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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

FACULDADE DE LETRAS / CURSO DE PORTUGUÊS


DISCIPLINA: TEORIA DA LITERATURA 1-A
ORIENTADOR: PROF. DR. ROBERTO SARMENTO LIMA

Problematização da literatura: pela teoria da literatura e pela própria


literatura

Textos literários para reconhecimento da teoria:

1. Texto 1

Na época estava proibido fumar crack na Vintém. As coisas tinham fugido


do controle: muito roubo, briga, perturbação. Crack é foda. O que traz de
dinheiro traz de problema pra quem trabalha na boca. Pro morador é ainda
pior, porque aí é só perrengue, vergonha, preocupação. Uma coisa era certa:
parar de vender, os traficantes não iam, já estavam acostumados demais com
os lucros da pedra. A saída que encontraram foi criar essa lei proibindo o
consumo dentro da comunidade. Pra falar a verdade, não lembro com certeza
se a ordem valia pra toda a favela, ou apenas pra linha do trem, onde a parada
era mais frenética.
[...] A noite tinha acabado de cair, e quando o consumo era liberado era
esse o horário de pico. Juntava gente que saía do trabalho, da escola, os que
desciam do trem e os que acampavam pela favela. A noite protegia os que
tinham medo de explanar o vício. Quando escurecia, na linha do trem ninguém
tinha mais nome nem rosto pra quem passasse de fora, era tudo um único
monte de viciado.
Sempre lembro de uma mulher que conheci na linha do trem. Primeiro
ela tentou me vender um guarda-chuva, depois me contou que toda a sua
família era de Alagoas, e que ela deixou todos pra trás pra vir pro Rio com o
marido, tentar a vida, porque lá tava foda dele arrumar emprego. [...] Enquanto
a mulher caía em prantos, fiquei analisando o que restava de seus dentes,
pensando se era verdade aquela história ou se ela só estava se esforçando
muito pra me comover e conseguir algum dinheiro.
[...]
— Vocês só falam de droga, nunca vi.
— Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe.
Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para.
Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem
polícia, não tem gari, não tem nada. Vai ficar todo mundo surtando de
abstinência. Cocaína, Rivotril, LSD, balinha, crack, maconha, Novalgina, não
importa, mano. A droga é o combustível da cidade.
— A droga e o medo — concluí.
[...]
A música tocava no barzinho atrás da parede da estação. Não me lembro
bem, parece que o Felipe puxou o bonde cantando junto com o vocal do
Katinguelê e logo fomos atrás, batendo palma, abrindo os braços, dando risada.
Até cairmos no silêncio absoluto.
Eu nunca entendi esse movimento. Quero dizer, sempre me senti
profundamente incomodado com esses silêncios inexplicáveis. É sempre como
se alguma coisa estivesse rompendo. De um momento pro outro tudo se desfaz,
tudo desaba, e ficamos sozinhos frente ao abismo que é a outra pessoa. Daí
vem uma vontade de falar não sei o quê, só pra tentar reunir uns pedaços da
gente, meia dúzia de restos espalhados pelo mistério que é a convivência.
[...] Muitas vezes a gente fica fumando um tempão sentado e não sente
nada, aí quando levanta é que percebe que tá chapado. [...] Não entendi o que
estava acontecendo e aquilo começava a me incomodar.
[...]
Aos poucos minha pressão foi voltando ao normal, olhei pros moleques e
parecia que era a primeira vez que os via naquela noite. [...] Vi meus amigos
ganhando cada vez mais distância de mim, que perdia velocidade por estar
pensando: “Um dia ainda escrevo essa história”.

(“Estação Padre Miguel”, in: O sol na cabeça, de Geovani Martins, 2018)

2. Texto 2

A tarde ia morrendo.
O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas que
iluminava com os seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se
como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.
Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri
abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite.
Os animais retardados procuravam a pousada, enquanto a juriti, chamando a
companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.
Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol, e confundia-se com o
rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda, e ceder à doce
influência da tarde.
Era a Ave-Maria.

(“A prece”, in: O guarani, de José de Alencar, cap. VII da Primeira Parte, 1857)
Texto teórico de apoio ao debate:

Se os sinais gráficos que desenham a superfície do texto literário fossem


transparentes, se o olho que neles batesse visse de chofre o sentido ali presente, então
não haveria forma simbólica, nem se faria necessário esse trabalho tenaz que se chama
interpretação.
Acontece, porém, que as palavras não são diáfanas. Ainda quando miméticas ou
fortemente expressivas, elas são densas até o limite da opacidade. Esse fenômeno é
estrutural. O processo em que se gesta a escrita percorre campos de força contraditórios,
em parte subtraídos à luz de uma consciência vigilante e sempre dona de si própria.
Na invenção do texto enfrentam-se pulsões vitais profundas (que nomeamos com
os termos aproximativos de desejo e medo, princípio do prazer e princípio de morte) e
correntes culturais não menos ativas que orientam os valores ideológicos, os padrões de
gosto e os modelos de desempenho formal.
A cultura, porque é trabalho e projeto, transforma, conservando, o ímpeto que
levaria à efusão imediata dos afetos. Assim sendo, como poderia ser translúcido o
resultado de um percurso cuja natureza lembra menos a rota batida que o labirinto?

(BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: BOSI, Alfredo. Céu, inferno:
ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1986. p. 274-287)

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