Você está na página 1de 5

Poemas

Mestiço

Mestiço

Nasci do negro e do branco


e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande


uma alma feita de adição.

Foi por isso que um dia


o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
– Mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei...
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca


sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é....
Francisco José Tenreiro- poeta de São Tomé e Príncipe
A minha dor

Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.

E o preto que gritou


é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia.

José Craveirinha- poeta de Moçambique

Naturalidade

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
européias
e europeu me chamam.

Não sei se o que eu escrevo tem a raiz de algum


pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e o silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.


Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli – poeta de Moçambique


Aspiração

Ainda o meu canto dolente


e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas

Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar

Ainda os meus braços


ainda os meus olhos
ainda os meus gritos

Ainda o dorso vergastado


o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida

E sobre os meus cantos


os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado

Ainda o meu espírito


ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco

Ainda a minha vida


oferecida à Vida
ainda o meu desejo

Ainda o meu sonho


o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer

E nas senzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.

Sou um mistério.

Vivo as mil mortes


que todos os dias
morro
fatalmente.

Por todo o mundo


o meu corpo retalhado
foi espalhado aos pedaços
em explosão de ódio
e ambição
e cobiça de glória.

Perto e longe
continuam massacrando-me a carne
sempre viva e crente
no raiar dum dia
que há séculos espero.

Um dia
que não seja angústia
nem morte
nem já esperança.

Dia
dum eu-realidade.

Agostinho Neto- poeta e primeiro Presidente de Angola

Observação:
quissange: espécie de pequeno xilofone

Você também pode gostar