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Contar histórias para promover leitura

Lucia Helena L.Santos Silva e Sueli Rocha

Era uma vez um menino que adorava ouvir histórias antes de dormir.
A cada noite, um criado enchia sua imaginação de fadas, bruxas,
dragões etc. O pequeno dormia feliz, exausto por vivenciar tantas
aventuras, nas quais com certeza era sempre ele o herói, o vencedor. O
menino era egoísta e, por mais que os amigos pedissem, não recontava
a eles as histórias ouvidas. O tempo passou,o criado envelheceu, o
menino cresceu e não quis mais saber de histórias. Eram outros os seus
interesses, então. Já rapaz, apaixonou-se e quis casar. Um dia antes do
casamento, o velho empregado foi ao quarto do noivo, ajudá-lo nos
preparativos. Com surpresa, ouviu ruídos estranhos que vinham de um
saco há muito esquecido atrás da porta. Veio-lhe à memória que aquele
era o saco onde ficavam guardados os espíritos de todas as histórias
que ele contava ao garoto, agora rapaz. Prestou atenção e ouviu que os
espíritos das personagens que eram más planejavam uma vingança
mortal àquele que, por egoísmo, manteve-os presos por tanto tempo.
Os espíritos das personagens boas, por medo, mantinham-se calados.
Usando de toda a sua experiência e sabedoria, o velho destruiu cada
uma das armadilhas preparadas para o rapaz, matando até uma cobra
escondida no quarto do jovem casal. A cobra foi o último recurso usado
pelos espíritos maus em sua vingança contra o egoísta que os prendera
durante tanto tempo. O criado contou então a todos sobre a vingança
dos espíritos das histórias, esquecidos presos na velha sacola.
Agradecido por ter sido salvo, o rapaz prontamente acreditou no que
ouvira e, arrependido, prometeu que, de ora em diante, contaria muitas
histórias. A cada história contada, os espíritos presos eram libertados
para, felizes, povoarem a imaginação de outras pessoas.

Essa história (resumo do conto coreano "A sacola de couro", recontado


por Zette Bonaventure, no livro "O que conta o conto?", publicado pelas
Editoras Paulinas) nos faz refletir sobre quantos contos já não se
perderam por falta de alguém que os contasse. Quem ainda se lembra
de Pele de Asno, de A Moura Torta e das façanhas de Mata Sete? Esses e
tantos outros estão à espera de serem servidos como um banquete a
crianças ávidas de aventuras e emoções.

Esse conto nos remete também a uma outra reflexão: mudaram os


tempos, mudam os costumes. À hora de dormir, o sono infantil era
embalado por alguém de voz carinhosa que contava, contava e
recontava mil e uma aventuras, abrindo as portas para o mundo da
ficção. É evidente que poucos tinham criados contadores de histórias.
Mas sempre havia uma avó, um pai, mãe ou tia a fazer, através da
oralidade, o primeiro contato da criança com o mundo da fantasia.
E era essa fantasia que possibilitava à criança, sem sair do lugar,
descobrir outros lugares e outros tempos, vivenciar as mais diferentes
emoções (o riso, o choro,a raiva, a tranqüilidade), descobrir soluções
para os próprios conflitos, viver outros papéis, identificar-se com
personagens, enfim abrir os olhos para a vida e ver a vida com outros
olhos.

Mudaram os tempos, mudam os costumes. Hoje, poucas famílias


conservam o antigo hábito de contar histórias para as crianças à hora de
dormir. Para quem ficou a função de provocar a imaginação infantil? Não
queremos entrar na polêmica sobre o papel da televisão, nesse aspecto.
A nossa preocupação é que a escola, que também deveria suscitar o
imaginário infantil, dedica a essa tarefa um tempo insuficiente para
obter algum resultado minimamente satisfatório.

Acreditamos que o professor, enquanto verdadeiro agente da ação


educativa, deve tomar para si a função de estimular a imaginação dos
alunos contando histórias de maneira natural, e sempre, não apenas na
restrita "hora do conto". Vários são os momentos propícios para isso:
um fato é melhor entendido se acompanhado de sua história: a história
das grandes descobertas e invenções, as lendas, a história dos vencidos,
a história da matemática, da mitologia greco-romana, por exemplo,
podem servir como elementos instigadores da imaginação do aluno,
levando-os a questionar, a formular hipóteses, a inventar outras
histórias.

Ao contar histórias, o professor estabelece com o aluno um clima de


cumplicidade que os remete à época dos antigos contadores que, em
volta do fogo, contavam a uma platéia atenta as histórias de seu povo,
as origens das coisas, os costumes, os valores etc. Para que não
precisemos inventar a roda a cada dia, é necessário que o patrimônio
cultural que a humanidade acumulou durante séculos seja conhecido
pelas novas gerações. E nada melhor do que contar histórias, para fazer
reviver o que existe na memória coletiva. A esse respeito o escritor
uruguaio Eduardo Galeano escreveu em A paixão de dizer/2:

"Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente


que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro,
os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória,
coletiva, está todo brotado de pessoinhas" (O livro dos
abraços, L&PM).
É que, ao narrar um conto da memória coletiva, o professor/contador
reativa uma cadeia de contadores de histórias que vem do início das
civilizações até os nossos dias. É difícil imaginar, por exemplo, por
quantas bocas passou o conto "Festa no Céu" (cujos registros em
cerâmica e tapeçaria datam do século IV A.C., como relata Maria Clara
Cavalcanti de Albuquerque, em Kayuá - o dom da palavra, monografia
não editada, 1998) para chegar aos nossos dias, contando uma história
tão atual como a das artimanhas de alguém que quer entrar numa festa
como "penetra", por não ter sido convidado. A voz do contador de
história perpetuou esse e outros contos da tradição oral. Nas sociedades
primitivas africanas, ainda não abrangidas pela escrita sistematizada, os
contadores de histórias (os "griots"), considerados verdadeiras
bibliotecas vivas, são poupados até das guerras "paraque continuem
narrando as proezas dos povos africanos" (Barbosa, R. A., Bichos da
África 2, editora Melhoramentos). A importância desses contadores de
histórias é tal que, segundo Alex Haley, em Negras Raízes (editora do
Círculo do Livro), "quando um griot morre é como se toda uma
biblioteca tivesse sido arrasada pelo fogo".

Mudaram os tempos, mudam os costumes. A platéia não se reúne mais


em volta do fogo, mas numa escola: as histórias saídas da boca do
velho contador foram parar dentro dos livros. Os contadores de
histórias, no entanto, continuam sendo cada vez mais necessários. Por
quê? É preciso lembrar que os livros só são úteis se existissem leitores.
A escola, preocupada com a ação de ensinar a ler, relegou a um último
plano a formação de leitores, assunto complexo, mas que certamente
passa pelo estímulo à leitura pelo simples prazer de ler. Ler pelo gosto
de ler, sem cobrança maior que a de deixar a imaginação correr solta
para criar outros mundos. Então os contadores de histórias, os
professores contadores de histórias são necessários, sim. São eles o elo
entre a criança e o livro. Enquanto ouve uma história, o aluno
transforma-se em produtor de texto, em co-autor da história que lhe é
contada, pois com as pistas que a voz do contador lhe oferece, desenha
na cabeça épocas, lugares, personagens. E a voz do contador, atenta à
reação da platéia, alteia-se, sussurra, faz pausas, treme, transforma a
leitura do conto num mágico momento de cumplicidade. Terminada a
história, o ouvinte quer prolongar seu prazer de ouvir. É a hora em que
o professor contador deve promover o encontro entre o aluno e o livro
onde está a história contada; é a hora de ler o registro escrito e a
ilustração, é a hora de confirmar/negar as hipóteses levantadas
enquanto a história era ouvida. É também a hora em que o
ouvinte/leitor percebe que pode reler os trechos de que mais gostou,
pular páginas, ler uma frase aqui, outra ali, enfim, pode escolher o rumo
de sua leitura e ir em busca de outras histórias do mesmo autor ou de
outras histórias do mesmo gênero, trilhando os caminhos para a sua
formação de leitor crítico, constatando, cotejando, transformando, como
diz o Prof. Dr. Ezequiel T. Silva, em O ato de ler (editora Cortez: Autores
Associados).

O que temos comprovado na prática é que, depois de ouvir uma história


bem contada, a reação imediata do aluno é pedir o livro para ler. O
professor que se preocupa com a promoção da leitura deve disponibilizar
para os alunos livros dos mais variados gêneros e autores, gibis, jornais
e revistas, de forma a possibilitar-lhes a ampliação do repertório
enquanto leitores.

O ser humano é, por natureza, contador de histórias. Algumas técnicas


e vivências podem ajudar o professor a utilizar bem essa característica
que lhe é própria. Dessa forma, a atividade de contar histórias pode se
transformar num importantíssimo recurso de formação do leitor para
toda a vida e não apenas para a escola.

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