mais nenhum.
Impaciente, Riff estalou os dedos.
— Queremos café... sem creme, sem açúcar, sem enrolação.
— Quero açúcar — protestou Baby-John. — Gosto de açúcar.
Com o cotovelo, Ice empurrou Baby-John para o balcão, e o
mais jovem dos Jets esfregou o braço e se sentou em um dos
bancos. Em seguida tirou um gibi do bolso, abriu-o e começou a
ler com interesse. Como membro júnior, ele precisava aprender a
ser paciente e manter a boca fechada; e o que ele fazia agora
provaria a Ice que não era idiota a ponto de não ter entendido o
recado.
— Onde eles se enfiaram? — perguntou Ice, e apontou para
um relógio na caixa registradora. — Se vamos ter um conselho
de guerra hoje à noite, eles já deviam estar aqui.
Riff direcionou o olhar para o balconista assustado, que se
virara de repente para eles.
— Você é muito engraçado, Ice. E os cafés? — provocou ele. —
Por que tanta demora?
— Estão chegando. Não consigo preparar mais de um por vez.
— O Super-Homem seria capaz de encher todos os copos tão
depressa que nem daria para vê-los. — Baby-John falava como a
autoridade que era. — Quer saber mais uma do Super-Homem?
Ele não usa facas. Também não precisa de pistola atômica. Deixa
isso para os inimigos. Ele só usa isto — afirmou, e mostrou um
punho cerrado.
— Não me diga! — A-Rab parecia interessado. — Ele derruba
paredes e tudo?
— Digo a você que sim! — confirmou Baby-John. — Ele é
muito superior ao Batman. — Apontou para a porta. — Ei,
tranque tudo logo antes que entre a Sra. Casa Mal-Assombrada.
— Ouvi o que você falou, porco fedorento — disse Anybodys,
fechando a porta ao entrar. — Tenho tanto direito aqui quanto
vocês. E quero provar isso.
— Vá lá para trás e se sente — ordenou Riff. Ele estava
ocupado demais aquela noite para se preocupar em enxotar
Anybodys. — Traga um café para ela — pediu ao balconista.
— Claro, claro — concordou o homem, mas logo olhou para a
rua, apreensivo. Malditos policiais, nunca estavam por perto na
hora certa. — Devo fechar daqui a pouco.
Gee-Tar fez que não com a cabeça.
— É contra a lei recusar clientes que pagam em dinheiro. Qual
é o problema, amigo, não gosta dos nossos modos? Agora
termine de servir os cafés e volte para a sua pia até chamarmos
você de novo.
— Não estou atrás de confusão — alegou o balconista —,
então por que me provocam?
— Não estamos provocando ninguém — retrucou Riff, e
voltou a consultar o relógio. Não conseguira localizar Tony, e
Action ainda não tinha dito nada, só olhado, o que era pior. —
Bernardo que deu a ideia de nos encontrarmos aqui. Conhece
Bernardo?
— Mais ou menos — respondeu o balconista.
— Não importa quem ele conhece — gritou Anybodys.
Riff fez um gesto para que ela se calasse.
— Dê alguma coisa para ela comer — pediu. — Por que essa
cara de esfomeada? Você nunca vai para casa?
— A resposta a essa pergunta é não — disse ela.
Baby-John ergueu os olhos de seu gibi, irritado porque
Anybodys tinha lido o diálogo do balão em voz alta.
— Então você devia estar lá fora, andando pelas ruas como
sua irmã.
Os nós dos dedos de Anybodys atingiram Baby-John no lado
da cabeça.
— Vamos — desafiou ela —, diga ao Super-Homem que bati
em você e que vou fazer o mesmo com ele.
O balconista tinha servido o último café e dado a Anybodys
um pão doce em um guardanapo de papel.
— Preciso de mais sessenta centavos — disse ele. — E não
estou cobrando o imposto.
— Fique com o troco, meu bom rapaz — disse Mouthpiece,
amassando uma nota de um dólar e jogando-a no balcão.
— Não vi Bernardo a noite toda — afirmou o balconista. — Se
quiser minha opinião, acho que ele não vai aparecer. Na verdade,
ele quase nunca vem aqui, já que deve cinco dólares ao patrão.
— Ele vai aparecer — retrucou Riff, soprando pela borda do
copo. — Ele escolheu este território neutro para nossa reunião
do conselho. Queremos debater com os porto-riquenhos sobre o
lugar deles na sociedade. Quer participar?
— Desculpe, eu já tinha marcado de me embebedar, ser preso
e mandado para a casa de correção por trinta dias — respondeu
o balconista. — Por isso, sem querer ofendê-lo, preciso recusar
seu convite. Mas posso dar um conselho? Vá para casa e deixe
isso para lá.
— Não conseguimos ouvir você — disse Diesel com as duas
mãos nos ouvidos. — Que tipo de armas acha que ele vai
escolher?
— Pergunte a Bernardo — respondeu Riff, descendo do banco
para ir abrir a porta —, porque aí vem ele.
Baby-John deixou o gibi de lado, e Anybodys girou seu banco
para apoiar os cotovelos sujos no balcão às suas costas. Com
gentileza exagerada, Riff abriu a porta e fez um gesto para que
Bernardo e os Sharks entrassem.
Bernardo olhou ao redor, convenceu-se de que nenhuma
emboscada seria possível e, com um movimento de ombro,
indicou aos Sharks que entrassem com ele no pequeno
restaurante.
— Espero que não estejam aqui há muito tempo — disse
Bernardo, quebrando o silêncio.
— Aproveitamos o tempo — retrucou Riff. — Quer um café?
— Vamos ao que interessa.
Riff olhou para o relógio, depois para Action.
— Bernardo ainda não aprendeu as regras para uma
convivência civilizada.
— Deixa de papo furado — rebateu Bernardo —, também não
gosto de você. — Ele se virou para o balconista. — Apague
algumas dessas luzes e vá fazer alguma coisa lá nos fundos.
— Escute, não quero confusão aqui dentro — preveniu o
homem.
Irritado, e para provar que era tão durão quanto Bernardo,
Riff contornou o balcão e desligou a luz antes de empurrar o
balconista para trás.
— Você tem trabalhado demais. Relaxe. Não vamos criar
confusão, mas também não queremos que nos cause problemas.
E fique longe desse telefone!
— O telefone público fica lá na frente — disse o balconista. —
E faça-me um favor: mantenha sua palavra e não crie confusão
aqui dentro.
Riff não se deu ao trabalho de responder quando voltou para
trancar a porta da frente e olhar de novo para a rua. Tony não
estava por perto. E se Bernardo já quisesse começar naquela
noite? Ele teria que aceitar.
— Bernardo, temos um desafio para vocês. Total e definitivo.
Aceitam?
— Aceitamos — respondeu Bernardo, e esperou todos, que
concordavam em coro, terminarem de responder. — Quais as
condições?
— As que quiserem. — Riff abriu as mãos. — Deixamos você
escolher.
— Vocês que começaram isso — provocou Pepe.
— E, por sua causa, estamos concluindo — rebateu Riff para
Pepe e Nibbles. — Vocês dois são marginais tão baixos que
atacam um menino no cinema. E não esquecemos o que fizeram
com ele, o lance do banheiro e tudo o mais.
Bernardo não conteve um sorriso.
— Um banho, do tipo que fosse, só faria bem a ele. E, afinal,
quem foi que me atacou no dia que me mudei para cá?
— Quem pediu para você se mudar para cá?
— Meus pais — respondeu Bernardo. — Você pode dizer o
mesmo?
— Cucaracho de merda, vou ensinar umas boas maneiras para
você — retrucou Action, erguendo-se do balcão.
Bernardo afastou os pés em postura de combate.
— Estou esperando, filho da puta desgraçado. Mas acho que
você não vai ser um bom professor.
— Esperem. — Riff se colocou entre eles. — Aceitam ou não?
— Aceitamos — respondeu Bernardo. — Marque a hora.
— Você marca — devolveu Riff.
Bernardo pensou por um momento.
— Amanhã à noite?
— Perfeito! — Riff estava radiante; agora poderia encontrar
Tony. Para selar o compromisso e mostrar aos Jets como um
verdadeiro líder faz, estendeu a mão para Bernardo. — Onde vai
ser? No parque ou no rio?
— Que tal embaixo do viaduto? — sugeriu Bernardo,
apertando a mão de Riff.
Com a cabeça, Riff confirmou que aprovava o campo de
batalha.
— E as armas?
— Você escolhe.
Quando estava pronto para dar os detalhes que provariam que
os Sharks estavam preparados para encarar qualquer arma que
os Jets escolhessem, Bernardo viu alguém do lado de fora da
lanchonete e reconheceu o maldito polaco que tinha dançado
com sua irmã. Foi até a porta e abriu-a para deixar Tony entrar.
— Seu chefe está aqui — disse ele, provocando Riff e tendo a
certeza de que havia conseguido. — Precisamos repetir tudo?
Tony olhou pela janela da lanchonete para o semáforo que
piscava na esquina. Estava vermelho agora, como um alerta de
perigo e um aviso para que reagisse devagar. No final do
quarteirão, as letras quebradas de um letreiro em néon acendiam
e apagavam com intermitência, e o silêncio da rua foi quebrado
por uma explosão de risadas dentro de um carro que passava.
— Não precisam repetir nada — afirmou Tony. — A única
coisa que me interessa é saber o que vamos usar.
— Talvez facas e pistolas — sugeriu Riff, porque queria
impressionar Tony com sua coragem.
— Foi o que pensei — respondeu Tony. — Exatamente o que
eu esperaria de um bando de frangotes.
— Quem você está chamando de frangote? — Action avançou
para encarar Tony. — Pode falar.
— Cada um conhece os seus. — Bernardo se levantou para
enfrentar o polaco. — Por isso imagino que não estava falando
com a gente.
Mais cedo naquela noite, Tony havia se escondido dos Jets.
Agora, por razões que sabia que eles não conseguiriam entender,
os procurava. Mas fazia isso tanto por Bernardo quanto por sua
irmã. Se fosse de algum modo possível, ele queria provar a
Bernardo que tinha o direito de ver Maria, que havia
abandonado os Jets porque não se interessava mais em brigar
com os Sharks, que havia crescido e era um homem que
compreendia o que significava estar apaixonado.
— Estou chamando todos vocês de frangotes — disse, por fim.
— Por que precisam usar tijolos, facas ou pistolas? Qual é o
problema? Estão com medo de ficar cara a cara? — Mostrou-lhes
os nós de seus dedos brancos e rijos. — Medo de um corpo a
corpo?
— Que tipo de briga é corpo a corpo? — perguntou Baby-John.
— Pelo menos lixo precisamos poder usar.
— Deixamos nas mãos deles a escolha das armas — explicou
Riff a Tony. — De qualquer jeito, vamos usar nossos punhos,
então agora é com eles.
— Vocês dois estão tirando o corpo fora — continuou Tony.
Ele precisava falar logo tudo que queria enquanto mantinha a
vantagem psicológica. — Uma briga limpa resolve qualquer
coisa. Isto é, se vocês tiverem coragem de arriscar. E se cada lado
tiver um bom candidato disposto a lutar.
— Eu estou disposto — disse Bernardo depressa, e seus olhos
indicavam que ele esperava que Tony representasse os Jets. —
Que seja uma briga limpa.
— Nardo — gritou Pepe em desespero —, você quer dizer que
o resto de nós vai só ver?
— Não vou ficar parado só vendo! — protestou Action,
enquanto amassava seu copo de café vazio contra o balcão. —
Não vou mesmo!
— Os chefes decidem — disse Riff para Action, e logo se virou
para Bernardo. — Tudo bem, briga limpa, então. Fica combinado
assim? — disse ele, sugerindo que apertassem as mãos.
— Não precisamos disso — afirmou Bernardo. — Você já tem
minha palavra, e por que esperar até amanhã à noite quando
podemos ir agora mesmo? — Fez uma pausa e olhou para Tony.
— Estarei à sua espera embaixo do viaduto.
— Espere aí — disse Riff, ao mesmo tempo que gesticulava
para Diesel dar um passo à frente. — Este é o nosso homem com
os melhores punhos. E amanhã à noite está ótimo para nós.
Sem conseguir esconder sua decepção, Bernardo apontou para
Tony.
— Mas pensei...
— Vocês escolhem quem? — perguntou Riff.
— Eu mesmo — respondeu Bernardo enquanto olhava para
Tony e decidia que Maria precisava casar com Chino antes do
planejado. Eu represento os Sharks.
Diesel uniu as mãos acima da cabeça.
— Fico maravilhado com a honra.
— Eu quis dar um aperto de mão para confirmar — disse Riff
a Bernardo. — Mas vocês não quiseram. Isso significa por acaso
que estão dando para trás?
Action se lançou à frente para receber atenção dos Sharks.
— Escute, Bernardo, se quiser mudar de ideia, aqui está um
homem disposto a ouvir.
— Cale a boca, Action — interveio Riff no mesmo instante. —
Temos a visita de um cavalheiro. Abra a porta.
O detetive Schrank entrou na lanchonete na hora em que o
balconista voltava dos fundos, e seu olhar triste passou dos
rapazes para o detetive.
— Boa noite, detetive Schrank. Minha ideia é fechar assim que
os meninos acabarem.
Schrank se inclinou sobre o balcão para pegar do bolso da
camisa do balconista um maço de cigarros quase cheio.
— Posso? — disse o detetive.
— Por que não? Tem sido assim minha vida inteira.
Schrank acendeu o cigarro devagar, deu várias tragadas
longas e jogou o fósforo queimado no copo de café mais
próximo, que era o de Tiger.
— É uma regra minha sempre fumar no banheiro — começou
ele devagar. — Mas qual a diferença entre lá e um lugar cheio de
mestiços, hein, Riff?
Fez uma pausa e viu que o movimento de Bernardo em sua
direção havia sido percebido por Riff, e esse gesto comprovou o
que Duas Caras lhe dissera, que os garotos teriam uma briga e
que aquele era um conselho de guerra.
— Sumam daqui, cucarachos — disse ele para Bernardo, com
um leve sorriso. — Ah, sim, este é um país livre e não tenho o
direito de mandar vocês embora. Mas tenho um distintivo. A
vida é dura em qualquer lugar. Agora façam o que mandei. —
Apontou com o cigarro na direção da porta. — Sumam daqui. E
isso significa sumir da rua.
Schrank observou os Sharks se afastarem em silêncio e
rodearem Bernardo. Antes que Krupke conseguisse sair da
viatura, os Sharks se separaram e correram em todas as direções.
Seria impossível segui-los, e Schrank fez sinal para que Krupke
continuasse no banco do motorista.
— Muito bem, Riff, onde vai ser a briga?
Ele esperou pela resposta, fez um sinal com a cabeça para
vários dos Jets e viu que todos olhavam para o outro lado.
Quando deu um passo na direção de Baby-John e Anybodys, os
dois se concentraram em uma aventura no gibi.
— Qual é? Sei que americanos normais não se misturam com
os dentes de ouro a não ser para uma briga. No rio? No parque?
— E, quando continuou, a voz estava mais tensa, mais mordaz:
— Estou com vocês. Quero esta área limpa. Vocês também.
Então, por que não nos ajudamos? Onde vai ser a briga? Na
quadra? No terreno baldio?
Ele mencionou outro campo de batalha e de novo esperou
pela resposta.
— Arruaceiros de merda! — esbravejou com raiva. — Eu devia
arrastá-los para o xadrez agora mesmo e esmagar suas cabeças
de tanta porrada! Vocês e a laia de imigrantes vigaristas que
pariram vocês! Como está a tremedeira de seu pai, A-Rab? Como
vão as coisas no colchão de sua mãe, Action? Muito movimento?
Schrank girou o corpo lentamente apoiado nos calcanhares
enquanto sua mão direita deslizava para o cassetete. Preparado,
esperou que Action saltasse em sua direção, mas Riff e Gee-Tar
correram para contê-lo.
— Podem deixar, parceiros, podem deixar — assegurou
Schrank. — Porque qualquer dia desses não haverá ninguém
para segurá-lo. — Com os olhos nos rapazes e a mão no
cassetete, Schrank se dirigiu para a porta. — Vou descobrir onde
será. Mas tratem de acabar uns com os outros antes de eu
chegar. Porque, se não fizerem isso, eu farei.
Os Jets esperaram o carro de polícia ir embora para então
deixar a lanchonete. Na porta, Riff aguardou Tony, mas o amigo
se sentou ao balcão sujo, curvado sobre as mãos unidas e tensas.
— Vem com a gente, Tony? — perguntou Riff.
Tony permaneceu imóvel por um instante, depois girou
devagar no banco.
— Por que não me escolheu para enfrentar Bernardo?
— Porque Diesel não se incomoda com uma briga suja. E você,
Tony, parece que não conheço mais você. Mais uma coisa...
— Sim?
— Se for homem a homem, Diesel é sacrificável. E você e eu
conhecemos Bernardo. Não confio naquele palhaço. — Riff
interrompeu o que dizia e fez uma careta para a sua mão direita
antes de limpá-la na perna da calça. — Pode me imaginar
apertando a mão de algum Shark, especialmente a dele?
— Posso imaginar.
Riff se conteve.
— Outra coisa, Tony, você é meu amigo e o último cara que
quero ver machucado. Mas se Diesel for derrotado, ainda
podemos apelar para você. O que acha?
— Vá para o inferno.
— Faço qualquer coisa por um amigo. Me diga uma coisa —
Riff inclinou a cabeça —, como está aquela irmã de Bernardo?
Acha que vai conseguir dar uns amassos com ela? Cara, isso não
ia ser o mesmo que ferrar com Bernardo? — insinuou, e fez um
gesto obsceno com o braço direito.
— Sabe o que tenho a dizer para vocês? — perguntou Tony. —
Para Bernardo e para você? O inferno é bom demais para vocês
dois.
— Qual é o problema, cara? — gritou Riff. — Isso quer dizer
que está nos descartando?
Tony se levantou do banco.
— Significa o que você quiser. — Sua voz vacilava. — Agora,
dê o fora daqui antes que eu faça um favor a Schrank e acabe
com você.
CAPÍTULO SEIS

— Você está bem, Anton? — gritou a Sra. Wyzek de sua cadeira


perto da janela da cozinha.
Da porta do banheiro, onde se barbeava, e ainda com vestígios
de espuma no queixo e ao redor das orelhas, Tony olhou na
direção da cozinha e piscou para a mãe.
— Estou bem, sim, mãe. Mas não grite desse jeito quando eu
estiver me barbeando. — Ergueu a lâmina. — Este negócio é
afiado.
— Desculpe — disse a mãe, mexendo os pés em uma bacia
com água fria. — Está tão quente, e você precisou trabalhar o dia
inteiro.
— Não tem problema — disse Tony, tranquilizando-a. — E isso
evita que eu engorde.
A Sra. Wyzek olhou para o filho e sorriu. Por um tempo muito
longo e triste, ele havia sido um estranho para ela, mas agora era
de novo seu filho. Como e por que a mudança ocorrera, ela não
ousava perguntar; mas no dia seguinte, como todos os domingos
ao longo dos últimos cinco, quase seis meses, agradeceria em
oração pela mudança de Anton.
Se pelo menos o pai do garoto estivesse vivo para ver aquela
enorme transformação. Mas ele tinha morrido muito jovem, em
Tarawa, e na época Anton ainda era criança. Por isso o pai não
esteve lá para sentir a mesma perplexidade, terror e confusão
que ela por não compreender por que ele e todos os outros
meninos daquele bairro horrível tinham sentido a necessidade
de virar vagabundos e bandidos.
Então, aconteceu uma transformação, e Anton voltou a ser o
filho que ela havia desejado depois do casamento, o filho que ela
amara desde sempre, por quem tinha orado enquanto
encharcava o travesseiro com lágrimas amargas, porque ele se
tornara um estranho perigoso para quem ela mantinha um lar
aonde ele voltava apenas quando se cansava das ruas. Seja lá o
que tivesse feito aquilo, suas orações ou algo que acontecera com
Anton, ela se sentia grata, infinitamente grata, em todos os
momentos do dia e da noite.
A Sra. Wyzek olhou para o pequeno ventilador que Anton
havia colocado sobre o fogão a gás e meneou a cabeça em
agradecimento ao zumbido de seu motor e à brisa fresca que
soprava em metade da cozinha. Com o ventilador ali e os pés
enfiados na bacia de água fria, ela se sentia muito confortável e
feliz.
— Você toma alguma coisa gelada comigo antes de sair? —
perguntou.
— Claro, mãe. Assim que me vestir. Que horas são?
— Quase oito e meia. — Ela ergueu a mão direita para mantê-
la na brisa fresca que chegava do ventilador. — Está tão
agradável aqui.
— Ótimo. — Tony piscou. — Agora me dá licença para eu
terminar de me barbear?
— Claro, Anton. Tome cuidado. Não vá se cortar.
O espelho tinha ficado embaçado com o vapor, e Tony o
limpou com o lado da mão antes de se inclinar para a frente e
repuxar o canto da boca para alcançar uma parte difícil, o que
muitas vezes não conseguia. Enquanto deixava a água morna
correr sobre a lâmina, franziu a testa para si mesmo no espelho,
apoiou as duas mãos na borda da pequena pia do banheiro e se
perguntou como exatamente as coisas se desenrolariam naquela
noite.
Por enquanto a pergunta o perturbava, e ele pensou de novo
em seu encontro com Maria.
Seus lábios formaram o nome dela, e ele aprovou seu formato.
Maria era um ótimo nome para se associar ao sol, à lua, às
estrelas e ao amor.
Por mais que tivesse tentado, havia sido mais difícil pensar
em Maria do que nos Jets e nos Sharks. Por volta das três da
tarde, Baby-John tinha ido à farmácia comprar outro gibi e lhe
segredara que falava em nome do grupo e que todos estavam
muito felizes por sua volta aos Jets, mesmo não tendo sido
escolhido por Riff para enfrentar Bernardo. Os Jets sabiam que
podiam contar com ele, e Riff queria que Tony os encontrasse
embaixo do viaduto às nove horas daquela noite.
— Acabei de roubar um picador de gelo novo de uma dessas
lojinhas de produtos baratos — contou Baby-John, orgulhoso. —
E fiz uma capa para poder prendê-lo no pescoço. Assim, se
aqueles Sharks cretinos não aceitarem a vitória de Diesel sobre o
homem deles, nós vamos partir para cima. E vou usar o picador
especialmente contra Pepe e Nibbles. — Ele tocou a cicatriz no
lóbulo da orelha. — Vou perfurar a orelha deles para poderem
usar brincos como suas garotas.
Tony tinha dado a Baby-John uma garrafa de refrigerante
gelado e dito que ele não aparecesse naquela noite. Mas sabia
que Baby-John não o escutaria; pelo contrário, se apressaria a
contar aos outros Jets o que ele dissera. Alguns deles, sobretudo
Action e Diesel, diriam que ele tinha de fato amarelado e que não
estaria lá. Riff teria problemas se isso acontecesse, de modo que,
gostasse ou não, pelo bem de Riff, ele precisava aparecer.
Às cinco da tarde Tony tinha recebido seu pagamento,
cinquenta dólares por cinquenta horas, comprado um ventilador
em um atacadista, corrido com ele para casa e tomado um banho
rápido, porque fazer isso no porão da farmácia era impraticável.
Dissera à mãe que estava sem fome, que fazia calor demais para
comer e que voltaria mais tarde.
Às cinco e meia se escondera atrás da porta de uma casa do
outro lado da rua onde ficava a loja de noivas até ver a gerente ir
embora e, poucos minutos antes das seis, viu também a
namorada de Bernardo sair. Dissera um palavrão ao ver Anita
voltar, bater na porta e Maria abrir, mas, por fim, ela fora
embora de vez.
Com as batidas do coração em disparada ressoando em seus
ouvidos, Tony correu até a porta dos fundos da loja.
Sim, era a mesma jovem que flutuou com ele ao vento na
noite anterior e, em silêncio, ela lhe ofereceu a mão, e ele a
seguiu até o interior da loja.
— Pensei que nunca ia dar seis horas.
— Também não tirei os olhos do relógio — disse Maria. — O
ponteiro dos minutos parecia não se mexer.
— Também tive essa impressão. — Ele fez uma pausa e olhou
ao redor da loja. — Não faz tanto calor aqui dentro.
— Foi o que a Señora falou. Disse que era mais fresco aqui do
que em seu apartamento. Achei que ela nunca iria embora.
Tony passou os dedos em um pedaço de seda branca.
— Mas foi. Então vi a outra garota voltar.
— Anita?
— Acho que é esse o nome dela. A namorada de Bernardo.
— Sim, Anita. Queria que eu fosse para casa com ela. — Maria
abriu bem os braços imitando Anita. — Sabe como ela chama a
Señora?
— Bruaca?
— Sim, e mais. Uma bruja.
— O que é isso?
Maria riu.
— Uma bruxa.
— Não é tão ruim — disse Tony. — Mas não acredito que haja
uma vassoura forte o bastante para transportá-la.
Maria riu de novo.
— Preciso contar isso para Anita. Ela queria que fôssemos
juntas para casa para me dar um pouco de... — pensou por um
instante — ... espuma de banho?
— Hoje Doc vendeu bastante essa espuma na farmácia. Eu
devia ter trazido um frasco para você de presente. Qual delas
Anita usa?
— Orquídea Negra.
Tony fez que não com a cabeça, porque o nome não
combinava com ela.
— Temos melhores do que essa em estoque — disse. —
Amanhã vou trazer para você. E outras coisas também.
— É melhor não, Anton.
— Por que não, Maria?
Ela se virou para estudar um tecido estendido na mesa de
corte.
— Anita está indo para casa para se arrumar. Quer estar
bonita e sedutora.
— Para quê?
Maria se virou para ele, os cantos da boca curvados para
baixo.
— Para o encontro com Bernardo, depois da briga. Perguntei a
ela o motivo da briga. Sabe o que ela respondeu? Que os garotos
fazem isso pela adrenalina, uma adrenalina que é tão grande que
nem a dança, nem... — interrompeu a frase e corou — ... as
garotas dão a eles uma sensação igual. Anita diz que, depois de
uma briga, meu irmão fica tão bem disposto que ela nem precisa
usar a Orquídea Negra. — Fez uma pausa. — Anita sabe que
você veio aqui. Só assim consegui fazê-la ir embora.
— Entendo. — Tony estava sério. — E o que ela disse?
— Que você e eu... nós dois... somos malucos. Que perdemos o
juízo.
— Então, assim como Bernardo, ela não gosta que eu me
encontre com você?
Maria assentiu, mas seus olhos revelaram que, ainda que essa
fosse a opinião de Anita, ela não a seguiria.
— Disse que devemos estar loucos se achamos que podemos
ficar juntos. Que isso seria impossível.
— Vê como ela estava errada? — perguntou Tony.
— Ela está do nosso lado — afirmou Maria. — Mas, ao mesmo
tempo, se preocupa com a gente.
— Somos intocáveis, Maria. Você e eu. E vou dizer por quê. —
Apoiou de leve as mãos, de repente úmidas, nos ombros dela e
movimentou a cabeça até fixar os olhos nos dela. — Porque
ainda estamos em uma nuvem. E esse tipo de magia não
desaparece.
— A magia é também perigosa e perversa. — Ela estremeceu.
— Anton... Tony, preciso saber. Promete me dizer a verdade?
— Agora e sempre.
— Você vai a esta briga de hoje?
Ele suspirou, depois balançou a cabeça.
— Até você me perguntar, eu não tinha certeza. Estava
confuso sobre o que fazer. Agora não mais. A resposta é não. A
única coisa que farei hoje à noite é ir para casa, me arrumar e ir
ver você.
— Antes de você ir me ver, preciso falar com meus pais. —
Sua voz estava firme. — E, antes de eu fazer isso, você deve
impedir essa briga.
— Já fiz isso — afirmou ele. — Ontem à noite. Não vai ser
nada além de uma briga corpo a corpo. E não há como Bernardo
sair machucado de verdade.
— Não. — Ela continuava a sacudir a cabeça. — Nenhum
conflito é bom para nós.
— Maria, estou aqui há mais tempo do que você. Quer dizer...
— Fez uma pausa, confuso, pois a sentira estremecer. — O que
quero dizer é que a briga não tem nada a ver com a gente. Não
vai acontecer nada — insistiu. — Nada. Agora dê um sorriso de
novo. Por favor.
— Só se fizer isso por mim. Não é só por mim que peço, é por
nós. Impeça esta briga.
— Você pediu por nós — disse ele. — Então vou fazer isso.
— Você consegue? — Ela agradeceu apertando-lhe as mãos. —
Consegue mesmo?
— Você não aceita nem uma briga limpa, sem armas, certo?
Então não vai haver confronto nenhum. Você manda e eu faço —
disse ele em um tom fanfarrão.
— Acredito em você. — Ela bateu palmas com admiração. —
Você é realmente mágico.
Era hora de abraçá-la, tê-la em seus braços mais uma vez, e
ela, como se exausta pelo calor, repousou a cabeça em seu
ombro.
— Pode usar de novo o vestido branco? Sabe, na verdade não
consegui vê-lo direito.
— O vestido branco?
— O vestido branco. — Ele roçou os lábios no contorno da
orelha de Maria e sussurrou seu nome. — Esta noite, quando eu
aparecer na sua casa.
— Na minha casa, não! — Ela estava assustada. — Minha
mãe...
— ... sua mãe conhecerá a minha — interrompeu ele. — Mas
primeiro preciso conhecer a sua. Assim, posso convidá-la
quando eu levar você para conhecer a minha. Veja bem, Maria,
também tenho uma mãe. Já meu pai, ele morreu há muito tempo.
— Sinto muito, Anton. — Maria se mexeu para se libertar de
Tony, e ele relutou em soltá-la. — Não sei — hesitou ela.
— Mas eu, sim. — Ele demonstrava confiança. — Agora preste
atenção — disse enquanto passava as mãos nos braços como se
arregaçasse as mangas. — Não abro mão de nenhuma das duas.
Você não disse que eu sou mágico? Então... — apontou para um
manequim próximo envolto em uma echarpe amarelo-clara.
Balançou os dedos na direção do manequim e se virou para
Maria. — Esta é minha mãe. Olha, ela acabou de sair da cozinha
para dar um oi. É onde ela passa a maior parte do tempo quando
está em casa. Na cozinha.
— Quanta elegância para ficar na cozinha — sussurrou Maria,
como se estivesse espantada.
— É porque avisei que você viria com seu vestido branco. —
De pé atrás do manequim, Tony o movimentou de um lado para
o outro. — Veja, ela está olhando para você, dizendo, meio que
para ela mesma, que você é bonita. Um pouco magrinha, mas se
Tony gosta de você desse jeito, ela também gosta.
As mãos de Maria delinearam uma mulher rechonchuda.
— Ela é...?
— Ela não vai se incomodar se você disser que ela é mais ou
menos... robusta. Só nunca a chame de gorda.
— Não vou fazer isso. — Maria se aproximou de um
manequim mais esbelto. — Esta é minha mãe. — Espiou por
detrás do manequim para rir de Tony. — E puxei a ela.
— Olá, Sra. Nunez, meu filho Tony me contou tudo sobre sua
filha. E devo dizer que ela é tão simpática quanto ele afirma.
— Obrigada, Sra. Wyzek. — Já no espírito da deliciosa
brincadeira, Maria moveu seu manequim para um lado e para o
outro. — Este é o Sr. Nunez, meu marido.
— Muito prazer, Sra. Wyzek.
— Muito prazer, Sr. Nunez. Queria falar com o senhor sobre
meu filho. Preciso dizer que ele foi fisgado... isto é... que está
apaixonado por sua filha. E ele gostaria de falar sobre ela com o
senhor.
— Primeiro devemos conversar sobre Tony — antecipou-se
Maria. — Ele vai à igreja?
— Costumava ir. E logo passará a ir de novo. — Tony saiu de
trás do manequim e se ajoelhou diante dele. — O senhor me
concede a mão de sua filha?
Maria saiu devagar de trás do seu manequim, primeiro com o
olhar ansioso, mas depois bateu palmas.
— Ele diz que sim! Minha mãe também! Agora pergunte à sua
mãe.
— Já perguntei. — Tony segurou a mão de Maria e beijou seus
dedos. — Neste momento ela está beijando seu rosto.
— Eles vão querer um casamento na igreja.
— Minha mãe também — disse Tony. Triste, coçou a cabeça.
— Terei muita explicação a dar ao padre. Mas quando conhecê-
la, ele verá...
— Anton...
— E quando eu prometer amar, respeitar e cuidar de você até
que a morte nos separe, será tudo sincero. Então me ajude,
Maria. E será a promessa mais fácil da minha vida.
— Amo você, Tony. E só quero a sua felicidade.
— Seremos felizes juntos — afirmou ele. — Assim será. Eu
prometo.
— Então também prometo. — Beijou-o de novo, com ainda
mais carinho, e deu um passo para trás a fim de admirá-lo com
olhos e lábios sorridentes. — Vou usar o vestido branco. E estar à
sua espera em minha casa depois que você impedir a briga.
— Isso é moleza — garantiu Tony. Olhou com surpresa para o
relógio na parede. — São quase sete horas. Seus pais vão ficar
preocupados. É melhor eu levar você em casa.
— Não, você precisa sair pelos fundos — insistiu ela. — Vou
trancar a loja e baixar a grade. Tony, o que devo dizer a meus
pais, que motivo dou para usar o vestido branco?
— Diga que sairá com um rapaz que vai buscar você em casa
— sugeriu ele, com muita paciência. — E, quando eu chegar, eles
vão ver que sou eu.
Ele se sentia tão bem que só precisou caminhar e sorrir para o
mundo para esperar passar mais uma hora. Então, quando
chegou em casa, sua mãe insistiu que ele ao menos bebesse algo
fresco. Só depois que tomou o copo de leite em dois goles,
conseguiu se refugiar no banheiro.
— Mãe — gritou enquanto enxaguava a lâmina pela última
vez —, que horas são?
— Quase quinze para as nove, Anton.
— Tenho que correr — disse, e acelerou do banheiro para o
quarto.
— Vai usar seu terno novo?
— Sim.
— Ele cai muito bem em você. Gosto de ver você se arrumar.
Mas seria ótimo se parasse para uma boa engraxada nos sapatos.
— Vou fazer isso — gritou, e começou a deslizar uma gravata
sob o colarinho da camisa, mas logo decidiu guardá-la no bolso
do casaco e colocá-la só na hora de chegar na casa de Maria.
Talvez, se tudo desse certo, ele pudesse dizer a Bernardo
exatamente como estavam as coisas e, se ele não quisesse ouvir,
alguém precisaria colocar um pouco de juízo em sua cabeça, e
isso seria tarefa dele, não de Diesel. Vamos, rápido, disse para o
seu reflexo no espelho, quanto mais cedo você chegar ao
viaduto, mais cedo vai estar na casa de Maria.

Riff jogou fora sua lata de cerveja, secou os lábios e olhou para o
relógio mais uma vez. Eram dez para as nove, e estava na hora
de começar.
— Muito bem — orientou os tensos e nervosos Jets —, vamos
nos espalhar e seguir para o viaduto. E, pelo amor de Deus,
cuidado com Schrank. Ele andou atrás de mim o dia inteiro.
Os Jets desapareceram na escuridão. Na rua seguinte,
Bernardo dava instruções semelhantes aos Sharks.
— Você precisa voltar para casa esta noite? — perguntou ele a
Anita.
Ela pressionou o corpo contra o dele e girou os quadris
devagar.
— Falei para minha mãe que faria companhia a Maria. Ela
disse que tudo bem. Mas para onde vamos?
— Ainda vamos ver — respondeu ele. — Agora preciso correr.
— Tome cuidado, Nardo. E não demore. Vou ficar esperando
aqui mesmo.
Bernardo acenou de novo e desceu a rua. Um quarteirão
adiante, parou para verificar a mola de sua faca retrátil. O clique
instantâneo que ouviu quando a lâmina saltou e travou na
posição correta lhe deu uma sensação de confiança. Com essa
faca ele apunhalaria com vontade um mundo estranho.
Porque a faca o tornava tão grande quanto qualquer um,
maior até; porque ela podia reduzir qualquer um ao seu
tamanho, cortar alguém em pedacinhos, que ele podia chutar
para o lado depois. Bernardo guardou a faca.
Ele não planejava usá-la aquela noite, mas se os Jets achassem
que ele não estava preparado para agir com calma, se
começassem a fazer graça, teriam uma grande surpresa.
Dezessete centímetros de surpresa.
Bernardo esperou um carro passar e atravessou a rua em
disparada. Cravou os calcanhares no barranco e começou a
descer devagar, com cuidado, porque não era hora de torcer o
tornozelo. Seus olhos estavam acostumados à escuridão, e ele
podia ver que, apesar do calor, alguns Sharks usavam jaquetas
por cima das camisetas.
Identificou-se com um assobio, ouviu Chino e Pepe chamarem
seu nome e um dos Jets comentar que o chefe cucaracho tinha
por fim aparecido. Cucaracho... Algum dia, quando tivesse
tempo, mostraria a eles tudo que um cucaracho era capaz de
fazer. Cara, o sangue jorraria de verdade.
— Cada um para um lado — ordenou aos Sharks. — E
mantenham os olhos em mim. Se eles começarem alguma coisa...
— Estamos de olho, Nardo — disse Toro. — Não confiamos
nem um pouco neles.
— Vou te dar cobertura — prometeu Chino quando Bernardo
começou a tirar a camisa.
— Ótimo. — Bernardo flexionou os músculos das costas e dos
ombros e conferiu a faca no bolso. — Vamos.
— Nosso homem está pronto — gritou Chino.
— O nosso também — gritou Riff de volta. — Que eles se
aproximem e se cumprimentem.
Bernardo cuspiu na escuridão.
— Para quê? — perguntou.
— É assim que se faz — disse Riff, lacônico, depois de se virar
e, com os Jets, rir dos porto-riquenhos ignorantes.
— Ah, mais uma coisa da vida civilizada — debochou
Bernardo. — Olhem só... — Apontou para Diesel e Riff, mas
incluiu todos os Jets e qualquer um igual a eles. — Não me
interesso pela merda de fantasia que vocês têm neste país. —
Vocês odeiam cada um de nós...
— Você está certíssimo — interrompeu Riff.
— ... e nós odiamos vocês também. Não bebo com quem odeio
— Bernardo cuspiu de novo —, e por isso não aperto a mão de
quem odeio.
Com os punhos erguidos e preparados, avançou com cautela.
— Tudo bem — disse Riff —, se é assim que você quer. — O
garoto deu um passo para o lado e se voltou para Diesel. — Ele é
todo seu.
Com a expressão cada vez mais sombria e abrindo e fechando
o punho direito, Diesel se aproximou devagar. Ele era mais
pesado do que Bernardo, e a luz não estava tão boa quanto ele
gostaria; mas se sentia confiante de que conseguiria conter
qualquer golpe que Bernardo tentasse. Ainda assim, manteve a
cautela, pois, embora o cucaracho fosse leve, tinha fama de
atacar com violência. Bernardo tinha conquistado uma boa
reputação nas brigas de rua, e havia quem dissesse que, se
conseguisse eliminar seu ódio interior, manter a calma e o
profissionalismo, poderia no mínimo lutar como um bom peso
médio na televisão, porque conseguia bater como um meio-
pesado.
Diesel tentou um golpe com a esquerda, que o cucaracho
evitou dando um passo para trás antes de contra-atacar com sua
própria esquerda, da qual Diesel desviou sem dificuldade. Diesel
lançou a esquerda de novo, fingiu que usaria a direita e recuou a
cabeça a tempo de evitar o punho de Bernardo, que apenas roçou
sua orelha.
O cucaracho tentaria um nocaute, o que significava que ele
não trabalharia o corpo, e isso era perfeito para Diesel, porque
Bernardo lutaria com as mãos no alto. Se conseguisse acertar um
soco forte no estômago de Bernardo, ele se enrolaria como uma
rosca, e um gancho o faria erguer o tronco de novo e se
endireitar para levar um golpe duro na boca, que afrouxaria pelo
menos três ou quatro de seus lindos dentes brancos.
Quando recebeu o golpe curto de esquerda de Bernardo no
ombro, Diesel contra-atacou com sua própria esquerda nas
costelas do oponente. O soco perdeu força porque Bernardo
tinha girado na hora, mas não antes de golpear com a esquerda o
lábio de Diesel, que logo começou a inchar.
O americano era durão, Bernardo sabia, e quando sua mão
acertou a boca de Diesel, ele teve vontade de gritar por aquela
vitória. Com os pés seguros e confiantes, Bernardo se
movimentava ao redor de Diesel, aproximando-se para acertar
um golpe, levar outro, desviar-se e recomeçar.
Lutar era como uma dança; tinha certos passos e ritmos que,
uma vez aprendidos, eram executados com naturalidade, sem ser
preciso pensar neles. Ele giraria um pouco mais no sentido
horário, distribuindo socos diretos e ganchos, fintando e se
esquivando, para então começar a circular no sentido anti-
horário. Isso poderia derrubar Diesel e fazê-lo baixar as mãos
por um segundo, que era o tempo necessário para Bernardo
desferir o golpe certeiro.
Bernardo ouviu alguém chamar, cambaleou para o lado, e
então percebeu que Diesel também havia recuado.
— Esperem!
— É Tony — gritou alguém. — Antes tarde do que nunca.
Tony respirou fundo quando se colocou entre eles.
— Qual é o seu problema? — perguntou Riff, dando um passo
à frente.
— Calma! Todos vocês! — ordenou Tony, aproximando-se
para tentar impedir que Bernardo e Diesel trocassem socos.
— Cara, você está encrencado — vociferou Riff, explodindo de
raiva. — O que você está fazendo? É melhor falar logo, Tony.
À espera, atento, respirando através dos lábios entreabertos,
Bernardo socava a mão direita na palma da esquerda.
— Talvez ele tenha criado coragem para lutar as próprias
batalhas — observou, e sorriu quando os Sharks riram de sua
brincadeira.
Tony também riu, e o sorriso continuou em seus lábios
quando ofereceu a mão a Bernardo.
— Não é preciso criar coragem se tem uma batalha, Nardo.
Mas nós não temos.
Bernardo bateu na lateral da mão de Tony antes de empurrá-lo
com força e jogá-lo no chão.
— Para você e essa ralé aí, meu nome é Bernardo. E a partir
desta noite, vai ser Sr. Bernardo.
— Chega! — gritou Riff enquanto ajudava Tony a se levantar e
fazia sinal para que os Jets se acalmassem. Ele tinha a situação
sob controle. — O trato é uma briga limpa entre você e Diesel.
Bernardo avançou e deu um leve tapa com as costas da mão
no rosto de Tony.
— Fique calmo, o seu está guardado para mais tarde — avisou
ele a Diesel. — Primeiro vou pegar o bonito aqui para um
aquecimento — provocou ele, dirigindo-se a Tony, que estava
massageando a bochecha. — Qual é o problema, bonitão? Está
com medo? Amarelou, frangote?
Riff puxou Tony para trás dele.
— Agora chega — avisou ele a Bernardo.
Tony, no entanto, recusava-se a se alinhar com os Jets.
Percebia agora a gravidade do erro que havia cometido.
Teria sido melhor, apesar do que Tony dissera ou prometera a
Maria, deixá-los acertar as contas. Se Diesel tivesse espancado
Bernardo, tudo ficaria resolvido, e ele poderia então ter feito
uma excelente jogada oferecendo-se para enfrentar Diesel para
provar a Bernardo que queria a paz entre eles.
Se Nardo tivesse espancado Diesel, Tony poderia ter proposto
um aperto de mão ao futuro cunhado, e se Nardo tivesse
recusado e o repelido, teria tentado um golpe certeiro em
Bernardo. Depois, quando se recuperasse, ele poderia ter
aceitado o aperto de mão ou o repelido de novo.
Agora era tarde demais para qualquer das opções, e Tony
estremeceu ao perceber a frieza e o ódio de Bernardo. Não havia
mais nada que ele pudesse fazer. Era tarde demais. Por Maria,
porém, precisava tentar; estava disposto até a se humilhar.
— Bernardo, você entendeu errado. — Tony mantinha a voz
baixa e firme.
Bernardo negou, meneando a cabeça.
— Não, eu entendi certo. Você é medroso, covarde.
— Por que não consegue entender? — insistiu Tony, e fez um
sinal para que Action continuasse de boca fechada.
Bernardo se aproximou-se com uma das mãos em concha
sobre a orelha, enquanto com a outra dava um peteleco no nariz
de Tony.
— Não consigo te ouvir, frangote — provocou ele. — O que
disse? A-Rab quer que você me bata. Mas você é covarde demais.
— Bernardo, não.
Satisfeito consigo mesmo, Bernardo girou ao redor de Tony
para tocar seu nariz, seu queixo, dar um tapa em sua orelha,
fazer uma pirueta como se fosse um toureiro.
— Não posso chamá-lo de toro porque ele é medroso demais
— disse aos Sharks, que se divertiam, admirados. — Vamos,
frangote. — Bernardo insistia em insultar Tony. — O que tem a
dizer antes de eu começar a fazer você cacarejar de medo?
Era demais para Riff. Ele pensou, envergonhado, em todos os
momentos, os dias, as semanas e os meses que passara
defendendo Tony, seu melhor amigo, dos ataques de Action e
Diesel, e até de Baby-John e Anybodys. Não fazia sentido.
Nenhum homem branco com um pouco de orgulho aceitaria o
que aquele cucaracho estava fazendo. Tony estava maluco ou
algo assim para ouvir calado os desaforos de um maldito
cucaracho? Talvez Tony não sentisse vergonha, porque alguém
doente da cabeça ou sem coragem não sentiria, mas Riff, sim.
Tocou o bolso de trás e sentiu o volume tranquilizador de sua
faca retrátil.
Bernardo deu mais um tapa em Tony.
— Frangote covarde...
— Pelo amor de Deus, Tony! — gritou Riff, angustiado. —
Filho da puta idiota, você está louco! Não deixe ele fazer isso!
— Acabe com ele, Tony! — gritou Anybodys.
Baby-John pulava sem parar.
— Acabe com ele!
— Ele não acaba com ninguém — zombou Bernardo. — Seu
merda, seu cretino...
Com um grito de raiva, Riff empurrou Tony para o lado e
saltou na garganta de Bernardo. Conseguiu desequilibrá-lo, em
seguida o puxou do chão, colocou-o de pé e esmurrou sua boca
com o punho fechado.
Bernardo sentiu a boca se encher de sangue, mas baixou a
cabeça para atingir Riff direto no rosto, e quando este perdeu o
equilíbrio e cambaleou para trás, Bernardo sacou a faca.
Enquanto limpava a boca, viu o brilho da lâmina de Riff. Era
isso, era assim que devia ser. Mandou que os Sharks se
afastassem, era aquilo que ele queria. Com o canto do olho, viu
Tony avançar, mas Action e Diesel o seguraram.
Competindo por posição, fintando, movendo as facas em
círculos defensivos, os dois líderes diminuíram a distância entre
si. Ambos tinham experiência suficiente para saber que esse tipo
de luta nunca durava muito. Podia acabar com um só golpe;
nunca precisava de mais de dois ou três.
Ao redor deles o espaço se estreitava, e quando Diesel e
Action avançaram, relaxaram o controle sobre Tony por um
momento, que foi o tempo suficiente para ele se soltar.
Tudo aconteceu muito rápido, como um borrão. Ele ouviu Riff
gritar para que voltasse, desgraçado, e quando Riff gesticulou
para enfatizar a ordem, abriu bem o braço esquerdo. Isso
proporcionou os poucos segundos de que Bernardo precisava
para se aproximar depressa, levantar a faca em um violento arco
mortal e desferir um golpe que terminou no corpo de Riff, logo
abaixo do coração.
Riff já estava morto antes mesmo de cair e, com um grito de
angústia, Tony tirou a faca de sua mão inerte e avançou com
tamanha velocidade que Bernardo foi apanhado desprevenido.
Incapaz de mover os pés corretamente para se defender, toda a
extensão da lâmina perfurou a lateral de seu corpo, e ele,
moribundo, foi ao chão.
O estertor e o suspiro da morte, a terra cada vez mais escura,
as formas débeis de repente desprovidas de ódio, violência e
vida, pareciam terríveis demais para suportar. Então o som de
uma sirene, o chiado dos pneus de um carro de polícia que
parava acima deles e o facho de um holofote explorando o
acostamento do viaduto dispersaram os Jets e os Sharks.
Diesel segurou o braço de Tony e, enquanto corria com os
olhos cegos pelas lágrimas e sentindo seu mundo desabar, Tony
chamou o nome dela repetidas vezes, sem parar, mas só teve
como resposta o som descontrolado e desesperador da sirene.
CAPÍTULO SETE

O rádio estava sintonizado em uma estação que se orgulhava de


tocar apenas músicas rápidas e animadas, com uma batida
simples e primitiva e letras sem sentido. As garotas no telhado
movimentavam os pés e os ombros e, com olhos impacientes,
observavam a escuridão.
Bem, já eram nove e meia da noite, e isso só podia significar
uma ação forte e real ao vivo. Sim, elas estavam impacientes... o
amor viria com fúria total aquela noite.
Consuelo se olhou em um espelho de bolso e decidiu que
preferia seu perfil esquerdo: cílios falsos mais longos e seios
postiços maiores.
— Esta é minha última noite como loira — anunciou.
— Não vai perder nada — comentou Rosalia.
— Vou ganhar! — Consuelo recolocou o espelho em sua bolsa
grande. — A vidente disse a Pepe que uma mulher morena
entraria em sua vida.
— Então é por isso que ele não vai sair com você depois da
briga! — disse Rosalia.
Toda contente com a própria tirada, Rosalia atravessou o
telhado para contar a Maria o que ela acabara de dizer para
Consuelo, que era ainda mais boba do que ela imaginava.
O som de sirenes em disparada nas ruas abaixo fez Maria
estremecer. Havia alguns sons que ela não suportava, que
odiava, que lhe causavam até medo, e o barulho de sirenes
provocava essas três reações nela. Sirenes quase sempre
significavam problemas, doença, um acidente, morte, incêndio.
Ainda que essas sirenes não tivessem a ver com ela.
— Não vai ter briga — afirmou para Rosalia.
— Mais uma vidente! — disse Rosalia apontando para Maria.
A garota olhou por cima do parapeito para a rua e se
perguntou quanto tempo ainda teria que esperar por Tony. Não
que ele precisasse se apressar, já que seus pais tinham ido ao
cinema com suas irmãs mais novas.
Ela começara uma briga com as irmãs quando seu pai, para
encerrar a discussão, sugeriu que todas fossem ao cinema. As
menores sem dúvida logo pegariam no sono e, enquanto
estivessem no cinema, com certeza ficariam mais tranquilas do
que em casa.
Ela achara a sugestão ótima, mas dissera aos pais que ficaria
em casa porque sairia com Bernardo, Anita e outras amigas.
— Aonde Chino vai levar você depois dessa briga que não vai
ter? — Consuelo perguntou a Maria.
Maria abriu um sorriso enigmático para ela.
— Chino não vai me levar a lugar nenhum.
— É para nós que ela está se enfeitando — brincou Rosalia, e
apontou para Maria em seu vestido branco.
— Não, não é para vocês. — Maria abanou a cabeça. Observou
as amigas e se perguntou até onde devia contar para elas. —
Conseguem guardar segredo?
Consuelo bateu palmas.
— Adoro segredos. Conte para mim e terá contado para o
mundo inteiro, o que já te economiza saliva.
— Esta noite estou esperando o homem com quem vou me
casar.
— Mas qual é o segredo disso? — Consuelo estava
decepcionada. — Sabe de uma coisa, Rosalia? Chino é legal. Ele
não fica falando sobre o amante maravilhoso que ele é, como os
outros fazem. E não fala muito sobre ir trabalhar, porque ele de
fato trabalha. Então, sabe o que eu acho?
— O quê? — perguntou Rosalia.
— Ele é do tipo que faz as coisas, não fica só na conversa...
Esses são os que fazem tudo melhor! Quando você vai se casar
com esse grande apaixonado?
Maria respirou fundo.
— Não é Chino quem estou esperando.
— Pobre garota! — Consuelo colocou a mão na testa de Maria.
— O calor a afetou. Ela está fora de si.
— Estou mesmo! — Os olhos de Maria brilhavam de emoção.
— Estou fora de mim e nas nuvens de tanta felicidade. Sejam
sinceras, vocês acreditam que Chino me deixaria desse jeito?
Intrigada, Consuelo olhou para Rosalia em busca de uma
explicação, mas ela apenas deu de ombros.
— Eu diria — arriscou ela — que Maria parece diferente.
— Pareço? — perguntou Maria. — Ainda que eu não parecesse
diferente, vocês não percebem que me sinto diferente?
Rosalia concordou com um gesto de cabeça.
— Muito diferente, como se estivesse iluminada.
— É assim mesmo que me sinto! — exclamou Maria. —
Fantástica, maravilhosa, linda. Sinto que conseguiria voar, se
quisesse. Poderia correr pela beira deste telhado e pular para
aquele lá na frente. — Indicou com o dedo. — Só vejo estrelas no
céu. Quatro ou cinco luas. Estou apaixonada pelo garoto mais
maravilhoso e espetacular que existe.
— Claro — concordou Consuelo. — Chino. — Virou-se de
novo para a amiga. — Ele deve mesmo ter algo a mais.
— Tem um emprego — riu Rosalia. — Um bom emprego.
— Ah, cale a boca — protestou Consuelo. — Você pensa com a
razão, e Maria, com o coração. Eu queria saber...
Rosalia deu de ombros.
— Ela não nos contou essa parte do segredo, então não
podemos espalhar por aí.
— Mas podemos dizer que ela contou... — sugeriu Consuelo.
Maria se ajoelhou para desligar o rádio, depois se apoiou na
parede do prédio.
— Alguém está me chamando. Oi! Estamos aqui em cima, no
telhado. — Radiante, virou-se para as amigas. — Agora vocês vão
saber quem é!
Correu para a porta, manteve-a aberta e esperou. Coitado do
Tony, ele devia ter batido na porta e percebido que estava
trancada.
— Aqui em cima! — gritou. — Vem logo! Quero que conheça
minhas amigas...
Interrompeu a frase e piscou várias vezes ao perceber que era
Chino quem estava no patamar abaixo.
— Preciso falar com você — disse ele. — Quem mais está aí?
— Minhas amigas. Chino, o que houve? Parece que você
sofreu um acidente!
— Anita? — perguntou ele.
— Ela não está aqui. Chino, você está passando mal? — Maria
desceu alguns degraus. — O que houve?
Chino se encostou na parede, olhou para as mãos, atônito, e
enxugou o rosto brilhoso e suado com a manga da camisa.
— Desça, Maria. — E, apontando para as outras duas garotas,
disse: — Fiquem onde estão, não escutem a conversa dos outros.
— Não precisamos ser enxotadas mais de uma vez para saber
quando nossa presença não é desejada — reclamou Consuelo.
— Deixem Chino em paz! — Maria correu escada acima para
fechar a porta do telhado e voltou para onde estava Chino. — O
que houve? — insistiu. — Qual é o problema?
— Onde estão seus pais? As meninas?
— Foram ao cinema. Você andou brigando, Chino?
Chino gemeu e cobriu o rosto com as mãos.
— Tudo aconteceu tão rápido.
— O que aconteceu tão rápido, Chino?
— Maria, na briga...
— Não houve briga — retrucou ela.
Chino olhou em outra direção.
— Houve. Houve, sim. Ninguém teve a intenção. Ninguém.
Ele bateu com força o punho contra a parede para enfatizar
suas palavras.
Maria sentiu o sopro frio do medo em seu rosto.
— O que aconteceu? Conte. Conte logo. Será mais fácil se falar
tudo bem depressa.
— Houve uma briga — começou Chino —, e Nardo...
— Continue.
— Uma faca...
— Tony! — gritou enquanto forçava Chino a se virar para ela.
— O que aconteceu com Tony?
Com os olhos arregalados, incrédulo, Chino apoiou o rosto na
parede. Então, pela primeira vez, percebeu que Maria usava o
vestido branco, sapatos de salto alto, até batom, e teve certeza de
que nada daquilo era para ele.
— Tony? — Chino estava descontrolado. — Ele está bem. Está
ótimo! Acabou de matar seu irmão!
— É mentira! É mentira! — Maria começou a bater nele com
os punhos cerrados. — Você inventou essa história, Chino, e
odeio você por isso! Vou dizer a Nardo que não deixe mais você
vir aqui. É mentira, mentira, mentira! — Ela se calou por um
instante ao ouvir a sirene da polícia. — Por que está mentindo
para mim?
Apoiado na parede, Chino também ouviu a sirene, e o som
estridente liberou-o da agonia do momento. Deu um salto à
frente, empurrou Maria para o lado e desceu às pressas para o
apartamento, porque tinha um trabalho a fazer.
Não que Nardo ou algum dos Sharks tivesse lhe pedido
alguma coisa, mas todos estariam à procura de Tony Wyzek, e
ele, Chino Martin, tinha o maior de todos os motivos para
encontrá-lo. E como Nardo o considerava seu cunhado, tinha lhe
contado onde guardava a arma. Chino enfiou a mão atrás da
banheira e apalpou o pacote duro e compacto que Bernardo
havia escondido. Seu medo sumiu, e ele teve certeza de que
daquele momento em diante seria uma insensível extensão do
gatilho.
Desempacotou a arma e abriu-a para ter certeza de que estava
carregada. Com a arma enfiada no bolso, Chino se virou e forçou
passagem por Maria, que, atordoada, acabara de entrar no
apartamento.
Ele agora via que ela acreditava em suas palavras, mas não
havia tempo para explicações, não havia tempo para nada além
de encontrar Tony Wyzek e matá-lo.
Por um instante, Maria pensou em correr atrás de Chino, mas
logo desistiu e apenas atravessou a cozinha para se ajoelhar
diante das imagens da Sagrada Família. Com os olhos pousados
na Mãe, balançou o corpo em uma agonia e uma prece
silenciosa. Depois começou a rezar em voz alta em espanhol,
tentando se lembrar de todas as orações que já ouvira ou
aprendera.
— Não permita que seja verdade — implorou. — Estou
disposta a qualquer coisa. Faça com que eu morra. Apenas, por
favor, não permita que seja verdade.
Suas preces foram interrompidas por mãos firmes e fortes em
seus cotovelos, mãos que queriam colocá-la de pé. Não podia ser,
mas ela o viu e soube que era Tony, e ele já não parecia jovem.
Seus olhos estavam envelhecidos, fundos, e sua boca se
contorcia enquanto ele respirava em espasmos profundos e
pungentes.
A mão de Maria atingiu-o uma vez, e outra e mais outra, e
então começou a golpeá-lo com mais violência do que havia
batido em Chino. Ele não fez qualquer esforço para se defender
enquanto ela o atingia no rosto com os punhos.
— Assassino! — gritava ela, gemendo sem parar, sem
conseguir se controlar. — Assassino, assassino, assassino,
assassino...
De repente, ela caiu nos braços de Tony e, juntos, foram ao
chão. Com o rosto úmido pressionado contra o dele, tentou
enxugar suas lágrimas com beijos antes de aninhá-lo em seus
braços, onde ele chorou com a angústia de um condenado.
— Tentei impedir. Tentei com todas as minhas forças. — Seu
choro era entrecortado. — Não sei o que deu errado. Eu não
queria machucá-lo. Eu juro. Eu juro. Eu não queria. Mas Riff...
Riff era como meu irmão. Então, quando Bernardo o matou...
— Que Deus os tenha — murmurou ela.
Tony apertou Maria em seus braços, começou a beijar seus
olhos, as bochechas, os cabelos, ainda chorando sua dor.
— Eu precisava contar a você. Só quero que me perdoe antes
de eu procurar a polícia.
— Não — sussurrou ela. — Não.
— Vai ser mais fácil agora — afirmou Tony. — Não estou com
medo.
— Não — repetiu ela, descontrolada. — Fique comigo. Fique
comigo. Estou sozinha. Fique comigo.
Ele a abraçou de novo, sentiu o calor de seus seios, seus
cabelos, as lágrimas contra seu rosto.
— Te amo muito, Maria — sussurrou. — E matei alguém que
você ama. Preciso de sua ajuda... por favor, me ajude.
— Me abrace com força — pediu ela em resposta. — Me aperte
mais em seus braços. Estou com muito frio.
Como seria possível haver horas, dias ou um futuro depois
daquela noite, depois do instante em que seus pais voltassem do
cinema?
— Você precisa descansar — disse ela. — Na minha cama.
Anton, por favor.
— Preciso ir — disse ele.
— À polícia?
— À polícia.
— Depois de um descanso. — Maria ficou de pé e ofereceu-lhe
as duas mãos. — Agora há pouco, no telhado, falei com minhas
amigas sobre meu casamento. E nós nos casamos, Anton. Você
não se lembra, hoje à tarde?
— Se pelo menos pudéssemos voltar a essa tarde.
— É de tarde. Para nós o tempo não vai passar além desta
tarde. Agora você precisa descansar.
CAPÍTULO OITO

Baby-John invocou Super-Homem, Batman e Robin, Wonder Boy


e Planet King, Arqueiro Verde e Besouro Verde, Spaceman, Jack
Blastoff e Orbit Oscar para virem em seu socorro.
Sentado na carroceria escura do caminhão avariado, com o
queixo apoiado nos joelhos e os olhos fixos em uma estrela
visível através de uma fenda na lateral metálica do veículo que
descansava sobre seus eixos no depósito de sucata perto do rio,
esperava que um rastro de luz, como o de um meteoro, indicasse
o caminho traçado por um, talvez até por todos os seus heróis.
Esse pedido de ajuda que Baby-John tentava mandar para o
espaço não era comum, mas um apelo que precisava ser levado
em consideração, pois ele acabara de ver dois caras durões irem
ao chão: Riff, que ele admirava e por quem chorou, emocionado,
e Bernardo, a quem odiava, mas também precisava admirar por
ter se mostrado um cara obstinado.
Na verdade, Tony Wyzek não tinha sido imprudente — seu
modo de empunhar a faca demonstrava maestria —, mas era por
sua culpa que Riff e Bernardo estavam mortos. Riff tinha dezoito
anos, Bernardo quase isso também, Baby-John calculou, e ele,
quatorze, o que significava que, se algum dia conseguisse se
tornar um cara tão durão quanto Riff ou Bernardo, teria apenas
mais quatro anos de vida, talvez cinco. O que com certeza não
era muito, ainda mais se tivesse que passar dois ou três desses
quatro ou cinco anos no reformatório.
Apenas poucos minutos antes, Baby-John tinha escalado um
dos muros do pátio de automóveis, perguntado a si mesmo até
onde conseguiria caminhar por cima dele e decidido descobrir.
Com os braços abertos e os dedos rígidos, moveu-se devagar pelo
alto do muro para que seus heróis, de Batman a Orbit Oscar,
pudessem ver que valia a pena salvá-lo. Baby-John enviou a
todos eles pensamentos muito fortes, porque era melhor um
deles vir pegá-lo antes que os tiras o fizessem.
Eles tinham visto como ele acabara de se livrar de Schrank e
Krupke — cara, ele tinha mesmo exagerado com Krupke —, mas
os tiras estariam determinados a pegá-lo mais cedo ou mais
tarde, e Krupke baixaria o cassetete nele sem dó nem piedade.
Havia um poste telefônico a apenas alguns centímetros do final
do muro, e Baby-John tentou parar junto dele, com o pé direito
apoiado nas escoras.
E se ele saísse do pátio, encontrasse Krupke e Schrank e
tentasse acabar com eles usando o picador de gelo? Ou se
simplesmente corresse pela Columbus Avenue e atacasse todos
os homens ou garotos porto-riquenhos com mais de dez anos
que cruzassem seu caminho? Que manchetes conseguiria! Mas e
se desse de cara com... Tony Wyzek?
Usando as duas mãos, Baby-John se agarrou ao poste para não
cair depois de uma leve tontura. Ele mataria Tony? Ou era sua
obrigação defender Tony dos Sharks? Naquele momento, ele
precisava de alguma liderança. Se Batman e Robin quisessem
encontrá-lo seria fácil, pois tinham visão de raio-X e audição
aguçada o suficiente para entrar em sintonia com seus
pensamentos. Mas até que seus heróis chegassem, ele queria que
algum dos líderes dos Jets lhe dissesse o que fazer.
Quem pedira aos porto-riquenhos que viessem para cá? Baby-
John soluçou enquanto escorregava pelo mastro, olhava ao redor
e caminhava rumo ao caminhão. Quem tinha pedido que eles
viessem para cá e matassem Riff, um cara tão legal?
— Alguém aí? — sussurrou Baby-John para dentro da
escuridão do caminhão. — É Baby-John quem pergunta.
— Cale a boca e entre — respondeu A-Rab. — Câmbio e
desligo.
— É bom estar com alguém — suspirou Baby-John depois de
pigarrear, secar os olhos e o nariz e erguer a mão direita
encardida como um sinal para que seus heróis soubessem onde
ele se encontrava. — Krupke e Schrank... Dobrei uma esquina, e
lá estavam eles. Por um segundo quase tive certeza de que tudo
estava acabado.
— Entendi. — A-Rab demonstrava impaciência. — Tem um
cigarro? Sabe onde estão os outros? Viu Tony?
— Ninguém viu — respondeu Baby-John, jogando o cigarro
que lhe restava para A-Rab, que tremia como um drogado
desesperado por uma dose. — Acho que os outros vão aparecer
logo, espero. Talvez tenham ido para casa.
— Está doido? — A-Rab acendeu o cigarro e jogou o fósforo
na direção de Baby-John. — É o primeiro lugar aonde a polícia
vai. Por isso, não volte para casa antes de pelo menos dois dias
— alertou.
— Não vou voltar. A-Rab, me diga uma coisa, você chegou a
ver o rosto deles?
— Deles quem?
— De Riff e Bernardo, depois do que aconteceu. Você sabe, as
pessoas têm muito sangue.
— Cale a boca! — A-Rab estremeceu. — Acabo com você se
não ficar quieto.
— Só estou comentando. Nossa, eu queria que agora fosse
ontem. — Baby-John suspirou. — Ou amanhã. Só não queria que
hoje tivesse acontecido. A-Rab, o que acha de fugirmos?
A-Rab deslizou para o chão do caminhão e fumou com a
cabeça bem abaixada.
— Está com medo?
— Se prometer que não conta para ninguém... estou, sim.
— Então é melhor parar — avisou A-Rab. — Você está me
deixando com medo, e isso me assusta.
Quando ouviram a sirene da polícia na rua escura do outro
lado do pátio e o ruído de pés correndo, A-Rab se jogou no chão
e Baby-John se agachou em um canto mais escuro. Uma viatura
policial desceu a rua em alta velocidade, e Baby-John seria capaz
de jurar que tinha ouvido um tira gritar que usaria sua arma
caso o sujeito em disparada não parasse.
A-Rab rastejou até chegar bem perto de Baby-John.
— O que vamos fazer?
— Esperar aqui, eu acho — sussurrou Baby-John. — É o que
Action quer. Ele vai ficar no comando?
— Acho que sim — respondeu A-Rab. Apertou o braço de
Baby-John. — Aconteça o que acontecer, nada de fazer acordo
com os tiras, certo? Não fale para eles sobre o que sabemos desta
noite.
— Nada, eu juro. — Baby-John ergueu a mão. — Está passando
o mesmo filme que vi quando os Sharks me pegaram. Então, se
eu contar a história para você, temos álibi.
A-Rab bagunçou com a mão os cabelos do Jet mais novo.
— Ei, você tem cérebro!
— Se fomos ao cinema, do que temos medo? Por que estamos
escondidos aqui?
— Cale a boca e me conte o filme — disse A-Rab. — E que seja
interessante.
A empolgação de estar escondido da polícia, de saber que
agora não era mais brincadeira, que A-Rab dependia dele e que
os dois seriam informados sobre o que fazer por Action, que
nunca tinha medo de nada, ajudava Baby-John a se sentir melhor
e menos dependente de seus heróis, com certeza atarefados em
algum outro lugar.
E se Action decidisse que eles deviam se apossar de um
telhado, colocar um verdadeiro arsenal lá em cima e ver por
quanto tempo conseguiriam resistir à polícia? Cara, essa seria
uma bela maneira de sair dali como um homem! Se Action não
tivesse um plano para tirá-los daquela enrascada, fugir da polícia
era melhor do que ir para o reformatório. Baby-John até
imaginava a cena, policiais por todo lado, câmeras de TV e
repórteres em todos os lugares, e eles lá, no telhado, com
máscaras contra gás para que não apagassem.
— Precisamos conseguir máscaras de gás — disse ele para A-
Rab.
— Máscaras de gás? Para quê?
— Para nos proteger dos tiras.
— Do que está falando?
— Espere para ver. — Baby-John estava cauteloso. — As coisas
vão piorar, porque eles vão estar procurando a gente em todos os
lugares, como você disse. Por isso precisamos de um plano de
ação. Então, Action... acho que é Action agora?
— Ele ou Diesel — concordou A-Rab. — Não, tem que ser
Action, porque ele tem mais coisa aqui dentro. — Tocou na
própria cabeça. — Pelo menos imagino, e espero que sim. Então,
é Action quem vai dizer o que vamos fazer.
— Acha que ele tem condições? — Baby-John não sabia se isso
o fazia se sentir bem. Se Action tomasse as decisões, ele jamais
teria a chance de apresentar seu plano. — Talvez ele peça nossa
opinião.
— Talvez — concordou A-Rab, e pediu que Baby-John se
calasse, porque alguém estava sinalizando alguma coisa com um
assobio. — Isso significa que agora estamos em seis aqui —
disse. — Nada mau.
Reunidos na carroceria do caminhão, sentados em almofadas
tiradas de outros carros, esperaram que mais Jets aparecessem.
Anybodys falava sem parar sobre o pé de cabra que havia
encontrado, que seria a melhor coisa para abrir janelas e portas,
e que também poderia servir de arma. Mas ninguém prestava
atenção, porque estavam ansiosos para que Action terminasse o
cigarro e lhes dissesse o que fazer.
Action contou um a um — havia oito, não, nove Jets
presentes, se incluísse Anybodys — e esmagou o cigarro no chão
do caminhão.
— É melhor começarmos — disse —, porque imagino que
alguns Jets podem ter sido pegos. Alguém se opõe a que eu
assuma o comando?
— Por mim tudo bem — confirmou Mouthpiece.
— Ótimo — prosseguiu Action depois que todos murmuraram
que ele seria o líder. — Quem tem algum plano?
— Eu tenho — respondeu Anybodys antes que Baby-John
conseguisse falar. — Precisamos salvar Tony. Porque tem uns
caras atrás dele.
— Então eu digo que é melhor que eles o encontrem e nos
poupem o trabalho — sugeriu Diesel. — Action, não acha que
para nós já basta? Temos que sair daqui antes que nos levem
para o centro e nos fotografem com um número atravessado no
peito. Tem gente atrás de Tony, e espero que o encontrem.
Aquele canalha. — Cuspiu. — Se não fosse por ele, Riff estaria
vivo e eu teria acabado com Bernardo.
— Quem está atrás de Tony? — perguntou Action, ignorando
Diesel.
Anybodys se deslocou para uma parte do assento ainda não
perfurada pelas molas quebradas.
— Os Sharks — respondeu ela. — Depois que todo mundo se
espalhou, achei que devia me infiltrar no território dos porto-
riquenhos. Sondar o que estava acontecendo. Não preciso de
muita sombra para me esconder, e consigo me movimentar de
um jeito que a maioria das pessoas jamais viu.
— Você é algo que a maioria das pessoas nunca viu — disse
Snowboy. — Então pare de papo furado e vá em frente.
— Tem algo para nos contar? — perguntou Action a
Anybodys. — Pode falar.
— Escutei a conversa de Chino com alguns Sharks. Eu estava
muito perto, mas eles não me viram. — Não resistiu ao tom de
dever cumprido. — Ele contou alguma coisa sobre Tony e a irmã
de Bernardo. Depois começou a xingar na língua dos cucarachos,
mas consegui entender um pouco. — De novo fez uma pausa. —
Ele jurou que vai pegar Tony nem que seja a última coisa que ele
faça.
— Tony vai nocautear aquele merda — disse Diesel. — Isto é,
o antigo Tony faria isso.
— Talvez — concordou Anybodys. — Isso se Chino não
acabar com Tony primeiro. Vi a arma que ele mostrou aos
Sharks.
— Desgraçados! — Action estava de pé. — Esses porto-
riquenhos cretinos não dão uma trégua! Não quero ouvir nada
de vocês que soe como traição. Não gosto nem um pouco de
Tony, mas se alguém deve dar uma lição nele, somos nós. Não os
cucarachos. Alguém se opõe?
Parado diante dos Jets, Action só prosseguiu quando os viu
menear a cabeça afirmativamente, reconhecendo que era ele
quem tomava as decisões e, gostassem ou não, eles seguiriam
todas elas.
— Precisamos encontrá-lo — disse Action. — Para isso,
devemos nos espalhar. Anybodys, acha que consegue encontrar
Graziella e as outras garotas?
— Acho que sim.
— Então diga a elas que fiquem de olho também. E quem
encontrar Tony o traz para cá. Nesse caso, alguém deve ficar
aqui. Alguém que não tenha medo de ficar sozinho no escuro.
— Eu não tenho — afirmou Baby-John.
— Então você fica. E, se alguém aparecer, passe as instruções.
Se Tony aparecer, segure ele aqui com você. Entendeu?
— Claro. — Baby-John assentiu com a cabeça. — Mas seria
bom Anybodys me emprestar o pé de cabra.
— Se você devolver depois.
Action fez sinal para que o seguissem para fora do caminhão,
e, quando Baby-John parou com o pé de cabra ao seu lado,
enviou pensamentos muito fortes para seus heróis mais uma
vez.
Um pouco triste, perguntou a si mesmo se seu problema não
seria pequeno demais para que eles ligassem. Talvez, em seu
caminho pelo espaço sideral, Riff pudesse falar bem dele.
CAPÍTULO NOVE

Sim, ela o tinha beijado enquanto ele repousava na cama e,


aflito, ele a abraçara e pressionara os lábios contra sua boca. Em
desesperada angústia, tinha se agarrado a ela, como se à beira da
morte, e com a mão direita tocado seu seio, depois hesitado, e
então, com a palma em concha, segurado a pele morna que
pulsava sob o tecido. E a certeza de que a vida deles juntos
terminaria em minutos, na melhor das hipóteses em uma ou
duas horas, o obrigara a afastá-la e a apenas permanecerem
deitados lado a lado.
Ele estremeceu de novo e tentou sair da cama, então ela foi
para o outro travesseiro e ouviu-o chorar, depois adormecer.
Logo seus pais subiriam as escadas — ou estariam a caminho da
funerária? Ou Bernardo seria levado para o necrotério?
Ela sentiu a cama balançar enquanto Tony tremia
descontroladamente e encolhia as pernas como se estivesse
tentando sufocar o tremor. Tateando no meio do caos, ele
arquejou e tentou de novo sair da cama.
— Fique comigo — pediu ela.
— Maria? — sussurrou ele. — Maria, preciso ir.
Sem dar tempo para que Tony falasse de novo, ela o abraçou e
encaixou seus seios, sua barriga e seus quadris no corpo dele, e o
desejo superou o medo, a alegria superou a tristeza, até que o
toque de uma sirene soou na rua abaixo.
De repente, num impulso, ele se afastou e com os pés tateou o
chão para encontrar seus sapatos.
O terror subiu à garganta de Maria, e ela pressionou os lábios
contra o rosto de Tony na tentativa de impedir que o grito
dentro de seu peito escapasse e assustasse o menino em cujos
braços ela estivera.
— Estamos casados — soluçou ela. — Esta tarde nos sentimos
muito felizes. Esta noite, à sua espera, me senti muito feliz.
— Você é jovem — disse ele. — Será feliz de novo. Com
alguém melhor do que eu. É o que vejo para você.
Ela fez que não com a cabeça.
— Seja meu marido.
— Não posso. Sou um assassino.
— Então seja meu amante.
— Não posso. — Ele se virou para não ver seus olhos. —
Bernardo não permitirá. Meu Deus, Maria, eu o matei!
— E ele matou seu amigo. O amigo que era como seu irmão.
— Não. — Ele precisava negar. — Isso foi há muito tempo. A
gente só se falava, nada mais. Ele nunca foi um irmão para mim.
Na verdade, acho que nem meu amigo era.
— Para você ter matado por ele, ele tinha que ser mais do que
um amigo — insistiu ela, com voz baixa e tranquila. — Me fale
dele.
— O que posso falar? — A dor fazia Tony tremer. — Riff era
uma boa pessoa. Corajoso, não tinha medo de ninguém e estava
sempre atrás de uma briga para provar isso.
Maria balançou a cabeça.
— Como Bernardo.
— Acredito que sim — disse Tony. — Os Jets significavam
muito para ele.
— Bernardo amava os Sharks.
— Acho que eles se pareciam.
Fazendo um gesto com a cabeça, Maria concordou enquanto
se sentava na cama, assim, acompanhou com o dedo o contorno
úmido que Tony imprimia ao travesseiro. Sentia pena de Tony e
de Riff, que havia se parecido tanto com Bernardo. Ela nunca
vira os olhos de Riff, mas sabia que eram como os de Bernardo,
sempre inquietos e cruéis, à procura de rancores, como se
precisasse provar o tempo todo que era um homem, mas sem
nunca conseguir.
Que futuro poderia ter havido para Riff ou Bernardo?
Nenhum que ela pudesse prever. Nos anos infames de sua
juventude, eles viram, testemunharam e encontraram alegria, e
participaram de atos de violência suficientes para amadurecer
uma boa quantidade de homens. Não amaram nada e destruíram
tudo, embora afirmassem que havia uma só coisa que eles
odiavam: um ao outro. Por isso ela sentia pena tanto de Riff
quanto do irmão e teria, naquele momento, dado sua vida por
qualquer um dos dois.
Mas com qual propósito? Para que pudessem matar outros
homens? Mais cedo ou mais tarde eles acabariam morrendo: em
um bar ou do lado de fora de um salão de jogos, em algum baile
ou no banco de trás de um automóvel, em um trecho isolado de
uma rodovia ou no telhado de algum prédio. Mas não em uma
cama. Porque garotos como Riff e Bernardo atacavam uns aos
outros e, por sua vez, eram atacados por todos os homens e
mulheres que pudessem tirar proveito de sua violência e lucrar
com ela. Ainda que tivessem vivido mais anos, eles não teriam se
tornado mais sensatos.
— Por isso os dois tiveram que morrer — disse ela. — E isso
não tem que acontecer com você. Porque você era como eles.
Mas queria ser diferente, eu sei. E Riff e meu pobre irmão, não.
— Não entendo — disse ele. — Eu matei Bernardo. Isso não
significa nada para você? Eu ter matado o seu irmão?
— Você não queria ter ido lá hoje à noite — ressaltou ela,
falando pelas mulheres sofridas em todos os lugares. — Mandei
que você fosse lá. Fiz com que me prometesse ir.
— É verdade — apressou-se a dizer, para impedi-la de dividir
qualquer parte de sua culpa. — Mas você não queria que eu
matasse seu irmão. Você não o ama? Não pode chorar por ele?
— Você tem que me perguntar isso? Eu posso chorar por
todos neste mundo. Nardo era meu irmão, e você é o homem que
amo. — Ela sacudiu o rapaz. — Quero amar tudo no mundo. Não
apenas as coisas que conheço, mas também as coisas e pessoas
que não conheço e que nunca vou chegar a ver ou conhecer.
Entende o que digo?
— Olhe para nós. — Ele contemplou o quarto escuro,
carregado pelo calor e pelas sombras. — Passamos da vida e do
amor para a morte. Aconteceu depressa demais.
De repente, Maria pôs um dedo em seus lábios, silenciando-o,
e eles ouviram a batida forte de saltos altos e a voz impaciente
de Anita gritando da cozinha.
— Maria?
Ela bateu na porta do quarto.
— Maria, é Anita. Por que está trancada aí dentro?
Maria fez sinal para que Tony ficasse calado.
— Eu não sabia que estava trancada — respondeu ela.
— Abra a porta. — Anita forçou a maçaneta de novo. —
Preciso de você.
Tony colocou a mão sobre a boca de Maria.
— Preciso de um segundo — sussurrou ele. — Peça que ela
espere um instante.
— Um segundo, Anita — gritou Maria. — Eu estava dormindo
e ainda não acordei direito. — Virou-se para Tony. — Para onde
você vai?
— Para a farmácia de Doc — respondeu ele, ainda com um
sussurro. — Se for embora comigo, ficarei à sua espera. Sabe
onde é?
— Passei por lá hoje para tentar ver você.
— Ele nos ajudará com dinheiro — murmurou Tony, passando
a perna por cima do peitoril. — Vai me encontrar?
Maria ficou quieta, enquanto Anita tentava mais uma vez
abrir a porta.
— Você está falando com alguém — gritou ela através da porta
fechada. — Maria!
— Na farmácia de Doc. — Maria colocou um dedo sobre os
lábios de Tony. — Assim que eu puder. — Observou Tony descer
às pressas a escada de incêndio, depois foi até a porta. — Estou
indo, Anita!
Anita entrou, olhou da cama para a janela, depois para a irmã
de Bernardo vestida só com a combinação, descalça.
— Viu Chino? — perguntou Maria. — Ele passou aqui mais
cedo e parecia transtornado. — Parou de falar, porque Anita
continuava com os olhos fixos nela. — Bem, Anita. Agora você
sabe.
— Vagabunda! — gritou Anita e correu para a janela para
fechá-la com violência. — Nenhuma puta do mundo faria o que
você fez! Esse cara matou seu irmão, e como recompensa você
foi para a cama com ele? O que aconteceria se ele matasse seu
pai e sua mãe? Você sairia para ganhar a vida na rua por ele?
Maria estava esgotada, cansada demais para explicar. Tentou
segurar a mão de Anita, mas ela recuou para um canto do quarto
e encarou Maria como se ela fosse algo tão sujo e repulsivo que
nem sequer merecia ter um dia tido sua amizade.
— Sei o que está pensando — disse Maria para a amiga, que
soluçava sem parar. — E ele pensa assim também.
— Ele é quem devia ter morrido, não o amigo! Bernardo devia
tê-lo matado!
— Nesse caso, Bernardo teria matado a pessoa que eu amo.
Anita cobriu os ouvidos.
— Não quero ouvir sua voz. Vadia! Eu me recuso a olhar para
você!
Maria caminhou devagar até a janela e encostou a testa no
vidro. A superfície estava mais fria do que o ar dentro do quarto,
e ela se perguntou onde estaria Tony naquele momento.
Conseguiria escapar da polícia e dos amigos de Bernardo?
Queria revelar para Anita como se sentira; como, depois que
Chino lhe contou do assassinato, ela odiara Tony, e como ele
tinha desejado morrer.
— Chino tem uma arma — disse Anita. — Ele mandou os
amigos irem atrás de Tony.
— Se Chino ferir Tony, se encostar nele, juro que...
— Fará o que Tony fez com Bernardo?
— Eu amo Tony — limitou-se a dizer.
Anita fez que não com a cabeça; nada do que acontecera
naquela noite era compreensível. Ela usara o Orquídea Negra,
esperara cheia de ansiedade, olhara para a primeira estrela e
fizera um grande pedido. Agora precisaria conseguir um vestido
preto para o funeral.
— Eu sei — disse para Maria. — Eu amava Bernardo.
Maria sentiu seu rosto empalidecer.
— Você tem que ficar comigo até meus pais voltarem. Alguém
precisa estar aqui para contar a eles.
— E você não pode contar? — O sorriso de Anita foi
desdenhoso, ácido e cheio de escárnio. — Por que não? Isso
acontece todos os dias. Diga apenas que seu irmão está morto,
foi assassinado, e que você vai fugir com o cara que matou o
filho deles.
— Tente entender — implorou Maria.
— Não consigo! — gritou Anita. — Não consigo e também não
quero, porque eu até poderia entender...
— Você entende — interrompeu-a Maria. — Por isso está
assim, tão nervosa. Nós vamos embora, Anita. Vou encontrar
Tony na farmácia de Doc, e se alguém tentar nos impedir, vai ter
que me matar também. Você pode dizer isso para Chino?
A campainha tocou, a porta se abriu com um empurrão e as
amigas viram Schrank entrar na cozinha. Com movimentos
rápidos e olhos atentos a tudo, ele abriu a porta do banheiro,
olhou o interior do pequeno cômodo, depois examinou o outro
quarto antes de fechar a porta da cozinha e se apoiar nela.
— Imagino que saibam das notícias. — Dirigiu-se para Maria.
— É irmã dele?
— Sou. Se me disser aonde devo ir para ver meu irmão...
— Ele pode esperar. — Schrank riu da sua piadinha perspicaz.
— Tenho umas perguntas a fazer...
— Depois, por favor. — Maria pegou o vestido da cama e
enfiou-o pela cabeça. — Preciso ver meu irmão. Por isso me diga,
por favor, aonde devo ir.
— Só preciso de um minuto — insistiu Schrank.
— O irmão dela está morto — gritou Anita. — Não pode
esperar até...
— Não! — A voz do policial deixava claro que Anita devia
permanecer calada. — Esteve no baile ontem à noite?
— Sim — confirmou Maria, e fez um sinal para que Anita
subisse o zíper nas costas de seu vestido.
— Seu irmão se envolveu em uma violenta discussão porque
você dançou com alguém de quem ele não gostava. — Schrank
observou as garotas de perto. Seria melhor para ele acabar logo
com aquilo. — Quer ver Bernardo? Tudo bem, eu a acompanho, e
no caminho pode começar a me contar o que sabe.
— Desculpe, Anita, minha dor de cabeça piorou — disse
Maria. — Pode ir à farmácia de Doc comprar... Como se chama
mesmo?
— Aspirina — respondeu Anita, mas sem dar sinal de que
sairia dali.
Schrank apontou para os armários do banheiro e da cozinha.
— Você não tem aspirina em casa? — perguntou ele.
— O frasco está vazio — respondeu Maria. — Pode ir para
mim, Anita? Agora, por favor? Antes que fechem a loja.
— Tem aspirina no lugar aonde vamos.
Schrank segurou o braço de Maria.
— Vai demorar? — perguntou a garota.
Schrank deu de ombros e olhou para o relógio.
— O tempo que for necessário.
— Não vou demorar — disse Maria, e se afastou de Schrank
para que ele não percebesse seu olhar de súplica para Anita. —
Pode me esperar na farmácia? Não vou demorar.
— Espero, sim. E talvez Doc espere você até fechar —
respondeu Anita. Depois se virou para Schrank. — Não faça
nenhuma grosseria com esta menina. Ela já sofreu demais hoje.
E sou a namorada de Nardo. — Seu tom era desafiador.
— Era — emendou Schrank.
— Então, não queria me fazer algumas perguntas? — Maria
tentou distrair Schrank.
— Não são perguntas. — Schrank desceu as escadas do prédio
atrás dela e franziu o nariz para os odores estranhos. — São
afirmações. Houve uma discussão por causa de um garoto.
— Outro do meu país — disse ela sem hesitar.
— E o nome dele?
Ela ergueu os olhos para Schrank.
— José.

A um quarteirão da farmácia, Anita penteou o cabelo e limpou o


rosto com um lenço umedecido, que depois jogou fora. Sem a
ajuda de espelho, retocou o batom e alisou a saia do vestido, pois
estava na América, onde os americanos choravam por seus
mortos em silêncio, como se tivessem vergonha de demonstrar
tristeza, e ela era tão capaz disso quanto qualquer um deles.
Só depois de entrar na farmácia ela hesitou, porque as portas
das duas cabines telefônicas se abriram e A-Rab e Diesel olharam
para ela em absoluto silêncio.
— Preciso falar com Doc — disse ela devagar.
A-Rab olhou para Diesel antes de responder que não com a
cabeça.
— Ele não está aqui.
— Onde ele está? — perguntou ela enquanto seus olhos
disparavam em direção à porta atrás do balcão de receitas.
— Foi ao banco. — A-Rab mordeu os lábios. — Ele se deu bem
por causa de um erro que fizeram.
— Muito engraçado — disse ela com sarcasmo. — Ainda mais
porque os bancos estão fechados a essa hora. Fale, onde ele está?
— No banco — insistiu Diesel. — Você sabe como Doc é
magro. Ele passou pela abertura onde colocamos os depósitos.
— E entalou o traseiro no meio do caminho — completou A-
Rab quando saiu da cabine telefônica. — O que significa que
ninguém sabe quando ele vai voltar.
Ele abriu a porta principal, inclinou o corpo para a frente e
apontou para a rua.
— Buenas noches, señorita. Talvez consiga ganhar uns
trocados no caminho para casa. — Bateu a porta, correu atrás de
Anita e agarrou-a no instante em que ela chegava ao balcão. —
Aonde pensa que vai?
— Ali atrás. — Ela tentou se desvencilhar. — Quero ver Doc.
— Se estiver prenha, volte amanhã — disse Diesel, passando
para trás do balcão para bloquear a porta. — Está surda? Já
dissemos que ele não está aqui.
— Escuto tão bem quanto vocês — rebateu ela e sentiu o calor
subir ao seu rosto. Aqueles garotos eram perigosos, e ela não
gostava do modo como eles olhavam fixamente para seus seios,
que ela agora desejava que fossem menores e estivessem
contidos em um sutiã normal. — Quero ver com meus próprios
olhos.
— Peça “por favor”.
A ordem de Diesel era um aviso.
— Por favor. Me deixem passar, por favor?
A-Rab ficou na ponta dos pés para examinar melhor o vestido.
— Você é escura demais para passar. Ei, cadê o seu sutiã?
— Nojento — xingou ela.
— Você é bem peituda... Do que eles são feitos em Porto Rico
mesmo? — A-Rab riu.
Anita tremeu e agarrou a bolsa para usá-la como arma.
— Parem — advertiu-os em voz baixa.
— Parem, por favor — corrigiu-a Diesel, e piscou para que A-
Rab fosse em frente com o assédio, porque A-Rab podia ser
muitíssimo divertido depois que começava.
— Parem, por favor.
— Por favor — debochou A-Rab. — Non comprende,
cucaracha? — Ele riu e voltou a ficar na ponta dos pés. —
Cucaracha, você non falar inglês? Que pena. Então preciso
primeiro ensinar os palavrões.
— Escutem, preciso deixar um recado para um amigo de
vocês. Preciso dizer a Tony...
— ... que não está. — Diesel foi incisivo e fez um sinal para
que A-Rab parasse por um momento. — De quem é o recado?
— Não importa. Sei que ele está aqui. Preciso dar o recado
para Tony — implorou ela a Diesel.
— Por que não dá para mim? — perguntou A-Rab, e logo a
encurralou contra uma fileira de prateleiras e começou a agarrá-
la. — O que acha desse movimento de mambo?
— Saia de perto de mim. — Ela tentou agredi-lo. — Porco! —
A-Rab arrancou a bolsa de sua mão e jogou-a longe. — Quero
parar Chino! Não faça isso, cretino!
— Cretina é você! — rosnou A-Rab. — Puta do Bernardo, bafo
de alho maldita, dente de ouro, orelha furada, porca mentirosa.
Se acha que vai preparar o terreno para Chino pegar Tony, você
tem mais um trabalhão pela frente.
De repente, A-Rab prendeu o braço de Anita e deu-lhe uma
rasteira. Ela caiu atrás do balcão, e ele sentiu os músculos das
pernas da jovem se contraírem quando começou a roçar sua
barriga na dela, e suas mãos livres rasgaram seu vestido.
— Aproveite, A-Rab! — gritou Diesel. — Mostre para ela como
um americano monta! Deixe que ela conte isso para Chino!
— Fique tranquila, querida. — A-Rab dominou Anita. — Você
não vai escapar de mim, então por que não relaxa e aproveita?
A-Rab sentiu duas mãos puxarem sua camisa e ouviu Diesel
mandá-lo parar.
— É Doc, ele acabou de subir.
A contragosto, com a respiração ofegante, A-Rab saiu de cima
de Anita e permitiu que ela também se levantasse. Ela viu Doc
com os olhos fixos nela, boquiaberto, e em seguida ouviu-o gritar
para Diesel e A-Rab que eles eram vermes, até piores do que
vermes, e que pagariam pelo que haviam feito.
— Você está bem? — perguntou Doc.
Ela mordeu os lábios e segurou o vestido rasgado na frente.
— Bernardo tinha razão. — Lutou para conter as lágrimas
enquanto olhava para A-Rab, que rangia os dentes. — Se um de
vocês estivesse sangrando na rua, eu passaria e cuspiria na cara.
— Vá para casa — aconselhou Doc.
— Não deixem que ela vá! Ela vai contar para Chino que
Tony... — A-Rab empurrou Doc e foi em direção à porta. — Daqui
ela não sai!
Anita partiu para cima de Diesel e A-Rab.
— Aqui está o recado para seu amigo americano! Digam
àquele assassino que Maria nunca virá encontrá-lo! — Sua risada
foi plena e triunfante quando viu Diesel e A-Rab se afastarem. —
Digam que Chino descobriu tudo sobre eles... e atirou nela!
Maria está morta!
A porta se fechou com violência atrás de Anita, e Doc
desmoronou contra o balcão.
— Meu Deus, preciso contar para ele. Saiam daqui! — gritou
para Diesel e A-Rab. — Saiam e vejam se conseguem encontrar
uma igreja em algum lugar que não feche as portas para vocês!
Diesel cutucou A-Rab.
— É melhor cair fora.
— Para onde?
— Você decide — disse Diesel na porta. — Desde que seja para
longe daqui.
CAPÍTULO DEZ

Ele saiu da farmácia tomado pela angústia, sem rumo e sem


esperança. Ela partira e nunca mais voltaria. A culpa dele havia
gerado outra culpa, e o serviço não estava completo; Chino
ainda tinha um trabalho a executar.
Ele não sabia o que Chino havia planejado, mas sabia o que
ele havia planejado para o porto-riquenho. Ele encontraria
Chino, e este teria que matá-lo.
Era a única forma de acabar com aquilo, e sua impaciência
pelo fim era grande porque não queria mais viver.
Havia muita gente nas ruas e, enquanto seguia apressado
pelas calçadas, ele ouvia as pessoas nos alpendres, nas próprias
calçadas, ou encostadas em automóveis, falarem sobre tudo e
sobre nada.
O preto e branco de uma viatura policial o fez disparar por
um beco, e depois que o carro passou, correu para o Coffee Pot.
Chino, no entanto, não estava lá. Ele então se deu conta de que
nunca o encontraria nas ruas; seria preciso explorar os pátios, os
porões ou os telhados.
Teria que fazer Chino perceber que estava caçando e não
sendo caçado.
— Chino? — Ele parou no pátio entre dois prédios em
território porto-riquenho e chamou com voz bem alta para que
fosse ouvido. Sem resposta, respirou fundo e gritou: — Venha
me pegar, Chino! Estou esperando!
Ouviu um movimento, virou-se na direção de onde vinha o
som e abriu bem os braços para fazer de seu corpo um alvo
perfeito. Porém a voz que chamou seu nome não era de Chino, e
na penumbra viu Anybodys correr em sua direção.
— Você está maluco! — disse ela, provocando. — Este
território é porto-riquenho.
— Vá embora! — Ele empurrou Anybodys para o lado antes de
colocar as mãos em concha e gritar de novo. — Chino, venha me
pegar! Desgraçado, estou esperando!
Anybodys segurou seu braço e tentou puxá-lo para o porão.
— A gangue...
— Saia daqui! Já avisei.
Com um movimento brusco, espalmou a mão direita e atingiu
em cheio o rosto de Anybodys. Acima deles, várias janelas se
iluminaram, e Tony correu para o fundo do pátio.
— Chino! — gritou de novo. — Onde você se enfiou, Chino?
Estou aqui esperando. Venha logo e...
A bala atingiu-o em cheio no peito e o fez girar em uma
confusão de dor e som, e enquanto o sangue subia à boca,
pensou ver alguém de branco correr em sua direção e chamar
seu nome.
Maria se jogou sobre o corpo caído com o rosto voltado para
cima, e suas lágrimas jorraram e molharam o rosto sem vida de
Tony Wyzek, que morrera com o alvoroço da cidade em seus
ouvidos, morrera jovem demais para que de fato se pudesse
dizer que chegara a viver. Ela saiu de cima do corpo, mas cobriu
com a mão os olhos de Tony e, quando viu Anybodys se
aproximar com passo muito lento, mandou que ela parasse.
— Para trás — advertiu ela a Chino também. — Não, venha até
aqui e me entregue a arma.
Sentiu o metal duro e cruel em sua mão, percebeu que a arma
era de fácil manejo e se encaixava bem no punho.
— Como se dispara isto? — perguntou para Chino. — É só
puxar este gatilho?
Ela viu Chino se encolher quando levantou a arma e apontou
o cano para ele.
— Quantas balas ainda restam, Chino? O suficiente para
você? E para você? — Apontou a arma para Anybodys, que se
apoiara na parede do prédio. — Todos nós o matamos. Meu
irmão, Riff e eu o matamos. Não Chino!
Ela manteve Chino parado sob a mira da arma.
— Posso te matar, Chino? E ainda vai restar uma bala para
mim?
Sentiu a mão de alguém em seu ombro, uma voz amável em
seus ouvidos, e reconheceu o rosto de Doc. Ele disse que juntos
iriam à casa da mãe de Tony, porque ela precisava ser informada
e porque necessitaria do conforto de outra mulher, em especial
daquela que amava seu filho.
Se dez ruas e dez mil pessoas, talvez até vinte ou trinta mil,
sabiam da tragédia, os outros milhões de pessoas e as dezenas de
milhares de ruas de Nova York a desconheciam. Alguns jornais,
não muitos, estampavam uma manchete sobre os assassinatos
embaixo do viaduto, mas os detalhes eram escassos e
incompletos.
A maioria dos habitantes da cidade, porém, dormia ou se
divertia, porque era uma noite de sábado, a única da semana em
que as pessoas simplesmente se soltavam. Havia as que amavam,
que comiam, que desejavam e faziam acontecer. Havia as que
morriam em paz, com dor e com violência.
E havia pessoas que olhavam para o céu e sofriam com a
solidão, enquanto em silêncio suplicavam às estrelas e à lua.
Pessoas que esperavam que, em algum lugar, alguém as ouvisse,
que seus pequenos sonhos se tornassem realidade, que em breve
tivessem alguém ao lado em quem pudessem confiar, amar e ser
felizes.
Alguns dos desejos se realizavam, mas isso não fazia
diferença para a cidade, porque ela havia sido construída para
persistir além da vida de todas as pessoas que a habitavam.
Assim eram as coisas. E se as coisas não mudassem, assim
seriam para sempre.
SOBRE O AUTOR

IRVING SHULMAN nasceu no Brooklyn, em Nova York, em


1913. Autor versátil, publicou biografias, mais de quinze
romances e colaborou em roteiros de obras consagradas, como
Juventude Transviada (1955), um marco do cinema norte-
americano. Foi um dos pioneiros na adaptação de roteiros
cinematográficos e textos dramáticos, tendo West Side Story
como uma das produções teatrais romanceadas mais aclamadas
de seu repertório. Shulman morreu em 1995, aos 81 anos,
deixando como legado, além da valiosa contribuição artística e
cultural, obras que oferecem um rico material de análise da
juventude e das relações sociais nos Estados Unidos no século
XX.
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