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A Lince e a Raposa

Cristiane Schwinden

Editora Lettera
© 2018 por Editora Lettera
1ª Edição

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte,


através de quaisquer meios.

Revisão: Lorena Cova

Diagramação: Cristiane Schwinden

Capa e ilustrações: Lorena Cova

Editora Lettera

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DEDICATÓRIA

Eu tinha onze anos e estava na quinta-série. Elis, nossa professora de

português, entregou os cadernos com as redações corrigidas, e saímos para o

recreio, na quadra do colégio. Estávamos jogando vôlei (a professora também

jogava com a gente), quando nosso time perdeu e ficou no alambrado esperando
a vez de voltar a jogar. A mente não guardou todo o diálogo, mas guardou com

carinho uma frase que ela me disse: você leva jeito para escrever.

Aquilo ficou como uma sementinha adormecida dentro de mim por uns

quinze anos, quando resolvi regar e ver no que dava. Nunca parei de regar, o

primeiro fruto estou colhendo agora.


Escrever A Lince e a Raposa foi uma das melhores experiências da

minha vida, foi durante esse processo (que levou vinte meses) que me assumi

como escritora, foi narrando as peripécias de Jennifer e Anna que percebi que

nunca mais deixaria de fazer isso.


Além da professora Elis, agradeço à professora Eliane, que me ensinou

tanto da Língua Portuguesa e me fez admirar as letras.


Agradeço meus pais, minha base e porto seguro. Fizeram o favor de me

colocar no mundo e me deram uma vivência tão honesta e do bem. Essa coisa de
escrever eu puxei de você, viu, mãe?

Meus irmãos, Rodrigo e Cristina.


Aos amigos, próximos e remotos.
Às leitoras que me acompanham nessa caminhada, as que comentam, as
que se tornaram amigas, que opinam, reclamam, me xingam, me enchem de

carinho... Eu escrevo para vocês.

E à minha Lorena, minha esposa multitarefas. Além de todo o incentivo


que recebo, ela revisa, ilustra, opina, dá ideias, tem ideias. E também me enche

de amor.
PREFÁCIO

O dia que começou na contramão da teoria da evolução, com o embate

entre uma pequena garota e poderosos Titãs, está prestes a por em cheque a

seleção natural darwinista.

A tarde que cai ao som de asas de pedra a rasgar os céus, traz à realidade a ficção
dos contos.

A noite que termina na febre que arde como um prelúdio do fogo de dois

corações é o início dessa jornada.

Dois mundos distantes e improváveis que se cruzam, se chocam e se


fundem.

À medida que avançamos nas páginas deste romance, nos vemos cada vez mais

envolvidos pela saga vivida pelas personagens, sendo impossível não ficarmos

aflitos, angustiados, entusiasmados e até chocados, com certos acontecimentos.


Ao fim dessa caminhada, certamente faremos partes do #team Jenny ou do

#team Anna, ou simplesmente, torceremos para o casal “#Jenna” ter um final dos
sonhos.

A Lince e a Raposa encabeça a lista de romances ficcionais de Cristiane


Schwinden. Através de uma narrativa fluída a autora nos conduz por um mundo

distópico, através de um terreno fértil, com personagens bem construídas,


acontecimento inesperados e uma trama envolvente.
Lorena Cova
ÍNDICE

DEDICATÓRIA
PREFÁCIO
Capítulo 1 - Invasão
Capítulo 2 - Beatles
Capítulo 3 – O quintal verde
Capítulo 4 – A primeira missão a gente nunca esquece
Capítulo 5 – A lince e a raposa
Capítulo 6 – Teste-me
Capítulo 7 – Vamos à igreja
Capítulo 8 – Uma o quê?
Capítulo 9 - Montreal
Capítulo 10 – Feliz ano novo!
Capítulo 11 – Senhora racionalidade
Capítulo 12 – Amigas da porta para dentro
Capítulo 13 – Cerveja vencida
Capítulo 14 - Como se transformar numa raposa nas noites de lua cheia
Capítulo 15 – Um tiro no escuro
Capítulo 16 - Rambo ou Karate Kid
Capítulo 17 - Adios Alejandro
Capítulo 18 - O castelo de Glasgow
Capítulo 19 - Time after time
Capítulo 20 - Ótima pontaria
Capítulo 21 - A herdeira
Capítulo 22 - Helen
Capítulo 23 - Susan. Ou Codornas.
Capítulo 24 - Laura
Capítulo 25 - Frascos laranjas
Capítulo 26 - O dia que completaríamos um ano
Capítulo 27 - Segunda-feira
Capítulo 28 - O babaquinha do homem aranha
Capítulo 29 – O melhor aniversário de todos
Capítulo 30 - O irmão no campo de centeio
Capítulo 31 – Seus argumentos são inválidos
Capítulo 32 – Canecos voadores
Capítulo 33 - Laranja
Capítulo 34 - Vermelho
Capítulo 35 – A capa amarela
Capítulo 36 – Um tiro de misericórdia
Capítulo 37 – Preocupação
Capítulo 38 – Precisamos conversar
Capítulo 39 – Depois da febre
Capítulo 40 - Legado
Capítulo 41 – O retorno
Capítulo 42 – Jogo de gato e rato
Capítulo 43 - Angústia
Capítulo 44 – Fim de jogo
Capítulo 45 – O campo onde eu morri
Capítulo 1 - Invasão

Jennifer acordou de sobressalto após um pesadelo, consultou o relógio de

pulso sobre o criado mudo e viu que estava atrasada, era quase oito da manhã.

Não iria trabalhar no porto, havia um destino mais nobre naquela manhã. Coçou

os olhos ainda sonolenta, prendeu os cabelos de qualquer jeito e seguiu para o


banheiro. Vestiu-se rapidamente com sua jaqueta jeans preferida por cima da

camisa xadrez azul e preta, calçou as botas, chutou um baldinho de comida

japonesa no chão da sala do pequeno apartamento, pegou qualquer coisa na

geladeira, e partiu para o alto do seu bairro.

Ao meio-dia as máquinas chegaram à sua rua residencial decadente na

cidade de Bridgeport, no sul de Connecticut. Dois guindastes de demolição, um


deles ostentando um grande pêndulo, posicionou-se em frente a um conjunto de

pequenos prédios cinzentos e visivelmente deteriorados pelo tempo.

Era início de setembro, uma brisa fria soprava e o céu nublado deixava o

clima daquela terça-feira ainda mais carregado. Três carros chegaram algum
tempo depois, estacionaram quase em sincronia atrás das máquinas. Alguns

homens saíram do carro e caminharam em direção às edificações julgadas


condenadas.

Eram moradias simples, mas em perfeitas condições de uso,


aproximadamente doze famílias habitavam o conjunto, e assim como a maioria
dos moradores do bairro, estavam em situação irregular no local.

Quando ouviram as máquinas chegando mais moradores saíram, se


juntaram à Jennifer e ao pequeno grupo que estava reunido protestando ao lado

de um dos edifícios, onde morava Peter e sua esposa Lisa.

Os homens que haviam descido dos carros eram de uma raça bastante

semelhante à dos humanos: os Titans. Eles haviam se revelado ao mundo há


apenas cem anos, embora tenham vivido de forma sutil entre membros de todas

as classes da sociedade ao longo dos séculos sem serem detectados. Eles eram

superiores aos humanos em força, agilidade e explosão muscular, o que lhes

permitia vencer grandes distâncias sem muito esforço. Possuíam o poder de

regeneração e cura um pouco mais acelerada, entretanto a característica mais

invejada pelos humanos, sem dúvidas, era a elevada expectativa de vida, com o
envelhecimento num ritmo duas vezes mais lento.

Os Titans que haviam chegado eram homens grandes e corpulentos,

trajavam paletós sem gravatas e camisas com os primeiros botões abertos,

tinham certo ar de arrogância.

Os moradores que estavam reunidos já esperavam a chegada dos Titans e

das máquinas. Eles haviam sido notificados que aquela região seria
desapropriada, os prédios seriam demolidos, sem negociação ou diálogo. Tudo

agora era de propriedade do grupo miliciano que comandava a região. Eles


traziam a notificação e a escritura atestando serem os mandatários daquela área,
a intenção era construir ali uma sede nova, um quartel general de onde poderiam
coordenar suas ações.

Com os papéis em mãos, se aproximaram caminhando calmamente,

olhando ao redor, apenas cautelosos. Alguns seguranças faziam a escolta, logo

atrás.

O grupo que fazia oposição a demolição era formado por moradores do


bairro, que foram defender o direito destes moradores de permanecerem em suas

casas. Realmente não possuíam as escrituras, mas os documentos apresentados

pelos Titans não pareciam oficiais.

Jennifer logo tomou a frente e posicionou-se de forma imponente,

barrando a passagem da milícia. Logo atrás estava sua melhor amiga Becca, com

sua fisionomia de adolescente e cabelos longos com franja, Bob, um magricela

de cabelo marrom desarrumado e óculos, além de Sam e Lindsay, que eram

irmãs.

Depois da grande guerra, que perdurou por cinco anos, a população dos

Estados Unidos foi reduzida a um décimo, havia cidades inteiras devastadas por
bombas e ataques. Outras, como Bridgeport, haviam sobrevivido ao bombardeio.

Era uma época de escassez de recursos básicos e muitos jovens moravam


sozinhos após ficarem órfãos.

Jennifer fazia parte desta estatística, morava sozinha num pequeno quarto
e sala num prédio cor de tijolo no fim da rua, na parte baixa da vila. Tinha 22
anos e vivia de pequenos serviços no porto.

— Quem vocês pensam que são? Ninguém é dono destes prédios, nem
vocês. Esse pessoal chegou primeiro, tanto lugar desabitado nesta cidade e vocês

querem derrubar logo onde tem gente morando? — Jennifer falou alto, com

segurança, não era de grande estatura, tinha pouco menos de 1,70cm, mas se
portava com vigor e parecia falar com autoridade. Tinha um ar invocado, olhos

castanhos e pequenos que conservavam um ar inocente, prendia seu longo cabelo

castanho claro num rabo de cavalo, ficando algumas mechas soltas que

teimavam em cair sobre seu rosto.

— Escute mocinha, não viemos negociar, sugiro que saiam do local para

que ninguém se machuque. — O chefão fez um gesto com a mão chamando uma

pessoa atrás dele, falou algo no ouvido e logo em seguida os motoristas das
máquinas receberam autorização para avançarem.

O pequeno grupo de Titans recuou enquanto as máquinas avançavam,

seguiram para os carros e alguns se recostaram, olhando as máquinas começarem

o trabalho. Os moradores dos prédios saíram da frente do maquinário, mas os


manifestantes resolveram ficar e tentar evitar a destruição a qualquer custo.

Jennifer chamou Bob e subiram em uma das máquinas, os outros foram


para frente do outro monstro de ferro. Antes que ela conseguisse entrar na

cabine, sentiu alguém a puxando violentamente pela cintura. Num movimento


rápido ela se desvencilhou dos braços do segurança e correu em direção à outra
máquina, mas novamente antes de alcançar seu objetivo, foi detida por um
brutamonte, que a derrubou no chão com truculência e prendeu suas mãos às

costas.

Debateu-se o quanto pode, mas foi prensada ao chão por um segundo

segurança que lhe empurrou as costas com o joelho. Ainda no chão ela ergueu a
cabeça e viu seus amigos sendo algemados com amarras. Sentiu a terra gelada

abaixo do seu corpo, uma raiva visceral percorreu suas veias naquele instante.

Permaneceu assim por mais alguns minutos, um pequeno e velho ônibus

amarelo chegou ao local, e assim que ele abriu as portas, ela deduziu qual seria o

destino de todos: seriam levados pelos Titans, e numa época onde as leis já não

eram respeitadas, sabia que podia esperar pelo pior.

Alguns grupos de Titans possuíam sedes que eram verdadeiros quartéis,

as leis que respeitavam era a que eles próprios haviam criado, um regimento

interno, apesar de ainda responderem às leis humanas e estarem passíveis das

penalizações que elas poderiam ser impostas a todos os cidadãos.

Um a um Jennifer viu todos serem levados pelos braços para dentro do


ônibus, enquanto os representantes Titans apenas observavam. O que parecia ser

o chefe deles se mantinha no celular, sem se abalar com a situação e com a


violência que havia presenciado.

Havia chegado a vez de Jennifer ser levada, ela teve também suas mãos
presas com as amarras plásticas transparentes, fora brutalmente arrastada pelo
segurança para o ônibus e a jogaram no banco de trás. Após se certificar que

todos já estavam no interior, ele desceu e deu dois tapinhas na porta do ônibus,

avisando para o motorista que já podia fechar e partir.

O ônibus seguiu pela rua até chegar à rodovia, que cortava a cidade

passando por áreas destruídas, plantações e algumas poucas casas.

Jennifer levantou-se do corredor e sentou no banco, todos estavam


sentados próximos a ela, assustados se entreolhavam e olhavam para Jennifer,

como se esperando alguma solução, um ato salvador.

— Não fizemos nada de tão grave, será que estão nos levando para as
prisões clandestinas? Ouvi falar que eles têm verdadeiros calabouços... — Lisa

falou temerosa.

— Agora estamos ferrados... — Sam balançou a cabeça. O silêncio se

instaurou por um momento.

— Nós vamos sair daqui, vamos pensar em algo. — Jennifer irrompeu o

silêncio, olhando para os lados procurando ideias.

O motorista do pequeno ônibus, que um dia havia sido um comboio


escolar, era um senhor de cabelos grisalhos, magro, não era um Titan. Apenas
um dos seguranças havia seguido junto com o ônibus, ele permanecia ao lado do

motorista, apoiando o pé esquerdo na tampa do motor, olhava de soslaio de vez


em quando para trás e seguia conversando com o condutor.

Alguns minutos se passaram enquanto Jennifer bolava um plano para


fugirem das mãos dos Titans. Se inclinou na direção dos amigos e falou em voz
baixa, calmamente:

— Estamos em maior número, temos que usar esta vantagem, eu tenho

um plano, mas para isso todos precisam estar seguros do que vamos fazer, não

teremos uma segunda chance.

— E qual é o plano? — Indagou Bob.

— Não olhem agora, mas eu guardo um punhal dentro da minha bota, eu

vou usá-lo contra o grandalhão, preciso que vocês dois me ajudem com ele,

vocês meninas vão pra cima do motorista e tentem assumir o volante quando
neutralizarmos o segurança.

— Mas... Você vai matar o segurança?

— Becca, não faça perguntas difíceis.

— Ok, você vai dar o sinal para atacarmos, não é? — Sam perguntou,

assustada.

— Sim. Virem-se para frente, sentem-se normalmente, disfarcem. Vou

avisar quando for a hora. Eu vou na frente, Bob e Peter em seguida, depois vocês
seguem atrás de Peter.

Jennifer estudou o comportamento do segurança, tirou o punhal atrás do


banco e cortou suas amarras, discretamente cortou dos companheiros também.

Esperou o segurança se virar para trás para vigiá-los, como estava fazendo de
tempos em tempos, assim que voltou a olhar para frente, deu o sinal.
— Agora. — Falou baixinho, gesticulando para frente.

Jennifer correu para frente, ergueu o punhal firmemente e tentou feri-lo


na perna, ele reagiu e não deixou outra opção a não ser acertá-lo em algum lugar

mais crítico. Desvencilhou dos braços do segurança e cravou-lhe no abdome, os

rapazes o derrubaram para cima do motorista, que perdeu o controle do ônibus.


Desgovernado, o veículo seguiu acelerado até sair da estrada, capotando num

declive e girando uma vez ao redor do seu próprio eixo.

Com o ônibus já parado, Jennifer levantou-se com dificuldade afastando

alguns cacos dos vidros, se certificou que o segurança não era mais uma ameaça,

estava desacordado. Seu grupo parecia atordoado, movendo-se lentamente,

assimilando o que acontecera.

— Vão dormir aqui? Todo mundo saindo pelas janelas quebradas! Eu

vou checar nossos amiguinhos.

Enquanto os outros saiam do ônibus, Jennifer pegou a arma do segurança


e fixou em seu cós. Recuperou o punhal cravado e guardou novamente na bota,

com as amarras que retirou do seu bolso o amarrou por precaução. Após prender
também o motorista ao volante, abandonou o local rapidamente.

— E agora, vamos pra onde? Não tem nada aqui, não vejo nenhuma
casa! — Desesperou-se Lindsay.

— Estamos no meio do nada... — Peter falou olhando em volta, tinha um

pequeno corte na cabeça.


— Vocês estão bem? Alguém se machucou? — Questionou Jennifer.

Percebendo que todos estavam estáticos, em choque.

— Parem de se preocupar com onde nós estamos por enquanto. Quero


que vocês procurem por algum ferimento, e então seguiremos. Continuou.

Alguns hematomas, pequenos arranhões e cortes puderam ser vistos na

maioria.

— Acho que quebrei meu braço... — Lisa mostrou o braço, com um

semblante dolorido.

— Aguente firme, vamos achar algo para imobilizar, logo estaremos em

casa e tudo vai ficar bem. — Tranquilizou seu marido, Peter.

— Peter, você bateu a cabeça? Não podemos voltar pra casa agora, os

filhos da mãe estão lá, e já devem estar nos procurando. Vamos nessa direção. —
Jennifer apontou para frente, nem para um lado nem para outro da estrada.

— O que tem pra lá?

— Não sei, mas tem a praia. Seguiremos na direção do litoral, sempre


tem casas por lá e podemos achar alguma não habitada para ficarmos até a poeira
baixar. E vamos imobilizar seu braço assim que possível, tá bom, Lisa?

Lisa acenou positivamente com a cabeça.

***

No mundo inteiro, principalmente na América, havia inúmeras casas


destruídas ou inabitadas, após os ataques do chamado Eixo do mal, alcunha dada

por George Bush ao conjunto de países contrários aos Estados Unidos e seus

aliados. Esse conglomerado era liderado por alguns países do oriente médio e

asiáticos, alguns deles com programas nucleares avançados.

Os ataques e bombardeios, que inicialmente eram perpetrados a


distância, passaram a acontecer em solo americano e na maior parte dos países

europeus, atingindo em menor proporção os países da África, América Central e

do Sul. Os danos foram imensuráveis para ambos os lados, os governos foram se

enfraquecendo, comunicação e tecnologia se tornaram cada vez mais precários,

os maiores alvos foram as indústrias, torres de comunicação e bases militares,


em todos os continentes. As temidas bombas atômicas fizeram os maiores

estragos.

Na atual conjuntura, o governo convencional agora é chamado de

governo dos humanos pelos Titans, que não se sentiam mais representados por

estes governantes e suas leis. Passados pouco mais de dois anos após o fim da
terceira guerra, as prioridades de reconstrução nos tempos atuais eram para

prover serviços básicos como água, energia e alimentação. Eram tempos difíceis,
mas de esperança.

***

O grupo de sete pessoas seguia campo adentro em direção ao litoral.


Após caminhar alguns minutos por um campo que parecia já ter sido uma
plantação, avistaram uma grande casa de dois andares, escura, próxima à praia,
ficava uns dois metros acima do nível do mar. A propriedade era rodeada por

uma cerca de grades de ferro, escurecidas pelo tempo. A medida que se

aproximavam, procuravam por algum sinal de moradores, a casa parecia antiga,


mas possuía todas as portas e janelas em bom estado, que era um sinal que não

estava abandonada.

— Será que alguém mora aí? — Perguntou Becca.

— Saberemos em alguns segundos... — Jennifer sacou a arma, abriu a

porta da frente devagar, cautelosa, espiou para dentro com a arma em riste.

Lentamente olhou em todas as direções até se certificar que não havia ninguém

por ali.

— Hey pessoal! Tudo limpo! Vamos entrar, mas fiquem alertas. —

Preveniu.

A casa tinha uma sala ampla logo na entrada, com sofás e lareira,
iluminada por grandes janelões no alto. Do outro lado havia uma escada, um

corredor e dois pilares cinzas, largos. Parecia habitada, porém ninguém foi visto
ou percebido naquele momento.

Jennifer andou a passos lentos na direção das escadas, olhando ao redor.


Aproximava-se de uma das pilastras, quando foi surpreendida por alguém que a

segurou pelo punho, travando seu braço que empunhava a arma. Logo recebeu
uma forte gravata por trás, não conseguiu identificar quem a detivera.
— Solte a arma. — Ordenou a pessoa que a imobilizou, falando
diretamente no seu ouvido. Deram alguns passos lentos para frente, na direção

da claridade e dos outros membros do grupo. Neste momento já tinha a atenção

de todos, que olhavam assustados aquela mulher com Jennifer em seu poder.

— Já... Soltei. Já soltei! — Jennifer abriu a mão esticando os dedos,


largando assim a arma no chão.

— Só estamos procurando abrigo, não queremos fazer mal a ninguém! —

Bradou Becca, amedrontada. O restante do grupo olhava perplexo.

— É... Verdade... Pode me... Soltar. — Jennifer falava com dificuldade,


puxando com as duas mãos o braço que a sufocava, numa tentativa de livrar-se

dele. Já havia percebido que era uma mulher que a segurava.

— Não temos outras armas, nos reviste se quiser... Não somos

pilhadores, nem bandidos! — Bob, assim como os demais, permanecia próximo

a porta de entrada, acuado.

Num gesto brusco a mulher soltou Jennifer, que virou-se rapidamente.


Deu alguns passos trépidos para trás, com as mãos no pescoço, buscando ar.

Conseguiu enfim ver a pessoa que a havia imobilizado, aparentava ser


uma Titan ou uma híbrida, o cruzamento de humanos e Titans. Era uma mulher

alta, cabelos negros na altura dos ombros, olhos azuis gélidos e um semblante
permanentemente sério.

Ela abaixou-se rapidamente, mantendo o olhar neles, recolheu a arma


caída no chão e apontou para o grupo.

— O que vocês querem aqui? — Falou de forma calma, porém ríspida.


Sua voz tinha um timbre suave, baixo.

— Nós estamos meio que perdidos... Na verdade precisamos nos

esconder ou fugir. A sua casa foi a única que avistamos por aqui. — Jennifer

franziu a testa. — Fala sério, abaixe essa arma, realmente parecemos ameaças?

Ela hesitou um pouco, mas acabou baixando a arma. Aproximou-se,

olhando para todos, percebeu que não pareciam de fato ameaças, nem bandidos.

— Estão fugindo de quem? — Perguntou voltando o olhar para Jennifer.

— Irritamos alguns Titans, aqueles porcos milicianos. Eles nos levavam

para algum lugar pela rodovia quando conseguimos fugir. Acho que matei um

deles... E aqui estamos, procurando um lugar seguro. — Ela respondeu.

— Vocês mataram um miliciano? Sabem que isso não vai ficar assim

barato. Eles virão atrás de vocês, não tem a menor compaixão com os humanos

que os perturbam.

— Você é um deles?

— Titan? Não, sou uma híbrida, estou neutra na batalha de vocês.

— Mas não pode nos ajudar? Pelo menos nos dê alguma orientação do
que fazer, você os conhece melhor que nós.

— Ficar aqui seria suicídio.


— Por quê?

— Vocês realmente não sabem o que acontece com quem comete alguma
infração grave com eles? Vão mandar gárgulas para dar um jeito em vocês.

— Achava que isso era uma lenda...

— Acredite, assim que descobrirem o que vocês fizeram, mandarão as

gárgulas... — Olhou por cima contando quantos eram.

— Vocês estão em sete, provavelmente mandarão dois ou três. Conheço o

regimento das milícias de Titans. Eles não respeitam as leis humanas, mas

mesmo assim temem a justiça de vocês, por isso usam gárgulas para o trabalho

sujo.

— Fugir é nossa única opção então?

— Se eu abrigá-los ficarão encurralados aqui dentro, não terão chances


contra três gárgulas ao mesmo tempo, mas talvez se fugirem eles não os

alcancem, e se alcançarem, talvez seja um por vez.

— E quem nos garante que é isso mesmo que vai acontecer? — Peter

parecia indignado. — Ela pode estar falando isso só para livrar-se de nós!

Ela caminhou rápido na direção de Peter.

— Escute garoto, você não está em posição de fazer escolhas. — Fez


uma pausa e continuou num tom mais piedoso. — Não, não estou tentando me

livrar de vocês, apesar de ser o mais sensato a fazer nesse momento.


— Desculpe... Estamos desesperados, sei que invadimos sua casa e... —
Jennifer falou como se pedindo desculpas por Peter, se aproximando dela.

A mulher com ar misterioso e olhar forte observou todos com certa

impaciência, e voltou a se dirigir a Jennifer.

— Tem um trilho de trem há uns dois quilômetros a oeste daqui, costuma

passar um comboio de carga no início da tarde, seguindo para o nordeste. Vocês


podem caminhar até lá e subir em algum vagão, pelo menos estarão se

distanciando. É a melhor chance no momento.

— O caminho é pela mata? Basta seguirmos numa linha reta para o oeste
que encontraremos os trilhos? Tem alguma trilha até lá? — Questionou Jennifer,

preocupada e confusa. Ela se agarrava ao único fio de esperança que parecia

surgir naquele momento, enquanto sua interlocutora a olhava como se

procurando a melhor decisão.

— Ok... Eu os levo até lá, senão é bem provável que se percam e... Bom,
eu vou pegar meu casaco.

Ela subiu as escadas e voltou terminando de vestir um casaco preto, que

ia até a altura dos joelhos. Calça, suéter de poliéster e botas pretas completavam
a sobriedade do seu visual. Jennifer se postava na porta, vigiando a entrada

— Desculpe pela invasão, e por abusar da sua bondade. — Disse


Jennifer, quando ela se aproximou.

A observou por um instante, era apenas uma garota qualquer à porta da


sua casa, mas era suficiente intrigante para ter toda sua atenção.

— Não é má vontade minha em não abrigar vocês aqui. Seria uma


carnificina, acredite, e não tenho um carro para levá-los para longe. — Ela

também se recostou no batente da porta. — Tome, vai precisar dela. — Falou

devolvendo-lhe a arma.

Jennifer pegou a arma e sorriu de leve. — Acho que nem sei usar...

— Já está destravada, basta puxar essa parte aqui de cima para trás, está

vendo?

— É... Parece fácil, o que não é uma coisa boa em se tratando de uma

arma em minhas mãos. A propósito, meu nome é Jennifer, prazer. — Falou


esticando a mão, num tom amistoso.

— Anna. — Hesitou um pouco e correspondeu ao aperto de mão,

olhando Jennifer nos olhos.

E foi assim que sua guarda começou a baixar.

Jennifer voltou a guardar a arma no cós da calça. Saíram pela vegetação

baixa, caminhando a passos rápidos, enquanto improvisavam uma tala no braço


de Lisa.

Já passava das duas da tarde quando chegaram até os trilhos, tentavam


enxergar no horizonte algum sinal da locomotiva. Anna gesticulou para que não

se movessem, olhando para o alto, atenta.


— Uma gárgula, estão vendo? Lá daquele lado, está vindo na nossa
direção, permaneçam próximos uns dos outros! — Ordenou Anna, tirando dois

punhais do casaco, empunhando um em cada mão.

— Meu Deus, e agora? Como vamos matar isso? — Lisa se desesperava.

As gárgulas eram uma raça humanóide usada pelos Titans como seus

animais de caça. Eram comumente chamados de dragões dos ares por serem
alados e possuírem pele rochosa cinzenta como grandes lagartos de pedra.

Podiam usar suas asas para planar ou voar, mas a utilização mais mortal era

como lanças afiadas durante seus ataques.

A gárgula se aproximou do grupo num voo lento, circular, até finalmente

pousar em terra firme. Jennifer sacou a arma e disparou repetidamente contra a

criatura, que parecia não se ferir com as balas.

— Jennifer, não adianta! Vá para junto dos outros! — Anna o rodeava

em posição de ataque, tentou uma aproximação repentina para desferir um golpe,


mas a gárgula a arremessou para trás com a asa, como num tapa, abrindo-lhe um

corte no supercílio.

A gárgula caminhou na direção do grupo. Ao ver a cena, Jennifer


adiantou-se e se colocou entre a criatura e seus amigos, agora com seu punhal
ensanguentado nas mãos, já que não havia mais balas na pistola.

— Volte para a porra do lugar de onde você saiu, seu miserável! —

Jennifer a encarava, havia parado seu movimento com a investida dela. —


Venha, eu vou enfiar isso aqui no seu coração!

A gárgula aproximou-se e rapidamente a segurou pelo pescoço, a


erguendo do chão com uma mão apenas.

— Solta ela! Solta ela! — Gritou Becca, que permanecia abraçada com

os outros, assistindo tudo em pânico.

A gárgula arremessou Jennifer, a fazendo cair longe, de costas. Anna

aproveitou a distração para se aproximar por trás, cravando a adaga com a mão

esquerda no pescoço de pedra da fera, que soltou um ganido estridente. Após

cambalear com as mãos no ferimento, caiu inerte.

Anna se aproximou devagar, mexeu no corpo com um pé para se


certificar que estava morto, abaixou-se e retirou sua faca, guardando novamente

dentro do casaco.

— Morreu? — Becca olhou receosa o corpo no chão. Anna assentiu com

a cabeça.

— Você está bem? — Anna se aproximou de Jennifer, a tocando no

braço.

— Estou viva, o placar ainda está a nosso favor.

Todos continuavam olhando incrédulos a criatura que jazia no chão,


Anna voltou a perscrutar os céus.

— Como pode não ter morrido com meus trezentos tiros? — Questionou
Jennifer, exagerando.

— Você já viu como é a pele dela? Balas não perfuram essa carapaça,
não essas balas comuns. — Explicava Anna, pacientemente.

— Mas adagas sim?

— Não é questão de tipo de arma, eles possuem uma região vulnerável,

onde a pele é menos espessa: o pescoço. Então se você atinge a coluna vertebral

dele, seja com uma adaga cravada a fundo ou um tiro certeiro, tem grandes

chances de acabar com ele.

— Agora que você me diz isso...

— Vamos esperar o trem de carga, e torcer para não aparecer outro

desses tão cedo. — Anna orientou.

Depois de aproximadamente trinta minutos o barulho do trem se


aproximando pode enfim ser ouvido. Todos se levantaram do chão onde estavam

sentados, ao lado dos trilhos.

— Vamos para trás daquelas árvores, para que não nos vejam e deduzam

o real objetivo de ter um grupo de pessoas observando um trem passando. —


Jennifer apontou para algumas árvores baixas, com poucas folhas.

Ela percebeu Anna parada ao seu lado, parecendo indecisa. Anna a


encarou, sentindo que Jennifer esperava uma resposta sobre o que ela faria a

seguir, se os deixaria ali ou seguiria a viagem com eles. Começou a falar, com
um semblante piedoso.
— Garota, você até que me pareceu bem valente, mas acho que não vai
ser suficiente diante de mais gárgulas...

— Você vai conosco?? — Assemelhava-se mais com um pedido

desesperado de Jennifer do que com uma pergunta.

— E eu tenho opção? Não vou conseguir colocar minha cabeça no

travesseiro a noite sabendo que provavelmente vocês estarão... Sei lá... Mortos.

— Ou morando no Canadá. — Jennifer completou, sorrindo tentando

quebrar a tensão que pairava no ar.

Quando o trem passou, todos esperaram os vagões do final do comboio e

subiram um a um, ajudados pelos que já haviam conseguido subir. Os vagões da


frente levavam contêineres metálicos, enquanto que os do fundo eram de

madeira.

O vagão onde todos já se acomodavam estava carregado de sacas de

açúcar, formando pilhas de aproximadamente um metro de altura. Todos subiram

nas pilhas e se recostaram nas paredes. Eles pareciam assustados e cansados.


Anna procurou a maior fresta e observou o céu por alguns instantes, repetia o

gesto de tempos em tempos. Sempre que voltava, sentava ao lado de Jennifer,


que estava próximo a parede do fundo, segurando as pernas, com os joelhos
junto ao rosto.

— Tudo limpo por enquanto? — Jennifer desenterrou o rosto dos joelhos

e perguntou, virando-se para ela.


— Por enquanto... — Anna respondeu inquieta. Abriu o casaco,
certificou-se que suas adagas estavam lá.

— Você machucou a testa.

— O que? — Anna virou-se na direção dela.

— Tem um corte aí no seu supercílio, não tem? — Falou passando a mão

de leve em cima do corte.

Anna levou a mão ao rosto, olhou a palma da sua mão, que se manchou

de sangue.

— Não foi nada. — Respondeu sisudamente.

— Os híbridos também se curam mais rápido, como os Titans?

— Alguns...

— É o seu caso?

— Sim. — Respondeu em seco.

— Muito mais rápido que os humanos? — Jennifer insistia no assunto.

— Mais ou menos... Mais rápidos que os humanos, mas não tão rápidos

quanto um Titan.

Anna percebeu que era seria inevitável fugir da curiosidade de Jennifer,

espojou-se, procurando uma posição mais confortável no patamar de sacas.


Alguns minutos de silêncio se instauraram, Jennifer voltou a falar, olhando
pensativa para frente agora.
— Tinha um híbrido na minha turma na escola, acho que nos primeiros
anos... Não lembro. Enfim, acho que foi o único que tive contato direto, vocês

não gostam muito de se misturar, né? — Falava enquanto mexia em suas

pulseirinhas multicoloridas.

— Não sei... É o mais conveniente, eu acho. — Anna titubeou na


resposta.

— Nunca fui muito com a cara dos Titans, mas sempre achei

interessantes os híbridos. Vocês podem andar nos dois lados, tem características

de ambos e...

— Em nenhum dos lados. — Anna a interrompeu rispidamente.

— Como assim?

— Vivemos a margem da sociedade, seja a dos humanos ou a dos Titans,

nenhum deles nos veem como seu semelhante, e então acabamos não sendo nem

uma coisa nem outra.

— É... Eu nunca havia enxergado por esse lado...

Novamente ficaram em silêncio, pensativas.

— Qual o plano? — Virou-se para Anna.

— Dos híbridos?

— Não, para hoje. Mas os híbridos têm algum plano de dominação


mundial? — Jennifer perguntou com curiosidade.
— Claro que não. Sobre hoje, nós vamos seguir até o final da linha,
esperando pelas gárgulas.

— Esperar?

— Tem algum plano melhor?

Jennifer balançou a cabeça devagar, negativamente. Anna levantou e foi

olhar pela greta.

— Oh não... Lá vem outro... — Anna murmurou. Jennifer levantou-se

rapidamente e foi olhar pela abertura também. Ainda estava distante, mas vinha

na direção deles num voo alto.

— Não tenho mais balas, mas ainda tenho meu punhal, e agora já sei

onde enfiá-los. Estou pronta.

Anna não respondeu, continuava olhando fixamente para o céu. Todos


perceberam o que estava acontecendo e levantaram-se também.

— Eu vou tentar levá-lo para outro lugar, para que não ataquem vocês.
Vou chamar a atenção dela de cima de algum vagão mais à frente, vocês

permaneçam aqui, sem maiores movimentações. — Anna explicava,


didaticamente.

— Eu também vou! — Jennifer olhou fixamente para Anna, com tanta


certeza no tom da voz que ela não teria como impedi-la.

— Tá bom, mas apenas me ajude a despistá-lo, entendeu?


Saindo do vagão havia uma escada de marinheiro, que levava ao topo do
comboio. Subiram e pularam ao vagão da frente, esforçando-se para manter o

equilíbrio. Não havia muito vento, mas o sacolejo do trem era traiçoeiro.

Então o temido ser alado deu seu último voo rasante, chegando até elas.

— Atrás de mim, Jennifer! Vá para trás! — Vociferou.

Anna já empunhava suas duas adagas em posição de ataque, sem tirar os

olhos do seu alvo e com determinação inabalável, movendo-se devagar de um

lado para outro, como um boxeador procurando o momento certo de encaixar

seu melhor golpe.

Ela fez o primeiro ataque, pela esquerda, mas a criatura se desvencilhou,


deixando o golpe passar no vazio, aproveitando o movimento para segurar seu

braço esquerdo.

Tentou um golpe com a direita, mas ela também a segurou pelo punho,

ainda no alto. Ela estava agora sem defesas, com as duas mãos presas. A gárgula

a encarou, com um semblante raivoso, e passou a forçá-la para baixo e para trás,
Anna resistiu o quanto pode, forçando na direção contrária e lutando para se

manter de pé, mas lentamente abaixou-se, curvando os joelhos, até cair


finalmente de costas. Jennifer se aproximava desesperada, ensaiava alguma
reação, mas recuava.

A gárgula bateu seguidamente a mão esquerda dela contra o teto do

vagão, o dorso da sua mão já sangrava com o atrito da madeira, a fazendo por
fim soltar a adaga. Jennifer decidiu que era hora de entrar em ação e correu na

direção deles, com um movimento rápido a criatura soltou um dos punhos de

Anna e derrubou Jennifer também, atingindo-a na altura do peito com um golpe

forte.

Anna aproveitou seu braço solto e a momentânea distração da gárgula


para erguer-se de pé novamente, passando a adaga que restou da mão direita para

a esquerda, e a golpeou no braço forçando a criatura a soltar sua outra mão,

enquanto Jennifer ainda atordoada e caída no chão, arrastava-se de costas. A

criatura perseguiu lentamente Anna, que dava passos para trás no mesmo ritmo

que ela avançava. Anna desesperadamente tentou desferir golpes na altura do


pescoço, mas a lâmina passou apenas próxima à sua garganta.

Num sobressalto a criatura a segurou pelo pescoço com ambas as mãos.


Certo do domínio de sua presa, a gárgula encarou Anna apertando cada vez mais,

quando se ouviu o barulho de uma grande asa de morcego abrindo-se. A besta

armara suas asas expondo extremidades pontiagudas prontas para o ataque. Anna
continuava presa, com dificuldade para respirar, debatendo-se e tentando

desprender as mãos dela do seu pescoço. Foi tomada pelo pânico quando
percebeu o que estaria prestes a acontecer, ninguém é páreo para um ataque tão

letal.

Num golpe desajeitado, Jennifer com sua adaga em punho a fincou no


pescoço da gárgula, o máximo que conseguiu. Instantaneamente emitindo uivos,
a criatura soltou Anna. Arrancou a adaga de seu pescoço e cravou em Jennifer

abaixo do ombro direito, fazendo-a novamente cair de costas. Após seu último

reflexo, ela desabou ao chão, com as mãos e dedos em forma de garras

envolvendo o próprio pescoço, sangrando e debatendo-se, até finalmente não


mais se mover.

Anna olhava o ser sucumbindo no chão, pasmada. Após certificar-se que

já não era mais uma ameaça, correu para socorrer Jennifer, ainda caída, que se

apoiava no chão com os cotovelos. Com os olhos arregalados fitou Anna, que

correspondeu o olhar, assentindo que o perigo havia terminado. Jennifer sentou-

se, e arrancou a faca do seu ombro com dificuldade e um berro de dor, franzindo
o cenho.

— Você está bem?! — Anna abaixou-se ao seu lado e colocou a mão em


cima do ferimento, uma abertura na jaqueta, que começava a tingir-se de

vermelho.

— Sei lá! Mas essa coisa está morta não está? Chuta para ter certeza!

— Tá morto, fica tranquila. — Anna voltou à gárgula e a chutou para


fora do vagão, fazendo com que o corpo rolasse pela terra que ficava para trás,

levantando poeira.

Anna ajudou Jennifer a levantar-se e a conduziu até a extremidade do

vagão.

— Anda, vamos voltar para o vagão, eles devem estar apavorados.


— Eles apavorados?? Eu estou apavorada! E furada! — Jennifer guardou
seu punhal de volta em sua bota, emparelhou-se com Anna na beira do vagão.

— Uma pessoa apavorada não consegue matar uma gárgula. — Anna

falou olhando para Jennifer. — Vamos, pule, vou logo atrás. — Anna passou seu

braço na cintura de Jennifer e a ajudou a passar para o outro vagão, num pulo
duplo com facilidade.

Voltaram de encontro aos outros, que estavam de pé reunidos próximos a

porta do vagão. Jennifer entrou eufórica, mas com semblante de dor.

— Essa já era, pessoal! — Comemorava.

— O que aconteceu com você? E esse sangue? — Becca perguntou.

— Mataram aquele bicho do inferno? — Bob perguntou, olhando para

Anna.

Anna passou por eles e já se sentava lentamente num monte de sacas,

quando percebeu que a pergunta era direcionada a ela ergueu a cabeça e apontou

para Jennifer.

— Eu não, a heroína aqui é ela. Jennifer matou aquela coisa sozinha. —


Falou orgulhosa.

A atenção então se voltou a Jennifer e todos entusiasmados a


questionavam como havia matado a gárgula.

— Na verdade Anna fez o serviço pesado, eu só cravei uma faca no


pescoço daquela coisa, ela ainda teve tempo de se vingar na mesma moeda,
aquele bicho desgraçado... — Jennifer contava, por fim apontando para o

ferimento abaixo do ombro, onde já havia um círculo escarlate. Becca

aproximou-se e olhou de perto o local onde Jennifer agora pressionava sua mão
esquerda.

— Você levou uma facada aí? — Perguntou assustada.

— Foi o presentinho de despedida dela... — Jennifer respondeu com

ironia. — Porra, isso tá doendo muito.

— Que horror! Quer que eu dê uma olhada nisso?

— Você tem um kit de primeiros socorros aí no bolso? – Jennifer deu um


meio sorriso. — Vamos focar nessas bestas chatas, talvez ainda falte uma, vamos

ficar de olho, é questão de tempo para aquela coisa infernal rondar nosso vagão,

não é?

Jennifer falou olhando para Anna, como um questionamento. Anna

apenas assentiu com a cabeça.

Voltaram então para a rotina de levantar e ir olhar os ares, de tempos em


tempos. Já passava das cinco da tarde e a apreensão aumentava à medida que o
tempo passava. Novamente Jennifer sentada ao lado de Anna, conversava e

revezavam a vigília entre as frestas e a porta.

— Está muito ruim? — Anna olhou para o ombro de Jennifer.

— Essa porcaria está latejando. Mas pressinto novas aventuras em breve,


então estou tentando não dar muita atenção para isso agora. É como dizem, o que

os olhos não veem, o coração não sente. Estou evitando olhar... Não olhe

também.

— Mas se você estiver perdendo sangue com esse corte, pode te deixar

em apuros em breve, muito em breve. — Anna parecia preocupada, percebeu


que Jennifer estava assustada e um pouco mais pálida que o normal.

— Uma coisa de cada vez. Vamos colocar nosso terceiro amiguinho para

dormir, depois eu vejo isso. — Voltaram a ficar em silêncio por alguns segundos.

— Ok, mas depois vou dar uma olhada nessa ferida.

— Se fosse em você, já estaria cicatrizando? — Jennifer perguntou,


instigada por sua curiosidade natural.

— Não. — Respondeu rapidamente, mas depois continuou: — Também

não é assim milagroso. — Anna procurava as palavras olhando para o chão. Ela

não estava acostumada a ser questionada sobre quem era, isso era algo que

sempre a deixava desconfortável. Mas estava achando estranho não se sentir


desta forma com as perguntas de Jennifer, no fundo sentia algo até confortável

em conversar com aquela garota tão cheia de energia e perguntas.

Anna morava sozinha naquele casarão já há algum tempo, desde que seu

pai havia morrido. Seu irmão, Andrew, que era alguns anos mais novo, havia
saído de casa durante a guerra. Simplesmente colocou uma mochila nas costas,

disse que desbravaria o mundo e nunca mais voltou.


— Digamos que as defesas do meu organismo sejam mais rápidas e
eficazes que as suas. Eu, a essa altura, já teria parado de sangrar, e

provavelmente eu não teria infecção.

— Mas eu terei infecção??

— Sim. Quer dizer... Não! Talvez... Mas não estou dizendo que você terá

uma infecção agora, pelo menos espero que não. Não tenha, ok? Daria muito
trabalho para nós.

— Ok...Vou fazer o possível... E seus pais, quem é Titan, e quem é

humano?

— Garota, acho que é sua vez de olhar lá fora. — Anna encerrou a


conversa, abaixando sua cortina e dando como encerrado o espetáculo.

Anna perdeu primeiro sua mãe, uma bela Titan de cabelos longos e

negros, num acidente de carro há quase vinte anos. Seu pai, humano, morreu

num ataque cardíaco fulminante, tempos depois. Anna havia passado toda a

guerra sozinha, se protegendo como podia no seu casarão a beira do oceano.


Havia perdido a conta de quantos invasores colocara para correr ou eliminado.

Aparentava trinta anos, mas por conta de parte da sua genética Titan, sua idade
real era maior.

— É... Minha vez. — Jennifer levantou-se, apoiando-se no ombro de


Anna, e foi verificar os céus. Semicerrou os olhos e teve então certeza que lá

vinha a terceira e última gárgula. Virou-se rapidamente na direção de Anna.


— Ferrou. — Sussurrou, com seu linguajar despojado. Anna entendeu a
mensagem e prontamente levantou-se. Os outros perceberam e levantaram

também.

— Quer que eu vá com você, Jenny? — Perguntou Becca.

— Anna não vai deixar. Não é, Anna? — Jennifer olhou para Anna

sacudindo de forma rápida e discreta a cabeça negativamente, franzindo a testa,


como se pedindo para Anna corroborar com sua afirmação e não deixá-la

acompanhar.

— É muito perigoso, Becca, fique aqui cuidando da porta. — Anna


confirmou.

Jennifer se aproximou de Anna, falou de forma pontual, fazendo o

planejamento da próxima aventura.

— O segundo vagão depois desse, está com menos madeira nas paredes,

ou seja, tem frestas maiores.

— Bem observado. E?

— Acompanhe meu raciocínio: é perigoso para nós lutarmos em cima do


vagão, acho que deu para perceber, né? Quase despenquei de lá umas cinco
vezes... Acho mais seguro enfrentarmos dentro, por isso a dois vagões daqui

seria o lugar ideal, temos maior visão do que acontece do lado de fora,
poderíamos esperá-lo lá dentro.

Anna parecia hesitar. Jennifer continuou:


— Vamos atraí-lo para aquele vagão e esperar lá dentro, com facas em
punho... E, bom, o final do filme você já sabe como é. — Insistia.

— Ok, mas novamente você fica na minha retaguarda, me deixe atacá-lo,

entendido?

— Totalmente. — Jennifer fez um sinal com o braço apontando a porta,

gentilmente. — Primeiro os mais velhos. — Sorriu.

Subiram no vagão e olharam ao mesmo tempo para a gárgula no céu, que

veio rapidamente ao seu encontro assim que as avistou.

— Corra para o vagão que você falou! — Ordenou Anna. Jennifer não

entendeu a ordem, porque Anna continuava parada olhando para o alto, mas
mesmo assim obedeceu e correu em direção ao segundo vagão à frente.

Jennifer disparou sem olhar para trás, entrou no vagão e foi logo para a

parede dos fundos olhar pela fresta tentando enxergar se Anna estava vindo

também. Mas não a enxergou. Percebeu que Anna havia ficado lá em cima e

decidido lutar sozinha.

Depois de alguns segundos ela enfim viu Anna correndo


desesperadamente, despontando em cima do seu vagão.

— Anna! Corra! Venha para dentro!

Mas antes que finalizasse a frase uma imagem aterrorizante se seguiu:

Anna desistiu de pular, virou-se para trás com a adaga em punho, Jennifer viu a
gárgula num voo rasante, como um falcão que mergulha para pegar sua presa em
solo, agarrar Anna pelos ombros, erguendo-a bruscamente e então carregando-a.

A garota ficou paralisada em pé no meio do vagão, imaginando que o


pior havia acontecido. Sustentava os olhos arregalados, sem acreditar na cena

que havia acabado de assistir.

— Meu... Deus... Ferrou tudo. — Falava para si, incrédula.

Um estrondo no teto do vagão a tirou daquele estado anérgico. Olhou

para cima e então correu para a porta, subiu rapidamente a escada, parou nos

últimos degraus e deu uma boa olhada para todos os lados, olhou para cima, mas

não viu nada nem ninguém, continuava sem saber o que havia acontecido, eles
simplesmente haviam sumido.

Tomou um susto quando Anna apareceu de súbito na lateral da escada,

agarrando-se ao corrimão da mesma, quase sem fôlego.

— Santo Cristo, mulher! Você está viva?! — Jennifer explodiu, num

misto de surpresa e alegria.

— O que você acha? — Anna respondeu, erguendo a mão num gesto de

impaciência.

Jennifer apenas sorriu.

— Podemos entrar? — Anna continuou. Seu rosto tinha arranhões na


testa e abaixo do olho.

Jennifer entrou no vagão, assim que Anna entrou a abraçou aliviada. Ela
era uma mulher alta e de postura ereta, e mesmo Jennifer sendo menor,
encaixaram-se. A exultante humana passou seus braços por baixo dos braços

dela e a segurou firme com as mãos espalmadas em suas costas. Anna parecia

não entender direito a situação, mas acabou erguendo suas mãos e retribuindo o
abraço, meio confusa.

Jennifer a soltou, lhe fitou ainda assustada, não acreditando que tivesse

se safado daquela enrascada. Com uma mão tateou os ombros dela, havia no

casaco as marcas das entradas das garras da gárgula, e então esbravejou:

— Puta que o pariu, você quase me matou de susto! Por alguns instantes

eu achei que você tinha morrido!

Anna ainda levou alguns segundos para se recompor, mudou totalmente

suas feições, passando de séria para uma mais descontraída.

— Bom, desculpe, não foi minha intenção preocupá-la, mas eu estava

ocupada tentando matar aquela coisa, não deu tempo de avisar que eu estava
viva.

— E conseguiu matar?

— Estou aqui, não estou? Ela já era.

— Eu vi quando ela prendeu você com as garras e te carregou! Eu pensei

‘pronto, levou embora e vai fazer um banquete com ela!’ Como você conseguiu?

— Fiz o mesmo que você, cravei minha lâmina no pescoço dela.


— No ar??

— Sim, no ar. Eu sabia que provavelmente não desceria dali viva se não
fizesse algo radical, então... Tive que arriscar.

— E o que aconteceu?

— Caímos.

— Eu escutei o barulho... Céus, vocês lutaram no ar? Eu vou contar esse

dia para meus netos e eles não vão acreditar em uma só palavra...

— E então... Vamos voltar para o vagão?

Retornaram rapidamente para o vagão onde se encontrava o restante do

pessoal, Jennifer entrou na frente, comemorando.

— Acabou pessoal! A última gárgula virou lixo abandonado ao longo da

via!

— Também matou esse, Jenny? — Perguntou Bob. Todos fizeram gestos

positivos e pronunciaram palavras de alívio. Sam e Lindsay, as irmãs, se

abraçaram.

— Não, não, foi nossa amiga aqui... E numa cena cinematográfica! —


Jennifer falava efusivamente, colocando o braço em volta de Anna, como

camaradas após um jogo vitorioso.

— Conta aí, Jenny! — Becca incitava ainda mais a animação de Jennifer.

Anna então caminhou para um canto do vagão e sentou-se, exausta.


Jennifer continuava:

— Nossa, vocês tinham que ver, ela lutou com aquele bicho no ar! No ar!
Eu não vi, mas queria ter visto.

Contou toda a ação que acabara de presenciar, com seus palavrões e

cheia de animação, todos ouviam atenciosos.

— Sério Anna?? — Bob virou-se para ela, questionando.

Anna apenas assentiu com a cabeça.

— Seríssimo! — Respondeu Jennifer, continuando a história.

— Então acabou? Estamos livres? — Perguntou Becca.

— Estamos! Não estamos, parceira? — Jennifer virou-se para Anna,

pedindo a confirmação.

— Acredito que sim... Vamos planejar nosso retorno, estamos bem longe

de casa. — Anna respondeu, sem animação.

E a excitação de Jennifer deu lugar a um ar de preocupação, ela

caminhou na direção de Anna e ajoelhou-se ao seu lado, perguntando se poderia


dar uma olhada nos seus ombros. Anna tratou logo de tranquilizá-la.

— Vou ficar bem, não se preocupe. Lembra que eu falei como seria se
seu ferimento fosse a mim? São apenas alguns pequenos furos, nem devem estar

mais sangrando.

— Tomara... E não terá a infecção que eu já devo estar desenvolvendo


neste instante, pelo nível da dor que estou sentindo vai ser uma merda bem

grande.

Bob, Becca e Peter também se aproximaram das duas, e logo

questionaram o que fariam a seguir.

— Eu... Não sei. Vamos pular do trem? — Perguntou Jennifer, receosa.

— Vamos, mas não assim no meio do nada. Vamos esperar a próxima

cidade ou vilarejo. Não vamos achar carona, e a essa hora não deve ter comboios

voltando, penso ser mais seguro procurarmos algum lugar para passarmos a

noite, voltamos no primeiro trem que for na direção de Bridgeport. — Anna


falou olhando para o chão a sua frente, pensativa.

Todos pareciam agora pensar em cada passo que dariam a seguir, como

se estivessem mentalizando a continuação da aventura proposta por Anna.

— É isso aí, pessoal, Anna manda. Vamos ficar na porta até avistar

algum vilarejo e então saltamos. — Jennifer ratificou os planos dela.

— Acho que precisaremos de água... — Falou Becca.

— Quando chegarmos seja onde for, procuraremos água, se tiver algum


comércio no local, compramos algumas coisas para comer também.

Jennifer caminhou até a porta com a mão sobre o ferimento, passou a


observar atentamente a paisagem à sua frente.

A esta altura tanto Anna quanto Jennifer estavam num estado de


curiosidade mútua. Jennifer admirava sua coragem e bravura, e o zelo altruísta
que tinha por ela e por seus amigos. Anna era uma desconhecida que teve sua

casa invadida, e estava ali arriscando sua vida por eles, os defendendo, inclusive

havia se ferido, mas permanecia ali como uma fortaleza.

Mesmo numa circunstância emergencial como aquela, Jennifer estava


ávida por saber mais sobre Anna. Havia despertado um interesse do tamanho

daquele trem, ou maior!

Da mesma forma, também havia a curiosidade de Anna. Sentada no chão

do vagão, pensando no próximo passo, mas não conseguindo evitar olhar para

Jennifer de quando em quando, como se entendesse melhor quem era aquela

garota apenas a observando. Como havia aprendido a ser tão independente e

destemida? Qual a história da sua vida?

Todos sentaram próximos a Anna, como se a proximidade recompensasse

os esforços dela e a agradecesse por não ter os abandonado ainda à beira da linha

férrea, ou ainda que não tivesse simplesmente os expulsado de sua casa, o que

teria sido plausível.

Algum tempo depois Jennifer surgiu correndo em saltos para próximo do

grupo, avisando que havia avistado o que parecia ser casas e uma estação de
trem. Levantaram-se e tomaram posição. Quando o trem se aproximou da vila

pularam um a um, num descampado com vegetação rasteira.

Caminharam até uma antiga estação ferroviária de paredes amarelas,


parcialmente destruída, mas ainda com alguns guichês de pé. A luz do dia

diminuía, a temperatura começava a cair e o céu agora rosado, com algumas

nuvens, passava a ter a iluminação especial da lua por trás das massas cinzas

arredondadas. Tentavam adivinhar em qual cidade ou vila estavam.

A estação tinha uma plataforma alta, aproximadamente um metro do


chão. Anna avistou um pequeno armazém do outro lado, e pediu que alguém a

acompanhasse. Jennifer prontamente se voluntariou, mas Anna a vetou.

— Você? Melhor não... — Anna respondeu, franzindo a testa como um

‘sinto muito’.

— Você chamaria a atenção, com essa jaqueta suja de sangue... —

Continuou.

Becca prontificou-se então.

— Eu vou com você. Esperem aqui embaixo, do lado da plataforma.

Sentaram-se no chão, recostados na parede da estação. Anna e Becca

voltaram em poucos minutos, trazendo água e alguns suprimentos.

— E agora? Para qual lado? — Jennifer questionou.

Anna pareceu não ouvir, olhava para os lados, como se procurando algo.

— Estamos no meio do nada. Vamos naquela direção, estão vendo? Tem


algumas casas e parecem abandonadas, se acharmos alguma com teto e paredes

suficientes podemos passar a noite.


Anna pediu que se levantassem e começaram a caminhada na direção de
um conjunto de casas cinzas e ocres, parcialmente destruídas. Ficavam a uns

quinhentos metros da estrada de ferro.

— Se tudo der certo, amanhã à tarde já estaremos em nossas casinhas...

— Comentou Becca.

— Aprecio seu otimismo, Becca. — Disse Jennifer.

— Perguntamos no armazém quando passava o próximo trem em direção

ao sul, e a moça respondeu que entre oito e nove da manhã passa um trem de

carga. É nossa carona de volta! — Animou-se Becca.

Caminhavam com passos rápidos, na pressa de encontrar um ponto de


parada. Almejavam um pouco de sossego, dentro do possível numa casa

abandonada, mesmo que longe de seus lares.

De vez em quando Jennifer levava a mão ao ombro ferido, parecia cada

vez mais doer e incomodá-la.

Chegaram até as casas, a rua de chão batido parecia uma rua fantasma,

com casas inabitadas e o mato crescendo. As primeiras casas estavam totalmente


destruídas, até que encontraram uma casa com pelo menos dois cômodos
intactos e ainda coberta pelo telhado.

Adentraram devagar, estudando cada detalhe da habitação. O melhor


cômodo de pé parecia ter sido um dia a sala de estar da casa. O chão de madeira

não muito empoeirado e com algumas roupas velhas largadas denunciava que
outros hóspedes temporários haviam passado por ali não há muito tempo.

A porta do outro lado da sala estava fechada com tábuas pregadas, bem
como as duas janelas da parede contrária a lareira. — Que bom, proteção para o

frio! — Pensou Jennifer.

O interior da casa tinha as paredes brancas e sujas, com algumas

manchas de mãos. Por um momento Jennifer sentiu-se intrigada ao pensar que


aquela já havia sido a casa de alguém, de alguma família. Questionava se alguém

havia morrido ali durante a guerra, ou se tiveram tempo de fugir do bombardeio.

— E então, vamos acender essa lareira? — Perguntou Bob.

— Acho que pode chamar atenção desnecessária... — Jennifer receou.

— Acendemos ou não? — Bob voltou a perguntar.

— Vai esfriar à noite, podemos acender a lareira e ficamos de vigília para


nossa segurança. E vai esfriar bastante. — Respondeu Anna.

— Ok, vamos lá fora procurar madeira que possa ser usada como lenha!
— Bob chamou para o acompanharem.

Os que ficaram dentro da casa começaram então a preparar sanduíches


com pães e salame que haviam comprado. Distribuíram também a água, uma

garrafa para cada par.

Um a um, voltavam para a casa, trazendo o que haviam encontrado para

manter o fogo durante a noite, gravetos, pedaços de madeira de escombros. Uma


pilha bagunçada foi se formando ao lado da lareira. Jennifer voltou esfuziante
trazendo um pedaço de tronco que havia encontrado.

— Esse vai queimar a noite toda! — Vibrava. — Bob, duvido achar um

tronco melhor que este!

— O que são essas larvas saindo da madeira? — Bob olhou com asco.

— Argh! — Jennifer atirou o tronco para fora da casa.

Enquanto isso Anna pegou alguns gravetos e punha-se a esculpi-los,

pontudos, como pequenas lanças, para que cada um tivesse algum tipo de defesa

durante a noite. Depois saiu a procura de algo que pudesse ser usado como

ignição para o fogo, alguma palha talvez.

***

Naqueles tempos a segurança era um dos maiores problemas pós-guerra.


Com a polícia enfraquecida, a população parou de confiar na segurança pública,

abrindo espaço para grupos de segurança privada e milícias. O maior temor de

todos não era que assaltantes ou outros nômades invadissem suas casas durante a

noite, tinham medo que milícias de Titans os abordassem com violência, já que
vagavam em grupos, seguindo suas próprias leis, e não hesitavam em bater ou
atirar em quem cruzasse o caminho deles. Se vissem uma híbrida ajudando um

grupo de humanos, não veriam com bons olhos.

***

Já passava das oito da noite quando finalmente o fogo tomou vigor na


pequena lareira. O clarão das chamas iluminava os semblantes de todos,

destacando o vermelho dos rostos dos que haviam carregado a lenha. Pareciam

cansados, mas animados com o surgimento de grandes chamas. Bob e Jennifer,

abaixados, ainda se aproximavam e colocavam mais alguns gravetos


estrategicamente, como se estivessem num jogo de pega varetas.

Enquanto isso Anna se agachou ao lado dos outros, conversou

ponderosamente, gesticulando com calma, ensinava a usar as lanças

improvisadas, passando orientações sobre como se defender caso algo

acontecesse à noite.

Todos já haviam se alimentado ou ainda finalizavam seus pães, sentados

junto à parede em frente à lareira. Jennifer continuava entretida com o fogo,

agachada, colocando gravetos. Até que sua visão ficou turva, como se uma
grande lanterna a cegasse. Sentiu as pernas fraquejando, desequilibrou-se, deu

alguns passos sôfregos para trás e acabou caindo de costas.

Anna rapidamente levantou-se e foi acudi-la, ajoelhando-se ao seu lado.

Viu que estava suando e parecia desnorteada. Abriu sua jaqueta jeans e
confirmou o que suspeitara, a camisa por baixo estava com o lado direito

completamente rubro de sangue, um rastro vermelho que sujava inclusive o cós


de sua calça.

— Garota, você tem ideia do quanto já perdeu de sangue?! —


Questionou preocupada.
— Isso foi uma pergunta retórica ou eu deveria saber a resposta? —
Brincou Jennifer, mesmo quase desfalecendo e ardendo em febre.

Anna a arrastou devagar até a parede. Despiu-se de seu casaco negro,

dobrou e colocou embaixo da cabeça de Jennifer, como travesseiro.

— O que aconteceu com ela? — Aproximou-se Becca, assombrada.

— Perdeu um pouco de sangue, está com febre, deve ter infeccionado...

— Respondeu Anna, ainda verificando a camisa encharcada dela.

— Ah... A tal infecção... — Jennifer sorriu novamente, olhando para

Anna, que não retribuiu o riso.

— Ela vai ficar bem, não vai?

— Eu vou tentar melhorar um pouco isso... — Desconversou.

— Becca, relaxa, tá tudo bem, foi só uma tontura, não estou grávida.

Amanhã à noite estarei jantando queijo quente na sua casa.

Anna buscou uma garrafa de água e a ajudou a tomar um gole. Ergueu

um pouco a cabeça de Jennifer, pegou algo nos bolsos do seu casaco e voltou a
deitá-la no embrulho macio.

— Alguém pode arranjar um lenço, um pedaço de pano, ou algo do tipo?

Depois de livrar-se da camisa de flanela cinza, Bob respondeu: — Aqui,

aqui. — Entregando a Anna sua regata de algodão branca, que usava por baixo.

— Talvez eu não a devolva, tudo bem? — Anna perguntou.


— Fique à vontade. — Respondeu, apenas preocupado em ajudar.

Anna pegou a adaga de dentro da bota de Jennifer e cortou a camisa em


três pedaços. Dobrou dois deles e ficou com um sobre sua perna.

— Posso abrir sua blusa? — Anna perguntou de forma gentil a Jennifer.

— Não vai nem oferecer uma bebida antes? — Jennifer respondeu

baixinho.

Anna sorriu e então ergueu uma pequena garrafa de uísque, completando.

— Infelizmente não é para você beber. Prometo que lhe pago uma bebida
qualquer dia desses. Essa aqui é para limpar seu ferimento.

Anna abriu com cuidado sua blusa, expondo totalmente o lado direito,

deu uma boa olhada no estrago, em seguida colocou a alça do seu sutiã para o

lado.

Antes de despejar o conteúdo da garrafa fitou Jennifer, que não mais

olhava seu próprio ferimento e sim retribuía o olhar.

— Vai doer. — Anna a alertou.

— Tudo bem, manda ver, confio em você. — Jennifer respondeu,


fazendo um semblante de valentia.

Anna hesitou de novo, ergueu um pouco a mão direita, que estava livre.

— Tome, pode apertar minha mão se quiser.

Jennifer aceitou a oferta segurando sua mão. Anna derramou aos poucos
o uísque sobre o ferimento, o sangue diluído em álcool escorria para os lados,
empossando sobre seu corpo. Jennifer apertou sua mão num longo piscar,

mordendo o lábio inferior, com uma expressão severa de dor.

— Que mer... — Sussurrou.

Ao abrir os olhos se deparou com Anna, que a olhava com apreensão.

Neste momento Jennifer pode ver de perto seus arranhões no rosto, pequenos
cortes e arranhões na testa do lado esquerdo, e um corte acima da maçã do rosto,

próximo ao olho esquerdo. Notou o cabelo solto querendo pender para frente das

orelhas, seus olhos que pareciam duas porções de um mar azul. Pela primeira

vez podia ver todas as feições de Anna bem de perto.

— Tudo bem? — Perguntou Anna.

— Acabou?

— Vou limpar agora. Consegue devolver minha mão? É que vou precisar

dela.

Anna passava um dos retalhos de pano da camisa de Bob ao redor do

ferimento, e depois mais suavemente, por cima do corte. Desceu e foi limpando
abaixo, próximo a cintura. Jennifer acompanhava os movimentos com um olhar
baixo.

— Posso? — Perguntou Anna, olhando para a altura do peito.

— Vá em frente, já me conformei em não ganhar um drinque seu essa


noite. — Respondeu Jennifer.
E então limpou o sangue por baixo do seu sutiã, com delicadeza.

— Onde você arranjou essa garrafa? — Jennifer questionou.

— Peguei emprestado no armazém do lado da estação, enquanto Becca


entretia a vendedora.

— Emprestado?

— Pronto, vou improvisar um curativo, ok? — concluiu Anna,

encerrando o assunto.

Apenas assentiu com a cabeça. Anna dobrou outro pedaço do pano e


colocou em cima da ferida. Pegou um pequeno rolo de fita adesiva, tirava

pedaços e colava por cima da bandagem.

— Também pegou essa fita emprestada? — Perguntou jocosamente

Jennifer.

— Ahan. Mas um dia eu volto lá e devolvo tudo.

— Faço questão de ir com você e ver a cara da atendente. — Jennifer

falou quase sussurrando, sonolenta.

Quando terminou o curativo, fechou sua blusa e a jaqueta. Olhou para


Jennifer e viu que ela estava de olhos fechados.

— Jennifer? Jennifer, não durma, não ainda.

Ela abriu os olhos lentamente.

— Tente se manter acordada, você consegue? Mais tarde deixo você


dormir, prometo. Você já comeu?

Jennifer fez sinal negativo com a cabeça. Anna buscou comida, a ergueu
um pouco e ajudou a comer.

— Está com frio?

— Uhum. Mas quem não está, não é?

— Sim... Mas você está sentindo mais frio por causa da febre. Só não

durma agora.

— Ordens médicas?

— Ordens médicas expressas.

— E seus ferimentos? Eu tive apenas um cortezinho no ombro. Você

precisa cuidar dos seus também.

— Eu vou ficar bem, não foi nada demais.

— Posso ver?

Anna apenas olhou para Jennifer, levantou-se e dirigiu a palavra para

todos:

— Pessoal, a noite vai ser bem fria, tentem permanecer próximos à


lareira, e não podemos deixar o fogo apagar.

— Vamos manter vigília? — Interrompeu Bob.

— Sim, eu me ofereço para ficar de vigília inicialmente, mas podemos

revezar em duplas. Todos de acordo?


Todos concordaram e logo formaram as duplas. Iniciaram uma discussão
para formar a ordem da vigilância.

— Se não se importarem, eu gostaria de fazer o primeiro turno, porque

quero ficar de olho nela, monitorando a febre. — Anna apontou para Jennifer

com a cabeça. — Poderia ficar até meia-noite ou uma da manhã.

— Depois vocês podem revezar de duas em duas horas. — Continuou.

— E quem estiver acordado também cuida do fogo. Tem bastante lenha

ainda, mas se precisar, procuraremos mais. — Completou Becca.

— Becca tem razão, sem esse fogo vamos congelar. Fiquem próximos

uns aos outros para se aquecer. Se preferirem durmam em duplas, para aproveitar
o calor do corpo. — Anna sugeriu.

Anna escutou Jennifer falando algo, mas não entendeu. Aproximou-se

dela, e abaixou-se.

— O que você falou?

— Também quero fazer turno.

— Mas você não está em condições de ficar de vigília... — Anna falou


de forma gentil.

— Posso fazer o último turno, já estarei melhor.

— Tá bom, vou pensar no assunto, ok? Quem sabe nós duas fazemos o
último período então. — Respondeu, já sentando ao seu lado.
A temperatura caia cada vez mais, todos conversaram mais um pouco
sobre a ordem dos turnos, foram procurando as melhores posições para dormir,

apoiando-se uns nos outros. Anna colocou seu casaco sobre Jennifer, cobrindo

seus braços, a viu lutando para manter os olhos abertos. Virou-se em sua direção
e colocou uma mecha do cabelo dela que estava sobre sua testa, para trás da

orelha.

— Como se sente?

— Desejando minha cama com todas as forças do universo, talvez ela se

materialize no meio dessa sala. — Jennifer tremia e batia seus dentes, com frio.

Anna levantou, ficando de joelhos.

— Chegue um pouco para frente. — Pediu.

Jennifer desencostou da parede devagar, arrastou-se um pouco para

frente. Anna entrou no espaço que se formou entre ela e a parede, sentando-se

atrás dela, com as duas pernas ao redor do seu corpo.

— Pode recostar em mim agora. — Anna pegou as mãos de Jennifer por

baixo do casaco, as cruzou sobre seu peito, e a puxou delicadamente para trás,
para próximo de si. Deixou seus braços lá, por cima dela, para aquecê-la.

— Ficou mais quentinho assim? — Perguntou baixinho, próximo do

ouvido de Jennifer. Ela apenas balançou a cabeça, concordando.

— Ok, pode dormir agora, vou ficar de olho em você. — Falou,


colocando a mão em sua testa, checando a temperatura.
Todos dormiam. Anna permanecia alerta, olhando para a porta, para
Jennifer, e às vezes para a janela na parede de trás. Sentia o corpo de Jennifer

tendo tremores cada vez mais espaçados, acompanhou a temperatura dela caindo

lentamente e a respiração mais forte, denunciando que caíra no sono.

Antes de adormecer, Jennifer se deu conta do conforto de estar deitada


não mais numa parede dura e fria, mas no corpo aconchegante de Anna, seus

pensamentos já se confundiam num estado de quase sono, sentia-se não só

confortável e aquecida, mas também envolta, segura.

Anna podia ouvir apenas os ruídos da noite, que avançava lentamente.

Alguns grilos e cigarras faziam a trilha sonora, às vezes o farfalhar das folhas

das árvores quando alguma brisa soprava. Pela porta pouca claridade invadia o

recinto, o céu estava encoberto. As chamas da lareira projetavam sombras


dançantes nas paredes e refletiam nuances amareladas nas feições das pessoas

adormecidas.

Um pouco antes de uma da manhã, Anna chamou Bob e Becca para

assumirem o turno.

Ajeitou-se como pode, acomodou um pouco mais Jennifer em seu colo, a

deitando de lado, passando um braço sobre ela.

— É meu turno? — Balbuciou Jennifer, sem abrir os olhos.

— Não, pode continuar dormindo. — Anna sussurrou.

Bob estava agora sentado ao lado de Becca, passando seu braço pelos
ombros dela, tentando aquecê-la. Esfregavam os olhos numa tentativa de afastar
o sono, enquanto bocejavam.

Mesmo não estando mais de vigília, Anna continuava acordada.

Preocupava-se menos com a porta e possíveis invasores agora, permitia se

demorar observando Jennifer dormir pacificamente, ela já não tremia mais.


Passou os dedos nos cabelos um pouco bagunçados de Jennifer, preso num rabo

de cavalo. Ela já parecia mais corada, realçada pelo fogo. Tinha um rosto jovial,

‘lembra uma menina dormindo depois de um dia de aventura’, concluiu Anna,

que finalmente adormeceu.

Quando o sol começava a raiar, Anna despertou com um barulho no lado

de fora. Sem alarde, permaneceu fitando a porta. Um barulho de passos se

aproximava cada vez mais, ela continuava olhando fixamente para a porta.

Um vulto surgiu, de sobressalto sacou a adaga de Jennifer, que havia

guardado ao seu lado. Mas a figura que surgiu na porta era Peter, carregando

alguns gravetos. Suspirou com alívio, deixando novamente a faca no chão,

tratando de dormir mais um pouco. Menos de uma hora depois já estavam todos
acordados, ansiosos com a volta para casa.

Jennifer despertou já sem febre e com boa disposição.

— Você dormiu desse jeito, assim sentada? — Perguntou para Anna, se

virando para trás.

Peter respondeu antes que Anna falasse algo.


— Sim, até eu acordá-la cedinho, quando fui buscar mais madeira, te
assustei não foi?

— Um pouco... Devo dizer que você correu o risco de ver uma faca

voando em sua direção... — Anna respondeu em tom descontraído.

— Já vamos para os trilhos? — Perguntou Becca.

— Daqui a pouco... — Anna consultou o relógio no pulso de Jennifer,

passava um quarto de hora depois das sete. — Antes de qualquer coisa, vamos

apagar essa lareira.

Seguiram logo depois para o local estipulado, esperaram em pé, estavam

inquietos demais para sentar. O trem apareceu e já foi logo desacelerando para
parar na estação, o que facilitou a subida. Anna subiu primeiro, num dos últimos

vagões. Rompeu o cadeado da porta e ajudou todos a subirem. Havia sacas de

tamanhos e conteúdos variados. Algumas bobinas de fio elétrico também

formavam pilhas. Afastaram algumas sacas e se acomodaram para a viagem de


quase quatro horas que viria a seguir.

A manhã começava clara, com poucas nuvens, e o sol morno trazia a

sensação de que um dia mais tranquilo estava a caminho. Anna sentou-se quase
ao centro do vagão, encostada em uma pilha baixa de sacas escuras. Jennifer
checou um a um seus amigos se estavam todos bem, abaixou-se na frente de

Lisa.

— O braço quebrado incomodou muito? Conseguiu dormir? —


Perguntou solícita.

— Depois que Peter me aqueceu a dor foi diminuindo. Consegui dormir


sim.

— Assim que chegarmos, vá ao hospital, ok?

Jennifer levantou e olhou ao redor, confirmando que todos estavam

devidamente acomodados. Olhando para trás percebeu que na verdade faltava

uma pessoa para verificar. Anna foi pega de surpresa quando seus olhares se

cruzaram através do vagão, sem jeito desviou o olhar. Jennifer caminhou na sua

direção, fez menção de sentar-se ao seu lado.

— Está ocupado? — Perguntou, sorridente.

— Você vai me pagar um drinque? — Respondeu Anna.

Jennifer sorriu e sentou, ficaram em silêncio por um instante. Inclinou a


cabeça para frente e olhou para o lado com o cenho franzido para Anna.

— Você não me acordou para meu turno, não foi?

— Não. — Anna respondeu, com um leve risinho sarcástico.

Jennifer voltou a se recostar na pilha.

Anna continuou:

— Achei que você não se lembraria de nada hoje.

Jennifer mexia numa lasca de madeira que soltava-se do chão à sua


frente, tentando arrancar. Novamente ficaram em silêncio.
— O que você fez... Por nós, por mim... Foi incrível.

— Fiz o que qualquer pessoa que se importa com os outros faria. —


Anna respondeu depois de alguns segundos em silêncio.

— Como estão seus ombros?

— Sob controle.

— Achava que hoje em dia não existisse mais pessoas assim. — Jennifer

parou de mexer no chão, se ajeitou, olhou para Anna, que ostentava um ar

cansado e pensativo, olhando para baixo. — Obrigada por não desistir de nós...

Por ter lutado por nós... E por cuidar de mim, me aquecido... Mesmo que tenha

te custado um bico de papagaio ou uma hérnia. — Finalizou com um sorriso.

Anna correspondeu o olhar por alguns segundos, abriu seu casaco e tirou

a adaga de Jennifer, entregando-a.

— Tome, precisei pegar emprestada durante a noite.

— Fique. Você perdeu as suas ontem.

— Não tem problema, tenho outras.

Jennifer guardou em sua bota.

— Você coleciona?

— Não, as fabrico.

— Sério?

— Tenho uma oficina de forja em casa. Meu pai era cuteleiro e me


ensinou a fazê-las.

Jennifer animou-se com a abertura de Anna, inclinou-se na direção dela


para continuar a conversa.

— Caramba, que legal! E você faz todo tipo de facas ou somente adagas?

— Basicamente adagas, pequenos punhais, espadas, shuriken, aquelas

estrelas com pontas afiadas, sabe?

— Sim! Estrelas ninjas são ótimas! É tudo para uso próprio?

— Onde eu usaria centenas de facas? Eu as vendo.

— Deve ser um bom negócio nos dias de hoje, não?

— Já foi melhor.

Jennifer voltou a se encostar nas sacas.

— E o que você faz quando não está forjando lâminas? — Tentava


reacender a conversa.

— Coisas... Sei lá. Leio.

— Gosta de sair para fazer coisas no final de semana?

— Raramente. Às vezes algum bar na Cidade Velha.

— Eu prefiro os pubs do Centro. Não que você tenha perguntado.

Anna desfez o semblante sério, deu uma boa olhada para Jennifer.
Ajeitou a posição, subiu uma perna. Se deu conta da recuperação rápida que
Jennifer teve, sentada ali do seu lado com um olhar brilhante, parecia cheia de
vida.

— Qual seu pub preferido? — Perguntou Anna, com um tom mais

descontraído.

— Nós costumamos ir ao O’Reyes, um pub costa-riquenho.

— Costa-riquenho?? — Anna parecia incrédula.

— Sim, o dono é o Oscar. Libera uns chopes de vez em quando. E nunca

nos expulsa! — Falou rindo. — Ele é um cara legal... Você curte chope, não?

— Sim.

— É canadense, mas é bom, acredite. O famoso chope Bordeaux.

Anna não conseguiu segurar o riso, olhou com surpresa para Jennifer.

— Jesus Cristo, isso está errado em tantos níveis... Um pub costa-

riquenho que vende chope canadense, chamado Bordeaux!

— É... Você falando assim, tudo junto, até que soa estranho. Não tinha

me dado conta.

— Sério?

— Eu vou lá para beber, e não para fazer uma análise geopolítica do

local.

***

Com a guerra, as fronteiras entre os países aliados se esmaeceram. Por


fim, os Estados Unidos, que sempre tiveram um controle rigoroso da entrada de

estrangeiros, faziam um apelo para que pessoas de outros países migrassem para

lá, já que sua população havia sido dizimada e muitos americanos fugiram para

países menos visados pelo eixo do mal.

Essa abertura resultou numa miscigenação em grande escala, além de um


grande choque cultural. Apesar da sensação de insegurança e pouca

credibilidade no governo, havia um pensamento uníssono de reconstrução em

toda a América. O imigrante que antes era visto com certo repúdio, agora era

visto como os novos pilares da reedificação do país.

Mas o mundo parecia ainda assustado demais para reagir, as grandes

nações se reerguiam num ritmo lento demais.

***

A paisagem bucólica não mudava muito no decorrer da viagem: campos

que um dia já foram plantações, agora estavam abandonados. Algumas casas que
viraram escombros, outras parcialmente destruídas, contrastavam com aquelas

que ficaram de pé e, por serem habitadas, mantinham um bom aspecto.

Anna percebeu que o destino se aproximava, era meio-dia e as nuvens


haviam ficado cada vez mais distantes, deixando o céu de anil se mostrar por
completo.

— Onde pulamos? — Becca questionou, enquanto se levantava. Deu

uma olhada pela porta.


— Pulem comigo. Tanto faz se pularem um pouco antes ou depois, a vila
de vocês não ficará mais perto. Pelo menos assim eu oriento vocês até chegarem

na minha casa. E de lá acredito que vocês conseguem achar a rodovia sozinhos,

não conseguem? — Anna respondeu, terminando a frase como um


questionamento para Jennifer.

— Ah sim, claro. Da sua casa sabemos continuar até nossas casas, meu

sentido de localização interno é excelente.

Anna deu o sinal e todos pularam, em fila. Fizeram o mesmo caminho do

dia anterior entre a vegetação rasteira, chegando até a casa dela.

Chegaram até o pátio frontal da casa, um a um foram agradecendo Anna,

com um aperto de mão.

— Não precisam ir pelo campo para chegar a rodovia, peguem esse

caminho aqui na frente da minha casa, vai dar na estrada. — Anna orientava,

apontando para uma pequena estrada de chão batido, que saia do seu portão de
ferro.

— Você foi nossa heroína, você sabe disso, não sabe? — Bob segurava a

mão de Anna, após cumprimentá-la.

— Seremos eternamente gratos pelo que fez por nós. Prometo que vou

trazer um bolo aqui para você qualquer dia desses. — Becca emendou, rindo.

— Bolo? Você não sabe fazer nem ovo cozido. — Jennifer rebateu.

— Jenny, estou tentando ser gentil, ok? — Becca disse e afastou-se para
que Jennifer se despedisse também.

— Não sei fazer bolo, mas obrigada por tudo, Anna. — Por fim, Jennifer
se despedia, lhe estendendo a mão. — Enfiamos você numa baita enrascada e

mesmo assim você nos ajudou até o fim, vou indicar seu nome para o Nobel da

Paz.

— O que importa é que todos estão de volta, são e salvos, com ou sem
bolo. Voltem para suas casas e continuem alertas. Pensem duas vezes antes de

desafiarem uma milícia de Titans. — Anna terminou falando um pouco mais

alto, para que todos ouvissem.

O grupo abriu a portão alto e pesado que dava para a estradinha,

iniciando a caminhada de volta, que seria de quase quatro quilômetros. Não

tinham pressa em seus passos.

Haviam caminhado apenas duzentos metros, quando Jennifer parou e

olhou para trás incomodada.

— Vão andando, esqueci uma coisa lá, já volto. — E saiu correndo de


volta à casa, Anna já havia entrado.

Jennifer entrou ofegante, viu Anna saindo da cozinha com uma garrafa
de água na mão.

— O que houve? — Anna perguntou, surpresa.

Novamente Jennifer deu um abraço urgente, quase sofrido, em Anna,


como da vez que ela havia achado que a gárgula a matara.
— Obrigada... — Falou baixinho, ainda a prendendo com os braços às
suas costas.

Quando se soltaram, Jennifer a encarou com uma expressão urgente.

— Vou ver você de novo? — Perguntou.

— Se você assim quiser, claro. — Anna respondeu, com uma voz branda.

— Fiquei bastante curiosa para conhecer o pub costa-riquenho.

— Fechado então. É o melhor chope canadense que você irá provar.

— Onde na vila que você mora? Na parte baixa?

— Sim, o último prédio cor de tijolo da rua principal.

— Ok então, eu passo nesse sábado e te pego.

— Mas você disse que não tem carro.

— E não tenho.

— Já sei, você tem um cavalo, não é? Cavalos e espadas. — Jennifer


imitou o gesto de cortar o ar com uma espada.

— É... Digamos que sim.

Jennifer saiu correndo de volta aos seus amigos. E a partir daquele dia
seu mundo nunca mais seria o mesmo.
Capítulo 2 - Beatles

Tempos de falta de comunicação.

Além da dificuldade da prestação dos serviços básicos, eram tempos de

precariedade na tecnologia. Centros tecnológicos, torres, backbones, a maior

parte foi destruída no decorrer dos cinco anos de conflito. O pouco que restou,
juntamente com o que foi reconstruído, oferecia serviços de telecomunicação e

internet bastante debilitados e caros. Linhas telefônicas já não existiam mais.

Internet e celular custavam o mesmo de quando surgiram, apenas pessoas mais

abastadas tinham acesso a estes serviços com qualidade.

***

Sábado chegou a passos lentos. No início daquela tarde Jennifer bateu na

porta de Becca.

— E aí vizinha, vai no Oscar hoje à noite? — Jennifer perguntou,

entrando no apartamento.

— Tenho planos. E você? Vamos rachar um táxi ou Bob vai passar aqui?
— Becca se espojava no sofá, vendo TV.

Becca era uma pequena garota da mesma idade de Jennifer. Haviam se


conhecido ainda na infância, nas aulas de música que faziam. Queixo
proeminente, cabelos longos e castanhos. Olhos pequenos, também castanhos,

com uma luz esverdeada.


— Vou ficar te devendo essa, tenho carona. — Jennifer se atirou numa
cadeira próxima ao sofá.

— Alguém que eu conheça?

— Ahan.

— Sério? Alguma frequentadora do pub?

— Não. Quer dizer, ainda não...

— Alguém do porto?

— Não.

— Desembucha logo, Jenny.

— É surpresa. — Jennifer respondeu com um sorriso cínico.

— Para você não querer falar é porque deve ser alguma encrenca ou

alguém que eu não vou com a cara.

— Temo que a senhorita esteja equivocada.

— Não vai se meter com garota problema de novo, hein?

— Fique tranquila, é só uma nova amiga que está a fim de conhecer o

pub, não há interesses ilícitos de minha parte, nem da dela.

— Sei, olha como estou acreditando em você.

— Não, sério. É só uma nova amiga mesmo, sem segundas intenções.

— Alice vai. Da outra vez ela ficou perguntando por você a noite toda.
Jennifer ficou em silêncio, vendo a TV.

— Ouviu o que eu disse? Alice vai estar lá.

— Ouvi sim. Ainda estou me decidindo se teremos mais algum round.


Mas acho que não... Ela está entendendo nossas noites casuais de outra forma.

— Ela está entendendo que vocês estão quase namorando, enquanto você

está entendendo que ela é uma amiga com benefícios.

— É... Eu sei. Aí que mora o perigo. Conclusões precipitadas. As pessoas

estão muito carentes hoje em dia, não acha?

— Deve ser o pós-guerra.

— Todo mundo culpa a guerra por tudo, até quando chove dois dias

seguidos, é culpa da guerra!

Passaram algum tempo vendo TV, Jennifer tentava conter a euforia de

rever Anna depois da aventura que haviam passado. Foi uma tarde dividindo

olhares entre a TV e o relógio, torcendo para os ponteiros voarem até a noite.

Por volta das dez horas Jennifer já estava pronta, ia a janela de dez em
dez minutos e voltava para frente da TV. — Ela não vem... Ela disse aquilo por
educação... — Pensava.

Até que uma buzina foi ouvida, correu à janela e viu uma moto preta
esportiva parada embaixo do seu prédio, uma pessoa ainda com o capacete

olhava para cima.


Desceu os dois andares de escadas e encontrou Anna, já sem o capacete,
montada na moto. Deu uma boa olhada e sorriu.

— Você não tinha um cavalo? — Jennifer exclamou, olhando para a

moto.

— Noventa cavalos, para ser mais exata. — Falou, entregando um

capacete negro a Jennifer.

Jennifer sentiu-se estranhamente bem ao ver Anna, que mantinha um

sorriso tímido nos lábios. Parecia ainda mais encantadora de quando se

conheceram, estava agora com uma jaqueta de couro preta, e mantinha calça e
botas pretas.

— Você sabe onde fica o pub? — Questionou Jennifer, enquanto

colocava o capacete.

— Imagino onde seja. A propósito, você fica muito melhor sem aquele

sangue todo.

— Obrigada por perceber. — Respondeu já montando na garupa.

Jennifer teve que segurar mais firme com a arrancada forte que Anna deu
com a motocicleta.

Adentraram devagar o pub, que tinha uma iluminação baixa e letreiros


luminosos coloridos. Haviam quadros e pôsteres de cervejas irlandesas e

inglesas nas paredes, uma grande bandeira irlandesa, contrapondo com algumas
flâmulas coloridas com a bandeira da Costa Rica. Jennifer procurava com a
cabeça por seus colegas, os avistou sentados numa mesa retangular, com um

banco acolchoado preso a parede.

Além de Becca, Bob era o outro componente daquela noite de aventura, e

haviam quatro outros amigos. Becca levantou-se quando as viu, sorriu

balançando a cabeça e cumprimentou Anna. Ela notou que um integrante da


mesa não a cumprimentou, ao invés disso, cochichou com o colega. Ela já havia

percebido alguns olhares tortos vindos de outras mesas também.

— Veja só, se não é nossa heroína preferida! — Exclamou Bob,

quebrando o gelo.

— Estou começando a gostar dessa alcunha. — Anna respondeu

timidamente.

Finalmente sentaram, Jennifer a olhou de relance, não imaginara que

aquela mulher destemida pudesse ficar tímida diante de uma socialização tão

corriqueira. Percebeu então que talvez não fosse tão corriqueira assim para
Anna, que talvez estivesse acostumada a enfrentar feras em locais inóspitos, mas

não pessoas comuns num pub.

— Vou buscar uns chopes, já volto. — Jennifer dirigiu-se ao balcão do


bar, e voltou sorridente com duas canecas nas mãos.

— Esse é o fantástico chope canadense que você mencionou?

— O fantástico é por sua conta e risco. Vamos, experimente! — Falou

Jennifer animada.
Deu um longo gole, e olhou séria para caneca.

— Nada mal! — Anna falou, virando-se para ela.

— Costuma ficar melhor depois do sétimo.

— É seu número cabalístico?

— Digamos que seja meu divisor de águas. Na verdade, é quando fico


mais extrovertida.

— Mais?

Quando Anna saiu para ir ao lavatório, Becca olhou com os olhos

arregalados para Jennifer, com surpresa:

— Fala sério, Jenny!

— Que foi?

— A híbrida eremita??

— Que feio julgar as pessoas, Becca...

— Não estou julgando, só estou surpresa com sua convidada misteriosa,


nunca passaria pela minha cabeça.

— Ela foi tão legal com a gente, parece ser uma pessoa interessante. Por
que não chamar para tomar um chope?

— Quem sou eu para discordar... Bom, você sabe... Você deveria se


manter afastada de híbridos. Principalmente você.
— Mas eu gostei dela.

— Eles não gostam muito de humanos.

— É, deu para ver como ela odeia nós humanos. — Debochou Jennifer.

A convivência entre humanos, Titans e híbridos não era pacífica, havia


uma hostilidade velada entre todos. Mas principalmente os híbridos, por ser uma

minoria e não pertencerem inteiramente a uma espécie, eram malvistos e

evitados.

Anna voltou à mesa, Becca ficou em silêncio.

Aos poucos todos ficaram mais à vontade, a conversa fluía na mesma

velocidade dos canecos de chope que vinham à mesa. Anna já esquecia da

discriminação que sua subespécie vivenciava, queria apenas consumir a presença

de Jennifer, vorazmente.

— Adorei essa decoração, meio britânica, meio costa-riquenha, a mistura

não ficou ruim. — Anna prosseguia no papo.

— E você estava com preconceito.

— Não estava com preconceito, só achei esse monte de nacionalidades


um pouco confuso. Eu vi um pequeno palco, confesso que estou um pouco

receosa sobre que tipo de música é tocada ali.

— Japonesa minimalista.

Anna olhou assustada.


— Não, estou brincando... O melhor do britpop e brit rock!

— Ah bom... Que dias que tem apresentações?

— Se dermos sorte, mais tarde veremos alguma bandinha. Acho que


alguma cover dos Beatles.

— Beatles? Quem bom, adoro Beatles. Tive a grande sorte de ir num

show deles.

Jennifer apenas riu, achando que era brincadeira. Mas percebeu que Anna

não riu, arrematando a possível piada. Deu-se conta que era possível sim que ela

tivesse ido ao show, porque os híbridos, assim como os Titans, envelheciam mais

devagar. Seu semblante mudou instantaneamente para sério na hora que se deu
conta desse detalhe. Anna percebeu o que acontecera.

— Jennifer, quantos anos você acha que tenho? — Perguntou, a

encarando, apoiando o queixo na mão. — Não seja educada, fale exatamente o

que eu aparento para você.

— Ok, é para ser sincera, não é?

— Por obséquio.

— Trinta... Tipo assim, mais ou menos. Ou uns vinte e nove... Oito. Por

aí.

— Cinquenta e nove. Completos em maio.

Jennifer só conseguiu olhar para ela, com um sorriso aberto.


— Eu me exercito... — Completou.

— Caramba... — E continuou rindo. — Então você foi mesmo ao show


dos Beatles?

— Em 1966. Meu pai era um fã incondicional, e eu ouvia os discos com

ele. Eu tinha só treze anos, mas deu um jeito de me levar com ele. Meu pai foi

um visionário: ele falou que não poderíamos perder porque seria a última turnê
deles. E foi mesmo.

— Mas com treze anos você aparentava ter quantos?

— Acho que treze. Esse esquema do retardo dos sinais de

envelhecimento e tal, só surge na puberdade.

— Cara, isso é incrível... E surreal.

— Está me achando um ser de outro planeta, não está?

— Não, claro que não. Só estou meio estupefata. — Jennifer ainda sorria,

surpresa.

— Ok, sua vez de me contar algo que me surpreenda.

— Ah não, vou ter que decepcionar você dessa vez...

— Tá, não precisa me surpreender, basta ser algo interessante, que eu


deveria saber.

Jennifer tinha algo que se contasse, com certeza Anna ficaria ainda mais
estupefata que ela ficara. Ou ela talvez não acreditasse. Ou saísse correndo.
Claro que ela não arriscaria contar.

— Ok, vou falar. Eu consigo encostar minha língua no nariz. — Brincou.

— Ah é? Prove.

— Você vai achar que estou me exibindo.

— Sim, essa é a intenção, não é?

— Tá bom, lá vai.

Anna tentou ficar séria, sem muito sucesso. Jennifer também.

— Não, espera, rindo eu não consigo. Espera, deixa eu fazer cara de

séria.

E Jennifer conseguiu então o feito.

— Viu só?

— Vi sim. Incrível. Você poderia ganhar a vida com isso sabia?

A noite voou sem que percebessem a passagem do tempo. Alguns amigos


já haviam ido embora, mas Anna e Jennifer continuavam conversando com

animação.

— Meninas, estou indo nessa. Jenny, amanhã vai ser na minha ou na sua

casa? — Perguntou Becca, se levantando.

— Minha vez. E não esqueça a cerveja.


Depois que Becca saiu, Anna deu um olhar para Jennifer com ar de
curiosidade.

— O almoço. Geralmente almoçamos juntas aos domingos.

— Ah sim, claro...

— Às vezes eu tenho que trabalhar domingo, daí ela leva almoço para

mim no porto.

— E o que você faz no porto? Se não for indiscrição perguntar...

— Não, tudo bem. Não tenho problemas em contar que faço programas.

Anna ficou em silêncio, olhando incrédula para ela, sem ter a menor ideia

do que falar.

— Caramba, você acreditou! — Jennifer explodiu numa risada.

— Você foi bem convincente.

— E você tinha que ver a sua cara...

— Então, o que você realmente faz lá?

— Tecnicamente sou uma despachante aduaneira, mas pode me chamar

de resolvedora de problemas portuários.

— Faz intermediações entre quem chega, quem quer comprar, quem quer

vender...

— Basicamente isso.
— Parece interessante.

— É um tédio sem tamanho...

— E você gostaria de fazer o quê?

— Sei lá, algo com mais ação, menos repetitivo. E menos burocrático.

— Acho que te entendo.

— Você também gostaria de fazer mais do que facas?

— Eu já faço mais do que facas.

— Sério? Conta aí.

Anna analisou o panorama: já estava tarde, já haviam bebido bastante, e

não se sentia segura o suficiente para contar do seu segundo trabalho ali, nem

naquele momento.

— Fica para outro dia.

— Ah fala sério, fala aí, prometo que mantenho segredo. Se você fizer
programas não vou te julgar, palavra de lobinha.

— Você está no sétimo chope, mocinha, acho que não estou preparada

psicologicamente para ver você na próxima fase. — Desconversou.

— Você contou os chopes. Você deve ser virginiana, não é?

— Lembra que falei que fiz aniversário em maio?

— Ah é mesmo. Perdão, minha memória falha depois da meia-noite.


Touro?

— Uhum.

— Teimosa feito uma mula?

— Não, sou uma pessoa prática.

— Eu também sou prática. Praticamente não bebo. — Jennifer ria


despretensiosamente.

— Ok, acho que você entrou no seu número cabalístico. Quer ir para

casa?

— Hum... Acho que quero. Estou recebendo chamados telepáticos da

minha cama.

Pagaram a conta e seguiram de moto para o prédio de Jennifer. Chegando

lá, Jennifer desceu da moto, tirou com dificuldade o capacete, devolvendo-o.

— Você vai ficar bem? — Anna perguntou ainda na moto, tirando

também o capacete.

— Ótima. Mas acho que amanhã Becca vai almoçar macarrão


instantâneo...

— Pobre coitada... Hey, você por acaso tem celular?

— Tenho! Mas não funciona... Tenho um pombo correio, serve?

— É tecnologia demais para minha cabeça, sinto muito.

Ficaram em silêncio por alguns segundos, fixaram um olhar, meio afoito.


— Foi legal você ter vindo... — Jennifer falou, com uma voz mansa.

— Também gostei da nossa noite... E obrigada pelo convite. — Anna


recolocou seu capacete.

— De nada. Disponha...

Jennifer titubeou, e voltou a se aproximar da moto.

— Anna?

— Sim?

— Não suma, não.

— Não sumirei.

— Promete?

— Prometo.

— Tá bom.

— Sábado que vem vai ser minha vez de te levar a algum lugar, o que

acha? — Disse Anna.

— Perfeito.

Anna olhou ainda por alguns segundos o sorriso franco que Jennifer

sustentava.

— Boa noite, Jennifer, fique bem.


Capítulo 3 – O quintal verde

Jennifer acordou com uma almofada atirada em sua direção, havia

adormecido no sofá da sala, um sofá vermelho, desgastado pelo uso.

— Almoço que é bom nada, né?

Becca falou sentando-se no sofá menor, marrom com remendos negros,

ligando a TV. Jennifer levantou e sentou-se vagarosamente, sonolenta, coçando

os olhos.

— Ainda é cedo, vou preparar alguma coisa. — Resmungou.

— Cedo para a janta talvez, já é quase uma da tarde. Por que não dormiu

na cama? Não chegou até lá?

— Sei lá, acho que fui ver TV e capotei. — Terminou a frase se

espreguiçando no sofá.

— Não convidou a senhorita misteriosa para subir para um café ontem?

— O quê? Ah não, claro que não. Sério, ela não é uma dessas garotas que
trago aqui, já falei isso, ela é só uma amiga.

— Então tá... — Becca levantou os ombros.

— Diga, o que você tá a fim de comer hoje? — Jennifer falou, saindo do

sofá.

— Carboidratos. Estou almoçando queijo quente há quatro dias.


— Espaguete de novo então.

O apartamento onde Jennifer morava era pequeno e arejado, com janelas


grandes. Além do seu quarto, havia uma sala com sofás e TV, conjugada com a

cozinha. Era um pouco bagunçado, os móveis não combinavam entre si. Nas

paredes havia pendurado alguns pôsteres de filmes da década de sessenta e


setenta, emoldurados.

— Becca, você não vai acreditar em quantos anos Anna tem! — Jennifer

começava a preparar o almoço.

— Não sei, uns trinta? Peraí, ela tem aquele lance da idade que os Titans
têm?

— Vai fazer sessenta no ano que vem.

— Esse povo é tão bizarro, né? Parece que estão trapaceando o relógio

biológico.

— Eu acho legal. Você não gostaria de aparentar metade da sua idade?

— Acho confuso demais. Imagine só, ela deve ter assistido alguns destes

filmes que estão na sua parede, quando lançaram!

— É... Talvez. Às vezes também acho confuso.

— Você vai vê-la de novo?

— O quê?

— Perguntei se você vai vê-la de novo.


— Provavelmente. — Jennifer respondeu, mas a resposta que passou por
sua cabeça foi ‘o quanto antes’.

— Se Alice tivesse ido ontem, ficaria uma fera.

— Que besteira, por quê?

— Você e Anna conversaram a noite toda.

— No dia que alguma mulher disser o que eu posso ou não posso fazer,

será a quarta guerra. Acredite. Quer café?

— Achei que você estivesse fazendo o almoço.

Jennifer virou-se na direção dela com uma xícara na mão e sorriu.

***

Uma longa semana arrastou-se como uma tartaruga contemplativa. No


porto as coisas estavam tranquilas. Pouco trabalho, poucos navios aportando.

Tirou a quarta-feira para ajudar seus vizinhos que tiveram que desocupar

o prédio recém demolido pela milícia Titan, episódio este que quase custou sua

vida. Jennifer estava frustrada por não ter conseguido evitar que as máquinas
derrubassem suas casas, podia ter recrutado outras pessoas para engrossar o
coro, ou então ter feito barricadas. Mas o sentimento era dúbio quando pensava

que toda aquela aventura, trem, gárgulas, Anna... Nada teria acontecido se não
houvesse daquela demolição.

No final da sexta-feira, saiu para correr, como fazia quase diariamente. Ia


até onde um dia já havia sido sua casa, a três quilômetros do seu lar atual.

Naquela sexta correu no final da tarde, com o sol baixando atrás de si. Mas

mudou o percurso, pegou a rodovia e seguiu o mesmo caminho que o ônibus

amarelo havia tomado na semana passada.

Enquanto corria, tentava recordar-se do que havia acontecido dentro do


veículo. — Meu Deus, foi tão rápido... — Passou pelo ponto onde havia tomado

a decisão de reagir e abordar o segurança e o motorista. Chegou ao local onde o

ônibus havia saído da estrada. Parou e pôs se a observar, ofegante. Ainda eram

visíveis no asfalto duas marcas escuras de pneus. E ela sabia para onde essas

marcas apontavam.

Levou a mão à testa, protegendo os olhos do sol que se esgueirava.

Permaneceu olhando para o horizonte por alguns instantes. Percebeu que a casa
de Anna não podia ser avistada dali. Teve um impulso momentâneo de ir até lá,

mas desistiu, não parecia uma boa ideia aparecer sem avisar. Virou-se, voltou a

correr de volta para casa. Pensou em como não havia sido muito inteligente
quando teve o ímpeto de ir até a casa dela pelo matagal, e não pela estrada que

dava acesso, riu de si mesma.

Jennifer acordou cedo no sábado, contra sua vontade. Tinha um


compromisso logo no início da manhã no porto, com um novo cliente. Passou a

tarde limpando o apartamento, preguiçosamente. No início da noite Becca


apareceu, a convidando para ir num bar em outra cidade.
— Hoje não vai dar, mas semana que vem pode contar comigo.

— Não tá a fim de sair hoje?

Jennifer demorou um pouco para responder, terminava de arrumar a


cozinha.

— Não... É que já tenho um compromisso.

— Ah é? Casual, romântico ou chato? — Becca sorriu.

Jennifer não respondeu de imediato, quando se virou para responder,

Becca interrompeu, como se tivesse acabado de ter uma ideia.

— Não vai me dizer... — Sorriu surpresa. — Você vai sair com a híbrida

de novo??

— Não é legal você ficar a chamando assim, ela tem nome.

— Tá bom... É que ela parece tão... Entediante, com cara de poucos

amigos.

— Quem sabe você mude de opinião. Gostaria de inseri-la no nosso

círculo de amizades.

— Mas ela é uma híbrida, Jenny, não vai ser bem vista, você sabe disso...

— Bom, eu não tenho preconceito com ninguém.

— Você que sabe... Vou lá me arrumar para a noitada. Hoje promete,


disseram que vai ter tequileiro. Ou tequileira, como você preferir. — Terminou
com um sorriso malicioso.
Jennifer se aprontou logo em seguida, no melhor estilo jeans e camiseta.
Ficou alguns minutos frente ao espelho decidindo se prendia ou soltava o cabelo.

Resolveu prender. — É melhor na hora de pôr o capacete. — Pensava.

Ao ouvir a buzina, nem foi verificar se realmente era Anna, vestiu

rapidamente uma jaqueta de couro marrom e desceu as escadas.

— Boa noite, garota. — Anna a cumprimentou graciosamente,


entregando seu capacete.

— E então, qual nosso destino?

— Um lugar com uma boa vista.

Seguiram pelo lado oposto da rodovia, até o que aparentava ser um

pequeno povoado junto ao mar. A guerra parecia não ter chegado até lá, as casas

eram pequenas e simples, mas harmônicas, charmosas, intocadas. Pararam na

frente de um bar rústico, com redes de pesca penduradas em toras de madeira.

Desceram da moto, mas não retiraram os capacetes, logo perceberam que estava

fechado.

— Que pena, parecia um bom bar, podemos voltar outro dia... — Jennifer
amenizava o desapontamento de Anna.

— Suba, vou te levar em outro lugar que também tem uma bela vista, e

com certeza estará aberto. — Anna gesticulou com a cabeça para que montasse
na moto.

Fizeram o caminho de volta e então Jennifer se deu conta de onde


estavam indo. Entraram no caminho que levava à casa de Anna.

— Sua casa. Melhor vista impossível! — Jennifer exclamou ao pararem a


moto, na frente à construção sombria.

— É o melhor que posso proporcionar hoje. Só tenho cerveja americana,

você bebe?

— A nacionalidade para mim é o de menos. — Brincou.

Anna percebeu a dificuldade que Jennifer estava tendo para soltar a tira

do capacete e foi ajudá-la. Sem intenção, tocou de leve na mão dela.

— Seus dedos estão arranhados. — Notou Jennifer.

— Sim. Trabalho braçal.

— Qual, aquele trabalho ultrassecreto?

Anna não respondeu, e finalmente tirou o capacete de Jennifer.

— Venha, me ajude aqui na cozinha.

Do lado da casa havia uma pequena escada de madeira que dava acesso à

praia. Ao lado da escada, um banco antigo de ferro curvado. Sentaram-se nele,


colocaram algumas latas de cerveja no chão, sob o banco.

— Eu acordaria de bem com a vida todos os dias se tivesse esta vista do

meu quarto.

— Você acaba se acostumando.

— Mas nunca deixa de apreciar, não é mesmo?


— Impossível ignorar essa imensidão verde no meu quintal.

— No verão deve ser uma delícia fazer festas aqui.

— Deve. Mas não que aconteça...

Continuavam olhando nostalgicamente para o mar, bebendo suas


cervejas. A noite não estava fria, apenas uma leve brisa vinha de vez em quando

do mar, que estava calmo. Anna olhou de lado, com um ar pesaroso.

— Sinto pelo passeio frustrado de hoje... Estive naquele bar há pouco

tempo, tinha certeza que estaria aberto.

— Não duvido que seja um bar interessante, mas vou ser sincera com

você: não tenho do que reclamar. Tenho ótima cerveja, paisagem e companhia. O

que mais preciso?

Ouvir isso deixou Anna mais à vontade. Permitiu-se olhar sem pressa
para Jennifer, sentada ao seu lado, entretida pelas ondulações do mar.

— Como está seu ombro? — A questionou.

— Furado. Mas já melhor do que semana passada. E os seus ombros?

— Cicatrizando. Foi ao médico?

— Não. Não precisei. Você fez um bom trabalho. — Jennifer refletiu.

— Você teve sorte, poderia ter sido mais para baixo, ou poderia ter
piorado bastante naquela noite. E nem teríamos para onde te levar.

— Tive sorte de ter chegado viva em casa. Na verdade, todos nós


tivemos sorte em invadir a casa da última pessoa solícita da face da terra. Claro
que não pensei isso quando você me deu um mata leão e trancou minha

respiração. Mas eu entendo... Deveríamos ter tocado a campainha primeiro.

Ficaram em silêncio por um instante.

— Eu estava na oficina, que fica anexa a casa. Criei uma passagem dela

para a cozinha. Quando ouvi um barulho fui averiguar. Vi você entrando, na


frente de todos, me posicionei atrás da pilastra e fiquei esperando você passar

por mim.

— E aí deu o bote.

— Certeiro. Não foi?

— Certeiro. Não sei como os outros não saíram correndo em pânico.

Acho que congelaram de medo.

— Eles são seus amigos há muito tempo?

— Mais ou menos. São meus vizinhos. Apenas Becca é amiga de longa


data.

— Ela parece gostar bastante de você.

— Espero que sim, é a minha melhor amiga. — Rebateu Jennifer.

Anna pegou mais duas latas de cerveja e abriu, entregando uma para

Jennifer.

— E seus pais, onde estão agora? — Indagou Anna.


— Já se foram. Durante a guerra.

— Sinto muito... Desculpe falar disso.

— Não, não se desculpe, já não tenho problemas com esse assunto.


Aconteceu com tanta gente, não é?

— Sua casa foi bombardeada?

— Foi incendiada na verdade. Mas isso foi tempos depois. Eles estavam

na universidade trabalhando, jogaram um bom número de bombas. Bom, você já

deve ter visto como ficou lá, não sobrou muita coisa.

— Você perdeu sua mãe e seu pai no mesmo dia?

— Sim...

— Nossa... Sinto mesmo por você... Quantos anos você tinha? — Anna

lançou um olhar doloroso para Jennifer.

— Quase quinze.

— E o que você fez? Não foi morar com algum parente? Tem irmãos?

— Não... Me virei. Não tenho parentes na cidade.

— Se virou com apenas quinze anos? Como conseguiu?

— Já ouviu falar que a necessidade é a mãe da invenção? — Lançou um

sorriso torto para Anna.

Permaneceram caladas por alguns minutos, ambas observavam o mar

serenamente.
— E você tem irmãos? — Perguntou Jennifer.

— Tenho um irmão, Andrew, o caçula.

— Mas não mora com você.

— Não. Eu não sei o paradeiro dele.

— Sumiu na guerra?

— Foi. Mas sumiu por vontade própria. Hoje em dia não faço ideia de

onde ele esteja, nem se está vivo...

— Ele nunca mandou notícias?

— No começo sim, mandava cartas dos lugares onde estava. Sempre um

lugar diferente. Mas não recebo nada há mais de cinco anos.

— Talvez ele tenha desistido de enviar notícias por não ter notícias de
você, já que ele estava sempre em lugares diferentes.

— Essa é a teoria que eu quero acreditar. Mas não é a mais provável...

— Quem sabe um dia ele apareça na sua porta. Ou então você descubra

onde ele enfim resolveu morar. Talvez esteja casado, com filhos... Já pensou?
Você titia.

Anna apenas sorriu de leve. Continuaram bebendo noite adentro,

enquanto a conversa deslizava de forma suave, leve.

— Acho que ainda não encontrei minha vocação. — Desabafava


Jennifer. — Quando era pequena achava que seria cantora ou tocaria em alguma
banda. Teve um tempo que eu queria ser atriz, mas ao mesmo tempo queria ser
detetive.

— Uma atriz detetive talvez?

— Seria uma combinação interessante não acha?

— Combinar profissões é sempre interessante.

— Como você faz...

— Sim, como faço. Mas não é uma profissão, é apenas uma prestação

aleatória de serviço à sociedade.

— Seu segundo ofício?

— Sim. — Anna hesitou um pouco antes de continuar no assunto. — É

algo esporádico.

— Mas pelo jeito que você fala, deve ser mais divertido que seu primeiro

ofício, na forja.

— É mais perigoso.

— Quase tudo que é divertido é perigoso, não é?

— Quase tudo... São serviços arriscados, é isso que eu faço.

— De qual tipo? Limpar vidraças de arranha-céus?

— Não. Mas isso seria divertido também. — Rebateu Anna.

— Você é matadora de aluguel?


Anna riu.

— Agora você está um pouco mais quente.

— Estamos brincando de quente ou frio? Adoro!

Anna olhou fixamente para Jennifer, e continuou.

— Eu tenho um amigo que me repassa algumas missões. Geralmente


serviços noturnos. Como pode imaginar, não são coisas lícitas.

— Está começando a ficar interessante. Que tipo de coisas?

Anna se despojou no banco, se inclinado para trás, antes de continuar.

— Às vezes é apenas alguma conversa mais séria com alguém, para obter

informações para terceiros. Às vezes preciso pegar de volta alguma coisa que foi

furtada. Ou então sabotar alguma ação criminosa, dar alguns sustos, evitar

alguma coisa.

— E às vezes as coisas esquentam.

— Sim. Alguns casos mais complicados envolvem resgate de algum

refém, ou silenciar alguém...

— Você mata essas pessoas??

— Não. Eu evito esse tipo de serviço.

— Mas já matou, suponho.

— Não é meu objetivo.


— Nossa, deve ser uma adrenalina e tanto, não?

— É perigoso, cansativo, e pode ficar violento. Uma boa aventura às


vezes. Mas nem sempre sai conforme o planejado.

— Me leva junto qualquer dia desses?

— Claro que não. — Respondeu rispidamente.

— Quando aparecer alguma missão mais leve, me leva vai. Prometo não

atrapalhar. Fico na sua retaguarda.

— Jennifer, é realmente perigoso, não é diversão. — Anna olhava séria.

— Eu sei que não, eu vou e ajudo você, te dou cobertura, sei lá, alguma

coisa do tipo. Me leva vai.

— Não.

— Tá, não precisa decidir agora, pense sobre o assunto.

— Não tenho o que pensar, sério.

— Já matou outras gárgulas? — Ignorou Jennifer.

— Já... Alguns.

— E Titans?

— Somente Titans. Eu só aceito missões contra Titans que pertencem a


milícias ou que prestam algum serviço a eles.

— Por quê?
— É minha condição. — Desconversou.

— Nunca fez nada contra humanos? Nem híbridos?

— Não. Milícias de Titans são a escória da sociedade, não acha?

— De certa forma... São sim. Eu gostaria de dar uma boa surra naqueles
Titans que derrubaram o prédio dos meus amigos.

— Quem sabe um dia eles caiam na minha lista...

— Daí você TEM que me levar ok?

— Prometo pensar no assunto.

Jennifer deu um sorrisinho vitorioso e espojou no banco, bocejando.

— Você parece com sono. — Anna respondeu, alguns minutos depois.

— Precisei acordar cedo hoje, um saco.

— Levo você em casa. Quer ir?

— Por mim ficaria aqui até o sol nascer, mas o sono está pegando.

— Vamos, vou lá pegar os capacetes.


Capítulo 4 – A primeira missão a gente nunca esquece

Sexta-feira chegou e Jennifer não parecia animada em atender o convite

de Becca para sair e beber. Quando Anna a deixara em casa no sábado que

passou, não havia prometido nem mencionado nenhum outro compromisso com

ela.

Durante a semana havia dedicado várias horas relembrando a conversa

que havia tido naquela noite junto ao mar, se algo que dissera poderia ter

causado algum incômodo.

— Amanhã, amanhã vamos ao O’Reyes e prometo beber todas com


você. — Respondeu para Becca, quando esta bateu à sua porta no início da noite,

a convidando.

Vestiu seu velho moletom cinza que usava para dormir e pôs-se embaixo

do edredom, no sofá, para ver TV. Era quase meia-noite, Jennifer iniciava um

cochilo, quando foi acordada com o som de uma buzina vindo lá de baixo.

Jogou o edredom de lado, que voou do sofá, e correu para a janela. O

coração bateu acelerado, de susto e surpresa. Enxergou Anna, com o capacete


em punho, olhando para cima. Calça e botas pretas como de costume, casaco de

couro curto, com uma blusa cinza por baixo, e um lenço preto no pescoço. Lá do
alto, seus cabelos pareciam negros como aquela noite.

Gesticulou com o dedo indicador, pedindo um minuto. Prendeu o cabelo,


vestiu-se rapidamente com sua calça e jaqueta jeans, moletom verde com capuz,

tênis colorido.

Jennifer chegou ofegante e Anna lançou um sorriso culpado.

— Te acordei?

— E quem se importa? — Sorriu Jennifer.

— Vamos, coloque e suba. — Anna lhe entregou o capacete.

— E eu poderia saber onde vamos?

— Te conto quando chegarmos.

Seguiram pela rodovia até a cidade vizinha. Entraram numa rua cheia de

galpões e pequenas fábricas, algumas aparentemente desocupadas. Anna parou a

moto ao lado de um galpão vazio, o telhado de zinco havia despencado.

— Chegamos? O que tem nesse galpão fantasma? — Questionou

Jennifer, enquanto descia da moto e dava uma boa olhada ao redor.

— Aqui nada, apenas um bom esconderijo para a moto.

— Não vai me dizer que... Estamos numa missão?? — Falou eufórica.

— Você não me pediu para te levar? Aqui estamos. E deixe o capacete


em cima do banco.

— Porra, você me trouxe mesmo!

— Tem certeza que quer continuar? Você pode esperar aqui se não

estiver segura o suficiente.


— Tá brincando? Nunca estive tão pronta! Qual é nossa missão secreta?

— Recuperar um objeto, de uma milícia.

— Roubado?

— Sim... Dependendo do ponto de vista...

— Qual é o objeto?

— Uma mala de pequeno porte, preta.

— O que tem dentro?

— Oitenta mil. Dinheiro de extorsão, que para mim é a mesma coisa que

dinheiro roubado.

— E como você tem certeza que esse dinheiro ainda estará dentro desta

mala? Pode ter ido para um cofre. Ou fizeram algum pagamento...

Caminhavam cuidadosamente por trás dos galpões, Anna observava


atentamente.

— São as outras possibilidades.

— E se isso tiver acontecido?

— Vamos embora sem o dinheiro. Nem sempre é possível concluir uma


missão.

— Realmente você é uma mulher prática.

— Shhhh... Tome, guarde essa arma com você. — Sussurrou Anna,


entregando uma pistola para Jennifer. Colocou as duas mãos nos ombros dela,
para fazer o último sermão.

— Mas só use em caso de emergência, real emergência. — Frisou. — É

aqui que entramos. Escute: você vai ficar atrás de mim o tempo todo, entendeu?

Não é na frente, do lado, nem mais ou menos do lado, é atrás de mim. Pelo
tamanho do lugar deve ter no máximo um ou dois seguranças tomando conta.

Talvez alguns cachorros. A tesouraria fica nos fundos. Entramos

silenciosamente, procuramos a mala apenas nesta sala, e se não encontrarmos em

cinco minutos, saímos. Pelo mesmo lugar. Alguma dúvida?

— Se aparecer alguém?

— Deixe comigo. Eu neutralizo. Você, apenas fique...

— Fico atrás de você, ok, entendido.

Anna manteve o contato visual, hesitante.

— Não quer me esperar na moto mesmo?

— Não. — Respondeu Jennifer com convicção.

— Não vou me arrepender por ter trazido você?

— Também não.

— Veja, se eu levantar a mão direita, você para imediatamente, fica

imóvel, estática. Se eu apontar para algum lugar, significa que quero sua
vigilância focada naquele local. Entendido?
— Totalmente. Algo mais?

— Quando eu disser corre, você corre. Corre pra valer, mais que o
Forrest Gump, está claro?

— Claro como água.

Anna abriu um cadeado e adentraram o galpão, uma construção de médio

porte, feita de blocos de concreto, sem pintura. Guardou a chave mixa que havia

utilizado e começou a caminhar, empunhando uma adaga. Seguiram passo a

passo por um corredor estreito, cercado de divisórias brancas e três portas pelas

laterais do caminho, até chegarem numa porta aberta no fim do corredor, que
dava para um espaço amplo, no cerne do prédio.

Neste espaço havia pouca iluminação, parecia um labirinto de pallets e

caixas de madeiras. Anna checou todo o local até onde sua visão alcançava, e

gesticulou para que Jennifer a seguisse. Contornaram vagarosamente as caixas,

abaixadas, e atravessaram o salão. Do outro lado havia duas portas, novamente


em divisórias de madeira branca. Escolheram a porta da direita, Anna girou a

maçaneta e percebeu que não estava trancada. Logo, imaginou, que se a outra
porta estivesse fechada com chave, teria mais chances de ser a tesouraria. E foi o

que aconteceu, Anna arrombou silenciosamente a fechadura da segunda porta, o


ambiente também estava escuro, com poucos raios de claridade natural

atravessando as persianas, como dedos finos e compridos de luz.

Após dois ou três minutos procurando pela mala, Jennifer forçou a porta
de um armário de aço e encontrou o objeto procurado, fazendo um pouco de

ruído.

— Achei! — Sussurrou Jennifer, feliz.

— Shhhh... — Anna apenas indicou a porta, com a cabeça.

Anna saiu na frente, Jennifer seguia atrás, o mais próximo possível dela,

e carregava a pequena bagagem, agarrando com as duas mãos contra o peito.

Foram atravessando lentamente o labirinto no caminho de volta, cautelosas.

Devido a escuridão, algumas caixas pareciam apenas sombras. Anna

apontou para o lado oposto de onde estavam, para que Jennifer ficasse alerta.

Chegaram até o final do espaço amplo, Anna parou ao lado da porta aberta,
inclinou a cabeça e deu uma olhadela para o corredor afunilado que teriam que

atravessar. Podia ver três portas fechadas ao longo do corredor, todas elas com

uma abertura em vidro no alto, passariam na frente destas portas.

Caminharam pela frente da primeira porta fechada, abaixando-se por

causa da janela de vidro. Quando estavam passando pela segunda porta, uma luz
se acendeu na terceira porta, vindo do interior da sala a que dava acesso.

Jennifer, assustada, exprimiu um palavrão curto e abafado, que faz com que
Anna se virasse rapidamente, colocando a mão em sua boca demandando
silêncio.

Com a mão ainda tapando a boca de Jennifer, Anna se virou e observou

atentamente a porta acesa.


— Passe na frente da porta, eu fico e pego ele de surpresa, por trás.

— Mmumumm mmm.

Jennifer grunhiu algo indecifrável, então Anna a soltou.

— Passo me abaixando? — Enfim conseguiu falar.

— Não, de pé, para que ele o veja.

— Eu vou ser a isca?

— Apenas vá.

Jennifer caminhou lentamente pela frente da porta e ficou aguardando

próximo à saída. Alguns segundos depois a porta se abriu e um segurança saiu

com uma arma nas mãos, se virando na direção de Jennifer. Era um homem de

meia idade, alto e magro, com os cabelos grisalhos nas laterais. Anna o agarrou

por trás, aplicando uma gravata. Ele lutou tentando se desvencilhar, mas foi

ficando sem ar e caiu sufocado, por fim.

— Você o matou?? — Jennifer se aproximou, aterrorizada, apontando a

arma para o homem caído no chão.

— Só está desacordado. E guarde a arma. Vamos sair logo, esse desmaio


não vai durar muito tempo.

Seguiram de moto até a casa de Jennifer. Agarrada firmemente à cintura

de Anna, tremia por causa da adrenalina.

Ela desceu e entregou a valise, depois prendeu seu capacete na lateral da


moto.

— Foi como esperava? Parece um pouco assustada. — Perguntou Anna.

— Foi moleza. Minhas mãos tremendo é apenas ilusão de ótica.

— Vai querer ir novamente ou foi risco demais para você?

— Quero ir em todas! Sério, eu prometo que não faço barulho.

— É arriscado garota, não é só aventura. Mas prometo pensar a

respeito... Vai ficar bem?

— Vou. Mas sei que não vou dormir tão cedo... Com toda essa adrenalina

circulando no meu corpo. Já sei! Sobe comigo, ficamos lá conversando até meu

sono vir. Que acha?

Anna demorou para responder.

— Tá bom, te faço um pouco de companhia. Mas se você não dormir até

o sol nascer, eu desisto, ok?

— Se você cantar algo quem sabe eu durma mais rápido. — Respondeu

rindo, já subindo as escadas.

Chegaram até a porta do seu apartamento.

— Só cuidado para não fazer barulho, pode acordar meu marido e meus

filhos. — Disse Jennifer, enquanto colocava a chave na fechadura. Anna apenas


olhou atônita para ela.

Jennifer abriu a porta, retribuiu o olhar e explodiu numa risada.


— Moro sozinha, pode fazer barulho se quiser. Entre, fique à vontade. —
Completou, rindo.

Anna quase riu.

— Pode não parecer, mas estou rindo muito. Por dentro.

— Mas você precisava ter visto a sua cara assustada... — Jennifer se

encaminhou a cozinha. — Quer beber o quê?

— Somente água mesmo. — Respondeu, sentando no sofá, olhando ao

redor.

Voltou à sala, entregou um copo à Anna. Ligou a TV e sentou-se no sofá

também, ao lado dela.

— Bem-vinda ao meu cafofo! Não chega aos pés de sua mansão, mas dá

para o gasto.

— Gostei da decoração. — Falou apontando para os pôsteres de filmes

emoldurados nas paredes.

— Legal né? Nem parece que começou como uma solução para esconder
as manchas de infiltração...

— Mora aqui há muito tempo?

— Uns cinco anos. Becca me chamou para vir para cá, ela mora aqui na

porta da frente.

— Deve ser bom ter vizinhos.


— Você nunca teve não é?

— Nunca.

— Não se sente só naquela casa imensa?

Jennifer se via novamente instigada em saber mais sobre Anna, era


inevitável. Tudo que Anna falava, Jennifer absorvia como informações

preciosas, como gotas da sua existência. Não era um desejo consciente, mas

como se desvendar aquela mulher misteriosa e tão serena fosse seu novo

objetivo de vida. Talvez ela visse em Anna uma fuga da mediocridade que sua

vida havia se tornado.

— É como o mar no meu quintal, já me acostumei.

— Mas não há nada que possa ser feito com o mar, porém viver sozinha é

uma escolha.

— Exatamente, é uma escolha.

Jennifer entendeu o que ela quis dizer, mas não compreendia o porquê.
Quem escolhe viver só?

— E essas missões, qual é o lance? É pela grana ou para animar suas


noites?

— Tem bons pubs na cidade para animar as noites, não acha? E a grana
não é lá grande coisa. A propósito, estou devendo sua parte do trabalho de hoje.

— Não, sem sombra de dúvidas estou nessa somente pela aventura.


Compre cervejas para nós com minha parte. Por falar nisso, você quer uma

cerveja?

— Estou bem com a água.

Jennifer tentou prestar atenção no filme que passava, mas logo quebrou o

silêncio.

— Qual a missão mais chata que você já se meteu?

— Geralmente as de monitoramento são um pouco entediantes.

— Observa o que?

— Pessoas. Movimentação. Movimentação de pessoas. Ou a ausência

delas.

— E a mais perigosa?

Anna refletiu um pouco, antes de responder, hesitante.

— Já me meti em alguns apuros...

Mas Jennifer não se contentaria com sua resposta vaga.

— Já se feriu?

— Inúmeras vezes.

— Gravemente?

— Não. Próximo disso, talvez.

— Já levou tiro?
— Alguns... Mas nenhum certeiro.

— Já matou humanos?

— Espero que não.

— Já levou outras pessoas com você?

— Não, você foi a primeira. Inclusive... Sinta-se lisonjeada.

Jennifer sorriu como uma criança que fez algo errado mas não se

arrepende.

— Sério? Que honra!

— Que desatino, isso sim...

— Não fale assim, deu tudo certo, não deu?

Anna a olhou de relance.

— Às vezes dá errado.

— Mas é melhor ter alguém para ajudar e fazer companhia, não acha?

— Deixa pensar... Ãhn... Não. — Retrucou Anna.

— Mas imagina só, você sozinha, contra vários brutamontes...

— A noite enfraquece os homens. — Interrompeu Anna.

— Eu sei dirigir motos.

— Bom para você.

— Já dirigi uma parecida com a sua.


— Você tem idade para isso?

Jennifer abriu a boca, indignada.

— Quantos anos você acha que eu tenho?

— Oito? Nove?

Jennifer balançou a cabeça para os lados, sorrindo.

— Tenho vinte e dois.

— E juízo de dez?

— Me recuso a continuar nesse assunto. — Disse, com convicção.

Jennifer virou-se, ajeitou uma almofada e deitou no sofá, passando as

pernas por cima das pernas de Anna.

— Posso? — Indagou Jennifer, antes de abaixar as pernas nela.

— Claro, sinta-se em casa. — Brincou. Ajeitou-se no sofá também,

desconfortável.

— Já vi esse filme, ela tem câncer e morre no final. — Falou Jennifer já


sonolenta, com dificuldade em manter os olhos abertos.

— Hum... Obrigada pelo spoiler.

Pouco a pouco o sono foi vencendo a determinação de Jennifer em


continuar acordada, queria aproveitar a agradável visita, mas enfim adormeceu.

Anna não conseguiu simplesmente ir embora. A observou dormir por


alguns minutos. Viu-se velando seu sono, examinando cada traço da sua
fisionomia. Lembrou de uma frase que havia lido certa vez, ‘não se pode odiar

ninguém que você tenha visto dormindo.’ Imaginou que realmente seria

impossível odiar aquele ser que a encantara. Mas então percebeu que estava
perdendo o domínio sobre suas ações. Tantas regras quebradas em tão pouco

tempo. Se irritou consigo mesma. Sequer havia repousado suas mãos sobre as
pernas de Jennifer, por receio. Percebeu que havia se desacostumado a conviver

com outras pessoas. Não sabia mais distinguir o que era demonstração de afeto,

do que seria apenas um gesto automático, corriqueiro.

Repousou suas mãos nas pernas de Jennifer, mas apenas para erguê-las,
cautelosamente. Levantou-se do sofá, pegou um cobertor azul que estava no

outro sofá e a cobriu.

— Boa noite garota... — Anna sussurrou, lançando um olhar afetuoso.


Capítulo 5 – A lince e a raposa

Passavam alguns minutos das três horas de uma madrugada de quarta-

feira. Era final de setembro e a temperatura estava amena. O céu, completamente

claro e estrelado.

Anna subiu rapidamente as escadas do prédio de Jennifer e bateu com


energia à porta. Uma Jennifer sonolenta e confusa abriu a porta, sem atinar sobre

o que estava acontecendo.

— Quer ir numa missão?

— Tipo... Agora?

— Já. — Respondeu, com vigor.

— Claro, não tinha nada melhor para fazer mesmo... Entre, vou me

trocar.

— Você disse que queria ir numa missão novamente. Achei que você se
interessaria por essa. Envolve uma gárgula.

— Gárgula? Fez certo em me chamar. — Falou alto, de dentro de seu


quarto.

— Mas você sabe que nesse caso todo tempo é precioso.

Jennifer vestiu-se rapidamente. Caminhou para a porta, parou em sua


frente, olhando para Anna.
— Vamos chutar a bunda de uma gárgula! — Sorriu maliciosamente.

Andaram na moto alguns quilômetros rumo ao interior da cidade,


chegando num pequeno sítio, rodeado por inúmeros pinheiros, parecendo uma

floresta negra. No local, dois homens aparentando serem agricultores as

aguardavam impacientes, de pé, em frente a uma pequena casa de dois


pavimentos, branca, envelhecida. Pareciam aliviados em vê-las.

— Carl Smith, é algum de vocês? — Anna perguntou.

— Sou eu, e esse é meu irmão Brian. Foi Max que mandou vocês, não

foi?

— Foi sim. Me digam, tem quanto tempo desde o ocorrido?

— Então você sabe o que aconteceu?

— Vagamente. Mas o que me interessa é saber quanto tempo


possivelmente ainda temos.

— Não sei exatamente, acho que era umas duas da manhã quando atirei
naquele desgraçado. Eles estavam roubando minha casa! O que eu poderia fazer?

— O homem de barba arruivada, que agora era um alvo para os Titans, parecia
desesperado.

— Péssima decisão. Você deixou um fugir, esse foi seu erro. — Anna
respondeu, friamente.

Jennifer, apesar de já ter enfrentado gárgulas, parecia preocupada. Olhava


o céu, e olhava ao redor.

— Vamos entrar, temos duas espingardas lá dentro. — Um dos homens


falou, já virando na direção da casa.

— Não. Vamos para algum lugar aberto. Peguem as armas lá dentro e

seguiremos para o descampado mais próximo.

Voltaram cada um empunhando uma carabina de dois canos, antigas.

— Vamos para o rio, lá tem uma clareira. — Um deles orientou, já

caminhando na direção do riacho.

— Pode ser. Venha Jennifer. Não saia de perto de mim, entendeu? Tome,

fique com essa adaga. — Anna não estava usando casaco, por isso era visível o

colete-coldre que usava por cima da blusa preta. Eram amarras de couro, como

de investigadores da polícia, porém ao invés de pistolas, ela carregava duas

adagas.

Jennifer apenas assentiu positivamente com a cabeça.

— Você já fez isso antes, não fez? Digo, matar esses animais. — Indagou

o ruivo.

— Já sim, já matamos gárgulas antes. — Jennifer se adiantou

respondendo, enquanto caminhavam entre as árvores, altas e juntas.

Anna apenas olhou rapidamente para ela, sorriu de leve com o canto da

boca, achava graça da empolgação de sua parceira, que poderia soar como
ingenuidade. Chegaram até um rio de águas claras e pouca correnteza. A lua
pincelava alguns riscos prateados nas águas calmas. Havia uma espécie de praia

entre as árvores e o rio naquele ponto, um delta de areia.

— O plano é simples: assim que ela tocar o chão vocês se afastam e

deixem o trabalho pesado comigo. Se forem atirar, atirem no pescoço dela. Na


dúvida, não atirem, apenas se protejam. Está claro?

— Ele vai vir para cima de mim?? E se ela vier? — Carl perguntou,

assustado.

— Fuja. Se sentirem medo, fujam, corram para a sua casa. Vamos dar um
jeito aqui.

Jennifer já sentia que existia de fato uma parceria ali. — Deixe com a

gente. — Pensava confiante.

Por volta das quatro e meia da madrugada finalmente a criatura foi vista,

planando lentamente, rodeando, como um abutre cortejando sua presa. Anna e

Jennifer ficaram em posição, aguardando.

— Atrás de mim, Jennifer, essa é nossa regra número um, combinado? —


Anna abriu o braço, colocando Jennifer para trás dela.

— E se a coisa ficar feia para nós? — Jennifer se aproximou do ouvido

de Anna, e perguntou baixinho.

— Você corre. — Anna lançou um olhar severo.


Assim que a gárgula chegou ao chão, um dos homens efetuou um disparo
na direção dele, porém o tiro passou mais próximo de Anna do que do animal, a

fazendo ouvir o zunido da bala.

— Chega de tiros! — Bradou Anna furiosa para eles, que estavam

próximos das árvores, acossados.

Essa gárgula parecia ser um pouco maior que os anteriores, Anna e a


criatura travaram uma batalha de golpes no vazio e investidas bloqueadas.

Jennifer tentou um único golpe, mas teve sua adaga arrancada das mãos, voando

para longe. Parecia uma luta coreografada, com exaustivas investidas por parte

de Anna, que tomava algumas pancadas aleatórias. Então chegou o momento

crítico, quando ele armou suas asas, como já era esperado. As pontas, torneando

lanças.

Deu um passo para trás e abriu suas asas escuras, pareciam feitas de pele

de crocodilo. Com as asas no ar, virou-se para os dois camponeses que assistiam

toda a luta e emitiu um ganido alto, agudo. Eles não titubearam em fugir.

Correram mais depressa que suas pernas podiam suportar, apavorados com a
investida daquele demônio. Jennifer também não havia encontrado ainda uma

oportunidade de lutar, era uma mera espectadora naquela dança aterrorizante,


andando de um lado para outro.

Anna aproveitou para investir um golpe na altura do pescoço dela, mas


teve sua mão bloqueada e sua lâmina caiu no rio. Jennifer prontamente
posicionou-se atenta na margem, olhava para dentro da água, procurando pelo
punhal. Vasculhava através da água cristalina o leito arenoso do rio, no local

onde havia visto a adaga afundando.

Alguns instantes depois Jennifer se aproximou de Anna e lhe entregou de

volta sua arma, ainda molhada. A gárgula num golpe rápido, de baixo para cima,
arremessou Jennifer para trás, atirando-a no rio. Anna, já munida de sua adaga, a

cravou na jugular com todas as suas forças, liberando um grito de raiva.

Anna sequer se certificou da morte da criatura, correu na direção de

Jennifer, que assistiu o desfecho ainda dentro do rio.

— Você está bem?? Precisa de ajuda? — Perguntou Anna, preocupada.

— Só estou molhada, relaxa. — Jennifer saía lentamente da água,

aliviada.

Chegou à margem e foi na direção do corpo jazido no chão, olhando de

perto.

— Mais um bicho abatido! — Vibrou Jennifer.

— Finalmente... Já estava ficando sem ideias. — Retrucou Anna.

— Missão cumprida, então?

— Você não está com frio? — Perguntou Anna.

— Acredite, a água está uma delícia.

— Como você conseguiu pegar meu punhal? — Anna falou, o guardando


em seu coldre.

— Simplesmente o apanhei.

— No rio? Mas você não estava sequer molhada quando me entregou.

— É que... Estava bem próximo da margem. — Respondeu Jennifer,


hesitante.

— Não parecia ter caído próximo a margem. — Insistia Anna.

Jennifer ignorou a controvérsia, olhou para o céu e pode ver o sol

surgindo, num amanhecer vagaroso, rosado. Virou-se na direção do rio e


começou a tirar suas roupas molhadas.

— O que você vai fazer?? — Perguntou Anna, sem entender os planos

dela.

Apenas de sutiã e calcinha, pulou nas águas convidativas, num local que

formava um poção. A aurora surgiu trazendo um dia agradável de início de

outono, quase uma despedida do verão.

Anna não podia fazer nada além de acompanhar Jennifer nadando


despretensiosa de um lado para outro.

— Venha, pule também, eu não mentiria para você sobre o quão

agradável está a água. — Convidou Jennifer.

— Não... Obrigada. Prefiro continuar seca e aquecida.

— Não seja ranzinza, já que estamos aqui vamos aproveitar essa


oportunidade. Olha esse sol lindão nascendo aqui atrás. Você está perdendo!

— Estou muito bem aqui, obrigada.

— Ande, deixe seus rígidos protocolos de lado por um momento... —


Falou com deboche. — Não tem ninguém vendo. — Jennifer gesticulava do

meio do rio, a chamando.

Anna balançou a cabeça negativamente.

— Venha, mulher! Prometo não olhar. Vou virar para o outro lado, ok?

Avise-me quando tiver entrado. — Continuava.

Sem acreditar no que estava prestes a fazer, Anna hesitou um pouco

parando as mãos na barra da blusa, antes de tirá-la. Mas continuou o movimento,

tirando o restante da roupa, permanecendo apenas com suas peças íntimas, como

Jennifer.

Entrou devagar na água, caminhando na direção de Jennifer, parando

atrás dela.

— Pronto, satisfeita?

— Eu que pergunto! — Respondeu Jennifer, virando-se com um sorriso


aberto. Estava se esbaldando com a oportunidade de ver Anna naquela situação

descontraída, a vontade e sem roupas. Espalmou a água, espirrando na direção


dela. Saiu nadando de costas. Anna deu alguns mergulhos, parou, olhando ao

redor. Tentou se recordar da última vez que havia feito algo parecido. Até
mesmo o mar em frente à sua casa não a tinha há muito tempo.
— Formamos uma dupla e tanto, não acha?

— O quê?

— Eu e você, formamos uma dupla dinâmica, como Batman e Robin.

Ficaram em silêncio por um instante.

— Ou Dom Quixote e Sancho Pança. — Emendou Anna.

— Ou Tom e Jerry.

— Sherlock Holmes e Watson. — Rebateu Anna.

— Bonnie e Clyde.

— Asterix e Obelix. — Anna olhou para Jennifer, a desafiando a citar

mais alguma dupla.

— Lennon e McCartney!

— Você é uma garota bem insistente sabia?

— E você só percebeu agora? — Afastava-se lentamente, fazendo

movimentos com os braços para trás, displicentemente. Mas voltou a se


aproximar de Anna.

— Anna?

— Sim?

— Obrigada por me trazer. E dar um pouco de emoção à minha vidinha


monótona.
— Não se anime, ainda estou decidindo se tudo isso é uma boa ideia. —
Retrucou, a encarando.

Jennifer finalmente saiu para a margem, jogando água novamente em

Anna.

Anna saiu logo em seguida, viu que Jennifer começava a vestir suas

roupas encharcadas, uma blusa cinza com mangas vermelhas, e a interrompeu.

— Pegue, vista minha blusa. — Falou entregando sua blusa preta

também de mangas compridas.

— E você, vai colocar a minha camiseta molhada? Não seria muito

justo...

— Eu costumo usar uma camiseta por baixo. — Virou-se e pegou uma

regata branca no chão.

— Caramba! Que linda! — Jennifer exclamou.

Anna virou-se assustada, com a testa franzida.

— O que foi??

— Sua tatuagem.

Jennifer se aproximou.

— O que é?

— Ah... É um lince.

— Deixa eu ver. — Jennifer a virou de costas, segurando-a pela cintura.


Observou de perto o desenho, era um grande lince estilizado em traços tribais

negros, subindo suas costas alvas, ocupando boa parte da região.

— Caramba... É perfeita. — Jennifer falava, enquanto percorria os traços

com os dedos.

Anna tentava disfarçar o arrepio que aqueles toques estavam causando, a

interrompeu vestindo a camiseta.

— Faz muito tempo que estou criando coragem para fazer uma também.

Mas vai ser na perna. A primeira delas. Quero umas cinco tatuagens ao todo. —

Jennifer devaneava.

Antes que Jennifer vestisse o suéter, Anna reparou que ela usava um
cordão prateado com uma medalha redonda. Na medalha, alguns símbolos

arredondados, e uma forma de uma raposa por trás dos símbolos. Achou

familiar.

— Esse seu cordão, tem algum significado? — Perguntou intrigada.

— O pingente? Acho que não. Não que eu saiba. Vai dizer que você

também fabrica medalhas? — Respondeu sorrindo.

— Não... Não fabrico não.

— Meu avô que me deu, nem lembro quando, mas eu deveria ser bem
pequena.

Terminaram de vestir-se e caminharam de volta para a moto, onde


seguiram para casa. Jennifer podia sentir o corpo molhado e frio de Anna,
enquanto na garupa da moto.

— Boa noite, Jennifer. Ou bom dia, sei lá. — Anna falou, a deixando na

frente do seu prédio.

— Espere, deixe eu prender o capacete aqui. Ah, sábado é o aniversário

de Bob, ele vai dar uma festa na casa dele, nada grandioso. Você vem?

— Talvez. Vou consultar minha agenda... — Zombou.

— Tá marcado para às oito, mas eu vou mais cedo para ajudar na

arrumação. A casa dele é no fim da rua, número 280. Não chegue tarde.

— Nem sei ainda se vou.

— Claro que vai... Hey!

— O que foi?

— Eu poderia usar arco e flecha na próxima missão, o que acha?

— Vá dormir, Jennifer.
Capítulo 6 – Teste-me

Becca parou de encher o balão e virou-se para Jennifer, que vestia um

casaco de lã vermelha, com botões pretos.

— Não acredito que você chamou a híbrida.

— Eu pedi para convidar, algum problema? — Interrompeu Bob, com

seus óculos de aro grosso, chegando à sala.

— Por mim nenhum. Mas vai ser estranho ter uma híbrida entre nós. E

não sejam hipócritas, vocês sabem que isso não é comum, isso já aconteceu

antes.

— Isso o quê, Becca? — Perguntou Jennifer, já sem paciência.

— Você sabe... Humanos... Com híbridos. Não é comum se misturarem.

Acho que cada um tem sua turma, ela deveria procurar a dela.

— Não vou nem responder... — Murmurou Jennifer.

O trio estava na sala da casa de Bob, enchendo e pendurando balões,


ajudando na decoração. Começava a anoitecer. Jennifer ficou incomodada com
as declarações de Becca e foi cuidar dos preparativos na cozinha.

— O que você acha que está rolando? — Perguntou Becca a Bob,

baixinho.

— Não sei, ela não comentou nada comigo. Mas Jenny parece feliz, e eu
acho que a razão dessa felicidade é Anna, então se está fazendo bem a ela, que
continue assim. Eu gosto da Anna e você também deveria ser eternamente grata
a ela, se não fosse a híbrida, como você se refere, teríamos virado comida de

gárgula. — Ponderou Bob.

— Não tenho nada contra Anna, apenas temo por Jenny. Já estão falando
dela a bocas pequenas. Não quero vê-la sofrendo preconceito por estar andando

com uma híbrida, você sabe como é.

— E o que você está fazendo, o que é? Não é preconceito?

— Não tem nada a ver, eu apenas me preocupo com ela.

Jennifer voltou à sala e a conversa cessou. Aos poucos os convidados


foram chegando para a festa. A casa de Bob era uma das maiores do bairro,

herança de seus pais. Tinha o estilo padrão das casas de subúrbio americanas,

com os ambientes revestidos de papel de parede em temas florais. Havia mesas

com bebidas e comidas em dois ambientes. Por volta das nove horas quase todos
já haviam chegado à festa.

Bob, com seus cabelos castanhos arrepiados recostou-se na parede, onde

Jennifer já se prostava, segurando um copo vazio.

— Anna não vem?

— Não sei, ela não confirmou. Às vezes ela precisa trabalhar à noite.

— E o que ela faz à noite?


— Salva o mundo. — Riram.

— Seu copo está vazio, e isso é proibido aqui hoje. Vou lá buscar mais
cerveja para você. — Tomou seu copo e saiu.

Alice surgiu pela porta ampla.

— Linda, não vou poder ficar com você agora, porque trouxe alguns

amigos e... Sabe como é... Preciso dar atenção a eles, mas nos falamos no final

da noite, ok? Temos alguns... Assuntos para colocar em dia. — Alice sussurrou

maliciosamente no ouvido de Jennifer, enquanto passava pela sala com dois

copos na mão. Jennifer apenas sorriu e concordou, balançando a cabeça.

Jennifer estava de pé com outros amigos, próximos a uma das mesas


encostada na parede na entrada da sala. Checava o relógio insistentemente, e

olhava ao redor, esperando por Anna.

Joshua, que estava no pub no dia em que Anna visitara, retomou a

conversa, olhando para Jennifer. Ele era loiro, com uma franja que teimava em

colocar para trás, tinha algumas sardas e mantinha sempre um sorriso soberbo
nos lábios.

— E então Jenny, aquela sua amiguinha híbrida não vem?

— Você deve estar falando da Anna. Bom, não sei. Ela é bem ocupada...

— Jennifer respondeu secamente.

— Não trouxe seu animalzinho de estimação hoje? — Continuou Alex,


que também estava naquela noite.
— Vou fazer de conta que não ouvi isso, Alex.

— O que é isso Jenny, virou defensora dos fracos e oprimidos agora?

— Sério, vamos parar por aqui, ok? Bob, não tem nenhuma louça para o
Alex lavar lá na sua pia, não? — Todos riram.

Bob se aproximou com um copo para Jennifer, mas ela percebeu seu

olhar preocupado, como se algo estivesse errado.

— O que foi? Aconteceu algo? — Jennifer questionou Bob.

— Acho que sim, acho melhor você ir falar com Anna.

— Anna? Mas ela não chegou ainda. Nem sei se vem.

— Ela chegou sim, mas antes de entrar aqui na sala parou e voltou para a

varanda. E a cara dela não era das melhores.

— Que merda, ela ouviu tudo! — Jennifer exclamou, com aflição.

— Ouviu o quê?

Jennifer saiu sem responder Bob, avistou Anna na varanda, de pé,

apoiada no parapeito de madeira. Seu longo casaco negro esvoaçava com o


vento que soprava. Um cachecol cinza e botas pretas completavam o visual.

Jennifer se aproximou devagar.

— Criando coragem para entrar? — Perguntou Jennifer, encostando


também na grade da varanda, ao lado de Anna. Estava cheia de dedos, não sabia
o que Anna havia de fato ouvido lá dentro.
Anna virou-se surpresa com sua presença:

— Digamos que sim... — Respondeu, lançando um olhar doloroso para


Jennifer.

— Você os ouviu, não foi?

Anna apenas assentiu com a cabeça.

— Desculpe... Aqueles dois são uns idiotas.

— Não se desculpe. — Interrompeu Anna. — As coisas sempre foram

assim, Jennifer, eu só havia esquecido. — Falou chateada. Voltou a olhar para a


rua.

— São só alguns imbecis, basta ignorá-los. — Jennifer a olhava de

soslaio.

— Quase todos pensam assim. A diferença é que alguns externam o que

pensam.

— Pois são todos uns babacas de mente pequena. — Falou num tom

sério. — Eu estou com você hoje à noite, e eu tenho muito orgulho da minha
companhia. Eu não vejo Titans, híbridos, humanos... Eu vejo somente a Anna, e
eu gosto do que vejo.

Anna a olhou carinhosamente, e sorriu.

— Escute. — Jennifer continuou. — Não vou obrigar você a entrar num


lugar que você não se sente confortável. Se você não quiser entrar, juro, vou
entender. Mas eu adoraria que você entrasse e ficasse ao meu lado, Bob também

ficaria feliz. — Jennifer falava. Anna continuava hesitante.

Sem obter uma resposta, Jennifer pegou a mão de Anna, que estava posta

no parapeito, e a conduziu para dentro, sem largá-la.

— Vamos, eu protejo você. — Sorriu ao falar.

Jennifer chegou à sala onde estava anteriormente, trazendo Anna pela

mão. Ela cumprimentou todos cordialmente, até mesmo Joshua e Alex.

— Demorou, mas chegou! — Falou Jennifer, apresentando Anna, que

felicitou Bob pelo seu aniversário. Tirou algo do bolso e entregou-lhe.

— Nossa, agora estou devidamente armado! Como você adivinhou que

adoro falcões?? — Bob desembrulhou e avistou seu presente, uma adaga com

um falcão gravado no cabo.

— Ela que faz essas facas! E sobre o falcão, eu comentei algo com ela,

assim... Por cima. E pelo visto ela tem ótima memória. — Jennifer respondeu

por ela.

A festa continuou sem maiores problemas, Anna foi ficando cada vez
mais à vontade. A certa altura da noite, Alice passou pela sala e aproximou-se de
Jennifer.

— Daqui a pouco retorno aqui, teremos uma conversinha... — Sussurrou

Alice. Ao sair da sala, lançou um olhar intimidador para Anna, Jennifer apenas
ignorou.
O ambiente onde estavam tornou-se uma pista de dança, alguns
convidados divertiam-se ao ritmo da música, observados por Anna e Jennifer.

— Adoro essa música. Vem dançar? — Convidou Jennifer, animada.

— Madonna? Também gosto... Mas não me arriscaria dançar.

— Não dança?

— Já faz algum tempo que não pratico. — Desviava-se.

— Você já dançou alguma vez, Anna? — Jennifer ria.

— Eu estive nos anos setenta. Foi uma boa década, dançante...

— Tá bom, desisto. Mas eu vou lá. Sabe onde me encontrar.

Jennifer foi para a pista improvisada, que na verdade era um grande

tapete. Juntou-se a Becca e Bob que dançavam animadamente. Jennifer entrou


logo no espírito da coisa e dançava e cantava como se não houvesse amanhã,

com um copo na mão. De tempos em tempos olhava para Anna, como um

chamado para a pista, mas ela apenas sinalizava com um leve sorriso. E não

conseguia tirar os olhos dela.

O DJ da festa emendou outra da Madonna e Jennifer virou-se de vez para


Anna, cantando afetadamente a letra para ela, e gesticulando.

Quando o mundo começa a deixar você para baixo

E nada parece dar certo

E o barulho da multidão enlouquecida


Faz você se sentir como estivesse ficando maluco

Há um brilho de uma luz distante

Te chamando para sair dessa

Para sentir o vento no seu rosto e na sua pele

E é aqui que começo a minha história

Jennifer voltou a sentar-se ao lado de Anna, trazendo mais dois copos.

Antes que falasse alguma coisa, Becca chegou, já um pouco alcoolizada, e

sentou-se ao seu lado, entre ela e Anna, que afastou-se um pouco, dando espaço
para Becca.

— Você viu quem está na outra sala?

— Várias pessoas? — Respondeu jocosamente Jennifer.

— Não... Rachel, lembra dela?

— Hum... Não me recordo não. Cuidado para não queimar meu filme na

frente das visitas. — Jennifer falou sorrindo, apontando com a cabeça para

Anna.

— Ela é prima da Helen... — Arrematou Becca, num tom sério.

Automaticamente o semblante de Jennifer alterou-se, ficou séria,

perturbada. Anna percebeu a mudança de humor.

— Lembro sim. Não sabia que Bob a conhecia. — Respondeu


cabisbaixa.
— Foi ela que apresentou Helen para você, não lembra? — Becca
insistia.

— Não, Becca, não lembro. — Falou, com um pouco de impaciência.

Jennifer mudou de posição no sofá, parecia incomodada.

— Ok, saquei. Desculpe ter trazido esse assunto. Não tá mais aqui quem

falou. — Falou, se retirando.

Anna olhava discretamente para Jennifer.

— Tudo bem? — Perguntou, solícita.

— Tudo.

— Algum desses dois copos é para mim?

— Ah sim, desculpe, tome. — Jennifer entregou um dos copos a Anna.

— Tem cert...

— Quer ir embora? — Jennifer a interrompeu, quase como uma súplica.

— Você quer ir?

— Gostaria. Me dá uma carona?

— Claro. Quer ir agora?

Jennifer apenas gesticulou positivamente, com um semblante triste.

Despediram-se apenas de Bob e seguiram rumo à casa de Jennifer.

Subiram na moto e dessa vez Jennifer, que sempre teve uma grande cautela ao se
segurar em Anna quando na garupa, a abraçou firme, como se não houvesse

mais nenhuma reserva, deu vazão à sua vontade naquele momento.

Anna percebeu que era mais do que apenas alguém na sua garupa

prendendo-se a ela. Estranhou, olhou para trás, verificando se Jennifer estava

bem. Antes de vestir suas luvas, pousou delicadamente sua mão esquerda nas
mãos dela, fazendo com o polegar um leve carinho nas mãos de Jennifer, que se

cruzavam na sua frente.

Jennifer continuou na mesma posição durante toda a viagem. Sentiu-se

amparada, como na noite na casa abandonada, em que Anna a aqueceu,

mantendo-a recostada em seu corpo. Poderia prolongar aquele momento

eternamente. A eremita era Anna, mas era ela quem se sentia só.

Logo chegaram ao prédio de Jennifer. Prendeu sem pressa o capacete à

moto, Anna apenas acompanhava seus movimentos, com um olhar preocupado.

— Posso ficar um pouco com você se você quiser... — Se dispôs Anna.

Ao terminar de ouvir a frase, foi como se Jennifer acordasse de um


transe, olhou pensativa por alguns segundos para Anna, analisando todas as

possibilidades.

— Acho que quero ficar sozinha mesmo... Mas obrigada minha cara

heroína, te devo mais uma. — Jennifer foi na direção dela, deu um beijo no rosto
e um abraço de despedida.

— De nada... — Anna respondeu antes de soltá-la.


— Valeu por ter vindo, tenho certeza que Bob ficou feliz em te ver. —
Jennifer falou com um sorriso pequeno.

— Tomara que não tenha sido somente Bob...

Anna pegou Jennifer de surpresa.

— Pode ter certeza que não.

— Tá certo... Boa noite, então.

— Boa noite, Anna... E se aparecer alguma missão bem cabeluda essa

semana, não esqueça de me chamar, viu?

— Está a fim de viver perigosamente mesmo, não é?

— Pode apostar.

***

Naquela tarde de uma quinta-feira fria e nublada, Jennifer ouviu o ruído


já conhecido do motor da moto de Anna, fazendo-a levantar da cadeira, curiosa.

Foi até a porta de seu escritório-contêiner no porto, visualizou sua nova amiga

guardando o capacete. O vento do mar agitava seus cabelos.

— Não me diga que veio me buscar para uma missão vespertina? —

Disse ela, ainda recostada na porta.

— Quase isso. Vim convidar para ir a um serviço hoje à noite.

— E você instalou algum rastreador em mim? Como me achou?

— Você se assustaria em quão famosa é você aqui no local.


— Como assim?

— Assim que cheguei aqui, perguntei a um grupo de trabalhadores se


conheciam alguma Jennifer e todos disseram que sim. E me deram as

coordenadas para chegar a seu container.

— Você deve ter dado sorte.

— Ah, e mandaram lembranças a você.

— Não tem muitas mulheres por aqui... — Falou enrubescida.

Anna se aproximou da porta, parando em sua frente, Jennifer a


interrompeu.

— Você não vai querer conhecer esta bagunça. — Disse Jennifer sem

jeito.

Anna olhou de relance, por cima do braço dela.

— Já vi o suficiente...

— Vem, vamos ao cantinho da reflexão. — Fechou a porta e saiu

andando e puxando Anna pelo braço.

— Cantinho da reflexão?

— Não achei um nome melhor. É um píer que foi condenado, está

abandonado.

— Um píer condenado? Sério?

— Um barco bateu nele uma vez, mas não chegou a derrubar. Mas não
me parece que vá desabar num futuro próximo, é seguro, relaxa.

Caminharam até o final do velho píer de madeira, que formava um T,


com um dos lados inclinado. Sentaram-se na extremidade do outro lado, com as

pernas balançando sobre o mar calmo e verde amarronzado, lado a lado.

— Essa é alguma missão especial, com direito a pré-convite? — Jennifer

exclamou, olhando timidamente para Anna.

— Não, é um serviço normal, meio chato para ser mais exata. Mas como

estava passando por perto resolvi te fazer uma visita rápida. Não quero

atrapalhar seu trabalho.

— Sinceramente? Você está me fazendo um favor me tirando daquele


cubículo... — Sacudia as pernas como se pedalasse sobre o mar.

— Então... É um serviço um pouco entediante hoje. Vigília. Talvez a

noite inteira, e sem garantia que haverá alguma ação.

— Pode ser a missão mais chata do mundo, mas estarei sempre dentro.

Anna pensou um instante antes de falar.

— Não imagino o que faria se algo ruim acontecesse com você numa
dessas missões.

— Eu me viro. Não se preocupe.

Sem querer, sua perna roçou na perna de Anna num dos movimentos.
Jennifer não sabia o que fazer com a sensação que estava vivenciando. Só sabia
que era uma das melhores sensações do mundo, estar ali, tão próxima de Anna.

Ficou sem jeito, parou de mexer as pernas por um instante.

— Passa lá em casa que horas? — Disfarçou.

A conversa prosseguiu por mais alguns minutos. Findada, Anna deixou

Jennifer em casa, com a promessa que a buscaria por volta da meia-noite.

— Durma antes de ir, a noite pode ser longa. — Advertiu Anna, antes de

ir embora.

Pouco antes da meia-noite, a já conhecia buzina foi ouvida, Jennifer

subiu animada na garupa da moto e dirigiram-se ao local de trabalho daquela

noite: uma empresa, uma pequena fábrica, numa área industrial no entorno da
cidade.

Anna deixou a moto ao lado do portão de madeira, que dava acesso ao

pátio de um galpão abandonado.

— Vamos vigiar este galpão velho? — Perguntou Jennifer, surpresa,

olhando para a construção que tinha uma péssima aparência.

— Não. Mas ficaremos lá em cima, de olho na empresa ao lado. —


Respondeu, tirando o capacete. Jennifer também tirava o seu, quando Anna a
interrompeu.

— Deixe-o em cima do banco. Para o caso de sairmos apressadas.

— Ok... Sabe, tenho até certo receio em arranhar esse capacete, parece
tão novinho...

— E é. — Anna a retrucou, com naturalidade.

— É novo? Como assim?

— Você acha mesmo que eu tinha um capacete reserva? Comprei quando


soube que iria levar você ao pub.

— Então ele é meu capacete? Posso colar adesivos? — Jennifer falou,

empolgada. Subiam as escadas escuras, em direção ao andar de cima do galpão,

que um dia fora um almoxarifado.

— Não.

— Só uns dois ou três adesivos.

— Não.

— Tá, somente um. Eu tenho até um adesivo guardado para colar em

capacete, para o dia que eu tiver um.

— Mas você nem tem moto.

— Eu sei, mas vai que um dia eu tenho capacete? Esse é tipo meu, não é?
Um só vai...

Anna andou pela sala abandonada, averiguando o espaço. Havia uma

janela com vidraças quebradas, que descia do teto ao chão. Foi o local escolhido
para ser o ponto de observação.

— Vê lá embaixo? É nessa construção que vamos manter nossos olhares


hoje à noite. — Apontou Anna. Arrastou uma viga de madeira para frente da
janela, para servir de banco. Jennifer ainda perambulava pela sala, observando as

estantes de aço, quase vazias, tocando nas caixas e papéis.

— Pode sentar-se aqui quando cansar de andar pela sala. — Balbuciou

Anna, enquanto sentava na viga, numa das laterais da janela, ficando


parcialmente atrás da parede.

— O que esperamos? — Jennifer sentou-se na madeira ao chão, na outra

quina da janela.

— Um ataque de milicianos Titans. Correu um boato que eles atacariam


hoje à noite, talvez queiram incendiar.

— Por quê?

— Não sei as razões... Provavelmente algum boicote. Ou desavença com

os proprietários.

— Que são humanos?

— Sim. — Respondeu sacando uma pistola do seu costumaz coldre, que

usava no corpo, por baixo do casaco preto de couro. Desta vez trazia apenas uma
adaga, e a arma do outro lado.

— E o que faremos se avistarmos algo?

— Você vai ficar bem escondida atrás desta parede. Eu vou tentar

retardá-los, enquanto chamo uma equipe de segurança particular.


— Retardá-los com essa pistola de nada?

— O máximo que eu conseguir acertar.

Ficaram em silêncio por alguns minutos. Anna certificava-se de ter


trazido pentes de munição adicionais, checava a arma. Jennifer recostou-se na

parede, observava atentamente todos os movimentos de sua parceira.

— Foi legal você ter ido ao porto hoje. Não costumo receber visitas. —

Jennifer quebrou o silêncio.

— Espero não ter atrapalhado.

— Você? Difícil. E tive um bom pretexto para sair um pouco daquele

cafofo.

— E você trabalha lá por quê? Gosta do porto?

— Odeio. Mas é o que tenho no momento.

— Não é um lugar perigoso para garotinhas do seu tamanho?

— Com o tempo você aprende o que pode e o que não pode fazer por lá.

— Já te aconteceu alguma coisa?

Jennifer pensou por um momento. Hesitou.

— Não...

— Mas é bom se cuidar.

Ficaram em silêncio. Olhavam para a estrada que dava acesso a empresa


em busca de alguma movimentação suspeita.

— E então, posso colar o adesivo no capacete? É pequeno.

Anna guardou a pistola de volta no coldre, calmamente. Olhou de forma


séria para Jennifer.

— Jennifer, você já teve namorado? — Perguntou, de forma consistente.

Suspirou antes de falar.

— Não. Por que a pergunta? — Franziu as sobrancelhas.

— Porque não consigo acreditar que alguma pessoa na face da terra


aguente essa sua teimosia por muito tempo.

— Pois você engana-se ao pensar desta forma. — Respondeu

jocosamente.

— Como?

— Na verdade você fez a pergunta errada.

Anna esperava a complementação do raciocínio.

— Nunca tive namorados. Mas já tive namoradas. Várias. E nenhuma me


achou teimosa. — Continuou.

— Tinham deficiência auditiva?

Jennifer apenas deu um sorriso desdenhoso.

— É... Talvez as mulheres sejam mais pacientes que os homens... —

Anna divagava.
— E outras coisas também.

— Você... Nunca ficou com homens? — Anna havia caído na armadilha


da curiosidade.

— Fiquei com alguns quando era mais nova, agora não fico mais.

— E são quantas namoradas no momento?

— Fixa, nenhuma. Somente alguns casos aleatórios.

— Aquela garota na festa de Bob, é um caso aleatório?

— Qual?

— A que sussurrou algumas vezes no seu ouvido.

Jennifer ficou surpresa por Anna ter notado. Ajeitou-se, mudou de

posição. Colocou uma perna de cada lado da viga, ficando de frente para Anna.

— É uma amiga. — Sorriu.

Anna apenas balançou a cabeça, devagar. Jennifer resolveu contra-atacar.

— E você, naquela mansão imensa, não tem algum príncipe encantado...


Ou lobo mau?

— No momento é somente eu e Patrícia.

— Patrícia?? — Perguntou Jennifer, intrigada.

— Minha moto. Desculpe, nunca fiz uma apresentação formal entre você
e Paty, não é?
— Não. Todas essas vezes que andei em cima dela, sem nem saber seu
nome, que falta de consideração.

Anna esquecia em alguns momentos que estavam numa missão vigilante,

perdia seu olhar.

— Zero namorados no momento, então? — Jennifer deixou cair a cabeça

na parede.

— Zero.

— Nem namoradas?

— Também não.

Por um instante apenas trocaram um olhar e um sorriso, pequeno, mas

significativo.

— Melhor assim, não é? Eu também... Já faz algum tempo que não sei o

que é compromisso... — Jennifer tagarelava.

— Já fui noiva. — Anna falou sem alterar o tom.

— Sério? E o que aconteceu?

— Não casamos.

— É... Isso eu já tinha deduzido.

— Eu percebi que ele não era o cara que eu queria passar o resto da
minha vida...

— Que romântico.
— Ele não achou nada romântico.

— E faz muito tempo?

— Bastante. Espero que você não tenha esquecido quantos anos eu


tenho.

— Esqueci. De propósito. Prefiro ver você como uma adolescente de

quinze anos.

— Mas eu não aparento ter quinze anos.

— Não, mas às vezes você é tão implicante quanto uma adolescente de


quinze anos.

— Ok... Placar empatado, então?

— Agora sim. — Sorriu Jennifer.

Anna voltou a olhar para os arredores.

— Foram muitos? — Jennifer retomou a conversa.

— O quê?

— Namorados.

— Não. Provavelmente menos que o número de namoradas que você


teve.

— Você acredita em tudo que ouve mesmo, hein? — Jennifer sorriu.

— Não. Mas costumo acreditar no que você fala. Ainda não sei o porquê.
— Eu também tenho esse terrível problema.

— Acredita em tudo que eu falo? — Anna perguntou curiosa.

— Sim.

— Você não perceberia se eu mentisse?

— Não sei. Teste-me. Conte algo duvidoso, e eu vou te dizer se acho que
é verdade ou não.

— Hum... Ok. Deixa eu pensar... — Anna novamente esqueceu a vigília,

estava absorta pela conversa.

— Não consigo pensar em nada duvidoso sobre mim. — Anna emendou.

— Tá bom, então eu te pergunto e você responde sim ou não.

— Pode ser. — Titubeou um pouco antes de concordar.

— Já matou um humano?

— Sim.

— Essa foi fácil, é verdadeira.

— Acertou. Mas foi por engano. Por que fácil?

— Porque você é uma máquina mortífera. — Jennifer falava sorrindo.

— Tá, próxima pergunta.

— Você usa calcinha?

— Não uso. Como você percebeu?


— Rá! Você tá mentindo, eu vi você de roupas íntimas naquele riacho, e
você estava de calcinha. Que memória curta você tem, Anna.

— Próxima. — Respondeu incisiva.

— Hum... Naquele dia que invadimos sua casa, qual foi a primeira coisa

que você pensou?

— Mas essa não é uma pergunta de sim ou não.

— Foi você quem fez as regras?

— Tá bom... Eu achei que eram pilhadores e eu estava pronta para chutar


a bunda de todos vocês para fora da minha casa.

— É... Acho que você tá falando a verdade.

— E estou mesmo.

— Viu, eu acerto todas. Mais uma?

— Mande.

Jennifer olhou fixamente para Anna, procurando por uma pergunta de

cunho pessoal.

— Já beijou uma mulher? — Jennifer falou com um ar desafiador.

— Sim.

— Rá! É mentira. — Fulminou Jennifer.

— Acho que você cantou a vitória antes da hora.


— Então é verdade?? — Jennifer exclamou incrédula.

— Alguns casos passageiros, nada sério.

— Só experimentando, sei...

— Isso. Nada além de uma noite.

Jennifer apenas sorriu com um pouco de deboche.

A descontração de Anna se converteu num semblante preocupado. Havia

avistado uma van branca se aproximando do portão da empresa.

— Saia da frente da janela! Se esconda! — Ordenou Anna. Jennifer se

escondeu atrás da parede, mas olhou de relance para a ação logo abaixo. Havia

uns cem metros separando a empresa vigiada do local de observação delas.

Anna pegou um celular do bolso e alertou a empresa de segurança, que

estava de sobreaviso. Sacou a arma e ficou em posição de tiro. A porta da van

abriu-se e alguns brutamontes Titans começaram a sair do veículo. Um a um,

Anna acompanhava atentamente e contava mentalmente.

— São doze, Jennifer.

— Doze Titans contra nós?? — Jennifer arregalou os olhos.

— Dois armados.

— E agora?

— Estão entrando. — Anna mantinha a arma apontada na direção deles.

— O que vai fazer?? — Jennifer olhava assustada para Anna.


Anna então começou a atirar nos primeiros que adentravam as
dependências da fábrica. Isso acabou chamando a atenção deles para a origem

dos disparos: a janela no galpão abandonado. Ergueram as armas e apontaram na

direção delas. Começaram a atirar e logo em seguida foram caminhando em sua


direção.

— Jennifer?

— Sim?

Anna então virou-se, olhou para Jennifer apreensivamente, colocou as

mãos nos ombros dela.

— Corre.

Pegou Jennifer pelo punho e praticamente arrastou-a escadas abaixo.

Correram até a moto, ouvindo o zunido dos disparos feitos na direção


delas. Os poucos metros até o portão pareceram quilômetros. Pularam na

motocicleta e Anna saiu acelerando na rotação máxima. Jennifer agarrava-se

como podia em Anna para não cair. Andaram em alta velocidade até um

entroncamento, que dava acesso à rodovia. Anna parou no acostamento e saiu da


moto tirando o capacete rapidamente.

— Está tudo bem com você?? — Anna perguntou ainda assustada.

— Sim, estou inteira ainda. — Falou retirando o capacete também. — E

você?
Anna sacudiu a cabeça positivamente.

Depois de alguns segundos se encarando, com a respiração acelerada,


riram.

— Você sabe que estou rindo de nervosa, né? — Brincou Jennifer.

— Não pediu por aventura? Acabei de te dar uma boa dose!

— Caramba, que porra foi essa! Se eles fossem mais rápidos teriam nos

alcançado na moto ainda! — Jennifer estava quase cuspindo o coração. — E

agora? Temos que voltar lá?? — Continuou.

— Agora... Agora não é mais conosco. Nem sempre as coisas saem

conforme planejado. Se você vai continuar me acompanhando, é bom se

acostumar com isso.

— Você não esperava tanta gente, não é?

— Eu esperava um carro, quatro ou cinco pessoas no máximo.

— Da próxima vez vamos levar uma metralhadora.

— Anda, sobe aí.

Chegaram ao prédio onde Jennifer morava, já passava das três da manhã.

— Obrigada pela aventura... — Despedia-se Jennifer.

— Da próxima vez poderíamos fazer algo mais leve, pode ser? — Anna
sugeria algum encontro.

— Claro, passe aqui em casa e vamos sair pra beber. Quando você quiser.
— Fechado.

Jennifer se aproximou e deu um abraço para despedir-se. Como sempre


pegando Anna de surpresa. Abraçaram-se afetuosamente. Afastaram-se, Jennifer

seguiu para seu prédio. Anna estava prestes a colocar o capacete quando

percebeu que havia sangue na sua mão direita, olhou assustada sem entender.
Olhou então para todo seu corpo, procurando algum ferimento.

— Jennifer?

— Sim? — Jennifer parou e fez uma meia-volta, próxima aos degraus

que davam acesso a seu prédio. Viu então Anna mostrando a palma da mão
ensanguentada, erguida.

— Meu Deus, você se feriu?? — Jennifer correu na direção dela, que

descia da moto.

— Esse sangue não é meu.

— Não é seu... É meu?? — Jennifer começou a se tatear, quando passou

a mão por cima de seu casaco de brim preto, sentiu onde estava úmido. Anna se

aproximou, levantou sua roupa, e viu um ferimento a bala, do lado, próximo às


costelas.

— Você foi atingida de raspão. Como não havia percebido até agora?

— Não sei, acho que foi a adrenalina, ainda estou com o coração

disparado. Que merda!


— Vamos subir, eu faço um curativo.

Já no apartamento, Jennifer parou no meio da sala, tirou a jaqueta e


levantou a blusa para ver novamente o pequeno rasgo na lateral de seu corpo,

incrédula. A bala havia feito um corte não muito profundo, mas sangrava

demasiadamente.

— Você tem material para o curativo? — Questionou Anna, parada a sua


frente, já olhando para os lados.

— Sim... Que engraçado, agora que eu sei que ele existe está doendo.

Talvez eu só descobrisse quando fosse tomar banho.

— Não vá desmaiar. Onde está o material?

— Na segunda gaveta do criado mudo, ao lado da cama. Já sei, vou

tomar um banho para limpar essa bagunça, vai ficar mais fácil pra fazer o

curativo.

— Ok, não demore.

Com Jennifer no banho, Anna saiu em busca do material de primeiros

socorros, conforme orientado. Agachou ao lado da cama. Viu uma pequena


cômoda marrom com três gavetas. Mas ao abrir a segunda gaveta avistou apenas
frascos de remédios, a maioria eram de antidepressivos, analgésicos e remédios

para dormir. Alguns frascos vazios, outros pela metade. Fechou rapidamente a
gaveta, abriu a terceira e enfim achou uma pequena bolsa branca com uma cruz

vermelha desenhada.
— Achou? — Gritou do banheiro.

— Achei sim.

Jennifer saiu do banheiro de roupão marrom, segurando uma pequena


toalha por dentro, em cima do ferimento.

— Você tem ideia do que tira mancha de sangue das roupas? — Falou

Jennifer, entrando na sala, Anna esperava sentada no sofá.

— Amônia. Venha, sente-se aqui.

Jennifer sentou-se de frente para a TV. Abriu o roupão e deixou a parte


machucada a mostra.

— Não esqueça que já começou a doer, pegue leve. — Alertou.

— Deixe de frescura... No dia que torturarem você com ferro quente,

você vai saber realmente o que é dor.

— Delicadeza mandou lembranças, viu?

Jennifer mantinha uma mão segurando o roupão, tendo o cuidado de não

deixar abrir demais e mostrar os seios, mas era inevitável ficar com a calcinha à
mostra.

— Você parece tensa, já pode relaxar. — Anna murmurou, enquanto


cortava pedaços de esparadrapos.

— Não é todo dia que você ouve balas passando a centímetros da sua
cabeça... Acho que só vou conseguir relaxar daqui uns dois dias.
O que Jennifer não confessou é que sua tensão não era causada pela
situação de risco que havia acabado de vivenciar. Os dedos ágeis de Anna

trabalhando na sua pele eram muito mais devastadores.

— Relaxe. Já fiz isso em você, lembra? — Anna tentava distraí-la.

— Com fita adesiva e um pedaço da camisa de Bob.

— Se essa bala tivesse passado um centímetro para dentro, você estaria

num centro cirúrgico agora.

Anna limpou o corte com água oxigenada, ela se contorceu por reflexo.

Finalizou aplicando uma bandagem grande, colando pedaços de esparadrapo.

Quando terminou, levantou os olhos e viu Jennifer a olhando.

— Está tudo bem?

Jennifer balançou a cabeça, de mansinho.

— Tome um bom analgésico. E troque o curativo duas vezes por dia.

— Por quantos dias?

— Até você se encher do curativo.

Anna guardou o restante do material, Jennifer olhou alguns segundos

para o curativo um pouco exagerado e fechou o roupão.

— Finalizamos por hoje, então? — Perguntou Anna, já de pé.

— Já vai?

— Bom, era minha intenção. A não ser que você tenha mais algum
ferimento que não tenha percebido.

— Nós vamos ao pub sábado, vem comigo?

— Sábado não estarei na cidade.

— Por quê?

— Por que sairei da cidade, oras.

— Vai para onde?

— Mas como você é curiosa! Não vou falar.

— Algum agito na cidade vizinha?

— Não.

— É uma missão ultrassecreta?

— Não vou falar.

— Se fosse, você me contaria, né?

— Não... Sei.

— É uma missão! Que tipo de missão é?

— Não é uma missão.

— É um compromisso profissional?

— Sim, mas não é uma missão.

— É sobre as adagas que você fabrica então. Vai comprar material?

— Não, vou fazer uma entrega de um pedido.


— Viu, nem precisei de um ferro quente. — Jennifer comemorou com
um sorriso sarcástico.

— Você é ardilosa, hein?

Jennifer riu mais.

— Não se esqueça de passar aqui na próxima missão.

— Você está oficialmente afastada das missões, por tempo

indeterminado. — Respondeu Anna, incisiva.

— Por que??

— Talvez porque você tenha levado um tiro hoje?

— Foi de raspão.

— Tchau, Jennifer. — Falou abrindo a porta.

— Hey, foi de raspão! — Jennifer insistia, enquanto Anna saia.


Capítulo 7 – Vamos à igreja

Becca aproximou-se com um sorriso malicioso e entregou a Jennifer uma

caneca de chope.

— Você viu quem chegou? — Ela disse.

— Alice... Percebi sim. Está lá do outro lado.

Jennifer e seus amigos estavam de pé, bebendo, próximos ao local que


em dias movimentados se transformava numa pista de dança, no escuro pub do

Oscar.

— Ela não viu você ainda.

— Acabou de ver.

— Alice vindo para cá em 3... 2...

— Pronto, está vindo. — Emendou Jennifer. Que estava de cabelos

soltos, um casaco de veludo preto, calças jeans e All Star negro.

— Até que enfim te achei, Jenny! — Alice se aproximou segurando um


copo, e a abraçou fortemente.

— E por acaso andou me procurando nos lugares certos? — Brincou


Jennifer, tomando um grande gole de chope.

— Não te vi mais depois de falar contigo na festa do Bob.

— Eu fui embora um pouco mais cedo.


— O que aconteceu?

— Nada, só estava indisposta.

Becca permanecia ao lado, acompanhando a conversa.

Uma banda havia começado a tocar há poucos minutos, alguns já


arriscavam uns movimentos no espaço em frente ao palco.

— Quer dançar? — Perguntou Alice.

— Pode ser. Mas por aqui mesmo... Não quero ir lá para frente.

Alice começou a dançar na frente de Jennifer, que começava a se animar

com seus passos. Ela então puxou Jennifer para perto de si, envolvendo seu

braço um pouco acima da cintura. Jennifer fez uma expressão de dor, curvando-

se para o lado.

— O que foi? — Perguntou Alice, surpresa.

— Eu machuquei... Bati numa quina.

— Foi sério?

— Não, não... Acidentes domésticos.

Alice não perdeu tempo e logo partiu para cima de Jennifer, que
correspondeu. Entrelaçaram os braços e não demorou mais que uma música para

que um longo beijo surgisse. No início contida, logo Jennifer correspondeu ao


ardor de Alice, intercalando beijos volumosos com alguns goles da bebida em
sua mão.
Depois de algumas músicas, quando Alice foi ao banheiro, Becca
aproveitou para questionar sobre o machucado.

— O que foi isso? — Becca falou, tocando no local ferido.

— Uma batida numa quina de um armário lá em casa. — Respondeu, se

desvencilhando da mão de Becca.

— E por que tem um curativo??

— É que assim... Quando bateu, sabe... Acabei me cortando. Nem

lembro direito como foi... Mas bati na quina... E... Cortou. Um pouco. Entendeu?

— Jenny, você sabe que é péssima mentirosa. Já conversamos sobre isso.

Jennifer hesitou um pouco antes de continuar a conversa, sabia que era

praticamente impossível enrolar Becca e teria que falar a verdade. Ou pelo

menos parte dela.

— Vem cá. — Jennifer puxou Becca para um canto menos movimentado

do salão.

— Prometemos que sempre falaríamos a verdade uma à outra, e agora


você está escondendo algo de mim. — Reclamou Becca.

— É que envolve terceiros... Não diz respeito só a mim.

— É Anna, não é? Você mudou depois que a conheceu... Eu...

Jenny a interrompeu.

— Sim, tem a ver com ela. Mas não a julgue.


Becca permaneceu em silêncio a olhando, esperando a explicação, com
sua feição de adolescente típica americana.

— Tá bom... Mas por favor, não conte a ninguém, ok?

— Você sabe que eu não faria isso. — Becca respondeu com a cara

fechada.

— Nós saímos anteontem e acabei me machucando. Mas não foi nada,

acredite. Foi de leve.

— Não vai me dizer... Que ela é adepta desses... Como é o nome?

...Sadomaso...

— Não! — A interrompeu novamente. — Não foi isso... — Jennifer

franziu as sobrancelhas. — Não tá rolando nada entre nós, já te falei isso.

— Ainda não. — Becca retrucou.

— Não vai rolar. Somos de mundos diferentes, só estamos nos curtindo

um pouco, aproveitando a companhia uma da outra.

— Mas você não sente nada por ela? Você fica com os olhos brilhantes
quando ela está por perto, todo mundo percebeu.

— Não vou mentir para você... Alguma coisa nela me atraiu. Não sabia

ao certo o que eu estava sentindo, mas me dei conta que não vai acontecer, isso
não vai a lugar algum. Então já não penso nisso. Só estou aproveitando a

amizade, e é bom estar com ela, não sei explicar exatamente o que sinto... É
mágico! Mas não vai ter algo mais.

— E da parte dela?

— Ela é um enigma... Mas acho que desse mato não sai coelho, não... E
também não sou a praia dela, entendeu? — Jennifer sustentava agora um

semblante entristecido, quase decepcionado.

— Eu acredito... E acho que ela não se sente bem em estar com você em

público.

— É... Talvez... É estranho para ela.

— Tá, mas e o machucado? — Becca falou, levantando a blusa de

Jennifer, vendo o curativo.

— Hey!

— Ela te machucou por acidente?

— Não, não... Não foi ela. Foi um incidente bobo. Saímos quinta-feira,

numa parada aí...

— Não me enrola, senhorita Jennifer.

— Anna faz uns serviços adicionais à noite... Não, não é o que você está

pensando.

— E o que é?

— Tem a ver com segurança privada... Repassam alguns serviços, e


geralmente é a noite. E eu fui junto neste, as coisas não correram exatamente
como esperado... E acabei levando esse tiro de raspão.

— Tiro?? — Becca arregalou os olhos.

— É... Mas foi bem de raspão. E de longe. Os caras estavam longe de


nós. Tivemos que dar no pé antes da hora, foi besteira... Nada para ninguém se

preocupar, tá bom?

— E você já saiu com ela em outros serviços desse tipo?

— Já... Três vezes.

Becca balançou a cabeça, em desaprovação.

— Não sei o que são esses serviços, mas pelo visto é algo perigoso. Não

se envolva nisso, Jenny, por favor...

— Não é tão perigoso assim, foi um erro de cálculo apenas.

— Ela é treinada, experiente, já deve fazer isso há anos, ou décadas!

Você... Nem sabe destrinchar um frango!

— A faca era ruim, o frango estava congelado, eu te falei que não ia dar

certo.

— Tá Jenny, o que estou tentando falar é que ela sabe se safar numa boa,

enquanto você... Num descuido você pá! ...Levou um tiro, uma facada, ou sei lá
o que, e daí como fica?

— Eu prometo que vou escolher bem meus próximos passos, tudo bem?
E ela disse que estou temporariamente fora das missões.
— Um pouco de juízo na cabeça daquela híbrida aventureira, que bom!

— Estou me divertindo, Becca... Como há muito tempo não me divertia.

Becca viu Alice voltando, procurando por elas.

— Só quero que você se cuide, tudo bem? Esse mundo não é seu, vá
devagar. E Alice já está procurando por você.

Jennifer virou-se, e encontrou o olhar curioso da loirinha.

— Vamos.

A noite terminou no apartamento de Jennifer. Com Alice. Em sua cama.

Enquanto Jennifer passava uma madrugada de luxúria movida a álcool,

Anna saia de casa em sua moto, com destino à uma cidade próxima, para

entregar a encomenda de adagas e facas para um antigo cliente, da época do seu

pai.

A estrada quase deserta, poucos faróis cruzando seu caminho, e apenas

um pensamento povoando sua mente: Jennifer.

Enquanto isso, as mãos de Alice percorriam o corpo de Jennifer,


enquanto lhe fazia sexo oral. Alice tocou involuntariamente no ferimento de
Jennifer, que interrompeu seus pensamentos confusos e embriagados. Por um

momento uma lucidez indesejada se fez presente. Lembrou da mão de Anna


tocando sua pele, enquanto fazia o curativo. O pensamento a incomodava,

distraiu-se completamente, esqueceu a existência de Alice, que até então


desbravava entre suas pernas. Até ela se fazer lembrar.

— Tudo bem com você? Desculpe ter tocado seu machucado... —


Perguntou Alice, ofegante.

Jennifer a encarou por alguns segundos, confusa.

— Ãhn... Tudo bem. — Sorriu em resposta.

***

Naquela tarde o vento soprava contrário ao seu destino, enquanto corria

podia senti-lo em seu rosto. Apesar do clima frio e com o sol já baixo, Jennifer
exibia pequenas gotículas de suor na testa e em cima dos lábios. Seus cabelos

castanhos quase claros, mesmo presos, esvoaçavam com suas passadas. Mudou a

direção da sua rotineira corridinha vespertina de propósito: estava indo à casa de

Anna.

Lá estava ela novamente, trajando seu adorado moletom verde com

capuz do Lanterna Verde, às portas da casa um dia invadida por ela e seus

amigos. Teve vontade de ir, e foi. Não teria uma boa desculpa para justificar a

visita fora de hora. Desde a missão que terminou em quase tragédia, já se


passavam duas semanas.

— Jennifer?? Aconteceu alguma coisa? — Anna falou, surpresa com a

visita em sua oficina.

— Estava passando por aqui, resolvi te dar um oi.


Jennifer realmente não tinha o dom da interpretação, era péssima
mentirosa.

— Passando a pé? Para onde??

— Você e seus detalhes... O que está fazendo? É uma espada? Não sabia

que você também fazia espadas...

— Qualquer coisa cortante...

— É para algum cavaleiro? Ninja?

— Parede.

— Como assim?

— É para decoração.

— Ah tá... — Murmurou, sem empolgação.

— É... Eu também prefiro fazer objetos usáveis. — Anna levantou o


olhar para Jennifer.

— Posso encomendar uma adaga com você?

— Claro.

— Vai fazer um preço bom para mim, né?

— Vou pensar no assunto. Algum detalhe em especial?

— Não... Só para substituir a que eu levo na bota mesmo.

— E o seu ferimento?
— Melhor do que nunca. Nem vai ficar cicatriz.

— Claro que vai.

Jennifer se aproximou mais de Anna, que continuava trabalhando, usava


um avental de couro marrom e óculos acrílicos protetores.

— No escuro essas faíscas devem ser lindas, não é?

Anna desligou a máquina, tirou os óculos e olhou para Jennifer.

— E podem te cegar. — Falou incisivamente.

— Desligou por minha causa? Pode continuar, não quero te atrapalhar,

não.

— Tudo bem... Quer ir lá dentro beber algo?

— Não. Na verdade já está escurecendo, preciso voltar.

— Voltar como?

— Correndo, do mesmo jeito que vim.

— Quer que eu te leve de moto?

— Não, não. Adoro correr. — Jennifer falou já caminhando na direção da

porta.

— Ok... Boa corrida, então.

— Até qualquer dia desses. — Murmurou desanimada.

Anna largou os óculos na bancada e deu uns passos à frente.


— Está livre domingo de manhã?

— É uma missão? — Jennifer respondeu com os olhos brilhantes de


excitação.

— Talvez.

Jennifer sorriu.

— Que horas você passa lá?

— Às oito.

— Nossa, que cedo... Conte comigo! Onde vamos?

— Vamos à igreja.

— Sério??

— Pareço estar brincando?

— Até ir à igreja deve ser divertido com você. — Vestiu o capuz, e

começou a correr sem sair do lugar.

— Até domingo, então.

***

Sábado à noitinha, Becca, como de costume, entrou sem bater no

apartamento de Jennifer, que assistia TV com um balde de pipoca.

— Não vai se arrumar? — Ela perguntou.

— Para o quê? — Jennifer levantou, esfregando os olhos, e permaneceu


sentada no sofá. Becca sentou no sofá ao lado.

— Bob vai passar daqui quarenta minutos para nos pegar.

— Pra ir no pub do Oscar?

— Onde mais poderia ser?

— Ah... Mas acho que não vou.

— Não está a fim? — Becca a olha de lado.

— Tenho que acordar cedo amanhã.

— Em pleno domingo?

— Vou à igreja, com Anna.

— Você tá me zoando, né? — Becca a fitou com um sorriso incrédulo. –

Você é ateia.

— Algo me diz que não vamos assistir à missa... Acho que ela tem algum

compromisso por lá.

— É... Vai ver ela precisa matar o padre.

— Como você é dramática.

— Tá, de qualquer forma você pode sair com a gente hoje, volta mais

cedo, pega um táxi, carona, sei lá.

Jennifer apenas lançou um olhar preguiçoso.

— Você que sabe. Hoje tem banda e tal... Mas se você prefere passar a
semana trancada em casa.

— Você já está pronta?

— Já nasci pronta, meu amor.

— Ok... Vou lá me trocar. Mas eu volto para casa antes da meia-noite.

— Se você está dizendo...

***

Um sol aparecia de tempos em tempos entre as nuvens, dando um ar

melancólico à manhã de domingo. Anna estacionou sua moto pouco depois das

oito, deu uma buzinada, aguardando Jennifer. Mas nada aconteceu. Ela buzinou

novamente, agora olhando para a janela dela. Mas nem sinal da sua fiel

escudeira. Outra buzinada, agora longa, e de repente Jennifer surge na janela,

descabelada, fazendo um sinal pedindo três minutos para descer.

Alguns minutos depois, Jennifer desceu os degraus frontais de seu

prédio, ainda se vestindo com sua jaqueta jeans. Anna viu surgindo detrás de
Jennifer a figura de Alice, que se despediu com um beijo nos lábios na sua

ficante, deixando Jennifer sem jeito da mesma forma que Anna, que tentou
disfarçar olhando para frente.

— Foi mal o atraso... — Se desculpou com Anna.

Anna apenas entregou o capacete a ela, sem falar nada, saindo para seu

destino não muito distante dali, num bairro calmo e campestre. Anna carregava
uma pequena bolsa preta.

Deixaram a moto atrás de um prédio residencial abandonado, com quatro


ou cinco andares. Jennifer parou ao pé do prédio, dando uma boa olhada.

— Isso não vai despencar, não?

Anna não respondeu, foi logo se dirigindo a entrada dos fundos. Subiram

pelas escadas escuras até o último andar, entrou num dos apartamentos vazios e

caminhou até uma grande janela. Jennifer a seguiu.

— Você não estava brincando quando disse que iríamos a uma igreja. —

Exclamou Jennifer, olhando pela janela.

Da janela era possível avistar uma igreja não muito grande, distante

algumas dezenas de metros dali.

Acomodaram-se ao lado da janela, Anna sacou da bolsa duas partes de


uma arma, que montadas formavam um fuzil de pequeno porte. Jennifer

demonstrou surpresa com a arma.

— Não me diga que vai matar o padre? — Perguntou.

— Não.

— Mas vai matar alguém?

— Só vou dar um susto.

— Com uma arma desse tamanho?

— Não sou eu que escolho os sustos.


— Entendi... Só está seguindo o roteiro que foi passado.

— Mais ou menos isso.

— Chegamos a tempo?

— Acredito que sim, a missa deve terminar às nove, vou pegá-lo na


saída.

— Temos vinte minutos. Me explica como fugiremos?

— Sairemos pelo mesmo lugar de onde viemos. O mais rápido possível.

— Sebo nas canelas!

— Espero que ninguém leve um tiro hoje. — Anna parecia séria.

— Apenas o seu pobre alvo... — Jennifer não levou a crítica a sério.

Anna permanecia com o semblante fechado.

— Pobre? Você sabe o que esse cara fez para chamá-lo de pobre?

— Hey, foi brincadeira. Acordou do lado errado da cama hoje?

Por Jennifer acreditar que Anna não nutria nenhum sentimento por ela,
não se deu conta do real motivo do mau humor dela naquela manhã. Não era o

atraso, era a presença de Alice.

— Já pedi desculpas pelo atraso. — Jennifer prosseguiu.

Anna percebeu que estava dando sinais de irritação, tentou melhorar o


clima.
— Apenas saiba que estamos fazendo o certo, mesmo que seja numa
igreja. Preferiria que fosse em outro lugar, mas o pedido foi desta forma.

— Você gosta de igrejas?

— Vazias.

— Conheço algumas bem bonitas... No Canadá eu fui numa catedral

linda, a catedral de Saint James, é estilo gótico, tem uns vitrais... Já foi ao

Canadá?

— Já.

— Se bem que com essa guerra, talvez essa igreja nem exista mais, né?

— É possível sim.

— Lembrei de você ontem à noite, lá no pub.

— Ah é? Por que?

— Porque Bob reclamou de ter um chope canadense num pub costa-

riquenho. Foi você que me abriu os olhos para os disparates de nacionalidade de

lá!

— Hoje em dia essas coisas são bem compreensíveis. Essas misturas de

nações e tal. — Anna respondeu, já com descontração.

— Eu nem iria ao pub ontem, eu sabia de nosso compromisso hoje cedo,


mas acabei indo, sei lá, tava entediada... E Becca insistiu. Ok, eu iria mesmo se
ela não insistisse, admito.
— Pelo visto valeu a pena.

— Foi normal, o de sempre.

Por alguns instantes ficaram em silêncio, Anna observava Jennifer, que


olhava a igreja além da janela.

— É sua namorada? — Anna irrompeu o silêncio.

— Alice? Não... Nãão. — O segundo ‘não’ saiu com mais veemência.

Anna apenas assentiu com a cabeça.

— É uma amiga... Colorida. — Jennifer continuou.

— E o que seria uma amiga colorida?

— Você não sabe mesmo o que é amizade colorida?

Anna apenas esperava a resposta.

— Tá... É uma amiga com benefícios. Hum... Também não sabe o que é,

né?

— Tudo bem, já imagino o que seja.

— Você até que pega rápido as coisas. — Jennifer falou sorrindo

timidamente.

A conversa foi interrompida pelo badalo do sino, anunciando o fim da


missa. Anna tomou posição e apontou o rifle na direção da porta da frente da
igreja. No pátio frontal havia uma estrutura de madeira, aparentemente

temporária, enfeitada com bandeirolas coloridas.


— Jennifer, se esconda atrás da parede!

Mas ela continuava espiando pela janela, algumas pessoas já começavam


a sair.

— Você sabe como ele é? O alvo?

— Só sei que é um baixinho, com cavanhaque e geralmente usa uma

boina.

De repente um aglomerado de pessoas saiu da igreja, e entre elas avistou

o alvo, conforme descrito, com sua boina cinza.

— Ele tá no meio do pessoal, o que você vai fazer, Anna?

Anna procurava a melhor mira, mas o sujeito estava encoberto pelas

pessoas que o rodeavam, inclusive por crianças.

— Não sei. E saia da janela!

Ela saiu rapidamente, mas logo voltou a observar a situação delicada que

se formava. Jennifer ficava mais preocupada a cada segundo, temendo que Anna

não acertasse seu alvo, ou pior, acertasse algum inocente.

Foi então que uma parte da estrutura de madeira veio a baixo e uma das
finas vigas de madeira caiu exatamente entre o ‘baixinho’ e o restante das

pessoas, separando-o do grupo, expondo-o à mira de Anna. Esta não titubeou, e


acertou-lhe um tiro no ombro esquerdo.

Ainda em êxtase pelo que acabara de fazer, olhou para o lado e viu
Jennifer um tanto ofegante, com a mão na cabeça. Não entendeu nada.

— Você está bem? — Anna perguntou, um pouco confusa.

— Estou sim... Vamos logo! Já devem estar procurando de onde veio o


tiro!

Anna a pegou pelo punho e desceram rapidamente as escadas. Montaram

na moto e voltaram para suas casas. Anna recusou o convite para almoçar com

ela e Becca, mas prometeu fazer algo com elas no próximo final de semana.

E seguiu para sua casa, intrigada.


Capítulo 8 – Uma o quê?

— Não vou beber hoje. — Disparou Jennifer.

— Algum motivo especial? — Becca rebateu.

— Não, nenhum.

— Ah já sei... Ela vai, não é?

— Anna? Vai. Mas não quero beber mesmo. Melhor não...

— Não se garante?

— Não é nada disso. Só não quero ficar bêbada... Quero curtir.

Jennifer e Becca colocavam a mesa para almoçar. Era um início de tarde

de sábado frio e cinzento.

— Por que você se importa tanto com Anna? — Jennifer perguntou,

enquanto mexia com o garfo na comida em seu prato, incomodada.

— Por que não deveria me importar? Não é uma simples nova amiga,
não acha?

— Eu acho.

— Sua mania de simplificar tudo. Acaba não vendo as nuances obscuras

dessa amizade torta. — Falou com ênfase em cada palavra.

— Você teme que se torne algo mais que uma amizade torta? É esse seu

medo?
— Só temo por você.

Jennifer não falou nada.

— Jenny, você já viu o que aconteceu quando um híbrido entrou na sua


vida.

— Foram as circunstâncias.

— Ser híbrido é uma circunstância.

— Acho que foi mais do que isso.

— Não sei. Acho que nunca saberemos.

E terminam o almoço em silêncio. Jennifer foi para seu pequeno

apartamento no final da tarde. Um pouco depois das onze da noite Anna

apareceu e seguiram para o já conhecido pub de sempre.

Jennifer não cumpriu sua promessa, conversava animadamente com

Anna entornando um chope atrás do outro, às vezes também falava com o

restante da mesa, que estava particularmente cheia naquela noite.

Anna percebeu a animação demasiadamente alcoólica de Jennifer, e com


zelo a advertiu que seria bom dar um tempo nos canecos.

— Vou pegar uma água mineral para você. — Falou levantando-se.

— Não quero... — Jennifer a segurou pela manga do casaco, puxando de


volta à mesa e derrubando um caneco de chope em seu próprio colo. Depois
passou um braço em volta de sua amiga, dizendo que estava bem.
Becca percebia perfeitamente o que acontecia: Jennifer começava a dar
vazão para seus sentimentos e desejos reprimidos há tantas semanas.

— Jenny, meu amor, vamos para casa? Bob vai nos levar, já está meio

tarde. — Becca a convidou.

— Não. Só vou embora com Anna.

Anna respondeu educadamente, tentando evitar um clima ruim.

— Tudo bem, Becca, também estou cansada, já estou indo e deixo

Jennifer em casa, sã e salva.

— Você está em condições de ir numa garupa de moto, Bob Esponja?

— Perfeitamente. — Respondeu Jennifer, com os olhos miúdos.

Anna assentiu com a cabeça.

— Eu vou devagar. — Falou baixinho pra Becca.

Pagaram a conta e seguiram de moto para casa. Como prometido, Anna

andou com velocidade bastante reduzida.

— Que lesma você hoje, hein? Logo você, que adora velocidade. —
Jennifer dizia, enquanto subiam as escadas do seu prédio. Anna a carregava pelo

braço, mas ela tropeçava em todos os degraus.

— Viu? Tropecei por sua causa. Acha que não sei subir a escada do meu
próprio prédio?

Anna apenas balançou a cabeça em desaprovação.


Chegaram até o quarto, Jennifer tirou o casaco e jogou-se na cama de
bruços.

Anna parou na porta.

— Você vai dormir assim, toda molhada de cerveja?

— Amanhã estarei seca.

Anna foi até a cama e a ergueu de lá pelo braço, com facilidade.

— Nossa, que garota forte! — Zombou Jennifer, enquanto cambaleava,

agora de pé.

— Você sabe o caminho para o chuveiro, não sabe?

— Quer refrescar minha memória? — Sorriu maliciosamente.

— Você tem duas opções: ou te coloco embaixo do chuveiro com roupa e


tudo, ou você entra lá por sua vontade e pelo bem da sua dignidade, e toma um

banho decente.

Jennifer abriu mais os olhos e a encarou com o resto da sobriedade que

lhe sobrava naquela noite.

— Na opção dois, você ainda estará aqui quando eu sair do banho?

— Se você quiser, estarei.

— Senta aí, então. — Falou, se dirigindo ao banheiro, já tirando a


camisa. Ou tentando tirá-la.

Anna apenas suspirou, achando graça da situação.


Poucos minutos depois Jennifer abriu a porta do banheiro, vestindo seu
roupão marrom.

— Pronto, sou outra mulher! Agora posso deitar?

— Vê cá, deixa eu te ajudar. — Anna falou a empurrando de volta para o

banheiro.

— O que foi?

— Seu cabelo, você não enxugou.

— Não precisa.

— Claro que precisa. Pense dessa forma: se você ficar doente não vai em

nenhum serviço comigo. — Falava enquanto esfregava uma toalha na cabeça de

Jennifer, que a olhava meio assustada.

— É, você tem um bom argumento. Minha mãe diria algo parecido.

— Eu sei.

Jennifer a encarava.

— Você não deveria fazer isso...

— O que, enxugar seu cabelo?

— Não... Ficar assim tão próximo de mim.

— Por que, qual risco eu corro? Lembre-se que sou bem mais forte que
você.
— Não é justo.

— O que não é justo? — Anna perguntou confusa.

Jennifer deu de ombros.

— Por que você é tão perfeita? E por que é tão legal comigo? E puta que
o pariu, por que é assim... Tão linda? Por que está aqui? Você não deveria estar

aqui.

Anna foi pega de surpresa e não respondeu.

— E ainda por cima eu fico torrando sua paciência... — Jennifer olhou


para baixo.

Anna sustentava um olhar brilhante, mas confuso. Largou a toalha em

cima do vaso.

— Estou aqui porque quero. — Respondeu com calma.

Jennifer voltou a olhar para ela.

— Posso abraçar você? — Jennifer pediu.

Anna deu um leve sorriso e a abraçou. Foi correspondida


carinhosamente.

— Eu não deveria estar falando essas coisas, não é?

— Vem, vou te colocar na cama. — Anna soltou-se dela.

Anna a conduziu até sua cama, levantando o cobertor e depois a cobrindo

até a altura do peito.


Jennifer a segurou pelo antebraço com a mão direita, puxando-a para
perto de si.

— Fique. — Sussurrou próximo ao ouvido de Anna.

Anna fechou os olhos, suspirou pesadamente e abriu os olhos.

— Melhor não.

— Eu sei que não deveria falar esse tipo de coisa, mas às vezes eu sinto

uma vontade enorme de beijar você... Eu sei, eu sei... Problema meu, não é?

Anna hesitou, lhe entregou um beijo carinhoso na testa e ergueu-se, a


encarando.

— Durma, você vai acordar melhor. — Sussurrou.

E partiu para sua casa, não sem antes esmurrar a parede da escadaria.

***

— Podemos conversar? — Anna falou, a sua porta.

Havia se passado quase uma semana desde o porre que Jennifer lutava

incessantemente para esquecer. Tantos porres em que ela mal se lembrava de ter
chegado em casa, e justamente aquele, ela recordava de quase todos os detalhes.

— Agora?

Jennifer foi pega totalmente de surpresa, achava que Anna nunca mais
quisesse vê-la nem pintada de dourado em sua frente. Mas lá estava seu inegável
objeto de desejo, parado na porta de seu apartamento, no início da noite daquela
sexta-feira.

— Está ocupada? Desculpe, eu deveria ter avisado antes, né?

Respondeu educadamente.

Jennifer ainda confusa, tentava decifrar o que significava aquela visita, e


aquele semblante preocupado de Anna.

— Não... Não, é só que... Você me pegou de surpresa, mas estou livre

sim. Entre.

— Pode ser lá em casa?

A essa altura Jennifer já estava suando frio, e a única coisa que se repetia

em seu pensamento era ‘estou ferrada... Estou muito ferrada.’

— Claro, espera eu me trocar?

— Estarei lá embaixo, na moto.

Correu para o quarto, tirou o pijama, ou o que usava como pijama, calça

xadrez vermelha e um moletom velho, cinza, com alguns pequenos furos

— Ela vai me encher de bronca... Tenho certeza. Estraguei tudo. Será que
posso fazer de conta que não lembro de nada? Ahan, logo você, a pior mentirosa

do mundo... Não vai colar...

Jennifer falava sozinha em seu quarto, enquanto se vestia.

Seguiram para a já conhecida mansão com aspecto sombrio, não mais


sombrio que o ânimo de Jennifer àquela altura. Adentraram a sala, que possuía
um pé direito alto.

— Pode sentar... Quer beber o quê? Tenho cerveja.

— Você tem refrigerante?

— Você? Refrigerante? — Anna deu um sorrisinho contido, mas Jennifer


não viu. Voltou à sala com dois copos com refrigerante, sentou-se no sofá

marrom de couro, que formava um L com o outro menor, onde Jennifer sentava,

próximo a lareira acesa. A sala era iluminada apenas pela luz do fogo.

Jennifer olhava as adagas e espadas penduradas nas paredes

acinzentadas, não havia as percebido no dia que invadiu aquele recinto com sua

gangue.

— E então, produzindo muitas facas? — Jennifer tentava um assunto

aleatório, e leve.

— Digamos que sim, as encomendas para o fim do ano já começaram a

chegar.

Jennifer iria tentar criar rodeios o máximo que conseguisse.

— De lojas?

— Nessa época sim.

— Naquele dia que visitamos você, não havia percebido essas lâminas

todas nas paredes, são lindas.

— Visitaram ou invadiram?
— É modo de falar.

Anna parecia um enigma normalmente, mas estava incrivelmente um


mistério naquela noite, e não saber onde aquela conversa iria chegar estava

deixando Jennifer em pânico.

— Entendo... Já jantou? — Anna tentou ser solícita.

— Não. Mas não estou com fome, não. Obrigada. Quer dizer, nem sei se

você estava me oferecendo janta, enfim, obrigada de qualquer forma. — Jennifer

sentou de forma ereta no sofá, rígida, com as mãos nos joelhos.

— Jennifer, você está bem?

— Sim, claro, ótima, muito bem, não pareço muito bem?

— Sinceramente?

— Olha desculpa, sério, mil desculpas por semana passada, eu sei que

você me trouxe aqui para puxar a minha orelha, mas já vou me adiantar, ok? Eu

sei que passei dos limites e enchi teu saco, mas acredite, prometo não te amolar
daquela forma nunca mais, você pode me jogar daqui de cima lá no mar, tudo

bem, as piranhas irão me devorar, existe piranhas marítimas? Mas será merecido,
você sempre foi super respeitosa comigo, e foi só eu beber um pouquinho e já fiz
besteiras, mas eu não ia beber! Nããão, não, Becca está de prova, eu falei que não

ia beber, mas acabei me afogando no caneco, literalmente... Minha calça que o


diga, você tinha que ver o cheiro de cerveja que ficou naquele banheiro no dia

seguinte quando acordei, e na minha calça! Pensei em jogá-la no lixo... E eu


tinha achado que mal tinha...

— Jennifer, Jennifer! — Anna falou tentando interromper aquela


verborragia.

— Sim?

— Está tudo bem. — Anna falava pacificamente.

— Está?

— Está.

Jennifer relaxou a postura, pousando as costas no encosto do sofá.

— Então está tudo bem.

— Você está suando?

— Um pouco.

— Quer ir lá fora tomar um ar? Acho que vai te fazer bem.

— Uma brisa do mar, é tudo que preciso. Vamos. — Jennifer levantou-se

e já foi em direção a porta.

Anna sentou-se no banco de ferro antigo, próximo ao paredão de pedra

da praia, Jennifer sentou-se na beira, de lado, com uma perna balançando sobre a
areia da praia junto ao paredão e a outra erguida, em cima. Puxou o casaco com

as duas mãos, fechando-o sobre o peito, quando uma corrente de ar frio passou
por ela. Anna levantou a gola do casaco preto.

— Desculpe, não queria aterrorizar você. — Anna falou.


— Tudo bem, estou aterrorizada com o que você poderia estar pensando
de mim... A semana inteira. Só coloquei um pouco para fora agora.

— Não falo por minha causa, pois não foi incômodo algum ter cuidado

de você sábado passado, mas falo por você, acho que você deveria parar no seu

número cabalístico, sete chopes é uma boa quantidade.

— Eu sei... Quanto mais eu pensava ‘não vou beber’, mais eu bebia, não
faz sentido, não é?

— Você parecia ansiosa. Eu te deixo ansiosa?

Uma lua grande e amarela clareava a noite, Anna podia ver perfeitamente

cada detalhe do semblante de Jennifer, que ora olhava para o mar, ora olhava
para frente.

— Às vezes... Mas não é culpa sua. Eu não estou acostumada a ter uma

pessoa como você do meu lado. — Jennifer respondia naturalmente.

Agora olhava o rastro prateado que a lua refletia no mar negro.

— Uma híbrida? Você está acostumada a ter apenas humanos por perto, é

isso que você quer dizer?

— Não... Mais ou menos... Mas não me importo se no meu convívio tem

humanos, híbridos, Titans...

— Ou?

— Como assim ou?


Jennifer não entendia onde Anna queria chegar.

— Você não tem semelhantes por perto, não é?

— Semelhantes? Eu e você estamos tendo a mesma conversa?

— Sim, desculpe... Estou deixando você mais confusa do que já estava.

— Você quer dizer, garotas como eu, que gostam de outras...

— Não, não é isso não. — Anna ruborizou.

— É o que, então?

Anna titubeou um pouco.

— Jennifer, você é uma Vulpi, não é? — Anna perguntou, num tom

confidencial.

— Uma o quê??

— Tudo bem, eu conheço um pouco sobre vocês, seu segredo está a

salvo comigo.

— Anna, o que tinha nesse refrigerante?

— Já faz algum tempo que eu tinha uma desconfiança.

— Desconfiança? De mim? Olhe, eu já te pedi desculpas, não precisa

ficar jogando isso na minha cara, ok?

— Jennifer, você está falando sério? Não sabe do que estou falando?
Você não é uma Vulpi?
— Mas que raios é isso??

— A terceira espécie.

— Alguns chamam os híbridos de terceira espécie, mas tecnicamente não


são, não existe uma terceira espécie.

— Existe, você sabe que existe.

— Você tem assistido muito filme de ficção científica, minha querida...

Ou embarcou numa viagem alucinógena e nem me chamou.

— Ok, você foi ensinada a não confiar em outra espécie, eu entendo.

— Por que você cismou que eu sou isso aí que você tá falando? O que é

um... Vulpi?

Anna a fitou por um instante, confusa, antes de prosseguir. Jennifer

começava a achar que era alguma brincadeira dela.

— Eu fui percebendo alguns sinais... As características que os diferem

dos outros, e você parece ter todas.

— Ok, descreva quais são. — Resolveu entrar na ‘brincadeira’.

— Bom... Os Vulpis geralmente são inteligentes...

Jennifer interrompeu com um riso abafado.

— … São líderes natos, teimosos...

— Agora você está descrevendo um ariano com ascendente em touro. —

Jennifer riu.
— ... E movem objetos com a mente.

O semblante de Jennifer desfigurou-se radicalmente neste momento, o


sorriso se transformou numa interrogação, agora estava séria e assustada,

olhando arregalada para Anna.

— Você move, não move? — Anna insistiu.

Jennifer deu um sorriso nervoso.

— Como você sabe?

— Eu sou boa observadora.

O coração de Jennifer estava disparado, sentia-se nua. Permanecia

sentada na beira do paredão, mas agora totalmente virada para Anna, que

continuava sentada no banco de ferro, inclinada para frente.

— Eu achava que tinha aprendido a disfarçar isso bem, com o tempo.

— Não precisa mais disfarçar comigo, quero que saiba que fico feliz em

ter uma Vulpi por perto.

— Mas eu não sou isso aí! Eu só... Movo coisas... Mas sou uma simples
humana!

Agora era Anna que não entendia.

— Você não é...

— Eu nem sei o que é isso, Anna!

Anna endireitou as sobrancelhas, que estavam franzidas, colocou a mão


sobre a boca, incrédula.

— O que foi? — Perguntou Jennifer assustada.

— Eu estava preparada para duas possíveis respostas esta noite, não


estava preparada para esta terceira.

— Como assim?

— Ou você era Vulpi, ou não era. Sequer passou pela minha cabeça que

você pudesse ser uma e não saber que é!

— Ninguém nunca me falou nada disso.

— Seus pais provavelmente tiveram alguma razão para não te contar,

provavelmente iriam te contar, mas acabaram partindo antes disso, não

imaginariam que morreriam no mesmo dia.

— Meu Deus, eu sou uma Vulpi?? Nem sei o que é, mas estou

apavorada!

— Não fique, isso é uma coisa boa, sua espécie é a mais sensata nesse

planeta. Nossa... Meu pai ficaria tão contente em te conhecer.

— Por que? Ele não era humano??

— Sim era, mas foi criado por uma família Vulpi, no Brasil, era adotado.
Foi assim que eu e meu irmão ficamos sabendo sobre vocês, meu pai tinha uma

estima enorme pela espécie e pelos pais adotivos, sempre falava tão bem...
Passamos a ter este carinho também.
Por um segundo aquele turbilhão que varria sua mente deu lugar àquelas
palavras: ‘ela tem carinho por mim...’ Mas foi realmente por um segundo apenas,

logo Jennifer voltou a ficar em pânico, sentia-se zonza. Virou-se de frente para o

mar, com as duas pernas balançando sobre o paredão, que naquele local tinha
pouco mais de um metro de altura.

— Jennifer? Tudo bem?

— Sim, está tudo bem, só talvez eu desmaie. — Sentia a cabeça pesando,

pulsante.

Anna saiu rapidamente do banco, desceu o paredão pela escada de


madeira e ficou de pé na areia grossa, de frente para Jennifer, entre seus joelhos,

apoiando suas mãos em suas coxas.

— Hey, olhe para mim, não precisa ter medo de nada, você continua

sendo quem você sempre foi. Eu sei que é difícil de acreditar nisso assim, de

uma vez... Nem eu estou assimilando ainda a ideia, mas aos poucos você vai
entendendo quem você realmente é, e eu vou te ajudar, não sou uma da sua

espécie, mas sei alguma coisa.

— E como você tem tanta certeza que isso tudo é verdade? Isso tudo
pode ser apenas lenda.

— Eu não tenho certeza de nada do que foi dito esta noite, mas acho que
você deveria apostar nisso.

Jennifer entrou num silêncio quase catatônico, olhava para o mar, além
Anna, pensativa. Anna saiu da frente de Jennifer e encostou-se ao seu lado, no
muro de pedras atrás de si.

— Desculpe... Eu achava que o único choque que você teria era por eu

ter descoberto sobre você. Deveria ter sido mais sutil, me faltou tato.

— Eu quero ter certeza, preciso ter certeza. — Jennifer respondeu

determinada.

— Então precisa ir atrás de quem tem essa informação. Algum parente

talvez?

— Não tenho nenhum na cidade.

— Tem tios, avós?

— Tenho, ou tinha... Não sei, nunca mais tive contato com eles. Meus

avós moravam aqui, mas se mudaram há muito tempo.

— Hum... Algo me diz que foram para bem longe daqui...

— Canadá... Montreal.

— Quer arriscar?

— Como assim? — Jennifer virou-se na direção de Anna.

— Posso te levar lá, se quiser.

— Eu e você, indo para Montreal... De moto?

— Você já deve ter percebido que sou uma motorista responsável. —

Anna tentava deixá-la mais relaxada.


Jennifer riu.

— É... Digamos que sim.

— Já fiz viagens maiores sobre duas rodas.

— Quantos quilômetros até Montreal?

— Pouco mais de quinhentos.

— E se não encontrarmos ninguém lá?

— Continuaremos a procurar.

Jennifer sustentava o olhar para Anna, não entendia o porquê de gestos

benevolentes como estes, não nos dias de hoje, onde era cada um por si, ou cada

um por sua espécie. Talvez ela se sentisse culpada por ter jogado tamanha bomba

em suas mãos, assim, numa noite que tendia ao quase constrangimento pelas

suas atitudes da semana passada, mas que tomara um rumo tão surreal, e

mudaria muito sua vida como ela conhecia há vinte e dois anos.

— Quando partimos? — Jennifer perguntou sorrindo.

— Quando você quiser. Tem outra coisa que quero perguntar.

— Depois dessa revelação não tenho medo de nenhuma pergunta.

— O que teria acontecido se eu tivesse ficado? – Anna ousou perguntar.

— Semana passada?

— É.
Jennifer sentiu o rosto quente, sem saber o que responder.

— Provavelmente algo que a deixaria ainda mais chateada.

— Eu não estou chateada.

— E por que não ficou quando eu pedi?

— Você estava bêbada, se arrependeria de tudo no dia seguinte.

— Depende do que você quer dizer com ‘tudo’.

— Não sei se estamos falando sobre as mesmas coisas. – Anna disse com

cautela.

— Eu também não sei.


Capítulo 9 - Montreal

Finalmente o dia da viagem chegou, despediu-se de Bob e Becca, com

uma mochila às costas subiu confiante na garupa da moto de Anna naquela

manhã de sexta-feira, rumo a Montreal. Rumo aos seus parentes. Rumo às suas

origens. Anna levava uma pequena bolsa transpassada em seu ombro, pousando
sobre o tanque da moto. Não poderia se demorar lá, tinha grande demanda de

encomendas em sua forja. Três ou quatro dias, havia prometido a Jennifer.

— Parece que andei a cavalo por três dias a fio. Sem sela! — A viagem

foi dolorosa, como esperado. Jennifer se esticava ao parar em frente a ponte que

ela reconheceu.

— É esta ponte? Tem certeza? — Anna também se espreguiçava, após

tirar o capacete negro.

— Me lembro perfeitamente da vista desta ponte, a partir do quintal de

Vó Meredith. A casa ficava deste lado da margem, à esquerda, se percorrermos


devagar tenho certeza que vou lembrar da casa. Se não foi demolida, é claro.

O frio naquela parte do Canadá estava cortante, o tempo cinza e uma


brisa vindo do rio deixavam seus rostos vermelhos e gelados.

Anna conduzia a moto em baixa velocidade, acompanhando os olhares


ávidos de Jennifer pelas casas da rua que costeava o rio.

— Aqui! Pare! — Quase gritou Jennifer.


Havia avistado uma casa típica de subúrbio, com as paredes de madeira
branca, descascando. Na frente uma varanda sustentada por madeiras marrons. E

um banco de madeira azul claro, de balanço.

Saltaram da moto e Jennifer bateu com vontade à porta, que tinha uma

abertura de vidro. Não demorou para uma velhinha simpática com cabelos gris,
abrir a porta devagar, cautelosa.

— Vó Meredith??

— Não pode ser...

— Sim, sou eu, vovó!

Anna acompanhava a ação atrás de Jennifer, estupefata.

— Mas disseram que você... E seus pais...

— O quê?? Disseram que morri? Quem falou isso?

— Alguém da assistência social da sua cidade... Mas venha cá, me dê um

abraço, minha neta! — Meredith era uma senhora rechonchuda, com o cabelo

preso num coque. Um vestido claro com pequenas flores adornava seu quadril
largo. Bochechas sobressalentes e rosadas, como de sua neta.

E abraçaram-se, ambas comovidas, com olhos cheios de lágrimas.

— Venha, entre, seu tio vai ficar tão feliz em vê-la.

— Tio Ethan?

— Sim!
— E o vovô...

Meredith apenas balançou a cabeça negativamente.

— Ah... — Jennifer entendeu.

Já era quase seis da tarde e a noite começava a surgir, Meredith percebeu


então que havia mais alguém com Jennifer.

— Esta é minha amiga, Anna. Anna, esta é minha vó.

Cumprimentaram-se e sentaram-se nos velhos sofás da sala de estar, que

também era a sala de TV, tinha uma decoração típica das casas mais antigas,
quadros com molduras escuras e grossas, tapetes de franja, móveis antigos.

Ethan só chegaria um pouco mais tarde.

— Vimos os nomes de seus pais numa lista de vítimas da sua cidade. Nos

disseram que todos haviam morrido num ataque à sua casa, pensamos em ir até a
cidade para ter mais informações, ou quem sabe conseguirmos fazer um funeral,

mas a informação que tivemos é que não haviam corpos, então desistimos.

— Não, não... O ataque foi à universidade, onde meus pais trabalhavam,

não foi na casa. Deram informações equivocadas a vocês. — Jennifer falou


desoladamente.

— É compreensível minha neta, naquela época a confusão imperava, mas


o importante é que você está viva, e olhe só, como está bonita! É tão parecida

com sua mãe... Óh, Olivia ficaria tão orgulhosa de uma filha linda como você...
Foi embora tão cedo, coitadinha.
Ficaram em silêncio por alguns instantes. Anna apenas acompanhava a
conversa, sentada numa poltrona um pouco afastada. Sabia que aquele momento

era importante para sua fiel escudeira, deixaria Jennifer o mais à vontade

possível.

— Titio! — Vibrou Jennifer, ao abraçar Ethan que respondeu pouco


depois ao abraço, confuso e assustado.

— Como assim, o pequeno castor está vivo? — Ethan falou, com um

sorriso enorme.

— Ah, não acredito que você lembra desse apelido besta!

Anna repetiu o apelido baixinho, rindo.

— Mas você não estava...

— Não, foi um grande mal-entendido, estou vivinha da silva!

Após colocarem a conversa em dia, Meredith as acompanhou até um

quarto de visitas, que tinha algumas pilhas de caixas nos cantos. Duas camas de
solteiro e um pequeno guarda-roupas completavam a decoração.

— Pequeno castor? — Anna sorria, deixando a sua bolsa de viagem em


cima da cama.

— Eu tinha os dentes para fora, mas já consertei. Ou ainda pareço um


castor, por acaso?

— Ok, só achei... Fofo.


Jennifer jogou um travesseiro nela.

Após o jantar, todos se reuniram novamente na sala de estar, Anna


percebia a impaciência de Jennifer em tirar toda a história a limpo, ela falava

nisso a semana inteira. Antes de seguir até a poltrona afastada, passou na frente

de Jennifer e sussurrou algo em seu ouvido.

— Vá devagar. Tenha calma. — Disse.

Mas ela não seguiu suas orientações.

— Vó. — Falou se inclinando para frente. — O que eu sou?

— Como assim, minha neta?

— Vocês também... Vocês também são... Vulpis?

Meredith e Ethan se entreolharam. E depois olharam para Anna.

— Ah não, esqueçam Anna, ela sabe de tudo, na verdade foi ela que

levantou essa possibilidade, e de qualquer forma ela é de confiança. Apenas me

digam a verdade.

Ethan tomou frente.

— Então você soube agora, não foi?

— Sim, ninguém me contou, como iria saber? Então é verdade? Sou isso

mesmo?

— Somos sim, minha querida. Você também é. — Meredith confirmou o


que Jennifer tanto aguardava ouvir.
— E por que ninguém me disse nada? Tem alguma idade padrão para
contar aos desavisados? Esqueceram a minha vez?

— Não sei exatamente quando seus pais iriam conversar com você, não

há uma idade padrão, mas tenho certeza que a guerra atrapalhou os planos.

— Então sou uma Vulpi. Isso é tão estranho falado assim, em voz alta. —

A própria Jennifer se assustava com o que falara.

— Não se assuste, somos iguais a todos, não somos? Só precisamos

manter tudo isso em segredo, um dia quem sabe nossa espécie virá à tona, mas

enquanto isso, é algo que guardamos entre nós, como uma irmandade.

— O que significa, Vulpi? Tem algum significado?

Ethan apontou para a altura do peito de Jennifer.

— Seu cordão, você ainda o tem?

Jennifer tirou a medalha para fora da blusa, e olhou curiosa.

— Isso tem a ver, não tem?

— O que tem desenhado, por baixo do brasão?

— Uma... Raposa?

— Isso. Raposas em romeno é vulpi.

— Romeno?

— Os primeiros líderes Vulpis surgiram lá, mas isso tem centenas de

anos... Depois as lideranças se concentraram na Escócia.


Foi como se Jennifer tivesse levado um susto.

— Escócia! A terra do meu pai!

— Sim, não é à toa seu pai ser o que é.. Ou o que foi... E ser escocês.

Agora Jennifer franzia o cenho, sem entender.

— O que meu pai era? Pessoal, sem mistério por favor.

Mas novamente Ethan e Meredith se entreolharam, hesitantes. Jennifer

esperava por algo cabuloso.

— Seu pai é descendente dos líderes Vulpis. Temos uma hierarquia, uma

espécie de nobreza. Os nobres são os que nos lideram e governam. São os líderes

dos clãs.

— Clã, raposas, nobres, acho que vou ter uma síncope com tantos termos

novos... — Jennifer não perdera o senso de humor no meio daquela situação

toda.

— Seu avô paterno é o líder do clã do sul da Escócia, seu pai, por ser o

primogênito, seria seu substituto natural.

— Meu avô... Está vivo??

— Não sabemos, já tem alguns anos que não temos notícias deles. —
Meredith falou pesarosa.

— Mas agora, com o pequeno castor de volta... — Ethan continuou.

— O que tem eu?


— Você é a primogênita do seu pai, não é?

— Filha única, para ser mais exata. — Jennifer respondeu, taxativa.

— Então você é a herdeira direta do legado do seu avô.

— Não, não deve ser assim que funciona. — Jennifer ria, nervosa.

Mas ninguém riu naquela sala.

— Se seu avô já faleceu, provavelmente sua tia assumiu o posto, a irmã

de seu pai. Como era mesmo o nome dela? — Meredith a acalmou.

— Tia Melanie. — Jennifer lembrava-se da última vez que fora até a

Escócia, e viu as duas irmãs de seu pai, além de seus avós. Ela tinha quase doze

anos na época.

Jennifer precisou de alguns minutos para assimilar aquilo tudo. Não

bastava ser Vulpi, era uma Vulpi nobre. Mas que raios aquilo significaria?

— Preciso tomar um ar. — Começou a suar frio. Saiu rapidamente da

sala, foi até o quintal. Sentou-se nos degraus que davam acesso ao pátio

gramado, onde havia uma carcaça branca e enferrujada de automóvel e um


tanque de concreto. Os fundos davam para o rio.

Menos de um minuto depois percebeu Anna sentando-se ao seu lado. E

ninguém falou nada. Ficaram alguns minutos ali, apenas lado a lado, dividindo
aquele degrau frio, de ombros colados. Olhando vez ou outra para o céu

parcialmente nublado, um pequeno punhado de estrelas eram visíveis por entre


as nuvens.

Anna tirou seu cachecol de lã cinza e enrolou no pescoço de Jennifer, que


tremia.

— Desse jeito você será o pequeno castor congelado. — Anna tentava

iniciar um diálogo.

— Isso foi quase engraçado. — Respondeu com um sorrisinho no canto

da boca.

— Então essa é a vista que você tinha da ponte. É uma bela vista. —

Anna levantou as sobrancelhas.

— É tão diferente agora.

— O que mudou?

— Eu. Eu acho.

— Foi demais para uma noite?

— Estou bem... Só preciso de um tempo para colocar as ideias em

ordem.

Anna a olhava, analisando se ela estava realmente bem. Uniu e levantou

a gola do seu próprio casaco. Passou a olhar para frente também. Mas já sentia
que Jennifer baixaria as defesas logo. Apenas esperou.

— Sabe... O que tiver que acontecer, tudo bem, que venha. O que me
assusta é perder o controle da minha vida, até alguns dias atrás eu sabia tudo que
estava acontecendo e era tudo tão previsível... Não que seja legal ter uma vida

previsível, mas era tudo tão simples.

— É como se você não se conhecesse mais?

— Eu nem sei direito quem eu sou. Acreditei em tantas coisas. E agora

parece que vivi uma mentira. Se eu estiver sendo melodramática demais me

avise.

Anna riu.

— Hoje você pode.

— É... Acho que novos tempos estão vindo.

Anna assentiu com a cabeça. Olhou para o lado e percebeu que os seus

olhos já enchiam de lágrimas, tentava segurar. Virou-se na direção de Jennifer e

a puxou para próximo de si, um braço a trouxe para junto do seu próprio corpo, o
outro trouxe sua cabeça para baixo do seu queixo. Jennifer se deixou levar e

aninhou-se nela. Tão quente e confortável, como naquela noite fria na casa

abandonada.

— Você não está só... Não esqueça disso.

Jennifer sentia a mão quente de Anna em seu rosto e tremia ainda mais.

Se antes ela tentava organizar a pilha de novas informações que havia recebido,
agora era como se estivesse num mar e seus pensamentos eram como papéis

sendo recolhidos da superfície. Anna era como uma onda que vinha e bagunçava
tudo ainda mais.
— Você nunca contou para ninguém sobre esse seu... Dom de mover as
coisas?

— Não.

— Nem para seus pais?

— Só para eles.

— E?

— Tentaram fazer eu acreditar que aquilo era algo comum, que outras

pessoas também faziam aquilo, mas seria melhor eu não contar para ninguém. Se
eu quisesse conversar sobre isso, que o fizesse somente com eles.

— E nunca teve vontade de contar para mais alguém?

— Quando era pequena sim, mas depois, sei lá, depois dos dez anos

fiquei com medo de assustar as pessoas contando.

— E então guardou isso para você até agora.

— Sim, não queria correr o risco de ser a nova Carrie.

Ambas sorriram.

— Anda, vamos entrar antes que nos tornemos esculturas de gelo no


quintal da sua vó. — Anna começou a levantar-se.

— Daí seria outro filme...

— Qual?
— O Iluminado. Vamos, Jack.

***

Aquela longa sexta-feira terminou com as duas viajantes capotando em


suas respectivas camas. No dia seguinte, o outro tio de Jennifer, Christian,

apareceu para almoçar com a família, juntamente de sua esposa e suas duas

filhas, de dezesseis e dezoito anos, todos moravam num bairro próximo.

O restante do dia foi regado a conversas e recordações, com direito a

álbuns de fotos e boas memórias.

No domingo Jennifer e Anna saíram para passear pela cidade.

— Aqui, esse parque. — Jennifer apontou, ainda de cima da moto.

Chegaram à uma praça cheia de árvores, com bancos aparentemente novos e

alguns balanços e escorregadores.

— Mas não era assim, tinha mais árvores, mais... Tá faltando alguma

coisa.

Atravessaram a pé pelas árvores e deram de cara com uma quadra

esportiva de concreto, Jennifer puxava Anna pela mão.

— O lago. Aqui tinha um lago. Era isso que estava faltando.

— Que deveria congelar nesta época do ano, não? — Anna comentou,


agora lado a lado com Jennifer, olhando para a quadra, onde alguns adolescentes

jogavam basquete.
— Sim... Caí vários tombos deslizando no gelo. Pobre lago.

— Venha. — Jennifer novamente saiu arrastando Anna pela mão.

— Quantos anos você tinha quando seus avós vieram para cá? —
Caminhavam entre algumas árvores.

— Acho que oito. Desde então todo ano vínhamos para cá, para passar o

Natal.

— Até quando?

— Quando a guerra começou.

Caminharam até um local com árvores esparsas, parecia abandonado.

— Aqui era cheio de grandes mesas e bancos de madeira, as famílias

vinham fazer piqueniques durante o dia. E durante a noite...

— Eu imagino. — Anna interrompeu.

— Aqui, ou mais ali, bom não lembro, estava escuro... Mas foi aqui que

dei meu primeiro beijo.

— Ah, entendi a empolgação.

— Eu parecia empolgada? São seus olhos.

Anna sorriu e balançou a cabeça.

— Menino ou menina?

— Tanto faz, desde que venha com saúde.


— Você entendeu.

— Menina. — E sorriu maliciosamente. — Venha, tem outros lugares


que você vai gostar de conhecer.

Na segunda-feira Anna conversou com Jennifer a respeito de sua partida,

que seria no dia seguinte.

— Tudo bem se você quiser ficar... Mesmo. — Anna arrumava sua bolsa,

guardando seus pertences.

— Eu vou logo, daqui alguns dias. Vou aproveitar um pouquinho estar no

meio dos meus familiares.

— Claro, aproveite, tire uns dias para vocês. Se quiser eu venho te

buscar.

— Imagina, rodar isso tudo de novo só para me dar uma carona.

— Não me importaria. Tome. — Anna entregou um aparelho de celular

na mão de Jennifer.

— De quem é?

— Agora é seu. Comprei ontem, enquanto você passeava com suas


primas.

— Não, isso deve ter custado uma grana, fique.

— Você não sabe que é feio recusar presente?

— De que?
— Sei lá, Natal antecipado? Quando quiser voltar, me ligue. Ou mande
uma mensagem. Meu número já está gravado na agenda.

— Se sentir saudades também posso mandar mensagens? — Falou com

ironia.

— Se sentir saudades, me ligue. — Anna disse de cabeça baixa, enquanto

fechava o zíper da bolsa.

No dia seguinte tomaram café cedo, juntamente do restante da família.

Anna despediu-se deles e foi para a moto, Jennifer a acompanhou.

— Prendo meu capacete no banco?

— Hum... Não, melhor ficar com você. — Anna vestia suas luvas de

couro. Era final de novembro e a viagem de volta seria bem gelada. Ainda mais

por não ter sua parceira à sua cintura, como um bicho preguiça preso à árvore.

Jennifer largou o capacete no chão e a abraçou, e assim como todos os

outros abraços, pegou Anna de surpresa.

Anna montou em sua moto e colocou o capacete.

— Você vai ficar bem? — Falou, ainda de viseira aberta.

Jennifer deu um sorriso torto e balançou a cabeça.

— Me avise quando chegar em casa. Não faça nada que eu não faria, não

se aventure demais nem banque a Mulher Maravilha. E... Obrigada, obrigada por
tudo. — Jennifer tentava disfarçar sua voz embargada.
— Aviso sim. Não se preocupe comigo, aproveite estes dias... E volte
tranquila. Mas volte.

Jennifer encarava aqueles olhos azuis com uma dor que lhe dilacerava

por dentro. Ela sentia que não ficaria apenas uns dias por lá, mas não tinha

coragem de contar à Anna. Quando não pode mais segurar as lágrimas, virou o
rosto, esfregou as costas das mãos nos olhos. Anna titubeou um instante, já havia

colocado a chave na ignição, mas num gesto rápido pulou da motocicleta e

retirou seu capacete, caminhou na direção de Jennifer e a abraçou, a envolvendo

calorosamente.

— Vai ficar tudo bem, meu anjo.

Jennifer a abraçou ainda mais forte. E depois a soltou.

— Vai ser estranho ficar longe de você. – Jennifer disse, trocando um

olhar intenso.

Anna tirou a luva da mão esquerda e afagou o rosto dela.

— Vou contar os dias para estar com você de novo.

— Não quero te prender mais... Não quero que dirija a noite. —


Respondeu baixinho e lhe deu um beijo no rosto.

E Anna partiu de volta para Bridgeport, deixando um pedacinho de si


para trás.

***
Os primeiros dias em Montreal foram repletos de longas conversas com
sua avó e seu tio Ethan. Jennifer estava experimentando viver em família

novamente, desde seus quinze anos vivia por si, privada precocemente de um lar

com seus parentes próximos, e estava adorando reviver isto.

Enquanto isso, Anna trabalhava em tempo integral em sua forja e


entregando as encomendas. Voltou a executar suas missões noturnas, mas sentia

falta de algo, não era a mesma coisa se aventurar em lugares insólitos sem

Jennifer.

Costumavam trocar mensagens de texto uma ou duas vezes por dia. Em

algumas noites mais tranquilas, Anna ligava, mesmo sabendo que a ligação teria

má qualidade.

No final de semana seguinte, Jennifer aceitou o convite para sair com sua

prima de dezoito anos, Carly. Foram a um bar local, um ambiente alternativo,

porém muito mais descolado que o pub do Oscar. Lá conheceu Susan, uma bela

jovem filha de franceses, que estudava com Carly, e assim como elas, era uma

Vulpi também. Rolou uma química instantânea e Jennifer logo percebeu as


intenções da garota com sotaque deliciosamente diferente.

Alguns drinques depois Jennifer precisou ir ao banheiro e foi seguida


discretamente pela francesinha. Mas não foi com muita surpresa que foi

convidada a entrar em uma das cabines. Alguns minutos de lascividade se


seguiram, logo Jennifer a interrompeu, estava um tanto confusa e preocupada em
deixar sua prima em maus lençóis. Voltaram à mesa como se nada tivesse
acontecido, trocaram telefones e marcaram de se ver durante a semana.

E assim ela colecionou mais uma amizade colorida a seu currículo,

lembrou do dia que falou sobre isso com Anna, na missão da igreja. — Se ela

estivesse aqui hoje saberia o que é uma amizade colorida na prática. — Riu
sozinha.

Na quarta à noite foi até a praça arborizada que havia levado Anna para

conhecer, encontraria suas primas lá. A área iluminada do local se tornava um

ponto de encontro dos jovens da cidade à noite. Sua cabeça continuava a mil por

hora, nem havia lembrado da possibilidade de Susan estar lá.

— Quem? — Respondeu displicentemente para Carly.

— Você ficou um tempão conversando com ela no bar sábado, não

lembra?

— Ah sim, Susan, a francesa, claro.

— Na escola ela não parava de perguntar se você viria hoje...

— Deve ser porque prometi emprestar meu pen drive com MP3s.
— Disfarçou.

Susan chegou e Jennifer sentiu-se um pouco constrangida por lembrar do


que fizera na semana anterior, ficando com uma amiga de sua prima, mal tinham

feito dezoito anos.


— Sabia que você viria... — Sussurrou Susan.

‘E eu não fazia ideia que você viria.’ — Teve vontade de responder.

— Pelo visto toda a população abaixo de trinta frequenta essa praça a


noite. — Foi a resposta que ela realmente deu.

O grupo de amigos passou a noite se dividindo entre vinho barato,

cervejas, bate-papo e skates.

— Você veio para Montreal de moto, não foi?

— Sim, mas vim na garupa. Anna veio pilotando.

— Carly me contou sobre sua amiga, é verdade que ela é uma híbrida?

— É sim, mas só me lembro disso quando me perguntam. — Respondeu

incomodada.

Ficaram em silêncio por um instante.

— Jenny, quer vir comigo comprar mais cerveja? Não vendem bebida

alcoólica para menores de vinte e um anos por aqui, preciso de sua maioridade,

empresta? — Sorriu maliciosamente.

Claro que foi apenas uma desculpa, e assim que saíram da vista do

pessoal, elas se atracaram próximo às árvores. Novamente Jennifer teve uma


epifania de responsabilidade e interrompeu aquele momento adolescente,

voltando ao convívio de suas primas, ajeitando as roupas.

Logo depois, voltou para casa de sua avó, prometendo a si mesma não
mais ceder às investidas da francesa.

Para quem estou mentindo... A carne é fraca... — Pensou ao fechar a


porta de seu quarto.

Na sexta-feira acordou com o alerta de recebimento de uma mensagem

de texto, correu para ler, esperando ser um ‘bom dia’ de Anna, mas era um

convite de Susan.

‘Meus pais vão visitar minha avó hoje, só retornam no domingo, por

acaso você quer aquelas aulas de guitarra hoje à noite? Casa azul, no final da rua

da Carly.’

***

Aquela sexta-feira foi de intenso trabalho para Anna, trabalhara na sua

forja o dia inteiro. Desligou a máquina e olhou para um velho relógio de parede,

passava das onze da noite. Enquanto tirava as luvas e o avental de couro, deu

uma olhada no calendário fixado abaixo do relógio, fazia dez dias desde que

voltara do Canadá.

E desde então Jennifer não havia falado em nenhum momento sobre sua
volta aos Estados Unidos, nem uma menção sobre alguma data futura, algum
planejamento, nada. Isso afligia cada dia mais Anna, que sentia sua falta

demasiadamente.

Subiu, tomou um banho demorado e caminhou até sua cama, viu seu

celular em cima do criado mudo, pensou em ligar. O que Jennifer estaria fazendo
numa sexta à noite? Provavelmente saiu com suas primas, concluiu. Deitou-se,
fechou os olhos e suspirou de cansaço. Mas minutos depois levantou-se de

sobressalto, olhou novamente para o aparelho pousado ali do seu lado, hesitou, e

então seguiu até a varanda com ele nas mãos.

Fechou os vidros da sacada, para evitar o barulho do vento.

Vou ligar... Mas não vou perguntar quando ela pretende voltar, seria
muito invasivo de minha parte, e talvez ela se sentisse mais pressionada. Vou

ligar e apenas dizer que estou sentindo sua falta, que as missões sem alguém

tropeçando e resmungando do meu lado não é a mesma coisa. Isso. Estou

sentindo sua falta, pirralha, só isso, sem pressão. — Pensava com seus botões.

Chamou o número de Jennifer, chamou uma vez, duas, várias vezes. —

Deve ter esquecido o celular em casa. — Imaginou.

Então o telefone foi atendido, uma voz sonolenta respondeu do outro

lado.

— Alô?

— Jennifer?

— Não... É Susan. Respondeu baixinho, uma voz com forte sotaque.

— Ãhn... Posso falar com Jennifer? — Anna perguntou, confusa.

— Ela está dormindo... Quem está falando?

— Você pode por gentileza dar o recado a ela dizendo que Anna ligou?
— Anna? Olha só Anna, quem tá falando é a namorada dela, faça um
favor para nós, não ligue mais, nem mande mensagens, Jennifer está tentando

tocar a vida dela aqui e você deveria fazer o mesmo com a sua aí. — E desligou.

Anna ficou ainda alguns segundos com o telefone mudo junto ao ouvido,

assimilando o que acabara de escutar.

Susan caminhou até a cama onde Jennifer dormia profundamente, nua. E


deitou-se ao seu lado.
Capítulo 10 – Feliz ano novo!

Uma semana após o telefonema havia se passado, Anna andava pelo seu

quarto, recém-saída do banho, tentando fazer a TV funcionar. Ouviu uma batida

na sua porta lá embaixo. Terminou de se vestir rapidamente e desceu as escadas

em passos rápidos, ouviu novamente a batida.

— Max? — Exclamou surpresa, ao se deparar com seu amigo e parceiro

profissional, que além de repassar as missões, era uma espécie de guru para ela.

— Esperava outra pessoa?

— Não esperava ninguém. Vamos, entre.

Max sentou no sofá maior, Anna lhe ofereceu uma bebida, mas ele

ergueu o pequeno fardo de cerveja que trouxe consigo, atirando uma lata para

ela.

— Aconteceu alguma coisa? — Anna perguntou, curiosa com a visita

surpresa.

— Não sei, diga-me você.

— Eu estou ótima, trabalhando para dar conta das encomendas. Inclusive

estou devendo um lote à sua loja, devo te entregar semana que vem. Mas o prazo
não venceu ainda, foi por causa disso que você veio?

— Não, não foi, não tenha pressa com minha encomenda. Só senti sua
falta na loja essa semana, não apareceu para acertar as contas, nem para

conversar, não pegou nenhuma missão, vim ver se não havia morrido de tanto

trabalhar.

Max havia sido um grande amigo de seu pai, também era híbrido,

aparentava uns cinquenta anos, cabelos grisalhos, penteados para trás, tinha
aparência simpática.

— É só isso mesmo, trabalho. Eu iria até lá na semana que vem, ou na

outra. — Anna estava visivelmente cansada, falando num tom baixo.

Max olhou por baixo do seu olhar.

— Anna?

— Sim? — Respondeu, correspondendo ao olhar de Max.

— Jennifer não vai voltar, não é?

Anna girava a lata de cerveja em suas mãos, passou a olhar para baixo.

— Acho que não.

— Aconteceu alguma coisa? Ou é só intuição?

— Eu deveria ter percebido antes. Quando nos despedimos. Havia algo

errado, eu deveria ter percebido. — Falava com pesar.

— E o que ela tem falado?

— Nada.

— Não estão se falando?


— Parei de ligar e mandar mensagens, só respondo o que ela me manda.

— Por que?

Anna virou-se e encarou Max.

— Porque a namorada dela pediu.

— Desde quando ela tem namorada?

— Não sei. Desde que chegou lá talvez. Mas não importa, ela escolheu

reconstruir sua vida lá, é um direito dela, se eu tivesse uma família disposta a me

acolher, também pensaria duas vezes antes de voltar para cá.

— Ela precisa de um tempo para si, tem pouca idade, pouca experiência

de vida, tenha paciência com ela. E a garota deve ser alguma amizade colorida.

— Até você sabe o que é amizade colorida, Max??

***

A verdade é que Anna havia iniciado um processo de volta ao seu estado

habitual: a razão. Sua vida voltava ao normal aos poucos e ela começava a

aceitar isto, apesar da dor da ausência e do vazio.

Outra semana se passou e Anna terminava de se arrumar em seu quarto.

Iria à um bar que costumava ir, na Cidade Velha, um bairro sombrio e com bares
obscuros, geralmente em velhos prédios. Conversava com o barman, seu amigo

Joel, um híbrido, como quase todos os frequentadores do local.

Este era seu ritual quando seus instintos mais primitivos começavam a
incomodar, uma fuga para um bar cheio de pessoas aleatórias e passageiras,

assim como ela. Que terminava em uma noite de sexo intenso com algum

desconhecido. Assim, simples, e seu problema estava resolvido. E foi assim que

aquela noite terminou, na cama de algum desconhecido.

***

O Natal se aproximava e Jennifer passou a tarde ajudando sua avó a


arrumar a árvore. De tempos em tempos tirava o celular do bolso do casaco,

dava uma olhadela, e guardava novamente.

— Sua amiga não ligou mais? — Meredith perguntou, olhando para sua
neta com pena.

— Ãhn... Não, não tem ligado nem mandado mensagens. Ela ficou

estranha de repente, sei lá, do nada.

— Por que não a convida para passar o Natal aqui, com a gente? Você

falou que ela não tem família lá.

Jennifer não respondeu, ficou um tempo pensando na possibilidade.

— Quem sabe ela decide ficar por aqui também. — Continuou.

Ela não ficaria. Jennifer pensou.

— Quem sabe, vó.

Mais tarde, no seu quarto improvisado, Jennifer tomou o celular nas


mãos e resolveu mandar uma mensagem para Anna.
Você está oficialmente convidada a passar o Natal aqui conosco, com a
benção de vó Meredith. :)

Segundos depois veio a resposta.

Obrigada pelo convite, mas já tenho planos.

Anna não tinha planos.

***

As festividades de Natal ocuparam a mente de Jennifer por uns dias,

esperava obter respostas com o passar do tempo, que as coisas clareassem, mas
continuava numa confusão de ideias, e cada vez mais envolvida com Susan.

No penúltimo dia do ano, um domingo, Susan a convidara para ir na casa

de uma amiga, seus pais não estariam em casa naquela noite. E a amiga também

teria companhia.

— E então eu enfiei minha adaga no pescoço da gárgula, que esperneou

igual um animal sendo abatido! — Contava Jennifer, empolgada.

— Pfff... Que mentira, gárgulas nem existem. — Respondeu Susan, com


desdém.

Jennifer lançou um olhar decepcionado para ela, preferiu não continuar a

conversa.

O filme mal estava na metade e a amiga de Susan já estava no sofá ao


lado aos beijos com seu namoradinho.
— O quarto de visitas é nosso hoje, quer ir para lá? — Sussurrou Susan,
enquanto beijava o pescoço de Jennifer.

— Não sei, Sue... É a casa dos outros.

— Deixe de caretice, já conversei com ela antes, o quarto está liberado.

Susan a conduziu pela mão até o quarto, no andar de cima.

Inicialmente contrariada, logo Jennifer foi se soltando e não demorou

muito para que as roupas voassem e a noite terminasse com sexo carregado de

tesão, mas era só isso que Jennifer encontrava nesses encontros furtivos.

Jennifer acordou com o braço dormente, logo viu o motivo: Susan

dormia sobre ele. Retirou o braço com toda delicadeza para não acordá-la. Ficou

alguns minutos ali, apenas olhando para a pequena garota, nua ao seu lado na

cama. Sentia algo que não gostava, era incômodo, mas não sabia o que era.

É a pessoa errada. — Pensou, num momento de lucidez.

Vestiu-se silenciosamente, correu até a casa de sua avó. Tomou um banho


e deitou-se, já estava amanhecendo, mas não conseguia dormir. Girava na cama,

inquieta. Ouviu os ruídos de sua avó preparando o café da manhã, levantou e se


vestiu.

— Bom dia vó. — Falou sentando-se junto à mesa.

— Bom dia, Jenny, acabei de fazer esses bolinhos. — Respondeu,

apontando para um prato com quitutes em cima da mesa.


— Não conseguiu dormir essa noite? — Continuou.

— Não.

— Está tudo bem? Foi o barulho no vizinho que a incomodou?

— Vó? Tem uma coisa que preciso lhe falar. Vou voltar para casa.

— Mas aconteceu alguma coisa?

— Não. Só acho que já está na hora. — Jennifer tinha os olhos

vermelhos, num misto de insônia e choro.

— Você sabe que aqui também é sua casa, não sabe?

— Sei sim. — Caminhou até sua avó e a abraçou. — Mas eu preciso

voltar, tenho uma vida lá. Preciso voltar, vó.

— Eu vou apoiar qualquer decisão sua, minha querida, mas não quer
pensar mais um pouco? Passe o réveillon com a gente.

— Preciso voltar, vó. — Era a única coisa que conseguia falar. A abraçou

mais uma vez, demoradamente.

Naquela manhã despediu-se de seus tios e primas, por fim de sua avó.
Arrumou suas coisas, guardou um embrulho dentro do casaco azul escuro, pegou

o capacete, e partiu ao meio-dia.

— Como você vai chegar até Connecticut? — Perguntou Meredith, da


porta de casa.

— Ônibus, carona... Eu me viro, não se preocupe. Eu volto em breve,


vózinha. — Despediu-se e saiu pelo portão, olhando para trás.

Meredith ficou ainda algum tempo olhando a neta indo embora, voltou
para dentro de casa e chamou seu filho, que estava em seu quarto.

— Ethan? Me faça um favor, busque papel e caneta.

— Para que? — Respondeu curioso.

— Você vai me ajudar a escrever uma carta.

***

Jennifer caminhou até a rodoviária da cidade, pegaria qualquer ônibus

que a levasse na direção de sua casa.

— Tem algum ônibus que vá para Bridgeport? — Perguntou num guichê.

— Onde fica isso, garota?

— No sul de Connecticut.

— Hoje não, mas às quartas tem um ônibus que passa por essa região.

Ela não iria esperar até quarta-feira.

— Tem algum ônibus hoje que vá pelo menos nesta direção? Depois

pego outro, ou carona.

— Daqui meia hora tem um que vai para Plattsburgh, a cem quilômetros
daqui, é caminho.

— Serve, me veja uma passagem.


Jennifer ajeitou o capacete sobre o colo, ajeitou o casaco e o cachecol
cinza de Anna, mesmo dentro do ônibus fazia muito frio. Encostou a cabeça no

vidro e acompanhou a paisagem urbana de Montreal ficando para trás, se

tornando campos e plantações. O sono fazia suas pálpebras pesarem, mas mesmo
assim não conseguia dormir.

Quando o funcionário da empresa de ônibus abriu a porta avisando

estarem na cidade de Plattsburgh, levantou-se rapidamente e saiu, descendo

numa pequena rodoviária, parcialmente destruída. Olhou ao redor, havia somente

um guichê minúsculo e apenas uma plataforma de embarque.

— Boa tarde, tem algum ônibus para Bridgeport?

— Connecticut?

— Isso.

— Não, saindo daqui não.

— Tem algum que vá para o sul?

— Sim, mas saiu de manhã.

Jennifer andou até uma estrada movimentada, não sabia exatamente


como pedir carona, mas depois de algum tempo andando pelo acostamento,

passou a gesticular timidamente com a mão para os veículos que passavam em


alta velocidade.

Um caminhão antigo, vermelho, parou um pouco adiante. Jennifer correu


até lá e se pendurou na porta.

— Vai para onde, mocinha? — Falou um homem hispânico, com no


máximo trinta anos.

— Connecticut.

— Te deixo em Albany, depois sigo para o interior, mas você pode pegar

outra condução, serve?

Jennifer já foi logo abrindo a porta e se acomodando no banco de molas

do caminhão.

— Cadê sua moto?

— Não tenho moto, não.

— E esse capacete? Ah já sei, é da moto do seu namorado, não é?

Jennifer deu um sorriso contido.

— Não, não. É de uma amiga, ela só me deu uma carona.

Ele a deixou num cruzamento de rodovias. ‘Siga sempre para o sul que

em algum momento você encontra sua casa’, havia aconselhado o jovem


motorista.

Apesar do grande fluxo de carros e caminhões naquele entroncamento,

tinha mais de uma hora erguendo o polegar, sem sucesso.

Então o que parecia ser sua salvação finalmente surgiu, uma caminhonete
azul parou para ela. Dentro, um caipira de cabelos arruivados e barba do mesmo
tom, com um sorriso aberto.

— Vamos lá, gatinha, te deixo em casa.

Jennifer embarcou, não muito confiante, mas começava a escurecer e


resolveu arriscar.

— Uma garota bonita assim, sozinha na estrada em pleno ano novo, tá

procurando serviço? — Sorriu com malícia.

— Não. Só quero voltar para casa mesmo, estava na casa da minha avó e

resolvi passar essa noite na minha cidade. — Jennifer se encolhia no canto,

segurando firmemente o capacete.

As horas passavam e o cansaço acabou a vencendo, adormeceu num

cochilo improvisado. Acordou com uma mão áspera percorrendo suas pernas.

Sem entender, olhou para o lado assustada e viu o motorista, agora com um

aspecto terrivelmente asqueroso, sorrindo para ela.

— Hey, eu... Eu não sou o que você está pensando! — Falou

rispidamente.

— Sei bem o que garotas como você estão procurando, tenho certeza que
esse capacete é só para disfarçar, não é?

— Pare aqui, sério, vou pegar um ônibus, mudei de ideia.

— Mas ainda faltam quase cem quilômetros até sua cidade, podemos

fazer uma viagem bem gostosa. — Piscou, sorrindo.


Jennifer tentava abrir a porta puxando a trava, sem sucesso.

— Largue isso, sua vadia! Vai pular com o carro em movimento? Vá,
pule!

— Pare o carro, por favor. — Implorava.

Alguns minutos aterrorizantes se passaram até finalmente a caminhonete

estacionar no acostamento escuro. Jennifer abriu rapidamente a trava e a

maçaneta e saiu correndo, abraçada ao capacete. Virou-se para ter certeza que ele

havia ido embora.

Parou ofegante quando viu o carro partindo acelerado. Não havia postes

de luz nem casas próximas naquela parte da estrada. Via luzes distantes, que
parecia ser um vilarejo, mas pareciam muito distantes.

Após se recompor, começou a gesticular novamente para os carros, que

não passavam com tanta frequência quanto gostaria.

Olhou o relógio, era quase nove da noite, dentro de três horas chegaria o

novo ano e definitivamente ela não queria passar o réveillon num acostamento

de estrada, procurando por carona e com frio.

Um caminhão branco grande, trucado, diminuiu a velocidade e parou


dezenas de metros a sua frente. Jennifer novamente correu esperançosa, dessa

vez deu uma boa olhada no motorista, um senhor de cabelos grisalhos e pele
escura, com bigode igualmente acinzentado. Resolveu arriscar, e alojou-se no

interior da cabine.
— Deixo você na rodovia, na entrada da sua vila, tudo bem?

— Sim, sim, está ótimo. — Respondeu. — Só quero chegar na minha


casa.

— Você sabia que está caindo uma nevasca na sua cidade? Vi na TV

agora a pouco.

— É o inverno dando as boas-vindas para o ano novo... — Respondeu.

Era dez em ponto quando finalmente colocou a chave na fechadura do

seu apartamento, o alívio de abrir a porta e ver sua casa, seus móveis, sua cama,

a deixou em êxtase.

Jogou o capacete no sofá e tomou um banho quente. Colocou seu pijama

e desabou em sua cama, de bruços. O sono viria fácil, pensou. Mas não veio.

Novamente se via girando na cama, incomodada. Sentou-se então, seus


pensamentos eram confusos, mas uma coisa era bem clara.

— Preciso vê-la.

Aquele sentimento era como uma caixinha de surpresa, com um palhaço


de mola querendo pular para fora enquanto ela tentava fechar a tampa,
inutilmente.

O palhaço venceu. Trocou de roupa rapidamente, enrolou o cachecol de


lã cinza, vestiu um casaco preto de nylon espesso e desceu as escadas de seu

prédio pulando os degraus de dois em dois.


Assim que pisou na rua sentiu os pequenos flocos de neve se alojando em
sua roupa e cabelos, olhou para o céu. Não desistiu. Caminhava a passos largos e

rápidos, encontrou um táxi minutos depois, que a levou até a casa de Anna.

Apesar da temperatura próxima de zero, sentia suas bochechas quentes,

mas suas extremidades pareciam que iam congelar. Não se permitia pensar
racionalmente, ela sabia que se parasse para ponderar a situação, voltaria

correndo para sua cama quentinha.

Chegou na porta da casa dela, paralisou, sentia seu coração batendo em

todas as partes de seu corpo, sentia-se um ser todo pulsante.

O que diria? O que Anna diria?

Teve um instante de racionalidade. — Ela deve ter ido passar o réveillon

com algum amigo... Com Max talvez. Que idiota que eu sou... — Pensou,

hesitante.

Bateu na porta, sem muita força. Bateu novamente, com mais energia. —

Ela não está... — Mas bateu de novo, não queria acreditar que aquela viagem
havia sido em vão.

A porta se abriu e a figura de Anna, num roupão de seda negra com


detalhes orientais em branco apareceu. Sua expressão era de total surpresa.

— Jennifer??

— Feliz ano novo! — Respondeu sorridente, com os braços abertos.


— Entre antes que congele.

Anna fechou em seguida a porta por trás delas, se virou para Jennifer e
foi abraçada com todas as forças que a jovem conseguiu reunir, apesar da quase

hipotermia.

— Senti tanto sua falta... — Jennifer sussurrou no seu ouvido.

Ao ouvir isso, Anna fechou os olhos e passou a retribuir o abraço com o

mesmo calor.

— Também senti sua falta... — Respondeu baixinho.

Jennifer separou-se do abraço, mas seus corpos permaneciam unidos, os

braços ainda entrelaçados. Estavam finalmente cara a cara, podia sentir a

respiração quente de Anna em seu rosto. Jennifer a fitou com um olhar sofrido,

fechou os olhos e uniu sua testa à testa dela. Sua respiração estava mais ofegante

do que nunca.

Ela bem que tentou resistir, mas por fim encontrou os lábios de Anna.

Inicialmente Anna não esboçou reação alguma, mas com um segundo

movimento de Jennifer, o beijo foi então correspondido. Sem reservas.

Anna havia deixado todas as suas defesas caírem por chão, toda sua
racionalidade a qual sempre se orgulhava, não havia resistido àquele olhar que

suplicava alguma coisa, àqueles lábios suaves, àquela língua curiosa. Com as
duas mãos segurava o rosto de Jennifer, como se instintivamente não quisesse

que aquele momento fugisse dela. Ambas estavam entregues. Não era uma
híbrida e uma Vulpi, não eram duas amigas, duas parceiras, era apenas Anna e
Jennifer finalmente juntas, como uma brincadeira do destino.
Capítulo 11 – Senhora racionalidade

— Que bom que você voltou. — Anna disse à meia voz, assim que se

desprenderam.

— Na verdade eu esqueci minha escova de dentes aqui, só vim buscar.

— Que pena. — Anna respondeu, com um sorrisinho.

— E então, posso subir para procurar minha escova?

Anna a fitou hesitante, agora menos sorridente.

— Você tem certeza que quer subir? Não está agindo por impulso?

Foi a vez de Jennifer mostrar um semblante sério.

— Anna, eu acabei de viajar quinhentos quilômetros, peguei um ônibus,

um expresso do assédio sexual, e três caronas com caminhoneiros. Para ficar


com você... Eu vou entender se você não quiser que eu suba, mas questionar se

eu quero... Não, eu não vou aceitar.

— Expresso do assédio sexual? — Anna disse com a testa franzida.

— Sério que você só ouviu isso?

— Não.

— Estou atrapalhando sua festa de Réveillon?

— Eu estava comemorando na minha cama.


— Com alguém?

— Vem comigo. — Anna estendeu sua mão e subiram as escadas.

Já no quarto, Jennifer dava uma olhada pelo ambiente amplo, caminhou


até a sacada, abriu a porta de correr e observava o mar negro lá embaixo.

— Ok, agora morri de inveja dessa sacada. — Jennifer comentou,

distraída.

Anna a surpreendeu colocando as mãos na gola de seu casaco pesado,

Jennifer acompanhou as mãos dela abrindo o zíper, por maior que fosse sua

determinação em voltar do Canadá para encontrar com Anna, naquele momento

lutava para esconder seu nervosismo.

— Acho que sua escova não está aqui em cima. — Anna dizia com uma

voz lenta, controlada. — Mas já que estamos aqui...

Anna tirou seu casaco negro e posteriormente seu cachecol cinza,

pousando sem pressa no banco ao lado. Por incrível que pareça, Jennifer

permanecia calada, apenas acompanhando os movimentos de Anna.

Com apenas um olhar, Anna pediu permissão para tirar sua camisa
branca de mangas compridas e Jennifer permitiu, logo as mãos quentes
passeavam por seu corpo, algo que a jovem desejou tantas vezes. Não resistiu e a

puxou para um beijo ardente, no crescente de desejo, abriu o roupão de seda


dela, que logo deslizou ao chão. A curiosidade de vê-la nua foi maior, Jennifer

parou o beijo aos poucos, admirando seu corpo e suas cicatrizes.


Sem questionamentos, como se fosse o curso natural das coisas, logo já
estavam na grande cama antiga, explorando os corpos mutuamente com todos os

sentidos, para deleite de Jennifer.

Anna interrompeu o caminho que fazia com seus lábios, descia pelo

pescoço de Jennifer. Olhou por um instante a cicatriz que ela carregava em seu
ombro direito, aquela que uma gárgula havia feito há quase quatro meses, no dia

em que se conheceram. Talvez tenha sido o momento em que havia percebido o

quanto estranhamente se importava com aquela humana. Delicadamente a beijou

naquele ponto. Jennifer a acompanhava com o olhar, sorriu, trouxe o rosto dela

até próximo do seu, e antes que pudesse beijá-la, o barulho de fogos de artifício
as fez olhar pela varanda, encontrando o céu iluminado.

Era o ano novo que chegava.

***

Jennifer acordou com o barulho de uma mensagem de texto chegando no


celular de Anna, dormia de bruços. Num primeiro momento percorreu os olhos

pelo quarto até se dar conta de onde estava, e então virou-se.

Percebeu que ainda estava sem roupas, puxou o cobertor cobrindo seus
seios. Se lembrou da noite que tivera. Que tiveram. Sorriu timidamente, com um
ar bobo. Percorreu novamente o quarto procurando por Anna, mas não a

encontrou. Conferiu o relógio ao lado da cama, era quase onze da manhã.

Notou suas roupas dobradas e empilhadas no sofá de madeira com


veludo verde musgo em frente a cama. — Anna e sua mania de organização. —

Pensou, e sorriu novamente. Um arrebatamento a queimava por dentro, dos pés à

cabeça, mas a sensação de realização se sobressaía, deixando todo o resto se

digladiando em segundo plano. Havia feito o que seu coração implorava já há


algum tempo.

— Que noite... — Murmurou ainda encantada.

Passado o momento de deslumbramento e recordação, agora tudo que ela

queria era rever Anna, tocá-la, ter certeza que tudo realmente acontecera. Revê-

la agora seria como reviver por um segundo o que havia sentido naquela noite.

Enrolou-se num lençol e foi ao banheiro, parou um instante antes de entrar e

olhou através da sacada o mar lá embaixo, revolto, mas em silêncio dali onde ela

estava.

Voltou ao sofá, vestia-se com pressa, quando ouviu a porta do quarto se

abrindo. Virou-se a ela e automaticamente sorriu ao ver Anna entrando. Na

euforia de enfim vê-la, não reparou no semblante sério que trazia. Terminou de

vestir a blusa branca e foi na direção dela.

— Bom dia! — Jennifer exclamou, entregando-lhe também o maior

sorriso que poderia dar. Terminou o movimento com um beijo.

Mas Anna desviou seu rosto do beijo, fazendo com que ela beijasse sua

face. Jennifer franziu a testa sem entender, ainda mantinha um sorriso, agora
confuso.
— Está... Tudo bem?

Anna apenas assentiu com a cabeça, passou a olhar para suas mãos
enquanto tirava as luvas. Jennifer a olhou por um instante, tentando decifrá-la. A

achou mais linda do que nunca, mesmo vestida de forma simples, com uma

blusa de lã azul, calça e botas pretas.

— Você quer uma carona para casa?

— Carona?

— Esqueceu seu capacete no Canadá?

— Ãhn... Não, está lá em casa. — Jennifer continuava perdida.

— Tudo bem, use o meu.

Anna desviara do olhar de Jennifer durante todo o tempo.

— Está realmente tudo bem? — Tentava Jennifer.

— Acho que nos precipitamos, você agiu por impulso e eu deixei

acontecer.

— Que??

— Te espero lá fora, ok?

— Você está falando sério?

— Desculpe por tudo isso, vou levar você para casa.

Jennifer sorriu com ironia.


— Quer saber? Vou a pé, vim com minhas próprias pernas, não vim? Mas
obrigada pela gentileza de qualquer sorte.

Se movimentou rapidamente até o sofá, enrolou o cachecol no pescoço e

pegou seu casaco. Caminhou na direção da porta, quando passava por Anna tirou

um embrulho de couro preto de dentro do casaco e entregou nas mãos dela, com
displicência.

— Feliz Natal. — E saiu pela porta.

Anna olhou para o embrulho por alguns segundos, o suficiente para que

Jennifer já saísse pela porta da frente da casa.

— Jennifer, espere.

Desceu as escadas rapidamente, mas viu apenas a porta batendo à sua

frente. Abriu o embrulho, dentro havia um cordão de prata com um pingente

vazado em forma de lince. Passou a mão pelo rosto, como se estivesse se

penitenciando por um erro, chutou uma estátua em formato de coluna grega

próximo a porta, partindo em vários pedaços.

Jennifer caminhava pela rodovia com passos apressados. Fechou o


casaco, quando percebeu já estava correndo. Corria e sentia como se sua raiva se
dissipasse, raiva de si mesma por ter se entregado. O vento deixava as lágrimas

em seu rosto geladas.

Chegou ao porto, andou até o píer inclinado que era seu refúgio, sentou-

se com as pernas pendendo sobre o mar. Um sol doente deixava o clima um


pouco menos frio.

— Como eu sou idiota... E burra... Burra... Burra... — Falava sozinha,


balançando a cabeça.

Quando o sol começou a baixar, caminhou vagarosamente até sua casa.

Tirou o casaco, andou com passos preguiçosos até o sofá e ligou a TV.

Adormeceu logo em seguida.

Becca terminava de subir os últimos degraus até seu apartamento quando

reparou na luz acesa tremulante vindo pelas frestas da porta de Jennifer.

— Tem alguém aí? — Bateu na porta sem muita força. Ninguém

respondeu e se dirigiu até sua casa, quando ouviu a porta se abrindo à suas
costas.

— Jennifer?? Você aqui?

— É... Eu causo essa reação quando me veem.

— Você tá com uma cara péssima.

— Também senti saudades, Becca.

A amiga foi até ela e a abraçou.

— Bem-vinda de volta, baby, que bom que você voltou. — Respondeu


sorrindo.

Entraram e sentaram-se nos sofás, Becca largou sua bolsa e olhou com
curiosidade para Jennifer.
— Quando você chegou?

— Ontem à noite.

— Por que não avisou que estava vindo? Nós te pegaríamos aqui, ou
onde você estivesse, todo mundo iria gostar de te ver.

— Cheguei bem tarde. Não foi planejado, eu simplesmente resolvi voltar

e... Aqui estou. — Gesticulava com desânimo e olhos vermelhos.

— Passou a virada do ano aqui sozinha?

— Não...

— Não?

— Não.

Becca aguardava a complementação.

— Eu tive a pior ideia da minha vida.

— Como ass... Espera aí, não é o que estou pensando, é?

— Provavelmente sim.

— Anna.

Jennifer assentiu com a cabeça.

— Mas como... Como ela soube que você havia voltado? Ela esteve
aqui?

— Não, a estupidez foi bem maior.


— Você a procurou?

— Com minhas próprias pernas, debaixo de uma nevasca.

— E levou um fora homérico?

— Sim, fui praticamente expulsa da casa dela.

— Pelo menos ela te trouxe de volta? Ou deixou você voltar no meio da


noite fazendo zero grau em pleno réveillon?

— Voltei sozinha, hoje não estava nevando.

— Hoje?

— Sim, caminhei até o porto para organizar minhas ideias, depois vim

pra cá, acho que dormi com a TV ligada.

— Houve um lapso de tempo nesse período ou você não está me


contando alguma coisa?

— Não me julgue, tá bom? Eu passei a noite lá, com ela... E foi a noite

mais incrível da minha porcaria de vida, mas por algum motivo ela se

arrependeu do que fez e me mandou embora da casa dela hoje.

Jennifer já esperava cabisbaixa por alguma repreensão.

— Sinto muito, Jenny.

Becca foi até o sofá onde ela estava sentada e passou o braço em volta
dos seus ombros.

— Foi minha culpa... Criei expectativas, que droga... Eu realmente achei


que ela poderia sentir algo por mim também, sabe? Ela parecia gostar de mim,

mas pelo visto foi alguma ilusão idiota que criei na minha cabeça.

— Não se culpe, é somente ela que está perdendo.

— É... Eu devo ter esquecido meu juízo no Canadá. Estou me sentindo

uma colegial que foi expulsa da classe pela professora. Uma completa imbecil

iludida. — Enxugou rapidamente as primeiras lágrimas.

— Bem-vinda ao time.

Sorriram desoladamente e passaram a noite colocando a conversa em dia.

Os dias que se seguiram foram uma tentativa de apagar aquela sensação

péssima de rejeição que sentia. Sem sucesso.

Quando a semana chegou ao fim, Jennifer não aguentava mais olhar para

o capacete em cima de sua mesa, pagou um motoboy para atirar seu capacete
para dentro do terreno da casa de Anna.

***

Batidas na porta chamaram a atenção de Jennifer no início da noite


daquela sexta-feira, colocava seus brincos no banheiro, enquanto terminava de se
arrumar para ir ao pub.

— Entra aí, Becca!! — Gritou lá de dentro.

Ouviu a batida novamente, foi até a porta esperando ser Becca ou Bob.

— Você? — Jennifer indagou, olhando surpresa para Anna.


— Ãhn... Desculpe, não sabia que você estava de saída. Tem um minuto?

— Sim, entre. Mas Bob vai passar daqui a pouco.

— Não pretendo demorar.

— Mas a que devo a honra de sua visita? — Falou com deboche.

— Eu vim me desculpar por terça-feira. Eu fui um pouco rude com você.

Jennifer apenas balançou a cabeça positivamente uma vez, como se

esperando pela continuação da conversa.

— Eu realmente não tive muito tato com a situação, e posso ter sido mal

interpretada. — Continuou.

Jennifer não segurou o riso, uma risada de escárnio.

— Mal interpretada? De forma alguma! Eu entendi perfeitamente o que


aconteceu e pode ter certeza que não cometerei este erro novamente. —

Conversavam de pé próximo aos sofás, em posições defensivas.

— Você não cometeu nenhum erro, o que eu quero que você entenda é

que só estou tentando te proteger. — Anna mantinha o tom da voz baixo.

— Eu só preciso me proteger de mim mesma, porque pelo visto eu fico

me auto sabotando o tempo inteiro. Mas não se preocupe, fui eu quem fiz a
merda toda, não foi? Eu que te procurei, você não tem do que se desculpar. —

Jennifer falava gesticulando.

— Talvez você seja muito nova para entender o que estou fazendo, mas
não quero dificultar as coisas. Você não precisa deste problema na sua vida.

— Pare com esta conversinha de ‘estou te protegendo’ ou ‘é para o seu


bem’. – Falou fazendo aspas com os dedos no ar. — Você não é minha mãe,

apesar de ter idade para isso. — Sorriu com ironia.

— Achei que eu poderia vir aqui e ter uma conversa de adultos, mas pelo

visto estava enganada. — Falou incomodada.

— Eu dispenso esse teatrinho, tá bom? Mas tudo bem, você está tentando

ser educada, mentindo e inventando essas desculpas.

— Mentindo?

— Você acha que acredito nessa besteira de conversa de ‘estou te

expulsando da minha casa para te proteger’?

— Eu não expulsei você da minha casa.

— Dada as circunstâncias, foi pior que isso... — Suspirou, desviando

seus olhos marejados e sentando no braço do sofá. Anna continuava de pé,


próximo a porta.

Anna a olhou por um instante. E Jennifer continuou.

— Esqueça... Eu deveria ter usado meu cérebro para variar, ter pensado

racionalmente. Você estava me dando um gelo há semanas, isso deveria ter sido
o suficiente para a idiota aqui ter ficado dentro de casa, bem longe de você.

— Eu não dei um gelo em você, eu não comecei isso.


— Ah não? E por que de repente cortou a comunicação comigo, me
dando no máximo respostas monossilábicas por mensagens? Fazia parte da

estratégia de proteção?

Anna sorriu com raiva.

— Eu fiz isso porque sua namorada mandou.

Jennifer franziu o cenho, fitando Anna.

— Você tá louca? Que namorada?

— Susan, não é esse o nome dela?

— Você falou com Susan?? Como assim? — Arregalou os olhos.

— Isso importa agora?

— Aquela francesinha... Deve ter atendido meu celular. — Falou olhando


para os lados.

— Bom, isso não é meu problema, você pode voltar para o Canadá e sua

namorada.

— Vai me dizer que não deu pelo menos uma volta naquele bar de sexo
self-service na Cidade Velha? Você me disse que era lá que você afogava as

mágoas, e fazia seus... Lanches.

— Isso não diz respeito a você.

— Achou que eu não voltaria, não achou? Você não deveria ter
permitido... Ontem... Deveria ter me mandado embora, não depois de...
Antes que se falasse algo mais, alguém bateu na porta e Anna abriu
instintivamente. Era Becca.

— E aí vamos no... — Olhou com surpresa para Anna, para Jennifer, e

para Anna novamente. — Você aqui??

— Já estou de saída. — Anna respondeu.

— Becca, vá com Bob, eu vou depois de táxi.

— Tem certeza? — Becca respondeu para Jennifer, mas olhando para

Anna.

— Tenho sim, vão na frente.

— Você tá bem?

— Estou, só estamos conversando um pouco.

Becca mediu ambas por alguns segundos.

— Então tá, vejo você lá em vinte minutos, combinado?

— Tranquilo.

Antes de ir, Becca se aproximou de Anna e falou baixinho.

— Se você magoar a minha amiga eu juro que vou até aquela sua casa
mal-assombrada no meio da noite e faço você engolir todas as lâminas que eu

encontrar. Entendido?

— Perfeitamente. — Respondeu também em voz baixa.


Anna fechou a porta e caminhou para próximo de Jennifer.

— Não precisa ser assim, eu realmente gostaria de ter você por perto, de
ter sua amizade. — Anna disse com pesar. — Como era antes de você ir para o

Canadá.

Jennifer largou um sorriso torto, respondeu com a voz embargada.

— Não faça eu me sentir pior do que já estou.

— Se você falar que quer um tempo, ou que não quer me ver mais, vou

entender, e vou te respeitar.

— Em algum momento eu acreditei que você também sentia alguma

coisa... Mesmo. Acreditei que não era só eu, achei que você também estava

vendo o que eu via. Mas eu sou uma tapada, interpretei os sinais de forma

errada, criei expectativas, E... Meti os pés pelas mãos.

Anna ouvia em silêncio.

— Você deve estar me achando patética... — Continuou.

— Não... Mas é apenas seu lado emocional falando mais alto.

— Ah claro, esqueci que estou lidando com a senhora racionalidade. —


Falou com ironia.

— Você deveria pensar mais antes de tomar decisões.

— Você acha que agi por impulso?

— Como sempre.
Jennifer sorriu com sarcasmo.

— Eu sou a impulsiva, mas é você que fala com uma francesa metida,
ouve meia dúzia de sandices e sai dando para a primeira pessoa que aparece.

— Essa conversa já deveria ter terminando há alguns minutos. — Anna

respondeu com o semblante fechado.

— Também acho, e não sei o que você ainda faz aqui na minha casa.

Anna hesitou por um momento. Jennifer saiu em disparada abrindo a

porta, ficando plantada de pé ao lado, aguardando Anna sair.

Mas Anna não saiu, suspirou pesadamente, com um movimento rápido

puxou Jennifer pelo braço para junto de si, a beijando e a pegando

completamente de surpresa.

Jennifer interrompeu o beijo segundos depois, olhando atônita para


Anna.

— Por que você fez isso??

— Porque eu quis, porque eu te quero.

Jennifer apontou a mão para a porta, que se fechou sozinha com força.
Foi a vez dela investir num beijo caloroso em Anna, sendo correspondida.
Capítulo 12 – Amigas da porta para dentro

Seguiram para o quarto entre beijos e tropeços, Jennifer desabou de

costas sobre a cama, com Anna surgindo sobre ela. Seus cabelos teimavam em

cair, Jennifer afastou delicadamente para trás da orelha, a fitando. Anna percebeu

que era mais que um simples olhar, era uma pergunta. O gosto da rejeição ainda
estava fresco em sua boca e machucando seu coração. Apesar de nem ela ter

certeza do que estava fazendo, ela sabia que Jennifer esperava uma resposta.

Mas Anna não disse nada.

— Ainda dá tempo de sair correndo. — Jennifer disse em tom de


brincadeira, mas ela não estava brincando nem um pouco.

Anna deslizou seus dedos pelo rosto dela, tocando o canto dos seus

lábios.

— Eu estou onde queria estar.

Se aproximou, por fim a beijando, desceu seus lábios até o ouvido de

Jennifer.

— Eu quero você... Eu quis você desde o primeiro momento em que te

vi. — Sussurrou.

Aquelas palavras assopradas fizeram Jennifer sentir seu corpo vibrar,

despertando vários arrepios. Anna a beijou novamente, sem pressa. A reticência


de Jennifer foi simplesmente desaparecendo. Foi como se a escuridão em que
vivera nos últimos dias sumisse, tudo parecia fazer sentido novamente. Os lábios
de Anna a procurando com tanta certeza, a deixando em segurança, as mãos dela

deslizando por sua pele, por baixo de sua blusa, acordando cada pedacinho por

onde ela trilhava.

Demoraram-se num beijo, desta vez não tinham urgência, apenas se

conheciam mais, se absorviam. Anna inclinou para trás e ajudou Jennifer a tirar

a blusa, tirou a sua também. A observou nua por um instante, voltou-se para ela.

— Você é linda... É uma mulher linda. — Sussurrou novamente em seu

ouvido.

Jennifer fechou os olhos, subia e descia suas mãos pelas costas de Anna,

que deslizava a sua até a cintura, subindo e aninhando seu seio em sua mão. Ela

já havia sentido seu toque antes, mas havia sido numa confusão de sentimentos e

sensações, desta vez Jennifer estava com os sentidos aguçados, sua pele se

eriçava facilmente com os toques suaves e certeiros de Anna.

— Posso tirar sua calça? – Anna perguntou.

— Você pode fazer o que quiser comigo.

Abriu a calça jeans dela e a tirou sem dificuldade, voltou a ficar sobre o

corpo agora completamente desnudo de Jennifer, colocou a mão em sua nuca,


entrelaçando seus dedos nas mechas de cabelo, a trouxe para perto de si, a

beijou. Sua mão desceu lentamente, acompanhando todas as curvas, sentia a


respiração de Jennifer crescendo à medida que seus toques também evoluíam.

Afastou delicadamente a perna dela para o lado, e no mesmo movimento a

contornou chegando entre elas. Jennifer sentia a mão quente dela, um toque tão

macio, tão preciso, a invadindo. Ambas estavam mergulhadas no mundo que


haviam criado juntas, completamente absortas.

Jennifer estremeceu, como se um choque passasse por todo seu corpo,

por fim soltou a respiração. Anna deitou ao lado do seu rosto, em seus cabelos,

os corações disputando em velocidade.

E se beijaram, e se abraçaram até adormecerem. Entrelaçadas, como

inevitavelmente suas vidas estavam àquele ponto. Irremediavelmente

entrelaçadas.

***

Jennifer acordou sobressaltada com o barulho de uma moto acelerando

do lado de fora. Olhou para a janela, cerrou os olhos por causa da claridade que
entrava pelas frestas. Fechou os olhos novamente, sonolenta. Como num filme

acelerado, recordou do que havia acontecido, despertou. Esticou o braço em


cima da cama, fitando o espaço vazio ao seu lado. Seus pensamentos ainda

desorientados, tentava se recordar de como a noite terminara.

— Sozinha novamente. — Pensou, ostentando um sorriso torto, irônico.

Pegou o celular ao lado da cama, passavam alguns minutos das nove da manhã.
Fechou novamente os olhos, colocando o braço por cima deles com um suspiro
pesado.

— Bom dia.

Abriu os olhos rapidamente, viu Anna entrando já vestida de calça e


camiseta regata branca, com duas canecas fumegantes nas mãos.

Jennifer não respondeu, apenas tentava decifrá-la.

— Te acordei com o barulho na cozinha? — Anna aproximou-se,

colocando as duas canecas sobre o criado mudo, sentou-se na cama ao lado de

Jennifer.

Balançou a cabeça negativamente, esperou uns instantes antes de

responder.

— Na verdade não sei se estou acordada. — Respondeu baixinho, com a

voz um pouco rouca.

Anna inclinou-se sobre ela e a beijou nos lábios, com a mão em seu

rosto.

— E agora? — Anna perguntou sorrindo.

— Hum... Ainda não sei. — Franziu a testa.

Anna sorriu de canto, lhe beijando novamente, agora de forma mais


demorada.

— Estou começando a achar que você se alimenta de luz. Ou de cerveja.


Não encontrei quase nada na sua cozinha.
— Mas achou o café.

— Não, eu peguei pó com Becca.

Jennifer apenas olhou assustada.

— Claro que não... Achei o café no seu armário. — Sorriu. — Viu,


também sei pregar peças.

— Muito engraçado. Pois é... Furei com eles ontem, depois preciso

conversar com ela.

— Posso explicar à Becca, mas temo que eu volte sem um fígado, ou sem
um rim.

— Ela não odeia você.

— Só um pouquinho.

— Eu também te odeio um pouquinho.

— Que mentira.

— Tá, é mentira. Não consigo não gostar de você.

— Tome, beba antes que esfrie. — Anna disse lhe entregando a caneca

de café.

Jennifer segurava a caneca com as duas mãos, deu um gole, olhava

pensativa para Anna.

— Achei que você tinha ido embora.


Anna deu um gole em seu café, soltando um suspiro profundo.

— Eu não faria isso. Mas eu te entendo.

Jennifer baixou o olhar para a caneca. Anna tomou a mão dela,


deslizando seus dedos carinhosamente.

— É verdade o que eu falei ontem. Eu realmente queria te proteger.

Achei que a melhor forma seria sair da sua vida. Mas eu não consigo.

— Proteger do que? Se eu só me sinto protegida quando estou do seu

lado?

— De mim. Ninguém quer uma híbrida à tiracolo, você viu, você sabe

que nunca somos bem-vindos em lugar algum, você quer isso para sua vida, por

tabela? Você não sabe no que está se metendo, não faz ideia.

— Eu faço.

— Não faz... Você mesma me disse que o único contato que teve com um

híbrido foi na escola, você não tem a menor ideia do que é fazer parte do meu
mundo.

— Anna, eu sei sim. — Jennifer baixou o olhar novamente. — Você não


é a primeira. — Continuou.

— Como?

— Não é... Mas não quero falar sobre isso, tudo bem?

Anna percebeu que era algo que a deixava desconfortável e não insistiu
no assunto. Ainda segurando a mão dela, a levou até os lábios e beijou,

demoradamente.

— Então vou cuidar de você.

Jennifer sorriu em resposta, encantada com a doçura que lhe era

dispensada.

— E eu cuido de você também.

Anna se ajeitou na cama, se endireitando. Ficou a observando por alguns

segundos.

— Prometo cafés melhores.

— Esse está tragável. Obrigada pelo café. E obrigada por ter encontrado

o café. — Jennifer deu um sorriso abafado. — Deve estar no armário desde o

ano passado.

— Vou lembrar de trazer rosquinhas de casa da próxima vez.

Riram.

— Bom, então você andou mesmo pelo vale do sexo fácil? — Jennifer
perguntou irônica.

— Você está falando do pub do Joel, não é?

— E tem outros?

— Você não quer saber disso, acredite.

— Tá, só me responda uma coisa, foi mulher ou homem?


Anna olhou analisando a situação.

— Deixe isso pra lá, eu nem lembrava mais.

— Só me responda isso.

— Depois não diga que não avisei.

— Manda.

— Foi homem.

Jennifer fez uma careta num misto de reprovação e asco.

— Não fique imaginando.

— Me dê um minuto, não consigo parar de imaginar você fazendo sexo

de todas as formas com um cara.

— Que besteira, substitua por imagens da última noite, não é mais

agradável? Eu e você na cama?

— Estou tentando, mas tem um cara teimando em participar.

— Que horror. Venha cá. — Anna se inclinou e a beijou. — O tempo


todo em que você ficou no Canadá eu só imaginava você voltando. Quando eu

deitava para dormir, sonhava acordada que um dia você estaria naquela cama
comigo.

— Adorei sua cama. – Respondeu com um sorrisinho.

— E você, um mês e meio com aquela francesa.


— Ela foi só uma aventura também.

— É... Você adora uma aventura, já percebi.

— De todos os tipos, mas as melhores são em sua companhia.

Anna balançou a cabeça. Jennifer a olhava com o olhar perdido,


encantada.

— Fica aqui hoje. — Pediu.

— Não posso. Mas estou livre à noite.

— Então vamos ao Oscar, quero matar a saudade do pessoal.

— Vou analisar seu convite. Te mando uma mensagem.

— Vai voltar a me mandar mensagens, então? — Falou com sarcasmo.

— Se a sua namorada permitir, sim.

Jennifer sorriu e levantou-se na direção dela.

— Vou conversar com ela. — Sussurrou em seu ouvido.

Beijou seu pescoço, depois deu um beijo em seus lábios sem pressa.

— Jennifer, posso fazer uma pergunta?

— A vontade.

— Você move coisas com a mente, mas apontou a mão para porta quando
a fechou ontem?

— É eu sei, não faz sentido, mas eu vi num filme e achei legal. — Falou
rindo.

— Realmente é a sua cara.

***

Anna gostava de pilotar sua moto em alta velocidade, chegou em casa em


cinco minutos, próximo do meio-dia. Foi até a cozinha e pendurou seu capacete

na parede. Se deu conta do capacete pendurado ao lado, o capacete de Jennifer.

Algo inédito nas últimas décadas aconteceu naquela cozinha, Anna se

percebeu sorrindo sozinha, feliz por ter se permitido e mais feliz ainda por se dar

conta que o sentimento era retribuído. Tocou no capacete negro com um adesivo

do Bob Esponja e disse baixinho.

— Eu vou cuidar de você.

Vestiu sua jaqueta de couro preta clássica e desceu as escadas, Anna a


aguardava com o motor da moto ligado. Colocou o capacete e montou na garupa.

Por um instante não soube onde colocar as mãos. Anna percebeu a hesitação e

enfiou as mãos dela em seus bolsos do casaco, um sobretudo de lã cinza escuro.

Estacionaram a moto próximo à entrada do pub, enquanto tirava o


capacete e as luvas Anna começou a falar.

— Jennifer, vem cá, tem uma coisa que precisamos acertar.

— O que?

— Eu acho melhor lá dentro sermos apenas boas amigas, tudo bem?


— Boas amigas?

— É.

— Você que sabe, garota.

Seguiram para o guichê numa antessala do bar.

— E se eu quiser agarrar você, poderíamos ter algum código... —


Jennifer falou próximo ao pescoço dela, num sussurro provocativo.

— Jennifer. — Anna se virou séria na direção dela.

— Tá bom, boas amigas, entendi.


Capítulo 13 – Cerveja vencida

— Jenny, esse é o Jim. Jim, essa é a Jenny. — Becca apresentou cheia de

sorrisos o garoto com quem começara um namoro.

Jennifer correspondeu ao cumprimento e logo trouxe Anna à frente, para

que Becca a apresentasse também. Teve uma sensação estranha com relação ao
garoto, mas não deu atenção àquilo no momento. Jim era um típico garoto de

vinte e poucos anos irlandês, com feições comuns.

— A famosa Jennifer que fugiu para o Canadá. — Gracejou o garoto.

— Tenho certeza que Becca falou apenas coisas maravilhosas a meu

respeito, não é Becca? — Respondeu entrando na brincadeira.

— Eu tentei.

O pub estava cheio e o grupo de amigos ficou de pé conversando e


bebendo próximo a uma coluna, do lado oposto ao palco. Jennifer se limitava a

trocar olhares com Anna, entre um gole e outro.

Elas haviam engatado uma conversa sobre as missões que Anna havia
cumprido na ausência de sua parceira.

— Você iria sair correndo se visse o tamanho dos caras, achei que ia
levar uma surra.

— E apanhou?
— Não mais que eles. — Anna falou de forma convencida.

— Se eu estivesse lá te ajudaria os distraindo, não é assim que você me


ensinou? Dividir para conquistar?

— Você não estaria lá, é o tipo se serviço que eu nem pensaria em levar

você.

Jennifer apenas a fitou com um semblante de decepção.

— Ah claro, você realmente acha que vou levar você em todas?

— E não vai?

— Só nas mais fáceis. Ou que parecerem fáceis, porque tem umas que

acabam ficando bem complicadas.

— Só não demore muito para me chamar de novo, estou com saudades

de um pouco de adrenalina. Se bem que minha volta para Bridgeport teve um

quê de aventura também...

— Você ainda não me contou como voltou.

— É uma longa história.

— Não tenho planos de ir à lugar algum agora, você tem?

Antes que Jennifer respondesse, sentiu alguém a abraçando

calorosamente por trás, virou-se assustada e deu de cara com Alice.

— Vem cá, baby! Quero ter certeza que você está de volta!

E a abraçou novamente, agora frente a frente.


— Oi, Alice, quanto tempo, não é?

— Becca me disse que você havia ido para Montreal sem previsão de
retorno, e eu juro para você, por pouco não arrumei minha mochila e fui te

visitar, por pouco mesmo!

Jennifer apenas sorriu em resposta e recuou para que Alice pudesse

cumprimentar o restante da roda, fazendo questão de incluir Anna, que parecia


não ter gostado muito da companhia adicional, mas que de qualquer forma foi

polida e gentil em sua saudação.

— E então, foi visitar sua avó? — Alice retornava a Jennifer.

— Basicamente sim.

Alice parou por um instante e apenas a olhou com um sorriso nos lábios.

— Não fuja mais, baby. — Sussurrou.

— Não tenho a menor intenção de sair da cidade novamente.

Alice a abraçou e desta vez tascou um beijo na boca de sua amiga

colorida. Jennifer correspondeu ao beijo apenas por um segundo, o


interrompendo logo em seguida. Anna observava tudo, sisuda.

— Você não perde seu jeito. — Jennifer falou um pouco embaraçada,

soltando-se da cama de gato de braços que Alice havia armado.

— E então, Jenny, o que andou fazendo, badalando, arranjando


namoradas?
— Não, apenas saindo com as amigas. — Terminou a frase lançando um
sorriso aberto e irônico para Anna.

Anna respondeu sorrindo com certo deboche também, balançando a

cabeça de forma afirmativa, lentamente.

— Quando vi você aqui até esqueci da sede monstruosa que eu estava

sentindo, vou lá buscar uns chopes para nós, já volto. — Alice deu um selinho
nela e partiu para o bar.

Quando Jennifer ficou sozinha, Anna se aproximou e cochichou algo em

seu ouvido.

— Aquela história de criarmos um código, ainda está de pé?

Jennifer sorriu largamente.

— O que sugere?

— Que tal ‘vamos lá no andar de cima’?

— Mas isso não é um código.

— Não sou boa com códigos.

— Você está ciente que lá em cima é aberto, venta e faz frio, não está?

— Totalmente ciente.

Jennifer andou na direção das escadas, Anna a seguiu discretamente. Lá


em cima havia apenas um terraço aberto, o telhado do prédio e dois bancos de
madeira, onde algumas pessoas costumavam ir para fumar.
— Poderíamos ter uma cor, geralmente os códigos nos filmes são assim...
‘código azul’, ‘código vermelho’, que acha? — Jennifer falava enquanto ia na

direção do parapeito.

Assim que terminou a frase olhou para baixo do prédio, o vento agitava

parte do seu cabelo. Sentiu Anna pegando a sua mão, olhou rapidamente para as
mãos entrelaçadas e logo em seguida para Anna, que retribuiu com um olhar

tenro.

Anna aproximou-se lentamente dos lábios dela e a beijou, um beijo

apenas, lábios encaixados nos lábios, mas era como se estivessem degustando o

mais saboroso dos doces. E se aninharam num abraço.

— Aqui em cima faz frio. — Anna murmurou.

— Você disse que estava ciente.

— Eu sei. Eu queria ficar sozinha com você por um instante.

— Por que?

— Código azul?

Jennifer a beijou novamente, podia sentir o calor emanando dos lábios de


Anna enquanto a beijava.

— Espero que não tenha se zangado com minha brincadeira lá embaixo.


— Jennifer falou.

— Tudo bem, acho que eu mereci.


— Às vezes posso parecer um pouco intransigente ou teimosa, mas eu
vou tentar respeitar seu espaço. Cada uma tem seu próprio tempo, seu próprio

ritmo, e caprichos, e grilos, e peculiaridades... E é isso que faz valer a pena estar

do seu lado, são todos esses detalhes que te torna deliciosamente interessante.

Anna ficou em silêncio, deu um sorriso tímido em resposta.

— Talvez seja o meu cérebro congelando, mas acho que deveríamos


descer. — Jennifer convidou.

Anna concordou e voltaram ao convívio do grupo. E de Alice.

— Você demorou, bebi seu chope. — Saudou Alice.

— Tem problema não, acho que não vou mais beber, não estou me

sentindo muito bem.

— O que aconteceu?

— Não sei, só fiquei meio enjoada de repente.

Anna, que escutava a conversa, interrompeu.

— Quer que eu busque uma água para você? Ou arranje algum remédio?
— Anna falou, solícita. Alice ergueu a cabeça e olhou curiosa para Anna.

— Não, não... Já vai passar, deve ser alguma indisposição. Mas acho que
quero uma água, sim.

Alice aproveitou que Anna havia ido buscar a água e se aproximou de


Jennifer.
— Jenny, você tá saindo com essa garota? A... Você sabe... Híbrida.

— E se estivesse? — Respondeu impaciente.

Alice deu de ombros.

— Nada. Só curiosidade mesmo.

Anna voltou com a água, e antes que abrisse a garrafa Jennifer saiu a
passos rápidos para o banheiro.

Alice e Anna se entreolharam e Anna seguiu também para o banheiro.

Jennifer estava trancada dentro de uma das cabines.

— Quer ajuda aí dentro? — Anna perguntou, com as mãos espalmadas

na porta.

— Espera.

Anna ouviu o barulho dela vomitando.

— Não.

Abriu a cabine e foi até a pia, pálida como uma parede branca, mas com

as bochechas rosadas. Lavou o rosto várias vezes.

— Algo te fez mal?

— Não sei... Quer dizer... Droga já sei. Maldita cerveja vencida.

— Cerveja vencida?

— Bebi algumas em casa.


Anna balançou a cabeça.

Jogou mais um pouco de água no rosto e secou-se. Anna ajeitou o cabelo


dela para trás das orelhas.

— Quer ir para casa?

— Por favor.

Despediram-se rapidamente de todos e saíram de moto, sem muita

velocidade. Seguiam pela rodovia quando Anna resolveu não fazer o caminho

para o apartamento de Jennifer, ao invés disso entrou na estrada que dava para

sua casa.

Saltaram da moto, e sem tirar o capacete Jennifer balbuciou algo.

— Anna? Acho que você esqueceu de fazer uma entrega.

— Não esqueci não, venha, tire o capacete, vou te dar um remédio e

colocar para dormir.

Mal entraram na casa e Jennifer correu para o banheiro, seguiu o mesmo

ritual do banheiro no pub.

— Ainda bem que tomei café na sua casa, e não cerveja. — Anna falou,
entregando uma toalha.

— Vá, vá brincando.

Desceu as escadas e voltou entregando-lhe um comprimido e um copo


d’água.
— Você está péssima.

— Que coincidência, é exatamente como me sinto agora.

— Quer deitar um pouco?

— Quero sim.

— Durma aqui. Se quiser tome um banho.

— Só faltou o ‘sinta-se em casa’.

— Sinta-se em casa.

Jennifer tomou um banho e deitou-se com um roupão branco que achou

no banheiro. Anna sentou-se ao seu lado e a cobriu.

— Você vai acordar bem melhor amanhã, em todo caso coloquei um

balde ao seu lado.

***

Despertou, olhou ao redor e olhou para si mesma, vestia um roupão


atoalhado branco. Não era o seu. Estava na casa de Anna. Na cama de Anna.

Será que um dia se acostumaria com aquilo? Mas acordar e procurar por Anna
estava se tornando uma rotina.

— Será que um dia vou dormir ao lado dessa mulher e acordar ao lado

dela? — Pensou. E sorriu sozinha.

Olhou para o lado e viu através das portas de vidro da sacada a chuva
caindo torrencialmente, não via o mar dali. Levantou-se, ajeitou o roupão, a
chuva a hipnotizava, abriu uma folha da porta e adentrou a sacada, que estava
com as vidraças fechadas. Encostou a testa no vidro, observou o mar revolto.

Um mar azul esverdeado com as espumas brancas formadas pelas ondas altas.

— É o melhor quintal do mundo...

Surgiram memórias da infância, das vezes que ia até a praia com seus

pais, uma praia de mar calmo e águas frias não muito longe dali. — Água no
umbigo sinal de perigo, volte. — Sua mãe dizia. Seus pais. O que achariam da

Jennifer que ela havia se tornado? O que achariam de Anna? Como revelariam

sua real origem? Chamariam no dia do aniversário no quarto, com um bolo em

mãos, e contariam que ela era de uma espécie diferente? Precisou de vinte e dois

anos para que uma estranha descobrisse quem ela realmente era.

Foi o destino. Anna era um acaso em sua vida. Ou nada foi aleatório, ela

precisava encontrar esta mulher com um ar misterioso e sério, alguém tão

diferente, de um mundo tão distinto. A mulher de olhar azul, azul e triste.

O mar havia de fato a hipnotizado. Não ouviu a porta do quarto abrindo.

Não ouviu os passos. Sequer ouviu a porta de vidro deslizando. Mas percebeu
com todos os seus sentidos duas mãos percorrendo seu corpo, seu abdome, seu

ventre. Fechou os olhos, Anna tinha esse efeito sobre ela, seu toque era como um
feitiço, seus poros se arrepiavam dos pés à cabeça.

— Sente-se melhor? — Jennifer ouviu um sussurro em seu ouvido e a


respiração de Anna em sua pele.
— Agora sim. — Respondeu colocando suas mãos sobre as mãos dela,
entrelaçadas à sua frente.

Distribuiu alguns beijos vagarosos em seu pescoço.

— Você tem o sono agitado. — Anna falou próximo ao seu ouvido.

— Que engraçado, nunca percebi.

— Mas eu sim.

— Deve ter sido o mal-estar.

— Não. Nas outras duas noites você também teve um sono não muito

tranquilo.

— E o que você estava fazendo me vigiando que não estava dormindo?

Você é uma vampira, por acaso?

— Gosto de te ver dormir.

Jennifer virou-se e ficaram cara a cara. Com dois dedos segurou a

medalha com o desenho de um lince gravado no metal, no pescoço de Anna.

— Gostou?

Anna assentiu com a cabeça.

— Obrigada.

Afagou seu rosto e a beijou. Depois a olhou por um instante e sorriu.

— Você sabia que os vampiros são a quarta espécie? — Anna zombava.


— Garota, você está perdendo sua credibilidade.

— Está com fome?

— Um pouco.

— Então venha, desça, que eu te preparo um café.

***

Jennifer adentrou a cozinha, deu uma boa olhada ao redor e sentou-se

junto a mesa de madeira no centro do cômodo, arrastando a cadeira branca. Era

um lugar amplo, com móveis antigos, havia espátulas e afins pendurados num
armário preso no alto.

— Então eu também ganhei um prego?

Anna procurava alguma coisa na geladeira, e virou-se para Jennifer.

— O quê?

— Aqui na parede, nossos capacetes estão pendurados aqui, inclusive o

meu.

— Você sabe que seu capacete é só emprestado, não sabe?

— Esse? Já era, é meu, meuzinho.

— Come torradas? — Falou colocando uma cesta com torradas recém

feitas e duas xícaras sobre a mesa.

— Todas.
Anna trouxe o café e sentou-se também à mesa.

Enquanto bebia seu café, Jennifer olhava pensativa para um ponto


qualquer em cima da mesa.

— Quer dividir comigo o que a intriga?

— Ãhn?

— Preocupada com algo?

— Ah... Não, só estava aqui pensando... Você sabia que os Vulpis

reconhecem os outros, não sabia?

— Acho que sim.

— Sim, minha vó me contou que todos se reconhecem, daí eu perguntei

como funcionava, eles me explicaram que era algo natural, que todos nasciam

com esse ‘faro’, mas que as pessoas iam apurando com o tempo e com a prática.

— E você ainda não sabe usar seu faro, é isso?

— É... Eles me disseram que não tem como explicar direito como

funciona, é como uma sensação diferente, você sente algo, não ruim, apenas uma
energia, sei lá.

— Você vai ter bastante tempo para praticar, você acabou de nascer nesse
mundo.

Jennifer balançou a cabeça, pensativa.

— Eu acho que ‘farejei’ um Vulpi ontem. No Pub.


— É mesmo? Mas assim, no meio da multidão, ou alguém
especificamente?

— Alguém, alguém que estava com a gente.

— Hum... Alice? — Falou meio emburrada.

— Não, não... Jim.

— O novo namorado de Becca?

— Senti uma vibração atípica vindo dele.

— Bom, não tenho esse dom, então só posso ajudar perguntando a ele,

acho que estou ficando boa nisso, em tirar Vulpis do armário. — Brincou.

— Mas minha vó também falou que nós costumamos nos relacionar com

outros de nossa espécie, como uma forma de autopreservação, você sabia disso?

— Sabia sim, é uma forma de seleção natural por causa dos

descendentes.

— Como assim?

— Não existe híbridos de Vulpis, nunca se perguntou isso?

— Acho que não entendi.

— Se um Vulpi tem um filho com um humano, a criança será apenas

humana, se ele tem um filho com um Titan, ele será apenas Titan, e se tiver com
um híbrido, ele terá características humanas e Titans, assim como eu.

— Caramba, que curioso, não? A carga genética Vulpi simplesmente não


se transfere então?

— Exatamente. Por isso Vulpis acabam se atraindo e se relacionando


apenas com seus iguais, é meio que um instinto inconsciente de perpetuação da

espécie.

— Mas porque então eu me sinto atraída por uma híbrida?

— Porque você é maluca.

— Rá-rá.

— Não é uma regra geral, é só um instinto de sobrevivência. Assim


como ser heterossexual é um instinto de sobrevivência das espécies também.

— Então se a humanidade dependesse de mim... — Jennifer riu.

— Você não é um bom parâmetro para nada. — Anna concordou.

— Assim você me magoa.


Capítulo 14 - Como se transformar numa raposa nas noites de lua cheia

Anna parou na frente do apartamento de Jennifer e não desceu da moto,

algumas semanas e algumas missões haviam se passado.

— E meu pagamento? — Jennifer falou séria, tirando o capacete, já de pé

ao seu lado.

— Ãhn... Bom, não tenho dinheiro aqui, mas posso trazer algo amanhã.

— Anna falou meio desconcertada.

Jennifer deu um sorriso aberto.

— Que boba, você... Você sabe que não estou nessa pelo dinheiro. O

pagamento que eu gostaria de ter hoje é a sua companhia, se você assim quiser.

— Adoraria poder pagar todas as minhas contas com minha presença. —

Desceu da moto e tirou o capacete.

Jennifer percebeu seu sorriso de alívio.

— Vai subir comigo?

— Será um prazer. — Respondeu passando seu braço ao redor dela, se

encaminhando para a entrada do prédio.

Largaram os capacetes em cima da mesa que ficava entre a cozinha

americana e a sala.

— Quer comer algo? Já tá meio tarde, mas posso preparar alguma coisa.
— Jennifer a perguntou, tirando a jaqueta.

— Já está meio cedo, você quer dizer né? O dia vai nascer em uma hora.

— Posso fazer sanduíches. Comprei aquele presunto cru que você gosta.

— Como você sabe?

— Que você gosta desse presunto? Você sempre me oferece sanduíche


com esse presunto na sua casa. Ou vai ver você odeia e fica me empurrando.

— Eu gosto sim.

— Então vai querer? Vou tomar um banho rápido e preparo. Ligue a TV

aí, pegue algo na geladeira para beber.

— Faltou o ‘sinta-se em casa’.

Jennifer sorriu.

— Você guarda tudo, não é?

— Vai lá tomar banho que eu preparo os sanduíches. — Anna falou


tirando o casaco e arregaçando as mangas de sua blusa.

Anna acabava de preparar tudo quando Jennifer chegou na cozinha com

seu roupão e já foi logo pegando um dos pães.

— Vai comer ai de pé? — Anna perguntou.

Jennifer apenas sorriu, já estava com a boca cheia.

Terminaram de comer ali de pé mesmo, e Anna lavava as louças.


— Que foi? — Anna percebeu que Jennifer a fitava, recostada no balcão
da pia.

— Nada. — Falou com um sorriso malicioso.

— Eu conheço essa sua cara.

— Que cara?

— De menina que aprontou.

— Mas eu não aprontei nada. Ainda não. — Sorriu maliciosamente de

novo.

Anna enxugou as mãos no pano de prato e largou em cima da pia. Virou-

se para ela, se aproximou devagar e a beijou. Jennifer subiu as mãos pelos seus

ombros e a envolveu num abraço. Anna correspondeu a agarrando pela cintura.

— Culpa dessa adrenalina toda. — Jennifer falou em seu ouvido.

Os beijos evoluíram rapidamente, embalados por mãos irrequietas e um

ardor que acelerava seus corações.

— Quer ir para cama? — Anna sussurrou ofegante.

— Não. Quero fazer aqui. — Jennifer respondeu, pretensiosa.

A conduziu até a parede, fazendo com que Anna ficasse com as costas na

mesma.

E ali mesmo na cozinha, Jennifer tirou a blusa, abriu o cinto e


desabotoou a calça de Anna, a empurrando para baixo e fazendo a cair sem
esforço.

Sem muita cerimônia, deslizou sua mão para entre as pernas dela, que
estava totalmente absorta pelo momento. Ali de pé na cozinha sem dizer palavra

alguma, era seu corpo que falava por si.

Jennifer continuava a beijando com paixão. Adorava fazer isso... Beijá-

la. Apesar de todas as reservas que Anna mantinha por natureza, lá estava
Jennifer sempre tentando roubar-lhe um beijo.

Até que Anna não conseguiu mais sustentar o beijo, Jennifer apenas

continuava beijando seu pescoço. Era ela quem a conduzia até o esperado êxtase,
observando a respiração agora intensa de Anna, intercalados com gemidos

abafados. Enfim pode sentir o corpo dela arrepiando-se e tremendo, colado ao

seu, ainda juntas à parede.

Jennifer a abraçou carinhosamente, foi devidamente recompensada do

seu jeito preferido, com um longo beijo.

***

Acordaram com batidas na porta, passavam alguns minutos da dez da


manhã de sábado.

— Deixe que eu atendo, deve ser Becca, volte a dormir. — Jennifer

terminou de falar e saiu da cama dando um beijo rápido em Anna.

Vestiu seu roupão e abriu a porta, ainda sonolenta.


— Te acordei?

— Digamos que sim.

Becca foi logo entrando e sentando-se no sofá. Jennifer fechou a porta,


coçou os olhos e seguiu vagarosamente até o sofá.

— Acordou cedo... Não ia sair ontem com Jim?

— E saímos.

— Foram no Oscar?

— Não, ele me levou num restaurante fora da cidade.

Jennifer continuava mexendo nos olhos.

— Hum, que legal. — Bocejou.

— Quando cheguei ontem vi a luz do seu apartamento apagada e achei

que você já estivesse dormindo.

— Não, também saí, cheguei de madrugada.

— Anna está aí? — Becca sussurrou apontando para a porta do quarto.

Jennifer confirmou com a cabeça.

— Está dormindo. Mas me fale, aconteceu alguma coisa ontem?

— Eu não sei. O Jim às vezes é meio estranho.

— Como assim?

— Ele é um amor, mas parece não querer nada sério. Já estamos saindo
há quase dois meses e não sinto que temos algo de verdade.

— Ele comentou algo?

— Ontem ele... Sei lá... Deu a entender que não quer compromisso. Não
falou com todas as palavras...

— É que pode ser estranho para alguém como ele.

— Alguém como ele?

Jennifer percebeu que quase falara besteira.

— Ele... Eles... Eles os homens, isso é coisa de homens, não querer

compromisso.

— Você sabe alguma coisa que eu não sei? Jennifer, você viu Jim com

alguém? Ou ele te falou algo?

— Claro que não, não sei nada além do que você sabe.

Jennifer estava praticando os conselhos que Anna havia lhe dado, sobre

mentir ou omitir informações para alguém, para que ela não colocasse em risco

sua origem. Tentava manter o mesmo tom de voz, evitar rodeios e manter as
mãos paradas. Era seu primeiro teste.

— Mas isso me deixa insegura, sabe? Ele não parece estar tão envolvido
quanto eu.

Havia passado no teste.

— Olha... Sinceramente acho que você não deveria pressioná-lo, ele está
a fim de você, já percebi, então mais cedo ou mais tarde vocês estarão
oficialmente namorando.

— É... E ele é só um garotão...

— Quantos anos?

— Dezenove.

— Ele deve estar inseguro também. Relaxe, baby, ele me parece um bom

garoto, não coloque a carroça na frente dos bois.

Becca suspirou desanimada, com o olhar baixo.

— São só rótulos. — Jennifer complementava.

— E você e Anna, já tem um rótulo?

Anna, que estava iniciando um cochilo despertou quando ouviu seu nome
do outro lado da porta. Mesmo sem a intenção, acabou ouvindo o restante da

conversa.

— Não. O que temos não tem nome, só sei que eu gosto disso. — Sorriu

com o canto da boca.

Becca olhou pensativa para Jennifer.

— Às vezes acho que você estava inconscientemente tentando substituir

Helen, procurando por outra híbrida.

— Nossa, você viajou agora... E muito.

— Você superou Helen... E tudo que aconteceu?


Jennifer parecia incomodada agora. E triste.

— Não. E não acho que um dia eu vá superar. Mas aprendi a conviver


com isso.

— Eu não falo essas coisas para você se sentir mal... Só tenho medo que

você sofra de novo. O que você passou naquela época só eu e Bob sabemos.

Você ficou muito mal.

— É, eu sei... Mas a vida segue. Estou tão feliz em ter a Anna comigo.

Não quero ficar comparando, ela não merece isso.

— Você acha que foi coincidência, então? Você novamente às voltas com

uma híbrida?

— Eu acho... Até porque Anna não tem nada a ver com Helen, a não ser

o fato de ser o que elas são, mas elas são tão diferentes.

Anna já havia ouvido aquele nome antes: Helen. Mas talvez preferisse

não ter ouvido essa conversa. Perdeu o sono, levantou e foi tomar um banho.

Já estava quase terminando o banho quando ouviu a porta do banheiro se

abrindo, e depois a porta do box deslizando.

— Posso entrar? — Era Jennifer com um sorriso malicioso.

Tirou o roupão e entrou, deu um beijo e ficou frente a frente com Anna, a
envolveu pela cintura entrelaçando seus braços.

— Bom dia, querida... Não quis continuar dormindo?


— Não. Acho que já dormi o bastante. Já estou saindo.

— Ah, fica aqui um pouquinho, acabei de entrar.

Anna deu um suspiro pesado.

— Tudo bem com Becca?

— Ah sim, ela só precisava desabafar um pouco, está com uma dor de


cotovelo por causa de Jim.

— O que houve?

— É... Acho que o garoto é Vulpi, mesmo... Falou ontem para ela que

não quer compromisso.

— Ele deve estar confuso, ele é jovem.

— Dezenove aninhos apenas.

— Becca deve ser a primeira humana com quem se envolve, deve estar
inseguro.

— Ele está experimentando. Mas acho que daqui alguns anos vai acabar

se casando com uma bela Vulpi bem alimentada do mesmo clã que ele, filha de
amigos da família.

— Talvez.

— Assim como eu.

— Ah é?
— Uhum. Vou me casar com um belo Vulpi do meu clã, bem alimentado
e rechonchudo, com uma barriguinha de cerveja e bacon, uma caminhonete

vermelha, dois cães labradores e que não perde um jogo dos Tigers na TV.

— E você vai me convidar para seu casamento?

— Claro, você e seu marido.

— E se eu não tiver marido?

— Eu posso apresentar o irmão do meu, só que a caminhonete dele é azul

e ele tem um rottweiler.

— Você nunca sonhou com isso?

— Com o quê? Casar ou ter uma caminhonete vermelha?

— Casar com um cara, ter uma casinha amarela com cerca branca, essas

coisas que toda menina sonha.

— Não sou bom parâmetro para nada, lembra? – Jennifer zombou.

— Lembro sim.

— Bom, eu nunca. — Jennifer falou enfática.

— Nunca teria um marido?

— Nunca torceria para os Tigers.

— Eu também não.

— Não torceria para os Tigers?


— Torço para o Bluefish. — Anna falou já mais à vontade.

— É mesmo? Eu também! — Jennifer abriu um sorriso e a beijou.

— Então vou assistir TV na sua casa quando me casar. — Murmurou.

— Será sempre bem-vinda. — Anna terminou a frase engatando um


longo beijo.

Jennifer sabia como desarmá-la como ninguém.

— Tomando café ao meio-dia... Isso é influência sua, sabia? — Anna

enchia duas canecas em cima da mesa, enquanto Jennifer assistia TV despojada


no sofá.

— Não é bom fugir das convenções?

Anna relanceou os olhos em cima da mesa e viu uma pilha de

correspondências não abertas acumuladas no canto.

— Você não costuma checar suas correspondências? — Anna perguntou,

mexendo o açúcar com uma colher.

— Que correspondência?

— Essas duzentas aqui em cima.

— Ah, são só propagandas ou informativos. — Jennifer respondeu sem

tirar os olhos da TV.

Anna então pegou o primeiro envelope da pilha e deu uma olhada.

— Seu pai é de Glasgow, na Escócia, não é?


— É sim, por quê? Meu café está vindo de lá?

— Essa carta é de lá.

Jennifer virou-se na direção dela. Anna levou os dois cafés e a carta até o
sofá, sentando-se no braço do mesmo, e lhe entregou a carta de envelope branco

e cheia de selos.

— Deixa eu ver. — Pegou a carta e a caneca.

— Nossa, é mesmo. — Jennifer falou rasgando o envelope e pousando a

caneca no outro braço do sofá.

Rapidamente tirou o papel de dentro e começou a ler avidamente.

— O que diz? — Anna perguntou, dando um gole no café.

Jennifer lia com a testa franzida as primeiras frases, quando de repente

arregalou os olhos.

— É do meu avô! — Jennifer falou atônita.

— Sério? Seu avô está vivo? E o que ele fala?

Jennifer continuou lendo movendo os lábios.

— Foi a vó Meredith, foi ela quem mandou uma carta para ele, depois
que fomos visitá-la ano passado.

— ...Sua avó não sabia como entrar em contato conosco e então resolveu
arriscar enviando uma carta para um antigo endereço que ela tinha anotado há
muitos anos, que por sorte não mudou, continuamos no mesmo lugar onde você
nos visitava e brincava de tiro ao alvo com seu estilingue nas pobres maçãs do
pomar...

— Já sei de quem você herdou seu sarcasmo. — Anna falou em tom de

brincadeira.

— Caramba, ele lembra disso! — Jennifer gargalhou.

— Vá, continue.

— ...Ficamos imensamente felizes com a notícia que você está viva e

bem, parece que recebemos a mesma informação que sua avó na época, sobre

um ataque que destruiu a casa de vocês.

— Ele também achava que você estava morta.

— Se eu pego a pessoa que trabalhava na assistência social da prefeitura

nessa época, eu faço ela engolir seus próprios dentes! — Jennifer comentou.

— ...Eu, sua tia Melanie, sua prima Caroline, seu primo Adam, sua tia

Emma e seu primo Hugh, todos nós adoraríamos poder rever você o mais breve
possível...

— Hum... Minha avó deve ter falecido então.

— ...Não sei se você já sabe, mas o dia dezessete de março é um dia

especial para nós, é como se fosse um feriado para nos confraternizarmos, e


sempre comemoramos com uma grande festa que nossa família tem o prazer de

preparar aqui no interior de Glasgow, seria uma grande alegria ter vocês conosco
neste dia festivo...

— Vocês?? — Jennifer franziu a testa.

— Sua vó nos contou na carta que você acabou de descobrir sobre quem
verdadeiramente é, espero que já tenha aprendido a se transformar numa raposa

nas noites de lua cheia. Ok, esta última parte era só para assustar você mesmo...

— Meu Deus, você é igualzinha ao seu avô... — Anna falou passando a

mão no rosto.

— ...Também gostaríamos de conhecer sua amiga Ana... —

— Ana com um N só, mas deve ser você. — Jennifer falou tocando na

perna de Anna.

— ...Que sua avó mencionou ser a responsável por você ter descoberto

quem é e a voltar ao seio da nossa família, queremos agradecê-la pessoalmente.


Estamos enviando duas passagens para a Escócia juntamente desta carta, para

que vocês participem da festa do nosso feriado, no mês que vem. Se não

puderem vir na data nós entenderemos perfeitamente, mas seria maravilhoso ter

minha netinha aqui conosco o mais breve possível, se for necessário troque a
data das passagens, mas venham.

Jennifer pegou o envelope que havia deixado ao seu lado e constatou que

realmente havia duas passagens lá dentro. Voltou à carta.

— Não vejo a hora de poder enxergar com meus próprios olhos a bela
garota que minha neta se tornou, que sua avó Meredith descreveu cheia de
elogios e muito carinho. Te esperamos de braços abertos e ainda com bastante

macieiras para você. Com amor, seu avô William.

— Não acredito! Meu avô está vivo, e me quer lá! Isso é demais!

— É uma ótima notícia. — Anna sorriu.

Jennifer levantou e andou pela sala incrédula, segurando a carta.

— Em um dia não tenho família, não tenho nada, e de repente tenho uma

família no Canadá e outra na Escócia, todas receptivas e... Caramba, meu avô,

minhas tias, meus primos... Quantos anos não os vejo!

— Sua avó Meredith teve uma sacada e tanto escrevendo essa carta.

— E ela não comentou nada da segunda vez que eu estive lá! Que

danada! — Jennifer sorria.

— Ela não queria te dar falsas esperanças.

— É... Deve ser, né?

Jennifer andou até a frente de Anna, parecia elétrica.

— Nossa, essa festa já é no mês que vem, não?

— Sim, dentro de cinco semanas.

Jennifer sorriu.

— Nós vamos à festa!

— Eu não sei se vou.


— Ah, por quê??

— Porque eles devem achar que também sou Vulpi, imagina a cara deles
quando virem que sou uma híbrida?

— Hum... Talvez minha vó tenha mencionado que você não é Vulpi.

— Acho que não.

— Ah, Anna, vamos mesmo assim, vai ser divertido, eu prometo que

cuido de você, todo mundo vai gostar de você.

— Com certeza, porque eu esbanjo simpatia, não é?

— Você não vai fazer essa desfeita com meu vovozinho, vai?

Anna a olhou nos olhos e suspirou.

— Primeiro vamos tentar nos informar com sua avó se ela avisou quem
eu realmente sou, ok?

Jennifer sorriu largamente. Sentou-se no outro sofá menor, deu uma

olhada rápida na carta novamente. Ainda sorrindo, fitou Anna, que desceu do

braço do outro sofá e largou sua caneca no chão.

— Eu vou na festa das raposas e vou levar minha garota! — Falou

fazendo uma dancinha com os braços.

— Qual delas?

— Não sei ainda, talvez eu faça um sorteio.

— Talvez você devesse levar a Ana com um N só.


— Quem sabe. Mas ainda não conheci nenhuma Ana com um N só.

Anna ficou em silêncio a olhando, com um leve sorriso nos lábios.

— O que foi? — Jennifer questionou curiosa.

— O que você é minha?

— O que eu sou de você? Hum. Não sei, tantas coisas.

— Por exemplo?

— Já fui sua invasora, sua refém, sua paciente, sua médica, sua aprendiz

e sua mestra. Hey, não ria. Já fui sua parceira no crime, sua sócia, sua motorista,

sua companheira de mesa de bar, sua amiga, sua mãe...

— Então está faltando algo.

— Tipo?

— Falta o papel de namorada.

Jennifer sorriu.

— Você está falando sério?

— Venha cá. — Anna a chamou baixinho.

Jennifer se aproximou e montou nas pernas de Anna, sentando-se no seu

colo, de frente para ela. Anna colocou suas mãos por trás de sua cintura e a
puxou para próximo de si.

— E então, o que acha?


— Você tem certeza que quer namorar uma garota? Você nunca fez isso
antes.

— Sinta-se lisonjeada? — Anna deu de ombros.

— Veja bem. Eu adoraria namorar com você...

— Mas?

— Mas... É óbvio que eu quero ser sua namorada. Só queria te torturar

um pouquinho. — Jennifer riu alto. — Você faz o melhor café do mundo e me

faz cafuné até dormir, quem em sã consciência não vai querer namorar com

você? Ah, já mencionei que você é a garota mais linda que eu conheço?

Anna subiu suas mãos pelas costas de Jennifer e a trouxe para um beijo.

Jennifer colocou suas mãos em seu rosto e retribuiu, era o primeiro beijo em sua

namorada.
Capítulo 15 – Um tiro no escuro

Era oficial, e elas pareciam sentir que algo havia mudado, a conexão

estava mais forte do que nunca.

Não era uma quinta-feira comum, já na entrada do pub do Oscar era

visível um pequeno ornamento vermelho em formato de coração, era dia dos


namorados e a noite era temática.

Estacionaram a moto um pouco mais afastada que de costume, a casa já

estava lotada àquela hora. A calçada em frente daquele prédio antigo estava

cheia de carros e motos, e a entrada tinha uma pequena fila formada.

Jennifer parecia radiante, Anna havia comentando o quanto ela estava

incrivelmente bonita naquela noite, e seu sorriso a deixava iluminada. Desde que

haviam engatado um romance, frequentavam o pub todas as semanas, mas Anna

continuava reservada no que tangia qualquer demonstração da relação em

público.

Mesmo sendo algo que de certo modo frustrava Jennifer, ela nunca havia

comentado nada a respeito, mas às vezes essa frustração ficava evidente. Quando
se via tendo que policiar suas atitudes e pequenos gestos em público, deixava

transparecer seu desconforto involuntariamente.

Após passarem pelo guichê da entrada, adentraram o bar e pararam

quando viram que o recinto já estava quase cheio.


— Esta noite vai ser daquelas... — Jennifer comentou, perscrutando todo
o local.

Sem olhar para Jennifer, Anna pegou a sua mão e começaram a caminhar

na direção de uma mesa no fundo, onde já haviam localizado Becca e

companhia. Jennifer se surpreendeu com a atitude dela e a olhou com um sorriso


bobo, atravessaram o salão de mãos dadas.

Anna estava especialmente mais à vontade naquela noite, inclusive

conversando com outras pessoas na mesa.

— Como conseguiram uma mesa hoje? Chegaram ao meio-dia? — Anna


brincou.

— O difícil não foi conseguir a mesa, foi guardar os lugares para vocês

duas. Onde vocês se meteram? — Bob respondeu.

Jennifer riu. Tirou seu lenço do pescoço para ajeitar novamente e

percebeu que Jim a olhava, relanceando novamente os olhos se deu conta que ele

olhava seu cordão com o medalhão, que estava exposto naquele momento. Foi o
bastante para despertar a curiosidade dela.

— Anna, você pode fazer um favor para mim?

— Claro.

— Você pode acompanhar Becca até o banheiro?

— Por quê?
— Quero um minuto a sós com Jim.

Anna se virou na direção de Jennifer, intrigada.

— Mas como você sabe que Becca quer ir ao banheiro?

Jennifer olhou discretamente para Becca e esperou que ela levasse sua
caneca até a boca. Quando foi beber seu chope, a caneca entornou mais do que

deveria, derramando o líquido em sua roupa.

Jennifer franzia a testa.

— Mas que droga, como fui me babar assim?? — Praguejou Becca.

Anna, claro, foi solícita.

— Venha, te ajudo a enxugar. — E seguiram para o banheiro.

Jennifer sentou-se então na cadeira de Becca.

— Olá, meu caro duende irlandês. — Jennifer puxou conversa com Jim.

Jim deu um sorrisinho e um gole em seu caneco.

— Foi você, não foi? — Falou apontando para o caneco de Becca.

— Não sei do que você está falando. — Jennifer respondeu com cinismo.

— Glasgow ou Edimburgo?

— Glasgow. E você?

— Dublin. Mas não faço parte da realeza. E minha mãe mora em

Edimburgo.
— O que anda fazendo no novo mundo?

— Meu pai foi transferido para cá esse ano. E você pelo sotaque já está
aqui há um bom tempo, não?

— Nasci aqui. Você conhece outros como nós aqui na cidade? —

Jennifer perguntou quase ao pé do ouvido.

— Eu ia te perguntar isso.

— Ainda não.

Jim olhou com espanto.

— Não?

— É uma longa história. — Finalizou Jennifer.

— Becca... Ela sabe?

— Não, não. A propósito, quais suas reais intenções com ela?

— Você não é muito nova para ser mãe dela?

— Jim... Você sabe do que estou falando.

— É meio irônico você me questionar isso, não acha?

— Não mude de assunto, mocinho.

Jim ficou pensativo por um instante.

— Eu gosto dela... De verdade.

— Becca é como uma irmã para mim. Temos essa coisa de cuidar uma da
outra, sabe? Então... Seja um bom garoto.

— Senão? — Jim respondeu sarcasticamente.

Jennifer se ajeitou na cadeira e fez cara de má.

— Senão mando minha garota ter uma conversinha com você. E ela é
bem forte.

Jim balançou a cabeça sorrindo.

— Depois continuamos nosso papo. — Jennifer falou voltando para sua

cadeira, Anna e Becca estavam chegando.

Anna sentou-se ao lado de Jennifer e cochichou algo em seu ouvido.

— Isso não foi muito, digamos... Correto.

Jennifer sorriu maliciosamente.

— Mas funcionou.

Anna lançou um sorriso bobo e a encarou com um olhar cheio de doçura.

— Feliz dia dos namorados. — Anna falou baixinho.

— E das namoradas.

Anna pousou a mão no rosto de Jennifer, fez um leve carinho com o

polegar. Jennifer ficou esperando o próximo movimento dela, e assim que Anna
resolveu investir em sua direção, Becca interrompeu.

— Jennifer, me empresta esse lenço seu? Para cobrir essa mancha na


minha blusa.

Naquele momento Jennifer se arrependeu terrivelmente do que havia


aprontado.

Suspirou com um sorriso irônico e tirou sua echarpe, a entregando.

— Claro, tome.

Era quase três da manhã quando toda a turma resolveu ir embora, alguns

já estavam na parte externa do pub. Jennifer conversava animadamente com Bob

na calçada, enquanto Anna conversava com Becca próximo à porta.

Foi quando uma movimentação suspeita chamou a atenção de Jennifer,

imediatamente ela interrompeu a conversa, e apesar da pouca iluminação,

percebeu que alguém mexia na moto de Anna, que estava há algumas dezenas de

metros dali.

Jennifer começou a dar alguns passos lentos na direção dele. Quando viu

que ele montara na moto e tentava dar a partida saiu correndo em disparada.

Anna só percebeu o que acontecia quando Jennifer já estava correndo.

— Larga essa moto seu filho da mãe! — Jennifer bradou enquanto


chegava até a moto.

Num gesto rápido, o ladrão sobressaltado sacou um revólver 38 e atirou


na direção da sua cabeça, quase à queima-roupa. Jennifer tombou para trás,

caindo de costas na calçada de concreto, inerte.


Com o barulho do tiro, todos olharam na direção deles.

— Jennifer!! — Anna gritou desesperada e saiu correndo.

Toda a ação havia levado poucos segundos, mas Anna parecia ter
assistido tudo em câmera lenta.

Antes de chegar até Jennifer, Anna viu o agressor largando a moto e

fugindo a pé. Numa reação quase que automática ela sacou uma adaga de dentro

do casaco e arremessou na direção dele, cravando-lhe nas costas. Ele também

caiu inerte.

Anna sentiu como se seu coração tivesse parado por um instante,

agachou-se ao lado de Jennifer e viu o sangue esvair na lateral da cabeça, um


pouco acima da orelha esquerda, seguindo até quase a nuca. Colocou as duas

mãos em seu rosto e virou um pouco para ver melhor o ferimento. Olhou de

perto, franzindo a testa. Becca abaixou-se também ao lado, e logo outras pessoas

já as cercavam, atônitos e curiosos.

— Bob! Bob! Traga seu carro aqui! — Anna bradou levantando a cabeça.

— Ela levou um tiro na cabeça?? — Becca perguntava quase que


retoricamente.

— De raspão. — Anna dizia mais para si própria do que para Becca.

— Então por que ela não acorda?

— Porque foi um tiro na cabeça. — Anna respondeu rispidamente.


Logo ouviu-se a freada brusca do carro de Bob ao lado, Anna passou
seus braços por baixo das pernas e costas de Jennifer e a ergueu, a carregando

até o banco de trás do carro.

Sentada no canto do banco e segurando Jennifer junto a si, Anna olhava

para ela e repetia baixinho como num mantra.

— Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem...

Depois passou a olhar impaciente para os lados e ergueu a voz.

— Bob, tem como ir mais rápido?

— Vou tentar, mas não dá para exigir muito desse carro velho.

O sangue já manchara boa parte da blusa azul que Anna vestia por baixo

do casaco de couro. Becca, que estava no banco da frente, virou-se e a observou

por um instante.

— Ela está respirando, não está?

— Está sim. — Anna nem precisava olhar para ter esta certeza, podia

sentir a respiração lenta de Jennifer em seu próprio corpo.

Bob parou na entrada da emergência do hospital Saint Vincent’s,


imediatamente Anna abriu a porta e saiu com Jennifer em seus braços. Ela ainda

não havia esboçado nenhuma reação, mantinha cabeça, pernas e braços caídos
enquanto Anna a carregava para dentro do hospital.

Becca correu na frente para abrir a porta e logo já estavam no saguão de


recepção. Anna olhou para os lados e pediu ajuda. Era uma sala grande e

iluminada com fortes lâmpadas fluorescentes, as paredes tinham manchas. Havia

uma recepcionista com uma cara pouco amistosa atrás do balcão alto e meia

dúzia de pessoas sorumbáticas sentadas nas cadeiras de forro azul, aguardando


atendimento.

— Por favor, uma maca! — Exclamou.

Um enfermeiro de cabelos negros e olhos cansados, que saía da recepção,

voltou e arrastou uma maca que estava no corredor até elas, Anna a repousou

com cuidado e juntou seus braços ao corpo.

Enquanto ele empurrava a maca pelo corredor, era acompanhando pelos

três amigos, que seguiam preocupados e com pressa.

— Arma de fogo?

— Sim. Um tiro à queima roupa, não sei o quanto de raspão foi. — Anna

respondeu.

Entraram numa sala onde havia uma dezena de camas articuladas, todas

ocupadas e com biombos brancos as separando umas das outras. Assim que
adentraram o recinto outro enfermeiro, aparentando ser mais velho e algum tipo
de superior no local se aproximou e debruçou-se sobre Jennifer, a examinando.

— Você é o médico? — Becca que estava do lado dele indagou.

— Não, sou o enfermeiro chefe essa noite.


— Então a leve até um médico. — Anna falou.

Ele virou-se na direção deles e falou com um semblante decepcionado.

— Não temos nenhum médico disponível agora. Vou pedir para fazerem
uma limpeza no ferimento enquanto ela aguarda atendimento, é o máximo que

podemos fazer.

— Você está me dizendo que nada vai acontecer, enquanto ela pode estar

com uma concussão ou algum edema cerebral, e vai ficar por isso mesmo?

— O médico plantonista está numa cirurgia, e o outro está fazendo a

ronda nos pacientes, o primeiro que liberar virá examiná-la.

Até aquele momento Anna havia tentado manter a calma, mas enfim

explodiu. Ela se aproximou dele com passadas rápidas e com um aspecto

raivoso, empurrando Becca para o lado. Segurou o homem pelo colarinho do seu

jaleco, com suas duas mãos, e o puxou para perto de si.

— Você acha que eu vou ficar aqui olhando ela morrer?? Você vai

arranjar um médico para examiná-la agora, entendeu? — Terminou a frase ainda

o segurando pela gola.

O homem alto de cabelos ralos e cavanhaque parecia em choque, tirou as


mãos de Anna de seu pescoço e falou nervoso.

— Não... Não é assim que as coisas funcionam aqui! Mas eu entendo a

gravidade, eu vou chamar o Dr. Roberts. — Ajeitou seu colarinho e saiu em


disparada.
Anna suspirou e virou-se para trás, viu Becca e Bob igualmente
arregalados.

— Desculpe, às vezes as coisas só funcionam assim. — Anna falou um

tanto embaraçada.

— Não, não, você agiu certo. — Bob respondeu de imediato.

— Totalmente correto, totalmente. — Becca completou.

Em segundos um jovem médico apareceu e a levou na direção da sala de

trauma, barrando a entrada do trio no início do corredor.

— Daqui em diante vocês não podem prosseguir. — O médico falou,

segurando a porta aberta.

Anna olhava apreensiva na direção da maca. Ele percebeu as feições

preocupadas de todos e completou.

— Ela vai ficar bem. Aparentemente não foi nada grave, a sala de espera

é logo ali atrás, assim que terminarmos venho conversar com vocês, ok?

Levou a maca com Jennifer para dentro do corredor, as folhas da porta


ainda balançaram por um instante.

— Venha, vamos nos sentar lá. — Becca puxou Anna pelo braço.

A sala de espera não era muito grande, além das cadeiras azuis já

surradas, havia um bebedouro e janelões que davam para a rua, ainda negra com
a noite.
Sentaram em silêncio por um minuto, até Bob levantar para ir beber
água.

— Jenny é dura na queda, vai sair daqui amanhã caminhando e fazendo

alguma piada sobre a comida do hospital. — Becca falou.

Anna apenas deu um sorrisinho torto e balançou a cabeça.

— Sua roupa está bem suja de sangue. — Bob falou quando voltava para

sua cadeira, apontando para Anna.

— O quê?

— Sua blusa... Está toda suja.

Anna olhou para si e puxou a barra da blusa para frente.

— Paciência.

— Não vão deixar você entrar assim para vê-la.

Anna olhou seriamente para Bob.

— É mesmo. — E prontamente tirou o casaco e a blusa, depois vestiu o

casaco por cima da regata preta que usava por baixo da blusa.

Anna continuava inquieta.

— Odeio hospitais. — Anna comentou.

— Algum trauma? — Bob questionou.

— Apenas odeio.
Poucas palavras foram trocadas, o cansaço e sono eram grandes e
aumentavam à medida que a madrugada seguia.

Quase sete da manhã, Bob e Becca cochilavam com as cabeças caídas

para trás, mas Anna mantinha-se tensa, sentada com as mãos entrelaçadas em

seu colo. O médico aproximou-se deles e logo se levantaram.

— A amiga de vocês é bem cabeça dura hein?

— Que?

— Desculpe, humor de hospital.

Ninguém além dele riu.

— Como ela está? — Becca perguntou.

— Está tudo bem, apesar de ser um ferimento longo, que começa no

lóbulo temporal e termina já no lóbulo occipital, a bala não perfurou o crânio.

Todos soltaram suspiros de alívio.

— Ela teve um traumatismo craniano leve, por isso tem que ficar pelo

menos 24 horas em observação, e um pequeno edema no lóbulo occipital, mas


que também deve regredir sozinho logo.

— Mas ela vai ter alguma sequela? — Anna perguntou.

— É improvável, mas vocês sabem como são esses casos, só saberemos


mesmo quando ela acordar. Talvez ela tenha um pouco de confusão mental,
tonturas, isso já é esperado, acredito que não irá passar disto.
— Podemos vê-la?

— Ela foi para o quarto agora, vou levá-los até lá. Mas façam silêncio, eu
não poderia permitir três visitas ao mesmo tempo, então já sabem, bico fechado.

— Falava enquanto andava até o quarto.

Logo que entraram foram até o lado da cama onde Jennifer estava, ela

tinha uma bandana de ataduras rodeando sua cabeça, cobrindo sua testa quase
por completo, e um tubo fino de oxigênio em seu nariz. O quarto era pequeno e

os equipamentos pareciam já bastante usados. A cama de ferros brancos tinha as

alavancas já completamente descascadas. Ao lado havia duas cadeiras do tipo de

escritório, simples e também azuis.

Becca de um lado e Bob de outro, observaram Jennifer por um instante,

que jazia completamente apagada.

— Que susto, hein, dona Jennifer. — Becca falou.

— Ah, tem mais um detalhe, o disparo provavelmente foi bem próximo à

cabeça dela, não?

— Foi sim, quase à queima roupa. — Anna respondeu.

— Ela teve um rompimento do tímpano, mas já fizemos a reparação, foi


uma ruptura sem tanta criticidade. Mas de qualquer forma, é possível que ela

tenha uma perda permanente, que a audição não volte a ser como era antes no
ouvido esquerdo, pois identificamos células ciliadas bastante lesionadas através

da ressonância.
Anna olhou entristecida para Jennifer e virou-se novamente ao médico.

— Quando ela vai acordar?

— Ela está sedada, mas vamos diminuir os sedativos gradualmente,


acredito que comece a acordar dentro de seis, sete horas. Vou passar por aqui no

meio da tarde para examiná-la novamente, certo?

Balançaram a cabeça concordando.

— E por gentileza, diminuam de número, não vão permitir três pessoas

aqui dentro, só estou avisando... — Ajeitou seus óculos e saiu.

A permanência deles não durou muito, logo uma enfermeira foi até o

quarto e falou o mesmo.

— Tá bom, eu tenho que trabalhar e nossa amiga não vai acordar até a

tarde mesmo. Eu volto assim que for possível. — Becca falou, já indo se
despedir de Jennifer.

— Anna, quer que eu te leve em casa? — Bob se ofereceu.

— Não. Vou ficar aqui, nem que eu precise me esconder no banheiro.

— Ok, então, vou levar Becca no trabalho e voltamos a tarde. Você tem
meu número, não tem?

— Tenho sim, qualquer coisa eu aviso vocês. — Tateou o bolso da calça

e pegou seu celular.

Despediram-se e Anna levou uma das cadeiras até a lateral da cama,


sentou-se e a observou por alguns minutos.

— Essa noite não deveria ter terminado assim.

Passou a mão pelo que restava descoberto em sua testa carinhosamente,


ajeitou seu cabelo que saia pela bandagem.

— Acorde bem, meu anjo... — Sussurrava. — Acorde a mesma Jennifer

que estava comigo contando piadas há algumas horas... Eu sei que você queria

um beijo essa noite, não era uma noite qualquer, e eu não te dei... Eu deveria ter

dado todos os beijos do mundo. Apenas acorde. — Anna lutava para segurar as

lágrimas, esfregando os olhos.

As horas se passaram sem nenhuma alteração no quadro clínico de


Jennifer, Anna foi finalmente vencida pelo cansaço e havia caído no sono na

cadeira ao lado da cabeceira. Acordou com o barulho da enfermeira que entrava

regularmente para medir sua temperatura e pressão.

Olhou no relógio de parede, havia se passado pouco mais de cinco horas

desde que o médico saíra do quarto. Quando a enfermeira deixou o recinto,


aproximou sua cadeira e lentamente abaixou-se, tocou a mão gélida de Jennifer e

deu um beijo suave, depois pousou seu rosto na mão dela. Fechou os olhos com
força, abriu e ficou por um tempo correndo seus dedos no braço dela.

— Anna?

Anna ergueu-se rapidamente e viu Jennifer ainda sonolenta, tentando

manter os olhos abertos.


— Estou aqui, querida. — Respondeu, com um sorriso.

Anna levantou-se da cadeira e aproximou-se dela, passando a mão em


seus cabelos.

— Está tudo bem.

— Estou... Num hospital? — Jennifer falou baixinho, com uma voz

fraca. Ainda estava grogue.

— Está sim. Você quer alguma coisa? Está sentindo dor?

Mas Anna percebeu que havia algo errado. Jennifer corria os olhos pelo
quarto, mesmo que entreabertos com dificuldade, sem focar em nenhum lugar.

— Anna?

— Sim?

— Por que as luzes estão apagadas? — Mantinha sua fala num tom

suave, calmo.

— As luzes estão acesas. — Anna mantinha o mesmo tom de fala que

ela.

Jennifer correu os olhos na direção de Anna, sem focá-la.

— Você vai ficar aqui comigo?

— Claro, não vou sair do seu lado nem por um minuto, ok? —
Respondeu pegando a mão dela e a colocando espalmada em sua face.

Ainda sob efeito da sedação, Jennifer virou a cabeça devagar e fechou os


olhos.

Anna a observou mais um pouco, sentou-se angustiada na cadeira, apoiou


os cotovelos na cama e esfregou as duas mãos no rosto.

— É temporário. Tem que ser temporário. — Pensava, tentando se

convencer.

— E se você precisar fazer xixi?

Anna deu um riso abafado.

— Não irei, prometo.

E Jennifer voltou a dormir.


Capítulo 16 - Rambo ou Karate Kid

Um homem de meia idade e com trajes verdes entrou no quarto dando

um boa tarde sorridente.

— E você é...

— Dr. Phil, sou o neurocirurgião que está acompanhando o caso dela. —

Se aproximou da cama e se inclinou examinando Jennifer. — E então, como está

nossa bela adormecida? — Falou num tom brincalhão.

Anna levantou-se e ficou de pé ao lado da cama.

— Ela não está enxergando.

— Ah, ela já acordou?

— Acordou faz quarenta minutos e dormiu novamente, mas não estava

enxergando, isso é temporário, não é?

— O que ela falou? — O médico perguntou enquanto examinava os

olhos dela, abrindo e apontando uma pequena luz na direção deles.

— Ela estava bem sonolenta, mas eu percebi que ela não estava

conseguindo focar em lugar algum. E perguntou por que as luzes estavam


apagadas.

— Hum... Talvez seja o edema que esteja pressionando alguma área da


visão. Precisamos de novos exames. Vou pedir uma tomografia complementar
agora. Percebeu mais alguma anormalidade?

— Não. Ela parecia bem lúcida, apesar da sedação.

O médico deu uma boa olhada em Anna.

— Você é parente dela?

Anna hesitou por um momento.

— Não. Amiga.

— Ótimo, então caso ela acorde de novo a tranquilize, ela pode ficar

assustada por causa da cegueira. Faça contato físico e fale num tom de voz bem

calmo. Você consegue?

— Claro. Mas vai demorar muito para o exame?

— Assim que a sala liberar alguém vem buscá-la.

Alguns minutos depois de um enfermeiro levar Jennifer, Becca e Bob


chegaram no quarto.

Anna estava com semblante cansado e sério, de braços cruzados.

— Ué, não vai me dizer que ela fugiu? — Bob perguntou confuso.

— Está fazendo uma tomografia.

— Já acordou?

— Por poucos minutos.

— Mas você não parece muito animada.


— Ela não me viu.

— Como assim? Você tinha saído do quarto? — Becca indagou.

— Ela não estava enxergando.

— Meu Deus, ela ficou cega??

— Não! Deve ser algo momentâneo. Vamos saber mais depois dos
exames.

— Tomara.

Metade de uma hora passou-se e Jennifer voltou ao quarto, ainda

desacordada.

— O médico disse que vem aqui em instantes conversar com vocês. —

Informou o enfermeiro.

— Que sejam boas novas. — Becca murmurou.

— Serão. — Anna respondeu confiante.

Becca balançou a cabeça incomodada e sentou-se em uma das cadeiras.

— Tudo por causa de uma porcaria de uma moto.

— Se eu tivesse visto, não teria deixado ela ir. — Anna rebateu.

— Por que você não atirou no cara na hora?

Becca e Anna iniciaram um bate-boca.

— Eu não estava armada, e mesmo que estivesse, não atiraria na direção


deles, ainda mais no escuro.

— Por que raios você inventou de estacionar a moto naquele canto


escuro?!

— A calçada já estava lotada, você viu a quantidade de pessoas que tinha

no pub esta noite! Como eu ia adivinhar que um marginal iria tentar algo ali?

— Você não é tão forte e tão ágil? Deveria ter corrido quando viu

Jennifer correndo, ficou a assistindo tomar um tiro! E agora?

— Hey, pessoal, eu não morri ainda.

Jennifer falou baixinho. Todos se calaram e olharam assustados na

direção dela.

— Olha só quem está de volta! — Bob falou sorridente.

Anna se aproximou da cabeceira e olhou com certa apreensão, Jennifer

ainda não havia aberto os olhos.

— Como se sente? — Anna pegou na sua mão.

Jennifer então abrira os olhos e piscava lentamente. Olhou na direção de


Anna.

— Como se tivesse andado de montanha russa... Por horas...

— Consegue nos ver? — Becca perguntou do outro lado.

— Não... Mas um médico com voz de ator de cinema... Me explicou que


tudo vai voltar ao normal... Em breve... E acreditei nele. — Falava devagar,
dando pausas para respirar.

— Você acordou durante o exame?

— No final...

Dr. Phil entrou a passos rápidos no quarto e foi logo falando sobre o
resultado do exame.

— Essa menina tem a cabeça blindada! Nem um tiro a derruba. —

Brincou.

— Então é questão de dias para ela voltar a enxergar? — Anna não


conseguia relaxar.

— Isso, mas Jennifer vai tirar isso de letra, não é mesmo?

Jennifer sorriu e ergueu o polegar. O médico deixou o quarto e

finalmente Anna parecia um pouco mais tranquila.

— Que bom que esse edema está diminuindo. — Becca comentou.

— Senão eu iria para a faca. — Jennifer completou.

— Anna, por que não vai para casa descansar um pouco? Dormir, tomar
um banho. — Bob sugeriu logo após uma enfermeira reclamar da quantidade de

pessoas no quarto.

Anna hesitou. Jennifer tateou a cama procurando pela mão de Anna, que
prontamente a segurou.

— Vá... Durma um pouco, você está desde a madrugada aqui.


— Acho melhor não.

— Eu estou ótima, não posso ver, mas você deve estar pior que eu.

— Eu busco você mais tarde, daí você passa a noite aqui, combinado? —
Bob insistiu.

— Ok, mas qualquer coisa me ligue.

***

No final da tarde do dia seguinte Jennifer teve alta. Após passar por mais

exames o médico a liberou, e também pela insistência dela. Pode perceber,


mesmo sem enxergar, o desconforto que Anna sentia dentro do hospital.

— Quando trarão minha carta de alforria? — Jennifer perguntou para

Anna, que a ajudava a se vestir com as roupas que Becca havia trazido.

— Ainda hoje. Quer alguma coisa? Uma água, suco...

— Quero a minha cama.

— Serve a minha? — Anna respondeu baixinho.

— Sua cama é bem confortável.

— É toda sua.

— Sabe o que mais gosto na sua cama?

— Não, o quê?

— Ela vem com você em cima. — Sorriu. — Desculpe, prometo que


minhas piadas melhorarão.

Bob as deixou na casa de Anna. Jennifer subia as escadas ajudada por


ela.

— Eu já decorei o caminho.

— Que bom. Mas não vou largar seu braço.

Jennifer já estava acomodada na cama e Anna voltava do banho com seu

roupão negro com detalhes brancos. Sentou-se na beira da cama, ao seu lado.

Jennifer sempre dormia do lado esquerdo.

— O que está fazendo? — Jennifer perguntou.

— É bom ter você aqui. E viva.

— Eu acho que te devo desculpas.

— Não, claro que não. Mas um pouco mais de juízo faria bem.

— Mas foi muita cara de pau daquele desgraçado, não? Eu não me

contive.

— Agradeço o que você fez. Sua intenção em impedir o roubo... Mas


prefiro que me roubem mil motos a ver você levando um tiro.

— Dei azar.

— Me prometa que não vai fazer algo desse tipo novamente.

Jennifer sorriu de lado e puxou Anna para perto.


— Vou tentar.

Tateou de leve o rosto de Anna.

— Achei você.

Anna se inclinou e deu um beijo carinhoso.

— Eu vou voltar a enxergar, não vou? — Apesar do seu costumeiro


otimismo, Jennifer estava com receio.

— Antes do que você imagina.

Não demorou muito para que ambas caíssem no sono, Jennifer embalada

pelos remédios e Anna pelo cansaço.

No meio da madrugada Anna despertou com Jennifer sentada na cama,

parecia aterrorizada e falava alto.

— Que lugar é esse?? O que eu estou fazendo aqui?

Anna também sentou-se na cama e tentou acalmá-la.

— Hey, Jennifer, está tudo bem. — Pegou na mão dela, que se assustou

mais ainda. — Sou eu. Anna.

— Onde estou??

— Na minha casa, você está na minha casa.

Jennifer olhava para os lados, confusa.

— Você está na minha cama. Estou aqui do seu lado. — Anna a


tranquilizou.

— Fica aqui comigo.

— Eu vou ficar.

Jennifer levantou a mão e procurava por Anna no vazio.

— Aqui. — Guiou a mão dela até seu rosto.

— Eu não te vejo.

Anna a abraçou firmemente.

— Eu sei. Mas tudo vai ficar bem logo.

A deitou devagar e também deitou, junto à ela. Aninhou-se e passou seu

braço por cima do seu peito.

— Durma... Prometo não sair daqui.

E a viu adormecer.

***

O sol já raiava há algum tempo quando Anna acordou assustada, era


Jennifer literalmente montando nela, sentada em sua cintura.

— O que aconteceu?? — Anna perguntou sem entender nada.

— Eu acho que vi uma gatinha... — Jennifer respondeu sorridente.

E um sorriso aberto também surgiu nos lábios de Anna.

— Voltou a enxergar?
Jennifer balançou a cabeça positivamente.

— Como se sente?

— I can see clearly now the rain is gone… — Jennifer cantou. — Santo
Cristo, como estou tonta... — Completou.

Anna a puxou para deitar-se sobre ela, a abraçando.

— Mas sou uma tonta que enxerga. — Falou no seu ouvido.

— Que bom... Que bom... — Anna respondeu aliviada.

***

O sábado passou preguiçoso e o sol se punha. Haviam recebido a visita

de Bob, Becca, Jim, e mais dois amigos da vila no período da tarde.

Agora haviam sossegado. Jennifer ajeitou as almofadas no sofá de


madeira na sacada e deitou-se, de frente para Anna, que trabalhava no

acabamento de uma adaga, sentada numa velha cadeira de madeira escura, tinha

ao seu lado um pedestal usado por vezes como mesinha.

Deixou cair a cabeça na almofada, os olhos pesavam, mantinha-os


semicerrados, observando Anna trabalhar. Tinha uma sensação de paz interior,
de segurança, não conseguiria explicar se tentasse, não conseguia tirar os olhos

dela.

— Você é canhota.

— Percebeu agora?
— Não. — Sorriu nostálgica. — Percebi quando você matou a primeira
gárgula.

— No dia que nos conhecemos? — Anna olhou para ela.

— Sim.

— Então você prestou atenção em mim.

— Desde o início.

Continuava a olhando, com um carinho que jamais imaginou que poderia

sentir por alguém.

— Você estava com uma blusa preta... Não sei que material era aquele,

poliéster, lã, não sei... Mas tinha uns detalhes em couro preto, umas tiras, mas só

dava pra perceber olhando de perto.

Anna sorriu e balançou a cabeça.

— Antes de você derramar aquela garrafa na perfuração no meu ombro

você parou, olhou séria pra mim... Deve ter pensado: ‘acho que essa pirralha não

vai aguentar’, eu lembro, eu lembro de quase tudo. Então você pegou a minha a
mão. Não sei se falou algo, nem se eu falei algo, porque eu estava embriagada de
febre.

— Tudo bem, eu confio em você. — Anna falou sem erguer a cabeça.

— O quê?

— Você falou: ‘Tudo bem, eu confio em você.’


— Falei?

— Falou.

— Viu? Eu estava mal. — Riu.

— Você é um ímã de encrenca sabia? Se eu soubesse antes teria deixado


vocês virarem comida de gárgula.

— Que maldade. Eu posso ser útil algum dia. Se fosse você que tivesse

levado o tiro, quem te levaria no hospital? Eu te levaria.

— Nunca me leve para o hospital. — Anna respondeu séria.

— Qual teu lance com hospitais?

— Não tem lance nenhum, só nunca me leve para um hospital.

— Se você se ferir pra valer, o que eu faço? Eu ainda não achei diploma
de medicina para vender no porto.

— Tem o número de um médico de confiança no meu celular, ligue para

ele.

— Mas se for algo bem cabuloso, você estiver com as tripas ou o cérebro
saindo de você, vou precisar te levar no hospital.

— Tá. Apenas se eu estiver de fato morrendo.

Jennifer riu.

— Você tem medo.


Anna continuava séria.

— Você tem razão, eu tenho medo.

— Agora você está me zoando.

Anna parou o que eu estava fazendo e olhou Jennifer nos olhos por um
instante.

— Você é muito jovem, não lembra como eram as coisas antigamente,

para os híbridos.

— Do que você está falando?

— Já ouviu falar do sangue de ouro?

— Engraçado, já ouvi sobre isso, mas não lembro o que é.

— Um dia, há muito tempo, algum desocupado descobriu por acidente


que o sangue dos híbridos quando injetado nos humanos funciona como uma

espécie de catalisador, como se fosse uma grande descarga de adrenalina. E

também funciona na restauração acelerada de células danificadas.

— E por isso vale como ouro para os humanos.

— Por algum tempo houve uma verdadeira caça às bruxas, muitos de nós

morreram para que usassem seu sangue em humanos moribundos.

— Sério? Que coisa de filme de terror. Mas hoje em dia não é mais
assim, é?

— Nos anos setenta houve uma espécie de lei ou acordo, sei lá... Que
proibiu o uso de sangue híbrido em qualquer humano, passou a ser crime coletar
ou injetar o nosso sangue. Ao mesmo tempo os híbridos criaram uma espécie de

regra de conduta entre nós, para que qualquer híbrido que doasse seu sangue,

fosse punido exemplarmente.

— O que acontece se você doar seu sangue?

— Não sei exatamente o que fazem hoje em dia. Mas sei que seria
deserdada da minha subespécie, e teria alguma represália, algum castigo talvez.

— Hum... Agora entendi seu pavor de hospitais.

— E sei que hoje em dia ainda roubam sangue de híbridos, numa espécie

de mercado negro. E os hospitais são bons lugares para praticar isso.

— Será que fazem isso no Saint Vincent’s?

— Não sei... Mas você entende como me sinto, não entende?

— É... Eu evitaria agulhas também. E nos Titans, nada acontece, né?

— Não, só funciona nos humanos.

— Que bom. Senão os híbridos já estariam dizimados. E com Vulpis?

— Não faço a menor ideia do que acontece.

Jennifer ficou alguns segundos pensativa.

— Então nada de hospitais.

— Nada de hospitais.
Anna voltou a olhar o objeto na sua mão.

— Acho que terminei. — Falou, polindo a adaga com uma flanela.

— Posso ver como ficou?

Anna levantou-se e sentou ao seu lado no banco acolchoado, entregou-


lhe a faca e passou as pernas de Jennifer por cima das suas.

— É sua. — Anna falou.

— Como assim minha?

— Você me encomendou uma adaga, meses atrás, lembra?

— Ah sim. Naquele dia que vim caminhando na sua casa.

— Desculpe o atraso na entrega.

Jennifer olhava os detalhes do cabo trabalhado e da lâmina de damasco,

padrão gota de chuva.

— Ela é linda. E aí, quanto te devo?

— Presente do dia dos namorados.

— Obrigada, baby. Vem cá.

Anna se inclinou para o lado e Jennifer a beijou. Voltou a olhar a adaga.

— Por que tem essas iniciais aqui no cabo, um P e um C?

Anna sorriu.

— Pequeno Castor.
— Ah, fala sério!

— Você não queria que eu colocasse seu nome real nela, não é? Vai que
você a perde numa cena de crime e pronto.

— Hum, entendi.

— Vamos entrar? Está na hora de trocar seu curativo.

— Estou pensando em incorporar essa faixa ao meu dia a dia, o que

acha?

Jennifer falou tocando a atadura que envolvia sua cabeça.

— Eu adorei, é uma coisa meio Rambo. — Anna respondeu.

— Ou Karatê Kid.

***

No dia seguinte, Jennifer sentava numa cadeira na cozinha, com as costas


da cadeira a sua frente, apoiava os braços acima do encosto e a cabeça em cima

dos braços. Observava Anna preparar o almoço.

— Quem esteve aqui hoje cedo?

— Oscar.

— Do pub?

— Sim, veio trazer a moto.

— Então não levaram sua moto. — Jennifer falou, satisfeita.


— Não, você impediu. Parabéns.

— Não lembro como terminou. Aquele babaca deve ter fugido assustado
com o que fez.

— Ele morreu.

— Como você sabe?

— Oscar me contou quando esteve aqui.

— Algo me diz que não foi coincidência.

Anna largou a faca e olhou para Jennifer.

— Não, não foi.

— Foi você?

Anna apenas balançou a cabeça positivamente.

— Nossa. Você não dorme no ponto mesmo, hein?

— De nada. — Respondeu com ironia.

— Devia ser mais um desses ladrõezinhos de moto.

— Parece que era de uma dessas novas gangues.

— De Titans?

— Não, humanos mesmo.

— Bom, um a menos.

— É sim. Então você ouviu quando Oscar esteve aqui?


— Só escutei uma voz masculina e imaginei que não era a sua. Ou então
você estava gripada.

— Você me ouve bem?

— Nem sempre.

— Como assim?

— Às vezes eu até te ouço, mas não faço o que você diz. — Sorriu.

— Não falo disso. Mas não deixa de ser uma verdade, você deveria me

ouvir mais. Mas eu estava perguntando da sua audição mesmo.

— Tem um zumbido no ouvido me enchendo o saco, mas deve ser por

causa do tiro, que foi bem de perto.

— Sim. E também porque seu tímpano rompeu.

Jennifer arregalou os olhos.

— Mas já consertaram. — Completou.

— Você é ótima para dar más notícias, sabia?

— Sinto muito.

— Mais alguma coisa sobre mim que eu deveria saber?

— Sua audição neste ouvido deve ficar um pouco prejudicada.

— Que maravilha.

— Eu realmente sinto muito.


— Tudo bem, ainda tenho o outro.

— A boa notícia é que suas pernas e braços estão em perfeitas condições,


venha, me ajude a colocar os pratos e talheres na mesa.

— Que? Não te ouço. — Jennifer disse, levando a mão, em formato de

concha, à orelha.

***

Jennifer acordou naquela segunda-feira nublada e colocou a mão na

cabeça, fechou os olhos novamente, sentia uma terrível dor de cabeça.

— Que merda de dor de cabeça. — Resmungou.

Sentou na cama e constatou que Anna não estava por ali, viu que já era

quase onze da manhã.

— Meus remédios. Eu deveria ter tomado as oito. Droga.

Ajeitou as ataduras que cobriam parte da sua sobrancelha e colocou suas

pernas pra fora da cama, permanecendo sentada, sem muita energia. Olhou os

remédios em cima do criado mudo com um semblante de dor.

— Foda-se, vou tomar todos agora. — Pegou o copo d’água que estava
ao seu lado e tomou os quatro tipos de remédios que havia ali em cima.

Depois de ir ao banheiro, vestiu-se e desceu para comer algo. Nenhum

sinal de Anna também por lá. Caminhou com preguiça até a geladeira e viu um
bilhete em cima da mesa.
— Fui ao centro, vou demorar. — Estava escrito num pedaço de papel.

Largou o papel onde ele estava, pegou um pedaço de queijo e suco de


laranja na geladeira. Encheu seu copo e ficou bebendo calmamente recostada

num balcão próximo à mesa.

— Tomara que traga mais analgésicos. — Pensou.

Enquanto bebia, ficou olhando o bilhete, pensativa.

— Que engraçado, os canhotos costumam borrar tudo que escrevem, mas

pelo visto Anna não borra nada.

Continuava olhando, enquanto comia.

— E geralmente a letra fica inclinada para a esquerda, mas também não

deve ser o caso dela.

Então Jennifer teve um estalo, levantou a cabeça e olhou na direção da

parede, ao lado da porta. Ambos os capacetes estavam pendurados lá.

— O capacete. Ela saiu sem capacete? Só se ela...

Largou o suco e o queijo em cima do balcão e foi apressada abrir a porta


que dava para a oficina, viu a moto estacionada lá dentro.

— Ela não saiu de moto? Então saiu como??

Voltou até a mesa e pegou o bilhete em mãos.

— Não foi ela quem escreveu isso! — Após falar ficou boquiaberta.

— Levaram ela! — Falou para si própria, aflita.


Capítulo 17 - Adios Alejandro

Subiu as escadas correndo, calçou suas botas, vestiu uma jaqueta preta

por cima da camisa de flanela xadrez azul e preta, e voltou até a cozinha. Olhou

o bilhete mais uma vez e colocou no bolso.

— Preciso fazer alguma coisa.

Pegou seu capacete, as chaves da moto e se dirigiu para a oficina. Abriu a

porta de correr que dava para a rua e colocou a moto para fora.

— Paty, vamos procurar sua mãe. — Falou para a moto.

Logo em seguida montou nela e colocou o capacete com dificuldade.

— Droga, ai, que merda, droga de capacete, ai, ui. — Reclamava

enquanto descia o capacete pelo seu ferimento.

Dirigiu até a saída que dava para a rodovia, parou a moto com uma roda

em cima do asfalto e olhou para os dois lados.

— Ok, mas onde vamos procurar por sua mãe? — Falou dando tapinhas
no tanque da moto.

Resolveu ir na direção do Centro, para a loja de Max. Parou a moto em


frente e adentrou o estabelecimento sem tirar o capacete.

— Moça, você precisa tirar o capacete aqui dentro. — Max a abordou.

— Max, sou eu, Jennifer!


— O que aconteceu?

— Com a minha cabeça?

— Não, eu sei o que aconteceu com a sua cabeça, pergunto sobre você
entrar assim afobada aqui na loja.

— Anna sumiu.

Max gaguejou alguma coisa indecifrável e continuou.

— Venha, vamos descer ao meu escritório.

Conduziu Jennifer pelo ombro até uma espécie de porão, que era o

escritório dele.

— É que dói muito tirar e colocar o capacete, se importa se eu ficar com

ele?

— Claro que não, mas e Anna? Como assim sumiu?

— Não sei, ela simplesmente sumiu! Ela me acorda às oito para me dar

os remédios, e hoje ela não me acordou. Ela sempre faz café e deixa na cafeteira

para mim, porque ela sabe que eu adoro o café dela, e não tinha nenhum café na
cozinha! E o bilhete! Tinha um bilhete dizendo que havia ido ao Centro, mas a
moto dela estava lá!

— Calma, se acalme. O que exatamente dizia o bilhete?

Jennifer tirou o bilhete do bolso e o entregou. Max desamassou e leu com


uma cara preocupada.
— Não é a letra dela.

— Que merda eu sabia, eu sabia... — Jennifer falou abalada.

— Ela já sumiu assim alguma vez?

— Não, ela nunca sai sem falar comigo. Isso tá muito estranho, Max,
alguém sequestrou ela.

— Certo, e quem poderia querer sequestrá-la?

— Como eu vou saber? Não sei se ela tem inimigos. Talvez alguém de

alguma missão tenha guardado rancor, sei lá!

— Algo recente?

Jennifer pensou por alguns segundos e levantou o indicador, como se

tivesse acabado de ter uma ideia.

— A gangue, o cara da moto.

— Que gangue? O cara que roubou a moto? Era de uma gangue?

— Era! Oscar lá do pub disse que ele era de uma dessas novas gangues,

de humanos. Você conhece essas gangues?

— Já ouvi falar de algumas.

— Todo mundo sabe que foi ela quem matou ele, eles podem ter a

sequestrado pra poder se vingar, o que acha?

— Infelizmente você pode estar certa.


— E o que faremos?

— Eu não sei, primeiro temos que saber qual gangue era. Você não tem
ideia?

— Não faço a menor ideia. Espera, esse pessoal costuma se tatuar com

símbolos não?

— Sim, geralmente tatuam o símbolo da gangue deles. Você viu alguma

tatuagem?

— Por incrível que pareça, eu vi uma tatuagem no pescoço daquele

desgraçado.

— O que era?

— Era algo vermelho... Tipo uma cruz. Que droga não lembro

exatamente o que era, foi rápido demais. Você sabe de alguma gangue cujo
símbolo seja uma cruz vermelha?

— Não conheço não. Mas conheço quem possa ter essa informação.

— Quem?

— Um amigo meu, Hank, que era de uma gangue, ele agora tem uma loja
e vende armas brancas, ainda atende às gangues.

— Onde encontro ele?

— Ele tem uma loja na Cidade Velha.

— Me dá o endereço, eu vou lá falar com ele.


— Lá é perigoso, garota.

— Já estive na Cidade Velha. E não vai ser um bairro feio que vai me
barrar, né?

Max hesitou um pouco.

— Ok, é uma loja dentro da galeria Archer, não lembro o nome da loja,

mas sei que fica quase no final do corredor principal.

— Obrigada, Max. Valeu.

Jennifer já andava em direção a escada.

— Diga que fui eu quem te enviou! E não tente nada sozinha!

— Pode deixar! — E saiu apressada para a Cidade Velha.

Desligou a moto em frente à entrada da galeria, deu uma boa olhada e


colocou as mãos no capacete.

— Vou ter que tirar.

Novamente tirou o capacete maldizendo o mesmo. Procurou pela loja e

entrou na que parecia ser a de Hank.

— Você é o Hank?

— Depende do que você precisa. — Um homem aparentando uns trinta

anos atrás do balcão respondeu com sarcasmo.

— Preciso do verdadeiro Hank.


— Pai! Vem cá.

Um homem hispânico de uns cinquenta anos apareceu e olhou Jennifer


dos pés à cabeça, com um olhar desconfiado.

— O que aconteceu com sua cabeça?

— Eu machuquei. Olha, você é o Hank? Foi Max que falou para eu vir

aqui falar com você.

— Max da loja de penhores?

— Isso, eu preciso de uma informação sobre gangues, você entende de


gangues certo?

— Conhecia quando era de uma, agora estou limpo. Você não é da

polícia, é?

— Eu tenho cara de policial?

— Não, você é muito bonita para isso. — Respondeu dando uma

piscadela.

— Você pode me ajudar ou não?

— Me diga o que precisa, que eu vejo.

— É o seguinte, tenho quase certeza que uma nova gangue de humanos

da região de Black Rock sequestrou uma amiga minha, e preciso negociar com
eles, mas não sei qual é a gangue, não sei nada sobre eles.

— E como posso te ajudar?


— O cara tinha uma tatuagem no pescoço, pensei que pudesse ser algum
símbolo deles. Era parecido com uma cruz, vermelha, talvez com preto, eu não

vi direito.

— Hum. Mas como você conseguiu esse machucado aí na cabeça?

Jennifer suspirou decepcionada e impaciente.

— Por favor. Eu preciso encontrá-la. Você já viu esse símbolo antes?

— Sim, deve ser a cruz de malta, tem uma gangue de latinos que usam.

— Que gangue?

— Os reis latinos.

— O que mais você sabe sobre eles?

— Acho que eles são da parte alta do bairro, é coisa nova, pouca gente
ainda, nem devem ter um QG.

— Sabe o nome do líder?

— O que eu ganho com isso?

— Minha eterna gratidão.

— Hum. O nome dele é Alejandro. É um careca com cara de folgado.

— Mais alguma coisa que eu deveria saber?

— De graça, só isso mesmo.

— E se eu pagar?
Hank riu.

— Nada, garota, estou brincando, só sei isso mesmo.

— Obrigada, Hank, se der tudo certo prometo que um dia venho aqui te
agradecer.

— E eu adoraria ter você aqui, quem sabe podemos sair para tomar uma

cerveja?

Jennifer deu um sorriso meio forçado e saiu quase correndo.

Foi até a casa de Anna, entrou ofegante na oficina procurando pelas


armas dela. Colocou uma arma com silenciador no cós da calça e mais um pente

de balas no bolso da jaqueta. Enfiou um punhal em cada bota, e saiu novamente

de moto.

Já estava andando pela rodovia quando teve um momento de lucidez.

— Não vou conseguir sozinha.

Mudou de direção e foi até o trabalho de Bob, uma serralheria. Foi até a

porta e fez um gesto o chamando.

— Você já está andando de moto e tudo? Que recuperação rápida! —


Bob brincava.

— Bob, preciso muito da sua ajuda. — Jennifer falava apreensiva. —

Posso falar com você sem tirar o capacete?

— Claro, é por causa do machucado, não? Cadê Anna? — Falou olhando


em volta.

— Anna sumiu, é por isso que preciso da sua ajuda. Eu acho que sei onde
ela está, mas não quero ir para lá sozinha de moto.

— Como assim, ela está escondida?

— Não, uma gangue pé de chinelo deve estar com ela. Eu preciso de

alguém na minha retaguarda, você pode ir comigo? Só precisa me esperar no

carro.

— A polícia não poderia cuidar disso?

— Claro que não, Bob, só se eu quiser esperar até o ano que vem.

— Mas o que você vai fazer? Invadir a casa deles?

— Mais ou menos, vou tentar negociar.

— Isso não tá me cheirando bem.

— Bob, se você não puder tudo bem, só não posso ficar aqui perdendo

tempo.

— Eu vou sim, mas me prometa que não vai tentar nada arriscado.

— Prometo. Onde está o carro?

— Ali do lado, vamos. Você vai de capacete?

— Ah... Não. Espera. Ai, ai, ai, espera, pronto. — Ajeitou sua bandana
de curativos na cabeça e prendeu o capacete no banco da moto.
Chegaram na região mais alta do bairro Black Rock, onde só haviam
casas, a maioria casas simples. Bob trafegava em baixa velocidade contornando

uma espécie de praça sem árvores, apenas com gramado e bancos.

— Como você vai achá-los?

— Eles não devem ter QG, então devem se reunir na casa do líder.

— Desde quando você entende de gangues?

— Lá, veja! Tem duas senhoras caminhando, talvez elas saibam onde

mora o Alejandro.

— O líder?

— Isso, dirija até elas.

Jennifer baixou o vidro do carro e perguntou com toda simpatia.

— Boa tarde senhoras, estou procurando a casa do meu primo, mas o

endereço que ele me deu não está correto, vocês poderiam me ajudar?

Elas se entreolharam e responderam de forma afirmativa.

— O nome dele é Alejandro, vocês conhecem algum por aqui?

— Deve ser aquele garoto que foi preso.

— Ele está preso? Nossa, pobre Alejandro, eu não sabia.

— Foi preso no ano passado, mas já saiu.

— E vocês sabem onde seria a casa dele?


— Está vendo aquela rua ali? No final tem uma rótula, é uma casa
amarela próxima à rótula.

— Senhoras, muitíssimo obrigada. E tenham um ótimo dia.

Jennifer fechou rapidamente o vidro.

— Pegue aquela rua e siga até a rótula.

Bob foi parando o carro lentamente próximo à casa que supostamente

seria de Alejandro. Jennifer ficou olhando por um momento através do vidro.

— E agora? — Bob perguntou, ainda com as duas mãos no volante.

— Agora eu vou entrar. E você fique aqui, pronto para fugirmos, se for

preciso.

— Eu vou com você.

— De forma alguma! Preciso de você aqui, com a chave na ignição, bem

atento.

— Então vamos chamar alguém.

— Não quero perder mais tempo. Olha, se eu não voltar em uma hora,
peça ajuda.

— Jennifer...

— Combinado?

— Ok, mas não tente nenhuma besteira.


— Obrigada, maninho.

Deu um beijo em sua testa e saiu apressada para os fundos da casa,


passando por um terreno baldio que havia ao lado.

Nos fundos havia uma porta de alumínio, trancada. Jennifer subiu e deu

uma olhada para dentro do terreiro. Não viu ninguém e pulou, caindo no

concreto. Se recompôs e logo tratou de tirar a tranca da porta, caso precisasse


fugir por ali.

Caminhou agachada até a parede da casa, olhou ao redor, viu que nos

fundos havia uma edícula da mesma cor da casa, com duas portas e duas janelas.
Andou até a quina da casa e deu uma espiadela, havia uma área aberta do lado,

porém coberta, e três jovens homens jogando cartas numa mesa.

Voltou rapidamente para sua posição. Deu um suspiro e pensou consigo.

— É hora de colocar em prática tudo que Anna me ensinou... Pense,

pense... São três caras, são humanos, mas são três.

Ficou pensando por uns segundos, seu coração estava disparado.

— Claro... Dividir para conquistar!

Ficou mais algum tempo prestando atenção na conversa deles, falavam

animadamente sobre garotas.

— Hoje eu vou pegar uma mina lá de baixo.

— Quem?
— A irmã da Monica.

— Aquela novinha? Não é menor, não?

— Essa que é a idade boa. — Riu com escárnio.

— Bom, e essa noite eu vou pegar essa híbrida aí. — Se vangloriava.

— O Alejandro vai querer pegar primeiro. Se já não pegou.

— Eu divido com ele, você viu o tamanho dela?

Riram.

Jennifer ficou paralisada, atônita.

— Filhos da puta... — Sussurrou, palavra por palavra.

Sentiu uma raiva descomunal subindo pelo corpo, junto com uma onda

nauseante. E sentiu sua respiração ficar cada vez mais curta.

— Hora da negociação. — Pensou, possessa.

Sacou a arma e a empunhou para cima, à frente do seu rosto. Olhou ao

redor e viu algumas latas de tinta em cima de uma prateleira do lado de fora da
edícula, numa região onde também era visível para os três elementos. Apontou o

indicador para uma delas.

— Caia... — Sussurrou.

E a lata caiu, fazendo um pouco de barulho. Jennifer ficou apenas


esperando, até que pode ver um deles andando na direção da lata. Ele não a

podia ver porque ela havia se abaixado atrás de um tanque de concreto anexo à
casa.

Fez a lata se mover pelo chão na direção dela, e o homem moreno com
um bigode fino foi atrás da lata.

Assim que ele se aproximou e saiu do campo de visão dos outros dois,

ela saiu detrás do tanque e atirou nele, usando a arma com silenciador. Errou o

primeiro tiro e ele veio para cima dela, mas o segundo foi certeiro na cabeça.
Voltou para seu esconderijo temporário e continuou esperando.

Estranhando a demora do comparsa, outro dos elementos veio atrás dele,

e assim que viu o corpo, andou rapidamente na direção do amigo. Jennifer


novamente executou o mesmo plano, também o eliminando com um tiro.

— Caramba, e agora. — Estava agitada e com a adrenalina a mil. Apesar

da tarde fria, suava.

Saiu do lado do tanque e foi até a quina da casa, segurou firmemente a

arma, fechou os olhos, titubeou um instante, saiu detrás da parede e foi correndo

na direção do último homem. Ele levantou-se da cadeira e fez o movimento de


pegar algo nas costas, mas antes que alcançasse, Jennifer abriu fogo disparando

quatro tiros ainda caminhando em sua direção, e assim foi-se mais um. Ou
menos um desgraçado, como ela preferia pensar.

Olhou ao redor e foi até o corpo dele, que jazia na cadeira com a cabeça
caída para trás. Certificou-se que estava morto. O observou por alguns segundos,

com nojo, sentiu vontade de vomitar quando pensou que algum desses caras
poderiam ter tocado em Anna.

Com passos lentos deu uma olhada na frente da casa, um jardim bem
cuidado e cascalhos. Não havia ninguém.

— Meu Deus, onde você está, Anna... O que eu faço agora? — Pensava,

com aflição.

Deu uma olhada através da janela da frente, para o interior da casa. Era

uma sala de estar grande, com sofás brancos compridos.

— Não existe reino sem rei. — Este pensamento iluminou seu rosto. —

Preciso achar Alejandro.

Verificou a arma, colocou um novo pente de balas. Foi até a porta frontal

e girou lentamente a maçaneta, estava aberta. Entrou na sala calculando cada

passo, olhando para todos os lados, e foi até a parede que dava acesso ao

corredor, encostou-se nela, ereta e atenta.

Deu uma espiada no corredor e começou a caminhar nele, havia seis

portas, todas abertas. Podia ouvir o som alto de uma TV vindo de uma delas.

Espiou e passou pelas primeiras três portas, sem sinal de movimentação alguma.

Na quarta porta, assim que colocou a cabeça para espiar, pode ver um
homem de cabelos arrepiados e sobrancelhas grossas, de no máximo vinte anos

caminhando com um prato em mãos, era a cozinha. Imediatamente ele também a


viu e largou o prato em cima da mesa. Ela não hesitou, entrou no recinto e

apontou a arma para ele, que veio para cima dela. Ela errou o tiro e caíram no
chão, engalfinhados.

Sentiu-se zonza. A arma ainda estava em sua mão, se debateu para


conseguir mirar novamente nele, mas ele segurava seus braços pelos punhos.

Jennifer encarava o olhar raivoso e sentia o peso dele pressionando seus quadris,

estava numa batalha de forças desvantajosa.

Com esforço, soltou sua perna e aplicou-lhe uma joelhada em suas partes
íntimas, foi o suficiente para largar sua mão e conseguiu atirar no peito dele, a

queima roupa. Ele caiu em cima dela, ainda com vida. Ela o empurrou para o

lado e observou até que não respirasse mais. Levantou-se rapidamente, os olhos

arregalados, apavorada e ofegante. Então colocou a mão na cabeça, próximo à

nuca, sentia uma dor forte no local.

Voltou ao corredor, examinou a quinta porta, era um banheiro e estava

vazio. O som estava vindo da última porta, algum sistema de som alto e potente.

Parou ao lado da entrada, sua visão começava a falhar, piscava com força

tentando focar a parede, percebia algumas manchas claras atrapalhando sua

vista.

Respirou fundo algumas vezes, moveu a arma na frente dos olhos,

testando a visão. Deu uma última respirada com força e entrou na sala. Havia um
sofá bege, uma TV enorme na parede e o som alto de algum filme. E no sofá, um

homem careca, magro, com cavanhaque bem feito e tatuagens nos braços a
mostra na regata branca, sentado com os braços abertos sobre o encosto do sofá.
Jennifer entrou já apontando a arma para ele, que não se moveu, apenas a
fitou.

— É você, não é? Alejandro?

— E você, quem você pensa que é para entrar na minha casa me

apontando a merda de uma arma?

— Eu sou a pessoa que veio buscar Anna, onde ela está?

— Moça, você errou de casa, não faço ideia de quem seja Anna. Mas

saiba que sua bandana é muito bonita. — Falou com um sorrisinho irritante e

apontando para a cabeça dela.

Jennifer parecia agora enfurecida, colocou uma perna a frente e apontou

a arma com mais vontade ainda para ele. Dava umas piscadas fortes, tentando

enxergar melhor seu alvo.

— Se você me disser onde ela está, eu poupo sua vida.

Alejandro riu e levantou-se do sofá.

— Ah, já sei quem é você. Foi você quem levou o tiro, não foi? Vocês
não deveriam ter feito isso. — Balançou a cabeça em desaprovação. — Vocês
mataram meu melhor homem, ele era meu primo, sabia?

— Não se mova nem mais um centímetro, senão atiro. Atiro mesmo, já


atirei nos seus homens, não me custa nada atirar em você.

— Você o quê??
— Droga.

Alejandro correu para cima de Jennifer e a levou até a parede, a


encurralando. A pistola caiu próxima ao sofá e ele segurava suas mãos contra a

parede.

— Sua vadia atrevida! Eu vou foder você! Vou acabar com sua raça! E

vou matar sua amiguinha híbrida bem na sua frente! — Vociferava com seu rosto
quase encostado no rosto dela.

Juntou as mãos dela acima da cabeça e as segurou com apenas uma mão.

Com a mão livre, apertou o rosto de Jennifer, que tentava soltar-se e chutá-lo,
mas sem sucesso. Ela tentava puxar suas mãos para baixo, mas sentia os dedos

dele apertando cada vez mais seus pulsos.

— Você achou mesmo que ia entrar na minha casa e sair assim numa boa,

levando aquela filha da puta? — Ao terminar de falar, ele bateu a cabeça dela

contra a parede. Ela fez um semblante de dor.

— Ah, desculpe, você machucou a cabeça. Isso dói, não é? — E


empurrou novamente sua cabeça contra a parede.

Algumas lágrimas de raiva e dor começaram a rolar em seu rosto,


misturando-se com o suor. A ira que ela viu nos olhos dele a aterrorizava e a

deixava mais desesperada naquela luta pela sua vida, e pela vida de Anna. Num
ato desesperado Jennifer reuniu todas as suas forças e abaixou-se,

desvencilhando-se da mão dele e soltando um grito gutural, rapidamente pegou


uma adaga de dentro de sua bota. Sem hesitar cravou-lhe em seu abdome, e

retirou.

Ele se afastou, dando alguns passos sôfregos e com a mão tapando o

ferimento. Agora parecia apavorado e o sangue tingia rapidamente sua camiseta.

Jennifer olhou a cena apreensivamente por alguns segundos, saiu daquele

estado de catarse e correu na direção da arma caída no chão. Alejandro tombou


no sofá ainda com vida e Jennifer foi para a frente dele, apontando a arma em

sua direção.

— Onde ela está? — Falou quase gritando.

— Sua vagabunda desgraçada...

Jennifer suspirou impaciente.

— Onde... Ela... Está.

— Não está vendo que preciso de um médico?? Me ajude que eu digo

onde ela está!

— Me diga agora onde ela está, e talvez eu ajude você. — Jennifer falou
friamente, mas por dentro eram tantas sensações e medos se misturando, que ela
precisava se esforçar para não transparecer aquilo tudo.

— Vá a merda!

E Jennifer apertou o gatilho.

Permaneceu mais algum tempo com a arma apontada fumegante para a


cabeça dele, encarando o corpo do seu algoz.

— Tudo bem, eu a encontro sozinha. — Murmurou com desdém.

Guardou a arma no cós e olhou para o lado, como se procurando por


ideias. Voltou ao corredor e checou cômodo por cômodo, em busca de Anna.

Mas não havia o menor sinal de alguma refém naquela casa.

Foi para a área externa, olhou dentro dos dois carros estacionados, mas

não encontrou nada. Chutou o pneu de um dos carros e se recostou no veículo.

Passava a mão na cabeça, percebeu o quanto estava tonta e desnorteada, as

manchas que pareciam luzes ainda atrapalhavam sua visão.

— Talvez ela não esteja aqui. — Pensou, olhando para baixo,


desanimada.

Olhou para o lado e suas feições mudaram, como se tivesse tido uma

grande ideia.

— A edícula.

Correu na direção da edícula e tentou abrir uma das portas, estava

trancada. Começou a dar chutes na porta, depois de muita insistência, a madeira


do batedor da porta se rompeu e a porta se abriu, Jennifer entrou apressada no
pequeno quarto. Mas nada encontrou.

— Merda! — Falou revoltada.

Saiu de dentro do quarto e tentou a segunda porta, também trancada. E


seguiu-se mais chutes raivosos contra a madeira. Até que finalmente abriu-se
também.

— Anna!

Lá estava sua amada, deitada num colchão no chão. Parecia desacordada

e seu rosto estava ferido. Vestia apenas a calça e uma regata suja de sangue.

Jennifer se ajoelhou ao seu lado rapidamente.

— Anna, Anna, sou eu, fale comigo, meu amor. — Acariciava com vigor

o seu rosto. Sentiu um alívio gigantesco ao vê-la, e ao mesmo tempo

preocupação com seu estado.

Anna abriu um pouco os olhos e tentou murmurar alguma coisa.

— Anna, sou eu. Que bom que você está viva, que bom... — A puxou

para junto de si.

— Temos que sair daqui, preciso te levar lá para fora. — Continuou.

— Minha perna... — Sussurrou com dificuldade.

Jennifer viu que ela estava de pés descalços, levantou a barra da calça de
sua perna esquerda e viu seu pé completamente roxo, inchado e pendendo numa
posição estranha.

— Quebraram seu pé?? Mas que porra fizeram com você??

Anna não respondeu.

— Espere, vou chamar Bob, já volto, tá bom?


Saiu correndo.

— Bob, achei Anna, preciso que me ajude a trazê-la para cá! — Falou
ofegante, na janela do carro.

Ele saiu imediatamente do carro e a seguiu na direção dos fundos da

casa.

— O que fizeram?? — Bob indagou, ao ver Anna caída no chão.

— Não sei, mas precisamos tirá-la daqui.

Os dois amigos se agacharam ao seu lado e a ergueram, passando seus


braços por sobre os ombros. Jennifer cuidou em erguer sua perna, para que seu

pé não tocasse o chão.

Chegaram até o carro e a colocaram no banco de trás, Jennifer deu uma

examinada rápida, a ajeitou e foi para o banco da frente.

Bob girou a chave na ignição e olhou para Jennifer.

— Qual hospital?

— Não, não podemos levá-la para o hospital!

— Mas ela precisa de um hospital.

— Ela não gosta de hospitais.

— O que fazemos então?

— Vamos para a casa dela, de lá ligo para o médico que ela me falou.
— E o que um médico da família vai fazer com um pé quebrado? Ela
pode ter mais ferimentos.

— Que droga. Não sei. — Jennifer estava apavorada, sem saber o que

fazer.

— Vá, dirija, eu vou pensar em algo. — Completou.

Bob dirigiu enquanto Jennifer virada para trás, olhava Anna desacordada.

— Sem querer te pressionar, mas dentro de dois minutos chegaremos na

rodovia e você precisa me falar para qual lado vamos.

Jennifer virou-se para frente e olhou apreensiva para Bob.

— Pegue a esquerda, vamos para o Saint Vincent’s.

— Ok, então. Ela levou alguma pancada na cabeça? Porque está

desacordada?

— Não está completamente desacordada. Não vi nenhum ferimento mais

grave em sua cabeça, ela deve ter sido drogada, ela tem uma marca no pescoço

que parece de agulha.

— É bem provável. Ela era mais forte que eles, faz sentido. E os caras, o
que aconteceu?

— Já eram.

Bob olhou de lado para Jennifer, arregalado.

— Não me faça perguntas. — Jennifer respondeu, impaciente.


— Ok.

— Ela vai me matar por estar a levando para um hospital. Vai me matar e
depois vai me dar uma boa bronca. — Jennifer balançava a cabeça, preocupada.

— Ela odeia tanto assim hospitais?

— Mais do que você imagina. Mas não vou sair do lado dela. Nem por

um segundo.

Jennifer olhou novamente para Anna no banco de trás. Virou-se e

começou a mexer no porta luvas do carro.

— O que você está procurando?

— Você ainda tem aquelas algemas aqui?

— Algemas??

— Achei!

— O que você... Não... Não é o que eu estou pensando, é?

— Assim não vão me tirar do lado dela.

— Você é louca ou o quê?

Ao chegarem na frente do hospital Jennifer saltou do carro e abriu a porta


de trás, abriu as algemas e prendeu seu pulso ao pulso de Anna.

— Vá lá pedir uma maca! — Jennifer bradou.

Dois enfermeiros a colocaram na maca e olharam confusos para as


algemas.

— Sequestraram a gente. E nos prenderam, não tenho a chave. —


Jennifer tratou logo de explicar, andando presa à Anna, acompanhando a maca.

— Ela é Titan ou híbrida?

— Híbrida, por quê?? — Jennifer perguntou apreensiva.

— Não, só para colocar no prontuário mesmo.

A levaram para uma sala de triagem e o enfermeiro foi buscar o médico.

Anna abriu um pouco os olhos confusa e viu a algema.

— O que é isso? — Sussurrou, olhando para seu braço.

Jennifer se aproximou, passou a mão em sua testa e falou baixinho.

— Depois eu te explico.

E Anna voltou a fechar os olhos.

O médico plantonista chegou, um jovem residente de cabelos ruivos.

— O que temos aqui?

— Nos sequestraram. Mas bateram apenas nela. Ela quebrou o pé, viu
aqui? — Falou apontando para seu pé. — E provavelmente a doparam. Mas é

bom dar uma boa olhada, ela pode ter mais ferimentos.

— Drogaram com o quê?

— Eu não vi. Não sei o que foi.


— Ok, vamos levá-la para o raio-x. E vamos achar alguém para tirar
essas algemas.

— Mas se não der para tirar, tudo bem.

— Já temos prática nisso. Se você soubesse a quantidade de pessoas que

chegam aqui presas em algemas.

Barraram a entrada de Bob. Após o raio-x, a levaram para a sala de

trauma, sedaram, anestesiaram e colocaram seu pé no lugar. Em seguida

engessaram sua perna, até um pouco abaixo do joelho. Após examiná-la

minuciosamente, o médico foi em busca dos resultados dos exames, duas


enfermeiras que o auxiliavam trataram de limpar seus ferimentos e colocar a

vestimenta do hospital na paciente. Uma delas se aproximou de Jennifer, e

perguntou num tom discreto.

— Você sabe se houve violência sexual?

Jennifer ficou sem palavras, olhou para a outra enfermeira, para Anna, e

voltou a olhar para a enfermeira que a indagava.

— Eu... Não sei.

— Eu vou examiná-la então, tudo bem?

Jennifer balançou a cabeça rapidamente e virou-se de costas para a maca.


Gostaria de ter saído da sala, mas as algemas não permitiriam. Levou a mão à

boca e ficou roendo a unha do seu polegar, aguardando angustiada pelo parecer
da enfermeira.
— Tudo bem, já terminamos.

Jennifer virou-se e não perguntou, apenas olhou tensa para a enfermeira.

— Não há sinais, não. — A tranquilizou.

— Graças a Deus... — Falou baixinho, olhando para Anna.

A levaram para um quarto coletivo, onde havia mais três camas ocupadas
separadas por biombos amarelados, assim que chegaram lá um senhor bigodudo

de macacão azul chegou com uma caixa de ferramentas.

— Oi, moça, é aqui que tem uma algema para soltar?

Jennifer acenou com a cabeça e ele tirou facilmente as amarras que as

uniam. Uma enfermeira entrou no quarto e colocou um soro gotejando na veia

dela e injetou algo pelo acesso em seu braço. Jennifer olhava atenta, prestando

atenção a cada movimento da enfermeira. Ela preparava algumas gazes para


limpar o rosto dela, que ainda tinha um pouco de sangue próximo ao nariz e no

supercílio.

— Pode deixar comigo. — Falou, tomando a bandeja de gazes da mão

dela.

Umedeceu os curativos em soro e passou a limpar carinhosamente o

rosto de Anna.

— Tentei fazer como você me ensinou. Funcionou, agora vai ficar tudo

bem. — Sorriu, com alívio.


Já havia arrastado uma cadeira para o lado da cama e permanecia ali
sentada, segurando a mão de Anna. Sentia a cabeça pesada, dolorida, então

olhava para Anna e dali tirava forças para continuar alerta, como uma sentinela.

O médico entrou no recinto e foi até o canto onde elas estavam, trazia

alguns papéis nas mãos.

— Tudo bem com você?

Jennifer estava pálida, com as bochechas avermelhadas, sua aparência

não era das melhores.

— Sim, tudo tranquilo. E Anna, vai ficar tudo bem com ela?

— Ah sim, ela vai se recuperar rapidinho. Eu vi agora que ela também

quebrou dois arcos costais, mas eles vão se solidificar sozinhos.

— Quando ela vai ter alta? Ela odeia hospitais.

— Acredito que amanhã de manhã. Já detectamos a substância que a

dopou, foi injetada uma alta dose de quetamina, ela deve acordar daqui a pouco,
vai ficar bem, quando ela acordar talvez tenha um pouco de irritabilidade, dor de

cabeça, náuseas...

— O pé, vai ficar bom?

— O pé teve um certo estrago, achei que ia precisar de cirurgia, mas


conseguimos colocar no lugar apenas com a manobra, e daqui uns vinte dias já

vai poder tirar o gesso.


— Que bom...

— E você, machucou a cabeça, temos que dar uma olhada nisso.

— Não, não foi agora, foi semana passada.

— E por que tem sangue no curativo?

Jennifer levou a mão até a nuca.

— Tem?

— Você está sentindo algo?

— Minha visão já esteve melhor.

— Vamos até outra sala, eu dou uma olhada nisso.

— Não, não posso sair daqui, não pode examinar aqui mesmo?

— Não tenho como fazer uma tomografia neste quarto. Você não tem

ninguém que possa ficar aqui enquanto você faz o exame?

— Bob. Talvez ele ainda esteja na recepção.

— Vou pedir para alguém chamá-lo então.

Jennifer voltava acompanhada do médico para o quarto onde Anna


estava, Bob estava lá, sentado ao lado da cama.

— Acho que ela está acordando. — Bob disse.

Jennifer se aproximou da cabeceira da cama e percebeu que de fato ela

começava a despertar, finalmente abriu os olhos, olhou para Jennifer e olhou ao


redor.

— Olá garota, você está aí? — Jennifer perguntou sorrindo.

Estava bastante confusa, tentou levantar-se, agitada.

— Preciso sair daqui. — Balbuciava.

— Hey, calma, deite, eu estou tomando conta de você. — Jennifer


respondeu, tentando fazê-la deitar novamente.

Ela movimentava os braços de forma agressiva, tentava tirar o acesso

preso ao seu braço.

— Não, não tire, não tire!

Jennifer tentou impedir que ela tirasse a agulha de si, Bob também

tentava segurar seus braços. Mas Anna teve uma resposta violenta, empurrou

Bob para o lado e com a outra mão empurrou Jennifer para longe da cama, a

fazendo cair de costas sobre um carrinho metálico com suprimentos hospitalares.

O médico se aproximou com uma injeção e uma ampola, após puxar o

líquido com a agulha, injetou no seu acesso.

— O que é isso? — Jennifer se levantava devagar, com uma mão nas


costas.

— Um tranquilizante, ela vai dormir mais uma horinha.

O sedativo fez efeito quase que imediatamente, Anna logo adormeceu. O


médico foi até um armário e voltou com amarras de couro branco acolchoadas
com fivelas, começou a prender os pulsos de Anna junto ao ferro da lateral da

cama.

— Isso é realmente necessário? — Jennifer questionou, incomodada.

— Para o caso dela acordar agitada novamente, depois tiramos.

— Você se machucou? — Bob perguntou.

— Não, acho que bati as costas, mas depois tomo um analgésico.

— A quetamina pode provocar essas reações violentas, mas nossa amiga

realmente odeia hospitais, hein? — O médico comentou.

— Sim, ela tem verdadeira fobia.

— No mínimo ela deve achar que vou tirar o sangue dela.

— Vocês fazem isso?? — Jennifer perguntou assustada.

O médico riu.

— Claro que não, eu seria preso se fizesse algo do tipo.

— De qualquer forma, eu vou ficar do lado dela o tempo inteiro. —


Jennifer insistiu.

— Eu vou tentar adiantar a alta dela para hoje à noite, ok?

— Seria ótimo.

— Ah, e sobre sua cabeça, o edema inchou um pouco, mas você vai ficar
bem. Apenas faça repouso e tome seus remédios.
Logo uma enfermeira implicou com a permanência de Bob no quarto.

— Não, não precisa esperar na recepção, vá para sua casa, ou para seu
trabalho, vai ficar tudo bem aqui. Obrigada por tudo, você foi um anjo hoje para

nós. — Jennifer o abraçou.

— Me ligue ou mande mensagem, que venho buscar vocês, combinado?

Jennifer enfim sentou-se novamente, olhava em silêncio para Anna.

— Você já pode participar das olimpíadas na modalidade de arremesso de

Vulpis... — Falou baixinho, sorrindo.

Uma enfermeira entrou no quarto para verificar seus sinais vitais,

Jennifer aproveitou para pedir por analgésicos.

— Me traga a coisa mais forte que você tiver, por gentileza. Tem

Demerol?

— O médico prescreveu?

— Sim, mas está em casa.

Uma hora se passou e novamente Anna começava a despertar. Jennifer


levantou-se e aproximou-se dela. Pegou a sua mão e acariciou.

— Anna?

Abriu os olhos, olhou Jennifer por um instante.

— Consegue me ouvir?

— Sim. — Respondeu baixinho.


Jennifer se aproximou mais um pouco, se debruçando sobre ela, afastou o
cabelo de sua testa.

— Me vê?

Anna a olhou fixamente.

— Sim.

— Ótimo. Me escute, você se machucou e eu te trouxe ao hospital, mas

eu não saí do seu lado nem por um segundo. Tá, na verdade quando eu precisei

sair Bob ficou aqui contigo, mas eu quero que você saiba que está tudo bem, está

tudo sob controle e ninguém te fez ou vai te fazer mal, você me entende?

Anna não respondeu, olhou para os dois lados, olhou para seus punhos, e

voltou a olhar para Jennifer.

— Por que meus braços estão presos?

— Porque você acordou um pouco estressadinha agora há pouco, você

lembra disso?

— Mais ou menos...

— Tudo bem, o que importa é que você está bem, foi cuidada, medicada,
engessou o pezinho, e vai voltar para sua casa muito em breve.

— Engessei o pé?

— Estava bem quebrado.

— Ah... Lembrei.
— Aqueles idiotas fizeram isso, não?

— É... Com um pé de cabra.

Jennifer fez uma cara num misto de dor e revolta.

— Que absurdo!

— Quando vou sair daqui? — Anna falava baixinho.

— Talvez ainda hoje.

Anna começava a lembrar e se dar conta de mais detalhes.

— Tá, espera aí, como você me achou?

— É uma longa história.

— E como me tirou de lá?

— É outra longa história. Mas eu estou aqui, você está aqui, todo mundo

está vivo e gozando de boa saúde.

— O que você aprontou, Jennifer?

— Eu só fiz o que você faria no meu lugar. — Jennifer se aproximou e


beijou seus lábios.

— Espera, espera aí. Eu arremessei você ou sonhei com isso?

— Você sonhou que estava jogando basquete. — Sorriu.

— Eu machuquei você? — Falou com um semblante preocupado.

— Nada que um Ibuprofeno não resolva.


— Desculpe... — Tentou levantar a mão para tocá-la, mas a amarra
impediu.

— Apesar de achar sexy a ideia de prender você na cama, acho que está

na hora de tirar essas amarras, né?

Falou soltando as fivelas e liberando seus braços.

— Pronto. — Jennifer pegou sua mão e levou até a boca, dando alguns

beijos.

— Sua cabeça, como está? — Anna questionou.

— No lugar.

— Não se feriu?

— Um dos idiotas bateu minha cabeça contra a parede, mas tirando isso,

nem um arranhão.

— Eu vou matar esses bastardos.

— Não precisa, eu já fiz isso.

— Você o quê??

Jennifer arregalou os olhos.

— É modo de falar. — Tentava desconversar.

— Jennifer, o que você fez?


Capítulo 18 - O castelo de Glasgow

— Quem diria que nós duas iríamos passar por um hospital em menos de

uma semana, hein?

— Nem me fale... E a propósito, acho que já posso me locomover

sozinha. — Anna voltava do banheiro amparada por Jennifer, com o pé


engessado um pouco erguido para trás.

— Você ainda está sob efeito de drogas. Amanhã eu deixo você pular por

aí com um pé só.

— Obrigada. — Respondeu, sentando-se lentamente na cama.

— Temos que arranjar uma muleta para você. — Jennifer falou

organizando os remédios ao lado da cama, já vestida para dormir.

— Não pretendo ficar muito tempo com isso no pé.

— Vinte dias.

— Nem pensar. — Anna empilhava seus travesseiros para deitar-se.

— Se você quiser vou lá embaixo agora e pego o machado para tirar,

você quer?

Anna balançou a cabeça e finalmente repousou.

— E então, já posso saber como me achou? Quer dizer, antes de qualquer


coisa, como soube que eu havia sumido?
Jennifer deu uma boa olhada em Anna e sentou-se na cama, de frente
para ela, e puxou suas pernas para próximo de si.

— Por causa do bilhete que você deixou.

— Eu não deixei bilhete algum.

— Eu sei, quando percebi que o bilhete não havia sido escrito por você,

bum! — Gesticulou como uma bomba explodindo.

— O que dizia o bilhete?

— Fui ao Centro, vou demorar.

— Como percebeu que não era meu?

— Quando percebi que havia sido escrito por uma pessoa destra.

— Você deveria trabalhar na polícia forense.

— Me dizem isso o tempo todo.

— Ok, e depois?

— Montei na sua moto e fui falar com Max, foi quando me dei conta que
seus possíveis sequestradores faziam parte da gangue do cara que tentou roubar

sua moto, e como eu vi uma tatuagem no pescoço dele, achei que poderia
identificar qual gangue era.

— Max conseguiu ajudar?

— Ele me indicou um amigo na Cidade Velha que me ajudou.


— Você foi até a Cidade Velha? Lá não é um bom lugar para você ir.

— Fui, ele me passou o nome da gangue e do líder.

— Alejandro.

— Esse mesmo. Bom, vocês devem ter sido apresentados.

— Foi ele que quebrou meu pé.

— Então acho que você vai gostar de ouvir o desfecho dessa história.

— Prossiga.

— Vou resumir, ok?

— Prossiga.

— Olha, você tem que me prometer que não vai me repreender por nada

que eu te contar, você promete?

— Prometo.

— Bom, fui até o trabalho de Bob, e fomos de carro para a casa do terror.

— Por isso Bob estava no hospital.

— Isso. Ele foi de grande ajuda para nós, me lembre depois de ir buscar
sua moto no trabalho dele.

— Com certeza te lembrarei.

— Chegamos na casa, pedi para Bob ficar no carro, e pulei o muro pelos

fundos.
— Sozinha?

— Eu e todas as boas energias do mundo.

Anna passou a mão nos olhos, quase riu.

— Ok, prossiga.

— Do lado de fora eu encontrei três chicos. — Falou fazendo sotaque


castelhano. — Digamos que montei uma armadilha para eles e os mandei terem

uma conversinha com o Diabo pessoalmente.

— Você matou os caras?? — Anna falou assustada.

— Era eu ou eles. — Jennifer respondeu um pouco hesitante.

— Estou com um pouco de medo de ouvir o resto da história.

— Posso continuar outra hora.

— Não, não, continue, vou tentar honrar minha promessa.

— Entrei na casa, encontrei mais um deles na cozinha, o desgraçado me


derrubou no chão! Bati com a cabeça e fiquei puta da vida, porque depois disso

minha visão ficou ruim.

— Você poderia ter perdido a visão, era arriscado demais, por que
continuou?

— O que você acha?

— Tá bom, continue. — Suspirou.


— Encaçapei esse também. Então fui até a última porta e encontrei o cara
do pé de cabra.

— O maldito Alejandro.

— Ele tentou dar uma de engraçadinho, depois tentou me matar, mas

finalmente consegui enfiar a faca nele.

— E então você matou o líder.

— Que nada, me encheu o saco mais um pouco, daí sim eu atirei nele.

Seu pé sente-se vingado agora?

— Completamente. Mas também sinto minha cabeça girando.

— Te procurei pela casa e não te achei, fui até a edícula e tcharam! Você

estava lá. Eu e Bob te levamos para o carro, e de lá fomos para o hospital.

— Que eu pedi para nunca me levar.

— Ok, pode me dar uma bronca se quiser, não me arrependo de ter

levado você. — Deu de ombros.

— Eu havia falado para somente me levar ao hospital se estivesse


morrendo, o que não era o caso.

— Eu sei.

— Mas você fez a coisa certa.

Jennifer franziu as sobrancelhas.

— Meu médico particular não anda com uma máquina de raio-x nem
com gesso dentro da bolsa. Obrigada por te me levado ao hospital. Na verdade...

Obrigada por tudo, acho que nunca vou conseguir agradecer por tudo que você

fez, o risco que você correu, tudo que você enfrentou... Por minha causa.

Jennifer sorriu.

— Eu faria tudo de novo.

— Eu sei.

— Eu faria tudo de novo com uma mão nas costas.

— Ok, eu já entendi. — Sorriu. — Mas foi uma missão quase suicida, se


alguma coisinha tivesse dado errado, você não estaria aqui agora. Você se

arriscou demais. Foi uma loucura o que você fez. — Anna insistiu.

— Você prometeu... — Jennifer balançou a cabeça contrariada.

— Ok... Mas saiba que ainda estou chocada com isso tudo. Imagina se

você tivesse perdido a visão, ou a consciência?

— Mas deu tudo certo. — Respondeu o olhar sorridente.

— Felizmente sim. — Anna ficou pensativa. — Como você tinha tanta


certeza que estava na casa certa, e que eu estava lá?

— Era só um palpite até eu entrar lá, mas então eu os ouvi conversando e


falaram de você.

— De mim?

Jennifer baixou o olhar.


— Eles falavam sobre pegar garotas e um deles falou que ia pegar a
híbrida, ou seja, você.

— Pegar no sentido de...

— Isso, no pior sentido. — Procurou as palavras por um instante. — E

que talvez Alejandro já tivesse... Você sabe... Com você. — Jennifer falava com

a voz embargada.

— E foi então que você soube que eu estava lá.

— Foi. — Respondeu.

Anna percebeu que Jennifer estava chorando.

— Hey, hey, não chore... Vem aqui. — Falou estendendo os braços a

chamando para perto.

Jennifer se aproximou e abrigou-se no peito de Anna. Depois daquele dia

tenso e quase surreal, sem dúvida aquele era o único lugar onde ela queria estar,

a melhor recompensa por tudo que havia passado, finalizar aquela jornada nos
braços dela. Quase podia sentir a pele dela através da camiseta de algodão que

Anna usava, era embalada pelo seu movimento de respiração.

— Não aconteceu nada. — Anna falou baixinho, com seu rosto

encostado na testa de Jennifer, afagando seus cabelos.

Jennifer se dava conta de todo risco que ela e Anna correram, finalmente

havia tirado sua armadura.


— Eu sei. — Respondeu, abraçando Anna como se pretendesse nunca
deixá-la sair do seu lado.

— Você chutou a bunda de todos eles.

— Eu sei. — Respondeu sorrindo, mesmo ainda chorando.

Anna ainda processava toda a informação, incrédula que aquela garota

tivesse sido tão destemida e a salvado de um destino sombrio.

— Você é minha heroína, sabia?

Jennifer apenas balançou a cabeça negativamente.

— É sim... — Continuou.

— Qual delas? — Perguntou, ainda com a voz falhosa.

— Hum... A Lara Croft?

— Eu gosto da Lara Croft.

— Você foi incrível hoje.

— Aprendi com a melhor.

— Acho que subestimei você.

Anna beijou sua testa e Jennifer fechou os olhos.

— Jennifer?

— Uhm?

— Você estava algemada a mim ou eu sonhei?


— Você sonhou. Deve ser algum fetiche seu, podemos conversar mais
sobre esse assunto depois. — Respondeu com os olhos fechados e um sorrisinho.

***

Três semanas se passaram até a data da viagem para a Escócia. Bob as

deixou no aeroporto para embarcarem em direção à Europa. Depois de alguma

espera, finalmente acomodaram-se na aeronave.

— Que bom que você está indo comigo. — Jennifer olhou sorridente

para Anna, ao seu lado.

— Ainda não sei se foi uma boa ideia, acho que deveria ser um momento

só seu, com sua família e tal... E até agora você não me mostrou a mensagem do
seu tio Ethan dizendo que sua vó contou para seu vô que eu não sou Vulpi.

— Eu apaguei sem querer.

— Ok.

— Como está seu pé?

Anna havia tirado o gesso no dia anterior.

— Já consigo mexer um pouco.

— Se você quiser posso caminhar com você pelo corredor do avião, se


você sentir dor ou algum inchaço. E acho que você vai passar frio com esse

casaco, deveria ter vindo com um mais quentinho. — Jennifer ainda estava
acelerada.
— Como eu desligo seu botão de preocupação?

Jennifer sorriu e Anna colocou sua mão em cima da dela.

A viagem transcorreu de forma tranquila, e logo já estavam às portas de


Glasgow, desembarcando no aeroporto internacional da cidade no início da

tarde.

— Você tem o endereço do seu avô, não tem?

— Claro.

— É aqui perto?

— Mais ou menos. Cinquenta quilômetros.

— Alguma ideia de como chegaremos lá? — Anna caminhava ainda

mancando um pouco, lado a lado com Jennifer pelo saguão do aeroporto.

Jennifer olhou para frente e sorriu.

— Que tal alugarmos um carro? — Falou olhando para os stands de

aluguel de carros.

— Você sabe dirigir?

— Claro. Você não?

Anna apenas fez uma expressão hesitante.

— Você não dirige??

— Prefiro não.
— Tudo bem, eu dirijo então. — Jennifer falou já se dirigindo ao balcão.

— Qual modelo vocês desejam? — Perguntou a atendente.

— Compacto.

— Conversível.

Disseram ao mesmo tempo e se entreolharam.

— Ok, conversível. — Aceitou Anna.

Logo já estavam guardando suas bagagens no banco de trás do Mazda

preto conversível e iniciando a viagem.

— Deveríamos ter alugado um GPS também.

— Que nada, eu vou seguindo as placas, já fiz esse caminho algumas

vezes. — Jennifer respondeu confiante.

— E na última vez você tinha doze anos. Você sabe que a mão aqui é
invertida, não sabe?

— Claro que sei. Mas foi bom você me lembrar.

Circularam algum tempo pelo centro da cidade até que finalmente

acharam a rodovia que levaria até a casa de seu avô, já com a brisa vespertina
batendo em seus rostos.

— Dirige apenas motos, então? — Jennifer perguntou, ajeitando seus


óculos escuros estilo aviador.

— É... Apenas a Paty.


— Mas nunca dirigiu nenhum carro?

— Já, um pouco, mas já faz muito tempo, quase vinte anos.

— Algum motivo para ter parado?

— Mais ou menos. Foi algo meio natural. — Anna parecia um pouco


triste.

— Você se acidentou?

— Não, minha mãe.

— Foi assim que ela faleceu?

— Sim.

— Sinto muito.

— Tudo bem, e tem dezessete anos que aconteceu.

— Ela estava sozinha?

— Estava indo visitar o seu pai, depois de tantos anos sem vê-lo.

— E o que aconteceu?

— Ela se envolveu num acidente em cima de uma ponte, e depois o carro


acabou caindo no rio. A correnteza levou seu corpo.

— Que azar.

— É.

— E onde seu avô estava antes disso? Morava em outro lugar?


— Não, na verdade ele sempre morou em Westport, que é próximo de lá,
você sabe onde fica, uns vinte quilômetros apenas, mas ele nunca aprovou o

casamento de minha mãe com meu pai, que era humano.

— Mais um Titan que odeia os humanos.

— Infelizmente sim, na verdade odiar é até um eufemismo.

— Então ela se casou contra a vontade do pai.

— Praticamente fugiu de casa para ficar com meu pai. Meu avô nunca a

perdoou, nem aceitou.

— Já sei de onde você herdou sua coragem.

— É... Ela era uma mulher bem corajosa. Foi contra tudo e todos para

ficar com a pessoa que ela amava.

Jennifer se sentia confortável com aquela abertura de Anna, era raro vê-la

falando sobre sentimentos.

— Você deve ser bastante orgulhosa dela.

Anna concordou balançando a cabeça.

— Que pena seu avô ser assim tão cabeça dura. Ele ainda está vivo?

— Não sei, nunca mais tive notícias, só sei que foi morar na Ásia. Nunca

o conheci, nem meu tio Victor, irmão de minha mãe. — Anna havia recostado a
cabeça na mão, apoiando o cotovelo na janela do carro.

— Seu tio também tinha o mesmo pensamento que seu avô?


— Completamente, era como uma sombra dele, seguia seus
ensinamentos de ódio.

— Bom, mas no fim o amor de seus pais venceu o ódio da família dela.

— É bem poético visto por esse lado.

— E seu pai, como acabou saindo do Brasil e se casando nos EUA?

— Ele era um jovem marinheiro brasileiro, que ficou alguns meses em

Bridgeport a trabalho, em um navio escola do Brasil. Minha mãe trabalhava

numa das lojas do meu avô na cidade, e foi assim que eles se conheceram, ele

passou a frequentar cada vez mais a loja. Tinham menos de vinte anos, eram

praticamente adolescentes.

— Foi uma paixão juvenil que deu certo.

— Foi.

Jennifer pegou a mão de Anna e beijou.

— É uma bela história. E que bom que teve final feliz, senão não existiria

nenhuma Anna... Qual seu sobrenome??

— Fin.

— Fin, F I N? — Soletrou.

— Sim, é italiano.

— Hum, gostei. Bom, e eu estaria dirigindo sozinha agora.

— Duvido. — Sorriu.
Anna virou um pouco a cabeça e pôs a observar Jennifer, que estava
vestida com uma calça preta e uma camisa branca de botões.

— Está tudo bem? — Jennifer perguntou curiosa pelos olhares.

— Você fica bem com essa roupa. Fica tão...

— Adulta?

— Tão bonita... — Sorriu timidamente. — E adulta também.

***

No meio da tarde daquela quarta-feira o carro negro adentrou os grandes

portões de ferro da casa da família Stuart, passando por um caminho de saibro.

Enquanto se aproximavam, Jennifer apenas conseguia sorrir, feliz e nostálgica,

enquanto Anna se impressionava com a beleza do lugar e o tamanho da casa,

havia um pequeno jardim a frente, com um chafariz de pedras claras no meio,


rodeado por grama.

— Você nunca me disse que seu avô morava num castelo.

— Não é um castelo.

— Tem torres de castelo e tudo.

— Mas não é um castelo, é só a casa do meu vô.

Pararam na entrada da casa e Jennifer logo correu para a porta, uma


grande porta dupla de madeira. A casa era marrom acinzentada, com inúmeras
janelas brancas.
— Olá? Tem alguém em casa? — Jennifer falou alto, olhando por toda
sala de entrada, um salão amplo com desenhos geométricos no piso e com duas

escadas brancas que se encontravam embaixo.

Surgiu uma figura conhecida, vindo de uma sala lateral.

— Adam??

Era seu primo mais novo, que tinha dezessete anos.

— Então era verdade?? Você está viva!

— Em carne e osso!

Abraçaram-se. Ao ouvirem o diálogo, apareceu em seguida seu avô

William, descendo as escadas.

— Vô! — E correu para abraçá-lo.

Seu avô era um exemplo típico de vovô, com cabelos brancos, apenas ao

redor da cabeça, e um bigode igualmente alvo. Era rechonchudo e tinha as

bochechas salientes como Jennifer, usava óculos redondos.

— Que bom que conseguiu vir, minha neta. — Falou ao terminar de


abraçá-la.

Jennifer sorria animada, foi até Anna e a trouxe para próximo de seu avô,
a apresentando. Todos estavam de pé no centro do salão.

— É tão bom revê-lo. E estar de volta! Não mudou nada, tudo está do
jeito que vi pela última vez!
— Felizmente o engano foi desfeito e ganhei minha neta novamente, é
como se você tivesse nascido de novo para nossa família, a alegria é a mesma.

Você está tão grande! Sua vó Meredith tinha toda razão na carta!

— Tudo graças à essa moça aqui. — Falou apontando para Anna.

William deu uma boa olhada em Anna.

— Seremos eternamente gratos a você, minha querida. — Falou

apertando a mão dela. — Vocês devem estar cansadas, venham, vamos aqui

sentar um pouco.

As conduziu para uma sala de estar grande, com sofás, inúmeros quadros

e lareira, a TV estava ligada.

Os quatro sentaram-se e Jennifer perguntou por seus outros familiares.

— Suas tias estão trabalhando na cidade, e seus outros primos estão...


Nunca sei onde eles estão. Devem estar estudando, ou na casa de algum amigo.

Mas todos estarão aqui a noite.

— Todos moram aqui?

— Sim, essa casa é de toda a família, inclusive sua. Mas me digam, como
chegaram aqui? Se me avisassem o horário eu teria mandado um carro buscá-las.

— Ah, não era preciso, nós alugamos um carro, me perdi algumas vezes,
mas no final deu tudo certo.

Passaram mais algum tempo conversando e matando as saudades,


William chamou a governanta da casa para levá-las para seus quartos.

— Estarei no escritório lá em cima, apareçam lá após se acomodarem. —


Seu avô se despediu.

Subiram as escadas acompanhadas pela Sra. Duncan, a governanta.

— Preparei dois quartos, mas se preferirem dividir o mesmo quarto, fica

a critério de vocês.

Se entreolharam e Jennifer respondeu sorrindo.

— Vamos economizar quartos, um só está de bom tamanho.

Ajeitaram suas coisas no quarto e Jennifer a chamou para ir ao escritório

do seu avô.

— Vá lá, eu vou pegar o restante das coisas no carro e colocar a capota

dele, vai que chove a noite. — Anna respondeu.

Jennifer entrou dando passos lentos pelo escritório, olhando os quadros,

diplomas e troféus nas paredes. Seu avô estava atrás da mesa no final do recinto,

à frente dele havia duas grandes cadeiras escuras e um sofá encostado na parede,
abaixo de uma janela aberta, que dava para o pátio frontal da casa.

— A maioria dos troféus é de seu pai, ele era um exímio jogador de

críquete.

— Ele nos falava a respeito. Os campeonatos, jogos... Mas nunca o vi


jogando.
— Acho que não jogam muito críquete na América, não é mesmo?

Jennifer sentou-se no sofá, olhou para trás pela janela e viu Anna lutando
para subir a capota do carro.

— Quer ajuda aí? — Gritou da janela.

Anna apenas gesticulou que não. E Jennifer continuou a observando, com

um olhar perdido, apoiava a cabeça nas duas mãos espalmadas no rosto,

apoiadas no parapeito da janela.

William a olhou por um instante e tirou os óculos.

— Jenny... Você mudou de time, não é?

Jennifer acabou escorregando os cotovelos do parapeito, quase batendo o

queixo na madeira, surpresa com a pergunta. Virou-se para seu avô, sentando de

forma normal no sofá.

— Ãhn... Time? Emm... — Não conseguia achar as palavras.

— Sim, time.

— Errr... Na verdade... Acho que sempre fui desse time. — Falou


baixinho, gaguejando.

— Eu discordo.

Jennifer continuava procurando as palavras, mas estava bem difícil de


encontrá-las.

— Eu vi você vibrando lá embaixo na sala com um gol do Celtic. Você


torcia para os Rangers aqui na Escócia, tenho certeza. — Continuou.

Jennifer deu um sorriso aberto, nervoso.

— Celtic... Sim.

— Sim, você achou que eu estava falando sobre o quê?

— Futebol, é claro.

William saiu detrás da mesa e sentou-se também no sofá.

— Minha querida, eu sei sobre você e a mocinha lá embaixo. — Falou

num tom confessional.

— Sabe? Como assim? — Jennifer voltou a ficar perplexa.

— Seu velho avô ainda é bom em perceber as coisas.

Jennifer balançou a cabeça devagar.

— É tão evidente assim?

— Não, mas eu conheço minha neta. Desde sua tenra infância, eu sabia

que você era diferente. Diferente não, eu sabia que você era especial.

Jennifer deu um sorriso tímido, meio envergonhado.

— Você sempre me surpreendia, eu sabia que você não havia nascido

para ser apenas mais uma. — William se virou e deu uma olhada pela janela. —
Você talvez não lembre, deveria ter um seis ou sete anos, vocês vieram passar as
férias de verão aqui, já era noite, umas dez da noite... Você simplesmente sumiu!

Procuramos você pela casa inteira, em todos os quartos e cantos, até que alguém
olhou pela janela e viu você lá, dentro da fonte, se esbaldando na água.

— Eu lembro... Não dos detalhes, mas lembro desse dia. — Jennifer riu.

— Quando perguntei por que você havia ido até lá, você me respondeu
com a maior naturalidade ‘porque eu estava com calor’. Ninguém teve coragem

de dar bronca alguma em você. — Riu também.

***

— Seu pé precisa de descanso, baby. — Jennifer estava deitada numa

confortável e grande cama, observando Anna desfazendo as malas.

— Depois eu coloco para cima.

— Não, largue isso, venha cá, deite.

— Depois.

— Agora, senhorita Fin.

Anna se ergueu, com as mãos na cintura a fitou indecisa por alguns

segundos.

— Tá bom.

Já deitada, Jennifer sentou junto ao seu lado e iniciou uma massagem no


pé em recuperação.

— Se doer me avise.

— Suas mãos são incapazes de me infligir dor. – Anna respondeu com

um sorrisinho.
— É cedo para falar isso, eu sou meio desastrada. Mas achei muito fofo
da sua parte.

— Eu adoro tudo que suas mãos fazem em mim.

— Se você está tentando me agradecer, saiba que conseguiu. — Beijou o

peito do pé dela.

***

A noitinha suas tias e os outros dois primos juntaram-se ao restante da

família e tiveram um jantar regado a lembranças e várias perguntas a Jennifer.

— Trouxe o vestido para a festa ou vamos comprar um aqui? —

Questionou sua prima Caroline.

— Na verdade esse assunto ainda não havia passado pela minha cabeça.

— Respondeu.

— Então vamos resolver isso amanhã, combinado? O baile é dentro de

três dias.

Não era a tarefa preferida dela, mas não tinha escolha e acabou
concordando.

No dia seguinte Jennifer tratou de mostrar os arredores da propriedade a

Anna, inclusive as macieiras que eram massacradas nas suas visitas.

— Vô, podemos andar a cavalo? — Jennifer indagou ao voltar para casa.

— Claro, escolham os mais dóceis e não apostem corrida uma com a


outra.

— Não faríamos isso. Não é, Anna? — Falou sorrindo de lado.

— E não ultrapassem a porteira de madeira, ok? Fiquem só por perto,


não entrem na floresta.

— Pode deixar! — Falou já puxando Anna para fora.

— E então, esses você dirige? — Jennifer perguntou com sarcasmo,

enquanto se dirigiam ao estábulo.

— Dirijo sim, se quiser posso ensinar um pouco a você.

Com ajuda de um dos funcionários escolheram seus cavalos e

começaram um galope lento por um caminho de terra, costeando pastos cercados

e algumas poucas árvores. Em alguns pastos havia ovelhas, em outros, alguns

novilhos e bois. Ao fundo eram visíveis montanhas baixas e colinas de um verde


vivo impressionante.

— Você também vai comprar um vestido hoje? — Jennifer perguntou.

— É o jeito. Que horas sua prima marcou com você?

— No final da tarde. Temos tempo para galopar bastante ainda.

— Esta deve ser a porteira que seu avô se referiu, temos que pegar esse
outro caminho a direita.

Jennifer cerrou os olhos, pensativa.

— Hum... Lá dentro tem uma floresta bem interessante. Já ouviu falar da


lebre azul? Lá dentro talvez encontremos alguns deles. Claro que eles não são
azuis mesmo, são branquinhos e fofinhos.

— Eu acredito em você, mas as opções são: pegar esse caminho a direita

ou voltarmos para o estábulo.

— E se, digamos assim, por acidente eu abrir essa porteira?

— Jennifer...

— Ah vamos, eu conheço esse lugar, não tem perigo nenhum.

Anna hesitou um pouco, mas acabou cedendo. Jennifer abriu a porteira e


continuaram seu passeio por uma região cercada de grandes árvores. Estavam

entrando na floresta.
Capítulo 19 - Time after time

— Se o seu avô falou para não entrarmos aqui ele deve ter suas razões.

— Anna resmungou.

— Ele deve achar que vou me perder, mas não sou tão desorientada

assim.

— Não posso concordar.

A cavalgada seguia sem maiores percalços, Jennifer altiva em seu cavalo

marrom, com seus cabelos castanhos claros soltos sacudindo no ritmo do galope,

usava uma camisa de flanela xadrez vermelha com um colete preto acolchoado

por cima.

Anna olhava atenta para todos os lados, como se estivesse num

reconhecimento de novo terreno, de cima de seu cavalo negro, com sua jaqueta

da mesma cor.

As árvores ficavam mais densas à medida que adentravam a floresta,

alguns poucos raios de sol conseguiam permear entre as folhas, deixando menos
sombrio aquele caminho formado de folhas secas, rodeado por pinheiros,
carvalhos e outras árvores menores.

— Essa trilha vai dar em algum lugar? — Questionou Anna.

— Sim, depois das árvores tem algumas colinas não muito altas, se
quiser te levo lá, a vista é excelente e às vezes tem cervos e raposas.

— Mais raposas? — Respondeu irônica.

— Quer água? — Jennifer estendeu o braço segurando uma pequena


garrafa plástica.

— Quero sim.

— Meu avô sabe sobre nós duas. — Jennifer falou sem rodeios.

Anna, que começava a bebericar na garrafa, acabou cuspindo a água

como num espirro, surpresa com a afirmação de Jennifer.

— Como você sabe que ele sabe??

— Ele me falou.

— E como ele sabe?

— Sabendo ué.

— Alguém contou para ele?

— Não.

— Mas... Eu tenho me policiado o tempo todo, nem me aproximei de

você na frente deles.

— Sir William Stuart é mais esperto do que você pensa.

— Bom, uma preocupação a menos. Agora já posso focar meu pânico no


baile e aquele monte de Vulpis todos sem entender o que uma forasteira faz no
meio deles.

— Meu vô falou que às vezes vai alguém de outra espécie, então você
não será a primeira a... Que porra foi essa?? Você também viu?? — Jennifer se

abaixou e olhava para todos os lados assustada depois que um pequeno objeto

voador passou próximo dela em alta velocidade.

— Vi... Vi sim, não sei o que era. — Anna também olhava para todos os
lados.

— Será que era algum passarinho suicida?

— Não parecia, era rápido demais.

Continuavam perscrutando as árvores quando outro objeto passou desta

vez próximo a cabeça de Anna.

— Outro! Mas o que é isso? Estão jogando alguma coisa em nós??

Antes que Anna respondesse, outro objeto passou entre ambas, e acabou

enfincado no tronco de uma árvore.

— Estrelas ninjas! — Anna reconheceu o objeto metálico reluzente, tinha


cinco pontas afiadas e media aproximadamente dez centímetros.

— Acho que estão vindo daquela direção, e daquela também. — Jennifer

falou apontando para dentro das árvores.

— Tem alguém aí?? — Gritou.

— Anda, Jennifer, vamos embora!


— Hey, seu desgraçado covarde, apareça! — Jennifer insistia. — Que
porra você acha que... Ai!!

— Acertou você??

— Sim, na perna! Anda, vamos embora. — Jennifer falou rapidamente,

já dando a volta com seu cavalo.

Saíram galopando em velocidade por entre as árvores. Quando se

aproximavam da porteira Jennifer tratou logo de abri-la com sua telecinese.

Pararam seus cavalos em seguida, Anna desceu e foi ver o que havia acontecido

a Jennifer

— A danada ainda está aqui encravada na minha bota! — Jennifer


descera também do seu cavalo, mostrando a perna para Anna, que se abaixou

para verificar de perto.

— Posso remover? — Olhou para cima.

— Vá em frente.

Anna retirou cuidadosamente o objeto prateado da sua perna, havia

penetrado na lateral, um palmo acima do tornozelo.

— Aaaai. — Jennifer fez uma expressão dolorida.

Anna baixou o zíper da bota dela e a descalçou, pode ver dois furos com
pequenos filetes de sangue vertendo.

— Era para o estrago ter sido bem maior, você deu muita sorte, se acerta
o tendão você teria problemas.

— Na verdade acho que o espírito do pequeno castor me protegeu.

— Como assim?

— A adaga barrou a estrela. — Jennifer falou tirando de dentro da bota a


adaga que Anna havia lhe presenteado.

— Inacreditável... — Balbuciou, surpresa. — Suba aí, vamos voltar para

a casa, eu cuido disso lá.

Chegaram na casa e deram de cara com seu avô passando pela sala indo
em direção à cozinha, ele viu ambas mancando.

— É feio imitar os problemas físicos dos outros, viu Jenny? — Ele falou

em tom de brincadeira.

Jennifer apenas sorriu e subiram rapidamente as escadas, entrando no

quarto.

— Não conte para o meu avô. — Jennifer falou assim que fecharam a

porta.

— Você não disse que ele é esperto? Vai acabar descobrindo.

— É eu sei... Droga, depois eu conto para ele.

— Vá para o banheiro, coloque a perna dentro da banheira e lave o


ferimento, vou lá embaixo tentar arranjar algum material para limpar isso aí com
a Sra. Duncan.
— Sim, senhora. — Respondeu com sarcasmo.

Minutos depois depois Anna retornou com uma pequena bolsa nas mãos,
foi até o banheiro e pediu que Jennifer sentasse na beira da banheira.

— Não tinha Band-aid?

— Não. — Respondeu já enrolando uma atadura estreita em volta do

ferimento, após limpá-lo.

Jennifer acompanhava curiosa todos os movimentos.

— Quem você acha que pode ter feito esse ataque terrorista contra nós?

— Não sei. Mas provavelmente seu avô sabe. Prontinho, só não molhe

quando for tomar banho.

— Imagina se uma coisa dessas atinge minha cabeça? Ou a sua? —

Falou arregalando os olhos.

— Sua cabeça é blindada. — Anna falou saindo do banheiro.

— Vou tomar banho, daqui a pouco Caroline vai nos chamar.

— Bom banho.

— Anna?

Anna voltou à porta do banheiro.

— Diga, querida.

— E se forem duendes? Estamos na terra dos duendes.


Anna a fitou por alguns segundos.

— Só não molhe o curativo. — Saiu novamente para o quarto.

***

Desceram do carro já no centro de Glasgow e Caroline foi logo dando as


orientações.

— Eu trouxe a Jessica para nos ajudar, vamos nos dividir em duplas para

aumentar a produtividade. — Falou em um tom extrovertido.

Caroline tinha quase a idade de Jennifer e a lembrava bastante em suas


feições, mas tinha algumas sardas no rosto e era mais alta. À primeira vista ela

tinha um ar arrogante, mas talvez fosse apenas seu jeito.

— Eu vou com minha priminha e Jessica te acompanha, pode ser, Anna?

Ela é melhor que eu com roupas, você estará muito bem acompanhada.

— Por mim, está ótimo. — Respondeu.

Jennifer se despediu e antes de sair andando com Caroline fez um gesto

com dois dedos, apontando para seus próprios olhos, e depois apontando para
Anna, como se dissesse ‘estou de olho em você.’ Anna apenas sorriu e seguiu
para o outro lado com sua companhia.

Voltaram para casa já de noite e Jennifer insistia para ver o que Anna
havia comprado.

— Ah, me mostra, se você mostrar o que você comprou eu mostro o


meu.

— Você vai odiar e eu não estou nem um pouco a fim de mais uma
sessão de compras.

— Não é melhor eu odiar agora do que no sábado?

— Sábado você vai ver.

— Ok... Ah, eu tenho que ir mais cedo para o local da festa.

— Você vai se arrumar lá?

— Sim, mas a namorada do Hugh vai se arrumar aqui e vai te ajudar,

você vai sobreviver?

— Acho que sim.

***

No dia seguinte, véspera da festa, Anna, Jennifer, seu avô e seu primo
Hugh se reuniram na sala de estar para assistirem TV após o jantar. Jennifer

estava com o assunto das estrelas ninjas coçando na sua língua, morrendo de

vontade de saciar sua curiosidade.

Adam colocou a cabeça na porta e falou com um sorrisinho nos lábios.

Era um garoto de cabelos escuros e belos lábios, seus olhos tinham longas
pestanas e eram encantadores, tinha feições simpáticas e era sempre doce ao

falar com as pessoas, apesar de não falar muito.

— Posso ficar aqui com vocês?


— Claro, meu filho, sente-se conosco. — Respondeu William.

Jennifer não se conteve e iniciou o assunto.

— Vô... Assim... Por que o senhor falou para não entrarmos na floresta
ontem?

— Porque lá pode ser perigoso.

— Perigoso como?

William se virou na direção de Jennifer.

— Você entrou, não entrou?

Jennifer hesitou um pouco. Anna apenas acompanhava passivamente a

conversa. E Adam não tirava os olhos de Anna.

— Eu sempre entrava lá quando era criança.

— Caramba, você foi na floresta?? — Adam se manifestou.

— O que vocês sabem que eu não sei? — Jennifer falou franzindo a


testa.

— Aconteceu algo com vocês? — William perguntou preocupado.

— É... Digamos que sim, mas nada sério. Atiraram estrelas ninjas em
nós. Mas a culpa foi toda minha, eu que insisti. — Isentou sua namorada de

culpa.

— Se machucaram? — Ele perguntou.


— Um pouquinho na perna, mas foi de leve.

— Isso foi longe demais. Eles já mataram algumas ovelhas e feriram o


gado, mas ferir minha neta... Vou ter que tomar alguma atitude mais enérgica.

— Eles quem? — Jennifer perguntou cheia de curiosidade.

William suspirou antes de continuar falando.

— Lá no alto da colina tem duas casas, na verdade eles são tão

desgraçados que suas mulheres já os abandonaram. Moram dois irmãos,

sozinhos, cada um na sua casa, casas essas que eu permiti que construíssem no

meu terreno há quase dez anos, com toda boa vontade. E olha como me

retribuem?

— Sim, mas por que eles começaram a atacar nossa família? Por que essa

violência?

— Porque eles não estavam satisfeitos com a estrada que dava acesso às

casas deles pelo outro lado da colina, eles querem que o acesso seja por dentro

da nossa propriedade, porque é alguns metros mais curto que a estrada de fato.

— E o senhor proibiu a passagem deles?

— Claro que não, mas de um tempo para cá eles começaram a demarcar

terras ao redor deste caminho dizendo que pertencem a eles, não permitindo
mais que usufruamos essas áreas.

— Inclusive aquela parte da floresta, eles consideram deles agora?


— Exatamente. Eu estou lutando na justiça há mais de dois anos, estou
tentando resolver de forma diplomática, mas até agora nada.

— Mas que... — Jennifer se policiou para não falar um palavrão. — Mas

que absurdo, eles são muito folgados!

— E é assim que eles retaliam quando algum animal nosso entra no que

consideram propriedade deles, atiram essas estrelas ou então fazem armadilhas.


Por isso eu disse para não ultrapassar a porteira.

— Eles são Vulpis?

— Não, são Titans.

Imediatamente Jennifer olhou para Anna com uma expressão animada.

Anna sustentou o olhar.

— Eu vou pensar em algo. Vou pensar em algo para parar com esse
abuso. — William murmurou. — Enquanto isso, já sabem, não entrem na

bendita floresta.

Jennifer concordou com a cabeça.

Depois da conversa elas subiram para o quarto, Anna andava pelo quarto
se trocando para ir dormir, mas Jennifer havia sentado na cama, pensativa, com

as pernas próximas ao corpo, fazendo uma posição de lótus.

— Não... De jeito nenhum. — Anna interrompeu o silêncio, olhando para

Jennifer.
— O que foi, agora deu para ler pensamentos?

— Sim, eu sei exatamente o que você está pensando, e não, não vamos
nos meter nisso.

— Mas precisamos fazer alguma coisa para ajudar meu avô!

— Jennifer, não viemos para cá para esse tipo de coisa, viemos para nos

divertimos, passarmos bons momentos com sua família, nada de confusão.

— Podemos ir conversar com os caras.

— Ou podemos deixar seu avô resolver isso, como ele disse que ia fazer.

— Acho que poderíamos ser mais eficientes que ele.

— Ah claro, duas malucas americanas podem ser mais eficientes que o

líder do clã Vulpi do sul da Escócia.

— Mas nós somos boas nisso.

— Podemos apenas dormir? Amanhã é um dia bem especial para você e

sua família, se concentre nisso.

Jennifer levantou-se e foi também se trocar para dormir, contrariada.

***

O dia da festa chegou com uma manhã ensolarada entrando pela janela

do quarto. Jennifer, que dormia virada para a parede, acordou com Anna
passando seu braço ao redor do seu corpo e se moldando a ela, a abraçando, de
brinde ainda ganhou alguns beijos no pescoço.
— Bom dia, pequena... — Falou no seu ouvido.

— Hum... Se eu for acordada assim sempre que for feriado Vulpi, vou
pedir para meu vô declarar feriado o ano todo... — Jennifer comentou sorrindo.

Anna afastou algumas mechas no pescoço dela e deu mais alguns beijos

antes de falar.

— Posso ficar aqui beijando você até amanhã.

— Isso é tão bom...

— Eu pensei um pouco essa noite, a respeito daquele assunto... Acho que


você tem razão.

Jennifer virou-se ficando cara a cara com Anna.

— Sobre aqueles dois Titans? — Se animara.

— Sim... Estamos sempre fazendo estes serviços arriscados para os

outros, para pessoas que nem conhecemos. Por que não podemos fazer algo por

sua família?

Jennifer deu um sorriso.

— Mas não pense nisso agora, amanhã conversamos, ou depois de

amanhã quem sabe.

— Fechado!

Jennifer a puxou pela nuca e a beijou, logo já estava por cima dela.

— Posso ficar aqui hoje à noite? — Anna falava com um semblante que
pedia clemência, fazia uma última tentativa de não ir ao baile.

— Aqui? Não quer ir na festa?

Anna caprichou mais ainda na expressão aflita.

— Eu não sei o que fazer num evento desses, não sei me enturmar, o que
falar... Vou me sentir um peixe fora d’água. E aquele monte de raposas me

olhando e se perguntando o que estou fazendo ali.

— Estou quase comovida. — Jennifer respondeu com sarcasmo.

— Tenho medo de decepcionar você.

Jennifer lançou um sorriso reconfortante.

— Duvido que você consiga. — Aconchegou-se com o rosto em seu

pescoço.

— Vai dar tudo certo, você não estará sozinha. — Continuou.

Logo depois do almoço Jennifer e a maior parte da família seguiu para o

local da festa, inicialmente ela estava preocupada em deixar Anna se virando

praticamente sozinha na mansão, mas já nos bastidores da festa foi se entretendo


com as arrumações, do lugar e dela própria.

Porém a medida que os convidados iam chegando, Jennifer voltava a se


preocupar, mesmo às voltas com seus primos. Eles já estavam no salão principal,

reunidos ao longo do balcão do bar, conversavam de pé de forma descontraída.


O local era uma construção pomposa dos idos do século passado, com lustres
grandiosos de cristais, imensas janelas trabalhadas e alguns detalhes vitorianos,

como o teto rico em detalhes florais e cortinas de veludo. Na entrada havia uma

pequena escada dourada que dava acesso ao patamar do salão, por onde

entravam os convidados.

Jennifer não estava muito confortável em seu traje de gala, mas se


esforçava para se equilibrar no salto alto. Seu vestido era cinza, todo coberto de

aplicações de vitrilhos e paetês prateados, cobria seus braços, mas deixava suas

costas inteiramente à mostra, assim como o generoso decote expunha seu colo.

Jennifer avistou um rosto familiar vindo na sua direção.

— Jim??

— Enfim encontrei a anfitriã!

— Ah, claro, sua mãe mora em Edimburgo, não é? — Falou ao abraçá-lo.

— Isso mesmo. A propósito, você ficou muito bem nesse vestido! —

Respondeu dando uma boa olhada dos pés à cabeça.

Jennifer sorriu balançando a cabeça.

— E você está bastante elegante, Becca adoraria te ver assim. Por que
não me falou que você também vinha para a festa?

— Porque decidi em cima da hora, ontem para ser mais exato. Becca me
falou que vocês haviam viajado na terça-feira.

— Isso.
— E Anna, não vem ao baile?

— Reza a lenda que sim. Ela está vindo com Jessica, a namorada do
Hugh. — Falou tocando seu primo no ombro, e aproveitou a deixa para

apresentar seus três primos a ele.

Hugh interrompeu o que estava falando e voltou seu olhar para a escada.

— Já não era sem tempo! — Exclamou.

Jennifer virou-se, seu olhar encontrou Anna e Jessica descendo as

escadas. E como Anna estava estonteante! Jennifer nem tentou disfarçar seu

deslumbre, acompanhava todos os seus passos com um sorriso aberto, como se

estivesse vendo Anna pela primeira vez.

Anna estava discreta, mas sua beleza estava completamente escancarada

para quem quisesse ver, atraindo os olhares que ela tanto queria evitar. Seu

vestido creme era simples, mas com um corte atraente, também deixando suas

costas nuas, além de seus braços. Seu cabelo já havia crescido um pouco desde

que se conheceram há seis meses, e estava preso displicentemente mais no alto,


formando um penteado moicano. Argolas douradas pendiam, ornando seu

pescoço esguio.

Ainda embasbacada, Jennifer foi na direção dela buscá-la para o grupo.

— Uou! — Foi tudo que Jennifer conseguiu pronunciar.

— Você está... Absurdamente linda. — Anna respondeu, com um sorriso


encantador.
— Sério, você é simplesmente a mulher mais incrível desse lugar, e olha
que tem umas austríacas lindas lá do outro lado. Você está arrasando corações, e

eu te falaria isto mesmo que você fosse uma estranha.

— Estou me sentindo como se tivesse mil olhos sobre mim, me

analisando. Talvez porque realmente tenha.

— Todos que estão olhando para você estão encantados com sua
presença, apenas isto, acredite.

— Vou fazer de conta que acredito.

— Venha, estamos no bar, inclusive temos um convidado que você

conhece. — Terminou de falar e a conduziu pela mão para próximo do bar.

— Já estava perguntando por você! — Jim a saudou.

— Pessoal, desculpem-me, o atraso é culpa minha, não conseguia deixar


meu cabelo do jeito que queria! — Interrompeu Jessica.

— Ficou ótimo. — Hugh a puxou pela cintura e deu um beijo rápido.

— Você está linda, Anna! — Exclamou Adam, de forma animada.

Anna agradeceu, um pouco sem jeito.

— Então Jim, você é vizinho da minha priminha? — Hugh perguntou. À


essa altura já formavam uma roda ao lado do bar.

— Mais ou menos, moro na cidade vizinha, mas digamos que sim.

— E ele namora com a minha melhor amiga. — Jennifer complementou.


— Namora com você Anna?? — Perguntou intrigado Adam.

— Não, não, ele namora com Becca. Anna é outro tipo de amiga. —
Jennifer respondeu rindo.

— Ah, bom... — Adam retrucou.

— E aí, será que vai rolar discurso do vovô? — Hugh interpelou todos.

— Todo ano tem. — Caroline respondeu.

— E por falar em vovô... — Hugh falou ao ver seu avô vindo na direção

deles.

— Crianças, vamos para a mesa? Vão servir o jantar. Prometo liberar

vocês assim que a música começar. — William anunciou.

No momento apenas músicas instrumentais ditavam a trilha sonora da

reunião anual de Vulpis, uma festa preparada com tanto esmero por William e

sua família, era um prazer imenso reunir boa parte das pessoas que faziam parte

do clã que ele liderava, e que englobava todo o sul da Escócia. Jennifer evitava
pensar nesse assunto, mas ela sabia que no dia que seu avô deixasse esse plano,

ela seria a herdeira direta daquele posto.

— Meu primo está caidinho por você. — Jennifer falou no ouvido de

Anna, todos já estavam terminando suas refeições.

— Quem, Hugh?

— Claro que não! Adam. Meu Deus, você não percebeu??


— Não. E ele só tem dezessete anos. — Franziu a testa.

— Talvez você seja a primeira paixão dele. — Falou sorrindo com


sarcasmo.

— Não fale bobagem.

As luzes diminuíram e o estilo musical mudou radicalmente, músicas pop

dançantes começaram a entoar chamando os convidados para o centro do salão,

local que serviria de pista de dança.

Não demorou muito para seus primos a chamarem para dançar, Jennifer

insistiu para Anna acompanhá-los, mas foi inútil.

Era uma noite deveras especial para Jennifer, seus últimos meses haviam

sido de uma reviravolta sem igual. Na verdade, Jennifer já havia passado por

duas grandes reviravoltas em sua vida, mas ambas igualmente tristes. Agora as

coisas mudavam num ritmo alucinado e prazeroso, redescobrir sua família,

redescobrir a sensação de viver intensamente, redescobrir o amor.

Jennifer e seus comparsas dançaram uma dezena de músicas e ela voltou

a sentar-se ao lado de Anna, que acompanhava a movimentação e já estava mais


à vontade no meio de tantas raposas.

Um tempo depois o DJ resolveu mudar o clima da festa e iniciou uma

sessão de músicas lentas, convidando os pares formais e os pares improvisados a


dançarem juntinhos. Adam veio tirar Anna para dançar, que recusou

educadamente, Jennifer pegou a mão de seu primo e foram para a pista dançar a
música romântica que embalava os pares. ‘Forever’ do Kiss fazia as duplas
dançarem de forma cadenciada, gostosa. Jennifer olhou para seu primo com um

sorriso besta.

— O que foi? — Ele perguntou também sorrindo.

— Nada não... Deve ser o uísque, me deixa mais extrovertida.

— Anna não gosta muito de dançar, não é?

— Nem um pouco.

— Você sabe se ela tem namorado?

— Que eu saiba não. — Não conseguia responder de forma séria.

Adam olhou para o lado, meio desolado.

— Ela nunca olharia para um Vulpi, não é?

— Nunca se sabe... — Se esforçava para não rir. — Talvez ela tenha uma
quedinha por Vulpis, vai saber.

Dançaram mais uma música e então seu primo Hugh a tomou para a

próxima dança. Hugh era um garotão alto e magro de vinte anos, com cabelos
castanhos encaracolados e olhos verdes. Era o tipo de garoto que transmitia certa

paz interior, daqueles que parecem estar sempre prontos para te ouvir e te ajudar.

— Cuidado para não destruir o coração de Adam. — Hugh falou com um


sorriso repreensivo, mas num clima descontraído.

— Eu sei, estou sendo imparcial, juro.


— Ele não sabe de vocês.

— É, eu percebi. Foi nosso avô que te contou sobre nós?

— Não, eu deduzi.

— Acho que preciso fazer algumas aulas de interpretação.

— O jeito como vocês se olham. Só alguém muito tapado não perceberia.


E o Adam.

— Então provavelmente metade do salão deve saber sobre nós.

— Ou mais... Mas acho que ninguém está se importando muito com isso,

então não se importe também.

— Fale isso para ela.

— Por que não a convida para dançar?

— Ela não gosta de dançar

— Tente.

Jennifer o fitou por um instante.

— Talvez.

Terminaram a música e uma música do Johnny Rivers iniciava, a música

era um convite por si só, se chamava ‘Do you wanna dance’. Jennifer aproveitou
a oportunidade, se aproximou de Anna, que estava sentada numa cadeira na
mesa à lateral da pista central. Estendeu a mão para ela, a convidando para a

dança, mas ela negou com a cabeça, sorrindo timidamente.


Então ela começou a cantar a canção, dublando a letra.

— Do you wanna dance and hold my hand?

Tell me that I'm your girl

Baby, do you wanna dance?

Tendo o cuidado de trocar a parte que dizia ‘your man’ por ‘your girl’.

E na continuidade interpretou a letra com toda sua expressividade, cheia

de caras e bocas, ‘Do you do you do you do you wanna dance?’

Anna não resistiu, sorriu, riu, deu o mais aberto dos sorrisos, e enfim

pegou a mão de Jennifer, levantando-se e indo para a pista de dança.

Começaram a dançar, embaladas pela música e um pouco tímidas,

Jennifer tratou logo de empunhar sua mão unida a dela e a envolveu pelo ombro

com sua outra mão, com seu rosto lado a lado com o rosto de Anna sem maiores

intimidades.

Aquela sensação... Jennifer não sentia nada parecido há muito tempo. O

mundo poderia acabar ali, agora, que ela não se importaria. Aquele era seu
momento, seu êxtase. Seus dedos estavam entrelaçados de forma delicada, mas
ela podia sentir a mão um pouco suada de Anna, e com seu polegar sentia a

textura macia da lateral da mão dela.

A música já havia mudado, eram embaladas agora por ‘Time after time’

da Cyndi Lauper. Afastou seu rosto e olhou por alguns segundos nos olhos da
sua garota, como gostava de chamá-la.

Um sorriso bobo começou a formar-se em seus lábios, enquanto


observava de perto os trejeitos e pormenores daquela que a que conduzia numa

dança lenta, quase automática.

— Se você soubesse o quanto fica linda sorrindo, teria câimbras faciais.

— Jennifer falou.

— Eu guardo meus sorrisos para você.

Jennifer sorriu mais, e a fitou por mais alguns segundos.

— Você tem ideia do quanto eu amo você?

Anna sorriu também.

— Não... Não tenho.

— Lembra aquela noite na beira do mar, que você me contou que eu era

Vulpi... Lembra do tamanho daquela lua amarela?

— Lembro sim, era gigante.

— Meu amor por você é maior que aquela lua.

Antes que Anna respondesse alguma coisa, Jennifer se antecipou.

— Será que meu avô teria um infarto se eu beijasse você agora?

— Seu avô e mais meia dúzia de pessoas. E Adam também.

— Que pena.
— Venha... Me siga.

Anna separou-se delicadamente dela e caminhou para um balcão externo,


algo como uma grande sacada com piso quadriculado preto e branco, onde uma

brisa fria, porém moderada, batia levemente.

Anna deu uma olhada através da porta de entrada, após certificar-se de

estarem a sós, puxou Jennifer pela cintura, ficando com seus corpos unidos e
seus rostos próximos, permitindo que Anna observasse todos os detalhes da

feição de Jennifer, seus olhos castanhos com uma maquiagem acinzentada, seu

nariz um pouco arrebitado, e seus lábios, que foram logo beijados.

— Bem melhor sem aquela multidão nos olhando, não acha? — Anna

falou ao terminar o beijo.

Jennifer deu um riso abafado, olhou para baixo rapidamente e voltou a

olhar para Anna.

— Anna... Você é a mulher mais valente que já conheci e também a que

possui os medos mais bobos.

— Encarei alguns destes medos bobos para estar aqui agora.

— Eu sei... E você estar aqui hoje, está fazendo desta noite perfeita.

Anna a beijou novamente, mas interrompeu ao perceber que a música


havia parado.

— Acho que é a hora que seu avô fala para os convidados. — Anna
disse.

— Então temos que voltar.

Sentaram-se na mesa da família e acompanharam William subir no


pequeno tablado no fim do salão.

— Acharam que iam escapar de mim este ano? — William falou já no

microfone.

William deu os cumprimentos formais e agradeceu a presença de todos,

realçando a importância de manter a espécie unida.

— Mas esta noite, particularmente para mim e para nossa família, é a

mais especial de todas. Estamos celebrando o retorno de um filho pródigo, que

na verdade nunca nos deixou, ao contrário do que imaginávamos. Durante dez

anos convivemos com a notícia equivocada de que ela havia falecido juntamente

do meu filho William Jr. e sua esposa Olivia.

— Minha neta Jennifer nos reencontrou, e ela está aqui conosco hoje, nos

iluminando com sua presença. — Falou apontando para ela na mesa.

Os olhares voltaram quase todos para sua mesa, William pediu que ela se
levantasse. Jennifer levantou-se meio sem jeito e sorriu para todos os lados,
educadamente. Logo sentou-se novamente.

— Mas não se enganem, ela não é tão tímida quanto aparenta. Alguns de

vocês devem lembrar da última vez que ela participou desta nossa festa há dez
anos, e do inesperado show que ela e sua prima Caroline deram ao invadirem o
palco e cantarem músicas das Spice Girls. Além disso ela é uma garota bastante

destemida e obstinada, que sobreviveu a perda dos pais, a guerra, a percalços

inimagináveis, e agora está de volta ao seio da nossa família. E aquela bela moça

sentada ao seu lado é quem tornou tudo isso possível, então para você minha
querida Anna, meu eterno obrigada.

— Estou imensamente feliz em tê-la de volta e em poder dividir esta

alegria com todos vocês esta noite. Agora por gentileza, voltem ao centro do

salão e continuem fazendo desta festa a mais linda de todas!

Após aplaudirem, Jennifer deu uma olhada em Anna.

— Ah, que bom que ainda está aqui, achei que você não aguentaria a

pressão dos holofotes. — Jennifer falou jocosamente.

— Bom, não sou eu que estou com as bochechas vermelhas. —

Retrucou.

A festa seguiu ainda por algumas horas e já no final o restante da família

foi embora fechando o salão. Chegaram na mansão e William entrou ao lado das
três garotas, Caroline, Jennifer, que carregava seus sapatos nas mãos e

reclamando da dor nos pés, e Anna, logo perceberam que havia algo errado ao
ver duas funcionárias de pé àquela hora da madrugada.

— Por que estão acordadas, meninas, aconteceu alguma coisa? —


William às questionou.

— Foi o Francis senhor, o Francis se machucou, está no hospital! —


Respondeu a Sra. Duncan com um pouco de aflição.

Francis era um dos encarregados do cuidado com o rebanho da


propriedade.

— O que aconteceu com ele?

— Algumas ovelhas fugiram no início da noite e ele foi atrás para

resgatá-las, e acabou caindo num buraco que estava encoberto com galhos e

folhas, parece que quebrou as duas pernas!

— Uma armadilha. — William falou furioso.

— É coisa daqueles homens lá de cima! — A arrumadeira exclamou.

Jennifer virou a cabeça lentamente na direção de Anna, a olhando séria.

— E vocês tem notícia de Francis? Tem alguém lá com ele?

— A esposa dele foi para lá.

— Por gentileza tentem contato com ela e me avisem assim que tiverem

novidades. Amanhã cedo vou visitá-lo. — Virou-se para trás e continuou

falando. — E vocês crianças, vão dormir porque o dia foi bem cansativo.

Concordaram com a cabeça e Jennifer seguiu para a cozinha, com Anna.

Pegou água na geladeira para ambas e começou a falar.

— O negócio está engrossando. Sei que você falou para não pensarmos
nisso agora, mas é inevitável.

— Eu sei.
— Você trouxe alguma arma? — Jennifer perguntou.

Neste momento Caroline entrava na cozinha e ao ouvir o teor da


conversa parou e recuou junto à porta, curiosa, sem ser vista.

— Não, claro que não, não posso ficar andando pelos aeroportos

carregando pistolas.

— Nem uma adaga?

— Somente uma.

— Bom, são dois Titans contra nós duas, não sabemos o tamanho deles,
mas temos que arriscar.

— Temos que fazer uma abordagem mais discreta possível.

Jennifer pensou por alguns segundos.

— Lá no escritório do meu avô tem um arco com flechas, eu poderia

levar.

— E você sabe usar isso?

— Sei sim, praticava com ele quando era menor.

— Dada a atual circunstância vou ter que concordar com você, qualquer
arma adicional é de grande valia.

— Vamos com os cavalos?

— Pode ser. Mas combinamos os detalhes amanhã, estou mais cansada

do que se tivesse executado dez missões.


As garotas largaram seus copos, Caroline ao ouvir subiu apressada para
seu quarto.

— Vamos dormir, minha Cinderela. — Jennifer respondeu puxando Anna

pela mão.
Capítulo 20 - Ótima pontaria

Na noite seguinte ao baile, as duas guerreiras improvisadas se

paramentaram para uma abordagem talvez não muito tranquila aos dois Titans

que andavam tirando o sono de toda a família.

Anna de preto e portando apenas uma adaga, Jennifer de azul escuro,


com sua estimada adaga e com o arco e a bolsa onde guardavam-se as flechas às

suas costas, preparavam-se para deixar a casa em direção às colinas.

— Robin Hood mandou pedir seu arco de volta. — Anna comentou antes

de abrir a porta do quarto, dando uma olhada nela.

Desceram silenciosamente as escadas, saíram pela porta dos fundos e

seguiram na direção do muro lateral.

— Hey! Hey, vocês!

Ouviram alguém as chamando, quase sussurrando.

— Caroline? O que faz aqui??

— Eu que pergunto, onde vocês estão indo?

— Estamos indo cavalgar. — Jennifer respondeu de bate pronto.

— Cavalgar à meia noite?

Jennifer olhou para os lados incomodada.

— Ok, ok, você nos pegou... Estamos indo fumar um.


— E para que esse arco nas suas costas?

— O que você está fazendo aqui fora essa hora? — Jennifer respondeu
sem paciência.

— Eu sei aonde vocês estão indo.

— Ah é? E aonde estamos indo?

— Para as colinas, onde moram aqueles dois Titans.

Jennifer e Anna ficaram sem ação.

— Que absurdo! Quem falou uma coisa dessas?

— Eu ouvi vocês falando a respeito.

— Pois ouviu errado.

— Não, falaram inclusive de armas.

— As paredes têm ouvidos... — Anna comentou sutilmente para Jennifer.

— Certo, e você veio nos impedir de ir?

— Não, eu quero ir junto.

— Você tá louca?

— E vocês não estão também?

— É diferente... Olha, poderíamos puxar algumas cadeiras e ter uma


longa conversa do porque você não pode ir, mas eu vou resumir: definitivamente

você não vai conosco.


— Caroline escute... Eu e sua prima passamos todo o período da guerra
numa terra muito mais hostil que a Escócia, então temos uma certa vivência

dessas situações adversas, nós sabemos como nos virar se algo fugir do controle,

e levar você seria nada mais que um grande risco à sua integridade. Mas nós
agradecemos sua benevolência em querer ajudar, e peço encarecidamente que

não conte a ninguém sobre isto que estamos fazendo, mas caso não retornemos
até o amanhecer avise seu avô, posso contar com você? — Anna falou de forma

clara e calma.

Caroline pensou um instante e Jennifer ainda olhava surpresa para Anna.

— Ãhn... Claro, podem contar sim. Mas não enfrentem aqueles caras,

ok? Apenas tenham uma conversa bem séria.

— Pode deixar, tomaremos todo o cuidado possível. Agora precisamos ir.

— Anna respondeu.

— Volte para dentro sem fazer barulho. — Jennifer complementou.

— Ok, cuidem-se!

Jennifer apenas balançou a cabeça concordando, e voltou a olhar Anna


com um sorriso torto.

— O que foi? — Anna perguntou, já andando novamente.

— Se eu poderia trabalhar na polícia forense, você poderia trabalhar

como mediadora de conflitos.


— Vamos, pule primeiro.

Foram até os estábulos, tomaram dois cavalos marrons emprestados e


partiram para as colinas, evitando passar por dentro da floresta. Um pouco antes

de chegar no descampado era possível ver duas casas de pedras cinzas e um

celeiro grande de madeira, havia algumas árvores rodeando a região. Jennifer


usava um casaco de brim azul marinho e um lenço de algodão da mesma cor,

estava com os cabelos presos numa trança.

Desceram de seus cavalos próximo das últimas árvores, a uns quinhentos

metros das casas e ficaram algum tempo observando o local.

— Tem uma luz acesa na casa da esquerda. — Jennifer comentou.

— Estou vendo. Agora é a hora de escolhermos qual vai ser a

abordagem.

Jennifer ficou em silêncio uns segundos. Anna respondeu por ela.

— Vamos tentar conversar primeiro, se engrossar, estaremos preparadas

para reagir. O que acha?

— Você que manda. — Jennifer retrucou.

— Trouxe sua faca?

— Claro. — Jennifer terminou de falar e tirou a adaga de dentro do


casaco.

— Você está com um coldre?


— Sim, um seu.

— Onde achou? — Anna perguntou, curiosa.

— Peguei na sua casa antes de viajarmos.

— Olha, eu não sei direito como funciona o relacionamento entre


mulheres, mas espero que o próximo passo não seja dividirmos sutiãs.

— Fica fria, você usa um número maior que o meu. — Deu um tapinha

nas costas dela.

— Vamos andando. Devagar e alerta, ok? — Anna começou a


caminhada.

Percorriam a distância que havia entre as árvores e as casas de forma

atenta, focando a atenção nas duas construções.

— Acenderam alguma luz no celeiro. — Anna falou baixo.

— Você me ouviu? Deve ter alguém no celeiro. — Continuou.

Mas não obteve resposta.

— Você me...

— Anna! — Ouviu um som distante. Olhou para trás e não viu Jennifer,
havia simplesmente sumido.

— Aqui! — Escutou novamente o chamado, e foi na direção do som.

Deu umas passadas rápidas e viu um buraco parcialmente coberto por um

pedaço falso de grama, e lá dentro, Jennifer arregalada com seus olhos brilhantes
olhando para cima.

— Você se machucou?? — Anna falou já agachada na beira do buraco.

— Minha bunda amorteceu...

— Consegue se levantar?

— Sim, me ajude a sair.

Anna deitou-se na grama à beira do buraco, estendeu o braço e puxou

Jennifer para fora.

— Tudo em ordem? Nada quebrado? — Anna a verificava.

— Acho que caí em cima da vegetação.

— Ok, caminhe do meu lado e cuidado onde pisa.

— Em minha defesa eu tenho a dizer que a armadilha era muito bem

feita.

— Veja lá, o celeiro está aceso, vamos naquela direção.

Estavam há uns cinquenta metros da frente do celeiro quando viram uma


estrela ninja lançada em sua direção.

— Ah, não, começaram! — Jennifer falou.

— Abaixe-se! — Bradou Anna em resposta, já se abaixando.

Mas Jennifer não se abaixou, mantinha um olhar compenetrado. E o que


Anna presenciou em seguida ela não esqueceria tão cedo.
Mais uma estrela foi lançada e Jennifer levantou a mão aberta a sua
frente, como se houvesse um escudo invisível. Ela parou a estrela no ar, e ao

fazer um movimento de lançamento com sua mão, a estrela voltou na direção de

onde havia sido lançada.

Outras estrelas vieram e todas foram devolvidas prontamente, Anna viu


Jennifer fazendo os gestos de rebatimento das estrelas com um semblante

raivoso, a testa franzida. Até que as estrelas cessaram.

— Vamos entrar. — Jennifer falou de forma séria. Anna ainda estava

boquiaberta.

Anna tomou a frente a abriu a grande porta de madeira, deu uma espiada

e entrou lentamente, Jennifer a seguia. O ambiente largo era iluminado por um

lampião pendurado numa pilastra de madeira, acima havia uma espécie de

mezanino cheio de rolos de feno.

— Acho que não...

Anna foi agressivamente abordada antes que terminasse a frase. Um


brutamontes com barba castanha a derrubou no chão de madeira e se

engalfinharam. Jennifer não teve tempo de ajudá-la, seu irmão igualmente


barbudo e gigante surgiu vindo na sua direção com uma pá nas mãos. Os dois
Titans mais pareciam dois armários.

— Você é a neta do William, não é?

— Talvez. — Respondeu sem muita convicção.


Anna já de pé havia sido imobilizada com uma gravata e sua própria
adaga encostada em seu pescoço, assistia juntamente do seu algoz o diálogo que

se iniciara.

— É ela sim, Burt. É a netinha daquele velho mão de vaca, e essa aqui

deve ser a amiguinha dela.

Anna se debateu um pouco, mas sentiu a ponta da lâmina quase cravando


em sua pele. Jennifer continuava com sua adaga empunhada procurando uma

forma de livrar ambas dessa situação desfavorável.

— Acho que podemos conversar sobre esse impasse de forma civilizada.


— Anna tentou apaziguar os ânimos.

— Exato! Foi para isso que viemos aqui, podemos chegar num consenso

sobre as terras. — Jennifer prosseguiu.

Burt deu uma grande risada e falou com deboche.

— Era só o que faltava... Aquele infeliz mandando garotinhas para

negociar com a gente.

Jennifer deu uma olhada em Anna, sem saber se deveria contar a


verdade.

— Ele não sabe que estamos aqui. Mas se algo acontecer conosco com
certeza ele saberá. — Jennifer falava com certo nervosismo na voz, aquela faca

espetada no pescoço de Anna a estava deixando transtornada.


— Acabe logo com essa híbrida aí, Argus! — Gritou Burt, que
empunhava a pá.

Rapidamente Anna fez um movimento para frente e soltou-se, mas ele

ainda possuía sua adaga. No mesmo momento o outro irmão acertou a mão de

Jennifer com a ferramenta, fazendo com que sua faca voasse para o pé da escada
de madeira que dava acesso ao mezanino.

Burt correu para pegar a adaga e neste pequeno espaço de tempo Jennifer

sacou seu arco das costas e sem pestanejar armou uma flecha. Ela fez o disparo

assim que Burt virou-se na direção dela após pegar a faca no chão. A flecha

passou próximo da cabeça dele, mas não o atingiu, ao invés disso acabou

derrubando o lampião. Não demorou muito para que o fogo começasse a se

alastrar.

Enquanto isso Anna lutava como podia para não ser esfaqueada por sua

própria adaga, seu oponente era um grandalhão de mais de dois metros de altura,

ela já havia percebido que a briga seria difícil.

Jennifer engatilhou outra flecha prontamente e Burt acabou subindo a


escada para sair da sua mira. A raiva a cegara e pouco se importava com o fogo

que já começava a atingir as vigas de madeira. Burt havia sumido do seu campo
de visão, não pensou duas vezes e subiu a escada correndo, com o arco

engatilhado empunhado à sua frente.

Porque Jennifer era dessas, podia morrer de medo antes ou depois, mas
nunca durante.

Deu alguns passos rápidos no andar de cima se desviando dos caixotes de


madeira e assim que avistou Burt fez o disparo, acertando na sua perna. Aquilo

apenas o enfureceu mais, ele investiu para cima de Jennifer a golpeando nas

costelas com a pá, a fazendo se contorcer de dor e largar o arco no chão. Se


esforçou para manter-se de pé, estava curvada com a mão em cima do local

atingido. Enquanto recuperava seu fôlego, viu Burt retirando a flecha de sua

perna.

— Nem tente isso! — Ele bradou ao ver Jennifer fazendo menção de

pegar seu arco no chão.

A luta no mezanino reiniciava de forma injusta, com Jennifer desarmada

e encurralada. As chamas já estavam tão altas que eram visíveis lá de cima. Burt

investiu mais quatro ou cinco golpes contra Jennifer, acertando apenas um,

novamente na mão.

A adrenalina e o furor eram tamanhos que ela ignorava a dor nas costelas

e o fogo proeminente. Olhou ao redor procurando algo para se defender, algo


que pudesse usar como arma, já que seus punhos de nada adiantariam. Burt

parou, voltou a ficar ereto, e riu.

— Você não passa de um rato que invadiu minha propriedade! E sabe o

que eu faço com ratos? Eu esmago!

Jennifer voltou a olhar para o lado de Burt, onde havia uma pilha de feno
e um ancinho de quatro pontas enfincado. Logo ele percebeu que ela olhava para

o garfo no feno, e riu novamente.

— Vá, sua garotinha mimada, tente passar por mim e pegue o que você

tanto deseja, vamos ver se corre mais rápido que eu!

Jennifer o fitou e falou com um ar sarcástico.

— Eu não preciso correr.

Olhou para a pilha de feno, estendeu o braço e a ferramenta veio sozinha

para a sua mão.

Burt mal teve tempo de olhar assustado e entender o que estava

acontecendo, Jennifer lançou um grito raivoso e correu na direção dele,

penetrando todas as pontas da ferramenta em seu abdome. Como se não o

bastasse, continuou a investida e o derrubou lá de cima, fazendo com que caísse

de costas, ainda com o objeto cravado em si. Ela olhou para baixo apenas para

certificar-se que metade dos problemas estavam resolvidos.

Correu até a outra ponta do mezanino e viu lá embaixo que Anna ainda

estava em apuros, já via algum sangue em seu rosto, mas agora ela empunhava
um pedaço de madeira, como se fosse um bastão, porém Argus ainda estava com
a sua adaga, e para piorar o fogo se aproximava deles. Foi até o local onde havia

largado o arco, o pegou e voltou para o ponto mais próximo deles. Passou a mão
por cima da cabeça e tirou uma flecha de suas costas. A armou e fez a mira, o

suor escorria por sua testa e olhos, atrapalhando mais ainda seu intento, já que
eles não paravam numa boa posição lá embaixo, gingavam, esquivavam,

giravam e desferiam golpes.

Cerrou um olho e lançou sua flecha, que acabou acertando em cheio.

Porém o alvo errado. Acertara a nádega de Anna, que com o susto acabou

ficando vulnerável, permitindo que Argus acertasse um golpe com a faca acima
da sua cintura. Anna deu uns passos para trás, olhou assustada para cima e

removeu rapidamente a flecha de sua carne.

— Merda! — Gritou Jennifer. — Desculpa!

Ela resolveu fazer nova tentativa, enxugou a testa, pegou outra flecha às
suas costas e colocou em posição entre a madeira e o cordão do arco. Continuava

sem conseguir uma mira limpa do seu alvo, sua mão tremia, mas resolveu

arriscar. Puxou mais um pouco o cordão e lançou a flecha, que entrou esguia

bem no meio do peito do grande Titan. Anna ficou sem reação, seu oponente

parecia desnorteado e acabou caindo sentado. Levou a mão até a flecha, mas

recebeu mais uma, um pouco mais à esquerda. Tombando de vez para trás.

Anna se inclinou sobre o corpo e certificou-se que não era mais uma
ameaça. Virou-se na direção de Jennifer e a viu olhando atentamente a cena,

ainda com o arco em mãos. Quando percebeu que havia dado certo, sorriu para
Anna.

Anna acabou correspondendo dando um leve sorriso aliviado, mas o


sorriso logo se desfez, o mezanino desabara em meio às chamas.
— Jennifer! — Gritou e correu desesperada até onde o fogo já era alto.

Anna não conseguia vê-la naquele monte de labaredas, escombros e


fumaça, andava de um lado para outro procurando por ela ou tentando achar

alguma passagem para o centro daquele caos.

— Siga a minha voz! — Anna tentava orientá-la.

O restante do mezanino desabou quase atingindo Anna, que precisou dar

alguns passos rápidos para trás.

— Jennifer! Jennifer! — Era tudo que conseguia bradar àquela altura.

Um vulto surgiu entre aquela nuvem infernal. Era Jennifer dando pulos e

tropeços o mais rápido que podia, com os braços erguidos a sua frente

protegendo seu rosto das chamas. Após passar pelos escombros, correu e se

jogou nos braços de Anna, ofegante.

— Graças a Deus! — Anna falou também ofegante, mas sua falta de

fôlego era por outra razão.

— Anda, isso vai desabar, temos que sair! — Jennifer falou correndo

para a porta da frente. Anna a acompanhou.

Correram até ficarem a uma distância segura do galpão flamejante. Lado

a lado, olhavam em silêncio as labaredas transpassarem o telhado, formando


movimentos laranjas contrastando com o céu negro. Um grande estrondo foi

ouvido e o teto ruiu como se estivesse sendo sugado por dentro. O fogo tomou
formas ainda maiores.
— Você está bem? — O estrondo tirou Anna daquela quase hipnose.

Jennifer também caiu em si. Começou a se tatear lentamente.

— Acho que o balanço final até que não foi tão ruim. E você?

— No final sempre sobrevivemos, não é?

Jennifer lembrou da flechada com endereço errado.

— Sua bunda! Foi mal... Me deixa ver.

— Não. — Anna respondeu franzindo a testa.

Jennifer desamarrou seu lenço do pescoço e se aproximou de Anna.

— Venha cá, deixa eu limpar essa bagunça.

Anna tinha cortes no supercílio, na maçã do rosto e seu nariz sangrava,

Jennifer deslizava seu lenço com cuidado tirando o excesso do sangue.

— Ele pegou você de jeito. — Jennifer murmurou enquanto a limpava.

— E seu corte na barriga?

— Foi superficial. O fogo vai atrair curiosos, temos que ir.

— Vamos dar no pé.

Começaram a caminhada de volta às árvores, aquela missão estava

encerrada, talvez não exatamente como imaginado, mas aqueles dois não
incomodariam mais ninguém.

— Tomara que os cavalos ainda estejam onde deixamos. — Anna disse.


— Você não os prendeu?

— Eu prendi o meu, você não prendeu o seu?

— Você estava prendendo os cavalos achei que ia prender o meu


também.

— Mas eu falei 'vamos prender os cavalos nas árvores', isso implica em

cada uma prender o seu!

— Custava ter amarrado o meu? — Reclamou Jennifer.

— Por acaso você não sabe prender um cavalo numa árvore?

— Claro que eu sei, já fiz isso várias vezes.

— Você me falou a mesma coisa sobre manusear arco e flecha, e veja no

que deu.

— As condições não estavam favoráveis, mas eu tenho boa pontaria.

— Ótima pontaria, minha bunda agradece sua boa pontaria.

— Ah é, e por acaso essa sua mesma bunda agradece por eu ter acertado

em cheio o troglodita que estava massacrando você?

— Ele não estava me massacrando, eu o estava cansando. Quantas


flechas você acertou hoje? E quantas errou? Analise seu percentual de acerto e

depois venha conversar comigo sobre boa pontaria.

— Viu? Os cavalos ainda estão aqui. Ok, qual é mesmo o propósito dessa
discussão?
Anna parou e a olhou.

— Perceber o quanto somos idiotas por estarmos discutindo enquanto


deveríamos estar fugindo, comemorando e nos agradecendo mutuamente?

— Objetivo alcançado.

Antes de montar, Jennifer a segurou pelas bochechas e a beijou.

— Obrigada, baby. — Sorriu e montou em seu cavalo. — E desculpe por

sua bunda. Prometo que cuido dela em casa. — Disse ainda.

— Tudo bem.

— Tome, coloque embaixo do seu nariz, continua sangrando. — Se

inclinou e entregou seu lenço.

— Obrigada. E desculpe, eu fico um pouco estressada sempre que eu

acho que você morreu.

— Vou tentar não morrer então, quer dizer, não parecer que eu morri...

Sei lá, você entendeu.

Cavalgavam num ritmo não muito rápido agora.

— Você é a prova de fogo? — Anna perguntou.

— Claro, minha pele é de titânio. — Falou rindo.

— Você ficou o que? Uns dois minutos dentro daquela fogueira gigante,
e só está com a roupa chamuscada e com o rosto sujo de fuligem.

— Eu estava abaixada.
— Fazendo o que?

— Procurando minha adaga.

Anna olhou assustada para ela.

— Eu faria outra para você!

— Aquela tem valor sentimental.

— E conseguiu?

— Uhum. — Tirou da bota e a mostrou orgulhosa.

— Podemos ir mais devagar? — Anna pediu, colocando a mão na região

atingida pela flecha.

— Claro. — Jennifer a observou. — Vou ter que esconder você no porão.

— Como assim?

— Seu rosto está machucado, você acha que não vão ligar a morte deles

a nós? Eu só tenho um arranhão na testa, posso esconder com o cabelo.

— Você tem razão, temos que pensar em algo, seu avô vai deduzir tudo
se me ver assim.

— Temos até amanhã para pensar em alguma coisa. Enquanto isso você
será minha refém no quarto. — Falou sorrindo.

— Você deixou a porta dos fundos aberta, não deixou?

— Não.
— E como vamos entrar, escalando a sacada?

— Eu trouxe a chave.

— Chega de sustos por hoje, pode ser?

Guardaram os cavalos e seguiram para a mansão, pularam o muro e


abriram a porta de trás cuidadosamente. Todos os ambientes estavam escuros e

silenciosos, chegaram rapidamente até a escada e subiram na ponta dos pés.

Deram uma olhada para os lados e começaram a caminhar pelo longo corredor

de assoalhos, passo atrás de passo para evitar que a madeira soltasse algum

rangido. Passaram pela frente da porta do quarto de Caroline e torciam para que
ela estivesse dormindo e não as escutasse.

— Hum-hum.

Ouviram um limpar de gargantas proposital logo atrás delas.


Capítulo 21 - A herdeira

Ao ouvirem o chamado, se viraram ao mesmo tempo com semblantes

assombrados.

— Boa noite, mocinhas. Estão saindo ou chegando?

Era William, vestido em um roupão cor de vinho, com uma gola de cetim

preto.

— Vô... Eu tenho uma boa explicação. — Falou Jennifer, ainda

assustada.

— Vocês têm alguma relação com o fogo na casa dos irmãos Titans?

— Fogo? Que fogo? — Respondeu Jennifer, com as roupas e o rosto

sujos de fuligem.

— Alguém ateou fogo na casa deles.

— Celeiro. — Jennifer prontamente o corrigiu.

Anna deu um suspiro profundo.

— E algo me diz que vocês estão vindo de lá.

Jennifer ficou sem ação por um instante.

— Foi ideia minha, Sr. Stuart. — Anna falou assumindo a culpa.

— Claro que não, vô, eu que insisti para irmos lá! — Virou-se para

Anna. — O que você está fazendo?


— Ok, ok. Vocês estão bem? Precisam de um médico? — Interrompeu
William.

— Estamos bem, foram apenas alguns arranhões. Anna, você quer um

médico?

— Não, eu me viro.

— Vão se limpar, cuidem dos ferimentos, e me encontrem no escritório

daqui uma hora, vamos ter uma conversinha.

Jennifer concordou e entraram em seu quarto. Anna se dirigiu para o

banheiro e foi logo enchendo a banheira, sentando-se na beirada. Jennifer entrou

em seguida, com passos lentos.

— Estamos ferradas, não estamos?

— Me deixe assumir a culpa, isso vai aliviar para o seu lado. — Anna
lançou um olhar cansado.

— Eu nunca permitiria isso.

— Então vamos ter que contar a verdade.

— Que seja. — Jennifer balançou a cabeça desanimada.

— Ainda acho que você deveria colocar a culpa em mim.

— Já coloquei uma coisa em você hoje que não deveria. — Falou


sorrindo. — Vamos, abaixe as calças e me deixe ver o estrago que fiz.

— Você sabe que isso soou extremamente pornográfico, não sabe?


Jennifer riu.

— Deixe me divertir um pouco antes de levar bronca do vovô.

Anna hesitou, mas acabou desabotoando sua calça, Jennifer a desceu sem
cerimônia.

— Não está tão ruim, você tem sorte por ter bunda brasileira. — Riu.

Anna tentou subir a calça, mas Jennifer segurou.

— Não, tire o resto da roupa e entre na banheira.

Jennifer tirou a jaqueta, lavou seu rosto e as mãos no lavabo. Pegou a

bolsa de primeiros socorros que ainda estava no banheiro delas e uma toalha de

rosto. Anna já estava dentro da banheira, o corpo parcialmente submerso numa

água um pouco turva, avermelhada. Jennifer sentou-se de lado.

— Vamos, coloque a cabeça para trás. — Jennifer ordenou.

— O que vai fazer?

— Agora feche os olhos.

Mergulhou a toalha na água da banheira e deslizou pelo rosto de Anna.

— Isso arde?

— Isso é bom.

— Você precisa aprender a proteger seu rosto, você tem um rosto tão
bonito, não pode deixar que machuquem assim.
— Ok, da próxima vez vou pedir para baterem em lugares não visíveis.

— Tipo aqui. — Jennifer falou levantando a blusa e mostrando uma


extensa mancha vermelha na região das costelas, do tamanho de um palmo

aberto, que começava a arroxear.

Anna olhou assustada.

— O que foi isso?

— Uma pazada.

Anna passou seus dedos por cima.

— Pode ter quebrado alguma costela.

— Se quebrou, não sinto nada.

— Respire fundo.

Jennifer deu duas suspiradas profundas.

— Não dói?

— Mais ou menos. — Falou colocando a mão em cima do machucado.

Nesse momento Anna viu que a mão dela estava inchada na lateral e

arroxeada.

— Me deixe ver sua mão. — Anna falou franzindo a testa.

— Mais pazadas.

— Acho que você quebrou o dedinho.


— Ah é? Depois eu imobilizo.

— Seu saldo foi positivo, para quem matou dois Titans gigantes hoje.

— E não é? Pareciam vikings!

— Pareciam... Bom, chega de papo, vou terminar aqui, pegue uma toalha
para mim e tome seu banho, temos compromisso e ainda tenho que cuidar dos

estragos, como você diz. — Ao terminar de falar beijou sua mão machucada.

— Nããão... Eu tinha esquecido dessa reunião por alguns instantes.

Jennifer se enfiou num jeans e moletom verde, enquanto Anna num jeans
e uma regata cinza, e foram ao escritório, receosas.

Entraram sem muita animação e com o olhar baixo, ou como diria

Jennifer, com o rabo entre as pernas.

— Sentem-se, meninas. Ou eu deveria dizer sentem-se, minhas caras

bárbaras?

— Prefiro a primeira opção. — Respondeu Jennifer com voz baixa e as

mãos cruzadas sobre o colo.

William se recostou na sua grande cadeira marrom e as fitou.

— Onde vocês estavam com a cabeça ao abordarem aqueles dois


brutamontes, na calada da noite?

— Vô... Não foi nossa intenção preocupar ninguém. Na verdade, as


coisas fugiram do controle, não deveria ter terminado assim, dessa forma.
— Se me permite dizer, agimos em legítima defesa, eles nos atacaram
primeiro e acredito que não tinham intenção de nos deixar sair de lá com vida.

— Anna falou respeitosamente.

— Mas por que vocês foram até lá? Sabiam que eles seriam capazes

disso, sabiam que eram violentos, e se arriscaram dessa forma?

Jennifer não soube o que responder, ficou procurando palavras. Anna


percebeu o impasse e voltou a alegar sua culpa.

— Jennifer apenas me seguiu, eu quis resolver essa situação e decidi ir

até lá, eu peço desculpas por todo esse transtorno.

Jennifer arregalou os olhos e a interrompeu.

— É mentira! Não, não, vô, a ideia foi minha desde o início! — Se virou

para Anna rapidamente pousando sua mão em seu braço. — Desculpe ter te

chamado de mentirosa. — E voltou a falar com determinação para seu avô. —

Ela só está tentando livrar a minha cara, mas não é verdade, eu não segui

ninguém. Eu bolei isso, eu quis resolver, está feito, eu também peço desculpas
por estar aqui tendo que esclarecer, não sei como as coisas ficarão agora, quais

as consequências... Como eu falei no início, a situação se complicou para nós,


eles nos abordaram de forma violenta, jogaram coisas em nós, e pelo jeito que
falavam, iam acabar com a nossa raça!

— Jenny, se acalme. Por que colocaram fogo na casa deles?

— No celeiro!
— Ok, ok, no celeiro.

— Foi um acidente, eu derrubei o lampião.

William balançou a cabeça pensativo.

— Me escutem bem, neste momento tem uma dúzia dos meus homens lá
controlando as chamas e cuidando da situação. Já retiraram os corpos, algo me

diz que eles não morreram em decorrência do incêndio, então eu vou cuidar

pessoalmente para que não sejam examinados e que eles sejam logo sepultados.

O que houve foi o seguinte: tiveram uma morte acidental no celeiro, onde eles

beberam demais e acabaram ateando fogo no local, como estavam bêbados não
conseguiram fugir das chamas. Vocês entenderam?

— Perfeitamente. — Jennifer respondeu sem pestanejar.

— Claro, Sr. Stuart. — Responde também Anna.

William se inclinou para frente com os braços sobre a mesa.

— Vocês poderiam ter morrido esta noite, ou poderiam ter se queimado,


se ferido gravemente. Eu poderia ter perdido minha neta de novo, passar por

todo aquele sofrimento mais uma vez. Não posso te perder novamente, Jennifer.

Jennifer se mantinha cabisbaixa, ouvinte. Olhava seu dedo inchado e

escurecido, sentia a mão latejando. Anna deu uma olhada tímida nela.

— Vou perguntar uma coisa a vocês e me respondam com sinceridade.

Vocês já fizeram isso antes?


Voltaram a olhar para William, Anna deixaria Jennifer responder o que
lhe fosse mais conveniente.

— Mais ou menos... — Jennifer acabou respondendo.

— Já se meteram nesse tipo de encrenca, então?

— Nada assim tão hollywoodiano, com fogo e flechas... Mas já

aprontamos algumas por lá.

— Com qual finalidade?

— Ah, vô, o senhor bem sabe que não sou santa, às vezes chutamos
algumas... Alguns traseiros de quem merece. Mas só de quem merece.

— E você também embarca nessas aventuras? — Falou olhando para

Anna.

— Sim. — Respondeu meio sem jeito.

— O que é isso na sua roupa, minha criança? — William falou olhando

para a camiseta de Anna.

Jennifer olhou para o lado e viu uma pequena mancha de sangue que
surgia na camiseta de Anna.

— O corte... Eu vou lá no quarto trocar o curativo. — Anna falou já se


levantando.

— Vá e cuide disso, você está dispensada. Por hoje. — William terminou


de falar levantando o indicador.
— Quer que eu te ajude? — Jennifer ofereceu-se.

— Não, eu dou um jeito.

Após Anna sair, William voltou a se ajeitar em sua cadeira.

— Agora teremos uma conversa séria.

— Não estávamos tendo até agora? — Jennifer falou em tom de


brincadeira.

— Deixe as gracinhas comigo hoje, ok?

— Ok, desculpe, vô.

— Vamos ter uma conversa de líder de clã para futura líder de clã, então

é bom prestar toda sua atenção.

Jennifer apenas sacudiu rapidamente a cabeça.

— O quanto você confia em Anna?

Aquela pergunta a pegou de surpresa. Olhou para os lados procurando a


resposta.

— O bastante. O senhor não acreditou que foi ideia dela ir até lá,

acreditou?

— Não. Tenho certeza absoluta que a ideia saiu da sua cabecinha. E eu

entendo o porquê. Você é jovem, é cheia de energia, impulsos, tem esse ímpeto
que nem eu nem seus pais conseguiam segurar, de fazer o que dava na telha, de
querer resolver as coisas, mesmo que as coisas não fossem suas.
William continuava.

— E era assim que você conhecia seus limites, por sua conta. Foram seus
tombos, arranhões, joelhos ralados, hematomas, que ensinaram alguns limites, e

te deixaram mais sábia nas escolhas que você fazia em seguida. Você ainda vai

cair muitas vezes, eu ainda caio hoje em dia, e não estou me referindo ao tombo
que levei no banheiro semana passada, eu ainda aprendo muito com os

escorregões que levo da vida.

— Algumas coisas são escolhas suas, outras são escolhas da vida para

você. Você escolheu ter Anna em sua vida, baseada nos tombos que você já

levou, então não irei te julgar nem questionar sobre o que você sente por ela, eu

realmente acredito que seja algo genuíno, tanto da sua parte, quanto da parte

dela. Você escolhe as pessoas que vão conviver com você, é você que permite
que elas tenham este lugar em sua vida, então eu vou dizer uma coisa: faça as

escolhas certas, porque você irá precisar. Cerque-se de pessoas em que possa

confiar.

Jennifer ouvia atentamente, as vezes desviando do olhar de seu avô.

— Não foi escolha sua ser herdeira direta do meu posto dentro de nossa

sociedade, foi uma escolha da vida, e é uma grande responsabilidade. Você pode
fugir disto, mas se a vida tem esse propósito maior para você, é porque você é

bastante especial e o merece. O destino não poderia ter feito melhor escolha para
esta jornada. Você consegue imaginar Adam, ou Caroline, indo até lá lançando
flechas em Titans?

Jennifer sorriu.

— Jenny, você sabe porque os Vulpis continuam no anonimato até hoje?

— Não faço a menor ideia.

— Nem eu. Um dia os Titans resolveram se mostrar para a humanidade e


assim fizeram. E isso aconteceu há mais de cem anos.

— Ainda tenho dúvidas se foi uma boa ideia. — Jennifer retrucou.

— Foi uma boa ideia, mas eles não souberam fazer isso. Nem souberam

abordar os humanos, não se estabeleceram. Mas não podemos culpá-los, talvez

eles não tenham esta capacidade, eles são muito bons apenas com sua força

física.

William fez uma pausa antes de continuar.

— Há uma vertente dentro da nossa espécie que quer ir para a luz do dia.

— Se revelar??

— Sim, há uma corrente que deseja isso. Porém da forma correta, não
simplesmente surgir na sociedade e ficar à margem, mas sim surgir e ir para as

lideranças.

— Não entendi.

— O que você acha do país onde você vive? Politicamente falando.

— Acho que é bastante precário, mas é o pós-guerra, todos os países


estão na mesma situação, tentando se reerguer.

— Este movimento quer colocar os Vulpis no comando dos principais


países do mundo. Talvez você não saiba, mas um diferencial de nossa espécie,

além de você ficar movendo coisas por aí, é o intelecto. Vou te dar um exemplo

simples, o preconceito é algo que geralmente está mais enraizado em sociedades


com baixo nível de escolaridade, lugares subdesenvolvidos, e tem estudos

inclusive que o ligam ao QI do indivíduo, quanto maior o QI, menor o

preconceito. Semana passada você foi à uma festa restrita à uma determinada

espécie, levou sua namorada, que não é Vulpi, e até dançou com ela. O máximo

que aconteceu foram alguns olhares, que eu posso lhe garantir que foram para
admirar a beleza de ambas.

— Eu entendi... Eu meio que já sabia desse negócio do intelecto mais


desenvolvido. Mas me responda uma coisa, o senhor é a favor desta corrente?

— Sim, eu particularmente, e como líder do nosso clã. Isso não

aconteceria agora, na verdade é apenas uma ideologia, talvez nunca aconteça.

Mas a ideia existe, e às vezes é discutida.

— Por quem?

— Bom, alguns clãs encabeçam este movimento, são seis para ser mais
exato. O nosso é um deles.

— Eu... Não sei o que pensar sobre isso. — Jennifer respondeu, confusa.

— Querida, o que eu apenas preciso que você tenha em mente é que


talvez isso um dia aconteça, e será mais que um levante político, será algo
grande, muito grande.

— Seria a quarta guerra mundial!

— Seria o oposto disso. Nós queremos tirar o mundo deste estado

letárgico de pós-guerra, queremos iniciar uma nova era, com governos fortes.

Provavelmente não seria algo totalmente pacífico, principalmente os Titans iriam


se opor, mas o confronto direto seria usado apenas como último recurso, onde e

quando se esgotarem todas as nossas tentativas políticas e argumentativas.

— Todos encarariam como um golpe de estado generalizado.

— É aí que entra nosso diferencial, nossas mentes brilhantes e nossas


lideranças teriam um árduo trabalho pela frente, de conscientização.

Jennifer continuava aturdida com as novidades.

— Talvez eu não veja isso acontecer, mas com certeza você verá. E verá

de camarote. — William a encarou de forma séria.

Ela o olhou com a testa franzida.

— Eu seria umas das seis lideranças! — Se deu conta finalmente.

— É responsabilidade o suficiente para você?

— Mas eu... Eu flechei a bunda da Anna hoje! Desculpe pelo ‘bunda’...

Mas o senhor entende que o movimento estaria muito ferrado se eu fosse uma
das lideranças?
— Estaria em ótimas mãos. Meu anjo, isso não aconteceria amanhã nem
semana que vem, então não precisa ficar nessa aflição.

Jennifer balançou a cabeça.

— E imagino que isso seja algo confidencial. — Jennifer murmurou.

— Altamente confidencial. — William respondeu taxativo.

— Então... Não posso contar à Anna.

— Não. Quer dizer, não agora, tudo bem? Você nem assimilou isso

direito. Mas sempre que você quiser conversar, seu avô estará completamente
disponível.

Jennifer suspirou fundo, soprando o ar.

— Que noite...

— Não esqueça que você nunca estará sozinha, você tem sua família, ela

sempre será seu porto seguro. E acredite um pouco mais nessa bárbara que tem

aí dentro de você, seu potencial é maior que todos os continentes juntos.

Conversaremos mais, eu prometo. Vá dormir, não se abale com esta conversa, vá


ter seu merecido repouso. Vá ver como Anna está.

— Durma com um barulho desses.

William riu, levantou-se e foi até ela, que também se levantara.

— Você é especial. — Falou em seu ouvido, enquanto a abraçava.

Jennifer despediu-se de seu avô.


Caminhou sem pressa até seu quarto, sentia uma dor de cabeça crescente.
Abriu a porta e viu Anna dormindo pacificamente sob a penumbra de um fraco

abajur que iluminava parte do seu rosto. Dormia de lado, voltada para dentro da

cama.

Tirou o moletom ficando com uma camiseta branca de algodão que usava
por baixo. Sem muito ânimo, deitou-se de bruços ao lado de Anna, com o rosto

enfiado no travesseiro e os braços estendidos junto ao corpo.

— Tudo bem? — Anna acordara e perguntou preocupada, com uma voz

mansa.

— Uhum. — Resmungou, sem tirar a cara do travesseiro.

— Como foi a conversa?

— Ótima. — Falou sem muita credibilidade.

Anna correu sua mão nas mechas que caiam sobre sua orelha.

— Quer conversar a respeito?

— Não.

— Ok.

Jennifer virou-se lentamente, ficando de frente com Anna.

— Como está seu corte? — Jennifer indagou.

— Resolvido, tive que dar uns pontos.

— Você? Sozinha?
— Dois pontos só.

— Às vezes me sinto num filme do Van Damme. — Jennifer sorriu torto.

Jennifer lançou um olhar com ternura e deslizou seus dedos no rosto de


Anna, como se pudesse curar seus ferimentos com seu toque. Adorava os dois

vincos que se formavam na testa, entre as sobrancelhas dela, quando fazia uma

expressão séria.

— Eu só coloco você em enrascadas, não é?

— Entre outras coisas. — Anna respondeu com bom humor.

— E mesmo assim você continua do meu lado.

— Você gosta de tempestades?

— Adoro tempestades.

— Você é a minha tempestade.

Jennifer sorriu, mas seu sorriso se desfez antes de continuar falando.

— Você continuaria do meu lado mesmo se eu me tornasse um ciclone

extratropical?

— Acho que você me engoliria.

— Promete que nunca vai sair do meu lado? Que o que sente por mim é

forte o bastante?

Anna deslizou um pouco para frente, ficando mais próximo de Jennifer.


— Está tudo bem mesmo?

Jennifer balançou a cabeça de leve, confirmando.

— É tão difícil assim falar sobre essas coisas? Você nunca me responde.

— Que coisas?

— Nós. — Jennifer falou com um semblante entristecido.

Era difícil, sempre fora. E Jennifer já sabia disso, sua pergunta era

retórica. Ela havia aprendido a se contentar com gestos e olhares que diziam

muito mais que qualquer meia dúzia de palavras prontas. Mas naquele exato
momento, ela queria ouvir algo reconfortante. Eram seus medos aflorando.

— Mas são só palavras... Estou aqui, não estou? Enquanto você quiser,

estarei com você.

— Eu sei...

— E eu sei que você sente falta, eu sei. — Anna disse a puxando para

junto de seu corpo.

— Enquanto eu tiver esse seu abraço, exatamente esse, ficarei bem.

Anna se inclinou para perto e a beijou nos lábios, com uma mão em seu

rosto.

Jennifer deu um sorriso fungado.

— Nesse momento você deve estar se arrependendo amargamente por ter


se envolvido com uma mulher, não é?
— Não diga isso...

— Você não estaria tendo esta conversa, pode apostar.

— Provavelmente não estaria tendo conversa alguma.

Jennifer fez uma cara enjoada.

— Não, não foi isso que eu quis dizer.

— Ok, deixa pra lá, desculpe ter acordado você.

— Tudo bem. — Deu um beijo rápido. — Vá dormir.

— Boa noite. — Jennifer ajeitou o travesseiro, voltou a ficar de bruços e

fechou os olhos.

Anna a observou por um instante.

— Você vai dormir de calça jeans?

— Vou.

Anna suspirou e levantou-se, ficou agachada na cama ao seu lado e

colocou ambas as mãos por baixo do corpo de Jennifer, na altura da cintura.

— O que você está fazendo? — Jennifer olhou assustada para o lado.

Anna desabotoou sua calça e o zíper, e começou a tirá-la.

— Socorro, tem uma mulher arrancando minhas roupas! — Jennifer


falou jocosamente.

— Pronto. Boa noite.


— Não vai nem colocar uma calça em mim?

— Boa noite. — Falou a cobrindo com os cobertores.

***

Anna se virou na cama e acordou quando sentiu o ferimento em sua


nádega.

— Maldita flecha...

Já havia amanhecido, não encontrou Jennifer ao seu lado ao despertar.

Sentiu-se mal pela conversa que tiveram naquela noite, sentia um peso dentro do
peito. Viu que passava das oito, foi até o banheiro. Nada de Jennifer também.

Não tinha escolha, devia ficar trancafiada no quarto para não expor seus

machucados ao restante das pessoas da casa. Tomou um banho e ligou a TV no

canto do cômodo. Alguns minutos depois ouviu batidas na porta e foi

automaticamente abri-la, mas se deu conta que Jennifer não bateria antes de

entrar.

— Quem é?

— Sua prima.

Anna hesitou um momento, mas acabou abrindo a porta.

— Nossa, então foram vocês! — Exclamou ao ver os ferimentos em seu


rosto.

— Shhh! Vamos, entre.


Abriu um pouco mais a porta para que Caroline entrasse, a fechando em
seguida.

Caroline continuava pasmada.

— Caramba, vocês fizeram aquilo tudo? Não acredito! Quando meu vô

falou do que havia acontecido achei que vocês tinham pedido ajuda aos homens

da fazenda, mas foram vocês??

— Sim... Sim, foi somente nós duas.

— Onde está Jennifer?

— Achei que você tivesse essa resposta.

— Não, não a vi hoje.

— Acordei e não a encontrei.

— Agora entendi porque meu avô me mandou vir aqui ver como vocês

estavam. Você está bem?

— São só arranhões.

Caroline começou a andar pelo quarto, olhando ao redor.

— Esse quarto era do meu tio, sabia?

— O pai de Jennifer?

— Sim... Estou te atrapalhando em alguma coisa?

Anna não sabia exatamente como se sentir com relação à esta


informação.

— Não, só estava vendo TV.

— Nossa, não sabia que vocês eram assim tão valentes. Posso sentar
aqui? — Falou apontando para a cama.

— Fique à vontade. — Anna falou, sem jeito.

— Então... Vocês colocaram fogo na casa dos Titans!

— Celeiro. — Anna a corrigiu, e riu ao terminar a palavra.

— O que foi?

— Nada não... Acho que estou passando tempo demais com sua prima.

Anna deitou-se na cama, recostada nos travesseiros, quase sentada.

— Onde vocês aprenderam a fazer isso?

— Eu... Encaro esses tipos já há algum tempo. Jennifer acho que tem um

dom natural para encrenca.

— Tem sim, você não acreditaria nas coisas que ela aprontava aqui.

— Sou toda ouvidos. — Anna se ajeitou na cama e fez uma expressão de

dor.

— Você machucou as costas?

Anna a olhou.

— Jennifer acertou uma flecha na minha bunda.


— Nossa! De propósito?

— Não! Ela estava tentando ajudar.

— Uma vez ela acertou a perna do vaqueiro.

— Com o arco e flecha?

— Não, com a espingarda de ar comprimido.

Anna apenas balançou a cabeça, assimilando a informação.

— Mas você já a viu usando o arco antes?

— Ah sim, ela gostava de brincar com o arco também, inclusive dentro

do escritório do vô William, quebrou as vidraças várias vezes.

A porta do quarto se abriu e Jennifer olhou com surpresa para as duas na

cama conversando, mas a surpresa logo virou um sorriso.

— Você é rápida, Anna. — Falou zombando. — Já trocou de raposa.

— Onde você estava?

— Fui na vila, fui à farmácia comprar Band-aids para sua cara e aquelas
coisinhas metálicas de imobilizar, para o meu dedo. — Falou mostrando a sacola

plástica na mão.

— Estávamos falando de você. — Caroline se manifestou.

— Coisas boas, eu espero. É para isso que eu te pago, prima.

— Você atirou no vaqueiro? — Anna perguntou.


— Já estava escurecendo e ele passou atrás do local onde eu estava
praticando. Mas gente, isso faz tanto tempo, não vamos desenterrar essas coisas.

E chega para lá um pouco.

Jennifer sentou-se na beirada da cama, ao lado de Anna, de frente para

ela. Tirou os curativos da sacola e colocou em cima do criado mudo.

— Mas são do Bob Esponja! — Anna falou ao ver a caixa de curativos.

— O que que tem? Deite a cabeça no travesseiro.

— Mas...

Jennifer a interrompeu colocando dois dedos em seus lábios.

— Esses são para mim, para você eu comprei dos sem graça. Deite e não

se mexa.

Anna repousou a cabeça no travesseiro e Jennifer começou a colar os

curativos em seu rosto.

— Assim vai disfarçar um pouco, vai poder descer para tomar café pelo

menos. — Terminou e deu um beijo rápido em Anna.

Caroline acompanhava tudo.

— Então vocês duas são... De verdade, e pra valer? — Perguntou, cheia


de curiosidade.

— O que? Namoradas? Não, nem somos homossexuais, só resolvemos


namorar para chocar a sociedade. Não é, ursinha? — Terminou de falar e deu um
selinho em Anna.

— Ursinha? — Anna repetiu baixinho.

— Tá, eu estou falando sério, vocês namoram mesmo?

— Enquanto ela me aguentar, sim.

— Há muito tempo?

— Não, alguns meses.

Caroline ficou pensativa.

— Deve ser legal ter namorada, porque você une as duas coisas, você

tem alguém para namorar e tem uma amiga ao seu lado ao mesmo tempo. —

Filosofou.

— Geralmente começa assim. Ela era minha amiga, mas daí eu a seduzi.
— Jennifer falava com naturalidade e sarcasmo.

À esta altura Anna já estava mais vermelha que a maçã mais madura do

pomar, apenas acompanhando o ping pong ao seu redor.

— As coisas devem ser mais fáceis, não? Quando duas garotas que
gostam de garotas começam a se envolver, já fica claro logo de cara?

— Anna nem é lésbica.

— Você não é lésbica? — Caroline interpelava Anna, que começou a


gaguejar alguma coisa.

— Ãhn... Eu não sei... Quer dizer... Eu já fiquei com mulheres antes de


Jennifer, acho que sou bissexual.

— Casos de uma noite só. — Jennifer comentou em tom irônico, fazendo


um gesto de desdém com a mão, continuava sentada com uma perna em cima da

cama, de frente para as duas.

— Acho bissexuais tão descolados. — Caroline voltava a questionar

Anna.

— Anna no momento é jennifersexual, resolvido? — Jennifer fulminou.

— E tímida. — Completou Caroline, rindo da situação.

— Ah, isso com certeza. — Jennifer concordou.

— Já você eu sempre desconfiei. — Caroline falou com um sorriso

sarcástico.

— Eu dava pinta?

— Bastante. Lembra aquela vez, uma das últimas vezes que você esteve

aqui, você convenceu as minhas amigas a tomarem banho no lago, mesmo elas

não tendo roupas de banho?

Jennifer deu uma gargalhada. — Claro que lembro.

— Ela fez isso comigo também! — Anna falou com indignação.

— Ela te convenceu a tomar banho só com as roupas de baixo num lago?

— Num rio.

— Hey, isto está virando um complô!


— E nós nem namorávamos ainda. — Anna falou.

— Bom, em ambos os casos eu atingi meu objetivo. — Jennifer falou


com um sorriso malicioso. — Foi assim que eu vi pela primeira a tatuagem que

ela tem nas costas, mostra para ela, é linda!

— Não.

— Ah, deixa eu ver, Anna!

Anna olhou impaciente para Caroline e depois para Jennifer, e então

virou-se de costas para Caroline, levantando a blusa.

— Que legal! O que é? Um gato gigante?

— Um lince.

Anna baixou a blusa e voltou a se encostar na cabeceira da cama.

— Como vocês se conheceram?

— É uma longa, longa história... Mas tudo começou de uma forma muito

bonita, ela me deu uma gravata e eu quase morri sufocada.

— Ela invadiu minha casa!

— Não teria sido mais fácil convidá-la para sair?

— Eu a convidei no dia seguinte.

— E você aceitou? — Falou olhando para Anna.

— E eu tinha escolha?
— E depois?

— Saímos para beber, nos divertimos um pouco, aprontamos algumas e o


resto é história. Aqui estamos.

Ouviram batidas na porta.

— Tá aberta! — Jennifer falou.

William abriu a porta colocou parte do corpo para dentro do quarto,

dando uma olhada.

— Vim ver o que aconteceu com a minha mensageira, que não retornou.
— Falou brincando.

— A sequestramos. — Jennifer respondeu.

— E o que querem em troca?

— Café.

— É justo. Tudo bem com vocês?

— Tudo ótimo, vovô. — Jennifer sorriu.

— Se descerem agora ainda encontrarão café na cozinha.

Caroline levantou-se e foi na direção da porta.

— Vocês não vêm?

— Já vamos descer, preciso fazer duas coisinhas antes.

Anna e Jennifer ficaram a sós após Caroline sair e fechar a porta.


— Ursinha? — Anna a questionou.

— Vai, confessa que você adorou o apelido.

— Ok, quais são as duas coisinhas que você precisa fazer?

— Primeiro me ajude a imobilizar meu dedo. — Falou já pegando o


material em cima do criado mudo.

— Você foi uma peste quando criança, pelo visto. — Anna falou,

enquanto cuidava do dedo dela.

— Não mudei muito.

— Pronto, evite mexer a mão.

— E a propósito, você tem toda razão, fui uma pestinha.

— Ok, qual é a segunda coisa? — Anna perguntou.

Jennifer deu uma olhada no trabalho final, empurrou Anna para deitar-se
na cama.

— Meu beijo de bom dia, ursinha. — Falou já por cima dela, com um

sorriso cheio de malícia.

— Você me bateu esta noite, duas vezes.

— Eu??

— Seu sono estava mais agitado do que nunca.

— Bati onde?
— Uma cotovelada aqui do lado e um tapa com as costas da mão no meu
rosto.

— Acho que não adianta eu pedir desculpas, porque não foi algo

consciente, mas de qualquer forma, perdão pelas agressões.

— Você não costuma me bater, geralmente só balbucia coisas sem

sentido.

— Eu falo nomes das minhas outras namoradas?

— Nunca percebi.

— Ufa.

***

A noite chegou e todos estavam reunidos para o jantar, era o último dia

das bárbaras na mansão, viajariam de volta para a América no final da tarde

seguinte.

— Anna, o que aconteceu com seu rosto? — Questionou tia Melanie.

Antes que ela respondesse, William se antecipou.

— Ela caiu do cavalo hoje cedo, mas não foi nada sério, não é mesmo,

Anna?

— Sim. Não foi nada demais. — Anna corroborou.

Caroline olhou para Anna e Jennifer, quase deixando escapar um


sorrisinho.
— Vocês virão nos visitar em breve, não virão? — Perguntou Hugh.

— Antes do que vocês imaginam. — Jennifer.

— Por que não ficam mais uns dias? — Adam perguntou.

— Anna tem seus negócios a resolver, não pode abandonar os clientes


por tanto tempo.

— Que pena.

***

No dia seguinte William chamou ambas em seu escritório, após o

almoço.

— Podem relaxar meninas, hoje não vou dar nenhuma bronca.

— Até porque não fizemos nada de errado.

— Não que eu saiba, não é mesmo? — William olhou sério para as duas.
— Vocês devem aprontar muito por lá, não?

Jennifer balançou a cabeça negativamente.

— Anna, você tem ideia do quão preciosa é a joia que você tem em

mãos, não sabe? Cuide bem desta garotinha por mim, enquanto ela estiver longe
da minha visão.

— Pode ter certeza que tenho todo zelo do mundo, mas o senhor sabe o
quanto ela é teimosa, se me permite dizer.

— É claro que eu tenho ideia, mas percebo que ela ouve você.
— Vocês são tão exagerados. — Jennifer resmungou.

— Espero que você tenha se sentido à vontade em nossa casa e em nossa


família. — Falou dirigindo-se à Anna. — Nós costumamos chamar as pessoas

que não são de nossa espécie, mas que sabem sobre nós e convivem

pacificamente conosco de Vulpis de coração, e acredito que você seja uma delas.
Até porque teríamos que matar você caso você não mantivesse nosso segredo à

salvo.

Anna olhou assustada.

— Pode rir, eu estava brincando.

— Claro. — Respondeu com um pequeno sorriso.

— Ou não. É melhor manter a dúvida. Mas me diga, como você soube de

nós?

— Meu pai foi adotado ainda bebê por uma família Vulpi, no Brasil.

— No Brasil? Tenho vários amigos lá. Qual o sobrenome?

— Fin.

— Ele era Titan?

— Não humano. Minha mãe era Titan.

— Seu pai então também era um Vulpi de coração.

— Sem dúvida, era um grande entusiasta.

— Deve ter sido um grande homem.


Anna assentiu com a cabeça.

— Era sim.

— Tem irmãos?

— Um irmão mais novo, Andrew, que sumiu no mundo.

— Faz muito tempo que não tem notícias?

— Sim. Uns cinco anos.

— O importante é não perder as esperanças.

— Não perdi.

Olhou mais uma vez para elas.

— Bom, meninas, sei que vocês têm coisas para arrumar, não vou

prendê-las aqui. Venham se despedir antes de sair.

— Pode deixar, vô.

William esperou elas saírem do escritório e pegou o telefone.

— Alô, Gordon? É William. Tenho um serviço para você. Preciso que


você descubra a maior quantidade de informações que puder sobre uma pessoa.

Descubra tudo sobre o presente e o passado dela, e também sobre sua família.
Quando você tiver esse dossiê em mãos venha até meu escritório, você terá uma

missão. O nome dela é Anna, Anna Fin.


Capítulo 22 - Helen

— Você está no lado errado da estrada!

Jennifer e Anna se despediram de todos na casa e partiram para o

aeroporto, num final de tarde morno. Saíram pelo caminho que dava acesso à

mansão e tomaram a estrada, desta vez com a capota erguida.

— Ooops.

— Tivemos sorte que não vinha nenhum carro em nossa direção. —

Anna falou com impaciência.

— Ok, mas não brigue comigo, estou sensível. — Jennifer respondeu,

com as duas mãos segurando firmemente o volante.

Anna percebeu que Jennifer tinha os olhos vermelhos e foi mais

moderada com ela.

— Se estiver sensível demais para dirigir me avise.

— Do que adiantaria? Você não dirige.

— Poderíamos parar o carro, você conversaria comigo e eu tentaria fazer

você se sentir melhor.

— Sério? — Jennifer respondeu com certo deboche.

— Só estou tentando ajudar.

— Odeio despedidas... — Murmurou.


Anna se ajeitou devagar no banco do carro, Jennifer reparou.

— Você vai sofrer um bocado nas quinze horas de voo, sentada naquela
poltrona dura e apertada.

— Não tenho muita escolha.

— Pode deitar nas minhas pernas se quiser, posso ser um bom

travesseiro.

— E torcer para que a poltrona ao lado esteja vazia.

— Engraçado como dor é algo relativo, você está se incomodando muito


mais com essa flechada do que qualquer outro ferimento.

— Você não poderia ter escolhido lugar melhor para me acertar.

— Qual será a pior dor que alguém pode sentir? — Jennifer devaneava.

— Dizem que um infarto dói bastante.

— Qualquer tipo de dor no coração deve doer muito.

— Queimaduras também doem, e é uma dor prolongada, talvez seja pior

que uma dor pontual.

— Talvez. Mas acho que a pior dor é a dor na alma. Para todas as outras
existem remédios e paliativos.

— Mas até mesmo a alma pode ter vários tipos de dores.

— É verdade... Qual será a pior?


— Hum. O luto talvez.

— Ou a culpa. Na culpa a dor parte de dentro de você, você não pode


maldizer nada nem ninguém além de si próprio. — Jennifer mantinha uma

expressão pensativa.

Anna estava achando a conversa um pouco arriscada, pois não sabia o

rumo que poderia tomar, nem como lidar com aquilo.

— Você não acha que é muito nova para pensar nessas coisas?

Jennifer lançou um olhar um pouco decepcionado para Anna, como se

sentisse que ela não a levava muito a sério. Voltou a dirigir em silêncio,

pensativa.

A luz do sol já havia baixado, formando um lusco-fusco perigoso.

Chegaram num cruzamento que dava acesso à rodovia principal, Jennifer

contornou a confusa rótula e acabou pegando a mão errada. Um carro vinha em

alta velocidade em sua mão correta e acabou pegando Jennifer de surpresa, que

teve que desviar para o acostamento.

— Hey, cuidado!! — Gritou Anna, enquanto ela se desviava.

— Nossa, essa foi por pouco. — Jennifer balbuciou nervosa, já de volta à


mão certa.

— Você quase nos matou!!

— Eu me confundi, desculpa.
— É a segunda vez, Jennifer, é melhor você prestar um pouco mais de
atenção.

— Eu sei, foi mal.

— E acenda os faróis. — Anna falou sem muito ânimo.

— Será que estragou algo no carro? Pode ter amassado alguma coisa.

— Acho que não, mas quando chegarmos eu dou uma olhada.

— Se algo quebrar eles acionam o seguro, não é?

— Sim, mas daí temos que pagar a franquia.

— Mesmo se eu der perda total no carro? Acho que teríamos que pagar

um carro novo, não? — Jennifer devaneava novamente.

— Prefiro não descobrir isso.

— Imagine só, daí não teríamos como pagar um carro novo e ficaríamos
presas no país, como clandestinas ilegais e criminosas. Ou então fugiríamos

escondidas num navio pirata, algum que fosse para a América.

Anna olhou com o cenho franzido para Jennifer.

— Claro que não, eu pagaria o carro.

— E você teria como pagar um carro desses à vista? Ele deve custar uns

quarenta mil!

— Eu sei.
— Você teria como pagar? — Jennifer perguntou intrigada, dando uma
olhada rápida nela.

— Sim.

— E dois desses?

Anna balançou a cabeça afirmativamente.

— E dez desses?

— Você por acaso é do imposto de renda?

Jennifer olhou boquiaberta para Anna.

— Você é rica?

— Claro que não.

Jennifer riu.

— Fala sério, você é milionária! — Falou tirando sarro.

— Pare de falar isso, não sou rica, apenas meu pai me deixou uma

herança e eu soube administrar.

— Você não parece ser rica.

— Por quê?

— Você é tão mão de vaca, nunca vi você esbanjando dinheiro.

— Não tenho muito onde gastar.

— Você mora na beira da praia, poderia comprar um barco.


— Para quê? Não gosto de velejar.

— Por que você trabalha tanto? E é tão responsável com seus clientes e
tal?

— Eu gosto do que faço, e a maioria dos meus clientes eram clientes do

meu pai, eles confiam em mim, assim como confiavam no meu pai. Eu trabalho

porque gosto, senão ficaria maluca.

— Que bom que você tem seu pé de meia, espero um dia conseguir fazer

o meu também, não precisa ser um pé de meia milionário como o seu, claro.

Anna balançou a cabeça.

— Pelo menos seu avô vai te mandar uma mesada, já é um bom começo,

tente não torrar tudo.

— Quem sabe eu aprenda a guardar dinheiro.

— Eu aprendi com meu pai.

— Seu pai trabalhava na forja onde você trabalha hoje em dia?

— Foi como ele começou, mas depois ele construiu uma fábrica na
cidade vizinha.

— Fazendo adagas?

— Mais ou menos, o foco era facas militares.

— Você também trabalhava lá?

— Sim, era o braço direito dele.


Ambas pareciam mais relaxadas agora, Jennifer já não parecia tão triste,
e Anna estava mais à vontade.

— Você aprendeu com ele esse ofício, então.

— Foi sim.

— O que aconteceu com a fábrica?

— A incendiaram, no primeiro ano da guerra.

— O ano que perdi meus pais.

— É... Não foi um bom ano para nós.

— Quem incendiou?

— Uma milícia Titan, em represália por meu pai não ter aceitado fazer

um acordo com eles.

— Um acordo bem esdrúxulo provavelmente.

— Claro. O que esperar de uma milícia dessas?

— Seu pai deve ter ficado devastado.

— Mais do que você possa imaginar.

Anna mantinha um olhar perdido.

— Ele ficou deprimido?

— Ele acabou morrendo semanas depois, do coração.

— Nossa... Sinto muito.


— Foi demais para ele, já tinha certa idade. Ele era humano, lembra?

— Então foi assim que surgiu seu ódio por milícias Titans.

— Não que eu gostasse dessas milícias antes. Mas foi realmente um


divisor de águas.

— Entendo. Me sinto menos culpada agora, pelos milicianos que já

eliminamos.

Jennifer deu uma olhada nela, tinha os olhos brilhantes e quase

molhados.

— Agora quem está sensível é você. — Jennifer falou bem-humorada.

— É... Podemos mudar de assunto?

— Claro, baby. — Ao terminar de falar pegou a mão de Anna, a segurou

firme e deu um beijo.

— Quer falar a respeito daquilo que você fez com as estrelas ninjas? —

Anna falou.

— Eu movo coisas, esqueceu?

— Não sabia que você tinha tamanho domínio sobre seu poder.

— Não foi nada demais.

— Meu pai nos contava sobre as coisas que ele presenciava, que os
Vulpis faziam, e nada que ele tenha contado chegou perto do que você fez.

— Vai ver eu sou um Pokemon evoluído.


Anna ficou em silêncio, pensativa.

— O que é um Pokemon? — Questionou curiosa, olhando para Jennifer.

— Pelo amor de Deus, você não sabe o que é um Pokemon? Agora eu sei
porque não encontrei você antes, porque você morava na lua, só pode ser.

— É um desenho animado, não é?

— Um dos melhores!

— Nunca vi.

— É... Talvez eu seja o Raichu.

— Como?

— A forma evoluída do Pikachu.

— Não sei que raio é isso, mas definitivamente você é a evolução de

alguma coisa.

***

Chegaram já de noite no aeroporto e embarcaram de volta para suas


casas. Anna acabou cedendo e deitando sobre as pernas de Jennifer,

aproveitando que não havia ninguém sentado ao lado delas. Dobrou um cobertor
e colocou embaixo de sua cabeça, o voo estava na metade, as luzes estavam

baixas e as duas haviam adormecido.

— Eu preciso vê-la...

Anna acordou um pouco confusa sem entender o que estava acontecendo,


mas logo percebeu que Jennifer estava sonambulando. Levantou-se do seu colo e

tentou fazê-la voltar a dormir.

— Está tudo bem, durma.

— Mas eu tenho que ir, ela está esperando por mim.

— Shhh, estamos num avião, Jennifer.

— Onde ela está?

Anna não conseguiu conter sua curiosidade, acabou não resistindo e

perguntando.

— Ela quem?

— Helen.

Anna franziu suas sobrancelhas, a olhou intrigada.

— Eu quero vê-la...

— Shhh, volte a dormir.

Jennifer repousou sua cabeça no encosto da poltrona e voltou a dormir


pacificamente. Mas Anna não dormiu no restante do voo. Nem voltou a deitar-se

em seu colo.

Chegaram de manhã cedinho em Bridgeport, pareciam bastante

extenuadas. Caminharam para a saída do aeroporto arrastando suas malas.

— Pensei em ligar para Bob vir nos pegar. Melhor não, né? Melhor

pegarmos um táxi mesmo. — Jennifer comentou.


— Eu vou pegar um táxi.

— Eu?

— Temos que pegar o táxi juntas? Não acha que já passamos bastante
tempo juntas nos últimos dias?

Jennifer olhou meio incrédula e surpresa.

— Que bicho te mordeu? — Perguntou calmamente.

— Só estou cansada, preciso de um banho e da minha cama.

— Idem. Ok, vamos lá pegar nossos táxis de uma vez.

Andaram até o início da fila de táxis e Jennifer ajudou Anna a colocar

suas coisas dentro do carro.

— Eu pego o próximo. — Jennifer sorriu e se aproximou para se


despedir.

— Eu te ligo amanhã. — Anna disse, já entrando no carro.

— Sim, senhora.

Se aproximou mais, na menção de beijá-la, mas Anna se desviou para

trás.

— Não em público, Jennifer.

— Ok. — Falou erguendo as mãos.

Ela ficou ainda algum tempo parada ao lado de sua mala, vendo o carro
dando a partida e saindo do aeroporto.

Havia algo de errado, mas Jennifer preferia pensar que era apenas o
cansaço da viagem e o incômodo do ferimento. Finalmente seguiu para seu

apartamento.

Naquele dia apenas descansaram, dormiram, cuidaram de suas vidas, e

tentaram podar seus pensamentos. No dia seguinte, quinta-feira, Jennifer


mandou uma mensagem com um convite para Anna.

— Amanhã tem festa com temática anos oitenta no pub, não podemos

perder por nada!

— Tenho uma entrega sábado de manhã em outra cidade, vou ficar


devendo essa. Nos vemos sábado.

Sexta à noite Jennifer caprichou no visual retrô, maquiagem caricata,

penteado, um rabo de cavalo no alto da cabeça, e colocou uma jaqueta de couro

azul royal. Era estranho estar de volta ao pub sem Anna, aproveitou a ocasião

para colocar o papo em dia com Bob e Becca, entre os assédios de uma colega
em comum com seus amigos, que passou a noite em seu grupo, era uma ruiva de

farmácia com grandes olhos verdes.

— Por que alguém perderia essa festa e a sua companhia para fazer

entregas?

— Ela gosta de respeitar os prazos que dá aos clientes, nem todo mundo

é irresponsável como eu. — Jennifer respondeu à falsa ruiva.


— Ela é irresponsável em deixar sua garota sozinha aqui, isso sim.

Jennifer simplesmente riu e foi buscar mais cerveja. Quando voltou


sentou-se ao lado de Becca e Jim.

— E aqui estamos nós novamente. — Jennifer falou para Jim.

— Por que, vocês se viram na Escócia? Lá é tão pequeno assim? —

Becca indagou.

— Sim, acabamos nos encontrando numa festa, foi coincidência mesmo.

— Jim respondeu.

— E ele se comportou como um lorde a noite inteira, não que eu o tenha

vigiado.

— Que festa era?

Jennifer e Jim se entreolharam.

— Da família da Jenny, minha mãe foi convidada.

Ah então você conheceu minha sogra?

Jim piscou para Jennifer.

— Sim, muito amável por sinal.

— E como foi sua família com a presença de Anna, não rolou nenhum

climão?

— Melhor do que imaginava, todos a trataram cordialmente. Até demais,

meu primo mais novo ficou caidinho por Anna.


— Ele não sabia de vocês?

— Provavelmente era o único que não sabia.

— Você mencionou que ela se machucou.

— Foi, ela... Caiu do cavalo. Mas já está bem. — Falou desviando do seu
olhar.

Jennifer odiava ter que mentir para Becca, mas não via outra opção.

Logo a garota ruiva encostou-se novamente, puxando conversa. Ela

sentou-se próximo e Jennifer assustou-se ao virar para o lado e dar de cara com
ela. Em outros tempos Jennifer estaria se engalfinhando com ela em algum canto

escuro, mas agora, chegava a se perder em seus pensamentos distantes, tudo

acabava lembrando Anna.

Estava preocupada com ela pegando a estrada à noite, dirigindo por tanto
tempo, queria que ela estivesse ali do seu lado, segura. Jennifer estava

definitivamente apaixonada por Anna. Mas tinha dúvidas se Anna sabia disso,

essas dúvidas eram como comichões em seu coração bagunçado.

Foi embora cedo e passou todo o sábado esperando por Anna, que não
respondeu suas mensagens. Sua ansiedade sumiu quando ouviu o barulho da
moto lá embaixo no início da noite. Correu para a janela e observou Anna

tirando o capacete, sem pressa.

Abriu a porta com o maior dos sorrisos e a beijou com entusiasmo.


— Parece que não me vê há anos.

— Parece. E isso não é delicioso? — Jennifer respondeu.

Anna sorriu e a abraçou.

— É sim.

— Comprei comida tailandesa, você gosta, não gosta? — Jennifer falou


já se dirigindo a cozinha.

— Acho estranha, mas gosto.

— Está com fome?

— Sim. — Tirou o casaco e sentou-se no sofá. — Que som é esse?

Jennifer estava ouvindo música num pequeno aparelho de som, numa

altura moderada.

— Ah... Várias coisas. Um pouco de rock ‘n’ roll, talvez não tão rock.
Gosta do que ouve?

— É bom, o que é?

— Essa é... Muse, Starlight.

— Preciso atualizar meu gosto musical.

— Posso ajudar.

Jennifer terminou de colocar a mesa e foi até o sofá, se aproximou por


trás e deu alguns beijos no pescoço de Anna, correndo seus lábios devagar e a
entrelaçando com os braços.

— Quer sair hoje? — Perguntou baixinho, ainda a envolvendo.

— Acho que não... A entrega foi cansativa.

— Não dormiu ainda?

— Duas horinhas à tarde.

— Vou te colocar para dormir hoje então... Mas antes venha jantar.

Terminavam de comer, Anna fitou Jennifer.

— Como foi a festa ontem?

— Achei que seria mais animada. Você fez falta.

— Eu nem danço.

— Pois é! Imagina então se dançasse! — Falou rindo.

— O que fez hoje?

— Dei uma arrumada no meu quarto.

— Sério? Por isso peguei chuva na volta.

— Não sou tão bagunceira assim.

— Passei meia hora juntando suas coisas espalhadas pelo quarto na casa
do seu avô.

— Eu sou espaçosa.

— Podemos nos deitar?


— Claro. — Falou levantando-se. — Mas acho que ainda tem algumas
coisas em cima da cama.

Jennifer a levou pela mão até o quarto e começou a tirar alguns objetos

da cama, Anna empilhou uns travesseiros e deitou-se.

— Quer ajuda?

— Não, na verdade só falta organizar essas duas gavetas, mas depois eu

faço isso. — Falou colocando as gavetas no chão.

Anna se inclinou um pouco dando uma olhada nas gavetas.

— O que tem nelas?

— Ãhn... Uma tem meias e a outra... — Deu um sorriso. — A outra tem

brinquedos.

— Por que você guarda brinquedos? Lembranças da infância?

— Não são esse tipo de brinquedos... — Sentou-se de frente para Anna.

— Não? — Anna franziu a testa.

Jennifer balançou a cabeça, sorrindo maliciosamente.

— Ah... Entendi.

Jennifer tirou o restante das coisas da cama e sentou-se mais perto.

— São para usar... Sozinha?

— Nem sempre, na verdade alguns não tem muita graça de usar sozinha.
Jennifer, no alto de sua ingenuidade, interpretou a pergunta
erroneamente. Anna vislumbrou o quanto Jennifer já havia ‘brincado’ naquela

cama com suas namoradas.

— Você sozinha durante todos esses anos naquela casa enorme, não tem

nenhum brinquedinho?

— Nenhum. — Falou sem jeito.

— Mas brinca sozinha?

— Sim, mas não sei se estou muito à vontade com esse assunto.

— O que? Masturbação? Todo mundo faz, relaxa. E você fica linda assim

tímida e vermelha, sabia?

Jennifer engatinhou na cama na direção de Anna.

— E eu sei como acabar com essa timidez.

Começou a beijar seu pescoço enquanto descia sua mão e abria sua calça.

— Não, Jennifer...

Quando deslizava sua mão para dentro de sua calcinha foi interrompida
pela mão de Anna.

— Não, não quero. — Falou com mais energia.

Jennifer parou de beijá-la e a olhou um pouco confusa.

— Não estou no clima. — Anna falou com desânimo.


— Mas eu achei... Tudo bem, deixa pra lá... Vou buscar suas roupas, para
você dormir.

Anna não demorou muito para adormecer, Jennifer a fazia companhia,

acordada, deitada em seu peito. Era apenas dez da noite e não sentia sono algum,

levantou e foi para a sala ver TV. Zapeava sem se concentrar em programação
alguma, algum tempo depois acabou pegando no sono, deitada no sofá.

De madrugada Anna acordou e não a encontrou ao seu lado, viu as luzes

da TV pelas frestas da porta e foi até lá. Agachou em frente ao sofá, afagava seus

cabelos enquanto a observava dormir.

— Minha pequena... Se você soubesse o quanto te amo... — Murmurou.

Ficou mais alguns instantes ali, se aproximou do rosto dela e falou

baixinho.

— Vem dormir na cama. Vem dormir comigo. — Insistiu.

Jennifer semi acordou.

— Depois. — Resmungou sem abrir os olhos, se ajeitando no sofá.

Anna desligou a TV e deslizou seus braços por baixo do seu corpo.

— O que está acontecendo? — Falou Jennifer desorientada.

— Passe seus braços ao redor do meu pescoço.

— Vamos para a cama?

— Sim, para alguma coisa boa minha força tem que servir. — E a
carregou para o quarto.

***

Uma semana se passou sem maiores contatos a não ser pelo telefone. No
sábado seguinte Anna passou na casa de Jennifer para levá-la ao pub, conforme

combinado. O local estava um pouco cheio, ficaram junto ao grupo de pé,

próximos à pista.

— Isso aqui é para você. — Jennifer pegou algo no bolso do casaco e

mostrou para Anna.

— O que é?

— Um iPod, com 483 músicas. Para você atualizar seu gosto musical. —

Terminou de falar e colocou no bolso de trás da calça de Anna.

— Obrigada, mas não precisava gastar seu dinheiro comigo.

— Primeira mesada do meu avô. — Sorriu.

— É assim que vai fazer o pé de meia?

— Estou investindo na nossa relação.

Jennifer percebeu um pequeno corte nos lábios de Anna.

— O que foi isso? Perguntou deslizando seu dedo sobre.

— Gárgulas.

— Foi numa missão ontem?


— Anteontem. — Respondeu sem muita animação.

— Por que não me chamou?

— Eram duas gárgulas.

— Mas já enfrentamos três gárgulas.

— Não ao mesmo tempo.

— Mas...

— Não vou te levar em todas, já havia lhe falado isso.

Jennifer fez uma expressão um pouco emburrada.

Estreava um casaco novo, verde escuro, de veludo, lembrava um pouco

um terninho. Tinha os cabelos soltos e usava uma bota alta, com salto.

— Gostei do seu lenço. — Jennifer tentava uma conversa mais amena.

Anna usava um lenço xadrez no pescoço, por cima de uma blusa preta. Tinha
uma caneca cheia em mãos. Jennifer terminou sua caneca rapidamente e pegou a

de Anna para dar um gole.

Ao terminar o gole, deu de cara com a garota ruiva da semana passada.

— Oi, Jenny! — A cumprimentou animadamente. Pegou sem rodeios a


caneca de sua mão e deu um gole.

Jennifer respondeu o cumprimento um pouco surpresa.

— E você deve ser Anna, prazer em conhecê-la.


Anna respondeu um pouco sisuda, mas educadamente.

— Sem entregas hoje?

— Não, nada de entregas hoje. — Anna replicou.

— Esteve no porto? — Jennifer perguntou.

— Ainda não, mas com certeza essa semana passarei por lá. - Deu uma
piscadela. — Não vão dançar?

— Ãhn... Agora não.

— Vejo vocês na pista. — Falou se despedindo.

Anna acompanhou tudo. Jennifer se virou e encontrou o olhar intrigado

de Anna.

— Vocês se conhecem?

— É uma amiga de Jim, ela estava aqui na festa da semana passada.

— Conversaram?

— Ela é nova na cidade, está procurando emprego, dei umas dicas, falei
que no porto sempre tem alguma vaga aberta.

— Entendi.

— Tome, seu chope.

— Não, não quero, obrigada.

Talvez Jennifer ainda não tivesse percebido, mas Anna era do pior time
de ciumentos, aqueles que não demonstram, mas alimentam um vulcão por

dentro.

A música estava particularmente barulhenta naquela noite, um DJ

intercalava música eletrônica com hits dance e pop. Havia mais luzes coloridas

que o de costume, o local estava parcialmente cheio e com um clima um pouco


asfixiante.

— Ah, tenho uma novidade para te contar! — Jennifer falou, colocando

as mãos na cintura de Anna.

— O quê?

— Tio Ethan mandou uma mensagem essa semana, perguntando se


minhas primas poderiam passar uns dias aqui comigo, estão de folga na escola.

— Legal, é bom ter seus parentes por perto.

— É sim. Mas tem um detalhe... Susan também vem... Tudo bem?

— Hum... A francesa... Fazer o que, ela é amiga de suas primas, não?

— Ahan.

— Quando elas vêm?

— Quarta-feira. Vão ficar seis dias. Tenho que buscá-las no aeroporto.

— Você é a mais velha, tem que cuidar direitinho delas.

Anna falou que ia ao banheiro e Jennifer pediu que trouxesse outro chope
para ela.
— Vejam, vagou uma mesa lá! — Becca falou, chamando o grupo para o
local.

Jennifer hesitou um pouco em seguir o grupo.

— Vamos, Jenny!

— Mas Anna foi ao banheiro.

— Ela encontra a gente, isso aqui é uma ervilha!

E seguiram todos para a mesa mais ao canto, do outro lado. Jennifer

sentou-se junto a parede, e Bob sentou-se ao seu lado.

— Você parece um pouco apagada hoje. — Bob a questionou.

— Acho que ainda não bebi o suficiente. — Sorriu.

— Tudo bem com Anna? Ela também parece mais calada que o de
costume.

— Às vezes acho que sim, às vezes acho que tem algo errado, ou a

incomodando... Mas talvez seja só o jeito dela.

— Com altos e baixos.

— E uma boa dose de mistério. Acho que ainda não sei decifrá-la. —
Jennifer mexia no descanso de copo a sua frente, cabisbaixa.

Bob virou-se para Jennifer, e falou com um tom de voz mais cuidadoso.

— Deve ser algo inerente aos híbridos, não? Essa aura de mistério. Helen

também era assim, indecifrável.


Jennifer deu um sorriso triste, continuava olhando para baixo. Sem que
percebessem, Anna os encontrou e chegou com duas canecas de chope, sentando

ao lado de Bob.

— Era sim... Sabe, se ainda estivéssemos juntas, amanhã seria nosso

aniversário de namoro.

Anna não precisou ouvir o nome, sabia de quem estavam falando.

— Ainda pensa nisso?

— Acho que todos os dias.

Anna sentiu seu sangue começando a ferver, levantou-se e foi para longe,

sentou junto ao balcão do bar.

— Mas agora que você tem Anna do seu lado, não aliviou a barra?

— Ah sem dúvida, depois que Anna entrou na minha vida me sinto

flutuando, ela é... Simplesmente maravilhosa. — Sorriu. — O maior presente

que eu poderia ganhar. Nunca achei que encontraria alguém que eu pudesse amar
tanto, pensava que essa coisa de amor não era mais para mim.

— Claro que é, só faltava aparecer a pessoa certa. Anna é assim


misteriosa, mas é uma pessoa sensacional, eu gosto dela. Mesmo que vocês

pareçam tão diferentes à primeira vista, tá na cara que foram feitas uma para a
outra.

Jennifer olhou para Bob e riu.


— Meu Deus, como somos cafonas.

Bob também riu.

— Bom, vou procurar pela minha Cinderela que deve estar perdida por
aí. — Jennifer falou já levantando da sua cadeira.

Deu uma volta pelo espaço e a encontrou, bebendo num dos bancos altos

do bar. Jennifer sentou-se ao seu lado.

— Achei meu chope. E minha garota! — Jennifer falou sorridente.

Anna simplesmente deslizou a segunda caneca pelo balcão, na direção de


Jennifer.

— Por que sentou-se aqui, não nos achou?

— Achei sim.

— Quis ficar próximo do palco? — Deu um gole.

— Não. — Balançava sua caneca para frente e para trás, observando o

líquido se movimentando. — Quis ficar longe de você. — Respondeu sem

alterar o tom.

Jennifer franziu a testa e largou a caneca em cima do balcão.

— Ok, o que eu perdi? — Perguntou, um pouco confusa.

— Posso ficar um pouco sozinha aqui?

— Por quê?
— Você está me sufocando. — Continuava sem olhar para Jennifer, que a
olhava assombrada.

— Mas eu... Tem uma semana que não nos vemos, e nem estou tentando

te agarrar hoje nem nada, por que está falando isso? Você está chateada com

alguma coisa?

— Eu só preciso de um tempo pra mim, é tão difícil de entender? Não


quero conversar com você.

— Mas o que aconteceu?? — Falou já com impaciência.

— Não levante sua voz. — Falou olhando para os lados. — Já estão nos

olhando.

— Ah claro, e você morre de medo que olhem, não é? Morre de medo

que achem que você é sapatão, esqueci dessa sua fobia social.

O vulcão estava prestes a entrar em erupção.

— Chega, Jennifer! Não vou discutir com você aqui.

— Pois eu só saio daqui quando souber o que aconteceu. — Cruzou os


braços.

Anna a segurou pelo alto do seu braço e a conduziu na direção das

escadas.

— Solte meu braço! — Jennifer bradou enquanto subiam as escadas,


sentindo os dedos apertando contra sua carne.
Chegaram até o terraço, que estava vazio.

— Você está me machucando! Solta meu braço!

Anna a soltou com energia. Jennifer a olhava terrificada, boquiaberta,


nem conseguiu pronunciar palavra alguma.

— Você tem essa necessidade de chamar atenção, mas eu não tenho! —

Anna falou irritada.

— O que você está fazendo, Anna?

O local estava escuro, não havia sequer uma estrela no céu, um vento
deixava o clima mais sombrio, apenas as luzes dos postes vinham fracas lá de

baixo, além do som abafado da pista.

— Só não tenho mais paciência para suas besteiras.

Trocavam um olhar angustiado, estavam a pouco mais de um metro uma

da outra.

Jennifer esperou que ela continuasse falando.

— A sensação que eu tenho é que nunca serei suficiente para você, que
você está comigo apenas esperando a chuva passar.

— De onde tirou isso? Eu quero ficar com você, somente com você, não
percebe?

— Não. — Anna baixou o olhar. — Acho que você deveria ir atrás dela.

— Não faço ideia do que você está falando.


— Helen, o grande amor da sua vida, pelo visto.

— Mas como... Você não sabe do que está falando. — Jennifer sentiu-se
golpeada no peito.

— Eu tenho uma boa ideia. Eu sou apenas uma substituta, não sou?

— Não, você não tem ideia da merda que está falando.

Os olhos de Jennifer já estavam repletos de lágrimas. Sentia seu peito

queimando, um nó apertado na garganta.

— Volte para ela! Não deve ser tarde.

— Não faça isso... — Jennifer chorava.

— Ela está longe? Ela pode estar esperando por você, pare de perder

tempo, vá atrás dela e pare de brincar comigo!

— Não faça isso, Anna.

— Eu deveria saber que eu era apenas um passatempo. Mas o que esperar

de uma pirralha mimada? Procurando por uma híbrida para passar seu tempo... E

eu acreditei. — Anna balançava a cabeça, incomodada. — Vá, pegue a mesada


do seu avô, vá atrás da Helen, só não entendo por que ainda não fez isso!

Jennifer a olhou com raiva.

— Ela está morta, sua idiota!

Anna a fitou com as sobrancelhas apertadas.

— Ah, você quer mudar o jogo agora, mas você é péssima mentirosa,
lembra?

Jennifer riu com ironia, ainda chorando.

— Você é incrível... Uma incrível filha da...

Antes que terminasse Anna deu duas passadas rápidas em sua direção e a
segurou pelos dois braços.

— Continue!

— Você quer me bater?? Vá em frente, bata em mim! Não é assim que

você está acostumada a resolver suas coisas? — Jennifer bradou.

Anna a largou, estava transtornada.

— E por que você não desce e continua bebendo, não é assim que você

está acostumada a resolver suas coisas? — Retrucou.

— Parabéns, você conseguiu estragar tudo. — Jennifer deu alguns passos

para trás.

— Isso nem deveria ter acontecido. Eu deveria ter deixado vocês

partirem sozinhos naquele trem.

Jennifer arqueou as sobrancelhas, ainda a olhou por um instante.

— Bom saber disso.

— Meio tarde agora.

— Que saber? Estou indo.


— Vá, vá para suas garotinhas estúpidas, que te bajulam e falam o que
você quer.

Jennifer balançou a cabeça, passou as mãos no rosto enxugando as

lágrimas e desceu as escadas. Um minuto depois Anna também desceu, deu uma

olhada rápida ao redor e foi para a rua. Encontrou Jennifer fazendo sinal para um
táxi, que parava na calçada. Foi até ela.

— Onde você vai?

— Para a sua casa é que não é. — Falou abrindo a porta e entrando.

— Pare com essa besteira, saia do carro e vamos conversar, te levo em

casa. — Anna colocou as duas mãos no alto da janela do carro.

— Não obrigada, já tive conversa desagradável o suficiente hoje.

— Anda, saia daí.

Jennifer a olhou e falou com convicção.

— Anna, vá pra casa e me esqueça, esqueça que eu existo, onde eu moro,

faça de conta que nem me conheceu, ou que morri naquele trem. Me erra!

Fez sinal para o motorista, que arrancou com o carro. Seguiu até sua casa
apática, sem reação, com a cabeça encostada no vidro. Subiu as escadas como

um zumbi, girou a chave e entrou. Fechou a porta e seguiu até o banheiro, tirou o
casaco e jogou displicentemente na cama. Tirou o restante da roupa e entrou

debaixo do chuveiro. A água corria em seu rosto e ela desejava que aquela água
levasse a dor que sentia subindo do peito até a cabeça, estava devastada.

Apoiou as mãos na parede em frente e começou a chorar copiosamente.


Abaixou a cabeça, a água quente batia em suas costas e agora parecia que sua

cabeça iria explodir. Soluçava.

Anna viu o taxi partindo e a única vontade que ela teve foi de correr

atrás. Mas ficou estática olhando, caindo em si. Caminhou lentamente para
dentro do pub e foi até a mesa onde estava o restante do pessoal. Sentou-se ao

lado de Becca e colocou algumas notas embaixo do porta-guardanapos. Becca

olhou surpresa.

— Isso deve pagar a minha parte e a de Jennifer.

— Onde ela está?

— Ela foi embora.

— Vocês brigaram?

Anna baixou a cabeça.

— Sim.

— Mas que... Vocês são duas completas idiotas, sabia?

— Posso deixar isso com você?

— Claro, pode deixar que eu pago. Mas o que você ainda está fazendo
aqui? Vá atrás dela e resolva isso.

— Melhor não, só preciso ir para casa.


— Ok. Boa noite então. Mas faça a coisa certa, você é mais adulta que
ela.

Anna sorriu e foi embora. O trajeto entre o pub e sua casa nunca foi feito

tão rápido como naquela noite. Subiu para seu quarto, tirou seu lenço, caminhou

devagar e ficou olhando o mar através da porta da sacada. Seu sangue já havia
esfriado. Afastou-se rapidamente e golpeou a porta com seu punho fechado.

Havia estilhaços de vidro espalhados por todo o quarto. E vertia sangue de sua

mão esquerda.
Capítulo 23 - Susan. Ou Codornas.

— Não sabia que tinha sido tão ruim assim.

— Entre, Becca. Mas não fiz almoço.

Jennifer abriu a porta de seu apartamento apenas de regata e calcinha,

com os olhos ainda vermelhos depois uma péssima noite de pouco sono.

— Então a coisa foi séria.

— De sério não teve nada, foi só ridículo e absurdo mesmo. — Falou se


jogando no sofá, ligando a TV.

— Vocês já haviam brigado dessa forma?

— Não, ontem foi especial, ela caprichou. — Falava com sarcasmo e

sem o menor ânimo.

— Você está bem? — Becca sentou-se no outro sofá, olhando

preocupada.

— Juntando meus cacos.

— Ela sabe que Susan chega quarta-feira?

— Sabe sim.

— Então com certeza ela irá te procurar para fazer as pazes na terça.

— Becca, já era.
— Vocês terminaram?

— Ela eu não sei, mas de minha parte não quero mais nem saber, ela foi
uma idiota comigo.

— Mas o que aconteceu?

— Sinceramente eu ainda não entendi. Ela começou a me acusar de umas

coisas sem o menor sentido, a impressão que eu tive é que ela estava guardando

essas coisas já há algum tempo e ontem resolveu vomitar tudo.

— E você realmente aprontou algo? Você ficou com a ruiva semana

passada?

— Não! Eu nem sei o nome daquela ruiva. Becca, eu juro, desde que

começamos a namorar eu só tenho olhos para ela, foi injusto o que ela fez.

— Te acusou de coisas sem fundamento? O que ela criou na cabeça louca


dela?

Jennifer balançou a cabeça incomodada.

— Até Helen ela colocou na conversa.

— Ela sabe sobre Helen?

— Sabe, quer dizer, só sabe o básico do básico, provavelmente só sabe


que existiu uma Helen na minha vida, e que ela é híbrida também.

— Como ela soube?

— Sei lá, deve ter ouvido fragmentos de conversas por aí, ou alguém
falou alguma merda para ela.

— Eu nunca falei nada para ela.

— Acho que Bob também não comentaria... Ah, quer saber? Foda-se. Ela
que arranje um cara bem filho da puta, que sacaneie com ela de verdade, daí sim

vai ter motivos para reclamar.

— Vocês pareciam estar se dando bem... É uma pena.

— Na verdade sabe de quem é a culpa disso tudo? É minha. Conhece a

história das codornas?

— Não. — Becca respondeu intrigada.

— Era uma vez duas amigas que viviam felizes, Mary e Clementine. Até

que um dia Mary resolveu criar expectativas e Clementine resolveu criar

codornas. Um tempo depois Mary não tinha nada, e Clementine tinha ovos de
codorna. Moral da história: eu deveria ter criado codornas e não expectativas.

Becca riu.

— Talvez devêssemos ir até a agropecuária amanhã... — Respondeu.

— A verdade é que eu estou bem ferrada...

— Eu sei que dói.

Jennifer deitou e colocou o braço por cima dos olhos, voltando a chorar.

— Tava bom demais para ser verdade... — Murmurou. — Que droga...


Eu sou louca por essa mulher...
***

Na terça-feira, no finzinho da tarde, Jennifer estava trabalhando, ou


tentando trabalhar em seu mini escritório no porto, sem muita concentração.

Assustou-se com as batidas no aço da parede. Apenas virou-se na direção da

porta.

— Você não mencionou nada sobre esquecer onde você trabalha. —


Anna tentou brincar.

Jennifer não sorriu, largou a caneta na mesa e foi até ela, que deu alguns

passos para trás, Jennifer parou na porta.

— O que você quer aqui? — Perguntou séria.

— Pensei em termos uma conversa um pouco mais tranquila. Podemos ir

no cantinho da reflexão?

Jennifer a fitou por um momento, pela primeira vez não sentiu uma onda

de excitação quando viu Anna, aquela aceleração comum no coração, sentiu-se

apenas triste. Vê-la novamente fez repassar novamente um pouco daquela noite

no terraço do pub, era impossível a olhar e não lembrar das palavras mordazes
que havia proferido e que a magoaram tanto. Jennifer estava machucada, só não
sabia se estava mortalmente ferida.

— Honestamente? Não.

Anna baixou a cabeça, procurando as palavras.


— Então vamos à minha casa, te levo em casa depois. Só quero a chance
de conversar um pouco. Acho que merecemos isto.

Era tão difícil dizer não à Anna, negar algo para aqueles olhos que

pediam algo. Pensou um pouco.

— Tudo bem.

Anna animou-se e foram até a moto, de lá até a casa dela.

— Quer beber algo? — Anna perguntou enquanto entravam em sua casa.

Jennifer apenas lançou um olhar fulminante.

— Ok, sente-se, fique à vontade. — Anna continuou, e sentou-se no sofá

ao lado.

— Machucou numa missão? — Jennifer se referia a mão enfaixada de

Anna, que estava pousada no descanso do sofá.

Anna olhou para a mão e respondeu um instante depois.

— Não... Acidente doméstico.

— Quer que eu... Nada, esquece.

— Jennifer... Eu sei que você está chateada comigo, e acho que você tem
razão para isso, tem toda razão. Eu... Nos últimos dias andei pensando bastante

no que aconteceu, talvez eu tenha tido uma reação exagerada, definitivamente


não foi a melhor forma de abordar aqueles assuntos, eu simplesmente explodi.
— Mantinha as mãos cruzadas.
Jennifer apenas a ouviu, sem esboçar maiores reações.

— Que bom que você andou pensando no que aconteceu, é um bom


começo. — Respondeu com ironia.

— Eu quero pedir desculpas, e faço isso com toda sinceridade. Eu

realmente não deveria ter falado aquelas coisas, sinto muito.

Jennifer continuava sentada não muito à vontade.

— Eu estou propondo passar uma borracha naquela noite, e que as coisas

voltem ao normal, sem mágoas. — Continuou.

Ela não podia acreditar na frieza quase cirúrgica com que Anna estava

lidando com a situação.

Anna se inclinou para frente, na direção dela. Gesticulava devagar,

parecia desconfortável.

— Eu não quero saber se Helen realmente morreu, não quero saber sobre

suas ex-namoradas, nem com quem você flerta atualmente...

Jennifer a interrompeu, estarrecida.

— ‘Se’ ela morreu? — Falou com ênfase no ‘se’. — Você continua não
acreditando em mim??

— Não me importa, já disse. Eu quero somente focar em nós.

Jennifer vestiu seu melhor sorriso sarcástico, deslizou no sofá e se


aproximou de Anna.
— Anna... Não existe mais ‘nós’. Quer um conselho? Foque em você,
foque no seu crescimento pessoal.

— Por que você está reagindo desta forma? Você se magoou tanto assim?

— Veja bem, a minha cota de mágoa de você chegou aqui, está vendo?

— Apontou para o alto da cabeça. — Já chegou ao limite, já estourou inclusive,

e qualquer coisa que você fale agora eu nem tenho como absorver porque não
cabe mais nem uma gota de mágoa de você dentro de mim!

— O que você quer que eu faça?

Jennifer sustentou um olhar triste.

— Que me esqueça.

— Então é assim? É assim que termina?

— Não, não é assim que termina. Já terminou no sábado. Quando desci

aquelas escadas eu já estava começando a esquecer você.

Anna balançou a cabeça para os lados, incomodada.

— Você está sendo intransigente.

— Não precisa mudar nada na sua vida por minha causa, se quiser

continuar frequentando o pub, ou falando com Bob, Becca... Fique à vontade.

— Finalmente conheci seu lado frio? — Anna sentia como se tivesse


chamas em seu estômago, a queimando de dentro para fora.

— Você pode me deixar em casa? — Jennifer falou já com uma voz mais
atenuada, de pé.

— Claro. — Respondeu levantando-se.

Aquela deve ter sido a pior viagem que Jennifer havia feito, da casa de
Anna até sua casa parecia ter levado uma semana. A noite já começava a cair.

Anna parou em frente ao prédio, desligou a moto e tirou o capacete.

Jennifer logo desceu da moto e tirou o capacete, olhou por um instante para ele

em suas mãos, um capacete preto brilhante, olhou para o adesivo do Bob

Esponja que havia colado meses atrás. Sentia como se tivesse engolido um

grande nó quadrado, um cubo mágico entalado na garganta.

— Fique, ele é seu. — Anna falou e desceu da moto.

Jennifer a olhou e voltou a se aproximar.

— Não, ele nunca foi meu. — Prendeu-o na parte de trás da moto.

Anna acompanhou o movimento, tentando conter uma espécie de

desespero, algo que nunca havia sentido antes, estava aterrorizada com a
possibilidade, agora certeza, de não ter mais Jennifer. Se olharam, ambas tinham

os olhos marejados.

— Você disse que me amava... E agora como pode me odiar tanto? —

Anna questionou, com uma voz que carregava todo o pranto que lutava para
manter dentro de si.

— Mas eu não te odeio.


— Não faça isso comigo... Dê uma chance para nós. — Tentava.

Jennifer a olhou mais um pouco, lançou um pequeno sorriso pesaroso.

— Te cuida. — Murmurou. E entrou em seu prédio.

— Eu não vou chorar, eu não vou chorar. — Jennifer repetia para si


mesma enquanto entrava em seu apartamento. Jogou a jaqueta no sofá e seguiu

para o banheiro, parando em frente ao espelho.

— Eu não posso chorar...

Se aproximou, observou seu rosto com as mãos apoiadas nas bordas da


pia branca. Sentia-se cansada e o cansaço era visível em suas feições. Noites em

claro estavam se tornando uma constante. Fitava seus próprios olhos, como se

negando-lhes o direito de chorarem.

Se afastou um pouco, usava uma blusinha branca com as mangas curtas.


Pela primeira vez percebeu dois pequenos hematomas esverdeados no alto do

seu braço. Respirava com força agora, como se tentando se livrar de algo que

subia em sua garganta.

Batidas na porta a despertaram, correu para abrir. Era Becca.

— Tá tudo bem? — Perguntou assustada ao ver a expressão transtornada

de Jennifer.

Jennifer não respondeu, apenas desabou a abraçando e começou a chorar

como se não houvesse amanhã. Becca a abraçou carinhosamente, deslizando as


mãos em suas costas.

— Venha... — Becca a conduziu para o quarto, com as duas mãos em


seus ombros. Jennifer olhou para trás e fechou a porta.

— Santo Cristo! Essa sua casa é mal-assombrada!

Jennifer deitou-se de bruços, Becca sentou-se recostada na cabeceira e

colocou a cabeça de sua amiga sobre suas pernas.

— Ainda bem que você está aqui... — Jennifer falou entre soluços.

— Eu vi Anna saindo de moto quando estava chegando, sabia que você


ia precisar de um colo.

— Acabou, Becca... Agora acabou.

— Pensei que já tivesse terminado.

— Mas só agora me dei conta que terminar o namoro implica em não tê-

la mais.

— É... São as regras. — Fazia cafuné em seus cabelos.

— Mas dói tanto, parece que estou morrendo.

— Por que não conversaram?

— Nós conversamos.

— E por que não fizeram as pazes?

— Por que ela é uma...


— Ok, eu entendi. Ela não colaborou muito, não foi?

— Becca, ela parecia um advogado defendendo seu cliente de uma multa


de trânsito!

— Ela não é muito expressiva, você sabe disso.

— Eu me senti um lixo. Um vaso que ela quebrou e agora está colando

umas fitas adesivas, só pra ter o vaso de volta, não importando como.

— Você tá se sentindo uma ‘coisa’ dela.

— Uma ‘coisa’ quebrada. Agora eu sei o que significo para ela. Como
pude me enganar tanto?

— Só não se culpe.

Jennifer se virou, olhando para Becca.

— E o que eu faço com essa coisa gigante que eu sinto por ela? Eu amo

tanto aquela idiota.

— Transforme em amor próprio.

Jennifer deu uma risada abafada.

— Simples assim.

— Você acha que Anna te ama? — Becca perguntou com uma voz

cuidadosa.

Jennifer pensou por um instante, com um ar hesitante.


— Acho que não.

— Bom, então bola pra frente. Tente ocupar sua mente... Preparada para
receber suas primas e Susan amanhã?

Jennifer fechou os olhos.

— Ah não... Me mate por favor...

Becca a olhava, pensativa.

— Eu acertei minha previsão.

— Qual?

— Que Anna te procuraria na terça.

Jennifer sorriu maldosamente.

— Eu deveria ter falado para Anna que ia colocar Susan para dormir na

minha cama, por falta de colchões extras, para ser a malvadona que ela acha que
sou.

— E eu queria ver a cara dela.

***

Era estranho ver suas duas primas, Carly e Amanda dentro do seu
apartamento, mas era ainda mais estranho ver Susan ali.

— Meninas, eu nem preciso falar, né? Fiquem à vontade, joguem suas


coisas por aí, e se derem sorte podem até achar comida na geladeira. — Jennifer

falou largando duas pesadas bolsas na sala.


Carly, de dezoito, e Amanda de dezesseis, eram duas adolescentes com
longos cabelos lisos castanhos quase claros, diferiam principalmente pelos olhos

azuis de Amanda, e o temperamento mais genioso de Carly. E Susan, apesar dos

seus tenros dezoitos anos, parecia já menos adolescente que suas amigas, tinha
os cabelos loiros e cacheados, na altura dos ombros, um pequeno nariz bem

formado e covinhas que surgiam quando sorria, o que fazia com frequência.

— Relaxa prima, a gente se vira.

Foi até a porta do seu quarto e apontou com a mão.

— E esse será o quarto de vocês nos próximos dias. Se a cama for


pequena para vocês três, já providenciei um colchão, está embaixo da cama.

— E você?

— Vou ficar com o sofá.

— Não é justo.

— Já dormi centenas de vezes nesse sofá. E por vontade própria.

— Então te expulsamos da sua cama.

— Tudo bem, estou feliz em ter vocês aqui garotas. — Falou sorrindo
para elas. — Querem descansar?

Se entreolharam e Carly respondeu.

— Na verdade essa é a última coisa que queremos fazer por aqui.

— Ótimo, vou levar vocês para jantarem então. No carro em trinta


minutos?

— Quinze!

***

No dia seguinte, após uma tarde rodando por pontos talvez não muito
turísticos da cidade, subiam as escadas do prédio de Jennifer.

— Você já tinha esse carro, Jenny? — Carly a questionou, entravam no

apartamento.

— Não, e sintam-se lisonjeadas. Comprei principalmente para passear


com vocês.

— Ah, que legal!

— Imagina, como levaria vocês no zoológico ou no parquinho?

Todas riram.

— Não precisava ter gasto essa grana toda.

— Que nada, esse carro é da idade da Amanda, saiu bem menos do que

imaginam.

Jennifer se atirou no sofá e ligou a TV.

— E aí, querem pedir pizza?

— Na verdade estávamos pensando em sair... Tipo, sair de verdade hoje.


— Susan falou, recebendo olhares corroborativos das outras duas.
Jennifer inclinou a cabeça para trás.

— Tipo, algum bar, ou algo assim?

— É, onde vocês costumam ir?

— Bom, numa quinta-feira, tem um pub que frequentamos, hoje abre,


mas não sei se a Amanda vai poder entrar, por causa da idade.

— Podemos tentar, não podemos? — Carly falou, sentada no braço do

sofá.

— Só se vocês prometerem se comportar.

— Claro!

Vibraram entre elas.

— Saímos lá pelas dez, tá bom? Me deixem esticar as pernas aqui no


sofá um pouco.

Jennifer estava se sentindo mais à vontade e até se divertindo com as três

garotas como companhia, mas sempre que pensava em Anna era tomada por

uma nuvem de tristeza. Susan não havia tocado no assunto do caso que tiveram
em Montreal e estava apenas sendo uma amiga de suas primas, uma companhia
divertida e agradável.

Estava se esforçando para não pensar muito em Anna nem transparecer

para as meninas o quanto estava devastada por dentro, mas nem sempre com
sucesso, elas já haviam perguntado algumas vezes se estava tudo bem.
As dez partiram para o pub do Oscar, e depois de um pouco de conversa
com ele, Amanda pode entrar, com a condição de ficar só até meia-noite. O local

não estava muito cheio e ficaram próximo ao palco, onde uma banda de pop/rock

se apresentava. Susan e Carly voltaram do bar com três canecos, e entregaram


um para Jennifer.

— Passo.

— Não está bebendo?

— Hoje não, estou de babá. — Riu.

— Ah, que besteira!

— Só não deem esse caneco para Amanda, ela vai ficar no refrigerante

hoje também.

A noite transcorreu de certa forma triste para Jennifer, estar ali no pub
não era exatamente o melhor lugar para se curar das feridas do relacionamento

recém terminado.

— Seus amigos não costumam vir aqui às quintas? — Carly perguntou.

— Raramente. É difícil trabalhar de ressaca no dia seguinte.

— Podemos marcar com eles amanhã então.

— Vocês querem vir aqui amanhã de novo?

— Eu gostei. — Susan respondeu.

— Eu também quero. — Falou Amanda.


— Vou pensar no teu caso, garotinha. Então vou chamar o pessoal sim,
pode deixar.

— Anna também? — Susan perguntou.

Jennifer sentiu um estremecer por dentro.

— Vou convidar todo mundo. — Desconversou, com uma expressão

séria.

E Jennifer não sorriu no restante da noite.

— Crianças, já passa da meia-noite, é hora de pagarmos a conta e


pegarmos o rumo de casa.

Ela viu as feições decepcionadas de todas e continuou.

— Amanhã tem mais.

Seguiram para a saída e Jennifer estava no caixa na antessala esperando a

atendente somar as comandas.

— Jenny, vamos esperar lá fora, ok?

— Beleza.

Saiu guardando o troco, sentiu aquele ar frio contrastando com o abafado


do interior, fechou o casaco e olhou rapidamente ao redor, então as viu ao lado

do carro, no final da calçada. Caminhou na direção delas e percebeu que estavam


acompanhadas, um homem conversava com elas. Jennifer o ignorou e foi logo
para a porta do motorista.
— Vamos meninas, vamos entrando no carro.

O homem, talvez um frequentador do pub, mas que aparentava estar um


pouco alterado, tinha um porte atlético e um ar presunçoso. Quando ouviu as

palavras de Jennifer a impediu de abrir o carro, se colocando entre ela e a porta.

— Estou conversando com elas, não está vendo? — Ele falou.

Jennifer olhou um pouco surpresa, nada respondeu, e sem muita

paciência o empurrou para o lado, colocando em seguida a chave na fechadura.

Mas ele interrompeu o movimento e segurou seu braço. Jennifer olhou

arregalada para ele.

— Solte minha prima! — Amanda se manifestou, assustada.

Jennifer puxou o braço com raiva, se soltando.

— Por que você não vai chutar umas bolas por aí, ao invés de importunar
garotinhas? — Jennifer falou sem se alterar, não era um bom dia para irritá-la.

— Por que eu decidi ficar aqui conversando com vocês, e daqui vocês
não saem.

— Olha, sério, é melhor você se arrancar daqui. Tipo, agora mesmo. —


Jennifer começava a se exaltar.

— Senão o quê? Você vai buscar seu namoradinho nerd para me bater?

Jennifer deu um passo para trás e desferiu um chute entre as pernas dele,
que se curvou com as mãos em cima do local atingido. Ela fechou os punhos,
deu um murro com a mão direita no seu rosto, e em seguida um gancho mais

forte com a esquerda, o derrubando no chão.

O olhou com olhos brilhantes de ira, e falou.

— Não, ‘eu’ vou te bater, seu desgraçado.

Sacudiu as mãos no ar, com dor por causa dos socos desferidos, abriu a

porta. As garotas olhavam estarrecidas.

— Vamos pessoal, o show acabou.

Susan sentou-se ao seu lado e logo seguiram para casa, Jennifer estava
séria.

— Você é canhota? — Susan rompeu o silêncio.

— O quê? Ah, não. — Sorriu de lado. — Mas me ensinaram uns truques

com a mão esquerda.

Naquela noite não houve muita conversa, foram logo dormir sem

questionar o que haviam presenciado. No dia seguinte, conforme prometido,

Jennifer às levou novamente ao pub, desta vez Becca e companhia também


foram.

As meninas dançaram, se divertiram e pareciam estar aproveitando as

férias com sua prima mais velha. Jennifer, encostada com o ombro numa pilastra
e segurando um copo de refrigerante já na temperatura ambiente, as observava.

Estava aliviada por estar sendo uma boa anfitriã, e era bom ter as garotas
ocupando seu tempo. Mas naqueles momentos em que ficava sozinha consigo

mesma, esses eram os piores. Achava que com o passar dos dias seu coração iria

descansar, mas parecia cada dia mais indomado. Às vezes tinha vontade de sair

no meio da noite e correr para a casa de Anna, como fez na noite de ano novo.
Mas como num flashback de um filme, aquela conversa no terraço surgia, as

palavras dançando ao seu redor, e a vontade era preenchida por desapontamento.

Susan se aproximou, ficando ao seu lado, também olhando para a pista,

com seu chope na mão.

— Você está fazendo falta nessa pista, é o estilo musical que não está

agradando?

Jennifer deu uma olhadela e sorriu.

— Daqui a pouco.

— Sabe, achei legal você me receber assim na sua casa, sendo tão

hospitaleira e tal.

— Não teria porque ser diferente.

— Não sei, pelo jeito como você foi embora. Achei que... Sei lá, eu
tivesse feito algo errado.

— De forma alguma... Sério? — Olhou para Susan. — Desculpe ter feito


você se sentir assim, você não fez nada de errado.

— Então não aconteceu nada?


— Não, eu só precisava voltar. — Olhava novamente para seu copo.

— Entendi... — Também ficou olhando seu caneco. — E valeu a pena?


— Continuou.

Jennifer deu um sorriso meio irônico e balançou a cabeça positivamente.

— É... Valeu.

— Por que Anna não veio hoje?

Antes que Jennifer esboçasse reação suas duas primas a tomaram pela

mão e a levaram para a pista.

— Mas eu só danço quando bebo!

— Então vamos mudar isso hoje! — Falou Carly.

Era quase uma da manhã quando Jennifer chamou todas para irem
embora, dessa vez sem percalços no estacionamento.

— Todas para a cama porque amanhã é dia de zoológico. — Jennifer

falou ao entrar em casa.

— Ah, fala sério! — Amanda reclamou.

— Lógico que não, amanhã vamos num lugar que era ponto de encontro
de usuários de drogas, mas hoje em dia tem várias pistas de skate, e skatistas,

óbvio.

— Aee! — Vibraram.

A madrugada corria como um relógio silencioso, Jennifer dormia


pesadamente no sofá, quando foi desperta com alguém sentando ao seu lado.

— O que você está fazendo aqui?

Era Susan.

— Você e Anna terminaram, não terminaram?

Jennifer acabou acordando completamente, um pouco confusa. Ajeitou-


se no sofá, suspirou pesado.

— Sim, terminamos.

— E pelo visto é recente.

— É sim, é bem recente.

Susan a fitava com um olhar quase sofrido.

— Eu não te esqueci, Jenny, eu não consegui te esquecer.

Jennifer levantou-se lentamente, apoiando-se com os cotovelos, ficou

sentada frente a frente com Susan.

— Sue, o que tivemos em Montreal foi... Legal, eu gostei daqueles dias


com você...

Susan a interrompeu, colocando um dedo sobre seus lábios.

— Não, sem os velhos clichês.

Deslizou seu dedo sobre seu lábio, se aproximou e falou em seu ouvido.

— Não foi apenas diversão, foi? Para mim não foi.


Correu sua boca na pele de seu pescoço, deixando Jennifer arrepiada, não
só no pescoço. Subiu então sua boca até a boca de Jennifer e a beijou.

Jennifer a correspondeu, numa bagunça de pensamentos e sensações,

colocando sua mão na nuca de Susan, mas logo a interrompeu.

— Não posso... Sinto muito. — Falou, olhando incomodada para baixo.

Susan a olhou desolada.

— Por causa de Anna? Você acha que ela já não está te esquecendo? Ou

talvez até com outra pessoa?

Aquilo a incomodou imensamente, mas poderia ser verdade. Jennifer a

olhou entristecida.

— Sue, você me encontrou no meu pior momento. Você é uma garota

adorável, foi bom o que tivemos, mas eu não consigo... Agora não.

— Ela não está esperando por você.

— Eu sei, eu também não irei atrás dela, mas eu estou destruída, eu

preciso de um tempo para me reerguer... Eu não sou aquela Jennifer que você
conheceu em Montreal, sou apenas uma sombra dela, um fantasma, que está se
esforçando para não deixar isso estragar as férias de vocês.

Susan acariciou seu rosto com um olhar carinhoso. Jennifer a


correspondeu.

— É melhor você voltar para o quarto. E tente não me odiar.


Ela sorriu.

— Impossível odiar você, ma chérie.

***

Susan não voltou a tocar no assunto nos dias que se seguiram, naquela
terça-feira Jennifer as deixou no aeroporto.

— Visitarei vocês em breve, prometo.

E aqueles seis dias estranhamente incomuns haviam acabado. Quando

voltou ao seu apartamento, percebeu o que mais temia.

— Sozinha de novo. — Murmurou para si, enquanto andava pela sala.

Naquele mesmo dia recebeu uma mensagem de Bob no celular.

— Vai ter uma banda bacana sábado no pub, te vejo lá, ok?

— Para estar recebendo convite especial seu, deve ser o U2 em pessoa,


ou a banda do seu primo. — Respondeu.

No final de tarde de sexta-feira Anna estava em frente à sua casa,

fazendo alguns ajustes em sua moto, quando viu um carro entrando pelo seu
portão, logo reconheceu quem dirigia.

— Olá, moça, estou atrapalhando?

— Oi Bob, não, só estou bancando a mecânica aqui. — Falou ficando de


pé, limpando as mãos numa flanela, não disfarçava a surpresa da visita.

— Como vão as coisas?


— Ãhn... Tudo em paz. Quer entrar?

— Não, não, só vim aqui dar um oi e te fazer um convite.

— Sim?

— Amanhã nós todos vamos ao pub, bom, isso não é lá muito novidade...
Mas eu acho que seria legal se você fosse também, sair um pouco.

— Jennifer vai?

— Bom, acho que sim, eu também a convidei para reforçar, sabe.

— Não acho que ela queira me ver.

— Eu sei... Mas eu acho que pode ser uma boa oportunidade para

conversarem, de uma forma mais descontraída. E mesmo que vocês não tenham

uma conversa reconciliadora, vai ser legal você curtir um pouco, nós ainda

somos seus amigos, vá com a gente.

— Não sei se é uma boa ideia, Bob. Talvez minha presença estrague a

noite de vocês.

— O que pode dar errado? Vamos curtir um som e beber um pouco.

— Eu vou pensar com carinho no seu convite, está bom? É o máximo

que posso prometer.

— Acho que me contento com isso. — Sorriu.

— Obrigada... Pela tentativa, pelo convite.

— Te vejo amanhã, então!


Se recostou na moto e ficou vendo Bob saindo de carro.

— O que pode dar errado? — Era uma pergunta bem perigosa.


Capítulo 24 - Laura

Jennifer e todo seu grupo estavam reunidos de pé, num dos cantos do

pub, conversando e bebendo sem maiores pretensões. A garota ruiva já havia

passado por lá e tiveram uma rápida conversa.

— Essa é a banda bacana que você falou? É a mesma da semana passada,


e não é lá essas coisas, eles têm obsessão pela década de setenta. — Jennifer

questionou Bob.

— Ah, eles são bons, apenas tem um repertório limitado.

Era a terceira semana de abril e a primavera estava no seu auge, naquela

noite o clima estava agradável, Jennifer estava sem casaco, apenas com uma

camisa azul clara de botões, com as mangas dobradas até acima do cotovelo, e

jeans. Os cabelos presos. Quando não estava conversando com seus amigos,

estava olhando cabisbaixa para seu caneco, deslizando o polegar pela borda de

vidro, como se procurando pelo ânimo perdido.

— Mas vou embora cedo hoje, tá bom?

Quando terminou de falar, olhou eventualmente na direção da entrada e


rapidamente suas sobrancelhas baixaram, sentiu um arrepio na espinha, Anna

caminhava na direção dela.

Quando chegou no grupo cumprimentou todos, Jennifer primeiramente.

Anna trazia uma expressão um pouco nervosa, mas se esforçava para deixar o
clima leve, evitava pensar que aquela seria talvez sua última chance de fazer as

coisas darem certo e ter finalmente sua amada de volta. Não sabia ao certo como
abordá-la, nem quais palavras a desarmariam, era Jennifer que era boa nisso, em
desarmá-la, será que não havia aprendido nada durante esse tempo?

— Pela sua reação Bob não te falou que eu viria.

— Bob? O que ele tem a ver com isso?

— Ele me convidou. Mas não o recrimine, ele estava bem-intencionado,

ele só queria ajudar.

— Claro, tudo faz sentido agora. Tudo bem, o pub é público.

— Como você está?

— Não melhor que você.

Ficaram em silêncio por um momento.

— Quer conversar lá no terraço? — Anna convidou.

— Nem que acontecesse uma invasão de ratazanas aqui que eu subiria

naquele terraço com você hoje.

— Ok, conversamos aqui então.

— É muita pretensão sua achar que quero conversar com você.

— Eu vim em paz.

— Só faltou o ‘terráqueos’ no final da sua frase... Bom mas eu não,

klaatu barada nikto para você.


— O quê?

— O filme, ‘O dia em que a terra parou’. Ah deixa pra lá... Se bem que
esse filme é da sua época, você deveria conhecer.

— Entendi. — Respondeu baixinho.

Jennifer lançou um olhar arrependido.

— Olha, desculpe, não quero discutir e também acho que não temos mais

nada para conversarmos. Nossa, isso soou tão clichê.

— Tudo tem sido um clichê ultimamente... Todas aquelas coisas que


costumam acontecer nos filmes.

— Que tipo de filme, comédia romântica ou terror? — Jennifer falou

com um sorriso irônico.

— Depende do que você quer.

Já haviam se afastado um pouco do pessoal, estavam mais próximos da

parede escura, embaixo de um letreiro neon azul. Jennifer se recostou na parede

e Anna permanecia à sua frente, como se tentando ter toda sua atenção naquele
momento.

— Não coloque isso como um problema que eu preciso resolver.

— Eu já te pedi desculpas, já te falei que sinto muito. E... Eu tenho me

sentido péssima por tudo que falei para você.

Jennifer evitava cruzar seu olhar com o de Anna, desviava quase o tempo
todo.

— Você foi cruel... E foi tão fria depois na sua casa. — Jennifer
respondeu com certa mágoa em sua voz.

— Eu nunca te faria mal... Você esteve todo esse tempo ao meu lado,

sabe que esse não é o meu comum, você me conhece.

— Eu achava que conhecia.

Anna se inclinou para frente e colocou uma das mãos espalmadas na

parede.

— Sinto sua falta...

Jennifer desta vez correspondeu ao olhar de Anna.

— Eu também sinto a sua, mas não posso ficar com alguém que não

confia em mim.

— Eu confio.

— Não, não confia. Você só acredita no que você quer.

Anna tirou sua mão na parede, voltou a ficar apenas na frente de Jennifer.
Não achou as palavras certas para falar naquele momento, e não falou nada.

— Foi por ciúmes? Tudo aquilo foi por ciúmes? Porque se foi, isso tem

tratamento, tem bons psicólogos na cidade. — Jennifer realmente tentava


entendê-la, mas faltavam muitas peças no quebra cabeça.

— Eu diria que você não passa muita segurança para quem está ao seu
lado.

— O que você quer dizer?

— Você está sempre olhando para outras garotas, flertando com elas,
mesmo quando estou com você.

— Sério que você está me acusando disso? Eu apenas olho, todo mundo

olha, você também pode olhar para outras garotas se quiser, ou garotos... Mas

nunca passou disso, nunca flertei de fato com ninguém.

— Isso é desrespeitoso, faz quem está com você se sentir descartável.

— Eu não sabia disso, não sabia que você se sentia assim, mas de

qualquer forma não vejo isso como falta de respeito. Anna, você tem um

problema sério com comunicação, eu não tenho como adivinhar tudo que você

está sentindo.

— Para você tudo é simples. — Anna desviou o olhar, juntamente de um

suspiro.

— E não é para ser simples?

— Eu queria que fosse... Mas para mim é tudo bastante complexo, até
mesmo pequenas coisas. Eu nunca estive num relacionamento como este.

— Por que é com uma mulher?

— Porque é com você. Mas sim, também tem esse fator.

— Eu sabia que mais cedo ou mais tarde você iria jogar a culpa nesse
‘fator’.

— É... É um fator e tanto. Pelo menos homens são simples.

O sangue de Jennifer ferveu um tantinho naquele momento.

— Anna, você não nasceu para namorar com mulheres, ponto final.

— E eu sabia que mais cedo ou mais tarde você usaria esse argumento
também, da mesma forma que você falou isso para sua prima.

— Por quê, aquilo te irritou? Se irritou é porque você sentiu o fundo de

verdade na brincadeira. Sério, não quero te julgar por você ser quem você
realmente é. Eu que quebrei a regra básica de não me envolver com héteros,

nunca termina bem.

Se os corações de ambas pudessem se comunicar entre eles naquele

momento, aquela discussão simplesmente nunca ocorreria. Todas aquelas


palavras proferidas eram apenas reflexo da mágoa latente, não era reflexo do que

sentiam verdadeiramente em seus corações.

O sangue de Anna também já estava um pouco mais quente que o normal

àquele ponto.

— Você ficou com aquela francesa, essa semana, não ficou?

— Lá vem você tirando suas próprias conclusões de novo, já está ficando


chato isso.

— Bom, pelo visto estou perdendo meu tempo aqui. Você já deve ter
alguém engatilhado para esta noite, não quero atrapalhar seus planos.

— Não, fique à vontade, tem um monte de caras legais aqui hoje.

— É, quem sabe eu encontre alguém com quem possa ter uma conversa
adulta.

— Vou ver se encontro alguma garotinha descartável. Mas aproveite a

noite.

— Farei isso. — Anna respondeu com sarcasmo.

Jennifer estava irada, saiu rapidamente da parede onde estava e foi para o
banheiro. Lavou o rosto várias vezes, deu uma boa olhada no espelho, se

enxugou e subiu ao terraço, para tentar ventilar seus pensamentos.

Ficou não mais que dez minutos lá, com os braços apoiados na soleira do

parapeito. Uma corrente de vento a pegou de surpresa, gostou daquela sensação


fria, levantou a cabeça, fechou os olhos. O vento frio transpassou o fino tecido

de sua camisa e atingiu sua pele, arrepiando. De repente sentiu um arrepio maior,

uma sensação de terror, abriu os olhos.

— O que estou fazendo?? — Falou baixinho, com uma feição confusa.


— Eu não vivo sem essa mulher.

Se dirigiu à escada certa do que tinha que fazer, era hora de colocar um
ponto final naquele clima desnecessariamente hostil, e ela não pretendia usar

palavras para falar isso. Desceu com passos rápidos os degraus, contornou o bar
e parou de repente.
Pode ver lá no canto mal iluminado onde estavam seus amigos, Anna
conversando animadamente com um amigo de Bob. Ela parecia interessada na

conversa, e Jennifer não queria nem imaginar se era somente na conversa,

abortou seu plano e sentou-se numa das cadeiras altas do bar.

— Uma margarita. Dose dupla de tequila, viu?

— É pra já!

Virou o drinque sem pestanejar. E pediu outro, também duplo.

— A terceira, porque três é meu número da sorte! Nem preciso dizer que

é dupla, não é? — Pediu outro drinque.

Terminou de beber e relanceou os olhos para trás, Anna continuava

conversando de forma empenhada, gesticulava.

Largou a taça no balcão, levantou-se e sentiu a tequila agindo sobre seu


equilíbrio, caminhou até o canto oposto, próximo ao palco, onde havia um

pequeno grupo dançando.

Se colocou na frente da garota artificialmente ruiva e sorriu, começaram

a dançar juntas, uma de frente para outra. Bastou apenas uma música, e Jennifer
passou seu braço ao redor da sua cintura, a puxando para um beijo, um beijo
lascivo e sem previsão de terminar. Naquele momento tentou não pensar em

nada, em ninguém, apenas converteu seus sentimentos perturbados naquela


atitude impensada.

Terminou o beijo, a garota a abraçou e continuou beijando seu pescoço.


Abriu os olhos e pode ainda ver Anna saindo pela porta frontal do pub.

***

— O que é isso?

— Aspirinas, sei que você está precisando. — Becca falou após jogar um
frasco de remédios em Jennifer, que dormia no sofá de seu apartamento.

— Apaga a luz... — Resmungou, colocando uma almofada em cima do

rosto.

— Não posso apagar a luz do sol, Jenny, já passa das onze da manhã. —
Sentou-se no sofá menor ao lado.

— Seu sarcasmo e aspirinas não vão me ajudar muito.

— Eu sei do seu arsenal no criado mudo, mas aspirinas sempre ajudam.

— Deixe meu pequeno arsenal em paz, ok? — Tirou a almofada do rosto.

— Cara, você enfiou o pé na jaca ontem, o que foi aquilo?

Voltou a cobrir os olhos com a almofada.

— Nem me fale.

— Eu estava conversando com Jim ontem, sobre quem é a cabeça dura


da relação de vocês, e depois de levantar alguns pontos chegamos à conclusão

que é empate técnico.

— Somos boas nisso.


— Você havia me falado que não tinha o menor interesse naquela pseudo
ruiva, porque ficou com ela?

— Me deu vontade.

— Mas Jenny, na frente de Anna? Você pegou pesado, e olha que nem

vou muito com a cara dela.

— Anna já estava entretida por outra pessoa, eu fui me entreter com a

garota ruiva.

— Leonard? O amigo de Bob? Ele é gay!

— Não importa. — Tirou a almofada de cima dos olhos. — Becca, eu

juro, eu estava determinada a fazer as pazes, mas quando a vi cheia de sorrisos

para cima daquele cara eu... Fiquei muito, muito puta da vida. Não me orgulho

do que fiz.

— Anna ficou transtornada, mal se despediu de nós e se mandou.

— Podemos mudar de assunto? A ressaca moral aqui já está grande o


suficiente.

— Ok... Jim vai trazer almoço para nós.

— Santo Jim... Como vocês estão?

Becca ligou a TV e se ajeitou no sofá.

— Normal, estamos numa fase boa. Ele é bem ocupado, mas sempre
arranja um tempinho para ficar comigo.
— O que ele faz?

— Trabalha com o pai, que é músico, então está sempre fazendo


pequenas viagens.

— É bom para a relação, nunca vai cair no tédio.

— É... Só não é legal quando ele viaja para longe. Mês que vem ele vai

para a Escócia de novo.

— A trabalho?

— Não, é algum compromisso do pai. Ele não fala muito sobre essas
coisas, é alguma coisa com seis grupos de alguma coisa.

Jennifer olhou assustada para Becca.

— Que tipo de coisa?

— Não sei, acho que é uma reunião política, algo assim. Por que você

está me olhando desse jeito?

— Só curiosidade.

— Hum.... Você acha que ele está mentindo?

— Não, não... Só deve ser algo chato demais para ele entrar em detalhes.
E o pai dele, é líder de um desses grupos?

— Líder? Como assim?

— Não, nada, deixa pra lá. Pega uma água para mim? Para tomar com

essa aspirina.
— Sobre seu arsenal... Você anda, você sabe, usufruindo dele?

— Também não quero falar sobre esse assunto.

— Não faça, ok?

— Becca... Não.

***

Foi uma semana péssima para ambas, uma das piores e mais nebulosas

dos últimos tempos. De um lado, Jennifer passando mais tempo no cantinho da

reflexão que no trabalho propriamente dito. De outro, Anna pegando todas as


missões possíveis junto a Max, preenchendo suas noites com bastante ação. E

era de dar pena dos Titans que cruzavam seu caminho nestas missões. Além de

que àquela altura já estava precisando dos serviços de um decorador, devido ao

número de coisas quebradas no interior de sua mansão.

Sexta-feira no final da tarde Jennifer subia preguiçosamente as escadas

de seu prédio e deu de cara com um pacote de papel pardo, enrolado por cordões

de sisal, no chão em frente à sua porta. Não havia nada escrito.

Pegou e entrou em casa, colocou em cima da mesa e arrebentou os


cordões com as mãos. Abriu o embrulho e automaticamente reconheceu o
conteúdo. Eram suas coisas. Suas coisas que estavam na casa de Anna. Algumas

roupas, livros, escova de dentes e o cordão de prata com o pingente de lince.


Sentiu uma fisgada no coração quando viu este último item.

Naquela noite Jennifer foi para o pub sozinha, Bob e Becca não iriam,
mas sabia que encontraria conhecidos por lá. Estava decidida a apenas se

divertir, ou pelo menos tentar. Já bastava a semana angustiante e quase paranoica

que teve, remoendo os últimos acontecimentos, iria tentar apenas beber e dançar.

Encontrou Samantha e Lindsay, duas irmãs amigas suas, e passou a noite

do jeito que planejou, bebendo, conversando e dançando. Mas passava de uma


da manhã e sentia falta de algo mais forte, aquilo tudo apenas a havia entediado.

Estava bebendo seu sétimo chope quando teve uma ideia.

— Meninas, estou indo nessa.

— Já vai para casa? O som vai até às duas hoje.

— Não, não vou para casa. — Sorriu maliciosamente.

Pagou sua comanda, vestiu sua jaqueta de couro preta e seguiu já com

certa embriaguez para seu carro. Arrancou com os pneus cantando e pegou o

rumo da Cidade Velha, iria ao pub do Joel, de longe o lugar que ela mais tinha

curiosidade em conhecer.

Era um conglomerado de prédios malconservados e com aparência ruim,

sabia qual era a rua, mas não exatamente onde era o bar. Andou em velocidade
bem reduzida, olhando placas e letreiros, pode ver um pequeno letreiro luminoso
com as luzes falhando, que dizia o nome do bar. Parou em frente do pequeno

prédio cinza e subiu uma escada estreita de degraus de piso vermelho.

Entrou no ambiente, era escuro e parecia ter uma leve neblina ocupando

o ar do local. Havia mesas redondas espalhadas e um balcão marrom seguindo o


comprimento do bar. Um som ambiente, mais alto que um som ambiente normal,
parecia ser ignorado pelos frequentadores, que estavam quase todos sentados ao

redor das mesas e absortos pelas suas conversas.

Mais da metade das pessoas olharam curiosas para Jennifer, que ficou um

pouco sem jeito e sentou-se junto ao balcão do bar. Um simpático barman,


careca e aparentando uns quarenta anos, de sobrancelhas grossas e avental preto

surgiu em sua frente.

— Posso ajudá-la?

— Ãhn... Sim, uma margarita, por gentileza.

— Você tem idade para isso?

— Claro que tenho idade para beber. Você sabe, eu posso ter quarenta

anos, híbridos não aparentam sua real idade.

— Você tem toda razão... Mas você não é híbrida. — Sorriu.

— Você me pegou.

— Uma margarita saindo.

Entregou-lhe o drinque, mas continuou à sua frente, a olhando.

— Você está esperando alguém?

— Não, estou por minha conta. Hey, você é o Joel?

— Esse é meu nome. Foi alguém que indicou esse bar a você?

— Sim, uma amiga híbrida.


— Qual o nome dela?

— Anna.

— E você é a namorada dela.

— Não! Quer dizer, já fui.

Jennifer estava intrigada.

— E ela te contou que nós híbridos temos o poder de adivinhar o nome

das pessoas? — Joel falou com um ar de mistério.

— Ah é? E como funciona isso? — Jennifer entrou na brincadeira, se

inclinou para frente e colocou os braços sobre o balcão.

— Eu coloco a mão sobre sua testa e pronto, descubro seu nome.

Jennifer riu.

— Ah, claro.

— Posso tentar?

— Fique à vontade.

Colocou a mão sobre sua cabeça, fechou os olhos. Abriu os olhos e olhou

seriamente para ela.

— Seu nome é Jennifer.

— Ah, fala sério, você viu escrito em algum lugar!

— Que eu saiba você não está usando nenhum crachá.


— Tá, como você descobriu?

— Anna é minha amiga, ela me contou sobre você.

— Ela esteve aqui? — Jennifer perguntou séria.

— Você diz, hoje?

— Hoje, recentemente...

— Não, a última vez que esteve aqui foi no ano passado. Mas nos

falamos às vezes. Esperava encontrá-la aqui?

Jennifer hesitou um pouco antes de responder, talvez inconscientemente

era o que ela estava fazendo de fato.

— Não, não... Só vim conhecer mesmo. E quem sabe me divertir um

pouco.

— Hum, recém solteira em busca de diversão, acertei? — Piscou e

sorriu.

— Mais ou menos isso. Na verdade, eu sempre tive curiosidade em saber

como era seu pub, quem frequenta, e tal...

— Híbridos, em sua maioria.

— É, isso eu imaginei. Mais uma bebida por favor?

— Claro, num instante.

Jennifer girou o banco e deu uma olhada ao redor, dando uma boa

analisada nos frequentadores e no ambiente, agora já estava mais à vontade. Era


diferente do que imaginava, havia criado uma aura underground em sua cabeça,

um ambiente marginal com pessoas desinteressantes. Mas em poucos minutos já

percebia vários tipos notáveis, uma mesa em particular havia chamado sua

atenção, eram cinco mulheres com o mesmo ar misterioso de Anna, porém


pareciam bem mais sociáveis, e conversavam animadamente entre elas.

Voltou a ficar de frente com Joel e bebeu sua margarita. Quando o

barman se aproximou, o chamou.

— Joel, eu sei que não é muito ético, mas... O que Anna falou de mim?

— Realmente aqui é quase que um confessionário.

— Mas você não é padre.

— Você me pegou. — Sorriu. — Bom, basicamente ela estava afogando

as mágoas porque a humana por qual estava apaixonada a havia trocado por uma

francesa.

— Hum... Mas depois eu destroquei. — Riu torto.

— Tempos depois a encontrei no centro numa tarde, e ela me contou que

estava indo viajar com a namorada. Eu estranhei um pouco, nunca soube que ela
havia se envolvido com uma mulher antes, ainda mais uma humana, mas nunca é
tarde para se tentar truques novos, não é mesmo?

— Mas não deu certo. — Jennifer retrucou desanimada.

— Que pena, me parece que tiveram bons tempos juntas, no final é isso
que importa.

— Bom, mas agora quero ter bons tempos com a tequila, me traz outra?

Novamente correu os olhos naquela mesa mais ao canto, uma das garotas
a olhava, e Jennifer voltou a virar para frente um pouco confusa.

— Ah, não, outra híbrida não... — Pensou com seus botões, que àquela

altura, já estavam abertos na parte de cima da sua camisa.

Mas aqueles segundos antes de se virar foram suficientes para notar o

quão interessante era aquela garota. Bebeu seu drinque e voltou a falar com Joel.

— Aquela mesa, mais ao canto esquerdo, conhece as garotas?

— Estão sempre por aqui.

— Aquela de cabelos pretos, e óculos...

Joel a interrompeu.

— Essa que está vindo falar com você? — Joel riu.

— Joel, eu vou querer o que ela está bebendo. — A garota falou,

sentando-se no banco alto ao seu lado e apontando com a cabeça para Jennifer.

Jennifer sorriu um pouco encabulada.

— Foi uma boa escolha. — Respondeu.

— Laura, prazer.

Laura era uma simpática híbrida, com os cabelos negros e compridos,


usava óculos com armação de acetato preto, que lhe dava um certo ar hipster.
Estava com uma blusinha preta que deixava à mostra uma grande tatuagem

colorida no braço, que começava no cotovelo e Jennifer deduziu que ia até o

ombro.

Jennifer a olhou, de perto pode ver o quão verdes eram seus olhos, suas
sobrancelhas eram finas, arqueadas, era daquelas garotas que mesmo sem

esforço tinham um olhar sexy, em conjunto com uma grande boca. Aparentava

uns trinta anos e era ainda mais alta que Anna.

— Jennifer. — Respondeu brindando sua taça com a dela.

— Eu ia perguntar se você errou de bar, mas achei que soaria um pouco

grosseiro da minha parte, então deixa eu reformular a pergunta: acertou de bar?

— Ainda estou descobrindo.

— Mas você sabia o que queria quando entrou aqui.

— Não, acredite. Só resolvi desbravar novos horizontes.

— Eu gosto de garotas curiosas, você nunca se entedia com elas.

Jennifer olhou de relance para ela, que sorria com o mais malicioso dos
sorrisos. Sorriu também e pediu outro drinque. — Foda-se. — Pensou para si.

— Você veio até aqui porque é incumbida de dar as boas-vindas às


humanas que caem de paraquedas no bar?

— Exatamente... E você gostaria de saber o que está incluso no pacote de


boas-vindas?

— Espero que bebida grátis.

Laura riu.

— Venha, sente-se conosco. — Falou levantando-se.

Jennifer a seguiu até a mesa e sentou ao seu lado, Laura à apresentou ao


restante das garotas. A tequila, mais o chope no pub anterior, haviam soltado

todas as amarras possíveis.

— E então, o que você faz além de dar boas-vindas às novatas? —


Jennifer perguntou.

— Trabalho bastante... E brinco de tocar baixo numa banda.

— Ah é? Qual o nome da banda?

— Você vai rir...

— Provavelmente.

— Os Tangerinas.

Jennifer balançou a cabeça sorrindo.

— Era para ser tipo, uma banda de ruivos?

— Quando entrei já tinham o nome, então não faço ideia da origem.

— Já que você não sabe a origem poderia inventar algo para


impressionar as pessoas.
— Por exemplo?

— Que o nome é uma alusão à cor do uniforme usado nas penitenciárias,


e que a banda é formada por ex-presidiários.

Laura riu.

— Acho que não pegaria bem. Principalmente para mim.

— Por quê?

— Porque eu sou policial.

— Sério?

— Posso mostrar meu distintivo se quiser.

Foi a vez de Jennifer rir.

— Não, tudo bem, acredito em você. E eu não teria um distintivo para

mostrar de volta.

— E você, o que faz?

— Sou assassina de aluguel.

Riram.

Conversaram mais um pouco e Jennifer foi até o banheiro, instantes

depois pelo grande espelho preso no azulejo branco pode ver Laura entrando à
passos lentos, e a fitando através do espelho, ela só acompanhou com os olhos.

Laura encostou ao seu lado, recostando a cintura na bancada, de frente


para Jennifer. Levou a mão até os óculos e o ergueu no alto da cabeça, logo
Jennifer antecipou o que viria a seguir e a beijou, colocando Laura contra a

bancada. Trocaram um longo e ofegante beijo ali em frente ao espelho.

— Vamos para a minha casa. — Laura sussurrou ao fim do beijo.

Jennifer a olhou.

— Não. Mas eu adoraria que você me seguisse.

— Agora?

— Agora.

Pagaram a conta rapidamente e cada uma seguiu para seu carro. Jennifer

conduzia se esforçando para enxergar a estrada que parecia sumir da sua frente,

sentia um entorpecimento bem-vindo, já não se julgava nem julgava o que se

passava com sua vida, sentia-se livre.

Esperou Laura estacionar seu carro e pegou em sua mão, a levando

escadas acima até seu apartamento.

— Quer beber algo?

Antes que terminasse a frase Laura a abraçou pelas costas, entrelaçando


seus braços a frente de sua cintura, a beijando no pescoço.

— Acho que já bebemos o suficiente hoje. — Murmurou.

— Trouxe as algemas, policial? — Jennifer falou se virando.

— Não acho que preciso de algemas com você.


Laura a beijou e começou a abrir os botões da sua camisa. Logo que tirou
sua camisa, Jennifer a levou para o quarto.

— E para você, é oficial Hughes. — Laura falou a derrubando na cama.


Capítulo 25 - Frascos laranjas

Jennifer despertou sentindo como se tivesse passado por um ciclo

completo numa lavadora de roupas. Mesmo estando nua não havia ainda se dado

conta de como havia terminado aquela noite. Arrastou-se até o banheiro, tomou

um banho e vestiu-se. Abriu a porta do quarto e deu alguns passos pela sala, ia
até a cozinha beber água, a ressaca era grande.

— Bom dia! Gosta de ovos mexidos, não gosta?

Jennifer interrompeu seus passos e viu Laura na cozinha, em frente ao

fogão, lançando um sorriso de bom dia. Agora lembrava de tudo, ou quase tudo.

— Bom dia... Gosto, gosto sim. — Respondeu sem muita segurança, a

olhando surpresa. — Já volto. — Falou e saiu pela porta, indo até o apartamento

de Becca.

Becca via TV no sofá e levou um susto com a entrada de sua amiga.

— Bom dia, Jenny, que cara é essa?

— Tem uma híbrida preparando ovos mexidos na minha cozinha.

— Anna??

— Não, outra híbrida.

— O que você aprontou? — Becca a questionou perplexa.

— Eu a conheci num bar ontem e trouxe para casa. Não me lembro


direito, mas me pareceu uma boa ideia na hora.

— Certo, e você veio aqui pedir minha benção nesse seu novo namoro?

— Becca... O que eu faço com ela?

— Você que tem o costume de trazer garotas aleatórias para sua casa, o
que você fazia com as outras?

— Nada, elas iam embora assim que acordavam, não me davam um bom

dia sorridente enquanto faziam o café da manhã.

— Então case-se com essa.

Jennifer pensou por um instante.

— Ela me pareceu uma pessoa sensata, vou conversar numa boa com ela.

— Ok, boa sorte, então.

Jennifer virou-se e começou a caminhar de volta para a porta.

— Coma os ovos mexidos antes! — Becca bradou.

— Pode deixar.

— E eu estava brincando sobre se casar com ela, ouviu? Não case com

híbridas.

Jennifer apenas levantou o polegar e voltou para seu apartamento.

— Está servida? — Laura falou colocando duas xícaras na mesa.

— O cheiro está bom. — Falou já se sentando.


— Assustei você, não foi?

— Um pouco, para ser sincera. — Jennifer respondeu, encabulada.

Laura ajeitou os óculos e a fitou, sorrindo.

— E você deve estar pensando que sou daquelas loucas pegajosas que
acham que estão num relacionamento sério depois de uma noite.

— Não que você pareça ser...

Laura riu.

— Relaxa, só quis fazer uma coisa legal, gostei de você, só isso.

Jennifer realmente relaxou um pouco.

— E eu estou sendo mal-educada. Obrigada pelo café, os ovos estão

ótimos.

— E então, como se chamarão nossos filhos?

— O quê? — Jennifer parou o movimento do garfo que ia em direção à


boca.

Laura deu uma risada.

— Viu, você ainda não relaxou.

— Quase me pegou, quase.

— Saciou sua curiosidade?

— Qual delas?
— Ficar com uma híbrida.

— Ah, não, já fiquei com outras antes.

— Então é tipo um fetiche?

Jennifer riu.

— Chame do que quiser, eu prefiro chamar de carma.

— Um carma bom, claro.

— Todos os híbridos são assim modestos?

— Faz parte da nossa gama de qualidades. Bom, você deve conhecer a

maioria destas qualidades.

— Com certeza. — Suspendeu rapidamente as sobrancelhas, e voltou a

tomar o café.

— Alguma delas frequenta o Joel?

— Ãhn... Sim.

— Qual o nome?

Jennifer a olhou hesitante.

— Anna.

— Hum... Anna... Cabelos escuros, olhos azuis?

— É, essa mesmo.

— Conheço. Esteve no pub anteontem, inclusive.


— Não, você deve estar confundido, faz tempo que ela não vai ao pub do
Joel.

— Anna, que tem uma moto preta, grande, não é?

— É sim.

— Estava lá quinta sim.

— Claro, Joel a encobriu, é amigo dela. — Pensou.

— E ela saiu de lá acompanhada de algum cara? — Jennifer perguntou,

receosa.

— Não.

— Hum.

— Saiu acompanhada de uma garota.

— Sério?

Laura balançou a cabeça.

— Sim, Sharon, conheço só de vista.

— Quem diria...

— Algo me diz que ela não foi só uma aventura para você.

— Existem aventuras de todos os tamanhos, não é mesmo? — Jennifer


respondeu com um ar triste.

Laura terminou seu café e colocou sua mão em cima da mão de Jennifer.
— Infelizmente tenho que abandoná-la, meu turno começa em quarenta
minutos, tudo bem?

— Claro, o dever a chama.

— Você tem meu número, me ligue quando quiser um pouco de diversão.

— Eu tenho seu número?

Laura sorriu.

— Você pegou ontem à noite, mas tudo bem, eu também não lembro

como dirigi até aqui.

Levantou-se e a beijou antes de sair. A levou até a porta.

— É... Ela não é uma daquelas loucas pegajosas. — Jennifer murmurou

para si, aliviada.

— Então... Anna e uma garota? — Pensou, com um sorriso irônico nos

lábios, mas com uma dor dilacerante surgindo em seu coração.

***

Naquele sábado de manhã Anna resolveu voltar a um antigo hábito que


estava esquecido, correr na praia. O dia estava nublado, mas a temperatura

estava amena, colocou um moletom, short, tênis e partiu. Mas antes de partir
olhou em cima da cômoda e viu o iPod que Jennifer havia lhe dado, resolveu

levar para sua corrida.

Corria a uma velocidade moderada, só queria sentir a maresia em sua


pele, deixar a energia ruim para trás como ferrugem caindo de um robô de lata

que voltou a caminhar depois de anos. O mar verde e espumante a fazia

companhia.

— Até o momento não conheço nada do que tocou... — Pensou.

Prosseguia correndo até que começou a tocar Starlight, do Muse.

— Falei cedo demais.

Alguns minutos depois tocou então Turn up the radio, da Madonna, a

música que Jennifer havia cantando e praticamente feito uma performance no

aniversário de Bob.

— Ok.

Corria ainda no mesmo ritmo, sentindo a areia afundando parcialmente

com suas pisadas.

Não demorou muito para começar a tocar Time after time, da Cyndi

Lauper, imediatamente Anna sentiu um arrepio, uma sensação que não


conseguiria enquadrar em boa ou ruim. Mas era inevitável não lembrar da

ocasião de quando dançaram essa música, na festa Vulpi.

As passadas aumentaram de ritmo à medida que a música tocava, aquela

lembrança havia a chacoalhado da letargia dos últimos dias, revivia tudo de bom
que havia passado com Jennifer, lembrava-se de como sentia-se ao seu lado,

como sentia-se preenchida, feliz.


— Você tem ideia do quanto eu amo você?

Anna não estava agora julgando se era verdade ou não, estava apenas
lembrando do que sentiu quando ouviu Jennifer proferindo estas palavras

naquela noite, de como havia se sentido especial. Naquele dia, naquele

momento, o mundo havia sumido ao seu redor por alguns segundos.

Corria numa velocidade absurda agora, respirava com força, a música


parou e ela também. Ofegante, se curvou e colocou as mãos nos joelhos, e

finalmente se deu conta.

— Não são só palavras.

***

Naquele mesmo sábado, Jennifer foi até o porto no final da tarde.

Precisava repor seu estoque do que Becca chamava de arsenal na gaveta do seu

criado mudo. Eram tarjas pretas, em sua maioria antidepressivos e analgésicos, e

Jennifer estava usando indiscriminadamente nos últimos dias, cada dia mais,

juntamente de boas doses de álcool. Essa era a grande preocupação de Becca,


mas Jennifer não a deixava sequer tocar nesse assunto, era uma espécie de

monstro particular.

— E então, como se livrou da encrenca hoje cedo? — Becca sentou-se ao

seu lado, no pub.

— Não era bem uma encrenca, era só um impasse, que na verdade nem

era um impasse, ela só quis ser legal.


— Não te pediu em namoro, então.

— Claro que não.

— Eu já estava pronta para chamar a polícia.

Jennifer riu e quase cuspiu seu chope.

— Por que está rindo?

— Ela é policial.

— Não me conte sobre as fantasias que vocês brincam na cama, ok?

— É sério, ela é policial mesmo.

— Perfeito, Anna ia adorar conhecê-la. — Riu.

Jennifer apenas balançou a cabeça.

— Desculpe, não foi engraçado.

Jennifer se ajeitou na cadeira.

— Ok, isso não é assunto proibido.

— E aquele outro assunto proibido, temos que conversar sobre isso.

— Ele é proibido justamente para evitar esse tipo de conversa.

— Eu estou preocupada com você, Jennifer, eu vi frascos no chão do seu


quarto.

— Você me chamou de Jennifer?

— Não mude de assunto.


Jennifer parou de sorrir e a encarou.

— Vou buscar outro chope, você quer? — Falou, e logo se levantou.

— E aí pessoal, vamos para a pista? O som tá legal! — Bob convidou


todos na mesa, assim que Jennifer retornou.

— Não estou no clima, vou ficar por aqui, ok? — Jennifer recusou.

— Ãhn... Bob, daqui a pouco eu vou. — Becca resolveu ficar ao lado de

Jennifer.

— Vou ficar bem sozinha, pode ir dançar.

Becca levantou sua caneca e brindou com Jennifer.

— Agora somos só nós duas. — Respondeu, sorrindo.

Jennifer sentou-se ao seu lado.

— Eu sei que você não quer falar sobre aquele assunto, mas tem algo
diferente hoje em você, está com uma cara péssima, quer me contar algo? —

Becca a perguntou, em um tom confidente.

— Está tudo bem, baby.

Becca se inclinou na direção de Jennifer.

— Faz tempo que não está nada bem, mas hoje você está parecendo tão

distante, triste.

Jennifer segurou sua caneca com as duas mãos, a fitando.


— Anna ficou com outra garota.

— É mesmo? Quando?

— Essa semana.

— Sinto muito.

— Tudo bem, ela está tocando a vida dela, do mesmo jeito que eu estou
também.

— Não, você está fugindo da sua vida, está se autodestruindo, é bem

diferente.

— É o meu jeito de tocar a vida.

Esse era o jeito como Jennifer estava encarando seus medos e suas

frustrações. Seu avô havia depositado uma carga de expectativa grande nela,

para quando explodisse a tal revolução Vulpi, que parecia tão palpável agora.

Temia ter que encarar sua vida sem Anna, sentia como se faltasse um motivo

para sair de sua cama todos os dias, seu coração não deixava seu corpo
descansar, havia encontrado seu jeito torto de se desligar de tudo isso,

diariamente. A pressão psicológica estava deteriorando aquela garota de vinte e


dois anos, que guardava cicatrizes na alma causados por dois eventos
traumáticos, a morte dos pais e a morte traumática de Helen.

— Não está conseguindo esquecê-la, não é? — Becca questionou.

— Nem um pouco. Eu não quero esquecê-la, eu só... Queria tanto estar


com Anna agora. — Os olhos de Jennifer já estavam cheios de lágrimas.

— Nunca imaginei que eu falaria isso, mas porque não tenta conversar
com ela? Sem acusações, sem julgamentos, apenas fale o que você sente.

— Se conversarmos apenas sobre sentimentos, será um monólogo meu...

E eu acho que ela já está em outra, acho que perdi minha chance de estar ao lado

de quem eu realmente amo. — Passou a mão no rosto. — Meu Deus, o que eu


não daria agora por um abraço dela... Um só.

— Você ainda a ama.

— Com todo meu coração. — Falou esfregando as mãos nos olhos.

— Por que essas coisas são sempre tão complicadas para você?

— Talvez eu mereça...

Jennifer foi embora cedo, mas não dormiu. Aquela noite terminou como

as noites anteriores haviam terminado, com um coquetel de barbitúricos, vicodin

e coisas do tipo, acompanhados de muito álcool. Acordava no dia seguinte sem


disposição para nada, mal comia, mal trabalhava. Estava entregue neste perigoso

ciclo, que só piorava no decorrer dos dias.

Nesta noite em especial uma angústia parecia querer explodir seu tórax,

foi preciso duplicar as doses para conseguir apagar as imagens de Anna com
outra pessoa, que não saiam de sua mente.

Seu arsenal terminou alguns dias depois, decidiu ir ao porto se


reabastecer e passar a tarde no cantinho da reflexão. Desde o dia que Laura
contou ter visto Anna com outra garota que seu consumo de entorpecentes e

álcool estava atingindo níveis quase catastróficos.

A noite saiu com Becca, Jim e Bob, foram à uma pizzaria comemorar o

aniversário de Jim. Jennifer chegou com um semblante sério, quase catatônico.

— Jenny, tem três dias que não te vejo, porque você não tem atendido a
porta? — Becca a questionou, assim que ela entrou no local, antes que Jennifer

sentasse à mesa.

— Provavelmente estava dormindo.

— Bom, aqui não é local para discutirmos isso, mas tem algo muito
errado acontecendo e desta vez você não vai fugir do assunto, vou na sua casa

amanhã à noite, e é bom você abrir aquela porta.

— Hey, relaxa, está tudo bem, só estou com meus horários trocados,

estou com insônia, é só isso.

— Ok zumbi, sente-se conosco, vamos comer uma pizza e tentar ter uma

noite legal.

No dia seguinte, no final da tarde, Anna estava no centro da cidade


fazendo uma entrega, quando foi abordada por um homem baixinho, com

cabelos ralos e escuros no alto da cabeça e semblante nada amistoso.

— Hey, você é a Anna, não?


— Conheço você? — Anna prendia uma bolsa vazia no fundo da moto,
ficou surpresa com a abordagem.

— Talvez não, mas com certeza sua namoradinha conhece.

— Não tenho namorada.

— Bom, não sei como vocês chamam isso hoje em dia, mas sua

namorada me deve uma grana, ela só tem me enrolado, diz que a grana vai entrar

no mês que vem, mas dinheiro para comprar um carro ela teve, bonito isso, não?

Enfim, cansei das baboseiras dela, então vim cobrar de você. Hum, bonita sua

moto. — Falou passando a mão no banco da moto.

— Grana do quê? — Falou sem muita paciência.

— Ah, você sabe do que é.

— Não faço ideia.

— Ela me deve dezesseis pacotes, é uma boa grana, e não posso ficar

mais esperando o mês que vem, como ela sempre fala.

— Continuo não fazendo ideia do que você está falando, e sério, tenho
mais o que fazer.

O homem então a segurou pelo braço e mudou de tom.

— São dezesseis potes, ela pegou dezesseis esse mês, não sei se ela anda

fazendo alguma festinha com essa droga toda, mas eu preciso da grana e não vou
mais aceitar desculpas esfarrapadas, senão tua garota vai comer grama pela raiz,
entendeu?

Anna soltou seu braço, perturbada.

— Quanto ela te deve?

— Três e quinhentos, coloquei uns juros em cima porque o bagulho já


atrasou demais, sabe como é, tenho minhas contas também.

— Escute, não tenho dinheiro aqui, não costumo carregar essa quantia

comigo por motivos óbvios, onde posso encontrá-lo amanhã?

— Estou sempre no porto, perto do píer nove, se não me achar lá,


pergunte pelo Tuck.

— Certo... Tuck. Eu vou conseguir esse dinheiro e lhe entrego amanhã à

tarde no porto, agora me dê licença que tenho mais o que fazer do que negociar

com tipos como você.

— Fique à vontade, belezinha! — Saiu rindo com sarcasmo.

Anna montou na moto e seguiu possessa para o apartamento de Jennifer.

Jogou o capacete no espelho retrovisor, subiu as escadas com passos rápidos e


bateu na porta com força. Mas ninguém abriu. Podia ouvir o som da TV ligada
na sala, bateu novamente à porta, com mais energia.

— Jennifer, eu sei que você está aí, abra essa porta! — Falou dando um
tapa na porta.

A noite já começava a cair e Anna sabia que neste horário Jennifer já


havia voltado do porto, tinha medo de voltar de lá no escuro.

Bateu novamente na porta, mas nada aconteceu. Lembrou do que o


traficante havia falado, da quantidade de drogas que ela havia comprado, teve

um mau pressentimento.

Se atirou contra a porta, na tentativa de abri-la, tentou uma segunda vez e

nada. Tentou novamente, com mais força, e finalmente a porta abriu-se. Entrou
devagar no apartamento, não viu sinal de Jennifer. O apartamento estava

bagunçado, havia caixas de pizzas acumuladas na cozinha, além da TV, o

aparelho de som também estava ligado, Anna desligou tudo, continuou olhando

ao redor.

— Jennifer?

Deu alguns passos pela sala e foi até o quarto.

Entrou no quarto e não viu nada, andou na frente da cama e pode ver

Jennifer caída no chão ao lado da cama, de bruços, somente de calcinha e com

uma camiseta branca. Correu até ela e a virou, Jennifer estava desacordada, não
reagia.

Anna agachou e se inclinou ao seu lado, colocando o ouvido sobre seu


rosto, tentando ouvir sua respiração. Conseguiu ouvir, mas era fraca. Anna

desesperou-se, sabia que precisava pensar rápido.

Olhou ao redor, colocou o frasco laranja vazio que estava ao seu lado no

bolso da jaqueta, lembrou que o traficante havia falado que ela agora tinha um
carro.

— Jennifer, continue comigo, ok? Continue respirando! — Falou


colocando a mão em seu rosto desfalecido.

Transpassou seus braços por baixo do seu corpo e a levantou de lá, a

carregou no colo, avistou uma chave de carro em cima da mesa e pegou. Desceu

as escadas rapidamente com Jennifer, e com dificuldade apertou o botão do


alarme na chave, avistou um carro pequeno e prata com as luzes piscando, foi até

lá.

Abriu a porta do passageiro e a repousou no banco, posteriormente o


reclinou e fechou a porta com pressa.

Sentou-se no banco do motorista, sentiu-se se zonza, não sentava diante

de um volante há quase vinte anos, sabia o que tinha que fazer, mas sentiu-se

paralisada por um instante, sentia uma vertigem antagônica, tinha que levá-la o

mais rápido possível ao hospital, mas seu corpo se recusava a responder aos seus
comandos.

Olhou para o lado, viu Jennifer com a respiração cada vez mais lenta,

parecia apenas dormir, mas ela sabia que ela estava morrendo, teria uma parada a
qualquer momento. Virou a chave na ignição e arrancou com o carro. Deu ré
com dificuldade, bateu numa placa de trânsito, mas finalmente pegou a estrada e

seguiu determinada até o hospital. De minuto a minuto verificava sua respiração


e seu pulso.
— Fique comigo, ok? Já estamos chegando.

Chegou em alta velocidade ao Saint Vincent’s e parou na entrada da


emergência, a tirou do carro e entrou correndo no hospital com ela em seus

braços.

— Qual o caso dela? — A enfermeira perguntou enquanto a conduziam

na maca por um corredor.

— Acho que overdose. — Anna respondeu, acompanhando.

— Ok, sala dois, chequem os sinais vitais! — Bradou quando chegou

numa sala de triagem, com outras macas separadas por biombos.

Outro enfermeiro se aproximou e checou rapidamente seus sinais.

— Está tendo uma parada! Vou chamar o médico, já volto.

Anna se aproximou rapidamente, ficou do seu lado, a olhou, sentia tanto

medo que mal conseguiu balbuciar algumas palavras.

— Volte, volte por favor.

Um médico alto e ruivo se aproximou rapidamente e afastou Anna do seu


lado, o enfermeiro a ligava aos monitores.

— Há quanto tempo está assim? — Ele perguntou para Anna.

Anna estava assustada, titubeou antes de responder.

— Eu... Não sei. Eu estava monitorando no carro e ela estava respirando,


com dificuldade, mas estava!
— Ok, talvez um minuto de parada. Lidocaína e atropina, ventilação e
massagem, agora!

Massageavam o peito de Jennifer de forma ritmada, enquanto

comprimiam e soltavam um balão de ar em seu rosto.

— Nada ainda. Entubem.

Continuavam com o procedimento, até que o médico bradou.

— Assístole, tragam o desfibrilador!

Cortaram a camiseta de Jennifer e o médico preparou as duas pás do


desfibrilador, esfregando uma na outra com um gel transparente.

— Duzentos! Afastem-se!

Anna viu o corpo agora frágil de Jennifer praticamente pulando naquela

maca, mas ainda não havia sinal nos monitores. Anna estava num estado absurdo

de tensão, ali acompanhando a ressuscitação de Jennifer, estava sem chão.

— Volte, volte, por favor volte... Reaja Jennifer, volte. — Sussurrava,

com a testa franzida.

— Trezentos! Afastem-se!

Novamente o choque foi aplicado ao peito de Jennifer, que ergueu-se,


Anna olhou o monitor, mas o risco retilíneo e o bip contínuo permaneciam.

Continuaram a massagem cardíaca, mas sem sucesso.

— Trezentos e sessenta! Afastem-se!


Mais um choque em seu peito, Anna correu os olhos da maca para o
monitor ao lado, o risco transformava-se agora em ondulações ritmadas, o bip

agora era intermitente.

Anna suspirou aliviada, baixando a cabeça.

— Você precisa sair daqui, senhora. — Ouviu da enfermeira, já a

conduzindo para fora do recinto.

— Mas... Preciso ficar com ela.

— Ela vai ficar bem, vamos levá-la para cima.

Saiu a contragosto, voltando para o saguão do hospital. Caminhou ainda

abalada até um conjunto de cadeiras azuis, sentando-se devagar. Apoiou os

cotovelos nos joelhos colocou as mãos no rosto.

Ficou ali por uma hora, sentada, esperando por notícias, sem saber direito
o que pensar. Até que o médico veio até ela.

— Como ela está?

— Ela vai ficar bem, foi uma overdose causada por medicamentos
controlados e álcool, apesar da parada cardiorrespiratória está tudo sob controle,
ela está reagindo bem.

— Que bom. — Respirou aliviada.

— Ela tem histórico de tentativa de suicídio?

— Não acho que tenha sido isso, acho que ela tem usado essas coisas já
há algum tempo e deve ter se passado na dose hoje.

— Hum, mas é bom mantê-la sob vigilância, nunca se sabe. Ela já está
no quarto, quer visitá-la?

Anna o olhou por um instante.

— Não. — Respondeu com uma dor imensa no coração.

— Ok, vamos tentar achar algum parente ou amigo para acompanhá-la.

— Eu cuido disso. Você pode entregar a ela? — Falou colocando a chave

do carro dela na mão do médico.

— Claro.

Levantou-se, pegou seu celular e ligou para Becca.

— Becca? Você pode vir ao Saint Vincent’s agora?

— Por que, o que aconteceu?

— Jennifer teve uma overdose, mas já está fora de perigo.

— Meu Deus, ela está bem??

— Agora sim, ela precisa de algum acompanhante.

— Mas você não está aí?

— Já estou de saída.

— Você que a encontrou?

— Sim.
— Eu sabia que ia dar nisso.

— Você sabia que ela estava usando essas coisas? Por que não me falou?

— E por que você teria interesse nisso?

— Ok... O carro dela está aqui em frente, deixei a chave com ela.

— Estou a caminho.

— Becca?

— Sim?

— Não conte a ela que fui eu quem a trouxe para cá.

— Por quê?

— Apenas não conte.

Becca e Bob chegaram minutos depois, fizeram companhia a Jennifer em

seu pequeno quarto de hospital. Ela não se sentia nada bem, nem tanto pelos

efeitos do trauma em seu corpo, mas por ver aquele assunto tão pessoal exposto
desta forma, aquela era talvez sua maior fraqueza, sentia-se mal por isso.

— Como vim parar aqui? — Questionou, apática em seu leito inclinado.

— Ãhn... Uma ambulância te trouxe, da emergência. — Becca


respondeu, sem segurança.

— Sim, acionaram o serviço de emergência e te trouxeram. — Bob


corroborou, ele também sabia do pedido de Anna. Ambos estavam sentados em

cadeiras azuis, ao lado da cama.


— Vocês estão mentindo, a chave do meu carro está aqui do meu lado.
Só não sei porque estão mentindo.

Becca e Bob se entreolharam.

— Foi Anna que te encontrou e te trouxe. — Bob acabou contando.

— Ok, eu que me drogo e vocês que ficam loucos? Ela nem dirige, ela

tem um trauma, ou algo assim.

— Bom, então ela superou o trauma hoje. — Becca respondeu.

— Sério? O que ela estava fazendo no meu apartamento?

— Não fazemos ideia, e agora estamos falando a verdade.

— Algum de vocês falou com ela?

— Ela me ligou agora a noite, me chamando para cá.

— Ela ainda estava aqui quando você chegou?

— Não mais.

No dia seguinte, no início da tarde, Jennifer teve alta e voltou para casa.
Anna foi até o porto, estacionou perto do píer nove e saiu a procura de Tuck.

— Hey, que porra é essa?? — Tuck falou assustado, enquanto era


arrastado pelo pescoço com uma gravata, para trás de um contêiner.

Anna o soltou jogando no chão, ele tentou levantar-se, ela o impediu


dando alguns bons murros em seu rosto. Em seguida, rapidamente sacou sua

adaga de dentro do casaco e colocou em seu pescoço, ficando cara a cara com
ele, que àquela altura sangrava na boca e num corte no supercílio.

— Você nunca mais vai vender nada para Jennifer, nunca mais. Nem uma
pílula, nem meio comprimido, mesmo que ela venha aqui com rios de dinheiro,

você vai se recusar, você vai dizer não e vai mandá-la embora. Se você vender

qualquer coisa para ela, mesmo que seja uma cerveja, eu volto e acabo com a sua
raça, você será um desgraçado morto boiando no mar, entendeu? — Falava com

raiva, apertando a lâmina contra seu pescoço.

Tuck a olhava apavorado, apenas balançou a cabeça, concordando.

— Você entendeu tudo que eu falei?

— S-sim.

— Estamos combinados, então?

— Estamos. — Falou, arfando.

— Você não tem ideia de quem você está lidando, então é bom que tenha

entendido mesmo.

O largou, ele ainda a fitava assustado. Anna tirou do bolso um pequeno


bloco com notas de dinheiro e jogou em cima de Tuck.

— Isso aqui deve quitar a dívida da Jennifer. — Saiu sem olhar para trás,

voltando para casa, um pouco mais aliviada.

Chegou em sua casa e pegou logo o celular, ligou para Becca.

— Como ela está?


— Parecendo um personagem de Resident Evil, mas já estamos em casa.

— Que bom. Você está com ela?

— Sim, estou aqui na cozinha fazendo algo para almoçarmos. Por que
você não liga para ela? Ela ia gostar de receber sua ligação, ela está precisando

de você, Anna.

Anna caminhava devagar dentro de sua sala, ouvindo Becca, sentia uma

vontade enorme de ir visitar Jennifer, sabia que ela estava fragilizada, queria

passar por cima de tudo, mas não conseguiu.

— Eu só vou piorar as coisas.

— Acho que não, ela sempre fala de você.

— As coisas não são simples, a essa altura ela deve estar me odiando.

— Ela ainda te ama.

Anna ficou em silêncio, sentiu um nó na garganta, um desespero

comedido, como se isso fosse possível.

— Ela vai fazer de novo, você sabe... — Becca continuou.

— A ajude, Becca, converse com ela, vigie, sei lá. Mas não permita.

— Não sei se consigo, você a conhece, ela é teimosa.

Anna não estava preparada para receber uma notícia trágica em breve,
mal conseguia pensar nessa possibilidade, ainda estava assustada o suficiente
com o que havia presenciado no dia anterior.
— Cuide dela.

— Vou tentar.

***

— Era Jim? No telefone. Não quero atrapalhar qualquer plano que você
tenha feito com ele. — Jennifer perguntou, assim que entrou no espaço da

cozinha.

— Não.

Jennifer sentou-se junto à mesa.

— Parece bom. — Falou mexendo com o garfo no prato servido.

— Era Anna.

Jennifer parou e voltou a olhar para Becca, que estava de pé do outro


lado da mesa.

— O que ela queria?

— Saber como você estava.

— Hum.

— Jenny, eu não sei o que fazer com você. — Becca a fitava séria.

— Com relação a que?

— Você não me ouve, não quer conversar, você quase morreu ontem,
qualquer hora você consegue.
— Ah, não estou a fim de falar disso. Foi um acidente, eu tenho total
controle do que faço, ontem foi um deslize, eu estava de estômago vazio, isso

não vai acontecer de novo, prometo.

— Você não vai parar, não é? — Becca apoiava as duas mãos sobre o

encosto da cadeira à sua frente, era perceptível certa angústia em sua voz.

— Não ando fazendo planos para nada, então não tenho essa resposta. —
Jennifer estava abatida, física e mentalmente, não queria se prolongar nesse

assunto.

***

Becca dormiu em seu sofá naquela noite, sabia que sua amiga não era
nenhuma suicida nem nada parecido, mas ainda temia por ela. Jennifer

conseguiu dormir mais do que havia dormido nas últimas semanas, engatou

algumas horas de sono.

No dia seguinte Becca foi trabalhar cedo e Jennifer acordou com a porta

batendo. Caminhou para o banheiro, tomou um longo banho e sentiu-se com


mais energia, vestiu-se com seu moletom do lanterna verde e foi ao mercado.

Uma garoa fina caía, mas ela não se incomodou, andava devagar pela calçada da
vila, sentindo os pequenos pingos gelados umedecendo seu rosto. Tinha ideia
que havia passado por uma situação crítica, mas não estava consciente que

precisava de uma mudança para que as coisas melhorassem.

No caminho, desistiu de ir ao mercado, pegou outra rua e andou até o


cemitério municipal. Ultrapassou os grandes portões brancos e descascados e

seguiu pelo labirinto de lápides que já conhecia bem. Chegou num descampado

gramado, onde havia placas de mármore pousadas no chão, placas cinzas e

brancas, contrastando com o verde da grama.

Parou em frente à uma das lápides e sentou-se, lançava um sorriso


entristecido enquanto fitava o nome de Helen. A chuva continuava esparsa e fria,

já havia mudado o tom do verde em sua roupa, nos ombros e nos braços.

Estendeu a mão sobre o chão à sua frente, tocou a grama molhada, sem

pressa.

— Você estaria fazendo bem melhor que eu. — Falou baixinho.

Passou a manga do moletom no rosto, enxugando-o.

— E o mais irônico é que você que era a garota forte, como dizem... Era

para eu estar aqui, não você. Mas já que está aí do outro lado, talvez você saiba

porque foi assim, se é que isso tem algum sentido.

Ficou mais alguns instantes naquela posição, pensativa.

Levantou-se, olhou novamente a lápide.

— Desculpe, meu anjo. Sei que sou uma grande decepção, mas quem

sabe em breve a gente se encontre.

Ergueu o capuz sobre sua cabeça e saiu caminhando de volta para casa. À

noite seus amigos se reuniram em seu apartamento, fizeram um jantar, assistiram


um filme, e atingiram seus objetivos, distrair e entreter um pouco Jennifer.

— Eu acho que você deveria ir trabalhar amanhã, vai te ocupar, vai


ajudar você a colocar sua vida nos eixos. Não te faz bem ficar trancada aqui dia

e noite. — Becca sugeriu antes de ir embora, ainda no corredor.

— É... Estou pensando em ir ao porto, sim.

— Só não volte tarde, tá bom? — Falou, já saindo.

— Becca?

— Diga, meu amor.

— Anna te ligou novamente? — Perguntou, esperançosa.

— Não. — Respondeu, com pesar.

— Ok... Boa noite.

Diferente da noite anterior, não conseguia dormir. Bebeu as duas últimas


cervejas na geladeira enquanto via TV, depois foi para a cama, onde parecia que

sua inquietação triplicava, enquanto rolava de um lado para outro. Horas mais

tarde finalmente dormiu, no sofá, com o sol já nascendo.

Acordou na metade da manhã com certa disposição, o suficiente para

animar-se a ir trabalhar. Abriu a janela e viu um sol solitário no céu, sem nuvens.
Estava quase calor, abandonou o casaco em cima da mesa e seguiu para o porto,

apenas com um jeans e uma camiseta preta.

Devido à sua instabilidade no trabalho e pouca assiduidade, não havia


muito o que fazer por lá. Visitou alguns poucos clientes e foi para o cantinho da

reflexão.

Ela sabia que aquela sua gaveta estava vazia, e também sabia que deveria

ficar longe do que quase a matara. Mas quando lembrava que mais uma noite

dolorosa chegaria, seus pensamentos ficavam dúbios, como se tivesse um anjo


em seu ombro mandando ir direto para casa, e um diabo sentado de forma

suntuosa no outro, a lembrando que quando a madrugada chegasse, ela desejaria

com todas as suas forças que aquela gaveta estivesse abastecida.

O sol começava a se pôr, levantou-se, saiu andando com convicção, sabia

o que queria fazer. Foi até o píer nove.

— Ah não, você não! — Tuck falou ao ver Jennifer se aproximando.

— O que isso, Tuck, isso é jeito de tratar os amigos? Hoje é seu dia de

sorte, não vim de mãos vazias. — Sorriu. — O que foi isso no seu rosto?

Participou de uma luta de boxe?

— Já encerrei por hoje. — Falou, indo na direção de um contêiner


escritório.

Jennifer o segurou pelo ombro, fazendo com que olhasse para ela.

— Hey, eu trouxe grana, posso te mostrar. — Falou num tom mais baixo.

— Eu não vou vender mais nada para você, tenho amor a minha vida.

— E se eu pagar tudo que te devo?


— Sua namorada já pagou e de brinde fez isso comigo. — Falou
apontando para o rosto. — Escute, não quero encrenca.

Jennifer o fitou com as sobrancelhas franzidas.

— Como assim? Do que você está falando?

— Não quero confusão com híbridos, só sei que não te vendo mais nem

meio comprimido! Esqueça meu nome, se me perguntarem, nunca soube quem é

você.

Jennifer não falou mais nada, virou-se e saiu andando atordoada,

assimilando o que havia acabado de ouvir, confusa.

Seguiu com passos agora rápidos até seu carro e saiu em velocidade. Ela

tinha uma grande dúvida povoando sua mente, e somente uma pessoa tinha essa

resposta.

Já havia escurecido, Jennifer entrou pelo portão da casa de Anna ainda

em alta velocidade e freou bruscamente em frente à sua porta. Anna ouviu o

barulho, estava saindo do banho e vestiu-se rapidamente com jeans e regata.

Desceu as escadas ainda descalça, viu Jennifer entrando por sua porta com uma
expressão transtornada.

— O que é isso? — Anna perguntou surpresa.

— Você foi falar com Tuck, você o procurou no porto. — Jennifer parou

no meio da sala e começou a falar, estava em frente a uma Anna assustada.


— Olha, se você veio aqui discutir... Me poupe disso tudo. Sim, eu falei
com esse elemento, ele me procurou anteontem.

— Você bateu nele, para que não me vendesse mais nada. — Apesar de

estar um pouco fora de si, Jennifer falava sem se alterar.

— Jennifer, eu já falei, não quero mais um bate-boca, estou te pedindo

com todo respeito, não quero mais brigar.

— E foi você que me encontrou e que me levou para o hospital, não foi?

— Agora seus olhos já estavam carregados de lágrimas.

Anna não sabia o que Jennifer queria.

— Vai me culpar por isso?

— Você ainda se importa comigo? Só me responda isso e eu irei embora.

Por que você fez isso tudo? — A essa altura já chorava, seu coração doía de
tanta inquietação. — Você fez essas coisas porque ainda se importa comigo?

Anna a encarava com um olhar sofrido, seus olhos também já estavam


molhados, sentia um vulcão querendo explodir dentro do seu peito, mas era

outro tipo de vulcão.

— Eu fiz porque ainda te amo.

Jennifer fechou os olhos com força, jogando a cabeça para trás, voltou a
encarar Anna.

— E eu também te amo, sua idiota. — Enxugou seu rosto.


Anna deu um passo em sua direção e parou hesitante, Jennifer deu então
os dois passos que faltavam para uni-las e se atiraram nos braços uma da outra

ao mesmo tempo. Se abraçaram com a intensidade de seus mais profundos

sentimentos, e depois de dias tenebrosos, tiveram seu primeiro momento de paz.


Jennifer a segurou com as mãos espalmadas em suas costas, com força, Anna

subiu sua mão por sua nuca, entrelaçando seus dedos nos cabelos, que estavam
presos num rabo de cavalo.

Num gesto rápido, Anna soltou-se e a beijou, o mais apaixonado dos

beijos. Seus lábios uns contra o outro pareciam querer se fundir em um só, um

único momento, o instante de dar adeus às mágoas. Havia chegado a hora de


permitir que todo aquele amor imensurável que sentiam tomasse seu devido

lugar. E era isso que sentiam, fisicamente, como se os sentimentos tivessem

cores, todo aquele cinza saindo de seus corações e permitindo que o vermelho

voltasse a preenchê-los.

Jennifer só conseguia pensar em como era bom estar beijando novamente


aqueles lábios tão delicados e quentes, o quanto desejou aquilo nas últimas

semanas, o quanto era confortável sentir seu corpo unido ao de Anna, desfrutar
seu cheiro, sua pele.

— Eu te quero tanto... — Jennifer sussurrou quando terminaram o beijo,

ainda com os lábios próximos dos dela.

Anna afastou um pouco seu rosto e a fitou com ternura, ambas tinham os
olhos vermelhos.

— Eu também, pequena.

Jennifer correspondeu seu olhar, então sorriu.

— É o iPod que eu te dei que está tocando? — Podia ouvir música vindo
do andar de cima.

Anna também sorriu.

— Foi o jeito que encontrei de ter você por perto.

Jennifer colocou a mão no bolso da sua calça e tirou alguma coisa, a

mostrando em sua palma da mão.

— E eu carrego você no bolso. — Mostrava o cordão prata com o

pingente de lince.

Anna olhou para sua mão e voltou a olhar para Jennifer, aproximou seu

rosto e beijaram-se novamente, instantes depois Anna interrompeu o beijo.

— Meu celular, está tocando lá em cima, e eu acho que sei quem é.

Pegou Jennifer pela mão e subiu as escadas com ela logo atrás. Foi até o
criado mudo e atendeu. Jennifer a olhava, de pé em frente a cama.

— Oi Becca, como...

— Jennifer não apareceu ainda! Ela nunca fica até essa hora no porto,
não sei onde procurá-la! Desculpe te ligar, mas Bob não atende e não sei o que
fazer, Meu Deus, será que...
— Hey, heeeey! Acalme-se, garota. Ela está aqui em casa.

Jennifer riu, assistindo a cena.

— Ah não, vocês estão brigando de novo, ela vai tomar uma tonelada
daquela porcaria quando chegar em casa, isso se chegar em casa!

— Becca, relaxa, não estamos brigando.

— Não?? Estão fazendo o que então?

Jennifer pegou o celular das mãos de Anna.

— Baby, você já foi mais otimista.

— Pelo amor de Deus, Jenny, pare de me dar sustos, eu não tenho mais

idade para essas coisas. Quando entrei na sua casa agora e não te encontrei quase

enfartei!

— Desculpe, esqueci de te avisar.

— Então... Ninguém matou ninguém aí ainda, nem vão se matar, não é?

— Está tudo bem, pode dormir tranquila.

— Finalmente... Eu tenho vontade de bater em vocês duas sabia? Até

vocês pararem com...

— Tchau, Becca, obrigada por cuidar de mim.

— Tá bom, boa noite. Juízo viu?

Jennifer largou o celular e ficou em frente Anna.


— Ela anda preocupada, já falei que não precisa toda essa preocupação.
— Jennifer comentou.

— Becca não é a única preocupada.

— Não vai acontecer de novo.

Anna a fitou.

— Eu vi você numa maca de hospital, seu coração parou ali, bem na

minha frente, e meu coração parou junto naquele momento.

— Você estava lá... — Jennifer desviou do seu olhar.

— Jennifer, eu sei que você gosta de sentir intensidade em tudo que faz,

que talvez você não pense muito antes de tomar algumas decisões, mas sua vida

é algo mais sério que qualquer rompante ou má ideia que você tenha.

— Eu sei.

— Se você quiser levar sua vida a sério... Se quiser me levar a sério, eu

estarei sempre aqui para você.

— É tudo o que eu mais quero... Minha vida de volta. E você. —


Murmurou, com a voz embargada.

Anna a puxou para próximo de si, pela cintura, unindo seus quadris.

— Então você está no lugar certo, sou toda sua.

Jennifer a olhou por um momento, beijaram-se, um beijo estático, como


se selando seus destinos. Depois beijaram-se com mais ardor, quase aflição, logo
se atiraram na cama ao lado.
Capítulo 26 - O dia que completaríamos um ano

Tiveram uma noite recompensadora, onde os sentimentos ruins e as

mágoas não tiveram a menor chance. Jennifer tratou de sentir e desbravar cada

centímetro do corpo de Anna, e esta deu à Jennifer o prazer e alívio que droga

alguma poderia lhe proporcionar.

Anna acordou no meio da madrugada, com dormência na mão, quando

percebeu o motivo, sorriu. Estava aliviada e com o coração em paz por ter

Jennifer de novo em seus braços, ela dormia tranquilamente encaixada em seu

abraço. Lançou um olhar carinhoso, correu o dedo lentamente em seu pescoço,

passando pela nuca, onde começavam seus fios de cabelo, e subiu até atrás da

orelha. Percebeu que Jennifer deu um longo suspiro.

Tirou seu braço devagar, mas ainda mantendo-se como uma concha para

uma pérola, a envolvendo.

— Posso ficar aqui? — Jennifer acordou de leve e perguntou sem abrir os


olhos.

— Claro... Durma. — Lhe deu um suave beijo em seu pescoço, deixando


seus lábios ali.

***

Com o dia já claro, Jennifer despertou e levou um longo segundo se

perguntando onde estava. Olhou para o lado e viu todo aquele espaço
desocupado na cama, com o lençol ainda mexido. Olhou para frente e viu suas
roupas dobradas em cima do sofá de madeira, sorriu.

— Tem algumas coisas que não mudam... — Pensou.

Tomou um banho, ainda debaixo do chuveiro fechou os olhos, sentia-se

tonta, nauseada, esperou aquela sensação passar e saiu. Vestiu-se com a roupa

que havia ido até lá, não tinha mais nada seu na casa, seguiu para as escadas e
assim que abriu a porta do quarto deu de cara com Anna, que assustou-se,

Jennifer quase derrubara as duas canecas que ela carregava.

Por um instante ficaram num impasse, olhando nos olhos uma da outra,
como se ambas esperassem alguma primeira reação, de preferência positiva.

— Uma é minha? — Jennifer finalmente falou, com um sorriso aberto.

Anna correspondeu ao simpático sorriso, lhe entregando a caneca,

Jennifer se aproximou e lhe deu um beijo.

— Quer tomar café lá fora? — Anna convidou.

— Sim, senhora.

Saíram e sentaram-se no banco de ferro acima do paredão de pedras, à


frente do mar. O sol do início da manhã estava apenas morno, e o vento agitava

de leve os cabelos soltos de ambas.

— Hmmm, seu café... Como senti falta. — Jennifer bebia segurando a

caneca com as duas mãos.


Anna ficou um instante pensativa, olhando para frente, antes de falar.

— Jogamos um mês fora. — Falou com certa tristeza.

— Um mês? Sério? — Jennifer se virou na direção de Anna.

— Praticamente um mês.

Jennifer apoiou o cotovelo no encosto do banco e seu rosto na palma da


mão, enquanto olhava para Anna.

— Seu cabelo cresceu tanto desde que nos conhecemos. — Colocou a

mão na altura do ombro dela. — Era mais ou menos aqui. Olha onde já está.

Anna simplesmente riu.

— Por que você está rindo?

— Porque eu te conheço, você está com rodeios, com receio que eu entre
em algum assunto que talvez... Você não queira entrar.

Jennifer ainda a fitou por mais um instante, e virou-se novamente para

frente, pensativa.

— Nunca me senti tão exposta em toda minha vida.

— Mas tem uma diferença enorme entre ter suas cartas na mesa, e jogar.

— Que engraçado, parece que estamos invertendo papéis. — Jennifer

falou com um sorriso irônico.

— Foram dias de aprendizado.


— Vendo você assim tão serena, tão calma... Me faz lembrar porque me
apaixonei por você. — Jennifer disse.

Anna deu uma olhadela em Jennifer, lhe entregando um pequeno sorriso.

— Não foi total surpresa quando soube que você estava se drogando.

— Por quê?

— Eu já conhecia aquela sua gaveta, no criado mudo.

— Desde quando? — Perguntou curiosa.

— Lembra aquela noite, depois de uma missão que você levou um tiro de

raspão...

— Que eu nem havia percebido. Lembro. Eu falei para você pegar o kit

de primeiros socorros na segunda gaveta.

— O kit estava na terceira gaveta.

Jennifer balançou a cabeça lentamente.

— O que você foi fazer no meu apartamento semana passada?

— Tuck havia acabado de me procurar, me cobrou uma dívida de

dezesseis potes, e eu juro que levei alguns segundos achando que ele estava
falando de comida.

— Então você estava brava quando foi lá.

— O que você acha?


— Você ia me dar bronca?

— Sem sombra de dúvidas.

— Que bom que eu estava desacordada.

— Estava com saudades do seu humor negro.

Jennifer sorriu e refletiu um pouco.

— O que você acha que aconteceu?

— Com o quê?

— Com a gente.

Anna apertou os lábios, pensou um instante.

— Meu pai dizia que todo relacionamento sólido precisa ser construído

sobre três bases, não falo somente de relacionamentos amorosos, mas todo tipo

de relação, para dar certo precisa se basear em confiança, respeito e


compreensão.

Jennifer aguardava que ela prosseguisse.

— Tivemos um problema de confiança. Eu tive um problema de

confiança, para ser mais exata. E não soube lidar com isso, muito menos me
expressar, e errei. Como se isso já não bastasse para abalar as estruturas, em

seguida tivemos um problema de respeito. Você teve uma atitude irresponsável e


me desrespeitou, foi a vez de você errar. Mas ainda havia a compreensão, até
ontem não sabíamos se ainda tínhamos isso, mas quando você entrou por aquela
porta, nos agarramos ao que nos restava, e foi aí que acertamos, tanto eu quanto

você estávamos dispostas a nos darmos outra chance.

— Fomos salvas pela compreensão. — Jennifer completou, como um

leitor que narra a moral da história após ler um livro de fábula.

Anna virou-se no banco, ficando de frente para Jennifer.

— Não acha que ainda estamos com as bases da confiança e do respeito

abaladas?

— Acho que tudo recomeça quando encontramos os erros e os

assumimos. É o que estamos fazendo agora.

— Estamos assumindo nossos erros, então?

Jennifer sorriu e ergueu sua caneca sugerindo um brinde, Anna

correspondeu batendo sua caneca na dela.

— Então é um bom recomeço. — Anna ponderou.

Jennifer também se virou um pouco, voltou a apoiar seu rosto na sua

mão.

— Escute... Não quero que você se sinta insegura quando estiver comigo,
nem que fique imaginando coisas. Se estou com você, estou só com você, e eu

seria louca se não fosse assim, perto de você todas as outras garotas são apenas
coadjuvantes.

Deslizava sua mão no braço de Anna, que estava apoiado acima do


encosto do banco, olhava o sol realçando os pelos à medida que deslizava seus

dedos. Voltou a falar.

— Acho que devemos fazer um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Eu prometo minha sinceridade, se algum dia por acaso começar a

gostar de outra pessoa, irei te contar, não quero dar espaço para dúvidas. E você

promete que sempre que tiver algum grilo, alguma dúvida, você vai conversar

comigo, não vai deixar a bola de neve chegar onde chegou. Mas fique tranquila,

não tenho a menor intenção de usar isso como prerrogativa para ficar com outras
pessoas, só quero que você tenha sempre certeza que não estou escondendo nada

de você.

Anna foi pega de surpresa com a sinceridade dela, a olhou hesitante.

— Parece justo. — Concordou e estendeu a mão.

— Não. Um acordo desses não deve ser selado com um aperto de mãos.

Jennifer largou sua caneca, se inclinou para frente e a beijou, a segurando

pela nuca.

— Então... Se você ainda tem algum grilo aí dentro, essa é a hora de

colocar para fora.

— Não tenho grilos, nem nenhum outro inseto. — Sorriu, e virou-se para

frente.
— Hum, sei. — A fitava, ela sabia que Anna estava pensando em algo do
tipo e logo começaria a falar.

Alguns segundos depois, Anna deu uma olhada para o lado e perguntou,

com uma voz mansa.

— Você ficou com Susan?

Jennifer riu.

— Eu sabia que você ia perguntar isso.

— Tudo bem, já estávamos separadas.

— Só curiosidade, então?

— Só curiosidade.

Jennifer a olhou mais um pouco, antes de responder.

— Ela me procurou uma noite, mas não aconteceu nada, quase nada... —
Falou baixando a voz no fim da frase.

— Quase nada?

— Sério? Tem certeza que você quer que eu entre em detalhes?

— Quase nada é um pouco vago, não acha?

— Ela me beijou, em seguida eu interrompi. Juro, estou sendo sincera.

— Eu sei.

— Não rolou revival, não fiquei com ela.


Anna balançou a cabeça, assimilando.

— Aquela garota ruiva que você ficou no pub, naquela fatídica noite...
Você a conheceu no dia da festa anos oitenta, que eu não pude ir porque tinha

uma entrega, não foi?

— Isso.

— Vocês ficaram nesse dia?

— Na festa?? Não, claro que não. — Respondeu um pouco estarrecida.

— Anna, eu nunca te traí, achei que você soubesse disso.

— Você disse para tirar todas as dúvidas agora.

— Ok, você está certa, se você tem dúvida, pergunte mesmo. Mas então

me deixe esclarecer uma coisa, eu nunca fiquei com outra pessoa enquanto

estávamos namorando, nem sequer tive vontade, entendido?

— Totalmente.

— E até hoje eu não sei o nome daquela ruiva. — Riu para si.

Anna ficou em silêncio alguns segundos, antes de voltar a conversa.

— Sobre aquela garota que morreu, Helen...

As feições de Jennifer mudaram, e Anna percebeu.

— Não, deixa pra lá. — Anna tratou de encerrar o assunto.

— Obrigada. — Respondeu baixinho.


Anna passou seu braço por cima dos ombros de Jennifer, a puxando para
perto de si, Jennifer deitou sua cabeça no ombro dela.

— É bom ter você de volta, meu amor. — Anna murmurou, próximo do

seu ouvido lhe arrancando um sorriso, era o suficiente.

Voltaram a ficar apenas na companhia do barulho do vento que soprava

vindo do mar, mas logo Anna interrompeu o silêncio.

— Eu preciso te contar uma coisa.

— E foi assim que pela segunda vez essa semana meu coração parou. —

Jennifer brincou.

— Quero te contar um segredo.

— Manda. — Jennifer levantou-se e passou a fitar Anna.

— Sabe meu café, que você adora.

— Claro.

— Esse café vem do Brasil, é um café bem especial.

— Sabia que tinha algum mistério nisso.

— Claro que meu preparo também conta, mas o mérito é quase todo dos
grãos brasileiros mesmo.

— Bom, agora que já sei o segredo... Já posso pedir o divórcio, foi bom
te conhecer, na partilha dos bens vou ficar com seu estoque de café.

— Não, o café fica comigo.


— Meio a meio então.

— Não, se quiser café, vai ter que tomar aqui em casa.

— Você é difícil de negociar, hein?

Anna a olhou sorridente e a beijou.

— Seu coração já voltou a bater?

***

Jennifer chegou sozinha ao pub naquela noite, estacionou seu carro no

final da calçada e entrou com uma expressão enigmática em seu rosto, juntando-

se aos seus amigos já alojados numa mesa próxima ao bar. Todos a olharam

receosos, Becca já havia espalhado a notícia que possivelmente teriam feito às

pazes na noite anterior, mas preferiram não perguntar o que havia acontecido

com Anna.

Jennifer foi buscar sua bebida e voltou a conversar com Becca.

— Ah, eu gosto da banda de hoje! Faz tempo que não tocam aqui, não é?

— Jennifer comentou com Becca, que estava sentada ao seu lado.

— É, faz algum tempo que não vejo eles por aqui. E eu acho esse
vocalista bem... — Olhou para o lado onde Jim estava sentado. — Bem, você

sabe. — Deu um sorrisinho.

— Prefiro a guitarrista. — Jennifer falou com um sorriso no canto da


boca.
— Jenny... O que aconteceu ontem afinal? Achei que vocês iam fazer as
pazes! — Becca não conseguiu segurar sua curiosidade e finalmente perguntou.

— Relaxa, está tudo sob controle.

— E o que isso significa?

— Pergunte para ela. — Falou apontando com a cabeça na direção da

porta de entrada, por onde entrava Anna.

Bob e Becca olhavam apreensivos Anna caminhando na direção deles,

Jennifer continuava com uma expressão que não dizia muita coisa.

Anna se aproximou da mesa e cumprimentou educadamente todos,

depois foi na direção de Jennifer, curvou-se um pouco e a beijou. Todos na mesa

respiraram aliviados, Jennifer não conseguia conter seu sorriso bobo. Anna

buscou uma cadeira e sentou-se ao seu lado.

— Poderia ter me falado antes, né? — Becca falou no ouvido de Jennifer.

— Não, assim foi mais divertido, adorei a cara de pânico que vocês
fizeram quando Anna chegou. — Sorriu. — E achei que você deduziria, por eu

ter passado a noite fora.

— Eu não tinha como deduzir, eu dormi na casa do Jim.

— Ops... — Riu.

Jennifer parecia estar recuperando seu brilho, estava radiante, havia


colocado um casaco branco, estilo militar, por cima de uma blusa cinza com
prata, e estava com os cabelos soltos. No final daquela tarde havia ido para casa

e marcaram de se encontrar a noite, no pub.

A noite transcorreu na maior pacificidade possível, Anna e Jennifer não

se desgrudaram nem por um minuto, e apesar da timidez em público, que

normalmente Anna tinha, haviam trocado alguns beijos discretos. O clima só


ficou um pouco tenso quando a garota ruiva foi até os dois casais, Anna e

Jennifer, Becca e Jim, que estavam de pé próximo ao palco.

— Oi Jenny! Eu fui até o porto essa semana, mas não te encontrei.

— É... Tive alguns probleminhas, ando um pouco ausente. — Sorriu


meio sem jeito.

Anna estava bem ao lado, apenas acompanhando atentamente de forma

sisuda, segurando com força seu copo, bebia suco em solidariedade à Jennifer

que também estava apenas bebendo suco aquela noite.

— Ah, que pena... Bom, quer ir lá nas mesas conversar?

— Sinto muito, estávamos indo dançar agora, não é, amor? — Terminou

de falar e pegou a mão de Anna, que a olhou um pouco assustada.

A garota foi embora e Jennifer conduziu Anna para a pista em frente ao


palco. A banda já não tocava mais e agora um DJ tocava algumas músicas pop.

— Você não tinha outra forma de dispensar a garota? — Anna perguntou

no seu ouvido.
— Achei essa a mais criativa. — Falou começando a dançar a sua frente,
sorridente.

A música era Buttons das Pussycats Dolls, Jennifer dançava de forma

provocativa junto à Anna, que apenas sorria em retribuição. Aproximou seu

rosto do rosto de Anna, tinha um sorriso malicioso e movimentava-se de forma


sexy. Aos poucos Anna foi deixando sua timidez de lado, acabou sendo levada

pelo clima quente que Jennifer estartara. Anna estava dançando frente a frente

com Jennifer, que agora sorria abertamente, mas ainda mantinha uma dose

generosa de malícia nos lábios.

Estavam embaladas pela música, mais do que isso, estavam entregues a

seus instintos, Jennifer por vezes acompanhava os movimentos de Anna com

suas mãos, as subia em seus quadris. Aproximava seus lábios dos dela, mas não
a deixava beijar, estava fazendo um jogo com Anna, estava adorando a reação

dela. Quando começou outra música, Anna puxou Jennifer pela cintura e a

beijou, sem o menor resquício de sua costumeira timidez, deram um beijo de


tirar o fôlego, excitante, como toda aquela dança.

Anna correu seus lábios pelo pescoço dela e sussurrou.

— Vamos para casa.

— Você está se sentindo bem? — Jennifer perguntou, confusa.

— Vamos para minha casa. — Anna falou lançando o mais malicioso dos

sorrisos.
— Você disse que não sabia dançar. — Jennifer comentou, enquanto
pagavam suas comandas na portaria.

— Eu nunca disse que não sabia dançar.

— Bom saber.

— Me segue? — Anna falou já saindo para a rua, com Jennifer logo

atrás, que vinha fechando seu casaco por causa da brisa fria que soprava.

— Sim, pode indo de moto, vou logo atrás. Não durma, viu? — Falou

sorrindo.

— Você me deixou louca, mocinha. A última que quero agora é dormir.

Te encontro lá em cima. — Sorriu em resposta e colocou seu capacete, já

montando na moto.

Jennifer se aproximou e ergueu o capacete dela, lhe dando um beijo


lascivo.

— Te deixei molhada? — Perguntou em seu ouvido.

— Em casa te mostro o quanto.

Lhe deu outro beijo e a moto partiu.

Jennifer entrou no seu carro, fechou a porta e girou a chave. O carro não
pegou, fazendo um barulho prolongado.

— Vamos lá Ignatius, não me deixe na mão. — Conversava com seu


carro.
Virou novamente a chave na ignição, mas o barulho que se ouviu foi o
mesmo. De repente tomou um susto com uma figura que surgiu em sua janela,

colocando as duas mãos na porta e a cabeça quase dentro do carro.

— Ah, fala sério, você de novo? — Jennifer falou num tom injuriado.

— Cadê suas amiguinhas hoje? — Perguntou com deboche.

Era o mesmo cara que havia mexido com ela e suas primas algumas

semanas antes, naquele mesmo lugar, tinha um porte de jogador de futebol

americano, os cabelos castanhos bem penteados.

— Você gosta de apanhar de garotas ou é algum fetiche?

— Não, eu gosto de ver garotas como você apanhando. — Saiu

rapidamente da janela e apareceram dois brutamontes, que puxaram Jennifer de

dentro do carro sem sequer abrir a porta, através da janela.

Um deles tapou a boca dela, enquanto o outro a arrastava pelos braços. A

levaram arrastando de costas até um beco que se formava entre dois prédios

próximo dali. Ela esperneava e tentava se soltar, mas o outro grandalhão ajudava

a segurar. Chegaram até o final do beco, que tinha uma pequena claridade vindo
de frestas acima. Além de algumas caixas de papelão, havia apenas o ladrilho
molhado e escuro.

A jogaram numa pilha de papelão amassado e logo foram para cima dela,
segurando seus braços e ombros contra as caixas. Ela pode ver caminhando

lentamente em sua direção o cara que a havia abordado, com um sorriso irônico
nos lábios.

— Hum, bem melhor assim... Sabe, naquele dia confesso que estava um
pouco bêbado, só por isso que você conseguiu me acertar. Boa notícia: hoje

estou ótimo. Ou seria má notícia? — Riu.

Jennifer, ainda com a boca coberta, tentava falar algo, continuava se

agitando, tentando sair dali. Ele se aproximou mais um pouco, ficando de pé à


sua frente, a observou por alguns segundos com uma expressão repugnante,

Jennifer agora o fitava já com os olhos molhados de raiva.

— Acho que seria um desperdício apenas ver você apanhando. Tenho


outros planos para nós. — Sorriu.

Se aproximou mais um pouco parou em sua frente, correu as mãos pelas

suas pernas, Jennifer sentia aquelas mãos deslizando sobre seu jeans e tinha

vontade de chorar mais do que já chorava. Em seguida ele abriu seu cinto, sem

pressa. Jennifer tentava atingi-lo, mas um dos caras grandes segurou uma de suas
pernas.

— Mas que gata selvagem você é, hein? Colabore e quem sabe você sai

andando daqui hoje.

Voltou a colocar suas mãos em Jennifer, desabotoou a calça dela, abrindo

seu zíper. Jennifer olhava desesperada, suava, não tinha mais forças para tentar
fugir dali. Ele abria seu casaco quando um dos seguranças bradou.

— Atrás de você!
— O quê? — Respondeu confuso.

Antes que virasse para trás, sentiu algo rígido golpeando seu rosto,
fazendo com que sangue e talvez alguns dentes voassem de sua boca enquanto

ainda caía no chão, sem ideia do que estava acontecendo.

Jennifer assistia a cena paralisada, ainda nas caixas de papelão. Anna

empunhava uma barra de ferro e agora acertava um dos brutamontes, primeiro


na cabeça e logo em seguida nas costelas. O segundo deles também veio para

cima dela com raiva, porém com mais raiva Anna o acertou quatro vezes na

cabeça com a barra, caiu sangrando. O valentão atlético, que agora virava-se no

chão como um rato encurralado, fitava assustado Anna, já sabia de onde tinha

vindo o golpe que o fazia cuspir sangue até agora. Ele ergueu-se, se sustentando

nos cotovelos, a olhando apavorado.

— Mas que porra de maluca é você?? — Ele bradou, com a voz

falhando.

Anna deu alguns passos ficando aos pés dele, olhou dentro de seus olhos

com ira e respondeu.

— Eu sou a namorada dela. — Empunhou rapidamente a barra e golpeou


novamente em sua cabeça, o deixando desacordado. Os outros dois grandões já
haviam dado no pé.

Olhou para o lado e viu Jennifer retraída, olhando arregalada, largou a

barra de ferro no chão e correu para ela.


— Você está bem? — A abraçou, Jennifer a agarrou com as duas mãos às
suas costas, com força.

— Anna...

— Machucaram você? — Anna insistiu.

Jennifer apenas balançou a cabeça negativamente, chorava bastante,

ainda a prendendo com seus braços.

— Tá tudo bem agora. — Anna corria sua mão pelos cabelos dela,

afagando sua cabeça.

Anna a ajudou a levantar dali, deu uma conferida se estava tudo bem,

fechou sua calça e o cinto.

— Fizeram algo com você? Quer ir no hospital?

— Não, só quero ir embora... — Falou, com uma voz ainda trêmula.

— Vem de moto comigo?

Jennifer concordou, Anna lhe deu seu próprio capacete e seguiram para a

casa de Anna.

— Vá, tome um banho e eu coloco você na cama. — Anna falou, assim

que entraram no quarto.

Jennifer saiu do banho com um roupão branco e viu Anna na sacada, a


esperando, recostada no parapeito.

— Cadê o vidro? — Perguntou ao perceber que a porta da sacada estava


sem a vidraça.

— Acidente doméstico.

Jennifer se aproximou dela, pegou sua mão esquerda, olhou algumas


cicatrizes recentes na parte de cima da mão.

— O mesmo acidente doméstico?

Anna sorriu.

— Você tem boa memória.

— Anna... Obrigada. — Jennifer falou, se aproximando devagar,

finalmente a abraçando, como se estivesse se acomodando em algo confortável e

macio.

— Quem era esse cara?

Jennifer deu um longo suspiro antes de falar.

— Não sei, um babaca que veio nos incomodar no estacionamento há

algumas semanas atrás, quando eu estava com minhas primas.

— E o que aconteceu?

— Eu bati nele e fomos embora.

— Hoje ele veio se vingar?

— Sim.

— Que covarde... O que me consola é que ele deve estar catando os


dentes no chão até agora.

Jennifer se desprendeu, ficando cara a cara com Anna.

— Como sabia que eu estava em apuros?

— Você não chegou, eu voltei para o pub te procurando. Estava entrando


no pub quando escutei uns sons vindo de um beco ali próximo, eu já estava

achando estranho seu carro estar lá, com o vidro aberto e sem você dentro, fui na

direção do som. E te achei.

— Não quero nem pensar no que teria acontecido se você não tivesse

voltado.

— Não pense. Venha, vamos dormir.

***

Jennifer estava com os braços apoiados no mármore do parapeito da

sacada, o olhar perdido no mar à sua frente, com o adorno amarelado do sol que

nascera há pouco tempo. Anna se aproximou com duas canecas de café e lhe
entregou uma, transpassou seu braço ao redor da sua cintura e deu um beijo em

seu pescoço. Ficaram lado a lado, olhando por alguns instantes em silêncio para
a imensidão esverdeada, Jennifer girava sua caneca nas mãos, usava uma calça
cinza de Anna e um regata também dela.

— Eu nunca havia me relacionado com alguém tempo o suficiente para

comemorar um aniversário, então aquele dia era um dia especial, estávamos


completando um ano de namoro. — Jennifer começou a falar, com o semblante
triste, mas pacífico.

— Helen?

— Sim. Havíamos combinado um jantar na minha casa à noite para


comemorarmos, eu sairia mais cedo do porto para ir para casa preparar algo, mas

acabei me enrolando com um trabalho e nem percebi que já havia escurecido.

Anna sabia o que estava acontecendo, deixaria Jennifer o mais à vontade

possível para se abrir daquele jeito.

— Ela esteve no meu apartamento e não me encontrou, então resolveu

me buscar no porto, me fazer uma surpresa. Saímos do escritório e estávamos

tão imersas numa conversa sobre o que cozinhar para o jantar, que andávamos
sem maiores preocupações pelo porto. A noite já havia caído, seguimos entre

algumas pilhas altas de contêineres e de repente eu senti uma mão cobrindo a

minha boca e um braço me puxando para trás. Quando percebi, haviam feito o

mesmo com ela, e já estávamos num pequeno espaço atrás dos contêineres, no
chão.

Anna suspirou, já imaginando o que poderia ter acontecido.

— Os caras eram bem grandes, não maiores que aqueles irmãos vikings
que enfrentamos na Escócia, mas eram bem truculentos. Eles praticamente

montaram em nós e nos imobilizaram, eles nos batiam quando tentávamos gritar,
então eu desisti de tentar gritar por socorro. O que estava em cima de mim estava

sem camisa, tinha umas tatuagens horrorosas nos braços, e o que estava com
Helen ficava falando coisas grotescas sobre os híbridos.

— Eram Titans? — Anna perguntou, com uma voz branda.

— Sim, também me xingaram por eu ser humana. Eu tentei me


desvencilhar dele, às vezes eu conseguia olhar para o lado e podia ver que ela

também estava lutando, mas mesmo sendo híbrida, ela não era tão forte como

você, ela nunca gostou de nada violento, nunca deve ter batido em ninguém, nem
barata ela matava.

Jennifer fez uma pausa antes de continuar.

— Enfim, eles... Você sabe, você pode imaginar o que fizeram com a

gente. — Jennifer já tinha algumas lágrimas teimando em rolar de seus olhos.

— Sim... — Anna respondeu com um semblante triste.

— Foram minutos bem longos, se você me perguntar se durou dez


minutos ou dez horas, eu não saberia responder. Se não bastasse o que estavam

fazendo, eles pareciam querer descontar toda raiva do mundo em nós.

— Meu Deus... — Anna estava totalmente abalada com o que ouvia,

nunca imaginaria que Jennifer tivesse passado por uma violência desse tipo. A
fitava, estarrecida.

— Eu percebi que Helen não estava mais tentando gritar, não estava mais
fazendo barulho algum. Olhei para o lado e o vi com as mãos em seu pescoço,

ele estava a sufocando, ela estava com as mãos em seus punhos, tentando se
soltar, mas ele era muito mais forte que ela. Algum tempo depois eu... Eu vi suas
mãos caindo ao seu lado... — Jennifer se esforçava para continuar falando, a voz

falhava, soluçava. — E então ela não se mexeu mais. Ele a havia matado e eu

tinha certeza que seria a próxima. Eu olhei nos olhos do cara que estava em cima

de mim e foi exatamente isso que eu percebi. Bom, não sei de onde surgiu aquele
impulso, eu acho que converti todo o medo que estava sentindo numa força

dentro de mim, sei lá, e consegui soltar minha perna, acertei uma joelhada bem
no meio das pernas dele... E funcionou... Aproveitei a deixa para empurrá-lo

para o lado... Eu fugi, corri como nunca havia corrido na vida, sem olhar para

trás.

Jennifer parou um instante, enxugou o rosto.

— Só parei de correr quando já estava fora do porto, me dei conta que

Helen ainda estava lá, eu já não podia fazer mais nada por ela, mas ela ainda
estava lá... Com aqueles caras... — Parou um instante, respirou com mais calma.

— Eu não sabia o que fazer, não sabia a quem pedir ajuda, eu fui para casa.

Becca e Bob foram meus anjos da guarda, eles me ajudaram de tal forma...
Principalmente Becca. Nossa, eu... Estava acabada... Os caras pegaram pesado,

eu quebrei dentes, costelas, dedos da mão, um braço, foram semanas bem


difíceis de recuperação em casa.

Anna apenas a observava, angustiada.

— E no dia seguinte eu fui até a casa dela, dei a notícia para sua mãe e
sua avó. Encontraram o corpo no mar, naquele mesmo dia.
— Faz quanto tempo que isso aconteceu?

— Fez três anos no mês passado.

— Você tinha dezenove anos... É muita crueldade.

Pela primeira vez desde que havia começado a falar, Jennifer olhou para
Anna.

— E não teve um dia sequer nesses três anos, que não me culpei por não

tê-la salvo.

Voltou a olhar para frente, chorava sem reservas.

— Não sei, eu poderia ter sido mais forte, poderia ter lutado mais,

tentado soltar minha perna antes, somente eu poderia ter mudado o curso

daquilo, ela não deveria ter morrido ali, não podia.

Anna a abraçou, a aninhando em seu peito.

— Você não tem culpa de nada, meu anjo. — Anna afagava seus cabelos.

— Não é o que eu sinto no meu coração.

— Pense em tudo de ruim que você fez, ou que você permitiu que
acontecesse, por causa dessa sua culpa, o que ela acharia disso? Você precisa dar

outro sentido para a morte dela, você não é a responsável pelo que aconteceu, é
apenas uma sobrevivente. — Anna falava com uma voz calma, apaziguante.

Jennifer apenas balançou um pouco a cabeça.

— Eu sinto muito por tudo isso... Queria que você tivesse me contado
antes, mas eu te entendo. Meu amor, você precisa deixar Helen partir.

Jennifer não falou mais nada, mas Anna percebeu algo errado.

— Você está tremendo? E suando. — Anna a afastou e a olhou assustada.


— Você está bem?

— Não. — Jennifer respondeu e logo em seguida sentou-se zonza no

banco na varanda, estava pálida e suando, passava as mãos no rosto.

— O que está acontecendo?

Jennifer não respondeu.

— É uma... Crise de abstinência? — Anna perguntou, preocupada.

— Talvez.

— E o que fazemos? — Falou se agachando à sua frente, pousando as


mãos em seus joelhos.

— Nada.

— Quer que eu te leve no hospital?

— De carro? — Sorriu.

Anna riu, balançou a cabeça.

— Eu quase matei nós duas naquele carro.

Anna a olhou, passou seus dedos em sua testa, afastando seus cabelos.

— Não, eu vou ficar bem, isso passa.


Jennifer estava encolhida, sentindo frio, corriam filetes de suor de sua
testa até seu queixo, pelas laterais de seu rosto, e havia pequenas gotas acima de

seu lábio.

— Venha deitar, então.

— Já vou.

Anna se levantou, passou a mão esquerda por baixo dos seus joelhos e a

outra em suas costas e a ergueu.

— Hey, eu posso andar.

— Eu sei, mas pra variar eu queria te carregar alguma vez acordada. —

Jennifer passou seus braços ao redor do seu pescoço.

A repousou na cama e sentou-se ao seu lado, com as costas na cabeceira.

Jennifer prontamente virou-se e deitou-se em suas pernas, passando sua mão por
trás de suas costas.

— Você está quentinha. — Jennifer murmurou, de olhos fechados.

Anna puxou o cobertor e a cobriu, fazia cafuné em sua cabeça, a olhava,


processando tudo que havia ouvido, sentia um grande mal-estar, e uma espécie
de revolta. Se pudesse arrancaria aquela culpa do coração dela.

— Me desculpe pelas coisas que falei sobre Helen aquele dia, eu não
fazia ideia.

— Tudo bem, você não fazia ideia.


— Quantos anos ela tinha?

Jennifer abriu os olhos, mas não olhou para cima.

— Não sei, ela nunca me falou. Ela dizia que a idade biológica era um
mero detalhe. Aparentava uns vinte, mas com certeza tinha mais, ela estava

terminando a faculdade de veterinária quando a guerra começou. — Jennifer

ainda tinha tremores, sua camiseta já estava parcialmente molhada de suor.

— Você começou a usar aquelas coisas depois disso?

— Sim. No início usava porque precisava, eu tinha dores no corpo todo,

e também nunca conseguia dormir.

— Mas continuou usando... Até hoje.

— Não, só de vez em quando. Na verdade, só em tempos difíceis. Sei

que você deve estar achando que sou algum tipo de viciada, ou sei lá... Eu dei
margem para isso, mas não é o que parece. É que as últimas semanas foram

pesadas.

— É, eu sei.

— Desde o dia que te conheci, até o dia que terminamos, eu não tomei
sequer um comprimido, nunca usei nada ao seu lado.

— Eu substituo a sua droga. — Falou sorrindo.

— Eu não preciso de nada quando tenho você.

Anna se dava conta que fazia parte de algo muito maior do que
imaginava.

— Desculpe se te julguei. Você é uma boa garota, foi injusto isso que te
aconteceu. E eu quero garantir que nada do tipo aconteça com você novamente,

eu quero estar sempre do seu lado. — Anna a olhava com carinho.

— Eu sei que isso pode soar meio cafona, mas eu sentia que tinha um

vazio enorme aqui dentro, quando você apareceu... E preencheu tudo tão
lindamente, que eu nem acreditava que você era de verdade. Eu levei um bom

tempo me contentando em apenas estar perto de você, conversar com você,

esbarrar acidentalmente na sua mão, mas com o passar dos dias eu comecei a

sentir uma espécie de urgência em ter mais, em poder tocar você, queria poder te

abraçar sem ter uma boa desculpa para isso, queria poder te beijar, mas sabia que

não seria correspondida, e isso doía muito, por isso resolvi ficar no Canadá.

— Foi por isso que você ficou lá?

— Posso te garantir que não foram pelos quitutes da minha vó, que são
muito bons, diga-se de passagem. — Deu uma olhadela para cima.

Anna riu.

— E eu acordava todos os dias torcendo para receber uma mensagem sua


dizendo ‘venha me buscar’.

Jennifer já não tremia mais, parecia mais tranquila.

— Sente-se melhor?
— Uhum.

— Por que você não me contou tudo isso antes? Sobre Helen.

— Não é um assunto fácil. E eu não sabia como você reagiria. Tinha


receio que você se assustasse... Ou se afastasse.

— Eu nunca faria nada parecido. Mas agora que você compartilhou

comigo, eu quero te ajudar a superar isso.

Jennifer virou-se um pouco em seu colo, passou a fitar Anna.

— Estar com você já é a ajuda que preciso.

— Você carrega esses fantasmas com você o tempo todo, seu sono é

agitado e tenho certeza que é por causa disso. Você já falou o nome dela

enquanto dormia.

— Eu fiz isso? — Jennifer perguntou com a testa franzida.

— Fez.

— Eu tenho pesadelos.

— Alguns bem reais, você até me bate. — Sorriram.

— Meu celular está tocando?

— Também estou ouvindo. Está lá próximo da sacada.

Jennifer levantou e foi até a mesa próximo a porta de vidro, foi até a
sacada atender. Anna, da cama pode apenas observá-la, estava com um

semblante preocupado, parecia tentar argumentar, contrariada. Desligou o


telefone caminhou com os braços caídos junto ao corpo, ainda segurando o

aparelho.

— Quem era?

— Meu avô. Ele já sabe o que aconteceu comigo essa semana.

Anna apenas esperou ela continuar a falar, percebeu o tom de voz

assustado dela.

— Ele quer que eu vá morar na Escócia. — Continuou.


Capítulo 27 - Segunda-feira

Jennifer aprendia a duras penas que toda atitude acaba tendo uma

consequência, às vezes imediata, outras vezes tardia.

— E o que você respondeu? Você vai para a Escócia?

Jennifer se aproximou devagar da cama onde Anna, ainda recostada na

cabeceira, lançava um olhar temeroso. Sentou-se ao seu lado, de frente para ela.

— Eu não quero ir.

— Você tem essa opção?

— Eu não sei, tentei argumentar, mas ele parecia inflexível. Disse que

me ligaria daqui alguns dias para termos uma conversa definitiva.

— Ele quer a neta ao alcance dos seus olhos, é compreensível depois de

tudo que aconteceu.

— Mas nada disso vai acontecer de novo, eu falei para ele. Eu só quero

tocar minha vida aqui. — Jennifer argumentava cabisbaixa, mexendo nas


pulseirinhas em seu pulso.

— Como ele soube?

— Ele não falou, mas tenho uma suspeita.

— Qual?

— Não quero acusar ninguém, vou averiguar primeiro.


— Jim?

Ergueu as sobrancelhas.

— Vou averiguar primeiro.

— Quando seu avô ligar novamente, o que você irá dizer?

Jennifer balançou a cabeça.

— Meu lugar é aqui. Mas sei que irão precisar de mim. Não sei se estou

preparada para tudo isso, não quero decepcioná-los.

— Você está falando sobre assumir o posto do seu avô?

— Também. Talvez essa seja a parte mais fácil.

— Tem mais coisas, não tem?

Ela não respondeu, Anna percebeu o semblante pesaroso de Jennifer, o

silêncio dela foi compreendido.

— Tudo bem, eu sei que você não pode me contar tudo.

— Acho que um dia vou poder te contar.

— Eu sei. Não se preocupe com isso. Mas se for algo pesado demais,

você sabe que pode dividir o fardo comigo, não sabe? Seja o que for.

— Sei sim. — Afagou seu rosto, com carinho. — E precisarei muito de


você.

— Ajuda se eu conversar com seu avô, prometer cuidar de você?


— Quem sabe na próxima ligação ele esteja mais compreensível, acho
que ele acabou de ficar sabendo de tudo.

— Se você quiser, me passe o telefone que tento negociar com ele.

— Quem sabe.

***

No dia seguinte, na segunda-feira, Anna se dirigiu ao centro da cidade,

iria visitar Max, como fazia todas as semanas. Teve uma sensação estranha

enquanto estacionava a moto, próximo à ponte, olhou para todos os lados,

acabou entrando logo na loja de Max.

— Bom dia, Max. — Falou sorrindo enquanto descia as escadas que

conduziam ao escritório.

— Eu conheço esse sorriso.

Anna sorriu ainda mais com o comentário e sentou-se na cadeira em

frente à mesa de trabalho bagunçada de Max.

— O que eu posso dizer... Minha pequena voltou.

— Já não era sem tempo!

— Nem me fale. Essa semana foi uma verdadeira montanha russa.

— Ela está bem agora?

— Sim, o pior já passou, está se desintoxicando.

— E vocês?
Anna deu um sorriso bobo.

— Ela voltou para casa dela ontem à tarde e já estou com saudades,
querendo correr para o apartamento dela. Isso responde sua pergunta?

— Responde sim. — Deu um suspiro lento antes de continuar. — Anna,

conheço você desde que usava fraldas, seu pai te trazia aqui e você mexia em

todas as coisas da vitrine! Vi você crescendo, namorando, sendo noiva inclusive,


mas eu nunca vi alguém te deixar desse jeito, você fica iluminada quando está

com ela.

— Ela é o meu sol. — Deu um sorriso tímido. — Ela me tirou da


escuridão.

— Mantenha a cabeça no lugar, cuide dessa relação. Sei que já te falei

isso várias vezes, mas nunca deixe uma conversa para depois, o diálogo é a

chave do entendimento.

— Estou aprendendo, Max... Sinto que aprendi algumas coisas nos

últimos dias, outras coisas ficaram mais claras. É que as vezes é difícil entrar na
cabeça dela. Ela tem muitos esqueletos no armário.

— Todos nós temos.

Anna se ajeitou na cadeira e falou num tom mais brando.

— Mas o avô dela quer levá-la para a Escócia.

— Quer que vá morar com ele?


— Sim. Ela quer ficar, mas talvez acabe obedecendo o avô.

— Vocês querem ficar juntas, vão encontrar um jeito, o avô deve estar
assustado, quer tomar providências imediatas.

— Bastante... Mas mudando de assunto, você tem câmeras instaladas do

lado de fora da loja?

— Não, por quê?

— Não sei, estou com a sensação que fui seguida, não somente hoje.

— Você viu alguém?

— Não exatamente, mas algumas vezes tive a impressão de estar sendo

observada.

— Quer que eu coloque alguém para ficar na sua retaguarda?

— Não. Acho que não é necessário, apenas vou ficar atenta.

— Tome cuidado, você já irritou algumas dezenas de Titans, nunca se

sabe.

— Tomarei.

— E aí, quer uma missão especial essa semana?

— Sempre.

— Nosso melhor cliente voltou a nos procurar.

— Quem, a polícia?
— Isso, estão com um impasse e precisam de nossos servicinhos. É uma
missão conjunta.

— Não gosto muito de missões compartilhadas.

— Eles sempre pagam bem.

— Você sabe que esse não é meu principal critério.

— Eu sei. Mas vai topar?

— Acho que Jennifer vai querer voltar à ação. Mas depende do tipo de

serviço.

— Um resgate em Newtown.

— Hum... Prossiga.

***

— Te acordei? Anna perguntou após bater na porta de Jennifer naquela


manhã, trazia um pequeno saco com rosquinhas.

— Não tem problema, desde que tenha comida neste saco aí.

Anna ergueu o saco de papel branco e sorriu.

— Rosquinhas.

— Ok, pode entrar. Mas você não me acordou não, Becca me tirou da
cama cedo, veio fazer a checagem matinal.

— Que checagem?
— Se estou viva.

Anna a olhou com uma sobrancelha levantada.

— Que horror.

— É o jeito dela dizer que me ama. O seu é trazendo rosquinhas.

— Mas também vim ver como você está, você deveria ter passado a noite
lá em casa.

— Vocês vão ganhar o prêmio babás do ano.

— E quem vai entregar esse prêmio, seu avô?

— Ok, seu argumento foi melhor que o meu, vou me recolher à minha

insignificância. — Falou sorrindo, já comendo um dos quitutes. — Você está

vindo da loja de Max?

— Sim, e resolvi passar aqui para dar um beijo de bom dia. — Andava

até o sofá.

— E onde está?

— O quê?

— O beijo.

Anna largou o capacete na mesa, virou e se aproximou. Entrelaçou sua

namorada pela cintura e a beijou, mas parecia não se contentar com um simples
beijo de bom dia, o prolongou de forma voluptuosa, logo Jennifer subiu suas
mãos sorrateiramente por dentro da blusa de Anna, a incendiando.
— Assim não vou parar no beijo de bom dia... — Sussurrou no ouvido de
Jennifer.

— Não pare... Eu quero mais.

O aparelho de som agora no quarto tocava uma sequência de músicas do

David Guetta, e ditava o clima quente que se iniciava.

Um beijo depois e já estavam dando os passos sôfregos que os amantes

dão, com Jennifer se atirando na cama. Anna tirou sua roupa sozinha de pé em

frente a cama, com grande agilidade, enquanto Jennifer a olhava com um olhar

desejoso e um sorriso bobo, ou talvez nada bobo. Puxou Jennifer pelas pernas, a
pegando de surpresa, e tirou a sua calça. Subiu na cama de joelhos, a trouxe para

próximo de seu corpo, tirando sua blusa de alcinhas brancas, finalizou a puxando

pela nuca, lhe dando um beijo que saciava um pouco do desejo que sentia no

momento.

Jennifer soltou dos seus lábios e aproveitou da posição, quase sentada,


para beijar os seios dela, mantendo as mãos às suas costas, a tocando e

prendendo, percebeu que Anna suspirava mais forte agora, e arrepiava-se quando
demorava seus lábios por seus mamilos. Não demorou muito para que Anna

empurrasse Jennifer de volta à cama, a deitando novamente. Anna a seguiu,


continuava com seus joelhos ao redor dos quadris de Jennifer, mas agora Anna

baixava seu corpo, queria sentir sua pele em contato com a pele dela, uniram-se,
roçavam-se.
Anna deslizava avidamente as mãos pelo corpo de sua namorada,
enquanto a beijava, ora nos lábios, ora no pescoço, às vezes mordiscava sua

orelha. Era desejo em sua forma plena, tendo paixão como combustível, Anna

agora sabia exatamente como era a dor de não tê-la mais em seus braços, em sua
cama, e queria consumir cada gota de Jennifer, era muito mais que apenas fazer

amor.

Desceu seus beijos pelo pescoço dela, chegou até seu seio, permitiu-se

demorar em ambos com sua boca e o toque delicado de sua mão, Jennifer ficava

cada vez mais ofegante, mordia o lábio inferior. Anna desceu mais um pouco,

correu seus lábios quentes até seu umbigo, e fez o mesmo caminho de volta com
a língua, até o espaço entre seus seios. Voltou até a região da cintura, contornava

o umbigo sem pressa, com beijos suaves, podia sentir a leve penugem da pele de

Jennifer roçando seus lábios. A sentia contraindo os músculos do abdome,

quando se arrepiava.

Caminhou pelo baixo ventre, logo sua boca encontrou seu destino final,
que prevendo as intenções de sua namorada, espaçou sua perna para o lado,

deixando ainda mais fácil para Anna encaixar-se entre seus quadris. Parecia que
seus corpos haviam sido feitos para isto, para encaixaram-se em qualquer

posição. Anna a puxou para si, passando sua mão por baixo da cintura de
Jennifer. Percorreu as pequenas curvas quentes e molhadas com seus lábios e sua

língua, pode sentir que Jennifer estava de fato entregue, de corpo, alma e
excitação.
Aumentou um pouco o ritmo com seus movimentos, sentia Jennifer
vibrando, arfando, parecia buscar algo com sua mão irrequieta no lençol branco.

Anna a segurou pelo quadril com força, a absorvia, sorvia. Jennifer alcançou o

lençol e o apertou com força, fazendo as juntas de seus dedos ficarem


esbranquiçadas. Jogou a cabeça para trás, Anna sentiu com a mão o seu ventre

tendo espasmos, enrijeceu, e enfim seu corpo entregou-se, com a respiração


forte.

Anna ergueu um pouco os olhos e viu Jennifer ainda com a cabeça para

trás, buscando o ar, se recompondo. Sorriu, contemplou por alguns segundos o

corpo alvo e com alguns pequenos sinais marrons espalhados estrategicamente.


Subiu devagar, sua boca agora apenas entregava beijos suaves no seu pescoço

exposto. Jennifer voltava a si, a fitou e colocou sua mão quente em seu rosto,

Anna encontrou seus lábios entreabertos e a beijou.

Jennifer a abraçou, a aninhando em seu corpo, encostou seu rosto na testa

de Anna.

— Eu te amo tanto... — Murmurou com os lábios roçando em sua testa.

Anna sorriu satisfeita, ficaram assim por longos minutos, trocando beijos

e calor.

***

— Você está vibrando ou é algum celular? — Anna falou.

— Deve estar embaixo do travesseiro. — Jennifer respondeu, passando a


mão sob o travesseiro e alcançando o aparelho.

— Meu avô? Já?? — Sentou-se na cama, olhando para o aparelho.

— Melhor atender. — Anna sugeriu, já se cobrindo.

Jennifer sentou-se com as pernas para fora da cama e atendeu.

— Aí já é de manhã, não é? — Seu avô perguntava do outro lado da


linha.

— É sim, acho que umas dez da manhã.

— Ah bom... Como você está, minha neta?

— Me sentindo ótima.

— Pensou sobre nossa última conversa?

— Pensei... Na verdade minha opinião continua a mesma.

— Você está sozinha?

— Não.

— Anna está aí com você?

— Sim.

— Tem como você falar comigo a sós?

— Ãhn... Só um minuto.

Vestiu rapidamente sua calcinha e uma camiseta.

— Já volto. — Sussurrou para Anna.


Foi para a cozinha, sentou-se numa das cadeiras.

— Pronto, estou sozinha.

— Quer dizer que não consegui amolecer seu coração.

Hoje seu avô parecia mais amigável, Jennifer percebeu a mudança de


tom.

— Vô... Eu entendo a preocupação, e eu adoraria morar com vocês, seria

incrível, mas eu já tenho meu lugar, eu moro aqui.

— Como posso ter meu coração em paz com você aí tão longe, sem
notícias suas, sem saber como você está, se está em perigo, se precisa de ajuda,

se terá uma recaída.

— Eu sempre me virei, desculpe pelo que aconteceu semana passada, foi

um deslize, mas agora estou bem melhor, e prometo mantê-lo sempre informado.

— Não é o suficiente para mim.

— Vô...

— Eu te liguei hoje preparado para ouvir exatamente isto, sei que não
sou páreo para a sua teimosia, por isso eu vou lhe propor um plano B, mas ouça
com atenção, pois é pegar ou largar.

— Sou toda ouvidos.

— Se você quer continuar morando longe de mim, não posso obrigá-la


do contrário, mas tenho algumas condições. Você sabe que eu prefiro resolver
tudo com uma boa conversa, sem imposições, mas quando se trata da segurança

da minha neta, preciso ser mais taxativo.

— Quais são as imposições? — Jennifer a essa altura já apoiava seus

cotovelos na mesa e com a mão livre coçava a testa, apreensiva.

— Em primeiro lugar, eu conversei com os líderes do clã de Connecticut,

e agora você é um membro honorário deste clã, você vai fazer parte
efetivamente, não será apenas um membro, você fará parte do conselho, irá

participar das reuniões, todas elas, irá frequentar a casa dos líderes, vai entrar

nesse círculo e eles serão meus olhos aí. Compreendido?

— Sim.

— Alguma dúvida?

— Qual a frequência dessas reuniões?

— Não tem datas fixas, eu já repassei seu telefone e endereço para eles,

irão te procurar muito em breve, e você aceitará todos os convites que receber.

— Ok.

— Em segundo lugar, você virá nos visitar com regularidade, não vou lhe
impor uma frequência, mas vou lhe sugerir que seja de dois em dois meses, ou

três. Quero me certificar pessoalmente que está tudo bem com você.
Compreendido?

— Sim senhor.
— Bom, o terceiro item é sobre sua mesada, mas antes quero conversar
sobre uma coisa com você.

— Manda.

— Você se recorda quando estava aqui, você estava sentada na minha

frente e eu perguntei se você confiava em Anna, você me respondeu que sim.

Você ainda confia nela?

— Agora mais do que antes.

— O que houve entre vocês? Como ela não percebeu o que estava

acontecendo?

— Ãhn... É que estávamos separadas.

— Ela sentou diante de mim e prometeu cuidar de você, mas pelo visto

as coisas não saíram como esperado.

— Mas agora estamos juntas novamente, e sei lá, eu sinto que as coisas

agora estão mais fortes, se não tivéssemos terminado eu não teria... O senhor
sabe, aquela coisa toda e tal.

— Você sabe quantos anos ela tem?

— Vários. Ela é híbrida.

— Eu coloquei alguns homens de confiança para buscar informações

sobre ela e sua família, e talvez você não saiba de tudo que descobri.

Jennifer ficou ainda mais apreensiva, se tivesse mais testa para franzir,
era o que faria naquele momento.

— Como assim? O senhor investigou ela?

— Apenas busquei mais informações. Você conheceu alguém da família


dela?

— Não, ela não tem nenhum parente... Acessível no momento.

— Sim, o pai, humano, morreu do coração. A mãe, Titan, num acidente

de carro. O irmão desapareceu. Mas isso tudo você deve saber.

— Sim, sei disso tudo.

— E você sabia que seu avô materno, juntamente do seu tio, de nome

Victor, foram condenados à prisão pela justiça americana por sonegação de

impostos e estelionato, e fugiram para a Tailândia?

— Não... Eu só sabia que eles haviam ido morar na Ásia.

— Anna também tem ficha policial, ela foi acusada de um homicídio há

nove anos, mas foi absolvida por falta de provas.

— Não, não sabia.

— Bom, mas você deve saber que ela foi noiva, de um rapaz de nome

Robert.

— É... Sabia que havia sido noiva, há muito tempo.

— E que ela o abandonou na véspera do casamento.

— Não, isso eu não sabia.


— Ah, esse avô materno, que fugiu para a Tailândia, ele faleceu há
algumas semanas, provavelmente nem ela saiba disso...

— Nossa... Ela não deve saber, não.

— É... Pelo visto tem bastante coisa que você não sabe.

— Mas não são coisas que mude minha forma de enxergá-la.

— Eu sei, e esse não foi meu objetivo. Ouça... Eu resolvi dar um voto de

confiança para Anna. Você lembra como começou o terceiro item?

— A mesada.

— Justamente. Você não receberá mais a mesada, eu vou mandar o

dinheiro para Anna, e ela vai gerenciar isto com você.

— Eu vou ter que pedir dinheiro para ela??

— O acordo será entre vocês, mas ela terá que prestar contas todos os

meses comigo. Compreendido?

— Isso é meio constrangedor.

— Bom, ou ela gerencia seu dinheiro, ou eu contrato um monitor Vulpi


aí na sua cidade para tomar conta de você. É você que decide.

— Ok, Anna.

— Certo, mas eu vou querer falar com ela, preciso dar uns puxões de
orelha, só para fazer meu papel de avô. Peça para ela me ligar mais tarde, ok?

— Tá bom.
Jennifer estava meio desnorteada com a quantidade de informações.

— Promete que não vai mais fazer nenhuma besteira, Jenny? — Falou
num tom de voz tenro.

— Prometo vô, sério, pode ficar tranquilo, está tudo sob controle agora.

— É o que você sempre fala...

Jennifer despediu-se de seu avô e voltou para o quarto, ainda baratinada.

Quando avistou Anna não soube o que falar muito menos como esconder dela a

surpresa pelos fatos recém descobertos.

— Como foi a conversa? — Anna já a aguardava vestida, recostada na

cama.

— Ainda não sei exatamente.

— Mas chegaram a um consenso?

— Sim, eu vou ficar. — Falou sem muita animação.

— É por isso que você está nesta alegria contagiante?

Como se despertando de um transe, Jennifer se aproximou da lateral da


cama, e sentou-se próximo à Anna.

— Eu estou aliviada por poder ficar, mas ainda estou processando tudo.

— Mas está tudo bem?

— Sim... Na verdade ele impôs algumas condições para que eu continue

morando aqui.
— Algo muito difícil de atender?

— Bom... Você vai gerenciar minha mesada a partir de agora, o que


acha?

— Como assim, o dinheiro vai ficar comigo?

— Basicamente sim, você vai ter que prestar contas com meu avô todos

os meses. Claro que você pode declinar dessa nobre função se quiser, e então um

monitor Vulpi será contratado para ser meu monitor particular. Foi a segunda

opção, mas preferi você.

— É claro que aceito essa nobre função. — Correu sua mão na cama e

colocou em cima da mão de Jennifer. — Eu faço qualquer coisa para ter você
aqui por perto.

Jennifer correspondeu o carinho, passou a afagar sua mão com seu

polegar.

— Vai ser estranho.

— Vamos encontrar uma forma de não deixar estranho. Quais as outras

imposições?

— Agora também faço parte do clã de Connecticut e tenho que participar

de todas as reuniões, além de ser amiguinha de todo o conselho e aceitar os


convites que me forem feitos.

— É uma boa forma de conhecer outras pessoas como você, aumentar


sua rede de contatos, é sempre bom cultivar o networking.

— Ainda estou me acostumando com essa ideia, mas... Paciência. A


outra condição é que tenho que visitá-los na Escócia de tempos em tempos, dois

ou três meses de intervalo.

— Viagem de graça para a Europa várias vezes por ano.

— Adoro como você enxerga o lado bom das coisas, sabia?

— E não deveria enxergar? Você vai ficar, isso que importa.

Jennifer a encarou sorrindo, se inclinou para frente e lhe entregou um


beijo.

— Ou tem mais coisas? — Anna continuou.

Estava difícil conter sua curiosidade nata, Jennifer queria poder falar

sobre tudo que havia conversado com seu avô, obviamente não seria uma boa

ideia, mas a língua coçava cada vez mais.

— Não, foram essas as condições.

— Vamos tirar de letra. E prometo ser uma boa monitora financeira.

Jennifer hesitou por um instante, antes de voltar a falar.

— Se eu te perguntar uma coisa, você promete que não pergunta como eu

sei disso?

— Hum... Ok, pergunte. — Anna se ajeitou na cama, puxou as pernas


cruzando para próximo de si.
— Você largou seu noivo na véspera do casamento?

— Vocês estavam falando sobre mim? — Questionou surpresa.

Jennifer apenas cobriu a boca e balançou a cabeça, negando qualquer


informação adicional.

— Seu avô me investigou? Por que ele faria isso?

Jennifer balançou a cabeça negativamente de novo, em silêncio.

— Bom, seja quem for que obteve essa informação, deve ter falado com

alguém da parte dele, porque é isso que eles falam por aí, algumas vertentes até
dizem que o abandonei no altar.

— E qual a vertente verdadeira?

— Eu terminei o noivado uma semana antes do casamento.

— Por que deixou ir tão longe?

— Não tenho uma resposta satisfatória para essa questão, nem para mim

mesma.

— O casamento já deveria ter bastante coisas prontas, não?

— Sim. Já estava tudo organizado, reservado, mas tudo foi resolvido a


tempo.

— E o que Robert achou disso?

— Você sabe até o nome?


— Era Bob também?

— Não, era Rob. E Rob não aceitou o fim da relação, mas não teve muita
escolha.

— Viu, nem doeu. Era só curiosidade mesmo, não quero resgatar velhas

histórias de amor.

— Ótimo.

— Eu entendo Robert. — Falou sorrindo sarcasticamente. — Morreu na

beira da praia.

— Ok, minha vez de resgatar histórias.

— Qual?

— Você parece não ter dormido muito essa noite.

— Dormi algumas horas, a mesma insônia de sempre, o que que tem?

— Você teve aquele mal-estar ontem à noite, aqui sozinha?

— Tive.

— Você ainda tem alguma coisa, naquela gaveta?

— Quase nada.

— Usou ontem quando teve a crise?

— Não, não usei nada, apenas bebi bastante água.

— Mas se sentiu tentada a usar?


— Crise de abstinência é exatamente isso, não acha?

Anna apenas lançou um olhar receoso.

— Você quer que eu me desfaça do que restou, não é? — Jennifer leu


seus pensamentos.

— Você pode não resistir da próxima vez.

Jennifer olhou sofridamente na direção do criado mudo, não tinha certeza

se queria de fato se desfazer de tudo.

— Eu jogo fora depois.

— Se é difícil para você, me deixe fazer isso então.

Olhou novamente para a gaveta, titubeou antes de respondê-la.

— Ok, leve quando for embora.

— Mesmo?

— Apenas faça.

— Hey, olhe para mim. — Anna pegou sua mão e a puxou para perto.

— Você não precisa de nada disso. — Continuou. — Tenho algo bem

mais forte para você.

— O quê? — Questionou curiosa.

— Uma missão quinta-feira.

— A dupla dinâmica vai voltar à ativa? — Falou agora animada.


— Com força total. Uma missão conjunta com a polícia.

— Polícia?
Capítulo 28 - O babaquinha do homem aranha

— Já está pronta? — Anna falou mais alto, adentrando a sala do

apartamento de Jennifer, era quinta à noite.

— Só vou prender o cabelo!

— Não esqueça que tem gente nos esperando.

Jennifer apareceu esbaforida um minuto depois.

— Pronto! — Terminava de vestir uma blusinha verde escura, usava


também uma calça preta e botas.

Anna se aproximou devagar, pousou ambas as mãos em seus ombros,

com uma expressão carinhosa.

— Tem certeza que está pronta para voltar à ativa? Outras missões

aparecerão.

— Tudo que eu preciso é de um pouco de ação. — Falou após roubar um

beijo.

— Ok, Lara Croft, hora de partir, então.

A desentrelaçou e foi até a mesa, onde estavam os dois capacetes, pegou


o de Jennifer e jogou para ela.

— De volta para a dona. — Anna falou.

— Espero que ninguém tenha usado na minha ausência. — Respondeu


jocosamente.

— Esse não.

— O que você quer dizer?

Anna riu.

— Só estou te provocando, sua bobona. Vamos.

— Que tal irmos com o Ignatius?

— Que seria...

— Meu carro, você ainda não andou comigo. Tá, teve aquela vez que

você me levou para o hospital, mas não conta porque eu estava desacordada.

— Tudo bem, pode ser.

— Por falar nisso, o que foi aquilo na traseira do carro? — Falou já

descendo as escadas.

— Um pequeno incidente. — Anna respondeu apontando para uma placa


de trânsito entortada em frente ao prédio.

— Ok, poderia ser pior... Então, como é esse lance de missão conjunta?

— Questionou, já manobrando o carro.

— Dessa vez nem é assim bem conjunta, eles não entrarão conosco, vão

nos esperar do lado de fora.

— E o que faremos?
— Nós vamos para o bairro que te falei, Newtown, encontraremos alguns
policiais, de lá entraremos numa espécie de condomínio fechado e faremos o

resgate, na verdade é uma captura de um foragido da justiça.

— Quem é?

— É o contador da máfia local, a polícia já prendeu o chefão, mas esse

cara é quem sabe de tudo, de todos os envolvidos com a máfia, por isso querem
tanto prendê-lo, parece que tem alguns políticos na lista de clientes. Mas a coisa

ficou feia porque isso se tornou um caso público, até o prefeito já foi na mídia

falar que iria prender esse contador rapidamente, mas até agora nada, porém já o

localizaram, ele está escondido neste condomínio.

— E por que a polícia não entra lá e pega?

— Aí que está o pulo do gato, a polícia não pode entrar nesta vila de

segurança máxima, porque é um reduto de figurões e chefes do tráfico, eles têm

um acordo com alguns superintendentes dentro da corporação, eles pagam uma


espécie de propina para que a polícia não chegue nem perto deste lugar.

— A polícia não pode entrar, mas contrata gente como a gente para fazer

o serviço deles.

— Exatamente, eles nos acompanharão até certo ponto, depois é com a

gente, entramos, procuramos o nosso homem, o tiramos de lá e entregamos para


eles.

— Simples assim.
— Não tem missão simples, essa vila deve ser muito bem vigiada, vamos
encontrar alguns obstáculos, se é que você me entende... O cara em si não

representa nenhum risco, é apenas um contador, mas encontraremos resistência

até chegarmos ao objetivo e depois para sair.

— Entendi.

— Então já sabe, fique sempre atrás de mim, não tente nada maluco nem
arriscado, não faça barulho e não se distraia com bichinhos de estimação.

— Isso só aconteceu uma vez, e até você achou o gatinho fofo.

— É aqui, eles estão ali do lado das árvores.

Anna falou apontando para uma viatura parada num local mais alto, de

onde se tinha a visão do condomínio em questão, inúmeras casas vistosas

cercadas por pequenas ruas asfaltadas e bem iluminadas. Saíram do carro e logo

viram um policial negro saindo do carro, e do outro lado uma policial de cabelos

negros e óculos.

— Jenny? Que surpresa te encontrar aqui! — Laura, devidamente

fardada com seu uniforme preto, se aproximava delas, sorridente.

— Que coincidência, não? — Jennifer respondia timidamente e um


pouco nervosa, olhou de relance para Anna, correspondeu meio sem jeito ao

beijo e abraço que Laura havia lhe dado. Anna observava a cena sem entender o
que acontecia, com a testa franzida.

— Oi, Anna, tudo bom?


A cumprimentou sinalizando com a cabeça.

— Oi, Laura. — Falou não muito alto.

O outro policial se aproximou com uma pasta e foi logo mostrando o


conteúdo para elas.

— O oficial Hills vai mostrar a provável localização do nosso alvo, e

também algumas fotos, para vocês o reconhecerem. — Laura falou com

desembaraço.

O policial mostrava algumas plantas e rabiscos às duas garotas, enquanto

Laura se aproximou de Jennifer e falou próximo de seu ouvido.

— Que bom te rever aqui, nem imaginava que você era algum tipo de

paladina noturna.

— Esse desígnio é por sua conta. — Jennifer tentava a prestar atenção às


orientações, mas sem sucesso.

— Então... Você... E Anna... Voltaram?

— Sim, voltamos.

Jennifer sabia que Anna já havia sacado que havia acontecido algo entre
elas, àquela altura seria desnecessário qualquer tentativa de encobrir, mas

também não seria ela que contaria abertamente, esperaria Anna perguntar, o que
ela sabia que aconteceria mais cedo ou mais tarde.

— Fico feliz por vocês, mesmo. Bom, mas se as coisas mudarem... Você
sabe, você tem meu telefone.

— Obrigada oficial, já pegamos todos os detalhes, não é Jennifer? —


Anna falou mais alto, interrompendo a conversa paralela.

— Ãhn... Claro, já temos as informações que precisamos. — Respondeu.

— Então vamos entrar. — Anna conduzia Jennifer na direção do

condomínio, com uma mão à suas costas.

— Espere, leve esse rádio comunicador com vocês, qualquer emergência

entre em contato. — Laura entregou o aparelho à Anna, que estava com um

semblante de poucos amigos.

— E tomem cuidado, ok, meninas?

Anna apenas lançou um olhar fulminante. Fazia uma noite de verão

agradável e fresca, Anna usava uma regata negra de alças finas, e por cima vestia
seu coldre com duas adagas guardadas. E no cós da calça, atrás, uma arma.

A dupla desceu o pequeno barranco que dava acesso ao muro, onde


pularam rapidamente. Jennifer olhava atentamente para os lados, curiosa e

planejando o percurso.

— Acho que devemos ir por ali, por trás daquelas casas brancas. —

Apontou.

— Então você conhece Laura. — Anna a questionou de bate pronto.

— É, conheço. — Respondeu sem maiores reservas, mas de forma


econômica.

— Hum. — A olhou por mais um instante. — Ok, vamos naquela


direção, ande rápido, mas não corra.

Andaram por trás de grandes casas sem muros, até chegarem numa

pequena rua, onde havia uma guarita de vigilância, um forte segurança estava de

pé ao lado, conversando com outro que estava no interior.

— Como vamos passar para o outro lado? — Jennifer indagou

sussurrando, estavam próximas à quina de uma das casas, observando.

— Faça barulho.

— O quê?

— Faça algum barulho, mas algo discreto.

Jennifer olhou ao redor, pegou uma pequena pedra e atirou para frente,

mas nada aconteceu.

— Você é bem melhor que isso em se tratando de fazer barulho. — Anna

falou, empunhando uma arma próximo ao rosto.

Havia algumas latas de lixo nos fundos, Jennifer as fitou e de repente


todas rolaram pelo chão, atraindo a atenção do segurança que estava do lado de

fora. Quando ele se aproximou, Anna o puxou pelo pescoço e arrastou para trás
da casa, ele ainda tentou revidar, acertando uma cotovelada já sem muita força

nas costelas de Anna, que tratou logo de desacordá-lo o sufocando.


— Se machucou? — Jennifer se aproximou e observou de perto, tocando
seu corpo.

— Não, está tudo bem, vamos pegar o outro.

Novamente espiaram a guarita, aguardando o melhor momento de fazer a

abordagem. Anna deu uma boa olhada em Jennifer, pensativa.

— Conhece ela há muito tempo?

— Quem, Laura? Não, conheci recentemente.

— Quando estávamos separadas?

— Ahan. Hey, o outro cara está olhando desconfiado para cá, temos que

agir logo.

— Fique atrás de mim.

Anna ergueu novamente a arma, deu mais uma espiada e correu até a

guarita. O elemento que vigiava não era de grande porte, deveria ser uma espécie

de sentinela, mas era ágil. Ele sacou sua arma, mas Anna conseguiu impedi-lo de

atirar, segurando seu braço para o alto. Permaneceram assim, se digladiando,


ambos segurando suas próprias armas e o braço alheio.

Jennifer, que inicialmente olhava a situação e ao redor preocupada, sacou

sua adaga da bota e cravou na lateral do abdome do vigia, tendo o cuidado de


cobrir sua boca, o segurando por trás, para evitar chamar a atenção. Ele ainda

soltou um grunhido abafado pela mão de Jennifer, antes de cair no chão.


— Termine o serviço. — Jennifer falou para uma Anna arregalada.

Anna prontamente finalizou com sua arma e seguiram para trás das casas
novamente, correram pelos quintais e esgueirando-se pelas paredes sob a

penumbra, recuperando o fôlego. Anna virou-se na direção dela na menção de

falar algo.

— Não precisa agradecer. — Jennifer falou em tom de brincadeira.

— Você não aprendeu tudo isso comigo, não é?

— Nem tudo, eu fiz um bocado de aula de defesa pessoal depois

daquele... Incidente no porto. Sabe como é, eu precisava aprender a me defender.

Anna olhou para frente e fez uma expressão séria.

— O que foi?

— A casa rosa, deve ser aquela lá. — Anna falou apontando com a mão

para uma residência no final daquele quarteirão.

— O que tem a casa rosa?

Anna apertou os olhos, em recriminação.

— Prestou bastante atenção às instruções do oficial Hills, pelo visto. —

Falou com sarcasmo.

— O cara está nessa casa rosa?

— Aparentemente sim, se bem que pode haver mais casas rosas aqui...
Mas vamos arriscar. Preparada para entrar?
— Já estou lá dentro!

Jennifer tinha uma carta na manga, Anna também havia ficado com uma
garota naquela mesma época, por isso não estava levando muito a sério as

provocações de Anna, apesar de ter ficado tensa assim que viu quem era a

policial que as aguardavam. Esperava não ter que usar esta carta, mas se o tom
da conversa piorasse, usaria.

— Na minha retaguarda.

Anna arrombou a porta dos fundos da casa rosa, entraram num ambiente

escuro, era a cozinha e estava vazia. Continuaram passo após passo adentrando
os cômodos, andando pelos corredores, quando ouviram um som vindo do andar

de cima, logo subiram as escadas até encontrarem uma porta fechada, com o som

de TV vindo de dentro.

Se emparelharam uma em cada lado da porta, Anna gesticulou indicando

que ela entraria na frente, na contagem de três. Abriram a porta com vigor e um
homem aparentando uns quarenta anos, magro e com duas entradas calvas

proeminentes no cabelo castanho, estava deitado na cama, assistindo TV.

Deu um pulo com o susto provocado pela entrada das garotas


mercenárias, olhou apavorado para elas, permanecendo sentado na cama.

— Largue isso em cima da cama, calmamente.

— Mas é só um controle remoto.

— Largue calmamente. Colabore e ninguém sairá ferido. — Anna falava


pausadamente.

Naquele momento Jennifer lembrou do que seu avô falara, que Anna
havia sido acusada de homicídio há nove anos, se deu conta que ela fazia aquilo

há muito, muito tempo. Era literalmente ver para aprender.

— Levante da cama e vire-se para a parede.

— Para onde vocês vão me levar?

— Para a prisão.

— Vocês são policiais??

— Não, somos escoteiras. — Anna respondeu com ironia.

Jennifer riu.

Lentamente ele desceu da cama e colocou as mãos na parede ao lado.


Anna se aproximou, baixou seus punhos e o algemou, com as mãos para trás.

— Jennifer, venha aqui. Consegue conduzi-lo, enquanto vou na frente

abrindo caminho?

— Claro, é só levá-lo, assim, segurando pelo braço?

— Segure pelas algemas.

— Eu vou de pijamas? — O homem perguntou.

Anna e Jennifer se entreolharam.

— Deixe ele pelo menos ser preso dignamente. — Jennifer sugeriu.


Anna hesitou, mas permitiu que ele vestisse um casaco.

— Tá ótimo, para onde você vai não precisará dessas roupas.

Saíram do quarto e ouviram barulho no andar de baixo.

— Tem gente lá. — Jennifer sussurrou.

— Espera, vou dar uma olhada, fique aqui com ele.

Desceu alguns degraus e voltou rapidamente.

— Tem dois homens lá embaixo. — Falou preocupada.

— São os seguranças, eles são bem fortes para vocês, acho melhor me

deixarem aqui mesmo. — O alvo se pronunciou.

Anna subiu os dois degraus que faltavam para o patamar onde eles se

encontravam e o encarou de perto.

— Você vai sair daqui com a gente, acostume-se com esta ideia, ok? —
Falou rispidamente.

— Vamos descer? — Jennifer questionou, preocupada.

— Sim, segure bem esse indivíduo, fique com seu punhal na mão e me

siga. E você, espertinho, não tente nada, ela tem autorização para machucar
você, acho que deveria saber disso.

Começou a descer devagar a escada escura, chegando até o corredor.


Esperaram um momento e Anna correu na direção da sala onde os dois homens
estavam. Sem pestanejar atirou neles, dando tiros certeiros não restando tempo
para uma reação.

— Viu, ela estava falando sério. — Jennifer falou no ouvido dele.

— Anda, vamos. — Anna seguiu com passos largos na direção da porta


dos fundos, Jennifer a seguiu, arrastando-o pelas algemas.

Assim que saíram da casa, puderam avistar um grupo armado reunido

bem próximo, mais à frente. Rapidamente elas voltaram para a porta da casa, se

escondendo, sem que fossem vistas.

— Por onde vamos? — Jennifer perguntou.

— Não podemos voltar por onde viemos, teremos que dar a volta pelo

condomínio.

— Agora?

— Sim, vamos pelo outro lado.

Anna correu na frente, seguida pela dupla inusitada. Correram pelos

fundos das casas até chegarem numa outra rua, Anna parou bruscamente.

— O que foi?

— Outro grupo armado. Espere aqui atrás de mim.

Anna deu outra espiadela, viu um grupo de cinco homens parados,

conversando, e empunhando submetralhadoras.

— Não temos chance com esse grupo, temos que esperar que eles saiam
daqui, não podemos voltar. — Anna explicava à Jennifer.
— Ok, tomara que aqui não seja algum ponto de encontro de seguranças
fortemente armados.

Anna expiou novamente, e encostou-se na parede da casa.

— Temos que esperar. — Fulminou.

— E você fique quieto, seja um bom menino e ninguém se machuca.

Qual seu nome? — Jennifer falou para seu refém.

— Joshua. Mas todos me chamam de Josh.

Anna continuava alerta, empunhando sua arma. Então voltou seu olhar
para Jennifer, a fitou.

— Onde você conheceu Laura?

— No pub do Joel.

— Você esteve lá? Sozinha?

— Sim, qual o problema?

— Aquele bairro é perigoso, ainda mais à noite.

— Essa é a sua única preocupação? — Perguntou com sarcasmo.

— O que foi fazer lá?

— Fui conhecer o famoso pub que você frequenta, me divertir um pouco.


— Falou ajeitando seu cabelo, jogando alguns fios para trás das orelhas,
displicentemente.
— Conheceu alguém além de Laura?

— Sim, algumas amigas dela. Por falar nisso, precisamos fazer amizade
com mais híbridas, elas são tão divertidas.

O homem que estava à frente, preso, olhava de um lado para outro, para

Anna e Jennifer, como acompanhando um jogo de tênis, interessado na conversa.

Anna apenas balançou a cabeça, assimilando. Depois espiou novamente

pela lateral da casa.

— Pronto, rua liberada, vamos adiante.

Saíram detrás da casa, não tinham como seguir pelos quintais,

precisariam pegar a rua naquele trecho. Assim que pisaram no asfalto ouviram

latidos e sem conseguir detectar de onde, surgiu um sentinela conduzindo um

cão de grande porte, preso pela coleira.

Jennifer pulou em cima do cachorro, o segurando pelo pescoço e focinho,

enquanto Anna dominava o vigilante, caindo no chão sobre ele, logo já estavam

rolando e trocando socos. O refém apenas acompanhava a ação, atônito.

Anna levou alguns golpes no rosto, mas conseguiu finalmente empunhar


sua arma e eliminar a ameaça, enquanto Jennifer arrastava com dificuldade o
cachorro até próximo de algumas árvores, numa espécie de pracinha com cercas

baixas. Quando Anna se aproximou dela, o cachorro já estava devidamente preso


numa estaca tubular da cerca, que circundava a grama. Jennifer percebeu que

Josh começava a correr na direção da casa de onde vieram, partiu atrás dele, o
derrubando no chão, Anna chegou logo em seguida e pressionou sua a cabeça
contra o concreto da calçada.

— Outra tentativa dessas e você vai virar comida para aquele cachorro,

entendeu?? — Anna bradava em seu ouvido.

Anna ainda o segurava no chão, quando Jennifer saiu correndo, na

direção do cachorro, que latia, abaixou-se e começou a conversar com o animal.


Anna levantou o homem do chão e ficou aguardando Jennifer atrás da casa, a

olhando curiosa.

— Pronto, agora ele não vai mais chamar atenção. — Jennifer falou ao
voltar.

— O que você fez?

— Conversei com ele, o acalmei.

Anna apenas a encarou com as sobrancelhas franzidas.

— Ok, vamos seguir por esse caminho. Pegue sua encrenca de volta. —
Falou entregando os punhos algemados dele.

— Me deixe ver. — Jennifer se aproximou de Anna, e limpou o sangue


que escorria de seu nariz.

— Não foi nada.

— Incrível, você sempre sangra o nariz, precisa ir no médico ver isso.

— Você se machucou?
— Ele mordeu minha mão, mas não foi nada. — Mostrou a mão com
alguns pontos perfurados.

— Em casa eu limpo isso, não se pode brincar com mordida de cachorro,

tem que desinfetar bem esses furos. — Anna falava enquanto olhava de perto a

mão dela, a segurando com as duas mãos.

Atravessaram a rua e andaram pela frente de duas casas, antes de


voltarem a caminhar por trás delas, atravessando quintais escuros e cheios de

obstáculos e tranqueiras. Anna seguiu na direção de um carro estacionado ao

lado de uma das casas, e parou, se abaixando.

— Tem alguém ali, abaixem-se.

Anna se agachou próximo ao carro, espiando através da janela do

motorista. Jennifer também deu uma olhada pelo vidro, mas logo se abaixou,

deslizando de costas pela lataria do carro, até quase o chão, seu companheiro

daquela jornada fez o mesmo, sentando-se ao seu lado.

— É outro vigia, vamos ver para que lado ele vai. — Anna informou.

— Então... Ela é sua namorada? — Josh perguntou para Jennifer, em voz


baixa.

— É sim.

— Bem durona ela, hein?

— Você ainda não viu nada. — Falou com um sorrisinho.


— Ele foi embora, vamos para aquele lado. — Anna falou tocando no
ombro de Jennifer.

— Quantos seguranças tem nessa porra de vila? — Jennifer questionou,

enquanto caminhavam por trás das casas.

— Aqui tem mais vigilância que sua melhor penitenciária. — Ele

respondeu.

— Não somos policiais.

— Então o que vocês são?

— Super heróis. Eu sou a Lara Croft e ela é a Mulher Maravilha. —

Jennifer respondeu, se divertindo.

— A Lara Croft é um super herói?

— Ela é mais valente que o babaquinha do Homem Aranha.

— Não ouse falar mal do Homem Aranha.

— Você realmente acha que soltar teias é um super poder?

— O Batman é um super herói e não tem super poderes.

— Tem um super cinto de utilidades. — Jennifer respondeu enfática.

— Ok, qual seu problema com o Homem Aranha?

— Nenhum. Mas aquela roupinha dele... Vou te contar viu, que coisa
ridícula.
— Ah claro, e a Mulher Maravilha usa roupas bem melhores.

— Agora você tá brincando com fogo, rapazinho.

— Hey, dá para fazer silêncio? — Anna interrompeu o debate acalorado.

— Onde estamos? — Jennifer perguntou, desorientada.

— Chegamos numa quadra de esportes, logo ali do lado tem duas


guaritas, bem frequentada pelo visto. Temos que atravessar essa quadra e chegar

até o muro, ali, está vendo? — Apontava para o muro há uns cinquenta metros

da guarita, onde havia arbustos.

Estavam diante de uma quadra de concreto, com duas pequenas

arquibancadas laterais, permaneciam abaixadas atrás de um conglomerado de

lixeiras.

— Vamos atravessar a quadra?

Anna pensou um pouco antes de responder.

— Sim, tentem não chamar atenção.

Foram caminhando, devagar, abaixados, pela quadra, quando foram


surpreendidas por tiros vindo das guaritas. Correram para próximo da
arquibancada com alguns poucos degraus de concreto, os tiros passavam

próximos deles, os zunidos pareciam passar raspando seus ouvidos.

— Algum tiro atingiu você? — Anna perguntou, apalpando as roupas de


Jennifer.
— Não, tá tudo tranquilo. E você?

— Acho que não.

— Atingiu sim, olha aqui seu braço. — Anna falou segurando seu braço,
próximo ao ombro, onde havia um pequeno rasgo na pele.

— Foi de raspão.

— Vai levar pontos.

— Não, Band-aid resolve.

— E agora, para onde vamos?

— Vamos esperar eles virem para cá. Não sei quantos são lá, melhor

enfrentarmos aqui, num campo aberto.

— Ok, então. — Sentou-se, logo os outros dois sentaram-se também.

Anna segurava sua arma com as duas mãos juntas à sua frente, esperando
pela abordagem, que talvez não acontecesse.

— Tudo bem com você? — Jennifer virou-se para o homem sob seu

poder.

— Acho que sim. Vocês são loucas, sabia?

— E você só percebeu agora? — Jennifer riu.

Esperavam já por dois longos minutos, mas nada aconteceu. Anna passou
a respirar com mais calma, ainda com a arma em riste, e olhou para Jennifer, que

estava pacífica, segurando o punho do seu companheiro.


— Sério, não quero te julgar, mas com qual objetivo você foi naquele
bar? O que procurava? — Anna indagou.

— Diversão, já te disse.

— Por que um pub frequentado por híbridos?

— Sei lá, eu estava bêbada.

Anna a olhou por mais um instante, levantou-se e olhou na direção das

guaritas. Novos disparos foram feitos, ela logo abaixou-se novamente,

arregalada.

— Eles vão ter que vir. — Anna murmurou.

— Virão.

Baixou a arma, voltou a olhar Jennifer.

— Você ficou com Laura, não ficou?

Jennifer a encarou por um segundo, deu um sorriso inseguro.

— Você não está preparada para ouvir a resposta.

— Se perguntei, é porque estou preparada.

— E você, já ficou com ela?

— Não, nunca fiquei com ela.

— Mas ela já tentou ficar com você.

— Já.
Josh às olhava, franzindo as sobrancelhas, acompanhando o desenrolar
da conversa.

— Ok, se é isso que você quer ouvir... Sim, nós ficamos, foi uma vez

apenas. — Jennifer finalizou.

— Eu sabia... Desde o início, aquele ‘oi’ acalorado que ela te deu...

— Olha, se você não ficou com ela, não posso fazer nada, eu não me

arrependo, foi só uma aventura de uma noite, você entende bem disso.

— Mas por que ela? Por que uma híbrida?

— Por que não? Nós estávamos separadas, o que é que tem?

— Não sei... Logo a Laura, uma pessoa que eu conheço.

— Não vejo motivo para esse drama.

— Vocês estavam separadas, ela podia ficar com qualquer pessoa, ela não

sabia que você conhecia Laura, não é? — O refém resolveu participar da

conversa que acompanhava atentamente.

— Exatamente, eu nem sabia que você a conhecia. — Jennifer


corroborou com seu refém, gesticulando ao falar.

— Mas era um lugar que eu frequentava, as chances de ser uma


conhecida minha eram grandes.

— Sim, mas o ponto é que vocês não estavam juntas, você não pode
recriminá-la. — Josh insistia.
— Até ele sabe que não foi nada demais. — Jennifer falou enfática.

— Tantas pessoas nessa cidade, e logo ela?

— Qual seu problema com ela?

— Sim, qual seu problema com Laura? Você se arrepende de não ter
ficado com ela quando teve oportunidade? — Josh argumentava juntamente de

Jennifer.

— Problema nenhum, quando ela veio ficar comigo eu já estava com

outra pessoa engatilhada, foi uma opção minha.

— Foi apenas uma aventura aleatória. — Jennifer tentou finalizar.

Anna olhou impaciente para ambos, e fitou Jennifer.

— Dormiu com ela?

— Hum... É, digamos que sim. — Falou sem muita segurança.

Anna a olhou séria, uma ira incômoda teimava em querer dar as caras,

mas ela se esforçava para manter o controle.

— Ops... — Josh murmurou, fazendo uma expressão de ‘melhor não me


meter’.

De repente o rádio emitiu um chiado, seguido de uma voz feminina.

— Como estão as coisas aí, querida? — Laura perguntava.

— Querida? É com você. — Anna falou com desdém, entregando o rádio

para Jennifer.
— Já temos o alvo, vamos sair daqui a pouco. — Jennifer respondeu ao
rádio.

— Vamos? — Anna completou.

— Eles não virão até aqui. — Jennifer falou, encerrando aquela conversa.

Anna deu mais uma olhada ao redor, voltou a espiar os vigias.

— Vamos correr para os arbustos. Corram como se suas vidas

dependessem disso, e na verdade dependem.

— Vamos levar um tiro.

— Corram abaixados, a distância não é tão grande.

Josh levantou a mão.

— Diga.

— Posso ficar aqui?

— Não, você vai correr também. Jennifer, não o solte.

— O que, esse Homem Aranha aqui? Não vai muito longe.

— E você acha que um arco e flecha faz da Lara Croft muito mais

equipada que o Homem Aranha?

— A questão não é equipamento, é a valentia, a coragem que ela tem.

— Ela nem tem um gibi, é um personagem de vídeo game!

— Gente, foco! — Anna chamava a atenção deles.


Olharam assustados para Anna.

— E agora?

— Sebo nas canelas.

Pegou a mão livre de Jennifer e saiu correndo curvada na direção dos


arbustos e do muro, ambos os seguiram da mesma forma. Os tiros novamente

foram ouvidos próximos, mas nenhum os atingiu. Pularam o muro, com

dificuldade pularam Josh, correram acompanhando o muro até chegar onde

estava a viatura, os aguardando.

Subiram o pequeno morro que dava para as árvores, chegaram ofegantes

até o carro. Os dois policiais saíram prontamente, os recebendo.

— Prontinho, aqui está a encomenda. — Jennifer falou ao chegar.

O trio estava diante de Laura, que sorriu e deu uma conferida em Josh.

— Vocês não brincam em serviço mesmo? — Falou num tom leve.

— Agora é com vocês. Aliás, Laura, para onde ele vai agora? Para a

delegacia?

— Laura?? Você é a Laura? — Josh falou, num tom surpreso.

— Sim, por quê?

— Minha cara, você precisa fazer sexo com essas duas, com urgência.

Anna e Jennifer se entreolharam sem jeito, e olharam ainda mais sem


jeito para Laura.
— Leve logo esse elemento, já nos encheu o suficiente por hoje. — Anna
falou, meio desconcertada.

Observaram o outro policial o conduzindo para dentro da viatura,

segurando pelo braço.

— Bom, meninas, vocês sabem com quem acertar essa missão, quem

sabe outras como essa surjam, não? Foi um prazer trabalhar com vocês hoje. —
Piscou.

— Até a próxima, Laura. — Jennifer se despediu.

Laura fez menção de ir para a viatura, mas voltou.

— E só para constar, eu toparia. — Sorriu com malícia, ajeitou os óculos,

e entrou no carro.

Ambas olharam a viatura indo embora, lado a lado. Se entreolharam,


sérias. Jennifer não resistiu e começou a rir, Anna a encarou, mas acabou rindo

também.

— Jennifer, Jennifer... — Balançou a cabeça.

— Vamos para casa?

— Vamos.

***

— É bom estar de volta à ativa. — Jennifer comentava ao entrar em seu


apartamento largando as chaves em cima da mesa, seguida por Anna.
— Essa foi a missão mais estranha que já participei. — Anna respondeu.

— Eu me diverti.

Foi até a geladeira, deu uma olhada e pegou duas cervejas, seguiu até o
sofá onde Anna já ligava a TV e sentava.

— Você está muito tensa, tome. — Lhe entregou uma das garrafas.

— Obrigada. — Respondeu séria.

Jennifer sentou em seu colo, de frente para ela, com um sorriso

apaziguante e a fitou.

— Está tudo bem?

— Ainda não, mas vai ficar. Estou digerindo tudo.

— Ok, eu espero então. — A olhou por alguns segundos. — E agora? —


Riu.

— Eu não consigo ficar brava com você quando você me olha desse

jeito. — Quase sorriu.

— Então está funcionando.

— Está sim. — Anna relaxou um pouco, colocou uma de suas mãos na


cintura de Jennifer.

— Ficou alguma dúvida? Sobre Laura.

— Hum... Acho que não.


— Não quero ver você tirando suas próprias conclusões, estou jogando
limpo com você.

Anna a fitou, um pouco receosa.

— Foi aqui, na sua casa?

— Eu não entendo essa sua necessidade em saber de detalhes.

— É, talvez eu seja masoquista.

— Ok... Sim, foi.

— Hum. — Desviava do olhar dela.

— Chega de Laura por hoje?

— Sim... É no meu colo que você está agora, não é mesmo?

— Adorei sua linha de raciocínio, essa é a nova Anna?

— Eu andei lendo alguns livros de autoajuda. — Sorriu.

— Que mentira, você odeia isso.

— Ok, não li, mas tive bastante tempo para refletir nas últimas semanas,
não quero deixar meu ciúme e minha insegurança estragarem mais nada. Não

prometo que consiga sempre, mas vou tentar.

Jennifer soltou sua garrafa no chão, levou a mão ao rosto de Anna,


carinhosamente, correndo seus dedos em sua face. Anna colocou sua mão por
cima da dela, a conduziu até sua boca, beijando sua palma.
— É você quem eu amo. — Jennifer falou baixinho, com doçura. — E
não deixei de te amar nem por um segundo.

Anna deu uma longa piscada, suspirou com um sorriso tímido, sentiu

uma onda pulsante em seu peito, encontrou a paz que procurava dentro dos olhos

de Jennifer.

— Eu sei.

— Que bom. — Jennifer deu um sorriso aberto, a segurou com as duas

mãos e por fim a beijou.

***

Pouco mais de uma semana passou-se, era véspera do aniversário de

Anna, nada além de uma sexta-feira como qualquer outra. Trabalhava em sua

oficina, compenetrada naquele início de tarde, manuseando um esmeril

barulhento, quando foi surpreendida pela visita de Jennifer, que foi logo

entrando.

— Nossa, que coisa barulhenta! — Jennifer reclamou.

— O quê? — Respondeu desligando a máquina.

— Você vai acabar ficando mais surda do que eu. — Se aproximou e deu

um beijo.

— Estava passando por aqui e resolveu me fazer uma visita?

— Não, na verdade...
— Oi Anna! — Bob interrompeu, aparecendo na porta da oficina.

— Visita surpresa em dose dupla?

— Mais surpresa do que visita na verdade. Preciso de algumas coisas


suas, empresta?

— Que tipo de coisas?

— Bob, me refresque a memória, precisamos de uma furadeira, uma

broca número...

— Dezesseis.

— Ok, uma broca de vídea número dezesseis, buchas do mesmo

número... Os parafusos nós já temos, não é?

— Sim, só precisamos das buchas mesmo.

— Precisamos de uma chave de fenda grande, um martelo e uma escada.

— Vão fazer alguma espécie de festinha?

— Vamos torturar algumas pessoas.

— O quê?

— Claro que não. Você tem essas coisas?

— Sim, naquele armário ali na última porta tem quase tudo que você
falou. O martelo está aqui nesta caixa e a escada está encostada do lado da porta.

— Ótimo, Bob pegue as coisas ali no armário.


Depois de pegarem tudo já estavam se encaminhando para a porta
quando Anna perguntou curiosa.

— Querem ajuda?

— Não, na verdade não saia daqui até voltarmos, não nos siga, estou

falando sério.

— Voltam hoje?

— Talvez. — Riu.

Alguns minutos depois, Anna já estava absorta em outra tarefa, quando


começou a ouvir o barulho abafado da furadeira vindo de algum lugar dentro de

sua casa.

— Era para usar aqui?? — Balbuciou para si mesma.

Enquanto isso, em outro cômodo, Bob segurava a escada enquanto

Jennifer manuseava a furadeira. Sentiu seu celular vibrando no bolso e parou

para atender.

— Bom dia, Jenny!

— Na verdade aqui já é boa tarde, vô.

— Ah, ok. Como estão as coisas por aí?

— Se melhorar estraga.

— Você e suas frases prontas que não dizem nada.

— Tá tudo bem mesmo, acredite. E o senhor?


— Tudo dentro da normalidade. Estou ligando para dizer que já transferi
o dinheiro para Anna. Já chegaram a algum acordo sobre como as coisas serão?

— Prestarei contas a ela, fazer o que...

— Ótimo. Bom, tenho uma notícia para vocês.

— A mesada teve reajuste? — Riu.

— Não, outro tipo de notícia.

— Sou toda ouvidos.

— Acho que localizei o irmão de Anna.


Capítulo 29 – O melhor aniversário de todos

— Você madrugou? — Anna despertava um pouco assustada, com

Jennifer em cima dela em sua cama.

— Só porque é seu aniversário. E tive que colocar meu celular para

despertar, eu nunca consigo acordar antes de você. — Falava ainda com os olhos
naturalmente inchados de quem acabou de acordar e não dormiu muito, mas de

forma animada.

— Sério? Hoje é meu aniversário? — Falou brincando.

— Não me diga que errei a data? Mas eu olhei na sua carteira, lá dizia

onze de maio.

— Você já foi mais esperta, Jennifer... — Riu.

— Ah, ok, pegadinha antes do meio-dia. Eu sempre vou cair, ainda não
acordei completamente.

— Já podemos voltar a dormir?

— Você acha mesmo que te acordei só para isso? Anda, vamos lá


embaixo. — Falou já saindo da cama.

Anna levantou-se também, com preguiça. Jennifer a conduziu pela mão

escada abaixo, até um dos quartos do andar inferior.

— Espero que não tenha espiado.


— Juro que não.

Abriu a porta e mostrou seu presente de aniversário, pendurado no teto.

— Esse é um dos dois presentes de aniversário que tenho para você.

No alto pendia um grande saco de pancadas vermelho, bem no centro do


cômodo.

— Então era isso que vocês estavam aprontando ontem. — Olhava

sorridente.

— Para você parar de esmurrar coisas por aí.

— Acho que será útil. — Anna se aproximou e começou a dar alguns

jabs de leve, com a mão direita.

— Sinceramente, não sei como você ainda não tinha um desses em casa.

— Jennifer apenas observava.

— Eu teria economizado com redecoração. — Finalizou dando um

gancho com a esquerda, e abraçando o pêndulo em seguida. — Quantas vezes

você tentou prender isso? — Falou olhando para cima, e contando uma dúzia de
furos malsucedidos no teto.

— Até pegar prática com a furadeira. Então, gostou?

Anna caminhou devagar até ela, com um sorriso gostoso nos lábios.

— Adorei, obrigada.

Jennifer lhe deu o esperado beijo e abraço de aniversário.


— Não esqueça de me entregar a nota fiscal depois, para prestar contas
com seu avô. — Anna brincou.

— Que situação... — Jennifer balançou a cabeça. — Bom, tem um outro

presente, mas esse só vou te entregar a noite, depois da festa.

— Que festa?

— A que vai acontecer aqui na sua casa.

— Eu nunca faço festa.

— Eu sei, eu que estou cuidando disso.

Anna apenas a olhou um pouco boquiaberta.

— Não se preocupe com nada, apenas esteja aqui a noite. E me diga qual

o melhor lugar para instalar o touro mecânico.

— Sério?

Jennifer riu.

***

— Oi, Max! — Jennifer recepcionava o primeiro convidado a chegar

naquela noite.

— Não me diga que fui o primeiro?

— Não, eu fui a primeira, relaxa.

— Fiquei em dúvida se você havia falado seis ou sete horas.


— Na verdade eu falei oito, mas tudo bem. Vamos, entre, Anna já vai
descer.

Jennifer ainda andava de um lado para outro cuidando dos últimos

ajustes, quando teve sua atenção tomada por Anna, que descia as escadas já

pronta para a festa. Usava uma blusa vermelha, com um caimento que deixava
um ombro a mostra, e jeans.

— Vermelho definitivamente deveria ser a sua cor. — Jennifer foi até o

pé da escada e colocou as mãos em sua cintura, com um sorriso bobo.

— Não, preto é a minha cor.

— Reveja seus conceitos, baby, você está linda.

— Jenny tem razão, você fica ótima de vermelho. — Max falou do sofá.

— Max, não o vi, me desculpe. — Anna foi conversar com seu velho
amigo e não demorou muito para outros convidados começassem a chegar.

Jennifer havia cuidado de todos os detalhes, próximo à cozinha havia


uma farta mesa com tira-gostos e aos que chegavam, ensinava o caminho até às

bebidas, queria que todos se sentissem à vontade, como numa reunião íntima,
principalmente Anna, que provavelmente não comemorava um aniversário
daquela forma há muito tempo.

A luz estava baixa, havia um globo espelhado pendurado próximo à

lareira, onde estavam instaladas algumas caixas de som e uma amiga, Samantha,
cuidava das músicas. Também espalhara balões por toda grande sala e
bandeirolas pela parede. Algumas cadeiras estavam disponíveis, mas a maioria

das pessoas permanecia de pé, conversando.

Anna deixou o sofá que dividia com outros convidados e foi na direção

da cozinha, buscar mais bebida.

— Estou lisonjeada com a presença da aniversariante aqui. — Jennifer

brincou, quando viu Anna entrando.

— E a aniversariante está imensamente feliz com a bagunça que você

organizou pelas suas costas.

— Isso foi um obrigada?

— Se você tivesse me perguntado, eu teria dito para não fazer. Mas...

Que bom que você fez, obrigada. — Se aproximou com duas garrafas nas mãos,

e a beijou.

— Deixa comigo. — Jennifer falou ou ouvir a campainha tocando.

Abriu a porta sorridente, mas logo enrugou a testa.

— Boa noite, você deve ser Jennifer, certo?

— Sim, e vocês...

— Eu me chamo Nicholas Gavin, essa é minha esposa Thereza e esse é o


Jeremiah, somos do conselho do clã de Connecticut.

Jennifer apenas olhava sem reação.

— Bom você deve estar estranhando nossa visita, seu avô mencionou
sobre a festa que você daria hoje à noite, e viemos prestigiar.

— Prestigiar ou vigiar?

Todos riram um pouco sem jeito. O casal, na faixa dos quarenta anos,
estava bem arrumado, pareciam simpáticos. O amigo, aparentando uns trinta

anos, usava muletas, não possuía uma das pernas.

— Seu avô deve ter falado sobre a aproximação que você deve fazer

conosco, não? Então achamos que nada como uma festa para nos aproximarmos

de você. Apenas queremos tê-la em nosso círculo, não temos intenção de vigiá-la

nem nada do tipo. — Falava amigavelmente.

— Ok, desculpe pelo jeito, entrem, fiquem à vontade. — Abriu mais a


porta, dando passagem aos três, que entraram olhando atentamente ao redor.

Da porta da cozinha, Anna os viu entrando, encarou Jennifer, como

perguntando quem eram. Jennifer apenas gesticulou, sinalizando que depois

explicava. Naquele momento ela tinha o intento de outra tarefa.

Atravessou o salão com passos largos, segurou Jim pela gola de sua

camisa polo e o arrastou para um pequeno corredor que havia ao lado das
escadas.

— Opa! — Jim exclamou assustado.

— Foi você que contou da minha overdose para meu avô?

— Você é bem direta, hein?


— Foi você ou não foi? — Vociferava o encarando, mas não num tom
muito alto.

— Mais ou menos... — Jim ajeitou sua gola, um pouco encabulado.

— Sou toda ouvidos.

— Contei para minha mãe, na Escócia. Ela deve ter contado para meu

padrasto, que é do conselho do clã do seu avô, então... A notícia deve ter se

espalhado.

Jennifer suspirou com raiva, balançando a cabeça.

— Você queimou meu filme com meu avô de uma forma... Você não faz

ideia. — Ainda estavam bem próximos um do outro.

— Mas não tive a intenção Jenny, não imaginei que a notícia se

espalharia.

— Agora tenho três babás lá na sala me vigiando! — Gesticulava.

— O que está acontecendo aí? — Becca chegou até eles, sem entender o

que se passava, mas sem gostar do que via.

Jennifer virou-se rapidamente, assustada.

— Ãhn... Estamos conversando, apenas conversando. — Respondeu


insegura.

— Por que aqui, nesse canto deserto e escuro?

— Porque tinha muito barulho lá na sala. — Jim completou.


Becca continuava desconfiada, incrédula.

— O que vocês estão aprontando? Sobre o que falavam?

— Relaxa, nos empolgamos numa conversa sobre guitarras e afins, ele


vai me emprestar uma do pai dele, essas coisas.

— Desde quando vocês precisam ir para cantinhos escuros falar sobre

guitarras?

— Quando percebemos já estávamos aqui. — Jim murmurou.

— Me façam um favor, continuem aí cochichando, eu vou voltar para


minha casa.

— Becca, que besteira, volte aqui! — Jennifer estava pasmada com a

reação dela.

— Becca! — Jim também tentava.

Jennifer fez menção de ir na direção dela, mas Jim a impediu.

— Deixe, eu cuido disso. — E saiu apressado.

Ela ainda ficou alguns instantes petrificada naquele corredor escuro,


como um objeto de decoração. Em seguida saiu com passos lentos de volta para

o salão principal, viu seus novos amigos Vulpis de pé, eles continuavam
observando toda a movimentação, curiosos. Balançou a cabeça, irritada.

Samantha, que cuidava do som, se aproximou dela, a abordando afoita.

— Jenny, as caixas de som estão falhando, acho que é algum mau


contato, você pode resolver?

— Já vejo isso, ok?

Ainda deu uma olhada pelo ambiente, tentando enxergar Becca ou Jim,
mas provavelmente já haviam deixado a casa. Seguiu até onde estava Samantha

e as instalações do som, abaixou e começou a mexer nos fios e plugues, acabou

levando um choque e caindo sentada no chão.

— Deixa comigo. — Bob se agachou ao seu lado e ofereceu sua ajuda.

Jennifer levantou-se e seguiu para a cozinha, saiu de lá com um copo

numa das mãos. Anna estava próximo e a viu subindo as escadas guardando algo

dentro do bolso frontal de sua calça, um frasco laranja. Apenas a acompanhou


com o olhar seus passos rápidos na direção do quarto no andar superior.

Pediu licença aos convidados com quem conversava e subiu também as

escadas, adentrando o quarto, iluminado apenas pela luz da lua que vinha da

sacada.

Pode ver apenas Jennifer já fechando a tampa do pequeno pote plástico,

com o copo em outra mão, estava sentada na cama, e tomou um susto quando
viu Anna entrando.

— O que é isso? — Anna perguntou rispidamente, próximo da porta.

— Isso o quê? — Respondeu surpresa.

— Isso na sua mão, e que você acabou de tomar.


— Ah. — Olhou para o frasco na mão. — É aspirina.

— Aspirina? — Falou com aquele tom irritante de dúvida.

— Sim, estou com dor de cabeça.

Anna deu alguns passos rápidos na direção de Jennifer, que permanecia


sentada na cama, e agora a olhava arregalada. Pegou o seu pulso e o ergueu,

olhou o rótulo do remédio ainda na da palma da mão de Jennifer.

— Aspirinas. — Leu no rótulo.

— E no meu copo tem refrigerante, mas você pode verificar se quiser. —


Jennifer falou com sarcasmo.

Anna fez um semblante entristecido, triste com si própria, formando seus

já famosos sulcos verticais na testa.

— Por que você veio tomar aqui em cima? — Perguntou num tom

desolado.

— Para evitar que as pessoas fizessem justamente o que você acabou de

fazer. — Jennifer respondeu séria, olhando para ela.

— Desculpe... Me desculpe. Eu pensei...

— Que ótimo, você continua não confiando em mim. — Olhava agora


para o lado, chateada.

— Não, não diga isso, eu confio em você, é só... Eu sei como essas
coisas são, algumas pessoas têm recaídas... Não é questão de confiança... Eu só
pensei...

Jennifer ergueu a cabeça, viu o quão angustiada Anna estava com aquela
situação, ficou consternada, levantou-se da cama.

— Venha cá.

Anna voltou a se aproximar, Jennifer a abraçou de forma apertada e

carinhosa, pousando seu queixo no ombro dela.

— Deixa pra lá... — Sussurrou. — É seu aniversário.

Soltaram-se e Anna a encarou.

— Eu não tenho uma festa de aniversário há mais de vinte anos, porque

não gosto, não me sinto à vontade, e além do mais meu pai morreu um dia antes

do meu aniversário. Mas hoje cedo você disse que estava preparando uma festa e

não me opus, você acha que eu deixaria qualquer pessoa fazer isso?

— Não hesitou mesmo quando falei do touro mecânico? — Jennifer

falou com um sorriso leve.

— Você poderia ter falado que teria uma roda gigante e eu não seria
contra. Eu sei que você quer o meu melhor, às vezes do seu jeito torto, mas estou
aprendendo a te entender.

— Está curtindo a bagunça?

— Estou. Na verdade, já tinha esquecido como é ser o centro das


atenções.
— Não é tão ruim assim.

— Não, até pode ser divertido.

Jennifer sorriu mais um pouco com a resposta de Anna, mas então


lembrou do que havia acontecido com Becca, mudou de expressão e sentou-se

na cama.

O que foi? — Anna sentou-se ao seu lado, a olhando.

— Becca está brava comigo, foi embora inclusive.

— O que houve?

— Ela me flagrou no corredor ao lado da escada conversando

intimamente com Jim, deve estar agora achando que estou tendo um caso com

ele, ou conspirando alguma coisa, sei lá.

— E está?

— Espero que você esteja se referindo ao ‘conspirando’. Não, eu só

estava dando uma dura nele, por ter me dedurado para meu avô.

— Então foi ele mesmo.

— Contou para a mãe, que contou para o marido, que contou para todas

as raposas do sul da Escócia.

— Que linguarudo.

Jennifer riu do termo que Anna usou.

— Agora tenho babás Vulpis lá embaixo.


— Aquele trio ao lado da mesa dos salgados?

— Exatamente.

— Mas não se preocupe agora com isso, amanhã quando Becca estiver
de cabeça fria vocês conversam e desfazem o mal-entendido, essas suposições

dela são descabidas, ela vai se dar conta.

— É, uma coisa de cada vez... Vamos descer? Você é a estrela da noite,

não posso te raptar assim. Se bem que não seria uma má ideia.

— Melhor não falar isso duas vezes, senão eu fico aqui com você, estou

com a única convidada que me interessa.

Se aproximaram e deram um beijo contido, mas resolveram prolongar o

beijo, Anna empurrou devagar Jennifer contra a cama, deitando parcialmente por

cima dela. A medida que os beijos evoluíam as mãos também ficavam mais

ágeis, ignorando as roupas como obstáculos.

— Bob foi buscar... Ops! — Lindsay entrava ofegante no quarto e

interrompeu o que ia dizendo.

— Foi buscar o que, Lynn? — Jennifer levantou-se rapidamente da cama,


ajeitando sua camisa.

— Ai, desculpe meninas, Bob foi buscar o bolo e pediu para chamar
Anna, como vi você subindo...

— Relaxa, baby, vamos descer.


Jennifer foi até a mesa próxima à cozinha e rearranjava os itens restantes,
liberando um espaço para o bolo, logo ouviu a voz de Bob que trazia o bolo nas

mãos, sorridente. Um grande bolo branco redondo, cheio de velas. Num

descuido, tropeçou nos fios da caixa de som, se desequilibrou e o bolo acabou


voando, Jennifer que assistia a cena, de imediato ergueu a mão espalmada à sua

frente e fez com que o bolo voador fosse até sua própria mão, antes que ele se
espatifasse no chão. Rapidamente o colocou sobre a mesa, no lugar em que ele

deveria ficar. Só então se deu conta do que havia feito, sorriu desajeitada para as

expressões assustadas que encontrou a encarando, principalmente os três

membros do seu novo clã.

— Nossa, essa foi por pouco. Vou buscar uma faca. — Saiu correndo

para a cozinha, Anna a seguiu.

— Você não pode fazer essas coisas na frente dos outros! — Anna falou

atrás dela.

— Eu sei, eu sei! — Jennifer respondeu enquanto revirava uma gaveta.

Anna pegou algo em outro balcão e se aproximou.

— Aqui, a faca para cortar o bolo.

— Foi automático, quando me dei conta já tinha feito!

— Ok, se policie e faça de conta que nada aconteceu. Vamos para fora
porque estão nos esperando.

Os demais convidados acabaram não dando grande importância para a


cena um tanto estranha que haviam presenciado, após cortarem o bolo já tinham

praticamente esquecido. Jennifer voltou à cozinha com Anna, ainda estava

preocupada com o que seus vigilantes poderiam fazer sobre o que presenciaram.

— Eles viram que ninguém deu muita importância, somente os Vulpis

entenderiam. E eu. — Anna tentava tranquilizá-la.

— Ainda bem que Jim não estava...

— E Becca ficaria ainda mais confusa.

— Nossa... Que noite. O que mais pode acontecer hoje? — Resmungava,

quando a campainha tocou.

— Pelo visto temos convidados atrasados. — Anna falou.

— Deve ser Joel, eu vou lá recepcioná-lo.

Jennifer abriu a porta e suas feições mudaram.

— Laura?

— Oi, baby! Ainda tem festa aí dentro? — Laura respondeu animada.

— Desculpe o atraso, só consegui fechar o bar agora. — Joel se


desculpava, ao seu lado. Era quase meia-noite.

— Bom, pelo menos deram o ar de suas graças. Vamos, entrem, Anna

acabou de cortar o bolo. — Respondeu educadamente, mas ainda um pouco


perturbada pela presença de Laura.

Os conduziu para dentro da sala quando Anna os abordou, lançou


rapidamente um olhar com as sobrancelhas baixadas para Jennifer, que sem jeito,
foi buscar bebidas para todos.

Jennifer resolveu assumir o comando do som da festa e era a que mais se

divertia com sua seleção musical, dançando animada atrás dos equipamentos. De

lá pode ver Anna no sofá, rodeada por Joel e Laura, conversando sem maiores
reservas com ambos.

Lá pelas duas da manhã todos já haviam ido embora, Anna voltava

cansada da cozinha e se atirou no sofá. Jennifer colocou uma playlist mais calma

para tocar, num volume já mais baixo, sentou-se também no sofá, jogando a

cabeça para trás e abrindo os braços sobre o encosto do sofá.

— Missão cumprida? — Anna a questionava.

— Me diga você.

— A noite foi perfeita. Olhe isso. — Apontou para o globo espelhado no

teto acima delas. — Teve até globo! Sei que você teve alguns percalços, na

verdade deve ter sido uma noite bem movimentada para você. Mas falando por
mim, adorei tudo, você foi incrível.

— Esqueça meus percalços, foi bom te ver se divertindo, conversando


com o pessoal, interagindo.

— Ãhn... Sobre Laura, foi ela que sentou ao meu lado e começou a
conversar comigo.

— Eu sei.
— Só conversamos sobre banalidades.

— Ok. — Virou-se na direção de Anna, colocando a mão em sua face. —


Meu amor, não tenho ciúmes de Laura, relaxa.

— Só... Só achei que você deveria saber.

— Sabe, andei pensando no que Josh falou.

— Quem é Josh? — Perguntou com a testa franzida.

— Nosso refém da semana passada.

— O que ele disse?

— Sobre nós, e Laura.

— Acho que não entendi.

— Anna, você já fez sexo a três? — Falou pacificamente.

— Você... Não está insinuando... — Ruborizou.

— Já fez?

— Já. Mas não com Laura. Nem com você.

— Já?? — Jennifer a olhou arregalada, com um sorriso bobo nos lábios.

— Há muito tempo. — Respondeu encabulada.

Jennifer riu.

— Não tem graça.

— Foi divertido, não foi?


— Foi bem diferente do que você está sugerindo, um homem, uma
mulher, e eu, nunca namorando nenhum deles.

— Pense no assunto, volto a te questionar sobre isso em breve.

— Não tem o que pensar.

— Ah tem, tem sim. — Jennifer falou com um sorriso debochado.

Jennifer voltou a pousar a cabeça no encosto do sofá, de olhos fechados,

ainda sorrindo.

Começou então a cantarolar a música que tocava, All I want is you, do


U2. No refrão virou-se e cantou baixinho no ouvido de Anna.

— When all I want is you…

— Eu também... — Anna respondeu.

— Nossa, seu presente! — Jennifer levantou-se rapidamente, de

sobressalto.

— Você já deu.

— Não, o segundo presente, lembra que falei hoje de manhã?

— Lembro.

— Não é um presente qualquer.

— Onde está?

— Olha, é algo que você quer faz muito tempo, mas não sei se é
exatamente o que você procura, mas já é algo. — Jennifer virou-se devagar, a
encarando.

— Eu não estou entendendo bulhufas do que você está falando.

Tirou do bolso de trás da calça um pequeno pedaço de papel amassado e

a entregou. Anna abriu curiosa, sem entender o que aquilo significava.

— Parece um endereço. — Fulminou.

— E é. É o endereço do seu irmão.

— Como assim??

— Quer dizer, o provável endereço do seu irmão, mas só saberemos

depois que formos até lá para confirmar se é seu maninho mesmo.

Anna olhou mais um tempo, boquiaberta, para o papel.

— Como, como conseguiu isso?

— Não foi eu. Meu avô não estava simplesmente investigando você por

diversão, ele estava procurando seu irmão. E depois de muito fuçar por aí acabou

achando uma pessoa que bate com a descrição e o nome do seu irmão.

Anna ainda estava surpresa, assimilando.

— Mas... Então ele está na Inglaterra?

— É, talvez. Não conseguiram confirmar se realmente era ele, porque


esse endereço aí é de uma fazenda de centeio no interior do interior do interior
da Inglaterra, tipo assim, no fim do mundo.
— Meu Deus, Andrew... Numa fazenda na Inglaterra...

— É o que vamos descobrir.

— Você vem comigo?

— Claro, você me acompanha em tudo, eu também quero te acompanhar.

— Então vamos para a Inglaterra. — Falou, animada.

— Vamos para a Inglaterra, baby!

***

Três dias depois a dupla chegou a Inglaterra, desembarcando no

Heathrow, em Londres, com uma ansiedade que mal podia ser contida.

— São cento e trinta quilômetros até Swindon, você nunca dirigiu por

aqui antes, melhor procurarmos outra forma de chegarmos lá. — Anna falou
discordando da sugestão de novamente alugar um carro.

— Ok... Ônibus?

— Se tiver algum que vá até lá. — Respondeu suspirando com cansaço

da viagem, era meio-dia.

Após algum tempo procurando por informações de como chegar no


pequeno vilarejo onde possivelmente Andrew estaria, finalmente pegaram um

ônibus até a cidade no interior.

— Vamos, recline esse banco e durma, são duas horas até lá, você não
dormiu nada no avião. — Anna tentava fazer Jennifer dormir um pouco.
— E perder a paisagem? Por isso fiz questão de ir na janela.

O ônibus seguia pela estreita rodovia cercada de algumas poucas casas


intercalando com florestas raleadas e esparsas, Jennifer continuava olhando pelo

vidro, percebeu que Anna estava tensa, segurou a mão dela com suas duas mãos

e a fitou.

— Se não for ele, continuaremos procurando, ok? Meu avô é bom nisso.

— Estou tentando não criar tantas expectativas, mas é quase impossível...

Andrew é o que resta da minha família.

Jennifer apenas a ouvia.

— E se for ele? E se ele resolveu se manter afastado de mim e de todos

por escolha própria? E se minha presença não for bem-vinda?

— Tenho certeza que como qualquer dupla de irmãos vocês tiveram suas
desavenças fraternais na infância, mas ele não teria motivos para não ficar feliz

em ver a irmãzinha, ele apenas pode ter desistido de procurar por você por causa

da guerra e se acomodou aqui. Agora o encontramos e viemos até ele, se for

realmente seu Andrew, será lindo!

— Será um grande choque para ele, com certeza.

— Ah, sem sombra de dúvida. Mas tente relaxar, ok? Fique tranquila.

— Ficarei. Com você junto a mim as coisas ficam mais leves.

Jennifer apenas sorriu de lado.


Chegaram ao ponto final daquele ônibus, numa pequena cidade chamada
Swindon. Ao redor dali haviam algumas casas e fábricas, mas elas precisavam

seguir para o interior, até a zona rural. Carregavam pouca bagagem e não

demorou muito para Jennifer conseguir uma carona até metade do caminho,
numa caminhonete carregada de ovelhas.

Caminharam mais um pouco pela estrada de chão batido, com o sol do

meio da tarde às acompanhando, Anna com uma blusa preta e Jennifer de

xadrez. Novamente conseguiram outra carona, às deixando próximas da fazenda

que procuravam. Mais uma vez tiveram que fazer uma caminhada carregando

suas pequenas malas, numa estrada ainda mais campestre. Após quase uma hora,
se depararam com uma entrada ornada por uma espécie de portal arcaico de

madeira, com uma tábua escrita à mão o nome da fazenda que procuravam.

Se entreolharam receosas, Jennifer com passadas firmes foi até a porteira

e a destrancou a puxando, parou ao lado.

— E então, vamos entrar? Hora da verdade.


Capítulo 30 - O irmão no campo de centeio

Lado a lado, Anna e Jennifer caminharam pela pequena estrada de terra

laranja rodeada pelo verde e cercas marrons, até chegarem a duas casas

tipicamente rurais, uma branca maior e outra amarela, ao lado, com varandas à

frente.

Se aproximaram da varanda e encontraram uma garotinha brincando com

pequenas loucinhas, nos degraus. A menina tinha cabelos castanhos soltos, e

olhos claros, usava um vestido azul celeste estampado e aparentava quatro anos.

— Oi mocinha, você mora aqui? — Jennifer se abaixou à sua frente, e


perguntou amavelmente.

— Moro. — Respondeu, com um misto de sotaque britânico e do

interior.

— Hum... Está preparando café?

— Não, é chá. Você gosta de chá?

— É... Gosto... — Ela odiava, mas não faria desfeita com a pequena. —
Qual seu nome?

— Marianne.

— Marianne? — Anna repetiu.

Jennifer inclinou a cabeça para cima e viu as feições surpresas dela.


— É o nome de nossa mãe. — Anna falou baixinho.

Jennifer estava com as mãos espalmadas sobre as pernas, continuou o


diálogo com a menina.

— Marianne, seu pai está aí?

— Não, está trabalhando no campo.

— É aqui perto?

A menina apenas olhou para frente e apontou, na direção de um caminho

entremeado por pastos, que despontava num vasto campo com cereais dourados
plantados.

Jennifer olhou para cima novamente, como se esperando a autorização de

Anna para prosseguirem pelo caminho orientado pela menina, e Anna consentiu.

— Obrigada minha querida, nós...

— Vocês querem brincar de tomar chá comigo? — Ela interrompeu,

falando calmamente, contrapondo com o nervosismo de Anna.

— Ah, com certeza queremos sim, primeiro vamos lá falar com seu pai,
mas depois voltamos aqui, ok? — Jennifer respondeu sorrindo.

— Tá bom.

Jennifer levantou-se, ficou olhando Anna até esta começar a caminhar na


direção da trilha que levava à plantação, emparelhou com ela, em silêncio. Fazia
um dia ensolarado e agradável de primavera europeia, dobrava as mangas de sua
camisa enquanto andava, e percebia a inquietação de Anna apenas pelo ritmo

determinado de suas passadas.

Já haviam chegado até os campos de centeio, que se agitavam com as

ocasionais brisas que sopravam, formando um mar dourado, com pequenas

ondas de direções variadas. O sol já estava mais baixo, suas sombras formadas
no chão mais alongadas, e ao redor não viam nenhuma presença humana.

Quando ao longe Anna avistou uma grande árvore e abaixo dela um

homem, parecia se movimentar trabalhando com o cereal colhido, cercado por

balaios, sentiu um arrepio, uma dúvida momentânea.

— Tem alguém lá. — Falou com firmeza, apontando.

Depois de algumas dezenas de metros caminhando ainda mais

rapidamente, o homem as avistou também, se erguendo altivo olhando para elas.

Naquele momento Jennifer viu Anna sorrindo, era a confirmação que ela

precisava.

Caminhou rapidamente até ele, que a olhava boquiaberto, incrédulo.


Anna parou à sua frente, com o sorriso de quem acaba de encontrar um tesouro.

Andrew lembrava bastante sua irmã nas feições, mas tinha o cabelo mais claro,
como seu pai, e olhos castanhos, como sua mãe, o inverso de Anna. Seu cabelo
estava desgrenhado, e usava uma barba castanha quase cobreada, cheia, mas bem

aparada.

— Anna?? — Perguntou com um olhar assustado.


— Finalmente... — Foi tudo que Anna conseguiu balbuciar.

Ele deu alguns passos na sua direção e a abraçou, assim permaneceram


por alguns instantes, Jennifer apenas os contemplava, satisfeita, aliviada.

— Achei que nunca mais te veria. — Ela falou, ainda unidos. Tinha os

olhos marejados de lágrimas e suas mãos pareciam não querer soltar das costas

de seu irmão.

— Mas como me achou? — Ele indagou, após soltarem-se.

— É uma longa história, mas o responsável por isso foi o avô dela. —

Virou-se na direção de Jennifer, que se aproximou.

— Quem é ela?

— Andrew, essa é a Jennifer, Jennifer, esse é meu irmão sumido. — Os

apresentou.

— Então você é o famoso irmão fujão de Anna. — Falou num tom

descontraído, estendendo sua mão.

— Meu Deus Andrew, todo esse tempo eu imaginei tantas coisas, até
mesmo que a guerra tivesse te levado, mas você estava aqui, morando numa
fazenda em outro continente!

— Eu apenas toquei minha vida, encontrei meu lugar.

— Por que não entrou em contato?

Andrew lançou um olhar baixo.


— É uma longa história.

— Sua filha, você colocou o nome de nossa mãe!

— Sim, você a conheceu?

— Estava preparando chá e a interrompemos. — Riu. — Ela é linda


Andy... Você acertou em colocar o nome de nossa mãe, é tão parecida com ela.

— E não é? Lembra tanto nossa mãe às vezes! Até o gênio é parecido.

— Igual a você então, genioso.

— E você não é muito diferente não, é como nosso pai, mantendo a

calma, parece um poço de frieza, mas quando explode, sai de baixo!

— Ok, sem exageros.

Se entreolharam, sorridentes.

— É bom te ver, meu irmão.

— Nunca imaginei que um dia teria você aqui, na minha frente... Que
bom que nunca desistiu de mim.

— E que bom que te achei vivo, seu filho da mãe fugitivo. — Deu um

murro de leve no seu ombro.

— Vamos trocar elogios em casa? Quero te apresentar minha esposa,

Eileen.

— Claro, até porque Marianne está nos esperando para tomar chá com

ela.
Os três chegaram em casa e encontraram Eileen com a filha na cozinha,
começando a preparar o jantar, fizeram as devidas apresentações. A esposa era

uma típica camponesa, com algumas sardas acima das bochechas e cabelos da

cor do trigo. Andrew se agachou ao lado da filha e apontou para Anna.

— Filha, lembra da tia Anna que sempre falamos? Ela é a tia Anna, veio
nos visitar.

Anna também abaixou-se, à sua frente.

— Quer dizer que você já ouviu falar de mim, então?

— Você é a irmã do papai?

— Sim, e queria que soubesse que você é a sobrinha mais linda e

encantadora que alguém poderia ter, estou super orgulhosa em ser sua tia.

— Por que não veio nos visitar antes?

Anna deu uma olhada rápida para o irmão, antes de responder.

— É que eu moro muito longe, só pude vir agora.

— Você vai morar aqui com a gente?

Anna sorriu.

— Não querida, mas prometo visitá-la mais vezes, ok? E desculpe não ter

voltado a tempo de tomar seu chá.

— Amanhã vou fazer mais, daí você me ajuda.

— Claro, ajudo sim, sou melhor com café, mas também sei fazer chá,
qual o seu favorito?

Jennifer acompanhava o desenrolar da conversa, surpresa com a


desenvoltura de Anna com a criança.

A família agora reunida ficou ainda algum tempo matando a saudade, ali

mesmo, na cozinha, conversando e assimilando tudo que estava acontecendo.

— Andy, que tal jantarmos todos na casa dos meus pais? Eles vão gostar

de conhecê-las e com certeza o jantar deles é bem melhor que isso que eu estava

preparando. — Eileen sorriu envergonhada.

— Pessoal, não se preocupem conosco, ok?

— Eileen tem razão, vamos até lá, é a casa ao lado. Mas antes acho que

vocês gostariam de descansar um pouco, tomar um banho, não?

— É, é uma boa ideia. — Anna respondeu.

— Só temos esse quarto vago, se quiserem mais privacidade posso falar

com minha mãe para que ajeite outro quarto na casa deles, para que cada uma
tenha seu próprio quarto.

— Não se preocupe com isso, este quarto está ótimo para nós. — Anna
respondeu.

— Ok, vou deixá-las à vontade, tem um banheiro aqui ao lado, tem


toalhas lá dentro, mas se precisarem de algo mais, é só falar. — Eileen disse, de

forma atenciosa, esfregando as mãos no vestido.


A dupla entrou no quarto, largando suas coisas no canto, dando uma
olhada ao redor. Havia um guarda-roupas antigo, uma cômoda e um beliche. O

quarto era pequeno, mas parecia intocado, como se aguardando que a prole da

família aumentasse. As paredes eram amarelas claras e as janelas de madeira,


brancas.

Anna andou lentamente pelo quarto e se voltou para Jennifer, com um

sorriso perdido.

— Eu vou ser eternamente grata ao seu avô por isso.

— Ele só queria retribuir o que você fez por nossa família, ele me disse
isso. — Falou sentando-se na cama.

— Ainda não caiu a ficha que o Andrew está ali, do outro lado da parede,

é surreal demais.

— Acostume-se, seu irmãozinho está de volta. — Sorriu.

— Obrigada.

Jennifer levantou-se, lhe dando um beijo carinhoso e a envolvendo.

— Queria que você tivesse mais uns dez irmãos para encontrar, só para
ver você sorrindo desse jeito. — Jennifer murmurou no seu ouvido.

— O que eu faria com onze irmãos?

— Um time de futebol?

Logo em seguida a soltou, virou-se e colocou suas duas mãos na cama de


cima do beliche.

— E a cama de cima é minha. — Fulminou.

— Assim, sem eu poder manifestar minha vontade? — Anna reivindicou.

— Sou claustrofóbica.

— Desde quando?

— Você nunca perguntou.

— Já me convenceu, vá tomar banho para jantarmos.

***

Mais tarde os cinco foram devidamente recebidos na grande casa branca

pelos pais de Eileen, duas figuras simpáticas que, apesar de não muita idade,

tinham em seus rostos as marcas perceptíveis do trabalho ao ar livre na lavoura.


Quando Jennifer adentrou a sala de estar, foi cumprimentada primeiro pela

senhora rechonchuda, que carregava em seus cabelos uma bonita combinação de

fios claros misturado ao já grisalhos. Jennifer percebeu que seu sorriso amistoso

se alterou aos poucos, em câmera lenta ao vê-la, como se captando algo no ar.

Apesar da situação estranha, Jennifer seguiu adiante e cumprimentou o


esposo, um grande senhor de cútis vermelha, que guardava sua careca

proeminente dentro de uma boina marrom e usava engraçados suspensórios da


mesma cor. Ele a cumprimentou de forma bastante carinhosa, porém continuou a

encarando mesmo após finalizado o aperto de mão. Nos minutos seguintes


Jennifer seguiu intrigada com o clima misterioso formado pela presença dela,
porque ela estava certa que tudo aquilo estava relacionado unicamente com sua

pessoa.

— Mais costelinhas, minha querida? — A camponesa matriarca oferecia

para Jennifer, erguendo uma travessa repleta de costelas suínas.

— Ãhn... Claro, mais duas!

Mas com o passar da noite e com barriga cheia da suculenta janta,

Jennifer já esquecera daquela situação e ficava cada vez mais à vontade. Esse

pessoal da fazenda sabia como ninguém como ser acolhedor, fazendo até mesmo
Anna conversar animadamente com todos na mesa, depois do jantar.

Já estavam à porta da casa, de saída e se despedindo, Jennifer esfregava

os olhos vermelhos que pareciam repletos de grãos de areia de tanto sono que

sentia, quando ela teve um insight. Enquanto Marianne a levava pela mão e

todos já seguiam de volta para a casa amarela, teve tempo de olhar assustada
para os pais de Eileen que permaneciam no alto da varanda, observando a

partida. Jennifer havia matado a charada.

No pequeno caminho até a casa ao lado, Jennifer sussurrou no ouvido de


Anna.

— Preciso te contar uma coisa.

— Agora?

— É!
— Anna, senta aqui na varanda, toma um chá com a gente! — Andrew a
chamava, à sua frente.

Anna hesitou, já subindo os degraus da varanda com Jennifer a tiracolo.

— Daqui a pouco você me conta, tá bom? — Sussurrou de lado.

Jennifer teria que esperar.

Na varanda havia dois bancos de madeira pintados de branco, Andrew

sentou em um deles com Marianne no colo, e no outro Jennifer e Anna

sentaram-se lado a lado, enquanto Eileen foi fazer o chá. Era visível a excitação

de Jennifer para contar o que havia descoberto, mas não demorou muito para que

o sono a vencesse.

Quando Eileen chegou com a bandeja cheia de xícaras, metade dos

participantes já haviam adormecido. Marianne dormia pacificamente no colo de

Andrew, e Jennifer dormia recostada no ombro de Anna, com a boca entreaberta

e a cabeça inclinada para trás.

— Acho que é hora de colocar as crianças na cama. — Eileen falou

rindo, olhando para Jennifer.

Entregou a bandeja a Andrew e tomou Marianne nos braços, em seguida


se aproximou de Jennifer e a chamou para dormir.

— Vamos para o quarto? — Falou de forma tenra.

— Jennifer? — Anna disse baixinho em seu ouvido. — Vá para a cama,


querida.

Sem entender direito o que acontecia, Jennifer topou e foi para o quarto.
Eileen retornou e sentou-se ao lado de seu marido, ajeitando seu vestido claro

debaixo das pernas.

— Andy me contou tantas histórias sobre vocês. — Falou.

— Ele contou tudo que aprontava comigo? Os sustos que me dava?

— Até hoje ele ainda gosta de dar sustos, até na própria filha.

— São sustos inofensivos. — Andrew retrucou.

— Como quando você se escondeu atrás do sofá da sala? Tive que fazer

chá de camomila para ela dormir!

Anna riu.

— Esse era um dos preferidos dele quando éramos crianças.

— É... O que Anna não está contando é como se vingava de mim.

— Era merecido.

— Ela armava armadilhas no meu quarto, as mais variadas, desde balde

cheio d’água em cima da porta, até almofada de tachinhas na minha poltrona. Ou


o dia que encheu minha gaveta de cuecas com formigas.

— Depois me ensine algumas, ok? — Eileen falou se inclinando na


direção de Anna.

Pouco tempo depois a esposa de Andrew também recolheu-se, deixando


os irmãos conversando na parte externa da casa, deixando que colocassem seus

anos de afastamento em dia, ou pelo menos parte disso.

Agora apenas a lua entre nuvens fazia companhia aos irmãos Fin, a

paisagem dali da varanda era quase poética, campos cobertos de cereais, onde

não se podia dizer se era a lua que os deixava assim dourados ou ela apenas os
realçava, enquanto se moviam com o vento, trazendo aquele cheiro fresco dos

grãos até a casa.

— Eileen parece ser uma pessoa tão dócil, tão serena. — Anna reiniciou

a conversa.

— E é sim, ela é encantadora, é doce e ao mesmo tempo forte, eu dei

muita sorte.

— Como a conheceu?

Ainda estavam cada um em seu banco, mas agora em suas extremidades,

próximos um do outro, com suas xícaras em mãos.

Andrew coçou sua barba e se espojou no banco antes de começar a

contar, com um olhar nostálgico.

— Eu andava por várias cidades rurais, sem destino, mas gostei daqui, de
Swindon, então resolvi passar mais uns dias na região e numa noite fui parar no

pub. Por sorte fiquei sabendo que tinham uma vaga no bar e nem pensei duas
vezes, decidi que era minha. Algo aqui me fez querer fincar raízes. Algumas

semanas depois um grupo de garotas esteve no pub, comemorando o aniversário


de uma delas. Eram todas amigas, do último ano do colegial, uma me chamou a
atenção imediatamente, ela era deslumbrante, bom, você a viu, não viu? —

Andrew sorriu.

Anna apenas acompanhava a narrativa de seu irmão, atenciosamente,

apesar do cansaço sentia-se bem em estar ali, ao lado de parte da sua família,
com todas as lembranças e sensações confortáveis que vinham à tona.

— Errei todos os pedidos da noite depois que a vi. De vez em quando

arranjava um tempinho para ir até a mesa delas, mesmo quando não tivessem

pedido nada, dava um jeito de conversar com a garota do casaco azul e cabelos

dourados.

— Você nunca foi do tipo galanteador.

— Não, mas aquela noite nem eu acreditava no que estava fazendo, a

cortejando daquele jeito. Ela me prometeu aparecer no final de semana seguinte,

e apareceu!

— E o que você fez?

— Ignorei todas as broncas do chefe e levei a noite quase toda


conversando com ela. Passamos a nos encontrar nos dias seguintes, num café no
centro da cidade, quando vimos já estávamos namorando! — Andrew contava

com um entusiasmo quase infantil, como se revivendo aqueles dias, bem à sua
frente.

— Eu sabia, eu tinha certeza que íamos nos casar e ter filhos, mas ainda
faltava um pequeno detalhe: seus pais, eu ainda não os conhecia.

— E como foi esse encontro? O que acharam do namorado híbrido da


filha? — Anna perguntava movida pela curiosidade e entusiasmo alheio.

— Ah... Essa é a melhor parte, você não vai acreditar!

— Melhor?

— Ela tinha um receio, uma reserva tão grande com esse assunto, mas

não me parecia preconceito com híbridos, não parecia que ela estava com receio

que eles soubessem de mim, parecia o contrário!

— Não notei nada de diferente com os pais dela.

— Eu falei que gostaria de conhecer seus pais, de ir até a sua casa. Ela

então me contou que era adotada, havia sido adotada ainda bebê. E que seus pais

eram pessoas reservadas, mas bastante generosas e gentis, eu percebi que ela
queria contar algo mais, e na hora foi como um estalo, eu segurei suas mãos e

falei: ‘Eileen, seus pais são Vulpis?’ Anna, os pais dela são Vulpis!

— Nossa... A mesma história de nosso pai. — Anna falou com as

sobrancelhas franzidas, surpresa. — Era isso que Jennifer queria me contar. —


Pensou.

— Não é uma coincidência e tanto? Ali eu tive certeza que tudo daria
certo, e que ela era de fato a mulher da minha vida. Ela me olhou assustada,

como eu saberia sobre isso? Então contei a história de nosso pai, ela ficou tão
abismada quanto eu, mas nossa... Que alívio para ambos... Principalmente para
ela, que não precisaria mais esconder isso de mim.

— Imagina como nosso pai riria disso tudo, ele ia fazer questão de vir
aqui conhecê-los. — Anna falou com um sorriso meio torto.

— Ia sim... Eu não acreditei em quão perfeita era essa história toda, nos

casamos seis meses depois e vim morar aqui, com a casa ainda inacabada

mesmo, um ano depois veio a Marianne, desde então trabalho nas plantações de
grãos, não é muito grande, os dois irmãos de Eileen também ajudam, mas é o

suficiente para o sustento de todos. E ainda por cima estou cercado por Vulpis,

eles são tão bons comigo, nosso pai tinha razão, são tão diferentes das outras

espécies, as pessoas mais justas que já conheci.

— Eu fico imensamente feliz e aliviada sabendo que durante todo esse

tempo você estava bem, estava tocando sua vida, e que achou uma boa pessoa

para ficar do seu lado, que bom que você encontrou alguém como Eileen, e...

Que bom que te encontrei bem.

— Eu sou um cara muito sortudo, tive minha época errante, fiz minhas

besteiras, mas finalmente me encontrei, e é uma pena que seja tão longe de nossa
casa e de você, mas aqui é meu lar agora.

— Eu sei... Eu sei disso. Sabe, quando estava vindo para cá, comentei
com Jennifer que se você não estivesse bem, se não estivesse numa situação

confortável, eu faria de tudo para te levar para casa, eu te colocaria no mesmo


avião que eu e iríamos todos de volta para os Estados Unidos, na verdade acho
que até já contava com isso, inclusive imaginava você voltando comigo.

— Aqui é meu lugar agora.

— Não tenho a menor dúvida disso, eu enxergo o quanto você é feliz


aqui, sua família é linda, Eileen é amável, e Marianne, meu Deus, ela é a coisa

mais fofa do mundo! Acredite, não estou desapontada por não te levar na mala

de volta para casa. — Sorriu.

— Nunca achei que fosse casar, lembra que eu dizia que não queria me

‘amarrar’? E veja onde estou! — Andrew riu, largando a xícara ao lado, no

banco.

— Mas você procurou bastante até achar a pessoa certa.

— É... Bastante. E você minha irmã, casou também?

— Não, não casei não. — Respondeu um pouco encabulada.

— Sério? Volta e meia você estava de pretendente novo, achei que depois

daquele noivado malsucedido, como era mesmo o nome dele? Rob?

— Isso, Rob.

— Achei que você casaria rapidinho depois daquilo.

— É... Mas não aconteceu.

— Mora com alguém? Algum namorado?

Anna lançou um sorriso contido.

— Andy, achei que você tivesse percebido.


— Percebido o quê?

— Jennifer é minha namorada.

Andrew ergueu as sobrancelhas, espantado.

— Mas... Como assim... Jennifer é uma mulher!

— É sim, nossa, como você é bom observador.

— Mas você gosta de homens, sempre namorou homens! Desde quando

gosta de mulheres?

— Eu gosto de Jennifer.

— Isso não está certo, Anna, você não é uma daquelas... Como se

chama... Você não é uma lésbica, você é normal, sempre foi.

— Andrew... — Anna balançou a cabeça incomodada.

— Você deve estar em alguma fase estranha, sei lá, esse não é o seu
natural.

— Não fazia ideia que os ares do interior iriam fechar sua mente dessa

forma.

— Não é questão de ser mente aberta, isso não está certo, você precisa
conhecer um cara legal, casar e começar sua família, um homem! Tenho certeza

que vários dos caras que você se envolveu no seu passado voltariam rastejando
para você se quisesse.

— Você realmente não consegue ficar feliz por mim?


— Com outra mulher, não. Isso está errado, ela nunca vai te fazer feliz, e
sei que logo você vai perceber isso.

— Você nem a conhece... — Anna falava entristecida, e agora

cabisbaixa.

— Mas já imagino o que seja. Uma humana aproveitadora.

Anna sorriu, um riso sarcástico que saiu naturalmente.

— Por que está rindo?

— Ela é Vulpi.

— Claro que não.

— Por que ela não poderia ser Vulpi? Por que é ‘lésbica’? — Falou quase

se exaltando.

— Ela é Vulpi?? — Andrew perguntou com uma expressão perturbada.

Anna apenas assentiu com a cabeça.

— É por isso que você está com ela?

— Sério? É isso que você pensa de mim? Eu nem deveria estar te

explicando isso, mas quando me apaixonei por ela eu nem sonhava que ela
poderia ser Vulpi.

Andrew se inclinou para frente, com os braços sobre os joelhos,


pensativo.

— Então... Você gosta dela mesmo?


Anna relaxou um pouco o corpo e a expressão.

— Como nunca gostei de alguém em toda minha vida.

Andrew assimilava.

— A ama?

— Amo.

Até mesmo Anna assustou-se com a naturalidade com que falou aquilo.

— Minha irmã... Eu só quero o melhor para você. Como isso pode dar

certo? Acho que você está perdendo seu tempo.

— Ou talvez você esteja, me falando essas coisas. — Anna rebateu, mas

não de forma grosseira.

— Ela sabe então, sobre meus sogros?

— Acho que sim, bem como eles devem saber sobre ela.

— E nós sem percebermos nada.

— É verdade... Totalmente vendidos.

— Nosso pai iria gostar de conhecê-la. Ele não conhecia muitos Vulpis

em Bridgeport. — Andrew refletiu.

— Acho que eles se dariam bem, nosso pai adorava pessoas sarcásticas, e
essa passou na fila do sarcasmo várias vezes.

Andrew ainda levou mais algum tempo assimilando aquela revelação.


— Quer ir dormir? Você parece bem arriada.

— Esse é o vocabulário da fazenda?

— Anda, vamos para dentro.

Anna entrou no quarto devagar, tentando não fazer barulho, fechou a


porta delicadamente. Alguma pouca luz entrava pelas frestas da janela e

iluminava de forma irregular o pequeno cômodo. Trocou-se rapidamente e antes

de deitar apoiou seus braços na cama de cima, ficou por alguns segundos

velando o sono de Jennifer.

— Se ele pudesse enxergar isso, ele entenderia. — Pensou, enquanto

passava seus dedos nos cabelos meio bagunçados de Jennifer.

Não importava a sensação reconfortante de reencontrar seu irmão, após

cinco anos de incertezas angustiantes, nem mesmo sua opinião sendo um ente de

sua família, sangue de seu sangue, alguém que realmente era importante para

ela. A certeza do que ela sentia por Jennifer era inabalável e se reafirmava num

momento simples como aquele, a vendo dormir, observando seu rosto quieto e
sombreado.

Quando tirou seus braços do colchão e se abaixava para deitar pode ouvir
Jennifer num murmúrio sonolento.

— Anna?

— Sim.
— Os pais da Eileen são Vulpis. — Falava sem abrir os olhos.

Anna sorriu.

— Eu sei.

— Sabe?

— Sei sim, Andrew me contou.

— Ah, que droga.

— Boa noite.

— Anna?

— Ainda estou aqui.

— Preciso ir para a Escócia amanhã.

— Vai visitar seu avô?

— Também, e participar de uma reunião que não posso contar para você.

— Hum... Ok. Boa noite. — Anna respondeu meio confusa.

— Anna?

— Diga... — Falou interrompendo o movimento de se deitar pela terceira


vez.

— Eu nunca te contei sobre a reunião, ok?

— Ok, nadinha.

— Anna?
— Eu.

— Posso dormir aí na sua cama?

— Não. Boa noite, querida.


Capítulo 31 – Seus argumentos são inválidos

— Já nos chamaram para o café da manhã. — Anna tentava acordar

Jennifer naquela manhã de quarta-feira.

— Hum... — Virou-se para a parede, com preguiça.

— Você não tem que ir para a Escócia?

— No final da tarde.

— Quando é a reunião?

Jennifer virou-se, já acordada.

— Eu te falei da reunião?

— Desculpe, esqueci que era para fazer de conta que eu não sabia da

reunião.

Jennifer, do alto do seu beliche, a encarou por um instante, esconder tudo


aquilo de Anna era incômodo, era como carregar uma mochila pesada num

ombro só.

— Eu sei, é um saco isso, não poder te contar... Não gosto das coisas

desse jeito, fiz votos de sinceridade com você. — Jennifer falava séria.

— Votos de sinceridade? — Anna riu quando ouviu ela falando isso.

— Quando chegar em Glasgow vou conversar com meu avô, ele vai ter

que liberar, e quando voltar vou te contar tudo. — Jennifer continuava.


— Se for para você se sentir melhor e mais aliviada, então tudo bem,
negocie com seu avô.

Jennifer já descera do beliche e procurava suas roupas na mala, quando

interrompeu o que fazia e virou-se apreensiva para Anna.

— Anna, acho que não tem café no café da manhã.

— Aqui? Não sei, vamos lá ver.

— Eles só bebem chá! Todos, não só a família do seu irmão, os ingleses

só bebem chá, são viciados nisso!

— Também não é assim. Mas realmente é a preferência nacional, tudo

aqui gira em torno de uma xícara de chá.

— Mas eu quero café...

— Eu faço café para você.

— E se eles não tiverem pó de café?

— Eu deveria ter trazido na mala, não é? — Anna falou num tom

confessional, com bom humor.

— Tudo bem, eu sobreviverei. E sobre a reunião, é amanhã, devo voltar

para cá no sábado.

— Que horas? Pra combinar com meu irmão para te buscar em Londres.

— Sábado à tardinha. Hey, poderíamos ir em algum pub local no sábado,


ou domingo, que acha? Um autêntico pub inglês, autêntico chope inglês.
— Pensarei no assunto.

— Conversou com seu maninho ontem? — Jennifer falou já se vestindo.

— Sim, um pouco. — Anna aguardava sentada em sua cama.

— Ele me pareceu uma cara legal. Vocês têm as mesmas sobrancelhas. E


ele também faz aquela coisa com a testa sabe, quando você franze assim. —

Imitava franzindo a testa.

— É sim.

— Será que ele ficaria bravo se eu o chamasse de cunhado? Nunca


chamei ninguém de cunhado.

Anna deu um sorriso cabisbaixo.

— Melhor não.

— Ele sabe de nós, não sabe?

— Sabe, mas não aprova, acha que devo me casar com um homem. —

Falou, receosa com a reação de sua namorada.

Jennifer parou o que estava fazendo e se aproximou de Anna, colocando


as duas mãos na beirada da cama de cima, a fitando logo abaixo.

— É uma pena que meu cunhado pense desta forma, porque você vai se

casar comigo.

Jennifer sempre a surpreendia.

— Ah é? E o Vulpi bem alimentado com uma caminhonete vermelha que


você ia se casar?

— Se descobriu gay, comprou uma roupa de couro e foi cantar no Village


People.

— Todo mundo se descobre gay nas suas histórias?

— Bom... Todo mundo eu não sei, mas você sim. — Sorriu com

sarcasmo, saindo para terminar de calçar seu tênis.

Anna se apaixonava mais um pouquinho a cada besteira que ela falava.

Levantou-se de cama e a abraçou por trás. Se fosse um polvo, a envolveria com

seus oito braços.

— Podemos fazer essas coisas aqui? A porta está destrancada. —

Jennifer perguntou meio desconcertada, enquanto tinha seu pescoço percorrido

pelos lábios de Anna.

— Tudo o que quisermos.

— Que garota de atitude.

Anna agora tinha um olhar nostálgico, perdido.

— Lembra o dia que levei você para casa, bêbada feito um gambá e
molhada de cerveja, você tomou um banho e não enxugou seus cabelos, então te

empurrei de volta para o banheiro e enfiei a toalha na sua cabeça?

— Lembro vagamente. — Mentia, lembrava de todas os detalhes daquela


noite.
— Meu Deus, como foi difícil dizer não para você... Eu não quero passar
por algo do tipo nunca mais.

— Eu te assustei.

— Digamos que me pegou desprevenida.

— Nós duas no meio do banheiro e eu te perguntei ‘por que você é tão

perfeita?’ Não foi? E mais um monte de perguntas aleatórias. — Jennifer riu.

— Perguntou.

— E você não me respondeu nada.

— Eu ainda não tinha intimidade o suficiente para te responder.

— Mas agora tem.

Anna ainda mantinha seus braços envolvendo a cintura de Jennifer, e


seus rostos lado a lado.

— Eu não sou perfeita, mas talvez eu seja perfeita para você, assim como

você é para mim... E quando eu olho para você... Eu enxergo a perfeição que eu

procurei durante toda minha vida, essa perfeição torta, às vezes inexplicável,
mas eu procurava justamente você e nem sabia disso.

Jennifer sorria ouvindo tudo isso.

— Não esqueça que fui eu que achei você.

Virou-se e roubou-lhe um beijo.

— Temos que ir. — Anna falou baixinho.


— Vamos tomar café.

— Ou chá.

— Nãããão.

***

Aquele dia correu lento e suave, terminou com uma caminhada pela
extensão da fazenda, passando pelo rio que cortava a propriedade.

Jennifer notara durante todo o dia o desconforto de Andrew com sua

presença, que agora sabia que ela era mais do que a amiga de sua irmã. Ela
tentava contornar a situação o deixando à vontade e sem maiores aproximações

de Anna. Pelo menos no final da tarde Andrew já não a olhava mais com tanta

estranheza.

Ela andava mais à frente pelo caminho ao lado das plantações, de mãos
dadas com Marianne, que não a largou durante todo o dia.

— Por que você vai embora hoje? Não vá... — A pequena perguntou
entristecida, olhando para cima, protegendo os olhos do sol com a mão em

concha.

— Sabe seu avô? Ele é legal, não é?

— É o melhor vô do mundo.

— Então, meu avô também é legal, claro que o seu é bem mais, o meu
talvez seja o melhor vô da Escócia apenas, ou quem sabe o segundo vô mais
legal do mundo. Eu quero visitá-lo, pois já faz tempo que não o vejo. Você me

entende?

— Entendo.

— Eu volto no sábado. E prometo trazer um presente para você.

— O que você vai trazer? — Perguntou animada.

— Não é mais divertido quando é surpresa?

— Não.

— Tia Anna por exemplo, adora surpresas, não é, tia Anna?

— Ãhn?

— A propósito, domingo passado foi aniversário da tia Anna, sabia?

Marianne saiu correndo com seus cabelos castanhos, como o de seu pai,

esvoaçando, e foi abraçar sua tia, ao passo que Andrew se aproximou de


Jennifer.

— Eu levo você até o aeroporto em Londres hoje. — O jovem fazendeiro

falou, o sol já baixava.

— Não quero dar trabalho, posso tentar uma carona.

— Que isso, trabalho algum, eu levo você.

— Eu agradeço, por que minhas opções são uma carona com você ou
com um desconhecido, já que sua irmãzinha não dirige.
— Ainda não venceu seu trauma, Anna?

— Só dirige em emergências. — Jennifer se antecipou na resposta.

***

Por falta de espaço na sua pick-up, apenas Andrew e Jennifer seguiram


até Londres, para que ela pegasse seu voo até Glasgow, o clima no interior da

cabine não era dos melhores.

— Então... Você é Vulpi... Anna deve ter contado que os pais de Eileen

também são. — Andrew comentava timidamente enquanto dirigia.

— Não é tudo uma grande coincidência? Eu, seus sogros, os pais

adotivos do seu pai.

— É sim... Uma grande coincidência. — Andrew não parecia muito à

vontade.

— Foi sua irmã que percebeu que eu era Vulpi, sabia? Nem eu sabia de

mim mesma, olha que tapada que eu sou! — Tentava quebrar o gelo.

— Seus pais não te contaram por quê?

— Eles morreram antes de me contar. Coisas da guerra.

— Sei.

Uma pausa incômoda se formou, então Andrew deu uma boa olhada em
Jennifer e questionou, sério.

— Por que a minha irmã? Tanta gente no mundo e você quis a minha
irmã?

Jennifer foi pega de surpresa com a pergunta.

— Precisa de porquê? Você, mais do que eu, deveria saber o quanto ela é
incrível.

— Me desculpe, mas eu não consigo imaginar como duas mulheres

podem ser felizes juntas. Anna está passando por uma fase, e eu sinto muito por

você, mas eu sei bem como isso vai terminar.

— Na verdade Andrew, se me permite dizer, é exatamente o contrário,

você sabe como os relacionamentos que Anna teve com homens terminaram,

mas esse você não faz a menor ideia como vai terminar, nem sequer ‘se’ vai
terminar. — Falou com ênfase no ‘se’.

Andrew ficou em silêncio pelos minutos seguintes.

A noite já caia por completo e Londres se aproximava, as luzes da grande

cidade podiam ser avistadas da estrada.

— Como se conheceram? — Andrew voltou a falar.

— Bom... Resumindo, ela salvou a minha vida. A minha e de meus


amigos. Nos defendeu de algumas gárgulas e não deixou que eu morresse de

infecção.

— Uau.

— Eu não disse que ela é incrível? — Sorriu.


— É... É sim. Ela já foi noiva de um homem, você sabia?

— Sim, Robert deve estar inconformado até os dias de hoje.

Andrew balançou a cabeça.

— Você acha que a conhece, mas não a conhece, Anna deve ter ficado
alguns anos sozinha dentro daquela mansão e quando você apareceu acabou se

apegando a você, como amiga. Não se deu conta? Ela deve enxergar você como

uma amiga.

— Você tem amigos, Andrew?

— Sim, tenho.

— Você dorme com seus amigos?

Andrew não falou mais nada.

— Não quis soar irônica, só queria que você entendesse que nosso

relacionamento é de verdade, Anna resolveu ousar e está dando certo.

— Espero que ninguém se machuque nessa história.

As seis em ponto Andrew estacionou em frente ao aeroporto em Londres,


acompanhou sua cunhada até os guichês da companhia aérea. Ela partiria

naquela quarta-feira à noite, mas voltaria três dias depois.

— Tem pub em Swindon?

— Tem sim, um só, eu trabalhei lá por alguns meses.

— Hum... Estou pensando em levar sua irmãzinha lá no sábado ou


domingo, o que acha? Vocês poderiam ir também.

— Soube que o nível decaiu um pouco, mas tudo bem, podem usar meu
carro se quiserem. Agora sobre irmos também, quem sabe, vou conversar com

Eileen.

— Ótimo. Até sábado então.

Aquele dia terminou e quinta-feira veio apenas para que Jennifer matasse

as saudades da sua família em Glasgow e participasse de uma reunião do G6,

como seu avô chamava o grupo dos seis clãs que organizavam a revolução

Vulpi. Concluiu o dia com a certeza que aquilo era real, agora percebia o quão
tangível era seu papel naquela cruzada.

Sábado chegou sem o sol que os acompanhava, apesar do tempo nublado

a paisagem verde e dourada da fazenda continuava como numa pintura. Jennifer

seguia em Glasgow e Anna no interior do interior do interior da Inglaterra,

sentada num banco rústico de madeira, em frente ao rio na propriedade da


família, juntamente de seu irmão. A tarde já corria pela metade e haviam passado

boa parte dela contando o que haviam feito nos últimos anos.

— Então, Jennifer foi visitar os avós na Escócia?

— O avô. E as tias e os primos.

— Volta hoje?

— Sim. E vamos embora terça.


— Terça, já? Você poderia passar um tempo aqui conosco.

— Tenho meus compromissos lá, não posso simplesmente abandonar


tudo.

— Mas você vem me visitar de novo, não vem?

— Claro, mas você também pode nos visitar, continuo na mesma casa

onde crescemos.

— Eu não posso...

— Andrew, por que você sumiu? Por que não me procurou mais?

Ele deu uma boa olhada para os lados antes de começar a falar.

— Aqui é meu refúgio, eu fiz algumas coisas nos primeiros anos da

guerra... - Hesitou antes de continuar. — Olhe, Eileen sabe de tudo, mas os pais

dela não sabem. Eu vou contar a você, mas precisa me prometer que guardará

isso como segredo absoluto, entendeu?

— Você está me assustando, Andy. O que você aprontou de tão grave?

— Você promete? Nem para sua amiga!

— Sim, essa conversa ficará aqui.

— Eu nunca participei de nenhuma matança nem genocídio, mas me

ferraram, me usaram como bode expiatório.

— Do que você está falando?

— Assim que cheguei aqui, na Europa, conheci um grupo com ideias


revolucionárias, cheio de vontade de mudar o rumo da guerra, eu entrei para esse

grupo. Fui para a Turquia, onde ficava o quartel general e de onde partiam as

ordens. Era o que chamam de grupo terrorista, mas me recuso a classificá-los

como tal. Nós apenas queríamos destituir do poder alguns tiranos.

— Você era um terrorista, Andrew? — Anna estava estarrecida.

— Nunca fui, nossos atos podiam até ser violentos, mas era em prol de
um bem maior, para se fazer a omelete é preciso quebrar alguns ovos, não é o

que dizem?

— Hum.... Claro. — Respondeu sem comprar a ideia do irmão.

— O grupo cresceu, e vertentes reacionárias começaram a surgir entre os


próprios amigos de farda, um destes subgrupos tinha ideias genocidas, queriam

exterminar cidades inteiras, mas eu me recusei a participar dos atos hostis que

eles planejavam. Não vou dizer que eu era um santo e que não fiz algumas coisas

que me arrependo, mas eu nunca cedi a pressão desse pequeno exército.

— E por que acabou escondido aqui, então?

— Um dia fui com meus colegas para o Sudão, tínhamos a missão de


explodir um consulado, faríamos na calada da noite, haveria no máximo alguns
vigilantes de serviço no prédio, poucas baixas, era para ser um atentado mais

político do que sangrento. Mas fomos sabotados pelo grupo reacionário, aquele
que tentou nos recrutar e recusamos. Na mesma noite eles explodiram um

hospital ali próximo e a autoria dessa explosão também foi dada a nós, porque já
havíamos assumido a autoria da primeira explosão. Colocaram aquele segundo

atentado, um ataque covarde, na nossa conta!

— E o hospital não estava vazio...

— Não, e estava repleto de crianças.

— Isso é grave demais, é um crime de guerra sem tamanho!

— Eu sei! Eu nunca participaria de algo tão bárbaro, mas hoje em dia sou

procurado pelo governo de quatro países por conta disso, algo que não fiz. Sem

contar que o restante da nossa organização passou a nos perseguir também, nos

julgando desertores.

Anna precisou de alguns segundos para digerir aquilo tudo.

— Você está ferrado, muito ferrado.

— Ferrado e escondido, por falar nisso, nunca revele a ninguém meu

verdadeiro sobrenome, ok? Aqui meu nome é Andrew Smith.

— Como fugiu?

— Eu estava atravessando a fronteira com o Egito quando soube do que


haviam aprontado com a gente, tivemos que fugir dali, passamos alguns dias
vagando pelos arredores, até conseguirmos voltar clandestinamente para a

Europa. Fui para a França, fiquei algumas semanas escondido numa pensão de
um conhecido, mas fui descoberto pelo nosso grupo, fui para a Bélgica, mas me

deduraram, então fugi para cá, para a Inglaterra, onde a atuação do grupo era
quase nula e o governo ainda não me caçava.

— Acabou se enfiando aqui nessa fazenda de centeio.

— Sim, mas aquela história que te contei sobre o pub, Eileen, é tudo
verdade, eu não vim para a fazenda unicamente para me esconder, eu vim depois

que me casei. Até então eu estava morando num porão na vila e trabalhando no

bar.

— Você nunca vai conseguir sair daqui... Você está preso nesta

propriedade.

— Até o dia que me anistiarem.

— Não é o tipo de crime que anistiam assim, do dia para a noite.

— Eu sei. Talvez nunca aconteça. Mas você sabe que essa conversa não

pode sair daqui, não sabe?

— Claro que sei. Mas eu vou me informar sobre seu caso, a quantas

anda, quem procura por você, sobre o que te acusam, serei discreta, prometo.

— Por favor, não faça nada que coloque meu paradeiro em risco.

— Fique tranquilo, não vou prejudicá-lo.

— Preciso continuar invisível.

Anna ainda processava aquelas informações todas.

— Você não poderia pelo menos ter me mandado alguma carta, algum
comunicado, dizendo que estava vivo?
— Não era apenas eu, agora eu tenho uma família, tenho uma filha, eu
tinha medo de colocar isso tudo em risco se tentasse me comunicar com o

exterior, eu preferi não arriscar. Pelo menos não por agora, mas eu sempre tive

esperança de achar uma forma de encontrar você, por mais que tudo indicasse
que a guerra tivesse te matado.

— Por que achava isso?

— Por causa das notícias que vinham da América, tanta devastação,

tantas mortes, parecia que aquele continente havia sido dizimado. E eu conheço

você, sei o quanto gosta de bancar a valente, achava que não duraria muito

naquele ambiente hostil.

— Minha moral está baixa com você hein, maninho? — Sorria, pela

primeira vez naquela conversa.

Olhavam na direção das águas, que corriam não muito profundas naquele

riacho de águas enegrecidas pelas rochas.

— É verdade que você conheceu Jennifer salvando a vida dela?

— Ela te contou?

— Não entrou em detalhes.

— É... Ela estava em apuros com algumas gárgulas.

— Ela sempre tem uma resposta pronta para tudo, não é?

— Vejo que conversaram. — Anna riu.


— Um pouco. Acho melhor voltarmos para casa, está vindo uma
tempestade. — Andrew falou já se levantando.

— Você não ia buscá-la no aeroporto?

— Não, os pais de Eileen já se encarregaram de arrumar um motorista

para trazê-la.

— Sério?

— Os Vulpis são unidos, você deveria saber disso. Eles já estão

conversando com o avô dela e tudo.

— É... É uma espécie bem unida.

Caminhavam lado a lado pelo caminho de terra sendo acompanhados

pela típica brisa úmida, que antecede a chuva.

— Olha, sinceramente não tenho nada contra essa garota. Marianne a

adora, não fala de outra coisa. Não acho que o problema seja ela, mas Anna,

onde você estava com a cabeça ao se envolver com uma mulher?

— Ela não é a primeira mulher com quem me envolvo.

— Então você escondeu todas as outras da sua família?

— Tá, confesso que é a primeira com quem tenho um relacionamento,


mas não é a primeira vez que uma mulher me atrai, eu entendo o seu choque,

mas para mim não foi tão absurdo assim, foi apenas inevitável.

— Nossos pais também não aprovariam isso.


— Não fale por eles.

— Anna... Pelo menos pense sobre isso. O que você viu nela? Tenho
certeza que você tem condições de achar um homem muito mais interessante que

aquela garota, e que vai te proporcionar uma relação de verdade.

Enquanto falava isso, já próximos da casa amarela, Anna pode ver

Jennifer no gramado em frente à casa, com Marianne montada em suas costas,


com um chapéu de cowboy preto, brincando de montaria. Ela galopava de um

lado para outro e a garotinha divertia-se e ria, balançando as pernas às suas

costas e com a mão no chapéu.

Anna assistiu aquela cena, sorriu e respondeu seu irmão.

— Andy, desculpe, mas todos os seus argumentos são inválidos. —

Terminou de falar e foi de encontro às ‘crianças’.

— Tia! Olha o chapéu que ganhei!

— Nossa, que chapéu bacana! Ganhou de quem?

— Da tia Jenny!

Marianne desceu das costas de Jennifer e mostrou o chapéu para sua tia.

— O seu está lá dentro. — Jennifer falou sorridente e ofegante para

Anna, usava um short jeans e tinhas os joelhos sujos, tirava alguns fios de cabelo
que estavam no suor da testa.

— Ah, eu também ganhei um?


— Ganhou! Mas o meu é o mais lindo de todos! — Marianne falava
empolgada. — Papai, posso pedir um pônei de Natal? — Correu para as pernas

de seu pai.

— Um pônei? Vou conversar com o Papai Noel, ok? Vamos ver se cabe

no trenó dele.

Não demorou muito para que a chuva despencasse e todos entrassem


correndo para casa.

— Venha ver seu chapéu. — Jennifer falou para Anna, já se dirigindo

para dentro.

Anna a seguiu, entrando também no quarto.

— Não precisava...

Antes que terminasse a frase Jennifer a puxou pela nuca, fechando a


porta a distância. Deu um beijo apaixonado e finalizou enfiando o chapéu negro

em sua cabeça.

— Gostou?

— De ambas as coisas. — Anna sorriu. — Ainda não sei onde usá-lo.

— Brinque com Marianne.

— Acho que tenho que mandar um pônei para meu irmão.

— E não esqueça de pagar aulas de montaria, a aula de hoje não foi


suficiente.
— Como foi na Escócia?

— Conversas, reuniões, conselhos, exames médicos...

— Exames médicos?

— Meu vô quis ter certeza que estou bem, depois daquele piripaque.

— Bem que ele fez. E como se saiu?

— Saúde de ferro. Só talvez precise diminuir a cerveja. Mas vamos

mudar de assunto, então, vamos ao pub hoje?

— Com essa chuva a estrada fica ruim, quem sabe amanhã.

— Ok, vá lá mostrar seu chapéu para Marianne, vou tomar um banho e

tirar essa grama das minhas pernas.

***

— Anna. Anna. Tá dormindo? — Jennifer a chamava


despretensiosamente do alto da sua cama, já passava de uma da manhã.

— Estava até dez segundos atrás.

— Ah, desculpe, não queria te acordar.

Além da chuva lá fora, pode se ouvir um longo suspiro vindo da cama de


baixo.

— Não consegue dormir?

— Não.
— Ainda desorientada com o fuso horário?

— Talvez.

— Andrew tem um pasto cheio de carneirinhos, conte-os mentalmente.

— São ovelhas. E essas coisas nunca funcionam.

— O que funciona então?

— Coisas que você não aprovaria.

— Nem pense nisso.

— Não estou pensando, foi você que perguntou.

— Quer deitar aqui?

— Até que enfim, achei que não falaria nunca. — Disse já pulando para a

cama de baixo.

Ajeitou-se de costas, debaixo das cobertas, Anna passou seu braço sobre

ela, se encaixando por trás.

— Viu como cabem duas pessoas? — Jennifer falava baixinho.

— Me sinto como uma estudante num campus de uma universidade, me

espremendo numa cama de solteiro com minha namorada às escondidas.

— Já fez isso? — Jennifer perguntou curiosa.

— Ãhn... É... Mas com namorado.

— Espera, espera, várias informações novas. — Jennifer se virou,


ficando de frente para ela.

— Você sabe que horas já são? — Anna desconversava.

— Uma e dezoito. Você fez faculdade de quê?

— Quer tentar adivinhar?

— Artes dramáticas?

— Você está falando sério?

— Lógico que não. Hum, sei lá, física nuclear?

— História.

— História? História é legal, eu faria história.

— É sim, faz tanto tempo.... Mas depois fiz administração a pedido do

meu pai, para ajudá-lo na fábrica.

— Duas faculdades, assim você me mata de orgulho. E eu nem terminei

o colegial.

— Você nem teria como terminar, todas as escolas da cidade foram pelos
ares durante a guerra.

— Bem observado. História... Deve ser fascinante viajar no tempo e pelo


mundo. Ainda lembra de alguma coisa?

— Bastante. Lembro por exemplo de ter estudado sobre seus parentes.

— Quem?
— A casa de Stuart. É como chamam os reinados na Escócia, chamam de
casas reais.

— E teve um reinado dos Stuart?

— Teve, não me recordo exatamente em qual época. Acho que do século

quatorze até o dezessete ou dezoito, a Escócia foi governada por essa dinastia.

— Caramba... Morria sem saber.

— Pergunte para seu avô, ele deve saber muito mais do que eu.

— É... Meus parentes.

— Viu, já estudei sobre vocês.

— Então, levava garotos para seu dormitório na universidade?

— Raramente.

— Raramente... — Deu um sorrisinho irônico.

— Já está com sono?

— Não... Você fica linda assim, toda... Universitária.

Anna se aproximou, a puxou para perto.

— Cante alguma coisa. — Jennifer pediu.

— Quer que eu cante para você dormir? — Falou no seu ouvido, a


envolvendo com suas mãos.

— Sim.
— Melhor não... — Deu alguns beijos preguiçosos.

— Só um pouquinho, vai.

Um silêncio se instaurou, sendo rompido um minuto depois.

— Jeremiah was a bullfrog... Was a good friend of mine…— Anna


começava a canção, devagar.

Jennifer riu.

— Jeremiah era o nome de um dos conselheiros Vulpis que foi na sua

festa de aniversário. — Explicava.

— Minha mãe sempre cantava essa.

— Ok, troco a música por beijos, fácil.

Anna sorriu e voltou a beijá-la nos lábios, deslizava sua mão pela lateral
do corpo de Jennifer quando ouviu um gemido, mas não de prazer, era de dor.

Imediatamente ela parou o beijo e a fitou com as sobrancelhas baixadas, sem

entender.

Olhou para baixo e ergueu a camiseta de Jennifer, pode ver um grande


hematoma na altura das costelas, parecia algo recente.

— Não foi nada. — Jennifer se antecipou.

— Como conseguiu isso?

— Sério, não foi nada demais.

— Foi minha sobrinha, brincando em você hoje?


— Marianne? Não, claro que não, ela pesa menos que uma borboleta.

— Quem fez isso? Foi na Escócia?

— Foi, mas não quero falar sobre isso.

Anna a olhava tentando decifrá-la, mas não fazia ideia do que havia
acontecido.

— E os votos de sinceridade? — Insistia.

Jennifer apenas balançou a cabeça meio contrariada, e baixou sua

camiseta.

— Machucaram você, como aquela vez, com Helen? — Anna falou já

com a voz menos exigente.

— Não, não foi nada disso. Só não estou a fim de falar sobre esse assunto

agora. Prometo que conto outra hora, tudo bem?

— Eu vou te perguntar outra hora.

— E te responderei. Podemos ativar o modo concha? — Falou já se

virando de costas para Anna.


Capítulo 32 – Canecos voadores

No domingo a chuva havia cessado, ficando apenas o cheiro da

vegetação e da terra molhada. Jennifer aproveitaria aquela tarde para contar à

Anna sobre os planos Vulpi, já que seu avô havia liberado que ela contasse para

sua namorada.

Caminharam até o mesmo banco de madeira em frente ao rio, que agora

corria robusto e avermelhado com a chuva, Jennifer tentou contar tudo de uma

maneira que não a chocasse, receava que talvez ela não concordasse com aqueles

planos de certa forma megalomaníacos. Anna ouvia tudo atentamente, surpresa,

mas sem questionamentos.

— E qual seu papel nesse levante? — Foi a primeira pergunta que fez,

após ouvi-la.

— Meu clã é um dos seis que tomará frente, meu avô me quer ao seu

lado na liderança. E se ele não estiver mais aqui quando isso acontecer, ah... Daí
estarei muito, muito mais encrencada.

— Você será uma líder da revolução.

— Mais ou menos isso.

— E você concorda?

A pergunta a surpreendeu.
— Agora sim. Quando meu avô me contou achei tudo uma loucura, mas
já conversamos tanto, debatemos essa semana inclusive, é uma solução bem

plausível, sim.

Anna inclinou-se para frente, pensativa, apertando os olhos por causa do

sol que vinha sobre o rio.

Jennifer continuou.

— Não será uma guerra. Será muito mais político do que qualquer outra

coisa. E não será de uma hora para outra, já está sendo arquitetado há muito

tempo, tem governantes atuais que farão parte, gente que já está no poder. Acho
que é viável. O que acha disso tudo? — Jennifer queria sua opinião.

— Eu ainda não sei... Historicamente esse tipo de imposição não costuma

dar certo. É natural que o diferente seja rejeitado, ainda mais de forma

compulsória. Estou tentando observar de um prisma neutro, entende?

— E como híbrida, o que você pensa?

— Acho pretensão demais achar que somente uma espécie é competente

o bastante para governar.

— Mas a ideia é agregar todas as espécies no decorrer do processo.

— Excluindo todas no início. Não sei, ainda estou formulando uma


opinião melhor. Mas uma coisa eu tenho certeza, é carga demais nas suas costas.

— Me sinto bem melhor ouvindo isso.


— Com certeza haverá uma super equipe dando suporte e guiando todos
os seus passos, mas será desgastante, cansativo, sem contar do perigo que você

correrá.

Jennifer apenas assimilava e se dava conta de tudo.

— E sabe o que mais?

— O que?

— Eu estarei lá com você, o tempo todo.

Jennifer lançou um sorriso aliviado para o lado, onde Anna ainda olhava
para a frente.

— Então vou dar conta.

Anna deu uma olhada rápida de volta, corroborando.

— Tem uma coisinha chata que preciso conversar com você. — Jennifer

reiniciava a conversa.

— Fale.

— Seu irmão, fez algumas coisas... Não muito legais nesse tempo em que
andou sumido, antes de encontrar o amor loiro de sua vida.

— Eu sei.

— Ele te contou?

— Sim.
— Meu avô não vai contar para ninguém o paradeiro dele, o objetivo de
investigá-lo foi realmente para que você sossegasse seu coração o

reencontrando, mas ele não imaginava que a polícia de três países o procurasse

por terrorismo.

— Três? Ele acha que são quatro.

— Então um país já cansou de procurar por ele. Enfim, que porra que ele
andou aprontando? — Jennifer perguntou calmamente, olhando para Anna.

— Ele admite ter integrado um grupo terrorista turco, mas o motivo dele

estar sendo procurado foi por um atentado num hospital no Sudão, que ele alega
inocência, diz ter sido bode expiatório.

— Hum, então o negócio foi tenso mesmo... Bom, vou te falar com as

palavras que meu avô usou, ok? Temos que conseguir anistia para esse moleque

que gosta de explodir coisas.

— Como se fosse assim simples.

— Não, não é. Mas a “raposada” vai entrar em jogo, porque quando a

revolução começar vão esmiuçar minha vida privada, consequentemente a sua


vida também, consequentemente vão descobrir sobre seu irmão, e ele precisará
estar com a ficha limpa.

— É uma questão política, então.

— Já comecei a trabalhar, baby.


— Eu não sei... Andrew morre de medo de colocar a família em risco,
não sei se vai querer que os Vulpis desenterrem isso.

— É a liberdade dele de volta. Olha só, sei que você acabou de dizer que

estará comigo pro que der e vier, mas digamos que tudo mude, e você mude de

ideia, ou você termine comigo, não estejamos mais juntas, de qualquer forma
vão revirar meu passado e vão encontrar você e seu irmão. Então a verdade é que

algo precisa ser feito, porque provavelmente seu irmão já está em risco, você

está inevitavelmente atrelada a mim.

Anna balançava a cabeça pensativa.

— Vamos esperar, me dê um tempo para assimilar isso tudo, pode ser?

— Claro, meu anjo, relaxa, nada vai acontecer em breve.

Ainda com os cotovelos apoiados nas pernas, Anna passou as mãos pelo

rosto, inquieta. Jennifer a observava.

— Quem diria que no dia que você resolveu embarcar naquele trem com

a gente sua vida seria bagunçada dessa forma, não é mesmo?

— Eu estava quietinha dentro da minha casa, trabalhando honestamente,


com minha taça de vinho, solteira, tranquila, completamente sem planos para os
próximos... Sei lá, dez anos, e você veio para bagunçar tudo. — Anna entrava na

brincadeira.

— De nada.
— Foi uma avalanche de novas informações essa semana.

— É.

— Mas ainda não sei como você se machucou.

Jennifer pegou a mão direita de Anna e passou o braço dela por cima dos
seus ombros, deitando sua cabeça em seu ombro.

— Ainda não.

Anna não insistiria, estava aprendendo que Jennifer tinha seu próprio

tempo para tudo.

— Quer ir ao pub hoje? — Anna a convidou.

***

Chegaram cedo ao pub no centro de Swindon, uma casa escura entre


tantas outras parecidas numa rua úmida típica de subúrbio inglês. O espaço lá

dentro era amplo, com dois ambientes, algumas vigas largas, paredes de madeira

marrom escuras, várias bandeiras do Reino Unido espalhadas pela parede e

alguns letreiros luminosos.

As duas garotas sentaram-se numa pequena mesa mais ao canto, longe do


balcão do bar, que foi se preenchendo no decorrer da noite por figuras não muito

simpáticas.

— Andrew tinha razão, esse pub não é lá muito bem frequentado... —


Jennifer constatava, observando os tipos que circulavam, ora derramando seus
canecos de chope escuro, ora bradando para a TV.

— É... Achei que seria um lugar mais agradável. Meia-noite vamos


embora, pode ser?

— Por mim tá ótimo. Olha aquele lá, de camisa azul, o que está fazendo?

Anna se inclinou para o lado, para enxergar melhor.

— Não olhe. — Anna voltou a sentar-se normalmente em sua cadeira.

— Por quê? — O comando foi seguido exatamente o oposto, Jennifer se

inclinou para frente para ver melhor também.

— Ele está... — Jennifer riu. — Fazendo xixi no vaso de plantas! — Riu

mais ainda.

— E agora olhando para cá. Falei para não olhar.

— Pronto, não está mais olhando. O pessoal aqui é esquisito.

— Estão bêbados, temos que ficar na nossa.

— Pelo menos o chope aqui é bom. — Jennifer dava mais uma olhada

em volta, o lugar era escuro, havia o barulho alto da TV mesclado com o som
sujo de alguma música indecifrável vindo de pequenas caixas de som.

Passaram quase duas horas não fazendo muito mais que bebendo suas

cervejas sem pressa e jogando conversa fora em meio aos ruídos do bar.

— Não gosto do jeito como olham para cá. — Anna estava incomodada.

— Como você disse, continuamos aqui no nosso canto e não teremos


problema.

Anna estava sentada de costas para boa parte do recinto, mas mesmo
assim relanceava os olhos de tempos em tempos ao redor, mexia nas mangas de

seu casaco de couro, observada por Jennifer, à sua frente.

— Vai sentir falta deles, não vai? — Jennifer tentava relaxá-la.

— É... Família, seria bom ter por perto.

— Queria poder levar Marianne na mala. — Jennifer falou prendendo

seu cabelo.

— Nem fale duas vezes, ela iria mesmo. — Anna deu uma olhada já mais

tranquila em Jennifer. — Ela adorou o presente, Eileen disse que não quer tirar

nem para dormir.

— Crianças adoram chapéus.

— Por falar em presente, o seu de aniversário já está encomendado.

— Por que a antecedência? Ah já sei, porque precisava construir, não é

mesmo?

— Construir? — Lançou um olhar confuso.

— Não é uma cobertura em Miami Beach?

— Não foi dessa vez.

— Tudo bem, tenho certeza que também vou gostar.

Jennifer balançou seu caneco vazio e levantou-se.


— Vou buscar o último, quer um também?

— Não, já parei. Eles deveriam ter serviço nas mesas.

— Você está exigindo demais desse lugar. — Saiu sorrindo.

O jogo de futebol na TV já havia acabado há algum tempo e a maioria no


bar agora comemorava ou discutia entre si, num ruído eufórico, acalorados pelo

chope.

Jennifer contornou a aglomeração de mesas e transeuntes e seguiu até o

balcão, num lugar mais vazio ao canto, onde pediu seu último chope. Aguardava

olhando a TV no alto e tamborilando seus dedos sobre a bancada, quando sentiu

uma mão em sua cintura que desceu rapidamente para sua bunda, olhou
assustada para o lado e tirou a mão do seu corpo quase que por reflexo.

— E aí, gatinha.

Pode ver de perto aquele mesmo homem com a camisa de futebol azul do

Chelsea, agora a poucos centímetros do seu rosto e com um sorriso debochado,

os cabelos negros desgrenhados e oleosos, apoiado no balcão com o cotovelo.

Ela apenas deu um pequeno passo para trás com um semblante um pouco
assustado.

— Seu chope, senhorita. — O barman lhe entregou o caneco e ela seguiu

de volta para sua mesa, ou pelo menos tentou.

— Hey, espera, posso te pagar uma bebida? Vamos conversar. — Ele a


cercara, impedindo sua passagem.
— Eu já tenho uma bebida, como pode ver. — Ergueu o caneco e as
sobrancelhas.

Anna nesse momento deu uma olhada para o lado, por cima do ombro e

observou a cena, sem gostar do que viu.

— Por gentileza. — Jennifer tentou novamente seguir até sua mesa, já

sem paciência, e desta vez a passagem foi liberada.

— O que esse cara queria?

— Pagar uma bebida, me encher o saco... Bêbados fazem as mesmas

coisas em todos os países. — Respondeu já sentando de volta.

— Tirando o chope que você gostou, não foi uma boa ideia ter vindo até

aqui, definitivamente. — Anna comentava, incomodada.

— Terminamos esse aqui e partimos. Nem vou insistir para dividir sua
pequena cama comigo hoje, vou te deixar dormir em paz, ok?

— Você fala como se eu odiasse dormir com você.

— Droga. — Jennifer olhou preocupada para frente.

— O que foi?

— Não caia nas provocações deles.

— Ãhn?

— Olá meninas! — O cara com a camisa azul acompanhado de um


colega igualmente bêbado e com ares de folgado já sentava à mesa delas,
puxando duas cadeiras para próximo.

Anna percebeu o que acontecia, olhou para cima com a testa inteiramente
franzida e não acreditava na ousadia daqueles dois, enquanto Jennifer apenas

torcia para que eles logo desistissem delas.

— E então, estão de passagem pela cidade? Posso ser o guia de vocês. —

Falou o de azul, que estava sentado ao lado de Jennifer.

— Não, obrigada. — Jennifer respondeu de bate pronto. Em seguida ele

inclinou-se para o lado e deu uma boa olhada nela, dos pés à cabeça.

— E você, gata, está sem bebida, posso pegar uma para você. — Falou o

outro para Anna.

Anna engoliu em seco, e respondeu.

— Já estávamos de saída.

— É, esse chope aqui foi a saideira, já estamos indo, sério, já estávamos

saindo mesmo. — Jennifer completou.

— Não, duas garotas bonitas como vocês têm que aproveitar a noite, nós
podemos providenciar diversão. — Deu um sorrisinho malicioso. Seu colega,
que parecia um pouco bobalhão, apenas ria.

Anna soltava um pouco a echarpe cinza que envolvia seu pescoço, como
se o ambiente estivesse esquentando, mas na verdade era seu sangue que

começava a ferver, irritada.


— Termine seu chope para irmos. — Anna murmurou, de lado, para
Jennifer.

— Vamos.

— Ah, que isso, fiquem. — Ele se aproximou de Jennifer. — O que acha

de ir para a minha casa, belezinha?

Ele fez menção de colocar a mão no braço de Jennifer, mas parou o

movimento no ar quando ouviu Anna.

— Não ouse.

Olhou assustado para Anna, mas com um sorriso sátiro, duvidando da

autoridade daquela ordem.

— Você é a dona dela, por acaso? Para sua informação, eu já coloquei

minhas mãos nela lá no balcão do bar. Não foi, gata? — E novamente ele
insistiu, dirigindo sua mão na direção do braço de Jennifer.

— Eu falei ‘não ouse’. — Anna bradou já segurando o braço dele, com


força.

E pronto, o pandemônio estava formado. O amigo bobalhão ao ver o


amigo preso pelo braço tentou soltá-lo e acabou levando um murro no meio da

face. Anna puxou o homem da camisa azul para perto e também lhe bateu no
rosto com a mão livre. Porém, eles não eram os únicos com ânimos exaltados

dentro daquele bar obscuro, logo alguém já puxou Anna pelo pescoço e em
segundos boa parte dos frequentadores estavam envolvidos em socos, pontapés,
cadeiradas e garrafadas, sem contar os arremessos de canecos, garrafas e

bêbados sobre as mesas e balcão, algo digno de um filme de ação mal dirigido.

— Fique aqui no canto! — Foi a única coisa que Anna falou antes de

sumir.

Jennifer apenas desviava-se do que vinha em sua direção, não queria

entrar naquele bolo humano desvairado, e procurava por Anna. Dali, atrás de
uma das poucas mesas ainda no lugar, assistia aqueles homens com expressões

raivosas, suados, extravasando álcool, futebol e testosterona, alguns já

sangrando, em meio ao ambiente mal iluminado e repleto de fumaça de cigarro,

com vozes, urros e todo tipo de ruído.

Finalmente a localizou e percebeu o que ela estava fazendo. Não estava

brigando com ninguém, não batia em ninguém, nem apanhava, apesar de estar

no meio da confusão. Anna olhava atentamente em volta, como se estivesse

numa caçada. Estava procurando alguém.

— Ah fala sério... — Jennifer suspirou para si.

Desviando de tudo e todos, Jennifer conseguiu chegar até ela abaixada e

a puxou pela perna.

— Anna! Vamos embora!

— Ainda não. Saia daqui do meio, vá para o carro.

— Que porra você quer aqui?? Vamos embora!


— Vá para o carro, já vou também. — Terminou de falar e deu algumas
passadas apressadas na direção do balcão.

Jennifer hesitou, mas foi atrás dela. Como num jogo de futebol

americano, precisou desviar-se de algumas pessoas engalfinhadas, um caneco

passou voando a poucos centímetros do seu rosto. Conseguiu chegar a tempo de


ver Anna erguendo uma cadeira de madeira e a acertando nas costas do homem

com a camisa azul do Chelsea. Logo em seguida o seu colega bobalhão, que de

bobalhão naquele momento não tinha mais nada, acertou uma garrafa quadrada,

transparente, na cabeça de Anna por trás, a derrubando no chão.

Jennifer correu até ela, não sem antes dar um soco e uma cotovelada no

rosto do amigo bobalhão, arrancando um pouco de sangue do seu nariz. Anna

estava desacordada, caída de lado.

— Acorda, Anna! Temos que sair desse inferno! — A virou para cima,

dava tapinhas no seu rosto tentando acordá-la.

— Por favor, acorde... — Olhou para os lados, como se procurando

alguma solução milagrosa para aquela situação.

— Como vou te tirar daqui? — Afastou o cabelo caído sobre o rosto


dela.

Tentou erguê-la e arrastá-la, havia pessoas brigando à sua frente,


cadeiras, mesas.

— Que merda, por que você tem que ser tão grande?
— Deixe comigo.

Jennifer levantou a cabeça assustada e viu um homem passar seus braços


por baixo do corpo Anna. Ele era alto e com bom porte, de cabelos loiros

compridos e olhos claros.

— Ok. — Foi o que ela balbuciou enquanto ele a erguia com facilidade.

— Estão de carro?

— Sim, aqui perto.

Atravessaram rapidamente o recinto, Jennifer os seguiu, os usando como


escudo naquela bagunça.

— Ali, aquele branco. — Apontou para o carro de Andrew, já do lado de

fora do bar.

Jennifer correu até a porta, a abrindo. Com cuidado, o homem deitou

Anna no banco, ainda desacordada.

— Eu conheço você? — Jennifer perguntava, intrigada com o homem

solícito.

— O quê? — Ele estava parcialmente dentro do carro, verificando o


ferimento na cabeça de Anna.

— Você sabe se tem algum hospital aqui perto?

Ele então desceu do carro e a fitou.

— Não vai precisar de hospital, foi de leve, daqui a pouco ela acorda.
— Você é médico?

— Não, mas eu sei do que estou falando.

Jennifer o olhava intrigada.

— Você por acaso tem algum irmão?

— Ãhn? Tenho, por quê?

— Nada... Deixe eu vê-la. — Jennifer falou entrando no carro e dando

uma examinada em Anna. Parecia bem, respirava com facilidade.

— Só está desmaiada, mas vocês deveriam evitar se meter nesse tipo de

confusão, da próxima vocês podem não ter tanta sorte, ou eu posso não estar por

perto.

— Mas quem é você?

Jennifer virou-se saindo do carro, mas o homem já havia ido embora.

Ainda deu uma olhada nos arredores, pela rua, mas nem sinal dele. Entrou no

carro, tirou seu casaco, dobrou e colocou embaixo da cabeça dela, acomodou

Anna de forma mais confortável no banco e fechou sua jaqueta.

— Andrew vai me matar se eu chegar com você assim em casa, baby...


Ele já não gosta de mim. — Conversava sozinha, enquanto passava sua mão na

testa suada de Anna. — Você vai acordar logo. Não vai?

Enxergou no início da rua um carro da polícia com suas luzes ligadas


vindo na direção do pub, achou que era hora de sair dali. Deu partida no carro e
iniciou a volta para a fazenda, de olho em Anna.

Alguns minutos já na estrada reparou numa garrafa plástica de água


mineral na lateral da sua porta, não pensou duas vezes, segurou a garrafa com as

pernas, girou a tampa, e despejou na cabeça da sua passageira.

— O que foi isso? — Foram as primeiras palavras de Anna.

— Finalmente! — Jennifer falou aliviada e sorridente.

— Você jogou água em mim? — Anna esfregava as mãos no rosto e nos

olhos, e depois passou a mão nos cabelos, jogando para trás.

— Você estava desacordada. A água funcionou. Como se sente?

Como se lembrando do ocorrido, colocou a mão na nuca com uma feição

de dor.

— Minha cabeça.

— Está doendo muito?

— Um pouco. O que aconteceu? Onde estamos?

— Estamos voltando para casa. Não lembra o que aconteceu?

— Acho que algo me atingiu por trás.

— Foi uma garrafa de tequila, ainda bem que estava quase vazia.

Anna a olhou.

— O que foi? Não gosto de desperdício.


Com os olhos fechados, voltou a pousar a cabeça no casaco dobrado de
Jennifer, que estava no encosto do banco.

— Quer ir num médico, farmácia, veterinário, ou sei lá, quer ver sua

cabeça?

— Vou ficar bem.

— Daqui a pouco chegamos em casa, tenho analgésicos na mala. —

Jennifer falou segurando sua mão.

Anna inclinou um pouco a cabeça para o lado, a olhando.

— Analgésicos normais. — Jennifer completou.

— Eu sei. — Enxugou mais um pouco os olhos. — Como eu saí de lá?

— Um cara bonzinho nos ajudou.

— Que cara bonzinho? — Voltou a deixar sua cabeça pender para o lado,

fitando Jennifer.

— Eu não sei, eu estava tentando te arrastar para fora, sem sucesso,

lógico, e ele chegou e nos salvou, assim, do nada. Te carregou até o carro.

Anna franziu as sobrancelhas.

— Que estranho.

— É.

— Ele falou quem era?


— Não, mas acho que o cara que nos ajudou era Vulpi, senti algo, umas
vibrações, sei lá.

— Ah é?

— Meu faro está melhorando.

— Bom, eu estava completamente apagada, não faço ideia de como ele

seja.

— Não sei... Tem algo nele que está me intrigando. Mas você vai zombar

de mim.

— O quê? — Anna passava a mão na testa, com um semblante dolorido.

— Não, deixa pra lá.

— Diga logo, Jennifer.

— Acho que ele é o Thor.

— Que Thor?

— O Thor... Thor. — Falou meio encabulada.

— O Thor... Super-herói?

— É.

— O Thor... De Asgard? Irmão do Loki?

— É.

— E o Thor é Vulpi.
— Aparentemente sim.

— Ok.

— Viu, era besteira.

— Só para deixar claro, quem levou a pancada na cabeça fui eu, certo?
Ou você também levou?

— Sabia que você ia zombar.

— Por que eu não acreditaria? É algo tão plausível.

— Mas parecia com ele.

— Hum. Cabelos loiros compridos, olhos azuis, barba?

— Sim, mas não tinha barba, o Thor dos quadrinhos nem sempre usou

barba, só o do cinema.

— Ah certo. Talvez ele seja amigo dos duendes que nos atacaram
naquela floresta na Escócia.

Jennifer olhava agora apreensiva pelos retrovisores e não prestava mais

atenção na conversa.

— Esse cara bonzinho também usava uma capa vermelha e... Hey, o que
foi isso? — Anna assustou-se com uma manobra defensiva que Jennifer fez com

o carro.

— Tem um carro tentando nos tirar da estrada!

Jennifer olhou pela janela do seu lado e viu uma caminhonete grande,
preta, pareada com elas e reconheceu o motorista: o cara com a camisa azul do

Chelsea.

— Quem é??

— Seu desafeto do bar.

— O que você vai fazer?

— Deixe comigo. — Jennifer segurou firme o volante com ambas as

mãos e olhava para frente, determinada, olhando às vezes de relance para o lado.

Ela acelerava cada vez mais e o carro ao lado correspondia, a empurrava


lentamente para a borda da rodovia. Jennifer estendeu os braços firmemente no

volante e deu um giro rápido, fazendo com que a lateral de sua pick-up batesse

na lateral do outro carro, o empurrando e fazendo um estrondo. Mas ele voltou

para a estrada.

— Você vai acabar com o carro!

— Vou acabar com eles. — Era a vez de Jennifer ficar irritada naquela
noite.

Seguiram emparelhados até um cruzamento, acabaram não pegando


nenhuma das duas estradas, subiram o meio fio e andaram por algumas centenas

de metros sobre uma área de terra, aos solavancos. Jennifer cortou a frente deles
e tomou uma estrada asfaltada, mas foi seguida e logo o carro preto já estava ao

seu lado novamente.


Jennifer empurrou o carro para o lado, batendo lateral com lateral, podia
se ouvir o ranger alto das latarias dos carros em contato, disputando o mesmo

espaço. Ela sentia o volante vibrando, segurava com força e temia que o carro

desgovernasse.

— Pare o carro! — O cara de azul gritou.

— Me pare se for capaz, seu filho da puta!

— Eu quero terminar o que eu e sua amiga começamos no bar!

— Eu acho que... — Anna tentava falar algo com Jennifer.

— Não, agora o negócio é comigo, cuide de sua cabeça. — Jennifer a

interrompeu.

— Ela já acordou? — Ele gargalhou após gritar de dentro de seu carro.

— Por que você não vai dar sua bunda para esse seu amiguinho aí do

lado?

Assim que terminou de falar Jennifer enfiou o pé no acelerador com

raiva, girou o volante para fora da estrada e em seguida para dentro, dando um
balão e encurralando o carro deles, batendo na quina do para-choque dianteiro,
fazendo com que a caminhonete deles saísse da estrada, capotando. Seu carro

também saiu da estrada, as rodas travaram, mas conseguiu conduzi-lo de volta.


Elas ainda ziguezaguearam pelo asfalto até Jennifer recuperar o controle do

veículo, mas pode ver pelo retrovisor, com uma alegria maldosa, o grande carro
preto com as rodas ainda girando no ar, ficando para trás.
Jennifer enfim olhou para Anna, que estava pálida, apavorada, parecia
que havia prendido a respiração durante toda a aventura. Enquanto ela era o

retrato fiel da excitação e euforia.

— Viu, é assim que se termina uma briga! — Comemorava esfuziante.

— Vi...

— Você está bem?

— Estou, bem melhor que eles, isso que importa.

— Sinto muito pelo carro.

— Depois eu cuido disso.

— Pelo menos conseguiremos chegar em casa com ele.

Anna olhava pelos vidros, se orientando.

— Ãhn... Acho que não estamos indo para casa.

— Onde estamos?

— Não faço ideia.

— Oh merda... Nos perdemos naquele cruzamento. — Falou já freando

bruscamente.

Chegaram na fazenda duas horas depois, fazendo o mínimo de barulho


para não acordar o restante da casa. A noite havia sido longa e extenuante,
tomaram um banho e logo foram para o quarto.
— Dê uma olha na minha cabeça, aqui atrás, veja se é apenas água. —
Anna falou baixinho, sentada em sua cama.

— Tenho uma boa e uma má notícia. A má é que não é água, é sangue. A

boa é que não consigo enxergar seu cérebro, nem seu crânio. — Pegou um lenço

em sua mala e colocou embaixo da cabeça de Anna. — Não está mais


sangrando, mas deixe aí.

— O corte é grande?

— Não, uns três centímetros. Eu lembro de ter lido uma vez na escola um

livreto que falava sobre o que fazer em caso de uma pancada na cabeça.

Jennifer ficou olhando pensativa para cima.

— E?

— E estou tentando lembrar o que dizia.

— Ah, claro, mas não se apresse.

— Acho que você não pode dormir.

— Mas estou com sono.

— E não pode manobrar máquinas pesadas. Ou essa era a bula do meu

remédio para rinite? Não lembro.

— Ok, eu estou bem, só um pouco zonza, mas não foi nada demais, eu só
queria ver até onde você ia.

— Thor falou que foi de leve.


— Claro que Thor entende disso.

— Ele disse que entende.

— Eu vou dormir, tá bom? — Falou já entrando debaixo das cobertas e


se deitando, Jennifer permanecia sentada na beirada da cama, a fitando.

— As coisas terminaram assim por causa da sua teimosia. — Falou séria.

— Nada a ver.

— Por causa da sua insistência em bater no cara que me cantou e passou

a mão na minha bunda.

— Ele passou??

— Viu? É disso que estou falando!

— Eu não poderia deixar o cara que passou a mão na bunda da minha


namorada viver para contar a história.

— Em que século você vive, John Wayne? Por que não fizeram um duelo

em frente ao bar?

— Como? Nem tínhamos armas.

— Eu estava brincando.

— Ah tá.

Jennifer balançou a cabeça para os lados, e levantou-se, já subindo para


sua cama.
— Espera, venha cá, quero te perguntar uma coisa. — Anna a puxou pela
mão.

— Diga.

— Ele tinha um martelo? — Anna riu ao terminar a pergunta.

Jennifer sacudiu a cabeça e subiu para a cama.

— Volte...

— Boa noite, Anna. — Jennifer respondeu já se cobrindo.

— Me desculpe.

Um silêncio sepulcral seguiu-se.

— Vem cá, amor.

E nada.

— Pequeno castor?

Alguns segundos depois a cama de cima movimentou-se, Jennifer

desceu, Anna sorriu e levantou as cobertas, para que se juntasse a ela no pequeno
espaço.

— A cabeça ainda dói? — Jennifer perguntou, aninhando-se sobre o


braço e o corpo de Anna.

— Quase nada. — Deu um beijo demorado em sua testa.

— Não se meta em confusão por minha causa.


— Tentarei. Me desculpe por ter ido atrás daquele imbecil.

— Da próxima vez apenas ignore.

— Eu sei, prometo tentar ter mais sangue frio nesses momentos.

Silêncio.

— E talvez super-heróis existam. — Jennifer voltou a falar.

— É possível, sim.

— Você é uma.

— Bom, daí tenho minhas dúvidas.

Jennifer mantinha um olhar baixo, preocupado, acompanhava seus dedos

correndo pela pele de Anna, do pescoço até o início dos seus seios.

— Não corra riscos desnecessários, meu amor.

— Por que está dizendo isso? — Anna percebeu um tom de voz

diferente.

Ela esperou uns segundos antes de responder.

— Estavam roubando sangue de um híbrido.

— Onde? Dentro do pub?

— Não, não hoje. Na Escócia.

— Você viu?

— Eu tentei impedir.
Anna começava a entender.

— Seu machucado...

— Eu e meus primos saímos para jantar em outro bairro, foi na sexta-


feira. Quando estávamos indo buscar o carro eu ouvi algo acontecendo num beco

próximo ao restaurante, alguma confusão, parecia alguém pedindo ajuda, claro

que eu fui ver o que era.

— Não seria a Jennifer que eu conheço se você não fosse.

— Exato. Meus primos não queriam que eu fosse, mas fui mesmo assim,

Hugh acabou me acompanhando, colocamos a cabeça para dentro do beco e

bom... Eu vi o que faziam, entendi na hora, eram dois Titans contra um híbrido,
não sei se iam matá-lo, mas de qualquer forma eu não poderia deixar que

continuassem.

Anna apenas assimilou com a cabeça.

— Hugh sabe lutar, sabia? Eu não sabia disso. E anda armado.

— Por que ele anda armado?

— Também não sei. Mas ele me surpreendeu, não precisamos de muito


esforço para colocar os caras para correr, eu só levei um chute nas costelas e ele

um soco na boca. Depois levamos o híbrido para o hospital, ele ficou bem.

— Como sabe?

— Ligamos para o hospital no dia seguinte, logo teve alta.


— Então essas coisas ainda acontecem.

— Era por isso que não queria te contar, se você não tivesse visto o
hematoma eu não te contaria, porque só fomentaria ainda mais esse seu pânico.

— Que não é infundado.

— Não, não é, mas você é uma garota esperta, valente, sabe se defender.

E não está sozinha.

— Esse sangue é uma maldição.

— Não fale assim.

Anna passou seus dois braços ao redor de Jennifer, a envolvendo mais, a

puxando para si.

— Sobre super-heróis, acho que você tem razão... Eles existem e você

também é um deles.

Jennifer deu um sorriso torto.

— O dia já está clareando.

— Está... — Anna respondeu já quase vencida pelo sono.

Algumas batidas na porta interromperam aquele final de conversa


sonolento.

— Anna?? Anna, o que foi aquilo no meu carro?? — Andrew bradava do


outro lado da porta.
Capítulo 33 - Laranja

— O que você disse para seu irmão, sobre o carro? — Jennifer e Anna

aguardavam as malas na esteira do aeroporto, já em Bridgeport.

— Que foi um acidente, um carro furou o sinal e nos pegou, justificou

inclusive o corte que eu tinha no lábio.

— Ele acreditou?

— Sou boa com desculpas.

— Que bom. Quer dizer... — Franziu a testa a fitando. — Quer dizer que

você é boa em inventar desculpas? Bom saber.

Anna apenas segurou um risinho.

— Vou comprar um carro novo para ele.

— Você também bateu o meu carro, naquele dia que me levou ao

hospital.

— Sua mala chegou, vá buscar.

— Pronto, a minha e a sua mala, vamos lá fora procurar táxis.

— Quer ir para minha casa?

Jennifer não resistiu, acabou dando uma risada abafada.

— Quanta diferença, não? Da última vez que voltamos da Europa você

nem aceitou dividir o táxi comigo.


Anna balançou a cabeça uma vez, fitando o chão.

— Você veio falando o nome de sua ex-namorada enquanto dormia e eu


havia levado uma flechada na bunda, não estava num dos meus melhores dias.

— Deveria ter mandado eu calar a boca.

— Eu mandei. Educadamente.

— Vamos, tudo o que eu quero é um banho quente, uma cama bem

grande, e uma boa noite de sono. E você no meio disso tudo.

— Exceto na noite de sono.

— Nos meus sonhos, oras. — Falou já arrastando as malas pelo

aeroporto. — Aqui, tome seu chapéu, tia Anna.

***

— Becca? Você está aí? —

Jennifer batia com insistência na porta de sua vizinha no dia seguinte,

mas nada acontecia. Desistiu, adentrou seu pequeno apartamento, largou tudo

pelo chão e foi logo abrindo todas as janelas e cortinas, gostava de tudo arejado,
às claras. Pousou as mãos no parapeito da janela da sala, era uma tarde de
quarta-feira, um meio de tarde, se pôs a observar uma máquina escavadeira

amarela abrindo um buraco na calçada em frente ao prédio vizinho, fazendo


aquele ruído forte quando a concha subia ou descia, seguidos de bip bip quando

a máquina se deslocava, e na cabine um homem pequeno, magro, com um boné


que parecia maior que sua cabeça.

Naquele exato momento sentia-se tão segura de si, ali dentro de sua casa,
como se soubesse enfim seu papel dentro do filme da sua vida. Como o papel

daquela máquina na obra que estava sendo feita na rua naquele dia, parte de

algo, como a máquina, como o operador da máquina, ela era parte de algo, de
vários algos, riu quando pensou nessa palavra, algos.

Em menos de uma semana seria seu aniversário, talvez fosse uma data

simbólica de diferentes formas naquele ano. Sentia-se tão adulta, crescida, nunca

havia pensado tanto no futuro quanto nos últimos meses, nunca havia sequer

pensado no futuro! Deu-se conta. Agora observava a máquina empacada em uma

pedra ou algo do tipo, lembrou que havia até mesmo falado uma palavra que

provavelmente nunca pronunciara outrora: Casamento. A não ser quando falava


sobre o casamento de seus pais, porque sim, para ela casamento era algo que pais

faziam, não ela, ela não casava, ela sequer namorava, ela só ficava, esse era seu

único verbo praticado, Helen havia sido sua única exceção. E agora Anna.

— Anna... — Sorriu quando percebeu que pensou em voz alta o nome


dela.

Foi até a cozinha, pegou uma jarra na geladeira e encheu um copo com
água, ligou o aparelho de som e se atirou no sofá, bebeu um grande gole e

segurava o copo em cima do seu peito.

Sorriu novamente quando sentiu o gosto dela ainda em sua boca. Tirou o
elástico que prendia seu cabelo e deitou a cabeça no encosto do sofá. Prestou

atenção na música, era uma velha canção do Fleetwood Mac, Landslide.

Bem, eu estava com medo de mudar

Porque construí minha vida ao seu redor

Mas o tempo traz coragem, até mesmo as crianças envelhecem

E eu envelheço também

— Nada como o tempo... — Murmurou. E sentiu-se crescida.

Ela estava agora comparando como havia levado tempo para conseguir

enfim ter Anna, por mais que ela odiasse esse termo, ‘ter’, porque Anna não era

sua propriedade, ninguém era propriedade de ninguém, e suas demonstrações

excessivas de ciúmes era algo extremamente incômodo para Jennifer.

Os olhos pesaram, resquício do cansaço da viagem do dia anterior. A

noite também não havia corrido como planejado, desejara uma longa noite de

sono, dormir e dormir. Mas aquelas duas apenas caíram de fato no sono tarde na
madrugada, como haviam respeitado o lar doce lar de Andrew e os pequenos

leitos onde passaram uma semana, a noite anterior havia sido de sexo.

Jennifer adormeceu com um copo cheio de água sobre seu abdome,

dormiu profundamente por algumas horas até despertar com sua porta se abrindo
e a claridade incomodando suas vistas.

— Isso é hora de dormir? — Anna falou dando um tapinha nos seus pés
descalços, que estavam para fora do sofá.

— E isso tudo é saudade? — Falou se sentando com a maior preguiça do


mundo, esfregando os olhos.

— Anda, se arrume.

— Para?

— Vamos ao pub.

— Fazer o que lá, limpar? Assaltar?

— Ha-ha, que engraçado. — Falou sentando-se ao seu lado no sofá, e

tascando um beijo.

— Hoje o pub não abre, é quarta-feira. — Jennifer percebia uma luz

rosada vindo pela janela, já era noite ,mas parecia um pôr do sol congelado.

— Pois hoje irá abrir e vai tocar uma banda legal lá.

— Como sabe?

— Fiquei sabendo através de uma pessoa da banda.

— Quê? — Jennifer ainda estava meio sonolenta.

— Tome um banho para acordar, se vista, a banda começa em uma hora.

— Mas é cedo ainda.

— Não, são nove horas.

— Putz, dormi isso tudo? Espera, você cortou o cabelo? Que luz é essa?
— Olhou para a janela.

— Vai lá tomar banho, Jennifer. — Tomou o controle que estava debaixo


dela e ligou a TV.

— Já vou. — Coçou os olhos de novo.

Minutos depois já estavam no pub, conforme prometido por Anna, estava

funcionando normalmente, mas não muito cheio, alguns poucos frequentadores

espalhados pelas mesas mais dos cantos.

— Você convidou mais alguém? — Jennifer perguntou assim que Anna

chegou trazendo dois chopes para a mesa delas.

— Não, pensei em termos uma noite só nossa.

— Ah tá... Queria resolver as coisas com Becca, bati na porta dela hoje,

mas ninguém atendeu... Não sei se não estava, ou se não quis abrir para mim. —
Falava cabisbaixa, chateada.

— Resolver o que com Becca?

— Como assim? Aquele lance com Jim, no seu aniversário, não lembra?

— Ah, isso é besteira.

Jennifer olhou para Anna com uma sobrancelha baixada, a estava


achando um tanto estranha, mas resolveu relaxar. — Carpe noctem! — Pensou.

Aproximou sua cadeira da dela, segurou com carinho uma de suas mãos
e deu alguns beijos em seu pescoço.
— Adoro quando você usa esse perfume.

— Eu sei... — Anna sorriu com malícia.

— Sua mão está suada, tipo, muito suada. — Jennifer estranhou, olhando
para as mãos de Anna.

— Normal.

— Não, não é normal, você parece tensa, está ansiosa com alguma coisa?

— Eu? Não, claro que não, por que estaria?

— Não sei, mas você sabe que pode me falar qualquer coisa não sabe?

— Claro que sei.

— Então...

Nesse momento a banda começou a tocar no palco, atraindo a atenção de

todos, inclusive de Jennifer, que virou-se para dar uma olhada e imediatamente
reconheceu a baixista: Laura.

Jennifer abriu um sorriso largo e balançou a cabeça.

— Foi através dela que você soube do show? — Perguntou.

— Foi sim. — Respondeu e deu um longo gole em seu caneco.

Agora ela estava confusa, a fitava tentando decifrá-la, Anna teria


planejado aquilo? Novamente pensou com seus botões da sua jaqueta marrom:
— Ok, vamos aproveitar a noite.
— Gostei do som deles. — Jennifer comentou, após algumas músicas.

— É... Nada mal. É mais o seu estilo, não?

— Você conhece meu estilo?

— Você subestima meu poder de observação. — Sorriu a fitando. —


Vem cá. — Anna a trouxe para perto, com o dedo aproximou seu queixou até

seus lábios e a beijou sem pressa.

— Melhor quando o pub está assim vazio, não? — Anna sussurrou.

— Ahan... Você fica com menos reservas.

Algum tempo depois, e chopes e músicas também, Jennifer foi ao

banheiro, entrou numa das cabines e novamente estranhou aquela luz laranja que

entrava pela pequena janela basculante no alto. Ficou algum tempo ali olhando

na direção da janela, até enfim aliviar-se. Ao terminar, não conseguiu abrir a


porta, a tranca de ferro simplesmente não queria deslizar mais, empurrava, dava

pequenas pancadas, tentava com jeito, com força e nada. Parou e ficou apenas

olhando a pequena maçaneta prateada, tentou deslizar a haste metálica, sem

tocá-la, e a haste deslizou, abrindo a porta. Saiu de lá e encontrou sua amiga


policial já sentada na mesa, conversando com Anna.

— Eu amo aquela música do Strokes que vocês tocaram. — Jennifer

falou ao sentar-se.

— Reptilia? Também gosto, eles sempre querem tirar, eu que insisto em


manter no setlist. — Laura respondeu de forma simpática.
— Laura estava me contando que coleciona facas, veja só! — Anna
falou.

— Sério? Nossa, faca é o que não falta na casa de Anna, você precisa ver.

— Jennifer respondeu sorridente, mas então se deu conta do que havia falado e

mudou de expressão, na verdade se deu conta da sugestão implícita que havia


acabado de fazer.

Não foi preciso mais do que meia hora de conversa para que a sugestão

implícita de Jennifer se tornasse realidade, as três já estavam na portaria do pub,

prestes a pagarem suas comandas.

— Meninas, vou lá dentro me despedir do pessoal da banda, e vou logo

atrás de vocês, certo?

— Combinado, siga a nossa moto. — Anna completou.

Laura as acompanhou até a casa de Anna.

Após pagarem suas contas, as duas saíram juntas pela porta da frente,

Anna foi até a moto, estacionada quase em frente.

— Que céu estranho é esse hoje? Porque não está preto como todas as
noites? Essa luz laranja... — Jennifer olhava para o alto, devaneando, depois foi
até a moto.

Anna entregou o capacete a Jennifer e a olhou em seguida.

— Você está bem? — Anna perguntou.


Jennifer passou a encará-la também e deu um sorriso meio inseguro.

— Você tem certeza que quer isso? É que... Você parecia tão irredutível
há alguns dias quando toquei nesse assunto, você está estranha hoje.

— Bom, agora quero, e a ideia foi sua.

— Eu sei, eu sei... E só que... Ok, vamos lá. — Colocou seu capacete e

montou na moto.

Logo que chegaram na casa de Anna e tiravam o capacete, um par de

faróis as iluminou, o carro parou ao lado da moto e desligou o motor.

As três entraram na casa, largaram os capacetes e bolsas. Logo Jennifer

levou Laura até as paredes da sala onde haviam algumas espadas penduradas e

um aparador com adagas arrumadas lado a lado, Anna seguiu logo atrás.

— Você que fez isso tudo? — Laura questionou, ajeitando os óculos.

— Hum... Não, algumas. Meu pai fez a maioria. Essa aqui, com a águia,

fui eu que fiz. — Anna falou lhe mostrando uma adaga com o cabo rico em
detalhes, prata.

— Com suas próprias mãos?

— Uhum.

— Que garota talentosa. — Falou em tom de brincadeira, fitando Anna.

Jennifer caminhou até a cozinha.

— Querem beber algo? Temos vinho, cerveja, champanhe, na verdade


acho que é espumante...

— Espumante! — Laura bradou da sala.

Quando Jennifer saiu da cozinha não as encontrou, já haviam subido para


o quarto. Com a garrafa e alguns copos em mãos, Jennifer subiu rapidamente as

escadas e as encontrou se beijando de pé, ao lado da cama. Ficou sem reação por

um instante, atônita, mas então largou a garrafa em cima de uma cômoda e partiu
também para o ataque.

Pararam o beijo e Anna começou a beijar Jennifer, enquanto isso Laura

pegou a garrafa na cômoda, deu um gole e a deixou no criado mudo ao lado da


cama, tirou sua calça e sua blusa. Jennifer também tirou sua própria blusa,

sentou-se e puxou Anna para a cama, a derrubando para cima de si.

Laura se aproximou de joelhos ao lado delas e tirou a camisa de Anna,

que levou um certo susto com o gesto dela. Jennifer tratou logo de abrir a calça

de Anna e deixou que Laura terminasse o serviço, enquanto tirava sua própria
calça.

Logo as três já estavam seminuas em cima da grande cama, Jennifer

deitada via as duas se beijando acima delas, como se esperando sua vez num
cruzamento, apenas as olhava. Resolveu interferir e roubou os lábios de Laura
para ela, deslizando suas mãos pelo corpo dela. Sem entender direito como

aquele movimento foi feito, Laura girou para cima de Anna e a beijou. Laura
desceu os beijos pelo pescoço, seios, abdome, e tirou a calcinha de Anna.
— Vem cá. — Anna sussurrou para Jennifer.

Se aproximou e começou a beijá-la, ao seu lado.

— Quem ligou o som? — Jennifer interrompeu o beijo e perguntou com


a testa franzida, ouvia alguma música dos Rolling Stones tocando no ambiente.

Anna a puxou pela nuca e voltou a beijá-la, mas logo Laura subira e

interrompera o beijo tomando os lábios de Anna para si, Jennifer a via se

movimentando de forma sensual em cima de sua namorada e desceu suas mãos

entre as pernas dela.

Jennifer novamente ao lado, observou Laura introduzindo seus dedos em

Anna enquanto a beijava, um furor lhe subiu à cabeça.

— Não, chega! Não quero mais! Para!!

Jennifer acordou com o copo d’água derramando-se completamente


sobre si no sofá. Sentou-se, assustada e ofegante, tirou a camiseta molhada e

atirou no chão. Olhou para o lado e viu a luz alaranjada do sol entrando pela sua

janela naquele final de tarde.

— Puta que o pariu. — Bradou para si, atordoada.

Passou as mãos pelo rosto, as imagens do sonho ainda rondavam sua

mente, a perturbando. Minutos depois seu celular tocou em cima da mesa, ela
correu para atender.

— Alô? — Falou afoita.


— Oi, meu anjo, que alô desesperado foi esse?

— Oi, Anna.

— Você está bem?

— É... Estou. É que estou... Meio que brava com você agora.

— Ah, tá. Ok, então. E posso saber o que eu fiz ou é confidencial?

— Não é bem com você...

— Era para eu estar entendendo?

— Olha só, eu não quero que façamos sexo a três com a Laura.

— Hey, hey, essa conversa evoluiu rápido demais, acho que perdi alguma

coisa.

— Parecia mais legal quando eu imaginei, mas no sonho não foi legal.

— Ah, entendi.

— Não faremos, ok? — Jennifer insistia.

— Eu nunca dividiria você com ninguém. — Anna falou com uma voz
calma.

— Mas você gostaria de ir para a cama com Laura, não gostaria?

— Eu tive oportunidade de ir para a cama com ela quando estava solteira


e não fui, isso não diz nada para você?

— É... Talvez eu tenha me enganado.


— Eu estou com a única mulher que me interessa, já falei isso.

— Eu sei, foi idiotice minha.

— E então, Becca estava em casa? Conseguiu conversar com ela?

— Anna?

— Sim?

— Eu te amo, sabia?

Jennifer pode sentir Anna sorrindo do outro lado da linha.

— Não estava brava comigo?

***

Anna ouviu uma freada brusca em frente à sua casa naquela terça-feira de

manhã e foi para fora ver quem era.

— Nossa, que carrão, de quem é?

Jennifer saltou de um grande carro SUV preto, novo.

— Meu! Presente de aniversário do meu avô!

— Aniversário? Quando é seu aniversário? Acho que é por esses dias,


não é? — Falou rindo. — Venha cá.

Anna a abraçou com carinho, a envolvendo de forma apertada.

— Feliz aniversário, meu amor. — Sussurrou ainda a enlaçando.

— Quer dar uma volta?


— Podemos ir no Centro buscar seu presente?

— Claro. Quer dirigir?

Anna sorriu.

— Boa tentativa.

Estacionaram o carro próximo à ponte no Centro e seguiram para um


café próximo, um lugar agradável construído há pouco tempo.

— Já conhecia o lugar? — Anna perguntou ao sentar-se numa das

pequenas mesas redondas.

Jennifer deu uma olhada ao redor, viu os quadros que remetiam ao clima

campestre, e claro, o balcão das guloseimas.

— Não, nem sabia da existência, para ser sincera.

A atendente aproximou-se da mesa delas com papel e caneta em punho,

uma mulher alta, com grandes lábios vermelhos, sorridente.

— Anna? Olá moça, quanto tempo! Como você tem passado? — Falou

com excesso de simpatia, pegando Jennifer de surpresa, que a encarou.

— Tudo em paz, e você?

— Tudo ótimo querida, então, o que vão pedir?

— Um latte para mim, e você...

— Para mim também. — Jennifer completou, ainda a encarando.


— É pra já!

— Quer pedir um pedaço de torta? A ocasião pede. — Anna falou já


folheando o cardápio, sem pressa. Jennifer passou a folhear o cardápio também.

Em dois minutos a solícita garçonete trazia a bandeja com as duas xícaras e as

servia, lançando um olhar para Anna que Jennifer queria interpretar como
corriqueiro, mas não conseguia.

— Prontinho. Querem pedir algo mais?

Anna continuava folheando, Jennifer a olhou, viu um pequeno crachá

metálico pendurado na alça do seu avental, onde pode ler o nome da moça.

— Sharon??

— Pois não?

— Sharon... Hum... Você teria... Cupcakes?

— Claro, alguma preferência?

— Algum com morangos.

— Temos morango com creme de avelãs ou com creme de baunilha. —


Relanceava os olhos para Anna.

— Creme de avelãs.

— Ok, anotado, e você?

— Hum, eu ainda estou escolhendo. — Anna respondeu sem tirar os


olhos do cardápio.
Jennifer apoiou o queixo na sua mão, de lado, fitando Anna com ares
desconfiados.

— Você conhece essa moça?

— Sim, só de vista.

— Ele é híbrida, não é?

— É sim. Acho que vou pegar uma fatia dessa torta aqui, o que acha?

Morrerei de diabetes? — Sorriu, apontando para um item no cardápio.

— Talvez, acho que você já está com açúcar demais.

O nome Sharon não era coincidência, Jennifer já estava convencida

disso.

— Aqui, seu cupcake de morango com creme de baunilha.

— Eu pedi creme de avelãs. — Sharon saiu para trocar o bolinho.

Pouco depois, já terminadas suas refeições, Anna interrompeu a conversa

e deu uma olhada através da vidraça da cafeteria, com um ar preocupado.

— O que foi, o que viu lá fora?

— Isso está estranho... Tem já algumas semanas que tenho a impressão


que me observam e isso só acontece quando estou aqui no Centro.

— Percebeu algo agora?

— Sim, tenho quase certeza que tinha dois homens nos olhando, lá

próximo da ponte.
Jennifer passou a olhar para o mesmo ponto, procurando por alguma
movimentação suspeita.

— Quem poderia ser?

— Não faço ideia.

— Você tem tantos desafetos assim? — Jennifer sorriu.

— Ou eu posso estar ficando paranoica.

— Não tem dedo do meu avô nisso, já vou avisando.

— Eu sei, deixa pra lá, não deve ser nada.

— Mas é bom ficarmos mais atentas.

— Sempre. Olha só, você quer ficar aqui enquanto vou lá na loja do Max

buscar seu presente?

— Pode ser.

— Não vou demorar.

— Então meninas, vão querer mais alguma coisa? — A garçonete


aproximou-se da mesa delas.

— Sharon, certo? Sharon, é a quarta vez que você nos pergunta isso.
Não, não queremos mais nada no momento.

Anna a olhou assustada, já se levantando, esperou Sharon sair e


cochichou no ouvido de Jennifer.
— Desde quando você é grossa?

— Meu presente, vá lá buscar. — Deu um tapinha na bunda dela e sorriu.

A loja de Max ficava na mesma rua, a dois quarteirões dali, Anna


caminhava com passadas rápidas apenas imaginando a reação de Jennifer

quando visse o presente.

Passava pela frente de um beco quando foi violentamente puxada para

dentro, quando percebeu a ação já estava no chão e era tarde demais, vários

choques com pistolas taser foram dados, mas mesmo com os choques

simultâneos ela tentou reagir, entretanto o corpo acabou se entregando e ela


apagou. Algemaram seus braços à sua frente e a jogaram no porta malas de um

carro branco, grande, de modelo antigo, e dirigiram por cerca de uma hora,

primeiro por uma rodovia, depois por uma estrada de chão, foram longos

quilômetros de sacolejo dentro do carro, até chegarem numa grande casa cinza,

parecida com uma pequena fortaleza no meio da floresta. Anna já suava parte de

sua blusa branca.

Ultrapassaram um portão automático que ergueu-se sobre eles e


estacionaram logo em frente. Quando abriram o porta malas Anna já estava

acordada, os raios de sol quase cegaram sua visão, tentou fugir, até acertou um
ou dois golpes, mas seus músculos ainda não reagiam conforme seus impulsos, e

foi logo dominada por três homens truculentos, ela já havia percebido que eram
todos híbridos. Estava confusa, não fazia ideia de quem eram aqueles homens,
ou do que queriam dela. Lhe aplicaram mais alguns choques, apenas para que ela
parasse de lutar.

A arrastaram prédio adentro, era uma edificação recente, havia sido

construída de forma rústica, sem cuidado com o acabamento, tinha ares de prisão

clandestina. Passou por um par de corredores e chegou até uma ala com celas,
seis portas azuis de ferro, com uma pequena abertura no alto em cada. À frente

das portas de ferro, uma área com duas mesas e cadeiras de escritório e um sofá,

numa das mesas havia um homem, que parecia ser uma espécie de carcereiro e

veio ao encontro deles.

— Essa é a encomenda que vocês levaram dois meses para encontrar?

— Sim, finalmente pegamos. A chefinha vai ficar feliz, talvez até pague

uma rodada de cerveja para nós hoje!

O carcereiro pegou uma chave num quadro de cortiça pendurado na

parede do fundo da sala e abriu a última cela do corredor, Anna foi logo
arremessada para dentro, caindo de joelhos.

— Tiro as algemas? — Um dos homens questionou, ainda a olhando.

— Melhor não, ela é metida a valente.

— Quero ver a valentia quando for para a sala da diversão. — Deram um

risinho.

Anna se ergueu e ainda tentou ir na direção da porta, mas foi logo


fechada. Colocou as mãos e a testa na porta, tentando entender o que estava
acontecendo, virou-se, recostando-se, sentiu o metal gelado em suas costas. Viu

sua cela, apenas um pequeno cômodo de paredes cinzas, de concreto nu, sem

tinta, como todo aquele lugar. Tinha uma cama estreita feita de blocos e um vaso

sanitário no canto, que exalava um cheiro forte de cloro.

Sentou-se na cama, logo seus pensamentos se acalmaram como um mar


que vai diminuindo a intensidade das ondas, começou a pensar com clareza.

— Preciso me recuperar desses choques, quando abrirem essa porta

será minha chance. — Pensou.

Uma, duas, três horas se passaram. Já era início da tarde e tudo que
acontecia eram ruídos de portas abrindo e fechando, vozes masculinas

conversando e rindo ao longe. Ouviu passos no seu corredor, levantou-se da

cama e passou a prestar ainda mais atenção aos sons ao redor.

— Vai levar essa fera agora?

— Ela está pedindo.

— Ah, a chefe já chegou? Não sabia. O maridinho dela pelo menos vinha

nos cumprimentar quando chegava.

— Pare de reclamar e abra logo a cela.

Anna foi para o lado da porta, ficando a postos, estava ereta junto à
parede, sentia uma tensão subindo em seu estômago.

A porta se abriu e Anna foi para cima de um dos híbridos, o derrubando e


acertando um murro em seu rosto. Levantou-se rapidamente e arriscou um giro,
dando uma meia lua, acertando com o pé no rosto do outro homem que vinha na

sua direção.

— Meu nariz! Essa puta quebrou meu nariz! — Dizia com as duas mãos

no rosto ensanguentado.

O primeiro deles voltou para cima dela, era um cara grande, mas lento,
tentou um gancho e Anna desviou-se, acertou um soco duplo em suas costelas,

ele se curvou e ela emendou o golpe numa joelhada em sua cabeça.

Mal teve tempo de terminar o movimento e sentiu a pistola de


eletrochoque em suas costas, a derrubando. O carcereiro manteve a pistola nela

até que parasse de se mexer. Apenas alguns espasmos involuntários era o que

restava à Anna, agora caída naquele piso em frente às portas azuis. Outros dois

homens chegaram ao ouvirem a luta e a ergueram de lá, arrastaram pelos braços

pelos corredores até uma sala grande, com as paredes pintadas de preto, era

provavelmente um dos lugares mais estranhos onde já estivera. No teto haviam

ganchos metálicos, como os de frigoríficos, e em alguns deles haviam correntes.


Haviam algumas argolas presas ao chão e também nas paredes.

Enquanto era conduzida pelo salão, Anna, ainda aturdida com os


choques, corria os olhos pelos detalhes da sala e procurava pelo que chamavam

de ‘a chefe’, mas não viu ninguém. Apenas ao fundo percebeu dois grandes
gaveteiros metálicos e um armário com duas portas. Ergueram seus braços
algemados e a prenderam num dos ganchos do teto, em seguida acorrentaram
suas pernas a uma das argolas do chão. E a deixaram lá.

Minutos depois uma mulher de cabelos negros, compridos, entrou na

sala, acompanhada de um forte segurança. Ela usava um terninho bege, bem

cortado, seus cabelos soltos balançavam com suas passadas firmes. Tinha os
lábios não muito grossos, mas uma grande boca, uma pequena pinta acima do

lábio e olhos levemente puxados, o que lhe dava um olhar embriagante.

Parou em frente Anna, que a olhava incrédula.

— Vivian.

— Olá, Anna. Ou devo dizer, olá, cunhada?

— Que palhaçada toda é essa?

— Você acredita no poder da coincidência? Eu não acreditava até


descobrir que a mulher que havia matado meu marido era simplesmente minha

querida cunhadinha, quer dizer, você não chegou a se tornar de fato minha

cunhada, não é mesmo?

— Marido? Que marido? Robert sabe disso? Ele também está aqui?

Vivian sorriu.

— Não, isso é entre mim e você.

— Então você deve ter cometido algum engano, porque não matei
marido de ninguém, e se você armou isso tudo porque larguei o seu irmão, então
acho que você precisa de tratamento.

Vivian mudou de expressão, ficando mais séria.

— Ano passado, dezembro para ser mais específica, alguém pagou


alguma ninharia a Max e você deu dois tiros no meu marido, Harry. Só para

tentar refrescar sua memória.

Anna de fato tentava se lembrar das missões que cumprira no final do

ano passado, mas haviam sido dezenas, naquele mês Jennifer estava no Canadá e

ela mergulhou de cabeça nos serviços noturnos.

— Você pegou a pessoa errada.

— Ah, Anna, você não mudou nada, continua essa pessoa pedante...

Quem diria que você se tornaria uma mercenária. — A olhou com desdém. —

Uma mercenária desleixada, que não termina o serviço. Harry não morreu na

hora, ele ainda conseguiu falar para um de nossos homens que tinha sido uma

mulher que havia atirado nele. Sem muito esforço cheguei até Max, depois

coloquei alguns homens para procurar pela mulher que havia feito esse serviço
para Max, e adivinhe só? Descobri que você é a única vadia que trabalha para

ele.

— Eu não queria matar seu marido. — Anna falou em voz baixa, havia

se lembrado da missão.

— Ótimo, estamos evoluindo, já temos uma confissão. Continue.

— Eu só deveria buscar uma valise com documentos dentro de uma


empresa fechada, na saída apareceu este homem, ele me abordou, estava armado,

eu me defendi, atirei primeiro.

Vivian balançava a cabeça um pouco transtornada com o que ouvia.

— Não era para ter ninguém naquele lugar. — Anna continuou.

— Harry gostava de fazer negócios noturnos.

— Com uma milícia de Titans?

— Era só o que faltava, você, uma bandidinha sem princípios, querendo

julgar os negócios da nossa família. — Falou jogando seus cabelos para trás,
com a mão.

— Eu sinto muito. E não fazia ideia que era seu marido.

Vivian dava alguns passos ao redor dela.

— Você largou meu irmão para isso? Para ter essa vida ordinária de

roubar e sair atirando nos outros, por dinheiro? Rob te amava de verdade, aquele

pateta... Queria te dar uma vida boa, ter uma família contigo, ele fazia tudo por

você, mas você nunca lhe deu o valor que ele merecia, sempre tão fria, tão
egoísta.

— Nunca iria dar certo, Vivian, acredite, foi o melhor para seu irmão eu

não permitir que aquilo fosse adiante.

— É... Você só traz o mal para quem cruza seu caminho. — Vivian falou
taxativa. — Talvez eu coloque um ponto final nisso hoje.
Anna baixou a cabeça, sentiu um nó na garganta, começava a se dar
conta que talvez não saísse daquela sala nunca mais, lembrou de Jennifer no

café, quanto tempo teria ficado lá a esperando até perceber que ela não voltaria,

lembrou do último sorriso que lhe deu antes de sair.

Vivian foi até seu segurança e falou algo em seu ouvido, prontamente ele
saiu da sala, ela voltou a se aproximar de Anna.

— Eu fiquei tão feliz em saber que era você a pessoa que eu estava

caçando, quase não acreditei. Mandei dar uma arrumada nesta sala, já tinha

algum tempo que eu não a usava. Sabia que ela é conhecida como sala da

diversão? Essa tarde vamos ter um pouco de diversão.

— Você é louca, Vivian, você quer se vingar, não quer? Resolva isso de

uma forma decente.

— Ah, é a coisa que mais quero nesse momento... Não via a hora de

colocar minhas mãos em você e fazer você sofrer pelo menos um pouco do que
sofri. Mas adivinhe só? Eu encontrei um jeito de fazer tudo ser ainda mais

divertido! — Falava com um constante sorriso sarcástico, quase lunático.

Anna apenas a encarava agora, temendo pelas torturas que ela estaria
tramando.

— Eu vou fazer você pagar um pouquinho pelos seus crimes hoje. Sim,
vou te torturar, acho que você vai sofrer o bastante para eu lavar minha alma.

Mas acredite, não vou encostar um dedo em você, prometo que você não terá um
arranhão sequer.

Neste momento a porta se abriu e dois homens entraram, arrastando


alguém.

— Jennifer??
Capítulo 34 - Vermelho

Anna se agitava em suas algemas e correntes, tentando soltar-se. Ao ver

Jennifer entrando algemada por aquela porta sentiu como se o pesadelo tivesse

tomado proporções catastróficas, um soco no estômago não teria causado

sensação pior, uma sensação incômoda lhe queimando por dentro, era a dor da
impotência diante da situação.

— Fique à vontade, tente se soltar, mas fique sabendo que essa sala foi

construída para segurar Titans com o dobro do seu tamanho. — Vivian falou.

— Anna, que porra é essa? — Jennifer perguntava, ainda estava com a


roupa que usava pela manhã, uma camisa de botões azul clara e jeans, mas

estava descalça.

— Não envolva ela nisso, Vivian! — Anna bradava, furiosa.

— Meus meninos estão de parabéns, pegaram as duas garotas certas,

lembre-me de pagar uma rodada de cerveja para eles hoje. — Falou para um dos
homens ao seu lado.

A prenderam também em um dos ganchos, de frente para Anna, um


pouco mais para o lado, a uns três metros dela. Olhava assustada ao redor, sem

entender nada do que acontecia.

— Vocês dois podem sair, e você Sith, fique aqui, precisarei de sua ajuda.

— Vivian postou-se à frente dela, dando-lhe uma boa olhada.


— Estava curiosa para te conhecer. – Vivian disse.

Jennifer parou de olhar ao redor, Vivian tinha finalmente atraído sua


atenção.

— Por quê? — Ela suava, desde sua cela vinha se debatendo e dando

trabalho para os seguranças.

— Porque achei tão improvável que Anna estivesse envolvida com uma

mulher, queria saber quem era essa garota.

— Vocês se conhecem? — Jennifer olhou para Anna.

Anna respondeu apenas balançando a cabeça.

— Mudou de time, Anna? Você conseguiu me surpreender, admito.

— Deixe ela ir embora, ela não tem nada a ver com isso. Seu problema é

comigo.

Vivian caminhou até Anna.

— Hoje de manhã quando meus meninos me ligaram dizendo que

estavam com você na mira e que sua namoradinha estava junto, eles me
perguntaram se era para levar ambas. E eu respondi ‘é óbvio que sim!’ Hoje é
meu dia de sorte, fala a verdade! Foi então que tive a grande sacada de mudar as

regras da brincadeira, adicionando um novo elemento.

— O que você quer para libertá-la?

— Agora é tarde demais para negociar, minha querida.


Novamente foi até Jennifer.

— Seu nome é Jennifer, certo? Como ela te chama? Jen? Jenny?

— Ela me chama de Jennifer mesmo.

— Nossa que falta de romantismo, Anna.

— Eu não acho. — Jennifer respondeu com um ar ingênuo.

— E quem te perguntou o que você acha?

— Tá bom, não tá mais aqui quem falou.

— Você quer saber por que está aqui?

— Seria interessante.

— Anna, ela sabe da vida suja que você leva à noite?

— Sabe. — Anna respondeu com impaciência.

— Bom, imagino que você deva ser do nível de sua namorada também.

Ela matou meu marido no ano passado, por dinheiro. Você acha que é um bom

motivo para vocês estarem aqui penduradas, como dois pedaços de carne?

Jennifer apenas olhou para Anna, como se pedindo a confirmação

daquela informação, e Anna assentiu com a cabeça.

— Você é humana, agora que me dei conta! — Vivian sorriu e olhou para
Anna. — Que mudança radical, hein, cunhada? Você agora anda com humanos.

— Cunhada?? — Jennifer perguntou confusa.


— Ah, desculpe, não me apresentei, eu sou irmã do ex-noivo dela, o que
ela abandonou na véspera do casamento.

— Não foi na véspera, foi uma semana antes. — Jennifer prontamente a

corrigiu.

— Você é bem petulante, hein, garotinha?

— E você tomou as dores dele?

— Não ouse falar de Robert, ele foi a melhor coisa que aconteceu na vida

dessa infeliz e ela o abandonou.

— Há séculos atrás, ele já deve ter reconstruído a vida dele, vai ver nem

guardou mágoa, apenas você.

Vivian ergueu o braço e deu um tapa com as costas de sua mão no rosto

de Jennifer, que a olhou assustada.

— Hey! — Anna bradou, se agitando.

— Robert se foi, ele não está aqui agora para te contar o inferno que a

vida dele se tornou depois do término do noivado, ele nunca mais foi o mesmo.

— Robert morreu?? — Anna perguntou.

— Por sua causa. — Vivian foi até Anna. — Menos de um ano depois eu
o estava enterrando na nossa cidade natal, vencido pelas drogas, teve uma

overdose de heroína com álcool.

— É mais fácil me culpar, não é mesmo? — Anna falou com uma voz
branda.

— Acho que vai ser difícil manter a promessa de não encostar em você
hoje, mas tentarei honrar. — A fitou com raiva.

— Faça o que tiver que fazer a mim, não encoste nela. — Anna

implorava.

— Chega de conversa, é hora da diversão. — Novamente lançou seu

sorriso lunático, tirou o casaco com delicadeza, Vivian se movimentava devagar,

como se calculando seus gestos. Usava uma camisa de seda branca com botões

negros e uma calça da mesma cor do terninho recém tirado.

— Anna, já ouviu falar em tortura psicológica? Nunca pratiquei, será


minha estreia hoje. — Largou o terninho em cima do aparador e foi até o

armário, abrindo ambas as portas. Olhava para dentro como se estivesse fazendo

compras.

— Jennifer, me escute. — Anna a chamava. — Mantenha a calma, ok?

Nós vamos dar um jeito nisso, apenas mantenha a calma e só fale o necessário.

Jennifer começava a se dar conta que algo ruim viria pela frente em
breve, muito breve, mas não imaginava o que aconteceria.

Lentamente, objeto a objeto, Vivian foi colocando tudo que havia pego

de dentro do armário em cima do aparador de madeira encostado na parede.

— Faz algum tempo que não uso essas coisas, acho que me empolguei
um pouco, talvez não use todos eles, então não se assuste. — Falou terminando
de colocar o último objeto.

— Espera aí, o que você... Espera aí, você não está pensando em usar
essas coisas em nós, está?? — E Jennifer finalmente se deu conta.

— Não, de forma alguma. Usarei apenas em você.

Jennifer lançou o olhar mais desesperado de todos para Anna e voltou a

olhar para Vivian.

— Você está louca?? Viu filmes de terror demais ou o que? — Jennifer

ainda estava boquiaberta, olhou novamente os itens expostos mais adiante.

— Confesso que meu prazer será ver a reação da minha cunhada

enquanto torturo você, porque nem te conheço, mas imagino que você deva

significar muito para ela.

— Torturar?? — Voltou a olhar para Anna. — Anna, eu quero sair daqui.


Eu não quero ficar aqui. — Tentava puxar suas mãos das algemas presas no

gancho do teto, movimentava seus braços violentamente, tentando se

desvencilhar.

— Vivian! Você estará cometendo uma injustiça sem tamanho se fizer


isso, ela não fez nada contra você!

— Eu já expliquei... Como você é repetitiva. Te ferir não teria tanta


graça, azar o dela ter escolhido se aliar a uma pessoa egoísta como você. —

Virou-se para Jennifer. — E se eu fosse você não faria isso, só vai machucar seus
pulsos.
— Eu não vou ficar aqui... Me tira daqui! — Era o que Jennifer dizia
enquanto ainda tentava se soltar.

— Quanta teimosia, olhe seus pulsos já machucados.

Vivian suspirou, foi até o aparador, se aproximou dela e lhe aplicou um

choque com a arma taser na altura de sua cintura. Prontamente Jennifer

paralisou-se, trancando sua mandíbula, sentindo a corrente elétrica passando por


seu corpo.

— Quem sabe assim você para de se agitar. Esse brinquedo você já

conheceu, não é mesmo, Anna?

— Pare com isso... — Anna pediu.

— Nem comecei. — Vivian falou olhando para os objetos à sua frente.

— Você ainda trabalha forjando adagas? Como seu pai?

Anna não respondeu, Vivian a olhou, esperando a resposta, mas ela não

falou nada.

— Sith, um golpe. — Ela ordenou.

O segurança particular dela, um homem forte, mas não muito alto, se


aproximou de Jennifer e desferiu um soco em seu rosto, a pegando de surpresa e

abrindo um pequeno corte no seu lábio. Ela ainda se recuperava do choque,


passou a língua por dentro da boca, olhando assustada para Anna.

— Sim! Sim, eu trabalho! Sua... Louca. — Anna então respondeu, com


revolta.

— Ótimo, então darei preferência para as lâminas hoje.

Vivian ergueu um punhal com a lâmina larga, com alguns detalhes


gravados, reluzente, media uns vinte centímetros e tinha a empunhadura em

bronze. O segurou em frente ao seu rosto, girando, observando o brilho prateado.

Ficou frente a frente com Anna.

— Você fabrica desse modelo? Esse é um bizantino, tem três séculos de

tradição, sinta-se lisonjeada por eu usar na sua pequena humana.

— Espere, faz muito mais sentido usar em mim, sou eu quem fabrico, use

suas lâminas em mim. — Anna ainda tentava.

Vivian apenas deu um risinho e caminhou até Jennifer, que só tinha olhos

para a faca, não tentava mais se soltar das algemas, mas ainda se agitava um

pouco e tremia.

— Se você parar de se agitar vai ficar mais fácil para você, ouça meu

conselho. — Vivian falou baixinho.

Ergueu a faca e cortou o primeiro botão da camisa de Jennifer, foi


cortando um a um, até abrir completamente sua blusa. Com alguns cortes rápidos
nas mangas e na parte posterior, logo a camisa já estava no chão e Jennifer

estava com seu dorso nu exposto, usando apenas o sutiã marrom.

— E não é que esta adaga tem um ótimo fio de corte? — Vivian falou
olhando para sua faca, Jennifer acompanhava tudo apreensiva, e Anna aflita.
Vivian voltou a olhar para Jennifer, encostou a faca na base do seu
pescoço e começou a descer, devagar, apenas deslizando sem cortar, fazendo

uma pressão angustiante em sua pele. Desceu pelo meio dos seus seios e depois

por sua barriga. Parou o movimento com a faca e com a outra mão tocou os seios
de Jennifer.

— Você é até interessante, acho que entendo, Anna. Tive meus anos de

liberdade sexual na faculdade, se é que você me entende... — Riu.

— Pare com isso, por favor. — Anna pediu novamente.

— Anna, você é ciumenta? — Falou descendo seus dedos pelo abdome


dela e seguindo para os quadris, a acariciando.

Anna apenas acompanhava tudo, com a respiração forte.

— Você não sente falta de algo? — Vivian deslizou sua mão entre as

pernas de Jennifer. — Essa humana te satisfaz?

Jennifer achou que seria uma boa hora para negociar e começou a falar.

— Olha só, por que não resolvemos isso de uma forma civilizada?

Prontamente Vivian levantou os olhos e passou a prestar atenção no que


ela dizia.

— Sei que não temos como mudar o passado, mas isso não vai resolver
nada, você vai bater em mim, que legal, e daí? Por que não sentamos numa mesa

e conversamos, Anna te fala o quanto ela sente muito por tudo que ela fez, te
pede desculpas, eu também peço desculpas em nome dela, e tenho certeza que as
coisas ficariam mais leves, sem violência.

— Você está dizendo que podemos resolver isso sentando e

conversando?

— Sim, eu, você, Anna, que quase foi da sua família, sentamos e

conversamos.

Vivian se aproximou, franziu a testa e falou.

— Você acha... Que uma conversa vai fazer eu me sentir melhor com

relação a morte do meu irmão?? — Ao terminar a frase, cravou a adaga na perna

direita de Jennifer na altura da coxa, até metade da lâmina, e retirou.

Jennifer soltou um grito de dor com um semblante igualmente dolorido.

— Não!! — Anna gritou e agitou-se tentando soltar-se.

— Você acha... Que uma conversa vai fazer eu me sentir melhor com

relação a morte do meu marido?? — Cravou novamente a faca, desta vez na


perna esquerda, lhe arrancando outro grito.

— Mas que merda, isso dói!! — Jennifer falou aos berros. Olhava para as
duas manchas escarlates em sua calça jeans, que aumentavam rapidamente.

— Então não me venha com esse papinho de novo, combinado? — Falou


dando um suspiro forte no fim.

Anna já estava transtornada, seus pulsos estavam em carne viva de tanto


se debater e começavam a sangrar. Ela sabia que era exatamente disto que Vivian

estava se alimentando naquela fatídica tarde, de seu sofrimento, cada gota de

angústia que Anna demonstrava. E na teoria seria simples, bastaria não

demonstrar nenhuma comoção com as crueldades dela, que logo ela se cansaria e
findaria a tortura, mas como manter-se impassível diante daquilo tudo?

— Ah, esqueci de falar, esse punhal é bom para essa finalidade, cravar

em pernas e braços. Mas você deve ter percebido isso, notou como deslizou fácil

na sua carne? Adoro esse punhal. — Terminou de falar olhando para a faca ainda

com vestígios de sangue.

Jennifer ouvia aquele discurso quase apaixonado de Vivian e se dava

conta que estava lidando com algum tipo de psicopata, seus ferimentos na perna

doíam agudamente, mas o desespero de não saber o que vinha a seguir era pior,
era dramático. Sentia a sala fria, refrigerada provavelmente por algum ar

condicionado, seus poros arrepiavam, um vento gelado batia em suas costas nuas

e ela tremia, mas sentia a cabeça quente e latejando.

Enquanto Vivian verificava sua coleção em cima do aparador, Jennifer


olhou para Anna à sua frente, um pouco ao lado. Ela estava com a cabeça baixa,

olhando para o chão, como se pensando em algo ou apenas sem coragem de


encará-la.

— Conhece esse, Anna? — Vivian mostrava uma pequena faca


igualmente reluzente e prateada para ela.
— Não.

— É uma adaga normal, mas por ter esta ponta afiada é também
conhecida como escarificadora. Sabe o que é escarificar?

— Sei. Não faça isso.

— Calma, só vou deixar minha marca em sua namoradinha, talvez nem

escreva todo meu nome. — Sorriu.

— Não! Não!

— Jennifer, onde você gostaria de ter uma tatuagem?

— Ãhn? — A fitou confusa.

— Onde você quer ter minha marca?

— Eu... — Jennifer não conseguiu responder, seu pânico não permitiu


que as palavras saíssem.

— Ok, eu escolho por você, então.

Vivian deu uma olhada ao redor dela, decidindo pelo melhor lugar, se

aproximou de sua lateral, correu a mão por sua cintura até a altura do sutiã e por
cima das costelas, do lado esquerdo.

— Aqui, nas costelas. E nem preciso pedir para você levantar os braços.

Desculpe, a piada foi ruim.

Aproximou-se mais um pouco, franziu a testa e segurou com a mão


esquerda o local. Encostou a ponta da faca na pele, ela automaticamente
contorceu-se ao sentir a lâmina.

— Se você se mexer ao invés de um V terá um X na sua pele.

Voltou a encostar a lâmina no seu corpo, pressionou até que entrasse na


carne por volta de meio centímetro. Ainda com as sobrancelhas baixadas,

começou a correr com a faca, para baixo e devagar, até que formasse a primeira

reta da letra V e um filete grosso de sangue vertia do corte. Aquele processo


levou poucos minutos, que pareceu uma eternidade.

Jennifer já não queria mais olhar, olhava para cima e gemia, olhava seu

gancho metálico empoeirado, a tinta preta que começava a descolar do teto,


queria abstrair aquilo, tentar ignorar a faca correndo por dentro da sua carne,

sem olhar a sensação era de uma brasa acesa passeando em sua pele, com a

lentidão que só os sádicos sabem fazer.

— Terminei. — Falou Vivian, dando um passo para trás, olhando

orgulhosa para um V vermelho de quinze centímetros de altura, que parecia ter


sido feito com tinta fresca que escorria.

Postou-se ao lado de Anna, apontando para Jennifer.

— Sou ou não sou uma verdadeira artista? Sou um talento não


reconhecido. — Falou jogando seu cabelo para trás, ainda com a lâmina em sua

mão. Anna estava determinada a manter o controle, estava se esforçando ao


máximo, na esperança que Vivian se entediasse com aquilo.

Mas logo ela seguiu até sua coleção de objetos e selecionou um outro,
um punhal bastante estreito e comprido, sua lâmina não deveria ter mais que um
centímetro de largura.

— Eu até me sinto constrangida em explicar o nome e a utilidade destas

lâminas para você, Anna, mas eu também sou admiradora dessa arte, então se me

permite, vou te apresentar esta que é uma das minhas preferidas.

Aproximou-se dela a exibindo, segurando com as duas mãos.

— Se chama stiletto, tão fina... Sabe porque é neste formato? Fina e

pontiaguda? Era utilizada durante as batalhas medievais para perfurar a malha

metálica que os guerreiros usavam, ela atravessava entre os elos de aço. —


Girava em frente aos olhos. — Ou então um soldado com boa pontaria a

penetrava num ponto fraco da armadura do seu inimigo... Com sorte perfurava

órgãos vitais. — Sorriu de forma maquiavélica.

Se aproximou de Jennifer, que tinha olhos apenas para o objeto em suas

mãos.

Vivian olhou pensativa para seu tórax, colocou sua mão esquerda abaixo
do seu seio esquerdo, retirou e recolocou dedo a dedo.

— Um... Dois... Três... Dedos. Três dedos abaixo do seio, dizem que o
pulmão termina aqui. Será que seu pulmão realmente termina aqui? Se eu

perfurar com essa lâmina, poderemos descobrir, você quer descobrir?

— Não. — Jennifer respondeu e balançou a cabeça para os lados

nervosamente.
— Temos cinquenta por cento de chances de acertar, torça para que seu
pulmão termine antes.

Ao terminar de falar, encostou a ponta do punhal abaixo dos seus três

dedos, Jennifer contraiu seu abdome. Lentamente Vivian foi penetrando a fina

lâmina, enquanto Jennifer fechava seus olhos e mordia seu lábio inferior com um
grunhido.

— Só uns dez centímetros, para não atingirmos nada a mais.

Jennifer soltou um grito desesperado, sentia a lâmina gelada entrando em

sua carne, abriu os olhos e viu o punhal ainda cravado nela.

— Pronto, já posso tirar. — Removeu o punhal ensanguentado e olhou


para Anna, observando sua reação.

— Sabe como saberemos se atingi o pulmão? Se ela tossir sangue, então

saberemos. Anna, você quer fazer uma aposta? Se ela tossir sangue nos

próximos minutos, você me paga uma bebida, caso contrário, sou eu que te pago,

fechado?

— Você é doente... — Anna balbuciou, com o olhar baixo.

— Não, eu prefiro outra alcunha... Que tal vingativa?

Voltou a olhar para Jennifer, como se procurando outro lugar para


torturá-la.

— Vamos tentar outro lugar agora.


Anna resolveu arriscar uma negociação.

— Vivian, me escute. Venha cá.

— Eu falei que era tarde demais para negociar.

— Me escute. Eu tenho a herança do meu pai, tenho uma boa quantia em


contas bancárias fora do país, tenho propriedades. Não faço ideia da sua situação

financeira, mas sei que sempre é bem-vindo mais dinheiro e mais posses.

— Não quero seu dinheiro, Anna. — Vivian falou já colocando

novamente sua mão em Jennifer, que contorceu-se.

— Espera, me escute! Tudo, tudo que eu tenho, eu dou a você, se você

deixá-la ir embora. Eu transfiro o dinheiro, os bens, ainda hoje, transfiro tudo

para você, e você a deixa ir embora, ela não vai fazer nada contra você, ela nem

sabe onde está... Você continua comigo e com tudo que eu tenho, mas deixe que

ela se vá, me retalhe se quiser.

— Eu já falei... Isso não me interessa. — Falou incomodada e erguendo a

mão.

— Deve ter algo que você queira, algo mais valioso que essa vingança
estúpida. Por favor, me diga o que você quer. — Anna falava, com uma voz
cansada.

— Você me interrompeu três vezes. Pare com isso, eu não quero nada

seu, apenas fique quieta e observe.


— Tire alguma vantagem disso, aceite minha proposta e acabe comigo.

— Sith, três golpes na garota, um para cada interrupção, assim Anna


aprenderá a não me interromper mais.

Anna fechou os olhos com um semblante dolorido, estava desesperada,

não sabia mais o que fazer.

O segurança se aproximou e desferiu os três golpes em seu rosto, direita,

esquerda, direita.

Jennifer cuspiu um misto de saliva e sangue, seu nariz sangrava

abundantemente. Movimentava sua cabeça devagar correndo sua língua dentro

da boca ferida, já perdia suas forças e energia.

Uma das pulseiras coloridas que Jennifer usava caiu no chão, à sua

frente, Vivian juntou e deu uma olhada, era azul com detalhes vermelhos.

— Hum... Anna, acho que ela está te traindo, tem o nome de uma mulher

escrito aqui dentro.

Jennifer parecia incomodada, a olhava séria.

— É sua outra namorada? — Vivian perguntou com ar debochado.

— Não. — Respondeu com raiva.

— Então, quem é Olivia?

— Minha mãe.

— Ah... Entendi. Ela que deu essa pulseira a você?


— Não, eu dei a ela, mas depois que... Depois que ela morreu eu passei a
usar.

— Oh, sinto muito. Mas eu vou ficar com ela, ok? Será meu troféu. —

Falou já guardando no bolso de sua calça.

— Jenny, já ouviu falar em timo?

Ela apenas balançou negativamente a cabeça.

— É um pequeno órgão, que fica aqui, bem no meio do seu tórax. —

Falou colocando o dedo indicador entre seus seios.

— Fisiologicamente ele não tem lá muita utilidade, na infância até tem,

mas agora, você já crescida, não é algo tão imprescindível assim.

Desceu seu dedo até seu umbigo e voltou ao esterno.

— Então acho que você não se importaria se eu o perfurasse, não é

mesmo?

Jennifer jogou a cabeça para trás.

— Eu gosto do timo pela aura mística que o envolve, alguns dizem que
ele está relacionado à felicidade e tristeza, amor e ódio... E que por estar na
frente do coração e ser menor, é o coração que ganha os créditos, mas eu gosto

destas vertentes espirituais envolvendo o timo, sabe? É algo que me intriga.

Aproximou a ponta do punhal entre os seios dela.

— Aqui, dois dedos abaixo da linha da clavícula, atrás do esterno, dizem


que aqui que ele fica, e logo atrás dele fica o coração. Ou seja, se eu passar da

conta, acabarei perfurando seu coração. Daí saberemos rapidamente, porque

você terá uma parada cardíaca.

Mirou a ponta do punhal e forçou contra seu tórax, com resistência

acabou entrando em seu esterno. Novamente Jennifer soltou um grito


prolongado de dor.

— Devagar, para não ultrapassar... Não quero chegar até seu coração.

Anna, você já deve ter feito isso, não é mesmo? — Riu.

Anna virou o rosto para o outro lado, não estava mais suportando ver o
sofrimento estampado no rosto de sua namorada.

— Pronto, apenas seis centímetros, é o que dizem. Viu, vocês estão tendo

uma aula de anatomia hoje. — Falou ao remover o punhal.

Jennifer não suportou a dor e angústia e começou a chorar, soluçava.

Vivian guardou rapidamente o punhal no aparador e voltou a ficar em

frente a ela.

— Não, não, não chore... Você estava indo tão bem. — Colocou a mão
em seu rosto.

Mas Jennifer continuava chorando, virou seu rosto, chorava e soluçava


como uma criança amedrontada.

— Você é mais valente que isso, garota, pare de chorar.


Anna a viu chorando, agora estava também com os olhos molhados.

— Vamos lá, pare de chorar. Me diga, quantos anos você tem?

Jennifer deu uma fungada, puxando o choro, e respondeu.

— Vinte e dois... Quer dizer, vinte e três agora.

— Agora?

— É meu aniversário hoje.

— Ah, por que não me disse antes?

— E ganhar um presentinho surpresa? Não, obrigada. — Fungou

novamente.

Vivian sorriu.

— Está com sede?

Jennifer balançou a cabeça.

— Sith, busque um copo de água para ela.

Logo ele a entregou o copo e ela a deu de beber. Jennifer deu alguns
goles ávidos e tossiu, com um leve engasgo.

— Vejam só! Você está vendo, Anna? Acho que temos sangue no copo.

Acredito que ganhei a aposta e você me deve uma bebida. — Animada, mostrou
o copo para Anna. — É sangue! Ela tossiu sangue!

— Você vai pagar por isso... — Anna murmurou, com raiva.


— Na sua posição eu pensaria duas vezes antes de falar essas asneiras. —
Vivian respondeu de bate pronto, foi até o aparador procurando por outro objeto.

— Jennifer, olhe para mim. — Anna pediu.

Ela a encarou.

— Aguente firme, sei que você consegue.

Jennifer baixou a cabeça.

— Hey, olhe para mim. Olhe para mim! Desculpe ter te colocado aqui,

mas aguente, não desista, está me ouvindo? Não desista!

Jennifer apenas sinalizou com a cabeça.

— Terminou? Sith, vamos mudar um pouco o jogo, vire nosso pedaço de

carne para a parede, quero ela de costas para nós.

Prontamente o segurança a tirou do gancho e a mudou de posição,

rependurando e a deixando de costas para Anna.

— Acho que isso irá me atrapalhar. — Vivian tomou uma adaga e cortou

o sutiã nas costas, depois cortou as duas alças, fazendo com que caísse no chão.

— Pronto, agora temos uma tela em branco. Nem tão em branco, você

tem algumas pequenas sardas. — Falou deslizando sua mão pelas suas costas,
até sua calça.

Colocou suas duas mãos nas laterais do corpo de Jennifer.

— Você é inglesa? Ou irlandesa? — Falou em seu ouvido.


— Meu pai é escocês.

— Está explicado. Droga, sujei minha mão no meu V.

Caminhou até Anna.

— Posso limpar minha mão em você?

Passou sua mão suja de sangue pela blusa branca de Anna, a manchando.

Foi até o aparador e pegou uma espécie de chicote de couro com o cabo

rígido, com algumas esporas metálicas na ponta.

— Vamos mudar um pouco, as lâminas estavam monótonas.

Anna, ao ver o objeto em sua mão, arregalou os olhos, assustada.

— Pelo amor de Deus, Vivian, isso já é psicopatia!

— Isso é diversão!

— Vivian!

— Sith, não quero sujar minha camisa com sangue, pegue, você sabe

como usar, fique a postos. Anna, vou te fazer algumas perguntas, darei notas às
suas respostas, ok?

Vivian entregou o artefato ao segurança, Jennifer virou-se para ver o que


era, desesperando-se ao ver.

— Que porra você vai fazer com isso??

— Anna, me responda com toda sinceridade, por que você terminou o


noivado com meu irmão?

— Eu... Eu... Vivian, eu não amava mais Robert, não era justo com ele.

— Hum... Ok, três golpes, Sith.

O homem empunhou o chicote negro, olhou para Vivian, olhou para as


costas de Jennifer e desferiu sem muita segurança os três golpes nas costas nuas

dela, que se contraiu, seus dedos esticaram e um gemido alto ecoou naquela sala

ampla.

— Por favor, Vivian... — Anna suplicava, ao ver o resultado daqueles

três golpes na pele alva de sua namorada, formando vergões profundos, de onde

vertiam um sangue vermelho vívido.

— Anna... Meu irmão procurou você depois que você o dispensou?

— Sim.

— Quantas vezes?

— Duas vezes.

— Sith, dois golpes.

Prontamente duas chicotadas foram dadas em suas costas, arrancando

alguns respingos de sangue.

— Estamos indo bem, cunhada. Estamos indo bem. — Vivian recostou-


se no aparador.

— Para com essa merda! — Jennifer gritou.


— Agora está ficando divertido, pequena humana. Vou ficar por aqui,
não quero correr o risco de sujar minha roupa.

Cruzou os braços, deu uma pausa, passou algum tempo pensativa.

— Você o amou? — Falou virando a cabeça na direção de Anna.

— Claro, eu não teria ficado tanto tempo com ele por nada.

— Um golpe, Sith.

E um golpe foi dado.

— Ah... Por favor... — Jennifer estava quase jogando a toalha, aquela era

a pior dor que sentira até então.

— Boa resposta. Quanto tempo vocês ficaram juntos?

— Você sabe.

— Me diga. Eu quero ouvir.

— Quatro anos.

— Sith, quatro golpes.

Sem pressa, Sith desferiu os quatro golpes com o chicote com pontas de

lâminas, que cravavam na carne, além do estrago que o couro fazia.

Jennifer baixou sua cabeça e segurava com força suas próprias algemas,
as puxando.

— Quem você mais amou, Robert ou essa garota?


Anna lançou um olhar sofrido para Jennifer, temia pelo que respondesse,
hesitou.

— Vamos lá, responda.

Virou seu rosto e respondeu.

— Jennifer.

Vivian descruzou seus braços os apoiando no aparador, com um

semblante sério.

— Ok... Sith... Dez golpes.

— Não... Não... Porra, não! — Era Jennifer quem implorava.

Sith aplicava um a um, lá pelo oitavo parou de golpear e virou-se para

Vivian com o chicote empunhado.

— Chefe?

— Sim?

— Acho que ela desmaiou. Devo continuar?

— Que droga... Assim perde a graça.

Jennifer estava com sua cabeça caída de lado, seus pés arrastando no
chão, estava pendurada pelos braços, os joelhos levemente dobrados. Em suas

costas uma coleção de cortes e perfurações que a banhavam em sangue, assim


como boa parte de sua calça. Havia perdido a batalha contra a dor.

— Ok, por hoje chega. Mas sabe que isso me deu uma ideia? Não vou
acabar com vocês hoje, eu gostei disso! Vou continuar amanhã. Vocês vão voltar

para suas celas e amanhã pela manhã continuaremos a diversão.

Aproximou-se do corpo desfalecido de Jennifer.

— E você, já sabe, nada de morrer essa noite, quero você viva amanhã,

nesta sala. Sith, leve ela de volta para a cela, diga para que não a deixem morrer

essa noite. Depois peça reforço e levem essa aqui também de volta à cela. —
Falou apontando para Anna.

Sith concordou com a cabeça e soltou Jennifer, a colocando sobre seu

ombro, sem sinal de vida. Anna ainda conseguiu ver seu rosto ensanguentado
antes que saísse da sala. Vivian se aproximou dela.

— Dói, não dói? — A provocou com um olhar cínico.

— Vivian, eu vou acabar com a sua raça, você é uma mulher morta, eu

vou atrás de você e vou te matar nem que seja a última coisa que eu faça, nem

que eu precise ir até o inferno atrás de você. — Anna falou com a voz

controlada, mas com um ódio descomunal no olhar.

Vivian riu, jogando a cabeça para trás, pegou seu terninho e vestiu
calmamente.

— Querida, você já está no inferno.

E saiu pela porta.


Capítulo 35 – A capa amarela

Jennifer acordou com o barulho da pesada porta de ferro se abrindo e o

ranger das dobradiças, sentiu a claridade entrando através dela. Acordou, mas

levou algum tempo até abrir os olhos, a cabeça doía e sentia-se tonta, enjoada.

Algo foi atirado ao chão e a porta logo fechou-se, percebeu. Estava deitada de
bruços, desajeitada, numa cama estreita de concreto, entre a cama e seu corpo

apenas um fino colchonete florido.

Abriu os olhos, salivou, sentia um gosto ruim na boca, gosto amargo e de

sangue. Deu uma relanceada no que havia sido atirado ao chão: parecia uma

manta, daquelas pequenas de cobrir sofás, tinha um tom amarelo queimado,

ocre. Vestia apenas uma calça jeans e a cela era fria, a manta parecia um oásis no
deserto àquela altura. Colocou ambas as mãos ao lado de sua cabeça, estava

tomando coragem para se erguer da cama, ainda não processava direito onde

estava nem o que havia acontecido, seu grande objetivo de vida naquele instante

era pegar a manta.

Com ajuda dos braços ergueu seu tronco, soltou um grito de dor, virou e

sentou-se, tocou o chão com os pés descalços, ereta. Emitiu um longo suspiro
que iniciou-se com um gemido, sentia todo o corpo dolorido, alguns lugares

latejavam, como se tivessem pequenos corações batendo lá.

— Estou ferrada... Estou muito ferrada... — Sussurrou, encarando a


manta.

Lentamente abaixou-se e inclinou para frente, alcançando o pedaço de


pano. Abriu, deu uma olhada e se envolveu nele, passando ao redor do corpo.

Contraiu-se e gemeu quando o tecido tocou nos ferimentos em suas costas,

fechou os olhos com uma expressão dolorida.

— Isso não vai sair fácil... — Temorizou.

Segurava as pontas da manta com as duas mãos abaixo do queixo, junto

ao pescoço, curvou-se, baixando a cabeça.

— Aquela louca... — Começava a organizar os pensamentos.

Olhou na direção da porta, havia uma pequena abertura na parte superior,

estreita, por onde entrava a pouca luz que iluminava sua cela.

Então se deu conta que não se lembrava de como aquela tarde havia
terminado, entrou em pânico.

— Anna! Eu não... O que fizeram com ela? Ah, droga, eu apaguei. —


Passou a mão pela testa, desceu até a boca, sentiu algo dolorido naquela região,

colocou um dedo dentro da boca, mexeu, fez um pouco de força, soltou um


grunhido e cuspiu um dente com um pouco de sangue.

— Um problema a menos. — Olhou para o dente no chão e depois


novamente para a abertura no alto da porta. — Será que Anna também está numa

cela? — Jennifer estava com uma expressão preocupada.


Olhou ao redor, tentando se lembrar onde estava, qual cela era aquela,
procurava alguma outra abertura, mas havia apenas paredes nuas de concreto.

— Porra, o que será que aconteceu com ela? Será que... Não, não, eu sei

que ela está aqui, viva, em algum lugar. — A angústia subiu, entalando em sua

garganta.

Sentia um frio cortante, como se viesse de dentro, a sensação era que sua
energia havia sido sugada, qualquer mínimo movimento era doloroso.

— Ela está viva... Eu preciso tirar a gente daqui. — Falou fitando a

abertura na porta.

Colocou as duas mãos na borda da cama, estava decidida a ir até aquela


minúscula janela. Com esforço conseguiu ficar de pé, deu uma passada, sentiu

uma dor imensa nos dois cortes nas pernas e caiu de frente.

— Que merda... Que dor... — Falou deitada de bruços no chão frio, brava

consigo mesma.

— Hoje não é um bom dia para caminhar. — Se dava conta.

Ergueu a cabeça do piso, olhando novamente a porta, estava aterrorizada


por não saber o que havia acontecido com Anna, sentiu um choro crescendo
dentro do peito, tentava segurar.

— Eu preciso fazer algo, eu não vou morrer aqui, não vou deixar Anna

morrer aqui.
Novamente usou os braços para se erguer, com ajuda dos joelhos ficou de
pé e com alguns passos sôfregos chegou até a porta, apoiando-se nela.

Correu logo os olhos para a abertura e conseguiu enxergar o ambiente do

outro lado, aquela sala com duas mesas e um carcereiro com cara de mal-

humorado, que assistia uma pequena TV em cima da mesa. Um sofá marrom


velho, um arquivo metálico, um quadro de cortiça com chaves numeradas e um

bebedouro antigo. Sabia que havia mais celas ao seu redor, talvez umas três à sua

direita, umas duas à sua esquerda, até o final da sala.

As pernas fraquejaram e acabou ajoelhando-se, voltou engatinhando para

a cama, subiu devagar e voltou a sentar-se, arqueada, ofegante. Ajeitou a manta

sobre seus ombros. Apesar do frio, suava, era a febre que chegava, lhe causando

uma sensação ruim, tão ruim quanto o pior dos pressentimentos ruins, a
deixando mais tonta do que já estava.

— Preciso pensar em algo... Preciso pensar em algo... — Se embalava,

balançando o corpo para frente e para trás. — Queria tanto um analgésico.

Era mais do que uma sensação de mal-estar, não conseguia se concentrar


em nada, sentia-se como se tivesse passado a noite inteira bebendo, embriagada.

— Ela deve estar em alguma destas celas. São talvez oito celas... Ou
sete... Dez... Não, são sete. — Fechou os olhos, tentando pensar direito.

— Droga... Que foda. — Sentiu-se zonza e acabou deitando-se

novamente de bruços, devagar.


— Já deve ser noite... De madrugada? Quanto tempo fiquei apagada?
Droga... Será que a machucaram? Tenho que sair... sete celas... três a direita? —

Passou algum tempo tentando organizar os pensamentos.

Um barulho a despertou, uma bandeja entrou por baixo da porta através

de uma abertura comprida e rasa. Duas batidas foram ouvidas na porta.

— Janta! — Uma voz masculina bradou em seguida.

Virou a cabeça, viu na bandeja um prato cinza com algo que parecia uma

sopa e ao lado um pão. Voltou a recostar o rosto no colchão, fechando os olhos.

Então pode ouvir mais ao longe duas batidas numa porta e alguém

falando ‘janta!’ novamente.

— Anna! — Jennifer ergueu a cabeça arregalada. — Tem que ser a cela

dela.

Fez um esforço dolorido e levantou-se, sentando novamente, agora

atiçada pela possibilidade da localização de sua namorada.

— É aqui perto, a esquerda, sim foi a minha esquerda. — Balançava-se

agora com empolgação, como se aquilo a mantivesse com energia.

— Pense... Pense... Pense... Não dizem que os Vulpis são espertos? Seja

esperta, pense em algo. Ela deve estar na última cela, ou penúltima. —


Murmurava com um quase desespero, seu queixo teimava em tremer, por mais

que tentasse manter seus maxilares unidos.


Ergueu a cabeça com uma feição animada, acabara de ter uma ideia,
fixou novamente o olhar na abertura da porta.

— Hoje terá que ser um bom dia para caminhar.

Passou a mão pela testa e pelo rosto, limpando o suor. Puxou as duas

pontas da manta e deu um nó abaixo da garganta.

— Qual super-herói usa capa amarela? Deixa pra lá...

Segurou com força a borda do colchonete e ergueu-se. Reuniu o restante

de sua energia e conseguiu chegar até a porta, respirando forte. Empurrou com o

pé a bandeja para o lado e certificou que nada mudara desde o momento anterior,

o mesmo vigilante ainda assistia TV com cara de poucos amigos.

Abaixou-se, pegou o pão, deu uma boa olhada, rapidamente o atirou por

baixo da porta, para a direita. Levantou-se e viu o carcereiro indo na direção do

início do corredor, onde o pão ainda rolava, agradeceu por ser um pão

endurecido, o que acabou fazendo barulho suficiente para atrair a atenção dele.

Assim que ele passou pela frente de sua cela, ela concentrou-se no mural

marrom na parede dos fundos, fitou a primeira chave do quadro, franziu as


sobrancelhas e a chave com um pequeno chaveiro branco saiu voando na direção
da última porta, parando em frente.

— Droga!

Olhou novamente para a chave e a fez correr para dentro daquela cela,
pela abertura que havia próximo ao chão. Estava preparada para fazer o mesmo
procedimento com a penúltima cela, quando percebeu o carcereiro já voltando

para seu posto.

Deu um longo suspiro e ajoelhou-se, quase sem forças, deslizando os

braços e mãos pela porta. Tentou levantar, mas acabou fraquejando e voltando a

ficar de joelhos, voltou assim para a cama, subiu devagar e deitou-se de bruços,
ardia em febre.

— É a nossa chance... Ela tem que estar na última cela, ela estará...

Agora é com o destino, dei uma forcinha para o destino.

Fechou os olhos, se esvaia em suor e tentava se manter acordada.

— Como isso tudo dói... Se eu pego aquela desgraçada... Eu... Eu vou


pendurá-la nas macieiras do meu avô... E vou brincar de tiro ao alvo... Mas com

flechas envenenadas... Isso... Flechas envenenadas... Timo... Eu vou mostrar

onde fica o timo dela...

Os minutos passavam, o silêncio era desanimador, nada acontecia,

Jennifer começava a acreditar que havia errado de cela, ou que Anna não estava
naquelas celas, ou ainda que simplesmente não estivesse mais naquele lugar.

— Não deu certo... Preciso fazer outra coisa... Vou levantar. Ai, Meu
Deus, que dor...

Sentia as gotas de suor descendo pela sua testa, as costas pareciam estar
em chamas, as pernas com orifícios que latejavam, o peito doía.

— Acho que não estou tão mal... Consigo levantar. — Falava tentando se
convencer, mas sequer se movia. — Eu estou mal.

— Cunhada... Quem tem uma cunhada assim? Que desgraçada... Será


que vai me matar ao amanhecer? Ou vai continuar com isso amanhã? Ela está

ficando sem opções... Vai furar o que agora? Meus braços?

A noite corria e Jennifer seguia perdendo a consciência, nenhum

sussurro, nenhum ruído, apenas a espera pelo dia seguinte era o que lhe restava.

— Meus ombros... Por que doem tanto? Que... Ah, talvez por ter passado

uma tarde pendurada pelos braços... Claro... Meus ombros... Meus Deus, Anna

pode estar morta e eu aqui reclamando de dor nos ombros... Não posso dormir,
preciso jogar as chaves.

— Espero que aquela Hannibal Lecter devolva meu corpo para meu

avô... Ele vai ficar muito chateado... Meu vô... Desculpe vô... As macieiras... Eu

vou levantar... daqui a pouco... — Começava a apagar.

A porta da cela se abriu de supetão acordando Jennifer, que apenas

moveu a cabeça para ver o que acontecia.

— Meu Deus... — Anna falou com um semblante sofrido e correu até


ela, ajudando a se erguer.

— Anna. — Jennifer balbuciou, sorrindo. — Você é de verdade?

Anna a abraçou por cima de seus ombros, com euforia, a apertando

contra seu peito, tinha uma pistola na mão esquerda e com a mão direita afagava
seus cabelos.
— Desculpe... Desculpe... Desculpe... Não vou deixar mais ninguém
encostar em você. — Anna repetia baixinho com os olhos marejados, Jennifer

corria suas mãos pelas costas dela, lhe comunicando silenciosamente que estava

tudo bem.

— Você está machucada? — Jennifer afastou a cabeça, a fitando.

— Não, mas precisamos sair daqui. — Anna deslizou a mão pelo seu
rosto e limpou o sangue abaixo do nariz. — Eu vou cuidar de você, eu vou

cuidar de você, ok? Você vai ficar bem, eu prometo.

Se aproximou e a beijou nos lábios, com cuidado.

— Foi você que jogou a chave por baixo da porta?

— Para alguma coisa tem que servir ser uma raposa. — Falava tentando

evitar tremer o queixo. — Veja, tenho uma capa amarela. — Continuou.

Anna riu.

— Consegue andar?

— Bom, digamos que hoje não é um bom dia para caminhar, mas posso
tentar.

— Venha.

Anna a ajudou a levantar, passou o braço dela ao redor do seu pescoço,

dando suporte para Jennifer, e saíram da cela, olhando atentamente ao redor, o


carcereiro estava caído em frente a última cela.
— Com certeza tem outros por aqui, vamos em silêncio, vamos tentar
chegar até a guarita.

Andaram até o final daquele corredor e Anna espiou o corredor seguinte,

a esquerda, havia um sentinela dormindo despojado numa cadeira, junto a

parede.

— Vai atirar nele?

— Um tiro irá chamar a atenção, vou tentar outra abordagem. Fique aqui.

Jennifer recostou-se na parede e ficou espiando Anna andando a passos

planejados pelo corredor. Não deu a menor chance para o sujeito, aplicou-lhe

uma gravata até deixá-lo inconsciente.

Anna sinalizou com a mão, chamando Jennifer, esta apenas sussurrou.

— Me busca?

Foi até ela, lhe oferecendo os ombros como apoio novamente.

— Essa capa não me deu poderes de voar. — Falou baixinho.

— Vamos, por esse lado agora.

Chegaram até um ambiente amplo, como um grande saguão de entrada, a

saída era do outro lado, mas haviam vários corredores desembocando naquele
ambiente.

Anna ajeitou Jennifer, de forma que pudesse empunhar a arma e a


amparar.
— Pronta?

Jennifer deu o ok com a cabeça.

Se aproximaram da primeira porta que dava para aquela sala, Anna


lentamente colocou sua cabeça a frente, espiando. Estava escuro e o corredor era

longo, mas parecia estar vazio. Quando voltou sua cabeça para trás sentiu uma

mão pegando em sua arma, tentando roubá-la. Um dos seguranças havia se


aproximado por trás e as atacado, Anna lutava para manter a arma em seu poder

e Jennifer foi derrubada no chão, caindo de costas, bradando palavrões.

O forte híbrido segurava a mão de Anna para cima, com suas duas mãos,
enquanto Anna se debatia, tentando soltar-se, ambos olhavam para a pistola

como se fosse o grande prêmio. Até que Anna o encarou com uma ira visceral,

deu um grunhido com raiva e se desvencilhou das mãos dele, sem pestanejar a

empunhou com as duas mãos à sua frente e deu dois tiros certeiros na sua

cabeça.

Jennifer acompanhava a ação sentada no chão, boquiaberta e apavorada,

suava mais do que nunca, estava pálida pela perda de sangue.

— Venha, temos que sair daqui o mais rápido. — Anna se aproximou e a


levantou do chão, a deixando de pé, logo sem seguida virou-se de costas para
ela.

— Suba?

— Onde?
— Nas minhas costas. Passe seus braços aqui.

Jennifer cruzou seus braços em frente ao pescoço de Anna, deu um


impulso e passou as pernas ao redor de sua cintura.

— Segure firme, aperte suas pernas ao redor de mim.

— Tá, mas não sei se consigo, minhas pernas doem demais.

Anna correu através de toda aquela grande sala chegando até a saída,

uma porta de aço que estava trancada.

— E agora? — Jennifer perguntou assustada, aquela adrenalina havia lhe


dado uma dose extra de energia.

Anna se afastou um pouco e atirou na fechadura, depois chutou com

força a porta, que abriu-se. Chegaram até o pátio, que um dia deveria ter sido um

gramado, agora tinha apenas uma relva rala, seca e amarelada e alguma areia. De
um lado havia quatro carros estacionados, à frente uma guarita, do lado de um

grande portão de aço. Anna empurrou Jennifer para cima, a ajeitando com a mão

livre, quando começou a caminhar na direção da guarita teve que se desviar de

um tiro que veio daquela direção.

— Droga! — Anna saiu correndo para trás dos carros, com Jennifer
grudada em suas costas numa carona perigosa.

— A guarita está atirando! — Jennifer disse alto, em seu ouvido.

— Eu sei!
Anna observou por alguns segundos, esperando mais algum movimento
do outro lado, mas nada aconteceu.

— Segure firme.

Anna correu com agilidade por trás dos carros e com uma determinação e

rapidez que Jennifer nunca vira antes, chegou até a guarita, derrubando a porta

com os pés e dando três tiros no segurança que estava em seu interior.

— Ufa. — Foi o que Jennifer conseguiu exclamar, com o coração

disparado.

Anna correu o olhar afoita pelo ambiente e sobre a mesa, até ver um

pequeno quadro com as chaves dos carros penduradas. Pegou uma das chaves e
apertou um grande botão na parede à sua frente, fazendo o portão ao lado abrir

deslizando para cima. Retornou ao pátio, aproximou-se dos carros e apertou o

alarme procurando pelo carro que apitasse. Um carro vermelho mais ao canto

deu sinal, era o escolhido, Anna caminhou rapidamente até a porta do


passageiro, virou de costas e deu dois tapinhas na mão de Jennifer.

— Pode descer.

Jennifer soltou-se e acabou caindo de bunda no chão. Anna a ergueu pelo


braço, a encostou na lataria do carro e abriu a porta.

— Não, eu dirijo. — Jennifer recusou-se a entrar.

— Você não tem condições de dirigir. — Anna respondeu taxativa.


— E você não dirige.

— Eu dirijo em emergências, você mesma disse isso a Andrew.

— Não, eu dirijo, me dê as chaves. — Falou tentando pegar a chave da


mão dela.

Anna deu dois passos para trás.

— Venha buscar.

— Isso é golpe baixo. — Jennifer resmungou e acabou entrando no carro.

Anna correu para o outro lado e logo sentou-se no banco do motorista,

enfiando a chave na ignição e colocando ambas as mãos no volante.

Jennifer não conseguiu recostar-se no banco, curvou-se para frente e

apoiou-se com as mãos sobre o painel à sua frente, olhou para o lado e viu Anna

paralisada com as mãos no volante.

— Você sabe ligar, não sabe? — Jennifer perguntou.

— Só preciso de um minuto. — Anna respondeu com a respiração

pesada.

— Ok. — Jennifer continuava a fitando, aguardando.

Pousou sua mão sobre a perna de Anna, lhe fazendo um carinho.

— Você consegue, conseguiu da outra vez. — Falou com uma voz


branda.

Anna sentiu o calor da mão de Jennifer sobre sua coxa, por cima do seu
jeans escuro, aquele toque carinhoso acabou desmanchando a sensação

aterrorizante que estava sentindo. Colocou sua mão sobre a mão dela e

correspondeu ao seu olhar.

Logo já estava girando a chave e dando ré no carro, manobrou pelo pátio

e saiu pelo grande portão, não sem antes dar ré em cima de outro carro, batendo
a traseira.

— Você está indo bem... Está indo bem. — Jennifer falava tentando

esconder a apreensão.

Saíram no meio da noite daquela fortaleza dos horrores por uma pequena
estrada de terra, cercada de uma densa vegetação. Jennifer ainda deu uma

olhadela pelo retrovisor, viu a casa ficando para trás, apoiou a cabeça sobre os

braços cruzados à sua frente e fechou os olhos. Estava extremamente aliviada em

estar saindo dali, carregava consigo as marcas e as dores adquiridas, mas estava

indo embora e estava com Anna ao seu lado, viva.

— Não faço ideia de onde estamos. — Anna murmurou, estava

apreensiva olhando para frente com as sobrancelhas baixadas.

— Acender os faróis ajuda.

— Ah.

Jennifer sorriu, voltou a fechar os olhos, a adrenalina estava passando, a


cabeça voltava a pesar.

— O jeito é seguir por esse caminho e ver em qual rodovia vai dar. —
Anna olhava pela janela, tentando se localizar.

— Uhum.

— Me trouxeram num porta malas, não faço ideia que cidade seja essa.

— Nem eu.

Anna a olhou, colocou a mão em seu rosto.

— Você está com febre. Seus ferimentos devem estar infeccionando.

Jennifer deu um sorriso torto, sem abrir os olhos.

— Sempre a infecção, como no dia que nos conhecemos.

Anna lançou um olhar culpado e passou os dedos pelos seus cabelos que

pendiam, colocando para trás da orelha.

— E como no dia que nos conhecemos, eu vou cuidar da sua infecção.

Já dirigiam há alguns minutos, Anna queria mantê-la acordada.

— Onde conseguiu sua capa amarela?

— Ãhn?

— Essa capa sem superpoderes, onde conseguiu?

— Me deram.

Anna olhou o sangue que havia ultrapassado boa parte da manta,


imaginou como estariam suas costas, teve um arrepio ruim, sentia-se mal em vê-

la naquele estado.
— Você sabe que se eu pudesse tiraria todos seus ferimentos e colocaria
em mim, não sabe?

— Deixe onde estão. — Mantinha a testa recostada sobre os braços e os

olhos fechados, seguindo o sacolejo do carro.

— Eu... Eu sinto muito que tudo isso tenha lhe acontecido por minha

culpa... Você pagou por coisas que eu fiz.

— Não, por favor, sem esse papo de culpa, ok? A única culpada aqui é

aquela Mengele de saias. Você não tem culpa de nada.

Anna apenas balançou a cabeça.

— E se for pedir desculpas, que seja por ainda não ter me dado o

presente de aniversário. — Jennifer emendou.

— Ficou muito tempo na cafeteria me esperando?

— Digamos que tomei mais dois cafés.

Chegaram finalmente numa rodovia e Anna conseguiu se localizar,

estavam numa cidade próxima, dirigiram em silêncio por alguns instantes.

— Você ficou com a garçonete. — Jennifer interrompeu o silêncio, já


estava sonolenta.

— O quê?

— Sharon, a que nos atendeu hoje cedo, você ficou com ela naquela
época que estávamos dando um tempo.
— Do que você está falando?

— Tudo bem, eu também fiquei com Laura naquela época, não estou
brigando com você.

Anna lhe deu uma olhada, intrigada.

— Como você soube sobre a Sharon?

— Laura me contou.

— Ah, claro. Laura e sua grande boca.

Jennifer ficou em silêncio por um instante.

— Sharon é híbrida... Se você namorasse uma híbrida teria uma

namorada que saberia se defender.

— Não quero namorar uma híbrida.

— Uma Titan talvez?

— Não.

— Um híbrido?

— Jennifer, com todo respeito, cale a boca.

— Ok.

Anna deu uma olhada pelas janelas.

— Chegaremos logo em casa.

— Vamos para sua casa?


— É o único lugar que tenho segurança em te levar nesse momento.

— Ok, vamos para casa.

— Eu vou chamar meu médico particular, você estará em boas mãos.

Jennifer dava alguns suspiros longos, às vezes franzia a testa, apertava os


olhos, tentava lidar com as diversas dores que sentia.

Já entravam na rodovia que dava acesso à casa de Anna, chegariam em

poucos minutos, passava da meia noite e a estrada estava quase deserta.

— Jennifer? Me ouve? — Anna insistia.

— Hum.

— Está acordada?

— Hum.

— Fale comigo.

— Hum.

— Ok, não durma mais do que isso.

Finalmente estacionou o carro em frente à sua casa, desligou o motor e

deu um longo suspiro, ainda com as mãos no volante. Estava de volta à sua zona
de conforto.

Saiu do carro e foi até o lado de Jennifer, abrindo sua porta.

— Chegamos, vou te ajudar a sair. — Falou baixinho para ela.


— Hum?

A tirou do banco e colocou com cuidado sobre seu ombro esquerdo.

— Não posso te levar no colo, machucaria ainda mais suas costas, ok?

Caminhou até a porta de casa e parou em frente.

— Batatas... — Jennifer murmurou.

— O quê?

— Um saco...

— Ah, sim... É, estou carregando você igual um saco de batatas. — Anna

sorriu. — E não temos a chave de casa.

Deu um passo para trás, e com alguns chutes abriu sua porta.

Subiu as escadas devagar e repousou o corpo de Jennifer com cuidado na

cama, que rapidamente se virou quando suas costas tocaram no colchão. Anna
sentou ao seu lado pensativa.

— Como vamos tirar essa manta? — A olhava de lado, Jennifer apenas

soltava gemidos baixos.

Teve uma ideia, foi até o banheiro e abriu as torneiras da banheira.


Enquanto enchia foi até seu casaco pendurado do lado de fora e pegou seu

celular.

— Ainda bem que deixei aqui. — Pensou.

— Dr. Sullivan, é Anna, desculpe ligar para o senhor essa hora.


— Aconteceu algo com você?

— Não, dessa vez não é comigo. Mas preciso dos seus serviços com
urgência.

— Qual o tipo do ferimento?

— Lacerações e perfurações. Tem como vir aqui na minha casa agora?

— Sim, estarei aí em meia hora.

Desligou as torneiras da banheira, colocou a mão dentro da água sentindo

a temperatura e foi até Jennifer.

— Achei um jeito de tirar essa manta grudada de você. — Sussurrou, já

desabotoando a calça dela e o zíper, a tirando na sequência.

— Hum. — Respondeu baixinho.

A colocou sobre o ombro novamente e levou até o banheiro, devagar a

mergulhou dentro da água, fazendo com que ela despertasse, sem saber o que

estava acontecendo.

— O que é isso?? — Falou tentando se levantar, agitada. — Arde!

— Calma, é água, é apenas água quente, é água. — Anna a apaziguou,

segurando seu rosto com as duas mãos.

Jennifer a fitava confusa, com um semblante dolorido.

— Por que?

— É a melhor forma de limpar todo esse sangue em você e tirar a manta


de suas costas.

— Capa.

— Desculpe, capa.

— Arde, isso arde... — Falou se deitando devagar na banheira.

— Eu sei... Recoste a cabeça na borda da banheira, vou pegar uma toalha


para limpar seu rosto.

Soltou um grito de dor.

— Não dá! Arde muito! — Falou se erguendo.

Anna voltou rapidamente, agachando-se ao lado.

— Tudo bem, volte para frente, venha cá. — Anna a abraçou, trazendo

sua cabeça com a mão para perto do seu rosto e aproveitando para dar uma boa
olhada em suas costas.

Jennifer permaneceu assim, sentada dentro da banheira, inclinada para

frente abraçando suas pernas, com os olhos baixos, sonolentos.

— Está soltando, vou molhar devagar para soltar o resto, ok?

Jogou alguma água com as mãos em suas costas e finalmente conseguiu


remover o pano.

— Pronto, já vou te tirar daqui. Olhe para mim.

Molhou a toalha na banheira e limpou o sangue no rosto dela, com

cuidado, passou na sua bochecha e Jennifer virou o rosto, incomodada com a


dor.

— Está inchado deste lado. — Anna constatava.

Jennifer apenas confirmou balançando a cabeça.

Anna logo terminou e a levou de volta para a cama, a vestindo apenas


com uma calça de flanela azul escuro. Em minutos Dr. Sullivan já estava no

quarto, um senhor que aparentava seus setenta anos, alguns poucos fios brancos

restavam no alto da cabeça, parecia bastante solícito, a cumprimentou e largou

uma grande bolsa preta em cima do criado mudo.

— O nome dela é Jennifer. — Anna falou quando ele se aproximou da

cama, sentando-se ao seu lado.

— Olá, Jennifer, está acordada?

Apenas abriu um pouco um olho, tentando identificar quem era.

— Eu sou o Dr. Sullivan, se preferir pode me chamar de Raymond. Pelo

visto andou se metendo em uma encrenca das grossas, hein? — Falou com a voz
calma, já colocando delicadamente as mãos em suas costas, a examinando de

perto.

— Se algo que eu fizer doer, me avise.

— Tá bom... — Murmurou.

— Ela está com febre. — Anna falou.

— É, está sim, mas vamos limpar bem isso, alguns pontos, alguns
remédios, e ela vai ficar bem. — Respondeu otimista.

Pegou dezenas de coisas da sua maleta, deixou outras preparadas, aplicou


anestesia local em alguns pontos, pouco a pouco foi cuidando de suas costas e

suturando onde necessário. Anna acompanhava atenciosamente tudo, de pé

recostada numa cômoda, com os braços cruzados.

— Está acabando? — Jennifer praticamente implorava.

— Sim, estou terminando o último.

— Tem outras coisas na frente também. — Anna o advertiu.

— Ok, então me ajude a virá-la, a segure de lado.

O médico tentou virar seu corpo para a esquerda e ela rapidamente

reclamou.

— Não, não!

— Tem uns cortes desse lado. — Anna o impediu, então a viraram para o

lado direito.

— Um V? — Ele olhou curioso.

— Nem me pergunte...

Alguns longos minutos, muitas gazes ensanguentadas no lixo e curativos

devidamente feitos depois, ele havia enfim terminado seu serviço e tirava alguns
comprimidos de sua bolsa.

Anna olhou os frascos em cima do criado mudo e o chamou para a


sacada.

— São analgésicos e remédios para dormir, não são? — Anna o


questionou.

— Sim, entre outras coisas.

— Não vão adiantar.

— Por quê?

— Ela está acostumada a coisa muito mais forte que isso.

— Bom, eu também tenho coisas bem mais fortes dentro da minha bolsa,

vou dar estes então.

— Ãhn... Espera, não sei se é uma boa ideia. Ela teve problemas com

isso recentemente.

— Problemas

— É, esses problemas.

— Mas ela precisa de analgésicos.

— Eu sei... Tudo bem, dê o que o Sr. tiver de mais forte, chega de dor por

hoje, se possível faça com que ela apague.

— Farei isto, só acordará amanhã.

Após tomar um coquetel de remédios de tarjas de todas as cores, Jennifer


finalmente desligou. Dr. Sullivan ainda deixou as últimas instruções e o

receituário.
— Troque todos os curativos três vezes por dia, inclusive os das costas,
use e abuse da pomada para que nada grude nos cortes. Ela teve sorte, não teve

perfuração no pulmão.

— Não? Mas ela tossiu sangue.

— Pelo que examinei não há líquido no pulmão, ela deve ter tossido

sangue que já estava na boca.

— Menos mal.

Dr. Sullivan terminou de guardar suas coisas e se dirigiu à porta,

acompanhado de Anna.

— Já faz algum tempo que você não me procura. Não, não estou

reclamando. — Sorriu. — É um bom sinal, você costumava precisar dos meus

serviços quase todos os meses e já tem um bom tempo que não me chama, se

não me falha a memória, a última vez que atendi você foi no final do ano

passado.

— Eu não tinha me dado conta disso. — Anna respondeu com um sorriso

meio torto.

— Bom sinal, significa que você não tem se ferido. Não tem mais feito
aquelas missões?

— Tenho sim, mas arranjei um anjo da guarda.

— Que bom... Ah... Entendi, ela? — Apontou com a cabeça para


Jennifer.

— Sim.

— Melhoras para seu anjo então, se amanhã a febre não passar me ligue
novamente.

Agora eram apenas as duas no quarto, Anna se aproximou da cama, ficou

algum tempo a observando, pensativa. Tomou um banho, vestiu-se, e sentou-se

ao lado dela na cama. Deslizava a mão por seu ombro, seguiu pelas costas até o

outro ombro, sentia a pele quente sob seus dedos. Subiu sua mão pela nuca e

afagou seus cabelos enquanto a via dormir, agora com um semblante pacífico,
aliviado.

— Já volto. — Sussurrou em seu ouvido e deu um longo beijo no canto

da sua testa.

Vestiu sua jaqueta preta e desceu as escadas com o celular na mão.

Entrou na oficina e fez uma ligação.

— Max? Desculpe te perturbar esta hora.

— Aconteceu alguma coisa?

— É, aconteceram algumas coisas, mas agora já está tudo sob controle.

— Eu esperei você hoje de manhã na loja.

— Aconteceram coisas... Eu prometo que conto tudo para você depois,


preciso de um favor seu.
— Mande.

— Preciso que você se livre de um carro para mim.

— Onde ele está?

— Está aqui em casa, um carro vermelho, preciso que dê um jeito nele. E


preciso de um endereço também.

— Onde você pretende ir à essa hora?

Fez uma pausa antes de responder.

— Ao inferno.
Capítulo 36 – Um tiro de misericórdia

— Max... Preciso que você me prometa uma coisa. Se eu não te ligar

dentro de três horas quero que você venha até minha casa e leve Jennifer com

você, ela vai precisar de cuidados médicos, leve para bem longe e tome conta

dela. Você me promete isso?

— Em que você está se metendo, Anna?

— Eu não posso te explicar agora, preciso agir rápido.

— Ok, sei que não vai adiantar tentar te persuadir do contrário. Eu

prometo, mas não faça nenhuma besteira por impulso.

Anna desligou o telefone e pegou uma mochila de couro dentro de um

armário no alto. Guardou nela algumas coisas e fechou o zíper. Tirou o casaco,

vestiu seu coldre e colocou uma arma de cada lado, uma com silenciador e outra

sem. Voltou a vestir a jaqueta, colocou a mochila nas costas, pegou o capacete e

levou a moto para o lado de fora da casa. Fazia tudo com um semblante
compenetrado, parecia um ritual.

Saiu com sua moto em alta velocidade, minutos depois já estava na


cidade vizinha, num bairro nobre, repleto de grandes casas e algumas mansões.

Andava devagar por uma das ruas, olhando ao redor, procurando por uma casa
em especial, até encontrar o que queria.

A vizinhança estava em silêncio, apenas algum latido distante era ouvido.


A casa branca tinha um muro não muito alto, com um portão pesado, pomposo.

Anna adentrou pelos fundos e logo já estava dentro da casa de Vivian, olhando
atentamente ao redor, numa sala de estar grande rodeada de vidraças altas.

Seguiu para uma sala menor, igualmente clara, com móveis e decoração na cor

branca, bem diferente daquela sala negra onde elas haviam sido torturadas. Ao
encontrar a larga escada, encontrou também um segurança distraído que

caminhava pelo corredor, escondeu-se rapidamente atrás de um pilar, o

aguardando. Sacou uma de suas adagas e a empunhou junto a sua perna, ouvia

atentamente seus passos lentos, até finalmente abordá-lo na surdina, tapando sua
boca com a mão direita e cravando a adaga em seu peito com a esquerda.

Retirou rapidamente a lâmina, limpando o sangue na roupa do próprio

capataz desfalecido no chão. Não queria perder tempo, subiu logo as escadas

com passos apressados, chegando num corredor com poucas portas, que

desembocava numa grande janela que ocupava toda a parede. Abriu a primeira

porta e viu um homem dormindo numa grande poltrona, com a cabeça caída para
trás, o reconheceu. Guardou a adaga, sacou uma pistola com silenciador de seu

coldre de dentro da jaqueta, entrou devagar, pé após pé, o fitando. Aquela não
era uma missão comum, a raiva em seus olhos e a frieza em seus movimentos

faziam toda a diferença. Naquela noite Anna era, como disse uma vez Jennifer,
uma máquina de matar.

Assim que ficou em frente àquele homem ele acabou acordando, num
gesto rápido Anna cobriu sua boca e encostou o cano do silenciador na testa
dele, lançando um olhar fulminante. Novamente estava decidida a não perder
tempo, o encarou dentro dos seus olhos e murmurou.

— Sith, um golpe.

Ele teve tempo apenas para arregalar os olhos, ela efetuou o disparo,

matando o carrasco de sua namorada.

Voltou ao corredor e abriu delicadamente a segunda porta, a claridade

entrava pelas janelas e iluminava Vivian dormindo numa grande cama, de lado,

com lençóis brancos até a altura do peito.

A observou por um instante, os cabelos negros e brilhosos caídos sobre o

travesseiro, sem ideia da presença de Anna em seu quarto.

— Esse ar arrogante... Mesmo dormindo. — Anna constatava.

Se aproximou mais um pouco e empunhou a arma.

— Acorde, Vivian, não quero matá-la dormindo. — Falou com a voz

firme de pé em frente a cama, apontando sua arma para ela com as duas mãos.

Acordou assustada, puxando o lençol para cima.

— Não sou covarde como você. — Anna continuou.

— Mas... O que faz aqui?? — Vivian perguntava incrédula.

— Você deveria ter ouvido a garota, deveria ter aceitado a proposta de


sentar e conversar quando teve oportunidade. — Anna falava calmamente, mas
dominada por uma ira pulsante dentro de si.
— Como fugiu da minha fortaleza?

Anna deu um sorriso com o canto da boca.

— Ou talvez você devesse ter me ouvido quando pedi para deixá-la ir


embora. Ela nos tirou de lá, você subestimou minha pequena humana, foi assim

que você a chamou, não foi?

— Tenho certeza que podemos resolver isso com essa arma abaixada,

Anna, abaixe isso. — Vivian falou estendendo a mão, já sentada, tinha um

semblante nervoso.

— Eu não vou atirar em você, não se preocupe, mas vou manter a arma

apontada apenas para que você não tente nenhuma gracinha.

— Eu? Eu não faria isso. Vamos lá, deixe-me colocar uma roupa,

podemos ir lá embaixo conversar, eu posso te dar garantias que não farei mais

nada com vocês, as deixarei em paz.

— Você não vai a lugar algum, cunhada. — Falou o ‘cunhada’ com certo

deboche.

Anna tirou a mochila das costas e colocou sobre a cama, tirou dos bolsos
de trás da calça dois pares de algemas, enquanto isso Vivian fez um movimento
rápido na direção do criado mudo ao seu lado. Anna correu e a impediu.

— Boa tentativa. — Anna falou apontando a arma para ela e abrindo a

primeira gaveta, avistando uma arma e um outro objeto que chamou sua atenção,
prontamente pegou ambas as coisas e colocou no bolso de sua jaqueta.
— O que você vai fazer? — Ela perguntou assustada, olhando as
algemas.

Anna olhou ao redor, como se procurando algo específico, parou o olhar

então na cabeceira da cama, de ferros grossos e retorcidos.

— Acho que vai servir. — Falou já prendendo o pulso esquerdo de

Vivian à cabeceira, prendeu mais uma algema no mesmo pulso, em outra parte
metálica.

— Duas, para garantir. — Deu um puxão com força, testando a

resistência daquela estrutura metálica.

— Pare com essa besteira, Anna, eu não fiz nada a você, me solte, já
disse, resolvemos isto de outra forma. — Falou puxando seu pulso, sem sucesso.

Anna voltou à frente da cama, guardou a arma no coldre, abria a mochila

sem pressa.

— Como pode essa humana ser mais importante que sua própria espécie!

Como você ousa defendê-la desta forma??

Anna interrompeu o que fazia e a fitou com faíscas de raiva saltando de


seus olhos.

— Chega, Vivian.

— É só uma porcaria de uma humana insignificante, Anna, não enxerga

isso?? Eu te poupei, e agora você veio me torturar a troco de quê?


Anna se aproximou dela com passadas rápidas e encostou a arma entre
seus olhos.

— Vivian, eu não vou te torturar, não vou encostar nenhum dedo em

você, não te farei um arranhão sequer. — Falou num misto de ira e sarcasmo.

Voltou à mochila e tirou de dentro um galão com gasolina, deixando

Vivian em pânico.

— Você ficou louca??

Anna não respondeu, apenas começou a espalhar o combustível pelo

quarto, compenetrada, com uma frieza que deixava Vivian cada vez mais

desesperada, tentando novamente soltar-se das algemas, agora suava.

Postou-se ao lado da cama e despejou o restante do líquido pelos lençóis

e pelo corpo dela, jogando o vasilhame vazio no chão por fim. Vivian

acompanhava cada movimento com um olhar tenso, depois com seu braço livre

tentou novamente puxar o pulso algemado.

— Anna, temos que preservar nossa espécie, por isso não te fiz nada, eu

nunca faria nada a você! Você fez parte de nossa família, não pode fazer isso
comigo! — Vivian dizia agitada.

Foi novamente até a mochila e pegou uma caixa de fósforos.

— Se eu fosse você não faria isso, vai machucar seu pulso. — Anna

disse.
— Me solte! O que você quer que eu faça?? Que eu peça desculpas? Me
diga, o que você quer de mim?? Você já tirou tudo de mim! E eu não fiz nada a

você!

— Você mexeu com a pessoa errada. — Falou abrindo a caixa de

fósforos.

— Não me deixe aqui!

— Ah, claro, já ia esquecendo. — Anna guardou a caixa de fósforos,

tirou uma outra arma de dentro de sua jaqueta.

— Quando o fogo chegar até você, tenho certeza que você desejará a

morte, por isso vou deixar esta arma com você. — Fez menção de jogar a arma
para ela, mas parou o movimento.

— Mas se eu fosse você tomaria cuidado para não errar o tiro, tem

apenas uma bala aqui dentro.

Guardou a arma no cós da calça, tirou novamente a caixa de fósforos,

riscou o palito e jogou no sofá ao lado da cama, que iluminou-se em chamas em

segundos.

— Anna! Em nome dos velhos tempos! Me solte! — Vivian se debatia.

Anna a fitou mais uma vez, ainda dominada por uma raiva que lhe
acelerava o coração.

— Vá a merda, Vivian.
Lançou a arma para ela e saiu pela porta.

— Anna! Sua vadia! Volte aqui! Eu deveria ter matado vocês duas
quando tive a oportunidade!

Anna desceu calmamente as escadas e a voz de Vivian já não podia ser

mais ouvida, passou pelas salas e saiu da casa, chegando até o quintal, na lateral.

Observou por alguns minutos lá de baixo o fogo consumindo o quarto, as


labaredas amarelas chegando até a janela, a fumaça aumentando de volume.

Logo depois pode ouvir o estampido de um revólver. Virou as costas e seguiu

para sua moto.

Estacionou a moto em frente à sua casa, o carro vermelho já não estava

mais lá, a fechadura estava consertada. Subiu rapidamente as escadas e foi até a

cama, onde Jennifer dormia pacificamente e desajeitada. Tirou calmamente suas

luvas de couro e passou sua mão pelos cabelos dela, agachada ao seu lado, agora

aliviada. Sentiu em sua testa apenas um suor frio, a febre havia diminuído,

ergueu-se após vê-la suspirando.

Se dirigiu até a varanda, jogou a jaqueta displicentemente em cima da


cômoda e ligou para Max, o tranquilizando. Em seguida tomou um banho e

colocou suas roupas de dormir, mas apesar do cansaço não conseguiria


adormecer. O sol nascia tímido, ela fechou as persianas da varanda e caminhou

até o sofá de almofadas verdes em frente a cama. Permaneceu ali, apenas


olhando sua namorada dormindo de bruços, esfregou as mãos no rosto, ainda
assimilando a série de acontecimentos por qual havia passado.

Jennifer mexeu-se, mudando um pouco de posição, viu duas manchas


vermelhas nos lençóis, dos ferimentos em suas pernas. Anna balançou a cabeça

incomodada, franziu a testa, era perturbador vê-la daquele jeito por sua causa,

sentia-se mais revoltada com si própria do quem com Vivian.

Apoiou os cotovelos nos joelhos, colocou as mãos no rosto e chorou.


Permitiu-se chorar naquele silêncio solitário, segurando os soluços para não

acordar Jennifer, as lágrimas vinham com mais rapidez do que conseguia

enxugar. Por alguns instantes deixou todo aquele terror que sentia se esvair,

talvez não percebesse, mas alguma coisa havia mudado dentro dela depois

daquilo tudo, porém naquele momento apenas havia baixado suas defesas.

— Você está chorando? — Jennifer perguntou num sussurro sonolento.

Anna ergueu a cabeça surpresa, enxugou o rosto com gestos rápidos.

— Não, não estou não. — Respondeu baixinho.

Jennifer mantinha os olhos abertos com dificuldade, tentava a fitar.

— Vem cá.

Anna hesitou por um momento, mas levantou-se do sofá e sentou-se na

cama, colocando a mão na testa de Jennifer.

— Como se sente? — Anna perguntou.

— Como um bife malpassado.


Anna apenas sorriu de leve.

— Tudo bem se você quiser chorar. Todo mundo chora. Eu também


chorei, não foi? — Mesmo de bruços Jennifer tentava olhar para Anna, sentada

ao seu lado.

— Foi... Mas você foi bem valente.

— Você pediu para ser valente. Por falar nisso, ela vai nos procurar

quando o sol raiar. — Jennifer mudou para uma expressão preocupada.

— Não se preocupe com isso agora, descanse.

— Temos que fazer algo. Você vai tomar alguma providência?

— Vou sim, mas não se preocupe, ok? Está tudo sob controle.

Jennifer tentava se virar, com dificuldade.

— Deixa que eu te ajudo, quer ficar de lado?

— Isso. Cansei de ficar de barriga para baixo.

— Pronto. Não dói assim de lado?

— Dói o tempo todo. — Fez um semblante dolorido.

Anna se ajeitou na cama e passou a correr seus dedos pelos cabelos de


Jennifer.

— Daqui a pouco você toma mais remédios, tá bom?

— Você já dormiu? — Jennifer perguntou.


— Ainda não. Mas acho que você deveria voltar a dormir. Onde dói
mais?

— As costas latej... — Jennifer interrompeu o que falava a franziu as

sobrancelhas, olhando na direção da cômoda, onde estava a jaqueta de Anna.

— Minha pulseira. Minha pulseira está no bolso da sua jaqueta, a

pulseira que Vivian levou com ela! — Olhou assustada para ela. — Anna, como
que... Onde você estava?? — Tentou se levantar, ficando apoiada no cotovelo.

Anna ficou sem ação e sem palavras, nem sabia por onde começar a

explicar.

— Você saiu enquanto eu dormia? — Jennifer insistia.

— Eu precisava resolver isso antes que ela descobrisse a nossa fuga.

— O que você fez? — Jennifer perguntava atônita.

— Eu fui até a casa de Vivian. — Anna respondeu cabisbaixa.

— Sozinha?

— Eu e Paty.

— Anna...

— Eu precisava resolver isso.

— Você a matou?

Anna demorou a responder.


— Mais ou menos.

— Como se mata uma pessoa mais ou menos, Anna? Ela virou zumbi?

— Ela está morta, estamos livres. — Anna tentava não se prolongar, ela
sabia que aquilo tudo havia sido mais do que autodefesa, havia sido vingança.

Jennifer balançou a cabeça, assimilando, não sabia ao certo se estava de

acordo com aquela atitude impensada de sua namorada, mas de certa forma

estava aliviada.

— A torturou? — Seu corpo ainda estava cansado, deitou-se novamente,

de lado.

— Não.

— Você se arriscou, não deveria ter ido sozinha, imagina se... Imagina...

— Não completou a frase.

— Se acontecesse algo Max viria te buscar. Mas deu tudo certo, agora

estamos seguras, não pense mais nisso. Esqueça ela, ok? Tente dormir.

— Não se machucou?

— Não, está tudo bem, acredite em mim. — Anna aproximou-se e beijou


demoradamente sua testa. — Fique tranquila, não sairei mais do seu lado.

Jennifer ficou em silêncio, pensativa.

— Ninguém virá atrás de nós, então?

— Não, ela tocava os negócios sozinha. Preocupe-se apenas com você e


sua recuperação agora, durma. — Falou levantando-se da cama.

— Onde você vai?

— Tenho algumas coisas para ver.

— Venha dormir... — Falou com a voz mansa.

— Ainda não, tenho que ver o que tenho de material para curativo,
remédios, o que comprar daqui a pouco, essas coisas. — Falou já indo para o

banheiro.

— Anna?

— Sim?

— Fica aqui, fica aqui pertinho de mim um pouco.

Anna sorriu e suspirou.

— Claro.

Voltou para a cama e deitou debaixo da coberta ao lado de Jennifer, de


frente para ela.

— Posso ver tudo isso depois. — Colocou a mão em seu rosto, passou os

dedos num corte em seu lábio e num corte na maçã do rosto, onde estava
avermelhado.

— Está na hora da guerreira descansar. — Jennifer disse.

— A guerreira que não impediu tudo isso...


— Psss. — Jennifer colocou o dedo sobre os lábios dela.

— Eu gostaria de ter ido com você. — Continuou.

— Não, isso era entre mim e Vivian. — Anna falou séria.

— Vingança?

— Era necessário... Mas de certa forma também foi vingança. Olha o


estrago que ela fez em você, eu não poderia deixar barato.

— Estrago? — Jennifer tentou olhar suas costas por cima do ombro, com

uma expressão preocupada.

— Foi modo de falar.

— Tá muito feio?

— Não... Quer dizer... Um pouquinho, mas vai cicatrizar, não se


preocupe com isso agora, eu vou cuidar da melhor forma possível.

Jennifer baixou os olhos pensativa e um pouco entristecida.

— Eu imagino que deve estar parecendo arte abstrata... Estou parecendo

um queijo suíço surrado.

— Não, não está não.

— Você vai continuar me olhando como antes?

— Hey. — Anna pousou a mão em seu rosto. — Não pense nessas


besteiras, ok?
Jennifer balançou a cabeça, Anna ergueu seu queixo com o dedo
indicador, para que ela a olhasse.

— Quando você entrou na minha casa, quer dizer, quando você invadiu a

minha casa eu juro, a primeira coisa que eu pensei foi que estava vendo a garota

mais linda que já havia visto em toda minha vida. E não imaginava que você
poderia ficar ainda mais bonita com o passar do tempo, hoje eu tenho a mulher

mais linda e perfeita que eu jamais poderia imaginar ter ao meu lado, aqui, bem

na minha cama.

Anna se inclinou na direção dela e beijou seus lábios, no início com

cuidado, mas Jennifer logo passou sua mão por trás de sua nuca e a puxou para

um beijo mais profundo, que Anna correspondeu deixando as reservas caírem

pelos lençóis.

***

As dez da manhã elas foram acordadas pelo toque do celular de Anna,


que não reconheceu o número, mas atendeu mesmo assim.

— Alô?

— Onde você enfiou a minha neta?

— Sr. Stuart?

Jennifer esticou o braço, pedindo da cama o celular.

— Como ela passa o dia do aniversário inteiro sem atender o celular? E


você também?

— É que... O senhor quer falar com ela agora?

— Por gentileza.

Anna prontamente lhe entregou o aparelho.

— Vô? Eu...

— Você sumiu!

— Eu sei, eu tenho uma boa explicação.

— Estou ouvindo.

— Fomos... Num parque de diversão, num local que não havia sinal, era

um local distante.

Anna balançou a cabeça em reprovação, franzindo a testa.

— O dia inteiro num parque?

— É, daqueles super parques, que tem atrações noturnas inclusive.

— Ouvi falar que ainda não reconstruíram os parques na América.

— Ah, é? Mas esse já reconstruíram, é novinho em folha.

Anna colocou a mão na testa.

— Essa história está muito mal contada, mas tudo bem, estou mais
tranquilo que finalmente consegui falar com você. A propósito, feliz aniversário,

Jenny, gostou do carro?


— Que carro? Ah, claro! Adorei o carro! É lindo e enorme, deve ter
custado uma fortuna, não precisava, vô.

— Posso trocar por um menor.

— Não! Não troque! Adorei esse, obrigada mesmo.

— Que bom que gostou. Bom, de qualquer forma o pessoal do clã vai na

sua casa hoje ou amanhã te fazer uma visita, vão levar um presente ou algo

assim.

— Que dro... Que legal! Tem como avisá-los que não estou em casa?

— Onde você está?

— Na casa de Anna.

— Os avisarei.

— Mais uma vez obrigada, vô, o carro é fod... O carro é incrível!

Após desligar, Jennifer jogou o celular no criado mudo e olhou assustada

para Anna.

— Precisamos buscar o carro no Centro.

— Como ele conseguiu meu número?

— Que merda, aqueles engomadinhos vem me visitar, como vou recebê-

los assim?

— Meu celular agora está na lista telefônica, por acaso?


Pararam de falar e se entreolharam.

— Ok, vamos unificar nossas conversas. — Anna disse.

— É, é uma boa ideia. E antes de qualquer coisa, pelo amor de Deus, me


dê analgésicos.

— Já vou pegar. — Se aproximou da cama e lhe entregou um beijo. — E

depois vamos trocar os curativos.

Alguns minutos depois Anna estava sentada ao seu lado, trocando os

curativos de suas costas, já havia retirado todas as gazes e começava a limpar,

quando ouviu a campainha tocando.

— Ah não... Não podem ser os enviados do meu avô. — Jennifer

resmungava, ouviram novamente a campainha tocando, agora com vigor.

— Melhor eu atender.

Anna saiu em disparada para o andar de baixo.

— Becca? — Falou surpresa ao abrir a porta.

— Jenny está aqui? — Falou já entrando pela sala.

— Sim, está.

— Ela sumiu ontem, sempre passamos o aniversário dela juntas, ela

fugiu de mim de propósito?

— Não, claro que não. Tivemos uns... Probleminhas, passamos o dia fora
da cidade, só isso.
— Ela está lá em cima?

Anna hesitou antes de responder.

— Ãhn... Está.

Becca se dirigiu para as escadas, Anna a segurou pelo braço.

— Espere.

— Por que? Não posso subir?

— É que... Aconteceu um incidente.

Becca então percebeu os dedos ensanguentados de Anna e arregalou os

olhos.

— Meu Deus, você matou Jennifer!! — E saiu correndo para a escada.

Anna novamente a segurou, agora pelos dois braços.

— Eu não matei ninguém! Só espere um momento!

— O que você fez com ela?? Por que eu não posso subir?

— Eu não vou impedi-la de subir, tenho certeza que ela vai gostar de te
ver, mas me escute primeiro... Aconteceram algumas coisas, ela se machucou, eu

estava trocando os curativos quando você chegou, então talvez a visão não seja
das melhores, mas não faça alarde, ok? Ela vai ficar bem.

E Becca saiu correndo escada acima.

— Becca? Estava querendo mesmo falar com você. — Jennifer falou


tentando se virar na cama.

— Santo Cristo, Jennifer! Onde você esteve? Num açougue?? No


massacre da serra elétrica?? — Becca circulava a cama, arregalada.

— Não se impressione, estou bem. Olha só, sobre aquele dia com Jim, no

aniversário de Anna, tentei falar com você todos esses dias, desculpe, sei que

pareceu outra coisa, mas...

— Jenny, sério, cale a boca.

— Mas que coisa, dá para vocês pararem de mandar eu calar a boca? —

Desistiu de se inclinar para cima, afundando a cabeça no travesseiro.

Becca sentou-se na beirada da cama, ao seu lado, deu mais uma boa

olhada em suas costas e passou a afagar seus cabelos, pondo para trás da orelha.

— Não está chateada comigo? — Jennifer desafundou o rosto, a olhando


de lado.

— Claro que não. Mas quem fez isso com você, baby? Que absurdo foi
esse?

— Uma louca aí... Mas não é tão ruim quanto parece, ela escolheu uma
região delicada, só isso.

— E você nada? Onde você estava? Não tentou impedir? — Becca


perguntou olhando para Anna, que estava de pé ao lado da cama.

— Eu tentei, mas não pude fazer nada. — Respondia incomodada com si


própria. — Jennifer, posso continuar?

— Claro, cubra logo isso.

Anna sentou-se do outro lado da cama e continuou com os curativos,


enquanto Becca acompanhava.

— Quem fez isso?

— Deixa pra lá, eu vou ficar novinha em folha. Então, quando vamos

beber para comemorar meu aniversário?

— Você não pode beber. — Anna murmurou.

— Você permitiu que fizessem isso com ela e agora quer dizer o que ela

pode ou não pode fazer? — Becca falava com energia.

— Hey, relaxa. — Jennifer tocou no braço de Becca. — No final de

semana nós vamos ao pub e faremos um brinde com algo sem álcool, ok?

— É por causa dos remédios. — Anna olhava meio assustada, então

voltou aos curativos.

— É que... Do que adianta você namorar com uma híbrida, que


supostamente é alguém que pode te defender desse tipo de coisa, que é mais
forte que você, se quando você precisa ela não te ajuda? — Becca falava com

irritação. — Veja seu estado!

— Nós caímos numa armadilha, Anna não teve culpa de nada, e se eu


estivesse sozinha não estaria aqui agora para te contar a história...Au! —
Jennifer interrompeu o que falava e deu um gemido.

— Desculpe, esse é o mais profundo. — Anna respondeu. — Mas foi o


último. Pode virar de lado se quiser. — Falou a cobrindo até os ombros com uma

coberta leve.

Jennifer virou-se de lado, puxando a coberta até o pescoço.

— Sobre aquele lance, esqueça, Jim já me explicou tudo. — Becca disse.

— Então por que você não abriu a porta da sua casa para mim todos

esses dias?

— Eu estava viajando com Jim, ele me levou para conhecer a mãe dele

na Escócia.

— Sério? Que massa! Gostou da Escócia e aqueles caras usando saia?

— Becca? Você pode tomar conta dela enquanto vou ao Centro comprar

algumas coisas? — Anna interrompeu.

Algumas horas depois Anna retornou e Becca despediu-se de sua amiga

em seu leito.

— Está tudo bem? — Jennifer a questionava, deitada de lado, com uma


expressão leve.

— Sim, está na hora de alguns remédios. — Anna andava pelo quarto.

— Que bom, estou morrendo de dor.

— Te darei os mais fortes.


— Desculpe por Becca, pelas coisas que ela falou.

Anna sentou-se ao seu lado, com um copo d’água e alguns comprimidos.

— Ela não falou nada demais. Tome.

— Mas vamos comemorar meu aniversário, não vamos?

— Claro, quando você estiver melhor vamos comemorar adequadamente,


vamos sair, fazer algo.

— Só não vamos naquele café nunca mais.

— Por que? não gostou de lá?

— Não gostei da garçonete.

— E aquele seu discurso de ‘não sou ciumenta’?

— Não sou, mas ela estava enchendo nosso saco.

— Não notei.

— Ela estava praticamente comendo você com os olhos! Perguntando

mil vezes se você queria alguma coisa. E você, toda sonsa do meu lado. — Falou
dando um soco de leve na perna de Anna.

— Hey!

— Se fazendo de morta... ‘Só conheço de vista’. — Imitou a voz de


Anna.

— Eu achei que havia terminado.


— Terminado o que, mulher?

— Nós, achei que eu estava solteira, só por isso fiquei com ela naquela
época.

— Aff.

— E você estava falando sobre eu namorar híbridas, Titans...

— Eu estava ardendo em febre, não conta.

— Que pena, já estava considerando as possibilidades. — Anna deu um

sorrisinho.

— Você tem algum antiácido aí? Essa conversa está me dando azia.

— Então vamos mudar de assunto. — Anna tirou um embrulho de trás de

suas costas.

— O que é?

— Abra.

Jennifer abriu avidamente e tirou uma câmera fotográfica

semiprofissional de dentro da caixa.

— Igual a de meu pai! — Falou com um sorriso imenso, feliz.

— Como você havia mencionado uma vez.

— Caramba, que memória você tem!

— Acertei o modelo?
— Sim! É exatamente igual a câmera dele e que eu usei, até quebrar. —
Mexia na câmera de um lado para outro.

— Está prontinha para usar.

Jennifer a encarou com um sorriso carinhoso e a puxou pelo braço, para

um beijo.

Preparou a câmera e tirou uma foto dela.

— Esqueci de avisar, não gosto de fotografias.

— Que pena. — Jennifer sorriu com sarcasmo. E tirou outra foto.

Olhou no visor da câmera.

— Menina, e não é que você é fotogênica?

Anna sorriu e balançou a cabeça.

— Me faz um favor? — Jennifer pediu.

— Sim.

— Me arranja uma camisa ou algo do tipo?

— Para?

— Quero ir na sacada.

— Para?

— Tirar fotos do mar.

Anna apenas a olhou.


— Você acha mesmo que vou passar o dia inteiro nessa cama?

Ela sabia que não adiantaria argumentar com Jennifer, foi buscar uma
camiseta grande a ajudou a vestir.

— Consegue andar?

— Claro. Mas segure a câmera.

Anna a ajudou a levantar da cama, e prontamente Jennifer despencou de

frente no chão.

— Jennifer!

— Ok, vamos tentar de novo. — Jennifer fora ajudada por Anna a se

erguer do chão e apoiando-se nela chegou até a sacada.

— Obrigada. baby.

— Se machucou?

— Mais? — Riu. — Veja só, esse oceano meio verde meio azul

esperando para ser fotografado pelo queijo suíço aqui, eu não poderia perder

isso. — Falou já com a câmera a postos.

Anna apenas a observava, de lado. Jennifer parecia melhor, ela estava

impressionada com sua recuperação, estava aliviada com isso, mas algo a
incomodava lá no fundo, lá dentro de si algo dizia que as coisas não estavam

nada bem, sentia um misto de culpa e temor, mas não entendia direito o que
acontecia.
À noite Jennifer havia acabado de adormecer e Anna a observava da
sacada, recostada no parapeito, com um semblante apático. O bip do celular

chamou sua atenção, leu a mensagem de Max e ficou alguns instantes pensativa,

olhando a tela do aparelho.

— Missão para você na terça e na sexta da semana que vem, posso


confirmar?

Titubeou com o celular na mão, com os dedos nas teclas, relanceou os

olhos para Jennifer, e digitou a resposta.

— Estou fora. Para sempre.


Capítulo 37 – Preocupação

Na tarde seguinte Anna perambulava por sua oficina, havia passado

pouco mais de duas horas organizando o local, agora procurava por algo para se

ocupar, olhava algumas adagas inacabadas sobre a bancada, mas não sentia a

menor vontade em tocá-las.

Desistiu de sua oficina, resolveu ir ver Jennifer, subiu as escadas e não a

encontrou na cama. Seguiu até o banheiro, colocou ambas as mãos nos batentes

da porta, olhando para seu interior, mas também não a viu. Empurrou para o lado

a porta de vidro da sacada e nada de Jennifer por ali. Instantaneamente teve uma

sensação ruim subindo em seu peito, desceu rapidamente as escadas e a procurou

na cozinha, mesmo tendo passado por ali quando saiu da oficina, poderia ter a
ignorado sem querer. Mas ela não estava lá também. Olhou quarto por quarto,

cômodo por cômodo, afoita, batendo portas. Voltou à oficina, mas nem sinal dela

pela casa, nenhum ruído, nada quebrado, nada alterado que percebesse.

Parou no meio da sua grande sala com a respiração rápida, forte, olhando
ao redor, não fazia ideia de onde mais a procurar, nem por onde começar a

buscá-la fora dali. O dia estava abafado, ela suava e sua regata branca já estava
molhada na região acima dos seios e nas costas. Aquilo que começara como

sensação ruim virara um terror sufocante agora.

Pensou no óbvio, que talvez Vivian tivesse forjado sua morte ou alguém
ligado a ela tivesse tramado alguma represália, resolveu ir até a casa dela. Correu

até a oficina e abriu a porta de deslizar para tirar sua moto. Quando fazia isso
percebeu algo que lhe chamou a atenção, parou de empurrar a porta e passou a

observar algo no mar.

Então reconheceu aquele ponto quase loiro caminhando dentro d’água.


Era Jennifer. Andou até a beirada do paredão de pedras e passou a observá-la

com a testa franzida, apreensiva. Jennifer andava mar a dentro, já com a água na

altura da cintura, com uma camiseta branca, continuava. Anna pensou em

chamá-la, mas estava paralisada, apenas esperando, tentando entender que raios

ela estava fazendo.

Quando a água passou a cobrir suas costas, Jennifer abriu os braços e

continuou andando, até a água chegar em seus ombros. Então parou por ali, ficou
um tempo ainda com os braços esticados e depois começou a nadar, bater os

braços de um lado para outro, algumas tentativas de boiar, nadar de costas, como

divertindo-se num dia quente de praia.

Em certo momento Jennifer ficou de frente para a praia e viu Anna de pé


a observando, gesticulou animadamente para ela. Anna riu e balançou a cabeça,

com as mãos na cintura.

Anna foi até o banheiro do andar de baixo buscar uma toalha e ficou a

aguardando. Alguns minutos depois Jennifer finalmente resolveu sair da água,


caminhava de volta para casa com um sorriso satisfeito e nem um pouco
culpado. Anna a encarou e a agasalhou com a toalha branca.

— Por que você fez isso? — Anna a perguntou, num tom brando.

— Água salgada é bom para essas coisas.

— Você não faz ideia do susto que me deu.

Jennifer se aproximou lhe dando um beijo.

— Desculpe, eu deveria ter avisado. Mas tenho certeza que você me

proibiria.

— Proibiria. — Suspirou assumindo. — Vamos subir.

— Você não está zangada, está?

— Eu nunca vou ficar zangada com você. — Anna respondeu já subindo

as escadas acompanhando Jennifer.

— Duvido. — Sorriu.

— Você está andando bem hoje. — Anna constatou.

— Eu sou um X-Men aquático, fui buscar minha fonte de energia no


fundo do mar.

Jennifer entrou no banheiro e pediu por roupas limpas.

— Consegue tomar banho sozinha?

— Consigo qualquer coisa agora, baby.

Logo já estava deitada na cama sendo paramentada com curativos por


Anna.

— Esses dois ferimentos das pernas estão um pouco infeccionados. —


Anna disse enquanto os limpava.

— A água do mar vai consertar isso. Esses dois aqui de cima estão bem,

olhe esse. — Falou apontando para o corte entre os seios.

— Mas também foi profundo.

— Eu nem sabia que tinha uma coisa chamada timo... — Resmungou,

mexendo no corte.

— Não mexa, vai soltar os pontos. Me deixe cuidar desses de cima agora.

— Vivian era psicopata, não era? Ou era só sádica? Por que ela não fez

nada com você?

— Você quer mesmo saber? — Anna levantou os olhos, a encarando.

— Saber o quê?

— No dia do meu noivado com Robert ela tentou me beijar.

— Ah, fala sério! — Jennifer exclamou.

Anna apenas confirmou com a cabeça.

— Quem diria... Vivian era apaixonada por você.

— Não sei... Mas ela tentou algo naquela época.

— Que triste tudo isso.


— Ok, terminei os da frente, pode ficar de bruços.

Alguns curativos depois Jennifer reclamava.

— Esses das costas são os mais chatos, dói pra caramba.

— É, eu sei.

Anna ficou em silêncio, aqueles cortes nas costas ainda sangravam,


terminou os curativos e trouxe um camisão azul claro de botões para Jennifer,

que o vestiu e deitou-se de lado. Anna deitou-se também a encarando, a fitou por

uns instantes, mexia em seus cabelos molhados.

— Eu vou encontrar o melhor cirurgião plástico do planeta, não importa

o quanto ele cobrar, ele vai fazer o melhor serviço possível nas suas costas, eu

prometo.

Jennifer lhe deu um sorriso de lado.

— Já estou me acostumando com elas, nem consigo ver direito na

verdade.

— Mas eu vou cuidar disso. E dessa que você tem aí do lado também.

— Não, essa eu estou pensando em outra coisa.

— O quê?

— Acho que vou fazer uma tatuagem por cima.

— Mesmo? Dizem que dói.

— Sério? — Jennifer falou com ironia.


Anna continuava a olhando, com o olhar perdido, com um turbilhão de
pensamentos passando em sua mente.

— No que está pensando? — Jennifer percebeu seu olhar angustiado.

— Coisas.

— Me fale...

Anna hesitou.

— Em como quase perdi você. E como achei que talvez tivesse perdido

hoje novamente... E... Posso perder amanhã.

— Mas isso não vai acontecer. — Jennifer colocou a mão em seu rosto.

— E se acontecer, vai ser por obra do destino, não por culpa sua.

— Pode acontecer e por incrível que pareça só agora estou me dando

conta.

Anna desviou o olhar e continuou falando:

— Eu só tinha a mim antes, era apenas eu, e se algo acontecesse comigo

pouco importava, eu não tinha nada a perder. Se alguém quisesse me fazer mal,
ela colocaria uma arma entre meus olhos ou uma faca em meu pescoço e
resolveria. Agora se alguém quiser me fazer mal ela vai colocar uma arma

apontada para sua cabeça, na minha frente, e apertar o gatilho.

Jennifer a fitava com as sobrancelhas apertadas, ela não imaginava que


aquilo tudo estava trancafiado dentro de Anna, estava surpresa com o desabafo.
— É uma visão míope das coisas. — Jennifer ponderou. — Você está
focando num problema isolado que tivemos, como se fosse o padrão.

— Jennifer, agora eu sou vulnerável.

— Bom, então em outras palavras, você está dizendo eu sou o seu ponto

fraco.

— Não, eu não disse isso.

— É... Disse... Se for levar por esse lado você também é meu ponto

fraco, estamos quites.

Anna se virou incomodada para cima, com uma mão embaixo da cabeça.

— Talvez Vivian tenha razão quando disse que eu só trago o mal para

quem cruza o meu caminho.

— Você se deu conta que está dando razão para uma louca que achou

engraçado quando perfurou meu pulmão?

— Eu causei a morte de Robert e do marido de Vivian, causei isso tudo

em você. E por fim, para nos salvar, precisei matar Vivian e mais uma porção de
híbridos, pessoas da minha espécie. Entende o rastro de destruição que deixei?
Que eu sempre deixo.

— Ação e reação, você não causou nada disso por vontade própria, nem
por sua iniciativa. — Jennifer a fitava, virada de lado.

— Isso não vai parar...


Mas Jennifer iria parar com aquilo. Virou-se e subiu em Anna, a
encarando.

— Sobre Robert... Eu entendo o que aconteceu, quando te perdi eu

também quase morri. É difícil perder você, dói bastante.

Anna subiu sua mão e deslizou em seu rosto.

— Ahmm... — Jennifer resmungou.

— O que aconteceu com sua boca?

Jennifer pegou o dedo indicador de Anna e colocou dentro de sua boca,


no lugar onde deveria haver um dente.

— Você perdeu um dente? — Anna a olhou assustada.

— Não que esteja fazendo falta... Mas ainda dói.

— Ok, dentista, acrescente na lista de lugares que preciso te levar.

Jennifer se inclinou e a beijou, depois de um beijo carinhoso desceu os

lábios para seu pescoço.

— Eu estou suada... — Anna murmurou.

Mas Jennifer ignorou e continuou por ali, falou em seu ouvido.

— Você quer se livrar do seu calcanhar de Aquiles? Só tem um jeito, e

você sabe qual é. — Ela se ergueu e a fitou, esperando a resposta.

Anna hesitou, agora passava delicadamente os dedos na bochecha ainda

um pouco inchada.
— Se eu perder meu calcanhar de Aquiles eu caio. Eu não posso viver
sem ele. — Por fim respondeu e a trouxe para seus lábios.

***

Jennifer seguia para o banheiro e falou da porta. Era sábado de manhã.

— Vou para casa hoje.

Anna, que acabava de entrar no quarto, foi pega de surpresa.

— Por que?

— Já estou bem, você fez um excelente trabalho, doutora Anna.

— Você pode ficar aqui o tempo que quiser. — Anna falou já próxima de

Jennifer.

— Obrigada pela hospitalidade, mas é hora de partir.

Anna parecia desapontada, passando seus dedos pelo ombro dela.

— Tem certeza?

— Não se encheu de mim?

— Não gosto da ideia de você sozinha lá no seu apartamento.

— Anna... Eu passei esse tempo todo lá sozinha e nunca nada me

aconteceu, então não tem motivo para isso agora.

Jennifer a cada dia percebia que algumas coisas haviam mudado para
Anna e começava a se preocupar com isso.
Anna balançou a cabeça, concordando.

— Vou tomar banho, me arranja roupas? Minhas, de preferência. —


Jennifer falou já entrando no banheiro.

Um minuto depois Anna adentrou o banheiro e deixou algumas peças de

roupas em cima da tampa do vaso.

— Estão aqui em cima.

— Em cima onde? — Jennifer abriu o box.

— Aqui.

Era só uma desculpa, Jennifer puxou Anna pelo pulso para dentro do

box.

— Eu estou vestida! — Anna falou já debaixo do chuveiro.

Jennifer ignorou a manifestação e a beijou, trazendo-a para junto de si

pela cintura.

— Eu posso te machucar. — Anna tentava falar.

— Se você falar mais alguma coisa eu juro, eu te expulso do seu próprio


banheiro. — Jennifer a fitou séria.

Anna respondeu apenas tirando sua camisa, que já estava molhada.

Jennifer sorriu com malícia e a ajudou a tirar o sutiã.

Aquele era o presente de aniversário que Jennifer aguardava, apenas


aquilo, a chance de ter um pouco da sua droga preferida, Anna. A beijou sem
pressa, mas com desejo, como se combinando na medida certa as duas coisas, os
últimos dias haviam sido pesados, arrastados, e agora ela queria apenas senti-la,

sem limitações ou ressalvas.

O beijo prolongado provocava cada vez mais uma sensação entorpecente

nela, Jennifer desceu sua mão de forma suave, como se brincando com o corpo
de Anna, o conhecendo, novamente. Espalmou sua mão abaixo da coxa dela e

ergueu sua perna, fazendo com que ela apoiasse seu pé na borda da banheira.

Anna a obedecia, não queria correr o risco de ser expulsa dali, muito menos

agora, que já estava com a respiração forte.

Jennifer provocou um gemido nela quando enfim a encontrou,

duplamente molhada, e fez aquilo que fazia de melhor com suas mãos. Anna a

abraçou, envolvendo seus braços ao redor do seu pescoço, tendo cuidado com
suas costas, já Jennifer sequer lembrava daquilo tudo.

Ela percebeu que Anna estava cada vez mais envolvida, a sentiu

fraquejando curvando de leve os joelhos.

— Segure-se em mim... — Jennifer sussurrou.

E deslizando seus dedos por uma Anna totalmente entregue, não


demorou para fazê-la alcançar o êxtase final, trazendo em seguida para perto seu
rosto e a beijando, um beijo quase estático. Era assim que Jennifer queria vê-la,

despida de preocupações, despida de culpa, Anna em seu estado mais básico e


primitivo, aquele alguém por quem se apaixonara.
Ela queria aproveitar daquele momento, e assim ficaram por algum
tempo, trocando beijos e correndo suas mãos pelos caminhos alheios, até Anna

interromper desprendendo calmamente seus lábios de Jennifer, lhe lançando um

olhar que avisava o que viria a seguir, ou pelo menos tentava avisar.

Assim Anna desceu seus lábios e beijos do ombro aos seios, devagar,
chegando até o abdome, Jennifer se desequilibrou e se recostou na parede atrás

de si, Anna subiu rapidamente.

— Machucou?

— Shhhh. — Jennifer tocou o dedo em seus lábios. — Continue.

Anna ainda lançou um olhar hesitante, mas voltou a percorrer o curso


que maliciosamente descia. Agora que Jennifer sabia suas pretensões, era sua

vez de erguer uma perna e apoiar na banheira, Anna chegou até o final daquele

caminho e passou sua mão por trás dela, a segurando com a mão espalmada.

Jennifer fechou seus olhos, colocou sua mão nos cabelos molhados de

Anna, não havia mais cicatrizes, ferimentos, ameaças, nem mundo ao seu redor,
tudo desaparecera com aquele turbilhão de sensações intensas que a levaram aos

sobressaltos finais, e à um aguardado momento de prazer pleno.

Anna logo surgiu a beijando como se estivessem apenas começando

aquilo tudo, ela também aproveitou e se permitiu deixar que os demônios que a
assombravam naquele momento escoassem junto com a água que caía do

chuveiro.
O beijo findou e Jennifer segurou seu rosto com ambas as mãos,
lançando o mais amoroso dos olhares.

— Eu quero você, eu quero você como nunca desejei nada nem ninguém

em minha vida... Eu quero você ao meu lado, eu quero você em mim, e ao

alcance das minhas mãos...

Foi a vez de Anna colocar seu dedo selando os lábios de Jennifer.

— Eu te amo. — Anna falou, com certo receio.

Jennifer retribuiu com um sorriso bobo.

— Que coincidência, era exatamente isto que eu estava tentando te falar.

— Ela respondeu.

***

Próximo ao meio-dia Anna havia terminado de juntar e arrumar todos os

remédios e aparatos que Jennifer levaria para sua casa, enquanto ela aguardava

na sacada, tirando fotos. Anna largou a bolsa na cama e foi até lá.

— O céu foi arado. — Jennifer falou apontando para o horizonte, onde as


nuvens pareciam frisadas.

— Um belo dia para fotos artísticas. — Anna falou se recostando

também no parapeito da sacada.

— Todo dia é um bom dia para alguma coisa, mesmo os dias nublados
são perfeitos para alguns tipos de fotos.
— Isso acontece quando se gosta do que faz.

— Eu sei. E sabe que hoje é um bom dia para outra coisa?

— O que?

— Retratos. Fique aí, olhe para frente. — Falou já apontando a câmera


para Anna.

— Não... O trato era eu te dar a câmera e você não tirar fotos minhas.

— Quem fez esse trato? Eu não estava lá.

Jennifer baixou a câmera e a beijou.

Ainda com os lábios próximos, Anna mordia seu lábio inferior, como se

preparando para falar algo.

— Jennifer...

— Fale, minha modelo tímida.

— Eu quero que você seja minha mulher.

Aquilo a pegou de surpresa.

— Mas eu já sou. Bom, pelo menos acho que sou a titular, não sou? —

Jennifer brincou.

— Eu quero que você more aqui.

Jennifer desfez o sorriso e a encarou com as sobrancelhas baixadas.

— Mas eu tenho minha casa.


— Você não precisa se desfazer dela.

Jennifer a encarou e colocou as duas mãos em seus ombros, tinha um


semblante de certa forma pesaroso.

— Anna, eu não abro mão de ter a minha casa, o meu canto, minha

bagunça... Eu não posso morar aqui, eu sinto muito.

— Ok, ok... Eu entendo. — Anna balançou a cabeça, aceitando.

— Já nos frequentamos tanto, moramos próximas, não precisamos morar

juntas.

Jennifer estava ficando arrasada com o jeito que Anna assimilava aquilo,

passou seus braços ao redor do seu pescoço.

— Não significa que isso nunca vá acontecer, quem sabe um dia eu te

peça em casamento? — Jennifer falou sorrindo.

— Ah, você é dessas que só vai morar junto quando casar? — Anna

resolveu entrar no clima.

— Claro, e por isso estou me guardando para o casamento, sabe aqueles


programas cristãos, ‘eu escolhi esperar’? Faço parte.

— Será que é tarde para entrar nesse programa?

— Bom, aquilo que fizemos hoje no banheiro conta como sexo.

Anna a olhou por um instante.

— Você já foi para a cama com algum homem? — Anna a indagou,


curiosa.

— Não, minha religião não permite esse tipo de coisa.

— Nunca? — Anna a olhou surpresa.

— Você está me olhando de forma estranha. — Jennifer falou cobrindo


os olhos de Anna.

Anna sorriu, se desvencilhando de suas mãos.

— Não estou não, só... Achei bonitinho.

— Lá vem você me sacaneando.

— Não estou sacaneando, às vezes eu esqueço nossa diferença de idade,

diferença real de idade.

— Não acho que isso tenha a ver com idade. — Jennifer contestou.

— Opção sexual.

— Não existe opção sexual, só a falta dela. É agora que você diz ‘mas
como sabe que não gosta se nunca provou’?

— Não, eu nunca falaria uma besteira dessas, principalmente para você,

não consigo te imaginar com esse tipo de dúvida existencial.

Jennifer se inclinou e a beijou novamente.

— Vou pra casa, ok?

— Quer que eu te leve?


— Não, vou dirigindo meu brinquedinho novo.

— Nos vemos a noite?

— Hoje?

— É sábado.

— Hum... Vamos ao pub então, vamos comemorar um pouco.

— Tem certeza? Tem condições para isso?

— Baby, no dia que eu não tiver condições de ir à um pub, me coloque

num asilo.

— Ok, passo na sua casa as nove então.

***

Passava das nove da noite naquele sábado e Jennifer cochilava no sofá

com a TV ligada, trajada apenas com uma regata, calcinha e meias, havia
marcado de ir ao pub com Anna, mas havia adormecido. As batidas na porta a

despertaram com um susto.

— Droga! Peguei no sono! — Resmungava para si mesma, enquanto ia


até a porta, já se preparando para a bronca por não estar pronta.

Abriu a porta e arregalou os olhos.

— Vô William!

Ele retribuiu o olhar assustado.


— Precisei atravessar um oceano para saber como você está!

— Por quê? — Falou um pouco constrangida.

— Jeremiah me disse que você estava escondendo alguma coisa, que


havia acontecido algo. E se você não falou para eles duvido que falaria para mim

por telefone.

— Estou bem vô, não aconteceu nada.

— Ahan, vejo que sim, a começar por esses cortes em suas pernas e no

seu rosto.

— Ah, isso... São... Foram cortes, quando me depilei.

— Claro. — Falou com deboche. — Venha cá, me dê um abraço.

Jennifer abraçou seu avô sem pressa, com carinho, desprendeu-se e o

convidou para entrar, quando já fechava a porta viu seu primo Adam subindo

com uma mala pesada.

— Opa, espere por mim! — Pediu Adam.

Logo atrás de Adam foi possível ver Hugh também carregando uma mala
e sorrindo.

— Oi prima! — Caroline suava e arrastava uma mala enorme vermelha.

— Só um minuto, vou vestir algo. — Jennifer falou assustada e saiu


correndo para seu quarto.

— Eu estou sonhando ou toda a família Stuart está na minha sala? —


Falava para si incrédula enquanto vestia uma calça.

Voltou para a sala, onde já se acomodavam, tentava bolar alguma outra


boa desculpa para os ferimentos, mas nada vinha à mente.

— Gostou da surpresa, prima? — Hugh, recostado na janela, perguntou.

— Digamos que ainda estou em choque, mas estou começando a achar

divertido ver todos vocês aqui no meu muquifo.

— Não ficaremos todos aqui, irei ficar no hotel, na verdade convidei

todos para ficarem por lá também, mas Hugh e Caroline preferiram ficar aqui,

tudo bem se eles ficarem no seu apartamento? — William falou, ele estava de pé

próximo ao sofá.

— Claro... Podem ficar, como viram não posso oferecer o conforto que

vocês têm na Escócia, mas são todos mais que bem-vindos aqui.

— Esse sofá está ótimo para mim. — Hugh falou, sentado no sofá ao

qual se referia.

— Eu durmo em qualquer lugar, não se preocupe comigo. — Caroline

falou.

— Ãhn... Acho que teremos que dividir meu quarto. — Jennifer

respondeu e ouviu batidas na porta.

— Desculpe o atraso... — Anna falou e lhe deu um beijo.

Jennifer não continuou com o beijo e sorriu um pouco sem jeito, abrindo
mais a porta.

— Temos visitas.

Anna pode ver os quatro visitantes, todos as fitando, inclusive um Adam


boquiaberto.

— Boa noite, minha cara. — William se aproximou e a cumprimentou.

— Boa noite, Sr. Stuart, fez boa viagem? — Anna ainda estava surpresa.

— A viagem é longa demais para ser boa, mas eu precisava ver se você

estava cumprindo com o que me prometeu.

— Estou me esforçando. — Falou encabulada e cumprimentou o restante

da casa.

Uma hora de conversa depois, William se despedia para o hotel,

juntamente de Adam.

— Hoje estou completamente destruído da viagem, mas gostaria que

você fosse ao meu hotel amanhã de manhã, vá tomar café comigo, vamos

conversar um pouco. — Se dirigia à Jennifer.

Não demorou muito para que Anna também fosse embora e Jennifer
aprontasse os lugares para seus dois primos dormirem. Caroline dormiria com

ela.

***

No dia seguinte, Jennifer acordou mais cedo para ir ao hotel, conforme


prometido ao seu avô, se vestia silenciosamente em seu quarto para não acordar

sua prima.

— Credo! — Caroline exclamou, dando um bom susto em Jennifer, que

virou-se para ela assustada.

— O que foi??

— Suas costas!

— Shhhhh! — Jennifer vestiu rapidamente a camisa e foi até a cama, se

aproximando dela.

— O que aconteceu? Não estava assim no baile na Escócia, eu lembro,

você estava com um vestido que deixava as costas à vista.

— É recente.

— Bem recente pelo visto.

— Segunda-feira.

— No dia do seu aniversário?

— É, uma infeliz coincidência.

— Mas que raios aconteceu?

— Foi um... Acidente de carro, mas estou bem. — Falou já sentada na

cama.

— Que acidente estranho foi esse? Esses cortes no seu rosto, também foi

do acidente?
— Sim, estilhaços de vidro, sabe como é. Mas não comente nada com vô
William sobre minhas costas, ok?

— Ele não pode saber do acidente?

— Ele viu os cortes na minha perna, vou ter que contar do acidente, mas

se ele ver minhas costas vai ficar preocupado, não quero preocupá-lo... Já está

tudo bem.

— Você deveria ter contado para ele, a semana inteira ficamos ouvindo

ele falar que havia acontecido alguma coisa com você, mas não sabia o que era,

por que você acha que está aqui? Estava imaginando todos os tipos de coisas
ruins.

— Vou conversar com ele agora. — Jennifer respondeu cabisbaixa.

— Ele se importa pra valer com você, talvez você devesse atender seu

pedido de ir morar conosco na Escócia.

— Eu sei que ele se importa, Carol, eu vou ser mais responsável com ele.

Tenho que ir agora, ok?

***

Jennifer foi até a casa de Anna naquela tarde de domingo, havia

conseguido uma folga dos seus parentes. Subiu para o quarto e encontrou Anna
na sacada, se aproximou e a envolveu por trás, pousando seus lábios em seu

pescoço e a puxando gentilmente com suas mãos para perto de si.


— Minha. — Falou.

— Sua. — Anna respondeu no mesmo tom.

— Finalmente consegui fugir.

— Colocou todos para dormir?

— Foram passear, deixei os três no shopping e meu avô está no hotel.

— Vai levá-los ao pub a noite?

— Não, tenho que arrumar minhas coisas, na verdade vim me despedir

de você.

Anna se virou, ficando de frente para ela, sem entender.

— Despedir?

— Tive uma longa conversa com meu avô hoje de manhã, e bota longa

nisso...

— Para onde você vai?

— Vamos amanhã cedo para Nova Iorque, a cúpula Vulpi fica lá, vamos
conhecer algumas pessoas, meu vô tem reuniões durante a semana, algumas eu

irei participar. E de lá, na semana que vem, partimos para Montreal, vamos
passar uma semana visitando minha avó.

— E depois?

— Depois? Depois eu volto, ué.


— Você vai passar duas semanas sozinha?

Jennifer riu.

— Sozinha? Eu estarei com meu vô e meus primos o tempo inteiro,


sozinha é a última coisa que ficarei.

Anna parecia incomodada, olhando para os lados.

— São apenas duas semanas, eu vou te ligar todos os dias, prometo. —

Jennifer apaziguava.

— Você estará sem segurança alguma, e se algo acontecer eu não estarei


por perto.

— Anna, não vai acontecer nada, é uma viagem em família, pare com

esses grilos.

— Por que seu avô não fica pela cidade?

— Escute, sinceramente eu não quero passar as duas horinhas que tenho

para ficar com você tendo esse tipo de conversa.

Anna a fitou, dando um suspiro lento.

— Ok, vem aqui. — E a abraçou, a encaixando em seu peito, mas

mantinha um olhar preocupado.

***

A semana em Nova Iorque transcorrera movimentada, porém pacífica,


Jennifer conhecera vários figurões e dirigentes Vulpis, além do complexo
arquitetônico onde funcionavam vários escritórios, ela não fazia ideia que havia
tamanha organização e política dentro da sua espécie.

***

— Vó! Olha quanta gente eu trouxe para te visitar! — Jennifer saudava

sua vó, adentrando a sala da sua casa em Montreal.

— William, como é bom te rever! — Meredith o cumprimentou,

emocionada.

— Finalmente consegui reunir as famílias! Espero não estar

atrapalhando.

— É a melhor visita que eu poderia receber, minha neta e vocês. Ethan,

ligue para seu irmão, diga para virem até aqui.

Era sábado à noite e a casa estava cheia e em festa, ambas as famílias


estavam reunidas e Jennifer estava tendo alguns bons momentos de tranquilidade

e diversão com seus familiares, era como uma recompensa pelos dias dolorosos

que tivera duas semanas atrás.

Se afastou um momento do restante do pessoal e foi até o quarto de


visitas ligar para Anna.

— Meu vô está ensinando vó Meredith a assar um leitão à moda escocesa


e é claro que tirei várias fotos, preciso te mostrar. — Jennifer falava animada.

— Agora fiquei morrendo de inveja, jantei um mero sanduíche.


— Se sobrar levo um pedaço para você.

— Obrigada pela consideração. Como foi a viagem até Montreal?

— Não foi tão cansativa porque Hugh dirigiu a maior parte do tempo, até
tirei um cochilo entre um telefonema e outro que Caroline dava para suas

amigas.

— Suas outras primas também estão aí?

— Estão sim, a família inteira está reunida aqui hoje. E você, não vai

sair?

— Não pretendo.

— Vá ao pub do Oscar com o pessoal, não fique trancada em casa

comendo sanduíches em pleno sábado à noite. Até deixo você ir no pub do Joel

se quiser, desde que se comportando.

— Hoje não.

— E como tem se saído nas missões sem minha imprescindível

presença?

— Não tenho ido.

— Nenhuma?

— É... Estou dando um tempo.

Jennifer deu um suspiro incomodado, passando a mão pelo rosto.

— Você adora as missões.


— Vamos deixar esse assunto para depois, pode ser? — Anna se
esquivou.

— Ah, meu vô sugeriu um jantar na sua casa no sábado que vem, nós

chegamos de viagem à tarde, que acha?

— Eu adoraria receber vocês na minha casa, mas nunca dei nenhum

jantar desse tipo.

— Não precisa ser nada muito elaborado, se quiser depois te passo o

contato de uma pessoa que pode cuidar disso para você, para você ter o mínimo

de trabalho.

— Sim, por favor.

— Estão me chamando aqui.

— Ok, vá se divertir um pouco.

— Anna?

— Diga.

— Você está bem?

— Como sempre.

— As respostas prontas são exclusividade minha.

— Eu estou bem, não se preocupe comigo, é verdade. Aproveite essa


oportunidade de estar com toda sua família, e tome cuidado por aí.

— Sinto sua falta... — Jennifer disse.


— Essa cidade não é a mesma sem você.

— Sei... fica bem.

Jennifer desligou o aparelho desfazendo o sorriso, mas continuou alguns


segundos ainda sentada na cama, pensativa. Cada dia que passava, a cada

contato com Anna, ela percebia que as coisas não estavam bem, aquela coisa

errada que nem mesmo Anna entendia que havia dentro dela, preocupava de fato
Jennifer.

Na quarta-feira Jennifer acordou mais cedo e resolveu ir ao hotel onde

seus primos estavam para chamá-los para um piquenique no parque, o simbólico


parque de sua infância. Andava pelo corredor do hotel com uma bolsa cheia de

sanduíches e outros alimentos, a porta do quarto deles estava entreaberta e ela foi

logo entrando, não os viu assim que entrou, mas logo percebeu que Hugh e

Caroline conversavam na sacada.

Largou a bolsa em cima da cama e se aproximava da sacada quando


ouviu o teor da conversa e paralisou, eles não haviam notado sua presença, ela

apenas continuou ouvindo o diálogo.

— Eu não concordo com a decisão dele, nem entendo. — Caroline


falava, parecia contrariada com algo.

— Ele deve ter seus motivos para não querer que Jennifer saiba. — Hugh
respondeu, sério.

— Não é justo com ela, ela também é neta.


— Talvez seja alguma forma de proteção.

— Proteção do que?

— Para o futuro.

— Eu já disse, eu não entendo, mas irei respeitar a decisão de nosso avô,


eu nunca contarei nada para ela. — Caroline falava enfática.

— Eu também não vou falar, nem Adam.

— O que vocês não irão me contar? — Jennifer abriu a porta da sacada e

perguntou, com a testa franzida.

Os dois jovens foram pegos de surpresa, e pálidos, não sabiam o que

falar.

— Do que você está falando? — Hugh tentava desconversar.

— Eu ouvi a conversa de vocês. O que nosso vô não quer que eu saiba?

Eles se entreolharam, hesitantes.

— Você ouviu errado, falávamos que ele não quer você morando nos

Estados Unidos.

— Caroline, eu ouvi a conversa, ok? Parem de me enrolar, eu quero saber


o que estão escondendo de mim, eu tenho direito de saber.

— Ela tem direito. — Caroline cutucava Hugh.

Hugh a fitou mais um instante, antes de falar.


— Você tem que prometer manter isso em segredo, se nosso vô não
queria que você soubesse, ele deve ter seus motivos.

— Se você não falar eu arremesso vocês lá embaixo, são apenas três

andares, vocês não morrerão, mas a queda é feia.

— Vô William está doente, está com câncer. — Ele finalmente falou.


Capítulo 38 – Precisamos conversar

Foi como se o chão de repente sumisse sob seus pés. Jennifer levou

alguns segundos assimilando aquelas palavras impactantes, seu avô estava

doente.

— Mas ele pode buscar um tratamento e ficar bom, não pode? — Ela
perguntou ainda em choque.

— Ele não nos contou muita coisa, não quis entrar em detalhes... —

Hugh falava cabisbaixo.

— Mas?

— Mas ele disse que descobriu tarde demais.

— Ele não pode simplesmente desistir assim, temos que falar com ele,

temos que convencê-lo a procurar outros tratamentos. — Jennifer estava em


negação, afoita, contrastando com a desolação calma de seus primos.

— Já falamos tudo isso para ele, Jenny. — Hugh falou.

— Várias vezes. — Caroline completou.

— Pelo visto não há o que fazer mesmo, ele não desistiu sem lutar.

— E eu não saberia nunca. — Jennifer se apoiava com as mãos na porta

da sacada.

— Ele estava te poupando.


— Preciso falar com ele.

— Não, você prometeu.

— Eu digo que ouvi uma conversa de vocês, que não sabem que eu sei.

— Não sei se é uma boa ideia...

— Ele é meu avô também, eu quero fazer parte disso.

Na noite daquele mesmo dia Jennifer foi até o hotel onde seu avô estava,

após ficar de rodeios inicialmente, ela finalmente entrou no assunto e ouviu

exatamente o que seus primos já haviam falado.

— Eu poderia passar o tempo que me resta me submetendo a todo tipo de

tratamento agressivo, mas isso me daria apenas um suspiro a mais no final, nada

além disso. Eu escolhi simplesmente tocar o barco da melhor forma possível. —

William se explicava serenamente.

— Por que o senhor não iria me contar?

Ele se aproximou de Jennifer que estava sentada na beirada da cama e

enxugou seu rosto.

— Você já tem um bom peso nos ombros, queria te poupar deste. Além
do mais, seus primos ainda têm seus pais os reconfortando, você não.

Jennifer desviou o olhar e tentou enxugar os olhos. William continuou.

— Se seu pai estivesse aqui ele estaria falando as mesmas coisas que
você, tenho certeza. — William sorriu, sentava ao seu lado.
— Meu pai estaria andando com as mãos para trás, dizendo que levaria o
senhor para consultar outros médicos, para ter segundas e terceiras opiniões. —

Jennifer também sorriu ao falar, mesmo ainda chorando.

— Ou até mesmo já teria me enfiado dentro do carro à essa altura.

Jennifer balançou a cabeça devagar, concordando.

— Ainda bem que você sabe de onde vem sua teimosia. — Ele virou-se

para sua neta e continuou falando. — Ainda ficarei um tempo razoável por aqui,

não precisa ter medo de nada. E quando eu não estiver mais por perto, ainda terá

seus tios e primos, eles sabem que devem tomar conta de você... Permita que
eles façam parte de sua vida e faça parte da deles, unam-se, eles sempre estarão

lá por você.

— Eu sei...

— Posso pedir algo a você? Não deixe isso influenciar em nada na sua

vida, essa informação. Quero que você faça como eu, toque o barco e ignore o

que você sabe agora, sei que você ainda está assimilando isso, mas pode tentar?
— Ele falou passando seu braço ao redor dela.

Jennifer balançou a cabeça, concordando.

— Mas antes de colocarmos uma pedra nesse assunto, preciso te contar

algo.

— O que? — Jennifer se virou para ele.


— Você terá Hugh ao seu lado, futuramente.

Ela apenas apertou a testa, sem entender.

— Hugh foi treinado para ser o protetor do novo líder, que no caso seria
sua tia Melanie, a mãe dele. Mas como você reapareceu, você será a líder, e

Hugh será sua sombra, quando o momento pedir.

— A revolução Vulpi.

— Sim. Ele aprendeu artes marciais, aprendeu a manusear armas, e

acima de tudo, ele será alguém em quem você poderá confiar cegamente.

— Eu não vou conseguir sem o senhor.

— Eu não tenho a menor dúvida que você será uma excelente líder, será

alguém que todos respeitarão devido à sua coragem, ao seu instinto de

sobrevivência, sua determinação. Apenas seja quem você sempre foi, eu já falei
e volto a repetir, tem uma guerreira destemida aí dentro, acredite mais em você.

William levantou-se, ficando a sua frente.

— Vamos jantar? Você conhece melhor esta cidade, me leve à algum


lugar que você gosta.

— O senhor gosta de cachorro-quente? — Jennifer falou sorrindo.

***

Hugh dirigia o carro negro de Jennifer de volta à Bridgeport naquele final


de manhã de sábado. O restante dos passageiros apenas seguia em silêncio,
Jennifer no banco de trás ouvia música de forma sonolenta, com seus fones,

apreciando a paisagem árida, as casas recém construídas contrastando com

aquelas destruídas, plantações que agora eram apenas pastos improdutivos.

Evitava pensar sobre a doença de seu avô, conforme ele havia lhe pedido,

tentava abstrair tudo que aconteceria futuramente, estava tendo sucesso parcial.
Seus pensamentos durante aquele percurso estavam numa certa mansão cinza à

beira da praia e em sua habitante, Anna.

Praticamente duas semanas haviam se passado desde aquela despedida

não muito tranquila, onde percebera a preocupação exacerbada de Anna com sua

segurança. Mas não era nisso que ela estava pensando agora, estava apenas com

saudades, ansiando por um abraço, um beijo, duas semanas longe dela haviam

sido o suficiente para se dar conta da falta absurda que sentira de tê-la ao seu
lado. Agora com a cabeça recostada na janela do carro, apenas imaginava como

seria o jantar em sua casa naquela noite, em como encontraria um jeito de

ficarem a sós por alguns instantes, para que matasse um pouquinho aquela
vontade de estar com ela, sentir a proximidade de seus corpos, seu cheiro, passar

seus braços ao redor de seu pescoço, como adorava fazer.

Agora ouvia Norah Jones, e uma canção a fez dar um sorriso torto, quase
bobo.

Come away with me and we'll kiss (Venha comigo e nós iremos nos
beijar)
On a mountain top (No topo de uma montanha)

Come away with me and I'll (Venha comigo e eu)

Never stop loving you (Nunca deixarei de amar você)

— E então, todos prontos? — Jennifer falou para seus primos, já em seu

apartamento.

— O jantar não é às oito?

— Sim, mas não tem problema chegarmos um pouco mais cedo. — Era
sete da noite.

— Eu sei o motivo da sua pressa. — Hugh deu um sorriso para Jennifer.

Todos foram no carro de Jennifer até a casa de Anna, Jennifer olhou para

o mar assim que saiu do automóvel, olhou um pouco confusa naquela direção,

mas acabou entrando na casa, juntamente de seu avô.

— Boa noite, minha cara Anna. — William a saudou. Anna foi pega de

surpresa ainda arrumando algumas coisas na mesa.

— Desculpem por ainda não estar tudo pronto, mas já estou finalizando.
— Anna se explicou um pouco constrangida por ainda estar aprontando o jantar.

— Relaxa, Anna, chegamos mais cedo do que o combinado. — Hugh

falou.

— Acho que Jenny está faminta, nos apressou para vir para cá antes da
hora. — Adam falou, ingenuamente.

Jennifer apenas lançou um sorriso, correspondido assim que Anna o


encontrou. Ela não iria fazer nada comprometedor na frente de sua família, mas

resolveu quebrar o protocolo indo até sua namorada e lhe dando um abraço.

— Você está linda... — Jennifer sussurrou em seu ouvido, ainda com

seus braços atrelados a ela, lhe arrancando um sorriso tímido.

— É bom ter você de volta. — Anna respondeu assim que se separaram.

Depois de um pouco de conversa naquela sala enorme, tiveram seu

jantar. Apesar da visível preocupação de Anna, tudo correu perfeitamente bem.

Todos já abandonavam a mesa, quando Jennifer viu Anna indo até a

cozinha e a seguiu. Chegando lá pulou em seu colo, transpassando suas pernas e

braços ao seu redor, a pegando de surpresa; sem perder tempo a beijou, matando

um pouquinho da saudade.

Com um sorriso aberto, ainda dependurada em sua namorada, a fitou.

— Sentiu minha falta?

— Cada minuto.

— Viu como correu tudo bem? Não tinha motivo para aquela

preocupação.

— Não aprontou nada, então?

— Nada que eu possa te contar. — Jennifer sorriu com malícia.


Anna balançou a cabeça entrando na brincadeira e a beijou, em seguida
Jennifer desceu dela.

— Anna, o que é aquilo no mar? — Jennifer perguntou intrigada.

— Um píer, ainda não está finalizado.

Apenas a fitou, boquiaberta.

— Um píer? Você está construindo um píer? Mas você não tem barco, e

não gosta de pescar.

— Depois conversamos sobre isso, ok?

— Ok, marinheira.

— Temos que voltar para a sala.

— Em Nova Iorque foi legal e cansativo, algumas reuniões meio chatas,

um pessoal burocrático demais, escritórios e salas de reuniões demais... Mas a

cidade está muito mais reerguida que a nossa. — Jennifer dava suas impressões

sobre a cidade, com todos já acomodados nos sofás, conversando.

— Está sim, já reconstruíram boa parte dos prédios. — Anna concordou.

— Ficamos hospedados num prédio gigante, achei que era um tipo de


hotel, mas depois soube que pertencia às raposas.

— Eu acordava todas as noites com os pesadelos dela, uma noite ela deve
ter acordado o andar inteiro com os gritos. Você precisa tomar uns calmantes
para dormir prima, eu já te falei isso. — Caroline falou.

— E você é exagerada, só tenho o sono agitado. — Jennifer rebateu.

— Você me bateu duas vezes enquanto dormíamos, na sua casa.

— Então, foi o que falei, sono agitado.

— Eu escutei um grito numa noite em Nova Iorque, então foi você


Jenny? — Adam falou.

— Gente, pesadelos, todo mundo tem, parem de pegar no meu pé.

Um pouco mais de conversa e já começaram a se despedir.

— Hugh, você deixa vô William e Adam no hotel? E você e Caroline

conseguem sobreviver a uma noite sozinhos em meu apartamento? — Jennifer

falou, já quando se despediam de Anna.

— Sim, mas por que?

— Vou ficar por aqui essa noite. — Deu um quase sorriso.

— Claro, não se preocupe conosco, sobreviveremos esta noite.

— Hugh, nada de encher meu carro com garotas, ok? — Jennifer se

despedia deles da porta, o carro já com o motor ligado.

Ele apenas levantou o polegar, sorrindo.

— Enfim sós? — Fechou a porta e virou-se para trás, onde Anna estava.

— Finalmente... — Ela se aproximou e deu um beijo sem pressa.


— Eu deveria ter levado você na bagagem. Morri de saudade. — Jennifer
falou ao se separar.

— É bom passar um tempo com a família. Chegaram hoje à tarde?

— Sim e estou morta.

— Anda, sobe comigo.

Já no quarto, Anna seguia para o banheiro.

— Quer tomar um banho? Tem um monte de roupas suas aqui.

— Agora não. — Deu duas passadas maiores e puxou Anna para um

beijo com desejo, que terminou na cama.

Depois de um pouco de ação e um banho tomado, Jennifer finalmente

descansou na grande cama, alguns minutos depois Anna surgiu, também depois

de um banho.

— Não suma mais... — Anna sussurrou enquanto beijava o pescoço de

Jennifer, que estava deitada para o lado de fora, já quase adormecida.

— Tentarei. — Ela tinha todos aqueles problemas familiares na cabeça,


inclusive a possibilidade de ir morar na Escócia, mas achou que não era hora de
falar sobre isso, até porque sentir aqueles lábios por ali e o calor de sua

namorada compensavam qualquer coisa naquele momento.

— Acho que correu tudo bem no jantar, não? — Anna perguntou, ainda
atrás de Jennifer.
— Perfeitamente bem.

— Inclusive o pulo em mim, ninguém viu.

Jennifer sacudiu a cabeça, sorrindo.

— A saudade falou mais alto, acontece.

— E as conversas foram tranquilas, achei que seu avô ia me dar algum


sermão, mas ele estava bem-humorado.

— Estava... Por falar em conversas, agora você já pode me contar o

motivo de estar construindo um píer.

Anna ficou em silêncio por um instante e se afastou um pouco das costas

de Jennifer.

— É seu novo cantinho da reflexão.

— Novo? — Jennifer virou-se com a testa franzida, fitando Anna.

Anna já estava sentada e recostada em alguns travesseiros.

— O porto não é um lugar bom para você frequentar.

— Mas eu trabalho lá.

— Não quero que você volte a frequentar o porto.

Jennifer também sentou na cama, seu estado de espírito se resumia em


surpresa e incredulidade.

— Eu continuarei a frequentar o porto porque trabalho lá, eu não vou ao


porto apenas por causa de um píer torto.

— Você não precisa desse trabalho, tem a mesada do seu avô, eu posso te
ajudar financeiramente também. E agora você terá um píer aqui, na minha casa,

para visitar a hora que quiser, em segurança.

Jennifer respirou fundo, e respirou fundo de novo, talvez precisasse

repetir isso algumas vezes antes de falar algo.

— Anna, eu não vou me aposentar aos vinte e três anos. — Falou

contendo a irritação.

— Não precisa se aposentar, faça outra coisa, volte aos estudos, ache

alguma atividade.

— Percebe que você está tomando decisões por mim, sem me consultar?

— Não, estou apenas tentando facilitar as coisas.

— Ok, eu realmente entendo a benevolência por trás das suas atitudes, e

estou me achando um monstro por estar aqui reclamando disso, sendo que você
está fazendo todas essas coisas pensando no meu bem-estar, mas você está

ultrapassando alguns limites, entende?

— Eu não faria nada para cercear você, estou apenas preocupada com

sua segurança.

Jennifer inclinou-se para frente, esfregando a mão pela testa, procurava

uma forma de lidar com aquela recém adquirida paranoia de Anna de uma forma
que não a magoasse.

— Eu entendo sua preocupação... Depois daquelas coisas surreais que


Vivian aprontou... Talvez eu também surtasse em outras épocas, há alguns anos

talvez eu cogitasse a ideia de ir morar numa ilha remota no Pacífico por medo da

crueldade humana, mas sejamos sensatas, quais as chances de outra maluca


como ela aparecer e me atacar inesperadamente?

— Eu só estou fazendo o que está ao meu alcance para que nada parecido

volte a te acontecer, eu sei que se não tomar providências você não tomará,

continuará achando que todo mundo é bonzinho, que nada pode te fazer mal.

— Eu sobrevivi esse tempo todo, não sobrevivi? Com ou sem você, eu

consigo me manter viva, eu tenho o mínimo de instinto de sobrevivência.

— Isso não basta, nos dias atuais, ter o mínimo de instinto de

sobrevivência pode não bastar, pode te custar a vida com apenas uma distração.

— Anna já respondia com certa irritação.

— E você pretende resolver isso embargando nossas vidas? Limitando os


lugares que posso frequentar, o que eu posso e o que eu não posso fazer? E

você? Max me ligou, ele disse que você largou de vez as missões, está
preocupado, pediu que conversasse contigo. Estagnar nossas vidas vai nos
manter a salvo?

— Você não entende a gravidade das coisas. Mesmo depois de tudo que

aconteceu, você continua inconsequente e teimosa, achando que é invencível,


estou tentando me afastar das coisas que nos colocam em perigo e te afastar de

algumas coisas também. E continuarei fazendo isso. — Anna falou enfática.

— Não sem minha permissão.

— Apenas deixe as coisas comigo.

— Não, você não está enxergando o quão exagerado está o seu

comportamento ultimamente, e... Eu não sei como fazer você enxergar, você está

prejudicando sua vida, prejudicando nós... Por favor, pense nisso. — Jennifer

gesticulava.

— Sou eu quem te pede, pense melhor nas coisas que tem feito, eu tenho

pensado por nós duas.

— Olha, por hoje chega, ok? Estou exausta e isso não vai a lugar algum.

Boa noite.

Jennifer deitou-se de forma afoita, novamente de lado virada para a

parede. Anna ficou alguns segundos ainda a observando, deitou-se virada para o

outro lado, contrariada com a conversa.

Talvez aquela tenha sido a primeira noite em que dormiram de costas


uma para outra e isso passou pela cabeça de Jennifer antes dela adormecer.

***

— Ela está construindo um píer, em frente à sua casa.

— Um píer? — Becca falou com a testa enrugada.


Era domingo à noite, Jennifer assistia TV no apartamento de sua amiga.

— É, um pequeno píer, no mar.

— Para quê? Ela vai comprar um barco?

— Não, ela não vai comprar barco algum, ela nem gosta de barcos. —
Jennifer largou sua caneca de café no braço do sofá.

— E pra que esse píer?

— Para que eu não precise mais ir ao porto, ela não quer que eu vá lá,

então ela está construindo esse píer para quando eu tiver vontade de ir no
cantinho da reflexão. É tipo o cantinho da reflexão da casa dela, porque lá é mais

seguro.

— Então ela não quer que você trabalhe mais no porto também?

— Exatamente, não pise mais lá, não trabalhe, não vá ao cantinho da

reflexão.

Becca a fitou incrédula.

— Hey, o que você está fazendo?

Becca puxava o cós da calça de Jennifer, tentando olhar dentro.

— Estou vendo se Anna também colocou fraldas em você.

— Isso é sério, eu estou preocupada com essas coisas, ela já não estava
muito bem com tudo aquilo que me aconteceu, se sentia culpada, e com essas
duas semanas que passei fora, tudo piorou.
— Ela passou duas semanas pensando besteiras, arquitetando teorias
conspiratórias.

— É, eu não tinha ideia que a deixando sozinha esse tempo, a paranoia

evoluiria, pioraria na verdade. Anna não está legal, só fala em minha segurança,

parou de trabalhar, não faz mais as missões noturnas, não fabrica mais adagas.

— E está vivendo do quê?

— Ela tem grana, não precisa trabalhar.

— Sério? Ela parece tão mão de vaca.

— Esses que sabem ficar ricos. Olha pra nós duas, torrando nossa grana

com futilidades e cerveja, e ainda querendo ficar milionárias, nunca!

Becca fitou a TV, pensativa.

— Isso não vai dar certo... As duas parando de trabalhar, parando de

fazer suas coisas.

— Parando de viver, você quer dizer, não é?

— Jenny, ela está completamente dependente de você, de você e sua


segurança, ela criou essa espécie de obsessão e só vai piorar.

Jennifer olhava incomodada para Becca, ela tinha razão.

— Eu não sei o que fazer... E eu tenho dois primos lá na minha sala me


esperando, um avô com uma doença terminal, uma família inteira querendo que
eu vá morar na Escócia, e uma namorada adorável, mas com a cabeça ferrada,
surtada.

— Não vá para a Escócia.

— Eu não vou. Pelo menos não pretendo ir num futuro próximo, ah sei
lá... Não faço ideia do que vai acontecer.

Becca deu um longo gole em seu copo e sentenciou.

— A solução mais simples que enxergo é você terminar com Anna. Não

que você tenha que fazer isso, mas resolveria.

— Resolveria, de fato. Agora diga isso para meu coração completamente


louco por ela. Só de ouvir você falando isso já tive um mini infarto.

— Então você vai ter que ter pulso firme, não ceda às maluquices que ela

inventar, aos limites que ela impor. Converse, converse o máximo que você

puder.

— Céus... — Jennifer passou as mãos pelo rosto.

— Quando eles voltam para a Escócia?

— Terça.

— Depois tire um dia para ter uma boa conversa com Anna, tente a

convencer a voltar ao trabalho, assim ela ocupa a mente, é um bom começo.

— É... Você tem razão... Farei isto.

***

— Mês que vem, prometo que estarei na Escócia no aniversário de


Caroline, no meio de julho. — Jennifer falava para seu avô, já no aeroporto, era

terça-feira.

— Você sabe... Nós estaremos a disposição para qualquer coisa, qualquer

mesmo, somos sua família, nunca esqueça disso. — Ele respondia segurando as

mãos de uma Jennifer já emocionada.

— Prometo ligar várias vezes por semana, e não esconderei nada, não
deixarei mais vocês preocupados, darei boletins periódicos.

— Se alguém mexer com você, se precisar de ajuda, você sabe, são

apenas doze horas de voo, eu venho te ajudar no mesmo instante. — Hugh falava
ao seu lado.

— Tipo um irmão mais velho, só que mais novo?

— Exatamente.

— Ficarei bem, não se preocupem, Anna é uma boa guarda-costas.

***

— Desculpe não ter ido ao aeroporto me despedir. — Anna falava


andando por sua sala, naquela quarta-feira à noite.

— Sem problemas, você se despediu na segunda, no almoço. — Jennifer

estava sentada em frente à lareira apagada, esperando seu copo.

— Você disse que tinha algo para me contar sobre seu avô? — Anna
também se sentava no sofá ao seu lado, após entregar um copo, ficando com
outro.

— Você precisa de uma TV aqui.

— Não gosto de TVs.

— Mas você precisa de uma TV aqui na sala, definitivamente. Sim, uma


coisa que fiquei sabendo quando estava em Montreal.

— O que?

— Vô William tem pouco tempo de vida, tem uma doença na fase final.

Anna baixou a cabeça, pensativa.

— Eu sinto muito... — Então falou, largando seu copo.

— Ele pediu que ninguém fizesse drama com isso, que não pensássemos

nisso. Mas fica meio difícil com aquela bendita revolução tão iminente.

— Até lá muita coisa pode acontecer e talvez essa revolução nunca saia
do papel.

— Enfim... Rolou uma pressão para que eu fosse para a Escócia. Mas eu

não quero ir, meu lugar é aqui.

— Realmente é uma situação delicada.

— E você está deixando ainda mais delicada, mesmo que você ache que

está tudo ótimo entre nós, não está.

— Por que? Porque quero te proteger, como todo mundo que ama faz?
Era complicado para Jennifer ter esse embate com Anna, porque no
fundo era apenas preocupação, mesmo que quase paranoica. Jennifer virou-se na

direção de Anna, no outro sofá.

— Meu amor, você sabe que é muito mais que isso, você está indo além.

— Jennifer falou calmamente.

— Não acho. Mas então me diga o que você quer que eu faça. — Já era
visível certa apreensão por parte de Anna.

— Para começar, que volte para suas missões, você adora isso, e o

trabalho na forja, você sempre me disse que eram as coisas que você mais
gostava de fazer. Você mentiu?

— Não, mas no momento eu enxergo de outra forma.

— Que forma? Você sempre fez isso e está aí viva para contar cada

história.

— Antes eu não tinha você.

— E então voltamos à mesma história que eu sou o elo fraco nesta

corrente, seu ponto fraco.

— Não, pelo contrário, eu sou o ponto fraco na sua vida.

— Ah, Anna, isso é um absurdo sem tamanho... Você coloca um ninja


oriental no chinelo, é a pessoa mais forte que já conheci, e não falo apenas de

força física, você é uma guerreira Jedi, eu sou apenas seu contrapeso sarcástico e
desastrado.

Anna deu um sorriso nervoso, de negação.

— Você não enxerga... Seu avô já enxerga, logo outras pessoas também
enxergarão. E logo também não conseguirei mais te acompanhar.

— Que besteira é essa que você está falando?

— Como não percebi isso antes? O quanto subestimei você, é sempre

você que nos salva. Você foi torturada e mesmo assim nos salvou das mãos de

Vivian. Você nos livrou daquele cara grudento de camisa azul na Inglaterra. Você

nos salvou daqueles irmãos vikings na Escócia. Você me salvou quando aquele

louco do Alejandro me sequestrou. Você que é a verdadeira guerreira aqui!

— Foi trabalho em equipe, ok, tirando o Alejandro que você estava

dopada, o restante foi trabalho em equipe, eu e você juntas, nos ajudando, nós

formamos uma boa dupla, só isso.

— Veja seu futuro, você tem uma revolução nas mãos! Você nasceu para

algo maior, não tem espaço na sua vida para alguém como eu.

— Mas é exatamente você que eu quero do meu lado! Quero você hoje e
quero você no meu futuro, sem você eu sou apenas uma pirralha bebedora de
cerveja.

— Eu serei sempre esse peso morto que você vai arrastar na sua vida?

Um peso morto que te coloca em perigo?


— Não, pare, não vou continuar essa conversa se você insistir em tomar
esse rumo.

Anna apenas balançou a cabeça incomodada, coçou os olhos.

— Olhe, você não está legal e eu estou com o coração apertado te vendo

desse jeito. — Jennifer retomou, num tom mais calmo.

— Nunca estive mais lúcida do que agora. — Anna respondeu, também

num tom mais brando, mas ainda insistia em suas ponderações.

Jennifer a fitou com uma dor incômoda no peito, percebia que conversas

não adiantariam e aquilo a deixou desolada.

Saiu do seu sofá e sentou-se ao lado de Anna. A beijou no rosto, depois

passou seus braços ao redor do seu pescoço, Anna não falou mais nada, apenas

correspondeu ao abraço.

Jennifer suspirou devagar e passou a mão por seus cabelos, enquanto

internamente se desesperava ainda mais com aquela situação que parecia

irremediável, mas mantinha-se pacífica, apenas a envolvendo. Ela precisaria

pensar em algo mais radical.

— Vem, vamos para o quarto, lá pelo menos tem TV. — Jennifer falou no
seu ouvido.

***

Deitada de forma largada no sofá maior de sua sala, Jennifer tentava se


concentrar no livro que mal iniciara naquela tarde de sábado, mas sua mente
insistia em correr para longe dali, estava prestes a tomar uma decisão difícil e

uma sensação de insegurança lhe incomodava dentro do peito, a inquietando.

O celular tocou no sofá ao lado e prontamente atendeu.

— Te acordei? — Anna perguntava com uma voz tranquila do outro lado.

— Não. Estava lendo um pouco.

— Aquele livro que eu te dei?

— Não, outro.

Anna esperou que falasse o nome do livro, mas ela parou por ali mesmo.

— Então, onde quer ir hoje à noite?

— Na verdade... Não quero sair.

— Por causa do dia chuvoso, não é? Você está ficando gripada, falei para
não pegar chuva ontem. Quer que eu vá aí então?

— Acho que prefiro ir aí. E não estou ficando gripada.

— Te busco?

— Não, vou com meu carro. Anna... Eu preciso conversar com você.

A ligação ficou muda por alguns longos segundos.

— Aconteceu algo?

Esta era a típica pergunta retórica, que se faz quando você acaba de ouvir
da sua namorada um ‘precisamos conversar’.

— Só quero conversar uma coisa com você.

E vem seguida de uma sensação de perda de chão e náuseas.

— Certo, vou te esperar aqui. — Quase completou com um ‘venha


agora’, mas conseguiu segurar a ansiedade.

Algumas horas depois Jennifer já chegava com sua costumeira freada

brusca em frente à casa de Anna, correu do carro até a casa, para fugir da chuva.

Entrou no quarto dela ainda mexendo no cabelo, que havia tomado


alguns respingos, encontrou Anna de pé na sacada, com ambas as mãos

espalmadas sobre o parapeito, virou-se quando a viu entrar e sorriu, tentando

esconder uma certa aflição.

Jennifer foi até ela, lhe correspondeu ao sorriso e a beijou rapidamente.

— Você fez bem em não querer sair, da última vez que fomos no pub do

Oscar com chuva eu vi uma goteira bem em cima do bar. — Anna iniciou a
conversa.

— Os drinques provavelmente estavam saindo mais diluídos naquela


noite. — Sorriram.

Jennifer sentou na cadeira que ficava recostada na parede lateral da


sacada, Anna continuou de pé no parapeito, um pouco de lado. Ambas estavam

visivelmente apreensivas, Jennifer resolveu ir logo ao assunto.


— Anna... Essa semana eu tive que lidar com alguns sentimentos bem
conflitantes, sabe, algumas coisas aqui dentro que estão me incomodando.

Coisas não resolvidas que vieram me assombrar e eu sinceramente não sabia

como lidar com isso, nem consegui dividir com você.

Anna era o retrato fiel de um semblante tenso e um coração disparado,


prestando atenção àquelas palavras.

— Eu passei os últimos dias pensando tanto nisso... E resolvi que quero

colocar um ponto final nessa história. Acho que vai ser uma coisa boa para mim,

vai me fazer bem, e acho que vai ser bom para você também, pelo menos espero

que sim.

Provavelmente Anna não estava mais respirando, mas ainda não havia se

dado conta.

— Você... — Anna limpou a garganta. — Você está dizendo...

— Eu quero contratar seus serviços.

Anna enrugou a testa, sem entender.

— Mas você sempre me teve de graça. — Tentou brincar.

Jennifer sorriu de leve e baixou a cabeça. Então voltou a fitá-la.

— Eu tenho uma missão para você.

— Jennifer... — Anna balançou a cabeça contrariada.

— Eu fui ao porto essa semana, duas vezes, as coisas estão lentas, mas
estou tentando pegar o ritmo novamente. Na quarta-feira quando estava indo

embora eu vi um navio com uma bandeira em particular, que me chamou a

atenção. Era a bandeira da República Dominicana e eu reconheci o navio, esse

navio aporta lá uma vez por ano, e toda vez que esse navio aporta eu... Eu nem
consigo dormir. — Deu um sorriso nervoso rápido. — Aqueles caras, aqueles

dois caras que nos... Eu e Helen... Você sabe, eles trabalham nesse navio.

Anna finalmente entendeu.

— E eu quero que você acabe com eles. — Jennifer finalizou.


Capítulo 39 – Depois da febre

— Você está me colocando numa situação difícil.

Foi o que Jennifer ouviu em resposta ao seu pedido. Quando ela entrou

naquela sacada estava preparada para algumas possíveis reações de Anna,

inclusive para uma negativa. Ou pelo menos achava que estava.

— Já imaginou o quão difícil isso é para mim também? Não foram três

anos fáceis, acredite. — Jennifer retrucou.

Anna estava visivelmente incomodada, sentia-se colocada contra a

parede, ao mesmo tempo em que tentava entender o que aquilo significava para

Jennifer.

— Eu acredito, você precisou de três anos para ter a coragem de querer

isso, o problema é que eu não faço mais esse tipo de coisa. — Falava cabisbaixa,

recostada na mureta da sacada, com os cotovelos apoiados no parapeito.

Jennifer inclinou-se para frente em sua cadeira, a fitando.

— Então sua resposta é não?

Anna passou a retribuir o olhar, o seu era angustiado, enquanto o de

Jennifer era desolado.

— Eu sinto muito... Não posso fazer isso, eu posso te ajudar de qualquer


outra maneira, mas não desta, não posso matar esses caras.
Jennifer sentiu um nó surgindo em sua garganta, desviou o olhar, para o
mar.

— Talvez você devesse repensar essa decisão, Jennifer... Não remexa no

passado. — Anna continuou.

Provavelmente a não muito longa paciência de Jennifer estivesse sendo

testada. Ela levantou-se da cadeira, ficando à frente de Anna.

— Uma das coisas que aprendi na colônia de férias de Vivian foi a

conhecer meus limites e eu sei que essa história chegou ao meu limite. Eu não

quero mais isso me atormentando, quero tentar ter uma noite em que não acorde
tremendo com um pesadelo, quem sabe parar de espancar as pessoas que

dormem ao meu lado, eu quero ter a certeza que eu revidei, que não vou

paralisar de medo quando ver aquela bandeira de novo.

— Mas nada disso vai trazer Helen de volta. — Anna respondeu com a

voz baixa.

Jennifer a fitava duramente agora.

— Ok, eu já entendi que você não vai aceitar, mas eu vou manter minha
decisão. Eu gostaria que fosse você que fizesse isso, porque eu confio em você e
eu não tenho a pretensão de tentar resolver isso sozinha com minhas próprias

mãos. Eu vou encontrar alguém que faça, falarei com Max, vou pedir que me
indique alguém para esse serviço, ele tem outros funcionários como você, não

tem? Vou contratar alguém da confiança de Max. Mas isso será feito, ah, não
tenha dúvida disso, e infelizmente sem você.

E saiu a passos largos.

— Onde você vai? — Anna perguntou com certo pânico, tirando os


cotovelos da soleira.

— Para o carro. — Respondeu sem olhar para trás.

Anna agora também a seguia.

— Você vai embora?

— Não, vou buscar a TV. — Jennifer já descia os últimos degraus.

— Que TV?

Jennifer parou na porta frontal da casa, já aberta.

— A TV que comprei para colocar na sua sala. — Falou ainda de costas

para ela.

— Quem disse que eu quero uma TV na sala?

Jennifer virou-se.

— E quem disse que eu quero deixar de trabalhar no porto? — Saiu na

direção do carro.

Logo voltou carregando com dificuldade uma grande caixa.

— Deixe que eu te ajudo com isso. — Anna tomou de suas mãos assim
que ela começou a arrastar a caixa pela sala.
— Acho que vou deixar você escolher o lugar. — Jennifer falou irônica,
já abrindo a caixa.

Anna não respondeu, apenas acompanhava o trabalho dela.

— Mas acho que vou precisar de ajuda, não sei onde se encaixam essas

coisas, ler o manual vai contra meus princípios. — Jennifer falou olhando uma

peça metálica em suas mãos.

— Ok, vou na oficina buscar algumas chaves. — Anna finalmente se

manifestou.

— Talvez não precisemos de tudo que veio na caixa, algumas coisas

podem ter sido colocadas aqui só para nos confundir. — Jennifer falava.

— Ali, à direita da lareira, tem um espaço onde um dia já teve uma TV, já

tem a fiação pronta. — Anna começava a montar as peças da base da TV.

Quase uma hora depois finalmente o televisor já está devidamente fixado

e funcionando, Jennifer observava do sofá Anna fazendo uns últimos ajustes.

— Não trouxe a nota fiscal para você prestar contas porque não comprei

com dinheiro da mesada.

— Acrescentarei o valor na sua mesada.

— Não, claro que não, é presente. Ok, já está ótima, não tem mais o que
mexer aí, sente-se, venha assistir comigo.

Anna sentou-se ao seu lado no grande sofá e ficaram por alguns instantes
em silêncio. Ela deu uma olhadela de relance para Jennifer, que falou num tom

intimista.

— Gostou?

— Presente do dia dos namorados? — Anna respondeu balançando a

cabeça positivamente.

— Em junho?

— Junho é o mês dos namorados no Brasil.

— Sério?

— Uhum.

— Perfeito, presente do dia dos namorados na terra natal do seu pai

então.

Jennifer também deu uma olhada em Anna, instintivamente ela queria se

aproximar dela, mas ainda estava decepcionada demais para conseguir. E Anna

sabia como ela estava se sentindo, por isso não tentou nada também. Era como

se houvesse uma densa parede invisível entre elas.

— Vou subir para dormir, você vem? — Anna a chamou, um pouco


depois.

— Vou ver mais um pouco de TV, depois eu vou. — Jennifer falou sem

tirar os olhos da tela.

Anna a fitou hesitante e então balançou a cabeça, concordando.


— Ok... Boa noite. — Falou e levantou-se, subindo sem pressa as
escadas.

Assim que ouviu a porta do quarto de fechando Jennifer deixou aquela

sensação péssima que sentia tomar vida. Ainda olhava para a TV, mas não

assistia, não demorou muito para que algumas lágrimas surgissem, enquanto
franzia a testa e enxugava os olhos.

Sentia pesos de todos os tipos e tamanhos pressionando seus ombros, via

tudo ao seu redor piorar de situação, o cerco se fechando, dúvidas e decisões - as

piores inimigas possíveis - caminhando juntas.

Além dos ombros ficticiamente pesando, sua cabeça agora também doía

e pesava, sentia um mal-estar generalizado. Deitou-se no sofá, desligou a TV e

adormeceu, propositalmente no sofá.

No meio da madrugada Anna acordou e não a encontrou em sua cama,

desceu as escadas e viu que Jennifer dormia no sofá da sala. Se aproximou com
receio, mas logo percebeu que algo não estava bem, colocou a mão em sua testa

e em seu rosto avermelhado, se agachando ao seu lado.

— Jennifer?

— Ãhn?

— Você está bem?

— Não, acho que estou ficando gripada. — Respondeu abrindo os olhos


com dificuldade.
— Você está com febre.

— Que ótimo.

— Vá para a cama, vou procurar um antitérmico.

Jennifer levantou-se e sentou devagar, com um semblante sofrido.

— Consegue ir para a cama? — Anna insistiu.

— Parece que joguei vôlei por uma semana... Reclamava e tossia.

Anna a fitava de cima.

— Você tinha razão, eu não deveria ter saído para correr na chuva ontem.

— Jennifer continuou.

— Eu te alertei, você acabou de sair de um monte de infecções, ainda

está com a imunidade baixa, isso era meio previsível. Mas tudo que eu falo agora
é superproteção, não é?

Jennifer inclinou a cabeça, olhando para cima.

— Juro que não vou achar que é superproteção se você quiser me

carregar para o quarto. — Jennifer falou e sorriu.

— Como um saco de batatas?

— Não, não, por favor, do outro jeito.

Anna por fim sorriu também, inclinou-se e a tomou em seus braços.


Jennifer entrelaçou em seu pescoço e subiram as escadas.
A colocou na cama e a beijou na testa.

— Assim você também vai ficar doente. — Jennifer falou com Anna já
indo na direção do banheiro.

— Minha imunidade é maior que a sua.

— Mas híbridos também ficam gripados. — Jennifer retrucou quando

Anna reapareceu com um comprimido e um copinho, sentando ao seu lado.

— Tome ambos.

— O que é?

— Um remédio para febre e um para tosse.

— Você sempre foi prevenida ou é por que agora cuida de mim? —

Jennifer falou entre fungadas, e voltou a deitar.

Anna deu um sorriso de canto.

— Digamos que de uns tempos para cá reforcei meu estoque.

Jennifer pousou sua mão na de Anna, que estava sobre a cama, e a

encarou. Anna retribuiu o olhar por um instante, fez menção de levantar, mas
Jennifer segurou sua mão, o que a fez voltar a fitá-la, era como se ela precisasse

falar algo importante. Anna aguardou. Jennifer demorou-se.

— Seu sofá é muito desconfortável para dormir, não quero mais dormir
lá. — Enfim ela falou algo, de forma séria.

Anna balançou a cabeça. Ela havia entendido a mensagem subliminar.


Jennifer soltou sua mão e virou-se para dormir.

***

Jennifer puxou uma das cadeiras brancas da cozinha, fazendo grande


barulho naquela manhã silenciosa, chamando atenção de Anna, que preparava

algo no balcão da cozinha.

— Quer torradas?

— Sim, com bastante xarope de tosse, por gentileza. — Falou após

assoar o nariz num dos guardanapos de tecido de cima da mesa.

Anna colocou uma cesta com torradas próximo a ela e pegou o

guardanapo usado com a ponta dos dedos, jogando no lixo.

— Tome, use isso. — Anna falou lhe entregando um rolo de papel

toalha.

— Vai trabalhar no píer hoje? — Jennifer puxava assunto, enquanto

comia.

— Não, tenho coisas para fazer na forja.

— Sério? Que coisas?

— Coisas.

— Hum. A...

— Não espirre nas torradas! — Anna falou tirando a cesta da frente dela.

— Ok. — Jennifer acabou interrompendo o espirro, pegando outro


guardanapo de tecido de cima da mesa.

— Você gripada é um terror. — Anna tirou o lenço da mão dela, voltando


a entregar o rolo de papel toalha.

— E você já foi mais boazinha. — Jennifer respondeu ranzinza, tossindo.

— Quer café?

— Tem xarope dentro?

— Ok, você venceu, vou lá em cima buscar o xarope.

***

— Posso levar o xarope para casa? — Jennifer questionou, após

emborcar o pequeno copo.

— Você vai para casa agora?

— Daqui a pouco, ainda vou assistir o Bob Esponja.

— Leve. Mas quero falar com você antes de ir. — Anna inverteu o jogo.

— Tá bom. — Jennifer respondeu erguendo apenas uma sobrancelha.

O desenho animado já estava no final, Jennifer estava com um semblante


doente assistindo compenetrada, deitada no sofá não confortável da sala

agigantada. Anna se aproximou com passos brandos, cuidadosos, sentou-se no


mesmo sofá, sob os pés enfiados em meias listradas de Jennifer, que a olhou
rapidamente.
Aquela informação de que Anna queria dizer algo não a intrigara como
faria em outra ocasião; Jennifer agora aguardava alguma nova medida protetiva,

alguma resolução que a tiraria do sério provavelmente, era para isso que ela

estava preparando seu espírito enquanto assistia seu programa favorito.

— Esse gordo rosa é o Patrick, não é? — Anna quebrou o silêncio.

— Como sabe?

— Eu assisti dia desses, você fala tanto nesse desenho.

Jennifer sorriu agarrada à uma caixa de lenços descartáveis.

— Que evolução, para quem nunca ouviu falar de Pokemon.

— Eu também vi esse rato amarelo. E quando era jovem eu gostava de

ler quadrinhos.

— Você ainda consegue me surpreender. — Jennifer falou irônica.

Anna olhou longamente para Jennifer, agora de forma séria, antes de

voltar a falar.

— Vou precisar que você descreva aqueles dois caras.

Jennifer desfez o restante do sorriso e correspondeu seu olhar.

— Caras?

— Do navio. Mas não precisa ser agora. — Anna passou a olhar a TV.

Jennifer sentou-se, a olhando de sobrancelhas baixadas.


— Por que?

— Para que eu possa encontrá-los.

— Você vai fazer o que eu pedi?

— Sim. Desculpe não ter aceitado no momento em que você falou, eu sei
que era comigo que você contava e deve ter sido uma grande decepção quando te

falei não. Eu farei isso, se trouxer um pouco de paz de espírito para você, então é

o que deve ser feito.

Jennifer que acompanhava a observando agora olhou para baixo,

assimilando.

— Mesmo indo contra seus novos princípios?

— Ok, ignorando o tom irônico da sua pergunta, sim, eu farei.

Jennifer a fitava segurando um sorriso, com um semblante de quem vai

aprontar algo.

— O que foi? — Anna perguntou.

— Eu vou fazer algo feio agora.

— O que?

— Te passar gripe. — Mal terminou de falar e pulou em Anna, em

seguida a derrubando no sofá, a deitando e ficando por cima dela.

***

— Melhor?
— Hum? — Jennifer acordava, ou semi acordava naquela metade de
manhã de segunda-feira.

— Quer alguma coisa? — Anna perguntava abaixada ao lado da cama,

pousando a mão sobre sua testa.

— Onde você vai?

— No Max, mas volto até o meio-dia.

— Posso ir junto?

— Não. Só vou lá conversar um pouco com ele. Deixei o xarope aqui do


lado, termômetro, antitérmico, celular, água e o controle da TV também.

Jennifer olhou rapidamente para o criado mudo ao lado.

— Não esqueceu nada, bom trabalho, enfermeira. — Falou com

sarcasmo.

— Qualquer coisa você me liga, estarei com o celular.

— Ok.

— Fique bem. — Deu um beijo em seus lábios e levantou-se.

— Anna?

— Sim? — Respondeu solícita.

Jennifer sorriu antes de falar.

— Você achou que eu ia terminar com você, no sábado, não achou?


Anna deu um pequeno sorriso também.

— Achei sim.

— Você me mima demais, eu nunca terminaria com você. — Jennifer


respondeu rindo. — Só queria te dar um sustinho.

Anna balançou a cabeça e também deu risada.

— Pequena... — E saiu.

***

Passavam alguns minutos das dez da manhã daquele sábado e Anna batia

na porta do apartamento de Jennifer já pela terceira vez.

— Imaginei que estivesse dormindo ainda. — Anna falou ao ver a cara

amassada de Jennifer ao abrir a porta, deu um cheiro em seu pescoço e um bom

dia.

— Por que tão cedo num sábado? Achei que você me amasse.

Anna foi logo para a cozinha preparar café, que trazia num pacote de

casa.

— Não reclame, eu vou te fazer café.

Jennifer atirou-se no sofá, deitando e fechando os olhos.

— Te liguei ontem à noite várias vezes, você não atendeu, sexta não é
minha noite? Precisamos definir um cronograma. — Jennifer falou
resmungando.
— Estava no porto, de vigília. Te falei que estava indo todos os dias essa
semana para lá estudar a movimentação deles.

— Ah sim, esqueci que isso incluía as noites... E então, está dando certo?

— Sim, isso que vim te contar, vai ser hoje à noite. — Anna falou e deu

uma olhada de relance para Jennifer, que abriu os olhos neste momento.

— Sério? Hoje?

— Será a ocasião ideal. A não ser que você não queira.

— É que você me pegou de surpresa.

Anna deixou o café na pia e sentou-se ao lado dela, que agora também

sentava.

— Pode ser?

— Manda ver. — Jennifer respondeu sem expressão.

— Preciso saber uma coisa.

— Diga.

— Você quer ir?

Jennifer olhou para o chão, pensativa.

— Não.

— Ok, eu precisava te dar essa opção, é um direito seu, e mesmo assim


você apenas acompanharia a distância.
— Entendo... Mas não quero ir.

— Na verdade eu te convidei porque sei que você daria conta deles com
uma mão nas costas e facilitaria meu trabalho. — Anna deu um sorriso tímido.

Jennifer deu uma risada fungada, virou-se para ela e a puxou pela nuca,

para um beijo.

— Eu sei que é mentira, mas obrigada. — Jennifer falou.

— Juro! Ok, vou lá terminar de fazer o café.

Jennifer reconquistava a fé que as coisas voltariam ao normal, pelo


menos ela via indícios nas atitudes recentes de Anna e se apegava a isso.

***

Naquele mesmo sábado, a noite já caíra há algum tempo e Anna

terminava de forjar uma adaga em sua oficina, ouviu as famosas freadas bruscas

em frente à sua casa e aguardou a visita.

— Que faca diferente. — Jennifer comentou, após dar um beijo em

Anna.

— É um estilo diferente das que fabrico.

— Por que?

— Porque pretendo deixar por lá.

— Não entendi.

— Depois eu explico. Cuidado com as faíscas. — Anna falou esticando o


braço a afastando da lixadeira.

Jennifer circulava pela oficina, mexendo e cutucando nas ferramentas e


objetos nas bancadas.

— Que horas você vai para o porto?

— Mais tarde, depois da meia-noite. Eu não sabia que você vinha, já

jantei, mas posso colocar a mesa para você de novo.

— Não, não... Já comi alguma coisa em casa. Ops. — Jennifer falou

derrubando algo no chão.

— Cuidado.

— Os caras, você tem certeza que são os que eu descrevi?

— Sim, e confirmei os nomes na lista dos embarcados.

— Sei... — Jennifer novamente derrubou algo de uma prateleira.

Anna desligou sua máquina, tirou seus óculos protetores e a encarou.

— Diga o que você quer falar, Jennifer.

— Eu vou com você.

— Ao porto?

— É.

— Tem certeza?

— Tenho sim.
— E o que a fez mudar de ideia?

Jennifer caminhou devagar para perto dela.

— Acho que presenciar vai ser mais convincente para essa minha mente
confusa.

— Mas você não participará, você sabe disso, não sabe?

— Sei sim.

— Em todo caso irei te armar, caso fuja do meu controle.

— Então me arme. Adoro quando você arma. — Jennifer falou passando

seus braços pela cintura de Anna, que usava um avental de couro negro e jeans.

— Você parece mais pacífica com esse assunto. — Anna respondeu, já

com seu rosto próximo ao dela, colocando o que restava do cabelo preso de

Jennifer para trás da orelha.

— Estou feliz que isso vai ter um ponto final. Estou feliz que você tenha

aceito.

— Eu não posso garantir que tudo corra conforme o previsto hoje, eles
não estarão sozinhos, o ancoradouro é um lugar lotado de marinheiros aportados
à noite, é muito fácil que algo dê errado.

— Encare como mais uma missão, ok? — Deu um beijo rápido e saiu. —

Continue seu trabalho, não quero te atrasar.


— Branca de Neve? É hora de acordar. — Anna chamava, Jennifer
adormecera no sofá da sala assistindo TV.

— Você já foi? — Jennifer sentou-se rapidamente e coçou os olhos.

— Claro que não, mas já estou pronta. Venha na oficina comigo pegar

algumas armas.

Jennifer levantou-se e viu Anna já arrumada para a missão, com seu

casaco negro quase até os joelhos e gola levantada, um lenço acinzentado ao

redor do pescoço, botas, e tinha uma adaga presa em cada lado da perna. Sorriu

com encanto.

— O que foi? — Anna perguntou.

— Nada. Só estou te admirando um poquinho.

Após pegarem algumas armas na oficina partiram para o porto depois da


uma da madrugada. O primeiro alvo estaria dormindo sozinho num pequeno

quarto no seu navio de origem, segundo as observações que Anna fizera durante

a semana.

— Se você continuar pisando no meu calcanhar teremos uma noite


infernal. — Anna falou se virando para Jennifer, já no porto, atrás de alguns
contêineres.

— Relaxa, eu estou retomando o ritmo, tenha paciência. — Jennifer

sussurrou de volta.
— É esse, não é? — Falou apontando para um grande navio cargueiro
com a bandeira da República Dominicana.

Jennifer balançou devagar a cabeça em silêncio, agora com uma

expressão séria.

— Ok, hora da invasão. — Anna continuou.

Minutos depois já estavam circulando pelos corredores internos do

cargueiro, onde não se via movimento algum, desceram até o nível dos

dormitórios, Anna sabia o número da cabine que iria abordar.

— Escute, as portas não ficam trancadas, então nos posicionaremos em

frente à porta cento e trinta, abrirei, entrarei e executarei o serviço. Após eu sair
você terá dez segundos para decidir se quer entrar para visualizar ou não. Se

entrar, não se prolongue, e sairemos exatamente por onde viemos. Completa e

claramente compreendido? — Anna sussurrou numa curva anterior ao corredor

de portas, empunhando uma pistola prata com as duas mãos.

— Eu ficarei de sentinela em frente à porta, certo?

— Isso, fique de olho no corredor. E não faça barulho.

— Eu nunca faço barulho. Ok, eu entendi.

— Me siga, não me ultrapasse. E deixe meus pés em paz.

Caminhavam lentamente pelos corredores metálicos, Jennifer lutava para

não ficar tão próxima de Anna e dos seus pés, olhava atentamente para os lados
quando uma porta abriu em suas costas, saindo um homem moreno baixinho de
dentro do quarto.

— Quién es...

Jennifer se adiantou e tapou sua boca com a mão, segurando sua nuca

com a outra mão, o girando em direção a Anna.

— Shhh hombre! — Sussurrou para ele.

Em meio segundo Anna o agarrou por trás, aplicando uma chave de

pescoço, apagando-o e o arrastando desmaiado de volta para dentro do seu

quarto.

Anna saiu de lá, fechando a porta.

— Quase, hein. — Jennifer falou.

— Continue atenta. E não tente dialogar com os próximos, muito menos

em espanhol.

Continuaram pelo corredor, até que se prostraram diante do quarto cento

e trinta, Anna colocou a mão na fechadura e olhou para Jennifer, como se


pedindo sua autorização para entrar.

— Vai fundo. — Jennifer murmurou.

Toda a ação levou não mais que trinta segundos. Um estampido baixo

pode ser ouvido por Jennifer, momentos depois Anna saiu, gesticulando com a
cabeça para que ela entrasse, se quisesse.
Ela a fitou e entrou. Também voltou rapidamente. Saíram correndo do
navio, tinham urgência em deixar aquilo tudo para trás, Jennifer sequer olhou

por sobre os ombros.

Agora caminhavam lado a lado pelas ruas molhadas e sombrias do porto,

onde outros transeuntes as faziam companhia como sombras. Haviam bares


naquela área e era um bar em específico que buscavam. E um frequentador, com

tatuagens horrorosas, era o alvo.

— Ali, Wax Bar, é ali que ele está enchendo a cara. — Anna falou,

apontando para um bar decadente com uma placa de madeira pendurada.

Passava das três da madrugada e segundo as anotações de Anna, ele

sairia dali por volta das quatro.

— Esperamos ele sair? — Jennifer indagou.

— Sim, temos uma boa visão nesse beco em frente.

— Ok.

Ficaram ali, de pé, por longos minutos. Anna de olho no bar de vitrine

larga. Jennifer com o olhar perdido nos ladrilhos cinzas.

— Você está bem? — Anna perguntou, olhando de forma preocupada

para ela.

— Uhum. — Jennifer mantinha as mãos no bolso de seu casaco grafite.

Passou seus dedos pelos cabelos de Jennifer, por cima da cabeça.


— Você está quieta, isso é tão raro. — Anna deu um leve sorriso.

— O que você fez... Com a adaga e o bilhete... É um aviso para a polícia?

— E para todos que o conheciam, para saberem quem ele realmente era.
Você preferia que não tivesse feito?

— Não, tudo bem, achei uma boa ideia. Eu cravei ainda mais a faca.

— Faço com o outro também?

— Fique à vontade.

— Ok.

Anna voltou a vigília ao bar.

— Esse... No barco, era qual?

— O de Helen.

Anna apenas assimilou, balançando a cabeça. Sabia que o próximo então

era o de Jennifer.

— Já sabe, eu o arrasto para o beco, você vigia em frente, vou tentar ser
rápida.

— Sim.

Passando vinte minutos das quatro um homem corpulento e com os


braços cobertos de tatuagens estranhas saiu do bar com um cigarro na boca.

— É o nosso cara. — Anna indagou.


Jennifer não respondeu, apenas saiu caminhando na direção dele com
passadas rápidas e firmes e um semblante colérico.
Capítulo 40 - Legado

— Calma mocinha, deixe comigo. — Anna se apressou e a segurou pelo

ombro.

Colocou ambas as mãos em seus ombros, a fitando séria.

— Você me pediu para fazer isso, então eu irei fazer, combinado? —

Anna disse.

Jennifer aceitou, balançando a cabeça.

O seguiram por três quarteirões até passarem por um beco estreito e

longo, Anna o golpeou na cabeça pelo lado, acertando na têmpora com o cabo da

arma, o derrubando já para dentro do local escuro. Ela o arrastou para o interior,

até o final do beco, por uns trinta metros. Jennifer não seguiu as orientações e foi

atrás.

— Que prostitutas agressivas! — Ele bradou, zonzo, ainda sentado no

chão. — Já paguei vocês!

— Vá para fora vigiar. — Anna falou de forma ríspida para Jennifer.

Mas Jennifer fincou seus pés ali diante daquele grande homem com uma

camisa bege aberta, rosto e pescoços largos e barba por fazer, o encarando com
olhos duros de raiva.

— Tem certeza que quer ficar aqui? — Anna a interpelou.


Jennifer se inclinou e falou num sussurro próximo ao ouvido dela.

— Anna, eu quero que ele sofra antes, não seja rápida, faça o sofrer.

Anna a olhou um pouco assustada, mas concordou.

— Ok, se afaste então.

— Eu estou sangrando! — O homem olhava para os dedos após passá-los


pela lateral da cabeça.

— Fale baixo. — Anna falou.

— Vá a merda, sua vadia! — Ele falou tentando levantar-se do chão

molhado.

Com um semblante de impaciência, Anna o chutou no rosto.

— Você não vai a lugar algum.

— Hey! O que você pensa que está fazendo? Quem são vocês? Batman e
Robin versão piranhas? Eu vou perder a paciência! — Tentou levantar-se mais

uma vez.

Levou mais um chute, que desta vez foi certeiro na mandíbula, o


derrubando por completo.

— Agora a porra ficou séria! — Ele levantou-se rapidamente do chão e

foi para cima de Anna, Jennifer afastou-se, acompanhava tudo atentamente, com
os olhos arregalados e brilhantes.

Seu soco passou no ar, Anna esquivou para trás se defendendo. Ela
aproveitou a deixa para lhe apresentar seus punhos, uma vez que ele já conhecia
seus pés. Uma mão de cada vez, dois socos em sua face, o deixando

cambaleante.

— Você bate bem forte para uma mulher, hein? Mas só sabe esses

truques? — Ele falou com a mão cobrindo a bochecha, com desdém.

— Podemos ficar a noite inteira aqui. — Anna respondeu, deslizando a


mão para dentro do bolso do casaco, discretamente.

O grande homem investiu para cima de Anna novamente, que desferiu

outro golpe em seu rosto com um soco inglês, arrancando vários espirros de
sangue do rosto dele.

— Sua puta louca! Olha o que você fez com meu nariz!

Anna deu uma olhada rápida para Jennifer e sinalizou com a cabeça,

pedindo autorização para finalizar. Mas Jennifer negou seu pedido, balançou a

cabeça negativamente, tinha um olhar sádico. Ela queria mais.

Ele sangrava abundantemente e sua camisa já começava a mudar de cor,

Anna foi em sua direção, chutando entre suas pernas, fazendo com que
projetasse o tronco para frente, permitindo a Anna conectar um novo chute seu
rosto, arrancando mais um pouco de sangue, do seu já fraturado nariz.

Anna se preparava para outro chute quando ele reagiu, dando um gancho,
lhe atingindo no queixo. A pancada apenas a deixou um pouco tonta, ele tentou

outros movimentos, todos defendidos habilmente por ela, que dava passos para
trás à medida que ele investia em golpes.

Se aproximaram do local onde Jennifer observava, ele parou ofegante,


limpou o sangue que escorria do nariz e dos cortes no rosto e fitou Jennifer.

— Espera... Eu estou me lembrando de você.

O semblante de Jennifer mudou, ela parecia assustada agora.

— Claro que eu lembro de você... Você e sua amiguinha. E pelo visto

você gostou do papai aqui, me procurou para mais uma vez? Posso te comer

agora ou sua amiga nervosa vai querer dar primeiro? — Ele disse.

Novamente o semblante de Jennifer mudou, ela agora lançou um sorriso

sarcástico.

— Desculpe ter demorado tanto tempo, é, eu trouxe uma amiguinha hoje,

híbrida também. Mas sinto muito, a história vai ter um final diferente, seu porco
asqueroso, hoje você vai comer suas próprias bolas e vai se arrepender

amargamente de ter me conhecido. — Jennifer falava com raiva.

Ele foi para cima dela, mas Anna impediu, o jogando contra a parede

maciça de tijolos escuros.

— Naquele dia você escapou, mas hoje você não escapa, putinha

gostosa! — Ele bradava, tentando soltar-se das mãos de Anna.

Anna tentava segurá-lo contra a parede e armou um soco com a mão

direita, apesar de ser canhota. Ele desviou-se e ela acertou em cheio a parede,
fazendo uma feição de dor.

— Merda! — Ela exclamou, sacudindo a mão.

Apesar da dor, ela conseguiu esmurrá-lo com a outra mão, mas o


grandalhão a empurrava e defendia-se como podia, também acertava um ou

outro golpe, uma batalha de mãos e socos estava sendo travada, enquanto

Jennifer assistia próxima, preocupada.

— Hey, esse beco é nosso! — Falou uma voz surgindo na escuridão.

Aquela catarse foi interrompida com a chegada de mais três elementos

inesperados ao beco. Jennifer sacou sua arma quando viu se aproximando dois

homens medianos arrastando uma jovem garota de cabelos claros, cobrindo sua
boca, ela esperneava e se debatia, ninguém entendia o que acontecia ali.

Anna e o grandalhão cessaram os golpes e todo aquele digladiamento

para ver o que acontecia também, os dois caras permaneceram por alguns

segundos olhando de forma confusa para os três que já estavam no beco,

continuavam segurando a garota de forma violenta, que já tinha alguns


ferimentos visíveis.

— Ãhn... Tudo bem, nós vamos procurar outro lugar. — Um dos caras
falou.

Jennifer olhou atônita para Anna, que mantinha a mão direita erguida,
estava ferida, a esquerda segurava o colarinho do seu oponente. Aquele olhar era

uma convocação para que Anna fizesse algo, ou aquela garota teria o mesmo fim
que Jennifer teve há três anos, ou talvez o fim que Helen teve.

— Ah não, vocês não vão, não. — Anna respondeu.

Ela largou seu então rival e pulou nos três que visitavam o beco. O já
ensanguentado grandão também entrou na luta, ele queria vingar-se de Anna, e

tentava acertá-la por trás, enquanto Anna tentava atingir os dois novos caras e

libertar a garota loira.

Jennifer continuava observando, andando ao redor.

Anna acertou em cheio o rosto de um dos caras, o derrubando, mas o

outro ainda segurava a garota, ela tinha dificuldades em acertar seus golpes por

causa dos murros na nuca que o grandalhão lhe desferia. Ela também levou
alguns golpes no rosto e no abdome, sentiu um chute nas costelas, se arqueando

para puxar ar. A situação estava ficando crítica com três homens ao seu redor

num pandemônio de golpes e sangue, além de sua mão direita quase inutilizada.

Era hora de reagir de forma mais veemente. Sacou suas duas adagas das

bainhas nas laterais de cada perna, mesmo com a mão dolorida, num golpe ágil
para trás cravou ambas no grandão que estava às suas costas e que espancava sua

cabeça. Tirou as lâminas da barriga dele rapidamente e sem pestanejar as girou e


penetrou no abdome de um dos caras à sua frente, que soltou um ganido de dor e
caiu de joelhos com as mãos sobre os ferimentos. O outro cara sacou uma pistola

e estava prestes a disparar em Anna, mas ela o desarmou chutando sua mão, a
pistola caiu aos pés do grandalhão duro na queda, que permanecia de pé, mesmo
esfaqueado.

Ela sabia do paradeiro da arma, o Titan a juntou do chão, antes que


fizesse mira, Anna deu uma giratória, arrancando a pistola das mãos dele, as

fazendo cair perto de Jennifer. O outro cara aproveitou sua posição para chutar

as mãos de Anna, derrubando suas duas adagas ensanguentadas, que também


foram parar próximas a Jennifer.

Jennifer fez menção de juntá-las, mas desistiu. Apenas as moveu

mentalmente para junto de Anna, todas as armas. Ela queria provar algo a Anna

aquela noite.

Anna pegou a pistola e atirou no peito do grande Titan, fazendo com que

ele caísse de costas, finalmente a hora dele havia chegado. Mas ele não morreu,

ainda tentava se levantar. Ela atirou nos outros dois caras, um tiro acertou a

cabeça de um deles, o fuzilando na hora. O outro, que aparentava ser um híbrido,

levou um tiro no braço e conseguiu sair correndo do beco, levando a garota

consigo.

Jennifer e Anna se entreolharam.

Anna guardou suas adagas nas pernas e saiu correndo também, seguida
por Jennifer. Sendo híbrida, Anna, corria muito mais rápido que Jennifer e logo
avistou os dois próximos a um píer, junto ao mar. Apesar da arma em punho,

evitou fazer disparos, uma vez que a garota estava sob o poder dele. Quando se
aproximou o suficiente, o golpeou pelas costas os fazendo cair, mesmo do solo,
ele foi capaz de chutar com ambas as pernas a mão de Anna, a fazendo perder a

arma que empunhava. Jennifer finalmente chegou ao local e passou a assistir a

briga. Num dado momento, Anna conseguiu alcançar sua adaga na perna e

cravou na lateral da coxa do seu oponente ainda no chão.

Ele mesmo ferido chutou novamente, conseguindo afastar Anna, que deu
alguns passos trôpegos para trás, foi nesse momento que ele empurrou a garota

desacordada no mar e tentou fugir, arrastando a perna ferida, que não mais

obedecia. Jennifer, outra vez moveu a pistola para as mãos de Anna, que

prontamente disparou cinco vezes contra o coxeante homem, finalmente o

matando.

— Anna, a garota! — Jennifer gritou, apontando para o mar.

Anna olhou para Jennifer, estava ofegante e com alguns veios de sangue

descendo pelo rosto, olhou para o mar, viu a garota se afogando nas geladas

águas marrom esverdeadas. O dia começava a nascer.

Ela correu até a beira do píer e mergulhou, nadou até onde a jovem agora

se debatia e transpassou seu braço por baixo dos seus agitados, a trazendo de
volta à terra firme. A deitou sobre o piso de madeira e certificou-se que estava

bem.

À essa altura alguns transeuntes do porto já se aproximavam e também

ajudaram a garota.

Anna afastou-se e colocou as mãos sobre os joelhos, curvando-se, com a


respiração curta e totalmente ensopada.

— Você tá bem? — Jennifer se aproximou, colocando a mão em suas


costas.

Anna grunhiu alguma coisa indecifrável.

— O que?

— Puta que o pariu.

Jennifer riu.

— Eu nunca ouvi você falando esse palavrão.

Anna tentou recompor seu fôlego, ergueu-se, como se lembrando de algo.

— Espera! Não acabou, vem comigo. — Anna falou já puxando Jennifer

pela mão apressada.

Seguiram de volta para o beco, chegando lá avistaram o corpo do cara


com o tiro na cabeça, mais ao fundo o maldito estuprador, ainda vivo, tentando

se arrastar.

— Viemos finalizar o serviço. — Anna falou de forma irônica, colocando


sua bota sobre o peito dele.

O maldito as fitava assustado, cuspia sangue e tateava o chão. Alguns

raios de sol entravam naquele final de beco.

Anna tirou de dentro do casaco e desdobrou um papel agora um pouco


molhado, que tinha uma palavra grafada à mão, não havia borrado. Do outro
lado do casaco tirou uma adaga fina e pontiaguda, aquela diferente das que
costumava fabricar. Jennifer olhava curiosa.

— Quer fazer? — Anna ofereceu os dois objetos à Jennifer.

— Com todo prazer.

Ela tomou a adaga das mãos de Anna e enfiou a lâmina no papel, até o

fim. Se aproximou devagar do seu algoz do passado, inclinou-se sobre ele, olhou

de perto o rosto largo daquele homem, os olhos negros que um dia ela havia

encarado por outro ângulo. Agora ele não tinha mais deboche e devassidão em

seu semblante, havia apenas medo e sangue.

— Po-por favor... Me deixe viver... — Ele balbuciou.

— Por que eu deveria ser generosa com meu estuprador?

— Porque eu deixei você viver.

— Não, eu fugi. E naquele dia você matou uma parte de mim.

Jennifer ergueu a adaga e cravou a lâmina completamente em seu peito,

com força e raiva. Ele deu um gemido abafado, mas continuava vivo, agitando
suas mãos.

Anna ergueu sua arma e efetuou um único disparo no meio dos olhos,

acabando com aquilo de uma vez por todas.

Jennifer ergueu-se, contemplou em silêncio e com semblante fechado por


alguns minutos aquele corpo cheio de tatuagens bizarras, a camisa
ensanguentada, o nariz torto e quebrado, uma feição repugnante, e um papel

cravado no peito que dizia ‘Estuprador’.

Caminhavam em silêncio lado a lado pelo porto já com o sol fraco às

fazendo companhia. Chegaram até a moto, antes de colocar o capacete Anna

olhou por um momento sua mão direita, que àquela altura já estava arroxeada e
inchada, Jennifer também olhava.

— Se importa de pilotar? Não vou conseguir acelerar com a mão assim.

— Anna pedia.

Jennifer apenas assentiu com a cabeça, continuava silenciosamente


perturbada. Anna se aproximou dela, ainda com o capacete em mãos.

— Hey, acabou. Vamos para casa. — Anna colocou a mão em seu rosto.

— Não, não acabou ainda. — Jennifer respondeu o olhar.

Jennifer colocou seu capacete e subiu na moto, Anna fez o mesmo. Ela

não guiou até a casa de Anna, nem até sua casa, seu destino foi outro.

Estacionaram, Jennifer deixou seu capacete e começou a caminhar, Anna

tirou seu , mas permaneceu ao lado da moto. Jennifer parou e voltou, pegando
Anna pela mão, agora caminhavam juntas, atravessando os grandes portões de
ferro do cemitério municipal.

Andavam juntas pelo terreno gramado de leves subidas e descidas,

repleto de lápides e algumas árvores frondosas, um caminho que Jennifer


conhecia bem. Ouvia-se apenas o barulho matinal de alguns pássaros e das
passadas na grama, seus dedos ainda estavam entrelaçados.

Chegaram à pequena lápide de mármore branca, onde o nome de Helen


estava gravado, Jennifer sentou-se à frente, sobre a grama, Anna permaneceu de

pé atrás.

Jennifer deu uma olhada para o alto, sorriu percorrendo o céu, franzindo

a testa por causa do sol que batia em seus olhos. Voltou a encarar a lápide. E
começou um diálogo solitário, baixinho.

— É, eu sei, eu nunca trouxe ninguém aqui antes... Essa é a Anna. Ela

fez justiça por nós essa noite; ela acabou com aqueles caras, você tinha que ter
visto, parecia uma ninja cheia de braços.

Ela olhava agora para os pedaços de grama que arrancava à sua frente.

— Talvez agora você possa ter paz, onde você estiver. E eu também,

talvez eu também tenha um pouquinho de paz. Eles não ficaram impunes, e eles

não podem mais ferir ninguém.

Ela voltou a olhar o mármore envelhecido, agora com os olhos molhados.

— Isso não é uma despedida, mas talvez eu tenha deixado algumas


coisas para trás hoje. O seu legado vai ficar, você deixou tantas coisas boas para
mim... Você deixou seu amor, e se agora eu tenho esse amor imenso por essa

pessoa de pé aqui atrás de mim, é porque você me ensinou como amar. —


Terminou de falar com a voz embargada, agora já chorava, passou as costas da

mão no rosto.
Anna colocou sua mão sobre o ombro de Jennifer, a acariciando.

— Eu amo Anna com todo meu coração, mas também vou te amar para
sempre, meu anjo.

Um leve sorriso surgiu nas feições de Anna, que continuava com sua mão

em seu ombro. Para ela o nome Helen não era mais algo incômodo, já

compreendia que aquilo fazia parte de quem Jennifer era.

Jennifer levantou e virou-se, abraçando Anna, que prontamente

correspondeu, afagando sua cabeça, enquanto ela chorava e a abraçava mais

forte.

— Obrigada. — Foi o que Jennifer murmurou.

Anna deu um beijo demorado em sua testa.

— Vamos embora, você tá me molhando. — Jennifer falou, arrancando


um sorriso de Anna.

***

— Vem cá. — Jennifer puxou Anna para o banheiro, já na mansão, e


começou a despi-la. — Você está uma bagunça completa, vou cuidar disso. —
Jennifer olhava os ferimentos de Anna.

— Mas uma bagunça que cumpriu seu dever. — Anna falava com um
orgulho contido.

— Cumpriu até o que não era seu dever. — Jennifer falou, também
orgulhosa.

— A mão não, deixe comigo. — Anna falou erguendo a mão direita, com
dor.

— Sinto muito, mas sua mão está quebrada, você vai ter que ir engessar.

— Eu coloco uma tala depois.

Jennifer pegou a mão dela e olhou séria.

— Não, nada de tala, olha o estado disso? Quer virar o capitão gancho?

Vamos ao hospital engessar depois que eu limpar essa bagunça.

— Pensarei no assunto enquanto tomo banho.

***

— Você tem sorte que seus cortes cicatrizam mais rápido. — Jennifer
comentava enquanto cuidava dos ferimentos no rosto de Anna, já depois do

banho, sentada na cama. Tinha uns cortes na maçã do rosto, supercílio e lábio.

— Minha mão também.

— Cicatriza errado mais rápido, você quer dizer. Vamos, vista qualquer
coisa, eu levo você de carro ao hospital, prometo que não saio do seu lado nem

por um segundo. Prometo ficar com você até mesmo na hora do raio-x, e tomo
uma dose de raios prejudiciais à saúde só para te fazer companhia.

— Ah... Como você é insistente. Tá bom.

Jennifer sorriu e a beijou, a segurando pelas bochechas com as duas


mãos.

Duas horas depois voltaram para casa, Anna com gesso na mão e até
metade do antebraço e com mau humor.

— Odeio isso... Odeio gesso... — Ela resmungava, olhando para a mão,

subindo sozinha as escadas.

Jennifer andava pela sala devagar, cansada e pensativa. Era metade da

manhã e agora sozinha ela sentia como se finalmente demônios estivessem

sendo extirpados.

Estava em silêncio absoluto, mergulhando em si própria, sentiu um baque

de sensações diferentes, mas fortes, algo arrebatador dentro do seu peito. Era a
raiva e o pesar querendo deixar sua alma.

Parou no meio da sala e fechou os olhos com força, sentiu uma onda a

invadindo, ela sabia que tinha controle sobre aquilo, mas não entendia o que era.

Abriu as mãos de forma espalmada, depois os braços, abriu os olhos e, trincando

os dentes, ela viu janela por janela explodindo ao seu redor, os vidros voando em
pequenos cacos, bem como os espelhos dependurados nas paredes se tornando

estilhaços pelos ares. Se protegeu colocando os braços ao redor da cabeça.

Anna surgiu no topo da escada, apavorada, olhando aquela cena

aterrorizante, havia cacos de vidro e espelho por toda a sala, e no centro, uma
Jennifer igualmente assustada e boquiaberta.

— O que aconteceu aqui?? — Anna perguntou.


Jennifer olhou para as próprias mãos, depois correu os olhos arregalados
ao redor, pelos grandes janelões agora sem vidraças.

— Pode descontar da minha mesada.

— Foi você?? — Anna falou descendo as escadas.

— Acho que sim.

— Como você fez isso? Se machucou? — Anna se aproximou devagar,

pisando nos cacos.

— Telecinese?

— Ok, isso já foi um pouco demais, Vulpis movem objetos, derrubam

coisas, não fazem isso que você acabou de fazer.

Jennifer voltava a olhar suas mãos, tentando entender o que tinha

acontecido.

— Eu falei, eu te falei aquele dia, eu sou um Pokemon evoluído! —

Jennifer falava assustada.

— Você precisa conversar com seu avô, talvez ele tenha uma explicação.

— Caramba, eu coloquei Carrie no chinelo, hein?

— Eu sabia que você tinha algo diferente, meu pai nos contava o que

presenciava ou ouvia falar dos Vulpis, eram coisas simples, mover coisas leves
de um lado para outro. Naquele dia na Escócia, você parou várias estrelas ninjas
no ar ao mesmo tempo, depois as devolveu na mesma velocidade!
— O que mais que eu consigo fazer? Será que eu sou um X-Men? —
Jennifer falou esticando o braço a frente dos olhos.

— Você não é um X-Men Jennifer, você é uma Vulpi que ainda não sabe

a intensidade do seu poder.

— É, eu preciso conversar com meu vô.

— Vá visitá-lo.

— Ele deve ter uma explicação, não é?

— Sim, mas não precisa ir agora, se programe, viaje com calma. Isso tem
alguma boa explicação. — Anna ainda olhava assustada ao redor.

— Eu posso dar um jeito nisso. — Jennifer também olhava em volta.

— Não, deixe para lá, vamos dormir, depois eu cuido disso. — Anna

falou já se virando na direção das escadas.

— Dormir essa hora é tão estranho, ainda estou agitada.

— Saia dos meios dos cacos, tome um banho e venha deitar comigo. —

Anna estava parada no primeiro degrau da escada, apoiada no corrimão.

Jennifer olhou com a testa franzida para um vaso cerâmico próximo a

porta da cozinha, apontou a mão espalmada para ele e segundos depois o vaso
explodiu.

Virou-se para Anna e lançou um sorriso aberto. Anna apenas deu um


longo suspiro, caminhou até ela, pegou sua mão e subiram as escadas.
***

Na segunda-feira de manhã, Jennifer balançava as pernas sobre o mar, no


novo cantinho da reflexão, em frente à casa de Anna. Inclinava-se de um lado

para o outro com a câmera fotográfica, tirando retratos do mar à sua frente e dos

rochedos que havia à sua direita.

Escutou o som de botas dando passos na madeira do píer, olhou para trás
e viu Anna chegando até ela, que sentou às suas costas, cruzando à sua frente

seus braços, o direito ainda engessado.

— Bom dia... — Anna sussurrou, depois de um longo beijo em seu


pescoço.

Jennifer sorriu e soltou a câmera, pendurada em seu pescoço, colocando

sua mão por cima da mão esquerda dela.

— Sabe, nunca vou me acostumar com isso. — Ela disse.

— O que?

— Acordar na sua cama e não te encontrar.

— É porque acordo mais cedo que você. — Anna respondia


pacificamente, ainda com os lábios em seu pescoço.

— Você saiu cedo hoje, onde foi?

— Vidraçaria e Max. Eu trouxe uma coisa para você.

— A conta da vidraçaria?
— Não, essa eu mandei para seu avô.

Jennifer olhou séria para trás.

— Estou brincando. Tome. — Anna lhe entregou uma pequena caixa.

— Olha, um celular novo! Como sabia que eu precisava? — Jennifer


falou com ironia.

— Se Vivian estivesse viva, eu faria ela te pagar um novo.

— Esse é bem melhor que o anterior, obrigada. — Jennifer beijou o

gesso da mão de Anna.

O céu estava parcialmente encoberto e um brisa moderada agitava os

cabelos de ambas.

— Como está nosso velho amigo Max?

— Bem. — Anna tomou em sua mão a câmera ainda presa no pescoço de

Jennifer e olhava as fotos já tiradas no visor, uma por uma. — E tenho um

compromisso para quinta à noite.

Jennifer abria um grande sorriso, lentamente.

— Um compromisso.

— É, um dos leves. — Anna sorria contidamente, sem tirar os olhos do

visor.

— Os leves são os melhores.

— Quando você tirou essas? — Anna mostrava a câmera para Jennifer,


ela riu quando viu.

— Já faz algum tempo.

— Eu estava dormindo, isso não é justo, eu não gosto que você tire fotos
minhas quando estou acordada, quanto mais dormindo.

— Ficaram lindas, pare de reclamar, são fotos artísticas. Você diz que

gosta de me ver dormindo, é justo.

— Tem uma diferença bem grande entre ver e tirar fotos, eu não produzo

provas. — Anna disse.

Jennifer ergueu e mexeu a mão, com os dedos batendo contra o polegar.

— O que significa isso? — Anna perguntou confusa.

— Fale com a minha mão.

— Sério? Como se faz?

— Adoro ensinar essas coisas para você. — Jennifer se divertia,

mexendo a mão.

— Você é um poço de cultura inútil, sabia?

— Eu fico tão lisonjeada quando você fala essas coisas.

Anna apenas sorriu, largou a câmera e voltou a beijar sua nuca e costas.

Jennifer estava com uma blusa de tricô cinza, de gola larga, era visível parte de
suas cicatrizes próximas ao pescoço e ombros. Anna se deteve numa mais
profunda, olhou incomodada, passando de leve seus dedos por cima, Jennifer
percebeu.

— Elas te incomodam, não é? — Jennifer perguntou.

— Não te incomodam?

Jennifer balançou a cabeça de forma negativa.

— Não são as marcas que me incomodam, de forma alguma. — Anna


continuou.

Jennifer pegou a mão esquerda de Anna, passou seus dedos por cima da

cicatriz de um corte que havia em seu dorso.

— Lembra como você conseguiu essa aqui? — Ela perguntou.

— Lembro.

— Você se cortou no dia que terminamos, esmurrando uma porta de


vidro.

— Sim...

— E agora estamos juntas, mais fortes.

Anna balançou a cabeça, concordando.

— Anna, cicatrizes servem para isso, nos lembrar que agora somos mais
fortes do que antes.

Ela apenas a ouvia, com o nariz e boca recostados no ombro de Jennifer.

— E também que não devemos abusar da sorte. — Continuou.


Anna levantou uma sobrancelha, franzindo a outra.

— Sabe, o porto não é um bom lugar para garotinhas como eu. Decidi
que não vou mais trabalhar lá.

Anna passou a correr seu polegar pela mão de Jennifer, seu único dedo de

fora do gesso na mão direita.

— Acho que tenho lugares mais interessantes para frequentar, como uma

escola. Consigo me manter com a mesada do meu avô; eu vou terminar o

colegial, eu estava no último ano quando mandaram a escola pelos ares.

— Isso é bom, isso é muito bom. — Anna se manifestou, contente.

— Acho que tem escolas mais rápidas, não?

— Escolas para adultos, você pode cursar um ano em poucos meses.

— Essas.

— Não quer estudar com adolescentes de dezessete anos? Acho que você

se daria muito bem com eles. — Anna falou sorrindo.

— Me daria bem mesmo, e você teria uma crise alérgica se convivesse


com adolescentes, não é?

— Você está vendo eu me coçar agora?

Jennifer virou-se para trás, lançando um olhar fulminante.

— Posso escrever no seu gesso? — Jennifer falou pegando sua mão


direita.
— Não.

— Posso desenhar então?

— Não.

— E colar adesivos?

— Deixe do jeito que está.

— Que sem graça...

***

Jennifer andava despretensiosamente pela oficina de Anna naquela tarde

de agosto. Pouco mais de um mês havia se passado desde aquela missão no

porto, nesse tempo visitara seu avô na Escócia, obtivera algumas respostas sobre

seu poder mais avançado.

— Então, seu avô acha que você tem um poder de concentração maior, só

isso? — Anna perguntava, enquanto lidava com a fornalha.

— É... Diz que talvez eu consiga reunir com mais facilidade as ondas

eletromagnéticas, e falou outras coisas que não entendi direito. Mas não engoli
muito essa história não. Ainda acho que sou tipo o Harry Potter, um escolhido.

— Quem?

— Ah, Anna, assim vou ter que pedir o divórcio, você não conhece
ninguém.

— Sinto muito se não passo dia e noite assistindo desenho animado.


Jennifer a fitou com o cenho franzido, com um olhar revoltado.

— Vou fazer de conta que não ouvi isso. — Falou e continuou andando,
mexendo nas ferramentas e objetos.

— Não vá se machucar nessas coisas. — Anna a advertiu.

— Me dê algo para fazer, para te ajudar.

— Por que não vai estudar? Você não disse que tem prova de matemática

hoje à noite?

Jennifer assoprou para cima, entediada, se apoiando numa bancada.

— Estava até agora mergulhada naquele monte de equações e números,

cansei. Você disse que ia me ajudar com matemática, que era boa nisso.

Anna largou uma forma com aço derretido em cima de uma pedra.

— Não senhorita, eu falei que te ajudaria com matemática, não falei que

era boa.

— Você tem cara de CDF, tem duas faculdades, tem trocentos anos, deve

ser mega foda em matemática.

— O que é CDF?

— Anna, me dê alguma coisa para fazer, vai, qualquer coisa, estou

entediada, não quero estudar matemática.

Anna ergueu os óculos de proteção, respirou fundo, a olhando pensativa.

— Ok, vá lá fora cortar lenha para a fornalha, o machado está em cima


das toras.

— Ótimo! — Jennifer foi saindo animada.

— Hey, você sabe cortar lenha, não sabe?

— Já vi você cortando.

Anna passou a mão pelo rosto.

— Tá bom, só tente não se mutilar.

Jennifer errava mais do que acertava os pedaços de madeira em cima do

cepo de tronco, soltando palavrões, fazendo uma lenha irregular. Com o

machado no ar, avistou uma mulher entrando pelos portões da casa de Anna.

Caminhava sem pressa, olhando ao redor. Jennifer largou o machado no chão, a

observando se aproximar.

A mulher tinha um porte altivo, era alta e vestia-se de forma elegante,

longos cabelos castanhos escuros, aparentava quarenta e cinco anos e tinha uma

aura misteriosa, deixando Jennifer intrigada.

— Posso ajudar você? — Jennifer falou de forma simpática, enxugando o


suor na testa, sua camisa xadrez branca e azul também já estava parcialmente
suada.

A mulher ainda deu mais uma olhada ao redor e na casa, antes de olhar
para Jennifer e falar.

— Você mora aqui?


— Não. Procura alguém?

Ela balançou a cabeça devagar, voltou a olhar para a casa.

— Procuro o morador desta casa, Alan Fin. — Falou quase rispidamente.

— Ah... Sinto muito, ele já faleceu.

— É, eu imaginei que isto poderia ter acontecido. Você o conheceu?

— Não.

Ela parecia desapontada, mas ainda com um porte sério e frio.

— Sinto muito. — Jennifer completou.

— Acho que minha viagem foi em vão.

— Bom, a filha dele ainda mora aqui.

— Anna? — Perguntou surpresa.

— Sim.

— Ela está?

Jennifer hesitou um instante, não sabia das intenções daquela mulher.

— Está sim, quer falar com ela?

— Por gentileza.

— Tá, vou chamá-la, só um instante.

Jennifer entrou na oficina e se aproximou de Anna, desligando a


ferramenta que ela usava.
— Tem uma mulher aí fora querendo falar com você. Achei ela meio
estranha, leve uma faca, só para garantir.

— Que mulher?

— Não sei, estava procurando por seu pai.

— Você disse que eu estava?

Jennifer a encarou.

— Ok, leve duas facas. Se quiser posso dizer que você está no banho e

vai demorar.

— Eu vou lá. — Anna falou colocando uma adaga no cós de trás de sua

calça.

Jennifer saiu pela porta da oficina e Anna saiu logo atrás, assim que

avistou a mulher seu semblante transtornou-se, parecia assustada e estava com a

testa completamente franzida.

A mulher sorriu ao avistá-la. Jennifer ainda não entendia nada.

Até que Anna finalmente falou algo.

— Mãe?
Capítulo 41 – O retorno

— Mãe? — Jennifer repetiu incrédula, ao ouvir Anna proferindo a

palavra ‘mãe’. — Eu tenho sogra? — Falou baixinho, confusa.

— Mas... Você morreu naquele acidente de carro. — Anna dava alguns

passos inseguros na direção da mulher.

— Não, foi tudo forjado por seu avô. Meu Deus, como é bom te ver! —

Ela foi até Anna, a abraçando.

Jennifer ainda tentava entender o que acontecia à sua frente, enquanto

Anna desmoronava nos ombros de sua mãe.

— Mãe... Esse tempo todo então... — Anna falava com a mão nos olhos,

como se chorar fosse algo proibido. Jennifer, ali perto, não tinha o menor receio

em se emocionar livremente por ela.

Se separaram, Anna enxugando de forma afoita suas lágrimas, já sua mãe

o fazia sem pressa. Se olharam, mediram, acostumando-se com a presença uma

da outra novamente.

— Dezessete anos, dezessete anos achando que aquele acidente na ponte

havia te levado, onde você estava?

— É uma longa história... Mas estou de volta, consegui voltar, tinha

esperanças de encontrar seu pai e explicar tudo, mas a menina me falou que ele
faleceu.

— Ele teve um revés grande no primeiro ano da guerra, o coração não


suportou.

— Você mora sozinha aqui?

— Moro. Vem, vamos entrar, você tem uma longa história para contar.

Jennifer olhou para o machado e acabou às seguindo para o interior da

casa.

Marianne caminhava lentamente pela grande sala, com seus passos


firmes, olhando ao redor, com um sorriso nostálgico.

— Você não mudou quase nada por aqui, as mesmas adagas e espadas na

parede. — Disse.

Anna se aproximou dela, Jennifer permanecia atrás dos sofás.

— Eu não acredito que você esteja aqui, novamente andando por essa

sala. — Anna falava com um sorriso aberto no rosto.

— É bom estar de volta. — Ela respondeu o olhar e ao sorriso. — Mas


você trocou as janelas? Estão diferentes.

Anna deu uma olhada de relance em Jennifer, antes de responder.

— Uma janela se quebrou, acabei trocando tudo.

Marianne sentou-se num sofá, Anna sentou-se em outro, Jennifer apoiou


os braços no encosto do sofá onde Anna sentara, de pé por trás.
— Anna, você está ótima, o tempo lhe fez bem.

— E você parece que saiu daqui ontem. — Anna respondeu.

Jennifer acompanhava e achava curioso como um reencontro daqueles


podia ser tão polido, devido à personalidade contida de ambas à sua frente.

Imaginou como seria se reencontrasse sua mãe, em como pularia em seu colo a

derrubando e choraria por horas a fio, fazendo a maior cena.

Marianne a fitou por um instante, suspirou suavemente.

— Filha, desculpe por todo esse tempo longe de você. Foi contra a minha

vontade.

Anna baixou a cabeça, fez um semblante sofrido.

— Senti sua falta... — Falou baixinho.

— E eu senti a sua, eu pensei em vocês cada dia nesses dezessete anos, e

tinha certeza que um dia voltaria à América. Por falar nisso, onde está seu

irmão?

— Andrew está na Inglaterra, ele se mandou assim que nosso pai morreu.

— Inglaterra?

— É uma longa história também.

— Eles têm uma filhinha com seu nome! — Jennifer se manifestou.

— Sim! É verdade, é a criança mais esperta e encantadora que já


conheci, a pequena Marianne. — Anna falou empolgada.
Marianne voltou a se emocionar, seus olhos brilhavam quase molhados.

— Eu tenho uma neta, então? — Falava sorrindo.

— Andrew casou com uma inglesa, Eileen, tiveram uma filhinha, tem
quatro anos agora, a conheci esse ano, ela lembra muito você.

— Quanta coisa eu perdi... — Marianne passava os dedos pela borda do

sofá.

— Onde você estava?

— Na Tailândia, seu avô me levou para lá contra minha vontade, ele


queria me afastar do seu pai e de vocês, você sabe, ele sempre foi contra nosso

casamento, ele não admitia que eu me casasse com um humano.

— Aquele acidente na ponte, quando você estava indo visitá-lo, foi uma

encenação?

— Sim, eu não estava naquele carro, eles me abordaram assim que saí

daqui, me colocaram em outro veículo e armaram aquele acidente na ponte. No


dia seguinte nós três viajamos para a Ásia e nunca mais voltamos.

— Três?

— Eu, meu pai, e meu irmão Victor, que também compactuava desse

ódio pelos humanos. Eu fui raptada, não podia mais decidir nada por mim, você
não imagina o quão desesperador era saber que vocês estavam aqui, que minha

família inteira estava do outro lado do mundo, achando que eu estava morta, e eu
não podia voltar, não podia fazer nada, estava presa lá.

— Você tentou?

Marianne inclinou-se para frente.

— Anna, eles me chantageavam, ameaçavam vocês, dizendo que se eu


tentasse algo, fugir, me comunicar, qualquer coisa, fariam mal a vocês, eles

ainda tinham contatos aqui que poderiam chegar até vocês rapidamente. Mas

arquitetei fugas várias vezes, eu estava sob forte vigilância, só tentaria quando

tivesse certeza que conseguiria, mas nunca deu certo.

— Você conseguiu vir agora porque seu pai morreu, não foi? — Jennifer

perguntou, deixando Anna surpresa.

— Sim, ele morreu há algumas semanas, consegui convencer Victor a me

deixar vir, só agora conquistei minha liberdade.

— Jennifer, espera aí, você sabia da morte do meu avô?

— Sabia... Meu avô me contou. — Jennifer respondeu sem jeito. — E eu


vou lá na cozinha buscar algo para vocês beberem. — Saiu a passos rápidos para

a cozinha.

— Depois que meu pai morreu eu vi surgir a possibilidade de voltar para

cá, Victor me parecia inclinado a aceitar finalmente que eu procurasse minha


família, de quem haviam me separado. Depois de muita negociação eu consegui

viajar para cá.


Jennifer voltou trazendo dois copos de água com gelo, entregando para
cada uma delas.

— Mãe, essa é a Jennifer, desculpe não ter apresentado antes.

— Estou toda suada, estava cortando lenha, ou tentando... — Jennifer

limpou as mãos na calça, estendeu a mão e a cumprimentou.

— Muito prazer, Jennifer. — Marianne correspondeu educadamente.

Anna olhou de forma hesitante para Jennifer.

— Eu vou para casa tomar um banho, tenho aula daqui a pouco, vou
deixar vocês a sós, aí matando a saudade.

— Ãhn... Ok, boa prova de matemática.

— Prazer em conhecê-la. — Jennifer despediu-se.

A acompanharam sair pela porta.

— Essa garota trabalha aqui?

— Não. É uma amiga.

— Que bom que você tem amigos, você não tinha muitas amizades.

— As coisas não mudaram muito.

— Você não casou?

— Não, ainda não.

— Nunca mais falou com Robert?


Anna deu um longo suspiro.

— Não, ele já faleceu, inclusive.

— Mesmo? Coitado, eu gostava dele, era de uma boa família.

— Excelente família... — Anna balançava a cabeça devagar.

— Mas você tem namorado, não tem? Você nunca foi de ficar muito
tempo solteira.

Anna pegou no pingente de lince que usava no pescoço, passando seu

polegar por ele, hesitante.

— Não, não tenho namorado.

— Eu me casei novamente. — Marianne disparou.

Anna largou seu copo no chão e a olhou com surpresa.

— Constituiu uma nova família lá?

— Sim, não que eu tenha substituído vocês, eu caminhava para a


depressão, talvez até tivesse enlouquecido naquela quase clausura, acabei

conhecendo o filho de um amigo do meu pai, um empresário escocês, nos


casamos meses depois.

— Escocês? — Anna questionou com um sorriso de lado.

— Sim, por que?

— Nada, deixa pra lá.


— Ficamos casados por seis anos, então ele morreu, numa viagem de
negócios. Nós tivemos uma filha.

Anna não falou nada, apenas a fitou, estática, com o mais abismado dos

semblantes.

— Você tem uma irmã mais nova. — Marianne completou.

— Uou... — Anna esfregava as mãos no rosto, assimilando tudo.

— Ela não pode vir, por causa dos estudos, está no colegial, mas virá

também.

— Quantos anos?

— Quinze.

Anna agora sorria.

— Angie se parece muito com você.

— Angie... — Anna assimilava o nome da irmã.

— Fisicamente, não na personalidade. Angie fala pelos cotovelos.

Por horas elas continuaram conversando, Anna preparou um jantar, ainda

se acostumava com a presença de sua mãe por ali, depois de tanto tempo
imaginando que ela estivesse morta. Era chocante aquela imagem.

Apesar dos olhos azuis herdados do seu pai, todo o restante do seu físico
e porte fora herdado de sua mãe, uma Titan de cabelos escuros e um olhar baixo,
misterioso. Tinha seus movimentos controlados, a fala calma, séria.
***

Jennifer acabara de chegar da aula quando ouviu batidas na porta do seu


apartamento, era Anna.

Abriu a porta e deu uma olhada além dela.

— Cadê minha sogrinha?

— Foi para o hotel. — Anna foi entrando.

— Caramba, isso é muito louco, sua mãe ressurgindo assim, quinhentos

anos depois!

— Eu sei, é quase inacreditável, não é? — Anna falava num misto de

surpresa e felicidade.

— Por que ela foi para um hotel? — Jennifer falou sentando ao seu lado

no sofá.

— Ela não queria incomodar, já estava acomodada lá no hotel, amanhã

vou arrumar um dos quartos de baixo para ela.

— Seu quarto era o quarto dos seus pais, não?

— Era. Ela não quer de volta.

— Quer uma cerveja?

— Ela casou de novo e teve uma filha, sabia?

— Sério, você tem uma irmã mais nova? — Jennifer ria.


— Tenho, mas ela ficou lá, por causa dos estudos. Está no colegial, assim
como você. Ela disse que virá em breve.

— Você deve estar zonza de tanta informação nova.

— Você não faz ideia, por isso vim aqui, desculpe te importunar essa

hora.

— Imagina, nunca te perdoarei por isso. — Jennifer respondeu irônica, já

se virando no sofá, se recostando numa almofada. — Deite aqui.

Anna atendeu seu pedido, deitando de costas em seu colo.

— Você é uma felizarda por ter sua mãe de volta, o restante você vai

assimilando com o tempo. — Jennifer falou, já afagando sua cabeça.

— Como foi na prova?

— Fiz metade das questões, fiquei com preguiça de fazer o resto, Steve

me passou a cola.

— Preguiça de fazer as questões não é desculpa, nada de cola na

próxima, ok?

— Eu estou sofrendo bullying. — Jennifer falou com revolta.

— O que?

— Na escola.

— Por que?

— Ficam me chamando de tia metida e outras coisas. Também dizem


meu carro é de bacana, me chamam de riquinha.

— Ignore.

— Eu tentei, juro. Hoje eu mergulhei a cabeça da Nancy na privada.

— Você vai ser expulsa desse jeito.

— Eles são mais cruéis que milicianos Titans.

— Quer eu passe a levar você de moto?

— Sua moto é mais cara que meu carro. Ah, como eu queria ter uma

gárgula de estimação...

— Por que não vai com o Ignatius, você ainda o tem, não?

— Anna, você é um gênio! Como não pensei nisso?

— Se ele ainda funcionar.

Jennifer percebeu Anna pensativa.

— Sua mãe veio para ficar? Ou seu tio Victor quer ela de volta?

— Ela disse que veio para ficar, que meu tio permitiu que ela voltasse.
Ela quer reconstruir sua vida aqui, logo minha irmã também estará aqui.

— Não é engraçado? Sua irmã. Irmãzinha caçula. Quantos anos ela tem?

— Quinze.

Jennifer deu um riso abafado.

— Você cercada de pirralhas, quem diria.


— Isso tudo é inacreditável... É como se um pedaço de mim voltasse a
viver.

Jennifer beijou sua cabeça, por cima.

— Você não é mais a híbrida solitária que eu conheci quase um ano atrás.

— Não, não mais.

— E agora eu tenho sogra!

— Não a chame assim na frente dela.

— Por que? Ah... — Jennifer fez um semblante como se dando conta de

algo. — Você não contou sobre nós, não é?

— Não, não contei. Amor, ela acabou de chegar, não quero chocá-la

assim de cara, não achei que seria uma boa hora.

— Hey, não estou te cobrando nada. Só é bom saber, para não dar algum

fora na frente dela.

— Sim, melhor deixar assim por enquanto.

— Me comportei muito bem na frente do seu irmão meio homofóbico.

— Talvez ela pense como meu irmão, eu não lembro de ter conversado
sobre essas coisas com ela, até porque eu nunca tinha me envolvido com

mulheres antes, então não faço ideia do que ela pensa sobre esse assunto, espero
que seja tranquilo.

— Está com medo da reação dela?


— Você não estaria? Sempre queremos a aprovação dos nossos pais.

— Não se pressione, eu não estou te pressionando, você não precisa


contar. Ou deixe para mais tarde, quem sabe quando sua irmã já estiver aqui.

— É, depois eu penso nisso.

— Isso, depois. E sobre o agora, vai dormir aqui comigo, não é? —

Cruzou os braços pela frente de Anna, curvou-se beijando seu pescoço.

— Se você me deixar partir cedo, sim.

— Isso é negociável.

***

— Olá moças, querem sair para almoçar? — Jennifer apareceu no dia

seguinte na casa de Anna, no comecinho da tarde, onde elas conversavam

debruçadas na sacada.

— Ãhn... Quer ir, mãe?

— Você é a menina que estava aqui ontem, não é?

Jennifer recostou-se na porta de vidro e respondeu sorridente.

— Eu de novo!

Marianne ficou alguns segundos a medindo, em silêncio.

— Ãhn... Mas posso deixar vocês à vontade também. — Jennifer


completou, meio sem jeito, desencostando da porta.
— Não, vamos almoçar, acho que Anna não vai querer ir para a cozinha,
não é mesmo?

— Anna cozinha bem. — Jennifer retrucou.

Marianne deu uma olhada em Anna, surpresa.

— Você odiava cozinhar.

— Tive que aprender a me virar, já frequento mais a cozinha agora. —

Anna explicava.

— Cozinha para os amigos?

— É, mais ou menos.

— Mas de longe, a melhor coisa que ela faz na cozinha é o café, tudo

bem que sou meio café-maníaca, mas o dela é de outro mundo. — Jennifer

contava, animada.

— Outro país. — Anna completou.

— Continuou com a mania do seu pai de importar café do Brasil? —

Marianne perguntou.

— Tem coisas que acabam passando de uma geração para outra.

— Ok, depois você mostra seus dotes com café então. — Marianne falou

já se dirigindo para a porta.

***

— Nossa, que restaurante legal! Olha essa vista! — Jennifer seguia na


frente, já na direção do balcão externo de um grande restaurante com vista para o

mar, com paredes de vidro.

— Podemos ficar numa mesa aqui dentro? — Marianne pedia em voz

baixa para Anna.

Anna olhou hesitante para sua mãe, depois para Jennifer, que já abria a

porta para a área externa. Suspirou fundo e foi na direção de Jennifer.

— Se importa se escolhermos uma mesa aqui dentro, mas com vista para

o balcão? — Perguntou.

— Ãhn... Pode ser. — Jennifer fechou a porta.

***

— Jennifer, o seu nome, certo? — Marianne a perguntava, com o queixo

pousado nos dedos, apoiando o braço na mesa após terminar a refeição.

— Jenny para os íntimos, exceto Anna. — Jennifer respondeu sorrindo.

— Você não tem um emprego?

— Eu tinha, mas larguei para me dedicar apenas aos estudos. Por isso
que estou sempre visitando Anna.

— Estuda à noite?

— Isso. Inclusive quem me incentivou voltar aos estudos foi ela.

— Houve esse forte apoio aos estudos em nossa família, Anna sempre foi
muito dedicada, ela absorveu bem nossos ensinamentos e valores.
— Ah, não tenho dúvidas disso.

Anna apenas acompanhava a conversa, mexendo nos talheres, estava


sentada de frente para Jennifer.

— Você não é casada, é?

— Não, ainda estou à espera do príncipe encantado. — Jennifer sorria

sem muita segurança.

— E tem namorado?

— Tenho, tenho sim. — Deu uma olhada de canto para Anna.

— Que bom. Vocês são amigas há muito tempo? — Marianne disse,

antes de chamar o garçom.

— Quase um ano. — Anna respondeu.

— É mesmo? Achei que se conheciam há anos, vocês parecem tão

próximas.

— É que eu vou para a casa dela pentelhar com frequência. — Jennifer

respondeu.

O garçom se aproximou e Marianne falou num tom sério com ele.

— O peixe estava salgado demais e acredito que tenha passado do ponto.

— Gostariam que eu trouxesse algum outro prato?

— Apenas avise o chef.


— Sério? Eu achei o peixe bom para ca... Muito bom. — Jennifer falou,
quando o garçom saiu.

Marianne sorriu educadamente.

— Acho que ainda não tem idade para discernir o que é bom para você.

— Mas eu sei quando um peixe está bom.

— Eu tenho uma filha adolescente, nessa idade vocês ainda não

formaram os principais parâmetros, ainda agem por instinto.

— Eu tenho vinte e três.

— Ãhn, vamos pedir a conta? — Anna convidava.

***

— Já vou, ainda vou passar em casa para trocar de roupa e carro. —


Jennifer se despedia de Anna do lado de fora da casa, à tardinha.

— Vai seguir meu conselho de ir para a aula com o Ignatius, então?

— Sim, você e suas boas ideias. — Jennifer se aproximou e a puxou pela

cintura.

— Vem aqui amanhã?

— Pensei em amanhã levar sua mãe para conhecer os maravilhosos

pontos turísticos da cidade, o que acha?

— Talvez, uma pena a cidade não ter maravilhosos pontos turísticos. —

Anna passou seus braços por trás do pescoço de Jennifer.


— Ou se preferir passeiem com meu carro, sua mãe dirige, não?

— Dirige. Depois eu pergunto o que ela quer fazer amanhã, ela


mencionou algo sobre ver documentação, não sei exatamente o que é, mas talvez

ela queira fazer algumas coisas burocráticas.

— Então vou deixar o carro aqui, você me leva agora de moto em casa e

pego o Ignatius, não me importo de ficar andando com minha querida lata velha.

— Não sei...

— Sério, fique com o carro aí a disposição da sua mãe, para ela resolver

as coisas dela, passear também, até porque se eu ficar vindo aqui o tempo todo

ela vai suspeitar de nós.

Anna a fitou hesitante.

— Tome. — Jennifer entregou as chaves do carro e foi na direção da


moto.

— Ok, eu te levo em casa. — Anna foi atrás dela.

***

— Onde vocês estão? — Jennifer perguntava ao telefone, na tarde do dia


seguinte.

— Ela estava resolvendo algumas coisas no Centro, vai passar aqui para

me pegar, vamos dar uma volta na cidade vizinha. Quer vir aqui hoje depois da
aula?
— E sua mãe? Vai achar no mínimo estranho.

— Até você chegar aqui já serão quase onze da noite, ela já estará
dormindo.

— Tá bom, não esqueça de jogar suas tranças pela sacada, para que eu

suba ao seu quarto.

— Você tem a chave da porta da frente, Rapunzel.

***

— Cara, isso é muito adolescente, até para meus padrões. — Jennifer


falava sorrindo ao entrar no quarto de Anna naquela noite, após subir as escadas

silenciosamente.

— Em breve eu contarei sobre nós a ela, tenha paciência e banque a

namoradinha adolescente só mais um pouco. — Anna saía da sacada.

Jennifer se aproximou, a abraçando.

— Não está conseguindo contar, não é?

— Não.

— Relaxa, daqui a pouco aparece a ocasião.

— Como foi a aula? — Anna falou após um beijo.

— Física é um saco, é tudo que tenho a dizer.

— Prefiro química.
— Ok, vou tomar um banho e depois vou fazer valer minha alcunha de
namoradinha adolescente. — Jennifer falou com um sorriso malicioso, já a

soltando.

***

Jennifer contemplava o conteúdo da geladeira naquela madrugada, se

apoiando na porta, trajando apenas uma regata branca de Anna e calcinha, se


decidia entre água, leite ou suco de laranja.

— Leite!

— Oh, desculpe. — Marianne falou, virando o rosto, ao entrar na

cozinha.

Jennifer virou-se rapidamente na direção dela, arregalando os olhos.

— Sogra, quer dizer.... Droga, droga... Marianne, eu que peço desculpas,


esqueci completamente que não estamos mais sozinhas. — Jennifer fazia um

semblante sofrível, de quem foi pego no flagra.

— Não, fique à vontade, só vim beber água, volto depois.

— Por favor, a casa é sua, sou só uma visita, venha cá, eu pego água para
você. — Falava sem jeito, já pegando uma jarra na geladeira.

Ela lançou um olhar de dúvida, quase recriminatório, andou em sua


direção. Jennifer lhe entregou um copo d’água.

Marianne tomou o copo em mãos, a olhou de cima abaixo, parecia


analisar até a quinta geração de Jennifer, por fim bebeu a água.

— Você não é humana, é? Você é Vulpi?

Jennifer voltou a arregalar os olhos, ainda se sentia embaraçada por seus


trajes e por ter se entregue.

— Sou. — Balançou a cabeça rapidamente.

Marianne continuava lançando um olhar analisador, Jennifer sentia-se

mais nua do que nunca.

— Meu marido gostava muito dos Vulpis. — Não falava novidade


alguma para Jennifer. — Mas para mim são apenas humanos que movem coisas.

Jennifer sentiu-se tentada a explodir o copo que Marianne segurava, mas

respirou fundo e desistiu da ideia. ‘Anna se chatearia’, pensou ela.

— Vulpis são legais.

— Anna também gosta dos Vulpis. Mas isso você deve saber, não é? —

Marianne continuava falando.

Jennifer começava a suar.

— Eu... Eu gosto dos híbridos. — Jennifer arriscou.

— É, imagino que sim.

— Eu... Vou... Voltar para a cama. — Jennifer despediu-se, nervosamente


sorridente.

— Depois conversaremos mais, combinado? A sós. — Marianne falou


calmamente.

— Claro, com certeza. — Jennifer respondeu já saindo da cozinha. —


Boa noite so... Marianne.

Jennifer subiu rapidamente as escadas enfiando-se sob a coberta,

abraçando as costas de Anna e a acordando.

— Onde estava? — Anna perguntou, sonolenta.

— Digamos que sua mãe agora sabe sobre nós.

Anna virou-se bruscamente, sentando-se e a fitando.

— O que?

— Por que você não colocou um frigobar no quarto dela?

— Você desceu e deu de cara com ela?

— Foi, na cozinha. Desculpe, esqueci de vestir uma calça. E a chamei de


sogra sem querer.

Anna ainda a fitou por mais uns segundos, antes de esfregar a mão pela

testa. Suspirou pesadamente e falou.

— Tudo bem, eu converso com ela amanhã.

— Não está brava comigo?

— Isso ia acontecer, você só antecipou as coisas. — Anna falou voltando


a deitar-se.
— Desculpe... — Jennifer deitou-se também.

Anna virou-se, puxando Jennifer para próximo de si, pousando o queixo


em sua testa.

— Não, tá tudo bem, eu já deveria ter contado a ela.

— Se quiser posso tentar convencê-la que sou apenas sua amiga.

— Tenho certeza que surtiria o efeito contrário.

— Minha sogra já me odeia.

— É impossível odiar você, Jennifer. Ela só deve estar chocada.

— Ela deduziu que eu era Vulpi.

— Deduziu?

— Eu tenho cara de Vulpi?

— Não existe isso. Ela deve ter percebido que você é especial.

— Isso é uma coisa boa?

Anna riu.

— Ela sabe que gosto dos Vulpis, sempre os achei especiais. — Anna
disse.

— Ela não acha, disse que são apenas humanos que movem coisas.

— É a visão dela. Ela acabou criando uma certa birra com os Vulpis, meu

pai tinha uma amiga Vulpi que frequentava nossa casa, digamos que minha mãe
seja um pouco ciumenta.

— Ah, é daí que vem o seu ciúme então!

— Eu não sou ciumenta. — Anna respondeu.

— Assim como eu não sou teimosa.

— Enfim, não se sinta intimidada por minha mãe, ela tem esse ar sério e
severo, mas é só o jeito dela.

— Estou acostumada a lidar com certa pessoa com um ar sério também, e

acho que me saí bem. Pelo menos consegui levar para a cama. — Jennifer riu.

Anna subiu a coberta, cobrindo a cabeça de Jennifer.

— Vá dormir, que eu vou tentar dormir mesmo sabendo que minha mãe

está no andar de baixo tirando mil conclusões sobre a minha vida afetiva.

Jennifer grunhiu algo. Anna descobriu sua cabeça.

— O que?

— Porra, eu sou claustrofóbica!

— Pronto, agora estamos quites por você ter acidentalmente me tirado do

armário para minha mãe.

— De nada. — Jennifer respondeu com ironia, cobrindo a cabeça de

Anna com a coberta e pulando em cima dela.

***
— Estou com vergonha de descer e encontrar sua mãe por lá. — Jennifer
falava, saindo do banheiro, na manhã seguinte.

— Ela não deve estar lá.

— Tem como sair pela sua sacada?

— Já aprendeu a voar? Vamos, não precisa ter medo da minha mãe, eu

desço com você.

— Viu, ela deve estar no quarto. — Anna falava enquanto descia as

escadas com Jennifer.

— Anna? — Marianne chamou e surgiu, quando elas passavam na frente

da porta da cozinha.

— Bom dia, Marianne! — Jennifer a cumprimentou sorridente.

— Bom dia, mãe.

Marianne lançou um olhar sisudo na direção de Jennifer e respondeu da

mesma forma.

— Bom dia. Anna, não estou achando nada nessa cozinha, você mudou
tudo de lugar.

— Eu vou... Levar Jennifer no carro e já venho te ajudar. — Anna

respondeu.

***
— Podemos conversar juntas, se você se sentir mais segura. — Jennifer
falou já com a porta do carro aberta.

— Deixe comigo, eu conversarei com ela mais tarde.

— Podemos ficar alguns dias afastadas, se isso tornar as coisas mais

fáceis.

— De modo algum, minha mãe te aceitando ou não, isso não muda nada

entre nós, entendeu? E se quiser vir para cá hoje, não hesite.

— Hoje é sábado, podemos levá-la ao pub do Oscar.

— Mais devagar, ok?

Jennifer a beijou e partiu no seu Ignatius.

***

— O café fica nesse compartimento, para que não entre nenhum raio de

luz e umidade. — Anna falava ao adentrar a cozinha, mostrando um pequeno

armário rústico.

— Eu nunca encontraria. — Marianne murmurou.

— Pode deixar que eu faço o café, sente-se.

Marianne colocou algumas coisas sobre a mesa e sentou-se.

— Vai sair agora de manhã? — Anna perguntou, ao terminar de fazer o


café.

— Eu ia ao consulado.
— Ia?

— Acho que nós duas precisamos ter uma conversa.

Anna largou o bule e encarou aqueles utensílios pendurados à sua frente.


Retomou o café e levou até a mesa.

— Conversar sobre o que? — Anna falou num tom cuidadoso, servindo a

si e a sua mãe, já sentada à mesa.

— Você tem algo para me contar, não tem?

— Podemos tomar o café primeiro?

— Não. Quando você ia me contar que está dormindo com uma mulher?

— Desculpe você ter descoberto dessa forma, mas eu estava planejando

te contar.

— Até quando você ia me fazer de boba?

— Eu só não estava encontrando a ocasião certa para te contar, só isso.

— Anna mexia seu café, incomodada.

— Sabe por que não encontrou a ocasião certa? Porque não existe, não
tem um momento certo para você me falar sobre esse disparate. O que você

deveria ter feito é ter evitado o contato com essa garota, ter evitado praticar esse
tipo de coisa.

— Mãe, eu não estou simplesmente dormindo com ela, nós estamos


namorando.
— Pior ainda, como você deixou chegar nesse ponto? É para suprir
alguma necessidade? Você deveria ter casado com Robert ou qualquer outro

namorado que teve.

— Já basta os sermões que ouvi de Andrew, vocês me tratam como se eu

fosse uma adolescente confusa, que me deixei influenciar e acabei tomando um


caminho errado. Tentem enxergar como apenas mais uma relação que estou

tendo, como as outras que tive, não há nada de errado com isso.

— Não, não mesmo, isso que você está tendo agora não é como uma

relação que você teve no passado, isso sequer pode ser considerado uma relação,

é uma abominação.

— Talvez você tenha razão, não é uma relação como tive no passado, eu

não me recordo de ter amado alguma outra pessoa como eu amo Jennifer. —

Confessou.

— Eu não acredito que estou ouvindo essas coisas... Não parece você,
não parece a Anna que eu criei e ensinei os valores de família.

— Você está estranhando porque eu falei sobre amor, não é? Eu sei que

você nos deu a melhor educação possível, que estava sempre presente e à
disposição, mas você também me ensinou que era errado falar sobre
sentimentos, e o que aprendi com você foi a guardar tudo que eu sinto só para

mim, como você fazia.

— Eu dei todo amor possível para vocês, você está me acusando de que?
— Não estou negando o amor que você deu para nós, você nunca
negligenciou nada, mas o que você acabou passando para mim, com suas

atitudes, seus conselhos contidos, foi não falar ou demonstrar sentimentos,

porque isso era sinônimo de fraqueza.

Anna levantou-se da mesa, colocando as mãos no encosto da cadeira à


sua frente.

— E eu acreditava piamente nisso, sempre fui aquela rocha que você

estava esperando encontrar quando me reencontrasse, mas agora aprendi que

falar sobre amor não é fraqueza, demonstrar o que eu sinto não me torna

vulnerável, pelo contrário, me torna mais forte. — Anna continuou.

— Já que você quer falar sobre sentimentos, você nem deve saber ao

certo o que sente por essa garota, está se deixando levar. Volte a ter contato com

homens, você vai se dar conta que estava vivendo uma ilusão, uma coisa pela

metade. — Marianne disse, com um semblante fechado, fitando Anna.

Anna baixou a cabeça, correndo os polegares pela madeira da cadeira à

sua frente, instaurando um silêncio incômodo.

— Mãe, eu não conseguiria medir em palavras o quanto estou feliz em


saber que você está viva e está de volta, é muito bom tê-la aqui novamente. E eu
espero poder ter uma convivência harmoniosa com você, eu realmente quero

isso... Mas você precisa saber que Jennifer vai continuar frequentando essa casa,
eu não mudarei nada na minha relação pelo fato de você não aceitar.
Marianne continuou a encarando e então voltou a tomar seu café.

— Eu não voltei para dizer como você deve viver, o que pode ou o que
não pode fazer, você já é grandinha. Eu não irei interferir em nada, eu sei que

não tenho esse direito. Mas quero que saiba que não concordo com esse seu

novo estilo de vida.

— Eu respeitarei sua opinião, assim como quero que você respeite o que
tenho com Jennifer.

— Não se preocupe quanto a isso. E sente-se, termine seu café.

***

Anna descia as escadas terminando de vestir seu casaco, já passava das

dez da noite naquele sábado.

— Onde vai? — Marianne perguntou, do sofá da sala.

— Vou sair. — Anna respondeu.

— Com aquela garota?

Anna deu uma olhada para o lado e um breve suspiro.

— O carro está aí fora, se precisar. As chaves estão na cozinha.

— Esse carro é dela?

— Faça de conta que não é. Estou saindo.

— Anna?
Anna já estava na porta e voltou-se novamente para sua mãe.

— Cuidado na rua, os tempos são outros, não se meta em confusão.

— Já sou bem grandinha, mãe. Mas, ok, tomarei cuidado.

***

— E então, como foi a conversa com minha sogra? — Jennifer


perguntava, presa às costas de Anna, enquanto ela pagava as entradas na

recepção do pub.

— Continue evitando chamá-la de sogra na sua presença.

— Não foi boa, não é?

Anna virou-se, lançando um olhar decepcionado.

— Não. Vamos entrar, lá dentro conto como foi.

— Olá, galera do chope, Bob Esponja está de volta! — Jennifer


cumprimentava Becca, Jim e Bob, que já estavam numa mesa.

— Que bom, você sóbria é um saco. — Becca respondeu, a abraçando.

— E então, qual é a sensação de ganhar uma sogra inesperada? — Bob

perguntou.

— Eu achei o máximo, é uma pena que ela não goste de mim, eu poderia

ser uma nora bem dedicada. — Jennifer falava já sentando.

— Ela vai se acostumar com a ideia, dê um tempo. — Anna comentou.


— Então, ela acha que sou uma enviada lésbica de Satã que levou você
para o mau caminho, acertei?

— Acho que não chega a isso, mas ela deixou claro que não aceita meu

novo estilo de vida.

Jennifer começou a rir.

— Estilo de vida foi ótimo, é como se você tivesse começado a praticar

tênis ou se tornasse vegetariana.

— Eu levei um bom tempo me aceitando, eu acho que algum dia ela vai

entender que não é uma fase, que não estou influenciada, mas é difícil para uma

mente de alguém com essa idade.

— Idade?

— A idade biológica dela é noventa e dois.

— Nossa, minha sogra tá com tudo em cima para uma pessoa quase

centenária.

— Ela aparenta metade. E seu comentário foi estranho.

— Por que? Ela é bonitona, se não fosse sua mãe e não me odiasse...

— Ok, ok, entendi.

— O que eu quero dizer é que agora sei de onde veio essa sua beleza com
ar misterioso. — Jennifer falou com um sorriso sarcástico.

— Continua estranho.
— Hey, bobona, foi um elogio. — Jennifer pegou a mão de Anna e
passou por cima dos seus ombros.

— Então, na sua família todo mundo é meio homofóbico? — Jennifer

perguntava à Anna, já depois de buscar chopes para elas.

— Parece que sim, mas não é muito diferente do restante da população.

— Também porque vocês são mais velhos, eu compreendo, idosos, tem

uma mente menos aberta ao mundo.

— Seus pais sabiam de você? — Anna perguntou.

— Bom, quando eles morreram eu tinha quatorze, nem eu sabia de mim

direito. Mas eles sabiam que eu já tinha beijado uns meninos e umas meninas,

nunca me recriminaram. Acho que, hipoteticamente, se eu chegasse em casa nos

dias atuais te apresentando como minha namorada, seria tranquilo.

— Por que acha isso?

— Eu os ouvia falando o quanto era errado ter preconceito e tal, e os


Vulpis são menos preconceituosos por natureza, é o que meu vô fala.

— Acho que sim.

— E minha mãe sempre se deu bem com meu tio Ethan, muito melhor

que com meu tio Christian.

— O que tem seu tio Ethan?

— Ele é gay.
— Sério?

— Sério que você não sabia? — Jennifer riu.

— Acho que não sou boa em descobrir quem é e quem não é.

— Sempre falavam sobre isso com tanta naturalidade em casa, sobre os


namorados do meu tio, acho que não teria diferença se ele fosse ou não gay.

— Sinto muito por minha mãe pensar desta forma, mas eu acredito que a

opinião dela mudará quando ela perceber que o que temos é genuíno, que não é

uma fase.

— Que eu amo você de verdade. — Jennifer completou.

Anna sorriu e balançou a cabeça.

***

Passava das duas da manhã quando a dupla adentrou a casa, passando

pela cozinha.

— Acho que você bebeu mais do que eu, essa noite. — Jennifer disse.

— Ah é? Não percebi. Talvez sim.

— Ou eu bebi menos que o normal, ou você bebeu mais.

— Talvez eu tenha bebido mais.

— Algum motivo?

— Talvez eu esteja feliz. — Anna terminou com um sorriso contido.


Jennifer se aproximou e passou seus braços por trás do pescoço dela,
ainda segurando o capacete.

— Eu gosto de te ver assim. Eu quero te ver assim sempre. — Jennifer

falou.

— Para sempre? — Anna perguntou.

Jennifer sorriu.

— Para sempre. — Respondeu, antes de beijá-la.

Se soltaram e Jennifer deixou seu capacete na mesa.

— Não largue na mesa, bagunceira, pendure no seu prego.

— Meu querido prego. — Jennifer pendurava seu capacete na parede,

rindo.

— Você saberá que não te amo mais no dia que tirar esse prego da

parede. — Anna ria também.

Entraram na sala e encontraram Marianne ainda acordada, assistindo TV.

— Boa noite, meninas. — Ela falou ao avistá-las, com um tom de voz


controlado.

— Ãhn... Boa noite, Marianne. — Jennifer respondeu, hesitante.

— Sem sono? — Anna perguntou.

— Já cochilei um pouco aqui no sofá, que a propósito, não é um bom

lugar para dormir.


— Viu? Eu te falei. — Jennifer cutucava Anna.

— Vamos subir? — Anna se dirigiu à Jennifer. — Mãe, boa noite, boa


TV, ou bom cochilo.

Já subiam os primeiros degraus quando um barulho foi ouvido.

— Vocês ouviram isso? — Marianne falou com um semblante assustado.

— Eu ouvi, foi algo na rua? — Anna falou.

— Bom, eu não ouvi nada, mas minha audição já não é mais a mesma,

então... — Jennifer completou.

Anna foi até a porta frontal e abriu, havia uma flecha fincada na madeira

no alto da porta.

— Índios? — Jennifer olhava confusa para a flecha.

— Fiquem aí dentro. — Anna saiu em busca de quem havia disparado

aquela flecha, percorreu todo o terreno em frente à casa, o caminho que dava no

seu portão, a praia, mas não viu nada.

— É a primeira vez que isso acontece? — Marianne perguntou, assim


que Anna retornou.

— É, não costumamos receber flechadas noturnas. — Jennifer


respondeu.

Anna retirou a flecha da porta, a verificando minuciosamente.

— Tem um papel aqui. — Ela desenrolou um pequeno bilhete.


— Você tem 24 horas para voltar para sua casa.

Marianne mudou seu semblante para algo quase aterrorizado, apavorada.

— Victor. — Falou enfática.

— Meu tio Victor? Mas ele não permitiu que você voltasse para cá? —
Anna falou surpresa.

Marianne olhou para os lados, hesitante.

— Eu não contei toda a verdade a você... Eu fugi da Tailândia.


Capítulo 42 – Jogo de gato e rato

— Fugiu? Como assim? — Anna falou, assustada.

Marianne entrou e foi andando na direção do centro da sala, Anna foi

atrás. Jennifer fechou a porta e sentou-se no braço do sofá.

— Desculpe ter mentido sobre isso, eu não queria te preocupar, mas eu

precisava sair de lá, ao preço que fosse.

— Ele veio atrás de você, quer que volte, e agora? — Anna continuava

atônita.

— Eu não posso voltar para lá... Não posso. Eu quero minha vida de

volta, cansei de ser refém.

— E Angie?

— Está em segurança, escondida numa outra província. Eu não consegui

a documentação necessária para trazê-la comigo, estou tentando agilizar isso


aqui, para que ela possa finalmente vir.

Anna ficou um instante pensativa, com as mãos na cintura.

— Ele pode querer te levar à força?

— Acho que não... Não sei, mas Victor pode ser violento, não sei o que

esperar dele.

— Então nós temos que encontrá-lo, antes que ele tente algo mais
incisivo.

— Ele pode ser perigoso, eu tenho que pensar melhor.

— Mãe... — Anna se aproximou, colocando a mão em seu braço,


carinhosamente. — Me ajude a achá-lo e eu resolvo isto.

— Resolver como?

— Eu o convencerei a voltar para a Tailândia, deixando você em paz. Eu

tenho meus métodos.

— Não é simples assim.

— Apenas vamos fazer um levantamento dos possíveis lugares onde ele

poderia ser encontrado, ok? Eu vou achá-lo.

— Talvez na mansão da nossa família em Westport, tenho que pensar em

mais lugares. — Marianne disse.

— É tarde, ele não tentará nada agora. Amanhã conversaremos, você vai

me repassar todos os lugares onde eu deveria procurar por ele. Eu montarei

vigilância 24 horas em cima de você, para que ele não tente nada.

— Isso é um pesadelo sem fim...

Anna se aproximou abraçando sua mãe, que ficou um tanto surpresa.

— Nós vamos encerrar esse pesadelo de uma vez por todas, seu lugar é
aqui. E logo Angie também estará com a gente.

Despediram-se de Marianne e subiram para o quarto, Anna sentou-se na


cama, esfregando a mão na testa.

— Minha sogra é cheia de segredos. — Jennifer falou, parando à sua


frente.

— Não é hora para brincadeira, Jennifer.

— Desculpe. — Falou já afagando sua cabeça.

— As coisas estavam fáceis demais para ser verdade... Eu deveria ter

desconfiado.

— Não, a história da sua mãe foi convincente, não dava para prever esse
porém.

— Eu irei resolver esse porém.

— Conte comigo. — Jennifer falou, antes de colocar ambas as mãos ao

redor do rosto de Anna, o erguendo.

— Vamos tomar um banho e dormir? — Continuou.

***

Na manhã seguinte, Anna passou algumas horas conversando com sua


mãe, traçando um plano de busca a Victor.

— Tem alguma possibilidade dele não estar aqui? De ter mandado

alguém dar este recado? — Anna questionou sua mãe.

— Victor é apaixonado por arco e flecha, foi ele.

— E ele não deve estar sozinho.


— Não, ele é covarde demais para fazer algo sem alguns capangas. —
Marianne respondeu.

— Ok... Eu ainda não tenho ideia do tamanho da ameaça, mas em todo

caso já conversei com Max e daqui a pouco um de seus homens de segurança

estará aqui tomando conta da casa. Eu vou na mansão que era dos seus pais,
fazer uma busca.

— Você vai levar alguns homens com você também?

— Não, mas Jennifer vai comigo.

— Jennifer? Ela vai atrapalhar mais do que qualquer coisa.

Anna sorriu torto.

— Você tem muito o que conhecer dela... Mas terá bastante tempo para

isso. Acho que seu segurança chegou. — Anna falou levantando do sofá, ao
ouvir o barulho de um carro.

Anna foi até a cozinha, onde Jennifer tomava seu segundo café da
manhã, e a intimou.

— Vamos, o segurança chegou, hora de começar a caçada.

— Posso terminar a rosquinha?

— Pode. Quando terminar venha na oficina se armar. — Anna falou, já

indo para a oficina.

Minutos depois Anna e Jennifer seguiram de carro em direção a cidade


vizinha, Westport, onde ficava a casa da família Fin.

A casa ficava num local afastado, o acesso era através de uma estrada de
chão batido, havia poucas casas naquele local. Entre uma casa e outra havia

pastos e vegetação.

Estacionaram e entraram sem dificuldade, o portão estava caído. Logo na

entrada era visível que aquela casa estava abandonada, não via habitantes há
muito tempo. Era uma grande construção imponente, agora cinza por causa das

infiltrações e do tempo. A maior parte das janelas estavam quebradas, o jardim

central na frente era apenas um amontoado de ervas daninhas.

— Não deve ter ninguém aqui, nem o Gasparzinho. — Jennifer

constatava, enquanto se aproximavam da porta frontal.

— Não se engane pela aparência, fique atrás de mim, com a arma

destravada em punho.

Anna empurrou devagar a porta pesada de madeira, que abriu fazendo

um som metálico das dobradiças. O cenário era de uma casa no pós-guerra,


alguns poucos móveis quebrados, cacos de vidro, entulho, poeira e ninguém.

Passaram pelo grande salão central, observando atentamente em todas as


direções. Nada, nem um ruído saia daquela mansão sombria.

— Tem algum quarto secreto? Calabouço? Masmorra? — Jennifer


questionava.

— Minha mãe falou que tem um quarto secreto nos fundos, um quarto do
pânico.

— Deve ser a única possibilidade de encontrarmos vida inteligente.

— É para lá que estamos indo, então continue prestando atenção, não me


ultrapasse.

— Não sei porque você insiste nisso, eu já te ultrapassei alguma vez?

Você é bem maior que eu, prefiro que vá na frente, melhor escudo humano

impossível. — Jennifer riu.

— Shh, é aqui. Fique alerta.

Anna posicionou-se em frente à porta, ergueu sua arma e chutou a porta

metálica, que abriu-se sem dificuldade. Deu uma olhada preliminar rapidamente

e chamou Jennifer.

Ambas caminhavam com passos calculados pelo quarto cheio de


prateleiras de aço e embalagens vazias no chão. Um barulho no fundo do quarto

despertou a atenção delas, Anna colocou seu braço para trás, para evitar que

Jennifer saísse dali, e apontou sua arma. Olhou mais de perto e viu um rato cinza

andando pelas embalagens plásticas.

— Alarme falso, é só o Mickey passeando. — Jennifer concluiu.

Deram ainda mais uma olhada pelo quarto, mas nada relevante foi
encontrado.

— Vamos para o andar de cima. — Anna ordenou.


O cenário no outro andar era semelhante ao térreo, lixo e poeira, nada
vivo além de ratos, cômodo após cômodo.

— Vamos examinar a área externa e então vamos embora. Ele não está

aqui. — Anna falava, desapontada.

Depois de uma busca pelas garagens e jardins, perceberam que ninguém

habitara aquele lugar por muito tempo, Victor deveria estar na cidade, mais perto
do que gostariam.

— Ainda não acredito que você não me deixou ficar com o gatinho, ele

deveria estar com fome.

— Jennifer, ele estava sobrevivendo ali até hoje, pode continuar


sobrevivendo sem você. — Elas conversavam no carro, voltando para casa.

— Eu ia batizá-lo de Tom... — Jennifer resmungou, enquanto guiava.

— Você não cuida direito nem de você mesma, vai cuidar de um gato?

— Eu queria ter um gato.

— Depois conversamos sobre isso, pode ser?

Chegaram em casa no meio da tarde, o prazo venceria na madrugada. O


próximo passo seria checar os hotéis da cidade, Anna pegaria uma lista com Max

e o buscaria em todos.

Essa busca terminou perto das dez da noite daquele domingo, Jennifer a
acompanhou, de hotel em hotel, mas o resultado foi negativo.
A madrugada chegou e nenhum sinal de Victor surgiu. A estratégia do dia
seguinte seria tentar contato com conhecidos dele na Tailândia e na cidade.

Logo no início da tarde Anna e Jennifer voltaram de mais uma

empreitada, sem sucesso.

— Nada? — Marianne perguntou.

Anna balançou a cabeça, desolada.

— Bom, eu só consegui a confirmação que Victor viajou para a América,

ele realmente está aqui. — Marianne continuou.

— Mas deve ter se enfiado na... — Jennifer interrompeu o que falava, ao

ver o olhar recriminador de Anna.

— Mãe... Não tenho nenhuma pista, o que você sugere que façamos? —

Anna falou, sentando ao lado da sua mãe.

— Vamos tentar os parentes, eu me recordo onde eles moravam, não são

muitos.

— Que seja então, essa tarde faremos essa varredura. — Anna falou,
levantando, indo para a cozinha almoçar com Jennifer.

***

— Você parece cansada, sente-se aí que eu faço algo para almoçarmos.

— Jennifer falou, a sentando numa das cadeiras.

— Ok, mas não precisa ser nada elaborado, pode ser um sanduíche.
— Deixe comigo. — Jennifer já começava a preparar algo. — Esse cara,
é mestre do ilusionismo hein? O Houdini sabe mesmo se esconder.

— Temos que encontrar Victor antes que ele dê outro passo. — Anna

apoiava a cabeça nas mãos.

— Titio deve ter entrado no buraco do coelho. Ou vai ver alugou algum

imóvel.

— Jennifer, você tem razão, ele pode ter alugado uma casa! — Anna

falou, erguendo a cabeça repentinamente.

— É uma possibilidade, mas como acharíamos?

— Procurando casas com placa de aluga-se, não sei, tem alguma ideia

melhor? — Anna falava com interesse.

— Bom, Becca trabalha numa imobiliária, posso falar com ela, a garota
tem uma boa rede de conhecidos nesse ramo.

Anna levantou-se, foi até Jennifer e passou seus braços ao redor da sua
cintura, com um sorriso leve.

— Eu já te pedi em casamento hoje? — Anna falou.

— Não, mas é a primeira vez que te vejo sorrindo nos últimos dois dias,

isso é melhor que um pedido de casamento.

Após almoçarem, Anna teve uma breve conversa com sua mãe, no quarto
dela, e iniciaria a busca pelas imobiliárias com a ajuda de Becca. Ao se
aproximarem da moto, estacionada em frente à casa, logo Anna percebeu uma

flecha metálica cravada no tanque. Ela correu até lá, arrancando a flecha,

fazendo verter o combustível do furo.

— Desgraçado! — Anna bradou, olhando ao redor.

— Tem bilhete? — Jennifer perguntou.

Anna tirou o papel enrolado e leu em voz alta.

— Não me faça tomar uma atitude radical, você pegará o avião amanhã,

estou te monitorando. — Era o que dizia.

— Porra, Tio Victor, cresça né? Recadinho na flecha é muito conto de

fadas. — Jennifer resmungou.

— Esse infeliz não vai desistir tão fácil, ele deve ter colocado pessoas

vigiando a casa.

— Sobrou até para a Paty, olha a merda que ele fez com ela... — Jennifer

falava olhando para a moto, que ainda vazava.

O segurança amigo de Max surgiu na porta da casa.

— Rick, você não viu nada? Onde você estava? — Anna o interpelou.

— Estava lá dentro, sua mãe me chamou para ficar de vigília dentro de


casa, por causa do sol forte. Eu não percebi nada aqui fora.

Anna girava em seus calcanhares, incomodada, olhando ao redor.

— Tá bom, entrem comigo. — Anna se dirigiu a entrada da casa, falaria


com Marianne.

Entrou no quarto de sua mãe como um furacão, mostrando a flecha. Era


um quarto amplo, com móveis antigos e papel de parede florido.

— Mais uma, veja, mais uma ameaça infantil do seu irmão!

O grande segurança e Jennifer também entraram, ficando atrás.

— Acertou alguém?

— Paty. — Jennifer respondeu.

— Quem é Paty?

— Minha moto, encontrei afincada no seu tanque.

— O que diz o bilhete?

— Leia você mesma, afinal é para você. — Anna lhe entregou o bilhete.

Marianne leu rapidamente, ficando ainda mais transtornada.

— Monitorando como? Estão aqui? — Ela perguntou.

— Não sei onde estão, devem estar por perto, mas não na nossa
propriedade, e não deve ser ele pessoalmente, deve ter contratado pessoas para

ficar de olho na movimentação da casa.

— Temos que procurar, eu vou ajudar nas buscas. — Marianne falou,


enfática.

— Não, você não coloca o pé fora desta casa, entendeu? Rick vai fazer
sua segurança pessoal, vou pedir reforços para Max para a segurança externa e
para a busca aqui ao nosso redor. Eu e Jennifer vamos seguir com nossos planos,

procurar nas imobiliárias, é isso que será feito.

— Isso está se tornando um jogo de gato e rato... — Marianne disse.

— Desde que você saiu de lá. Mas vamos até o fim com isso, você não

volta para aquele país de forma alguma. — Anna estava decidida.

— Cuidado aí fora, qualquer novidade eu ligo para você.

— Não se preocupe, você é o alvo. Vamos Jennifer. — Anna a conduziu

pelo ombro para fora.

— Vamos de carro, os dois estão aí fora. — Jennifer falou.

Estacionaram o carro no largo próximo à ponte, no Centro.

— O trabalho dela é aqui perto, não é? — Anna perguntava.

— Na rua de trás da rua de Max, quatro quadras à esquerda.

— Ok, eu vou falar com Max e você vai falar com Becca, eu te encontro

lá no trabalho dela.

***

— Oi, baby! — Jennifer chegou cheia de sorrisos no local onde Becca

trabalhava, uma sala comercial com uma mesa comprida de ponta a ponta
lateralmente, e atrás dela três funcionários, Becca no meio.

— Olha quem apareceu! — Becca levantou-se.


— Olá Henry! Olá Mary! Hum, cortou o cabelo? Ficou legal. — Jennifer
cumprimentou os outros dois.

— Você também está ótima, Jenny. — Mary, uma garota de cabelos

loiros curtos, respondeu sorridente.

— Conseguiu uma folga na caçada ao tio terrorista? — Becca falou,

depois de abraçar Jennifer.

— Não, estou em pleno exercício dela, e você também faz parte desta

caçada agora. Podemos conversar lá atrás?

— Claro, com sorte acharemos café fresco.

— Opa, ainda está fumegante. — Jennifer já foi logo se servindo, já nos

fundos.

— Que história é essa que faço parte disso? Hey, deixe um pouco para
mim!

Jennifer procurava o açúcar, enquanto Becca se servia.

— O tio do mal pode ter alugado uma casa, ou algum outro imóvel, é aí
que você entra.

— Você quer que eu procure nos aluguéis recentes?

— Até que você pega rápido as coisas. Tome o açúcar.

— Aqui não tem nem meia colher de açúcar!

— E a culpa é minha por acaso? Vocês precisam repor isso. — Jennifer já


bebia seu café.

— Ele pode ter usado dados falsos. — Becca falava enquanto abria um
saco de açúcar, derrubando na pia. — Merda!

— Depois diz que eu sou desastrada... — Jennifer comentou, já sentada

num banquinho plástico.

— Vai ficar aí olhando?

— Lógico, estou tomando café, não está vendo?

Becca lançou um olhar fulminante e voltou a limpar a pia.

— Mas respondendo sua pergunta, sim, existe a possibilidade dele usar

outro nome, mas minha sogra conseguiu os dados da identidade falsa que ele

costuma usar quando viaja, deve ter lançado algum feitiço pelo telefone para

conseguir isso... — Jennifer sorriu com cinismo.

— Ela continua não te aceitando? — Becca bebia seu café recostada na

porta.

— É... Digamos que agora ela está ocupada com o irmão psicopata e me
deixou em paz, temporariamente. Tenho certeza que quando isso passar ela vai
procurar um marido para a filha.

— Talvez eu possa te ajudar, posso pesquisar no sistema por esses


nomes, e também pelo perfil dele, sabe a idade?

— Sei tudo, tenho um papel aqui cheio de informações, se esbalde. —


Jennifer tirou um papel do bolso, a entregando.

— Aqui tem outros nomes.

— Possíveis nomes falsos, é bom pesquisar também. Se não


encontrarmos nada aqui, vou fazer uma via sacra nas outras imobiliárias, você

me ajuda?

— Nas outras? Como?

— Ah, Becca, você tem seus contatos, já trabalhou em outras três.

— Duas. Tá, vamos terminar o café e te passo os contatos das outras


imobiliárias.

— Boa menina. — Jennifer sorriu.

— E então, o novo cantinho da reflexão, ficou pronto?

— Ficou, e é lindo, eu amei! Você precisa ir lá conhecer.

— No início você não gostou da ideia. — Becca falou.

— Eu sei, mas agora eu adoro aquele píer, já é nosso cantinho especial.

— Sua namorada e guardiã legal, onde está? Comprando fraldas para

você?

— Serve essa atrás de você? — Jennifer falou com um sorriso irônico.

Becca virou no susto, Anna havia chegado.

— Guardiã legal? — Anna perguntou confusa.


— Sim, você roubou Jenny de mim, quase não a vejo mais.

— Como assim roubei de você?

— Baby, é modo de falar. — Jennifer ria. — Vamos para fora, terminei


meu café.

Becca pesquisava em seu computador, Anna aguardava sentada na

cadeira em frente à mesa e Jennifer mexia numa maquete de um condomínio

residencial.

— Jenny, eu ainda me recordo do que aconteceu da última vez que você

mexeu numa maquete. — Mary a alertava.

— Eu fiquei duas horas juntando coisinhas do chão. — Henry falou.

— Eu só estou tentando tirar o mini carro prata, relaxem. — Jennifer

respondeu, debruçada na grande maquete.

Anna começou a esfregar as têmporas.

— Está na maquete por algum motivo, largue isso. — Becca falou.

— Jenny, eu não quero juntar coisas hoje. — Henry completou.

Um barulho de algo quebrando pode ser ouvido. Anna suspirou fundo.

— O que foi isso? — Becca perguntou.

— Foi só uma árvore que partiu, já coloquei no lugar, depois vocês


colam.

Anna se virou lentamente na cadeira e olhou seriamente para Jennifer,


que percebeu.

— Tá bom, já larguei, já larguei. — Falou e então sentou-se na cadeira ao


lado de Anna.

— Meninas, eu sinto muito, mas não encontrei nada, já fiz a busca duas

vezes. — Becca falou, com pesar.

— Tudo bem, deve ter umas dez imobiliárias na cidade. — Anna falou.

— Façamos o seguinte, eu vou com vocês nas imobiliárias, eles me

conhecem, vai facilitar para vocês.

— Becca, eu te amo, sabia?

Anna a olhou.

— Eu também te amo, Anna, não fique com ciúmes.

— Vou pegar minhas coisas e já vamos. — Becca falou já saindo.

— Henry, posso ficar com esse carrinho? É igual ao meu Ignatius. —

Jennifer falou abrindo a mão e mostrando o mini carro recém arrancado.

— Hoje você não derrubou nada, fica como brinde. — Henry respondeu,
bem-humorado.

A via crúcis terminou no fim da tarde, e absolutamente nada foi

encontrado, nem uma pista sequer.

***

— Você tem aula hoje, não tem? — Anna perguntou para Jennifer ao
entrar em casa.

— Tenho, mas posso faltar.

— Não, nada de faltar aula, não vamos fazer nada importante agora à
noite, pegue seu material e vá.

Jennifer fez uma expressão de reprovação e por fim falou.

— Tá bom, mas se algo acontecer, você vai me chamar, não vai?

— Vou.

— Promete?

— Mantenha o celular ligado. — Anna falou.

— Cuidado com seu tio infernal, ok? Você não sabe do que ele é capaz,

não sabemos com o que estamos lidando, ele pode fazer mal a você para atingir a
irmã.

— Vá despreocupada, a casa está bem protegida, temos três vigilantes. E

eu sei me cuidar, ou você não confia mais no meu potencial? — Anna terminou a

frase abrindo um sorriso e a puxando suavemente pela mão.

— Eu confio em todos os seus potenciais. — Ela entrou no clima.

— Obrigada pela ajuda e por ficar do meu lado nesse momento

complicado. Desculpe não te dar muita atenção. — Anna falou, após beijá-la.

— Estamos no meio de uma missão, essa é um pouco mais longa que as


outras, mas estamos juntas nessa, até o fim.
— Vá, senão vai perder a primeira aula. Se quiser ir para seu
apartamento depois da aula, para sair um pouco do clima tenso daqui de casa,

tudo bem, ele não deve fazer mais nada hoje.

— Pode ser, vou para minha casa então, mas amanhã de manhã estarei

aqui.

— De manhã, tipo uma da tarde? — Anna sorriu com ironia.

Jennifer ergueu o dedo médio e seguiu para seu Ignatius.

***

Na manhã seguinte, uma terça-feira chuvosa, Jennifer apareceu na

mansão por volta das nove da manhã.

— Viu, nove horas é cedo. — Jennifer falou ao encontrar Anna de pé na

sala, Marianne e um segurança estavam sentados nos sofás.

Anna a chamou, gesticulando com a mão.

— Aconteceu alguma coisa? Vocês parecem mais preocupados que o

normal. — Jennifer constatou.

— Rick recebeu uma flechada nas costas hoje cedo. — Anna falou, num
tom baixo de voz.

— Coitado do Rick! Como ele está?

— No hospital, por sorte não atingiu nada importante, está bem.

— Me desculpe os termos, Marianne, mas seu irmãozinho é um babaca


covarde.

— Ele perdeu o controle, não está medindo as consequências. —


Marianne respondeu, abatida.

— É um lunático. Ele sempre foi sádico assim?

Anna pegou a sua mão e seguiram para a cozinha, antes que Marianne

respondesse alguma coisa.

— Não adianta falar essas coisas, ela sabe que o irmão é um desgraçado,

só vai fazê-la se sentir pior. — Anna falou de forma carinhosa.

— Desculpe, estava extravasando, fiquei indignada com o que aconteceu

com Rick.

— Todos nós ficamos. Venha para a mesa, fiz café e torradas.

Anna acompanhava Jennifer tomando seu café da manhã, pensativa,

recostada na pia.

— Essa é a pior missão de todas, porque não faço ideia do que fazer, não

sei mais onde procurá-lo e não sei qual seu próximo passo. — Anna desabafou.

— Estamos ficando sem opções... — Jennifer comentou, enquanto bebia


seu café.

— Nem sinal do monitoramento nós encontramos, nada, ele é muito bom

nisso.

— Acho que poderíamos ir nos locais onde ele e o pai dele tinham
negócio aqui na cidade, mesmo que não sejam mais deles, podemos conseguir

alguma pista. — Jennifer sugeriu.

— Hum.. É uma boa pedida para hoje. Eles tinham várias lojas aqui,

talvez até mantenham algumas.

— Vai que uma loja está servindo de QG para ele?

— É, tem chances. Vou lá em cima ligar para Max pedindo um substituto

para o Rick e depois vou ligar para o hospital para ter notícias dele. Depois nós

saímos para mais uma caçada, combinado?

— Vá lá, vou ficar aqui terminando meu café.

Anna sorriu, apontando o dedo para Jennifer.

— Você é a garota.

— Eu sei, agora se manda.

Um minuto depois Marianne adentrou a cozinha, Jennifer engasgou com

seu café, ficar a sós com sua sogra ainda a deixava em pânico.

— Café? — Jennifer ofereceu, gentilmente.

— Sim, estou precisando.

— Está nesse bule branco.

— Eu sei. — Marianne respondeu.

Jennifer ficou acompanhando atentamente todos os gestos de sua sogra.

Quando terminou de se servir, virou-se e começou a beber encostada no balcão.


— Por que não senta? Me faça companhia. — Jennifer falou.

Marianne deu um gole e resolveu atender o pedido, sentando-se de frente


para Jennifer.

— Me desculpe pela forma como falei com você sobre seu irmão, eu

estava meio exaltada, por solidariedade à Rick. — Jennifer falava.

— Não se preocupe com isso. — Marianne continuava bebendo seu café,

com seus gestos controlados, sem olhar para Jennifer.

Jennifer disfarçava e dava umas olhadelas nela.

— O café dela é ótimo, não acha? — Perguntou.

— É sim.

— Sabe, não é só pelo fato de ser um café importado e tal, ela sabe fazer

mesmo, tem todo o processo e ela coloca amor nisso tudo.

Marianne finalmente encarou Jennifer.

— Anna costuma se dedicar ao que gosta.

— É sim, por isso ela está se dedicando tanto em manter você por perto,
ela não vai medir esforços para conseguir isso. — Jennifer falou.

— É uma situação delicada... — Marianne desviou o olhar.

— Bem delicada... — Jennifer tentaria mudar de assunto. — E Angie?


Como ela é? Se parece com a irmã mais velha?

— Muito, fisicamente elas são muito parecidas, quando Anna tinha essa
idade era exatamente como Angie. — Marianne falava agora de forma relaxada,

encarando Jennifer, falar sobre as filhas a desarmava.

Jennifer sorriu.

— Vai ser engraçado juntar essas duas, não? Você tem foto dela?

— Tenho, está lá no quarto, depois eu mostro a você. E vou perguntar

para Anna se ela guarda os álbuns de família, para comparar com as fotos de

Anna adolescente.

— Eu iria amar ver essas fotos, sério. — Jennifer falou com excitação.

— Anna nunca te mostrou?

— Você sabe a filha que tem, né? Eu já perguntei se ela tinha fotos, ela

mudou de assunto rapidinho.

— Anna nunca joga nada fora, com certeza ela tem esses álbuns. Ela é

reservada, sempre foi assim.

— E não é? Difícil arrancar alguma coisa dessa menina. Vai ser bom ter

Angie por perto, acho que elas vão se dar bem.

Então Marianne sorriu, surpreendendo Jennifer.

— Acho que Angie vai se dar melhor com você.

Jennifer riu, balançou a cabeça concordando.

— Desconfio que sim.

Anna entrou na cozinha, olhando ambas com estranheza.


— Você tem fotos da sua infância! — Jennifer falou para ela.

— Quem disse?

— Sua mãe disse, e ela falou que você não joga nada fora. Eu quero ver
esses álbuns. Tá, não precisa ser hoje, mas futuramente eu vou ver esses álbuns,

entendeu?

Anna olhou com espanto para sua mãe.

— Eu quero comparar suas fotos da adolescência com as fotos de Angie,

você guardou os álbuns?

Anna suspirou antes de responder.

— Guardei.

— Rá! — Jennifer falou.

— Mãe, falei com Max, ele mandou outro segurança para cá. E Rick vai

ter alta amanhã. Preciso de uma listagem dos estabelecimentos comerciais que

sua família tem ou tinham na cidade. Mas vamos lá na sala fazer isto. — Anna

falou, séria.

— É uma boa ideia procurar nestes lugares. — Marianne falou antes de


se levantar.

— E você, vá lá fora e mande aquele segurança mais alto, esqueci o

nome, mande ele vir fazer a segurança da minha mãe aqui dentro. — Anna falou
para Jennifer.
— Ted, o nome dele.

— Chame Ted, então.

***

Foi um dia de busca sem resultados, como os anteriores. De loja em loja,


empresa em empresa, apenas informações vagas. Nada mais pertencia à família

de Victor, ninguém ouvira falar dele nos últimos anos.

— Esse era o último da lista. — Jennifer conferiu no papel que levava

consigo, passava das quatro da tarde.

— Nada, absolutamente nada... — Anna resmungava, desanimada,

enquanto caminhavam na direção do carro estacionado próximo a uma praia.

— Continuaremos procurando, vamos revirar essa cidade e as vizinhas,

se for preciso.

Anna passou direto pelo carro, indo na direção de um banco em frente ao

mar. Havia algumas crianças brincando na areia com seus pais sentados por
perto.

— Amanhã podemos revirar o porto, que acha? — Jennifer sugeria,


sentando ao seu lado no banco de madeira.

— Pode ser.

Jennifer passou a observar o mar, assim como Anna.

— Era aqui, era essa praia, agora reconheci. Era aqui que eu vinha com
meus pais quando era criança, por causa do mar calmo. — Jennifer falou,

sorridente.

— Você deveria dar trabalho aos seus pais.

— Teimosia não é sinônimo de desobediência, eu era legal.

Anna deu um riso fungado.

— Eu imagino eles tentando te acordar cedo para ir para a escola. —

Anna falou.

— Eu resmungava um pouco, mas raramente me atrasava.

— Por falar nisso, você tem aula hoje.

— Tenho. Você não me libera mesmo, hein?

— Não tem necessidade de faltar, está tudo sob controle hoje, o bilhete
da manhã nos dava mais 24 horas.

— Eu prefiro ficar lá, caso algo aconteça.

— Não vai acontecer nada, fique tranquila. — Elas continuavam olhando

para frente.

— Você é um alvo, sabia? Seu tio te odeia, ele pode tentar algo contra
você para forçar sua mãe a tomar uma atitude.

— Eu prometo que me cuido, tá bom?

— Ainda assim eu ficaria mais tranquila ao seu lado. Fazendo sua

segurança.
— Quando voltar da aula você vai para minha casa e faz seu serviço de
segurança. — Anna respondeu.

— Mas é sério, eu fico preocupada, ontem durante todas as aulas eu só

pensava nisso, não prestava atenção em professor algum. Ficava imaginando que

alguém tentaria invadir sua casa, e poderia te fazer mal, te ferir...

Anna sorriu, passou seu braço por cima dos ombros de Jennifer e a
trouxe para perto.

— Não vai acontecer nada comigo, fique tranquila.

Jennifer se aconchegou em sua namorada, recostando a cabeça em seu

pescoço.

— Eu não sei o que faria da minha vida sem você. — Jennifer

murmurou.

Anna deslizava a mão pelo braço de Jennifer, carinhosamente.

— Eu não vou a lugar algum.

— Sabe, quando eu deixo você, é como se eu deixasse um pedacinho


meu para trás, minha melhor parte. E eu só tenho paz quando consigo estar do
teu lado de novo. — Jennifer falava com certa melancolia na voz, ainda apoiada

em Anna.

— O que tira sua paz?

— A incerteza de te ver de novo.


— Eu estarei sempre do seu lado, e nos momentos em que não estiver, eu
farei de tudo para estar novamente, o mais breve possível. Porque minha vida

sem você é só escuridão, era assim que eu vivia antes de te conhecer, antes de

me apaixonar por você. — Anna respondeu, calmamente.

Jennifer ergueu-se, fitando Anna, deslizou seus dedos em seu rosto,


enquanto a encarava com um olhar gentil.

— Toda vez que você sorri eu me apaixono por você de novo. Algo me

diz que eu vou te amar para sempre. — Ela falou.

Anna sorriu e a beijou, com a sensação que nada além daquilo importava
naquele momento.

Mas elas tiveram que voltar à realidade, logo já estavam em casa naquele

fim de tarde, com Marianne andando pela sala, fazendo um trilho de

preocupação.

— Alguma novidade? — Anna perguntou.

— Não, e vocês?

— Apenas coisas vagas, alguns apenas lembravam de quando vocês eram


os donos daquelas lojas, nada demais. — Anna respondeu.

— Victor não vai ter paciência por muito tempo, ele deve estar tramando
algo, eu sinto.

— Você quer que eu aumente a segurança na casa?


— Não, acho que os três são suficientes, Ted está o tempo todo no meu
pé. Mas temos que nos preparar para algum ataque surpresa.

— Já estamos preparados, mas eu vou providenciar mais armas.

— Eu posso ficar aqui hoje também. — Jennifer falou baixinho para

Anna.

— Não precisa. Vem, vamos subir, tomar um banho e ficar um

pouquinho juntas, até a hora da sua aula.

***

— Seu quarto parece uma loja de armas... — Jennifer falou, já na cama

deitada em Anna, depois do banho.

— Tenho que me prevenir.

— Eu estou andando com duas adagas. — Jennifer falou.

— Quer pegar uma arma lá na oficina?

— Já peguei, está no carro.

— Carregou? — Anna perguntou.

— Sabia que havia esquecido alguma coisa... — Jennifer sorriu. —


Preciso ir.

— Tá bom, vá assistir sua aula, depois venha para cá.

— Você vai estar aqui, sã e salva, quando eu voltar, não vai?


— Pare de bobagem, claro que estarei. Deixe o celular ligado.

— Tem que ficar no silencioso, mas vou olhar o tempo todo se houve
ligação sua.

— Ok, vai lá. — Anna lhe beijou e Jennifer levantou da cama.

Foi até o sofá, pegou seu casaco e mochila, mas acabou voltando,

abraçando Anna com força.

— Se cuida. — Falou baixinho, depois lhe deu um beijo demorado, a

segurando com ambas as mãos.

***

— Que ótimo, a bateria do celular acabou. — Jennifer constatava,

enquanto dirigia de volta à casa de Anna, após a aula.

Assim que largou o celular no banco do passageiro percebeu que o carro

diminuía de velocidade, mesmo ainda acelerando.

— Ah não, Ignatius, sério que você vai pifar justamente hoje, aqui no

meio do nada? — Falava sozinha, com irritação.

Conduziu devagar até o acostamento da rodovia, com apenas pastos e


plantações de ambos os lados, procurava algum sinal de vida, mas tudo que

havia era a estrada e o silêncio da noite, por vezes quebrado com o som dos
poucos carros que passavam.

Com o carro ligado, tentava acelerar, mas Ignatius não se movia. Desceu
do carro e abriu o capô, liberando uma boa quantidade de fumaça cinza.

— Que porra aconteceu com você? — Ela falava, entre uma tossida e
outra.

Contemplava o motor sem entender nada de mecânica, como se estivesse

olhando para um enigma matemático cabuloso.

— Algo deve ter soltado.

Tentou mexer em alguns cabos e acabou queimando o dedo numa

superfície quente.

— Puta que o pariu, vou vender essa geringonça!

Ergueu-se, olhando ao redor, continuava sem ver nada nem ninguém,

decidia-se sobre o que fazer para sair daquela situação.

— Celular sem bateria, carro quebrado, vegetação de um lado, vegetação

do outro, perfeito.

Resolveu ir para a beira da estrada pedir por ajuda aos carros que

passavam, sinalizava, mas ninguém parava.

Quase vinte minutos depois, um carro branco parou em frente ao seu


carro, alguns metros além, deixando os faróis acesos, dele desceu um homem

bem vestido, de cabelos negros perfeitamente penteados para trás, com um


sorriso amigável.

— Pifou? — Ele perguntou ao se aproximar, já dando uma olhada na


direção do motor.

— Não quer andar. — Jennifer respondeu.

— Posso dar uma olhada? Meu pai tem oficina.

— Claro, estava começando a me desesperar aqui, estou sem celular e


ninguém parava para mim.

Ele tinha um belo sorriso, Jennifer estava aliviada por enfim alguém

simpático ajudá-la. Emparelhou ao seu lado, enquanto ele olhava e mexia no

motor, ela acompanhava tudo que ele fazia.

— Pode ter rompido algo do acelerador, você costuma levá-lo para a

revisão? — Ele perguntou.

— Me disseram que estava revisado, quando comprei, há cinco meses.

— Acho que você deve cogitar a possibilidade de comprar um carro mais

novo, o estado deste aqui não é dos melhores. Olha ali, aquela peça cinza com

vermelho, está vendo? Está partida, pode se romper a qualquer minuto. — Ele
explicava, com paciência.

— É, talvez depois de hoje eu o aposente.

— Ok, mexi em algumas coisas aqui, vá lá dentro e acelere.

Jennifer foi até o interior do carro, virou a chave e acelerou várias vezes,

mas nada do carro se mover. Saiu, voltando a ficar ao lado do homem prestativo.

— Nada.
— Acho que você vai ter que chamar ajuda, talvez um guincho.

— Você teria um celular para me emprestar? Eu prometo que te pago a


ligação. — Jennifer falou.

Ele tateou os bolsos e respondeu.

— Tenho, deve estar no carro, vou buscar.

— Muito obrigada, moço, você salvou minha noite.

— De nada. E Jennifer, pode ir lá desligar o motor. — Ele falou,

limpando as mãos.

— Ah ok, vou lá desligar. Espera aí, como você sabe meu nome?
Capítulo 43 - Angústia

Ted entrou correndo na mansão, esbaforido, trazia uma flecha nas mãos.

Era onze da noite daquela terça-feira.

— Outra! — Ele falou ao entregá-la para Anna, que descia as escadas.

Anna rapidamente tirou o papel enrolado na flecha e leu em voz alta.

— Eu avisei. — Era o que dizia.

Marianne veio correndo do seu quarto e ouviu quando Anna fez a leitura
do novo bilhete.

— Céus, ele irá fazer algo hoje! — Marianne exasperou.

— Ted, avise os outros dois homens que fiquem alertas, que talvez

sejamos atacados hoje. E depois venha para dentro. — Anna ordenou.

— Mas o que será que ele irá aprontar? — Marianne perguntou.

— Você que sabe do que ele é capaz, estamos armados e prontos para

revidar.

— Ted, onde você achou esta flecha? — Anna perguntou, assim que Ted

retornou.

— Na porta da oficina, eu fui fazer uma ronda nos fundos, quando voltei
já estava lá, mas não deve ter mais que vinte minutos.

— Ok, atenção redobrada, tudo indica que ele vai tentar algo ainda essa
noite.

— Anna, não tente nada arriscado, se ele realmente vier com seus
homens eu irei com ele, não quero te colocar em risco.

— Lutaremos até o fim, fique tranquila, confie em mim. Ele não ousará

invadir nossa casa e sair ileso disto.

Marianne foi até o sofá, sentou-se com as mãos no rosto, desesperada.

— Acho que vou pedir reforço para... — Anna parou o que ia falando,

arregalando os olhos. — Jennifer. Já era para estar aqui.

— Ela deve ter ficado conversando com os coleguinhas na escola. Ou

então foi direto para a casa dela.

— Não, ela viria direto para cá, foi o combinado.

— Daqui a pouco ela estará aqui, vamos nos concentrar nesse ataque

eminente.

— Mãe, ela já deveria estar aqui, alguma coisa aconteceu. Eu vou buscá-

la.

— Vai me deixar sozinha nesse momento crítico?

— Você não está sozinha e eu não demoro, apenas irei buscá-la, talvez
ela esteja a caminho.

— Ok, mas não demore.

— Não irei. — Anna foi até sua mãe, lhe dando um beijo na testa.
Correu na direção da cozinha, mas no caminho lembrou que sua moto
estava no conserto.

— Ah não... Vou ter que dirigir.

Pegou a chave do carro novo de Jennifer na cozinha e foi para a rua,

pulando para dentro do carro.

— Ok, nada de travar agora, é só um carro, ele irá fazer o que eu mandar,

é só um carro... — Repetia para si mesma, com ambas as mãos suadas no

volante.

Suspirou fundo e ligou o carro, manobrou batendo de leve no carro de

um dos seguranças e saiu pela rodovia, no caminho que dava para a escola.

Dirigia olhando atentamente para todos os lados, procurando pelo carro

de Jennifer vindo em sua direção, alguns minutos depois avistou um carro com o

capô aberto estacionado no acostamento. Era o Ignatius.

Freou bruscamente, parando o carro em frente ao carro prata de Jennifer,

com os faróis ligados, e saiu afoita na direção dele.

Olhou pela janela do passageiro e não viu ninguém. Olhou ao redor, não
via sinal de vida vindo de nenhuma direção. Procurou ao redor do carro, desceu
o pequeno barranco que havia ao lado do acostamento, mas Jennifer não estava

lá.

— Jennifer! Jennifer! — Passou a chamá-la, aos berros. Mas ninguém


respondeu.
Andou impaciente de um lado para outro, tentando entender o que havia
acontecido, voltou a bradar o nome de Jennifer, o desespero tomava conta dela,

seu coração parecia querer pular do seu peito.

Voltou ao carro, olhou agora pela janela do motorista e viu a chave na

ignição. Deu mais uma olhada e avistou o celular dela, em cima do banco do
passageiro. Pegou de lá e conferiu, estava descarregado.

Quando estava tirando a cabeça de dentro do carro, avistou uma flecha

fincada no estofado do banco de trás. Abriu a porta, entrou rapidamente no carro

e arrancou a flecha de lá. Tirou o pequeno papel enrolado e leu a mensagem.

— Eu avisei.

— Não... Não... Jennifer não... — Desesperou-se, quebrando a flecha ao

meio.

Anna saiu do carro e começou a chutar sua lataria, amassando a lateral.

Desistiu, foi para a frente do carro com passos trôpegos, ajoelhou-se no asfalto

em meio àquele desespero.

— Seu desgraçado! Por que não me levou? Não! Não! Você não poderia
ter levado Jennifer! Não! — De joelhos, gritava em meio ao pranto que
começava a surgir.

Olhou para baixo e viu o mini carro prata que Jennifer havia tirado da
maquete, juntou e o observou.

— Não... Isso não pode estar acontecendo... Eu vou te encontrar, eu


prometo, eu vou achar você e aquele desgraçado. — Falava com a voz

embargada.

Levantou-se, guardou o carrinho no bolso, voltou até o carro de onde

tirou a chave da ignição para em seguida travá-lo. Deu mais uma olhada ao redor

do carro, procurando pistas, mas nada mais foi encontrado.

***

— Ele a levou! — Anna falou com a voz elevada, batendo a porta ao

entrar na sala da sua casa, atraindo a atenção de Marianne e Ted, nos sofás.

— Jennifer? — Marianne perguntou.

— Ele não vai atacar nossa casa, ele levou Jennifer! — Anna atirou no

sofá ao lado de Marianne os dois pedaços da flecha, com o bilhete.

— Não tínhamos como prever isso... — Marianne balançava a cabeça


desolada.

— Aquele desgraçado... Ele não sabe com quem está lidando, eu vou
acabar com a raça dele!

— Calma, Anna, talvez ele use Jennifer como moeda de troca, vamos
esperar o contato dele.

— Ela não é moeda de troca! — Anna vociferava, em frente Marianne.

— É seu jogo, não conhecemos as regras, o próximo passo será dele.

— E sabe o que é pior? — Anna agora andava pela sala. — Eu já o


procurei em todos os lugares possíveis, não sei mais onde procurá-lo!

— Espere, ele irá fazer algum contato, não se desespere.

— E se não fizer? E se ele já a tiver matado?

— Não pense no pior, pense que ele não tentará nada contra nós hoje, ele
irá negociar amanhã.

— Como mantém essa frieza? Mãe, você ainda não entendeu que ela é a

mulher que eu amo? Se ela morrer, levará minha vida com ela.

— Acalme-se, Anna, não vai acontecer nada com ela, não adianta se
desesperar agora.

Anna andava com a mão na testa, com a respiração curta. Acabou

sentando no outro sofá, esfregando as mãos nas pernas.

— Por que ele está fazendo isso? Por que ele não deixa você seguir sua

vida e ele segue a dele? — Anna perguntou, com uma expressão sofrível.

— Não é só por mim que ele está fazendo isso, ele quer Angie também.

Victor não se casou, sempre se dedicou apenas aos negócios, e Angie era como
uma filha para ele.

— Ele quer viver a sua vida.

— Eu e Angie somos a única família dele.

— Você não está defendendo esse miserável, está?

— Não, claro que não, só quero que você entenda o que está por trás
destas ações.

Anna espojou-se para trás no sofá, cobrindo os olhos com as mãos.

— Ela vai voltar, sã e salva, não perca a fé. — Marianne falava com uma
voz branda.

— O que eu faço agora? — Anna falava com visível sofrimento na voz.

— Espere, Victor deve se manifestar em breve.

— Esperar...

— Foi o que eu fiz por dezessete anos.

Anna voltou a colocar as mãos nas pernas, não disfarçava sua angústia.

— E eu perdi dois maridos, então sei a dor de se perder quem se ama. —

Continuou.

— Não posso perder Jennifer. — Levantou-se bruscamente do sofá. —


Isso não está acontecendo... É algum pesadelo, eu quero acordar disso, eu quero

Jennifer de volta, ao meu lado. Ela passou o dia todo ao meu lado, parecia estar

pressentindo algo, estava preocupada comigo. Não consigo acreditar que ele a
levou... Isso é inadmissível.

— Você precisa raciocinar com a cabeça fria, não pode se desesperar. —


Marianne disse.

Anna olhou de forma dura para sua mãe por algum tempo, antes de falar.

— Eu vou subir, boa noite.


Mas Anna não dormiu naquela noite, vagou pelo seu quarto, desceu
algumas vezes durante a madrugada, viu o sol surgindo vagarosamente da sua

sacada.

No início da manhã encontrou sua mãe na cozinha.

— Você está péssima, não dormiu? — Marianne perguntou, sentando à

mesa.

Anna não respondeu, continuou fazendo o café.

— Estive pensando, acho que você poderia visitar alguns galpões

abandonados hoje, ou até mesmo casas abandonadas.

— Pode ser. — Anna respondeu, sem ânimo.

Anna carregou o celular de Jennifer e viu as últimas ligações, havia uma

feita para Becca às dez da noite, resolveu ligar para Becca.

***

— Não, eu queria poder falar que está tudo bem, mas não está. — Anna

respondeu ao cumprimento de Becca.

— O que aconteceu? O que Jenny aprontou?

— Meu tio levou Jennifer, ontem à noite.

— Levou? Que porra é essa?

— Depois da aula. Becca, ela ligou para você às dez, ela te falou algo
importante? Pediu socorro, descreveu alguma coisa, falou algo que possa me dar
alguma dica?

— Onde ela está?

— Eu não tenho ideia, Becca. Por isso estou te ligando, preciso de pistas.

— Ãhn... Não sei, não, não falou nada relevante, deixa eu lembrar. Ela só
comentou que a aula havia sido chata, que estava com fome, que estava

preocupada com você, porque o tio dos infernos poderia invadir a sua casa, que

ainda não tinha pistas dele, foi só, ela estava saindo da escola quando me ligou.

— Ok, entendi... O rapto aconteceu no caminho para minha casa, foi

depois de falar com você então.

— O que você vai fazer? Anna, você precisa encontrá-la, antes que

aquele louco faça algo com ela!

— Eu sei, Becca. Eu vou continuar as buscas, é bem provável que ele a


use para troca.

— Quer que eu vá aí?

— Não, não precisa, eu vou sair daqui a pouco para continuar as buscas.

— Você vai me manter informada, ok? Vai me repassar qualquer


novidade que descobrir, senão eu vou ter que bater em você.

— Prometo te manter informada.

Aquele foi o mais longo dos dias para Anna, uma quarta-feira chuvosa e
cinza. Fez andanças por toda a cidade e não conseguiu uma pista sequer.
Já à noite desceu após o banho e sentou-se ao lado de sua mãe, em frente
à TV ligada na sala.

— Eu não faço ideia do que fazer amanhã, ele já deveria ter feito contato

para a troca. — Anna falou.

— Temos que contar com a possibilidade dele não querer fazer uma

troca.

— Como assim?

Marianne hesitou antes de continuar.

— Talvez ele tenha pego a garota para se vingar.

— E não está pensando em devolver?

— Isso, talvez ele tenha apenas feito uma baixa, para nos intimidar.

— Uma baixa?? — Anna a olhou assustada. — Você disse ‘uma baixa’?

— Anna, temos que levar em conta a possibilidade dela não voltar.

Anna balançava a cabeça incomodada.

— Você tem ideia do que está falando? Eu não vivo sem ela, você parece

não ter ainda entendido isso.

— Filha... É uma possibilidade, e não seria o fim do mundo. Quem sabe

você volte a se envolver com homens, arranje...

— Não, não continue, não termine a frase, não ouse terminar a frase. —

Anna falou com irritação.


— Desculpe, não quis ser pessimista, mas temos que pensar no que
Victor pode estar tramando.

— Eu vou para o meu quarto, ok? Me chame se tiver notícias. — Anna

falou, saindo da sala.

Uma hora depois Marianne entrou no quarto de Anna, que estava sentada

no sofá em frente a cama, segurando a cabeça com as mãos.

— Acho que temos notícias... — Marianne falou, com uma voz contida.

— Qual? — Anna levantou-se rapidamente.

— Uma flecha, acabamos de encontrar na lenha cortada em frente à casa.

— Com bilhete?

— Sim.

— E o que dizia o bilhete?

— Volte para a casa antes que eu tenha que agir de novo.

— Só? E Jennifer?

— Não mencionou nada.

Anna apenas encarava sua mãe, sem reação.

— Talvez ele a use mais tarde, não perca as esperanças. — Marianne


continuou.

— Não perderei. — Anna falou de forma incisiva.


— Quer voltar a ver TV lá embaixo? Para espairecer. — Marianne a
convidou.

— Não, me deixe sozinha um pouco.

Alguns minutos depois Anna desceu até a sala, onde sua mãe via TV no

sofá.

— O que ele é capaz de fazer? — Anna perguntou, com os pés fixos à

frente de sua mãe.

— Acho que ele não faria mal à própria família, ele sempre foi apegado

aos familiares.

— Ok, você conviveu com ele nos últimos anos, você o conhece bem,

então quero que seja sincera, quero o cenário realista, baseado no que você sabe

do que ele é capaz de fazer e do que já fez. — Anna sentou-se na poltrona,

mantendo-se inclinada para frente, na direção da sua mãe.

— Eu não sei...

— Mãe, me escute. Eu não conheço meu tio Victor, só lembro das poucas

vezes que você o citava, sobre como ele fora contra seu casamento, não sei quase
nada sobre ele. Mas você sabe, me fale algo mais substancial, por favor.

— Apesar dele ser um pouco violento, eu acho que ele não faria mal a
nós.

— A você com certeza não, mas e Jennifer, que é uma estranha para ele,
apenas uma isca para conseguir algo maior, ele seria capaz de fazer algo com
alguém que ele não tem nenhum vínculo?

— Talvez... Não posso afirmar nada, quem sabe ele apenas queira chamar

atenção com esse sequestro.

— Talvez? Então você já o viu sendo violento com alguém?

— Sim, quer dizer... Eu nunca presenciei nada, mas eu sei de coisas que

ele fez, ou mandava fazer.

— Que tipo de coisas?

Marianne não falou nada, apenas a encarou receosa.

— Que tipo de coisas, mãe? — Anna insistiu.

— Ele estava envolvido com o tráfico, se metia com coisas pesadas, eu

sei que algumas vezes para conseguir o que ele queria ele torturava, matava...

Mas só em casos extremos.

Anna levantou-se bruscamente da poltrona, voltou a andar pela sala.

— Merda! Merda!

— Você nunca foi de falar palavrões, Anna.

— Que se fodam os palavrões! — Anna chutou uma mesa de centro de

madeira, a partindo ao meio.

— Ele não vai fazer nada com a garota, se acalme.

— Mãe... Eu juro, se esse cara encostar nela, se ele fizer qualquer coisa
com ela, eu mato meu querido tio Victor, eu arranco o coração dele, eu acabo

com a raça dele, não importa se é seu irmão, ele vai pagar caro se machucar

Jennifer.

— Seja otimista, precisamos ser otimistas, ninguém vai se machucar.

Anna apenas a olhou, tentando conter sua explosão, achou melhor subir

para seu quarto.

Algum tempo depois, já sozinha em seu quarto novamente e tentando

ordenar seus pensamentos, Anna resolveu envolver a polícia.

— Laura? Sou eu, Anna.

— Que agradável surpresa! Como está? E Jenny?

— É sobre ela que quero falar com você.

— Hum, manda.

— Jennifer foi sequestrada ontem à noite pelo meu tio, um psicopata que

quer que minha mãe volte a morar com ele em outro país.

— Que horror! Já prestou queixa?

— Não, com todo respeito, não acredito na polícia e acho que eles não

moveriam um dedo para buscá-la. Mas acredito no seu trabalho, preciso da sua
ajuda.

— Que coisa estranha isso, Anna. Levou e não fez nenhum contato, não
pediu um resgate?
— Nada, apenas quer que minha mãe volte para lá, eu não faço ideia do
que aconteceu com Jennifer, já não sei onde procurar, revirei tudo que pude.

— Eu vou inclui-la nas minhas rondas, vou procurar esse cara para você,

mas preciso de mais detalhes.

— Te repasso todos que quiser.

Aquela foi outra noite passada em branco para Anna, de madrugada

desceu e ficou andando pela sala como um fantasma insone. Já com o sol

surgindo, acabou adormecendo no sofá, com a TV ligada, sentada. Sua mãe a

acordou, tocando em seu ombro.

— Filha, vá dormir na sua cama. — Sussurrou.

Anna acordou sem entender o que estava acontecendo, olhou ao redor

assustada.

— Não, preciso sair, vou continuar as buscas. — Falou coçando os olhos

vermelhos.

— O quanto você dormiu nas duas últimas noites?

— O suficiente. Só preciso de um café forte. — Ela saiu, na direção da


cozinha.

Estava terminando o café quando recebeu duas visitas na cozinha, Bob e


Becca.

— Alguma notícia de Jenny? — Becca perguntou.


— Ainda não.

— Desde quando ela está sumida? — Bob questionou, sentando numa


das cadeiras, ao lado de Becca.

— Anteontem, terça.

— Dois dias sem sinal algum?

Anna balançou a cabeça negativamente, cabisbaixa, estava recostada na

pia, de braços cruzados.

— E o que pretende fazer agora?

— Mais buscas. Vou revirar o porto hoje.

Becca ficou um instante pensativa, antes de falar.

— Ela deve estar apavorada, você precisa encontrá-la logo, coloque


outras pessoas nas buscas também.

— Já tem outras pessoas ajudando, pedi ajuda a uma amiga policial que

está a procurando, Max colocou alguns homens para procurar também, são

profissionais.

— Esse cara deve estar no buraco do coelho. — Becca resmungou.

— Foi o que Jennifer falou. — Anna disse, com um leve sorriso de lado.

— Não sei como, mas se precisar de nossa ajuda, não hesite em pedir. —
Bob se ofereceu.

— Eu farei.
— Bom, não queremos atrasar suas buscas, lembre-se do que falei, nos
mantenha informados. — Becca falou, se levantando.

Anna saiu para buscas no porto ainda no início da manhã, conversou com

marinheiros e funcionários, verificou dezenas de contêineres, mas nada foi

encontrado. Voltou para casa a noitinha, guiando o carro negro de Jennifer, o


trauma de dirigir quase nem era mais lembrado, ela estava focada em outra

coisa.

Cansada e faminta, dirigia pela rodovia planejando o dia seguinte, qual

seria a estratégia de busca. Quando reduziu a velocidade para entrar no caminho

que levava até sua casa, foi pega de surpresa por uma saraivada de tiros em sua

direção. Um carro havia emparelhado ao dela e efetuou dezenas de disparos em

sua lateral e janelas, todo o ataque durou pouco menos de um minuto, o carro
arrancou em velocidade, sumindo na rodovia e na escuridão.

Com o ataque repentino, o carro de Anna acabou saindo lentamente da

pista, parando no acostamento, quase tombando no barranco ao lado da rodovia.

Dentro dele, Anna estava curvada na direção do banco do passageiro, com as


mãos protegendo a cabeça, imóvel.

Ergueu-se devagar, ainda recompondo o fôlego, tentando voltar a respirar


normalmente. Baixou os braços e olhou para o lado. Foi então que entendeu o

que havia acontecido e porque não estava morta. O carro era blindado.

— Vô William, te devo essa... — Murmurou, ainda tremendo.


Levou algum tempo para se acalmar e pensar de forma racional. Deu ré e
entrou na estrada para sua casa, com o veículo repleto de marcas de tiros na

lataria e vidros, nenhum havia ultrapassado a blindagem, apenas feito um bom

estrago.

Entrou em casa e encontrou sua mãe saindo da cozinha, que levou um


susto com o estado dela.

— Anna? O que aconteceu? Você está branca como um papel!

Anna apenas a fitou com um semblante transtornado, se aproximou de

sua mãe.

— Venha aqui fora ver uma coisa. — A convidou, com a voz tremida.

Conduziu Marianne até a lateral do carro, apontando para as marcas.

— Foi isso que aconteceu, tentaram me matar. — Ela explicou.

— Meu Deus, você está bem? Algum tiro atingiu você?

— Como pode perceber, o carro é blindado. Mas sabe o que foi pior? Eu

não sabia disso.

— Vamos entrar, é perigoso ficar aqui fora. — Marianne falou, olhando


para os lados.

Anna entrou devagar na sala, o susto ainda não havia passado, estava em

choque.

— Seu irmão me quer morta e quase conseguiu. Acho que ele não me
considera da família. — Anna ironizou.

— Agora eu vejo que ele é capaz de qualquer coisa. — Marianne falava


desanimada, esfregando a mão no pescoço.

— Chega por hoje, vou subir.

Na manhã seguinte, enquanto tomavam o café, Marianne voltou a tocar

no assunto do atentado.

— Você não conseguiu ver nada? O carro, alguma informação que possa

ser útil...

Anna ergueu a cabeça, pousando sua xícara.

— Eu só percebi a ação quando já estava sendo alvejada. E depois

fugiram, eu ainda me protegia. Alguma novidade por aqui? Nova flecha?

— Não, nada. — Disse com desânimo.

As horas seguiram sem novidades.

No dia seguinte Ana comia qualquer coisa na cozinha e já se preparava

para sair de novo.

— Vai onde agora?

— Fazer buscas em Westport.

— Com o carro desse jeito?

— Consigo dirigir assim, não se preocupe.


— Não volte à noite, você pode sofrer novo atentado. — Marianne se
aproximou, falando com preocupação.

— Mãe, tanto faz... Ele vai tentar me matar em qualquer hora do dia, eu

estarei preparada para ele. Se eu for pega de surpresa, paciência, ele vencerá.

— Tome todo cuidado.

Anna lançou um olhar cansado para sua mãe.

— Até mais tarde. — Pegou as chaves e saiu.

Retornou à noitinha, ao passar pelos portões da mansão percebeu os três

seguranças reunidos do lado de fora, dois curvados e o outro agachado, olhavam

algo no chão.

Anna estacionou rapidamente o carro e foi ver o que estava acontecendo,


ao se aproximar conseguiu identificar o que eles olhavam assustados no chão.

Era um coelho branco, morto e ensanguentado, com uma flecha cravada


em seu dorso.

— Eles são muito rápidos, num minuto de distração e isso já estava aqui.
— Ted falava, se erguendo, olhando para Anna.

Ela se abaixou, olhou a cena por alguns segundos e arrancou a flecha,


tirando o bilhete enrolado.

— Não estou no buraco do coelho. Seja mais criativa, estou lhe


esperando.

— Que ótimo, agora está zombando de nós, era o que me faltava. —


Anna murmurou.

— Esse cara é algum doente? Com o que estamos lidando? — Um dos

seguranças perguntou.

— Eu também gostaria de saber. Mas por precaução, vamos lidar com o

pior tipo possível. Mantenham a vigília alerta, se quiserem trocar de turno agora,

Max manda outros para cá.

— Estamos nos revezando, a princípio hoje ninguém troca aqui. — Ele

respondeu.

— Ok, vou entrar, qualquer movimentação, me chamem.

Anna entrou e entregou o bilhete à sua mãe sem falar uma palavra sequer,
subiu para seu quarto. Fez algumas ligações, tomou um banho e desceu para

jantar. Na saída da cozinha sua mãe a chamou, da sala.

— Nada hoje à tarde?

Anna balançou a cabeça, negativamente, devagar.

Marianne percebia a angústia e todo o esgotamento físico e emocional

que sua filha estava passando.

— Quer conversar? — Falou com uma voz suave.

— Não, não quero.


— Então durma um pouco, para recarregar as baterias.

— Vou tentar.

— Quer ficar aqui um pouco?

— Vou para cima me planejar para amanhã. Boa noite.

Algumas horas depois Anna acabou adormecendo em sua cama, dormia


profundamente quando seu celular tocou, era Laura.

— Alô, Anna? Tenho notícias.

Anna sentou-se rapidamente na cama, despertando assustada.

— A encontrou?

— Ãhn... Talvez.

— O que você achou?

Laura fez silêncio por um instante.

— Encontramos um corpo no acostamento de uma rodovia aqui em

Westport, as características físicas batem com as de Jennifer.

Anna emudeceu, sentiu-se fortemente golpeada no peito, como se tivesse

levado um tiro.

— Mas não consegui fazer o reconhecimento porque o corpo está


bastante danificado, principalmente o rosto, eu não posso afirmar que é ela. Está
me ouvindo?
— Anna? Está aí? — Laura insistia.

— Estou. — Respondeu, sentindo a cabeça girar, enjoada.

— Acho que você vai ter que vir aqui reconhecer o corpo, tudo bem?
Talvez se você conseguir com o dentista dela algum raio-x, também ajuda.

— Eu irei. Onde está?

— No necrotério municipal de Westport. Mas quem sabe você possa me

ajudar, Jennifer tem alguma mancha de nascença, alguma tatuagem?

— Não, ainda não, ela queria fazer uma tatuagem, mas não fez.

— Ok, então vou realmente precisar de você aqui.

Anna coçou os olhos, incomodada.

— Estou indo.

— Estarei aqui te esperando, peça para me chamarem na recepção.

— Espere, Laura, você está próxima do corpo?

— Estou na sala ao lado, por que?

— Você pode verificar uma coisa?

— Posso, estou indo para lá, só um instante.

Alguns segundos depois e após Anna ouvir o barulho de uma gaveta


metálica sendo aberta, Laura respondeu.

— Sim, pode falar agora.


— Você pode virá-la de costas?

— Ãhn, posso, vou pedir ajuda para o funcionário aqui, espere.

Alguns segundos e ruídos abafados depois, Laura retorna.

— Pronto, o que devo procurar?

— Você consegue ver cicatrizes nas costas dela?

— Cicatrizes? De que tipo? Várias? Quais tamanhos? — Laura indagou.

— Várias.

Novamente Laura permaneceu alguns segundos em silêncio, fazendo um

teste de nervos brutal com Anna.

— As costas dela tem tantas cicatrizes quando as minhas, ou seja, nada.

Anna soltou um suspiro forte, quase um sopro, fechando os olhos.

— Não é ela, Jennifer tem várias cicatrizes nas costas. Não é ela, não é

ela, Laura.

— Que bom! Fico aliviada, vamos continuar buscando nossa garota. E


coitada desta aqui, agora não fazemos ideia da identidade dela.

— Obrigada, mesmo você tendo quase me matando do coração agora,


mas eu agradeço todo seu empenho.

— Desculpe o susto, mas tínhamos fortes indícios que poderia ser ela.

— Eu sei, eu sei. Obrigada por ter ligado.


— Bom, vou retomar aqui meu turno, qualquer novidade eu te ligo.

Anna desligou o telefone e jogou sobre a cama, saiu correndo para o


banheiro. Mal teve tempo de abrir a tampa da privada e vomitou. Foi até a pia,

jogando água abundantemente em seu rosto, molhando parte de sua blusa cinza.

Enxugou-se devagar, se encarando no espelho, ofegante.

Mesmo com a luz do banheiro apagada, a claridade que vinha da sacada


iluminava seu rosto no espelho, enxergava os sinais de exaustão, os olhos

vermelhos e abatidos. Se deu conta que aquela tarde de tortura com Vivian não

havia sido sua maior prova de resistência psicológica, estava experimentando

uma mais extenuante agora. E ela não podia ver o que estava acontecendo com

Jennifer, por piores que fossem as cenas assistidas anteriormente, naquela

ocasião ela tinha total conhecimento do que se passava com sua namorada, era
um mínimo de controle da situação, que ela não tinha agora.

Fechou a torneira e desceu para a sala, onde sua mãe via TV.

Sem falar nada, deitou-se sobre as pernas de Marianne a abraçando com

força, passando seus braços ao redor da sua cintura, desabou num choro.

— O que aconteceu? — Marianne a fitava assustada.

Anna não conseguia responder, seu choro vinha em soluços.

— Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem... — Marianne afagava seus
cabelos, e falava baixinho, tentando acalmá-la.

Ela continuava chorando sem sequer conseguir controlar seu queixo, que
tremia. Marianne continuava num carinho silencioso, a observando, consternada.

— Filha, você não pode cair em desespero... Mas se isso aliviar um


pouco sua angústia, então coloque para fora. — Marianne falava, próximo ao seu

ouvido.

— Você não entende... — Anna falou, após um soluço.

— Eu entendo, claro que eu entendo, eu já consigo ter uma visão melhor

das coisas... — Ela hesitou antes de continuar. — Eu sei o quanto você gosta

dela.

Ficaram em silêncio novamente.

— Novamente... Por culpa minha. — Anna falou baixinho.

— Não é culpa sua, é minha, eu trouxe essa situação.

— Mãe... Quando isso vai acabar? — Anna levantou seu rosto, que

estava recostado no colo de sua mãe. A olhou, com a face ainda molhada e uma

expressão sofrível.

— Eu estive pensando... Talvez tudo se resolva se eu voltar para a


Tailândia.

— Não, não há garantias que ele devolva Jennifer se você for, e então eu

perderei vocês duas.

— Eu não sei até onde ele vai.

— E eu não sei até onde ele foi. — Anna falava com temor na voz.
— Jennifer está viva, e logo você vai encontrá-la.

Anna baixou novamente seu rosto e continuou com um olhar vazio, ainda
recebendo os dedos de sua mãe passeando por seus cabelos, acalmara-se aos

poucos.

— Deixe aí, neste desenho. — Anna deu um sorriso entorpecido e virou-

se, para ver a TV.

— Você gosta desse desenho? Bob Esponja?

— É o preferido de Jennifer.

— Angie também gosta. Quando essas duas se encontrarem terão um

bocado de assuntos em comum.

Anna apenas sacudiu a cabeça, concordando.

— Não tinha TV na sala. — Marianne constatou.

— Foi Jennifer que colocou.

— Ela mora aqui?

— Não. Mas não é por falta de convite.

— Curioso isso, você nunca morou com ninguém além da própria


família. Sempre foi tão reservada e privilegiou a sua individualidade, você

mudou.

Anna fez menção de falar algo.

— Não, não estou te criticando. — Marianne continuou. — Só estou


tentando entender o que aconteceu. Eu temia que todos esses anos te deixassem

ainda mais reclusa, e eu não queria que você ficasse só, eu sempre incluía em

minhas orações que encontrasse alguém para viver com você, que pudesse ter

uma vida a dois, porque a solidão é algo avassalador e fica pior à medida que os
anos passam.

— Eu encontrei essa pessoa, finalmente. — Anna respondeu, firme.

— Quando foi isso?

Anna apontou a porta da sala.

— Quando ela entrou por aquela porta, pedindo ajuda, quase um ano

atrás. Pela primeira vez, eu tive uma manhã ensolarada.

Marianne suspirou devagar e voltou a afagar seus cabelos.

— Ela vai voltar para você...

Anna acabou adormecendo ali, sob os cuidados de sua mãe. A caçada

entrava em seu quinto dia.


Capítulo 44 – Fim de jogo

Um sol fraco e o quase silêncio em frente ao mar faziam companhia para

Marianne no início da manhã daquele sábado. Sentada no banco de ferro

encurvado e escuro, segurando uma caneca com chá, apenas observava a

distância a desolação de sua filha, que sentava na borda do píer com as pernas
sobre a água calma.

— Pelo visto não temos novidades. — Becca disse ao sentar ao lado de

Marianne, somando-se a plateia solitária.

— Apenas um alarme falso ontem à noite e mais nada. — Marianne


respondeu.

— Será que eles não voltaram para a Ásia?

— Victor está por perto, mais perto do que podemos imaginar. E Jennifer

está com ele.

— Se ele não tentou fazer a troca, o que ele quer afinal?

— Eu não sei... Achei que o conhecia bem, mas já não consigo entender
o objetivo dele. No início parecia apenas que queria que eu voltasse, agora ele dá

a entender que quer Anna, quer atingi-la.

Becca voltou a olhar na direção do píer.

— Ela está sofrendo. — Becca apontou com a cabeça na direção de


Anna.

— Muito mais do que está externando, confesso que não sei direito como
lidar com isso, queria poder aliviar um pouco a angústia dela.

— Apenas esteja ao seu lado, mesmo quando ela quiser ficar em silêncio,

para que ela veja que não está só. — Becca respondia, com calma.

— Estou com o coração despedaçado a vendo desse jeito.

— Só nos resta torcer para que tudo se resolva, manter a esperança acesa,

a dela também.

Marianne a observou em silêncio por um instante, largou a caneca ao

lado do banco.

— Eu vou lá conversar com ela.

— Não, não vá, não agora. Ela está no cantinho da reflexão. — Becca a

impediu.

— Onde?

— É um lugar especial para elas, Anna construiu isso para Jenny, é o


jeito dela se aproximar de Jenny, entende?

Marianne acenou que sim com a cabeça.

— Eu sei que você não entende o que existe entre elas, que é difícil
enxergar sua filha amando uma mulher, mas isso é genuíno, eu sei que é, e pode
apostar que é a relação mais forte que eu já vi.
— Ainda estou processando tudo isso, mas eu já me dei conta da
importância de Jennifer para ela.

— Sabe, no início eu era contra esse namoro, dizia para Jenny que era

um erro sem tamanho se envolver com alguém tão diferente. Honestamente, eu

não ia muito com a cara de Anna, a achava fechada demais. Mas felizmente eu
estava errada, essas duas nasceram uma para a outra, não vou dizer que elas se

completam porque eu não acredito nisso, para mim almas gêmeas são almas que

se aceitam, e elas são assim, elas são apaixonadas pelas diferenças que tem.

— Essa menina precisa voltar... Mas eu temo que ela não esteja mais

viva.

— Está, eu sei que está, Jenny é osso duro de roer. — Becca sorriu.

***

Anna intercalava um olhar perdido nas rochas no mar à direita da sua

casa com um olhar triste para o pequeno carrinho reluzente que estava em suas

mãos. Girava as rodinhas, com a cabeça caída de lado, pensativa.

— Onde você está... Me dê algum sinal, me dê algo, eu estou no escuro.


— Anna murmurou, correndo os olhos pelo horizonte.

Becca e Marianne entraram na casa, Anna acabou entrando alguns


minutos depois, as encontrando na sala.

— O que Jenny acharia de entrar aqui e não encontrar seu famoso café?
— Becca perguntou de forma descontraída.

— Eu ainda não fiz, vou lá dentro fazer.

— Não, não precisa, estou brincando. Só vim dar um oi e pegar as


novidades.

— Queria ter novidades, mas ainda estamos na estaca zero.

— Eu sei... — Becca fez uma expressão triste.

Anna sentou-se no sofá em frente.

— Ontem vô William me ligou, a procurando. — Becca disse, se

inclinando para frente.

— O que você falou?

— Que provavelmente Jenny estava sem bateria, que tentaria falar com
ela para ligar o celular.

— Eu estou com o celular dela, mas deve ter acabado a bateria e não

percebi.

— Ele vai acabar me ligando de novo, não sei o que falar para ele.

— Ontem ele me ligou também, mas não atendi. — Anna falou.

— Por que não contamos a verdade para ele? Quem sabe ele ajude.

— Não quero preocupá-lo, ele está doente, e além do mais já temos


profissionais fazendo as buscas, ele provavelmente mandaria alguns conhecidos

seus daqui para ajudar, não adiantaria muito, estou preferindo poupá-lo.
— E acho que Jenny iria preferir assim também.

— Acho que sim. Se ele te ligar novamente, diga que Jennifer perdeu o
celular, mas que está tudo bem.

— Me sinto péssima mentindo para velhinhos adoentados, mas

paciência...

— Se eu não a encontrar nos próximos dias, contarei a verdade para ele,

combinado?

— Ok. O que você vai fazer hoje?

— Agora de manhã vou na mansão onde ele morava, em Westport.

— De novo? Marianne disse. — Você já esteve lá três vezes.

— Então irei pela quarta vez.

***

Por volta das nove da manhã, Anna partiu no grande carro preto com

marcas de tiros na direção de Westport, chegando na mansão abandonada meia

hora depois.

Talvez não houvesse mais nenhum palmo naquela propriedade que Anna

não tivesse averiguado, já sabia inclusive onde os ratos habitavam, mas ficou por
lá até próximo do meio dia, quando resolveu checar a vizinhança.

Como em todos os dias de busca, carregava armas e suas lâminas, não


queria ser pega de surpresa, mas agora observando aquele arsenal obsoleto,
sentia-se como preparada para uma guerra que nunca viria.

Seguiu com o carro na estrada de terra batida, levantando poeira em meio


àquele cenário marrom e verde, iria até a próxima casa, o vizinho mais próximo,

tentar colher informações. Dirigiu por cerca de quinhentos metros e parou em

frente a uma grande casa de dois andares antiga, em más condições. Na frente
havia uma placa de madeira, indicando tratar-se de um ferro velho.

O portão de ferro alto estava aberto e ela foi entrando, após avistar um

senhor de cabelos e barbas brancas, camisa amarela florida, sentado num banco

na varanda, parecia montar alguma parte de motor de carro.

— Olá mocinha, em que posso ajudar? — Ele falou, ainda sentado, com

uma chave estrela em suas mãos sujas de graxa.

— Estou procurando informações sobre seu vizinho, ex-vizinho, para ser

mais exata. — Anna já estava ao seu lado, na varanda.

— Meus vizinhos são esses carros velhos, precisa de alguma peça?

— Não, se bem que meu carro precisa de vidros novos, mas realmente

estou procurando algo sobre Victor Spencer, que morava num casarão a
quinhentos metros daqui. Você o conheceu?

— Victor? É o filho do velho Alexander Spencer, não é?

— Isso, eles moraram naquela casa até duas décadas atrás.

Ele ficou pensativo, largou a peça ao lado no banco e limpou as mãos


numa estopa.

— Eu lembro disso, eles foram morar em outro país, acho que a justiça
estava procurando por eles, algo assim. Alexander era um grande amigo, fizemos

negócios várias vezes.

— E nunca mais voltaram, nem fizeram contato?

— Nunca mais ouvi falar deles.

— Você saberia de alguma empresa ou negócio que talvez eles tenham

mantido aqui na América? Algum contato... Eu realmente preciso falar com o

filho dele, é importante.

O velho homem coçou a barba a encarando e ergueu-se do banco.

— Eu continuei fazendo negócios com um sócio deles, em Norwalk,

talvez a sociedade tenha continuado e lá você consiga contato com ele.

— Em qual lugar de Norwalk?

— Eu sei que ele tinha uns galpões no bairro industrial, não é longe

daqui, uns dez quilômetros.

— Você tem o endereço?

O velho coçou a barba novamente, pensativo.

— Talvez eu tenha um cartão da empresa dele lá no escritório, mas não


posso afirmar com certeza, minha finada esposa fez uma desarrumação lá há
algum tempo atrás, eu falo desarrumação porque ela ficava uma fera. Quando ela
dizia que faria uma faxina já sabia que vinha encrenca. — Ele riu.

— Tudo bem, podemos procurar? Eu posso ajudar. — Anna falou com


ansiedade.

— Entre comigo, vamos revirar algumas caixas velhas juntos. — Ele

disse já andando na direção da porta frontal.

Anna o seguiu e atravessou uma sala de estar com móveis antigos

escuros, havia mantas desgastadas cobrindo os sofás e uma pequena TV ligada.

— Espero que você não sofra de nenhuma alergia, a quantidade de pó

neste escritório é impressionante. — Ele disse, entrando numa pequena sala que

parecia ter sido transformada no escritório do ferro velho.

Havia calendários sujos de graxa pendurados pelas paredes, uma

escrivaninha escura com papéis espalhados por cima e um gaveteiro também de

madeira escura ao lado, tomado pelo pó.

Ele foi para trás da mesa e começou a mexer nos papéis que haviam em

cima.

— Não deve estar aqui por cima, vou aqui atrás pegar algumas caixas
com cartões e papéis, só um instante.

Anna estava inquieta, aquela poderia ser a melhor pista desde que Victor
surgira, a localização de galpões onde um sócio dele possivelmente ainda estaria

em atividade, seria o lugar ideal para se esconder e esconder uma refém.


Ela o aguardava olhando ao redor, reparando na bagunça e sujeira do
local, recostou-se no gaveteiro ao seu lado, balançando o polegar sobre a

superfície, com ansiedade.

Olhou para o local onde sua mão estava e pode ler duas letras na poeira,

parecia escrito com os dedos.

— P C. — Franziu a testa. — PC? Pequeno Castor! — Murmurou


baixinho, atônita.

Ele surgiu com uma caixa de papelão transbordando de papéis e largou

em cima da mesa a sua frente.

— Onde ela está? — Anna apontava sua pistola na direção da cabeça do


velho homem, que levou um susto ao perceber a afronta.

— Ela quem, minha jovem? — Ele ergueu as mãos devagar.

— Onde está a garota! — Anna elevou a voz.

— Eu não sei do que você está falando, se é sobre o filho de Alexander,


estou fazendo o possível para te ajudar.

— Ela está aqui, ela esteve nesta sala! E você vai me dizer onde ela está,
senão vou começar estourando seus joelhos e só vou parar quando não sobrar

articulações. — Anna falava com raiva.

— Você deve estar me confundindo com alguém, não tem nenhuma moça

aqui, eu moro só nesse fim de mundo.


Antes que ele terminasse de falar, Anna sentiu dois homens a prendendo
por trás, tirando a arma de sua mão e lhe aplicando uma gravata.

— Seus filhos da mãe, me soltem! — Ela tentava tirar o braço do seu

pescoço, viu o senhor pegando a arma no chão, lhe apontando.

— Leve para ele. — Ele ordenou aos homens.

Não, não hoje.

Anna soltou um brado raivoso e soltou-se das mãos dos dois elementos,

pulando para cima do velhote de camisa florida. Arrancou a arma da sua mão,

caiu de costas sobre a escrivaninha e disparou dois tiros na direção dele, um

atingiu-o no peito, o derrubando. Os outros dois vieram novamente para cima


dela, conseguiu atirar em um deles, no braço, mas novamente teve sua mão

imobilizada pelo outro homem.

Entraram numa luta corporal disputando a arma sobre a mesa, enquanto o

outro, ferido, saiu da saleta. Anna recebia joelhadas nas mãos, que prendiam a

arma sobre o tampo da mesa. Com uma cotovelada bem colocada no rosto, ela
conseguiu tirá-lo de cima dela, o suficiente para atirar na sua direção, o

acertando em cheio.

Pulou por cima do corpo, saindo do escritório, e foi recebida na sala de

estar por tiros que vinham de dois homens, o que estava com o braço ferido e um
outro, bem maior que os outros e com um semblante colérico.

Um dos tiros atingiu de raspão seu abdome, rasgando sua blusa negra e
sua pele. Anna correu abaixada até atrás do sofá, mas não teve tempo sequer de
formar mira neles, assim que olhou para cima o grandalhão surgiu, arrancando a

arma da sua mão, a erguendo pelo pulso.

Ele a jogou no chão com violência e passou a chutá-la seguidamente,

estava encurralada pela parede, ele chutava seu rosto, que já sangrava, suas
costelas e estômago.

— O patrão quer ela viva, seu idiota. — O homem que segurava o braço

sangrando o alertou.

— Estou avariando um pouco antes de levar.

Num gesto rápido, Anna tirou uma das suas adagas do coldre em sua
perna e enfiou na panturrilha do grandalhão. Aproveitou que ele parou com os

chutes para se erguer, de forma afoita, tateando a parede, mas foi novamente

agarrada por ele, que desferiu um forte soco nela.

Mesmo tonta, revidou, também o esmurrou algumas vezes, passou a

chutá-lo. Começava a equiparar a luta, quando o outro, que observava agarrado a


seu próprio braço, interferiu, tentando esmurrá-la.

O grande homem arrancou a adaga de sua perna e tentava acertar Anna, o


outro já voltava a assistir o embate.

— Rasga esse rostinho bonito! — Ele atiçava.

Anna tirou mais uma adaga, do seu outro coldre, e fez posição de guarda,
enquanto o homem tentava acertar com a lâmina, investindo em sua direção.
Numa das investidas ele conseguiu, cortando a pele dela próximo ao local onde

já havia levado o tiro de raspão.

Ela curvou-se e deu dois passos para trás, colocou a mão em cima do

ferimento, ver aquele sangue abundante despertou ainda mais sua ira, correu na

direção dele, cravando a faca em seu abdome. Ela retirou e cravou mais quatro
vezes, fazendo com que ele caísse sentado.

Golpeou rapidamente para o lado, esfaqueando o outro homem no

pescoço, que apenas soltou um gemido, antes de morrer.

Olhou ao redor, ofegante e com a adaga empunhada, tentava se recompor


dos ferimentos enquanto procurava uma direção para seguir. Ouviu uma porta

batendo no andar de cima e imediatamente olhou na direção das escadas largas,

ninguém surgiu naquele patamar de madeira que havia após a escada, uma

espécie de mezanino que dava acesso aos quartos.

Subiu a escada, quando terminava os últimos degraus viu surgir um outro


homem grande, este ainda mais alto que o outro, com uma arma na mão, foi logo

atirando na direção dela, que abaixou-se, mas não sem antes atirar sua adaga na
direção dele, o atingindo no ombro.

— Merda! — Ele gritou, tirando a faca encravada.

Anna terminou de subir a escada e foi na direção dele, o derrubando no


chão e fazendo a arma também cair e deslizar, mas ele ainda segurava seu

punhal.
Digladiaram-se no chão, um entrave de mãos lutando pela posse da
adaga, ele conseguiu fazer um corte na lateral do seu pescoço, tingindo um dos

poucos lugares que ainda não estavam vermelhos em Anna. Com a mão direita

ela conseguiu imobilizar a mão que segurava a adaga e passou a desferir socos
violentos contra o rosto dele, que foi perdendo as forças, e por fim a consciência,

Anna havia praticamente destruído o rosto dele com suas próprias mãos.

Levantou e seguia na direção do corredor que levava aos quartos, quando

percebeu uma movimentação do lado de fora da casa. Pelas grandes vidraças ela

viu um homem de cabelos negros correndo no pátio do ferro velho, na direção

do penhasco que havia no final do terreno, onde o mar batia mais abaixo. Na
beira do desfiladeiro havia uma pequena construção simples de pedras, com três

portas. Observava com as mãos nos vidros, sujando de sangue, quando foi pega

de surpresa por outro elemento, um homem magro desarmado, que a segurou por

trás.

Engalfinhados, deram alguns passos bêbado, até próximo de uma espécie


de cerca de madeira, que limitava o mezanino. O homem a derrubou de lá,

quebrando o cercado, fazendo com que Anna caísse de costas no andar de baixo,
em cima de uma mesa de centro de madeira e vidro.

Ela pode vê-lo lá em cima a fitando com um sorriso irônico. Anna

tentava respirar, mas não conseguia puxar o ar, a queda provavelmente havia lhe
quebrado algumas costelas. Ela permaneceu alguns segundos naquela posição,
tentando desesperadamente trazer algum ar para seus pulmões e sentindo uma

dor descomunal quando o fazia, parecia ter agulhas no pulmão.

Ouviu passos na escada vindo em sua direção, olhou para os lados, viu

uma das pistolas ali perto, se arrastou até ela, assim que o homem magro surgiu

ela disparou quatro vezes, segurando a arma com ambas as mãos de forma
trêmula.

Sentou-se devagar com uma expressão de dor, agora conseguia respirar,

mesmo que de forma curta. Levantou-se, olhou ao redor com a mão sobre seus

ferimentos no abdome, estava temerosa, tudo estava em silêncio. Guardou a

arma no cós e foi na direção da porta lateral, pegando o rumo do pátio.

Correu entre as sucatas e ferros retorcidos que lotavam aquele pátio, que

dava para o desfiladeiro. Apesar do sangue que a esta altura escorria de várias

partes, era como se seu corpo estivesse blindado para a dor, agora não sentia

nada, apenas escutava o barulho do vento passando por ela, pensava somente na

possibilidade de encontrar Victor e Jennifer naquela construção rústica próximo

ao precipício.

Ao contornar a última pilha de sucatas, deparou-se com Victor, sentado

displicentemente num banco de ferro enferrujado em frente a pequena casa de


pedras, e ao seu lado lá estava Jennifer, sua Jennifer, viva, de pé, do lado direito

do seu tio maquiavélico, com as mãos atadas à frente por cordas de nylon
brancas encardidas.
— Anna! — Jennifer gritou, com alívio e preocupação.

— Pode parar aí, mocinha, nem mais um passo! — Ele ordenou para
Anna, que prontamente parou, a uns dez metros deles.

Ver finalmente Jennifer e ouvi-la dizendo seu nome, lhe causou uma

sensação forte e contraditória, como se seu nome varasse de lado a lado em seu

peito.

Jennifer não aparentava estar ferida, apenas suas roupas estavam sujas,

sua camiseta regata branca já não tinha muitos pedaços da cor natural, e era

visível dali alguns arranhões em seu rosto e braços, havia um corte na maçã do
rosto.

Mas sua feição era a personificação perfeita de alguém terrivelmente

assustado, olhava para Anna com um semblante de pânico e desespero que

precisava conter. Aquele foi o golpe mais doloroso que Anna sofrera naquela

tarde, vê-la em poder de uma pessoa que ela já sabia não ter o mínimo de
escrúpulos, que seria capaz de qualquer coisa para atingi-la, e atingir sua mãe.

— Você está bem? — Anna perguntou.

— Sim, mas você está uma bagunça! — Jennifer respondeu.

— Desculpe ter demorado tanto.

— Chega de conversinha. — Victor se intrometeu.

Foi como se Anna saísse de um transe, apontou a arma para ele e


ordenou que deixasse Jennifer ir embora.

Victor segurava uma pistola prata pousada em cima de sua perna


esquerda, segurava Jennifer pelo braço. Ele tinha os cabelos negros e volumosos,

jogados para trás, parcialmente molhados por suor e sendo desgrenhado pelas

correntes de vento que vinham do mar, a barba cerrada e levemente grisalha.


Usava uma camisa preta com botões brancos, que também tremulava com o

vento. Tinha uma incômoda semelhança física com sua mãe, ela podia

reconhecer inclusive alguns traços de si própria nele.

Apenas se olharam por alguns instantes, como num duelo de faroeste

entre inimigos mortais, e para Anna, se a vida de Jennifer corria risco, então seu

tio era seu inimigo mortal naquele momento.

— Vamos resolver isso em família, ela não tem nada a ver com isso. —

Anna falava tentando não alterar o tom da voz.

Prontamente ele também ergueu a arma e encostou brutalmente a ponta


do cano nas costas de Jennifer, a fazendo se contorcer.

— Por que eu soltaria seu animalzinho de estimação? Vai ser muito mais

divertido acertarmos as contas todos juntos. E seja uma boa menina, jogue este
revólver aqui nos meus pés, senão a conversa já vai começar com uma morte.

— Não ouse fazer isso.

— Então me entregue sua arma que eu tiro ela da minha mira.

Mas Anna manteve a arma apontada para seu tio.


— Anda, vamos conversar, minha cara sobrinha, quem sabe eu seja
bonzinho e poupe a vida da sua humana. Aliás, você herdou o péssimo gosto da

sua mãe, de se envolver com essa corja, essa escória.

Anna hesitou por um momento, baixou a arma, hesitou novamente,

olhando para Jennifer, que sinalizou de forma afirmativa com a cabeça.


Finalmente ela jogou a arma, Jennifer tentou desviar o curso da arma, mas não

foi o suficiente, a arma caiu na metade do trajeto.

— Eu falei nos meus pés, sobrinha. — Victor juntou rapidamente a arma

do chão, voltando para o banco, colocando no cós da sua calça. — Eu não sei

como essa garota faz essas coisas, mas ela bagunçou a casa movendo e

quebrando coisas, em qual circo você encontrou essa aberração? Tive que mantê-

la presa aqui na casa de pedra.

Anna ergueu as duas mãos espalmadas até a altura de sua cabeça,

sinalizando que agora estava desarmada.

— Pronto, você que conversar, não é? Estou de mãos limpas, deixe ela ir

embora e vamos resolver ao seu modo.

— Você acabou de chegar e está com pressa? Esperei você todos esses
dias, estava ansioso para conhecê-la. Aliás, como tem cuidado do meu
informante em sua casa? Espero que o esteja tratando bem, ele disse que seu café

é muito bom.

— Quem?
— Ted, ele é um dos meus homens e tem feito um trabalho excelente.

— Desgraçado... — Anna sentia uma raiva subindo por seu abdome,


queimando por dentro, se Jennifer não estivesse ali já teria investido algum

ataque contra Victor, mesmo desarmada.

— Me diverti com suas buscas nos lugares errados, eu já estava quase

mandando Ted contar onde eu estava.

— Eu estou disposta a fazer o que você quiser, assim como minha mãe,

apenas me diga quais são seus termos e vamos resolver isso sem que ninguém se

machuque.

Victor riu, com deboche.

— Sabe, eu já imaginava você assim, pretensiosa, com esse ar de durona,

se achando tão forte e poderosa quanto um Titan, quando não passa de uma

pobre híbrida com a fraqueza dos humanos.

Anna permanecia olhando ambos, com atenção, escolhendo as palavras,

sabia que se escolhesse as palavras erradas poderia custar a vida de uma delas.

— Para que tudo isso, para ficar se glorificando que no final você
venceu? Que a vontade do seu pai venceu? Por que essa obsessão com o que
minha mãe faz ou deixa de fazer? Essa obsessão doentia por nossa família? —

Anna argumentou.

— Não existe sua família, só existe minha irmã e Angie, que voltarão a
morar comigo na Tailândia. Do outro lado existe você, uma pobre coitada
solitária, e seu irmão covarde que se escondeu no velho mundo.

O vento continuava soprando com certa força, dali era somente possível
ouvir o barulho das ondas quebrando nas pedras logo abaixo. Ao lado deles

havia a imensidão verde do oceano. Anna enxugou com as costas da mão um

viés de sangue que escorria de seu supercílio. Não sabia mais o que falar ou
fazer para convencê-lo a soltar sua namorada.

— Se seu objetivo é levar minha mãe de volta, por que não fez isso? Por

que me trouxe até aqui?

— Queria conhecer você, sobrinha, ouvi tanto sua mãe falar de você e
seu irmão, tinha curiosidade em conhecê-la, não que eu tenha algum tipo de

afeto fraternal por você, se dependesse de mim você já teria sumido há muito

tempo... Todas as vezes que meu pai cogitou matar vocês eu apoiei e incentivei,

mas ele preferiu apenas manter Marianne longe dessa corja de sanguessugas. Eu

deveria ter incentivado mais, agora eu não estaria aqui, perdendo meu tempo

com vocês. — O Titan mantinha um sorriso sarcástico em seus lábios durante

todo o tempo.

— Então vamos voltar ao cenário anterior, minha mãe volta para a

Tailândia e eu continuo morta para você, como sempre estive. Ou tem mais
alguma exigência?

— Marianne voltaria por bem? Duvido.

— Anna, não acredite nele! — Jennifer disse.


Victor voltou a bater com a arma nas costas de Jennifer.

— Não se meta, animalzinho. — Victor a censurou.

A cada minuto que passava Anna ficava ainda mais aflita, não tinha ideia
dos planos de seu tio, não sabia quais suas reais intenções armando toda essa

situação, desde as flechas, o sequestro de Jennifer, e agora esse resgate já

esperado, ele poderia ser capaz de tudo, até mesmo simplesmente libertá-las,
pois pelo que sua mãe havia contado, Victor era apenas uma sombra de seu pai,

uma pessoa com pouca personalidade e bastante egocentrismo.

— Também quero que seu irmão continue se fazendo de morto lá na


Europa, não quero nenhum contato de vocês com minha irmã. — Victor

continuou.

— Assim será. Agora por favor, solte a garota, apenas a solte, me deixe

levá-la embora. — Anna suplicava, estava sentindo uma angústia sem tamanho

vendo Jennifer em poder do seu tio.

Jennifer continuava lá, de pé, com as mãos presas e o cano da arma


enfiado em suas costas, olhando atentamente. Ela só queria poder correr de

encontro a Anna, naquele momento não sentia a exaustão do cárcere de cinco


dias, apenas sentia medo.

— Quero Marianne aqui, ainda hoje, não tenho mais tempo a perder
nessa cidade de merda.

— Falarei com ela assim que sair daqui.


— Se você faz tanta questão assim dessa humana, então tome, é toda sua,
e sumam de uma vez por todas de nossas vidas.

Victor passou a arma para a mão esquerda e empurrou Jennifer,

espalmando sua mão nas costas dela, Jennifer deu um passo sôfrego para frente,

desequilibrada pelo empurrão.

Anna aguardava tensa o retorno de Jennifer até seus braços, aqueles


poucos metros que pareciam quilômetros, porém o estampido de um tiro pode

ser ouvido. Jennifer parou imediatamente, olhos arregalados, caiu de joelhos,

ainda com os braços unidos à sua frente pela corda.

Anna correu até ela, que caiu no chão lentamente, já em seus braços.

Victor havia atirado em Jennifer. Pelas costas.

O tiro, quase à queima-roupa, a atravessara, saindo no meio do seu tórax.

Rapidamente sua camiseta se tingiu de vermelho. Anna a deitou no chão,

terrificada com aquela cena. Colocou suas mãos uma sobre a outra em cima do
ferimento, numa tentativa desesperada de mantê-la viva e estancar o

sangramento. Jennifer tentou falar algo, mas suas palavras não saíram, apenas
sangue. Só conseguia olhar para Anna com olhos que imploravam que não a

deixasse morrer.

— Vai ficar tudo bem, vou tirar você daqui, ok? Vai ficar tudo bem. —

Anna falava repetidamente.

Ouviu uma risada seca, forçada, e sentiu um braço a puxando para trás,
aplicando-lhe uma gravata.

— Agora é sua vez, sua bastarda!

Victor era um Titan não tão corpulento quanto os que ela estava
acostumada a enfrentar em suas noites de aventura, mas ainda assim era forte.

Lutava contra seu braço, que a prendia pelo pescoço.

— Você achou mesmo que eu ia deixar vocês saírem com vida daqui? Eu

vim para os Estados Unidos para me certificar que Marianne não teria mais

motivos para retornar para cá. Eu estava esperando você aparecer, para te matar

com minhas próprias mãos.

Anna deu uma cabeçada para trás, acertando-o no nariz, conseguiu se


soltar do seu braço. Investiu um golpe com seu punho esquerdo fechado contra

ele, mas foi logo surpreendida por um soco certeiro no seu rosto. Na sequência

ele aplicou mais um golpe, a derrubando no chão, caiu de lado, de joelhos.

Levantou-se, olhou para o lado e pode ver Jennifer agonizando. Anna

reuniu todas as forças que tinha e as que não sabia que tinha e partiu novamente
para cima de seu tio.

Conseguiu encaixar um soco no rosto dele, mas em contrapartida levou


quase meia dúzia de diretos e ganchos, porém não caiu desta vez, se esforçou

para manter-se de pé. Limpou o sangue que caía em seus olhos, pode visualizar
ele sacando a arma e apontando para ela. Mas com todo o desespero que a movia

naquele momento, num rompante e com a velocidade de um lince, pulou para


cima dele, o derrubando. Caíram no chão engalfinhados, a arma havia voado

para longe.

Agora era Anna que encaixava uma sequência de pancadas no abdome e

no rosto asqueroso do seu agressor. Ele conseguiu a empurrar, tirando de cima

dele, a jogando para o lado. Anna se recompôs, ficou de pé e o viu se


levantando, rindo sarcasticamente.

— Um duelo de mãos limpas, o que acha? Será que minha sobrinha me

vence? — Ele riu, com os braços abertos a chamando para a luta.

Foi então que ela lembrou do que carregava às costas, sua espada. Anna
desembainhou sua lâmina extremamente afiada. Soltando um grito de raiva

correu para cima de Victor, o atravessou no abdome. Seu riso agora se

transformara num semblante de surpresa e aflição.

— Isso é pelo meu pai, seu desgraçado! — Anna ainda segurava a espada

atravessada nele, o fitou nos olhos com ira a girou e a fez sair pela lateral,
rasgando seu tronco, a lâmina agora não estava mais prata, e sim rubra com seu

sangue.

Anna o empurrou com um chute, fazendo com que ele despencasse no


mar abaixo do despenhadeiro, sequer foi ver o corpo lá embaixo, correu para
junto de Jennifer, ajoelhando-se ao seu lado, largando a espada.

— Meu amor, fale comigo! — Anna suplicava desesperada, pegando no

rosto de Jennifer com sua mão suja de sangue, a sujando também.


Mas o corpo inerte de Jennifer não respondia mais. Não sentiu seu pulso,
aproximou-se de sua boca, não podia sentir sua respiração. Anna desesperou-se

mais ainda.

— Jennifer! Não, não faça isso, Jennifer!

Jennifer havia morrido.


Capítulo 45 – O campo onde eu morri

— Jenny, venha para o raso! — Ouviu seu pai gritando.

— Água no umbigo sinal de perigo, lembra? Venha brincar mais próximo

de nós! — Sua mãe completou.

Jennifer olhou ao redor e viu todo o mar azul acinzentado ao seu redor, a

água batia na altura da sua cintura. As ondas e o repuxo a faziam se

desequilibrar, mantinha os pés afastados buscando permanecer onde estava.

Sentia seu corpo inteiramente dormente, ou talvez não o sentisse por inteiro, mas

sentia a água ao seu redor, a água gelada em contato com sua pele.
Experimentava o cheiro salgado da maresia, o sol forte que parecia secar

rapidamente as gotas de águas que escorriam de seu corpo.

De lá podia ver sua mãe, com uma camiseta branca, e seu pai sem camisa

usando um boné do Blue Fish, um time local, sentados na areia numa toalha

grande colorida. Viu sua mãe abrindo uma bolsa térmica e tirando sanduíches
embalados em papel alumínio, colocou o primeiro sobre a toalha, colocou

delicadamente o segundo.

— Jenny, venha comer seu sanduíche! — Ela gritou de lá, agitando o

terceiro sanduíche com uma mão.

— Já vou, mãe!

Resolveu atender o pedido dela, começou a sair da água, caminhando na


direção dos seus pais. A caminhada ficou pesada, deu um passo à frente, mas

logo o repuxo a fez recuar duas passadas. Firmou-se no fundo, sentiu a areia fina
se moldando aos seus pés, tomou impulso para caminhar, mas novamente as

ondas à impediram, a fazendo recuar mais. O mar parecia um tanto quanto mais

agitado, as ondas mais fortes e a água já batia na altura do seu peito. Se irritou
por não conseguir avançar na água.

Viu seu pai tentando abrir uma garrafa de refrigerante com o garfo.

— Ele sempre esquece o abridor... — Pensou.

Sentiu uma corrente forte em suas pernas, a forçando a dar mais passadas
para trás, mesmo lutando para não ir, se inclinando para frente. O mar já cobria

seu queixo, erguia a cabeça com esforço.

Olhou para a praia, já não enxergava direito seus pais sentados, mas

conseguiu ver seu pai acenando com a mão, a chamando.

— Já vou, pai! — Tentou gritar, mas acabou engolindo a água salgada.

Não tocava mais o fundo do mar com seus pés, tentava flutuar, sem

sucesso. Tentou nadar, dando braçadas afoitas, mas as ondas vinham e a


cobriam. Lutava para manter seu rosto fora da água, mas sentia-se já sem forças.
Submergiu, tentava respirar, mas com o desespero apenas conseguia sentir a

água entrando por sua boca e nariz. Abriu os olhos e só enxergou a turbidez da
água, como se olhasse para o céu num dia de tempestade. Não lutou mais e

fechou os olhos.
***

— Por favor meu amor, não vá... Não vá!. — Anna chorava
copiosamente, debruçada sobre o corpo de Jennifer.

Tentava pela vigésima vez uma sequência de massagem cardíaca em seu

peito, buscando reanimá-la, fazia a contagem de forma apressada, com as mãos

entrelaçadas sobre seu tórax em meio a todo aquele sangue, mas não havia
reação alguma.

— Eu não quero viver sem você... Eu não consigo... Acorde, meu amor,

vamos, fale comigo. — Passava sua mão trêmula pelo rosto e pelos cabelos de
Jennifer, deslizando da sua testa para trás.

— Não me deixe, não faça isso comigo, você prometeu ficar comigo,

lembra? Não pode ser verdade! Não! Nããããão! Nããããão!

Anna já não conseguia falar nada, apenas soluçava, as lágrimas se

misturavam com o sangue em seu rosto. Baixou sua cabeça pousando na

camiseta ensanguentada e rasgada pela bala. Não havia mais o que fazer, seu
coração doía como se estivesse esfacelado ou sido arrancado de dentro de seu

peito, mal conseguia respirar.

— Eu te amo tanto... — Murmurou entre soluços. — Você sabia disso,

não sabia?

Levantou-se de supetão, olhou de forma séria para Jennifer, a encarou

pensativa, agachada ao seu lado. Formaram-se dois vincos em sua testa, próximo
às sobrancelhas.

— Meu Deus... Mas eu não posso fazer isso... — Balbuciou, com um


semblante sofrido.

— Eu não devo... — Anna analisou rapidamente a possibilidade de

derramar seu sangue em sua amada, na tentativa de reanimá-la. Ela carregou esse

estigma do seu sangue por toda a vida, nunca imaginou que um dia poderia
cogitar usar em alguém. E numa Vulpi, muito menos.

Já não tinha muito tempo, não fazia a menor ideia do que aconteceria, se

surtiria algum efeito em alguém que não fosse humana, o que aconteceria com
uma Vulpi, talvez já fosse tarde demais. Sem contar que isso também era algo

terminantemente proibido entre os híbridos.

Mas era seu único fio de esperança. E ela se agarrou a ele.

Colocou os dedos no rasgo que havia na blusa de Jennifer, aumentando o

buraco, e expondo o ferimento a bala em seu peito.

Tomou a espada caída ao seu lado e fechou sua mão direita ao redor da

lâmina, dedo após dedo. Olhou para Jennifer, olhou para sua mão fechada,
deixou todas as incertezas para trás e deslizou a lâmina para baixo, lhe cortando.

Apertou a mão sobre a ferida de Jennifer, um fio grosso e vivo de sangue

caiu, em seguida se tornou um gotejamento. Soltou a espada e observou com um


semblante tenso, à espera de alguma reação. Foram segundos longos de uma

expectativa cruel, que acabou não provendo resultado algum.


Anna continuava encarando o rosto desfalecido e sujo de sangue de
Jennifer, estava com a cabeça levemente inclinada para o lado, a boca

entreaberta expondo dentes escarlates. Lembrou da vida pulsante que Jennifer

costumava mostrar em sua expressão, em como sempre havia brilho em seus


olhos, o quanto seu sorriso acendia algo bom dentro de si, em contraste com seu

semblante pacífico e inerte de agora.

O desespero voltou a consumi-la, bem como as lágrimas que retornaram

com a desolação em assistir aquela cena.

— Foi tarde demais... Eu falhei. — Balbuciou, antes de voltar a chorar

soluçando. — Meu Deus... Não pode ser verdade. Por que não me levou?

Cobriu os olhos com as mãos sujas de sangue, chorava copiosamente.

— Eu deveria ter mantido minha decisão de me afastar de você depois

daquela noite. E agora você se foi. — Voltou a colocar sua testa sobre o peito de

Jennifer.

E então o improvável aconteceu, sentiu o peito de Jennifer vibrando, ela


estava tossindo, tentando respirar. Anna ergueu-se de imediato, incrédula, não

acreditava no que via, Jennifer havia voltado.

Anna a virou de lado, segurando seu rosto para baixo.

— Cuspa, cuspa todo o sangue. — Ela falava enquanto Jennifer tossia e


cuspia uma boa quantidade de sangue.

Voltou a deitá-la cuidadosamente, ainda com a mão segurando sua nuca,


Jennifer abrira os olhos, a encarava assustada.

— Consegue respirar? — Anna perguntou.

Jennifer acenou com a cabeça, sua respiração estava forte e rápida. Anna
sentiu uma onda arrepiante passando por toda sua espinha, uma alegria absurda

que nunca sentira antes, queria gritar de felicidade.

— Calma, respire devagar, devagar... — Anna falava, debruçada sobre

ela.

Jennifer ainda estava desnorteada, respirando rápido.

— Isso, devagar, está tudo bem. — Um sorriso se abria enquanto falava

com Jennifer, a acalmando.

— Você voltou, você voltou, meu amor. — A abraçou, a trazendo para

perto de si, passou seus braços ao redor do corpo dela com desespero e vigor.

— Voltei de onde? — Jennifer balbuciou, ainda ofegante.

Separaram o abraço, mas Anna continuava a segurando, próxima de si, a

olhava sem conseguir acreditar no que via e sem conseguir tirar o sorriso do
rosto.

— Achei que tinha perdido você, mas você voltou, meu amor! Você

voltou para mim, eu juro que vou dizer o quanto te amo todos os dias da minha
vida. — Anna falou emocionada.

— Seu tio! — Jennifer lembrou-se então de tudo, com uma expressão


tensa.

— Não vai mais nos fazer mal, está resolvido.

— Não?

— Acabou, acabou tudo, vai ficar tudo bem agora.

— Onde ele está?

— Nas pedras, lá embaixo.

— Eu quero ver.

— Consegue se levantar?

— Acho que sim.

— Vou cortar essa corda, não se mexa. — Pegou a espada e cortou as

amarras nos pulsos de Jennifer.

Anna a ergueu devagar, caminharam até a beira do precipício, a

carregando com cuidado.

— Foi uma queda feia. — Jennifer constatou, olhando para baixo,


abraçada e apoiada em Anna.

— Teve o que merecia, o que sempre mereceu.

Continuaram apenas contemplando as ondas revoltas batendo nas pedras


abaixo, o vento balançando seus cabelos e roupas e fazendo um barulho triste,
era o meio da tarde de um dia nublado. O mar ali era verde e espumante, e numa

das pedras jazia o corpo de Victor, alcançado pelas águas de tempos em tempos.
— Sua mãe vai ficar uma fera, você matou o irmão dela por minha causa.
— Jennifer falou antes de colocar a mão no peito e fraquejar os joelhos.

— Venha, vou te levar para o hospital. — Anna a pegou nos braços, a

carregando no colo.

— Você também precisa de hospital.

— Segure firme, passe seus braços ao redor do meu pescoço.

— Você está de moto? — Jennifer perguntou enquanto era carregada pelo

ferro-velho.

— Não, vim com seu carro.

— Está dirigindo?

— Sim. Está orgulhosa de mim?

— Sempre estou.

***

Jennifer acordou lentamente, estava deitada de lado, abria os olhos com

dificuldade, tentando focar aquelas paredes brancas estranhas. Levou cerca de


um minuto para se dar conta de onde estava e o que havia acontecido. Ao seu

lado havia alguém sentado numa cadeira, sua visão ainda estava embaralhada,
apertou os olhos tentando focalizar.

— Anna? — Falou baixinho.

— Não, Angelina.
— Angelina? — Jennifer repetiu o nome, ainda tentando descobrir quem
era aquela garota de cabelos escuros e olhos castanhos, com um celular nas

mãos.

— Você está bem? Precisa de algo? — A garota falou num tom solícito.

— Eu conheço você? — Jennifer a olhava confusa.

— Ainda não, mas você conhece minha irmã.

— Quem? — Jennifer a olhava processando as informações.

— Anna. Eu sou a irmã dela.

Jennifer deu um sorriso tímido, tentou enxergá-la melhor.

— Claro... Angie, a irmãzinha caçula... Vocês se parecem. — Jennifer

falava devagar, com a voz baixa, ainda sonolenta.

— Minha mãe sempre me falava isso, agora eu entendo porque.

— Onde elas estão?

— Foram cuidar do funeral do meu tio.

Jennifer desfez o frágil sorriso.

— Sinto muito por ele... Não deveria ter terminado daquela forma.

— Tudo bem, eu sei o que aconteceu, vocês não tiveram culpa. E ele era
um babaca.

Jennifer se virou com dificuldade na cama, ficando de barriga para cima.


— Você não pode se levantar, ok? Eu não posso deixar você sair da
cama, senão elas me matam.

— Te deixaram instruções?

— Algumas.

— Relaxa, não vou fugir daqui. Não agora, Angie. — Jennifer sorriu para

ela.

— Anna disse que você pode me chamar de cunhada se quiser, porque

nunca chamou ninguém assim.

— Ela disse isso?

— Sim, depois de eu perguntar se podia te chamar de cunhada. Sabe, eu

acho muito irado que minha irmã namore com uma garota, é tão moderno, eu

adorei.

— Ela ainda fica tímida com esses assuntos, temos que pegar leve com

ela.

— Eu percebi.

Jennifer se ajeitou no leito, tentando erguer-se um pouco.

— Mini Anna, me consegue um copo d’água?

Angie riu.

— Ela me alertou que você faria alguma piada com o fato de sermos
parecidas. Levantou e começou a servir um copo com água.
— Sua irmã me conhece bem.

Bebeu a água e deu uma olhada em seu peito, onde havia uma grande
bandagem.

— Você tem ideia do que aconteceu comigo? — Jennifer perguntou.

— Parece que você levou um tiro que fez um baita estrago, daí operaram

você noite passada. — Angie sentou-se numa cadeira giratória ao lado da cama,

se movendo.

— Noite passada? Que dia é hoje?

— Domingo à noite.

— Eu estou dormindo desde ontem? — Jennifer perguntou assustada.

— Acho que sim, eu cheguei hoje à tarde.

— Eu morri? Ou isso aqui é real?

— É real, pelo menos eu sou real. E aqui parece um lugar bacana.

— É uma viagem longa, não é? Da Tailândia para cá.

— Nossa, um saco, quase vinte horas... Achei que andar de avião fosse

mais divertido, mas todo mundo só quer dormir, um monte de gente chata.

— É um saco mesmo, ficam mandando você falar mais baixo, nem te

deixam cantar. — Jennifer concordou.

— Não vejo a hora de sair e conhecer essa cidade, outras cidades, quero

conhecer Nova Iorque, é aqui perto, não é?


— Pertinho, cem quilômetros.

— Depois quero conhecer a Escócia, meu pai era escocês.

— Jura? O meu também! Minha família ainda mora lá, eu visito de vez
em quando, você pode ir comigo na próxima vez.

— Sério? Que massa! Eu quero ir sim, ele falava tanto de lá, já até

imagino como é, eu vi umas fotos na internet.

— Que cidade?

— Irvine.

— É pertinho de Glasgow, serei sua guia, soube que tem uns pubs legais

lá. Quer dizer... Não, nada de pub, esqueci que você tem quinze anos, Anna me

mataria.

— Ah que quero ir, minha mãe me deixa beber cerveja às vezes.

Jennifer sorriu.

— Ok, te levo num pub, mas durante o dia.

— Fechado!

— Mas eu sei de um outro lugar que você vai gostar de conhecer


também, uma fazenda no interior da Inglaterra. — Jennifer falava tentando tirar

o tubinho transparente que levava oxigênio abaixo do seu nariz.

— O que tem de tão legal lá? Hey, não tire isso, vai que dá algum
problema?
— Isso é chato. Mas tá bom, não quero queimar teu filme. Sobre o que
tem nesta fazenda? Tem seu irmão e sua sobrinha.

— Nossa, estou doida para conhecer eles também! Poderíamos fazer uma

tour completa, Escócia e Inglaterra.

— Claro, estou te vendendo o pacote turístico completo.

— Você conheceu eles?

— Sim, e sua sobrinha é absurdamente fofa, a garotinha é mais esperta

que eu e Anna juntas.

Angie sorriu, animada.

— Eu estou adorando ganhar esse monte de família, assim de uma hora

para outra, nós vivíamos tão isoladas lá, agora estamos livres e não estamos mais

sozinhas. — Angie olhou para baixo, pensativa. — Minha mãe sofria bastante
por estar longe da família, ela falava tanto de Anna.

— Anna também sentia falta da mãe, ela passou os últimos anos sozinha,
e agora tem vocês duas por perto, vai ser incrível para ela.

— Andrew também é assim sério, como Anna?

— Não, ele é menos sério, menos fechado, mas muito menos legal que a

irmã, e é mais chato que ela também.

Angie apenas sorriu, prestando atenção no que Jennifer dizia.

— Não se deixe enganar, Anna só tem esse jeito reservado, ela é especial,
é sensível, atenciosa, carinhosa, você vai conhecê-la melhor e vai entender o que

estou falando. — Jennifer falava com um sorriso bobo.

Uma enfermeira entrou para alguns procedimentos de rotina.

— Não me coloque para dormir, ok? — Jennifer pediu a ela ao vê-la

injetando algumas coisas em seu acesso no braço.

— Esses são analgésicos, os que derrubam só mais tarde.

— Odeio ficar grogue... Cara, que legal a capa do teu celular!

— Você gosta do Bob Esponja?

— Adoro, deixa eu ver.

Angie lhe entregou o celular, Jennifer ficou mexendo.

— Deixa eu mostrar uma coisa. — Angie falou.

— Ah, fala sério, você tirou foto minha assim apagada? — Jennifer
olhava no visor do aparelho, Angie ia passando as fotos.

— Minhas amigas estavam pedindo foto da minha cunhada, daí mandei

para elas.

— Sacanagem, não sou fotogênica dormindo, você tem que tirar outra,
agora que estou acordada.

— Legal!

— Vem, vamos tirar uma foto nossa. — Jennifer a chamou para ficar ao

seu lado.
Anna entrou no quarto, viu as duas garotas fazendo pose para uma foto
com o celular, com os dedos erguidos num V.

— Vejo que já foram apresentadas. — Anna falou sorrindo, pegando

Jennifer de surpresa, lhe arrancando um grande sorriso também.

— Oi mana!

— Oi Angie.

Anna se aproximou e deu um beijo rápido nos lábios de Jennifer.

— É bom te ver acordada. — Sussurrou para ela.

— É bom te ver. — Jennifer respondeu. — É muito bom te ver, baby.

Jennifer pegou a mão de Anna com suas duas mãos e a beijou. Anna já

estava de roupas limpas e com seus ferimentos cuidados, a mão direita estava

enfaixada, tinha um curativo no pescoço e outros dois pequenos no rosto, além

de alguns cortes e arranhões.

— Esses machucados não estão doendo? Como você está? — Jennifer

perguntou.

Anna sentou-se na beirada da cama, de frente para Jennifer, que ainda


segurava sua mão.

— Melhor do que nunca, e você? Angie cuidou conforme as orientações?

— Olhou para Angie, que agora estava sentada no sofá do outro lado.

— Cuidei sim. — Ela respondeu.


— Como se sente? — Anna voltou a perguntar para Jennifer.

— Furada de novo, isso está se tornando uma constante na minha vida.

— Acho que gostam de furar você.

— Me sinto um boneco de vodu em tamanho real.

Angie riu, Anna olhou para ela.

— Daqui a pouco nossa mãe vem te buscar. — Anna disse.

— Posso dormir aqui, se precisarem.

— Não, eu vou passar a noite aqui, vá para casa descansar.

— Posso ir para casa hoje também? — Jennifer perguntou.

— Não, mas para você eu tenho boas notícias, fiquei sabendo que você

vai ter alta logo.

— Menos mal... Angie disse que me operaram, por que?

— Você estava com uma hemorragia forte, tiveram que operar à noite,

mas correu tudo bem.

— Eu ouvi o médico dizendo que você está viva por um milagre, que

ninguém sobrevive à um tiro no coração, acho que você é um X-Men, tipo o


Wolverine. — Angie disse.

— Viu? Viu? Ela me entende! — Jennifer falava apontando para Angie.

— E seu coração parou! Isso é muito louco.


— Sério? É a segunda vez esse ano, acho que sou um gato. — Jennifer
falou, olhando para Anna.

— É verdade, você teve uma parada. — Anna falou, com certo

incômodo.

— E é como dizem? Você viu um longo túnel, uma luz forte? — Angie

perguntou.

— Não, não tem nada disso. Eu vi unicórnios, vários. E vi minha tia-avó

Emma fazendo tricô. — Jennifer falou rindo.

— Quanto tempo será que seu coração ficou parado? — Angie

perguntou.

— Não deve ter sido muito, os médicos vão logo dando aqueles choques

no peito das pessoas, não tem quem não volte com aquilo. — Jennifer

respondeu.

— Mas não foi aqui, foi lá no ferro velho, não foi, Anna? Ou ouvi

errado?

Anna lançou um olhar sério para a irmã.

— Foi lá? — Jennifer perguntou, com estranheza.

— Sim, foi, eu reanimei você. — Anna respondeu, ainda sentada na


beirada da cama.

Jennifer sorriu.
— Mais um motivo para te chamar de minha heroína. — Jennifer falou.
— Ela é a minha Mulher Maravilha, sabia Angie?

— Ah é? Tem outros atos heroicos então?

— Vários, outra hora te conto tudo que sua irmã já aprontou.

Marianne chegou no quarto, Jennifer ficou tensa ao vê-la, como sempre.

— Olá, meninas, olá, Bela Adormecida.

Jennifer se surpreendeu com a brincadeira da sogra.

— Me doparam, eu não costumo dormir isso tudo. Quer dizer, às vezes.

Jennifer se ajeitou na cama, Anna apertou um botão para subir um pouco

o encosto, para que Jennifer ficasse mais inclinada.

— Ah, bem melhor. — Jennifer disse.

— Que bom que está acordada, Anna estava o tempo todo me


perguntando ‘será que ela já acordou?’, despachei ela para cá. — Marianne

falou com um leve sorriso, de pé do outro lado da cama, mas mantendo seu jeito

sério.

Jennifer lançou um sorriso para Anna e pegou sua mão, mas logo desfez

o sorriso.

— Eu sinto muito por seu irmão. — Jennifer disse, se dirigindo a


Marianne.

Marianne suspirou antes de falar.


— Victor estava fora de si, eu gostaria que as coisas tivessem sido
resolvidas de outra forma, mas eu não consigo enxergar agora como poderia ter

sido de forma pacífica, ele não nos deu essa opção, ele fez a escolha dele. — Ela

respondeu serenamente.

— Ele não tinha intenção de deixar eu e Anna sairmos vivas, ele me


falava isso todas as noites, que estava esperando Anna chegar para acabar com

nós duas.

— Era ele ou nós. — Anna falou.

— É, eu sei... Isso só me deixa ainda mais entristecida com a despedida


dele, sua vida ter terminado desta forma. — Marianne disse e se aproximou de

Jennifer, segurando sua mão.

— Mas eu quero que saiba que estou feliz e aliviada em vê-la aqui, com

vida e bem. Você não imagina o quanto essa garota aqui sofreu com sua

ausência, sem saber seu paradeiro, ela estava desesperada... — Marianne disse
apontando para Anna, com a cabeça.

Anna ficava ainda mais encabulada com o que sua mãe falava sobre ela.

— Eu também estou aliviada por estar viva. — Jennifer falou, com uma
pitada de sarcasmo.

— Sobrevivemos, estamos nós quatro aqui, juntas, em segurança, é o que


importa agora. — Anna disse.

— Bom, vou levar essa outra garotinha para casa, me liguem se


precisarem de algo ou se acontecer alguma coisa. — Marianne despediu-se.

— Amanhã a gente vem te buscar, viu? — Angie também se despediu.


— E não tire essa coisinha do nariz.

— Não tirarei, prometo.

Anna as acompanhou até a porta, retornando com passos lentos.

— Eu gostei da mini Anna. — Jennifer falou.

— Mini Anna?

— Ela é a sua cara. O que trouxe naquela sacola?

— Uma muda de roupas para você, trouxe o moletom do Lanterna Verde.

— Anna debruçou-se na grade nos pés da cama.

— Vem cá. — Jennifer sussurrou.

Anna se aproximou pelo lado, Jennifer pegou sua mão e foi trazendo-a
para mais perto, até ficar com o rosto próximo ao dela.

— Me empresta um beijo? Prometo que devolvo. — Jennifer falou com

um sorriso bobo.

Anna sorriu, debruçou-se sobre ela e a beijou, trocaram um beijo sem


pressa, suave.

— Nossa, eu desejei tanto um desses enquanto estava presa naquele


inferno... — Jennifer falou baixinho, ainda com a mão no rosto de Anna.

— Mais do que qualquer coisa, eu desejava te ver de novo. — Anna


disse, ajeitando o tubinho no rosto de Jennifer.

— Que pesadelo... — Jennifer jogou a cabeça para trás, com um longo


suspiro.

— Victor ia na sua cela todas às noites? — Anna indagou.

— Sim, era quando eu ganhava comida e água. E algumas palavras de

desmotivação.

Anna balançou a cabeça, assimilando.

— Não, não aconteceu nada, ele era cruel, mas nem tanto. — Jennifer a
tranquilizou.

— Alguém machucou você?

— Só quando cheguei, mas nada demais. Isso aqui foi por tentar fugir

quando me tiraram do carro. — Jennifer mostrava o corte na maçã do rosto.

— Depois ficou isolada naquela cela ao lado do penhasco?

— Todos os longos dias. E noites. Esse tipo de coisa pode enlouquecer

pessoas, agora eu acredito nisso.

— Depois de tantos dias não perdeu a esperança?

Jennifer a fitou pensativa por um instante.

— Eu sabia que o mar estava batendo ali, bem do meu lado, eu ouvia o
barulho. E foi isso que me impediu de perder as esperanças, era meu alento. Eu
sabia que esse mesmo mar que estava batendo nas rochas, era o que estava
batendo no seu quintal. O barulho me acalmava, eu prestava atenção, me dava
uma sensação reconfortante, lembrava das vezes que ouvia o barulho do mar na

sua sacada ou na sua cama, com você.

— Você é uma garota forte.

— Olha quem fala, você se machucou pra valer e está aí, firme e forte.

— Ferimentos leves. — Anna respondeu.

— O que foi isso no seu pescoço?

— Um corte.

— Tem mais?

Anna levantou a blusa, mostrando dois curativos.

— Dois cortes?

— Um corte e um tiro.

— E o que aconteceu com sua mão? — Apontou para a mão enfaixada


dela.

Anna olhou para sua mão hesitante.

— Outro corte, nada demais.

— Vem cá, deixe eu cuidar um pouco de você, deite aqui. — Jennifer


disse, chegando para o lado.

— Não é permitido deitar com os pacientes.


— Eu deixo. Vem, só até te expulsarem.

Anna viu que não tinha saída, tirou as botas e deitou ao lado de Jennifer,
que virou-se e a abraçou, numa confusão de tubos e fios, aninhando-se nela.

— Cuidado para não soltar nada.

— Estou agarrando você, todo o resto pode soltar.

Paz, finalmente era o que Anna sentia invadindo sua alma naquele

momento, um alívio quente, ouvindo e sentindo a respiração de Jennifer de

perto. Deslizava sua mão devagar pelas costas dela, tendo a certeza que sua

namorada estava em seus braços.

Ficaram algum tempo assim, alguns minutos silenciosos e necessários.

Jennifer virou-se devagar, deitando novamente de costas com um semblante

dolorido.

— Tá tudo bem? — Anna perguntou.

— Sim, sim, só dói quando mexe. Estou com sono e nem me deram
ainda os que apagam...

Anna ergueu-se um pouco a olhando com a cabeça apoiada na mão e o


cotovelo no travesseiro. Então tirou algo do bolso.

— Eu trouxe isso para você. — Mostrava o mini carro da maquete.

— Você achou o mini Ignatius!

— Achei no asfalto.
— Foi você que encontrou meu carro no acostamento?

— O carro e a flecha.

— Ele pifou.

— Eu não deveria ter sugerido que você fosse para a aula com ele.

— Shhh, nem vem.

— Seus carros vão precisar de uma reforma. — Anna comunicou.

— Acho que vou aposentar o Ignatius, colocar para decorar seu quintal,

plantar umas flores, não precisa reformar, basta estacionar lá.

— Seu carro novo também vai precisar de conserto, você não percebeu

nada quando vinha para cá?

— Quando você me trouxe eu estava semiconsciente, então não reparei


nada além do buraco no meu peito e a quantidade de sangue. Para variar você

deve ter dado ré em alguma coisa.

— É, também, no carro de um dos seguranças. Mas sofri um atentado,

atiraram no carro, várias vezes.

— Sério? Nossa, ainda bem que ele é blindado.

— Exatamente, e eu não sabia disso.

— Putz, achou que levaria os tiros?

— Achei que tudo acabaria ali, não entendi porque ainda estava viva.
— Que susto deve ter sido, seu coração é forte, hein?

— Se tem uma coisa que eu tenho certeza é que não morrerei do coração,
tenho passado por bons testes.

— Seu coração é tão forte quanto você, passou no teste do carro

blindado, passa por qualquer coisa.

— Tive coisa pior, bem pior.

— Que coisa?

— Laura me ligou uma noite, dizendo que havia encontrado seu corpo,
ou pelo menos um que parecia o seu, mas ela não podia reconhecer.

— Laura? — Jennifer a olhou com a testa franzida.

— Eu a inclui nas buscas.

— E ela não reconheceu o corpo? Que estranho, ela conheceu meu corpo.

Tô brincando! Tô brincando! — Jennifer riu.

Anna a olhou séria rapidamente e voltou a falar.

— Não, estava muito avariado, não dava para reconhecer.

— E você foi lá?

— Não precisou, eu pedi para que procurasse por cicatrizes nas costas e

não tinha nenhuma. Acho até que tive um pequeno infarto naquela noite, mas
sobrevivi.

— Que horrível.
— Inclusive ela esteve aqui ontem te visitando, mas você estava na
cirurgia.

— Você me procurou muito?

— Você não imagina o quanto procurei você, todas as noites voltava para

a casa sem nada, sem notícias, sem uma pista sequer, era desolador.

Jennifer passava seus dedos pelo rosto dela, pelos cortes e curativos,

Anna fechou os olhos.

— Obrigada por não desistir. — Jennifer falou baixinho.

— Eu procuraria até o fim dos dias. — Anna falou, abrindo os olhos.

— Victor dos infernos... Deve estar lá agora.

— Pior é saber que temos o mesmo sangue. — Anna murmurou.

— Qual o sobrenome da sua mãe?

— Spencer.

— Você também tem no nome?

— Tenho.

— Qual teu nome completo?

Anna a encarou por um instante.

— Anna Elizabeth Spencer Fin.

— Elizabeth? — Jennifer riu.


— Sim.

— Posso te chamar de Beth? Ou Liz?

— Não.

— Por que?

— Porque meu nome é Anna.

— Isso daria um nome de filme, ‘porque meu nome é Anna’, achei forte.

Fala de novo?

— Você não estava com sono?

***

Jennifer e Angie assistiam Anna trabalhando na oficina, três dias depois

de deixar o hospital, estavam recostadas numa bancada.

— Para que serve isso? — Angie perguntou para Jennifer.

— Nunca entendi direito, mas acho que você prende uma coisa aqui e faz
alguma coisa. Espera, vou prender essa lâmina aqui e te mostro.

— Isso é uma morsa, e vocês poderiam fazer o favor de não mexer? —

Anna falou, erguendo a cabeça.

— Ok, já larguei. — Jennifer falou e voltou a se recostar na bancada.

— Obrigada.

— Vou para casa hoje. — Jennifer comunicou.


Anna a olhou.

— Tem certeza? Está bem o suficiente para ficar sozinha?

— Por que você não mora aqui? — Angie perguntou.

— Porque tenho minha casa, você pode me visitar inclusive, lá tem


cerv... — Olhou sem jeito para Anna.

— Já vou! — Angie ouviu sua mãe a chamando da sala. — Não vá

embora sem se despedir de mim. — Ela falou para Jennifer, antes de sair

correndo da oficina.

Jennifer riu e voltou a acompanhar Anna trabalhando numa lixadeira de

polimento.

— Tão parecida e tão diferente de você. — Jennifer comentou.

— Parece que é sua irmã. — Anna respondeu, sem tirar os olhos da

lâmina que trabalhava.

— Só temos algumas coisinhas em comum.

— Não dê cerveja a ela.

— Eu não faria isso. Mas podemos levá-la ao pub sábado?

— Nós vamos ao pub sábado?

— Claro, por que não? Se eu consegui colocar minha prima de dezesseis


anos lá dentro, duas vezes, ela vai poder entrar também.

— Vou pensar no assunto. E acho que minha mãe não vai deixá-la ir.
Jennifer andava lentamente pela oficina, fazendo o que Anna mais
detestava, mexendo em tudo. Se aproximou de Anna e ficou girando uma

roldana de uma máquina desligada.

— Anna, tem uma coisa que quero conversar com você, desde domingo

que estou pensando nisso.

— Diga.

— O que aconteceu no ferro-velho? — Jennifer virou-se para Anna, se

apoiando na bancada com o cotovelo.

— Eu já contei o que aconteceu lá, qual é a dúvida?

— Você me contou tudo?

— Sim, quer que eu conte novamente?

— Quero.

— Ok, de onde eu começo? Eu entrei naquela casa, vi seu P.C. rabiscado

na poeira, enfrentei uns seis homens, apanhei um bocado, vi Victor correndo

pelo pátio de sucatas, fui atrás, o encontrei sentado num banco e você ao lado.
Conversamos, ele atirou em você pelas costas, mas não tive tempo para fazer
nada, porque ele logo me puxou pelo pescoço, tivemos uma luta, eu vi você

agonizando, estripei ele, fui te socorrer, assim que cheguei você teve uma
parada, eu fiz o procedimento de reanimação, seu coração voltou, e te levei para

o hospital. Foi um bom resumo?


— Não. Diminua a velocidade num determinado ponto. Eu tive a parada
assim que você me socorreu ou já estava parada?

Anna parou o trabalho que fazia, mas ainda ficou um instante olhando

para baixo, hesitante. Então desligou a máquina, virou-se e olhou para Jennifer.

— O que você quer saber?

Foi a vez de Jennifer hesitar.

— Quando eu falei para Angie que eu vi unicórnios e minha tia-avó

Emma tricotando, eu estava mentindo.

— Obviamente.

— Eu vi meus pais. Aconteceu alguma coisa lá e não foi sonho, nem

alucinação, foi real, bem real. Estávamos na praia, eles estavam sentados na

areia, eu estava no mar, e me recordo de tudo, inclusive das sensações, eu lembro


da temperatura do mar, do sol nos meus olhos, da voz deles me chamando. Então

eu resolvi atender o pedido da minha mãe e comecei a caminhar na direção

deles, mas depois de algumas passadas não consegui mais avançar, o mar

começou a me puxar de volta, eu lutava para ir, mas o repuxo me trazia e


comecei a me afogar, então me afoguei.

De forma atenta, Anna apenas a ouvia.

— O que aconteceu naquele campo? — Jennifer perguntou novamente.

Anna a olhou de forma séria e respondeu.


— Você morreu.

— Oi?

— Quando fui te socorrer você já estava morta.

Jennifer deu um sorriso confuso.

— Ok, eu morri, você também morreu e sua oficina é o paraíso ou o


inferno?

— Não, eu trouxe você de volta. E é verdade, eu fiz massagem cardíaca

em você várias vezes, por isso que você trincou três costelas, eu tentei como
pude te reanimar, mas não adiantava, era tarde demais.

— Então você sacou um desfibrilador do bolso e me deu choques até eu

voltar?

Anna olhava para o lado, procurando as palavras.

— Eu coloquei meu sangue em você.

Jennifer arregalou os olhos.

— Seu sangue?? Claro, o sangue de ouro!

— Você já havia ido, era a única coisa que me restava fazer, eu tive que
tentar.

— Então funciona em Vulpis... — Jennifer ainda se recuperava do


choque da informação.

— E muito bem, foi como uma descarga de adrenalina.


— Será que ainda tenho seu sangue correndo em mim? — Jennifer a
encarava com um semblante assustado.

— Não sei, talvez não tenha mais a esta altura, mas sinceramente não sei.

— Os híbridos não podem saber disso, de jeito nenhum.

— Eu seria severamente punida se eles soubessem, isso será um segredo

nosso. — Anna falou.

Jennifer balançou a cabeça devagar, concordando e pensando.

— O mar era você. — Jennifer deu um sorriso de lado.

— É... Acho que sim.

— Deve ter sido uma péssima visão, não? Eu... Assim... Morta.

— Péssima é um bom eufemismo. Estou tentando apagar essa imagem da


minha mente, foi o pior momento da minha vida.

Jennifer se aproximou mais, a abraçando.

— Que loucura, isso é tão surreal... Obrigada por pensar rápido e me

afogar. O corte na sua mão, foi para isso? — Jennifer desgrudou sua cabeça do
peito de Anna, a encarando.

— Foi sim.

— Será que eu fiquei forte como você?

Jennifer a largou e foi na direção de um pesado torno.


— Deixa eu testar. — Falou tentando erguê-lo.

Mas tudo que ela conseguiu foi derrubar a máquina, a bancada, e ela
própria.

— Jennifer! — Anna correu para socorrê-la.

— Acho que não fiquei mais forte. — Ela falava sorrindo, ainda no chão.

***

— Deem as boas-vindas para a mais nova integrante do clube de

frequentadores dessa espelunca. — Jennifer falou com as mãos nos ombros de


Angie, no pub de Oscar, era sábado à noite. Mesmo com apenas quinze anos,

Angie era mais alta que Jennifer.

— Ela tem idade para estar aqui? — Becca perguntou.

— Tem quinze, mas para o Oscar ela tem dezesseis, ok?

— Que trabalheira você deu, hein? Não suma mais, Anna quase surtou.

— Laura falou, após abraçar Jennifer.

As três se acomodaram na mesa onde já estavam Becca, Jim, Bob,


Lindsay e Laura.

Jennifer ergueu a mão, fazendo o pedido.

— Chope por minha conta para toda a mesa! — Falou, recebendo um


olhar sério de Anna, que apontou com a cabeça na direção de Angie. — E um
refrigerante para a mocinha aqui.
— Achei que a mãe dela não ia deixá-la vir. — Bob comentou com
Jennifer.

— Você não sabe a briga que comprei para trazê-la, mas usei bons

argumentos, prometi entregá-la sã e salva até uma da manhã e não permitir que

consumisse álcool ou drogas.

— E Anna, participou da negociação?

— Anna é a Suíça, mais diplomática impossível, mas ela acabou me

ajudando.

— O que rola aqui? Tem alguma banda tocando? — Angie abordou

Jennifer.

— Às vezes tem, hoje eu não faço ideia.

— Hoje tem a melhor banda da cidade. — Laura entrou na conversa.

— Sério, e qual seria? Ah... Entendi. Vocês vão tocar hoje?

— Yeah, baby, hoje tem um show imperdível dos Tangerinas.

— Ela toca baixo. — Jennifer contava para Angie.

— Caramba, que irado, me ensina?

— Claro, mas peça permissão para sua mãe e sua irmã com cara de

brava. — Laura falou olhando para Anna, mexendo com ela.

Anna riu.

— É só cara, Anna é um doce. — Jennifer disse, abraçando sua


namorada.

Depois de alguns minutos, Jennifer, Becca e Angie fora para a pista,


Laura sentou-se ao lado de Anna, virada de lado.

— Você deu sorte, a maioria dos sequestros não termina bem, o refém é

morto dentro das primeiras 48 horas, antes inclusive de pedirem resgate. —

Laura disse, entregando um chope para Anna.

— A diferença é que o objetivo desse sequestro era outro, era pessoal.

Mas concordo, tivemos sorte sim. E obrigada pela força e pelas buscas.

— Anna, sei que eu tive aquele lance com Jennifer, mas independente

disso, eu admiro a relação de vocês, dá pra notar o quanto vocês se amam, e isso
é tão raro nos dias de hoje. Eu realmente torço para que vocês fiquem juntas para

sempre.

— Obrigada. — Anna sorriu sem jeito.

— E enquanto eu falava isso, Jennifer deu o fora numa garota, lá na

pista.

— Sério? — Anna se virou para trás, olhando.

— Ahan, acho que ela ia gostar se você fosse lá.

Anna levantou-se e foi para a pista, abraçando Jennifer por trás.

— Olha quem veio para a pista! — Jennifer disse com um sorriso aberto,
se virando em seguida.
— As garotas já começaram a te abordar?

— Como você viu? Você estava de costas.

— Eu sou um X-Men.

***

Onze dias depois.

Era dez da manhã de uma quarta-feira nublada de setembro, o frio do

outono já estava querendo dar as caras.

Anna foi ao apartamento de Jennifer e como já esperado, ela estava

dormindo. Entrou no quarto e enfiou-se debaixo da coberta, silenciosamente.

Aproximou-se e deu um beijo no seu pescoço.

Jennifer levou um susto e defendeu-se do ‘sabe se lá o que’ com os

braços, acertando Anna no nariz.

— Au! Ai! — Anna grunhiu, com a mão no nariz.

— É você?? — Jennifer se deu conta.

— Quem mais poderia ser?

— Deixa eu ver seu nariz, te machuquei? — Jennifer sentou-se, tirando a


mão dela de cima do nariz.

— Precisaria de dez Jennifers para conseguir me machucar. — Anna


disse, com sarcasmo.

— Ah é? — Jennifer montou na cintura dela. — Acha que é a mulher de


aço? Eu derrubo você com uma mão nas costas, sabia?

— Essa eu pagaria para ver.

— Tire as calças e fique de pé. — Jennifer desafiou.

Anna riu, pegando Jennifer pelos pulsos e trazendo para perto dela.

— Não, assim não vale.

Jennifer lançou um olhar malicioso e a beijou, foi o suficiente para

incendiar o quarto e o clima. Anna girou e ficando por cima, levantando a

camiseta de Jennifer e descendo seu corpo com beijos lentos.

— Você precisa fazer mais visitas matinais. — Jennifer falou.

Anna apenas ergueu o braço e cobriu a boca de Jennifer, continuou

descendo com seus beijos quentes e demorados, por fim tirando a calcinha dela.

Estacionou entre suas pernas, arrancando um gemido surpreso de Jennifer.

***

— Algo me diz que você não veio aqui apenas para sexo matinal. —

Jennifer falou saindo do banheiro com seu roupão marrom.

— Não, vim te buscar para uma missão. Uma missão pacífica.

— Que missão?

— Já te conto, mas antes quero te fazer um convite. Vem aqui. — Anna


disse, vestindo sua blusa, na cama.

— Sou toda ouvidos. — Jennifer sentou-se de frente para ela.


— Você ainda quer fazer uma tatuagem?

— Claro, não só aquela em cima do V, mas estou pensando em outras


também.

— Quero te levar no estúdio onde fiz a minha, o que acha?

— Perfeito, a sua é linda. — Jennifer se animou.

— Ok, me dê alguns dias para organizar tudo então.

— Organizar? Esse estúdio não é aqui na cidade, não é?

— Não, é um pouquinho longe. É no Brasil.

— E você quer me levar para o Brasil? — Jennifer assustou-se.

— É a intenção, topa?

— Que pergunta besta! Quando vamos?

— Acho que consigo ajeitar tudo em dez dias.

— Porra, que massa! Vamos para o Brasil!

— Tem outro lugar lá que quero te levar.

— Uma bela praia, eu imagino.

— Também, mas é outro lugar. Depois de algumas indicações, eu entrei

em contato com um cirurgião plástico no Rio, dizem que é um dos melhores na


área, acho que ele vai poder fazer um bom trabalho em você.

— Um cirurgião plástico... — Jennifer a encarava, hesitante,


— A não ser que você não queira ir.

— Bom, eu já te falei que as cicatrizes não me incomodam, mas se te


perturbam, até porque quem tem que olhar para elas é você, então tudo bem, eu

vou. E também não correrei mais o risco de assustar criancinhas na praia.

Anna sorriu, contente, se inclinou para um beijo.

— E qual é a missão pacífica?

— Bem lembrado, vista alguma coisa, vou te alimentar e depois vamos

para Hartland.

— Onde fica isso?

— Fica a 105 quilômetros a nordeste.

— E o que temos que fazer em Hartland, cidade que sequer ouvir falar?

— Você já esteve lá.

— Estive? — Jennifer a fitou com a testa enrugada.

— Você não sabe mesmo que dia é hoje, não é?

— Ãhn... Quarta?

— Onze de setembro.

— E?

— Hoje faz um ano que nos conhecemos.

— Jura? Um ano que aconteceu aquela papagaiada toda?


— Alguém no casal tem que lembrar das datas importantes, não é?

— Que fofo. — Jennifer lhe deu um beijo na testa.

— A viagem é longa, você escolhe se quer ir de moto ou carro.

— Isso tudo é muito meigo, mas porque temos que ir lá? Não podemos
comemorar aqui?

— Eu sei que você estava com febre, mas você se recorda do que falei

quando eu te contei que havia pego emprestado a fita adesiva e a garrafinha de

uísque do armazém?

Jennifer lembrou-se, dando risadas.

— Você vai devolver? Não acredito!

— Claro, eu prometi devolver, hoje é o dia ideal para cumprir a

promessa.

— Cara, você não existe... Ok, vamos de carro, mas você vai ter que me

orientar, não faço ideia de como chegar lá, quer dizer, só sei chegar de trem de

carga.

Um pouco depois das três da tarde estacionaram o carro ao lado da


pequena estação ferroviária amarela, foi preciso passar por uma estrada rural

para chegar lá. Jennifer com uma camisa xadrez vermelha e preto, Anna com
uma blusa preta, jeans e bota.

— É aqui. — Anna falou, já saindo do carro.


— Caramba... Até me deu uma... Olha aqui meu braço! — Jennifer
mostrava o braço com os pelos arrepiados para Anna. — É esse armazém?

— É sim. Entra comigo?

— Claro. Da outra vez você não quis me levar, preferiu Becca. — Falou

com sarcasmo. Após alguns passos adentraram o estabelecimento.

— Boa tarde, eu estive aqui um ano atrás, era você que estava atendendo,

certo?

— É bem provável que sim, eu sou a dona e já faz tempo que cuido disso

aqui sozinha. — Uma senhora de cabelos claros e óculos de lentes grossas

respondeu, estava sentada numa banqueta atrás do caixa.

— É, eu lembro de você, eu estive aqui com uma outra garota, e bom...

Sei que vai parecer estranho, mas na ocasião estávamos numa situação

desfavorável, eu estava com um pequeno grupo, incluindo ela, e viemos ao seu

armazém.

Anna abriu um saco de papel pardo e tirou uma pequena garrafa de

uísque e um rolo de fita adesiva, colocando sobre o balcão.

— Minha colega comprou algumas coisas com você, mas eu peguei dois
produtos emprestados, e vim hoje devolver, eram exatamente iguais a estes.

Desculpe ter agido desta forma, mas essa garota aqui estava com um ferimento
feio no ombro, que estava infeccionando, e graças a estes dois itens eu pude

limpar e evitar que algo pior acontecesse.


— Nossa, não sei o que falar... Mas fico contente que mesmo sem ter
ideia do que aconteceu, pude ajudar.

— Ajudou sim. Quero que fique com isto, é um agradecimento

simbólico. — Anna correu sobre o balcão um envelope recheado de notas.

A mulher pegou o envelope e olhou rapidamente para o interior.

— Não precisa, você explicou que foi uma necessidade.

— Por favor, fique, considere um presente. E mais uma vez, desculpe o

pequeno furto.

Despediram-se e seguiam para o carro, quando Anna a abordou.

— O que acha de procurarmos a casa? — Ela sugeriu.

Jennifer sorriu animada.

— Seria ótimo, se ainda estiver de pé.

— Vem, vamos arriscar, temos que passar pela estação e descer do outro

lado. Andaram mais alguns instantes e logo identificaram alguns locais.

— Eu sentei aqui, junto à essa parede, enquanto você furtava o armazém.


— Jennifer apontava para a parede ao lado da estação, já depois de descerem no

descampado onde fizeram a caminhada até as casas.

— Se eu tivesse levado você com a jaqueta suja de sangue, a moça


simpática teria percebido algo.

— Mas eu teria te ajudado no furto.


— Anda, vamos procurar a casa, são uns quinhentos metros até lá.

Caminhavam lado a lado, organizando as lembranças daquele dia.

— Eu olhei para você, e você estava super séria, eu pensei ‘ela deve ter
se arrependido amargamente de ter nos ajudado’. — Jennifer disse.

— Não, eu estava preocupada com seu ombro. Também dei uma olhada

em você, e você estava pálida e suando.

— Eu já estava ruim. Enquanto eu andava às vezes minha visão

escurecia.

— Mas foi procurar lenha depois.

— Eu queria ajudar. A rua começa aqui, acho que é na quadra seguinte,

não é?

— Sim, logo ali na frente, à esquerda.

Chegaram na rua fantasma com casas abandonadas ou destruídas,

reconheceram em seguida a casa, ainda estava de pé.

Entraram na casa, aquela mesma sala que as abrigou agora estava com
mais lixo e poeira, haviam removido a madeira das janelas. Deram alguns passos
pelo ambiente, dando uma olhada ao redor.

— A lareira tá intacta. — Anna falou e virou-se para trás, Jennifer estava

olhando para o canto onde elas passaram a noite, foi até ela.

— Foi aqui que dormimos. — Anna disse, ao lado de Jennifer.


— Foi. — Jennifer falou com um pequeno sorriso nostálgico.

Anna se aproximou mais e entrelaçou seus dedos na mão de Jennifer.

— Tinha que acontecer. — Jennifer se deu conta.

— O que?

— Nós. Eu senti uma ligação, era confuso no meio daquela situação


surreal, nem eu compreendia o tamanho do que estava acontecendo, mas hoje eu

entendo que eu acordei naquela manhã apaixonada por você.

Anna soltou sua mão e ficou de frente para Jennifer, com as mãos no
bolso da calça.

— Se arrepende de algo? — Anna perguntou.

Jennifer colocou suas mãos nos ombros dela e a encarou pensativa.

— Sim. Aquela briga idiota que tivemos e que me custou um mês sem

você.

Anna passou seus braços na cintura dela, a trazendo para perto.

— Talvez aquilo tenha nos fortalecido.

— Passo.

— Mudou alguma coisa? De um ano para cá?

— Eu tenho mais amor por você agora. E eu tenho tanto, mas tanto de
você no meu coração. Você sabe disso.
— Sei. — Anna respondeu quase num sussurro, balançando a cabeça
com um sorriso leve. — E também sei que amei você desde o início.

— Mas tem uma coisa que você não sabe. — Jennifer disse.

— O que?

— Naquela noite, ali nesse canto, teve um momento de madrugada que

eu acordei. Mas fiz de conta que estava dormindo para que você não parasse de

mexer no meu cabelo.

Anna riu e a beijou.

— Também tenho algo a confessar.

— O que?

— Eu sabia que você estava acordada.

— Sério?

Anna balançou a cabeça, confirmando.

— Vamos? — Anna convidou, a soltando.

— Sim. Mas vou gravar nossos nomes na parede, me dê sua adaga.

— Como sabe que eu trouxe uma?

— Você sempre anda com uma. — Jennifer falou, pegando a adaga dela.

Levou algum tempo gravando os nomes na parede, queria escrever algo


legível.
— Vamos Jen, não quero você dirigindo à noite.

— Já vou. Pronto, terminei. Espera aí, do que você me chamou?

FIM

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