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All content following this page was uploaded by Flávia Ferreira Pires on 03 May 2021.
resumo1 Este pequeno texto foi concebido as nunca foi a campo, mas “recebera do céu a gra-
voltas da primeira ida a campo de um grupo de jo- ça especial de ser um homem de campo sem
vens pesquisadores, quatro estudantes do curso de sair da sua poltrona” (Dumont, 1985 [1972],
Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba p.83) para nos ensinar como ser homens e
(UFPB), colaboradores, através de bolsas PIBIC e mulheres de campo. Seguindo a inspiração
PIVIC, de um projeto de pesquisa sobre os impac- maussiana, podemos dizer que as habilidades
tos de políticas públicas na vida familiar sertaneja. antropológicas podem ser desenvolvidas e pra-
Ele foi pensado como um roteiro sentimental, no ticadas em todo ambiente que frequentamos.
qual, a professora que os acompanharia, tecia alguns Um exemplo pode ser elucidativo: certamente,
comentários ditos como pertinentes para o bom an- Lévi-Strauss (2003) não observou o “ritual” de
damento do trabalho de campo, cuja duração seria oferecimento do vinho nos “restaurantes bara-
de sete dias. O tom do texto é pessoal e dialógico. tos do sul da França” como parte de um projeto
Dialoga, prioritariamente, com este grupo de neó- de pesquisa convencional. Posso imaginar – e
fitos, e curiosamente, reivindica Marcel Mauss – o peço desculpas se peco contra a objetividade -,
antropólogo que praticamente nunca foi a campo -, que ele mesmo tenha sido pego de surpresa ao
como interlocutor privilegiado. ser-lhe oferecido um copo farto de vinho pelo
palavras-chave Pesquisa de campo. Marcel comensal da mesa ao lado. Talvez viajasse de fé-
Mauss. Etnografia. Trabalho coletivo. Neófito rias pela região... a observação é essencial: olhar
o geral e também atentar para os detalhes. O
antropólogo é, pois, esta pessoa que ao olhar
... observar o que é dado. Ora, o dado é Roma, enxerga coisas que nem todos veem e ao olhar,
é Atenas, é o francês de classe média, é o me- ele também classifica. Árvore : casa :: pássaros :
lanésio dessa ou daquela ilha, e não a prece ou homens e assim por diante. Lembram-se do tex-
o direito em si (Mausss, 2003 [1925], p. 311). to de Bourdieu sobre a casa kabyle? (Bourdieu,
1999 [1970]) E mais, ao ver objetos, ônibus,
avenidas não vemos apenas sua materialidade.
Minhas caras alunas, Meu caro aluno, Em função da casa, vemos quem ali habita; em
Foi pela apreensão nos olhos de alguns de função dos objetos, seus diversos usos segundo
vocês – e, acredito, na alma de todos nós –, ao diferentes atores; em função do ônibus, vemos
lhes dizer que o trabalho de campo se aproxi- o motorista, o trocador, as empresas de ônibus,
mava, que decidi escrever este pequeno texto; os passageiros em toda a sua imensa varieda-
notas para serem lidas antes de embarcarmos de, etc. Aliás, como diria Lévi-Strauss qualquer
para o nosso curto período de campo em Ca- classificação é melhor que classificação nenhu-
tingueira, Paraíba. ma, qualquer ordem preferível à desordem, e
Curiosamente, ninguém melhor que Mar- parece ser assim que o antropólogo constrói
cel Mauss, um antropólogo que praticamente conhecimento.
o de si mesmo – este sim, que os farão antropó- e o Programa Bolsa-Família. Analisando Impactos de
logos e antropólogas. Mas continuar a falar deste Políticas Públicas no Semi-árido Nordestino Brasileiro.
Agradeço aos que generosamente leram e contribuí-
desprendimento de si, a famosa relativização da
ram para este artigo: Otavio Velho, Mónica Franch,
própria cultura ou exotização de si mesmo e a Patricia Reinheimer, Léa Perez, Maria Ana Dias, João
naturalização ou familiarização do que nos é es- Ricardo Ferreira Pires, mas as opiniões aqui emitidas
tranho é assunto para um texto de maior fôlego, são de minha inteira responsabilidade.
o que no momento me falta. 2. Ele dizia ser capaz de reconhecer uma jovem educa-
Enfim, preparem-se. Depois do campo vi- da no convento pelo gestual das mãos ([1935] 2003,
404), a nacionalidade de uma criança pequena a par-
rão os congressos, os artigos a serem escritos, os
tir da sua maneira de se portar à mesa, ou de um adul-
debates entre os pares7, as defesas, as seleções, os to pelo seu modo de caminhar ([1935] 2003, 403-4).
concursos, os editais de pesquisa e, finalmente, os 3. Mas é preciso que saibam que uma semana de tra-
alunos... e a vida seguirá assim: como uma gan- balho de campo não é suficiente; já que não permite
gorra antropológica, pontilhada ora de espanto, muitos erros ou cansaços e nem grandes descobertas.
ora do aconchego bom de se saber parte de uma O que vamos fazer é apenas uma rápida e incompleta
introdução a cidade de Catingueira, tendo em vista
comunidade, uma aldeia, a dos antropólogos...
um projeto de pesquisa bem delimitado (e portanto,
limitado).
4. Mauss nunca terminou sua tese de doutorado e, em
!"#$%!"#&'()*+$,#(-.+(/!'01.+2 vida, nunca publicou um livro.
abstract This short text was designed when a 5. O professor Otavio Velho discute o trabalho de cam-
group of four young researchers were facing their po e as mudanças ocorridas no seio da disciplina
antropológica, sobretudo, no Brasil, desde a década
first fieldwork trip. Students of the Social Sciences
de 1960, na Aula inaugural no Instituto de Filosofia
undergraduation program at the Federal Universi- e Ciências Humanas da Universidade do Estado do
ty of Paraíba (UFPB), who collaborated thanks to Rio de Janeiro proferida a 15 de março de 2006. O
the PIBIC and PIVIC scholarchips on a research texto foi publicado pela Revista Interseções (UERJ)
project on the impact of public policies upon the em 2006. O autor advoga que o trabalho de campo
backwoods family life. The article was thought as deve implicar em aprender a aprender ou de deutero-
aprendizado, conceito cunhado do Gregory Bateson.
a sentimental script, in which the professor who
Para construir este argumento, Otavio Velho também
accompanies them, draws comments said to be re- lança mão de autores como Tim Ingold e Paul Strol-
levant for the good course of the seven days of fiel- ler. Diz ele: “No que diz respeito ao trabalho de cam-
dwork. The tone of the text is personal and dialogic. po, pode-se dizer que o aprendizado até a década de
It dialogues primarily with this group of neophytes, 60 era de natureza extremamente artesanal e prática,
and interestingly, vindicates Marcel Mauss – the an- quase como numa corporação de ofícios. Pessoalmen-
te, mal chegara ao Museu e já era incorporado como
thropologist who scarcely went to the field – as a
aprendiz ao trabalho de campo de Roque Laraia junto
privileged interlocutor aos índios Suruí do Tocantins paraense numa viagem
keywords Travel research . Marcel Mauss. Eth- que se iniciou juntamente com a família DaMatta,
nography. Collective work. Neophyte que se dirigia aos índios Apinajé. Não podia desejar
melhor introdutor de campo e essa experiência, fora
dos bancos escolares, me marcou profundamente”.
(Velho, 2006, p.11).
Notas 6. Em visita a nossa universidade em junho de 2010, o
professor José Guilherme Magnani nos brindou com
1. O texto foi escrito especialmente para (e é dedicado) uma palestra emocionante, na qual a partir da sua in-
a George Ardilles, Jéssica Karoline da Silva, Patrí- serção na antropologia, afirmou dentre outras coisas
cia dos Santos, Tatiana Benjamin, colaboradores do importantes, que dar, receber, retribuir, os três movi-
projeto de pesquisa que coordeno A Casa Sertaneja
mentos da dádiva maussiana, eram o lema do seu gru- ______. Para reescrever a biografia de Marcel Mauss...
po de pesquisa. Gostaria também que fosse o nosso. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol.
7. Mónica Franch (2010) em artigo inspirador afirma o 18, n. 53, 2003, p. 5-13.
caráter coletivo do trabalho acadêmico, enfatizando o GLUCKMAN, Max. “Análise de uma situação social
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Recebido em 01/02/2011
Aceito para publicação em 26/09/2011